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A EXPEDIÇÃO DE PEDRO

ALVARES CABRAL
K O

DESCOBRIMENTO DO BRAZIL
DO AUTOR:

A Morte da A g u i a , 1909.
A Arte e a Medicina, 1910.
Daquem e Dalém Morte. 1 9 1 3 , (esgotado).
G l ó r i a Humilde, 1 9 1 4 , (esgotado).
C a n c i o n e i r o P o p u l a r , (Antologia pendida de um estudo
crítico), 1 9 1 4 .
C a n t i g a s do P o v o para as E s c o l a s , ( S e l e c ç ã o e prefá-
c i o ) , 1914.
O Infante de S a g r e s , d r a m a em IV actos, 191(1 (3 edi-

E gções.
a s Moniz,(esgotado).
d r a m a em IV actos, 1916, (3 edições).
M e m ó r i a s da G r a n d e G u e r r a , 1919, (3 edições).
S o r o r M a r i a n a — C a r t a s de A m o r — N o v a restituição e
e s b o ç o c r í t i c o , 1920.
A d ã o e E v a , peça em 3 actos, 1921
Itália .V/.ul, iQ2'2.
JAIME CORTESÃO
if

A Expedição de Pedro
Alvares Cabral
E O

Descobrimento do Brazil

LISBOA

LIVRARIAS AILLAUD E BERTRAND


PARIS-LISBOA
1922
Coinposio c impresso nas Oficinas Gráficas da Biblioici-a Naciouaí
À Colónia Portuguesa
DO

BRAZIL
km boa verdade, não nos pertence a iniciativa
déste livro. Convidados a colaborar na Histó-
ria da Colonisação do Brazil, a obra monumen-
tal,, com que a Colónia portuguesa em terras
brasileiras celebra o Centenário da Indepen-
dência da nação irmã, e tendo-nos cabido, den-
tro do seu largo plano, o relato da expedição
de Pedro Alvares Cabral, na sua organisação,
biografias dos comandantes e primeiros passos
até á partida do Restelo, veio o nosso trabalho
a assumir proporções, que excediam o âmbito
marcado. Convencidos, todavia, de que lográ-
mos esclarecer com as nossas investigações al-
guns pontos obscuros desta parte da história
portuguesa e brasileira e ajudamos a ve-la a
uma nova lu\, amavelmente incitados também
pelo sr. Carlos Malheiro Dias, organisador
daquela obra, a publicar o nosso estudo na in-
tegra e em separata, resolvemo-nos, assim, a
da-lo à estampa, acrescentando-lhe a colecção
dos mais importantes documentos, até agora
dispersos e que constituem as fontes respectivas.
Sem esta prévia explicação, fora impossível
compreender o traçado geral da nossa obra, tão
exuberante em certos pormenores e escassa na
historia da expedição. Algum dia, que tenhamos
conhecimento mais directo do Atlântico e da
terra brasileira, concluiremos com um segundo
volume este relato.
Ao ilustre escritor, cujo honroso convite ori-
ginou este trabalho, devemos e agradecemos a
alegria de termos durante meses convivido,
numa profunda exaltação de espirito, com al-
guns dos Homens da nossa Kdade de Oiro.
E, pois. este trabalho foi concebido dentro
daquela vasta obra, era egualmente dever nosso
com intimo júbilo cumprido, oferecê-lo á Coló-
nia portuguesa, como homenagem sua ao Bra-
sil, pelo Centenário da fndependencia.
LISBOA N O A N O DE l500

Lisboa, a senhora dos Mares, nesse ano de


i5oo, em que a armada de Cabral largava da
Ribeira das N a u s a caminho da índia, mal
começava a esburacar a sua velha mas re-
sistente capa medieval. Possuia um aspecto
exterior e íntimo, único na sua história. P o r
então ainda os melhores paços do rei e dos
senhores condiziam na lábrica e na severa
descomodidade com a singela polícia daquele
século, a findar. T o d a s as maravilhas d u m a
arquitectura que atingira a expressão da mais
sublime idealidade, quási exclusivamente se
guardavam para os templos e os cenóbios,
a atestar assim u m sentido da vida sincera-
mente religioso. O vulto e a traça da cidade não
obedeciam a qualquer plano de enobrecimento
externo. O burgo tumultuário conservava o
ímpeto e rudeza nativos da grei que o construí-
ra. Volvidos poucos anos, seria a Lisboa ma-
nuelina, oriental e faustosa, cujos fidalgos, aban-
2 •22 EXPEDIÇÃO DE

d o n a n d o a antiga c i r c a e d o b r a n d o a última
colina, que escondia a cidade (a de S . u Cata-
rina). pejavam, a evemplo do rei, de p o m p a s e
palácios a Ribeira, em direcção ao M a r .
A q u e l a data. 1). Manuel não completara ainda
cinco anos de reinado. K as primeiras novas
certas da índia, vindas pelo G a m a , e que iam
decidir da política e actividade nacionais, só há
cinco meses que traziam em p a s m o c sohresalto
as gentes.
Torna-se mister esquecer de todo esta L i s b o a
de hoje, vasta e disseminada por monte e vale
até ao m a r , com sua fria Baixa pombalina e
as avenidas claras e banais, p a r a evucar com as
g r a v u r a s de Braunio (i) e de Beninc (2) o an-
tigo b u r g o , curto e a m u r a l h a d o . Já não se
aperta a apenas, como nos mouriscos tempos
em q u e escrevia O s b e r n o , no alto dum monte
arredondado, in cacnmine nwniis rolundi (3).
Adastrava-se a g o r a por cinco outeiros e ( nitros

(1) l 'rbium praecipuarum loliits mundi thealrum. vol. V .


(1) Desenho de S i m ã o Beninc no ms. i ? 5 3 i . tab. V i l . no
fínüsh Museum, de Londres. Purl, drawings. A Biblio-
teca Nacional possui reprodução do manuscrito.
Igualmente se pode ver o desenho de Beninc em Rai-
nhas de Portugal, Benevides, e .-1 vida de Sun'Alvares,
O. Martins.
(3) De Expugnalione Olissiponis. in Port. Mon. Hist.,
Scriptores, pag. 3 y i .
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PEDROAI.VARERCABRAI.2715

tantos vales (1). N o m e s m o rotundo monte (do


Castelo), cujas b a r r e i r a s e r a m então qiuisi lim-
pas de casario, a mole da Alcáçova continuava
a dominar, formidável e sósinha. Pendiam-lhe
das ilhargas, caindo sobre a m e t a d e leste da
•1 1 1 i ^ri I ii n rtfUAri-i'li'-Inc
cidaae aie a ucu a a^uao,
panos das m u r a l h a s moiriscas. Ali findavam os
limites da primeira L i s b o a . Mas, tendo crescido
e alagado as colinas vizinhas, circundavam-na
agora as m u r a l h a s mais amplas de D. Fer-
nando, com as suas setenta e sete torres e as
trinta e oito p o r t a s , vinte e d u a s das quais so-
bre a Ribeira. Yiam-se-lhe aqui e ali as espessas
quadre-las, encrespadas de ameias, avançando
em cada saliência os válidos cubelos, rasgan-
do-se a toda a volta com os arcos das portas e
postigos, por cujas a s p é r r i m a s ladeiras se en-
trava na cidade, e, p u j a n d o num ou noutro lanço,
a casaria, que trepara de encosto aos adarves
cimeiros.
T o d a v i a , c o m p a r a d o com a área actual, o
âmbito circundado da cidade era limitadíssimo.
As m u r a l h a s , que nasciam a beira do T e j o , no
lugar onde hoje assenta o Arsenal do Exército,

(i) Nicolas de P o p i e l o v o , fidalgo alemão, que em


1484 visitava L i s b o a igualava-a na grandeza a Colónia
a Londres. Veja-se Viajes de extranjerospor Espana
y Portugal en los siglos XV, XVIy XVII, traduzidos
"por F. R. Collecion de Javies de I.iske. Madrid, 187M.
•22 EXPEDIÇÃO DE

subiam por S. Vicente a leste, t r e p a n d o e ondu-


lando ao norte, pelos altos da G r a ç a , C a s t e l o ,
S a n t a A n a , C a r m o e de S. R o q u e , em cujo
viso extremo a torre de A l v a r o P a i s s o b r e s a í a ,
e daí vinha descendo pelo largo do L o r e t o e
Ferregial ate ao L a r g o do C o r p o S a n t o , bei-
r a n d o depois ao sul toda a m a r g e m do T e j o ,
que tora delas se estendia na vasta e tumul-
tuosa zona dos cais. e s p a l m a d o i r o s e estaleiros,
coalhada de barcos e navios.
Na sua m e t a d e ocidental, entre os m o r r o s do
C a r m o e do Castelo, a cidade f o r m a v a u m a pro-
f u n d a d e p r e s s ã o , mais vasta do que a g o r a , até
ao largo do R o s s i o ; o qual intestava ao norte
com a cerca e era muito mais e s p a ç o s o . T a m -
bém as cinco colinas da cidade, salvo em que
e r a m mais despidas, não desdiziam muito o seu
relevo actual.
Nas ruas sinuosas e sem ândito, de lágea ou
de ladrilho, tão estreitas que raro excediam oito
p a l m o s , já naquela época se construíam casas
com três andares sobre a logea t é r r e a . P a r c a s
de janelas, muitas das quais se r e s g u a r d a v a m
c o m a pálpebra das rotulas, e x o r b i t a v a m no
travejar de sacadas e balcões, e n o r m e s , p a r a
habitação, que alpendravam e escureciam mais
as r u a s , impedindo o trânsito. P r e d o m i n a v a a
c o n s t r u ç ã o românica de p e d r a . M a s usava-se
a madeira t a m b é m , a m a n e i r a do N o r t e ; e os
velhos hábitos moiriscos resultavam ainda na
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PEDROAI.VARERCABRAI.2717

p r o f u s ã o de e i r a d o s , que c o b r i a m as casas,
d a s graciosas chaminés, e até, em muita habita-
ção, do v e r m e l h o escuro dos adobes.
Q u e m olhasse pela b a n d a do rio o velho bur-
g o , divisaria sobre o e m b r e c h a d o dos cunhais
e empenas e a revoita toalha das assoteas e te-
lhados, encardidos pelo nuigre do t e m p o , os
m u i t o s coruchéus das torres (i), p a i r a n d o com
seu leveiro d e s g a r r o oriental, e, mais belos e
altos entre todos, os da Alcáçova, de S. Vicente
e Sé. O s m o n u m e n t o s , por p o u c o s , m a s gran-
diosos, g a n h a v a m m a i o r vulto e mais clara ex-
pressão." A m e i o , paço do rei e castelo rocaz,
acrópole gentílica, tatuada do tempo e dos com-
bates, a Alcáçova poisava sôbre o b u r g o , como
uma corôa n u m escudo heráldico. Desponta-
vam-1'ne p a r a o C e u , em flecha, as t o r r e s , — a da
M e n a g e m , a d o T o m b o , a de Ulisses, o pró-
fugo e mítico patrono da cidade. P o s t a a meio
p e n d o r , entre o m o r r o do Castelo e o 1 ejo, a
Sc erguia a meio dum terreiro, donde naquele
t e m p o se avistava o rio, os dois esbeltos mina-
retes, com três andares de duplas janelas, enci-
m a d o s por g r i m p a s . P o r baixo u m a galilé
francamente r a s g a d a aligeirava ainda mais a

(i) Dentro ou vizinhos da estreita cerca havia mais


de trinta igrejas e conventos. Castro. Mapa de Portu-
gal, tomo III, cap. 2.
•22
EXPEDIÇÃO DE

f r o n t a r i a , enquanto a torre q u a d r a d a pesava


soturnamente, a meio do transepto, na fábrica
restante. Sòbre o românico m o n u m e n t o , que
nas suas grimpas e numa ou noutra ogiva de
ventaria sonhava as asas góticas, nem de leve
t o m b a r a o orvalho dos lavores manuelinos,
h r a como um hipogrifo de granito escuro,
q u i m e r a medieval, l e m b r a n d o idades m o n s t r u o -
sas e las tos esquecidos. Depois, para a esquer-
da. sôbre um m o r r o , então c h a m a d o ainda o
monte do Almirante, p o r q u e ai haviam sido as
suas casas, o convento do C a r m o apoiava-se,
macisso e longo, aos fortes botareus. A ábside
nascia de espigões fortíssimos, que se e r ç u i a m
no e x t r e m o do cerro sobre o Rossio, a pique.
L e m b r a v a um sarcófago giganteo, assente so-
bre um monte. Dir-se hia que a estátua ja-
cente do Santo C o n d e s t a b r e avultara em todo
o relevo s o b r e h u m a n o do herói e poisava ao
longo da arca tumular, gótica e e n o r m e .
A meio da cidade, a Mouraria e a A l f a m a d o s
p e s c a d o r e s e m a r e a n t e s , mais denegridas e
tumultuosas, escachoavam, com resaltos de
tectos embatendo-se e sulcos fundos de rue-
las, contra as abas do Castelo e da Sé. De
longe em longe, entre as restantes zonas ha-
bitadas, chapadas núas de outeiro, encrespa-
das de tragosidades, ou peças de olival cerrado,
por S. Francisco, S a n i ' A n a , Castelo e G r a ç a ,
abriam manchas terrulentas ou azul ferrete no
PEDRO AI.VARER CABRAI. 2
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corpo fusco da cidade. R a m a d a s de vinhas e


árvores fruteiras abriam toldos ou pendiam em
m u r o s quintaleios. Já então se viam f ó r a das
m u r a l h a s vastos edifícios junto ao Rio, e quin-
tas s u b u r b a n a s , pastagens c pomares de vale
em vale {i). Pelos visos as velas dos m o i n h o s ;
nas q u e b r a d a s os armentios.
P a r a a O u t r a Banda azulejavam serras na
distância e estira, am-se pelas abras do rio ma-
rinhas e estaleiros.
A tarde, a f u n d u r a m a r í t i m a do ocaso di-
latava i « Céus. Águias, conterminas àquela
gente nessa idade (2), lançadas no p r o f u n d o
azul, m a r c a v a m - l h e com as remiges podero-
sas os cunlins altíssimos. K como o T e j o
ali em irente era mais vasto nesse tempo, e um
listrão áureo de areias, entre a cerca e as águas
estendido, formava, praia longa, a cidade, per-
dida na largueza dos montes e cintada pelas
q u a d r e las das m u r a l h a s , mais achegada e es-
treita parecia. Na s o m b r a , o grande túmulo do
Londestavel dir-se hia suspenso e levado em
triunlo, paládio da pequena tribu errante. Viam-
-se as g r i m p a s altas luzir sobre as revessas rie-

(11 D a m i ã o de Gois. Urbis olissiponcnsis descriptio.


Km Hispânia; illintratae. Doctorum hominium, tomo 11.
(2; Cataldus Siculus, I)e obilu Alphonsi principis, in
Sousa. História Genealógica, tomo VI.
8 EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

g r a s d o s t e l h a d o s . E o b u r g o estremecia c o m o
hoste, t o d a em a r m a s , p r o n t a à m a r c h a , e que,
antes de entrar às águas, saúdasse o M a r c o m
as lanças ao alto.
A POPULAÇÃO E A VIDA DA CIDADE

P o r esse t e m p o os m o r a d o r e s de L i s b o a e
d o a r r a b a l d e não p a s s a v a m de cincoenta mil, o
que está de s o b e j o em relação com o milhão e
cem de t o d o o reino ( i ) . F ô r a mister p a r a a
total evocação do velho burgo reviver com êsses
antigos m o r a d o r e s os p a s s a d o s c o s t u m e s ; repo-
pular-lhe as a b a s das colinas, da Alcáçova à
Ribeira, de cavaleiros, m e s t e i r a i s , f r a d e s e m a -
t a l o t e s ; restituir aos primitivos íncolas a Mou-
raria e as J u d a r i a s ; e variegar depois a multi-
dão nativa c o m a mescla desultória de italianos,
flamengos, f r a n c e s e s e alemães. O s hábitos e
condições de vida d a v a m á cidade u m a fisio-
n o m i a m u i t o p r ó p r i a e totalmente diversa, não
s ó da L i s b o a de hoje, m a s t a m b é m àquela data
das d e m a i s cidades da E u r o p a .

(i) C o s t a L o b o , Hislúria da sociedade em Portugal,


no século XV. cap. I e II.
10 KXPHD1ÇA0 DE

E r a a Lisboa ardente c sequiosa, de c r a s s o s


chafarizes, á beira dos quais o povo e os es-
cravos brigavam pela v e z ; dos açucai* Coin seu
asno e os quatro c â n t a r o s engradados, apre-
g o a n d o a agua pelas calçadas í n g r e m e s ; e das
m o c i n h a s negras, quá.M nuas, que a transpor-
tavam e serviam com as airosas quartas. E r a
a Lisboa h o n r a d a e mesteirosa dos mesteres
esquecidos. atafoneiros, regatões, gibeteiros,
esparevcleiros e desses escrivães do P e l o u r i n h o
Velho, que. abancados as m e s a s , redigiam, ao
sabor dos Ircguezcs, cartas de a m o r , requeri-
m e n t o s , versos, discursos, epitáfios, coisa
que em parte alguma das cidades da E u r o p a
eu vi jamais» , diria <• viajado P a m i a o de
Gois ( i ) . E r a a Lisboa policroma dos íausto-
sos m e r c a d o r e s de toda a E u r o p a , entre os quais
p r e d o m i n a v a m os elegantes Horenf.no>. relu-
zente das armas cavaleiras e negreiante de há-
bitos m o n á s t i c o s : e ainda a Lisboa dos m o i r o s ,
a b a n e i s , azulejadores e ceramistas, que nas
tardes de festa bailava e ondulava aljubas al-
vas, ao som dos alaúdes e pandeiros. O marí-
timo burgo falazava desv airadas línguas. A ve-
niaga cosmopolita disputava os produtos dos
descobrimentos, dentre os quais aqueia época
avultavam o oiro da Mina e o avsucar J.t ilha.

n) Obra cuaJa
PEDRO AI.VARER CABRAI.27 11

E r a na R u a Nova, a principal artéria comer-


cial de então encostada ao lanço meridional das
m u r a l h a s , quási á beira d ' á g u a , aproximada-
mente no lugar, onde hoje fica a R u a dos Ca-
pelistas, que d r a p e j a v a m e luziam os primores
e mercancias forasteiras.
Mas Lisboa via-se e revia-se mais na Ribeira
das N a u s , nas T a r a c e n a s , Almazem da Mina,
nos espalmadoiros e e s t a l e i r o s : aí, sim, mais
que em alhures inconfundível, era glória dos
seus e p a s m o dos alheios.
Desde que nos últimos anos o entreposto
do tráhco africano p a s s a r a de Lagos para ali,
sc criara a casa da Mina e se lançaram com
destino a índia os p r i m e i r o s navios, toda a Ri-
beira trabalhava, tervia, reboava com a azá-
fama do M a r . Já para além do extremo nascente
d a s m u r a l h a s , junto as p o r t a s da Cruz, fu-
m e g a v a m os fornos, que coziam o trigo p a r a
o biscoito das a r m a d a s . Mais abaixo, a seguir,
n e g r e j a v a m , viscosos, vis caes do carvão c da
m a d e i r a . Depois, ladeando o esteiro, naquele
t e m p o ainda alagado, do T e r r e i r o do P a ç o ,
estendia-se a uma b a n d a a Alfândega e da ou-
tra, prolongando-se até ao C o r p o Santo, es-
t a n c e a v a m a Casa da Mina, as T a r a c e n a s ,
as F e r r a r i a s , e logo as T a n o a r i a s , contra o
b a r r o c a l de S. Francisco. S o b r e o vozeio do
populacho, que duma a outra banda enxameava,
z o a v a e ensurdecia o t r o m dos rijos mesteirais
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

que r e b a t i a m as cavilhas férreas ou os arcos e


aduelas p a r a a louça d a s naus. E p o r todo o
longo, desde as portas do M a r (junto á casa d o s
Bicos) até a C a t a q u e f a r á s e a S a n t o s se cons-
t r u í a m os navios novos ou v a r a v a m os velhos,,
priiro I-1 im r> r\ f noo ouui
u i " wiiipwi nKroe
ao v-«Mime
I v ao^ limnor
iitupui nc
v_>o liI Imo
I I I Uo
J'

ou queimar o g u s a n o . Ali veríeis, — exultante e


esforçosa entrepresa de que os m o d e r n o s esta-
leiros dão pálido vislumbre - as carcassas das
naus contra os esteios a r r u m a d a s , e ora apenas
erguendo o e n c a v e r n a d o , o r a a j u s t a n d o as tilhas
e os c o s t a d o s , logo alevantando os a r v o r e d o s ,
ou r e t o n a n d o e e s t r e m e c e n d o com as derra-
deiras m a r t e l a d a s desde o cadaste ou a duneta
airosa até ao beque r e c u r v a d o . Pela Ribeira
em fora, à luz do sol, os r e m o l a r e s a f u s a v a m
e tendiam os r e m o s , os petintais c a r p i n t e j a v a m
os navios, os b r a g u e i r o s entreteciam redes, e
calafates, tanoeiros, a r t i l h a d o r e s , cordoeiros de
calabre, oficiais de c a r t a s , m e s t r e s , pilotos e
grumetes, todos b o r b o r i n h a v a m , afanosos, com
as fainas do M a r .
T a m b é m a rija t ê m p e r a dos velhos navegan-
tes e g u e r r e i r o s conservava-se impoluta. N e m
os excessos da riqueza mal g a n h a d a nem a mo-
lícia dos c o s t u m e s estranhos a b a s t a r d a v a m e
p e r v e r t i a m os fortes caracteres. O s h o m e n s eram
fragueiros, sóbrios, e s f o r ç a d o s e endurecidos
contra as g u e r r a s do t e m p o e da fortuna. A re-
ligião continha-se nos limites da tolerância e
PEDRO'ALVARES CABRAL i3

piedade sincera ( i ) . E ainda q u a n d o o Rei, p a r a


adular a côrte de C a s t e l a , p u n h a e m scena a
tragicomédia da expulsão dos m o i r o s e judeus,
aos quais i m p u n h a o êxodo e m a n d a v a reter
do m e s m o p a s s o , o povo p r o c u r a v a com pie-
co U
UUOU ctirni *
1UJV1UÍU m* i n""*a• a r"" i n/ n t o d o s perseguidos
1 as
sevícias do m o n a r c a (2). O flagício m o n s t r u o s o
de a r r a n c a r os filhos à criação e a m o r dos pais
foi recebido c o m r e v o l t a d o p a s m o pelo povo

(1) «O fanatismo cego. bruto e feroz veio-nos com as


primeiras luzes duma f a l s a c i v i l i z a ç ã o , nos fins do sé-
culo XV, e progrediu c o m ela por todo o xVi. Dantes a
raça crista tinha a consciência de u m a grande superiori-
dade religiosa e fazia-a valer na l e g i s l a ç ã o ; mas n ã o
confundia a crueldade com as distinções que nascem
da diferença entre o superior e o inferior.» Herculano,
Monge de Cister, I, cap. IV. « E em verdade não conhe-
cemos em toda a história pátria documento mais de-
monstrativo da índole nacional do que a benevolência
de que os judeus g o s a r a m em P o r t u g a l até aos fins do
século XV». C o s t a L o b o , História da Sociedade Portu-
guesa no século XV, cap. V .
(2) « . . . a qual obra não tão somente foi de grão te-
mor, mesturado com muitas lágrimas, dor e tristeza dos
Judeus, mas ainda de muito espanto e a d m i r a ç ã o dos
Cristãos, porque nenhüa criatura pode padecer, nem
sofrer apartar de si f o r ç a d a m e n t e seus filhos, e nos
alheios por natural c o m u n i c a ç ã o sente quási o mesmo,
principalmente has racionais, porque com estas comuni-
cou naturesa hos efectos de sua lei mais liberalmente
do que ho fez com has brutas irracionaes, a qual lei
f o r ç o u muitos C r i s t ã o s velhos moverem-se tanto a pie-
•22
EXPEDIÇÃO DE

indulgente e tolerante. L i s b o a , c o m o as d e m a i s
cidades da nação, sentia-se agora mais que
nunca na pujança das s u a s energias. A longa
paz dum século, apenas interrompida pelos
q u a t r o anos da g u e r r a da sucessão de Castela
( l 4 7 Í > - 7 0 ) , e m o1n e o s n n r t n c r n p c p c nn-íc." c o o - , ^ ™
; •• . ' o — — oim.JJH
f o r a m os invasores, p e r m i t i r a o desenvolvi-
m e n t o gradual da p o p u l a ç ã o , a s e g u r a n ç a do
t r a b a l h o e o aumento da riqueza pública. A
vasta e m p r e s a e d u c a d o r a p r e p a r a d a pelo In-
fante D. H e n r i q u e e continuada pelo s o b r i n h o
e pelo Príncipe P e r f e i t o sazonava os m e l h o r e s
f r u t o s . Ern L i s b o a p u l u l a v a m agora os navega-
d o r e s e os cavaleiros, os a s t r ó n o m o s e mate-
máticos, os m e s t r e s do astrolábio e do qua-
d r a n t e . A m e l h o r n o b r e z a descendia dos com-
p a n h e i r o s do C o n d e s t á v e l e D o m J o ã o I. O
p o v o não desmerecia t a m b é m da arraia que
alevantara o Mestre. E os fastos que os mais
velhos m e m o r a v a m , p o r ouvirem dos pais, e r a m

dade. e misericórdia dos bramidos, choros, c plantos.


que f a z i ã o os pais e mãis a quem forçadamente toma-
v á o os filhos, que eles m e s m o s hos escondiáo em suas
casas por lhos não virem arrebatar dentrasmáos, e
lhos salvavão com saberem que nisso fazião contra a lei
e prematica de seu Hei e s e n h o r . . . » D a m i ã o de Goes,
Crónica dei Rei Dom Manuel, cap. X X . Judeus e mou-
ros ficaram quási todos um Portugal. P a r a se avaliar da
conduta repugnante do R e i . veja-se Gosta L o b o , o b r a
cit.. cap. 1 e V.
2
7
PEDROAI.VARERCABRAI.2727

r a c o n t o s de A l j u b a r r o t a e do p o s t r e m o cêrco
castelhano.
M a s esta conexão íntima entre a r u d e z a an-
tiga da cidade e a plenitude e p u r e z a da sua
fôrça vai r a p i d a m e n t e esvanecer-se. Breve per-
UCI Cl L31LA„t<. n.mmnr
quv-un^i rir, tKtnnn p- d o s t r a b•a l h o s

p a r a se enfeitar de galas e m p r e s t a d a s . F i x e m o s -
-lhe o r o s t o g r a v e , que u m a ansiedade f u n d a
alterava já. Sim, p o r agora não era ainda a Lis-
boa opulenta e rendilhada da C o n q u i s t a , do
P a ç o d a . Ribeira, da C a s a da índia, da T o r r e
de B e l e m e dos J e r ó n i m o s ; m a s a Lisboa épica
refugida na cêrca, que olhava com a m o r as ci-
catrizes das m u r a l h a s , e cujo povo invocava,
r e s a n d o , o C o n d e s t a b r e , no m o r r o d o Almi-
rante. N ã o ainda o imenso e ribeirinho ca-
r a v a n s a r á , pejado pela t u r b a dos m e r c a d o r e s
que acorriam de t o d a a E u r o p a ao tráfico das
especiarias, dos e m b a i x a d o r e s do O r i e n t e , dos
g o v e r n a d o r e s , dos capitães de fortalezas e feito-
res, e dos áfricos, dos levantinos, dos brasiüen-
ses, entre a c h u s m a d o s quais o Rei cavalgava
e e s t a d e a v a p o m p a s , seguido dos elefantes, da
onça pérsia e da rinocerota, ao r e b o a n t e clan-
gor dos atabales e t r o m b e t a s . A esfera proje-
ctada pela ambição universalista, que ia des-
vairar os h o m e n s , mal se inscrevia s o b r e os
m o n u m e n t o s . O s f u m o s da índia não haviam
entontecido as almas. L i s b o a blasonava a p e n a s
os pilotos da Mina, e os veteranos de Alcácer e
•22
EXPEDIÇÃO DE

de A r z i l a . E m vão procuraríeis entre os h o m e n s


de a r m a s que h ã o de e m b a r c a r nesta viagem o
s o l d a d o da índia, palreiro e dissoluto, q u e
Diogo d o C o u t o a m a r g a m e n t e nos b o s q u e j a ,
corn^ a capa b a n d a d a de veludo, a coura e os
c a l c f l p s r l n m p c m n octofA - U__U„ - ... >
• — " " " « i a um uci curta l o s a a a
com donaire, chapéu de canotilhos e, na cinta
a p e r t a d a , a e s p a d a guarnecida de d o u r a d o s . A
m a i o r p a r t e d o s cavaleiros e m a r e a n t e s que vão
partir s ã o o u t r o s mui diferentes: criaram-se na
escola d o Homem e do «grande e h o n r a d o »
Infante ( i ) . Deles os mais experimentados e
m a d u r o s r e l e m b r a m com s a ú d a d e e contam aos
m o ç o s , p a r a p r o v e i t o e exemplo, os casos, os
feitos, as lições d o s tempos de L a g o s e de Sa-
gres. E o destino, q u e tantas o u t r a s m e m ó r i a s
. e s c u r e c e u e d i s p e r s o u , quis, volvidos alguns
séculos, restituir-nos a imagem de tais h o m e n s
nas t á b u a s de S . Vicente, — a m i l a g r o s a apari-
ção de espíritos e semi-deuses tutelares. E r a m
assim os c o m p a n h e i r o s de P e d r ' A l v a r e s . E s c o -
lhei, p a r a os ver, o painel apoteótico do Infante.
Olhai as dez figuras, ao fundo alevantadas, t ã o
p u r a s , tão severas, tão ungidas de piedade e
fortaleza. Muitos dos mestres, dos pilotos e
m a r u j o s desta a r m a d a tinham o geito igual e
aquele e s g u a r d o , a s s e n h o r e a d o s de si m e s m o s .

(i) A z a r a r a , Crónica da Guiné, cap. VI.


i3
PEDRO'ALVARES CABRAL

B e m p o r certo que, entre a c h u s m a dos que,


trigosos, se aprestavam p a r a a longa jornada,
e r r a v a m então esses titans ingénuos, envoltos
no mongil e na barreta escura, ou em bragas,
de gabinardo e carapuça, e nas faces, curtidas
do vento e da saisugem, no olhar distante, cheio
de ceu e de mar alto, a iluminada seriedade, o
orgulho triste dos que a n d a m s e m p r e ao pé da
m o r t e p a r a gloria da vida.
INFLUÊNCIA DAS PRIMEIRAS NOVAS
DO ORIENTE SOBRE A N A Ç Ã O E O REI

«Boa v e n t u r a ! Boa v e n t u r a ! Muitos rubis,


muitas e s m e r a l d a s ! E s t a i s na terra d a espe-
ciaria, da p e d r a r i a e da m a i o r riqueza que há
no m u n d o ! » A s s i m grita o Monçaide, direito
ao G a m a , a touca ao vento, ao entrar na capi-
taina, em Calecut.
«E q u a n d o assi ho ouvirão talar, estavão
todos p a s m a d o s . . . e daváo graças a nosso
senhor c h o r a n d o de prazer, e Vasco d a G a m a
ho abraçou e ho fez assentar a par de si.» ( i )
Esse grito de triunfo, esse arrepio de p a s m o
e c o m o ç ã o , que a r r a s a de água os olhos dos
m a r u j o s , trazem-no êles na alma, ao v a r a r em
L i s b o a , e comunicam-no à nação inteira.
L o g o ali na cidade houve touros, canas, mo-

(í) Castanheda, História do descobrimento e conquista,


da Índia. L i v r o I, C a p . X V .
22 •22 EXPEDIÇÃO DE

m o s , e os sinos t o d o o dia t a n g e r a m em sinal


de alegria ( i ) . O Rei apressa-se a comunicar a
t o d a s as cidades e vilas notáveis do reino a che-
g a d a do G a m a , os g r a n d e s trabalhos q u e p a s s o u
e a importância do descobrimento, encomendan-
uo-ihes m u i t a s procissões e festas. A i m a g e m
da India e das suas riquezas, transmitida pelo
d e s l u m b r a m e n t o dos primeiros navegantes in-
cendeia as imaginações. E na c a r t a de D. Ma-
nuel p a r a os reis de Castela, dando-lhe parte
d o d e s c o b r i m e n t o , a alegria triunfante do rei,
e o p a s m o deliciado extravasam a cada f r a s e :
«acharam e d e s c o b r i r a m a India e outros rei-
n o s a ela c o m a r c ã o s . . . a c h a r a m g r a n d e s ci-
d a d e s e de g r a n d e s edifícios e ricos e de g r a n d e
p o v o a ç ã o , nas quaes se faz todo o trauto de
especiaria e p e d r a r i a . . . t r o u v e r a m l o g o . . . ca-
íiela, cravo, gengibre, noz m o s c a d a e o u t r o s
m o d o s de e s p e c i a r i a . . . e muita p e d r a r i a fina
de todas as sortes, a saber rubins e o u t r o s ;
e ainda a c h a r a m terras em que ha m i n a s
d ' o u r o . . . D (2)

(1) B a r r o s , Década I da Asia, L i v r o IV, Gap. XI.


(2) E i s o traslado completo da c a r t a de D. M a n u e l :
«Muyto altos, muyto eixcelenies princepes, e m u v t o
poderossos senhores. Ssabeem Vossas Altezas como
tijnhamos mandado ha descobrijr quatro navios pello
o c e a n o , os quaaes a g o r a ja p a s s a v a de dous annos que
e r a m partidos; e c o m o o fundamento principal d esta
PEDRO AI.VARER CABRAI.
2735

Adivinha-se o rei revendo e sopesando as.


primeiras amostras da riqueza da índia. O
sonho, que a nação d u r a n t e quási u m século
acarinhara, ia èle realizá-lo emtim. T . n h a ali
nas suas m ã o s as primícias desse Oriente tao
longamente cubiçado. Antevia os almazens
a b a r r o t a n d o especiarias. A o oiro da Mina vinha
juntar-se o oiro de S o f a l a . E contemplando as
jóias que o G a m a lhe t r o u x e r a , por certo deli-

empressa sempre fosse pur nossos antepassados de se.-


vicu de Deos nosso Senhor e muy principalmente nosso,
prouve lhe por sua piedade asy os encaminhar, ssegundo
ho recado, que pellos mesmos descobridores, que a nos
a esta cidade o r a chegaram, ouvemos que acharam e
descobriram a Imdia e outros regnnos a ella comar-
quaáos, e emtraram e n a v e g a r a m o mar d ella, e m que
acharam granules cidades e de gramdes edehç.os e
ricos e de gramde p o v a ç o o m ; nas quaaes sse taz todo
o trauto da especearya e p e d r a r y a , que passa em naaos,
que os mesmos descobridores viram e acharam, em
" r a m d e cantvdade e de g r a m d e pramde/a a Mequa e
S hv ao C a i r o , homde sse espalha pello m u n d o ; da
qual trouveram logo agora estes cantidade, saber:
de canella, cravo, gvmgivre. n o , mozcada, e outros
m o d o s de d especearya, e ajnda os lenhos e folhas d
elles m e s m o s ; e muyta p e d r a r y a f y n a de todas ssortes,
saber - robijns e o u t r o s ; e ajnda acharam terra, em que
que ha mynas d o u r o ; do qual e da dita especearya e
pedrarva nam trouxeram logo tanta ssoma, c o m o pode-
riam, por nam levarem Pera ello aquella mercadarya,.
nem tanta, como convynha. E porque sabemos que V o s -
36 •22 EXPEDIÇÃO DE

•Cia, a os olhos naquele rutilar d a s vivas côres,


repetindo-lhe, embevecido, os n o m e s r a r o s .
Q u e t o r r e n t e de pedras tinha a í n d i a !

« T e m robis, diamantes taes


r\..„
u t u„ -
a u. . . .... ....
V iciii preço ou contia.
E s m e r a l d a s rauy reaes,
P e r l a s de m u v g r a m v a l i a :
Espinellas e tem mais

sas Altezas d isto ham de receber grande prazer e con-


tentamento. ouveemos por bem dar-lhe d isso notefica-
<fam; e- cream V o s s a s Altezas que, segundo o que per
estes s a b e m o s que se pode fazer, que nam ha hy duvjda
que, segundo a desposisam da gente christáa que acham,
posto que tam c o n f y r m a d a na fee nom seja, nem delia
tenha tam inteiro conhecimento, se nam sigua e f a ç a
.muyto serviço de Deos em sserem c o n v e r t i d o s e intei-
ramente c o n f y r m a d o s em sua santa fee. com grande
e i x i l ç a m e n t o d e l l a ; alem de o trauto principal!, de que
toda a m o u r a m a d aquelas partes sse aproveitava, e que
p o r Mias m ã o s sse fazia, sem o u t r a s p e s s o a s , nem linha-
jeens nisso entenderem, se mudar e c o m u n i c a r por esta
minha parte descuberta a toda christyndade. que ssera.
•com ajuda d elle mesmo Deos, que assy por sua piedade
ho hordena, mais c a u s a de nossas tenções e proposytos
c o m mais fervor se eixercitarem. por sseu serviço, na
g u e r r a dos mouros, pêra que V o s s a s Altezas teem tanto
p r o p o s y t o e nos tanta d e v a ç a m . E p e d y m o s a Vossas
A l t e z a s que por esta tam grande mercê que de Nosso
S e n h o r recebemos lhe queiram la mandar fazer aqueles
l o u v o r e s , que lhe sam devidos: e em merce o recebe-
m o s . Muyto alto etc.»
PEDROAI.VARERCABRAI.27

C a r b u n c l o s , ametistas,
T u r q u e s a s e chrysolitas
Cafiras, olhos de gato,
Jagonças, de tudo ha tracto
E outras mais q nom sam ditas. ( i >

P r e s u m e - s e igualmente o a s s o m b r o que as
noticias da Índia, aumentadas pela f a n t a s i a d o s
m a r u j o s e pelo recontar de boca em boca, de-
viam ter causado no ânimo do povo. O s pri-
meiros cronistas e historiógrafos dão-nos conta
do facto.
C o n v é m , não obstante, para se compreender
inteiramente o significado da expedição de
P e d r o Álvares, que se conheça mais de perto
esse estado de espirito do Rei e da naçao.
O Rei, cuja idade entrava pelos trinta exa-
ctos, sobre ter atingido a sua alta gerarqu.a por
u m a série de acasos quási incrível, o que já de
si a m o r parte das vezes sol m a r e a r os cara-
cteres mais puros, era, de natural, fraco, capri-
choso e d u m a vaidade desmedida Logo no
começo do seu reinado, a pedido dos futuros
s o T o s , comete com deshumamssima .mp.edade,
contra os interesses nacionais e os mais hon-

U) Uiscelhma de Garcia de Resende, e variedades


de histórias, costumes, caso, e cousas, que em seu tempo-
acontecerão.
22
•22 E X P E D I Ç Ã O DE

r a d o s p a r e c e r e s d o seu conselho, um dos maio-


res crimes e ê r r o s de todo o seu g o v e r n o . Do
seu louco a m o r das p o m p a s desfiam b a s t a s
p r o v a s as crônicas do tempo. E D a m i ã o de
G o i s , com as cautelas que o t e m p o reaueria
nao deixa de apontar-lhe n o b r e m e n t e a f u n e s t a
i m p r o c e d ê n c i a d o carácter, (i)
Acrescente-se a isto u m zelo imaginoso (2) e

.) Abundam atravez da Crónica de D. Manuel as mal


veladas alusões às graves inferioridades do monarca
transcreveremos aqui apenas algumas d a s eloqüentes
rases em que o cronista deixa transparecer o seu juizo-
ao debuxar-lhe o retrato físico e moral. „ . . . F o i sofrido
manso, e clemente, p e r d o a v a facilmente qualquer des-
g o s t o que tevesse dos que t o c a v a m a sua fazenda e
pessoa, porque nos c a s o s da justiça seguia a ordem dela
posto que fosse algumas ve^es com dilações, alvaral
"espera, hum em contraíra dos outros, o que por ser de
boa condiçam. c mavioso concedia tam facilmente, que
por este respeito a huns se divertia a justiça, e a outros se
aongava. J-0i mui prudente, de claro, e bomjuijo, o que
me causava não ser tam sugeito ao parecer dos do seu
conselho, como o era a seu particular apetite, c o m tudo
as mais das cousas que intentou, ou per conselho, ou
por seu parecer lhe sucederão bem... Crónica de D Ma-
nuel ._ Parte quarta, cap. l x x x . v . Das feições c o r p o r a e s
Kei d o m
Emanuel, e das calidades de sua real pes-
soa e cousas a que era inclinado e ordem de sua c a s a e
m o d o de viver.

(2) «Inventivo e excelente baram» lhe c h a m a Duarte


P a c h e c o , Esmeraldo, edição E p i f â n i o , p. Ó2.
PEDROAI.VARERCABRAI.27

a r d e n t e na direcção d o s públicos negócios,


muito m a i s quando lhe i n t e r e s s a v a m à ambição
e ao gôsto das g r a n d e z a s . E m h o m e m , de im-
previsto guindado a tal a l t u r a , e em ânimo frí-
YUIU C - U1CC|UH-IU, tnrvrir-it-tn
lüiiminw fortuna r n m n a n u e l a
havia logicamente de influir p o r m a n e i r a anor-
mal.
R e l e n d o e compilando o que rezam as cróni-
cas e os documentos soltos dêsse tempo e em
p a r t i c u l a r os que êle p r ó p r i o chancela e inspira,
aquela presunção volve-se e m realidade elo-
qüente. C a u s a , em v e r d a d e , p a s m o o que êle
s o n h a e ordena ao m e s m o t e m p o . Na mente
sucedem-se e tumultuam-lhe os projectos. A
sede de domínio empolga-o até ao desvario.
U m dos primeiros actos, que decide, logo após
o r e g r e s s o do G a m a , e que licitamente se lhe
p o d e p r e n d e r , é a t r a s l a d a ç ã o , com g r a n d e
p o m p a realizada, da S é de Silves para a Bata-
lha, dos restos m o r t a i s do seu antecessor, que
havia mais de três anos falecera. O jubilo tor-
na-o reconhecido. P e r a n t e a grandeza do t n u n t o
q u e b r a o mal r e b u ç a d o d e s a m o r .
De t e r r a em terra, a c o m p a n h a d o por todos
os g r a n d e s da nação e arcebispos, bispos, oi-
tenta capelães e c a n t o r e s , a cavalo e de tochas
acesas, e precedido pela o r q u e s t r a b á r b a r a
d a s t r o m b e t a s , c h a r a m e l a s , sacabuxas e atam-
b o r e s , o Rei, d u r a n t e longos dias, atravessa
o d e s c a m p a d o reino, na c a u d a do f ú n e b r e
40 •22 EXPEDIÇÃO DE

c o r t e j o . A s noites, no silêncio dos tristes po-


v o a d o s , p o r onde fazem alto, o f a n t a s m a do
Rei havia de surgir-lhe em p e n s a m e n t o , com
a sua altura incomparável. E na Batalha, ja
noite, termim,-1-1 t i i
" vviwiiviiitt, au l e i e i n o r a r
^ H o m e m que p r e p a r a r a com t a m a n h a cons-
tância a obra grandiosa, que o cumulava
agora de ventura, toma-o u m a curiosidade
doentia, e quási clandestinamente volta ao mos-
teiro e m a n d a abrir o ataúde, p a r a o ver. «E
c o m o assi íoy posto, conta o c o n t e m p o r â n e o
G a r c i a de R e s e n d e , se sahiu Ei R e v com todos
os S e n h o r e s e P r e l a d o s , e se r e c o l h c o ; e tanto
que toy noite já depois de cea deu El R e v boas
noites e foyse com alguns ao m o s t e i r o , e me-
teose dentro da capella, onde o santo R e y ja-
zia e com o Provincial e o u t r o s F r a d e s mandou
abrir o ataúde, em que o c o r p o estava, e vio
que tinha muito pó de cal, e m a n d o u aos F r a -
des que com canudos de cana lha a s s o p r a s s e m ,
e èle m e s m o lha alimpava e beijou-lhe as m ã o s
e os pés muitas vezes, e achou o santo corpo
inteiro com cabelos e b a r b a . . . e depois que
o esteve olhando, s e m p r e com o barrete na
m ã o , o m a n d o u emburilhar em olanda muito
t i n a . . . » ( i ) . E r a de ver se o d r a m á t i c o encon-

(i) G a r c i a de Resende. Trcsladação do corpo de


Dom João II.
2
PEDRO AI.VARER CABRAI. 7

tro dos dois reis. Ali perto d e s c a n s a v a o genial


Infante que primeiro concebera a idea de ga-
nhar a índia. O u t r o dos t ú m u l o s encerrava o
bravo fundador da dinastia. T u d o e r a m prín-
cipes e reis, que tinham alcançado a gloria nas
batalhas. K entre as pilastras alterosas, na ca-
lada da noite, à luz t r é m u l a das tochas, cercado
pelos alvos hábitos domínicos, pálido, desco-
berto, arripiado pelo contacto do c a d a v e r , o Rei
vivo mais pequeno ainda se sentia diante do
Rei m o r t o . Estava ali, é certo, o m a t a d o r de
seu irmão e que, a èle, o quisera ainda defrau-
dar do trono. Mas no seu íntimo, revendo a
imagem torva na grandeza de o u t r o r a , calava-se
o ressentimento acerbo, de novo a c o b a r d a d o .
Aquela trágica presença p o r certo o excitou por
longo tempo e lhe acendeu um desejo imenso
de exceder-se.
E é nesses primeiros t e m p o s , como v a m o s
ver. depois da chegada do G a m a , em pleno
deslumbramento da visão do Oriente e na im-
paciente emulação dos seus antecessores (1), que

(i) E i s as palavras textuais de G o i s : « • • • m a s tudo


isto aproveitava pouco pera E l R e v deixar de poer em
obra a vontade que tinha de imitar os Reis seus ante-
cessores e ser-lhes companheiro na g l o r i a que alcança-
ram nas conquistas das cidades, vilas, castelos...».
Gois, Crónica de D. Manuel, cap. X L V I I , I)c como
El Rey determinou de passar em Africa.
42 •22 EXPEDIÇÃO DE

êle concebe t o d a a política imperialista, que


há de m a r c a r depois o seu reinado. Mas, c o m o
o desejo pessoal de glória o preocupa, começa
a p r e p a r a r um exército p a r a invadir a Africa
e m pessoa, projecto que, pouco depois, vem a
trocar pela idea de c o m a n d a r uma grande ex-
pedição contra os turcos, no Mediterrâneo.
F o r m a e inicia t a m b é m por êsse mesmo tempo
o plano g r a n d i o s o da t r a n s f o r m a ç ã o da capital.
Pelo que diz respeito a expedição de P e d r o
A b ares, logo a r d e em ambição e impaciência,
pois de comêço p r e m e d i t a substituir-se a todos
os concorrentes no comércio do Oriente e, o
que é mais, de m a n e i r a que, pagando menos,
dê ao S a m o r i m m a i o r e s vantagens. E , se na
carta p a r a os reis de Castela esconde cautelo-
samente os seus desígnios, nas instruções p a r a
o C a b r a l o seu vasto sonho patenteia-se: «e
a p o m t a v com elle (o S a m o r i m de Calecut) em
algúna cousa r e s o a d a , que se aja de dar de com-
pra e de venda, dizendo-lhe que peroo seja me-
nos do que os outros lhe p a g a m , ha cie sser,
prazendo a Deus, a cantidadc das naus e mer-
cadorras tamta, que lhe rendam os seos direi-
tos muyto mais, que agora rendem.» (i).
Ele sabe, todavia, que os preços das espe-
ciarias c o m p r a d a s directamente em Calecut

(i) Alguns documentos da Torre do Tombo, p. 100.


PEDRO ALVARES CABRAI.

d a o m a r g e m a lucros fabulosos. O Monçaide


i n f o r m a minuciosamente o rei de todo o trauto.
P a s s a d o s dois anos, q u a n d o as naus de C a b r a l
r e g r e s s a m , c a r r e g a d a s de mercadoria, o embai-
, • „ . . l . . - - , . , ^ A* I icKna
x a a o r veneziano escicvc, aiain.u^w, ^ —,
p a r a a Senhoria, em carta de 27 de Julho de
15oi, isto é, logo sobre a c h e g a d a : « H a n o
carga ad stiva per precio che me temo dirlo, e
dicono c o m p r a n o uno canter de canela per un
ducato et meno.» (1).
Depois, no ano de i5oo a I5OI, entre a data
da partida e a da chegada de C a b r a l , continua
o esforço prodigioso da nação anteriormente
planeado. N o começo d o v e r ã o de i5oo, e, por
conseqüência, já depois da largada de C a b r a l ,
parte G a s p a r Côrte-Real a lazer descobrimen-
tos na América do N o r t e (2). A 5 de M a r ç o de
i 5 o i p a r t e m p a r a a índia quatro novas naus,
s o b o comando de J o ã o da N o v a (3). A 10 de
Maio dèsse m e s m o ano seguem p a r a as T e r r a s
de S a n t a Cruz, a continuar o descobrimento,
mais três naus, numa das quais viaja Américo

(1) Copia et sumario di una lelera di sicr Domenago


Pixani, el cavalier, orator nostra in Spapia a la Signo-
ria. edição d e ' E u g ê n i o do Canto, Imprensa da Univer-
sidade de Coimbra, HJ07.
(2) D. de Gois, Crônica de FA Rei D. Manuel,
cap. L X V I .
(3) Idem, ibidem, cap. L X 1 I I .
o
JO 44•22E X P E D I Ç Ã O DE

Vespúcio (1). E , logo", a i 5 de J u n h o saem


para o Mediterrâneo, sob o comando do C o n d e
de T a r o u c a , D. J o ã o de M e n e z e s , u m a a r m a d a
de trinta n a u s , e m s o c o r r o de Veneza e a pe-
dido da S e n h o r i a , c o m t r ê s mil e q u i n h e n t o s
h o m e n s de a r m a s a b o r d o , e u m a o u t r a a i n d a
que se destina a f r o n t e i r a de O u r ã o (2). O en-
vio deste s o c o r r o a V e n e z a é que o d e m o v e
de o u t r o p r o j e c t o m a i s g r a n d i o s o . C o m e f e i t o ,
p o r essa é p o c a , c o n t r a a m a i o r i a de v o t o s d o
seu c o n s e l h o , e n ã o o b s t a n t e o g r a n d e d e s c o n -
t e n t a m e n t o da r a i n h a ü . M a r i a , c o m q u e m ca-
s a r a havia p o u c o , c h e g a a c o n v o c a r u m e x é r c i t o
de 26:000 h o m e n s , p a r a i n v a d i r a A f r i c a , sob
o seu c o m a n d o p e s s o a l (3). M a s tendo m o m e n -
t a n e a m e n t e q u e a b a n d o n a r êsse p l a n o , resol-
ve-se, na sua ânsia d e l i r a n t e de g a n h a r g l ó r i a s ,
a c o m a n d a r p e s s o a l m e n t e a e x p e d i ç ã o do Medi-
terrâneo Oriental. Ele próprio o declara em
c a r t a ao Doge de V e n e z a : « P e l o q u e , p o n d o d e
parte a expedição a Africa, resolvemos logo
mandar-vos algum soccorro... e ao mesmo
t e m p o nos p r o p u z e m o s p a r t i r p a r a ahi e m pes-
s o a , isto n ã o só p o r c o n s i d e r a ç ã o p a r a c o m a

1 0 Cartas de Américo Vespucio. in Policias para a


Historia e Geographia das Nações Ultramarinas, to-
mo II, p. 141.
(2) Gois, obra citada, parte I. cap. 1.1.
|3) Idem. ibidem, cap. X L V I I I .
2 7 45
PEDRO AI.VARER CABRAI.

•christandade, m a s t a m b é m por atenção cá v ossa


p e s s o a . . •» ( i ) .
J u n t a m e n t e medita invadir a Á f r i c a com um
p o d e r o s o exército, e invadir os m a r e s da índia
com a r m a d a s . L o g o envia a Veneza h o m e n s e
naus, em abundância, e acaricia a idea de ele
p r ó p r i o , p a r a espanto de toda a cristandade, ir
c o m a n d a r a expedição; p a r a depois renovar a
intenção de se p a s s a r a África em p e s s o a (2).
Nesse m e s m o tempo em que o T e j o golía
a r m a d a sobre a r m a d a p a r a as costas de quatro
continentes e em que os estaleiros devem regur-
gitar de construções, o Rei, antevendo a mis-
são que L i s b o a esta destinada a d e s e m p e n h a r ,
trata de a a l a r g a r , polir e enobrecer. O s embai-
xadores da índia das maravilhas vão afluir a
capital. E D. Manuel peja-se da rusticidade do
seu velho b u r g o . Já em 1490 êle p r o c u r a preen-
cher os espaços d e s p o v o a d o s e p r o m o v e a cons-
trução de casas, desde a porta da Alfôfa, ao
longo da costa do Castelo, até ao postigo de
Santa Maria da G r a ç a , concedendo aos edifica-
d o r e s os m e s m o s privilégios e isenções de que
g o s a v a m os m o r a d o r e s da Alcáçova e além disso

(1) Epistola (em latim) de Fd-Rei D. Manuel ao Doge


de Veneza, Agostinho Barbadieo, com trad, de J. Pedro
da Costa. E d i ç ã o Kueenio da Canto. í-joy.
(2) Gois, obra citada, parte 1. cap. I . X V .
46 •22 EXPEDIÇÃO DE

o s terrenos livres de t o d o o fôro ( i ) . E m carta


de 8 de Maio de i5oo, u m m ê s depois da partida
d a s naus de P e d r o A l v a r e s , determina que se
dê princípio a c o n s t r u ç ã o dum g r a n d e cais «assv
peiio que deiio se seguirá de m u y t o m a i s nobresa
da cidade, c o m o peilo melhor m a n e j o e provi-
m é t o destas cousas d o trauto da m e r c a d o r y a ,
q t a m jeeralmente a t o d o s toca» (2). Depois, em
carta régia de 10 de D e z e m b r o de n o o , consi-
d e r a n d o que esta cidade é a principal do reino
e que muito se deve atender ao seu enobreci-
mento, m a n d a d e r r i b a r todos os olivais, dentro
d o seu recinto, q u e r sejam de igrejas, de mos-
teiros, de m o r g a d o s ou de qualquer outro senho-
rio, e m a i s determina que em volta da cidade e
contíguo ás m u r a l h a s se a b r a um rossio c o m u m
da l a r g u r a de dois tiros de besta onde os ani-
mais de c a r g a ' s e p o s s a m a c o m o d a r , p a r a que
assim não pejem e afeiem a cidade (3). Deve
t a m b é m ter sido p o r essa data que se começou
a aterrar o e s p a l m a d o i r o , onde mais t a r d e veio
a ser o T e r r e i r o do P a ç o . T o d a v i a , o desejo

(1) Jul io de Castilho. Lisboa Antiga, II parte, tomo III,


p. I 4 3 .
(2) C a r t a da C â m a r a Municipal de L i s b o a , livro I de
E l Rei D. Manuel, citada em A Ribeira de Lisboa,
p. 236, 237, por Júlio de Castilho.
(3) Costa I.obo, Historia da Sociedade em Portugal
110 século XV, p. 1 1 7 . *
PEDRO ALVARES CABRAL 33

de enobrecer Lisboa revela-se principalmente na


c o n s t r u ç ã o , p o r esse tempo iniciada, do mos-
teiro dos Jerónimos, e do g r u p o formidável
de edifícios, que se compõe dos m a j e s t o s o s
P a ç o s da Ribeira, da C a s a da índia, dos Al-
mazens e T a r a c e n a s de C a t a q u e f a r á s ( j ) . N a
sua impaciência de habitar à beira de água
em plena azáfama naval e mercantil, enquanto
N os novos Paços não t e r m i n a m , melhora, p a r a
^ instalar-se nêle desde logo, o palácio de San-
(Jí tos-o-Velho, que adquire por escambo a F e r -
> não L o u r e n ç o (2). E não será aventuroso ima-
ginar-se que m a n d a s s e igualmente nesta data,
Ü c o m o escreve Damião de Gois, «tirar os balcões
1
e sacadas na cidade de L i s b o a , o b r a proveitosa
VJ e mui necessária» (3). Compreende-se assim o
desvanecimento com que num documento desse
^ m e s m o t e m p o d e c l a r a v a : «Esta cidade, louvo-
J res a N o s s o Senhor cada dia se aumenta assim
em p o v o a ç ã o como em muitas cousas do seu
enobrecimento» (4).
E i s a série de factos e indícios sôbre que
assenta a nossa opinião de que as novas d o
descobrimento lançaram D. .Manuel numa ex-

it) Gois e Júlio de Castilho, obras c i t a d a s , p a s s i m .


(2) J. de Castilho, obra citada, p. 596 e 597.
(3) G o i s , obra citada.'parte IV. capitulo L X X X V .
(4) C. L o b o , obra citada, p. 33.
•22
EXPEDIÇÃO DE

t r e m a e anormal agitação do espírito. Um de-


lírio de h o n r a s e grandeza se apossa do mo-
narca. A muito custo os do conselho conseguem
reprimir-lhe o ambicioso imaginar. E até as pró-
prias r e c o m p e n s a s ao G a m a concedidas mos-
t r a m , se lhe c o m p a r a r m o s a liberalidade ma-
g n â n i m a ao ingrato esquecimento com que
despremiou tantos dos melhores servidores, a
p r o f u n d a impressão que o serviço g a l a r d o a d o
lhe causou.
E s s e acontecimento acordava t a m b é m , como
e r a natural, u m nobre entusiasmo nos ânimos
mais esclarecidos da nação. D u a r t e Pacheco,
q u e escrevia cinco anos depois, êle sempre tam
p a r c o nas referências aos seus altos feitos e
n o s g a b o s aos navegantes e guerreiros do tem-
p o , encarece francamente a p r o e z a do G a m a ,
abrindo a tal propósito uma eloqüente excepção
ao seu austero laconismo. O pensamento de
monopolizar o comércio, que enriquecera as
cidades italianas, evocava nos cérebros cultos
destinos magníficos ( i ) . O p r o b l e m a comercial,

(i) P o d e r í a m o s citar vários passos em abôno desta


asserção. Preferimos transcrever de Duarte Pacheco:
« . . . honde de suas m ã a o s os Venezianos haviam ha es-
peciaria e outras cousas com que abastaram Europa,
A f r i c a e parte d'Asia, agora nenhüa cousa teem nem
podem h a u e r ; salvo este bemaventurado p r i n c i p e . . . »
. .e quem bem considerar tamanhas cousas como es-
PEDRO AI.VARES CABRAL 35

que a Itália pusera a E u r o p a , e cujo alcance


Portugal conhecera pela estreita comunicação
com Génova e Florença, ia Lisboa resolvê-lo
emfim. O s florentinos, émulos de Veneza, eram
os mais numerosos dos estrangeiros entre nós.
Penetrava-nos pela arte, pela sciencia e pela
acção, o inais alto espirito do Renascimento.
E com razoes sobejas a idea da cidade adriá-
tica acudia aos espíritos. ;Veneza, empório
do mar e do comércio, articulara, durante
séculos, dois mundos, doirando a sua robus-
tez itálica do explendor bisantino ? Mas Lis-
boa, testa dos caminhos marítimos mais vas-
tos até então sulcados, metrópole declarada
ou oculta de terras, ilhas, m u n d o s novos, re-
querida pelos mercadores, espiões, alviçareiros
e condoíticri desocupados de toda a E u r o p a ,
reflectia já com mais intensidade o clarão in-
diano e aureolava-se do nimbo misterioso, que
os mundos virgens e lendários sòbre ela pro-
jectavam. F s s a consciência secreta duma mis-
são altíssima a realizar fazia exceder as almas.
Dentro das muralhas estreitas da cidade ardia
agora um foco de energias infinitas, que os

t a s , ja m u y t a parte dos f a m o s o s íeytos d A h x a n d r e


M a « n o e dos R o m a n o s l k a m m u i t o a b a i x o e m r e s p e i t o
d ' e s t a santa e grande c o n q u i s t a , , Esmeraldo de sUu or-
bis, Duarte P a c h e c o , e d i ç ã o E p i f â n i o da S.Iva, p. .55.
•22
EXPEDIÇÃO DE

m e s m o s florentinos, genoveses e venezianos es-


timulavam com os racontos d o apogético ex-
p l e n d o r que os seus livres e s t a d o s atingiam.
Soava a hora em que a p e q u e n a grei ascendia
ao zenite da carreira. Assim, e m pleno ardor e
plena glória, deviam ter vivido os gregos de
Pericles e os toscanos de L o u r e n ç o , o Magní-
fico. E m baixo, o povo r u d e e mesteireiro
queimava-se no m e s m o entusiasmo. E , se al-
guns m a i s duvidosos p o n d e r a v a m o caso incer-
tamente, a maior parte louvava, a u m a , a épica
entrepresa. J o ã o de B a r r o s , pôsto que relatando
algumas d é c a d a s depois, acende ainda uma das
suas m a i s f o r m o s a s paginas no alor épico, que
a façanha do descobrimento p r o v o c á r a (i).

(i) « E c o m o nos taes ajuntamentos sempre concor-


rem diversos pareceres em tão novos casos, leixãdo
uquelles que perderão pae. i r m ã o , filho, ou parente nesta
viagem, c u j a dor não leixava julgar a verdade do caso :
toda a outra gente a hüa voz era no louvor deste desco-
brimento. Quando vião neste Reyno pimenta, cravo, ca-
nela, aljofre, e pedraria, que os nossos troxerão como
mostra das riquezas daquella O r i i t a l parte que desco-
brirão : lembrandolhe quão espantados os fazia algua
destas cousas, que as galés de V e n e z a trazião a este
Reyno. A s quaes praticas todas se convertido em louvo-
res delRey. dizendo que elle era o maes bê afortunado
R e v da C h r i s t a n d a d e : pois nos primeiros dous annos
de seu reynado d e s c o b n r a N m a i o r estado à coroa deste
R e y n o , do que era o patrimonio que com elle herda-
PEDRO AI.VARES CABRAL
37

Dessa a t m o s f e r a de heroísmo ideal, que a


nação respira, vão sair os primeiros gigantescos
capitães da índia, h o m e n s da t ê m p e r a d u m Pa-
checo, de D. Francisco de Almeida ou de Albu-
querque. E ' igualmente da consciência esplên-

ra. Cousa que Deos náo concedera a nenhum príncipe de


Hespanha. nem a seus antecessores que nisso bem tra-
balharão, per discurso de tantos annos : nem se achava
escriptura de Gregos, Romanos, ou d'algiia outra na-
ção, que contasse tamanho feito. C o m o era tres navios
c o m obra de cento e sesenta homens quasi todos doen-
tes de novas doenças de que muitos fallecerão, cõ a
mudança de tão vários climas per que passarão, difte-
rença dos mantimentos que comião, mares perigosos
que navegavão, e com fome, sede, frio, e temor que maes
atormenta que todalas outras necessidades: obrar nelles
tanto a virtude da constancia e precepto de seu Rey,
que pospostas todas estas cousas, navegarão tres mil e
tantas legoas, e contenderá com tres ou quatro Reys
tão differentes em lei, costumes, e linguagem, sempre
com v i c t o r i a de todalas industrias e enganos da guerra
que lhe fizeráo. Por razão das quaes cousas, posto que
muito se devesse ao esforço de tal capitão, e vassallos
como elRey mandara, maes se avia de atribuir á boa
fortuna deste seu R e y : porque não era em poder ou sa-
ber de homens, tão grande e tão nova cousa como elles
acabarão. E l R e y de todas estas praticas e louvores do
c a s o era sabedor, porque naquelles dias não se fallava
em outra c o u s a : que era para elle dobrado contenta-
mento. saber quão prompta estava a vontade de seu
povo pera p r o s i g u i r e s t a conquista.»—Barros, Década l,
L i v r o V, cap. 1.
•22 EXPEDIÇÃO DE

dida que a nação t o m a emfim das suas próprias


virtudes e energias, que irá nascer, como em
Atenas, ao calor da glória, após as guerras mé-
dicas, o teatro nacional. O vaqueiro, em que mes-
tre Gil se trasvestira e que no dia 7 de Junho
de I5O2, irrompe pela c â m a r a da R a i n h a na
velha Alcaçova, ganhou o ousio no entusiástico
levante com que o p o v o celebrou aquela faça-
nha nunca vista.
Foi nesta a t m o s f e r a que a expedição do Ca-
bral se organizou. P e l o s rossios da cidade, as
p o r t a s , nos m e s t e r e s , f o r m a v a m - s e disputas,
a j u n t a m e n t o s , alvoroços. O s p o r m e n o r e s me-
ditos c o r r i a m logo, de boca em bòca. O povo
apinhava-se no largo do P e l o u r i n h o Velho, em
t o r n o do G a s p a r da í n d i a , do Monça.de e dos
n o b r e s m a l a b a r e s , q u a n d o , a c o m p a n h a d o s dos
fidalgos da corte, r e g r e s s a v a m da Alcáçova. K
de r o l d ã o com os m e r c a d o r e s flamengos e es-
piões de Veneza seguia-os sob os suportais
da R u a N o v a , caminho da R i b e i r a , espiando-
-lhes as feições e as atitudes. O s raros pilotos
e matalotes escapos da viagem, quando nos es-
taus da R i b e i r a ou b a i u c a s da A l f a m a começa-
v a m o conto das m a r a v i l h a s orientais, e r a m
logo cercados pela t u r b a e escutados com p a s m o
boquiaberto. .
C o m o havia de ser bela então a ribeira do
T e j o , desde as p o r t a s do M a r até ás b a n d a s
do Restelo! R a r o , em diferente país ou n o u t r a
1'EORO ALVARES CABRAI. 3y

idade p u d e r a m olhos de h o m e m alegrar-se com


tão f o r m o s o e exalçante espectáculo. Dum topo
ao outro da tira flava de areais, construiam-se
Oalácios. T : I R : U ' I I N ' K N - M . - .. 1.; L\,„J. .... I

* ' 1 >-, ia au íuiiuu, em lan-


ços claros, a catedral do Mar. No encavernado
e tilhas dos navios, pelas cantarias alvas das
empenas ou sòbre os m a s t a r e u s e estrados dos
andaimes, alevantados em castelos, fervia, como
bando de p á s s a r o s em balsa, o enxame dos al-
vaneis e petintais. O s camartelos e as enxós
desciam, batucavam, refulgiam com faúlhas so-
lares, num revaivem febril. As abas de S. Fran-
cisco, revestidas de forjas, estrondcavam, qual
se os T i t a n s , a lufa-lufa, cravassem a ferragem
sobre uma proa gigantesca. Vozes cnrouqueci-
das de mestres estentores b r a d a v a m , alterosas,
as vozes do comando. E u m a inferneira toni-
troante e erguida a espaços com a celeuma da
m a r u j a , alevantava-se, corria, empolgava a tur-
ba, como cântico b á r b a r o , entoado sòbre uma
nau ciclópica a hora de s a r p a r .
EXAME DAS F O N T E S E P R I M E I R O S

TEXTOS SÔBRE A E X P E D I Ç Ã O

Antes de e n t r a r m o s propriamente na historia


dos primeiros p a s s o s da expedição de Alvares
C a b r a i , convém fazer o exame das fontes res-
pectivas. S ã o elas de três espécies diferentes:
a) documentos oficiais sobre a organização da
a r m a d a ; b) testemunhos directos dalgumas das
pessoas que v i a j a r a m ou c o l a b o r a r a m nela;
c) I n f o r m a ç õ e s transmitidas pelo Rei ou por
italianos p a r a o estrangeiro, quer durante a via-
gem, quer alguns dias depois da chegada dos
primeiros navios de Cabral.
a) P e r t e n c e m ao primeiro grupo a carta da
capitania mór a P e d r o Alvares de Gouveia, da-
tada de 1? de Fevereiro de IDOO ( I ) e os dois

(,) P e d r o A l v a r e s C a b r a l assinava Gouveia, por parte


de sua m ã e . Èste d o c u m e n t o foi e n c o n t r a d o na 1 orre
d o T o m b o pelo sr. A i r e s de S á e p u b l i c a d o na sua obra
Frei Gonçalo Velho, vol. I, p i g . 233.
58 •22 EXPEDIÇÃO DE

a p o n t a m e n t o s f r a g m e n t á r i o s de instruções p a r a
a viagem, os p r i m e i r o s dos quais e n c o n t r a d o s
p o r V a r n h a g e n e p u b l i c a d o s na sua História
geral do Brasil e os o u t r o s existentes na T o r r e
.-!,. T , . „ , K . . í , \
V-IW 1 VJi 1 1 uw I I ) .
bj 0 segundo g r u p o é f o r m a d o pelas cartas
de P e r o Vaz de C a m i n h a e de mestre J o ã o , fí-
sico, escritas do Brasil e igualmente a r q u i v a d a s
na T o r r e do T o m b o (2), e da Relação de tòda
a viagem, feita p o r um piloto anónimo da ar-
m a d a (3).
Deve acrescentar-se a êste grupo a carta de
B a r t o l o m e u Marchioni, a r m a d o r duma das naus
da expedição (4).
c) Constituem o terceiro a carta de D. Ma-
nuel aos reis de C a s t e l a , seus sogros, escrita
p o u c o s dias depois da chegada de C a b r a l e que
existe não só, em p o r t u g u ê s , num t r a s l a d o guar-

(1) P u b l i c a d o s em Alguns documentos da Turre do-


Tombo.
121 Idem.
(3) A R e l a ç ã o do piloto anónimo apareceu traduzida
do português pará italiano em Delle navigatione et
viaggi. raccolta, R a m u s i o , vol. I. i5o3, e em latim no
Novus Orbi, de Grineo. F o i mais tarde restituída a por-
tuguês e publicada em Noticias para a historia c geo-
graphia das naçóis ultramarinas, vol. II. com o titulo
de Navegação de Pedru Alvares Cabral.
(4) Códice Voglienti V. Uzielli. Elogio di Emma-
nuel e Re di Portogallo scrito da P. Voglienti.
r.-nRO ALVARES CABRAL 43

ciado nos Arquivos de Veneza u ) , mas também


vertida p a r a castelhano em N a v a r r e t e (2). Per-
tencem ainda a êste grupo as cartas dos italia-
n o s residentes em Lisboa, com referências a
viagem, e entre as quais sobresaem, por conte-
r e m informes preciosos, a carta de Pisani e a
de la Faitada escritas poucos dias depois da
«chegada de C a b r a l (3).
Nesta m e s m a série faremos entrar a carta
de A m é r i c o Vespucío, datada de 4 de Junho
de 15o 1, em C a b o Verde, isto é, no começo da
sua p r i m e i r a viagem, ao serviço de I). Manuel,
e que apareceu em 174?, na Biblioteca Riccar-
diana (Florença), juntamente com outra datada
de i8 de Julho de i5oo, numa colecção de ma-
nuscritos do começo do século xvi. O problema

(1) Trelado da carta que el Rey nosso senhor escre-


veu a clrrer e a Rainha de Castella seus padres da nova
Ytndia. publicada por E u y e n i o do Canto cm edição
especial.
(2) Carta del Key D. Manuel de Portugal a los Reyes
Católicos, dando les cuenta de todo lo sucedido en el
viage de Pedro Alrare7 Cabral por la cosia de A/rica
hasta el Mar Rojo, in Navarrete. Coleccion delasviages
e descobrimientos-... tomo III. pát;. 04 >.1 101.
(3) Copia et sumario di una letera di sier Domenego
Pi.rani, el cavalier, orator nostra in Spagna j la Sigo-
noria, Diarii di Marino Sanuto, tomo IV. e ediçáo de
E . do Canto. Carta de Zuan de la-Fadada. Diarii. tomo
IV coll. 66 e set;.
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

da sua autenticidade obriga-nos a algumas pala-


v r a s mais. C o m o tem sido considerada apócrifa
a carta de iS de Julho, Varnhagen c Peschel lan-
ç a r a m sobre aquela a m e s m a suspeita. Ao con-
trário, outros escritores, como Baldelli, H u m -
boldt, T r u b e n b a c k e Uzielli consideram-na au-
têntica. Fiske e Vignaud inclinam-se a que a
carta foi retocada, não só com o fim de lhe
corrigirem certos b a r b a r i s m o s da linguagem de
Vespúcio, como pelo acrescentamento de algu-
mas- particularidades. Sem partilhar as dúvidas
de Vignhaud (i>, inclinamo-nos, não obstante
t o d o s os seus caracteres de autenticidade e cir-
cunstâncias que a confirmam, a crer que o co-
pista lhe introduziu algumas pequenas modifi-
cações. E , pois que historiadores da autoridade
de Varnhagen a consideraram apócrifa e outros
c o m o Vignhaud a aceitam com demasiadas res-
trições, temos que defender por nossa parte
a opinião da autenticidade no que respeita a
essência desse documento. Na época em que
Varnhagen escrevia não se conheciam algumas
das fontes e documentos que hoje esclarecem a
viagem de P e d r o Alvares. P o r sua parte V,-

(,) Toda esta q u e s t ã o é l a t a m e n t e t r a t a d a na o b r a


m o n u m e n t a l Arnoric Veyuce < . 4 5 . - > 5 . i ) de Henrv V , -
g n a u d . , 9 , 6 . de pag. 6o a 65. O t e x t o d a c a r t a em • a-
l i a n o , r e p r o d u z i m o - l o nós da m e s m a o b r a de P .,g. +o3 a
407.
PEDRO AI.VARES CABRAL 45

gnhaud, mau grado o seu vastíssimo estudo so-


bre Américo Vespúcio, desconhece bastante a
história portuguesa dêsse t e m p o para avaliar
com justeza a missão que o seu biografado po-
dia ser chamado a desempenhar em Portugal.
Antes de mais nada a data da carta, escrita
de C a b o Verde, está em absoluto acordo com
a carta de Pisani. Sabendo egualmente por êste
último documento que a primeira nau chegada
a Lisboa e, por certo, que primeiro partiu de
C a b o Verde, pertencia a um florentino, com
quem Américo Vespúcio estava forçosamente,
como adiante veremos, nas melhores relações,
compreende-se que por esse intermédio enviasse
a carta para o seu amigo de Florença. Além
disso, certos factos, como o número de navios
afundados durante a viagem, coincidem com o
que as outras fontes nos referem. Ainda assim
os seus vastos informes sobre a personalidade
de G a s p a r da Índia, até aqui mal estudada, mas
unânimes com a carta de Lunardo da Chá Mas-
ser, (1) p o r tão longo tempo conservada secreta
e com certos documentos so recentemente publi-
cados, é que p r o v a m a sua autenticidade, se-
gundo cremos, por maneira irrefutável. Mais
adiante, quando nos referirmos a Gaspar da
índia teremos ensejo de esmiuçar esta questão.

(i) Centenário do descobrimento da América, publi-


c a ç ã o da A c a d e m i a de Scit-ncias de I.isboa.
46 KxremçÁo DF

Q u a n t o as objecções de Vignhaud pelo que to-


ca ao facto de Vespucio omitir nas duas outras
cartas sobre a sua viagem a intenção, expressa
nesta, de alcançar as índias, quer-nos parecer que
isso p r o v a apenas a convicção em que estava
àquela data da continuidade entre a América e
a índia ou de que já então Portuga! procurava a
p a s s a g e m p a r a o Oriente, pelo sul da América.
Mais r e p a r a Vignhaud em que Vespucio não re-
fira em nenhuma dessas cartas o encontro com
os navios de C a b r a l . T o d a v i a a relação do pi-
loto anónimo comprova inteiramente o facto, e
essa o m i s s ã o nas outras c a r t a s explica-se facil-
mente, d a d o que èle se arroga aí o falso papel
de d e s c o b r i d o r primeiro. K se a carta não con-
tém os habituais b a r b a r i s m o s da escrita de Ves-
pucio, em compensação não lhe falta o costu-
m a d o entono de arrogância e gloria de si m e s m o .
O u t r o s documentos, mais ou menos coevos,
vêm acidentalmente lançar luz sobre um ou ou-
tro ponto. A alguns deles, da maior importân-
cia, p o r q u e ocupam um lugar a parte, h a v e m o s
de referir-nos mais adiante. P o r a g o r a citemos
o m a p a de Cantino, o qual contém u m a inscri-
ção acerca da viagem de C a b r a l e u m a carta de
El-Rei de C o c h i m a D. Manuel, na qual se lazem
igualmente referências a esta expedição ( i ) .

II) Publicada cm Mguns documentos da Torre do


Tombo.
PEDRO ALVARES CABRAI. 47

C o m o auxiliares seguem-se em ordem de im-


portância os relatos dos cronistas portugueses
do século xvi, Castanheda (i), João de Bar-
ros (2), Damião de Gois (3), O s ó r i o (4), Gas-
par C o r r e a (5), devendo acrescentar-se-lhes
ainda o Livro das Armadas |(i).
O exame comparativo das lontes originais
oferece desde logo unia vantagem: estabelece-
-Ihes a indiscutível e recíproca autenticidade
(que poderia afigurar-se duvidosa quanto as
que chegaram até nós em traduções), pois coin-
cidem inteiramente, salvo pequenas divergên-
cias, explicáveis aliás pela diferença de inten-
ções que inspiraram cada um dos documentos.
P o r outro lado, como se completam e escla-
recem mutuamente, é possivel lormar com eles
um esquema inteiro dos factos mais notáveis da
expedição, compreendendo a respectiva escala

(11 Historia do Descobrimento e Conquista da índia.


