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Proto-História
Raquel Vilaça*
* Instituto de Arqueologia. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto (FCT).

Introdução históricas do concelho do Sabugal. Se é certo que alguns deles


A Proto-História compreende as designadas Idade têm decorrido de achados casuísticos e inesperados, a verdade
do Bronze Final e Idade do Ferro, período esse que decorre é que só com a realização de mais escavações cientiicamente
entre inais do II-inícios do I milénio a. C. e os séculos III-II conduzidas poderemos fundamentar e construir um quadro
a. C. Trata-se de uma longa fase de profundas transformações substancial e globalmente coerente do povoamento proto-
(e contradições), persistindo ainda determinadas matrizes histórico. Por exemplo, dados conducentes à reconstituição
pré-históricas, mas em que se incorporam já também outros paleoambiental só se obtêm mediante escavações.
aspectos de características “para-históricas”, que culminarão Entre os primeiros registos sobre a Proto-história
naqueles últimos séculos com a chegada dos Romanos. da região do Sabugal, contam-se os que foram escritos pela
As populações que habitavam então a região onde, pena de Joaquim Manuel Correia nos inícios do séc. XX
muito tempo depois, se formará o concelho do Sabugal, (Correia, 1905). De então até hoje, muito outros e variados
deixaram diversos testemunhos materiais relativos aos sítios contributos se somaram, todos eles importantes para a
onde viviam, como viviam, o que faziam e fabricavam, com reconstrução desse nosso longínquo Passado.
quem tinham contactos, etc. Esses vestígios, que são alvo do É justo destacar aqui a frutuosa cooperação
estudo da Arqueologia, encontram-se espalhados por todo que, desde há longos anos, tem sido desenvolvida entre
o concelho, desde as serranias mais orientais e meridionais, investigadores locais e outros ligados ou formados no Instituto
até aos planaltos ocidentais que prolongam a Meseta sobre de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de
a Cova da Beira, passando pelas terras centrais da Beira- Coimbra, a que se somou o imprescindível empenho do
Côa. Sublinhe-se que na própria sede do concelho foram Município do Sabugal, de que a recente criação do Museu é
recentemente identiicados importantes vestígios proto- apenas uma das suas expressões. Mas nem aquele (o passado
históricos, mas também outros ainda mais remotos, como Proto-histórico) nem este (o Museu) seriam o que hoje
icou demonstrado no texto anterior. podemos dizer e mostrar de cada um deles, sem a preciosa
Embora sejam já numerosos — e alguns muito colaboração de muitos dos habitantes do Concelho que
importantes —, aqueles vestígios são ainda insuicientes para deram informações sobre sítios ou doaram ao Museu peças
podermos caracterizar com segurança as comunidades proto- que possuíam, num exercício de verdadeira cidadania.
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Desta forma, achados ocasionais, outros que as populações se sentissem seguras. A natural visibilidade
provenientes de prospecções intencionais e mais alguns de alguns — constituindo-se marcos de referência no espaço
outros resultantes de escavações cientíicas realizadas nas duas
últimas décadas, permitiram recolher um conjunto muito
importante de dados sobre a Proto-história do Sabugal.
Recentemente, no âmbito da elaboração da “Carta
Arqueológica Municipal”, foi publicada uma síntese sobre
o I milénio a. C. no Alto Côa (Osório, 2005a), na qual se
encontram reunidos quase todos os dados conhecidos
relativos àquele período. Pouco mais há a acrescentar; mas,
entre o pouco mais existente, merece destaque uma nova estela
encontrada no Baraçal, em curso de estudo, e que se prevê
possa (e deva) brevemente dar entrada no Museu. Muitos
outros dados haverá, ainda desconhecidos. A síntese que se
segue é, assim, necessariamente incompleta e provisória.

A Ocupação Proto-histórica
Tal como na maior parte das regiões circunvizinhas,
a transição do II para o I milénio a. C. expressa-se no concelho
do Sabugal por um número signiicativo de testemunhos
arqueológicos que contrasta com a total, ou quase total,
omissão de registos reportáveis às fases imediatamente
anteriores, isto é, o Bronze Antigo e o Bronze Médio.
Tudo indica que naquela altura se veriicou
um duplo e simultâneo processo de concentração da
população, por um lado, e ocupação de lugares destacados e
Fig. I – Trabalhos arqueológicos no Castelejo (Sortelha).
individualizados no espaço, por outro. Poderão ter co-existido
outras modalidades de ocupação do espaço, concretamente —, poderia ser reforçada com a construção de muralhas
em encostas suaves e terras baixas, de forma mais diluída e que, de longe e de baixo, seriam avistadas. Tal é o caso do
dispersa, mas delas muito pouco se sabe. E, mesmo os sítios Castelejo (Soretelha)(Fig. I), onde se concentra uma massa
recentemente identiicados com essas características, como de ciclópicos aloramentos graníticos, limitando-se a muralha
Carapito (Aldeia da Ribeira), Carrascal (Rebolosa), Matrena a um pequeno troço na zona mais exposta e depressionária.
(Aldeia da Ponte), entre outros (Osório, 2005a: 40), carecem Pelo contrário, dos espaços funerários nada se sabe,
ainda de suicientes dados empíricos que nos informem da ainda que as estelas, adiante comentadas, também possam
sua inequívoca cronologia. estar relacionadas com a morte. Quer as práticas e rituais
A concentração das populações e a procura de funerários característicos da época — além da inumação,
abrigo em lugares elevados, mais fáceis de defender, poderão particularmente a incineração dos corpos ou a sua exposição
traduzir um sentimento de insegurança, que não devemos ao ar livre, à mercê de abutres e de outros animais —, quer
descartar. Mas essa tendência pode simplesmente expressar a eventual deposição de partes desconexas do esqueleto no
uma estratégia de implementação de domínio e controlo próprio espaço habitado, ou nas suas imediações, como que
do território, numa altura em que os lugares habitados se “um regresso a casa”, ou antes, uma “não partida”, ajudam
constituem como pólos estruturantes e de referência das a compreender o silêncio quase total das fontes que nos
populações. E, mesmo sem ameaças reais, ocupar um local poderiam falar dos mortos de há 3000 anos (Vilaça, 2000).
