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Resumo
Partindo dos dados proporcionados pelas mais recentes investigações, tecem-se algu-
mas considerações sobre as capitais de civitates e os vici conhecidos entre o Rio Pônsul e a
Serra da Estrela, no quadro mais lato da ocupação romana do interior norte da Lusitânia.
O uso do termo vicus é também objecto de análise mais detalhada, sendo também par-
ticularmente discutida a natureza ou a função do conhecido sítio de Centum Celas.
Abstract
Based on the most recent research findings, the author presents some observations
on the civitates capitals and the vici that are known to have existed between the Pônsul
River and Serra da Estrela, within the larger framework of the Roman occupation of
the northern interior region of Lusitania. The use of the term vicus is also analyzed
in detail, and the nature or function of the the well-known site of Centum Celas is dis-
cussed in particular.
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1. Idanha-a-Velha
Fundada nas margens do Pônsul, numa suave colina flanqueada por um dos seus mean-
dros, a ciuitas Igaeditanorum assumiu-se como uma espécie de ponta de lança da admi-
nistração imperial nos territórios que na actualidade integram a Beira Interior. Teremos
de recuar ao séc. I a. C., provavelmente à década de 30 dessa centúria, para marcarmos o
despontar deste lugar – perfeitamente camuflado na paisagem, sem a exposição impositi-
va do cerro de Monsanto, o qual se apresentaria como o seu pano de fundo.
Antes deste momento, e à luz do que actualmente se conhece, não podemos atestar
o efectivo povoamento deste lugar específico. É certo que existe referência genérica ao
achado em Idanha-a-Velha de alguns materiais habituais em contextos da Idade do Ferro
(Almeida e Ferreira, 1964: 95-99, Est. I e II; Vilaça, 2005: 19, nota 5). Mas estes, para
além de escassos, constituem materiais avulsos, desconhecendo-se o seu contexto exacto
de achado. Também nas escavações que efectuámos em 2007 e 2008 na área do forum
(Carvalho, 2009) foram recolhidos alguns fragmentos cerâmicos cujas características de
fabrico (pastas grosseiras, muito micáceas, e superfícies decoradas com estreitas bandas
pintadas, a bege e a vermelho ocre) se distinguem claramente das habituais produções
romanas, aproximando-se mais dos fabricos de “feição indígena”, vinculáveis ao mundo
ibérico (Idem). Mas também estas cerâmicas, recolhidas já em contexto estratigráfico
romano (tardo-republicano ou alto-imperial inicial), não provam por si só uma ocupação
pré-romana do local. Nem sequer, por agora, poderá ser sustentada uma ocupação plena-
mente republicana deste lugar. Desde logo, não constituem prova para esta alegada ocu-
pação os dois tesouros monetários referenciados para Idanha-a-Velha, datados até 100
a. C. (Hipólito, 1960-61: 70; Villaronga, 1980; Faria, 1991-1992: 121). Quando muito,
estes tesouros poderão documentar a presença do exército romano, talvez então distri-
buído por uma larga frente de conquista, a qual cruzaria esta região no dealbar da primeira
centúria a. C. É ainda pelo menos tentadora a hipótese de localizar Idanha-a-Velha no
corredor de passagem dos exércitos que Júlio César comandou, a partir de 61 a. C., con-
tra o Mons Herminius e o último reduto dos Lusitanos (Díon Cássio, XXXVII, 52-55), à
semelhança do que – volvidos alguns anos – poderá ter ocorrido com a expedição militar
dirigida pelo propretor da Ulterior, Q. Cássio Longino. Partindo dos acampamentos de
Cáceres, as legiões romanas poderiam então ter percorrido um corredor natural, o mesmo
que – poucas décadas depois – será seguido pela estrada imperial com paragem certa em
Igaedis, capital da ciuitas Igaeditanorum. E neste cenário hipotético, em meados do séc. I
a. C., afigura-se igualmente sedutor imaginar os primórdios da futura cidade dos Igaeditani
como um lugar de estacionamento militar. Se assim fosse, a um acampamento militar
teria sucedido – já sob a égide da Pax Augustana – um estabelecimento civil, corporizando
assim outro modelo de ocupação territorial. Mera conjectura, porém, que não encontrou
no registo arqueológico, até ao momento, qualquer elemento que a suporte.
