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Título:

O Céu, a Pedra e a Terra – Os Cistercienses em Alcobaça

Autores:
Amílcar Coelho, António Maduro e Rui Rasquilho

Capa:
Nossa Senhora do Claustro - Escultura renascentista atribuída a Nicolau Chanterenne
que figurou na fachada primitiva da Igreja, passando para o claustro em 1702.

Editor:
Centro do Património da Estremadura (CEPAE)

Praça Mouzinho de Albuquerque


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2440-901 Batalha

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Coleção:
Estremadura: Estudos & Documentos, n.º 2

Direção Editorial:
Joaquim Ruivo, Gonçalo Cardoso, Ana Saraiva, Sérgio Barroso
e Mário Rui Rodrigues

Direção Financeira:
Eduardo Oliveira

Consultores Científicos:
Saul António Gomes (História), Pedro Redol (História da Arte),
Isabel Brás (Arqueologia), Ana Saraiva (Património),

Execução gráfica:
Gráfica Almondina – Torres Novas
ISBN:
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Depósito legal:
344 897/12
Tiragem:
1 000 exemplares

Junho 2012
Amílcar Coelho – António Maduro – Rui Rasquilho

O Céu, a Pedra e a Terra


Os Cistercienses em Alcobaça
Introdução

E
m – O Céu, a Pedra e a Terra, Os Cistercienses em Alcobaça – o
objectivo é falar da espiritualidade, da obra e do espaço de Cister,
tendo o Mosteiro de Alcobaça e os seus Coutos como principais
referenciais. Ao invés de uma demanda metodicamente estruturada numa
visão sistemática e fechada sobre si mesma privilegiou-se, neste livro, a
singularidade do olhar, devidamente pautado pela idiossincrasia metó-
dica de cada uma das abordagens, condimentada q.b. com o sentimento
“alcobacense” de cada um dos autores. O resultado final, que deverá ser
estabelecido após uma rigorosa prova de verificação, será de molde a
garantir, pelo menos, a pluralidade e a actualidade do tema que continua
a exercer um imenso fascínio sobre todos os que dele se aproximam.
No capítulo “O Espaço de Cister – Uma Heterotopia entre o Visível
e o Invisível” de Amílcar Coelho procura formular-se a problemática do
espaço de Cister, trazendo à colação o objecto fundador do Novo Mos-
teiro (séculos XII-XIII). Trata-se de descrever o funcionamento desse
espaço em termos de economia de salvação. Sendo concebido como uma
realidade que é preciso situar fora do mundo, o espaço monástico devia
ser como que uma prefiguração de um mundo para além deste mundo,
como uma espécie de alavanca e de ponte de um outro mundo, o mundo
do Conhecimento e da Verdade – um espaço entre o visível e o invisível.
No capítulo “Transparência da Pedra” Rui Rasquilho aborda a evolução
espacial e funcional da Abadia. Possante e gótica, a Igreja de Santa Maria
de Alcobaça é única na Península Ibérica. As naves de altura idêntica, os
5
arcobotantes do primeiro quartel do século XIII, a elegante charola e o
transepto de duas naves tornam-na original e sem modelo de continuidade
no espaço nacional. A Igreja serve o mosteiro, as dependências de clausura
dos cistercienses que nela rezaram, procurando Deus incessantemente
durante séculos. Sem a pedra que fez a casa que a Luz Divina trespassa,
seria mais difícil alcançar o invisível, a Jerusalém celeste. A oração e o
trabalho confundem-se no silêncio do claustro, na voz dos colonos e no
aroma do mosto no lagar.
No capítulo “Cister e a Terra, a criação e recriação da paisagem”
António Maduro visa salientar os elementos dinâmicos da matriz agrária
que os monges agrónomos souberam tecer no território. Privilegia-se uma
abordagem dos últimos dois séculos de vida do domínio sem descurar os
referentes e continuidades de um passado mais longínquo. Pretendemos,
em suma, evidenciar as fracturas e revoluções agrárias indispensáveis à
reinvenção do tempo longo, a uma salutar convivência de plantas, frutos
e homens. São na prática as artes do labora matérias imprescindíveis para
a manutenção da sociedade.
Sem qualquer pretensiosismo, os autores gostariam apenas de contribuir
para a evocação da memória dos cistercienses, cuja intensidade e espanto
são ainda do nosso tempo, um tempo que não esgotou ainda o mistério
que celebrou Cister e trouxe o enigma do seu empreendimento ao nosso
horizonte. Honremos, pois, a sua memória conferindo-lhe actualidade
com liberdade e competência críticas.

Os autores

6
O ESPAÇO DE CISTER
– UMA HETEROTOPIA ENTRE
O VISÍVEL E O INVISÍVEL

Amílcar Coelho
O ESPAÇO DE CISTER – UMA HETEROTOPIA
ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL

Rever a noção de espaço na perspectiva de Cister

O
s nossos trabalhos sobre o espaço remontam a dois estudos pu-
blicados em 2010, respectivamente Entre o Céu e a Terra há a
arte que penetra o labirinto e interpela o monstro1 e A filosofia
e o aprender a filosofar – O labirinto, o monstro e a serenidade2. Nes-
tes trabalhos reúne-se já o essencial do nosso projecto de investigação
sobre o espaço, prosseguido no estudo dado à estampa com título Cister
e o espaço entre o visível e o invisível - para uma filosofia do espaço
(2012), o qual junta algumas das peças fundamentais do livro o Enigma
de Cister – O espaço entre o visível e o invisível (2012), que constitui o
ponto culminante da investigação iniciada em 2010. Portanto, se quiser-
mos considerar a pertinência da problemática do espaço de Cister numa
perspectiva global e sistemática temos que nos centrar nesta última pu-
blicação de 2012.
Com efeito, retomando a “Introdução” do livro com o título Enigma
de Cister – O espaço entre o visível e o invisível (2012), o trabalho que
aí encontramos desenvolvido pela primeira vez visa mostrar como fun-
 1
  COELHO, Amílcar, Entre o Céu e a Terra há a arte que penetra o labirinto e interpela
o monstro, Colóquio, Alquimias, ACTAS, Benedita, 2010.
 2
  COELHO, Amílcar, A filosofia e o aprender a filosofar – O labirinto, o monstro e a
serenidade, S. Paulo, Arte Livros Editora, 2010.
9
cionou o espaço de Cister do ponto de vista da sua economia de salvação
emergente nos séculos XII e XIII. Não pretendendo estabelecer-se na
perspectiva do método histórico, pese embora o facto de se trazerem à
colação muitos dos factos que são trabalhados pelos historiadores, con-
virá dizer que também não se trata de um trabalho teológico, apesar do
fascínio que esse domínio exerceu então sobre as questões do espaço.
Dito isto, precisamos de esclarecer por que razão sendo um trabalho fi-
losófico, sê-lo-á, mesmo assim, num quadro bem mais descritivo que
explicativo. Neste sentido, trata-se de juntar os dinamismos e os efeitos
que o espaço de Cister fez funcionar, incorporar, distribuir, refundir ou
subverter, mas que, de qualquer modo, devem às dinâmicas do espaço a
sua condição de possibilidade.
Na verdade, o espaço não é apenas esse grande continente cheio e
pleno, atravessado em todos os sentidos por forças e energias iniludíveis
e pujantes. Podendo, com efeito, ser isso e muito mais, o espaço é ainda
fragmentado e coligido por dissemelhanças, flutuações, lacunas, diferen-
ças, bifurcações, fissuras, mas também por sobreposições, intercepções,
marcações ou detalhes. Igreja, claustro, cozinha, capítulo, calefactório,
jardim, ou simplesmente dormitório, biblioteca, oficina de trabalho, hos-
pedaria, lavabos, estamos sempre a falar sobretudo em dispositivos com-
plexos de afirmação do ser, do poder, do conhecer e do agir ético, estéti-
co, social e religioso. A partir deste singular “espaço”, torna-se patente o
enigma do destino humano. Entre o visível e o invisível, o espaço revela
o incrível poder de configurar e reconfigurar o destino imprevisível do
homem dividido entre o temor dos abismos e o fascínio das alturas.
Longe de ser apenas um trabalho filosófico que pode ainda ressoar
demasiado próximo de uma antiga tradição de busca que nunca perdeu
a direcção de um mundo de ideias para o qual o espaço nem sempre
foi a sua expressão mais conveniente, talvez fosse melhor falarmos de
uma pesquisa de geógrafo. Orientação tanto mais paradoxal, quanto o
facto de Cister, um minúsculo espaço da Borgonha, acabar por ter sido
um espaço que proliferou e se disseminou praticamente por todos os
lugares.
Efectivamente, Cister viveu em diversos lugares; lugares pontuados
e recortados sob a força dos signos, dos rituais, das orações, dos traba-
lhos, das regras… – aqui, à beira das inclinações do homem velho, ali, à
espera do homem novo. Que espaço é este onde foi possível que lugares
incompatíveis se tenham disposto e refundido no sentido de uma espécie
de utopia realizada e incessantemente adiada? Tratar-se-á de um daque-
10
Claustro regular do Mosteiro de Alcobaça edificado por mando de D. Dinis e terminado
em 1311. A fotografia é feita após a extinção das ordens daí o seu estado de abando-
no, vendo-se ainda a Edícula do lavabo e o seu terraço do século XVI com relógio de
sol (Fotografia de Rocchini).

les estranhos e enigmáticos espaços que ficam como que suspensos num
delicado movimento entre o Céu e a Terra?3
Para continuar este ponto introdutório, dizer ainda que a nossa abor-
dagem das questões do espaço monástico não pretende estabelecer o
quadro genético de Cister. Não se trata de uma pesquisa sobre as ori-
gens. Na realidade, precisamos de olhar para o nosso geógrafo como se
ele também fosse uma paixão pelos lugares mais fundos e recônditos que
só uma bússola de arqueólogo será verdadeiramente capaz de entrever e
mapear. Não se pode esquecer que no momento em que este trabalho é
tomado como objecto de estudo, Cister é uma categoria que já está aí,
nos princípios das regras beneditinas, nos enunciados dos textos funda-
dores, da Carta Caridade (e outros4), nas codificações e detalhes dos
lugares e das coisas que os construtores nos legaram, tal como se apre-

 3
  Sobre este assunto, ver: COELHO, Amílcar, A filosofia e o aprender a filosofar – O
labirinto, o monstro e a serenidade, S. Paulo, Arte Livros Editora, 2010.
 4
  NASCIMENTO, Aires A. (Introdução, tradução e notas) – Cister Documentos pri-
mitivos, Lisboa, Edições Colibri, 1999.
11
sentam mediante as primeiras edificações, ou através das reflexões feitas
pelos autores carismáticos dos alvores de Cister (S. Bernardo5 e outros).
Pode objectar-se que este tema de estudo não parece suficientemente
demarcado e consistente. Contra isso seria preciso esclarecer que um dos
quaisquer mosteiros de Cister, nunca existiu como uma peça única; nun-
ca foi um agregado sistemático de boas formas, tal como esteve sempre
bem longe de respeitar rigorosamente o plano único ou o espaço perfeito.
O espaço do mosteiro é um dispositivo composto por extractos e cama-
das díspares, antagónicas, complementares, rasgadas, comprimidas ou
simplesmente revertidas por estruturas e temporalidades, às vezes é um
catálogo preciso, outras, uma interrogação dilacerante onde melhor se
poderá evocar o nosso espanto e a nossa admiração. Neste sentido, o que
é o Mosteiro de Alcobaça? É um plano bernardino? É um dispositivo do
século XV? O do século XVII, o da terceira década do século XVIII…
o actual?
Talvez porque estas questões não reivindiquem evidências ou estilos
com lógicas categóricas, não se encontra outra maneira de explorar a sua
abertura que não seja considerar que o objecto a estudar não é este ou
aquele mosteiro, não sendo sequer o Mosteiro de Alcobaça. O objecto é
o espaço que se torna pregnante a partir dos segmentos e dos extractos
mais fundos do Mosteiro de Alcobaça, da Abadia de Claraval… Não é
a pedra e o engenho do monge-artista-operário; mas é um objecto feito
desse obrar imanente, de longa duração e alcance: é o espaço que o mon-
ge fora-do-mundo (renunciante) um dia começou a construir dentro-do-
-mundo, no intervalo entre o visível e o invisível, o qual estará destinado
a maiores e a menores fortunas, a grandes e a pequenas misérias, como
é bem sabido por todos aqueles que, como nós, ainda lhe estão indis-
soluvelmente ligados, apesar das inúmeras tentativas de rompimento e
superação que desse modo também testemunhamos.
Para terminar, dizer que o objectivo deste trabalho é talvez proceder
a uma espécie de mostração que poderá ficar mais longe da filosofia do
espaço que da tematização dos labirintos e dos monstros de Borges. Para
esse efeito, devia ser possível indicar que o espaço de Cister foi uma
espécie de máquina de produção de santidade. Seja como for, não nos
iludamos quanto ao carácter de materialidade de tal máquina, quanto à
eficácia e eficiência do engenho de maquinação. Pois uma máquina não

  S. BERNARDO – Obras Completas, II, Tratados, Biblioteca de Autores Cristianos,


 5

Madrid, 1999.
12
passa de um engenho humano. Mas é um engenho particularmente fas-
cinante. Com ele, seguramente, tanto podemos chegar mais longe, como
podemos correr o risco de falhar redondamente o alvo. No fim de contas,
seja como for, não teremos senão de recomeçar de novo. E se esse reco-
meçar não é já um trabalho ajustado somente ao engenho do geógrafo,
será então necessário um jogo de paciência que convirá melhor ao esco-
po crítico do filósofo.

O espaço do “deserto” e os alicerces


do Novo Mosteiro

Apesar do esvaziamento ontológico do mundo, do mundo da queda


e do pecado, o espaço não é inteiramente uma região da dissemelhança
(régio dissimilitudinis). Há lugares e lugares. Lugares da deformação e
da semelhança perdida, e lugares da reorientação e da semelhança pro-
metida. Ora, um destes lugares particularmente significativos é o lugar
do “deserto”.
Na verdade, nos alicerces de Cister, há o princípio fundador do “de-
serto”. Numa tradição que remonta a Orderic Vital6, “todos os mos-
teiros dos cistercienses são construídos em lugares ermos e no meio
de matas7.” Por outro lado, sabe-se que um dia S. Bernardo foi a Paris
com o objectivo de “converter” os estudantes, de os fazer abandonar a
cidade, de os desviar dos estudos, de lhes propor o verdadeiro conhe-
cimento. Com efeito, o sermão Da conversão, que compôs em inten-
ção deles, propunha, contra a Babilónia da cidade e da universidade,
o refúgio, o “deserto”, como único caminho da salvação8: “Tu encon-
trarás mais nas florestas do que nos livros; as árvores e os rochedos
ensinar-te-ão coisas que nenhum mestre te dirá9.” Como se faz notar,
não o conhecimento em si mesmo, mas o amor ao conhecimento, a de-
manda do conhecimento que opera transformações profundas naquele
que c­ onhece, a necessidade profunda do conhecimento, do verdadeiro

 6
  VITAL, Orderic, Historia ecclesiastica, [1114-1141], ed. François Guizot, trad. Louis
Du Bois, 4 tomos, 1825-1827.
 7
  COCHERIL, Maur, Alcobaça Abadia Cistercense de Portugal, Lisboa, INCM, 1989,
p. 20.
 8
  DUBY, Georges, O tempo das catedrais/Arte e sociedade 980-1420, Lisboa, Editorial
Estampa, 1988, p. 123.
 9
  S. BERNARDO, Da conversão, in DUBY, Georges, O tempo das catedrais/Arte e
sociedade 980-1420, Lisboa, Editorial Estampa, 1988.
13
O gótico foi uma solução técnica que elevou as igrejas para perto do céu. A nave cola-
teral norte do início do século XIII mostra a aplicação sistemática do gótico na cober-
tura da igreja de Alcobaça (Fotografia Jorge Vasco).

14
c­ onhecimento, que é Deus, é que leva o homem a optar pela solidão
(nonos) e pelo isolamento (érmos), e o maior isolamento é, obviamen-
te, no deserto (desertum)10.
Talvez seja esta a “utopia silvestre do deserto do amor”, de que falava
Le Goff, a propósito do papel que a noção de deserto desempenhou na
história da sociedade e cultura da Idade Média11.
Com efeito, como alega o citado historiador, é inegável que o deserto
– autêntico ou imaginário – tendo desempenhado um papel importante
nas grandes religiões euro-asiáticas: judaísmo, islamismo, cristianismo,
representou os valores opostos aos da cidade, devendo, por isso mesmo,
interessar à história da sociedade e da cultura, em particular no que se
refere ao cristianismo medieval, para o qual a “ideologia do deserto” se
apresentou de uma forma inédita: “o deserto foi a floresta”12.
O significado medieval do deserto associa-se à floresta como lugar
de solidão: “floresta-deserto”13. No ideário e no imaginário medievais,
o deserto tem, pois, o sentido de “lugares de extremo limite”, ou seja:
“de medo da floresta, valorização da vida selvagem, penitência e asi-
lo”14. De certo modo, a ida para o deserto representa um retorno à natu-
reza, uma espécie de despojamento do social. O tema, sendo bíblico, é,
contudo, muito popular: “é o que está mais próximo da cultura popular
autêntica, do folclore. O deserto é o ponto mais distante da cultura dos
eruditos”15.
Todavia, a experiência ascética e monástica do deserto é própria de
muitas civilizações. Talvez a atitude religiosa da primitiva comunidade
judaico-cristã não tenha sido influenciada pela opção ascética do deserto,
mas, a partir da segunda metade do séc. I, deu-se uma mudança signifi-
cativa, tendo para isso contribuído “as várias formas de dualismo origi-
nadas pela interpretação gnóstica, mas também o montanismo profético,
com a defesa da virgindade, e principalmente, o maniqueísmo, com a
aristocracia ascética dos seus perfeitos, ainda que sendo na sua maio-
ria actualizações do velho dualismo persa, metabolizam, na visão cristã,
uma quantidade de estímulos destinados a alimentar a ideia de excelên-

10
  CANTARELA, Glauco Maria, “Filosofia e Monaquismo”, in Umberto Eco (Direcção),
Idade Média/Bárbaros, cristãos e muçulmanos, Lisboa, Dom Quixote, 2011, p. 345.
11
  LE GOFF, Jacques, O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval, Lisboa,
Edições 70, 2010, pp. 47-48.
12
  Idem, p. 35.
13
  Idem, p. 41.
14
  Idem, p. 45.
15
  Idem, p. 46.
15
cia, para fins da salvação, da vida espiritual em comparação com a vida
mundana e carnal”16.
Porém, a questão do deserto só terá surgido nos séculos II e III. Ela
apareceu ligada a um tipo de protesto social que consistia em fugir para
o deserto (chamado anachoresis), que também contribuiu para o surgi-
mento do ascetismo17. No começo do século IV, deu-se o aparecimen-
to nos mundos grego e copta da palavra monachos como sinónimo de
“solitário” ou “celibatário” e em meados do século IV e V, os desertos do
Egipto setentrional, principalmente a Nítria, são sede do êxito extraordi-
nário de certas comunidades inspiradas no modelo eremita de S. Antão,
o Grande (c. 250-c. 36), difundido pelos escritos de Santo Atanásio
(295-c. 373)18.
A primeira comunidade monástica é a que se reúne em redor do ana-
coreta Antão por volta de 306. À volta desta comunidade será levantado
um muro que cerca os lugares que são palco das actividades quotidianas
dos monges e os separa do mundo exterior. Este muro, que visa a sepa-
ração entre o interior (comunidade monástica) e o exterior (deserto), está
na origem do termo claustrum19.
Antes de se retirar para o deserto de Lérins, entre 412 e 420 d.C., Eu-
quério de Lião, depois de evocar todos os episódios famosos sobre o as-
sunto do Antigo e Novo Testamento, escreveu no seu Elogio do Deserto
(De lande eremi): “O deserto monástico é o lugar de todos os carismas e
de todas as teofanias”20. Por outro lado, no mesmo sentido, S. Jerónimo
encara o ingresso no deserto como um segundo baptismo21.
Como é reconhecido em geral, o anacoretismo egípcio desempenha
um papel muito relevante na definição posterior do ideal monástico, mes-
mo após a consolidação gradual do modelo cenobítico, nomeadamente,
como se fará notar, pela acentuada tendência para o individualismo e
para a prática de formas ascéticas extremas, senão a roçar a excentrici-
dade, como bem exemplifica a casuística hagiográfica do monaquismo
sírio com os seus estilistas empoleirados em colunas ou dendritos, nas
copas das árvores”22.

16
  BENVENUTI, Anna, “O monaquismo”, in Umberto Eco (Direcção), Idade Média/
Bárbaros, cristãos e muçulmanos, Lisboa, Dom Quixote, 2011, p. 213.
17
  Ibidem.
18
  Idem, p. 214.
19
  CANTARELA, op. cit., p. 346.
20
  Citado por LE GOFF, op. cit., p. 39.
21
  Ibidem.
22
  BENVENUTI, op. cit., p. 214.
16
A ideia segundo a qual o “deserto”, só por si, pode não ser suficiente
para salvar aquele que nele busca a salvação, impôs-se gradualmente na
transição do eremitismo para o cenobitismo:
“Quem pode dar garantias de alguém que regressa do desertum afir-
mando ter encontrado o que lá fora procurar? Além disso, quem pode
garantir que este novo homem de Deus não provoca um efeito negativo
naqueles que vivem associados e que possam segui-lo por vê-lo dotado
de santidade? Quem pode dizer que aquele que afirma ter encontrado a
experiência de Deus não teve apenas alucinações? Quem pode assegurar
que ele esteve realmente em êxtase”23?
Torna-se manifesto que o monge é uma “contradição viva” porque,
para ter garantias da eficácia do seu percurso espiritual individual, tem
de associar-se, tem de fazer-se garantir pela vigilância e pela contínua
assistência espiritual de outros homens que como ele, permanentemente
se vigiam uns aos outros e, uns aos outros, se garantem24.
Um grupo de cenobitas forma o que se conhece por cenóbio. O ce-
nobitismo evoluiu à margem do populoso mundo urbano das regiões do
Médio Oriente, dando origem a importantes estruturas monásticas con-
sagradas a actividades de beneficência e de vivenciação do modelo do
ascetismo cristão. A palavra deriva do grego κοινός e βίος (koinos e bios,
significando algo como comum e vida) e chegou até nós pela sua forma
latina. O adjectivo é κοινοβιακόν na sua forma grega.
Convirá fazer notar que nos primeiros séculos do cristianismo não
foram privilegiadas as comunidades ascéticas de mulheres25. Mas a partir
do século V, as mulheres seguem o exemplo da experiência anacoreta
dos padres do deserto, fortalecendo-se nos duros percursos ascéticos da
solidão: a sua fama é-nos transmitida por Paládio, na sua História Lau-
siaca (419-420)26. Ela contém uma série de factos ou histórias curtas de
Pais e Mães do Deserto, edificantes ou não, que o autor conheceu pes­
soalmente ou sobre os quais recebeu informações. É o primeiro a empre-
gar a expressão “Pai do Deserto”27.
Originalmente, a palavra “monge” também tem a ver com “deserto”,
pois monge é aquele que vive só (monakós) e que, de certo modo, mora
longe de nós, que habita um espaço distante, desconhecido, que não vem
nos mapas da terra. É neste sentido que ainda hoje se poderá dizer, como

23
  CANTARELA, op. cit., p. 346.
24
  BENVENUTI, op. cit., p. 214.
25
  Idem, p. 216.
26
  Ibidem.
27
  Ibidem.
17
Refeitório do Mosteiro de Alcobaça muito provavelmente erguido no século XIV. Apre-
senta um púlpito de leitor dos mais interessantes das igrejas da ordem. A colocação
a meia altura permitia oferecer ao monge leitor qualidades acústicas suficientemente
boas para ser escutado em toda a sala durante as refeições tomadas em silêncio pela
comunidade monástica (Fotografia Rui Rasquilho).

fez José Luís Farinha, que Jesus chama o monge ao “deserto” ou à “so-
lidão”, ou seja: “à terra que é desconhecida para ele e pouco frequentada
por outros homens”, e que “esta viagem é uma resposta positiva ao cha-
mamento de Deus...”28
É a partir do século IV, que os “ascetas” tomam o nome de “monges”
no sentido daquele que tem uma vida de castidade, jejum e oração, em
conformidade com as Sagradas Escrituras. Neste contexto, como dizia
Rutilius Namatianus (século V), com a sua opção radical de vida, os
monges devem ser chamados “lucífugos”, pois separam-se da sociedade
humana, segregam-se, até, da luz29. Em conformidade com essa opção
de uma vida singular e plena, no primeiro quartel do século V, na Gália,

28
  FARINHA, José Luís dos Santos, Buscadores de Deus - No caminho cisterciense,
Lisboa, Editora Paulinas, 2006, p. 19.
29
  CANTARELA, op. cit., p. 346.
18
Cassiano (c. 360-430-435) redige um texto fundamental do monaquis-
mo: De Institutis Coenobiorum, que regulamenta a vida dos monges,
colocando-os sob uma apertada vigilância30.
Mas o momento marcante dos novos caminhos do monaquismo do
deserto é dado pelo trabalho estatutário e regulamentador de S. Bento.
Submetido à vigilância dos bispos e à atenção de sínodos e concílios, o
crescente sucesso monástico ocidental determina, nos séculos VI e VII,
uma gradual regulamentação das numerosas formas de vida ascética
existentes sem que, contudo, se lhe defina um preciso e exclusivo esta-
tuto normativo, até que a Regra de S. Bento (fruto de um metabolismo
entre o modelo dos padres e a experiência pessoal) se afirmou como uma
das muitas possibilidades praticáveis31.
No processo de evolução do monaquismo do deserto foi decisivo o
contributo de Gregório Magno (c. 540-604), com as suas obras – Diá­
logos (dedicado à vida de S. Bento) e os Moralia in Job. (218), que
visavam difundir um modelo contemplativo de busca de Deus e da feli-
cidade. Com a renovação carolíngia do século IX, as normas beneditinas
ganham um estatuto de quase obrigatoriedade, através da aquisição de
uma normatividade jurídico-formal: “um código normativo a que devem
obedecer minuciosamente todos os aspectos da vida monástica”32.
Com efeito, o Império Carolíngio marca o triunfo dos beneditinos
(hegemonia da Regra): “O monaquismo beneditino é maciçamen-
te adoptado pelo episcopado franco nos séculos VII e VIII, pelo seu
rigor, e com ele a ductilidade da sua Regra, que permite reproduzir
uniformemente experiências fundamentalmente idênticas onde seja
necessário (…)”33.
Neste caminho de revalorização do “deserto”, é preciso reconhecer
ainda que a experiência monástica ibérica foi também muito relevante.
Referimo-nos, particularmente, a S. Frutuoso de Braga, cujas propostas
cenobíticas evocam quer os modelos anacoréticos da tradição oriental,
quer a experiência de Martinho de Braga34.

30
  Idem, pp. 346-347.
31
  BENVENUTI, op. cit., p. 218.
32
  Idem, p. 219.
33
  CANTARELA, op. cit., p. 349.
34
  BENVENUTI, op. cit., p. 219.
19
O mecanismo das “disciplinas”
e a “obediência-utilidade”

Em Surveiller et punir (1999), [1975]35, Foucault observa que as “dis-


ciplinas” são diferentes do ascetismo e das disciplinas de tipo monástico,
na medida em que a função de renúncia, mais do que quaisquer “aumen-
tos de utilidade”, mesmo quando implica obediência a outrem, não tem
outro alcance que não seja o de proporcionar um aumento do domínio de
cada um sobre o seu próprio corpo. Ou seja, neste aspecto particular da
condição de possibilidade dos processos disciplinares, aquilo que é evi-
denciado, referir-se-ia unicamente a um aumento de habilidades do mon-
ge ou, quanto muito, a um aprofundar da sua sujeição à comunidade36.
Ao invés disso, atendendo à emergência “moderna” das “disciplinas”,
o seu momento histórico, à primeira vista, não foi o momento da ascética
monástica, uma vez que não teria sido, alegadamente, nesse contexto que
teria emergido uma arte específica do corpo humano, que conviria me-
lhor ver associada, primeiramente, ao funcionamento dos colégios mo-
dernos, depois, ao das escolas primárias, dos hospitais e dos quartéis, etc.
A argumentação crucial de Foucault apoia-se na consideração de que
as “disciplinas” implicam uma relação de tal modo que, no mesmo me-
canismo, o binómio “obediência-utilidade” é simetricamente proporcio-
nal, ou seja, mais obediência implica mais utilidade, e inversamente37.
Observa-se ainda que, na formação deste mecanismo, se aplica com
eficácia uma política de coerções que visa trabalhar (manipular) sistema-
ticamente o corpo em detalhe (os seus elementos, ínfimos gestos e com-
portamentos). Lugar de intercepção da “anatomia política” e da “mecâni-
ca do poder”, as “disciplinas” constituem-se no horizonte do Iluminismo
(séculos XVII-XVIII) como “esquemas de docilidade” e de identidade
da certidão de nascimento do “homem do humanismo moderno”.
O objectivo de produzir corpos dóceis e úteis é obtido por uma disso-
ciação entre corpo individual, como capacidade produtiva, e a vontade
pessoal, como poder do sujeito sobre a energia do corpo. Como diz Fou-
cault: “o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadri-
nha, o desarticula e o recompõe”38.

35
  FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, Petrópolis, Editora Vozes, 1999.
36
  Idem, p. 119.
37
  Ibidem.
38
  Ibidem.
20
Mas ao invés do “renunciante monástico”, tal “maquinaria, como pro-
põe Foucault,” não visaria unicamente definir como se pode ter domínio
sobre o corpo dos outros, simplesmente para que seja possível fazer o
que se quer individualmente ou colectivamente. Na medida em que o
mecanismo da “obediência-utilidade” é um mecanismo de dissociação
do corpo e de dissolução do sujeito, o princípio deste operar visa “como
se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determi-
na”39. Nestes termos, a disciplina remete para uma mecânica de corpos
submissos, dóceis e eficazes. A sua emergência não pode ser dissociada
do âmbito da economia capitalista: “A disciplina aumenta as forças do
corpo (em termos económicos de utilidade) e diminui essas mesmas for-
ças (em termos políticos de obediência)”40. O domínio do corpo torna-se,
assim, um efeito conjugado da dissociação do poder do corpo e da sua
repartição na medida em que o mecanismo das disciplinas pode “fazer
dele, por um lado, uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura au-
mentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar
disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita”41.
Contudo em Surveiller et punir (1999), [1975], a respeito do campo
de aplicação das “disciplinas”, não deixa de haver lugar para contradi-
ções e equívocos. A sua principal fragilidade (e dificuldade) tem a ver
com a rigidez do dispositivo capitalista, que impede Foucault de tirar
todas as consequências dos seus próprios enunciados sobre os princípios
gerais de uma economia de salvação, que lhe permitisse incluir coeren-
temente aí as questões do ascetismo monástico.
Com efeito, não faz sentido dizer que o domínio do corpo do outro
visa simplesmente delimitar a submissão da vontade individual a uma
regra geral de assimilação e obediência comunitárias. Pois a “docilidade
monástica”, que não pode ser separada do “espaço monástico”, não se
limita a regular a disposição do “corpo do renunciante”, como se assim
fosse possível potencializar uma massa passiva e redutível a sucessivas e
permanentes acções de controlo e de domesticação.
Muito diferente disso, é preciso ver que o que está em causa é a pro-
dução do “homem novo”, no detalhe das pequenas obras e gestos que,
contra a presença contraditória do “homem velho”, é forçoso praticar. A
disciplina monástica organiza um espaço analítico de decomposição, de

39
  Ibidem.
40
  Ibidem.
41
  Ibidem.
21
detalhe do pecado e da salvação. Será no funcionamento deste mecanis-
mo que podemos remontar ao diapositivo “subjectivo” das “disciplinas”.

Regras de distribuição do espaço

Uma atenção cuidadosa do detalhe e ao mesmo tempo uma observân-


cia estrita da Regra a respeito dessas pequenas coisas, para decomposi-
ção do renunciante, elevam o Monge através do Claustro, levando con-
sigo à prática de todo um conjunto de técnicas do corpo, toda uma série
de processos e de saber, de descrições, de receitas, de recomendações, de
exercícios… E desses esquadrinhamentos meticulosamente conduzidos,
sem dúvida, nasceu o homem novo de Cister.

Cerca

O modelo do mosteiro exige a cerca que não é senão a organização do


espaço de modelização dos comportamentos através de um mecanismo
de fechamento do espaço. Nos alvores de Cister, no momento da grande
expansão, houve uma extraordinária adesão de noviços que foram aco-
modados e contidos nos muros dos mosteiros.
Mas a cerca é um espaço ambíguo: é já um lugar de dentro, sendo
igualmente, de dentro para fora, um espaço de fronteira, da margem e do
“marginal”, isto é, interior/transição/exterior. É o espaço dos trabalhos e
dos dias; da vida da comunidade que mais se aproxima da vida comum
do “século”. Ou seja, o pomar, a granja, o engenho, o fontenário, o jar-
dim, o arroteamento… e os caminhos do silêncio de dentro que se esten-
dem até aos limites, aos ruídos da fronteira, até à beira do horizonte do
mundo. É a cerca que faz do camponês um monge, o monge camponês.

Clausura

A clausura é solidão e silêncio (claustro). Contudo, o seu significa-


do remete primeiramente para espacialização detalhada dos indivíduos,
segundo um princípio de localização a que Foucault chama “quadricula-
mento”: “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo42.”
Chegará o dia em que “quadricular” significará “organizar por celas”.

