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SIRIO LOPEZ VELASCO

INTRODUÇÃO À
EDUCAÇÃO AMBIENTAL
ECOMUNITARISTA
2008
O autor
Sirio Lopez Velasco, uruguaio-brasileiro, nasceu em Rivera (Uruguai), em 1951. Casado,
dois filhos. Militou no MLN-Tupamaros do Uruguai, atuando nesse país, Chile e Cuba.
Exilado político na Bélgica, em 1985 doutorou-se em Filosofia na Université Catolhique
de Louvain (Bélgica), na qual também recebeu o diploma de "licencié" em Lingüística e foi
coordenador do Seminário de Filosofia Latino-americana entre 1983 e 1985 (primeiro
Seminário de doutorado criado por discentes nessa Universidade fundada em 1425). Em
2002 realizou estágio pós-doutoral no Instituto de Filosofia do Consejo Superior de
Investigaciones Científicas (em Madrid, Espanha).
Eleito em 1988 Vice-Presidente da International Association of Young Philosophers
(IAYP) no XVIII Congresso Mundial de Filosofia, realizado em Brighton, Inglaterra,
ocupou o cargo até o seguinte Congresso Mundial, em 1993.
Foi contratado como pesquisador pela Universidade de Mainz (Alemanha) no período 1989
- 1992. Foi secretário no Rio Grande da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC).
Desempenhou-se como professor na PUCRS, na UNISINOS, e desde 1989 é professor
titular de Filosofia na Fundação Universidade Federal de Rio Grande (FURG, em Rio
Grande, RS) onde ajudou a criar o Mestrado (hoje Doutorado) em Educação Ambiental (o
primeiro na área no Brasil a ser reconhecido pela CAPES), do qual foi o seu primeiro
coordenador entre 1993 e 1996. Em 2001 foi co-fundador do SIBEA (Sistema Brasileiro de
Informação sobre Educação Ambiental), promovido pelo Ministério do Meio Ambiente.
Integrou o Comitê Científico Internacional do I e do III Congresso Mundial de Educação
Ambiental (realizados, respectivamente, em Portugal em 2002 e na Itália em 2005).
Além de vários artigos impressos ou eletrônicos que viram a luz no Brasil, Europa e
EEUU, dentre suas publicações destacam-se os seguintes livros: "Reflexões sobre a
Filosofia da Libertação" (1991), "Ética de la Producción" (1994), "Ética de la Liberación"
Vol. I ["Oiko-nomia"] (1996), " Ética de la Liberación" Vol. II [Erótica, Pedagogía,
Individuología] (1997), "Ética de la Liberación" Vol. III [Política socioambiental
ecomunitarista] (2000), "Fundamentos lógico-lingüísticos da ética argumentativa" (2003),
"Ética para o século XXI. Rumo ao ecomunitarismo" (2003), "Ética para mis hijos y no
iniciados "(2003), e “Alias Roberto: diario ideológico de una generación” (2007).
Orientou várias teses de pós-graduação, nas áreas de filosofia e de educação ambiental, e
ministrou conferências em congressos internacionais realizados na A. Latina e na Europa.
E-mail: decsirio@furg.br
Endereço: FURG (DECC), Campus Carreiros, 96500-900 Rio Grande (RS)
FAX (Furg): --/ 532/ 32336652
Fone (res.): 0xx/53/32361978

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Dedicatória

A minha esposa Maria Josefina, meus filhos Carolina e Sirio Roberto, e a todos
aqueles que, apesar dos fracassos e decepções, ainda acreditam que
a humanidade e o planeta merecem o ecomunitarismo.

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Índice
Página
Advertência e Introdução
A proposta em palavras simples
A Educação Ambiental (EA) na lei brasileira
Ética e epistemologia da EA ecomunitarista
EA ecomunitarista: algumas experiências
O ecomunitarismo
Sonhando o ecomunitarismo
Bibliografia

ADVERTÊNCIA E INTRODUÇÃO

Sou filósofo e acredito ter resolvido um problema decisivo: a fundamentação última

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da ética. Nessa tarefa acredito ter superado o abismo aberto por Hume entre “ser” e “dever
ser” e ter deduzido as três normas éticas fundamentais (com validade intersubjetiva
universal, pelo menos na esfera da chamada “cultura ocidental”). Quando estava
empenhado nessa pesquisa fui chamado (em 1993) a fundar e depois coordenar o primeiro
Mestrado em Educação Ambiental que foi reconhecido pelo Ministério da Educação no
Brasil (e que em 2006 prolongou-se em um doutorado, onde leciono). Nessa nova área de
atuação pretendo contribuir desde minha ótica filosófica, em especial, ética. Assim, embora
haja neste livro algumas idéias e experiências concretas referentes ao dia-a-dia da atividade
educativa, a educação ambiental aqui proposta é conseqüência e parte da abordagem ética e
política (no sentido amplo que remete para a arte de se articular a “polis”) que aponta para
uma nova ordem sócio-ambiental pós-capitalista utópica: o ecomunitarismo.
Assim, não me considero um educador ambiental (de fato nem sei se consigo ser educador
dos meus filhos), mas um filósofo que pretende contribuir com seu grão de areia e desde a
ética com a educação ambiental.
Neste livro apresento sinteticamente o que tenho pesquisado-feito-publicado nesses
últimos anos sobre o atualíssimo tema da educação ambiental (na minha ótica, a saber, a
ecomunitarista). Penso assim poder facilitar a tarefa aos leitores que, de outra forma,
deveriam ter de pesquisar diversas fontes para terem uma idéia global e adequada das
minhas propostas. Para aprofundar nos fundamentos filosóficos da minha visão, e noutros
detalhes relevantes, aconselho a consulta das minhas obras citadas na bibliografia final
constante neste volume.

Sirio Lopez Velasco


decsirio@furg.br

A PROPOSTA EM PALAVRAS SIMPLES


DEFINIÇÕES DE “EDUCAÇÃO”

O “Vocabulaire technique et critique de la Philosophie” de André Lalande (PUF,


Paris), define a « educação » como segue (tradução nossa) : 1) Processo que consiste em
que uma ou várias funções se desenvolvem gradualmente pelo exercício e se aperfeiçoam,

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2) Resultado desse processo. A educação assim definida pode resultar tanto da ação de um
outro (é essa a acepção primitiva e mais geral), como da ação do ser que a adquire. Nesse
último caso usa-se as vezes a expressão inglesa self-education . ‘Educação de jovens’ ou
‘educação’ simplesmente, é a série de operações mediante as quais os adultos (geralmente
os pais) exercitam os pequenos da sua espécie e favorecem neles o desenvolvimento de
certas tendências e de certos hábitos; quando a palavra ‘educação’ é usada sozinha aplica-se
mais frequentemente à educação das crianças da espécie humana.
Já o “Aurélio” (Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro) diz que a educação é: 2) um processo
de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano
em geral, visando à sua melhor integração individual e social; 3) os conhecimentos ou as
aptidões resultantes de tal processo; 4) o cabedal científico e os métodos empregados na
obtenção de tais resultados; 6) aperfeiçoamento integral de todas as faculdades humanas; 7)
conhecimento e prática dos usos da sociedade.
Pelas acepções dois e seis o “Aurélio” nos faz lembrar da concepção de Platão (ver “A
República”) segundo á qual o ser humano precisa desenvolver não somente o saber e a
sabedoria, mas também a coragem e a temperança (correspondentes às três partes da alma a
às suas diversas virtudes), harmonizando equilibradamente o todo (no que vem a ser a
quarta virtude, a justiça). Já as acepções 2 e 7 deixam no ar o problema da “integração” a
“usos” da sociedade que podem ser nefastos para a saúde da natureza humana e não
humana.
Relacionando o conceito a essas duas definições devemos lembrar que a “educação
ambiental’ visa (ver diversos documentos, como a Lei brasileira de PNEA) a desenvolver
certos valores, conhecimentos, habilidades e comportamentos.
[Nota 1: Partindo do conceito da OMS podemos definir a “saúde” como sendo o estado
sistêmico de equilíbrio instável de bem-estar físico, social e psicológico dos indivíduos e
grupos humanos. Também podemos aplicar esse conceito à natureza não humana; animais e
plantas saudáveis seriam aqueles que, segundo a sua idade, estão executando plenamente
suas funções vitais e ecológicas (sua interação com os outros seres vivos e com o meio
abiótico). Inclusive poderíamos dizer que o meio abiótico (terra-rochas, ar, água) tem saúde
quando suas qualidades físico-químicas essenciais se mantêm estáveis sem sofrer
degradação irreversível.
Nota 2: Aristóteles (ver “Ética a Nicómaco”) diferenciou dois tipos de “justiça”: 1) a
distributiva (repartição, por uma autoridade, dos bens conforme o mérito dos indivíduos, e
2) a comutativa (igualdade das coisas intercambiadas, equivalência das obrigações e dos
encargos estipulados nos contratos). [Note-se que na perspectiva ecomunitarista (seguindo
o slogan adotado por Marx), preconizamos a distribuição dos bens “segundo a necessidade
de cada um”, e não mais o mérito, em troca de receber de cada um “segundo sua
capacidade”].
Da minha parte defino a educação ambiental como sendo a educação problematizadora (no
sentido de Paulo Freire) fundamentada na ética argumentativa e orientada rumo ao
ecomunitarismo.

Quando se fala em “educação” pensa-se de imediato na aquisição de certos


comportamentos julgados apropriados para se conviver em sociedade; assim dir-se-á que
uma criança que pede “por favor”, que respeita os idosos e que compartilha seus
brinquedos (pelo menos com seus irmãos e parentes) é “bem educada”; e aquela que não
apresenta esses comportamentos será considerada “maleducada”.

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Ora, se se continuasse a refletir sobre a “educação” focalizando a escola, dir-se-á que a
educação envolve também a aquisição de certos conhecimentos de gramática-português,
história, matemática e/ou artes, (dentre outros). Alguns estudiosos (ver Saviani 1983) têm
defendido a tese de que tanto os conhecimentos julgados “corretos” assim como os
conteúdos ensinados na escola não são neutros; pelo contrário, tendem à manutenção da
sociedade vigente; e como nessa (nossa) sociedade há grupos dominantes que detentam o
poder econômico, político e militar, então o que de fato é preservado é o interesse desses
grupos dominantes. Mas não há dúvida que pais e responsáveis e mestres de escola
dispõem duma margem de ação que depende das decisões que eles queiram tomar (gostem
ou não aos grupos dominantes; cfr. Freire, 1970). Por isso, no Brasil, Paulo Freire e
Dermeval Saviani salientam que a educação pode ser arma de preservação da sociedade
vigente (e dos interesses dos grupos dominantes), ou, pelo contrário instrumento de
transformação que questiona os privilégios dos dominantes e as assimetrias-injustiças da
sociedade existente. Por isso Freire distinguiu o primeiro tipo de educação que ele chamou
de bancária (instrumento do conservadorismo social, na qual o mestre retira do aluno o
mesmo que antes tinha depositado em ele: daí o seu nome que remete para um “banco”), e
o segundo tipo, que chamou de “problematizadora” (engajada na transformação da
sociedade, rumo a uma nova ordem social sem opressores nem oprimidos). Assim Freire
veio a caracterizar como sendo “educação” um processo sem fim no qual os seres humanos
trazem à luz as diversas formas de opressão e agem para tentar de eliminá-las; tal é o
conteúdo do conceito freireano de “conscientização” (hoje, infelizmente esvaziado pela sua
banalização em boca de pessoas que nunca leram Freire).
Neste momento percebemos que tanto crianças quanto adultos estamos sendo desafiados a
não pararmos nunca nosso processo de educação; e para tanto, disse Freire, aprendemos dos
outros e com os outros. Esse desafio exige que os pais tenham a humildade e a sabedoria de
aprenderem com os seus filhos ao tempo em que os ensinam, que os mestres façam o
mesmo com seus alunos, e que o dirigente social ou político tenha igual comportamento em
relação aos cidadãos. Assim entendida, a “educação” abrange toda a sociedade, pois
permeia todos os relacionamentos entre os seres humanos.
EA: Moda ou necessidade?
O que entendemos por “ambiental”? Sem dúvida que ao ouvirmos esse termo, de
imediato pensamos em áreas verdes, em luta para se evitar a extinção de certas espécies
animais ou vegetais, e também na ação contra a contaminação (poluição) das terras, águas e
ar. Juntando essas características, pensamos que o “meio ambiente” é o espaço (ocupado
também por outros seres vivos e por entes não vivos) onde se desenvolve a vida dos
humanos. Mas então surge a pergunta: Pode haver uma educação que não seja “ambiental”?
Por incrível que pareça podemos afirmar que, embora toda educação preocupa-se com o
meio social no qual o educando vive, há modelos educacionais que não têm se preocupado
com a terra, a água e o ar nos quais habita essa sociedade, e tampouco com as relações que
nesse espaço os seres humanos mantém com entes não vivos, e com seres vivos (sejam eles
vegetais ou animais); uma prova dessa despreocupação é precisamente o estado alarmante
ao qual chegamos em matéria de poluição, devastação e ameaça à sobrevivência de
numerosas espécies dentre as quais não podemos excetuar a espécie humana, porque o
envenenamento (em particular pelas atividades industriais, agrícolas, e pelos gases emitidos
pelos veículos movidos a petróleo) da terra, da água e do ar, acaba traduzindo-se em
doenças que nos afetam.

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Assim, a educação familiar e a educação formal (nas escolas e universidades) que centrar
seus esforços em fomentar a subida rumo ao seleto grupo dos “ricos e famosos”, por sua
omissão dos fatores ambientais, pode ser chamada de “educação não ambiental”. Por isso
no século XX os meios intelectuais do ocidente acordaram para a necessidade de que a
educação deva de se preocupar preferencialmente com as questões atinentes ao meio
ambiente e a saúde do ser humano. Na conferência da ONU realizada em Tbilisi em 1977
(cfr. Dias 1991), salientou-se que essa educação, chamada de “ambiental”, devia buscar-
incentivar a solidariedade entre os seres humanos, no contexto de um comportamento
(alicerçado em conhecimentos, valores e habilidades) que estivesse guiado pela
preocupação pela saúde dos ecossistemas onde habitam os seres humanos (envolvendo
entes não vivos, como terra, água e ar, e seres vivos como vegetais e animais). Os valores
acima mencionados são precisamente as valorações que colocam como indispensáveis à
adesão permanente a ambas preocupações. As habilidades são o “saber fazer” a favor da
preservação ou recuperação dos ecossistemas desequilibrados pela busca incessante da
riqueza elevada a máximo objetivo da vida (não solidária). Os conhecimentos incluem este
que acabamos de frisar e todos aqueles capazes de nos ilustrar sobre o correto e o incorreto
nos relacionamentos inter-humanos e com o restante da natureza.
Ora, colocadas assim as coisas, parece claro que há uma certa “educação ambiental” que
peca por falta de profundidade e abrangência e não passa de um modismo (forjado pela
freqüência crescente com que no fim do século XX e no início do século XXI, a grande
mídia tem se preocupado de questões “ambientais”, quase sempre vinculadas à poluição,
desflorestamento e extinção de alguma espécie animal). E digo que falta a essa suposta EA
a profundidade-abrangência de tal, porque, assim como a grande mídia que a suscita, não
discute nunca os fundamentos mesmos da sociedade capitalista; ou seja: a) o fato de que
nessa sociedade uma minoria é dona dos grandes meios de produção (terras e fábricas) e
distribuição (supermercados) e de transporte (veículos de terra, mar e ar) e dos bancos,
enquanto que a grande maioria (calculada em 2,8 bilhões de pessoas pela OIT no fim de
2004) trabalha para essa minoria ou sofre com o desemprego (em 2000 a OIT calculava em
800 milhões o número de desempregados ou subempregados) por não ter meios de
produção nos quais aplicar as suas capacidades produtivas; b) o objetivo da produção é a
obtenção de mais dinheiro que aquele que foi investido nela, ou seja o enriquecimento, e
não a satisfação das diversas necessidades humanas, a ponto tal que nesta sociedade
milhões são os potenciais consumidores que morrem de fome ou doenças curáveis, por não
terem o dinheiro indispensável para comprar os alimentos e os remédios. Com essas
omissões fundamentais, a EA que é modismo, serve inclusive para que alguns capitalistas
se dêm boa consciência “ambiental”, financiando projetos de resgate de algum rio poluído
ou de alguma espécie ameaçada (tipo baleia ou mico-leão dourado). Para essa suposta EA o
capitalismo é a forma social definitiva da espécie humana, e ela nem sonha em imaginar um
“além do capitalismo”; ao tempo que não percebe que daqueles dos traços fundamentais
que referimos acima, resulta: do primeiro, que no capitalismo a humanidade não é uma
família que possa decidir dialogando o que fazer (produzir, distribuir, consumir, preservar,
recuperar), e do segundo, que a concorrência feroz onde sobrevive aquele que consegue
maior lucro, impossibilita que sejam tomadas medidas radicais (no sentido de “ir até a
raiz”) e duradouras nas áreas de preservação-recuperação da natureza doente (incluída a
humana) por causa do impacto causado nessa lógica do lucro. Se alguém objetar que
algumas empresas lucram precisamente com atividades de recuperação ambiental, a gente
deve responder: a) que elas são uma ínfima minoria face à enorme maioria que continuam a

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poluir e devastar, e, b) que não se percebe como essa grande maioria poderia virar
preservadora-regenadora da natureza, porque na guerra da concorrência esses cuidados
revelam-se causas de desvantagem competitiva que acabam por levar à falência. É bem
verdade que nas últimas décadas dentre os paises capitalistas do primeiro mundo, têm sido
elaboradas diversas normas de preservação-controle ambiental, mas ao mesmo tempo
vemos que até hoje a principal potencia (os EEUU) nega-se a assinar o Protocolo de Kyoto
(que prevê a diminuição da emissão dos gases poluentes), e que as mesmas multinacionais
que têm sido, de certo modo, freadas no primeiro mundo, trazem suas fábricas obsoletas
para o terceiro mundo, para continuarem a praticar a lógica do “lucrar poluindo e
devastando”. Também se observa que nos paises do primeiro mundo nem superficialmente
são questionados os dois fundamentos do capitalismo que acima elencamos. Pelo contrário,
afirma-se que o capitalismo é “o fim da história”. No entanto, percebemos que na
humanidade atual, milhões sofrem de fome, desemprego, falta de acesso à saúde e
alimentação básica; e nos paises ricos, mesmo os que não carecem de certo conforto, na sua
grande maioria vivem às pressas, preocupados e inquietos pelo hoje e pelo amanhã (seja
pela violência do dia a dia, seja porque nada garante que o amanhã não traga desemprego e
privações). Como vimos, com o capitalismo sofrem os seres vivos e também a terra, a água
e o ar; em resumo, o capitalismo faz mal à saúde de humanos e não humanos. Daí que
afirmamos: pensar um além do capitalismo é uma necessidade, se quisermos sanar os males
antes citados. Por isso, uma EA que integre essa perspectiva pós-capitalista é uma
necessidade.
A EA ecomunitarista
Chamo de ecomunitarismo a ordem sócio-ambiental pós-capitalista na qual os seres
humanos reconciliam-se entre si para permitir e incentivar o desenvolvimento
multifacetado de cada sujeito, e se reconciliam com o restante da natureza, mantendo face a
ela uma atitude permanente de preservação e regeneração.
Defino a EA ecomunitarista que apresento neste livro como sendo a educação
problematizadora alicerçada na ética argumentativa da libertação (que resumirei nas linhas
que seguem) e orientada rumo ao ecomunitarismo.

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL (EA) NA LEI BRASILEIRA [POLÍTICA


NACIONAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL , Lei Nº 9795 de 27/04/1999 ]

Todos sabemos que o Brasil é considerado um pais no qual certas leis "pegam" e outras
não; isto é suficiente para que tenhamos clareza que no domínio da Educação Ambiental
(EA), como em qualquer outro, a lei não é garantia de nenhuma mudança efetiva na ordem
das coisas. Mas, ao mesmo tempo, é necessário frisar que a lei é um quadro que pode
facilitar e reforçar iniciativas e ações de mudança efetiva. É nesse sentido que
consideramos que a atual lei que "dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política
Nacional de Educação Ambiental" (PNEA), " e dá outras providências",
independentemente das suas limitações, deve ser apreciada como um instrumento útil ao
desenvolvimento das atividades de educação ambiental presentes e futuras. Cabe aos

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agentes destas ações a dupla tarefa simultânea de zelar pelo cumprimento da atual lei e
propiciar as alterações que venham a suprir carências da mesma.
No que segue destacaremos brevemente alguns tópicos da lei que são particularmente
importantes com vistas ao esclarecimento: 1) de certos conceitos capitais em matéria de
EA, 2) das esferas de ação em EA e, 3) dos espaços que daqui para a frente podemos
construir fazendo convergir os esforços atuais e futuros em matéria de EA.

1. ALGUNS CONCEITOS-CHAVE EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL

1.1. A EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Temos definido a epistemologia da educação ambiental a partir da concepção freireana da


educação e do horizonte utópico do Ecomunitarismo, rumo ao qual entendemos que a
humanidade deve orientar a sua caminhada na História.
Lembremos que para Paulo Freire educar-se é conscientizar-se, e que "conscientização"
significa desvelamento crítico das instâncias de dominação existentes na realidade e
transformação dessa mesma realidade rumo a uma sociedade sem opressores nem
oprimidos.
Se ampliamos a perspectiva em abordagem sócio-ambiental então podemos estender o
desvelamento crítico ao conjunto das instâncias de dominação e devastação, e a ordem
sócio-ambiental visada será aquela na qual os seres humanos ( a partir da ética da
libertação) se reconciliem fraternalmente entre si e também com o restante da natureza,
mediante a prática de um intercâmbio que permita a preservação ou a permanente
regeneração da natureza não-humana.
A reconciliação fraternal entre os seres humanos significa a constituição histórico-real do
gênero humano, que deixa assim de ser uma simples figura lógico-lingüística, para designar
uma única família composta de diversidades, onde os membros cooperam entre si com
vistas à plena realização de cada um; isto significa que cada ser humano deve receber do
esforço conjunto da família humana tudo aquilo que supra as suas necessidades; o limite
destas necessidades é marcado pelo acordo consensual entre os seres humanos e pela
exigência de um intercâmbio produtivo sustentável com o restante da natureza. Este último
é sinônimo de uma economia preferencialmente baseada em recursos renováveis a escala
humana (como no plano energético o são as fontes solar e eólica), capaz de zelar pela
permanente redução, reutilização e reciclagem dos resíduos (as "três R") até os limites
últimos da tecnologia e da física; além da prática das "três R", é bom frisar que os resíduos,
já reduzidos em quantidade, terão que ter ao máximo caráter biodegradável e/ou passar
pelos processos de tratamento capazes de eliminar ou pelo menos minimizar os seus efeitos
poluentes.
Neste contexto a educação ambiental consiste num mútuo conscientizar-se, feito de
reflexão e ação, visando a construção dessa ordem sócio-ambiental sustentável de
reconciliação planetária.

1.2 MEIO AMBIENTE

A concepção de EA que acabamos de expor pressupõe que não é correto reduzirmos o


"meio ambiente" ao conjunto das entidades não-humanas.

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É com satisfação que registramos o fato de que, apesar de algumas vacilações, a lei da
PNEA filia-se a esta visão não-reducionista.
Com efeito, diz a lei que é princípio básico da EA " a concepção do meio ambiente em sua
totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o sócio-econômico e o
cultural, sob o enfoque da sustentabilidade"; e isto a escala local, regional, nacional e global
(Art. 4).
Para que se perceba o alcance prático desta visão abrangente de "meio ambiente" é bom
o aplicarmos ao caso dos danos causados pelo navio "Bahamas" (que derramou
aproximadamente oito mil toneladas de uma mistura de ácido sulfúrico no canal de acesso
do porto de Rio Grande, RS em incidente que iniciou em 31 de agosto de 1998; o navio
conseguiu ser removido do porto somente vários meses depois). Se ficamos com a visão
reducionista de "meio ambiente" poder-se-ia concluir que, se a descarga da mistura ácida o
"Bahamas" não acarretou a morte de (quantidades consideráveis de) organismos vegetais
ou animais, então os responsáveis pelo incidente não foram responsáveis por "dano
ambiental". Mas se considerarmos que o "meio ambiente" envolve de maneira indissolúvel
os fatores socio-culturais (incluindo os econômicos e os psicológicos), além dos físico-não-
humanos situados num certo espaço-tempo, e constatamos que durante quase um ano toda
uma comunidade de pescadores e comerciantes de frutos do mar foram prejudicados na sua
vida em decorrência do incidente do "Bahamas", então chegaremos à conclusão que houve
sim importante dano ambiental no referido caso.
É muito provável que a caracterização de "dano ambiental", e por tanto de "meio
ambiente", seja um dos pontos cruciais da polêmica legal que marcará a discussão das
ações que pedem ressarcimento dos pescadores artesanais perjudicados no episódio
"Bahamas".

1.3 CARÁTER MAIS-QUE DISCIPLINAR DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Apesar que a lei é dubitativa quanto aos termos, é bom que fique claro no texto que a
EA é uma tarefa mais-que-disciplinar. Esta abordagem leva-nos para o domínio da multi,
da inter e da transdisciplinariedade (todos termos que aparecem num ou noutro trecho da
lei). Acontece que há divergências quanto a conceitualização destes três termos. A lei
consegue dar uma produtiva idéia geral da pretensão mais-que-disciplinar em EA quando
no seu Art. 10. estipula que " A educação ambiental será desenvolvida como uma prática
educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino
formal".
Na especificação desta idéia geral acredito que a seguinte caracterização, inspirada do
documento que estipula a "Estratégia Nacional de EA" em Cuba (ENEA, 1997), encaminha
corretamente a discussão e aplicação dos termos antes citados (sem pretender resolver
definitivamente a questão, que fica ainda em aberto, na busca do uso dos termos que se
achar mais conveniente):
a) A multidisciplinariedade caracteriza uma situação na qual, embora não exista
coordenação entre diversas disciplinas, cada uma delas participa desde a perspectiva do
seu próprio quadro teórico-metodológico ao estudo e tratamento de um dado fenômeno.
[ Se entendermos por disciplina, con forme o Aurélio " qualquer ramo do conhecimento
científico", ou, ainda " conjunto de conhecimentos em cada cadeira dum
estabelecimento de ensino", podemos dizer que os cursos de Pedagogia que
conhecemos são multidisciplinares; com efeito, definido o objetivo que é formar

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educadores, ou simplesmente professores, supõe-se que é necessário para tal que o
aluno conheça o ser humano, entre outros, os assuntos relativos a sua psicologia e
desenvolvimento, às suas formas de aprender, e às circunstâncias positivas e
problemáticas da sua existência social; e assim o curso oferece as disciplinas de
Filosofia, Psicologia, Didática e Sociologia, que mesmo sem interagirem na
programação dos seus conteúdos, nem na suas referências teórico-metodológicas, dão
ao aluno de forma multidisciplinar o desejado conhecimento sobre algumas dimensões
do que é o ser humano].
b) A interdisciplinariedade significa que as disciplinas em questão, apesar de partirem
cada uma do seu quadro referencial teórico-metodológico, estão em situação de mútua
coordenação e cooperação e estão engajadas num processo de construção de
referenciais conceituais e metodológicos consensuais
c) já a transdiciplinariedade caracteriza a situação na qual estes referenciais consensuais
têm sido construídos e propiciam a re-acomodação, com relativa desaparição, de cada
"disciplina" envolvida no estudo e tratamento do fenômeno considerado.
A esta caracterização podemos acrescentar que a "transdisciplinariedade" em EA pode ser
entendida também, num sentido menos ambicioso que o recém esboçado, como o fato da
EA ter que permear-ligar, como grande "tema transversal", todos os espaços educacionais
(na educação formal, todos os conteúdos); para visualizar com clareza o que quero dizer
com isto serve a analogia da (nefasta) estrada "trans-amazônica", assim chamada pelo fato
de atravessar o espaço amazônico estabelecendo contato entre suas partes.; de maneira
análoga a EA está chamada a atravessar-ligar todas as atividades educacionais (e na
educação formal todas as disciplinas e conteúdos).
Neste ponto podemos salientar que a lei comete um equívoco quando, defendendo o
caráter mais-que-disciplinar da EA parte para a pura e simples proibição da criação de uma
disciplina de EA em outro espaço que não seja os dos " cursos de pós-graduação, extensão
e nas áreas voltadas ao aspecto metodológico da educação ambiental".
A esse respeito o Art. 10 diz literalmente: " § 1.o A educação ambiental não deve ser
implantada como disciplina específica no currículo de ensino; § 2.o Nos cursos de pós-
graduação, quando se fizer necessário, é facultada a criação de disciplina específica".
Ora, se sabemos que o Brasil é um pais no qual algumas leis "pegam" e outras não,
ocorre-nos que, à luz da mais-que-disciplinariedade da EA na sua melhor acepção, a lei
deveria aconselhar a não-criação de uma disciplina específica de EA, mas não deveria vetar
a sua criação pois na presença de omissões ou resistências é obvio que é melhor termos
pelo menos um espaço garantido de EA na forma de uma disciplina, que não termos nada
em absoluto. Isto toma um caráter prático imediato quando pensamos nos espaços que
estarão ou não abertos para os alunos que formemos a nível do pós-graduação em EA e nas
áreas afins.

2. ESFERAS DE AÇÃO EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL

A lei de PNEA combina educação formal e não-formal; assim, embora esquecendo a


educação informal que é aquela do dia a dia que acontece pelo simples contato direto ou
indireto entre os seres humanos, a lei vêm de fato responsabilizar toda a sociedade, através
das mais diversas esferas organizativas, pela educação ambiental.

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Diz o artigo Art. 2.o "A educação ambiental é um componente essencial e permanente da
educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e
modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal (sublinhado meu, que
pauta a responsabilidade de toda a sociedade para com a EA).
E o Art. 3. especifica : " Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito
à educação ambiental, incumbindo: I - ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da
Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental,
promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade
na conservação,
recuperação e melhoria do meio ambiente; II - às instituições educativas, promover a
educação ambiental de maneira integrada aos programas educacionais que desenvolvem; III
- aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente - Sisnama, promover ações
de educação ambiental integradas aos programas de conservação, recuperação e melhoria
do meio ambiente;
IV - aos meios de comunicação de massa, colaborar de maneira ativa e permanente na
disseminação de informações e práticas educativas sobre meio ambiente e incorporar a
dimensão ambiental em sua programação; V - às empresas, entidades de classe, instituições
públicas e privadas, promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores,
visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho, bem como sobre as
repercussões do processo produtivo no meio ambiente; VI - à sociedade como um todo,
manter atenção permanente à formação de valores, atitudes e habilidades que propiciem a
atuação individual e coletiva voltada para a prevenção, a identificação e a solução de
problemas ambientais ".

[Nota: a) O Art. 205 da Constituição Federal diz " A educação, direito de todos e dever do
Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho"; já o Art. 225 reza no seu caput: " Todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações", e no seu inciso VI estabelece que
incumbe ao poder Público " promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e
a conscientização pública para a preservação do meio ambiente". b) Lembre-se que
compõem o Sisnama ( conforme a lei nº 6938 que institui a Política Nacional do meio
Ambiente em 31/08/1981, Art. 6): "Os órgãos e entidades da União, dos Estados, do
Distrito federal, dos Territórios e Municípios, bem como as fundações instituídas pelo
Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental". Alguns
desses órgãos são os Conselhos de Meio Ambiente a nível federal, estadual e municipal, as
Comissões do âmbito legislativo federal, estadual ou municipal voltadas total ou
parcialmente ao meio Ambiente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA), e, no Rio Grande do Sul, a Fundação Estadual de Proteção
Ambiental ( FEPAM )].

2.1 Na Educação Formal.

13
A lei deixa muito clara a sua abrangência quando na sua Seção II, Art. 9 diz : " Entende-
se por educação ambiental na educação escolar a desenvolvida no âmbito dos currículos das
instituições de ensino públicas e privadas, englobando:
I - educação básica:
a) educação infantil;
b) ensino fundamental e
c) ensino médio;
II - educação superior;
III - educação especial;
IV - educação profissional;
V - educação de jovens e adultos.
Como se percebe, e para ficarmos só na esfera das nossas obrigações como universitários, a
lei exige que todos os cursos da Universidade (em especial as licenciaturas e pós-grados
formadores de professores) revisem os seus currículos para fazer com que o elo transversal
da EA os permeie, enriquecendo-os; com efeito, o Art. 11 estipula que: " A dimensão
ambiental deve constar dos currículos de formação de professores, em todos os níveis e em
todas as disciplinas".
Similar desafio está lançado às escolas, sejam elas do ensino infantil, fundamental, médio,
ou técnicas (com responsabilização especial dos atuais cursos de Magistério e/ou dos seus
sucessores).

2.2 Na Educação Não-Formal


A abrangência das responsabilidades atribuídas pela lei em matéria de EA não-formal, fica
clara, apesar de algumas fraquezas conceituais, na Seção III, Art. 13, ao estipular que "
Entendem-se por educação ambiental não-formal as ações e práticas educativas voltadas à
sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais e à sua organização e
participação na defesa da qualidade do meio ambiente". E continua: " O Poder Público, em
níveis federal, estadual e municipal, incentivará: I - a difusão, por intermédio dos meios de
comunicação de massa, em espaços nobres, de programas e campanhas educativas, e de
informações acerca de temas relacionados ao meio ambiente; II - a ampla participação da
escola, da universidade e de organizações não-governamentais na formulação e execução
de programas e atividades vinculadas à educação ambiental não-formal; III - a participação
de empresas públicas e privadas no desenvolvimento de programas de educação ambiental
em parceria com a escola, a universidade e as organizações não-governamentais; IV - a
sensibilização da sociedade para a importância das unidades de conservação; V - a
sensibilização ambiental das populações tradicionais ligadas às unidades de conservação;
VI - a sensibilização ambiental dos agricultores;
VII - o ecoturismo".
Fica por nossa conta a realização incessante das devidas cobranças, em especial pela sua
grande repercussão no grande público (inclusive nas próprias crianças, muitas vezes com
impacto maior que o conseguido pela Escola), da responsabilidade aqui atribuída à grande
imprensa, cuja democratização e colocação sob controle social é uma exigência inadiável
com vistas à construção da ordem sócio-ambiental fraterna e sustentável pretendida. Nessa
ótica e por exigência da lei haverá de se dobrar a lógica do lucro e encontrar espaços de EA
ás 8 da noite, retirando-os do gueto dos surrealistas espaços educativos colocados
"espertamente" às 6 da manhã para cumprir assim com a forma mas não com o espírito e o
conteúdo do desafio educativo que a todos nos interpela.

14
De maneira semelhante também terá que ser dobrada a lógica do lucro para que as
empresas venham a zelar efetivamente pela saúde e segurança dos trabalhadores e pela
preservação ou conservação do meio ambiente não-humano do seu entorno.

3. ESPAÇOS CONVERGENTES EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL


Uma grande incógnita da lei é a relativa a sua implementação, em especial no que diz
respeito aos recursos disponíveis para a efetivação do dispositivo e à cobrança das
responsabilidades atribuídas (incluindo aqui o funcionamento do Órgão Gestor previsto na
lei).
O fato de que o Presidente da República tenha vetado precisamente o Art. 18 desta lei que
estipulava : "devem ser destinados a ações em educação ambiental, pelo menos vinte por
cento dos recursos arrecadados em função da aplicação de multas decorrentes do
descumprimento da legislação ambiental", é um péssimo sinal que faz pensar que, como
vêm acontecendo até hoje, os heróicos praticantes da EA deverão continuar a fazer o
melhor com quase nada (e às vezes nada mesmo) e, ao mesmo tempo, lutar para que a EA
seja efetivamente reconhecida como prioridade através da alocação dos recursos, em
especial públicos (saídos dos bolsos de todos nós), que ela merece.
Nesse contexto ganha importância a idéia de criarmos espaços em que todos os projetos e
as ações de EA possam convergir para, além do salutar intercâmbio cooperativo que a todos
enriquece, somarem forças com vistas à luta pela obtenção de recursos.

ÉTICA E EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL


ECOMUNITARISTA

Me proponho apresentar resumidamente uma proposta epistemológica para a educação


ambiental (EA) embasada na ética argumentativa da libertação (que venho desenvolvendo
na última década) e na pedagogia problematizadora elaborada por Paulo Freire, revisitada à
luz do pensamento sistêmico.

I. A ÉTICA ARGUMENTATIVA DA LIBERTAÇÃO


Faço a seguir um brevíssima resenha dos fundamentos lógico-lingüísticos da minha ética
(ver os detalhes em Lopez Velasco 2003 A).
A ética argumentativa, a) parte de Austin (1962), mas, b) recuperando o instrumental da
lógica formal e fazendo uso em especial do operador que chamo de “condicional” (e não de
sub-condicional), c) tenta mostrar que é possível se deduzir por via estritamente
argumentativa da própria gramática da pergunta que instaura o universo da ética (a saber,
“Que devo fazer?”), normas (agora entendidas como quase-raciocínios causais, QRC) de
validade subjetiva universal. Sustento que as obrigações morais e éticas se constituem
somente através da linguagem mediante as respostas para a pergunta: “Que devo fazer?”.
Mas a obrigação moral e a obrigação ética têm distinta forma lingüística. As normas da
Moral são imperativos simples. (Exemplos: “Devo respeitar os idosos”, ou, todavia, no
caso dos esquimós, “Devo deixar morrer os idosos”). Já as normas da Ética são Quase-
Raciocínios Causais (QRC) compostos por:
a) um obrigativo do tipo “Devo x”, onde “x” é um sintagma iniciado por um verbo
(diferente de “dever”) no infinitivo;
b) o operador não-veritativo “porque”, e,

15
c) um enunciado E (o qual pode ser simples ou complexo, segundo a análise da lógica
clássica).
[No dito QRC o sintagma que segue o verbo “dever” também faz parte do enunciado E].
Desta maneira devém real, mas num contexto argumentativo que não é refém da “falácia
descritiva” e que prescinde de qualquer apelo ao “sentimento”, aquela possibilidade
aventada por Russell de que “ a ética contenha proposições que podem ser falsas ou
verdadeiras, e não apenas optativas ou imperativas...” (Russell, 1946, Cap. IX). A
gramática dos QRC é a seguinte: se creio na verdade do enunciado E estou comprometido
com o obrigativo; se o enunciado E resulta falso, então a obrigação é derrubada por via
argumentativa. Por exemplo, o seguinte QRC é candidato a ser uma norma ética: “Devo
respeitar os idosos, porque o respeito aos idosos faz a sociedade mais cooperativa e eu
quero fazer a sociedade mais cooperativa”.
Logo a seguir uso o operador lógico que chamo de “condicional” (e não de sub-
condicional); esse operador (representado por “*”) constrói enunciados do tipo “p * q” que
interpreto na linguagem natural com “p é condição de q “.
A tabela veritativa desse operador é a que segue:

p q p * q
v v v
v f v
f v f
f f v

Com esse instrumental lógico estou preparado para deduzir a partir da gramática da
pergunta “Que devo fazer?”, que é a que instaura a Ética (e a Moral) na e pela linguagem,
as normas éticas capazes de reivindicar validade intersubjetiva universal (pelo menos
dentro da cultura chamada “ocidental”) por via estritamente argumentativa. [O único
pressuposto consiste em postular que desejamos produzir instâncias felizes (no sentido de J.
L. Austin 1962) do ato de fala “ Que devo fazer?”].