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– Das capitais de ciuitates aos uici, entre o Pônsul e a Estrela”
Seja como for, a fundação deste núcleo populacional terá ocorrido no ocaso do período
tardo-republicano, numa data que – para esta região a norte do Tejo – poderemos conside-
rar recuada. Mas antes mesmo de se constituir como cidade capital – momento associado
a um processo de urbanização – poderia então ter-se estabelecido como uicus, sobretudo se
este conceito romano for aqui entendido não como um “aglomerado populacional secun-
dário”, mas sim como um núcleo de carácter oficial, resultante de uma decisão institucio-
nal, levada a cabo num momento muito inicial de ocupação e estruturação do território.
Um lugar com as características deste, ou mesmo dos uici que conhecemos mais a norte,
na Capinha e na Meimoa, fundados muito provavelmente poucos anos mais tarde (em
plena época augustana), poderão nesta zona da Hispania corporizar o entendimento que
Michel Tarpin (2002) faz de uicus, enquanto “instrumento de colonização”. Voltaremos
mais adiante a esta questão, mas poderemos desde já sublinhar que o uicus seria essencial-
mente entendido como instrumento de controlo e apropriação de zonas conquistadas; a
sua fundação seria resultado de uma decisão institucional, tomada no sentido da apropria-
ção formal e duradoura de um território, i.e., da apropriação colonizadora de um espaço;
constituiriam, em algumas regiões, importantes agentes do processo de romanização.
Igaedis, enquanto hipotético uicus, poderia então, nessa qualidade (transitória), cor-
porizar o arranque de uma nova fase, marcada por um novo modelo de organização e
exploração territorial. Poderia mesmo, à semelhança do que se passa noutras partes do
Império (Idem: 257-259), ter ocupado o preciso lugar de um antigo castrum, após o aban-
dono das tropas, embora – como antes referimos – não haja por agora nenhum testemu-
nho consistente que corrobore essa presença ou estacionamento militar. Seja como for,
Idanha seria então lugar ainda de poucas casas, dispostas talvez em torno de um edifí-
cio público ou de uma pequena área monumental que marcaria o carácter oficial desse
estabelecimento. Ainda que habitada quase exclusivamente por indígenas, teria assim já
bem patente a marca do poder imperial. Seria então o lugar escolhido pela administração
romana para desempenhar um papel de destaque no quadro de um novo modelo de ocu-
pação destes territórios. E será precisamente durante esta fase inaugural que o lugar de
Idanha – regido por magistri indígenas – estreitará os laços que o uniam à sede provincial,
Emerita Augusta (Mantas, 1988: 421-423; Étienne, 1992: 359-362), ao mesmo tempo
que serão lançadas as bases que sustentarão a sua eleição como cidade capital de ciuitas.
Em termos arqueológicos, porém, muito pouco se encontra ainda documentado desta
fase inicial. Apenas conhecemos alguns contextos associados e restos de paredes singu-
larmente construídas em terra (nesta arquitectura em terra documenta-se sobretudo a
taipa, mas surge também o adobe), as quais pertencem a um edifício (aparentemente de
consideráveis dimensões) que será expropriado e demolido aquando da construção do
forum (Carvalho, 2009).
A época de Augusto será absolutamente decisiva para a organização romana destes ter-
ritórios. A aceleração histórica pautará estes anos em torno da mudança de Era. Também
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1 Integração de certa forma também denunciada por uma epígrafe (achada em Idanha-a-Velha) que atesta uma
consagração imperial, datada do ano 3 (ou inícios de 4 d. C.), gravada em honra de Caius Caesar (então herdeiro de
Augusto) (cf. Mantas, 1988: 423; 2006: 59-61; Sá, 2008: 59 e 192).