(1 primeiro volume foi publicado em I 5 m .
(21 Décadas da Asia. A primeira saiu em i 5 5 : .
(3) Chronica de D. Manuel. As duas primeiras partes
sai ram em 1560.
(4) De Rebus Emmamtelis gestis, i5SÓ. Foi traduzida
por Filinto Elísio.
(5l Lendas da índia, publicadas por I.ima Felner,
1898.
(6) Relação das armadas saídas do reino desde 141)7
até 1S66, com desenhos e notas manuscritas. Pertence à
Academia de Scièncias de I.isboa.
•22
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

c r o n o l ó g i c a . K se este esquemático relato deixa


ainda insolúveis alguns dos p r o b l e m a s mais
g r a v e s que a wugi-m .-><- • t —
sua indiscutível \ e r a c i d a d e , c o m o p a d r ã o p a r a
c o n t r a s t a r a fidelidade dos relatos das crónicas.
È s s e e s q u e m a constitui v e r d a d e i r a m e n t e u m a
p e d r a de toque. C e r t a s discussões p r o t e l a d a s
a volta dalguns dos p o n t o s mais escuros da ex-
pedição, derivam do imerecido crédito a um
desses cronistas concedido.
N o âmbito deste livro não cabe a restituição
d o s factos principais da expedição, feita s e g u n d o
o exame c o m p a r a d o das fontes. T e m o s , não
o b s t a n t e , que a p o n t a r os juizos que fizemos so-
b r e cada u m dos relatos dos diferentes cronis-
t a s . C o m o d e c o r r e r do texto, e a p r o p ó s i t o ,
a d u z i r e m o s a l g u m a s das p r o v a s respectivas.
D u m a f o r m a geral o esquema o b t i d o pela
c o n j u g a ç ã o das lontes lembra-nos u m a m e d a l h a
c o m sua efígie finamente esculpida, que pelo
a n d a r do t e m p o e o poluir das m ã o s a p o u c o e
p o u c o perde o nítido relêvo original. L o g o de-
pois o mais exacto é C a s t a n h e d a . P o r m e n o r e s
há que nunca mais se t o r n a m a e n c o n t r a r nas
o u t r a s c r ó n i c a s ; assim c o m o u m a das suas in-
exactidões nunca mais deixa de r e a p a r e c e r nos
que escrevem após. O p r i m e i r o livro i m p r e s s o
em P o r t u g a l sobre a viagem de C a b r a l é o seu.
E s t e facto explica que estabelecesse c o r r e n t e
n u m ou n o u t r o ponto, sem que, t o d a v i a , ne-
47
PEDRO ALVARES CABRAI.

nlium dos que escrevem ou i m p r i m e m depois o


copiasse servilmente. P o r sua parte a narrativa
de C a s t a n h e d a aproxima-se em especial da Re-
lação do Piloto anónimo, e pode considerar-se
d u m a fidelidade escrupulosa. Vem a seguir,
pela o r d e m cronológica da impressão, a pri-
meira Década de João de B a r r o s . N a s suas li-
nhas gerais, a c o m p a n h a o que se averigua pelas
f o n t e s ; m a s omite ou desvirtua alguns dos por-
m e n o r e s , ainda que forneça muitos dados no-
vos verificavelmente exactos. Se é o que m e l h o r
nos dá a visão íntima dos factos, afigura-se-nos
p o r vezes mais cuidoso do estilo, em que so-
breleva a todos, do que da exactidão, e mos-
tra um g o s t o exagerado até at) a b s u r d o no de-
senvolvimento das intrigas. G o i s , mais sóbrio,
m e n o s eloqüente, m a s mais exacto do que Bar-
ros, gui ando-se pela Relação do P i l o t o anónimo,
que conheceu, chega a corrigir C a s t a n h e d a ,
posto que o m i s s o num ou noutro ponto. O s ó -
rio, de t o d o s o mais sucinto, p r o c u r a , sem no-
vidades, seguir os mais autorizados. Finalmente
G a s p a r C o r r e a , sobre ser omisso com prejuízo
e a b u n d a n t e sem proveito, atinge na inexactidão
a p u r a invencionice. E r r a a data da p a r t i d a ;
omite quási todas as outras, incluindo a da che-
g a d a ; engana-se q u a n t o ao n o m e do substituto
de P e d r o A l v a r e s ; aumenta com n o m e s falsos
a lista dos capitães, escondendo alguns dos ver-
d a d e i r o s ; e ignora, t r a n s p õ e , altera ou inventa

4
5o EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

factos, com audaciosa fantasia. Chega a p a r e -


cer milagre que num dos pontos mais notoria-
mente obscuros tanto nas fontes como nos cro-
nistas êle rasteasse a v e r d a d e t a m de perto. A
o b r a de G a s p a r C o r r e a merece apenas o inte-
resse real que, em história, se deve ligar as len-
das.
Deste segundo exame comparativo entre as
fontes e as crónicas conclui-se que quási todas
são diferentes, p o d e n d o , pois, fornecer subsí-
dios p a r a a restituição completa da viagem,
m a s que o relato de C a s t a n h e d a constitui o au-
xiliar eleito p a r a completar o que das primeiras
se averigua.
Q u a n t o ao Livro das Armadas, a página re-
lativa á a r m a d a de C a b r a l não passa, nos dize-
res, d u m a cópia mal feita do que dizem as crô-
nicas, como t e r e m o s ensejo de p r o v a r .
DISTRIBUIÇÃO DOS COMANDOS.

FIGURAS PRINCIPAIS DA ARMADA.

Antes de estudarmos a organização e os


objectivos da a r m a d a de Cabral, devemos ave-
riguar quais os capitães e figuras principais, que
acompanham e organizam a a r m a d a , e traçar-
-Ihes o mais possível as origens e biografias,
janto com esse prévio exame se esclarece aquele
estudo. As fontes, sendo na cronologia muito
mais minuciosas que os cronistas, mostram-se
em geral escassas, quanto a.s rete-cncius de
nomes e factos individuais. H e m o s , pois, que
socorrer-nos do auxilio das crónicas neste par-
ticular. Dentre todos os documentos originá-
rios, o mais abundante na citação dos n o m e s e
a carta de Caminha. Vejamos pelo que diz res-
peito aos capitães. Estabelece-se incontroversa-
mente pelas fontes que e r a m treze os navios
da a r m a d a e treze os capitães, incluindo P e d r o
Alvares.
C a m i n h a , testemunho de veracidade irrecusá-
-c|0
-c|0 E X P E D I Ç Ã O DE

vel, cita os n o m e s de sete capitães, a s a b e r :


P e d r o Alvares C a b r a l , Sancho de T o v a r , como
sota-capitão (qualidade p o r várias d a s outras
fontes confirmada), S i m ã o de M i r a n d a , Aires
G o m e s da Silva, B a r t o l o m e u Dias, Nicolau
Coelho e Vasco de Ataide, que p o r altura das
ilhas de C a b o Verde se p e r d e r a da a r m a d a .
Nenhuma das o u t r a s fontes acrescenta a estes
algum n o m e . C a s t a n h e d a , B a r r o s , Gois e o
I.ivro das Armadas, além daqueles sete nomes,
atribuem t a m b é m capitania a Diogo Dias (al-
guns dizem Pero), irmão de B a r t o l o m e u Dias,
a P e r o de Ataide, por alcunha o Inferno (se-
gundo B a r r o s e Gois) e a N u n o Leitão. Gas-
par de L e m o s , Luis Pires e S i m ã o de Pina.
O s ó r i o , p o r mais sucinto, refere-se apenas inci-
dentalmente a três capitães, além de C a b r a l , —
Sancho de T o v a r , G a s p a r de L e m o s e P e r o de
Ataide. Cita ainda o nome de N u n o Leitão,
mas sem lhe atribuir aquela categoria. Apenas
G a s p a r C o r r e a diverge desta voz unânime.
Menciona catorze capitães p a r a os treze na-
vios, percebendo-se que h a r m o n i z a esta dispa-
ridade com atribuir o c o m a n d o da capitania e
o sub-comando da a r m a d a a S i m ã o de Mi-
randa, ficando a P e d r o Álvares apenas o co-
m a n d o geral. E elimina da lista dos c o m a n d o s
os n o m e s de Aires G o m e s da Silva e Pero de
Ataide, que substitui p o r B r á s M a t o s o , P e d r o
de Figueiró e A n d r é Gonçalves, coincindindo
I'KLLRO ALVARES CABRAL 53

nos restantes. Q u a n t o a primeira dessas diver-


gências nem as fontes, nem o costume seguido
nas demais a r m a d a s autorizam a supôr que a
C ü h m l nán roiilípcsp n , - o r n a n d o d i r e c t o d a l s u m a
w ~ ~. — — —. - ~ ~ _ ~ . ~- — o
das treze naus, sendo além disso e r r o mani-
festo atribuir a S i m ã o de Miranda o sub-co-
m a n d o de toda a a r m a d a . Pelo que a segunda
diz respeito, pois que da lista dos treze capi-
tães referidos por aqueles escritores, apenas
dois não aparecem mencionados como tal em
G a s p a r C o r r e i a , e um deles Aires G o m e s da
Silva é citado na carta de C a m i n h a , temos que
o seu depoimento apenas invalida o nome de
P e r o de Ataide. O r a acontece que depois de
P e d r o Alvares e Sancho de T o v a r , sub-coman-
dante, é êsse precisamente o n o m e de capitão
que as crónicas mais referem, durante todo o
relato da viagem, não só por lhe ligarem várias
particularidades individuais, mas em lhe atri-
buírem o c o m a n d o do primeiro dos nossos feitos
épicos na India e mais brilhante das missões
isoladas, confiadas a um so navio durante
aquela expedição. 0 próprio G a s p a r Correia
cita o seu nome nesse passo da viagem, atri-
buindo-lhe primasias da gloria em tal empresa
conquistada. Acresce ainda que P e r o de Ataide
volta a P o r t u g a l e de novo embarca para a
índia numa das a r m a d a s seguintes, coman-
d a n d o igualmente uma nau e continuando ali
com m a i o r vulto as façanhas que da primeira
54 nXPKDIÇÁO DE

vez já p r a t i c a r a . O conjunto destas circuns-


tâncias, dentre as quais sobreleva a continui-
d a d e brilhante dos seus feitos e funções, con-
f i r m a d a n o u t r o s p a s s o s por G a s p a r C o r r e i a ,
afasta mais u m a vez a hipótese dum erro come-
tido pelos q u a t r o cronistas. Acrescentemos
ainda que este g r u p o de escritores, salvo u m a
union excepção, que mais adiante explicare-
m o s , c o n c o r d a s e m p r e com as lontes n a s atri-
buições a indivíduos dos factos p r o e m i n e n t e s
da viagem. U m a outra incerteza p o d e r i a surgir,
se algum dos n o m e s citados p o r C o r r e i a tosse
•confirmado p o r qualquer d o c u m e n t o de impor-
tância. M a s tal não acontece. C r e m o s assim n ã o
h a v e r d m i d a s de que os capitães da a r m a d a de
P e d r o Alvares sejam os que C a s t a n h e d a . Bar-
ros e Gois n o m e i a m . E releve-se o n o s s o longo
interesse em d e m o n s t r a - l o a conta do dema-
siado credito com que alguns h i s t o r i ó g r a f o s t e m
discutido o t e s t e m u n h o de C o r r e i a , que não
aquele que nós p r ó p r i o s lhe liguemos.
Além d e s t e s , avultam entre as p e s s o a s notá-
veis pelo sangue e feitos, que seguem nesta ex-
pedição, os n o m e s de Aires C o r r e a e Duarte
P a c h e c o . O p r i m e i r o vai por feitor da a r m a d a ,
m a s leva p o r m i s s ã o principal estabelecer a fei-
toria em Calecut. Q u a n t o a m i s s ã o , que o se-
g u n d o , p o r v e n t u r a , levasse, c o n s e r v a m t o d o s os
c r o n i s t a s um singular silêncio.
T o d a v i a a sua prática e s a b e r excepcionais e
47
PEDRO ALVARES CABRAI.

os altos serviços p r e s t a d o s anteriormente não


p o d e m deixar de assinalar-lhe ali uma função
m u i t o elevada. T o d o s os cronistas, incluindo
rVicr.iT- li,.. -
\juiii_a, iin. icLciciii a pieseuÇu iui ex-
pedição. Além disso. C a s t a n h e d a e Gois, identi-
ficando-o com aquele herói, que em i 5 o 4 de-
fende do rei de Calecut a fortaleza de C o c h i m ,
eliminam a hipótese dum erro devido a homo-
nímia ( i ) .
O p r o b o e fiel C a s t a n h e d a vai mais longe:
identifica-o n o v a m e n t e por uma ligação mais

1 1 ) «Deste ano de mil e q u i n h e n t o s e t a s , p a r e c e n d o a


el rev de P o r t u g a l . . . n ã o quis m a n d a r mais de sevs
n ã o s r e p a r t i d a s em duas c a p i t a i n a s . Das p r i m e y r a s f o y
c a p i t ã o m ó r hum fidalgo chamado Afonso dalbuquer-
que. que d e p o i s g o v e r n o u a India c o m o direv no ter-
c e i r o l i v r o . E f o r ã o seus c a p i t ã e s D u a n e p a c h e c o pi-
r e v r a . de que faley atras -..» Castanheda, obra citada.
L i v r o I. c a p . l . V .
« A o d i a seguinte, i n f o r m a d o el R e i de C a l e c u t pelos
M o u r o s , que f o r ã o c o m P e d r o D a t a í d e . de quão a n i m o -
s a m e n t e os nossos o í i z e r ã o , m a n d o u pedir a P e d r a l v a -
rez, que lhe m a n d a s s e os que f o r ã o naquelle feito, pera
se p o d e r g a b a r que v i r a h o m e n s , que m e r e c i ã o ser vistos
de t o d o l o s R e i s . e s e n h o r e s do m u n d o , aos q u a e s fez a
t o d o s m e r c e s e em e s p e c i a l a D u a n e P a c h e q u o P e r e i r a ,
p o r lhe os M o u r o s dizerem, que n u n c a v i r ã o h o m e m tão *
animoso nem tão e s f o r ç a d o , e que elle f o r a a c a u s a
ú n i c a de se aquella nao t o m a r , d o qual e d a s f a ç a n h a s
q u e fez na I n d i a e en o u t r a s p a r t e s se dirá a o deante.».
G o i s . o b r a c i t a d a , parte 1 c a p . L V I I I .
5o EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

íntima a factos inJviduais ali p a s s a d o s . R e f e r e


c o m efeito esse cronista que o Rei de C o c h i m ,
•quando em J a n e i r o de 1604 F r a n c i s c o de Albu-
q u e r q u e lhe deixa, ciii apoio c o n t r a o S a m o -
r i m , Duarte P a c h e c o c o m um irrisório n ú m e r o
de soldados, não obstante se dá p o r satisfeito,
pelo que conhecia deste capitão (1). Q u e r e alu-
dir sem dúvida as p r o v a s que êle d e r a na ar-
m a d a de C a b r a l .
H a v e m o s de nos referir ainda a alguns fidal-
gos p o r t u g u e s e s , quais sejam D. A l v a r o de
B r a g a n ç a e o C o n d e de P o r t a l e g r e , e a merca-
dores estrangeiros, c o m o B a r t o l o m e u Marchioni
e J e r ó n i m o C e r n i c h e , que e n t r a v a m nesta ar-
m a d a com suas naus p a r a fins c o m e r c i a i s .
P a s s e m o s a g o r a a ver quais os títulos de no-,
breza, virtudes ou feitos pessoais que justiti-
q u e m a escolha dos p r i m e i r o s n o m e s p a r a os
postos principais da a r m a d a .

(2) í.E c o m o elo sabia que a ficada era muyto peri-


g o s a por a m u y t o pouca gente que podia deixar não
ousava de c o m e t e r a nenhum dos c a p i t ã e s que ficasse, e
por derradevro de a oferecer a todos, e eles a não que-
rerem a deu a Duarte pacheco que a aceitou de boa
vontade mais pêra servir a Deus e a el R e y que por lhe
' s e r proveitosa, que bem sabia quão p o u c a fazenda avia
de ganhar em ficar na Índia da manevra que sabia que
avia de ficar: e sabendo el rey de C o c h i m c o m o ficava
ouvese por contente disso pelo que dele sabia.» C a s t a -
nheda, obra citada, L i v r o I, C a p . I . X I I I .
GENEALOGIA E BIOGRAFIA DE PEDRO

ALVARES CABRAL

«Por se levantar a gloria


Das linhagens mui h o n r a d a s ,
que por o b r a s mui louvadas
de si deixaram m e m ó r i a
a quem lhe siga as pegadas,
suas a r m a s decifrando,
algumas irei l e m b r a n d o ,
donde lhe a nobreza vem,
P o r que faça quem a tem
pola suster, bem obrando.»

«De p u r p u r a celestial,
sobre prata mui luzente,
a geração mui valente
que delas se diz C a b r a l
traz sem outro diferente.
E para que estas aponte
-c|0
EXPEDIÇÃO DE

escrito trazem na fronte


seu esforço e lealdade
naquela grã liberdade
do castelo de Belmonte.»

Assim nos pinta João Roiz de Sá f i ) , em


campo de prata, as duas c a b r a s passantes de
p ú r p u r a vestidas, das armas dos C a b r a i s , cujo
maior título de gloria, sumula de alto estorço e
lealdade está na grande liberdade do castelo de
Belmonte, isto é, «híia das m a y o r e s prehemi-
nencias do Mundo, que he n a m darem home-
nagé dos Castellos, que se lhes entregam», no
dizer dum outro linhagista (2).
Km verdade, ainda que se lhes possam buscar
origens tão remotas como a p r ó p r i a m o n a r q u i a ,
a nobreza dos C a b r a i s firma-se por m o s t r a s
de lealdade inquebraníada, durante a grave e
incerta crise da independência portuguesa, no
século XIV.
Assim, a legítima fidalguia de P e d r o Alvares
remonta até seu terceiro avô Alvaro Gil Ca-

(1) De Jo.im rruij de saa decrarando digitus escudos


durmas dalgúas Ivnhageés de Portuguall, que sabya
donde vynham. Cancioneiro Geral de G a r ç i a de Resen-
de, edição Gonçalves Guimarães, tomo III, pag. 208.
Modificamos a ortografia para melhor entendimento.
(2) Antonio de Villasboas e S a m p a i o , Nobiliarchia
portuguesa, titulo dos Cabrais.
77
PEDRO A L V A R E SCABRAI.47

bral, alcaide-mór do castelo da G u a r d a , em


tempos de I). F e r n a n d o e do Mestre de Aviz.
Q u a n d o el-Rei D. João de Castela, nos tempos
do Mestre, entrou em Portugal pela G u a r d a ,
1 r 1 , .1 I . kli-rííl nlip lá A
logo se íorani a cic, « u u w «j— -
acompanhava, vários fidalgos e escudeiros da
comarca. Mas Alvaro Gil Cabral conservou o
castelo pelo Mestre, m a u grado as tentadoras
ofertas do monarca e as reiteradas pressões
por interpostos fidalgos portugueses exercidas.
Daí por diante continuam os seus serviços de
lealdade e quando, em i385, se celebram em
C o i m b r a as cortes que levantam o Mestre de
Aviz por soberano, Alvaro Gil C a b r a l é um
dos que assinam o auto do levantamento. U m
ano antes, já o Mestre, quando apenas regente
e defensor do reino, lhe fizera mercê das alcai-
darias dos castelos da G u a r d a e Belmonte, de
juro e herdade para sempre, desobrigando os
seus descendentes de prestarem homenagem,
isto, além de outras mercês em boas t e r r a s .
Sua mulher D. Maria E a n e s Loureiro era neta
de D. Rui Vasques Pereira, tio do Condestá-
vel. Alvaro Gil C a b r a l faleceu em C o i m b r a
em 1433 e jaz, sepultado em jazigo próprio, na
Sé Velha, dessa m e s m a cidade.
Eis o nobre tronco da família. N a s altas fra-
gas da G u a r d a e de Belmonte, em rude terra
centeeira, nas abas da Estrela e da Atalaia, ja
fronteiras da E s p a n h a , nasceram as passantes
-c|0 -c|0 E X P E D I Ç Ã O DE

cabras, vestidas com a p ú r p u r a da lealdade.


Daí por diante sucedem-se os esforçados e lea-
líssimos C a b r a i s .
De Alvaro Gil nasceram Luís Alvaro C a b r a l ,
que herdou a casa vinculada de seu pai com
senhorios e alcaidarias, e D. Brites Alvares
C a b r a l , mãe que foi de Gonçalo Velho, o que
por m a n d a d o do Infante D. H e n r i q u e desço-,
briu os A ç o r e s .
Luís A b a r e s Cabral foi escudeiro fidalgo de
D. João I e vedor da casa do Infante D. Hen-
rique, que acompanhou na t o m a d a de Ceuta (i).
Herdou-lhe os vínculos ,seu filho F e r n ã o Ca-
bral, que continuou no cargo, junto do mesmo
Infante e com ele esteve igualmente na t o m a d a de
Ceuta. «E a q u i , - relata G o m e s E a n e s de Azu-
rara, traçando-lhe a biografia em breve escorço,
— aveis de saber que F e r n ã o d'Alvares Cabral
adoeceu de pestenença na galee do Infante
D o m Anrique, onde vinha, cujo v e a d o r era, e
foi posto fora em terra e prouve a Deus de lhe
dar saúde p a r a lhe fazer adiante muito serviço;
e tanto que C e p t a foi t o m a d a , e elle guarido,
se foi aaquela Cidade, e esteve nella por alguns
annos, e esteve nos cercos a m b o s , s e m p r e como
b o m Fidalgo, e foi o primeiro que m a t o u Mou-
ros de cavallo em aquella cidade, fazendo sem-

(i) Azurara, Chronica de Dom João I, parte I, cap. L X .


i'KLLRO ALVARES CABRAL 79

p r e coisas dinas de m u i t a h o n r a e assy acabou


ao diante em defendendo seu S e n h o r s o b r e o
cerco de T a n g e r e , c u j a m o r t e foi a elle muito
h o n r o s a , por acabar em serviço de Deos, e do •
S e n h o r que o c r i a r a . . . » (i). O m e s m o Azu-
r a r a lhe dedica u m largo capítulo na Chronica
de Dom João I (2).
De F e r n ã o Alvares C a b r a l e de sua mulher
.D. T e r e s a de Novais de A n d r a d e , filha de Rui
Frei de A n d r a d e , almirante de Portugal, nasceu
F e r n ã o C a b r a l , o pai de P e d r o Alvares, e
Diogo C a b r a l , que casou na Madeira com uma
filha de J o ã o Gonçalves Z a r c o . E s t e F e r n ã o
C a b r a l , fidalgo da c a s a de D. Afonso V, pres-
tou ao dito Rei, segundo os dizeres duma carta
da sua Chancelaria, g r a n d e s serviços não só
nas partes de A f r i c a , como nos reinos de Cas-
tela, onde continuamente o seguiu dispendendo
g r a n d e parte da fazenda p r ó p r i a (3).
S o b r e ter h e r d a d o a casa de seu pai, com as
m e s m a s alcaidarias e senhorios, F e r n ã o Ca-
bral exerceu durante longos anos o c a r g o de
regedor da justiça d a s c o m a r c a s e correição da
Beira e R i b a de C ô a , tarefa espinhosíssima e
onde encontrou as m a i o r e s dificuldades. U m

d ) Chronica do Conde D. Pedro, liv. 1, c a p . X X V I I I .


(2) C a p . L X da parte I.
(3) V i d e A i r e s de S á , Frei Gonçalo Velho, t o m o I,
documentos C X L V .
(52 KXPKDIÇÃO UE

dos mais p r o b o s historiadores dos n o s s o s


tempos, que particularmente estudou a sua
acção como magistrado, não regateia louvores
aos seus serviços ( D. F e r n ã o Cabral, pelo ca-

(!) „A t a r e f a deste m a g i s t r a d o que, pelo m e ã o , d u -


r a n t e desasete annus até iS 4 >. exerceu o seu a l t o c a r g o
nesta c o m a r c a , n ã o e r a p a r a i n v e j a r . Km t o d o este es-
p a ç o de t e m p o o seu n o m e n o s a p a r e c e , ora i n v o c a d o
p a r a s a l v a g u a r d a do d i r e i t o , p o r e m , em maior n u m e r o
de casos, c o m o o de u m réu de d e s a c a t o s á j u s t i ç a . As
a c u s a c ó e s e r a m p u b l i c a s em c o r t e s , assinadas e s e l a d a s
pelos ' c o n s e l h o s da B e i r a . l ) a sua d e l e / a que h a v i a de
ser verbal, n ã o nos licou d o c u m e n t o : se e que lhe e r a
cKteida. p o r q u e c n o t á v e l que em geral, nas r e s p o s t a s
a o s c a p í t u l o s , r a r a vez o rei c o n t r a d i t a as a c u s a ç õ e s
c o n t r a q u a l q u e r f u n c i o n á r i o ; m a s t a m b é m n a o as d a
por p r o v a d a s : l i m , t a - s e a r e s o l v e r o c a s o na s u p o s i ç ã o
d a sua existência. T o d a v i a , em vista d a c o n t r a p o s i ç ã o
d o s t e s t e m u n h o s , da palpável i m p r o c e d ê n c i a de a l g u m a s
i m p u t a ç õ e s , da c o n f i a n ç a que lhe foi c o n s e r v a d a d u r a n t e
rani l o m j o t e m p o , d a b e n e v o l ê n c i a q u e a ele e a seus
descendentes t e s t e m u n h a r a m s u c e s s i v a m e n t e D. A l o n -
SO v D J o ã o 11 C D. Manuel, n á o t e m o s a m e n o r d u v i d a
em afirmar a p r o b i d a d e e r e c t i d ã o de F e r n ã o C a b r a l ,
a f e r i d a pelo pad,aio jurídico da é p o c a . N e m e r a ele d o -
m i n a d o d a c o b i ç a . D o e s b a n j a d o r A f o n s o \ que dissi-
pava os bens do E s t a d o , s e m c o n t a n e m d i s c n m e , este
f u n c i o n á r i o de p r i m e i r a j e r a r q u i a n á o r e c e b e u o u t r a s
m e r c ê s mais que a c o n v e r s ã o em h e r e d i t a r i a d a a l c a i -
d a r i a vitalícia de B e l m o n t e e o p a d r o a d o d a , g r e , a d e
S S e b a s t i ã o em A z u r a r a . O que ele n ã o p o u d e f o i re-
solver a pendência s o b r e os vinhos, que c o n t i n u o u a
f o r n e c e r acendalhas p a r a as m a l q u e r e n ç a s entre o s c l -
PEDRO ALVARES CABRAL I 63

samento com D. Isabel Gouveia, herdeira de


seu pai, J o ã o de Gouveia, alcaide-mór de Cas-
telo R o d r i g o , e senhor de Almendra, Valhelhas
e Castelo B o m e pelas mercês sucessivas de
D. Afonso V, D. J o ã o II e D. Manuel e ainda
porque sucedeu t a m b é m no morgadio de D. Ma-
ria Gil C a b r a l , estendeu por toda a Beira u m a *
casa opulentíssima (i). T ã o avantajada estatura
havia, que o c o g n o m i n a r a m o gigante da Bei-
ra, segundo u m a velha tradição conservada em
Belmonte (2). .Ta o coudel-mór F e r n ã o da Sil-
veira. n u m a s trovas que lhe fez, se lhe d i r i g e :

"Myçer gualante C a b r a l

Sois em corte feo, g r a n d e ,


E no c a m p o outro tal»

d a d ã o s da G u a r d a . » C o s t a L o b o , História da Sociedade
em Portugal no século XV. pag. a31 a 2I12.
C o s t a L o b o c o n f u n d e , t o d a v i a , por vezes F e r n ã o C a -
bral c o m o p a i . F e r n ã o Alvares C a b r a l , assim c o m o
S a n c h e s de Baena na sua m e m ó r i a g e n e a l ó g i c a c o n f u n d e
Luis A l v a r e s C a b r a l c o m o filho, o q u e se pode v e r i f i c a r
em A z u r a r a , n o s c a p í t u l o s c i t a d o s . C o s t a L o b o c o m e t e
a i n d a o u t r a s p e q u e n a s i n e x a c t i d õ e s , inúteis de referir.
{1) Vide a longa série de d o c u m e n t o s q u e se lhe r e f e -
r e m . p u b l i c a d a em Frei Gonçalo Velho, de A i r e s d e S á ,
t o m o I.
(2) P i n h o L e a l . Portugal antigo e moderno, palavra
Belmonte.
( ;4 . t, * EXPEDIÇÃO DE

e de seguida acrescenta :

U m Maneias sois segundo,


P o r servir damas t o r n a d o ,
e dos galantes sois dado

p o r espelho neste m u n d o . . •

Mas logo nos remoques de que as t r o v a s


estão cheias o fidalgo troveiro insinua que nem
só das d a m a s Fernão C a b r a l cuidava, pois lhe
chama «metedor dalvoroços antre m o ç a s de
pandeiro e soalheiro» d ) .
Vtravez dos documentos, que se lhe relerem,
0 rico e avantajado corregedor das Beiras,
crestado pelas guerras de Africa e C a s t e l a ,
activo, d e s e m b a r a ç a d o , p o d e r o s o , iguala sem-
pre com a estatura física a m o r a l , saindo .leso
dos ataques, que em cortes lhe endereçam, a
conta da sua áspera justiça, e merecendo con-
tinuamente as mais lisongeiras, q u a n d o nao
respeitosas referências aos três m o n a r c a s , s o b
cujo sceptro a sua fadigosa vida decorreu. A s
m e s m a s alianças por casamento contraídas en-
tre os seus filhos e algumas das mais podero-
sas famílias dessa época, maiores ate em
proeminência, atestam o seu poderio, abas-
tança e b o m nome.

(,) Cancioneiro geral de G a r c i a de Rezende, ediçL.


citada, tomo I, pag. 189 a 192.
85
PEDRO ALVARES CABRALI85

P e d r o Alvares C a b r a l nasceu cm Belmonte,


a p r o x i m a d a m e n t e no ano de 1467 ou 1468. E ,
se no solar de seu pai aprendeu, de criança, as
an/rn/)TTl a o fJ» m onnhpi m s tradições
g u t i i i url'ic , da família.,
breve, na corte de D. J o ã o II, p a r a onde en-
trou, c o m o m o ç o fidalgo, havia de a r d e r p o r
continuá-las, ao estudar as h u m a n i d a d e s desse
t e m p o , t a m v e r s a d a s em cosmografia e mari-
nharia, e ao contacto da pleiade de navegado-
res e capitães que r o d e a v a m o Príncipe Per-
feito. M o r t o D. J o ã o II, I). Manuel agraciou-o
com o f ò r o de fidalgo do seu conselho (1), oíe-
recendo-lhe mais o hábito de Cristo e u m a tença
anual. Pelo seu c a s a m e n t o , sobre ter alargado
consideravelmente (2) a fortuna já h e r d a d a (por
certo diminuta p o r não ser o primogénito e
haver m a i s dez irmãos), aliou-se a u m a d a s
mais ilustres e p o d e r o s a s famílias dessa época.
S u a m u l h e r D. Isabel de C a s t r o , terceira neta
dos reis D. F e r n a n d o de Portugal e D. Henri-
que de Castela, era filha de D. F e r n a n d o de
N o r o n h a e de sua mulher D. Constança de Cas-
t r o , irmã esta de A f o n s o de Albuquerque e neta
d o p r i m e i r o C o n d e de Atouguia.

(1) Historia Genealógica da Casa Real. tomo II das


Provas, pág. 320.
(2) V i d e doc. X V I I , em Sanches de Baena, O desco-
bridor do Brasil, Pedro Alvares Cabral, memória apre-
sentada à A c a d e m i a de Sciências de L i s b o a .
-c|0 -c|0 EXPEDIÇÃO DE

; Que leitos ou serviços prestara P e d r o Al-


vares Cabral que lhe revelassem as altas quali-
dades e o impusessem na escolha para tam ele-
vado cargo, como o que há ue exercer na
expedição da índia? Se alguns praticou, dignos
de menção, não os regista a historia. E o único
indício documental, anterior á sua nomeação,
que vem quebrar esse silêncio, consta duma
carta de I). Manuel em que, a pedido de P e d r o
A l v a r e s , o Rei confirma e divide em duas par-
tes iguais a tença de 26:000 reais que 1). J o ã o II
concedera a ele c a J o ã o Fernandes C a b r a l , seu
irmão primogénito. A propria concessão de
D. J o ã o II aos dois, dentre os cinco filhos va-
rões de F e r n ã o C a b r a l , faz supor que eles se
houvessem distinguido por serviços praticados.
M a s esta nova carta, que e datada de 12 de
Abril de 1407, expressamente declara, com ex-
clusiva referência a Pedro A l v a r e s : « E visto
por nos seu requerimento ser justo, havendo res-
peito a seus serviços e merecimentos, querendo-
-lhe fa;er graça e mercê-. •» (1). Ignora-se,

',1 Eis o text,> completo da carta, que extraiamws de


Aires de S á . obra c i t a d a , tomo 1, doe. C L X U : «Dom Ma-
nueli por g r a ç a de deus Rey de portugail e dos algarves
daaquem e daallc mar 6 africa sennor de guince A quan-
tos esta nosa carta virem fazemos saber que peiro al-
vareJ de gouvea fidalgo da nosa c a s a nos dise o r a que
ele ejolum fernandet- cabrall seu i r m á a o tinham d e l R e y
PeDRO ALVARESCABRAI.47
87

não obstante, quais f o s s e m esses serviços. M a s


o uso do tempo, que fazia das p r a ç a s de A f r i c a
a escola de g u e r r a para os moços fidalgos, a
tradição ininterrupta da família, pois desde o
pai ao bisavô todos ali treçaram armas com
bravura, o próprio comando duma armada era
q u e s e g u e m g u e r r e i r o s já e x p e r i m e n t a d o s , tudo

meu senor c u j a alma deus ala de tcmça e cada huü anno


em quanto nosa merece tosse vinte e seis mill Reaes per
sua carta de padrom que lhe deles mandara dar segundo
pareceo per o trellado delia que dos livros da chance-
laria d:, t i p o que aos sobreditos toy dada per o dito
Sennor a dita tcmça íov tirada de verbo a v e r b o p e r g i l
fernandez escripvam da chancelaria de dom J o r j e m e u
muito prezado e amado sobrinho que hos em seu poder
tem do dito tepo e que eles perderam a propria carta do
dito Semíor que da dita tcmça tinham e a nom podiam
achar pera a o r a vvrè comfirmar per nos pedymdonos
por quanto a dia carta era perdida que nos prouvese
mandarmos dar a cada hun nosa carta de padrá apar-
tada do que a c a d a hun montase dos ditos X X b j (20000)
Reaes. saber X i i | (i3ooo) Reaes a c a d a huü pera dos di-
tos dinheiros aver seu pagamento homdc lhes provese
segundo nosa hordenança. E vis.o per nos seu R e q u e r y -
mento seer jusio avendo Respeito a seus serviços e me-
recimentos querendolhe f a z e r g r a ç a e merceé T e e m o s
por bem e nos praz que ele dito pedro alvare- de gou-
vea tenha e aja de nos de tença c c a d a huü anno des
primeiro dia de janeiro que ora pasou deste anno pre-
c
sente de mill i l i d k . b i . (i 4 < J 7 ) em diante em quanto nosa
merçec for os ditos XÍTJ Reaes que a ele m o t a aver da
-c|0 -c|0 EXPEDIÇÃO DE

l e v a a c r e r q u e a o m e n o s êle h o u v e s s e p r e s t a d o
ali t a m b é m o s s e r v i ç o s a q u e a c a r t a s e r e f e r e .
A falta, pois, de anteriores relatos, que nos
r e v e l e m as suas \irtudes e carácter, v a m o s afe-
ri-los pelas provas únicas que a história nos
c o n s e r v a . S e m o u t r a s , que n ã o f o s s e o s i m p l e s
f a c t o de lhe h a v e r e m confiado a capitania mór
de tão i m p o r t a n t e e x p e d i ç ã o , éste b a s t a v a p a r a

sua mci ade dos ditos vinte e seis m i U R e a e s que ambos


tinham como dito he por quanto X u | Reaes da outra
metade mandamos dar outra nosa carta ao d u o Joham
fernande; peru delles apartadamente aver per ella seu
pagamêto e poré mandamos aos veedores de nosa f a -
zenda que f a ç a m R i s c a r dos nosos livros delia os ditos
X X b ) Reaes que ambos os sobre ditos juntamente neles
t e m assemtados e mandeni_a_ssemtar ao d u o pedro al-
va,-ej soomente os ditos Xii, Reaes CÕ decraraçõ que
som ametade dos ditos X X b j Reaes que ambos tinham
c o m o dito he e que perderom o outro padrom do dito
S c n o r que delles lhe foy dado e lhes mandamos ora dar
a c ida hü delles m o t a aver 0 maneira que se em alguu
t i p o o outro dito pad ró parecer lhe seja R o t o e no aja
per elle duas vezes pagamento dos ditos dinheiros dos
ouaes X n i R e a e s elle tirara em cada huü amío de nosa
f a / e n d a carta desÈbargo delles per homde lhe sejam mui
bC- p a - o s e por sua guarda e nosa lêbrança lhe manda-
mos dar esta nosa c a r t a de padrom per nos as,nada se-
U d a do noso selo pemdente dada em a nosa cidade de
e v o r a a Xij dias dabrill pedro lomelim a fez anno de

myll iiijlR.bij (1497) annos. Chancellaria de D. Manoel,


liv. -27\fl. 76»-

\
PEDRO ALVARES CABRAL I
69

r e v e l a r e encarecer-lhe merecimentos r a r o s . E m
D. Manuel concorriam inteligência e ambição su-
ficientes para não entregar o c o m a h d o da expedi-
ção, que ia seguir-se a de Vasco da G a m a , em
m ã o s que não fossem p r o v a d a m e n t e hábeis e
seguras.
Mas vejamos quais os traços, apuráveis das
fontes sobre a sua expedição, capazes de aju-
dar-nos a debuxar-lhe o retrato m o r a l . P e d r o
A k 'ares Cabral era faustoso, amigo de gran-
dezas e, como tal, p o s s u i d o r de g r a n d e estado,
p a r a o que haviam de c o n c o r r e r em grande
escala os bens e educação de sua mulher. N ã o
devia ser este, por certo, p a r a D. Manuel o
m e n o s recomendável dentre os seus atributos.
N a s instruções, d a d a s pelo rei, p a r a b o m re-
cado e direcção da expedição, o m o n a r c a mais
d u m a vez recomenda a P e d r o Álvares que dê
aos príncipes do Oriente b o a s m o s t r a s tanto de
si c o m o de a r m a d a . Mas êle, no seu desejo de
grandeza, excede-as. Q u a n d o , chegado a Cali-
cut, tivesse que avistar-se com o S a m o r i m , es-
miuçava o Rei: «ireis em t e r r a com dez ou
quinze h o m e n s , quais vos melhor p a r e c e r le-
v a r d e s comvosco, os o u t r o s capitães em suas
naus e em vossa nau u m capitão». (1) Ouça-

(1) Alguns documentos da Torre do Tombo. Alguns


f r a g m e n t o s de instruções a P e d r o Alvares C a b r a l , pag. 99.
-c|0 -c|0 EXPEDIÇÃO DE

m o s agora o que diz o piloto da relação anó-


nima : «Recebendo P e d r o Alvares este aviso
aprontou-se para sair em t e r r a e ticar ali dois
ou três d i a l e v a n d o consigo trinta homens dos
mais honrados, e assim se pos pronto com todos
os seus aliciais e enadus, como podia convir a
um Príncipe, e levou toda a prata que Havia
em as naus, das quais deixou p o r capitão-mór
Sancho de T o v a r . . . » (i) N a s terras de Santa
C r u z . quando os dois p r i m e i r o s indígenas vem
a b o r d o , ja de noite, P e d r o Alvares C a b r a l
recebe-os, a luz das tochas, «sentado, como
diz' C a m i n h a , em huma cadeira e h u m a alca-
tifa aos pés p o r estrado, e b e m vestido c o m
u m colar de ouro mui g r a n d e ao pescoço»
e os capitães dás naus e senhores principais,
sentados no chão, ao longo da alcatifa. •
. P r e o c u p a d o em e s t a d e a r as suas .galas, não
o faz p o r s o b e r b a insolente. Afável e b o n d o s o ,
s e m p r e que os indígenas vão as naus, veste-os,
oferta-lhes as pequenas bugigangas com que
eles se enfeitiçam, o r d e n a que lhes p o n h a m
mesa e de c o m e r , e quando esses p r i m e i r o s se
deitam no chão p a r a d o r m i r , dá-se ao m i m a
tocante de os m a n d a r cobrir e pòr-lhes coxins
sob a cabeça.

(i) Xcvewão de Pedro Alvares Cabral, in Solidas


para a histórica e geografia das nações nitramarmas,
tomo 11. pag. 1 1 ' •
PEDRO ALVARESCABRAI.47 91

M e s m o com inimigos desleais tem rasgos de


magnanimidade g e n e r o s a . N o p r ó p r i o dia em
que se avista corn u S a m o r i m , começam, de
•lacto, as hostilidades entre os dois. O s refens
de Calicut, a meio da cerimonia da troca, lan-
çam-se ao m a r p a r a fugir. Fica apenas n u m
dos nossos» bateis um velho gentil-homem m a -
labar, e dois dos n o s s o s nas m ã o s deles. «No
dia seguinte, condgcndo-.se P e d r o Alvares da-
quele velho, que havia ja três dias que não
tinha comido (em obediencia aos preceitos da
sua religião), o m a n d o u pera t e r r a , e lhe deu
todas as a r m a s , que tinhão ficado na nau,
pertencentes aos que se haviáo lançado ao
mar. ,).
C a p a z de d e s a f r o n t a r - s e com bravura, m a s
prudente e escrupuloso, mais quere encher-se
de razao que cevar os primeiros ímpetos da
cólera. Q u a n d o , em Calecut, os m o u r o s e os
da terra assaltam e r o u b a m a feitoria, m a t a n d o
Aires C o r r e i a e perto de sessenta portugueses,
P e d r o Alvares, raivando de d ò r e indignação'
tem ânimo p a r a m o d e r a r a sua e alheia impa-
ciência e espera um dia inteiro que o S a m o r i m
lhe dê satisfações do feio c a s o ; e só depois
lhe m a n d a combater e q u e i m a r as naus sur-

(i) Navegação de Pedro Alvares, obra citada, tomo II


pag. t i 3 e 1 1 4 . '
EXPEDIÇÃO DE
72

tas no pôrto e bombardear a cidade, t o d o a


dia
(0- . .. ., !••"•:\' ; 1 .
Mas em si a bravura excuc-
A sua prudência chega por vezes ao e x t r e m o
limite, que, t r a n s p o s t o , se t o r n a em cobardia.
Q u a n d o a a r m a d a do re, de Calecut o segue
sôbre C o c h i m , dando m o s t r a s claramente agres-
sivas, P e d r o Alvares, que já tem as naus quast
de todo c a r r e g a d a s , se não foge, p r o c u , a toda-
via, cheio de prudência, evitar o c o m b a t e A, da
que J o ã o de B a r r o s e o u t r o s c r o m s t a s afectem
o c o n t r á r i o , a relação do piloto anonimo c a
carta de D. Manuel n ã o deixam a mínima du-
vida sôbre o seu p r o c e d i m e n t o .

(,) Treüaio da carta que el Rey nosso senhor es-


creveu a el rev c a Ra.nl,a de Castella seus padres
1
2 a Imdyã. c d w á , E u g e n , o do C a n t o . C o n t a n e ^ e
passo Castanheda que. d e s P e , a d a s as na s h a
nelas os c a t , v o s atados de pes e de rça ,s e ass, t ao
q u e i m a d a s a v i s t a de m u y t a gente d a cidade que esta a
na p r a v a peru lhes acod.r. mas núo o u s a r ã o com m^o
da nossa a r t e l h a n a . E era e s p a n t o s a c o u s a de e de
de/ naus t o d a s juntas, fiucrewe carvões, e ouv.r a , r a n
c t d „ s m o u r o s que e s t a v á o dentro, e n.sto se g a s
u ' t o d o aquele dia.» E s t e acto de e s p a n t o s a c r u e d d
está em c o n t r a d i g o c o m o c a r a c t e r de P e d r o A U ares.
C ; , não so nenhum outro r e l a t o o c o n h r m a c o m o
a c a r t a de D. Manuel aos re,s de C a s t e l a e G o i s o d e -
m e n t e m , a f i r m a n d o que os c a t i v o s forío c ^ d o s
qela a r m a d a . É este um d o s p o u c o s erros g r a v e s c o m e
tidos pelo h o n r a d o cronista.
PEDRO ALVARES CABRAL I
73

G e n e r o s o , afável e e s c r u p u l o s o até com ini-


migos, exige, seja de q u e m fôr, o m á x i m o res-
peito a sua h o n r a e g e r a r q u i a . R e g r e s s a d o à
pátria, nomeia-o D. Manuel capitáo-mór da
nova a r m a d a que ao O r i e n t e envia.
l \ ' d r Alvares, ao conhecer o regimennto de
\ icente S o d r é , que de sua b a n d e i r a , com cinco
naus o s e p a r a v a , dando-se p o r ofendido, não
aceitou o encargo. ((Homem de muitos primo-
r e s acerca de p o n t o s de honra» lhe c h a m a J o ã o
de B a r r o s neste p a s s o ( 1).
P u n d o n o r o s o a tal e x t r e m o , não o cega a
vaidade do c o m a n d o . A n t e s se havia de sentir
r e p e s o , p o r condescendente em demasia, pois,
c o n t r a o seu e x p r e s s o voto, cedeu a instâncias
de A i r e s C o r r e a , em resoluções, que haviam
de c a u s a r a m o r t e a êste e o a f r o n t o s o assalto
à feitoria (2).

(1) Castanheda diz apenas: «c tendo dada a capitania


mór dela a P e d r a l v a r e s Cabral lha tirou por alguns jus-
tos respeitos», formula vaga de quem receia afirmar um
facto, que envolva censura para o Rei. Barros e Gois
são terminantes e concordes e deles seguimos a versão.
C o r r e i a vem a ponto com u m a longa história de impo-
sições feitas pelo G a m a a D. Manuel. Fundando-se na
versão deste ultimo, Sanches de Baena arquitecta u m a
luta de famílias entre C a b r a i s e G a m a s , para nós mais
que duvidosa, dada a suspeita origem em que se funda.
(2) C o n c o r d a m neste facto com as fontes o minucioso
relato de C a s t a n h e d a e Gois.
-c|0 -c|0 EXPEDIÇÃO DE

Um documento p r e c i o s o , pelo n o m e que o


firma, as c i r c u n s t â n c i a s que o d i t a r a m c a pes-
s o a a q u e m se dirigiu, a p o n t a e c o n f i r m a plena-
m e n t e este r á p i d o e s b o ç o de t ã o n o b r e s iinhas.
R e f e r i m o - n o s â c a r t a de A f o n s o de A l b u q u e r q u e ,
e n d e r e ç a d a ao R e i , i n s t a n d o c o m êle p a r a que
c h a m e P e d r o A l v a r e s ao seu s e r v i ç o , q u e b r a n d o
o injustificado a p a r t a m e n t o e m que h á t a n t o o
c o n s e r v a . Aí se lhe r e f e r e o h o n r a d o A l b u q u e r -
q u e em t e r m o s e l o q ü e n t e s , c h a m a n d o - l h e «mui
bom fidalgo» p o r «sua b o n d a d e e c a v a l a r i a » ,
«homem a v i s a d o » , m e r e c e d o r e d e s e j a d o r de
g a n h a r h o n r a s , t e r m i n a n d o p o r a f i r m a r u ; ho-
mem que eu sei certo que terá vossa alte;a con-
tentamente de sua pessoa e de todas as cousas
honradas que nele há para alpimas nvcesssi-
dades de rosso serviço que lhe encarregardes e
esforça-me Senhor, a di-er, porque vi que tem
vossa Altera tomado a experiência de sua pes-
soa e de seus serviços e que em todos us feitos
em que ele poser as mãos, que vos há de mere-
cer mercê • • •» (')
T ã o c l a r a s , c o n v i c t a s e d e s a s s o m b r a d a s são
e s t a s u l t i m a s e x p r e s s õ e s e m e l i n d r o s a s as cir-
c u n s t â n c i a s q u e a s p r o v o c a m , que a t e s t a m irre-
c u s a v e l m e n t e a e l e v a ç ã o e inteireza de c a r á c t e r
de P e d r o A l v a r e s .

( i ) E s t a c a r t a , c m que infelizmente há muitos e s p a -


ç o s - a p a g a d o s pelo t e m p o , foi p u b l i c a d a nas CzrUs de
I'lilJRO AI.VERES CABRAL

No seu lugar e em iguais c i r c u n s t â n c i a s , p o r


m a n e i r a bem diversa p r o c e d i a m o u t r o s d o s
capitaes daquele t e m n o . - um , - n K ; , - , „
- L , <- U t . v
'' ^ o d r c ' u m d e s a p i e d a d o e i n s o f r i d o G a m a
ou um a u t o r i t á r i o e terrível A l b u q u e r q u e .

Afon.n de Albuquerque, edição da A c a d e m i a de Scièncias


1 rasiiiitanm-ia por inteiro aqui, dada a luz com que
alumia a hgura e vida de Cabral. « S e n h o r - E u tenho
'anta necessidade de meus parentes vos talarem por
m,m e Requererem minhas cousas amte vosalteza que
nam sey como ouso de fazer por mmguem porem
de fazer meu d e v e r ; beijarev as mãos de vosalteza rre'-
cebermo como obra de minha o b r i g a ç a m que neste
caso tenho a minha irmãa e a meus s o b n n h o s e a meus
parentes: e por que isto digo a vosaltcza he por pedr
alvares meu cunhado (cognado) c a s a d o com m i n h a so-
brvnha. hlha de minha irmãa criada de vosaltcza e da
Senhora R a i n h a ; eu fuy o que concertev e ordeney este
casamento e lhe íiz dar da fazenda de minha irmãa e de
meu cunhado dom íernando mais em c a s a m e n t o . . . . do
que seu m o v e l l e rraiz podia abastar, e que pero. . . era
muy boom fidalgo e merecedor d i s t o . . . . , cousa m a y o r ,
todavia se teve respeito a . . . . c o m r r a e credito q„»
vosa.teza tmha de sua pessoa e o contentamento de
seus seruiços e de sua bondade e c a v a l a r y a e deve-
mos todos por muito certa sua m e d r a m ç a e g a l a r u a m
stus serv,
í°s «-' ser ele tall pessoa e asy aceito
a vosaltcza e encarregado por vosaltcza em carregos
omrrados que nos pareceo que nam podia deixar
daver de vosalteza omrra e mercê por sabermos que
era cavaleiro homem avisado e que ha de dar em todo
tempo e em todo feito bòoa rrezam de sy e o m o vosal-
teza ja dele tem tomado a e s p i r y e m e i a : agora Senhor
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

C o n c o r r e m nêle, c o m a a n t i n o m i a das sensi-


b i l i d a d e s m a i s ricas e p e r f e i t a s , u m que de f o r t e
e ingénuo, de b r a v o e enternecido, de gran-
d i o s o e h u m i l d e , de m a g n a n i m i d a d e a p a r a t o s a
e m o d e s t a e s q u i v a n ç a , que t r a z e m a m e m o r i a

yei 0 cs,a quebra sua amte vosalteza durar múnus dias


ero tempo que vosalteza se serve ,eralmente dos cav -
leiros e fidalgos
nuaes recebem mer.e k c mu as t o 6
1
. , , „ T „ i d o nero a vares homem
desejador*' "—'em o h n i s o eni dito e em feito ser sem-
pre servidor de vosalteza de sua pessoa ^ ^
temdes lamçado de voso serviço e quanto me a mim
m a i s p a r e c e que a culpa deste feito era sua tanto mais

s u a da parecer e ev de crer que ele tem certo o F e r d a m


g a ardam de vosalteza como viimos por espiryem ia
m outras pessoas serem lhe seus erros perdoados c
e U , I r r a e dado Remdas e merco e acceitos a vosal-
c porque a condiçam dos portuguozes ho criar no
" a i J a e nos castigar fazer merco e nos - « e
desagravar o se servir do nos e nos tirar de
t o e r r a d o s c o m s e l h o s c o m o geralmente cada d,a vo-
á teza faz por omde tornamos logo a por nosas v.d s
Í i como noso Rev o senhor verdadeiro e cada
L m so t r a b a l h a p o r vos m e r e c e r . - . , devia P ah -
res de ser por muitas Tesões o . . . . h u u m d e s u s . se
: Í pessoa e valia amte vosalteza. . . de
PEDRO ALVARES CABRAI.
47

o Condestavel, e, extremando-o dos demais


capitães contemporâneos, o alevantam acima
da moral c o m u m da sua época.
H e r d a r a de seu pai a estatura d e s m e d i d a ,
como se constatou, ao destapar-lhe a sepul-
tura. Devia trazer b a r b a , como os g r a n d e s
capitães daquele tempo, cerrada e longa. Mi-
navam-no as q u a r t a s ; e «havia anos que tre-
mia», informa Castanheda (í). E s s a latente
m o r b i d a d e havia de acender-lhe com fogachos
bruscos a sensibilidade já de si aguda. E , c o m o
a chama intima dos caracteres fortes e arden-
tes transluz s e m p r e na face com seu clarão
peculiar, bem p o d e m o s evocar do n o b r e capi-
tão o gigantesco vulto, cuidadamente vestido e
adereçado, a b a r b a pelo peito, o sobrecenho
altivo, e, na face pálida e sombria de impalu-

esforçome Senhor a dizer porque sey que jn tem vosal-


teza tomado a espiryemcia da sua pessoa e de seus ser-
viços e que em todolas feitos em que ele poser as mãos
que vos ha de merecer m e r c ê : beijarev as mãos de vo-
salteza lembrarse das a i . . . . m e m . . . mãa sobre mim
pelo f a l e c i m e n t o . . . . que a em minha companhia e
ajud.... e perder o escamdalo que de mim tem-...
sem tel o pero alvares apartado de voso s e r v i ç o . . . .
vosa corte e sua filha como da morte de uns filhos:
acabada em Calecut a ij dias de dezembro de i 5 i q (por
letra de Albuquerque) feytura e servidor d e v o s a l t e z a —
A ° daíbuquerque. (Subscripto) A Ell Rev noso Senhor».
(i) Obra citada, livro I, cap. xxxvm.
KXIM-DIÇÁO DE
78

d a d o , a g r a v i d a d e , a distância, a tristeza dos


que não i g n o r a m a sua perfeição ( i ) .
C o n c l u i r e m o s p o r isto que a excelência do
seu carácter tosse o móbil único que determi-
ix M I i:„ -I-,,,.., Vííí» •
nou 1). .Manuel na uitiniuiu.™
P e d r o Alvares, s u p o s t o que magnificamente es-
colhido p a r a a missão que lhe era destinada,
excedia em isenção e p u n d o n o r a craveira exi-
gida pelo rei aos seus bons servidores, k s s a

II) 0 retrato, com que vulgarmente se representa Pe-


dro Alvares C a b r a l , e reproduzido dos Retratos c elogios
dos Varões e Donas ( L i s b o a . 1817). Não mencionam os
respectivos editores a origem dessa imagem. K possível,
todavia, que d a l g u m a tela ou gravura antiga o tivessem
c o p i a d o , dado que isso mesmo fizeram com outros dos
retratados. S e j a c o m o for. o retrato moral, que acaba-
mos de bosquejar, debuxado esse sobre os documen-
tos. condiz singularmente com as feições que o repre-
sentam nos Varíiis e Donas. Outro suposto documento
iconográfico e „ busto do medalhão dos Jerónimos, que
so dá como representando P e d r o Alvares, liem mere-
ciam um estudo serio os quatro medalhóis, represen-
tando bustos de navegadores, sobre os pilares duma das
alas dos J c r o n i m o s esculpidos. Varnhagen. o mais mi-
nucioso dos autores que ao caso se referem, diz na sua
Noticia histórica e descritiva do Mosteiro dos Jcronimos
( L i s b o a . 1842): «Nos cinco grandes pilares fronteiros ás
portas dos coníissionarios veem-se também em linha
honsontal o sol e seguidamenee quatro bustos em me-
dalhóis. dos quais se diz com toda a probabilidade
significarem Ü Oriente c o m os quatro heróis portugue-
ses que lá tinham ido quando ai chegava a c o n s t r u ç ã o ;
PEDRO ALVARES CABRAL I
79

o r g u l h o s a inteireza de ânimo de futuro arrastá-


-lo-hia, de contrário, p a r a ura ostracismo, que
se lhe protraiu pelo resto da vida. K, se, como
tudo indica, não p r a t i c a r a até á data feitos que
o impusesscm n a r a missão tão espinhosa, h e m o s
de buscar em outras circunstâncias os motivos
que, s o m a d o s ás suas nobres qualidades, deci-
diram o rei a nomeá-lo. P o n d e r e m o s primeira-
mente que logo desde o começo do seu rei-

isto é. ao que parece, o G a m a e seu irmão, Nicolau


C o e l h o e Pedro Alvares Cabral. Este ultimo busto con-
firma a tradição, pois está de cara voltada para o lado
oposto ao Sol. c o m e m o r a n d o assim o seu afortunado
descobrimento das terras ocidentais ou Brazil». T e i x e i r a
d ' A r a g a o . em Vasco da Gama e a Vidigueira, referin-
do-se aos tres primeiros, chaga a dá-los como os retra-
tos mais autênticos dos heróis que representam. Ainda
hoje os guardas do claustro repetem, ciceronando, a
tradição. E deles soubemos que todos os anos o director
da C a s a Pia. adjunta ao mosteiro, manda no dia da festa
do descobrimento .lo Brazil engalanar de flores e palmas
o suposto busto de C a b r a l . Que os bustos representem
navegadores não è p a r a duvidar. A autenticá-los, veste-
lhes a cabeça a gorra marítima da época. E tanto quanto o
permite a graciosa estilisação com que o cinzel os escul-
piu, pode do primeiro dos bustos afirmar-se que se asse-
melha ao mais conhecido dos retratos do G a m a . C o m o a
V a r n h a g e n mui provável se nos afigura o que a tradição
afirma. Pondere-se, todavia, que Fr. Jacinto de S. Mi-
guel, escrevendo no c o m e ç o de século xvni (Mosteiro de
Belem, manuscrito publicado por Martinho da Fonseca)
não faz a minim"' referencia a semelhante tradição.
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

n a d o o novo m o n a r c a contrariou a política de


D J o ã o II de abatimento da n o b r e s a . Bartolo-
m e u Dias, que tão difícil e m p r e s a chefiou, e r a
u m m o d e s t o escudeiro. O Príncipe Perfeito te-
fidalgos Dortueue-
lTUa cnancici u.-> o 1
ses. A o contrario D. Manuel, náo só volta a
política de protecção a n o b r e s a , sem as prodi-
galidades de D. A f o n s o V, como distingue nos
f a v o r e s os peores inimigos do seu antecessor, o
que nesta p r ó p r i a expedição v e r e m o s . Auxilia-
d o s aqui a carta de Albuquerque a explicar, se-
g u n d o cremos, dentro destas razões, o segredo
da escolha. Já vimos que C a b r a l , pelo seu casa-
m e n t o , se ligara a N o r o n h a s e A l b u q u e r q u e s .
E s c u s a o n o m e do g r a n d e A f o n s o referências
a encarecer-lhe os méritos. D u m dos i r m ã o s
da e s p o s a , D. G a r c i a de N o r o n o a , l e m b r a r e m o s
que findou sua carreira gloriosa c o m o viso-rei
da índia. P o r seu lado, o i r m ã o primogénito,
J o ã o F e r n a n d e s C a b r a l , ligára-se do consórcio
a casa dos condes de Monsanto e do marechal
D . F e r n a n d o Coutinho, e D. Brites, sua irmã,
desposava-se com D. P e d r o de N o r o n h a , filho
do m a r q u ê s de Vila Real, m a g n a t e de s u p r e m a
influência nesta época. M o s t r a m estas relações,
dum lado, a alta gerarquia dos C a b r a i s , e dei-
x a m entender, p o r outro, que P e d r o Alvares,
pela razão de ser um dos segundo génitos, m a u
g r a d o os seus p r i m o r e s de cavaleirosa fidalguia,
n ã o e m p a r e l h a v a inteiramente, em p r o s á p i a e ri-
PEDRO ALVARES CABRAL
103

q u e z a , c o m aquela n a t a de famílias n o b r e s e opu-


lentas. E s s a d e s i g u a l d a d e c o n c o r r e u em muito
para a sua n o m e a ç ã o . O s p r ó c e r e s mais altos
da n a ç ã o , um s e n h o r D o m Á l v a r o , o M a r q u ê s ,
OS c o n d e s He
- - -Pnrtnlofri-n
- u,-LN VT„„.
i luuiiaaiuu, T..
ia-
r o u c a , V i m i o s o , ou os que, na casa dei R e y
s e r v i a m , Silvas, Menezes, C a s t e i b r a n c o s não
comandavam até a d a t a e m p r e s a s tão m a l se-
g u r a s e longínquas. E a s s i m t e m o s p o r c e r t o
q u e o s p r ó p r i o s m e m b r o s da família da e s p o s a
o u quiçá d o s c u n h a d o s , Vila Real e M o n s a n t o s ,
i n d u z i r a m o rei àquela escolha já p a r a satisfa-
ção d a s n o b r e s a m b i ç õ e s , já p a r a acrescenta-
m e n t o n a h o n r a e na f a z e n d a do p a r e n t e m e n o s
valido e alevantado.
S a b e - s e q u e , r e g r e s s a d o da e x p e d i ç ã o á ín-
dia, toi n o m e a d o c a p i t ã o - m ó r da n o v a a r m a d a ,
q u e veio a p a r t i r em I5O2, c a r g o que todavia
r e c u s o u , e vimos quais os m o t i v o s que o de-
t e r m i n a r a m , s e g u n d o B a r r o s e G o i s , a tal re-
s o l u ç ã o . E t e m p o de d i z e r m o s que, c o n t r a a
l e n d a de G a s p a r C o r r e i a , a qual atribui a no-
m e a ç ã o do G a m a a i m p o s i ç õ e s suas ao m o n a r -
c a , v e x a t ó r i a s p o r insistentes, ante as primei-
r a s r e c u s a s de D. Manuel, c o n s p i r a a c a r t a de
i o de J a n e i r o de I5O2, escrita um m ê s antes
da p a r t i d a da a r m a d a . P o r êsse d o c u m e n t o o
rei c o n c e d e ao d e s c o b r i d o r d a í n d i a u m a renda
anual de 3oo:ooc reais, de juro e h e r d a d e , p a r a
e l e e t o d o s os d e s c e n d e n t e s ; o c a r g o de almi-
6
-c|0
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

r a n t e da í n d i a «com t o d a l a s h o n r r a s , primi-
nências, liberdades, p o d e r , juridiçam, r e n d a s
f o r o s e d i r e v t o s , que com o dicto a l m y r a n t a d o
p o r direyto deve aver e as t e m o nosso almi-
rante destes r e v n o s » ; a f a c u l d a d e de êle e seus
descendentes enviarem u m a vez cada ano du-
zentos c r u z a d o s nas naus da índia p a r a se em-
p r e g a r e m em m e r c a d o r i a s ; o titulo de D o m ,
que estende a seus i r m ã o s e d e s c e n d e n t e s ; e
m a i s o r d e n a que os h e r d e i r o s de t a m a n h a s
m e r c ê s «se c h a m e m da G a m a p o r l e m b r a n ç a e
m e m ó r i a do dito V a a s q u o da Gama-» ( i ) .
Acrescente-se que, segundo B a r r o s , os duzen-
tos c r u z a d o s de m e r c a d o r i a s lhe vinham a d a r
r e g u l a r m e n t e , no reino, um c o n t o e oitocentos
mil reais (2). S e o G a m a h o u v e s s e d e s o b r i g a d o
o Rei, c o m instâncias insolentes, não o pre-
miava èle na m e s m a o c a s i ã o c o m t a m a n h a s
m e r c ê s e em carta, de que transluz a m a i o r
satisfação dos seus serviços.
P o r o u t r o lado, tendo o rei p r o m e t i d o , se-
g u n d o C o r r e i a , d e s a g r a v a r P e d r o Alvares dessa
m u d a n ç a de c o m a n d o , com m e r c ê s g e n e r o s a s ,
d e p a r a m o s ao contrário, c o m r e m u n e r a ç a o
a s s á s escassa d o s seus serviços. O s d o c u m e n t o s
mais antigos que ate nós c h e g a r a m referentes

(1) Alguns documentos d.i Torreão Tombo. p.ii;. 127


a
(2) Decjda I. l i v r o V , cap. X I .
105
PEDRO ALVARES CABRAL I

as mercês reais c o n c e d i d a s a C a b r a l c o n s t a m
d e d u a s c a r t a s d i r i g i d a s ao r e c e b e d o r d a sisa da
marcaria, ambas datadas e m 4 de Abril de
I5O2, mandando pagar • por êsse imposto
ij-.ooo r e a i s e o u t r a 3o:ooo, a P e d r o Á l v a r e s
«de s u a tença» n a q u e l e ano. U m o u t r o docu-
m e n t o igual ao s e g u n d o destes dois nos a p a r e -
ce, d a t a d o em G de M a r ç o de i5oq, r e f e r e n t e
ao ano anterior. Ainda um recibo, assinado
p e l o p r o p r i o C a b r a l , a 10 de J a n e i r o de i 5 i ? ,
menciona o pagamento de 200:000 reais de
tença anual c o r r e s p o n d e n t e s ao ano de 1514,
o que lhe foi c o n f e r i d o p o r u m a carta geral (1).
I n f e l i z m e n t e n e m se c o n h e c e e s s a carta n e m a
d a t a em que lhes foi c o n f e r i d a , elementos m u i t o
provavelmente preciosos para nos esclarece-
r e m s o b r e as r e l a ç õ e s entre o rei e o seu ilustre
s e r v i d o r . N ã o se c o n h e c e m t a m b é m o u t r o s do-
c u m e n t o s , que se lhe r e t i r a m , c o m a c o n c e s s ã o
de m e r c ê s n o v a s . A m e s m a escassez no que
respeita a indícios biográficos demonstra o
esquecimento a que o votou o rei. P o r d u a s
cartas régias de i3oi) (2) averiguamos que
P e d r o A l v a r e s se r e t i r a r a p a r a S a n t a r é m , o n d e
p r o a ra a l a r g a r as p r o p r i e d a d e s . Depois disto
o seu n o m e só nos a p a r e c e n o «Livro da Ma-

(1) Podem lêr-se estes documentos em Sanches de


B a e n a , obra citada.
(2) Aires de S á , obra citada, tomo 1. documentos.
-c|0
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

tricula d o s m o r a d o r e s da C a s a dei R e y D. M a -
noel n o p r i m e i r o q u a r t e l do a n o de I 5 I 8 » c o m o
c a v a l e i r o do c o n s e l h o e c o m a p e n s ã o m e n s a l
de 2:437 reais (1). F i n a l m e n t e , p o r t r ê s c a r t a s
datadas em Novembro de I 5 2 0 , c o n c e d e n d o ,
u m a 3o:ooo reais de tença p o r a n o a D. Isabel
de C a s t r o , em a t e n ç ã o a o s m u i t o s s e r v i ç o s de
seu falecido m a r i d o P e d r o A l v a r e s C a b r a l , e
as d u a s o u t r a s c o n c e d e n d o , c a d a 20:000 reais
de t e n ç a a n u a l , a A n t ó n i o C a b r a l e a F e r n ã o
A l v a r e s C a b r a l , seus filhos, pelos m e s m o s mo-
tivos, conclue-se q u e o seu f a l e c i m e n t o se deu
quasi c o m certeza n e s s e ano (2).
Comparando c o m as m e r c ê s c o n c e d i d a s ao
Gama, a o depois a l a r g a d a s c o m o título de
Conde, as q u e o Rei o u t o r g o u a P e d r o Alva-
r e s , e n t r a n d o ainda m e s m o em d e s c o n t o com o
i n g r a t o e s q u e c i m e n t o do m o n a r c a , d e m o n s t r a d o
pela carta de A f o n s o de A l b u q u e r q u e , vê-se
c l a r a m e n t e que D. M a n u e l n ã o teve em g r a n d e
c o n t a os seus serviços.
Pedro A l v a r e s foi s e p u l t a d o e m Santarém
na igreja da G r a ç a , que então pertencia ao
c o n v e n t o dos g r a c i a n o s , c o m q u e m a viuva e m
ib2Q c o n t r a t o u o jazigo p e r p é t u o .
L e v a v a êle, consigo a b o r d o , n a v i a g e m , u m a

(1) Sousa. Hist. Geneal., Provas, tomo 1 1 .


(2) Aires de Sá, obra citada, documentos.
107
PEDRO ALVARES CABRALI107

imagem de N o s s a S e n h o r a da Esperança, que


ainda hoje existe, como símbolo de fé h u m a n a
e religiosa no êxito da sua singularíssima mis-
são (i).
«Pouco fez ou baixamente avalia suas acções
quem cuida que lhas podiam pagar os ho-
mens»-—dizia o P.' ! António Vieira. Se a sua

(i) Transcrevemos duma carta do Conde de Belmonte,


1). Jose Maria de Figueiredo Cabral da C â m a r a :
«Na descrição dos encargos e despesa destes Morga-
dos «Belmonte» ha numa pensão» pela qual claramente
se deduz que a casa e varonia de Pedro Alvares Cabral
continuou, por morte de seus filhos,.no ramo directo
de seu sobrinho Fernão Cabral, donde procedem os
actuais Cabrais. representados hoje pelo sr. D. Jose Ma-
ria de Figueiredo Cabral da C a m a r a , 4.° conde de Bel-
monte: «Francisco C a b r a l . 5." sobrinho de Pedro Alva-
res C a b r a l , o Descobridor do Brazil, e herdeiro da Casa
de Belmonte, por morte de seus irmãos Fernão. Luís e
outros, instituiu uma capela com a pensão de um círio
para alumiar quotidianamente a Imagem de Nossa Se-
nhora da Esperança que há no Convento dos Padres
T e r c e i r o s , junto de Belmonte.»
E s t a imagem de Nossa Senhora da Esperança (que
ainda hoje existe) acompanhou Pedro Alvares Cabral
na sua viagem à índia (e Descoberta do Brazil), o qual,
na volta a Belmonte, lhe erigiu ali, em uma Quinta,
uma ermida, a cuidado dos Franciscanos, ermida que
ficou na posse de seu sobrinho. Fernão Cabral. Senhor
de Belmonte e de seus descendentes que a aumentaram
e lhe cunsignaram rendimentos.» Aires de Sá. Frei
Gonçalo Velho, vol. II, documento DCCI1I.
86 EXPEDIÇÃO DE PEDRO AL.VARES CABRAL.

esperança visava a estreita remuneração dos


seus trabalhos, o que não cremos, cruelmente
se iludiu; se, ao invez, punha em longínqua
mira a dilatação do nome português, bem ex-
cedidos f o r a m os seus votos, p o r mais arroja-
dos que os tivesse concebido, ao levantar do
seu p a d r ã o nos areais de Vera Cruz.
D A D O S G E N E A L Ó G I C O S E BIOGRÁFICOS-

SÔBRE O S C A P I T Ã E S E FIGURAS

P R I N C I P A I S DA ARMADA

Quais, agora, as razões que indicaram para


os respectivos postos os outros capitães da
armada ? A alguns inculcavam, é patente, a sa-
bedoria náutica e qualidades de comando, dou-
tras vezes provadas. Kstão nesse caso Barto-
lomeu Dias, seu irmão Diogo e Nicolau Coelho.
Mas, acima dessas claras razões, a nobreza
do sangue motivava a escolha dos comandos.
Confirmam-no, nesta mesma expedição, Pedro
Alvares Cabral e Sancho de T o v a r , respecti-
vamente capitão-mór e sota-capitáo da armada,
cujos nomes bem p o r certo aquela data apenas
excediam alguns dos outros em primasias de
nobreza, que não em altos feitos praticados.
E s s a mesma preocupação das precedências fi-
dalgas na escolha dos comandos se infere a cada
passo dos relatos das crónicas. Referem elas,
p o r mais clara certeza, que D. Manuel consen-
-c|0
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

till aos c o m e r c i a n t e s que a r m a s s e m seus n a v i o s


c o m que f o s s e m ao t r a c t o d a s e s p e c i a r i a s , c o m
a c o n d i ç ã o de a p r e s e n t a r os capitães das res-
pectivas n a u s , p a r a r e c e b e r e m a c o n f i r m a ç ã o
l:„
l i uJ:—.„,.,',,.,.1
ispcu.-ia v L.'.-t-'i
ia'm vw^uj'i.v"" t r i i n ^r n n r o r e
NR,.ni-IIN'I.'iin

igualmente de t o d o s os d o c u m e n t o s que até nós


c h e g a r a m , quási s e m p r e que neles se e n u m e r a
u m a lista de c a p i t ã e s . J o ã o de B a r r o s , c r o n i s t a
p a l a c i a n o , vai m a i s longe e d e c l a r a : «Quando
n o m e a m o s a l g u m capitão se he h o m e m fidalgo
e t ã o c o n h e c i d o p o r sua n o b r e z a e c r i a ç ã o na
casa d el R e v , logo em f a l a n d o nelle a p r i m e i r a
vez d i r e m o s c u j o filho h e , s e m m a i s t o r n a r a
repetir a seu p a e : e se he h o m e m fidalgo de
m u i t o s que h a n o R e y n o , destes t a e s n ã o po-
d e m o s d a r t a n t a noticia p o r q u e n ã o vierão ao
lugar o n d e se os h o m e n s habilitão e m h o n r a e
n o m e , que he na casa d'el R e y , p o r isso po-
d e m nos p e r d o a r . . .» ( i ) . C o m efeito, ao enu-

II) Transcrevemos aqui todo o p a s s o do cronista,


por e x t r e m a m e n t e e l u c i d a t i v o : « C a ordenou el R e v p e r a
que "S h o m e n s deste R e y n o c u j o n e g o c i o e r a c o m r o e r -
cio tivessem em que poder t r a c t a r . dar-lhe l i c e n ç a que
armassem nãos pera estas partes, delias a c e r t o s p a r t i -
dos e o u t r a s a f r e t e ; o qual m o d o de e s p e c i a r i a a frete
ainda h o j e se usa. F. porque as p e s s o a s a quem el R e y
c o n c e d i a esta mercG tinhão per c o n d i ç ã o de seus c o n -
tractos que f i l e s a v i ã o de appresentar os c a p i t ã e s das
n a o s ou n a v i o s que a r m a s s e m , os quaes el R e v c o n f i r -
mava: muitas vezes a p p r e s e n t a v ã o p e s s o a s m a i s suffi-
PEDRO A L V A R E S CABRALI111

m e r a r os capitães da armada de C a b r a l , cuja


filiação já anteriormente declarara, resa a s s i m :
«Pedralvares Cabral, capitão m ó r , Sancho de

cientes pcra o negocio da viagem e carga que avião de


fazer do que erão nobres per sangue. Fizemos aqui de-
claração porque se saiba quando se acharem capitães
em todo o discurso desta nossa historia que não sejam
homens fidalgos, serão daqueles que os armadores das
naos appresentavão. ou homens que per sua propria pes-
soa ainda que não tinhão muita nobreza de sangue avia
nelles qualidades pera isso e também por darmos noti-
cia do modo que levamos em nomear os homens que
he este. Quando nomeamos algum capitão se he homem
fidalgo e^ tão conhecido per sua nobreza e criação na
casa d'el Rev, logo em falando nolle a primeira vez di-
zemos cujo filho he, sem mais tornar a repetir seu pae,
c se he homem fidalgo de muitos que ha no R e y n o ,
destes taes não podemos dar tanta noticia porque nao
vieram ao lugar onde se os homens habilitão em honra
e nome que he na casa d'el Rev. por isso podem-nos
perdoar: e também a dizer verdade os escriptores. dos
individos não podem dar conta, e quem muito procura
por elles quebra o nervo da historia, parte onde esta
toda a f o r c a delia. T o d a v i a nesta digressão duas cousas
pretendemos, notificar a todos que nossa tenção he dar
a quada hum não somente o nome de suas obras: mas
ainda o de seu avoengo, se ambas estas duas vierem a
nossa noticia. E a segunda que quando formos algum
grande cathalogo de capitães (porque estes sempre hao
'de ser nomeados,) ora sejão de naos ou navios: sempre
devem entender que as pessoas maes prinapaes per san-
o-ue e feitos, andavão nas melhores peças d'armada.»
J o ã o de Barros, Década primeira da Asia, Livro
cap. X.
-C|0 EXPEDIÇÃO DE

T o a r , filho de Marfim Fernãdez de T o a r , Si-


m ã o de Miranda filho de Diogo de Azevedo,
Aires Gomez da Silva filho de P e r o da Sil-
v a - . . » (i), e de nenhum dos outros fala da
ascendência paterna. Daqui p o d e m o s inferir
que dentre todos os capitães êstes excediam os
outros nos títulos heráldicos. O s demais cro-
nistas, como Castanheda e Goes, se não citam
a filiação de nenhum deles, contudo e n u m e r a m
também a êstes três em primeiro lugar. A s in-
vestigações que fizemos nos nobiliários manus-
critos confirmam inteiramente o que os cronis-
tas deixam antever.
SANCHO DE TOVAF, O substituto de Cabral,
era fidalgo castelhano, i." filho de M a r t i m
Fernandez de T o v a r , o qual p o r ter seguido o
partido de Afonso V, contra F e r n a n d o e Isa-
bel, depois da vitória destes perdeu t o d o s os
bens e foi m a n d a d o degolar. Sancho assassi-
nou o juiz que sentenciou o pai e fugiu p a r a
Portugal. O solar dos T o vares era na vila de
T o v a r , a f> léguas de Burgos. P a r a p r o v a r as
excelências da linhagem, de origem remotís-
sima, bastara dizer-se que entre os avoengos
de Sancho se conta F e r n ã o Sanchez de T o \ a r ,
adeantado-mór de Castela e almirante da es-
q u a d r a que venceu os portugueses em S a l t e s ,

(i) Década primeira da Ásia. L i v r o V . c a p . I.


PEDRO ALVARESCABRAI.47

nos tempos do nosso D. Fernando e que, às


primeiras arremetidas, em Aljubarrota foi fe-
rido gravemente. O s T o v a r e s eram das mais
nobres famílias de Castela (il.
D. Manuel, que nesse tempi, podia ainda ali-
mentar a esperança duma F.spanha unida sob
o sceptro dum filho seu. dando a Sancho de
T o v a r a honra daquele posto, se lhe levava em
conta a p r o v a d a nobreza e até a tradição ma-
rinheira da família, obedecia, porventura, aos
motivos políticos que naquele tempo aconse-
lhavam tanto os monarcas portugueses como
os castelhanos a ostentar a gratidão pelos fidal-
gos, que. esquecendo as razões de Pátria, legi-
timavam apenas a sucessão do sangue. De
facto, o príncipe 1). Miguel, filho de D. Manuel
e neto herdeiro ele Fernando e Isabel, só aos
iq de Julho desse ano, isto é, depois da par-
tida de Cabral, falecia em Granada (>).
Morto o príncipe, desapareciam os motivos
políticos que levavam o rei a distinguir o cas-
telhano fugiti -, o. Com efeito, os capitães da
a r m a d a que regressam da índia são quási to-
dos g a l a r d o a d o s com novos comandos ou hon-
rosas mercês e c a r g o s ; mas de Sancho de

d ) Nobiliário manuscrito de Rangel dc Macedo. exis-


tente na Biblioteca Nacional de Lisboa.
(2) Damião de Goes. Crónica dc D. Manuel, 1 parte,
cap. X I V .
Q2 EXPEDIÇÃO DE
*

T o v a r , que ainda no regresso realizava com


êxito o descobrimento de Sofala, nunca mais
falam os documentos e os cronistas. O nome
de Sancho de T o v a r , a revelar-lhe a vida pala-
ciana, surge uma vez t r o v a n d o no Cancioneiro
Geral de Rezende ( i ) .
SIMÃO DE MIRANDA OU S i m ã o de Miranda de
Azevedo, filho de Diogo de Azevedo, pertencia
a família portuguesa muito nobre, cujas origens,
ainda que mais longe p o s s a m rebuscar-se, de-
vem, c o m o as de F e d r o Alvares C a b r a l , pro-
curar-se na crise nacional do século xiv. O
mais notável entre os seus primeiros ascenden-
tes é A f o n s o Fires da Charneca, irmão de ar-
m a s do Condestável Nuno Alvares, seu vedor,
c o m p a n h e i r o dos lances mais difíceis e um da-
quêles p o r quem êle distribue as suas terras.
Afonso Pires esteve na Batalha R e a l e assina
com os demais fidalgos fieis ao Mestre o auto
do seu levantamento, nas cortes de C o i m b r a .
Seu filho, Martini Afonso da C h a r n e c a , arce-
bispo de Braga, esteve em F r a n ç a , como em-
baixador de D. J o ã o I. S i m ã o de Miranda, seu
neto, era casado com D. J o a n a C o r r e i a , filha
de Aires Correia, o qual, como dissemos, ia
t a m b é m na a r m a d a por seu feitor geral e para

(i) E d i ç ã o c i t a d a , vol. I V , p. 78.


