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DANILO DOURADO GUERRA

DIREITOS HUMANOS I: DIREITOS


FUNDAMENTAIS DO SER HUMANO,
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E
SUSTENTABILIDADE

GOIÂNIA
2020
CRÉDITOS INSTITUCIONAIS

Instituição Mantenedora
Organização Cultural Educacional Filantrópica (OCEF)

Instituição Mantida
Faculdade Assembleiana do Brasil (FASSEB)

Curso de Graduação em Teologia a Distância

Diretor Geral Lucas Luiz Almeida Costa


Diretor Acadêmico Rogeh Alves Bueno
Coordenador do Curso de Teologia a Distância Eurípedes Pereira de Brito
Coordenador do programa de Pós-Graduação Eurípedes Pereira de Brito
Coordenadora da Área de Extensão Diessyka Fernanda Monteiro
Secretária acadêmica Paula Rudimila de Jesus Veríssimo
Bibliotecário Dannilo Ribeiro Garcês Bueno

Coordenador do Ensino a Distância Eurípedes Pereira de Brito


Administrador e Coordenador Tecnológico Izaque Carriço Ferreira
Analista de Sistemas Izaque Carriço Ferreira
Tutoria a distância e presencial Corpo docente da FASSEB

Coordenador da equipe multidisciplinar Eurípedes Pereira de Brito


Materiais didáticos Equipe multidisciplinar

Webdesigner e Webdiagramador Carmelo Ardaya


Orientadora pedagógica Equipe Pedagógica
Revisão de conteúdo Equipe Teológica
Revisão pedagógica Equipe Pedagógica
Suporte Moodle Alessandro Carlos Nogueira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


G9341d Guerra, Danilo Dourado.
Direitos humanos I: direitos fundamentais do ser humano, educação
ambiental e sustentabilidade / Danilo Dourado Guerra – Goiânia:
FASSEB, 2020.
151 p.; il.; 23 cm.
ISBN 978-65-992484-0-5
1. Direitos humanos. 2. Ser humano – Direitos fundamentais. 3.
Educação ambiental. 4. Sustentabilidade. 5. Cidadania. 6. Ecoteologia. 7.
Bioética.
I. Título. II. Subtítulo.
CDU: 341.231.14
Catalogação: Dannilo Ribeiro Garcês Bueno, Bibliotecário, CRB-1: 2162
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 8

META 8

OBJETIVOS 9

ESTRUTURA DA DISCIPLINA 9

MÓDULO I: DIREITOS FUNDAMENTAIS DO SER HUMANO –


CONCEITOS E ELEMENTOS 10

UNIDADE I: DIREITOS HUMANOS - CONSIDERAÇÕES E PARADIGMAS11


AULA 1: GÊNESE, EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 12
AULA 2: UMA INTRODUÇÃO CONCEITUAL 15
UNIDADE II: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
(DUDH) E APORTES TEÓRICOS 21
AULA 3: UMA INTRODUÇÃO A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS (DUDH) 22
AULA 4: DEFINIÇÕES TEÓRICAS DE DIREITOS HUMANOS 29

MÓDULO II: CIDADANIA E ÉTICA 35

UNIDADE III: CIDADANIA - CONCEITOS, ELEMENTOS E


CRISTIANISMO 36
AULA 5: CIDADANIA – HISTÓRIA E EPISTEMOLOGIA 37
AULA 6: O CRISTÃO E A CIDADANIA 44
UNIDADE IV: ÉTICA - EPISTEMOLOGIA E CRISTIANISMO 49
AULA 7: ÉTICA - EPISTEMOLOGIA E ELEMENTOS 50
AULA 8: ÉTICA CRISTÃ 59

MÓDULO III: APONTAMENTOS PARA UMA ECOTEOLOGIA 67

UNIDADE V: BIOÉTICA - CONCEITOS E DESDOBRAMENTOS 68


AULA 9: BIOÉTICA - GÊNESE E PRISMA HISTÓRICO 69
AULA 10: BIOÉTICA - CONCEITOS E DESDOBRAMENTOS 74
UNIDADE VI: ECOLOGIA - HISTÓRIA, CONCEITOS E PROBLEMAS. 83
AULA 11: ECOLOGIA - HISTÓRICO, COMPONENTES E CONCEITOS 84
AULA 12: PANORAMA E PROBLEMÁTICA ECOLÓGICA 95

6
MÓDULO IV: ECOTEOLOGIA 105

UNIDADE VII: CONCEITOS E ELEMENTOS PARA UMA ECOTEOLOGIA


BÍBLICA 106
AULA 13: CONCEITOS E FUNDAMENTOS 107
AULA 14: ELEMENTOS PARA UMA ECOTEOLOGIA BÍBLICA 117
UNIDADE VIII: CLÁSSICOS DA ECOTEOLOGIA 129
AULA 15: MATRIZES TEÓRICAS - TEILHARD DE CHARDIN E JÜRGEN
MOLTMANN 130
AULA 16: A ECOTEOLOGIA DE LEONARDO BOFF 139

REFERÊNCIAS 146

MINICURRÍCULO DO AUTOR 151

7
APRESENTAÇÃO

Olá prezado(a) estudante. Durante os próximos meses estaremos


adentrando juntos em um universo amplo e pouco explorado por muitas
pessoas: a questão dos direitos humanos, o problema ético- ambiental e o
que se compreende por ecoteologia. No panorama vital humano, todos
esses elementos estão interligados e devem ser apreendidos de maneira
crítica. Cientes disso, vamos iniciar a disciplina “Direitos Fundamentais do
Ser Humano, Educação Ambiental e Sustentabilidade”. Para isso, você terá
a disposição um material preparado com carinho para sua investigação.
Irandé Antunes (2005) já dizia que ninguém escreve um texto sozinho.
Sempre há alguém do outro lado do texto. Em nosso caso, foi assim que
este material foi elaborado. Pensando no olhar e na atenção de quem está
do outro lado: você. Assim, com o material em mãos faz-se necessário que
você acompanhe cada módulo e leia com afinco todos os materiais.
Dedique-se ao máximo para apreender o conteúdo deste livro e das
indicações bibliográficas complementares.
O curso é dividido em quatro módulos, oito unidades e dezesseis aulas,
compondo oitenta horas. Neste ambiente de trocas e produção do
conhecimento a distância, espero que possamos construir o saber e
caminhar juntos.
Ótimos estudos e boas descobertas!

Professor Dr. Danilo Dourado Guerra.

META

• Contribuir na formação do aluno em relação à compreensão e


pensamento crítico acerca dos direitos humanos, ética, cidadania e
ecoteologia, a partir do paradigma cristão, em suas nuances.

8
OBJETIVOS

• Sedimentar, através de um levantamento epstemológico-histórico,


noções introdutórias acerca do que se concebe por direitos
humanos, ética e cidadania;
• Adentrar de forma crítica ao quadro histórico-conceitual de
Bioética, bem como ao panorama de complexidades inerentes a
epistemologia do tema;
• Estabelecer uma cronologia histórico-crítica acerca dos processos
que envolveram a estruturação da ciência Ecológica, bem como a
problemática inerente;
• Abordar os conceitos e elementos interpretativos que
circunscrevem e trazem ferramentas para uma ecoteologia bíblica;
• Estabelecer, a partir do ponto de vista teórico-crítico, de forma
introdutória um mapeamento de alguns clássicos da ecoteologia.

ESTRUTURA DA DISCIPLINA

O curso de formação em Direitos Fundamentais do Ser Humano,


Educação Ambiental e Sustentabilidade será desenvolvido em quatro
módulos com oito unidades e dezesseis aulas. Conforme segue-se:

9
MÓDULO I: DIREITOS FUNDAMENTAIS DO SER
HUMANO – CONCEITOS E ELEMENTOS

10
INTRODUÇÃO

Em nossa proposta, uma abordagem acerca dos Direitos Humanos


requer uma fundamentação conceitual-histórica acerca das vertentes que
envolvem o tema. Portanto, essa unidade tem a característica teórica como
objetivo principal. Este módulo contém duas unidades com duas aulas cada
uma, e com ele buscaremos sedimentar, através de um levantamento
epistemológico-histórico noções introdutórias acerca do que se concebe
por direitos humanos. São elas:

UNIDADE I: Direitos Humanos: Considerações e Paradigmas


UNIDADE II: Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e
aportes Teóricos

UNIDADE I: DIREITOS HUMANOS -


CONSIDERAÇÕES E PARADIGMAS

O tema dos Direitos Humanos é certamente abrangente. Sua


estruturação societal parte sempre de pressupostos hermenêuticos, isto é,
de interpretação social. Nessa unidade, vamos abordar, o processo histórico
que envolveu a estruturação dos direitos humanos ao longo das sociedades,
bem como um panorama conceitual crítico acerca da temática. Desta
unidade fazem parte:

AULA 1: Gênese e Evolução dos Direitos Humanos


AULA 2: Uma introdução conceitual

11
AULA 1: GÊNESE, EVOLUÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS

META

Estabelecer uma cronologia histórico-crítica acerca dos processos que


envolveram a estruturação dos direitos humanos ao longo dos tempos até
a atualidade.

OBJETIVOS

• Reconhecer a complexidade da linha histórica para a formação dos


direitos humanos;
• Perceber o trajeto estruturante do que se concebe por direitos
humanos ao longo dos tempos;
• Exercer senso crítico acerca do conteúdo aprendido.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

GÊNESE E EVOLUÇÃO

O que conhecemos atualmente como direitos humanos é fruto de um


longo processo histórico multicultural. A realidade é que desde o Código
de Hamurabi, utilizado pelo Rei da Babilônia, no século XVII a.C., até a
criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948,
vários povos vivenciaram alterações significativas no convívio social por
meio de regras que mediaram o comportamento individual e garantiram
algum direito fundamental (MENEZES; SIQUEIRA, 2018, p.19).
Destacam-se, ao longo desse período, as escolas pré-socráticas (com
noções de direito natural e natureza humana) posteriormente, coligadas
pelo Direito Romano; a escola de direito natural de Hugo Grotius; a
filosofia empirista inglesa de John Locke; o conceito universal do filósofo
Immanuel Kant; e os ideais dos iluministas franceses Jean-Jacques

12
Rousseau e Voltaire. Além de todos estes, ainda podemos elencar alguns
documentos normativos domésticos como a Declaração de Direitos de
Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789), frutos da Revolução Francesa (MENEZES; SIQUEIRA, 2018, p.
19).
Corroborando com essa concepção, Silva (2005, p. 553-554) propõe
uma síntese histórico-evolutiva dos direitos humanos a partir da ideia de
direitos naturais. Em suas palavras:

O elemento justificador, por excelência, das primeiras declarações


de direitos foi, sem dúvida, o recurso à idéia de direitos naturais. Isso
pode ser notado, para me limitar às duas grandes declarações de
direitos fundamentais, por meio da recorrente menção à idéia de
direitos inatos e, por isso, inalienáveis e imprescritíveis. (p.553-554).

Juntamente com as regras iniciais sobre direitos humanos, surge a


soberania como um elemento inerente ao tema. Em 1648, a Paz de
Westfalia, priorizou a soberania doméstica e a independência dos Estados,
impossibilitando a interferência nas relações entre Estados e, por
conseguinte, nos indivíduos sob sua jurisdição. No entanto, a partir do
século XIX, a interdependência das relações internacionais passou a
amortecer a lógica westfaliana (soberania clássica), abrindo espaço para
normas de mútua colaboração (MENEZES; SIQUEIRA, 2018, p. 19).
Hoje em dia, apesar da soberania ser concebida como controle
(soberania clássica) ainda seja utilizada pelos Estados para assegurar seus
interesses, a soberania entendida como proteção – que também é utilizada
de acordo com os interesses dos Estados – vem recebendo aceitação. Trata-
se do princípio da responsabilidade de proteger (R2P). Nesse modelo, o
Estado precisa resguardar a população de situações criminais como
genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e todos os outros crimes contra
a humanidade. Quando acontece de haver uma falha, opor por parte do
Estado nessa proteção, a comunidade internacional deve intervir para
solucionar o problema. Portanto, mesmo que se exista uma nova visão
teórica da soberania, insiste em se estruturar na prática a velha tensão entre
soberania estatal e direitos humanos (MENEZES; SIQUEIRA, 2018, p.
20).

13
Retomando, pode-se afirmar historicamente que os primeiros marcos
do processo de internacionalização dos direitos humanos foram
constituídos pós-Tratado de Versalhes, com a Organização Internacional
do Trabalho (OIT) e a Liga das Nações. Nesse primeiro período, a OIT se
subsidiou na promoção de modelos internacionais que abordavam os
direitos sociais, (condições de trabalho e bem-estar social), prestando
serviço, assim, por meio da minimização da vulnerabilidade humana no
ambiente de trabalho. A Liga das Nações, por sua vez, tratou de incorporar
na sua Carta o paradigma da proteção as minorias. Entretanto, é somente
com o advento (criação) da Organização das Nações Unidas (ONU),
em 1945, que dá-se início aos trabalhos para a elaboração da DUDH
(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS) que
viria a ser, o primeiro documento internacional direcionado para a
proteção dos direitos humanos (MENEZES; SIQUEIRA, 2018, p.
20).

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• O que conhecemos atualmente como direitos humanos é fruto


de um longo processo histórico multicultural;
• Ao longo da história vários povos vivenciaram alteraçõe
significativas no convívio social por meio de regras que
mediaram o comportamento individual e garantiram algum
direito fundamental;
• O elemento justificador, por excelência, das primeiras
declarações de direitos humanos foi o recurso à ideia de direitos
naturais;
• Somente com o advento (criação) da Organização das Nações
Unidas (ONU), em 1945, que se dá início aos trabalhos para a
elaboração da DUDH (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS), o primeiro documento internacional
direcionado para a proteção dos direitos humanos.

14
AULA 2: UMA INTRODUÇÃO CONCEITUAL

META

Abordar criticamente o conceito de universalidade dos direitos


humanos.

OBJETIVOS

• Reconhecer o pressuposto da universalidade dos direitos humanos


como paradigma social;
• Exercer senso crítico acerca do conteúdo aprendido.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

CAMINHO DE ABERTURA

Não se pode negar que a história dos direitos humanos é perpassada


por uma noção de exclusividade. Pensando criticamente pode-se ver que,
mesmo hoje em dia, no mundo em que vivemos, tais direitos tendem a
funcionar em favor dos privilegiados.
Esse paradigma exclusivista foi finalmente rejeitado, ao menos
teoricamente, com a criação das Nações Unidas e a adoção dos princípios
da Carta da ONU, afora da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
entre outros instrumentos internacionais. Em termos de direitos humanos,
vivemos, desde 1945, um período de reconhecimento dos pressupostos de
universalidade e inclusividade. Esse período também se caracteriza pelas
reivindicações dos povos no sentido de cumprirem o direito à
autodeterminação como um direito dos povos e do homem (MBAYA,
1997, p.18).
Trata-se então, de um momento da democratização, da descolonização,
da emancipação, da luta contra o racismo e todas as formas de

15
discriminação racial. Se enfatiza então, o direito à existência, a vida, à
integridade física e moral da pessoa e à não-discriminação, em particular a
racial. Estas são normas imperativas da comunidade internacional
(MBAYA, 1997, p.18).
Apesar dos avanços, Lucas (2009, p. 81-82) estabelece um olhar crítico
a perspectiva dos direitos humanos que deve ser considerado. Em suas
palavras:

O fato de os direitos humanos terem sido declarados, no segundo


pós-guerra, como patrimônio comum da humanidade, como um
acordo universal em torno de temas imperiosos a todos os povos,
não diminuiu as suspeitas e as críticas sobre a possibilidade de
fundamentá-los racionalmente, sem recorrer a elementos
historicistas/comunitaristas. Os traços de sociabilidade
contemporâneos recolocam o tema com mais força e importância,
pois, afinal, as respostas para os problemas de nosso tempo exigem
níveis de convergência suficientemente potentes para produzir
amplos diálogos no campo político, econômico e cultural. A
elaboração de um projeto global de responsabilidades comuns passa
a se constituir, no momento, mais numa necessidade do que numa
fatalidade do devir histórico. Tendo presente os grandes dilemas que
povoam a realidade histórica dos direitos humanos, como também
a necessidade de se traduzir uma linguagem de aproximações entre
as diferenças em conflito na sociedade global.

Como bem afirma Mbaya (1997, p. 28), “tratar da universalidade de tais


direitos numa época em que são universalmente violados pode apresentar
um caráter desafiador”. Há um antagonismo valorativo em que a violação
se configura como ato de desrespeito a dignidade humana. Sabe-se que no
plano das ideias, ou dos princípios, todos os seres humanos podem invocar
os mesmos direitos, bem como todos os poderes devem ser empregados
para a proteção da vida humana. Esse drama nos remete a realidade de que
não se deve esquecer que, qualquer problema relativo aos direitos humanos,
diz respeito a uma relação vertical e outra lateral.
A vertical é a do cidadão face ao poder, isto é, os direitos humanos
concebidos como protesto, reivindicação. A relação lateral por sua vez,
lembra um esforço de solidariedade, cooperação. Essas duas relações, por
seu turno, reencontram-se no direito internacional dos direitos humanos.
Nesse processo, a relação vertical marca o lugar dos direitos civis e políticos,
os quais dizem respeito às relações entre o cidadão e o poder; a relação
lateral coloca em foco os direitos econômicos e sociais que, na ordem

16
interna, exigem do Estado, ou seja, por meio dele, subsídios em favor dos
menos favorecidos feitas pelos cidadãos mais aquinhoados e, na ordem
internacional, a ajuda dos países ricos àqueles em desenvolvimento com
base em uma obrigação jurídica (MBAYA, 1997, p. 28).

Direitos humanos: Uma luta permanente. Disponível em:


https://i0.wp.com/cdhpf.org.br/wp-
content/uploads/2017/12/direitos_humanos_dia_internacional.jpg?fit=1920%2C800&s
sl=1

Diante desse cenário, Lucas (2009, p.98-99), traz uma contribuição


crítica em relação ao paradigma da universalidade dos direitos humanos.
Em sua concepção:

A universalidade atribuída aos direitos humanos não nega as


diferenças que constituem as diversas possibilidades de
manifestação concreta/histórica da existência humana e mesmo das
identidades particulares ou comunitárias. Mas, ao contrário,
reconhece que existem elementos valorativos comuns que podem
ser compartilhados por todos os homens, individuais ou
coletivamente, a ponto de as distintas ações e conceitos que povoam
a vida histórica poderem configurar a diferença como um valor,
acontecimento e característica de individualização universalizável (é
possível se universalizar a liberdade de religião sem universalizar
uma religião, mas todas em particular e no exato limite de seu
alcance). Não há como negar a diferença sem negar a humanidade.

17
Por outro lado, não há como sustentar a diferença fora da
humanidade. Ou seja, é a humanidade a condição mesma para a
diferença. Os direitos humanos, na posição de universais não-
homogeneizadores, precisam justamente reconhecer que existe uma
moralidade que impõe uma reciprocidade de comportamentos a
todos os indivíduos e instituições como condição de possibilidade
para serem freadas as diferenças que conduzem à desigualdade
excludente ou mesmo à homogeneização que inviabiliza o
aparecimento das diferenças comuns à humanidade do homem,
diferenças que devem ser garantidas por fazerem do homem o que
ele é em razão também de sua individualidade, mas desde que sejam
susceptíveis de uma proteção universal. Afastar a diferença,
portanto, é o mesmo que negar as possibilidades do entendimento
humano tratar daquilo que, por sua moralidade, pode ser
universalizado. Quando a diferença é uma marca distintiva do
homem em sua humanidade, uma condição para o exercício da
própria dimensão humana, não se pode confrontar diferenças com
igualdades, mas aproximá-las na exata extensão de sua
complementaridade. Poder-se-ia dizer, inclusive, que a
universalidade, nesse sentido, é assegurada pela comum humanidade
e dignidade do homem, tomadas não de forma abstrata, mas em
razão dos marcos concretos que caracterizam as diferenças típicas
do homem em sua humanidade. Em outras palavras, da mesma
forma que não há um modelo paradigmático do ser humano sob o
viés abstrato, especificamente no que tange à sua relação com o
mundo e com os outros homens, parece sensato admitir que
somente é possível reconhecer essas diversas formas de
manifestação da existência humana quando os indivíduos
compartilham algo em comum que permite entender tais diferenças
como algo inerente à humanidade, a qual, no entanto, somente
deverá ser protegida se não caracterizar o fomento de uma diferença
excludente, prejudicial à específica maneira de ser do homem
histórico em sua universalidade.

Acerca da universalidade dos direitos humanos Lucas (2009, p.100-


101), sintetiza criticamente. Em suas palavras:

A universalidade dos direitos humanos não é uma proteção abstrata


do homem fora da história, da cultura, de sua finitude. Ao contrário,
é o reconhecimento de reciprocidades que permitem vir à tona o
discurso da diferença e histórias de vida distintas. Também a
diversidade cultural, em suas diferentes facetas, viabiliza-se tão-
somente na possibilidade de se viver de diferentes maneiras uma
mesma humanidade que está presente em todos os homens,
humanidade essa que não pode se sufocada em ninguém, pois

18
estabelece os limites do próprio relativismo e do pluralismo, aquilo
que afasta e aproxima os homens entre si em razão do que lhes é
comum.43 Não se trata, portanto, da defesa de uma humanidade
vazia que se concentra apenas na defesa da espécie em sentido
biológico, mas de humanidade que se reconhece no diálogo, no
encontro do homem consigo mesmo, com o outro e com as coisas
em razão de um certo espaço público de entendimentos e de
enfrentamentos. Fernando Savater tem razão quando diz que “tener
humanidad es sentir lo común en lo diferente; aceptar lo distinto sin
ceder a la repulsión de lo extraño”.44 A falta de uma boa razão que
justifique os direitos humanos sem apelos à tradição e à autoridade
poderá fomentar a profusão de relativismos de todas as ordens,
especialmente históricos e valorativos, que importam na negação da
defesa moral de tais direitos, tornando tão cara, pois, a sua afirmação
universal. As necessidades práticas da sociedade contemporânea
tornam particularmente importante o problema da fundamentação
dos direitos humanos para a definição de conceitos, políticas e
instituições que respondam de forma efetiva às violações aos direitos
humanos em escala mundial, caracterizadas como verdadeiros
problemas da humanidade. Essa nova fase social inaugurada pelos
fenômenos globalizantes e localizantes da economia, cultura,
política, guerra, fome, crises ambientais, etc., exige mais dos direitos
humanos, assim como exige mais da história material recente e
futura desses direitos, exigências que cobram, indispensavelmente,
ações políticas e jurídicas em nível mundial, especialmente para se
garantir, pelo direito válido, a conformação de um projeto mais
ousado de humanismo. Pode-se dizer que a agenda mundial dos
direitos humanos dependerá, por exemplo, de como a humanidade
irá projetar suas instituições, de como ultrapassará o nacionalismo e
a soberania estatal, de como estabelecerá limites à economia, enfim,
dependerá essencialmente de como compreender a universalidade e
a brigatoriedade dos direitos humanos no mosaico de dificuldades
que caracteriza a sociedade contemporânea. A universalidade dos
direitos humanos configura-se em uma necessidade para a ação
política e jurídica mundial a ser referenciada por padrões de validade
conforme o direito, que aceita a diferença, mas não qualquer
diferença. Abandonar o universal significa consagrar a
impossibilidade de comunicação entre culturas diferentes[...] o
desafio para a universalidade requer empenho para se escapar da
sedução dos relativismos e força para fazer da universalidade não
um valor entre outros, mas um valor que permite descobrir todos os
outros valores, iguais ou diferentes, que constituem a aventura
humana em sua humanidade.

19
SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Em geral, no âmbito da aplicabilidade dos direitos humanos, os


que gozam de liberdade são de um lado privilegiados, e, de outro,
os setores da sociedade nacional e internacional ligados à ordem
atual das coisas, têm interesses a proteger, entre os quais o de
defender o status quo, assim como estão à sua disposição os
meios políticos e econômicos para a defesa da ordem existente;
• Há um antagonismo entre teoria e prática no processo de
estabelecimento dos direitos humanos;
• A universalidade atribuída aos direitos humanos não nega as
diferenças que constituem as diversas possibilidades de
manifestação concreta/histórica da existência humana e mesmo
das identidades particulares ou comunitárias;
• A universalidade dos direitos humanos não é uma proteção
abstrata do homem fora da história, da cultura, de sua finitude.
Ao contrário, é o reconhecimento de reciprocidades que
permitem vir à tona o discurso da diferença e histórias de vida
distintas.

20
UNIDADE II: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS (DUDH) E APORTES
TEÓRICOS

Nessa unidade adentraremos ao cenário de construção da


Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), bem como
caminharemos em direção a um conteúdo conceitual em relação à
temática. Desta unidade fazem parte:

AULA 3: Uma introdução à Declaração Universal dos Direitos Humanos


(DUDH).
AULA 4: Definições teóricas de Direitos Humanos

21
AULA 3: UMA INTRODUÇÃO A DECLARAÇÃO
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (DUDH)
META

Estabelecer um panorama acerca dos principais aspectos da Declaração


Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

OBJETIVOS

• Abordar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH);


• Estabelecer parâmetros críticos em relação à DUDH.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


(DUDH)

Em 10 de dezembro de 1948, basicamente por trás de sua criação, a


Organização das Nações Unidas (ONU) adotou, por meio de sua
Assembleia Geral, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
e, com isso, arrimou categoricamente seu compromisso – e o da
comunidade internacional – em prol da proteção da pessoa humana. Esse
compromisso, o ideário de paz elencado pela ONU como princípio e
propósito, agregando ao conceito de paz negativa (entendida como a
ausência de conflitos/guerras), a paz positiva (entendida como a proteção
do ser humano e a garantia de condições para o amplo desenvolvimento da
pessoa humana) (JUBILUT; LOPES, 2018, p. 9).
Composta de um preâmbulo e 30 artigos, a DUDH, se configura como
matriz valorativa e normativa do Sistema Internacional de Direito
Internacional dos Direitos Humanos, que se estrutura a partir de sua
adoção. A DUDH, em conjunto com a Convenção para Prevenção e
Repressão ao Crime de Genocídio, adotada um dia antes, faz-se também
resposta normativa aos horrores da segunda Guerra, por parte da sociedade
internacional. Essa incisiva resposta, se estabelece de maneira a evitar a
amputação de direitos básicos dos seres humanos, de consagrar os direitos
humanos como parte basilar desse cenário e de assegurar proteção a direitos

22
essenciais enquanto componentes de um arcabouço jurídico individual
(JUBILUT; LOPES, 2018, p. 9-10).

PARA APROFUNDAR NO ASSUNTO

A princípio, pode parecer que os horrores da Segunda Guerra


Mundial foram a principal motivação para a criação da DUDH. As
atrocidades perpetradas pelo regime de Hitler certamente chocaram
a consciência do mundo e proporcionaram um impulso político para
que tais erros nunca mais fossem cometidos novamente. Porém,
tanto as pressões quanto os planos para promover um documento
internacional voltado para a proteção dos direitos humanos gerais
foram desenvolvidos muito antes de o Holocausto ser descoberto
(BURGERS apud MENEZES; SIQUEIRA, 2018, p. 21).

A partir da DUDH se dá um processo de criação de uma esfera


complementar de proteção da pessoa humana. Esta não estando mais nos
limites do Estado e passando para a sociedade internacional. Nesse
contexto, os Estados seguem com a função e responsabilidade da efetivação
e garantia dos direitos humanos, contudo, se estabelece para além das
fronteiras estatais, uma nova camada de proteção, que objetiva tanto
suplantar a nacional, quando esta não esteja disposta ou apta a proteger os
direitos humanos, quanto expandir a proteção com o reconhecimento de
direitos no nível internacional, independentemente de seu reconhecimento
interno.
Esse paradigma protetivo estabelecido pela DUDH, ao longo de seus
70 anos, se mostrou imperativo, sobretudo, na medida em que resguardava
a dignidade humana nem sempre assegurada a nível interno das fronteiras
nacionais. Em outros termos, o nexo protetivo se fez prerrogativo, no
sentido de determinar como direitos, proteções nem sempre asseguradas
internamente, e em momentos de violações e questionamentos dos direitos
humanos nos cenários nacionais (JUBILUT; LOPES, 2018, p. 9-10).
Em termos conceituais, a DUDH pode ser entendida como um
documento transicional em termos da concepção contemporânea dos
direitos humanos, que apreende: enquanto a dignidade humana é um dado,
os direitos humanos são um construído. Essa formulação, por uma parte,
carrega em si a percepção dominante até a Segunda Guerra Mundial de que

23
os direitos humanos eram inerentes, por outra parte, já adianta a concepção
contemporânea ao destacar a inerência da dignidade humana e, ao mesmo
tempo, enfatizar o desafio e necessidade de se construir os direitos
humanos, bem como de se estabelecer como um exemplo desse empenho
construtivo (JUBILUT; LOPES, 2018, p.10).

PARA APROFUNDAR NO ASSUNTO

Além da falsa sensação de que os direitos humanos foram motivados


apenas pelo Holocausto, costuma-se supor que foram as grandes
potências, vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, que defenderam a
ideia dos direitos humanos em meados do século XX. Isso é
parcialmente fato, pois elas estavam mais comprometidas com a
ideia de direitos, durante a guerra, mas, mesmo assim, o
compromisso não era forte. Após a Segunda Guerra Mundial, a ideia
de direitos humanos se desenvolveu rapidamente com o início da
Guerra Fria. As grandes potências geralmente procuraram restringir
ou conter o interesse crescente no desenvolvimento de normas
universais de direitos humanos (EVANS apud MENEZES;
SIQUEIRA, 2018, p. 23).

EM BUSCA DE MATERIAL ALTERNATIVO

(GUIMARÃES, 2004, posfácio). (GUIMARÃES, 2004, p.12).

