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ORgANIzAçÃO DE

JORgE SEMEDO DE MATOS

António Estácio dos Reis


Marinheiro por vocação e historiador com devoção

Estudos de Homenagem

COMISSÃO CULTURAL DE MARINHA


LISbOA 2012
O regimento dos capitães da
armada de D. António de Ataíde
Francisco Contente Domingues1

Em homenagem a Estácio dos Reis

D. António de Ataíde (1567-1647), 5º conde da Castanheira e 1º de Castro Daire,


teve uma extensa carreira militar e política que se iniciou em 1582, quando embarcou
na armada do marquês de Santa Cruz que se dirigiu aos Açores a combater o Prior
do Crato, e veio a terminar apenas com a queda dos Filipes, que serviu em vários
cargos, nomeadamente no governo do reino de Portugal, o que gerou o seu afasta-
mento da vida pública depois de 16402. No seu perfil biográfico há dois aspectos
que interessa destacar nesta oportunidade: as responsabilidades de natureza mili-
tar naval que assumiu, e o precioso conjunto de manuscritos que reuniu, contendo
materiais da maior importância para o conhecimento da história marítima ibérica
durante todo este longo período3.
Contrariamente ao que era habitual, D. António foi um comandante de arma-
das que conhecia a arte de navegar, tendo inclusivé assegurado pelo menos uma

1
Professor do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e vice-Presidente
da Academia de Marinha.
2
Para a biografia de D. António v. Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro, “António de Ataíde,
capitão-mor da armada da índia de 1611”, in A Abertura do Mundo. Estudos de História dos Descobrimentos
Europeus em Homenagem a Luís de Albuquerque, org. de Francisco Contente Domingues e Luís Filipe bar-
reto, vol. II, Lisboa, Presença, 1987, pp. 51-72.
3
Sobre a carreira e a biblioteca naval de D. António v. Charles R. boxer, “D. António de Ataíde, capitão geral
da Armada de Portugal”, Arquivo Histórico da Marinha, vol. I, n.° 1, 1934, pp. 189-200; idem, “The Naval
and Colonial Papers of D. António de Ataíde”, Harvard Library Bulletin, vol. V, n. 1, 1951, pp. 24-50; e Fran-
cisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa
dos séculos xvi e xvii, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 185-202. Neste artigo
sumariam-se os dados conhecidos sobre D. António que consideramos relevantes na circunstância a partir
dos trabalhos citados nas notas anteriores.

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O regimento dos capitães da armada de D. António de Ataíde

vez a pilotagem de uma embarcação, a nau capitânea que comandava na viagem de


retorno da Índia em 1612: apesar de pilotada por um dos maiores profissionais do
ofício ao tempo, Gaspar Ferreira Reimão, um desentendimento com o capitão-mor
levou este último a pilotar o navio e a escrever o diário no retorno a Lisboa – um
acontecimento excepcional na história da Carreira. Como também, para a altura, o
facto da armada que zarpou para o Oriente em 1611 ter feito a viagem de ida e volta
sem problema de maior.
D. António comandou ainda várias armadas da costa, sendo nesta qualidade
que se viu defrontado com uma situação que viria a pôr termo à sua carreira naval
(não lhe são conhecidos postos de comando posteriormente), muito embora tivesse
podido argumentar com sucesso que não era sua a responsabilidade do sucedido. O
caso foi que em 1622 a nau “Nossa Senhora da Conceição” foi atacada por dezassete
navios argelinos junto à costa portuguesa, da qual se aproximava no termo da sua
viagem de regresso da Índia, e após dois dias de peleja explodiu, perdendo-se um dos
mais ricos transportes que alguma vez tinham vindo do Oriente, segundo se disse na
altura. Dos acontecimentos e das provações dos viajantes capturados, escravizados
e levados para Argel, ficou um longo testemunho escrito por João de Carvalho Mas-
carenhas4 e depois integrado no que ficou conhecido por pseudo-terceiro volume
da História Trágico-Marítima.
A nau deveria ter encontrado e sido defendida pela armada da costa, cujo pro-
pósito era precisamente esse5. O facto disso não ter sucedido levou ao encarcera-
mento imediato do seu comandante, D. António, que argumentou haver indícios de
a sua culpabilização ser assacável a uma perseguição pessoal, aém de que não tinha
podido socorrer o navio da Índia por as condições de navegação não lho permitirem;
posto o que foi libertado e feito conde de Castro Daire6.
A experiência de D. António, e é crível que a sua condição de nascimento aliada
ao conhecimento das coisas marítimas (situação que, repita-se, não era vulgar),

