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)
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CABRAL E AS
-
ORIGENS DO BRASIL
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v.
RIO DE JANEIRO
EDIÇÃO DO MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
1944
BIBLIOGRAFIA DE JAIME CORTESÃO
POESIA
PROSA
•
EXPLICAÇÃO PRÉVIA
•
N. 1. . . de Cantino ( 1502)
O Porto Seguro no planis f eno
..
HISTóRIA DO PROBLEMA
0
4. ,que o engenho foi desbaratado e, segundo diziam,
queimado pelos aimorés.
"CAP~TULO XXXV
EM QUE SE DECLARA A COSTA DO RIO DE SANTA CRUZ
ATÉ O PORTO SEGURO
'
--35-
..
O ROTEIRO~ATLAS DO BRASIL DE
LUIZ TEIXEIRA DE c. 1574
Ora, como Gabriel Soares partiu da Baía para a Penín~ Quando Gabriel Soares pedia, solícito, a fortificação da
sula, em agôsto de 1584, mais correto será fixar neste ano, e Barra Grande, já ela estava realizada. Como é natural, êle não
como termo médio, o das notícias do TRATADO. Com efeito, desconhecia a e~stência das duas fortalezas de S. Filipe e
analisando a obra, se conclue que, excetuando alguns parti~ San Tiago, na barra da Bertjoga, construídas respectivamente
culares sôbre a Baía, com a qual devia estar em correspondên~ em 1552 e 1557 e às quais se refere na sua descrição de Santo
cia, e as notícias, de maior vulto histórico, como as da conquista Amaro.
da Paraíba, que soavam na côrte, nenhumas outras excedem Não menos eloquente é o seu silêncio sôbre as aldeias dos
aquela data. Os mesmos informes sôbre os primeiros e demo~ índios administradas pelos jesuítas, dentro da baía de Guana.-
rados passos da expansão portuguesa naquela direção não bara e, em especial, de S. Lourenço, em frente da cidade de
vão além, como aliás é lógico, de outubro de 1586. S. Sebastião, na atual Niterói. Pelo que a esta diz respeito,
Em compensação, do mesmo texto da obra se depreende é para assinalar~se que já em 1583 os Padres da Companhia
alí tinham, não só igreja, mas residência fixa ; e que o autor do
que o autor, escrevendo na Baía, desconhecia inteiramente
TRATADO DESCRIPTIVO nunca deixa, na descrição doutras cidades
certos fatos de grande relevo, ocorridos em S. Vicente. durante
ou capitanias, de assinalar fatos semelhantes.
os anos de 1583 e 1584. "Tem este rio de S. Vicente (rio aquí
está por barra e porto, como sucedeu com o Rio de Janeiro) Carência igual - e essa, como veremos, mais estranhável.
grande comodidade para se fortificar e defender - escrevia observamos nas ,cartas~plantas de S. Vicente e do Rio de
Gabriel Soares - no que é necessário acudir com brevidade. Janeiro do Atlas de Luiz Teixeira. Temos, pois, fundadas
por ser mui importante esta fortificação no serviço de S. Ma~ razões para acreditar que, sendo o TRATADO DESCRIPTIVO, na
gestade, porque, se se apoderaram della os inimigos, serão máos sua quasi totalidade, referido a 1584, e até a anos anteriores, o
de lançar fora, pelo comodo que tem na mesma terra, para se ROTEIRO de Luiz Teixeira e respectiva cartas, que omitem as
fortificarem nélla e defenderem ... " (Obra cit., cap. LX) . mesmas circunstâncias, não excedem aquela data.
Donde se conclue que o autor desconhecia a invasão de Santos Mas a verdade é que, se compararmos não só a descrição
pelos navios de sir Edward Fenton, em 1583, logo expulsos da cidade do Salvador e Baía de T odos~os~Santos, mas a de
por Andres lgino, que comandava três naus da armada de Olinda, Rio de Janeiro e S. Vicente, feitas por Gabriel Soares,
Diogo Flores V aldez - o que deu como resultado a constru~ com as cartas de Luiz Teixeira, estas respiram franco anacr~
ção, nesse e no ano seguinte, da fortaleza da barra Grande, nismo em relação às primeiras.
nas terras da sesmaria de Estevão da Costa, na ilha de Santo
-62- -63 _.
Nenhum termo melhor de comparação para êsse estudo Pintura e descrição não desdizem uma da outra. Tam ...
que a segunda parte do TRATADO, o excelente e minucioso ME- bém na carta se dá ao toponímico "Tarype" um relevo de po-
MORIAL E DECLARAÇÃO DAS GRANDEZAS DA BAHIA DE TODOS- voado, cuja importância então avultaria na vasta e deshabita-
OS-SANTOS, embora esta seja das poucas, cujas noticias alcan- da redondeza. Mas nada ainda que se pareça com a povoação,
çam o ano de 1586. que descreve Gabriel Soares, "arruada e povoada de morado-
Àquela data calculava Gabriel Soares o número de enge- res", com sua igreja de Nossa Senhora do ó (Obra cit., pá-
gina 152).
nhos do Recôncavo em 36 "e quatro que se andam fazendo";
e 0 das igrejas, em 62. Muito ao invés, na carta-planta do Isto nos levaria à conclusão que a carta-planta da Baía,
Atlas de Luiz ,T eixeira, figuram apenas, além da Cidade do sem dúvida alguma bastante anterior à descrição de Gabriel
Salvador e da Vila Velha, uns 12 casais, sumariamente indi- Soares, antecederia ainda o govêrno de Luiz de Brito de
cados, e umas quatro igrejas. O debuxo do Recôncavo e das Almeida. .
suas ilhas é assaz correto: denuncia minucioso exame e conhe- Pelo que diz respeito à carta-planta de Sam Vicente, ob-
ciménto; mas a representação do seu povoamento está infini- serva-se o mesmo anacronismo, em relação à descrição de
tamente longe da animada pintura, que nos deixou Gabriel Gabriel Soares, embora neste caso os pontos de referência
Soares, vasto e ~idente cenário, por toda a parte marchetado sejam menores e a representação cartográfica tenha, como a de
pela casaria dos engenhos, igrejas e ermidas. · Olinda, certo carater, confessadamente sumário, pois o cartó-
A exatidão geográfica dá, por outro lado, carater realista grafo se limita, em mais do que um lugar, a apontar a palavra
a êste anacronismo. Nem se avente que esta pobreza de casais "Fazendas". Em boa verdade, podemos apenas afirmar, neste
e templos seja mais carência do cartógrafo que incipiência rala caso, que ela é anterior a 1583, pois ·d êste ano por diante ne-
de povoado. Já vere~os como na carta de Porto ,Seguro êle nhum cartógrafo, que alí estivesse, deixaria de assinalar o forte
desce a bem menores minúcias. E na mesma carta do Recôn- 'da Barra Grande, omisso na carta.
cavo não se esqueceu de figurar o "curral'' de vacas, assinalado Já quanto à carta do Rio de Janeiro, podemos ir mais longe,
também por Gabriel Soares nas terras do Acum, do conde de segundo cremos. Tanto ou mais rica de toponímia, pelo que
Linhares, genro de Mem de Sá (OBRA CIT., pág. 160) .. respeita a ilhas e rios, ainda que menos exata no contôrno
Verdadeiramente, a carta-planta da Baía mais parece geral que a da Baía, ela apresenta-se igualmente pobre na
a representação gráfica da descrição que Magalhães Gandavo representação do povoamento.
nos deixou no seu TRATADO DA TERRA DO BRASIL, cerca de 1570. Neste caso, o termo de comparação não pode ser a des-
Havia então no Recôncavo três povoações : a Vila Velha, a crição de Gabriel Soares, mais copiosa na toponímia, mas igual-
cidade do Salvador e Taripe. Além disto, 18 engenhos. Na mente carente na geografia humana.
cidade o mosteiro da Companhia e ".afóra este cinco igrejas Na carta do Atlas de Luiz Teixeira figuram a Cidade de
pela terra dentro". S. Sebastiam, a cidade velha, representada, ao que parece,
-64- -65 ~
apenas por vestígios ou ruínas, a Aldea do Martinho e alguns trouxe uma carta, publicada, em 1893, por Gabriel Marcel em
casais na ilha "Do gato", atual do Governador. E nada mms. REPRODUCTIONS DE CARTES ET DE GLOBES RELATIFS À LA DÉCOU~
Aldeia do Martinho, quer dizer, de Martim Afonso, nome VERTE DE L'AMÉRIQUE DU XVI AU XVIII SilkLE, que em tempos
que tomou no batismo o chefe indígena Araribó~a, é;llí ~stabe. tivemos ocasião de estudar pa Biblioteca Nacional de Paris,
lecido com muitos outros índios, desde a fundaçao da c1dade. mas da qual existe fotocópia, já muito delida, na Mapoteca do
Mas, em 1568, tornou--se necessário e conveniente aldear os ltamaraty. A carta, que tem a sua assinatura e a data de
índios em terras mais amplas e apropriadas às lavouras. Cedeu-- 1579, intitula-se "Le vrai Pourtrait de Geneure et du Cap
as 0 Provedor Antonio de Mariz, por uma légua do lado do de Frie", ou seja, O verdadeiro retrato do Rio de Janeiro e
mar e duas pa;;a o sertão, no outro lado da baía, junto da do Cabo Frio. Além da cidade de S. Sebastião, lá figura a
atual N iterói. Aí se fundou a aldeia de S . Lourenço, entregue Aldeia de Martinho, com desconhecida designação de Araroue,
aos jesuítas e da qual há notícias, desde 1570, em carta do mas corretamente situada, tendo ao lado a seguinte legenda :
Pe. Gonçalo de Oliveira, que alf edificou uma igreja. Em "Ce vilage fut pris parles françois le voyage de la Sallemende",
alusão ao ataque de quatro naus francesas ao Rio, cerca de
1578 havia crescido por tal forma o número dos seus habitantes
1568. Mas, além da cidade e dessa aldeia, figura igualmente,
que Salvador Correia de Sá resolveu conceder--lhes mais quatro
do outro lado da baía, e corretissimamente situada, a aldeia de
léguas cerca do rio Macacú. Finalmente, em 1583, já os Padres
S . Lourenço com o nome de Rastatue (?) e, finalmente, a do
alí tinham, além de igrejas, residência fixa. Em 1578, formou--
Cabuçú ou de S . Barnabé, esta sem designação alguma. Na
se nova aldeia de índios, no Cabuçú, com o nome de S. Bar--
aldeia de S. Lourenço, ao lado das longas OCAS indígenas,
nabé, a quaL em 1581, foi transferida para as margens do rio
veem-se duas casas mais pequenas, que supomos representam
Macacú, para maior comodidade da catequese da Companhia
a igreja e a casa dos Padres.
( Pe. Serafim Leite, OBRA CIT., I, págs. 123 e seguintes) .
'
Além disso. a mesma cidade de S. Sebastião estende por
Se, a princípio, podemos crer que estes aglomerados des--
sem menos nas vistas que a Aldeia de Martinho e escapassem, mais ampla área bem maior números de edifícios, do que na
por consequência, à figuração num debuxo geral da baía, outro carta de Luiz Teixeira.
tanto se não poderá dizer desde 1578, em que as terras de Assim, sôbre o Morro Cara de Cão vê-se uma casa de
S. Lourenço estavam trasbordantes de moradores e moradas, vigia, "une guerite"; na baía de Botafogo figuram duas casas
à volta ou ao lado da sua igreja. Mas neste caso temos a prova de engenho "maisons à faire le sucre"; outras duas à margem
do que afirmamos . do rio da Carioca, "riviere deau doulce et sapelle cariobe";
Jacques de V audeclaye, cartógrafo normando, do qual mais adiante, sôbre a praia do Flamengo, uma pequena fábrica
existem nos arquivos franceses cartas várias, esteve, em 1579, de telha e de tijolo, "briqueterie - ici on pran la Thuille" e.
ou no ano anterior, na baía do Rio de Janeiro, com a missão para além do morro do Castelo, onde se distingue o castelo
secreta de observar a cidade e colher os informes necessários propriamente dito, com as muralhas e as peças de artilharia,
a um ataque posterior da marinha francesa. Da sua viagem "le fort de hault", por oposição ao "de la riviere", o Colégio
780.696 F. 5
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da Companhia, o pelourinho e o denso casario, estendem~se Para o nosso caso, ou seja, o estudo do Porto Seguro
ainda várias casas nas terras da sesmaria de Manuel de Brito, de Cabral, em suas primeiras incidências históricas, devemos
desde o atual Morro de S. Bento para a esquerda. Trata~se referir o testemunho gráfico de Luiz Teixeira ao ano em que
por certo de novo ou novos engenhos, pois o cartógrafo acres~ êle viu e o~viu. Temos, por mais provável que tenha sido entre
centa : "En ce lieu sont force sucreries,, legenda que se repete 1573, o próprio ano em que chegou Luiz de Brito de Almeida,
quasi pelos mesmos termos na Ilha do Governador - "La e 1574.
Grande Y sle, . E' _q~asi certo que o estudo minucioso, que, por falta de
Observe~se, não obstante, que "O verdadeiro retrato do elementos, não podemos agora fazer, de todo o ROTEIRO...
Rio de Janeiro, de Vaudeclaye é, sob o ponto de vista pro~ ATLAS, levará a maiores precisões e certezas .
priamente cartográfico, menos perfeito e paupérrimo de topo~
nímia, quando comparado com a carta de Teixeira.
Tanto ou melhor, a carta~planta do cartógrafo português
revela excelentes qualidades de observação e figuração, acres~
cidas de melhores informes toponímicos, que não se furta a
registar. Todavia a imagem urbana e a Guanabara do normando
são por tal forma mais evoluídas em povoamento, que devemos
concluir que a carta de Luiz Teixeira é anterior de alguns anos
à de Vaudeclaye, traçada em 1579. Mas, como aí figura o
nome de Manuel de Brito, junto à praia entre o morro de São
Bento e a Aldeia do Martinho, e já em setembro de 1573 era
comum a expressão "praia de Manoel de Brito,, chegamos a
uma data intermédia - cerca de 1574 (V. Tombo dos bens
pertencentes ao Convento de N."' S."' do Carmo do Rio de
Janeiro, em Anais da Biblioteca Nacional, vol. LVII, 1935,
págs. 265 e seguintes) .
E' evidente que neste caso se trata duma cópia, feita cerca
de 1583 (aproximação que apuramos do exame da carta geral)
sõbre o pequeno Atlas do Brasil, debuxado. cerc;a de 1574,
in loco e que lhe serviu de protótipo. Não é para excluir~se a
hipótese de que Luiz Teixeira já nesta data tivesse utilizado
cartas e plantas anteriores. ·
Assim, a data da cópia pouco interessa.