24
Em termos de progresso, um primeiro aspecto a ser enfatizado alude
ao fato de a DUDH inaugurar uma gramática específica em relação à
titularidade dos direitos humanos que destaca a universalidade destes. O
texto da DUDH utiliza em seu escopo maior parte expressões gerais e
abrangentes para abalizar a titularidade dos direitos. É nesse contexto que,
em se tratando dos direitos e liberdades asseguradas o texto utiliza a
expressão ‘todos’, enquanto para as práticas que estão sendo proibidas por
violarem direitos humanos, a palavra utilizada é ‘ninguém’. É de salientar
que nesse momento, ainda não existe uma preocupação com sujeitos em
particular, nem com questões de gênero por exemplo. Nesses aspectos, a
DUDH é fruto de seu tempo e não traz inovações. Mesmo assim, a
consagração da universalidade da titularidade dos direitos humanos é ponto
de proeminência, principalmente ao se vislumbrar a DUDH como matriz
jurídica e axiológica (valorativa) de um sistema de proteção internacional de
direitos humanos (JUBILUT; LOPES, 2018, p.12).
Um segundo fator a ser enfatizado com destaque é o fato de a DUDH
consagrar as duas dimensões de direitos humanos existentes até então, são
elas: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais.
Essa universalidade de conteúdo em termos das dimensões de direitos é
proeminente e significativa, ao passo que consagra uma abordagem holística
dos direitos humanos, reforçando tanto os direitos de liberdade quanto os
de igualdade, proporcionando, assim, um nexo protetivo mais adequado e
completo aos direitos decorrentes da dignidade humana (JUBILUT;
LOPES, 2018, p. 12-13).
Em terceiro lugar, pode-se afirmar que a DUDH também traz reflexos
e influência às questões dos valores da comunidade internacional. Como já
pontuado, a DUDH consagra uma opção axiológica pela proteção do ser
humano, e nesse aspecto, faz-se matriz axiológica e jurídica de um sistema
internacional de proteção da pessoa humana que surge a partir dela.
Contudo, para além dessa significativa plataforma protetiva, a DUDH traz
implicações valorativas para o Direito Internacional como um todo (e não
apenas para os direitos humanos) e também para os direitos nacionais
(JUBILUT; LOPES, 2018, p.13).

25
Os 70 anos e o futuro da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
https://revistacult.uol.com.br/home/wp-content/uploads/2018/12/8ff125b6-c164-
4a4b-87a6 93d54773310c.jpg

PARA APROFUNDAR NO ASSUNTO

Ainda que a Declaração Universal dos Direitos do Homem consagre


alguns direitos sociais e econômicos em seus artigos finais, ela é, sem
dúvida, uma declaração de liberdades, ou seja, dos direitos da
chamada primeira geração. A razão é trivial: esses foram os direitos
que mais diretamente foram violados durante a segunda guerra
mundial. Uma consagração mais enfática dos direitos da chamada
segunda geração só veio a ocorrer quase vinte anos mais tarde, com
o Pacto sobre Direitos Sociais e Econômicos, de 1966. Também no
plano internacional, repete-se o já analisado problema da falta de
efetividade desses direitos, já que a vinculação real dos Estados
nacionais a esses direitos é quase inexistente. Por fim, é
principalmente a partir da década de 1970 que os chamados direitos
de terceira geração passam a merecer atenção na ordem
internacional, sobretudo com o Pacto sobre o Patrimônio Universal,
de 1972, e com o Pacto sobre a Diversidade Biológica, de 1992, além
das tentativas ainda em curso, como o Protocolo de Kyoto. (SILVA,
2005, p. 554-555).

26
FÓRUM CRÍTICO

Conforme Jubilut e Lopes (2018, p. 14-15) apesar de toda relevância e


reflexo, a DUDH também apresenta alguns aspectos passíveis de
questionamento, dentre os quais dois merecem destaque:

1. Critica-se o documento, uma vez que ele tão somente foca em


elencar direitos e não traz instrumentos de implementação destes. A
questão da efetividade é, contudo, um desafio geral dos direitos
humanos e não apenas da DUDH. E ainda que em seu texto não
existam instrumentos de implementação, é relevante destacar que a
partir da DUDH surgiu um sistema amplo de proteção aos direitos
ali elencados, com órgãos e mecanismos voltados para a sua
efetivação. (JUBILUT; LOPES, 2018, p.14).

2. Pode-se destacar que estão ausentes da DUDH alguns dos direitos


entendidos como compondo os direitos humanos atualmente. Não
há previsão, como mencionado, de questões de gênero, também
estão ausentes questões ambientais e outras proteções que
especificam sujeitos dos direitos humanos, e alguns direitos
aparecem em suas disposições gerais sem detalhamentos relevantes
(como o caso do direito de asilo e do instituto do refúgio). Contudo,
tal análise pode resultar expectativas que surgiram nos últimos 70
anos, com novas proteções sendo necessárias e a compreensão de
novos reflexos jurídicos da dignidade humana. Ou seja, o mesmo
distanciamento histórico que permite as críticas pode servir de
atenuante a elas. (JUBILUT; LOPES, 2018, p. 15).

De toda forma, a DUDH é um instrumento transformador da ordem


internacional e da asseguração dos direitos humanos; tem profundos
reflexos na proteção dos seres humanos e na humanização do Direito
Internacional, denota uma opção política e jurídica da comunidade
internacional pela dignidade humana (JUBILUT; LOPES, 2018, p.15). Em
linhas gerais, a DUDH como bem afirma Alves (apud JUBILUT; LOPES,
2018, p. 15):

[...] cumpriu um papel extraordinário na história da humanidade.


Codificou as esperanças de todos os oprimidos, fornecendo
linguagem autorizada à semântica de suas reivindicações.
Proporcionou base legislativa às lutas políticas pela liberdade e

27
inspirou a maioria das constituições nacionais na positivação dos
direitos da cidadania. Modificou o sistema “westfaliano” das
relações internacionais, que tinha como atores exclusivos os Estados
soberanos, conferindo à pessoa física a qualidade de sujeito do
Direito além das jurisdições domésticas. Lançou os alicerces de uma
nova e profusa disciplina jurídica, o Direito Internacional dos
Direitos Humanos, descartando o critério de reciprocidade em favor
de obrigações erga omnes. Estabeleceu parâmetros para a aferição
da legitimidade de qualquer governo, substituindo a eficácia da força
pela força da ética. Mobilizou consciências e agências,
governamentais e não governamentais, para atuações solidárias,
esboçando uma sociedade civil transnacional e transcultural como
possível embrião de uma verdadeira comunidade internacional.

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) se


configura como matriz valorativa e normativa do Sistema
Internacional de Direito Internacional dos Direitos Humanos;
• Em termos conceituais, a DUDH pode ser entendida como um
documento transicional em termos da concepção
contemporânea dos direitos humanos, que apreende que
enquanto a dignidade humana é um dado, os direitos humanos
são um construído;
• A DUDH é um instrumento transformador da ordem
internacional e da asseguração dos direitos humanos;
• Apesar de toda relevância e reflexo, a DUDH também apresenta
alguns aspectos passíveis de questionamento.

28
AULA 4: DEFINIÇÕES TEÓRICAS DE DIREITOS
HUMANOS

META

Estabelecer um painel introdutório acerca da teorização relacionada aos


direitos humanos.

OBJETIVOS

• Apreender o panorama conceitual dos direitos humanos;


• Abordagem conceitual em Jürgen Habermas.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

INTRODUÇÃO AO CONCEITO

Na definição de Mbaya (1997, p. 20), os direitos humanos


correspondem a certo estado da sociedade. Antes de serem inscritos numa
constituição ou num texto jurídico, tais direitos se interligam sob a forma
de movimentos sociais, de tensões históricas, de tendência insensível das
mentalidades evoluindo para outro modo de sentir e pensar. Nas palavras
do autor:

Na precipitação histórica que agita o mundo, deveria ser dosada


meticulosamente a parte relativa aos sentimentos, temperamento,
cultura, religião, relação entre poder e sociedade civil. Se os direitos
humanos possuem enraizamento social preciso e incontestável,
ainda assim não são o fruto de simples determinismo social; mesmo
movido por potentes molas sociais, o homem conta como tal em
sua interpretação da história, em sua maneira de governar e pensar
as forças individuais e coletivas que o agitam e provocam. Trata-se
do homem como sujeito dotado de necessidades, desejos,
aspirações, sentimento e razão. Não é somente um ser privado e um
ser social, é‚ também, um animal político. (MBAYA, 1997, p. 20).

29
PARA APROFUNDAR NO ASSUNTO

Aristóteles, que viveu entre os anos de 384-322 a.C., já afirmava que


o homem é um animal político, o que remete à sua natureza social.
Um século antes dessa afirmação, Heródoto, historiador grego, e
Sófocles, um dos mais importantes escritores da tragédia, também já
afirmavam que o homem sem a polis (cidade-Estado na Grécia
antiga) teria um destino trágico, pois, embora seja um ser
independente, sua existência só teria sentido com a convivência
social (FIGUEIREDO, 2008, p.1).

Introduz-se assim, para a leitura dos direitos humanos, o velho


conceito de política, quando se trata dos jogos de poder estabelecidos na
humanidade. Mas o que é política?
O político, por sua parte, é uma forma social de existência. Por esse
termo visam-se os princípios geradores das múltiplas formas de sociedade
(LEFORT, 1991, p. 253). O político está na sociedade como um todo, o
poder político circula em toda sociedade (SCHIMTT, 2006). O termo se
relaciona a ideia de convivência a partir dos vínculos sociais (QUADROS,
2009). Dentro da nova ciência política, o político é definido como campo
do puro poder (MILBANK, 1995, p. 22).
Para Mbaya (1997, p. 20),

A política é um cruzamento no qual atuam contraditoriamente as


exigências do público e do coletivo, do natural e do civil; tal
cruzamento se estabelece sempre numa relação de forças
representada por grupos com interesses divergentes e
freqüentemente opostos. A tarefa fundamental do político é
precisamente a regulamentação dessas forças. (MBAYA, 1997, p. 20)

Essa atmosfera política parece estar conectada com uma série de


pensadores que pontilham os séculos XVII e XVIII, cujo mérito – um dos
mais altos – terá sido admitir a redação de numerosas reivindicações ou
declarações dos direitos, na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos da

30
América. Desde então, faz-se importante ponderar que os direitos
humanos se situam num combate de ideias, se estabelecendo como o
baluarte de um processo de vigilância do espírito diante das pressões dos
poderes estabelecidos, dos hábitos mentais, dos modos de governo
herdeiros de ordens mais antigas (MBAYA, 1997, p. 20).

PARA APROFUNDAR NO ASSUNTO

Como o espírito, a idéia é dinâmica; ela atravessa o tecido da história


para inventar algo novo; ela perturba. Não se trata de um simples
reflexo de certo estado de coisas. Igualmente, a Declaração dos
direitos do homem é esse movimento do espírito ao mesmo tempo
em que responde à necessidade elementar de proteção, no plano
físico e moral, contra os abusos de poder e as desigualdades das
relações de força. Os direitos humanos situam-se no plano das
idéias, da ideologia, mas esta não é o que pensamos habitualmente,
quando a colocamos sistematicamente em oposição à ciência
(MBAYA, 1997, p.20).

O CONCEITO EM JÜRGEN HABERMAS

O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, há muito tempo,


ocupa-se teoricamente com os direitos humanos. No artigo “Direito natural
e revolução”, de 1963, ele aborda as diferentes declarações dos direitos
humanos, na América (Constituição da Virgínia, primeiro “Bill of Rights”,
em 12.6.1776) e na França (primeira “Declaração dos direitos do homem e
do cidadão”, em 26.8.1789) (LOHMANN, 2013, p. 87).
Acerca da sua teorização, em primeiro lugar, deve-se pontuar que à
Habermas não interessa o pensar os direitos humanos em si, mas sim o
papel destes entre moral, direito e política. Historicamente, desde a tradição
do direito natural de Locke e da tradição republicana de Rousseau, de
modos diferentes, uma fundamentação moral (isto é, jusnaturalista) dos
direitos humanos foi conectada aos princípios constitucionais-políticos do
direito e aos atos revolucionários de instituição do Estado. Em sua
elaboração, Habermas mostra também como, em relação à crítica de Marx

31
aos direitos humanos liberais, eles se modificam na passagem para o Estado
social. Nesse aspecto, mesmo os direitos liberais subjetivos “necessitam ser
interpretados” como “direitos políticos” e serem completados pelos
direitos de participação social e de participação política (LOHMANN,
2013, p.87-88).
Em todos os seus trabalhos teóricos posteriores, Habermas preserva
essa perspectiva legal-política para tratamento e tematização dos direitos
humanos. Nesse enquadramento, o filósofo exibe esse princípio de
tematização também conceitualmente, acentuando que o conceito
“direito”, na expressão “direitos humanos”, deve ser entendido como
conceito jurídico.

Pensando o conceito

Direitos humanos são, segundo seu pleno significado, direitos


jurídicos, e não direitos pré-jurídicos, puros moralmente; eles são normas
legais, que foram declarados em atos de fundações revolucionárias do
Estado ou, como após a Segunda Guerra mundial, anunciados nas
convenções de direito internacional (Declaração Universal dos Direitos
Humanos, 1948) ou em documentos constitucionais de Estados novamente
fundados (p. ex., Lei fundamental da República Federal da Alemanha, 1949)
(LOHMANN, 2013, p. 88).
Lohmann (2013, p. 89), ao sintetizar a perspectiva habermasiana dos
direitos humanos vinculados a esfera jurídica assinala que:

Os direitos humanos, se entendidos como direitos jurídicos, são


desde o princípio situados em um sistema, no mínimo, público do
direito. Eles são direitos fortes no sentido de que se pode processar
por intermédio deles, diante de um Tribunal, e pode-se impor e
protegê-los com a ajuda do poder estatal. Mas destinatários dos
correspondentes deveres são, primeiramente, o respectivo Estado e,
quando este não cumpre seus deveres, são todos os Estados e, por
fim, com a mediação de um “terceiro efeito”, são todos os homens.
Também direitos jurídicos têm a pretensão de ser fundamentados
ou fundamentáveis moralmente, mas eles entram em vigor apenas
se são positivados como direitos por um legislador legitimado para
isso.

32
PARA APROFUNDAR NO ASSUNTO

Essa interpretação jurídica dos direitos humanos liga-se a uma


posição política republicana, que, às vezes, provavelmente devido a
sua pretensão à soberania, pode entrar em conflito com a pretensão
universal e igualitária dos direitos humanos (LOHMANN, 2013, p.
89).

FÓRUM CRÍTICO

Quem é o portador dos direitos humanos?

Em virtude de Habermas entender o conceito de direito no sentido


jurídico, apenas em relação ele só pode explicar a necessidade de o homem
ter direitos relativamente a um sistema legal. Em primeiro lugar, é a lógica
interna da função do direito positivo que exige que os indivíduos se
reconheçam como sujeitos de direito, isto é, como pessoas jurídicas que
podem ser portadoras de direitos. Essa percepção obtida e reciprocamente
reconhecida da liberdade subjetiva de ação, porém, é só um direito subjetivo
reconhecido, se a ela estiverem ligados tanto o pertencimento a uma
determinada coletividade legal quanto as respectivas garantias de recorrer
aos tribunais. Nessa perspectiva, para ele, os direitos liberais de defesa não
têm um valor específico fundamental, mas secundário. Donde, de modo
consequente, Habermas precisar ligar a detenção de direitos à cidadania.
Por isso, também os direitos políticos de participação, que regulam os “[...]
procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade,
institucionalizados juridicamente”, assumem a responsabilidade de
fundamentação de todo o arcabouço (LOHMANN, 2013, p. 89).

33
SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Conceitualmente pode-se afirmar que os direitos humanos


correspondem a certo estado da sociedade;
• A Declaração dos direitos do homem é o movimento do espírito
ao mesmo tempo em que responde à necessidade elementar de
proteção, no plano físico e moral, contra os abusos de poder e
as desigualdades das relações de força;
• A teorização dos direitos humanos possui substratos políticos e
jurídicos;
• Direitos humanos são, segundo seu pleno significado, direitos
jurídicos, e não direitos pré-jurídicos, puros moralmente; eles
são normas legais, que foram declarados em atos de fundações
revolucionárias do Estado ou, anunciados nas convenções de
direito internacional ou em documentos constitucionais de
Estados novamente fundados.

34
MÓDULO II: CIDADANIA E ÉTICA

35
INTRODUÇÃO

Chegamos ao Módulo II de nosso curso. Momento de nosso


estudo em que, a luz do que vimos até o momento, adentraremos em um
cenário conceitual e prático que têm sido foco de discursos e elaborações
teóricas ao longo da história do pensamento e convívio humano.
Trataremos dos conceitos e abordagens práticas que envolvem o que
conhecemos hoje como cidadania e ética. Faremos isso dentro de uma
perspectiva metodológica que abordará história, conceito e reflexão crítica
acerca do apreendido, sobretudo no que diz respeito a interface da temática
da cidadania e da ética com o cristianismo. Pronto(a) para os estudos? Este
módulo contém duas unidades com duas aulas cada uma, e com ele
buscaremos sedimentar, através de um levantamento epistemológico-
histórico noções introdutórias acerca do que se concebe por cidadania e
ética, São elas:

UNIDADE III: Cidadania – Conceitos, Elementos e Cristianismo


UNIDADE IV: Ética - Epistemologia e Cristianismo

UNIDADE III: CIDADANIA - CONCEITOS,


ELEMENTOS E CRISTIANISMO

Nessa unidade adentraremos a temática da cidadania. Buscaremos aqui,


estabelecer um panorama introdutório acerca da história, dos conceitos e
elementos vinculados ao tema, bem como visibilizar um foco análogo em
relação à prática cristã da cidadania. Desta unidade fazem parte:

AULA 5: Cidadania - História e Epistemologia


AULA 6: O Cristão e a Cidadania

36
AULA 5: CIDADANIA – HISTÓRIA E
EPISTEMOLOGIA

META

Delinear de forma sintética a linha histórico-conceitual que envolve a


compreensão de cidadania, bem como promover reflexão crítica acerca da
prática e efeitos do conceito.

OBJETIVOS

• Abordar introdutoriamente a cronologia do conceito de cidadania;


• Visibilizar o conteúdo epistemológico do conceito de cidadania em
suas variações históricas.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 HISTÓRIA E EPISTEMOLOGIA

A cidadania é uma expressão vinculada à vida social, as diagramações


experienciais em coletividade que ocorrem em sociedade. Historicamente,
sua gênese está associada ao desenvolvimento das pólis gregas, entre os
séculos VIII e VII a.C. A partir de então, o conceito se estabelece como
referencial para os estudos políticos tanto nas sociedades antigas quanto nas
modernas (LIMA; MENEZES JUNIOR, 2017, p. 2482). O sentido clássico
do termo cidadania remete a participação política do ser humano em
coletividade. O próprio adjetivo ‘político’, por sua vez, já nos remete a ideia
de pólis (Cidade-Estado Antiga). Foi a partir da caracterização deste tipo de
organização urbana que se estruturaram os fundamentos para o conceito
clássico de cidadania, bem como os substratos do conceito atual do termo
(REZENDE FILHO; CÂMARA NETO, s/d).
Mudanças nas estruturas socioeconômicas incidiram, igualmente, na
evolução do conceito e da prática da cidadania, transformando-a de acordo
com o espírito ou demanda de cada tempo. Em se tratando dos dias atuais,
o conceito contemporâneo de cidadania se estendeu em direção a uma

37
perspectiva que envolve a condição de acesso/participação do cidadão aos
direitos sociais (educação, saúde, segurança, previdência) e econômicos
(salário justo, emprego). Direitos que proporcionam ao cidadão o
desenvolvimento de suas potencialidades, incluindo a de participar de
forma ativa, organizada e consciente da vida coletiva no Estado (LIMA;
MENEZES JUNIOR; BRZEZINSKI, 2017, p. 2482).

2 CONCEITUANDO CIDADANIA

Do latim civitas, que significa “conjunto de direitos atribuídos ao


cidadão” ou “cidade”, é difícil datar com precisão o aparecimento do seu
conceito. Sabemos que o seu significado clássico se associava à participação
política. Sua origem remonta à Grécia Antiga, que nos liga a ideia de pólis
como comunidade constituída por indivíduos livres, autônomos,
participantes da vida pública. Aristóteles define o cidadão como aquele que
possui poder para participar de decisões legais e políticas, deliberativas ou
judiciais, podendo governar e ser governado, comparando-o ao marinheiro
(LIMA; MENEZES JUNIOR; BRZEZINSKI, 2017, p. 2483).
A cidadania está diretamente vinculada ao desenvolvimento da história
humana e suas interações societais em um contexto estatal (do Estado)
como ente presente. Nesse aspecto, a conceituação de cidadania não é
única, nem determinada no sentido de estar fechada. Esta varia de acordo
com tempo, espaço e cultura, modificando-se a depender do jogo de
interesses de quem busca ser cidadão. Cada época da história produziu
práticas e conceitos muito distintos, visto que a cidadania é, sobretudo um
construto histórico específico do Ocidente1 (LIMA; MENEZES JUNIOR;
BRZEZINSKI, 2017, p. 2483).
A sociedade é uma projeção histórico-social que se modifica ao longo
dos tempos. É um ente político que produz cultura, e se modifica pela
cultura. Ao longo da história muitas modificações ocorreram nos campos
da técnica, da economia e da arte bélica, e alteraram potencialmente as
relações entre o poder e a sociedade (CARDOSO apud RESENDE
FILHO; CÂMARA NETO, s/d). Nesse aspecto, a urbanização se institui

1Nesse sentido, entendemos ser necessária uma historiografia para melhor compreensão
do que vem a ser a luta constante de direitos que conduzam à cidadania plena. (LIMA;
MENEZES JUNIOR; BRZEZINSKI, 2017, p. 2483).

38
como o fator que mais contribuiu para a evolução das poleis. Essas
alterações foram sentidas em todos os níveis da sociedade, da economia e
da política (RESENDE FILHO; CÂMARA NETO, s/d).
Em se tratando da Grécia antiga, época em que o regime aristocrático
imperava, a cidadania se confundia/relacionava com o conceito de
naturalidade/etnicidade. O cidadão, portanto, era considerado como tal
quando nascido em terras gregas, o qual poderia usufruir de todos os
direitos políticos. Os estrangeiros, por sua vez, não eram incluídos nessa
categoria social. Proibidos de ocuparem-se da política, dedicavam-se às
atividades mercantis. Entretanto, com o passar do tempo, operou-se uma
redistribuição do poder político. Os estrangeiros foram então admitidos na
categoria de cidadão, abolindo-se a escravidão por dívidas (RESENDE
FILHO; CÂMARA NETO, s/d, s/p).
Mais do que indicar uma reformulação do conceito, esse processo de
incorporação do estrangeiro no conceito de cidadania, revelava reflexos de
transformação estruturais. Além de ampliação do quadro de cidadãos, as
póleis gregas vivenciaram um deslocamento do controle político e jurídico.
Há um processo de popularização do poder, ainda que incipiente, no qual
a aristocracia, em determinado e estruturado grau, cede espaço favor das
Assembleias e dos conselhos com participação popular. Contudo
permaneciam os critérios de distinção social, por meio dos quais se limitava
o acesso às Magistraturas mais altas, polarizando o poder político 2
(RESENDE FILHO; NETO, s/d, s/p).
Algo importante a se perceber é que apesar dessas mudanças, fatores
de ordem social e política, persistiam em vincular o termo cidadania ao
exercício da participação política (CARDOSO apud FILHO; CÂMARA
NETO, s/d). Mesmo com esse pleno direito assegurado e a existência de
um regime democrático, a cidadania figurava de forma tímida, sobretudo
quando voltada ao campo efetivo das decisões políticas. Algo para se
pensar. Dentro de um regime ainda elitista, muitos ditos cidadãos, cercados
por restrições econômicas e valores ligados à família, permaneciam
completamente alienados e tolhidos na expressão de atos políticos
(ARENDT apud RESENDE FILHO; CÂMARA NETO, s/d).

2 Como exemplos dessa polarização, podemos citar as classes censitárias criadas pelo
legislador Sólon, no século VI a.C., e a submissão da Assembléia do povo a um Conselho
cujos membros provinham da velha aristocracia, embora esta decisão não tenha durado
muito tempo. (CARDOSO apud RESENDE FILHO; CÃMARA NETO, s/d).

39
Em Roma, o espectro social relacionado à cidadania não era diferente.
Sociedade escravagista, fundamentada nas “gens” (famílias), era dominada
pelos patrícios, os quais detinham a cidadania e os direitos políticos. Por
sua vez, à plebe, constituída de romanos não nobres e de estrangeiros, a
estes não cabia qualquer tipo de direito. Este quadro alterou-se aos poucos,
possibilitando o acesso à cidadania a todos os romanos de nascimento,
mesmo que fossem escravos libertos. Apesar desse avanço, uma manobra
da Aristocracia para preservar o controle político restringiu, novamente, o
acesso à cidadania. Apenas as mais altas magistraturas, entre elas o Senado
e o Patriciado, poderiam usufruir dos privilégios dessa posição (RESENDE
FILHO; CÂMARA NETO, s/d, s/p).
Para conseguirem tal fato, os patrícios aproveitaram-se da tradição
mítico-religiosa, proveniente das origens de Roma, a qual lhes reservava o
monopólio da comunicação com os deuses. Dessa forma, pôde esta camada
social criar e manter as magistraturas ao seu bel prazer. Só em momentos
posteriores, uma parcela de cidadãos enriquecidos conseguiu alterar esse
cenário. Contudo, a plebe, se reservava somente o direito à representação.
Mesmo assim, esse direito só foi conquistado depois de conflitos políticos
estendidos até o século III a.C., com a criação de instituições propriamente
plebeias, como o Tribunato e a Assembleia da Plebe (CARDOSO apud
RESENDE FILHO; CÂMARA NETO, s/d)3.

PARA PENSAR

A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a


possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu
povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da
vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de
inferioridade dentro do grupo social. (DALLARI apud OLIVEIRA;
OLIVEIRA, 2009, p. 3).

3O resultado desse arcabouço institucional era o de uma estrutura aristocrática, disfarçada


em República, na qual vigoravam os interesses do grupo dos patrícios, em detrimento de
outras camadas politicamente irrelevantes. Entre estas foram crescentes as manifestações
de descontentamento, sobretudo entre o grupo dos enriquecidos com o comércio, que,
mesmo podendo exercer funções públicas, não conseguiam chegar ao Senado.
(RESENDE FILHO; CÂMARA NETO, s/d, s/p).

40
A partir dessas informações, podemos concluir que:

[...] essência política do conceito de cidadania na realidade greco-


romana revestia-se de uma discrepância entre Democracia real e
ideal. Defendia-se, portanto, uma igualdade de direitos políticos que,
de fato, não era praticada. Com o passar dos tempos, entretanto, o
conceito de cidadania passou a se referir a outras esferas que não
apenas à política. Assim, para entender seu significado, somos
obrigados a atentar para os direitos civis e sociais, situando a
cidadania também na esfera jurídica e moral. (MARSHALL apud
RESENDE FILHO; CÂMARA NETO, s/d)

Isso nos remete ao conceito moderno de cidadania. Sua formulação é


baseda na mudança de alguns paradigmas sociais. Lima, Menezes Junior e
Brzezinski (2017, p. 2483) auxiliam nessa questão ao pontuarem que:

Se na Antiguidade prevalecia a ideia de que o homem é um ser


político e que se encontra inserido em uma relação social onde o
todo se sobrepõe às partes, na Modernidade o indivíduo se liberta
do poder absoluto de uma lei divina ou natural, exterior a ele. Nesse
momento, o Estado passa a ser concebido como resultado da
associação de indivíduos livres e autônomos, por meio de um
contrato social, de um pacto onde eles possam deixar o estado de
natureza e fugir da barbárie. A cidadania moderna nos remete às
conquistas sociais a partir do século XVI, em que a Revolução
Francesa e a Revolução Americana destacam-se na luta pela
superação do absolutismo do Estado.

Nesse sentido, a concepção moderna de cidadania pode ser vista por


uma linha história, a saber:

1. Nos séculos XVI, XVII e XVIII se constrói, na Europa, a noção


moderna de Estado, com suas bases alicerçadas na cidadania e no
papel fundamental da educação para a construção da identidade
burguesa. Em linhas gerais, pode-se dizer que as revoluções
burguesas apresentaram a ideia de cidadania ligada aos ideais
burgueses – liberdade, igualdade e propriedade, colocando a
educação como instrumentalizadora do cidadão, essencial para a

41
difusão dos valores culturais para todos (LIMA; MENEZES
JUNIOR; BRZEZINSKI, 2017, p. 2483-2485);
2. A concepção de cidadania na linha histórica, já no século XX, ganha
uma importante contribuição com o britânico Thomas Humphrey
Marshall (1893-1981), principalmente em Citizenship and social
class (Cidadania e classe social, 1950): trata-se de um conceito liberal
contemporâneo de cidadania, composto pelo elemento civil e
político. Define que o exercício da cidadania somente será atingido
quando houver observância aos direitos humanos em seus
diferentes âmbitos (econômico, civil, social e coletivo). Distingue as
dimensões da cidadania com base em uma sequência desenvolvida
na realidade inglesa: no século XVIII, são apresentados os direitos
civis, ou seja, os direitos fundamentais à vida, liberdade,
propriedade e igualdade. O século seguinte, por meio de muitos
debates e disputas, consolida os direitos políticos – aqueles que
permitem a participação de uma parcela da população na vida
política do Estado através do exercício do voto. A conquista dos
direitos sociais só se dá no século XX, fruto das reivindicações de
pessoas que se viram excluídas da riqueza coletiva e se valeram dos
direitos estabelecidos anteriormente para se organizarem em
movimentos e partidos para a busca de melhorias nas condições de
vida. São considerados direitos sociais a educação pública, o
trabalho, um salário justo, a saúde, a aposentadoria, entre outros
(LIMA; MENEZES JUNIOR; BRZEZINSKI, 2017, p. 2485).