  Idem, p. 123.
42

22
O espaço não cessa de se deslocalizar em novos lugares de renúncia e de
decomposição do tempo: repartir, distribuir, reinvestir, uma viagem em
que o não-lugar subsiste como uma ameaça suspensa sobre o verdadeiro
lugar. A solidão da clausura é necessária ao corpo e à alma. Como diz
Foucault, a simples evocação do ascetismo traz à colação a divisão do
espaço numa heterogeneidade radical que nunca nos libertará do risco de
tentação onde temos que nos defrontar a sós com a maldade de Satanás e
talvez com a severidade e a bondade de Deus43.
Trata-se de decompor o espaço em função do detalhe individual, evi-
tando as pluralidades confusas (no dormitório, por exemplo, é preciso
saber onde deve dormir o noviço e o monge, o monge mais velho ou o
mais jovem, etc.). É preciso dividir o espaço em parcelas (repartição),
tendo em conta utilizações, funções e indivíduos. A repartição é neces-
sária porque é preciso prevenir a circulação difusa e fora do controle (é
por isso que deve haver uma regra de circulação no claustro, de entrada
e saída do ofício divino, de entrada e saída do refeitório e até uma regra
de fazer a barba com a ajuda dos irmãos entre si, etc.).
O quadriculamento é imposto em todos os aspectos e detalhes da vida
monástica, tais como presenças e ausências, saber onde cada um está,
quando e ao que foi, quando regressará, etc.
Não haverá, pois, maneira do comportamento de cada um escapar a
este extraordinário processo de esmiuçamento e detalhe: o quê, como, por-
quê - como é apreciado e/ou sancionado, as qualidades ou os méritos, etc.

Localizações

A organização do espaço, tal como foi concebida mediante a arquitec-


tura cisterciense, representa já uma codificação precisa e funcional. Lu-
gares determinados, como a cozinha, o refeitório, a sala do capítulo, etc.,
sendo definidos para satisfazer uma função comunitária de integração,
zelo e vigilância, procuram responder também à necessidade de criar
espaços adequados, úteis, sob o ponto de vista de fins que não pertencem
a estes espaços, mas por eles são permanentemente gerados. Adequa-
ção e utilidade não significam apenas o que é da ordem da humaniza-
ção do espaço e da conveniência imediata da vida quotidiana: radicam,
sobretudo, naquilo que corresponde ao funcionamento do mecanismo
da “obediência-utilidade” para efeitos da produção do homem novo, ou

  Ibidem.
43

23
seja, com vista à sustentação e reforço da santidade do monge de acordo
com a eficácia da função do espaço.
Localizações são trajectos, itinerários, modos de circulação, indica-
ções, de tudo aquilo que se mostra (visível), segundo um modo de re-
velação codificado do oculto significante (invisível). Nas localizações,
o espaço é médium, é contacto. Mas só haverá revelação na condição de
um realinhamento e reapropriação do espaço visível pelo invisível.

Posição

A organização do espaço da disciplina monástica é regida por um


princípio de hierarquização. “Os elementos são intercambiáveis, pois
cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o
separa dos outros44.” A unidade é dada pela posição na fila45. A quadricu-
lação é também uma arte de dispor em fila: uma disposição detalhada. É
o lugar do Abade, do Prior, do Celereiro, do Monge do Coro, do Monge
Idoso, do Monge Doente, do Noviço, do Converso, do Visitante, do Fiel,
etc. Mas é também o lugar do defunto, do sepultado, etc.
Seja como for, estamos perante uma máquina de santificação, donde
deve ser evitado (simplesmente proibido) tudo aquilo que seja susceptí-
vel de conspurcar a sacralidade dos lugares e da sua eficácia enquanto
tal. Por isso, a regra da disposição é a Regra por excelência da estrita
observância.
A posição é o desdobramento do espaço repartido e distribuído por
coordenadas e referenciais. Há a posição da origem, a distância de cada
objecto relativamente à origem, os posicionamentos, as derivações, as
flutuações, as diferenças e as ligações. Na demarcação de toda e qualquer
posição há a origem do Abade e dos seus códigos de reconhecimento e
localização.

Codificação das actividades

a)  Horário

A distribuição dos indivíduos no espaço não seria possível de regular

  Idem, p. 125.
44

  Ibidem.
45

24
adequadamente sem determinadas formas de controlo das actividades.
Uma das principais é o horário, a velha herança do modelo monástico,
que foi significativamente apropriado por Cister. O horário visa esta-
belecer as pausas, obrigar a ocupações determinadas, regulamentar os
ciclos de repetição46. A rítmica do tempo, segundo o toque do sino e o
fraccionamento das acções, é uma característica fundamental do espaço
cisterciense. Tempo e espaço constituem como que um laço indissolúvel
e de extrema relatividade do funcionamento e da eficácia da máquina de
santidade que o mosteiro é, e quer ser.
Como é sabido, um dia, não muito distante dos alvores do século
XIV, esse empreendimento espiritual de salvação, também se tornará
numa portentosa e perversa máquina económica de produção de riqueza
material, cuja especificidade deverá ser tomada na perspectiva de uma
extraordinária organização e controle do espaço e do tempo.
Ora, tudo isso pode ser pensado como uma rítmica produzida pelo
velho horário, adaptado doravante a novas finalidades. Ainda aqui, o que
conta mais é a disposição do tempo em conformidade com o princípio
de utilidade do espaço. Está em questão, não apenas garantir a qualidade
do tempo disponível, exercendo, para esse efeito, um controle apertado
das pressões que o espaço exerce sobre o tempo, de modo a impedir a
eclosão de perturbações, inquietações ou desassossegos (o espaço das
técnicas do corpo), mas também a intenção deliberada de “constituir um
tempo integralmente útil”47, como deve ser deduzido da economia de
salvação posta à disposição dos monges sobretudo através da observação
estrita da Regra.
Além de que o horário exerce também uma função de resgate e pu-
rificação do tempo e do espaço. A própria ideia de mosteiro é a de um
lugar sagrado, no qual, por definição, convirá incluir um mecanismo de
regulação da bondade das acções, que só deverá funcionar plenamente
na medida em que o corpo do renunciante é compelido a ocupar-se, com
norma e regularidade, aos exercícios que são ditados pela busca de san-
tidade (orar e trabalhar). Numa palavra, o tempo medido é o tempo bom
e necessário, sem o qual não só se desperdiçaria o lugar como também a
oportunidade.

  Idem, p. 128.
46

  Ibidem.
47

25
b)  Temporalização dos actos

Trata-se de pensar as formas de controlar temporalmente o que se faz


(o ofício divino, por exemplo). A ideia, não é somente a do horário, mas a
do ritmo colectivo e obrigatório – um quadro geral para uma actividade.
Por via do estabelecimento de determinadas prescrições é imposto um
novo conjunto de obrigações, com um grau rigoroso de organização e
decomposição de gestos e movimentos, de forma a proceder ao ajusta-
mento do corpo segundo imperativos temporais, conforme as técnicas do
corpo dominantes48.
Mas também se trata de fazer gerar o tempo, de o fazer investir, man-
tendo-o, acumulando, tirando dele o sentido, redimensionando-o como
projecto, na condição de salvaguardar a tensão essencial da acção. Pois
o tempo é sofrimento, cuidado e compromisso. É por isso mesmo que o
espaço é o advento do fraccionamento e da coexistência dos tempos. Não
haverá acção que não participe desse modo de dissociação e de refundição.
No princípio há sempre a acção. A temporalização recorta e torna pregnan-
te a coincidência, a ruptura, a queda, a remissão, a expectativa... O tempo
segue o seu caminho e o espaço não faz senão servir de trilho e bifurcação.

c)  Correlação entre corpo e gestos

Não se trata apenas de ensinar ou impor uma série de gestos definidos,


é preciso controlar “a melhor relação entre um gesto e a atitude global
do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez”49. O mecanismo
da obediência-utilidade que é conforme os princípios de uma economia
de salvação indissociável da correlação que vincula o tempo e os actos,
de tal modo que o bom emprego do corpo é inseparável da possibilidade
do bom emprego do tempo, no qual nada deverá restar explicitamente de
ocioso ou de inútil.
Como diz Foucault: “Tudo deve ser chamado a formar o suporte do
acto requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realiza-
ção do mínimo gesto”50.
Uma boa oração, por exemplo, supõe um bom exercício de medita-
ção. Em termos de correlação, pode dizer-se, não há dúvida, que o có-

48
  Idem, p. 120.
49
  Idem, p. 130.
50
  Ibidem.
26
digo de uma oração (uma rotina) deve implicar (dispor intensamente) o
corpo por inteiro (corpo total). Ou seja: “Um corpo disciplinado é a base
de um gesto eficiente”51.

a)  Articulação corpo-objecto

A espacialização não é senão a ideia de uma complexa causalidade


disciplinar, isto é, uma modelização detalhada e não linear dos compor-
tamentos, de tal modo que o espaço disciplinar do mosteiro deve apostar
na definição de cada uma das relações que o corpo deve manter com o
objecto que manipula. A disciplina estabelece cuidadosa engrenagem (ar-
ticulação) entre o corpo e o objecto. Foucault chama a este processo “co-
dificação instrumental do corpo”52. Segundo é indicado, trata-se de uma
decomposição do gesto global em duas séries paralelas, a saber, a dos ele-
mentos do corpo que serão postos em jogo e a dos elementos do objecto
manipulado, coloca-os depois em correlação uns com os outros, segundo
um certo número de gestos simples; finalmente, fixa a ordem canónica em
que cada uma dessas correlações ocupa um lugar determinado53.
A articulação corpo-objecto opera como elemento estruturante da es-
trita observância da Regra, uma vez que ela permite fixar (regular) o ca-
rácter normativo da respectiva técnica do corpo. Não estando garantida a
operacionalidade dessa articulação, subsistiria sempre um enorme risco
de fragmentação e dissolução do espaço sacramental do mosteiro. Dito
de outro modo, a articulação organiza (educa) o corpo para os actos de
salvação que convirá dele extrair por efeito de uma aplicação adequada
da economia de salvação.
Como diz Foucault: “A regulamentação imposta pelo poder é ao mes-
mo tempo a lei de construção da operação”54. Ela é o substrato das técni-
cas específicas do corpo que o espaço do mosteiro deverá pôr a funcionar
de acordo com os desígnios da superior finalidade.

b)  Utilização exaustiva

A fim de conjurar o perigo que há em todo e qualquer desperdício de


tempo, o horário subordina-se a um princípio negativo de não-ociosi-

51
  Ibidem.
52
  Ibidem.
53
  Ibidem.
54
  Idem, p. 131.
27
dade: “é proibido perder um tempo que é contado por Deus … [e que é
pago com o salário do nosso pecado]”55. Mas a sua função disciplinar é
muito mais da ordem do positivo que do negativo, o tempo é o acto sig-
nificativo. A questão tem a ver com a intensificação do tempo mediante o
uso do mínimo instante, o detalhe temporal da salvação ou da condena-
ção, como se o tempo, na ordem da sua duração, não se limitasse senão
a reger, por um princípio adequado de fraccionamento, a infinitude e a
inesgotabilidade. Trata-se, pois, da possibilidade de se extrair do tempo,
“sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais for-
ças úteis56.” Se o renunciante quiser, e o buscar adequadamente, e a isso
for compelido, porque Deus o escutou e atendeu, haverá necessariamen-
te a possibilidade de um instante de salvação, de um ínfimo instante que
pode situar-se no espaço incomensurável do encontro enigmático da vida
com a morte.

Adição do tempo

Submetem-se os indivíduos a exercícios que são dominados por uma


técnica pela qual se impõem, ao mesmo tempo, tarefas repetitivas e dife-
rentes, mas sempre graduadas e teleologicamente orientadas. Dirigindo
o comportamento para um estado terminal, através de uma sequência
integrada de estados, visa agir-se permanentemente sobre o indivíduo
em termos de percurso, processos e resultados. O princípio disciplinar é
posto a funcionar a partir da operacionalização de um tempo previsto e
segmentado em séries integradas, que se desdobram num aumento gra-
dual e contínuo de complexidade, de resposta e coerção: “assim, realiza
na forma da continuidade e da coerção, um crescimento, uma observa-
ção, uma qualificação57.”
Trata-se de práticas que são, esclarecidamente, sem dúvida, de
origem religiosa, ancoradas em técnicas espirituais de educação, que
podem ser encontradas em rituais de iniciação ou em determinadas
cerimónias preparatórias, indissociáveis dos processos de vida e de sal-
vação comunitárias e que se destinam a produzir aptidões individuais,
mas colectivamente úteis. Práticas que implicam a participação acti-

55
  Ibidem.
56
  Idem, p. 131.
57
  Idem, pp. 136-137.
28
va em exercícios místicos ou ascéticos que visam ordenar o temporal
para a conquista da salvação que não sendo exclusivamente peculiares
a Cister, remontam, seguramente, à sua tradição espiritual: “O tema da
perfeição, em direcção à qual o mestre exemplar conduz, torna-se (…)
o de um aperfeiçoamento autoritário (…); os exercícios cada vez mais
rigorosos, propostos pela vida ascética, tornam-se tarefas de complexi-
dade crescente que marcam a aquisição progressiva do saber e do bom
comportamento; o esforço de toda a comunidade para a salvação torna-
-se o concurso colectivo e permanente dos indivíduos que se classificam
uns em relação aos outros”58.
A questão consiste em saber como capitalizar o tempo dos indivíduos,
como acumulá-lo em cada um deles, como corpo, como força ou como
capacidade e de uma maneira que não comprometa a utilização e o con-
trole, ou seja, que assegure “durações rentáveis”.
Uma forma adequada de olhar para esta questão, pode ser enunciada
nos seguintes termos: os exercícios que se desdobram na decomposição e
recomposição de determinadas actividades disciplinares mostram como
é que o mecanismo da obediência-utilidade pode ser posto a funcionar
com vista a promover a apropriação do tempo das existências singulares:
“para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para realizar
uma acumulação da duração; e para inverter em lucro ou em utilidade,
sempre aumentados, o movimento do tempo que passa”59.
Foucault indica quatro processos de adição, investimento e beneficia-
ção do tempo:
(1)  “Dividir a duração em segmentos sucessivos ou paralelos, dos
quais cada um deve chegar a um termo específico”60.
Do ponto de vista de Cister, trata-se, por exemplo, de separar o novi-
ciado do trabalho ascético dos monges do coro, ou este do dos monges
conversos, de modo que cada um dos exercícios possa responder à sua
própria sequência de exames e provas, desenvolver as virtudes que são
fixadas em função dos fins que devem atingir comprovadamente.
(2)  “Organizar essas sequências segundo um esquema analítico – su-
cessão de elementos tão simples quanto possível, combinando-se segun-
do uma complexidade crescente”61.
Ainda dentro do mesmo exemplo, sem afectar o regime de separação,

58
  Idem, p. 137.
59
  Ibidem.
60
  Ibidem.
61
  Idem, p. 134.
29
trata-se de combinar os diferentes processos de interacção em função do
reinvestimento parcial e dos efeitos totalizadores em termos de sinergias
e acção.
(3)  “Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhe um termo mar-
cado por uma prova que tem a tríplice função de indicar se o indivíduo
atingiu o nível estatutário, de garantir que a sua aprendizagem está em
conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada
indivíduo”62.
Aprofundando um pouco mais este ponto, dentro do mesmo exemplo,
tal é a função do ritual de integração do noviço na comunidade. Primei-
ro, o noviço bate à porta do mosteiro, pede para entrar, mas a porta só se
abrirá para ele depois de demorada insistência, seguindo-se, já dentro do
espaço de acolhimento (cuja função visa proporcionar os caminhos que
somente uma tal entrada permitirá desvendar), o começo de um novo
tempo de investimento, reconhecimento, desenvolvimento e provação,
ao longo do qual o noviço precisará de mostrar uma preparação conve-
niente. Por fim, sempre sob o ritmo e a letra da Regra, segue-se o tem-
po pleno, comunitário, da deliberação individual, da adesão pessoal, do
compromisso iniludível, que deve ser ao mesmo tempo um compromisso
de si mesmo e uma confirmação absoluta do compromisso de todos. “E
se, tendo deliberado consigo mesmo, prometer guardar todas as coisas e
observar tudo quanto lhe for ordenado, seja então recebido na comuni-
dade, sabendo estar estabelecido, pela lei da Regra, que a partir daquele
dia não lhe é mais lícito sair do mosteiro, nem retirar o pescoço ao jugo
da Regra, a qual lhe foi permitido recusar ou aceitar por tão demorada
deliberação”63.
(4)  “Estabelecer séries de séries; prescrever a cada um, de acordo
com o seu nível (…) os exercícios que lhe convêm”64.
Todo e qualquer acto do noviço obedece a um código estrito de
conduta, é repartido, classificado de acordo com a Regra, visa um fim,
devendo, portanto, ser decomposto, ordenado e julgado em função da
adequação, de modo a colocar o corpo sob o jugo positivo da acção sig-
nificativa e conveniente.

62
  Ibidem.
63
  Regra de S. Bento, cap. 58, 14-16.
64
  FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, Petrópolis, Editora Vozes, 1999, p. 134.
30
Composição das forças

A disciplina não se circunscreve simplesmente a uma arte de repartir


os corpos, de extrair e acumular o tempo deles: em termos que apontam
para um cuidado e uma exigência holísticas, ela visa, também, compor
e combinar forças a fim de potencializar o máximo da força criadora do
mecanismo de “obediência-utilidade”:
“Trata-se de construir uma máquina cujo efeito será elevado ao má-
ximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se
compõe”65.
Primeiro, a composição de forças remete para o lugar que estatutaria-
mente o corpo singular ocupa, na medida em que o corpo, sendo passível
de uma redução funcional, se constitui, igualmente, como elemento per-
tencente a uma multisegmentaridade.
Segundo, a composição de forças dispõe e agrega o tempo composto
do maximum, de tal maneira que, o tempo de uns, deve ajustar-se ao tem-
po de outros, de modo que seja possível extrair a máxima quantidade de
forças de cada um e combiná-la num resultado óptimo.
Como paráfrase, pode dizer-se, sem dúvida, que não deve haver um
só momento da vida do mosteiro do qual não seja possível extrair forças,
desde que se saiba diferenciá-las e combiná-las com outros66.
Terceiro, sem sistema de comando não haverá técnica de composição
de forças.
Diz Foucault: “Toda a actividade do indivíduo disciplinar deve ser
repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade
e na clareza; a ordem não tem que ser explicada nem mesmo formulada;
é necessário e suficiente que provoque o comportamento desejado”67.
Ou ainda, como pode ler-se: “Do mestre de disciplina àquele que lhe
é sujeito, a relação é de sinalização: o que importa não é compreender
a injunção, mas perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um
código mais ou menos artificial estabelecido previamente”68.
A competência disciplinar deve ser adquirida por todos da mesma
maneira: através do treino do silêncio total que só será interrompido por
sinais – sinos, gestos, simples olhar, etc.

65
  Idem, p. 138.
66
  Idem, p. 139.
67
  Idem, p. 140.
68
  Ibidem.
31
Caso o espaço de Cister possa ser abordado na perspectiva de um
espaço produtor de santidade, isso não deverá ser possível senão na con-
dição fundamental de uma análise detalhada do complexo mecanismo de
extracção e redistribuição de forças que aí foi posto a circular, em con-
formidade com os investimentos capitais dessa economia de salvação.
Admite-se, como um facto claramente estabelecido, que a existência
de mecanismos disciplinares é anterior aos séculos XVII e XVIII. Con-
sequentemente, a existência activa de uma disciplina cisterciense não
deveria suscitar qualquer dúvida relevante. Todavia, não se sabe até que
ponto se poderá estender a outros domínios esta lógica do espaço, per-
mitindo alargar, de um modo que continua inteiramente por esclarecer,
o objecto delimitado por Foucault, o qual, como se viu anteriormente,
remete exclusivamente para o momento histórico dos alvores do Ilumi-
nismo.
Seja como for, o nosso problema não é esse. Saber se na Idade Mé-
dia havia a funcionar determinados mecanismos disciplinares, de for-
ma isolada ou eventualmente fragmentária, como era o caso de Cister, é
suficiente e confirma os nossos propósitos metodológicos, além de que
não contraria precisamente o que efectivamente escreveu Foucault em
termos muito precisos e que tem a ver com o que é o poder. Na realidade,
o poder, em si mesmo, não existe; o que existe são práticas e relações de
poder, e estas podem ser surpreendidas em diversas (ou todas) práticas
sociais do Novo Mosteiro. Não há dúvida de que o poder disciplinar
(generalizado e totalitário) é fruto da sociedade moderna e está distri-
buído e repartido em termos de microfísica. É por isso que o poder não
é instituição nem estrutura, tal como não é simplesmente uma potência
de que alguns sejam particularmente dotados: o poder é o nome dado a
uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. Neste
sentido, Cister não é o poder, mas o poder é efectivamente o dispositi-
vo de Cister. Num sentido negativo, dir-se-á que o poder é repressão e
exclusão. Mas, esse lado obscuro, não é suficientemente marcante para
suprimir o potencial criador do poder. Pois admite-se que os indivíduos
submetidos a ele produzem e criam mais – sem o mecanismo do poder
a funcionar, a santidade (e o homem novo) poderia não passar de uma
ilusão metafísica eventualmente desconforme e de todo incompatível
com uma verdadeira economia de salvação. Na medida em que há poder,
a promessa e o compromisso da salvação adquirem uma dimensão de
actualidade e de eficácia que, sem essa realidade, não seriam possíveis.
Como diz Machado (1988): “o poder possui uma eficácia produtiva, uma
riqueza estratégica, uma positividade. É justamente esse aspecto que ex-
32
plica o facto de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo,
mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo”69.
Disciplinar é individualizar. Como foi amplamente observado ao lon-
go deste estudo, “o poder é produtor da individualidade”; a disciplina é
um dos meios que está na origem da emergência da pessoa, o que permi-
te sustentar o disciplinar, como sugere Foucault, do seguinte modo: “a
técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo
como objectos e como instrumentos de seu exercício”70. Em suma, a par-
tir dos corpos que controla, a disciplina é a individualidade que produz,
sendo, para isso, dotada de quatro características: “é celular (pelo jogo
da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das actividades), é
genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição
das forças)”71.
Mas individualizar é também aplicar técnicas disciplinares. Neste
sentido, são quatro as grandes técnicas que o trabalho disciplinar evoca:
construir “quadros”; prescrever “manobras”; impor “exercícios”; enfim,
para realizar a combinação das forças, organizar “tácticas”72.
Em jeito de síntese, uma última nota, para dizermos que a disciplina
aumenta a força que uma economia de salvação poderá oferecer tendo
em vista o desiderato da busca de santidade e diminui a resistência que o
corpo do renunciante pode oferecer ao poder. Isto quer dizer que a “de-
gradação” do corpo não é senão uma eficaz estratégia instrumental: é um
índice de plasticidade do corpo obediente e útil que comporta todas as
possibilidades de mimetização, transformação e reorganização do corpo.

Cister neste mundo


– uma heterotopia do outro mundo

Como nos é evidenciado pelo desenvolvimento da nossa análise, o


espaço do mosteiro cisterciense é santificado em sua função e seus efei-
tos, como será, no final do século XVIII, o hospital medicalizado. Ten-
do como horizonte próximo, o monaquismo dos finais do século XI, tal
modo de pensar o espaço representa manifestamente uma ruptura. Nesta

69
  MACHADO, Roberto, “Por uma Genealogia do Poder”, in Michel Foucault, Micro-
física do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. XVI.
70
  FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, Petrópolis, Editora Vozes, 1999, p. 143.
71
  Idem, p. 141.
72
  Ibidem.
33
perspectiva, o principal contributo da nossa reflexão é o seguinte: por
intermédio dos cistercienses, logo desde os seus primórdios, o espaço
passou a ser tratado como um elemento fundamental da vocação de san-
tidade, da ordem, ou seja, como um instrumento de salvação, tal como a
oração, o trabalho, o ritual, etc.
Trata-se de uma questão da maior importância para a compreensão de
Cister. Procuraremos aprofundá-la um pouco mais, com o benefício de
uma nova passagem pela filosofia do espaço de Foucault. Se queremos
compreender correctamente o verdadeiro significado e o alcance da fun-
ção e efeitos de santificação do espaço monástico, não o poderemos fa-
zer, satisfatoriamente, se não enquadrarmos essa problemática na noção
de heterotopia de Foucault.
Na mesma época em que Foucault realizou a conferência que se en-
contra na base do seu texto sobre a noção de heterotopia (1967), o mes-
mo conceito foi pensado, não exactamente nos mesmos termos, como é
óbvio, por Henri Lefebvre, trazendo à colação, para esse efeito, as no-
ções complementares de isotopia e utopia, de acordo com o que ficou
estabelecido em Le Droit à la ville (1968), La revolution urbaine (1970)
e La production de l’espace (1974). Segundo este autor, a isotopia de um
lugar (topos) é aquilo que o envolve (vizinhança, arredores imediatos),
isto é, aquilo que faz o mesmo lugar. Se noutra parte existe um lugar
homólogo ou análogo, ele entra na isotopia. É o lugar-mesmo, o lugar do
mesmo. Já o lugar-outro, ou o outro lugar, é definido como heterotopia,
há também o alhures, o não-lugar que acontece e, entretanto, procura seu
lugar, ou seja, a utopia. Por conseguinte, a heterotopia o lugar do outro,
é, ao mesmo tempo, o lugar excluído e imbricado. Nestes termos, a dife-
rença entre isotopia e heterotopia só pode ser concebida correctamente
de uma maneira dinâmica.
Trata-se, sem dúvida, de um conceito interessante. Aplicado a Cister
ajuda-nos a compreender o sentido da diferença que vem da recusa do
mundo e do rigor da ascética. Contudo, não nos diz nada do modo como
essa diferença pode operar sobre o mundo.
Numa conferência, no ano de 1967, com o título Des espaces autres,
publicada apenas na década de 1980, Foucault analisa as questões do
espaço sob o signo da noção de heterotopia. Tratava-se, para este autor,
de dar prioridade à análise do espaço, como uma das consequências mais
significativas da orientação da filosofia do século XX, relativamente às
tendências do século XIX que estavam centradas no tempo: A nossa épo-
ca talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Nós vivemos na época
34
da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e
do longínquo, do lado-a-lado e do disperso73.
O que é que a consideração do espaço nos revela de fundamental? Em
que é que consiste a heterotopia do espaço?
Em primeiro lugar, Foucault observa que não se pode pensar a hete-
rotopia do espaço sem se considerar ao mesmo tempo, coerentemente, a
utopia.
Heterotopia (aglutinação de hetero, “outro” e topos, “espaço”) é um
conceito da geografia humana que descreve lugares e espaços que fun-
cionam em condições não-hegemónicas. Estes são os espaços das al-
teridades, que não estão nem aqui nem lá, que são simultaneamente
físicos e mentais, tais como o espaço de uma chamada telefónica ou o
momento quando nos vemos ao espelho. Por um lado, falar de utopia
significa falar de uma relação de analogia directa e inversa com o espa-
ço real da sociedade: a utopia representa a sociedade aperfeiçoada ou o
seu inverso. A utopia é uma ideia ou uma imagem que representa uma
versão ideal da sociedade. Mas, como convirá salientar, as utopias são
espaços ­irreais. Por outro lado, haverá também em todas as culturas e
civilizações, lugares reais, lugares efectivos, lugares fundadores da pró-
pria sociedade: espaços que são uma espécie de contra-lugar. Ou seja,
espaços que remetem para utopias realizadas, nas quais todos os lugares
reais, dessa dada cultura, são representados, contestados e invertidos.
Um tal “lugar” é localizável, mas, ainda assim, trata-se de um “lugar”
que está fora do “mapa”, fora de todos os lugares comuns (lugares caó-
ticos). “Estes lugares, por serem totalmente diferentes de quaisquer ou-
tros, que eles reflectem e falam, eu os chamarei, por oposição às utopias,
heterotopias”74.
O espelho, por exemplo, ajuda-nos a compreender o cruzamento com-
plexo da utopia e da heterotopia. Com efeito, o espelho mostra a minha
imagem, como se estivesse nesse lugar especular, quando, nesse mo-
mento, existo precisamente fora desse espaço onde, contraditoriamente,
mesmo assim, me posso reconhecer como alguém que vê tudo o que há
de mais perfeito para ver (uma utopia). Mas, há mais: o espelho revela a
heterotopia. Com efeito, no momento em que a utopia se parece inscre-

73
  FOUCAULT, “De outros espaços”, Architecture, Movement, Continuité, (1984),
[1964], 5, disponível em 12 de Janeiro de 2012, http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/
obra/outros.prn.pdf
74
  Ibidem.
35
ver no real, o espelho funciona como uma heterotopia na medida em que
transforma este lugar, o lugar que ocupo no momento em que me vejo
representado no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real,
associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, visto
que sem se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá do espe-
lho, não haverá espaço real75.
Por outras palavras, Foucault usa a ideia de um espelho como uma
metáfora de dualidade e contradição, a realidade e a não-realidade de
projectos utópicos. Um espelho é a metáfora da utopia porque a ima-
gem que se vê nele não existe, mas é também uma heterotopia porque
o espelho é um verdadeiro objecto que forma o modo como alguém se
relaciona à sua própria imagem. Nestes termos, Foucault usa o termo he-
terotopia para descrever espaços que têm mais camadas de significação
ou de relações a outros lugares e apresenta seis princípios em que con-
virá destacar os aspectos mais relevantes sob o ponto de vista da nossa
análise do espaço monástico.
Primeiramente, o facto de todas as culturas engendrarem as suas pró-
prias heterotopias (universalidade). O que não significa que haja um pa-
drão imutável, pois uma sociedade, à medida que a sua história se desen-
volve, poderá atribuir a uma heterotopia existente uma função diversa da
original. Contudo, o aspecto fundamental é este: a heterotopia consegue
sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários lugares que por si
só seriam incompatíveis. Acrescentar-se-á ainda que as heterotopias es-
tão ligadas a pequenos momentos, pequenas parcelas do tempo - estão
intimamente ligadas ao que Foucault designava analogicamente por “he-
terocronias”. Chamando-se ainda a atenção para o facto das heterotopias
implicarem um sistema de abertura e encerramento que as torna tanto
herméticas como penetráveis, dir-se-á, por fim, que as heterotopias têm
uma função específica ligada ao espaço que sobra, que é a de criar um
espaço ilusório susceptível de espelhar todos os outros espaços reais, ou
seja, criarem um “espaço-outro”, real, perfeito, meticuloso e organizado,
capaz de se impor, inequivocamente, na iminência paradigmática de uma
exemplaridade ideal, em face da desconformidade caótica dos nossos
espaços desarrumados e mal construídos76.
A heterotopia de Cister é um dos traços profundos e marcantes do
espaço do Novo Mosteiro. Quem o assinalou, em primeiro lugar, tanto

  Ibidem.
75

  Ibidem.
76

36
quanto sabemos, terá sido o ensaísta húngaro Ioan Panzaru em Le mo-
nastère comme hétérotopie chez Bernard de Clairvaux (1999)77.
A questão pode formular-se nos seguintes termos: numa abadia como
Clairvaux, os homens vivem longe (porque eles escolheram afastar-se)
do sistema de espaços culturais homotópicos, que não são marcados com
o rótulo de “diferença”. Mesmo se nós disséssemos que toda a sociedade
precisa de um conjunto de espaços claramente diferenciados para orga-
nizar e operar, a verdade é que o conceito de heterotopia mantém uma
pertinência incontestável onde há comunidades que foram compelidas
a isolar-se ou que preferiram elas próprias isolarem-se. Estes espaços
são heterotopias porque têm a propriedade de estarem relacionados com
todos os outros locais, mas de uma maneira tal que suspendem, neutra-
lizam ou revertem o conjunto das relações que são por eles nomeadas,
reflectidas ou pensadas.
Isolado do mundo, no seu modo próprio de ser um determinado espaço
(ideal), o mosteiro confirma concretamente a existência de outro espaço
cuja primeira função é precisamente a de re-ligar os espaços “caóticos”,
“desarrumados” dos espaços do mundo. O mosteiro é um contra-lugar
que é real, que existe concretamente, ao mesmo tempo que se apresenta
como fora do mundo, como renúncia sistemática desse mesmo mundo.
Sendo o espaço de vida totalmente fora do mundo, é um espaço que
existe ali precisamente para reestabelecer a ordem do mundo por via de
uns quantos indivíduos que voluntariamente se propuseram a um tal acto
concreto de vida, a um tal empreendimento. Na medida em que esse acto
estabelece a separação desse grupo social como parte, sendo esse acto
espontâneo (ou vivido como tal), ele também estabelece a identidade do
grupo. Saídos do mundo (século), estes perushim (Fariseus, separados),
representam aqueles que se desviam dos seus pares para permanecerem
puros, para se guardarem da impureza, como os anacoretas dos primeiros
séculos cristãos que se queriam identificar com o seu isolamento em opo-
sição aos grupos homotópicos. Metaforicamente, estes Fariseus “fazem
uma cerca à volta da Torá”. Mas os autênticos fizeram-na no interior
da hermenêutica, porque tentaram interpretar uma versão original, tanto
quanto possível, e com a alegação de reconstrução histórica, os man-

  PANZARU, Ioan, “Le monastère comme hétérotopie chez Bernard de Clairvaux”, in


77

Espaces et mondes au Moyen Age, Actes du Colloque International, 1999, Bucarest


(17-18 octobre 2008, Ed. Univ. Bucarest, pp. 123-135. 3 de Março de 2012: http://
www.unibuc.ro/prof/panzaru_i/Le_monastere_comme_heterotopie_chez_Bernard_
de_Clairvaux.php

37
damentos e proibições do Pentateuco, ao contrário destes que erguem
agora edifícios de texto e de pedra. Porém, todos com o mesmo rigor de
satisfazer todas as prescrições de pureza exclusiva, de não-comunicação,
de secessão. “Eles são os eleitos dos eleitos, e evitam misturar-se com os
simples eleitos”78.
Mas, como observa Ioan Panzaru, se levarmos à letra a observação de
Foucault segundo a qual as heterotopias se relacionam com outros luga-
res, de tal maneira que suspendem, neutralizam ou revertem o conjunto
das relações que são por eles nomeadas, reflectidas ou pensadas, vê-se
claramente como é que as práticas ascéticas podem ser revertidas, sus-
pensas ou neutralizadas no caso do mosteiro. Poderíamos chamar ‘nega-
tivas’ a estas heterotopias nas quais a função de definição é a inversa da
função de produção. Isso significa que o convento não está disponível,
em comparação com a sociedade, para uma simples separação, como se
pensava em Port Royal, mas como se visa efectivamente uma separação
total, ele deve projectar sobre o corpo social um espectro de unificação
e de comunhão79.