* As normas da ética

A PROTO-NORMA DA ÉTICA: A descoberta das regras da felicidade dos atos


lingüísticos propostas por Austin (1962) nos permite postular a existência de uma Meta-
regra que estipula: “ Aceitar (a felicidade) de um ato lingüístico é aceitar que as condições
para sua realização (feliz) estão dadas ( em particular no que se refere e depende do
comportamento do sujeito envolvido)”. Em continuação há de se perguntar se a ação dos
sujeitos que aceitam ( a felicidade de) esse ato e em particular daqueles que são os autores
do mesmo não participa de alguma maneira na criação das condições que definem sua
realização (feliz). Atendo-nos às regras propostas por Austin, em especial às regras “G”
(embora também podem invocar-se as “A” e “B”), a resposta é positiva. Daí se deriva que
“aceitar que as condições para a realização feliz de um speech act estão dadas”, inclui,
quando olhamos a situação a partir das regras definidas por Austin, em especial das “G”, a
instauração por parte do sujeito que produz-aceita tal ato daquelas condições de sua
execução (feliz) que dependam do dito sujeito. Mas isso é precisamente o que afirma,
aplicando-o ao caso da pergunta “Que devo fazer?”, o enunciado que segue o operador
“porque” no QRC que explicita a proto-norma da Ética que reza “ Devo fazer o que é

16
condição da pergunta ‘Que devo fazer?’ porque eu faço o que é condição da pergunta ‘Que
devo fazer’ é condição de eu pratico uma execução feliz da pergunta ‘Que devo fazer?’”.
Tal enunciado será verdadeiro à luz da simples Meta-regra da felicidade dos atos
lingüísticos. Por outra parte, e agora tendo em conta a tabela veritativa do operador de
“condicional”, sabemos que tal enunciado complexo é verdadeiro quando o são os
enunciado simples unidos por aquele operador. [Sendo “p” e “q” verdadeiros também o é
( “ p * q )]. Assim, uma vez que se reconheceu o operador de “condicional”, seria uma
auto-contradição lógica rechaçar a verdade do enunciado que vem logo depois do operador
“porque”, na medida em que a verdade de tal enunciado deriva da tabela veritativa do
operador de “condicional”, porque neste caso tanto “p” ( que simboliza o enunciado “ Eu
faço aquilo que é condição da pergunta ‘Que devo fazer?’”) como “q” ( que simboliza o
enunciado “ Eu aceito a pergunta ‘Que devo fazer?’”) são ambos (por hipótese),
verdadeiros, e nesse caso também o é a sentença ( p * q ).
A PRIMEIRA NORMA ÉTICA – A felicidade da pergunta “Que devo fazer?” está
condicionada pela possibilidade que eu/nós tenhamos de escolher entre pelos menos duas
alternativas de ação. Ora, escolher entre duas alternativas de ação supõe liberdade de
decisão. Assim, a liberdade de decisão é uma condição referente à posição do sujeito que
realiza o ato de fala “Que devo fazer?” e faz parte da realização feliz desse ato. Posso
portanto dizer:
a) Eu tenho liberdade de decisão é condição de Eu posso realizar mais de uma ação ou
tipo de ação diferente.
b) Eu posso realizar mais de uma ação ou tipo de ação diferente é condição de Eu faço a
pergunta "Que devo fazer?".
c) [porque o operador de condicional respeita a propriedade de transitividade, ou seja
porque a fórmula sentencial que segue é uma tautologia: ((( p * q ) . ( q * r ) → ( p * r)))] eu
tenho liberdade de decisão é condição de eu pergunto “Que devo fazer?”.
d) Eu quero fazer a pergunta “Que devo fazer?” (numa realização feliz). E por esse
procedimento eu deduzo a primeira norma da ética que reza: “ Devo garantir minha
liberdade de decisão porque Eu garanto minha liberdade de decisão é condição de Eu faço
a pergunta 'Que devo fazer?' (numa realização feliz)".
Esta norma é o fundamento ético de toda crítica a qualquer instância da falta de liberdade
de decisão, particularmente quando essa falta resulta de relações alienadas com os outros e
comigo próprio. Nota-se que haja vista a condição humana (que é uma condição social)
podemos dizer que talvez nunca uma instância da pergunta "Que devo fazer?" será
plenamente "feliz", mas ao mesmo tempo devemos constatar que essa pergunta é o “lugar”
da instauração-reafirmação da nossa liberdade de decisão e da luta por consegui-la.
A SEGUNDA NORMA DA ÉTICA Agora a questão é a seguinte: “É ilimitada a liberdade
individual de decisão estabelecida pela primeira norma da ética?”. Inspirado em Karl-Otto
Apel (1973) e Oswald Ducrot ( 1972), proponho que a gramática do ato de “perguntar”
inclui como condição da sua “felicidade” os dois princípios seguintes:
a) o indivíduo que formula uma pergunta acredita que seu interlocutor responderá à mesma
dizendo o que acredita ser verdadeiro ou correto;
b) o indivíduo que formula uma pergunta assume com esse ato uma atitude de busca
coletiva e consensual do verdadeiro ou do correto.
[Nota-se que a violação de qualquer um destes princípios é possível, mas nesse caso a
pergunta em questão não será “feliz”]. Também postulo que quando se realiza a nível ético
a pergunta “Que devo fazer?” espera-se como resposta um QRC. Sobre essa base e

17
considerando que qualquer indivíduo que formula a pergunta “Que devo fazer?” está
abrindo por esse ato a porta para a participação na condição de interlocutor válido a
qualquer pessoa que entenda a interrogação, advém a segunda norma da ética, que reza o
seguinte: "Devo buscar consensualmente uma resposta para cada instância da pergunta 'Que
devo fazer?' porque Eu busco consensualmente uma resposta para cada instância da
pergunta 'Que devo fazer? ' é condição de a pergunta 'Que devo fazer?' é feliz " .
Esta norma traça os limites da liberdade individual de decisão estabelecida pela primeira
norma exigindo uma construção e vivência consensual da liberdade. Penso que as pessoas
que defendem o dissenso contra o consenso (caso de Lyotard 1979) estão confundidas. Em
primeiro ligar, chamo a atenção para o fato de que redigir um artigo o um livro para
defender a importância do dissenso é uma prova irrefutável da importância do consenso,
porque mediante aquele escrito o que se pretende é fazer consenso sobre a importância do
dissenso. A oposição simples de “dissenso contra consenso” parece ser uma “contradição
performativa” ( para ser mais fiel a Austin eu a chamaria de “contradição ilocucionária”) na
medida em que o conteúdo ilocucionário do ato lingüístico se contrapõe à força
ilocucionária veiculada pelo mesmo ( como quando alguém ordena “Não me obedeças!”,
porque o próprio da ordem é pressupor e comandar a obediência). Creio que consenso e
dissenso estão numa relação dialética onde um se transforma no outro. Se busco o consenso
é porque estou no dissenso. Mas, especialmente no caso das normas éticas, o consenso é
sempre provisório e pode transformar-se em dissenso a cada instante, bastando para isso
que venha a ser falseado argumentativamente o enunciado que dá sustentação ao obrigativo
que as integra. Disso também se desprende que não há um problema real na suposta
problemática que diferencia entre consensos fáticos e consensos legítimos. Todo consenso é
sempre provisório. As normas da ética são históricas e a História está sempre aberta. Mas a
segunda norma confirma a primeira no sentido de que devemos lutar por uma ordem social
na qual todas as pessoas sejam o mais livres que for possível em suas decisões individuais
consensualmente estabelecidas ( e criadas e recriadas a cada instante mediante discussão
argumentativa).
A TERCEIRA NORMA ÉTICA – Quais são as condições de existência da pergunta “Que
devo fazer?” (cfr. as regras “A” propostas por Austin). Em primeiro lugar, deve existir o ato
lingüístico da pergunta. Mas para a existência de tal ato se faz necessária a existência da
linguagem humana; ou seja, a existência do ser humano. Mas, o que caracteriza um ser
como “humano”? (se excluirmos a dimensão da sua linguagem). Posso responder: o
trabalho. O trabalho é a interação entre a parte da natureza que é o ser humano e o restante
da Natureza, através da qual o primeiro está em situação histórica de permanente auto-
produção. O trabalho pressupõe a Natureza em seus três componentes: o sujeito (o ser
humano), o objeto e o instrumento, ambos naturais de forma direta ou indireta. Mas a
respeito de que Natureza estamos falando? A resposta é: de uma Natureza saudável para o
trabalho, que é uma condição para a sobrevivência do ser humano. Agora posso propor o
seguinte argumento:
Premissa 1 : A natureza é saudável do ponto de vista produtivo é condição de eu sou um ser
humano.
Premissa 2 : Eu sou um ser humano é condição de eu faço a pergunta ' Que devo fazer' ?
Conclusão : A natureza é saudável do ponto de vista produtivo é condição de eu faço a
pergunta 'Que devo fazer?'.
A este raciocínio posso associar a forma
p*q ; q* r

18
------------------
p*r
que é uma forma logicamente válida, porque, como sabemos, a fórmula sentencial que a
representa é uma tautologia.
Assim encontramos a terceira norma da Ética: “Devo preservar uma natureza saudável do
ponto de vista produtivo porque eu preservo uma natureza saudável do ponto de vista
produtivo é condição de eu faço a pergunta ‘Que devo fazer?’ (numa realização feliz)".
Quero de imediato advertir que talvez essa norma não seja a última palavra da ética em
matéria ecológica e de educação ambiental, dado o caráter utilitarista da visão da natureza
ali compreendida. Mas creio que ela é uma base mínima aos efeitos do dispor de um
fundamento argumentativo para a importante tarefa que é a preservação-regeneração da
Natureza, atividade que faz parte da luta por uma ordem sócio-ambiental ecomunitarista.
Chamo de “Ecomunitarismo” a ordem sócio-ambiental utópica pós-capitalista (talvez
nunca alcançável, mas indispensável horizonte guia da ação) capaz de se articular com
base nas três normas da ética e de manter-se pela postura de seres humanos em atitude de
libertação.
II. EDUCAÇÃO
Entendo o termo "educação" como sendo sinônimo de "conscientização", assim como
Paulo Freire define este último termo, ou seja como combinação, em situação de
alimentação recíproca de : a) desvelamento crítico da realidade, e, b) ação transformadora
sobre ela (no sentido da construção de uma comunidade humana sem opressores nem
oprimidos; cfr. Freire 1982, “Algumas notas sobre conscientização”; hoje e à luz da EA em
vez dessa ‘comunidade humana’ falamos em ‘ordem sócio-ambiental sustentável nas
relações inter-humanas e entre os seres humanos e o restante da natureza’).
É bom se lembrar outro princípio de Freire, que afirma que ninguém educa ninguém e
ninguém se educa sozinho: os homens se educam reciprocamente em comunhão,
mediatizados pelo mundo.(Freire 1970, Cap. 2).
Assim, educar-se é conscientizar-se em diálogo com os outros no contexto de uma ação
transformadora sobre a realidade eco-social rumo a uma ordem sócio-ambiental sustentável
(que eu chamarei de ‘ecomunitarismo’; ver no que se segue).
Note-se, porém, que ainda é preciso se fundamentar a postura ética segundo a qual, a)
devemos dialogar com os outros, b) é bom fazê-lo no contexto da ação teórico-prática de
desvelamento crítico e transformação libertadora da realidade, e, ainda, c) devemos buscar
uma ordem sócio-ambiental sustentável. Tal fundamentação, como ver-se-á, apóia-se na
ética argumentativa da libertação.
Por sua vez defino “libertação” como o processo histórico de construção da liberdade de
decisão consensual a propósito de nossas vidas através da discussão e da luta contra as
instâncias de dominação intersubjetiva e de auto-repressão alienada; desse processo faz
parte o estabelecimento de relações produtivas e estéticas de caráter preservador-
regenerador entre os seres humanos e o restante da natureza.
Com esta base entendo por “educação” a ação transcorrida com base numa pedagogia
problematizadora, ou pedagogia da libertação que se caracteriza, dentre outros, pelos
seguintes traços:
a) coloca os instrumentos da cultura erudita a serviço da conscientização - mobilização dos
oprimidos em luta para superar o capitalismo e alcançar uma ordem sócio-ambiental
sustentável constituída por indivíduos livremente associados e multilateralmente
desenvolvidos e respeitosos da natureza não humana;

19
b) toma como ponto articulador da ação pedagógica as questões ligadas à vida diária e à
luta dos oprimidos a todos os níveis da realidade;
c) estabelece vínculos de mútuo enriquecimento entre a cultura "erudita" e a chamada
cultura "popular" (aquela que, à margem da educação formal, os oprimidos constroem no
dia-a-dia das suas vidas e das suas lutas);
d) supera a contradição educador-educando, propiciando a construção dialógica do
conhecimento vivo (ligado ao dia-a-dia e cimentado na pesquisa e na reflexão) numa
dinâmica onde ambos são educandos-educadores, porque são investigadores críticos, isto é,
sujeitos desveladores da realidade social e engajados na sua transformação sócio-ambiental
libertadora;
e) combate, pela crítica e a auto-reflexão, o fatalismo e o assistencialismo e aposta na
capacidade de luta dos e com os oprimidos para melhorar as nossas vidas e para, em última
instância, superarmos o capitalismo;
f) defende (e busca aplicar no dia-a-dia) a tomada democrática das decisões e visa à
superação da disciplina verticalmente imposta pela auto-disciplina consensualmente
estabelecida e avaliada.
III. EDUCAÇÃO AMBIENTAL (EA)
A EA é a educação problematizadora embasada na ética argumentativa da libertação
(que incorpora o pensamento sistêmico) e orientada rumo ao ecomunitarismo.
A realidade precisa ser “desvelada” pela educação problematizadora porque na sua
apreensão ingênua, quer dizer a-crítica e alienada, ficam ocultos os mecanismos sociais de
dominação-repressão-destruição que articulam seu coração mesmo. Daí que as
“consciências imersas” nessa visão das aparências devam “emerger” no processo de
descoberta dos mecanismos encobertos. Mas essa emersão não será nem satisfatória nem
possível se o processo de compreensão intelectual não se acompanhar da ação
transformadora que aponta à superação daqueles mecanismos sobre os quais se assenta a
dicotomia entre opressores e oprimidos e a devastação da natureza circundante, e cuja
superação permite à própria superação daquela dicotomia e a reversão da mencionada
devastação.
Isto faz da E.A. uma tarefa comunitário-histórica e individual sem fim, na qual o
conhecimento alimenta o agir anti-dominador e anti-devastador e este por sua vez traz mais
elementos ao conhecimento crítico da opressão e da devastação.
Cada ser humano está chamado a ser um educador ambiental. Em especial, mas sem perder
a condição de educandos na relação dialógica que deles se espera, esse papel é exigido dos
pais, dos integrantes das organizações ambientalistas, dos professores de todos os níveis,
dos jornalistas e comunicadores em geral, dos sindicalistas e ativistas sociais e políticos,
das lideranças comunitárias, e, quando despertarem para tal, das lideranças religiosas e dos
administradores.

II. EPISTEMOLOGIA DA EA
Entendendo por ‘epistemologia’ a ‘teoria do conhecimento’, passamos a nos ocupar da
epistemologia da EA conforme a temos definido anteriormente.
Antes de que Karl-Otto Apel, redescobrindo intuições de Charles Peirce, situara a
comunidade de comunicação como o âmbito de onde nasce e se renova a ciência, Paulo
Freire havia dado a chave da epistemologia da pedagogia da libertação com o asserto já
citado: “... ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os

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homens se educam em comunhão mediatizados pelo mundo”. (Freire 1970, Cap. II, 1983 p.
79).
Esta fórmula vem romper com o solipsismo epistemológico que, desde Descartes deixou
profundas raízes na filosofia ocidental, ao propor a alternativa da construção dialogal do
conhecimento como uma utopia possível à luz da luta pela superação da dicotomia
opressores-oprimidos.
Graficamente e reinterpretando a proposta freireana como uma visão sistêmica qualitativa e
histórica da interação entre seres humanos e entre eles e a natureza não humana, podemos
representar a situação da seguinte maneira:
© ©
 
 

onde © representa a cada um dos sujeitos na interação dialogal que faz parte do processo
de conscientização e  representa o referente, ou seja, o objeto a propósito do qual os
primeiros estão construindo o conhecimento. Note-se que dito referente não se limita a
classe dos objetos físicos, e pode ser também, por exemplo, enquanto “objeto” de
conhecimento, o universo e o tipo das relações que unem-desunem os sujeitos em questão.
Esse conhecimento a propósito do referente não será outra coisa senão a série dos
consensos (segunda norma da ética) aos quais os sujeitos dialogantes podem chegar, sobre a
base do exercício da liberdade individual de convicção e postura (primeira norma da ética)
que se enriquece com o desvelamento crítico progressivo do referente. (E quando se diz
“progressivo” não se entenda tal característica como sendo sinônimo de uma acumulação
somatória não-contraditória, mas como processo submetido a crises de renovação,
inclusive dos fundamentos, como as descritas por Thomas Kuhn em “The structure of
scientific revolutions”.)
Assim, Freire situou a construção do conhecimento no interior da “praxis”, que ele
definiu como “a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (Freire
1970, Cap. I, 1983 p. 40). Portanto, como a relação ao referente não é somente teórica, mas
também prático-transformadora, teremos como resultado que, não só as opiniões dos
sujeitos a respeito do referente se transformam, como também, muda o próprio referente.
E a mudança do referente não deixará de influenciar os próprios sujeitos cognoscentes e a
seus sucessores, no interior de uma interação de tipo “sistêmica”, mas histórica. Por isso a
seta dupla que parte tanto dos sujeitos para o referente como do referente para os sujeitos.
Ora, a ação epistemológica dos sujeitos em interação precisa compartilhar os
instrumentos lógicos da sua dinâmica. Por minha parte considero que aquela ação precisa
da lógica formal, da lógica dialética e dos elementos do chamado “ pensamento sistêmico”
que, não sendo redutíveis a uma das duas, não sejam incompatíveis com elas e com o
princípio de que, em matéria de “ sistemas” com participação humana, a historicidade, ou
seja, a maleabilidade alicerçada nas decisões dos seres humanos, tem força axiomática.
Sobre o potencial da lógica formal penso que não há o que se comentar. Eu mesmo tenho
usado o paradigma clássico, ainda que enriquecido com o operador que batizei de
“condicional” (e não de ‘sub-condicional’), para efeitos da dedução das normas da Ética
(Lopez Velasco 2003A).

21
Creio que a relação a se estabelecer entre a lógica clássica e a lógica dialética é parecida
com aquela que se estabelece entre a física newtoniana e a física relativista. A primeira é
adequada a fenômenos macroscópicos cujas velocidades são escassas em relação a
velocidade da luz, mas deixa de sê-lo na presença do mundo atômico e subatômico. A
lógica formal pode considerar-se adequada quando a) tratamos com “enunciados”, b)
desprezamos as conexões sistêmicas globais adotando uma visão setorial, c) e descartamos
o fator “tempo”. Quando, ao contrário, utilizamos da linguagem mais que enunciados,
temos pretensões sistêmicas e/ou queremos incorporar à análise o fator “tempo”, sob forma
de “movimento” ou ainda de “História”, então a lógica formal mostra-se inadequada.
Nestes casos, em especial nos últimos, cabe usar a lógica dialética.
Mas esta própria lógica aparece reduzida nos Manuais a uma coleção desintegrada de
“leis”, entre as quais se destacam: a) a de identidade e oposição (e/ou interpretação) dos
contrários, b) a de transformação da quantidade em qualidade, e, c) a de negação da
negação. Considero que ainda está por ser feito um estudo mais profundo do que
entendemos, em particular para efeitos da problemática da epistemologia da educação
ambiental, por dita lógica.
Em matéria de “princípios do pensamento sistêmico” destacam-se usualmente as duas
noções seguintes: a) o Todo é mais que a soma de suas partes, devido às “propriedades
emergentes”, e, b) a relação “causa-efeito” inclui mecanismos de retroalimentação em
forma de “feedback” (embora, como observará von Bertalanffy, em reflexão que citaremos
mais adiante, tal concepção não ultrapasse ainda a visão unidirecional da causalidade).
Quiçá ambos “princípios” estão incluídos no tratamento dialético que Marx, já em 1857,
dera ao método da Economia Política e à relação sistêmica existente entre produção,
distribuição, intercâmbio e consumo (Marx 1857).Desse texto quero destacar em primeiro
lugar, que a primeira das “leis dialéticas” citadas anteriormente é ali interpretada como
significando “transformação de algo em seu (aparente) contrário”, como acontece com a
“produção” que se revela também “consumo” (porque não pode realizar-se sem consumir
matéria prima e energia produtiva), e com o “consumo” que se revela também “produção” (
pelo fato de que, comendo, o indivíduo realiza um consumo de alimentos que tem como
resultado sua própria produção enquanto indivíduo). Esta abordagem serve para enriquecer
a concepção da posição dos seres autótrofos e heterótrofos num certo sistema, pois obriga a
pensar também os autótrofos como consumidores, levando a uma sistematização melhor do
sistema em questão.
Também aparece no mencionado texto a relação complexa de causalidade alimentada por
feedback quando Marx enfoca a própria produção como estando guiada pelo consumo,
rompendo assim a leitura causal estreita que faz seguir o consumo unilateralmente da
produção; com efeito, observa Marx, a produção se faz em vista do consumo necessário ou
possível, e nessa medida está determinado por ele.
Por fim, considero que esse texto pode servir de fundamento para elucidar a abordagem
dialética que deve integrar a pedagogia da libertação voltada à EA no que diz respeito à
caracterização do método científico. Ali diz Marx que o conhecimento científico consiste
em “passar da representação caótica do Todo” para “uma rica Totalidade de determinações
e de numerosas relações”.
Essa idéia chave encontra-se ao final de uma reflexão a propósito da metodologia da
Crítica da Economia Política que, pese a sua extensão, vale a pena transcrever
integralmente: “Parece que o bom método consiste em começar pelo real e o concreto, que
constituem a condição previa efetiva, e por conseguinte, em economia política, por

22
exemplo, pela população, que é a base e o sujeito de todo ato social de produção. Não
obstante, graças a uma observação mais atenta, tomamos conhecimento de que isto é falso.
A população é uma abstração se omitirmos, por exemplo, as classes das quais ela está
composta. Estas classes são, por sua vez, uma frase vazia se forem desprezados os
elementos sobre os quais se baseiam: por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc.
Estes supõem o intercâmbio, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo,
não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem os preços, etc. Por
conseguinte, se se começasse dessa maneira pela população, ter-se-ia uma representação
caótica do todo e, mediante uma determinação mais precisa, mediante a análise, chegar-se-
ia a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passar-se-ia a abstrações cada
vez mais tênues, até se chegar às determinações mais simples. A partir dai seria preciso
fazer o caminho de volta, até se
chegar finalmente, de novo, à população, mas agora esta já não seria a representação
caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinações e de numerosas relações. O
primeiro caminho é o que foi escolhido historicamente pela Economia Política no seu
nascimento...Este último método é, manifestamente, o método científico correto. O
concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, e, portanto, unidade da
diversidade. Por isso aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado,
não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, por conseguinte,
também o ponto de partida da visão imediata e da representação. No primeiro método a
representação plena volatiliza-se em determinações abstratas; com o segundo, as
determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento” (
“Die Methode der Politischen Ökonomie”, in Marx 1857-1858, 1974, p. 21-22; “El método
de la Economía Política”, in Marx 1857, p.41-42).
Finalmente, salientando que a relação que elas têm com a proposta metodológica
marxiana aqui resumida é assunto ainda a ser estudado, na conformação da visão sistêmica
que faz parte da epistemologia da EA, entendo que merecem especial atenção as categorias
apresentadas por L. von Bertalanffy na sua já clássica “General System Theory”(von
Bertalanffy 1968), como ser, as de “Sistema”, “Totalidade”, “Somatividade”, “Teleologia”,
“Centralização” (asociável à ‘lei’ dialética de transformação da quantidade em qualidade),
“Diferenciação” (cuja aplicação aos comportamentos humanos leva Bertalanffy a propor
que a esquizofrenia seja vista como um processo regressivo de “desintegração da
personalidade, ou seja, de desdiferenciação e descentralização” do indivíduo); além do
“Princípio de mecanização progressiva”, que exprime “a transição da totalidade
indiferenciada para a função superior que se torna possível pela especialização e a ´divisão
do trabalho´”; ao que acrescenta Bertalanffy, em perfeita consonância com a crítica
marxiana da divisão capitalista do trabalho e do trabalho alienado em geral: “ Este princípio
implica também perda de potencialidades nos componentes e de regulabilidade no todo”.
Ora, repito, é importante que se estabeleça o caráter histórico, portanto mutável a partir
da ação dos seres humanos, da interação sistêmica existente na relação recíproca entre os
sujeitos e entre estes e o Mundo externo para evitar um possível equívoco num uso da
abordagem sistêmica que, contrariando a advertência de Bertalanffy, a identifique pura e
simplesmente com uma leitura dos fenômenos fundamentada em modelos de
retroalimentação alimentados por elos de feedback, esquecendo assim que o meio ambiente
é produto da praxis humana e por isso mutável mediante esta, mesmo quando um corte
sincrônico dos sistemas sócio-ecológicos pode dar a impressão, através do seu relativo

23
estado estacionário, aparentemente imune à ação humana cotidiana, de que aquela leitura é
suficiente e satisfatória.
Instrumento interessante a serviço da epistemologia da EA é a modelagem sistêmica
semiquantitativa embasada no programa VISQ.

III. A ética e os princípios da EA


Agora nos propomos aplicar aos princípios da Educação Ambiental (EA) a ética que
estamos desenvolvendo na última década (ver o resumo que antecede, o detalhamento em
Lopez Velasco 2003a, e suas aplicações em Lopez Velasco 2003b). Assim, reformularemos
cada um dos princípios básicos da EA que constam do artigo 4 da lei de Política Nacional
de Educação Ambiental (PNEA, Lei N. 9.795, de 27 de abril de 1999), explicitaremos os
conceitos decisivos que aparecem em cada um deles e demonstraremos a legitimidade ética
daqueles princípios.
1. Os princípios da EA na PNEA
Como vimos, a lei brasileira que estabelece os princípios da Educação Ambiental
(EA) chama-se PNEA (Lei 9.795 de 27/04/1999).
O artigo 4 da PNEA diz: “São princípios básicos da educação ambiental:
I – o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo;
II – a concepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência
entre o meio natural, o sócio-econômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade;
III – o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, na perspectiva da inter, multi e
transdisciplinaridade;
IV – a vinculação entre a ética, a educação, o trabalho e as práticas sociais;
V – a garantia de continuidade e permanência do processo educativo;
VI – a permanente avaliação crítica do processo educativo;
VII – a abordagem articulada das questões ambientais locais, regionais e globais;
VIII – o reconhecimento e o respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural.

2. A reformulação e fundamentação dos princípios da EA na PNEA à luz da ética


É sabido que a grande diferença que existe entre a obrigação de direito a a obrigação
ética é que a primeira é heterônoma (ou seja, lhe é imposta do exterior ao indivíduo) ao par
de que a segunda é autônoma (ou seja é obrigação auto-imposta pelo indivíduo). De tal
forma que a reformulação do princípio jurídico (legal) em termos de QRC ético configura
uma mudança de status fundamental (da heteronomia para a autonomia) mas coloca agora a
obrigação na mesma dinâmica de legitimidade que afeta a todas as que fazem parte de
QRC: sua legitimidade (que só pode ser argumentativa) , permanece somente pelo tempo
em que não é falseado o enunciado que lhe dá sustentação.
Princípio I - Poderíamos reformular como QRC o dito primeiro princípio como segue:
“Devo praticar uma EA com enfoque humanista, holístico, democrático e participativo,
porque uma EA com enfoque humanista, holístico, democrático e participativo permite
desenvolver a liberdade de decisão dos sujeitos envolvidos e a primeira norma da ética
exige que cada ser humano desenvolva sua liberdade de decisão”.
Note-se que este QRC têm a seguinte forma: “Devo x porque (p . q)”; sendo “x” o sintagma
(com exclusão do primeiro verbo em infinitivo) que na obrigação segue ao verbo “dever” ,
“p” a sentença “uma EA com enfoque humanista, holístico, democrático e participativo
permite desenvolver a liberdade de decisão dos sujeitos envolvidos”, e “q” a sentença: “a
primeira norma da ética exige que cada ser humano desenvolva sua liberdade de decisão”; a

24
conjunção de “p” e “q” representa-se, seguindo a simbologia da lógica formal clássica,
pela fórmula sentencial “p . q”.
Conforme a gramática dos QRC a “legitimidade-felicidade” argumentativa da obrigação
“Devo praticar uma EA com enfoque humanista, holístico, democrático e participativo”
depende única e exclusivamente do fato de que a sentença “p . q” seja verdadeira; ora,
segundo a tabela veritativa da conjunção sabemos que isso ocorre somente quando tanto
“p” quanto “q” são verdadeiras.
Para concluir sobre o valor de verdade da conjunção “p. q”, no presente caso, precisamos
passar pelo esclarecimento do dificílimo termo “liberdade”. Propomos para tanto partir de
Kant, que na Crítica da Razão Pura caracterizou a liberdade prática, negativa e
positivamente, como sendo, respectivamente “a independência da vontade a respeito da
imposição dos impulsos da sensibilidade”, e, a “faculdade de dar início por si mesma a uma
série de acontecimentos” (Kant 1788, Dialética Transcendental, Livro II, Cap. II, Seção 9);
em ajuda desta dupla caracterização poderíamos trazer a colaboração de Freud, quando
salientou que o próprio da psicanálise era permitir fazer com que lá onde reinava o Id ou o
Superego passasse a imperar o Eu. Disse Freud “O propósito [da psicanálise] é robustecer o
Eu, fazê-lo mais independente do Superego, ampliar seu campo de percepção e desenvolver
sua organização, de forma que possa se apropriar de novas partes do Id. Onde era Id há de
ser Ego” (“A divisão da personalidade psíquica”, in “Novas contribuições à psicanálise”, 4,
1932, in Freud , vol. II, p. 916). Por outro lado, invocando os estóicos, Spinoza e Marx,
poderíamos lembrar que a liberdade também pode ser entendida como “consciência da
necessidade”, e para tanto seria indispensável um enfoque holístico das relações inter-
pessoais e daquelas existentes entres os seres humanos e a natureza não humana. Da nossa
parte já ressaltamos que, dada a condição social do ser humano (ao que agora podemos
acrescentar a sua condição natural, ao interior de um eco-sistema e de um holo-sistema)
possivelmente nunca uma instancia da pergunta que instaura a ética, “Que devo fazer?” seja
plenamente feliz (por não se realizarem plenamente as condições colocadas por Kant, Marx
e Freud); mas, salientávamos que isso não impede que a cada vez que (nos) fazemos essa
pergunta, reafirmamos com ela (o saibamos o não) a nossa obrigação de lutar pela
realização da nossa liberdade individual de decisão.
A seguir haverá de se mostrar que o enfoque humanista, democrático e participativo
fomenta a expansão da liberdade de decisão dos sujeitos envolvidos no processo de EA
(muito mais, por exemplo, que uma “educação bancária”, segundo a caracteriza Paulo
Freire, 1970, cap. 2); tal demonstração não parece difícil á luz, por exemplo das definições
de Lalande (1977). Ali lê-se que não há definição mais compreensiva do humanismo que a
seguinte: “antropocentrismo refletido, que, partindo do conhecimento do ser humano, tem
por objeto a mise en valeur do ser humano, com exclusão daquilo que o aliena de si mesmo,
seja sujeitando-o a verdades e potências sobrehumanas, seja desfigurando-o por alguma
utilização infra-humana”; [para que não se acredite que há uma contradição entre o
‘antropocentrismo’ recém citado e o ‘holismo’ da EA apregoada pelo primeiro princípio
que ora analisamos, lembramos que em termos rigorosamente éticos temos rechaçado o
‘biocentrismo’ adotado por alguns segmentos do movimento ambientalista nos seguintes
termos: “Da minha parte tenho marcado minha distância a respeito do chamado
‘biocentrismo’ salientando que a ética, constituida-instituida pela pergunta ‘Que devo
fazer?’, é, por esse simples mas decisivo fato lingüístico (pelo menos na atual situação dos
nossos conhecimentos) assunto humano ( já que não nos consta que sequer os mais
evoluídos códigos de comunicação animal tenham no seu bojo espaço para os atos

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lingüísticos assim como os conhecemos nós os humanos, muito menos para a citada
pergunta em especial). Assim é literalmente um nos-sens se colocar um mamífero não-
humano (mesmo que seja um mamífero superior), uma planta ou um mineral, como sujeitos
éticos. Ora, isso não nos isenta, ... da responsabilidade que nos cabe em relação aos entes
não-humanos, responsabilidade que muitas vezes, podemos precisar-assumir mais
cabalmente fazendo o esforço de ‘pôr-nos no seu lugar’”, Lopez Velasco 2003 a, p. 78-79].
Por outro lado, que o enfoque “democrático e participativo” fomenta a liberdade individual
de decisão, o atesta a velha definição (grega) de “democracia” retomada por Lalande:
“estado político no qual a soberania pertence à totalidade dos cidadãos”; o adjetivo
“participativo” quer salientar que não basta ao exercício da democracia o mecanismo
“representativo” (onde alguns são eleitos para encarnar-exercer de fato a liberdade de
decisão de cada um dos que compõem a maioria), pois é necessário que cada um participe
diretamente na tomada de decisões. Mesmo que a desigualdade dos sujeitos envolvidos no
processo de EA na condição de educandos e educadores merece ser analisada para não se
assumir uma superficial, demagógica, equivocada e contraproducente postura
“democrática” no processo de educação-aprendizagem (contra a qual já chamaram a
atenção Saviani, 1983 e Paulo Freire em conferência que lhe ouvimos ministrar em P.
Alegre dois anos antes da sua morte), resulta evidente que a educação dialogada proposta
por Freire, e que fazemos nossa na EA problematizadora, promove (muito mais que a
“educação bancária criticada por ele) a liberdade de decisão dos sujeitos envolvidos no
processo educativo.
Por último, resta a questão do “enfoque holístico”. Com a reserva antes apontada
no atinente a relação entre “condição social” (agora “holística”) e “liberdade”, lembramos
que “holismo” (do grego ‘olos’) é inicialmente a “doutrina segundo a qual o todo é algo
mais que a soma das suas partes” (Lalande, 1977); por sua vez, Capra (1996, p. 33)
considera que “enfoque holístico” é sinônimo de “enfoque sistêmico”; von Bertalanffy
(1968, cap. 2) definiu “sistema” como “complexo de elementos em interação”, e
acrescentou que faz parte da visão sistêmica, além da já citada consideração da relação
entre ‘todo’ e ‘partes’, a explanação da causalidade não linear, embora ainda unidirecional,
por ‘elos de retroalimentação’ (feedback), e a consideração da causalidade não linear e não
unidirecional, que, diferentemente dos ‘elos de retroalimentação’, vê a bidirecionalidade-
reciprocidade da relação dos elementos (as vezes situados em ‘elos’ diferentes); da minha
parte tenho salientado (Lopez Velasco 2003b, p. 134-135) que quiçá a mesma “visão
holística” está na concepção marxiana do “método científico” (da crítica da economia
política) quando caracteriza a construção do conhecimento como sendo “a passagem
de uma visão caótica de um todo, para a uma rica totalidade de determinações e de
numerosas relações” (Marx 1857-1858); também salientamos que no que diz respeito a
situação-consideração do ser humano em qualquer estrutura sistêmica, há de se salientar
que este não é ‘mais um elemento dessa trama’, porque o caráter histórico da condição
humana apóia-se na grande capacidade de ação-reação-transformação do ser humano sobre
seu entorno não humano (para bem e para mal, como o mostra o atual capitalismo
globalizado), que se acompanha da transformação do próprio ser humano (fatos que desde
Aristóteles reúnem-se na categoria de ‘praxis’ retomada por Marx e Paulo Freire); já Kant
(1788, livro I, cap. 3), convicto de que só o ser humano é sujeito moral entre os mortais,
abordou essa especificidade do ser humano no conjunto do universo dos mortais com a
versão do seu imperativo categórico que diz que nunca devemos tratar a humanidade nem
nos outros nem em nós mesmos como um meio, mas sempre como um fim. Acreditamos

26
que o “enfoque holístico” fica sustentado-exigido pela nossa terceira norma fundamental.
Destacando-o do contexto do primeiro princípio a reformulação rigorosa do mesmo ficaria
como segue: “Devo praticar uma EA com enfoque holístico porque a terceira norma da
ética prega um enfoque holístico ao exigir a preservação-regeneração sadia da natureza
humana e não humana”.
Resumindo, os conceitos contidos neste princípio podem ser fundamentados na primeira e
na segunda normas da ética, porquanto nenhuma concepção humanista, democrática e
participativo (da EA ou do que quer que seja) pode se sustentar sem a defesa da liberdade
individual de escolha (primeira norma) e sem contribuição de cada um na busca do
consenso (busca em último caso resolvida pelo voto da maioria, e lembremos que em 2001
redefinimos “democracia” como sendo o regime onde “os mais decidem”, Lopez Velasco
2001); já o “enfoque holístico” fica sustentado-exigido pela nossa terceira norma
fundamental .
Assumidas todas essas explanações, podemos concluir que para o nosso atual QRC:
a) é verdadeira (até prova em contrário) a sentença ‘q’: “a primeira norma da ética exige
que cada ser humano desenvolva sua liberdade de decisão” (lembre-se a primeira norma
acima apresentada), b) é verdadeira (até prova em contrário) a sentença ‘p’: “uma “uma
EA com enfoque humanista, holístico, democrático e participativo permite desenvolver a
liberdade de decisão dos sujeitos envolvidos”, e, c) é verdadeira, por tanto, a conjunção “p .
q “: “Uma EA com enfoque humanista, holístico, democrático e participativo permite
desenvolver a liberdade de decisão dos sujeitos envolvidos e a primeira norma da ética
exige que cada ser humano desenvolva sua liberdade de decisão”. Disso resulta que vê-se
legitimada argumentativamente a obrigação que inicia o QRC em questão, a saber, “Devo
praticar uma EA com enfoque humanista, holístico, democrático e participativo”. Com isto
recebe respaldo-demonstração ética o primeiro princípio básico da EA na PNEA.