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2. Capinha e Meimoa
Mais a norte, junto à extrema do territorium da Ciuitas Igaeditanorum, conhecemos dois
outros lugares que poderão ser identificados como uici: possivelmente a Capinha (Fundão)
e, seguramente, a Meimoa/Canadinha (Penamacor). Situados no trajecto de vias impe-
riais, ou próximo de entroncamentos, ambos poderão ser entendidos como fundações ofi-
ciais, muito possivelmente ex nihilo, levadas a cabo ao tempo de Augusto, talvez no preciso
momento em que se constrói a forum dos Igaeditani, se demarcam com termini augustalis
as fronteiras da ciuitas e se definem e pavimentam alguns troços da via imperial que desde
a capital provincial cruzava este território para norte. Neste sentido, estes uici constituirão
também um dos “instrumentos de colonização” do programa de ordenamento territorial
augustano. Estações de apoio aos viandantes, lugares de mercado, seriam também palco
de algumas tarefas administrativas e práticas religiosas – afastados que estavam da capi-
tal da qual dependiam, reuniriam algumas das suas funcionalidade mais características,
constituindo-se como uma espécie de quarteirões da cidade muito para além do perímetro
urbano, i.e., como extensões desse “lugar central” (Le Roux, 1994: 155-156).
O primeiro, localizado nas imediações da actual aldeia de Capinha2, posicionar-se-
-ia junto de um importante entroncamento de vias imperiais, constituindo ainda o pólo
2 É possível que esta povoação romana se estendesse pela actual Tapada de S. Pedro (Carvalho, 2007: n.º 180) –
lugar com vestígios romanos à superfície e onde antes se acharam vários elementos arquitectónicos (incluindo
dois “capitéis coríntios”), para além de uma inscrição funerária; por sua vez, a inscrição votiva a Bandi Arbariaico,
vista por Mariangelo Accursi Aquilano, poderia nessa época encontrar-se também reutilizada na Tapada de
S. Pedro, tal como poderão também ser provenientes deste lugar as duas conhecidas inscrições funerárias encon-
tradas reutilizadas na ponte – não muito distante – sobre a Meimoa; seria este o “campo visinho” à aldeia de
Capinha, mencionado em 1729 por Sylva Leal (Memorias Para a Historia Ecclesiastica do Bispado da Guarda”),
“no qual quotidianamente os lavradores estão descobrindo fragmentos de inscrições romanas, e pedaços de edifí-
cios antigos, de que vi, e copiei muitos …” (p. 16, Parte I, Titulo I, Capitulo II, do I vol). A ser assim, a importância
deste lugar ter-se-á inclusivamente mantido durante os tempos alto-medievos, face à relevância dos vestígios desta
época que as escavações recentemente aí efectuadas parecem documentar (Albuquerque e Santos, 2007: 5). Aliás,
o possível baptistério identificado no decurso dessa intervenção, enquadrável, a ser assim, numa basílica paleocris-
tã, não poderá inclusivamente denunciar uma das paróquias suévicas (de localização incerta na actualidade) da
diocese da Egitania: Francos ou Monecipio? Nesta época, a dependência deste lugar em relação à anterior capital de
ciuitas, agora sede diocesana, não se continuaria assim a manter, embora revestida de uma outra forma? (rever ...).
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aglutinador de uma rede de núcleos rurais dispersos ao longo do vale da ribeira da Meimoa
(Carvalho et alii, 2002). O segundo, o uicus Venia, relacionar-se-ia muito em particular
com as frentes de exploração aurífera que se estendiam em direcção ao Bazágueda e à
Malcata (Carvalho, 2007: 362-366 e 507-512). Na sequência do que antes defendemos,
ambos poderão também ser resultado de uma decisão institucional, tomada no sentido
da apropriação colonizadora de uma franja territorial situada no limite entre ciuitates e, no
caso do uicus Venia, de controlo e domínio apertado de importantes recursos mineiros3.