O Novo Mosteiro
– uma máquina de produção de santidade

Do ponto de vista das indicações de sentido dadas pela noção hetero-


topia, pode dizer-se que o monge é uma obra feita contra este mundo, a
favor de um mundo que virá.
Neste sentido, não temos que ficar espantados com a ideia de que a
chave do “segredo do sucesso” do mosteiro cisterciense pode ser consi-
derada, na óptica do resultado, uma espécie de “medicalização” do espa-
ço monástico, em relação ao qual seria indispensável compreender o pa-
pel da ascética subordinando-o a uma prática médica da saúde do corpo
e da alma, da terapêutica do rigor de cuidar de si mesmo.
O carácter médico do mosteiro é indissociável das práticas da as-
cética e do amor: “A Abadia de Claraval tem, aos olhos de S. Bernar-
do, a nobreza incomparável de um simples estabelecimento de saúde
pública, mesmo que este fosse espiritual. Se pensarmos que para ele
o essencial é o “deixar o mundo”, como foi entendido por Guilherme

  Ibidem.
78

  Ibidem.
79

38
de St. Thierry, não nos enganaremos muito a respeito dessa opção. De
facto, para Bernardo, a lei do monge, a lei do cristão, não é a separação,
mas a união80, o amor apaixonado deste mundo que é uma das formas
sob as quais Deus se mostra a nós - o amor do mundo em Deus ou de
Deus no mundo”81.
Afirmando-se contra o “mundo”, Cister deseja-se reconduzido ao co-
ração do mundo: é o centro, a epítome, o modelo do mundo e o espécime
mais requintado daquilo que é a beleza do mundo. “Foi em Claraval-
-Sion, que é devida a glória e o louvor, que suas filhas - os filhos espiri-
tuais de S. Bernardo - escolhiam a graça e o favor de Deus. A sociedade
é a Igreja, a noiva do Senhor. Que mais belo título haveria para o nosso
amor poder reivindicar o mundo visível?”82
Compreende-se, portanto, que o remédio (infalível) proposto por uma
medicina monástica tenha que ser o amor: amar a Deus com todas as
suas forças, com todo o coração e com toda a sua mente. Amar a Deus
com toda sua mente é ter a virtude da prudência, ser sábio, agir de forma
adequada e eficiente para o bem de próximo sem esquecer o seu próprio
bem. Lembramos que S. Bernardo cita, em intenção de Eugénio III, as
palavras do Eclesiástico: “se não és bom para ti mesmo, para quem é que
és bom?” Absorvido nesta dimensão heterotópica de um “aqui-além-aí”,
o mosteiro é pensado como santidade e amor, de um amar a Deus imen-
samente, “loucamente, descontroladamente, justamente até ao desespero
e ao êxtase, com temor e tremor, sentir a santidade do amor na transcen-
dência imanente do nosso coração”83.
Na integração das práticas de medicalização do amor, a heterotopia
devia exercer uma função instrumental de modo a fazer do mosteiro o
lugar social por excelência, uma espécie de união do Céu e da Terrra com
a virtude de se apresentar simultaneamente como utopia e realidade: “a
posição heterotópica da Abadia de Claraval, para S. Bernardo, não tem
senão uma função instrumental. A posição do cristão não pode ser mar-
ginal, se não for cuidadosa e criteriosa. Marginalidade é pecado. Todos
nós somos pecadores, como Madalena, que era uma pecadora. Mas o seu
coração, seu espírito e sua alma são colocados na centralidade do amor
de Deus. A nossa marginalidade de pecadores é apenas um instrumento

80
  Sobre este assunto, ver S. Bernardo – Tratado dos Louvores da Virgem, Editorial
Confluência, Lisboa, 2004.
81
  PANZARU, 1999, Ibidem.
82
  Ibidem.
83
  Ibidem.
39
para a centralidade da nossa salvação. Tal é a vontade de Deus, e não se
pode ser sábio sem saber isso”84.
Nesta base, faz todo o sentido concluir como se segue: “Então, nós
estamos lidando com uma estratégia heterotópica que visa a centralidade
exemplar da comunidade cristã no seio do mundo”85.
Enfim, de acordo com uma indicação de sentido bastante paradoxal,
convirá falar ainda de heterotopia na medida em que não é a sociedade
que produz este mosteiro, mas é este mosteiro que contém em si a dis-
tância possível de uma sociedade que convirá transformar no sentido de
outra sociedade: “É como se o mosteiro estivesse do lado de fora e dentro
da Europa. Claraval está fora porque entre a abadia e o céu não há nada.
Não é a sociedade que contém o convento, mas o convento que se esten-
de num espaço tão grande que toda a sociedade está nele contida. Nós
sabemos que os fariseus, que eram todos os envolvidos com a pureza
ritual, também tinham uma mente aberta porque estavam satisfeitos com
sua observância, tinham curiosidade das ideias dos outros e toleravam-
-nos. Os fariseus foram os únicos a sobreviver à destruição de Jerusalém,
os únicos com a mente tão vasta e tão tolerante, que entendiam o que
estava a acontecer e adaptavam-se a isso”86.
No sentido de uma conclusão parcial, dir-se-á ainda que Cister é uma
heterotopia porque, representando-se como um espaço de inscrição de
um outro mundo, acabou por reverter-se, na sua função concreta e ime-
diata, sobretudo em S. Bernardo, como construção de um “mundo de
pontes”, de pontes não só entre o Céu e a Terra, mas principalmente de
pontes entre homens que se desejaram colocar fora do mundo justamente
para dele se distanciarem o suficiente, apropriando-se significativamente
dele, com vista a melhor o poderem mudar.
Na verdade, a heterotopia do espaço foi uma espécie de máquina de
santidade.
A definição mais comum de “máquina” é a seguinte: todo e qualquer
dispositivo mecânico ou orgânico cuja função é executar ou facilitar o
desempenho de tarefas, contando para isso com uma determinada fon-
te de energia. Em geral, o termo aplica-se a um conjunto de peças que
operam juntas para executar um trabalho. Máquinas são, portanto, dis-
positivos que diminuem a intensidade de uma força aplicada, alterando o

84
  Ibidem.
85
  Ibidem.
86
  Ibidem.
40
sentido da força ou transformando um tipo de movimento ou de energia.
Quando se pensa em máquinas, pensa-se quase sempre em automatismos
mais ou menos complexos. Com frequência se esquece o facto elementar
segundo o qual as máquinas mais comuns são as que se inscrevem di-
rectamente na esfera da acção humana, as máquinas manuais (humanas).
Ora, estas caracterizam-se precisamente por se servirem do humano para
maquinar (maquinação humana). Um bom exemplo disso é uma simples
alavanca. Das mais simples às mais complexas, das manuais às automá-
ticas, das não inteligentes às inteligentes, todas as máquinas traduzem
uma humanidade corporizada e artificializada por via da imaginação
criadora do homem, donde dizer “tecnologia” é dizer “acção” e “criativi-
dade” do ser humano sobre si próprio e sobre o mundo.
Que a “maquinação” chegou às pessoas, sabemo-lo, sobretudo, a par-
tir da era moderna, a qual fez incluir, nesse âmbito, signos tão díspares
como robóticas, linguagens, redes, ou mesmo sistemas de ideias (“ma-
quinaria do sujeito transcendental” de Kant, etc.). Mas aquilo que apa-
rentemente será mais insólito é o facto da ideia de maquinação do espaço
ter suscitado sempre o maior interesse por parte de pensadores, como foi
o caso de Santo Agostinho que defendia a ideia da conversão das nossas
casas de habitação em “máquinas de morar”87. A obra arquitectónica não
seria apenas um produto do homem, mas um produto que expressaria o
engenho da maquinação do homem88. Segundo Santo Agostinho, o ob-
jecto do espaço concebido pela arquitectura visa vincular o sujeito ao
­objecto89. Daí a sua recomendação: as medidas da obra devem derivar
das medidas do homem: “O mandar Deus a Noé… que construa uma
arca para nela escapar à desvastação do dilúvio com os seus, com a mu-
lher, filhos, noras e os animais que por ordem de Deus também fez en-
trar na arca, é, sem dúvida, imagem da Cidade de Deus, peregrina deste
mundo, quer dizer, da Igreja, que se salva pelo lenho de que pendeu o
mediador, entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo. As medidas
do seu comprimento, largura e altura são símbolos do corpo humano em
cuja realidade veio aos homens, como fora predito”90.
A matéria é, pois, a substância de toda a construção, mas só na maqui-
naria da arquitectura é que faz resplandecer o espírito.

87
  Ibidem.
88
  PULS, Maurício, Arquitectura e filosofia, S. Paulo, Annablume, 2006, p. 511.
89
  SANTO AGOSTINHO, Livre Arbítrio, III, 9, 27
90
  SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, 25, 26, 1
41
A ideia desta forma de abordar o espaço de Cister é a de que o mostei-
ro foi durante muito tempo, acentuadamente nos primórdios da ordem,
uma autêntica máquina de produção de santidade, de deificação e de es-
pacialização de Deus. Estamos convictos de que a questão foi levantada
e que atingiu um estado suficientemente pertinente para caminhar por si
mesma rumo às consequências do seu próprio questionar.

Pertinência e fecundidade
da heterotopia do espaço de Cister

Quando em 21 de Março de 1098, um pequeno grupo de monges per-


tencentes à ordem de S. Bento, liderados por Roberto, abade de Moles-
me, tomaram a iniciativa de deixar o seu mosteiro e partir para uma nova
fundação, tendo deixado a congregação a que pertenciam, para retomar
expressamente a observância da antiga regra beneditina, como reacção
ao relaxamento da Ordem de Cluny, escolhendo Cister como lugar de
edificação do Novo Mosteiro, dificilmente estes monges rebeldes, apesar
da força das suas convicções e propósitos, poderiam imaginar o signifi-
cado e o alcance desse acto de renovação. Para eles, o Novo Mosteiro
significava, antes de tudo, a possibilidade de uma nova casa, ou seja, a
edificação de um espaço próprio e inovador de habitação de vida.
No seu sentido mais original, o termo casa pode referir-se a uma cons-
trução pensada e executada com a função específica de moradia, tendo
em vista assegurar o quotidiano dos moradores, quer na sua relação com
o exterior (protecção relativamente aos outros, à natureza, etc.), quer em
relação ao interior (acomodação, integração, realização de si, interacção,
etc.), quer em relação à superação do interior/exterior (entrega de si, fas-
cínio do além). A casa era, pois, um abrigo, um lar e uma plataforma.
Ou seja, um monge devia ser de uma casa na medida em que habitava ou
pertencia a um espaço próprio, singular, considerado, ao mesmo tempo,
um espaço de vinculação (de família, por exemplo), de identidade (ob-
servância estrita da Regra) e de transcendência (fascínio de Deus).
Contudo, quando se fala em espaço, aquilo que frequentemente nos
ocorre é a ideia de extensão, de realidade física (o meio, o envolvente,
etc.). Mas não foi nesse sentido que se procurou orientar o nosso trabalho,
ainda que, insistindo-se nesse caminho, tivesse sido possível pôr mais
em evidência as diversas materialidades das implicações fundamentais
do espaço arquitetónico, do espaço económico, do espaço social, etc..
42
Porém, mais importante que a determinação dessas materialidades, é
fazer notar que o Novo Mosteiro foi revelador de um novo conceito de
espaço, conceito esse que se tornou central no sistema de vida cistercien-
se. Com efeito, se quisermos compreender um pouco melhor o significa-
do e alcance do conceito de Novo Mosteiro, não o conseguiremos fazer
adequadamente sem procedermos a uma descrição exaustiva, detalhada,
das forças que esse espaço pôs a funcionar sob o signo de uma economia
de salvação ajustada aos novos horizontes de Cister. Neste sentido, uma
pesquisa do género da nossa, precisa de entender a lógica da organização
do espaço como uma instância (dispositivo) de abrigo, lar e transcendên-
cia91.
Conforme se procurou mostrar, o espaço de Cister remete, em primei-
ro lugar, para a ideia de deserto (a primeira fronteira da busca de Deus),
em relação à qual se desdobram e equacionam questões fundamentais
tais como as que foram consideradas tematicamente centradas em torno
da ascese, do noviciado, dos mecanismos de exemplaridade, das preo-
cupações do cuidar de si mesmo (subjectividade), da oração e da peni-
tência, da obediência, da humildade, do silêncio, da escuta, do ritual, do
trabalho, da meditação, do corpo (as técnicas do corpo), do homem novo,
do agir, da temporalidade, da solidariedade, da comunidade, da liberda-
de, dos itinerários de Deus, etc.92.
Sob este aspecto o espaço é totalmente percorrido por um sistema de
forças (a força de Deus, do Abade, da oração, da penitência, do silêncio,
da humildade, do trabalho, etc.), segundo uma diversidade de movimen-
tos, bifurcações, dinâmicas, intensidades, mas também de constrangi-
mentos, bloqueios ou de inércias. Em última instância, a força que traba-
lha o monge renunciante não é senão uma força arrebatadora que pode
ser legível na condição de acesso à experiência dos seus extraordinários
efeitos de transformação. É neste sentido que o espaço configura a pos-
sibilidade de uma estrutura fundamental da acção humana.
Embora plenamente disponível, praticamente à mão, a Casa de Cis-
ter procurou demarcar para si (abrigo, lar, plataforma) um espaço entre
o visível e o invisível. Com esta demarcação, explicitamente orienta-
da para ambiguidade, procurou fazer-se da espacialidade um enigma,
um enigma que não deixou de tocar o núcleo de significação do próprio

91
  COELHO, Amílcar, Enigma de Cister – O espaço entre o visível e o invisível, Imagens
e Letras, Leiria, 2012.
92
  Ibidem.
43
Deus. Além disto, um enigma que não convoca somente um espaço de
disciplina, mas traz também à colação um espaço de liberdade, de sub-
jectividade, um espaço de santidade (utopia e heterotopia).
O espaço monástico é um dispositivo que produz e subverte a reali-
dade, não se limitando apenas a traduzi-la em termos de idealização da
salvação cristã. Além da pluralidade e imprevisibilidade das forças que
aí interagem, submetendo o espaço permanentemente a todo o tipo de
confrontos, conflitos e tensões de composição e recomposição de forças,
revelava-se ainda um mecanismo de reequilíbrio que pode funcionar ple-
namente segundo um princípio heterotópico do espaço. Neste sentido, o
mosteiro foi um espaço vital (um espaço de vivência), não sob o ponto
de vista daquilo que na realidade é (um espaço humano, temporal, uma
“babilónia”), mas daquilo que, não existindo ainda, é, contudo, mais que
uma promessa, quer dizer, uma realidade quase perfeita (a utopia de Je-
rusalém Celeste). Mas é também uma heterotopia, uma vez que tal espa-
ço existe na realidade, ou seja, este lugar do mundo é transformado num
espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que
o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que, para nos apercebermos
desse espaço real, temos de entrar nele, temos de lhe pertencer incondi-
cionalmente, o que seria impossível de acontecer sem atravessarmos as
suas fronteiras, sem penetrarmos profundamente nesse ponto virtual que
está do lado de lá, ou seja, é absolutamente interior, de uma tal interio-
ridade que, para qualquer modo possível de acesso, implica necessaria-
mente um renunciar a toda e qualquer forma de exterioridade.
Além disto, a afirmação que o mosteiro é uma heterotopia quer ainda
dizer que estamos em presença de diversas camadas de significação ou
de relações a outros lugares. Com efeito, como foi sugerido por Fou-
cault, a heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários espa-
ços, vários lugares que, por si só, seriam incompatíveis (o lugar da terra,
o lugar do céu). As heterotopias estão ligadas a pequenos momentos, pe-
quenas parcelas do tempo (heterocronias) (o tempo de renúncia, o tem-
po de contemplação). Além disto, pressupõem um sistema de abertura e
encerramento que as torna tanto herméticas como penetráveis (lugar de
deserto, lugar de noviciado, lugar de contemplação, lugar de comunida-
de, etc.). Por fim, têm uma função específica ligada ao espaço em que o
mosteiro se insere: criar um espaço ilusório que espelha todos os outros
espaços reais (lugar de disciplina, de obediência, de humildade, de amor,
de caridade, a Ordem, etc.) e criar um espaço-outro (lugar sagrado, lugar
de Deus), real, tão perfeito, meticuloso e organizado, como nunca o po-
44
deriam ser os espaços desarrumados e mal construídos das nossas vidas
efémeras e insignificantes.
Seja como for, o espaço foi construído e reconstruído em rede, com
sucessos, falhas e reparações, num processo que não cristalizou na emer-
gência do Novo Mosteiro, apesar do imenso fascínio que uma tal máqui-
na de produção de santidade terá então exercido sobre os homens que o
teceram e que foram por ele tecidos (vivência) para contentamento de
uma futura derivação da maquinação do corpo e da alma humana ainda
mais eficaz.

45
A Transparência da Pedra

Rui Rasquilho
A Transparência da Pedra

E
sta construção, vigorosa e poética, que é o Mosteiro, construído
pelos cistercienses borgonheses, entre dois rios e à vista do Castelo
do lugar de Alcobaça, está longe de ser conhecida.
Há uma vertente escondida deste mosteiro que indicia o poder da
originalidade, que afirma o “único” na sua projecção arquitectónica si-
multaneamente representativa do poder espiritual e temporal do século
XII Ibérico.
Muito há a fazer relativamente a estudos comparados dos edifícios
cisterciense, em particular Espanha, sobretudo com os mosteiros de
DeL’Oliva, em Navarra, Toblet, em Tarragona, Stª Maria de Moreruela,
em Zamora, e Las Oelgas, em Burgos – todos eles edificados entre 1130
e 1140.
O passado pétreo da Casa de Alcobaça não é banal; é provocador.
A dimensão da sua arquitectura é o reflexo do reino emergente, con-
jugando a busca de Deus com o desígnio político e militar de Afonso
Henriques.

ANTES DE ALCOBAÇA

Depois da tomada de Santarém, Afonso Henriques, apoiado num sig-


nificativo grupo de cruzados, conquista aos mouros a cidade de Lisboa.
Como refere José Mattoso, a conquista de Santarém, a 15 de Março
49
de 1147, e de Lisboa, a 25 de Outubro do mesmo ano, preenchem as
ambições de Afonso1.
A fronteira sul de Portugal alcança o rio Tejo, arrebatando para a cris-
tandade terras com largos séculos de administração muçulmana, como ia
acontecendo também com outros reinos peninsulares.
Em 1153, com data de 8 de Abril, D. Afonso e sua mulher D. Mafalda
doam à ordem contemplativa de Cister um significativo território com
cerca de 44.000 hectares de terra úbere, entre a serra, hoje denominada
de Candeeiros, e o mar oceano.
Nesse mesmo ano, em Agosto, morre, na sua cela austera, o abade
perpétuo do mosteiro de Claraval, Bernardo de Fontaine.
Independentemente das eventuais ligações ao eremitismo, ao menos no
rigor da observância2, os cistercienses derivam, na sua origem francesa,
da ordem beneditina, sendo seu fundador S. Roberto, abade do mosteiro
cluniacense de Molesme, no bispado de Langres (Lyon).
Cerca de vinte monges seguem o movimento de secessão de D. Ro-
berto, protegidos pelo arcebispo D. Hugo que os autoriza a instalar-se na
floresta de Cister, em Chalon-sur-Saône.
Seguindo à risca a regra escrita por S. Bento, renunciando à posse de
bens e rendas em benefício do exercício espiritual pleno, os “novos” monges
instalam-se em 1098 em pobres casebres de madeira na inóspita floresta.
Os monges brancos de Cister serão os reformadores dos monges ne-
gros beneditinos. Os primeiros viverão, no seu início, longe do mundo;
os segundos há muito que eram atormentados pela cidade.
As duas ordens fiéis a S. Bento herdam o ascetismo do final do século X.
Beneditinos e Cistercienses vivem em monaquismo eremítico, um deserto
interior estruturado na solidão e na pureza.
Três séculos separam os Beneditinos (séc. VIII) dos Cistercienses
(séc. XI), tempo suficiente para se compreender que os primeiros se aclima-
taram à cidade e à malha feudal da sociedade francesa medieval, abrindo,
em consequência, os seus mosteiros ao poder e arbítrio dos seus “dadores”.
Em 909, nasce em Cluny um mosteiro de raiz beneditina, onde, pela
primeira vez se procura regressar às raízes desenhadas por S. Bento de
Núrsia, perseguindo a ideia de que os “laicos não deverão, seja porque
forma for, intervir na vida dos mosteiros”3. Cluny nunca procurará englobar

 1
  MATTOSO, José, D. Afonso Henriques, Lisboa, Temas e Debates – Circulo dos
Leitores, 2007, pp. 231
 2
  Idem, p. 132.
 3
  PACAUT, Marcel, Cluny – História nº 19, 1992, pp. 40-41.
50
na sua reforma todos os mosteiros beneditinos, nem constituir uma con-
gregação, procurando apenas manter a união entre as casas no exercício
da observância comum da regra.
Um século depois de Cluny, Etienne Harding, terceiro abade do Novo
Mosteiro, que continuava a subsistir em extrema pobreza, será o primeiro
“legislador” de Cister, criando com os seus irmãos a Carta de Caridade, o
“Decreto”, com que se procurava garantir no futuro o único benefício que
desejavam para os cenóbios, “o bem espiritual e temporal dos irmãos”4.
Dotada a ordem do seu estatuto fundamental, as diversas casas que
vão nascendo ficam ligadas pela caridade, formando uma só família, con-
gregada pelo “Capítulo Geral”, tornando-se o abade o pai dos cenóbios,
eleito pelos seus pares.
O actual Mosteiro de Alcobaça demorou mais de meio século a ser
construído e a sua ocupação definitiva pelos cistercienses, instalados,
com toda a probabilidade, em Chiqueda, desde 1152, será autorizada, pelo
Capítulo Geral, realizado no mosteiro de Cister na Borgonha, no ano de
1227, quatro anos após a 1ª consagração do mosteiro.
Bernardo, abade de Claraval, havia morrido no dia 20 de Agosto de
1153; por isso, nunca veria o mosteiro, nem sequer o imenso domínio
que Afonso Henriques e sua mulher Mafalda lhe doaram, a 8 de Abril do
ano da sua morte.
A Ordem de Cister possuía, no fim do primeiro quartel do século XII,
cerca de 400 mosteiros, na sua maioria de figurino românico, embora, nas
construções mais recentes, o estilo gótico tivesse iniciado o seu caminho,
em especial na Europa além Pirinéus.
Santa Maria de Alcobaça é um mosteiro tardio, concluído 125 anos após
a fundação da ordem, nascida para ser o “último bastião” da revolução
monástica medieval.
A Ordem de Cister deverá ter-se instalado em Portugal logo no início
da década de quarenta do séc. XII, no mosteiro beneditino de S. João de
Tarouca. Na década anterior, a ordem construíra de raiz, junto a Zamora,
no Reino de Leão, um edifício esplêndido, o mosteiro de Santa Maria de
Moreruela, cujas ruínas deixam adivinhar uma abóbada de berço, apoiada em
tourais, casados com as abóbadas de ogiva das colaterais e do deambulatório.
Nos primeiros tempos, nos séculos XI e XII, a ordem afasta-se reso-
lutamente do mundo, construindo os seus mosteiros em zonas isoladas,

  FARINHA, Frei José Luís OCSO, Os Buscador de Deus. Prior Velho. Paulinas, 2006,
 4

p. 123
51
embora aí devesse haver água e floresta; em breve, organizariam granjas,
apascentariam rebanhos e construiriam celeiros, moinhos e lagares. Subsistir
sem contacto com o século era a determinação destes buscadores de Deus5.
A Ordem de Cister polvilhou a Europa com as suas casas, no início do
primeiro milénio, instituindo o “Capítulo Geral Anual” como autoridade
suprema e elemento de coesão dos mosteiros autónomos, um figurino
democrático, ligado por uma subtil hierarquia, estruturada na visita anual
dos abades das Casas Mãe6.
Este sistema administrativo, Capítulo Geral e visita abacial, permitia
desenvolver a iniciativa e dava a liberdade dos mosteiros ao contrário
do que acontecia com a administração centralizada da ordem de Cluny.
A sustentabilidade dos mosteiros residia na importância económica
dos seus domínios senhoriais7. Em Alcobaça, a agricultura, a pecuária e
as pescas atingem níveis invejáveis de desenvolvimento. As comunidades
conversas de cada mosteiro, situação a que Cluny era alheia, aliadas à mão
de obra camponesa local, provocarão, sobretudo em regiões instáveis da
Península Ibérica, o acolhimento por reis e senhores desta nova ordem
contemplativa que reza e trabalha, que coloniza e apoia.
A importância económica do domínio senhorial de Alcobaça afere-se,
no primeiro quartel do século XIII, pela concessão de bulas de protecção
da Santa Sé ao mosteiro e seus domínios, referindo a isenção de dízimos,
colectas e outros encargos eclesiais, numa lógica de restrição à intervenção
da autoridade episcopal.
Nos reinos de Aragão e Catalunha, durante o séc. XII, os mosteiros
tornam-se “instrumentos da reorganização da população” nas terras
conquistadas aos muçulmanos, contribuindo para o seu ordenamento
agrícola e de povoamento. Leão, Castela e Portugal doarão de seguida
senhorios a Cister para ajudar a fixação de camponeses nas terras recém-
-conquistadas.
Numa outra vertente e num tempo anterior, o confronto entre cristãos e
muçulmanos será liderado pelo abade de Claraval, Bernardo de Fontaine,
que, a partir de 1112, irá, em consonância com o Papa, pregar em Vezelay,
mais uma expedição armada ao Santo Sepulcro, a 2ª cruzada8.

 5
  VIIII de connstruendi sabbattis colllectanea OCR, XVI, 2, Avr 1954, pp. 101-102.
 6
  Cister – 1098; La Ferte – 1113; Pontigny – 1114; Claraval – 1115.
 7
  Veja-se: MARQUES, Maria Alegria, Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal,
Coimbra, 1998, pp. 181-191
 8
  Independentemente da sua força religiosa, as cruzadas são um movimento político
que pressupõe a conquista do Mediterrâneo ao Islão.
52
Nesta peregrinação militar, jogava-se também o prestígio do papado.
Modelo semelhante foi adoptado para a Península – e, em particular,
para o condado onde D. Afonso Henriques que procurava alargar e
consolidar território, ambicionava o reconhecimento pelo Papa do seu
título de Rei9.
Nestas circunstâncias, parece razoável admitir a ideia dos que defen-
dem ter havido no concílio de Pisa, em 1138, um encontro entre D. João
Peculiar e o abade Bernardo, no qual se terá discutido, entre outros temas,
o apoio de um grupo de cruzados a D. Afonso Henriques, organizado
especialmente para a conquista de Lisboa aos muçulmanos, numa altura,
aliás, em que o abade de Claraval apoiava a ordem dos Templários (1130)
e o cavaleiro10 D. Afonso doava à ordem militar o Castelo de Soure (1128).
Alcançado o Tejo, conquistadas as cidades de Santarém e Lisboa,
tornando-se o rio a nova fronteira, torna-se lógica a entrega de um senho-
rio, com mais de 40 mil hectares, a Bernardo de Claraval, cavaleiro da
nobreza rural borgonhesa, tal como o conde D. Henrique, pai de Afonso
Henriques. Bernardo de Claraval era nesta altura “senhor” da ordem de
Cister, conselheiro do papado, demolidor intelectual de Abelardo e Heloísa,
vigoroso lutador contra a heresia albigense.
O abade Bernardo viveu 55 anos e dominou o mundo religioso monás-
tico do seu tempo, e não apenas a primeira metade do século XII, porque
a sua influência estendeu-se até ao pontificado de Inocêncio III, em 1198.
Segundo Daniel Rops11, “o seu prestígio ia bem além da Abadia de Claraval
e suas filhas, bem para lá da ordem de Cister”.
A actividade de Bernardo é a de um abade no seu mosteiro; quando
trabalhava no mundo, com o povo, com os príncipes e com o clero, até
com o próprio Papa, ele não utilizava outra inspiração, outro alimento,
outra força se não a da sua vida interior12.
O seu ideal é o de Cister e o seu prestígio não tem limites; S. Bernar-
do deu particular atenção à legislação cisterciense, às observâncias e à
Teologia monástica, divergindo da interpretação da Regra de S. Bento
feita por Cluny.

 9
  MATTOSO, José, D. Afonso Henriques Lisboa, Temas e Debates – Circulo dos Lei-
tores, 2007, p. 231.
10
  Tratado de Zamora, 5 de Outubro de 1125 (José Mattoso – D. Afonso Henriques,
pág. 168 – cita um documento de 10/04/1140 onde Afonso Henriques aparece com
o título de rei.)
11
  ROPS, Daniel, Quandun Saint ArbitraitL’Europe, Paris, p. 52
12
  S. Bernardo e a Ordem de Cister, Collectanea OCR, XV, 1953, p. 4.
53
Depois de 1118, há o primeiro e amplo crescimento da Ordem em que
cada mosteiro procurará, no início da sua vida, viver em separação total
do mundo exterior. Para melhor viver apenas com Deus, na moldura ber-
nardiana, os mosteiros serão edificados em lugares afastados do comércio
dos homens, segundo o exemplo de São Bento.

ALCOBAÇA, 53.ª filha de Claraval

O estaleiro de Santa Maria de Alcobaça data de 1178, mas a comunidade


inicial ter-se-á instalado na região, em Chiqueda, algum tempo antes de
receber as terras doadas por Afonso e Mafalda, os “reis” do País nascente.
A ordem não aceitava qualquer doação; por isso, antes de a receber, ha-
veria de haver negociações preliminares, verificações sobre as condições
sociais, económicas e geológicas do lugar.
A qualidade das terras agrícolas próximas ao futuro mosteiro, a densi-
dade da floresta, existência de água abundante e jazidas calcárias de acesso
cómodo, eram condições para receber a doação. Foi fácil avançar com as
primeiras granjas, uma delas Chiqueda, arroteada entre carvalhos e casta-
nheiros, junto ao rio que garantia água para as hortas, oficinas e moinhos.
Tudo indica, por isso, que aí se construiu e manteve por dezenas de anos
o mosteiro primitivo13. Mais difícil foi encontrar condições para o local
definitivo, a dois quilómetros de distância, no vale entre-os-rios14, junto
ao castelo, que defendia um antigo aglomerado, denominado Alcobaça, e
que ficava suficientemente próximo das ricas jazidas calcárias da região
serrana, bem preenchido por florestas e terras de aluvião e também muito
próximo do mar que cobria uma área significativa da Lagoa do Valado.
As origens cistercienses de Alcobaça são ainda mal conhecidas, daí
que se deva proceder com prudência, embora sem medo de cometer erros
de análise que afinal poderão tornar-se um estímulo para uma saudável
discussão.

13
  COCHERIL, Maur, Routtier des Abbayes Cisterciennes du Portugal, Paris, 1978, p.
228. O historiador prefere assinalar o mosteiro primitivo onde hoje existe a Igreja
de Nª Sª da Conceição. BARBOSA, Pedro, Povoamento e Estrutura Agrícola na
Extremadura Central, Lisboa, 1992, p. 140. O historiador prefere escolher Chiqueda
como o local do primeiro estabelecimento cisterciense.
14
  “O abade que por razões de comodidade ou outras queira mudar o lugar do mosteiro
pode fazê-lo sem autorização especial”. XIII 2ª colecção de Laẏback. Esta disposição
vigorou entre 1152 e 1214, data a partir da qual as mudanças só podiam ser autorizadas
pelo Capítulo Geral.
54
Provavelmente, não saberemos nunca de onde vieram os mestres e ar-
tesãos e as centenas de braços que ajudaram monges do coro e conversos
a erguer obra tão grande, nem se as importantes verbas para a construir
tiveram total proveniência no doador, o Dux, que não tardaria a ser rei,
mas o mais perturbante advém de não sabermos quem foram os respon-
sáveis pela construção – e, provavelmente, também nunca o saberemos.
O modelo medieval do mosteiro estará concluído no reinado de
D. Dinis com o erguer de um novo e definitivo claustro, e significativas
obras no vasto refeitório.
Os caboucos da cabeceira, das naves e dependências claustrais são
abertos em 1178, quando, além Pirenéus, se vivia a idade de ouro do
monaquismo cristão e, como lá, aqui era preciso velar pelo cristianismo e
pelo trabalho dos camponeses, enquanto a guerra contra o Islão prosseguia.
Não há novidades nas plantas acertadas no chão, mas, quando as paredes
se alçam, o caminho vai cruzar-se com a originalidade e a memória.