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Por certo, as convenções gráficas do cartógrafo são in- sucessiva e concretamente, ao lado do acidente 'geográfico
feriores às atuais e êle empresta demasiado relêvo a certos aci~ designado.
dentes~ por impossibilidade de lhes dar carater bastante em Estudamos, é certo, em tempo, nos · Arquivos Nacionais
tão curta escala. Trata~se dum senão, comum à cartografia de Paris, um belo Atlas - Livro da descripção de toda a costa
quinhentista, em que as cartas se aproximam por vezes mais da África e ilhas, que a esta parte pertencem com todos o.s
' da caricatura que do "verdadeiro retrato", como pretendia o portos e bahias e baixos e mais particularidades que á minha.
vanglorioso Vaudeclaye. No entanto lá está a baía com sua noticia chegarão, composto de 34 cartas parciais e uma geral,
curva de concha, perfeitamente dielineada e arrumada; o es~ "feito por João Teixeira Albernaz, anno de 1665", em que
tuário do Mutarí desembocando no seu próprio lugar, a se~ texto e carta se misturam por vezes, mas em grau muito me~
guir à volta tão característica do curso final, ao longo da nor. Aliás, várias cartas de João Teixeira ou de João Teixeira
praia; as três pontas da Coroa Vermelha, Mutá e Grande, Albernaz, como, por exemplo, a de 1631, dos seus Atlas do
perfeitamente individuadas, e , a ultima já com a designação Brasil, conteem igualmente pequenas legendas de carater
atual; e a corda dos recifes. ainda que I?ais cerrada que na náutico e até militar. Mas, por via de regra, na cartografia típica
realidade (aqui a caricatura forçava os nau tas a resguardo), dos séculos XVI e XVII, as legendas agrupam~se em cartela
muito mais aberta, proporcionada e correta, que nas cartas de lateral e relacionadas com a carta por meio de letras ou algaris-
João Teixeira e João Teixeira Albernaz{durante toda a primeira mos sôbre o acidente designado. A êsse tipo pertencem as
metade do século XVII. admiraveis cartas do Roteiro de Goa a Suez ( 1541 ) de
O mesmo se pode acrescentar quanto à foz do João de D. João de Castro {vide ed. da Agência Geral das Colô~
Tiba e do Buranhem e seus recifes da barra ou da costa. nias, 1940) e o Livro que dá razão do Estado do Brasil. c. 1626,
A exação é tamanha e tão surpreendente que o escorço do de João Teixeira.
Mutarí não mais aparece tão perfeito até. à carta, proposita~ Os Atlas de João ~Teixeira Albernaz representam, segun..
damente levantada em 1940. Na carta de Mouchez, que do supomos, o último eco duma tradição mal vingada, e da
por tanto tempó serviu de modêlo às demais, êle aparece to~ qual o protótipo ou único modêlo conhecido está no Atlas de
talmente desfigurado: e até a carta monográfica do Mutarí, Luiz Teixeira.
desenhada pelo major Salvador Pires em 1899, lhe é franca .. Por certo, o cartógrafo visava a completar a carta e o
mente inferior. roteiro mutuamente, prevenindo as insuficiências ou obscuri~
Este rigor na representação, quer geral, quer parcial. dades de cada um. E o mesmo processo de fatura faz supor
denuncia, sem a menor sombra de . dúvida, um exame local, que uma e outro se fizeram simultaneamente, pelo cartógrafo
direto e atento - o que atribue aos depoimentos da carta Luiz Teixeira e pelo piloto da expedição. E é de admitir que
singularíssimo valor. Demais, estamos em face dum do-- tanto um como outro houvessem recebido o encargo de emen~
cumento único no gênero, a que poderemos · chamar carta~ dar, o primeiro, as cartas, o segundo, os roteiros anteriores,
roteiro, e em que os avisos e ditames náuticos se inscrevem que desconhecemos, mas, sem dúvida, existiram.
- 72- ,--
i
Na carta. à "Povoaçãd de S. cruz que mudaram'' segue- o dobrar hiía ponta. entrão pela barra de p.• seguro ao sudu-
se uma baía ~ curva regular em concha, terminada em ponf:él, este vigiando e dando resguardo a põta. e a costa me guiará".
e esta prolongada em recife. Junto desta ponta desagua um E, ao sul do recife de Porto Seguro, volta a ler-se: "Entrã-
rio, cuja parte final do curso faz uma larga volta. paralela à do por esta barra já dentro descobre o Rio de S. Fr.oo então
costa. Sôbre a sua margem esquerda e cerca da foz está hirei continuãdo para dentro pera navio de 60 tones (tonéis) .
desenhado um povoado, assinalado pelo seguinte toponímico: Se he navio grande toma mea carga em porto seguro e vão
"Povoação de S. Cruz a nova"; e sôbre a margem direita. acabar de carregar a Santa Cruz".
mas menos próximo da foz, um outro denominado "povoação Como iremos ver, de novo o RoTEIRO de Gabriel Soa-
de S. Cruz. a velha''. Em frente da larga baía ( atual ea.. res se ajusta à carta e às legendas de Luiz Teixeira. "Do
brália) lê-se : "aqui surgê naos da india e estão seguras / rio de Santa Cruz ·- continua êle - ao de ltacumirim é
entrão a !oeste e vão surgir em hiía/enseada como cõcha". meia légua; onde esteve o engenho de João' da Rocha. Do
Gabriel Soares, por sua vez, escreve: "Do rio de Ser~ rio de Itacumirim ao de Porto Seguro é meia légua; e entre
nanbitibe ao de Santa Cruz são duas leguas, onde esteve um um e outro está um riacho, que se diz de S. Francisco juntú
das barreiras vermelhas. Defronte do rio Itacumirim até o
engenho de assucar. Neste porto de Santa Cruz entram
de Santa Cruz vai uma ordem de arrecifes. . . e faz outra
naos da lndia de todo o porte. as quaes entram com a proa
ordem de arrecifes baixos mais ao mar.. . . e por entre uns
a loeste, e surgem em uma enseada como concha, onde estão
arrecifes e os outros é a barra de Porto Seguro, por onde
muito seguras de todo o tempo". E logo adeante anota :
entram navios de sessenta toneis; e se o navio é grande, toma
"Neste porto de Santa Cruz esteve Pedro Alvares Cabral,
meia carga em Porto Seguro, e vai acabar de carregar em
quando ia para a lndia, e descobriu esta terra, e aqui tomou
Santa Cruz." E a seguir, referindo-se à entrada pela barra
posse dela, onde esteve a vila de Santa Cruz. . . Esta vila
sul de Porto Seguro : "quem entrar por esta barra, como es-
de Santa Cruz se despovoou donde esteve e a passaram para
tiver dentro d' ella, descobrirá um riacho. que se diz de S.
junto do rio de Sernanbitibe ...
Francisco; e como o descobrir vá andando para dentro até
Antes de compararmos o texto de Gabriel Soares com a chegar ao porto".
carta-roteiro d:e Luiz Teixeira, neste particular da povoaçãc Daí por deante e até ao engenho de Gonçalo Pires, a
de Santa Cruz, analisemos ainda o trecho seguinte da carta . descrição de Gabriel Soares cinge-se estreitamente à carta .
A seguir à povoação de Santa Cruz, a velha, a costa recorta- A mesma "hermida de Nossa Senhora d'Ajuda, que faz mui-
se nas três pontas da Coroa :Vermelha, Mutá e Grande, no-- tos milagres" na vila de Santo Amaro, lá está igualmente fi-
meada apenas esta última, e seguem-se o "R. dos mãgues", gurada e exalçada por Luiz Teixeira, junto da beira-mar,
que ainda hoje conserva a mesma designação, o "R. Ytara.- com sua cruz de Cristo, ao alto : "N. S. da ajuda de gr.e• mi-
merim", o "R. de S. frãcisco", a "Barreira Vermelha" e, .fi- lagres".
nalmente a "Villa do p.o seguro" e a ":Villa de S. Amaro". Fica, por conseguinte, perfeitamente estabelecida a filia ..
No lugar, onde os recifes se abrem, em frente da "p. grande" ção do texto de Gabriel Soares no RoTEIRO..ATLAS de Luiz
e tal como é na realidade, lê-se : "Entrãdo por esta barra com Teixeira.
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-77-
Porventura a leitura total dêste último manuscrito, ainda
à margem do qual assentam as duas povoações de Santa
inédito, permita firmar mais estreitamente êste parentesco.
Cruz, a Velha e a Nova, é o Mutarí, ao qual Gabriel Soares
Mas o fólio, que estamos estudando, já permite não só
e provavelmente Luiz Teixeira chamavam rio de Santa Cruz:
completar analogias, mas emendar algumas pequenas incor-
João Teixeira - rio Doce; e o jesuíta anônimo, talvez - a
reções do Roteiro de Gabriel Soares. Assim, basta olhar
Riaga; assim como o rio de Sernambitibe, em cuja margem se
a carta para se concluir que o Itacumirim não está a meia
légua do Rio de Santa Cruz, mas pelo menos a légua e meia, ergue a "povoação de S. Cruz que mudaram" é o atual João de
e, a meia, como dizem Soares e o jesuita anônimo, da vila de Tiba, cujo nome não passa de corrupção do primitivo e indí-
Porto Seguro. gena.
Também neste ponto da costa, que medeia entre o M u- Segundo cremos, foi o almirante Mouchez o primeiro a
a
tarí e o Buranhem, carta de Luiz Teixeira, assim como as impor o nome de Itacumirim ao Mutarí, o qual, não obstante, já
de seu filho João Teixeira excedem, na figuração da rede aparece assim designado em cartas anteriores, como a de
hidrográfica, todas as cartas moden1as, excetuando a última, Arrow Smith, do primeiro quartel do séclllo XIX.
de 1940 . Nada menos de três rios e três riachos estão assi.. Não se tenha por demasiada esta identificação.
nalados nesta última. Na carta de Luiz Teixeira figuram Ainda recentemente, o comandante Eugenio de Castro
o rio dos Mangues, perfeitamente localizado e com a desig .. nos seus comentários exhaustivos ao DIÁRIO DA NAVEGAÇÃO DE
nação atual; o I tacumirim, atual Guarape, com a curva carac... PERO LoPES DE SousA, e, mau grado sua extraordinária com-
terística do estuário, bem representada, e o riacho de S. Fran.. petência, supunha que, em 1531. "o R. S . João de Tiba ou
cisco, que ainda conserva o mesmo nome. No LIVRO DA RA- R. deSta. Cruz" eram o rio S. João de Tiba e baía deSta.
zÃo DO EsTADO figura, além dêstes o rio Humuna, atual Mun.- Cruz" ( ed . cit . , pág . 171 ) .
daí. Em compensação, a carta de Mouchez, que serviu de Que o Porto Seguro de Cabral fosse a atual baía Ca-
modêlo a todas as cartas seguintes, assinala apenas, o rio dos brália; a primitiva Povoação de Santa Cruz, na foz do Muta-
Mangues e um riacho, provavelmente o de S. Francisco; e rí; e nesse lugar se tenha celebrado a cerimônia da posse da
Salvador Pires, que adrede visitou a região, chega a afirmar, terra e erguido a Cruz, resulta igualmente da perfeita corres-
referindo-se ao Mutarí : "Percorrendo toda a costa, quer da pondência entre as afirmações de Gabriel Soares e o debuxo
baía Cabrália desde a ponta de Santo Antonio até a Coroa e precisões do RoTEIRo-ATLAS de Luiz Teixeira.
Vermelha; quer daí até o rio Buranhen, em Porto Seguro, só Esses três fatos assentavam numa tradição, então ainda
encontramos, desaguando no mar o ribeirão de que trata- viva, e cujas raizes podemos seguir até 1500. É o que vamos
mos"! (obra cit., pág. 27). fazer em relação à tradição cartográfica do Porto Seguro de
Resumindo: mais uma vez se prova que a carta de Luiz Cabral, reservando-nos tratar em capítulos à parte a locali-
Teixeira representa o fruto de longa, cuidada e minuciosa zação das povoações de Santa Cruz e a do lugar onde se
exploração ou exploraçõe~. plantou a Cruz .
Regressemos agora à baía Cabrália. Examinando a Com efeito, se analisarmos as cartas portuguesas ou de
carta de Teixeira, não resta agora a menor dúvida que o rio, influência portuguesa, desenhadas entre a viagem de Ca-
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bral e a época das donatárias, lá veremos que o Porto Seguro ou seja 1534, permanece a mesma forma gráfica de baía semi-
primitivo designa a atual baía Cabrália, já representada nos circular, encerrada ao norte e ao sul pelos recifes.
seus rasgos essenciais, ainda que por vezes acentuados, segun- Mas nenhuma dessas representações cartográficas se
'd o o estilo caricatural, chamemos~lhe assim, próprio da época. aproxima tão específica e irrecusavelmente da verdade, como
Logo no mapa português, chamado de Cantina, de 1502, a de Cantina, traçada em 1502, com a visão objetiva do pró~
a legenda de Porto Seguro se inscreve ao lado duma minús~ prio descobrimento. Na verdade, o Porto Seguro, fechado
e prolongado no sul por uma massa de recifes, que se conti~
cula baía, que uma série de recifes encerra e prolonga ao
nua imediatamente ao longo da costa em duas ordens, só pode
norte e ao sul, daquí descendo, ao longo da costa, em duas
ordens, como na r:ealidade (Ver a excelente reprodução par-
rr
ser a baía Cabrália. A tal ponto que a carta de Luiz eixeira,
nesse particular, se aproxima, mais que de nenhuma outra, da
cial na História da CoLONIZAÇÃO · PoRTUGUESA DO BRASIL, de Cantina.
tomo II, pág. 265) . É esta, aliás, a opinião de Duarte Leite. A razão da semelhança deve ser a mesma : as duas são
Descrevendo êsse trecho do mapa, anota: "A carta de Ca- o fruto direto da experiência, ainda que a última, pela natu-
minha atribue a Cabral as denominações de VERA CRUZ e reza própria do trabalho, muito mais perfeita e sazonada.
PoRTO SEGURO. Este último ancoradouro da armada, di- Aliás, a própria legenda, inscrita ao lado da baía, rela-
ante e ao sul do qual estão figurados vários recifes, que em dom~ a representação de Luiz Teixeira com o descobrimento
verdade existem, é a atual baía Cabrália, de lat. 16°2 1' S ..... de Cabral : "aqui surgem naos da lndia e estão seguras".
( IBIDEM, pág . 264) . A três quartos de século de distância, escuta~se ainda
Acrescentemos nós que o estuário, figurado no extremo na curta frase o eco da ancoragem da armada cabralina e
sul da baía não pode ser senão o do Mutarí; e que naquêle patenteiam~se as razões, únicas naquêle trecho de costa, que
trecho da costa não se encontra outro acidente real com estes levaram o capitão-mar, perseguido pela tormenta do sueste,
caracteres . a dar à "enseada como concha" protegida, pelos recifes, do
Nas cartas seguintes o toponímico de Porto Seguro con- sul e do sueste o nome de PoRTO SEGURO.
tinua figurando ao lado duma baía semelhante. mas de curva
mais acentuada e esquemática, em forma de concha.