Relação entre Direitos Humanos e Cidadania. Disponível em:


http://obviousmag.org/poeira_de_plutao/cidadania.jpg

42
SUGESTÃO DE AUDIÊNCIA

Acerca da temática da cidadania veja entrevista de Mario Sérgio Cortella


disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MPGYmQFr9Vw

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• O sentido clássico do termo cidadania remete a participação


política do ser humano em coletividade. Historicamente, sua
gênese está associada ao desenvolvimento das pólis gregas, entre
os séculos VIII e VII a.C.;
• Mudanças nas estruturas socioeconômicas incidiram,
igualmente, na evolução do conceito e da prática da cidadania,
transformando-a de acordo com o espírito ou demanda de cada
tempo;
• Apesar das mudanças, fatores de ordem social e política
persistiam em vincular o termo cidadania ao exercício da
participação política;
• De alguma forma, velada ou não, a cidadania é um conceito
historicamente forjado por uma interpretação que beneficia a
aristocracia.

43
AULA 6: O CRISTÃO E A CIDADANIA
META

Promover reflexão crítica acerca da cidadania do ponto de vista efeitual


do conceito no panorama cristão.

OBJETIVOS

• Questionar o posicionamento cristão no que diz respeito a


formação cidadã;
• Propor a conceituação de uma Teologia da Cidadania.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 PROBLEMAS E DESAFIOS

Diante do quadro histórico conceitual de cidadania abordado, uma


pergunta surge: Como a igreja, como espaço de fé, pode promover noções
de cidadania? Como formar cidadãos a partir da prática pastoral? Oliveira e
Oliveira (2009) auxiliam a reflexão dessa problemática e postulam que:

[...] a cidadania não nasce da noite para o dia, ela precisa ser
conquistada pelos indivíduos que compõem uma nação, sem
reserva. Como a população evangélica constitui uma parcela
significativa desta nação, cabe sua participação na construção desta
cidadania em curso, afim de segundo Ramos [...] construir uma
sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem
preceitos de origem, raça, sexos, cor, idade e quaisquer outras
formas de descriminação - Constituição, Art 3º dos Princípios
Fundamentais. (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2009, p. 4).

Frente a esse desafio, Oliveira e Oliveira (2009, p. 6-11), propõe seis


ações pastorais na formação de sujeitos cidadãos. São elas:

44
1- Promover a superação da dicotomia: cristão versus cidadão:
Uma ação pastoral junto à comunidade, com vistas à formação de
sujeitos cidadãos, deve contribuir para a superação da dicotomia
entre ser cristão e ser cidadão.
2- Promover o desenvolvimento de uma fé cidadã:
Segundo Castro a fé cidadã e “a fé vista na perspectiva da ação, como
fé participativa, que ativa a consciência ética do cristão, abrindo-lhe
a possibilidade de inserção (testemunho) no espaço público”.
3- Promover no espaço litúrgico-celebrativo reflexão sobre
cidadania:
Cabe ao/a pastor/a, oportunizar nos espaços cúlticos-celebrativos
momentos para reflexões sobre as angústias e alegrias, derrotas e
vitórias do povo, no sentido de ajudar na construção de uma fé
cidadã.
4- Promover a educação para cidadania em âmbito
eclesiástico:
A Igreja possui estruturalmente muitos espaços de educação: Escola
Dominical, Culto de Estudos, entre outros são exemplos de
seguimentos que constituem espaços privilegiados para a formação
de sujeitos cidadãos.
5- Promover parcerias com instituições para elaboração de
projetos cidadãos:
A igreja pode estabelecer parceria com organismos, igrejas
evangélicas irmãs, terceiro setor, ONGs e até o próprio governo,
para promover programas de cunho social e cidadania.
6- Promover a participação dos cristãos nas gestões
Democráticas:
As cidades aparecem como espaço privilegiado para a vivência da fé
e a construção de uma cultura democrática, onde se possa exercer
plenamente a cidadania, “repensar a cidade, como local prioritário
da missão e da vivência de uma fé cidadã, e um dos objetos da
Pastoral da Cidadania”.

1.1 TEOLOGIA DA CIDADANIA

A reflexão acerca da analogia entre cidadania e cristianismo nos remete


a uma teologia da cidadania. A expressão Teologia da Cidadania como
Teologia Pública é do teólogo suíço Rudolf von Sinner. Para Sinner,
“cidadania tornou-se o termo chave da democracia no Brasil”. E, para ele,
“Igrejas cristãs e outras comunidades religiosas são, efetivamente, parte da
sociedade civil e contribuem fomentando, de algum modo, a cidadania”
(SINNER apud CLODOVIS BOFF, 2017, p. 158). Conforme a leitura de
Zeferino e Boff (2017, p. 158), “o teólogo R. von Sinner anima a reflexão

45
acerca de uma Teologia da Cidadania a partir de elementos oriundos da
Teologia luterana: a) ser cidadão; b) viver como cidadão; c) perseverar como
cidadão; d) servir como cidadão; e) ser um cidadão cristão.” Abaixo
podemos ver a elaboração ético-teológica de von Sinner sobre estes
aspectos:

Primeiro elemento:

Ser cidadão/ã: dignidade e direitos. A gratuidade da justificação e a


atribuição da dignidade pelo Criador, sem condições, são ênfase
aqui. A teologia luterana insiste na justificação pela graça mediante a
fé extra nos, recebida como dádiva, que junto com uma teologia da
criação focada no ser humano feito à imagem e semelhança de Deus
fundamenta a cidadania. A pessoa é cidadã não por características
ou méritos específicos, mas simplesmente por ser um ser humano,
que tem sua dignidade intrínseca atribuída. Ninguém pode roubá-la
dela; contudo, pode ser invisibilizada. Nesse caso, importa torná-la
visível novamente e possibilitá-la como experiência concreta para a
pessoa. (SINNER apud ZEFERINO; BOFF, 2017, p. 159).

Segundo elemento:

Viver como cidadão/ã: confiança no contexto da desconfiança.


Enquanto a confiança interpessoal e a institucional são
indispensáveis para qualquer democracia, estas são ausentes ou
restritas no Brasil num nível alarmante. As igrejas, ao mesmo tempo,
estão entre as instituições consideradas mais confiáveis, o que lhes
confere um alto potencial e responsabilidade. O fato de que sua fé
significa confiança em Deus vai muito além de tal confiança
necessária para o funcionamento da democracia, mas pode
fortalecê-la e renová-la. Daí é possível arriscar-se novamente em
confiar – e mostrar-se digna da confiança dos outros. Nesse sentido,
é possível viver como cidadão/ã. (SINNER apud ZEFERINO;
BOFF, 2017, 159).

Terceiro elemento:

Perseverar como cidadão/ã: a ambiguidade da existência. [...]


enxergar-se e a outros como simul iusti et peccatores, justos in spe,

46
na esperança, e pecador in re, na verdade, como diria Lutero. Antes
de ser um pessimismo, como alguns pensaram, considero essa visão
realista. Isso significa, também, que a confiança conforme exposto
acima não pode ser uma confiança ingênua, mas cautelosa e
informada. Para os cristãos, sempre há desconfiança diante dos seres
humanos, tanto de si mesmos quanto de outros, de acordo com sua
consciência do poder do pecado. De qualquer forma, sendo capaz
de aguentar ambiguidade como parte intrínseca da vida, pode-se
perseverar como cidadão/ã. (SINNER apud ZEFERINO; BOFF,
2017, p. 159-160).

Quarto elemento:

Servir como cidadão/ã: liberdade e serviço. A questão da motivação


para a cidadania também merece destaque, uma motivação que não
apenas considera os próprios direitos, nem apenas seus deveres. Tal
motivação, pela qual os/as cristãos/ãs têm fundamentação teológica
específica, nem cai numa autonomia mal-entendida como mero
interesse individual, nem numa heteronomia como subserviência
cega, mas procura o serviço livre na liberdade. Mediante a
justificação pela fé, os cristãos se tornam criaturas novas, livres do
cativeiro do mal, enquanto estão numa posição para servir, no meio
do pecado e do mal. Em seu famoso tratado da liberdade cristã,
Lutero mostra claramente que tal liberdade não é, simplesmente,
uma liberdade de escolha, mas de serviço: ser, ao mesmo tempo, um
‘senhor libérrimo’ e ‘a todos sujeito’17, por vontade própria, não por
coerção. Assim, cidadania pode ser descoberta como serviço. Diante
da ênfase comum apenas em direitos e não deveres, tal atitude é,
especialmente, importante (SINNER apud ZEFERINO; BOFF,
2017, p.160).

Quinto elemento:

Ser um/a cidadão/ã cristão/ã: servindo a Deus sob dois regimentos.


Alguns cristãos e igrejas têm a tendência de separar religião e política,
igreja e Estado, de uma forma a serem dispensados, indevidamente,
de suas responsabilidades em relação ao conjunto da sociedade.
Outros tendem a confundir as esferas e procuram impor sua fé e
igreja sobre os demais. Ambas as tendências precisam ser superadas
pelo cidadão cristão que se enxerga como servindo a Deus sob dois
regimentos. Para Lutero, numa época de cristandade, era claro que
Deus reinaria por meio de ambos os regimentos. Esse não pode ser
um ponto de partida hoje, em tempos de pluralismo religioso e num

47
Estado secular, i.e., neutro em assuntos da religião. Contudo, a
distinção de papéis ainda importa hoje para evitar uma intromissão
indevida de ambos os lados’ É ‘um desafio para qualquer cidadão
cristão servir a Deus sob dois regimentos, o espiritual e o secular’.
(SINNER apud ZEFERINO; BOFF, 2017, p. 160).

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Aos cristãos, cabe sua participação na construção da cidadania a


fim de construir uma sociedade livre, justa e solidária;
• A expressão Teologia da Cidadania surge como Teologia
Pública;
• No cristisnismo a cidadania pode ser descoberta como serviço.
Diante da ênfase comum apenas em direitos e não deveres, tal
atitude é, especialmente, importante;
• Ser um/a cidadão/ã cristão/ã é servir a Deus sob dois
regimentos: religião e política, igreja e Estado.

48
UNIDADE IV: ÉTICA - EPISTEMOLOGIA E
CRISTIANISMO

Nessa unidade adentraremos a temática da ética. Buscaremos aqui,


estabelecer um panorama introdutório acerca da história, dos conceitos e
elementos vinculados ao tema, bem como visibilizar um foco análogo em
relação à prática da ética no cristianismo. Desta unidade fazem parte:

AULA 7: Ética - Epistemologia e Elementos


AULA: 8: Ética Cristã

49
AULA 7: ÉTICA - EPISTEMOLOGIA E ELEMENTOS
META

Delinear de forma sintética a linha histórico-conceitual que envolve


a compreensão de ética, bem como promover reflexão crítica acerca da
prática e efeitos do conceito, sobretudo na esfera cristã.

OBJETIVOS

• Abordar, introdutoriamente, a cronologia do conceito de ética;


• Visibilizar o conteúdo epistemológico do conceito de ética em suas
formulações e variações histórico-filosóficas.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 O CONCEITO DE ÉTICA

Como animal político e politizado, o homem está confinado a


construir-se a partir da esfera e das relações sociais, com o outro, o que
pensa diferente cultural e ideologicamente. Fora da sociedade, a existência
humana não passa de um retrato de abstração, na medida em que o ser
humano é em sua constituição, o que assimila, apreende nas interações
sociais ao longo de sua vida. É do meio social que o homem retira os meios
de aprimoramento da vida coletiva, quer material, moral ou ético
(FIGUEIREDO, 2008, p. 1). “Como a ética considera o que é moralmente
certo ou errado, numerosas teorias têm sido propostas com a finalidade de
discernir o que é uma ação moralmente boa” (GEISLER, 2010, p.15).
Aristóteles, o primeiro a formular os princípios da ação humana acerca
da diferença entre o conhecimento teórico e o prático, em sua famosa obra
Ética a Nicômaco, postula que a ética nos ensina a viver, ela, para ser vivida,
é práxis e não propriamente theoria ou póesis. Desse ensinamento se conclui
que ética se instala em solo moral, na medida em que ela se vincula a
experiência histórico-social dentro da geografia da moralidade
(FIGUEIREDO, 2008, p. 1).

50
Como uma primeira definição poderíamos dizer que “Ética ou filosofia
da moral pode ser conceituada como a parte da filosofia que se ocupa com
a reflexão a respeito dos fundamentos da vida moral” (Cotrim apud
FIGUEIREDO, 2008, p.1-2).
Importante saber que o legado histórico do conceito de ética vem de
longe. Em síntese, data de aproximadamente 500 a 300 anos a.C., época que
remete aos áureos tempos do pensamento e filosofia grega. Foi nesse
período que se construíram ideias, definições, conceitos e teorias acerca da
ética que se estabelecem como fundamento do pensamento humano no
campo da moral até os dias atuais. Dentro desta celebre galeria de
pensadores estão, Sócrates, Platão e Aristóteles, filósofos responsáveis, pela
análise e reflexão sobre o agir do homem (VALLS apud FIGUEIREDO,
2008, p. 2).
A reflexão filosófica regada neste campo brotou de uma indagação a
respeito da natureza do bem moral, na busca de um princípio absoluto de
conduta humana. Embora se tenha atribuído a Sócrates o início dessa
reflexão, pode-se afirmar que a primeira apresentação sistemática da Ética
se encontra em Aristóteles. Em sua obra Ética a Nicômaco, o filósofo grego
formulou grande parte dos problemas que seriam pauta posterior para os
filósofos morais, a saber: relação entre as normas e os bens; relação entre a
ética individual e a social; classificação das virtudes; exames da relação entre
a vida teórica e a vida prática, dentre outros (FIGUEIREDO, 2008, p.1-2).

PARA APROFUNDAR NO ASSUNTO

Uma das principais obras de Aristóteles foi a Ética de Nicômaco. Esse


tratado é reconhecido como uma das obras-primas da filosofia moral. Nele,
é apresentada a questão fundamental de toda a investigação ética ao se
questionar: qual o fim último de todas as atividades humanas? Supondo
Aristóteles que “toda arte e investigação, e igualmente toda ação e todo
propósito, parecem ter em mira um bem qualquer: por isso foi dito, não
sem razão, que o bem é aquilo a que todas as coisas visam”
(FIGUEIREDO, 2008, p. 2).

51
À luz do pensamento aristotélico, a ética seria um elemento humano
que conduziria as ações humanas em relação às chamadas virtudes (boas
ações) e dos vícios (más ações). Em Aristóteles essas virtudes (boas ações)
seriam de cunho intelectual (conhecimento teórico – resultante do ensino)
e moral (conhecimento prático – adquirido pelos hábitos). Dentro dessa
compreensão surge sua definição de ética como “Ética (ήδίά), isto é, ciência
dos costumes (ηθοζ)” (FIGUEIREDO, 2008, p. 2).
A palavra ética presente em nossa cultura deriva do grego Ethos. Nessa
língua, possui duas grafias: ηθοζ (êthos) e εθοζ (éthos). Essa dupla grafia
remete a diversidade de significados da expressão. (CUBELLES apud
FIGUEIREDO, p. 2). Esses dois termos, por sua vez, podem ser
entendidos em três sentidos: “morada” ou “abrigo”, “caráter ou índole” e
“hábitos” ou “costumes” (FIGUEIREDO, 2008, p. 2).
Conforme Figueiredo (2008), o termo grego ηθοζ (êthos), quando
escrito com “eta” (η) inicial, possui dois sentidos: morada, caráter ou índole.
Nessa sistematização:

O primeiro sentido é de proteção. É o sentido mais antigo da


palavra. Significa “morada”, “abrigo” e “lugar onde se habita”. É o
lugar onde é mais provável de se encontrar o eu real4. Ele representa
aquilo que faz uma pessoa, um indivíduo: sua disposição, seus
hábitos, seu comportamento e suas características (FIGUEIREDO,
2008, p.2). Nesse sentido, cada um tem sua própria ética. É isso,
mais que os acidentes e incidentes da vida, que o diferencia de todos
os demais. (Nicolescu apud FIGUEIREDO, 2008, p.3).

O segundo significado da palavra êthos assume uma concepção


histórica a partir de Aristóteles. Representa o sentido mais comum
na tradição filosófica do Ocidente. Este sentido interessa à ética, em
particular, por estar mais próximo do que se pode começar a
entender por ética. Êthos significa “modo de ser” ou “caráter”. Mas
esse vocábulo apresenta um sentido bem mais amplo em relação ao
que damos à palavra “ética”. O ético compreende, antes de tudo, as
disposições do homem na vida, seu caráter, seus costumes e,
naturalmente, também a sua moral. Na realidade, poderia se traduzir

4 Usava-se, primeiramente, na poesia grega com referência aos pastos e abrigos onde os
animais habitavam e se criavam. Mais tarde, aplicou-se aos povos e aos homens no sentido
de seu país. Depois, por extensão, à morada do próprio homem (Aranguren apud, p.2), isto
é, refere-se a uma habitação que é íntima e familiar, é o “lar”, um lugar onde o homem
vive. (FIGUEIREDO, 2008, p.3).

52
como uma forma de vida no sentido preciso da palavra, isto é,
diferenciando-se da simples maneira de ser. (Aranguren apud
FIGUEIREDO, 2008, p. 3).

Sobre a definição de caráter como significado da palavra êthos o


autor salienta:

Interessa o caráter em seu sentido estritamente moral, isto é, a


disposição fundamental de uma pessoa diante da vida, seu
modo de ser estável do ponto de vista dos hábitos morais
(disposição, atitudes, virtudes e vícios) que a marcam – que a
caracterizam – e lhe conferem a índole peculiar que a distingue
dos demais. Refere-se ao conjunto das qualidades, boas ou más, de
um indivíduo, resultante do progressivo exercício na vida coletiva.
É esse caráter, não no sentido biológico ou psicológico, “senão no
modo de ser ou forma de vida que vai adquirindo, apropriando,
incorporando ao longo de toda uma existência”, que está associado
a ética (Aranguren apud FIGUEIREDO, 2008, p.3). Esse modo de
ser, “apresenta uma dupla dimensão de permanência e de
dinamismo. O núcleo de nossa identidade pessoal é o produto das
opções morais que vamos fazendo em nossa biografia. Essas opções
vão conformando nossa fisionomia moral – a classe de pessoas que
somos, nossa índole moral –, ou seja, a disposição para nos deixar
mover por uns motivos e não por outros”. (Ferrer apud
FIGUEIREDO, 2008, p. 3).

Por sua vez, o segundo termo grego que remete a ética, εθοζ (éthos),
quando escrito com épsilon (ε) no início da palavra é traduzido por
“hábitos” ou “costumes” (FERRER apud FIGUEIREDO, 2008, p. 3). Este
é o éthos social. Significa hábitos, costumes, tradições. Refere-se aos atos
concretos e particulares, por meio dos quais os seres humanos articulam
suas ações, na vida particular e cotidiana, realizam seus projetos de vida.
Em síntese, há uma tensão entre os conceitos subjacentes nos termos
gregos: ηθοζ (êthos) e εθοζ (éthos). Esta tensão, segundo Aranguren,

[...] sem contradição entre êthos como caráter e éthos como hábitos,
definiria o âmbito conceitual da idéia central da ética. Razão pela
qual, tanto na concepção clássica quanto na moderna, a ética ocupa-
se constantemente dos atos morais e dos hábitos no sentido de
virtudes e vícios. As virtudes podem ser classificadas pela forma de
aquisição: intelectuais e morais. As virtudes intelectuais são

53
resultados do ensino, são muito artificiais, por isso precisam de
experiências e tempo para formar o caráter. As virtudes morais são
adquiridas pelo hábito, costumes ou experiência. Não são inatas, são
adquiridas pelo exercício da práxis, com o convívio social, ou seja,
com a disposição de viver com ou conviver com os outros.
(ARANGUREN apud FIGUEIREDO, 2008, p. 3-4).

Diante de todos esses argumentos, Figueiredo (2008), propõe uma


definição sintética do que seria ética. Algo para se considerar quando se
trata do tema. Nas palavras do autor:

[...] a ética pode ser entendida como a ciência da reta ordenação dos
atos humanos desde os últimos princípios da razão (kathein).
Estamos, portanto, diante de uma ciência prática, que trata de atos
práticos. É a razão da filosofia da prática. É a forma que configura a
matéria (atos humanos). Por isso, é importante saber que a ética não
se ocupa do irracional, como sugerem algumas interpretações, senão
do racional prático, intentando saber o específico da moral em sua
razão filosófica. Isto é, a razão das escolhas de uma determinada
conduta e os fundamentos da tomada de decisão. Dessa concepção
e do entendimento de que ações humanas podem ser abordadas por
uma perspectiva psicológica, biológica ou filosófica, deduz-se que a
“ética” se ocupa da reflexão filosófica relativa à conduta humana sob
o prisma dos atos morais. Ela vai examinar a natureza dos valores
morais e a possibilidade de justificar seu uso na apreciação e na
orientação de nossas ações, nas nossas vidas e nas nossas
instituições. (Skorupsk apud FIGUEIREDO, 2008, p. 4).

PARA PENSAR

A ética estuda as relações entre o indivíduo e o contexto em que está


situado. Ou seja, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta
[mundo moral]. Procura enunciar e explicar as regras [sobre as quais se
fundamenta a ação humana ou razão pela qual se deve fazer algo], normas,
leis e princípios que regem os fenômenos éticos. São fenômenos éticos
todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o indivíduo e o
seu contexto (FIGUEIREDO, 2008, p. 4).

CONCEITUANDO ÉTICA FILOSÓFICA

54
A ética filosófica é uma metalinguagem que fala da práxis humana,
tentando descobrir a razão pela qual se deve fazer algo, considerando os
valores morais estabelecidos em cada sociedade (Cubelles apud
FIGUEIREDO, 2008, p.4).

PARA FIXAR

MORAL E ÉTICA (RELAÇÕES E DEFINIÇÕES)

Há muita confusão no que se diz respeito a conceituação de ética e


moral, para esclarecermos isso fixaremos quatro postulados:

1. “A Ética significa Ciência da moral, quer dizer, ética seria a


construção intelectual, organizada pela mente humana sobre a
moral. Esta seria, pois, o seu objeto” (COIMBRA apud
FIGUEIREDO, 2008, p. 6).
2. “O entendimento clássico de ética era o do estudo filosófico dos
fundamentos, dos princípios, dos deveres e dos demais elementos
da vida moral. Ou seja, trata-se da teoria filosófica sobre a
moralidade”. O termo moral aplica-se, pelo contrário, à
consideração prática dos casos concretos; isto é, para designar a arte
de aplicar a teoria filosófica – a ética – aos problemas concretos da
vida moral (FIGUEIREDO, 2008, p. 6).
3. A moral é conteúdo da ética. “Poder-se-ia dizer que a moral é a
matéria prima da ética”, pois constitui o conjunto de hábitos e
prescrições de uma sociedade (NALINE apud FIGUEIREDO,
2008, p.7).
4. A moral é o que se refere aos usos, costumes, hábitos e
habitualidades. De certa forma, ambos os vocábulos [ética e moral]
se referem a duas ideias diferentes, mas relacionadas entre si: os
costumes dizem respeito aos fatos vividos, ao que é sensível e
registrado no acervo do grupo social como prática habitual. A ideia
contida na moral é a relação abstrata que comanda e dirige o fato,
o ato, a ação ou o procedimento. A moral explica e é explicada pelos
costumes. A moral pretende enunciar as regras, normas e leis que
regem, causam e determinam os costumes, inclusive muitas vezes,

55
anunciando-lhes as consequências (KORTE apud FIGUEIREDO,
2008, p. 7).

Ética, Direitos humanos e projetos políticos. Disponível em:


http://www.ssrede.pro.br/wp-content/uploads/2016/09/shutterstock_335677604.jpg

PARA CONHECIMENTO

VÁRIAS VISÕES SOBRE A ÉTICA

Conforme Geisler “há somente seis sistemas éticos elementares; cada


um designado pela resposta à pergunta: há leis éticas objetivas? Em outras
palavras, há leis morais, que não sejam meramente subjetivas, mas sim
obrigatórias a todos os seres humanos em geral? Em resposta, o
antinomismo diz que não há leis morais; o situacionismo afirma que existe
uma lei absoluta; o generalismo reivindica que existem algumas leis gerais,
mas não existem leis absolutas; o absolutismo não qualificado acredita em
muitas leis absolutas que nunca são conflitantes; o absolutismo conflitante
defende a ideia de que há muitas normas absolutas que algumas vezes são
conflitantes, o que nos obriga a escolher entre o menor de dois males, o
absolutismo graduado diz que muitas leis absolutas são conflitantes, e nós
somos responsáveis por obedecer àquelas que forem mais elevadas”
(GEISLER, 2010, p. 19).
Diferenças entre as várias visões

56
De acordo com Geisler (2010) das seis visões básicas sobre ética, duas
negam a existência de leis morais absolutas de forma objetiva. Das duas, o
antinomismo nega todas as leis morais, tanto gerais quanto universais, e o
generalismo, por outro lado, nega somente as leis morais universais, mas
mantém as leis gerais. Em outras palavras, para os generalistas, existem
algumas leis morais objetivas que são obrigatórias na maior parte do tempo,
mas não necessariamente em todo o tempo. As outras quatro visões são
formas variadas de absolutismo.
Dentre elas, só o situacionismo acredita em apenas um absoluto, as
demais acreditam em dois ou mais absolutos. Destas últimas, o absolutismo
não qualificado defende a ideia de que os princípios morais absolutos nunca
são conflitantes, ao passo que as outras duas visões acreditam que algumas
vezes eles são conflitantes. Das duas visões que acreditam que os princípios
morais são às vezes conflitantes, o absolutismo conflitante afirma que nós
somos responsáveis por fazer o menor de dois males, mas culpados por
qualquer um dos que deixamos de obedecer. Por outro lado, o absolutismo
graduado diz que nossa responsabilidade é obedecer ao maior mandamento
entre os dois, e, por consequência, nós não somos culpados por não seguir
o mandamento menor que conflita com o maior (GEISLER, 2010, p.19-
20).
Outra perspectiva importante abordada por Geisler (2010, p.17) diz
respeito à teorização de uma bipartição de categorias que englobam a ética.
A saber:

Sistemas éticos podem ser divididos em duas grandes categorias: a


deontológica (centrado no dever) e a teleológica (centrado nos meios
e nos fins). Em alguns casos, esta última categoria é chamada de
consequencialismo, pois, nesse sistema, o valor do ato é
determinado pela consequência. Por exemplo, o utilitarismo é um
modelo de ética teleológica. Em contrapartida, a ética cristã é
deontológica. A natureza da ética deontológica pode ser vista de
maneira mais clara em contraste com a visão teleológica.
(GEISLER, 2010, p.17).

O esquema abaixo sintetiza essa elaboração. Vejamos:

57
(GEISLER, 2010, p.18).

SUGESTÃO DE AUDIÊNCIA

Acerca da temática da ética assista a palestra de Clóvis de Barros Filho.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q-CcfQXJJhc

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Ética ou filosofia da moral pode ser conceituada como a parte


da filosofia que se ocupa com a reflexão a respeito dos
fundamentos da vida moral;
• A ética pode ser entendida como a ciência da reta ordenação dos
atos humanos desde os últimos princípios da razão. Estamos,
portanto, diante de uma ciência prática, que trata de atos
práticos;
• Dentro do aspecto que envolve uma confusão de conceitos entre
moral e ética podemos dizer que a moral é conteúdo da ética,
sua matéria prima, pois constitui o conjunto de hábitos e
prescrições de uma sociedade.

58
AULA 8: ÉTICA CRISTÃ
META

Promover reflexão crítica acerca da prática e efeitos do conceito de


ética, sobretudo na esfera cristã.

OBJETIVOS

• Questionar o posicionamento cristão no que diz respeito a


estruturação de uma ética cristã;
• Propor a fundamentação da ética em Karl Barth.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 ÉTICA CRISTÃ

Um dos importantes estudos acerca da ética no cristianismo encontra-


se na obra Ética Cristã: opções e questões contemporâneas, do apologeta
cristão Norman Geisler. Para se pensar em ética, dentro do contexto
cristão, propõe-se um panorama acerca do seu pensamento.
De acordo com os estudos de Geisler (2010), enquanto a ética
considera o que é moralmente certo ou errado, a ética cristã possui um
aspecto de abordagem particular na medida em que considera o que é
moralmente certo ou errado para os cristãos. Uma vez que os cristãos
baseiam suas crenças na revelação de Deus dada nas Escrituras, a Bíblia se
estabelece como um manual ético a ser seguido. Nesse contexto, a revelação
natural divina também é considerada para o estabelecimento de um
parâmetro ético dentro do cristianismo5 (GEISLER, 2010, p.15). Em
síntese, a ética cristã se fundamenta na vontade divina. Nas palavras de
Geisler:

5 Deus não limitou sua revelação às Escrituras; ele também se revelou, de forma geral,
através da natureza (Rm 1.19-20; 2.12-14). Deve-se, assim, esperar que existam
semelhanças e justaposições entre a revelação natural e a sobrenatural de Deus visto que
seu caráter moral não muda. (GEISLER, 2010, p.15).

59
A ética cristã tem a forma de um mandamento divino. Um dever
ético é algo que nós temos de fazer; é uma prescrição divina. É claro
que os imperativos éticos que Deus dá estão alinhados com seu
caráter moral imutável. Em outras palavras, Deus deseja que se faça
o que é certo em concordância com seus próprios atributos morais.
“Sede santos, porque eu sou santo”, foi o mandamento de Deus para
Israel (Lv 11.45). “Sede, pois, perfeitos, assim como perfeito é o
vosso Pai celestial” (Mt 5.48), Jesus disse aos seus discípulos. “É
impossível que Deus minta” (Hb 6.18), assim, nós também não
devemos mentir. “Deus é amor” (1Jo 4.16), e Jesus disse, “amarás o
teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22.39). Em suma, a ética cristã
baseia-se na vontade de Deus, e Deus nunca deseja algo que seja
contrário ao seu caráter moral imutável. (GEISLER, 2010, p. 15-16).