A IGREJA

Virada a poente, a igreja – que, nos primeiros séculos, não partilhava a


oração com o povo dos coutos – apresentava uma fachada modesta, igual a
tantas outras da ordem que acompanhava o figurino interior de três naves:
uma empena triangular pouco pronunciada, por acompanhar três naves de
altura equivalente, quatro grossos contrafortes, um portal e uma rosácea de
iluminação sobre ele. Entre os contrafortes, iluminando as naves laterais,
dois janelões – por certo iguais aos que correm nas paredes norte e sul
da igreja. Por último, um nicho guardaria a Virgem Maria, protectora da
Ordem de Cister, no centro da empena. A fachada da Igreja foi sempre, até
ao século XVIII, aparentemente o elemento mais frágil da igreja; por isso,
ao longo dos séculos, foi sofrendo mais ou menos profundamente com
os abalos de terra, tendo, aliás, sido demolida e refeita em 1531 dado ter
aberto importantes fendas. A galilé real, que a antecedia desde 1223, fora
demolida em 1514, sendo, na mesma altura, limpa a igreja que caminhava
para três séculos de vida, albergando em média meia centena de monges,
entre os do coro, noviços e conversos, para além de inúmera criadagem,
necessária ao funcionamento doméstico quotidiano.
A igreja de Alcobaça, a terceira da Ordem em dimensão15, tem 100

  A Igreja do Mosteiro de Vaucelle com 132 metros foi considerada pelo Capítulo Geral
15

de 1192 como uma “construção demasiado sumptuosa, um escândalo para muitos”.


55
metros de comprimento e apresenta-se com três naves cobertas com abó-
badas de nervuras, praticamente com a mesma altura. Da central para as
laterais, as naves diferem apenas 70 cm entre o fecho das suas abóbadas.
Refira-se a catedral de Poitiers consagrada em 1379 e que não possui
transepto tem as três naves e abóbadas de ogivas também da mesma altura,
embora com colunas mais finas do que em Alcobaça, o que lhe dá uma
melhor leitura espacial.
Na Igreja do Mosteiro de Alcobaça existe uma equilibrada ligação ao
transepto, sustentada pela sua nave mais estreita; daí talvez a razão da
sua existência, por vezes mal compreendida. A meia laranja da cabeceira
é coberta por uma abóbada em forma de cúpula, que tem a mesma altura
das naves laterais, tendo a diferença sido subtilmente acertada no encontro
do cruzeiro.
A igreja funciona por via das medidas adoptadas, como uma sólida
gaiola, suficientemente plástica para amortecer a oscilação e resistir a
abalos de terra, como a sua longa vida, com poucas reparações noticiadas
o comprova. O carrego das abóbadas é volumoso e os barrotes e vigas
do telhado são em castanho, pinho e casquinha. Nos prumos, utilizou-se
o sobro e o carvalho. O madeiramento é na sua maioria secular compro-
vando que houve preocupação na sua escolha e na secagem dos elementos
aplicados.
A Capela-Mor, iluminada, como se devia, pela aurora e pela luz plena,
apoia-se no exterior em oito arcobotantes – como acontece em Pontigny que
tem doze construídos na segunda metade do século XII – permitindo aqui
janelões de dimensões ambiciosas para a época, numa região periférica da
Europa. Sem qualquer dúvida, a construção de Santa Maria de Alcobaça
obrigou a que o trabalho do estaleiro e obra fossem organizados, planificados
e hierarquizados, no quadro de um espírito lógico e inovador inerente ao
novo estilo adoptado por Cister.
Alcobaça afirma-se também como um espaço sagrado, onde a luz traz
à terra Jerusalém celeste: Deus era a luz, mas, aqui, sem cores de realce,
como decidira Bernardo. A cabeceira deveria ter estado concluída na
década de 90 do século XII; por isso, os seus arcobotantes, que obrigam
na sua utilização a ter conhecimento de geometria e matemática, são os
primeiros a ser usados na arquitectura religiosa em Portugal, conjunta-
mente com o terraço como cobertura das capelas da charola. Também o
recurso sistemático à abóbada de nervuras é, em Alcobaça, pela primeira
vez utilizado em Portugal, seguindo o exemplo, aplicado pelo abade Su-
ger, em Saint-Denis, no final do 2º quartel do século XII. As abóbadas do
56
Contrafortes e arcobotantes da cabeceira exterior da Igreja e transepto sul - sécs. XII/
XIII (Fotografia de Rui Rasquilho).

novo estilo com os seus carregos são agora suportadas pelas colunas, e
não pelos muros, como no período românico.
Os arcobotantes foram também adoptados, para refazer a cabeceira da
Catedral de Notre-Dame, na Île-de-France, em 122516, segundo os últimos
estudos de Alain Erlande-Brandenburg. Ora, se nesta catedral os arcobo-
tantes são mais condutores de águas pluviais do que apoios da cabeceira,
todo o século XIII assistirá, sobretudo na reconstrução das catedrais, à
utilização funcional dos arcobotantes17. A data referida para Notre-Dame
é praticamente coincidente com a da primeira consagração da igreja de
Alcobaça (1224), e isto significa que a capela-mor do mosteiro estava
construída18. Curiosamente, por exemplo, a cabeceira de Santa Maria de

16
  DESCAMPS, Philipe, c/ colaboração de BRANDENBURG, Alain Erlande, Les cahiers
Science et Vie, HS, 2008, pp. 136-8.
17
  Veja-se: FLORISSUME, Michel, Dictionnaire des Cathédrales de France, Larousse,
Montrouge, 1971.
18
  Alguns autores colocam a hipótese de no início das obras ter havido uma cabeceira
quadrada seguindo o figurino coevo de alguns outros mosteiros em França, parece-
-nos todavia que esta remota hipótese só poderá ser esclarecida pela via arqueológica.
57
Moreruela, de origem beneditina19 em Zamora, o primeiro mosteiro da
Ordem em Espanha – 1132 –, ou Santa Maria de Salzedas, junto a La-
mego (circa 1190), são ainda tributárias do românico, utilizando capelas
absidiais cobertas por telhado.
Os arcobotantes de Alcobaça, – que, aqui conduzem efectivamente o
impulso dos contrafortes – são os primeiros em Portugal. Aceite-se, ou
não, que a Igreja de Alcobaça teve, pelo menos, duas fases de obra, como
defendem entre outros, Maur Cocheril e Bruno Klein, parece verosímil
aceitar que a segunda consagração terá ocorrido em 1252. O gótico de
Alcobaça é coincidente com o de além-Pirinéus, nomeadamente com as
naves de Chartres, no Eude et Loire (1220), de Bourges, no Chair (1250)
ou Bauvais, no Oise (1284), esta sem nave, mas com o cruzeiro mais alto
da Europa (48m) – o que se tornou fonte de inúmeros problemas estruturais.
Esta simultaneidade da construção da igreja monástica de Alcobaça – uma
catedral – pressupõe a presença, aqui, de técnicos franceses, pelo menos
nas primeiras três décadas do século XIII20. As despesas da construção
eram gigantescas; por isso, não nos podemos admirar com pausas na cons-
trução da Igreja e do complexo abacial de Alcobaça, ao qual houve pelo
menos um sério ataque mouro em 1195, o que não impediu o início do
funcionamento do mosteiro, após a construção da capela-mor, reunindo,
assim, as condições mínimas para o exercício divino. A autorização de
transferência do cenóbio de Chiqueda para Alcobaça parece ter sido dada
pelo Capítulo Geral, reunido em Cister, no ano de 1227. Nesta data, pelo
menos, a cabeceira, o transepto e a nave ou parte dela, estão terminados
como concluído está o primeiro claustro e dependências monásticas.
O resto da sustentação da igreja é feito pela técnica do contraforte no
lado sul, já que, a norte, a igreja se apoia no claustro. É importante também
considerar a significativa grossura das paredes da igreja, variável, aliás, e
a robustez das colunas, de certo modo incapazes ainda da leveza gótica.
Bastará consultar a descrição do mosteiro feita por D. Maur Cocheril21
para aceitar esta informação. Um sinal de sujeição ao românico encontra-

19
  Na Península Ibérica muitos mosteiros eram nesta época de origem, beneditinos, antes
de adoptaram os usos cistercienses e adquirirem posterior filiação à ordem de Cister.
20
  No tempo de Bernardo no Mosteiro de Claraval viveram dois renomados arquitectos
que em França, Alemanha e Inglaterra deram apoio a novas construções monásticas;
Achard e Goffroy d’Aignay e que apenas podiam trabalhar em mosteiros da ordem
de Cister.
21
  COCHERIL, Maur, Routtier des Abbayes Cisterciennes du Portugal, Paris, 1978,
pp. 253-261
58
-se nos dois lados de cada uma das entradas do deambulatório, onde dois
muros maciços sustentam duas abóbadas de berço, tal como de berço são
as coberturas das capelas radiantes. O românico moribundo de Alcobaça
fica neste registo e a sua transição no caminho do gótico nas já referidas
colunas da igreja, onde o cenóbio se reunia para rezar oito vezes por dia
no respeito ao horário de verão e de inverno ajustado ao dia sideral como
o eram todas as actividades do ora e labora quotidiano.

AS DEPENDÊNCIAS

O claustro e as dependências monásticas: Sacristia, Sala do Capítulo,


Parlatório, Sala de Noviciado ou de Trabalho, e o dormitório que lhes fica
por cima, bem como o desaparecido scriptorium/calefactorium e o enorme
Refeitório com tribuna de leitura foram construídos utilizando o modelo
gótico, apurada fórmula arquitectónica que agregou num só programa,
elementos já usados isoladamente no Românico. Agora os arcos quebrados,
as nervuras e os colunelos assistem abóbadas quadripartidas como em
Alcobaça e sextavadas que se elevam resolutamente no caminho do céu.
De todas estas salas, a mais elaborada é a Capitular, com uma fachada
que lhe dá a dignidade hierárquica após a igreja22.
As abóbadas da sala onde quotidianamente se lia um capítulo da regra
se determinava o quotidiano monástico e se confessavam culpas públicas,
assentam em quatro colunas gomadas muito singelas, que encontramos
noutros mosteiros para salas de iguais funções, como nos capítulos de
Fontenay, no centro de França e de Las Huelgas em La Rioja, Espanha. Na
sala do Capítulo, geralmente quadrada, os monges sentavam-se por idade
e hierarquia de funções, à direita e à esquerda do abade que se sentava
virado para o claustro de costas para nascente.
Ao longo dos séculos, as Salas do Capítulo, o Parlatório e o Refei-
tório não tiveram quaisquer outras funções que não as de origem, mas
todas as outras foram perdendo e ganhando funções, foram demolidas
e reerguidas, divididas e ampliadas, modernizando-se, afeiçoando-se
a novos regulamentos e formas de vida espiritual, litúrgica e material
cisterciense.
A sala dos monges é uma dependência medieval de múltiplas funções

22
  Veja-se: RASQUILHO, Rui, O Mosteiro de Alcobaça (Moedas Comemorativas),
IMCM., 2008, pp. 97-98
59
comum a todos os mosteiros da ordem. É quase sempre a última do corpo
do capítulo, ou seja, da ala nascente do claustro. Em Alcobaça, devido à
inclinação do terreno e à impraticabilidade do seu nivelamento, o chão foi
afeiçoado em cinco plataformas onde se apoiam as colunas que suportam,
não apenas as abóbadas da sala, mas, sobretudo, o dormitório colectivo
que lhe fica por cima. A robustez desta construção medieva evidenciou-se
durante os quase quatro séculos em que suportou – como, aliás, todas as
dependências da ala nascente do claustro – um terceiro piso, construído
sobre o dormitório, no século XVI, para celas regulares do lado poente
e de noviciado a nascente. Igual solução em plataformas foi usada no
claustro do mosteiro francês do Thoronet, no Var, ou na Igreja de Silva-
cane, no sul mediterrânico francês. No século XVIII, a Sala dos Monges
tornou-se adega e despensa da grande cozinha setecentista, construída
no espaço anteriormente ocupado pelo scriptorium/calefactorium e, no
século XIX, no último quartel, átrio da porta de armas do regimento de
cavalaria 9.
Na ala norte do claustro, cuja construção em 1308 foi orientada inicial-
mente por Domingo Domingues e terminada por Mestre Diogo, ficava o
scriptorium, o refeitório e a cozinha, no seu extremo poente, onde hoje
está o claustro do palácio abacial. A sul, terminando o quadrado sagrado,
a ala da leitura encostada à parede norte da igreja. Um muro separou a ala
poente do claustro do terreiro, podendo eventualmente ter havido, onde
hoje se ergue a ala norte, um corredor e dependências de conversos, mas
nada o pode comprovar para além de esquissos de outros mosteiros. Até à
construção da ala norte da fachada poente, entre os séculos XVI e XVIII, o
modelo cisterciense medieval estava concluído, despojado e belo. “Como
desejavam os monges brancos, o mosteiro devia ser o atelier onde o monge
se dedicava à procura de Deus por isso, deveria ser construído para dar
resposta às suas necessidades espirituais e corporais”.
Santa Maria de Alcobaça é, portanto, construída seguindo o plano
da procura de Deus; os edifícios da clausura alcobacense oferecem aos
monges tudo aquilo que necessitam para o exercício da sua vida quoti-
diana sem que tenham de sair do espaço monástico e das suas hortas e aí
serem eventualmente seduzidos pelas tentações exteriores. Os rios serão
a primeira cerca, mais tarde, a pedra complementará a clausura.
A partir do final do século XIV uma cerca interior e outra exterior,
construídas lentamente, como comprovam os “relatórios” dos visitadores,
procuravam garantir a clausura e impedir a entrada do profano no espaço
sagrado. Sempre que foi útil, a cerca recuperou a água, apoiando-se do
60
lado sul no curso da levada e a poente no rio que se chamaria Baça e lhes
servia de fosso, reforçando-lhes as funções de defesa e clausura23.

O ABADE-BISPO

Durante o primeiro abaciato de Frei Estêvão Martins (1251-1276),


é criado em Alcobaça no ano de 1268 um studium perpetuum, escola
monástica onde se realizava a formação religiosa de noviços e monges,
preparando-os para melhor buscarem a transcendência de Deus, no
exercício da contemplação interior, através do ora et labora quotidiano,
inerente à vida dos monges brancos. Frei Estêvão é um abade poderoso,
o primeiro frade da ordem a receber, por iniciativa do Papa Inocêncio IV,
o governo de uma Diocese, a de Lisboa. A partir de 1260, Frei Estêvão
passa a ostentar anel e peitoral, mitra, mantelete e capa de murça. Sagrará
igrejas e dará ordens menores, em viagem usará o chapéu forrado a verde,
como verdes serão os cordões que dele pendem.
Frei Estêvão Martins resigna após 25 anos de governo do mosteiro
e seu domínio, mas cumprirá um segundo abaciato, entre 1281 e 1285,
porque o seu sucessor, D. Pedro Nunes, foi deposto pelo Capítulo, numa
altura em que Frei Estêvão é confessor régio e tem assento no Conselho
Real. Neste segundo abaciato do abade, que é também fronteiro-mor do
reino, não se regista actividade relevante, sendo, no entanto, assinado,
no tempo do seu sucessor, D. Martinho II, conjuntamente com o Prior
de Stª Cruz de Coimbra e outros peticionários, o pedido de criação, ao
Papa Nicolau IV, dos Estudos Gerais, que serão aprovados e começarão
a funcionar em Lisboa, cerca de 1290.
A ordem de Cister em Alcobaça tem agora o usufruto de matas e águas,
recebe maquia dos moinhos, fornagem dos fornos de pão e lagaragem dos la-
gares de vinho e azeite e o dízimo das pescas da sua extensa costa atlântica24.
Os camponeses trabalham nas estradas, nas reparações de pontes e
caminhos, ao serviço da administração monástica. O foral de Santarém

23
  A cerca poente protegeu durante toda a Idade Média o terreiro e é fácil aceitar que
o rio, que veio a denominar-se Baça, reforçava a clausura. A ponte da porta de fora
no caminho das Caldas era o único acesso da cerca poente. Muitas vezes a primeira
cerca era em madeira, solução que pode ter sido adoptada em Alcobaça ligando o
curso dos rios do lado sul do mosteiro em construção.
24
  IRIA, Gonçalves, O património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XV e XVI;
Lisboa, UNL, 1989, pp. 456-477.
61
de 1179 é o modelo dos contratos que o mosteiro impõe às povoações
integradas no domínio senhorial. Assembleias de Homens Bons governam
as vilas dos coutos que elegem dois magistrados com a aprovação do abade
que nomeava os alcaides.
Portagens e açougagem eram nalguns casos abrangidos por isenção,
mas tal benesse não eximia os almocreves da oferta de uma carreira
­anual ao mosteiro, transportando produtos para as feiras realizadas fora
do território dos coutos.
A seu tempo, o rei D. Manuel procurará retirar algum poder senhorial
ao mosteiro, outorgando 14 forais a vilas do domínio. Nesse início do
século XVI, as vilas ergueram pelourinhos e as igrejas paroquiais serão
alindadas com portais manuelinos.
O mosteiro é desde o século XIII autorizado a explorar ferro sobretudo
em Rio de Moinhos. Em Chiqueda e ainda mais próximo do mosteiro, há
pisões, máquinas hidráulicas para preparação de tecidos rudes, olarias,
moinhos e tratamento de curtumes, enfim, um mundo movido pela água
do rio do mosteiro, e ao serviço da casa cisterciense. Na forja do mosteiro,
haveria por certo um martelo hidráulico para a metalurgia do ferro, indis-
pensável à arquitectura gótica, que o utilizava para o aconchego das pedras.
Em Chiqueda, existe, ainda hoje, a ponte em pedra de três arcos, muito
provavelmente a mais antiga do senhorio, que servia a estrada entre Al-
jubarrota e Évora de Alcobaça, importante via de circulação regional ao
serviço do domínio monástico. A necessidade de controlar a administração
religiosa e económica obrigava, pelo menos até ao século XIII, que todas
as actividades descritas não estivessem mais distantes do que uma jor-
nada de ir e vir do mosteiro, sobretudo nos primeiros tempos. Os preços
dos géneros é também controlado e fiscalizado, havendo um tribunal de
pequenos delitos para resolver as situações de litígio menos graves.
No século XIV, o mosteiro começa a arrendar e dividir a exploração da
terra com os camponeses, manifestamente pela impotência de o fazer sozi-
nho, mas conserva o monopólio da utilização de moinhos, lagares e fornos.
As vilas de Aljubarrota, Alvorninha, Cós e Pederneira eram as povoa­
ções mais antigas e importantes dos coutos, havendo nesta última um
estaleiro de construção naval. As de Aljubarrota e da Pederneira foram,
em diversas vertentes, as mais recalcitrantes perante a administração
monástica.
No início do reinado de D. Pedro, houve que recuperar os estragos do
abalo de terra de 1356 que abriu fendas na igreja e fez cair o corochéu
do scriptorium onde estava a livraria manuscrita. Nos coutos, caíram
62
casas, ruíram torres de igrejas e, no mosteiro, ruiu a torre de D. Abade,
encostada ao transepto norte, onde estava o sino que ordenava a jornada
religiosa do cenóbio.
No terceiro ano do reinado de D. Pedro, o braço sul do transepto recebe
as arcas tumulares da rainha morta e do rei, colocadas lado a lado e vira-
das a nascente, em frente à primeira capela do lado da epístola dedicada
posteriormente a D. Pedro, ficando Inês à mão direita do rei no respeito
pelo código de cavalaria.
Após a guerra com Castela, pela sucessão de D. Fernando, em 1385,
o exército de D. João acampará junto à ponte de Chiqueda no regresso
vitorioso de Aljubarrota, enquanto o rei, o seu condestável e os homens
próximos de D. João se instalam no mosteiro onde assistirão às cerimónias
comemorativas da morte de S. Bernardo, a 20 de Agosto25.
Simbolicamente, o abade D. João de Ornelas receberá do rei, por todo o

As arcas tumulares do Rei D. Pedro e da Rainha D. Inês de Castro esculpidas no terceiro


quartel do século XIV estiveram depositados entre o final do século XVIII e meados
do século XX no Panteão Real, obra neo-gótica de Guilherme Elsden. Neste espaço
tumular foram violados conjuntamente com outros túmulos reais e de infantes, por
elementos de exército francês no início de Março de 1811 (Fotografia Alvão).

  ALDEMIRA, Luís, Alcobaça Ilustrada, 1940, p. 43; Citando Fernão Lopes, na Cró-
25

nica de D. João I.
63
apoio político e militar que dera ao soberano, o crucifixo e os candelabros
da capela de campanha de Juan de Castela, bem como alguns caldeirões
de rancho, um dos quais permanece hoje no mosteiro na Sala dos Reis.
Esta dependência foi construída no século XVIII, no espaço onde existiu a
denominada igreja do povo, muito provavelmente dotada de torre e cujas
fundações ainda são visíveis num espaço sem funções existente entre a
Sala das Conclusões e a Sala dos Reis.
Embora o Mosteiro de Alcobaça tenha uma alma própria e um poder
único no reino, a verdade é que a sua história acompanha, embora não
em simultâneo, as vicissitudes da ordem, nomeadamente em França, sede
das abadias-mãe cistercienses.

AMPLIAÇÕES

O mosteiro medieval vai ter a sua primeira ampliação em 1518 quando


D. Manuel incumbe João de Castilho de edificar uma sacristia nova que
será feita, rompendo uma das capelas da charola para criar um átrio de
acesso à nova dependência e uma porta para o exterior.
No local onde hoje está a enorme cozinha setecentista, funcionava, no
período medieval, o scriptorium onde meia dúzia de monges copistas,
talvez menos, copiava sobretudo os livros sagrados necessários à liturgia
e edificação moral da comunidade monástica. Escreviam com cuidados
extremos em peles de cabra ou borrego tratadas, sob a luz de uma lamparina
e salvos dos rigores do frio e húmido inverno alcobacense por um bom
fogo que lhes evitava o entorpecimento, atenuando por certo as doenças
propícias a tão rigorosa vida. Neste espaço, funcionou também a primeira
livraria manuscrita de Santa Maria de Alcobaça26.
Na segunda metade do século XV e até ao fim do século XVI, há um
declínio dos mosteiros portugueses com poucas vocações e abandono
das terras agrícolas, o que leva ao reforço das visitações que procuram
evitar o pior, obrigando a comunidade a executar as ordens do visitador,
chegando-se, em alguns casos, a ameaçar com pena de excomunhão os
responsáveis do mosteiro que não cumprissem o que fora determinado27.

26
  GONÇALVES, Iria, O património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XV e XVI.
Lisboa, UML, 1989, pp. 380-390.
27
  GOMES, Saul, Visitações a Mosteiros cistercienses em Portugal – séculos XV e XVI,
Lisboa, IGESPAR, 1998, pp. 155-182.
64
Segundo dados do visitador D. Pedro Serrano28, os leigos podem
assistir à missa até às grades do coro, não podendo as mulheres ir além
da soleira da entrada da igreja. O último quartel do século XV, já em pe-
ríodo comendatário, é uma época de reparações, sobretudo na igreja que
terá o telhado renovado e receberá novos vitrais incolores. No claustro,
procede-se ao lajeamento do chão e, em 1487, o dormitório medieval,
obedecendo às determinações papais de Eugénio IV, estabelecidas 43 anos
antes para todos os mosteiros, recebe divisórias em madeira, criando-se
modestas celas monásticas. A cerca a poente transfere-se para a fachada,
podendo o povo usar o terreiro livremente. A restante Cerca de Dentro,
particularmente a norte e a nascente, recebe sucessivas reparações de
consolidação, sendo o seu frágil estado de conservação apontado por
diversos visitadores. A partir de 1580 há um novo período de obras que
se repetirá durante os séculos XVII e XVIII. Após as invasões francesas
conclui-se o imponente edifício da Biblioteca que albergará as Livrarias
e o Cartório.

A COMENDA

A administração perpétua e eleita dos mosteiros, dos seus abades e


dos seus priores, não será eterna. As circunstâncias sociais e económicas
do mundo político alteram-se, levando os mosteiros a perder autonomia.
Gregório X exige, em 1367, interferir na escolha dos abades, retirando ao
Capítulo a prerrogativa do direito de eleição para passar a ser o Pontífice
a nomeá-los. Estes processos estão relacionados também com as mudan-
ças litúrgicas e sociais ao longo dos séculos. O Papa Pio II, irá em 1460,
autorizar o pedido para a não comparecência dos abades portugueses nos
capítulos gerais em França, mas não abdica de continuar a designar os
abades. O prestígio de Alcobaça reforça-se neste período ao ser-lhe dado
o direito de visita sobre os restantes mosteiros portugueses, mas será tam-
bém, no início do 3º quartel, do século XV, em 1475, que Alcobaça terá
o seu abade nomeado pelo rei, o Cardeal Alpedrinha que assume o lugar
após a renúncia de D. Nicolau Vieira, abade regular, que lhe vende o seu
lugar por 150.000 reais com o acordo de D. Afonso V. Este critério venal
abre caminho à administração comendatária, que enfraquecerá o poder

  GOMES, Saúl António, Visitações a Mosteiros Cistercienses em Portugal – Séc. XV


28

e XVI. Lisboa, IGESPAR, 1998, pp. 155 a 161.


65
abacial existente até então, criando entre nós um modelo administrativo
para os mosteiros controlado pelo rei.
O cenóbio de Alcobaça contava, então, com 40 monges de coro, 5 no-
viços e 17 monges conversos que passarão a ser guiados, quase sempre à
distância, pelo Cardeal Alpedrinha, D. Jorge da Costa, o primeiro abade
comendatário do senhorio dos coutos de Alcobaça. D. Maur Cocheril
deixa claro que, na segunda metade do século XV e até ao fim do século
XVI29, de uma forma geral, há um declínio dos mosteiros da ordem em
Portugal, mas nunca tão acentuado como o que aconteceu em França e em
Itália onde os mosteiros sofreram devastações e pilhagens que levaram
à ruína dezenas de Casas, abrindo caminho à comenda e consequente
arbítrio moral30.
O regime comendatário, que se estendeu por toda a Europa, retirou a
autonomia aos mosteiros e foi mais além em muitos casos, provocando
a decadência espiritual da ordem; todavia, em Portugal, sobretudo com
os comendatários Cardeais D. Afonso e D. Henrique, irmãos do rei
D. João III, houve desenvolvimento e prosperidade.
O problema da administração comendatária preocupou seriamente o
papado. Por isso, durante o concílio de Trento (1545-1562), foi abordado,
durante quatro sessões, o problema da comenda, um benefício a favor
de terceiros que abrangeu todas as ordens. Na 25ª sessão, estabeleceu-se
que apenas os membros regulares da Ordem deveriam ser seus abades,
indo a recomendação mais além, pedindo aos abades comendatários para
que, no prazo de seis meses, professassem ou abandonassem o lugar para
um monge professo. Foi uma determinação utópica, pois, como dizia o
Cardeal da Lorena, “quase todos os mosteiros franceses foram dirigidos
por comendatários que muitas vezes se locupletaram com os títulos de
propriedade, em particular em França”31.
A instituição comenda já existia e servia para preencher o tempo de
vacatura abacial, desde os tempos de Gregório, O Grande, “tornando-se,
a partir do século XIII, uma instituição estável” nestas circunstâncias.
Em 1481, há uma bula do Papa Sixto IV que reúne num código os
direitos e deveres dos comendatários, o que prova sem dúvida a sua proli-
feração, aceitação e importância. Ainda antes de Trento, o abade de Cister
tenta, em 1475, por exemplo, negociar a saída de um comendatário e da

29
  COCHERIL, Maur, Obra citada, Paris, 1978, p. 7.
30
  BOUTON, Jean OCSO, Histoire de L’Ordre de Citeaux, Westmalle, 1959, pp. 297-
-300.
31
  Idem. p. 389.
66
sua família do mosteiro de Balerne, comprando o lugar por 2500 francos.
A comenda vai-se tornando numa situação generalizada e muitas vezes
aviltante para o quotidiano cisterciense.
Inocêncio VIII considera as comendas na Europa um imenso mal
que ia desde o abrandamento do culto divino à diminuição da população
monástica32. A ruína das casas e a expulsão dos monges trazia por vezes
a reocupação dos mosteiros por seculares casados, acompanhados de
criadagem e animais domésticos. Em consequência, relíquias dos santos,
jóias, livros, bens móveis e de raiz perderam-se – como perdida foi a ob-
servância. Estas convulsões são lentas, mas irreversíveis, pois, antes de
Trento, há uma bula de Nicolau V que ocupou o trono pontifício antes da
instituição da 1ª Comenda em Alcobaça, na qual determina, como veio a ser
estabelecido em Trento, que apenas prelados religiosos deveriam ocupar
este cargo. Entre nós, assim se fez quase sempre, e os reis da 2ª dinastia
não abdicaram nunca de preencher o Abaciato Alcobacense com “pessoas
de grande autoridade e muito da sua confiança” e pedindo inclusivamente
o aumento do número de monges. Fica assim claro o antigo desiderato
de D. Manuel, ao determinar que o novo coro de Alcobaça tivesse 150
lugares, jamais preenchidos, em vez dos 80 anteriores.
A determinação real na nomeação, primeiro do Cardeal Infante
D. Afonso (1519) e a de seu irmão o Cardeal D. Henrique, depois (1542),
assegurando o controle político e económico de Cister, num evidente qua-
dro nepótico, em tudo semelhante ao que se passava com frequência no
trono de Pedro, confirma o desejo da coroa em controlar a administração
cisterciense. Em Alcobaça, as consequências da comenda foram favoráveis
à vida da ordem, criando condições materiais para a futura constituição
da Congregação Independente em tempo do Comendatário D. Henrique
e, mais tarde, do Colégio de Nª Senhora da Conceição, em 1648, pouco
depois da recuperação das regalias do Abade de Alcobaça, acabada que
foi a monarquia dual.
A interferência da coroa na Igreja foi sempre um “pecado original”:
D. Afonso III foi acusado de se servir das terças das fábricas das Igrejas
para fins seculares e Afonso IV aprovou a diminuição do território senho-
rial cisterciense, beneficiando os moradores que, muitas vezes, se sentiam
espoliados pela autoridade monástica.
No período da Comenda, entre 1475 e 1642, a actividade agro-pastoril

  ALMEIDA, Fortunato de (1484-1492) História da Igreja em Portugal - I Volume,


32

Barcelos, 1967.
67
e piscatória, nos mais de 40.000 hectares dos coutos, desenvolveu-se à
volta das vilas e portos de mar, incluindo os estaleiros da Pederneira e
Alfeizerão.
A importância estratégica da Pederneira evidencia-se quando Filipe II
manda colocar quatro peças de artilharia no seu forte, acrescentado pessoal
bombardeiro aos efectivos, devido às constantes incursões inglesas a um
território agora ligado a Espanha.
Nesta ocasião, ao comendatário de Alcobaça (1597) D. Jorge de Al-
meida é acometida a responsabilidade de guarda do Pinhal de Leiria, por
via dos abusos no corte de árvores.
O mosteiro continua proprietário de fornos de cal, lagares, celeiros, que
a comenda procura manter em condições de funcionamento para garantir
rendimento, a juntar ao das terras arrendadas e “foraladas”.
Alcobaça teve um quotidiano periférico, ou seja, não acompanhou o
quadro de decadência monástica europeia; regionalizou-se, preservando o
exercício litúrgico e a administração monástica do senhorio distinguindo-se
conjuntamente com os mosteiros de Seiça, Salzedas e Tarouca da ruína
física e moral dos restantes mosteiros do reino apesar de nesses se registar
a resistência de muitos monges e monjas.
Os cardeais D. Afonso e D. Henrique, ambos filhos do rei D. Manuel
e irmãos do rei D. João III, suceder-se-ão na Comenda de Alcobaça que
administrarão entre 1519 e 1580.
Contrariamente ao que aconteceu Europa além, este longo período de
setenta anos foi benéfico para o mosteiro, apesar das críticas que alguns
historiadores insistem em manter.
As grandes ampliações do mosteiro são deste período, continuando-se
algumas delas pelos reinados filipinos.
A Congregação Independente de Alcobaça (1569) – a primeira surgiu
em Espanha em 1425 e depois em Itália em 1496 – coexiste com a institui-
ção comendatária e terá D. Henrique como Abade Geral que tecnicamente
deveria participar nos capítulos em Cister, o que nunca viria a acontecer.
A criação da congregação portuguesa tem por detrás a vontade de resistir
aos avanços da congregação de Castela sobre mosteiros raianos no norte
do reino.
A D. Henrique se deve também a fundação do convento da ordem
franciscana dos Capuchos, no ponto mais alto da granja de Chiqueda,
em 1566, e mandará edificar um palácio, transferindo para isso a cozinha
medieval para o pátio do scriptorium.
Sob o palácio, ficará a nova portaria e, no centro do edifício, quadrado,
68
um claustro renascentista, praticamente igual ao que Bramante desenvol-
veu e construiu em Roma para a igreja de Santa Maria Della Pace em 1502.
Há também um programa catequético que, após 1562, passará por
alterações litúrgicas que realçavam a eucaristia e a utilização de novas
alfaias e imagens de santos.
Nos coutos, após as decisões de Trento, desenvolve-se a fundação de
confrarias, algumas delas já criadas, como a da Nazaré que já existe em
1446.
Em 1487 o mosteiro conta com 50 monges do coro, 10 noviços, 10
conversos33. Este número reduzido preocupa o abade visitador Pedro
Serrano: “Mandamos firmemente ao prior, ao sub prior, ao celeireiro e a
bolseiro do mesmo que, sob as penas do direito e da Ordem, o dito número
de setenta religiosos não seja diminuído seja por que modo for”.
Ainda na administração do Comendatário Cardeal D. Afonso, anterior
a D. Henrique, sendo seu representante o Bispo de Titopole e Vasco de
Pina Alcaide-mor, é referida a ignorância dos ritos antigos pelo cenóbio
alcobacense que não cantava sequer durante os ofícios divinos. Claude
de Bronseval, em 1532, que acompanha a visitação de D. Edme Sauliau
abade de Claraval, aos mosteiros da Ordem em Portugal34, refere que os
noviços nem sequer sabiam ler e que, no mosteiro feminino de Cós, as
professas desconheciam o Oficio Divino.
Entre 1520 e 1525, há várias cartas do Bispo de Titopole ao rei, sobre
diversas ocorrências e graves problemas que atormentavam o quotidiano
do mosteiro35.
O século XVI é um período problemático nos coutos onde, no segundo
quartel, há várias granjas abandonadas e a ruína ameaça celeiros, moinhos
e igrejas. No mosteiro, em 1530, gastam-se 605 mil reais para concluir a
enfermaria, o sobreclaustro de D. Manuel e as oficinas de marcenaria e
forno. O celeiro da vila de Aljubarrota, lagares e o Castelo são recuperados
nesse ano. O claustro do cardeal, a nascente das dependências medievais,
fica, portanto, fechado nas quatro alas, no tempo da comenda do cardeal
D. Afonso, embora a conclusão dos edifícios só aconteça já no tempo do
Cardeal D. Henrique, certamente com desenho de Miguel Arruda.