É o que sucede no mapa de Canério, que D . Leite supõe
de 1505, e onde figura igualmente uma abertura de estuário
no extremo meridional da curva . Nas cartas de W aldsee-
muller ( 1507 e 1516) acentua~se ainda êste processo de es~
quematização. Na carta de Lopo Homem, de 1519, conti-
nua a mesma representação sumária e característica do Porto
Seguro cabralino, completado aquí pelos recifes do sul. Na
carta de Gaspar Viegas, dos fins do período predonatarial,
!.
l
ORIGENS DA POVOAÇÃO DE SANTA CRUZ
Porto Seguro e a parte mais austral do curso do 1546; já então pertencia igualmente ao Duque e era bastante
Mutarí, equivalia a duas léguas das antigas, bem grande para ter igreja, o que se depreende também das decla...
medidas. rações do próprio Tourinho, que afirmava ter mandado cons..
Por mar o trajeto, devido à configuração da costa · truir sete igrejas na sua capitania, duas das quais, na vila de
e dos recifes, orçava por três léguas. Na mdrgem Porto Seguro • !
direita do rio e naquela parte do seu curso, colo- Como vimos, Gabriel Soares informa que Pero Touri...
cava Luiz Teixeira a povoação de Santa Cruz, a nho edificara a "vila de Santa Cruz": e para que a povoação
velha. Concluímos, pois, que está era igualmente tivesse igrej~ e a terra fosse objeto duma transação com o
a Santa Cruz de Duarte de Lemos; Duque, e êste enviasse a povoá-la gente sua, é de supor que
2", o capitão de Porto Seguro qualificava Santa Cruz a fundação date da chegada do donatário às suas terras ou
como "fazenda do Duque de Aveiro", quer dizer, pouco depois, ou seja de 1535 ou do ano seguinte.
vasta porção de terra, já em 1550 pertencente ao Observemos igualmente que na povoação de Santa Cruz
Duque, e onde podia caber, além duma pequena po· a velha, a da margem direita do Mutarí, na carta de Luiz
voação um engenho de açúcar, a construir ou, por... Teixeira, figura igualmente uma igreja.
ventura, em construção, o chamado ENGENHO DO Da carta de Duarte de Lemos se averigua ainda que ;
DUQUE;
capitania de Porto Seguro era sede dum movimento marítimo
3°, podemos, com efeito, supor que ainda naquêle ano
de certa importância e regularidade., Não só por ela sabe-
se não produzia açúcar ou em quantidade apreciá--
mos que, em 1550, estava no porto de Santa Cruz (a velha)
vel em Santa Cruz.., Não só Duarte de Lemos afir...
uma nau de El Rei a carregar, mas que ali fora ter em seu
ma que na capitania havia "ainda pouco açuquare"
navio o desditoso donatário do Espírito Santo, Vasco Fer...
mas expressamente declara que a nau de El Rei
nandes Coutinho. Mais importante é a referência aos "ar-
estava carregando pau brasil em Santa Cruz.
madores desta capitania", aos quais as imposições do mono-
Donde é de presumir que ou não havia açúcar ou
pólio real limitavam a possibilidade de obter "fretes de seus
em quantidade para carregar • !
navios", para carregar o pau-brasil. Como complemento na...
De quando dataria a fundação de Santa Cruz nas mar... tural dêste fato, existia na capitania "hum pilloto que he so..
gens do Mutarí? Na inquirição tirada na vila de Porto Se- brinho de Pero do Campo, que se chama Jorge Dias", prático
guro, em 1546, "sobre as heresias e blasfemias que Pero do na arte de astrolábio, capaz de em terra "reger-se pela altu-
Campo Tourinho Governador desta Capytanya dyzya e fa- ra" e àquele tempo em viagem para a Baía, por mandado de
zya contra Deus nosso Senhor" depõe um "morador em San... Duarte de Lemos, para adquirir os resgates, necessários a
ta Cruz" e, além disso, Manoel Colaço, capelão do Duque,
uma entrada pelo sertão de Porto Seguro à busca do ouro e
que fez de inquiridor, e Pero Mousinho, escudeiro do duque da qual havia de ser guia e "um dos principais"r·l
(HisTÓRIA DA CoLONIZAÇÃo PoRTUGUESA Do BRASIL, III,
Em 1550, o pequeno núcleo dos colonos da capitania,
págs. 204, 277 e seguintes) . A povoação já existia, pois, em
mau grado as perturbações causadas pela destituição e envio
-84- -85-
sob custódia para Lisboa do primitivo donatário, tinha não tamanha ruína e tão viva inquietação que os moradores se
só os elementos necessários para desenvolver o seu comércio viram em sério risco de ter que abandonar a terra. Esta in...
por mar, mas capacidade e sêde de expansão para o interior. formação nos dá um morador de Porto Seguro, o castelhano
Já os pilotos do mar queriam prolongar suas empresas p_or Filipe Guilhem, que alí exercia o cargo de provedor da fa~
terra, guiando bandeiras. E assim se compreende tambem zenda real. Em carta, ao que parece pouco conhecida, dizia
que a pequena povoação de Santa Cruz pudesse oferecer ao êle à Rainha D. Catarina, referindo~se aos repetidos assai...
infortúnio três metamorfoses. tos de "un gentio que llaman aymurés; y estos de tal manera
Essa tríplice povoação de Santa Cruz - a velha, a nova acometierõ a esta capitania, por tantas partes en las herda~
e a que mudaram, a darmos inteiro crédito à toponímica de des y vilhas que, de tres que son, tan cotidianamente acome~
Luiz Teixeira, põe o problema da localização e sucessão cro-- tierõ la una delhas que se despoblo y en las otras .matarõ
nológica respectivas . . hombres y mugeres y muchos esclavos y fue de manera que
Segundo a carta de. Teixeira, as duas primeiras sucede~ todos los moradores estavan para Ia despoblar" . Mas acres-
ram~se nas duas margens opostas do Mutarí e na parte final centa o provedor que, sabidas estas notícias na Baía, o go-
Ho curso respectivo. Mas, dada a brevidade dêsse trecho do vernador Mem de Sá mandou em socorro da aflita capitania
rio, - cerca de 800 metros ao longo da costa - e a distância o ouvidor geral, Braz Fragoso, que ali chegou a 17 de janei~
de poucos metros duma margem à outra, as du~s. vil~s esta~ ro de 1561 dando por então remédio à situação (Sousa Vi~
riam tão próximas, que só podemos encarar a d1stmçao entre terbo, TRABALHOS NÁUTICOS, I, pág. 151).
velha e nova, como fases no desenvolvimento do niesmo po-
Se das três vilas - Porto Seguro, Santo Amaro e Santa
voado. Afigura~se~nos que o problema, se de fato existiu
Cruz - uma se despovoou, deve ter sido a última, por mais
a dualidade toponímica, é principalmente de ordem crono~
afastada e débil, em relação às outras, cuja proximidade re~
lógica e breve estudaremos êsse aspecto.
cíproca, melhoria de posição e maior importância e número de
Outro é o caso da Santa Cruz que mudaram. A distin~ moradores favoreciam a resistência aos invasores. Coloca~
ção do lugar e o número e qualidade dos depoimentos sôbre da em terreno raso e à beira da selva, sôbre a margem ou as
a transferência não dão lugar a dúvida. Conhece~se, aliás, margens dum pequeno rio, cujo escasso leito pouca defesa
a causa do êxodo dos moradores desde o estuário do Mutarí oferecia, Santa Cruz devia, pelo contrário, ser alvo fácil de
para 0 de Sernambitibe : os repetidos assaltos e assolações
agressões.
dos aimorés.
O certo é que o TRATADO DA TERRA DO BRASIL, redigido
Fiados nos testemunhos de Gandavo e Gabriel Soares,
em 1570, ou antes, segundo a opinião autorizada de Rodolfo
os historiadores reportam o comêço daquela devastadora in...
Garcia, já menciona "Santa Cruz, que está d'aí (de Porto
vasão, nas capitanias dos Ilhéus e Porto Seguro, ao ano de
Seguro) quatro Iegoas para o Norte", quer dizer, "a que
1564. O apuro da data tem certa importância para o caso;
mudaram", a atual povoação nas margens do João de Tiba. Diz
e podemos afirmar que os estragos causados pelos aimorés Gabriel Soares que "a passaram para junto do rio de Sernan...
na capitania de Porto Seguro já, em 1560, eram causa de bitibe, pela terra ser mais sadia e acomodada para os mora...
-86- -87-
radores viverem". Em boa verdade, a grande comodidade dre Serafim Leite, obra cit., I, pág. 201). Nesse mesmo ano
vinha..lhe da posição. Colocada sôbre um outeiro, duns 40 ou muito próximo, Magalhães Gandavo, fazendo de novo o
metros de altura, o rio favorecia..lhe a defesa em metade do balanço das capitanias na sua HISTÓRIA DA PROVÍNCIA SANTA
perímetro, e a pequena elevação, na metade restante. CRUZ, refere-se apenas às duas povoações de Porto Seguro
e Santo Amaro e ao Porto Seguro de. Cabral, duas léguas
A segurança decidia então as preferências . Em 1553,
ao norte do recife do Buranhem, segundo a sua própria lo..
alguns anos antes das ameaças dos aimorés, o governador
calização. Dir..se-ia, em face desta flutuação entre a refe..
Tomé de Sousa percorrera toda a costa e escrevia ao Rei,
rência do TRATADO, escrito cerca de 1570, e a HISTÓRIA,
dando-lhe conta de que: "Todas as vilas e povoações de
engenhos desta costa fiz cercar de taipa com seus baluartes quatro anos após, que nesse intervalo ou nascera ou ganhara
e as que estavão arredadas do mar fiz chegar ao mar e lhes importância a Santa Cruz, neste caso, a nova, na margem
dei toda a artilharia que me pareceu necessária ... " (HISTÓRIA esquerda do Mutarí~ assinalada apenas por uma povoação
da CoLONIZAÇÃo PoRTUGUESA DO BRASIL, III, págs. 364-65). de engenho, como tantas outras, o que explicaria da parte
Quando, em 1553, se fazia sentir tal necessidade, pode de Gandavo a menção daquelas duas e a referência ao porto,
imaginar-se o que seria nos anos seguintes ao de 1560. de.. de novo frequentado.
pois de invasão dos aimorés . Aliás, neste mesmo ano em Esta nos parece a interpretação mais plausível à simul..
que o flagelo dos terríveis tapuias começa a açoutar a capi.. taneidade das três povoações de Santa Cruz, à distinção en..
tania, passava ela de vez para a posse do Duque de Aveiro, tre velha, a que mudaram, e a nova e à maneira como apare..
D. João de Lencastre, "o qual - diz Gabriel Soares - a fa- cem representadas na carta de Teixeira.
voreceu muito com gente e capitão que a governasse, e com Propositadamente colocamos a que mudaram a seguir à
navios que ele todos os anos mandava, e com mercadorias; velha. Não só a designação de nova, para Luiz Teixeira, que
onde mandou fazer à sua custa engenho de açucar e provo- viu, devia significar atributo atual e, em relação às duas res ..
cou a outras pessoas de Lisboa a que fizessem outros enge- tantes, mas o cartógrafo representa-a com mais relevo e cui..
nhos ... ; em a qual houve em tempo do duque sete ou oito en- dado. Não deixaremos de apontar a circunstância de que a
genhos de açucar, onde se lavrava cada ano muito, que se povoação de Santa Cruz, a nova, ao contrário das outras
trazia a este reino ... " (obra cit. pág. 67) . duas, é nitidamente representada em forma acastelada: e que
A mudança de povoado deve ter..se operado, por con- é êsse o tipo da povoação de engenho nobre desde c. 1570,
sequência, ao favor do novo e opulento donatário, nalgum como se depreende do inventário de Mem de Sá, de 1572.
dos primeiros anos da década que decorre entre 1560, em Aí à casa grande do engenho se chama "fortaleza" ou se des..
.q ue a povoação foi assolada, e 1570, em que nos aparece já creve como "casa fortaleza nova de pedra e cal telhada de
nas margens do Sernambitibe. novo e mais assoalhada e toda cercada de madeira para se
Cerca de 1574. haviam crescido de novo os núcleos de fazer varandas, qual está por assoalhar". Além da casa..
portugueses, então em número de cinco, contando com a pe- fortaleza, havia mais "baluarte telhado e cercado de pau a
quena metrópole, possuindo alguns engenhos e fazendas ( Pa.. pique" e a casa do padre, a do feitor, a do escumeiro, as três
I
-88- -89-
casas compridas e de palha "em que se agasalham os negros a isso" (HisTÓRIA DA CoLoNIZAÇÃO PoRTUGUESA DO BRASil.,
aa Guiné", a "casa d'argueira", a dos meles e a de purgar III. pág . 365) .
(Wanderley Pinho, TESTAMENTO DE MEM DE SÃ, 1941, Pelo que respeita a Porto Seguro, só a terrível experiên~
pág. 108). da da invasão destruidora dos tapuias em 1560 deve ter con-
W anderley Pinho, de cuja excelente monografia sôbre vencido moradores e o novo donatário, D . João de Lencas~
o Testamento de Mem de Sá extraímos estas notas, comenta: tre, que nesse mesmo ano comprava a capitania, a construir ou
"Somados os característicos destas duas construções, temos a reconstruir o engenho, conforme ao padrão exigido pelo regi~
noção completa da caza forte quinhentista, morada do senhor mento real.
ou, aqui, do administrador do engenho, capaz de resistir aos Provavelmente, na década entre 1560 e 1570, sob a
ataques dos gentio& - de pedra e cal, telhada, assoalháda, pressão das circunstâncias, se terá formado êsse primeiro tipo
com varandas, em forma de baluarte, com sua cerca de pau da casa grande acastelada de engenho, recordando ainda a
a pique em derredor. Neste ponto Mem de Sá não falhava torre de menagem medieval, com sua cerca e baluartes, mas
já amplamente avarandada, para desabafar--se das sufocações
às prescrições dos regimentos, que determinavam, ao con~
do trópico, e rodeada pelas senzalas da escravaria. Essa
ceder--se uma sesmaria, a exigência da construção de "torres
criação, obedecendo ainda ao molde peninsular, mas acomo-
ou casas fortes" ( IBIDEM, pág. 55) .
dada às exigências do clima e da mão de ol?ra, importada
Esta exigência, acrescentamos, vinha, é certo, do tempo do continente fronteiro, acabava, por volta de 1570, de nascer
de Tomé de Sousa e do seu regimento e devia estender~se a e seria de comêço apenas apanágio dos grandes senhores de
todos os engenhos a construir daí por diante (vide Regimen~ engenho, à frente dos quais, em opulência e poderio podemos
to de Tomé de Sousa, em HISTÓRIA DA CoLONIZAÇÃO PoRTU~ contar o duque D. João ou seu filho D . Pedro Diniz,. que
GUESA DO BRASIL, III, pág. 345 e seguintes) . lhe sucedeu em 1571 .
