Você está na página 1de 9

PROSPECÇÃO ARQUEOLÓGICA NO BAIXO PAIVA

EM ALVARENGA (AROUCA, AVEIRO)

RESULTADOS DA 1.ª CAMPANHA

(OUTUBRO 2005 – JANEIRO 2006)

Margarida Ataíde, Arqueóloga; Mestre em Património1


Pedro Telles, Arquitecto2

No cumprimento dos seus fins, a BioAlva tem efectuado frequentes saídas de prospecção
arqueológica, tomando como principais fontes a tradição oral e informações publicadas desde o início
do século XX, por autores como Madureira (1907), Mendes (1995) e Barroca (2003). Mais
recentemente, a publicação da Carta Arqueológica de Arouca, coordenada por António P. Silva e
publicada pela Câmara Municipal de Arouca em 2004, trouxe mais algumas informações relativas à
freguesia de Alvarenga.

Numa das prospecções efectuadas, como acima se referiu, a BioAlva descobriu, em 31 de Outubro de
2005, no Monte de Baixo, num local referenciado pela população como Côto do Carvalhal, vestígios
de ocupação humana, datada, de acordo com os materiais arqueológicos recolhidos à superfície, de
entre o Bronze Final e a Alta Idade Média, aqui com particular destaque para o período entre os sécs.
X a XII. Tal sítio, localizado a meia encosta, não coincide com a descrição feita por António P. Silva
sobre um outro que denominou Castelo de Carvalhais e que este autor implantou em cabeço de
forma cónica, na vertente oposta àquela a que nos referimos. Poderá, contudo, coincidir com o local
onde foram feitos os achados relatados por Madureira e publicados em 1907. Segundo aquele autor
“Haverá approximadamente 60 e tantos annos que alguns individuos ali foram procurar thesouros de
mouros e encontraram n’aquellas ruinas pás de ferro e outros objectos do mesmo metal, pequenas
rodas de barro, um fôrno, que no correr dos annos se havia sumido na terra, etc.” (in Gazeta de
Arouca, n.º 78, 17 de Fevereiro de 1907).

Este sítio arqueológico, posto recentemente a descoberto devido à abertura de um caminho de


serventia ao plantio de eucaliptos, relaciona-se certamente com estruturas visíveis na margem
esquerda do rio Paiva, podendo todo este conjunto ter estado directamente ligado com a hipotética
localização da “ponte velha”, assim designada pela população e referida por alguns autores como
datando de 110 d.C., durante o período do imperador romano Trajano. Tal ponte teria sido destruída
por uma forte enchente do Paiva no séc. XIV e dela desconhece-se a localização exacta.

1
Vice-Presidente da BioAlva.
2
Presidente da BioAlva.
Os materiais arqueológicos supramencionados são constituídos por fragmentos de cerâmica, entre os
quais se contam bordos, asas e fundos, assim como cerâmica decorada com incisões e cordões
digitados, que se assemelham a materiais provenientes de outros sítios arqueológicos de
características comparáveis (Rodrigues e Rebanda, 1992). Entre as peças cerâmicas contam-se ainda
uma tampa (N.º 8) e marcas de jogo (n.º 7), assim como o que parece ser um fragmento de uma
pequena taça mamilada de cronologia tardo-romana (n.º 1).

De entre estes destacam-se ainda peças que se apresentam decoradas de acordo com um mesmo
padrão: duas linhas paralelas incisas, intercaladas em bandas com ondas ou ziguezagues simétricos
e em alguns casos assimétricos, como é o caso da peça n.º 11, com paralelos nas panelas de fase I
do Castelo de Curiel (Peñaferruz, Gijón) integrável em cronologia pertencente ao séc. XII. Os
restantes fragmentos, todos pertencentes a bojos ou panças, independentemente da espessura,
repetem a mesma tipologia decorativa (n.ºs 9, 10, 12 e 13).
O exemplar do Côto do Carvalhal n.º 16 encontra paralelos nos alguidares ou taças de fundo em
disco provenientes de São João de Valinhas (Sta Eulália, Arouca) atribuídos aos séculos XI-XII. A
peça n.º 17 deverá fazer parte da anterior.

