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OPHIUSSA

OPHIUSSA
Revista do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras de Lisboa

Nº 1, 1996

Direcção: Victor S. Gonçalves (vsg@mail.doc.fl.ul.pt)

Secretário: Carlos Fabião (cfabiao@mail.doc.fl.ul.pt)

Conselho de Redacção:

Amilcar Guerra
Ana Margarida Arruda
Carlos Fabião
João Carlos Senna-Martínez
João Pedro Ribeiro
João Zilhão

Capa: Artlandia

Endereço para correspondência e intercâmbio:


Instituto de Arqueologia. Faculdade de Letras. P-1600-214. LISBOA. PORTUGAL

As opiniões expressas não são necessariamente assumidas pelo colectivo que


assume a gestão da Revista, sendo da responsabilidade exclusiva dos seus
subscritores.

Nota da direcção:

Devido a circunstâncias de ordem vária, que seria desinteressante enumerar, tão


diversas elas são, este número foi preparado para sair em 1995, mas só agora é
publicado. Alguns textos foram muito ligeiramente revistos, mas o essencial, incluindo o
texto de apresentação, refere-se àquela data, pelo que tem de ser contextualmente
entendido.
A periodicidade futura de esta publicação será bienal, sendo o próximo número
datado de 2002, com textos entregues até Dezembro de 2001.
No sentido de datar propostas científicas e de situar opiniões expressas, solicitou-
se a todos os autores que indicassem nas suas contribuições a data de entrega
dos originais, e, sempre que necessário, após o texto, a data de revisão última.
A partir do nº 2, inclusive, as normas de publicação são idênticas às adoptadas pelo
Instituto Português de Arqueologia, na sua Revista Portuguesa de Arqueologia
(http://www.ipa.min-cultura.pt).
Dezembro de 2000
ÍNDICE

ALGUMAS HISTÓRIAS EXEMPLARES (E OUTRAS MENOS)


Victor S. Gonçalves ............................................................................................................................................. 5

A ARQUEOLOGIA PÓS-PROCESSUAL OU O PASSADO PÓS-MODERNO


Mariana Diniz ....................................................................................................................................................... 9

INTERPRETAÇÃO TECNOLÓGICA E PALETNOGRÁFICA DA OCUPAÇÃO PROTO-SOLUTRENSE


DA LAPA DO ANECRIAL (PORTO DE MÓS)
João Zilhão; Francisco Almeida ........................................................................................................................ 21

PARA UMA RECONSTRUÇÃO DO PROCESSO DE NEOLITIZAÇÃO EM PORTUGAL


Joaquina Soares .................................................................................................................................................. 39

O MEGALITISMO DA GALIZA. NOTAS PARA UMA BIBLIOGRAFIA CRÍTICA


Ana Catarina Sousa .............................................................................................................................................. 51

DO ESPAÇO DOMÉSTICO AO ESPAÇO FUNERÁRIO: IDEOLOGIA E CULTURA MATERIAL


NA PRÉ-HISTÓRIA RECENTE DO CENTRO DE PORTUGAL
João Carlos de Senna-Martinez .......................................................................................................................... 65

PASTORES, AGRICULTORES E METALURGISTAS EM REGUENGOS DE MONSARAZ:


OS 4º E 3º MILÉNIOS
Victor S. Gonçalves ............................................................................................................................................. 77

ENDOVÉLICO E ROCHA DA MINA – O CONTEXTO ARQUEOLÓGICO


Manuel Calado ..................................................................................................................................................... 97

A CERÂMICA CAMPANIENSE DO ACAMPAMENTO ROMANO DA LOMBA DO CANHO (ARGANIL)


Carlos Fabião; Amílcar Guerra .......................................................................................................................... 109

A OCUPAÇÃO ROMANA DO CABEÇO DO CRASTO, S. ROMÃO, SEIA


Amílcar Guerra; Carlos Fabião .......................................................................................................................... 133

NOVOS CONTRIBUTOS PARA A ARQUEOLOGIA DO ALGARVE ORIENTAL


Victor S. Gonçalves; Ana Margarida Arruda; Manuel Calado ...................................................................... 161

OS SÍTIOS, «HORIZONTES» E ARTEFACTOS DE VICTOR S. GONÇALVES


Carlos Tavares da Silva ....................................................................................................................................... 181
OPHIUSSA 1 (1996), Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras de Lisboa

____________________________________
ENDOVÉLICO E ROCHA DA MINA
O CONTEXTO ARQUEOLÓGICO
Manuel CALADO 1

______________________________________________________________________________________

1. Introdução
O santuário de Endovélico (S. Miguel da Mota, apresentada, de que sobressaem, entre os contribu-
Alandroal) destaca-se, no panorama ainda mal com- tos mais recentes, os trabalhos dos Professores
preendido das religiões pré-romanas, pela qualidade Scarlat Lambrino, José d'Encarnação, Armando
e quantidade da informação epigráfica e iconográ- Coelho da Silva ou Luis Berrocal.
fica daí recolhida, única no contexto peninsular. O Procuraremos, pelo contrário, fazer aqui uma
tema suscitou o interesse, por vezes deslumbrado, abordagem baseada, em primeiro lugar, na análise
dos mais eminentes investigadores, desde que, no contextualizada dos resultados das prospecções de
sec XVI, o duque de Bragança, D. Teodósio I, deu a superfície levadas a cabo, com alguma intensidade,
conhecer as primeiras lápides recuperadas da arrui- no cabeõ de S. Miguel da Mota e na região envol-
nada capela de S.Miguel da Mota. vente (CALADO, 1993).
De entre os muitos arqueólogos e eruditos que, Tentaremos rever algumas ideias feitas, para as
em várias épocas, se debruçaram sobre o Endové- quais não se procurou nunca uma base arqueológica
lico, salienta-se o calipolense Padre Joaquim da e, considerando os dados novos actualmente dispo-
Rocha Espanca, a quem devemos a recolha de níveis, relacionar o santuário de Endovélico com o
várias lápides votivas das ruínas de S. Miguel e, quadro geográfico e arqueológico em que se insere,
sobretudo, a publicação de um trabalho muito curio- em termos locais e regionais.
so intitulado “O Deus Endovellico dos Celtas (sic) Interessa-nos, paralelamente, integrar o culto de
do Alentejo”, obra que, nos finais do século pas- Endovélico no universo ritual dos povos celtas
sado, abriu caminho aos trabalhos de Gabriel Perei-
peninsulares, sem excluir as possíveis, e mesmo
ra e, sobretudo, José Leite de Vasconcellos.
necessárias, relações com o mundo ibérico e turde-
Não é nossa intenção, neste artigo, fazer o balanço
tano, de mais acentuado conteúdo mediterrânico,
dos dados epigráficos e iconográficos conhecidos,
nem as eventuais continuidades a partir de um
nem tão pouco das diversas interpretações propos-
fundo local de grande presença física na paisagem,
tas; por se tratar de um tema muito vasto e extre-
como foi o megalitismo alentejano.
mamente complexo, remetemos para a bibliografia
_____________________________
1 Investigador do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ) e membro do Instituto de Arqueologia da Faculdade
de Letras de Lisboa.