Princípio II – Partindo-se da base de que a terceira norma fundamental da ética foi


demonstrada, o mesmo pode ser reformulado como segue: “Devo praticar uma concepção
do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural,
o sócio-econômico e o cultural sob o enfoque da sustentabilidade porque a terceira norma
da ética prega uma concepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a
interdependência entre o meio natural, o sócio-econômico e o cultural sob o enfoque da
sustentabilidade ao exigir a preservação-regeneração sadia da natureza humana e não
humana”. [Nota: sem o aceite anterior da terceira norma poder-se-ia acrescentar aqui “e a
terceira norma da ética ainda não foi falseada”, sentença representada por ‘~q’, e o QRC
teria a forma “Devo x porque ( p . ~q)”. Aqui o obrigativo vai desde o “Devo” inicial até a
primeira aparição do termo “sustentabilidade”. Deixando de explicitar a complexidade que
significa a conjunção (“e”) que aparece entre a segunda aparição do termo “sócio-
econômico” e a segunda aparição do termo “o cultural”, propomos que toda a sentença que
segue o operador “porque” até o final da enunciação seja interpretada como uma única
sentença simples “p”, cuja validade é preciso debater para provar a felicidade do obrigativo
inicial [se obviarmos as duas conjunções que o português impõe à construção da frase;
note-se que fazemos esta simplificação para economizarmos tempo, pois uma análise lógica
mais detalhada que desdobrasse as diversas sentenças e depois discutisse o valor de verdade
da conjunção ou conjunções que as uniria(m), não mudaria o resultado final; esta mesma
observação vale para os outros casos nos quais fazemos a mesma simplificação].
Lembremos que a terceira norma da ética exige uma “concepção do meio ambiente na sua

27
totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o sócio-econômico e o
cultural”; note-se que, pela mesma terceira norma da ética (inspirando-nos do Informe
Brundtland, mas sem fazermos uso do problemático conceito de “desenvolvimento
sustentável” ali presente) concebemos a perspectiva “sustentável” como sendo a capacidade
de satisfazermos as necessidades das gerações presentes sem comprometermos a
capacidade de satisfazermos as necessidades das gerações futuras, mantendo os grandes
equilíbrios ecossistêmicos locais, regionais e planetários. (Lembre-se nossas precisões
acerca do que devemos entender por “necessidade” em Lopez Velasco 2003b, p.86-88).
Com base nessas duas considerações consideramos verdadeira a sentença “p”, e, assim
consideramos como sendo argumentativamente legítimo o obrigativo inicial.
Em resumo podemos concluir que o segundo Princípio fundamenta-se na terceira norma,
porquanto a exigência de preservarmos-regenerarmos uma natureza humana e não humana
sadia alicerça e orienta a visão sistêmica da inter-relação entre os seres humanos e o
restante da natureza, e dá base ética para o conceito de sustentabilidade, que da nossa parte,
definimos como sendo a capacidade de satisfazermos as necessidades (ver Lopez Velasco
2003b, p. 86-88) das gerações presentes sem comprometermos a capacidade das gerações
futuras de satisfazerem suas necessidades, mantendo os grandes equilíbrios ecossistêmicos
locais, regionais e planetários. Lembre-se que dissemos (Lopez Velasco 1999) que “não é
correto reduzirmos o ‘meio ambiente’ ao conjunto das entidades não-humanas” e
“consideramos que o ‘meio ambiente’ envolve de maneira indissolúvel os fatores sociais,
psicológicos e físico-não-humanos situados num certo espaço-tempo”. E antes (Lopez
Velasco 1997), para vencermos a “curvatura da vara” (Saviani 1983) que exclui os
humanos do ‘meio ambiente’, curvando a vara, como convém se quisermos endireitá-la,
para o lado oposto, tínhamos dito: “Meio ambiente é o espaço-tempo histórico ocupado
pelos entes, onde transcorre a vida dos seres humanos. Esse espaço-tempo, à maneira do da
física relativista, deve ser entendido como o produto da presença e das relações existentes
entre os entes. Quando digo ‘entes’ quero dar a entender que não me refiro tão somente a
objetos físicos (como podem sê-lo uma pedra ou um animal), mas também estão abrangidos
os objetos culturais não-físicos (como podem sê-lo uma divindade ou uma teoria mítica ou
científica sobre o mundo ou algum fenômeno em especial que numa dada cultura dele faça
parte)...Sem seres humanos, pois, poderá haver ‘universo’, ou ainda ‘planeta’, mas não há
‘meio ambiente’”. Tudo isto vem reforçar a aspiração à verdade da sentença “p” e a
legitimar o obrigativo que abre o segundo princípio reformulado como QRC e alicerçado na
terceira norma da ética.

Princípio III – Dando por provadas as três normas fundamentais da ética, este princípio
pode ser reformulado como segue: “Devo praticar uma EA aberta ao pluralismo de idéias e
concepções pedagógicas, na perspectiva da inter, multi e transdisciplinaridade, porque a
primeira e a segunda normas da ética fomentam o pluralismo de idéias e concepções
pedagógicas combinando a defesa da liberdade individual com o diálogo respeitoso
orientado ao consenso, e a terceira norma da ética ampara na sua visão ecossistêmica
preservacionista-regeneracionista a abordagem inter, multi e transdisciplinar”.
Aqui o obrigativo vai do “Devo” inicial até o termo “transdisciplinaridade”; logo após vem
o operador “porque”; se obviarmos a presença de uma conjunção, vem a seguir uma
primeira sentença “p” que abrange desde “a primeira” até “consenso”; segue a conjunção
“e”, e logo depois vem a sentença “q” que inicia em “a terceira” e termina em
“transdisciplinar”; assim pois, depois do operador “porque” temos uma sentença complexa

28
da forma “p . q”.
Para debater a verdade da sentença “p” adianto um esclarecimento prestado no Princípio
VIII, quando frisamos que a ética não nos exige respeitar qualquer ‘pluralismo’, admitindo,
por exemplo, em nome do tal ‘pluralismo’, posturas e ações que se contrapõem às três
normas fundamentais da ética; assim devemos entender o conteúdo da sentença “p” como
envolvendo idéias e concepções pedagógicas não incompatíveis com essas três normas
[excluindo-se, por exemplo, de tal respeito plural, a “concepção bancária da educação”,
criticada por Paulo Freire (Freire 1970, Cap. 2, na medida em que a mesma viola a
primeira, a segunda, e (se considerarmos a contribuição de Freud sobre a saúde mental
adulta, onde deve se verificar a primazia do Ego em relação ao Superego), também a
terceira norma da ética]. Nessas condições julgamos verdadeira até aqui a sentença “p”. Por
outro lado, tendo em conta a diversidade de definições dadas para os termos
“multidisciplinariedade”, “interdisciplinariedade”, e “transdisciplinaridade”(Lopez
Velasco 1999) , tenho preferido tentar achar um terreno de convergência falando de uma
EA “mais que disciplinar”, para deixar claro que na educação formal a EA não pode ser
objeto de uma só disciplina (embora disse, Lopez Velasco 1999) que no contexto brasileiro
não se devia vetar a criação de uma disciplina de EA. [ Lembremos como caracterizava
estes termos a "Estratégia Nacional de EA" em Cuba (ENEA, 1997), e como me
posicionava eu (Lopez Velasco 1999), esclarecendo que um e outro posicionamento “não
pretendiam resolver definitivamente a questão, que fica ainda em aberto, na busca do uso
dos termos que se achar mais conveniente): a)A multidisciplinariedade caracteriza uma
situação na qual, embora não exista coordenação entre diversas disciplinas, cada uma delas
participa desde a perspectiva do seu próprio quadro teórico-metodológico ao estudo e
tratamento de um dado fenômeno. (Se entendermos por disciplina, conforme o Aurélio "
qualquer ramo do conhecimento científico", ou, ainda " conjunto de conhecimentos em
cada cadeira dum estabelecimento de ensino", podemos dizer que os cursos de Pedagogia
que conhecemos são multidisciplinares; com efeito, definido o objetivo que é formar
educadores, ou simplesmente professores, supõe-se que é necessário para tal que o aluno
conheça o ser humano, entre outros, nos assuntos relativos a sua psicologia e
desenvolvimento, às suas formas de aprender, e às circunstâncias positivas e problemáticas
da sua existência social; e assim o curso oferece as disciplinas de Filosofia, Psicologia,
Didática e Sociologia, que mesmo sem interagirem na programação dos seus conteúdos,
nem na suas referências teórico-metodológicas, dão ao aluno de forma multidisciplinar o
desejado conhecimento sobre algumas dimensões do que é o ser humano); b) a
interdisciplinariedade significa que as disciplinas em questão, apesar de partirem cada uma
do seu quadro referencial teórico-metodológico, estão em situação de mútua coordenação e
cooperação e estão engajadas num processo de construção de referenciais conceituais e
metodológicos consensuais.( No Programa de Pós-Graduação em EA da FURG, ao tempo
que as diversas disciplinas constroem e reconstroem dialogalmente a concepção de
educação ambiental que se pretende seguir, elas tencionam fazer convergir suas abordagens
rumo e desde uma visão teórico-metodológica que definimos como "pensamento sistêmico"
ou seja, aquele no qual o conjunto dos elementos abordados é focalizado nas suas relações
recíprocas, incluindo as de retro-alimentação ...; é bom frisar que ainda temos muito chão
pela frente nessa caminhada de convergência); c) já a transdiciplinariedade caracteriza a
situação na qual estes referenciais consensuais têm sido construídos e propiciam a re-
acomodação, com relativa desaparição, de cada "disciplina" envolvida no estudo e

29
tratamento do fenômeno considerado. [Na nossa experiência ainda não temos vivências que
atestem da plena realização da transdisciplinariedade, mas é certo que o PPG em EA da
FURG não pode fugir desse desafio]”. E finalizava eu: “A esta caracterização acrescento
que penso que a "transdisciplinariedade" em EA pode ser entendida também, num sentido
menos ambicioso que o recém esboçado, como o fato da educação ambiental ter que
permear-ligar, como grande "tema transversal", todos os espaços educacionais (na educação
formal, todos os conteúdos); para visualizar com clareza o que quero dizer com isto serve a
analogia da (nefasta) estrada "trans-amazônica", assim chamada pelo fato de atravessar o
espaço amazônico estabelecendo contato entre suas partes.; de maneira análoga a EA está
chamada a atravessar-ligar todas as atividades educacionais (e na educação formal todas as
disciplinas e conteúdos)”.
Resumindo, qualquer pluralismo parte da base de se considerar, de forma combinada, a
liberdade individual-grupal amparada pela primeira norma, e o diálogo (que sempre
orienta-se na busca do consenso), amparado pela segunda norma; por sua vez a “mais que
disciplinariedade” da EA recebe seu aval ético através da terceira norma, que é a que
fundamenta a visão ecossistêmica da realidade.
Feitas todas estas ponderações creio que podemos dar por ora como verdadeira a sentença
“p”. A sentença “q” diz, por sua parte “a terceira norma da ética ampara na sua visão
ecossistêmica preservacionista-regeneracionista a abordagem inter, multi e
transdisciplinar”. Ora, consideramos que essa sentença deve ser tida como verdadeira, à luz
do que foi explicitado sobre o enfoque holístico-sistêmico alicerçado pela terceira norma,
ao abordarmos o primeiro Princípio da EA na PNEA. Assim seria verdadeira a sentença “p
. q”, e, em conclusão, seria legítimo argumentativamente o obrigativo que abre o terceiro
princípio reformulado como QRC.

Princípio IV- Dando por provadas as três normas fundamentais da ética, pode ser
reformulado como segue: “Devo praticar uma EA que vincule ética, a educação, o trabalho
e as práticas sociais porque as três normas fundamentais da ética exigem comportamentos
conformes ao exercício da liberdade individual orientada ao consenso e respeitosos da
preservação-regeneração sadia da natureza humana e não humana nas esferas vinculadas da
educação, do trabalho e das práticas sociais”.
Quanto a forma, o obrigativo vai do “Devo inicial” até a primeira aparição do termo
“práticas sociais”; logo vem o operador “porque” e a seguir entendemos que vem uma
sentença simples, “p”, (se obviarmos as duas conjunções que o português impõe à
construção da frase). Quanto ao conteúdo do princípio permitimo-nos direcionar a atenção
do leitor para as diversas esferas da aplicação das normas éticas (em Lopez Velasco
2003b), salientando que com as nossas três normas éticas fundamentais damos conteúdo
concreto à vaga “ética” citada neste princípio.
Lembremos que definimos a educação como sendo sinônimo de “conscientização” nos
termos de Paulo Freire, a saber, como união indissociável do desvelamento crítico da
realidade e da ação transformadora sobre a mesma, ao que acrescentamos rumo ao
ecomunitarismo (ver Lopez Velasco 2003b; Freire diria “rumo a uma sociedade sem
opressores nem oprimidos”, sem abordar a problemática ecológica, coberta na nossa
terceira norma). Quanto ao “trabalho” retemos a definição de Marx (1864-1894, Livro I,
secção 3, Cap. V) que o caracteriza como "...um processo entre o homem e a natureza no
qual o homem realiza, regula e controla mediante sua própria ação seu intercâmbio de

30
matérias [stoffwechsel] com a natureza... para se apropriar sob uma forma útil para sua
própria vida a matéria da natureza [Naturstoff]." Assim o trabalho é abordado na sua
condição genérica, independentemente das alienações que sobre ele pesam nas condições
capitalistas [que Marx criticou com agudeza (Marx 1844), e que eu atualizei , Lopez
Velasco 2003b, Parte I)]
Resumindo, este princípio sustenta-se na dedução que temos feito das três normas éticas
fundamentais; sem ela e elas, a tal ética que deve embasar “a educação, o trabalho e as
práticas sociais” fica vaga e indefinida. Como temos mostrado (Lopez Velasco 2003b) essa
ética aplica-se nos mais diversos aspectos da vida humana, abarcando-os todos (em especial
temos nos dedicado a mostrar sua aplicação na economia ecológica, na pedagogia, na
erótica, na individuologia e na política).
Com estes esclarecimentos julgamos verdadeira a sentença “p” e, então, legitimado
argumentativamente o obrigativo que abre o princípio reformulado como QRC.

Princípio V- Dando por demonstradas as três normas fundamentais da ética, este princípio
pode ser reformulado como segue: “Devo praticar uma EA que dê garantias de
continuidade e permanência ao processo educativo porque a realização progressiva (embora
sempre incompleta) das exigências das três normas fundamentais da ética
[liberdade individual, busca do consenso e preservação-regeneração sadia da natureza]
somente é viável no decurso de um processo educativo contínuo e permanente [ de fato,
infinito]” .
Quanto à forma, o obrigativo vai do “Devo” inicial até a primeira aparição da expressão
“processo educativo”; logo vem o operador “porque” e a seguir uma sentença simples, “p”.
Note-se que os parênteses incluídos na enunciação são esclarecimentos que não necessitam
fazer parte da forma do QRC.
Quanto ao conteúdo, o termo “continuidade” parece se referir ao fato de que o processo
educativo (que, repetimos, o concebemos como um processo de “conscientização” nunca
acabado, nem individual, nem coletiva-socialmente) não sofra soluções de continuidade no
seu decurso; ou seja, que em todas as atividades educativas (formais ou não formais) a
educação ambiental deve estar presente (sem que haja ‘buracos negros’ sem ela, em
determinados momentos do processo educativo). Já o termo “permanente” o interpretamos
como querendo dizer que a educação ambiental não pode ter um prazo no tempo, mas deve
acompanhar a cada um até sua morte. Também temos insistido (em especial em Lopez
Velasco 2003b) que compreendemos o ecomunitarismo como o horizonte utópico
(irrealizável na sua plenitude, mas indispensável guia para a ação) de uma ordem sócio-
ambiental na qual realizar-se-iam no dia-a-dia de forma plena e em permanência, as três
normas da ética. Assim fica claro por que e como a realização da ética e a educação
entendida como “conscientização” precisam de um processo educativo que tenha
continuidade e permanência.
Resumindo, a garantia de continuidade e permanência no processo educativo aqui pedida
fundamenta-se na educação (entendida como EA) que temos caracterizado com Paulo
Freire como “problematizadora”, ou seja, centrada na “conscientização”, e que se alicerça
nas três normas éticas fundamentais (ver Lopez Velasco 2003b, Parte III).
E dessa forma consideramos que tem sido provada por ora a verdade de “p”, e,
conseqüentemente, a legitimidade argumentativa do obrigativo que da início ao princípio.

Princípio VI – Dando por demonstradas as duas primeiras normas fundamentais da ética, o

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princípio pode receber a seguinte reformulação: “Devo praticar uma EA que faça uma
permanente avaliação crítica do processo educativo porque a realização da liberdade
individual de decisão orientada à busca do consenso (defendidos respectivamente pela
primeira e segunda normas da ética) ampara-exige uma permanente avaliação crítico-
autocrítica do processo educativo (e de toda prática social em geral)”.
Quanto á forma, mais uma vez chamamos a atenção para a simples função esclarecedora
dos parênteses que aparecem na enunciação. O obrigativo vai do “Devo” inicial até a
primeira aparição da expressão “processo educativo”; segue o operador “porque”, e a
seguir vem uma sentença simples “p”.
Quanto ao conteúdo, já esclarecemos nosso entendimento do termo “processo educativo”;
por sua vez, o termo “avaliação crítica” é interpretado à luz da caracterização de Luckezi
(2005): “Como ato diagnóstico, o ato de avaliar implica em três passos: 1) constatar; 2)
qualificar a realidade e 3) proceder a uma intervenção. Constatar uma realidade significa,
mediante seus dados, coletados por meio de recursos metodológicos adequados, descrever o
seu desempenho, o que significa configurar a realidade como ela se apresenta. Qualificar a
realidade significa atribuir-lhe uma qualidade, a partir de um processo de comparação entre
o quadro do desempenho configurado e o critério de qualificação estabelecido. Por último,
proceder uma intervenção significa a decisão que se toma sobre a situação qualificada,
pretendendo a sua melhoria em termos de resultados. O que interessa para a prática da
avaliação é conduzir ao melhor resultado possível, daí a importância de investigar a
situação, com a intenção de tomar e executar a decisão mais adequada para a mesma. A
prática da avaliação está voltada do presente para o futuro (ela é construtiva, interessa o que
o estudante já aprendeu assim como aquilo que ele pode aprender ainda), é diagnóstica
(investiga a realidade, para tomar decisões e processar intervenções), é inclusiva (traz para
dentro e não exclui), é democrática (o desejo do avaliador é que todos aprendam e se
desenvolvam) e, por último, é dialógica (atuar com avaliação exige diálogo, negociação)”.
A esta definição uma aluna nossa do curso de Doutorado em EA da FURG (Dione
Kitzmann, trabalho para a disciplina “Princípios da EA”, primeiro semestre de 2006),
acrescentou as seguintes considerações: “A definição conceitual aqui apresentada está
restrita ao termo principal (avaliação), pois os termos permanente e crítica são adjetivos
que qualificam este princípio. O adjetivo permanente indica a necessidade de uma
avaliação contínua, ao longo do processo educativo, ao contrário da usual avaliação ao final
do processo. Entendo que a expressão “avaliação crítica” é redundante, à medida que
avaliar já pressupõe a análise crítica. Além disso, não encontrei referências que indiquem
que esta expressão seja uma categoria funcional como o são ‘avaliação diagnóstica’,
‘avaliação formativa’ e ‘avaliação somativa’ (categorias definidas por Benjamin Bloom et
al. Taxonomy of Educational objectives. Handbook I, Nova Iorque, 1956), explicitadas
abaixo. De acordo com X. D. Benfatti (Avaliação diagnóstica: como e quando realizá-la no
programa de Alfabetização Solidária. Congresso Internacional de Alfabetização. Tema 2:
Pesquisas e Práticas Educativas. Universidade de Fortaleza,s/d). As funções da avaliação
categorizadas por Bloom (1956) - diagnóstica, formativa e somativa - permanecem ainda
atuais, pois propiciam que a avaliação esteja presente em todas as etapas do processo de
ensino e aprendizagem, porém é necessário compreendê-las intrinsecamente relacionadas e
funcionalmente complementares:
- Diagnóstica - conhecimento da realidade através da observação, diálogo e do
desenvolvimento de estratégias que possibilitem a caracterização dos espaços, dos

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sujeitos, das condições a priori ;
- Formativa - ações avaliativas que propiciam a formação contínua e sistemática durante o
processo;
- Somativa - análise conclusiva, donde são somados todos os elementos constitutivos da
avaliação. A análise a posteriori pode ser emitida através de parecer conclusivo ou de
relatório”.
Resumindo, não pode haver a “permanente avaliação crítica do processo educativo” aqui
solicitada sem a base da liberdade individual de opinião exercida em processos de diálogos
crítico-autocríticos orientados ao consenso (zelosos pela preservação-regeneração da
natureza, conforme exige a terceira norma da ética), amparados ambos, respectivamente
(liberdade e diálogos orientados ao consenso), pela primeira e pela segunda norma da ética.
Com base nestas considerações consideramos verdadeira (até prova em contrário) a
sentença “p”, e, conseqüentemente, legitimado o obrigativo que abre o princípio
reformulado como QRC.

Princípio VII – A partir do aceite das duas primeiras normas fundamentais da ética, pode
passar a ser reformulado como segue: “Devo praticar uma EA que articule as questões
ambientais locais, regionais e globais, porque a terceira norma da ética, na sua perspectiva
ecossistêmica preservacionista-regeneracionista, exige uma abordagem que articule as
questões ambientais locais, regionais e globais”.
Quanto à forma, o obrigativo vai do “Devo” inicial até a primeira aparição do termo
“globais”; logo vem o operador “porque”, e a seguir uma sentença simples, “p”.
Quanto ao conteúdo já chamamos a atenção (Lopez Velasco 2003b) para a insuficiência
atual do velho slogan ambientalista “pensar globalmente e agir localmente”, sugerindo que
o mesmo seja completado por estes outros dois: “pensar localmente e agir globalmente”, e
“pensar globalmente e agir globalmente”, porque há problemas de maior incidência local
(exemplo, maior risco de câncer de pele nas áreas próximas aos pólos, por causa do buraco
na camada de ozônio) que somente são solúveis mediante um envolvimento de toda a
humanidade (já que os produtos que destroem aquela camada são rejeitos de toda a
humanidade, embora com muito maior produção dos mesmos por parte da minoria rica do
planeta), e, quanto ao último slogan, porque há problemas globais que somente são
solúveis com ação global (como é o caso da detenção-reversão do ‘efeito estufa’, se
quisermos evitar as catástrofes derivadas dele, por exemplo com o derretimento das calotas
polares, que afetarão o planeta inteiro).
Resumindo, a abordagem articulada das questões ambientais locais, regionais e globais está
sustentada na terceira norma (com seu enfoque ecossistêmico preservacionista-
regeneracionista).
Tendo em conta o que já foi dito acerca do conteúdo e implicações da terceira norma da
ética, damos por verdadeira (até prova em contrário) a sentença “p” e, em conseqüência,
por legitimado argumentativamente o obrigativo que inicia o princípio reformulado.

Princípio VIII – Recebe a seguinte reformulação: “ Devo praticar uma EA que respeite a
pluralidade e a diversidade individual e cultural porque a liberdade individual orientada ao
diálogo que busca do consenso (amparados pela primeira e a segunda normas da ética) é
respeitosa da pluralidade e da diversidade individual e cultural, nos limites do exigido pelas
três normas fundamentais da ética”.

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Já entrando no conteúdo, o sublinhado indica que assim não caímos na vaga “defesa do
direito à diferença” feita pelos filósofos pós-modernos, que acaba por ficar presa da
armadilha que significaria a prática da tolerância para com os intolerantes; no nosso caso, o
trecho sublinhado na formulação deste oitavo princípio, deixa claro que a ética não nos
obriga a sermos tolerantes com o intolerante da liberdade alheia, com o machista, o racista,
o ditador o opressor ou o explorador (todas figuras, que, qualquer que seja sua religião ou
posição política violam a primeira e a segunda norma da ética) ou com o biocida
devastador-poluidor (que viola a terceira norma da ética, tanto no que diz respeito à
natureza humana quanto à natureza não humana); note-se que o capitalista é ao mesmo
tempo, pelo menos, um ditador, um opressor, um explorador e um biocida.
Quanto à forma, o obrigativo vai do “Devo” inicial até a primeira aparição do termo
“cultural”; segue o operador porque; logo a seguir vem uma sentença simples “p” (se
obviarmos as conjunções que o português impõe).
Resumindo, como já foi dito a respeito do segundo princípio, toda postura-ação que zela
pela pluralidade individual e cultural, parte do respeito á liberdade individual-grupal,
exercida no diálogo, conforme estabelecido, respectivamente, pela primeira e pela segunda
norma ética.
À luz da explanação dos conteúdos da primeira e segunda normas da ética (ver acima e
Lopez Velasco 2003a), damos por verdadeira essa sentença “p” (até prova em contrário), e,
em conseqüência, damos por legitimado argumentativamente o obrigativo que da início ao
princípio reformulado como QRC.
Para terminar, simplesmente resta lembrar que tudo o que aqui foi dito fica sujeito a
eventuais falseações e, por via de conseqüência, a correções de fundo ou de detalhe.

IV. EPISTEMOLOGIA DA EA E EDUCAÇÃO FORMAL


Sentadas as bases da pedagogia da EA conforme a educação problematizadora proposta
por Paulo Freire (cuja preocupação com as questões ecológicas/ambientais foi
brilhantemente explanada por Balduino Adreola, 2003), considero que, no que diz respeito
à educação formal, várias precisões merecem ser feitas.
A primeira é que, mais especialmente no primeiro e segundo graus, seria ingênuo
considerar que professor e alunos estão em condições de “igualdade sem mais”.
O usual é que o professor, por sê-lo, tenha mais conhecimentos (científicos e “de vida”) que
o aluno. A autoridade que lhe confere a educação formal se baseia nessa sua usual
superioridade em matéria de conhecimentos científicos e ela espera que através da ação
docente possa passar as alunos o patrimônio acumulado pela cultura da qual é detentor o
professor.
Por outro lado o professor que quer assumir uma postura fundada na pedagogia da
libertação rara vez encontra alunos que compartilhem sua opção ecomunitarista; se a
maioria o fizesse estaríamos mais perto do ecomunitarismo do que realmente estamos.
Estas duas circunstâncias colocam uma questão que Rodolfo Kusch interpretou como um
sério problema existente na perspectiva de Freire e que podemos resumir assim: com que
direito o “conscientizador” se propõe exercer sua tarefa?
Kusch argumentava contra Freire que o povo supostamente submergido no modo de vida
da consciência ingênua e fatalista, de fato tem outra consciência, articulada em torno à
categoria de Estar, diferente da do modo ocidental que privilegia o Ser.
Assim, a suposta Conscientização viria a significar uma violação do solo autóctone do
pensar-agir propriamente latino-americano resumido na postura seminal e mandálica

34
indígena, sendo que a verdadeira “libertação” haveria de entendr-se como sendo uma
conversão a tal modo de viver (cfr., entre outros, Kusch 1975 e 1978).
Não é o caso de repetir aqui o que me afasta de Kusch, como ser o fato de que sendo tão
latino-americano quanto ele, mas não sendo índio, não vejo como eu poderia renunciar à
lógica que articula minha linguagem-pensamento para “me converter” ao modo seminal-
mandálico de viver, no qual a própria categoria de “libertação” parece não existir nos
parâmetros com que a defino (cfr. nossa definição no início deste trabalho).
O que agora me interessa é simplesmente fazer notar que à mencionada pergunta o
professor pode responder: “com o direito que me conferem as três normas da ética”. E essas
palavras são legítimas desde o momento em que poderá re-elucidar com seus alunos a
análise da gramática profunda da pergunta “O que devo/devemos fazer?” cuja execução
feliz todos os presentes desejam, para concluir no re-descobrimento das três normas éticas
que ali fincam suas raízes.
Agora bem, não é menos claro que à luz dessas mesmas normas, em especial das duas
primeiras, o professor nunca poderá tentar impor a postura ecomunitarista que professa;
tentar fazê-lo seria violar as normas éticas nas quais diz basear sua praxis.
Só poderá desafiar os alunos a conhecer e discutir os fundamentos e conseqüências de tal
postura, e como máximo, a assumi-la ex-hipótese para o desenvolvimento dos trabalhos
escolares ou acadêmicos.
A palavra final no relativo à vivência a adotar pelo aluno, como se deduz da primeira
norma da ética haverá de deixa-la o professor inteiramente em mãos do interessado.
Mas, enquanto guardião de parte do saber acumulado pela cultura o professor nunca
poderá confundir tal liberdade concedida ao aluno com o “laissez faire” em matéria de
conhecimentos e ignorância. Com ou sem postura ecomunitarista o aluno só poderá
contribuir para a cultura da qual faz parte (e inclusive a educação mais “reprodutivista”
espera que pelo menos parte dos atuais educandos possam no futuro enriquecer a cultura
com essa quota de inventividade) se for capaz de dominar os fundamentos do acervo que
constitui sua tradição, em pelo menos uma área (Física, Artes, Medicina, Pedagogia, etc).
No que diz respeito ao critério para discutir opiniões dos e com os alunos creio que o
educador pode guiar-se pelas três normas éticas (embutidas na ‘gramática da linguagem-
modo de vida’ compartilhada pelo educador e os educandos) e pelas regras da lógica
(formal e dialética) e do pensamento sistêmico, elucidadas com os alunos.

V. PERFIL E FINALIDADE DA EA
Nesta abordagem da epistemologia da EA, a mesma reúne a crítica da presente crise sócio-
ambiental, ameaça tangível à própria sobrevivência da humanidade, e a ação
transformadora rumo ao ecomunitarismo (ordem sócio-ambiental utópica, guia para a ação,
na qual vigorariam plenamente as três normas da ética).

VI. ERÓTICA
Não me proponho a discutir a audaz teoria freudiana da dicotomia dos dois grandes
instintos Eros e Tanathos supostamente operantes em todo ser vivo e mesmo na Natureza
inanimada na sua totalidade. Ao me referir à erótica me limito à pulsão libidinal existente
nos seres humanos, e mais especificamente à porção daquela que vincula a indivíduos
humanos entre si e a cada um deles consigo mesmo. Não obstante nem sequer esta questão
terá inteiramente cabida aqui porque a relação entre pais e filhos será objeto de tratamento

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no capítulo dedicado à Pedagogia e porque me referirei quase que exclusivamente à
sexualidade adulta.

AUTO-EROTISMO

Aceitamos com Freud que a maturação sexual (influenciada por fatores internos que
ainda hoje parecem de difícil discernimento e pela pressão do contexto social) empurra
cada ser humano a superar o auto-erotismo em benefício de uma opção objetal externa.
Apesar de que o próprio Freud reconhece que, mesmo quando é vencida a vivência
narcisista, o “Eu” continua sendo também objeto libidinal do próprio indivíduo.
Mesmo que se admita com Freud que a masturbação possa ser invocada como
causa de neuroses ulteriores, não deixa de ser um fato que outra pode ser a avaliação
contextualizada do auto-erotismo em condições de normalidade sexual (por mais que o
próprio termo de “normalidade” seja todo o relativo que é em função do contexto cultural
como o próprio Freud o advertiu em seu momento). O que quero dizer é que à luz da
primeira norma da ética, para o auto-erotismo, desde que vivido em situação provisória, de
alternância equilibrada com o hetero-erotismo (sem se descartar por ora a variante
homossexual deste), pode reivindicar-se o lugar de um complemento episódico não-nocivo
da sexualidade; em particular quando o indivíduo passa por experiências questionadoras de
seu “Eu” ou quando não aceita nenhum “parceiro” com quem julgue digno de partilhar sua
sexualidade ou não encontra correspondência num possível “partner”. No primeiro caso o
auto-erotismo vem a reafirmar o “Eu” na sua valia erótica questionada. No segundo espera-
se que o tempo resolva o impasse, ou pelo achado de um “parceiro” apropriado ou pela
conquista da correspondência do “partner” desejado. Disse que a primeira norma ética, (cfr.
Introdução), pode ser invocada em apoio desta reivindicação do auto-erotismo. Com efeito,
ela ampara a liberdade de decisão do indivíduo, neste caso, sobre o uso de seu próprio
corpo enquanto objeto sexual. E na medida em que não há outro ser humano que seja
invadido na sua liberdade de decisão a propósito de seu próprio corpo, esta liberdade não
merece nenhum reparo à luz da segunda norma da ética. Não obstante é esta última a que
serve de parâmetro para fixar o caráter transitório da legitimidade do auto-erotismo.
Tampouco me parece aceitável, como já não o foi para algumas analistas
contemporâneas de Freud segundo testemunho dele próprio, é a diferença de qualidade que
o pai da psicanálise pretende introduzir entre a sexualidade feminina e a masculina. Ao
contrário da suposta inferiorização da mulher derivada do tamanho menor de seu clitóris
quando comparado com o pênis, e contrariamente à suposta dificuldade suplementar, em
relação à evolução sexual masculina, que significaria para a mulher uma também suposta
transição entre uma fase clitoridiana e uma vaginal de sua sexualidade genital, penso que o
que os fatos permitem afirmar se limita, por um lado, a constatar a diversidade entre ambos
aparelhos genitais e suas respectivas ofertas de prazer, e, por outro : o maior leque de
prazer que se oferece à mulher, dada a duplicidade dos órgãos a sua disposição. Que isto é
assim o demostra a meu entender o fato de que a suposta transição entre a fase clitoridiana
e a vaginal não existe em muitíssimas mulheres. A mulher pode aceder ao prazer usando
alternada ou conjuntamente ambas vias e este dado pode ter sido ocultado de Freud pelo
puritanismo sexual de sua época. Creio indiscutível o fato de que a falta de acesso ao
orgasmo ou ainda a frigidez de muitas mulheres se deve a que seu “parceiro” não conhece
(pelos tabus que ainda pesam na educação sobre as questões da sexualidade) o papel parcial

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ou quase total (dependendo da mulher) da massagem clitoriana como via de acesso à
satisfação sexual feminina.
Por minha parte prefiro ficar, à luz dos fatos, com a defesa e a reivindicação do
mencionado equilíbrio, o qual, de forma semelhante ao que acontecia com o “justo meio”
aristotélico, cada indivíduo está destinado a definir para si próprio na prática do auto-
erotismo episódico, se vier a fazer uso de este último.

HETERO-EROTISMO

As relações heteroeróticas estão inequivocamente orientadas a partir da segunda


norma da ética. Com base nela tudo o que seja consensualmente pactuado com o Outro tem
legitimidade no heteroerotismo. Claro que a premissa de tal conclusão é que a primeira
norma tenha sido respeitada, ou seja que cada um dos “parceiros” tenha tido assegurada sua
liberdade de decisão no momento de acertar o vínculo heteroerótico ; isto exclui pois
qualquer mecanismo de coação ou de limitação total ou mesmo parcial de tal liberdade, em
especial através do uso de violência física, ameaças, ou ainda do emprego de qualquer
substância (leia-se álcool ou drogas) que tenha efeitos contrários ao estipulado pela
primeira norma, inclusive quando o consumo da mesma tenha sido “voluntário” por parte
do indivíduo envolvido.
A segunda norma estabelece pois uma limitação muito clara na objetivação sexual
do Outro. Não legitima ela o fazer do outro um objeto sexual, na medida em que eu mesmo
me disponho a devir objeto sexual para ele. De fato, e contra a mercantilização do corpo
como “objeto sexual” (num sentido de “objeto” que não é o sentido técnico no qual Freud
utilizou este termo e o vimos usando aqui), o que ela estabelece implica uma mútua
subjetivização sexual, na medida em que o vínculo heteroerótico se apoia numa decisão
livre e consensual que pode a cada instante ser questionada, modificada, ou ainda revogada
argumentativamente. Para esta última eventualidade basta a palavra de um dos implicados
pois sua retirada do jogo é suficiente para decretar a impossibilidade da invocação-
exercício feliz da segunda norma entanto é necessária a disposição de pelo menos dois
sujeitos para que possa haver decisão consensual sobre o que fazer.
É obvio que sempre poderemos questionar o grau de liberdade real de qualquer
“parceiro” no momento de estabelecer consensualmente o vínculo heteroerótico. Como o
deixei entrever no primeiro volume desta obra tudo indica que nessa matéria deveremos
contentarmo-nos até o “fim da Historia” com uma aproximação indefinida a uma instância
que sempre será determinada em forma negativa como um postulado que indica um “além
de qualquer imposição ideológica, de qualquer pressão, de qualquer temor, de qualquer
repressão alienada que afetar o indivíduo”.
No caso de que tratamos agora a ausência de álcool e drogas e o espaço dado para
uma decisão serena e sem pressa de cada um dos interessados são fatores que sem dúvida
contribuem para a mencionada aproximação à decisão livre consensualmente sacramentada.
Uma vez consumado o vínculo e por todo o tempo no qual o mesmo não é questionado
pelos interessados ou simplesmente anulado pela retirada de um deles, considero que as
duas primeiras normas da ética não permitem estabelecer limite algum às vivências
compartilhadas com base numa decisão livre e consensual. Quero dizer com isto que em
matéria de mútuo desfrute sexual nada pode ser eticamente questionado desde que se
enquadre no uso equilibrado de todas as fontes de prazer que envolvam exclusivamente a

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ambos interessados. E esse mesmo “uso equilibrado” haverá de depender do que ambos
entendam por tal.
É obvio que nesta determinação tem ficado muito para trás a monótona distribuição
de papéis entre a “atividade” do homem e a “passividade” da mulher, dicotomia a qual
aderiu, para depois tomar distância dela, (embora não sem recaídas), o próprio Freud.
Obviamente que num caso dado se poderá objetar que a conduta de um ou de ambos dos
interessados de fato não é livre, apesar da “ilusão de liberdade” que um ou ambos tenham,
porque está determinada por mecanismos neuróticos que a psicanálise pode detectar e
ajudar a superar. Mas nesse caso o decisivo é que um ou ambos dos “parceiros” julguem
pertinente submeter-se à terapia psicanalítica e, quem sabe em virtude dela, questionar a
permanência do vínculo heteroerótico assim como este funciona num certo momento de
sua(s) vida(s). Até a tomada dessa decisão e o eventual questionamiento citado nada poderá
invocar-se em nome da ética para por em tela de juízo o que ocorre nesse relacionamento
heteroerótico.

Procriação

Em consonância com o que foi dito parece a primeira vista que a decisão sobre a
circunstância de que esse relacionamento desemboque ou não, quando se trata da união de
uma mulher e um homem, na procriação de um filho, é assunto exclusivo do consenso ao
qual cheguem os “parceiros” ( bastando a oposição de um deles para dar legitimidade à
negativa de procriar; oposição esta que pode ser invocada pelo outro como motivo decisivo
para anular o vínculo existente).
No relativo a todos os mecanismos anticoncepcionais usados por ambos (quando a
decisão de não procriar é livre e consensualmente estabelecida) ou pelo “parceiro” que se
opõe à procriação, a ética não tem nada a opor. Não obstante, creio que com base na
segunda norma da ética se poderia argumentar contra o aborto, mesmo quando este
resultasse de uma decisão consensual dos “parceiros”, fazendo notar que a busca de uma
resposta consensual para a pergunta “O que devo/devemos fazer?” se abre a qualquer ser
racional capaz de usar QRC, e que o ato de abortar teme por conseqüência, precisamente,
eliminar um ser que, pelo menos num estágio futuro de sua existência, disporia dessa
capacidade. Dessa forma o aborto violaria a segunda norma da ética ao restringir,
contrariando o que ela estipula, o número de seres aos quais fica aberta a busca consensual
da resposta a dar-se para a pergunta “ O que devo/devemos fazer?”. Em outras palavras,
essa norma ampara o feto no seu direito futuro de discutir sobre sua existência como ser
humano, mas é precisamente essa possibilidade de participar de uma decisão consensual a
que vem a ser suprimida pelo aborto.

HOMO-EROTISMO

Quando se analisa exclusivamente a situação dos indivíduos diretamente


implicados, nada do estabelecido pelas duas primeiras normas da ética autoriza a
discriminar um vínculo homossexual no universo das relações heteroeróticas. À luz dessas
normas tanto faz se os “parceiros” são do mesmo ou de diferentes sexos. Com esta visão
nos separamos da condena freudiana do homossexualismo, catalogado como doença
merecedora de tratamento médico-analítico.

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Como na relação heterossexual, o que conta à luz daquelas normas é o grau de
liberdade consensual com que se estabelece e vigora o vínculo erótico. E os perigos que
ameaçam, inclusive via neurose, tanto a liberdade individual de decisão como o consenso
livre e argumentativamente estabelecido, são neste caso os mesmos que pesam sobre
qualquer vínculo heterossexual.
A situação muda quando se trata da eventual decisão de procriar (com utilização de
um terceiro de diferente sexo dos implicados) amparada pelo desejo de se ter um filho.
E muda porque aqui entra em jogo a vida de outros dois implicados : o terceiro em questão
e o filho. Nestas circunstâncias o terceiro poderia ter resolvida a questão da fundamentação
de sua participação na paternidade ou maternidade por encomenda a partir das duas
primeiras normas da ética. Mas não tenho em absoluto clareza acerca de como enquadrar a
situação do filho almejado; e isto basicamente pelo mesmo argumento usado no tocante ao
aborto no que se refere à participação do interessado na apreciação da mencionada decisão
assumida pelos três adultos, ao que se soma a constatação de que na nossa atual sociedade
pautada pelo modelo da paternidade heterossexual e monogâmica, claros perigos de
traumas e sofrimento ameaçam o filho de uma união diferente. E a pergunta é : oferecem
as normas éticas por nós deduzidas algum amparo aos três adultos implicados para que
submetam a criança envolvida a estes perigos? Minha resposta é : não vejo que o façam.
Pois bem, isto não dá por encerrada a reflexão, e muito menos significa que uma
comunidade diferentemente articulada nas estruturas que hoje correspondem ao que
chamamos de “a família” não possa dar cabida eticamente sustentada à demanda de um
filho por parte de um casal homossexual.