Pelo mesmo regimento deveria o governador obrigar os A nosso ver, a figuração da Santa Cruz, a Nova, ,por
senhores de engenhos a ter, além das torres ou casas fortes, forma tão distinta das outras duas, na carta de Luiz Teixeira
"quatro berços e dez espingardas com a pólvora necessária não é obra de fantasia ou de acaso. Ainda que dentro dum
e dez bestas e 20 espadas e dez lanças ou chuças e 20 corpos molde esquemático e convencional, ela representa uma p~
darmas dalgodão". voação nobre de engenho, o engenho do duque, - o único
I
Mas só, em 1553, Tomé de Sousa fez a viagem de ins~ seu, a que se refere Gabriel Soares, como já antes o jesuíta
peção à costa, e da carta, em que nesse ano dá conta ao m~ anônimo, e construido na fazenda de Santa Cruz, que já, em
narca de suas diligências, se conclue que donatários ou ca~ 1550, pertencia a D. João Lencastre.
pitães e moradores se esquivavam a cumprir esses novos en... Entretanto os assaltos dos tapuias renovavam--se e cres~
cargos, que se lhes afiguravam desnecessários : "porque os ciam de fúria. Cerca de 1578, dizia o jesuíta anônimo que o
capitães ....- dizia êle ....- não querem ter a (artilharia) a que engenho da Riaga, pertencente ao duque, a que chamavam
são obrigados a ter, nem tem fazendas por onde os obrigue "povoação Santa Cruz" fora queimado, segundo alguns di~
-90- -91-
ziam, pelos tapuias. "Nunca o duque o consertou. E assim Depois de 1585, tornada impraticável com os assaltos
ficou tudo desbaratado"; e acrescentava o padre que, por isso. dos tapuias, a indústria do açúcar, base da prosperidade eco-
a povoação de Cerenambitipe. que então tinha 28 vizinhos nômica da colônia, a capitania e seus povoados deperecem.
e 150 escravos, lhe herdara o nome de Santa Cruz .. Porto Seguro e Santa Cruz, que, ainda em 1585, contavam,
Tamanhos foram os estragos causados pelos aimorés. segundo Anchieta, 50 moradores cada uma, vão-se despo-
,q ue dos cinco engenhos, numerados por Gandavo em 1570 voando lentamente. Em 1602, os jesuítas resolvem abando-
e que teriam subido a oito, segundo Gabriel Soares, não exis- nar a capitania.
tia mais que um ou dois, cerca de 1584 - infor am unanime- A carta do superior do Brasil, Pero Rodrigues, escrita
mente Soares, Cardim e Anchieta. Em 15 5, segundo o nesse ano ao geral da Companhia, a expor-lhe os motivos do
último, já não havia engenhos. abandono, pinta a cores negras, talvez demasiado negras, o
Daqui se infere claramente que, Gabriel Soares quan- estado da donatária. Os aimorés haviam ocupado a terra
do, cerca de 1584, dizia que os navios grandes faziam meia por tal modo, dizimado os moradores e seus escravos, que
carga em Porto Seguro e a outra meia em Santa Cruz, não dos primeiros restavam apenas 30, e estes inibidos sequer de
repetia mais que o eco sediço duma realidade, anterior de cavar mantimento e sustentar-se a si e aos padres. Os
dez anos . Esta regularidade no carregamento dos navios padres corriam perigo de vida, quer na visita às suas aldeias
grandes supõe carga de açúcar, isto é, confirma a atualidade de índios, quer na própria vila de Porto Seguro. A aflitiva
de Santa Cruz, a nova, (engenho do duque), ao tempo em situação chegara a ponto que "ultimamente o capitão da terra,
que Luiz Teixeira a designava na carta; e uma época muito para a gente a não despejar, não tem outro remédio senão
anterior a 1585, em que não havia engenhos, e até distante de tomar-lhe as velas (dos navios) e impedir a fugida ... " E
1578, como se infere dos dizeres do jesuíta anônimo : "Este o superior terminava : "Por estas razões, com parecer dos
engenho queimaram os tapuias, segundo alguns dizem. padres consultores, me resolvi a mandar vir os padres, cujas
Nunca mais o duque o concertou". Mais uma vez, além da vidas estão arriscadas, sem nenhum fruito" (Padre Serafim
identidade Santa Cruz, a nova - engenho do duque, nos Leite, obra cit. , I. pág . 204) .
aproximamos irrecusavelmente do ano de 1573, como aquêle Os colonos, esses, a-pesar-de tudo, continuaram. Em
em que Luiz Teixeira traçou a sua carta da capitania de Porto 1610, Porto Seguro, cercada pelos índios, esteve em risco de
Seguro. sossobrar definitivamente. Mas logo, em 1612, o autor da
Nesse ano, segundo cremos, existiriam ainda as ruínas RAzÃo DO EsTADO proclama que a paz está assegurada; nu-
de Santa Cruz, a velha, contíguas a Santa Cruz, a nova, mera em 100 os moradores brancos de Porto Seguro; fala
em plena atividade, e separadas ~penas e se tanto pelo es- dum engenho de açúcar em Tabatinga; de muitas roças de
treito Mutarí. Mais ao norte, sôbre o Sernambitibe, eleva- mantimentos e "madeiras em quantidade de que se valem e
va-se a mais longínqua e pequena "Santa Cruz, que muda- fazem embarcações, não tantas, como em outro tempo, em
ram'' . Mas as duas primeiras formavam, na verdade, um que, carregadas de suas coisas da terra e ali feitas, tratavam
único povoado. em Angola e no Reino...
-92- -93-
Alma estoica devia ter o relator! Não esconde que em Resta saber se a tradição era legítima e qual o processo
Porto Seguro "as mais das casas estão postas em terra"•• que da sua perpetuação. Não faltam elementos, quer novos
1
os engennos se perderam com a guerra dos tapuias; que as guer desatendidos, até hoje, pfl;ra êsse estudo. Passemo-los
duas povoações de Santa Cruz "mostram-se assoladas e 0 em rápida revista.
engenho do duque despovoado". Mas atribue a culpa prin~ Dum documento, recentemente publicado, a certidão de
cipal à "i~s.uficiência de mandadores e pouco socorro e ajuda Yalentim Fernandes, passada em Lisboa a 20 de maio de
do donatano, fazendo 1503, e por nós pela primeira vez comentada, se conclue que
, a guerra dos aimorés mais espantosa • a expedição de 1501..-1502, em que viajava Vespúcio, tocou
do que em e f eito era .
em Porto Seguro e no Porto Seguro de Cabral. Nesse extra-
A censura, a que não faltava sua percentagem de jus..
ordinário documento, Valentim Fernandes, depois de reve:
tiça, atin~ia também os jesuítas, que, em 1621, acabaram por )ar o descobrimento de "um outro mundo, num mar desconhe-
voltar a mstalar-se na capitania, mas que, ao abandoná..la 19 cido, sob a linha equinocial" e de haver descrito a novidade
anos antes, proclamavam : "e, sem falta, acabar..se..á de des .. dos seus habitantes, da sua fauna e flora, declara :
povoar a terra" .
"E eu ... li a carta presente diante da régia Magestade,
Na época, em que o censor da RAZÃO oo EsTADO sen- aos seus barões, supremos capitães e pilotos ou governadores .
tenciava aquêle veredito, na carta, que acompanha 0 texto dos seus navios da supracitada terra dos antípodas com o
j~ ~ão figu~ava mais.. que a "povoação Velha", na marge~ novo nome de Terra de Santa Cruz e todos unanimemente a
dtretta do no Doce, Santa Cruz", entre êste e o Sernambi.. confirmaram; e eu coligi tudo isto dum livro escrito por mim,
tibe, para cujas nascentes fantasiosamente se desterrara o mediante a narração de dois homens da terra acima referida
"engenho do duque", cuja posição, bem sabemos agora, os e abaixo assinados, que durante 20 meses lá mor~ram" (Jai-
aimorés forçavam a situar junto da costa, onde, em caso me Cortesão, A ExPANSÃO PoRTUGUESA NO BRASIL, na H1s ...
de necessidade, os barcos ofereciam a esperança última de TÓRIA DA ExPANSÃO PoRTUGUESA NO MuNDO, sob a direção
salvação. de A. Baião, H. Cidade eM. Múrias, vol. III, pág. 21..-22).
A tradição apagára-se a ponto de se deslocar aberrati..- Referido o acontecimento à expedição imediatamente
vamente a toponímia. E, à falta de frequência, a carta do posterior à de Cabral, não é difícil concluir que a pequena
porto de Santa Cruz degenerara numa imagem grosseira e frota haja tocado em Porto Seguro e aí recolhido os dois de-
maculada de falsidades . gredados deixados na viagem anterior.
Esta. comparação mais faz ressaltar o cara ter experi~ É para lembrar que, durante a sua estadia em Porto Se-
mental, VIsto e objetivo da carta de Luiz Teixeira. Ali, na guro, Pedro Alvares Cabral chegou a pensar em levar consi-
foz do Mutarí, teria êle recolhido a tradição, que ligava a go dois dos tupiniquins da terra, em lugar dos dois degreda-
povoação de Santa Cruz ao desembarcadouro de Cabral e ao dos que ficavam. A semelhante alvitre opuseram os demais
lugar onde o capitão-mor celebrara a cerimônia da posse da capitães várias razões, acordando todos que seria melhor dei-
terra. xar apenas os degredados. E acrescep.tavam: "Nem eles
-94- -95-
(os tupininquins) tão cedo aprenderiam a falar para o sabe- Santa Maria da Arrábida, e que êle identificava com a atual
rem tão bem dizer que muito melhor o estoutros não digam baía da Traição ( Capistrano, MATERIAIS E ACHEGAS, ESCLA·
quando V. A. cá mandar". Assim se fez. Ficaram dois RECIMENTOS do n. I ) •
degredados em terra. E Caminha, impressionado com a ino- Mas a simples aproximação da nomenclatura não se nos
cência dos indígenas e a disposição que mostravam para imi- ..tfigura prova bastante. Ao contrário, a existência de tu pi...
tar os gestos exteriores da devoção dos portugueses, insinua- niquins cristãos desde o ano anterior em Porto Seguro torna
va ao monarca: "E bem creio que, se V. A. mandar quem muito mais natural a continuidade da catequese em relação
entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao a esses catecúmenos, tanto mais que a franciscanos perten...
desejo de V. A. E por isso, se alguem vier, não deixe de cera igualmente a celebração no mesmo lugar dos primeiros
vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhe.. atos religiosos •.
cimento da nossa santa fé pelos dois degredados, que aqui Inclinamo-nos, pois, para aceitar como exata a notícia
entre eles ficam . .. , do cronista arrábido, sem excluir a hipótese de que o primi...
Ora, os clérigos vieram. A insinuação de Caminha foi tivo nome da baía da Traição fosse imposto por frades da
aceita por D. Manuel. A mesma certidão de Valentim Per-· mesma ordem.
nandes acrescenta que, durante a expedição de 1501-1502, Nesta persuasão nos ratifica outro fato, que afirma da
foram batizados muitos indígenas, para o que teriam servido parte de D . Manuel o propósito de continuar a assistência
de intérpretes os dois degredados, pois doutro passo daqu,êle espiritual ao primitivo núcleo dos indígenas catequisados.
documento se conclue que estes haviam aprendido a língua da A 6 de janeiro de 1550, o jesuíta Manuel da Nóbrega,
terra. em carta escrita de Porto Seguro, informava o padre Simão
A cerimônia devia ter-se dado de preferência em Porto Rodrigues : "Neste Porto Seguro e em Ilhéus (refere... se,
Seguro, e não seria natural que D. Manuel abandonasse to.. pois, às capitanias) encontrei uma certa gente, que é casta de
talmente à sua gentilidade êsse primeiro núcleo de cristãos. tupiniquins, entre os quais existem muitos dos nossos e dos
E sabido que frei Antonio da Piedade, confirmado por Jaboa- naturais,. . . e entre esses há cerca de 20 ou 30 cristãos e
tão, refere a vinda de frades arrábidos a Porto Seguro, em alguns que foram batizados por certos padres qu,e mandou a
1503. Ali teriam chegado a construir um pequeno templo boa memória de El Rei D. Manoel a este país, os quais padres
e duas estreitas moradas (Frei António da Piedade, CRÔNI... foram mortos por culpa dos mesmos cristãos, segundo ouvi"
CA DA PROVÍNCIA DA ARRÁBIDA, parte I, livro 3°, cap. 40, (CARTAS DO BRASIL de Manuel da Nóbrega, ed. da Academia,
n. 603). pág. 107).
V arnhagen não prestava crédito à localização em Porto Estes fatos reportam-se ao período que medea entre 1503
Seguro desta primeira missão dos arrábidos, parecer a que e 1521, ano em que o monarca faleceu. Acrescente-se para se
também se inclinou Capistrano, o qual situava êsse primeiro aquilatar em seu valor do acontecimento revelado por Nó-
estabelecimento no lugar assinalado nos mapas quinhentistas, brega, que o estabelecimento de padres, entregues à catequese,
ao norte do Cabo de Santo Agostinho, com a designação de exige um suporte social e econômico de certa impor tância.
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A permanência de padres em Porto Seguro deve, pois,
ter coincidido com a fundação das fortalezas~feitorias na a excelência dos intérpretes fazem supor nestes um contacto
época do arrendamento, ou mais provavelmente com a das mais demorado com os indígenas, isto é, permanência desde
capitanias de terra, iniciada em 1516. A nosso ver, a sua uma época anterior às donatárias.
categoria social e até o exercício da sua missão exigiam uma Mas, a nosso ver, o depoimento do próprio Azpilcueta
estabilidade no domicílio, regularidade na vida econômica e Navarro não deixa lugar a dúvida. "Nesta capitania (de
comodidade mínima da vivenda, que mal se compadecem com Porto Seguro) - escrevia êle em 1551 - achei um homem
o cara ter precário e transitório da feitoria. de boas partes, antigo na terra, e tinha dom de escrever a
Por estas razões inclinamo~nos a relacionar o envio dos língua dos índios, que foi para mim grande consolação, e as~
padres por D. Manuel com a primeira tentativa, em 1516, de sim o mais do tempo gastava em (lhe) dar Sermões do Tes~
povoamento e aproveitamento de terra pela cultura da cana, tamento Velho e Novo, e Mandamentos, Pecados mortais e
revelada por V arnhagen. Artigos da Fé e Obras de Misericórdia, etc., para me tornar
Seja como for, a notícia dada pelo cronista arrábido não em a língua da terra". CARTAS AVULSAS, ed. da Academia,
deve confundir~se com aquela que Nóbrega transmitia na sua págs. 71, 76, 85, veja~se igualmente a sábia nota de A. Pei~
carta. No primeiro caso, trata~se de frades; no segundo, xoto, à pág. 54).
simplesmente de padres, advertindo~se que o grande jesuíta De novo êste profundo estudo e conhecimento da terra
recolhera essa notícia da boca de contemporâneos, o que parece supõem permanência não vulgar. Mas, quando Navarro lhe
afastar a hipótese duma confusão. De contemporâneos, e con~ chama "antigo na terra", é, por certo, para o distinguir do
temporâneos portugueses, parece igualmente concluir~se do comum dos moradores, chegados em 1535, com o primeiro
confuso trecho. donatário.