elevado seria, por si só, e em termos psicológicos, bastante para Mas este, não obstante a existência de alguns indícios
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em regiões vizinhas, é um campo ainda desconhecido no identiicados por materiais de superfície, designadamente
concelho do Sabugal. elementos de moinhos de vaivém e fragmentos cerâmicos
O certo é que a região conheceu uma importante de fabrico manual. Em certos casos são ainda visíveis restos
ocupação proto-histórica, de que são eco os povoados de muralhas ou taludes, mas não é possível atribuir-lhes
existentes, as expressivas estelas e os inúmeros materiais uma cronologia precisa, uma vez que terão sido construídas
encontrados de forma avulsa, mas certamente relacionados muralhas em distintos momentos ao longo do I milénio a. C.
com focos de habitat. Esta questão só poderá ser esclarecida com
Não é de maneira alguma surpreendente este intervenções arqueológicas, por exemplo, no monte de
panorama numa região com terras de cultivo e de pastos, São Cornélio (Sortelha) e no Castro da Serra da Opa
por um lado, e de particular riqueza mineira de estanho, (Moita), ambos muralhados, com fragmentos de cerâmica
mas também de algum cobre e ouro, por outro. Aquelas manual (Vilaça, 1995: 92, 124; Osório, 2005a: 38), mas para
proporcionariam os meios indispensáveis à sobrevivência os quais não é possível precisar a cronologia adentro da
da população, oferecendo ainda condições para a criação de Proto-História. Na verdade, não são conhecidas com rigor
gado, designadamente bovino, que deveria constituir uma as técnicas construtivas das muralhas do I milénio a. C. na
das riquezas da época. O cobre e o estanho, em ilões ou em região, pelo que também não é possível deinir a cronologia
aluvião, indispensáveis para o fabrico do bronze, colocaram a da muralha do povoado da Senhora do Castelo (Bendada),
região — podemos dizê-lo assim — no mapa, uma vez que foi onde foram recolhidos materiais cerâmicos incaracterísticos
o metal um dos principais catalizadores de desenvolvimento e outros já romanos (Osório, 2005a: 39).
das comunidades durante o Bronze Final. Por isso, e para Em situação idêntica encontra-se o povoado
além da sua posse, importava controlar os caminhos por da Serra das Vinhas ou Cabeço dos Mouros (Penalobo),
onde circulava e que conduziam às regiões dele carentes. também com muralhas e já assinalado por Correia (1905:
Mais tarde, na Idade do Ferro, noutros moldes e 203; 1988: 197) em virtude dos “restos de muros…, vestígios
com distintas características, o trabalho do ferro passou a fazer de casas, grande porção de cacos”. Neste caso, e não obstante a
parte das actividades das populações, mas jamais conhecerá diminuta expressividade dos materiais cerâmicos recolhidos
o papel cimeiro antes desempenhado pelo bronze. A riqueza à superfície — fabricos manuais grosseiros, alguns com
será, doravante, avaliada por outros critérios entre os quais decoração plástica mamilar —, além de duas lascas residuais
se destacará a exploração agro-pecuária, talvez com uma de quartzo, a descoberta no local, em inais do séc. XIX, de
especial vertente na criação de gado bovino, caprino e suíno. dois braceletes de ouro, abertos e maciços, infelizmente
Ainda que seja bastante frágil a base empírica para tal asserção desaparecidos (Sarmento, 1883: 15), permitem-nos conirmar
— o que signiica ser necessário investir em escavações de a ocupação do sítio na transição do II para o I milénio a. C.
povoados da Idade do Ferro —, o certo é que a terra não (Vilaça, 1995: 85). Tal não signiica que essa ocupação não se
pôde deixar de ser valorizada, mas, mais do que isso, passou tivesse prolongado pela fase seguinte, altura em que poderia
a fazer parte do próprio universo identitário das comunidades. ter sido construída a muralha.
Consequentemente, este processo de identiicação, isto é, de De qualquer modo, é provável que neste e noutros
apropriação efectiva e conceptual, conduziu à coniguração de sítios mais, a cronologia das muralhas seja bastante dilatada
territórios, logo, também de fronteiras. Deini-las e saber quem no tempo, pois não se pode circunscrevê-la ao momento da
foi vizinho de quem, sendo certo que todos eram Lusitanos, construção, sendo necessário contar com inevitáveis reparos
é uma das difíceis linhas de pesquisa que os arqueólogos e transformações decorrentes da possível diacronia de
perseguem (Alarcão, 2001). ocupação dos sítios.
Próximo do Cabeço dos Mouros existe uma
Sítios, estruturas e materiais da Proto-história Antiga cavidade granítica conhecida por Lapa do Urso e localizada
Os dados conhecidos permitem-nos atribuir na vertente sudoeste da serra, onde foram encontrados alguns
aos inais do II milénio a. C. e aos primeiros séculos do materiais arqueológicos, designadamente instrumentos de
milénio seguinte cerca de 25 sítios de habitat, na maioria sílex (Correia, 1905: 203; Vilaça, 1995: 92; Osório, 2005a:
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38). Mais uma vez, sem escavações, não é possível entender CCXXIII-3 e outros inéditos). Esta categoria de cerâmica
o porquê da existência desses materiais: poderão resultar de corresponde a um dos principais testemunhos da existência
materiais arrastados do topo do povoado ou poderão revelar de contactos entre as comunidades da Raia e as que habitavam
uma efectiva utilização / ocupação da lapa com inalidade as terras mesetenhas hoje espanholas.
habitacional, ritual, funerária, etc.? Há que escavar. As escavações que tivemos oportunidade de realizar
O estado actual dos nossos conhecimentos e a no povoado do Castelejo (Sortelha) em inais dos anos 80
limitada qualidade informativa daqueles vestígios impedem do século passado estão na origem de vários trabalhos já
que se avance com cronologias muito precisas no âmbito da publicados (Vilaça, 1993; 1995: 90-124; 1998).