4
João Carvalho Mascarenhas, Memorável Relaçam da Perda da Nao Conceiçam Que os Turcos queymàrão à
vista da barra de Lisboa; vários successos das pessoas, que nella cativarão. E descripção nova da Cidade
de Argel, & de seu governo; & cousas muy notáveis acontecidas nestes últimos annos de 1621 até 1626,
Em Lisboa, Na Officina de António Alvares, Anno de 1627.
5
Sobre a armada da costa ver-se-á em primeiro lugar Artur Teodoro de Matos, A Armada das Ilhas e a Armada
da Costa no Século xvi (Novos elementos para o seu estudo), Lisboa, Academia de Marinha, 1990.
6
Tratei a questão mais desenvolvidamente no livro citado na nota 3. A defesa de D. António, conjuntamente
com outros documentos neste processo, será publicada muito em breve.

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levaram a que mais de uma vez tivesse sido consultado a propósito de problemas
de navegação: como de uma forma geral os testemunhos dessas situações ficaram
guardados nos seus papéis, a par de muitos outros que foi coligindo, o espólio que
deixou, posteriormente disperso mas reconstituído em parte por Charles boxer, é
um elemento precioso para o conhecimento da realidade marítima e naval no perí-
odo em que nela participou.
Assim, é por esses testemunhos documentais que ficamos a saber que D. António
foi incumbido de anotar o regimento do capitão-mor da Carreira da Índia, durante o
seu comando da armada de 1611, o que sugere a existência de um documento padrão
que seria ajustado caso a caso. Sabemos também que foi ouvido muitos anos depois,
quando uma “junta técnica” discutiu se as naus da Índia deviam ter três ou quatro
cobertas. Não é impossível que o regimento dado aos capitães da armada tenha um
carácter experimental, por assim dizer, no sentido em que um dos seus artigos é fran-
camente inusual: no nº 63, D. António dá instruções para que os capitães dos navios
discutam com os seus tripulantes mais experientes o que deve ser mudado no regi-
mento da armada, dando disso conta depois ao seu capitão-mor; uma situação que faz
mais sentido se pensada em função do apuramento de um articulado para servir no
futuro, e não tanto para a resolução de qualquer mal funcionamento circunstancial.
Será esta circunstância que confere ao documento em presença um carácter
excepcional, para além de ser um contributo significativo para o conhecimento do
funcionamento das armadas da costa e do perfil do seu autor. Existem outros simi-
lares, embora em reduzido número, mas nenhum com os detalhes do presente7.
Por fim, resta notar que havendo duas possibilidades distintas quanto aos des-
tinatários deste regimento, só uma é compatível com o articulado. Refiro-me aos
dois tipos de comando exercidos por D. António: à partida seria mais facilmente
expectável que este regimento que o capitão-mor entrega aos capitães dos navios
da sua armada fosse para a navegação da Índia, e portanto para a armada de 1611.
Alguns das instruções podem sugeri-lo, como é o caso, em primeiro lugar, do rigor
das normas relativas à navegação em conserva, um dos problemas principais na
Carreira da Índia, em relação ao qual havia uma atenção particular: tão particular

7
Agradeço ao Dr. José Virgílio Pissarra a indicação de que na documentação do Conde da Torre existem
textos similares, embora o que mais se aproxima deste esteja incompleto: Cartas do 1º Conde da Torre, ed.
João Paulo Salvado e Susana Münch Miranda, 4 vols., Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses – Centro de História e Documentação Diplomática, 2001: vol. II, docs. 8
e 31 a 34; vol. IV, doc. 72. Veja-se ainda o próprio códice das Coriosidades.