Em sua investigação Geisler (2010, p. 16-17), também sistematiza dois


pressupostos inerentes a ética cristã. São eles:

1.1 A ética cristã é absoluta

A partir do fato de que o caráter moral de Deus não muda (Ml 3.6; Tg
1.17), chega-se à conclusão de que as obrigações morais derivadas de sua
natureza são absolutas.
Isso significa que são obrigatórias a todas as pessoas e em todos os
lugares. De fato, nem tudo o que Deus deseja flui, necessariamente, de sua
natureza imutável. Algumas coisas estão meramente em conformidade com
sua natureza, mas fluem independentes de sua vontade6.

6 Por exemplo, Deus escolheu aplicar um teste de obediência moral a Adão e a Eva,
proibindo-os de comerem o fruto de uma árvore específica (Gn 2.16-17). Embora para
Adão e Eva tenha sido moralmente errado desobedecer a esse mandamento específico
feito por Deus, nos dias de hoje nós não estamos obrigados a obedecê-lo, pois aquele
mandamento, embora estivesse baseado na vontade de Deus, não fluía necessariamente de
sua natureza. Por outro lado, o mandamento de Deus para não derramar sangue humano
(Gn 9.6) foi instituído antes de a Lei ter sido dada a Moisés, quando a Lei foi dada a Moisés
(Ex 20.13) e também nos tempos posteriores à Lei de Moisés (Rm 13.9). Assim, entende-
se que matar é uma atitude errada em todos os tempos, em todos os lugares e para todas
as pessoas. Isto é verdadeiro porque os seres humanos são criados à “imagem de Deus”
(Gn 1.27; 9.6), o que inclui uma semelhança moral com Deus. (Cl 3.10; Tg 3.9) (GEISLER,
2010, p. 16).

60
Qualquer coisa que se relacione com o caráter moral imutável de Deus
constitui-se em um absoluto moral. Isso inclui obrigações morais tais como:
santidade, justiça, amor, honestidade e misericórdia. Outros mandamentos
que fluem da vontade de Deus, mas não, necessariamente, de sua natureza,
são também obrigatórios para o cristão, embora não sejam absolutos. Em
outras palavras, eles precisam ser obedecidos porque Deus os prescreveu,
mas ele não os prescreveu para todas as pessoas, em todos os tempos e em
todos os lugares. Por outro lado, deveres morais absolutos são obrigatórios
a todas as pessoas, em todos os tempos e em todos os lugares (GEISLER,
2010, p.16).

1.2 A ética cristã baseia-se na revelação de Deus

A ética cristã baseia-se nos mandamentos de Deus, em sua revelação,


que é tanto geral (Rm 1.19-20; 2.12-15) quanto especial (Rm 2.18; 3.2). Deus
tem revelado a si mesmo tanto na natureza (Sl 19.1-6) quanto na Escritura
(Sl 19.7-14).
A revelação geral de Deus contém mandamentos para todas as pessoas;
e a revelação especial declara a vontade divina específica para os cristãos.
Entretanto, nos dois casos, a base da responsabilidade ética humana é a
revelação divina. Desconhecer a Deus como a fonte do dever moral não
exime ninguém, nem mesmo um ateu, de suas obrigações morais. Como
disse Paulo: “quando os gentios, que não têm lei, praticam as coisas da lei
por natureza, embora não tenham lei, tornam-se lei para si mesmos,
demonstrando que o que a lei exige está escrito no coração deles” (Rm 2.14-
15). Ou seja, mesmo que os incrédulos não tenham a lei moral em suas
mentes ainda assim eles a têm escrita em seus corações. Mesmo que não a
conheçam de forma cognitiva, eles a demonstram através de suas
inclinações. A ética cristã é prescritiva. Uma vez que o direito moral é
prescrito por um Deus moral, ele é prescritivo. Por isso, não existe lei moral
sem um legislador moral. Desse modo, a ética cristã é por sua própria
natureza prescritiva, e não descritiva. A ética lida com o que deve ser, não
com o que é (GEISLER, 2010, p.17).

61
IMPORTANTE

Os cristãos não encontram seus deveres éticos em um padrão de


cristãos, mas em um padrão para cristãos: a Bíblia. Da perspectiva
cristã, uma ética puramente descritiva não pode ser de forma alguma
considerada como ética. A descrição do comportamento humano é tarefa
da sociologia. Por outro lado, a prescrição do comportamento humano
pertence ao campo da moralidade (GEISLER, 2010, p. 17, grifos nossos).

2 A FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA EM BARTH

A fundamentação da ética proposta pelo teólogo suíço Karl Barth pode


ser vista como um importante ponto de reflexão para o paradigma ética e
cristianismo hoje. A esse respeito, Zeferino e Boff (2017, p. 151-152)
introduzem a biografia do teólogo:

Karl Barth teve a difícil tarefa de pensar a fé cristã em contextos que


exigiam uma ressignificação de pensamento e paradigmas. Entre tais
contextos, vale destacar as Grandes Guerras; o conflito leste-oeste
(entre União Soviética e Estados Unidos); além da industrialização
em processo de aceleração. Esses momentos levaram o cristão e
também o não cristão a repensar aquilo em que depositavam a fé. A
fé no homem, que até então marcava o espírito iluminista, recebeu
pesados golpes, e milhões de vítimas da ação humana geravam o
mesmo número de questionamentos acerca da ética. Barth viveu
esses momentos como pastor e como professor de Teologia. Este
cristão que foi um dos grandes articuladores teológicos de seu tempo
não se calou, pelo contrário, posicionou-se, foi crítico, autocrítico e
procurou chamar a atenção do cristão quanto a sua responsabilidade
ética e cidadã, que é responsabilidade para com a pessoa humana. Já
no início de sua vida pastoral deparouse com a realidade de uma vila
de operários na Suíça, percebeu a necessidade de conjugar vida e fé,
envolveu-se, em virtude disso, com o socialismo religioso de Kutter
e Ragaz. Além disso, revoltou-se contra os professores que o
formaram dentro do liberalismo, na medida em que muitos deles
demonstraram apoio à política de guerra alemã em 1914,
entendendo que não poderia mais segui-los em sua ética e Teologia.
Também teve papel importante na liderança da Igreja Confessante
(Bekennende Kirche), sendo um dos principais formuladores da
Confissão de Barmen (1934) que se colocava como uma declaração
contra Hitler e o nazismo. Sua postura o fez perder a cátedra em
Bonn, em 1935, mudando rapidamente para a Basileia.

62
Com o intuito de compreender os impulsos do pensamento de Barth
para a ética cristã hoje, Zeferino e Boff (2017, p. 152-155) demonstram seis
elaborações sintéticas de suas análises dos textos de Barth. A saber:

Primeira elaboração

O movimento crístico de Deus é a fundamentação da ética. O cristão


na sociedade quer dizer que Deus está presente por meio de suas
testemunhas. Estas, embaladas pelo agir de Deus em favor do ser
humano, que é o próprio Cristo, devem corresponder a este
indicativo que torna-se imperativo. O “Cristo em nós”, isto é, Jesus
Cristo como pressuposto da ética cristã, deve motivar o cristão a agir
cristãmente de fato. Enfim, a ética cristã está fundamentada na ação
do próprio Deus, que é ação criativa e redentora. (BARTH apud
ZEFERINO; BOFF, 2017, p. 152).

Segunda elaboração

A fundamentação da ética é Jesus Cristo, a Palavra última de Deus,


conteúdo da fé e da revelação, e realidade para além da linguagem.
A questão da ética recebe distintos contornos de acordo com cada
época. Mais: ela é um problema existencial que envolve o ser
humano como um todo, sendo que ele mesmo não consegue ser a
resposta para tal questão. Apenas em Jesus Cristo é que a realidade
da ética, que, em última análise, é também a pergunta pela motivação
da ação humana, tem sentido. É dentro do relacionamento com o
absoluto inatingível, mas que se dá a conhecer, é que o ser humano
encontra uma segurança. No desespero de sua finitude é que o
homem pode apoiar-se em Deus e ter nele a fonte de toda a sua
existência e fundamentação de sua práxis. (BARTH apud
ZEFERINO; BOFF, 2017, p. 153).

Terceira elaboração

No que diz respeito à fundamentação da ética, no presente texto é


notória sua relação com o axioma teológico, o qual é descrito por
Barth como o primeiro mandamento, sendo que só é normativo na
medida em que faz parte do documento normativo da comunidade
cristã e por se tratar de revelação de Deus na história, o que, por sua

63
vez, aponta para a plenitude desta revelação em Jesus Cristo [...]
Dessa forma, Barth insere no sentido do texto veterotestamentário
a totalidade do significado da revelação de Deus, e coloca este ponto
de partida como fundamento último do fazer teológico. Com isso,
refuta qualquer Teologia cristã que não parta dessa revelação crística.
Assim, o centro do primeiro mandamento é Jesus Cristo, Deus
revelado, pois ele é a palavra eterna de Deus que encarna
historicamente e dá o real sentido de toda a existência e de toda a
Escritura. (BARTH apud ZEFERINO; BOFF, 2017, p.153).

Quarta elaboração

Para Barth, dizer Evangelho e Lei faz todo sentido, pois a realidade
da lei encontra seu real significado sob a perspectiva do Evangelho,
sendo que ambos só podem ser compreendidos sob a luz da palavra
de Deus. A palavra eterna de Deus, por sua vez, denuncia a
profundidade do pecado humano, pois foi necessário que esta se
tornasse carne e assumisse a humanidade completa e, com isso, o
castigo do pecado, para que a vontade de Deus para com o ser
humano pudesse ser cumprida. A vontade de Deus é o contrário do
pecado. Este último é o distanciamento de Deus, é o viver sem
Deus, ou seja, é o viver humano que confia em si mesmo para a
salvação. Já a vontade de Deus consiste no reconhecimento de sua
graça, a qual só é possível ao ser humano por meio de Jesus Cristo,
a palavra eterna de Deus que é ao mesmo tempo o conteúdo do
Evangelho, que é a graça de Deus. Assim, era necessário que a graça
de Deus se tornasse carne para que o ser humano entoasse seu sim
para a graça de Deus. A lei, por sua vez, é a forma pela qual o
Evangelho se apresenta, tendo como sua chave de leitura o próprio
Deus encarnado, que cumpriu a lei por meio do amor. A lei, ou seja,
o mandamento de Deus, possui seu significado na graça de Deus,
que é o próprio Cristo, portanto, a graça de Deus cumpriu a lei. Esta
lei se resume na obediência concretizada em amor. Entende Barth
ter sido necessário que Deus cumprisse a lei por meio de Jesus Cristo
e, assim, vencesse o castigo do pecado, o que é anunciado na
ressurreição. A morte não pôde deter a graça encarnada de Deus.
(BARTH apud ZEFERINO; BOFF, 2017, p. 153-154).

Quinta elaboração

A fundamentação da ética é a graça eletiva de Deus revelada em


Jesus Cristo. A graça de Deus elege o próprio Deus para ser Senhor
amoroso e gracioso do ser humano e elege o ser humano para servir

64
e obedecer ao mandamento de Deus. O mandamento de Deus surge
na medida em que Deus se revela em sua graça. Na aliança de Deus
com o ser humano, é o próprio Deus que cumpre a aliança
totalmente, pois Deus é ser humano em Jesus Cristo, ele é Senhor e
Servo. Diante da ação de Deus, cabe ao homem a glorificação da
ação doacional de Deus. O ser humano é colocado dentro da aliança
em Jesus Cristo, sendo chamado a conformar-se à ética de Deus.
Em Jesus Cristo, toda a existência recebe seu fundamento e sua
devida dimensão. Ele mesmo é o Criador, o Reconciliador e o
Redentor, e o ser humano faz parte disso em Cristo (BARTH apud
ZEFERINO; BOFF, 2017, p.154-155).

Sexta elaboração

A fundamentação da ética é o relacionamento do cristão com o


Senhor da comunidade cristã e da comunidade civil. Este
relacionamento é fundado e plenificado em Jesus Cristo, verdadeiro
Deus e verdadeiro homem. Entretanto, a comunidade cristã vive
diante da realidade do pecado, como dimensão real presente no ser
humano. E é consciente de suas contingências que ela se coloca
dentro da comunidade civil, sendolhe vedada uma existência
apolítica ou não cidadã. Ela reconhece a comunidade civil como
lugar privilegiado onde ela pode ser comunidade cristã. É dentro da
realidade civil que ela pode servir as pessoas em amor e entrega
doacional, movida pelo próprio amor e entrega quenótica de Jesus
Cristo. No horizonte de sua atuação está a pessoa humana,
preferencialmente o pobre. É nesse serviço que ela aguarda
ativamente a realização plena do Reino de Deus (BARTH apud
ZEFERINO; BOFF, 2017, p. 155).

65
SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Em síntese, a ética cristã se fundamenta na vontade divina.


Nesse aspecto, ela basieia-se na revelação de Deus e tem caráter
absoluto;
• Os cristãos não encontram seus deveres éticos em um padrão de
cristãos, mas em um padrão para cristãos: a Bíblia;
• Ao molde da teologia barthiana o movimento crístico de Deus é
a fundamentação da ética;
• A fundamentação da ética é o relacionamento do cristão com o
Senhor da comunidade cristã e da comunidade civil.

66
MÓDULO III: APONTAMENTOS PARA UMA
ECOTEOLOGIA

67
INTRODUÇÃO

Chegamos ao Módulo III de nossa viagem exploratória, em que


adentraremos em um mundo conceitual e prático em que o ser humano se
faz responsável, em suas decisões e condutas. Abrimos as portas para a
compreensão do que vêm a ser bioética e ecologia, suas relações e
desbobramentos no que diz respeito a humanidade em suas dinâmicas e
conflitos. Todos os elementos abordados aqui serão substratos para a
compreensão de Ecoteologia, a ser delineada posteriormente. Então, o
convite feito a você é de caminhar por um trajeto crítico para se pensar o
que já está posto, mas nem sempre compreendido e questionado.
Preparado? Então caminhemos. Este módulo contém duas unidades com
duas aulas cada uma, são elas:

UNIDADE V: Bioética - Conceitos e Desdobramentos


UNIDADE VI: Ecologia - História, Conceitos e Problemas

UNIDADE V: BIOÉTICA - CONCEITOS E


DESDOBRAMENTOS

Caro estudante, nessa unidade, daremos um passo a mais em relação


ao que foi visto acerca do conceito de ética. Nessa unidade, adentraremos
a uma esfera epistemológica que evoca a vida como paradigma
interpretativo-conceitual. Não somente a vida humana, mas a vida
existencial de todas as coisas. Trataremos, pois, do que se compreende por
Bioética. Essa caminhada será feita a partir de duas aulas. São elas:

AULA 9: Bioética - Gênese e Prisma Histórico


AULA 10: Bioética - Conceitos e Desdobramentos

68
AULA 9: BIOÉTICA - GÊNESE E PRISMA HISTÓRICO
META

Adentrar de forma crítica ao quadro histórico de origem e estruturação


do termo Bioética.

OBJETIVOS

• Traçar uma narrativa histórico-crítica acerca da origem do termo


Bioética;
• Expor um esquema histórico-crítico de desenvolvimento do termo
Bioética.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 ORIGEM DO TERMO

A história da origem do termo Bioética remete a década de 1920 do


século passado. Conforme Goldim (2006, p. 86), em 1927, em um artigo
vinculado no periódico alemão chamado Kosmos, Fritz Jahr utilizou pela
primeira vez a expressão Bioética (bio + ethik). Nesse trabalho a Bioética
foi caracterizada como um tipo de reconhecimento de obrigações éticas por
parte do ser humano, não apenas com o próprio humano, mas em relação
a todos os seres vivos.
Ao longo do que se cataloga em termos das origens da Bioética, pode-
se dizer que este texto7 muda concepções históricas na medida em que
antecipa o surgimento do termo Bioética em 47 anos (GOLDIM, 2006, p.
88). Já no final de seu artigo, Fritz Jahr propõe um ‘imperativo bioético’:
“respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e trata-
o, se possível, como tal” (Fritz apud GOLDIM, 2006, p. 86)8. Nesse artigo,

7 Esse texto “foi encontrado por Rolf Löther, da Universidade de Humboldt, de Berlim, e
divulgado por Eve Marie Engel, da Universidade de Tübingen, também da Alemanha”
(GOLDIM, 2006, p. 86).
8 Fritz Jahr, em 1927, já havia proposto, segundo suas próprias palavras, um imperativo

bioético: “Respeita, em princípio, cada ser vivo como uma finalidade em si e trata-o como
tal, na medida do possível”. (GOLDIM, 2006, p. 88).

69
já se propunha uma perspectiva da Bioética como sendo um “panorama
sobre as relações éticas dos seres humanos para com os animais e as
plantas” (Fritz apud GOLDIM, 2006, p. 88). Essa inclusão das plantas na
discussão Bioética, mesmo com a distância temporal do termo proposto
por Fritz Jahr é ainda altamente inovadora, mesmo nos dias atuais
(GOLDIM, 2006, p. 88).
Anteriormente, a criação do termo Bioética era atribuída a Van
Rensselaer Potter, devido a publicação de um artigo em 1970, no qual
caracteriza a biotética como a ciência da sobrevivência. Na primeira fase de
seu postulado Potter designou a Bioética como Ponte, no sentido de ser o
caminho para relação entre as ciências e as humanidades que asseguraria a
possibilidade do futuro (GOLDIM, 2006, p. 86).
Em termos históricos, podemos afirmar que a Bioética teve outra
origem paralela em língua inglesa. No mesmo ano (1970) em que Potter
desenvolveu sua conceituação, André Hellegers utilizou o termo Bioética
para denominar estudos recentes que estavam sendo propostos no campo
biológico da reprodução humana9.
Potter, em contrapartida, no fim da década de 1980, passou a enfatizar
a característica interdisciplinar e abrangente da Bioética, denominando-a de
global. Em síntese, sua pretensão era restabelecer o foco original da
Bioética, incluindo as questões de medicina e saúde, não restringindo a
abrangência do termo a essa área, mas ampliando o pensamento aos novos
desafios ambientais. Dentro de seu itinerário de pesquisa, Potter, em 1998,
redefiniu a Bioética como sendo uma Bioética profunda (deep bioethics).
Nesse contexto, mais uma ciência entra em diálogo com a elaboração da
referência bioético: a ecologia. Para qualificar a Biotética como Bioética
profunda, Potter se apropria da qualificação de ecologia profunda proposta
por Arne Ness (GOLDIM, 2006, p. 86). Ao tom de definição de Potter a
Bioética profunda é “‘a nova ciência ética’, que combina humildade,
responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que
potencializa o senso de humanidade” (POTTER apud GOLDIM, 2006, p.
86).

9Hellegers se utilizou do termo biotética “ao criar o Instituto Kennedy de Ética, então
denominado de Joseph P. and Rose F. Kennedy Institute of Ethics” (GOLDIM, 2006, p.
86).

70
VOCÊ SABIA?

“Durante muito tempo, a Bioética era associada apenas aos deveres


existentes entre seres humanos contemporâneos e geograficamente
próximos [...] Peter Singer desencadeou, no início da década de 1970, um
grande debate sobre os direitos dos animais [...] Em 1948, Aldo Leopold,
em seu texto sobre ética da terra, fez outra ampliação dessa discussão,
quando postulou o direito das gerações futuras a receberem um ambiente
preservado. (GOLDIM, 2006, p. 88). Nessa mesma tradição, Hans Jonas,
em 1968, propôs um outro imperativo, com a finalidade de prevenir
possíveis consequências das ações humanas: “Nas tuas opções presentes,
inclui a futura integridade do ser humano entre os objetos da tua vontade”
(GOLDIM, 2006, p. 88).

Bioética. Imagem ilustrativa do processo. Disponível em:


https://www.coladaweb.com/wp-content/uploads/2014/12/20170622-bioetica-
300x196.png

2 LINHA DE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

Tendo em vista esses dados, Garrafa (2005, p. 11-12) de forma


oportuna propõe a sistematização da linha de desenvolvimento histórico do
termo Bioética. Na concepção do autor, o desenvolvimento histórico da
Bioética pode ser estabelecido com base em quatro “etapas” ou

71
“momentos” bem determinados. A essas quatro etapas, agregaremos mais
uma considerando a obra de Fritz Jahr. São elas:
Etapa do embrião epistemológico: quando em 1927, Fritz Jahr se utiliza
pela primeira vez a expressão Bioética;

1. “A etapa de fundação, relacionada com os anos 1970, quando os


primeiros autores que sobre ela se debruçaram, estabeleceram suas
bases conceituais” (GARRAFA, 2005, p.11-12);
2. “A etapa de expansão e consolidação, relacionada com a década de
80, quando se expandiu por todos os continentes por meio de
eventos, livros e revistas científicas especializadas, principalmente a
partir do estabelecimento dos quatro princípios bioéticos básicos,
sobre os quais falarei mais adiante” (GARRAFA, 2005, p.11-12);
3. “A etapa de revisão crítica e que compreende o período posterior
aos anos 1990 até o início de 2005, e que se caracteriza por dois
movimentos: a) o surgimento de críticas ao “principialismo” (ou
seja, a corrente estadunidense baseada em “princípios”
pretensamente universais), com consequente ampliação do seu
campo de atuação a partir da constatação da existência de
“diferenças” entre os diversos atores sociais e culturas, espaço onde
movimentos emergentes como o feminismo e de defesa dos negros
e homossexuais, entre outros, adquiriram grande importância; b) a
necessidade de se enfrentar de modo ético e concreto as questões
sanitárias mais básicas, como a equidade no atendimento sanitário
e a universalidade do acesso das pessoas aos benefícios do
desenvolvimento científico e tecnológico. Esta última questão,
extremamente atual, diz respeito à ética da responsabilidade pública
do Estado frente aos cidadãos, no que se refere à priorização,
alocação, distribuição e controle de recursos financeiros
direcionados às ações de saúde” (GARRAFA, 2005, p.11-12).
4. “A etapa de ampliação conceitual, que se caracteriza após a
homologação, em 10 de outubro de 2005, em Paris, da Declaração
Universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, a qual,
além de confirmar o caráter pluralista e multi-intertransdisciplinar
da Bioética, amplia definitivamente sua agenda para além da
temática biomédica-biotecnológica, para os campos social e
ambiental” (GARRAFA, 2005, p. 11-12).

72
À luz do que foi posto podemos dizer que a Bioética, nasceu dentro de
uma proposta de inserção vital, em que outros participantes do ecossistema,
plantas e animais passaram a fazer parte da reflexão ética, já realizada para
os seres humanos. Em um momento posterior, se agrega a reflexão a
própria terra, o solo em que pisamos, além dos elementos da natureza e,
sobretudo o nosso planeta passa a ser foco de reflexão. Uma discussão que
se amplia a cada passo em que se pensa acerca do tema. Em um contexto
mais recente, a abordagem ecológica da Bioética propõe uma visão
integradora do ser humano e a natureza como um todo. Essas relações e
estruturas de pensamento demonstram a complexidade que envolve o
termo Bioética. Este não pode ser visto de forma simplificada e restrita. Ao
contrário, só pode ser desvendada em sua ampla complexidade teórica e
prática (GOLDIM, 2006, p. 87).

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

1. Historicamente a origem do termo Bioética remete a obra de


Fritz Jahr na década de 1920 do século passado;
2. A Bioética pode ser concebida como Ponte, no sentido de ser o
caminho para relação entre as ciências e as humanidades;
3. A partir de pressupostos ecológicos, a Bioética profunda pode
ser concebida como a ciência ética que combina humildade,
responsabilidade e uma competência interdisciplinar,
intercultural, que potencializa o senso de humanidade;
4. Em termos de sistematização a linha de desenvolvimento
histórico do termo Bioética envolve cinco etapas: Etapa do
embrião epistemológico; etapa de fundação; etapa de expansão
e consolidação; etapa de revisão crítica; etapa de ampliação
conceitual.

73
AULA 10: BIOÉTICA - CONCEITOS E
DESDOBRAMENTOS

META

Adentrar de forma crítica ao quadro conceitual de Bioética, bem como


ao panorama de complexidades inerentes a epistemologica do tema.

OBJETIVOS

• Propor um caminho conceitual para Bioética;


• Estruturar a partir de um prisma teórico um arcabouço para
sistematização da bioética;
• Designar a Ecologia como metaponto estruturante da espeteme
Bioética.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 PANORAMA CONCEITUAL

Nesse momento de nosso curso, submergiremos ao panorama


conceitual de Bioética. Vimos que o processo histórico de desenvolvimento
do termo envolve uma realidade de complexidades que remetem práxis
(teoria + prática) da terminologia em si. Cientes disso, adentraremos a senda
epistemológica que envolve a formatação da Bioética.
Segundo Diniz (2008), a Bioética é um campo do conhecimento que se
articula através da interface com diversos ramos do saber. Por se tratar de
um campo teórico emergente, “uma de suas características é a disputa entre
os especialistas pelos fundamentos epistemológicos e objetos de pesquisa.
Não é simples definir as fronteiras do campo, mas alguns consensos
começam a surgir” (DINIZ, 2008, p. 207) 10.

10Um deles é o que entende a bioética como um campo aplicado aos conflitos morais em
saúde. Na América Latina, há uma preferência pelos temas relacionados à reprodução
biológica, à pesquisa com seres humanos e ao fim da vida. (DINIZ, 2008, p. 207).

74
Bioética aponta para um conjunto de investigações e atividades
pluridisciplinares, com o objetivo de em síntese, resolver questões de ordem
ética provocadas pelo progresso das tecnociências biomédicas (VIEIRA,
2000, p.197). De acordo com Garrafa (2005, p. 10-11), a conotação original
do termo:

Se relacionava com uma questão de ética global, ou seja, com a


preocupação ética de preservação futura do planeta, a partir da
constatação de que algumas novas descobertas e suas aplicações, ao
invés de trazer benefícios para a espécie humana e para o futuro da
humanidade, passaram a originar preocupações e até mesmo
destruição do meio ambiente, da biodiversidade e do próprio
ecossistema terrestre, podendo ocasionar danos irreparáveis ao
planeta e às formas de vida nele existentes.

Algo importante a se dizer é que, apesar da incipiente conceitualização


do termo Bioética e de sua constante evolução em termos epistemológicos,
“está claro que ela não significa apenas uma moral do bem e do mal ou um
saber universitário a ser transmitido e aplicado diretamente na realidade
concreta, como as ciências biomédicas, jurídicas ou sociais, por exemplo”
(GARRAFA, 2005, p. 11).
Segundo a Encyclopedia of Bioethics, “a Bioética abarca a ética médica,
mas não se limita a ela, estendendo-se muito além dos limites tradicionais
que tratam dos problemas deontológicos que decorrem das relações entre
os profissionais de saúde e seus pacientes” (GARRAFA, 2005, p.11). Sob
essa perspectiva, a Encyclopedia of Bioethics define a Bioética como:

Um estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências


biológicas e da atenção de saúde, sendo essa conduta examinada à
luz de valores e princípios morais, constituindo um conceito mais
amplo que o da ética médica, tratando da vida do homem, da fauna
e da flora. Portanto, seu estudo vai além da área médica, abarcando
Direito, Psicologia, Biologia, Antropologia, Sociologia, Ecologia,
Teologia, Filosofia, etc., observando as diversas culturas e valores.
(VIEIRA, 2000, p.197).

Essa definição, por sua vez, nos remete, uma vez mais, a complexidade
do quadro teórico em que se constrói as definições de Bioética. Como já

75
postulado dentro do quadro histórico de desenvolvimento da temática,
atualmente, a Bioética se apresenta como:

A procura de um comportamento responsável de parte daquelas


pessoas que devem decidir tipos de tratamento e de pesquisa com
relação à humanidade [...] Tendo descartado em nome da
objetividade qualquer forma de subjetividade, sentimentos ou mitos,
a racionalidade científica não pode - sozinha estabelecer os
fundamentos da Bioética [...] Além da honestidade, do rigor
científico ou da procura da verdade - pré-requisitos de uma boa
formação científica - a reflexão Bioética pressupõe algumas questões
humanas que não estão incluídas nos currículos universitários.
(BERLINGUER, apud GARRAFA, 2005, p.13-14).

Diante desse desafio, Garrafa (2005, p. 14) é enfático ao afirmar que:

No sentido amplo do conceito que se pretende dar à Bioética, seus


verdadeiros fundamentos somente podem ser encontrados por meio
de uma ação multi-inter-transdisciplinar que inclua, além das
ciências médicas e biológicas, também a filosofia, o direito, a
teologia, a antropologia, a ciência política, a comunicação, a
sociologia, a economia.

Algo importante a ser dito é que alguns autores dão um passo a mais
nessa elaboração. Um exemplo paradigmático está em Schramm ao concluir
que a própria ética (que o autor chama de “ética natural”) em sua gênese
tem um fundamento biológico (GARRAFA, 2005, p.14). Sob essa
perspectiva, “a legitimação do agir ético só seria uma elaboração secundária
de algo que de fato pertence à biologia humana [...] Podemos afirmar,
portanto, que toda ética é, antes e fundamentalmente, uma Bioética”
(SCHRAMM apud GARRAFA, 2005, p. 14).

