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12, nº 2,
agosto/dezembro, 2004; ISSN 0103-9512.
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O termo complexo, em seu sentido original, significa “o que é tecido junto”.
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SANTOS, Lígia Pacheco Lins dos. Docência decente: um desafio permanente. Lumen, Vol. 12, nº 2,
agosto/dezembro, 2004; ISSN 0103-9512.
Ser que realiza o fenômeno complexo do ensino juntamente com seu aluno, ambos
historicamente situados, que modificam e são modificados por esse processo. Parece, então, mais
interessante compreender o ensino como uma situação em movimento e diversificada de acordo
com os sujeitos, os lugares e os contextos em que ocorre.
Portanto, não há como crer em receitas de ensino, uma vez que a educação encontra-se em
um espaço dinâmico e multireferencial. Não há mais como identificar o ensino por uma
perspectiva normativa e prescritiva de métodos e técnicas, resquícios de um pensamento moderno
mecanicista. No entanto, “a maioria dos professores da educação superior teve nos seus cursos de
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graduação uma formação pautada pela visão moderna do conhecimento [...] Nosso modo de ver o
mundo está impregnado dessa visão da ciência” (Pimenta & Anastasiou, 2002, p. 219).
No campo educacional, a concepção mecanicista, com sua crença de que todos os
aspectos dos fenômenos complexos poderiam ser compreendidos pela redução de suas partes
constituintes, tornou o nosso pensamento em geral e a organização do conhecimento acadêmico
reféns de seus princípios. Tal paradigma, marcado pelas prescrições e certezas, considerando o
conhecimento científico aquele provindo da observação objetiva, mensurável, neutra e constante,
leva-nos a crer na verdade incontestável, no conhecimento fechado em si mesmo,
descontextualizado historicamente, um produto organizado e estruturado em seqüência,
transmitido em tópicos menores, dos mais simples aos mais complexos. Valoriza-se a reprodução
do saber e pune-se a tentativa de reinterpretar ou reinventar o que foi dito e/ou escrito. O critério
de avaliação é o pensamento e/ou a palavra do professor ou do livro, sendo o melhor aluno aquele
que reproduz com maior fidedignidade, enquanto o erro, comum àquele que arrisca na construção
do conhecimento, não é valorizado como importante integrante do processo de aprendizagem.
Saber é poder? Nesta concepção sim. A ciência dá poder absoluto ao conhecimento e o
conhecimento dá poder àquele que o detém. Neste sentido, o bom professor é o que transfere com
habilidade informações para o aluno, com precisão e segurança, não deixando margem a qualquer
indecisão ou dúvida, uma vez que é o detentor do saber. Tal “propriedade” dos saberes é bastante
protegida e fronteiras bem definidas são construídas nas disciplinas, sendo a interdisciplinaridade
uma grande ameaça. Além disso, a ameaça transpassa a disciplina, mas se conecta também às
relações e hierarquizações nas instituições de ensino.
A departamentalização, a carreira universitária, a valorização da especialidade faz
com que o professor proteja o seu espaço próprio e olhe com desconfiança para o
que é coletivo e totalizador, reforçando as idéias de Bourdieu sobre as lutas
concorrenciais no interior do campo científico (Cunha, 1998, p. 71).
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O termo holístico vem do grego “holos” que quer dizer totalidade.
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Sendo processo, o conhecimento não pode ser visto como absoluto e acabado. Aprender é
aprender a criar e o que faz da aprendizagem algo criativo é a pesquisa. E esta indissociabilidade
entre pesquisa e ensino é uma forma de entender o conhecimento e o mundo, bem como re-
inventá-lo ou re-interpretá-lo (SANTOS, 1994). Diferente da outra concepção, a dúvida e a
incerteza são pontos de partida para a construção do conhecimento, sendo valorizadas as
habilidades intelectuais de compreensão e re-interpretação do que já foi descoberto e dito, o saber
pensar e o tomar decisões. Há o respeito pelo saber que o educando traz, o qual será confrontado,
mas com isso há a valorização do senso-comum, rejeitado por completo no paradigma dominante.
Segundo Santos (1987), o saber deve partir do senso comum e voltar a ele, uma vez que o
conhecimento científico só se realiza quando se transforma em senso comum. Isso nos leva a
perceber uma maior democratização do saber, a sua própria precariedade, seu inacabamento, e
um saber ligado à vida, um saber esclarecido.
Esta nova concepção epistemológica modifica assim toda a prática pedagógica, em que
alunos e professores investem juntos, numa inter-relação horizontalizada, nesta construção e
produção do conhecimento de uma realidade complexa e interdisciplinar. Com isso, perdem
forças as disciplinas estanques e protegidas em seus conhecimentos, e valoriza-se a
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. O aluno é visto como sujeito do conhecimento, da
própria vida e do processo histórico-sócio-cultural, um ser também inacabado, (inter)subjetivo,
relativo, complexo, como é o conhecimento.
Percebe-se que a postura epistemológica do professor fará toda a diferença em sua prática
pedagógica. Para tanto se torna necessário refletirmos constantemente sobre nossa atuação
(SCHÖN 2000) e nossas “certezas”. Não, não é tarefa fácil. Mas como bem disse Milton Santos
(1998), “o trabalho do professor é arriscado. Quem teme perigos deve renunciar à tarefa do
ensino” (p. 07).
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Assim, quanto mais ampla e crítica for nossa percepção deste mundo em devir, da busca
pela superação do conhecimento dualista, pela revalorização dos estudos humanísticos e do olhar
complexo sistêmico para a realidade, mais ampla, inquietante e dialética será a nossa ação na
prática pedagógica. Afinal, “somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora, algo, por
isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é
constatar, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura
do espírito” (Freire, 1997, p. 77).
Repensemos as nossas práticas se quisermos “contribuir com o processo de humanização
de docentes e discentes numa perspectiva de inserção social crítica e transformadora” (Pimenta &
Anastasiou, 2002, p. 81) e se acreditamos que a ciência e o conhecimento, enquanto síntese
provisória sobre o mundo, só terão sentido na medida que possibilitarem a compreensão e a
transformação desse mesmo mundo e de nós mesmos (MORIN 2001). Lutemos por uma prática
docente decente! Pois, “se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados
enfileirados, em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem”
(Carlos Drummond de Andrade).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. 23 ed.São Paulo: Cultrix, 2002
CUNHA, Maria Isabel da. O professor universitário na transição de paradigmas. Araraquara:
JM editora, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia- saberes necessários à prática educativa. 4 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita - reformar a reforma e reformar o pensamento. 5 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
PIMENTA, Selma Garrido e ANASTASIOU, Lea das Graças Camargos. Docência no ensino
superior. São Paulo: Cortez, 2002. (Coleção Docência em Formação – Vol I)
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. Porto, Portugal: Afrontamento,
1987.
________. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto, Portugal: Edições
Afrontamento, 1994.
SANTOS, Milton. O professor como intelectual na sociedade contemporânea. Conferência de
Abertura do IX ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, realizado
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