EROTISMO E PORNOGRAFIA

Os negociantes em pornografia sempre que são atacados respondem dizendo que


seus produtos são de caráter erótico e não pornográfico. Em vez de discutir a diferença das
palavras creio mais interessante traçar fronteiras sobre os fatos implicados, a partir das duas
primeiras normas éticas.
Em relação aos praticantes de pornografia essas normas estabelecem limites
censuráveis quando a livre decisão consensualmente estabelecida não se verifica. Assim
acontece quando os praticantes são crianças ou animais incapazes de avaliar com pleno
conhecimento de causa os atos nos quais participam.
Mas também, e no contexto do trabalho alienado vigente no capitalismo, tal é o caso
de adultos que, a falta de outras oportunidades capazes de propiciar-lhes a satisfação de
suas necessidades mais elementares, fazem dessas atividades seu meio de subsistência.
No que respeita aos espectadores de práticas pornográficas as duas normas éticas
orientam no sentido de que há transgressão quando a suposta livre decisão não tem sido
fundada num pleno conhecimento de causa e por isso se assemelha a uma curiosidade
desprovida de qualquer cálculo de conseqüências. Creio que corresponde aos psiquiatras,
aos psicólogos e aos analistas determinar a idade e as circunstâncias nas quais um
candidato a espectador de práticas pornográficas está em condições de fazer realidade seu
desejo sem que haja violação das duas primeiras normas éticas.

ALGUMAS IDÉIAS PARA A EDUCAÇÃO SEXUAL

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O próprio Freud foi muito precavido, quando não fugidio, ao confessar a dificuldade
de orientar pais e/ou educadores em matéria de educação sexual. E se Freud assumiu aquela
atitude não será um leigo nestas espinhosas questões que se atreverá a propagandear
receitas de claro e definido perfil. Somente me permito repetir algumas obviedades, as
quais no entanto, não pelo fato de sê-lo, deixam de ser esclarecedoras para quem está
perdido em meio à obscuridade dos tabus ainda vigentes neste domínio.

Para crianças, púberes e adolescentes

Se seguirmos as pegadas de Freud, menos no tocante à inferioridade atribuída à auto-


percepção sexual da menina em relação ao garoto ( e desconfiando portanto da importância
que Freud deu ao complexo de castração e seus derivados na evolução diferenciada do
complexo de Édipo em ambos os sexos), considero que podem ser sugeridas, sem muito
medo de errar, as seguintes condutas:

* Os pais não têm por que ocultar a seus filhos suas partes genitais nem fazer mistério sobre
seu uso; explicações adequadas a cada idade devem incluir com naturalidade os órgãos
genitais na dinâmica do corpo como um todo, e ainda no esclarecimento do processo de
gestação e nascimento das crianças. Esta conduta significa responder com naturalidade à
curiosidade explícita ou implícita manifestada pelas crianças, sem cair nos exageros que
levam a que algumas crianças (não raramente filhos de psicólogos) realizem uma
verdadeira “fixação”, referindo-se obsessivamente às questões sexuais.

* Desde a mais tenra infância contextualizar o vínculo sexual dentro do universo do


predicado pelas duas primeiras normas da ética, a saber, o respeito pela liberdade de
decisão individual e a via do consenso livre como forma de definir qualquer questão,
incluídas as de caráter sexual, atinente a nossa relação com o Outro.

* Na educação formal o indicado seria se trabalhar com as duas idéias recém esboçadas
(por ora com a única restrição do exercício da nudez naturalmente vivida, dado o grande
tabu que ainda pesa sobre pais e “formadores de opinião” a esse respeito ; não quero dar a
certos obscurantistas nem a mais mínima oportunidade de sair por ai propagandeando que a
Ética da Libertação prega salas de aula com professores e alunos nus ; o futuro, quiçá não
superior a um século, já dirá quem enxergava mais longe).
Nesse sentido mostra-se absolutamente insuficiente o tímido tratamento que a
educação sexual recebe nas escolas latino-americanas (quando ocupa ali algum espaço),
que a reduz a sisudas explicações sobre os aparelhos reprodutores da mulher e o homem. Se
isso é necessário não menos o é a discussão do estabelecido pelas duas primeiras normas da
ética, assim como a explicação sobre os múltiplos mecanismos pelos quais parceiros que
ajam com base nessas normas podem aceder ao desfrute do prazer sexual compartilhado e
reciprocamente proporcionado. Nesse contexto o tratamento da masturbação deve ser
completamente despenalizado, explicando e discutindo o papel que o auto-erotismo ocupa
na maduração e ainda na vivência adulta da sexualidade.

* No caso adolescentes, os quais ingressam ao exercício heteroerótico da sexualidade


genital, às práticas anteriores deve somar-se o uso de sessões de vídeo onde a partir de
filmes eróticos (diferentemente de pornográficos) possa se explicar e discutir a vivência

40
concreta do heteroerotismo. Ao mesmo tempo, não poderão faltar as explicações e
discussões a respeito da responsabilidade da paternidade-maternidade, dos meios
anticoncepcionais e das proteções destinadas a evitar as doenças sexualmente
transmissíveis, em especial, nos dias de hoje, a AIDS.
Mas esta última questão deverá ser abordada sempre sobre a tela de fundo do bom e
realizador que significa para o ser humano o exercício de uma sexualidade segura e
livremente consentida, como parte de outras relações não menos importantes para o
desenvolvimento de indivíduos sadios no seio de uma comunidade saudável. O critério do
que deve ser entendido por “sadio” será redefinido ao longo das discussões que pais,
educadores e analistas poderão ter com o jovem para tematizar as experiências sexuais
concretas vividas até o momento por ele.

Para os adultos

Como alguma vez o imaginou Freud, no contexto de uma ação profilática anti-
neurótica em escala comunitária, podemos imaginar aqui verdadeiras instâncias de
educação e re-educarão sexual de adultos. Aos mesmos mecanismos descritos antes para
crianças e adolescentes podemos acrescentar o uso de sessões de análise e de cursos
interativos veiculados através da televisão enriquecida pelos meios informáticos. Ambos
podem fazer parte de atividades promovidas ou apoiadas por centros de trabalho, clubes
sociais ou organizações de bairro, e guiadas por psiquiatras, psicólogos e analistas, capazes
de orientar e dar incentivo ao candidato à re-educando.

VII. PEDAGOGIA ECOMUNITARISTA, EDUCAÇÃO FAMILIAR E


EDUCAÇÃO FORMAL

Em conformidade com a nossa discussão anterior, apontamos aqui que, fazendo


a crítica das relações comunicativas existentes em contextos sociais de opressão, Paulo
Freire sintetizou as características principais do que ele chamou de "educação bancária",
instrumento fundamental da preservação de geração em geração da redução dos sujeitos
pertencentes às classes subalternas, a simples objetos ao serviço do (suposto) bem-estar e
do poder exercido pelas classes dominantes.
Nessa "educação bancária" se verificam, dentre outras, as seguintes
características: “a) o educador é o que educa e os educandos os que são educados; b) o
educador é o que sabe, os educandos os que não sabem; c) o educador é o que pensa, os
educandos os pensados; d) o educador é o que diz a palavra, os educandos os que escutam
docilmente; e) o educador é o que disciplina, os educandos os disciplinados;... i) o educador
identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional que se opõe antagonicamente
à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele; j) o educador,
finalmente, é o sujeito do processo, os educandos meros objetos. (Freire 1970, Cap. II,
1983, p.68)
Contra essa "educação bancária" Freire propõe uma alternativa pedagógica, que
ele chamou de "problematizadora", destinada a ser instrumento e componente do processo
de construção de uma ordem sem opressores nem oprimidos. Essa proposta centra-se no
exercício conjunto-dialogado, entre educador e educando, da “conscientização”, que Freire
define como o complexo que reúne, ao mesmo tempo, o “desvelamiento crítico da

41
realidade” vivida por ambos e a prática transformadora em relação a essa realidade (rumo à
ordem comunitaria sem opressores nem oprimidos). (Cfr. Freire 1982, p.145)
Segundo Freire a realidade tem de ser “desvelada” porque na sua apreensão
ingênua, ou seja a-crítica e alienada, ficam ocultos os mecanismos sociais de dominação-
repressão que articulam o seu coração mesmo. Dai que as “consciências imersas” nessa
visão das aparências devam “emergir” no processo de des-cobrimento dos mecanismos
encobertos. Mas essa emersão não será nem possível nem satisfatória se o processo de
compreensão intelectual não se acompanhar da ação transformadora que visa a superação
daqueles mecanismos sobre os quais se assenta a dicotomia entre opressores e oprimidos e
cuja superação permite a própria superação daquela dicotomia.
Isto faz da conscientização uma tarefa individual e comunitário-histórica sem
fim, na qual o conhecer alimenta o agir anti-dominador e este por sua vez traz mais
elementos ao conhecer crítico da opressão. A Ética da Libertação faz sua a reflexão
freireana para fundá-la e completá-la, em particular a partir das três normas éticas, ao
abordar a área da pedagogia.
Por sua vez Dermeval Saviani, contrapondo-se à desvinculação existente hoje entre
os conteúdos programáticos desenvolvidos na Escola e a realidade vivida por professores e
alunos, propõe uma alternativa pedagógica centrada em um método constituído de cinco
“passos”. Neste, a prática social do professor e dos alunos é o primeiro e último momento,
a origem e o destino que dá razão de ser ao processo de ensino-aprendizagem. O segundo
momento é o da “problematização”, ou seja, o da detecção das questões que necessitam ser
resolvidas no âmbito da prática social e, portanto, dos conhecimentos que é preciso
dominar para tal fim. Estes conhecimentos são o objeto de trabalho do terceiro momento, o
da “instrumentalização”, consistindo no estudo dos instrumentos fornecidos pela cultura,
aptos para tratar das questões levantadas. No quarto momento ocorre a “catarse” entendida
como “efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos
ativos de transformação social”(Saviani 1983, p. 73-75).
Inspirando-me nestes pensadores, por minha parte, defino a pedagogia
problematizadora, ou pedagogia da libertação, como aquela que:
a) põe os instrumentos da cultura erudita a serviço da conscientização-mobilização dos
oprimidos em luta para superar o capitalismo e alcançar uma ordem comunitária,
constituída por indivíduos livremente associados e multilateralmente desenvolvidos;
b) toma como ponto articulador da ação pedagógica as questões vinculadas a vida diária e a
luta dos oprimidos;
c) estabelece vínculos de mútuo enriquecimento entre a cultura “erudita” e a chamada
cultura “popular” (aquela que, à margem da educação formal, os oprimidos constróem no
dia a dia de sua vida e de suas lutas);
d) supera a contradição educador-educando, propiciando a construção dialógica do
conhecimento vivo (vinculado ao dia a dia e alicerçado na investigação e na reflexão) em
uma dinâmica onde ambos são educandos-educadores, porque são investigadores críticos,
ou seja, sujeitos desveladores da realidade social e comprometidos (“engagés”) em sua
transformação libertadora;
e) combate, pela crítica e pela auto-reflexão, o fatalismo e assistencialismo e aposta na
capacidade de luta dos e com os oprimidos para melhorar nossas vidas e para, em última
instância, superar o capitalismo;

42
f) defende (e busca aplicar no dia a dia) a tomada democrática das decisões e aponta para a
superação da disciplina verticalmente imposta pela auto-disciplina consensualmente
estabelecida e avaliada.
A explanação da pedagogia da libertação, quando abordada em ordem ontogonético,
começa pela educação familiar.

EDUCAÇÃO FAMILIAR LIBERTADORA

Creio que pode se questionar a interpretação que Freud deu à suposta ameaça de
castração explícita ou introjetada na memória da espécie, a qual determinaria a evolução do
complexo de Édipo na criança. Mas me parece inegável a contribuição que, para qualquer
perspectiva de educação familiar que se queira lúcida, significa a análise freudiana do
complexo de Édipo, e em geral seus descobrimentos acerca da sexualidade infantil.
Com este espírito me proponho resumir o que tenho a dizer sobre esta questão
valendo-me de um texto-chave do criador da psicanálise, ao qual farei no entanto alguns
adendos e reparos críticos.
Diz Freud : “ Vejamos claramente o que constitui a missão primeira da educação.
A criança deve aprender a dominar seus instintos. É impossível deixa-la em liberdade de
seguir sem restrição alguma seus impulsos. Isso constituiria um experimento muito
instrutivo para os psicólogos ; mas tornaria impossível a vida dos pais e acarretaria às
crianças mesmas graves prejuízos, como se demostraria em parte imediatamente, e em parte
em anos posteriores. Assim, pois, a educação tem forçosamente que coibir, proibir e
submeter, e assim o tem feito amplamente em todos os tempos. Mas a psicanálise nos tem
demostrado que precisamente esta sujeição dos instintos traz consigo o perigo da doença
neurótica...Em decorrência disso a educação tem que buscar seu caminho entre o limite do
deixar fazer e o limite da proibição. E se o problema não for insolúvel, será possível achar
para a educação um caminho ótimo, seguindo o qual possa dar à criança um máximo de
benefício causando-lhe um mínimo de danos. Tratar-se-á, pois, de decidir o quanto se pode
proibir, em que épocas e com quais meios. E também haverá de levar-se em conta que os
objetos da influência educadora possuem disposições constitucionais muito diversas,
fazendo com que um mesmo método não possa ser igualmente bom para todas as
crianças.... Se ( a educação) encontra o caminho ideal da sua missão, poderá acalentar a
esperança de extingüir um dos fatores da etiologia da doença : a influência dos traumas
infantis acidentais. O outro - o poder de uma constituição violenta dos instintos- nunca será
suprimido. Se pensarmos nos difíceis problemas que se colocam para o educador :
descobrir a peculiaridade constitucional da criança ; adivinhar, guiando-se por signos
apenas perceptíveis, o que se desenvolve na sua vida anímica; dar-lhe a justa medida de
carinho e conservar, não obstante, autoridade eficaz. Se pensarmos em todos estes difíceis
problemas, haveremos de reconhecer que a única preparação adequada para a profissão de
educador é uma preparação psicanalítica fundamental, a qual deverá compreender a análise
do próprio sujeito , pois sem experiência na própria pessoa não é possível assimilar-se a
psicanálise. A análise dos professores e educadores parece ser uma medida profilática mais
eficaz ainda que a das crianças, e menos difícil de levar à prática. Citaremos, en passant,
uma promoção indireta da educação por meio da análise, que pode alcançar algum dia
máxima influência. Os pais que têm passado pela análise e devem a ela muitas coisas, entre
elas o conhecimento dos defeitos de sua própria educação, educarão muito mais
compreensivamente os seus filhos e lhes pouparão muitos danos que a eles não lhes foram

43
poupados”.( Freud, “Nuevas Aportaciones al Psicoanálisis ; 7 : Aclaraciones, Aplicaciones
y Observaciones”, 1932, in Freud 1968, Vol. II , p. 949).
A este texto creio necessário acrescentar :
a) que não estaria mal que o Ecomunitarismo pautasse sua política de saúde pública pela
inclusão da psicanálise como serviço acessível a todos os pais que o desejassem para si e
para seus filhos ;
b) que a determinação de “quando se deve proibir, em que épocas e com quais meios” deve
fazer-se com o auxílio das contribuições dos analistas e também dos descobrimentos de
Piaget em relação aos estágios evolutivos do entendimento infantil ( que o levam da
inteligência sensorimotora à das operações formais, passando pelas fases pré-operatória e a
das operações concretas ; cfr. Piaget, in Piattelli-Palmarini, M., 1979, “1” ), de forma a que
aquilo que há de se proibir o seja sempre que possível em forma argumentada, como o
exige a segunda norma da ética ;
c) que a autoridade que não colide com o carinho é aquela que precisamente se estabelece
com base à argumentação exigida pela segunda norma e orientada a, e é acompanhada por,
o desenvolvimento da liberdade individual da criança, em conformidade com a primeira
norma;
d) que a observação feita aqui sobre os professores e “educadores” se completa com
posições das quais discordo, como terei ocasião de mostrar no que segue, ao me referir à
mencionada seqüência do presente texto freudiano.

PEDAGOGIA PROBLEMATIZADORA NA EDUCAÇÃO FORMAL. UMA


PROPOSTA-PILOTO FUNDAMENTADA NA ÉTICA DA LIBERTAÇÃO

Chegou o momento de esclarecer a divergência que me afasta de Freud na


seqüência de seu texto antes citado. Eis aqui a continuação de seu pensamento : “Mas não
quero abandonar o tema da educação sem mencionar um determinado ponto de vista. Tem
sido dito, e com razão, que toda educação é parcial, já que visa a que a criança se incorpore
à ordem social existente sem ter em conta nem o valor nem a permanência da mesma.
Agora bem: se estamos convictos dos defeitos de nossas atuais instituições sociais, não
estará em modo algum justificado por também a seu serviço a educação, orientada em
sentido psicanalítico. O fim da mesma deverá ser outro e mais alto, libertado já das
exigências sociais dominantes. Mas, a meu juízo, tal argumento está aqui fora de lugar.
..Tampouco aquele outro fim que se quer assinalar à psicanálise deverá ser parcial, nem é
missão do analítico decidir entre os partidos em luta. Sem contar com que a psicanálise
ver-se-á negada de toda possibilidade de influir sobre a educação enquanto confessar
intenções inconciliáveis com a ordem social vigente. A educação psicanalítica tomaria
sobre si uma responsabilidade desnecessária ao se propor a fazer de seu educando um
agitador. Sua missão limita-se a fazer dele um homem saudável e capaz. Contém já em si
mesma fatores revolucionários suficientes para garantir que seu educando não se colocará
na sua vida ulterior do lado dos reacionários e da opressão. Mas, além disso, creio de todo
ponto de vista indesejável que a infância seja revolucionária1”.
Creio que Freud não capta a vinculação existente entre educação formal e
política numa sociedade dividida em classes. Reflexões ulteriores( por exemplo a de

1
Freud, “Nuevas Aportaciones al Psicoanálisis ; 7 : Aclaraciones, Aplicaciones y Observaciones”, 1932, in
Freud 1968, Vol. II, p.950

44
Althusser , cfr. Althusser 1969) sobre esta questão, desenvolvidas em especial na França e
cujo ponto de vista foi catalogado por alguns autores (como Saviani, cfr. Saviani 1983)
como “crítico-reprodutivista” mostraram como numa sociedade classista a educação está ao
serviço da reprodução da estrutura de classes vigente, e, portanto, a serviço da classe
dominante. E desde Marx já era evidente que em sociedades classistas as considerações
acerca da “saúde” dos indivíduos não podem desvincular-se da análise da situação a eles
reservada nos conflitos existentes nessa estrutura classista. A esse respeito faz figura de
estudo paradigmático a crítica a que Marx submeteu o trabalho alienado vigente no
capitalismo, sobre a qual nos estendemos em perspectiva atualizadora no primeiro volume
desta obra.
Nesse contexto é questionável a ingenuidade de Freud quando propõe que a
educação psicanalítica faça de seu educando um ser humano saudável e capaz. Porque a
pergunta não respondida é : que grau de “saúde” individual permite o capitalismo e quais
capacidades individuais podem ser desenvolvidas livre e plenamente nesta ordem social ?
Seguindo a Marx, no primeiro volume desta obra tivemos a oportunidade de mostrar o
quanto distante está o indivíduo forjado e reproduzido no capitalismo, vítima do trabalho
alienado e de interações comunicativas assimétricas pautadas pelas “ordens”, de alcançar a
saúde e o desenvolvimento multifacetado de suas capacidades.
Não vejo tampouco como sem a discussão destas questões e uma tomada de posição
político-pedagógica em relação a elas, todo educando fruto da educação psicanalítica possa
vir a situar-se automaticamente, como o afirma e deseja Freud, no lado oposto ao dos
“reacionários” e partidários da opressão (expressão que suponho designa na intenção de
Freud os que apoiam explícita ou implicitamente as estruturas de dominação, repressão e
discriminação entre os seres humanos).
Pois bem, o mesmo Freud que predica uma educação psicanalítica supostamente
dotada de muitos “fatores revolucionários” nega por outro lado que a educação deva se
propor a fazer do educando um agitador, e acaba por decretar, sem mostrar nenhum
argumento para tanto, que não cabe à infância ser revolucionária. Da minha parte sustenho
que as três normas da Ética orientam num sentido que nos afasta tanto de Freud quanto do
ponto de vista “crítico-reprodutivista”, na medida em que tampouco este último alcança a
discernir como é possível e necessária uma ação libertadora mesmo no coração de
instâncias criadas para servir à dominação.
Com efeito, elas indicam como prática pedagógica a ser desenvolvida na educação
formal uma ação que permita, dentro e apesar das determinações que colocam esta instância
como instrumento a serviço da classe dominante, a expansão da liberdade individual de
decisão simultaneamente com a construção consensual de conceitos de como deveria ser a
ordem social para que aquela liberdade pudesse permanecer em processo de expansão
constante e de como deveriam ser as relações entre os seres humanos e a Natureza. A forma
e o alcance que esta “ação na contracorrente” possa ter dependem da avaliação que o
educador faça a cada momento de suas forças e dos obstáculos, assim como do risco que
ele esteja disposto a correr (porque sabemos que no capitalismo a ação docente libertadora
se paga muitas vezes com o desemprego, quando não com a vida). Esta avaliação é e será
sempre difícil, mas nenhuma pré-determinação de caráter dominador, poderá ocultar o fato
de que sempre haverá para o educador que assim o desejar uma possibilidade, por pequena
que ela for, de uso libertador do espaço oferecido pela sala de aula
Em relação ao objetivo desta ação, cabe esclarecer que, longe de propor-se a
forjar “agitadores sem causa”, o que ela se propõe é nem mais nem menos que o

45
desenvolvimento de cidadãos conscientes (resgatando o ideal grego da Paidéia, agora
liberado de toda carga etnocêntrica e classista dominadora-discriminadora).
Se a combinação de carinho e autoridade, tal como descrita no tocante à
educação familiar, permitem que se concorde com Freud no seu rechaço ao objetivo de se
fazer revolucionária à infância, essa expressão vai longe demais ao deixar lugar ao
equívoco de um apoio sem mais a uma educação formal adaptadora dos indivíduos às
estruturas de dominação-discriminação vigentes num momento dado. Também coincido
com Freud na crítica do objetivo de se fazer revolucionária à infância quando por isso se
entende fazê-la destinatária de um “catecismo vermelho” (como o praticado com os
“Pioneiros” do socialismo real), quando a situação etária dos indivíduos não lhes permite
ainda a adoção reflexiva de posturas e compromissos.
Mas de modo algum esse rechaço pode confundir-se com a obliteração das
instâncias de crítica (a ser desenvolvidas em conformidade com as capacidades da idade,
segundo a dinâmica dos estádios descobertos por Piaget) dos obstáculos que impedem o
livre e multifacetado desenvolvimento consensual dos indivíduos e uma relação de tipo
preservador-regenerador entre estes e a Natureza ; sem isto, não haverá de fato presença
efetiva das três normas éticas nem, como o deseja Freud, “fatores revolucionários” na
educação.

Creio que em matéria de educação escolar os fundamentos teóricos haverão de se


buscar na crítica e na alternativa pedagógica propostas por Paulo Freire, cujas grandes
linhas temos resumido anteriormente.
Acontece não obstante que a importantíssima obra filosófico-pedagógica de
Freire, embora fornecendo fundamentos decisivos para qualquer ação pedagógica, somente
conseguiu se transformar numa proposta pedagógica concreta no referente à alfabetização
de adultos, área onde obteve resultados muito significativos.
Por sua vez Saviani não conseguiu mostrar como pode funcionar no dia a dia
das diversas disciplinas escolares sua proposta metodológica de cinco "passos" e diz
esperar dos professores a resposta para essa pergunta. (cfr. Saviani, 1983, p.83)
Ambas situações contribuem para que muitos professores, Supervisores e
Diretores de Escola que partilham da crítica à atual situação teórico-prática, alienada e
alienante da Escola, não enxergando como poderiam funcionar no dia a dia das diversas
disciplinas da educação "formal" as alternativas "problematizadoras" sugeridas por Freire e
Saviani, tendam a ser vítimas do desanimo, o imobilismo e a adaptação à rotina não-
problematizadora hoje imperante no âmbito escolar. Assim, o problema não resolvido pela
pesquisa pedagógica e a prática educacional atual é a seguinte: Como instrumentar uma
pedagogia "problematizadora" capaz de funcionar no dia a dia das diversas disciplinas que
configuram o currículo da educação formal de 1º, 2º, e terceiro graus?
Tentando começar a responder a tal pergunta, iniciei (com alunas do Curso de
pós-graduação em Supervisão Escolar e Orientação Educacional da FURG), a elaboração
de uma proposta cujas, grandes linhas já sintetizamos, na definição da “pedagogia
problematizadora” (cf. supra) A partir dessa definição, a nossa pesquisa assume como
ponto de partida e limita-se, por enquanto, à esfera da 6ª série do 1º grau, freqüentada por
alunos com média etária de 12 anos. Escolhemos a 6ª série a partir das considerações
resultantes da obra de Jean Piaget no que diz respeito à faixa etária do desenvolvimento das
"operações formais", as quais devem ser consideradas como condição de possibilidade
psico-epistemológica da "problematização". (Isto não impede, não obstante, que pesquisas

46
ulteriores dirigidas por especialistas da área, relativas tanto à esfera da epistemologia
genética como à teoria pedagógica, possam esclarecer a possibilidade de se instrumentar
uma pedagogia problematizadora para as séries anteriores do 1º Grau, ao mesmo tempo em
que poderio se ocupar, sem problemas, no que se refere à questão dos "estádios de
desenvolvimento psico-epistêmico" da sua instrumentalização para a 7ª e 8ª séries do 1º
Grau e para o 2º e 3º Graus, uma vez que é de se supor que as "operações formais" já fazem
parte da bagagem psico-epistemológica dos sujeitos ali envolvidos.
A hipótese fundamental da presente pesquisa é que, mesmo assumindo como
"dados" os atuais conteúdos programáticos da 6ª série, uma pedagogia problematizadora,
assim como foi definida acima, pode ser posta em prática, no dia a dia, das diversas
disciplinas.
Assim pensamos numa proposta que não possa ser impugnada desde a
"legalidade" vigente (particularmente no que tange aos conteúdos dados como pré-requisitos
para a 7ª série) e que seja realista, isto é, aplicável em qualquer escola no que diz respeito
aos recursos utilizados, tempo e modalidade das atividades. (Limitações conscientemente
assumidas da presente pesquisa foram: a) a exclusão das disciplinas "Educação Física" e
Língua Estrangeira"; a primeira por ainda não termos claro como ela poderia vir a ser
reformulada desde uma abordagem problematizadora; a segunda por carecermos de alunos
com o necessário domínio das línguas em questão; b) a não-abordagem da
interdisciplinariedade, aspecto a ser coberto por qualquer outra investigação semelhante; c) a
não-inclusão do trabalho braçal como elemento formativo no interior da Escola e nas suas
atividades "extensionistas"; d) a não-inclusão da problemática referente aos critérios e
métodos de avaliação do trabalho escolar; e) a delimitação de nossa atenção para Escolas do
perímetro urbano-suburbano, não levando em consideração a realidade diferente das Escolas
do meio rural.).
A mencionada proposta, cujo detalhamento é impossível de oferecer aqui, e
quiçá nem convenha fazê-lo porque não se trata de dar uma receita mas de suscitar a
criatividade de cada educador a partir da sua compreensão do núcleo teórico que fundamenta
o “por que”, o “para que” e o “como” de sua ação, teve como idéias básicas que orientaram
o planejamento elaborado para todas as disciplinas abrangidas, as seguintes (que sim vem ao
caso transcrever a fim de ajudar à formação daquele núcleo teórico básico):

1) Vincular os conteúdos a problemas sócio-ambientais da vida dos alunos e dos brasileiros


nas áreas de: alimentação, saúde, moradia, higiene, trabalho e ecologia, reservando espaços
para discutir essas questões sem medo de se afastar do "conteúdo específico".
2) Promover a pesquisa coletiva e individual, devendo o professor exercer o papel de
"auxiliar de planejamento, observação, elaboração de hipóteses, testes das mesmas e
elaboração de resultados" numa atividade que visa a "re-descoberta" - "re-construção" dos
conhecimentos mediante a reflexão dialogada.
3) Sair para trabalhos de campo e/ou criar espaços, mesmo que modestos, na própria escola
ou instituição educativa, voltados para atividades de pesquisa descritiva ou experimental.
4) Dialogar na escola (instituição educativa) e/ou "in loco" com conhecedores do tema em
estudo, visando à integração entre os conhecimentos "técnicos" e as suas implicações sócio-
humanas.
5) A partir do trabalho coletivo e das sistematizações elaboradas com a ajuda do professor e
de conhecedores, promover ações voltadas para a informação e a busca de soluções para
problemas sócio-ambientais existentes na escola ou instituição educativa, no bairro desta,

47
no bairro de residência dos alunos e/ou na comunidade onde for realizada a pesquisa.
Dentre as questões sócio-ambientais em relação as quais os conteúdos suo
desenvolvidos destacamos: alimentação, saúde, moradia, educação, salário mínimo,
desemprego, marginalização, racismo, ecologia e democracia participativa.
Uma hipótese básica de tal proposta e a de que, mesmo se assumindo como "dados" os atuais
conteúdos programáticos, uma pedagogia problematizadora, assim como foi definida acima, pode
ser posta em prática, no dia-a-dia, das diversas disciplinas e/ou atividades.
Assim pensamos numa proposta que não possa ser impugnada desde a "legalidade" vigente
(particularmente no que tange aos conteúdos dados como pré-requisitos programáticos para a série
seguinte) e que seja realista, isto é, aplicável em qualquer escola no que diz respeito aos recursos
utilizados; não há carência de recursos que possa resistir à clareza teórica, à boa vontade e à
imaginação do educador engajado na pedagogia problematizadora

EA ECOMUNITARISTA: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS

A luta ecomunitarista pode ser um grande e diverso “movimento” onde têm seu
lugar ações urbanas e/ou rurais, terrestres aquáticas e/ou aéreas, de caráter seja local,
regional, nacional, supranacional ou planetário. Nela cabem desde a educação familiar e a
pequena e local organização comunitária ou ecológica, até foros mundiais de organizações
sociais, ecológicas, de “minorias”, sindicais, partidárias, ou estatais; assim integram-se ao
movimento ações tais como as dos povos autóctones, comunidades camponesas e
organizações de sem-terra e/ou expulsos das suas terras, movimentos de sem-teto, núcleos
de desempregados e trabalhadores informais, organizações de “minorias” (como os de
mulheres, gays, lésbicas e negros), associações sindicais e políticas, congressos
acadêmicos, organizações não-governamentais de perfil sócioambiental ou ecológico, e
intervenções em instâncias de poder supranacional como as da Comunidade Econômica
Européia, O Mercosul e a ONU (incluindo tribunais vinculados a elas).
No que segue e partindo da minha experiência pessoal, que é de caráter local e
urbano, passo a tratar, em primeiro lugar, de uma forma desse vasto “movimento” que me
parece inovadora por combinar simultaneamente a pesquisa científica de âmbito
acadêmico, a ação educativa, a ação comunitária, a participação sindical e partidária, e
também instâncias de ação parlamentar e jurídica. Em segundo lugar abordarei algumas das
formas de ação que, em diversos cenários, tem desenvolvido e desenvolve o movimento
ecomunitarista.

A. Uma forma integradora inovadora

A 1 Ação comunitária de sem-teto em bairro pobre

Proponho como exemplo a ser melhorado a experiência que fizemos com um grupo
de alunos e trabalhadores sociais num bairro pobre vizinho da FURG. Na ocasião
combinamos uma pesquisa com perfil acadêmico com o trabalho de auto-organização

48
comunitária, compartilhado com os moradores. Fundamentamos essa combinação numa
abordagem que tem muitos pontos de convergência com a metodologia feminista
recomendada por Mies (Mies & Shiva 1997; cfr. também Dias 1994).
A metodologia usada por nós com a finalidade acadêmica de realizar uma modelagem
sócioambiental do bairro em questão, que servisse e fizera parte do trabalho comunitário,
teve a abordagem de uma pesquisa participante na forma de "enquete operária" (segundo
Thiollent 1985; ver os resultados da modelagem em Lopez Velasco et alli 1998 ) . Os
instrumentos utilizados, além da convivência com os moradores na execução das
atividades comunitárias foram, um Questionário, e Entrevistas e Diálogos com os
moradores, possibilitando sua participação na modelagem pretendida.
Com esses meios procedemos a fazer uma análise quantitativa (com os instrumentos
estatísticos usuais), semi-quantitativa2 e qualitativa (mediante análise do discurso e da
conduta dos diversos atores da vida do bairro ). Foram eleitas como macro-variáveis de
estudo as seguintes: a) Demografia, b) Dinâmica de atividades e renda (incluindo também
as sub-variáveis "violência" e lazer), c) Saúde e saneamento, d) Cultivo de vegetais e
medicina popular, e) Interação escola-bairro, f) Balanço energético e tratamento de
resíduos, e, g) Avaliação dos agentes operantes no bairro, e, Reivindicações.
Entendemos a "enquete operária" assim como a caracteriza Michel Thiollent (1985).
Adverte este autor ( p. 110 e ss.) que tanto a pesquisa-ação clássica ( a “Action Research”)
como a "enquete operária" “valorizam a discussão em lugar da passividade na qual é
mantido o respondente das entrevistas convencionais”, mas esta última, em vez de
priorizar a “dimensão psicológica da interação dos indivíduos e dos grupos sociais” como
faz a Action Research, pelo contrário “dá ênfase à dimensão cognitiva e política das
relações de classes” (p. 110).
Nesta perspectiva, quando se discute a questão da inserção dos dispositivos de
pesquisa nos meios a ser pesquisados, haverá de se considerar “ não-artificial esta inserção
quando os grupos investigados têm iniciativa e controle dentro do processo de investigação,
concebido em ligação com a prática efetiva do grupo, como é o caso na enquete operária”.
(p. 112). Nesta abordagem as “explicações” oferecidas pelos instrumentos de pesquisa (em
especial o Questionário), “são provisórias e submetidas ao entendimento popular para
observar até que ponto vão ao encontro das ´explicações´ espontâneas ou até que ponto elas
têm uma influência positiva sobre a capacidade de autodescrição” (p. 113). Assim, os
pesquisadores estabelecem com os protagonistas do movimento popular “uma relação que
seja de natureza a desenvolver uma auto-análise do movimento pelos próprios grupos” (p.
112).
Em nosso caso, discutimos ao longo do tempo com a Diretoria da Associação de
Bairro cada um dos passos da pesquisa as ações a ela vinculadas (desde abril de 1997 a
dezembro de 1998), apresentando em várias oportunidades aos vizinhos, durante
Assembléias Gerai da Associação, os resultados que iam sendo obtidos, para discuti-los
com eles. Além disso abrimos muito os ouvidos para registrarmos a maneira em que os
próprios vizinhos interpretavam sua realidade sócioambiental, explicitavam suas
expectativas e projetos de vida e julgavam as ações e atores referentes a uma e outra
dimensão. Ao mesmo tempo, em eventos organizados no período da investigação na

2
Usando o software VISQ, "Variáveis que Interagem de modo Semi-quantitativo", cfr. Kurtz dos Santos et
alli 1997 e http://www.sf.dfis.furg.br/mea, seção "Links" e "Projetos", de graficação de relações
semiquantitativas sistêmicas entre variáveis.

49
FURG, incluindo os de caráter internacional, convidamos vizinhos, e não só aos dirigentes
da Associação, a participar em pé de igualdade com universitários e representantes de
instâncias políticas, ou seja a “dizer sua palavra” (em expressão devida a Paulo Freire).
Com efeito, ampliando a perspectiva “classista” com a qual Thiollent caracteriza a “enquete
operária”, decidimos acrescentar como referência muito apropriada, tendo em conta a
particularidade de que o bairro apresenta um grande porcentagem de desempregados e sub-
empregados que vivem de ocupações episódicas ("changas" ou “biscates”), as reflexões que
Paulo Freire (Freire, 1968), partindo de sua rica experiência como educador popular,
dedicou ao que chamaríamos de “cultura do oprimido”.

