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CRÓNICA SOBRE A EVOLUÇÃO

DO TERRITÓRIO EM TEMPOS PRÉ-


MEDIEVAIS: A REGIÃO DE
AROUCA

por Luís da Silva Pinho1

INTRODUÇÃO

O tema em destaque tem sido alvo de ligeiras e de profundas considerações ao


longo do tempo. Não é minha intenção nestas modestas linhas compilar o seu
historial ou comentar análises anteriores. Em rigor, muito pouco se sabe sobre o
passado pré-medieval da região de Arouca. Há, no entanto, elementos
materiais/arqueológicos/epigráficos que, conjugados com as parcas fontes escritas
que chegaram até nós, nos fornecem vislumbres desse tempo tão distante. Vou,
então, ao correr da pena e sem pretensões eruditas, abordar este assunto, que, por
razões metodológicas, irei compartimentar em Pré-História Recente, Idade do

1 É licenciado em Ciências Históricas, professor do ensino básico e secundário, membro da


Associação Portuguesa de Genealogia e autor de diversos estudos no domínio da Arqueologia e da
Genealogia. Foi arqueólogo do Gabinete Técnico do Teatro Romano de Lisboa, docente na Escola
Profissional de Arqueologia (Marco de Canaveses), coordenador do projeto de investigação A
romanização no espaço geográfico compreendido entre os rios Paiva e Cabrum, coordenador do
projeto Pronorte, Inventário, conservação e valorização do património arqueológico do município de
Cinfães, etc… É professor do QND, afeto à E.B.S de Escariz (Arouca), onde leciona História e
Português. Faz consultadoria a entidades públicas e privadas no domínio da Arqueologia.

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Ferro e Romanização, utilizando as respetivas subdivisões e respeitando assim
convenções há muito estabelecidas.

PARTE I
PRÉ-HISTÓRIA RECENTE

A região de Arouca é particularmente rica em vestígios arqueológicos da Pré-


História Recente, com especial destaque para a chamada cultura megalítica,
caracterizada pela construção de sepulturas coletivas com recurso à utilização de
ortóstatos de grandes dimensões, fincados no solo, que envolvem uma câmara
funerária e são abrigados por um grande monólito disposto na horizontal, o
chapéu. Esta estrutura, conhecida por dólmen, é, por sua vez, fortemente
contrafortada e todo o espaço sagrado fica oculto sob um montículo de terra e de
pedras de pequeno porte, para tornar o conjunto mais resistente aos agentes
erosivos e a eventuais pilhagens.
Apenas na freguesia de Escariz, no decurso dos anos 80 do século passado,
foram inventariados mais de seis dezenas de monumentos deste tipo, por
Fernando Augusto Pereira da Silva2, o que, emblematicamente, torna a freguesia
uma espécie de capital do megalitismo, com direito a incorporar o brasão local e
até a monumento na rotunda principal da terra.

Figura 1 – Brasão da freguesia de Escariz.

2 SILVA, Fernando Augusto Pereira da, “Monumentos megalíticos da freguesia de Escariz


(Arouca): ponto da situação à luz dos primeiros trabalhos”, in Trabalhos de Antropologia e
Etnologia, v. 26, n. 1-4 (1986), p. 51-74.

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Figura 2 – Monumento evocativo da riqueza pré-histórica da freguesia, implementado na
rotunda da Urreira (Escariz).

a) O período Neolítico

Correspondendo ao advento da sedentarização, este período, no sudoeste da


Europa e particularmente no norte de Portugal, tem sido balizado
cronologicamente entre o 6º e o 4º milénio a.C. Terá sido caracterizado pela
construção de pequenos aldeamentos desprotegidos, situados na proximidade de
cursos de água e de terrenos com aptidão agrícola e pastoril. Estes assentamentos
são muito difíceis de detetar, em virtude da sua reduzida dimensão e da utilização
exclusiva de materiais perecíveis na sua edificação. Não é certo que esses
povoados tenham tido um carácter permanente, provavelmente não, melhor será,
assim sendo, chamar-lhes acampamentos sazonais. Tal não acontece com os
espaços sagrados, nomeadamente as necrópoles, feitas para perdurar no tempo e
com estruturas frequentemente reutilizadas em períodos posteriores. O ritual
funerário praticado foi a inumação, realizada em sepulturas coletivas sob
montículo, vulgarmente conhecidas por mamoas, que envolviam e cobriam uma
estrutura megalítica (anta ou dólmen), no interior da qual os defuntos eram
cuidadosamente depositados em decúbito dorsal, juntamente com algum
mobiliário (machados em pedra polida, lâminas, micrólitos, recipientes em
cerâmica e objetos de adorno), sugerindo a crença destas populações na vida após