76
2 SISTEMATIZAÇÃO E ABRANGÊNCIA DO CONCEITO

Dentro da amplitude em que se estrutura a temática da Bioética, para


sistematizar e compreender melhor sua área de estudo, bem como sua
abrangência, a Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília 11
desde 1995, tem organizado seus programas de pós-graduação e classificado
a Bioética a partir de dois grandes campos de atuação, de acordo com sua
historicidade, a saber: a Bioética das situações emergentes e a Bioética das
situações persistentes (GARRAFA, 2005, p. 17).
De acordo com Garrafa (2005), no que se refere à Bioética das
situações emergentes, se relacionam, sobretudo, os temas recentes que
discutem questões decorridas do grande desenvolvimento
biotecnocientífico vivenciado nos últimos cinquenta anos. Entre elas,
podem ser elencados:

O projeto genoma humano e todas situações relacionadas com a


engenharia genética, incluindo a medicina preditiva e a terapia
gênica; as doações e transplantes de órgãos e tecidos humanos, com
todas suas inferências que se refletem na vida e na morte das pessoas
na sociedade e a relação disso tudo com as “listas de espera” e o
papel controlador e moralizador do Estado; o tema da saúde
reprodutiva, que passa por diversos capítulos, que vão desde a
fecundação assistida propriamente dita, passando por assuntos
como a seleção e descarte de embriões, a eugenia (escolha de sexo e
determinadas características físicas do futuro bebê), as “mães de
aluguel”, a clonagem, etc.; as questões relacionadas com a
biossegurança, cada dia mais importantes e complexas; as pesquisas
científicas envolvendo seres humanos e seu controle ético; entre
outras. (GARRAFA, 2005, p. 17).

Por outra parte, conforme Garrafa (2005, p. 17-18) no tocante à


Bioética das situações persistentes, isto é, situações que prosseguem a
acometer a história humana desde a antiguidade. Nesse contexto, a Bioética
contempla todas as situações que remetem:

11Até o ano 2004, denominada de Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética, ligado ao


Centro de Estudos Avançados e Multidisciplinares da UnB. (GARRAFA, 2005, p.17).

77
1. À exclusão social; às discriminações de gênero, raça, sexualidade e
outras;
2. Os temas da equidade, da universalidade e da alocação, distribuição
e controle de recursos econômicos em saúde;
3. Os direitos humanos e a democracia, de modo geral, e suas
repercussões na saúde e na vida das pessoas e das comunidades; o
aborto; a eutanásia12.

Todas essas pontuações e sistematizações refletem a amplitude assim


como as especificidades relacionadas à temática da Bioética. Esse conteúdo
se encontra repercurtido no mundo das nossas relações com o humano e
com o ambiente em que o humano vive.
Como salienta Goldim (2006, p. 88) “a expansão dessa discussão sobre
direitos e deveres com a inclusão de todos os seres vivos, tanto
contemporâneos quanto ainda não existentes, amplia a responsabilidade e
a perspectiva atual da Bioética”13. Nesse aspecto, como pontualmente pode
se dizer, a ecologia se faz presente como paradigma interpretativo da
Bioética. Dentro dessa perspectiva:

A ecologia profunda, de Arne Ness, que serviu de base para a


terceira definição de Bioética de Potter, já havia rompido com a
perspectiva usual da relação dos seres humanos com a natureza, no
sentido de domínio sobre a mesma – em que o ambiente natural era
visto apenas como um recurso para ser desfrutado, considerando os
demais seres vivos como inferiores – e de centrar essas discussões
políticas apenas no âmbito nacional. A sua proposta visava gerar
uma relação harmoniosa com a natureza, reconhecendo-a como
tendo valor intrínseco e buscando o reconhecimento da igualdade
entre as diferentes espécies, e esta perspectiva deveria ser discutida
na abrangência de biorregiões, além de reconhecer as tradições das
minorias. (GOLDIM, 2006, p. 88).

A esse respeito Goldim (2006, p. 88) ainda assinala que:

12 Enquanto outros autores preferem colocar estas duas últimas situações entre os temas
“emergentes” ou de “limites”, parece ser mais adequado classificá-las como persistentes, a
partir de sua conotação histórica, uma vez que se enquadram entre aquelas situações que
se mantém teimosamente na pauta da comédia humana desde os tempos do Antigo
Testamento. (GARRAFA, 2005, p.17-18).
13 Como já haviam antecipado Fritz Jahr e Van Rensselaer Potter. (GOLDIM, 2006, p. 88).

78
Atualmente, discutir apenas a preservação do ambiente natural
passou a ser uma tarefa difícil e até mesmo ultrapassada. A
diferenciação entre objetos artificiais e objetos naturais, que pode
parecer imediata e sem ambiguidade, na realidade não o é. Essas
diferenças não são nem imediatas nem estritamente objetivas,
tamanho o grau da intervenção humana e das inter-relações
existentes. A preservação apenas de ambientes naturais intocados
por si só os tornaria artificiais, pois, ao protegê-los, estariam sendo
impostas barreiras artificiais de acesso e utilização. As reservas e
parques naturais são exemplos dessa ambiguidade entre o natural e
o artificial, entre o natural e o naturalizado (Lenoir). Na área da
saúde, essa questão também está cada vez mais presente. Distinguir
os processos de ação naturais do organismo humano dos
provocados por intervenções externas a ele pode ser difícil e, em
determinadas situações, impossível. As intervenções, quando
avaliadas de uma perspectiva ecológica, deixam de ter apenas uma
conotação individual, passando a merecer uma discussão com as
demais pessoas direta ou indiretamente envolvidas14.

Em síntese, podemos afirmar que “os conhecimentos e discussões


gerados pela Bioética e pela ecologia contribuíram para ampliar a noção de
responsabilidade” (GOLDIM, 2006, p. 88). Hans Jonas, ao propor a ética
da responsabilidade, já havia dito que:

Nenhuma ética anterior tinha de levar em consideração a condição


global da vida humana e o futuro distante ou até mesmo a existência
da espécie. Com a consciência da extrema vulnerabilidade da
natureza à intervenção tecnológica do homem, surge a ecologia.
(JONAS apud GOLDIM, 2006, p. 88).

Encontramo-nos, pois perante o pressuposto ecológico. Uma


“ecologia que veio trazer uma nova e complexa visão da inserção dos seres
humanos no conjunto da natureza” (GOLDIM, 2006, p. 88) e nesse
sentido, se faz parâmetro de estruturação Bioética.

14
A ética da razão comunicativa de Karl-Otto Apel deu uma importante contribuição
nesse sentido. Ao levar em conta as consequências diretas e indiretas das ações realizadas
e por utilizar o discurso argumentativo exercido por todos os indivíduos para obter normas
consensuais, torna-os corresponsáveis por todas as ações. (GOLDIM, 2006, p. 88).

79
Bioética. Imagem ilustrativa. Disponível em:
https://cultura.estadao.com.br/blogs/crop/top/350x199/estado-da-arte/wp-
content/uploads/sites/426/2018/12/editing2.jpg

PARA PENSAR

Ética e Bioética: qual a relação?

80
COM A PALAVRA QUEM ENTENDE DO ASSUNTO

Atualmente, a ética passou a fazer parte do discurso da população,


dos meios de comunicação, de profissionais de várias áreas, com seu
significado nem sempre utilizado de forma correta. Talvez devido
ao pouco conhecimento formal que a maioria das pessoas tem da
ética, muitas não sabem propriamente o que é a ética, qual a sua
finalidade e como ela atua. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada
também como adjetivo, com a finalidade de qualificar uma pessoa
ou uma instituição como sendo boa, adequada ou correta. Esse uso
pode ter sido influenciado pela definição de ética proposta por
George Edward Moore, de que ela é “a investigação geral sobre
aquilo que é bom”. O ideal é sempre utilizá-la na forma adverbial,
ou seja, ela própria merecendo ser qualificada – eticamente adequada
ou eticamente inadequada –, mas não pressupondo que a ética, no
seu sentido substantivo, sempre se associe ao bom, ao adequado e
ao correto. Ricardo Timm de Souza afirmou que a maior revolução
epistemológica do pensamento ocidental foi a proposta por
Emanuel Lévinas, ao postular que a ética fosse considerada como
filosofia primeira, invertendo a subordinação tradicional à lógica e à
ontologia. Três autores contemporâneos podem auxiliar na
compreensão adequada dessas questões fundamentais. Adolfo
Sanches Vasques caracterizou a ética como sendo a busca de
justificativas para verificar a adequação ou não das ações humanas.
Joaquim Clotet afirmou que a “ética tem por objetivo facilitar a
realização das pessoas. Que o ser humano chegue a realizar-se a si
mesmo como tal, isto é, como pessoa”. Complementando, Robert
Veatch dá uma boa definição operacional de ética ao propor que ela
é “a realização de uma reflexão disciplinada das intuições morais e
das escolhas morais que as pessoas fazem. (GOLDIM, 2006, p. 87).

81
SUGESTÃO DE AUDIÊNCIA

Acerca da temática da bioética assista a documentário “bioética - eja mundo


do trabalho”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=djmvlusvdhq

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• A Bioética é um campo do conhecimento que se articula através


da interface com diversos ramos do saber;
• No campo Bioético existe uma constante evolução em termos
epistemológicos;
• No sentido amplo do conceito que se pretende dar à Bioética,
seus verdadeiros fundamentos somente podem ser encontrados
por meio de uma ação multi-inter-transdisciplinar;
• De acordo com sua historicidade a Bioética foi classificada em
dois campos de atuação: a Bioética das situações emergentes e a
Bioética das situações persistentes;
• A ecologia é um paradigma interpretativo da Bioética.

82
UNIDADE VI: ECOLOGIA - HISTÓRIA, CONCEITOS
E PROBLEMAS.

Nessa unidade traçaremos um voo panorâmico que delineará os


componentes, história, elementos e conceitos que são estruturantes do que
se concebe por Ecologia. Caminhemos juntos rumo a essa ‘floresta’, por
muitos ainda desconhecida e desbravada.
Desta unidade fazem parte:

AULA 11: Ecologia: Histórico, Componentes e Conceitos


AULA 12: Panorama e Problemática

83
AULA 11: ECOLOGIA - HISTÓRICO, COMPONENTES
E CONCEITOS
META

Estabelecer uma cronologia histórico-crítica acerca dos processos que


envolveram a estruturação da ciência Ecológica.

OBJETIVOS

• Traçar um mapeamento histórico do que se concebe por Ecologia;


• Trabalhar o termo ecologia em suas estruturas epistemológicas e
críticas sobretudo a partir da modernidade;
• Propor a existência plural de Ecologias para se pensar criticamente
o mundo atual.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 HISTÓRIA E EVOLUÇÃO

Traçar um mapeamento histórico do que se concebe por ecologia não


é algo simples de se fazer. Seu início não é bem nítido ou delineado. O que
se sabe é que esta ciência encontra seus primórdios na história natural dos
gregos, de forma particular em um discípulo de Aristóteles, chamado
Teofrasto, o primeiro a descrever a relação de organismos entre si e com o
meio. (CASSINI, 2005, p. 2-3).
Em se tratando da ecologia moderna, podemos afirmar que as bases
posteriores que a edificaram se devem as pesquisas de fisiologistas sobre
plantas e animais (CASSINI, 2005, p. 2-3). Nesse caminho histórico, Cassini
(2005, p. 2-3), elenca várias descobertas e pesquisas promoveram avanços
na ciência ecológica.

1. “O aumento do interesse pela dinâmica das populações recebeu


impulso especial no início do século XIX e depois que Thomas

84
Malthus chamou atenção para o conflito entre as populações em
expansão e a capacidade da Terra de fornecer alimento”;
2. “Raymond Pearl (1920), A. J. Lotka (1925), e Vito Volterra (1926)
desenvolveram as bases matemáticas para o estudo das populações,
o que levou a experiências sobre a interação de predadores e presas,
as relações competitivas entre espécies e o controle populacional.
O estudo da influência do comportamento sobre as populações foi
incentivado pelo reconhecimento, em 1920, da territorialidade dos
pássaros”;
3. “Os conceitos de comportamento instintivo e agressivo foram
lançados por Konrad Lorenz e Nikolaas Tinbergen, enquanto V. C.
Wynne-Edwards estudava o papel do comportamento social no
controle das populações”.
4. “No início e em meados do século XX, dois grupos de botânicos,
um na Europa e outro nos Estados Unidos, estudaram
comunidades vegetais de dois diferentes pontos de vista. Os
botânicos europeus se preocuparam em estudar a composição, a
estrutura e a distribuição das comunidades vegetais, enquanto os
americanos estudaram o desenvolvimento dessas comunidades, ou
sua sucessão. As ecologias animal e vegetal se desenvolveram
separadamente até que os biólogos americanos deram ênfase à
inter-relação de comunidades vegetais e animais como um todo
biótico. Alguns ecologistas se detiveram na dinâmica das
comunidades e populações, enquanto outros se preocuparam com
as reservas de energia”;
5. “Em 1920, o biólogo alemão August Thienemann introduziu o
conceito de níveis tróficos, ou de alimentação, pelos quais a energia
dos alimentos é transferida, por uma série de organismos, das
plantas verdes (produtoras) aos vários níveis de animais
(consumidores)”;
6. “Em 1927, C. S. Elton, ecologista inglês especializado em animais,
avançou nessa abordagem com o conceito de nichos ecológicos e
pirâmides de números. Dois biólogos americanos, E. Birge e C.
Juday, na década de 1930, ao medir a reserva energética de lagos,
desenvolveram a ideia da produção primária, isto é, a proporção na
qual a energia é gerada, ou fixada, pela fotossíntese”.
7. “A ecologia moderna atingiu a maioridade em 1942 com o
desenvolvimento, pelo americano R. L. Lindeman, do conceito
trófico-dinâmico de ecologia, que detalha o fluxo da energia através

85
do ecossistema. Esses estudos quantitativos foram aprofundados
pelos americanos Eugene e Howard Odum. Um trabalho
semelhante sobre o ciclo dos nutrientes foi realizado pelo
australiano J. D. Ovington. O estudo do fluxo de energia e do ciclo
de nutrientes foi estimulado pelo desenvolvimento de novas
técnicas -- radioisótopos, microcalorimetria, computação e
matemática aplicada -- que permitiram aos ecologistas rotular,
rastrear e medir o movimento de nutrientes e energias específicas
através dos ecossistemas. Esses métodos modernos deram início a
um novo estágio no desenvolvimento dessa ciência -- a ecologia dos
sistemas, que estuda a estrutura e o funcionamento dos
ecossistemas” (CASSINI, 2005, p. 2-3).

Em termos conceituais pode-se afirmar que o termo ecologia foi


utilizado pela primeira vez pelo biólogo alemão E. Haeckel em 1866 em sua
obra Generelle Morphologie der Organismen. Etimolologicamente, a
palavra Ecologia deriva de duas pelavras gregas: Oikós que quer dizer casa,
e logos que pode significar estudo, ideia. Em nível de definição, Ecologia
significa a Ciência do Habitat. Trata-se da ciência que se ropõe estudar as
condições de existência dos seres vivos, bem como as relações, de qualquer
grau ou procedência, dos seres vivos com o seu meio (CASSINI, 2005, p.
2).
Até o final do século XX, a Ecologia necessitava de um fundamento
conceitual. Nesse sentido, a ecologia moderna, passou o seu foco para a
conceituação de ecossistema. Deparamo-nos, pois, com a fundamentação
teórica de Ecossistema, conceito chave para se compreender Ecologia e
suas derivações trasdiciplinares, como por exemplo, a Ecoteologia. Dentro
dessa construção conceitual Cassini (2005, p. 3-4), define ecossistema
como: uma unidade funcional composta de organismos integrados, e em
todos os aspectos do meio ambiente em qualquer área específica. Envolve
tanto os componentes sem vida (abióticos) quanto os vivos (bióticos)
através dos quais ocorrem o ciclo dos nutrientes e os fluxos de energia. Para
realizá-los, os ecossistemas precisam conter algumas inter-relações
estruturadas entre solo, água e nutrientes, de um lado, e entre produtores,
consumidores e decomponentes, de outro. Os ecossistemas funcionam
graças à manutenção do fluxo de energia e do ciclo de materiais, desdobrado
numa série de processos e relações energéticas, chamada cadeia alimentar,
que agrupa os membros de uma comunidade natural. Existem cadeias

86
alimentares em todos os habitats, por menores que sejam esses conjuntos
específicos de condições físicas que cercam um grupo de espécies. As
cadeias alimentares costumam ser complexas, e várias cadeias se
entrecruzam de diversas maneiras, formando uma teia alimentar que
reproduz o equilíbrio natural entre plantas, herbívoros e carnívoros. Os
ecossistemas tendem à maturidade, ou estabilidade, e ao atingi-la passam de
um estado menos complexo para um mais complexo. Essa mudança
direcional é chamada sucessão. Sempre que um ecossistema é utilizado, e
que a exploração se mantém, sua maturidade é adiada. A principal unidade
funcional de um ecossistema é sua população. Ela ocupa um certo nicho
funcional, relacionado a seu papel no fluxo de energia e ciclo de nutrientes.
Tanto o meio ambiente quanto a quantidade de energia fixada em qualquer
ecossistema são limitados. Quando uma população atinge os limites
impostos pelo ecossistema, seus números precisam estabilizar-se e, caso
isso não ocorra, devem declinar em consequência de doença, fome,
competição, baixa reprodução e outras reações comportamentais e
psicológicas. Mudanças e flutuações no meio ambiente representam uma
pressão seletiva sobre a população, que deve se ajustar. O ecossistema tem
aspectos históricos: o presente está relacionado com o passado, e o futuro
com o presente. Assim, o ecossistema é o conceito que unifica a ecologia
vegetal e animal, a dinâmica, o comportamento e a evolução das
populações.
Em síntese, Cassini (2005, p. 8), define, propõe uma conceituação de
ecossistema como um:

Conjunto formado por uma biocenose ou comunidade biótica e


fatores abióticos que interatuam, originando uma troca de matéria
entre as partes vivas e não vivas. Em termos funcionais, é a unidade
básica da Ecologia, incluindo comunidades bióticas e meio abiótico
influenciando-se mutuamente, de modo a atingir um equilíbrio. O
termo "ecossistema" é, pois, mais geral do que "biocenose",
referindo a interação dos fatores que atuam sobre esta e de que ela
depende.

Você sabe quais são os componentes estruturais de um ecossistema?

87
COM A PALAVRA QUEM ENTENDE DO ASSUNTO

Os ecossistemas são constituídos, essencialmente, por três


componentes: • Abióticos - que em conjunto constituem o biótopo:
ambiente físico e fatores químicos e físicos. A radiação solar é um
dos principais fatores físicos dos ecossistemas terrestres, pois é
através dela que as plantas realizam fotossíntese, liberando oxigênio
para a atmosfera e transformando a energia luminoso em química. •
Bióticos - representados pelos seres vivos que compõem a
comunidade biótica ou biocenoses. compreendendo os organismos
heterótrofos dependentes da matéria orgânica e os autotróficos
responsáveis pela produção primária, ou seja, a fixação do CO2. •
Energia – caracterizada pela força motriz que aporta nos diversos
ambientes e garante as condições necessárias para a produção
primária em um ambiente, ou seja, a produção de biomassa a partir
de componentes inorgânicos. (CASSINI, 2005, p. 2).

Ecologia. Imagem ilustrativo-reflexiva. Disponível em:


http://www.neomondo.org.br/base/wp-content/uploads/2019/09/nature-
3289812_640.jpg

88
2 AS ECOLOGIAS

O estudo da Ecologia, não é algo restrito em suas definições biológicas.


Vários avanços foram dados o sentido de entender a ecologia sobre o
prisma da própria humanidade, podemos dizer o prisma humanístico. Isto
é, o ser humano faz-se ator principal no tocante as relações que o mesmo
estabelece com seu meio, o ecossistema a sua volta. Em sua pesquisa,
Cassini (2005, p. 7), trata acerca da existência de uma ecologia humana. Em
suas palavras:

Este ramo da ecologia estuda as relações existentes entre os


indivíduos e entre as diferentes comunidades da espécie humana,
bem como as suas interações com o ambiente em que vivem, a nível
fisiográfico, ecológico e social. Descreve a forma como o homem se
adapta ao ambiente nos diferentes locais do planeta, como obtém
alimento, abrigo e água. Tende a encarar o ser humano do ponto de
vista biológico e ecológico, uma espécie animal adaptada para viver
nos mais diversos ambientes. A ecologia urbana, estuda detalhes da
vida humana nas cidades, do ponto de vista ambiental, sua relação
com os recursos naturais, o ar, a água, a fauna e flora, bem como as
relações entre indivíduos. Problemas sociais como o êxodo rural, o
crescimento descontrolado das cidades, infraestrutura urbana, bem
como características das populações (taxa de crescimento,
densidade, índices de nascimento e mortalidade e idade média) são
abordados nesta especialidade. Doenças, epidemias, problemas de
saúde pública e de qualidade ambiental também pertencem ao
campo da ecologia humana. A ecologia humana tem o desafio, de
auxiliar no reconhecimento das causas dos desequilíbrios ambientais
existentes na sociedade humana e propor soluções alternativas ou
minimizadoras. Este ramo da ecologia, associado à conscientização
e educação ambiental, pode transformar as grandes cidades em
locais mais habitáveis e saudáveis, onde o uso dos recursos naturais
é racional e otimizado. Para isso, a ecologia humana e urbana precisa
estar integrada ao desenvolvimento de ciência e tecnologia, bem
como vinculada a programas prioritários dos governos.

Essa definição de Ecologia humana e urbana, proposta por Cassini


(2005), nos conduz a outro paradigma teórico que apresenta três ecologias.
Refere-se a elaboração do pensador francês e psicanalista Felix Guattari que
propõe como dispositivo teórico a categorização de três ecologias. Em seu
clássico ensaio “As três ecologias”, publicado originalmente em 1989,

89
Guattari pretende lançar fundamentos para recomposição das práticas
sociais e individuais. Para atingir essa meta ele propõe três rubricas
complementares – a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia
ambiental, sob a égide de uma ecosofia (GUATTARI apud MURAD, 2019,
p. 68).
Em seu ensaio sobre Ecologia e ecoteologia Murad (2019, p. 68) atenta
para a realidade de que “o modelo de compreensão de Guattari é bem mais
complexo do que aparentam os simples termos”. Nesse aspecto, o autor
sistematiza as três ecologias propostas por Guattari da seguinte maneira:

2.1 Ecologia ambiental


Para Guattari, a ecologia ambiental atual, somente se inicia e prefigura
a “ecologia generalizada” do futuro, que visa a “descentrar radicalmente as
lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique”. Ele critica os
movimentos ecológicos arcaicos e “folclorizantes” que recusam o
engajamento político em grande escala. A questão ecosófica global é
decisiva e não está restrita “à imagem de uma pequena minoria de amantes
da natureza ou de especialistas diplomados” (GUATTARI apud MURAD,
2019, p.68).

2.2 Ecologia mental


A ecologia mental, por sua vez, serve para denunciar a introjeção do
poder repressivo sobre os oprimidos e postula uma nova forma de viver a
subjetividade em relação com o mundo real. Os movimentos
emancipatórios almejam superar tudo o que entrava a liberdade de
expressão e de inovação. A ecologia social e a mental deverão trabalhar na
reconstrução das relações humanas em todos os níveis, do socius. O poder
capitalista se desterritorializou e ampliou seu domínio sobre o conjunto da
vida social, econômica e cultural do planeta, infiltrando-se no seio dos mais
inconscientes estratos subjetivos. Não é possível se opor a ele apenas de
fora, através de práticas sindicais e políticas tradicionais. Deve-se encarar
seus efeitos no domínio da ecologia mental, no seio da vida cotidiana
individual, familiar e coletiva. A questão será, no futuro, a de cultivar o
dissenso e a produção singular de existência (GUATARRI apud MURAD,
2019, p. 68).

90
2.3 Ecologia social
A ecologia social estimula “um investimento afetivo e pragmático em
grupos humanos de diversos tamanhos” para reconstruir, de forma nova, o
tecido social. Um ponto programático primordial da ecologia social consiste
na transição da sociedade capitalista da era da mídia para a pós-mídia, como
“reapropriação da mídia por uma multidão de grupos-sujeito, capazes de
gerila numa via de ressingularização” (GUATARRI apud MURAD, 2019, p.
69).

Murad (2019, p. 70) define bem o objetivo de Guattari em articular as


“três ecologias”. Segundo o autor:

Guattari articula as “três ecologias” almejando uma sociedade


alternativa, com novos paradigmas comunicacionais, relacionais e
sociais. Para ele, a verdadeira resposta à crise ecológica dar-se-á (..)
em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica
revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da
produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá
concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis em grande
escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de
inteligência e de desejo.

Essas definições, por sua vez, nos conduzem ao entendimento de


Ecosofia proposto por Guattari. Na concepção de Murad (2019, p. 70).

Na visão de Guattari, a ecosofia reúne as três ecologias visando a


uma utopia viável, cujo movimento já começou. Ela levará a
humanidade a um patamar original, a sínteses ainda não alcançadas.
Uma ecosofia de um tipo novo, ao mesmo tempo prática e
especulativa, éticopolítica e estética, deve substituir as antigas formas
de engajamento religioso, político, associativo [...] Ela não será nem
uma disciplina de recolhimento na interioridade, nem uma simples
renovação das antigas formas de "militantismo". Tratar-se-á antes de
movimento de múltiplas faces dando lugar a instâncias e dispositivos
ao mesmo tempo analíticos e produtores de subjetividade.
Subjetividade tanto individual quanto coletiva, transbordando por
todos os lados as circunscrições individuais... (GUATTARI apud
MURAD, 2019, p.70).

91
3 ECOLOGIA PROFUNDA

Arne Naess foi um filósofo e ecologista da Noruega, falecido em 2009,


considerado o precursor do termo ecologia profunda. Como já vimos
anteriormente, suas obras sobre ecologia influenciarama contrução
moderna do conceito de Bioética. Em seu clássico artigo originalmente
publicado em 1973, o autor expõe a diferença entre ecologia superficial e
ecologia (chamada por ele) de profunda. Nesse aspecto, Naess (apud
MURAD, 2019, p. 71), elenca seis característicasda deep ecology (ecologia
profunda):

1- Recusa da imagem do homem no meio ambiente em favor da


imagem relacional, de campo total;
2- Igualdade biosférica;
3 - Princípio de diversidade e simbiose;
4 - Postura anti-classista (ou anti-dominadora);
5 - Combate à poluição e ao esgotamento dos recursos naturais;
6-Complexidade, não-complicação; autonomia local e
descentralização.

Conforme Murad (2019, p. 70-72), anos depois, Naess e G. Sessions


divulgam os “Princípios básicos da Ecologia Profunda”. Estes princípios
são uma plataforma de luta diante de uma nova humanidade que se faz e
podem ser elencados de forma resumida em oito pontos. São eles:

1. O bem-estar e o florescimento da vida humana e da não-humana


sobre a terra têm valor em si mesmos (valor intrínseco[...]). Esses
valores são independentes da utilidade do mundo não-humano para
os propósitos humanos;
2. “A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a
realização desses valores e são valores em si mesmos”;
3. “Os seres humanos não têm nenhum direito de reduzir essa riqueza
e diversidade, exceto para satisfazer necessidades humanas vitais”;
4. “A prosperidade da vida humana e das suas culturas é compatível
com um substancial decrescimento da população humana. O
florescimento da vida não humana exige essa diminuição”;

92
5. “A atual interferência humana no mundo não-humano é excessiva
e a situação está piorando aceleradamente”;
6. “As políticas precisam ser mudadas. As mudanças políticas afetam
as estruturas básicas da economia, da tecnologia e da ideologia. A
situação que resultará desta alteração será profundamente diferente
da atual”;
7. “A mudança ideológica ocorrerá no apreciar da qualidade de vida
[...], em vez da adesão a padrões de vida mais elevados. Haverá uma
consciência profunda da diferença entre o grande (quantidade) e o
importante (qualidade)”;
8. “Aqueles que subscrevem os princípios precedentes têm a
obrigação de tentar implementar, direta ou indiretamente, as
mudanças necessárias” (NAESS e SESSIONS apud MURAD, 2019,
p. 72).

Todos esses princípios, por sua vez, nos conduzem a um paradigma


crítico-reflexivo diante da problemática inerente a ecologia e, sobretudo a
humanidade. Veremos isso na sequência, ou seja, na próxima aula.

SUGESTÃO DE AUDIÊNCIA

Sobre ecologia assista o vídeo didático. “Ecologia, o que é?”.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AlAsagaN43E

93
SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Historicamente pode-se conceber que a primeira concepção de


Ecologia vêm dos gregos a partir da descrição da relação de
organismos entre si e com o meio;
• A fundamentação teórica de Ecossistema se faz conceito chave
para se compreender Ecologia e suas derivações trasdiciplinares;
• Em síntese o ecossistema é uma unidade funcional composta de
organismos integrados, e em todos os aspectos do meio
ambiente em qualquer área específica;
• A ecologia possui vertentes que se estruturam, sobretudo na
concepção humanística do termo. Dentre essas vertentes se
encontram a Ecologia Humana e em suas derivações como as
três ecologias de Guattari (ambiental, mental e social) e a
Ecologia profunda (deep ecology) de Naess.

94
AULA 12: PANORAMA E PROBLEMÁTICA
ECOLÓGICA
META

Trazer à tona, a partir de um pensamento auto-crítico o panorama dos


problemas e prováveis soluções que envolvem o espectro ecológico
humano.

OBJETIVOS

• Explicitar o contexto e a problemática do desequilíbrio ecológico


global;
• Tratar acerca da perda da biodiversidade planetária;
• Propor um arcabouço crítico que evoque a prática ecológica e
aponte para uma ecoteologia.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 O PROBLEMA DO DESEQUILÍBRIO ECOLÓGICO

Quando tratamos de Ecologia, é algo recorrente relacionarmos o tema


com a crise ambiental (MURAD, 2019). Na perspectiva de Reimer (2009,
p. 301):

Diferentes discursos na atualidade acentuam a noção de ‘crise


ambiental’. Há diferentes produtores de palavras que projetam e
inserem essa noção no imaginário coletivo contemporâneo. Vários
são os lugares em que esses discursos são circulados: na política, na
academia, na teologia, na filosofia. Isso é algo novo em relação a
algumas décadas atrás. Se pensarmos que somente com o relatório
da comissão Brundtland, na década de 1970, a ‘humanidade’ pela
primeira vez tomou consciência da finitude dos recursos naturais,
podemos rapidamente perceber a dimensão recente desse tipo de
discurso e do desenvolvimento das reflexões aí contidas.