1.1 Breve história do bairro e de sua população

O bairro Castelo Branco II (no que segue CBII, Rio Grande, RS), é vizinho
imediato da Universidade do Rio Grande (FURG), situado entre o seus Campus Carreiros e
o bairro COHAB IV.
O bairro originou-se da união de diversas famílias que por não terem condições
financeiras para pagamento de aluguel ou compra de terreno, somam esforços e decidem
lutar por um lugar para morar. Em março de 1995 resolvem instalar-se num terreno
desocupado, na Rua 1o de Maio, a vários anos, sendo este favorável à ocupação, já que não
possuía nenhuma função social. A partir da ocupação destas dez famílias, outros blocos
também começam a chegar e instalam-se na área. Esta ocupação chegou a totalizar
finalmente 257 famílias. Mais tarde, vieram a saber que aquele terreno era de propriedade
da Empresa Aliança da Bahia S/A (SP). Então, conforme acordo firmado na Justiça, os
ocupantes deveriam deixar o local até 30 de abril de 1996, transferindo-se para o bairro
CBII, localizado na periferia da cidade do Rio Grande. A prefeitura comprometeu-se em
preparar a infra-estrutura da área a eles destinada.
A partir disso, pressionam as autoridades com a organização de passeatas cobrando
maior agilidade da prefeitura. Uma delas foi um ato público organizado de fronte ao prédio
da prefeitura, cobrando do executivo a instalação de água e energia elétrica, além do
arruamento de área do município localizada no CBII. Do lado do executivo, foi explicada a
falta de recursos para a aplicação de medidas imediatas.
Preocupados com a falta de agilidade das obras, os ocupantes decidem montar
barracas na praça Xavier Ferreira, segundo eles, para que pelo menos as crianças pudessem
dormir abrigadas, sendo cerca de 40 famílias ocupantes. A Prefeitura intervém: salientando
que a praça Xavier Ferreira é um bem público e não pode, segundo artigo 3 da constituição
estadual, abrigar barracas e assemelhados. Explica que além de ser uma visão deprimente
para a cidade como um todo, pode mais tarde trazer problemas mais sérios, como por
exemplo, a invasão de praças, afirma que as crianças devem ficar em suas casas e não
devem ser usadas para sensibilizar os que por ali passam e sabem de suas condições.
Após um acordo firmado em reunião do Conselho do Bem Estar Social, as famílias
de sem-teto resolvem sair do local, os trabalhos de topografia no bairro CBII iriam iniciar-
se imediatamente. Durante a ocupação da praça, os moradores receberam o apoio dos
Sindicatos da Alimentação, da Associação do pessoal Técnico e Administrativo da FURG
(APTAFURG) dos professores municipais, dos conferentes e comerciários, que forneceram
a alimentação e transporte viabilizando a ação.
No local destinado aos ocupantes, já existiam aproximadamente cerca de 300
famílias morando, pois aquela área também havia sido ocupada irregularmente. Cerca de

50
1000 terrenos, medindo 8m x 25m seriam fornecidos para isso, um recadastramento foi
efetuado para identificação das famílias mais carentes envolvendo aspectos como renda
familiar, não ter imóvel para moradia, entre outros, porém, as 183 famílias dispuseram-se a
pagar pelos terrenos conforme suas possibilidades. Muitos ocupantes reclamaram da
chegada de algumas pessoas que estariam sendo enviadas por pessoas não pertencentes à
ocupação da 1o de Maio, dificultando ainda mais a situação. Como não havia ninguém
responsável para vigiar a área, os próprios moradores resolveram fazer a vigilância de seus
lotes. A prefeitura afirmava que estes não podiam ser retirados pois tinham os mesmos
direitos.
A transferência das 183 famílias, para o terreno pertencente a CRD - Companhia
Rio-grandina de Desenvolvimento, foi realizada em 27 de abril de 1996 organizada pela
prefeitura. O terreno está localizado entre a área do Campus Carreiros da FURG e COHAB
IV. A área foi entregue com parte do arruamento prometido e 1/3 do aterramento
necessário. Quanto aos lotes, estes foram definidos antes da remoção dos moradores do
"Campo do Mineiro" (também conhecido como sendo o mesmo local da rua 1o- de Maio).
Segundo informações de uma representante dos ocupantes, o critério para definição da
localização dos lotes foi a maneira como estavam dispostas as residências anteriormente.
Assim, os vizinhos continuariam a ser os mesmos, reproduzindo a mesma estrutura espacial
na qual viviam.
Quase 1 mês após o deslocamento das famílias que ocuparam o terreno da Aliança
da Bahia para a CB II, a situação ainda era precária. A eletricidade não havia chegado e a
água tinha de ser recolhida nas torneira instaladas estrategicamente no local. As ruas ainda
não haviam sido abertas totalmente, muitos lotes precisavam de aterro para não ficarem
mais baixo que a rua, impossibilitando a construção de casas no local. Em relação às fossas
sépticas, adquiridas através do Fundo Municipal de Bem Estar Social, capital disponível
nas prefeituras para ser utilizado nas necessidades da população menos favorecida, arcou
com metade do valor necessitado para compra de material exigido pela CORSAN,
Companhia Riograndense de Saneamento, (200 conjuntos de fossas sépticas e filtros).
Quanto à construção das casas, estas foram procedidas através de mutirões, gerando
com o convívio o fortalecimento do movimento de luta pela moradia. Foi através da auto-
construção que resolveram em parte, o problema da moradia no bairro. Após a etapa da
construção das casas, os moradores reuniram-se em assembléias e decidiram criar a
Associação dos Moradores do Bairro, em maio de 1996, coordenada por uma moradora,
para assim conquistarem seus direitos. Já anteriormente, havia organização dos moradores,
encontravam-se na Escola Polivalente, próxima ao bairro, e até mesmo na rua. A inserção
da Pastoral no Movimento dos Sem Teto ajudou-os a organizarem-se e estruturarem seus
projetos e metas.
Os moradores engajam-se na construção da Sede da Associação, que serviria para
futuras reuniões e atividades comunitárias em geral. Conseguem chamar a atenção da
comunidade, devido às suas mobilizações e conseqüentes conquistas, recorrendo a vários
órgãos. Recebem apoio da APTAFURG a qual forneceu auxílio financeiro para a
construção do alicerce da Sede. Depois, dirigem-se à Reitoria da FURG para pedir apoio
para projetos no bairro.
Logo a seguir a relação com a Universidade tornou-se mais imediata e concreta,
ganhando atenção especial da comunidade acadêmica durante o Seminário Internacional
"Ética Ambiental e Educação", que organizamos em abril de 1997 na FURG, quando fez-
se uma explanação, pelos próprios moradores, das condições de vida do referido bairro CB

51
II. Os fundos arrecadados nesse Seminário foram doados ao bairro para a construção da
Sede. Os próprios moradores trabalharam na construção e sacolas de alimentos eram
fornecidas pela Associação àqueles que se dispunham a trabalhar.
Passam a receber intenso apoio de um grupo de professores e acadêmicos. Vários
outros eventos foram organizados e efetivados, sendo que as verbas arrecadadas foram
destinadas à construção da Sede. A obra foi inaugurada em novembro de 1997 (embora
ainda há pendentes alguns trabalhos de acabamento definitivo da mesma).
No final de 1998 mais de 75% dos moradores dispõem de energia elétrica e todos
têm água potável em suas casas. Quanto ao saneamento básico existente, este é precário.
Uma das preocupações fundamentais é em relação ao tratamento do lixo e esgoto, não há as
mínimas condições básicas para seu devido manejo. Assim, a saúde dos moradores é
afetada, causando doenças durante o verão ( bicho-de-pé predominantemente) e inverno
(principalmente, doenças respiratórias, gripe e infecções).
Outra das preocupações, é a falta de segurança pública no bairro, não havendo
qualquer tipo de policiamento nas ruas. Espaços públicos de cultura e lazer ainda são
inexistentes. Os moradores lutam também pela legalização de seus terrenos Para isto
chegaram a elaborar, discutindo em diversas Assembléias com o auxílio de advogados que
prestaram gratuitamente sua ajuda, um Anteprojeto de Lei submetido à consideração da
Prefeitura e da Câmara de Vereadores, pleiteando o acesso à propriedade dos terrenos
mediante pagamento adequado às suas reais condições para tal.
Além da Associação dos Moradores, outro centro de atividades comunitárias é uma
igreja católica construída no mesmo período da edificação da Sede da Associação. Lá,
realizam-se trabalhos com mulheres e crianças de diversas idades (até a pré-adolescência),
liderados por um grupo de freiras da pastoral auxiliado por voluntários.
Assim, apoiados nas próprias forças e contando com voluntários que se dispõem a
ajudar por considerar tal atitude um dever de cidadania, os moradores do bairro CBII
continuam em busca de seus direitos, e procurando tornar-se uma comunidade que permita
à sua população morar dignamente.

1.2 Algumas das nossas ações no e com o bairro CBII

Não haverei de me referir aqui aos resultados da pesquisa nas três dimensões de
modelagem (quantitativa, semi-quantitativa e qualitativa), apresentados em outro trabalho
(Lopez Velasco et alli 1998); simplesmente relatarei a forma de contato com o bairro e
algumas das ações que nele e com seus habitantes praticamos.

1.2.1 Construção da Sede da Associação de Moradores

Já em abril de 1997 a Diretoria da Associação do bairro, por solicitação nossa, fez


um levantamento sobre o que os vizinhos consideravam ser a prioridade número um
para/na atividade do CBII. Responderam dizendo que se tratava da construção da Sede da
Associação, necessária para as atividades comunitárias, incluindo festas e moradia
provisória para famílias durante as inundações. Decidimos então apoiá-los na construção da
dita sede. Sua construção aconteceu com base em trabalho voluntário de vizinhos, em
especial durante os fins de semana, do qual participamos. O dinheiro para os materiais veio
de eventos que organizamos na esfera da Universidade para tal finalidade, ao que somou-se
uma doação do sindicato dos docentes da Universidade e outra feita por um grupo de

52
empresários católicos belgas que conseguimos durante uma viagem realizada com outra
finalidade. Os vizinhos participantes que assim o solicitavam receberam cestas básicas
compradas com recursos provenientes das fontes antes citadas. (O valor total aproximado
dos recursos financeiros usados foi de três mil dólares, o que mostra que no terceiro
Mundo, com pouco dinheiro às vezes é possível conseguir resultados de alto valor
comunitário). Antes de finalizar 1997, a sede (dotada de amplo salão, uma cozinha e um
banheiro) embora precisando de alguns acabamentos, foi inaugurada com diversas
atividades comunitárias (incluindo, na sua primeira semana de funcionamento, o
alojamento de três famílias que tiveram suas casas inundadas após uma das tradicionais
fortes chuvas da região). Ali passaram a acontecer as Assembléias e as reuniões da
Diretoria da Associação, mini-cursos de formação profissional (como um de artesanato com
papel usado e outro de datilografia) e atividades educativas (como a atenção extra-escolar
das crianças, a cargo da nossa equipe, adiante referida).

1.2.2 Educação Ambiental: coleta seletiva de resíduos sólidos em troca de roupa

Em junho de 1997 organizamos uma campanha de coleta seletiva de resíduos


sólidos recicláveis, especialmente de plástico. Ela teve como objetivo incentivar o
desenvolvimento da consciência comunitária sobre a relação lixo-doença, sobre a
importância do manejo ecológico de resíduos e da reciclagem dos mesmos (conforme o
slogan das "Três R" que orienta a Reduzir, Reutilizar, e Reciclar). Paralelamente se buscava
aliviar em algo a carência de roupas de inverno entre a vizinhança (carência importante pela
crueza dos invernos na região).
Com participação importante de crianças e alguns adultos distribuíram-se folhetos
explicativos em todo o bairro e organizou-se um "tour" com alto-falantes . Paralelamente,
através de pessoas e entidades, recolheu-se a roupa a ser doada, em cuja classificação e
empacotamento participaram grupos de vizinhos do bairro. Nas datas indicadas os vizinhos
trouxeram os resíduos limpos e levaram para casa, em troca, a roupa que necessitavam.
Finalmente, os resíduos recolhidos foram vendidos, em proveito da Associação de Bairro, a
uma indústria que pratica a reciclagem de plásticos. Mais de cem famílias (com as suas
respectivas crianças) participaram desta atividade.

1.2.3 Aulas de reforço escolar e Educação Ambiental

No fim de 1997, a partir de uma Assembléia da Associação de Bairro algumas


vizinhas solicitaram aulas de reforço escolar para seus filhos e crianças do bairro em geral,
tendo em vista as dificuldades encontradas por elas na Escola (onde é elevado o índice de
reprovação). Decidimos então iniciar as aulas de reforço no ano letivo de 1998 que
começava em março, para melhor estruturar um trabalho a ser realizado com alunos dos
oito anos do primeiro grau e com idades oscilantes entre os sete e os quinze anos.
Propusemos também que os assuntos relativos às diferentes áreas de conhecimento
(Português, Matemática, Ciências, História e Geografia) fossem abordados em ótica
ambiental e enfocando realidades vividas no bairro.
Feita a inscrição dos alunos, no dia 15 de março de 1998 iniciou-se o trabalho (a
cargo de três bolsistas universitárias dirigidas pelo autor destas linhas), na Sede da
Associação de Bairro. Organizaram-se dois horários semanais diferentes segundo o tempo
livre dos alunos, com períodos de aulas e atividades de duas horas e meia cada um e um

53
intervalo onde foi servida merenda (com recursos aportados por nós) como forma de
reforçar a alimentação de crianças que, no geral, estão mal-nutridas. Os alunos atendidos
freqüentam oito escolas públicas diferentes da região.
Num primeiro momento estes alunos se apresentaram a seus colegas e professoras
(as três bolsistas antes citadas) e expuseram suas principais dificuldades na Escola, as quais
foram confirmadas pelas professoras revisando os cadernos escolares das crianças.
Posteriormente, para melhor atendê-los, em cada turno os alunos foram divididos em três
grupos (de primeiro ano, de segundo e terceiro, e das cinco séries restantes do primeiro
grau, respectivamente) e começaram as aulas com atividades integradoras de todo o grande
grupo (em geral ao início de cada aula), onde se abordaram diversas questões ambientais,
principalmente as vinculadas à higiene própria e do meio, importantes para a saúde física e
mental. Surgiu então dos próprios alunos a idéia de que queriam erigir-se em "fiscais
ambientais do bairro"; foram abordadas então questões tais como a relação interpessoal
adequada e nosso papel social como cidadãos, as atitudes violentas e não-violentas no dia-
a-dia, e o manejo e reciclagem de resíduos, relacionando sempre os assuntos tratados com a
realidade do próprio bairro; para tanto houve saídas de campo com passeios e registros de
observação do bairro (em especial no referente ao estado das ruas, ausência de saneamento
básico e animais existentes, vinculando estes fatos às doenças constatadas na vizinhança).
Um resultado concreto destas atividades foram as iniciativas dos alunos de instalar
recipientes para resíduos, reutilizando caixas de cartão jogadas fora pelo comércio, em
diversos locais públicos do bairro, a começar pela Sede da Associação, e de insistir junto á
Prefeitura para que o caminhão coletor passasse com a necessária freqüência e em todas as
ruas do bairro, e não intermitentemente e só em algumas delas, como o fazia até então. Para
fomentar o uso de tais recipientes os alunos propuseram elaborar cartazes e panfletos
alusivos para serem entregues e discutidos com os vizinhos. Logo, no Dia Mundial do Meio
Ambiente, alunos e mães do bairro fizeram uma passeata percorrendo as principais ruas do
bairro, portando cartazes e bandeiras e, na sua volta para a Sede da Associação, instalaram
ali dois recipientes, destinados um ao material orgânico e o outro a materiais reutilizáveis
e/ou recicláveis (como metais, vidros e plásticos), sendo que o papel seria destinado a ser
reciclado pelos próprios alunos para ser usado nas suas tarefas escolares. O material
orgânico foi compostado num terreno próximo preparado pelos alunos, para colocá-lo à
disposição gratuitamente em mãos dos vizinhos que possuem pequenas hortas domésticas,
o abono orgânico de que necessitam e também para ser usado pelos próprios alunos no
plantio de flores em garrafas plásticas separadas do lixo; a ocasião foi aproveitada para
discutir com os alunos e a vizinhança as vantagens do adubo orgânico e os problemas
causados pelos adubos industriais.

1.2.4 Elaboração de Projeto de Lei dispondo sobre a propriedade dos terrenos

O anteprojeto de lei proposto pela Associação dos Moradores do CBII , elaborado


com a nossa assessoria (e o apoio especializado de três advogados) “dispõe sobre
transferência e venda de terrenos de propriedade do Município do Rio Grande, para
famílias de baixa renda, para efeitos exclusivamente de moradia”.
A iniciativa partiu dos moradores, preocupados pelo fato de que atualmente só
detêm a posse dos terrenos, sendo que até esta é precária pela falta de um cadastramento
sério a cargo da Prefeitura, o que origina abusos na compra-venda ilegal de lotes e brigas

54
que chegaram ao uso de armas de fogo e sucessivas ameaças aos dirigentes da Associação
de Bairro.
O projeto foi elaborado ao longo de cinco Assembléias Gerais da Associação dos
Moradores e finalmente apresentado numa Assembléia aos Vereadores que
compareceram à Sede da Associação (todos foram convidados e cinco se fizeram
presentes na ocasião). Em média 150 vizinhos participaram de cada uma das Assembléias
nas quais o Projeto foi elaborado e discutido artigo por artigo. Eis o texto completo do
Projeto:

Projeto de Lei n....:


“Dispõe sobre a transferência/venda da posse/propriedade de terrenos do Município para
famílias de baixa renda para efeitos de moradia,
exclusivamente.

O Prefeito Municipal de Rio Grande, usando das atribuições que lhe confere a Lei
Orgânica, em seu artigo 51 inciso III faz saber que a Câmara Municipal aprovou e ele
sanciona a seguinte Lei:

Art. 1 Conceder-se-á direito de propriedade ao detentor de família que requerer o benefício


da presente lei desde que a renda familiar no momento da solicitação não ultrapasse 5
salários mínimos.
Art. 2 O pagamento do terreno dar-se-á durante 20 anos em contribuição social mensal
calculada em 10% do salário mínimo, sendo facultada a liquidação por antecipação do
prazo do compromisso pecuniário com pagamento a maior pelo beneficiário, quando em
contrapartida transmitir-se-á a propriedade plena.
Art. 3 Havendo inadimplência injustificada, por mais de 180 dias da contribuição social,
dará direito ao Município de revogar o contrato de compra e venda do lote do terreno.
Parágrafo único- Na eventualidade que os atrasos anteriormente mencionados no
caput deste artigo sejam justificados perante a Secretaria Municipal que o Executivo
indicar, e desde que a justificativa mereça o aval do conselho de Bem Estar Social, a
renegociação reconhecerá os pagamentos já efetuados.
Art. 4 Toda transferência de propriedade de terreno só terá valor legal se reconhecida pelo
Conselho de Bem-estar Social, e o titular que transferiu o lote de terreno perderá a
prerrogativa de se habilitar novamente aos benefícios desta Lei
Art. 5 A Prefeitura Municipal fica responsabilizada pelo cadastramento e fiscalização, com
a publicação semestral das listagens dos beneficiários ativos do uso e posse dos terrenos
objeto da presente Lei.
Art.6 A venda dos terrenos ocorrerá através da secretaria ou órgão indicado pelo Executivo
Municipal, que assessorado pelo Conselho de Bem-estar Social, procederá à avaliação do
pretendente do benefício que trata a presente Lei.
Art. 7 Na eventualidade de morte do adquirente, a sucessão prevista no Contrato de
Compra e venda do lote, obedecerá à seguinte ordem excludente, devendo, ainda, o novo
beneficiário atender aos demais requisitos desta Lei: I - cônjuge ou companheiro, II - filhos
menores, na pessoa de seu representante legal, III- filhos maiores, IV- ascendentes, V-
colaterais
Art. 8 Em caso de separação do casal do qual faz parte o/a chefe de família terá
preferência para

55
continuar a beneficiar-se do direito conferido por esta lei o membro do casal que conservar
a guarda dos filhos menores, e, não havendo filhos menores, a mulher.
Art. 9 Ocorrendo o óbito do cônjuge automaticamente se dará a quitação do lote do
terreno, transmitindo-se a propriedade plena, de conformidade com a sucessão preceituada
no caput e incisos do artigo 7 da presente Lei.
Art. 10 Os casos omissos serão resolvidos pelo Executivo Municipal conjuntamente com o
Conselho de Bem-estar Social e a comunidade diretamente envolvida, ficando ainda
autorizado a regulamentar, no que couber, a presente lei, para o atingimento das finalidades
da mesma.
Art. 11 Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.
Art. 12 Revogam-se as disposições em contrário3.

A.2 Ação com comunidades vítimas de agressões ambientais

O porto de Rio Grande (Rio Grande do Sul, Brasil) é um dos cinco maiores do país;
além de suas atividades de exportação e importação as adjacências do porto conhecem
intensa atividade de pescadores artesanais em número calculado em vários milhares (que
capturam principalmente, a corvina, a tainha, o linguado e, no verão, sobre tudo o camarão-
rosa, penaeus paulensis, de grande valor comercial).
Em 30 de agosto de 1998 filtrou a informação de que o navio "Bahamas", de
bandeira maltesa, atracado no Porto de Rio Grande, estava deixando vazar para as águas do
canal de acesso sua carga de doze mil toneladas de ácido sulfúrico (carga destinada,
principalmente, a grandes fábricas de fertilizantes existentes no super-porto). Pouco depois
se soube que de fato o navio estava encalhado no mole de operações no chamado Porto
Novo e que uma equipe de especialistas (incluindo o oficial da Marinha militar responsável
pela Capitania dos Portos com sede em Rio Grande, autoridades portuárias e docentes da
Universidade) haviam decidido, alegando riscos iminentes de explosão, bombear a carga do
barco para o canal. A operação se iniciou sem qualquer audiência pública nem discussão
com a sociedade civil. Simultaneamente fizeram saber por meios verbais que a pesca estava
proibida no canal de acesso e suas adjacências.
Quando tomamos conhecimento do incidente, da ação de bombeio e da proibição
verbal da pesca, nos mobilizamos juntamente com ecologistas locais e outros vindos de
Porto Alegre, com alunos universitários e docentes escolares, para deter o bombeio e
encontrar soluções alternativas. Já então sabíamos que este era ao que parecia o maior
acidente com ácido sulfúrico em águas estuarinas ocorrido no mundo e toda a atenção da
sociedade era necessária para enfrentá-lo com responsabilidade ecológica. Para tanto
intervimos junto ao Ministério Público, o qual, através da Procuradora da República e a
Promotora de Defesa Comunitária atuantes em Rio Grande, tomou cartas de imediato no
assunto, sensibilizadas pelo dano sócioambiental causado e aquele que eventualmente

3
Em 1999 o presente Projeto entrou na pauta da Câmara de Vereadores; dois substitutivos,
divergindo sobre o tempo e montante das mensalidades fizeram com que sua votação fosse
adiada (por enquanto sem previsão de data para acontecer, mas com sucessivas
manifestações da União Riograndina de Associações de Bairro, que reúne todas as
Associações de Bairro de Rio Grande, para que ela não demore).

56
poderia advir. Em conjunto gestionamos a realização de uma Audiência Pública especial da
Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa (Deputados) do Estado do
Rio Grande do Sul, na cidade de Rio Grande, para tratar do assunto.
No desfile do Dia da Pátria em 7 de setembro, presidido por autoridades civis e
militares, não faltou nossa presença nem as mensagens de protesto levados por ecologistas
e por alunos de uma das escolas que desfilaram4.

A Audiência Pública teve lugar em 10 de setembro, merecendo grande atenção local


e estadual. Nela o grupo de "especialistas" tentou defender o bombeamento em curso como
a única saída. Com outros representantes de movimentos ecologistas e diante da presença
de numerosa delegação de pescadores artesanais que protestavam pelo prejuízo sofrido,
defendemos a detenção imediata do bombeio, a busca de alternativas para resolver o
incidente com base no princípio de que o poluidor devia pagar por elas e a implementação
urgente das medidas preventivas com ampla participação social, em especial dos
pescadores artesanais, para evitar que incidentes parecidos ou ainda piores pudessem se
repetir num porto que diariamente estava recebendo cargas tóxicas sem possuir nem a infra-
estrutura nem a fiscalização adequada para tal.
Com uma equipe de voluntários do MEA e do projeto "Educação Ambiental na
Rede Escolar Estadual", (ao qual haverei de me referir na próxima seção), nos propusemos
fazer o diagnóstico dos danos sofridos pelos pescadores artesanais, com o objetivo de
entregar ao Ministério Público e aos próprios interessados um Relatório que pudesse ser útil
para futuras ações jurídicas que pleiteassem as indenizações pertinentes, priorizando os
mais necessitados, ou seja os pescadores artesanais e demais trabalhadores das pequenas
empresas e comércios de frutos do mar em Rio Grande. Eis o resumo da metodologia e os
resultados obtidos

2.1 Considerações Metodológicas

Colocamo-nos como objetivo contribuir ao conhecimento (mesmo que inicial e


aproximado) dos prejuízos pecuniários já sofridos e aqueles estimados até o fim de 1998
pelas famílias dos pescadores artesanais de Rio Grande e São José do Norte, em
decorrência do incidente acontecido com o navio "Bahamas".
Em função do tamanho e dispersão da população-alvo e da escassez dos recursos
materiais a nossa disposição optamos por pesquisar no presente momento somente um dos
assentamentos daquela população.
Tendo em vista a quantidade de pescadores artesanais que lá moram e o fato de que
o local é próximo ao Porto Novo (onde ocorreu o derramamento da mistura ácida contida
no "Bahamas"), optamos por pesquisar a comunidade da 4ª Seção da Barra de Rio Grande.
Inicialmente elaborou-se o Questionário e divulgou-se, através dos alunos da Escola
Estadual "Saldanha da Gama", da Associação de Moradores da 4ª Seção da Barra e da

4
Na ocasião teve grande repercussão a partir de sua publicação no principal jornal do
Estado ("Zero Hora") o artigo da nossa autoria "As vítimas do navio ' Bahamas' "
mostrando como o caso do navio ainda estava longe do fim, mas as vítimas deste incidente
já apareciam para todos. As primeiras são os pescadores artesanais, já tão castigados por
safras e preços ruins e ausência de subsídios...

57
imprensa local, um apelo para que os vizinhos interessados em colaborar com o
levantamento pretendido comparecessem à supracitada Escola no dia 18 de setembro do
corrente entre as 8 e as 16 horas. Em todo momento foi esclarecido que a participação ou
não-participação neste levantamento não significava nem privilégio nem prejuízo em toda
eventual indenização, toda vez que o que se pretendia não era fazer um cadastramento
personalizado dos prejuízos sofridos mas chegar a dados globais que pudessem orientar
(pelo menos inicialmente) futuras ações indenizatórias impetradas pelos interessados e/ou
pelo Ministério Público.
Conforme planejado, mas ultrapassando as expectativas pelo grande
comparecimento da vizinhança, as entrevistas ocorreram no dia e local acima referidos. Os
entrevistadores, em número de sete e previamente treinados, são integrantes do projeto de
Educação Ambiental na Rede Escolar Estadual de Rio Grande, em execução desde junho de
1997 sob a coordenação do autor deste Relatório (também oficiante na ocasião como
entrevistador). Foi entrevistada somente uma pessoa por núcleo familiar ( na medida em
que através do seu testemunho o Formulário permite aferir os danos à renda familiar como
um todo). As entrevistas foram individuais, cada informante dialogando sozinho com o
respectivo entrevistador, e cada uma teve duração média de 18 minutos. Até o fim do
horário citado foram entrevistadas 128 pessoas, representando outras tantas famílias (e
tendo ficado sem poder ser atendida, por falta de tempo, mais uma centena de pessoas).

2.2 Resultados

2.2.1 Considerações Iniciais

a) Na apuração dos resultados optou-se por trabalhar com uma amostra ao acaso de
100 (cem) Formulários.
b) Supúnhamos que muitas respostas podiam ser parcialmente ambíguas no que
tange ao cálculo financeiro dos prejuízos sofridos, não só pela necessária improvisação
das contas na hora da entrevista, mas também pelo número de analfabetos ou semi-
analfabetos que fazem parte da população pesquisada. Os dados colhidos confirmaram
esta suspeita e em alguns casos foi necessário arredondar e processar algumas informações
constantes de algumas das respostas para deduzir o valor referente a outras questões.
Quando toda extrapolação pareceu perigosa para a pertinência do resultado o Formulário
foi dispensado para aquela Questão.
c) É um fato que as diferenças entre os prejuízos declarados são muito grandes, em
decorrência da ocupação do pescador e/ou do número de pessoas que em cada família
depende da pesca artesanal; assim se um dono de barco, que recebe várias "partes" na
partilha da "parelha" declara prejuízos que chegam a R$ 20.000,00 (vinte mil), um simples
pescador (com direito a apenas uma "parte") declara valores que não chegam a R$ 1.000,00
(um mil). Isto parece indicar a necessidade de se proceder a levantamentos ulteriores mais
discriminatórios, para embasar qualquer ação indenizatória que se pretenda adequada aos
prejuízos sofridos.
d) No entanto, como estamos à procura de dados iniciais globais, decidimos afastar
os dois maiores valores de prejuízos declarados e assim consideramos que o cálculo de
Médias fornece elementos não desprezíveis para calcular os prejuízos ocorridos.
É bom também frisar que, pelo menos para alguns casos, existe a possibilidade de se
conferir futuramente documentos que atestem com precisão os prejuízos diferenciados

58
sofridos; assim o pescador Dorivaldo Souza Camilo coloca a disposição de quem
quiser vê-las, notas referentes aos seus ganhos de 1997 e que permitem calcular com
precisão os prejuízos que está sofrendo e irá sofrer até o fim deste ano.

2.2.1 Os Números

a) O número de pessoas por casa é em média de 4,53


b) O número de pessoas que em cada casa têm atividade profissional vinculada à pesca
artesanal é em média : 1,56
c) Na sua quase totalidade os envolvidos em atividade ligada à pesca artesanal trabalham
nessa atividade durante o ano todo.
d) Quase todos os pescadores declarantes foram impedidos de trabalhar, devido ao
incidente com o "Bahamas" durante todo o período transcorrido desde a divulgação do
mesmo e a proibição (informal) da pesca no local, em 30 de agosto de 1998.
e) Aqui é registrado o prejuízo sofrido até 18/09/98 pelo Chefe de Família. (Foram
descartados sete questionários da Amostra por causa de ambigüidade na informação e dois
nos quais constava um prejuízo de, respectivamente, R$ 15.000,00 e outro de R$
20.000,00 considerados quantiosos demais e podendo afetar a representatividade da média,
permanecendo um total objeto de cálculo de 93 Formulários).
Prejuízo Médio do Chefe de Família até 18/09/98: R$ 832,79
f)Valor médio do prejuízo sofrido por cada família até 18/09/98 : R$ 1.140,46
g) A pergunta foi especificada, delimitando-a assim : " Prejuízos que a família terá a
partir de hoje e ATÉ O FINAL DE 1998 devido ao incidente com o Bahamas". Isto
porque no último semestre do ano ocorre boa parte da safra da corvina, essencial para
a renda das famílias pesquisadas.
Valor médio do prejuízo de cada família até fim de 1998 : R$ 3.769,72
h) Somando as médias obtidas nas duas questões anteriores: Prejuízo médio total de cada
família até o fim de 1998: R$ 4.910,18

2.3 Outros resultados Qualitativos5

a) Vários depoimentos dão conta, a partir da própria experiência, ou de relatos ouvidos de


colegas que nas últimas duas semanas quem caiu na água do canal ou teve contato com ela
sofreu (pelo menos pelo espaço de alguns dias) de sensação de "queimadura", e/ou
"coceira", com aparição de "bolhas". Um pescador diz que as pequenas feridas causadas no
manejo de artefatos que estiveram em contato com aquela mesma água parecem infetar-se
ultimamente com mais facilidade que o normal. Esta informação mereceria, ao que tudo
indica, pesquisa de técnicos em saúde.

b) Vários depoimentos referem que nas últimas duas semanas nota-se que o limo ou a
sujeira das embarcações é "limpada" pela água do canal, contrariamente ao que
normalmente ocorre; também registram mudança de cor na pintura e inclusive no eixo e

5
Equipe de Entrevistadores : Prof. José C. Ruivo, Acad. Luzia Mendes de Barros, Arq.
Manoel Marcos, Profa. Maribel Milbrath, Profa. Raquel Farias, Profa. Vera M. Furlaneto;
Coord. Prof. Dr. Sirio López Velasco)

59
na hélice de algumas embarcações por eles usadas. Esta informação mereceria, ao que
tudo indica, pesquisa dos técnicos competentes na matéria.

c) Alguns depoimentos dão conta de um certo número de "bagrinhos" e "cascotes" que


foram vistos mortos, boiando, em águas do canal. Esta informação mereceria, salvo
melhor juízo, pesquisa dos técnicos competentes.

O Relatório foi entregue aos seus destinatários. Paralelamente, a mobilização


começou a dar seus frutos e a própria Justiça determinou o cesse do bombeio, primeiro
provisoriamente, e poucos dias depois de maneira definitiva. Ao mesmo tempo determinou
a contratação de outro barco para receber e soltar em alto mar (seguindo orientação de
especialistas em Oceanologia da FURG) a mistura ácida do "Bahamas", e a contratação de
uma equipe de salvamento aos efeitos de vedar os rombos existentes nos tanques e no casco
para, se fosse possível, fazer flutuar o barco para sacá-lo do porto rumo ao que fosse o
melhor destino a dar-lhe. Tudo isto às custas dos cofres dos proprietários e/ou operadores
do navio. Estas empresas trataram de resistir por todos os meios, desde os jurídicos, a
prática de ouvidos surdos aguardando algum cochilo da Justiça, até alegações de
impossibilidade de transferência da carga tóxica para outro navio por falta de condições
deste (o qual também fazia transporte de ácido sulfúrico!)
A tudo isto não faltaram na imprensa escrita local algumas vozes isoladas, incluindo
uma que dizia defender a honra ferida da Marinha brasileira, que apoiavam o bombeio,
antes praticado, e, chegou até a: pedir medalhas para os responsáveis por tal "solução"!
Na própria Universidade a situação se fez tensa entre os implicados naquela decisão
por um lado, e os que nos tínhamos mostrado partidários de outras alternativas. (A coisa
chegou ao ponto de que um dos contestatários foi objeto de um processo administrativo por
suposta violação da "ética profissional" nas suas críticas àquela decisão do bombeio; o
colega foi finalmente absolvido).
Finalmente, foi fretado por ordem judicial o barco "Yeros", que até fim de 1998 fez
várias viagens para soltar a mistura ácida em alto mar. Ao terminar o ano a equipe de
salvamento dava os últimos toques ao trabalho de reflutuamento do "Bahamas".
O Conselho Estadual do Meio Ambiente, responsável máximo pela política
ambiental no Estado do Rio Grande do Sul, aprovou medida que obrigava todos os
terminais portuários a entregar até 1 de janeiro de 1999 os planos de prevenção e de
combate a acidentes ambientais.
Os pescadores artesanais receberam ajudas de emergência (em especial em
espécies), tanto de órgãos públicos quanto de entidades da sociedade civil, e ingressaram
com ações judiciais exigindo reparação pelos danos sofridos.
Um ano depois do incidente, o "Bahamas" foi abandonado ( e, ao que consta, logo
afundado) pelos seus novos donos em Cabo Verde (sob o novo nome de "Orient Flower") e
correm na Justiça processos indenizatórios a favor dos pescadores artesanais no valor total
de R$ 26 milhões (num pacote de ações movidas contra as empresas responsáveis pelo
navio que atinge um total de R$ 176 milhões). A nova administração portuária parece
seriamente interessada em promover ações educativas, infra-estruturais e técnicas capazes
de impedir que possa se repetir um incidente parecido ao causado pelo "Bahamas".

60
A.3 Uma experiência através da educação formal

Já falamos e formulamos nossas propostas ( Lopez Velasco 1997, Cap. II) sobre a
ação pedagógico-política ecomunitarista a nível da formação de professores e do trabalho
de Pós-graduação (em especial na área de Educação Ambiental). Agora me permito referir
uma ação realizada, sob minha responsabilidade, com docentes que atuam no primeiro
grau, em escolas públicas estaduais, no projeto “Educação Ambiental na rede escolar
estadual de Rio Grande” que resumo a seguir.
O projeto transcorreu entre junho de 1997 a dezembro de 2000 ( e continua em 2001
com o subtítulo “Cidade das Águas”), trabalhando com mais de 30 docentes de 17 escolas
distribuídas numa dúzia de bairros da cidade (desde o centro até as periferias); ele se
propõe formar esses professores nos fundamentos da Educação Ambiental (no que segue
EA, segundo Lopez Velasco 1997, Cap. II e Lopez Velasco 1997b), e com eles e seus
alunos realizar o diagnóstico sócioambiental do bairro no qual as respectivas escoas estão
inseridas, para a partir desse levantamento realizar ações de EA de alcance comunitário.
O primeiro momento foi caracterizado como “ de abertura de horizontes” e
materializou-se durante o segundo semestre de 1997, com 15 encontros semanais de quatro
horas de duração cada, sendo dois deles saídas de campo. Os encontros vertebraram-se em
torno a comunicações de professores e alunos universitários, e integrantes de ONG’S ou
participantes de projetos comunitários, inclusive de índole comercial, que tratassem dos
mais variados assuntos relativos à EA ( desde a legislação ambiental à alimentação
alternativa, desde os fundamentos teóricos da pedagogia da EA à medicina popular
ancorada no uso de ervas, desde os fundamentos da ecologia até relatos de ações
comunitárias com mulheres carentes). As duas saídas de campo visaram identificar em
diversos pontos do Município, guiados por conhecedores, situações problemáticas do ponto
de vista sócioambiental, necessitadas de ação escolar e comunitária para resolvé-las.
Ambos tipos de atividades foram enriquecidos com sessões de vídeo e diverso material
impresso, tirado de publicações ou elaborado especialmente pelos orientadores do projeto
para a ocasião. Cada atividade foi avaliada por escrito pelos participantes. Superando as
expectativas depositadas já nesse primeiro momento:
a) um grupo de participantes assumiu a responsabilidade de organizar numa concorrida
rua do centro da cidade uma Amostra pública de EA com premiação dos melhores trabalhos
e sua divulgação mediante reprodução em camisetas colocadas á venda a fim de dar a
conhecer a produção que alunos das escolas participantes realizaram sobre EA em 1997,
incentivados pelos seus professores; o êxito alcançado nessa Amostra levou à repetição
dessa exposição em fevereiro de 1998, durante a feira anual do Livro organizada pela
Universidade na concorrida praia do Cassino;
b) uma das professoras participantes compôs diversas músicas com temática ambiental
muito belas e úteis como instrumento pedagógico, inclusive uma dedicada à Reserva
Ecológica do Taim (situada em parte em terras de Rio Grande) que passou a ser o Hino
oficioso do projeto;
c) uma das participantes apresentou e representou o projeto na I Conferência Nacional
de EA realizada em Brasília;
d) cento e quatro crianças de um dos bairros pobres observados durante uma das saídas
de campo (o CBII), receberam no natal de 1997 das mãos dos participantes no projeto
material escolar, roupa e/ou brinquedos, e ao mesmo bairro foram doadas aproximadamente
três toneladas de alimentos.

61
Num segundo momento, ocorrido em 1998, aconteceu o aprofundamento teórico
dos fundamentos da EA na escola e a pesquisa sobre o perfil sócioambiental dos bairros das
escolas participantes, além de uma saída de campo destinada a conhecer, para eventual uso
pedagógico ulterior (incluindo visitas de escolas) a sede da Reserva Ecológica do Taim. O
levantamento se fez com base em dois Questionários; um preenchido pelos docentes e
alunos participantes em cada escola, e o outro preenchido em vinte entrevistas a vizinhos
dos cinco quarteirões mais próximos a cada escola. Eis um resumo (ver o informe completo
em Lopez Velasco, Milbrath e Barros 1999) de alguns dos principais resultados do
diagnóstico sócioambiental dos bairros pesquisados ( representativos de toda a cidade de
Rio Grande).
Os alunos identificaram os seguintes problemas em todos ou na maioria dos bairros: a)
existência de inundações periódicas e repetidas; b) canos de água com vazamentos; c)
arborização inexistente ou insuficiente, havendo predominância de árvores exóticos, como
eucaliptos e pinos; d) arruamento e manutenção deficientes de ruas e bueiros ( quando
existem); e) despejo de efluentes da rede cloacal em boa parte sem nenhum tratamento na
Lagoa dos Patos (onde trabalham milhares de pescadores artesanais, de cujas capturas
depende grande parte do consumo local de peixes, camarões e outros frutos do mar); f)
inexistência em quase metade dos bairros e escolas pesquisados de coleta seletiva de lixo.
Nas informações dos vizinhos, por sua vez, são evidenciados, entre outros, os
seguintes problemas: a) quase a metade dos bairros não têm agentes comunitários de saúde;
b) as doenças mais comuns no inverno parecem ter relação com insuficiências na
urbanização e a precariedade das condições sócio-econômicas das pessoas, que aumentam
os efeitos climáticos; c) insuficiências no funcionamentos dos Centros de Saúde dos bairros
( inexistentes na quarta parte destes); d) alto índice de desemprego; e) atos de violência,
com predominância de roubos e furtos, seguidos pela ordem por brigas fora e dentro de
casa e as agressões sexuais; f) consumo de drogas no bairro e, em alguns casos, inclusive na
escola, com predomínio da maconha, seguida pela cocaína, a cola de sapateiro, e havendo
também uso do “crack” e o “hachiche”; g) praticamente não há espaços de lazer para as
mulheres em cada bairro.
Perguntados pelo que consideravam ser os principais problemas do bairro os
vizinhos apontaram os seguintes, pela ordem: a) falta de vigilância policial; b) deficiências
no sistema de saneamento e gestão do lixo; c) defeitos na rede de energia elétrica; d)
deficiências no centro de Saúde; e) desemprego. Resulta significativo (não só neste caso
mas também para uma autocrítica de todas as escolas do mundo) que por ampla maioria os
vizinhos de 11 das Escolas (num total computado de 16) opinaram que a escola em nada
contribui para superar os problemas apontados ( e somente num caso a resposta apontava
que a escola contribuía “muito”).
Os informes produzidos foram apresentados em cada escola pelos docentes e alunos
que os tinham elaborado (às vezes na presença de vizinhos que tinham respondido a um dos
questionários) e de imediato foram sendo publicados (em forma resumida mas com
razoável extensão) na imprensa local, socializando-se assim os resultados obtidos. Efeito
“milagroso” de tal divulgação foi o fato de que algumas das carências assinaladas (por
exemplo no funcionamento dos Centros de Saúde) foram prontamente resolvidas.
Na etapa compreendida entre 1999 e 2000 cada escola desenvolveu ações de EA
focalizando os temas da gestão da água e do lixo e a arborização e cultivo de plantas, no
seu respectivo bairro. Em novembro de 2000 aconteceu a Quarta Amostra de EA do Projeto
e uma avaliação inicial apontou conquistas na formação de valores e mudança de

62
comportamento dos alunos e vizinhos envolvidos e fraquezas no desenvolvimento de
conhecimentos e habilidades por parte dos mesmos. Por iniciativa dos docentes
participantes (representantes de uma dúzia de escolas que fazem a caminhada desde 1997)
o trabalho continua em 2001.