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Endovélico e Rocha da Mina – o contexto arqueológico CALADO, Manuel

2. O santuário romano de Tudo leva a crer que o templo romano propria-


mente dito se erguia na plataforma quadrangular
Endovélico que coroa o outeiro de S. Miguel. Na vertente orien-
Convém sublinhar desde já o facto, fundamental tal, o complexo disporia, possivelmente, de amplos
embora frequentemente esquecido, de que nada anexos para acomodação e restauro de sacerdotes e
sabemos ao certo sobre o culto de Endovélico ou peregrinos.
sobre o próprio santuário de S.Miguel da Mota, O santuário estava instalado no ponto mais alto
antes da implantação definitiva do domínio romano de uma crista, de orientação N-S, cortada a Sudeste
em Portugal. pelo rio Lucefece e dominando visualmente a pene-
É indiscutível, à partida, que a natureza linguística planície envolvente (entre a serra d' Ossa e o Gua-
do teónimo remete para uma origem pré-romana do diana).
respectivo culto. A partir desta realidade, a tese tradi-
cional, recentemente reiterada (BERROCAL, 1993:
60), admite implicitamente uma continuidade de ocu-
pação do sítio a partir, pelo menos, da Idade do Ferro, 3. O povoamento romano: a uilla
se bem que, como se sabe, toda a informação epigrá- dos Barros
fica, obtida até à data no local, se reporta exclusiva- O local do santuário romano de Endovélico dista
mente a momentos posteriores ao sec. I d.C.. pouco mais de um quilómetro de cada um dos dois
É verdade que o próprio carácter tópico do culto povoados com ocupação pré-romana indiscutível
de Endovélico (VASCONCELLOS, 1897-1913: II, (Castelo Velho e Castelinho), tradicionalmente rela-
114,125,131), sobretudo se entendido em sentido res- cionados com ele (VASCONCELLOS, 1895: 212,
trito, implica uma necessária imutabilidade da loca- 213); essa relação, sem dúvida válida em termos
lização do respectivo santuário; no entanto, a desco- diacrónicos, não se confirma, porém, no que res-
berta, nos anos setenta, de um conjunto de lápides peita à contemporaneidade. Os povoados (apenas no
dedicadas a Vaelico, na província espanhola de Castelo Velho foram efectuadas escavações) não
Ávila, abalou um tanto a ideia de que o deus Endo- parecem ter sobrevivido para além do sec. I a.C.,
vélico se identificava exclusivamente com o monte enquanto, como já referimos, no local do santuário
onde lhe era prestado culto. não se registaram materiais da Idade do Ferro ou
Com base nos dados das prospecções de superfí- mesmo romanos de época republicana (CALADO,
cie, portanto ainda sujeitos a confirmação, parece- 1993: 61, 63 e 157).
-nos que só a hipótese da transferência do santuário, Considerando os dados arqueológicos disponí-
que até agora nunca foi sequer considerada, permite veis sobre o território envolvente, parece mais
explicar a ausência absoluta de materiais sidéricos, defensável a contemporaneidade funcional entre o
ou mesmo republicanos, de entre o espólio recolhi- santuário romano e a possível “uilla” romana cujos
do no cabeço de S.Miguel da Mota; se o sítio tives- vestígios se localizam a cerca de 3 Km a ESE de S.
se tido ocupação pré-romana, ela devia ser atestada Miguel da Mota (CALADO, 1993: 64). De facto, a
pelos materiais de superfície, tanto mais que as estação da Malhada dos Barros testemunha uma
características topográficas do local facilitam a estratégia de povoamento que rompeu claramente
escorrência dos materiais ao longo das vertentes. com o modelo indígena, patente nos povoados do
A observação da microtopografia local permite- Castelo Velho ou do Castelinho.
-nos discordar igualmente da observação de Leite Os vestígios romanos dispersam-se ao longo da
de Vasconcellos (VASCONCELLOS, 1905: 125) margem da ribeira, tal como acontece com os po-
segundo a qual o cabeço “apresenta vestígios de voados atrás referidos; porém, em vez dos penhas-
antiga fortificação: um aterro artificial ao nascente, cos extremamente agrestes enquadrados pelos lan-
numa extensão de mais de cem passos, análoga à ços mais encaixados dos cursos de água, “cliché”
dos castros.”. Efectivamente, trata-se de quatro talu- que caracteriza a inserção paisagística dos habitats
des, escalonados paralelamente ao longo da encosta da Idade do Ferro (e também anterior) da região, os
oriental, os quais não parecem corresponder a restos romanos preferiram o topo suave de uma ligeira ele-
de muralhas, tanto mais que do lado oposto não têm
vação, dominando uma área plana, irrigável, com
nada que lhes corresponda. Entre os taludes defi-
bons solos agrícolas e fácil transitabilidade, padrão
nem-se plataformas mais ou menos amplas, onde se
que, como sabemos, é canónico em época romana
recolheu abundante material romano, com destaque
imperial.
para as ânforas e os “dolia” e, naturalmente, a
A implantação da Malhada dos Barros parece,
cerâmica de construção. Em função dos vestígios
materiais e da própria morfologia dos taludes e da em todo o caso, representar um certo compromisso
restante área envolvente, parece-nos mais plausível entre os dois modelos de inserção no território:
tratar-se dos restos das estruturas habitacionais ocupa, na mancha de terras cultiváveis definida
contemporâneas do santuário romano. pelos depósitos terciários que bordejam a falha da