33
  GOMES, Saúl António, Visitações a Mosteiros Cistercienses em Portugal – Séc. XV
e XVI. Lisboa, IGESPAR, 1998, p. 182.
34
  Veja-se: MARQUES, Maria Alegria, “Bronseval revisitado ou o saldo da medievali-
dade nos mosteiros cistercienses portugueses”, In Actas do Colóquio do Mosteiro de
Alcobaça, Novembro de 1994, pp. 71-84.
35
  Idem, p. 74 a 87.
69
À cerca faltavam 130 braças, e constroem-se duas pontes interiores,
uma das quais terá sido provavelmente a da Conceição. As obras eram
lentas porque eram dispendiosas; por isso, muitas vezes, os projectos
atravessaram vários reinados até se concretizarem, de forma definitiva.
Ao Boticário, normalmente um monge converso, é atribuído um bur-
ro para as suas deslocações além do jardim da Botica para a recolha de
plantas medicinais. A botica tem uma acção importante junto dos mo-
radores dos coutos: “Dão os monges da sua botica por amor de Deus…
medicamentos que san necessários a todas as pessoas necessitadas destas
terras circunvizinhas”36. Há também uma enfermaria particular para os
religiosos capuchinhos (arrábidos) e outra para seculares. Fica sublinha-
do que, no período da comenda, o mosteiro se preocupa não apenas em
fornecer medicamentos, mas também em prestar cuidados de saúde ao
povo. A enfermaria é também um local de acolhimento de religiosos idosos
assistidos por outros irmãos.

PALÁCIO ABACIAL

A partir do século XV, alguns mosteiros constroem instalações abaciais.


Poblet tem um palácio real desde o século XIV e Veruela um palácio
abacial, edificado em 1561, construindo Fontenay o seu no século XVIII.
Estas construções são verdadeiras casas senhoriais. Alcobaça terá o
seu palácio abacial em 1557, durante o início da regência de D. Catarina
de Áustria para usufruto do cardeal comendatário D. Henrique, tio do
organizador da cruzada serôdia contra os mouros, o rei D. Sebastião.
O palácio funcionava sobre a portaria e partilhava com ela o claustro
central. Uma ampla escadaria, hoje demolida, fazia a comunicação entre
os dois pisos, sendo substituída por uma escada insípida, no século XX,
que nos permite subir ao piso superior do Claustro e dependências, que
alojam hoje parcialmente a administração do monumento.
Aparentemente Miguel Arruda terá sido o arquitecto que desenhou o
palácio e o seu belíssimo Claustro, ter-se-á inspirado em Bramante que,
em 1504, tinha terminado o Claustro de Santa Maria Della Pace em Roma.
As semelhanças são flagrantes na forma como adaptaram os elementos
da Antiguidade Clássica, havendo uma forte possibilidade de o arquitecto

  SANTOS, Frei Manuel dos, Descrição da Real Abadia de Alcobaça, Alcobaciana 3,


36

Alcobaça, 1979, pp. 84-85.


70
que traçou o Palácio de Alcobaça ter passado algum tempo em Roma. O
claustro italiano tem 16 arcos de volta perfeita, que repousam em pilares
dóricos. O de Alcobaça tem 12 arcos ainda mais expressivos. Os pilares
dóricos têm adossados, quer em Alcobaça quer em Roma, pilastras jó-
nicas que sustentam um friso e, sobre ele, o varandim do sobreclaustro.
No Claustro do Palácio Abacial, colunas de capital dórico sustentam o
entablamento com decoração de feição também dórica. Em Santa Maria
Della Pace, o sobreclaustro apresenta também colunas, estas com capitel
coríntio, intercalando com pilastras. O entablamento do claustro romano
regista um avanço da cornija, enquanto Alcobaça possui uma cornija mais
leve com gárgulas geométricas37.
Com a morte de D. Henrique, o seu símbolo de Abade-Rei, torna-se
na luxuosa hospedaria do Mosteiro que lentamente acabará por engolir
o Palácio do qual apenas o conseguimos hoje localizar exteriormente na
fachada norte, pelas gárgulas geométricas que conduziam as águas pluviais
do telhado sem beirados como era uso nos romanos.

OUTRAS AMPLIAÇÕES

Sobre o dormitório, constrói-se, também na segunda metade do século


XVI uma ampla dependência que servia o noviciado a nascente e celas
de professos a poente em alas rigorosamente separadas38 e uma capela
comum. Os alojamentos dos antigos abades farão parte da remodelação
do antigo dormitório medieval na sua nave nascente, enquanto na poente
se instalou numa primeira fase o cartório e o tombo do reino e já no sé-
culo XVIII a livraria comum e a livraria manuscrita. No penúltimo tramo
do topo norte do lado nascente abre-se uma ligação ao corpo de celas e
hospício (hospedaria) que fecha a norte, o claustro dos Noviços ou do
Cardeal. As Necessárias medievais são eliminadas com a reorganização
do dormitório colectivo para novas funções.
A remodelação ficará completa sob o ponto de vista arquitectónico com
a construção da fachada filipina em pedra, virada à quadra VI e encima-
da pela estátua do doador, o rei D. Afonso Henriques, comprovando-se

37
  MADURO, António; RASQUILHO, Rui, “Um Claustro da Alta-Renascença”, Leiria,
CEPAE/AMA, 2011, pp. 63-64.
38
  Veja-se: SANTOS, Frei dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, Alcobaciana
3, 1979, pp. 54-67.
71
assim que as obras de ampliação não param durante o período
filipino: esta fachada, por exemplo, só estará concluída durante o reinado
de Felipe III, em 1632.
O comendatário D. Henrique mandará ainda fazer no Claustro de
D. Dinis um terraço sobre a edícula do lavatório e uma nova porta para
o refeitório. Na sua administração, em 1566, será desviado o rio que, a
partir da curva do Lameirão, virá a direito até à nova ponte da Olaria,
libertando o terreno para, mais tarde, se fazer o claustro do Rachadouro39
e o Jardim do Obelisco. A partir do reinado de D. Afonso VI, em 1665, é
lançada a primeira pedra do lado norte deste futuro claustro, que, como se
referiu, já tinha o seu limite poente definido com o corpo das enfermarias.
Este edifício das enfermarias fora prolongado anteriormente para norte,
saindo do limite do claustro com a construção das Necessárias, no início
do 2º quartel do século XVI.
A administração comendatária portuguesa perdurará até ao reinado
de D. João IV, quando o rei, em 1664, após a morte de D. Fernando de
Áustria, o último Comendatário de Alcobaça, devolve as regalias abaciais
ao mosteiro que era, desde 1569, cabeça da Congregação Cisterciense
Portuguesa40. A partir desta decisão real, os abades serão novamente elei-
tos pelo cenóbio, mas por períodos de três anos, que podiam repetir-se
alternadamente. Julgo que facilmente se aceitará que a reforma monástica,
ampliações e alteração de funções dos edifícios, estão objectivamente
ligados; tal como a importância dada em Trento (1545-1562) à Eucaristia
produzirá custódias e tabernáculos, grades nas naves e vasos litúrgicos,
tal como aconteceu em Alcobaça.

39
  Significa, neste caso, abertura, pois, durante quase um século, os lados nascente e sul
deste claustro estavam abertos, rachados. Os actuais edifícios, dormitórios e biblioteca
só estarão concluídos no início do século XIX.
40
  A Congregação procura reformar os mosteiros que a integram encerrando os que não
podiam subsistir.
72
Claustro de Bramante Santa Maria Della Pace

Claustro do Palácio Abacial e Portaria


73
O BARROCO

Entre 1702 e 1716, ergueu-se a actual fachada da igreja. Sem grande


entusiasmo, mistura traços barrocos e renascentistas e ostenta sete ima-
gens de mármore, Nª Senhora, as quatro Virtudes Cardeais e dois santos,
o guardião da ordem, S. Bernardo, e o mentor da regra, S. Bento.
De espírito barroco, são os patins e as escadarias de aparato que a
eles conduzem, continuando plasticamente, no exterior, o ritmo das três,
naves como se a fachada devesse ter tido três portas, uma por nave. Ao
que parece, a que está ficou da fachada anterior, que era austera, despida,
sem torres. Há historiadores que afirmam ter sido frei João Turriano, da
ordem beneditina, quem a desenhou. Suspeito que o não terá sido, apesar
de haver trabalhado em Alcobaça. Na verdade, na capela-mor de S. Bento
de Saúde, em Lisboa, há um túmulo com este epitáfio: Sepultura do M. R.
P. Mestre Fr João Turriano, lente de matemática que foi na Universidade
de Coimbra. Falleceu a 9 de Fevereiro de 1679.
Parece, pois, inviabilizada a hipótese de Turriano haver sido o autor
da fachada, uma vez que morre 23 anos antes do seu início, e não parece
possível que com este espaço temporal houvesse seguimento de qualquer
projecto anterior.
Será, contudo, no interior do mosteiro que o estilo tridentino mais se
afirma, pois o barroco é um estilo apologético que reconfirma a fé católica,
apostólica e romana.
As transformações barrocas na capela-mor datam do primeiro abaciato
de Frei Sebastião Sotto Maior (1675-1678)41. Para além de duas ordens de
colunas que suportarão cornijas com os Santos da Ordem e anjos músicos
em barro cozido dourado e policromado, foi colocado, atrás do altar, um
pedestal que suportava um sacrário piramidal, sustentado por oito anjos,
e coroado por um pelicano. Frei Manuel de Figueiredo refere ser este
magnífico Sacrário encimado por um pelicano decorado com insígnias
da paixão, flores e passarinhos enquadrado por vasos sagrados, peças de
prata, entre outros ornamentos e alfaias litúrgicas.
Quando D. João V visita o mosteiro, em 1714, a população monástica
dir-se-ia festejar o novo estilo, registando-se um cenóbio com 140 monges.
Posteriormente, o sacrário piramidal é removido, sendo substituído por
um globo com o seu resplendor, cuja concepção é atribuída a Guilherme
Elsden, em 1774.

  SANTOS, Frei Manuel dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, Alcobaciana


41

3, Alcobaça, 1979, p. 27.


74
Frei Manuel dos Santos escreve, em 1716, que na “Caza dos Reis”
(Sala das Conclusões) havia um grupo de soberanos de Portugal até
D. Pedro II, em barro cozido policromado. Estas estátuas terão sido escul-
pidas ao mesmo tempo que o foram as imponentes estátuas do altar-mor
no abaciato de Sotto Mayor. Refere ainda o cronista haver à época, nessa
sala, uma escultura de S. Bernardo com pontifical e mitrada estofada de
ouro. Em 1765, as estátuas são transferidas para a Sala dos Reis, recém-
-construída, tendo sido acrescentadas estátuas até ao rei D. José. Uma
peanha espera, ainda hoje, uma representação de D. Maria I que, entretanto,
partira para o Brasil e aí morreria. Sob a pia baptismal desta igreja-salão,
está uma escultura alegórica à coroação de D. Afonso Henriques. Este
grupo escultórico diacrónico apresenta o rei de joelhos, tendo ao seu lado
esquerdo S. Bernardo e, ao seu lado direito, o Papa Alexandre III, proce-
dendo à investidura de Afonso como primeiro rei de Portugal.
Entre 1753 e 1762, montam-se cinco altares no transepto e mais qua-
tro na nave, na zona de acesso aos crentes, que agora podiam assistir aos
ofícios divinos na Igreja do Mosteiro42.
De todo este figurino barroco de Alcobaça, que preencheu também
as capelas da charola subsistiram as esculturas em barro cozido, de dois
conjuntos, a Capela Relicário (1669) e o Retábulo da Morte de S. Bernardo
(1687). O retábulo parece refutar Benedetto Croce que, em 1920, dizia ter
o barroco “falta de substância e ser um jogo que cria perplexidade; é exu-
berante, rico em imagens, mas é vazio”43. Não nos parece que o conjunto
da morte de S. Bernardo seja superficial. As esculturas são emocionais,
de grande equilíbrio plástico e transmissoras de sentimentos.
Como Jakob Burckhardt defendia para a arquitetura barroca, podemos
também identificar no barroco da morte de S. Bernardo a materialização

42
  No transepto norte, criaram-se três altares. O mais próximo do Evangelho é dedicado à
Conceição da Rainha dos Anjos, o seguinte, a S. Sebastião, finalmente, no lado Norte,
ao lado da Porta do Tesouro, o altar é dedicado ao arcanjo S. Miguel. Neste altar, o
retábulo é em pedra, contrariamente aos anteriores referidos que são em talha dourada
e o arcanjo empunhava a espada que pertenceu a D. Pedro I. Do lado da Epístola, o
altar dos apóstolos, à sua frente os túmulos de Pedro e Inês, lado a lado, virados a
Nascente. A seguir, o Retábulo de S. Bernardo, antigo altar de S. Vicente e, por últi-
mo, tapando a Porta dos Mortos que abria para Sul, o altar do Senhor Ressuscitado.
Ao quinto e sexto tramos da nave central, antes da grade de separação, existiam dois
altares do lado do Evangelho, dedicados a S. Bernardo e Nossa Senhora do Rosário
e, do lado da Epístola, a S. Bento e S. João Baptista. SANTOS; Frei Manuel dos,
Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça (Alcobaciana 3), 1979, p. 28. Leitura da
planta esquemática da Igreja.
43
  BORNGASSER, Barbara; TOMAN, Rolf, O Barroco, EU, Konemann, 2004, pp. 7-8.
75
O retábulo barroco da Igreja do Mosteiro foi sendo substituído e acrescentado desde
finais do século XIV, sendo o seu último aspecto o apresentado na fotografia. As colu-
nas e as estátuas são de 1667, tendo a capela-mor sido consagrada no ano seguinte.
O globo e o resplendor decorado com pequenos anjos ficou concluído em 1774. O seu
desenho deve-se a Guilherme Elsden. Em 1930 foi desmontado no âmbito da pouco
esclarecida política de recuperar integralmente o modelo gótico (Fotografia Alvão).
76
da escultura viva. Também nos parece que, se Wölfflin-1915- porventura,
conhecesse o retábulo, faria sobre ele considerações de carácter psico-
lógico, garantindo que a cenografia da morte de S. Bernardo ofereceria
uma experiência nova ao espectador, uma “configuração ilusionista”.
Efectivamente, o elemento teatral é uma marca do barroco, de que este
retábulo é bem representativo.
Em 1699, a Capela do Desterro, no lado sul da Sacristia Nova, está
concluída no Jardim das Murtas. Luís Sobral considera-a “uma singu-
lar obra-prima da arquitectura portuguesa”44. O seu retábulo, em talha
dourada, está terminado em 1712, e os azulejos historiados, que contam
a fuga e o regresso da sagrada família do Egipto, colocados em 1753.
A fachada é cenográfica, funcionando como um retábulo exterior. Dois
pares de colunas salomónicas enquadram o portal; um óculo sobre a porta
ilumina a nave e o altar-mor, estabelecendo a visão dramática do barroco,
transitando da claridade para a sombra, repetindo o gosto pelo controlo
de luz como acontece mais eficazmente com o lanternim da Capela das
Relíquias onde a luz ao longo do dia ilumina gradualmente a talha e as
imagens que continham os ex-votos.
A obra porventura mais significativa do barroco interior alcobacense
surge no abaciato de Frei Constantino de Sampaio, com a construção da
Capela das Relíquias do lado nascente da Sacristia Nova, concluída em
1672, ao tempo da regência de D. Pedro II45.
A escola barrista de Alcobaça terá nesta capela, feericamente eno-
brecida com talha dourada, a sua primeira mostra. Os nichos enchem-se
de bustos, mãos, imagens completas, em barro cozido policromado. A
memória das relíquias desaparecidas fica nos pequenos cofres vazios
das esculturas.
No centro, sobre um altar em mármore vermelho, onde só bispos e
abades podiam rezar missa, a estátua de Nª Senhora da Conceição46.
O Retábulo da morte de S. Bernardo, trabalho notável dos monges
barristas, colocado na última capela do transepto sul, inicia-se em 1687,
no triénio de frei Sotto Mayor, e só terminará em 1712, um ano antes de
se assinalar uma grande cheia que inundou a Igreja47, em 28 de Outubro.

44
  SOBRAL, Luís – “Capela do Desterro de Alcobaça”, In actas Cister Espaços, Terri-
tórios, Paisagens, vol. II, 1998, p. 407.
45
  SANTOS, Frei Manuel dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, Alcobaciana
3, Alcobaça, 1979, pp. 36-37.
46
  O rosto, há muito fissurado, cairá no final dos anos 80 do século XX.
47
  ANTT B-50-213.
77
Nova época, como se vê. As obras incluem também o convento fe-
minino de Cós, não se estranhando, por isso, que o abade de Alcobaça
contrate o pintor Pedro Peixoto, por 225 mil reis, para pintar os caixotes
do coro da Igreja com brutescos e figuras sacras da ordem, e o entalhador
Domingos Lopes execute o belíssimo Retábulo-Mor da Igreja, concluído
em Agosto de 1776.
Em Portugal, os cenóbios do século XVIII, masculinos e femininos,
desejam produzir beleza, encontrar Deus na procura do belo, levar os
crentes, que agora podem entrar sem restrições nas suas igrejas e par-
ticipar da eucaristia, a encontrar nas imagens a memória catequética e
o fogo divino.

A partir de 1726, a água corre na levada e nas fontes do horto do obe-


lisco, forradas a azulejo verde e pedra branca dos Moleanos. A cozinha
será coberta por azulejos cor de marfim debruados a azul assentados em
1752, e recebe nos seus tanques, água potável, captada da mina de Chi-
queda, na margem esquerda do rio e daí conduzida por conduta própria
até à igreja do mosteiro que atravessa, para chegar ao lavatório em frente

Cristo entrega a chave da sua Igreja a S. Pedro que a recebe ajoelhado, perante o
testemunho de todos os apóstolos. Em primeiro plano S. Matias e S. Paulo atrás os
restantes onze. A capela de S. Pedro terá sido a mais graciosa de todas as do transepto
rivalizando com o retábulo da morte de S. Bernardo (Fotografia Alvão).
78
Capela das Relíquias. No abaciato de Frei Constantino de Sampaio em 1669 é ­construída
do lado nascente da Sacristia Nova (século XVI) uma capela iluminada por um lanter-
nim destinada a receber as relíquias que se encontravam na Sacristia ­medieval junto
ao braço norte do transepto. As esculturas de corpo inteiro, bustos e braços são pro-
duto da escola barrista de Alcobaça (Fotografia Alvão).

ao refeitório e à cozinha. Desde 1702 que a livraria, o acervo cultural


da ordem, manuscrita e impressa, se juntou à documentação do cartório
em aposentos próprios, construídos na nave poente do antigo dormitório
medieval, referido como magnífica Livraria Monástica. Neste espaço,
D. Maria I se demorará para apreciar a Bíblia de Aljubarrota e as Crónicas
das Ordens Regulares, na visita de vários dias ao mosteiro e região nomea­
damente à Batalha e Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, no mês
de Outubro de 1786, três anos antes da eclosão da Revolução Francesa,
que viria a encerrar os mosteiros em França. A rainha fica hospedada nas
melhores salas da hospedaria, com capela privativa, junto à Sala dos Reis,
no primeiro piso da ala norte48. Tudo indica que a primeira hospedaria e

  Maur Cocheril e outros defendem que todo o espaço que vai da Igreja ao Palácio
48

Abacial - que foi cozinha na Idade Média - terá sido, até ao século XV, o local onde
os conversos tinham as suas instalações, ladeando, por isso, a parede da ala poente
do Claustro do Silêncio. A falta de documentação conhecida e a ausência de vestígios
arqueológicos dificultam a opinião sólida sobre este assunto ligado a teses teóricas.
79
portaria do Mosteiro integrada no edifício datará do inícoio do séc. XV e
funcionaria no edifício ligado ao dormitório medieval e à Sala dos Monges
do lado norte do futuro Claustro dos Noviços.
Por um tostão mensal, o mosteiro tem oleiro privativo. Telhas e louça
comum vão sendo fabricadas na olaria, próxima à grande coelheira, ambas
a necessitar da água, por isso construídas junto à ponte da olaria, no canto
noroeste do Claustro do Rachadouro, ainda sem os edifícios da Biblioteca
e do corpo de celas que criará a rua Silvério Raposo. A coelheira situava-
-se na margem direita do rio, próxima ou encostada à Cerca de Dentro,
subsistindo ainda pedaços deste muro junto ao viveiro municipal na quinta
da Cova da Onça.
Na primeira metade do século XVIII, constrói-se um novo lagar de
vinho na granja da Gafa, bem no meio de uma das melhores vinhas dos
coutos, e abrem os fornos de cal de Chiqueda e Alvorninha e a moenda
hidráulica da Fervença.

De cada um dos lados da capela-mor acede-se à charola, dois espaços onde o ­românico
sobrevive. Uma abóbada de berço quebrado descarrega o seu peso em dois grossos
muros de pedra que se rompem pouco depois nas capelas radiais à direita e nas gros-
sas colunas originais do altar-mor. Na imagem em primeiro plano à esquerda uma
imagem da virgem, por último nas cimalhas que assentam nas colunas de pedra estre-
adas estátuas de barro cozido de Santos e Papas da Ordem e na cimalha superior anjos
músicos que acompanham uma estátua em madeira estofada e policromada de Nossa
Senhora com o Menino no eixo central (Fotografia Alvão).
80
Um pouco antes da subida ao trono do Rei D. José I (1750), há notícia
do “acrescentamento” da tulha do mosteiro e “caza” da Olaria49, o que
parece indicar boa saúde da vida financeira de Santa Maria de Alcobaça.
Há ladrilhamento de Lagares de Vinho, conserto de lagares de azeite,
reparação do telhado do dormitório e obras da nova capela, a do Senhor
dos Paços, copiando o portal manuelino da Sacristia Nova, no tempo de
Frei José Cardoso.
O terramoto de 1755 afecta fortemente a região e, naturalmente, o
mosteiro não foi poupado, sendo as maiores perdas a destruição total da
Sacristia Nova e a ruína do Colégio de Nª Sª da Conceição, a sul do corpo
da Igreja. As abóbadas abriram rachas preocupantes, mas a plasticidade
da construção aguentou o embate da natureza.
No Rossio, a maioria das casas foi afectada, assim como, nos coutos,
igrejas, lagares e muros foram atingidos, em maior ou menor grau.
No ano de 1762, no abaciato de Frei Nuno Leitão e reinado de D. José I,
a Igreja salão denominada Sala dos Reis, recebe as estátuas em barro cozido,
dos reis de Portugal, vindas da vizinha Sala das Conclusões que será a loja
do IGESPAR a breve trecho.
Na transladação deste acervo serão acrescentadas estátuas de mais
dois reis, D. João e D. José, o que prova ter a escola barrista de Alcobaça
perdurado até, pelo menos, à segunda metade do século XVIII. A peanha
vazia, destinada, como se disse acima, à Rainha D. Maria I, reforça esta
ideia. A instabilidade provocada pelas Invasões Francesas dissolveu por
certo a escola barrista.

NEO-GÓTICO

No final do terceiro quartel do século XVIII, o Marquês de Pombal en-


via para Alcobaça o Engenheiro William Elsden que desenhará a Sala do
Panteão Real e o Globo com resplendor do altar-mor da Igreja, bem como
dirigirá a obra da nova Biblioteca e as reparações e ampliações do Colégio
de Nª Senhora da Conceição. A ala sul que o albergará está pronta em 1771.
O mosteiro volta a inovar com o neogótico alcobacense, registado num
espaço coberto por seis abóbadas de ogivas muito elegantes como compete
a um figurino revivalista. A responsabilidade da construção deste Panteão
Real é de William Elsden, um inglês que veio para Portugal no tempo de
D. José, para, na sua especialidade, dar corpo à política centralizadora do

  Livro de folha e receita, 1711 TT B 52-81.


49

81
Marquês, tendo sido oficial do exército, capitão em 1763 e engenheiro
com responsabilidade nas obras realizadas na Universidade de Coimbra.
Elsden visita Alcobaça numa missão de avaliação, entre 6 e 10 de Ou-
tubro de 177350 já com o posto de Tenente-Coronel. O Panteão lembra
de imediato a Sala do Capítulo e terá sido construído durante a segunda
parte da década de 70 do século XVIII, durante o abaciato do contestado
D. Manuel de Mendonça, parente do Marquês de Pombal e mentor local
da sua política. Elsden procurou seguir o programa gótico com os fustes
das duas colunas decoradas por colunelos fasciculados, como na Sala do
Capítulo, apresentando também ogivas boleadas e capitéis decorados com
elementos vegetalistas, mas mais arrendados. O revivalismo do Panteão,
está cronologicamente enquadrado pela segunda fase do neo-gótico inglês
e antecipa a sua introdução em Portugal, tal como aconteceu, à volta de
1760, com a inédita utilização das colunas e vigamento em ferro das cha-
minés da cozinha de Alcobaça51. As abóbadas do Panteão são tecnicamente
diferentes das construídas entre os séculos XII e XIV no mosteiro. No
Panteão, não há o pesado carrego que equilibrava a abóbada gótica; aqui,
um simples olhar no exterior do edifício mostra uma curta espessura entre
o terraço e o fecho das abóbadas, o que acontece também na cobertura das
abóbadas do Dormitório medieval onde, após as obras de demolição, na
primeira metade do século XX, das salas do noviciado, que lhe corriam
por cima, ficou o chão desse andar como carrego.
Uma melhor percepção técnica levou a concluir, nos dois últimos
séculos, que o equilíbrio das abóbadas não dependia necessariamente
do peso do carrego, nem sequer da existência das nervuras em pedra,
agora verdadeiramente decorativas. “As nervuras não são indispensáveis
à estabilidade da abobada”, foi este o resultado de um estudo feito em
Grenoble, na E.N.S.H.M. através de um computador, entre 1989 e 1994
pela investigadora Anne Costa. Muito provavelmente Elsden utilizou ar-
gila e o próprio terraço e, no fecho das abóbadas, chumbo, ambos como
carrego para provocar a descarga para as colunas e mísulas das paredes
de apoio: “deste perfeito e delicado pantheon fabricado para depozito dos
reys e príncipes que jazião na igreja de Alcobaça”52.

50
  ELSDEN, Guilherme, Carta ao Ilustrissimo e Excelentissimo Marquês de Pombal,
etc. Coimbra. 27 de Setembro. TT. Documentos avulsos do Ministério do Reino -
Março 519, 1777.
51
  FERREIRA, Maria Augusta Trindade, As colunas de ferro do Mosteiro de Alcobaça,
ACD, Lisboa, 2004, pp. 20-21.
52
  B.N.P., Frei Manuel de Figueiredo Códice 1490, fl. 78-79v
82
Em 1776, o Capitão de Engenharia Isidoro Paulo coordena o levanta-
mento dos edifícios construídos do lado norte do Claustro do Rachadouro
que o Rei D. Afonso VI havia mandado construir em 1665 para os monges
de Laus Perene. Nesse levantamento, estão assinaladas as Necessárias com
24 lugares em madeira que tinham, no piso térreo, um arco de passagem
para nascente, com uma pequena ponte sob a levada de saneamento e
que, conjuntamente com o outro arco nos edifícios da Quadra VI, junto à
fachada filipina, permitia a circulação para a ponte da olaria, através de um
arruamento interno que daria origem à rua da Mala Posta, hoje D. João V,
em 1839, cinco anos após a extinção das ordens religiosas.
O Colégio de Nª Sª da Conceição, o segundo mosteiro53 de Alcobaça,
adopta o regulamento reformista do Marquês de Pombal, passando a
ensinar filosofia natural e nova teologia, à semelhança da Universidade
de Coimbra.
Nos coutos, junto à serra, no seu sopé, rasga-se a estrada de D. Maria
que vai permitir uma ligação rápida entre Rio Maior e Leiria.
Muito provavelmente, não será alheio a esta via de comunicação o

Abóbadas de nervura da Igreja do Mosteiro, sistema arquitectónico utilizado pela pri-


meira vez de forma sistemática em Portugal, tal com o foram os arcobotantes utiliza-
dos na cabeceira da Igreja (Fotografia de Jorge Vasco).

  SANTOS, Antonieta, O Colégio de Nª Sª da Conceição de Alcobaça – 1648-1833,


53

Lisboa, FCSH, 2009.


83
desenvolvimento agrícola nos campos nesta zona, com olivais de grande
extensão e a construção do lagar da Ataíja e da casa do monge lagareiro,
que possuía um bem aparelhado lagar de varas nos baixos da residência.
A via marítima, a partir de S. Martinho do Porto e Pederneira, continuava
primordial, mas a engenharia militar avançava com a abertura de estradas
fundamentais ao desenvolvimento do interior.
Nas últimas décadas do século XVIII são criadas duas fábricas em
Alcobaça, a de lenços, cambraias e fazendas brancas, fora do mosteiro na
rua para a Nazaré; a outra, de lenços e cambraias, em 1779, nos baixos
do Colégio no corpo da ala sul54. A fábrica da rua de baixo foi “visitada”,
em 1810, por um destacamento inglês que terá levado parte da produção.

OS VISITANTES

A primeira descrição conhecida sobre o mosteiro deve-se a Frei Hie-


rónimo Roman que se hospeda em Alcobaça em 1589 sendo um texto de
primordial interesse para a história do mosteiro55.
Em 1782, D. Maria visita pela primeira vez Alcobaça, mas regressa
rapidamente às termas das Caldas da Rainha, não sem que tenha auto-
rizado a transladação dos túmulos de Pedro e Inês do transepto sul para
o Panteão, onde já estarão na ocasião da demorada visita de Outubro
de 1786. Curiosamente, o argumento do pedido do abade do mosteiro à
soberana foi o de haver alguns estragos nos túmulos e de o local não ter
suficiente dignidade para os acolher, uma vez que o braço sul do transepto
não oferecia reserva à circulação dos crentes.
O século XVIII é o século dos viajantes, dos relatos das suas impres-
sões, muitas delas pitorescas; outras, pouco abonatórias; outras ainda de
boa precisão analítica. Descrições relativas ao mosteiro e à região dos
coutos há várias e algumas delas são preciosas para a história do senhorio
de Alcobaça, no período setecentista.
Em 1760, o inglês Thomas Pitt56, então com vinte e três anos, visita

54
  Alcobaça posséd un etablissement assez considérable oú l’on fabrique toute sorte
d’objets de tricotage en coton, au métier, de trés bonne qualité – Balbi, Adrien (1822)
“Essai Statistique sur Le Royaune de Portugal et d’Algarve – I volume”. Paris, p. 456.
55
  CORREIA, Vergílio – Uma descrição quinhentista do mosteiro de Alcobaça, Coimbra
V volume 1978, pp. 44-64.
56
  PITT, Thomas, Observações de uma Viagem a Portugal e Espanha – 1760, 2006,
pp. 124-125, 130.
84
Alcobaça, no âmbito de uma viagem à Península Ibérica, em companhia
de outro jovem da mesma idade, o Conde de Strathmore John Lyon. À
parte os detalhados relatos das visitações, vitais para a compreensão da
vila cisterciense e dos seus problemas em várias vertentes, este é o pri-
meiro olhar de um relator civil anglicano num espaço monástico católico.
Pitt comete, contudo, algumas imprecisões nas suas observações sobre
Santa Maria de Alcobaça. Todavia, é interessante saber-se que, visitando
o mosteiro, apenas 35 anos após a conclusão da nova fachada da igreja,
nos indica que foi o erário monástico quem a pagou. Espanta a forma
insensível e redutora como descreve as arcas tumulares de Pedro e Inês e
o modo equívoco como caracteriza as torres sineiras: “quem as construíu
imaginou-as góticas, mas elas saíram de estilo grego”. O terramoto dera-
-se havia cinco anos; por isso, diz-nos que a sala da sacristia “é muito
bonita mas ainda não terminada”, revelando, também para este espaço,
incompreensão interpretativa.
A garantia de que o mosteiro mantém um corpo de milícia é dado por
Pitt que volta a claudicar, dizendo que “o número de frades era outrora,
perto de mil” sendo, no tempo da visita, 200. Frequentemente, os visi-
tantes não familiarizados com a Ordem de Cister, não sabem distinguir
entre professos e outras categorias, englobando na sua estimativa, quase
sempre visual, os leigos contratados e o corpo de criadagem.
José Cornide57, fidalgo galego, membro da Real Academia de la Historia
aos 21 anos de idade, visitou Portugal no ano de 1772 e esteve em Alco-
baça, deixando-nos referências ao mosteiro e castelo da vila cisterciense,
bem como a transportes e vias de comunicação no território dos coutos.
Cornide vem do norte e refere haver duas estradas de Aljubarrota para
Alcobaça, aliás caminhos que diz ser um para “transporte de cargas no
Inverno” e “outro mais curto” que diz sofrer bastante com as águas, sendo
este o da direita.
A referência a transporte de cargas mostra que há tráfego substancial
com o mosteiro, como no mesmo quadro surge a restauração da ponte
D. Elias e a abertura da estrada no sopé da Serra dos Candeeiros, denomi-
nada de D. Maria I, e que se tornou muito útil ao escoamento do azeite,
vinho e frutas das terras do mosteiro58.