A . 4 Ações ecológicas comunitárias e/ou com ONG’S

Esta ação combinou de forma interessante esforços de moradores, instâncias


acadêmicas universitárias, em especial do MEA (Mestrado em Educação Ambiental da
FURG), de ONG’S ambientalistas, de docentes da rede escolar, de órgãos ambientais
públicos, de organizações não-ambientalistas da sociedade civil, e dos três poderes do
Estado.
Cassino é a praia de Rio Grande e seus admiradores a catalogam como "a maior do
mundo", pois no seu prolongamentos as areias se estendem por 200 Km até a fronteira com
o Uruguai. Acontece que as dunas da zona residencial do Cassino e as situadas entre esta e
o Porto, têm sido dizimadas, em especial por retiradas de areia feitas por particulares e pela
própria Prefeitura, para diversos usos; tampouco são alheios à devastação verificada, a
prática do pastoreio e de esportes motorizados, depósitos de lixo e construções irregulares
na área costeira.
Por iniciativa de uma ONG ecológica local (o Núcleo de Estudos e Monitoramento
Ambiental, o NEMA), um projeto de recuperação das dunas estava em curso, mas no final
de 1997 ocorreu uma crise, sendo preciso que um membro de outra organização ecológica
local (o Centro de Estudos Ambientais, CEA) se plantasse diante da máquina da Prefeitura
que removia abundantes quantidades de areia na praia, para deter a ação, imediatamente
denunciada ao Ministério Público.
A partir dali entramos em ação, realizando no "estande" de um outro projeto que
coordenamos (" Educação Ambiental na Rede Escolar Estadual de Rio Grande", do qual foi
co-coordenadora até 1998 a Profa. Jara Fontoura da Silveira) na Feira do Livro promovida
anualmente pela FURG no Cassino, uma pesquisa de opinião com os moradores e turistas,
relativa à situação e preservação das dunas do Cassino. Os resultados desta pesquisa
evidenciaram que uma esmagadora maioria dos entrevistados era favorável à preservação
das dunas e contrária à retirada de areia, e foram amplamente divulgados pela imprensa
escrita local.
Um mês depois solicitamos a um grupo de alunos do MEA a realização de um
trabalho que sintetizasse a descrição científica do ecossistema de dunas na nossa região,
explicasse sua função sócioambiental e definisse parâmetros para sua preservação ou
manejo ecologicamente sustentável, ao tempo que resumisse a legislação ambiental
pertinente. Com base neste trabalho elaboramos com esses mesmos alunos (dentre os quais
havia um advogado), a partir de uma versão inicial do CEA, um Projeto de Lei Municipal
relativo à preservação das dunas do Cassino, o qual foi remitido a todos os Partidos
Políticos, à Prefeitura, aos órgãos governamentais de gestão ambiental, e a diversas
entidades classistas, patronais e de assalariados. Junto com o Projeto cada pessoa ou órgão
recebeu cópia do resumo sobre a função das dunas no ecossistema da nossa região; as
idéias centrais do resumo também foram divulgadas em artigo dedicado à questão das
dunas do Município, publicado na imprensa local.
Paralelamente planejamos um Seminário
Internacional (com participantes vindos do Uruguai e da Alemanha), tendo sido reservado

63
nesse evento um dia para a apresentação e discussão do projeto de lei antes citado. Para o
mesmo foram convidados todas as pessoas/órgãos acima mencionados. Ocorreu que depois
de intensos e produtivos debates (e sendo superados alguns ciúmes e diferenças pessoais),
contando com a participação de quase todos os segmentos convidados e com um público de
200 pessoas, o Projeto foi referendado pelo consenso general. Enviado à Câmara
Municipal, depois de esclarecidos alguns equívocos, o Projeto foi aprovado sem qualquer
modificação por unanimidade e posteriormente foi sancionado sem vetos pelo Prefeito,
entrando em vigor como lei já em 19986.

No segundo semestre de 1999 e durante quase todo o ano de 2000 voltaram a


erguer-se algumas poucas vozes na Câmara Municipal e na imprensa que pediam a abertura
de ruas em meio às dunas, pelo menos no período de verão; mas por enquanto e graças à
intensa mobilização de ambientalistas e estudantes a lei resiste na sua forma original.

A.5 Ações com os Sindicatos e Partidos

Já falei (no início do Cap. I desta Parte) sobre como vejo a ação ecomunitarista no que
diz respeito aos Sindicatos e Partidos. Os problemas referidos (em especial no Cap. III
desta Parte) e que sem dúvida se repetem e repetirão em boa parte do mundo, não devem
nos fazer esquecer que, além de suas funções tradicionais, essas instâncias podem assumir
posturas e cumprirem tarefas positivas em perspectiva ecomunitarista ( como as
mencionadas antes em relação a ações comunitárias e/ou ecológicas). As experiências
resultantes do novo governo com participação dos “Verdes” na Alemanha, assim como as
do primeiro governo de esquerda no Rio Grande do Sul, oferecerão elementos para que
possamos aprofundar as reflexões sobre o papel e as formas de ação dos Partidos (e
sindicatos) na luta ecomunitarista. No Cone Sul essas experiências ver-se-iam
substancialmente enriquecidas se a Frente Ampla conseguir chegar ao governo do Uruguai
nas futuras eleições.

B. Formas de ação

1. Ações participativas e diretas

Entendo por ações participativas e diretas aquelas mais ou menos pacíficas ou


violentas com participação direta das comunidades e/ou cidadãos engajados em geral.
Ramachandra Guha (1994, p. 147) tem feito uma síntese das diversas modalidades que esse
tipo de ação tem tido na Índia ( apoiando-se em especial nas experiências de luta contra a
construção da barragem do rio Narmada, a resistência à entrega de terras de florestas à
companhia KPL no Estado de Karnataka, e o salvamento de árvores nativas no “movimento
de abraçar as árvores” Chipko Andolan originado no Garhwal Himalaia em 1973). Embora
a transcrição é extensa vale muito a pena. “ Igualmente que a luta contra a KPL o
movimento do Narmada tem agido simultaneamente em diversas frentes: uma forte

6
Projeto-de-lei que “considera as dunas e o conjunto ecológico que formam,
patrimônio ambiental, cultural e paisagístico do município de rio grande e dá outras
providências.”

64
campanha na mídia, demandas nos tribunais de justiça, e o lobby dos atores principais (
como o Banco Mundial, que apoiava a barragem). O mais efetivo tem sido o
desenvolvimento de um vocabulário de protesto brilhantemente variado, em defesa dos
camponeses e grupos tribais desalojados pela barragem. Essas estratégias de ação direta
podem ser classificadas em quatro tipos. Em primeiro lugar [está] a demonstração direta de
poder, evidenciado em manifestações (pradarshan em língua hindi) organizadas nas
cidades. O protesto mobiliza a maior quantidade possível de pessoas que marcham pela
cidade gritando slogans, cantando, caminhando em procissão até o lugar do meeting
público final. O objetivo é a afirmação de uma presença na cidade, que é o lugar do poder
local, provincial ou nacional. Os manifestantes levam uma mensagem que ao mesmo tempo
ameaça e implora, dizendo aos que mandam e a todos os habitantes das cidades: ‘ não
esqueçam de nós, os despossuídos do campo; podemos causar conflitos, mas não o faremos
se recebermos justiça’. Existe também a paralisação da vida econômica através de atos de
protesto mais militantes. Assim, a tática do hartal ou bandh consiste em obrigar as lojas e
indústrias a fecharem suas portas, ou tirar de circulação os ônibus, paralisando a vida
normal. Uma variante consiste no bloqueio das estradas, rasta roko, mediante uma grande
‘sentada’, às vezes durante vários dias. Essas técnicas são, pois, mais coactivas e
persuasivas, fazendo o Estado ou outros setores da população arcarem com os custos se não
derem satisfação a quem protesta. Enquanto o hartal ou rasta roko tentam obstruir a vida
econômica num amplo território, uma terceira forma de ação está mais diretamente dirigida
a um objetivo individual; assim a dharna ou ‘sentada’ pode usar-se para impedir o trabalho
numa barragem ou mina em particular; outras vezes o objetivo é uma autoridade e não um
lugar de produção, e os camponeses que protestam rodeiam ( gherao) um alto funcionário e
somente permitem que ele reconquiste sua liberdade de movimentos depois que tenha
ouvido as reivindicações e que prometa alguma ação a respeito delas. A quarta estratégia
general de ação direta tem por objetivo fazer pressão moral sobre o estado como um todo, e
não somente sobre um dos seus funcionários. A ação mais notável é [nesta categoria] o
bhook hartal, a greve de fome indefinida de um líder carismático de um movimento
popular...No bhook hartal, a coragem e o sacrifício individual se contrapõe diretamente à
demanda de legitimidade do estado. O jejum usualmente é feito num espaço público e a
mídia presta-lhe atenção. À medida em que os dias passam e que a saúde do ou da grevista
piora perigosamente, o estado se vê forçado a um gesto de submissão, embora [esse gesto]
consista somente na formação de uma nova comissão para rever o caso em conflito...Outra
técnica parecida, cujo objetivo é também ‘envergonhar o Estado’ chama-se jail bahro
andolan (movimento para encher as prisões), e é de natureza coletiva. Aqueles que
protestam violam a lei pacífica e deliberadamente, esperando serem presos e que o Estado
fique envergonhado pelo encarceramento massivo de cidadãos”. E continua Guha: “Essas
técnicas são algumas das que compõem o vocabulário de protesto do movimento
ecologista...mas as situações novas requerem inovações. Assim os camponeses em Garhwal
desenvolveram a técnica idiosincrática e efetivo do ‘Chipko” ( se abraçar às arvores); a SP
de Dharwad, que se opunha às plantações de eucaliptos, inventou a satyagraha Kithiko-
Hachiko ( arrancar-e-plantar); e a mais dramática, o NBA ameaçou com um jal samadhi
(‘enterro’ na água), afirmando que seus ativistas não sairiam dos povoados e aldeias que
seriam cobertos pelas águas ao fechar-se as comportas da barragem e a água subir até eles”.
No Brasil a experiência de Chico Mendes alcançou reconhecimento mundial.
Unindo os povos da floresta, a começar pelos seringueiros, Chico se opôs à devastação da
floresta amazônica. O “empate” foi forma privilegiada de luta do movimento, com

65
características muito similares ao do Chipko indiano, pois consistia em acudir onde a
floresta estava sendo derrubada e, abraçando-se às árvores, impedir a continuação da ação
das máquinas e dos homens; criava-se assim um impasse que dava tempo para que a
situação fosse conhecida e, mediante a ação de aliados na cidade, conseguir alguma medida
legal e/ou administrativa que proibisse a continuidade da ação devastadora, mesmo que
temporalmente. Amadurecendo na luta o movimento dos povos da floresta propôs uma
alternativa ao pseudo-desenvolvimento devastador: a reserva extrativista. Esta consiste em
manter a floresta em pé ao tempo que instaura-se a exploração ecologicamente sustentável
de seus produtos, a cargo das próprias comunidades da floresta. Antes e sobretudo depois
do assassinato de Chico Mendes, a ,mãos de um fazendeiro, as reservas extrativistas
entraram em ação. Atualmente enfrentam o que parece ser uma dificuldade de
compatibilização com as leis do mercado capitalista; por um lado as comunidades
participantes não conseguem uma renda decente para sobreviver ( tendo sido em 1997 a
média de renda familiar em torno de 50 dólares mensais); por outro questiona-se se uma
eventual adaptação à regras do jogo capitalista não significaria uma desvirtuação do espírito
sócio-ecológico que animou o surgimento das reservas extrativistas ( acarretando inclusive
por involuções na forma cooperativista adotada por elas na produção e na distribuição).
Para a segunda questão ainda não tenho uma resposta definitiva. Para enfrentar a primeira
eu propus num Congresso da Sociedade Brasileira para o progresso da Ciência (SBPC)
realizado em São Paulo em 1996 a um dos burocratas que desde o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) com sede em Brasília, tem a
responsabilidade governamental (do Presidente Fernando H. Cardoso) de atender as
reservas extrativistas, que fosse concedida às comunidades de tais reservas uma bolsa por
serviços prestados ao país e à humanidade na preservação-conservação do Amazonas, que
lhes permitisse completar sua renda para alcançar um nível de vida decente. O burocrata
respondeu-me que embora essa fosse uma idéia interessante parecia-lhe que poderia haver
ali uma dimensão paternalista que significava infravaloração dos beneficiários e poderia
trazer a oposição destes. Disse-lhe que não existia nem tal paternalismo nem
infravaloração, mas, pelo contrário, sua promoção á condição de heróicos servidores da
humanidade, recebendo um retorno financeiro em troca de tão valiosos serviços; e também
disse para mim que era muito significativo o fato de que não houvesse tão sofisticadas
cogitações quando esse mesmo Governo dava, do dinheiro público, bilionários subsídios a
banqueiros e multinacionais. Ao finalizar o século XX a penúria das reservas extrativistas
continua e o que de fato existe é a falta de vontade política do Governo federal para auxiliar
essa alternativa produtiva contrária ao horizonte de pseudo-desenvolvimento neo-liberal
escolhido por ele.
A outra experiência brasileira que quero citar é a do Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST). Agindo em todo o país com a participação de milhares de pessoas,
apoiado pelo setor progressista da Igreja Católica, o MST, face à paralisação da prometida
Reforma Agrária brasileira, usa como forma de ação preferencial a ocupação e o
acampamento. As fazendas improdutivas, que o Governo já deveria ter expropriado ou
poderia expropriar para efeitos de reforma Agrária, são ocupadas. Nessa ação a palavra de
ordem é “Ocupar, Resistir, Produzir”. Os ocupantes preparam a terra imediatamente para o
cultivo, ao tempo em que se organizam para não serem desalojados pelos “bandos de
jagunços” às ordens do fazendeiro, ou pelas forças policiais. Em tendas provisórias,
cobertas de plástico para enfrenta a chuva e o frio, o acampamento se organiza em
comissões onde todos participam para atender as necessidades do dia a dia (em matéria de

66
alimentação, saúde, segurança, etc.), estando proibido, por adesão expressa de cada
ocupante, o consumo de drogas ou bebidas alcoólicas, salvo, no que diz respeito a estas
últimas, em festas comunitárias programadas pelo grupo. Os acampamentos mais
duradouros contam inclusive com escola funcionando numa das tendas, atendida por
professores voluntários que colaboram com o MST; destaca-se nesse aspecto a tarefa de
alfabetização de adultos realizada em finais de 1998 por 500 monitores.
Quando são desalojados por ordem judicial os ocupantes se instalam á beira do
caminho, o mais perto possível da fazenda pretendida, e o acampamento ali se prolonga,
com igual organização que quando estava nas terras da fazenda, por meses ou mesmo anos,
conseguindo o necessário para a sobrevivência do próprio MST e de ações sociais
solidárias, até que aqueles lutadores ganhem seu lote de terra.
Para reforçar a pressão o MST passou a ocupar nas cidades nos últimos anos
prédios públicos (em especial pertencentes a órgãos governamentais da área econômica e
da reforma Agrária e ao Banco do Brasil, responsável, na área pública, pelo financiamento
dos projetos agrícolas). Paralelamente, em 1997, o MST incluiu explicitamente no seu
programa a opção pela agricultura ecologicamente sustentável (em especial a orgânica). O
MST também retende que os ex-ocupantes mantenham a organização coletiva depois de
receberem o lote, e promove formas cooperativas de produção e distribuição (incentivando
também a criação de escolas em cada assentamento; em 1998 havia 900 escolas primárias
funcionando em tais assentamentos).
A heróica luta do MST ganhou amplo respaldo social, registrado até em pesquisas
oficiais de opinião pública, e se mantém ao preço de centenas de mártires, pois
dificilmente transcorre uma semana no Brasil sem que algum cidadão ou dirigente
vinculado ao MST não seja assassinado em algum ponto do país.
Formas parecidas a algumas das relatadas por Guha e por nós são utilizadas, ou
passíveis de ser utilizadas, em outros movimentos de ação comunitária direta, como
aconteceu com os vizinhos do bairro CBII e no caso do “Bahamas”, focalizados antes.
Outra forma específica de ação pode ser a da imprensa ecomunitarista, que incluiu de
preferência as TV e rádios locais, antes do que periódicos ou material escrito em geral ( de
difícil compreensão por parte dos menos letrados); creio que Quino estava coberto de razão
quando desenho aquela história em quadrinhos na qual a professora, para fazer-se ouvir
pelos alunos, decidiu cobrir sua cabeça com uma caixa vazia de TV, passando a falar como
se estivesse na telinha; a atração exercida pela TV e pela rádio sobre o comum dos mortais
e grande demais ( ainda mais quando esses meios abrem espaços onde aqueles podem ouvir
suas próprias vozes) para que não sejam usados pela pedagogia política e a política
pedagógica ecomunitarista. Em nível supra-local, a Internet e os periódicos se revelam
instrumentos de grande utilidade para a ação de imprensa.

2. Ações diretas a cargo de organizações

Estas ações, embora ganhando o apoio de vastos contingentes de pessoas, não se


realizam com sua participação direta, e sim são obra de organizações. Entre elas cabe
mencionar ações como a de proteção dos bebês-foca mediante pintura da sua pele para
fazê-la comercialmente inútil, e a ação de manchar casacos de pele para protestar contra o
uso das peles de animais para vestimentas; destacam-se pela sua repercussão internacional
as campanhas de Greenpeace, especialmente na sua hostilização e ocupação parcial de
barcos que transportam cargas perigosas ou fazem parte de operativos nucleares.

67
Há de se mencionar também neste ponto as ações catalogadas como coativas (mas
não terroristas), nas quais, depois de uma longa campanha de denúncia, alguma ação mais
drástica é tomada, como protesto. Tal foi o caso da ação da Frente de Libertação dos
Animais (criada no Reino Unido em meados dos anos 70) executada no fim de 1998 na
Itália que consistiu no envenenamento de “panettone” na campanha contra a multinacional
Nestlé, depois de longa campanha de denúncias contra o uso por essa empresa de produtos
transgênicos (em especial soja), cujos efeitos de longo prazo sobre o ser humano e o
ambiente (em especial sobre outras plantas) ainda não são suficientemente conhecidos. O
alarme criado pela nota da organização executora e a posterior confirmação de casos de
pães efetivamente alterados, obrigou as cadeias italianas de supermercados, e a mais
importante da Suíça, a retirar das prateleiras todos os “panettone”.

3. Ações Representativas

Estas ações são as que se realizam, por delegação, em especial na área política, por
intermédio de instâncias parlamentares locais, nacionais ou mesmo supra-nacionais e
internacionais. Nos últimos tempos ganharam importância as realizadas através do
Parlamento Europeu no velho continente e pelo Parlamento Latino-americano no novo.
Tais ações podem e devem incluir uma tentativa de democratização progressiva da ONU,
de fato sua real subversão, para fazê-la no futuro um fórum planetário das comunidades de
vida, guiado pela ética ecomunitarista ( que apregoa o respeito pela liberdade de ação
enquadrada na tomada consensual de decisões, a solidariedade planetária fundamentada na
reciprocidade gratuita, e a prática de uma relação ecologicamente sustentável entre os seres
humanos e o restante da natureza).
Uma variante específica dentro desta forma de ação é a dos tribunais internacionais
existentes ou passíveis de serem criados. Depois dos exemplos da Corte Internacional de
Haia e do Tribunal de Nüremberg (ao tempo da Segunda Guerra Mundial), no final do
século XX o caso do ditador chileno Augusto Pinochet ( assim como o quiçá menos claro,
na eleição dos acusados submetidos a julgamento, dos criminais de guerra da ex-
Iuogoslávia) coloca a questão da necessidade e legitimidade de instâncias judiciais supra-
nacionais para absolver ou condenar. Se pensarmos que tais tribunais podem abranger
também o aspecto ambiental, dedicando-se à temática sócio-ambiental e não meramente
humana, há de se citar o exemplo do tribunal Russell, que embora não tendo valor legal,
pesou moralmente muito ao julgar os crimes de guerra cometidos pelos EEUU no Vietnã
(entre eles a devastação maciça de florestas provocada deliberadamente pelo “agente
laranja”, fabricado entre outros pela companhia Bayer).
É evidente que a instalação e funcionamento de tais instâncias com critério
ecomunitarista é algo que ainda está muito distante no tempo, e que muitas questões
delicadas de fato e de direito estão pendentes de solução. Mas parece ser imperiosa a
discussão acerca de tais tribunais, pois pelo menos no seu decorrer ficarão expostas
algumas limitações inadmissíveis da ótica atual (capitalista), como as que surgiram no caso
Pinochet; neste caso, por um lado saiu à luz a convicção aparentemente consensual de
vários governantes e juristas, de que nenhum Chefe de estado poderia ser julgado fora de
seu país durante seu mandato ( fazendo com que a gente se pergunte se Hitler não seria
julgado fora da Alemanha se fosse capturado antes do fim da guerra pelas tropas aliadas);
por outro lado foi anulado a primeira decisão dos Lords sobre a não-imunidade diplomática

68
do ditador chileno, alegando-se que um dos jurados cometia o “crime” de: ter vínculos com
a Anistia Internacional (e por isso não seria neutro na causa!). O que parece fora de
discussão é que, em ótica ecomunitarista, todas as instâncias de ação representativa,
incluindo os eventuais tribunais internacionais, dever estar subordinadas à s atividades de
luta direta empreendidas pelas comunidades e os cidadãos, e a eles devem prestar contas.

4. Ações ecológicas e solidárias de novo tipo

Atento acompanhamento e estudos específicos merecem no futuro imediato ações


de novo tipo que, ao tempo que podem alicerçar-se perfeitamente nas três normas éticas
que proponho, são a materialização de redes de raio de ação crescente, como as que
imagino formando a grande teia ecomunitarista do gênero humano feito realidade. Refiro-
me especialmente aos LETS, os Bancos Éticos e ao Consumo Crítico. (Sobre isto vale a
pena consultar o interessante livro de Euclides Mance “A Revolução das Redes”, Mance
2000, do qual tomamos alguns dos dados que seguem).
Os Sistemas Locais de Emprego e Intercâmbio (LETS pelo seu nome em inglês) se
auto-definem como “uma rede econômica auto-regulada operando como um sistema de
contas, que permite aos usuários emitirem sua própria moeda” (ver o site dos LETS
http://www.gmlets.u-net.com). Os LETS articulam-se como redes de intercâmbio de bens
e/ou serviços; são uma resposta alternativa de auto-emprego cooperativo ao desemprego
maciço gerado pela atual fase do capitalismo e à escassez de moeda oficial que tal situação
e o subemprego trazem consigo; ao mesmo tempo, são uma resposta vivencial cooperativa
á atomização, confrontação e/ou indiferença crescentes existentes entre os seres humanos
no capitalismo; ela restabelece as solidariedades locais (embora já existam LETS que com
o seu número de associados abrangem cidades inteiras, como ocorre em Manchester) e as
projeta na esfera internacional (assim a moeda própria de certos LETS permite acessar bens
e serviços, em situação de reciprocidade, por exemplo na Argentina e na França). Em Santa
Maria, extremo sul do Brasil, funciona desde 1987 uma experiência que combina a forma
LETS com o Banco Ético, abrangendo direta ou indiretamente 20.000 pessoas em
ocupações que, financiadas pelo Fundo Rotativo Solidário com unidade monetária própria
(e cujos créditos são usados uma e outra vez para ampliar a rede), vão desde pequenas
serigrafias, mini-fábricas de calçados e vestimentas até associações de agricultores e
produtores de leite, passando por pontos regulares de comercialização ( que incluem o
Shopping do Cooperativismo Alternativo) onde se combina o uso de moeda própria com a
oficial do país ( cfr. ADVERSO 1999, p. 7).
Os Bancos Éticos (por exemplo, o Banco do Povo em Bangladesh, o Triodosbank
na Holanda, o Ökobank na Alemanha e o Alternative Bank na Suíça) são entidades de
poupança e crédito nas quais os associados se contentam com a simples proteção do seu
dinheiro face á inflação ou recebendo pequenos juros, ao tempo em que fixam claros
critérios éticos para os empréstimos, priorizando iniciativas sócio-ambientais solidárias e
ecológicas e proibindo expressamente o acesso a tais recursos a certas empresas, por
exemplo as envolvidas com a indústria bélica. No Brasil, além do Fundo recém citado,
pertence ao menos em parte a esse modelo o CRE$OL, dedicado ao crédito agrícola para
pequenos produtores.
Por último, o Consumo crítico consiste numa prática coletiva e/ou individual
auxiliada por informação adequada que trata de usar a concorrência capitalista desde
referenciais solidários e ecológicos. Assim na Itália tem sido publicado em 1996 um “Guia

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para o Consumo Crítico” que, em 300 páginas informa sobre 180 empresas e seus produtos
para que o consumidor possa optar sabendo de suas condutas a respeito de seus
empregados, o Terceiro Mundo e natureza não-humana (por exemplo no que diz respeito a
índices de poluição, diminuição e reciclagem de materiais e resíduos, etc.).

ÉTICA E TRANSGÊNICOS NA ALIMENTAÇÃO (Comunicação lida na FURG em


1999 em Mesa redonda com a partcipação de uma integrante da Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança – CTN Bio)

I. INTRODUÇÃO-ADVERTÊNCIA

Me proponho abordar sucintamente no que segue desde a minha condição de filósofo


especialista em Ética e cidadão comum, leigo em matéria de biotecnologia, algumas
questões levantadas pelo uso dos transgênicos na esfera da alimentação humana,
especialmente na agricultura.

II. A DEFESA DOS TRANSGÊNICOS

Um engenheiro agrônomo (Humberto Falcão) da EMBRAPA (Empresa Brasileira de


Pesquisa Agropecuária) de Passo Fundo, RS, em depoimento dado à TV em 09/10/1999
(RBS, Jornal do Almoço) manifestou em defesa da utilização dos transgênicos na
agricultura, o que segue:
1. Que o uso dos transgênicos é questão referente ao direito democrático de acesso à
tecnologia;
2. Que o uso dos transgênicos iria permitir uma melhora no retorno financeiro conseguido
pelo produtor;
3. Que tal uso permitiria diminuir a carga de agrotóxicos nas lavouras de alimentos; e,
4. Que no que diz respeito ao uso dos transgênicos devia se seguir o parecer da CTNBio
(Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) que, cito literalmente, "é quem manda e
entende do assunto".

III. ALGUMAS REFLEXÕES

Lermbre-se que tenho caracterizado a Ética como o conjunto dos Quase-Raciocínios-


Causais (QRC) que respondem à pergunta "Que devo fazer?". Um QRC é uma expressão

70
lingüística composta por um obrigativo seguido pelo operador não veritativo "porque",
seguido de um enunciado ( que é o suporte falseável do mencionado obrigativo). Isto faz
com que a ética seja não-dogmática e mutável historicamente em função do que
entendemos por verdadeiro ou falso num dado estágio de nosso conhecimento e nossa
argumentação. Também pretendo que, se investigarmos a gramática profunda daquela
pergunta, com a ajuda do operador de "condicional" ( representado por "*" e diferente do
de "implicação" pois sua tabela veritativa é a que segue) podemos descobrir três normas
éticas que têm validade intersubjetiva universal (pelo menos ao interior da chamada cultura
ocidental) por via estritamente argumentativa ( ver Lopez Velasco, 1996 e 1997).

p q p * q
v v v
v f v
f v f
f f v

[Estas normas, derivadas das condições da "felicidade" da mencionada pergunta (no


sentido de Austin, 1962), precedem o nosso conhecimento sobre elas, mas, uma vez
"descobertas" nos obrigam tanto quanto o fazem as regras gramaticais do português, que
precedem o conhecimento consciente que delas temos até irmos à escola].
Formuladas tecnicamente as três normas se apresentam como segue:
Primeira: Devo garantir minha liberdade individual de decisão porque eu garanto minha
liberdade individual de decisão é condição de a pergunta "Que devo fazer?" é feliz.
Segunda: Devo buscar consensualmente uma resposta para cada instância da pergunta "Que
devo fazer?" porque eu busco consensualmente uma resposta para cada instância da
pergunta "O que devo fazer" é condição de a pergunta "Que devo fazer?" é feliz.
Terceira: Devo preservar uma natureza saudável do ponto de vista produtivo porque eu
preservo uma natureza saudável do ponto de vista produtivo é condição de a pergunta "Que
devo fazer?" é feliz.
Breve e informalmente podemos resumir a dedução dessas normas, usando o conceito
austiniano das condições de felicidade dos atos lingüísticos e o novo operador lógico de
"condicional", como segue:
1a. Norma: Constata-se que a pergunta pelo QUE devo fazer pressupõe a capacidade de
escolher entre pelo menos duas alternativas diferentes de ação, o que supõe por sua vez
liberdade de decisão, o que coloca esta última como condição da realização feliz da
pergunta "Que devo fazer?".
2a. Norma: Constata-se que o enunciado da pergunta em questão abre o leque dos possíveis
autores de respostas ao conjunto de todos os seres humanos capazes de entender a
interrogação, o que coloca a obrigação de construir consensualmente cada resposta para
cada instância da pergunta "Que devo fazer?" como sendo condição para sua realização
feliz.
3a. Norma: Constatando que além da linguagem, o trabalho constitui caraterística do único
ser, o humano, capaz de formular-responder a pergunta que institui o universo ético-moral,
e que o trabalho necessita de uma natureza saudável do ponto de vista produtivo, deduz-se
que esta é condição (da realização feliz) da pergunta "Que devo fazer?].

71
Simplificando, a primeira desta normas nos compromete a zelar pela realização
progressiva da nossa liberdade individual de decisão (superando toda situação de repressão
e auto-repressão alienada).
A segunda estabelece o limite e o contexto dessa mesma liberdade na construção
consensual das decisões relativas às nossas vidas.
A terceira norma da ética, por sua vez, estabelece a obrigação de zelarmos pela preservação
e regeneração de uma natureza saudável do ponto de vista produtivo (sendo que tal natureza
abrange tanto o ser humano quanto os entes não-humanos).
É partindo deste referencial ético, cujo fundamento lingüístico-argumentativo independe de
qualquer opção previa em matéria religiosa, filosófica ou política, que me permito apreciar
algumas questões referentes ao uso de transgênicos na alimentação.
Coincido com um defensor dos transgênicos, o britânico Ben Miflin, no que respeita ao
princípio de que em matéria alimentar "nada é (definitivamente) seguro", e que a tecnologia
transgênica não pode ser acusada a priori de aumentar os riscos alimentares, numa
abordagem passional que ignore que desde sempre o ser humano vem transformando os
animais e vegetais incorporados à economia [ver Jornal da Ciência E-mail (SBPC) Nº 1377
de 16/09/99]. Pensar numa segurança absoluta seria esquecer que qualquer conhecimento
pode ser falseado e que a verdade definitiva é só um horizonte rumo ao qual caminhamos
sem poder atingi-lo jamais. Por outro lado, qualquer ponderação sobre riscos, nessa
incessante mudança que o ser humano faz na natureza (tanto na sua própria quanto na não-
humana) ao tecer a sua história, deve resultar de uma análise livre de preconceitos
irrefletidos.
Também tem razão Miflin quando afirma que " a natureza é amoral". Como acabamos de
ver a Ética se constitui, no sentido forte do termo, através da pergunta "Que devo fazer?" e
as respostas para tal interrogação, sendo então necessariamente antropocéntrica ( o que não
quer dizer, como o vemos na terceira norma, que ela se desresponsabilize pela sorte dos
entes não-humanos).
Mas essa norma, combinada com a segunda e a primeira, respectivamente, é o fundamento
a partir do qual devemos estabelecer consensualmente e sobre a base da liberdade de
pensamento-ação de cada um, qual é o grau de incerteza no risco que estamos dispostos a
admitir em cada ação-omissão que possa acarretar impactos duráveis ( e os de ordem
genético sem dúvida o são) na natureza humana e não-humana.
E agora vejamos um a um os quatro tópicos do posicionamento do engenheiro da
EMBRAPA.

1. Hoje são somente poucas e grandes multinacionais (como a MONSANTO) as que


dominam o mercado dos transgênicos na alimentação; e elas vendem ao mesmo tempo as
sementes e o agrotóxico supostamente "apropriado" a cada uma dessas sementes; ora, este
fato demonstra que a adoção dos transgênicos nessas circunstâncias significaria fazer do
produtor literalmente um refém dos "serviços" prestados por essas grandes empresas.
Assim parece evidente que estamos longe do suposto "acesso democrático `a tecnologia"
mencionado pelo técnico da EMBRAPA, e a situação de refém que é a do produtor em
relação à grande empresa oligopólica viola manifestamente tanto a primeira como a
segunda norma da ética. ( A situação seria ainda mais patética se tivesse vingado o projeto
"Terminator" da Monsanto, pelo qual as plantas cultivadas pelo agricultor seriam estéreis,
obrigando-o assim a comprar novas sementes todo ano).

72
2. Que o uso de transgênicos vá melhorar o ganho financeiro do produtor é uma afirmação
que merece dois comentários.
Em primeiro lugar é bom salientar que nada garante que haverá essa melhora e que ela será
durável; é bom lembrar que a chamada "Revolução Verde" dos anos 70, que significou na
prática o uso maciço de adubos químicos e agrotóxicos, não melhorou a situação da grande
maioria dos produtores rurais do mundo que são os pequenos, mas pelo contrário se saldou
pela quebra de uma grande parte deles, com o conseqüente êxodo rural rumo as favelas da
cidade, cujos efeitos desastrosos todos conhecemos tanto no Brasil quanto na Índia (só
para citar dois exemplos).
Em segundo lugar, mesmo que a tal melhora nos lucros fosse uma realidade, deveríamos
nos perguntar se somente o maior lucro basta para apoiarmos uma técnica ou se outros
critérios, como o ecológico, fundamentado na terceira norma da ética, devem pesar também
na balança; isto significa que ainda que houvesse um ganho financeiro real por parte dos
agricultores, se as perdas ecológicas derivadas dos transgênicos fossem evidentes, então o
maior lucro potencial não seria justificativa suficiente para apoiarmos o uso desta
tecnologia.

3. No que diz respeito ao terceiro tópico chama a atenção o fato de que o técnico nos fale de
uma "menor carga de agrotóxico" como se tal uso fosse inevitável; a terceira norma da
ética aconselha, pelo contrário, a dispensa ao máximo do uso de tais substâncias, como
acontece na agricultura orgânica (onde se utiliza o adubo natural e o controle biológico das
pragas e doenças). Em relação a este ponto é bom salientar que a lógica antiecológica do
lucro fica muito clara no fato de que grandes multinacionais se dediquem a fabricar
sementes capazes de resistir os agrotóxicos que essas mesmas empresas vendem, e não se
esforcem mais para produzir tecnologias capazes de fortalecer as plantas em relação aos
seus potenciais inimigos naturais ( e com os devidos cuidados, pois, por exemplo, um
inseto que é "praga" também tem a sua função no ecossistema).

4. Por último, o técnico da EMBRAPA pede calada obediência à CTNBio na matéria


porque ela "manda e entende do assunto".
Nesta atitude tecnocrática e elitista transparece uma clara violação da segunda norma da
ética ( e também da primeira) porquanto tenta-se alijar do debate de uma questão que
através da alimentação afeta a todos, à quase unanimidade dos afetados, ou seja todos
aqueles que não pertencem a tal Comissão; e é de se notar que nessa grande multidão, além
do simples cidadão comum com direito de opinar sobre o que chegará a sua mesa, há
muitos cientistas, vinculados ou não a instituições de pesquisa e/ou organizações
ambientalistas, com plena competência específica para emitir parecer no assunto. Aliás,
por falar em competência específica e para vermos a fraqueza da posição tecnocrática que
ora comentamos, vale a pena que lembremos com o professor emérito da UNICAMP
Rogério Cezar de Cerqueira Leite [ JC E-mail (SBPC) Nº 1316 de 02/07/1999, resumindo
artigo da FOLHA de SÃO PAULO da mesma data] o fato de que na CTNBio que
inicialmente aprovou o plantio no Brasil de soja transgênica sem necessidade de estudo
prévio de impacto ambiental, somente o seu presidente era especialista em biologia
molecular.
Mas esta questão da competência científica merece ainda uma consideração mais profunda
e abrangente; refiro-me à delicada questão da auto-censura ética da ciência, à qual dedico
minhas últimas considerações ( usando o termo "auto-censura" com plena clareza das suas

73
implicações para os que desde sempre temos lutado contra toda censura ditatorial seja ela
leiga ou religiosa).

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Creio que na defesa dos transgênicos assim como em outros assuntos referentes a novas
tecnologias está em jogo um pseudo-argumento, implícito em muitas falas sobre a ciência,
que identifica o "poder fazer" ao "dever fazer". Assim, pretende-se induzir a pensar que,
pelo fato da ciência poder fazer alguma coisa, não haveria qualquer fundamento para barrar
a sua ação.
Contra esse argumento é bom lembrar que o fato de eu poder matar o meu vizinho ( por
exemplo com o revólver que guardo na cozinha) não legitima eticamente que eu
efetivamente o faça, porque, pelo contrário, (em especial a partir da segunda e terceira
normas da ética) concluo que não devo fazê-lo.
Uma variante mais refinada deste pseudo-argumento invoca implicitamente a primeira
norma da ética para sustentar que a ciência não pode ser censurada porque a liberdade de
ação é uma das características que define a sua própria essência.
Contra este argumento sustento que a segunda e a terceira norma da ética são claros limites
estabelecidos por via argumentativa face à liberdade de ação amparada pela primeira
norma. Isto significa que a ciência, confrontada hoje com o fato de que aplicações
tecnológicas que ela fez e faz possíveis, têm gerado pela devastação, a poluição e a
marginalização, grandes catástrofes humanas e ecológicas, deve assumir o desafio de uma
auto-censura ético-argumentativa a partir das três normas acima citadas.
No caso dos alimentos transgênicos isto significa não condená-los a priori e
indiscriminadamente, mas opor-se ao uso prematuro dos mesmos até que a margem de
riscos seja melhor calculada por uma pesquisa que deve continuar ao seu ritmo (isto é,
resistindo a pressão dos interessados na lógica do lucro).
Em duas palavras, as três normas aconselham: a) manter a pesquisa sob controle ético, com
todos os cuidados do caso para se evitar os vazamentos e os acidentes ecossistêmicos
(como os possíveis através da propagação incontrolável do pólen das plantas transgênicas e
os que podem ocorrer através da cadeia trófica) e, b) aplicar uma férrea moratória ao uso
produtivo-comercial dos resultados obtidos, até que uma noção mais clara dos riscos
envolvidos possa ser avaliada consensualmente com o devido rigor científico, a devida
responsabilidade ético-ecológica e a devida participação da sociedade civil.