Outras razões temos, aliás, para acreditar que da época _ Assim o entendeu V arnhagen, pois ia até admitir que
do arrendamento ou das capitanias de terras, anterior às do~ esse antigo intérprete fosse algum dos que ficaram da armada
natárias, existisse ainda, ao tempo em que Nóbrega escrevia, de Cabral ou da primeira expedição exploradora.
um certo remanescente dos primitivos colonos - degredados, Não resistimos a chamar a atenção para a excepcional
náufragos, marinheiros fugidos de bordo e atraídos pela vida c~~acidade e zêlo dêste homem e seu eminente papel na his~
livre e fácil do aborígene, e até povoadores, vindos de Portu~ torta da civilização do Brasil, entre os primeiros estudiosos da
gal. mas que voluntariamente ficassem, integrados pelo ambi~ língua geral, que possuiu a ponto de a escrever e verter para
ente, como noutras capitanias sucedera·: ela 0 português. No texto do padre Navarro incluímos entre
É sabido que o padre Nóbrega encarregou Azpilcueta chavetas o pronome - lhe - autorizados pelo subsequente
Na varro de estudar a língua dos indígenas e verter as ora~ - me - e pelo sentido do contexto. A êsse "homem de boas
ções e sermões "com alguns interpretes que para isso havia partes" cabe glória, que aquí lhe atribuímos e de que anda
mui bons" na capitania de Porto Seguro - informava em por vezes, com manifesta injustiça, defraudado. Devia ser
1551 o padre António Pires. A simples escolha do local e de cultura pouco vulgar entre os seus companheiros de des~
tino - Ramalhos e Cara~urús - aos quais devemos equi~
700.GOO
F. 7
-98- - 99 ---
parar como intermediário entre indígenas e alienígenas, na fase Mas, ainda quando tenham sido estes os exploradores
decisiva da colonização, e na sua parte mais elevada e isenta, da referência, o ~ato, coincidindo com a época da instalação
a da cristianização dos aborígenes. dos colonos, supoe um trabalho de preparação que, se não
Chamemos ainda a atenção para um fato. Azpilcueta nos enganamos, pertence à geração anterior, a dos homens
Navarro diz que encontrou êsse homem na capitania e não antigos, como aquêle que ensinara o tupí ao padre Azpilcueta
em Porto Seguro, o que parece indicar outro lugar e mais Navarro.
provavelmente, cercanias de Santa Cruz. Seja como fôr, a capitania de Porto Seguro tornou-se es-
Outro fato nos convence desta anterioridade dalguns co~ tação de partida das primeiras entradas e escola dos primei-
lonos portugueses, na região de Porto Seguro, à época das ros bandeirantes.
donatárias : a precocidade no movimento das entradas para Naquela mesma carta
d .. de 1550, Filipe Guilhem inform a _
oeste, à procura de metais e pedras preciosas, aí localizado. va o n:onarca e que esteve toda a jente de Porto Seguro
A não ser, na capitania de S. Vicente, e por motivos demovida ou a mais dela para yrem buscar" a certa serra
semelhantes, apenas Porto Seguro se volverá logo após a che~ que _os índios chamavam "sol da terra" pelo muito ouro ~u=
gada do primeiro donatário, centro duma precoce e expontâ~ contmha, e que estava situada junto dum grande rio ( s-
nea penetração no interior, por parte dos primeiros colonos. Francisco ? ) (HISTÓRIA DA CoLONIZAÇÃo PoRTUGUE~A ;~
A.lí se vai formar a lenda da SERRA DAS EsMERALDAS, que le~ BRASIL, III, pág. 359) .
vará ao descobrimento definitivo das minas e à exploração A êsse tempo, Duarte de Lemos, que exercia interina...
intensiva dos sertões de Minas Gerais, Goiaz e Mato Grosso. mente as funções de capitão-mor de Porto Seguro, organi-
Em 1550, Filipe Guilhem escrevia a D. João III : "() z~va, como vimos, uma entrada que devia partir, em agôsto
primeiro ano que a esta Baya cheguei me dixeram que por desse ano de 1550, à busca do ouro do Perú (Ibidem, pág. 267).
Porto Seguro entravão pela terra a dentro e: andavam lá cinco . .. Tomé de Sousa deferiu essa entrada, que só veio a par-
e seis meses, pella qual rezam me fui a Porto Seguro e tirey ~r pela via ~e Porto Seguro"., em 1554, sob o comando de
hum estromento que mandei a V. A., desejando seu favor ruza de Espmosa, assistido pelo padre Azpilcueta Na varro.
para buscar e dar maneira como fosem descubrir has minas Mas, com essas notícias, trazidas de Porto Seguro da
douro que os negros (índios) diziam que havia ... " existência do ouro do p eru, - JUn
· t o d um gran d e rio, relaciona-
'
Pela mesma carta se conclue que Filipe Guilhem chega- m~s a entrada de Miguel Henriques, que, por ordem de To-
ra ao Brasil em 1538. Capistrano supunha, todavia, que fôra me_ de Sousa, partiu numa galé, em novembro de 1550, da
em 1537. Se nesta época constava já, como um fato comum. Bata
F de
. Todos-o s- S an t os, e em vao
- tentou galgar o rio São
que de Porto Seguro se realizavam entradas pelo sertão, de ranctsco · Com efeito, no ano seguinte, o governador, em
cinco e seis meses - o que foi comprovado pelo próprio epis,.. carta para o monarca, justificava a expedição, dizendo "pois
tológrafo, pois enviou o instrumento respectivo ao monarca. esta terra e o Perú é todo hum" (Ibidem, pág. 361).
chega a ser difícil relacionar a notícia com os colonos, compa'"' r Pelo mesmo interior da capitania de Porto Seguro, anda-
nheiros do primeiro donatário, em 1535 . am, cerca de 1567, Martim Carvalho; poucos anos depois,
-100- -101-
cerca de 1572, Sebastião Fernandes Tourinho, sobrinho do Basilio de Magalhães inclue todas estas viagens naquilo
primeiro donatário; e, já em tempos do governador Luiz de a que chama o "Ciclo baiano", ao qual dá a primazia na pri-
Brito de Almeida ( 1573~78) e por seu mandado, Antonio Dias meira fase da exploração sistemática do interior, por êle de~
Adorno e Sebastião Alvares. O primeiro deles, tendo par~ nominada "Ciclo das entradas ou ciclo oficial da expansão
tido de Porto Seguro, buscou o curso de J equitinhonha; e geográfica do Brasil ( 1504 a 1696)" (EXPANSÃo GEOGRÁ-
teria descoberto, segundo Calogeras, as areias auríferas de FICA DO BRASSIL, 1935, pág. 21 ) . Mas, verdadeiramente,
Minas Novas, e depois de percorrer as serras, onde se divi~ aquêle primeiro grupo de entradas, no qual se filiará mais
dem as bacias· dos rios Doce, Mucurí e S. Mateus, baixou tarde o "ciclo das bandeiras" propriamente ditas, se poderia
por êste até a costa. 'fourinho, tendo partido igualmente de designar de CICLO PoRTo~SEGURENSE, pois se originou e per~
Porto Seguro, fez um trajeto semelhante, mas em sentido in~ petuou durante vários decênios no território dessa capitania.
verso. Entendem alguns explicar esta precedência das en.tra~
Segundo o relato de Magalhães Gandavo, no TRATADO das pela capitania de Porto Seguro por m~tivos de ordem
DA TERRA DO BRASIL, Martim Carvalho já ia à busca das es~ geográfica. Mas havemos de confessar que orografia e hi~
meraldas, de cuja existência, no interior, os índios haviam drografia estavam longe de oferecer as vantagens que os por~
dado notícia, mas que êle não alcançou, trazendo em compen~ tugueses encontraram na capitania de S. Vicente, onde, gal~
sação o ouro "em grão". Tourinho trouxe notícias confir~ gando a serra do Mar, deparavam logo um rio, o Tieté, que
mando a existência de pedras verdes. lhes facilitava e apontava o caminho do sertão.
Comenta Pedro Calmon: "É a história das esmeraldas Achamos mais lógico que os colonos da época donata~
que começa ... De fato (Tourinho) não trouxe da longa via~ rial encontrassem já a porta do interior mais ou menos aberta
gem senão uma lenda. Mas fecunda e tentadora : para ve-- pelos "homens antigos", que eles foram deparar na capitania,
rificá~ la andaram pelos sertões durante 200 anos sertanistas em boas relações com os pacíficos tupiniquins, à semelhança
do sul e do norte, desde Marcos de Azeredo, cujo roteiro das do que acontecera a João Ramalho e a Diogo Alvares .
esmeraldas os jesuítas conheceram ( 1611), a Fernão Pais Estes fatos : permanência durante 20 meses dos dois
Leme. . . .. (HISTÓRIA DO BRASIL, tomo I, págs. 31 o~ 11 ) . degradados de Cabral, em Porto Seguro, substituídos, por~
Mas antes de Marcos de Azeredo e do GovERNADOR ventura, em dezembro de 1501, pela armada que os recolheu;
DAS EsMERALDAS, Antonio Dias Adorno refazia os trajetos a provavel fundação duma feitoria no mesmo lugar, em 1503,
de Carvalho e Tourinho, ligeiramente modificados. ~orno pretendem Varnhagen e Duarte Leite; a estadia de fra-
des arra'b·d
I as,
~
d es d e esse mesmo ano e durante um prazo inde~
O primeiro ia penetrar no sertão pelo rio das Caravelas, t . d
mas uma parte dos seus companheiros dava fim à entrada ermma o, conforme depoimento de frei A. da Piedade,
baixando, mais uma vez, o Jequitinhonha; Sebastião Alvares, cuja veracidade aceitamos; a missão dos sacerdotes, enviados
êsse partia de Porto Seguro a explorar o rio S. Francisco, por D · Manuel, isto é, antes de 1521; a existência em 1549
emprêsa, em que, no dizer de Gabriel Soares, consumiu "qua~ dum grande língua, "homem antigo" na terra, escolhido de
preferência o~n t re to d os os antigos
. . para
colonos do Brastl,
tro anos e um bom pedaço da fazenda de El~Rei".
-102- -103-
mestre de Azpilcueta Navarro, assim como a primazia da que foi durante o século XVI o tabernáculo - permita-se a
capitania como pista de penetração das primeiras bandeiras, expressão - da tradição da arribada de Cabral.
constituem, a nosso ver, os elos soltos duma cadeia de testemu- O primitivo grupo de tupiniquins, que assistiram ao ar-
nhos, que perpetuaram, no Porto Seguro de Cabral a tradição vorar da Cruz na baía Cabrália, logo fundido com os primei-
da arribada, do desembarque e da cerimônia da posse, cerca ros colonos pelos inte~esses econômicos e os da catequese
da foz do M utarí. em volta dum estabelecimento português anterior a 1521, lo-
Ao tempo em que Tourinho fundou a primeira povoação calizado mais tarde nas povoações de Santa Cruz e na vila de
de Santa Cruz, plausivelmente no lugar onde teria existido Porto Seguro, constituiu um dos núcleos fundamentais, uma
alguma pequena feitoria-fortaleza, ainda perduravam muitos das ~élulas~mater da formação do Brasil. Contemporâneo
dos tupiniquins, que haviam presenciado aqueles aconteci- do nucleo de Ramalho, em S. Vicente, de Diogo Alvares n
mentos, velhos apenas de 35 anos. Baía, e da primitiva feitoria portuguesa em terras de Pern~m~
Podemos, pois, estar certos de que a tradição, unanime- b~uc~, só o ~rimeiro, segundo cremos, se lhe iguala em impor-
mente transmitida desde 1570 por Gandavo, primeiro histo- tanCia ._ . Ah se formou, pela interpenetração das culturas,
riador do Brasil, Luiz Teixeira, Cardim, Gabriel Soares e adventicia e aborígene, um dos primeiros e mais resistente~
Anchieta e tão repetida durante o século XVI, da arribada gérme~es ~:cultura luso-ameríndia; e ao lado da fusão e per:
de Cabral e da sua permanência durante uma semana na muta
. . mevitavel . das técnicas econômicas e da miscegenaçao
· -
atual baía Cabrália, se vinculava, tanto às primeiras repre~ etmca, se cnou expontaneamente a primeira escola de tupí
sentações cartográficas, como ao testemunho vivo de portu-- e o pri~eiro complexo de lendas maravilhosas e noções de
gueses e indígenas, quer espectadores diretos, uer descen- g.e~grafw, que iniciaram a lenta integração do território bra-
sileiro.
dentes na primeira geração.
Luiz Teixeira, cartógrafo real e filho do cartógrafo Pero _ De entre esses quatro, ou melhor seis núcleos da forma-
Fernandes, era já o herdeiro direto duma tradição cartográ-- çao. brasileira, incluindo o do bacharel da Cananéia e o de
fica, que remontava ao · tempo do descobrimento, mas a qual A~eixo Garcia em Santa Catarina, êste, o da baía Cabrália,
c. 1573, ao percorrer a costa da capitania de Porto Seguro, foi 0 ~ais provado pelo flagelo tapuia. Sobre êle, já quando
recolhia de viva voz da boca dos mais velhos habitantes, indí- repartido pelas povoações de Santa Cruz, a velha, Porto Se-
genas ou colonos, da tríplice Santa Cruz. g.uro e Santo Amaro, se empenhou a fúria assoladora e assas-
sma dos a· · C 1 d
Não pode, pois, restar a menor dúvida sobre a genui- des e I~~res. 0 ~~os . os dois sexos e de todas as ida-
dade dessa tradição . Cabe av~riguar apenas se as intorma-- . condtçoes e tupmiqums seus aliados cairam, um a um,
ções de Caminha se lhe opõem de qualquer modo . É o que ~ dta a dia, varados traiçoeiramente pelas frechas do inimigo.
vamos fazer. s plantações foram taladas; as moradias violadas; e os ~
genhos consumidos pelo incêndio.
Mas, antes de passarmos a essa análise, sumariemos c
que acabamos de apurar sôbre êsse esquecido e ignorado ca- Daquelas pnmetras
· · povoações - uma, a de Santa Cruz,
pítulo da localização e história da povoação de Santa Cruz, mereceu bem o nome· A b ata . C a b rata
'1· foi o seu tríplice cal-
-104-
~' ,,~·-'
1504, isto é, duma das feitorias~fortalezas, a que se obrigou o ,.:: .;:;
u Lt.l"'
arrendatário. Uma das razões da escolha do local seria a ..t-7 o
continuidade na catequese, iniciada em 1501 ~ 1502, que me~
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receu ainda em tempos de D. Manuel visita prolongada de
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sacerdotes . .,
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Definitivamente fixada, cerca de 1535, pelos colonos de ...