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O regimento dos capitães da armada de D. António de Ataíde

que a norma impunha que o piloto de uma nau que chegasse à Índia desirmanada
do resto da armada fosse preso de imediato. Uma situação que se compreende face
às ameaças que pendiam sobre os navios da Carreira, desde que os concorrentes
europeus tinham chegado ao Oriente, acreditam-se que a navegação em conserva,
como diziam os documentos, era a melhor solução para a segurança da navegação.
Mas muitos outros aspectos indiciam que só pode tratar-se do regimento para
os navios da armada da costa. Entre outros, e apenas a título de exemplo: no nº 6 um
bombardeiro de guarda com o “botafogo” aceso indicia um estado de prontidão para
a guerra que é totalmente distinto da navegação costumeira na rota do Cabo; no nº
7 o mesmo se pode dizer do exercício e estado de prontidão diário dos soldados; e
no nº 24, a frase “Qualquer navio que encontrar nau da Índia” mostra sem margem
para dúvidas que este regimento não era para uma armada da Índia, mas para a que
a havia de guardar.
Quanto ao resto, cumpre destacar o cuidado dos preceitos relativos ao apresta-
mento de navios e tripulações para a guerra naval, como seria de esperar, mas não
deixa de constituir por isso um testemunho precioso para o nosso conhecimento de
como as armadas se preparavam para a iminência do combate.
O presente regimento encontra-se nas Coriosidades de Gonçallo de Sousa, um das
mais preciosas colectâneas documentais da primeira metade do século xvii no que à
matéria marítima e naval diz respeito8. Subsiste uma outra versão num dos códices
que foi outrora pertença de D. António, e que hoje se guarda na Houghton Library da
Universidade de Harvard9. Sendo ambas cópias, a maior clareza da primeira levou a
optar por ela na fixação do texto que se segue, no qual houve uma intervenção limi-
tada em relação à grafia das palavras e da pontuação.

8
Sobre as Coriosidades v. Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na
arquitectura naval portuguesa dos séculos xvi e xvii, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa,
2004, pp. 202-207.
9
É um conjunto de três códices que têm a cota Ms. Port. 4794.

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Regimento dado pello general Dom Antonio de Ataide aos Capitães da armada

Dom Antonio de Ataide do conselho de sua Majestade e seu gentil


homem da boca capitão general das armadas da Coroa de portugal
senhor de crasto dayro, Alcaide mor de Guimarais.
1. Todos os capitães, officiais, gente de guerra que nesta armada de sua
Majestade que Deos conserue e de vistoria comprirão pontualmente tudo o
que se contem no Regimento seguinte.

2. Quando a capitaina estiuer em qualquer porto e disparar a péssa de leua,


todos se aperceberão de maneira que em tocando a trombeta o sigão, sem
perder tempo.

3. Como sairmos da barra logo ao outro dia cada Capitão faça alardo dos officiais,
gente do mar e guerra, e da quantidade dos mantimentos cada hum por seu
nome, péssas de artilharia, pellouros de ferro, pees de cabra, mosquetes,
arcabuzes, pellouros pera elles, murrão, piques e poluora que leua em seu
nauio, e de tudo me mandará hum Rol assinado por elle e assi me mandará
os nomes das pessoas a que tiuer [fl. 49v] repartidas as capitanias da vigia,
poluora, e escutilha, e mais officiais e lugares do nauio.

4. O condestable logo em saindo a armada repartirá a cada bombardeiro as


péssas que lhe couberem, e junto a cada pessa estarão as balas de sua boca,
e os artilheiros farão logo cartuxos para cada péssa conforme ao pezo da
poluora que ouuerem de leuar, e com o nome escrito da poluora que leuão
para não auer engano nem erro, e os cartuxos se meterão em barris de
maneira que em hum barril não haja cartuxo de numeros differentes, senão
cada barril de hum numero e logo se fundem os barris, e se lhe ponhão nas
cabeças os mesmos numeros.

5. Sobre a portinhola de cada péssa se porá o numero de quanto tira de bala a


péssa que alli estaa, porque o artilheiro que vier com cartuxos ou bálas saiba o
que ha de dar.

6. Estara sempre de guarda na artilharia hum artilheiro de dia e de noite com


hum botafogo aceso.

7. Entrarão de guarda todos os dias, todos os soldados para que os bisonhos


aprendão dos exercitados ate serem destros e repartir se a gente a que tocar a
guarda das vinte e quatro horas que se seguem.

[fl. 50]

8. Os capitães de vigias serão obrigados quando renderem os quartos entregar


o forol da capitaina ao sucessor sob pena que se o nauio se derrotar será por
culpa de quem não entregar o forol, de que logo os capitães farão auto para
sua descarga.