95
Reimer (2011) delimeia bem essa crise a partir do paradigma da
modernidade. Nas palavras do autor:

O chamado paradigma de Modernidade trouxe consigo uma


profunda ruptura em relação à cosmovisão tradicional. Embora
amplos segmentos populacionais, também no mundo ocidental,
continuassem imersos no paradigma antigo, o avanço da ciência e
da filosofia crítica enquanto espaços autônomos em relação ao
controle da Igreja possibilitaram uma mundivisão, na qual a natureza
se tornou fundamentalmente uma reserva de recursos entendidos
como em função das necessidades e dos desejos dos seres humanos.
Muitos pensadores e cientistas contribuíram para moldar este novo
conceito de natureza como espaço subordinado e externo ao ser
humano, constantemente passível de subjugação e exploração. A
racionalidade técnicocientífica acabou por gerar uma cisão entre
homem e mundo (natureza), ocasionando a sobreposição
hierárquica do homem em relação à natureza. A voracidade das
necessidades e dos desejos humanos aumentou incrivelmente
quando no século XVIII a humanidade atingiu numericamente o
primeiro bilhão no mesmo compasso da revolução industrial
capitaneada pela Inglaterra. A partir daí a demarcação geopolítica do
mundo se tornou ainda mais crassa. O novo mundo, com exceção
da América do Norte, deveria corresponder ainda mais à sua função
de fornecedor de recursos naturais para a indústria européia, não
importando os custos humanos e ambientais destes processos de
exploração. Com isso, o capitalismo proporcionou uma acumulação
de riquezas nunca dantes vista na história humana, deixando
lamentáveis rastros de destruição ambiental e humana. (REIMER,
2011, p. 16).

Em sua contextualização Reimer (2011, p. 16) continua expondo a


problemática ao dizer que:

A tecnociência possibilitou ainda mais a explosão demográfica, com


diminuição da taxa de mortandade infantil, do aumento das
possibilidades reprodutivas e com o prolongamento da média de
idade da população. Com a industrialização crescente e a
mecanização de processos produtivos, enormes fluxos migratórios
do campo para a cidade formaram os grandes conglomerados
urbanos, que passaram a sinalizar esta marcha do progresso e indicar
de forma cada vez mais clara o descompasso em relação às
condições de regeneração do ambiente. Os impactos ambientais do
crescimento humano se fazem perceber de forma cada vez mais

96
clara, expressando-se em muitas manifestações fenomênicas de crise
e desajustes ambientais. Ainda que a ciência e a técnica já estivessem
em condições de frear as nefastas intervenções no ambiente, a taxa
de degradação do ambiente natural tem aumentado acima da taxa de
crescimento populacional. O homem retira da natureza matérias
primas acima da capacidade de regeneração sistêmica da natureza.
Estima-se que a taxa de extinção de espécies naturais cresce na
mesma proporção do crescimento da população. A comunidade
humana em seu conjunto se revela como sujeito ativo de uma lógica
ecocida. Salvo algumas honráveis exceções, por onde passam, os
humanos, na sua ânsia por vida, por pressões econômicas e fatores
históricos, por satisfação de desejos limitados e de desejos
ilimitados, interferem, destroem e poluem o ambiente.
Desmatamento, desertificação do solo poluição dos mananciais são
facetas de uma crise ambiental de proporções globais. Estes
desajustes do ambiente vão gerando perceptíveis mudanças
climáticas, às quais os humanos são chamados a se ajustar cada vez
mais, demandando ciência e sabedoria. Hoje se discute se as facetas
da crise ou dos desajustes ambientais, tais como a chuva ácida, o
aquecimento do planeta e os câmbios climáticos têm causas
antrópicas ou não. Isto é, discute-se se o homem e sua forma de
organização e de produção são responsáveis por tais fenômenos
catastróficos ou se a própria natureza se organiza ciclicamente com
efeitos nefastos sobre parte dos seres que ocupam o planeta.

Em síntese, esses fenômenos “podem ser entendidos como


componentes da crise no moderno modelo de desenvolvimento, um
modelo que explora a natureza, mas não está interessado em restaurar suas
fontes ou em promover justiça entre os seres humanos” (RUETHER apud
PORTO, 2018, p.70). Para muitos a Ecologia, nesse sentido, se apresenta,
em um primeiro momento como um problema a ser solucionado.
Entretanto, se pensarmos bem, a questão principal não é o chamado “o
problema ecológico”, como algo externo, fora de nós, que vem da natureza,
mas sim a maneira com que a humanidade lida com a vida no planeta, a
biosfera (MURAD, 2019).
Como bem aponta Cassini (2005, p. 42-43), há na natureza “um
equilíbrio dinâmico entre os organismos vivos e o ambiente em que vivem,
compartimentos estes que [...] formam os ecossistemas, com suas trocas e
influências entre organismos e entre eles e o meio”. Nesse contexto,
conforme o autor, qualquer evento ou acontecimento que venha a
desalinhar as caratcerísticas naturais de um ecossistema se torna fator de

97
um desequilíbrio ecológico. Em síntese, o desequilíbrio ecológico pode ser
dividido em dois fatores, sendo eles: Fatores Naturais de Desequilíbrio e
Fatores de Desequilíbrio induzidos pelo Homem. Dentro dessa divisão os
Fatores Naturais de Desequilíbrio podem ser compreendidos como:

Eventos muito esporádicos, imprevisíveis, como grandes furacões,


terremotos, tempestades, maremotos, vendavais, etc., os quais
tendem a gerar intensa destruição nos ambientes onde ocorrem.
Dependendo do tipo de ecossistema atingido, os danos na
comunidade biológica podem ser intensos, sendo necessários vários
anos para a sua plena recuperação. Em alguns casos, eventos
esporádicos, mas cíclicos (voltam a ocorrer em períodos de tempo
longos, mas relativamente regulares), induzem as comunidades ao
desenvolvimento de adaptações, como por exemplo, nos cerrados,
onde o fogo é um fator estressante periódico, que ocorre em
intervalos de alguns anos. Neste exemplo, muitas árvores e plantas
já se encontram adaptadas ao fogo, algumas inclusive necessitando
dele em alguns processos reprodutivos. Neste caso, o fogo do
cerrado é um fator de desequilíbrio para alguns componentes do
ecossistema, mas para outros não. (CASSINI, 2005, p. 42-43).

Por sua vez, os Fatores de desequilíbrio induzidos pelo Homem


englobam:

Todos os tipos de estresse produzido pelo homem na natureza:


poluição atmosférica, poluição dos rios e lagos, poluição dos mares
e oceanos, desmatamento de florestas, matas cilliares e mangues,
depredação e captura de espécies para comércio, macacos, aves,
focas, sobrepesca (captura excessiva de peixes, captura de peixes
muito jovens e peixes em época reprodutiva), aquecimento global
(efeito estufa), redução na camada de ozônio, explosão demográfica,
etc. Estes e outros fatores, ligados às atividades humanas causam
perturbações nos ecossistemas que vão desde efeitos imperceptíveis
a curto prazo até a total destruição de ecossistemas inteiros, como
ocorre com os aterros de manguezais, queimadas na Amazônia,
derrames de petróleo, etc. Um aspecto muito importante no que diz
respeito aos fatores de desequilíbrio ecológico, é que estando todas
as espécies interligadas em um ecossistema e dependendo do
ambiente físico para viver, as perturbações ocorridas em uma
espécie ou um compartimento ecológico (por exemplo, animais
herbívoros), refletirão em toda a teia trófica, causando danos muito
maiores, em todo o ecossistema. (CASSINI, 2005, p. 42-43).

98
Diante dos Fatores de desequilíbrio ambiental, sobretudo, os induzidos
pelo homem, podemos dizer que a crise ambiental é uma crise que reflete
em espelho a própria humanidade e suas escolhas. Temos a necessidade
diante disso, de dar um passo a mais, dos sintomas para os motivos
(MURAD, 2019, p. 67).
Diante desse quadro, Guridi (apud MURAD, 2019, p. 67) aponta tres
grandes sintomas da crise ambiental:
1. Esgotamento de recursos renováveis e suas consequências para a
humanidade;
2. Redução da biodiversidade e destruição de ecossistemas; aumento
da poluição em diversas formas;
3. Risco de grandes desastres associados ao poder militar (energia
nuclear, armas químicas e biológica.

Conforme Murad (2019, p. 67), o Papa Francisco, também se manifesta


em relação à problemática ambiental no capítulo I da Encíclica Laudato Si,
onde o sacerdote aponta sinais de degradação planetária que não podem ser
escondidos debaixo do tapete. São eles: “os resíduos sólidos e a cultura do
descarte, as mudanças climáticas, a qualidade da água, a perda da
biodiversidade, a deteriorização da qualidade de vida com a degradação
ambiental, e a desigualdade planetária (LS 17-61)”.
Em síntese o problema com o qual o planeta se depara é humano.
Reimer define bem essa questão ao assinalar que:

No campo das discussões, sempre de novo é levantada a pergunta


se essa deteriorização é devida a causas antrópicas, isto é, originadas
pela exacerbada intervenção do próprio ser humano no ambiente,
ou se a deteriorização é consequência de câmbios climáticos
decorrentes de fatores naturais cíclicos em períodos de longa
duração. Por trás dos discursos ambientais há, claro, motivações de
ordem política, no sentido, por exemplo, de que as nações
produtoras de tecnologias ‘limpas’ têm interesse em expandir o
mercado para seus produtos. Mas há também convergências de
interesses, na medida em que, por exemplo, no protocolo de Kyoto
e no projeto do comércio de carbono interesses preservacionistas
conseguiram inserir preocupações ambientais genuínas, em ligação
com eventuais recompensas monetárias por seus esforços. Há e
houve ao longo da história eventos de ordem natural que
interferiram negativamente no ambiente. No entanto, parece ser

99
inegável que, na situação atual, os desequilíbrios ambientais são
consequências da intervenção desenfreada dos humanos no
ambiente (REIMER, 2009, p. 301-302).

PARA PENSAR

Nos grandes encontros internacionais tem prevalecido a tese da causa


antrópica das crises ambientais. Embora contestada por alguns cientistas,
esta tese situa as discussões atuais como consequência de um longo
processo evolutivo e de expansão do ser humano sobre a terra. A evolução
humana coloca em risco a própria humanidade e o ambiente como um
todo, gerando incertezas quanto ao destino especialmente das gerações
futuras (REIMER, 2011, p. 17).

Crise ambiental. Imagem crítico-ilustrativa. Disponpivel em: http://1.bp.blogspot.com/-


TiN1ZFyxgkk/VctkLl3GjYI/AAAAAAAAAX4/gIS0WCvlVmo/s1600/crise%2Bambi
ental.jpg

100
2 O PROBLEMA DA PERDA DA BIODIVERSIDADE

Todos estes problemas demonstram que, para além das teorizações, há


um processo prático em relação à temática Ecológica que clama por uma
solução imediata. Existe um alerta adivindo tanto da comunidade científica
internacional quanto governos e entidades não-governamentais
ambientalistas acerca da perda da biodiversidade em todo mundo, de forma
particular, nas regiões tropicais (CASSINI, 2005, p. 34). Mas o que vem a
ser biodiversidade?
Cassini (2005, p. 30-31), propõe uma definição ampla do termo que nos
auxiliará na compreensão da problemática relacionada. Conforme o autor:

Diversidade Biológica, ou Biodiversidade, refere-se à variedade de


vida no planeta terra, incluindo: a variedade genética dentro das
populações e espécies; a variedade de espécies da flora, da fauna e
de microrganismos; a variedade de funções ecológicas
desempenhadas pelos organismos nos ecossistemas; e a variedade
de comunidades, habitats e ecossistemas formados pelos
organismos. Biodiversidade refere-se tanto ao número (riqueza) de
diferentes categorias biológicas quanto à abundância relativa
(equitabilidade) dessas categorias; e inclui variabilidade ao nível local
(alfa diversidade), complementaridade biológica entre habitats (beta
diversidade) e variabilidade entre paisagens (gama diversidade).
Biodiversidade inclui, assim, a totalidade dos recursos vivos, ou
biológicos, e dos recursos genéticos, e seus componentes. A
Biodiversidade é uma das propriedades fundamentais da natureza,
responsável pelo equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas, e fonte
de imenso potencial de uso econômico. A Biodiversidade é a base
das atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais e, também,
a base para a estratégica indústria da biotecnologia. As funções
ecológicas desempenhadas pela Biodiversidade são ainda pouco
compreendidas, muito embora considere-se que ela seja responsável
pelos processos naturais e produtos fornecidos pelos ecossistemas e
espécies que sustentam outras formas de vida e modificam a
biosfera, tornando-a apropriada e segura para a vida. A diversidade
biológica possui, além de seu valor intrínseco, valores ecológico,
genético, social, econômico, científico, educacional, cultural,
recreativo e estético.

101
VOCÊ SABIA?

O Brasil é o país com maior Biodiversidade (é o maior dos "países


de Megadiversidade"), contando com um número estimado entre 10
e 20% do número total de espécies do planeta. O Brasil conta com
a mais diversa flora do mundo, com mais de 55.000 espécies
descritas (22% do total mundial). O país possui, por exemplo, a
maior riqueza de espécies de palmeiras (390 espécies) e de orquídeas
(2300 espécies). Diversas espécies de plantas de importância
econômica mundial são originárias do Brasil, destacando-se dentre
elas o abacaxi, o amendoim, a castanha do Pará, a mandioca, o caju
e a carnaúba. Os animais vertebrados são amplamente representados
na fauna brasileira. Foram registradas no país 394 espécies de
mamíferos, 1.573 espécies de aves, 468 espécies de répteis, 502
espécies de anfíbios e mais de 3000 espécies de peixes. Esta riqueza
de espécies corresponde a pelo menos 10% dos anfíbios e
mamíferos, e 17% das aves de todo o planeta. O Brasil conta ainda
com a maior diversidade de primatas do planeta, com 55 espécies,
sendo 19 endêmicas. Como evidência da riqueza da fauna brasileira
e de seu desconhecimento, cinco novas espécies de macacos foram
descritas no país. O tamanho total da Biodiversidade brasileira não
é conhecido e talvez nunca venha a ser conhecido precisamente tal
a sua complexidade. Estima-se, entretanto, que existam mais de dois
milhões de espécies distintas de plantas, animais e microrganismos
no território sob a jurisdição brasileira, uma diversidade genética
inestimável e uma imensa diversidade ecológica dadas as dimensões
continentais do país e de sua plataforma marinha. (CASSINI, 2005,
p. 32).

Diante do panorama da biodiversidade, “a degradação biótica que está


afetando o planeta encontra raízes na condição humana contemporânea,
agravada pelo crescimento explosivo da população humana e pela
distribuição desigual da riqueza” (CASSINI, 2005, p. 34). Na perspectiva de
Cassini (2005, p. 34), a perda da diversidade biológica está diretamente
relacionada a aspectos sociais, econômicos, culturais e científicos. Nesse
panorama, os principais processos responsáveis pela perda da
Biodiversidade são:
a) “Perda e fragmentação dos habitats; Introdução de espécies e
doenças exóticas”;
b) “Exploração excessiva de espécies de plantas e animais”;

102
c) “Uso de híbridos e monoculturas na agroindústria e nos programas
de reflorestamento”;
d) “Contaminação do solo, água, e atmosfera por poluentes; e
Mudanças climáticas. As inter-relações das causas de perda de
Biodiversidade com a mudança do clima e o funcionamento dos
ecossistemas apenas agora começam a ser vislumbradas”.

Dentro desse contexto, Cassini (2005, p. 34, grifos nossos) elenca três
razões principais que justificam a preocupação com a conservação da
diversidade biológica:

1- Porque se acredita que a diversidade biológica seja uma das


propriedades fundamentais da natureza, responsável pelo equilíbrio
e estabilidade dos ecossistemas; 2- Porque se acredita que a
diversidade biológica representa um imenso potencial de uso
econômico, em especial através da biotecnologia; 3- Porque se
acredita que a diversidade biológica esteja se deteriorando, inclusive
com aumento da taxa de extinção de espécies, devido ao impacto
das atividades antrópicas.

Diante de todos os elementos apontados até aqui, podemos exercer


nosso pensamento (auto) crítico e afirmar que, em síntese, o problema
ecológico se radica “em um modo de viver, um sistema de vida – marcado
pela industrialização e a sociedade de consumo – que alterou os
ecossistemas e o funcionamento natural da terra” (GURIDI apud MURAD,
2019, p. 67). Em outros termos “nossa forma de vida como um todo –
nossa forma de trabalhar, produzir e consumir – não é perdurável no
tempo, nem tampouco generalizável a todos os habitantes do planeta”
(RIECHMANN apud MURAD, 2019, p. 67). Portanto, “uma dupla face
nos introduz ao tema da ecologia e, por consequência, à ecoteologia:
encantamento diante da beleza da Criação, inquietação frente à crise
ambiental causada pelo ser humano” (MURAD, 2019, p. 67-68). Todo esse
instrumental teórico-crítico servirá de fundamento epistemológico para o
tema que se relaciona e se introduzirá a seguir. A Ecoteologia em suas
tramas e elementos. Pronto para continuar? Então vamos.

103
PARA REFLETIR

A ecologia pretende compreender a forma como os seres dependem


uns dos outros, numa imensa teia de interdependência, o sistema
homeostático, equilibrado e autorregulado. A singularidade do saber
ecológico consiste na transversalidade: “relacionar pelos lados
(comunidade ecológica), para a frente (futuro), para trás (passado) e
para dentro (complexidade) todas as experiências e todas as formas
de compreensão como complementares e úteis no nosso
conhecimento do universo, nossa funcionalidade dentro dele e na
solidariedade cósmica que nos une a todos”. Então, a ecologia
deixou de ser um movimento de preservação das matas e das
espécies. Transforma-se em crítica ao tipo de civilização que
construímos, que devora energia e desestrutura os ecossistemas.
Uma forma de viver, uma via de redenção para o ser humano e o
ambiente. (BOFF apud MURAD, 2019, p. 75).

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• O chamado “problema ecológico”, mais do que algo externo a


nós, trata-se da maneira com que a humanidade lida com a vida
no planeta, a biosfera;
• O desequilíbrio ecológico pode ser dividido em dois fatores,
sendo eles: Fatores Naturais de Desequilíbrio e Fatores de
Desequilíbrio Induzidos pelo Homem;
• Diversidade Biológica, ou Biodiversidade, refere-se à variedade
de vida no planeta terra, incluindo: a variedade genética dentro
das populações e espécies; a variedade de espécies da flora, da
fauna e de microrganismos; a variedade de funções ecológicas
desempenhadas pelos organismos nos ecossistemas; e a
variedade de comunidades, habitats e ecossistemas formados
pelos organismos;
• O problema ecológico se trata do modo de vida humano.

104
MÓDULO IV: ECOTEOLOGIA

105
INTRODUÇÃO

Caro estudante. Espero que tenha chegado bem até aqui. Estamos
adentrando no último módulo de nossa disciplina. Nas próximas linhas
textuais, trataremos de uma temática candente no meio teológico e, por
conseguinte, na sociedade contemporânea. Falaremos sobre a Ecoteologia.
Nesse empreendimento, faremos uma viagem conceitual, histórica e crítica
em relação aos principais aspectos presentes nessa corrente teológica
moderna. Convidamos-te à uma jornada exploratória que certamente trará
colorações e elementos novos para o seu conhecimento e prática teológica.
Este módulo contém duas unidades com duas aulas cada uma, são elas:

UNIDADE VII: Conceitos e elementos para uma Ecoteologia Bíblica


UNIDADE VIII: Clássicos da Ecoteologia

UNIDADE VII: CONCEITOS E ELEMENTOS PARA


UMA ECOTEOLOGIA BÍBLICA

Essa unidade propõe um mergulho nos conceitos e elementos que


circunscrevem e trazem ferramentas para uma ecoteologia bíblica. O
convite nesse sentido é para se pensar a interpretação bíblica a partir do
prisma hermenêutico ecoteológico. Esse trajeto será feito a partir de duas
aulas. São elas:

AULA 13: Conceitos e Fundamentos


AULA 14: Elementos para uma Ecoteologia Bíblica

106
AULA 13: CONCEITOS E FUNDAMENTOS
META

Nossa explanação sobre Ecoteologia propõe um caminho introdutório


conceitual atualizado acerca da temática.

OBJETIVOS

• Tratar acerca da história e das principais características e elementos


que envolvem o conteúdo ecoteológico;
• Abordar criticamente a perspectiva metodológica e as contribuições
oriundas do labor ecoteológico.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 HISTÓRIA E CARACTERÍSTICAS

Tratar sobre Ecologia não é algo simples de ser feito. Envolve,


sobretudo, senso crítico do humano sobre si mesmo e sobre a realidade a
sua volta. Como visto anteriormente, nos encontramos em um estado de
alerta ambiental e planetário diante do qual o ser humano necessita agir,
para suprimir a pegada ecológica deixada pelo próprio homem em sua
caminhada pela terra. Reimer (2009, p. 302) introduz bem essa questão ao
afirmar que:

A ‘pegada ecológica’ dos humanos torna-se pesada demais em


relação às condições de regeneração próprias da natureza em seus
ciclos ecossistêmicos. Isso demanda, além de avaliação analítica,
ações propositivas para a reversão ou diminuição dessa intervenção.
O ambiente planetário, apesar de tantas e abundantes belezas
naturais ainda existentes, está se tornando um lugar cada vez mais
ameaçado em sua existência, em seus ciclos ecossistêmicos próprios.
A vida no planeta está ameaçada! Hoje os humanos já consomem
um planeta e meio para satisfazer suas necessidades e,
principalmente, os desejos e a ganância dos poderosos. Quando se
fala que a vida no planeta está ameaçada em suas bases sistêmicas,
com isso não se quer fazer coro com slogans como ‘salvar a

107
natureza’ ou ‘salvar o planeta’. Não se trata de uma empreitada
redentora. De destruidores os humanos não se transformam em
salvadores num passe de mágica. Trata-se, porém, de envidar
esforços, pessoais e coletivos, para diminuir os efeitos danosos da
ação antrópica no ambiente. Essa é a margem de manobra possível
e passível a nós humanos. Isso, contudo, requer uma mudança de
olhar; requer um ‘caminho mental’, como em outros tempos foi
proposto pelo físico Fritjof Capra (2000). O humano necessita rever
as regras de conduta (economia) em relação ao seu oikos, à ‘casa’,
em suas várias dimensões: micro, meso, macro (ecologia). Trata-se
de uma demanda ética de cuidado. Dentro desta, de questões morais
e, assim, de ordem teológica.

Esse modos operandi se faz quando o ser humano se reconhece como


parte da criação de um ser supremo, quando o pensar teológico se faz a
partir de pressupostos ecológicos. Nesse sentido, “para pensar a questão do
meio ambiente a partir de uma perspectiva teológica é necessário que
estabeleçamos uma premissa hermética de que existe uma relação profunda
entre o ser humano religioso e o mundo como um todo” (REIMER apud
SILVA, 2010, p.136). No âmbito dessas reflexões, “um pensamento cristão
voltado para os problemas ecológicos constitui decididamente uma
mudança de paradigma na própria teologia” (REIMER apud SILVA, 2010,
p.136). Nesse aspecto, “começa-se a incorporar a ecologia na fé cristã não
somente como um tema a mais, ao lado de tantos outros, mas na forma de
pensar a fé, na sua lógica” (MURAD, 2009, p. 287). Surge, pois o que se
denomina de ecoteologia. Historicamente se relata que o termo ecoteologia
foi cunhado e popularizado por David G. Hallman, antigo presidente do
conselho mundial das Igrejas 15 (MURAD, 2019, p. 81-82).
Em seu artigo, Murad (2019, p. 82-83), expõe didaticamente uma
síntese de características gerais da ecoteologia propostas por Román Guridi
Guridi. São elas:

1. “A ecoteologia não é um mero esforço reativo para defender a


relevância do cristianismo e sua contribuição às práticas
ecologicamente amigáveis, contra aqueles que o acusam de ser uma

15 Dentre suas obras, destaca-se Ecotheology: Voices from South and North, 1994”
(MURAD, 2019, p. 81-82). Nesse aspecto, “as teses de Lynn White (2007), referentes à
crítica ao antropocentrismo e sua origem no cristianismo foram somente um catalisador
da ecoteologia. (MURAD, 2019, p. 82).

108
das principais causas históricas da crise ecológica atual” (GURIDI
apud MURAD, 2019, p. 82).
2. “A ecoteologia foi historicamente modelada pelo encontro da
reflexão teológica e a crescente consciência ecológica. Essa nova
consciência penetrou na teologia, como também em outras áreas do
conhecimento e em práticas e crenças humanas. Está permeando a
educação, a economia, as artes, o planejamento urbano e os hábitos
cotidianos”.
3. “A ecoteologia se desenvolveu muito nos últimos anos, com uma
quantidade razoável de autores e publicações. Suscitaram-se
perguntas, como: diante da crise ecológica atual, quais são as
mudanças necessárias no olhar teológico sobre o mundo? qual o
papel da prática cristã, neste contexto? como o cristianismo pode
contribuir para uma mudança de mentalidade e de comportamento?
quais seriam as fontes teológicas para realizar esta revisão da teoria
e da prática cotidiana? como articular corretamente a sensibilidade
ecológica com as nossas convicções de fé?”.
4. “A ecoteologia realiza uma dupla tarefa hermenêutica: a crítica a
partir da fé cristã, e a crítica da própria formulação que esta adquiriu
na história. Os termos que melhor descrevem os objetivos que a
ecoteologia assumiu nas últimas décadas são: revisão, recuperação,
transformação e aprofundamento”. Nesse contexto podemos dizer
que:
a) A ecoteologia propugna uma ética ambiental, mas não se reduz
a ela. Visa explicar “como e porque a sensibilidade ecológica é
essencial para os crentes e uma parte nuclear de sua fé”.
b) A ecoteologia “analisa a crise ecológica a partir de sua dimensão
religiosa. Nesse empenho, revisa a compreensão de Deus, de
criação e do lugar do ser humano. Exerce simultaneamente a
dupla função de crítica e reconstrução” (GURIDI apud
MURAD, 2019, p. 82).
5. “Os teólogos e as teólogas exploram distintos caminhos e
concretizam objetivos para ativar o diálogo entre a teologia cristã e
a sensibilidade ecológica, tais como: - Redefinir a noção de domínio
e reinterpretar a pretensa tarefa de administrar o mundo,
encomendada por Deus à humanidade em Gn 1”. Nesse contexto,
conforme Guridi (apud MURAD, 2019, p. 83), é tarefa da
ecoteologia:

109
a) “Buscar novas metáforas e conceitos para expressar a
causalidade divina (relação de Deus com a criação) e o vínculo
do ser humano com as outras criaturas”;
b) “Inspirar práticas ecológicas amigáveis”;
c) “Explicitar paradigmas bíblicos e outras tradições teológicas
que ofereçam uma compreensão da realidade distinta do
dualismo grego e da estratificação hierárquica dos seres”;
d) “Acentuar o valor intrínseco de todas as criaturas, que tem sua
origem em Deus”;
e) “Propor um conjunto de princípios éticos e critérios práticos
para o discernimento de pessoas e de comunidades, em vista de
novas formas de vida”.

Dentro dessa perspectiva, o teólogo Ernst Conradie (apud MURAD,


2019, p. 82) identifica o seguinte leque de estratégias da ecoteologia no
mundo:

1. Trabalhos em exegese e teologia bíblica;


2. Ética aplicada com temas relacionados com os animais, a
alimentação, a biotecnologia, as mudanças climáticas;
3. Ecofeminismo e suas facetas regionais;
4. Projetos multiconfessionais sobre Religião e Ecologia,
incorporando as cosmovisões dos povos originários;
5. Renovação da liturgia e da espiritualidade em perspectiva ecológica;
6. Iniciativas de revisão e atualização dos símbolos e doutrinas cristãs;
e transformações locais para tornar as instituições e as comunidades
cristãs mais ecológicas.

110
COM A PALAVRA QUEM ENTENDE DO ASSUNTO

Um dos princípios da ecologia, segundo Capra (apud MURAD, 2009,


p. 287), consiste na originalidade de sua lógica. Ela se constrói com
o pensamento sistêmico, que “significa pensar em termos de
relações, padrões e contexto”. “Embora seja possível distinguir as
partes de qualquer sistema vivo, a natureza do todo é sempre
diferente da simples soma de suas partes. Pensar ecologicamente não
significa simplesmente refletir sobre o ecossistema e o ser humano
(o que se pensa, o “objeto material”, na expressão escolástica), e sim
pensar ‘na relação entre eles’. E, neste sentido, nós aprendemos das
comunidades de vida (ou biosfera) que um determinado ser, biótico
ou abiótico, não é compreendido de forma isolada, e sim no
contexto das relações que estabelece” (CAPRA, apud MURAD,
2009, p. 287).

VOCÊ SABIA?

Há distintas formas de concreção da ecoteologia, que têm a ver com


os contextos culturais e geográficos. As produções de ecoteologia se
diferenciam pelas formas de lidar com o uso da Escritura; as
perguntas formuladas e estudadas; as preocupações particulares ou
gerais; a pluralidade de Igrejas cristãs; o tipo de diálogo estabelecido
com as ciências e a filosofia; o horizonte intelectual, os objetivos
estabelecidos e a forma como se recebe e interpreta a Tradição
cristã” (MURAD, 2019, p. 83). “Estas diferenças nos temas, nos
métodos e nas prioridades implicam tensões e, também disparidade
na qualidade e no alcance das pesquisas e publicações dentro da
ecoteologia. (GURIDI apud MURAD, 2019, p. 83).