Pedro Tourinho, na margem direita do Mutarí, era assolada ·},'
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cerca de 1560 pelos aimorés ~- o que terá motivado num dos ~
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Novas condições de segurança e a iniciativa do opulento o
0..
duque de Aveiro fizeram~na resuscitar, na margem esquerda N
F. 8
-114-
-115-
Não seria fácil encontrar expostas com maior eloquên~
meses de cárcere balouçado, limitam-se a vogar ao longo da
cia, clareza e competência, as razões inviolaveis que con~
praia e saltar num ilhéu. "À tarde saiu o capitão mor em
venceram os pilotos de Cabral a evitar a atual baía de Porto
seu batel com todos os outros e com os outros capitães das
Seguro e a abrigar-se por detrás dos recifes da C~roa ye~
naus em seus bateis a folgar p~la baía a caram (em frente)
melha, na atual baía Cabrália e a dar-lhe o nome tao proprto
da praia, mas ninguem saiu em terra pelo capitão não que...
que aquela hoje usurpa.
rer sem embargo de ninguem nela estar".
A..-pesar-da praia estar deserta, e talvez por isso mesmo,
II o capitão-mor opõe-se a que alguem salte em terra. Das pa-
lavras de Caminha se depreende claramente que só a ordem
Pode à primeira vista afigurar-se absurdo e inexplicá·
formal de Cabral impediu que os mais insofridos satisfizes-
vel que o capitão-mor escolhesse para lugar de cele~ração. ~a
sem a sua ânsia de desembarcar em terra firme. E a carta
primeira missa um ilhéu, quando tinha ao lado alguns qmlo-
continua : "Somente saiu ele com todos em um ilhéu gran-
metros de praia com profundidade bastante para acolher a
~e que na baia está que de baixa-mar fica mui vasio, porem
tripulação de várias armadas como a sua.
e de todas partes cercado dagoa que não pode ninguem ir
A prática dos descobrimentos ao longo das costas de a ele sem barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros
Africa e do Industão aconselhava no entanto a maior pru- be~ _uma hora e mea". Mau grado esta sêde de folgar, 0
dência, e ensinava que os aborígenes, com frequência, passa- capitao-mor apenas se permite aquela curta hora e meia de
vam do mais afetuoso dos acolhimentos à mais · violenta hos- desenfado num ilhéu, onde, ingenuamente, acrescenta Cami-
tilidade. nha, não se pode ir, a não ser de barco ou a nado.
A regra passou a ser uma conduta de calculada reserva
Dispor duma ilha junto 'da terra firme foi ·uma das pre-
perante todas as populações de terras desconhecidas; e nos ocupações constantes dos portugueses, através de toda a sua
regimentos dos capitães das armadas davam-se-lhes, aliás, h· t- · I
IS ona u tramarina. A primeira das suas feitorias africanas
ainda e~ vida do Infante D. Enrique, foi na pequena ilh~
instruções da maior prudência nos seus contatos com esses
povos.
de Argmm, cerca do continente. Mais tarde Loanda Mo-
Lendo com atenção a carta de Caminha, observa-se que
~ambique, Mombaça, Diu, Goa e Macau, pequenas proJeções
as relações entre portugueses e tupiniquins vão progressiva• Insulares dos continentes africano e asiático, testemunham
mente desde uma atitude de retraimento receoso e cautelosa essa necessidade elementar 'de segurança que havia de guiar
observação até à confiança quasi perfeita e à crença ingênua os lusitanos nos · · b
seus pnmeiros esta e1ecimentos nas terras dis-
numa espécie de inocência paradisíaca dos aborígenes, capaz
tantes· Dessa preocupação não faltam igualmente exemplos
duma fácil iniciação na elevada moral cristã. na história dos · ·
primeiros passos portugueses na América, a
No primeiro dia, totalmente passado na baía, sábado, 25 começar por estes de Cabral.]
de abril, à tarde, Pedro Alvares Cabral e os seus capitães,
. _No dia seguinte, 26, domingo de Pascoela, a piedade
que haviam de estar ansiosos de pisar terra, após quase dois cnsta dos port d
ugueses man ava que se ouvisse missa e pre-
-117-
-116- Rei
- : d"andavam
. já mais mansos e seguros en t re nos
- do qu
nos an avamos entre eles". e
gação de agradecimento pelo achado da terra, que tão bom Dentro desta cautelosa e persistente reserva se passam
.
abrigo lhes dispensava. Mas tudo se passou no mesmo ilhéu. e exp1tcam os atos dos portugueses , d uran t e a sua estância
Finda a cerimônia, de novo os batéis passaram ao longo da
em P orto Seguro.. Eles não querem ser ofen d'd 1 os pe Ios in~
praia, povoada de aborígenes, aos quais os portugueses' ace~ d'
tgenas, aos quats, porisso mesmo , poup am t o d a a o f ensa
navam "que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo
Esta
. a razão
. do desembarque· nos d ots. pnmetros
. . dias·
pôr em terra". Daí por diante, nunca mais os portugueses
deixaram de ter essa precaução com os indígenas . d e mats
.. suspeitosa reserva, no ilhéu • onde se ouvm . a pnmei~
.
ra mtssa. Resta saber se êle bastava e d' _
Na tarde dês se mesmo dia, depois do conselho a bordo, efeito. correspon ta a esse
o capitão~mor, mais confiado, resolve que fossem nos batéis
a terra, "e ver~se~ia bem o Rio quejando era, e tambem para . . Da descrição de Caminha se infere tratar~se d ..
tlheu grand e. . . que d e b atxamar
.. fica mui vazt'o" e um d
folgarmos". Folgar, interromper por momentos a estreita e esp · ·t • e on e
dura vida de bordo, constituíia irreprimível necessidade. rata mm o a agoa e descobre muita areta
. e mm.to cascalhau".
E foram, mas todos armados e com o sinal bem visível Ilhéu e grande são termos que até certo ponto
da bandeira à frente : "Fomos todos nos bateis em terra cluem. Ainda. mesmo referindo essa grandeza às dim::s~::
armados e a bandeira conosco. Eles andavam alí na praia ;.xtrem~s de ba~x~~mar, seria prudente aferir daquêle qualifica~
à boca do rio omde nós íamos e antes que chegássemos do en~ tvo pe as relattvtdades dum embarcadiço que acabava de .
sino que dantes tinham poseram todos os arcos e acenavam ~~~Oc.erca de dois meses na estreita cobertura duma nau ~~
que saíssemos." Os mesmos indígenas haviam já compreen~
dido os receios dos portugueses e a forma de os tranquilizar .. sôbr Da descrição de C amm · h a pouco mais podemos colher
Mas talvez, por ver os adventícios armados, atravessa~ nos ~ af grand:zba do ilhéu, já que o epistológrafo tão pouco
ram à pressa o rio, logo imitados dos forasteiros, a quem a à · m orma D. so re o número d os tnpu . Iantes que assistiram
sofreguidão de espaço e contacto não continha. Mas o pru~ mtssa ·
capitães tz apenas
b que o capitao~mor
M· ordenou a todos os
'd ente capitão, sôbre cujos ombros pesava a responsabilidade fe dque. em arcassem nos batéis e fossem com êle Re~
daquelas vidas, "fez~se tomar ao colo de dous homens e pas~ re~se .epots
pressão I a "todos ri·os " , os que asststlram
. . ·
à missa, ex~
sou o rio e fez tornar todos". que umatgua f mente
- vaga ' mas qu e nao ~
po d ia a b ranger mais
Apenas, volvida uma semana de continuada experiên~ guarda a· s raçao dos tripulantes, pois a restante ficaria de
naus e aos bat'' M ·
cia, Pedro Alvares Cabral resolve fazer rezar a segunda ilhéu, no relat d- d' e~s · ais uma vez se refere ao
missa em terra firme, a 1 de maio. Já então os aborígenes superfíci .. o .esse . ta' mas p ara d'1zer apenas que à sua
. cascalha
mutto e esprata
.. mmto a agoa e d escobre mmta . areia e
não manifestavam o menor sinal de receio dos portugueses,
aos quais e, a~pesar~de tudo, uma longa e dolorosa prática foram algun bu e acrescentar que, enquanto aí estavam
s uscar marisc0 • mas apenas acharam camarões,'
noutras terras mandava estar sempre de guarda. Na vés~
pera, a 30 de abril, o concencioso Caminha diria deles ao
-118-
-119-
um dos quais d e tamanho nunca visto e cascas partidas de As medidas da Coroa Vermelha na Carta da Marinha
berbigões e ameijoas. _ _ . Brasileira oferecem, por consequência, um excelente ponto de
Podemos acrescentar ainda _que o ilhéu era ~ao proximo referência. Elas representam a grandeza máxima do ilhéu,
da praia que os indígenas, que ali anda:am, _estiveram con- atingida apenas no momento · da baixa-mar das chamadas
templando a cerimônia, e Caminha podm afirmar que tra- águas vivas .
ziam arco e seta e computar-lhes o número. A diferença de altura entre as águas da preia e as da
Ora a atual Coroa Vermelha, desde Aires do Casal identi- baixa-mar oscila nas costas do Brasil entre 1,50 m e 2 m; mas
. d com 0 ilhéu referido por Caminha, está hoje ligada à
f Ica pode atingir 2.50 m no fundo das baías, como deverá precisa-
a · E' mente suceder na Enseada da Coroa Vermelha.
onta do mesmo nome e só descobre na maré vasm. o que
:ode verificar-se na Carta da Marinha do Brasil. ~ão pouco Entre esses dois momentos culminantes deve variar mui-
pela sua extensão merece o nome de "ilhéu grande . ~cres to a superfície descoberta do ilhéu desde o máximo da Carta
centemos que 0 senhor Cte. Oliveira Belo, co~ ~ autondade da Marinha Brasileira ao mínimo da preia-mar.
·d de estudioso dêste assunto e de quem VISitou e obser- Ora, se lermos com atenção o relato de Caminha, con ..
e gran "O ·f
vou minuciosamente a baía Cabrália, nos informa: . rect e cluiremos que Pedro Alvares Cabral desceu no ilhéu de Por..
da Coroa Vermelha que descobre totalmente na batxa-mar to Seguro, quer na tarde do dia 25, quer na manhã do dia
viva, a ponto de ser atravessado a pé enxuto, tem uma ex- seguinte, no momento da baixa-mar. No primeiro daqueles
tensão de 1. 700 metros e uma largura média de 500, e a dias, esclarece Caminha que o ilhéu "de baixa-mar fica mui
Coroa Vermelha, que é oval e nêle encrustada, também des- vazio" ; e acrescenta que, ao regressar dali às naus, era "já
cobre igualmente em idêntica circunstância e mede 128 x_ 100 bem noute". No segundo dia, em que pela manhã ouviram
metros". Estes números, aliás, estão mais ou menos de ~co_rdo missa e pregação no ilhéu, em vez de nomear, descreve os
com os dados fornecidos pela Carta da Marinha Brastleira. efeitos da baixa-mar, o que não é menos eloquente. Diz êle
que naquele ilhéu espraia muito a água e descobre muita areia
Salvador Pires diverge muito dêstes números, pois diz
e muito cascalho, quer dizer, durante a baixa-mar aumenta
que a Coroa Vermelha "forma .~ma ilhot~. com 55 metros
muito a superfície emersa. Como é costume na baixa-mar,
de comprimento por 19 de largura e se acha sobre u~a roc~a
os marinheiros foram à busca de marisco na parte descoberta
calcárea de cento e trinta e cinco metros de compnmento . ·
do ilhéu, onde apenas encontraram alguns · camarões e os de-
Mas estas medições são destituídas de carater científico, pois
tritos das cascas de moluscos marítimos, que a água da mar~
o autor não nos diz, como é de observância elementar em casos vazante deixa sôbre a praia. .
tais, a que nivelamento das águas se reporta.
Caminha, que era tão fino observador e fiel escrivão,
Pelo contrário, a Carta da Marinha Brasileira refere as
deixou aqui a imagem viva do ilhéu percorrido no perímetro
medidas de profundidade e, por consequência, as de altitude,
pela marinhagem, buscando, entre o cascalho e os detritos
ao nível da baixa-mar média das sizigias, isto é, ao zero do das valvas, algum marisco de refresco. E, como na véspera
marégrafo.
haviam deixado o ilhéu "já bem noute", entre êsse momento
-120- -121-
e a manhã seguinte deveriam transcorrer as 12 horas e meia, Finalmente, o ilhéu era de areia, como a Coroa Verme-
que medeiam aproximadamente entre uma e a seguinte baixa- lha. Assim, entre o ilhéu descrito por Caminha e a Coroa
mar. Vermelha e o seu recife existem sinais bastantes de identifica-
Nesta averiguação podemos ir mais longe. Cqnhecido ção, embora a ação do mar, em 443 anos, tenha modificado
o }unário de 1500 e o estabelecimento do porto na enseada da bastante o cortôrno respectivo. A essa Coroa Vermelha, nota-
Coroa Vermelha, poder-se-ia calcular aproximadamente a velmente ampliada pelo recife, nas horas da maré viva, se
hora e a fôrça da baixa-mar, em 25 e 26 de abril de 1500, referia, em nosso entender, Caminha, em cuja pena já não
nesse recanto da costa. soa tão enfaticamente a çlesignação de "ilhéu grande". Que
Luciano Pereira da Silva, para averiguar se o domingo ela hoje esteja unida à terra por uma restinga de areia entra
da Pascoela, festa, como é sabido, ligada às revoluções lu- por tal forma na ordem natural das coisas que êsse fato
nares, caíra, como caiu, em 1500, a 26 de abril, organizou, mais confirma do que infirma a velha identificação do P.e
servindo-se do Almanach perpetuum de Zacuto, o calendário Aires do Casal .
daquêle mês e naquêle ano (vide HISTÓRIA DA CoLONIZAÇÃO Ao invés, a quem penetrou, através da sua carta, o ca-
PoRTUGUESA DO BRASIL, II, págs. 134 e 135). Ora, a 28 de rater e o processo descritivo, tão preciso e minudente, de Ca- '
abril de 1500, foi lua nova; por consequência, a 26, estava-se na
minha, torna-s~ evidente qve o ilhéu descrito não tem nada
antevéspera da baixa-mar estrema das águas vivas; e, COD;J.O,
que ver com o "recife ilhado" do Buranhem; e que também,
segundo a Carta da Marinha Brasileira, o estabelecimento do
sob êste aspecto, a identificação de Varnhagen não oferece
porto em Santa Cruz é de 3 h. e 44 m., podemos calcular grosso
a menor base. Se o escrivão da armada de Cabral aqui hou~
modo que a baixa-mar na noite de 25 seria cerca das 19 h. e
vera estado durante algumas horas, a sua aguda retentiva
meia e na manhã do dia seguinte, cerca das 8 horas. Tráta-se,
não deixaria de apreender e referir mais tarde o aspecto sui
repetimos de números meramente aproximados . Para a de-
JJeneris da formação coralínea do recife; o seu prolongamen"'
Vida exatidão era indispensável conhecer o estabelecimento
do porto na enseada da Coroa Vermelha e as irregularidades to cordiforme de cerca de légua e meia, ao longo da costa e
locais das marés. na sequência de outros; a sua integração na barra do Bura-
nhem e a grande proximidade a que fica a sua extremidade
Mas esta averiguação nos basta para podermos afirmar meridional da margem direita dêste rio; nem tão pouco cala-
que Pero Vaz de Caminha descrevia o ilhéu, não só no mo-
ria em que parte - no extremo norte, a meio ou no sul da
mento da baixa-mar, mas num dos dias em que esta se apro-
extensa corda - se havia realizado a cerimônia religiosa.
ximava do ponto culminante das águas vivas. Nesses dias e
àquelas horas, aumentava, por certo de maneira notável, a su~ O ilhéu de areia - irrefragavelmente se colhe da sua
prdície do ilhéu e a sua capacidade para templo improvisado; narrativa - era bem mais incaracterístico e anódino que o
e tornava-se menos impróprio o qualificativo de "grande" na recife do Buranhem, cheio de novidades típicas para um es-
pena do probo Caminha. pírito tão curioso, como o de Caminha.