9. Auera huma pessoa de muita confiança á qual o Capitão entregue huma das
chaues da escotilha, e quando se abrir pipa de vinho ou de aseite se lhe deitará
vara e tudo será diante do despenseiro e escriuão, o qual fará logo assento em
seu liuro do que se achar na tal pipa; e achando algum barril de mantimento
danado se fará assento disso no liuro do escriuão e se tornará a fundar para
se tornar a entregar no almasem assi danado, saluo se a corrupção for tal que
possa danar aos outros mantimentos, ou o seu cheiro á saude da gente.

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10. Não se dara ração a pessoa sem primeiro constar ao Capitão que a tal pessoa
se confessou poucos dias antes de se embarcar, ou depois de embarcado.

11. Nenhum soldado nem homem de mar baxará á parte onde estiuerem
repartidos os mantimentos, e os dispenseiros repartirão conforme ao seu
regimento, e assi o faraa cumprir o capitão da escotilha e escriuão da nao que
assistem sempre ao dar das reções.

[fl. 50v]

12. E não se consentirá que pessoa alguma tenha reções para se auerem de
leuar a terra, nem se paguem reções por junto a pessoa alguma, mas vanse
dando a todos igualmente, de modo que quando as recebão huns a recebão
todos, e quem as assi não for recebendo perde las ha, e quand [sic] surgirmos
a inuernar, todos os mantimentos que sobejarem dos que el rey mandou
meter hão de ficar debaxo da escotilha para se tornarem ao almasem de sua
Majestade, sob pena que quem o contrario fizer será castigado como por furto
da fazenda del rey.

13. Nenhuma pessoa de qualquer qualidade que seja poderá trazer faca ou daga
ou qualquer outra arma offenciua sob pena de perdimento della e de dous
cruzados applicados para missas do sancto a que o capitão for mais deuoto:
não se compreende neste capitolo marinheiros e bombardeiros que por razão
de seus officios he necessario trazerem facas somente.

14. Qualquer pessoa que afrontar outra com palauras ou obras seja logo presa
com grande seguridade e o capitão me auisará para se dar a pena que merecer,
aduertindo que quem [fl. 51] arrancar no nauio qualquer arma será degradado
dous annos para galees, e sendo nobre será degradado quatro annos para
Africa os quais irão cumprir da prisão.

15. Nenhm nauio passe diante da capitaina de dia nem de noyte sem ordem
particular, e tenhão todos grande cuidado como vellejão saluo quando formos
dando caça.

16. Cada dia a tarde de gilavento cheguem a tomar nome da Capitaina e a saber
se ha cousa de nouo que se lhes ordene, e não se embarassem huns nauios
com outros pello grande inconueniente que he desaparelhar se e se for caso
forçoso não poderão tomar nome e algun dia da semana usarão no tal dia do
nome que lhes tocar conforme a ordem seguinte.

Domino são francisco


Segunda feira são João
Terça feira são gregorio
Quarta feira sancta Magdalena
Quinta feira são Pedro
Sexta feira sancta Luzia
Sabado santo Antonio

17. Se algum nauio deixar de vir todas as tardes a tomar nome será o pilloto
grauemente castigado e o capitão lea logo este capitolo ao Pilloto.

[fl. 51v]

18. Cada nauio leuará sempre de dia gente na gauia para descubrir o mar.

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19. Toda a pessoa de qualquer qualidade que seja que se amutinar, ou em


desobediencia do capitão, ou em não enuistir com o inimigo ou tomar alguma
cousa ao nauio que for examinar se he bom ou mao titolo morrerá por isso.

20 os fogõees se acenderão pela manhaã depois de rendidas as guardas da lua


e se apagarão tanto que se chamar ao quartinho que he em se pondo o sol e
enquanto estiuerem acesos estará nelles hum soldado de pósta; e quando se
ouuer de repartir a poluora e no tempo da pelleja se apagarão primeiro os
fogões.

21. Nunqua se acenderá luz alguma tirando a necessaria para os lampiões, e


quando alguma luz for necessaria irá em laterna fechada com hum cadeado
cuja chaue ficará na mão do capitão do fogo: e se algua pessoa abrir a tal
lanterna com chaue falsa, sendo homem do mar ou soldado de paga receberá
logo por isso tres tratos de agoa, e se for official ou criado del Rey será passado
a outro nauio com o castigo que parecer ao general conforme a circunstancia
da culpa.