115
PEDRO ALVARESCABRAI.47

feitor de Calecut (1). T e n d o regressado da ín-


dia, parte na armada de J o r g e de Melo, em
1512, comandando uma nau e despachado p a r a
capitão de Sofala, onde vem a m o r r e r , ao que
parece em 1513 (3). O nome de Simão de Mi-
randa aparece bastas vezes no Cancioneiro de
Rezende, trovando, a par dos melhores fidalgos,
sobre as futilidades irrisórias da corte, como
era uso do seu tempo (3).

(1) Estes apontamentos genealógicos são transcritos


do Nobiliário manuscrito de Rangel de Macedo, um dos
melhores que se conhecem sobre famílias portuguesas e
existente na Biblioteca Nacional, C o l e c ç ã o Pombalina.
(2) Barros, Década 11, livro V i l , cap. 11.
(3) Para se averiguar do seu estro damos aqui uma
dentre as melhores das suas trovas :
«De Simão de myramta a senhora dona Briatys de
Vilhana. aconselhàndo-lhe que se gparde de soberba e
despregar ninguém

Fortuna, sortes, mau fado


sempre vem pela soberba,
ou por quem muito despreza
qualquer malaventurado.

Da soberba vem cavr


do mavs alto no mays fundo,
goardesse quem neste mundo
folga mal de bem ouvir.
Quem cayr neste pecado,
non se íye em gentileza,
porque quem muytos despreza,
seu valer é desprezado»
-c|0
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

A família, p o r v e n t u r a , mais n o b r e pertencia


AIRES G O M E S DA S I L V A , filho de P e r o da Sil-

va. O s Silvas descendem de el-Rei D. F r u e l a II,


ue L e ã o , tronco, que durante séculos, f r o n d e j a
n a l g u m a s das mais nobres casas de P o r t u g a l e
de C a s t e l a . Desde os p r i m e i r o s t e m p o s da m o -
n a r q u i a a p a r e c e m seus n o m e s c u m u l a n d o altos
cargos e a s s i n a l a d o s feitos. D o m G o m e s Lais
da Silva ioi c o m p a n h e i r o de G o n ç a l o M e n d e s
da Maia, o Lidador, e alcaide-mor do castelo
de Santa O l a i a , um dos postos mais a r r i s c a d o s
n o reinado de I). Afonso H e n r i q u e s .
Mais t a r d e , em tempos de D. F e r n a n d o e
D. J o ã o 1, os n o m e s de seu bisavô e avô, res-
pectivamente G o n ç a l o G o m e s da Silva e J o ã o
G o m e s da Silva, surgem b a s t a s vezes nas cró-
nicas de F e r n ã o L o p e s e s e m p r e em t e r m o s
e situações h o n r o s a s . A m b o s assinam o auto
de l e v a n t a m e n t o ' d o Mestre nas cortes de Coim-
bra. O ultimo loi aícaide de Montemór-o-
- Velho, s e n h o r de Tentúgal, Vagos, U n h ã o ,
B u a r c o s , J e s t o ç o e Sinde, capitão-mór e alfe-
res-mór de D. J o ã o 1. Filtra na batalha de
jub a r r o t a c na t o m a d a de C e u t a , e vai c o m o
e m b a i x a d o r a Castela negociar as pazes. Daí
p o r diante, até aos t e m p o s de D. S e b a s t i ã o , os
Silvas c o n t i n u a m a privar no paço, a ocupar
cargos altíssimos e a ilustrar-se em r a s g o s de
lealdade e valentia. A um p r i m o e h o m ó n i m o
de Aires G o m e s da Silva, seu c o n t e m p o r â n e o ,
• I
PEDRO ALVARES GÂBRAI. <J5

vemo-lo íntimo de D. João II, seu camareiro-


-mór, e m b a i x a d o r a Inglaterra e m a i s tarde e
durante o tempo de 1). Manuel ocupando o
mais aito cargo na administração da Justiça, o
de R e g e d o r da C a s a da Suplicação. O s Silvas
teem pantheon no f o r m o s o convento de S. Mar-
cos, entre C o i m b r a e Tentúgal. Ainda hoje os
seus túmulos constituem a mais bela e variada
colecção de m o n u m e n t o s de arte nesse género
existente em Portugal. O m o s t e i r o de S. Mar-
cos é u m dos m o n u m e n t o s p o r t u g u e s e s que
mais m e m o r i a s épicas exala.
O u t r o seu primo, e em g r a u cgual ao Rege-
d o r da C a s a da Suplicação, era 1). Diogo da
Silva e Mene/.es, i." conde de P o r t a l e g r e , aio
de D. Manuel e mais tarde seu escrivão da
puridade. Sabe-se pela carta de la F a i t a d a que
um dos navios da a r m a d a pertencia ao conde
de P o r t a l e g r e e a alguns m e r c a d o r e s , e que
esse {oi u m dos quatro s o s s o b r a d o s pela grande
t o r m e n t a entre o Brasil e o C a b o T o r m e n t o s o .
Mais se conhece pela narrativa dos cronistas
que Aires G o m e s da Silva c o m a n d a v a um dos
navios n a u f r a g a d o s . J u l g a m o s assim provável
que u m a e outra fossem a m e s m a nau e que
Aires d e s e m p e n h a s s e na expedição aquêle hon-
roso cargo, ao serviço e por influência do seu
ilustre p r i m o , o valido do m o n a r c a .
De Aires G o m e s sabe-se a p e n a s desde que
e m b a r c o u que durante a sua curta estada no
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

" u
Brasil
trouxe, c o m o C a b r a l e S i m ã o ' de Mi-
r a n d a , um dos naturais da t e r r a p o r p a g e m
algum t e m p o , sinal de que blazonava altas fi-
dalguias (1). Pouco depois m o r r i a , c o m o disse-
m o s , durante a t o r m e n t a que assaltou a arma-
da, a c a m i n h o do C a b o da B o a E s p e r a n ç a .
M
as, sendo de familia tão ilustre, que p o d e
bem h o m b r e a r com a de P e d r o A l v a r e s C a b r a l ,
senão de mais alta g e r a r q u i a , p o r q u e m o t i v o
referirá u palaciano J o ã o de B a r r o s o seu, após
o n o m e de S i m ã o de M i r a n d a ? P o r q u e êste
Aires G o m e s da Silva tinha q u e b r a de b a s t a r -
dia na sua nobilíssima p r o s á p i a . Seu pai P e r o
da Silva era filho b a s t a r d o do g r a n d e J o ã o da
Silva, o alferes-mór de D. J o ã o I (2).
NICOLAU COELHO era, na bravura e esforço
inquebrantáveis, digno da g e r a ç ã o ilustre, de
quem o poeta J o ã o Roiz de S á , seu c o n t e m p o -
r â n e o , em sua gesta heráldica, t r o v a v a :

(1) «porem n ã o t r o u v e m o s esta n o u t e aas n a a o s se-


nom iiij (4) o u b (5). s a b e r : o c a p i t a m m o o r dous e
Simão de M i r a n d a hum que trazia ja p o r p a j e e A y r e s
G o m e s , o u t r o , asy paje» Carta de Caminha, Alguns do-
cumentos, p a g . loij.
(2) C o l h e m o s os i n f o r m e s g e n e a l ó g i c o s do n o b i l i á r i o
m a n u s c r i t o de R a n g e l de M a c e d o e d o n o b i l i á r i o i g u a l -
mente m a n u s c r i t o do a b a d e de P u r o z e l o , B i b l i o t e c a Mu-
nicipal do Porto. Sobre os S i l v a s v e j a - s e t a m b é m O
primeiro livro dos Brasóis... de B r a n c a m p F r e i r e .
i'KLLRO ALVARES CABRAL 97

« C o e l h o s , tal p e r f e i ç ã o
i f e s f o r ç o e de o p i n i ã o
s o s t e m n o que c o m e ç a r e m ,
/-.nr. u i_i_»i ayuu lVw.<- ti ii ir uo irm
qui. cmji
não lhes tira o c o r a ç ã o . » ( i )

r e f e r i n d o - s e , é b e m de v e r , àquele P e r o C o e -
l h o , a q u e m D. P e d r o , o C r ú , m a n d o u a r r a n -
c a r o c o r a ç ã o . E m 1497, a c o m p a n h a V a s c o d a
G a m a , c o m a n d a n d o o Bérrio e sendo assim um
d o s d e s c o b r i d o r e s da í n d i a . K êle que n o re-
g r e s s o v e m adiante a n u n c i a r a n o v a d o desço-
b r i m e n t o . Mal refeito d o s p e r i g o s , f a d i g a s e
inclemências i n ú m e r a s d a épica j o r n a d a , p a r t e
de n o v o , p a s s a d o u m e s c a s s o m e i o a n o , n a ar-
m a d a de C a b r a l . E e m i 5 o 3 , p o u c o m a i s dum
a n o v o l v i d o a p ó s o seu r e g r e s s o a P o r t u g a l ,
ei-lo de n o v o a c a m i n h o d a í n d i a , c o m a n d a n d o
a n a u F a i a l , n a a r m a d a de A f o n s o e F r a n c i s c o
de A l b u q u e r q u e , e n c h e n d o as p á g i n a s d a s cróni-
c a s c o m as f a ç a n h a s p r a t i c a d a s . D e r e g r e s s o
d a sua p r i m e i r a v i a g e m à í n d i a , D . M a n u e l ,
p o r c a r t a de 24 de F e v e r e i r o de i5oo, isto é,
d u a s s e m a n a s antes de e m b a r c a r de n o v o , con-
cede-lhe 5o:coo r e a i s de tença, s e n d o 3o:ooo d e
j u r o e h e r d a d o p a r a êle e seus s u c e s s o r e s e
20:000 «para e n q u a n t o f o r m e r c ê de S u a Alte-

(1) Cancioneiro Geral de Resende, t o m o III, pag. 2 1 1 .


-c|0
EXPEDIÇÃO DE

za» ( i ) . Alem disso concedeu-lhe que usasse p o r


armas, em c a m p o vermelho, um leão r o m p e n t e
de ouro (o leão dos Coelhos), entre duas co-
lunas de prata, que assentam sobre dois mon-
tes verdes e em cada uma um escudinho azul
coçn as quinas de Portugal, e ao pé do escudo
uma nau no m a r : timbre meio leão de o u r o , com
u m a das colunas na m ã o (2). De Nicolau Coe-
lho conseguimos averiguar que era filho de Pe-
d r o Coelho, do qual Rui de Pina fala como
tendo sido uma das pessoas principais que
m o r r e r a m no escalamento de T a n g e r . Além de
Nicolau, teve um outro filho, - G o n ç a l o Coelho,
do qual refere o Nobiliário «que dizem fo\'
c o n t a d o r m o r do Reyno, e delle não temos ou-
tra noticia» (3). Possível é que seja êste o
Gonçalo Coelho que c o m a n d o u .a expedição ao
Brasil em i5oí>. Da carta de P e r o Vaz de Ca-
minha vê-se que P e d r o Alvares tinha Nicolau
Coelho na conta dum dos mais desembaraça-
dos dentre os seus capitães. O m e s m o C a m i n h a ,
citando os n o m e s de capitães que r o d e a v a m
C a b r a l na scena da recepção dos primeiros
indígenas, coloca Nicolau Coelho a seguir a
S a n c h o de T o v a r e S i m ã o de Miranda, não se

(1) Alguns documentos da T. do Tombo. pag. ,, 7 .


. l 2 ) V i l a s Eioas, Nobiliarquia Portuguesa, título dos
Coelhos.
(3) Nobiliário de Rangel de Macedo.
PEDRO ALVARES CABRAL
99

referindo então a Aires da Silva, o que prova a


sua alta preeminência entre os capitães da arma-
da. h m todas as viagens êle H p ^ m ^ n h ,
. ^ .['viuiu ounpic

•a g u m a s das missões mais arriscadas. Se, como


alguns querem, o medalhão dos Jerónimos re-
presenta a sua imagem, Nicolau Coelho pos-
suía uma rude face de fauno ou de tritão, res-
pirando audácia e alegria bárbara. Devia ser
de rijíssima têmpera o capitão navegador. Dir-
-se-ia possuído pelo encanto do Mar. E m b a r c a
infantigavelmente a cada armada. Q u a n d o re-
gressa da India com Francisco de Albuquerque,
a sua nau Faial sossobra e afunda-se com ela.'
A terra não era digna de comer o corpo daquele
Homem.
O nome de B A R T O L O M E U D I A S ligou-se p a r a
sempre a uma das maiores datas na história do
descobrimento do planeta. Dobrou o C a b o T o r -
m e n t o s o . Cantou-o um dos maiores génios da
poesia universal. P r e c u r s o r do G a m a , Moisés
daquela T e r r a de P r o m i s s ã o , fica na história
com a figura dolorosa dos profetas que anun-
ciam m a s não chegam a ver o maravilhoso
mundo das suas profecias. João de Barros,
numa das suas belas páginas, fixou-o nessa ati-
tude sofredora do herói, que não consegue rea-
lizar o seu destino, forçado pela inércia e in-
compreensão dos homens. «Chegados ao ilheo
da Cruz, quando Bartholomeu Diaz se apartou
do p a d r ã o , que ali assentou, foi com tanta d o r
-c|0
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

e sentimento, como se deixara um filho dester-


r a d o pera sempre, lembrando-lhe com q u a t o
perigo de sua pessoa e de toda aquella gente,
de tão longe vieráo sométe àquelle efecto pois
lhe Deos não concedera o principal» (i). A ma-
rinhagem recusa-se a continuar; e c o m o o seu
regimento m a n d a que nos casos graves consulte
as principais pessoas que levava, e todos assen-
t a r a m que se retroceda, Bartolomeu Dias mais
remédio não tem que regressar (2). As lágri-
mas. que lhe custou então o apartar-se do pa-
d r ã o derradeiro, havia de chorá-las toda a vida,
muito mais vendo com a m a r g u r a em m ã o s
alheias a palma, que ele se conhecera capaz de
conquistar.
L ele que dirige a construção dos navios que
pela vez primeira vão chegar á India. E q u a n d o
o G a m a parte, acompanha-o até a Mina, co-
mandando um navio que ali vai fazer merca-
doria. Depois segue com Cabral, e percebe-se
pela carta de C a m i n h a a confiança que ao ca-
pitáo-mór merece a prática do velho navegante.
O senhor H e n r i q u e Lopes de Mendonça, a
q u e m a vida e personalidade de B a r t o l o m e u
Dias mereceram estudo e investigações m u i t o
aturadas, não conseguiu ainda assim descobrir-

11) Barros, Década /. livro III, cap. IV.


(2) Idem, ibidem.
PEDRO ALVARESCABRAL1IQ.io5 47

-lhe antecedentes genealógicos. Infundadas, pois,


nos parecem as ascendências que lhe atribuem
dalgum dos vários n a v e o - . i n t p s m t » r ; „ ™ „ —
• «u^uun.j, kjuc
usavam do m e s m o patronímico (i). N ã o era p o r

u.l «As g e n e a l o g i a s , que consultei em grande n u m e r o ,


s a o mudas c o m respeito á f a m í l i a do illustre n a v e g a d o r
c u j a linhagem n ã o se me a f i g u r a por extremo luzida'
Ertect,vãmente. o p a t r o n y m i c o Dias, filho de D i o g o , e r a
p o r aquelles t e m p o s c o m m u n i s s i m o em P o r t u g a l . É p r o -
vável que a i g n o r a n c i a d'este f a c t o induzisse M a j o r e
outros autores, sobretudo e x t r a n g e i r o s , a a p a r e n t a r e m
o descobridor do C a b o da B o a E s p e r a n ç a c o m v á r i o s
mareantes notáveis que o precederam nas e x p l o r a ç õ e s
m a r í t i m a s pela c o s t a occidental de A f r i c a .
«Abundam pelas paginas dos chronistas os que u s a m
do mesmo patronymico. Occorrem-me os seguintes :
J o i o Dias, c a p i t ã o de u m a c a r a v e l a na pequena f r o t a de
L a n ç a r o t e que em 1444 fez presas na B a h i a de A r g u i m ;
D i n i z Dias (chamado também Diniz F e r n a n d e s por B a r -
ros), o mais illustre de todos, que em 1445 p a s s o u o
S e n e g a ! e chegou ao G a b o V e r d e ; L o u r e n ç o Dias, m o -
r a d o r em S e t ú b a l , que fez parte de duas expedições
s u b s e q u e n t e s , a de A n t ã o G o n ç a l v e s e a segunda de
L a n ç a r o t e , na qual a p p a r e c e também um V i c e n t e D i a s
c o m o capitão de u m a das c a r a v e l a s pequenas. Não e x i s -
tem comtudo d a d o s positivos que liguem g e n e a l o g i c a -
mente qualquer d'elles a B a r t h o i o m e u D i a s . Nem me
p a r e c e muito p r o v á v e l que se operasse no século x v a
t r a n s f o r m a ç ã o do p a t r o n y m i c o em appellido de família.»
H e n r i q u e L o p e s de M e n d o n ç a , Bartolomeu Dias e a rola
da índia. S ô b r e B. D i a s v e j a - s e ainda d o m e s m o a u t o r :
Apontamentos sobre o piloto Pero de Alemquer e A uni-
dade de pensamento no eic/o das Descobertas.
-c|0
-c|0 EXPEDIÇÃO DE

certo de fidalguia excelsa a origem do g r a n d e


m a r i n h e i r o . K até m e s m o B a r r o s , q u a n d o , refe-
rindo-se-lhe, o apelida «cavaleiro da casa de El-
Rei D. J o ã o II», se excedeu. U m d o c u m e n t o ,
pouco depois da sua m o r t e escrito, chama-lhe
escudeiro mais simplesmente. E s s e m e s m o do-
cumento v e m confirmar a asserção de Casta-
nheda de que ele fora n o m e a d o r e c e b e d o r da
C a s a da Mina (i). C o m efeito exerce êsse cargo
d u r a n t e os anos de 14114 a 141)7.
Presago, o A d a m a s t o r b r a d a v a ao Gama:

«E da primeira a r m a d a que passagem


Fizer por estas o n d a s insuffridas,
E u farey dimproviso tal castigo
Q u e seja m o r o dano que o perigo.
Aqui espero tirar, se não m e engano
De quem me descobrio s u m a vingança,
12)

« Q u a n d o a a r m a d a navegava entre o Brasil e


o C a b o , veio um t u f ã o tam forte e t a m de sú-
bito, conta o piloto da R e l a ç ã o a n ó n i m a , que
nesse m e s m o instante se p e r d e r ã o q u a t r o naus,
com toda a sua m a r i n h a g e m , sem se lhe p o d e r

(1) H. L . de Mendonça, idem.


(2) R e p r o d u ç ã o Jac-similada da verdadeira 1.* edição
dos Lusíadas, de 1572, edição da B i b l i o t e c a Nacional,
canto V , fólio 80, verso.
PEDRO ALVARES CABRAL 1 iQ. io5

d a r socorro algum». N u m a delas seguia Bar-


tolomeu Dias c o m o capitão. T a n t o ou mais que
Nicolau Coelho, o d e s c o b r i d o r do C a b a T o r -
m e n t o s o merecia, na m o r t e , o túmulo do M a r .
D I O G O D I A S , i r m ã o de Bartolomeu Dias, en-

tra igualmente na pleiade dos velhos navegan-


tes. A c o m p a n h a o i r m ã o no d e s c o b r i m e n t o d o
C a b o ; segue com V a s c o da G a m a à índia, c o m o
seu escrivão, na n a u S. G a b r i e l ; pertence ao
n ú m e r o reduzido dos que vão c o m o G a m a
a t e r r a ; d e s e m b a r c a de novo como feitor, em
C a l e c u t ; é preso, a m e a ç a d o de m o r t e , e só a
muito custo consegue r e e m b a r c a r e r e g r e s s a r a
P o r t u g a l . Pelo conhecimento da t e r r a e m a n h a s
dos naturais estava naturalmente indicado p a r a
seguir de novo nesta a r m a d a . Mas, d e s g a r r a d a
a sua nau, após a t e m p e s t a d e que os assalta n o
caminho do C a b o da B o a E s p e r a n ç a , vai d a r
a M a g a d o x o , sendo o primeiro capitão por-
tuguês que viaja o M a r Vermelho. Depois de
uma série de incidentes trágicos, que lhe redu-
ziram a tripulação a sete pessoas, consegue che-
gar a L i s b o a com as p r i m e i r a s novas d o s n o m e s
e regiões que visitara.

Pertencia S I M Ã O DE P I N A igualmente a u m a
n o b r e família. Filho de Diogo de P i n a , teve p o r
avó Vasco Anes de P i n a , a quem D. J o ã o I,
em reconhecimento dos serviços p r e s t a d o s , deu
a alcaidaria de C a s t e l o de Vide. Deste m e s m o
era igualmente neto Rui de Pina, o cronista e
-c|128
EXPEDIÇÃO DE

negociador de T o r d e s i l h a s , por conseqüência


muito próximo parente do capitão de uma das
naus de P e d r o A l v a r e s C a b r a l (i).
E s s a m e s m a nau pertence ao n ú m e r o das
quatro que se a f u n d a m na tempestade ocorrida
entre o Brasil e o C a b o da Bôa E s p e r a n ç a .
Pelo que diz respeito a PERO DE ATAÍDE, se to-
dos os informes que as crónicas nos dão s o b r e
êle concorrem p a r a c r e r m o s que era pessoa
nobre, todavia os nobiliários, que consultámos,
não identificam nenhum dos indivíduos dêsse
n o m e , naquela época vulgar, com esta de que
nos ocupamos ao p r e s e n t e . S a b e m o s que P e r o
de Ataide c o m a n d a v a um navio, que, segundo
B a r r o s , se c h a m a v a S. Pedro. Quási todas as
fontes e cronistas r e f e r e m que era um navio pe-
queno, podendo depreender-se de Vespúcio que
tinha 70 toneladas. C o m êsse navio e setenta
homens de c o m b a t e , entre os quais alguns no-
bres, como Duarte P a c h e c o , Vasco da Silveira
e J o ã o de S á , foi P e r o de Ataide incumbido
por Cabral da célebre acção da nau dos elefan-
tes, que era tripulada por trezentos ou mais
homens e que êle, n ã o obstante, facilmente to-
m o u , com grande p a s m o do S a m o r i m de Cale-

(1) C o l h e m o s estes i n f o r m e s g e n e a l ó g i c o s no n o b i l i á -
r i o m a n u s c r i t o de M a n s o de L i m a , u m d o s m a i s auto-
rizados e completos da Biblioteca Nacional.
PEDRO ALVARES CABRAL1IQ. io5

•cut e de quantos m a l a b a r e s presencearam a fa-


çanha. R e g r e s s a d o a P o r t u g a l , P e r o de Ataide
torna a e m b a r c a r , c o m a n d a n d o a nau S. P a u l o
na a r m a d a do almirante D. Vasco da G a m a ,
que em I5O2 parte p a r a a índia. Ali chegado e
já depois do G a m a ter partido, a c o m p a n h a a
a r m a d a dos S o d r é s a caminho do Estreito. De-
pois da m o r t e dêste, fica comandando uma pe-
quena a r m a d a até se juntar aos Albuquerques,
continuando com igual denodo as proezas da
primeira viagem.
Q u a n d o voltava com Francisco de Albuquer-
que p a r a P o r t u g a l , perde-se-lhe a nau nos bai-
xos de S. L á z a r o , dos quais, a custo salvo, foi
ter com alguns dos tripulantes a Moçambique,
onde m o r r e u neste ano de i5o3. O Livro das
Armadas, guiado apenas pela identidade do
nome, refere-lhe este desastre, como tendo acon-
tecido na primeira viagem, o que vai contra o
silêncio das fontes e a diversa referência dos
cronistas. Isto m e s m o basta para aferir do seu
escasso valor documental.
De rasco de Ataide muito pouco s a b e m o s .
B a r r o s , sempre o mais completo nas referên-
cias individuais, junta, ao enumerar os capi-
tães, o seu nome ao de P e r o de Ataíde, o que
parece indicar p r ó x i m o parentesco. Q u a n t o ao
seu destino durante a viagem, as fontes diver-
gem dos cronistas.
Estes incluem o nome de Vasco de Ataide no
I 10
EXPEDIÇÃO DE

n ú m e r o dos capitães que m o r r e r a m durante a


g r a n d e tempestade, entre o Brasil e o C a b o da
B o a E s p e r a n ç a . C a m i n h a , que viajava na capi-
taina e escrevia na ocasião em que estava em
contacto diário com t o d o s os c o m a n d a n t e s ,
atirrna que a nau de Vasco de Ataide d e s g a r r o u
da a r m a d a p o r alturas de C a b o Verde. Ainda
que os cronistas una roce atribuam o facto a
nau de Luis Pires, não podem ainda assim inva-
lidar o t e s t e m u n h o indesmentível de C a m i n h a .
Demais o engano explica-se. A carta de D. Ma-
nuel, dirigida apos o r e g r e s s o de P e d r o Alva-
res aos reis de C a s t e l a , e a Relação do Piloto
anónimo a f i r m a m categoricamente que a nau
d e s g a r r a d a nunca m a i s apareceu. L o g o V asco
de Ataide m o r r e u d u r a n t e a jornada. S e m essa
m e s m a circunstância, não p o d e r í a m o s p ô r de
acordo os factos com a informação, que nos
dão as fontes, de s e r e m seis as naus p e r d i d a s no
decorrer da expedição. P o r isso m e s m o C a s t a -
nheda, i n f o r m a n d o que a nau d e s g a r r a d a regres-
sou a L i s b o a , se contradiz, ao afirmar de seguida
igualmente serem seis as naus que se p e r d e r a m .
B a r r o s e Gois e com eles os h i s t o r i ó g r a f o s
m o d e r n o s c o n t i n u a r a m a repetir o erro de Cas-
tanheda, sem m e d i t a r na discordância que assim
introduziam no relato da viagem. T o d a v i a ,
não só o testemunho das duas fontes é irrefu-
tável, como o n u m e r o das n a u s p e r d i d a s o
torna necessário. T e n d o , pois, Vasco de Ataide-
PEDRO ALVARES CABRAL 1IQ.io5

m o r r i d o durante a viagem, compreende-se que


os cronistas, induzidos naquele erro, justificas-
sem por maneira diferente a sua m o r t e .
A NUNO LEITÃO DA CUNHA chama B a r r o s ca-
valeiro, m a s não lhe conhecemos a o r i g e m . N ã o
talam dele us vários nobiliários m a n u s c r i t o s
que consultámos. Sabe-se apenas, pelo relato
das crônicas, que, no desastre de Calecut con-
seguiu a custo salvar a vida ao filho de Aires
C o rrea, - António C o r r e a , então de 12 anos
de idade e que mais tarde a s s o m b r o u a índia
com as suas façanhas.
Diz Ba r r o s que a nau Anunciada era do seu
c o m a n d o , e Peragallo que ela pertencia a Bar-
tolomeu Marchíoni, associado a D. Alvaro (1).
K1 possível, pois, que ele fosse criado da casa
de B r a g a n ç a .
R e g r e s s a d o a P o r t u g a l , exerceu, ainda se-
gundo B a r r o s , o importante cargo de almoxa-
rife do a r m a z é m das a r m a s .
Da origem ou f i d a l g u i a d e GASPAR DI; LEMOS
n a d a conseguimos igualmente averiguar. Inves-
tigações especiais feitas na T o r r e do T o m b o no
sentido de descobrir algum documento que se
lhe referisse, foram infrutíferas. Pelos cronistas
s a b e m o s que êle c o m a n d a v a o navio dos manti-

íi) Cenni intorno alia colônia italiana in Portogal-


lo. [ 5ti.
I 10
EXPEDIÇÃO DE

m e n t o s e q u e foi e n c a r r e g a d o p o r P e d r o A l -
v a r e s de t r a z e r a P o r t u g a l a noticia do desco-
b r i m e n t o d a s t e r r a s de S a n t a C r u z . A s fon-
tes a t r i b u e m i g u a l m e n t e essa m i s s ã o ao navio
d e m a n t i m e n t o s , m a s n e n h u m a individua o co-
mandante.
F i n a l m e n t e de L u í s PIRES a f i r m a m os cronis-
t a s q u e , d e s g a r r a d a a s u a nau p o r a l t u r a s de
Cabo Verde, regressou c o m ela a Portugal.
C e r t i f i c a m - n o s , a o c o n t r á r i o , as fontes q u e a
n a u d e s g a r r a d a e r a do c o m a n d o de V a s c o de
A t a í d e e se p e r d e u . C o m o por o u t r o lado fo-
r a m q u a t r o as n a u s p e r d i d a s d u r a n t e a g r a n d e
t e m p e s t a d e e d e n t r e o s q u a t r o n o m e s d o s res-
p e c t i v o s capitães, m e n c i o n a d o s pelas c r ó n i c a s ,
há q u e e l i m i n a r o n o m e de V a s c o de A t a í d e , e,
além d i s s o , se c o n h e c e o destino de t o d o s o s
o u t r o s c a p i t ã e s , conclui-se que a n a u de L u í s
P i r e s foi u m a d a s q u a t r o s o s s o b r a d a s .

A f ó r a os c a p i t ã e s d a s n a u s , ainda o u t r a alta
personagem.—AIRES CORREA, desempenhava na
a r m a d a u m e l e v a d o c a r g o , - o de feitor g e r a l .
Levava também o c a r g o de m o n t a r a feito-
ria em Calicut. S a b e n d o - s e que a expedição
visava principalmente fins comerciais, presu-
m e - s e q u e A i r e s C o r r e a era das figuras mais
PEDRO ALVARES CABRAL 1IQ.io5

g r a d a s que seguiam na a r m a d a . Do largo


f r a g m e n t o de instruções dadas p o r D. Manuel
a P e d r o Alvares conclui-se a alta preeminência
do seu cargo e a consideração especial que o
m o n a r c a lhe votava. N ã o só levava regimentos
à p a r t e , p a r a o estabelecimento da sua feitoria
n o O r i e n t e , o que lhe concede junto do capi-
t ã o - m ó r f o r o s de independência, c o m o D. Ma-
nuel expressamente o r d e n a a P e d r o Alvares
q u e em todas as c o u s a s não apontadas pelo seu'
regimento èle tome «sempre em tudo comsse-
Iho d o s capitães e f e y t o r . . . » O relato da via-
g e m confirma a atenção especial que o capitão-
- m ó r concedia a Aires C o r r e a . T a m a n h a e r a ,
q u e o levou a ceder da sua própria opinião em
acontecimentos t a m graves como os que deter-
m i n a r a m a m a t a n n ç a dos portugueses e a m o r t e
de A i r e s C o r r e a em Calecut.
A s investigações que fizemos nos nobiliários
m o s t r a m - n o s que Aires C o r r e i a pertencia a fa-
mílias muito n o b r e s . Kra filho de Gonçalo Tei-
xeira e p o r sua m ã e descendia dos C o r r e i a s ,
linhagem das mais altas em Portugal. S a b e m o s
já que S i m ã o de M i r a n d a , um dos mais n o b r e s
capitães da a r m a d a , era seu genro. Acrescenta-
r e m o s que seguia t a m b é m na a r m a d a seu filho
A n t ó n i o C o r r e i a , que então contava 12 anos de
i d a d e , m a s que ao diante foi um dos mais
a s s i n a l a d o s capitães d o O r i e n t e . A António
C o r r e i a deu D. J o ã o III o apelido de B a h a r e m ,
-c|134
EXPEDIÇÃO DE

da ilha do m e s m o nome p o r êle conquistada, e


alem disso a r m a s especiais em cujos quartéis
figuram não só a cruz potenteia dos Teixeiras,
c o m o a águia negra dos Correias e A m i i a r ^ '
descendentes de P e d r o Pais Correia e por êle'
de D. Payo C o r r e i a , o celebre mestre de San-
tiago (i).
_ Aires Correia, feitor da expedição de P e d r o
Alvares, deve ser o mesmo de que fala Casta-
nheda, quando afirma que D. Manuel lhe com-
prou a nau de duzentos toneis, que levou os
mantimentos na viagem do descobrimento, de
Vasco da G a m a . Esse facto supõe juntamente
conhecimentos comerciais e náuticos, circuns-
tância muito de molde a indicar o seu nome
para o alto cargo que desempenhava.

Dentre os mais preciosos auxiliares da expe-


dição de P e d r o Alvares avulta ainda o nome
de Gaspar da índia ou da Gama. Só há alguns

( i ^ V e j a - s e Nobliarquia portuguesa de Vilas Boas e o


nobiliário manuscrito de Manso de L i m a . na Biblioteca
Nacional, e os dos abades de Purozelo e E s m e r i z . n a Mu-
nicipal do Pórto.
PEDRO ALVARES CABRAL 1IQ.io5

anos é possivel atribuir á sua personalidade a


importância e relêvo devidos. S u m a r i a m e n t e as
crónicas r e f e r e m c o m o no regresso do G a m a
da viagem de descobrimento à índia, ao apor-
tar em Angediva, f o r a preso um m o u r o que
ao serviço do «Çabaio» procurava detê-los.
P o s t o a t o r m e n t o , confessou o h o m e m os ruins
p r o p ó s i t o s com que ali viera; e, chegado ao
reino e t o m a d o no baptismo, sob o apadrinha-
mento de Dom Vasco, o nome de G a s p a r da
G a m a , ficou ao serviço de D. Manuel. S ó Da-
mião de Gois, ainda que p o r f o r m a igualmente
sumária, atribui a G a s p a r parte da importân-
cia, que, em v e r d a d e , teve nos primeiros anos
da conquista da índia.
N e n h u m outro documento português e im-
p r e s s o do século xvi esclarece mais o seu pa-
pel nessa parte da história nacional. Vejamos
o que se apura em Gois. Primeiramente diz êle
que «era judeu natural do Regno de Polonia da
cidade de P o s n a » . E mais adeante acrescenta
que Vasco da G a m a sempre lhe «fez muita
h o n r r a e b o m g a s a l h a d o , pelo achar h o m e m ,
que tinha experiência de muitas cousas da ín-
dia, e doutras províncias, e o trouxe a L i s b o a ,
onde se fez C r i s t ã o , e lhe c h a m a r ã o G a s p a r da
G a m a , do qual se EI Rei Dom Emanuel depois
sérvio em muitos negócios na India, e o fez
cavalleiro de sua casa, dando-lhe tenças, orde-
n a d o s , e ofícios de que se manteve t o d a sua
-c|10 EXPEDIÇÃO DE

vida abastadamente.» ( i ) Daqui se depreende


c l a r a m e n t e que haviam de ter sido excepcionais
os serviços p r e s t a d o s p o r G a s p a r da Índia,
1Dosto aue Damião de finíc i k m m t »
1 -- ~ [jyji í u n i i a
m u i t o vaga. Alguns documentos ultimamente
publicados permitem avaliar melhor êsses ser-
viços. 0 primeiro deles é a Relação de Leo-
n a r d o da C h á Masser, agente veneziano, en-
viado a L i s b o a , no princípio do século xvi, para
se i n f o r m a r secretamente das navegações dos
p o r t u g u e s e s . Nesse longo relatório, cheio de
i n f o r m e s preciosos sobre as p r i m e i r a s nove
expedições à India e ainda sobre o govêrno e
p e s s o a de D. Manuel, L e o n a r d o M a s s e r , refe-
rindo-se a G a s p a r da índia, i n f o r m a que sabia
talar diversas línguas e era «pratichissimo di
quelli paesi (da India)» e acrescenta «se chia-
m a v a in m o r e s c o M a m e t , e se m a r i d o in una
d o n n a p o r t o g h e s e nativa di questa cittá (Lis-
b o a ) ; e have provision de questo Sereníssmo
R e de ducati 170 de intrada ail'anno per suo vi-
ver, p e r aver dato lai talPinformazione dell'índia,
essendo stato ditto G a s p a r delli anni trenta due
da poi che parti del C a i a r o per terra alia Mecha,
e p e r molti altri lochi in quelle parti d l n d i a . » (2)

(1) O 'óntcã dei Rei Dom Emanuel, primeira parte,


capítulo X L I V .
•entenário do descobrimento det Aíiierict.7, memó-
rias da c o m i s s ã o portuguesa, C a r t a de E l Rei D. M a -
nuel. apêndice, pag. Co.
PEDRO ALVARES CABRAL u3

Ficamos, pois, s a b e n d o que, a p a r da prá-


tica de muitas línguas, G a s p a r conhecia larga-
mente o Oriente pelas suas viagens. E s t a s mes-
mas informações se confirmam p o r u m a c a r t a
sua dirigida a D. Manuel e datada, ao que
parece, de C o c h i m , a iõ de O u t u b r o de i5o5.
P o r ela se vê que èle e u m filho serviam, àquela
data, os p o r t u g u e s e s , c o m o línguas, nas p a r t e s
da índia. (i )
Segundo êsse m e s m o documento, o viso-rei
D. Francisco d ' A l m e i d a empregava-o em fisca-
lizar, por intermédio dos m o u r o s e naturais,
os actos dos p o r t u g u e s e s , em quantos p o r t o s da
índia eles estanceavam. N a carta, o judeu aponta
a D. Manuel os n o m e s de vários p o r t u g u e s e s
como reus de desonestas traficâncias. Dela re-
sai todo o seu c a r á t e r de denunciador lison-
geante, e espertalhão servil.
Da m e s m a epístola se depreende, todavia, a
alta conta e m que D. L o u r e n ç o e D. Francisco
de Almeida tinham os seus préstimos. Foi ela
escrita nas vésperas da partida de D. L o u r e n ç o
para O r m u z . Q u e r e o capitão levar G a s p a r
consigo na viagem. Este. p o r doença, escusa-se
e oferece-lhe seu filho Baltazar, «melhor lin-
guoa que eu». Intervem então o viso-rei pedin-

(i) Cartas de Affonso d'Albuquerque, vol. II, pag. 3yi


e seg.
8
I 10 EXPEDIÇÃO DE

do-lhe que vá «porque soes lymguoa e conse-


lho», instâncias e p a l a v r a s , que dão b e m o va-
lor dos seus conhecimentos.
Existe, alem disto, na Chancelaria de D. Ma-
nuel, na T o r r e do T o m b o , uma carta pela qual
o monarca lhe faz mercê, desde o primeiro de
Janeiro de 1604, da tença anual de 5oo:ooo
reais. Nessa carta diz o Rei, ao justificar essa
mercê: «avendo nos respeyto ao m u v t o ser-
viço que G a s p a r da G a m a nos tem feito no
negoevo e t r a u t o s da India e e s p e r a m o s delle
ao deamte r e c e b e r . . . (1) Para se avaliar da
qualidade dêsse serviço, convém lembrar que
a tença concedida a G a s p a r da índia é igual a
que 1). Manuel concedeu a Nicolau Coelho.
A discutida carta de Américo Yespucio, da-
tada de C a b o V e r d e , a 4 de Junho de I5OI, vem
c o r r o b o r a r e desenvolver os principais dêstes
informes, do m e s m o passo autenticando-se com
eles. Segundo ela, Américo encontrou-se ali com
G a s p a r , de q u e m aprende, alvoroçado, bastas
notícias sobre o Oriente, as quais constituem o
principal motivo dessa carta. Escreve A m é r i c o :
«che questi mi conto uno uomo degno di tede, che
si chiamava G u a s p a r e , che avea corso dal C a i r o
fino a una província che si d o m a n d a Molecca,

(1) Sousa Viterbo, Trabalhos náuticos dos portugue-


ses, vol. II. pay. 198.
PEDRO ALVARES CABRAL 1 iQ. io5

(torse Malacca) la quale sta situata alia costa


del m a r e Indico». E a s e g u i r : « O r a mi resta a
dire dei la costa, che va dallo stretto del M a r e
Persico verso el m a r e Indico, secondo che mi
r a c o n t o n o , molti che f u n n o nella detta a r m a t a ;
e m a s s i m e ll detto G u a s p a r r e , el quale sapeva
dimolte lingue, e il n o m e di molti p r o v i n d e e
cittá». C o n t i n u a n d o a esmiuçar os i n f o r m e s de
G a s p a r , acrescenta «Item mi disse cli'era stato
in una altra Isola che si dice S t a m a t r a (forse
S u m a t r a ) , la qual é di tanta grandezza, come
Ziban ( C e i l ã o ) . . .» ^ ) . E mais adiante escreve
ainda que G a s p a r lhe falara das Molucas e
d o u t r a s ilhas, cheias de riquezas. S ã o os infor-
mes de Vespucio, que aliás tanto ajustam com
os anteriores, aqueles que m e l h o r patenteiam
os motivos p o r q u e o G a m a e D. Manuel pro-
t e g e r a m com t a m a n h a largueza G a s p a r da
índia.
Diz Vignhaud (2) que faltam os elementos
p a r a r e s o l v e r definitivamente a questão da au-
tenticidade da referida carta de Américo Ves-
pucio. C r e m o s que de ora em diante eles exis-
tem. N ã o só, já o vimos, a data da carta de
Vespucio coincide com os informes da carta de
Pixani, e o seu encontro com aquilo que o Piloto
anónimo refere, c o m o a personalidade de Gas-

(1) Vignaud, Americ Vespuce. pag. 405 a 407.


(2) Idem, 64.
II6 EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

p a r se c o n f o r m a plenamente com o que as de-


m a i s fontes nos revelam. A carta de L e o n a r d o
M a s s e r só em 1846 saia dos arquivos secretos
de Veneza p a r a a publicidade que lhe dava o
Archivo Stórico Italiano e não se p o d e c r è r que
Vagiienti, seu colecionador c o n t e m p o r â n e o , ou
alguém por êle p o d e s s e falsificar i n f o r m a ç õ e s
que tão e s t r a n h a e largamente condizem c o m a
realidade.
Q u a n d o muito o copista poliudhe os b a r b a -
r i s m o s de linguagem. No mais considerâmo-la
u m a peça indispensável e do m a i o r alcance
p a r a o processo definitivo da sua p e r s o n a l i d a d e
e obra.
ASSOCIADOS COMERCIAIS DO REI

NA EXPEDIÇÃO. OS MARCHIONI

DE FLORENÇÁ

T a n t o os n o s s o s cronistas de Q u i n h e n t o s
c o m o os h i s t o r i ó g r a f o s m o d e r n o s ignoraram,,
o m i t i r a m ou m e n o s p r e s a r a m u m facto que re-
veste u m a alta importância p a r a se compreen-
der inteiramente o significado desta e m p r e s a ,
qual seja a c o m p a r t e c i p a ç ã o de dois fidalgos
p o r t u g u e s e s e de alguns m e r c a d o r e s estrangei-
ros, além d o m o n a r c a , nos interesses comer-
ciais da expedição.
U m a das c a r t a s de italianos, que mais infor-
mes presta sobre a organização da a r m a d a e
os acidentes da v i a g e m , a de Z u a n F r a n c e s c o
de la F a i t a d a , escrita de L i s b o a a 26 de J u n h o
de 1^01 e dirigida a Domênico Pisani, noticia
que, dentre as naus e os navios, que seguiram
para a índia um deles e r a «dei signor don Alva-
r o , in c o m p a g n i a de B o r t o l o fiorentino et Hiero-
nimo et un genovese, l'altro dei conte de P o r t a
Alegra e de certi altri m e r c h a d a n t i assai.» Mais
I 10 EXPEDIÇÃO DE

« u menos individuados cinco dos p a r c e i r o s da


coroa nos interesses da expedição, v e j a m o s q u e m
eles s e j a m e as razões tão fortes que p o d i a m
decidir o Rei a associá-los á p r i m e i r a e m p r e s a
mercantil com que r e m a t a v a m e p a r a a qual
t e n d e r a m os esforços d u m a o b r a quási secular.
Dom A l v a r o , assim c h a m a d o , s e m apelido,
apenas pelo n o m e do baptismo, à m a n e i r a dos
filhos dos Infantes, era o quarto filho de D. Fer-
nando, 2." d u q u e de B r a g a n ç a e i r m ã o de
D. F e r n a n d o , o 3." duque, justiçado pelo Prín-
cipe Perfeito. D e s e m p e n h o u D. A l v a r o o c a r g o
de regedor da C a s a da Suplicação, cujo exercí-
cio começou em 147?, sendo n o m e a d o , volvidos
dois anos, chanceler-mór do reino. A c u m u l a os
dois cargos até iq83, ano em que p a r a C a s t e l a
se expatria, f u g i n d o à justiça, que a seu irmão
mais velho executara. Isso não i m p e d e que em
1485 seja c o n d e n a d o à m o r t e e confiscação dos
bens, p o r cúmplice e e n c o b r i d o r . Magnifica-
mente aceite pelos Reis Católicos, p a s s a naquele
reino a ser senhor de Gelves, alcaide-mor de
Sevilha e de A n d u j a r , c o n t a d o r - m o r e presi-
dente de Castela. Falecido I). J o ã o II, c u j o ódio
só na m o r t e cançou, apressa-se D. Manuel a
escrever-lhe (1), em afável missiva, o r d e n a n d o -
-lhe que r e g r e s s a s s e ao Reino.

(1) V . a c a r t a cm Gois, Chronica de D. Emanuel.


parte 1, cap. XIII.
PEDRO ALVARES CABRAL 1 IQ.

Restituído nos bens e acrescentado e m hon-


ras, percebe-se da leitura das crónicas e docu-
m e n t o s coetâneos que se t o r n a u m dos m a i o r e s
validos e confidente do m o n a r c a , de q u e m era
tio. O s reis de Castela c o m e t e m p o r essa data
a D. Manuel a c a s a r com D. M a r i a , a ter-
ceira das suas q u a t r o filhas. M a s das q u a t r o ,
confidencia Gois, «ha com que el-Rei D o m E m a -
nuel mais desejava casar, foi ha Infante D o n a Isa-
bel, viuva do Principe D. A f o n s o , e p o r ter esta
vontade se escusou do da Infante D o n a Maria,
p o r D o m A f o n s o da Silva, q u a n d o ho veo vi-
sitar da parte dos R e i s , . . . e p o r vir ao fim
q u e desejava, e s t a n d o em T o r r e s V e d r a s comu-
nicou este negocio com D o m A l v a r o , ho qual
se lhe ofíereceo p a r a ho nelle servir, e dali se
foi a Castella mui bem a c o m p a n h a d o . . . » (i)..
T e n d o - l h e t r a t a d o o c a s a m e n t o c o m a pri-
meira mulher, é ainda D. A l v a r o q u e m recebe
da Infanta D. M a r i a p r o c u r a ç ã o p a s s a d a em
G r a n a d a , a ib de A g o s t o de i5oo, p a r a em
n o m e dela contrair m a t r i m o n i o p o r p a l a v r a s de.
presente com D. Manuel.
A c r e s c e n t e m o s q u e sua filha D. Beatriz de
Vilhena, p o r iniciativa do Rei, se casou com
D o m J o r g e , D u q u e de C o i m b r a , e filho bas-
t a r d o de D. J o ã o II, «e has v o d a s se f e s e r a m

11) Obra citada, cap. X X I I .


-c|10 EXPEDIÇÃO DE

e m L i s b o a , acrescenta Gois, sendo presentes


el Rei, e a R a i n h a dona L e a n o r s u a i r m a m , que
criara a dita donna Beatriz em sua casa, des no
t e m p o dei Rei dom J o a m seu m a r i d o e lhe que-
ria tanto c o m o se fora sua ( i l h a . . . » ( i ) .
M e m b r o da família real, e m c u j o favor vivia,
p r o p i c i a d o r dos casamentos régios, m a n t e n d o
c o m o m o n a r c a estreita intimidade, compreen-
de-se que o Rei lhe fizesse a elevada m e r c ê de
o associar na expedição, q u a n d o mais não fôsse
p o r lhe p a g a r os serviços tão m e l i n d r o s o s que
p r e s t a r a (2).
N ã o m e n o s se c o m p r e e n d e que igualmente
associasse na e m p r e s a o conde de P o r t a l e g r e .
F o i D. Diogo da Silva de Menezes o aio que o
criou e educou e mais tarde, d u r a n t e o seu rei-
n a d o e até m o r r e r , seu escrivão da p u r i d a d e e
v e d o r da fazenda. Bastas vezes as crónicas dos
dois reis anteriores se lhe referem, mencio-
n a n d o f a ç a n h a s bélicas de g r a n d e capitão. Ser-
viu nas g u e r r a s de Castela e A f r i c a , tendo ticado
prisioneiro em T a n g e r , a q u a n d o o seu terceiro
e s c a l a m e n t o (3i. Mas, mais q u e n o u t r o feito, se
distinguiu na conquista das C a n á r i a s , c o m e ç a d a

(1) O b r a c i t a d a , parte I, c a p . X L Y .
(2) S ó b r e D. Alvaro v e j a - s e Livro I dos Brj-õis de
Brancamp Freire.
(3) R u i de P i n a , Chronica de D. Affonso V, c a p . C I . I I I .
PEDRO ALVARES CABRAL 1 iQ.

em 1466, e onde t o m o u d u a s fortalezas e se


agüentou p o r alguns anos até que foi m a n d a d o
recolher ao reino. A p ó s os pleitos com Castela
sôbre a p o s s e do arquipélago, ficou ainda assim
c o m o s e n h o r das ilhas de L a n ç a r o t e e F o r t e ,
cujo s e n h o r i o continuou por algum t e m p o nos
Silvas de Menezes (1).
S u b i d o ao t r o n o , refere Gois que u m dos
p r i m e i r o s actos de D. Manuel foi elevar a conde
de P o r t a l e g r e o seu velho aio (2). A cada pas-
so da leitura da Crónica de D. Manuel se de-
p r e e n d e a alta conta em que o m o n a r c a o tinha.
N a T o r r e d o T o m b o , diversas c a r t a s de m e r c ê
a D. Diogo se c o n s e r v a m , em que o m o n a r c a ,
m e n c i o n a n d o os serviços do seu aio, lhe paten-
teia f u n d a g r a t i d ã o (3). N u m a delas, o Rei, de-
pois de referir-lhe e x t r e m a d a s façanhas, acres-
c e n t a : « . . . e c o n s i r a n d o isso m e s m o c o m o des
o t e m p o da nosa m o c i d a d e , em que p e r sua li-
n h a g e m , g r a n d e s vertudes e despcriçam nos foy
d a d o p o r ayo, n o qual c a r e g u o elle nos t e m
m u v t o s e r v i d o , com tanto amor, boom comselho
e lealdade quanto em algtin mu/to fiell amy-
guo e servidor se podese achar; e isto asy nos

(1) B a r r o s , Década /, l i v r o I, c a p . X I I e G e o r g e G l a s ,
The History of the discovery and conquest of the Canary
Islands.
(2) Idem, p a r t e I, c a p . X I V .
(3) C h a n c e l a r i a de D. M a n o e l , L i v r o 3 1 .
-c|10 EXPEDIÇÃO DE

ditos Regnnos de Castella. onde a m d a m o s p o r


c o m p r i r a paz e aseseguo destes R e g n n o s , c o m o
d e p o y s q u e nelles fomos atee o r a na guover-
nança que teve de nosa casa e t e r r a s , asf nas
cousas que neste meo tempo vieram que ha nosa
pesoa e estado tocasem. ..D. C o m o se vê, o do-
cumento é d u m a rara eloqüência, e infere-se das
últimas p a l a v r a s dêste p a s s o que seu aio, s ô b r e
te-lo criado com a m o r , lhe defendeu p o r certo,
contra D. J o ã o II e ao lado da R a i n h a , os di-
reitos à c o r o a . Razões nos s o b r a m p a r a c r e r que
a Rainha D. L e o n o r , sua irmã, e D. Diogo, seu
aio, f o r a m d u r a n t e os p r i m e i r o s a n o s do rei-
n a d o os seus mais directos conselheiros (1i.
Assim t e m o s que D. Manuel associava na gran-
de e m p r e s a os dois validos talvez mais próxi-
m o s e íntimos. Dos primeiros dois fidalgos que
iam u s u f r u i r da vasta e m p r e s a comercial da
índia, a qual D. J o ã o II c o m t a m a n h o esforço
p r e p a r a r a , u m era seu inimigo d e c l a r a d o e o
o u t r o pelo m e n o s c o n t r a r i a d o r oculto no g r a v e
lance da s u c e s s ã o do t r o n o .
Se as razões que aduzimos explicam a intro-
m i s s ã o d o s dois validos, mais, p o r elas mes-
m a s , e s t r a n h o nos semelha que à e m p r e s a se
ajuntassem estrangeiros. Q u e m s e r i a m o «Bar-
tolo florentino», o «Hieronimo» e o >genovese»,

d ) V i d é Relação de Lunardo Masser.


PEDRO ALVARES CABRAL 1 IQ.

que nos surgem ao l a d o de D. A l v a r o , c o m o


a r m a d o r e s d u m a das n a u s ?
S e g u n d o la F a i t a d a , foi essa t a m b é m a q u e
p r i m e i r o , da a r m a d a de C a b r a l , a L i s b o a
chegou.
T o d a v i a , referindo-se a essa m e s m a embar-
cação, a carta de Pisani (i) diverge das infor-
mações do c r e m o n ê s : « Q u e s t a nave intrata in
p o r t o é la nave et el c a r g o de Bartolo Fiorenti-
no». A c r e r m o s , pois, Pisani, pelo m e n o s a p a r t e
principal na associação cabia a este. { C o m o se
c o m p r e e n d e que D. Manuel consentisse n u m a
expedição que tinha u m aspecto de solene em-
baixada para fins de p o s s e e de comércio, a
i n t r u s ã o dum ou de mais estrangeiros? , ; Q u e
espécie de h o m e m seria este Bartolo Fiorentino
a q u e m se concedia t a m a n h a honra ?
L e n d o as crónicas quinhentistas depara-se-
-nos u m B a r t o l o m e u F l o r e n t i m , p o r esta f o r m a
n o m e a d o , e em circunstâncias tais que n ã o
p o d e m o s deixar de o identificar com aquêle.
Surge-nos pela p r i m e i r a vez o seu n o m e na
Verdadeira informaçam das Terras do Preste
Joarn das índias do P a d r e Francisco A l v a r e s ,
cuja primeira edição é de 0 4 0 , e a seguir e m

(1) Diarii di M a r i n o S a n u t o , t o m o I V . E . d o C a n t o fez


uma pequena e d i ç ã o desta c a r t a . V e m e g u a l m e n t e na
Raccolía colombiana.
-c|10 EXPEDIÇÃO DE

C a s t a n h e d a . C o m o as notícias deste p o r vezes


confirmam e esclarecem as d a Verdadeira in-
formaçam, c o m e ç a r e m o s p o r t r a n s c r e v e r do
último.
O u a n d o . em i/iS-7.
X ------ ) I /!
D. J o ã o II resolve,/ loeo Í.J
após a partida de B a r t o l o m e u Dias, enviar p o r
terra Pero da Covilhã e A f o n s o de P a i v a à ín-
dia e a Etiópia «para sua despeza lhes deu
el R e y q u a t r o c e n t o s c r u z a d o s da arca das des-
pezas da orta D a l m e i r i m ; e t o m a n d o deles o
que podessem gastar foy p o s t o o resto no banco
de Bertolameu Jlorentim, e assi lhes deu el R e v
uma carta de crença p a r a s e r e m s o c o r r i d o s em
perigo ou necessidade em quaisquer r e y n o s que
se a c h a r e m . . . » ( i ) . O P a d r e Á l v a r e s acres-
centa que D. J o ã o II e n c o m e n d o u a P e r o da
Covilhã o feito de d e s c o b r i r d o n d e vinha a ca-
nela e as o u t r a s especiarias nem gratide segre-
dou e que aos dois «lhes d e r ã h ü a c a r t a de ma-
rear tirada de M a p a m u n d o e que f o r a m aho
fazer desta carta ho licéçiado Calçadilha q he
bispo de Vizeu, e o , d o u t o r m e s t r e m o y s e s a
este t e m p o judeo e que fora feita esta c a r t a em
easa de P e r o d'Alcaçova.» (2). P e r o da Covi-
lhã e Afonso de P a i v a , c o n t i n u a C a s t a n h e d a ,
«forão a m b o s d e s p a c h a d o s em S a n t a r é m , aos

(1) C a s t a n h e d a , (Conquista da índia, livro 1, c a p . I.


(2) A l v a r e s , Verdareira informaçam, folio 91.
PEDRO A L V A R E S CABRAL 1 IQ.

sete dias de M a y o de 1487, per ante el Rey


Dom Manuel que então era duque de Beja•..»
C h e g a d o s os dois viajantes a Barcelona, «lhes
c a m b a r ã o h o c a m b o pera Nápoles a que chega-
rão dia de S . J o ã o e sendo-lhes dado seu c a i m b o
pelos filhos de C o s m o de Medicis lbrão ter a
R o d e s . . . » U m deles, P e r o da Covilhã, conse-
gue chegar à India e visitar Calecut, G o a , O r -
muz e depois S o l a l a na Africa Oriental.
D. J o ã o II p a r a obter êsses informes teve
q u e lhes m a n d a r novos emissários.
A v e r i g u a d o t e m o s , pois, que u m grande ban-
queiro florentino, com vastas relações em
quási todas as nações m e d i t e r r â n e a s , auxilia
D. J o ã o II n o seu vastíssimo e secreto plano d o s
d e s c o b r i m e n t o s . U m o u t r o florentino, o mais
p r e e m i n e n t e d o s seus concidadãos durante
aquele século, auxiliava indirectamente o mo-
n a r c a p o r t u g u ê s . C o n f o r m e t r a s l a d a m o s atrás,
os Medicis deram seu caimbo a P e r o da Covi-
lhã e Afonso de P a i v a . Aquele tempo o re-
presentante dos Medicis, neto de C o s m e I, e
não filho, — c o m o diz Castanheda, era L o u -
renço de Medicis, o mais culto e brilhante de
t o d o s os chefes políticos da R e n a s c e n ç a . Seu
pai m o r r e r a , havia m u i t o , e o irmão J u l i a n o
fôra assassinado em 1478. Muito provavel-
mente o b a n q u e i r o B a r t o l o m e u serviria de
intermediário entre o Rei e o florentino. P o r t u -
gal e F l o r e n ç a , que desde D. J o ã o I colabo-
I 10 EXPEDIÇÃO DE

r a v a m em negócios marítimos e comerciais


a p a r e c e m de n o v o a u x i l i a n d o - s e , c o m a a p r o x i -
m a ç ã o d o s d o i s m a i s e m i n e n t e s v u l t o s de t o d a
a s u a h i s t ó r i a política, — o Príncipe Perfeito,
p- L o i i r p n r n . o_ M/icmitirn.
0--J- - - -
Começa a compreender-se que um estran-
geiro que p r e s t o u tão proveitoso auxílio no
descobrimento da índia, por terra, apareça
agora usufruindo os primeiros frutos dessa
e m p r e s a . M a s n ã o p a r a m p o r a q u i as elucida-
tivas r e f e r ê n c i a s d o s c r o n i s t a s . Quando João
da N o v a parte com uma a r m a d a para a índia,
a i n d a a n t e s do r e g r e s s o de P e d r o A l v a r e s , u m a
das n a u s vai c a p i t a n e a d a por Fernão Yinet,
florentino, empregado de «Bartolomeu Mar-
chioni, f l o r e n t i n o » , s e n h o r d o n a v i o , « m e r c a d o r
m u i t o r i c o , r e s i d e n t e n a c i d a d e de L i s b o a » , in-
f o r m a G o i s (2) e «o m a i s p r i n c i p a l e m s u b s t â n -
cia de f a s e n d a q u e ella n a q u e l l e t e m p o t i n h a
feito», a c r e s c e n t a B a r r o s (3), isto é o m e r c a d o r
m a i s rico e q u e , e m L i s b o a , m a i s tinha p r o s p e -
r a d o à q u e l e t e m p o . B a r r o s vai m a i s longe n a s
i n f o r m a ç õ e s , e diz-nos q u e J o ã o d a N o v a d e i x o u
e m C a n a n o r dois f e i t o r e s e u m deles «era h u m

(í) Giuseppe C a n e s t r i n i , Memoria intorno alie rela-


jioni commerciali dei Fiorenlini eol Portoghesi, tomo
X X 1 1 I d o Archivio storieo italiano.
(2) O b r a c i t a d a , p a r t e I, c a p . L X I I I .
(3) Década I, l i v r o V , c a p . X .
PEDRO ALVARES CABRAL 1 iQ.

feitor de B a r t h o l o m e u F l o r e n t i m , que o capitão


F e r n ã o Vinet d o seu navio pelo m e s m o m o d o
deixava ali f e i t o r i s a n d o . . . » (1) O b a n q u e i r o e
m e r c a d o r B a r t o l o m e u cresce de i m p o r t â n c i a :
envia u m a nau c o m a n d a d a p o r e m p r e g a d o seu
e deixa feitor p r o p r i o na feitoria, em C a n a n o r .
P o r o u t r o lado B a r r o s chama-lhe, c o m o C a s -
t a n h e d a , B a r t o l o m e u florentino. C r e m o s inútil
dispender razões p a r a identificar o b a n q u e i r o
que auxiliava D. J o ã o II e o m e r c a d o r tão im-
p o r t a n t e , q u e enviava nau e feitor p r ó p r i o na
a r m a d a de J o ã o da N o v a , c o m o Bartolo Fio-
rentino das c a r t a s de Afaitaidi e de Pisani, se-
n h o r d u m a das n a u s e p a r t e da c a r g a q u e
viajava sob o c o m a n d o - m ó r de P e d r o Á l v a r e s .
C o n t i n u e m o s a d a r ainda assim a p a l a v r a
a o s cronistas. G a s p a r C o r r e i a , a p r o p ó s i t o
desta m e s m a a r m a d a de J o ã o da N o v a , fala
t a m b é m de B a r t o l o m e u F l o r e n t i m . D a d o o
necessário d e s c o n t o ao devanear de C o r r e i a ,
não deixa de ser c u r i o s o transcrever o que re-
f e r e : «Sobre o q u e logo E l R e y m o v e o con-
tractos com m e r c a d o r e s riquos, estantes de
muito t e m p o em L i s b o a que antre si fiserão
armador a um Bertholameu Florentym, homem
de g r o s s a f a z e n d a . . . que e s p e r a v a m m u y t o
mais proveito q u e da F l a n d r e s , nem o u t r a s

(1) O b r a c i t a d a .
I 10 EXPEDIÇÃO DE

m u y t a s p a r t e s em que t r a c t a v a m p o r t o d o p o -
nente e l e v a n t e . . . » ( i ) A c r e r m o s , pois, nesta
p a s s a g e m , B a r t o l o m e u Florentina foi a r v o r a d o
desde o c o m e ç o em r e p r e s e n t a n t e d o s m e r c a -
d o r e s e s t r a n g e i r o s em L i s b o a p a r a o c o m é r c i o
dtrecto c o m a í n d i a . S e j a c o m o fôr, na a r m a d a
q u e a seguir partiu s o b o c o m a n d o d o G a m a
lá ia a nau S . T i a g o dos M a r c h i o n i , c o n f o r m e
se d e p r e e n d e d u m a c a r t a de quitação de D. M a -
nuel, p o r S o u s a V i t e r b o p u b l i c a d a (2).
Da a r m a d a de A f o n s o de A l b u q u e r q u e q u e
partiu em i5o3, s a b e m o s que fazia p a r t e u m a
nau a r m a d a «por conta d o s M a r c h i o n e s de Lis-
boa», c o n f o r m e escreveu J o ã o de E m p o l i , flo-
rentino, q u e ia p o r feitor d a dita n a u (3).
A c a b a r e m o s p o r a g o r a as citações d o s cronis-
tas, a c r e s c e n t a n d o a p e n a s que essas v i a g e n s se re-
p e t i r a m , v o l t a n d o J o ã o de E m p o l i à í n d i a m a i s
que u m a vez c o m o c a p i t ã o de n a u , e t e n d o u m
dos p r ó p r i o s M a r c h i o n i , P e d r o P a u l o , filho de
B a r t o l o m e u , e m b a r c a d o em nau sua p a r a a í n -
dia, em I520, na a r m a d a que J o r g e de B r i t o
capitaneava (4).

( 1 ) Lendas, p. 254.
(2) O Economista, 24 d ' o u t u b r o dé 1884.
(3) Viagem às índias Orientais, por J o ã o do E m p o l i ,
an Collecção de noticias para a H. e G. das P. Ultra-
marinas, t o m o II.
(4) B a r r o s , Décadas II e III, passim.
PEDRO ALVARES CABRAL1IQ. 1 iQ.

O m i t e m , é certo, os cronistas q u a l q u e r refe-


rência a participação dos Marchioni nas expe-
dições que seguem à de João da N o v a , mas,
tanto como os documentos já citados, as duas
cartas de quitação, existentes na T o r r e d o T o m -
b o e publicadas por Viterbo (1), dos anos de
i5o7 e 1 5 1 4 p r o v a m que as suas relações com
a coroa e interferência nos negócios da ín-
dia g a n h a m de intensidade. N ã o só êles ser-
vem de b a n q u e i r o s ao Rei e negoceiam com o
E s t a d o em navios e mercadorias, c o m o se in-
fere doutras fontes que os armazéns do floren-
tino d a v a m o principal fornecimento p a r a os
faustosos presentes aos potentados indianos (2).
Documentos anteriores veem mostrar-nos que
já vinha de traz este favor da coroa. Q u a n d o ,
p o r carta de 21 de Agosto de 1498, D. Manuel
dá a primazia, n o carregamento e exportação
d o açúcar da Madeira, aos nacionais sôbre os
estrangeiros, ressalva: « . . .hos mercadores nos-
sos naturais, no comto dos quais q u e r e m o s e
nos apraz que c a y b a m Bertolameu F r o r e n t i m e
J e r o n i m o Sernige ; e antam entraram os extran-
geiros» (3). Mais significativa, porventura, do

(1) B a r r o s , Décadas, II e III, passim.


(2) S. V i t e r b o . Notas ao Catálogo da Exposição de
Arte Ornamental.
(3) F r u t u o s o , Saudades da terra, 58?.
-c|3 EXPEDIÇÃO DE

que esta, é a concessão de e x p l o r a r directa-


mente o oiro da Mina ( i ) , sabido c o m o severís-
simas disposições proibiam o acesso de estran-
geiros à costa da Guiné.
Êstes factos apenas se p o d e m explicar p o r
u m a g r a n d e troca de serviços e c o m u n h ã o de
interesses entre a c o r o a e o Marchioni. A o
passo que se lêem as crónicas e os documen-
tos, cresce-lhe a figura. A esfera da sua acção
dilata-se. E , só m e d i t a n d o no papel que êsse
h o m e m d e s e m p e n h a nessa é p o c a da história
nacional, se p o d e r á c o m p r e e n d e r inteiramente
esta alusão de A l b u q u e r q u e n u m a carta ao Rei:
« . . e não vos vejo f e y t o r na India que vos
saiba m a n d a r u m avyso destas cousas, p o r q u e
vejo cadano nas cartas de vosaltesa falar-me
neste feito c o m o cousa n o . a que m a m d a e s apal-
par e de que n e m t e m d e s n e n h u a e m f o r m a ç a m
nem aviso: e eu, senhor, n a m m e s p a n t o diso,
porque não ha de emtender pedr'omem tanto tia
merendaria como bertolameu» (2). Mais explí-
cita a p a s s a g e m d u m a o u t r a c a r t a sua a D u a r t e
G a l v ã o : «• • • lá tenho escrito a E l R e i que creia
mais no escritório de B a r t o l o m e u com Lionar-
do soo, que em quantas feitorias e q u a n t o s fei-

(1) Diarii di Marino Sanulo, vol. I V , c o l . 6 2 1 , cit. e m


P e r a g a l l o , Cenni intorno alia colonia italiana.
(2) A f o n s o de A l b u q u e r q u e , Cartas, t o m o I, 274.
PEDRO ALVARES CABRAL 1 iQ.

tores que t e m na índia» (i). Ê s t e L e o n a r d o a


quem o A l b u q u e r q u e se refere é L e o n a r d o
N a r d i , agente comercial de Marchioni na ín-
dia (2).
O b a n q u e i r o e m e r c a d o r a s s u m e agora a im-
portância n ã o só d u m tipo perfeito de h o m e m
de negócios, como dum inspirador e director
técnico na p a r t e comercial da e m p r e s a da ín-
dia. E bem o p o d e m o s desde já considerar uma
das mais curiosas personagens da nossa histó-
ria dos descobrimentos, digno de desempe-
n h a r p e r a n t e o comércio cosmopolita de Lisboa
a f u n ç ã o que lhe atribui G a s p a r C o r r e i a .
Identificado o Bartolo, v e j a m o s quem fosse
o H i e r o n i m o da carta de la F a i t a d a . O u t r o
n ã o p o d e ser que o J e r ó n i m o Sernige, a que se»
refere a carta de D. Manuel sôbre a exportação
do açúcar, acima referida. Além dessa conces-
são, mais s a b e m o s que ele usufruiu igualmente
da regalia excepcional de enviar navios à
Guiné (3). E r a Sernige gentilhomem florentino
de há m u n o estabelecido em L i s b o a . Q u a n d o
o G a m a regressa da índia, Sernige, entusias-

(1) O b r a c i t a d a , vol. í, 104.


(2) V e j a - s e a m e m ó r i a de P e r a g a l l o , Cen< 11 intorno alia
colonia italiana in Portugallo nei secoli xiv, xv e xvi,
2. a ed., 1 1 4 .
(3) Raccolta Colomb., parte III, v o l . II, 82.
I 10 EXPEDIÇÃO DE

mado, dá logo a nova para Florença, em carta,


já várias vezes publicada (i).
D a sua identificação c o m a o b r a nacional d o s
d e s c o b r i m e n t o s p o d e avaliar-se, s a b e n d o - s e q u e
e m i 5 i i D . M a n u e l lhe c o n c e d i a o titulo e pri-
vilégios de cidadão de L i s b o a , m o t i v a n d o a
concessão por forma mui particular: «Havendo
n ó s r e s p e c t o aos serviços que temos recebido e
ao deante esperamos receber de G e r o n y m o C e r -
n i c h e , F r o l e n t i m , m o r a d o r estante n e s t a n o s s a . . .
c i d a d e d e L i s b o a . . . t e m o s p o r b e m e o faze-
mos cidadão d a dita c i d a d e . . . e lhe seram
g u a r d a d o s seus privilégios, f r a n q u e s a s , h o n r a s ,
l i b e r d a d e s t a m e n t e i r a m e n t e , c o m o os ditos ci-
d a d ã o s e c o m as p r e m y n e n c i a s q u e eles t e e m e
devem t e e e r . . . e N o s p r a z que o dito G e r o -
n i m o C e r n i c h e entre n o s p e l o u r o s e r e g i m e n t o
d a c a m a r a d a dita c i d a d e pela p r o p r i a m a n e i r a
q u e c o s t u m a m fazer o s ditos c i d a d ã o s » , etc. (a).
Q u a n t o a o g e n o v ê s , a q u e se r e f e r e la F a i t -
t a d a , crê P e r a g a l l o q u e fosse A n t ó n i o S a l v a g o ,
d u m a importante família g e n o v e s a desse ape-
l i d o que e m L i s b o a exercia o c o m é r c i o d e s d e
l o n g a d a t a (3).

(,) Raccolta, parte III, vol. II, m3, Ramusio, vol. I,


foi. U 9 e s c g .
(2) V i t e r b o , A livraria real no reinado de D. Ma-

nuel, 72.
^3) O b r a c i t a d a , p á g . 104 e 148.
1 iQ.
PEDRO ALVARES CABRAL1IQ.

Pelas regaljas aos dois p r i m e i r o s concedidas,


percebe-se que haviam de p r e s t a r a D. Manuel
altos serviços. Peragallo crê até que a célebre
Bíblia dos Jerónimos tosse oferecida ao Rei
pelos dois ricos m e r c a d o r e s ( i ) , o que mais iaz
supor as boas relações entre os três existentes.
N ã o obstante, p o r muito valor que se atribua
aos serviços prestados p o r Bartolomeu Mar-
chioni a D. J o ã o II e a D. Manuel nos primei-
ros anos do seu reinado, n ã o deixa de parecer
estranho que um estrangeiro gosasse de tama-
nho favor da coroa, que lhe permita desde a
primeira expedição de carácter comercial enviar
por conta própria nau sòbre nau, a cada ar-
mada. E s t a continuidade na regalia faz-nos su-
por que existisse qualquer contracto entre o
rei e o rico florentino, apenas explicável por
altos serviços continuados a prestar ao monarca
pelos Marchioni.
S a b e m o s pela memória citada de Canestrini
que os Marchioni, além das suas relações com
as nações mediterrâneas, e r a m associados a ou-
tros ricos m e r c a d o r e s florentinos, os Fresco-
baldi e Gualterotti de B r u g e s e outros que mais
tarde haviam de espalhar os p r o d u t o s do Oriente
na F l a n d r e s e nas restantes nações do norte da
E u r o p a . Isso explica até certo ponto o favor

í i ) La Bíblia dos Jerónimos.


I 10
EXPEDIÇÃO DE

concedido pela c o r o a , que inteligentemente pro-


c u r a v a á sua espantosa e m p r e s a comercial to-
dos os meios de expansão. Ainda quando não
existissem p r o v a s dessa política, era inteira-
mente licito supò-la. Mas a m e s m a preciosa
carta do veneziano Pisani refere que o rei o
convidara a escrever a Senhoria de Veneza,
aconselhando-a a m a n d a r a Lisboa os seus na-
vios, a c a r r e g a r especiarias, pois lhes faria bons
recebimentos e se p o d e r i a m julgar em casa
sua ( i ) .
T o d a v i a , a continuada serie de atenções e
favores e a primazia, a B a r t o l o m e u concedidos,
não p o d e m , a n o s s o v e r , explicar se apenas pela
f u n ç ã o comercial de intermediário com os mer-
cados e u r o p e u s . J á nesse tempo pululavam
em L i s b o a , os m e r c a d o r e s estrangeiros, tantos
dos quais p o d e r i a m exercer essa f u n ç ã o ; e mui-
tos o u t r o s acorriam aos lucros da especiaria.
Q u e outros serviços, pois, p o d e r i a m p r e s t a r
os Marchioni ? A Relação de L i o n a r d o da C h á
M a s s e r auxilia a esclarecer este mistério. A o
dia seguinte da sua chegada a Lisboa, o agente
veneziano que nos vinha espionar, é p r e s o e
levado á presença de D. Manuel. E s t e , depois

(i) d . . . et d i s e m e d o v e s s e s c r i v e r a v o s t r a s c r e n i t a ,
lhe mandi d a me a v a m i le galie a levar specie de qui, a
de qual f a r i a b u u n a c i c r a , et p o r i a n o j u d i c a r esser in
caxa s u a . . . »
1 iQ.
PEDRO ALVARES CABRAL1IQ.

de l a r g a m e n t e o interrogar sobre os propósi-


tos que o levavam a P o r t u g a l , manda-o encer-
rar n u m a prisão, onde fica incomunicável. De-
pois de p o r três ou q u a t r o vezes ser novamente
interrogado, como ele se mantivesse nas pri-
meiras afirmações, m a n d a D. Manuel restitui-lo
a liberdade. Concluiu o veneziano que alguém
lhe fazia oposição e i n f o r m a r a o rei dos seus
propósitos. T r a t a logo de averiguar.
«Et io liberato che fui volsi diligentemente
mquerire et intendere quali fussino stati quelli
che mi fecero tale oposizione; et intesi da piu
persone degne di fede, li quali me dissero che
già un m e s e inanzi el m i o zonzer de li fu signi-
licato a S u a Altezza da Venezia da uno Benetto
T o n d o Eiorentino (nevodo de Bortolamio Fio-
rentino, el quale fa grandissime facende nella
cittá de Lisbona), che el veniva uno ad instan-
zia delia Signoria de Venezia, e del G r a n Sol-
dano, p e r veder et intender quelle cose de que!
waggio d'India nel suo regno, e che la Signo-
ria de Venezia m a n d a v a d u e nave carghe d'ar-
tellarie al G r a n S o l d a n o per devedere a Sua
Altezza il navegar loro.» ( i )
T e m o s assim que Bartolomeu florentino in-
formava o Rei por intermédio dum sobrinho

(i) O centenário do descobrimento da América, Rela-


ç ã o , 87.
i3o EXPEDIÇÃO DE

seu d ) , que em Veneza vigiava, n a o so da par-


tida dum agente secreto ao serviço da Senho-
ria e do Soldáo, m a s ainda dos auxílios que
. _ «-.rã ímnpdir o domínio
aquela presiava a c--.iv. --t -- _
português nos m a r e s da í n d i a . I n f o r m a ç õ e s de
factos tão graves, q u e em Veneza se deviam
ocultar o mais possível, dada a pohtica de
aparente amizade seguida com P o r t u g a l , nao
se p o d e m atribuir a m e r o acaso, m a s antes a
u m serviço adrede organizado. P o r m u , t o dihcil
que seja documentar u m facto desta n a t u r e z a ,
este passo da carta de C h á Masser n a o nos
parece de molde a deixar dúvidas. Q u e o rei
se servia de florentinos em casos mais ou me-
nos semelhantes, prova-o ainda u m o u t r o ta-
cto. Q u a n d o Américo Vespúcio volta da sua
segunda viagem depois de ter a p o r t a d o ao
norte da América do Sul, D. Manuel a quem
interessaria conhecer os resultados dessa e da
anterior viagem, manda-o cometer a Sevilha
p a r a que se passe ao seu serviço. C o m o A n u -
rico recuse, D. Manuel envia p a r a o convencer,
juliano, filho de B a r t o l o m e u del G i o c o n d o , que
então estava em L i s b o a e que emfim o conse-
gue trazer consigo. O p r ó p r i o Vespúcio n a r r a

Deve t r a t a r - s e d e B e n e d e l l o M o r e l l i M a r c h i o n i ,
(i) u e \ e u c o m é r c i o da
que v i v e u t a m b é m e m l . i s f t o a e e m i o

índia. Veja-se P e r a g a l l o .
PEDRO A L V A R E S CABRAL 1 IQ.

estas particularidades na terceira das suas car-


tas sôbre as navegações na América. Se êste
Juliano del Giocondo, pertencente a uma nobre
família florentina, estava em Lisboa de passa-
gem, como se depreende dos dizeres de Yes-
púcio, não será aventuroso presumir que mais
uma vez o riquíssimo banqueiro e armador
Bartolomeu Marchioni prestasse um serviço á
coròa portuguesa, espiando por intermédio de
associados ou serventuários as muitas novida-
des de Sevilha e conseguindo-lhe o interme-
diário eloquente, que trouxesse Vespúcio a Por-
tugal. Esta série de razões explicam inteira-
mente que D. Manuel associasse o estranho
mercador à empresa mercantil da índia. Basta
para isso reflectirmos em que o auxílio dos
mercadores estrangeiros havia de ser utilíssimo
aos vastos serviços de espionagem mantidos
pela coròa.
Elas convencem-nos até que Bartolomeu Mar-
chioni tinha real direito a ser associado. A tan-
tos títulos, verdadeiro representante do comér-
cio cosmopolita, êle auxiliava, nessa qualidade,
com elevada compreensão a empresa portu-
guesa dos descobrimentos.
Não sem profundas razões nos aparecem asso-
ciados nesta empresa um genovês e os florenti-
nos. Desde D. Denis que Génova colabora com-
nosco, sendo genoveses que nos organizam a
marinha nesse tempo. E em 1 3 1 7 que o rei
I 10
I10EXPEDIÇÃO DE

trovador investe o genovês Emmanuele P a s s a -


no, tronco dos Pessanhas, no cargo de almi-
rante da marinha nacional, com a obrigação de
ter sempre sob as suas ordens outros vinte ca-
pitães genoveses. L e m b r e m o s que a primeira
tentativa de chegar à índia pelo Atlântico, a
do genovês Ugolino Vivaldi, que partiu de G é -
nova com esse fim, sem que se tornasse mais
a saber dele, data de 1 2 9 1 ; e que já nessa época
em Lisboa existia uma familia genovesa com o
mesmo apelido, gosando de particular conside-
ração junto da corte. C r ê Peragallo que um e
outra ao mesmo tronco pertencessem (1).
Da leitura das crónicas conclui-se que até ao
tempo de D. A f o n s o V predominaram em Lis-
boa os genovezes dentre os demais italianos.
Mais que um navegador de Génova auxilia o
Infante nos descobrimentos e desde logo os ve-
mos exercendo a sua actividade nas ilhas re-
centemente descobertas, como os Doria e Lo-
mellino na Madeira, Casana nos Açores e
Antonio Noli, a quem foi concedida, em paga
de extremados serviços, o senhorio da Ilha de
S . T i a g o de C a b o Verde. E , se mais tarde en-
c o n t r a m o s uma percentagem maior de florenti-
nos participando e usufruindo da nossa empresa,
temos de buscar igualmente as razões desse

(1) Obra citada, p a g . 160, 170, 173 e seg.