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Ficamos, pois, sabendo que a cruz foi assentada : uma curva sinuosa em S, cuja metade inferior se desenrola
em frente da praia. Assim, nesta forma esquemática dum S,
a) em lugar donde fosse "melhor vista" do ancoradoi· e com as respectivas variações gerais de proximidade em re-
ro normal; lação à praia, aparece o Mutarí na carta de Luiz Teixeira; e
b) na praia, quer diser, onde desembarcaram; êsse devia ser o aspecto de conjunto que o pequeno rio apre-
c) acima do rio contra o sul; sentou aos seus primeiros observadores. Advirta-se que, a
d) e a cerca de dois tiros de besta do rio. 1 de maio, já os portugueses haviam vadeado e seguido o di-
minuto curso várias vezes, o que lhes permitia possuir o seu
A parte da praia mais próxima e, por consequência, mais esquema topográfico. .
visível do lugar do ancoradoiro, é precisamente a foz do Mu- · Ora, e por forma geral, a praia situa-se acima, quer di--
tarí e o trecho que a vizinha numa e noutra margem. Que a zer, ao norte, do baixo Mutarí, mas muito mais na parte ex--
Cruz ficou assente na praia não pode restar dúvida. Nesse trema e meridional, nos últimos 400 metros de curso, quasi
particular, a carta de Caminha e a Relação do piloto anônimo oeste--leste e paralelo à praia. Assim, quem desembarcar
estão de acôrdo. Aquêle diz expressamente que desembar- nesse trecho da carta desembarca acima do rio e contra o sul,
caram no lugar onde lhes pareceu melhor chantar a cruz. em relação ao curso restante e ao ancoradoiro, ponto de
Logo esta foi erguida na praia. Por sua vez, o piloto anô..- partida.
nimo informa que o capitão : "mandou fazer uma cruz de Compreendida esta expressão, igualmente se entende
madeira muito grande, e a plantou na praia" (HISTÓRIA DA que fossem buscar a cruz "abaixo do rio, onde ela estava" .
CoLONIZAÇÃO PoRTUGUESA Do BRASIL, II, págs. 116--117) . Da descrição de Caminha se depreende que só para lá
Vejamos agora onde será "acima do rio, contra o Sul''. da praia e do rio, ou seja abaixo dêste, começava a floresta.
Como já vimos, a versão de D. Carolina Micaelis de Vas- Aí era mister abater a árV"ore, donde talhar a cruz.
concelos impossibilitava a identificação do rio . da carta de Essa árvore foi cortada, segundo Caminha, no dia 27,
Caminha com o Mutarí. "Fomos desembarcar rio acima segunda--feira. No dia seguinte "enquanto nós fazíamos le-
contra o sul" constitue manobra incompatível com êste rio, nha", por conseguinte, na floresta, "faziam dous carpinteiros
pois não se navega a montante nessa direção. Ao contrário, uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortou".
desembarcar acima do Mutarí e contra o Sul não só é possí-- Caminha, que tomava parte na empreitada dos lenhadores,
vel, mas exigido pelo contexto·: refere--se à curiosidade com que os aborígenes observaram a
Abstraindo dos seus meandros, pode afirmar--se que a "farramenta de ferro" dos carpinteiros, cena que se passava,
direção geral do baixo Mutarí, ou seja da parte do seu curso pois, sob os seus olhos. E logo acrescenta : "Emquanto an·
que corre paralelamente à praia, é noroeste--sueste, advertin-- dávamos nessa mata a cortar a lenha atravessavam alguns pa--
do que nos seus últimos 400 metros, êle se afasta mais da pagaios por essas árvores" - espetáculo êste, impossível de
costa e corre quasi na direção oeste--leste. Verdadeiramente contemplar na praia, mas, sim, dentro da selva, onde lenha·
poderá dizer-se que o pequeno rio descreve, na sua totalidade, dores e carpinteiros trabalhavam.
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com a grande cruz não comportava demorado rodeio e cami-
Ao dia seguinte, quinta~feira, 30, foram a terra por mais nhada.
lenha; e "foi o capitão com alguns de nós um pedaço por êste E, aquí chegados, resta apenas saber a quanto corres-
arvoredo. . . que é tamto e de tantas prumagens que lhe não ponderão os dois tiros de besta e o lugar do rio, que servia
pode homem dar conto". Estavam em plena selva, que devem a Caminha de segundo ponto de referência.
ter alcançado, desembarcando áo sul da foz do rio, como, O alcance do tiro variava, conforme se tratava de bestas
aliás, era natural, pois Caminha não fala de o haverem atra~ de g arrucha (para cavaleiro) , de polé (para peão ) , estas
vessado. E logo adiante acrescenta : "Quando saímos do maiores e de maior alcance, ou de badoque e pelouro ou es~
batel disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz que corpiões, que arrojavam balas, em vez de setas.
estava encostada a uma árvore junto com o do". Donde O mais natural é que Pero Vaz de Caminha se refira à
devemos concluir que nesse dia a cruz estava igualmente besta vulgar de peão, que desferia a seta, quer em combate,
abaixo e junto do rio. quer na caça. Essa era, por certo, a medida mais aproxima-
Desta sorte, compreende~se claramente o desenrolar da damente calculada e conhecida, e com frequência, menciona~
cerimônia no dia seguinte. Pedro Álvares Cabral, seguido da em crônicas e documentos do século XV e ainda na pri~
pelos capitães e tripulantes, desembarcou ao norte da parte meira metade do seguinte, para avaliar distâncias.
terminal do baixo Mutarí. Na praia assinalou o lugar onde Maurice Maindron, arqueólogo e especialista em arma-
deveria ficar a cruz, e enquanto alguns tripulantes ficavam ria antiga, afirma que um bom besteiro matava o inimigo a
abrindo a cova para a assentar, o capitão, com os restantes, mais de duzentos passos ( veja~se o grande DICTIONNAIRE
atravessou a pequena corrente para fazer transportar o ma~ UNIVERSEL ENCYCLOPEDIQUE LAROUSSE lLLUSTRÉ, em ARBA-
deiro para ali . LETE). Como o passo varia entre 65 a 75 centímetros, con-
Com êle às costas, cantando e em procissão passaram o forme ordinário ou acelerado, um tiro de besta, segundo Main-
rio, "ao longo da praia", quer dizer, na foz, onde o leito e dron, devia orçar por 140 a 150 metros.
a corrente alargam e era mais fácil atravessá~lo. E assim, Carlos Selvagem faz um cálculo mais modesto. "O uso
cantando a foram pôr "onde havia de ser que será do rio da besta - diz ele - em mãos de bons frecheiros, rendia
obra de dous tiros de besta" . por vezes grande velocidade de tiro, cujo alcance ia a mais
Naquêle dia, a baixa~mai, ainda próxima das águas de 100 metros, com suficiente força de penetração" (PoR...
vivas, devia culminar cerca das 12 horas . Ora, Caminha. TUGAL MILITAR, CoMPENDIO DE HisTÓRIA MILITAR E NAVAL
referindo~se ao fim da cerimônia, esclarece : .. . . . e isto aca,. DE PoRTUGAL, 1931, pág. 76). O autor abona~se sumaria...
bado era já bem uma hora depois do meio dia". Podemos, mente, em nota, para esta afirmação, com a CRôNICA DE D. PER...
assim, calcular que a travessia da foz se faria cerca das 11 NANDO de Fernão Lopes.
horas e da plena baixa~mar, ou seja em excelentes e muito As crônicas de Fernão Lopes abundam em avaliações
aconselhaveis condições . de distâncias por tiros de besta, de um a três. Na CRôNICA
Como atravessaram a corrente, a cruz ficou acima DE D. FERNANDO há um único passo, do qual possa inferir...se
dela e, por certo, a pequena distância da foz, pois a procissão 700.600 F. 9
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com relativa aproximação a equivalência atual do tiro de Entre o atual Conventinho (mais reduzido que o primeiro)
besta. e o lugar mais próximo por onde passava a antiga muralha,
Em tempos daquêle monarca, o r("i de Castela mandou medeiam cerca de 150 metros, conforme o cálculo que fizemos
uma armada atacar Lisboa. Historiando o acontecimento, o sôbre uma carta da Lisboa contemporânea.
cronista relata: "A frota como pousou amte a cidade, Iam~ Este número se aproxima mais da avaliação de Maindron,
çaram todos os batees fóra armados e pavesados, e foram jun~ e, como Fernão Lopes, que ainda era vivo em 1459, escreveu
tamente assi sahir amte o moesteiro de Samta Clara, que será as suas crónicas nos meados do século XV, supomos que
huum tiro de beesta aalem da cidade... " ( CRÔNICA DE EL REY êsse seria igualmente o cálculo de Caminha.
D. FERNANDO, cap. CXXXV).
É certo que devemos aceitar semelhante espécie de me~
Como então a cidade era perfeitamente limitada pela mu ~
dida- "obra de dois tiros de besta" - como sujeita a gran~
ralha, o cálculo seria muito simples: medir a distância entre
des erros e com os largos descontos da confessada aproxima~
o convento, se êle existisse, e o lugar onde aquela se erguia,
ção. Duas circunstâncias concorrem, não obstante, para li~
êste bem conhecido. Damião de Goes, na descrição de Lis~
mitar esta imprecisão.
boa, em 1554, situava fora e cerca da muralha êsse mosteiro,
do qual dizia : "o grandioso e notabilissimo mosteiro de Santa Primeiramente, o trecho da praia "acima do rio contra
Clara alcança quasi a margem do rio (LISBOA DE QmNHEN ~ o sul" onde se assentou a Ctuz, não excede 400 metros; em
TOS, texto latino de D. Gois e tradução de Raul Machado, segundo lugar, fôra não só várias vezes palmilhado por Cami~
Lisboa, 1937, pág. 42). A célebre e conhecida gravura de nha, mas êste havia~o percorrido, em procissão, antes daquela
Braunio, posterior de alguns anos, figura na sua representação cenmoma. Acrescentemos ainda que Caminha ~ mestre da
de Lisboa, o mosteiro também fora da muralha,· mas a distân~ Balança da moeda, na cidade do Porto, cargo que herdara do
cia, evidentement~ excessiva, quer desta, quer do rio. Mas, pai~ reflete abundantemente na sua carta o vinco profissio~
corrigindo a imagem dum, pela descrição do outro, obtem~se . nal da exatidão nas contagens e medidas.
o panorama local e conclue~se que o mosteiro ficava muito
Supomos, pois não andar muito longe da verdade cal~
próximo, quer do Tejo, quer da cinta amuralhada da urbe. culando os dois tiros de besta entre 250 e 300 metros, dis~
A quando o terremoto, o mosteiro foi destruido e recons~ tância a que a Cruz ficou do rio. Mas aquí novo problema
truido mais tarde, mas em proporções menores, ficando então se levanta. Qual a parte do curso que serviu de ponto de
conhecido pelo nome, que ainda conserva, de Conventinho ou partida para a contagem do mestre da Balança ?
Convento do Desagravo ( veja~se Vilhena Barbosa, FRAG~
Se tivéssemos de entender o ponto mais próximo do pe~
MENTOS DE UM RoTEIRO DE LISBOA (inédito) ARQUIVO queno rio, naquela minguada parte do seu curso, o cálculo
PITORESCO, T. VII, 1864, págs. 27~28, e João Maria Baptista, de Caminha seria excessivamente errado. Ainda nos luga~
CoROGRAFIA MoDERNA Do REINO DE PóRTUGAL, vol. IV. 1876, res em que o rio se afasta mais da praia, ao longo dêsses 400
pág. 499). metros, essa distância não excederá os 100 metros, não alcan~
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CONCLUSõES
I
O último ancoradoiro da armada em terras brasileiras foi
na atual baía Cabrália, por 8 a 1O metros de profundidade, a
• cerca de quilômetro e meio da Coroa Vermelha e por detrás dos
recifes do mesmo nome, a coberto dos suestes.
II
A parte da costa mais próxima dêsse ancoradoiro é preci-
samente a foz do Mutarí e as praias, que imediatamente a la-
deiam - por êsse motivo, as primeiras e únicas frequentadas
pelas tripulações do prudentíssimo Cabral .
III
Na primeira incerteza sôbre a atitude do aborígene, Pedro
Alvares Cabral evitou o desembarque em terra firme, conten--
tando-se com uma visita, no dia 25 de abril, ao ilhéu da Coroa
Vermelha, onde fez, no dia seguinte, rezar a primeira missa,
ainda por motivos de segurança.
-136- -137-
IV VIII
Por causa desta contiguidade sôbre um terreno tão redu~
As duas visitas àquele ilhéu fizeram~se à hora propícia da
baixa~mar e muito próximo das águas vivas - medida ditada
zido, Gabriel Soares identificou, um com o outro, o lugar onde
pela prudência e a sabedoria náutica dos portugueses e que assentaram a Cruz e a povoação velha, sendo que, na realida...
explica até certo ponto a denominação antinómica de "ilhéu de, uma ficava aquém e a outra além do rio, ainda que separa...
grande", dada por Caminha à Coroa Vermelha . das por algumas dezenas de metros .