[fl. 52]

22. Cada semana duas vezes terá o guardião de mandar varrer e lauar toda a
cuberta da artilharia de bordo a bordo e de popa a proa bollindo para isso
com todo o fato que ouuer na cuberta a qual regará algumas vezes com
vinagre, porque he sem duuida ser a principal causa da doença dos nauios a
immundicia delles.

23. Ter se á grande cuidado com a botica de que terá a chaue huma pessoa muito
confidente para que o Cyrurgião não tyre cousa alguma senão quando for
necessario.

24. Qualquer nauio que encontrar nao da India ou seja em companhia da capitaina
da armada, ou apartada della não botará batel fora, nem consentira que o batel
da nao chegue a seu bordo, nem receba da nao cousa alguma sob pena que
será por isso grauemente castigado.

25. Manda sua Majestade por expressa ordem que se não consinta nos nauios
camarotes alguns nas cubertas da artilharia nem debaxo dellas sob pena que
será muito grauemente castigado quem o contrario fizer.

26. A Praça de armas, ou rancho de sancta barbora e toda a outra parte em que
ouuer de jugar a artilharia estarão sempre desembaraçados, não esperando
para a ocasião averem-nas de fazer lestes.

[fl. 52v]

27. Tanto que o nauio que for dando caça amainar não entrará ninguem dentro
delle e lhe mandarão desembarcar o mestre e o pilloto, os quais virão logo á
capitaina, vindo entretanto o tal nauio a gilauento de quem o trouxer.

28. Não se atirará a nauio inimigo pessas perdidas, nem se disparem algumas
senão quando conhecidamente se entender que farão effeito.

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O regimento dos capitães da armada de D. António de Ataíde

29. Quando o nauio se aperseber para pellejar, auerá tynas de ágoa, e vinagre no
conues e na cuberta da artilharia para refrescar a artilharia e acudir ao fogo
e auera mais outra tyna com muitos furos á roda com dous palmos dagoa no
fundo, a qual seruirá para quando na pelleja faltarem murrões acesos os irem
alli buscar e auerá dous soldados de posta nesta tyna os quais vão prouendo
os murrões na tyna para que não faltem, e auerá monetas e vellas velhas e
mantas molhadas para defensa do fogo que se custuma lançar.

30. Tomar se ão boças nas entenas quando quizerem pellejar.

31. O contramestre terá a seu cargo o arpeo sinalando lhe dous soldados de muita
confiança que assistão para isso com o contramestre.

[fl. 53]

32. Auera prestes quantidade de area para se ir lançando nas cubertas para que se
não resuale no tempo da pelleja.

33. Os calafates estem prestes com balpranchadas, estopares e tudo o necessario


para tomar qualquer agoa, e os carpinteiros com machados taboas e pregos.

34. Nas gaueas auera selhas com areal nellas as panellas de poluora que se
ouuerem de lançar no nauio inimigo encomendadas nos marinheiros que
ouuer de mais confiança.

35. Estarão repartidos os piques e meios piques nas partes que se ouuer de usar
delles e para isso estarão encerrados hum terço de ferro para baxo para que se
o inimigo lançar mão delles não possa pegar.

36. Quando ouuer pelleja recolher se ão no perão ou em parte onde não possa
entrar bála o Confessor medico & cyrurgião, barbeiro, dispenseiro, calafate,
carpinteiro & tanoeiro com seus instrumentos e o Cyrurgião terá consigo
todos seus auiamentos para curar os firidos.

37. Repartir se ão os soldados de maneira que enquanto jugar a artilharia lhes


faça o menos dano que poder ser, e alem disso [fl. 53v] auerá cuidado em os
repartir tambem de modo que não entrem todas as primeiras cargas para que
possa auer socorro se for necessario.

38. Nomearão dous soldados de confiança que assistão com o Capitão da poluora
para impidirem a confusão e pirigo que ha em a dar no tempo da pelleja.

39. Quando se abordar algum nauio, dar se a ordem precisa aos que ouuerem de
saltar dentro de modo que fique sempre alguma gente de socorro.

40. Se surgirmos em alguma parte não saya ninguem em terra, nem vá


embarcação alguma a terra sem licença da Capitaina, e este será hum dos
delitos que mais grauemente se ha de castigar.