Neste sentido, e segundo a tese de Michel Tarpin, nem sempre existirá correspon-
dência entre “aglomerado urbano secundário” e uicus. Por um lado, um uicus nem sem-
pre assumirá necessariamente uma feição urbana. Por outro, nem todo o “aglomerado
urbano secundário” se designaria de uicus. Assim sendo, o conceito romano de uicus deve
libertar-se dessa associação, até para que se possa apreender a natureza institucional e
colonizadora do termo. O aparecimento de um uicus, deste modo, não resultará de um
crescimento orgânico ou espontâneo de um aglomerado populacional indígena. Um
uicus constituirá antes o resultado de uma política ofical de controlo de vias e territórios,
respondendo assim às necessidades da conquista e da estabilidade do Império (Tarpin,
2002: 247-260). Aliás, assim entendido, este termo latino explicará, por sua vez, a sua
diferenciada distribuição pelo Império, pela Hispânia e, inclusivamente, pela Lusitânia
em particular, e, por conseguinte, concorrerá igualmente para explicar a heterogeneidade
das paisagens sociais provinciais. A avaliar pela particular concentração de referências
epigráficas a uici no interior norte da Lusitânia (cf. Fernandes et alii, 2006), esta região
terá sido particularmente bafejada por uma política provincial que promoveu este tipo de
fundações. Tê-lo-á exigido, provavelmente, tanto a sua interioridade como as particulares
características do seu substrato social, esmagadoramente indígena, mas também, acima
de tudo, a importância dos seus recursos mineiros (Tarpin, 2002: 248-249).
Os uici caracterizar-se-iam por um conjunto de traços que acabaria por lhes conferir
um perfil comum. Desde logo, e acima de tudo, seriam resultado de um plano institucio-
nal de ocupação e ordenamento territorial. Concorreriam para exercer um controlo de
maior proximidade das populações submetidas. Constituiriam uma das traves mestras
do modelo de ocupação do solo nesta região do interior norte da Lusitânia. Por não serem
nada habituais noutras regiões, contribuiriam ainda, a seu modo, para a heterogeneidade
que caracterizaria as paisagens do Império – i.e., a heterogeneidade do espaço antigo, tra-
duzida na aplicação de distintos modelos de ocupação do solo, encontra também assento
nestas fundações. Mas, desde que foram fundados, e face a dinâmicas diferenciadas
3 Veja-se, a este propósito, um outro elucidativo exemplo que nos é apresentado por Gérard Chouquer – o de uma
estreita ligação que se terá estabelecido entre um uicus e um outro importante recurso natural, neste caso, entre os
vicani Marosallienses e uma área de salinas:
http://www.archeogeographie.org/index.php?rub=dossiers/programmes/seille/vicani.
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quanto à forma como se relacionavam com o espaço social e os recursos envolventes, cada
um poderá ter conhecido evoluções orgânicas distintas, o que tornará difícil na actua-
lidade agrupá-los ou fazê-los corresponder a um mesmo tipo de realidade arqueológica
observável no terreno. Alguns poderão ter ganho foros de verdadeiros aglomerados urba-
nos (secundários), como eventualmente Venia, provido de casario e de alguns edifícios
ou áreas públicas com certa monumentalidade (como seria o campus mencionado na
epígrafe que o regista; cf. Alarcão, 2002-2003: 270). Outros poderão ter ganho contor-
nos diferentes, sem nunca conhecerem qualquer desenvolvimento urbano (como será o
caso de Centum Celas, abordado mais adiante). Poderão corporizar, portanto, realidades
arqueológicas bem distintas, nem sempre com valores mensuráveis no terreno aproxima-
dos, nem integráveis numa categoria de registo material com limites mais ou menos bem
definidos.
Sobretudo em Venia, face à epigrafia conhecida, ter-se-á instalado um grupo de cida-
dãos romanos – ao serviço da res publica – cujos interesses gravitariam em torno da gestão
das frentes de exploração aurífera existentes nas imediações (possivelmente mediante
adjudicação dos contratos de gestão deste importante tipo de bens públicos). Alguns
destes cidadãos poderão ser indígenas romanizados, originários até de outros lugares
da Hispânia, mas outros poderão ser colonos, oriundos também de distantes paragens
do Império. No conjunto destas comunidades, porém, a presença destes colonos seria
residual (ainda que a presença deste elemento exógeno se revele fundamental para a con-
cretização nestas regiões dos desígnios da administração imperial). Registam-se, con-
tudo, alguns indicadores, que parecem atestá-la. Retomaremos esta questão mais adiante,
mas desde já não podemos deixar de avançar com um desses indicadores: a presença de
mausoléus coroados por pulvini. Neste uicus, à semelhança do que se verifica na capital
de ciuitas, conhecem-se alguns destes elementos que coroavam mausoléus, como aquele
que foi escavado recentemente junto à villa da Fórnea (Belmonte) (área arqueológica que
parece constituir um elucidativo testemunho da presença de colonos nesta região, logo
nas primeiras décadas do séc. I d. C.: Santos e Carvalho, 2008).