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a morte ou então numa viagem interdimensional, na qual necessitariam de todo
esse ferramental e que também serviria de oferenda para os deuses, conotados
certamente com elementos da natureza. Dentro dessa lógica, o dólmen e toda a
estrutura envolvente, assemelhando-se ao corpo da mulher, particularmente ao
ventre materno, faziam o acolhimento e a comunhão com a mãe terra, de onde
tudo provém. Por vezes, relacionadas com a iconografia religiosa, foram
materializadas pinturas e gravuras na face interna dos esteios, como no dólmen 1
de Aliviada3 ou nas mamoas 1 e 4 de Alagoas.
A grande concentração de monumentos megalíticos na área ocidental do
concelho de Arouca e na bacia hidrográfica do rio Arda, inventariados e
estudados por Fernando Augusto Pereira da Silva, no decurso dos anos 80 do séc.
XX, revelou tipologias diversas e cronologias amplas. Os monumentos
intervencionados têm sido atribuídos ao neolítico médio-final e a períodos
posteriores.

Figura 3 - Distribuição dos monumentos megalíticos da freguesia de Escariz, segundo


SILVA (1986).

3 Monumento Nacional, Decreto n.º 26-A/92, DR, 1.ª série-B, n.º 126 de 01 junho 1992.

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Sobre a organização e funcionamento destas comunidades neolíticas, acredito
que predominasse o clã familiar, onde um ancião, certamente o patriarca,
acumularia os papéis de sacerdote e de líder, orientando o grupo e tomando as
decisões de maior responsabilidade. As tarefas relacionavam-se com a caça, a
produção agrícola e a criação de gado, incluindo também outras subsidiárias
destas, como a olaria, a tecelagem, a moagem de cereais e o fabrico de
ferramentas e armas. Cada membro tornou-se especialista numa determinada
tarefa, numa lógica de produtividade, apesar do modelo económico ser o de
subsistência, apoiado comunitariamente. Haveria certamente circulação entre clãs,
de determinadas matérias-primas, consideradas de prestígio, como algumas rochas
ígneas e o sílex, do qual se desconhecem jazidas na região. A área de exploração
territorial seria móvel, dependendo do local onde o acampamento estivesse
instalado, e seria limitada pela geomorfologia, dificilmente ultrapassando um par
de horas de marcha. Não creio que existisse neste período uma organização
territorial bem definida.

b) O período Calcolítico
Entre o 4º e o 3º milénio a.C. assistiu-se gradualmente a uma mudança de
paradigma. O desenvolvimento e o sucesso das práticas agro-pastoris, que se
tornam definitivamente dominantes (p. ex. em relação à caça, que se vai
transformando em atividade complementar) conduziram a um incremento da
produção e a um aumento demográfico muito significativo. Começou a avultar
uma certa diferenciação social, relacionada com as tarefas e serviços que cada um
realizava.
No campo tecnológico passou também, por influência externa, a utilizar-se o
ouro e o cobre, primeiro por martelagem e posteriormente por fundição,
produzindo-se bens de prestígio, como armas, ferramentas e objetos de adorno. A
comprovar a circulação de produtos de prestígio a grandes distâncias temos o
comércio dos vasos campaniformes, que, com origem no sul da península ibérica,

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chegaram também a esta região, tendo sido exumados fragmentos de recipientes
deste tipo, de tradição marítima, nas mamoas de Prazins (Fajões) e Urreira 7
(Escariz).
Na região em análise não foram identificados assentamentos deste período,
embora a presença de restos de talhe e de moinhos manuais em contexto não
deposicional, em áreas invioladas de monumentos funerários, faça supor que não
distariam muito destes e que as terras utilizadas na construção dos tumuli sejam
provenientes de áreas habitacionais. É o caso da mamoa 7 da Urreira, onde
Fernando Silva identificou, na proximidade do monumento, indícios de uma vala,
da qual poderão ter sido retiradas as terras para a edificação do mesmo. A
sondagem aí realizada não se revelou conclusiva. No casal de Cajus, em Vér, da
referida freguesia de Escariz, foi encontrado, no decurso de obras, ao nível do
saibro, um machado de pedra polida com marcas de utilização. Fica a incerteza se
o artefacto terá sido perdido ou se o local terá correspondido a um pequeno
assentamento, até porque se trata de uma zona de pouco enchimento, inscrita no
meio da veiga de Vér. Na mesma aldeia existe um caso de implantação muito
semelhante, a cavada d’Antela, associado a um topónimo sugestivo da presença
de dólmens e nas proximidades deste último sítio, um outro topónimo
interessante: “Campo dos Morouços”.