41. Quem topar nauio estrangeiro lhe pedirá o nome, e não lho dando, dirá que
amaine, e se não amainar lhe atirará huma péssa, e se nem com isso amainar
o seguirá como inimigo, fazendo forol e os mais signais que ao diante se dirão,
mas isto não se entendera quando formos demandando terra com vigia della
de noyte [fl. 54] Porque em tal caso se guardará o capitolo 60.

42. Ainda que a capitaina va desuellejada ou anoyteça com pouco pano os outros
capitães terão cuidado de vellejar ate chegar a capitaina, por que o compassar
as vellas com ella não ha de ser senão quando estiuerem muito perto della

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43. Quando acontecer (o que Deos não permita) apartar se algum nauio da
armada por qualquer caso que for irá buscar a armada na mesma derrota e se
a não achar irá.

44. As carauellas de auiso e o pataxo mais pequeno andarão sempre tam perto da
Capitaina que possão acudir promptamente a qualquer hora que as chamarem.

45. Nenhum capitão se arrisque a perder a armada por seguir a caça de algum
nauio inimigo, antes se o que for diante lhe anoytecer, e vir que vai perdendo
a armada por ser elle mais velleiro, e o inimigo se adiantar muito, torne se a
armada, e [?]

46. Em nenhuma maneira nos poderemos entender, e socorrer, se não vigiarmos


muito os signais que aqui vão apontados e [fl 54v] nenhum signal se fará com
artilharia por grande necessidade que se tenha, e os capitães ou cabos de
vigia, mestre, pilloto ou contramestre a que tocar aquelle quarto de vigia terão
muito cuidado em vigiar de dia e de noyte os signais da capitaina e dos mais
nauios, para logo em os vendo darem conta delles ao capitão, e o que nisto se
descuidar será grauissimamente castigado e correrá por elle toda a perda e
dano que resultar disso a qualquer nauio, ou a qualquer pessoa.

47. Quando o capitaina quizer chamar á falla todos os nauios pará consultar ou bandeira
ordenar alguma cousa de nouo, porá huma bandeira quadrada do castello de
popa.

48. Quando o nauio estiuer em necessidade ou perigo subirá hum homem á gauia bandeira na gauea
com huma bandeira, a qual aleuantará e a baxará chamando com ella para
huma e outra parte muitas vezes; e os nauios que mais perto lhe ficarem
acudirão logo ao tal nauio, e principalmente os nauios ligeiros latinos ou signal
redondos, e se for de noyte farão signal com tres fogos nas enxarseas e o que de fogo
primeiro [fl. 55] tomar falla do nauio necessitado procurara por vir logo á
Capitaina para auisar do que passa.

49. Quando formos dando caça se algum nauio nosso vir outros nauios bandeira na
estrangeiros a outra parte ponha huma bandeira na mesena, mas não os siga mesena
se a capitaina lhe não fizer signal com lhe por huma bandeira na gauea grande.
bandeira na
capitaina

50. O nauio que vir terra ou tomar fundo de dia sem ver terra atrauesse e ponha atrauessar
huma bandeira no gouropes, e se isto acontecer de noyte, ponha huma bandeira no
lanterna na proa e vire na volta do mar auizar a capitaina. gouropes

lanterna
na proa

51. Quem vir nauio estrangeiro lance bandeira por popa e siga o, e se indo assim bandeira
em caça, e a Capitaina puser huma flamula no mastareo da proa, ou disparar por popa
pessa deixe a caça e recolha sse a armada
flamula no
mastareo

péssa a
capitaina

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52. Se quando amanhecer nos acharmos com mais nauios dos que tinhamos
anoytecido, porá a Capitaina humgalhardete, no tope do estandarte da quadra, galhardete no
e logo cada nauio porá bandeira no bordo do nauio da banda de gilauento, e tope do estan-
com isto conheceremos [fl. 55v] o nauio estrangeiro e logo se tornarão a tirar darte de quadra a
os signais e se irá reconhecer o nauio. capitaina

53. Quando a Capitaina quizer de dia chamar a carauella ou pataxo porá na flamula na
mesena huma flamula e se for de noyte porá huma lenterna na enxarsea, e o mesena a
que mais perto estiuer acudirá primeiro. capitaina

lenterna na
enxarsea

54. Quando de noyte ouuer tempo rijo leuará a capitaina dous forões acesos, e Dous forões a
cada nauio leuará hum forol de correr por nos não embaracarmos. capitaina