Proto-História Antiga. Uns datarão do Bronze Final (sécs. O sítio onde se localiza a estação corresponde a dois
XI-IX a. C.), mas outros deverão ser já da I Idade do Ferro pequenos mas destacados cabeços graníticos e à plataforma
(sécs. VIII-VI a. C.). Haverá ainda situações que poderão ter em “sela” encaixada entre ambos (Fig. II). O cabeço mais
conhecido, de forma contínua ou não, distintas ocupações ao elevado, a 855 m de altitude e com uma área útil de apenas
longo do milénio. cerca de 400 m2, revelou uma ocupação intensa tendo em
Noutros casos, como sucede com os sítios de
Cantos (Sortelha), Alfaiates, ou Seixo Branco (Aldeia da
Ribeira), os dados são de qualidade muito mais frágil, pelo
que pouco mais podemos dizer do que tratar-se de estações
arqueológicas pré-romanas. Por seu lado, o povoado de
Castelos de Ozendo (Quadrazais) forneceu distintos
materiais, incluindo cerâmicas de fabrico manual e a torno,
e uma elegante conta de colar toneliforme de turmalina
ou basalto, mas também não autorizam cronologias muito
precisas (Osório, 2005a: 39-40).
São, pois, variados os testemunhos da ocupação do
I milénio a. C. do concelho, mas, de momento, pouco vão
mais além do que sugestivas pistas a conirmar e caracterizar
futuramente.
Fig. II – Vista do povoado de Castelejo (Sortelha).
As informações mais consistentes sobre povoados
da Proto-História Antiga reportam-se aos casos — apenas conta a quantidade de materiais, designadamente cerâmicos.
três — que foram alvo de escavações: Sabugal, Castelejo Contam-se taças carenadas, utilizadas no consumo individual
(Sortelha) e Serra Gorda (Águas Belas). de líquidos e sólidos, formas bitroncocónicas, potes de
As intervenções desenvolvidas nos últimos anos na armazenagem, outros de uso culinário, alguns com pegas,
área urbana do Sabugal revelaram importantes informações outros com asas de ita, por vezes de notável originalidade,
relativas às ocupações pré e proto-histórica, o que confere uma com remate de contorno oval (Peça n.o 45), etc. Algumas
origem milenar à ocupação humana do morro onde se ergueu formas muito raras, como o fundo de possível tacinha com
o castelo e se desenvolveu o burgo medieval. É precisamente cinco ônfalos (depressões circulares) (Vilaça, 1995: Est.
deste local, num meandro do Côa, que chegaram até nós XVII-1) ou o recipiente geminado, infelizmente reduzido
alguns testemunhos que remetem para uma ocupação de a um pequeno fragmento, sugere a sua utilização para ins
inais do II milénio / inícios do I a. C., como bem ilustram rituais. As decorações são raras, mas estão presentes variadas
o provável fragmento de foice de bronze (Peça n.o 79) e a técnicas, desde as incisões e impressões, até aos motivos
cerâmica de “tipo Cogotas” (Peça n.o 71), com decoração brunidos e aplicações plásticas (Peças n.os 41 a 43 e 46 a 47).
incisa e pontilhada em ambas as superfícies (Osório, 2005: Particular destaque merecem os vestígios que
Est. 16-2), cujos paralelos mais próximos encontramos no testemunham a prática local da metalurgia do bronze, o
povoado da Moreirinha (Idanha-a-Nova) (Vilaça, 1995: Est. que não espanta dada a proximidade dos recursos mineiros
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do vale da ribeira de Quarta Feira, explorados na época, As famílias abrigavam-se em toscas cabanas feitas
como prova o machado adiante mencionado. Para além de com troncos, ramagens, barro e algumas pedras, cujos
algumas peças de bronze, como pequenas argolas, importam vestígios se circunscrevem a buracos de poste e toscos
sobretudo os instrumentos de trabalho, como os cadinhos de alinhamentos de pedra. As lareiras em pedra e argila —
cerâmica de paredes espessas (Fig. III) e os moldes de pedra para aquecer, cozinhar, iluminar, comunicar (através do
(Peça n.o 75). Naqueles era derretido o cobre e o estanho, fumo) com outros povoados, ou constituindo o pólo que
como evidenciam os restos de metal aderentes no interior agregava a família — estão presentes no espaço habitado do
Castelejo. Os habitantes construíram ainda uma estrutura
defensiva com pedras graníticas, entre as quais se contavam
igualmente elementos de moinho, sem qualquer tipo de
argamassa a interligá-las; embora muitíssima destruída,
os alicerces denunciam uma construção que terá sido de
alguma envergadura. Por outro lado, a sua localização numa
área de depressão, mais vulnerável, entre dois núcleos de
aloramentos, legitima uma função defensiva e/ou protectora
do lado nascente da estação (Fig. I). Não sabemos se havia
inimigos a evitar, mas decerto que, sem barreiras, os animais
de criação sairiam e os selvagens facilmente entrariam.
Ao Castelejo não parecem ter chegado bens
reveladores de contactos supra-regionais, que encontramos
em outros povoados da Beira Interior. Pelo contrário, tudo
aponta para um cunho marcadamente regional e no qual a
produção do bronze desempenhou particular importância.
Fig. III – Cadinhos de cerâmica do Castelejo (Sortelha).