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CALADO, Manuel Endovélico e Rocha da Mina – o contexto arqueológico

Messejana, junto a Terena, a extremidade mais pró- A fundação do santuário romano do S. Miguel
xima dos terrenos dobrados em que encontramos o da Mota, assim como a prosperidade de que, obvia-
povoamento pré-romano. mente, disfrutou enquadram-se, naturalmente, no
O santuário de S.Miguel da Mota representa, carácter da ocupação romana da região, cuja dimen-
nesta perspectiva, uma posição igualmente intermé- são e intensidade se podem inferir, por exemplo,
dia entre as margens íngremes do Lucefece, cerca- dos resultados das persistentes prospecções levadas
das pelos solos magros, típicos dos terrenos de xisto a cabo, há mais de cem anos, pelo Padre Espanca
e o recorte suave da planície sedimentar que, a par- (ESPANCA, 1983).
tir da Malhada dos Barros, se estende para Sudeste.
Como curiosidade, refira-se que a cabrinha de
bronze achada na área dos Barros (ESPANCA, 1975: 4. O santuário de Vaelicus
45) pode corresponder ao culto, em época romana, da O culto de Endovélico, cuja relevância em época
deusa céltica Ataecina ou Ataegina (VASCONCEL- romana se infere, como referimos, da copiosa epi-
LOS, 1897-1913: II, 146-163) a segunda divindade grafia e estatuária conservada, parece ter tido pelo
indígena mais representada epigraficamente em toda menos outro santuário contemporâneo, mais modes-
a Península, a seguir a Endovélico e integrável no to no número e na qualidade das lápides e no esta-
mesmo panteão de cariz indo-europeu (BLASQUEZ, mento social dos respectivos devotos. Localizava-se
1991: 112; LAMBRINO, 1951: 128). na margem direita do Tejo, em Postoloboso (Cande-
O culto de Ataegina, centrou-se sobretudo na leda, Ávila), num sítio onde se erguem ainda hoje as
bacia do Guadiana, em pleno território céltico, com ruínas da capela de S.Bernardo e onde foram reco-
vestígios epigráficos nomeadamente em Mérida ou lhidas inscrições votivas dedicadas ao deus Vaelicus
Mértola, embora possa ter tido também alguma (FERNANDEZ GOMEZ, 1973: 229; FERNANDEZ
expansão noutras áreas do Ocidente Peninsular GOMEZ, 1987: 879).
(FONTES, 1979-80: 14). Ataegina é considerada uma O teónimo aparece aqui desprovido do elemento
divindade infernal, tal como Endovélico, e foi inicial “Endo”, considerado pela generalidade dos
assimilada, pelos romanos, a Proserpina. Este culto eruditos como uma “partícula intensiva” (VASCON-
foi também identificado epigraficamente em Vila CELLOS, 1897-1913, II, 125), comparável aos epíte-
Viçosa (ESPANCA, 1983: 70-74; FONTES, 1979-80: tos “Optimus Maximus”, de tradição indoeuropeia,
14; VASCONCELLOS, 1897-1913, II, 146-163), área do Júpiter romano.
que manteve seguramente contactos privilegiados As escavações efectuadas em Postoloboso, pare-
com o santuário de Endovélico, em época romana. cem afastar a hipótese de se tratar de um santuário
Basta recordar que os mármores utilizados na cons- indígena romanizado; na verdade, sob as ruínas da
trução do templo ou como suporte das inscrições capela de S.Bernardo nem sequer foi possível iden-
votivas e da estatuária, eram oriundos das proximi- tificar, com segurança, elementos construtivos atri-
dades de Vila Viçosa (ESPANCA, 1983: 59); por buíveis ao santuário romano. No entanto, a presença
outro lado, o dedicante de uma das lápides dedica- de materiais arqueológicos dessa época, sugere a
das a Endovélico era “marmorarius”, sendo natural destruição do mesmo pelas construções medievais e
que a sua actividade se relacionasse igualmente com modernas. A ausência absoluta de materiais pré-
a área de Vila Viçosa-Bencatel, onde são bem -romanos, pelo contrário, indica que se deve tratar
conhecidos vestígios de extracção deste material, de um sítio de fundação plenamente romana, o que,
em época romana. à partida, parece também ser o caso do nosso san-
Na região envolvente, os únicos povoados da tuário de S.Miguel da Mota.
Idade do Ferro que apresentam vestígios de romani- Fernandez-Gomes, propõe a identificação do
zação são os Castelos Velhos de Veiros (Estremoz) povoado pré-romano de El Raso, localizado a curta
e do Degebe (Reguengos de Monsaraz), cada um a distância do santuário de Vaelicus, com uma das
cerca de 30 Km, em linha recta. Todos os povoados várias Eboras referidas nas fontes clássicas. Esta
pré-romanos mais próximos parecem ter sido aban- hipótese assenta na descoberta de uma lápide votiva
donados até ao séc. I a.C. com o antropónimo “Ebureinius” e é reforçada pela
Em contrapartida, com a implantação do domí- relativa proximidade geográfica entre Évora e o
nio romano, surge uma série de “villae” e “vici”, de santuário de Endovélico.
que se destacam os núcleos das Nogueiras, da Outra semelhança interessante, diz respeito à
Galharda, dos Vilares, da Fonte da Moura, do Rosá- continuidade, claramente atestada, de ambos os san-
rio ou da Vila Sara, economicamente relacionadas tuários romanos em época visigótica, recuperando
com a exploração de bons solos agrícolas e, nalguns dos tumultos da cristianização. Esta perenidade
casos, também dos mármores ou dos recursos mi- pode relacionar-se, também em ambos os casos,
neiros. com a excelência das respectivas implantações. Nas