As pastas são maioritariamente resultado de cozedura redutora, com uma minoria de peças
provenientes de cozedura oxidante. A tipologia varia entre as peças de acabamento grosseiro, com
elementos não plásticos de grão médio a grosso, mal acabadas e excessivamente queimadas, e as
peças de espessura mais fina, que apresentam elementos não plásticos de grão fino a médio,
acabamento cuidado e em alguns casos vestígios de brunido ou alisamento exterior.

São ainda de salientar os numerosos vestígios de escória de fundição (de primeira e segunda
extracções, nomeadamente escória vítrea de sangria de forno).

Bem como alguns artefactos líticos: um movente, um polidor, cossoiros (N.ºs 3 e 4), um cossoiro
inacabado (N.º 6), um possível peso de tear (N.º 5) e um fragmento de lâmina ou raspador em
sílex3.

3
A confirmar-se pertencer a uma lâmina ou raspador este fragmento de sílex, tal levará certamente ao recuo da cronologia
relativa apontada para este sítio, colocando-a num horizonte do Neolítico Final ou do Calcolítico.
Este sítio arqueológico enquadra-se assim, em nosso entender, no sistema defensivo existente desde
o século IX, na linha de fronteira entre os reinos cristão e muçulmano.

Esta era bastante flutuante, como é sabido, mas adjacente aos limites do rio Douro; de facto, a
predominância do reino de Leão e das Astúrias sobre este território coincide com o destacamento, no
final do século X, de nobres provenientes de outros reinos do centro da Europa, que teriam vindo em
auxílio das forças reais leonesas durante a Reconquista. Falamos dos ascendentes do aio Egas Moniz,
originários da Gasconha, e do pai e tio de Afonso Henriques, o conde D. Henrique e seu irmão, D.
Raimundo, vindos da Borgonha. Deste modo, a ligação a Leão seria bastante evidente. A linhagem
dos Alvarengas descende, exactamente, de um dos filhos da casa dos senhores de Ribadouro, D.
Egas Moniz, o Aio, pelo seu casamento com a filha de Afonso VI, rei de Leão, tornando-se os seus
descendentes ainda os senhores da Honra de Alvarenga (ver anexo 1).

Do ponto de vista morfológico, o sítio corresponde aos castelos roqueiros existentes quer na região
quer, como já referimos, na zona asturiana de Gijón, perdendo a importância que teria tido com a
conquista definitiva de territórios aos muçulmanos e com a consequente implantação cristã na
região. A mudança administrativa decretada por D. Dinis, que teria concedido àquela cidade
(Alvarenga foi sede de concelho até 1836) o seu primeiro foral em 1298, e no decurso da qual se
verificou um crescimento da importância de uma classe senhorial em detrimento dos condados,
ditaria o abandono dos castelos roqueiros tradicionais e a construção de outras estruturas defensivas
mais funcionais.

Não muito longe do local anteriormente referido encontra-se a Pedra dos Mouros, ponto de
observação estratégica - constituído por três grandes blocos graníticos que formam local privilegiado,

apresentando um “tecto” escavado - que poderia ter sido incluído na estrutura defensiva medieval,
nomeadamente através da aposição (gravação) de uma cruz num plano horizontal, no interior da
estrutura, assim como de uma outra gravada na sua face distal (cabeceira). Por outro lado,
acompanhando o caminho antigo que conduzia ao Paiva, num local de entroncamento, deparamo-
nos com uma parede de granito amarelo erodido que ostenta um conjunto de cruzes gravadas na
rocha.

Embora se lhe atribua o estatuto de marco de propriedade, julgamos que, devido à sua localização
ao longo do caminho e ao facto de estarem organizadas num mesmo espaço, estas cruzes
representam de facto Alminhas. Para tal contribui ainda a existência das siglas P.N. (Pater Noster)
ladeando uma das cruzes, assim como outras, de pequenas dimensões, uma das quais tem uma
forma antropomórfica e outra semelhante à da Pedra dos Mouros.