Hum forol cada


nauio

55. Quando a capitaina quizer de noyte mudar derrota porá tres forois e depois
de ir assi com elles hum espaço os tirará e ficará com o que hia de antes para tres forois a
poder tornar a usar do mesmo signal quando quizer. capitaina

56. Quando a Capitaina se poser ao pairo de noyte porá algumas lenternas pellas lenternas a
enxarseas, e se na mesma noyte quizer tornar a issar disparará huma péssa capitaina
ou acenderá tres forois, e assi irá com elles hum grande espaço para todos a
seguirem. Pessa a capitaina

tres forois a
capitaina

57. Quando formos dando caça de noyte a algum nauio o que for mais perto do forol na gauea
inimigo ha de leuar aceso o forol [fl. 56] de correr na gauea, e alem disso ha de
vir afusilando com fusis de poluora de espaço em espaço para que o sigamos,
se o nauio virar noutra volta o que o vir vire com elle e fara logo huma vez afusilando
juntos dous fusis de maneira que se de fogo a ambos no mesmo ponto e o
mesmo fará quantas vezes virar o inimigo: e se o inimigo fugir em popa fará dous fusis juntos
tres fusis juntos e huma só vez, e depois que der estes signais do nauio mudar huma vez
de rota ou ir em popa irá continuando com fazer hum fusil singello como fica
dito, para que sempre o sigamos todos, e enquanto a capitaina não disparar tres fusis juntos
péssa a recolher, ou não poser hum lampião no gouropes não deixará a caça,
saluo se entender que pode perder a armada. fusil singello

Pessa a capitaina

lampião no
garoupes

58. Quando a Capitaina fizer hum fusil de noyte he signal de querer saber onde fusil a capitaina
vão os outros da armada e cada hum responderá logo com seu fusil para
sabermos huns dos outros. fusil cada nauio

59. O nauio que de noyte perder o forol da capitaina, faça hum fusil para que lhe
responda com outro o que lhe mais perto ficar, e se lhe não responder faca fusil e outros con-
outro fusil, e va continuando com elles [fl. 56v] que lhe respondão e assi por tinuando com elle
meio destes fusis chegara á capitaina noticia como fica o nauio atrazado para
esperar ou voltar sobre elle.

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António Estácio dos Reis Marinheiro por vocação e historiador com devoção – Estudos de Homenagem

60. Quando viermos a demandar tera, o nauio que eu ordenar que va diante
reconhece la, se vir nauio estrangeiro ponha mais outra lenterna na gauea lenterna na gauea
alem da que ha de leuar e não deixe de vir reconhecer a terra, mas se a e outra logo
Capitaina responder com huma péssa, siga o inimigo e deixe de ir reconhecer
a terra e va fazendo outros signais conteudos neste regimento no capitolo
cinquoenta e sete. Péssa a capitaina

61. Se a capitaina surgir de noyte acendera quatro forois e tocara tres ou quatro
vezes a trombeta e se quizer tornar a leuar ferro porá tres forois ou disparará
huma pessa como se diz no capitolo 56.

62. Dar se á logo o treslado dos signais deste regimento ao pilloto para que saiba o
que ha de mandar fazer, e conheça os que lhe fizerem.

63. Cada capitão chame algumas vezes os soldados mais praticos do seu nauio,
e consulte com elles o que [fl. 57] Parecer se me deue aduirtir para melhor
regimento da armada e mais decente gouerno della, e para se cumprir mais
inteiramente o seruiço de Deos e del Rey e quando vierem a tomar o nome
peção que lhe mande a falua para me inuiarem as aduertencias.