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Endovélico e Rocha da Mina – o contexto arqueológico CALADO, Manuel

palavras do seu escavador, o lugar onde se erguia o Endovélico, permite colocar a hipótese de se tratar
santuário de Vaelicus “é verdadeiramente privile- do primitivo local de culto, transferido em época
giado. Uma zona plana, fértil, ao pé de uma colina, romana, presumivelmente por razões de carácter
lugar de confluência de três abundantes correntes de logístico e/ou ideológico. Em todo o caso, trata-se
água, ricas em pesca, e à vista do impressionante de um santuário pré-romano que, de um ou de outro
maciço de Gredos”. O santuário de S Miguel da modo, há que relacionar com o culto indígena de
Mota, como já referimos, ocupava também um pon- Endovélico.
to paisagisticamente muito interessante, num enqua- Este sítio, conhecido localmente como a Rocha
dramento arqueológico igualmente notável (CALA- da Mina, apresenta características cujos melhores e
DO, 1993). mais abundantes paralelos se encontram no Noroes-
A hipótese, que atrás referimos, de que Endové- te Peninsular. Trata-se de locais de culto, por regra
lico seria uma divindade tópica, um “numen loci”, implantados em formações rochosas muito agrestes
não foi necessariamente desmentida pela descoberta ou pelo menos bem demarcadas da paisagen circun-
das lápides de Vaelicus. O elemento “Endo” dá ao dante, com diversas estruturas abertas na rocha,
primeiro um carácter superior ou, pelo menos, dis- habitualmente designados por santuários “tipo
tinto; a partir dos dados actualmente disponíveis, Panóias”. Todos os que se conhecem no Noroeste,
não se pode garantir que se tratasse exactamente da com as maiores concentrações em Trás-os-Montes e
mesma entidade venerada nos dois santuários, muito no Sul da Galiza, constam de pias sacrificiais esca-
embora tivessem certamente algo em comum. Vae- vadas na rocha, de diversas dimensões, quase sem-
licus poderia significar, no contexto religioso lusi- pre associadas a canalículos e a que se acede por
tano-vetónico, algo como “baal” no universo fení- degraus igualmente abertos nos afloramentos. Há
cio, termo ao qual, curiosamente, foi também já casos mais raros em que parece ter-se prescindido
assimilado o segundo elemento do teónimo Endo- dos degraus, sendo as estruturas actualmente visí-
velico (ESPANCA, 1983: 48). veis constituidas apenas pelas cavidades e sulcos.
A dispersão dos testemunhos epigráficos de Uma parte significativa destes monumentos,
Endovélico, para além dos que foram recolhidas no entre os quais se destaca o de Panóias, foi utilizada
concelho do Alandroal, parece resumir-se à presen- ou mesmo reformulada em época romana. Este
ça, na província de Cáceres, de duas lápides (BER- aspecto levou alguns autores a considerar que se
ROCAL, 1992: 60), cujo contexto, infelizmente, não tratava de manifestações cultuais surgidas no con-
é esclarecedor. texto da romanização, ou até já em plena época
Por outro lado, a existência de um santuário de imperial, dado o evidente sincretismo religioso
Endovélico nas montanhas onubenses, deduzida da denunciado pelas inscrições a divindades oriundas
semelhança do teónimo com o nome do cerro Andé- dos panteões indígena, romano e oriental (SILVA,
valo, necessita ser comprovada com dados mais posi- 1986:300; COLMENERO, 1993: 61; FABIÃO, 1993:
tivos. No topo do cerro Andévalo, localiza-se o san- 253).
tuário de Nuestra Señora de la Peña, implantado Porém, alguns não chegaram, aparentemente, a
sobre um imponente afloramento rochoso 2 ; este as- ser romanizados, pelo que a origem do fenómeno se
deve procurar antes de mais no ambiente religioso
pecto reforça a possibilidade de, no mesmo local, se
próprio das populações celtas da Península (ALMA-
ter situado um santuário rupestre pré-romano, se bem
GRO-GORBEA e ALVAREZ-SANCHIS, 1993; BER-
que, por enquanto, tudo não passe de conjecturas.
ROCAL, 1992: 192; MANTAS, 1984: 364; MARCO,
Contraditória parece, por outro lado, a eventual
1986: 745; SILVA, 1986: 295; SOPEÑA, 1987: 56;
relação com o antropónimo Indibilis, documentado
TRANOY, 1981: 338).
no âmbito linguístico e cultural ibérico, embora seja Na Rocha da Mina, curiosamente, não se verifica
perfeitamente credível uma relativa deriva cultural a ocorrência das pias rituais que são o elemento
entre a área ibérica e o mundo celta contemporâneo mais constante dos santuários do Noroeste e da
e vice-versa. Meseta; em contrapartida, o rochedo escarpado em
que se implanta, apresenta um poço pouco profundo
aberto numa de duas valas que o cortam transver-
5. O Santuário pré-romano: salmente. Não se pode, por enquanto, afastar a
A Rocha da Mina hipótese de estarmos em presença de vestígios da
A recente descoberta (CALADO, 1993: 59, 65) de actividade mineira sugerida pelo topónimo. Essa
um santuário rupestre, no mesmo contexto geográ- actividade, reforçada por escassos vestígios de acti-
fico e arqueológico do conhecido santuário de vidade metalúrgica (escórias), pode ser anterior à
sacralização do local ou ter uma explicação no
_____________________________
âmbito das práticas rituais que aí decorreram.
2 Informação do Dr. Cláudio Torres, que agradecemos.