PEDRO ALVARES CABRAL 139

facto em época anterior. Datam do reinado de


D. João I as relações estreitas entre Lisboa e
Florença. E m 1429 Luca degli Albizzi, capitão
das galeras florentinas do Occidente, vem a
Lisboa pedir ao Rei para os mercadores e na-
vios florentinos os mesmos privilégios a outros
italianos concedidos. Pedro Gonçahes, o ve-
dor da fazenda, visita o capitão da esquadra
florentina e assenta com èle a concessão, o que
a República agradece em carta nesse mesmo
ano (1). Já antes desta data nós importávamos,,
o trigo da Toscana, além dos seus estofos,
Mas desde então crescem muito as mútuas
relações.
O Infante D. Pedro depositava dinheiros em
Florença e existem documentos de créditos seus
sôbre o Monte comune e das longas negocia-
ções dos seus herdeiros para os rehaver (2).
A o que parece a dinastia de Avis tinha nessa
época ali por agente e banqueiro a Francisco
di Nicoló Cambini, em casa do qual falecia em
1439 o cardeal D. Jaime, filho de D. Pedro.
No tempo de D. Afonso V mais do que nunca
se estreitaram essas relações. Não só èle par-
ticipava à República as suas sucessivas conquis-
tas na Africa e esta sucessivamente o felicitava,

(1) C a n e s t r i n i , i d e m , e 00.
(2) Canestrini, idem.
I 1 0 EXPEDIÇÃO DE

como Lourenço, o Magnífico, emprestava so-


mas importantes ao mesmo Rei. Numa carta
a D. Afonso V , em 1456, a República de Flo-
rença confessa a sua gratidão pela inegualá-
vel hospitalidade concedida aos seus mercado-
res «...mercatores nostras, quorum vox et
sententia est et vulgata fama: nullis in mundi
partibus, hospitalius, benignius, carius recipi et
tractari quam in regno et quani a clemencia
Vestrae Majestatis...» Do Livro Vermelho de
t D Afonso V se depreende também que eram os

florentinos dos extrangeiros, que mais negocia-


vam e pululavam em Lisboa.
E m tempos de D. João II e D. Manuel a per-
centagem cresce. Fazendo a destrinça de todas
as famílias de origem italiana que habitavam
então aqui, segundo o citado livro de Peragallo,
concluímos que mais de metade eram de Flo-
rença. O mesmo escritor afirma: «Neila stona
delle esplorazioni commerciali in Índia aperte
alia attività europea dalle navigazioni porto-
ghese, nessun popolo spiegó tanta miz,ativa
avedutezza ed energia, quanto i Cittadini 1 piu
illustri di F i r e n z e . . . » <0 Contam-se, na ver-
dade, por dezenas as famílias de florentinos que
naquela época vivem e trabalham em Portugal.
Assim melhor se compreende que o sábio

(1) O b r a c i l a d a 149.
PEDRO ALVARES CABRAL 1 IQ.

florentino Toscanelli, em cartas a um cónego de


Lisboa propusesse novas rotas aos descobri-
mentos portugueses; que os Marchioni com ta-
manho zêlo nos servissem; e que os Vespúcio,
Empòli, Vinet, Buonagrazia, CorsaÜ, Strozzi,
Verdi e tantos outros dessa mesma nação via-
jassem a bordo das nossas naus. Mais que uma
aliança de estados, existiu entre as duas cidades
uma aliança de tendências, aptidões e esforço ci-
vilizador. A Florença, a cidade mais culta dessa
época e à qual a actividade bancária em toda a
Europa dava uma compreensão mais vasta do
comércio, estava naturalmente destinado auxi-
liar a empresa dos descobrimentos. De alguma
forma se havia de aliar a cidade que melhor
definiu o pensamento da Renascença àquela que
mais encarnou esse espirito em acção. N ã o é
por mero acaso que os nomes de Pedro Alva-
res Cabral c Bartolomeu Florentino aparecem
juntos na história. A nossa primeira expedição
comercial à índia representa o termo para que
convergem tantos esforços e acontecimentos na
aparência obscuros de Portugal e da Europa e
os três italianos a parte mais alta do comércio
europeu, atestando com a sua presença o altís-
simo interesse cosmopolita da empresa.
DUARTE PACHECO E AS ANTERIO-

RES VIAGENS AO CONTINENTE

AMERICANO

Dentre as pessoas, cuja participação na ar-


mada pode dalguma sorte esclarecer os seus
objectivos, falta-nos apenas referir a Duarte Pa-
checo. Propositadamente guardamos essa refe-
rência para o fim, pois a presença do grande
capitão navegador a bordo, sem que os cro-
nistas lhe refiram qualquer função, afigurando-
-se-nos de princípio singularmente misteriosa,
acaba não só por se tornar lógica mas necessá-
ria para a perfeita compreensão da viagem de
Cabral.
Ombreando em nobreza com alguns dos
capitães da armada, Duarte Pacheco excedia-os
a todos em sabedoria e ânimo. Pertencia à
mesma leal nobreza dos Cabrais, Mirandas de
Azevedo, Silvas, Pinas, que auxiliaram o Mes-
tre de Aviz, a firmar a independência portu-
guesa na grande crise nacional do século xiv.
144 KXL-EDIÇÁO DE

João de Barros, tão escrupuloso, como vi-


mos, no atribuir dos titulos heráldicos, ao enu-
merar os capitães da expedição dos Albuquer-
ques, que em i3o3 foi para a India, logo diz:
«Duarte Pacheco Pereira, filho de João Pache-
co», o que, já sabemos, na pena do cronista
palaciano, vale uma carta de nobreza.
De todos os capitães da armada, pôde em
,, nobrêsa emparelhar-se a Aires Gomes da Sil-
j g s a , pois ambos descendiam de troncos nobilis-
W símos e tinham na ascendência quebra de bas-
tardia. Seu terceiro avô, Diogo Lopes Pacheco,
um dos perseguidos de D. Pedro, o Crú, e
em Castela exilados, pelo assassínio de D. Inez
de Castro, regressa mais tarde a Portugal e
abraça o partido de D. João I. João Fernandes
Pacheco, seu filho, pertence á fila mais ardida
dos vencedores de Aljubarrota.
O a . ô de Duarte, Gonçalo Pacheco, era filho
bastardo do herói da Batalha Real; pertenceu
à casa do Infante D. Henrique; e foi tesoureiro
da casa de Ceuta, armador de navios e homem
ide grossa fasenda», conforme Barros elucida.
O filho dêste, J o ã o Pacheco, capitaneou, ao que
parece, uma armada, que andou no levante pe-
lejando com os turcos, e os mouros o mata-
ram em T a n g e r , ao recolher-se ali com os na-
vios (i).

(i) N o b i l i á r i o d eR a n g e l d e M a c e d o .
PEDRO ALVARES CABRAL1IQ.

Nasceu Duarte Pacheco em Lisboa, por mea-


dos do século xv, filho de navegante e neto de
armador, o qual durante largos anos conhe-
ceu, pois sabe-se que seu avô ainda existia em
1475 (1). Da leitura do Esmeraldo, de que é au-
tor, se depreende que era um dos capitães na-
vegadores de maior experiência marinheira e
confiança do monarca. Logo no prologo de seu
iiv
ro escreve: « . . .e por não alarguar mais na
matéria, deixo de dizer as particularidades de
muitas cousas que éste glorioso príncipe mandou
descobrir por mim e por outros seus capitães
em muitos luguares e rios da costa da Gui-
nee...»(2). E mais adiante, referindo-se às cos-
tas da Africa Ocidental, acrescenta: «porque de
todolos rios desta regiam da Ethiopia, os quais,
por muitos anos cada dia praticamos. •(3).
João de Barros, ao narrar a viagem de Barto-
lomeu Dias, no regresso do descobrimento do
Cabo da Boa Esperança, conta que èle aportara
à ilha do Principe «onde acharão Duarte Pa-
checo cavaleiro da casa dei Rey mui doente.
O qual por não estar em disposição pera per
si ir descobrir os rios da costa a q o el Rey
mandava, inviou o navio a fazer algum resgate:

(1) Esmeraldo, edição Rafael Basto, documento III.


(1) E d i ç ã o E p i f â n i o , p a g . i 5 .
( 3 ) I d e m , p a g . 28.
I 10 EXPEDIÇÃO DE

onde se perdeo salvandose parte da gente, que


com elle se veo em estes navios de Bartholomeu
Diaz.» (1).
Destes passos e maiormente dos conhecimen-
tos que revela no seu livro, se infere que êle era
um dos mais sábios navegadores e cosmógrafos
do seu tempo; êsses são também os títulos que
explicam a sua intervenção nas negociações do
tratado de Tordesilhas. Que D. Manuel conti-
nua a depositar nêle a mesma confiança que o
seu antecessor, prova-o a incumbência, que se-
gundo o Esmeraldo, o rei lhe fez em 1408 de ir
descobrir a quarta parte. Tendo seguido para a
índia em i5o3 capitaneando uma das naus, que
iam sob o comando de Afonso de Albuquer-
que, lá permanece até i5o5, praticando na de-
fesa de Cochim contra o Samorim de Calecut,
tais prodígios de esforço e de bravura, que na
história ficou como um dos melhores modelos
da valentia lusitana. Durante esse tempo, na
sua qualidade de capitão-mór dos mares da ín-
dia é o primeiro que no Oriente firma o pode-
rio português. Com a fortaleza de Cochim êle
assenta, na verdade, as bases do nosso império
oriental.
Da confiança que D. Manuel continuou a dis-
pensar a Duarte Pacheco, são indícios o comando
de alguns navios que em i5o(j lhe entrega para

( 1 ) Década I, l i v r o 1 1 1 , cap. I V .
PEDRO ALVARES CABRAL 1 iQ.

castigar o corsário Mondragon, a quem aprisio-


riou junto do Cabo Finisterra, destroçando-o e
trazendo consigo as embarcações, que do com-
bate se salvaram. E m 1 novamente comanda
uma armada que vai socorrer Tanger, cercada
pelo rei de Fez (1). Mais eloqüente, para evi-
denciar quanto D. Manuel reconhecia os seus
merecimentos, é o encargo que lhe dá de des-
crever toda a costa de África e de Ásia nave-
gada pelos portugueses, conforme o próprio
Pacheco diz no prólogo do seu livro: «e por-
que vossa altesa me dise que se queria nisto
fiar de mim, portanto preparei fazer hum li-
vro de cosmografia e marinharia...» (2)
Assim, conjugando aptidões ás mais diversas,
todas, por certo, àquela data já provadas, Duarte
Pacheco surge-nos como uma das mais belas e ,
altas figuras da Renascença portuguesa. Diplo-
mata, entra nas negociações do tratado mais
transcendente da sua época; guerreiro, comanda
as mais épicas façanhas da história da conquista
do Oriente; navegador, pertence à pleiade ilus-
tre dos melhores capitães dos descobrimentos;
e cosmógrafo, deixa, inacabado, um dos grandes
monumentos da sciência do seu tempo. Fixe-
mos, todavia, de entre as suas aptidões aquela

(1) S o u s a V i t e r b o , Trabalhos Náuticos, vol. I, pag. 2 3 y


e seg.
(2) Esmeraldo, e d i ç ã o E p i f â n i o , p a g . 17.
I 10 EXPEDIÇÃO DE

que melhor define a sua personalidade. Em


Duarte Pacheco as afirmações do valor guer-
reiro, se documentam a sua maravilhosa força
de ânimo, são em grande parte obra de ocasião.
F^üra diplomata tinha dcccrto a rccomcndá-lo
mais que outros méritos os seus conhecimentos
scientificos. E ainda como navegante permanece
o homem de sciência, que estuda e cria, experi-
mentando. Com efeito o seu trabalho Esmeraldo
de situ orbis supõe uma vida inteira de estudo
e experiência scientifica. A par duma notável
cultura geral, essa obra revela profundos conhe-
cimentos da sciência cosmográfica e da marinha-
ria do seu tempo, de que êle se afirma um dos
melhores continuadores. Duarte Pachleco ficará,
pois, mau grado as suas bélicas façanhas, na
história da civilização como cosmógrafo e nave-
gante. Estes são também os títulos que o ex-
tremam e caracterísam verdadeiramente. Po-
dendo em muitos passos do Esmeraldo refe-
rir feitos seus, quási sempre os cala. E m certa
altura salta-lhe mesmo da pena uma sentença
moral sôbre a vaidade, digna do Eclesiastes:
« . . .assim que os antipodes habitam húa parte c
nós a outra, e nesta em que habitamos, nenhum
he contente de todo o bem que possuy, e emíim
oyto pees de terra nos habastam e aly se acaba
de consomir a vaydade de nossas cuidaçõis» (t).

( i ) Esmeraldo de silu orbis, ediçáo citada, pag. ai.


PKDRO ALVARES CABRAL 149

Todavia, o homem, de cujo rígido carácter se


podiam multiplicar as provas, ao falar dos obje-
ctivos do seu trabalho, escreve com a consciência
do seu valor e o puro desinteresse, que caracte-
riza o verdadeiro espírito scientífico: « . . . e por
quanto o lume do descobrimento da redondeza
do mundo principalmente está na mesma mari-
nharia e nas rotas e caminhos da costa e golfam
do mar, portanto convém que aquillo que pelos
antiguos escritores e assy pellos modernos ficou
por dizer, pera sabedoria e comprimento desta
navegaçam das Ethiopias de Guinee e das ín-
dias e outras partes, nós o diguamos e descreva-
mos; porque perdendo-se em algum tempo a dita
navegaçam, pello que aqui he escrito, brevemente
se possa tornar a saber e a r e f o r m a r . . . » (i). ;
O mesmo homem que afirma a vanidade das
cuidaçóes humanas, levanta ao mais alto grau
o interesse da obra de sciência, que procura
servir a humanidade. Torna-se indispensável
para avaliar a figura de Duarte Pacheco colò-
cá-lo dentro desta atmosfera, de que êle próprio
se rodeia. A história, dando corpo a um erro
de visão, cognominou-o de Achilles lusitano;
mas êle no conhecimento melhor do seu va-
lor, atribui-se aí um lugar menos pomposo,
mas mais sólido.

(i) O b r a e e d i ç ã o citada, pag. 48.


I 10
I10EXPEDIÇÃO DE

Posto isto, façamos algumas rápidas con-


siderações sobre o célebre passo donde se
conclui a sua viagem a América em .1498.
Para confirmar a sua asserção de que a terra
Tem inrlu^P n,1 cu-t r n n f m r íl^u^arul vn r. V^CIIUU
v. — luud

a massa planetária das águas, Pacheco assim


reza: «K alem do que dito lie, ha experien-
ce, que he madre das cousas, nos desengana
e de toda duvida nos tira; e por tanto, bem-
aventurado Principe, temos sabido e visto como
no terceiro anno de vosso reinado do hanno de
nosso senhor de mil quatrocentos e noventa e
oito, donde nos vossa altera mandou descobrir ha
parte oucidental, passando alem ha grande\a
do mar oceano, onde he hachada e navegada
húa tam grande terra firme, com muitas e gran-
des ilhas adjacentes a ella, que se estende...»(r).

(1) E i s o trecho c o m p l e t o d o Esmeraldo •


«. • . e c o m o quer que a m a i s b a i x a parte d a terra lie
ho seu c e n t r o e ho meu d e l i a , sobre ho qual as a u g u o a s
estam fundadas, por tanto disse o p r o f e t a D a v i d no
s a l m o trinta e d o u s . que c o m e ç a Exultate.jusli: «Ajun-
tou asy c o m o em o d r e as a u g u o a s d o m a r ; poz os te-
s o u r o s em ho a v i s o » ; e c o m o a s i m s e j a que ho h a v i s o
d a terra he ho seu c e n t r o e os t e s o u r o s das auguoas
s a m postos no m e s m o luguar, que he ho seu p r ó p r i o
a s e n t o , s e g u e - s e que a terra tem a u g u o a dentro e m sy e
h o m a r nam c e r c a ha terra, c o m o H o m e r o e o u t r o s au-
tores d i s e r a m . m a s antes a terra p o r sua grandeza tem
c e r c a d a s e i n c l u s a s t o d a l a s a u g u o a s d e n t r o na s u a c o m -
PEDRO ALVARES CABRAL 1 IQ.

Epifânio, na Introdução à sua edição do Esme-


raldo, afirmou: « . . .a redacção de Duarte Pa-

. ...I.™
LUVlUllUt 1C - nUH.1II
l n m Hn
ux flllA H ! til
v hp
"vj h s PYV>P-
1-
riencia, que he m a d r e d a s c o u s a s , nos d e s e n g a n a e de
i o d a d u u i d a nos t i r a ; e p o r tanto, b e m a u e n t u r a d o P r i n -
cipe, temos s a b i d o e visto c o m o no terceiro anno de
v o s s o R e i n a d o d o hanno de nosso senhor de mil q u a t r o -
c e n t o s è n o v e n t a e oito, d o n d e nos v o s s a alteza m a n d o u
d e s c o b r i r a parte oucidental, p a s s a n d o a l e m ha g r a n d e z a
do m a r o c e a n o , onde he h a c h a d a a n a v e g a d a hüa t a m
g r a n d e t e r r a firme, c o m m u i t a s e g r a n d e s ilhas a j a c e n -
tes a e l l a , que se estende a setente g r a a o s de ladeza d a
linha e q u i n o ç i a l c o n t r a ho p o l l o á r t i c o e posto que s e j a
asaz f ó r a , he g r a n d e m e n t e p o u o r a d a , e do m e s m o c i r -
culo equinocial torna o u t r a vez e v a y alem em vinte e
o i t o g r a a o s e m e o de l a d e z a c o n t r a ho polio a n t a r t i c o ,
e tanto se d i l a t a sua g r a n d e z a e c o r r e c o m m u i t a l o n -
g u r a , que de h ú a parte nem da o u t r a nam f o y v i s t o
nem s a b i d o ho fim e cabo d e l i a ; pello qual segundo ha
h o r d e m que l e u a , he c e r t o que v a y e m - c e r c o y t o por
toda a Redondeza; asim que t e m o s s a b i d o que das.
p r a y a s e c o s t a d o m a r d ' e s t e s R e y n o s de P o r t u g a l e d o
p r o m o n t o r i o de F i n i s - T e r r a e de q u a l q u e r outro l u g a r
da E u r o p a e d ' A f r i c a e d ' A s i a h a t r a v e s a n d o alem t o d o
ho o c e a n o d i r e i t a m e n t e ha o u c i d e n t e , ou ha loest se-
gundo h o r d e m de m a r i n h a r i a , p o r trinta e seis g r a a o s
de l o n g u r a , que s e r a m seiscentas e quarenta e o y t o lé-
g u a s de c a m i n h o , c o n t a n d o ha d e z o y t o léguas p o r g r a a o ,
e ha l u g u a r e s a l g u m tanto m a i s l o n j e , he h a c h a d a e s t a
terra nauegtiada pellos nauios de vossa alteza e.
por vosso m a n d a d o e l i ç e n ç a , os dos v o s s o s v a s s a l o s e
n a t u r a e s , e h i n d o p o r e s t a c o s t a s o b r e d i t a , d o mesmo-
c i r c o l o e q u i n o c i a l em d i a n t e , per vinte e o y t o g r a a o s d e
I 10 EXPEDIÇÃO DE

checo está longe de ser um primor» (i). Esta


passagem, salvo a hipótese, dalgum êrro de có-
pia, claramente o demonstra. E s s a mesma in-

l a d e z a c o n t r a o p o l i o a n t a r t i c o h eh a c h a d o n c l l a munto
e fino brasil c o m outras muitas cousas d eque o s nauios
nestes Reynos v e m grandemente carregados; e primeiro
muitos annos que esta fose sabida nem descuberta, disse
Vicente istorial n oseu primeiro livro que se c h a m a Es-
pelho das historias n ocapitolo cento e satenta e sete :
«Alem das tres partes d oorbe h aquarta parte h e a l e m
do mar oceano interior e m h om e o dia e m cujos termos
os antipodes dizem que abitam»; ora como asim seja
que esta terra d'aleem h e tam grande e d'esta parte
d'aquem temos Europa, Africa e Asia, manifesto h e que
ho mar oceano lie m e t i d o n om e o d ' e s t a s d u a s t e r r a s e
fica medio-terrano; pello qual podemos dizer que h o
mar oceano nam cerca h a terra c o m o o s philosophos
diseram, mas antes a terra deue cercar o mar, pois jaz
dentro n a sua comcavidade e centro; pello qual com-
crudo que o mar oceano nam h e outra cousa senam
húa muito grande halagúoa metida dentro na comcaui-
dade d a terra, e h am e s m a terra e h omar. a m b o s jun-
t a m e n t e , f a z e m h ú a R e d o n d e z a , d ec u j o m e o s a e m mui-
tos braços q u e entram pella terra, que medios-terranos
sam chamados, e que isto c r e a m o s por verdade.» Pag.'
23 e

K curioso notar que Duarte Pacheco, invocando o


valor d a experiência, s e d e c i d e n ovelho pleito entre a
escola homérica e ade Hiparco pela opinião deste úl-
timo. Afinal, s óquando Cook terminou a experiência,
após a s suas largas exploraçõis pelo Pacifico, s e viu
definitivamente que a razão estava c o m Homero.
(i) O b r a e edição citada, pag. 12.
PEDRO ALVARES CABRAL 1 iQ.

congruência de redacção permitiu que logo de


princípio se lhe não desse a importância mere-
cida. Não obstante, se a incorrecção gramatical
pôde deixar dúvidas quanto ao pensamento do
C S C i i l U i } ^IV. UVjJl VWHWV
e- logicamente
O
das outras afirmações implícitas em cada frase,
e que nós de propósito sublinhamos. O leitor
não tem apenas de ler, deve construir com o
pensamento. Quando êle nos refere a ordem para
descobrir a parte ocidental, que o rei lhe deu
(donde nos vossa alte\a mandou descobrir ha
parte oucidental) já falara duma experiência
desenganadora e dum facto sabido e visto em
conseqüência dessa viagem ( . . . « / i a experien-
ce . . . nos desengana--, e portanto... temos
sabido e visto como (isto é, que) no terceiro
a n n o . . . » ) . Estas consideraçõis de Duarte P a -
checo fazem daquela ordem um facto executado
•e constituem uma afirmativa irrecusável de rea-
lização.
Cremos nós que se poderia dar a este trecho,
para a sua melhor compreensão, a seguinte
paráfrase sintática: - Além disso a experiência,
que é a mãe da verdade, nos desengana e de
toda a dúvida nos tira. Assim, bem aventurado
príncipe, nós o que vimos afirmamos, pois que
no terceiro ano do vosso reinado, em mil qua-
trocentos e noventa e oito, vossa alteza nos
mandou descobrir a parte ocidental, passando
além a grandeza do Oceano. A í é achada e
I10EXPEDIÇÃO DE

navegada uma imensa terra firme com mui-


tas e grandes ilhas adjacentes a ela, que se
estende...
Demais pode a Duarte Pacheco faltar a lógica
etntntrVo ,— U — 1L - 1'
.-"jLua-nic a lógica moral, eixo
do seu carácter inteiriço. Homem do mais puro
heroísmo, com um desprêso da morte que lhe
da a força para realizar as insuperáveis faça-
nhas do Oriente; dum espírito de justiça que
o leva a reclamar do Rei com áspera nobreza
o pagamento dos serviços aos seus compa-
nheiros de Cochim, e a falar com extenso lou-
vor dos feitos de Dom Vasco da Gama e, acres-
centando, ao menos, a cada descobrimento o
nome do descobridor; mas duma modéstia
que o obriga a calar outras referências pes-
soais em lugar onde eram claramente azadas,
Duarte Pacheco nunca teria omitido o nome de
Pedro Alvares, ao pé do seu, se legitimamente
lhe coubessem as glórias do descobrimento.
Mas ao cosmógrafo e ao navegante, que tanta
vez na sua obra louva Menelau, Anno Carta-
ginense e Eudoxo, os primeiros que, segundo
os antigos realizaram o périplo africano, «de
que os autores ha trás fazem grande festa e
mençam» (i), q u e não pode ter ilusões sôbre o
mérito dos seus cometimentos, antes sabe

(i) O b r a e e d i ç ã o c i t a d a , pag. 17.


PEDRO A L V A R E S CABRAL 1 IQ. io5

quanto mais tarde se hão de celebrar os nomes


dos que realizaram navegações longas e arris-
cadas, pesa que de futuro uma razão de Estado
possa prevalecer às da justiça e da verdade.
Mais que o amor propno, movc-o a nobreza
de carácter. Mais que um espírito glorioso de
si mesmo, um nobre espírito scientifico, em
tudo cuidoso da verdade, lhe desata a pena
sóbria.
Aqui, pois, a verdade histórica não resalta
duma única frase, mas conclue-se logicamente
de toda a vida e obra do escritor.
Estas razões, para nós concludentes, levam-
-nos a estabelecer como facto assente a viagem
de Duarte Pacheco à América, em 1498. Qual
a região da «quarta parte» que o navegante
visitou ? Conforme cremos, a sua mesma obra
contém resposta para esta pregunta. Pacheco
fez do capítulo 7. 0 do primeiro livro do Esme-
raldo uma táboa em que aponta os graus de
lade{a, em relação aos pólos ártico e antártico,
de vários lugares da Europa, Asia e Africa.
Termina referindo, numa relação aparte, os
graus de ladeia de 18 ilhas, cabos, angras, rios
e portos «da terra do Brasil d'aleem do mar
Oceano» entre 3 e 28 graus, contra o pólo an-
tártico. Por certo que se o cosmógrafo tivesse
visitado outros pontos da América, não deixaria
de apontar-lhes nesse longo capítulo os graus de
ladeia respectivos, concluindo, assim, que a
I 10 EXPEDIÇÃO DE

sua viagem de 1498 foi de descobrimento ou


talvez mais propriamente de reconhecimento ao
mesmo Brasil.
Mas, dir-se-ha, £ como se compreende que
Duarte Pacheco realizasse uma viagem ao con-
tinente americano, sem que os cronistas men-
cionem um facto de tão grande alcance? O
mesmo silêncio guardado em relação a outras
expedições imediatamente anteriores ou poste-
riores tira a essa objecção todo o valor. Sa-
bemos hoje que uma politica de sigilo seve-
ríssimo acautelava os interêsses nacionais das
vastas cubiças dos estranhos. E é devido aos
secretos informes que ovs italianos de Lisboa
transmitiam para as suas metrópoles que hoje
podemos pouco a pouco reconstituir uma par-
te da nossa obra, desconhecida e imensa.
Assim é que os arquivos estrangeiros tem
nos últimos anos revelado uma série de do-
cumentos, que dão aos nossos descobrimentos
uma amplitude de plano e realização, que as-
sombra pelo arrojo e persistência, mas que os
nossos cronistas inteiramente calaram ou des-
conheceram. O s materiais para a história dos
descobrimentos portugueses são actualmente
tantos e tais, que é necessário reescrevê-la por
inteiro. A glória de Colombo empalidece dia a
dia. E os mesmos estrangeiros, que tantas ve-
zes têem depreciado a obra das navegações
portuguesas, nos começam a fazer justiça. J á
PEDRO A L V A R E S C A B R A L 1 IQ.

Vignhaud, o historiador americano, aceita a prio-


ridade do descobrimento do Brasil por Duarte
Pacheco e até a possibilidade de ter sido desco-
berto em data anterior por outros navegantes
«,%ftimiiacoc T n H a v ia não só Vipnhaud se refere
JJ*Jt l U ^ U » - O V . v » - 0

a êste problema por forma assás sumária, como


termina por uma conclusão inaceitável. Porque
as suas palavras estão intimamente ligadas ao
nosso estudo, não podemos deixar de lhe fa-
zer uma referência demorada. «U va de soi,
diz Vignhaud, qu'il ne s'agit ici que de la décou-
verte du Bresil par les Espagnols, car les Por-
tugais revendiquent, non sans quelque raison,
la priorité de cette découverte. Des documents
anciens, tels que des concessions royales de
terres nouvelles découvertes ou á découvrir dans
la mer Océane, des temoignages respectables
comme ce de Fructuoso et de Duarte Pacheco,
des cartes de la premiere partie du xv e siècle,
comme celles de Becharia et de Bianco, des le-
gendes tres répandues et des indications de dif-
ferents genres autorisent 1'assertion, la supposi-
tion, si l'on veut,qu'avantles expeditions connues
de Vespuce, de Pinzon, de Lepe et même de
i Cabral, quelque-uns de ces hardis et aventureux
j Portugais qui navigaient alors en grand nom-
i bre, de Lisbonne aux iles du Cap Vert et à la
\ Guinée, avaient abordé, par hasard ou en cher-
chant fortune, à la côte brésilienne qui est si
rapprochée ác celle de l'Afrique Occidental.
1
E X P E D I Ç Ã O DE

C e n'est p a s ici le lieu de discuter la valeur des
p r e u v e s ou indications ainsi f o u r n i e s et des
consequences qu'on en peut légitemement dé-
duire. U n erudit p o r t u g a i s les a toutes réunies
:ivpc tnin (Jt Iflc J - . .
— ^ „ v.unuiit]iicc5 j u u i u c u s e m e n i .
N o u s r e n v o y o n s à ce petit, m a i s substantiel ou-
v r a g e p o u r un expose complet de la question.»
E m nota, V i g n h a u d declara o n o m e da o b r a :
A Descoberta do Brasil, p o r F a u s t i n o da Fon-
seca, s o b r e a qual pronuncia o seguinte juizo:
« O u v r a g e substantiel qui d a n s un c a d r e restreint
contient un n o m b r e considerable de faits bien
controles, la p l u p a r t peu connus.» ( i ) A seguir,
o h i s t o r i a d o r a m e r i c a n o afirma «En ce qui con-
cerne C a b r a l , disons toutefois, qu'il ne saurait y
avoir aucun doute sur le fait qu'il n'est pa\ le
premier décoiwreur portugais du Brésil.» Ba-
v

(i) V i g n a u d f a z u m a pequena r e s t r i ç ã o nos l o u v o r e s


à obra de F a u s t i n o da F o n s e c a , a de não ter c o n h e c i d o
os t r a b a l h o s em línguas e s t r a n g e i r a s referentes aos as-
suntos que t r a t a v a . P o d e - s e i g u a l m e n t e dizer de Vi-
gnhaud que tem u m c o n h e c i m e n t o m u i t o p r e c á r i o da
documentação p o r t u g u e s a sóbre as m e s m a s questões.
N ã o obstante termos p o r um p o u c o e x a g e r a d o o seu
juízo sóbre F a u s t i n o , e d e m a s i a d a m e n t e l i g e i r a a f o r m a
porque t r a t a o p r o b l e m a , f o l g a m o s de v è r que se c o m e ç a
a prestar justiça a o h o m e m , que, m a u g r a d o a f a c i l i -
d a d e de c e r t a s a f i r m a ç õ e s , tanto abriu o c a m i n h o a
àqueles que t i v e r e m de tratar d e f i n i t i v a m e n t e de his-
t ó r i a do d e s c o b r i m e n t o d a A m é r i c a .
PEDRO ALVARES CABRAL 159
%
seia-se Yignaud p a r a fazer esta alirmaçâò em
dois t e s t e m u n h o s a que c h a m a «irrecusáveis»,
— o Esmeraldo de Duarte P a c h e c o e a carta
de m e s t r e J o ã o , físico.
in'/, t •) & nu pntantn , —
» 11 aauLii ciiin-iiiv. Lwiiwju "n
conclusão que t i r a : «Mais cette priorité n'a
aucune i m p o r t a n c e . Une decouverte n'est effe-
ctive, que losqu'elle a une suite. Q u ' i m p o r t e
que P a c h e c o et d'autres aient vu le Bresil les
p r e m i e r s , si personne ne l'a su, si on n'a pas
p r i s acte ? Q u i peut dire combien de fois les
Antilles ont eté vues, avant la g r a n d e entre-
prise de C o l o m b , p a r des pilotes égarés jou
aventureux dont les n o m s sont restés incônnus ?
L a decouverte "en pareil cas, est c o m m e si elle
n'avait p a s eu lieu; celle de C a b r a l étant la
seule qui ait été constatée p a r des documents
authentiques, la seule dont le P o r t u g a l ait repris
acte et qu'il ait notifiée au m o n d e , est la seule
qui c o m p t e . R e m a r q u o n s aussi que Cabral est
le seul qui donne um n o m á la region à laquelle
il avait a b o r d e . » A ( i ) Se Vignhaud soubesse que
os d e s c o b r i m e n t o s portugueses se fizeram se-
g u n d o u m vasto plano nacional, e n ã o pela sim-
ples aventura ou com o fito exclusivo de pro-
c u r a r f o r t u n a , como supõe, o u t r a s , porventura,

(i) A s c i t á ç õ e s q u e f a z e m o s d eV i g n h a u d referem-se
t o d a s à s u a o b r a Americ Vespuce, d e p a g . 14'J a 1 4 5 .
l6o KXPEDIÇÁO DE

seriam as s u a s conclusões. Demais o sigilo


s o b r e as v i a g e n s a n t e r i o r e s v i s a v a e x a c t a m e n t e
a seqüência e a p o s s e . A o c o n t r á r i o de Vi-
g n h a u d , s u p o m o s que a v i a g e m de C a b r a l só
por si p o u c o p r o v a e a n t e s d e v e s e r , p a r a sua
c o m p r e e n s ã o t o t a l , i n c o r p o r a d a n o g r a n d e pla-
n o , d e que as v i a g e n s a n t e r i o r e s f a z e m logica-
m e n t e parte. A nosso vêr ainda, o que dentro
d a h i s t ó r i a e d a sciéncia d e t e r m i n a a p r i o r i d a d e
dum d e s c o b r i m e n t o é, n ã o a p o s s e que êle re-
p r e s e n t a , c i r c u n s t a n c i a e s s a de o r d e m p o l í t i c a ,
mas o carácter scientítico que a êle p r e s i d e .
A competência do descobridor, a intenciona-
lidade, o conhecimento d e c a u s a e os p r e c e -
d e n t e s d e p l a n o e de o r g a n i z a ç ã o , e i s os d a d o s
q u e , e m n o s s a o p i n i ã o , p o d e m definir u m desco-
b r i m e n t o c o m o u m verdadeiro facto histórico
e scientífico. S ã o e s s a s p r e c i s a m e n t e as circuns-
tâncias que hoje dão a e m p r e s a nacional dos
p o r t u g u e s e s u m tão elevado alcance na história
do descobrimento do p l a n e t a . Se assim não
f o s s e , e a p e n a s o acto de p o s s e v a l i d a s s e u m
descobrimento, teríamos de riscar do n ú m e r o
dos descobridores homens como Cook, Nor-
d e n s k j õ l d , N a n s e n e t a n t o s o u t r o s , c u j a s em-
presas" t i v e r a m u m c a r á c t e r p u r a m e n t e scientí-
fico. Equivalia a n e g a r q u á s i t o d a a série de
v i a g e n s e e x p l o r a ç õ e s r e a l i z a d a s d e s d e a se-
g u n d a m e t a d e do século x v i n até aos n o s s o s
dias.
PEDRO ALVARES CABRAL I77

N o t e m o s ainda que, sob esse ponto de vista,


D u a r t e Pacheco é u m verdadeiro precursor.
M a r c a p a r a a sua época a mais lata concepção
scientifica dos descobrimentos. Definindo o ca-
• . 1 _ .. .o^rt^c c* ^«tnrlnQ CTPO-
racier IlUIIiano uaa navv-guy-"--" >- — — -
gráficos, e participando dêsse espírito, anteci-
pou-se mais de dois séculos ao seu tempo.
A o contrário de Vignhaud, o dinamarquês
S o p h u s Larsen, n u m a obra recente, Dinamarca
e Portugal no século X1julga poder fixar em
época muito anterior as primeiras conscientes
tentativas portuguesas na direcção ocidental.
T o d o o trabalho do ilustre escritor gira em
volta d u m a carta de G a r t e n Grip, burgomestre
de Kiel, datada de 3 de M a r ç o de i55i e diri-
gida ao Rei Cristiano III. Nessa carta Carten
G r i p refere-se a u m a viagem, realizada pelos
escandinavos Pining e P o r t h o r s t , p a r a o que
«foram providos de alguns navios pelo augusto
A v ô de Vossa M a j e s t a d e Real, o Rei Christiano
P r i m e i r o , para, a convite de Sua Magestade
Real, o Rei de Portugal, procurarem novas
terras e ilhas nos mares do Norte.» (i) S o p h u s
L a r s e n , depois de reünir e comentar uma nu-
m e r o s a documentação, que confirma ou escla-

( i ) F o i publicada p e l a p r i m e i r a vez pelo Dr. L o u i s


B o b é , em 1909, no Danske Magnin 5 R. Tomo 6,
p á g . 3o3. No tempo de C r i s t i a n o I reinava em P o r t u g a l
D. Afonso V.
'74
2<)6 EXPEDIÇÃO DE

rece este facto, conclui que essa expedição se


fez com o fim de atingir a índia pela p a s s a g e m
do noroeste; que os navegadores, tendo partido
dos fiords da Islândia, visitaram as costas oci-
dentais da G r o e n i a n d i a (e, p o r conseqüência, o
estreito de Davis), a T e r r a N o v a e a foz do
S. L o u r e n ç o ; que a b o r d o iam certamente por-
t u g u e s e s ; e que estes deviam ser J o ã o Vaz
C ò r t e Real e Alvaro Martins H o m e m , circuns-
tância esta que o auxilia a concluir que a via-
gem se realizou em 1472 ou 1473.
Manifesta ainda o ilustre escritor a opinião
de que esse plano foi concebido pelo Infante
D. Henrique e que este p r o c u r o u relações com
a còrte de D i n a m a r c a e N o r u e g a , que u m ou-
tro documento prova existirem já de facto n o
tempo de D. A f o n s o V, época em que se rea-
liza a expedição. S e m q u e r e r m o s aqui entrar
no exame da o b r a de L a r s e n , que vem confir-
mar a autenticidade de outros documentos e in-
dícios e abalar as afirmações de H a r r i s s e q u a n t o
á provável viagem de J o ã o Vaz C o r t e Real à
T e r r a N o v a , diremos que o seu t r a b a l h o m o s t r a
suficientemente que, antes de C o l o m b o , nós
conhecíamos o continente americano, e talvez
sem a ilusão do genovês de que se tratava do
extremo oriental da Asia.
Q u e a D. H e n r i q u e preocupasse o pensa-
mento de descobrir um continente naquela di-
recção, confirma-o Diogo G o m e s , seu con-
PEDRO ALVARES CABRAL 1 IQ.

t e m p o r â n e o e criado q u a n d o afirma na sua


Relação que o grande Infante, no desejo de co-
nhecer os limites do O c e a n o ocidental, m a n d a r a
caravelas a descobrir ilhas e terra firme, itisu-
tas
- - -
an terram firmam, '
além
-
da descricão
>
de
P t o l o m e u ( i j . Além disso os m o n u m e n t o s car-
tográficos da época como o m a p a de Becharia e
os dois de Bianco deixam supor o conhecimento
de ilhas ao ocidente e até da terra firme ameri-
cana, ainda que na suposição bem natural de
que se tratava de t e r r a s insulares. Ao visitar,
em 1472 ou 73, a foz do S. L o u r e n ç o , como crê
L a r s e n , os portugueses teriam aí colhido os
primeiros indícios duma região continental.
Vinte anos antes de C o l o m b o , pois, já os por-
tugueses deviam conhecer mais que as Antilhas
a terra continental da América.
E m 1488 d o b r a Bartolomeu Dias o C a b o da
Boa E s p e r a n ç a , e só nove anos depois desse
extraordinário acontecimento e mais de quatro
após a chegada de C o l o m b o , de regresso da
primeira viagem, Vasco da G a m a parte p a r a o

(1) « E m tempo o Infante D. H e n r i q u e , d ã s e j a n d o c o -


nheçer as regióis a f a s t a d a s do oceano o c i d e n t a l , se
a c a s o haveria ilhas ou terra firme alem da d e s c r i ç ã o de
P t o l o m e m , enviou c a r a v e l a s p a r a p r o c u r a r terras.» As
relaçõis do descobrimento da Guiné e das ilhas dos Aço-
res, Madeira e Cabo Verde, v e r s ã o do latim por G a b r i e l
P e r e i r a , pag. 28.
2<)6
EXPEDIÇÃO DE

definitivo d e s c o b r i m e n t o d o caminho m a r í t i m o
p a r a a í n d i a . N ã o referem os cronistas durante
esse longo intervalo façanha descobridora nossa
digna de mencionar-se. T o d a v i a é em 1494
que se assina o tratado de T o r d e s i l h a s entre os
Reis Católicos e D. J o ã o II, tão longamente
disputado, e pelo qual finalmente nós consegui-
m o s u m a d e m a r c a ç ã o que abrange na nossa
esfera os vastos territórios do Brasil.
É , p o r v e n t u r a , crivei que o activíssimo mo-
narca por tão largo período suspendesse as
explorações n a v e g a d o r a s ? K que êle sistemati-
camente se obstinasse em alcançar a índia, con-
t o r n a n d o a Africa e recusando assim os planos
de Toscanelli, de C o l o m b o e Monetário, que
lhe aconselhavam a rota do Ocidente, e ao
m e s m o t e m p o com t a m a n h o ardor tivesse
porfiado em obter contra a primeira demar-
cação u m a outra que abrangesse aquela parte
austral do continente americano, sem o seu
conhecimento prévio? O s mesmos Reis Ca-
tolicos escreviam a C o l o m b o , durante as ar-
duas negociações, que depois da prática c o m
os portugueses diziam vários que a sudoeste
existiam ilhas ou u m continente mais rico
q u e todos os outros. (1) Mais nos confir-

(1) « Y p o r q u e d e s p u e s de la v e n i d a de los P o r t u g u e -
; en la p l á t i e a que con e l l o s se ha h a b i d o , a l g u n o s
PEDRO ALVARES CABRAL I77

m a nessa suposição as cartas de mestre J o ã o


-e Estevão F r ó i s . N a primeira, escrita a i de
Maio de i5oo, do Brazil, o físico da expedi-
ção de P e d r o Alvares, ao falar a D. Manuel
A',-7 • « n i n n t n c p n n r a1 QV-
yjLO. IV.I l Cl U t J C U l ' V l tu^ \Alts . »%JMUIIIV ~J

tvo desta t e r r a m a n d e vosa alteza traer un na-


pamundi que tyene pêro vaaz bisagudo e p o r
av vera vosa alteza o sytyo desta terra, e m p e r o
aquel n a p a m u n d i non certyfica esta terra ser
habytada, o n o : es napamundi antiguo e ally
hallará vosa alteza escrita tam byen la m i n a . . . »
Isto supõe que muito antes de i5oo se conhe-
cia aquela m e s m a região. P o r outro lado, se-
gundo a carta de Estevão F r ó i s a D. Manuel,
escrita de S. Domingos das Antilhas, existente
no A r q u i v o Nacional, já mais de vinte anos an-
tes da sua data, i 5 1 4 , os portugueses conheciam

quieren d e c i r que lo que está en medio desde de la punta


que los P o r t u g u e s e s l l a m a n de B u e n a E s p e r a n z a , que
está en la r o t a que a g o r a ellos llevan por la Mina dei
Oro e Guinea a b a j o hasta la raya que v o s dijistes que
J e b i a venir en la B u l a dei P a p a , piensan que p o d r á ha-
ber Islas y aun T i e r r a firme, que segun en la parte dei
sol que está, se cree que seran m u y p r o v e c h o s a s v m a s
ricas que t o d a d a s las o t r a s ; y porque s a b e m o s que desto
sabeis v o s m a s que o t r o alguno, v o s r o g a m o s que luego
nos envieis v u e s t r o parecer en ello, porque si conviniere,
v os p a r e c i e r e que aquello es tal n e g o c i o c u a l acá pien-
san que s e r á , se enmiende la Bula.» N a v a r r a t e , t o m o II
pag. 109.
'74
2<)6 EXPEDIÇÃO DE

os litorais do norte do Brasil ( i ) . Q u e r e dizer,


pois que, pelo menos à data do tratado de T o r -
desilhas, haviam aumentado já os nossos conhe-
cimentos do novo continente. Finalmente o m a p a
de Cantino, de origem portuguesa, feito em
i5o2 em Lisboa e enviado ao duque de F e r -
rara por aquele seu agente, no qual se repre-
senta o litoral da América desde a G r o e l â n d i a
até ao sul do Brazil, revelando conhecimen-
tos do continente americano muito superiores
aos dos navegantes espanhóis, supõe u m a sé-
rie de explorações, que os nossos cronistas, uns

(i) «e lhes p e r g u n t a v a m no tormento se v í n h a m o s de


P o r t u g a l c o m intenção de entrarmos em t e r r a s dél-rei
deCastela. R e s p o n d e r a m que não e que v i n h a m a d e s c o -
brir terras n o v a s de V . A., c o m o tinham dito e m seus
i n t e r r o g a t ó r i o s , e a - p e s a r disto, senhor, nos não que-
rem d e s p a c h a r nem nos quizeram receber a p r o v a ao
que a l e g a v a m o s , c o m o V . A . p o s s u i a estas terras ha
vinte anos e mais e que já J o ã o C o e l h o , o da p o r t a da
C n J z T v i s i n h o da c i d a d e de L i s b o a , viera p o r onde nos
outros v í n h a m o s a d e s c o b r i r e que V. A . e s t a v a de p o s s e
destas terras por m u i t o s tempos e que o assento q u a n t o
a limites era que da linha e q u i n o c i a l p a r a o sul perten-
cia a V. A. e da m e s m a linha p a r a o norte a el-rei de
C a s t e l a e nós não p a s s a r a m o s a linha e q u i n o c i a l nem
c h e g a r a m o s a ela com i3o l é g u a s . . . C a r t a de E s t e v ã o
F r ó i s a D. Manoel I, tentativa de t r a d u ç ã o de p o r t u g u ê s
arcaico para português moderno, pelo dr. António
B a i ã o , ÍQ História da Colomsaçáo portuguesa no Brapl.
Introdução, pag. X V L I .
1 iQ.
PEDRO ALVARES CABRAL

desconheceram, outros de propósito calaram.


Nêsse m a p a surge-nos pela primeira vez deli-
n e a d a grande parte das costas dos E s t a d o s Uni-
dos da América do N o r t e , incluindo a Flórida,
onde só vojvidos pelo menos uns seis anos, o
primeiro navegante castelhano havia de chegar.
Aos navegantes espanhoes nenhum motivo acon-
selhava o silêncio sôbre os descobrimentos rea-
lizados. N ã o é, pois, de crer que o m a p a de
Cantino nessa parte, demais traçado em Portu-
gal, revelasse outros conhecimentos que não os
dos navegantes portugueses. Acrescente-se que
-já em i5oi, s e g u n d o se depreende d u m a carta
de Pasqualigo ao senado veneziano, relatando a
chegada d u m dos navios de G a s p a r Corte Real
no regresso da T e r r a Nova, nós possuíamos
o segredo da continentalidade americana (1).
E s t a série de indícios, que podíamos largamente
continuar, contirmando-se mutuamente, p r o v a m
que nós muito antes da Espanha possuímos,
mas ciosos calámos, o conhecimento das vastas
terras do ocidente, além do mar oceano.
A o plano dessa e outras explorações, ante-
riores e posteriores, que nos deram o conheci-

«qual t e r r a . . . etiam credono coniungerse con le


Andilie, che t'urono discoperte per li reali de S p a g n a , et
con la terra dei P a p a g á , noviter trovata per la nave di
questo ré che andavono in C a l i c u t . . . » . M a r i n o S a n u t o ,
7)í.iní.-códice M a r c i a n o , vil, 228.
J (38 EXPEDIÇÃO DE

mento do continente americano, pertence ainda,


segundo cremos, além da viagem de Duarte Pa-
checo, a de C a b r a l . Após a viagem do Ga-
C M
m a . Que iiuuAk., xu... ns
- informes dos pilotos
indianos e de G a s p a r da índia, vastos conhe-
cimentos geográficos sobre o extremo O n e . -
te o velho p r o b l e m a da passagem pelo U u -
dente deve ter preocupado de novo os portu-
gueses. A carta de Américo Vespúcio, escrita de
C a b o Verde, no começo da viagem de n o i ,
revela-nos que ja nessa data u n h a m o s noticia
das ambicionadas Molucas. E se êle claramente
diz que o fim da expedição de iSoo era atingir
Malaca pelo sudoeste, igualmente se infere que
pensava já em alcançar essas regiões com a
expedição de i 5 o i , pelo que afirma na carta
de Cabo Verde. Depois de ter referido a noti-
cia das t e r r a s indianas, que s o u b e r a p o r Cas-
par da índia, acrescenta «E io tengo Speranza
in questa mia navigazione rivedere, e correre
gran parte del sopradeto e discoprire molto p.u
e alia mia tornata daro di tutto b u o n a e vera
relatione.» (i) P a r a VignVaud esta m e s m a frase
torna a carta suspeita, pois nas duas outras sobre
essa expedição Vespucio não refere aquele inten-
to Ê s s e facto indica apenas que, d a d o o m a l o g r o
das suas altas esperanças, ele os calou, ao relatar

(i) V i g n a u d , Americ Vespucc, pag.


PEDRO ALVARES CABRAL 1 IQ.

a expedição, o que é de t o d o ponto natural.


Além de que a carta tem, c o m o p r o v á m o s , os
mais claros caracteres de autenticidade, aqueles
dizeres são inteiramente confirmados p o r Go-
m a r a , q u a n d o afirma que foi, em i 5 o i , que o
Rei D. Manuel encarregou Yespúcio de procu-
rar u m a p a s s a g e m p a r a as M o l u c a s , nas para-
gens do C a b o de Santo Agostinho. ( 0 T e m o s ,
pois, p a r a nós, que a expedição de I5OI, logo
seguinte à de C a b r a l , já visava muito provavel-
mente aquele fim. Àquela data os portugueses,
que dentro em pouco podiam traçar o m a p a dè
Cantino, deviam saber que se houvesse alguma
p a s s a g e m praticável pelo Ocidente, só era pos-
sível encontrá-la para o Sul. Assim C a b r a l , an-
tecipando-se aos espanhóis, que já se aproxi-
m a v a m do Brasil pelo N o r t e , ia t o m a r posse
duma região duplamente estratégica, em relação
á índia, q u e r por servir de escala na viagem
pelo cabo da B o a Esperança, quer por assegu-
r a r u m a suposta passagem pelo sudoeste.
Q u a l a f u n ç ã o , pois, de Duarte P a c h e c o , o
g r a n d e navegante e c o s m ó g r a f o , nesta expedi-
ção? P o r q u e se calaram os cronistas sobre a
sua viagem anterior e sôbre o seu papel na de
Cabral ?

(i) Historia de las índias, e d i ç ã o de i55-t, cap. 87,


foi. 113.
j (38 2<)6 EXPEDIÇÃO DE

A s e m e l h a n ç a das espécies v á r i a s , que con-


servam em pura perda e prejuízo certos meios
de d e f e s a que a evolução t o r n o u inúteis, assim
n-,-*.!^^ normonPCPiJ fiel ao instinto que o le-
vava a e s c o n d e r os seus p l a n o s e desígnios, d e
tal s o r t e que veio a p r e j u d i c a r - s e n o f u t u r o ,
q u a n d o chegou a h o r a de reivindicar a sua
o b r a . N ã o se c o m p r e e n d e t a m b é m que Rui de
Pina e Resende escondam, por exemplo, a
noticia c i r c u n s t a n c i a d a da e m p r e s a de B a r -
t o l o m e u Dias. p o r certo conhecida dêles, ou
da v i a g e m de P e r o d a C o v i l h ã e A f o n s o
de P a i v a , das negociações de T o r d e s i l h a s , do
p r o j e c t o de D. J o ã o II de enviar a A m é r i c a
u m a a r m a d a c o m a n d a d a p o r 1). F r a n c i s c o d'Al-
m e i d a (1) e de t a n t o s o u t r o s f a c t o s , da m a i s
alta i m p o r t â n c i a , se n ã o e m obediência a u m
velho h á b i t o c o n t r a í d o e m a n o s de sigilo. D e
tal m a n e i r a s o b r e d e t e r m i n a d o s f a c t o s , que im-
portava esconder, abundam os documentos
a d r e d e f a b r i c a d o s e f a l t a m os únicos c a p a z e s
de o s esclarecer que t e m o s de s u p o r u m cui-
d a d o e x t r e m o em p r o p o s i t a d a m e n t e o s seques-
t r a r . F e l i z m e n t e que V e n e z a e s p i a v a e os em-
b a i x a d o r e s alviçareiros n o t i c i a v a m às m e t r ó p o -
les respectivas as f a ç a n h a s , que n ó s outros,
oculta v a m o s tão a v a r a m e n t e . S ó u m a alta cons-

(i) B a r r o s , Década 1, l i v r o 111, cap. X I .


1 IQ.
PEDRO A L V A R E S CABRAL

ciência nacional, convicta de que p o r então o


silêncio mais que a vanglória aproveitava, po-
dia realizar êsse heroísmo tão contrário à pro-
pria natureza humana de r a l a r nlaiimas Has
' - --- r>-
suas mais lídimas façanhas.
/ D. João II, no seu nacionalismo ciosíssimo,
\ quis esconder do mundo o próprio m u n d o . P o r
tantos títulos representantes do Renascimento,
êle traía nesse ponto o espírito da É p o c a . A o
italiano da Renascença, cujo livre individualismo
não conheceu limites e em cujo espírito o con-
ceito de pátria era tão deslaçado, m a s possuidor
em alto grau do sentido cosmopolita, estava des-
tinado, ao descobrir-nos os segredos, revelá-los
e enfeitar-se com as glórias dêles. Valha a ver-
dade, nós o vimos, a Génova e Florença cabia,
de justiça, boa parte dessa glória. A política do
Principe Perfeito realizou, mau grado seu,
esses votos imanentes da História, permitindo
que a um genovês se atribuísse o descobrimento
do N o v o Mundo e lhe desse o nome um floren-
tino. Dir-se hia que u m a justiça superior aos
homens e aos povos tentou compensar os sacri-
fícios isolados duns e o demasiado zelo nacio-
nalista de outros. E m troca da glória do desco-
brimento e nome do N o v o M u n d o , o naciona-
lismo português frutificou numa das maiores
nações americanas. F. não é êsse, por certo, um
dos sacrifícios menos duros que essa nação ficou
devendo ao nosso doloroso esforço de criá-la.
ORGANIZAÇÃO E OBJECTIVOS

DA EXPEDIÇÃO

Km verdade, so agora p o d e m o s abranger a


organização e objectivos da armada de Cabral
no vasto âmbito dos elementos que a com-
põem e das circunstâncias que a determinaram.
A nação atingira, c o m o vimos, o máximo do
p o d e r criador. O caracter nacional, cujas rai-
zes mergulhavam ainda na memória do Santo
Condestável, formara-se na escola e pelo tipo
do Infante Navegador e do Príncipe Perfeito,
— á s p e r o , puro, reflectido e apto a sacriticar-se
em tudo às geniais razões de Estado, que diri-
giam a nação. Ao alto o Rei, de fresca data,
colhidos os frutos do trabalho secular da grei,
delirava de ambição triunfante. O imenso plano
nacional atingia a m a t u r a ç ã o perfeita. E m meio
do pasmo, ou da inveja dos estranhos, favore-
cida duns e ainda mais estorvada pelos o u t r o s ,
a nação radiava na plena posse e realização dos
seus desígnios. C o m efeito, só incorporando a
2<)6 EXPEDIÇÃO DE

expedição de P e d r o Alvares Cabral no plano de


D. João II, ela ganha significado inteiro. Vista
assim, pode considerar-se como a primeira e
ciara afirmação d u m a politica sabia e oculta-
mente realizada. P e d r o Alvares c o Oedipo ofi-
cial da esfinge dos descobrimentos portugueses.
Veneza e a Kspanha sabiam, emfim, com de-
cepção e a s s o m b r o , o segredo que levara
D. João U c o n j u n t a m e n t e a teimar no desco-
brimento do índia pela Africa e a defender
p r e s u m i d a s terras no Ocidente, com amea-
ças de expedições a r m a d a s e a incompreendida
intransigência dos nossos delegados em T o r -
desilhas.
Sobe alfim o pano desvelando o scenario
magnifico, que abrange as costas de três con-
tinentes; e o arauto, que adrede se escolheu,
n o b r e , magnânimo, vistoso, surge a boca da
scena, anunciando com solenidade a grande
peca que vai representar-se. N e m se julgue que
o facto de apear P e d r o Alvares C a b r a l do seu
pedestal de primeiro descobridor do Brasil lhe
diminui o valor dentro da o b r a nacional. Ao
contrario. F l o r ã o de a b o b a d a , indica ao m u n d o
u ponto central c culminante de tantos dos
n o s s o s feitos, na aparência ilógicos. P e d r o
Alvares inicia o grandioso d r a m a , que epilo-
gava com a propria morte da n a ç ã o : o impé-
rio económico português, aproveitando a base
naval da Brasil e o oiro da Mina e de S o f a l a
PEDFO A L V A R E S CABRAL

p a r a a conquista de t o d o o comércio do Oriente.


Até as cerimórias de S a n t a Cruz, seguidas da
carta de D. Manuel p a r a os Reis Católicos, dão
a quem detidamente as ler a impressão d u m a
scena preparada.
Demais, a p r e p a r a ç ã o e a elaboração lenta
d u m a vasta obra reconhecem-se a cada passo.
As figuras principais da a r m a d a , os que capi-
taniam e dirigem, pertencem, u n s - P e d r o Al-
vares, Simão de Miranda, Aires- da Silva, Si-
m ã o de Pina, Duarte P a c h e c o , Aires C o r r e a —
a velhas famílias, cuja servidora lealdade re-
sistira incólume á terrível crise do século xiv
ou entravam outros, como os irmãos Dias, Ni-
colau Coelho e ainda Pacheco na pleiade dos
fortes navegadores do périplo africano, do des-
cobrimento da índia e do Novo Mundo, ou re-
presentavam, como Sancho de T o v a r , a aspira-
ção universalista da coroa, na sua forma mais
sedutora e perigosa.
Enxameavam, por certo, os pilotos, mestres,
matalotes do caminho da Mina, da Guiné, da
índia, das ilhas e da América. Expedição que
visava fins religiosos, levava a b o r d o os mis-
sionários franciscanos, presididos pela figura
venerável de F r . H e n r i q u e , f r a d e - o r a d o r , sa-
cerdote e aedo, à maneira antiga, que ao che-
gar ao Brasil podia erguer pela primeira vez
naquela terra, com a arte sublime da palavra,
«uma solemne e proveitosa pregação da histo-
, 6 EXPEDIÇÃO DE
7

V)>
ria do evangelho e ao fim d e l a . . . da- • . vinda» 1 '
e do achamento desta t e r r a . . . » ( i ) . N e m lhe
faltava, como expoente máximo da raça, aquela
alma ? ê m e a de B e r n a r d i m e de C a m õ e s p a r a
escrever, com h o m é r i c a f r e s c u r a , a primeira
estrofe dos Lusíadas do Ocidente, que se c h a m a
a carta de C a m i n h a .
P o r o u t r o lado, m u i t o ao c o n t r á r i o do que
afirma Vespucio na c a r t a de C a b o Verde, au-
tenticando-a com a sua jactância c o s t u m a d a ,
ao dizer . p e r c h e non fu in essa frotta cosmo-
g r a f o ne Mattematico n e s s u n o , che fu g r a n d e
e r r o r e » , a a r m a d a levava um c o s m ó g r a f o de
t a m alta e n v e r g a d u r a c o m o D u a r t e P a c h e c o e
ainda mestre João, físico, que segundo todas
as probabilidades era a s t r ó l o g o de El-Rei e
traduziu em castelhano, língua da sua natura-
lidade, o livro da G e o g r a f i a e C o s m o g r a f i a de
P o m p ó n i o Mela, cujo m a n u s c r i t o existe na Bi-
blioteca da A j u d a (2).
Iam ainda, segundo C a s t a n h e d a , R.DOO ho-
m e n s de a r m a s e cavaleiros fidalgos, como
V a s c o da Silveira e J o ã o de S á , êste ultimo que
a c o m p a n h a r a já Vasco da G a m a , pois, no dizer
de B a r r o s , a frota ia «mui p o d e r o s a em a r m a s
e em gente luzida». Além de G a s p a r da índia,

(1) C a r t a de C a m i n h a , in Alguns Documentos, pág. n 3 .


(2) Trabalhos náuticos dos portugueses, Sousa Vi-
t e r b o , vol. II, pág. 285.
PEDRO A L V A R E S CABRAL I77

s e g u i a m ainda como intérpretes, pelo menos,


Gonçalo Madeira de T a n g e r , já experimentado
no mister, e u m g r u m e t e negro da Guiné. N e m
nos esqueçam os 20 d e g r e d a d o s que durante
a viagem haviam de ser deixados em terra,
onde fosse mister a p r e n d e r a língua ou colher
informes. N a maioria das vezes p a g a v a m li-
geiríssimas faltas c o m g r a v o s a s penas. Alguns
deles, c o m o J o ã o M a c h a d o , prestavam adeante,
com lealdade e zelo inestimável, os maiores
serviços nas contendas da í n d i a ; ou aprendiam,
como u m dos que ficou e m Santa Cruz, as in-
dígenas línguas nunca ouvidas.
A a r m a d a c o m p u n h a - s e de treze embarca-
ções, n a u s , navios mais pequenos e três navios
r e d o n d o s , que, se e m p r e g a v a m , c o m o é sabido,
no descobrimento das costas e dos rios. A
construção das n a u s g a n h a r a com as. experiên-
cias anteriores. D u a r t e .Pacheco dedica todo o
2. 0 capítulo do 4. 0 livro do Esmeraldo aos cui-
dados minuciosos que se e m p r e g a r a m em cons-
truir, prover de gente e aparelhar os navios
que f o r a m à índia com o G a m a , e no capitulo
adiante declara que as a r m a d a s seguintes f o r a m
«tam b e m h a p a r e l h a d a s c o m o as primeiras e
muito melhor».
I n f o r m a J o ã o de B a r r o s que o navio de P e r o
de Ataide se c h a m a v a S. Pedro e o de N u n o
Leitão, Anunciada. C h a m a v a - s e um outro
El Rei, e temos t o d a s as razões p a r a crer q u e
12
I 8
EXPEDIÇÃO DE
7

era a nau g r a n d e do c o m a n d o de Sancho d e


T o v a r , d l E m artilharia, munições, aparêlho
e mantimentos a a r m a d a levava o m á x i m o e o
melhor que era possível àquele tempo. O s co-
fres, m a i o r m e n t e o do capitão-mór e do feitor,
a b a r r o t a v a m e reluziam de oiro a m o e d a d o - os
justos e os espadins de D. J o ã o II, os cruza-
dos e os portugueses de D. Manuel, os últimos
dos quais já celebravam o descobrimento da
índia, e ainda fóra do reino, as d o b r a s caste-
lhanas, os florins de A r a g ã o , as coroas fla-
mengas, os d u c a d o s de Veneza ou R o m a e
até a d o b r a m o u r i s c a ou valedia. O s capitães
fidalgos levavam ricos vestidos p a r a as re-
cepções em estofos de Veneza, de F l o r e n ç a e
F l a n d r e s , a d o r n o s de oiro e n u m e r o s a baixela

(1) S e g u n d o a R e l a ç ã o do piloto a n ó n i m o , a a r m a d a ,
após a tempestade em que s o s s o b r a r a m quatro naus,
lracionoii-se em três p a r t e s , a c r e s c e n t a n d o que num dos
grupos ia o c a p i t ã o m ó r e no o u t r o a nau E l - R e i . C a s -
tanheda. c o n f i r m a n d o , e s c l a r e c e que a t e r c e i r a parte era
constituída pelo navio de D i o g o D i a s , que p a r a sempre
se a p a r t o u da a r m a d a , e que no segundo i a m S a n c h o
de T o v a r e Nuno l . e i t á o . S e n d o a s s i m , s a b i d o o nome
d a nau de Nuno L e i t ã o , a nau E l - R e i p e r t e n c i a ao sub-
-comandante. Ainda mesmo, quando ao segundo grupo
pertencesse um t e r c e i r o n a v i o , c o m o se depreende da
R e l a ç ã o do p i l o t o a n ó n i m o , este, ao c i t a r u m a nau, re-
feria-se p o r certo á de S a n c h o de T o v a r , a qual sabe-
m o s ser d a s m a i s n o t á v e i s da a r m a d a .
PEDFO ALVARES CABRAL
18-1

de prata p a r a o seu serviço. E na nau de C a b r a l


a m o n t o a v a m - s e p a r a os presentes aos m o n a r c a s
de Melinde e da índia, bacias e g o m i s de p r a t a
com bastiães d o u r a d o s , os arreios de p r a t a , as
maças c o m as suas cadeias, t u d o em prata,
vistosas a l m o f a d a s de b r o c a d o e de veludo car-
mezim, dóceis f r a n j a d o s de oiro, tapetes e pa-
nos de A r r a z opulentíssimos. O que de m e l h o r
a s u m p t u á r i a nacional e a estrangeira impor-
tada p o d i a m fornecer acomodava-se nos almo-
freixes de b o r d o , p a r a que a a r m a d a tivesse o
cunho d u m a e m b a i x a d a solene e a p a r a t o s a . O s
armazéns do florentino Marchioni haviam de
ter d e s p e j a d o ali as jóias, os panos, as alfaias
mais ricas que os seus agentes de t o d a a Eu-
ropa lhe enviavam.
As instruções do capitão-mór, das quais,
como dissemos, c h e g a r a m até nós dois trechos,
e que p o d e m ainda completar-se em p a r t e com
as instruções congéneres de I). Francico de
Almeida, E e r n ã o S o a r e s e Diogo L o p e s de Se-
queira, r e v e l a m tanto pela vasta concepção do
plano c o m o pelo o r d e n a r dos m í n i m o s detalhes
e previsão de acidentais estorvos, u m a perfeita
segurança e plenitude de m é t o d o e de e s f o r ç o s ,
aplicados ao objectivo a realizar. C o m e ç a m
essas instruções p o r determinar o a l a r d o da par-
tida, e, a seguir a maneira que se deve ter na
vigia de fogo, no regimento dos mantimen-
tos, c o m as chaves dos paióis, na r e p a r t i ç ã o
l18o KXPEDIÇÁO DE

do vinho aos m a r i n h e i r o s , com as salvas e


os sinais p a r a a f r o t a , durante toda a viagem
e depois a d e r r o t a e acidentes possíveis, termi-
nando c o m os objectivos da expedição, defini-
dos e esmiuçados com previsão inexcedível. E ,
se a carta de capitania-mór concedia a P e d r o
Alvares p o d e r e s inteiros e severos de justiça,
limitados apenas p a r a os nobres, as instruções
em mais que u m passo patenteiam um c u i d a d o
paternal pelas tripulações.
N o t e m o s ainda que, a c r e r m o s G a s p a r C o r -
reia, o p a g a m e n t o adeantado duma parte dos
o r d e n a d o s , que ia até um ano de vencimentos
p a r a a gente casada e a participação de toda a
tripulação nos lucros, realizada com o direito
de t r a n s p o r t a r especiarias, c o m p r a d a s nas mes-
m a s condições do E s t a d o e com a repartição
das p r e s a s , se a p r o x i m a m , na protecção as
famílias, e excedem, nos interesses aos indiví-
duos concedidos, a m o d e r n a organização d o s
exércitos em c a m p a n h a .
São aquelas m e s m a s instruções que nos d ã o
a entender o carácter da expedição em relação
, a í n d i a . P o d e m considerar-se objectivos princi-
pais, p o r um lado a aliança com os índios e a
!
sua m e l h o r cristianização, e p o r outro a g u e r r a
• aos m o u r o s infiéis, p a r a obter, pela paz com uns
I e a luta c o m os outros, o exclusivo do comércio
i oriental. Q u a n t o a g u e r r a com os m o u r o s , fazer
r e p a r o a essas intenções seria ingénua incom-
PEDRO A L V A R E S CABRAL 1 IQ.

preensão do t e m p o . È s s e pleito secular consti-


tuía ainda então u m dos f u n d a m e n t o s da p r ó p r i a
nacionalidade. As duas finalidades, a religiosa e
a económica, surgem-nos, a cada p a s s o d a q u e l a s
instruções juntas e i r m a n a d a s nas figuras de F r .
H e n r i q u e e Aires C o r r e i a . A força de junção
repetida as duas figuras c h e g a m a parecer-nos
fundidas n u m a só, encarnação solidária da grei,
a p o r t a n d o as praias indianas com a cruz n u m a
das m ã o s e a balança na o u t r a . E a balança,
mais do que a cruz, era naquele t e m p o u m
símbolo de paz. Ao c o m é r c i o se deve em t o d a
a história u m a g r a n d e parte dos d e s c o b r i m e n t o s
geográficos.
Induzidos na ilusão do G a m a e dos seus
c o m p a n h e i r o s , os p o r t u g u e s e s c o n s i d e r a v a m
ainda então os m a l a b a r e s c o m o cristãos. A s
instruções de P e d r o Á l v a r e s r e s p i r a m d e s d e
o princípio ao fim bòa fé e desejo de paz.
E nada nos leva a crer que nesta altura a po-
lítica imperialista do m o n a r c a e dos seus con-
selheiros revestisse o u t r o carácter que o mera-
mente económico. N ê s s e intuito P e d r o A l v a r e s
leva o r d e n s expressas para d a r de si e com a
a r m a d a m o s t r a s de n o b r e e m a g n â n i m a embai-
xada. «Ireis, r e c o m e n d a o Rei, a n c o r a r em
Calecut c o m vossas naus juntas e metidas em
grande o r d e m , assim de b e m a r m a d a s , como-
de vossas bandeiras e estandartes e o mais lou-
çãs que p o d e r d e s . » Ali chegados e encontrando-
if)b
18O EXPEDIÇÃO DE

n a u s , de Meca que elas fossem, «não fareis ne-


n h u m nojo, antes as salvareis, e lhe m o s t r a r e i s
t o d o b o m rosto e sinal de paz e boa vontade,
d a n d o de c o m e r e beber e fazendo todo outro
b o m tracto a t o d o s aqueies que as n o s s a s ditas
naus v i e r e m . . . » . K temendo que a dualidade
entre o e m b a i x a d o r magnânimo e o comerciante
ambicioso p o s s a levantar suspeitas ao preca-
vido Ç a m o r i m , o monarca o r d e n a a C a b r a l
que, em casos de hesitação ou dúvida, cure
mais de afirmar a nobreza que o interesse. De-
pois de lhe r e c o m e n d a r toda a cautela no
a j u s t a r dos preços, as instruções t e r m i n a m : «K
p a r e c e n d o - v o s que o dito Rei de Calecut neste
c a s o se peja em alguma m a n e i r a , e vos p a r e c e r
que não sai a isso assim bem, que espereis que
nisso se a p r o v e i t a r a , em tal caso não cureis de
insistir e não lhe falareis mais n i s s o . . . p o r lhe
não p a r e c e r que p a r a isto levais cousa deter-
minada. ..»
A c i m a de tudo, C a b r a l deverá afirmar a sua
n o b r e qualidade de enviado especial «porque
vós não somente sois nem is m e r c a d o r c o m o os
o u t r o s que a sua t e r r a vão de tão perto, c o m o
s a b e i s ; m a s que sois nosso capitão e principal-
mente p o r nós enviado, com f u n d a m e n t o de
.muito a m o r , paz e a m i s a d e . . . » . N e m a cubiça
e x t r e m a m a r e a v a ainda o carácter nacional,
n e m as m e s m a s claras instruções de g u e r r a aos
m o u r o s p r e v e e m ou dão m a r g e m às c r u e l d a d e s
1 IQ.
PEDRO A L V A R E S CABRAL

com que alguns capitães deskiziram a h o n r a e


as proezas. A s instruções e x p r e s s a m e n t e deter-
minam que, após a t o m a d a dalguma frota mou-
ra aos prisioneiros, que se não p o s s a m trans-
.... „,, , —
p e i t a i iiv) ii_uiu 'ILI 1 Logctiai na inula, ..„ m e i a m
n u m a nau e que os deixem ir nela.
Isto pelo que toca à índia. Q u a n t o à missão
de C a b r a l , a p o r t a n d o ao Brasil, falta no seu
f r a g m e n t a d o regimento a parte que nos podia
elucidar sobre as instruções q u e levava a tal
respeito. Kssa falta, junta a o u t r a s da m e s m a
n a t u r e z a , tem p a r a nós o aspecto d u m seques-
tro e constitui m a i s uma prova da intenciona-
lidade da d e r r o t a , tantos são os factos que p o r
o u t r o lado a d o c u m e n t a m e lhe demonstram-
em volta especiais cuidados de sigilo. A s s e n t e '
c o m o um facto p r o v a d o , pelo m e n o s u m a via-
g e m anterior de Duarte P a c h e c o ao Brasil; de-
m o n s t r a d o o conhecimento anterior de vastas
regiões a m e r i c a n a s ; esclarecida a ambição do
m o n a r c a , incendiada c o m as n o v a s do G a m a ,
de patentear ao m u n d o , em toda a grandeza o
plano nacional, a g o r a t a m b é m qiie o v e r d a d e i r o
caminho p a r a a índia estava d e s c o b e r t o e não
havia a recear as ilusões da E s p a n h a ; definido
o carácter de e m b a i x a d a solene e de conquista
m a r í t i m a e económica da e x p e d i ç ã o ; conhe-
cidos ainda os avanços dos castelhanos pelas
costas da A m é r i c a em direcção a S a n t a C r u z ;
t u d o c o n c o r r e p a r a explicar e t o r n a r necessá-
I78 EXPEDIÇÃO DE

ria a intencionalidade da d e r r o t a naquela di-


recção.
U m o u t r o facto da m a i o r importância vem
c o r r o b o r a r , em plena h a r m o n i a , com várias
1 . . ..»«.._: . j
uesias circunstancias, a u c n u i a u u j t n i v i u p o u i
o B r a s i l : referimo-nos à p r e s e n ç a , na a r m a d a ,
de D u a r t e P a c h e c o . Q u e r e p r e s e n t a v a ali o
antecessor de C a b r a l na v i a g e m a América, o
c o s m ó g r a f o , o negociador de T o r d e s i l h a s , o
h o m e m rigido que estava nos segredos trans-
cendentes do E s t a d o , o f u t u r o executante de
tão altas missões, p o r a g o r a sem capitania de
nau ou e x p r e s s a função, n u m a aparente obs-
curidade tal que a carta de C a m i n h a não o
cita? L u m i n o s a m e n t e se patenteia a g o r a que
èle era ali o elo secreto e forte que ligava
a expedição ao plano nacional e o guia da-
quela parte da d e r r o t a , em n o m e da o b r a
: realizada.
E aqui uma objecção n a t u r a l m e n t e ocorre. Se
nesta m e s m a época os1 alviçareiros italianos,
excedendo o conhecimento dos f u t u r o s cronis-
tas nacionais, t r a n s m i t i a m p a r a as suas metro-
poles t a n t a s novas da í n d i a , das viagens dos
C ô r t e - R e a i s e das seguintes expedições a costa
sul-americana, c o m o se c o m p r e e n d e que aquele
segredo não houvesse t r a n s p i r a d o , tanto mais
que na a r m a d a se i n c o r p o r a v a u m navio estran-
geiro ?
O r a a v e r d a d e é que o s e g r e d o t r a n s p i r o u .
PEDRO A L V A R E S C A B R A L 1 IQ.

A carta de D o m e n e g o Pisani, escrita logo após


a chegada da p r i m e i r a nau da expedição de
P e d r o Alvares, e aqui já t a n t a s vezes referida,
reza a s s i m : «De s o p r a el C a p o de B o n a Spe-
ranza, verso g a r b i n (para. sudoeste), hanno dis-
coperto una terra nuova, c h i a m a n o la t e r r a de
li p a p a g á , p o r esser li p a p a g á longi uno b r a z o
e piú, de varij colori, de li quali hano visto
doy. Judicano questa terra esser terra ferma,
perche corseno per costa 2000 mia e piu, né
mai trovorono Jin.» E m q u a n t o a carta de Ca-
minha fala d u m a ilha e a R e l a ç ã o do piloto
anonimo hesita entre c h a m a r ilha ou terra fir-
m e à região descoberta, P i s a n i fala claramente
d u m a t e r r a firme e d u m a extensão de costas
já e x p l o r a d a s , superior a 2:000 milhas. Muito
diferentemente s a b e m o s , pela carta de Cami-
nha, que a p o r ç ã o de costa avistada pela ar-
m a d a de C a b r a l foi m u i t í s s i m o mais c u r t a .
«Esta t e r r a , senhor, diz èle, m e parece que da
p o n t a , que m a i s contra o sul vimos, até o u t r a
p o n t a , que contra o norte vem, de que nós
desta p a r t e h o u v e m o s vista, será t a m a n h a , que
h a v e r á nela 20 ou 23 léguas p o r costa.» Aquela
i n f o r m a ç ã o revela, pois, viagens e explorações
anteriores daquela costa. A c r e s c e n t e m o s que
Pascuáligo n u m a carta sua dessa m e s m a d a t a
c o r r o b o r a os informes de Pisani, ainda que
d a n d o apenas 600 milhas de extensão à costa
c o n h e c i d a : «corsa la costa de ditta terra p e r
186 EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

spazio de 600 e piü milia no hanno t r o v a t o fin


alcuno.» (1)
E Vespucio, na sua carta de C a b o V e r d e ,
referindo-se ás terras de S a n t a C r u z , tal noção
a d q u i r e de nue se trata d u m a g r a n d e t e r r a fir-
me, que não hesita em a afirmar ligada á
q u e ele descobrira muito mais ao norte, em
c o m p a n h i a de espanhoes : «E dipoi d'aver na-
vigato venti giornate circa a settecento leghe
I che ogni lega é q u a t t r o migla e mezzo) p o s o n o
in una terra dove t r o v o r o n o gente branca e
ignuda dela m e d e s i m a t e r r a , che io descoperi
per R e di C a s t e l a , salvo que é piú a l e v a n t e . . .»
A t r i b u i r esta estranha concordância com a
v e r d a d e e as possibilidades dum anterior co-
nhecimento ao acaso, seria reincidir num ê r r o
que tem apenas a recomendá-lo a c o m o d i d a d e
de resolver dificuldades com pequeno e s f o r ç o .
Ao c o n t r á r i o , tudo n o v a m e n t e c o n c o r r e p a r a

( i j B a r r i s s e , depois dc citar estas duas passagens,


acrescenta : «lí either of those assertions was exact,
C a b r a l could have furnished the cartographical data
south of l'orto S e g u r o : but such is not the case, and
lhe two Venetian diplomatists were certailhv led into
error by their Portuguese informers.» The Discovery oj
Xorth America, pag. .141. A B a r r i s s e faltaram muitos do»
elementos para avaliar com justeza desta viagem, tantos
que considera c o m o meramente casual o aportar de C a -
bral a V e r a Cruz. A carta de P a s c u a l i g o vem em S a n u -
to, Dijrii, \ol. L V . c>l 200.
1 PEDRO A L V A R E S CABRAL IQ.

d a r viabilidade a s e m e l h a n t e i n f o r m a ç ã o . Vi-
m o s a t r á s que o p r i m e i r o navio da a r m a d a a
L i s b o a c h e g a d o pertencia a u m e s t r a n g e i r o :
Bartolomeu Marchioni, florentino.
S a b e m o s já que B a r t o l o m e u era a s s o c i a d o
nesta expedição n e m m a i s nem m e n o s que d e
D. A l v a r o , tio e confidente do m o n a r c a . D a d a
elevadíssima categoria do florentino, p o r ê s t e
m e s m o facto p r o v a d a , não será a r r i s c a d a em
d e m a s i a a suposição de q u e ele p o r inconfidên-
cia do B r a g a n ç a , h o m e m , ao que parece, jac-
tancioso (i), conhecesse u m a parte dos segre-
dos de E s t a d o .
A v e r i g u a d o igualmente ficou que B a r t o l o m e u
M a r c h i o n i p r e s t a v a à c o r o a tais serviços, p e l o
q u e respeita à realização do plano dos desco-
b r i m e n t o s , que é lícito supô-lo u m pouco n o
segredo desse plano. E s s a c o n j e c t u r a m a i s ve-
rosímil se afigura, c o n s i d e r a n d o que m u i t o p r o -
vavelmente o rico m e r c a d o r interferiu na vinda
de Vespúcio p a r a P o r t u g a l , com o fim de reve-
lar ao rei os c o n h e c i m e n t o s , a d q u i r i d o s a b o r d o
dos navios espanhóis, das costas sul-america-
nas. De novo l e m b r a r e m o s que Vespúcio n a
c a r t a de C a b o V e r d e identifica as costas p o r
ele d e s c o b e r t a s e as visitadas p o r C a b r a l c o m o

(i) Brancamp F r e i r e , Livro 1 dos Brajõis, V. D.