Decerto que haverá outros sítios ainda não conhecidos que
terão assumido esse papel de maior vocação nos contactos
junto aos bordos. Nos segundos era vertida a liga de bronze com outras regiões mais distantes.
que, uma vez solidiicada, dava origem aos objectos, como Embora limitados e circunscritos a breves
hastes, punções, sovelas, etc. sondagens e prospecções, foi ainda possível desenvolver, em
Alguns metais — fragmento de foice (Fig. IV),
vareta, argolas e pedaços disformes — foram submetidos a
análise química com o objectivo de se conhecer a composição
e qualidade das ligas, as quais revelaram tratar-se de bronzes
de elevada qualidade, com percentagens de estanho na ordem
dos 11/12% (Merideth, in Vilaça, 1997: 147; Vilaça, 1997)1.
Outras actividades estão testemunhadas, ainda que
indirectamente, desde a agricultura, expressa nos numerosos
elementos de moinho em granito de tipo vaivém, e talvez
Fig. IV – Fragmento de foice de bronze do Castelejo (Sortelha).
ainda pelo fragmento de foice de bronze, até à pesca e / ou
tecelagem, como revelam os doze pesos sobre seixos naturais 2002, alguns trabalhos de campo na estação arqueológica
com entalhes (Peça n.o 87). de Serra Gorda. Para além do seu interesse em termos
etnoarqueológicos, os dados obtidos revelaram tratar-se
1
Estes resultados reportam-se a análises de Espectroscopia de Energia de um outro povoado com ocupação de inais da Idade do
Dispersiva efetuadas sob a orientação de Craig Merideth, que se seguiram a
outras antes realizadas e cujos resultados não foram perfeitamente entendíveis
Bronze (Vilaça, et al, 2004).
(Seruya, in Vilaça, 1995: 470; Vilaça, 1995: 353). A sua localização obedece ao modelo mais comum
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para a época, uma vez que ocupa o topo da extremidade devem ser mencionadas cerâmicas grosseiras, de superfícies
nordeste da linha de relevos que marca a paisagem entre o tratadas com escova (“cepilladas”) e outras de fabricos inos
Planalto do Sabugal e a Cova da Beira (Fig. V), numa zona com formas carenadas; os fragmentos decorados não são
numerosos, destacando-se os puncionamentos arrastados
e os motivos incisos em espinha, que revelam estreitas
ainidades com o vizinho mundo mesetenho de Cogotas
I. Foram ainda recolhidos cerca de quinze elementos de
moinho de tipo vaivém (dormentes e moventes) e um peso
(de pesca ou de tear).
Estes elementos permitem-nos pensar que
os habitantes da Serra Gorda de há cerca de 3000 atrás
constituiriam um grupo de dimensão modesta, vivendo
da agricultura e, certamente, do pastoreio. Embora não
tenham sido encontrados quaisquer elementos relativos à
prática da mineração e metalurgia, é possível que estivessem
Fig. V – Vista do povoado da Serra Gorda (Águas Belas).
familiarizados com elas, seja pelas relações que teriam com
onde pontuam gigantescas penedias graníticas cortadas por os habitantes do Castelejo, apenas a cerca de 4,5 km em linha
diversos vales fechados. Deste modo, exercia-se um amplo recta, seja pela proximidade de uma das mais importantes
domínio visual sobre as terras da Cova da Beira e Serra áreas da região com minas de cobre e de cassiterite.
da Estrela, bem como em relação aos relevos residuais do 2.2. Artefactos, ditos, descontextualizados
Rebordo da Meseta. Tal como no Castelejo, as populações Tal como em muitas outras regiões, no concelho
deveriam habitar em toscas cabanas de que, todavia, não foram do Sabugal tem-se veriicado, de tempos a tempos, o achado
identiicados quaisquer vestígios. É apenas visível, na encosta casual de artefactos de bronze. Pelo menos para alguns deles é
nordeste e ao longo de cerca de 80 m, um talude constituído possível, não obstante o seu carácter isolado, correlacioná-los
por pedras e terra. Ainda não foi possível proceder a uma com outros vestígios que lhes conferem determinado sentido.
completa escavação que proporcione outras informações. Muito perto da Serra Gorda desenvolve-se
Entre os materiais arqueológicos existentes (Fig. VI), o apertado vale da ribeira de Quarta-Feira, no qual se
concentram importantes recursos
mineirais de cobre e estanho: a sua
exploração foi intensa em inais do
séc. XIX, por exemplo, em Vale da
Arca, Tapada da Tenda, Tapada dos
Condeiros, Quinta dos Vieiros, etc.
Foi numa destas explorações que se
encontrou, a 12 m de profundidade,
um machado de talão e de uma
argola, conhecido como sendo
de Quarta-Feira (Monteiro et
al., 1889: 486; Veiga, 1891: 225 e
Est. XXIII-14; Correia, 1905: 206;
Vilaça, 1995: 86).
Os dados disponibilizados
nos registos camarários de
Fig. VI – Fragmentos de cerâmica do povoado da Serra Gorda (Águas Belas). licenciamento de minas indicam
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que, à data do achado, só as de Tapada da Tenda e do Vale junto à capela da Sr.ª das Preces que se ergueu no pequeno
de Arca estavam em funcionamento (Osório, 2005a: 36), morro sobranceiro ao Côa, apareceram cerâmicas de fabrico
o que torna pouco credível a ideia, até aqui divulgada, de manual, designadamente de superfícies “cepilladas”, e
que o machado seria da mina da Carrasca ou da Bica. À um elemento de mó de tipo vaivém, o que quer dizer que
mina da Carrasca parece ser certa, porém, a atribuição estaremos, com toda a probabilidade, perante um outro
de cinco machados de pedra polida, um dos quais habitat de inais da Idade do Bronze (Osório, 2005a: 37).