111
Diagramação ecoteológica.
Disponível em: https://image.slidesharecdn.com/oqueeecoteologiaversaodidatica
190708143902/95/o-que-e-ecoteologia-versao-didatica-2 638.jpg?cb=1562596836

2 MÉTODO E CONTRIBUÇÕES

Diante desse universo de multiplicidades, o estado atual da ecoteologia


se apresenta por um espectro de pluralidade de vozes, polifonias,
diversidades de temas, ênfases, abrangências, especificidades e estratégias.
Contudo, deve-se acentuar que não há um método próprio para se fazer
ecoteologia (GURIDI apud MURAD, 2019, p. 83). Nas palavras de Guridi,

A ecoteologia não se estrutura em torno a um método teológico


original ou a um novo grupo de metodologias dentro da teologia [...]
Diferentemente da teologia da libertação e da teologia feminista, a
ecoteologia ainda não conseguiu articular um método próprio que
seria característico de sua tarefa teológica (GURIDI apud MURAD,
2019, p. 83).

Apesar disso, a ecoteologia cresceu como um campo específico dentro


da reflexão teológica; ela se desnovelou em algumas ferramentas
metodológicas, como o diálogo com a visão científica e evolutiva da vida,
assumiu temas específicos e estratégias particulares, e desenvolveu uma
sensibilidade própria.

112
Nesse sentido, a ecoteologia tem um duplo objetivo:

1. “Exercer uma crítica cristã aos valores culturais, crenças e atitudes


que estão subjacentes à crise ecológica” (CONRADIE apud
MURAD, 2019, p. 84);
2. “Realizar uma atualização ecológica do cristianismo, no ensino e na
prática” (CONRADIE apud MURAD, 2019, p. 84).

Em termos de contribuições, de acordo com Murad (2009, p. 287-288),


a ecoteologia acrescenta à teologia contemporânea ocidental e latino-
americana dois elementos importantes: um em nível formal e outro, de
conteúdo. Em nível formal, a ecoteologia “propõe a superação da
fragmentação dos saberes uma visão holística e holográfica (o todo é mais
que a soma das partes, e em cada parte ressoa o todo), que integra emoção
e razão, experiência e conceitualização” 16. Em se tratando de conteúdo, o
baricentro ecoteológico “seria a compreensão unificada da complexa
experiência salvífica (criação, história, encarnação, redenção e consumação)
em processo de realização, incluindo necessariamente a ecoesfera, a
comunidade biótica, todos os seres”.
Na perspectiva de Murad (2009, p. 288) essa compreensão unificada da
experiência salvífica propõe uma ruptura paradigmática com implicações
em diversos níveis.
1. “Em primeiro lugar, há uma correção ao antropocentrismo
contemporâneo. O ser humano está no centro, mas não sozinho”17.
2. A espiritualidade se amplia. “Se toda a criação saída das mãos de
Deus, com seus processos cíclicos e evolutivos, está fundada na
Palavra Criadora do Filho e sustentada pelo Espírito Santo, ela

16 Essa proposta se dá “em continuidade com a teologia latino-americana da libertação,


acentua a interdependência da reflexão teológica com a prática pastoral e a espiritualidade.”
(MURAD, 2009, p. 287-288).
17 Ele é fruto da evolução do cosmo, a sua expressão em grau de mais elaborada

autoconsciência. Compreender-se em múltiplas relações de dependência e autonomia em


relação, diferenciação e alteridade diante dos outros seres, longe de alimentar atitude de
dominação, suscita responsabilidade. O ser humano é responsável não somente pelo
futuro da história, mas também do cosmo, no âmbito da “casa comum”, que é o planeta
Terra.” (MURAD, 2009, p. 288).

113
adquire um valor espiritual. Critica-se assim a visão moderna que
“desencantou” todos os seres”.
3. “Rejeita-se a perspectiva depredadora do mercado, que considera
as comunidades de vida (seres abióticos e bióticos) como meros
“recursos” a serem apropriados pelos “donos da Terra”, visando
produção, consumo e descarte”.
4. “Revaloriza-se a comunhão com o ecossistema e redescobre-se sua
dimensão sacramental”.

Todos esses elementos que orbitam o pressuposto ecoteológico


demonstram a complexidade deste novo ramo da teologia. Uma corrente
teológica que se estabelece de forma integrativa e cosmológica e que une a
responsabilidade humana à lógica da criação divina. Dentro desse contexto
é impornate ressaltar que:

A ecoteologia não necessita ser uma corrente a mais na teologia


contemporânea. Cremos que ela é uma perspectiva integradora e
dialogal que deve perpassar a reflexão sobre a fé cristã, sua
espiritualidade e sua ética. Ela não parte de um tema externo ou
ocasional, mas daquilo que é mais precioso à fé cristã: a unidade e a
complexidade da experiência salvífica. A novidade, sim, reside em
considerar que, no projeto de Deus, o ser humano está colocado
junto com as outras criaturas. (MURAD, 2009, p. 295-296).

Em suma:

A ecoteologia, portanto, opera uma transformação no paradigma


antropocêntrico, que entranha a teologia contemporânea. Propõe, a
partir de dentro, uma articulação estreita entre a reflexão teológica e
a espiritualidade. Além disso, do ponto de vista prático, postula
mudanças na ética cristã, ao incorporar “o grito da Terra” e exigir
atitudes individuais, ações coletivas, políticas públicas e processos de
gestão que visem à sustentabilidade da vida no nosso planeta. A
ecoteologia só se entende na interdependência de espiritualidade,
ética e reflexão. (MURAD, 2009, p. 290).

114
PARA REFLERIR

Conforme Silva (2010, p. 136), na “ecoteologia não pode existir dualismo


entre o homem redimido (a Igreja) e mundo da natureza”. Haja vista, “que
o surgimento do homem, sua socialização, e desenvolvimento do chamado
mundo da cultura seriam apenas etapas embrionárias de um plano maior
onde o Telos se estabeleceria na perspectiva de um equilíbrio do sistema,
por isto não pode ser absolutamente rompido sob pena de destruir a própria
vida” (CAMPOS apud SILVA, 2010, p.136).

SUGESTÃO DE AUDIÊNCIA

Acerca da temática ecoteológica assista ao Programa Religare da


Puc-Minas. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=CwnPkcsQJxY&t=250s.

115
SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• A ecoteologia é uma corrente teológica que foi historicamente


modelada pelo encontro da reflexão teológica e a crescente
consciência ecológica;
• A ecoteologia realiza uma dupla tarefa hermenêutica: a crítica a
partir da fé cristã, e a crítica da própria formulação que esta
adquiriu na história;
• Apesar de não possuir metodologia própria desenvolvida, a
ecoteologia possui contribuições metodológicas no sentido de
exercer uma crítica cristã aos valores culturais, crenças e atitudes
que estão subjacentes à crise ecológica, bem como realizar uma
atualização ecológica do cristianismo, no ensino e na prática;
• A novidade ecoteológica consiste em considerar que, no projeto
de Deus, o ser humano está colocado junto com as outras
criaturas.

116
AULA 14: ELEMENTOS PARA UMA ECOTEOLOGIA
BÍBLICA

META

Objetiva-se abordar o paradigma interpretativo ecoteológico como


proposta hermenêutica dos textos bíblicos.

OBJETIVOS

• Delinear um panorama crítico de interpretação ecoteológica da


Bíblia;
• Apontar, a partir da ênfase ecoteológica, alguns passos
interpretativos para o acesso aos textos bíblicos;
• Abordar o conceito de espiritualidade ecológica.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 INTERPRETAÇÃO ECOLÓGICA DE TEXTOS BÍBLICOS

A partir do paradigma ecoteológico visitado anteriormente, temos


agora o desafio de pensar essa realidade investigativa e prática a partir do
processo interpretativo dos próprios textos sagrados. Nesse sentido, a
ecoteologia funciona como um ponto focal hermenêutico capaz de
proporcionar um tipo de revisitação ao texto a partir do olhar cosmogênico
(o que pensa a criação divina a partir de sua integralidade e interconexão).
Dentro desse aspecto, a ecoteologia nos permite:

Recuperar, reinterpretar e reconstruir elementos da Escritura e da


Tradição, em diálogo com a sensibilidade ecológica contemporânea.
A ecoteologia penetrou em vários âmbitos da teologia, como a
dogmática, a ética, a história, os estudos bíblicos, a liturgia e a
espiritualidade. Dessa forma, propicia uma revisão integral e uma
nova expressão do cristianismo. Ela conecta as práticas e crenças
ecologicamente amigáveis com as convicções e símbolos mais
profundos da fé cristã. (GURIDI apud MURAD, 2019, p. 84).

117
Entretanto, de acordo com Murad (2019, p. 85), “a missão da ecologia
exige mais do que recuperar os elementos da Bíblia e da Tradição eclesial,
que foram esquecidos ou ignorados no correr do tempo”. Nesse sentido, a
terminologia ‘ecoteologia’ em sua proposta e conteúdo propõe um salto
hermenêutico. Basicamente:

A ecoteologia impulsiona a memória teológica como também realiza


uma revisão das práticas e crenças cristãs, como por exemplo, a ideia
de que a criação existe somente em benefício do ser humano. Tal
revisão construtiva afeta os principais símbolos e doutrinas do
cristianismo. A ecoteologia deve redizer tudo isso. A crescente
consciência ecológica é um catalisador para uma apropriação nova e
mais profunda da Escritura e da Tradição Cristã. Um aspecto
fundamental a ser revisado é a antropologia teológica. A ecoteologia
questiona a narrativa teológica clássica que: nós fomos criados à
imagem e semelhança de Deus, e por isso temos um status especial,
e Deus mesmo nos pediu para dominar e governar a criação.
(GURIDI apud MURAD, 2019, p. 85, grifos nossos).

Todo esse processo interpretativo que envolve memória teológica,


revisão de práticas e crenças e questionamento da narrativa tem substrato
em um processo de racionalização que envolve a consciência ecológica do
leitor e da leitora dos textos sagrados. Essa consciência determinará o foco
interpretativo. No caso cristão, da Bíblia. A esse respeito Reimer e Richter
Reimer (2010, p. 70), de forma pertinente sinalizam que deve haver uma
consciência ecológica em construção por parte dos leitores e das leitoras da
Bíblia. Isso significa fundamentalmente que à medida que lê, escuta ou
estuda os textos da Bíblia, a pessoa precisa se sensibilizar com os desafios
urgentes das crises ecológicas atuais pelas quais passa o planeta Terra, a
grande casa global de todos os viventes. Essa consciência ecológica pode se
apresentar em diversos graus de intensidade. Pode ser que a pessoa esteja
sensibilizada apenas com questões ambientais relativas ao seu lugar de
moradia, de trabalho e de vida, por exemplo, a poluição das águas dos rios
locais, a contaminação do ar na cidade, a insalubridade em sua casa, o
desmatamento acelerado na região em que vive. Contudo, até por conta das
muitas informações transmitidas pelos grandes meios de comunicação e em
consequências das muitas conferências nacionais e internacionais acerca do
meio ambiente, geralmente as pessoas também se mostram sensibilizadas
com as grandes catástrofes ambientais que ocorrem quase diariamente em
diferentes lugares do planeta, como terremotos, tsunamis e contaminações

118
de usinas nucleares. Há sintonia também com as eventuais causas dos
desajustes ambientais. No caso das catástrofes há, em geral, questões de
ordem natural, isto é, a natureza se manifesta, em sua dinâmica própria,
com fenômenos relacionados ao ecossistema Terra. Mas também há
questões de ordem antrópica, isto é, dimensões relativas à intervenção
humana no ambiente global.
Essa realidade sinaliza o que os autores chamam de uma consciência
ecológica planetária ou cósmica. Nas palavras de Reimer e Richter Reimer
(2010, p. 70):

Esse tipo de percepção se impõe mais a cada dia. Gradativamente


vai- -se reconhecendo que o planeta e o cosmos que habitamos
constituem uma grande teia da vida, um grande organismo vivo do
qual os seres humanos fazemos parte. As interações entre os
diversos ecossistemas desta grande casa se fazem sentir, em
proporções distintas, em cada parte do mundo. Ter consciência
ecológica planetária é ir se dando conta de que, apesar da nossa
inserção no lugar em que vivemos, moramos e trabalhamos, as
relações entre as diversas comunidades humanas assumem
necessariamente proporções globais.

Essa consciência ecológica planetária ou cósmica, intrínseca no sujeito


leitor-interpretante das Escrituras Sagradas conduz o intérprete a um novo
paradigma hermenêutico. De acordo com Reimer (2011, p. 21-24), nos
trilhos desta travessia de interpretação ecológica de textos bíblicos, alguns
passos podem ser delineados.

1. “O reconhecimento dos sinais da crise ambiental, especificamente


aqueles derivados da ação humana sobre o ambiente” (REIMER,
2011, p. 20-21). Nesse aspecto, se trata de um exercício de
sensibilidade, que depende do nível de consciência de cada pessoa.
Como Abraão, a pessoa deve estar aberta para a novidade e o
chamado. Em termos teológicos, a constatação do apóstolo Paulo
em sua Carta aos Romanos pode servir de alerta: “Toda a criação, a
um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (8,23). É
necessário interpretar os sinais dos tempos. A dimensão de “toda a
criação” precisa estar mais presente na educação teológica
continuada e no exercício da espiritualidade, com claros impactos

119
nas ações do cotidiano. O hábito tem grande efeito pedagógico! O
velho dualismo corpo-alma, com a negativa da corporeidade, e esta
ainda associada ao feminino, precisa ser superado em prol de uma
visão holística, integral do ser humano em sintonia e convivência
com toda a criação (REIMER, 2011, p .20-21).

2. Auto-percepção do indivíduo como integrante de “uma rede maior


de relações de produção e consumo. Trata-se de perceber em que
medida o ser humano como indivíduo ou como comunidade
integrante de um todo maior contribui para aumentar ou diminuir
o peso da pegada ecológica”18 (REIMER, 2011, p. 21).

3. “Deve-se buscar fazer prevalecer o cuidado sobre o domínio. Trata-


se de falar mais concretamente da dimensão da fé de que Deus é
criador e cuidador da de toda a criação” (REIMER, 2011, p. 21). A
esse respeito Reimer (2011, p. 21-22) explicita:

Em consonância com este destino das origens, nós humanos


também comungamos, em termos teológicos, do destino
soteriológico de toda a criação. Com boa leitura do relato da criação
em Gênesis podemos perceber que os seres humanos são criaturas
juntamente com os demais elementos da criação. Todos os elos da
criação têm dignidade própria. Segundo o relato bíblico, ao homem
Deus conferiu dignidade especial de “imagem e semelhança”. A mais
profunda realização desta similaridade para com o criador é a
imitação na misericórdia e no cuidado. Deus também atribuiu
responsabilidades aos humanos. Em lugar do binômio “dominar e
sujeitar” (Gn 1,28) é necessário ressaltar cada vez mais a noção
também profundamente bíblica de que o ser humano deve ser
“mordomo da criação”. Sua tarefa fundamental deve consistir em
“cultivar e guardar” (Gn 2.15). O “cultivar” implica necessariamente
em intervenção sobre o ambiente natural, produzindo ou retirando
dele os elementos para suprir as necessidades e os desejos dos
homens. Em habraico, o verbo traduzido por “cultivar” (abad)

18Os humanos são seres de combustão. Alimentam-se de outras formas de vida para a
própria manutenção. As intervenções, contudo, podem ser diferentemente moduladas. A
“pegada humana” sobre o ambiente pode ser mais pesada ou mais leve. Depende do modo
como se pisa. Há formas mais predatórias de organizar a vida em sociedade e há formas
menos predatórias. No fundo depende do exercício de sabedoria. Pode começar com um
simples ato de reciclagem, podendo culminar em ações mais efetivas na mudança de
hábitos de consumo. Se o capitalismo, o agronegócio, etc. são o “satã do ambiente”, os
consumidores são clientes deste satã, acelerando a depredação (REIMER, 2011, p. 21).

120
expressa a dimensão de “trabalho árduo”, expressando, portanto, a
noção de necessária e penosa intervenção no ambiente. O “guardar”
(hebraico: shamar) é um exercício de responsabilidade e cuidado.
Trata-se de um mandato que exige por parte da pessoa a sabedoria
de perceber-se integrante do todo da criação com a tarefa de zelar
para que a natureza, e com isso também a humanidade, se mantenha,
para além do tempo presente, em suas próprias bases ecossistêmicas,
estendendo-se como dádiva continuada do criador em favor das
futuras gerações.

4. “Buscar superar a lógica sacrificial em prol da lógica do cuidado”


(REIMER, 2011, p. 22). Sob essa perspectiva:

O personagem bíblico Noé é emblemático e, de certa, em termos


míticos, é o fundador da lógica sacrificial. Ao sair da arca, o primeiro
gesto de Noé é um ato de respeito e reverência, que consiste em
prestar culto a Deus por meio do holocausto de animais (Gn 8,20-
22). O seu gesto, contudo, inaugura uma lógica de sacrifício: algum
ser vivente da criação precisa ser sacrificado para agradar a Deus! O
sacrifício de elementos da criação acabou se tornando quase um
traço típico do paradigma da modernidade. A esta sina sacrificial há
que se contrapor elementos bíblicos mais positivos e inspiradores.
(REIMER, 2011, p. 22-23).

5. “Na Bíblia há muitas recomendações para a observância de tempos


de pausa que se articulam na lógica do chamado ritmo seis-sete”.
Nas palavras de Reimer (2011, p. 23),

Este ritmo seis-sete marca a estrutura do tempo semanal de sete dias,


sintonizado com o ciclo da lua. Ajustado para o ritmo de trabalho e
pausa para os humanos e para a criação, estes textos que falam do
descanso sabático (Ex 20,8-11) ou também do ano sabático (Ex
21,2-11; 23,10-11) remetem para a necessária observância de tempos
de pausa, de shabbat, isto é, de uma cessação das atividades laborais
em meio ao em meio ritmo produtivo para o cultivo do ócio. Isso é
reconhecido como necessário para que os humanos, os animais e a
terra possam tomar alento e regenerar-se para a constância e saúde
do ciclo de vida.

6. Deve-se “pensar toda a criação dentro do amplo projeto salvífico


de Deus. Além da tarefa de zelador, cuidador ou mordomo da
criação, o ser humano é constantemente chamado ao exercício da

121
misericórdia”. Dessa forma, “natureza e humanidade estão
incluídas no plano redentor de Deus para toda a sua criação”.
(REIMER, 2011, p. 23-24)19.

7. “Como elemento quase climático e catalizador de toda esta travessia


da leitura ecológica da Bíblia pode-se indicar para o exercício do
cuidado como forma de amar e ser amado” (REIMER, 2011, p. 24).
Essa realidade desafiadora, em síntese, implica saber que toda a
criação faz parte da obra criadora e redentora de Deus, remetendo
os humanos ao seu lugar legítimo como elos ou elementos de uma
rede cósmica maior. Isso pode abrir possibilidades para a admiração
e o louvor a Deus, conduzindo a viver a vida entendida como dádiva
para ser vivida, em gratuidade, em confiança na presença e no amor
gratuito de Deus. O cuidado com o ambiente pode e deve ser hoje
uma resposta ao amor redentor de Deus. Junto com o criador, as
pessoas podem ser cuidadoras e mantenedoras, ajudando a
salvaguardar a dignidade de vida das gerações presentes e futuras,
mantendo, assim, a esperança pelo destino redentor prefigurado na
ressurreição de Cristo e firmando, como pessoas e como
comunidade de fé ou de boa vontade, passos e ações de
compromisso (REIMER, 2011, p. 24).

19 Há muitas narrativas da prática e do ensino de Jesus Cristo que podem ser aqui
lembradas. A parábola do bom samaritano (Lc 10.25-37) se presta muito bem a essa
indicação, obviamente com uma interpretação expansiva. A história é conhecida: um
homem maltratado está deitado à beira do caminho. Duas pessoas passam e desviam do
caminho. Um terceiro passante, “vendo-o, compadeceu-se dele” (v. 33). A interpretação
extensiva, quase alegórica, consiste em substituir no texto o “homem ferido” por “natureza
maltratada”, ou, então, entender o homem ferido como extensão de “criação”. Esta criação
caída geme, em ores, em correntes de exploração humana, aguardando a redenção e a
manifestação plena dos filhos de Deus.” (REIMER, 2011, p. 23-24).

122
VOCÊ SABIA?

Na Bíblia há várias passagens em que a dimensão do cuidado dos


humanos pela integridade da criação é destacada. Tais passagens
devem ser garimpadas em meio ao todo das Escrituras. O grito
profético em Oséias 6.8 ecoa neste sentido: “misericórdia quero e
não sacrifícios”. De especial beleza e sentido paradigmático se
reveste o texto de Êxodo 23,10-11, no qual é proposto que ao
homem legitimamente concedido cultivar a terra e recolher os frutos
dela, constituindo nisto sua atividade de produção e intervenção no
ambiente. O ritmo produtivo e explorador, no entanto, deve ser
temporalmente limitado a seis anos, devendo o sétimo ano ser um
tempo de “descanso sabático”. O texto indica três finalidades desta
norma: a) primeiramente é dito que a própria terra deve poder
descansar. Isso é estranho ao modo de pensar “moderno”, nos qual
se está acostumado com a idéia de que a terra deve somente servir
para satisfação de nossas necessidades (e desejos); b) em segundo
lugar, os pobres devem poder colher o que nascer por conta própria
no sétimo ano, tendo uma provisão extra além de sua limitada
alimentação usual; c) em terceiro, indica-se que os animais do campo
devem poder comer do que sobrar. Explicitamente se inclui aí os
animais do campo dentro de um ciclo ecológico. Três seres
ameaçados em sua existência devem ser contemplados no modo de
se organizar a vida em sociedade: a terra, os pobres e os animais.
Isso é o que se pode chamar de uma “visão ecológica” da vida. Os
interesses econômicos são limitados pela integridade da vida e da
criação. Há ainda muitas outras passagens que podem ser
“garimpadas” numa leitura ecológica da Bíblia. (REIMER, 2011, p.
22-23).

Diante de todos os elementos interpretativos possibilitados pela lente


ecoteológica, alguns apontamentos críticos podem ser estabelecidos:

1. “O reconhecimento do lado positivo das críticas elaboradas pelos


os ambientalistas da chamada religiosidade cristã, servindo inclusive
como elemento motivador que desencadeou novos rumos para
mudanças de paradigmas” (SILVA, 2010, p. 138-139);

2. “O reconhecimento emblemático da contemporaneidade da


teologia ecológica ou ecoteologia, sobretudo como principal
instrumento teórico da espiritualidade acadêmica para a atual crise

123
ambiental” (SILVA, 2010, p.138). Acerca desse ponto reflexivo
Silva (2010, p. 138-139) é enfático:

A rigor, primeiramente é necessário que reconheçamos a


positividade contida no interior das críticas dos ambientalistas.
Através desta, ocorreu o efeito desencadeador na promoção de
mudanças de paradigmas concretos de caráter teológico e social. É
nitidamente perceptível nos registros e anais da historiografia
eclesiástica o aparecimento de diversas manifestações religiosas
cujas principais características são o fortalecimento de uma espécie
de postura ascética e escatalogizante. Em suma, trata-se daquele tipo
de religiosidade onde a verdadeira devoção é minimizada pela
intolerância e fanatismo. Neste contexto, a experiência salvífica é
diminuta, visto que simplesmente se restringe as expressões
litúrgicas e a esperança irresponsável de morar no céu. O fanatismo
religioso formata e configura um ser humano triplamente alienado;
de si mesmo, da sociedade e da natureza como um todo. Assim, as
críticas formuladas pelos ambientalistas serviram para provocar
mudanças. Em segundo lugar, é necessário também reconhecer a
emblemática contemporaneidade da chamada ecoteologia,
sobretudo por sua capacidade dialética de tentar estabelecer uma
espécie de empreendedorismo social e cristão. Portanto, a leitura dos
textos canônicos, pelos aportes teóricos da teologia ecológica,
possibilita que a comunidade eclesial se proponha a conscientizar e
a oferecer respostas plausíveis a os principais problemas ambientais
do mundo hodierno, tais como o aquecimento global, o
desmatamento, a poluição residual e sonora, a caça predatória, a
estratificação sem controle dos recursos híbridos, a ocupação
desmedida do solo, a emissão de poluentes da camada de ozônio, o
efeito estufa etc. (SILVA, 2010, p. 138-139).

2 ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA NA BÍBLIA

Dentro do panorama ecoteológico se encontra um discurso


significativo a ser abordado e reflexionado. Refere-se a elaboração teológica
que reivindica a constituição de uma espiritualidade ecológica na Bíblia. Mas
o que vem a ser isso? Para início de conversa é presiso saber que:

Falar sobre espiritualidade ecológica na Bíblia implica dois


movimentos e duas posturas significativas que envolvem, por um
lado, os autores ou os emissores dos textos bíblicos e, por outro
lado, os leitores e leitoras. Entre esses dois pontos deve haver um

124
caminho de aproximação, de convergência ou, pelo menos, uma
sintonia, a mais afinada possível, com o objetivo de aferir a
mensagem ou o sentido ecológico dos referidos textos. A sintonia
também pode acontecer em termos de diálogo crítico com os textos
e suas propostas. (REIMER; RICHTER REIMER, 2010, p. 69-70).

Observa-se então que há um núcleo dialógico-crítico entre autor, leitor


e texto no que diz respeito à espiritualidade e a conexão com o senso
ecológico de ambas as partes.
De acordo com Reimer e Richter Reimer (2010, p. 73-79), em termos
de tradições bíblicas, alguns elementos podem e devem ser observados
diante da questão da espiritualidade ecológica da Bíblia. Dentre esses
elementos podemos destacar:

1. Criação e espiritualidade ecológica


Há na Bíblia, sobretudo no contexto veterotestamentário, uma
confissão de fé que afirma que desde o início do tempo-espaço de vida
Deus atua. “Na Bíblia, esse Deus é reconhecido e afirmado primeiramente
na forma de um credo monoteísta, sendo depois, no cristianismo, ampliado
para um credo trinitário” (REIMER; RICHTER REIMER, 2010, p. 73).

2. Jesus e uma espiritualidade comprometida com a vida toda


Nas tradições bíblicas do Novo Testamento, os evengelhos tratam da
atuação de Jesus no sábado, na qual a relevância não está enfatizada no
aspecto da inobservância da Lei em si, mas na assistência e satisfação das
necessidades da vida carente e ameaçada. Nessa dinâmica, Jesus dá
continuidade a uma espiritualidade sabática que enfatiza a dignidade da
Criação (REIMER; RICHTER REIMER, 2010, p. 79).

Na concepção de Reimer e Richter Reimer (2010) a espiritualidade


ecológica inerente a Jesus se manifesta didaticamente em suas parábolas e
ensinamentos. De acordo com os autores:

As parábolas carregam a memória de que a terra produz sem


objetivar lucro, que a árvore cresce da terra e dá frutos e abrigo a

125
quem passa, pássaros ou gente. Essa sabedoria faz parte do ensino
de Jesus e está relacionada à experiência que Ele teve com a terra.
Aponta também para a liberdade que deve brotar da terra, bem
como para a confiança que devemos ter em Deus. Observai os
corvos; eles não semeiam, nem ceifam, não têm despensa nem
celeiros; todavia Deus os sustenta [...] Observai os lírios do campo;
eles não fiam, nem tecem. Contudo, vos afirmo que nem Salomão,
em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus
veste assim a erva que hoje está no campo e amanhã é lançada no
forno, quanto mais se tratando de vós, gente de pequena fé! (Lc
12,24-28). Jesus fala da terra de tal maneira que nos ensina que ela
não existe para ser explorada nem ter seus frutos acumulados, como
nos mostra a parábola do latifundiário ganancioso e avarento (Lc
12,13-21). A ansiedade pelo acúmulo, em vez de gerar vida e
satisfação, gera morte e perdição; seu resultado é a exploração e a
falta de comida para a grande maioria do povo. Jesus, ao contrário,
aposta na gratuidade da vida para as aves do céu, os lírios do campo
e todas as criaturas, entre elas, as pessoas. Dentro desse contexto, a
missão e a participação nesse projeto de gratuidade é o compromisso
com o Reino de Deus e a sua Justiça. (REIMER; RICHTER
REIMER, 2010, p. 79-80).

Esse compromisso, por sua vez, preconiza que os seres humanos serão
saciados em suas necessidades e viverão em harmonia com o todo da
Criação de Deus (Lc 12,31) (REIMER; RICHTER REIMER, 2010, p. 80).
Nesse sentido, a sabedoria de Jesus transparecida nas suas parábolas
promove ensinamentos importantes. A saber:

A sabedoria de Jesus, que transparece nas parábolas, ensina a viver


em liberdade e a resistir digna e pacificamente em meio ao turbilhão
da corrupção e da hostil corrida gananciosa e competitiva. Ela tem
como objetivo a construção da esperança que persevera na Justiça,
e na paz que brota dessa Justiça. Isso faz parte do anúncio de uma
nova realidade, que se vislumbra como o novo céu e a nova terra
(Ap 21,1-8). Em tradições bíblicas transparece a convicção de que a
terra é de Deus, é o “estrado de seus pés” (At 7,49; Mt 5,35 relendo
Is 66,1). Como consequência, dentro do contexto de ocupação dos
corpos da terra e das pessoas, pode-se entender que Jesus reivindica
sutilmente que a terra de Deus, dada a seu povo, seja liberta,
desocupada e devolvida a seu povo, que deverá viver em liberdade.
Esse é um abafado grito por independência e autonomia da Terra
Santa, que é de Deus e símbolo de identidade do povo de Deus!