Alvaro.
l18O KXPEDIÇÁO DE

a m e s m a t e r r a firme. Aquele facto, por essa


data realizado, mais que n e n h u m poderia ex-
plicar que Marchione e os seus c o l a b o r a d o r e s
m a i s p r ó x i m o s estivessem no segrêdo' do co-
nhecimento anterior desta p a r t e da América.
U m a duvida podia subsistir q u a n t o à possibili-
dade de Pisani e P a s q u a l i g o t e r e m obtido aquela
i n f o r m a ç ã o por esta \ ia. ; S e n d o Marchione um
auxiliar d o Rei, iria trair aquele alto segredo
junto dos venezianos, os quais, c o m o se vê pela
c a r t a de C h á M a s s e r , o c o n s i d e r a v a m seu ini-
migo e que, por sua b a n d a , e r a m rivais dos
p o r t u g u e s e s ? Antes de mais n a d a , e em princi-
pio, essa duplicidade de carácter não é deveras
estranhável n u m italiano da Renascença. Além
disso, fornece-nos u m a carta de Pietro P a s q u a -
ligo, e m b a i x a d o r de Veneza em L i s b o a , a p r o v a
de que Bartolomeu Marchione auxiliava àquela
data os venezianos igualmente ( i ) .
O u t r o ainda dos objectivos da expedição era
o estabelecimento d u m a feitoria em Sofala, en-
cargo p a r t i c u l a r m e n t e destinado a Bartolomeu e
P e r o Dias. A posse do Brasil e do oiro de Sofala
constituíam a m b o s , segundo c r e m o s , dois obje-
ctivos auxiliares da conquista do comércio
oriental. Assim, a expedição revestia essen-
cialmente u m carácter de imperialismo econo-

(i) Racolla colombiana, parte 111, vol. I, pág. S3.


PEDRO ALVARES CABRAL 189

mico e continha já em si, com a participação


estrangeira, a garantia da expansão comercial
em toda a E u r o p a .
Seja como fôr, pois que falamos de imperia-
tismo, dois documentos preciosos, o f r a g m e n t o
maior das instruções e a carta de C a m i n h a ga-
rantem-nos que o comandante da expedição,
ao tractar com os indígenas das regiões visita-
das, sobre guiar-se pelos melhores desejos de
honra e bôa paz, irradiou de si e quasi sempre
comunicou à sua gente u m a elevada piedade
cristã.
A PARTIDA DA ARMADA D O RESTEI.O

C h e g a d o o t e m p o azado e prestes as n a u s
p a r a a partida, a u m domingo, 8 de m a r ç o
de i5oo, dirigiu-se D. Manuel, com toda a sua
côrte ao Restelo, onde já estavam as naus com
as gentes de m a r e de a r m a s , p a r a juntos ou-
virem missa na e r m i d a de N o s s a S e n h o r a de
Belem (i). E m torno da velha ermida do Infante

(i) A tradição aponta a ermida, que ainda hoje se


vè no mais alto da cerca dos Jerónimos, como sendo
aquela donde partiu V a s c o da G a m a e Pedro Alvares
C a b r a l . V á r i o s escritores o afirmaram, e entre eles L u -
ciano Cordeiro (Portugueses fora de Portugal— Uma
sobrinha do Infante, pag. 122). É . todavia, essa ermida
de construção posterior àquela data. F r . Jacinto de
S. Miguel, frade jerónimo, que nos princípios do sé-
culo xviii escreveu a Relação da insigne e real casa de
Santa Maria dè Belem, diz a pag. 107 e 10S da sua obra :
«A terceira e ultima destas tres ermidas é a que está
mais no alto desta cerca, que é a do nosso padre S. Je-
rónimo, com tres altares nella e por dentro de obra d e
cantaria, toda lavrada c com tanta galanteria o seu
102 if)b18OEXPEDIÇÃO DE

D. H e n r i q u e começava a erguer-se dos funda-


m e n t o s entre os a n d a i m e s alterosos, o f u t u r o
mosteiro dos J e r ó n i m o s .
Devia ser u m dêsses dias de p r i m a v e r a pre-
coce, dum e x t r a n h o encanto, tão comuns em
L i s b o a neste mez. O ar fino e macio esperta o
sangue, ao respirar-se. O T e j o d u m azul lus-

lavor que bem se vê ser grande primor dárte de sua


arquitectura, y n d o de tanta capacidade o c o r p o de
toda ela que bem podia servir de templo e egreja a
uma comunidade pequena». Não menos eloquente e o
testemunho de D a m i ã o de Gois. O u ç a m o s : «esta capela
se converteu no sumptuoso mosteiro, que no mesmo lo-
g a r fundou el-rei D. Manuel, depois que V a s c o da G a m a
tornou da Índia, o que certo é muito de louvar em el-
rei, que com não ter mais conquistado da Índia, que
saber que se podia ir a ella por mar, foi tanta sua fé
em Deus, que como se ja tivera ajuntados muitos tesou-
.ros da conquista dela, logo da sua própria fazenda
mandou abrir os alicerces em redor desta capela, sôbre
os quais se fez um dos grandes e magníficos edifícios
de tòda a E u r o p a . . . » T r a t a largamente deste assunto
F a r i a e Silva em A Igreja da Conceição Velha, Destes
testemunhos, hemos de concluir que, não obstante as
obras do mosteiro terem c o m e ç a d o , ainda existia em
baixo a primitiva ermida, fundada pelo Infante D. Hen-
rique, sobre a areia d a praia, no mesmo sitio dos J e r ó -
nimos, que nos primeiros tempos estavam à beira
d'agua. Demais a posse a o s frades Jerónimos só foi
dada a 21 de A b r i l de i5oo. Á data da partida de C a -
bral. pois, devia existir a primitiva ermida e ainda a
cargo dos freires de Cristo que só depois passaram para
a Conceição Velha.
PEDRO A L V A R E S CABRAL 1 IQ.

troso m a r a v i l h a o s o l h o s . E d a s f u n d u r a s ma-
r í t i m a s da b a r r a v e m u m apelo aliciante e mis-
terioso.
Naquele tempo o Tejo era mais largo em
frente do R e s t e l o ; e as p r a i a s , q u e , h o j e só
m a i s abaixo p r i n c i p i a m , a l a s t r a v a m d a e r m i d a
até às águas, n u m declive de a r e a i s l a v a d o s .
N o s tesos dos o u t e i r o s m a i s p r ó x i m o s , p o r c u j a s
remançosas faldas viçavam hortos e pomares,
g i r a v a c o m lenta m a j e s t a d e o v e l a m e t r i g u e i r o
d o s m o i n h o s . N a o u t r a b a n d a , as á s p e r a s coli-
n a s de a b r u p t o s b a r r a n c o s h u m i l h a v a m - s e ali,
as e n t r a d a s d o m a r , e i a m m o r r e r e m p r a i a , a
Caparica.
P o r ser d o m i n g o , dia de festa e d e s p e d i r da
armada, despopulara-se Lisboa e o povo denso
a l a s t r a v a e revolvia-se pelas p r a i a s e p o m a r e s
vizinhos. P r e d o m i n a v a m n o s o m b r i o a r r a i a l o s
t o n s e s c u r o s do b r i s t o l , do condado ou do
p a n o de v a r a s c o m q u e a a r r a i a m i ú d a se co-
b r i a . P o r e n t r e a d e s e n v o l t a c h u s m a d o s mes-
teirais, c o m seu g i b ã o c i n t a d o e os v a s t o s b o r -
zeguins f e s t e i r o s , o u d a s m u l h e r e s , g r o s s a s d e
s a i a s e leves de c o r p e t e , a e n t o r n a r pelo decote
os seios altos e m o r e n o s , os g r a d o s m e r c a d o r e s
a r r a s t a v a m as s u a s c a p a s n e g r a s e c o m p r i d a s ,
c o m o as d o s f r a d e s a g o s t i n h o s . A q u i e a l é m , o s
m a t a l o t e s , de p a r t i d a , o pé d e s c a l ç o , as b r a g a s
soltas, o r u d e c o t á o cingido a o peito, o b a r r e t e
v e r m e l h o p a r a t r á s , ou os h o m e n s de a r m a s , d e

i3
l18o KXPEDIÇÁO DE

saio laminado e gorgeira metálica, e r a m feste-


jados e a b r a ç a d o s em r o d a por amigos e pa-
rentes.
De q u a n d o em q u a n d o , do mais espesso d o
arraial vinham m u l h e r e s chorosas, com a m a n -
tilha escura descaída da testa até aos o m b r o s ,
t o m b a v a m d o b r a d a s de aílição a porta da ca-
pela, e e n c o m e n d a v a m , arquejando, os filhos e
os m a r i d o s , a Virgem do Restelo.
A s n a u s de m a s t r o e verga limpa, a enxárcia
fina flutuando, e m p a v e z a d a s de e s t a n d a r t e s e
b a n d e i r a s d i . i s a s de cada um dos capitães, ba-
loiçavam o bojo curto e negro, na f u n d u r a d o
rio. U m ou outro pano solto, erguido pelo
vento, e n f u n a v a a direito. Apenas n a l g u m a ca-
ravela as vergas altas das latinas o b l i q u a v a m
contra o m a s t r o , c o m o asa lassa r e p o u s a n d o .
R o d a v a já o sol no alto, q u a n d o o Rei e t o d a
a côrte, em altaneira cavalgada, vieram e atra-
v e s s a r a m , direitos à e r m i d a , por entre a n e g r a
multidão, n u m a levada de cores vivas. A o an-
d a r , e n f u n a v a m - s e as capas roçagantes e os
s o m b r e i r o s g a r b o s o s ; e ouviam-se as e s p a d a s
c o m seus p u n h o s d o u r a d o s , batendo em tilln-
tins a g u d o s .
J á P e d r o Alvares, os capitães das n a u s e as
p e s s o a s mais gradas da c o m p a n h a se a j u n t a v a m
na e r m i d a .
C e l e b r a a missa pontifical o bispo de C e u -
ta, D. Diogo Ortiz, matemático e c o s m ó g r a f o ,
18-1
PEDFO A L V A R E S CABRAL

q u e auxiliara D. J o ã o II n o p l a n o d o s desco-
b r i m e n t o s e c o n h e c i a o s altos s e g r ê d o s d a na-
ç ã o . M a i s u m a vez a c o n t i n u i d a d e do p l a n o se
afirmava na figura q u e ia s a g r a r , à p a r t i d a , o
capitão-mór da expedição.
A c a p e l a da e r m i d a , a r m a d a c o m p a n o s d e
c ô r e s r ú t i l a s , r e g o r g i t a v a da g e n t e n o b r e , d e ca-
p i t ã e s e n a v e g a n t e s . F a i s c a v a m na s o m b r a o s
elos dos colares, os borlados e guarnimentos
d e o i r o e p e d r a s finas. J u n t o do R e i . a g r u p a v a m -
-se, p o r c e r t o , o d u q u e I). J o r g e , filho do Prín-
cipe Perfeito, D. A l v a r o de B r a g a n ç a e o C o n d e
d e P o r t a l e g r e , q u e vinham ver t a m b é m o s s e u s
n a v i o s , o A l b u q u e r q u e , p a r a a b r a ç a r o sobri-
n h o p e l a ú l t i m a vez, o A l c á ç o v a , que r e d i g i r a
as i n s t r u ç õ e s , A i r e s G o m e s da Silva, o R e g e -
dor, o Gama, D. F r a n c i s c o d a A l m e i d a , e a
fiôr d a fidalguia c o r t e s ã . E n ã o h a v i a m d e ficar
distantes, entre a gente que a c o m p a n h a v a a
c o r t e , o M a r c h i o n i , o S e r n i c h e , o Sal vago e o s
demais opulentos parceiros d o s validos reais,
na expedição.

Junto do a l t a r , d o l a d o da e p i s t o l a , ruti-
lava o sólio e p i s c o p a l , c o m seu docel f r a n j a d o
d e o i r o , l a d e a d o p e l o s a s s e n t o s mais h u m i l d e s
dos acólitos. Do l a d o d o e v a n g e l h o , v e r g a v a e
fulgia a credencia com os vasos d o u r a d o s , as
p r a t a s e as alfaias, q u e s e r v i a m à c e l e b r a ç ã o d o
s a c r i f í c i o . O b i s p o , de c a p a m a g n a e m i t r a a
oiro e p e d r a s p r e c i o s a s , a v a n ç o u p a r a o a l t a r ,
if)b 18O E X P E D I Ç Ã O DE

e m p u n h a n d o com a p r u m a d a m a j e s t a d e o b á c u l o
d o i r a d o , ladeado d o s acolitos e p r e c e d i d o d o s
c e r o f e r á r i o s , t u r i f c r á r i o s e do p o r t a - c r u z , c o m
os capitulares de c a p a s r o ç a g a n t e s . S o b r e o
altar, p a r a m e l h o r vista da assistência, e n q u a n t o
d u r o u a c e r i m o n i a , esteve a r v o r a d a a b a n d e i r a
da cruz da o r d e m de Cristo. U m cheiro es-
p e s s o a cera e incenso entontecia. L e n t o s , os cân-
ticos dos p a d r e s a b i s m a v a m os h o m e n s e m me-
ditação. P r e g o u D o m Diogo Ortiz, glorificando
aquela santa e m p r e s a e louvando e incitando
P e d r o A l v a r e s C a b r a l e os seus c o m p a n h e i r o s ,
com o e x e m p l o de quantos o t i n h a m p r e c e d i d o
no h e r o i c o e s f o r ç o . C á f ó r a , a m a t a l o t a g e m
d e s c o b e r t a , que se apinhava á e n t r a d a da er-
m i d a , e s c u t a v a em silêncio ou m e s u r a v a c o m
as f r o n t e s e m sinal de assentimento. E d e n t r o
d a cortina real, ao lado do m o n a r c a , C a b r a l ,
s o l e n e m e n t e a d e r e ç a d o , m o s t r a v a no r o s t o grave
e' s o m b r i o de i m p a l u d a d o u m a f u n d a e a r d e n t e
c o m o ç ã o . E r a s n o v a s , cheias de glória p a r a
os h o m e n s , a l v o r a d a s de le, antevisões de im-
périos, anúncios em boca de p r o f e t a , p o r m a i s
imaginoso, nunca ouvidos, r e l a m p e j a v a m das
p a l a v r a s i n s p i r a d a s do bispo. Muitos olhos
abriam-se de p a s m o ; e u m a r r e p i o de e n t u s i a s m o
heroico c o r r i a à Hor das a l m a s .
F i n d a a m i s s a , o bispo lançou a bênção a
P e d r o A l v a r e s e igualmente benzeu a b a n d e i r a
de C r i s t o , q u e o R e i solenemente lhe entregou,
PEDFO ALVARES CABRAL
18-1

colocando-ihe t a m b é m na cabeça um barrete


bento, que o P a p a lhe m a n d a r a . Depois fez-se
u m a solene p r o c i s s ã o de relíquias e cruzes p a r a
a c o m p a n h a r P e d r o Alvares ao e m b a r q u e . Se-
guia. a frente o bispo, ladeado dos acólitos e
precedido do porta-cruz e dos c a p i t u l a r e s ;
i c o m p a n h a v a m - n o os freires de C r i s t o , com as
tochas na m ã o ; e, e m p ó s o Rei, que conser-
vava ao lado P e d r o A l v a r e s C a b r a l , seguía-se
a côrte, os o u t r o s capitães e os tripulantes des-
c o b e r t o s ; a t r á s o povo a c o m p a n h a v a os cân-
ticos. em côro.
A imensa voz religiosa r e b o o u pelas praias.
U m a fé sublime alagava os peitos rudes e bor-
bulhava em l á g r i m a s nos olhos.
N a orla da á g u a , o Rei, a d e s p e d i d a , reco-
mendou u m a última vez, com palavras ami-
gas, a C a b r a l , a a r m a d a e os tripulantes. E de-
pois que o capitão-mór e os o u t r o s capitães lhe
b e i j a r a m a m ã o , t o d o s c o m e ç a r a m de entrar
para os bateis. A s colchas dos b a r c o s , as ban-
deiras, e s t a n d a r t e s e librés c o b r i a m de cores o
Tejo, que, no dizer de J o ã o de B a r r o s , «não pa-
recia m a r , m a s um c a m p o de flores, com a prol
daquela mancebia juvenil, que e m b a r c a v a » . N o s
bateis, que a c o m p a n h a v a m os que iam p a r a o
m a r , s o p r a v a m , g e m i a m , b a t u c a v a m , retiniam,
num alarido b á r b a r o e atroante, as t r o m b e t a s ,
os a t a b a q u e s , os sestros, as f r a u t a s , os tambo-
res.
l18o KXPEDIÇÁO De

E r g u e r a - s e , c o m o é de uso, a t a r d e p a r a a
b a r r a , u m vento íino e sacudido. E s c u r a s , as
n a u s boiavam mais na urna azul do rio, e s o b r e o
trigueiro treu das velas oscilando sangrava a
cruz de C r i s t o , e m b l e m a do sacrifício e t e r n o
do H o m e m pelo h o m e m . Gaivotas, b a n d a -
das pelo alto, t r a ç a v a m em volta os augúrios
heroicos. A m a r i n h a g e m encostada as a m u r a s ,
ou d e b r u ç a d a das v a r a n d a s , das janeladas e
g r a d e s dos chapiteus, sacudia nas m ã o s c o m
saiidoso d e s g a r r o as c a r a p u ç a s encarnadas. Dir-
-se hia que o clarão apoteótico do ocaso nascia
dos corações em fogo. S ô b r e as cobertas d o s
navios, as pontas das lanças fulgiram, peia ul-
tima vez, a luz do poente. E na t e r r a , os an-
daimes da catedral do M a r , em construção,
cresceram no crepúsculo, a r r a n c a r a m da som-
b r a , e figuravam um arco de triunfo g : g a n t e s c o ,
alevantado sôbre aquêle povo. O p r o p r i o Ve-
lho do R e s t e l o , se de novo olhava da praia os
que p a r t i a m , havia de louvar a g o r a a sublime
e nunca vista e m p r e s a .
Mas, ao cerrar-se a tarde, a t u r b a d e b a n d o u e
o vento começou a s o p r a r com mais violência.
Na praia a g o r a apenas os vultos e r m o s das m u -
lheres, a r r a n c a d a s aos últimos a b r a ç o s , e des-
g r e n h a d a s pelo a r r e p i o vesperal, c o m e ç a v a m
de b r a d a r ou de c h o r a r baixinho. As b a n d e i r a s ,
as flâmulas, 'as latinas agudas das m e z e n a s ,
d r a p e j a r a m mais ansiosas, c o m o se as sacudis-
PEDFO A L V A R E S CABRAl 18-1

s e m m ã o s convulsas de q u e m grite ou soluce.


A s velas d o s m o i n h o s , n u m sobresalto súbito,
g i r a r a m c o m mais fôrça, qual se na s o m b r a os
m o n t e s , c o m o v i d o s , acenassem, acenassem tam-
bém p a r a dizer adeus.
Q u a n t a s daquelas naus, quantos daqueles
h o m e n s não mais t o r n a r i a m a ver estes ceus,
éstes m o n t e s , estas a g u a s !
S ó no dia seguinte a a r m a d a havia de p a r t i r .
R a r o s f e c h a r a m o l h o s nessas ultimas h o r a s .
toda
a noite o vento, n u m a exaltação, asso-
VIOU pelas e n x á r c i a s , - nos cabos e amanti-
Ihos, nas betas, nas driças, nos ostingues,
c o n t r a as escoteiras retezados, tangendo c o m o
em o u t r a s tantas c o r d a s daquelas treze liras,
c o m g e m i d o s lancinantes, a balada s a u d o s a
das wagens.
CONCLUSÃO

Iniciou P e d r o Alvares C a b r a l os dois actos


políticos mais g r a n d i o s o s de toda a nossa his-
toria, d império económico do Oriente e a
colonização do Brasil. C o m o hoje do primeiro
quasi que só r e s t a m , padrões da vasta rota, as
nossas colónias africanas, os historiadores con-
t e m p o r â n e o s ligam-lhe o nome, por via de re-
gra, apenas ao segundo desses feitos.
N ã o obstante, o alcance da viagem de P e d r o
Alvares, dentro da sua época, p r o v é m de que
ele revelou a K u r o p a , em toda a g r a n d e s a m a -
gnírica, o plano nacional dos descobrimentos,
tão longa, e ocultamente conduzido e realizado.
Lie inicia de lacto com a primeira expedição a
índia de carácter comercial, o império econó-
mico p o r t u g u ê s , que aproveitando a base naval
do Brasil e o oiro da Mina e de Sofaia, vai
d o m i n a r todo o comércio do O r i e n t e . K, tanto,
c o m o um plano da nação, realiza desta sorte
uma aspiração multisecular da E u r o p a . O sonho
comercial da burguesia medieva encarna emfim
18o 2<)6 EXPEDIÇÃO DE

no nosso navegante. Nem o acto da posse e do


b a p t i s m o d e V e r a Cru/., p o r êle r e a l i z a d o , e as
o r i g e n s d a n a ç ã o b r a s i l e i r a se p o d e m inteira-
mente compreender, sem que os encaremos
neste l a r g o â m b i t o de h i s t ó r i a .
Intuitos comerciais s o b r e l e v a v a m no plano
dos descobrimentos portugueses. E o descobri-
m e n t o da A m é r i c a foi u m a c o n s e q ü ê n c i a d a pro-
c u r a do c a m i n h o m a r í t i m o p a r a a í n d i a ; derivou
c o m o um complemento daquela e m p r e s a formi-
d á v e l , que d u r a n t e séculos p r e o c u p o u a E u r o -
pa. Portugal quis guardar-se, c o m o f r u t o es-
c o l h i d o d o seu c o n h e c i m e n t o o c u l t o e a custa
de c e d e r a g l o r i a de p r i o r i d a d e n e s s e d e s c o b r i -
m e n t o , a p o s s e do Brasil.
Diminui e m g r a n d e z a a o r i g e m d a n a ç ã o brasi-
leira, pela s u a i n s e r ç ã o n u m a e m p r e s a de cará-
cter c o m e r c i a l ? N ã o o c r e m o s . E s s a o r i g e m sai
a s s i m d o s d o m í n i o s do a c a s o p a r a a intenciona-
/ lidade d u m p l a n o nacional. V e j a m o s o que se
propunha, na essência, ésse g r a n d i o s o plano.
Pretende <> m a t e r i a l i s m o histórico explicar
pelos factos económicos toda a história humana.
S e g u n d o e s s a escola filosófica, s ã o as n e c e s s i d a -
d e s de o r d e m material e os meios inventados
p a r a as s a t i s f a z e r , que o r i g i n a m e t r a n s f o r m a m
as instituições sociais. N o p o l o o p o s t o , s u p õ e a
c o n c e p ç ã o idealista que a h u m a n i d a d e t r a z e m
si u m a idea p r é v i a de justiça e d e d i r e i t o e se
move n u m c a m i n h o p r o g r e s s i v o d e civilização,
PEDFO ALVARES CABRAL
18-1

nao pela t r a n s f o r m a ç ã o mecânica dos m o d o s de


p r o d u ç ã o , m a s sob a influência daquele ideal.
P e n s a m o s , à maneira de tantos, que as duas
concepções se p o d e m e devem conciliar. Se a
o r g a m z a ç a o económica da sociedade influi po-
d e r o s a m e n t e na sua concepção m o r a l e direcção
gerai da sua vida, não é menos verdade
que os sentimentos e as ideas generosas são
igualmente factores da história h u m a n a .
N o u t r o capitulo afirmamos que os Descobri-
mentos p o r t u g u e s e s vieram r e s o l v e r u m p r o b l e m a
económico da E u r o p a . J á um dos mais claros
e p e n e t r a n t e s espíritos c o n t e m p o r â n e o s , num
estudo sobre a Conquista de Ceuta, fundando-
-se no exame crítico duma das fontes respecti-
v a s , a Crônica da Conquista de Ceuta de Azu-
r a r a , defende, com um r a r o poder de lógica, a
hipótese de que a iniciativa daquela e m p r e s a ,
longe de pertencer aos Infantes, partiu da bur-
guesia comercial de carácter cosmopolita ( i ) .
Motivo? « C o n q u i s t a r Ceuta era o primeiro
p a s s o decisivo p a r a a solução do p r o b l e m a
em que se empenhava o alto comércio: o do
tráfico do Oriente». Na verdade em quási toda
a E u r o p a a burguesia comercial p r e d o m i n a v a .
F l o r e n ç a , o mais civilizado dos estados con-
t e m p o r â n e o s , era uma republica de mercado-

0 ) António Sérgio, Ensaios.


18o 2<)6 EXPEDIÇÃO DE

res. N o norte da E u r o p a , p a r a onde logo após


as c r u z a d a s se deslocara do M e d i t e r r â n e o o cen-
t r o da actividade comercial, f u n d á r a - s e a Liga
H a n s e á t i c a , estado único, no g é n e r o , de o r i g e m
e p r o p ó s i t o s m e r a m e n t e m e r c a n t i s , m a s que ar-
m a v a e s q u a d r a s , construía f o r t a l e z a s e movia
g u e r r a s p o r conta p r ó p r i a . Desde o século xiv
que as n a ç õ e s italianas c o n c o r r i a m , fazendo es-
cala p o r L i s b o a aqueles p o r t o s de comércio.
A c r e s c e que naquela época os c o n q u i s t a d o r e s
m a o m e t a n o s do E g i p t o e da Asia Anterior
a m e a ç a v a m cada vez mais o c o m é r c i o europeu
c o m a Asia e que, p o r ésse m o t i v o , os italianos
a s p i r a v a m desde os fins do século xin a desco-
b r i r um caminho m a r í t i m o p a r a o O r i e n t e . A
u m a dessas tentativas já noutro logar nos
referimos.
Além disso f o r a m os d e s c o b r i m e n t o s portu-
gueses p r e c e d i d o s das i n ú m e r a s viagens por
t e r r a , em especial as de M a r c o P o l o e Nico-
lau Conti, que mais p a r t i c u l a r m e n t e d e r a m a
Europa o conhecimento das riquezas orien-
tais.
D u r a n t e longos séculos, a E u r o p a sonha e
t r a b a l h a na e m p r e s a que nós h a v e m o s de rea-
lizar. P e l o que diz respeito a arte de navegar,
se nós conseguimos mais t a r d e desenvolvê-la
l a r g a m e n t e e dar-lhe um c a r a c t e r nacional, sa-
be-se hoje, pelos e s t u d o s de Steinchneidcr, que
à literatura árabe e judaica, se d e v e m , desde o
18-1
PEDFO ALVARES CABRAL

século xii, os conhecimentos de astronomia náu-


tica que h a v i a m de servir de base às nossas
primeiras n a v e g a ç õ e s ; assim c o m o aos catalães
os primeiros esforços donde havia de sair a
n o s s a sciencia cartográfica ( i j .
U m a vasta aspiração e p r e p a r a ç ã o h u m a n a ,
em que c o l a b o r a m os povos e raças mais diver-
sas, precede a nossa obra. K q u a n t o mais rece-
b e m o s e s o m o s dos outros intluidos, mais a
deante o f e r e c e m o s e inHuimos na H u m a n i d a d e .
P o s t o isto, t e r í a m o s nós obedecido apenas a
razões de o r d e m económica geral? N ã o ; ao
iniciar e realisar os Descobrimentos comunga-
m o s o mais elevado espírito da Renascença. K
antes, se r e c u a m o s o prólogo dessa e m p r e s a às
viagens t e r r e s t r e s ao O r i e n t e e às primeiras ten-
tativas de descobrir o caminho p a r a a índia,
devemos buscar-lhe as raizes espirituais no es-
t u d o de Aristóteles e no franciscanismo, que
durante a ultima parte da Ídade-Média tanto
contribuíram p a r a a p r o x i m a r o h o m e m da Na-
turêsa. O s alvores do renascimento p o r t u g u ê s
incorporam-se nesse g r a n d e ciarão espiritual.
O s recentes estudos de história de arte e das
sciências nesse p e r í o d o m o s t r a m que nós cami-
n h a v a m o s então ao lado dos mais civilisados

(i) Bcnsaudu. L'astronomie nautiqu<> au Portuga! J


1'époque des grandes découvertes.
2O6 EXPEDIÇÃO 1)E

p o v o s . S c p r o s e g u í a m o s c o m as n a v e g a ç õ e s al-
tos interesses económicos partilhávamos tam-
b é m a aspiração que animava os povos europeus
d e a l a r g a r a consciência h u m a n a e c o n h e c e r o
I T m v e r e i 1 \ n 1 : 5 , Tm Hik t r r n n r l e c e c t ' i r i i e t u t m i e
D

dirigiam a política comercial tivemos, alem


d u m a p l ê i a d e s ó h o j e c o n h e c i d a de g r a n d e s ar-
tistas, homens animados do mais puro espírito
scientífico. K a d e f o r m a ç ã o d a h i s t ó r i a , q u e fez
d o s D e s c o b r i m e n t o s u m a a v e n t u r a bélica, foi ao
ponto de travestir algumas das nossas mais
l í d i m a s f i g u r a s de s á b i o s , c o m o D u a r t e P a c h e c o
e D. J o ã o de C a s t r o , quasi a p e n a s c o m a c o u -
raça d o g u e r r e i r o .
Facto eloqüente, assistem à posse do Brazil,
os representantes do espírito e dos povos
que p r e p a r a r a m e auxiliaram a o b r a nacional
d o s D e s c o b r i m e n t o s . K m v o l t a do b e r ç o verde-
jante de selvas, impregnadas pelo hálito do
A t l â n t i c o , d o n d e a n a ç ã o b r a s i l e i r a surgiu, es-
tão representadas no acto s o l e n e e oficial d o
b a p t i s m o , ao l a d o da n a ç ã o q u e lhe vai d a r a
vida, com o sangue e o sofrimento, Génova e
F l o r e n ç a , que ali e n v i a m j u n t a s u m a n a u , C a s -
tela, que p a r t i l h a c o m n o s c o as g l ó r i a s d e s c o b r i -
d o r a s d o N o v o M u n d o , n a s p e s s o a s de S a n c h o
d e T o v a r e do físico e a s t r ó l o g o m e s t r e João,
os judeus c o s m o p o l i t a s na p i t o r e s c a figura de
G a s p a r d a Í n d i a , o f r a n c i s c a n i s m o , que inicia a
R e n a s c e n ç a n a c o m p r e e n s ã o e a m o r da n a t u r e -
PEDFO A L V A R E S CABRAL
18-1

za, nos oitos f r a d e s , a que preside F r . H e n r i -


que, e até o p r ó p r i o O r i e n t e asiático n o s fidal-
g o s m a l a b a r e s , que o G a m a trouxera a P o r t u g a l
e agora regressavam a índia.
O B r a s i l , n a s c e n d o de P o r t u g a l , na sua ple-
nitude e pureza m á x i m a s , q u a n d o atingíamos o
fastígio da nossa o b r a e antes de lhe s o f r e r -
m o s as terríveis conseqüências, nasce t a m b é m
d o c o r a ç ã o da R e n a s c e n ç a , dentro do seu livre
espírito cosmopolita, restringido apenas no que
êle afectava os interesses nacionais.
N u n c a nação algumas teve tão elevados pre-
núncios a propiciá-la na sua origem. N u n c a
nação alguma nasceu d u m esforço m a i s cons-
ciente, g r a n d i o s o e h a r m ó n i c o .
Isso p e r m i t e que ;i cereménia tocante do
b a p t i s m o , imortalizada, pela carta de C a m i n h a ,
p r e s i d a u m fidalgo, em cuja alma há u m quê
de angélico, t ã o elevado, generoso e enterne-
cido c o m o um p u r o símbolo da grei.
Desde logo a b o r d o da sua nau, p e d a ç o da
terra p o r t u g u e s a , d o r m e m os dois indígenas
brasilienses, e m b a l a d o s pela doçura do g r a n d e
capitão. F, se C a m i n h a fala dos dois degre-
d a d o s , que são f o r ç a d o s a licar em t e r r a ,
acrescenta que dois marinheiros, na véspera
da p a r t i d a , d e s e r t a r a m da a r m a d a , p o r se aco-
.Iher às selvas. U m dos espiões italianos, q u e
então viviam em L i s b o a , mais bem i n f o r m a d o ,
p o r v e n t u r a , sôbre o n ú m e r o dos d e s e r t o r e s , só
l18O KXPEDIÇÁO DE

mais tarde c o m precisão verificável, vai m a i s


longe e fala de cinco m a r i n h e i r o s , q u e f u g i r a m ,
atraídos pelo encanto da t e r r a ( i ) . A s s i m , desde
a origem, P o r t u g a l sagra t a m b é m a sua p o s s e
com a a t r a ç ã o irresistível dos n o s s o s pelas flo-
r e s t a s brasileiras.
E , se C a m i n h a r e p r e s e n t a v a ali a religiosa
.ternura lusitana, a alma lírica da grei, p a r a es-
crever a carta de origem d o Brasil, n ã o faltou
igualmente u m a figura vicentina, a de Diogo
Dias, «homem g r a c i o s o e de p r a z e r » , tocando
«um gaiteiro n o s s o com sua gaita» e d a n ç a n d o
com os indígenas, p a r a d a r àquela scena o
c a r á c t e r nacional d u m auto ou dum presépio
pastoril.

I i i «Meitero uri t e r m i n e il quale h o r a ha posto in uso


q u e s i o R e ; tutti c o l o r o quali nel suo r e g n o c o m m e t t o n o
c o s e digne de g r a u pena o v e r o di m o r t e , tutti quel li fa
p i g l i a r e ne a i c u n nc a m u z a , et servandoli col tempo gli
manda in questi lochi et insule r i t r o v a t e . et imponeli
q u e s t o , che se m a i per aicun tempo ritornarano de
dendê gli h a r a n o lassati per terra a L i s b o n a , p e r d o n a l i
el d e l i c t o . et f a l i n i e r c e d e de cinque c e n t o d u c a t i . m a
c r e d o io che rari ve ne ne t o r n a r a n o , benché i n u n l o c h o
c h e se c h i a m a Sancta C r o c e , per essere d i l e c t e v o l e di
bona aria et de d o l c i s s i m i lructi abondante, fugirno
c i n q u e m a r i n a r i dele n a v e dei Ke, et non v o l s e n o piu
t o r n a r e in nave. et li r e s t a r n o . »

Dispacci dalla S p a g n a , sub anno i5oi. Cancelieria


Ducale. Arquivos de Modena. Citado em Harrisse,
The Discovery of North America, p a g . 34b.
PEDFO ALVARES CABRAL
18-1

Bem longe d u m a o b r a de acaso ou de aventu-


r a , o a p o r t a r da f r o t a a Santa C r u z incorpora-se
assim n u m vasto plano nacional, m e t o d i c a m e n t e
previsto e realizado. P o r t u g a l , ao conceber, com
a inconsciência de todos os g r a n d e s c r i a d o r e s ,
a pátria brasileira, no zenite do génio e no es-
plendor do seu h e r o í s m o consciente, entregava-
-lhe com o seu nacionalismo tão disciplinado e
isento, a constância da vontade c o espírito or-
ganizador. g é r m e n s da sua f u t u r a grandeza
geográfica e espiritual. B r a z o n a v a m na origem
a kitura nação alguns dos mais p u r o s repre-
sentantes da fidalguia lusitana, a que alevantou
e defendeu o M e s t r e , com a fidelidade á terra e
a grei natal, elemento primário na génese dum
povo. O s sacerdotes franciscanos, representan-
tes do mais compreensivo e a b r a z a d o cristia-
nismo, erguiam-lhe nos f u n d a m e n t o s , para a
s a g r a r , o símbolo d u m a religião, que fòra o
melhor apanágio de h u m a n i d a d e , d u r a n t e toda
a Idade Média. Fixavam-lhe, sob os astros, a
posição no g l o b o , os melhores marinheiros e
c o s m ó g r a f o s do t e m p o . Pela voz e arte de Diogo
Dias, ecoavam-lhe desde logo pelas selvas os
cantos e músicas populares de P o r t u g a l . Rega-
vam-lhe o chão, n u m a indelevel afirmação de
lusitanismo, as primeiras lágrimas de saudade,
c h o r a d a s pelos olhos dos dois p o b r e s exilados.
C a m i n h a escrevia com emoção enternecida a
primeira página dos seus fastos. F. p a r a apa-
186 EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

drinhar a nação quo surgia com a R e n a s c e n ç a ,


P o r t u g a l levava as festas solenes do seu b a p t i s m o
u m a nau de M o r e n ç a , c o m o que a predestiná-la
p a r a as glórias da A r t e e a ansiedade divina da
Beleza.
S i m , bem longe das inspirações ou caprichos
do acaso, o Brasil nasce de nós, na plenitude
do sentido e d o ritmo, c o m o um p r i m e i r o canto
de epopeia.
DOCUMENTOS
[•PRO AUJAREZ IIK OOUUKA. CARTA HA CAP1TANYA

V.OÓR H PODERES QUE 1.EUOU QUANDO POY EN-

1JYAD0 AS .TMDIAS PER CAPITVM

[)om Manuel] etc fazemos saber a vos quapitaes ficlal-


guos caualeiros escudeiros meestres e pyllotos mari-
nheiros e companha e o f k i a e s e todas outras pesoas
que hvs e jnviamos na frota e armada que vav pera a
Irr.dia que nos pela muyta c o m f i a m ç a que T e m o s de
pedraluarj^ de guouuea fidalguo de nosa C a s a e p o r c o -
nheçermos delle que nysto e em toda outra coussa que
lhe e m c a r e g a r m o s nos saberaa muv bem scruir e nos
ilaraa de sv muy boa comta e R e c a d o lhe damos e
e m c a r r e g a m o s a Capitanya m o õ r de toda a dita frota
L armada P o r e m vollo noteticamos asy c vos mamdn-
•nos ;i todos em gee rali e a cada huú em espiçiall que
cm lodo o que per elle vos (for requcrjilo e da nossa
p a n e mamdado cumpraes e facaes jmteiramente seus
Rcquvrjmemtos e rnamdados asy e tam jmteiramente
... com aquela deligemcia e bom c u v d a d o que de vos
c o m í a m o s e o farves se per nos em pessoa vos fosse
dito e mamdado por que hasy o a v e m o s por bem e noso
seruiço e aqueles que asy o fezerdes e comprirdes nos
fares nysso muvto seruiço e os que o comtrario que
nam esperamos nos deseruiram m u y t o e lhe daremos
por cio aqueles castigos que por taes cassos merece-
rem «; Outrosv por que as coussas de nosso seruiço
186 EXPEDIÇÃO De PEDRO ALVARES CABRAL

sejam guardadas e Afeitas c o m o deuem em semelhamte


frota e armada e por tall que sejam castigados aqueles
que alguüs maüefiçios e delitos cometerem comtra noso
seruiço e em quaes quer outros cassos que acomteçer
possam per esta presenile lhe damos todo nosso jmteiro
.. ,...,1 .. J . I I . .
—. ^ via quai cm luuuiios cassus ataa morte
naturall vssaraa jmteiramemte e se daram ha emxuca-
çam seus juizos e m a m d a d o s ssem delle aver apelaçam
nem agrauo/ Porem este poder e allcada se liam em-
temderaa nas pessoas dos capitaes das naaos e nauyos
que com elle v a a o e fidalguos e outros que na dita frota
e armada emviamos quamdo alguús casos crimes come-
terem per que deuam ser castiguados por que sobre
estes ssoomemte se f a r a m os processos de seus cassos e
nos seram trazidos pera os vermos e segundo as cali-
dades delles seram ponydos e castiguados c o m o for
justiça e em testemunho de todo mamdamos fazer esta
c a r t a per nos asinada e aseelada do nosso sello a qual
em todo m a m d a m o s que se c u m p r a e guarde c o m o nela
se c o m t e m sem m j m g u o a m e m t o alguü. Dada em a nosa
cidade de lixboa a xb dias de feuereiro amtonio car-
neiro a fez anno de nosso S e n o r Jhuú x.° de mjll e qui-
nhentos.
Chancelaria de D. Manuel. U%. <}.'. U. w .
FRAGMENTOS DE INSTRUCÇÓES A PEDRO ALVARES
CABRAL QUANDO FOI POR CAPITÃO MÓR DE UMA
ARMADA Ã INDIA

J e s u s . Item tanto que, a Deus p r a z e e n d o , partirdes d a


A n g a d y v a , hirees v o s a v i a a n c o r a r d a v a n t e de C a l l e c u t ,
com vosas naaos juntas e m e t i d a s em grande h o r d e m ,
asy de bem a r m a d o s , c o m o de v o s s a s b a n d e i r a s e esten-
dartes, e as mais louças que p o d e r d e s ; e p o u s a r e s
n a q u e l e lugar, que s o u b e r d e s que he m e l h o r a n c o r a ç a m ,
e de mais s e g u r a n ç a das n a a o s . e a n e n h ú a s n a a o s que
hy a c h e e s . p o s t o que s a i b a e s que s e j a m das de M e c a ,
nem d a d i t a A n g a d y v a até C a l l e c u t , nam f a r e s nenhum
n o j o . ante as s a l i v a r e s , e lhe m o s t r a r e s todo b o o m ros-
tro e synall de paz e b o o a v o n t a d e , d a m d o de c o m e r e
b e b e r , e f a z e n d o todo outro b o o m t r a u t o , a todos aque-
les que as ditas n o s a s n a a o s v i e r e m ; teendo, p o r e m ,
r e s g a r d o que nam emtrem tantos juntos, que g a s t e m
m u j t o m a n t y m e n t o , nem d a s n a a o s sse p o s a m a p o d e r a r .
E , d e p o i s de a n c o r a d o s e a m a r r a d o s , e tudo c o n c e r t a d o ,
l a n ç a r e s f f o r a em huum b a t e l , B a l l t a s a r e estes o u t r o s
i n d y o s que levaaes, e, c o m eles, h u m par d h o m e n s , dos
que v o s p a r e c e r que tem pera e l l o d e s p o s i s a m e des-
c r i p ç a m , e m a n d a los es que v a á o c o m os d i t o s yndios
ao Ç a m o r y m , rey de C a l e c u t , e l h e d i g a m c o m o sem-
pre, nos tempos pasados, d e s s e j a m d o muyto d e saber
das cousas d aquellla teerra d a I n d i a e j e m t e s delia,
p r i n c i p a l m e n t e p o r serviço d e n o s s o Senhor, p o r termos
18o
6oo EXPEDIÇÃO DE •

e n f o r m a ç o que d i e e seus s ú d i t o s e m o r a d o r e s de seu


r e y n o s a m c h r i s t a ã o s e de n o s a fee. e c o m que d e v e m o s
f o l g a r de ter todo trauto a m i z a d e e p r e s t a n ç a , nos des-
p o s e m o s a e m v v a r a l l g u ü a s vezes n o s s o s n a v y o s a bus-
c a r a v i a da Y n d v a . p o r s a b e r m o s que os y n d y a u o s satr.
asy c h r i s t á o s . e omeens de tal fe, e v e r d a d e , e trauto,
que d e v e m ser b u s c a d o s , p e r a m a i s j m t e i r a m e n t e ave-
r e m p r a t i c a de nosa fee, e s e r e m n a s c o u s a s delia d o u -
trynados e e n s i n a d o s , c o m o c o m p r e a s e r v i ç o de Deus
e sallvaçam de suas a l l m a s ; e d e s p o i s , p e r a nos pres-
t a r m o s a t r a t a r m o s c o m elles, e elles c o m n o s c o , levamdi •
das mercadaryas de nosos regnos a elles n e c e s a r i a s , e
a s y t r a z e m d o das suas ; e que p r o u v e a D e u s , v i s t o noso
b o m p r e p o s i t o . que, a g o r a p o u c o t e m p o he, V a s c o da
G a m a , n o s o c a p i t a m , ffov em tres n a v i o s p e q u e n o s . e n t r a -
d o no m a r d a Y n d y a . teer a sua t e r r a , a a c i d a d e de C a l -
l e c u t , d o m d e os d i t o s jndios t r o u v e , p e r a deli es se a v e r
f a l i a e p r a t i c a , os q u a a e s lhe m a n d a m o s tornar, e per elles
p o d e s a b e r o que em n o s a s t e r r a s h a : e que, assy c o m o
Ih os m a n d a tornar, a s s y elle lhe d e v e m a n d a r p a g a r a
mercadarya que ao dito V a s c o d a G a m a per seu m a n -
dado deceo em terra e lhe f o y t o m a d a , e que nos deu
nova, principalmente d elle e de sua christindade e
booa tcnçam acerqua do serviço de Deus. e, d e s p o i s .
de s u a v e r d a d e e boom t r a u t o de s u a teerra, d o que
o u v e m o s m u y t o prazer. E d e t r y m y n a m o s e m v i a r a v o s ,
com e s t a s p o u c a s n a a o s , c a r r e g a d a s das m e r c a d a r y a s
que o u v e m o s e n f o r m a ç a m que ha s u a terra e r a m neces-
saryas e p r o v e y t o s a s . pc-a c o m elle asemtardes. em
n o s s o n o m e . paz e a m i z a d e , se elle a s y f o l l g a r de ha ter
comnosquo. c o m o c o n f v a m o s polio que o dito V a s c o
da G a m a nos dise ; e nos p a r e c e que elle deve f o l l g a r .
p o i s he R e y c h r i s t a ã o e v e r d a d e i r o ; p o r q u e , de nosa
paz e t r a u t o em sua t e e r r a , se l h e s e g u i r a g r a n d e p r o -
veyto. prtncipallmente p e r a ser e n s y n a d o e a l u m y a d o
<la fee, que hee c o u s a que m a i s que t o d a s se deue jstv-
PEDRO AI.VARES CABRAI. 7

mar; c , d e s p o i s , pellos g r a n d e s proveytos que avera,


das m e r c a d a r y a s que de n o s s o s r e y n o s e senhorios a
sua terra lhe m a n d a r e m o s , e nossos n a t u r a a e s lhe l e v a -
ram ; porque o que a g o r a v a y he ssomente p e r a a m o s -
t r a ; p o r q u e n a m s a b e e m o s se estas, o u o u t r a s , s s a m as
que se la m a i s querem. E , p o r q u e v o s f o l g a r y e e s de v o s
veer c o m elle, pera m a i s l a r g a m e n t e lhe dizerdes as
c o u s a s que de n o s a parte v o s m a n d a m o s que lhe f a l i a s -
seijs, e lhe d a r d e s nossas c a r t a s , e a l g u ü a s c o u s a s que,
de pressente, p o r c o m e ç o e s y n a l d a m i z a d e , lhe e m v y a -
m o s ; e que v o s pareçe que c o m o quer que d elle e sua
v e r d a d e t o d o se d e v a c o n f y a r , que nam devês sajr em
terra ssem v o s dar a r r e f c e n s pello que se fez ao dicto
Vasco d a G a m a , que f o y r e t h y u d o em P a n d a r a n e ; e
assy p o r certa m e r c a d a r y a n o s s a , que l e v a v a pera m o s -
tras, que em terra m a n d o u poher e lhe f f o y t o m a d a ; o
que c r e e m o s que nam f o y p o r s u a c a u s a nem c u l p a , m a s
p o r r e q u e r y m e n t o e m o d o s d a l l g ú a s jentes f o r a da f e ,
que ssem s e r v i ç o e gardada (sic) de s u a v e r d a d e n a m
d e s s e j a m ; e, p o r t a m t o , lhe p e d i j s que v o s queira dar as
dietas a i r e f e s , pera f i c a r e m em v o s a s nanos atee v o s a
elas t o r n a r d e s ; e que f o l g a r y e s , p e l l a e n f o r m a ç a m que
d elles temdes, que f o s s e m 11'. e f f . ; o s quaees v o s terees
toda m a n e i r a , que vos la b e e m p a r e ç e r , p e r a , per all-
g u u m dos n o s s o s que c o m os d i t o s Índios logo e m v i a r -
des, s s e r e m v i s t o s e c o n h e ç u d o s , de maneira que, e m -
v i a n d o os o dito rcy de C a l e c u t , p o s s a conheceellos, e
v o s n o m p o s a m em l u g a r deles meter o u t r o s , que n a m
s e j a m de s u a v a l i a e c o n d i ç a m , no que teres muy g r a n d e
r e s g a r d o ; e que, d a m d os elle, y r è s e m teerra e lhe d a r e s
o que o dito he, e t f a l í a r è s c o u s a s que elle m u y t o fol-
gara d ouvyr, e que lhe t r a z e r a m u y t o provevto e
h o m r r a , e que lhe pedijs que lhe n a m p a r e ç a estranho
pedirdes as d i t a s a r r e f e n s , p o r q u e asy he c o s t u m e d e s -
tes r e y n o s , que nenhum c a p i t a m principal! nom s s e
saya de sseus n a v y o s , e m l u g a r e m q u e ha paz n o m
•224 EXPEDIÇÃO DE

estee asentada, ssem a r r e f e e n s e s e g u r a n ç a , e que nesta


v i a g e m asy o fezeste s e m p r e : p o r q u e , posto que em all-
guuns lugares t o c á s s e i s , em que f o s t e s m u v b e m rece-
b i d o , e c o m v i d i d o pera s a y r em terra, o n om quisestes
f f a z e r neern fezerevs crn casso q u e a r r e f e e n s v o s dee-
rem ; mas q u e ho farès a elle. p o r ser c h r i s t á o e v e r -
t u o s s o , e porque v o s a elle c m v y n m o s . e q u e , ante de
v o s e m v i a r estas arrefens, pode c m v i a r s e g u r a m e n t e aas
ditas n a a o s seus f e y t o r e s e c a r r a n e s da terra, a o s q u a e e s
todas as n:iaos seram m o s t r a d a s , e as a r c a s e ( f a r d o s
abertos ; e veeram c o m o sara c h e a s de m e r c a d a r y a , e
que m a n d a m o s a elle m e r c a d o r e s p e r a lhe d a r p r o v e v t o ,
e que nam sam l a d r o e s , c o m o n o s f o v dito que lhe q j e -
ryam fazer a cmtemder. quando o d i t o V a s c o da G a m a
laa ffoy.
E . se v o l l a s deer, e m t a m , l e i x a n d o as d i e t a s a r r e f e e n s
em v o s s a s naaos e poder, h o m r r a d a m e n t e e m u y t o b e e m
tratadas, e poreem, com tanto r e s g a r d o . que se n a m
posam hijr. — hijrès em terra com dez ou xb (ó)
h o m e c n s , quaaes v o s m i l h o r p a r e c e r l e v a r d e s c o m v o s c o ,
os o u t r o s capitastes em s u a s n a a o s . e na v o s a n a a o .
hum c a p i t a m , todo asv a r e c a d o , que. do m a r nem d a
terra, as ditas n a a o s nam sse possa f a z e r nenhuum d a n o ;
e l e i x a n d o recado q a e . a l e v o s nam t o r n a r d e s as n a a o s ,
nenhüa jente nam vaa m a v s em teerra, n a m lançem
nenhúua cousa f o r a ; s a l i v o sse v o s m a n d a r d e s r e c a d o ,
per c a d a huum dos homens que c o m v o s c o ( o r a m , que
ho ( a ç a ; e e m t a m , y r e e s (aliar ao d i t o rev, e lhe d a r e e s
n o s s a s e n c o m e n d a s , e asy lhe o f e r e c e r e s a q u i l l o , que
p o r v o s Ih e m v i a m o s ; e lhe d i r e e s de n o s s a p a r t e , c o m o
desejamos sua amizade e c o m c o r d v a , prestança, e trato
em s u a terra, e que p e r a ello v o s e m v i a m o s la, c o m
aquelas n a a o s de m e r c a d a r y a ; e que lhe r o g a m o s que
elle dee hordem c o m o s e g u r a m e n t e nosas m e r c a d rvas
se p o s a m vender, e nos f a ç a dar c a r r e g a p e r a as ditas
naos, d espeçiarya e d a s outras m e r c a d a r y a s d a t e r r a ,
PEDRO AI.VARES CABRAI. 9

q u e p e r a c a s a m p r o v e y t o s s a s ; e dee h o r d e m c o m o as
a j a e e s per aqueles preços que na teerra e s t a m e sse
c o s t u m a m v e m d e r , de g u i s s a q u e , se allguuns m e r c a d o -
res hy estantes, d e s p r o u v e r de n o s o trato sse f a z e r hy,
num posam icei" f o r m a s de as n i e r e a d a n a s d a t e r r a as
f a z e r e m m a i s l e v a n t a r , d a q u i l l o por que elles as ham ;
e. se a v o s a c h e g a d a , as dietas m e r e n d a r i a s pellos es-
tantes f o r e m a t r a v e s a d a s , v o s f a ç a dar pelo p r e ç o as
que sejoin necesarias pera c a r r e g a r estas n a a o s ; ou,
sse a m t e s quisser o b r i g a r s s e sseu f e y t o r a per ssy sso-
mente v o s d a r torta a c a r r e g a que o u v e r d e s m e s t e r pera
as n a a o s , r e p a r t i d a per a q u e l a s partes e ssorte de m e r -
cadaria que lhe a p o n t a r e s , apontados os p r e ç o s das
s u a s , e de c o m o t o m a r a m as n o s s a s , a v o s v<.s p r a z e r a
de assy sse fazer por m a i s breve d e s p a c h o v o s s o , e
m a i s brevemente se f a z e r e m as m e r c a d a r y a s

em qualquer d estas que a s e n t a r d e s v o s ele p r o m e t e r e ,


ffeita, c o m e ç a r e s de m a n d a r v e n d e r a s m e r c a d a r y a s que
l e v a a e s , e asy c o m p r a r d a s que q u e r e s trazer, e que 110
c o m e ç o de vossas v e n d a s e trato, e ' ' e sentira q u e m
sooes e o proveyto que. a g o r a e ao diante, de nossas
n a a o s ha de r e c e b e r .
Item Amtes d yrdes a el rey, se vos for posyvel,
temde m a n e i r a de s a b e r sse os d i r e i t o s que se aly p a -
g a m das m e r c a d a r y a s que e n t r a m , e asy das que s a e m ,
sum estes, que N JS disse G a s p a r , de que l e v a a e s h ü u a
f o l h a ; e, a c h a m d o que he a s s y , dirès ao dito rey. que
v.>s fostes s a b e d o r c o m o em sua teerra ha g r a n d e s d e -
r e y t o s , e que v o s p a r e ç e , que a nos nom se d e v e m de
l e v a r tam g r a m d e s ; p o r q u e t e e m o s n o v a m e n t e e m v i a d o
a s u a terra, e no c o m e c o d o s t r a u t o s s e m p r e e m i o d a s
partes se c o s t u m a f a z e r e m q u y t a e f a v o r aos que v a á o
com mercadaryas; e que nos asy o c o s t u m a m is e m
em n o s s o s r e g n o s ; e, p o r t a n t o , v o s p a r e ç e que elle a s y
h o d e v e f a z e r a nos e n o s a m e r c a d a r y a , e a p o n t a y c o m
•224 EXPEDIÇÃO DE

ellc em algüua cousa r e z o a d a , que se h a j a de d a r de


c o m p r a e de v e n d a , d i z e m d o lhe que. p e r o o s e j a m e m s
do que os o u t r o s lhe p a g a m , ha de sser, p r a z e m d o a
D e u s , a c a n t i d a d e das n a a o s e m e r c a d a r v a s t a m t a , que
1'ne rendam os seus d i r e i t o s muvto mais. que agora
remdem. E. parecemdo v o s que o dito rev de C a l e c u t
neste c a s s o ssc peja em algúa maneira, e vos pareçer
que nam sav a v s s o a s s v bem. que esperes que nisso se
a p r o v e i t a r a , em tall cassçi. nam c u r a r e s de insistijr, e
n o r a lhe f a l l a r è s m a i s n i s s o , p o r q u e a b a s t a r a o que lhe
temdes f a l l a d o . por lhe nam p a r e c e r que p e r a y s t o le-
vaaes cousa d e t r v m v n a d a , e que perde a l l g ú u a c o u s a
dos direitos que os m o u r o s lhe d a m . E . se p o r v e n t u r a
r r e s c u s a r de v o s dar estas a r r e f e n s aquv n o m e a d a s , ou
outros t a a e s . de que t e n h a a e s e n f o r m a ç a m ç e r t a , que
sam de toda s e g u r a n ç a e pera r e c e b e r d e s , p e r a , so-
br c i l a s , v o s em p e s s o a s a y r d e s em terra, nam s a y r ê e s ;
e e m t a m , lhe m a n d a r e s a p o m t q r que, p o i s v o l l a s nam
q u e r dar. que v o s p a r e c e que n o m f o l g a tanto de lhe
fali ardes, e v e r e o u v j r n o s a s c o u s a s , c o m o nos p a r e c i a ,
e q u e . p o r y s s o , s e m e l l a s , v o s p a r e c e que nam d e v e s
s a y r em terra ; m a s que, pera se f a z e r o t r a u t o d a m e r -
e a d a r y u , e lhe sser l a l l a d o nas c o u s a s d ele e lhe l e v a r
o que lhe e m y a m o s p e r v o s . lhe pedijs que v o s q u e i r a
e n v i a r as n a a o s tres ou q u a t r o m e r c a d o r e s e p e s s o a s
pera ysso, ssobre as quaees enviares outras tamtas,
p e r a as d i t a s c o u s a s per ellas lhe e m v i a r d e s , e lhe f a lia-
rem de v o s s a p a r t e . E . e m t a m , e m v i a r ê s A y r e s C o r r e a ,
e, c o m e l l c d o u s dos s s e u s s p r i v a á e s huum d a r e c e i t a ,
e outro da d e s p e s a , e lhe m a n d a r e s o que lhe e m v i a -
m o s , e lhe fali aram no trato e asento d a m e r c a d a r i a e
dar d a c a r e g a . pella m a n e i r a que em ç i m a a p o m t a m o s
que lhe v o s a v y e s de d i z e r , v e n d o v o s c o m e l e ; e lhe
d i r a m que lhe p a r e c e g r a m d e e r r o e p o u c o seu s e r v i ç o ,
n a m d a r as a r r e f e e s q u e , pera s a y r em terra, lhe v o s
mandastes pedir, p o r q u e , se v o s c o m ele v v r e e s , lhe
PEDRO AI.VARES CABRAI. 22

d i s e r e y s c o u s a s m u y t o de seu s e r v i ç o , e asentarey-s a i y
huüa nosa c a s s a , e m a qual ficaram os c l é r i g o s c f r a d e s
que e n v y a m o s p ê r a lhe e n s y n a r e m a lee, e c o m o nela
ham de c r e r e se s a l v a r . E assv ficaram mercadaryas
de que eile recebera iiiuytu proveyto.--
omra... hirem a s u a terra o abastarem sseu ( $ k )
naturaes d a s c o u s a s i i e c e s s a r y a s . que as terras m u y t o
n o b r e c e m . E , se, t o d a v y a , elle se l a n ç a r de vos d a r as
ditas a r r e f e e n s p e r a , s o b r e ellas, v o s poderdes s e g u r a -
mente h y r em terra, e r m a m lhe p e d i r a m que, a q u e l a s
que as n a a o s m a n d o u , pera eles sobre ellas. h i r e m a
elle, a j a por bem e s t a r e m c o m v o s c o nas n a a o s . ate que
elles c a r r e g u e m .
Emtam asemtado vsto c o m o dito rey, em que nam
c r e m o s que a j a d u v j d a . c o m e ç a r a o dito A y r e s C o r r e a
de tirar suas m e r c a d a r i a s em teerru, e v e m d e r e c o m -
prar as que lhe p a r e ç e r e m proveytossas pera nosso
s e r v i ç o ; e nam pohera em terra toda a m c r c a d a r i a
junta, senam a q u e l a que p a r e c e r n e c e s a r y a pera se p o -
der v e m d e r , e e m p r e g a r o dinheiro que d e l l a p r o c e d e r
em o u t r a que l o g o sse v e n h a as n a a o s ; de m a n e i r a q u e
s e m p r e em t e r r a sse c o r r a o menos risquo que p o d e r d e s .
E m casso que o d i t o r e y d i g a que nom ha de d a r
arrefeens, porquamto elle o nam c o s t u m a f a z e r a n e -
nhuuLis, p o r q u e s u a t e r r a , pera todos aquelles q u e a
ella quisserem h i j r t r a u t a r , he c e r t a e s e g u r a , e que a s y
será a elles, sse n e l l a q u i s s e r e m decer, trautar. c o m p r a r
e v e n d e r , e q u a a e s quer o u t r a s p a l l a v r a s a este r r e s p c y t o ,
de m o d o que t o d a v y a se escusse de d a r as ditas a r r e f e s
asy pera sobre e l l a s v o s s a y r d e s , c o m o a t r a s he d y t o ,
c o m o outras pera s o b r e ellas f a z e r o d y t o A y r e s C o r r e a
ha m e r c a d a r y a d a c a r r e g a , e m tall c a s s o , v o s ihe p o d e r e s
m a n d a r tornar a dizer que, o que elle asy diz, s e r á m u v
g r a m d e v e r d a d e , e que v o s n a m credes que all se f a ç a ,
nem elle o c o n s s e m t a ; m a s que, posto que tall s e j a o
c o s t u m e seu e de s u a terra, e ysto que lhe r e q u e r e s d a s
•224 EXPEDIÇÃO DE

ditas arrefens, lhe p a r e e c a cousa n o v a , a v o s se d e v e


f a z e r o que lhe a p o n t a a e s , p o r q u e v o s , n a m s s o m e n t e
ssoes nem hjs m e r c a d o r c o m o os outros que a sua
terra v a á o de tam p e r t o , c o m o s a b e e s ; m a s que s o o e s
n o s s o c a p i t a m , e p r i n c i p a l m e n t e p o r nos e m v i a d o , c o m
f u n d a m e n t o de m u v t o a m o r . paz e a m i z a d e , p o r ser rey
c h r i s t a d o e tal, c o m que m u v t o o d e s s e j a m o s , e que
tantos annos e tempos ha que proseguymos, pello
f r u v t o principall de s e r v i ç o d e n o s s o S e n h o r , q u e d isso
se s e g u e , e sua s a l l v a ç a m d elle d i t o rey, e d o s de s u a
terra, pera que l e v a a e s todos os a p a r e l h o s e c o u s a s que
myudamente neste r e c a d o lhe p o d e r e s a p o n t a r , asy de
c l é r i g o s e f r a d e s , c o r o o de t o d a l l a s o u t r a s c o u s a s d esta
n e c e s y d a d e : e, d e s p o i s . pera q u e , ssobre a s c o u s a s d o
t r a u t o sse f f a z tall a s s e n t o e a c o r d o , c o m que p e r a os
t e m p o s v i m d o v r o s tique seguro e c e r t o , e se p o s s a f a z e r
com todo descamsso d aqueles que ao d i a n t e e m v i a r -
m o s . e poder asy p a s a r que s e m nenhuum r e c e o p o s a m
os nossos hyr a sua t e r r a , e o s seus v i j r a n o s s a , sse
comprvr.
E s e m d o c a s s o que o dito rev de C a l e c u t per nenhuum
modo nam queira vijr a d a r , asy as d i t a s a r r e f e e n s ,
nem pera v o s s a s a v d a em p e s s o a em t e r r a , nem p e r a o
dito A v r e s C o r r e a f a z e r s s o b r e c i l a s o n e g o c i o d a c a r -
r e g a da m e r c a d a r i a . c o m o a c i m a he a p o m t a d o , e m t a m ,
v o s lhe tornares ha e m v i a r dizer, que. a v o s v o s v o s (sic)
d e s p r a z m u v t o d elle assy o f a z e r ; p o r q u e n a m e s p e r a -
vejs que nisso o u v e (sic) p e j o a l l g u u m ; e que v o s d e s -
prSz ainda m u v t o m a i s , pello d e s p r a z e r que nos a v e r e -
m o s d aver, p o r hv nora a s e n t a r d e s nem f a z e r d e s c o m
elle as c o u s a s e n e g ó c i o s de n o s s a paz, a m o r e a s e n t o .
c o m o e s p e r a r m o s que se lizesse, pera o q u e , n a m s s o o -
mente v i n h e v s nem ereys por nos e m v i a d o , m a s a j n d a
pera despois de v o s a c a r r e g a t o m a d a , l e i x a r d e s hy em
s u a cidade n o s s o f e y t o r , e c o m elle ficar c a s a de n o s s a s
mercadaryas e outras p e s s o a s que, pera c o m elle fica-
PEDRO AI.VARES CABRAI. 223

rem na c a s a , l e v a v e y s h o r d e n a d a s ; de que a elle se se-


guyrya tanto p r o v e y t o , que recebesse, aliem d elle.
muyto c o n t e n t a m e n t o , por s u a terra ser m a i s a b a s t a d a
e a p r o v e y t a d a em suas n e c e s i d a d e s ; e que, p o y s elle
tanto p e j o tem cm c o u s a i a m p o u c a , e por que segura
tanto n o s o a m o r , p r e s t a n ç a e a m i z a d e , posto que d isso
se v o s sygn muyto d e s p r a z e r , pellas rezóes ja d v t a s ,
que v o s hirees loguo a C a l l e m u r . e hy f a r e e s v o s s o
a s e m t o , p a z , e asentarês v o s s o f e y t o r c c a s a , que p e r a
sua c i d a d e l e v a v e y s , e c o m elle c o m s e r t a r è s todas c o u -
sas p e r a que se s y g u a e f a ç a todo n o s s o s e r v i ç o , o q u a l
v o s s a b e e s que sse f a r a asy inteiramente, c o m ' e m s u a
c i d a d e , e p e l l a ventura, m a v s a b a s t a d o e c e r t o , e que
elle sabe que y s t o he assy v e r d a d e i r a m e n t e .
F., d e s p o i s de a s s y m y u d a m e n t e c o m o mais que so-
bre y s t o v o s p a r e c e r , segundo o que la mais s o u b e r d e s ,
veemdo que elle nam se m u d a pera o fim que aly que-
r e m o s , e m t a m , p a s a d o a l l g u u m dia ou dias, c o m o v o s
m i l h o r p a r e c e r , ainda que nisto deve a v e r p o u c a s d i l a -
ç õ e s , p e l l o s p e j o s que sabees que d isso se s s e g u e m , —
emtam lhe t o r n a r e s a m a n d a r dizer que, posto que te-
nhaes c e r t e z a que nosas c o u s a s e nosso serviço sse
farva muy jmteiramente em C a l e m u r , e aly p o s a m o s
teer m u y s e g u r a nosa c a s s a e f e y t o r , v o s pello d e s p r a -
zer que s a b e e s que d isso r e c e b e r e m o s , p o r a elle p r i m -
c i p a l m e n t e v o s e m v i a r m o s , e antes q u e r e r m o s c o m elle
paz, a m i z a d e e asento, que c o m o u t r o nenhuum r e y d a
Yndya, d e t r y m y n a e s , p o s p o e m d o todo p r a s m o que d o s
v o s s o s , neste c a s s o , p o s s a a e s receber, f f a z e r d e s com
elle v o s s a m e r c a d a r y a , e t o m a r d e s em s u a c i d a d e s u a
carrega; e c o m esta d e t r y m i n a ç a m d e r r a d e i r a , e m v i a -
rês em t e r r a A y r e s C o r r e a e seus s p r i v a ú e s , o s q u a e s ,
em c a d a huüa d a s m a n e i r a s a t r a s a p o n t a d a s , t r a b a l h a -
r a m d a v e r e c o m p r a r as m e r c a d a r y a s de v o s a c a r r e g a ,
c o m h a m a i s b r e v i d a d e e b o o m d e s p a c h o que p o d e r e m ,
f a z e n d o c o m a m a y o r s e g u r a n ç a que v o s la bem p a r e -
•224 EXPEDIÇÃO DE

c e r , e virdes que c o m p r a p o r m a i s c e r t o r e c a d o d a s
c o u s a s de nosso s e r v i ç o .
E , e m q u a n t o nestas negociacoes e falias andardes
com o d i t o rey de C a l l e c u t , t r a b a l h a r v o s es, per q u a l -
tsrtcnpç (V ssnher sse n o d e s a v e r
quel iiiouu q u e iii.iiivy. — 1
carrega em C a l l n u r p e r a v o s s a s n a a o s , e a s s y , se, que-
r e m d o v o s 11a p a s a r e a s e n t a r v o s s a c a s s a , sse p o d e r á
f a z e r c o m nosso s e r v i ç o , e seres la b e m r e c e b i d o , e
a s s y , sse pera o diante, a s e n t a n d o hy, p o d e r a m sser se-
guras t o d a s as c o u s a s , asy pera a c a r r e g a d o s t e m p o s
vyndoyros, c o m o d a e s t a d a do n o s s o f e y t o r , e toda
o u t r a e n f o r m a r a m , s e m e l h a n t e , pera que, n o m s o o m e n t e
p o s a e s ser e n f o r m a d o no que la a j a e s de f a z e r , m a s
a j n d a pera d isso p o d e r d e s trazer jnteira e c e r t a e n f o r -
m a ç a m , quando em b o o a (sic) vierdes.
I t e e m , p o r q u a n t o nesta m a n e i r a , nom s a y m d o a j c m t c
f a z e r s u a s m e r c a d a r y a s , se s s e g u y r i a i n c o n v e n i e n t e , ter
sse ha esta m a n e i r a , s a b e r : o d i c t o A y r e s C o r r e a c o m -
p r a r a toda a e s p c ç i a r y a que as d i t a s p a r t e s q u i s s e r e m
c o m p r a r , as q u a a e s lhe e n t r e g a r a m suas m e r c a d a r y a s ,
pera per ellas as a v e r , e dar lha a pellos p r e ç o s p o r
que a p o s s a c o m p r a r , ssem nisso aver n e n h u m o u t r a
m u d a n ç a , segundo mais compridamente em seu r e g y -
m e n t o ' s e d e c r a r a ; e, se pella v e n t u r a p a r e ç e r que esto
' sera gramde trabalho ao dito A y r e s C o r r e a , e que ho
n a m p o d e r á s s o f r e r . pello que h a de f a z e r no n o s s o ,
e m t a m v o s c o m elle e seus s p r i v a ã e s e m b j e r e s h u u m
f e y t o r . que pera ello vos p a r e ç a m a i s auto e pertecente
e ser lhe a h o r d e n a d o huum s p r i v a m , o quail a c o m p r a
da especiarva das ditas partes f a r a das m e r c a d a n a s
que d e l l a s ' r e c e b e r , p a s s a m d o em tall h o r d e m , que se
f a c a t o d a v e r d a d e , e se n o m s y g a as p a r t e s nenhuum
engano, semdo o tal feytor, porem, sempre acordado
c o m o d i t o A y r e s C o r r e a , no p r e ç o d a s m e r c a d a n a (sic)
asy d a s n o s s a s que v e n d e r , c o m o d a s q u e na t e r r a c o m -
prar E quanto a a s o u t r a s m e r c a d a r y a s m y u d a s de pe-
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

d r a r y a e outras, pera estas ssera hordenado huum o u t r o


f e y t o r , em c a d a n a a o , que venha em t e r r a , s a b e r : c a d a
d i a , huum f e y t o r de c a d a n a a o huum d i a , e l a c a a c o m -
pra das taaes m e r c a d a r y a s , e v y r a cada dia dormyr a
n a a o ; e, nesta m a n e i r a , sera p r o v v d o a h u ú a c o u s a e
o u t r a , c o m s e g u r a n ç a de nosso s e r v i ç o . E sse f o r c a s s o
que el rey de C a l l e c u t v o s dee as a r r e f e n s atras a p o m -
t a d a s , s s o b r e que avees de s s a y r em terra, p e r a lhe f a l -
l a r d e s e dardes n o s s o presente, e f a z e r d e s o m a i s que
atras vos he a p o m t a d o , em tam, vendo que as c o u s a s
p a s s a m em tall h o r d e m , que sejam f e c t a s c o m t o d a se-
g u r a n ç a , e que elle e s t a r a nellas c e r t o , e se nam p o d e -
r y a seguyr j n c o m v e n i e m t e o que todo b e m p o d e r e s sen-
tyr pellos m o d o s e m e y o s dos n e g o ç i o s , e todas o u t r a s
c o u s a s que bem o p o d e r a m m o s t r a r , — dir lhe ès que
nos v o s n o m e m v i a m o s a elle pera ssoomente esta p r i -
meira viajem com elle f a z e r d e s nosa paz e a m i z a d e , e
a s s y nella c a r r e g a r d e s n o s a s n a a o s que l e v a a e s d a e s p e -
c i a r y a e c o u s a s d a Y n d y a e de sua t e r r a ; m a s p e r a que
l o g u o em s u a ç i d a d e leixees e fique n o s s o f e y t o r e c a s a
de n o s s a s m e r c a d a r y a s e p e s s o a s outras que nella a j a m
de ficar, e a s s y c l é r i g o s e f r a d e s , e as c o u s a s d a I g r e j a ,
p e r a que n o s a fee lhe s e j a asy jnteiramente m o s t r a d o e
ensynada que possa nella ser d o t r i j n a d o , c o m o fyel
c h r i s t a á o , no que e l l e sentyra quanto a m o r lhe t e e m o s ,
e d e s s e j a m o s t o d o s s u a a m i z a d e e p r e s t a n ç a ; e que lhe
lhe p e d i j s q u e , p e r a s u a ficada, elle v o s ordene e m a n d e
dar casas em que s e j a a p o u s e n t a d o , e tenha c o m t o d a
segurança s u a s m e r c a d a r i a s e as p e s s o a s que c o m elle
h a m de ficar; e que p e r a elle, e todos os que c o m elle
ficar, e a s y as m e r c a d a r y a s que lhe l e i x a r d e s , fiquem e
s e j a m s e g u r o s em todos t e m p o s ; de que v o s m a n d e d a r
s u a c a r t a , e toda o u t r a s e g u r y d a d e , tall c o m o s s o u b e r -
des que he usso e c o s t u m e d a terra. E , d a n d o v o s a s s y
o d i t o rey de C a l e c u t estas s e g u r a n ç a s , e q u a e s q u e r o u -
tras que la s e n t a r d e s que d e v a e s r r e q u e r e r , p e r a m a i o r

l5
EXPEDIÇÃO DE
•224

segurança da ficada d o dito f e y t o r , s e g u m d o o que la


milhor poderdes s a b e r , p e l o c o s t u m e da terra, f i c a r a o
d i t o f e y t o r e m a dita c i d a d e c o m as m e r c a d a r y a s . . . . .
s s o b e j a r e m d a c a r r e g a e assy d o toda a m a i s e s p e c t a -
, i Hir lhe ês a u e , p o i s
na-... o r a e n a u u p c i " j u u " ' ! - —- " » - .
a s y l e i x a a e s o dito f e y t o r e p e s s o a s outras, e asy n o s a s

m e r c a d o r i a s , a que rnuy p r i n c i p a l m e n t e f o m o s m o v y d o
p o r elle c o n h e c e r c o m q u a n t o d e s s e j o de s u a a m i z a d e
e p r e s t a n c a e s t a m o s , e q u a n t o c o m ella s e m p r e nos he
de p r a z e r ! que lhe p e d i j s que q u e i r a e m v i a r c o m v o s c o
allcuúas p e s s o a s h o m r r a d a s que nos v e n h a m ver, p e r a
que n o m ssoomente vejam a nos e a nossos r e y n o s ,
mas, ajnda pellas o b r a s , h o n r r a s e m e r ç e s , que de nos
r e c e b e r a m p o s a m m i l h o r sentijr a v o m t a d e que t e e m o s
p e r a elle c s u a s c o u s a s ; e t r a b a l h a r v o s es de as trazer,
e, t r a z e m d o , as r e c e b e r a m de v o s toda h o n r r a e b o o m
t r a u t o , q u e seja p o s y v e l . _
E se f o r c a s s o que v o s n a m s e j a m d a d a s nenhuas d a s
a r r e f e e n s p o r nenhuum d o s m o d o s a t r a s a p o m t a d o s , e
d e n e c e s s i d a d e a j a a e s de t r a b a l h a r p o r aver a c a r r e g a
das n a a o s . na f o r m a a t r a s s c r i p t a , per h o m d e c r a r a -
mente s s e m t i r e s e veres que n o s s o feytor e m e r c a d a n a ,
c asv as o u t r a s p e s s o a s que c o m ele v a á o h o r d e n a d a s
per:' ficarem, nam d e v e m ficar s e g u r a s na d.ta c . d a d e
d e C a l l e c u t . em tal c a s s o , d e p o i s de nossas n a a o s c a r r e -
a d a s , lhe e m v i a r ê s dizer que v o s levaveijs p r e p o s . t o , e,
a j n d a . n o s s o m a r , d a d o , de a l y l e i x a r n o s s o f e y t o r e c a s a
de nossas m e r c a d a r y a s . c o m o no c a p i t u l o a t r a s se de-
c r a r a , c o m o mais que e m t a m vijrdes ; e, a s s e m t a n d o
vos asy a ficada do dicto f e y t o r , e as c o u s a s c o m o
dito rey de C a l l e c u t fiquem a c o r d a d a s , c o m todo sseu
prazer e nosso serviço, e vos, tomada vossa carregua,
p o r d e r r a d e i r o lhe d i r e e s , que elle deve ter ja c o n h e ç . d o
q u a n t a s e g u r a n ç a de n o s s a p a z e a m i z a d e s e e m p r e ha
de teer, a qual per n o s , e p e l l o s n o s s o s , em t o d o s tem-
p o s lhe s s e r a jmteiramente g a r d a d a . e c o m todo sseu
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

proveyto e beem de seus r e y n o e jentes d e l l e s ; m a s


que, p o r q u a m t o n o s teemos s a b i d o que em sua c i d a d e
tratam m o u r o s , j m i g o s de n o s a s a n t a fee, e a ella v e m
suas naaos e mercadarvas, com os q u a a e s , a s s y pella
ohrieacam mie a vscn dpvp r^r t-^a,.
'-I í -1 — J — - ' ivy ^ Cl L11U l l l ^ U ,

c o m o p o r q u e a nos veem q u a s s y p o r d i r e i t a s o b c e s s a m ,
p e l l o q u e m y u d a m e n t e lhe p o d e r e s a p o n t a r d a s c o u s a s
da guerra d a a l l e e m , nos teemos contjnuadamente
g u e r r a , p o r e m , que, por tal, que as c o u s a s g r a n d e s he
pequenas fiquem c r a r a s e c e r t a s , c o m o antre nos e elle
c o m v e e m , lhe f a z e e s s a b e r que, sse c o m as n a a o s d o s
ditos m o u r o s de M e c a t o p a r d e s no m a r , a v e e s de t r a -
balhar, quanto poderdes, p o r as t o m a r , e de s u a s mer-
c a d a r y a s e c o u s a s , e asy m o u r o s que nellas v i e r e m , v o s
aproveytar, como milhor p o d e r d e s , é lhe f a z e r d e s toda
guerra e dapnno que posaaes, como a pessoas com
quem tamta j m i z a d e , e tam a n t y g a , t e m o s ; e t a m b é m
porque comprimos com a q u e l o que a D e u s n o s s o S e -
n h o r s o m o s o b r i g a d o ; p o r e m , q u e s e j a c e r t o q u e , em
seu p o r t o , e d a v a n t e s u a c i d a d e , p o s t o que v o s as to-
pees, e a s y q u a a e s q u e r o u t r o s n o s s o s c a p i t a a e s , que a o
diante e m v i a r m o s , por lhe g a r d a r m o s o que em toda
c o u s a d e sseu p r a z e r e c o n t e n t a m e n t o s e m p r e a v e e m o s .
de f o l g a r , lhe nom f a r è s d a n o nem mall a l l g u u m , e
s s o o m e n t e lhe ssera asy f e i t o t o p a m d o as 110 m a r , c o m o
he d y t o , h o m d e elles a v o s , e a s s y aos n o s s o s que a o
diante a c h a r e m , a s y f a ç a m o que p o d e r e m ; e que s s e j a
a j u d a c e r t o , p o r s a b e r c o m o a elle e a suas c o u s a s ha
de ser g a r d a d o o que se d e v e c o m o a rey c o m que t a n t o
a m o r , p a z e a m i z a d e senpre a v e m o s de f o l g a r de t e e r ;
e que, t o m a n d o v o s , ou q u a e s q u e r o u t r o s n o s s o s c a p i -
t a a e s , a s ditas n a a o s , que t o d o s o s j n d y a n o s que n e l l a s
se a c h a r e m , e suas m e r c a d a r y a s e c o u s a s , n o m se f a r a
n o j o n e m d a p n n o , antes t o d a h o m r r a e b o o m t r a u t o , e
seram seguros d isto p e r a l i v r e m e n t e c o m todo o s s e u
serem leixados; porque ssoomente a o s ditos mouros
•224 EXPEDIÇÃO DE

sera f e i t a a g u e r r a , c o m o a j m v g o s que s a m n o s s o s ; e
a j n d a nos p r a z que. p o i s elle pode e s c u s a r estes m o u r o s
em s u a s t e r r a s e trato d e l l a s , p o i s p r o u v e a n o s s o S e -
nhor que de nos e de n o s s o s r e c e b e s s e todo o p r o v e y t o
que d elles ate ora o u v e . e a j u d a m u y t o m a i s , q u e s e n a
beern. e s e r v i ç o de Deus. e p o r q u e nisto c o m p r y a o que
deve c o m o rev c h r i s t a ã o , os l a n ç a r de s u a terra e nom
consentvr a elo mais v i r o j r n e m t r a u t a r , p o y s d elles e
de s u a d e t e m ç a . vinda e e s t a d a n e l l a , lhe n o m segue
m a i s b e m , que o p r o v e y t o que d elles ha. o qual em nos
n o s s o s (sic) r e c e b e r a , c o m a j u d a de n o s s o S e n h o r , c o m -
tanto mais a c r e c e n t a m e n t o . que elle s e j a contente ; e
q u e . s e m d o a s v os taaes m o u r o s e n a a o s de M e q u a pellos
n o s s o s t o m a d a s , que. neste c a s s o , elle dê s e g u r a n ç a , per
s u a c a r t a , que, posto que, p o r c a u s a d ello, os d i t o s
m o u r o s de M e c a . que aos t a e s t e m p o s , em s u a c i d a d e e
t e r r a s e s t e v e r e m . e q u a e s q u e r o u t r o s que ho d e p o i s re-
queiram requeiram (sic) que lhe s e j a feita r e p r e s a r y a
em nosso feytor e casa e nosas mercadarias e pessoas
que c o m e l l a s e s t e v e r e m . p e r a per ello serem s a t i s f e v -
tas do dapnno que lhe p e l l o s n o s s o s f o r f e i t o , elle ho
n a m f a ç a ; n e m aos n o s s o s , nem n o s a s m e r c a d a r y a s seja
p o r y s s o f e i t o c o s t r a n g y m c n t o , nem d a n o a l l g u u m . an-
tes ó s d e f e n d a sempre,' c o m o he o b r i g a d o peita paz e
a m i z a d e que c o m n o s c o tem.