publicado (Vasconcelos, 1920: 90). Informações mais precisas são as que se reportam
A importância daquele machado, que à espada de bronze de Vilar Maior, descoberta
recentes análises revelaram corresponder a uma liga de casualmente em 1957 (Rodrigues, 1957; Nunes e
cobre (75.6%) e estanho (23.8%) (Melo et al., 2002: 111), Rodrigues, 1957). O achado sugere que deveremos estar
decorre do seu original contexto de achado. Proveniente perante a deposição intencional de uma peça de bronze
de uma mina, mas não se tratando propriamente de na periferia de um povoado (Vilaça, 2000: 41). A arma, de
um instrumento de mineração, poderia ter servido tipo pistiliforme, com 64 cm de comprimento e 565 g de
para preparar madeiras de eventuais entivações nos peso (Fig. VII), foi encontrada em posição de gume num
trabalhos aí desenvolvidos (Vilaça, 1998: 351). Contudo, desaterro próximo do castelo, juntamente com cerâmicas
não podemos descartar outras hipóteses de índole e escórias (Rodrigues, 1957; 1961: 11). Em 2001 tivemos
mais simbólica, na linha daquela que tem valorizado a oportunidade, juntamente com Marcos Osório, e por
deposição de peças de bronze em minas como metáforas informação de um habitante de Vilar Maior, de identiicar
do retorno do metal à terra-mãe, isto é, à sua condição em concreto o local de achado, que ica na encosta poente
original de minério. do morro do castelo, junto a um aloramento granítico.
Além destes elementos, é necessário referir É, indiscutivelmente, um dos mais importantes
outros achados no concelho do Sabugal que reforçam achados metálicos do Bronze Final do território português,
a importância destas terras na transição do Bronze até pelo seu estado de conservação, completa, embora
Final para a Idade do Ferro, alguns dos quais podem corroída, merecendo ser valorizada num estudo mais
ainda reportar-se directamente a outros núcleos de aprofundado e abrangente do sítio. As sondagens realizadas
povoamento proto-histórico. em 1997 por Marcos Osório na encosta meridional do
Encontram-se nesta situação os achados cabeço, sem serem totalmente conclusivas, trouxeram à
metálicos de Vila do Touro, Caria Atalaia e Vilar Maior. luz do dia um conjunto de materiais cerâmicos manuais e
Infelizmente, desconhecemos as condições a torno que parecem reforçar a hipótese de o sítio ter sido
de achado e o paradeiro do machado de Vila do Touro, ocupado na Idade do Bronze e, decerto, correlacionáveis, em
o que nos impede saber o seu tipo, dimensões, estado parte, com a existência da espada. Achados recentíssimos,
de conservação, etc. (Correia, 1988: 237; Vilaça, 1995: já efectuados em inícios do corrente ano junto à matriz
85). É tentador relacioná-lo com os materiais cerâmicos de Vilar Maior2 conirmam em pleno a existência de um
identiicados na zona das ruínas do castelo medieval, mas importante povoado proto-histórico no local
cuja cronologia é, porém, ainda imprecisa (Osório, 2005a: Tudo indica, em relação à espada, que estamos
37). Todavia, o achado reveste-se de especial signiicado perante uma deposição de carácter ritual, porventura
tendo em conta que, não muito distante, para sudeste, evocativa da morte de alguém importante, pois
corre o ribeiro do Moinho junto ao qual se achava a determinados artefactos — como é o caso da espada —
primeira das estelas da zona de Baraçal (Curado, 1984). personiicavam, pelo seu valor simbólico, aqueles a quem
Em situação muito semelhante encontra-se o pertenceram, isto é, certos objectos não são separáveis das
machado, fragmentado, de Caria Atalaia, pertencente ao pessoas (heherne, 1995). Nesta linha de raciocínio, não
Museu Nacional de Arqueologia, mas que não foi possível admira que a extremidade da ponta da espada se encontre
localizar para estudo (Vilaça, 1995: 85). Também neste caso,
2
Fig. VII – Espada pistiliforme de bronze de Vilar Maior. Informação de Marcos Osório, a quem agradecemoa.
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fracturada, isto é, inutilizada, como que “sacriicada”, Do segundo sabemos que é de “cerca de Vila Boa”, segundo
reiterando a morte do proprietário (Vilaça, 2000: 40). icha do Museu Nacional de Arqueologia, sítio próximo aos
Numa perspectiva espacial, também o sítio escolhido Castelos de Ozendo, em região todavia ainda bastante mal
para a deposição não terá sido casual. As comunidades proto- caracterizada no que respeita a ocupação proto-histórica. De
históricas tinham já uma profunda percepção da orientação contexto conhecido é o pequeno escopro do Sabugal Velho
e dos princípios cosmológicos, pelo que não terá sido (Osório, 2005a: 65, Est. 19-3).
oportunista a sua deposição do lado do Sol Poente, quando o A bibliograia refere ainda o aparecimento de
dia dá lugar à noite e, portanto, à vida sucede a morte. artefactos metálicos na povoação de Malcata, cujo paradeiro
Por outro lado, e admitindo que o núcleo principal é, porém, desconhecido. Tratar-se-ia de uma possível ponta de
do povoado se localizava no topo do monte, como é hábito lança (ou de espada) (Pereira e Bento, 1979: 607; Vilaça, 1995:
pelo que conhecemos de outros habitats coevos de concelhos XXX) e de uma ponta de “tipo Palmela” (Rodrigues, s/d: 233),
vizinhos (Fundão, Penamacor, Idanha-a-Nova, etc.), o seu que, neste caso, poderia remeter-nos para uma cronologia da
sítio de achado nos limites do povoado permite incluí-la no primeira metade do II milénio a. C. ou ainda de inais do III
que designamos por “depósitos periféricos” (Vilaça, 2006). milénio a. C. (Vilaça, 1995; 2007a).