74
O ECOMUNITARISMO

CRÍTICA ECOMUNITARISTA DO TRABALHO ALIENADO NO CAPITALISMO

A nossa análise parte da descrição do trabalho alienado feita por Karl Marx na parte final
do primeiro dos seus Manuscritos (econômico-filosóficos) de 1844 explicitamente dedicada
ao trabalho alienado (os sublinhados são de Marx; os números romanos são usados nas
diversas edições desses Manuscritos).
Ali apresenta Marx a alienação em relação ao produto de trabalho como segue. “O
objeto que o trabalho produz, o seu próprio produto, se defronta com ele como um ser
estranho, como um poder independente do produtor”. (XXII) Trocado em miúdos isso quer
dizer que o produto produzido não pertence ao assalariado mas ao dono do meio de
produção que o emprega; a tal ponto que pode acontecer que um trabalhador que produz
alimentos passe fome por não ser o dono dos mesmos, o que o habilitaria a usá-los para
saciar sua necessidade. Note-se que para saciar essa necessiadde o trabalhador não pode
recorre à natureza (mesmo se ela for uma floresta que nada deve ao trabalho humano),
porque a mesma tem sido privatizada e passou a ser propriedade do latifundiário-capitalista.
É verdade que “o trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior
sensível. A natureza é a matéria na qual o seu trabalho se realiza, na qual é ativo, na qual e
por meio da qual produz (XXIII); é verdade que “a universalidade do homem aparece na
prática precisamente na universalidade com que ele faz da natureza toda o seu corpo
inorgânico, tanto porque ela é : 1) meio de subsistência imediato, quanto, 2) a matéria, o
objeto e o instrumento da sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem;
quer dizer, a natureza em quanto não é o próprio corpo humano. Que o homem vive da
natureza quer dizer que a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem que se manter em
processo contínuo para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem está ligada com
a natureza não significa outra coisa senão que a natureza está ligada consigo mesma, pois o
homem é uma parte da natureza” (XXIV). Mas “o trabalho alienado aliena do homem a
natureza.” (XXIV). Assim quem não é dono da terra não pode recorrer a ela para colher
mantimentos que satisfaçam suas necessidades (nem mesmo, por exemplo, frutas silvestres
na beira de um arroio, pois o mesmo fará parte de uma fazenda que tem dono) nem
materiais que uma vez transformados por ele poderiam satisfazé-las direta ou indiretamente
mediante a troca ou a venda (como, por exemplo poderia servir uma árvore daquela mesma
floresta convertida em mesa para ser usada ou vendida/trocada por outros bens necessários
ao trabalhador).
A alienação em relação ao próprio trabalho é apresentada como segue: “A objetivação
aparece como perda do objeto a um ponto tal que o trabalhador se vê privado dos objetos

75
mais necessários não somente à vida mas também para o próprio trabalho. O próprio
trabalho transforma-se num objeto do qual o trabalhador somente consegue se apropriar
com o maior esforço e as mais extraordinárias interrupções....” (XXII). Em concreto isso
significa que o assalariado está sempre a mercê do desemprego: a) porque não é ele quem
decide se terá emprego mas o capitalista (ou um representante seu), b) porque quando
conseguiu uma vaga não está nunca a salvo de perdé-la a qualquer momento (via demissão,
também decretada unilateralmente pelo capitalista).
A alienação também se configura no “...ato da produção, dentro da atividade produtiva
mesma” (XXIII). [No trabalho alienado] “o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva
mesma, aparece perante o homem somente como um meio para a satisfação de uma
necessidade, da necessidade de manter a existência física. ... Ora, na forma da atividade
vital reside todo o caráter de uma espécie, o seu caráter genérico, e a atividade livre,
consciente, é o caráter genérico do homem. [Mas no trabalho alienado] a vida mesma
aparece tão somente como meio de vida....”(XXIV).
“Uma conseqüência imediata do fato do homem estar alienado do produto do seu
trabalho, da sua atividade vital, do seu ser genérico, é a alienaçäo do homem a respeito do
homem. Se o homem se defronta consigo mesmo, defronta-se também ao outro. O que é
válido a respeito da relação do homem com o seu trabalho, com o produto do seu trabalho e
consigo próprio, vale também para a relação do homem com o outro homem e com o
trabalho e o produto do trabalho do outro homem... O ser estranho a quem pertence o
trabalho e o produto do trabalho, a cujo serviço está aquele e para cujo prazer serve este,
somente pode ser o próprio homem. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador,
se constitui face a ele um poder estranho, isto somente é possível porque pertence a outro
homem que não é o trabalhador. Se a sua atividade [do trabalhador] é para ele suplício,
haverá de ser gozo e alegria vital para outro” (XXIV).
Marx também sublinha que essas diversas dimensões do trabalho alienado determinam
a alienação do sujeito (em especial do trabalhador) em relação a si próprio. Assim Marx
lembra que pelo fato de alienar o ser humano da natureza, o trabalho aliendo o aliena de si
próprio (posto que ele é um ser da natureza), e destaca que há “auto-alienação” na alienação
da atividade produtiva porquanto ali “ a sua vida pessoal” lhe aparece como “uma atividade
dirigida contra ele, independente dele, que não lhe pertence” (XXIII). No trabalho alienado
“o trabalho é externo ao trabalhador, quer dizer não pertence ao seu ser ; ... no seu trabalho
o trabalhador não se afirma mas, pelo contrário, se nega ; não se sente bem, mas [pelo
contrário] infeliz, não desenvolve uma livre energia física e espiritual, mas mortifica o seu
corpo e arruina o seu espírito. Por isso o trabalhador se sente "em si" [bei sich] fora do
trabalho e se sente "fora de si" [auer sich] no trabalho. Ele está " em casa" [zu hause]
quando não trabalha e quando ele trabalha não está "em casa". Seu trabalho não é ,assim,
voluntário, mas forçado, [ é ] trabalho forçado. Por isso não é a satisfação de uma
necessidade mas tão somente um meio para satisfazer as necessidades fora do trabalho. Seu
caráter estranho se evidencia claramente no fato de que, assim que não existir uma coação
física ou de outro tipo, a gente foge do trabalho como da peste. O trabalho externo, o
trabalho no qual o homem se aliena, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Em
último termo, a exterioridade do trabalho mostra-se para o trabalhador no fato de que
aquele... não lhe pertence mas pertence a outro” (XXIII). [Esse “outro” apontado por Marx
é o capitalista, ou seja o dono do meio de produção]. “Disto resulta que o trabalhador
somente se sente livre nas suas funções animais (no comer, beber, procriar e tudo aquilo
referente à moradia e ao vestuário) e, pelo contrário, nas suas funções humanas sente-se

76
como animal. O animal converte-se no humano e o humano no animal. E claro que comer,
beber, procriar, etc. são também autênticas funções humanas. Mas na abstração que as
separa do contexto total da atividade humana e as converte em fim único e último, são
animais..” (XXIII).
Esse fato decisivo de auto-alienação significa “pobreza individual” pois esse individuo
separado de si precisa devir integrado, no mesmo processo pelo qual se constitui em
individuo universal integrado livre e solidariamente com os outros (no seio da comunidade
comunista mundial). Essa situação pode ser reescrita usando categorias freudianas dizendo
que essa “auto-alienação” indica a falta de consolidação do Ego no seu (desejável) domínio
do Id e do Superego; dizia Freud que a tarefa da psicanálise consiste em “fortalecer o ego,
torná-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de percepção e desenvolver
sua organização, de maneira que possa se apropriar de novas partes do id; onde era Id há
de ser ego” (Freud 1968, vol. II, p. 916, “Nuevas aportaciones al psicoanálisis: la división
de la personalidad psíquica”).
Para terminar vale lembrar que para Marx o capitalista (embora se beneficiando da
alienação do trabalhador) tampouco é um indivíduo humano realizado. Com efeito (ecos
hegelianos em Marx da dialética do senhor e o escravo) na sua “função” de capitalista ele
não realiza sua capacidade braçal-produtiva na interação direta com a natureza não humana,
não sendo então um individuo multilateralmente desenvolvido. Por outro lado da nossa
parte temos salientado questões racional-comunicativas que apontaremos a seguir

A violação das normas éticas no trabalho alienado vigente no capitalismo

A violação das duas primeiras normas


Na medida em que nessa célula fundamental do trabalho capitalista que é a empresa o
trabalhador está sempre submetido às ordens do capitalista (cuja “felicidade” ele deve
reconhecer sempre sob pena de perder o emprego), é evidente que o dia-a-dia do
capitalismo nega ao assalariado o exercício da sua liberdade individual de decisão e sua
participação na construção de propostas consensuadas. Como disse uma vez “no
capitalismo espera-se do trabalhador, como do soldado, não que pense, mas que obedeça”.
Como disse Marx, no contexto do trabalho alienado o assalariado passa a ser mais uma
“coisa” (como o são o instrumento e o objeto de trabalho) pertencente ao capitalista; e o
capitalista acredita estar no certo quando conclui que essa “coisa” como qualquer outra está
incapacitada para a liberdade de decisão que é amparada pela primeira norma da ética.
O capitalismo é essa ordem social de “guerra de todos contra todos”; guerra dos capitalistas
contra os capitalistas (embora eles se aliem contra os assalariados e possam se aliar em
cartéis para guerrearem contra outros cartéis); guerra dos capitalistas contra os assalariados
(em especial por causa do montante do salário, das condições do trabalho e da duração da
jornada do trabalho); e guerra dos assalariados contra os assalariados (em particular na luta
pela conquista e manutenção do emprego). Nessas circunstâncias é evidente que estamos
muito longe da construção consensual de respostas exigida pela segunda norma da ética.
Ao mesmo tempo essa guerra acompanha-se pela indiferença crescente de cada ser humano
para com os outros no egoísmo crescente que o capitalismo causa e incentiva ao glorificar a
concorrência. Há pesquisas que mostram que o crescimento dessa indiferença acompanha o
desenvolvimento capitalista; assim, um ator que finge passar mal na rua, é atendido por
quase todos na pequena cidade (de capitalismo comercial incipiente e rodeada do campo
onde ainda ecoam vivências pré-capitalistas), é atendido por poucos na cidade média (a do

77
comércio e a indústria medianos) e por quase ninguém na grande urbe (centro do grande
capital financeiro, comercial e industrial).

A violação da terceira norma

Os efeitos nocivos para a natureza resultantes da continuidade do modelo de


produção-distribuição-consumo imperantes hoje em dia provocam uma degradação
quantitativa e/ou qualitativa de tal magnitude no meio ambiente que faz possível a vida
humana que a própria subsistência da humanidade encontra-se em perigo. Este perigo é
reconhecido inclusive em fóruns tão marcados pela influência direta dos grandes capitais
como o é o “Clube de Roma”. A ameaça de um holocausto ecológico capaz de exterminar a
humanidade inteira é uma situação absolutamente inédita na história da espécie humana.
Ora aqui quero destacar em primeiro lugar que a a incerteza quanto a obtenção e
manutenção do emprego, o nível de cobrança na atividade produtiva e os perigos existentes
nela (velocidade da linha de produção, e/ou nível de tensão-atenção permanente, e/ou falta
de aparelhos/medidas de segurança ) e os efeitos poluidores da produção capitalista levam
literalmente os assalariados a adoecerem. Diversas pesquisas mostram o estrago que nas
massas assalariadas causam os acidentes de trabalho (muitas vezes mortais, em especial nas
indústrias da construção e do transporte), as doenças diversas causadas pela poluição da
terra/água/ar (fato evidenciado na correlação existente entre maior mortalidade por
problemas circulatórios/respiratórios numa mesma idade e o maior nível de poluição do ar
que ali se respira), e as doenças físicas e/ou mentais devidas ao stress. Uma e outra
evidência contrariam a saúde da natureza humana no contexto do trabalho alienado
capitalista, e com isso contrariam a terceira norma ética..
No que diz respeito à saúde da natureza não-humana são hoje indiscutíveis os
estragos que lhe causa a produção capitalista baseada no trabalho alienado. A tal ponto,
como dissemos, que o envenenamento progressivo da terra, do ar e da água, faz perigar a
sobrevivência futura da própria espécie humana (pelo menos nas áreas mais poluídas). Ao
mesmo tempo verifica-se uma clara devastação do espaço geográfico: deflorestamento
irreversível (hoje especialmente nas grandes florestas tropicais), desertificação e
salinização de imensas áreas por causa de usos agrícolas não sustentáveis, uso insustentável
de recursos minerais e energéticos (tudo indica que o petróleo acabará antes do século
XXII); a própria água potável já começa a faltar em muitos países. Se o ciclo da água já
está afetado a tal ponto, não menos afetado está o ciclo do carbono, porque emissões
massivas derivadas do modo capitalista de produção e consumo (copiado antes pelo
chamado “socialismo real” defunto na Europa em 1989) geraram o “efeito estufa” que está
alterando o clima mundial numa tendência ao aquecimento da temperatura no planeta (com
o perigo, de efeitos ainda incalculáveis, do derretimento das calotas polares e o conseqüente
aumento do nível dos oceanos); outros gases gerados pela produção e consumo capitalistas
aumentam o buraco na camada de ozônio, o que se traduz num aumento da radiação
ultravioleta que atinge a superfície terrestre (com os perigos para a vida que isso significa);
ao mesmo tempo a produção e o consumo capitalistas colocam em risco de extinção mais e
mais espécies vegetais e animais.
* Buscando explicações
Na busca da explicação de por que o capitalismo viola a terceira norma da ética
temos proposto duas hipóteses.
- A hipótese marxiana: time is money

78
Marx mostrou que a busca da maximização do lucro é uma obrigação que se impõe
a cada capital(capitalista) se quiser sobreviver com o capital(capitalista) concorrente; se de
dois capitais do mesmo ramo com igual magnitude, um deles obtivesse o dobro de mais
mais-valia que o outro no mesmo tempo, na medida em que o primeiro investisse parte
dessa diferença em inovações tecnológicas (que o segundo não teria) que lhe permitissem
produzir seu produto abaixo do seu valor, em pouco tempo, vendendo seu produto mais
barato que o concorrente, estaria expulsando-o do mercado (e de fato aniquilando-o como
capital/capitalista). Marx mostrou que nessa dinâmica há uma pressão que obriga cada
capital(capitalista) a aumentar sem cessar a sua velocidade de rotação para não perecer, e,
se possível, ficar sozinho ocupando todo o espaço, expulsando os concorrentes. (ver K.
Marx, “O Capital”, vol. II, Secção I, cap. IV, e Secção II, caps. VII, IX e XIII). Da nossa
parte (coincidindo sem o saber com outras interpretações) deduzimos desse fato que a
devastação da natureza (humana e não humana) acontece no capitalismo, porque a
velocidade crescente com que o capital usa desses recursos para se valorizar é menor do
que o ‘tempo de recuperação’ que a natureza humana e não humana precisaria para se
preservar-regenerar em equilíbrio dinâmico. (Lopez Velasco 2003 b, p. 69-79)

- A hipótese ‘psicológica’ fundamentada na forma capitalista de propriedade


Tenho tentado mostrar a existência de um duplo, contraditório e complementar
efeito do trabalho alienado e da propriedade capitalista na relação existente hoje entre os
seres humanos e a natureza não humana (Lopez Velasco 2003b, p. 64-68). No que diz
respeito ao assalariado, se aceitarmos sem maiores análises nem pretensões a idéia de que
os seres humanos que conhecemos no capitalismo tendem a cuidar tanto mais de algo
quanto maior seja o grau em que considerem "seu" esse algo, teríamos aqui uma base para
explicar o porque da conduta negligente do assalariado a respeito da natureza que o rodeia.
Chama a atenção o fato de que em bairros pobres do Terceiro Mundo onde moram
trabalhadores do mais baixo nível salarial, às insuficiências sanitárias que são produto do
abandono governamental se acrescenta como fator agravante das condições ambientais a
poluição causada pelos próprios vizinhos (em especial, através do lixo e as águas servidas
que correm a céu aberto). Diante desta realidade poder-se-ia dizer, sem dúvida com enorme
quota de razão, que a explicação de tal fato deve se encontrar na falta de educação
ambiental de tais populações e na carência dos recursos necessários para o tratamento
sustentável de tais problemas (em especial o tratamento do lixo e a evacuação e tratamento
das águas servidas), que fazem parte de seu estado de miserabilidade. Não obstante, chama
a atenção o fato de que muito dificilmente encontrar-se-á na moradia desses trabalhadores,
por mais humilde que ela for, o mesmo grau de poluição que se constata existir nos terrenos
adjacentes. Daí que possamos duvidar que aquela primeira explicação atinja a raiz do
problema e tenhamos direito a postular que, se aqueles fatores fazem parte da explicação do
mesmo, necessitam não obstante ser iluminados desde a circunstância de que para o
trabalhador não é tão "sua" a natureza que a circunda sua moradia como o é esta última. A
apropriação sucessiva dos espaços naturais pelo capitalista tem ido reduzindo a ritmo
acelerado (inclusive no Terceiro Mundo) o número e a área dos "espaços de ninguém" e
dos "espaços públicos" que, precisamente por sê-lo, eram "espaços de todos"7. De mais a
mais, esses espaços têm se reduzido nas cidades às ruas e aos (cada vez menos) "espaços

7
Penso em especial nos terrenos abertos ao passeio e aos jogos do trabalhador e sua família, para não falar
dos espaços nos quais o trabalhador poderia retirar gratuitamente meios de subsistência e/ou de trabalho.

79
verdes" que interrompem a linha continua das casas as indústrias. No campo eles cessaram
de existir até na sua aparência, com exceção dos caminhos e estradas, desde que o
alambrado veio a interromper infalivelmente a linha contínua das terras, fazendo tremular a
bandeira com a seguinte inscrição: "Propriedade Privada". À vista desta distância imposta
ao trabalhador na sua relação com a natureza não humana parece coerente (à luz da própria
relação proporcional que no capitalismo se estabelece entre o grau em que algo é de
alguém com o grau com que esse alguém se esforça por cuidá-lo) a reação do trabalhador
consistente na atitude de descuido para com a natureza exterior à sua moradia.
No caso do capitalista, a alienação com respeito à natureza se manifesta através de um
comportamento destrutivo daquela que parece baseado numa característica do "uso dos
bens" vigente no capitalismo que se articula como a contra-cara dialética (ou seja, como
contrário, ora no qual se transforma, ora do qual resulta) do princípio de identidade-cuidado
antes esboçado. Explico: assim como no capitalismo os seres humanos tendem a cuidar
tanto mais de algo quanto mais esse algo é "seu", assim também a propriedade privada
vigente no capitalismo (e o Direito que a legitima e a preserva) inclui a capacidade de
"fazer com o que é seu o que lhe aprouver". Nesse "fazer" se inclui qualquer conduta que
signifique a pura e simples destruição por consumo ou degradação sucessiva, a curto,
médio ou longo prazo do "bem" em questão. Ora, disto resulta que, assim como o
capitalista é livre para esbanjar no Cassino "sua" fortuna, assim também o é para dilapidar
(consumindo-a em consumo produtivo ou improdutivo efetuado de forma degradante-
destrutiva) a natureza que não é menos "sua" que aquela fortuna.
Resulta daí que, como avesso da medalha do acontecido com o assalariado, a propriedade
privada, fruto-causa do trabalho alienado vigente no capitalismo, faz com que o capitalista
perca o vínculo que o identifica à natureza circundante como ser natural que é enquanto
parte dela, precisamente em e pelo fato de que pode dispor dela como de algo "seu" (e
totalmente e unicamente "seu"). Esta convicção é inseparável, pois, do fato de que o
capitalista, precisamente por sê-lo e na alienação por ele padecida enquanto tal, tem
perdido toda relação transformadora direta com natureza; esta relação passa a ser
exclusiva do trabalhador e constitui a base potencial daquela identificação. Ora, como no
capitalismo pertence ao dono da natureza que é o capitalista toda decisão da conduta a se
adotar face à mesma, é obvio que aquela convicção fundada na realidade que é o poder
quase indiscriminado outorgado sobre a natureza pela propriedade privada vigente no
capitalismo não poderia ter outra conseqüência que não fosse o estado de perigo de
holocausto ecológico iminente hoje existente.
No capitalismo a natureza não humana é macro-objeto e macro-instrumento de produção
sobre o qual o proprietário tem, como sobre qualquer outro de seus bens, "direito irrestrito
de uso e abuso" e acerca do qual o não-proprietário manifesta a indiferença que caracteriza
sua relação com a sorte de tudo aquilo que não lhe pertence8. Ambas atitudes,
manifestações da alienação padecida pelos homens com respeito à natureza não humana no
contexto do capitalismo (e que no caso dos assalariados é momento organicamente
vinculado à alienação com respeito ao objeto e ao instrumento de trabalho), se conjugam

8
Creio que John Rawls assume como "dado" inquestionado, do qual nem suspeita as conseqüências, a ótica
do proprietário aqui questionada quando diz :"...entre as liberdades básicas de uma pessoa está o direito de ter
e usar com exclusividade suas propriedades pessoais." J.Rawls, Sobre las libertades, Paidós, Barcelona,
1990, p.41, o sublinhado é meu; título original: The Basic Liberties and Their Priority, in the Tanner Lectures
on Human Value, p. 1-87].

80
para determinar a progressiva poluição e destruição da natureza exterior em franca violação
da terceira norma da ética.
Estas considerações bastam para mostrar a insuficiência de qualquer tentativa de se buscar
soluções para a atual ameaça de hecatombe ecológica que não inclua o questionamento do
trabalho alienado e das relações de propriedade privada imperantes no capitalismo.
No início do século XXI tudo indica que as diversas limitações que em diversos paises a
legislação (a partir da pressão dos movimentos ambientalistas) tem tentado estabelecer
nesse irrestrito “direito de uso e abuso da natureza por parte do capitalista que é seu dono”,
não tem conseguido diminuir de maneira significativa a progresiva destruição-
envenenamento da terra, da água e do ar no planeta; por um lado porque ela respeita os
imperativos últimos da lógica do lucro (que todo capitalista defende e que a ele se impõe
como lei de ferro na guerra implacável da concorrência); e por outro lado porque os capitais
fogem das áreas mais protegidas pela legislação ambiental para outras onde essa é fraca,
mas/e não raramente os estragos que ali causam têm repercussão que ultrapassam em muito
a esfera local (podendo atingir, mesmo que indiretamente, também os países de legislação
ambiental mais exigente) .

O capitalista e o trabalho alienado

Ao efeito negativo apontado por Marx do trabalho alienado para o capitalista (que
lembramos acima) gostaríamos de acrescentar as seguintes observações.
As faculdades que o capitalista coloca em ação em sua "função", se encontram rebaixadas
ao caráter de simples meios de subsistência enquanto capitalista e deixam de ser livre
exteriorização vital do sujeito que atua como personificação do capital; assim, por exemplo,
o capitalista argumentará e ainda poderá exercer a imaginação criadora, mas somente o
fará nos limites estabelecidos pela melhor estratégia de valorização do capital que ele
personifica;
Ambas circunstâncias significam que o capitalista está alienado da natureza na medida em
que, apesar de ser seu proprietário e precisamente por sê-lo, o capitalista perde toda relação
transformadora direta com ela através do trabalho (sem falarmos da relação lúdico-artística,
que também pertence a uma faculdade especificamente humana);
As duas primeiras circunstâncias manifestam uma alienação do sujeito que é "suporte" do
capitalista com respeito a si mesmo e um desenvolvimento unilateral das aptidões que este
sujeito, enquanto ser humano, possui; este último fato é a causa explicativa da paixão do
capitalista por "hobbys" diversos que, ocupando-o nas horas vagas, não deixam de revelar
as vocações e atividades das quais vê castrado por e na sua "função" de capitalista;
Por outro lado o capitalista se encontra alienado do outro homem, o que se concretiza tanto
na relação conflitiva que mantém com o assalariado como na relação competitiva que está
condenado a manter com os outros capitalistas (embora forme também alternadamente com
pelo menos alguns deles, como já dissemos, "cartéis"), e na indiferença que pratica e sofre
em geral na relação com os seres humanos, sejam eles assalariados ou capitalistas.
Do que foi dito, resulta que o capitalista está muito longe de ser o "homem
realizado" que se supõe ser. Resulta também evidente que a superação destas características
constitutivas da alienação sofrida pelo capitalista em situação de trabalho alienado não pode
desvincular-se da superação do próprio trabalho alienado na sua modalidade capitalista.
O ECOMUNITARISMO

81
Chamo de "Ecomunitarismo" o regime comunitário pós-capitalista capaz de
organizar as relações produtivas inter-humanas e entre os seres humanos em geral e entre
estes e a natureza, conforme as normas éticas que temos deduzido transcendentalmente a
partir da gramática da pergunta "O que devo/devemos fazer?".
Embora compartilhando inicialmente com Marx a postura de que traçar o perfil do
regime pós-capitalista não é tarefa que devam e possam fazer os críticos sérios do
capitalismo que nele vivem, porque essa tentativa confundir-se-ia com a obra de
futurólogos superficiais e charlatães, e porque esse perfil seria obra da própria ação
histórica dos homens , constato que nesse plano as coisas têm mudado desde a morte de
Marx no que diz respeito a dois aspectos decisivos.
Por um lado, a catástrofe européia do "socialismo real" é usada pelos apologistas do
capitalismo como a "prova" de que o capitalismo é o ponto final da história e que além
dele se abre o abismo do caos ou do estalinismo. Por outro lado, o incessante e
multifacetado "discurso" desenvolvido pelos defensores do capitalismo, em especial através
dos meios de comunicação e em um leque que vai desde o cursinho via TV até o filme
policial, passando pela sempre presente publicidade, faz com que a grande maioria das
pessoas, incluindo a maior parte daquelas possuidoras de um grau relativamente alto de
instrução, tenham perdido a noção da existência possível de um horizonte além dos confins
do capitalismo (ou seja, entre outras coisas, além da "competitividade", do "salário justo" e
do "subir na vida rumo à classe seleta dos ricos e famosos").
Este panorama me leva a crer que é de fundamental importância que o discurso que
assume a crítica conseqüente do capitalismo necessite hoje correr o risco da futurologia
para mostrar, mesmo que seja - como inevitavelmente será - com perfil difuso e poroso, o
contorno do regime pós-capitalista ao qual aposta. Obviamente essa tarefa deverá ser
iniciada esclarecendo que a realização ou não-realização deste depende exclusivamente da
ação histórica dos homens e não de um inexistente "sentido pré-determinado da história", e
nessa ação haverá de desenhar e re-desenhar seu perfil real, quase com certeza muito
diferente daquele antecipado nos exercícios prévios de futurologia.
É com essa perspectiva e retomando as visões marxianas do futuro que me
proponho no que segue abordar sucessivamente os seguintes tópicos:
1. À luz das duas primeiras normas da ética, como conceber a atividade produtiva no
regime comunitário pós-capitalista e a atividade lingüística que daquela faz parte ?
2. Como conceber a relação homens-natureza nesse regime pós-capitalista ? (tendo presente
a terceira norma ética aqui deduzida).
3. Qual é a perspectiva ecomunitarista da estimação e satisfação das necessidades
humanas e como ela se vincula à tarefa histórica da constituição real do gênero
humano?
4. Como conceber o processo histórico orientado à construção do ecomunitarismo?

O não-trabalho no Ecomunitarismo

Se o "Trabalho" executado/padecido no capitalismo é a atividade produtiva


alienada, por sua condição assalariada, que, submetida ao império da "ordem", é o tormento
diário do qual se foge como da peste tão cedo que surgir a oportunidade, o não-trabalho ao
que apostamos no ecomunitarismo é o contrário de tudo isso.
O não-trabalho é a instância de expressão livre das energias produtivas na qual as
pessoas realizam alternadamente suas múltiplas vocações. Isto significa que a mesma

82
pessoa exerça com alternância, senão diária, pelo menos semanal, mensal ou trimestral, por
exemplo, as atividades de físico nuclear, jardineiro, pescador, dançarino, torneiro mecânico
e professor, se essas forem suas vocações. O tempo diário e total de execução dessas tarefas
será o mínimo possível segundo o exija a satisfação das necessidades comunitárias, e é de
se supor que o mesmo haverá de tender (em especial graças aos processos de automação) a
zero.
Como conciliar as vocações diversas com o conjunto de necessidades comunitárias
que devem ser satisfeitas num nível já atingido (e que nunca cessa de ser melhorado, senão
quantitativamente pelo menos qualitativamente) ? A resposta é: através do acordo
consensual dos produtores livremente associados que contraem e renovam periodicamente
seu pacto de convivência. Uma vez estabelecida a lista de necessidades e aquela de
disponibilidades vocacionais, o acordo comunitário de não-trabalho é o mecanismo de
compatibilização entre ambas. Esse acordo tem por base um projeto preparado por uma
equipe, armada dos apoios computacionais que se julgarem necessários, como proposta a
ser aprovada pelo conjunto dos pactantes (ou seja, todos os seres humanos com idade
superior a, por exemplo, sete anos), os quais atuam por sua vez como representantes dos
seres humanos restantes (da atual e das futuras gerações).
Esse acordo tanto no relativo ao tipo como ao tempo rotativo de atividade tem por
base a comunidade local (o distrito), mas se integra aos macro-acordos que abrangem
sucessivamente espaços maiores, até culminar no planeta inteiro (e ainda estender-se a
outros lugares onde estejam vivendo de forma permanente ou temporária, seres humanos)9.
O que acontece com as ocupações que se revelam necessárias à satisfação de necessidades
sociais e às quais não corresponde nenhuma vocação livremente expressada?
Duas são as respostas. Por um lado, a constatação dessa circunstância serve de
ponto de partida para que os pactantes (através dos interessados e capacitados dentre eles)
se proponham a resolver essa necessidade com mecanismos que possam prescindir de toda
intervenção humana (por exemplo, mediante o uso de máquinas ), inventando-os se for
preciso. Por outro lado, e a curto prazo, fazendo com que a "carga" indesejada recaia de
forma rotativa e equilibrada entre todos os pactantes e seus sucessores.
O mesmo procedimento organizativo consensual (com o voto de maiorias como
último recurso) haverá de verificar-se também no plano estabelecido entre os participantes
na ação de cada um dos centros e subcentros de atividade formadores do tecido trama social
do não-Trabalho.
As ciências e suas aplicações não-poluentes são um alicerce do não-Trabalho
desenvolvido no ecomunitarismo. Mas, como se depreende à luz do que já foi dito, o
cultivo das ciências não será assunto de uma "comunidade científica" como a existente no
capitalismo. O cultivo das ciências é agora uma entre outras das diversas atividades que
uma pessoa pode desenvolver em alternância temporal com vistas a seu livre
desenvolvimento multilateral. Assim se resolve a unilateralização, que é sinônimo de
pobreza humana, dos atuais cientistas, ao tempo que encurta-se a distância, por dissolução
da atual comunidade estanque no tecido social, entre os praticantes e os não praticantes de

9
Esse acordo planetário renovado periodicamente vem substituir a atual divisão mundial do
trabalho gerada de forma a-consensual e anarquicamente através das Bolsas que se alternam
para operar as 24 horas do dia.

83
atividades caracterizadas como científicas, sendo que estes últimos, à luz de uma instrução
generalizada, tendem a desaparecer.
A dinâmica "acordista" aqui descrita supõe a eliminação da "ordem" do universo
produtivo (e social em geral) e sua substituição por Quase-Raciocínios Causais (QRC ) que
estabelecem as obrigações assumidas e operam num contexto onde todo cargo de
coordenação-fiscalização é eletivo e rotativo. Diante da suposta transgressão do
consensualmente estabelecido por parte de algum dos participantes o QRC de "segundo
grau" com que o interpela um "parceiro" (seja este detentor de algum cargo de
coordenação-fiscalização ou não) ou o conjunto de "partners" tem a seguinte forma:
"(Deves) procede(r) da forma 'y' porque 'z' foi o acordado".
O interpelado, em função da gramática dos QRC, aceitará o obrigativo que dá início
ao QRC de segundo grau se assumir como verdadeiro o enunciado "z". Se não o considerar
verdadeiro então haverá de recorrer-se à instâncias que podem resolver a dúvida, por
exemplo ao testemunho de outros participantes e/ou documentos que revelem os termos do
acordado previamente. Desse recurso resultam dois finais possíveis: ou é confirmada a
veracidade do enunciado "z" e o transgressor fica sujeito ao obrigativo que este justifica, ou
o enunciado "z" resulta falseado e fica derrogado o obrigativo em questão, ao tempo que se
conclui que a suposta transgressão não teve lugar.
Até aqui tenho tratado da divisão social do não-trabalho. Agora passo a me ocupar da
divisão social do produto do não- trabalho.
O ecomunitarismo ajusta-se ao lema: De cada um segundo sua capacidade, a cada
um segundo sua necessidade. O produto do não-trabalho corresponde na sua quantidade e
qualidade ao estabelecido pelo censo consensual das necessidades sociais. Essas
necessidades (sobre cujo caráter haveremos de voltar ulteriormente) correspondem por sua
vez ao conjunto do que precisam os seres humanos atuais e futuros para realizar as
vocações que não sejam incompatíveis com vocações alheias e/ou de efeito degradante
irreversível sobre a natureza exterior (além de estar, obviamente, ao alcance do
desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas num momento considerado). Uma vez
este produto obtido comunitariamente, sua distribuição também far-se-á (com os apoios
computacionais necessários) comunitariamente. Isto é, um acordo semelhante ao "pacto de
produção" estabelece o "pacto de distribuição", o qual é cronologicamente anterior ao
primeiro porquanto o orienta em quantidade e qualidade.
O salário e o dinheiro têm desaparecido da história humana e as necessidades
individuais (através da família, na forma desta que venha a subsistir, ou diretamente) são
satisfeitas a partir do "fundo econômico comunitário".
É fácil se imaginar as superfícies dos atuais supermercados (melhoradas
infinitamente no relativo a sua inserção paisagística e qualidade estética) transformadas em
depósitos deste "fundo" onde dirigir-se-ão as pessoas para retirar o que lhes corresponde
segundo o pacto de produção-distribuição ou desde onde praticar-se-á a entrega a domicílio
desses artigos. Esse "fundo" inclui também, obviamente, as reservas acumuladas para fazer
frente, com base num plano consensualmente estabelecido, a eventuais períodos de
emergência (resultantes por exemplo de catástrofes naturais), num mecanismo que significa
a apropriação e gestão comunitária dos meios atualmente existentes sob a forma de
"estoques reguladores de preços".

84
O uso dos serviços se ajusta a este mesmo procedimento planejado por via
consensual existente no domínio dos bens de consumo10.
Por sua vez, os produtos que garantem a permanência desta forma geral de
produção-distribuição, como é o caso, por exemplo, das instalações industriais, escolares,
recreativas, etc., elaborados segundo o pacto estabelecido, integram-se ao tecido da
atividade comunitária em conformidade com o cronograma aprovado para tal.

Ecomunitarismo e ecologia.

O comportamento ecomunitarista a respeito da natureza está baseado na terceira


norma da Ética que prescreve : "Devo/devemos conservar a natureza saudável do ponto
de vista produtivo porque a natureza é saudável do ponto de vista produtivo é
condição de Eu faço/Nós fazemos a pergunta ' O que devo/devemos fazer ? ' " .
Isso quer dizer que esse comportamento terá um caráter preservador-regenerador da
natureza, resguardando-a de toda degradação da sua potencialidade produtiva. Em termos
concretos isso significa que a produção ecomunitarista se realiza única e exclusivamente
com base em matérias primas e energia a mesmo tempo renováveis e não-poluentes, ou
pelo menos, causantes de uma poluição reversível. Essa produção integra, como parte de
sua atividade permanente, a reversão de seus efeitos degradantes sobre a natureza e a
reciclagem de todos seus resíduos.
Essa conduta será tema fundamental da educação problematizadora que nas
instâncias formais e informais haverá de caracterizar o panorama cultural-educativo do
ecomunitarismo.
Sobre essa base se abre a perspectiva de ultrapassar a visão "utilitarista" presente na
terceira norma da Ética no relativo à relação entre os homens e natureza para, no contexto
do desenvolvimento multifacético dos indivíduos, se estabelecer e incentivar o re-encontro
lúdico-estético dos seres humanos com a natureza. Haveria então chegado o momento,
depois do longo período das sociedades classistas, de uma reconciliação dos seres humanos
com a natureza, mas dentro de uma relação na qual a mediação produtiva entre ambos,
diferentemente do que acontece nas sociedades denominadas "primitivas", está dada por
uma sofisticada tecnologia, feita possível pela aplicação produtiva das ciências,
preservadora-regeneradora do meio ambiente e que satisfaça às múltiplas e diversificadas
necessidades postas e resolvidas pelo desenvolvimento universal dos indivíduos. Por essa
reconciliação a natureza transforma-se para os seres humanos, ao mesmo tempo, no cenário
maravilhoso de suas vidas, numa obra de arte que convida a se praticar arte e na
companheira ("partner") de uma atividade produtiva na qual ela, de objeto de produção que
não deixa de ser, passa a ser também quase-sujeito enquanto é objeto do cuidado e do
carinho preservador-regenerador daqueles.
Essa virada alicerçada na norma ecológica numa perspectiva que a transborda
somente é possível no contexto do não-trabalho característico do ecomunitarismo no qual a
natureza tem sido desprivatizada e se constitui em objeto/"partner" comunitário.

Ecomunitarismo, gênero humano e necessidades humanas.

10
Parecido a isto, se excluirmos os "detalhes" essenciais que são o caráter excludente, o pagamento de taxas e
a gestão a-consensual próprias dessas instituições, é o que já acontece quando os sócios de uma academia de
tênis ou pintura necessitam marcar hora para praticar essas atividades.

85
O desenvolvimento universal dos indivíduos é universal não só porque cada
indivíduo se desenvolve universalmente a partir de suas vocações (respeitadas as exigências
postas pelas normas éticas) mas também porque esse processo de realiza em e graças à
interação consciente existente entre cada indivíduo e o restante dos seres humanos através
do contato de suas respectivas comunidades de vida.
Assim se completa, na negação de sua atual existência restrita porque não-
consciente no capitalismo, a aparição e perpetuação de indivíduos que produzem sua vida
em interação com o conjunto dos seres humanos. Noutras palavras, assim se constitui o
gênero humano como entidade real.
No e sobre a base do plano produtivo de cada comunidade existente no
ecomunitarismo se estabelece esta interação universal consciente dos indivíduos. Apoiado
nesse plano e transbordando-o, configura-se o conjunto dos intercâmbios individuais
universais que não se caracterizam ou não se caracterizam somente como "produtivos" por
abranger aspectos vinculados, por exemplo, à criação estética e às relações de amizade.
Ambas dimensões dessa interação são já hoje, do ponto de vista técnico, perfeitamente
realizáveis in loco e à distância, tanto pelos meios de transporte intercontinentais (cujos
atuais efeitos poluentes deverão ser eliminados), como pelas redes "multimídia" de
comunicação.
Resta saber como haveremos de encarar na perspectiva ecomunitarista a dimensão
quantitativa e o grau de variabilidade qualitativa daquilo que catalogamos como
"necessidades" postas e resolvidas pelo e no desenvolvimento dos indivíduos universais. As
vezes esta questão tem sido abordada com base numa suposta diferença existente entre
"necessidades legítimas" e "necessidades artificiais" (ou seja falsas necessidades) humanas.
É evidente que a realidade posta pela propaganda vigente no capitalismo e os hábitos que
ela pretende criar e manter nessa chamada "sociedade de consumo" proporciona um certo
conteúdo visível ao que se designa com o nome de "necessidades artificiais". (O próprio
Marx fez uso de expressões parecidas ao tratar da dinâmica de produção-distribuição-
consumo vigente na sociedade capitalista). Mas, quando se pretende aprofundar na análise
dessa questão a diferença estabelecida se revela problemática porque a "legitimidade" de
certas necessidades às vezes se interpreta, em oposição ao "artificial", como sendo "natural"
e porque ela supõe um fundamento ético a partir do qual possa se afirmar como sendo tal.
Em relação ao primeiro ponto há de se notar que precisamente o homem é aquela
parte da natureza que através da cultura transforma sua natureza; em outras palavras, a
espécie humana é a parte da natureza que se encontra, através de seu devir histórico, em
permanente estado de auto-produção. Daí que falar de uma "necessidade natural" referindo-
se aos seres humanos seja cair numa visão imobilista que contradiz o caráter historicamente
autopoiético da espécie humana e, portanto, incorrer em manifesta falsidade quando não em
um non-sens.
No referente ao segundo ponto, a questão da "necessidade legítima" pode ser
balizada por nós a partir das normas éticas transcendentalmente deduzidas anteriormente.
Ora, é de se notar que as mesmas não estabelecem uma versão estática de quais são as
"necessidades" que cabem nos seus limites, senão que se comportam como fronteiras
flexíveis em cujo seio pode ser acolhida como "necessidade legítima" toda carência posta
pelo desenvolvimento universal dos indivíduos que não transgrida a livre autodeterminação
de qualquer outro com o qual a única relação admissível com vistas à satisfação de desejos

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é a do consenso e que não contrarie a preservação de uma natureza exterior saudável do
ponto de vista produtivo.
O entendimento entre os seres humanos e o desenvolvimento da tecnologia são os
mecanismos que em cada momento histórico haverão de marcar a definição do que cabe se
admitir como "necessidade legítima" a ser atendida pela e na vida ecomunitária.