Item. lhe d i r e e s que, p o r q u a n t o nos temos s a b i d o que


em sua c i d a d e e terra, h a c o s t u m e que, ffalleçemdo
nella allguum mercador, t o d a s u a fazemda. mercadaryas
e c o u s a s s u a s tiqua a elle d i t o r e y , e se r e c a d a p e r a elle,
o que n o m s e r v a rezam se e n t e n d e r em n o s s o f e y t o r ,
porque o s e m e i h a m e se d e v e g a r d a r n a q u e l l a s p e s s o a s
que suas p r o p v a s m e r c a d a r y a s e c o u s a s f a z e m e trau-
t a m , o que n o s s o f e y t o r n o m f a z , p o r tudo ser n o s s o ,
q u e , nisto, elle de s e g u r a n ç a que, posto que Deus n o s s o
S e n h o r d e s p o n h a d o dito n o s s o f e y t o r . e 11a f a l l e ç a .
que e m t a m , todas n o s s a s m e r c a d a r y a s e c o u s a s , e asy
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

t o d a n o s a c a s a , seja f o r a do tall c o s t u m e e d isso l y v r e ,


e n o s s o f e y t o r , que p o r seu f a l l e ç e m e n t o ficar f a ç a ly-
vremente e sem nenhuum j m p e d i m e n t o , todo, c o m o o
f e y t o r f a l l e c i d o f a z i a , sem a elle dito rey v i m j r c o u s a
a l g u ü a , nem c o m lio nosso sse b o l l y r , porque, c o m o
d i z e m o s n o m s e r y a rezam se g a r d a r , nem f a z e r 110 nosso,
o que a o s o u t r o s m e r c a d o r e s e p e s s o a s se faz.
Item, a esta f a l i a pode se v j i r , segundo os passos dos
negócios que p a s s a r d e s , e que preseemtirdes nelle tan-
tos p e j o s em c o u s a em que elle o nam devera teer, so-
bre vos., d a r as ditas arrefens, que v o s o hijs l e i x a r e
poher em C a l l e m u r ; e e m t a m v o s partires asy c a r r e -
g a d o , e v o s hijres d e r e y t a m e n t e a C a l l e m u r , e lhe d a r e e s
as c a r t a s n o s a s que Uevaaes e lhe direes c o m o nos v o s
emviamos a essas p a r t e s da I n d y a pera c o m os reys
d ella a s e m t a r d e s paz e a m i z a d e , c o m o muytos tempos
ha que ho d e s s e j a m o s , e sse deve d huuns revs c h r i s -
t a ã o s a o s o u t r o s ; e que, p o r v o s ser d y t o que em s u a
terra n o m p o d e r y e s , l o g o esta primeira viajem achar
c a r r e g a pera nossas n a a o s , f o s t e s p r i m e i r o a C a l l e c u t ,
h o m d e v o s s a c a r r e g a t o m a s t e s ; e que, p o r nos termos
s a b i d o que elle he rey v e r d a d e i r o , e p o r tall ante todos
conhecido, e assy que nas c o u s a s de nossa fee e s t a a
mais çerto e fibra da c o m v e r s a ç a m e prestança dos
m o u r o s , j m i g o s d ella, e por m u y t o d e s e j a r m o s , p o r to-
dos estes r e s p e y t o s , e todos o u t r o s que temos s a b i d o s
de sua vertude, v o s m a n d a m o s que fosseijs a elle, e
c o m elle em n o s s o n o m e a s e n t a s s e i j s paz e a m i z a d e ,
p e r a , a o diante, c o m o . . . a m i g o s , nos e os nossos nos
p r e s t a r m o s de suas t e r r a s , e elle e os seus d a s nossas,
c o m o he rezam e a v e e m o s de f o l l g a r ; e nam s s o o m e n t e
por esto,... m a i s a j n d a , r e c e b e m d o elle nossa paz e
a m i z a d e , c o m o e s p e r a m o s , l o g o l e i x a r d e s em s u a cidade
n o s s o f e y t o r e pessoas n o s s a s , e c a s a de nossas m e r c a -
daryas, pera que, 110s tenpos v i j m d o i r o s podessem a
sua cidade himjr nossas n a a o s e navyos tomar sua
•224 EXPEDIÇÃO DE

c a r r e g a . c se v e n d e r e m n o s s a s m e r c a d a r y a s , e c o m p r a -
- a s que de la o u v e r m o s mester, de que a elle, e a
Oda s u a t e r r a , se s s e g u y r a g r a m d e h o m r r a e p r o v e y o ;
. ... . „ „ n , „ , „ n , r a . fiaue em sua c i d a d e a p n n -
l à ü por» dríodõilos a,-; d a Índia, que lhe p e d i ,
que sse P elle c o m v o s c o q u i s e r asentar, r e c e b a d isso p -
« r e a i a p o r b e m ficar asy o dito f e y t o r e v o s de d ello
oda surança do c o s t u m e d a terra,, s a b e r : suas c a r -
ta e qualquer o u t r a s e m e l h a n t e ; e, sse quiser m a n d a r
u ^ : p e s s o a ou pessoas s u a s , que v e n h a m
a n o s o s r e y n o s , pera v e r e m o que neles h a , e lhe pode,
ta 1 c e r t e z a , que credes que nos o a v e r e m o s
e m p r a z e r , e Ih as m a n d a r e m o s t o r n a r nas n o s s a s n a a o s
2 receberam de nos h o m r r a e m e r ç e , e a s s y de v o s
no caminho sseram tratados como vos mesmo. E.
I a. e m t a m ficara o dito n o s s o f e y t o r , c o m t o d o s
: v ão h o r d e n a d o s de c o m elle ficar, m e r c a d a r y a s
e c o u s a s que l e v a pera s u a ficada; e, tudo c o n c e r t a d o ,
os v o em b o o a ora. E nesta falia primeira.
que c o m ho dito rey o u v e r d e s , t r a b a l h a r e s l o g u o de s a -
ber e em sua c i d a d e se a c h a r a c a r r e g a d a s e s p e c i a r y a s
e virai, a ella as o u t r a s m e r c a d a r y a s d a Indya e sse

!, T t r a b a l h a r a d , sso ; e assy s s e as m e r c a d a r y a s
c u e a e o r a levastes, as querem a q u y , ou o u r a s ; e, sse
o u ras de que s s o r t e s , p e r a nos s a b e r d e s d a r de tudo
r e z a m , e aliem d i s s o ficara c u j d a d o p r i n ç . p a l do f -
or saber e sse dar h o r d e m c o m o o d u o rey l h ,
Z ' i e . por ellas e dê f o r m a c o m o aly se t r a g a m
vTn ; ' pera as elle p o d e r c o m p r a r e ter p r e s t e s , p e r a
auand.; nosas naaos forem, p r a z e n d o a nosso Senhor,
acharem certa sua carrega, c o m toda,las outras cousas
de que se ha de ter c u i d a d o , s e c u n d o que em seu rcgy

T - b o o a o r a , a q u y em C a n e l u r , tever-
d e ^ c o m ertadô e a ficada do dito feytor asemtada
e le d e c i d o e m terra c o m todo o que v a y o r d e n a d o de
PEDRO AI.VARES CABRAI.
265

s u a ficada, na f o r m a que no c a p i t u l o a t r a s sse d e c r a r a


partir v o s és em b o o a o r a , v y a d estes r e y n o s ; e sse no
c a m i n h o topardes a l l g u ü a s das n a a o s de M e c a , e pare-
c e m d o v o s uue rendes H M ™ * ; * . , ™ ,
—, pviia as pouerues
t o m a r , t r a b a l h a r v o s és de as t o m a r d e s , nam j m v e s -
t y m d o c o m d i a s , podendo escussar, e s o o m e n t e c o m
vossa artelharya as fazerdes a m a y n a r e lançar seus
botes f o r a e nelles e m v i a r e m e v i r e m seus pillotps, mes-
tres e m e r c a a o r e s , por que nesta m a n e i r a se f a ç a mais
s e g u r a m e n t e esta g u e r r a , e se possa s e g u y r menos dano
a (ente de v o s a s n a a o s ; e, se, c o m a a , u d a de nosso
S e n h o r , per v o s f o r e m t o m a d a s , de todas as m e r c a d a -
ryas que nellas a c h a r d e s v o s a p r o v e v t a r è s o milhor que
poderdes, e as r e c o l h e r e s a nossas n a a o s ; e todos o s
ptllotos e mestres e allguuns mercadores principaaes
que h y p o s a m v i m j r nas n o s s a a s n a a o s , nos trarGs; e os
o u t r o s , e jente das d i t a s n a a o s , que a s s y t o m a r d e s , res-
gatares, avemdo pera ysso disposisam e lugar, e o
tempo o c o n s e n t i j r ; e, n a m o p o d e m d o asy bem f a z e r ,
c n t a m , meteres todos e m huüa das n a a o s , ha mais desa-
p a r e l h a d a que hy o u v e r , e os l e i x a r e s hijr n e l l a ; e todas
as outras meteres no f u n d o e q u e y m a r è s , teemdo m u y
g r a n d e r e c a d o que, se, p r a z e m d o a nosso S e n h o r , as ditas
n a a o s t o m a r d e s , sse a p r o v e y t e m as m e r c a d a r v a s g r o s s a s
e m y u d a s que nellas c o m todo nosso serviço.
E , tanto que, p r a z e m d o a nosso Senhor, teverdes
a t r a v e s a d o , e f o r d e s em M e l y n d e , porque ja e m t a m teres
sabido q u a a e s dos n a v y o s de toda a a r m a d a s a m m j -
Ihores velleiros e quaes m e n o s , e z o r r e i r o s , c o m o f o r d e s
ho dito M e l y m d e , teres esta m a n e i r a , s a b e r : todos o s
n a v y o s que f o r e m m i l h o r e s v e l e i r o s , a p a r t a r e s a huüa
parte, e estes m a n d a r e s que f a ç a m seu caminho v i a
d estes reynos. sem p o r os o u t r o s e s p e r a r e m , m a n d a n d o ,
p o r e m , que estes, que asy f o r e m m a i s velleiros, esperem
huuns p o r outros, e g a r d e m todo o u t r o m a i s regimento
'que l e v a a e s h o r d e n a d o , na espera e s y n a e s d huuns a
232 EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

outros, por se nom p e r d e r e m ; e os que forem menos-


velleiros e zorreiros a p a r t a r e s a outra parte e estes ta
caminho a p a r t a d o s per ssv. na f r a que man-
damos e he decrarado que no t a ç a » . o» ~ , -
t e s o que ha vosa naao c a v b a no conto dos « -
S ros vimirás vos na sua c o m p a n h i a e conserva., e ho -
d nà ÍS Pera a parte dos que forem zorreiros, e piores
da v e la huum c a p i t a m m o o r , taaU pessoa, qual pera
: : s ^ l e r d e s e ^ s p a r e : e r £ p n r r : : : :

hite^ro p m l e r ^ e ^ a ' n d a m o s per este que todos os outros


1 taíes e companha lhe obedeçam, e cunpram seus

f o r m a sobred,ta . . . . . dos „am c a y n d o elle

r o T o T — n - -so^ Pane e » ^

d O S t
^ % T « o T l p u ^ h e sabido, e pella dl-
neSte l
d a I Tu p e l a ventura, poderès achar nos costu-
versidade que. peia / e m outra maneira
mes da terra, p a . e c e m d c v que ? ^
devês mudar e ^ è e s s e ^ m o s por nosso
V e n h
r neste c asso. peUa rnui ta comfiança que de vos
s e r v i ç o , neste cas o P m a n d a m o s , que facaes

teemos, aveemos por beem e tomando

seguyrês e farees.
Item, o capitam segundo
C A R T A DE P E R O V A Z DE C A M I N H A

S e n h o r . P o s t o que o c a p i t a m m o o r d esta v o s s a f r o t a ,
e asy os outros capitaáes, sprevam a Vossa Alteza a
n o v a d o a c h a m e n t o d e s t a v o s s a terra n o v a , que se o r a
neesta n a v e g a ç o m a c h o u , nom l e i x a r e y t a m b é m de d a r
d isso minha c o m t a a V o s s a A l t e z a , asy c o m o eu m i -
lhor poder, a j m d a que, p e r a o bem c o n t a r e f a l a r , o
saiba pior que t o d o s f a z e r ; p e r o tome V o s s a A l t e z a
minha inoramçia por b o a v o m t a d e ; a qual bem c e r t o
c r e a , que p o r a f r e m m o s e n t a r nem afear aja aquy d e
p o e r m a i s c a a q u i l o que v y e me p a r e ç e o . D a m a r i n h a -
j e m e s i n g r a d u r a s do c a m i n h o n o m d a r e y a q u y c o n t a a
V o s s a A l t e z a , p o r q u e o n o m s a b e r e y f a z e r , e os p i l o t o s
devem teer ese c u i d a d o ; e p o r t a n t o , senhor, do que e y
de f a l a r c o m e ç o e d i g u o :

Q u e a p a r t i d a de B e l e m . c o m o V o s a A l t e z a s a b e , f o y
segunda f e i r a ix de M a r ç o , e s a b a d o xiiij (14) do dito
mes, a m t r e as biij (8) e ix o r a s . nos a c h a m o s a m t r e as
C a n a r e a s . m a i s p e r t o d a G r a m C a n a r e a ; e aly a m d a -
mos todo aquele d i a e m c a l m a , a vista d e l a s , o b r a de
tres ou quatro l e g o a s ; e d o m i n g o x x i j (-22) do dito m e s ,
aas .x oras, pouco m a i s o u menos, o u v e m o s v i s t a d a s
jlhas de C a b o V e r d e , s a b e r : da jlha de S a m N j c o l a a o ,
segundo dito de P e r o E s c o l a r , piloto ; e, a n o u t e se-
g u j m t e aa s e g u n d a f e i r a , lhe a m a n h e ç e o (sic) se p e r d e o
d a f r o t a V a a s c o d A t a v d e c o m a s u a n a a o , sem h y aver
t e m p o f o r t e , nem c o n t r a i r o p e r a poder s e e r ; fez o c a p i -
234 •224 EXPEDIÇÃO DE

iam suas deligcnçias pera o a c h a r a huúas e a o u t r a s


partes, e nom pareceo majs ; e asy s e g u j m o s nosso
c a m i n h o per este m a r de l o m g o a t a a t e r ç a f e i r a d o i t a -
v a s de p a s c o a , que f o r a m x x j (21) dias d A b r i l , que to-
h l Udn- n
—s evurumps
-JO
de
- tera.- s e e m d o d a dita •ilha.
segundo os p i l o t o s deziam obra de b j ' lx (660) ou
l x x l e g o a s , os q u a a e s heram m u j t a c a m t i d a d e d e r v a s
c o m p r i d a s , a que os mareantes c h a m a m botelho. e a s y
o u t r a s , a que também chamam rabo d asno; e aa
quarta f e i r a s e g u j m t e pola m a n h a á t o p a m o s aves. a
que c h a m a m f u r a b u c h o s ; e neeste d i a , a o r a s de bes-
pera. ouvemos vista de terá. s a b e r : primeiramente
d h u u m g r a m d e monte muy alto e r e d o m d o , e d o u t r a s
terras m a i s b a i x a s , ao sul d ele, e de terra c h a i , c o m
g r a m d e s a r v o r e d o s , a o qual m o n t e alto o c a p i t a m p o s
n o m e o monte P a s c o a l , e aa tera a tera d a V e r a C r u z .
M a n d o u l a n ç a r o p r u m o ; a c h a r a m x x b (25) b r a ç a s ; e
a o sol p o s t o , o b r a de bj (6) l e g o a s de tera s u r g i m o s
a m c o r a s e m xix b r a ç a s , a m c o r a j e m l i m p a . A l y jouve-
m o s toda aquela noute ; e a a quinta f e i r a p o l a m a n h a á
f e z e m o s v e l l a e s e g u j m o s d i r e i t o s aa terra, e os n a v j o s
pequenos diante, himdo per xbij (17), xbj (16), xb (i5),
xiiij f U), xiij ( i 3 ) . x i j (12), x e ix b r a ç a s a t a a mea l e g o a
de terra, omde todos l a n ç a m o s a m c o r a s em direito d a
b o c a de h u u m rio ; e c h e g a r í a m o s a esta a m c o r a j e m
aas x o r a s pouco mais ou menos; e d aly o u v e m o s
v i s t a de h o m e e n s que a m d a v a m pela p r a y a , o b r a de
bij ( - ) . ou biij (8j, s e g u n d o os n a v j o s pequenos d i s e r a m ,
por 'chegarem p r i m e i r o . A l y l a n ç a m o s os b a t e e s e e s -
quifes f o r a ; e v i e r a m logo t o d o l o s c a p i t a ã e s das n a a o s
a esta n a a o do c a p i t a m m o o r ; e aly f a l a r a m : e o c a p i -
tam m a n d o u no batel em tera N i c o l a a o C o e l h o p e r a
veer aquelle rio ; e tamto que ele c o m e ç o u p e r a l a d hir
acodiram pela p r a y a homeens, q u a n d o dous, q u a n d o
tres, de m a n e i r a que, q u a m d o o b a t e l c h e g o u a a b o c a
do rio. h e r a m a l y x b i i j (18) ou x x h o m e e n s p a r d o s , t o -
235
PEDRO ALVARES' CABRAL

•dos nuus, sem nenhuúa c o u s a que lhes c o b r i s e suas


vergonhas: traziam arcos nas maãos e suas s e e t a s ;
v j n h a m todos rijos p e r a o b a t e l ; e N i c o l a a o C o e l h o lhes
fez sinal que posesem o s a r c o s ; e elles os p o s e r a m . A l y
nom pode d eles aver f a l a nem entendimento q u e a p r o -
veitasse, polo m a r q u e b r a r na c o s t a ; soomente deu lhes
huum barete v e r m e l h o e huúa c a r a p u ç a de linho que
levava na c a b e ç a e h u u m s o m b r e i r o preto ; e huum
d elles lhe deu huum s o m b r e i r o de penas d aves c o m p r i -
das c o m h u ú a copezinha pequena de penas v e r m e l h a s e
p a r d a s c o m a de p a p a g a y o ; e o u t r o lhe deu huum r a m a l
g r a n d e de c o m t i n h a s b r a m c a s meudas, que querem p a -
r e c e r d a l j a v e i r a ; as q u a a e s p e ç a s creo que o c a p i t a m
m a n d a a V o s s a A l t e z a ; e c o m jsto se volveo a a s n a a o s .
p o r seer tarde e n o m poder d eles aver m a i s f a l a , p o r
aazo do mar.
A- noute s e g u j m t e ventou t a m t o sueste c o m c h u v a -
ç e i r o s , que fez c a ç a r a s n a a o s , e e s p e c i a l m e n t e a c a p i -
cana ; e a a sesta pola m a n h a ã , a a s biij (8) o r a s , p o u c o
m a i s ou m e n o s , per c o n s e l h o dos pilotos, m a n d o u o
c a p i t a m l e v a m t a r a m c o r a s , e fazer v e l a ; e f o m o s de
lomgo da c o s t a , c o m os batees e esquifes a m a r a d o s
per popa, comtra o norte, pera veer se achavamos
a l g u ü a a b r i g a d a e boo p o u s o , o m d e j o u v e s e m o s , p e r a
tomar a g o a e lenha, nom por nos ja m j n g u a r . m a s p o r
n o s a c e r t a r m o s a q u y ; e q u a m d o fezemos vela seriam ja
na praya, asentados jumto c o m o rio, o b r r a de lx ou
Ixx homeens que se j u m t a r a m aly poucos e p o u c o s ;
f o m o s de l o m g o , e m a n d o u o capitam aos n a v i o s pe-
quenos que fosem mais chegados aa terra, e que, se
achasem pouso seguro pera as n a a o s que a m a y n a s e m .
E , seendo nós pela c o s t a o b r a de x legoas d o m d e nos
levamtamos, acharam os d i t o s navios pequenos h u u m
arreçife com huum p o r t o dentro muito b o o , e m u i t o
seguro, com huüa muy l a r g a e n t r a d a , e m e t e r a m se
dentro e a m a y n a r a m ; e as n a a o s a r r i b a r a m s o b r eles e
•224 EXPEDIÇÃO DE

huum p o u c o a m t e s sol p o s t o a m a y n a r a m . o b r a de huüa


l e g o a do a r r e ç i f e , e a n c o r a r a m se e m xj f i i ) b r a ç a s . E
seendo A í f o n s o L o p e z , n o s s o p i l o t o , em h u u m d aque-
les n a v i o s p e q u e n o s p e r m a n d a d o do c a p i t a m , p o r s e e r
homem v v v o e deestro pera j s s o . m e t e o se l o g u o no
esquife a s o m d a r o p o r t o d e m t r o . e t o m o u em h u ú a a l -
m a a d i a dous d a q u e l e s h o m e e n s d a t e r r a , m a n c e b o s e
de boos c o r p o s ; e huum d eles t r a z i a h u u m a r c o e b j
(6) ou bij (•/) s e e t a s , e na p r a y a a m d a v a m m u j t o s c o m
seus a r c o s e seetas, e n o m lhe a p r o v e i t a r a m ; trouve o s
logo ja de noute a o c a p i t a m , omde foram recebidos
c o m muito p r a z e r e festa.
A f e i ç a m d eles he s e e r e m p a r d o s , m a n e i r a d a v e r m e -
l h a d o s , de b o o s r o s t r o s e b o o s narizes b e m f e i t o s ; ara-
d a m nuus, sem nenhuúa c o b e r t u r a ; nem e s t i m a m ne-
nhüua c o u s s a c o b r i r , nem m o s t r a r suas v e r g o n h a s , e
estam a ç e r q u a d isso c o m t a m t a j n o c e m c i a c o m o teem
em mostrar o rostro; traziam ambos os b e i ç o s de
baixo furados e metidos por eles senhos o s o s d o s o
b r a m c o s de c o m p r i d a m de h u ú a maáo t r a v e s s a e de
grosura de huum f u s o d a l g o d a m , e a g u d o na p o n t a
coma furador; metem nos p e l a p a r t e de dentro d o
beiço, e o que lhe fica antre o b e i ç o e os dermes he
feito c o m a r o q u e d enxadrez ; e em tal m a n e i r a o tra-
zem aly eme ax ado que lhes n o m d a p a i x a m , nem lhes
torva a f a l a , nem c o m e r , nem b e b e r ; os c a b e l o s seus
sam coredios, e andavam t r o s q u j a d o s de t r o s q u y a alta
m a i s que de sobre p e m t e m , de b o a g r a m d u r a , e r a p a -
dos a t a a per c j m a das o r e l h a s ; e h u u m d eles t r a z i a
per b a i x o d a s o l a p a de fonte a fonte p e r a d e t r á s h u ú a
m a n e i r a de c a b e l e i r a de p e n a s d a v e a m a r e l a , que s e r i a
de c o m p r i d a m de h u u m c o u t o m u v b a s t a e m u y ç a r a d a ,
que lhe c o b r i a o t o u t u ç o e as o r e l h a s , a qual a m d a v a
p e g a d a nos c a b e l o s p e n a e p e n a c o m h u ú a c o m f e i ç a m
branda c o m a c e r a , e n o m no e r a . de m a n e i r a que a m -
dava a cabeleira muy redomda e muv basta e muy
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

jgual, que nom fazia mjngua mais lavajem pera a le-


vantar. O capitam, quando eles vieram, estava asentado
em huúa cadeira, e huúa alcatifa aos pees por estrado,
e bem vestido c o m huum colar d ouro muy grande ao
pescoço, e Sancho de T o a r . e Simam de Miranda, e Ni-
c o l a a o Coelho, e Aires C o r e a , e nos outros que aquy
na naao c o m ele himos asentados no chaão per esa alca-
tifa. A c e m d e r a m tochas e emtraram, e nom fezeram
nenhuúa mençam de cortesia, nem de falar ao capitam,
nem a njmguem ; pero huum d eles pus olho no c o l a r
de capitam, e c o m e ç o u d acenar com a maão pera a
terra, e despois pera o colar, com o que nos dezia que
avia em tera ouro ; e também viu huum castiçal de
prata, e asy meesmo acenava pera a tera e entam pera
o castiçal c o m o que avia também praia. Mostraram lhes
huum p a p a g a y o pardo que aquy o capitam traz ; toma-
ram no logo na m a ã o , e acenaram pera a terra, c o m o
que os avia hy. Mostraram lhes huum c a r n e i r o ; nom
fezeram d ele mençam. Mostraran lhes huúa g a l i n h a ;
easy aviam medo d ela, e nom lhe queriam poer a
m a ã o ; e despois a tomaram coma espantados. Deran
lhes aly de comer pam e pescado cozido, confeitos,
fartees, mel, e ligos pasados; nom quiseram comer
d aquilo easy nada, e alguúa coussa, se a provavam,
l a m ç a v a m na logo fora. T r o u v e r a m lhes vinho per iiüa
taça ; pozeram lhe asy a boca taminalavês e nom g o s -
taram d ele nada. nem o quiseram m a i s ; trouveram lhes
a g o a per huúa albarada ; tomaram d ela senhos b o c a -
dos e nom beberam ; soomente lavaram rs bocas e lam-
çaram fora. V i o huum d eles huüas contas de r o s a i r o
brancas ; acenou que lh as desem ; e folgou muito c o m
elas ; e lançou as ao pescoço ; e despois tirou as e en-
brulhou as no b r a ç o ; e acenava pera a terra e entam
pera as contas e pera o c o l a r do capitam, como que
d a r i a m o u r o por aquilo. Isto tomavamo nos asy polo
d e s e j a r m o s ; mas se ele queria dizer que levaria as
•224 EXPEDIÇÃO DE

contas e mais o c o l a r , isto nom querjamos nos emten-


der porque Ih o nom a v i a m o s de d a r ; e despois tornou
as contas a quem lh as deu. e entam estiraran se asy de
c o s t a s na alcatifa a d o r m j r sem teer nenhüa maneira
d e cobrirem suas vergonhas, as quaaes n o m h e r a m f a -
nadas, e as cabeleiras d elas bem rrapadas e feitas. O
c a p i t a m lhes mandou poer aas cabeças senhos c o x i j s , e
o da cabeleira procurava asaz polia nom quebrar, e
lançaram lhes huum manto em c j m a , e eles consentiram
e jouveram e d o r m i r a m .
Ao sabado pola m a n h a ã mandou o c a p i t a m fazer
vella, e f o m o s demandar a emtrada, a qual era muy
largua e alta, de bj (6). bij (7) braças, e e n t r a r a m toda-
las naaos demtro e a m c o r a r a m se em b (5), bj (ti) b r a -
ças, a qual a m c o r a j e m dentro he tam grande e tam fre-
mossa e tam segura, que podem jazer dentro nela m a i s
de ij c (-200) navjos e naaos. E tanto que as naaos f o r a m
pousadas e amcoradas vieram os capitaães todos a esta
naao do capitam m o o r , e d aquy mandou o c a p i t a m
N i c o l a a o C o e l h o e B e r t o l a m e o Dias que f o s e m em terra
e levasem aqueles dous homeens, e os leixasem hir c o m
seu arco e s e e t a s ; aos quaaes mandou d a r senhas c a m i -
sas novas e senhas c a r a p u ç a s vermelhas e dous rrosai-
ros de contas brancas d oso. que eles l e v a v a m nos bra-
ços. e senhos c a s c a v e e s c senhas campainhas. E man-
dou com eles pera ficar la huum mancebo degradado,
creado de Dom J o h a m T e e l l o , a que c h a m a m Affonso
Ribeiro, pera amdar la com eles, e saber de seu v j v e r e
maneira, e a m v m mandou que f o s e com Nicolaao
Coelho. Fomos asv de frecha direitos a a praya; a l y
acodiram logo obra de ij' (200) homeens todos n u u s e
com arcos e seetas nas m a á o s ; aqueles que n o s levava-
mos acenaram l h e s que se a f a s t a s e m e posesem o s a r -
c o s ; e eles os poseram e nom s e a f a s t a r a m m u i t o ;
abasta que p o s e r a m s e u s arcos, e e m t a m s a i r a m o s q u e
nos levavamos e o mancebo d e g r a d a d o com e l e s ; os
PEDRO ALVARES CABRAL 23Ç

quaaes, asy c o m o s a i r a m , nom pararam mais, nem es-


p e r a v a huum por outro, senom a quem mais c o r e r i a ; e
pasaram huum rio que per hy core d a g o a doce d e
m u j t a agoa, que lhes dava pela braga, e outros mujtos

huúas moutas de palmas, onde estavam o u t r o s ; e aly


p a r a r o m ; e naquilo foy o degradado com huum homem,
que logo ao sair do batel lio agasalhou ; e levou o ataa
l a ; e logo ho tornaram a n o s ; e com ele vieram os ou-
tros que nos levamos, os quaaes vijnham ja nuus e sem
c a r a p u ç a s . E entam se c o m e ç a r a m de chegar mujtos, e
entravam pela beira do m a r pera os batees ataa que
mais nom podiam ; e traziam c a b a a ç o s d a g o a e toma-
v a m alguuns barris que nos levavamos, e emchia nos
d a g o a e trazia nos aos b a t e e s ; nom que eles de todo
chegasem a b o r d o do batel, mas. junto com ele, lança-
v a m no da m a ã o , e nos tomavamo los, e pediam que
lhes desem alguúa coussa. L e v a v a Nicolaao Coelho
cascavees e manjlhas, e huuns dava huum c a s c a v e l , e a
outros huúa manjlha, de maneira que com aquela em-
c a r n a easy nos queriam dar a maáo. D a v a m nos d aque-
les arcos e seetas por sombreiros e c a r a p u ç a s de linho,
e por qualquer coussa que lhes homem queria dar.
D aly se partiram os outros dous mançebos, que nom
os vimos mais.
A m d a v a m aly mujtos d eles ou easy a m a i o r parte,
que todos traziam aqueles bicos d oso nos beiços, e
alguuns que amdavam sem elles traziam os beiçcs fu-
rados, e nos buracos traziam huuns espelhos de paao
que pareciam espelhos de b o r a c h a ; e alguuns d eles
traziam tres d aqueles bicos, saber, huum na metade e
os dous nos c a b o s , e amdavam hy outrros quartejados
de cores, saber, d elles ameetade da sua propia cor, e
ameetade de timtura negra maneira de zulada, e outros
quartejados d escaques. A l y amdavam antr e l e s tres o u
quatro moças bem moças e b e m jentijs, c o m cabelos
•224 EXPEDIÇÃO de

mujto pretos comprjdos pelas espadoas, e suas v e r g o -


nhas tão pitas e tam çaradinhas, e tam limpas das c a -
beleiras. que de as nos mujto bem olharmos nom tij-
nhamos nenhuúa vergonha. A l y por emtam nam ouve
mais f a l a nem emtendimento com eles por a berberja
d eles seer tamanha que se nom emtendia nem ouvia
njngem. A ç e n a m o s lhe que se fosem ; e asv o fezeram e
pasaran se aalem do rrio, e s a i r a m t r e s ou quatro
homeens nossos dos batees. e encheram nom sey quan-
tos barrijs d a g o a que nos levavamos. e tornamo nos
aas naaos ; e em nos asy v y n d o acenavam nos que tor-
nasemos: tornamos e eles mandarom o degradado, e
nom quiseram que fie ase la com e l e s ; o qual levava
hüua baçia pequena e duas ou tres c a r a p u ç a s vermelhas
pera d a r la ao senhor, se o hy ouvese. Nom c u r a r a m de
lhe t o m a r nada, e asy o mandaram c o m tudo ; e entam
Bertolameu Dias o fez outra vez tornar que lhes dese
aquilo; e ele tornou, e deu aquilo, em vista de nós,
aaquelle que o d a primeira (sic) agasalhou ; e entam
veo ssee trouvemolo. E s t e que o agasalhou era ja de
dias e a m d a v a todo per louçavnha, cheo de penas pe-
g a d a s pelo corpo, que pareçia aseetado c o m a S a m Se-
bastiam ; outros traziam c a r a p u ç a s de penas amarelas,
e outros de vermelhas, e o u t r o s de v e r d e s ; e húua
d aquellas moças era toda timta de fumdo a c i m a
daquela timiura. a qual certo era tam bem feita e tam
rredomda. e sua v e r g o n h a que ela nom tjnha, tam gra-
ciosa. que a mujtas molheres de nossa terra, veendo lhe
taaes feiçoeés fezera vergonha, por nom terem a sua
c o m eel a. Nenhuúm d eles nom era f a n a d o , m a s todos
asy c o m a n o s ; e c o m isto nos t o r n a m o s ; e eles f o r a m sse.
A a tarde s a y o o capitam m o o r em seu batel com
todos nos outros e com os outros capitaaes das naaos
em seus batees a f o l g a r pela b a v a , a c a r a m da p r a v a ;
m a s njnguem savo em tera, polo c a p i t a m nom querer,
sem embargo de njmguem neela estar ; soomente s a y o
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

ele c o m todos em huum ilheeo grande que na b a y a esta.


que de b a i x a m a r fica muy vazio, pêro he de todas par-
tes cercado d agoa, que nom pode njmguem hir a ele
sem b a r c o ou a nado. A l y folgou ele e todos nos outros
bem hua ora o rnoya e p e s c a r a m hy amdand,o mari-
nheiros c o m huum chimchorro ; e matarom pescado
meudo nom mujto ; e entam v o l v e m o nos aas naaos ja
bem noute. A o domingo de pascoela pola manhaã de-
tremjnou o capitam d hir ouvir misa e preegaçam na-
quele ilheo, e mandou a todolos capitaães que se cor-
rejesem nos batees e fosem com e l e ; e asy f o y feito.
Mandou naquele ilheeo armar huum esperável, e dentro
neele alevantar altar muy bem coregido ; e alv com to-
dos nos outros fez dizer misa, a qual dise o padre frei
A m r i q u e em voz entoada, e oficiada com aquela mees-
ma voz pelos outros padres e sacerdotes que aly todos
heram; a qual misa, segundo meu parecer, foy ouvjda
por todos com muito prazer e devaçom. Aly era com o
c a p i t a m a bandeira de Christos com que sayo de Belcm,
a qual esteve sempre alta aa parte do avamjelho. A c a -
b a d a a misa, desvestio se o padre, e pose se em huüa
cadeira alta, e nos todos lamçados per esa area, e pree-
gou huüa solene e preveitossa preegaçom da estória do
avanjelho, e em fim d ela trautou de nossa vjnda e do
achamento d esta terra conformando se com o sinal da
cruz sò cuja obediência vijmos, a qual veo mujto a
preposito e fez mujta devaçom.

E i n q u a n t o estevemos aa misa e aa preegaçom seriam


na p r a v a outra tanta jente pouco mais ou menos como
os d omtem com seus arcos e seetas, os quaaes amda-
v a m folgando e olhando n o s ; e asentaram se ; e, des-
pois d a c a b a d a a misa. aseentados nos aa p r e g a ç o m ,
alevantaran se mujtos d elles, e tanjeram corno ou vo-
zina, e c o m e ç a r a m a saltar e dançar huum pedeço, e
alguuns d eles se meteram em almaadias d u a s ou tres
que hy tijnham, as quaaes nom sam feitas c o m o as que
16
•224 EXPEDIÇÃO DE

eu já v y , soomente sam tres traves atadas j u m t a s ; e


aly se metiam iiij (4) ou b (5) ou eses que queriam,,
nom se afastando easy nada da terra, senom quanto
p o d i a m tomar pee. A c a b a d a a p r e g a ç o m , moveo o ca-
. . J - U .. .
pitam, e lUUUS p e i a O» uuteta iiuaa uaiivn.il"
e e m b a r c a m o s , e f o m o s asy todos contra terra pera pa-
s a r m o s ao longo per ond eles e s t a v a m , hjndo B e r t o l a -
meo Dias em su esquife, per m a n d a d o do capitam,
diamte c o m huum paao d huúa a l m a d i a que lhes o m a r
l e v a r a , pera lh o dar, e nos todos o b r a de tiro de pedra
tras ele. C o m o eles v i r a m ho esquife de B e r t o l a m e o
D i a s , c h e g a r a m se logo todos a a g o a , metendo se neela
a t a a onde m a i s podiam. Acenaram lhes que posesem os
a r c o s , e mujtos d eles os hiam l o g o poer em terra, e
outros os nom punham. A m d a v a hy huum que f a l a v a
m u j t o aos outros que se a f a s t a s e m , mas nom ja que
m a m y m parecese que lhe tijnham acatamento, nem
medo. E s t e que os asy amdava afastando trazia seu
a r c o e seetas, e a m d a v a timto de timtura vermelha pe-
los peitos e espadoas e pelos q u a d r i j s , c o x a s e pernas,
a t a a b a i x o ; e os vazios com a b a r i g a e estamego era
da sua propria c o r , e a timtura era asy vermelha, que
a a g o a lh a nom corava nem d e s f a z i a , ante, quando
s a y a da a g o a era mais vermelho. S a y o hunm homem
do esquife de Bertolameu Dias. e andava antr eles sem
eles emtenderem nada neele quanta pera lhe fazerem
m a l , senom quanto lhe d a v a m c a b a a ç o s d a g o a , e ace-
n a v a m aos do esquife que saisem em terra. C o m isto se
v o l v e o B e r t o l a m e u Dias ao c a p i t a m , e veemo nos a a s
n a a o s a comer, tanjendo tronbetas e gaitas, sem lhes
d a r mais a p r e s a m ; e eles t o r n a r a m se a asentar na
p r a y a , e asy por entam ficaram. Neeste jlheo omde
f o m o s o u v j r misa e preegaçam e s p r a y a mujto a a g o a e
descobre mujta a r e a e m u j t o c a s c a l h a a o . F o r a m al-
guuns, em nos hy estando, b u s c a r m a r i s c o , e nom no
a c h a r o m ; e acharam alguuns c a m a r o ó e s g r o s o s e cur-
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

tos, antre os quaaes vinha huum mujto grande camaram,


e muito grosso, que em nenhuum tenpo o vj t a m a n h o ;
também a c h a r o m c a s c a s de bergoões, e d ameijeas, mas
nom toparam com nenhuúa peça inteira ; e. tamto que
c o m e m o s , vieram logo todolos c a p i t a a c s a esta naao
per mandado do capitam moor, com os quaaes se ele
a p a r t o u , e eu na conpanhia, e preguntou asy a todos se
nos parecia seer bem mandar a nova do achamento
d esta terra a V o s a Alteza pelo n a v j o dos mantijmentos.
pera a mjlhor mandar descobrjr. e saber d ela mais do
<jue a g o r a nos podíamos saber, por hirmos de nosa
v i a j e m ; e antre mujtas f a l a s que no c a s o se fezeram,
foj per todos ou a mayor parte dito que seria mujto
bem, e nisto c o m c r u d i r a m ; e, tamto que a concrusam
f o v t o m a d a , pregnmtou mais se seria boo tomar aquv
per f o r ç a huum par d estes homeens pera os mandar a
V o s s a Alteza, e leixar aquy por eles outros dous d es-
tes degradados. A esto acordaram que nom era necesa-
reo t o m a r per força homeens, porque jeeral costume
era dos que asy levavom per força pera algúa parte
dizerem que ha hy todo o que lhe p r e g u n t a m ; e que
mjlhor e mujto mjlhor e m f o r m a ç o m da terra dariam
d o u s homeens, d estes degradados, que aquy leixassem,
do que eles dariam, se os levasem, por seer jente que
njmguem emtende, nem eles tam cedo aprenderiam a
f a l a r pera o saberem também dizer, que mujto mjlhor
ho estoutros nom digam, quando ca V o s a Alteza man-
dar ; e que portamto nom curasem aquy de per f o r ç a
t o m a r njmguem, nem fazer escandolo, pera os de todo
mais amansar e apaceficar, senom soomente leixar aquy
os dous degradados, quando d aquy partisemos ; e asy-
por mjlhor parecer a todos ficou detreminado ; a c a b a d o
jsto, dise o capitam que fosemos nos batees em terra e
veersia bem o rrio quejando era, e rambem pera folgar-
mos. F o m o s todos nos batees em tera armados, e a
bandeira c o m n o s c o .
•224 EXPEDIÇÃO DE

E l e s anulavam aly na p r a v a aa b o c a do rrio, o m d e


nos hiamos, e ante que chegasemos, do emsino que
d antes tvnham, pozeram todos os arcos, e a c e n a v a m
que s a i s e m o s ; e, tanto que os batees pozeram as p r o a s
em ieira, pasaram se logo todos aalcm do rrio, o qual
nom he m a i s ancho que huum jogo de manqual, e,
tanto que desenbarcamos, alguuns dos nosos pasarom
logo o rrio g foram antr elles, e alguuns a g u a r d a v a m , e
outros se a f a s t a v a m ;, pero era a cousa de maneira que
todos andavam mesturados. Eles davam d eses a r c o s
com suas seetas por sonbreiros e c a r a p u ç a s de linho e
por quallquer cousa que lhes d a v a m . P a s a r a m aalem
l a m t o s dos nosos e a m d a v a m asy mesturados com eles,
que eles se e s q u j v a v a m , e a f a s t a v a n se, e hi an se d eles
pera cima onde outros e s t a v a m ; e entam o c a p i t a m
feze se tomar ao colo de dous homeens. e pasou o rrio
e fez tornar todos. A jente que aly era nom serja mais
ca aquela que soya ; e, tanto que o capitam fez tornar
todos, vieram alguuns d eles a ele, nom polo conhece-
rem por senhor, ca me pareçe que nom entendem, nem
tomavam d isso conhecimento, mas porque a jente
n o s s a p a s a v a já pera aquém do rrio. Aly f a l a v a m e tra-
ziam mu j tos arcos e contjnhas d aquelas ja ditas, e
resgatavam por qualquer cousa, em tal maneira, que
trouveram d aly pera as naaos m u j i o s arcos e seetas e
c o m t a s ; e entam tornou se o c a p i t a m aaquem do rrio,
e logo acodiram mujtos aa beira d ele. A l y verjees g a -
lantes pimtados de preto e vermelho, e quartejados, asy
pelos corpos, como pelas pernas, que certo pareciam
asy bem ; também andavam antr eles iiij (4) ou b (5)
tmolheres m o ç a s asy nuas, que nom pareciam mal. antre
as quaaes andava huüa c o m huüa c o x a do giolho ataa o
quadril e a nadega toda tinta d aquela tintura preta, e o
al todo da sua propia c o r ; outra trazia anbolos giolhos
c o m as c u r v a s asy timtas, e também os colos dos pees, e
suas vergonhas tam nuas e com tanta inoçemçia descu"
279
PEDRO AI.VARES CABRAI.

b e r t a s , que n o m a v i a hy nehuüa v e r g o n h a . T a m b é m a n -
d a v a hy outra mother m o ç a c o m h u u m menjno ou me-
njna no c o l o atado c o m h u u m p a n o nom sey de que a o s
p e i t o s , que lhe nom p a r e ç i a s e n o m as pernjnhas, m a s a s
p e r n a s da m a y e o a! noin trazia nenhuum pano. E des-
p o i s m o v e u o c a p i t a m pera c i m a a o longo d o rrio, que
anda sempre a c a r a m da p r a v a , e aly esperou huum
velho que trazia na m a á o hüa p a a d a l m a d i a ; f a l o u ,
estando o c a p i t a m c o m ele, perante nos todos, sem o
n u n c a n j m g u e m emtender, nem ele a nos quant a c o u -
sas que lh ornem p r e g u m t a v a d o u r o . que nos d e s e j a v a -
m o s s a b e r se o a v i a na terra. T r a z i a este velho o beiço
tam f u r a d o , que lhe c a b e r j a pelo f u r a d o huum g r a m
d e d o p o l e g a r , e trazia m e t i d o no f u r a d o huúa p e d r a
v e r d e roim que ç a r a v a per f o r a aquele b u r a c o ; e o c a -
p i t a m lh a fez t i r a r ; e ele n o m sey que d i a a b o f a l a v a , e
hia c o m ela pera a b o c a d o c a p i t a m pera lh a m e t e r ;
e s t e v e m o s sobre iso huum p o u c o rijnado (rijnando), e
e n t a m e n f a d o u se o c a p i t a m e leixou o ; e huum d o s
nosos deu lhe p o l a pedra huum s o n b r e i r o velho, n o m
por ela valer algüa coussa, mas por mostra ; e despois
a ouve o c a p i t a m , c r e o p e r a c o m as outras c o u s a s a
a mandar a V o s s a Alteza. A m d a m o s per hy veendo a
rribeira, aqual he de mujta a g u a . e mujto b o a ; ao
l o n g o d ela ha m u j t a s p a l m a s , n o m mujto altas, em que
ha muito b o o s p a l m i t o s . C o l h e m o s e c o m e m o s d eles
muitos. E n t a m tornou-se o c a p i t a m pera b a i x o pera a
b o c a d o r r i o , onde d e s e n b a r c a m o s , e aalem do rrio a m -
davam muitos d eles d a m ç a n d o e folgando huuns ante
o u t r o s , sem se t o m a r e m pelas m a á o s , e f a z i a m no bem.
P a s o u se e m t a m a a l e m do rrio D i o g o Dias, a l m o x a r i f e
que f o y de S a c a v é m , que he h o m e m g r a c i o s o e de p r a -
zer. e levou c o m s i g o huum g a y t e i r o noso c o m s u a g a i t a ,
e m e t e o se c o m eles a d a n ç a r t o m a n d o os pelas m a á o s ,
e eles f o l g a v a m e r i a m , e a m d a v a m com ele m u y b e m
a o s o o m d a g a i t a . D e s p o i s d e d a n ç a r e m fez lhe aly a m -
•224 EXPEDIÇÃO DE

•dando no chaão muitas v o l t a s l i g e i r a s e salto real, de


que se eles espantavam, e riam e f o l g a v a m mujto ; e
c o m quanto os com aquilo muito segurou e afaagou,
t o m a v a m logo huúa esqujveza coma montezes; e foran
se pet a c j m ã ; e entarn o capitam pasou o r n o com to-
d o s nos o u t r o s ; e fomos pela p r a v a de longo, himdo os
batees asy a c a r a m de terra, e fomos ataa huúa lagoa
grande de a g o a doçe, que esta jumto com a praya, por-
que toda aquela rribeira do m a r he apaulada per ç j m a
e saay a a g o a per mujtos lugares ; e, depois de pasar-
mos o rrio, foram huuns bij ( j ) ou biij (8) d eles amdar
antre os marinheiros que se recolhiam aos batees. e
levaram d aly huum tubaram, que Bertolomeu Dias
m a t o u ; e levava Ih o, e lançou o na praya. A b a s t a que
ataa quy, c o m o quer que se eles em alguüa parte aman-
sasem, logo d huúa m a ã o pera a outra se esquivavam
c o m a pardaaes de c e v a d o i r o : e homem nom lhes ousa
de falar rijo, por se mais nom esqujvarem ; e todo se
p a s a como eles querem, poios bem amansar. Ao velho,
c o m que o c a p i t a m f a l o u , deu huúa c a r a p u ç a vermelha;
e com toda a f a l a que c o m ele pasou. e c o m a Carapuça
que lhe deu. tanto que se espedio. que c o m e ç o u de pa-
sar o rrio, foi se logo recatando, e nom quis mais tor-
nar do rrio pera aquém ; os outros dous, que o capitam
teve nas naaos, a que deu o que já dito he. numca aquv
m a i s p a r e c e r a m ; de que tiro seer jente bestial e de
pouco saber ; e por ysso sam asy esqujvos ; eles p o r e m
comtudo amdam muito bem curados e mujto limpos, e
naquilo me pareçe aimda mais que sam c o m a aves ou
a l i m a r e a s monteses, que lhes faz ho aar mjlhor pena e
milhor c a b e l o , que aas m a n s a s ; porque os corpos seus
i a m tam timpos é tão g o r d o s e tam fremosos, que nom
pode mais s e e r ; e isto me faz presumjr que nom teem
c a s a s , nem m o r a d a s em que se colham, e o aar, a que
se criam, os faz t a a e s ; nem nos ainda ataa gora nom
v i m o s nenhuúas casas nem maneira d elas. Mandou o
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

capitam aaquele degradado A f i o n s o Ribeiro que se


fosse outra vez com e l e s ; o qual se f o y ; e andou la-
huum b o o m pedaço ; e aa tarde tornou se, que o feze-
ram eles v i m j r ; e nom o quizeram la c o n s e m t i r ; e de-
ram lhe arcos e seetas, e nom lhe tomaram nenhuúa
c o u s a do s e u ; ante, dise ele que lhe tomara huum d eles
húas continhas amarelas que ele levava, e f o g i a com
e l a s ; e ele se queixou, e os outros f o r a m logo apos ele
e Ih as tornaram e tornaran lhas a d a r ; e emtam manda-
ram no v i m j r ; dise ele que nom vira la antre eles se-
nom húuas choupanjnhas de rama verde e de feeytos
muito grandes c o m a d amtre Doiro e Mjnho ; e asy nos
tornamos aas naaos ja easy noute adormjr. A a segunda
feira depois de comer saímos todos em terra a tomar
a g o a ; aly vieram emtam mujtos, mas nom tamtos coma
as outras v e z e s ; e traziam ja muito poucos a r c o s ; e
esteveram asy huum p o u c o afastados de n o s ; e despois
poucos e poucos mesturaran se c o m n o s c o ; e abraça-
vam nos e folgavam ; e alguuns d eles se esquivavam
logo ; aly d a v a m alguuns arcos por folhas de papel, e
por algúa carapucinha velha, e por qualquer cousa ; e
em tal m a n e i r a se pasou a cousa, que bem xx ou x x x
pesoas das nosas se f o r a m com elles onde outros muj-
tos d eles estavam, com m o ç a s e molheres, e trouveranx
de la muitos arcos e baretes de penas d aves d eles
verdes, e deles a m a r e l o s , de que creo que o capitam ha
de mandar a m o s t r a a V o s s a A l t e z a ; e, segundo deziam
eses que la f o r a m f o l g a v a m com eles. Neeste dia os
vimos de mais perto, e mais aa nosa vontade por an-
darmos todos casv mesturados ; e aly d eles andavam
d aquelas timturas q u a r t e j a d o s ; outros de m e t a d e s ;
outros de tanta f e i ç a m c o m a em panos d armar ; e todos,
com os beiços f u r a d o s ; e mujtos com os osos n e e l e s ;
e d e l e s s e m o s o s . T r a z i a m alguuns d eles h u u n s o u r j ç o s
verdes d arvores que na cor querjam parecer de casti-
nheiros, senom quanto heram m a i s e m a i s pequenos; e
248 •224 E X P E D I Ç Ã O DE

aqueles heram cheos de huuns graãos vermelhos peque-


nos, que, esmagando os antre os dedos fazia timtura muito
vermelha, da que eles amdavam timtos, e quanto se mais
m o l h a v a m tanto mais vermelhos ficavam. T o d o s andam
r a p a d o s ataa cjrna das oreihas, e asy as sobrancelhas e
pestanas ; trazem todos as testas de fonte a fonte tim-
tas da timtura preta que parece huúa fita preta ancha
de dous dedos. E o capitam mandou aaquele degradado
A f f o n s o Ribeiro e a outros dous degradados que fosem
a m d a r la antr e l e s ; e asy a Diogo Dias, por seer homem
ledo. c o m que eles f o l g a v a m ; e aos degradados mandou
que ficasem lá esta noute. F o r a m se la todos e andaram
antr e l e s ; e. segundo elles deziam, f o r a m bem huúa le-
g o a e mea a hua p o v o r a ç o m de casas, em que averja
ix ou x casas, as q u a a e s deziam que eram tam c o n p n -
d a s cada húa c o m eesta naao c a p i t a n a ; e heram de
m a d e i r a , e das jlhargas de tavoas, e cubertas de palha
•de razoada altura, e todas em huúa soo c a s a , sem ne-
nhuum repartimento ; Tinham de dentro mujtos esteos,
e d esteo a esteo huüa rede atada pelos c a b o s em c a d a
esteo, altas, em que d o r m j a m ; e debaixo, pera se aquen-
tarem, faziam seus f o g o s ; e tinha cada c a s a d u a s por-
tas pequenas, huúa em huum c a b o , e outra no outro ;
e deziam que em cada casa se colhiam xxx ou R (40)
pesoas. e que asy os a c h a v a m ; e que lhes d a v a m de
comer d aquela vianda que eles tijnham, saber, mujto
jnhanie. e outras sementes que na terra ha. que eles
comem! E , c o m o foi tarde, fezeram nos logo todos tor-
nar, e nom quiseram que la ficasse nenhuum, e ajnda,
segundo eles deziam, queriam se vimjr com eles. R e s -
g a t a r a m la, por c a s c a v e e s e por outras cousinhas de
pouco valor que levavam, p a p a g a v o s vermelhos mujto
grandes e fremosos, e dous verdes pequenjnos. e c a r a -
puças de penas verdes, e huum pano de penas de mui-
tas cores, maneira de tecido, asaz fremoso. segundo
V o s a Alteza todas estas cousas vera, porque o c a p i t a m
283
PEDRO AI.VARES CABRAI.

v o l a s ha de m a n d a r , segundo ele dise. E c o m isto v i e -


r a m , e nos t o r n a m o nos as n a a o s . A a terça f e i r a , depois
de c o m e r , f o m o s em terra d a r g u a r d a de lenha, e l a v a r
r o u p a : e s t a v a m na p r a v a , q u a n d o c h e g a m o s , o b r a de
l x ou i x x sem a r c o s e sem n a d a ; tamto que c h e g a m o s ,
vieram se l o g o pera nos sem se e s q u i v a r e m ; e depois
a c o d i r a m m u j t o s que s e r i a m bem ij c (200) todos sem
a r c o s ; e m e s t u r a r a m se todos tanto c o m n o s c o , que n o s
ajudavam d eles a a c a r e t a r lenha e meter nos batees e
lujtavam com os n o s o s , e t o m a v a m m u j t o prazer ; e.
e m q u a n t o nos f a z í a m o s a lenha, f a z i a m dous c a r p e n -
t e i r o s huüa g r a n d e c r u z de huum p a a o que se o m t e m
p e r a y s o c o r t o u . M u j t o s d eles v i i n h a m aly estar c o m
o s c a r p e n t e i r o s ; e c r e o que o f a z i a m m a i s p o r veerem
a f a r a m e n t a de f e r r o c o m que a f a z i a m , que p o r v e e -
rem a cruz. p o r q u e eles n o m teem c o u s a que de f e r o
seja ; e cortam sua madeira e paaos com pedras feitas
coma cunhas m e t i d a s em huum p a a o . antre d u a s t a l a s
muy bem a t a d a s , e per tal m a n e i r a que a n d a m fortes,
s e g u n d o os h o m e e n s que o m t e m as suas c a s a s (sic) de-
ziam, porque lh as v i r a m la. E r a ja a c o n v e r s a ç a m
d eles c o m n o s c o tanta, que easy nos t o r v a v a m a o que
h a v i a m o s de f a z e r ; e o c a p i t a m mandou a d o u s degra-
d a d o s , e a D i o g o D i a s que losem la a aldea. e a o u t r a s ,
se o u v e s e m d elas n o v a s , e que em toda m a n e i r a n o m
se viesem a d o r m j r a a s n a a o s . ainda que os eles man-
d a s e m ; e asy se f o r a m . E m q u a n t o a n d a v a m o s neesa
m a t a a ' c o r t a r a lenha, a t r a v e s a v a m alguuns p a p a g a y o s
per esas a r v o r e s , d eles verdes, e outros p a r d o s , g r a n -
d e s e p e q u e n o s , de m a n e i r a que me p a r e ç e que a v e r a
neesta terra m u j t o s ; p e r o eu nom v e r i a m a i s que a t a a
i x ou x ; o u t r a s aves e n t a m n o m v i m o s , somente a l g ú u a s
ponbas seixas; e p a r e c e r a m me m a y o r e s e m b o a c a m -
tidade c a a s de P o r t u g a l ; alguuns d e z i a m q u e viram
rolas; mas eu n o m a s vy ; m a s . segundo o s a r v o r e d o s
sam muy mujto e grandes, e d jmfimdas maneiras;
•224 EXPEDIÇÃO DE

nom d o v j d o que per ese s a r t a ã o a j a m mujtas aves ; e


a c e r q u a d a noute nos v o l v e m o s pera as n a a o s c o m
nossa lenha. E u c r e o , senhor, que nom dey ajnda a q u y
eonta a V o s a Alteza d a f e i ç a m de seus arcos e s e e t n s ;
os arcos sam pretos e comprdos e as seetas c o m p r j d a s ,
e os feros d elas de canas a p a r a d a s , segundo V o s a A l -
teza vera per alguuns que creo que o capitam a ela ha
d emvjar.

A a quarta f e i r a n o m f o m o s em terra, porque o c a p i -


tam andou todo o dia no navio dos mantijmentos a
despejalo, e f a z e r l e v a r aas n a a o s isso que c a d a huüa
podia levar; eles a c o d i r a m aa p r a v a mujtos, segundo
d a s naaos vimos, que seriam obra de iij<= / 3 0 0 j t segundo
S a n c h o de T o a r , que la f o y , dise, D i o g o D i a s e A l f o n s o
R i b e i r o , o d e g r a d a d o , a que o c a p i t a m omtem m a n d o u
que em toda m a n e i r a la d o r m i s e m , volveram se ja de
noute, p o r eles nom quererem que la dormisem, e trou-
v e r a m p a p a g a y o s verdes e outras aves pretas easy c o m a
pegas, senom quanto tijnham o bico branco e os rabos
c u r t o s ; e quando se S a n c h o de T o a r recolheo aa naao
querian se v i m j r c o m ele alguuns, mas ele nom quis,
senom d o u s m a n c e b o s despostos, e homeens de prol.
Mandou os esa noute muy bem pensar e curar, e c o m e -
ram toda v i a n d a que lhes deram ; e mandou lhes fazer
cama de l e n ç o o e s , segundo ele dise, e d o r m j r a m , e fol-
g a r a m aquela noute ; e asy nom f o y mais este d i a que
pera sprever seja.

Aa quinta feira, deradeiro d Abril, c o m e m o s logo


easy pola manha;!, e f o m o s em terra por mais lenha e
a g o a ; e, em querendo o c a p i t a m sair d esta naao, che-
g o u S a n c h o de T o a r com seus dous ospedes, e por ele
nom teer ajnda c o m j d o poseran lhe toalhas, e v e o lhe
v i a n d a , e c o m e o ; os ospedes asentaram nos em senhas
c a d e i r a s , e dc todo o que lhes deram c o m e r a m muy
bem, especialmente l a c a m cozido f r i o e a r r o z ; nom
lhes deram vinho, por S a n c h o de T o a r dizer que o nom
PEDRO AI.VARES CABRAI. 251

bebiam b e m ; a c a b a d o o c o m e r , metemo nos t o d o s no


batel, e eles c o m n o s c o ; d e u huum g r o m e t e a h u u m
d eles h u ú a a r m a d u r a g r a n d e de p o r c o montes bem
r e v o l t a , e tamto que a t o m o u meteo a l o g o no b e i ç o ,
p o r q u e se lhe n o m queria teer, d e r a m lhe h u ú a p e q u e n a
de c e r a v e r m e l h a , e ele c o r e j e o lhe de tras seu a d e r e m ç o
p e r a se teer. e meteo a no b e i ç o asy r e v o l t a pera
cjma, e vijnha tarn c o m t e n t e c o m ela, c o m o se t e v e r a
h u ú a g r a n d e j o y a ; e t a m t o que s a y m o s em t e r r a , f o i se
l o g o c o m ela, que nom p a r e ç e o hy mais. A n d a r i a m na
p r a y a , quando saymos b i i j (8) ou x d eles, e d hy a
p o u c o c o m e ç a r a m de v i m j r , e p a r e c e me que v i m j r i a m
este d i a aa p r a y a iiij (400) ou iiij c (45o). T r a z i a m al-
g u u n s d eles a r c o s e seetas, e todolos d e r a m p o r c a r a -
p u ç a s e p o r q u a l l q u e r c o u s a que lhes d a v a m ; c o m j a m
c o m n o s c o d o que lhes d a v a m o s ; e b e b i a m a l g u ú s d e l e s
vinho, e outros o n o m p o d i a m b e b e r ; m a s p a r e c e me
que, se Ih o a v e z a r e m , que o beberam de b o a v o m t a d e .
Andavam t o d o s tarn d e s p o s t o s e tam b e m f e i t o s e g a -
lamtes com suas timturas, que pareciam bem ; a c a r e -
t a v a m d e s a lenha q u a m t a p o d i a m c o m m u y b o a s v o m -
tades, e l e v a v a m n a a o s batees, e a n d a v a m ja m a i s
mansos e seguros autre nos, do que nos a n d a v a m o s
antr eles. F o i o c a p i t a m c o m alguuns de nos h u u m pe-
d a ç o per este a r v o r e d o a t a a huúa ribeira g r a n d e e de
muita a g o a , q u e a n o s o parecer era esta m e s m a que
vem teer a a p r a y a , em que nos t o m a m o s a g o a ; ali
j o u v e m o s huum p e d a ç o bebendo e f o l g a n d o a o longo
d ela antr ese a r v o r e d o , que he tamto e t a m a n h o e t a m
b a s t o e de t a m t a s p r u m a j e e n s , que lhe nom pode h o m e m
d a r c o n t o ; ha antr ele m u i t a s p a l m a s , de q u e colhemos
mujtos e boos palmjtos. Quando saymos d o batel d i s e
o capitam que seria b o o h i r m o s dereitos a a c r u z , q u e
e s t a v a e n c o s t a d a a h u ú a a r v o r e junto c o m o r r i o , pera
se p o e r d e m a n h a á , que he sesta f e i r a , e q u e n o s pose-
semos todos f m giolhos e a beijasemos, p e r a e l e s vee-
•224 EXPEDIÇÃO DE

rem ho acatamento que lhe t i j n h a m o s ; e asy o fezemos.


E e s t e s x ou xij (12) que hy estavam acenaram lhes que
fezesem asy. e f o r a m logo todos beijala. P a r e ç e me
jemte de tal inoçencia, que, se os homem emtendese, e
eles a nos, que seriam logo christaáos, porque eles nom
teem, nem emtendem em nenhuúa c r e e m ç a , segundo
pareçe. E portamto, se os degradados que aquv a m de
ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, nom
dovido, segundo a santa tençam de V o s a Alteza faze-
rem se christaáos. e creerem na nossa samta fé, aa
qual praza a nosso Senhor que os t r a g a ; porque çerto
esta jente he boa e de b o a sijnprezidade, e e n p r e m a r s e á
ligeiramente neeles qualquer crunho que lhes quiserem
d a r ; e, logo lhes nosso Senhor deu boõs corpos e boós
rostros c o m a a boos homeens, e ele que nos per aquv
trouve, creo que nom foy sem c a u s a ; e portanto V o s a
Alteza, pois tamto deseja acreçentar na santa fe c a t ó l i c a ,
deve emtender em sua s a l v a ç a m , e prazera a D e o s que
com pouco trabalho sera asy. Eles nom l a v r a m , nem
criam, nem ha aquv boy nem v a c a , nem c a b r a , nem
ovelha, nem galinha, nem outra nenhuã a l u n a r i a que
c u s t u m a d a seja ao viver dos homeens; nem c o m e m se-
nom d ese jnhame que aquy ha muito, e d esa semente
e fruitos que a tera e as arvores de sy l a n ç a m ; e c o m
jsto andam taaes e tam rijos, e tam nedeos, que o nom
somo nos tanto, com quanto trigo e legumes c o m e m o s .
Em quanto aly este dia amdaram, sempre, ao soom de
huum tanborv nosso, d a n ç a r a m e bailharam c o m os
nosos, em maneira que são muito mais nosos a m i g o s
que nos s e u s ; se lhes homem acenava se queriam v i m j r
aas naaos, f a z i a m se logo prestes pera iso, em tal ma-
neira, que se os homem todos quizera c o m v i d a r , todos
v i e r a m ; porem nom trouvemos esta noute aas naaos
senom iiij (4) ou b (5), s a b e r : o c a p i t a m m o o r dous, e
S i m ã o de Miranda huum que trazia já por paje, e A y r e s
G o m e s outro, asy p a g e ; os que o c a p i t a m trouve era
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

huum d eles huum dos seus ospedes que aa primeira,


quando aquy chegamos lhe trouveram, o qual veo hoje
aquy vestido na sua camiza e com ele huum seu irmaão,
os quaes f o r a m esta noute muy bem agasalhados, asy
de vianda, como de c a m a de colchoões e lençoòes,
poios mais amansar.
E oje, que he sexta feira, primeiro dia de M a y o . pola
manháa saímos em terra com nossa bandeira, e f o m o s
desenbarcar acima do rio contra o sul. onde nos pareceo
que seria milhor chantar a cruz. pera seer milhor v i s t a ;
e alv asijnou o capitam onde fezesem a c o v a pera a
c h a n t a r ; e emquanto a ficaram fazendo ele c o m todos
n o s outros fomos pola cruz. abaixo do rio. onde ela
e s t a v a ; trouvemola d ahy com eses relegiosos e sacer-
dotes diante cantando, maneira de precisam. Heram já
hy alguuns d eles, obra de lxx ou I x x x ; e quando nos
asy viram vimjr, alguns d eles se f o r a m meter de baixo
d ela a j u d a m o s ; pasamolo rio ao longo da p r a v a e
f o m o l a poer onde avia de seer, que sera do rio obra de
dous tiros de beesta; aly andando nysto vimjriam bem
cl (i5o), ou mais. Chentada a cruz com as armas e de-
visa de V o s a Alteza que lhe primeiro pregarom a r m a -
ram altar ao pee d ela. Aly dise misa o padre frei A m -
rique, a qual foy camtada e ofeçiada per eses ja d i t o s ;
alv esteveram comnosco a ela obra de 1 ou lx d eles
asentados todos em giolhos, asy coma nos, e quando
veo ao avanjelho, que nos erguemos todos em pee c o m
as máaos levantadas, eles se levantaram c o m n o s c o e
alçarom as máaos, estando asy ataa seer a c a b a d o ; e
entam tornaram se a asentar coma nos. E quando le-
vantantarom a Deos, que nos posemos em giolhos, eles
se poseram todos asy c o m a nos estavamos c o m as m a á o s
levantadas, e em tal maneira asesegados, que certefico
a V o s a Alteza que nos fez mujta devaçom. E s t e v e r a m
asy c o m n o s c o ataa acabada a comunham, e depois da
•comunham comungaram eses religiosos e sacerdotes e
•224 EXPEDIÇÃO DE

o c a p i t a m com alguuns de nos o u t r o s ; alguuns d eles


por o sol seer grande, em nos estando c o m u n g a n d o ,
aleVantaram-se, e outros esteveram e ficarom; huum
d eles, h o m e m de 1 ou 1b (55) annos, ficou aly c o m
aqueles que ficaram; aquele em nos asy estamdo ajum-
tava aqueles que aly ficaram, e ainda c h a m a v a o u t r o s ;
este andando asy antr eles falando lhes acenou c o m o
dedo pera o altar, e depois mostrou o dedo pera o ceeo
c o m a que lhes dizia alguúa c o u s a de b e m ; e nos asy
o tomamos. A c a b a d a a misa, tirou o padre a vestimenta
de c j m a e ficou na alva. e asy se sobio junto com lio
altar em huúa c a d e i r a ; e aly nos pregou do avanjelho-
e dos apostolos, cujo d i a hoje he, trautando em fim da
preegaçoan d este voso pressegujmento tam santo e
vertuoso, que nos c a u s o u mais d e v a ç a m ; eses, que aa
p r e e g a ç a m sempre esteveram, e s t a v a m , asy c o m a nos,
olhando pera e l e ; e aquele que digo c h a m a v a alguuns
que viesem pera aly ; alguuns vijnham e outros hiam se^
e, a c a b a d a a p r e e g a ç o m , trazia N j c o l a a o Coelho mujtas
cruzes d estanho com cruçufiços que lhe ficarom ainda
da outra vijnda ; e ouveram por bem que lançasem a
c a d a huum sua ao p e s c o ç o ; pela qual c o u s a se asentou
o padre frey Anrique ao pee da cruz, e aly a huum e
huum l a n ç a v a sua atada em huum fio ao p e s c o ç o , f a -
zendo lhe primeiro beijar e alevantar as m a ã o s ; vinham
a isso mujtos e lançaram nas todas, que seriam obra de
R (40) ou L ; e, isto a c a b a d o , era ja bem huúa ora de-
pois do meo dja, viemos aas naaos a comer, onde o ca-
pitam trouve comsigo aquelle meesmo que fez aos ou-
tros a q u e l a m o s t r a m ç a pera o altar e pera o ceeo, e
huum seu i r m a ã o c o m ele, ao qual fez m u j t a h o m r r a ;
e deu lhe huúa c a m i s a m o u r i s c a ; e ao outro huúa ca-
misa d e s t r o u t r a s ; e, segundo o que a m y m e a todos
p a r e ç e o , esta jemte nom lhes f a l e ç e outra c o u s a pera
seer toda christaá ca entenderem n o s ; porque asy tor-
n a v a m aquilo que nos viam fazer c o m a nos m e e s m o s ,
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

per onde pareçeo a todos que nenhuúa jdolatria nem


-adoraçom t e e m . E bem c r e o que, se V o s a Alteza aquv
mandar q u e m mais antr eles de v a g a r ande. que todos
seram tornados ao desejo de V o s a A l t e z a ; e pera isso,
se aiguem vjer, nom ieixe logo de vimjr cierigo pera os
bautizar, porque ja entam teeram mais conheçimento
de nosa fe pelos dous degradados que aquy antr eles
ficam; os quaaes ambos oje também comungaram.
Antre todos estes que oje vieram, nom veo mais que
hhúa molher m o ç a , a qual esteve sempre aa misa, aa
qual deram huum pano com que se cobrise, e poseram
lh o d arredor de s y ; pero ao asentar nom fazia m e -
morea de o m u j t o estender pera se c o b r i r ; asy, senhor,
que a jnoçençia d esta jemte he tal, que a d Adam nom
seria m a j s quanta em v e r g o n h a ; ora veja V o s a Alteza
quem em tal jnocencia vjve. ensinamdo lhes o que pera
sua s a l v a ç o m perteeçc. se se converteram ou nom. A c a -
bado isto, f o m o s asy perante eles beijar a cruz, e espe-
d i m o nos, e vjemos comer.
C r e o , senhor, que com estes dous degradados, que
aquy ficam, ficam mais dous grometes, que esta noute
se sairam d esta naao no esquife em terra fogidos, os
quaes nom vieram majs, e creemos que ficaram a q u y ,
porque de manhaã. prazendo a Deos, fazemos d aquy
nosa partida.
E s t a terra, senhor, me pareçe que da pomta, que mais
contra o sul vimos, ataa outra ponta, que contra o
norte vem, de que nos d este porto ouvemos vista, sera
tamanha, que avera neela bem xx ou xxb (25) legoas
per costa. T r a z as lomgo do mar em alguúas partes
grandes bareiras, d elas vermelhas, e d elas b r a m c a s ; e
a terra per c i m a toda chaã e mujto chea de grandes
arvoredos. De pomta a pomta he toda praya parma
mujto chaã e mujto f r e m o s a ; pelo sartaão nos pareceo
do m a r mujto grande, porque, a estender olhos, nom
podíamos veer senem terra e arvoredos, que nos pareçia
0
2P6 EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

muy longa terá. Neela ataa a g o r a nora podemos s a b e r


que a j a o u r o nem prata, nem nenhuüa c o u s a de metal,
nem de fero, nem lh o v i m o s ; pero a terra em sy he de
mujto boos aares asy f r i o s e e (sic) tenperados c o m a os
d aníre D o i r o e Minho, porque neste tempo d a g o r a asy
os a c h a v a m o s c o m a os de I a ; agoas sam mujtas imfim-
d a s ; em tal maneira he graciosa que querendo a apro-
veitar, darseá nela tudo per bem d a s agoas que t e m ;
pero o mjlhor fruito que neela se pode fazer me pareçe
que será salvar esta j e m t e ; e esta deve seer a principal
semente que V o s a Alteza em ela deve l a m ç a r ; e que h y
nom ouvese mais ca teer aquy esta p o u s a d a pera esta
n a v e g a ç o m de Calecut abastaria, quanto m a j s desposi-
ç a m pera se neela conprir e fazer o que V o s a A l t e z a
tamto deseja, saber, acrecentamento da nosa santa fé.
E neesta maneira, senhor, dou aquy a V o s a Alteza do
que neesta v o s a terra v y (sic); e se a alguum p o u c o
alonguey, ela me perdoe, e ao desejo que tijnha de v o s
tudo dizer m o fez asy poer pelo meudo. E pois que,
senhor, he certo que, asy neeste c a r e g u o que levo, c o m o
em outra qualquer c o u s s a que de v o s s o serviço f o r
V o s a Alteza ha de seer de m y m m u j t o bem servida, a
ela peço que por me fazer simgular merçee mande v i j r
da jlha de S a m T h o m e Jorge D o s o i r o meu jenrro, o
que d ela receberey em mujta merçee. B e i j o as m a ã o s
de V o s a Alteza. D este P o r t o S e g u r o da v o s a jlha da
V e r a C r u z oje sesta f e i r a primeiro dia de M a y o de i5oo.
P e r o V a a z de C a m j n h a .

(Sobrescripto:) A E I R e i noso Senhor.