Trata-se da deposição de bens de elevado valor, em zonas de Reira-se, por im, que o machado plano atribuído
‘fronteira’ entre os povoados e o seu espaço circundante mais ao Sabugal é datável, pelas características morfológicas e
imediato, como forma de marcação cultural do território composição metálica (cobre com impurezas de arsénio e
através da projecção para fora dos núcleos dos espaços prata), do Calcolítico Final ou Bronze Inicial. Mas nada
habitados do poder exercido e reproduzido naqueles. impede que possa igualmente reportar-se a ocupações mais
Conhecemos mais alguns outros materiais do tardias, altura em que machados desse tipo ainda circulavam,
Bronze Final do concelho do Sabugal, mas sobre eles nomeadamente pelo seu valor de metal, ou continuariam
sabemos muito pouco. Estão neste caso os machados do mesmo a ser produzidos. E, se é certo que é possível relacioná-
Soito e de Lajeosa da Raia, pertencentes ao Museu Nacional lo com a ocupação calcolítica identiicada no Sabugal
de Arqueologia e ao Museu Regional da Guarda. (Perestrelo e Osório, 2005: 214), também é verdade que, em
Do machado do Soito ignoram-se as suas rigor, ignoramos as circunstâncias em que apareceu. Nada obsta
circunstâncias de achado (Vilaça, 1995: 86); mas, tratando-se que a sua atribuição ao Sabugal seja entendida como sendo da
de um machado de talão unifacial e de uma argola (Peça n.o região do Sabugal e não da própria vila em si, até porque a sua
81), corresponde a uma produção característica do Centro oferta ao Museu Nacional de Arqueologia, em 1911, foi da
do território português. responsabilidade de Diogo Lopes, do Souto, segundo consta na
Quanto aos dois machados de Lajeosa da Raia respectiva icha manuscrita (Vilaça, 1995: 86; 2007a).
são ambos do mesmo tipo, de talão e de duas argolas, De um modo ou de outro, o que importa reter é
apresentando um deles uma das argolas fragmentada que a metalurgia do bronze — sua produção, circulação
(Vilaça, 1995: 86). Do seu achado, apenas sabemos que e deposição — era conhecida entre a população, como
um foi casualmente encontrado em casa de um lavrador atestam os artefactos e as suas circunstâncias de achado, mas
(Villas-Boas, 1948: 38), não sendo certo nem provável, por igualmente os meios de produção existentes nos povoados:
conseguinte, que constituíssem um depósito duplo como foi moldes e cadinhos, além de restos de fundição e da própria
sugerido (Monteagudo, 1977: 207-208). matéria-prima — estanho e cobre.
Além destes machados, temos também os
escopros de Aldeia do Bispo e de Vila Boa, de que, mais 2.3. Estelas do Bronze Final
uma vez, se desconhecem as condições de achado, não sendo Entre as comunidades da Idade do Bronze existiam
possível, por ora, relacioná-los com outros testemunhos indivíduos que se destacavam por controlarem territórios e os
de ocupação (Vilaça, 1995: 85). Note-se, contudo, que o mecanismos de produção e / ou troca de bens, concretamente
primeiro, pertencente ao Museu Nacional de Arqueologia, os que assumiam maior valor na época, como metais, gado,
provém de uma zona não muito distante de Lajeosa da Raia. peles, etc. Uma das fórmulas encontradas para se exercer essa
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liderança e se exprimir publicamente o poder consistiu na elementos, como o espelho, deixaram de ser excepção.
manipulação ideológica de determinados artefactos — com Os espelhos existentes, à época, no mundo do
destaque para as armas —, ou da sua imagem, e no jogo de Mediterrâneo Oriental e Central (Sardenha, por exemplo)
constrangimentos que o(a)s mesmo(a)s originavam. Por si só, tinham um carácter mágico e funerário, mas também se
o simbolismo guerreiro, era um factor de intimidação e, por associavam ao tratamento da imagem e do corpo dos mais
conseguinte, de domínio. Desconhecedores da palavra escrita, poderosos. Até ao momento, ainda não foram encontrados
a comunicação através da imagem altamente codiicada e de entre nós espelhos em contextos do Bronze Final, mas, mesmo
percepção imediata, gravada na pedra, revelou-se um meio sem objectos reais, a sua imagem “relectida” na pedra indica,
eicaz de o “chefe” marcar a sua presença e exercer o seu poder. juntamente com vários outros indicadores, que aquele não
É esta peculiar forma de ostentação do poder que encontramos era um mundo desconhecido no Centro-ocidental peninsular
nas estelas dos Fóios e do Baraçal 1, semelhantes a algumas (Vilaça, 2007b). Por outro lado, a inclusão deste elemento, de
outras conhecidas nesta vasta zona montanhosa da Estrela à cronologia tardia, neste grupo de estelas, não vem favorecer
Gata e do Sudoeste Peninsular em geral. a tese de uma evolução do simples para o complexo, de norte
As estelas expostas no Museu do Sabugal, encontradas para sul, com elementos exclusivamente indígeno-atlânticos
por mero acaso, exibem uma composição muito simples e ou já incorporando outros de clara origem mediterrânea.
altamente padronizada, com escudo central, espada e lança As estelas eram marcos colocadas ao alto (segura-
(Curado, 1984; 1986). Na dos Fóios (Peça n.o 108) os motivos mente as duas de Baraçal, mais incerta a de Fóios), implantados
foram gravados, como é usual neste tipo de monumentos, ao na terra, mas a mensagem e funcionalidade especíicas deste
contrário dos da estela de Baraçal 1 (Peça n.o 107), que são em tipo de estelas perdeu-se. A abundante bibliograia existente
relevo. Existem inúmeros exemplares de lanças e de espadas, sobre o tema atribui-lhes ora um carácter funerário, como
mas não de escudos, o que não admira, pois seriam de madeira marcadoras de sepulturas ou evocando o local da morte de
ou couro, mais eicazes para aparar golpes ou estocadas, como alguém, ora como elementos sinalizadores de territórios,
se comprovou em experiências efectuadas em Inglaterra. recursos críticos (minérios e zonas de pasto), caminhos, zonas
A iguração daquelas armas evoca, portanto, de passagem, fronteiras, etc. Possivelmente, nem terá existido
exemplares que fariam parte dos apetrechos de transiguração uma única explicação concreta, nem algumas daquelas anulam
do “chefe”. Quem os usava, porque lhe era legítimo, distanciava- necessariamente as outras.
se do ponto de vista físico e sócio-político daqueles a quem Qualquer que ela(s) tenha(m) sido, é a mensagem
eram interditos. Mas, além das armas, o poder também se perene, porque inscrita na pedra através de signos signiicantes,
expressava através da manipulação de determinados bens que são “lidos” ali, mas que não deixam também de ser
de elevado valor (ou dos seus símbolos), fosse pela matéria- projectados no espaço, que faz das estelas verdadeiros
prima, fosse pelo seu exotismo e carácter exógeno.