57
  RODRIGUES, Mário, O Diário “Perdido” da Viagem de J. Cornide, CEPAE, 2010,
pp. 172-173.
58
  Veja-se: MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça – século XVIII-XX, 2011,
pp. 342-355.
85
José Cornide, quando visita a Igreja, assinala as obras do retábulo do
altar-mor, ainda com o sacrário em forma de pirâmide encimado por um
pelicano e sustentado por anjos: “tem uma excelente igreja primorosa-
mente adornada, e estará ainda mais quando estiver concluído o retábulo
novo.”. O retábulo desenhado por Elsden com um enorme globo realçado
por um esplendor irá cobrir duas estátuas em barro cozido policromado,
no centro do altar-mor, paradoxalmente as de S. Roberto, fundador da
ordem e a de S. Harding, o autor da Carta de Caridade.
A visita de William Beckford59, amigo do príncipe regente D. João, a
Alcobaça, em Junho de 1794, dará origem a uma descrição do quotidiano
monástico desse período, retratando hábitos religiosos e profanos, orga-
nização espacial e social do mosteiro, com espaço para a culinária e para
o teatro. A fauna e flora envolventes e o estado das vias de comunicação
são também abordados, por entre considerações sobre a agricultura e a
vida campesina, não esquecendo “exquisite wine” o esplêndido vinho de
Aljubarrota, “Clos de Vougeot, puddle compared to Aljubarrota, divine,
perfumed thereal Aljubarrota”.
As observações de outro viajante, o médico e botânico alemão Hein-
rich Link60, que conhece o mosteiro quatro anos depois de Beckford, são
importantes para sabermos que, nove anos antes da 1ª Invasão Francesa
– “Está a ser arranjada uma nova e magnífica sala para a biblioteca”, o
que faz pressupor que, apenas no final do primeiro quartel do século XIX,
se terá concluído o edifício que é visitado por D. Miguel, em Agosto de
1830, havendo, no vão direito da janela principal, dois medalhões, repre-
sentando o Rei e sua mulher. Em 1832, o Marquês de Fronteira e Alorna,
D. José Trazimundo, passou igualmente pelo mosteiro, deixando-nos a
referência de haver visitado a biblioteca “que era a primeira que via tanto
em número de volumes como em grandeza do edifício”.
Durante as Invasões Francesas, entre 1807 e 1812, há diversas descri-
ções de passagem de tropas francesas e inglesas pela região e pelo mosteiro.
Em 28 de Setembro de 1810, o Tenente William Grattan61 relata que ele
e o Capitão Suton, acompanhados de outros oficiais, almoçaram no mos-
teiro, tendo na ocasião aproveitado para uma visita cirúrgica ao edifício.

59
  BECKFORD, William, Excursion a Alcobaça et Batalha, Belles Lettres, Paris, 1956,
pp. 60-78.
60
  LINK, Heirich, Notas de Uma Viagem a Espanha e Portugal – 1760, 2005, pp. 124-130.
61
  GRATTAN, William, Adventures With the Connaught Rangers, Uckfield West Sussex
NNP, 1909, pp. 43-45.
86
Os tempos franceses e ingleses em Portugal, com o rei no Brasil, sendo
o país administrado pelos ingleses, com o apoio das Juntas governativas,
foram de instabilidade política, económica e moral para o país e para
as instituições religiosas, até aí detentoras de significativos privilégios,
sobretudo na área fiscal e patrimonial.
Durante a retirada francesa, com as tropas de Massena acampadas
entre Rio Maior e Torres Novas e as anglo-lusas na margem esquerda
do Tejo, o mosteiro de Alcobaça terá sido ocupado por desertores, várias
centenas, que, por cerca de dois meses, sob o comando de um sargento do
47º de Linha, “foi instalar-se longe, na retaguarda, num convento amplo
abandonado pelos monges e ainda bem recheado de moveis e sobretudo
de mantimentos (…) na sua cozinha, os espetos e as panelas (…) estavam
constantemente em frente ao lume”62. Talvez para alimentar este lume se
tenha ido, aos poucos, o que se diz ter sido o belíssimo cadeiral de 150
lugares, mandado construir por D. Manuel I, no início do século XVI. Os
desertores acabariam por ser expulsos, já em Março de 1811, por tropas
regulares francesas e punidos, muitos deles, com o fuzilamento, com es-
tes desertores havia também fugitivos portugueses e ingleses que foram
entregues aos respectivos comandos.
Terão porventura, com tempo, sido estes desertores quem, no Panteão
real, violou as duas arcas tumulares dos reis D. Pedro e D. Inês, pelo
lado dos pés, em frente à luz penúmbrica das janelas do então saguão do
colégio, hoje demolido.
A ter acontecido assim, e não por tropas regulares, estas aparentemente,
com menos tempo disponível, o saque ter-se-á dado no início de Março
de 1811, pois os corpos dos reis estão fora dos túmulos “bem alinhados”,
quando, a 7 de Março o Tenente-Coronel William Tomkilson63, entra no
mosteiro.
Entre 8 de Abril de 1153 e 28 de Maio 1834, desenhou-se um arco sob
o qual se construiu o mosteiro e se vivenciou um espírito. A pedra alçou-
-se luminosa, a partir de 1178, impregnada do espírito de S. Bento e das
orientações de S. Bernardo.
Santa Maria de Alcobaça será sempre, ao longo de 616 anos, uma
pérola do grande colar bernardiano, fiel em cada momento do tempo e a
seu modo, à vida que se lhe oferecia, que se lhe impunha.

62
  MARBOT, Barão de, Memórias sobre a 3ª Invasão Francesa, Caleidoscópio, Lisboa,
2006, pp. 84-85.
63
  TOMKINSON, William, The Diary of a Cavalary Officer in the Península and Wa-
terloo Campaign – 1809-1815, London, 1894, pp. 77-78.
87
A criação artística única que é Santa Maria de Alcobaça – e sirvo-me
de uma afirmação de Georges Duby: “uma obra de sacrifício, de con-
sagração e riqueza que preenche uma função religiosa” – é também de
renúncia do mundo.
Santa Maria de Alcobaça tem as dimensões que a política de alarga-
mento do reino, conduzida pelo fundador e seguida pelo seu filho e neto,
gizou para Portugal.
No mosteiro, praticava-se o exercício da humildade, da castidade, do
isolamento do mundo e do silêncio, tornando a prisão de pedra transpa-
rente, pela incidência da luz divina. No reino, praticava-se o exercício da
guerra, do arbítrio, do abuso, invadia-se o mundo com lâminas de sangue
e gritos de vaidade.
Temos, assim, em sobreposição temporal, nos primeiros tempos de
clausura total o dogma e o sofrimento, a oração e a guerra, a simplicidade
e a paz. Mais à frente, no peso dos séculos, a nova abordagem litúrgica
do dogma da Santíssima Trindade levará o povo dos coutos, do tempo
dos descobrimentos, a partilhar intensamente o sofrimento imagético do
calvário, contra o pano de fundo das suas curtas vidas, terminadas irre-
versivelmente, na morte carnal.
Na Igreja de Alcobaça limpa ou preenchida por esculturas, povoada pelo
verbo ou pela imagem, desejou-se apenas a cruz, ou nela o rosto de Cristo.
Foi este o caminho na pedra nua do sonho cisterciense, da verdadeira
imagem na procura silenciosa de Deus que nela apenas desejava a força
da luz trespassante.

88
Recriação da fachada medieval da Igreja
(Entre 1702 e 1716 é construída a fachada actual ladeada pelas alas norte e sul)

89
Legendas

 1 – Portaria Medieval, hoje emparedada na passagem do Claustro de


D. Dinis para o pequeno claustro da Hospedaria. Havia também
uma escada de acesso ao terreiro, hoje coberta.
 2 – Claustro de D. Dinis (1311) e sobreclaustro de D. Manuel (1520).
 3 – Refeitório Medieval. Sobre ele funcionou o pequeno Refeitório
dos Noviços e outros cómodos da sua clausura (1590).
 4 – Sala dos Monges. A dependência que mais mudou de funções ao
longo da História.
 5 – Scriptorium/Calefactorium. No seu pátio foi construída uma cozi-
nha (1550).
 6 – Dormitório medieval (XVIII).
 7 – Palácio Abacial e Portaria (1558).
 8 – Edifício eventualmente construído no séc. XV para alojar a Porta-
ria, a Hospedaria, Enfermaria e Botica.
 9 – Futura Enfermaria, edifício que separara no séc. XVII os claustro
do Cardeal e do Rachadouro.
10 – Abegoaria, Celeiros e outras dependências agrícolas.
11 – Cemitério medieval (Séc. XI).
12 – Necessidades novas (latrinas) – (1527)
13 – Possível localização da denominada Igreja do Povo; Galilé Real
(1223-1524).
14 – 2º andar – ampliação do séc. XVI-XVII para Noviciaria a poente e
monges professos a nascente.
15 – Futuro Claustro do Cardeal (Séc. XVII).
16 – Quadra VI (séc. XVII)
90
91
RECONSTITUIÇÃO GERAL DO MOSTEIRO
(antes da fachada barroca)
Implantação do Mosteiro definitivo

Resumo da Carta de Doação, que prova ser o local habitado e


existir Alcobaça anteriormente a 1153
“Em nome do Nosso Senhor Jesus Cristo, Amen (...) eu, D. Afonso pela divina miseri-
córdia Rei dos Portugueses, juntamente com a Rainha Dª Mafalda, minha mulher e
companheira no reino fazemos testamento e em couto a vós D. Bernardo Abade do
Mosteiro de Claraval e a vossos irmãos e todos os vossos sucessores (...). Damo-vos
também o lugar que se chama Alcobaça, e vos fazemos dele testamento e Couto (...).
Queremos que tenhais e possais com suas entradas e saídas, águas e pastos, e todas
as mais pertenças, e com todas as terras cultivadas e por cultivar, vinhas, casas, hortas
e pomares, e com todas as mais coisas, que neste limite se encerrarem, para provi-
mento dos moradores, e tudo o que nele a dentro pertence ao direito Real seja des-
membrado de nosso senhorio e trespassado ao vosso e confirmado nele como direito
perpétuo (...) se por negligência vossa ou vivendo eu, deixardes sem meu conselho
desamparado o lugar sobredito, o não possais nunca mais recuperar”.
Era de César de 1191 – Ano de Cristo de 1153
92
EVOLUÇÃO DO MOSTEIRO DESDE A SUA FUNDAÇÃO
ATÉ À ACTUALIDADE

ATÉ 1500

Há historiadores que acreditam ter sido quadrada, na sua origem, a cabeceira da Igreja
de Santa Maria de Alcobaça, cuja construção se iniciou no ano de 1178, um ano antes
da Bula Manifestis Probatum do Papa Alexandre III que concedeu a D. Afonso Henri-
ques o tíulo de rei que ele já usava há muitos anos.
A cabeceira da igreja monástica de Alcobaça é do primeiro quartel do séc. XIII e apoia-
-se em arcobotantes, os primeiros a serem usados em Portugal como suporte exterior
e muito semelhantes aos utilizados pelos cistercienses na igreja do Mosteiro de Pon-
tigny, no último quartel do séc. XII.

93
ATÉ 1665

A cozinha medieval deu lugar no séc. XVI ao Palácio Abacial (1556?). No pátio do Scrip-
torium construiu-se em 1550 uma nova cozinha, que ocupará no séc. XVIII todo o
espaço do Scriptorium/Calefactorium.
Sobre o dormitório constrói-se o noviciado, celas para professos e uma capela (XVI-
-XVII). O antigo dormitório é dividido: corredor na nave central, celas dos antigos aba-
des do lado nascente e numa primeira fase a poente, notariado e tombo e mais tarde
as livrarias, comum e manuscrita, estas na primeira década do séc. XVIII.
No prolongamento do corpo da enfermaria constroem-se as novas Necessárias com
24 lugares, devendo ter-se mantido as latrinas dos corpos das celas do 1º e 2º pisos.

94
ATÉ 1750

Há dois novos claustros, a Quadra VI do lado norte, e o do Colégio no lado sul.


O Claustro do Rachadouro (abertura) continua incompleto.
A Hospedaria ocupa todo o 1º piso da ala norte, incluindo o antigo Palácio mantendo
o recheio luxuoso até 1834, descrito em vários documentos dos cronistas da Ordem e
relatos de viajantes.

95
ATÉ 1834

Após as invasões francesas o Mosteiro está completo, com apreciáveis dimensões e


importantes dependências. O Colégio funciona em pleno, tal como a Livraria e Ofici-
nas, e no seu piso térreo laborou uma fábrica de tecidos que a rainha Dª Maria I visita
em 1786.
Após a extinção das ordens (1834) desaparece a Quadra VI em 1839, dando origem a
uma praça pública. As Necessárias são demolidas no mesmo ano para abertura da Rua
da Mala-Posta.
Os túmulos de D. Pedro e Dª Inês de Castro são transferidos do braço sul do transepto
para o Panteão Real em 1784 ou 1785.

96
ACTUALMENTE

Durante a ocupação civil do Mosteiro a ala sul foi adquirida por particulares para resi-
dência. No topo sul esteve alojado o Asilo Maria e Oliveira, na ala norte funcionaram
no 1º piso o Tribunal e Câmara Municipal de Alcobaça, no r/c a Repartição de Finanças
e Tesouraria das Finanças. No Refeitório esteve instalado o Teatro Municipal; a Sala
dos Monges, Capítulo e restantes claustros do lado poente foram Quartel de Cavalaria.
No claustro regular funcionou uma escola primária e a Real Banda de Alcobaça.
Até ao final do governo do Engenheiro Guterres os edifícios à volta dos claustros do
Cardeal e Rachadouro foram ocupados pelo Lar Residencial de Alcobaça, encontran-
do-se hoje esses espaços devolutos aguardando um projecto de conservação integra-
da que reabilite o monumento, Património Mundial desde 1989.
Em 1956 os túmulos de D. Pedro e Dª Inês voltaram à Igreja, mas desta vez a rainha
morta para o braço norte e D. Pedro para o braço sul do transepto.
97
Cister e a terra: a criação
e recriação da paisagem

António Maduro
Cister e a terra: a criação
e recriação da paisagem

“P
ela ciência e pelo trabalho dos monges, a brenha hostil, couto
de ursos, de lobos e de javardos, transforma-se em pomar ou
em vinhedo, e fartas searas ondeiam na charneca desbravada.
Cede o brejo o lugar a ubertosa campina; escalam o serro agreste pingues
e formosos olivedos. Povoam-se de vilas e casais os extensos ermos (…)
Já a água dos ribeiros trocou a descuidada ociosidade pelo labor útil de
moer o grão; nas improvisadas ferrarias trabalha-se o ferro e forjam-se as
ferramentas agrárias (…). E o vasto deserto, o ermo selvoso de outrora,
transforma-se num dos torrões mais fecundos da terra portuguesa”1.
A paisagem muda com o tempo e com os homens. Gradualmente o in-
culto torna-se culto, o bravio cede lugar aos frutos da terra que asseguram
a dieta alimentar, reforçam o contingente de homens e alargam a jurisdição
útil da Abadia cisterciense. Os monges seguindo os preceitos da Ordem
trabalham e orientam os labores da terra2. Nos séculos XIII e XIV define-
-se uma ampla rede de Granjas que responde à política de povoamento e

 1
  NATIVIDADE, Joaquim Vieira, “Os Monges Agrónomos do Mosteiro de Alcobaça”,
In NATIVIDADE, J. V. Obras Várias, Vol. II, sd., p. 32.
 2
  Veja-se: DIAS, Geraldo Coelho, “A Importância dos Mosteiros no Mundo do Vinho”,
In Douro. Estudos e Documentos, 20, p. 125; GOMES, Saul António, “Uma paisa-
gem para a oração: o Mosteiro de Alcobaça em Quatrocentos”, In Paisagens Rurais
e Urbanas – Fontes, Metodologias, Problemáticas, Actas das Terceiras Jornadas,
Lisboa, 2007, pp. 21-22.
101
ordenamento territorial do domínio que compreende uma extensão de 440
Km 3. Os monges são os senhores da terra e das energias dos elementos,
dos meios de produção e transformação dos frutos da terra com musculado
monopólio, são eles que definem as regras e os impostos aos colonos que
pacientemente arroteiam as terras e criam as rendas. O povoamento pela
lavoura e pelas artes de pesca cativa o território, estrutura a identidade
de um espaço marcado fisicamente pela diversidade orográfica e pelas
fronteiras de Serra e Mar4. Estamos num primeiro tempo de confirmação
e de viabilidade. Ultrapassadas as incertezas da exploração e desenvol-
vimento e afirmado o poder senhorial podem-se gizar políticas agrárias
de longa duração, que respondem, não só aos desafios da modernidade,
como à representação imagética da própria Abadia.
O século XVIII, no território dos coutos alcobacenses, é úbere em
transformações que redesenham o espaço útil e produtivo. As dinâmicas
de intervenção no território obedecem a um plano de desenvolvimento
económico concebido e materializado pelos monges agrónomos. Em
nenhum outro período da sua história multissecular a Abadia de Alco-
baça actuou tanto sobre o espaço reconfigurando as relações do homem
com a paisagem, mudando e domesticando o curso dos rios, construindo
um novo mapeamento florestal, incentivando a colonização da charneca
serrana com campos de olival, enxugando e trabalhando as terras que o
recuo do mar deixara vagantes para as culturas (as salinas de Alfeizerão
são vítimas deste retrocesso dado que em 1586 ainda laboravam 72 talhos
e por meados do século XVIII já não restavam vestígios da actividade5),
difundindo nas terras de campo o sistema de regadio e introduzindo novas
culturas, criando novas granjas (como a Quinta de Val Ventos e Quinta

 3
  Veja-se: NATIVIDADE, Joaquim Vieira, “As Granjas do Mosteiro de Alcobaça, In
NATIVIDADE, J. V. Obras Várias, Vol. II, sd., pp. 65-66; BARBOSA, Pedro, Po-
voamento e Estrutura Agrícola na Estremadura Central (séc. XII a 1325), Lisboa,
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992, pp. 139-142; BARBOSA, Pedro;
MASCARENHAS, José; TERENO, Maria do Céu, “Granjas Monásticas e Estrutu-
ração do Território nos Coutos de Alcobaça”, In Actas do II Congreso Internacional
de Cister en Galicias y Portugal, Volume III, pp. 1454-1456.
 4
  Veja-se: SANTOS, Frei Manoel dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça (Al-
cobaciana 3), Alcobaça, ADEPA, 1979, p. 20.
 5
  B.N.P., códice 1490, fl. 52. O salgado de Alfeizerão labora desde o século XIII forne-
cendo o sal necessário às capturas de Paredes e Pederneira, para além de abastecer o
Mosteiro. GONÇALVES, Iria; SILVA, Manuela, “São Martinho do Porto e a Lagoa
de Alfeizerão na Idade Média”, In PROENÇA, Maria coord., A Baía de S. Martinho
do Porto. Aspectos Geográficos e Culturais, Edições Colibri, p. 59.
102
da Granja de Turquel6) que vão ampliar o espaço da reserva monástica
(se bem que na história de vida derradeira do domínio cisterciense mui-
tas das propriedades exploradas directamente pelo instituto monástico
tivessem sido dadas de aforamento7), mobilizando técnicas que adiantam
a produtividade da terra, promovendo o reordenamento do território, o
desenvolvimento económico e a mercancia.
Controlam-se as correntes ao alterar e recompor os leitos fluviais
tentando, assim, impedir os indesejáveis alagamentos e esterilização das
terras, viabilizando, através de uma rede capilar de valas e enguieiros, o
regadio de milho grosso (cultura que já se tinha disseminado no século
XVII8) e, mais tarde, do arroz (os ensaios desta cultura na década de 20
do século XIX verificam-se na Granja do Valado e nos termos de Alfei-
zerão9). Com esta política de engenharia hidráulica facilitou-se o trânsito
fluvial das fragatas e iates que recebiam as madeiras das matas e pinhais
coutados e contiveram-se as nefastas invasões de água salgada (que já
tinham inutilizado muitos dos campos de Alfeizerão e as terras adjacen-
tes à Baía de S. Martinho tornando-os unicamente aptos para o pastoreio
de gado miúdo e grosso10). Para proteger os férteis campos da granja do
Valado assentaram-se portas de maré11 regulando os fluxos de descarga e
cortando as entradas das torrentes salinas e tentou-se, muitas vezes sem
sucesso, manter desobstruída a boca do rio da Abadia (designação que
toma após a junção do Alcoa com o Baça).
Ao nível das tecnologias de produção e transformação expande-se
estrategicamente o motor hidráulico nos rios e ribeiras dos Coutos que a
engenharia cisterciense já aplicava criativamente desde a medievalidade

 6
  Esta propriedade foi adquirida pelo Mosteiro nos finais do século XVIII. TERENO,
Maria do Céu, “Arquitectura das Granjas Cistercienses do Mosteiro de Alcobaça –
Apontamentos sobre a Arquitectura e Organização Funcional da Antiga Granja de
Turquel e Quinta da Granja”, In Revista Cistercium, vol. 53, 225, p. 5.
 7
  Refira-se que as Granjas, verdadeira criação cisterciense ao nível da exploração directa
e não apenas suporte de uma política agrária rentista, começaram a ser arrendadas já
a partir dos inícios do século XV.
 8
  B.N.P., códice 1490, fl. 53.
 9
  Relatório sobre a Cultura do Arroz em Portugal e sua Influencia na Saúde Publica
Apresentado a Sua Excelência o Senhor Ministro dos Negócios do Reino pela Comis-
são criada por Portaria de 16 de Maio de 1859, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860,
pp. 381-382.
10
  B.N.P., códice 1490, fl. 43.
11
  B.N.P., códice 1490, fl. 54.
103
a inúmeros e úteis fins, seja para as tarefas maiores de moer o grão12 ou
derreter a azeitona (encontramos os lagares de azeite acoplados aos sis-
temas de moagem, como se pode constatar na granja de Chiqueda ou no
complexo da Fervença13), seja para as indústrias dos curtumes, pisões e
serrações de madeiras (como a existente na cerca de dentro14), entre outros
ofícios. Na prática ampliam-se os açudes (utilizados pelos moleiros como
viveiros de peixe) que vão reter mais água e disponibilizar mais energia
contrariando os nefastos efeitos do estio, multiplicam-se moinhos irmana-
dos na mesma linha de levadas, reforçam-se os engenhos de roda horizontal
ou de rodízio “correntes e moentes” de fazer pão, principia-se a difusão
das azenhas de roda vertical (unidades de produção que correspondem a
uma última revolução das tecnologias tradicionais15). Os moinhos de vento
(de torre de madeira ou pedra16) no território dos coutos assumiam um
papel secundário e complementar respondendo ao decréscimo produtivo
das unidades hidráulicas por alturas do Verão, dado que a menor força
das correntes inibia a laboração de alguns conjuntos de pedras17.

12
  Frei Manuel de Figueiredo dá-nos uma lista, que reputamos de incompleta, dos moi-
nhos do Mosteiro, a saber: “Alcobaça – 2; Castanheira – 1; Chaqueda – 1; Fervença
– 3; Mata da Torre – 1”. B.N.P., códice 1493, fl.44. Sobre o património moageiro
do Mosteiro, veja-se: MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça. Território,
Economia e Sociedade (séculos XVIII-XX), ISMAI, 2011, pp. 249-251.
13
  Com o Cardeal D. Henrique edifica-se o açude que vai servir o conjunto de meios de
produção da Fervença. Este complexo localizado onde antes existia uma fábrica de
papel possuía para além de um lagar de azeite com dez prensas de vara, cinco caldeiras,
cinco tarefas e dois engenhos de moenda da azeitona, dois moinhos de rodízio e uma
azenha, no total revolucionando nove pedras alveiras e segundeiras. É neste espaço
que se irá instalar a Companhia de Fiação e Tecidos de Alcobaça. Veja-se: A.D.L.,
C.N.A., 10º of., lv. 61, fls. 55-56, 11 de Janeiro de 1875.
14
  Este engenho já estava inactivo em 1838 com grande prejuízo para a exportação de
madeiras que assim tinham de ser encaminhadas exclusivamente em toros, dado ser
a única indústria deste tipo que a comarca de Alcobaça possuía. A.D.L., C.N.A., 9º
of., lv. 2, fls. 18-22, 18 de Maio de 1838.
15
  Enquanto a rotação do rodízio apenas corresponde a uma volta da pedra andadeira,
a roda vertical da azenha imprime cinco voltas e a roda podia tocar mais do que um
conjunto de mós. Estas unidades exigiam maior disponibilidade de capital e um fluxo
de água mais abundante, daí que a roda passe a substituir as palhetas por cubos e a
beneficiar de um jorro de água de propulsão superior.
16
  Inicialmente a estrutura devia por economia ser de madeira, o que permitia ainda
deslocalizar o moinho em caso de necessidade. A torre possui um capelo que se
mobiliza por intermédio de um sarilho interno orientando as velas ao benefício dos
ventos, arte mais evoluída do que a utilização do sistema de rabo.
17
  Veja-se: MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça. Território, Economia e
Sociedade (séculos XVIII-XX), 2011, pp. 246-257.
104
Grupo de moinhos de torre de alvenaria e capelo mobilizado por sarilho interno. A
moagem cisterciense privilegiava o motor hidráulico, representando os moinhos de
vento um apoio indispensável quando o estio reduzia as torrentes e parava as pedras
alveiras e segundeiras (Fotografia Alvão).

A bordada da Serra dos Albardos, como dantes era conhecida a Serra


dos Candeeiros, é invadida de fruteiras. Chantam-se olivais a perder de
vista18 como o bem ilustra as cartas setecentistas condenando ao desapare-
cimento a primitiva mata de folhosas que embelezava as ladeiras e plaino
do gigante de pedra alva e parda.
Toma-se terra e terra para culturas, reduzindo ao limite sustentável os
incultos ou baldios do povo, de onde os homens cativavam lenhas e adubos
para dar ânimo ao solo e obter auspiciosa renda de frutos.
Modifica-se a paleta cultural, mudando e multiplicando vegetais e
frutos. Os pomares de caroço, pevide e espinho, assim como as vinhas
tomam as encostas (acusam-se as vinhas de provocar frequentes resva-
los de terras por serem terrenos muito mobilizados19), os cereais, agora
dominados pelo maís, monopolizam as baixas encorpadas e humosas.
Recompõe-se a floresta ao sangrar as matas de folhosas (carvalhos e

18
  Veja-se: S: BOAVENTURA, Frei Fortunato de, História Chronológica e Crítica da
Real Abadia de Alcobaça, Lisboa, 1827, p. 31.
19
  B.N.P., códice 1490, fl. 52.
105
sobreiros) e expandir o pinheiro-bravo na linha de costa sustentando as
areias e protegendo as mimosas hortas e as terras de milho regado e de
leguminosas para seco que se consociam com o maís da agressividade
dos ventos mareiros, fazendo verdejar de culturas os campos da Maiorga,
Cela, Valado e Alfeizerão. Superam-se os obstáculos à produtividade
das terras ao erradicar em definitivo o sistema de pousio20 (pelo menos
nas propriedades de reserva do Mosteiro21) e, para além do cereal de
pão, praticam-se culturas para verde (nomeadamente centeios, cevadas
ou alimpas das eiras e moinhos e milharadas criadas depois da ceifa dos
trigos) destinadas a alimentar e pensar o “gado agricultor” de canga, ou
de açougue, facilitando o desenvolvimento da estabulação e rompendo
com o velho ciclo vicioso que obrigava ao abate do gado no período de
Inverno e reduzia as disponibilidades de adubo para fertilizar as terras.
Mas a criação de gado bovino, não obstante o exposto, estava limitada
pela falta de prados e lameiros na comarca de Alcobaça (daí a necessidade
de constantes importações de gado vacum do Minho para fins de canga,
carne e leite, o que revela claramente um défice na criação22). A carência
de gado grosso na comarca não invalida que em Alfeizerão se criem bois
para trabalho e açougue, assim como touros de arena, e se apure uma raça
creditada de cavalos23 utilizada para montaria e artes circenses (os cavalos
têm também uso nas lavras, gradas da terra, nos serviços das debulhas,
embora nessas tarefas o gado bovino assuma quase o monopólio24).
Esta revolução tectónica traduz-se numa chama de povoamento que
irradia desde o árido plaino da beira-serra à orla marítima e num período
de prosperidade da lavoura que assiste as exportações de géneros que dia-
-a-dia embarcam pela barra de S. Martinho (malgrado o grau de assorea-
mento provocado pelo depósito aluvionar do rio de Salir e das descargas
de lastro das embarcações25) e pelos ancoradouros do Tejo, falamos de
muitos milheiros de fruta de caroço para Lisboa e outras comarcas, de
muitos moios de trigo, cevada e feijão-branco com destino à feira de Vila

20
  B.N.P., códice1490, fl. 43.
21
  Esta supressão do pousio não alcançava os olivais da charneca serrana, assim como a
propriedade camponesa pela carência de adubos que se faziam sentir. Veja-se: MON-
TEIRO, Nuno, “Lavradores, Frades e Forais. Revolução Liberal e Regime Senhorial
na Comarca de Alcobaça (1820-1824)”, In Ler História, 4, p. 58.
22
  Veja-se: A.N.T.T., Mosteiro de Alcobaça, Livro das Despesas do Convento de Alco-
baça, nº 5 (1747-1750), mç. 5, cx. 132.
23
  O Leiriense, 181, 5 de Abril de 1856. O Mosteiro possuía uma coudelaria na Quinta
do Campo.
24
  B.N.P., códice1490, fls. 46-47.
25
  B.N.P., códice1490, fl. 53.
106
Franca e à capital, de pipas de vinho para Leiria, Santarém e Tomar, de
azeite e milho grosso para várias comarcas26, já para não falar dos toros
de pinho provenientes do pinhal da Pederneira/Valado ou do Santíssimo
e dos carvalhos das matas do Vimeiro.
Esta dinâmica económica que assola o território dos coutos como
um vendaval não pode ser dissociada do quadro mental e ideológico da
Ordem Cisterciense. Na realidade a construção e produção da paisagem
obedece a um desígnio matricial, arte e gramática que regula e estabelece
a representatividade e hierarquia das plantas na terra numa clara alusão
simbólica ao belo paraíso. Mais ainda, a ordem dos frutos, antítese do
caos, responde à ordem do mundo definida por Deus, regulando as rela-
ções de produção e o justo equilíbrio demográfico que os frutos da terra
assistem. Compreende-se assim o aparente desfasamento temporal da
lógica discursiva cisterciense, ao insistir no primado da autarcia sobre as
relações de mercado numa época em que os excedentes do seu domínio
revelam a grandeza da sua lavoura e a sua capacidade em levar aos limites
a produtividade das terras no contexto do Antigo Regime.
A racionalidade do uso do solo praticada pelos cistercienses não é
apenas um fruto da modernidade setecentista e das novas filosofias demo-
gráficas e agronómicas. As abadias capitalizavam conhecimento, trocavam
ideias, divulgavam as descobertas e inovações e actualizavam o saber dos
antigos, estabelecendo porventura leituras críticas dos tratadistas clássicos
como Collumella, Catão, Varrão e Paládio ou dos mestres árabes como
Ibn-al-Vahschiad e Ibn-al Awan27.
O papel desempenhado pelas granjas ultrapassava em muito o de
simples unidades de exploração e transformação dos produtos da terra,
relevando por parte dos monges um espírito agudo de curiosidade e ex-
perimentação28. Nestas propriedades da reserva monástica pratica-se a
selecção de culturas arvenses e fruteiras, testam-se as sementes e plantas
importadas das redes monásticas nacionais e internacionais e averigua-se
e estuda-se a sua capacidade de aclimatação e frutificação29, desenvolve-se
e aprimora-se a enxertia nas vinhas e pomares, definem-se estratégias de
combate a pragas que afectam as fruteiras cercando-as com sebes vivas

26
  B.N.P., códice1490, fl. 44.
27
  NATIVIDADE, Joaquim Vieira, “Os Monges Agrónomos do Mosteiro de Alcobaça”,
pp. 33-34.
28
  Sobre o papel das granjas, veja-se: RODRIGUEZ, José Ignacio, “A visão cisterciense
do trabalho”, In PEREIRA, Gaspar et al. coord., Cister no Vale do Douro, Santa Maria
da Feira, Afrontamento, 1999, pp. 149-152
29
  NATIVIDADE, Joaquim Vieira, “As Granjas do Mosteiro de Alcobaça”, sd, p. 69.
107
Colmeal da Granja de Val Ventos mandado erguer no ano de 1765 por Frei Nuno Lei-
tão, onde se produzia o mel mais claro de Portugal (Foto Joaquim Vieira Natividade).

de canas e loureiros30 (efeito de diversão/atracção ou, eventualmente,


testam-se contra pragas), estabelecem-se regras para sementeiras e plan-
tações, como critérios de rotação e alternância cultural dos afolhamentos,
pensam-se compassos apropriados ao tipo de cultura e substância do solo,
ensaiam-se pomares estremes acabando com a nociva promiscuidade
cultural, divulgam-se os pomares de laranjas graciosamente baptizados
de Jardins, poupa-se o solo das fruteiras e vinhas da convivência com as
tradicionais culturas de consociação, nomeadamente os cereais de pra-
gana e favas tão atreitos a infestantes, exigem-se cuidados redobrados no
maneio de arados, aravessas e charruas nas vinhas e pomares, fazem-se
as vindimas de brancas e tintas diferenciadas consoante o calendário da
maturação, impede-se a intrusão de gado nas vinhas e pomares (aliás,
as cartas foraleiras já recomendavam que se murassem as propriedades
numa sensata política de prevenção de danos), fomenta-se o regadio e
desenvolve-se a engenharia hidráulica e arquitectam-se novos métodos e
técnicas de transformação e conservação dos produtos da terra. Em suma,
racionaliza-se a gestão agrícola, aperfeiçoa-se a lavoura, aumentam-se
os índices de produtividade, diversificam-se as culturas, obtêm-se mais e
mais sementes e frutos aromáticos e dulçorosos.
O agrónomo Joaquim Vieira Natividade considera as Granjas cis-
tercienses não apenas como espaços de inovação e ensaio, mas como

  B.N.P., códice 1490, fl. 49.