Figura 4 - Machado em pedra polida proveniente do casal de Cajus, em Vér (Escariz).

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Os povoados passaram a ter, gradualmente, uma importância vital, pois a
necessidade de proteger os excedentes de produção e os animais tornou-se cada
vez mais emergente. Face a isso, assistiu-se à valorização do assentamento, que
passa, numa fase final, a ser edificado em pontos mais estratégicos e dotado, por
vezes, de estruturas defensivas. As fronteiras territoriais de cada clã / tribo
começam a delinear-se.

c) A Idade do Bronze
No decurso desta fase, compreendida grosso modo entre o 2º e o 1º milénio
a.C., deu-se continuidade à edificação de povoados em altura, com preocupações
defensivas, dotados, por vezes, de muralhas. A preservação dos recursos, a
produção de excedentes e a busca de novas tecnologias tornaram-se cada vez mais
prementes, intensificando-se as trocas comerciais com outros povos e a rivalidade
entre tribos vizinhas. É neste contexto que nos aparecem os famosos esconderijos
de fundidor. Para além de alguns achados no concelho de Arouca, de que se
destaca o do campo da Falcoeira, na freguesia de Urrô, é conhecido um
importante conjunto de peças em bronze, proveniente do monte Crasto, em Vila
Cova do Perrinho (Vale de Cambra)4.
Na região em análise encontra-se referenciado um número significativo de
povoados do Bronze, a maior parte dos quais com ocupações posteriores. Um
destes foi o monte Coruto (Escariz), alvo de intensa extração de granito na década
de 80 do séc. XX e que, na encosta sudeste, hoje quase completamente
desmontada, forneceu, à superfície, significativos materiais líticos e cerâmicos
deste período, para além de medievais, que se encontram à guarda do Centro de
Arqueologia de Arouca.

4 BRANDÃO, Domingos de Pinho (1962) – Achados soltos de cobre e bronze no concelho de


Arouca Separata da revista Studium Generale. nº 9, Porto; BRANDÃO, Domingos de Pinho (1963)
– Achado da “época do Bronze” de Vila Cova de Perrinho, Vale de Cambra, Comunicação
apresentada ao II Colóquio Portuense de Arqueologia, 1962; Separata da revista Lucerna, nº 3,
Porto.

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Figura 5 – Perspetiva do Cabeço do Coruto, Escariz (nordeste).

Recentemente, António Manuel Silva coordenou um trabalho onde foram


identificados 2 povoados com ocupação segura da idade do Bronze na região de
Arouca: a Cividade (Urrô) e o Senhor dos Aflitos (Alvarenga) 5.
As gravuras rupestres constituem uma outra vertente importante deste período.
Conhecem-se na região diversos afloramentos com fossetes e painéis mais
complexos que se encontram atualmente em estudo. O exemplo que apresento,
situado na proximidade do já referido monte Coruto, foi identificado por Paulo
Lemos, aquando do acompanhamento do projeto de execução do Interface
Logístico do Parque de Negócios de Escariz, desenvolvido pela Câmara

5 SILVA, António Manuel S. P.; PEREIRA, Gabriel R.; LEMOS, Paulo A. P.; ALMEIDA E
SILVA, Sara (2018) – A Idade do Bronze na margem sul do Baixo Douro – sítios e pistas de
investigação, in Actas de las VI Jornadas de Arqueología del valle del Duero (Oporto, 2016).
Valladolid: Glyphos Publicaciones, p. 92-117.

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Municipal de Arouca. Aparenta ser o recorte de uma cabeça com esboço dos
ombros, eventualmente provida de hastes6.

Figura 6 - Gravura rupestre do Coruto.

Durante a idade do Bronze verificou-se o declínio das grandes construções


megalíticas. Paulatinamente, as sepulturas coletivas vão sendo abandonadas,
dando lugar a enterramentos individuais em cista, por vezes sem qualquer
mobiliário fúnebre. Algumas destas sepulturas seguem ainda a tradição
megalítica, sendo edificadas sob mamoa, embora com dimensões muito reduzidas,
quase impercetíveis na paisagem, como se verificou no monumento nº 8 da
necrópole da Urreira. Por vezes foram mesmo implantadas nas couraças pétreas
de monumentos mais antigos, é o caso da mamoa nº 2 do núcleo da Aliviada.

(continua na próxima edição)

6LEMOS, Paulo A. Pinho, BETTENCOURT, Ana M. S., RALHA, João (2020) Gravura Rupestre
do Coruto (Escariz, Arouca): Estudo, Salvaguarda e Valorização, revista Antrope, nº 12, Instituto
Politécnico de Tomar, pp. 139-172.

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