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CALADO, Manuel Endovélico e Rocha da Mina – o contexto arqueológico

Entre as referidas valas, preenchidas parcialmen- integrada na mesma categoria simbólica; esta estru-
te com terra para facilitar o acesso, evidencia-se um tura tem paralelos notáveis no povoado de Provín-
lance de escadas com quatro degraus finamente exe- cios (CALADO, 1993: 96) ou ainda no conhecido
cutados que arrancam de pavimentos também talha- habitat das Mesas do Castelinho (Almodôvar), cuja
dos na rocha e dão acesso a uma espécie de mesa de escavação decorre a cargo de Carlos Fabião e Amíl-
altar sumariamente regularizada, no topo do aflora- car Guerra.
mento de xisto. A relação indiscutível entre a Rocha da Mina e o
A simplicidade morfológica deste monumento Castelo Velho foi reforçada pela descoberta, em
destaca-o claramente da maioria dos seus congéne- cada um destes sítios, de um rochedo destacado,
res setentrionais, nomeadamente Panóias (Chaves), vagamente afeiçoado de forma antropomórfica que,
Castelo do Mau Vizinho (Valpaços), Pias dos Mou- no caso do Castelo Velho, pelo menos, se tornou
ros (Carrazedo de Montenegro) ou Mogueira tema inspirador de tradições populares, sendo
(Resende). Neste último, muito complexo em ter- conhecido localmente como a “Pedra do Charro”.
mos estruturais e com uma inscrição datada do sec A Rocha da Mina é o único santuário rupestre
I, anotou-se a presença de um “poço pouco profun- deste tipo de que temos conhecimento a Sul do
do, quadrangular, escavado na rocha”, nas proximi- Tejo, se exceptuarmos um outro cuja estrutura, de
dades de “uma espécie de mesa de altar, ladeada a acordo com a descrição publicada, parece demasia-
certa distância por escadas talhadas na rocha” do sumária; consta apenas, ao que parece, de uma
escadaria com quatro degraus, toscamente talhados
(MANTAS, 1984: 364).
num afloramento de granito, no interior de um
Estes poços são elementos relativamente raros
importante castro da II Idade do Ferro, o Canta-
nos santuários rupestres, embora o seu significado
mento de Pepina (Fregenal de la Sierra, Badajoz)
ritual possa ser de algum modo equivalente ao das (BERROCAL, 1992: 192). Este monumento foi rela-
habituais pias. Para além da Rocha da Mina e de cionado com um conjunto menhírico, aparentemen-
Mogueira conhece-se outro poço no famoso oppi- te tardio, com o qual mantém conexão visual (BER-
dum de Termantia (Tiermes); segundo José Maria ROCAL, 1989).
Blazquez “trata-se de uma série de escadas lavradas O rochedo do Cantamento de Pepina recorda,
toscamente na rocha, existindo sob elas uma gruta mais do que os santuários pré-romanos, o curioso
em cuja entrada há uma escada pela qual se desce a monumento da Pedra das Gamelas (Santana do
uma pedra de sacrifícios que se comunica com três Campo, Arraiolos), referido por Vergílio Correia
pedras com canais, e a 32,5 m há outra pedra com (CORREIA, 1921: 101-105). Consiste num aflora-
um canal que desce para terminar, a 2 m, num mento granítico em forma de cogumelo (tal como o
poço” (BLAZQUEZ, 1983: 228). de Cantamento de Pepina) com duas pias truncadas,
Refira-se também a existência de poços, criptas ou abertas no topo (as gamelas), e alguns degraus inci-
fossas em santuários franceses da Idade do Ferro, pientes talhados lateralmente de modo a facilitar o
nomeadamente Ucuetis e Bergusia, “continuando acesso ao topo do rochedo; por toda a superfície da
uma tradição antiquíssima” (MANTAS, 1984: 364), ou Pedra das Gamelas encontramos numerosas covi-
a acrópole de Zavist, na Boémia (BRUNAUX, 1991: nhas e motivos cruciformes, temática aliás docu-
200). Trata-se de estruturas subterrâneas cujo signi- mentada noutros afloramentos da mesma área,
ficado ctónico, infernal, é geralmente reconhecido. nomeadamente a Pedra das Taliscas (CORREIA,
Na Rocha da Mina, observam-se entalhes em 1921: 101-105) e outro que identificámos recente-
ambas as paredes da vala em que foi aberto o poço; mente nas proximidades.
este pormenor parece implicar a existência de estru- No Noroeste, conhecem-se alguns possíveis
turas de materiais perecíveis que poderiam ter cria- santuários igualmente rudimentares, nomeadamente
do um espaço fechado, reforçando porventura o o monumento da Portela, que, segundo Blazquez,
carácter ctónico do conjunto. consta de um rochedo aquilado, de dois metros de
Recorde-se que algumas inscrições dedicadas a altura, com degraus rudimentares escavados na
Endovélico parecem implicar a prática da “incuba- rocha e com roços e rebaixos no topo (BLAZQUEZ,
tio”, comunicação com o “numen” através de visões 1983: 230).
ou sonhos, o que levou Leite de Vasconcellos a Com base nestes exemplos, não devemos afastar
conjecturar que “haveria perto do templo alguma a hipótese de os santuários rupestres pré-históricos,
cavidade ou antro donde se recebessem as inspira- cujo funcionamento ritual, nalguns casos (CALADO,
ções dele”. O poço da Rocha da Mina parece conju- 1993b), atinge claramente o Bronze Final, constitui-
gar-se perfeitamente com aquela hipotética função. rem os modelos físicos (e quem sabe se simbólicos)
Também a Casa da Moura, pequena cavidade dos santuários talhados pelos celtas peninsulares.
artificial que se desenvolve horizontalmente na mar- A proximidade da necrópole megalítica do Lucas
gem rochosa do Lucefece, junto ao Castelo Velho (CALADO, 1993b) e do santuário com covinhas do
(VASCONCELLOS, 1885: 212), pode, à partida, ser Poio Grande (CALADO, 1993: 60), ambos com