30

108
escolas/laboratórios em que o saber monástico se difunde pela acção de
observação e trabalho aos camponeses que labutam as terras dos coutos31.
Cremos todavia que a hipotética intenção de modernizar e racionalizar
a agricultura por parte dos monges terá esbarrado não só nos arreigados
usos e costumes da população, mas na dimensão da propriedade campesina
orientada, quase em exclusivo, para o autoconsumo, demasiado débil em
excedentes transaccionáveis. A promiscuidade cultural que, ainda hoje,
podemos observar em inúmeras leiras representa, para além de tudo,
uma sábia estratégia de sobrevivência das famílias do mundo rural. Isto
não invalida o esforço dos monges na valorização agrícola da comarca
ao ceder sementes das suas tulhas e alfaias produzidas nas suas oficinas
numa política precoce de crédito agrícola que já se pode ler nas cartas de
povoamento, ao disseminar culturas rentáveis e prolíficas como o maís (de
sequeiro e regadio) e os arrozais, se bem que haja culturas que os popu-
lares inexplicavelmente rejeitam como os espinafres32 ou as amoreiras33,
cultura industrial que o Mosteiro tentou implementar no território com
total desdém dos povos.
A agronomia cisterciense perpetua-se para além do tempo cronológico
da Ordem unicamente na grande exploração. São os novos “barões” do
liberalismo ou os grandes foreiros do Mosteiro que adquirem as quintas
e granjas que irão manter o regime cultural, adiantando-se até a capitali-
zarem os sistemas de transformação dos frutos da terra, como se constata
na aquisição estratégica de moinhos e de lagares de azeite (caso do pro-
prietário Bernardo Pereira de Sousa que consegue assegurar o domínio
dos lagares de azeite da Fervença, da Quinta de Chiqueda e das Antas,
unidades que somam 22 prensas de vara, o que corresponde a 30% da
capacidade extractiva dos lagares do Mosteiro34).
A superfície florestal conhece algum estreitamento, um minguar pro-
gressivo. Basta equacionar os derrotes ocorridos no início da década 30 do
séc. XIX nas matas do Vimeiro (o maior núcleo de carvalhos e sobreiros
dos coutos) que segundo o parecer do ministro da Marinha rondam as três
mil carradas35. Ao termo da supressão dos institutos religiosos as matas do

31
  NATIVIDADE, Joaquim Vieira. “Os Monges Agrónomos do Mosteiro de Alcobaça”,
pp. 33-34.
32
  B.N.P., códice1490, fls. 47-48.
33
  B.N.P., códice1490, fl. 49.
34
  MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça, 2011, p. 348.
35
  Assembleia da República, Diário da Câmara dos Dignos Pares do Reino, 16, 7 de
Fevereiro de 1835 fl. 240. Os derrotes para carvoaria nas décadas de 40 e 50 vão
alterar o regime de exploração de alto fuste para talhadio e com o dealbar do século
XX, os carvalhos sofrem a concorrência do pinheiro-bravo, entre outras espécies.
109
Carvalho secular na antiga mata coutada do Vimeiro (Fotografia Joaquim Vieira Nati-
vidade).

110
Mosteiro compreendiam apenas 1.900 hectares36. Já desde a Baixa Idade
Média o fomento da lavoura sonegava solo às matas. Com as arroteias
para cereais rasgam-se sucessivas clareiras e criam-se povoados, o que
acabava naturalmente por cindir e deprimir as matas37. Mas o Mosteiro
não prescindia, e não podia prescindir, de um determinado trato florestal,
assegurando na longa duração através de regulamentos de uso e costume
a protecção das árvores indispensáveis às necessidades dos homens e
progresso civilizacional. Da floresta se busca matérias de construção civil
e naval, combustível e energia, adubos para retemperar os solos e fazê-los
frutificar, cascas para curtumes, madeiras para arrecadar vinhos, cortiças
para múltiplos fins, entre tantos outros produtos. Na realidade a Ordem
cisterciense permitia aos povos o uso controlado das madeiras das matas
para abegoarias, currais, cómodos e habitações e demais aplicações da
lavoura, sem que este usufruto alcançasse o corte abusivo de paus e per-
nadas reais, entre outras mutilações severas38. Mas os povos conseguiam
ludibriar a vigilância sangrando árvores e mutilando-as para lhes subtrair
cascas para a indústria de curtumes39.
A floresta era pouca para as necessidades dos homens, tanto de matas
de carvalhos como de pinhais. O Mosteiro tenta repovoar a orla litoral do
seu domínio de pinhal, obra que se estende ao longo do século XVIII40, a
fim de proteger as terras de cultura e minimizar as importações de lenhas
provenientes da comarca da Marinha Grande41. Nem sempre era fácil
garantir o sucesso das sementeiras, foi o caso da intempérie de 1785 que
submergiu todo o penisco lançado entre o ribeiro de Águas-Belas e a Vila
da Pederneira42. A floresta de pinho, malgrado algumas destruições por
meados da década de 30 do século XIX, vai conhecer um alargamento

36
  DEVY-VARETA, Nicole, “A Floresta na Memória e no Futuro do Espaço Rural”,
In Carlos Alberto Medeiros dir., Geografia de Portugal. Actividades Económicas e
Espaço Geográfico, vol III, Lisboa, Círculo dos Leitores, 2005, p. 125.
37
  Iria Gonçalves, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV, Lisboa,
Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 101-102.
38
  B.N.P., códice 1490, fl. 50.
39
  B.N.P., códice 1490, fl. 50.
40
  Refira-se que o Pinhal da Pederneira, adstrito à Quinta do Campo (propriedade com
551 hectares), nasce na Baixa Idade Média servindo os trabalhos do estaleiro naval que
se localizava na Ponte das Barcas. Veja-se: PENTEADO, Pedro, “Rendas e fazendas
do Mosteiro de Alcobaça durante a comenda do Cardeal Infante D. Afonso (1530-
-1536)”, In actas Cister Espaços, Territórios, Paisagens, 2000, pp. 92-93.
41
  B.N.P., códice 1490, fls. 42-43.
42
  B.N.P., códice 1490, fl. 57. O Mosteiro tenta aliás que sejam os moradores da Peder-
neira a suportar o custo das sementeiras.
111
Lavra no Olival do Santíssimo Sacramento da Ataíja. Este olival possuía cerca de de-
zoito mil pés de oliveiras galegas. O brasileiro Bernardo Pereira de Sousa adquire nos
finais da década de 30 cerca de dez mil oliveiras mantendo-se esta propriedade na
família até ao ano de 1927. A safra deste olival era dada a moer no lagar da Cerca da
Ataíja, conhecido por Casa do Monge Lagareiro (Fotografia Paulo Guerra).

territorial, o que explica o assentamento e exploração do comboio ame-


ricano (final da década de 50) que levava a madeira torada aos iates e
fragatas ancorados na baía de S. Martinho43.
Mas é a oliveira que mais capitaliza os esforços. A extensa planura
da beirada da Serra dos Candeeiros, leito de carvalhos seculares, entre
outras folhosas e matos, conhece derrotes e arroteamentos massivos. As
fruteiras pela mão do Mosteiro estendem-se em lençol contínuo. Olivais
de muitos milhares de pés alinham-se em compassos estudados em função
das necessidades orgânicas de cada indivíduo, regras de distância que
respondem ao aconchego dos solos e facilitam os trabalhos culturais,
como o manuseio de alfaias aratórias que, em intervalos de dois a três

  Sobre a floresta dos coutos de Alcobaça, veja-se: Iria Gonçalves, O Património do


43

Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV, 1989, pp. 100-105, 261-270; BARBO-
SA, Pedro; MOREIRA, Maria da Luz, Seiva Sagrada. A Agricultura na Região de
Alcobaça. Notas históricas, AARA, 2006, pp. 25-28; MADURO, António Valério,
“O espaço florestal de Alcobaça nos séculos XVIII e XIX”, In Revista Portuguesa
de História, XLI, 2010, pp. 33-57.
112
anos, permitem lançar à terra tremoço, cevada ou trigo44, o transporte da
safra do olival, das lenhas obtidas nas alimpas e podas de revitalização.
Este manto de olival denso e geométrico carreia outras vantagens para
além das ocasionais culturas de consociação, serve, por exemplo, de palco
para os rebanhos de ovinos e caprinos (gado, por vezes, proveniente da
Serra da Estrela, conduzido por hábeis pastores quando o Inverno gélido
estreitava a maquia de matos) e varas de porcos, já para não falar da re-
colha dos matos que os enterreiros e esmoitas providenciavam, matéria
orgânica indispensável para assegurar a fertilidade das terras minimizando
o problema da ocupação excessiva do solo pela arte da lavoura.
Esta substituição gradual da mata de folhosas pelas fruteiras implicou
um tráfico de homens que assentam arraiais num espaço repulsivo ao
povoamento pela ausência total de águas de nascente, pelas exsurgências
calcárias e terras delgadas. A falta de água explica que a formação e im-
plantação dos novos casais tenha sido determinada pelas lagoas e barreiras
permanentes que salpicam a charneca e que a comunidade campesina para

Casa do monge lagareiro (século XVIII). Esta instalação que servia o olival do Santíssi-
mo Sacramento da Ataíja possuía 8 varas e dois moinhos. Era uma instalação modelar
com separação entre a área dos moinhos tocados pelo gado e as prensas de vara (Fo-
tografia António Maduro).

  B.N.P., códice 1490, fl. 48.


44

113
usos domésticos tenha recorrido ao assentamento de uma rede de cisternas
e poços colectivos de exclusivo benefício pluvial45. Mas os colonos eram
indispensáveis para assegurar a progressão dos tanchões, o que implicava
o romper da floresta primitiva e dos matagais, fazer as espedregas, estacar
as fruteiras, cuidar das árvores fazendo cavas e alimpas e colher, vare-
jando e ripando, o doce fruto que dá óleo para alimento e iluminação, já
para não falar das cerimónias e rituais religiosos centrais ao cristianismo.
A política olivícola materializa-se na edificação de novas granjas, como
a de Val Ventos (século XVIII) que, na sua ampla cerca, acolhe por cálculo
dos louvados aproximadamente 60.000 pés de árvores que se dispõem
num compasso matemático (9 metros entre árvore contra 17 metros entre
corredores) ou nos olivais do Santíssimo da Ataíja (18.000 oliveiras46).
Na tapada de Val Ventos a safra atingia as 70 pipas (embora ao termo da
presença cisterciense a produção se quedasse pelas 30 pipas47). Mas o seu
armazém que ocupava o piso térreo do celeiro possuía 23 pias protegidas
com tampas de madeira (com uma capacidade aproximada de 166 pipas48).
Como vemos a guarda suplantava em muito a produção permitindo a ar-
recadação de foros e maquias ou do azeite da colheita transacta quando
os mercados não asseguravam o seu escoamento.
A oliveira galega dominava o povoamento, de maior porte erguia-se
a lentisca ou lentisqueira e uma ou outra oliveira de Sevilha destinada a
conserva49. As enxertias comuns sobre zambujo conferiam resistência e
longevidade a esta árvore que tanto contribuiu para definir a matriz civi-
lizacional do mediterrâneo.
Para trabalhar a azeitona e produzir o azeite, multiplicam-se os lagares
de varas ou reforçam-se as instalações previamente existentes. Levanta-se
a instalação modelar do Monge Lagareiro da Ataíja, complexo em que
se estabelecia a separação entre a área dedicada às oito prensas de vara e
o espaço dos dois moinhos de três galgas tocados a sangue, imóvel que
incluía ainda a casa de habitação do mestre lagareiro (monge, eventual-
mente converso, responsável pela administração da “fábrica de azeite” que
acumulava funções técnicas superintendendo os trabalhos do lagar), um

45
  Veja-se: MADURO, António Valério, O Problema da Água na Serra dos Candeeiros
(Alcobaciana 5), Alcobaça, Adepa, 1997, pp. 41-52.
46
  Veja-se: MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça, 2011, pp. 287-288.
47
  A.H.M.F., Mosteiro de Alcobaça, cx. 2193, Autos de Petição (31 de Julho de 1822).
48
  A.H.M.F., Mosteiro de Alcobaça, cx. 2193 Autos de Descrição dos bens de raiz do
Mosteiro de Alcobaça, fls. 30-31; cx. 2192, fl. 498.
49
  Veja-se: GONÇALVES, Iria, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV
e XV, 1989, p. 89; B.N.P., códice 1490, fl. 48.
114
espaço de palheiros e estábulos e outro de conservação do precioso óleo
armazenado em magnas pias de pedra lioz50. Nas imediações da Abadia,
mais propriamente na Quinta do Sidral conhecida pelas suas várias terras
de soutos de corte que assistem as indústrias de canastraria e tanoaria e
pelos laranjais doces (laranjas da china) dispostos em socalcos ao longo
das íngremes ladeiras, assenta-se, entre 1786-89, um lagar de quatro
varas e dois moinhos, de realçar que as instalações da Ataíja e do Sidral
estavam sob a administração da Confraria do Santíssimo Sacramento51.
Na prática para responder ao acréscimo de frutos multiplicam-se os as-
sentamentos de lagares ou redimensionam-se os existentes dotando-os de
varas e engenhos suplementares. A geografia olivícola centrada no espaço
serrano faz com que a força motriz dos engenhos continue a ser a sangue
ou tocada a gado (já para não falar das prensas de varas que contavam
em exclusivo com a força humana), mas mesmo os lagares que beneficia-
vam de assentamento junto aos cursos de água contavam com moinhos a
canga bovina dada a falta de constância das correntes que atravessavam
os coutos (caso do lagar das Antas, da Laje e o da Quinta de Chiqueda,
embora este último se situasse nas imediações da nascente do Alcoa)52. A
difusão dos lagares53 responde ao acréscimo produtivo e justifica o regime
de monopólio de que os cistercienses não prescindem com castigo maior
para os homens do campo (o mundo camponês não só tinha de entregar o
quinto da azeitona ao Mosteiro donatário, como tinha ainda obrigatoria-
mente de dar a sua azeitona a moer pela qual pagava dízimo para além de
uma percentagem sobre a moedura e aguardar a disponibilidade do lagar
fazendo a apanha tardia ou deixando os frutos salgados e calcados com
pedras a depreciarem-se nas tulhas54).

50
  Veja-se: MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça, 2011, pp. 358, 383-384.
51
  Livro do Recibo e da Despesa da Administração do Santíssimo Sacramento do Real
Mosteiro de Alcobaça, sendo Abade Geral Esmoler Mor Fr. Manuel de Mendonça,
nº 17 (1772-1828), mç. 7, cx. 134.
52
  MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça, 2011, pp. 345-347.
53
  No século XVIII, a instituição monástica possuía os seguintes lagares (não estando
incluídos nesta lista as unidades afectas à Confraria do Santíssimo Sacramento):
“Antas – 1; Castanheira – 2; Chaqueda – 1; Fervença – 1; Lagoa – 1; Santa Catarina
– 2; Turquel – na Quinta – 1; Val de Ventos – 1; Vimeiro – 1. Pedem os Povos acres-
centamento no Lagar das Antas, e querem novos na Rotêa-nova, e Salir de Matto”.
B.N.P., códice 1493, fl. 44.
54
  O azeite cisterciense era feito a partir de azeitona fresca, logo não entulhada e salgada,
todavia as tarefas recebiam o azeite das três espremeduras (metodologia já contestada
no mundo clássico), o que depreciava o produto final.
115
Porta principal da cerca da Quinta da Gafa, a maior propriedade vinhateira do Mostei-
ro. Esta propriedade foi adquirida em 1836 pelo Conde de Lumiar. Na década de 60 já
está na posse da família Rino sendo vendida à Câmara Municipal em 1931 (Fotografia
Alvão).

116
Os réditos alcançados com o azeite ganham escala na economia monás-
tica. As receitas calculadas para os finais do século XVIII são estimadas
em trinta contos desde que o ano seja de safra, contra 28 contos e 700 mil
réis em anos de contra-safra55.
A par do olival que coloniza as faldas da Serra dos Candeeiros, outra
revolução toma conta das férteis e aquosas campinas da Cela, do Valado
e de Alfeizerão, o protagonista é neste espaço o maís. De um alqueire
lançado à terra ganham-se trinta e dois (contra quatro a seis do trigo),
obrando uma verdadeira multiplicação de pães, neste caso da broa, ao
alterar de forma generosa a dieta camponesa e criar sustentabilidade para
a dilatação demográfica56. O novo cereal de filiação americana torna-se
prioritário nos foros e rendas da terra, nas fogaças, nas folhadas e até
no dote da noiva e, como não podia deixar de ser, introduz novas regras
mais minuciosas de acompanhamento cultural, com adubações e sachas
frequentes entre outros labores. A prática manda semear à inveja traçando
o milho com o feijão-branco numa relação de ¼ a ½ alqueire de feijão
por alqueire de milho. Com a chegada do prolífico arroz (que alcançava
taxas de produtividade de mais quarenta alqueires) o maís sofre o primeiro
retrocesso, embora rapidamente se compreenda que o novo cereal fatigava
em excesso os terrenos pelo que se passou a alternar as duas culturas em
ciclos de dois a três anos (o arroz tem vida breve dado o amplexo de se-
zões que passam a fustigar recorrentemente os povoados confinantes com
a cultura e a martirizar em especial os jornaleiros das mondas e ceifas,
mas a sua adopção pelos monges revela o espírito de abertura e iniciativa
da Ordem à modernidade cultural em matéria de lavoura57).
Com o maís a gestão e distribuição da água entra na ordem do dia ge-
rando conflitualidade entre regantes e também com os moleiros que com
eles partilham os fluxos de água que nas levadas dão ânimo às pedras

55
  B.N.P., códice 1493, fls. 35, 37. A expansão do olival não é travada com o termo de
Cister logrando o povo pela ocupação dos baldios dilatar a cultura. Em 1852, o con-
celho de Alcobaça tinha triplicado as 100 pipas de azeite obtidas em 1839, alcançando
uma quota de mercado no seio do distrito de Leiria que superava os 30%. MADURO,
António Valério, “A cultura do olival e da vinha, motor do desenvolvimento agrário
alcobacense (séculos XVIII-XIX)”, In Revista de História da Sociedade e da Cultura,
7, 2007, p. 250.
56
  B.N.P., códice 1490, fl. 44.
57
  Em 1870, o Visconde de Chanceleiros, na qualidade de Ministro das Obras públicas,
publica dois decretos proibindo os arrozais nos concelhos de Leiria e Alcobaça,
Assembleia da República, Diário da Câmara dos Dignos Pares do Reino, 39, 14 de
Abril de 1882.
117
andadeiras. Modificam-se os sistemas e tecnologias de debulha com o uso
do malho ou mangual (alfaia que anteriormente estava limitada à geografia
cultural do centeio), da eira lajeada de estrutura quadrangular (agora com
funções de seca e debulha, mais tarde virão também os espigueiros fixos e
móveis) que vem substituir a eira de terra redonda (também conhecida por
trigueira) onde a pé de gado ou com trilhos se derretia o trigo, aumentam-
-se os celeiros e tulhas das granjas58 e nos moinhos hidráulicos e de vento
as pedras segundeiras ganham primazia sobre as alveiras59. O maís ditou
ainda a certidão de óbito aos milhos miúdos e falamos do amarelo e painço.
Curiosamente a cultura da batata é praticamente ignorada. Frei Manuel
de Figueiredo refere apenas que se cultivam algumas “batatas indianas”
(das quais não se faz farinha)60, mas os monges não se apercebem das
potencialidades deste fruto61. Só a partir do século XIX é que a cultura
gradualmente se afirma, o que não invalida algumas objecções culturais ao
seu consumo. Basta referir que dos 35.000 alqueires colhidos na comarca
em 1865, 13.000 eram entregues para a engorda de suínos62.
A vinha conhece igualmente uma expansão (que acompanha aliás a
tendência nacional) mas neste caso não se pode falar de uma revolução
que assola o espaço63. A Quinta da Gafa, em plena Alcobaça, era a maior
propriedade de vinha do Mosteiro, mas também a Granja do Valado acolhia
milheiros de pés. Os cistercienses desde a época medieval socorreram-se

58
  No século XVIII, a instituição monástica possuía 23 celeiros: “Alfeizerão – 1; Alju-
barrota – 1; Alvorninha – 1; Quinta do Castello – 1; Santa Catherina – 2; Cella – 2;
Évora – 1; Famalicão – 1; Quinta da Gafa – 1; Julgado – 1; Maiorga – 1; Mesquita
– 1; Pederneira – 1; Salir do Matto – 1; Quinta da Torre – 1; Turquel – com o da
Quinta – 2; Vallado – com o da Quinta – 2; Quinta de Val de Ventos – 1; Quinta do
Vimeiro – 1”. B.N.P., códice 1493, fl. 44. Alegria Marques refere que no século XVI
o Mosteiro possuía 37 celeiros. MARQUES, Maria Alegria, Estudos sobre a Ordem
de Cister, Edições Colibri, 1998, p. 186.
59
  Veja-se: MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça, 2011, pp. 197-231.
60
  B.N.P., códice 1490, fls. 47, 51.
61
  Sobre a difusão deste fruto num contexto monástico e senhorial, veja-se: NETO, Mar-
garida Sobral, “Introdução e Expansão da Cultura da Batata na Região de Coimbra
(séculos XVII-XIX)”, In Separata da Revista Portuguesa de História, XXIX, 1994,
pp. 56-77.
62
  A.D.L., Governo Civil, Actividades Económicas, Agricultura, cx. 10 (1860-1865).
63
  A vinha já era uma cultura dominante no século XVI, segundo Pedro Penteado cerca
de 40% das terras aforadas pela abadia estavam plantadas de vinha. PENTEADO,
Pedro, “Rendas e Fazendas do Mosteiro de Alcobaça durante a comenda do Cardeal
Infante D. Afonso (1530-1536), In actas Cister Espaços, Territórios, Paisagens, Vol.
I, 2000, p. 92
118
dos rendeiros para cuidar dos seus vinhedos. As cláusulas de arrendamento
obrigam os rendeiros a repovoar ou substituir as vinhas que a idade ou
os granjeios deficientes tinham feito perder, ampliar vinhedos ou meter
vinhas em terras onde não existia sequer um pé64. O ciclo agro-laboral da
vinha exigia grande disponibilidade de mão-de-obra nomeadamente para
as actividades da mergulhia, da poda, da empa, das cavas, do eslagartar
e da vindima, tarefas que a par da safra da azeitona mobilizavam legiões
de trabalhadores. Calcula-se que os gastos com a totalidade dos granjeios
consumissem metade dos proventos65.
As vinhas não eram adubadas para não aumentar a produção e en-
fraquecer o teor alcoólico dos vinhos66. Em Setembro principiava-se a
colheita das brancas, dominantes no povoamento, enquanto as castas
tintas, utilizadas somente para tingir ou corar os brancos (as tintas de
cobertura eram isentas de tributo, sendo apenas o excedente colectado na
eira), aguardavam a disponibilidade dos ranchos no mês de Outubro67.
Nos lagares do Mosteiro fazia-se o vinho da comunidade monástica e da
população. Os lagares estavam localizados nas principais vilas dos coutos,
granjas e quintas68. O vinho era produzido pelo sistema de bica aberta com
fermentações à parte entre brancas e tintas69. Depois de adicionada a tinta

64
  COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego nos finais da Idade Média (Es-
tudo de História Rural), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1993, pp. 155, 161-162.
A.D.L., C.N.A., 10ºof., lv. 6, fls. 20-21, 26 de Dezembro de 1829; A.D.L., C.N.A.,
10º of., lv. 6, fls. 22-24, 26 de Dezembro de 1829. No ano de 1865, na avaliação do
capital necessário para a produção de uma pipa de vinho, estimava-se que a despesa
com a plantação do bacelo representasse 14,7% do valor atribuído ao terreno. A.D.L.,
Governo Civil, Actividades Económicas, Agricultura, cx. 10 (1860-1865).
65
  A.H.M.F., Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, cx. 2193.
66
  B.N.P., códice 1490, fl. 49.
67
  A.N.T.T., Mosteiro de Alcobaça, Livro da Celeiraria, ou da Despesa do Triénio de Frei
Paulo de Brito, nº 1, mç. 5, cx. 132; Livro das Despesas do Convento de Alcobaça,
nº 5, mç. 5, cx. 132; Livro de Despesa do Mosteiro do Real Mosteiro de Alcobaça,
nº 7, mç. 6, cx. 133.
68
  O Mosteiro explorava 23 lagares: “Alfeizerão – 2; Alvorninha – 1; Cela – 1, Santa
Catarina – 3; Quinta do Castelo – 1; Évora – 1; Famalicão – 1; Quinta da Gafa – 2;
Julgado – 1; Maiorga – 1; Monte de Bois – 1; Quinta do Refortuleiro – 1; Quinta de
Turquel, e Villa – 2; Salir de Matto – 1; Vallado – 1; Quinta do Vimeiro – 1” e que os
povos demandavam a ampliação do lagar de Monte de Bois e a edificação de novos
imóveis no Bárrio, Bemposta e Macalhona. B.N.P., códice 1493, fls. 43-44.
69
  Para além do método de bica aberta, em Alcobaça, segundo Alexandre Vandeli, alguns
lavradores faziam o vinho de feitoria. VANDELI, Alexandre António, Resumo da Arte
da Destilação, Lisboa, 1813, p. 71.
119
(cerca de ¼) obtinha-se um palheto apropriado para a cerimónia litúrgica70.
Para adubar, fortalecer e aromatizar os vinhos juntavam folhelho torrado,
cascas de laranja e camoesas (que podiam até ser assadas com açúcar)71.
Os vinhos eram ainda arrobados (adição de meio-almude de uma geleia
de mosto por tonel)72. O Mosteiro possuía 18 adegas73 onde arrecadava
os vinhos em vasilhame de madeira de choupo (para vinhos de consumo
imediato) e castanho74. A adega da Gafa possuía nos seus 12 tonéis a
capacidade de arrecadação de 36 pipas75. Já a adega do Mosteiro possuía
5 tonéis dispostos no lado cimeiro, contra 6 cubas na parte baixa, mas o
documento omite a capacidade do vasilhame76. Estes vinhos vermelhos
graduados e frutados faziam as maravilhas e delícias dos convivas do
Mosteiro. O cozinheiro francês do aristocrata Beckford declarou a su-
perioridade dos vinhos das encostas de Aljubarrota ao Clos de Vougeot
produzido numa das mais célebres granjas cistercienses da Borgonha77.
Os pomares são muitos e diversos entre frutos de caroço, espinho e
pevide78. As fruteiras servem de cercaduras aconchegando e defendendo
as culturas da malícia dos ventos e da intrusão dos gados. Fora do regime
de policultura caótica que define a exploração campesina, as fruteiras
respondem a uma ordem de variedade e compasso. Os pomares tomam os
altos preferencialmente as ladeiras abrigadas dos gélidos ventos Norte. A
exemplo da vinha, o Mosteiro utilizava estrategicamente os arrendamentos
para assegurar os granjeios como cavas e adubações, limpeza e poda e
eventual descava e encaldeiramento, para criar pomares, rejuvenescer as
plantações, aumentar o povoamento, melhorar a qualidade das fruteiras

70
  Libro y regístro de la bodega del Monasterio de Guadalupe – Bodegas Viña Extremenã
(trancripção e prólogo de Arturo Álvarez), 2003, LXXI.
71
  B.N.P., códice 1490, fl. 52.
72
  B.N.P., códice 1490, fl. 52.
73
  Referem-se adegas em “Alfeizerão – 1; Aljubarrota – 1; Alvorninha – 1; Quinta do
Castelo – 1; Santa Catarina – 2;Cela – 1; Évora – 1; Famalicão – 1; Quinta da Gafa – 1;
Julgado – 1; Maiorga – 1; Salir de Matto – 1; Quinta de Turquel, e Villa – 2; Vallado,
e Quinta – 2; Quinta do Vimeiro – 1”. B.N.L., códice1493, fl.44. Alegria Marques
refere que no século XVI o Mosteiro possuía 42 adegas. MARQUES, Maria Alegria,
Estudos sobre a Ordem de Cister, 1998, p. 186.
74
  B.N.P., códice 1490, fl. 52.
75
  A.D.L., Mosteiro de Alcobaça, cx. 5, doc. 1, Inventário dos bens móveis.
76
  A.D.L., Mosteiro de Alcobaça, cx. 5, doc.1, Inventário dos bens móveis; A.D.L.,
Mosteiro de Alcobaça, Sequestros, Vendas e Arrendamentos, cx. 8, doc. 1.
77
  Bekford, William, Alcobaça e Batalha – Recordações de uma Viagem, Lisboa, Vega,
1997, p. 49.
78
  Veja-se: MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça, 2011, pp. 477-478.
120
Pia da Serra. Cisterna cisterciense da Quinta de Val Ventos cujas águas eram utilizadas
para regar os pomares de laranjeiras e limas (Foto António Maduro).

através de enxertias (de garfo e borbulha), obter frutos de maior calibre,


introduzir variedades do tarde e do cedo.
Para proteger as fruteiras da inclemência do clima, nos anos sequentes
à plantação, as árvores eram cobertas dando-lhes abrigo das geadas e os
ramos secos quebrados à mão para as poupar da acção do ferro. Para que
o frio não danificasse as estruturas radiculares das fruteiras lançava-se
uma porção de cal virgem em torno do pé das árvores antes da chegada
do Inverno (solução que contribuía para eliminar um conjunto amplo de
infestantes)79. Como já referenciámos os pomares eram ainda protegidos
das culturas de consociação para seco responsáveis em parte pelas infes-
tações e as cercaduras eram pensadas para conter os afídios.
Os pomares estremes de maceiras80, citrinos (laranjas e limas), e pe-
reiras dominam os povoamentos cistercienses revelando mais uma vez
a capacidade superior de racionalização da exploração. Os cistercienses
reservavam para foro os frutos da árvore (por oposição aos frutos do

  B.N.P., códice1490, fl. 49.


79

  Na resposta ao Dicionário Geográfico o pároco de Aljubarrota destaca “as camoezas,


80

que de entre todas as das mais partes do reino, logrão as deste fértil país a primazia
pela particularidade do gosto e da suavidade do cheiro”. A.N.T.T., Dicionário Geo-
gráfico, Vol. III, fl. 342.
121
chão) e de cabeça (de maior calibre), mostrando ainda preferência por
algumas variedades. A seca dos frutos foi particularmente desenvolvida
garantindo uma provisão para além do tempo útil. Destacam-se os ramais
de camoesas, as passas de ameixas caragoçanas ou moscatéis e as peras
de almíscar81. Os frutos são expedidos para Lisboa e comarcas vizinhas
e mais tarde aventuram-se nas rotas transoceânicas82.
O período final da abadia mais opulenta e magnificente e menos con-
forme aos ideários da regra e do espírito propalado por S. Bernardo de
Claraval traduziu-se afinal num tempo de prosperidade e inovação que
acompanha os ventos reformistas e modernizadores do Pombalismo e
antecipa muitas das recomendações em matéria agronómica propaladas
pelos eruditos das Memórias Económicas da Academia, consolidando um
legado que ainda hoje estrutura os alicerces da região.

  A.N.T.T., Dicionário Geográfico, Vol. I, fl. 318.


81

  Sobre a fruticultura cisterciense dos coutos de Alcobaça, veja-se: GONÇALVES,


82

Iria, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV, 1989, pp. 93-96;
MADURO, António Valério, Cister em Alcobaça, 2011, pp. 473-496.
122
Vilas, Quintas, Matas e Meios de produção do Mosteiro de Alcobaça (século XVIII)

123
CRONOLOGIA

1137-1180 Abade Suger em St. Denis.


1138 Hipotética vinda de monges cistercienses de Claraval para
Lafões. Possível encontro de João Peculiar com o Abade
Bernardo no Concílio de Pisa a 30 de Maio.
1140 Eventual presença cisterciense em Tarouca. Decadência
religiosa e financeira em Roma e em Cluny.
1143 D. Afonso Henriques
1146 Em Vezelay, a 31 de Março, o Papa Eugénio III e S. Ber-
nardo pregam a 2ª cruzada e estudam o apoio a Afonso
Henriques na luta contra os mouros na conquista de Lisboa.
Casamento de Afonso Henriques (31 de Março) com D.
Mafalda.
1147 Conquista de Santarém (15-3) e Lisboa (25-10) aos mouros
com apoio efectivo de cruzados para esta empresa. Funda-
ção de Stª Maria de Júnias. D. Gilberto é Bispo de Lisboa.
1152 Os Cistercienses ter-se-ão instalado provisoriamente em
Chiqueda onde viverão até 1227. Alguns autores preferem
o local da igreja de Nª Sª da Conceição como o do primeiro
mosteiro.
1153 8 de Abril – Carta de Doação dos Coutos por D. Afonso
Henriques e sua mulher e companheira a rainha D. Mafalda
a Bernardo de Claraval onde é referida a existência do lugar
de Alcobaça. A 20 de Agosto, morre D. Bernardo aos 53
anos de idade, no seu Mosteiro de Claraval onde era Abade
perpétuo.
1164 Bula de Alexandre III – Religiosam Vitam – relativa à vida
institucional de Alcobaça dando ao mosteiro protecção e
domínio de Couto.
1173 Canonização de S. Bernardo, Abade de Claraval.
1178 Início da construção da igreja e Mosteiro de Alcobaça junto
do castelo e confluência dos rios que desaguam no mar que
então cobria os campos do Valado.
125
1179 Bula Manifestis Probatum. Alexandre III aceita Portugal
como reino e reconhece Afonso Henriques como Rei.
1185 D. Sancho I.
1186 Carta de isenção de portagem em todo o reino para as
pessoas e bens da Ordem de Cister.
1211 D. Afonso II.
1215 Adopção do Laus Perene. Concílio de Latrão – convocado
por Inocêncio III para definir a doutrina do sacramento da
eucaristia. O tesouro de D. Sancho II é guardado no Castelo
de Alcobaça.
1221 Construção da Igreja da Pederneira. Construção da galilé
na fachada principal da Igreja do mosteiro de Alcobaça
para acolher túmulos reais.
1222/23 D. Sancho II.
Consagração da Igreja do Mosteiro de Alcobaça por D.
Álvaro Bispo de Lisboa e D. Egas Bispo de Coimbra.
1227 Notícia de fundação de granjas: Chaqueda, Jardim, Mesao
Frio, Évora, Marrondo, Turquel, Almofala, Ferreira, Carva-
lhal Bem Feito, Vimeiro, Valbom, Salir, Alfezeirão, Bárrio,
Valado, Colmeias, Cós, Bacelo, Torre de D. Framundo,
Pescaria, Cela Nova, Ferraria, Daiz, Granja Nova, Souto.
Protecção aos conversos que nelas trabalhavam.
1247 Autorização episcopal para construir as igrejas de Aljubar-
rota, Cós, Alvorninha.
1248 D. Afonso III.
1268 Escola monástica “Studium Perpetuum” para preparar os
noviços e melhorar o conhecimento dos professos. Incre-
mento da biblioteca manuscrita do Mosteiro de Alcobaça.
1288 Stª Cruz e Alcobaça encabeçam pedido ao Papa para abrir
os Estudos Gerais de Coimbra, em Portugal.
1290 O Papa Nicolau IV aprova os Estudos Gerais em Portugal.
1299 D. Dinis.