Assim se explica que uma segunda estela encontrada
no Baraçal3 exiba, conjuntamente com um escudo, uma lança
e uma espada, também um espelho (Fig. VIII), tal como a
de San Martín de Trevejo (Cáceres) e uma outra também
recentemente encontrada, a de Pedra da Atalaia (Celorico da
Beira)4. A pureza tipológica deste grupo de monumentos mais
setentrionais, tradicionalmente caracterizada pelo escudo,
espada e lança, terá de ser, doravante matizada, pois outros

3
O achado foi feito em Maio de 2006 no decurso de obras efetuadas no quintal
da casa da Sr. ª D. Amélia Lages. O estudo da estela está a ser desenvolvido por
Raquel Vilaça, André Tomas Santos e João Nuno Marques.
4
Encontrada pela equipa de Soia Gomes, a quem agradecemos a informação.
Fig. VIII – Estela do Bronze Final do Baraçal 2.
Em curso de estudo, sob a coordenação da autora.
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instrumentos de comunicação de uma sociedade elitista sem deinida, o que signiica, apenas, que sabemos ainda muito
que, todavia, um dos interlocutores tivesse de estar necessária pouco. Importaria — importará futuramente — obter mais
e isicamente presente. E é ainda da faceta memoralista das informações sobre as estações de S. Cornélio (Sortelha),
comunidades da Idade do Bronze que tratamos quando procura- Senhora do Castelo (Bendada), Serra da Opa (Moita), entre
mos compreender este tipo de testemunhos (Vilaça, 2000: 39). outras. Uma vez mais, é o paciente, moroso, por vezes muito
No caso das estelas conhecidas em território duro, mas quase sempre compensador trabalho de escavação
dos Lusitani — Fóios, Baraçal 15, Meimão (Penamacor), que nos proporciona os dados de maior consistência.
San Martín de Trevejo e Hernán Pérez (Cáceres) — foi- Nas sondagens efectuadas no Sabugal foi possível
lhes atribuída uma função essencialmente demarcadora comprovar que pelo menos o morro do Castelo foi ocupado
de fronteiras entre povos: as duas últimas encontram-se no Bronze Final. No período seguinte, a população não
na fronteira mais oriental dos Lancienses Oppidani; as de abandonou a área da actual vila do Sabugal, mas é bem
Fóios e de Baraçal (agora duas) na fronteira dos Lancienses possível que se tenha deslocado para uma cota inferior
Transcudani; a de Meimão icaria na extrema norte-ocidental (Vilaça, 2005: 18), ou simplesmente expandido para uma
dos Lancienses Oppidani (Alarcão, 2001: 333). Nesta linha área mais vasta.
de raciocínio, e de algum modo reforçando-a, a estela da É precisamente daí que provêm inequívocos e
Pedra da Atalaia (Celorico da Beira) marcaria a extrema interessantes testemunhos da Idade do Ferro resultantes de
sudeste do povo que aí habitaria, fossem Interannienses ou sondagens realizadas a nascente da muralha leonesa, no actual
Tapori, consoante as distintas propostas existentes, problema Museu Lapidário (Osório e Santos, 2003: 375). Referimo-
cuja resolução caberá aos investigadores do período nos, particularmente, às cerâmicas, manuais e a torno,
romano. Por conseguinte, assinalaria ainda a fronteira com estampilhadas e decoradas a pente, com os seus motivos
os Ocelenses, que icavam do lado de lá, na Cova da Beira, circulares, semi-circulares, ornitomorfos (iguras estilizadas
independentemente de existir, pelo meio, uma “terra de de patos) (Peça n.os 67 a 69), que comprovam, juntamente
ninguém” ao longo dos mais altos relevos da serra da Estrela. com outras similares de regiões vizinhas, a continuidade dos
Se as estelas são do Bronze Final, mais incerta, contactos com a Meseta pela 2.ª metade do I milénio a.C.
ainda que defensável (Alarcão, 2001) é a existência de (Osório e Santos, 2003; Osório, 2005a: 61; Vilaça, 2005: 19).
Lusitanos nessa época e já discriminados em distintos populi. Tratando-se de simples sondagens, é natural
Seja como for, e tal como sucederá muitos séculos mais tarde que não seja de monta a informação relativa às estruturas
com a língua dita “lusitana”, utilizando caracteres latinos, que habitacionais e à forma como foi organizado o espaço.
tanto encontramos entre os Magari — inscrição rupestre de Ainda assim, parece que não terão sido muito diferentes,
Lamas de Moledo (Castro Daire) — como entre os Lancienses relativamente ao Bronze Final, as técnicas e os materiais de
Transcudani — inscrição do Cabeço das Fráguas (Pousafoles) construção utilizados. As bases das lareiras eram de barro,
— também as estelas romperam agora a “barreira” da tal como os pavimentos (Fig. IX); das paredes das casas nada
Cordilheira Central. sabemos, mas às estruturas de apoio com postes de madeira,
de tradição milenar, continuava a caber importante papel.
2.4. Sítios, estruturas e materiais da Proto-história Recente Face a estes elementos e aos que foram igualmente
Os vestígios respeitantes à Idade do Ferro no identiicados na zona do Castelo, atrás referidos, é muito
concelho do Sabugal são em número mais reduzido, o que provável que o futuro traga novos dados adicionais resultantes
não traduz, necessariamente, uma diminuição ou perda de de intervenções que venham a ser feitas no centro histórico
importância das comunidades que aí habitaram. do Sabugal.