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Endovélico e Rocha da Mina – o contexto arqueológico CALADO, Manuel

características únicas, em termos regionais, assim Desconhecemos, como se disse, a existência de


como a ocupação calcolítica e do Bronze Final no santuários análogos, fora do âmbito peninsular,
Castelo Velho, são elementos que facilitam uma embora se possam destacar algumas características
explicação evolucionista, considerando a aparente gerais, recorrentes em vários modelos de locais
permanência de um forte substrato populacional sagrados pré-romanos. O aspecto mais comum é,
e/ou ideológico, eventualmente radicado na carga sem dúvida a escolha, para local de implantação dos
mítico-religiosa deste troço do Lucefece. santuários, de grandes massas rochosas, com fre-
De resto, muitos autores admitem “uma continui- quência no cimo de montes e/ou à beira de cursos
dade das tradições pré-históricas no mundo céltico” de água. Trata-se, até certo ponto, de manifestações
(ALMAGRO-GORBEA e GRAN-AYMERICH, 1992: litolátricas e fisiolátricas, mais uma vez possíveis
192), atestada, por exemplo, pela utilização da “jar- reminiscências do antigo fundo megalítico europeu.
da megalítica” (0. 837 m) em monumentos da Idade F. Marco defende que este “complexo religioso
do Ferro, nomeadamente os Broch da Escócia. Sen- caracteriza toda a céltica: o santuário de ar livre a
do os altares rupestres, nos seus traços mais defini- que César se refere como 'locus consecratus'“, pro-
dores, uma manifestação exclusiva do mundo célti- pondo que as populações celtas jamais teriam cons-
co peninsular, é natural que o paralelo escocês nos truido templos antes da chegada dos romanos
incite a rastrear nos antecedentes locais, as suas (MARCO, 1986: 745).
possíveis matrizes formais e funcionais. A sugestão de Armando Silva (SILVA, 1986: 300)
Na Idade do Ferro, estes santuários devem ter de que “estruturas de construção e os recipientes
funcionado sobretudo como altares de sacrifícios, rituais representem uma evolução” de “lugares de
embora naturalmemente possam ter tido outras utili- culto naturais ocorrida (em época romana) em con-
zações relacionadas ritualmente com tais práticas. textos de sincretismo religioso”, ignora o facto, já
As vítimas imoladas seriam sobretudo animais, referido, de que alguns dos santuários são claramen-
com destaque para o porco, a ovelha ou a cabra e o te anteriores à romanização, nomeadamente o de
touro (à maneira do “suovetaurilium”, bem docu- Ulaca e o de Termancia (BLAZQUEZ, 1983: 228), ou
mentado entre os romanos), ou mesmo, nalguns o da Rocha da Mina.
casos, vítimas humanas. A ideia parece-nos válida se transposta para épo-
As pias serviriam tanto para abluções e purifica- cas anteriores, ou seja, os recipientes e os degraus
ções rituais como para a recolha do sangue das víti- podem ter sido lavrados na Idade do Ferro, recupe-
mas ou para a queima das respectivas vísceras, rando lugares de culto naturais de veneração mais
segundo parece deduzir-se de uma inscrição de antiga (TRANOY, 1981: 338). Mais tarde, os mesmos
Panóias (COLMENERO, 1993: 63). santuários ou apenas os respectivos cultos, teriam
Para além das referências literárias aos sacrifí- realmente sido adoptados e adaptados pelos roma-
cios sangrentos entre os povos célticos da Península nos, cuja influência se torna manifesta pela adição
pré-romana, também algumas epígrafes rupestres e das epígrafes votivas.
representações iconográficas do Norte de Portugal Num trabalho recente sobre as saunas tipo
concorrem para confirmar tais práticas (BLAZ- “Pedra Formosa” (ALMAGRO-GORBEA e ÁLVA-
REZ-SANCHÍS, 1993), são avançadas interpretações
QUEZ, 1991: 137; SILVA, 1986: 294).
sobre o significado cultural e ideológico destes
Armando Silva conjectura que “a natureza destes
monumentos e da arquitectura religiosa dos celtas
sacrifícios terá desempenhado um papel preciso, em
peninsulares, em geral.
correspondência com aspectos ecológicos, económi-
As “saunas castrejas”, cuja área de dispersão
cos e sociais da cultura castreja, em formas típicas
coincide “grosso modo” com a dos altares de sacri-
de um teísmo pastoril, na imolação dos animais que
fícios, “ por estarem intencionalmente semiescava-
criavam (...) sendo sublinhada a expressão suprema das na terra ou talhadas em grandes penedos”, “ofe-
desta forma de sacrifício, por referência a uma so- recem um certo carácter ctónico” e estariam igual-
ciedade guerreira, na efusão de sangue humano mente “vinculadas a concepções onfálicas de tipo
referida por Estrabão” (SILVA, 1986: 295). Ainda na cosmológico, de evidente origem indoeuropeia.”
mesma perspectiva, estes cultos relacionam-se com (ALMAGRO-GORBEA e ÁLVAREZ-SANCHÍS, 1993:
os ritos antigos do 'grande sacrifício' indoeuropeu e, 206-209). Admite-se que em ambos os tipo de
em particular, com cultos do mundo celta. monumentos tenham sido praticados rituais de ini-
Um dos raros elementos arquitectónicos ainda ciação e que teriam como função última “a protec-
hoje visíveis no local do santuário de S.Miguel da ção da comunidade, a fim de garantir a sua continui-
Mota é precisamente uma pia aberta num grande dade e prosperidade” ((ALMAGRO-GORBEA e
bloco de mármore, peça que pode ter desempe- ÁLVAREZ-SANCHÍS, 1993: 209).
nhado, nos rituais romanos, uma função semelhante No povoado de Ulaca, o altar de sacrifícios a que
à das cavidades dos altares rupestres. já fizemos referência, encontra-se alinhado N-S com