126
Todos esses elementos, vistos extraídos a partir de um olhar crítico para
o texto e para os autores do texto, indicam o conteúdo da espiritualidade
ecológica inerente aos textos do Novo Testamento, e, por conseguinte do
corpus bíblico. Acerca disso Reimer e Richter Reimer (2010, p. 80)
pontuam que:

Em perspectiva teológica e da espiritualidade como expressão e


vivência da fé, compreende-se que Deus governa a terra e cuida dela,
colocando seu coração junto às pessoas que estão aflitas e abatidas,
que sofrem os infortúnios causados pela ganância e injustiça de
outras pessoas. Escravidão, trabalho forçado e impostos são
algumas das causas do sofrimento do povo e da opressão e
exploração da terra. Questionando não apenas a prática dos
impostos, mas inclusive a política fundiária, Jesus questiona o
coração que sustenta o Império Romano! Atentar contra a terra de
Deus é atentar contra a vida de todas as suas criaturas, inclusive
contra o próprio Deus. (REIMER; RICHTER REIMER, 2010, p.
80).

PARA PENSAR

Na sensibilidade, ou espiritualidade ecológica, dos leitores e das


leitoras da Bíblia, é bom haver uma sintonia com as expressões de
sabedoria e conhecimento existentes em meio às chamadas
comunidades tradicionais. Fora, à margem e além do paradigma
desenvolvimentista capitalista há experiências de convívio com o
entorno ambiental que merecem e devem ser ouvidas e aproveitadas,
até porque permitem vislumbrar possibilidades de superação de
crises e impasses de desenvolvimento rumo à sustentabilidade e à
preservação do ambiente em suas bases ecossistêmicas (REIMER;
RICHTER REIMER, 2010, p. 72).

127
Espiritualidade Ecológica.
Disponível em: http://fiosdegaia.com.br/wp-content/uploads/2017/06/educacao-
espiritualidade-2-1024x512.jpg

SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• A ecoteologia atua como um ponto focal hermenêutico capaz de


proporcionar um tipo de revisitação ao texto bíblico a partir do
olhar cosmogênico;
• O processo interpretativo ecoteológico envolve memória
teológica, revisão de práticas e crenças e questionamento da
narrativa por parte do sujeito interpretante do texto sagrado;
• Há um pressuposto de espiritualidade ecológica implícito nos
discursos e narrativas bíblicas. Este elemento perpassa texto,
autores e leitores(as) interpretes.

128
UNIDADE VIII: CLÁSSICOS DA ECOTEOLOGIA

Nessa unidade propomos, a partir do ponto de vista teórico-crítico,


estabelecer de forma introdutória um mapeamento de alguns clássicos da
ecoteologia. Nosso roteiro será feito a partir de duas aulas. São elas:

AULA 15: Matrizes Teóricas - Teilhard de Chardin e Jürgen Moltmann


AULA 16: Ecoteologia Latino-Americana - Leonardo Boff

129
AULA 15: MATRIZES TEÓRICAS - TEILHARD DE
CHARDIN E JÜRGEN MOLTMANN

META

Apresentar alguns dos principais clássicos da ecoteologia e seus


principais pensamentos.

OBJETIVOS

• Trabalhar uma importante tríade de autores da ecoteologia:


Teilhard de Chardin, Jürgen Moltmann, conceitos e perspectivas;
• Estabelecer pensamento crítico acerca do referencial teórico
apresentado.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 TEILHARD DE CHARDIN

Em relação entre o cristianismo e o meio ambiente o padre jesuíta e


paleontólogo Teilhard de Chardin se faz figura inspiradora em se tratando
de espiritualidade ecológica, atuando de maneira decisiva (MURAD, 2009;
SILVA, 2010). Em síntese, Teilhard de Chardin desenvolve um tipo de
“pan-en-teísmo, o olhar, ou seja, o olhar de fé que percebe Deus em todas
as criaturas, mas não reduz o Criador à criação. Mantêm-se assim a
alteridade divina. Deus está no mundo, mas também é mais do que o
mundo” (MURAD, 2009, p. 289).
Um dos exemplos da visão ecoteológica e pan-en-teíssta de Teilhard de
Chardin se encontra em seu discurso proferido na “Missa sobre o mundo”,
onde o padre anuncia poética e misticamente a presença divina no ‘todo
cosmogênico’ o que depois seria desenvolvido na linguagem teológica
(MURAD, 2009, p. 288):

No princípio havia o Verbo soberanamente capaz de sujeitar e de


modelar toda Matéria que nascia. No princípio não havia frio e

130
trevas; havia o Fogo [..] É a luz preexistente que, paciente e
infalivelmente, elimina nossas sombras. Nós, criaturas, somos, por
nós mesmos, a Sombra e o Vazio. E vós [..] Espírito ardente, Fogo
fundamental e pessoal. Aconteceu. O Fogo, mais uma vez, penetrou
a Terra. Não caiu ruidosamente sobre os cimos, como o raio em seu
esplendor. O Senhor forçaria as portas para entrar em sua própria
casa? Sem tremor, sem trovão, a chama iluminou tudo por dentro.
Desde o coração de menor átomo até a energia das leis mais
universais. Naturalmente invadiu, individualmente e em seu
conjunto, cada elemento, cada força, cada ligação do nosso Cosmo.
E este, espontaneamente, [...] se inflamou. Toda a matéria doravante
está encarnada, meu Deus, pela vossa Encarnação. (CHARDIN apud
MURAD, 2009, p. 288-289).

Para Chardin: “o universo caminha para um ponto final de


amadurecimento e perfeita união com a realidade divina” (CHARDIN apud
SILVA, 2010, p.136). Nesse aspecto, como bem sintetiza Murad (2009, p.
289):

Contemplar Deus na história humana e nas relações dos


ecossistemas significa viver uma espiritualidade na qual se supera a
dicotomia entre matéria e espírito. Para Teilhard, o espírito não é a
negação da matéria, mas a própria matéria quando alcança o umbral
mais avançado da evolução e da autoconsciência. Isso acontece
devido à centralidade da criação em Cristo, que também é a direção
e meta do futuro da história e cosmo. Assim, o homem e a mulher
de fé têm um olhar transfigurado sobre o mundo. Daí brota a oração
de reverência, de louvor, de entrega e de compromisso. (MURAD,
2009, p. 289).

131
Teilhard de Chardin.
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DdAQ

2 JÜRGEN MOLTMANN

Jürgen Moltmann, teólogo alemão, ganhou notoriedade na segunda


metade do século XX, de forma especial com a publicação de “Theologie
der Hoffnung” [Teologia da esperança] (1964). No prefácio para a 13ª
edição, o teólogo afirma que o centro da obra era a história do mundo em
perspectiva política, social e econômica, mas não ainda ecológica.
Entretanto, a partir de 1972, Moltmann se conscientizou da crise ecológica
e passou a refletir acerca da Trindade divina tomando a criação como centro
de sua teologia. Essa virada se inicia em 1980, data da publicação de
“Trinität und Reich Gottes” [Trindade e Reino de Deus], primeiro volume
de suas “Systematische Beiträge zur Theologie” [Contribuições sistemáticas

132
à teologia]20. Em sua obra Moltmann preconiza um modelo por ele
denominado de doutrina social da Trindade, na qual se aponta as relações
das pessoas divinas entre si, com a humanidade e com a criação de forma
geral21. (PORTO, 2018, p. 65).
É a partir de suas ponderações trinitárias que Moltmann expande suas
perspectivas em relação à totalidade da criação. Nesse aspecto, um
elemento teológico significativo retomado por Moltmann é o termo
περιχώρησις [perichôrêsis]. Essa palavra grega denota “rotação”,
“movimento de um para o outro”, “abranger”, “abraçar”. Historicamente,
Gregório de Nazianzo teria sido o primeiro a usar o termo teologicamente.
Contudo, nota-se que foi João Damasceno que o utilizou trinitariamente,
indicando uma interpenetração recíproca entre o Pai, o Filho e o Espírito
Santo. Sob essa perspectiva, pela περιχώρησις [perichôrêsis], pode-se
entender que Deus se relaciona com a criação, habitando-a22. (PORTO,
2018, p. 66)
De acordo com Murad (2009, p. 291-295), essa realidade pode ser vista
na obra ‘Dios en la creación: doctrina ecológica de la creación’ escrita por Moltmann
na qual o teólogo propõe oito diretrizes para uma doutrina ecológica da
criação: a saber:

1. Questão epistemológica prévia: o conhecimento participativo


Nesse sentido, Moltmann sustenta que “estar vivo significa existir em
relações com outros”. A vida é comunicação em comunhão. Se queremos
entender o real como real e o vivente como vivente, deveremos conhecê-lo
em sua comunhão originária e própria, em suas relações e circunstâncias”

20 Em 1980, eu comecei, então, a apresentar uma nova série de ‘contribuições sistemáticas


à teologia’ com um outro método que deveria se diferenciar dos livros iniciais em vários
aspectos. (MOLTMANN apud PORTO, 2018, p. 65).
21 Eu comecei esta nova série teológica com uma doutrina social da Trindade. Estava em

jogo, para mim, o reconhecimento das relações comunitárias em Deus e o ensaio de um


novo “pensamento trinitário”. Eu visava, com isto, um pensamento em relações, em
comunhões e em transições. Eu queria substituir o antigo pensamento em substâncias e
sujeitos, que não consegue trabalhar sem separações e isolamentos de seus objetos.
(MOLTMANN apud PORTO, 2018, p. 65).
22 Um exemplo disto é a Shekinah, termo usado no judaísmo pós-bíblico para indicar a

presença de Javé caminhando com seu povo, e a tradição sabática veterotestamentária,


sinalizando para o descanso divino na criação, sua consumação escatológica.
(MOLTMANN apud PORTO, 2018, p. 66).

133
(MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 292)23. Sob essa perspectiva, a
doutrina da criação com enfoque ecológico “abandona o pensamento
analítico, com suas distinções de sujeito e objeto, em favor de uma forma
de pensar nova, comunicativa e integradora. Resgata o antigo conceito da
razão como órgão perceptor e participativo.” (MURAD, 2009, p. 292) 24

2. Criação para a glória


Nesse ponto se pontua que “a doutrina cristã da criação é uma visão
do mundo à luz do Messias Jesus e do tempo messiânico” (MURAD, 2009,
p. 291). Ela almeja “libertar o homem, pacificar a natureza e redimir a
comunhão de homem e natureza dos poderes do negativo e da morte”
(MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 291). Dentro desse prisma
interpretativo, se o próprio Deus criador “habita em sua criação, então a
converte em sua pátria, assim na terra como no céu. Todas as criaturas
encontram então em sua proximidade a fonte inesgotável de suas vidas,
encontram pátria e repouso em Deus.” (MOLTMANN apud MURAD,
2009, p. 292).

3. O sábado da criação
Basicamente, “a criação se consuma no sábado e ele é a consumação
do mundo vindouro” (MURAD, 2009, p. 292). Nesse sentido, “o sábado é

23 Em suma, algumas ciências modernas propõem que “se compreende e entende muito
melhor os objetos e os estados de coisas quando se lhes vê em suas relações e coordenações
com seu meio ambiente e entorno respectivos, incluindo o observador humano. Uma
compreensão integral será menos precisa que o segmentador conhecimento de domínio,
mas terá maior riqueza de relações. (MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 292).
24 O que acontece então? Mudam os interesses que guiam o conhecimento. Já não se

conhece para dominar, mas para participar, para integrar-se nas relações recíprocas. O
pensamento integrador e totalizante pretende introduzir essa totalidade, essa comunhão
na aliança, tomar consciência dela e aprofundá-la. O método de uma doutrina ecológica da
criação inclui vários acessos à comunhão da criação: tradição, experiência, ciência,
sabedoria, dedução e intuição. Utiliza símbolos (e não somente conceitos), que configuram
o inconsciente e regulam a consciência. Por fim, incorpora a imaginação criativa e prenhe
de esperanças nos âmbitos do possível e do futuro. (MURAD, 2009, p. 291).

134
o que bendiz, santifica e revela ao mundo como criação de Deus.”
(MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 292)25
4. Preparação messiânica da criação para o Reino
Em síntese, “a encarnação supõe e consuma a criação”. Indo além do
princípio clássico sobre natureza e graça, Moltmann propõe que “a graça
não aperfeiçoa, mas prepara a natureza para a glória eterna. Graça não é
perfeição da natureza, mas preparação messiânica do mundo para o Reino
de Deus” (MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 292)26.

5. Criação no Espírito
Aqui, de acordo com Moltmann (apud MURAD, 2009, p. 293), se
estabelece a premissa de que “a criação é um acontecimento trinitário: o Pai
cria pelo Filho no Espírito. Consequentemente, a criação foi realizada por
Deus, conformada por meio de Deus e existe em Deus [...] O Espírito leva
o termo a atuação do Pai e do Filho”. Em suma, “tudo quanto é, existe e
vive sob o permanente afluxo das energias e possibilidades do Espírito
cósmico” (MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 293) 27. Nesse sentido,

25 Na tradição cristã, o Deus que repousa, que faz festa, que se regozija com sua criação
passou a segundo plano. Ora, no repouso do sábado o mundo é percebido como criação
de Deus. Cada sábado interrompe o tempo do trabalho, aponta para o ano sabático (no
qual se restabelecem as relações primigênias entre os humanos e com a natureza, segundo
a Aliança) que alude à esperança do tempo do messias. A partir da ressurreição, celebra-se
o primeiro dia da semana como o dia messiânico. (MOLTMANN apud MURAD, 2009, p.
292).
26 Isso porque a graça de Deus é visível na ressurreição de Cristo; e sua ressurreição é o

começo da nova criação do mundo. Ou seja, temos um esquema tríplice, regido pela glória.
Assim, a glória consuma a natureza e a graça e configura já aqui a relação entre ambas. O
fundamento intrínseco da criação não é a aliança histórica de Deus, mas o Reino de Deus
vindouro da glória, prometido e garantido mediante esta aliança. A condição cristã como
tal é somente um caminho messiânico para uma possível e futura consumação da condição
humana. Esta visão messiânica liberta os grandes binários teológicos (natureza e graça,
liberdade e necessidade, aliança e criação, condição cristã e condição humana) de sua pura
contraposição e o relativizam (MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 292).
27 O fundamento bíblico para a criação no Espírito é o Salmo 104, 29s: Escondes teu rosto

e se aniquilam, retiras teu sopro e expiram, e ao pó retornam. Envias teu sopro e são
criadas, e renovas a face da terra. Assim, “as criaturas são criadas com o afluxo permanente
do Espírito divino, existem no Espírito e são renovadas mediante ele”. Se o Espírito Santo
é derramado sobre toda criatura, então a fonte da vida está presente em tudo o que é e
vive. As criaturas manifestam a presença da divina fonte da vida. Ora, o Espírito cria a
comunhão de todas as criaturas com Deus e entre elas mesmas. Então, a existência, a vida

135
“compreende-se a realidade criada em chave energética e a consideramos
como possibilidade realizada do Espírito divino” (MURAD, 2009, p. 293).

6. Imanência de Deus no mundo


Essa construção teológica reivindica que “a visão ecológica da criação
implica uma nova ideia de Deus. O eixo não é mais a distinção entre Deus
e o mundo e sim o conhecimento da presença de Deus no mundo e da
presença do mundo em Deus” (MURAD, 2009, p. 294)28.

7. O princípio da mútua compenetração


Conforme Moltmann (apud MURAD, 2009, p. 295), “em Deus se dá
uma comunhão eterna das diversas pessoas em virtude de sua recíproca
inabitação e de sua mútua compenetração”. Nessa dinâmica, “a pericorese
é a fonte de todo o vivente, o tom de todas as ressonâncias e a origem de
todos os mundos que dançam e se agitam ritmicamente. Em Deus acontece
o amor mútuo e recíproco”. Em outros termos, a partir do princípio da

e o tecido das relações recíprocas subsistem no Espírito: nele vivemos, nos movemos e
existimos (At 17,28). Aqui há uma mudança de perspectiva. Superando a teoria
mecanicista, vemos que as relações são tão primigênias como as coisas. Ora, tudo existe,
vive e se move em outros, com outros, para outros, nas conexões cósmicas do Espírito
divino. Da e na comunhão do Espírito divino nascem os modelos e simetrias, os
movimentos e os ritmos, os campos e os conglomerados materiais da energia cósmica. O
‘ser’ da criação no Espírito é, pois, a cooperação, e as conexões manifestam a presença do
Espírito na medida em que permitem conhecer a harmonia global. Não se trata de
panteísmo, pois o Espírito de Deus atua introduzindose no mundo sem confundir-se com
ele. Este mundo está aberto ao futuro do Reino da glória, que renovará, unirá e consumará
a terra e o céu. O Espírito que cria, também conserva, renova e leva à consumação.
(MOLTMANN apud MURAD, 2009, p. 293).
28 Na fé judaica, afirma-se a diferença entre Deus e o mundo. Javé não é mundano e o

mundo não é divino. Deus não se manifesta nas forças e ritmos da natureza, mas na história
e na aliança. Não se permite venerar as forças da fertilidade como forças divinas. Javé se
contrapõe a Baal. Deus está na transcendência. Mas, hoje, é necessário captar e ensinar a
imanência de Deus no mundo. “Deus não é somente o criador do mundo, mas também o
Espírito do universo”. A criação é obra das mãos de Deus, distinta d’Ele, mas também
presença diferenciada de Deus Espírito, presença do Uno nos muitos. Na rede relacional
de Deus com suas criaturas, há relações unilaterais, que dizem respeito somente a Deus:
criar, conservar, sustentar e consumar. E há outras que são recíprocas e configuram uma
cósmica comunhão de vida entre Deus e suas criaturas: inabitar, compadecer, participar,
acompanhar, suportar, deleitar e glorificar. (MURAD, 2009, p. 294).

136
pericorese (compenetração recíproca), afirma-se que “tudo o que vive, vive
em uma forma especificamente sua, nos outros, com os outros, dos outros
e para os outros”.

8. Espírito e consciência humana


Em consonância com o pensamento de T. de Chardin, Moltmann (apud
MURAD, 2009, p. 295), afirma que “consciência é espírito reflexivo e
reflexo”. No ser humano, “Espírito é o compêndio de sua organização e de
sua autotranscendência, de suas simbioses internas e externas”. Nesse
sentido, “o espírito abarca toda a estrutura corpóreo-psiquíca do humano.
Os seres humanos são componentes e subsistemas do sistema cósmico da
vida, e do Espírito divino que habita nele”. Por outra parte, faz-se
significativo dizer que, “o espírito divino, cósmico, social e individual
alcança sua consciência mais ampla e superior de si mesmo no homem”.

Jürgen Moltmann.
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oteologico.blogspot.com%2F2016%2F05%2F329-livros-de-jurgen-
moltmann.html&tbnid=gawfYHBPfhuRmM&vet=12ahUKEwiiz87QlvfnAhUgMLkGH
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137
SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Teilhard de Chardin se faz figura inspiradora em se tratando de


espiritualidade ecológica, atuando de maneira decisiva,
sobretudo com seu referencial cosmogênico de pan-en-teísmo;
• Para Teilhard de Chardin contemplar Deus na história humana
e nas relações dos ecossistemas significa viver uma
espiritualidade na qual se supera a dicotomia entre matéria e
espírito;
• Moltmann a partir ponderações trinitárias expande suas
perspectivas em relação à totalidade da criação, construindo seu
referencial ecoteológico sob a perspectiva da περιχώρησις
[perichôrêsis], isto é, o vínculo relacional intra-divino que se
estende a criação;
• Na concepção de Moltmann, o espírito divino, cósmico, social e
individual alcança sua consciência mais ampla e superior de si
mesmo no homem.

138
AULA 16: A ECOTEOLOGIA DE LEONARDO BOFF
META

Apresentar de forma introdutória o pensamento ecoteológico de


Leonardo Boff.

OBJETIVOS

• Trabalhar do ponto de vista da teologia latino-americana o


pensamento ecoteológico de Leonardo Boff, conceitos e
perspectivas;
• Estabelecer pensamento crítico acerca do referencial teórico
apresentado.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

1 BIOGRAFIA

Leonardo Boff se introduz no âmbito da reflexão ecoteológica no


“final da década de 1980. Crítico às ‘patologias’ estruturais da romanidade
da Igreja Católica Apostólica Romana, o conflito com a igreja institucional
atinge seu ápice em 1981, com a publicação do livro ‘Igreja: carisma e
poder’” (PORTO, 2018, p. 67). Entretanto, foi após a rejeição das teses
eclesiológicas boffianas por parte de Joseph Ratzinger, então prefeito da
Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, que o teólogo se concentrou
no que ele chama de ‘mistério da criação’, privilegiando os estudos sobre a
Trindade e a ecologia, deixando a eclesiologia em segundo plano (PORTO,
2018, p. 67).
Acerca da importância de Boff no cenário ecoteológico brasileiro, Silva
(2010, p. 137) afirma:

No Brasil o teólogo Leonard Boff, preconiza a figura inspiradora da


espiritualidade ecológica. Em seus textos, o autor tenta proclamar
de forma poética e mística as matrizes relacionais que possibilitam a

139
construção do diálogo entre religiosidade e meio ambiente. Para o
autor é necessário estabelecer uma consciência ecológica, de caráter
ético-teológico que seja perfeitamente capaz de entender que
teologicamente falando, o ser homem está no centro da criação, mais
não está sozinho. A humanidade só será humanidade de verdade, se
estiver profundamente comprometido em unidade com o planeta
terra.

Leonardo Boff.
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boff%2F4662&tbnid=mhaEXZqzVojTcM&vet=12ahUKEwjW3ZWQl_fnAhW9K7kG
Hem6CmYQMygBegUIARDnAQ..i&docid=aXCuQbmShy74jM&w=389&h=439&q=l
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RDnAQ

140
2 SÍNTESE ECOTEOLÓGICA BOFFIANA

Segundo Porto (2018), uma das características mais marcantes da


ecoteologia boffiana é o diálogo com a cosmologia. Os estudos
cosmológicos corroboram a coerência da criação que, iniciada há 13,7
bilhões de anos, “continua se expandindo, se auto-organizando e
autocriando numa direção que termina no mistério [...] O seu fim é a
consumação em Deus mesmo” (BOFF apud PORTO, 2018, p. 68). Esse
postulado cosmológico na leitura de Segundo Porto (2018), traz algumas
conclusões para o teólogo:

1. É preciso superar o antropocentrismo e o paradigma


antropocêntrico, isto é, esta maneira de ver o mundo “imperante,
mecanicista, utilitarista, antropocêntrica e sem respeito pela Mãe
Terra e pelos limites de seus ecossistemas”, ou seja, a era do
“antropoceno” (BOFF apud PORTO, 2018, p. 68). Antes, torna-se
imperativa a compreensão que agora é a era do “ecozoico”, de
modo que o ecológico seja “a realidade central a partir da qual se
organizem as demais atividades humanas, principalmente a
econômica” (BOFF apud PORTO, 2018, p. 68). Nesse sentido, “o
que caracteriza esta nova cosmologia é o cuidado no lugar da
dominação; o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser, (...)
o respeito por toda a vida, os direitos e a dignidade da natureza, e
não sua exploração” (BOFF apud PORTO, 2018, p. 68).

2. “No universo, tudo está relacionado. Assim, o que possibilitou o


desenvolvimento da vida não foi a adaptação do mais forte, mas a
colaboração e a solidariedade” (BOFF; HATHAWAY apud
PORTO, 2018, p. 68)29.

29Se tudo é relação e nada existe fora da relação, então a lei mais universal é a sinergia, a
colaboração, a solidariedade, a comunhão e a irmandade universais” [...], pois a lei de
Darwin da seleção natural por meio da sobrevivência do mais forte deve ser completada
por uma visão mais ampla [..] Caso contrário, os dinossauros reinariam até hoje. (BOFF
apud PORTO, 2018, p. 68-69).

141
3. Por fim, “a Terra passa a ser entendida como Gaia, um
superorganismo vivo que “possui um equilíbrio bem sutil entre seus
elementos físico-químicos” (BOFF apud PORTO, 2018, p. 68).
Entretanto, se estabelece o alerta de que a Terra está doente. “Ela
pode eliminar a vida humana – se esta não converter suas ações
destrutivas em cuidado por toda a vida e os ecossistemas que a
garantem - para continuar em curso” (BOFF apud PORTO, 2018,
p. 68-69).

4. Para concluir, Boff fala de uma “’irmandade cósmica’: todos os


seres vivos são irmãos, irmãs e primos, pois todos possuem a
mesma base genética, os mesmos vinte aminoácidos e as mesmas
quatro bases fosfatadas” (BOFF apud PORTO, 2018, p. 68-69).

Em suma, na perspectiva integrativa da cosmológica de Boff existe uma


conexão ontológica entre Terra e humanidade. Nesse aspecto:

Terra e Humanidade formaram uma única entidade, como o viram


e estremeceram de emoção os astronautas, a partir de suas naves
espaciais, lá fora no espaço exterior. De lá não há diferença entre
Terra e Humanidade. Ambos formam uma única entidade, com uma
mesma origem e um mesmo destino. Só o cuidado garantirá a
sustentabilidade do sistema-Terra com todos os seres da
comunidade de vida entre os quais se encontra o ser humano. Sua
função é a do jardineiro, como se relata no segundo capítulo do
Gênesis. Trabalho do jardineiro é cuidar do jardim do Éden, fazê-lo
fecundo e belo. A Carta da Terra nos despertou, oportunamente,
para essa nossa missão, essencial e urgente. Precisamos vivê-la para
que tenhamos futuro e possamos co-evoluir como temos evoluído
já há 4,5 bilhões de anos, pois esta é a idade de nossa Terra (BOFF
apud SILVA, 2010, p.137).

Dentro dessa perspectiva a Ecologia boffiana é ressignificada a partir


do prisma integrativo. Murad (2019, p. 74) sintetiza bem o paradigma
ecoteológico boffiano, a começar pela redefinição do conceito ecológico:

Boff toma a ecologia profunda de Naess e as três ecologias de


Guattari, e elabora uma síntese original. Ele apresenta assim quatro
“camadas” da ecologia, intimamente relacionadas: ambiental, social,

142
mental e profunda ou integral. Na obra em que reúne os elementos
centrais de seu pensamento, por ocasião dos 80 anos de vida,
Leonardo se refere aos “caminhos da ecologia integral”: a ecologia
ambiental, que reporta à qualidade de vida, a ecologia político-social,
que diz respeito à sustentabilidade, a ecologia mental (novas mentes
e corações), e a ecologia integral-espiritual, pois somos parte do
universo.

Nessa perspectiva integrativa, segundo Murad (2019, p. 74, grifos


nossos):

Boff inicia sua reflexão retomando e ampliando o conceito de Ernest


Haeckel, que a ecologia é o estudo do inter-retro-relacionamento de
todos os sistemas vivos e não-vivos entre si e com seu meio-
ambiente. Não se trata de estudar isoladamente os seres bióticos e
abióticos, mas de perceber as relações. Não a metade do ambiente,
mas ele inteiro. Um ser vivo é compreendido em relação ao conjunto
das condições vitais que o constituem e no equilíbrio com os demais
representantes da comunidade dos viventes.

Desta reflexão, Boff (apud Murad 2019, p. 74) conclui que:

A ecologia é um saber de relações, interconexões, interdependências


e intercâmbios de tudo com tudo em todos os pontos e em todos os
momentos (...). Não é um saber de objetos de conhecimento, mas
de relações entre os objetos de conhecimento. Um saber de saberes,
entre si relacionado.

143
VOCÊ SABIA?

Hipótese de Gaia

Os povos antigos ou tradicionais já haviam intuído ou reconhecido


o que os contemporâneos agora insistem em dizer: a terra é um
grande sistema vivo, é uma grande casa para todos os elementos da
criação. Trata-se da “hipótese gaia” que em época recente foi
formulada por James Havelock, o qual acolheu impulsos de outros
pensadores. Segundo esta “hipótese gaia”, as interferências
exacerbadas numa parte deste grande sistema vivo repercutem sobre
o todo. A terra é vista como um superorganismo vivo, no qual se
pode verificar a interdependência entre os mais diferentes
componentes, fenômeno expresso pelo conceito de
“panrelacionalidade”. Definimos a Terra como Gaia, porque ela se
apresenta como uma entidade complexa que abrange a biosfera, a
atmosfera, os oceanos e o solo. Na sua totalidade, esses elementos
constituem um sistema cibernético ou de realimentação que procura
um meio físico e químico para a vida neste planeta. (REIMER, 2011,
p.18).

SUGESTÃO DE AUDIÊNCIA

Acerca da temática ecoteológica assista o documentário de Leonardo


Boff: “Os desafios do sécullo XXI”.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=DuW_JyTCFik&t=533s

144
SÍNTESE DA AULA

Nessa aula você estudou e verificou que:

• Um dos pontos chave da ecoteologia boffiana é o dialogo com


a cosmologia, que por sua vez evoca uma perspectiva
ontológica-intergrativa entre os elementos da criação e o Deus
criador de tudo;
• Na perspectiva boffiana no universo, tudo está relacionado.
Assim, o que possibilitou o desenvolvimento da vida não foi a
adaptação do mais forte, mas a colaboração e a solidariedade.

A ecologia é um saber de relações, interconexões, interdependências


e intercâmbios de tudo com tudo em todos os pontos e em todos os
momentos.

145
REFERÊNCIAS

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MINICURRÍCULO DO AUTOR

Prof. Dr. Danilo Dourado


Guerra
CV:
http://lattes.cnpq.br/7335088867151068

Doutorado (2018) e mestrado


(2015) em Ciências da Religião pela
Pontifícia Universidade Católica de
Goiás, com estágio doutoral sanduíche
na Università Degli Studi di Padova,
Itália (2017). Bolsista CAPES
PROSUC/PDSE. Bacharelado em
Teologia pelo Seminário Teológico
Batista Nacional - SETEBAN-GO
(2009-2011) e pela Faculdade da Igreja Ministério Fama-FAIFA (2012-2012). Têm
experiência na área de hermenêutica e exegese neotestamentária, com ênfase em cristologia
joanina. Atualmente é professor no SETEBAN-Goiânia, no Seminário Teológico Bíblico
Novo Mundo (STBNM), conteudista do curso de Licenciatura em Teologia EAD da
Faculdade Araguaia e do curso de bacharelado em Teologia EAD da Faculdade
Assembleiana do Brasil (Fasseb).

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