64. O que se encomenda aos religiosos sacerdotes que que [sic] para Seruiço
de Deos nosso Senhor vão nesta armada he o seguinte, pois he certo e
sem duuida que o bom sucesso da jornada se faz para gloria de Deos, e
beneficio de sua Igreja, depende da vontade do mesmo Deos e da sua diuina
ordenação deuemos acudir a elle primeiro fazendo nos capazes da sua
diuina misericordia, e fugir todo o que nos for possiuel de offenças suas, e
procurar limpeza de coração, e logo pedir lhe com deuotas e atentas orações
se sirua pella sua diuina bondade e clemencia aplacar a sua ira e usar com
este seu pouo de misericordia pois vai acudir pella sua honra, defender sua
fee, e castigar tão grandes offensas suas. E porque as pessoas eclesiasticas
como ministros de Deos intersessores entre elle e o seu pouo, toca assi ao
bom gouerno das almas como ao cuidado da oração para as necessidades, o
primeiro que hão [fl. 57v] de fazer os tais he ser mestres dos mais no bom
exemplo e compostura de suas pessoas procurando com todo o cuidado dar
lhes luz assi na bondade da vida e exemplares ocupações como em qualquer
maneira de trato e conuersação.

65. De mais do fructo que com seu bom exemplo hão de fazer terão cuidado os
religiosos e capellães de cada nauio de juntar se á tarde em algma parte mais
conueniente posta toda a gente de geolhos diante de algma cruz ou imagem
dirão as litanias inuocando o fauor diuino com a interseção dos sanctos e se
formos chegando a termos de batalha antes de entrar nella se fará o mesmo
pedindo a Deos vitoria contra seus inimigos.

66. Procurarão com todo o cuidado que não haja offenças de Deos em espicial
blasphemeas, juramentos, affeando muito o mao custume que disso tem
alguns e procurando para tira lo que haja algum signal de arrependimento
cada vez que jurarem, assi mesmo procurarão que não haja odios, e
inimizades, e quando alguns pellejarem trabalharão que logo sejão amigos. [fl.
58] Aproueitando sse para isso dos capitães e pessoas graues que parecerem
mais a preposito; Terão cuidado de conhecer as pessoas que acharem
incorrigiueis e que se não aproueitão de suas amoestações e se algumas ouuer
dará conta dellas ao capitão e de qualquer offença ou escandalo que se tenha
feito a Deos e que elles não poderão remedear: espicialmente se chegar (o que
Deos não queira) a ser culpa contra a fee ou alguma torpeza para que se ponha
remedio em tudo que mais conuenha.

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O regimento dos capitães da armada de D. António de Ataíde

67. Nas praticas particulares e colloquios gerais que tiuerem, amoestarão aos
soldados a que tomem algumas deuações de rezar o Rosario de Nossa Senhora
ou a Coroa, ou cada noyte fação exame de sua conciencia, ou outra que lhes
bem parecer segundo a deuação e capacidade de cada hum.

68. Amoestarão aos soldados de quando em quando espicialmente quando se


crer que he de auer depressa batalha que se confessem, pois tanto importa a
limpeza dalma para não perder a confiança no que se pedir a Deos nem animo
na batalha. Antes da qual farão exotações animando aos soldados a fazer
nella o que deuem, mostrando lhes a intenção que nella se deue ter, que he
a principal seruir a seu Deos vingar as injurias contra sua diuina Majestade
e acudir pella fee [fl 58v] e pella Religião que professão no que tudo seruem
tambem a seu Rey.

69. Entretanto que se pelleja leuantarão todos os religiosos as mãos a Deos


postos em oração, pedindo lhe com a maior deuação que puderem; se sirua
de fauorecer o seu pouo e acudir pella sua causa; e se for algum para animar
a gente que pelleja de maneira que está dito, acudirá a faze lo ou a retirar
algummorto, ou firido que tenha necessidade de cura, ou de se confessar, ou
ajudar a bem morrer o que estiuer para isso.

70. E nisto de ajudar a bem morrer em qualquer ocasião de guerra que se


offerecer ou paz, terão particular cuidado de assistir lhe, e sem perde lo, se for
possiuel, de vista ate que tenha espirado; procurando primeiro confessa lo,
e que declare se tem algum descargo de sua conciencia que fazer, e que se a
infirmidade der lugar para isso, e elle tem de que faça testamento: e pello que
morrer dirão alguns nocturno de finados, ou o que mais a deuação os ajudar;
com tanto que nenhum se deixe de encomendar a Deos a fazer o bem por sua
alma que o tempo e ocasioens derem lugar.

Fonte
Coriosidades de Gonçallo de Sousa fidalgo da casa de sua magestade, seu capitão e gentil homem da
boca. Comendador da ordem de Christo, biblioteca geral da Universidade de Coimbra - Reser-
vados, ms. 3074, fls. 49-58v.

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