Mais recentemente, no dia 14 de Janeiro do corrente ano, a BioAlva continuou as acções de


prospecção na margem esquerda do Paiva, onde se observam, como já referimos, estruturas
visivelmente arruinadas que preenchem uma grande extensão ao longo daquela margem,
bem como à superfície da vertente que a encima e que é extremamente escarpada. Na tentativa de
se dirigir a esse local (e ao qual não se chegou ainda), os membros da BioAlva descobriram

três mamoas, um castro e um povoado tardo-romano a altomedieval, vestígios de sepulturas


escavadas na rocha (que serão as primeiras descobertas na região do Baixo Paiva), assim como uma
mina de extracção de minério. Foram diversos os fragmentos de cerâmica encontrados à superfície,
de entre os quais se destacam não só fracções de tegulae e de ímbrices, mas igualmente uma tampa
e outros vestígios da mesma matéria-prima; provenientes de uma das mamoas, quase
completamente destruída pela abertura de um caminho, foram recuperados à superfície sílices
talhados, sobretudo micrólitos, e outros vestígios de cerâmica, muito fragmentados.
Todo este conjunto arqueológico se implanta num cabeço que, pela sua morfologia, se assemelha ao
local do achado de dia 31 de Outubro (a que já aludimos supra), encontrando-se fronteiro a este, no
outro lado do rio Paiva.

É de registar que algumas estruturas descem pela encosta, constituindo pequenos patamares
humanizados ao longo de uma escarpa aparentando outros vestígios de construções possivelmente
habitacionais e de forma circular; se se seguisse a sua pendente, chegar-se-ia certamente ao local
onde a tradição oral implanta a ponte romana supramencionada e de facto há nesta pendente um
caminho que leva a um local do rio onde há dois arranques de uma ponte que já não existe e que
daqui segue o caminho, que continua muito escarpado, até ao alto da encosta oposta, na margem
direita do Paiva, que é onde fica actualmente Alvarenga. A população usou até meados do século
passado este caminho e uma ponte que fazia uso dos referidos arranques4. Sabe-se que os Romanos
construiam as pontes em locais em que a passagem era extremamente difícil, tornando esta o único
local de travessia possível e de pé seco. Este é um sítio de fortíssimas correntes que projectaram o
rio Paiva além-fronteiras como um dos melhores rios para fazer rafting, sendo ainda considerado
como o melhor ponto de passagem de todo o rio Paiva.

A prospecção efectuada pelos membros da BioAlva mantém-se, num terreno extremamente


escarpado e muitas vezes de díficil acesso, mas continua a mostrar ser um instrumento fundamental
para o conhecimento não só do território como do património arqueológico ainda por descobrir tanto
na freguesia de Alvarenga como nas freguesias limítrofes.

4
Este caminho também foi descrito por Madureira (1907)
Anexo 1

ÁRVORE GENEALÓGICA DESDE O SÉCULO V COM THEODORIC I, REI DOS VISIGODOS


PASSANDO PELOS ALVARENGA NOS SÉCULOS XIII E XIV
ATÉ HOJE COM D. ANTÓNIO VASCO DE MELLO DA SILVA CÉSAR E MENEZES

1) Theodoric I, rei dos Visigodos * 417 + 451 29) Paio Viegas de Alvarenga * c. 1210

2) Euric I Balthes, rei dos Visigodos 30) Pero Pais de Alvarenga * c. 1230

3) Alaric II Balthes, rei dos Visigodos + 507 31) Martim Pires de Alvarenga * c. 1270

4) Amalric I Balthes, rei dos Visigodos * 502 + c. 530 32) Inês Martins de Alvarenga* c. 1340

5) Leovigildo de Setimania Baltes * c. 525 33) João Mendes de Vasconcelos, senhor da honra de Alvarenga * c. 1380

6) Hermenegildo II Baltes * c. 550 34) Rui Mendes de Vasconcelos, senhor da honra de Alvarenga * c. 1420

7) Antanaguildo Baltes * c. 580 35) Joane Mendes de Vasconcelos, senhor de Alvarenga * c. 1480

8) Adrebasto Baltes * c. 610 36) Bernardo de Vasconcelos * c. 1510

9) Ervigio Favila * c. 630 37) Guiomar de Vasconcelos * c. 1550

10) Pedro, duque da Cantábria * c. 660 38) Antónia de Vasconcelos e Brito * c. 1585

11) Afonso I, rei das Astúrias * c. 690 + 757 39) Miguel de Vasconcelos * c. 1610 + 1640

12) Froila I, rei de Leão * c. 725 + 768 40) Antónia de Melo

13) Froila de Leão * c. 760 41) Miguel Soares de Vasconcelos

14) Bermudo, príncipe de Leão * c. 750 + 842 42) Isabel Bernarda Maria de Vasconcelos