Os uici antes referidos deveriam ambos situar-se na periferia do extenso território
da ciuitas Igaeditanorum. E a lógica que terá presidido à sua fundação, poderá levar-nos,
inclusivamente, a presumir a existência de um outro uicus posicionado mais para os lados
da Gardunha, numa zona bem afastada da capital e rematando assim a linha da fronteira
setentrional desta ciuitas. A integração que fazemos destes uici no território dos Igaeditani,
por sua vez, resulta do traçado que propomos para a respectiva linha de fronteira. Com
efeito, embora o limite que antes propusemos mereça legítima contestação (Curado,
2006: 113, 118-119), continuamos a considerá-lo como o mais plausível (Carvalho, no
prelo). A Lomba da Pedra Aguda parece-nos que corresponderá a essa linea confinalis.
E seria nessa bem marcada e contínua linha de relevos, num ponto sobranceiro a Peroviseu,
que se encontraria originalmente o conhecido terminus que delimitava os Igaeditani dos
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de áreas construídas que integrariam mais a área “profana” desta suposta capital. A esco-
lha do lugar de construção do agora designado templo de Orjais, prender-se-á – segundo
cremos – com a vincada sacralidade anterior, pré-romana, desse lugar (Carvalho, 2003).
Ao mesmo tempo que, desde logo sob o ponto de vista simbólico, a escolha desse “lugar
com memória” permitiria que o edifício do templo ocupasse um lugar de eleição no qua-
dro desta ciuitas, observando e dominando quase todo o seu territorium e, por sua vez,
vislumbrando-se também ao longe, a partir das villae, quintas e casais que se distribuíam
pelo espaço rural. Este templo seria assim lugar de peregrinação, de encontro de gentes,
mas também de olhares à distância, cumprindo a sua função enquanto instrumento de
dominação e regulação ideológica ao serviço do Império.
A possível localização da sede destes Lancienses no aro de Orjais, nas vizinhanças de
duas outras actuais povoações com achados dignos de destaque (o tesouro da Borralheira,
formado por 40 aurei e outros objectos em ouro, e, sobretudo, a inscrição do Teixoso que
menciona um duunvir primus), não passa disso mesmo, de uma proposta, sustentada por
um conjunto de indicadores. Na ausência de outros achados e, especialmente, de escava-
ções levadas a cabo no lugar de Nossa Senhora das Luzes, manter-se-á a dúvida em relação
à efectiva natureza deste lugar.
O mesmo não se passa, porém, com a recente identificação do discutido sítio de
Centum Celas (Colmeal da Torre, Belmonte) como forum da capital dos Lancienses
Oppidani (Guerra, 2007). Com efeito, baseando-se em grande parte nas característi-
cas construtivas do edifício, Amílcar Guerra considera indiscutível esta identificação.
Todavia, parece-nos que esta sua tese estará longe de ser incontestável ou consensual.
Da nossa parte, merece-nos profundas e fundadas reservas, destoando assim da facili-
dade (e do grau de certeza) com que Amílcar Guerra afirma a identificação de Centum
Celas como forum de uma sede de ciuitas. Reservaremos para outro trabalho uma análise
mais detalhada desta proposta4. Por agora, avançamos apenas com algumas considera-
ções sobre a interpretação atribuída ao edifício central e ao alegado núcleo urbano que o
enquadraria, deixando também de parte tanto a questão – não encerrada – da designação
destes Lancienses como outras “questões conexas” igualmente abordadas nesse incontor-
nável texto de Amílcar Guerra5.
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Os comentários que faremos em seguida resultam sobretudo da leitura do texto inicial onde essa proposta é apre-
sentada. Uma apreciação mais desenvolvida será efectuada quando for publicado o anunciado estudo detalhado,
especificamente dedicado ao “forum de Centum Celas”, da autoria de Amílcar Guerra e Thomas Schattner (comu-
nicação apresentada no Colóquio Internacional – Ciudad y Foro en Lusitania Romana, Mérida, Dezembro de 2007).