(Tem nas costas por letra coeva:) C a r t a de Pero
V a a z de C a m i n h a do descobrimento da terra nova que
fez P e d r o Alvarez.
CARTA DE MESTRE JOÃO

S e n o r ? O b a c h e r e l mestre J o h a m , fisjco e ç i r u r g y a n o
de V o s s a A l t e z a , b e s o v o s a s rreales m a n o s . S e n o r : p o r -
que, de todo lo a c a p a s a d o l a r g a m e n t e e s c r i v i e r o n a
Vosa Alteza, a s y A r i a s C o r r e a , c o m o t o d o s los o t r o s ,
solamente escrevjrê dos puntos. S e f í o r : a y e r s e g u n d a
f e r i a , que f u e r o n 27 de A b r i l , d e s ç e n d j m o s en tierra, y o ,
e el p y l o t o do c a p y t a n m o o r , e el p y l o t o de S a n c h o d e
Tovar; e t o m a m o s el altura dei s o l , al m e d j o d j a ; e
f a l í a m o s 66 g r r a d o s , e la s o n b r r a era septentrional. P o r
lo q u a l , segund ias r r e g r a s del e s t r s l a b j o , j u s g a m o s ser
a f a s t a d o s de la e q u i n o ç i a l , por 17 g r r a d o s ; e, p o r c o n -
s y g u j e n t e , tener el altura del polo a n t a r t i c o en 17 g r r a -
d o s , segund que es magnjliesto en el espera ; e esto es
quanto a la uno. P o r lo qual, sabrra V o s a A l t e z a que
t o d o s l o s p y l o t o s van adjante de m j , en tanto que P e r o
E s c o b a r v a a d j a n t e i5o léguas, e o t r o s m a s . e o t r o s me-
nos ; p e r o quien djSo la v e r d a d , non se puede ç e r t y f i c a r ,
f a s t a que en b o a o r a allégemos al c a b o de B o a E s p e -
r a n ç a , e ally s a b r r e m o s quien va m a s çierto ; e l l o s c o n
la c a r t a , o y o e o n la c a r t a e c o n el e s t r o l a b j o . Q u a n t o ,
s e f í o r , al s y t y o d e s t a tierra, m a n d e V o s a A l t e z a traer
un n a p a m u n d j que tjene P e r o V a a z B i s a g u d o , e p o r ay
podrra ver Vosa A l t e z a el s y t y o desta tierra ; en pero,
aquel n a p a m u n j non certifica esta tierra ser h a b y t a d a ,
o no. E s n a p a m u n d j a n t j g u o ; e ally f a l i a r a V o s a A l t e z a
escripta tanbyen la Mina. A y e r e a s y e n t e n d j m o s p o r

'7
•224 EXPEDIÇÃO DE

a s e n o s que esta era ysla, e que eran quatro, e que de


otra ysla vyenen aqui a l m a d j a s a pelear con ellos, e los
Uevan catjvos. Quanto, senor, al otro pumto, sabrra
V o s a Alteza que, ç e r c a de las estreitas, yo he t r a b a j a d o
a i g u uv ivj liv ( v i u Í.VJ.. - -
una pyerna que tengo muj m a l a , que de una c o s a d u r a
se me ha fecho una c h a g a , m a y o r que la palma de la
m a n o ; e tanbyen a cabsa de este n a v j o ser mucho pe-
queno e muj c a r g a d o , que non ay lugar pera c o s a njn-
guna. S o l a m e n t e mando a V o s a Alteza c o m o estan si-
tuadas las estrellas d e l ; pero en que g r r a d o esta cada
una, non lo he podjdo saber, antes me paresçe ser jn-
posjble, en la m a r , tomarse altura de njnguna estrella ;
por que vo trabajè mucho en eso ; e, por poco que el

el p o l o antartyco
la bosva

navjo enbalançe, s e yerran quatro o çinco grrados, d e


gujsa que se non puede faser, s y n o n e ntierra ; e otro
tanto easy djgo d e l a st a b l a s d e l a Indja, que s e non
p u e d e n t o m a r c o n ellas, s y n o n c o n m u j m u c h o trabajo ;
PEDRO AI.VARES CABRAI. 239

que sy V o s a A l t e z a supyesse c o m o d e s c o n ç e r t a v a n to-


dos en las p u l g a d a s , r r e y r y a dello m a s que dei estrola-
bjo ; p o r q u e desde L j s b o a ate a s C a r i a r i a s , unos de o t r o s
d e s c o n ç e r t a v a n en m u c h a s p u l g a d a s , que unos desyan,
m a s- nncT "
n t r f « rroc nnnrr^ n^ .. . ii iL^ oi i .vUi urs ,. u„ w n u l i U U U
desde las C a n a r i a s ate as y s l a s de C a b o V e r d e ; e estoj
rresguardando todos, que el t o m a r f u e s e a una m j s m a
o r a , de g u j s a que m a s j u s g a v a n p u a n t a s p u l g a d a s que
eran, p o r la q n a n t y d a d dei c a m j n o que les p a r e s ç i a que
a v y a n a n d a d o , que non el c a m j n o p o r las pulgadas.
T o r n a n d o , senor, al p r o p o s i t o , estas g u a r d a s n u n c a se
e s c o n d e n ; antes s y e m p r e andan en d e r r e d o r , sobre el
o r i z o n t e , e aun estó d u d o s o , que non sê qual de aquel-
las dos m a s b a x a s sea el p o l o a n t a r t y c o ; e estas estrel-
las, p r i n ç i p a l m e n t e las de la crus, son g r r a n d e s , e a s y
como las dei c a r r o ; e la estrella del p o l o a n t a r t y c o , o
sul, es p e q u e n a , c o m o la dei norte, e m u y c l a r a ; e la es-
trella que esta en rriba de toda la c r u s es m u c h o p e q u e -
na. N o n q u i e r o m a s a l a r g a r , p o r non y n p o r t u n a r a V o s a
A l t e z a , s a l v o que quedo r r o g a n d o a N o s o S e n h o r J e s u
C h r i s t o la la (sic) v y d a e e s t a d o de V o s a A l t e z a a c r e s -
çiente, c o m o V o s a A l t e z a desea. F e c h a en V e r a C r u s , a
p r i m e r o de M a j o de 5oo. P e r a la m a r , m e j o r es rregyrse
p o r el altura del sol, que non por ningunas estrella (sic);
e m e j o r con e s t r o l a b j o que non con q u a d r a n t e , njn c o n
o t r o ningud estrumento.

D o c r i a d o de V o s a A l t e z a e v o s o leal s e r v j d o r J o h a -
nes a r t i u m et medicine b a c b a l a r i u s .
(Sobrescripto):) A E l Rey noso Senhor.
RELAÇÃO DO PILOTO ANÓNIMO

C A P I T U L O I.

DE COMO KI.RII DE PORTUGAL MANDOU HUMA


ARMADA DE D O / E NÀOS, DE QUE ERA CAPI-
TÃO MÓR PEDRO ALVARES CABRAL ; DEZ DAS
QUAES FORÁO TER A C a L I C U T , E AS OUTRAS
•DUAS A ÇoFAI.A, QUE FICA NA MESMA DER-
ROTA, A FIM DE CONTRATAR KM MERCADORIAS;
K DE COMO DESCOBRIRÃO HUMA TERRA MUITO
POVOADA DK ARVORES E DE GENTE

N o anno de mil o q u i n h e n t o s m a n d o u o S e r e n í s s i m o
Rei de P o r t u g a l D. M a n o e l h u m » a r m a d a ue d o z e nàos
e n a v i o s p a r a as p a r l e s d a índia, e p o r s e u C a p i t ã o m ó r
Pedro Alvares Cabral, Fidalgo d a s u a C a s a , as quaes
partirão bem apparelhadas, e providas do necessário
para anno e m e i o de v i a g e m . Dez d e s t a s n à o s l e v a v á o
r e g i m e n t o de hir a C a l i c u t , e as d u a s restantes a hum
l u g a r c h a m a d o Ç o f a l a p a r a c o n t r a t a r em m e r c a d o r i a s ,
ficando este p o r t o na m e s m a d e r r o t a de C a l i c u t , p a r a
o n d e as o u t r a s dez hifio c a r r e g a d a s . E m hum D o m i n g o
outo de M a r ç o d a quelle a n n o , e s t a n d o tudo prestes,
sahimos a d u a s m i l h a s de d i s t a n c i a de L i s b o a , a hum
iugar chamado R a s t e l l o , onde está o C o n v e n t o de He-
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

lem, e ahi foi E I R e i entregar pessoalmente ao C a p i t ã o


mór o Estandarte R e a l para a dita Armada. No dia se-
guinte levantámos ancoras com vento prospero, e aos
quatorze do mesmo mez chegámos ás C a n a r i a s : aos
vinte c dous passámos Cubo verde ; e no dia seguinte
esgarrou-se huma náo da A r m a d a , por fôrma tal. que
não se soube mais delia. Aos vinte e quatro de Abril,
que era huma quarta feira do Outavario da Páscoa
houvemos vista de t e r r a ; com o que tendo todos gran-
díssimo prazer, nos chegámos a ella para a reconhecer,
e achando-a muito povoada de arvores, e de gente que
andava pela praia, lançámos ancora na embocadura de
hum pequeno rio.
O nosso C a p i t ã o m ó r m a n j o u deitar fora hum batel,
para ver que povos eráo aquelles, e os q j e nelle f o r á o
acharão huma gente parda, bem disposta, com cabellos
compridos; andavão todos nus sem vergonha alguma,
o cada hum delles trazia aquelle seu arco com frexas,
c o m o quem estava alli para defender aquelle rio : náo
havia ninguém na armada que entendesse a sua lingoa-
gem, de sorte que vendo isto os dos bateis, tornarão
para Pedro Alvares, e no em tanto se fez noute, e se le-
vantou com ella hum muito rijo temporal. Na manhã
seguinte escorremos com elle a custa para o Norte,
estando o vento Sueste, até ver se achavamos algum
porto aonde nos podessemos abrigar e surgir; finalmente
achámos hum aonde ancorámos, e vimos daqueiles
mesmos homens, que andavão pescando nas suas bar-
cas ; hum dos nossos bateis foi ler aonde elles e s t a v á o ,
o apanhou dous que trouxe ao Capitão mór, para saber
que gente erão ; porém, c o m o dissemos, náo se enten-
dido por falias, nem mesmo por acenos, c assim tendo-
os retido huma noute comsigo, os poz em terra no dia
seguinte, com huma camiza, hum vestido, e hum bar-
rete vermelho, com o que ficará > muito contentes, e
maravilhados das cousas que lhes haviáo sido mostradas.
•224 EXPEDIÇÃO DE

C A P I T U L O II.

COMO OS HOMENS DAQUELLA TERRA PRINCIPIARÃO-

A TRATAR COMNOSCO: DAS SUAS CASAS, E DE


ALGUNS PEIXES QUE ALEI HA MUITO DIVERSOS
DOS NOSSOS

Naquellc- m e s m o dia. que era no O u t a v a r i o da P á s -


c o a a vinte e seis de Abril, d e t e r m i n o u o C a p i t ã o m o r
de ouvir M i s s a ; e assim mandou a r m a r hum tenda
naquella p r a i a , e d e b a i x o delia hum altar; e toda a
pente d a A r m a d a assistio tanto á M i s s a c o m o á P r e g a -
ç ã o , juntamente c o m m u i t o s dos n a t u r a e s , que b a i l a v ã o ,
e t a n g i á o nos seus instrumentos ; l o g o que se a c a b o u ,
voltámos aos n a v i o s , e aquelles h o m e n s e n t r a v á o no
m a r ate a o s p e i t o s , cantando e f a z e n d o m u i t a s festas e
folias. D e p o i s de j a n t a r tornou a t e r r a o C a p i t ã o m o r ,
e a gente da a r m a d a p a r a e s p a i r e c e r c o m e l l e s : e a c h á -
m o s neste lugar hum rio de a g o a doce. P e l a v o l t a da
tarde t o r n a m o s ás n ã o s , e no d i a s e g u i n t e d e t e r m i n o u -
se fazer a g u a d a , e t o m a r lenhas ; pelo que f o m o s t o d o s
a terra, e os n a t u r a e s v i e r á o c o m n o s c o p a r a a j u d a r - n o s .
Alguns dos nossos caminharão até huma povoação
onde elles h a b i t a v ã o , c o u s a de tres m i l h a s distante do
m a r , e t r o u x e r á o de lá p a p a g a i o s , e h u m a raiz c h a m a d a
inhame, que he o p ã o de que alli u z ã o , e a l g u m a r r o z ;
dando-lhe os d a a r m a d a c a s c a v é i s e f o l h a s de p a p e l ,
em t r o c a do que recebião. E s t i v e m o s neste l u g a r sinco
ou seis d i a s : os h o m e n s , c o m o já d i s s e m o s , s ã o b a ç o s ,
e a n d á o nús sem v e r g o n h a , tem o s seus cabellos g r a n -
des, e a barba p e l a d a ; as p a l p e b r a s e s o b r a n c e l h a s s ã o
pintadas de b r a n c o , n e g r o , azul. ou v e r m e l h o ; t r a z e m
o beiço d e b a i x o f u r a d o , e metem-lhe h u m osso g r a n d e
c o m o hum p r é g o ; outros trazem h u m a pedra azul ou
PEDRO ALVARES' CABRAl 235

-verde, e assobião pelos ditos b u r a c o s : as mulheres an-


dáo igualmente nuas, são bem feitas de c o r p o , e trazem
os cabellos compridos. A s suas c a s a s s ã o de madeira,
cobertas de folhas e ramos de a r v o r e s , com muitas
colunnas de pão pelo meio. e entre ellas e as paredes
p r e g ã o redes de algodão, nas quaes pode estar hum
h o m e m ; e de cada luima destas redes fazem hum f o g o ,
de m o d o que n'huma só casa pôde haver quarenta ou
sincoenta leitos armados a modo de teares. Nesta terra
não vimos ferro nem outro algum metal, e cortão as
m a d e i r a s c o m huma p e d r a : tem muitas aves de diver-
sas c a s t a s , especialmente p a p a g a i o s de muitas cores, e
entre elles alguns do tamanho de gallinhas, e outros
passaros muito bellos, das pennas dos quaes fazem os
chapeos e barretes de que uzão. A terra he muito abun-
dante de a r v o r e s , e de agoas, milho, inhame, e algodão;
e não v i m o s animal algum quadrupede : o terreno he
grande, p o r é m não podemos saber se e r a Ilha ou terra
i i r m e ; ainda que nos inclinamos a esta ultima opinião
pelo seu t a m a n h o ; tem muito bom a r ; os homens uzão
de redes, e s ã o grandes pescadores ; o peixe que tirão
he de diversas qualidades, e entre elle v i m o s hum, que
podia ser do tamanho de hum tonel, mas mais com-
prido. e todo redondo, a sua c a b e ç a era do feitio da de
hum p o r c o , os olhos pequenos, sem dentes, com as
orelhas c o m p r i d a s : pela parte inferior do c o r p o tinha
v á r i o s b u r a c o s , e a sua cauda era do tamanho de hum
b r a ç o ; não tinha pés, a pele era da g r o s s u r a de hum
dedo. e a sua carne g o r d a e branca c o m o a de porco.
EXPEDIÇÃO DE

C A P I T U L O 111.

COMO O CAPITÃO MOR MANDOU CARTAS A E L R E Í


DF PORTUGAL, DANDO-LHE PARTE DE TER DES-
COBERTA A (MJ ELLA NOVA TERRA ; E COMO POR
CAUSA DA TEMPESTADE SE PERDERÃO QUATRO
NAOS: DA POVOAÇÃO DF. Ç o F A L A , AONDE HA
HUM A MINA DE OURO, A Q U A L FICA JUNTA A

DUAS ILHAS

Nos dias que aqui estivemos, d e t e r m i n o u P e d r o Alva-


res f a z e r s a b e r ao n o s s , Sereníssimo Rei o descobri-
mento desta terra, e deixar nella dous h o m e n s conde-
nados á morte, que trazíamos n a A r m a d a p a r a es e
effeito; e assim despachou hum navio que vinha cm
nossa conserva carregado de mantimentos, além dos
d o z e s o b r e d i t o s , o q u a l t r o u x e a E I R e i as c a r t a s e m que
se c o n t i n h a tudo quanto t i n h a m o s visto e descoberto.
Despachado o navio sahio o C a p i t ã o em terra, m a n d o u
fazer h u m a C r u z de m a d e i r a m u i t o g r a n d e , e a p l a n t o u
n a p r a i a , d e i x a n d o , c o m o ,á d i s s e , o s d o u s d e g r a d a d o s
neste m c ^ m o l u g a r ; os quaes come,árao a chora ,e
forão animados pelos naturaes do p a u . que mos r n
, e r p i e d a d e d e l l e s . N o o u t r o dia, q u e e r a o d o u s de M a , o ,
flzemo-nos á véla, p a r a hir demandar o C a b o d a bo
E s p e r a n ç a , a c h a n d o - n o s e n t ã o e n g o l l a d o s no m a ma.
d e mil e d u z e n t a s l é g u a s de q u a t r o m i l h a s c a d a h . m a .
e aos doze do m e s m o mez, seguindo o nosso caminho.
„ o s a p p a r e c e o h u m c o m e t a p a r a as p a r t e s d a L t h i o , ia,
com huma cauda m u i t o c o m p r i d a , o qual v,mos out
ou d e z n o n . e s a fio: e m iim q u a n d o se c o n i a v a o v i n t e
mez. navegando a Armada toda junta, c o m bom
vento as v e l a ! em meia arvore e sem traquetes, por
c a u s a de h u m a b o r r a s c a , que u n h a m o s tido e m o dia
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

antecedente, veio hum tufão de vento tão forte, e tão


<le súbito por diante, que o não percebemos senão
quando as v i l a s ficarão cruzadas nos m a s t r o s ; neste
mesmo instante se perderão quatro nãos com toda a
sua matalotagem, sem se lhe poder dar soccorro algum;
e as outras sete que escaparão, estiverão em perigo de
se perderem ; e assim fomos agoentando o vento com
os mastros e vélas rotas, e a Deos misericórdia todo
aquelle d i a : o mar embraveceo-se por maneira tal, que
parecia levantar-nos ao C e o ; até que o vento se mudou
de repente, e posto que a tempestade ainda era tão
forte que não nos atrevíamos a largar as vélas; ainda
assim navegando sem citas, perdemo-nos huns dos ou-
tros de modo que a Capitania com duas outrai náos to-
míirão hum rumo, outra chamada EIRei com mais duas
tomarão outro; e as que restavão ainda o u t r o ; e
assim passámos esta tempestade vinte dias consecuti-
vos sempre em arvore s e c a ; até que aos dezaseis do
mez de Junho, houvemos vista da terra da A r a b i a onde
surgimos; e chegados á costa podemos fazer huma boa
pescaria. E s t a terra he muito populosa, como vimos,
navegando ao longo da praia com bom vento, e tempo
aprazível: além disso he muito fructifera . com muitos
rios grandes, e muitos animaes. de modo que toda era
bem povoada. Continuando a nossa viagem chegámos
diante de Ç o f a l a . onde ha h u m a mina de ouro, e achá-
mos junto a esta povoação duas Ilhas: estaváo aqui
duas náos de Mouros, que tinháo carregado ouro da-
quella mina. e hiáo para Melinde. os quaes tanto que
n o s avistarão, começárão a fugir, e lançáráo-se todos ao
mar, tendo primeiro alijado o ouro para que lho não
tirássemos. Pedro Alvares depois de se ter apoderado
das duas náos, fez vir ante si o Capitão delias, e lhe
perguntou de que paiz era, ao que respondeo que era
Mouro, primo de EIRei de Melinde, que as náos erao
suas. e que vinha de Ç o f a l a com aquelle ouro, trazendo
•224 EXPEDIÇÃO DE

c o m s i g o sua mulher e hum filho, os q u a e s se tinhão


a f o g a d o querendo fugir para terra: o Capitão mór
q u a n d o soube que o Mouro era primo de E I R e i de M e -
linde (o qual era muito nosso amigo) se d e s g o s t o u so-
bre maneira, e fazendo-lhe m u i t a honra, lhe mandou
j - - uso

entregar as suas duas naos coin iouo o u u . u ^ ...s


unha tirado. O C a p i t ã o M o u r o perguntou ao nosso se
trazia comsigo algum E n c a n t a d o r , que p o d e s s e tirar a
outra p o r ç ã o que tinhão deitado ao m a r , ao que elle
respondeo que é r a m o s C h r i s t ã o s . e que não t í n h a m o s
semelhantes uzos. Depois tirou o nosso C a p i t ã o m ó r in-
f o r m a ç õ e s das c o u s a s de Ç o f a l a , que ainda neste tempo
não era d e s c o b e r t a senão por f a m a , e o M o u r o lhe deo
por novas, que em Ç o f a l a h a v i a h u m a mina muito
abundante de ouro. c u j o S e n h o r era hum Rei M o u r o , o
qual assistia em huma Ilha c h a m a d a Q u i l ô a , que e s t a v a
na derrota que d e v í a m o s s e g u i r : e que o p a r c e l de Ç o -
f a l a já nos ficava a t r a z ; c o m isto o C a p i t ã o se despe-
dio de nós. e c o n t i n u á m o s a n o s s a j o r n a d a .

C A P I T U L O IV.

DA ILHA DE MOÇAMBIQUE ; E como CHEGAMOS A

QUH.ÒA AONDE ACHAMOS AS OUTRAS NAOS


QUE SE TINHÃO ESCARRADO: COMO O CAPITÃO
MOR E.M.LOU COM O R E I DA DITA TERRA, E
DA CIDADE DE MOMBAÇA

A o s vinte do mez de J u l h o c h e g á m o s a h u m a Ilha


pequena, que he do m e s m o Rei de Ç o f a l a , c h a m a d a
M o ç a m b i q u e , não m u i t o p o v o a d a , a p e z a r de assistirem
nelía mercadores r i c o s ; aqui fizemos a g o a d a , e tomá-
m o s refrescos, e hum P i l o t o p a r a nos l e v a r a Quilôa :
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

esta Ilha tem muito bom porto, e está pouco distante


da terra firme ; daqui partimos para Quilòa ao longo
d a costa, e achámos muitas Ilhas povoadas, que sáo
deste mesmo Rei. Chegámos a Quilòa aos vinte e seis
do dito mez, e ahi nos ajuntámos seis das nossas velas,
: ir.,, 111,0 h»
p o r e m a o u t r a iiuneu m a u uiwüuvíu. ^ l o ....
pequena, junta com a terra firme, e tem huma bella
C i d a d e ; as suas casas sáo altas ao modo de Hespanha:
habitão nella mercadores ricos, que commercêáo muito
em ouro, prata, ambar, almiscar, e pérolas : os da terra
andáo vestidos de panos de algodáo finos, e de sedas e
brocados finíssimos, e sáo negros. L o g o que aqui che-
gámos mandou o Capitão mór pedir hum salvo-con-
ducto ao Rei, que lho enviou immediatamente, e assim
que o teve mandou a terra Affonso Furtado, com sete
ou outo homens bem vestidos, por seu Embaixador, e
por elle lhe fez dizer que aquellas náos eráo de EIRei
de Portugal, as quaes vinhão alli para commerciar com
elle ; e traziáo muitas mercadorias de varias qualidades
de que podia e s c o l h e r ; e bem assim que teria muito
gosto de fallar-lhe. EIRei respondeo que era muito con-
tente disso, e que no dia seguinte lhe viria íallar que-
rendo elle sahir em terra. Affonso Furtado fez-lhe entáo
saber, que o C a p i t ã o mór tinha regimento para não
desembarcar, e que sendo sua vontade se fallarião an-
tes nos bateis; e nisso ficarão de accordo para o outro
dia, em que o Capitão mór se poz em ordem com toda
a sua gente, e as náos e bateis todos embandeirados,
com os seus toldos, e com a artilharia prestes. O Rei
mandou também apparelhar as suas Almadias, ou ba-
teis com muitas festas, e tangeres ao seu modo, e Pedro
Alvares com as suas trombetas e pífaros, e assim par-
tirão hum para o outro: logo que se avisinháráo, dis-
parou-se a artilharia das náos, fazendo hum tão grande
estrondo, que EIRei com toda a sua comitiva ficou
attonito e assustado; depois disto estiveráo hum bom
2<)6 EXPEDIÇÃO DE

e s p a ç o em c o n v e r s a ç ã o , e despedindo-se hum do outro


v o l t o u o C a p i t ã o m ó r para a uáo. No d i a segutnte tor-
nou a mandar A f f o n s o F u r t a d o a terra, p a r a p n n o p i a r
a n e g o c i a ç ã o , porem achou o Rei muito f o r a d o p r o p o -
citr, em aue primeiramente estava, escusando-se que nao
tinha necessidade das nossas m e r c a d o r i a s , e persuadido
de que é r a m o s C o r s á r i o s ; d e i x a n d o pois as c o u s a s neste
e s t a d o voltou A f f o n s o F u r t a d o ao C a p i t ã o mór. Demo-
rámo-nos ainda neste lugar dous ou tres dias, m a s por
m a i s diligencias que p o z e m o s , n ã o nos foi possível con-
seguir cousa a k u m a ; e no tempo que alli ficámos, esti-
varão sempre mandando gente da Ilha p a r a a terra
firme receando que a t o m á s s e m o s p o r f o r ç a . Quando
P e d r o A l v a r e s percebeo isto, determinou partir, e se lez
véla pelo rumo de Melinde. A o longo desta costa
a c h á m o s muitas Ilhas, p o v o a d a s de M o u r o s , e vimos
outra C i d a d e por nome M o ç a m b i q u e , que tinha hum
R e i d a m e s m a n a ç ã o , c de que he p o v o a d a toda esta
c o s t a da E t h i o p i a : tanto porém na Ilha c o m o pela terra
dentro, dizem elles, que ha C h r i s t õ o s , que lhes fazem
muita g u e r r a : porém nós não o s o u b e m o s senão por
informações.

CAPITULO V.

COMO CHEGAMOS A MELINDE, AONDE FOMOS MUITO


BEM RECEBIDOS PEEO R E I ; DO PRESENTE QUE
LHE MANDOU E L R E I DE PORTUGAL, E COMO O
DE MELINDE FALI.OU COM O CAPITÃO MOR

C h e g á m o s a Melinde aos dous de A g o s t o deste m e s m o


anno, e alli a c h á m o s surtas tres n-áos de Cambaya.
c a d a huma do porte de cem t o n e l a d a s ; s ã o muito bem
feitas de b o a s m a d e i r a s , e b e m c o s i d a s c o m cordas
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

p o i s n ã o tem p r e g o s ; e alcatroadas conl huma mistura,


e m que entra muito encenso, e não tem senão o Cas-
t e l l o d e p o p a : estas nàos vinháo aqui a contratar das
partes da Índia. L o g o que c h e g á m o s , mandou-nos E I R e i
•visitar, e ao mesmo tempo hum refresco de muitos car-
neiros, gaiiinhas, patas, limões, c laranjas as melhores
que ha no mundo, e com ellas sararão de escrobuto al-
guns doentes, que tinhamos comnosco. Apenas ancorá-
mos diante da Cidade, mandou o Capitão m ó r dar togo
a todas as bombardas, e embandeirar as n:\os. e furão
l o g o a terra dous Feitores d ' E l R e i , hum dos quaes sa-
bia faliar Mouro, isto he, Arábigo, com hum cumpri-
m e n t o para EIRei de Mehnde, e a dar-lhe parte como
éramos chegados, ao que vínhamos, e que no dia se-
guinte mandaria o Capitão mór a sua embaixada, com
a carta que E I R e i de Portugal lhe escrevia. O Rei teve
grande prazer com a nossa vinda, e a rogos seus ficou
em terra o Feitor, que sabia fallar Arábigo, e logo no
dia seguinte mandou á náo dous Mouros mnilo honra-
d o s , e que fallavão a mesma lingoagem, para visitar a
P e d r o Alvares, e por elles lhe fez dizer como tinha
grande contentamento com a sua chegada, rogando-lhe
mandasse a terra por tudo quanto lhe fosse necessário,
do mesmo modo que o faria se estivesse em Portugal,
pois que elle e todo o seu Reino estava ú disposição do
n o s s o Rei. C o m isto determinou logo o Capitão mor
mandar a terra as cartas com o presente que EIRei de
Portugal lhe remettia, e era huma sella rica, hum par
de cabeçadas com seu esmalte, hum par de estribos com
h u m a s esporas tudo de prata esmaltado e dourado, c o m
s e u peitoral irmão para a dita sella, e todas as correas
e mais jaezes de carmezim muito r i c o s ; e hum cabres-
t i l h o d e fio de ouro também p a r a hum c a v a l l o : d u a s
a l m o f a d a s de brocado, e outras duas de veludo c a r m e -
z i m ; h u m tapete fino, h u m p a n o de Arraz, e dons cór-
tes de pano e s c a r l a t e ; h u m a p e ç a d e s e t i m c a r m e z i m ,
•224 EXPEDIÇÃO DE

e outra de tafetá da mesma e ó r ; o que tudo em Portu-


gal valeria mil d u c a d o s ; e tiveráo cor.selho de que A i -
res Corrêa, que hia por Feitor mór. lhe levasse aquelles
presentes, pelo que foi a terra com as cartas, e com elle
muitas pessoas das principaes, com os seus trombetas :
o, igualmente mandou E l R e i todos os seus príneipaes a
receber o Feitor mor. O seu palacio era junto da praia,
e antes que os Portuguezes chegassem a elle, lhes vie-
ráo ao encontro muitas mulheres com perfumadores
chêos de brazas, deitando-lhes tantos perfumes, que
toda a terra estava e m b a l s a m a d a ; e assim enttáráo
aonde o Rei estava assentado cm huma cadeira, acom-
panhado de muitos Mouros dos principaes. o qual mos-
trou muito prazer com o presente e a carta, que de
huma parte era escrita em Portuguez e da outra em A r á -
bigo : e tanto que a leo, fallou áquelles Mouros, que ti-
zerão muita festa entre si, e todos a hum tempo deráo
hum grande grito no meio da sala, dando g r a ç a s a Deos
em ter por amigo hum tão grande Rei e Senhor como
era E l R e i de Portugal : depois disto, mandou vir alguns
panos, e sedas e as repartio por aquelles que tinhão
trazido o presente, e disse a Aires C o r r ê a , que lhe ro-
g a v a ficasse em terra em quanto a A r m a d a não partia,
porque sentia grande contentamento em fallar com elle ;
Aires Corrêa lhe responded que não podia sem licença
do Capitão mor. e assim ElRei lhe expedio hum cu-
nhado com hum anel seu a rogar-lhe deixasse ficar
Aires Corrêa, e que mandasse a terra por tudo quanto
lhe fosse necessário, tanto para agoada como para o
mais. Pedro Alvares foi disso contente, e E l R e i mandou
logo dar a Aires C o r r ê a hum muito bom alojamento,
com todas as cousas que lhe havião ser necessarias,
c o m o carneiros, gailinhas, arroz, leite, manteiga, tama-
ras, mel, e fructos de toda a cspecie, salvo pão que elles
não comem ; e assim esteva em terra tres dias, fallan-
do-lhe ElRei a todo o instante a respeito do de P o r t u -
305
PEDRO AI.VARES CABRAI.

gal, e das cousas P o r t u g u e z a s , dizendo-lhe que teria


grande s a t i s f a ç ã o em vêr-se c o m o C a p i t ã o mór. A i r e s
C o r r ê a fez tanto c o m elle, que o r e s o l v e o a i s s o , e l o g s
o mandou dizer a P e d r o A l v a r e s , o qual se fez prestes
c o m os seus b a t e i s d e i x a n d o as n á o s em bom r e c a d o :
o em que elle hia era c o b e r t o de seda, e l e v a v a a gente
secretamente a r m a d a p o r baixo das suas v e s t e s de g r a m
e panos finos: EIRei mandou igualmente apparelhar
dous bateis dos seus t a m b é m com toldos, e c o m a gente
mais luzida, e fez a j a e z a r hum c a v a l l o ao m o d o de P o r -
tugal mas os seus n ã o o souberáo fazer, tanto que f o r á o
os nossos que o a r r e a r ã o ; depois desceo p o r huma es-
c a d a , e no f u n d o delia e s t a v ã o - o esperando todos os
M o u r o s m a i s r i c o s e honrados, c o m hum carneiro, que
degolarão apenas montou a c a v a l l o : E I R e i passou so-
bre elle. e toda a gente gritou muito e c o m grande v o -
z a r i a ; tendo este c o s t u m e por c e r e m o n i a e feitiço. F a l -
l á r ã o depois a m b o s hum grande e s p a ç o , até que o C a -
p i t ã o mór disse, que d e s e j a v a p a r t i r ; m a s que tinha
necessidade de hum P i l o t o que o conduzisse a C a l i c u t :
E I R e i lhe respondeo, que lho m a n d a r i a d a r ; e assim se
deepediráo hum do o u t r o . L o g o que E I R e i chegou a
terra mandou A i r e s C o r r ê a pura a náo c o m m u i t a s c a r -
nes e frutas p a r a o C a p i t ã o , e igualmente hum P i l o t o
(iuzarate daquellas n á o s de C a m b a v a que e s t a v a o no
porto O C a p i t ã o m ó r deixou alli dous homens P o r t u -
guezes que hião d e g r a d a d o s , para ficar hum delles em
Melinde. e o outro hir com a náo de C a m b a y a ; e no
dia seguinte, que se c o n t a v ã o sete de A g o s t o , fizemo-nos
á véla, e c o m e ç á m o s a a t r a v e s s a r o g o l f o p a r a C a l t c u t .
2J2. EXPEDIÇÃO DE

C A P I T U L O VI.

DA CIDADE CHAMADA MAGADAXO ; DA ILHA JUI.-


I-AR, E ORMUZ, E DA MUI FEKTII, F. PINGUE
PROVÍNCIA DF. CAMBAYA

D e i x á m o s a t r a z em toda e s t a travessa a c o s t a de Me-


linde, e huma C i d a d e de Mouros que se c h a m a M a g a -
d a x o muito rica e f o r m o s a ; m a i s adiante e s t á h u m a
Ilha grandíssima, com outra Cidade também muito
bel 1 a e g r a n d e , c e r c a d a de m u r o ; c h a m a - s e e s t a Ilha
S o c o t o r a , e c a m i n h a n d o mais avante pela c o s t a está a
e m b o c a d u r a do estreito de M e c a , que terá o b r a de le-
g o a e meia de l a r g o , e dentro delle jaz o m a r r o i x o , a
C a s a de M e c a , e a de S a n t a C a t h a r i n a do m o n t e S i n a y ,
por onde l e v ã o as e s p e r i a r u s e jóias a o C a i r o e A l e -
xandria. atravessando hum dezerto em dromedários,
que sáo h u m a especie de c a m e l o s c o r r e d o r e s : deste
m a r se p o d e r i á o c o n t a r muitas c o u s a s que p a s s o e m
em silencio. D a o u t r a b a n d a d o E s t r e i t o está o m a r d a
P e r s i a , no qual ha g r a n d í s s i m a s Províncias e Reinos
sugeitos ao G r ã o S u l t ã o de B a b i l ô n i a ; no m e i o deste
m a r ha huma Ilha pequena c h a m a d a J u l f a r . na qual se
p e s c ã o muitas e b e l h s s i m a s pérolas ; ha também o u t r a
Ilha na sua e m b o c a d u r a c h a m a d a Ormuz, que he de
M o u r o s , e tem hum R e i que também o he de J u l f a r . E m
Ormuz ha ó p t i m o s c a v a l t o s que se levão a vender p o r
toda a India, e tem hum grande v a l o r , e em t o d a s estas
terras ha um g r a n d e t r a f i c o de navios. P a s s a d o este
m a r da P e r s i a a c h a - s e huma P r o v í n c i a c h a m a d a C a m -
b a y a , a qual tem o seu R e i , que lie muito p o d e r o s o e
forte ; esta terra he m a i s f r u c t i f e r a e pingue, que nenhu-
m a outra do M u n d o ; nella se a c h a muito t r i g o , c e v a d a ,
arroz, cêra, e a ç ú c a r , produz também e n c e n s o , e f a b r i -
cáo-se nella m u i t o s panos de seda e a l g o d ã o , e tem
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

muitos c a v a l l o s e e l e f a n t e s : o R e i foi I d o l a t r a , m a s
fez-se depois Mouro por causa dos muitos de que
a b u n d a o seu R e i n o ; porém entre o s naturaes a i n d a ha
bastantes Idolatras. A c h ã o - s e aili g r a n d e s m e r c a d o r e s ,
os quaes por h u m a parte c o n t r a t á o c o m o s Á r a b e s , e
pela o u t r a c o m a Índia, que c o m e ç a p r o p r i a m e n t e aqui,
e c o r r e m estes m e r c a d o r e s toda esta c o s t a até a o R e i n o
de C a l i c u t , e por toda ella ha grandes e bellissimas
Províncias e Reinos de Mouros e de Idolatras. Deve
advertir-se que tudo o que neste C a p i t u l o d e i x o escrito
f o i observado por nós.

CAPITULO Vil.

D E HUMA ILHA CHAMADA ANCHKIMW

C h e g á m o s á vista d a Índia a o s vinte e d o u s de A g o s t o ,


a a p r i m e i r a terra que v i m o s foi a d o R e i n o de G o g a :
assim que o r e c o n h e c e m o s , f o m o s ao longo delle até
chegar a huma Ilha pequena c h a m a d a A n c h e d i v a , a
qual he de hum M o u r o ; tem no meio hum g r a n d e l a g o
de a g o a d o c e , e he d e s p o v o a d a ; d'alli á terra firme são
duas m i l h a s ; foi n'outro tempo habitada p o r Gentios,
m a s p o r q u e os M o u r o s de M e c a fazem este c a m i n h o
para hir a C a l i c u t , e alli se d e m o r ã o pela n e c e s s i d a d e
de a g o a , e lenhas, p o r isso se d e s p o v o o u m a i s . T a n t o
que alli c h e g á m o s , d e s c e m o s a terra, e e s t i v e m o s bons
quinze dias a t o m a r as ditas provisões ; a g u a r d a n d o en-
tre tanto se v i n h ã o as náos de Meca. que queríamos
aprezar, se rios f o s s e p o s s í v e l ; e durante este tempo a
gente d a terra vinha a b o r d o , e nos trazia m u i t a s noti-
c i a s , recebendo-a o C a p i t ã o m o r c o m muito f e s t e j o . H a
em esta Ilha h u m a especie de E r m i d a na q u a l , nos dias
que alli e s t i v e m o s , se c o l e b r á r á o muitas M i s s a s pelos

lS
a68 •224 EXPEDIÇÃO DE

P a d r e s que l e v a v a m o s p a r a ficarem c o m o F e i t o r de
Calicut: e assim nos confessámos e commungámos
todos, e depois de t o m a d a a a g o a e lenha precisa vendo
que as náos dos M o u r o s não acabavíio de c h e g a r , par-
timos para C a l i c u t , que dista daqui setenta legoas.

C A P I T U L O VIII.

COMO CHEGAMOS A CALICUT, K O CAPITÃO MOR


SAHIO A TERRA A FA1.1.AR COM E L R E I

C h e g á m o s a C a l i c u t aos treze de S e t e m b r o . < a h u m a


l e g o a de d i s t a n c i a dn C i d a d e , sahio a receber-nos huma
f r o t a de bateis, em qne vinha o G o v e r n a d o r , e hum
mercador Guzarate muito rico e principal : os quaes
entrárão na Capitania, dizendo como EIRei tinha
grande prazer c o m a n o s s a vinda, e que a s s i m l a n ç a s s e -
m o s as a e c o r a s diante da Cidade. P r i n c i p i á m o s l o g o a
desparar a n o s s a a r t i l h a r i a , d o que elles se m a r a v i -
lharão g r a n d e m e n t e , dizendo que contra nós ninguém
tinha poder senão D e o s ; e assim estivemos toda aquella
noute • no dia seguinte pela manha determinou P e d r o
Alvares mandar a terra os Índios que trouxéramos
c o m n o s c o de P o r t u g a l , que erão sinco, a saber, hum
M o u r o que entre nos se tinha feito ChnstÚn, e quatro
pescadores G e n t i o s , e enviou-os todos muito bem ves-
tidos á C i d a d e , p a r a f a l l a r c o m E I R e i . e dizer-lhe a
c a u s a porque alli é r a m o s chegados ; e que lhe p e d í a m o s
hum s a l v o - c o n d u c t o p a r a podermos s a h i r em terra. O
Mouro fali ou c o m E I R e i , porque os outros que e r a o
pescadores não se a t r e v i a m a c h e g a r a elle. nem m e s m o
o p o d è r ã o vêr. tendo esta ceremonia p o r estado e g r a n -
deza Real, c o m o ao diante se dira. O R e i mandou o
s a l v o - c o n d u c t o , dizendo que qualquer de nos podia
309
PEDRO AI.VARES CABRAI.

sahir em terra : o que visto pelo C a p i t ã o m ó r fez desem-


b a r c a r logo A t f o n s o F u r t a d o c o m hum Interpreta, que
sabia f a l l a r A r á b i g o , o qual d e v i a dizer a E I R e i c o m o
e s t a s náos e r ã o de EIRei de P o r t u g a l , que as m a n d a v a
a esta C i d a d e p a r a tratar de P a z , e trafico de m e r c a n -
c i a s ; e que p a r a fazer isto era necessário que sahisse a
terra o C a p i t ã o m ó r . o qual levava em o seu regimento
de não d e s e m b a r c a r em parte alguma, sem primeiro ter
hum penhor pela sua p e s s o a ; e que assim lhe houvesse
de mandar p a r a as nàos aquelles homens que A f f o n s o
Furtado lhe indicasse. E I R e i o u v i d a a dita e m b a i x a d a ,
recusou hum p o u c o ; dizendo que os reféns que lhe pe-
diáo erão m u i t o velhos e a n c i ã o s ; e que não podião
ficar no m a r ; mas que elle lhe daria outros. A f f o n s o
Furtado lhe tornou, que não h a v i a de t o m a r senão
aquelles que lhe pedia pela m e m o r i a que o C a p i t ã o mór
lhe tinha d a d o . que era a m e s m a que lhe entregara
E I R e i de P o r t u g a l . O R e i se m a r a v i l h o u bastante c o m
isto. e esteve em duvidas dous ou tres dias, até que
finalmente se resolveu a mandados. Recebendo Pedro
A l v a r e s este aviso aprontou-se p a r a sahir em terra, e
ficar alli d o u s ou tres dias levando c o m s i g o trinta
h o m e n s dos m a i s honrados, e assim se póz pronto c o m
todos os seus officiaes e c r e a d o s , c o m o podia c o n v i r a
hum P r i n c i p e , e levou toda a p r a t a que h a v i a em as
n á o s , das q u a e s deixou por C a p i t ã o m ó r S a n c h o de
T o v a r , c o m o e n c a r g o de fazer honra e a g a z a l h o aquel-
les homens d a terra, que ficavão em penhor. No dia se-
guinte v e i o E I R e i a huma c a s a , que tinha junto á mari-
nha. e dahi mandou os reféns p a r a as náos, a saber
sinco homens muito principaes, e cem o u t r o s de espada
e a d a r g a , que os a c o m p a n h a v ã o c o m vinte e sinco ou
trinta t a n g e d o r e s : o C a p i t ã o mór sahio da náo em os
seus b a t e i s , d e p o i s de ter m a n d a d o para terra tudo o
que lhe p a r e c e r a necessário, e sahindo na p r a i a v t e r ã o
t a m b é m o s sinco homens da C i d a d e , que não quizerão
EXPEDIÇÃO DE
2<)6

e n t r a r na náo, sem que elle desembarcasse ; e sobre sto


e s t i v e r a , , em questão hum grande e s p a ç o , ate que A , r e s
Corrêa subio a hum seu Z a m b u c o , e tanto fez que en-
S r t o nella. L o g o que P e d r o A l v a r e s sahio em terra
hello m u i t o s G e n t i s - h o m e n s , que o t o m a r ã o
n o s ' " b r a ç o s c o m o igualmente toda a s u a c o r m t . v a ; por
tal m a n e i r a que n ã o t o c a r ã o com os pés em terra at
que c h e g ã r á o perante o R e , , o qual estava pelo m o d o
que ao diante se dirá.

C A P I T U L O IX.

D\ GRANDE MAGNII-ICENCIA K POMPA « * ^LRE. DF


C M . I C B T ; E DO PRESENTE QUE LHE EEZ O CAPI-
TÃO MÓR EM NOME DE K L R E . DE PoRT.JC.AL

E s t a v a E I R e i em h u m a casa alta, assentado em hum


estrado c o m d u a s ou tres a l m o f a d a s de s e d a d e b a t o
do b r a ç o ; a c o b e r t a deste estrado e r a de seda c o r de
p u r p u r a ; e s t a v a nú da c i n t u r a p a r a cima e dal , p a r a

„ envolvido em hum panno de seda e algodão


n a n o subtil e b r a n c o , e c o m m u i t a roda, todo l a v r a d o
2 ouro. T m h a na c a b e ç a hum barreie de b r o c a d o ,
feito a modo de capacete c o m p r i d , , , e muito a l t o : as
sua, orelhas erão f u r a d a s e delias pendiao grandes
brincos d ' o u r o , c o m rub.ns de muito preço diamantes
e duas pérolas m u , t o grandes, h u m a redonda, o u t r a do
feitio de huma p e r a . e maior q u e huma grande a v e l a ,
tinha também nos b r a ç o s do c o t o v e l l o p a r a e m a bra-
c e l e t s d'ouro adornados de ricas j ó i a s , e pérolas d e
grande v a l o r : as pernas e s t a v á o igualmente a d o r n a d a s ,
e e m hum dedo do pé tinha hum anel d e hum n i b i m o u
c a r b u n c u l o d e g r a n d e f o g o e estima. O s dedos d a s maos
e s t a v á o também c u b e n o s d e jóias, c o m o r u b m s , esme-
235
PEDRO ALVARES' CABRAl

raldas e d i a m a n t e s : e entre estes bum do tamanho


de huma f a v a grande : tinha dous cintos de o u r o cheos
de rubins, de m o d o que náo havia preço que pagasse
as riquezas que o adornavão. A o seu lado estava huma
grande cadeira toda de prata, salvo o lugar aonde en-
costava os b r a ç o s , que era de ouro, e as suas costas
engastadas de jóias e pedras preciosas. Havia nesta casa
huma especie de andbr, em o qual linha vindo do pa-
lacio aonde costumava residir habitualmente ; este an-
dor he levado por homens infinitamente ricos, e junto a
elle t o c a v á o de quinze a vinte trombetas de prata, e
tres de o u r o , huma das quaes era de grandeza e pezo
lal, que custava a dous homens a levalla ; as bocas
destas tres tinhão c r a v a d o s muitos rubins. T i n h a tam-
bém junto de si quatro v a s o s J e prata, muitos de bronze
dourado, e bastantes candieiros de latão grandes e
cheos de azeite com pavios sempre a c c e s o s ; a pesar de
náo ser necessário para a claridade, mas somente para
" r a n d e z a . E s t a v a também alli hum seu parente com
sinco pagens em p é , e igualmente dous Irmãos seus
cobertos de infinitas r i q u e z a s ; e muitos outros Gentis-
homens, que estaváo mais desviados, mas também
muito ricos ao modo do Rei. Quando o C a p i t ã o mor
entrou, quiz hir direito beijar-lhe a mão ; porém acce-
naráo-lhe para que parasse, por não ser costume emre
elles a v i s i n h a r - s e - l h e ninguém, » assim o fez. EIRei fello
sentar p o r maior honra, e Pedro Alvares lhe c o m e ç o u
a dar a sua embaixada, e lhe fez ler a carta de E I R e i de
Portugal, q u e era escrita em lingoa A r a b i g a , e logo
mandou pelo presente, que se compunha do seguinte :
huma bacia de prata p a r a as mãos l a v r a d a de b a s u o e s
todos dourados, e muito grande ; h u m gom.l dourado
com a sua tampa também de b a s t i õ e s ; h u m a taça
grande d e p r a t a lavrada pelo dito m o d o ; duas maças
de p r a t a c o m as suas c a d ê a s do m e s m o metal para o s
maceiros, e quatro almofadas grandes, duas de brocado
278 EXPEDIÇÃO DE

e d u a s de v e l u d o c a r m e z i m : d e m a i s d i s t o h u m docel de
brocado com franjas de o u r o e c a r m e z i m , h u m tapete
grande, e dous p a n o s de A r r a z m u i t o ricos, h u m de fi-
g u r a s , e o u t r o de verdura. Q u a n d o E I R e i h o u v e recebido
este presente j u n t a m e n t e c o m a carta, e a e m b a i x a d a ,
mostrou-se muito alegre, e disse a o C a p i t ã o m o r que
se p o d i a retirar p a r a a q u e l l a casa que lhe t i n h a man-
dado preparar, e que fizesse vir o s h o m e n s q u e dera
em refens, porque eráo de qualidade, e não podiáo
c o m e r , beber, nem d o r m i r n o m a r ; e que se elle queria
hir para as n á o s que fosse, p o i s n o d i a seguinte tor-
n a r i a a m a n d a r - l h o s . e elle v o l t a r i a a terra, p a r a tratar
d o q u e lhe fosse necessário.

C A P I T U L O X.

COMO TORNANDO O CAPITÃO MÓR PARA AS MÃOS,

SE D O T A R Ã O AO MAR OS QCE ESTAVÃO EM RE-

FÉNS, E DOES DEEEES FORÃO RETIDOS ; DOS

INCONVENIENTES QUE DAQUI PROVIERÁO K

COMO A I R E S C O R R Ê A CONCI.UIO COM E I . R E I O


ACORDO QUE PERTENDIA.

V o l t o u P e d r o A l v a r e s p a r a as náos. e d e i x o u e m terra
A f f o n s o F u r t a d o c o m sete o u o u t o h o m e n s , p a r a cuida-
rem n o que t i n h a em casa. A p e n a s elle p a r t i o d a praia,
logo hum Zambuco dos de C a l i c u t lhe foi a d i a n t e ate
ás n á o s , para d i z e r aos que estavão e m refens, c o m o o
Capitão mór voltava: assim que elles ouvirão isto
immediatamente se l a n ç a r ã o ao mar; e logo Aires
Corrêa Feitor mór se metteo em h u m b a t e l , e t o m o u
dous dos principaes. c o m d o u s o u tres dos seus fami-
liares que os t i n h ã o a c o m p a n h a d o , p o r é m t o d o s os ou-
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

tros fugirão a nado para terra. Neste instante chegou o


Capitão mór á náo, e mandou pôr os dous prisioneiros
debaixo da coberta, fazendo dizer ao Rei, que quando
elle chegâra linha achado aquella desordem, que hum
Escrivão da sua terra tinha causado ; e que elle man-
dára depois reter aquelles dous, por terem ficado em
terra muitos homens dos seus, e igualmente muita fa-
zenda; que assim Sua Alteza lhe enviasse tudo e elle
lhe entregaria logo os que tinha retido, que entre tanto
erão muito bem tratados. Com e s t a embaixada partirão
dous Italianos daquelles que tínhamos t o m a d o , e toda
aquella noute esteve o Capitão mór esperando a res-
posta ; no dia seguinte veio o Rei á praia com mais de
dez ou doze mil homens, e os nossos que tinháo ficado
em terra f o r â o prezos, a fim de serem mandados á Ar-
mada e trocados por aquelles que o Capitão mór tinha
retido. Estando as cousas nestes termos vierão vinte ou
trinta almadias, e sahirão os nossos bateis para effei-
iuar a dita troca, mas nem as almadias tiverâo animo
de chegar-se aos nossos bateis, nem estes a e l l a s ; e
assim estiverão todo aquelle dia sem se fazer cousa
alguma ; e como voltarão outra vez para terra com os
nossos, principiarão a fazer-lhes grande descortezia
metendo-lhes medo, e dizendo-lhes que os querião ma-
t a r : os nossos estiverão toda aquella noute em grande
tribulação, e .10 dia seguinte tornou EIRei a mandar
dizer a Pedro Alvares, que lhe mandaria os Portugue-
ses e sua fazenda nas almadias totalmente desarmados,
e que do mesmo modo mandasse elle os seus bateis.
Pedro Alvares logo lhos mandou, e com elles Sancho
de T o v a r segundo C a p i t ã o , e chegando aonde estaváo
as almadias principiarão a receber todos os trastes de
prata e tudo mais que tinhão em terra (de modo que
não restava já senão hum almofreixe ou mala aonde
estava o leito com os seus preparos) e igualmente quasi
todos os homens : senão quando hum daquelles Gentis-
•224 EXPEDIÇÃO DE

homens, que estaváo nos nossos bateis, e que Sancho


de T o v a r tinha pelo braço se deitou ao mar, o que visto
pelos nossas que estaváo em algumas das almadias,
principiarão a ensoberbecer-se e indignar-se de modo,
que deitárão á agoa os Mouros das almadias apode-
derando-se delias. Nos nossos bateis ficou hum velho
Gentil-homem que estava em p e n h o r ; e dous rapazes
Portuguezes que não poderão escapar-se, ficarão nas
suas almadias. No dia seguinte, .condoendo-se Pedro
Alvares daquelle Velho, que havia já tres dias que não
tinha comido, o mandou para terra, e lhe deo todas as
armas, que tinhão ficado na náo, pertencentes aos que
se haviáo lançado ao mar, com hum recado para que
E I R e i lhe mandasse os dous moços, o que elle (ez. Pas-
sado isto estivemos tres ou quatro dias, sem que nin-
guém fosse a terra, nem viesse ás naos, e tei.do Pedro
Alvares conselho com os outros Capitães sobre o que
deviáo f a z e r ; disse o Feitor mór que se alguém de Ca-
licut lhe mandasse dous homens para segurança, elle
estava pronto pára hir a t e r r a : a todos pareceo bem
esta resolução, mas náo sabião se haveria quem qui-
zesse levar a embaixada, e logo hum Cavalheiro cha-
mado Francisco Corrêa, disse que elle estava pronto, e
partindo immediatamente representou a EIRei como
ires Corrêa Feitor mór ordenava de hir a terra a fir-
mar o contrato com S. A l t e z a ; e que assim lhe man-
dasse por penhor dous mercadores, que elle lhe nomeava,
hum dos quaes era Guzarate muito rico. Este Mouro,
que estava presente, responder, que entregaria em seu
lugar dous netos seus: com o que EIRei se mostrou
muito satisfeito. No outro dia mandárão esta resposta
ao Capitão mór e os reféns juntamente: e assim Aires
C o r r ê a partio para terra levando comsigo outo ou dez
homens. Naquelta noute veio dormir á náo, e no dia
seguinte tornou novamente para terra a effeituar quanto
estava determinado, ficando todavia os penhores na
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

não. EIRei mandou que se lhe disse a melhor casa da


terra, que era a de hum Mouro Guzarate, a quem
cometeo o cargo de ensinar ao Feitor os costumes e
tratos do paiz, e assim A i r e s C o r r ê a principiou a ne-
gocear e vender as suas mercadorias. O Interprete que
fallava por nos era Árabe, de modo que náojie podia
fallar ao Rei, sem se meterem Mouros de permeio, que
s ã o huma gente má e muito nossa c o n t r a r i a ; que a
todo o instante usavão de embustes, e nos prohibiao
que mandassemos ninguém as nàos. Quando o Capitão
mor vio que todos os dias hião homens a terra, sem que
nenhum voltasse, determinou-se a partir e mandou dar
á v e l a ; e estando nós prezos e m t e r r a em huma casa
guardada por muita gente, vimos como as nàos se hiao
embora, e o Guzarate por respeito de seus netos, que
tambem part.áo, deo azo a Aires Corrêa para mandar
hum rapaz em huma almadia a pvotes.ar ao Capitao
mór por semelhante partida. Pedro Alvares voltou em
razão disto para o porto, e Aires C o r r ê a principiou a
tratar com EIRei, e se concluio depois de algumas dila-
ções, o contrato c o m o elle q u e r i a ; porque o Guzarate
fazia para isso todas as diligencias por causa dos netos
que tinha em penhor. EIRei encarregou hum 1 urco
grande mercador, de lazer todos os nossos negoc.os e
nos mandou sahir daquella c a s a para outra ma.sv.smha
á s u a ; e logo princip.amos a vêr algumas mercadorias
de que comprámos p a r t e ; e assim estivemos dous me-
zes e meio antes que o dito tratado se acabasse de
assentar; mas em tim ficou terminado com mviiw tra-
balho de Aires Corrêa, e dos que com elle estavao, e
acabado elle tornamo-nos a mudar para huma casa

junto ao mar, a qual tinha hum .ardim grande e ne la


arvorou o Feitor huma bandeira com as A r m a s Reaes.
Deste contrato deo F.lKei duas esciituras assignadas
pela sua mão. huma das quaes era em huma lamina de
cobre com o seu sello esculpido em la,ao. e esta dev.a
•224 EXPEDIÇÃO DE

ficar na F e i t o r i a : a o u t r a era de p r a t a c o m o sello es-


c u l p i d o em o u r o ; e d e v i a m o - l a trazer c o m n o s c o para
E l R e i de P o r t u g a l . F e i t a s estas escrituras veio logo A i -
res C o r r ê a i s náos. e entregou a de sello de prata ao
C a p i t ã o mór, e levou p a r a terra os homens q u e e s t a v ã o
r ^Inntp n r i n r i n i á m o s a fiar-nos
e m reicn». c u a m , i
tanto desta gente, que p a r e c i a que e s t a v a m o s no nosso
p r o p r i o paiz.

C A P I T U L O XI.

COMO O CAPITÃO MÓR, A ROGOS D ' E L R E I , MANDOU

HUMA SUA CAR AVELLA A COMBATER COM HUMA


NÃO GRANDE ; E DEPOIS DE APREZADA ENTRE-
GOU TANTO A NÃO COMO O CAPITÃO DEU.A
AO MESMO R E I

Aconteceo hum d i a apparecer naquellas paragens


h u m a n i o , que hia de hum p a r a o u t r o R e i n o , dentro da
qual e s t a v ã o sinco elefantes, hum delles muito f o r m o s o
e de grande p r e ç o por ser p r a t i c o na g u e r r a . A náo que
os trazia era muito possante e tinha muita gente de
g u e r r a ; quando E l R e i soube da sua chegada mandou
r o g a r ao C a p i t ã o m ó r , que a m a n d a s s e aprezar, pois
trazia hum elefante pelo qual tinha oíferecido muito
dinheiro, mas não lho tinhão querido vender. Pedro
A l v a r e s lhe m a n d o u dizer que assim o f a n a : mas que
a t r i p u l a ç ã o c o r r i a risco de ser m o r t a , se náo se qui-
zesse r e n d e r ; E l R e i o houve por bem, e fez hir hum
M o u r o c o m n o s c o . p a r a ver c o m o t o m a v a m o s a náo, e
p a r a fallar c o m os que nella v i n h ã o a fim de se entre-
garem. O Capitão mór mandou h u m a caravella de
b o m b a r d a g r o s s a e bem a r m a d a , c o m sessenta ou se-
tenta homens, a qual p a r t i o de noute direita á nao.
sem a poder a b o r d a r ; m a s no dia seguinte cahio sobre
pEDRO ALVARES' CABRAL 235

ella gritando-lhe que se rendesse: os Mouros p u z e r ã o - s e


a rir, porque eráo muitos, e a náo muito g r a n d e ; e
principiarão a atirar com frechas. Quando o C a p i t ã o
da c a r a v e l l a vio isto, mandou disparar a artilharia, de
modo que achando-se os d a náo sem esperança, l o g o
se r e n d e r ã o ; e assim a leváráo a C a l i c u t c o m toda a
n- R d vahin :i- nrqin
i a vêllos. e o C o m m a n d a n t e
da c a r a v e l l a veio entregar-lhe o C a p i t ã o M o u r o , e a
sua preza ; e o deixou muito m a r a v i l h a d o de ver c o m o
huma caravella tão pequena, e com tão pouca gente,
linha podido aprezar huma náo tão grande, na qual
havia trezentos homens de b a t a l h a ; assim recebeo a
n á o e os elefantes, c o m grande prazer e s a t i s f a ç ã o , e a
caravella tornou a ajuntar-se á E s q u a d r a .

CAPITULO XII.

DFSCRIPÇÁO DA CIDADE DE CALICUT, E DOS UZOS


DO R E I K DO SEU POVO

A Cidade de C a l i c u t he grande, e não tem m u r o s que


a ceguem; no seu interior tem muitos lugares vasios,
e as c a s a s a f a s t a d a s humas das o u t r a s ; são de pedra e
c a l , c h a p e a d a s de relevos, e em cima cobertas de folhas
de p a l m e i r a ; as p o r t a s são grandes, e os portaes muito
bem t r a b a l h a d o s ; em torno das casas ha hum muro,
dentro do qual estão muitas arvores e lagos de a g o a ,
em que se lavão, c o m o também p o ç o s de donde bebem.
P e l a C i d a d e ha outros l a g o s grandes, aonde o p o v o
miúdo v e m l a v a r - s e ; e he isto preciso, porque c a d a dia
lavão duas ou tres vezes o c o r p o todo. O Rei he Idola-
tra, ainda que alguns pensárão que era C r i s t ã o ; m a s
procede isto de não terem sabido tanto dos seus uzos,.
c o m o nós, que temos negociado bastante em C a l i c u t ,
EXPEDIÇÃO DE
•224

O Rei actual chama-se Glafer, e todos os seus Gemts-


homens, e gente que o serve sáo homens pardos como
„ s Mouros, mas bem dispostos. Andáo nus da cintura
para cima, e trazem á roda de si panos finos de algodão
brancos e de outras c o r e s ; não uzáo dc calçado nem
de barretes, salvo os grandes Senhores que os trazem
de veludo e brocado, e algum delles são multo altos-
T e m as orelhas furadas, e nellas põem muitas iotas, e
braceletes de ouro em os braços. Estes Gentis-homens
trazem espada e adraga. e as espadas nuas; sao mats
H r - a s na ponta do que no resto, e as adargas redondas,
como rodelas de I t a l i a ; muito leves, e de c o r negra ou
v e r m e l h a ; e são os m a i o r e s jogadores que ha de espada
e r o d e l a , não se empregando quasi noutra cousa ;_e
havendo innumeraveis homens destes na Corte C a s a o
com huma so mulher, e convidV. s i n o ou se.s dos seus
maiores a m . g m para dormirem com c i l a ; dc modo que
entre elles não ha honestidade, nem vergonha, « assim
as raparigas quando tem mito annos pnncip.ao a pros-
tituir-se. Estas mulheres andío nuas assim como os
homens, e trazem sobre si muita riqueza e os cabe los
muito bem pintados: são muito luxuriosas, e pedem
aos home. s que lhe tirem a virgindade; porque em
quanto estão virgens não achão marido. Estes povos
comem duas vezes ao dia, P o r , m nao usao de pao.
vinho, carne, ou p e i x e : mas sim de arroz, man eiga
leite, açúcar e frutas. L a v ã o - s e antes de comer, e depo
de lavados, se algum que o não estivesse. lhes tocas t ,
náo c o m e r i ã o sem se tornar a l a v a r ; de modo que fa-
zem nisto grande cerimonia. J a n t o homens como mu-
Iheres trazem todo o dia na boca huma folha de be ele
que tem a p r o p n e lade de a lazer verme,ha e os deu es
negros: os que não fazem isto sáo homens ue banca ex-
t r a ç ã o . Quando algum morre, os que devem trazer
luto tingem os dentes de preto, e nao comem desta
folha durante alguns mezes;
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

CAPITULO Xlíl.

COMO OS SACERDOTES CHAMADOS BRAMANES TRA-


TÁO CARNALMENTE COM AS MULHERES DO R E I

PARA HONRALLO, E DA GRANDE RKVERKECIA.


QUE O POVO TEM AO SEU R e I

O Rei tem duas mulheres, c cada huroa delias he


a c o m p a n h a d a por dez S a c e r d o t e s , a que chamüo B r â -
m a n e s , cada hum dos quaes dorme c o m ellas para o
honrar. P o r esta c a u s a não herdáo <»s filhos o Ueino,
mas sim os sobrinhos, filhos d a irmã. Habitáo no palacio
mais de mil a mil e quinhentas mulheres, para m a i o r
m a g n i f i c ê n c i a e e s t a d o ; e a s u a o c c u p a ç ã o he de varrer,
l i m p a r , e a g o a r as c a s a s p o r onde E I R e i quer andar,
c o m a g o a misturada com bosta de v a c c a . Os quartos
do palacio são muito g r a n d e s , e tem nelles muitas fon-
tes de agoa em que se l a v a ; quando sahc fora vai em
hum andor muito rico que levao dous homens, c v a o
com elle m u i l o s tangedores de instrumentos, e muitos
G e m i s - h o m e n s com espadas e rodelas, e muitos archei-
ros, e adiante de tudo os seus g u a r d a s , e p o r t e i r o s :
vai' E I R e i c o b e r t o c o m hum docel, de sorte que lhe f a -
zem mais honra do que a nenhum outro liei do Mundo,
porque n i n , u c m se avisinha a elle senão na distancia
de tres ou quatro p a s s o s : e se lhes querem dar a l g u m a
c o u s a he em hum ramo para o mio t o c a r e m : quando
lhe falido he sempre com a cabeça baixa, e a mao
diante da b o c a ; e nenhum Gentil-homem lhe a p p a r e c e
sem espada e r o d e l a : quando f a z e m cortezia põem a
mão sobre a c a b e c a . e nenhum official, nem homem de
b a n a e x t r a c ç ã o se atreve a ver o R e i , nem a f a l l a r c o m
elle, especialmente os p e s c a d o r e s ; de tal sorte que se
hum G e n t i l - h o m e m viesse por hum caminho, e dous
•224 EXPEDIÇÃO DE

p e s c a d o r e s lhe sahissem a o e n c o n t r o ; ou f u g i r i ã o , ou
r e c e b e r í á o muitas b a s t o n a d a s . E s t e s principaes quando
m o r r e o R e i , ou suas mulheres, queimâo o c o r p o com
m a d e i r a de sandalo pelo h o n r a r : a gente de b a i x a con-
d i ç ã o he enterrada, e cobrem-lhe com cinza a c a b e ç a e
as c o s t a s : trazem sempre a b a r b a c o m p r i d a .

CAPITULO XIV.

ÜF. HUMA CASTA DE MERCADORES GUZARATF.S,


E DOS SEUS UZOS.

Os Guzarates são grandes músicos, e e s c r i v ã e s : es-


crevem em huma folha de palmeira, c o m huma pena de
ferro sem tinta: s ã o grandes m e r c a d o r e s , e n a t u r a e s de
huma P r o v i n d a e h a m a d a C a m b a v a . E s t e s e os naturaes
s ã o Idolatras, e a d o r ã o o S o l , a L u a e as v a c c a s ; de
sorte que se a l g u é m m a t a s s e huma, seria l o g o m o r t o .
E s t e s Guzarates n ã o c o m e m c o u s a alguma que p a d e ç a
morte, nem igualmente p ã o ; nem bebem vinho e se
a l e u m a c r i a n ç a das suas c o m e carne, d e i t a o - a f o r a a
pedir esmola pelo mundo, ainda que descendesse ou
fosse filho de hum senhor grande, ou de hum m e r c a d o r
rico C r e m nos encantamentos e nos adevinhos, sao
mais brancos que os naturaes de C a l i c u t trazem os
cabellos da c a b e ç a e b a r b a muito c o m p r i d o s ; os seus
vestidos são de a l g o d ã o fino, uzão dos cabellos o r n a d o s
e enlaçados c o m o mulheres: t r a z e m çapatos, e casao
c o m huma só mulher c o m o nós, são m u n o ciosos, e as
mulheres muito bellas e castas ; c o m m e r c e a o em p a n o s ,
sedas e jóias.
287
PEDRO ALVARES CABRAL

CAPll'UIX) XV.

DE OUTRA CASTA DE MERCADORES CHAMADOS ZETI-

RES, E DOS SEUS UZOS

1 .. . i.. ,„iip'i P r o v i n c i a .
Ha lambem outros roereuuuie» —
chamados Zetires, os quaes s ã o Idolatras, e grandes
contratadores de j ó i a s , de p é r o l a s , de o u r o e de prata
São mais n e g r o s , a n d ã o nus. e trazem t o u c a d o s mats
pequenos, e os cabel.os metidos por
espécie de b o l s a s c o m p r i d a s , que parecem cauda d,
boi ou de c a v a l l o . E s t e s h o m e n s s ã o o s m a . o r e s e n c a n -
adores do m u n d o , f a l l á o t o d o s o s dias invisivelmente
Demonic; e as suas mulheres são - o luxu-
r «as Nesta Cidade ha t a m b é m Mouros de M e c a , d e
Turquia de B a b i l ô n i a , de P e r s i a , e de m u n a s outras
S S a s . São mercadores grandes e rtcos que em
Je todas as m e r c a n c i a s , que a q u . v a o ; isto hc, oias
J muitas q u a l i d a d e s , sedas de o o r o e f — o r
-ilmisrar a m b a r , b e i j o i m , e n c e n s o , pao aloes, rui

t
no coiana cr v o da Índia, canella, p â o B r a . i l ,
I f d l " a - m o s c a d a e m a s s a , o que tudo v e m
d a - além da gengibre, pimenta, t a m a r i n d o ; £

- l a n o s . e cassiafistula, que n a . e m mesm


juntamente c o m a l g u m a c a n e l l a sdvest í s
são tão p o d e r o s o s e r i c o s , que quasi sao os que g o
vernáo em todo Calicut.

asao
•224 EXPEDIÇÃO DE

C A P I T U L O XVI.

Do REI DE NARSINGA, E DO GRANDE NUMERO DE

MULHERES QUE TEM, E COMO POR SUA MORTE


TODAS ELLAS SE QUEIMÁO VIVAS : DOS SEUS
ELEFANTES ; DO TEMPO EM QUE TEM O VKKÁO
E o INVERNO, E EM QUE MEZES PARTEM OS
NAVIOS DE MECA COM AS ESPECIARIAS.

Nas montanhas deste paiz ha hum R e i m u n o grande


e poderoso, com o titulo de Rei de N a r s i n g a ; cujos
Povos São Idolatras: tem elle duzentas ou trezentas
mulheres, e no d i a em que morre queimáo o s e u c o r p o ,
e todas estas mulheres juntamente. P o r igual m a n e i r a
todas as pessoas c a s a d a s , quando m o r r e m fazem-lhe
huma grande c o v a . em que as q u e i m á o ; as s u a s viuvas
vestem-se o mais ricamente que podem, e acompanha-
das de todos os seus parentes, com muitos instrumentos
e folias v ã o á c o v a . e bailai.do á roda delia c o m o c a -
ranguejo, se d e i x ã o c a h i r dentro estando a c o v a chea
de f o g o . Os parentes estão c o m muita attençâo, e appa-
relhados c o m panellas de azei.e e m a n t e i g a , e tão de-
pressa cahem dentro c o m o lhas deitáo em c i m a para se
a b r a s a r e m com mais brevidade. Ma neste Reino muitos
cavallos e elefantes, c o m que fazem guerra, e tem-os
tão bem ensinados, que não lhe falta nada senão f a l l a r ;
e entendem tudo c o m o se fossem gente, segundo vimos
em C a l i c u t . Os e l e f a n t e s que tem o R e i , e em que elle
c a v a l g a , são os mais robustos e ferozes a m m a e s do

mundo; por modo q u e d o u > d e l l e s , a r r a s t ã o h u m a náo


para terra. A s naos não navega., aqui senão em Outubro
e Novembro, ate o fim de M a r ç o ; nestes mezes he o
seu V e r ã o e nos o u t r o s o Inverno, durante o qual tem
as náos em terra. N o mez de Novembro partem de C a -
PEDRO ALVARES' CABRAL
235

licut estás náos de Meca c a r r e g a d a s de especiarias, que


levão a Z e i d e que he porto de M e c a , e dalli por terra

•10 C a i r o p a r a A l e x a n d r i a .
Havendo já tres mezes que e s t a v a m o s em terra c o m
o tratado assentado, e duas das nossas n á o s carregadas;
mandou o C a p i t á o m ó r hum dia dizer a E I R e i , que , a
i. .,„» alli estavamos. e gue
era passante ue u e s —•
náo h a v i a ainda c a r r e g a d a s senão duas n á o s ; que os
Mouros lhe escondião as m e r c a d o r i a s , as quaes as naos
de Meca c a r r e g a v á o occultamente ; pelo que elle lhe
fizesse dar melhor despacho, pois a m o n ç ã o estava
próxima. E I R e i lhe respondeo que aprontaria todas as
m e r c a d o r i a s que quizesse, e que nenhuma náo de Mou-
ros c a r r e g a r i a em quanto as nossas não estivessem
c a r r e g a d a s ; m a s s e a l g u m a contraviesse esta ordem, o
Capitáo mor a poderia tomar p a r a e x a m i n a r se cont.-
nhão e s p e c i a r i a s , que elle lhe f a r i a d a r pelo mesmo
preço que os Mouros as tivessem c o m p r a d o .

CAPITULO XVII.

COMO os PORTUGUESES FORÁO ASSALTADOS DE


IMPROVISO PELOS MOUROS, E POR ELLES COM-
BATIDOS, E COMO FOI MORTO AIRES CORREA,
FEITOR D'ELREI.

AOS dezasseis de D e z e m b r o , estando Aires Corrêa


fazendo contas c o m os F e i t o r e s das
das: fez-se á v e l a h u m a náo de Mouros hea de e pe
ciarias a qual P e d r o A l v a r e s a p n s . o n o u . O Cap.tao
del "a e os mais p r i n c i p a e s s a h . r ã o em terra, e fizerao
g ande a m e n J e rumores, de m o d o quetodosos
M o u r o s se juntarão, e f o r á o f a l l a r a E . R e , , d.zendo-lhe
•224 EXPEDIÇÃO DE

que nós tínhamos ajuntado em terra mais riquezas do


que levaramos para o seu Reino, e éramos ladroes e
roubadores. que andavamos pelo m u n d o : e tendo apri-
zionado aquella não em o seu proprio porto, que se
podia esperar que lizessemos dali 1 por diante? que
assim elles se obri^aváo a matar-nos todos, e Sua Al-
teza roubaria a casa da Feitoria. EIRei como homem
avaro disse logo que assim se fizesse, e em quanto nós,
que não sabíamos nada do que se urdia, andavamos
alguns pela terra tratando nos nossos negocios, de
repente vimos vir lodo o povo sobre nós, matando e
ferindo : o que ter.do sido participado aos da Feitoria
sahirão logo em seu socorro, de modo que nesta praia
matámos sete ou o u t " , e elles dous ou tres dos nossos.
Éramos cousa de setenta homens de espada e capa, e
elles hum numero infinito com lanças, espadas, rodelas,
arcos e f r e c h a s ; e apertarão-nos de modo. que foi ne-
cessário refugiarmo-nos na casa da Feitoria : mas náo
o fizemos tanto a salvo, que sinco ou seis não (içassem
feridos; e assim fechámos a porta com muito trabalho.
Os Mouros combatião por todos os lados a casa, que
era cercada de hum muro da altura de hum homem a
c a v a l l o ; achavamo-nos nós com sete ou outo bestas,
com que matámos hum montão de gente, mas nisto
tendo-se ajuntado mais de tres mil homens de peleja,
içámos huma bandeira para que nos mandassem soc-
corrro das nãos. Immediatamente vieráo os baleis até
junto da praia, e dalli atirarão com as suas bombardas,
mas náo podião fazer mal algum. Os Mouros princi-
piarão a arrombar as paredes da casa, de modo que 110
espaço de meia hora a deitáráo toda por terra, ao som
de trombetas e atabales, com grande vozaria, e muito
prazer d ' E l R e i ; o que podemos conhecer por causa de
hum pagem seu, que aqui vimos. Vendo Aires Corrêa,
que náo tínhamos remedio algum em resistir, porque
havia já duas horas que combatíamos, tão asperamente
235
PEDRO ALVARES' CABRAL

que nos não podíamos sustentar; determinou que nos


recolhecemos á praia, rompendo por meio delles, para
ver se nos podíamos salvar em os bateis, e assim o fi-
zemos ; chegando a m a i o r parte dos nossos até meter-se
na a g o a , sem que os bateis ouzassem avisinhar-se para
recebei-os ; e assim por falta de s o c o r r o matárao Aires
C o r r ê a , e c o m elle sincoenta e tantos h o m e n s ; e nos
podemos e s c a p a r sendo por todos vinte pessoas, porem
muito feridos, e entre estes fugiu hum filho de Aires
C o r r e a de idade de onze annos : assim quasi aftogados
entrámos nos bateis c u j o C a p i t ã o era S a n c h o de I ovar.
porque P e d r o A l v a r e s estava doente, e chegamos as
náos. Quando o C a p i t à o mor v.o esta destruição e mão
recado, mandou aprizionar dez naos de mouros, que
estaváo no porto, e fez matar toda a gente que nella».
se achava, que serião de quinhentos a seiscentos homens;
e a c h á m o s vinte ou trinta, que se h a v . ã o escondido no
fundo por baixo das mercadorias, e assim roubámos e
saqueámos o que tinhão dentro ; achando n huma tres
elefantes, que m a t á m o s e comemos. A s náos depois de
descarregadas f o r á o todas queimadas : no dia seguinte
cheeáráo a terra todas as nossas embarcações, e bom-
beárão a Cidade de maneira que lhe matámos infinita
oente e fizemos muito d a n o . E l l e s nos respondiao c o m
b o m b a r d a s , mas com muita f r o u x i d ã o ; e estando nisto
passarão duas náos ao largo, que hiáo p a r a Pandarame,
daqui sinco . e g o a s de distancia, e vendo-nos f o r a o v a -
rar em terra de companhia c o m outras sete naos g r a n -
de , que já ahi estavão em s e c o , e deitarão mu,ta gente
em terra pelo que também as bombardeámos e lhe
m a t á m o s grande parte da - t a l o t a g e m c^e a d
nháo- mas não as podemos aprizionar por estarem
muito' em seco. Depois disto feito determinou Pedro
A l v a r e s hirmos a Cochim aonde c a r r e g á m o s as naos.
2Ç)2 •224 EXPEDIÇÃO DE

CAPITULO XVIII.

COMO HINDO PARA COCHIM, REINO TRINTA I.EGOAS

DISTANTE HE CAUCUT, QUEIMAMOS DUAS NÁOS


QUE VINHÁO CARREGADAS DAQUEI.E R E I N O , E
COMO E L R E I I)K COCHIM TEVE GRANDE PRAZER
COM \ NOSSA CHEGADA.

P a r t i m o s p a r a C o c h i m distante trinta legoas de C a -


licut; he R e i n o diverso cujos P o v o s s á o Idolatras e
u z á o d a m e s m a lingoagem ; e seguindo a nossa d e r r o t a
a c h á m o s duas náos de C a l i c u t , c a r r e g a d a s de arroz ;
f o m o s direitos a ellas c os Mouros f u g i r ã o p a r a terra
nos bateis e nos d e i x a r ã o as n á o s : vendo o C a p i t ã o
que não l e v a v ã o m e r c a d o r i a s , as m a n d o u q u e i m a r ; e
c o m isto c h e g á m o s a C o c h i m aos vinte e quatro de
D e z e m b r o , e l a n ç a m o s a n c o r a na e m b o c a d u r a de hum
rio. P e d r o A l v a r e s mandou a terra hum pobre h o m e m
de n a ç ã o G u z a r a t e . que por sua vontade p a r t i r a de C a -
licut p a r a vir a P o r t u g a l , o qual disse ao R e i quanto
nos tinha succedido em C a l i c u t , e que o C a p i t ã o lhe
mandava pedir c a r g a p a r a as n á o s . em c u j a troca lhe
p o d i a dar dinheiro e mercadorias. R e s p o n d e o - l h e El Rei
que sentia muito ter-lhe sido feita t a m a n h a injuria, e
que tinha g r a n d e prazer em termos v i n d o á s u a terra,
pois bem s a b i a q u ã o boa gente é r a m o s , e que assim
f a r i a tudo quanto quizessemos. O G u z a r a t e lhe tornou,
que para a nossa gente hir a terra c o m s e g u r a n ç a ,
p r e c i z a v a de a l g u m penhor, o qual se d a v a h o m e m por
h o m e m ; que lhe mandasse algum dos seus, e logo os
nossos desembarcarião. O Rei mandou logo dous
homens dos p r i n c i p a e s c o m outros m e r c a d o r e s , e algu-
mas amostras de e s p e c i a r i a s e os seus p r e ç o s , c o m hum
recado ao C a p i t ã o mór que fizesse tudo o que lhe a g r a -
235
PEDRO ALVARES' CABRAL

dasse •- « t e mandou logo o F e i t o r a terra, c o m quatro


ou sinco homens para f a z e r as c o m p r a s , retendo toda-
via os outros para p e n h o r , e tratando-os mu,to bem ;
trocavão-se porém todos os dias, porque todos os
homens destes P a i r e s náo c o m e m no m a r , e se por ven-
»„» c o m e s s e m náo poderiáo mais ver o R e , : aqu. nos
d e m o r á m o s doze ou quinze dias carregando as naos.