15) Ramiro I, rei de Leão * c. 770 + 850 43) D. Miguel de Abreu Soares Vasconcelos Brito Barbosa e Palha * 1709

16) Ordonho I, rei de Leão * 800 + 866 44) D. João Domingos de Melo Abreu Soares Barbosa e Palha * 1749 + 1805

17) Afonso III, rei de Leão * 838 + 910 45) D. Miguel António de Melo de Abreu Soares de Brito Barbosa Palha Vasconcelos Guedes,

18) Ordonho II, rei de Leão * c. 860 + 924 1º conde de Murça * 1766 + 1836

19) Ramiro II, rei de Leão * c. 900 + 965 46) D. José Maria de Melo, 2º conde de Murça * 1817 + 1858

20) Lovesendo Ramires * c. 940 47) D. João José Maria de Melo Abreu de Vasconcelos Brito Barbosa e Palha,

21) Aboazar Lovesendes * c. 960 3º conde de Murça (irmão do 2º conde de Murça) * 1820 + 1869

22) Ermígio Aboazar * c. 980 48) D. Mariana das Dores de Melo e Abreu Soares de Brito Barbosa Palha de Vasconcelos Guedes,
4ª condessa de Murça * 1856
23) Toda Ermiges * c. 1000
49) D. António Vasco de Mello César e Menezes, 12º conde de São Lourenço * 1876 + 1928
24) Ermigio Viegas, senhor de Ribadouro * c. 1020 + d. 1047
50) D. António Vasco José de Mello da Silva César de Menezes, 4º marquês de Sabugosa * 1903
25) Monio Ermiges, senhor de Ribadouro * c. 1050
51) D. António Vasco de Mello da Silva César de Menezes, 14º conde de São Lourenço * 1931
26) Egas Moniz, o Aio * c. 1080 + 1146
52) D. António Maria de Mello Silva César e Menezes, 13º conde de Sabugosa * 1959
27) Afonso Viegas, o Moço * c. 1110
53) D. António Vasco de Mello da Silva César e Menezes
28) Egas Afonso de Ribadouro * c. 1140
PROSPECÇÃO ARQUEOLÓGICA NO BAIXO PAIVA RESULTADOS DA 1.ª CAMPANHA

Medidas das peças

Bibliografia

BARROCA, Mário Jorge – «História das Campanhas», in TEIXEIRA, Nuno Severiano; BARATA, Manuel
Themudo (dir.), Nova História Militar de Portugal, Vol. 1, ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 2003, pp.
30 e 73.

GONZÁLEZ, José Avelino Gutiérrez – Peñaferruz (Gijón). El Castillo de Curiel y su Territorio, VTP
Editorial, Ayuntamiento de Gijón, Gijón, 2003.

MADUREIRA, Manuel Pinto de Paiva – «Alvarenga. Monographia d’esta parochia», in Gazeta de


Arouca, n.º 78, 17 de Fevereiro de 1907.

MENDES, António – Alvarenga, Esboço de Uma Monografia, ed. do autor, 1995, pp. 110-113.

RODRIGUES, Miguel; REBANDA, Nelson - «Cerâmicas Medievais do Baldoeiro (Adeganha – Torre de


Moncorvo)», in 1as Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval de Tondela, Tondela, 1992, pp.
51-66.

SILVA, António Manuel S. P.; RIBEIRO, Manuela C. S. – «A intervenção arqueológica em S. João de


Valinhas (Arouca, Aveiro). Do povoado castrejo ao castelo da Terra de Arouca», sep. de BARROCA,
M. J. (coord.), Carlos Alberto Ferreira de Almeida. In memoriam, II, Porto, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 1999, pp. 363-374.

SILVA, António Manuel S. P.; MENÉNDEZ, Jorge Argüello; CAVALHEIRO, José T.; RIBEIRO, Manuela
C. S. – Elementos paleometalúrgicos do castelo de Valinhas (Arouca, Portugal), Cadernos do Centro
de Arqueologia de Arouca, N.º 1, Arouca, 2002.

SILVA, António P. da (coord.) – Memórias da Terra. Património Arqueológico do Concelho de Arouca,


Arouca, 2004, p. 351.

GEO-ANTROPOLOGIA DE ALVARENGA, PORTA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – Inventariação e levantamento do seu Património 9/9

Você também pode gostar