5 Concordo com Amílcar Guerra (2007) quando defende a localização da capital dos Tapori em Bobadela (Oliveira
do Hospital) e a dos Lancienses Transcudani na Póvoa do Mileu (Guarda). Contudo, não seremos tão assertivos,
visto que a natureza dos dados disponíveis até ao momento não permite desfazer a totalidade das dúvidas. Aliás, a
localização dos Tapori na área em torno de Bobadela (em detrimento da “hipótese Sr.ª de Mércoles”), tinha já sido
antes defendida por nós como a hipótese mais credível, sustentada também no facto de termos então considerado
que a ligação viária principal entre Idanha e Viseu não se faria pela zona de Centum Celas – Barrelas (no extre-
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Amílcar Guerra começa e bem por chamar à atenção para as singulares características
construtivas de Centum Celas. Com efeito, o seu desenho em plano, o aparelho empre-
gue e a monumentalidade denunciada por algumas das partes construtivas observáveis,
confere a este edifício um lugar muito particular no quadro da ocupação romana desta
região mais setentrional da Lusitânia. Concordamos com Amílcar Guerra quando coloca
em causa a inclusão de Centum Celas na estrita esfera da iniciativa privada. Uma maior
correspondência com a arquitectura pública tinha inclusivamente sido apontada pela
própria directora das escavações, embora essa constatação não a tivesse demovido de
interpretar o sítio como villa (Frade, 2002: 114). Anteriormente, também nós avançamos
com o mesmo tipo de objecção, levando-nos a duvidar dessa habitual classificação tipoló-
gica, propondo, deste modo, uma interpretação alternativa (Carvalho, 2007: 371-375).
Na realidade, as singulares características deste local, sem paralelo inequivocamente
invocável, não tornam fácil a sua identificação. É assim perfeitamente compreensível que
várias interpretações tenham vindo a ser colocadas para Centum Celas. Tal como justifi-
cadamente se compreenderá que esta questão permaneça em aberto, contrariando assim
o entendimento tão assertivo de Amílcar Guerra.
A nossa discordância em relação à tese sustentada por este autor assenta em dois pata-
mares argumentativos distintos: no modo como interpreta o edifício propriamente dito
de Centum Celas e na forma como avalia os vestígios em seu redor. A correspondência
que afirma observar-se entre um forum e as estruturas conhecidas começa por se basear
na planta e nas dimensões que esse conjunto edificado apresenta, mas partindo do pres-
suposto que as diferentes fases construtivas identificadas em escavação por Helena Frade
(resultado, segundo esta autora, da ampliação que o edifício conheceu entre o Séc. I e o
IV) se poderão diluir numa só (i.e., para Amílcar Guerra, a generalidade do edifício teria
sido construído num momento cronologicamente posterior aos reinados de Cláudio e
Nero). Não iremos, por agora, reavaliar a solidez destas díspares interpretações à luz do
registo arqueológico efectuado. Mas será importante fazê-lo, brevemente, até porque,
desde logo, a manter-se como inteiramente válido o faseamento proposto por Helena
Frade, a hipótese de forum – logo à partida – dificilmente continuará a poder ser defen-
dida. Mas aceitemo-la em tese, por agora, de forma a poder discuti-la.
É certo que ao nível das dimensões se observa uma similitude em relação a outros fora
da Lusitânia. Também estritamente ao nível da planta se poderão estabelecer alguns para-
lelismos com os conjuntos forenses. Contudo, quer essas dimensões, quer as construções
que se desenvolvem em torno de uma praça central descoberta, com um edifício principal
mo norte da Cova da Beira), como habitualmente era apontado, mas antes pela de Unhais da Serra (no extremo
sudoeste da Cova da Beira) (Carvalho, 2007: em 2006 eram p. 271-274). Tal como antes tínhamos igualmente
defendido a hipótese de correspondência entre a Póvoa do Mileu e a sede dos Lancienses Transcudani (Carvalho,
2005: 160; 2007: 446-347).