102 OPHIUSSA 1 (1995)


CALADO, Manuel Endovélico e Rocha da Mina – o contexto arqueológico

os restos de um edifício termal, também parcial- pedra ou de bronze) que se acumularam nas suas
mente escavado na rocha e localizado a menos de imediações. Destacam-se, na Andaluzia, sítios como
200 m do primeiro. Collado de los Jardines (Jaén), em que se recolhe-
Notícias antigas que, tanto quanto sabemos, não ram cerca de 2500 ex-votos de bronze ou Castillar
foram ainda confirmadas, indiciam a presença, nas de Santisteban (Jaén), com mais de 2000. A maior
imediações do santuário de Vaelicus, de uma pos- parte relaciona-se com a ocorrência de grutas natu-
sível estrutura termal (ALMAGRO-GORBEA e rais, frequentemente com nascentes de água, perto
ÁLVAREZ-SANCHÍS, 1993: 188) que parece repre- das quais foi, nalguns casos, construido um edifício
sentar a expansão mais meridional, ainda em territó- de planta quadrangular.
rio vetónico, desse modelo de edifício sagrado. A maioria destes lugares sagrados não tiveram
A Sul do Tejo, não foi, até hoje, referenciada continuidade em época romana, ao contrário dos
nenhuma destas saunas pré-romanas. No entanto, no santuários célticos do tipo Panóias. Contudo, na
castro de Fontalva (Elvas) foi recuperada, há uns província de Badajoz foram recentemente descober-
bons anos, uma estela funerária “tipo casa”, com um tos vestígios de um santuário rupestre, a Cueva del
formato análogo ao das “Pedras Formosas”, embora Valle, sem qualquer tipo de estrutura referenciada e
de reduzidas dimensões, e cujos paralelos, mais uma localizado junto de um grande afloramento calcário,
vez, se encontram sobretudo na Meseta e no onde foram recolhidos ex-votos de cerâmica, de
Noroeste (ALMAGRO-GORBEA e ÁLVAREZ-SAN- acentuado sabor indígena, mas associados a mate-
CHÍS, 1993: 208; FERREIRA, 1966; MARTINEZ SAN- riais inequivocamente romanos3.
TA-OLALLA, J., 1935). Os famosos santuários de Garvão (Ourique)
A implantação paisagística da Rocha da Mina (BEIRÃO, 1987) ou o de Capote (BERROCAL, 1992:
remete para a dos povoados pré-romanos localiza- 184), apesar de ainda integráveis no território dos
dos poucos quilómetros a juzante, em ambas as célticos, não são santuários rupestres e a abundância
margens do Lucefece. dos “ex-votos” supõe antes relações com modelos
A semelhança é por demais evidente, sendo as de inspiração mediterrânica, com que os celtas do
diferenças sobretudo de escala. Mesmo neste aspec- Sudoeste teriam naturalmente contactos privilegia-
to, convém referir que o povoado do Castelinho, dos. O nosso santuário da Rocha da Mina aparece,
com restos de muralhas relativamente bem conser- neste contexto, como um elemento desgarrado sem
vados, apresenta uma área habitável muito restrita, grandes afinidades com os poucos santuários conhe-
enquanto na Rocha da Mina só os futuros trabalhos cidos na região do Sado-Guadiana.
de limpeza e escavação permitirão definir, com
exactidão, a área afectada. No caso do Castelo
Velho, a opção remonta, como dissemos, ao Bronze 6. O culto de Endovélico
Final e mesmo ao Calcolítico. O Deus Endovélico foi conotado, desde o séc.
As muralhas referenciadas nalguns destes san- XVI, com o deus Cupido (de que teria existido uma
tuários, como o Castelo do Mau Vizinho (Valpaços) estátua de prata sem olhos, com pés alados e um
ou Mogueira (Resende), designados por Irisalva coração na boca); nesse mesmo contexto, em que se
Moita como 'redutos-santuários' (MOITA, 1971: partiu geralmente de textos apócrifos e da interpre-
279), ou a presença de outros no interior de grandes tação apressada das fontes clássicas, a tradição plas-
povoados, como Ulaca e talvez também Las Cogo- mou uma relação necessária com um suposto san-
tas, implicam um panorama diversificado, no que tuário de Vénus, localizado no alto de S. Gens,
respeita à relação povoado/santuário rupestre, no monte que constitui o ponto mais elevado da região
âmbito celta peninsular. da serra d'Ossa.
Em todo o caso, este modelo polimórfico difere Segundo a mesma tradição, o santuário de Endo-
aparentemente do que, segundo Blazquez, caracte- vélico teria sido mandado erigir, como pagamento
riza o complexo dos santuários ibéricos contempo- de uma promessa, por um general cartaginês,
râneos, conhecidos no Sul e no Leste da Península, Maharbal, no sec. IV a.C. (ESPANCA, 1983: 43-44).
em que “a situação dos lugares sagrados não se fixa Se é certo que o Padre Espanca opôs algumas
segundo as regras da eleição das cidades, mas em reservas à veracidade desta tradição, Leite de Vas-
função de condições naturais particularmente favo- concellos, por seu turno, não lhe atribuiu qualquer
ráveis à manifestação do sagrado.” valor (ver “O Archeologo Português”, II, p. 138,
Estes santuários ibéricos são sobretudo identifi- nota 2), e, fundamentando-se na interpretação do
cados pela presença dos ex-votos (de cerâmica, de
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3 Agradecemos esta informação do Dr. Guillermo Kürtz, director do Museu de Badajoz, onde se encontram expostos os materiais da
Cueva del Valle.