CAPITULO XIX.

COMO VEIO HUMA ARMADA DE CALICUT PARA COM-


BATER OS PORTUGUESES, E CHEGÁMOS AO
R E I N O DE CANANOR CUJO R E I NOS FEZ ."RAN-
ÜES OFEERTAS, K MANDOU LOGO DAR A CANÍ.UA
Q U I .; NOS FALTAVA PARA COMPLETAR A CARGA

Mfium tanto a f f a s t a d o de C o c h i m está hum lugar


chamado Carangolor, aonde ha Christaos, Judeos,
Mouros e C a f r e s ; e neste lugar achámos huma J u d . a
de S e v i l h a , a qual v e i o pela via do C a , r o e de M e c a ;
o aqui vieráo também ter c o m n o s c o dons outros C h n s -
•áos. os quaes dizião que queriáo passar a R o m a , e
dah i a Jerusalem. O C a p i t ã o mor t e v e grande prazer
com estes dous homens, e estando as náos ,á quas,
carregadas, veio de C a l i c u t huma A r m a d a de outenta
1U o m e n t a e sinco velas, entre as quaes v.nte e s.nco
muito grandes. C o m o o R e , teve esta n o t , c a mandou
Tog dizer ao C a p i t ã o m o r , que se quer,a c o m b a t e r elle
he m a n d a r i a náos e g e n t e : Pedro A l v a r e s respondeo-
íe que não era necessário ; e a A r m a d a , m m , g a p o
ser jâ n o m e surgio distante de nós cousa de l e g o a e
m il O Capitão mor assim que escurece» de todo
mandou d a r ? 4 vela, levando c o m s i g o o s homens que
tinha em p e n h o r ; porém o vento acalmou de todo . no
EXPEDIÇÃO DE
•224

dia seguinte, que erão dez de Janeiro de mil quinhen.os.


t hum. podemos adiantar-nos para elles e elles para nos.
de modo que depressa nos ajuntámos. Estando Pedro
Alvares determinado a combatellos, e na distancia de
hum tiro de bombarda, reparou que S a n c h o de T o v a r
segundo Capitão com a sua &Ao, e outro navio tmhao
ficado para traz ; e vendo assim que náo estavão em
ordem resolveo com os outros Capitães tomar o rumo
de Portugal, para onde t i n h a m o s o vento em pòpa. A
Armada de Calicut seguio-nos todo aquelle dia, e huma
hora depois de noute. ate a perdermos de v i s t a : então
o Capitáo mór determinou partir para P o r t u g a l , dei-
xando os seus sete homens com o Feitor em terra, e
levando comsigo os dous de Cochim, os quaes princi-
piámos a acariciar pedindo-lhes, que quizessem comer
pois eráo já três dias passados sem terem tomado ali-
mento algum ; e com effeito comêráo com grande pena
e paixão, e nós seguimos a nossa jornada. A o s quinze
de Janeiro chegámos a hum Reino áquem de Cahcut,
chamado Cananor, que he de C a f r e s ; e tem huma lin-
guagem quasi como a de Calicut, e passando por elle
mandou EIRei dizer ao Capitão mór, que t i n h a grande
desprazer em nao abordarmos no seu R e m o . e que
assim lhe rogava lançassemos ferro, pois se não levasse-
mos carga elle no-la daria. Vendo isto Pedro Alvares
ferrou as vélas e mandou hum Guzarate a terra, e di-
zer-lhe que as náos estaváo carregadas e não tinha ne-
cessidade senão de cem bahares de canella, que sao
quatrocentos quintaes, os quaes logo se lhe mandárao
com muita brevidade; fiando-se E I R e i muito de nos O
Capitáo mór fez immediatameme pagar tudo, e foi de-
pois trazida tanta que já náo havia onde a meter. L l K e .
mandou dizer a Pedro Alvares que senáo a tomava por
náo ter dinheiro, nem por isso deixasse de carregar a
sua vontade, que na viagem seguinte lhe p a g a r i a ; por-
que bem tinha sabido, como EIRei de C a l . c u t o tinha
PEdRO ALVARES CABRAL

roubado, e quam boa gente nós é r a m o s . O C a p i t ã o mór


lhe a g r a d e c e o muito o recado e mostrou ao mensageiro
ou e m b a i x a d o r , tres ou quatro mil cruzados, que ainda
nos r e s t a v á o ; e assim mandando-lhe E I R e i perguntar
se queria mais alguma c o u s a , lhe respondeo que não,
salvo que mandasse S. Alteza hum homem c o m a o s c o
para v e r as cousas de Portugal. E I R e i mandou-lhe hum
G e n t i l - h o m e m ; e os dous de C o c h i m , que tinháo ficado
c o m n o s c o nas náos, escreverão ao seu Rei c o m o vinháo
para P o r t u g a l , e do mesmo modo o fez Pc-dro Alvares
ao F e i t o r , que lá tinha iicado. Não n o s demorámos aqut
mais que hum dia, e principiámos a atravessar o g o l f o
para Melinde ; no ultimo de J a n e i r o estavamos no meio
delle, e encontrando huma náo dc C a m b a v a a aprisio-
n á m o s julgando ser de M e c a : vinha ella muito rica e
c a r r e g a d a c o m mais de duzentos homens e mulheres:
quando o C a p i t ã o m ó r vio que erão de C a m b a v a dei-
xou-os seguir a sua viagem e x c e p t o hum Piloto que lhe
tirou, e assim partirão elles pelo seu caminho, e nós
•>elo nosso.

CAPITULO XX.

GOMO A NÁO DE SANCHO DE TOVAR CARREGADA

DE ESPECIARIA D HO KM SECO, K SE ALIRLO DK


WODO QUE NÁO SE SAI.VOU NADA SENÃO A
1'IENTK KM OAM1ZA.

A o s doze de Fevereiro quasi a boca da noute, todos


os P i l o t o s e aquelles que tinháo cartas de navegar, di-
zião que estavamos juntos a terra ; e S a n c h o de T o v a r ,
que era C a p i t ã o de huma náo grande, disse que queria
hir adiante de todos ; mandou deitar f o r a todo o pano,
e se poz adiante das outras : pela v o l t a da meia noute
deo elle em seco e principiou a desparar a artelharia.
EXPEDIÇÃO DE
2<)6

Quando o C a p i t ã o mór vio isto mandou f e r r a r ; mas o


vento c r e s c e o tanto peia noute adiante, que o na po-
d í a m o s augoentar ; iogo que elle a m a i n o u man u -
dro A l v a r e s o s batéis á náo, c o m o r d e m de a salvar st
podessem, e se não, q u e . m a r e m - n a - m •
sente Neste tempo estava ja a nao a u c . u , - K

paragem donde não p o d i a sahir e o vento cresci


[ a m o , que as outras estava., em grande p e n g o ; de modo
Z oi necessário muito trabalho p a r a salvar a gente
em c a m i z a , tudo o mais se perdeo. A náo era de du-
toneladas, c a r r e g a d a de e s p e c a r i a s ; e u . n d o e.la
ardido p a r t i m o s dalli somente em numero de s n . o c
p a s s á m o s por Melinde aonde nao p o d e m o s entrar . de
pois viemos a Moçambique aonde fizemos t t g o a d a g o -
m á m o s lenhas e e s p a l m á m o s as e m b a r c a ç õ e s . 1 or or
Tem do C a p i t ã o mór partio dalli S a n c h o de T o v a r em
hum n a v i o mais pequeno, c o m
m o s t o m a d o , a f i m de reconhecer a Ilha de (,otala , e
Z depois de reparados, p a r t i m o s em numero de qua-
r los, e f o m o s dar a h u m a angra « ^ J ^
h u m a e r a n d e p e s c a r i a de p a r g o s , e p a r t i d o s de la tive
m o s h u m a t o r m e n t a , que nos fez v o l t a r p a r a traz em
a r v o r e s e c a , perdendo neste meio tempo huma nao de
vista, por m a n e i r a que ficámos somente tres.

CAPITU1.0 XXI.

COMO DE TODA A ARMADA QUE FOI PARA CAUCUT


VOLTARÃO A PORTUGAL SOMENTE SE^NAOS,
D 0 PAIZ DE BESENEGUE E DA ILHA DE ÇOFALA
PEDRO ALVARES' CABRAL
235

com Cabo verde que se chama Besenegue aonde acha-


mos tres navios, que EIRei de Portugal mandara para
descobrir a terra nova, que nós tínhamos achado
quando hiamos para Calicut. Estes nos derão noticias
da náo que se tinha esgarrado quando hiamos para la,
, ciual foi ate á embocadura do estreito de Meca, e
chegou a huma cidade aonde lhe tirário o batei com
toda a ígente que tinha ; e a s s i m vinha a náo somente
com seis homens a maior parte doentes, e somente com
a agoa que podiáo ajuntar quando chovia. Partindo
daqui chegámos a esta Cidade de Lisboa no fim de Ju-
lho : hum dia depois chegou a náo que perdemos de
vista quando v o l t a v a m . * , e igualmente Sancho de Tovar
com a Caravella que foi a Ç o f a l a ; q u e elle disse ser
huma pequena Ilha na embocadura de hum n o : e que
o ouro que alli vem, he de huma montanha aonde esta
a m i n a ; he povoada de Mouros, e Gentios, que resgatao
o dito ouro por outras mercadorias. Quando ali, che-
c o u Sancho de T o v a r achou muitas náos de Mouros e
tomou hum destes para refens de hum Chnstao da
Arabia que mandara a terra, e pelo qual esperou dou*
ou tres d i a s ; passados os quaes vendo que elle nao vol-
tava o deixou ficar vindo com o Mouro para P o r t u g a l ,
de modo que da Armada que fo, a Calicut vierao seis
nãos. e todas as outras se perderão.
•224 EXPEDIÇÃO DE

Q u a n d o o C a p i t ã o m ó r v i o isto m a n d o u f e r r a r ; m a s o
vento c r e s c e o tanto pela noute a d i a n t e , que o n á o po-
d í a m o s a u g o e n t a r ; l o g o que elle a m a i n o u , m a n d o u P e -
d r o A l v a r e s o s b a t é i s á n á o , c o m o r d e m de a s a l v a r se
podessem, e se não. queimarem-na voltando com a
gente. Neste t e m p o e s t a v a |á a n á o a b e r t a , e p o s t a em
paragem donde não podia sahir; e o vento crescia
tanto, que as o u t r a s e s t a v á o em g r a n d e p e r i g o ; de m o d o
que f o i n e c e s s á r i o m u i t o trabalho p a r a s a l v a r a gente
em c a m i z a , tudo o m a i s se perdeo. A n á o e r a de du-
z e n t a s toneladas, c a r r e g a d a de e s p e c i a r i a s ; e tendo ella
a r d i d o p a r t i m o s dalli somente em n u m e r o d e s i n c o , e
passámos por Melinde aonde não p o d e m o s e n t r a r : de-
pois viemos a Moçambique a o n d e fizemos a g o a d a , to-
m á m o s lenhas e e s p a l m á m o s as e m b a r c a ç õ e s . P o r or-
d e m d o C a p i t ã o m ó r p a r t i o dalli S a n c h o de T o v a r em
h u m n a v i o m a i s p e q u e n o , c o m hum P i l o t o q u e tinha-
m o s t o m a d o , a fim de r e c o n h e c e r a Ilha de Ç o f a l a ; e
nós d e p o i s de r e p a r a d o s , p a r t i m o s em n u m e r o de q u a -
tro n á o s , e f o m o s d a r a huma angra aonde fizemos
huma grande p e s c a r i a de p a r g o s , e p a r t i d o s d e lá tive-
m o s h u m a t o r m e n t a , que nos fez v o l t a r p a r a traz em
a r v o r e s e c a . perdendo neste m e i o t e m p o h u m a náo de
vista, p o r m a n e i r a que f i c á m o s somente tres.

CAPITULO XXI.

C O M O DI; TODA A ARMADA QUE FOI PARA CALICUT


VOLTARÃO A PORTUGAL SOMENTE SEIS N Á O S ;
DO PAIZ DE BESENEGUE E DA ILHA DE ÇOEAI.A

C h e g á m o s a o C a b o de B o a E s p e r a n ç a d i a d e P a s c o a
de flores, e ahi a c h á m o s bom t e m p o , c o m o qual v i a j á -
m o s p a r a diante e a b o r d á m o s na p r i m e i r a t e r r a junta
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

c o m C a b o verde que se c h a m a Besenegue aonde achá-


mos ires navios, que E I R e i de Portugal m a n d á r a p a r a
descobrir a terra nova, que nós tínhamos achado
quando hiamos para Calicut. E s t e s nos deráo noticias
da náo que se tinha esgarrado quando hiamos para l á ,
a quai foi ate á e m b o c a d u r a do estreito de Meca, e
chegou a huma cidade aonde lhe tirárão o batel c o m
toda a [gente que tinha ; e assim vinha a náo somente
c o m seis homens a m a i o r parte doentes, e somente c o m
a a g o a que podião ajuntar quando chovia. Partindo
daqui c h e g á m o s a esta Cidade de L i s b o a 110 fim de J u -
lho : hum dia depois chegou a náo que perdemos de
vista quando v o l t a v a m o s , e igualmente Sancho de T o v a r
com a C a r a v e l l a que foi a Ç o f a l a ; que elle disse ser
huma pequena Ilha na e m b o c a d u r a de hum r i o ; e que
o ouro que alli vem, he de huma montanha aonde está
a mina ; he p o v o a d a de Mouros, e Gentios, que resgatão
o dito ouro por outras mercadorias. Quando alli che-
gou S a n c h o de T o v a r achou muitas náos de Mouros, e
tomou hum destes para refens de hum Christáo da
A r a b i a que mandára a terra, e pelo qual esperou dous
ou tres d i a s ; passados os quaes vendo que elle não vol-
tava o deixou ficar vindo com o Mouro para P o r t u g a l ;
de m o d o que da A r m a d a que foi a Calicut vieráo seis
náos. e todas as outras se perderão.
CARTA DK AMÉRICO VESPUCIO. ESCRITA IIK CABO
VIIUH:, \ 4 I>E JUNHO HE I 5 C I , A LOURENÇO
in Pin- FRANCISCO HE MEDICIS.

M a g n i f i c o p a d r o n m i o , agli otto di M a g g i o fu l'ultima


vi scriss s t a n d o a L i s b o n a presto per p a r t i r m i . In questo
presente v i a g g i o , cite o r a c o l l ' a i u t o dello S p i r i t o S a n t o
ho c o m i n c i a t o . c pensato fino al m i o r i t o r n o non vi
avere a s c r i v e r e p i ú ; e pare che la sorte m ' a b b i a dato
t e m p o s o p r a , uno di potervi s c r i v e r e non s o l a m e n t e di
lunga terra, m a d c l l ' a l t o m a r e .
Voi arete inteso, L o r e n z o , si per la m i a , c o m e per
lettera de' nostri F i o r e n t i n i di L i s b o n a , c o m e fui chia-
m a t o . stando io a S i b i l i a , dal R e di P o r t o g a l l o ; e mi
p r e g o che mi disponessi a servillo per q u e s t o v i a g g i o i
nel quale m ' i m b a r c a i a L i s b o n a a' tredici d e l ' p a s s a t o ,
e p i g l i a m m o nostro c a m m i n o per m e z z o d i ; e tanto na-
vigammo, che j i a s s a m m o a v i s t a dell' l s o l e F o r t u n a t e ,
che oggi si c h i a m a n o di G a n a r i a . e p a s s a m m o l e di l a r g o ,
tenendo nostra n a v i g a z i o n e lungo la c o s t a d ' A f r i c a , e
t a n t o n a v i g a m m o . che g i u g n e m m o qui a uno c a v o . che
si chiarna el Cam Verde, ch' e p r i n c i p i o d e l i a p r o v í n c i a
d'Etiopia. e sta al m e r i d i a n o dell' l s o l e F o r t u n a t e , e
tiene di la'rghezza q u a t t o r d i c i gradi delta linea equino-
z i a l e . d o v e a c a s o t r o v a m m o surto due n a v i del R e di
Portogallo. ch'erano di r i t o r n o d' alle p a r t e d'India
EXPEDIÇÃO de PEDRO AI.VARES CABRAI. 299

orientale. che sono di quelli medesimi che andarono a


Calichut, ora quattordici mesi fa, che furono tredici na-
v i g l i . co quali i' ho auto grandissimi ragionamenti noil
tanto del loro v i a g g i o , come delia costa delia terra che
corsono, c delle richezze che trovorono, e di quelle che
tengouo. tulto sotto ore vità si fará m questa menzione
a Vostra Magnificenza, non per via de cosmografia,
perchè non fu in essa frotta C o s m o g r a f o , nè Mattematico
nessuno, che fu grande errore. Mas vi si diranno cosi
discontortamente, c o m e me la contarono, salvo quello
io ho alcun tanto corretto colla cosmografia di T o l o -
meo.
Questa frotta dei Re di P o r l o g a l l o , patti di L i s b o n a
1'anno 149(1, del mese d'Aprile, e navicorono al mczzodl
fino ali' Isole dei C a v o Verde, che distanno daüa linea
equinoziale quattordici gradi circa, e fuora d' ogni me-
ridiano verso l'occidente. che potete dire che le stanno
piu all' occidente che l'lsole di Canaria sei gradi p o c o
piú 0 meno, che ben sapete come T o l o m e o , e la m a g -
gior parte delle scuole de' cosmografi. pongono el fine
dell' occidente abitato l'lsole Fortunate, le quali ten-
gono di latitudine coll' Astrolábio, e con el quadrante,
e I' ho irovato esser cosi. L a longitudine è cosa piu dif-
ficile, che per pochi si può conoscere. salvo per chi
molto vegghia. e g u a r d a la cogiunzione della L u n a c o '
Pianeti. P e r causa della detta longitudine io ho perduti
mohi sonni. e ho abreviato la vita mia dieci anni, e
tutto tengo per bene speso. perchè, spero venire in f a m a
lungo secolo, se io torno con salute di questo v i a g g i o .
Iddio non me Io reputi a superbia, che ogni mio trava-
i l io raddirizzarò ai suo santo servizio.
Ora torno al mio proposito : come dico questi tredici
navigli sopradetti navigorono verso el mezzodl dell'
Isole del C a v o Verde, per il vento che i dice fra mezzo-
di, e libeccio. E dipoi d' aver navigato venti giornate,
c i r c a a settecento leghe (che ogni lega ò quattro miglia
3oo EXPEDIÇÃO DE •

e mezzo) posono in una terra, dove trovorono gente


bianca e ignuda delia medesima terra, che io discopersi
per R e di Castella, salvo che è piú a levante, la quale
per altra mia vi scrissi, dove dicono che pigliorono
ogni rinfrescamento, e di quivi partirono, e presono loro
navigazione verso levante, e navigorono pel vento dello
scilocco, pigliando la quarta di levante. E quando furono
larghi dalla detta terra, ebbono tanto tormento di mare
col vento a libeccio. e tanto fortunoso, che mandó solto
sopra cinque delle loro navi, e le somerse nel mare con
tutta la gente. Iddio abbia auto misericórdia deli' anime
loro. E lo otto altre nave. dicono che corsono ad albero
secco. cioé sanza vela quaramotto di, e quaramotto
notte con grandíssimo tormento. E tanto corsono, che
si trovorono colla loro navigazione sopra a vento dal
C a v o di B u o n a Speranza, che sta iigurato nella costa
d' Etiópia, e sta fuora del T r o p i c o di Capricórnio dieci
gradi alia parte dei meridiano, dico che ista dali' altez-
za delia línea equinoziale verso el mezzodi trentatre
gradi. Diche fatta la proporzione del parallel., truovono
che'l detto C a v o , tiene di longitudine dall' Occidcnte
abitato sessantadue gradi. poco piú. o meno. che pos-
siamo dire che stia nel meridiano d'Alessandria. E di
qui navigorono di poi verso el settentrione, alia quarta
del greco, navigando di continuo a lungo delia costa, la
quale secondo me e'l prencipio d ' A s i a , e província d'
A r a b i a Felice, e di terre del 1'resto Giovanni, perchè
quivi ebbono nuove del Nilo. che restava loro verso
r Occidente, che sapete ch' elli parte 1' A f f r i c a , dall'
A s i a . E in questa costa vi sono infinita popolazione, e
cita. e in alcuni ferono scala. e la prima fut Zafale, la
quale dicono essere citta di tanta grandezza come e'
1 C a i r o , e tiene mina d' o r o : e dicono che pagano di
tributo alio re loro dugento migliaia di miccicalli d' oro
r anno, che ogni miccicalle vale una Castellana d' oro,
o circa. E d i qui partirono e venono a Mezibinco, dove
PEDRO AI.VARES CABRAI. 3

d i c e , è m o l t o alue, e infinita l a c c a , e m o i t a d r a p p e r i a d i
s e t a . E d é di tanta p o p o l a z í o n e c o m e el C a i r o , e di M e -
zibinco f u r o n o a C h i l o a , e a M a b a z a , (Monbaza) e d a
Mabaza a D i m o d a z a , e a Melinde. D i p o i a M o g o d a s c o
(Magadasso), e a Camperuia, e a Zendach dipoi a
 m a a b , d i p o i A d a b u l (forse R a s u e i ) e A l u u i c o n . T u i t e
q u e s t e c i t t à sono nella c o s t a del m a r e O c c e a n o , e v a n n o
fino alio stretto del M a r e R o s s o . E l quale m a r e avete d a
c o s t a del m a r e Índico. C r e d o che sia la p r o v í n c i a c h e
Tolomeo la c h i a m a G e d r o s i c a . Q u e s t o M a r e P e r s i c o ,
dicono che è molto r i c c o , m a tutto non s'ha c r e d e r e ,
p e r c i ò le l a s c i o nella penna a chi meglio ne p o r g e r a la
verità.
O r a mi resta a dire delia c o s t a , che v a dallo stretto
dei M a r e P e r s i c o verso el m a r e Indico, secondo che mi
r a c o n t o n n o , molti che funno nella detta a r m a t a ; e m a s -
sime il d e t t o G u a s p a r r e , el quale s a p e v a d i m o l t e l i n g u e ,
e il n o m e di molte p r o v i n c i e e citta. C o m e dico è u o m o
m o l t o a l t e n t i c o , p e r c h e ha fàtto due fiate el v i a g g i o di
P o r t o g a l l o a l M a r e Indico.
D a l l a b ò c c a del m a r e P e r s i c o si n a v i c a a una c i t t à ,
che si d i c e Z a b u l e (forse D a b u l e ) ; di /.abule a G o o s a
( G o a ) , e da G o o s a a Z e d e u b a . e dipoi a Nui, d i p o i a
Bacanut, (forse B a r c e l o r ) , dipoi a S a l u t ; dipoi a M a n -
galut, i M a n g a l u r ) , dipoi a B a t e c a l a , dipoi a C a l n u t , poi
a D r e m c p e t a m . dipoi a F a n d o r a n a , dipoi a C a t a t , d i p o i
a C a l i g u t . Q u e s t a città c m o l t o grande ; e fu 1' a r m a t a
de ' P o r t o g a l l e s i a r i p o s a r e in essa. D i p o i di C a l i g u t a
B e l f u r , d i p o i a S t a i l a t , dipoi a R e m o n d , dipoi a P a r a -
v r a n g r a r i , dipoi a T a n u i ( T a n o r ) , dipoi a P r o p o r n a t ,
dipoi a C u n i n a m , dipoi a L o n a m , dipoi a B e l i n g u t , d i -
poi a P a l u r , dipoi a G l o n c o l o i , dipoi a C o c h i n , dipoi a
C a i n c o l o n (forse C u l a n ) dipoi a C a i n , dipoi a C o r o n c a -
r a m , d i p o i a S t o m o n d e i , d i p o i a N a g a i t a n , dipoi a Del-
m a t a n , d i p o i a C a r e p a t a n , dipoi a C o n i m a t . I n f i n o a qui
h a n n o n a v i g a t o le frotte di P o r t o g a l l o , che benchè non
•224 EXPEDIÇÃO DE

si conti delia longitudine. e latitudine delia detta navi-


gazione. ch'e fare cosa impossibile, a chi non tiene
moita pratica delle marinerie che la possa darc ad in-
tendere. E io tengo Speranza in questa m i a navigazione
rivederc. e correre gran parte del sopradetto, e disco-
prire moito piu. e aiia mia tornata d a r ò dl tutto buona
e vera relatione: l.o S p i r i t o S a n t o v a d a con meco.
Questo Guasparre, che mi contò le sopradette c o s e , e
molti Cristiani le consentirono. perche furono in alcuna
d' esse, mi dise di poi el seguente. disse ch' era stato
dentro in terra dell' India in uno regno che si c h i a m a e'
regno de' Perlicat. el quaie è uno grandissimo regno, e
rico d' oro, e di perle, e di gioie. e di pietre prezione, e
contò essere suuo dentro in terra a Mailepur, e a G a p a -
tan. e a Mel.ita, e a T a n a s c r . ( T a r e s c r i m ) , e a P e g o e a
S t a r n a i . e a Bencola, e a Otezen, e a Marchin. E questo
•Marchin dice sta nresso di rio grande, detto E n p a r l i c a t .
E questo Enparlicat e città dove è il c o r p o di S a n t o
Marco Apostolo, e vi sono molti Cristiani. E t mi disse
essere stato in mo',te Isole, e m a s s i m e in una che si dice
Ziban (Corse Sedan), che dice che volge 3<x> leghe, e che' 1
mare aveva consumato d' essa, el rio, altre 400 leghe.
Dissenti ch' era ricchissima isola di pietre preziose, e d i
perle, e di spe/ierie, d' omii generere. e di drogherie, e
altre ricche/ze. come sono alifanti, e gran c a v a l l e r i a ;
di m o d o che isumo che questa sia 1' Isola T a p r o b a n a ,
secondly che lui me la atfigura. E pia rr.i disse, che mui
senti mentovare T a p r o b a n a in tale parte, che c o m e sa-
sapere che non e rosso, ed è c o m e questo nostro, m a
tiene solo il nome di rosso. E tutte queste città sono ri-
chissime d' oro. e di gioie. e d r a p p e r i e e spezzerie, e
drogherie, e di suo proprio nascimento, ch' elle sono
tratte colle carette dalla parte d' India, come intende -
rete, che sarebbe cosa lunga a ripricalla.

Da A l b a r c o n e , traverso lo S t r e t t o del Mare R o s s o e'


vanno alia Moca, la dove fu una nave della detta f r o t t a ,
PEDRO AI.VARES CABRAI. 3

che in questo punto è a r r i v a t a qui a questo c a v o , e in-


fino a qui é scritto la c o s t a d' A r a b i a F e l i c e . O r a vi d i r ò
l a c o s t a del M a r e R o s s o v e r s o 1' India, cioè d e n t r o alio
S t r e t t o d ' esso m a r e .
A l i a b o c c a dello stretto s t a un porto nel M a r e R o s s o ,
che si c h i a m a H a d e n , con u n a gran città. P i ú innanzi
v e r s o e l settentrione sta, uno altro p o r t o , che si c h i a m a
Camarcan, e Ansuva; d i p o i è uno altro p o r t o c h e si
d i c e O d e i n d a (Odeida). e da Odeinda a i . a m o i a ( L a h o í a )
e d a 1 . a m o i a a Ciuda (Gudda). Questo porto di ( i u d a è
g i u n t o con il Monte S i n a i , che c o m e saprete è in A r a -
bia D i s e r t a , d o v e d i c o n o ch' e i s c a l a di tutti e' navili
che v e n g o n o da inadia. e d a M e c c a . E in questo p o r t o
d i c o n o che d i s c a r i c a n o tutte le spezzerie. e d r o g h e r i e :
e g i o i e : e tutto quello che p o n g o n o qui, di poi v e n g o n o
le c a r o v a n e de' c a m m e l l i dal C a i r o , e d' A l e s s a n d r i a , e
le c o n d u c o n o li, che d i c o n o c h e v a n n o o t t a n t a leghe pel
d e s e r t o d' A r a b i a . E d i c o n o che in questo M a r e R o s s o ,
non n a v i g a n o se non di di p e r c a u s a di molti s c o g l j , t
s e c c h e che vi sono. E m o l t e altre c o s e mi f u r o n o conte
di questo m a r e , che p e r non e s s e r e p r o l i s s o si l a s c i a n o .

O r a d i r ó la c o s t a del M a r e R o s s o d a l l a p a r t e dell'
A f r i c a . A l i a b o c c a dello stretto d' esso m a r e sta Z o i c h e
[Zeile], ch' e signore d'essa uno M o r o , che si c h i a m a
A g i d a r c a b i , e dice che sta tre giornate a p r e s s o al p o r t o
di G u d a . tiene m o l t o o r o . m o l t i alefanti e infinito m a n -
tenimento.
Da Zoiche ad A r b a z u i [ f o r s e A s a b ] , Di questi d u o
p o r t i d ' A r b o i a m e Z a l a n' é s i g n o r e el P r e s t o G i o v a n n i ,
e ivi d i r i m p e t t o é un p o r t o che si n o m i n a T u i è quale
e del gran S o l d a n o di B a b i l ó n i a . D i p o i da T u i a A r -
d e m , e d a A r d e m a Z e o n . Q u e s t o c quanto io ho p o t u t o
avere del M a r e R o s s o ; r i f e r i s c o m i a chi m e g l i o l o sa.
Resrami ora a dire quello io intesi delia c o s t a d e l i a
M e c c a , c h ' e dentro del M a r e P e r s i c o che si é el s e -
guente.
•224 EXPEDIÇÃO DE

Partonsi dalla Mecca, e vanno per costa de! m a r e fino


a una città che si domanda Ormuz, el quale é un porto
nella bocca del Mare Persico. E dipoi da O r m u s a a T u s
(forse Kis) e di T u s a T u n a s , dipoi a C a p a n , dipoi a
L e c h o r , dipoi a Dua, dipoi a T o r s i s , dipoi a P a r e s , di-
poi a Stucara, dipoi a R a t a r . T u t t i questi porti che
sono molto populati stanno dentro dalla costa dei Mare
Persico. Credo che saranno molto piú alia mente mia,
che alia verità mi referisco, che questi mi contò uno
uomo degno di fede, che si c h i a m a v a G u a s p a r e , che
a v e a corso dal C a i r o fino a una província che si do-
manda Molecca. (forse Malacca) la quale sla situata alia
pete e' sta tutta in fronte di rio suddetto.
Item mi disse, eh' era stato in una altra Isola che si
dice Stamatara (forse S u m a t r a ) , la quale é di tanta
grandezza, come Ziban. e Bencomarcano. insieme è
tanto ricca como l e i ; sicchò non essendo Ziban 1' Isola
T a p r o b a n a sarà S c a m a t a r r a . Di questi due isole ven-
gono in Persia e in A r a b i a infinitissime navi cariche d'
ogni genere spezierie. e drogherie, e gioie preziose. E
dicono. che hanno visto gran copia de navilj di quelle
parte, che sono grandissimi, e di 4 0 mila, e 5o m i l a c a n -
tari di porto, e' quali c h i a m a n o giunchi. e hanno li al-
beri delle navi grandissimi, e in ogni albero tre, o quat-
tro cabin. !,e vele sono di giunchi, 11011 sono fabbricate
con lerro. salvo che sono intrecciate coil corde. P a r e
che quello mare 11011 sia tempestuoso. T e n g o n o bom-
harde, ma non sono e' navilj velieri, ne si mettono molto
in mare, perche di continovo navicano a vista di t e r r a .
Accadde che questa frotta di P o r t o g a l l o , per fare p i a -
cere a petizone dei Re di C a l i g u t . prese una nave ch'
era c a r i c a d' alifanti, e di riso, e di piú di 3oo u o m i n i ;
ella prese una carovella di 7 0 tonelli. E un altra v o l t a
misono in fondo dodici nai. Di poi vennono a una I s o l a
detta Arenbuche. e Maluche, e molte altre Isole del m a r e
Indico, di che sono di quelle che conta Tolomeo,
PEDRO AI-VARES CABRA1. 3o5

che stanno intorno ali' Isola T a p r o b a n a , e tutte sono


rícche.
L a detta armata se ne torno in Portogallo. e alia volta
ch' rrano restate otto navi se ne perdè una c a r i c a di
molte ricchezze, che dicono che valeva c e n t o m i l a duca-
ti, e le cinque per temporali si perdenno. Della capi-
tana, del quale oggi 11' è capitata una qui (sic), c o m e di
sopra d i c o ; credo che 1' altro verrano a salvamento.
Cosi a Dio piaccia.
Quello che le dette nave portano ò' 1 seguente.
Vengono c a r i c e d' infinita cannella, gengiavo verde e
secco. e molto pepe. e garofani, noci m o s c a d i . mace,
muschio, algalia, istorac. bongiui, porcellane, casia,
m a s t i c a . incenso, mirra, sandale rosi e bianchi, legno
aloe, c a n f o r a , ambra, canne, moita lacca. m ú m i a , anib e
tujia, oppio. aloe patico, folio indico, e molte a l t r e d r o -
g h e r i c y c h e sarebbe c o s a lunga al contalle, Di gioie non
sol el resto, salvo che vidi dimolti diamanti, e rubini, e
perle, fra' quali viddi uno ruhino d' un pezzo, rotolo di
bellissimo colore, che pesava sette carati. e mezzo. Non
mi vi! piú rallargare perchè el n a v i l i o . . . non mi l a s c i a
scrivere. Di P o r t o g a l l o intenderete le nuove. In c o n c r u -
sione el R e di P o r t o g a l l o , tiene nelle mani uno grandís-
simo traffico. e gran richezza. Iddio la prosperi. Credo
che le spezierie verrano di queste parti in Alessandria,
e in Italia, secondo la qualità e pregj. Cosi va el mondo.
Credete, L o r e n z o , che quello che io ho s c n t t o infino
a qui è la verità. E se non si risconteranno le provincie,
e regni, e nomi di città, e d' isole colli scrittori antichi,
c segno ben che sono rimutati, come v e g g i a m o nella
nostra E u r o p a , che per maraviglia si sente uno nome
antico. E per m a g g i o r e chiarezza delia verità si trovo
presente Gherardo V e r d i , frattello di S i m o n V e r d i di
C a d i s i , el quale viene in mia compagnia, e a voi si rac-
comandi.
Questo viaggio. che ora fo. veggo ch' è pericoloso
20
3oí) EXPEDIÇÃO DE PEDRO ALVARES CABRAL

quanto alia franchezza di questo vivere nostro umano.


Nondimeno lo fo con f r a n c o anime per servire a D i o .
el al mondo. E se D i o s' é servito di m e , mi dará virtú.
q u i n t o che io sia apperechiato a ogni sua volontà, pur-
chè mi dia eterno riposo ali' anima mia.
C.ÍVKTA M: LA FAITADA

Q u e s t a c c o p i a di una letera di Z u a n F r a n c e s c o de
la F a i t a d a . s c r i t a in L i s b o n a , a di 2t> zugno i 5 o i , d r í z a t a
in S p a g t i a , a s i c r D o m e n e g o P i s a n i , el c a v a l i e r , o r a t o r
nostro; la qual per sue di X luio, la m a n d o in questa
terra.
Magnilice o r a t o r e t c .
A questi zorni passati s e r i s s i per Z u a n V e s i g a ; poi
in questo zorno l i a v e m o v o s t r a , per la qual n e comete,
li d a g a m o n o t i t i a de la e x p e d i t i o n de 1 ' a r m a t a di questo
s e r e n i s i m o re. B e n c h e per missier G r e t i c o s a r a s c r i t o a
c o m p i m e n t o , i o v o g l i o d a r notitia a quela de la p a r t i t a
de questa a r m a t a , la qual partite de qui a li 17 zugno,
et a li 18 fu in L a c u s , terra de lo A l g a r i u s , c h e de qui
i questa terra f a n n o 40 lige. Del qual l o c o de L a c u s
s i a m o a v i s a t i , luni p a s s a t o la predita a r m a d a era in-
grossaia de m o l t e nave et m o i t a g e n t e ; e, s e c o n d o
m ' a v i s a n o per letere de d o m e n i c a p a s s a t a , del regno de
Algarius montarano piu di 2000 h o m e n i , o l t r a quelli
che de qui a n d o r o n o con le nave che p a r t i n o . L o e f f e -
cto che questo re m a n d a q u e s t a a r m a d a a q u e s t o l o c o
dei m o r i , e per p i g l i a r l o ; et eri, c h e fo lo di de S a n c t o
Joanne, havevano lo a r s a l t o in terra. Q u e s t o é quanto,
tin questo di, se intende de la p r e f a t a a r m a t a . D a p o ' se
extima andara a s u o c a m t n o , d o v e era d e p u t a d a ; c h e
Dio li c o n c i e d a v i t ó r i a ! L a m a g n i f i c e n t i a v o s t r a s a p e r a ,
•224
•224 EXPEDIÇÃO DE

che eri, al tardi. vene uno de li navilij, che fu in zener


fino a Coloqut, el qual loco si é quello donde si aspe-
tava le spiziarie. Et perche so, quella havera piazer in-
tendere le nove portano, f a r o notitia, como questo sere-
nisimo re mando a lo dito loco de Coloqut 12 nave e
navilij, de li quali g'é X soi, uno dei signor don A l v a r o ,
m compagnia de B o r t o l o , florentino et Hironimo et
uno genoese. 1'altro dei conte de P o r t a A l e g r a e de
certi altri merchadanti assai. In tutto sono 12 tra nave
e navilij, de li quali, a 1'andata, de qui lontano Xo lige,
una de queste nave dei re se perdete, che de lei non s'é"
saputo mai n o v e l a ; le altre 1 1 , andorono a suo v i a g i o ,
arivarono ad un loco. che se dimanda el C a v o de B o n à
Speranza. Un zorno de luio, da poi de disnar, li sopra-
vene grande vento, in m o d o , che. per quella fortuna, se
perdete altre tre nave di quele del re. e lo navilio dei
conte di Porta A l e g r a ; si che non restorono se nom 7,
le quale andorono piu avanti, tanto che arivono al C o -
loqut; tamen dicono. che avanti giongeseno al C o l o q u t ,
discosto da lo ditto loco lontano 100 lige, arivono in'
uno l o c o ; che lo re di quel loco li feze grande honor,
e le mando refreschamenti di carne, agneli et altri pre-
senti. Zonti poi a C o l o q u t , el capetanio vene a parla-
mento com quel re, e li feze, per nome di questo sere-
níssimo re, presente de molte cosse, in m o d o che
restorono grandi a m i c i ; e il capetanio se ne ritorno a
la nave, e mando el f a t o r general, com li altri deputati
ofliciuli, che havesseno a star li in terra, e comenzorono
a contratar e f a r partiti de sue mercantie. In qudo
tempo se atrovava, in lo dito locho de Coloqut, la
trota de le nave de' m o r i de la Mecha, che stavano per
c a r g a r specie. A uno g i o m o , li mori con lo f a c t o r del
re vegnirono a diferencia ; dicendo I'uno, che volea car-
gar prima che l'altro ;'et li mori comenzorono a m a z a r
di portogalesi da 25 in 3o de li principal!, intra li
qual fu lo factor genera! e scrivani. et certi (rati
345
PEDRO AI.VARES CABRAI.

de o b s e r v a n t i a , che lo re in la dita a r m a t a mando.


A l c u n i de quelli che e r a n o in terra, b u t a t i in m a r , n a -
t o r o n o a la n a v e , e deteno n o t i c i a al c a p e t a n i o d i la no-
va. E l qual m a n d o a p a r e c c h i a r tute le n a v e a v e l a , e
c o m e n z o a b o m b a r d a r le nave de. m o r i , in m o d o che ne
m a n d ô in f o n d o c i r c a X I I nave, ei o c c i s e piu de 3 o o r n o n .
F a c t o q u e s t o , c o m e n z o a tirar le b o m b a r d e in terra, et
a m a z o m o i t a gente, ruínando m o l t e c a s e : e l ' a l t r o z o r -
no p i g l i a r o n o m o h i homeni de C o l o q u t , e li m e n o r o n o
a l a s u a n a v e . E l c a p e t a n i o stete in d e l i b e r a t i o n de ri-
t o r n a r s e qui. l i n o J u d e o , che l ' a l t r o c a p e t a n i o meno qui
l a p r i m a v o l t a che'l fu in C o l o q u t per q u e s t o r e , f u m a n -
d a t o in q u e s t a a r m a t a , tuta v i a non lo l a s s o r o n o m a i
andar a terra, comenzo a dir al c a p e t a n i o c h e non si
r e t o r n a s s e , m a che se andasseno piu avanti 70 in 80 lige
c h e lui li m e n e r i a al l o c o p r o p r i o , d o n d e n a s c e n o la
s p i c i a r i e , che e l o c o de a l t r o re. E l c a p e t a n i o , visto le
p r o p o s i t i o n del judeo, d e t e r m i n o de f a r quello che lui
diceva. e mando a far vela v e r s o questo l o c o che c o s -
tui li d i c e v a , tanto che a r i v o r o n o a q u e s t a terra, che se
d o m a n d a C h u c h i , dove el c a p e t a n i o m a n d o homeni in
terra a p a r l a r a lo re de questa t e r r a , et a quello n a r o -
110 q u e l l o li é s t a f a t o in C o l o c u t . Questo re de questa
terra c g r a n d e i n i m i c o del re di C o l o q u t , et inteso ques-
10, li m a n d o 4 homeni, de li sui piu p r i n c i p a l i , a le na-
ve. che stesseno li, per c o n t r o de altri 4, che lo c a p e -
tanio m a n d o in t e r r a ; e c o m e n z o r o n o a f a r p a r t i t i , per
modo che in nove zorni carichono tutte 7 le n a v e de
s p i z i a r i e ; z o e g a r o f a l i , canelle, nose m u s c h a t e , p e v e r e
et altre sorte specie. E d a poi che le n a v e f o n n o del
tutto c a r g a t e , q u e s t o re li m a n d o altre 1 4 b a r c h a z e de
s p i z i a r i e , e l o r o le r e t o r n o r o n o a r e m a n d a r , p e r c h é non
le podevano alevar; e questo re g e le m a n d o a d a r
s e n z a d e n a r i , né a l t r a c o s s a per c o n t r o . E l re de C h a -
liqut, inteso che q u e s t a a r m a d a e r a a n d a t a a c a r g a r a
q u e s t o l o c o , p e r c h é era inimico de q u e l ' a l t r o re, e d u b i -
3 LO 2Ç)2•346EXPEDIÇÃO DE

tandosc che lo trafico de C a l i q u t non se vastasse, or-


deno una grande armada, per m a n d a r a pigliar le nave
de P o r t o g a l l o . in la qual a r m a t a andava no piu de ó
miha homeni: El re de Ghuchi. che s e P e questa nova
de questa ma armata. lo faze as aper ai capetanio de
• o r t o g a ü o , fazer,doli grande o f f c r t o , per salvarli quanto
lui potesse; et oltra questo feceno p a r t i t o . c h e !i 4 homeni
de le nave, stavano in terra, restasseno la, et li 4 altri
de la terra, che stava no in le nave. vegnisseno qui con le
dite na ve, e cussi feceno, con grande a m i c i t i a . U n o g i o r n o
stavano per partir le dite nave, per vegnir a suo camino.
1'armata di Chaliqut a p a r s e ; et quell de la nave deteno
le veil a. che haveano bon vento, e lassorono per pope
1'armata de C h a l i q u t . perche quele nave non vano a
vela se non con vento in pupa. In Chaliqut remasc
grande v a l u t a de zoie, che za haveano c o m p r a d o ; tuta
via se existiam nc vegna qui, in queste nave del re,
grande summa. I.a fama de la richeza di questo re é
tanto grande, che, hessendo la ter/a parte, é una g r a n d e
cossa. Da poi. c o m e é d f t o . che fussemo partiti da
Chuchi. luntadadi dal dito loco a «, hge, trovorono
un altra terra, c h i a m a t a L i c h i n o c h o , e li stava uno re
molto richo. el quelle mando present!' al capetanio. et
mandoh doi a m b a s a d o r i . i qualli vegnano a lo r e d e
Portogallo. E x p e d i ti da questo re, partirono al suo
v i a i o , e se ne veneno a Z a f a l e . c h e in questo loco dicono
eseere grande rescato de oro t. de le r> nave. el re or-
deno che do de esse se ne andaseno a questa terra ; m a
quando se perdeieno le 4 nave, haveano ad a n d a r a
questa terra de Z a f a l e . Da poi se ne veneno piu avanti,
e uno giorno se feze grande vento, in m o d o che una de
le sette nave fu a dar in terra, e le persone se salvo-
rono. El c a p e t a n i o mando a bru.s-ar la dita nave con la
mercamia. Gionti al C a p o de B o n a Spuranza, el c a p e -
tanio mando a tute le altre nave, se zoncesen insieme.
et andono in c o m p a g n i a 3 in 4 zorni. Da poi comnndo,
PEDRO ALVARES CABRAL 3l I

che questa, ch'e venuta, per esser neglior de le vele, se


partisse da le altre, e venisse a dar nova de esse nave
qui, a questo re de P o r t o g a l o ;, e cussi feze. Questo na-
vilio, che e venuto, é lo piu picolo de tuti, et é dei si-
«nor A l v a r o e tre altri merchadanti nominati di sopra.
I.ui é lo piu povero de tutti li altri, lo quale porta 3oo
cantera de pevere et 200 de canella, nose muscade, la-
cha, b e n z u i ; et porta la novella de esse cosse ; de modo
che de tuto vien cargate. Questo discorso vi ho facto,
per dar notitia a vostra magnificentia dei successo de
questa cossa de Coliqut. L e sopradit nove se sono
havute da uno marinaro de lo navilio che é venuto, el
quale navilio a n c o r a sta in restello, et ozi s ' a s p e t a qui.
Intendendose altro. ne sareti avisato del tutto particu-
larmente etc.
CARTA DE PISANI A SENHORIA DE VENEZA

C r e d o , v o s t r a serenitá, per letere del m a g n i f i c o a m b a -


s a d o r , d o m . n o P i e r o P a s q u a l i g o . d o c t o r , h a b i a inteso
q u e l l o ho per c a p i t o l o di una letera di m i s s i e r C r e t i c o
d o c t o r , cli'e apud regem Lusitaniae. de 27 luio, in I.is-
bona. C o m e q u e s t o s e r e n i s i m o re havia m a n d a t o n a v e a
Ia v o l t a de India, le quale al presente son t o r n a t e - ma
di . 3 che f u r o n o son p e r s e Ie 7. E l lor v i a z o , s e r e n i s i m o
príncipe, é : p r i m a per la c o s t a de M a u r i t a n i a et G e t ú l i a
per o s t r o , fin al C a p o V e r d e , che antiquitm si c h i a m a v a '
Hcspeviceras d o v e s o n o le insule de le H e s p e r i d e . Qui
principia la E t h i o p i a , v e r s o levante tanto, che c o r e s -
ponde per lineam rectam a la S i c i l i a . Dista dita c o s t a
de la línea e q u i n o c t i a l e 5 in 6 g r a d i ; et a m e z o dieta
c o s t a e la m i n a de questo s e r e n í s s i m o re. Da poi extende
uno c a p o v e r s o o s t r o in tanto, che e x c e d e el t r ó p i c o de
Capricorno y gradi. Q u e s t o c a p o c h i a m a n o C a p o de
Bona Esperanza, che vien esser l a r g a la B a r b a r i a in
q u e s t o l o c o piu d, 5ooo m i a , dal lito intrínseco v e r s o
nu. ad questo c a o de li. Iterum se i n c o l f a verso uno c a o ,
c h i a m a t o d a g h antiqui Prason Promontoríum, fino ai
qual fu noto a li antiqui. D a 1'altra b a n d a , de qui iterum
s c o r r e , q u a s , g r e c o e l e v a n t e , per la T r a g l o d i t i c a , d o v e
trovano una m . n a d ' o r o , l a qual c h i a m a n o Cephala,
( o o f a l a ) d o v e li antiqui a f f e r m a n o esser m a z o r c o p i a
d oro che in a l g u n a altra parte. De qui entrano nel m a r
EXPEDIÇÃO DE PEDRO AI.VARES CABRAI. 299

b a r b a r i c o , et poi nel mar de índia et arivano al Coliqut.


Questo è il lor camino, ch'è piú di X V milia m i g l i a ; ma
transversando lo scurterano assai.
De sopra el C a p o de Bona Speranza, verso garbin,
hanno discoperto una terra n u o v a , chiamano la terra de
li p a p a g a ' , per esser li papaga' longi uno brazo et piú,
de v a r i j colori, de li quali hanno visto doy. Judicano
questa terra esser terra ferma, perche corseno per costa
2000 m i a e (sic) piú, n<i mai trovorono fin. Habitano
homeni nudi et formosi. A la lor andata perseno, per
fortuna, 4 nave, dove mandorono a la mina nova dieta,
le qual si judicha, siano perse. L e sete andorono al
Coliqut, dove forono prima ben visti et foli dato una
c a x a per quel signor; dove rimaseno alcune de le nave,
le altre erano in lochi vicíni. Da poi soprazonse zerme
X dei soldan, li quali se sdegnavano che portogalesi
fosseno andati ad torleli lo inviamento, et volevano car-
gar prima. E l fator del re de P o r t o g a l se lamento con
el signor de Coloqut, (sic) et qual, judicano, se inten-
desse con mori, et disse che se gli cargavano, li tolesse
le specie. De che venero a le mane, che tutta la terra
favori a ' m o r i . et corseno a la c a x a designata a'portoga-
lesi, et tagliorono a pezi tutti che erano in terra, per
numero 40, tra li quali el fator dei re, qual se à butato
in aqua pár fuzir. Inteso questo, le altre nave venero et
abrusorono le zerme del soldan, che erano X , et le bom-
barde fecero gran danno a l a terra et brusorono assai
caxe, che el forzo é coperte de p a g l i a . P e r questo rumor
se parti da Coloqut, et forono conduti de la lor g u i d a ,
ch'e uno judeo batizato, ad una altra terra piu oltra,
c h i a m a t a Chucin, (Cochim) de uno altro re, inimico dil
re di Coloqut, el qual li ha fato optima compagnia et
ha m a z o r copia de specie che al Coloqut. Hano c a r g à
ad stiva per precio che me temo d i r l o ; et dicono com-
p r t n o uno canter de canela per un ducato et meno.
Questo signor de Chucin manda soi ambasadori c o m
•224 EXPEDIÇÃO DE

queste n a v e a q u e s t o signor re, e t ctiam o b s t a s i , a ciò


c h e torniano securamente. Nei retorno mori e t q u e l l i d e
Calicut (sic) se misseno in ordene per prenderli, et ar-
marono i5o navilij con i5 milia l i o m e n i ; tamen costoro,
siando chargi, non volseno c o m b a t e r , né q u e l l i li poteva
offender, chè lusitani se messeno a la vela de la borina,
che lore non sano andare. Venendo, arivono in una in-
sula. dove é el corpo di San T h o m á . El signor de quella
ii ha fatto gran charezc et datoli de la reliquie de San
T h o m á ; li pregava volessero tuor specie da luietchele
lolesseno in credenza a l'altro v i a z o ; questi erano za
cargi et non poteva tuor piú. S o n o stati mesi 1 4 sul
viazo, m s nel ritorno solo 4 ; et dicono voler da mo
avanti f a r questo viazo in o o ver 10 mesi al piú. Nei ri-
torno, de 7 nave. le 6 son venule salve, una dete in una
secha, li homeni de le qual son s a l v i : el questa era de
600 bote et c a r g a . Ma ancora non ò arivate qui, salvo
una di bote j o o ; le altre son propinque, per quanto di-
c o n o ; e queste introno la sera di San Zuane. Io me ri-
trovava dal re, el qual me c h i a m ò et diseme, me con-
gratulasse, che le sue nave de Índia erano zonte cariche
de s p e c i e ; et cussi mi congratulai con li debiti modi.
Feze far festa in palazo et leti/ia de campane per tuna
ia t e r r a ; el di sequente feze una procession solenne. Da
poi, iterum atrovandomi con sua magestá, me retorno a
la nave et diseme dovesse scriver a vostra serenità, che
mandi da mo avanti le galie a levar specie de qui, a le
qual f a r i a bona ciera, ei poriano judicar esser in c a x a
s u a ; et che omnino vuol prohibir che al soldan n o n v a d i
s p e c i e ; et voler meter a questo viazo 40 n a v e , d e le qual
algune vadi et algune torni; et demum t i e n e h a v e r la
India al suo commando. Questa nave i n t r a t a , i n p o r t o ,
e la nave e t e l c a r g o de B a r t o l o Fiorentino, el c a r g o de
l a q u a l è p i p e r , c a n t e r a 3oo; canella. cantera 1 2 0 ; l a c h a ,
cantera 6 0 ; benzui, cantera i 5 ; garofalli n o n hanno,
p e r c h è mori g l i h a v e a n o l e v a t i ; n e a n c h e zenzeri,perché
PEDRO ALVARES' CABRAL 235

a Chuch-in, (sic) dove hanno carga non ne hè, ma nasce a


Caliqut (sic); specie minute non hanno di alguna sorte.
D i c o n o haver perso assai zoglie in quel rumor de C h a -
liqut (sic). Non preterirò etiam questo, esser venuti de
qui ambasadori de uno re de Ethiopia, chiamato re
Ubeain, qual à mandato presente a questo re, schiavi et
denti de avuolio et altre cosse, et son de qui za assai.
L i a presso etiam de quelli nasse piper, ma non ò cussi
compito come 1'altro. Praeterea queste nave net suo ri-
torno scontrarono do grosse nave, che erano partite de
la mina nova et andavano verso la India, li qual haveano
gran suma di oro ; et, temendo che costoro non i volesse
pigliar, li offerse i 5 milia dob\e pro primo, che chadauna
vai piú del d u c a t o ; ma questi non hanno voluto tuor
c o s s a a l g u n a ; imo li hanno fato presenti a loro et bona
c o m p a g n i a per poter navegar quelli mari, nec alia.
Data Ulysiponi, die 27 julii i 5 o i .
CARTA HE Ü . MANUEL AOS R E I S CATOI.ICOS

Carta del Rey D. Manuel de Portugal ã los Reyes Ca-


tólicos, dándoles cuenta de todo lo sucedido en el viage
de Pedro Alvaref C.abral por la costa de Africa hasta
el Mar Rojo. ( E x i s t i a en Z a r a g o z a en el a r c h i v o de la
antigua D i p u t a c i o n de A r a g o n , d e s t r u í d o e n l a g u e r r a
de la independent:ia. C o p i a sacada p o r D. J o a q u i n
Traggia.)

Muy altos y m u y excelentes y m u y p o d e r o s o s P r í n c i -


pes S e í í o r e s padre y m a d r e : estos d i a s p a s a d o s , d e s p u e s
que la p r i m e r a n u e v a de la Índia l l e g ó , no esctihí l u e g o
á vuestras S e í í o r i a s las c o s a s de allú, p o r q u e no e r a a u n
venido Pedro A l v a r e z C a b r a l mi c a p i t a n m a y o r de la
f l o t a que allá tenia e n v i a d a ; y d e s p u e s de su 1 l e g a d a
s o b r e s e i en ello, p o r q u e no eran aun v e n i d a s d o s naos
d e su c o m p a n i a , de las c u a l e s la una tenia e n v i a d a á
7.ofala, que es mina de o r o que n u e v a m e n t e se h a l l ó , no
para r e s c a t a r sino s o l a m e n t e p a r a h a c e r v e r d a d e r a in-
f o r m a c i o n de las c o s a s de allá, p o r q u e de dos n a o s que
p a r a ello iban u n a de ellas ce p e r d i ó en la m a r , & o t r a
se a p a r t o de la flota con tiempo f o r t u n o s o , é no f u é l a
d i c h a . Y d e s p u e s de l l e g a d a s las d i c h a s naos é e s t a n d o
p a r a n o t i f i c a r l o todo á V V . S S . . P e r o L o p e z de P a d i l l a
me d i j o que f o l g á b a d e s de s a b e r l a s n u e v a s de c ó m o las
c o s a s de allá s u c e d i e r o n ; las c u a l e s d e c o m o todo su-
m a r i a m e n t e p a s ó s o n estas.
EXPEDIÇÃO DE PEDRO AI.VARES CABRAI. 299

E l dicho mi capitan con trece naos p a r t i ó de L i s b o a


ú nueve de Marzo del ano pasado. En las octavas de la
pascua siguiente llegó á una tierra que nuevamente des-
cubrió, á l a cual puso nombre de S a n t a Cruz, en la c u a l
haiió las gentes desnudas c o m o en ia p r i m e r a inocência,
mansas y p a c í f i c a s ; la cual p a r e c e que nuestro S e n o r
milagrosamente quiso que se hallase, porque es muy
conveniente v necesaria para la navegacion de la India,
porque allí reparo sus navios é tomó a g u a ; y por el
camino grande que tenia por andar no se detuvo para
se informar de las c o s a s de la dicha tierra, solamente
me envio de allí um navio á me notificar como la halló,
e fizo su camino la v i a dei cabo de Buena-Esperanza ;
en el cual g o l f o , antes de llegar á ella, pasci grandes tor-
mentas, en que en uno solo dia se anegaron juntamente
á sua vista cuatro naos de que nó escapo persona algu-
n a ; siendo á este tiempo d e s a p a r e c i d a dél oira nao d e
que hasta a g o r a no he habido noticia, y la en que en él
iba con las otras que quedaron pasaron grande peligro,
é así fué su v i a para aportar al reino de Quiloa, que es
de moros, debajo de c u y o senorío está la dicha mina de
Z o f a l a , porque para ei R e y dél llevaba mis cartas e re-
caudos para con él asentar la paz, y trató acerca dei
rescate é negoeio de la dicha mina. E antes de llegar al
dicho reino halló dos naos con gran suma de oro, las
cuales tomó en su poder, y porque eran dei dicho rey
de Quiloa, faciéndoles mucha honra, las dejó ir. Del
cual Rey fué muy bien recibido, viniendo en persona á
verse con el dicho mi capitan á la m a r , v entro con úl
en su bajel, y le envio presentes, y despues de haber
visto mis cartas y recaudos asentó el trato, y porque
las naos que para la dicha mina iban dirigidas eran d e
las que se perdieron, no se comenzó por entónees allí
ningun rescate porque la mercadería que las otras Ue-
vaban, no era c o n f o r m e á la que para aquella tierra con-
venia. P a r t i ó s e de allí c- fuese á otro reino Melinde,
•224
•224 EXPEDIÇÃO DE

para donde llevaba tambien mis c a r t a s y recaudos para


el Rev dél, que asimismo es m o r o , y tenia fechas buenas
obras á D. V a s c o , que fué el primero allá á descubrir.
el cual Rey asimismo se vió con til en la mar, y le en-
vio tambien presentes y con él (irmó y asentó amistad
e paz, é le dió los pilotos que le convenian para su
viage. L o s cuales reinos son de la m a r B e r m e j a para
a c á : de la parte de la tierra confinam con gentiles, los
cuales gentiles confinan con el Preste J o a n , que ellos
allá llaman Ooavixi, que en su lengua quiere decir fer-
rados, porque de hecho lo son, y se fierran por senal
que son bautizados en agua. E de allí se partió pára
C a l e c u t , que es mas allá setecientas lcguas, la cual ciu-
dad creemos que ya temeis sabida es de gentiles que
adoran muchas cosas v creen que hay un solo Dios, y
de muy gran pueblo, y hay en ella muchos m o r o s que
hasta agora siempre trataron en ella de especería, por-
que ella cs así, como B r u j a s en Elandes. E s t á la princi-
pal de las cosas de la India que de f u e r a viene á ella, v
en ella no hay sino canafistola y gengibre, á la cual
ciudad llegó habiendo cinco meses que era partido de
L i s b o a , y fué dei Rey muy honradamente recibido, vi-
niéndole á hablar á una casa junto i la mar, con todos
sus grandes y mucha otra c o m p a n í a , é allí le dió mis
recaudos y asentó mi paz y concierto, del cual asiento
el dicho Rey mandó facer una c a r t a escrita en pasta de
plata, con su senal de tauxía dorada, por ser así el cos-
tumbre en su tierra en las c o s a s de grande instancia, e
otras cartas escritas en f o j a s de unos árboles que pare-
cen palma5 en que acordadamente escriben, y de estos
árboles y de su fruto se hacen estas c o s a s que se siguen:
azucar, miei, aceite, vino, agua, vinagre, carbon y cuer-
das para navios, é para toda otra c o s a é esteras, de que
hacen algunas velas de naos, é se sirven de ellas en todo
lo al q u e les cumple, y el dicho fruto allende de aquello
q u e de él así se hace es grande mantenimiento suyo.
355
PEDRO AI.VARES CABRAI.

principalmente en l a m a r ; y d e s p u e s dei asiento así


fecho c o n el d i c h o R e y puso mi f a t o r con toda l a c a s a
o r d e n a d a que p a r a la d i c h a f a t o r i a e n v i a b a en tierra, 6
c o m e n z ó l u e g o de t r a t a r sus m e r c a d e r í a s , é de c a r g a r
'as naos de especo n a ; y en este mediu t i e í a p o envio el
R e y de C a l e c u t á d e c i r á mi c a p i t a u que u n a nao m u v
g r a n d e é m u y a r m a d a de otro rey, su e u e m i g o , le h a b i a
enviado á d e c i r que p a s a b a p o r ante su puerto sin n i n -
gun m i e d o s u y o , ti que v a o t r a s veces le tenia e n o j a d o
que le r o g a b a m u c h o que le m a n . l a s e t o m a r , e n c a r e -
ciéndosels c o m o c o s a que t o c a b a m u c h o á su estado é
honra. Y el d i c h o mi e a p i t a n v i e n d o el tratamiento que
j| y el d i c h o f a t o r c o m e n z a b a n á r e c i b i r dei dicho R e y
p o r m a s c o n f i r m a r mi paz e a m i s t a d , a c o r d o de lo f a c e r
y p o r le m o s t r a r la f u e r z a de n u e s t r a gente en n a v i o s y
irtillería, envio s o l a m e n t e á ella el m a s pequeno n a v i o
que tenia con una l o m b a r d a g r u e s a é alcanzóla d e n t r o
on el p u e r t o de o t r o R e y su v e c i n o , é á vista dei & de
ioda su gente la t o m o v la trujo C a l e c u t con c u a t r o -
j i e n t o s h o m b r e s a r t e r o s é alguna a r t i l l e r i a é con siete
d e f a n t e s ensenados de g u e r r a dentro de ella que a l l á
valdrian 3o5í> mil c r u z a d o s , p o r q u e p o r uno de ellos s o l o
Jaban 5-jp c r u z a d o s , é con otra m e r c a d e r í a de e s p e c i e -
ría. la cu dl n a o le envio á p r e s e n l a r é se la d i ó c o n todo
•o q u e en ella v é n i a , c él la v i n o á ver á la r i b e r a , p o r
-.er a ellos m u y g r a n d e e s p a n t o tan pequno n a v i o c o n
t a n p o ç o s h o m b r e s t o m a r una t a m a í í a n a o , i con t a n t a
gente, é á recebir el recaudo que el d i c h o eapitan s o b r e
-Ha le e n v i a b a , v i n i e n d o c o n todo su e s t a d o é fiesta. Y
estando así en esta c o n c o r d i a e a m i s t a d siendo y a d o s
naos de especiería, los m o r o s , p r i n c i p a l m e n t e l o s de
Vleca que allí e s t a n estantes, p o r v e r el gran d a n o q u e
se les s e g u i a , b u s c a b a n todos lo m o d o s que podian p a r a
poner d i s c ó r d i a entre m i f a t o r y el r e y , y pusieron la
d e r r a en a l b o r o t o p o r e s t o r b a r el t r a t o ; y p o r q u e t o d a s
las m e r c a d e r í a s e s t a b a n en m a n o s de los m o r o s , e s c o n -
•224 EXPEDIÇÃO DE

dianlae y enviábanlas secretamente para otras partes ;


y sabiendo esto el dicho capitan envio á decir al rey de
Calecut quejándose y pidiéndole que cumpliese lo que
con él tenia asentado, que era que dentro de veinte dias
se le d a n a m c r c a d c n a de que c a r g a s c las dichas nãos u
que hasta ser ellas c a r g a d a s no d a r i a lugar que ningu-
nas otras cargasen, y el rex le respondió que toda la
mercadería que hubiese en la tierra le mandaria luego
dar, é que si alguna se c a r g a s e en su puerto sin saberlo
sus oficiales, que él le d a b a lugar é poder p a r a que la
detuviese hasta que él enviase los dichos sus oficiales
para que en ello hubiesen de p r o v e e r para se la entre-
g a r ; é en sabiendo esto los m o r o s acordaron, con grande
diligencia, de c a r g a r una nao publicamente, dando aún
m a y o r diligencia en esconder la m e r c a d e r í a de lo que
ántes solian, y esto para d a r c a u s a á que él escândalo
se comenzase, porque son poderosos y la ciudad es de
muchas naciones y de extendida p o b l a c i o n , y en que el
rey mal puede proveer á los alborotos del pueblo. E
viendo mi fator como la nao se c a r g a b a , requirió al c a -
pitan que la detuviese c o m o con el rey tenia asentado,
y el dicho capitan, recelando el escândalo, dudó de lo
hacer, v el dicho fator torno á le requerir que todavia
la detuviese, diciendo que los principales de los m o r o s .
é así algunos gentiles, le decian que si la dicha nao no
era detenida, en ninguna manera p o d r i a c a r g a r sus naos,
y segun lo que se siguiò, parecece que lo hacian á fin
de dar causa al dicho escândalo. Y mi capitan despues
de lo dudar muchas veces, recelando lo que se seguió,
envio á decir á la gente de aquella nao, por el poder
que p a r a ello tenia, que 110 se pártiese, y ellos no lo
quisieron hacer, y entònces fué necesario de la m a n d a r
retener, y mando á sus bajeles que la metiesen en den-
tro dei puerto donde estuviese segura de no poder par-
tir sin su placer. Y luego que esto vieron los m o r o s ,
c o m o era el fin que ellos deseaban, en aquel m i s m o ins
PEDRO ALVARES CABRAL 321

tanie vinieron luego con t c d o e l otro pueblo, que y a


iintes teniau alborotado sobre el dicho fator y c a s a c o m -
ò a t i é n d o l o ; y él con esos poços que consigo tenia s e
defendió por algun espacio, y se salió de la c a s a vinién-
dose recogiendo i la mar. Y el mi capitan, que entónces
estaba doliente, luego que le fué dicho del alboroto, que
habia en tierra, envio todos sus bajeles á le socorrer, y
puesto que la mar estaba muv brava, todavia recogió
alguna parte de la gente, mataron al fator, y con él se
perdieron cincuenta personas entre muertos y cativos, v
esto asi fecho, viendo el dicho capitan c o m o el rey i
esto no acudia, e veiendo que no le enviaba ningun r e -
caudo, ántes se proveta de algunos aparejos recelando
guerra, y que asimismo estaba apoderado de mi hacienda
que quedo en tierra, sobreseyendo un dia por ver si se
hacia enmienda del dicho caso, cuando vió que ningun
recaudo le enviaba, temiéndose que armase gruesamente,
como despues tizo, para que le pudiese impedir l a ven-
ganza que en aquel tiempo podia tomar, acordo de l o
poner luego en obra, é tomóle diez naos grttesas que en
el puerto estaban, y mandou poner á espada todd la
gente que en ellas habia, salvo alguna que quedo escon-
dida, la cual despues no quiso matar, y rne la trujo c a -
tiva, y mar.dó quemar las dichas naos delante del dicho
puerto, que fué al dicho rey é á la gente de tierra grande
espanto, en las euales estaban tres elefantes que allt
murieron, y en esto gasto todo aquel dia, y luego que
fué noche se fué con todas las naos, é se puso Io mas
en tierra que pudo al luengo la ciudad, y en amaneciendo
le comenzó ú tirar con artillería. é le tirou hasta l a
noche principalmente á las c a s a s dei rey, en la cual
le fizo mucho dano, é le matei mucha gente, c o m o
después supo, é le mato un horobre principal q u e
estaba con él, por lo cual él se salió luego fuera
de la ciudad por parecerle que en toda no estaba segu-
ro. D e allí fizo vela, y se fué á otro puerto s u y o q u e sc

21
•224 E X P E D I Ç Ã O DE
322

l l a m a Fandarene. en que tambien le fizo enojo c o n ar-


tilleria, é le mató gente, é de alii fizo vela la v , a del
reino C h o c h i m , que es a q u e l l a parte donde v,ene l a es-
„ p , i , r i n . treinta l e s u a s mas allá de C a l e c u t , y en el Ca-
mino halló otras dos naos de C a l e c u t , que tambten tomo
é mando quemar, é llegado Ú C h o c h i m , despues de ha-
ber hecho saber al rey lo que habia pasado en Calecut,
fué de el muy bien recibido, é asentó con 61 su trato de
la manera que lo tenia asentado en C a l e c u t , é puso
luego mi fator é ciertos hombres con él en tierra, para
lo cual le dieron rehenes de hombres honrados que le
trnjiese, v le c a r g a r o n las naos en diez y seis dias, y la
mercader'ia le traian en sus bateles á ellas c o n tanto
m a s amor é seguridad que parece que Nuestro Senor
permitió el escândalo de C a l e c u t , porque se acertase
este otro asiento que es de mucho mas p r o v e c h o é se-
g u r i d a d , porque es mucho mejor puerto, é de mucha
m a s mercaderia. porque cuasi toda la m e r c a d e n a que
v a A C a l e c u t mucha de ella hav en aquella tierra, y las
otras p r i m e m van alli que no á C a l e c u t : en la c u a l c i u -
dad de Cuthin hay muchas naos, y supo q u e d o s merca-
deres solamente teniah cincuenta naos. Kn aquel reino
hav mucho cristianos v e r d a d e r o s de la conversion de
Santo T o m á s , y los sacerdotes de ellos siguen la v.dn
de los apostoles con mucha estrechura, no temendo
propio sino lo que les dan de limosnas. y guardan ente-
ramente castidad, y tienen Iglesias en que dicen misas, e
consagran pan zenceno é vino que hacen de p a s a s s e c a s
con agua. porque no pueden hacer otro : en las Iglesias
no tienen imageries sino la cruz, é todos los cristianos
traen los vestidos apostólicos con sus barbas y cabellos
sin los nunca hacer. Y alli hallo cierta noticia donde
y a c e el cuerpo de Santo T o m á s que es c e n t o y cin-
cuenta léguas de alli en la costa de la m a r , en una c,u-
dad que se llama Mailapur, de poca poblacion, y me
trujo tierra de su sepultura, y todos los cristianos, e as,
PEDRO ALVARES CABRAL 3l I

los moros 0 gentiles por los grandes milagros que hace


v a n á su casa en romeria, y asi nos trujo dos cristianos,
los cuales vinieron por su placer é con licencia de su
perlado para que los enviasemos á R o m a é Hierusalem,
e viesen ias c o s a s de ia igiesia de a c á , porque tienen
que son mejor regidas por ser ordenadas por San Pedro,
que ellos creen que fué la cabeza de los apostoles, por
ser ellos informados de ellas. Y tambien supe nuevas
ciertas de grandes gentes de cristianos, que son allende
de aquel reino de C h o c h i m , los cuales vienen en rome-
ria á la dicha c a s a de S a n t o T o m á s , y tienen reyes muy
grandes, los cuales obedecen á uno solo v son hombres
blancos y de cabellos loros, é habidos por fuertes, ú
llamase la tierra Malchima, de donde vienen las porce-
lanas é asmisle é âmbar e ligno aloe, que traen dei rio
G a n j e , que es acuende de ellos, y de las porcelanas hay
v a s o s tan finos que uno solo vale hallá cien cruzados.
Y estando en este reino de Chochim con el trato ya
asentado y las naos cargadas, le vino recaudo dei rei de
C a n a n o r é dei rei de C o l u m , que son alli comarcanos,
requiricmdole que se pasase á ellos porque le harian el
trato mas á su provecho, v por tener y a el asiento fecho
se escuso de ir. Kn este tiempo. estando para partir de
C h o c h i m , le envio el mismo rey á deçir como una ar-
m a d a gruesa de Calecut vénia sobre el, en que venian
hasta quince mil hombres, con la cual á mi capitan no
le pareció bien de pelear por tener sus naos cargadas,
y tener poca gente, y 110 le pareció tiempo ni necesidad
•de aventurar por tener receio que le matarian ó heri-
riari alguna delia por largueza del camino que tenia de
andar, que eran cuatro mil léguas de a q u i ; pero fízose
á la vela con ellas no dejando su camino, y ellos no
osando de se a l a r g a r á la mar se tornaron recelando de
ir sobre ellos, V de alli fizo su camino por el reino de
C a n a n o r uno de aquellos reyes que lo mandaron reque-
rir, é pasando luego que de tierra hubieron vista dél le
360 •224 EXPEDIÇÃO DE

manaó oiro recaudo, rogàndole que pasase por alli


p o r q u e q u e r i a e n v i a r con él a mi s u m e n s a g e r o , el c u a l
m e t r u j o , y en un s o l o d i a que alli e s t u v o le m a n d o t r a e r
tanta cspeciería á las n a o s q u e las c a r g a r a del todo si
vinieran v a c i a s , y se la d a b a n que la trujese de g r a c i a
en presente á mi p o r c o b r a r m e a m i s t a d , é asi v i n i e r o n
i o d o s sus g r a n d e s á m i c a p i t a n , d i c i e n d o de parte dei
rey que p o r alli v e r i a que s e r i a alli de o t r a m a n e r a t r a -
tado que foé en C a l e c u t , que le a y u d a r i a n é i r i a él en
p e r s o n a p o r tierra, é t o d a su a r m a d a p o r m a r : y d e s -
pues de se lo m u c h o a g r a d e c e r de mi p a r t e , se d e s p i d i ó
dél diciendole que en esta o t r a a r m a d a que l u e g o h a b i a
de e n v i a r , le e n v i a r i a mi r e s p u e s t a de todo. E se v i n o
p o r su c a m i n o , y en el medio de aquci t r a v e s tomei una
muy grande nao c a r g a d a de m e r c a d e r i a s , p a r e c i é n d o l é
que s e r i a de las de M e c a . que entónees h a b i a n de v e n i r
de C a l e c u t , c b a i l a n d o que l a diclia n ã o e r a del rey de
C o b a i a , la dejii, e n v i a n d o p o r c i l a á d e c i r al d i c h o rev
que ia d e j a b a p o r q u e no iba a f a c e r g u e r r a á n e n g u n o ,
s o l a m e n t e la tenia f e c h a á a q u e l l o s que le f a l t a r o n de
la v e r d a d que con él en mi n o m b r e tenian a s e n t a d a : v
s i g u i e n d o mas a d e l a n l e se le p e r d i ó una de las n a o s que
traia c a r g a d a p o r q u e de noche fue a d a r en t i e r r a , v
s a l v ó s e la gente, y m a n d o q u e m a r la nao p o r q u e no se
p o d i a s a c a r s a l v a , y d e s t a parado. •• e n v i o el n a v i o á
h a b e r i i u c v i s de la m i n a de Z o f a l a . c o m o y a d e t r á s está
d i c h o , el cual es ya v e n i d o , y me trujo i n f o r m a c i o n c i e r t a
de allá v asi dei t r a t o y m e r c a d e r i a de la t i e r r a , y de la
gran cantidad dei o r o que alli h a v , y alli a l l ó n u e v a s
que entre los h o m b r e s que traen el o r o alli a Cuestas,
vienen muchos que tienen c u a t r o o j o s , dos d e l a n t e y d o s
d e t r á s , y son h o m b r e s p e q u e n o s d e c u e r p o é b e r m e j o s ,
v diz que son crueles é que c o m e n los h o m b r e s con
([uien tienen g u e r r a , y que las v a c a s del r e y traen c o l -
l a r e s de o r o g r u e s o s al pescuezo. V c e r c a d e esta m i n a
hav dos islãs en que cogen m u c h o a l j ô f a r é â m b a r . Y
•i-i'y PEdRO ALVARES CABRAL

de alii se vino ei dicho mi capitai), y llegó á L i s b o a a


tierapo que hacia diez y seis meses del dia que delia
partió, y bendito sea Nucstro Setior en todo este vi age
no le murieron de dolência mas de tres hombres, é to-
dos los otros vicnen sanos í en buena disposicion.
A g o r a nos vino cierto recaudo como uno de los navios
que iba para Z o f a l a que tenia por perdido, viene é sera
un dia de estos aqui, cl cua! dicen que entro en la m a r
B e r m c j a , v que trae delia alguna plata, é as! alguna in-
formacion de la c o s a s de allá, puesto que y a de la dicha
mar B e r m e j a estAbamos largamente informados por el
dicho mi capitan, y por muchas vias fui de e l l o s a b i d o r .
I.as otras particularidades deste negocio a Pero L o p e z
las remito, que á todo fué acá presente. Muy altos y
muy excelentes e muy poderosos príncipes senores P a -
dre é Madre. Nuestro Setíor haya vuestra vida y R e a l
E s t a d o en su santa guarda. Escrita en Santnren á veinte
é nueve de Julio. EI. R E Y ,
ÍNDICE

Pie.
DEDICATÓRIA
1
L i s b o a no ano de iSoo
A populaçfio e a vida da cidade y
Influência das primeiras novas do Oriente sôbre
a n a ç ã o e o rei '9
E x a m e d a s fontes e primeiros textos sóbre a ex-
pedição 41
- D i s t r i b u i ç ã o dos comandos. Figuras principais da
51
armada
- G e n e a l o g i a e biografia de P e d r o Alvares G a b r a l . 5;
, D a d o s genealógicos e biográficos sobre os capi-
tães e figuras principais da armada 87
A s s o c i a d o s comerciais do rei na expedição. Os '
Marchioni de F l o r e n ç a "7
«. Duarte P a c h e c o e as anteriores viagens ao conti-
nente americano '44
^ O r g a n i z a ç ã o e objectivo da expedição >73
A p a r t i d a da armada do Restelo >9'
a 0 í
Conclusão
DOCUMENTOS

Pig-
Carta de capitania a Pedro Alvares Gouveia
Fragmentos tic instruções a Pedro Alvares Cabra] 215
C a r t a de P e r o Vaz de Oaininha -JJ?
C a r t a d e Mestre J o ã o >57
Relação do piloto anónimo >60
C a r t a de A m é r i c o Vespúcio 5 q8

Carta de L a Faitada 30y


C a r t a de Pisani 3,,
C a r t a de O. Manuel a o , R^is Católicos if,

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