126
1308 Obras no Claustro do Silêncio orientadas no início pelo
arquitecto Domingo Domingues e Refeitório. Notícia de
lagares de vinho e azeite no interior do mosteiro.
1311 Extinção dos Templários. Terminam as obras do Claustro
do Silêncio ou de D. Dinis efectuadas sobre um claustro
primitivo orientadas no seu termo por mestre Diogo.
1315 Criação da Ordem de Cristo em Portugal e Montesa em
Espanha em substituição dos Templários.
1320 Alcobaça exerce jurisdição sobre os mosteiros do Bouro,
Seiça, Maceira Dão, Tomarães, Estrela e Almaziva – todos
os mosteiros são femininos.
1325 D. Afonso IV.
O Rei D. Afonso IV dá títulos de posse a moradores do
senhorio cisterciense.
1328 Terras do domínio senhorial monástico divididas entre o
Mosteiro e moradores. Moradores de Aljubarrota queixam-
-se ao Rei de abusos do Mosteiro que não respeita os juízes
eleitos pela vila.
1329/37 Contencioso entre o Rei e o Mosteiro. A sentença é fa-
vorável ao rei D. Afonso IV. Sucedem-se as notificações
sobre posse de terras e fronteira dos coutos cujos limites
diminuem.
1332 Foral de Alfeizerão impõe a exploração de salinas aos
moradores.
1341 Notícia de reunião da Assembleia de Homens Bons no adro
da Igreja em Alvorninha.
1346 Terramoto – estragos nas muralhas do Castelo, Cruz da
Capela-Mor e Torre sineira da Casa Abacial, uma das três
do mosteiro medieval.
1355 Execução de Inês de Castro por ordem do rei D. Afonso
IV.
1356 24 de Agosto – peste e abalo de terra (ruíram casas, torres
e muros, caiu a cruz da Capela-Mor, novamente a torre
dos abades, as muralhas do castelo. A igreja abriu fendas
e caíram coruchéus do Calefactorio / Scriptorio.
127
1357 D. Pedro.
1360/1366 Arcas Tumulares de D. Inês de Castro e D. Pedro I colo-
cadas no braço sul do transepto. Inês à direita de Pedro,
virados a nascente em frente à primeira capela dedicada a
S. Pedro. Nasce Nuno Álvares Pereira.
1367 D. Fernando.
1374 Os limites dos coutos ultrapassam a doação primitiva.
1378 Início do grande Cisma. A Europa Católica divide-se em
duas obediências papais.
1381 Eleição do Abade Ornelas (Partidário do Mestre de Avis).
Martim Ornelas seu irmão é chefe das milícias do mosteiro
acantonadas no Castelo.
1385 D. João I.
Batalha de AljubarrotaApós a vitória o rei desloca-se para
Alcobaça e passa no Mosteiro no dia 20 de Agosto onde
assiste às cerimónias da morte de S. Bernardo. Os solda-
dos acampam junto à ponte de Chiqueda, único local de
passagem do rio do mosteiro na estrada entre Aljubarrota
e Évora de Alcobaça. O Rei oferece ao Mosteiro caldeiras
de campanha, crucifixo e candelabros da capela móvel de
D. Juan de Castela.
1390 Papa liberta o Mosteiro de Alcobaça de contribuições ile-
gais.
1397 Abre em Aljubarrota a Albergaria do Espírito Santo.
1417 Termina a residência Papal em Avinhão – Martinho V, eleito
a 11 de Novembro. Fim do Cisma (de 3 Papas) – Gregório
XII em Roma; Bento XII em Avinhão; Alexandre V em
Pisa. Concílio de Constança. Martinho V tenta restringir a
comenda (1414/17).
1433 D. Duarte.
1435 Aforamento do Couto da Ota (7000 hectares). O Meirinho
do Mosteiro dá posse aos Alcaides das vilas dos coutos.
1437 Diferendo entre os mosteiros de Alcobaça e Bouro por
morte do Abade Barreto. Obras na Cerca e outros muros
do mosteiro.
128
1438 D. Afonso V.
1444 O Papa Eugénio IV determina o fim dos dormitórios co-
lectivos o que só acontecerá em Alcobaça no ano de 1487.
1450 Multiplicam-se na Europa os colégios, mas os sinais de de-
cadência da Ordem prosseguem, em particular em França.
No Mosteiro há médico permanente.
1453 Queda de Constantinopla. Invenção da imprensa por Gu-
tenberg.
1456 Final de Abril – visita ao Mosteiro de Alcobaça do Rei D.
Afonso V.
1458/1464 O Papa Pio II autoriza os cistercienses portugueses a não
comparecerem nos Capítulos Gerais em França. Desde de
1438 que os cistercienses ingleses têm Capítulo próprio.
Há em França uma reacção contra a comenda sem grandes
resultados. O Papa passa a designar o Abade dos Mosteiros.
1475 Comenda em Alcobaça. D. Jorge da Costa, Cardeal Alpe-
drinha, compra o abaciato a Nicolau Vieira com o acordo
do Rei.
1480 D. João II.
1484/1488 Visitação de D. Pedro Serrano que determina a cobertura da
enfermaria com argila e telha, a abertura de uma farmácia
e reparação do forno e da forja. Outras reparações: órgãos;
telhado da Igreja; vitrais; portas novas na Igreja; lajeamento
do Claustro; colocação de divisórias no dormitório; arran-
jos na cerca; e no dormitório dos noviços. Alguns leigos
podem assistir à missa até às grades do coro; as mulheres
ficam na soleira da porta da Igreja.
1488 Isidoro de Portalegre é comendatário. Profissões existen-
tes no Mosteiro de Alcobaça: professor, médico, tecelões,
sapateiros, pedreiros, tosadores, carpinteiros, ferreiros,
calafates, oleiros, barbeiros, luveiro, carniceiro e carreteiro
com carro de bois ao serviço do mosteiro mas sediado em
Aljubarrota.
1492 Os reis católicos conquistam o reino mouro de Granada.
1494 Tratado de Tordesilhas.
129
1495 D. Manuel I.
1505 D. Jorge de Mello é comendatário.
1506 Pedido para afastar o povo da Cerca. Cria-se a Vila de S.
Bernardo, depois Vestiaria com direito de couto. O Portal
da Igreja da Vestiaria em estilo manuelino ostenta o Brazão
dos Mellos. Conclusão da custódia de Belém. O povo não
aceita a mudança e mantém-se junto à Cerca de Dentro,
limitada pelo rio que veio a denominar-se Baça e ajudava
à clausura do lado poente.
1514 Demolição da Galilé – limpeza da Igreja – Forais de D.
Manuel às vilas dos coutos que recebem pelourinho e novos
portais nas igrejas.
1517 João de Castilho – Director Geral das Obras no Reino.
Lutero, monge agostinho, rebela-se contra a igreja católica
escrevendo as 95 Teses sobre a virtude das indulgências.
1518 Há 42 monges no mosteiro. Fundação da Misericórdia
de Aljubarrota. A Sacristia nova de João de Castilho está
acabada. Outros encargos com obras no sobreclaustro,
cadeiral, livraria, enfermaria.
1519 Cardeal Infante D. Afonso tem 10 anos de idade e é nomea­
do Abade Comendatário.
1520 Reforma de Cister integrada na reforma geral das ordens
por determinação papal. Bispo de Titopole é o representante
do jovem comendatário e trabalha em conjunto com D.
Francisco Fonseca, Alcaide da Vila de Alcobaça. Há Mestre
organeiro no mosteiro e órgãos para reparar. Mestre Frei
Jorge ensina no mosteiro noviços e professos. A Rainha
D. Leonor visita o Sítio da Nazaré (santuário). Abertura
do Terreiro aos moradores, a Cerca a poente passa a ser
a fachada do mosteiro por isso são colocadas grades nas
janelas do dormitório para preservar a clausura do lado que
viria a ser a quadra VI. Arranjo nas coberturas das casas
do Relego e Forno de Cós.
1521 D. João III.
Conclusão do Cadeiral Novo da Igreja do Mosteiro – 150
cadeiras esculpidas com motivos religiosos. Foram queima-
130
dos como lenha entre Janeiro e Março de 1811 por militares
franceses. Altares nas Naves Laterais, dois de cada lado e
frente a frente para serem usadas pelos leigos. Incêndio no
Retábulo da Capela-Mor. Há no mosteiro 42 monges. O
Cartório está desorganizado e faltam alfaias para a liturgia,
sobretudo em Cós. Notícia de Pregadores e Mestres de gra-
mática no Mosteiro para instrução de noviços e professos.
Na Pederneira funciona um estaleiro de construção naval
que usa madeira do pinhal do mosteiro. Visitação determina
que se concluam as igrejas de Évora, Cela e Alvorninha.
Excomungado por Leão X, Lutero recusa-se à retratação
das suas teses. Dieta de Worms.
1523 Venda de prata: D. Francisco Fonseca é Governador
Espiritual. Monges de Alcobaça em penúria por falta de
pagamento das rendas de terras e lagares. Carta do Bispo
de Titopole ao Rei dando conta da precariedade económica
do senhorio.
1524 Arrendamento dos moinhos de Chiqueda a moradores.
1525 Inquirição devido ao incêndio do retábulo do Altar-Mor.
Pedido para recrutar monges. Notícia da existência de um
escravo negro e outro índio, penhorados pelo Mosteiro
e ao seu serviço. Ampliação de Stª Maria a Velha para a
dimensão actual – trata-se da Igreja da Conceição.
1527 João de Castilho – 2ª Estadia em Alcobaça, com mestre
Baltazar. No Dormitório e no Refeitório há relógios me-
cânicos. Há apenas 5 noviços no mosteiro, e habitam entre
a abóbada e o telhado do refeitório. Tapou-se a porta dos
mortos e fez-se uma ponte sobre a levada no futuro claustro
do Cardeal. Construção da Enfermaria, Necessárias, Botica
e caracol da sacristia começando a dar-se forma ao claustro
do Cardeal. Caracol no claustro regular para aceder ao so-
breclaustro. Demolição de uma “casa” no meio da cozinha
medieval. Notícia de frequentes tempestades de areia na
vila de Paredes.
1528 Abalo de Terra: – Cai abóbada no Claustro de D. Dinis – a
22 de Dezembro é designado Frei António de Sá, monge
beneditino em Castela, como prelado reformador dos Mos-
teiros de Cister. Aumento da população nos coutos, 1,7%
131
ano entre 1527 e 1537. Novo púlpito na Igreja de Évora.
Concluída a escada em caracol no Claustro, desmontada
na 1ª metade do século XX por decisão dos Edifícios Na-
cionais.
1530 Bacharel André Lopes nomeado pela 2ª vez Mestre de
Gramática dos monges do Mosteiro de Alcobaça. Vasco
Pina deixa o cargo de Alcaide de Alcobaça. Encomenda
de novo Retábulo para o Altar-Mor. Obras na Enfermaria.
Constroem-se duas pontes sobre o rio. O povo tem acesso
com restrições a ofícios religiosos no mosteiro. A cerca
poente passa a ser a fachada do mosteiro deixando o terreiro
livre e a vila mais liberta da administração monástica. Asso-
reamento periódico dos portos da Pederneira e Alfeizerão.
1531 Abalo de Terra: fendas na fachada da Igreja de onde cai a
cruz e a imagem de Nª Senhora, hoje no Claustro, atribuída
a Nicolau Chanterene; há problemas no sobreclaustro do
Silêncio ou de D. Dinis. Fazem-se estantes para o Cartório.
1532 Visitação do Abade Edme Saulieu e do seu secretário Bron-
seval. Tenta-se recuperar o vínculo com a França cistercien-
se. No Relatório da Visitação verifica-se que falta concluir
algumas oficinas; a Massaria, a Enfermaria, o forno novo e
o forro do sobreclaustro e constata-se que os monges igno-
ravam os ritos antigos de Cister, nem cantavam nos ofícios
divinos. Os noviços eram analfabetos e as monjas de Cós
eram incapazes de aprender o ofício divino. Pede-se mais
rigor na cobrança de dívidas. O Mosteiro tem 17 noviços,
11 professos e há 7 monjas no mosteiro de Cós. Maquiavel
escreve “O Príncipe”. Carta patente de D. João III para a
compilação da documentação em livros (dourados).
1533 Reparações de lagares, pisões, adega e moinhos nos coutos
do Mosteiro.
1534 O Convento de Cristo desliga-se do Mosteiro de Alcobaça.
Cópia de pergaminhos – Livros Dourados (1534-1536).
Início da construção da igreja da vila da Maiorga.
1535 Obras no sobreclaustro; remodelações na sacristia velha
para melhor acondicionar as relíquias; obras no forno da
hospedaria; cadeiras em madeira nas Necessárias; portas
132
e arcazes na Sacristia Nova. Novas estantes no Tombo e
no Cartório instaladas no Dormitório medieval, na nave do
lado poente.
1536 Visitação de Frei Bernardo de La Fuente e Tomás Canga.
Compilação do Livro de Rendas e Fazendas até 1536.
1537 O celeiro e lagar de Turquel são reparados. Visitação do
Padre André Jorge às Igrejas Paroquiais dos Coutos. Arre-
matação para construir celas no sobreclaustro de D. Manuel
(Silêncio). Obras de reparação no Castelo e Cerca. A nova
Botica, a Noviciaria e a Enfermaria estão em construção e
no interior da Igreja há obras de manutenção.
1538 Visitação do Cardeal Afonso (a única vez que veio a Al-
cobaça). O Mosteiro era administrado em seu nome pelo
Bispo de Titopole. Por serem desconhecidos da maioria
dos crentes os dogmas e os sacramentos, os visitadores
pedem mais imagens e retábulos que sensibilizem o povo
do domínio cisterciense. Pedido ao Rei para mudança de
couto para Alfeizeirão. Construção do púlpito da matriz
de Évora em madeira policromada com baixos-relevos
representando os Evangelistas. Há ensino de Lógica no
Mosteiro.
1539 A caravela Stª Maria da Vitória transporta uma carga de
madeira da mata do Mosteiro, possivelmente para Lisboa
a partir da Pederneira (13 de Março).
1542 O Cardeal D. Henrique inicia a administração comendatária
de Alcobaça Remodelação do Altar-mor, agora semelhante
ao dos Jerónimos – painéis com temas sagrados colocados
entre as colunas da Charola.
1545 Visitação do Cardeal D. Henrique. Falta de cereais, em par-
ticular centeio devido à seca. Início do Concílio de Trento.
Limpeza e reparação das oficinas, conclusão das obras da
Enfermaria, rouparia, noviciado, Botica, Hospedaria. Novo
aquecimento no Calefactorio.
1548 Reforma de Miguel Arruda e frei António de Lisboa. De-
senhos do futuro claustro do Cardeal discutidos com D.
Manuel em troca de correspondência.
133
1550 Nova cozinha no pátio do Calefactorio e carta do rei a
Miguel Arruda discutindo o desvio do rio para ampliação
do mosteiro. Na quadra segunda do tempo de Castilho
continuam as obras do futuro claustro do Cardeal.
1557 Morre D. João III. Regência de D. Catarina de Áustria.
Conclusão do Palácio Abacial determinado por D. Henri-
que.
1560 Adaptações, na nave poente do antigo Dormitório, para
novas funções. O Cenóbio ocupa celas construídas no corpo
novo sobre o dormitório que servira também de noviciado,
faz-se um terraço na Edícula do lavabo e amplia-se a porta
do Refeitório.
1562 Fim da Regência de D. Catarina de Áustria e início da
Regência do Cardeal D. Henrique.
1563 Obras no Palácio Abacial após terramoto. A antiga igreja
da Misericórdia fica arruinada com o abalo de terra.
1566/1568 Obras de desvio do rio do mosteiro, para ampliação dos
edifícios para nascente, criando um novo claustro que se
denominará do Rachadouro e mais tarde da Biblioteca.
Convento Arrábido dos Capuchos com enfermaria própria
no Mosteiro. D. Sebastião. Frei Bernardo de Brito nasce
em Almeida, professa em 1585 e é Cronista geral em 1597.
1569 Fundação da Congregação Independente de Portugal. Fim
da Regência do Cardeal. D. Sebastião passa trinta dias em
Alcobaça, de 22 de Junho a 22 de Agosto.
1573 Capítulo Geral em Alcobaça reunindo os abades portugue-
ses. D. Henrique é eleito Geral da Congregação Indepen-
dente. Fundação do Colégio do Espírito Santo em Coimbra.
1574 Bula papal torna o cardeal D. Henrique abade vitalício.
1578 D. Henrique.
1580 D. Filipe I.
Novo período de obras no mosteiro.
1582/1584 Hospedaria, ocupando o 1º andar da ala norte. 25 de Abril,
nasce em Alcobaça o historiador Frei António Brandão.
134
1589 Obras na Quadra VI e no claustro do Palácio para adaptação
a hospedaria. Visita de Frei Hieronimo Roman.
1598 D. Filipe II.
1601 Nasce em Alcobaça o historiador Frei Francisco Brandão.
Professa em 1619.
1621 D. Filipe III.
1632 Termina a fachada filipina da Sala dos Monges, Dormitório
e Noviciado no piso novo.
1640 D. João IV.
1648 Fundação do Colégio de Nª Senhora da Conceição edificado
junto ao corpo sul da igreja que ladeia desde o braço do
transepto até à fachada principal.
1656 Frei António Araújo organiza índex e summario dos livros
da Livraria de Alcobaça. Obras definitivas no Dormitório
medieval para melhorar a acomodação do Cartório e Tombo
do reino e Livraria Comum dotada de estantes, duas mesas
e altar, o seu tecto é de madeira pintada com as armas de
Cister. A nascente são criadas celas para os antigos abades.
Ladrilhamento da Casa dos reis “Conclusões” e pintura
do tecto com “fantasioso” brutesco de ouro na cobertura
abobadada.
1662 D. Afonso VI.
1664 Armários contadores da Sacristia Nova embutidos de ambos
os lados da porta principal.
1665 1ª pedra do edifício do corpo norte do claustro do Racha-
douro para celas dos monges de lausperene, um século
depois do desvio do leito do rio. No R/C há novas oficinas.
Botica nova e capela no 1º andar, com ligação à Enfermaria
e Necessárias.
1669/1671 Capela Relicário no topo nascente da Sacristia Nova.
Talha dourada, estatuária em barro cozido, estufado e po-
licromado, provavelmente produzidas pelo núcleo barrista
do mosteiro. Os medalhões e os cabelos são colados às
imagens. No interior dos medalhões relicário colocam-se
135
objectos de índole sagrada alguns relacionados com a vida
de Cristo e o seu martírio no caminho da cruz. Continuação
da obra do dormitório novo no claustro do Rachadouro ou
da abertura. É abade D. Constantino de Sampayo.
1672 Obras de construção do corpo de celas, oficinas e Botica
do lado norte do claustro do Rachadouro terminadas. Em
frança e na Alemanha inicia-se a disputa das observâncias.
Nasce em Cantanhede o historiador Frei Manuel dos Santos.
1674/1676 Obras no Castelo e Igrejas. Termina a Casa de Actos no
piso térreo da hospedaria na ala norte da fachada poente.
Visitações às igrejas dos Coutos. Nasce em Castelo Branco
Frei Manuel da Rocha. Professa a 10 de Fevereiro de 1694.
1675/1678 Frei Sebastião Sotto Mayor mandou fazer estátuas dos
reis para a Casa de Actos, até D. Pedro II, e esculturas de
papas e figuras cistercienses para a Capela-mor da Igreja
do Mosteiro. Encomenda de importação de Talaveda de La
reina de 2.100 dúzias de louça fina para uso do mosteiro.
1678 Designação de um converso para a olaria que funcionava
junto ao rio do mosteiro. Construção da Ponte da Barca, na
foz do rio da Abadia na Pederneira, no local do estaleiro na-
val. Colocação de um sacrário na Capela-mor de Alcobaça,
encimado por um pelicano e apoiado em 4 anjos de cada
lado, em barro cozido, dourado e policromado completando
a Capela-mor que se manterá com este figurino até 1771.
1683 D. Pedro II.
1684/1687 Decoração da Capela da portaria – colocação da lisonja nos
2 últimos vãos do dormitório novo no claustro do Racha-
douro. A 6 de Novembro Frei Manuel dos Santos professa
em Alcobaça.
1687/1690 Retábulo da Morte de São Bernardo, durante o 2º Abaciato
de D. Sebastião Sotto Mayor.
1696/1699 Capela do Desterro ordenada por D. João Paim. Termina o
edifício. A Capela é revestida de azulejos entre 1710-1723
pintados por António Vidal Refarto.
1702 Início da construção da fachada principal da Igreja. Nicho
no claustro da Ala sul para a imagem de Nossa Senhora,
136
que caíra da fachada principal original. Transferência da
Livraria para o Dormitório, onde estava o Cartório e o
Tombo do Reino.
1705 D. João V.
1710 Publica-se a 1ª parte da Alcobaça ilustrada, Frei Manoel
dos Santos.
1712 Retábulo da Capela do Desterro instalado.
1714 Visita de D. João V ao Mosteiro. Há 140 monges de coro,
noviços e conversos.
1716 Frei Manoel dos Santos escreve a obra Alcobaça ilustrada
e descreve a Real Abadia e fazendo a leitura da recém
terminada nova fachada barroca da igreja. Indica haver 2
médicos, 1 cirurgião, 1 sangrador, 3 barbeiros, 1 advogado,
1 solicitador, 1 relojoeiro e 140 monges.
1720 Desmanche da abóbada do calefactorio para ampliação
da cozinha que estava no seu pátio. Início das obras da
cozinha, nova ampliação, aplicação de ferro nas colunas e
vigas das chaminés.
1723 Colocados os painéis de azulejo da capela do Desterro.
1732/34 Obras para moenda hidráulica no lagar da Fervença; cons-
trução do forno de cal de Chiqueda (perto do poço Suão) e
outro na Almoinha; obras nos lagares de azeite da Fervença,
Chiqueda, Granja Nova, Castanheira; conserto da canali-
zação da água para o refeitório; construção de um moinho
nas Mestas (por baixo da Quinta) e outro na Castanheira
ao pé do lagar; conserto e lagares novos que se fizeram na
Quinta da Gafa (vinho), recuperação das paredes do pomar
de Val Ventos.
1743 Assentamento do lagar de azeite de oito varas da Lagoa
Ereira.
1750 D. José I.
1752 A cozinha é revestida de azulejos, 32 anos após o início
das obras. Construção da Sala dos Reis no lugar da Igreja
do Povo.
137
1759 Edificação das “Obras”, tanques/cisternas de Val Ventos.
Aplicação do novo tecto estucado da sacristia nova por
João Grossi.
1765/1768 As imagens esculpidas em barro, dos reis de Portugal pas-
sam para a Sala dos Reis. São fabricadas em 1755 novas
figuras de D. João V, D. José e a peanha para D. Maria. A
“Coroação de D. Afonso Henriques” por Alexandre III e
S. Bernardo. As outras estátuas vindas da “Caza dos Reis”
foram produzidas em 1649. Frei Nuno Leitão reduz a sala
das confirmações, antiga “Caza dos Reis”, a Sala de Aula
e manda altear o pavimento do Altar-mor e construir o
colmeal de Val Ventos junto à Serra dos Candeeiros.
1772 11 de Novembro – Grande cheia que se traduz em estragos
consideráveis nos claustros do Cardeal e do Rachadouro.
1774 Provável início da construção neo-gótica do Panteão Real
no transepto sul sob orientação de William Elsden bem
como do edifício do Colégio e da Biblioteca, do lado sul do
claustro do Rachadouro. É colocado o globo e resplendor
no altar-mor com desenho de William Elsden tapando as
estátuas de S. Roberto de Molésme e S. Estêvão Harding
do retábulo anterior.
1776/1777 Declaração de Independência dos EUA. O Marquês de Pom-
bal faz 2º regulamento para o colégio seguindo a reforma
da Universidade de Coimbra. Levantamento do claustro
do Rachadouro, comprovando estarem ainda incompletos
o lado nascente e sul. Regulamento das escolas do Colégio
de N. S. Conceição.
1777 D. Maria I.
Frei Fortunato de S. Boaventura nasce em Alcobaça no
mês de Abril.
1778/1780 Aquisição do colmeal da Moita nas proximidades da Quinta
do Campo e respectivas obras (muro apiário, etc); obras
nos moinhos da Castanheira, S. Martinho; socalcos novos
no jardim (laranjal) da Quinta do Sidral.
1785 Intempérie que submergiu todo o penisco lançado entre o
ribeiro de Águas-Belas e a Vila da Pederneira.
1786 Visita de D. Maria I ao Mosteiro entre 14 e 18 de Outubro.
138
1786/1789 Assentamento do lagar de azeite da Quinta do Sidral.
1791 Mapa topográfico da estrada Rio Maior – Leiria – estrada da
Rainha D. Maria I Desenhos do 2º Tenente Carlos Amarante
– perspectiva do Mosteiro de Alcobaça na cartela da carta
nº 436 do IGP.26 de Maio – Lei da Proscrição em França,
o Clero possuía 1/10 do solo francês – 32% secular e 67%
regular.
1792 Colocação dos sinos pelos Marinheiros da Ribeira das Naus
nas torres da fachada principal.
1794/1795 A 7 de Junho William Beckford visita Alcobaça – escreve
sobre o quotidiano do mosteiro e da região. A 25 de Agosto
Frei Fortunato de S. Boaventura professa.
1796 Extinção das ordens religiosas na Bélgica.
1798 Link visita Alcobaça referindo: “está a ser arranjada uma
nova e magnífica sala para Biblioteca”.
1799 Regência de D. João.
1800 Extinção das ordens religiosas em Itália entre 1797 e 1811.
1803 Extinção das ordens religiosas na Alemanha. 4 de Setembro
– instalação dos Trapistas em Baltimore nos EUA.
1807 1ª Invasão Francesa (17 Novembro) sob o comando de
Junot. A Família Real embarca para o Brasil a 27, 28 e 29
de Novembro.
1810 Incendiada a fábrica de lençaria.
1811 Março, as tropas francesas vandalizam partes do Mosteiro
de Alcobaça.
1818 D. João VI – aclamado no Rio de Janeiro.
1820 Inicia-se a cultura do arroz na Granja do Valado e campos
de Alfeizerão.
1828 D. Miguel.
1830 Em Agosto visita do rei D. Miguel ao Mosteiro. O Arco
da Memória, derrubado após 1820, foi reerguido em 1828
no alto da Serra dos Candeeiros.
139
1832 D. Pedro IV.
1833 O Cenóbio transfere-se para Salzedas perto de Lamego em
Julho abandonando o mosteiro até à extinção das ordens.
O Duque da Terceira toma Lisboa a 13 de Outubro.
1834 D. Maria II.
Extinção das ordens religiosas em Portugal a 28 de Maio.
Pouco depois os espaços de todos os mosteiros são ocupa-
dos pelas vilas e cidades ávidas de espaço.

140
Índice

Introdução...................................................................................... 5

O ESPAÇO DE CISTER – UMA HETEROTOPIA


ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL
  Amilcar Coelho............................................................................ 7

Rever a noção de espaço na perspectiva de Cister............... 9

O espaço do “deserto” e os alicercer do novo mosteiro....... 13

O mecanismo das “disciplinas”


e a “obediência-utlidade”..................................................... 20

Regras de distribuição do espaço......................................... 22

Codificação das actividades.................................................. 24

Adição do tempo................................................................... 28

Composição das forças......................................................... 31

Cister neste mundo – uma heterotopia do outro mundo....... 33

O novo mosteriro – uma máquina de produção


de santidade.......................................................................... 38
141
Pertinência e fecundidade de heterotopia
do espaço de Cister............................................................... 42

A TRANSPARÊNCIA DA PEDRA
  Rui Rasquilho............................................................................... 47

Antes de Alcobaça................................................................ 49

Alcobaça, 53.ª filha de Claraval........................................... 54

A Igreja................................................................................. 55

As dependências................................................................... 59

O Abade-Bispo..................................................................... 61

Ampliações........................................................................... 64

A comenda............................................................................ 65

Palácio Abacial..................................................................... 70

Outras ampliações................................................................ 71

O barroco.............................................................................. 74

Neo-Gótico........................................................................... 81

Os visitantes......................................................................... 84

Cister E A TERRA:
A CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DA PAISAGEM
  António Maduro........................................................................... 99

Cronologia............................................................................ 125

142
Este livro foi editado por ocasião da realização em Alcobaça do
Congresso Internacional “Mosteiros Cistercenses – Passado, Presente e Futuro”.
14, 15, 16 e 17 de Junho de 2012
Amílcar Coelho
Nasceu em 1953 em Cumeira de Baixo, reside em Chãos, freguesia de S. Vicente
de Aljubarrota, concelho Alcobaça. Licenciado em Filosofia pela Universidade
de Coimbra, obteve o Mestrado em Filosofia (Cultura e Controvérsia na
Filosofia da Educação de António Sérgio, Lisboa, 1989) e o Doutoramento em
Filosofia Contemporânea/Filosofia da Educação (Os Horizontes da Cidadania e
os Valores da Pessoa, Lisboa, 2005) na FCSH da Universidade Nova de Lisboa.
Foi professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Filosofia da Educação), do
ISET (Porto), do Ensino Secundário (Alcobaça), Director do CFAE Alcobaça e Nazaré, Presidente
da Assembleia Municipal de Alcobaça, etc. Actualmente colabora com a Universidade Lusófona
(orientador do Mestrado do Ensino das Artes Visuais, Lisboa) e com o Instituto Politécnico de
Leiria (Investigação em Educação, com a Professora Antónia Barreto). É Presidente e Secretário
Executivo da UGT União de Leiria.

António Eduardo Veyrier Valério Maduro


É natural de Alcobaça, onde nasceu em 1959. É professor do quadro da Escola
Secundária Francisco Rodrigues Lobo em Leiria. Lecciona ainda no Instituto
Superior D. Dinis e no Instituto Superior da Maia. Defendeu o Doutoramento
em Letras, na especialidade de História Contemporânea na Universidade de
Coimbra em 2007, cuja tese foi recentemente editada sob o título – Cister em
Alcobaça. Território, Economia e Sociedade (séculos XVIII-XX). É investigador
efectivo do CEDTUR (Centro de Estudos de Desenvolvimento Turístico), do ISMAI e do CETRAD
(Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento), da UTAD e colaborador do CHSC
(Centro de História da Sociedade e da Cultura) da U.C. Conduz investigação no âmbito da história
rural, do turismo e da I República, áreas em que conta várias publicações.

Rui Rasquilho
Nasceu em 1945, em Lisboa, reside em Ataíja de Cima, concelho de Alcobaça.
É bacharel e licenciado em História pela Universidade de Lisboa, Académico
de número do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal-Brasília
e sócio correspondente do Instituto Geográfico e Histórico de Salvador da
Bahia de entre outras academias. É Presidente do Conselho Geral da Escola
Secundária D. Inês de Castro.
Foi professor de história do ensino secundário do departamento de estrangeiros da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa e da Universidade Sénior de Alcobaça.
Durante 20 anos exerceu funções diplomáticas em Rabat e Brasília, como adido e conselheiro
cultural tendo dirigido o Instituto de Camões no Brasil. Estes países outorgaram-lhe diversas
condecorações estaduais e nacionais.
Presidente da Campanha Nacional de Defesa do Património e comissário da XVII Exposição do
Conselho da Europa, foi condecorado pelo Presidente da República Ramalho Eanes com a Ordem
de Benemerência com o grau de Comendador. Na presidência de Lula da Silva recebeu a Ordem
Nacional de Mérito Educativo do Brasil no grau de Grande Oficial.
Comissário das comemorações dos 200 anos da ida da família real para o Rio de Janeiro, publicou
diversos livros de poesia e história e proferiu conferências em inúmeros países em particular sobre
descobrimentos portugueses, sobretudo quando representou o governo português na comissão
bilateral para as comemorações dos 500 anos da viagem de Pedro Álvares Cabral.
Foi Diretor do Mosteiro de Alcobaça e escreveu sobre este monumento e a Ordem de Cister três
livros entre 1979 e 2008.
Coleção Estudos & Documentos
1  –  O Diário “perdido” da viagem de José Cornide por Espanha e
Portugal em 1772 – Descrição da passagem por Pombal, Leiria, Mari-
nha Grande, Batalha, São Jorge, Alcobaça, Caldas da Rainha e Óbidos
- Mário Rui Rodrigues
2  –  O Céu, a Pedra e a Terra – Os Cistercienses em Alcobaça - Amílcar
Coelho, António Maduro, Rui Rasquilho

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