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Endovélico e Rocha da Mina – o contexto arqueológico CALADO, Manuel

material epigráfico e iconográfico disponível, valo- ria usado na formação de “qualificativos divinos”,
rizou principalmente o papel de Endovélico enquan- cujo significado não se esclarece.
to deus da medicina, considerando-o uma espécie de
Esculápio indígena (VASCONCELLOS, 1905).
A própria substituição do culto de Endovélico 7. O culto de Lug
pela invocação de S.Miguel foi entendida como De entre os santuários rupestres integráveis no
uma espécie de “interpretatio cristiana”, uma vez mundo celta peninsular, tem merecido um certo des-
que, segundo o mesmo autor, “os Cristãos dos pri- taque o santuário de Peñalba de Villastar (Teruel)
mitivos tempos olhavam aquele santo como um dos
génios tutelares da medicina” (VASCONCELLOS, (MARCO, 1986; SOPEÑA, 1987: 56; SALINAS,
1905: 146; VASCONCELLOS: 1886: 43-46); Lam- 1989: 474; TOVAR, 1973).
brino, por outro lado, aceitando uma perspectiva Trata-se de um penhasco de calcário branco que
semelhante, considerou Endovélico uma entidade coroa o topo de uma elevação, onde não se regista-
psicopompa, condutora das almas no Averno à ram degraus, mas em que foram escavadas pias e
semelhança do que, na sua versão, seria uma das canalículos e gravada uma incrição rupestre (entre
funções do Arcanjo S. Miguel, o “praepositus para- outras) que atesta o culto do deus Lug (MARCO,
disi” (LAMBRINO, 1951: 58). 1986). Este, apenas pontualmente representado na
Blazquez, que considera Endovélico “o mais epigrafia, é conhecido sobretudo da mitologia irlan-
importante de todos os deuses hispanos” (BLAZ- desa e de alguns topónimos de interpretação fre-
QUEZ, 1983: 285), integra-o, como vimos, juntamen- quentemente problemática, como é o caso de
te com Ataegina, Vacodonnaego e Devaco Caburio, Lugdunum (Lyon, França) ou de Lugo, na Galiza.
entre as divindades pré-romanas de carácter infer- Blazquez comenta a conhecida frase de César (BG
nal; esse carácter seria sublinhado pela iconografia VI, 17), repetida por Tácito (Germ. 9) que afirma
representada nas aras votivas, sobretudo o javali, a que os celtas “veneram sobretudo o deus Mercúrio”,
palma e a coroa, elementos que podem ser entendi- considerando a assimilição, por sincretismo religio-
dos, segundo o mesmo autor, como símbolos de so, entre Lug e Mercúrio (BLAZQUEZ, 1975: 20).
imortalidade. Esta opinião, alicerçada no esclare- Não deixa de ser sugestiva a hipótese de o
cido contributo de Scarlat Lambrino (LAMBRINO, mesmo teónimo corresponder ao primeiro elemento
1952), é hoje partilhada pela maioria dos investiga- do hidrónimo Lucefece e do topónimo Lucas,
dores e permite enquadrar o culto de Endovélico no ambos em estrita relação espacial com os santuários
mesmo ambiente ritual que produziu as saunas e de Endovélico. Lug é considerado por Tovar
altares rupestres, cujo simbolismo ctónico já foi (TOVAR, 1973) como uma divindade, cuja impor-
igualmente referido. tância é “primordial na mitologia céltica conservada
A natureza subterrânea do deus pode também na Irlanda” (MARCO, 1986: 735), e cujo culto se terá
depreender-se dos textos de algumas das inscrições generalizado no mundo celta, nomeadamente na
votivas, nomeadamente aquela que utiliza a fórmula Península Ibérica. O teónimo, curiosamente tem
“ex imperatio Averno”. sido interpretado, tal como Endovélico, em dois
A interpretação filológica do teónimo como sentidos contraditórios: considerado o radical indo-
“muito negro” (da palavra basca “beltz”, negro), europeu “leuk”, brilhar, Lug seria uma divindade
reforça naturalmente esse sentido, apesar de, curio- luminosa; pelo contrário, se partirmos da palavra
samente, noutra interpretação igualmente plausível, gaulesa “lougos”, o corvo ou o negro, que parece ter
o nome da divindade ser interpretado como muito uma correspondência na lenda da fundação de
bom, considerado o segundo elemento como deri- Lugdunum, interpretado como “a colina dos cor-
vado do radical indoeuropeu “uel”, bom. vos”, Lug passaria a ter uma conotação obscura.
Outros (FERNANDEZ GOMEZ, 1973: 231; SALI- O significado de Lucefece, porém, talvez possa
NAS, 1989: 475) atribuem a Vaelicus a raiz celta buscar-se noutra direcção. José Pedro Machado
“vailos”, lobo, interpretação que é sublinhada com o (MACHADO, 1967: 901) admite, entre outras hipóte-
microtopónimo actual, Postoloboso. Curiosamente ses, uma possível raíz árabe para o hidrónimo, na
(e os jogos toponímicos raramente são mais do que senda de Leite de Vasconcellos (VASCONCELLOS,
curiosos), também numa das cristas da vizinha serra 1927: 189), embora também não adiante qualquer
d' Ossa se conserva um topónimo largamente suges- significado.
tivo, a Pia do Lobo. Auguste Cherbonneau (CHERBONNEAU, 1883:
Recentemente, Armando Silva (SILVA, 1986: 147) refere o elemento “oucif” como um termo
295-296) relacionou o teónimo Endovélico com os árabe significando “negro”, o que levou Joaquim da
termos “velugo” e “volenti”, atestados em epígrafes Silveira, em nota manuscrita, a estabelecer a relação
do Castelo da Feira, em que o radical “vel-vol” se

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