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6Poderiam ser também estas as ruínas observadas em 1722 por Sylva Leal, as quais George Cardoso
(Agiolog. Lusitan., 1652) supusera serem “indícios de povoação” (Leal, 1729: 340-341).
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7 A correspondência que Amílcar Guerra (2007: 197-198) procura estabelecer entre o texto desta epígrafe e as
dedicatórias imperiais, não nos parece que vá ao encontro do carácter de sede municipal deste sítio, até porque na
Meimoa – não muito longe de Centum Celas – conhece-se uma outra referência epigráfica a um uicus (Curado,
1979: 145-148), à qual aludimos antes, que não só se inicia com a expressão pro salute, como é inclusivamente
consagrada ao imperador. E se, por um lado, este tipo de formulário associado a dedicatórias imperiais pode surgir
no contexto de um uicus, por outro, nem sempre a expressão pro salute (e a invocação de Júpiter) surge associada
a uma dedicatória imperial, como também mostra o recente achado de uma ara em Celorico da Beira (Carvalho
et alii, no prelo).
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claramente da arquitectura de âmbito privado que podemos observar nas villae coevas.
Quer os grandes silhares em granito que o erguem, quer o geometrismo austero das for-
mas que o desenham, parecem antes integrar-se melhor no quadro operativo da arqui-
tectura pública , agenciada nestas paragens pelos quadros do exército. Mas também a
própria localização do edifício, no topo de um outeiro, claramente exposto na paisagem,
mostrando-se e sendo visto distintamente por todo um território em redor, ao contrá-
rio da discrição que parece pautar a implantação das villae, habitualmente recolhidas em
relação aos principais percursos viários. A clara e firme exposição de Centum Celas na
paisagem, erguido de acordo com as técnicas e os materiais tipicamente romanos, acaba
por ser revelador da ideia de firmitas preconizada por Vitrúvio. Isto é, a seu modo, e nesta
região da Beira Interior em particular, acabaria assim por transmitir a imagem de poder e
solidez que era exigida aos edifícios públicos, funcionando como imagem do Império e
do Imperador, e constituindo também, de certa maneira, mais um instrumento de sobe-
rania e difusão ideológica.
Em suma, face ao exposto, parece-nos inteiramente legítima esta hipotética identifi-
cação de Centum Celas como o edifício central de um pequeno uicus. Mas também nos
parece compreensível que – perante as informações disponíveis – continuem a pairar legí-
timas dúvidas seja qual for a interpretação aventada. De forma alguma, por agora, a dis-
cussão em torno de Centum Celas pode ser dada como encerrada. Continuará em aberto
o indispensável espaço para confronto de ideias e troca de argumentos. Da nossa parte,
em função dos dados conhecidos e da avaliação que deles fazemos, consideramos plau-
sível perspectivar os Caecilii como uma família de colonos (originária de outras paragens
peninsulares mais longínquas) que – no decurso da primeira metade do séc. I d. C. – se
estabeleceu nesta região, por forma a colaborar no cumprimento de um desígnio imperial:
a fundação de um uicus, entendido como instrumento importante de colonização destas
regiões mais interiores e setentrionais da Lusitânia. Num lugar central e destacado dessa
pequena povoação, fundação oficial, ter-se-á construído a domus (e não villa) dessa família,
com recursos operacionais que parecem ter ultrapassado o estreito círculo da iniciativa
privada. Da “torre” desta casa abastada, desde logo, poder-se-ia observar, distintamente,
uma extensa área mineira centrada nos aluviões do Zêzere, assim como a restante pro-
priedade que se encontraria sob sua directa administração. Rasgando esta paisagem, de
sul para norte, a estrada imperial poderia ainda encontrar abrigo – antes da árdua travessia
da Estrela – numa estação de muda situada nas imediações do uicus. Mas o seu posiciona-
mento estratégico permitir-lhe-ia também observar o principal edifício religioso romano
do populus e da res publica a que pertencia – o agora designado templo de Orjais, edifício
situado a pouquíssimas milhas, a poente, em plena serra, na margem oposta do rio, sobran-
ceiro provavelmente à capital de ciuitas (Carvalho, 2006: 261, 715-720, 946 e 965).
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