Como vimos, não são poucos os sítios com indícios Importantes vestígios da Idade do Ferro foram
de terem sido habitados que carecem de uma cronologia bem igualmente encontrados nas escavações realizadas, agora em
área, no Sabugal Velho, nos contrafortes setentrionais da
5
Assim deverá passar a ser identiicada a estela publicada por F. Curado (1984)
serra de Aldeia Velha (Osório, 2005a: 43-44).
para se distinguir da que foi recentemente encontrada, que será Baraçal 2. Quando a velha aldeia medieval fortiicada foi
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mais desenvolvidas e especializadas, quer em termos sociais,


com a existência de famílias estruturadas de forma distinta.
Todavia, a matriz circular na forma de construir mantém-se,
como demonstra uma casa de planta circular, de base pétrea,
com 6 m de diâmetro, escavada no centro do povoado. Pelo
contrário, e como bem assinala Marcos Osório (2005a: 43), é
igualmente sugestiva a localização daquele primeiro edifício,
pois encosta à face interna da muralha, tal como em muitas
outras construções coevas peninsulares.
De entre os materiais mais signiicativos, contam-
se as cerâmicas, quer decoradas a pente, como as que se
encontraram no Sabugal, mas estando aqui presentes os
característicos motivos ondulados e entrançados de expressivo
cunho mesetenho (Peça n.os 54 e 56), quer as que possuem
fabricos mais inos, torneados, com motivos pintados,
característicos do mundo peninsular mais meridional (Peça
n.os 57 a 61) (Osório, 2005a: 44; 2007). Esta dualidade de
Fig. IX – Estruturas arqueológicas do Museu Lapidário (Sabugal).
inluências expressa-se em muitas outras e variadas situações
construída e povoada, já o suave mas destacado outeiro onde de toda a região raiana do Douro ao Tejo, o que lhe confere
nasceu tinha sido habitado, havia mais de XII séculos, por uma faceta multicultural (Vilaça, 2005: 19-21).
populações que talvez procurassem mineralizações de ferro,
tão abundantes na zona. O quase total protagonismo do
bronze já faria parte do passado.
Dessa ocupação mais remota, eventualmente com
raízes no Bronze Final atendendo a alguns indícios, como
os machados de Aldeia Velha, certamente oriundos daqui
ou das imediações (Vilaça, 1995: 85; Osório, 2005a: 43), o
escopro de bronze (Peça n.o 81) e certas cerâmicas de bordos
decorados com incisões e superfícies “cepilhadas”, deve ser
sublinhada a existência de uma sólida muralha de alvenaria,
talvez com 4 m de largura e com enchimento maciço de xisto
e granito (Fig. X); do lado ocidental do relevo haveria uma
Fig. X – Face exterior da muralha proto-histórica do Sabugal Velho (Aldeia Velha).
porta deinida apenas pela discordância do alinhamento
(Osório, 2005a: 43; 2005b: 88-90). Além das cerâmicas, merece referência a fíbula de
Em termos construtivos, são também muito tipo Acebuchal (Peça n.o 85), datável dos sécs. VI-inícios IV
importantes os restos de um edifício já de planta quadrangular a.C., e dois cadinhos, também deste período (Osório, 2005a:
(Osório, 2005a: 43), que assinalam um corte com as formas 44 e Est. 19-1, 2, 4 e 5).
construtivas tradicionais de planta circular ou oval. A adopção Sem se conhecerem com idêntica profundidade
de um novo tipo de planta denuncia não só uma cronologia e precisão na região as demais ocupações de meados do I
já tardia, certamente de meados / inícios da segunda metade milénio a. C., que nos permitiriam vislumbrar as teias da
do I milénio a. C. (que alguns materiais e a própria muralha respectiva rede de povoamento, é difícil entender o porquê
proto-histórica corroboram), mas também, e decerto, o e a forma de funcionamento do interessante povoado do
início de novas formas de organização social, quer no quadro Sabugal Velho.
das actividades económicas e das forças produtivas, agora Uma outra estação de referência já atrás aludida
50 | Raqu el Vi l aça

é o Cabeço das Fráguas (Pousafoles do Bispo), um castro de espaço) é, necessariamente, de traçado incompleto e
muralhado implantado num gigantesco e imponente maciço inseguro. As lacunas são muitas, as interrogações igualmente.
granítico no rebordo ocidental da Meseta (Fig. XI), com É verdade que nem sempre uma maior quantidade de dados
alguns vestígios artefactuais que poderão apontar para uma signiica maior e melhor conhecimento. Mas é desejável que
ocupação ainda de inais da Idade do Bronze (Vilaça et al. outros e novos dados venham a ser encontrados, escavados e
2005: 140; Osório, 2005a: 38-39). estudados. O discurso será, porventura, alterado e a imagem
A celebridade do sítio, local de culto no séc. II d. C., que construímos depois de visitar o Museu e ler estas páginas
portanto já de época romana, advém da inscrição rupestre em dará lugar a outras com contornos e conteúdos distintos.
língua “lusitana” mas utilizando caracteres latinos que refere
um suovetaurilium, isto é, o sacrifício de animais (cordeiro,
leitão, ovelha, touro) a divindades indígenas (Curado, 1996;

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convocaria certamente as populações da região, não sendo, Arqueologia, Porto, 14, p. 103-109.
por isso, irrelevante que se situe em área de fronteira, ou seja, CURADO, Fernando Patrício (1996) - As inscrições
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O percurso que delineámos ao longo deste texto, Secção de Minas, Exposição Industrial Portuguesa de 1888.
com base no que se conhece da Proto-história do Sabugal, Lisboa: Imprensa Nacional.
e que os materiais expostos no Museu de alguma forma NUNES, João de Castro (1957) - Un importante hallazgo del
ilustram (muitos outros não podem ser expostos por falta Bronce en Portugal, Zephyrvs, Salamanca, 8:1, p. 135-145.
Proto - H istó r i a | 51

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