Algumas aspectos pontuais

Não ao cientificismo

Contra a aparência de uma tentação “cientificista” existente na minha visão do Ecomunitarismo


quero lembrar a crítica que fiz em 1994 da relação existente entre Ética, Ciência e Capitalismo ( Lopez
Velasco, 1994, e 1996 Cap. V, 5.5.2).
Também quero esclarecer que permaneço atento e refletindo sobre as críticas que o
ecofeminismo tem feito do paradigma da ciência ocidental e que não descarto (embora elas
me mereçam algumas reservas que serão explanadas no que segue) ulteriores
pontualizações sobre a participação das ciências no Ecomunitarismo à luz dessas
ponderações.
Por último necessito esclarecer que minha valoração do papel das ciências no
Ecomunitarismo não descarta em absoluto a importância dos saberes “tradicionais”; pelo
contrário, amparado nas experiências de Chico Mendes e Paulo Freire, e na teoria deste
último (Freire, 1970), considero que as ciências têm tudo a ganhar ao incorporarem,
inclusive para sua autocrítica, esses saberes (como está ocorrendo na agricultura orgânica e
na etnobotânica, para citar tão somente dois exemplos).
O que sim defendo é a idéia de que para nós, formados no universo da cultura
científica ocidental, é impossível e seria contrário a nossa conceituação da libertação, que
simplesmente nos proponhamos renunciar à maneira científica de encararmos o mundo
(que é parte essencial do nosso “modo de vida”, como diria o segundo Wittgenstein; cf.
Wittgenstein, 1953).

Comunidades periféricas como sujeitos coletivos da libertação

Relaciona-se com a anterior o necessário esclarecimento de que as comunidades e grupos


periféricos” (como é o caso, por um lado, das tribos indígenas da América Latina e as comunidades rurais que
tem mantido, embora parcialmente, sua organização comunitária, tanto na América Latina como na África ou
na Ásia, e, por outro lado, os grupos estáveis ou temporários dos refugiados ou “sem teto”, por exemplo)
fazem parte do conjunto dos sujeitos da atual luta anticapitalista de libertação.
Mas isso não significa que esqueçamos de salientar novamente a existência de
sérios problemas no que diz respeito à possibilidade mesma do diálogo intercultural e no
chamado de atenção para o erro cometido pela postura que idealiza “o pobre” (ver nossas
considerações sobre o “ecologismo popular”).

Tratamento de resíduos

É obvio que quando me refiro ao Ecomunitarismo como sendo uma ordem


comunitário-ecológica na qual todos os materiais produtivos usados são renováveis e na
qual todos os resíduos são reciclados, estou apostando, conscientemente, a uma idéia
reguladora (no sentido de Kant), nunca atingível de fato. Mas precisamente o papel dessa

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idéia é a de ser um horizonte que permanentemente nos lembre que qualquer grama de
matéria não-renovável que estejamos usando significa algo que estamos perdendo para
sempre, de forma a que não cedamos na busca da sua substituição por outra de caráter
renovável; e da mesma forma, no relativo aos resíduos, para que nunca tiremos da nossa
cabeça o imperativo dos “Três R” que obriga a reduzir, reutilizar e reciclar qualquer
resíduo, ou seja, idealmente, todo resíduo.
Por outro lado, é bom que se esclareça que em dizendo isso considero ainda não-
falseada a segunda lei da termodinâmica.

Redes e nova política


A atividade “política” é maior que a política partidária, haja visto que a “polis” na Grécia
clássica é a cidade-estado organizada e governada pelo conjuntos dos “cidadãos”. Hoje isso
fica mais claro através das ações do que poderíamos chamar de “nova política”, que tem
nas ONG’s protagonistas destacados e nas ações de conjuntos semi-organizados
de cidadãos atores cada vez mais freqüentes. Nesse última categoria vale lembrar os
milhões de cidadãos que saíram às ruas da Espanha para se opor ao envio de tropas ao
Iraque, que foram os mesmos que impuseram a inesperada derrota ao Partido Popular do
até então Presidente de Governo, José Maria Aznar, quando, após os atentados de 11 de
março de 2004 em Madri, julgaram com lucidez, apesar da profunda dor do momento, que
o envio de tropas determinado por Aznar contra a vontade de 90% dos espanhóis tinha sido
a causa primeira do massacre. De forma semelhante, centenas de milhares de italianos,
entendendo que Berlusconi além de controlar o poder executivo (na sua condição de
Primeiro Ministro), o legislativo (graças à sua base partidária de sustentação), a TV (por ser
dono das maiores redes privadas e controlar também a partir do governo a emissora estatal,
a RAI), estava caminhando a passos largos para neutralizar também o judiciário (através da
lei que tinha conseguido aprovar em primeira instância segundo a qual o Primeiro Ministro
em exercício não poderia ser objeto de ações judiciais durante o seu mandato),
protagonizaram várias vezes as ações que lhes deram o nome de “girotondi” (no que
corresponde no Brasil àqueles que dão “abraços” simbólicos a determinados prédios ou
lugares). Por sua vez Marcelo Expósito (2003) tem recentemente feito uma síntese das
ações de protesto que fazem parte do arsenal dessa “nova política” que esse autor classifica
como “desobediência social”. Falando sobre a “ocupação do espaço público pela resistência
global” e focalizando a “diversidade do antagonismo e a proliferação dos sujeitos
políticos”, lembra ele a passeata de Praga de 26/09/2000 na qual umas 15.000 pessoas se
juntaram, para protestar contra o encontro anual do FMI e do Banco Mundial, em três
alegres cortejos identificados por cores (o azul, o rosa e o amarelo), para logo “abraçar’ o
local do evento (apesar da advertência da polícia de que o protesto era ilegal), o que
provocou o encerramento antecipado do mesmo; tal forma de ação inspirava-se do
“carnaval” que em 18/06/1999 tinha tomado conta (sob a luz das cores vermelha,verde,
preta e dourada) da City (o centro financeiro de Londres) na primeira grande jornada de
Ação Global contra o Capital. Em abril de 2001 um grupo de pessoas entra no “Metropoli”,
grande shopping de Milão, na hora der maior afluência pra lá irradiar a todo volume música
e palavras de ordem, chamando a atenção dos jovens empregados para as condições
precárias do seu trabalho; quando a polícia interveio para desaloja-los os manifestantes
chamaram a atenção para a contradição que significa o manifesto uso privado de um espaço
que se diz público, salientaram que “vieram trazer o seu centro social para o centro
comercial” e instalaram-se no telhado, chamando a atenção de todos os freqüentadores do

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local e da mídia que nessa altura já se fazia presente no lugar; ação parecida ocorreu em
Barcelona em julho de 2002, quando manifestantes realizaram na zona comercial do Portal
del Angel e frente a uma conhecida loja de roupas juvenis, um estranho troca-troca de
roupas caras de uma estante para outra, armados tão somente com enormes colheres e
garfos de madeira, questionando a freguesia sobre o consumismo que se acompanha da
fome de muitos.
Ora, tanto as ações dos “girotondi” quanto aquelas descritas por Expósito são de curta
duração e intermitentes, e, também, se são ricas no seu conteúdo de protesto são igualmente
fracas na sua dimensão propositiva. Uma e outra deficiência não fazem parte da Educação
Ambiental cidadã que proponho em perspectiva ecomunitarista, que apresenta-se como
uma modalidade política permanente de crítica e de mudança social.

História e Utopia.

O ecomunitarismo é hoje uma "utopia" haja visto que, no capitalismo, "não está em
nenhum lugar" ( é, literalmente, "ouk" - "topos"). Saber se algum dia poderá ocupar um
lugar com as características genéricas antes descritas é uma questão que somente a ação
humana poderá resolver. É bom que se diga de imediato que, ainda que isso seja discutível,
o que vale a partir das normas éticas transcendentalmente deduzidas é o caminho histórico
que aponta rumo ao ecomunitarismo, que não é outra coisa senão o processo histórico de
libertação. Ora, que perfil geral tem esse caminho ?
Para responder essa pergunta permito-me algumas observações conjecturais baseadas
na nossa recente experiência histórica. Creio que, se a fundamentação ética do processo de
libertação que aponta rumo ao ecomunitarismo se apoia na crítica do capitalismo, e em
especial na situação alienada dos assalariados nesse regime social, nem por isso a luta de
libertação pode definir-se como uma luta de classes onde o papel de vanguarda está
predeterminado e corresponde à classe operária. Há que se fazer notar que a classe
operária, entendida como composta pelos trabalhadores industriais com contrato trabalhista
por tempo indeterminado, tem diminuído quantitativamente e se transformado
qualitativamente mediante incorporações tecnológicas ao processo produtivo mediante, em
relação ao que era sua situação a inícios do século XX. Além disso as organizações
sindicais pretensamente representativas desta classe transformada têm visto seu número de
aderentes diminuir constantemente ao mesmo tempo em que restringiam cada vez mais suas
reivindicações a aspectos inerentes à relação assalariada vigente no capitalismo em busca
de melhoras que não afetam essa relação em profundidade; assim, são bandeiras de luta
permanentes e (quase) únicas as relativas ao montante dos salários, à garantia do emprego,
à extensão da jornada de trabalho e às condições de higiene e segurança do local de
trabalho; a elas recentemente tem se acrescentado como único elemento novo, no que se
refere às relações humanas dentro da empresa, a questão do assédio sexual. Mas ela não
tem sido vinculada, no tratamento que lhe tem dado as organizações sindicais dos
assalariados, a uma discussão geral sobre o tipo e a legitimidade das relações humanas
produtivas e comunicativas vigentes no capitalismo em geral, e em particular no espaço-
tempo da empresa.
Por sua vez, a maioria das organizações políticas supostamente representativas da
classe operária transformada tem seguido o caminho das organizações sindicais, unindo-se
de fato quando não também de palavras ao capitalismo reinante (e reinante com mais força
depois que, derrotado na Europa e chamado "socialismo real", o capitalismo é apresentado

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por seus corifeus como sendo "o fim da História"). Nas organizações políticas
representativas da classe operária que não têm abdicado de seus ímpetos superadores do
capitalismo, o que se observa é uma conduta marcada por uma carência de propostas no que
concerne o regime desejado, quando não uma simples e simplista nostalgia e adesão do e ao
"socialismo real"; regime que, como se não bastasse a falta de perspicácia filosófica dos
que assim o batizaram passando por alto o fato de que de acordo ao velho e bom Hegel tudo
o que é real é digno de perecer, não resolveu na prática nem a questão da progressiva
realização consensual da liberdade de indivíduos em processo de universalização nem a
questão da reconciliação com a natureza através de uma conduta ecológica de preservação e
regeneração da mesma.
Estas constatações são suficientes para aventurar na opinião de que o caminho rumo
ao ecomunitarismo não pode ser pensado como uma luta de conquista e/ou recuperação do
"socialismo real" tendo a sua cabeça a "classe operária", e à cabeça desta "suas
organizações representativas" sindicais e/ou políticas. À luz da crítica eticamente
fundamentada do capitalismo aqui antes desenvolvida e sobre cujo fundo se desenha como
alternativa o ecomunitarismo essa marcha aparece como parte e produto de um processo de
"conscientização" (no sentido de Paulo Freire) tendo por protagonistas principais aos
assalariados e excluídos do trabalho em geral no capitalismo, mas incorporando também a
todo homem que seja capaz de entender e compartilhar o alcance daquela crítica.
Ora, que formas organizativas haverão de dar-se essas multidões ?
Creio que a organização sindical e político-partidária ainda tem o seu lugar na
história desde que seu discurso cotidiano aponte sempre o objetivo não capitalista
perseguido, para além das reformas e conquistas pontuais legitimamente defendidas, a
saber, um ecomunitarismo, e desde que seu funcionamento interno esteja marcado pela
prática democrática das decisões consensuais (sempre que possível em exercícios de
democracia direta) tomadas com base na transparência das informações e, como parte da
"conscientização" em curso, os cargos diretivos sejam rotativos, evitando a
profissionalização dos dirigentes na sua função de tais.
Mas junto e além de tais organizações piramidais (onde, repito, cada nível da
pirâmide que implique em delegação de poder de decisão deve ser ocupado em sistema de
rodízio) haverão de ter cada vez mais força aquelas que congregam ao homem em seu
contexto extra-produtivo, a começar pelo seu local de residência. O restabelecimento duma
vizinhança solidária e atenta à melhoria da qualidade de vida no bairro é uma tarefa de
primeira importância no relativo à mudança das relações interhumanas e entre os homens e
o meio ambiente.
A educação formal e os meios de comunicação são dois espaços fundamentais que
a crítica ecomunitarista do capitalismo não pode abandonar em nenhuma circunstância. As
novas possibilidades tecnológicas em matéria de comunicação fazem possível que se
estabeleçam brechas na muralha que os meios de comunicação (em especial a televisão, o
grande "aparelho ideológico" do capitalismo atual, como poderia dizer Louis Althusser; ver
Althusser 1969) constróem diariamente em volta do capitalismo, desde que se restabeleça
o diálogo cotidiano com o colega, o vizinho e ainda o desconhecido. As "sessões sem
televisão" no bairro dedicadas à discussão e ao desfrute conjunto da vida, a rádio e a TV
comunitária, somadas aos espaços institucionais ou individuais que se possa ocupar nos
grandes meios de comunicação de massas, assim como a conexão oportuna via Internet,
correio eletrônico, telefone, fax e carta, o incessante diálogo cara-a-cara são instrumentos
da ação ecomunitarista na área da comunicação.

90
Na educação formal o grande desafio passa pela prática de uma "pedagogia
problematizadora" (no sentido de Paulo Freire; ver Freire 1970) através da qual professor
e aluno constróem e renovam a partir de suas vivências sua leitura crítica do capitalismo e
sua inserção transformadora no processo de libertação. Nesse terreno o espaço chave é o
dos centros de formação de professores, pois através da formação problematizadora dos
mesmos se faz possível a multiplicação da ação problematizadora a escala ampliada
porquanto alcança-se o conjunto dos futuros alunos daqueles (que são milhares ao longo de
uma vida de docente).
Esse conjunto de espaços e ações define o perfil da maré ecomunitarista capaz de
submergir o capitalismo no passado da história (ou da pré-história humana, como disse
Marx). Mas duas questões continuam pendentes. Elas dizem respeito aos meios para
demover os defensores irredutíveis do capitalismo, (em especial daqueles dotados de poder
militar de destruição maciça) a respeito do tempo histórico disponível para que a maré se
constitua e possa agir em grau que lhe permita êxito.
À primeira questão respondo com uma analogia relativa a outra situação limite:
assim como o doente vítima de um ataque de loucura agressiva necessita ser controlado
para que na sua insanidade não se machuque nem machuque outras pessoas, assim também
o crescimento progressivo das ações ecomunitaristas não deve descartar de seu horizonte
uma ação de coação que impeça que os capitalistas cometam suicídio ao tempo que
provocam o holocausto da humanidade (é bom que se lembre que até Cristo não pôde fugir
da agressividade quando se enfrentou aos mercadores do Templo). À segunda pergunta
minha resposta é a seguinte: não sei se antes conseguirá a conscientização ecomunitarista
transformar o capitalismo ou o capitalismo acabar com a humanidade. Em todo caso creio
que a nos cabe lutar para que aconteça o primeiro e não o segundo.

SONHANDO O ECOMUNITARISMO

O nosso dia-a-dia está tão recheado de capitalismo que se constitui numa


necessidade vital da respiração saudável imaginarmos a rotina do outro mundo possível que
postulamos com nossa concepção da educação ambiental (EA). Dai a breve jornada de
Almotásim na sua cidade-planeta de Tlön. Para fundamentá-la lembraremos a seguir alguns
conceitos fundamentais que nortearam o nosso engajamento no Programa de Pós-graduação
(MEA, hoje Doutorado reconhecido pelo MEC) da FURG.

UMA JORNADA DE ALMOTÁSIM EM TLÖN


Almotásim acordou aquele dia, como quase sempre, de bom humor. Tomou um
banho quente com água aquecida pelas placas solares e sentindo como a água retornava
pelos canos para o depósito no qual (mediante uso da mesma energia) o líquido elemento
era limpado uma e outra vez para habilitá-lo a cumprir a mesma função (até que, por
recomendação médica, era destinado a usos menores, como lavar roupas e pisos, e molhar
as plantas). Na cozinha o forno-fogão alimentado pelas baterias do prédio carregadas com
energia eólica (e submetidas de tempos em tempos aos necessários reparos nos quais os
componentes, inclusive a solução química, eram trocadas e recicladas) o café da manhã
anunciava-se esfumegante, junto com os croissants que suas filhas tanto prezavam. Como

91
ninguém é de ferro, Almotásim degustou um pouco da sua marmelada favorita ao tempo
que ouvia no rádio-solar o noticiário. Uma enchente havia causado sérios estragos em
Uqbar e os vizinhos afetados tinham sido levados para as terras altas, nas quais os
aguardavam os bairros já preparados de antemão para recebé-los em caso de necessidade,
onde cada prédio tinha um stock dos suprimentos não-perecíveis essenciáis; uma equipe de
pesquisadores de Orbis anunciava para breve a colocação em serviço de outra geração de
naves interoceânicas com volume reduzido de ruído e velocidade e capacidade de
transporte aumentados; antes da música veio a raridade do dia: alguém viu na casa de um
rapaz um computador portátil que lhe pertencia; falou com a moça que naquele mês
assumia a coordenação da ação comunitária no bairro e foram visitar o rapaz; rapidamente
veio a tona que por uma estranha timidez misturada de orgulho não quis contar a ninguém
que durante uma excursão marítima tinha deixado cair o seu notebook, pelo que decidiu
pegar o do amigo de um amigo, durante uma inesperada visita ao seu domicílio; o rapaz foi
convidado a se reunir no dia seguinte com a comissão que naquele mês cuidava da ação
social e a mesma deliberou que cabiam dois encaminhamentos: aconselhar o rapaz para
cuidar da sua timidez orgulhosa (se necessário com a ajuda de alguém que tivesse
especialização na área), e convidá-lo a passar pelo depósito comunitário do bairro para
retirar dali (com o devido registro computadorizado) um outro portátil, devolvendo o outro
ao seu dono. Almotásim abanou diante do micro-receptor e o rádio apagou-se. Antes de
sair, visitou a privada com sistema biodigestor seco (cuja terra era esvaziada
periodicamente para o devido processo de reciclagem-reutilização), lavou as mãos (com a
mesma água usada pelo chuveiro), escovou os dentes com a mínima quantidade de água
separada para esse uso, e para beber, preparar as comidas e lavar a louça (que depois de
usada juntava-se à do banheiro). Chegou devagar ao dormitório onde Rafaela ainda
dormia e lhe deu um silencioso beijo de despedida; o mesmo fez com o casal de filhos, no
seu respectivo dormitório. Pensou: as meninas crescem (havia muito tempo que como mais
uma medida para combater o machismo que tinha reinado por séculos os plurais mistos
levavam a marca do feminino), e pronto teremos que solicitar ao depósito comunitário
mudança para uma casa com outro dormitório, para que algum casal recém formado venha
se instalar nesta. Abriu a porta (que, como todas as de Tlön carecia de fechadura) e saiu ao
pátio interior do prédio; um belo jardim o acolheu com o perfume de diversas flores;
(semana que vem fazemos parte da equipe de vizinhos que deve tomar conta do jardim);
passou ao lado do playground com areia e brinquedos de criança, olhou distraidamente
para a piscina coletiva coberta que naquela hora estava vazia, e saiu à rua pelo vão que
nenhum portão fechava. Seu relógio solar não o enganou e naquele preciso instante o
micro-ônibus laranja dobrou a esquina. Ao subir descobriu no lugar do motorista o médico
que o havia atendido no ano passado quando torceu o joelho jogando futebol.
- Hola, como vai...
- Almutamid, acrescentou o outro, sentindo o desconforto de Almotásim por
constatar que não lembrava do seu nome. Estou ótimo. Precisava sair por um
semestre daquela clínica pois, como você sabe, a responsabilidade do médico é
muito estressante; aqui somente estamos para cuidar de urgências quando falha a
direção automática do veículo orientado por satélite, para ajudar idosos e crianças a
subir ou descer, e para bater papo com os conhecidos; tudo isso somente pela
manhã, pois reservo a tarde para o esporte, a leitura (sempre é necessário
acompanhar as últimas novas da medicina, além do que, você sabe, tenho uma
queda especial pelos antigos como Borges e García Márquez), e a vadiagem. Ano

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que vem não sei ainda se voltarei para a clínica ou se, como outras vezes, irei me
embarcar para pescar no mar (você sabe que essa atividade quase folklórica, por
causa dos enormes rendimentos dos criadouros de água salgada e doce, sempre me
apaixonou, e que barco é comigo mesmo, embora às vezes a tontura me
acompanhe).
- Que ótimo que tudo esteja bem contigo; mas o que diz a tua família quando resolves
bancar o marinheiro-pescador?
- Ainda não sosseguei; prefiro ficar, sem atolar...
- Ainda não sabes o que é de veras bom!
Ambos riram de boca cheia e no momento seguinte ajudaram a subir uma senhora com
um chapéu verde, copiado, sem dúvida, do de Miss Marple.
Almotásim sentou-se e duvidou se acionava o sistema de tela e auriculares que lhe
permitia seguir no respaldo da poltrona da frente musicais, noticiários, programas
científicos ou de arte; optou por saborear o sol e ficar tranqüilamente vendo janela o
mundo passar.
Poucos quarteirões depois Almotásim apertou o botão vermelho e o micro-ônibus se
deteve suave, flutuando silenciosamente sobre os trilhos metálicos que o faziam circular
por impulsos magnéticos. Acenou com uma mão para Almutamid que o espiava pelo
retrovisor e desceu.
Pegou uma das bicicletas comunitárias que aguardavam no posto próximo e pedalou
alguns quarteirðes até chegar ao seu local de atividade naquele semestre. (Note-se que
não dizemos “local de trabalho”, porque, como todos sabem, o “trabalho” era aquela
atividade da pré-história da humanidade na qual as pessoas eram obrigadas, para
sobreviver, a obedecer ordens desgastando seu corpo e mente em tarefas que
aborreciam e para beneficiar uma minoria de espertalhðes que possuíam em regime de
monopólio os meios de produção). Passou pelo pórtico e buscou a sala. À sua porta
aguardava um grupo de jovens de ambos os sexos e alguns do terceiro (como faziam
questão de não ocultar de ninguém). Abriu a porta sem chave e adentrou-se na sala cujo
centro estava ocupado por um pátio florido banhado pelo rumor suave da água que
escorria de uma fonte que imitava o antiquíssimo modelo da Alhambra. Redes e camas
romanas estavam dispostas no pátio e embaixo das partes cobertas e limitadas por uma
colunata; a elas faziam companhia cadeiras-mesas anatômicas com ângulos calculados e
estofado amortecedor; numa das paredes brilhava a tela acoplada ao computador e ao
aparelho de vídeo-áudio (do qual Almotásim decidiu usar naquela manha somente o
dispositivo que, a partir do minúsculo microfone que cada um abotoava na sua camisa,
elevava o tom de voz até a altura necessária). As alunas distribuíram-se, segundo o seu
desejo; algumas acionaram seu gravador de som e imagens; quase todas orientaram seus
rostos para a cadeira-mesa na qual Almotásim preferia se acomodar para ordenar
melhor as idéias (quase nunca falava andando, embora não dispensasse desse recurso,
quando as pernas assim o pediam); contrariamente à maioria dos seus colegas,
raramente usava o dispositivo de vídeo-áudio capaz de aportar a qualquer momento a
contribuição de vídeo-conferências em vivo ou gravadas, que o satélite trazia de
qualquer parte do planeta, com tradução simultânea, ou ainda as informações da Rede,
acopladas às inúmeras bibliotecas digitalizadas ao redor de Tlön, onde eram acessíveis
instantaneamente desde os clássicos até os últimos lançamentos.
- Como tínhamos falado no último encontro... (sentiu que o volume estava baixo e o
corrigiu proferindo as palavras “aumenta um pouco o volume”)...como tínhamos

93
falado no último encontro, nosso tema hoje é o amor; é claro que seriamos imbecís
se pensássemos que é tema para uma aula, porque como alguém já disse, o amor
não acaba nunca de ser feito; mas trata-se de dar hoje e nos próximos encontros
alguns passos nessa selva...
Como outras vezes Emma falou a primeira.
- Li como indicaste “O Banquete” de Platão e fico intrigada pelo fato de que aquele
genial grego contrapusesse de forma tão aguda a atração sexual e a cooperação
espiritual, para reservar somente a essa última o nome de amor verdadeiro.
René, do terceiro sexo, foi rápida/o na resposta.
- Não faltava hipocrisia ao genial Platão, pois ele foi sucessivamente amante-amado
quando adolescente e amante-amador de adolescentes quando adulto; aliás, todos
sabemos que para os gregos da época essa era a regra e não a exceção...E Platão não
deixa de contradizer na sua prática a teoria que defende em palavras, pois em uma e
outra posição Platão, como os outros, juntava o prazer do corpo ao do espírito.
Várias/os alunas/os começaram a falar ao mesmo tempo e Almotásim pediu que cada
um se expressara de uma vez, para que todos pudessem ouvir e ser ouvidos. Alguns
resolveram caminhar silenciosamente pelo pátio, para ouvir ajustando seus
pensamentos. As intervenções se sucederam. O mestre ouviu as várias opiniões,
pedindo às vezes que o expositor esclarecesse um ou outro ponto do seu argumento, e
depois decidiu que era o momento de intervir.
- Proponho que façamos o intervalo e que ao voltarmos focalizemos a seguinte
questão: tanto no relacionamento sexual como no trato intelectual, cada um de nós
não quer ser respeitado como pessoa? Esse respeito não é pelo menos boa parte do
que poderíamos chamar “amor”? Em que ética poderíamos fundamentar esse
respeito?
As jovens aproveitaram a sugestão para enfileirar rumo à porta, trocando ruidosamente
idéias em pequenos grupos. Algumas delas seguiram para se integrar às equipes que
naquela semana deviam cuidar dos pátios e da limpeza das salas ou para tomar conta do
refeitório, ou, ainda (depois do devido treinamento) para compor as equipes de
massagem, a uma das quais recorreu Almotásim. Sentou-se na cadeira inclinada
afundando a cabeça na almofada que para esse fim servia e, por cima da roupa, hábeis
mãos relaxaram suas costas, braços e nuca. Depois chegou-se ao refeitório onde
escolheu gratuitamente, como todo mundo, as porções balanceadas pelos dietéticos de
plantão, dos salgados, doces e sucos (de frutas ou hortaliças orgânicas) apetitosos e
nutritivos (e variados, para satisfazer os diversos gostos); fazendo equilíbrio com a
bandeja preferiu ficar sozinho numa mesa deserta ao pé de uma fonte na qual nadavam
peixes coloridos. Degustou suas escolhas nos pratos e copo de madeira (havia muito
tempo que o uso do vidro tinha sido reduzido ao mínimo necessário e que o plástico
biodegradável era uma exceção destinada a usos indispensáveis; aliás, nas indústrias
todas as tarefas repetitivas ou pesadas eram desempenhadas por robôs e aos humanos
somente cabia a função, que exerciam em rodízio, de vigiá-los). O canto da água da
fonte levou seus pensamentos para longe. Quando quis acordar era hora de voltar para a
aula. Lá já o esperavam todas. Apenas reocupados os seus lugares três mãos se
levantaram para opinar sobre as três questões prévias ao intervalo.
Almotásim comprovou que todas concordavam quanto à primeira e a segunda. Em
relação à última alguém citou Kant longamente.
O mestre passou a mão no queixo e falou:

94
- Kant é sem dúvida um dos grandes. Mas gostaria de resgatar aqui a contribuição de
um obscuro pensador que sustentou que questionando a gramática profunda da
pergunta que instaura a ética (sem a qual essa não existe), a saber, “que devo
fazer?”, e supondo somente que, como disse Austin, pretendemos realizar atos
felizes de fala, podemos deduzir três normas éticas de validade universal que
determinam, respectivamente, que devo lutar para realizar minha liberdade
individual de decisão, que devo realizá-la de forma consensual com os outros (para
que a minha liberdade não se oponha à deles, mas se realize junto com ela), e que
ambas coisas devem acontecer no contexto de uma vida que preserve-regenere na
sua forma saudável a natureza humana e não-humana. Ora, vejam que quando
pedimos respeito o fazemos na condição de pessoas que queremos ser livres,
conforme determina a primeira norma da ética aqui referida; e o mesmo acontece
quando reivindicamos decisões consensuais (conforme a segunda norma), que
incluem, como seu nome o indica, o respeito pela nossa opinião. Dai que, vejam, no
meu entendimento a ética proposta pelo referido pensador proporciona o
fundamento último a partir do qual podemos pedir respeito e reivindicá-lo como
uma das formas do amor. Notem que a terceira norma foi colocada nos pré-
históricos tempos do capitalismo onde, por incrível que possa parecer a vocês, a
humanidade, controlada pela minoria capitalista, dedicava-se em nome do lucro a
destruir alegremente o nosso planeta e a condenar à infelicidade por causa do
trabalho alienado a maioria dos seus membros (incluídos os próprios capitalistas
que, aparentemente, se beneficiavam de toda aquela loucura).
Houve intensa troca de opiniões sobre esses assertos e várias/vários alunas/os pediram
as referências bibliográficas do autor citado pelo mestre. No fim, um deles chamou a
atenção para o fato de que não só o tempo estava cumprido mas que o cansaço das
cabeças merecia o fim do encontro.
Despediram-se com acenos de mãos e Almotásim decidiu voltar para casa caminhando.
Como acontecia com todo mundo, a casa familiar do (naquele semestre) mestre estava à
proximidade do local de atividade; e, sem qualquer custo, a família ia usando alternada
e sucessivamente quantas casas fosse preciso para guardar essa proximidade. No trajeto
e pouco antes de chegar deparou-se com a Escola das crianças, perdida num denso
arvoredo (rico em pássaros e outros animais), que tinha horta mantida pelos alunos e
mestres (com fins pedagógicos e também para alimentar a panela da instituição),
ginásio e instalações esportivas variadas. Quando chegou, as crianças estavam saindo e
coincidiram com Rafaela, que acabara de deixar sua tarefa semestral (limpadora das
ruas do bairro, com ajuda das máquinas movidas a energia solar), que era a mesma que
aguardava a Almotásim (também tentado pela agricultura) no semestre seguinte (no
qual Rafaela, com certeza, optaria por voltar a exercer como engenheira de construção).
Já os quatro juntos encaminharam-se a pé até o Centro Comunitário (o mesmo que tinha
o antes citado depósito) para almoçar. Num estilo igual ao do refeitório da Universidade
onde lecionava Almotásim, desfrutaram em família do almoço. Depois, enquanto as
filhas do casal ficavam para ajudar na limpeza da louca pois era sua vez, Almotásim e
Rafaela decidiram tirar uma soneca e fazer aquele belo amor vespertino digno de Al-
Andalus. Depois ela foi para a aula de dança árabe, enquanto ele preferia o basquete;
ambos eram praticados gratuitamente em outras tantas instalações comunitárias do
bairro. (Como não é a primeira vez que nessas linhas é questão de gratuidade é hora de
lembrarmos nosso leitor que em Tlön ha muito tempo o dinheiro desapareceu pois a

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escala planetária, graças à solidariedade recíproca entre os povos, institucionalizada na
Organização dos Povos Unidos (OPU), foi feito realidade o lema: “de cada um segundo
as suas capacidades e a cada um segundo suas necessidades”; cada um exerce
alternadamente funções de utilidade social e, em troca, recebe tudo aquilo que necessita
para se realizar como indivíduo; só não vale pedir alguma coisa que sirva para
desrespeitar qualquer uma das três normas éticas acima citadas; e isso é resolvido pela
assembléia comunal). De banho tomado o casal decidiu que era hora de assistir aquele
filme que os vizinhos não se cansavam de elogiar e que seria retirado de cartaz em
breve. Cinema de graça e volta para o prédio de casa. Como a noite se anunciava quente
decidiram compartilhar o comedor coletivo do prédio com alguns vizinhos que lá já
estavam; as filhas, que tinham desfrutado, respectivamente de aula de pintura e clube
voluntário de ciências, preferiram ficar curtindo TV interativa para sair mais tarde com
uma turminha barulhenta. No comedor cada um levava de casa algumas guloseimas e
bebidas que compartilhava na mesa comum. Alguém disse que lera um velho livro no
qual o personagem principal vivia angustiado pelo medo de perder o emprego e
trancafiado numa casa protegida por grades sem fim. Várias vozes caridosas
compadeceram-se dos longínquos tempos em que a humanidade sacrificou ao deus da
insania e se submeteu ao absurdo poder dos patrões. Um dos casais comentou que
receberia em dois dias amigos que habitavam do outro lado de Tlön e que decidiram
passar com eles essas férias (para logo ceder sua casa aos anfitriões nas férias deles).
Alguém disse que pensava usufruir esse semestre do seu direito bianual de visitar
pessoalmente (tem muito mas graça que pela Rede) uma localidade e um museu
clássico; cogitava ir a Atenas ou à Amazônia, e ao Louvre. Antes da meia-noite
Almotásim e Rafaela decidiram que era hora de irem para a cama. Ela ameaçou brincar
com o corpo dele, e ele se defendeu:
- Rafaela, não sou de ferro...
Então ela deu as notícias:
- Amor, este semestre decidi trocar o alojamento de férias com os meus pais; eles
chegarão na semana que vem pois dizem que se aborrecem de ver o mar todo dia;
imagina só!...
Almotásim engoliu saliva e respondeu com um monossilábico “ahá...”, enquanto
pensava “ainda bem que não aderi à experiência dos casamentos coletivos, pois isso
significa multiplicar o número de sogras!”.
Desligaram a luz e se dispuseram a dormir.
A TERRA DE HOJE E A EA
Hoje sabemos que, como dizia Marx, o capitalismo arruína as duas fontes da
riqueza: o ser humano e a terra. Na lógica do lucro sacrifica-se a saúde humana na
angustia do desemprego e da pobreza ou na jornada estressante, a violência mata todo
dia (pelo petróleo, a cor da pele ou o par de tênis do vizinho, ou ainda pela droga, a
briga de casal ou o trânsito), o ar fica irrespirável nas grandes cidades e as florestas
sofrem as conseqüências da sede de ganância e da chuva ácida, o efeito estufa e o
buraco na camada de ozônio modificam perigosamente o clima e aumentam a
incidência do câncer de pele, os rios e mares são diariamente envenenados com
ingentes cargas de matérias tóxicas (em especial agrotóxicos), que antes de chegar a
eles poluíram as terras e as pessoas. Por tudo isso o capitalismo transformou-se em algo
mais que uma ameaça às riquezas: passou a ameaçar a vida no planeta inteiro. Mas o
capitalismo tem defensores poderosos que detêm o poder econômico, militar e cultural.

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Todo dia a TV invade a casa de cada família para decretar que outro mundo não é
possível porque “o mercado” determina isto ou aquilo, ao tempo que nas escolas e
Universidades, inclusive mestres bem intencionados insistem para que seus alunos
compreendam que devem se preparar para competir no “mercado”. Mas o que é o
“mercado” senão o conjunto das relações produtivo-distributivo-de-consumo entre as
pessoas que escaparam ao seu controle e gestão? Ou seja, aquele discurso da TV e dos
educadores significa que é normal e conveniente que a humanidade seja escrava das
suas invenções interativas e não a gestora das mesmas. Cabe à educação ambiental
discutir aquele estado de coisas e esse pressuposto. Não a toa até o organizador da Rio
92 manifestou naquela conferência que a discussão ambiental precisava questionar o
atual modo de se praticar a economia. É bom lembrarmos que a dita palavra deriva do
grego “oiko-nomia”, que na era clássica significava a gestão das necessidades da casa
(oikos), para que nada necessário lhe faltasse. O capitalismo realizou o milagre de
inverter a tal ponto as relações que quer nos fazer acreditar que o ser humano deve se
amoldar à Economia, e não o contrário. Mais um absurdo a ser questionado. Para dar
conta dessa imensa tarefa a EA precisa (e resumo ao meu modo a pretensão da
conferência de Tbilisi) abranger conjuntamente a ética e as áreas do conhecimento e das
habilidades; todas elas visam um novo comportamento. No meu entendimento a ética
capaz de pedir-obter adesão universal (independentemente de credo religioso ou a priori
ideológico) é a das três normas que expusemos acima. Ela resume num fecho só a
fundamentação da libertação humana e da preservação-regeneração da natureza não-
humana, e aponta para o ecomunitarismo, horizonte utópico no qual os seres humanos
reconciliam-se entre si e com o restante da natureza. Se alguém disser que a realização
do ecomunitarismo é impossível eu poderia concordar de bom grado, salientando que
precisamente essa caraterística faz parte do seu perfil utópico; mas o ecomunitarismo é
uma indispensável guia para a ação; um norte, sem o qual perigamos ficar sem rumo ou
andando em círculos, mesmo quando temos as melhores intenções. Suspeito que boa
parte do mal-estar da juventude de hoje, massacrada por um sistema capitalista que a
obriga a estudar e depois nega-lhe a oportunidade de exercitar aquilo que aprendera,
vem, também dessa falta de horizontes para além do dia-a-dia frustrante e sem amanhã.
O ecomunitarismo é a bandeira que assumindo essa realidade apresenta à EA o desafio
de asumí-lo como guia; isto é, retomando o lema do movimento estudantil de maio de
1968, de ser realista, pedindo o impossível, e, para tanto, colocar cada dia a imaginação
no poder. Essa EA deve ocupar as salas da educação formal e se espalhar pela
comunidade, através das famílias, das ONG’s, das associações de bairro, dos
movimentos sociais, dos sindicatos, dos partidos, dos comunicadores ganhos para a
causa e das lideranças religiosas quando descobrirem que a “religião” consiste
etimologicamente em religar os seres humanos entre si e com o restante da natureza.
Tal EA problematizadora tem em Paulo Freire seu principal precursor e mentor e
assume-se como atividade “política”, quer dizer vivendo e visando a transformação da
“polis” (a cidade-país-planeta) numa busca de aproximação ao ecomunitarismo. Seu
rádio de ação espalha-se do distrito até o planeta inteiro, criando os espaços de reflexão
e atividade conjunta (dos quais o Fórum Social Mundial já é um bom exemplo a ser
aperfeiçoado na sua capacidade de intervir com eficácia na concretização de soluções
para os problemas claramente diagnosticados há muito). Inimiga da violência porque
embasada na ética argumentativa, essa EA não teme no entanto reconhecer que assim
como se amarra uma pessoa vítima de um ataque de loucura, para que não machuque e

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se machuque, assim também é possível que tenha que se coibir os cegos capitalistas
que com sua ação prepotente nos levam (e vão eles próprios e suas famílias ou
descendentes) rumo ao abismo do holocausto da espécie ( e de muitas outras espécies).
Para fazer possível um mundo de pessoas pacíficas essa EA não pode fugir do combate,
pois isso significaria deixar o terreno livre aos vampiros sem função ecológica, que são
os donos do mundo de hoje. Para efetivar o que de ela se espera a EA ecomunitarista
deve aprender a combinar o ensino-aprendizagem da sala de aula com a ação
comunitária (através de todas as instâncias recém mencionadas).

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