IX
v Entre o Mutarí e o Itacumirim ou Itassemirim não houve
Quando se ·realizaram as cerimônias da manhã do dia 1 identidade no passado; nem existiu provavelmente em nossos
de maio, após uma semana de estadia na baía Cabrália, Cami~ tempos fundamento para a confusão feita por Mouchez e con~
nha conhecia perfeitamente o esquema topográfico do baixo tinuada por Salvador Pires e Malheiro Dias, pois a carta da
Mutarí, conhecimento, sem o qual é impossível entender essa Marinha Brasileira já a não repete.
parte da sua narrativa e reconstituir o pequeno trajeto feito
pelos portugueses, desde que desembarcaram e atravessaram o X
rio à busca da Cruz, para de seguida o cursar de novo junto da Desde o descobrimento de Cabral, em 1500, até a década
foz e realizar, a pequena distância, a cerimônia da posse. de 1570, em que surgem e se repetem novos depoimentos sôbre
o lugar do último ancoradoiro, perpetuaram . . se nas margens do
VI Mutarí os testemunhos vivos da arribada da frota descobri...
dora e das cerimônias desenroladas no local.
Com êsse conhecimento, hoje tornado possível pelas cartas
de Luiz Teixeira (c. 1574) e da Marinha Brasileira ( 1940) , XI
tão concordes, pode afirmar~se que a Cruz ficou assente na
Essa tradição objetivamente conservada, através de dois
praia, a cerca de 300 metros, a oes~noroeste da foz do Mutarí.
séculos, num grande número de mapas e roteiros e, para maior
objetividade, no Roteiro~atlas de Luiz Teixeira, coincide nas
VII suas linhas gerais com a carta de Caminha.
Em memona desta cenmoma e talvez pela sugestão do
XII
símbolo presente, rio de Santa Cruz, porto de Santa Cruz e
povoação de Santa Cruz se chamaram, durante o século XVI. O Roteiro. . atlas de Luiz Teixeira, elaborado ao longo da
o Mutarí, a baía Cabrália e o povoado que assentou sucessiva~ costa do Brasil, desde' o Cabo de Santo Agostinho até ao Rio
mente às duas margens daquêle rio e no curto espaço onde da Prata, cerca de 1574, por iniciativa oficial. foi uma das
hoje não caberia um bairro citadino. fontes, e preciosa, do Roteiro inserto por Gabriel Soares no
-138-
XIII
Na margem direita do Mutarí, direita do João de Tiba e
esquerda do Mutarí sucederam-se. respectivamente, a povoa-
ção de Santa Cruz, a velha, a povoação de Santa Cruz. que
mudaram e a povoação de Santa Cruz, a nova, ordem esta,
suposta na carta de Luiz Teixeira, e implícita no texto de
Gabriel Soares .
XIV
O lugar onde Cabral mandou erguer a Cruz tornou-se
digno de sagração monumental, não só, e estritamente, porque
alí começou a história brasileira, sob o signo da soberania por-
tuguesa e a invocação do Cristianismo, mas, mais latamente, A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
porque alí se iniciou a catequese do aborígene; porque ali ADAPTAÇÃO À LINGUAGEM ATUAL
tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o Dalí avistámos homens que andavam pela praia, obra de
capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos por chega-
mas não apareceu mais ! rem primeiro.
Então lançámos fora os batéis e esquifes; e vieram logo
todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde
Quarta-feira, 22 de abril
falaram entre si. E o capitão-mor mandou em terra no batel
E assim seguimos nosso caminho, por êste mar, de longo, a Nicolau Coelho para ver aquêle rio. E tanto que êle começou
até que, terça feira das Oitavas de Pá~coa, que foram vinte c de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois,
um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 ou 670 lé- quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à bôca do
guas, segundo os pilotos diziam, topámos alguns sinais de rio, já alí havia dezoito ou vinte homens.
terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes co-
a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a brisse suas vergonhas . Nas mãos traziam arcos com suas
que dão o nome de rabo-de-asno. E, quarta-feira seguinte, se~s. Vinham todos rijamente sôbre o batel; e Nicolau Coe-
pela manhã topámos aves a que chamam furabuchos . lho lhes fez sinal que pousassem os arcos . . E êles os pou-
Nêste dia, a horas de véspera, houvemos vista de saram.
terra ! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; Alí não poude dêles haver fala, nem entendimento de
e doutras serras mais baixas ao sul dêle: e de terra chã, com proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um
grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome - o barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na ca-
Monte Pascoal e à terra- a Terra da Vera Cruz. beça e um sombreiro preto. Um dêles deu-lhe um sombreiro
Mandou lançar o prumo . Acharam vinte e cinco bra- de penas de ave, compridas. com uma copazinha pequena
ças; e, ao sol pôsto, obra de seis léguas da terra, surgimos .de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-
âncoras, em dezenove braças ancoragem limpa. Alí per- lhe um ramal grande de continhas brancas, miudas, que que-
manecemos toda aquela noite. rem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão
manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser
tarde e não poder haver dêles mais fala, por causa do mar.
Quinta-feira, 23 de abril Na noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros
E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos que fez caçar as naus, e especialmente a capitaina.
direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezassete,
dezasseis, quinze, quatorze, treze, doze, dez e nove braças, até Sexta-feira, 24 de abril
meia légua, onde todos lançámos âncoras em frente à bôca de
um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menps,
mais ou menos. por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras
-144- -145-
e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes furados e metidos nêles seus ossos brancos e verdadeiros, do
amarrados à pôpa na direção do norte, para ver se acháva- comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de
mos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos. algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela
para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre 0
aqui nos acertarmos. beiço e os dentes é feita como roque de xadrês, a1í. encaixado
Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no
perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se comer ou no beber.
-haviam juntado alí poucos e poucos. Fomos de longo, e Os cabelos se1:1s são corredios. E andavam tosquiados, de
mandou o Capitão aos navios pequenos.- que seguissem mais tosquia alta, mais que de sôbre-pente, de boa grandura e ra-
chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, pados até por cima das orelhas . E um dêles trazia por baixo
que amainassem. da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabe-
E, velejando nós pela costa, acharam os ditos navios leira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de
pequenos, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos le- um côto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço
vantado ferro, um recife com um pôrto dentro, muito bom e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena,
e muito seguro, com uma mui larga entrada . E meteram-se com uma confeição branda como cêra (mas não o era) , de
dentro e amainaram. As naus arribaram · sôbre êles; e um maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e
pouco antes do sol-pôsto amainaram também, obra de uma mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
légua do recife, e ancoraram em onze braças. O Capitão, quando êles vieram, estava sentado em uma
E estando Afonso Lopes, nosso pilôto, em um daqueles cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao
navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de
vivo e destro -para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia,
porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e nós outros que aqui na nau com êle vamos, sentados no
e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um dêles trazia chão, pela alc:atifa. Acenderam-se tochas . Entraram. Mas
um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a
seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os ninguém . Porém um dêles pôs ôlho no colar do Capitão, e
logo, já de noite, ao capitão, em cuja nau foram recebidos começou de acenar com a mão para a terra e depois para o .
com muito prazer e festa. colar, como que nos dizendo · que ali havia ouro. Também
A feição dêles é serem pardos, maneira de avermelha- olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para
dos, de bons rostos e bons narizes, bem feitos . Andam nus, a terra e novamente para o castiçal, como se lá também hou-
sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir vesse prata .
ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz
como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra,
700.600 F. 10
,
-146- -147-
como quem diz que os havia alí. Mostraram~lhes um carneiro: seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancora-
não fizeram caso. Mostraram~lhes uma galinha; quasi tive- ram em cinco ou sei& braças - ancoragem dentro tão grande,
ram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a to- tão formosa e tão segura que podem abrigar~se nela mais de
maram como que espantados. duzentos navios e naus. E tan.to que as naus quedaram anco-
Deram~lhes alí de comer : pão e pei.x e cozido, confeitos, radas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão~mor.
fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quasi E daquí mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu
nada daquilo; e, se alguma coisa provavam, logo a lançavam Dias que fôssem em terra e levassem aqueles dois homens e
fora. Trouxeram~ lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar
boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram~ a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um ro~
lhes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram sário de contas brancas de ôsso, que êles levaram nos braços,
na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora. seus cascavéis e suas campaínhas. E mandou com êles, para ·
Viu um dêles umas contas de rosário, brancas; acenou lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a
que lhas dessem, folgou muit~ com elas, e lançou~as ao pes~ que chamam Afonso Ribeiro, para .lá andar com êles e saber
coço . Depois tirou~as e enrolou~as no braço e acenava para de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fôsse com
a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão. Nicolau Coelho.
como dizendo que dariam ouro por aquilo. Fomos assim de frecha direitos à praia. Alí acudiram
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas logo obra de duzentos homens, todos ntis, e com arcos e
se êle queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram~ lhes
não o quedamos nós entender, porque não lho havíamos de que se afastassem e poisassem os arcos; e êles os poisaram,
dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera. mas não se afastaram muito. E mal poisaram os arcos, logo
Então estiraram~se de costas na alcatifa, a dormir, sem saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com
buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as quais não êles. E saídos não pararam mais; nem esperava um pelo
eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um
feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças rio que por alí corre, de água doce, de muita água que lhes
seus coxins; e o da cabeleira esforçava~se por a não quebrar.
dava pela braga; e outros muitos com êles. E foram assim
E lançaram~lhes um manto por cima; e êles consentiram, que- correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde es-
daram~se e dormiram.
tavam outros. Alí pararam. Entretanto foi~se o degredado
com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou
até lá. Mas logo tornaram a nós; e com êle vieram os outros
Sábado, 23 de abril
que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela
fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam
-148- -149-
cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos; nós levávamos e tornámo~nos às naus. Mas quando assim
enchiam~nos de água e traziam~nos aos batéis. Não que êles
vínhamos, acenaram~nos que tornássemos . Tornámos e êles
de todo chegassem à borda do batel. Mas junto a êle, lan~ mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com
êles . Êste levava uma bacia pequena e duas ou três cara~
çavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem
puças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse.
alguma coisa. Levava Nicolau, Coelho cascavéis e manilhas.
Não cuidaram de lhe tirar coisa alguma, antes o mandaram
E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira
com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar,
_que com aquele engôdo quasi nos queriam dar a mão. Da~
ordenando que lhes desse aquilo. E êle tornou e o deu, à
vam~nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de
vista de nós, àquele que da primeira vez o agasalhara. Logo
linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
voltou e nós trouxemo~ lo.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vi-
Êsse que o agasalhou era já de idade, e andava por lou~
mos mais.
çainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia
Muitos dêles ou quasi a maior parte dos que andavam alí asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de
traziam aqueles bicos de ôsso nos beiços . E alguns que an~ penas am. relas; outros, de vermelhos; e outros, de verdes. E
davam sem êles, tinham os beiços furados e nos buracos uns uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela
espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros tintura; e certo era tão bell}. feita e tão redonda, e sua vergo~
traziam três bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos. nha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres
Aí andavam outros, quartejados de côres, a saber, metadé da nossa terra, vendolhe tais feições, fizera vergonha, por não
dêles da sua própria côr, e metade de tintura preta, a modos terem a sua como ela. Nenhum dêles era fanado, mas, todos
de azulada; e outros quartejados de escaques. Alí andavam assim como nós . E com isto nos tornámos e êles foram~se.
entre êles três ou quatro moças, oem moças e be~ gentis, À tarde saiu o Capitão~mor em seu batel com todos nós
com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a
folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saíu em
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabe~
terra, porque o Capitão o não qu_ís, sem embargo de ninguém
leiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma
nela estar. Somente saiu - êle com todos nós - em um
vergonha.
ilhéu grande, que na baía está e que na baixa~mar fica
Ali por então não houve mais fala nem entendimento mui vas!o. Porém é por toda a parte cercado de água, de
com êles, por a berberia dêles ser tamanha que se não en~ sorte que ninguem lá pode ir a não ser de barco ou a nado.
tendia nem ouvia ninguém. Ali folgou êle e todos nós outros, bem uma hora e meia.
Acenamos~lhe que se fôssem; assim o fizeram e passaram~ E alguns marinheiros, que alí andavam com _um chinchorro,
se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvem~nos às
batéis, e encheram não sei quantos barris de água que naus, já bem de noite.
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entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em Acabado isto. disse o Capitão que fôssemos nos batéis
nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de ber- em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e tambem para foi . .
bigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça in- garmos.
teira. Fomos todos nos batéis em terra. armados e a bandeira
conosco. Êles andavam ali na praia, à bôca do rio, para onde
E tanto que comemos. vieram logo todos os capitães a
nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes
esta nau. por ordem do Capitão-mar. com os quais êle se
tinham. puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos.
apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos
Mas. tanto que os batéis puseram as prôas em terra, passaram-
parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa
se logo todos além do rio. o qual não é mais largo que um
Alteza pelo navi~ dos mantimentos, para melhor a mandar
jôgo de mancai. E mal desembarcámos. alguns dos nossos
descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber.
passaram logo o rio. e meteram-se entre êles. Alguns aguar,...
por irmos de nossa viagem .
davam; outros afastavam,...se. Era, porém, a coisa de maneira
E entre muitas falas que no caso se fizeram. foi por que todos andavam misturados. Êles ofereciam dêsses arcos
todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto com suas setas por sombreiras e carapuças de linho ou por
concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada. preguntou qualquer coisa que lhes davam.
mais se lhes parecia bem tomar aquí por fôrça um par dêstes Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim mis--
homens para os mandar a Vossa Alteza. deixando aquí por turados com êles, que êles se esquivavam e afastavam-se.
êles outros dois dêstes degredados. E dêles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Sôbre isto acordaram que não era necessário tomar por Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao
fôrça homens. porque era geral costumé dos que assim le- colo, passou o rio. e fez tornar a todos.
vavam por fôrça para alguma parte dizerem que há alí de A gente que alí estava não seria mais que a costumada.
tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a êle ai . .
informação da terra dariam dois homens dêstes degredados guns daqueles. não porqúe o conhecessem por Senhor, pois
que aquí deixassem. do que êles dariam se os levassem, por me perece que não entendem, nem tomavam disso conheci-
ser gente que ninguém entende. Nem êles tão cêdo apren,... mento, mas porque a gente nossa passava já para aquém
deriam a falar para o saberem tão bem dizer que muito me,... do rio.
lhor estoutros o não digam. quando Vossa Alteza cá mandar. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas
E que portanto não cuidassem de aquí tomar ninguém por já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira
fôrça nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar que os nossos trouxeram dalí para as naus muitos arcos e
e apacificar. senão sõmente deixar aqui os dois degredados, setas e contas .
quando daqui partíssemos. Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudi,...
E assim, por melhor a todos parecer. ficou determinado. ram muitos à beira dêle.
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Ali veríeis galantes, pintados de preto e de vermelho, e em que há muito bons palmitos . Colhemos e comemos dêles
quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, muitos.
pareciam bem assim . Então tornou-se o Capitão para baixo para a bôca do rio,
Também andavam, entre êles, quatro ou cinco mulheres onde havíamos desembarcado.
moças, núas como êles, que não pareciam mal. Entre elas andava Além do rio, andavam muitos dêles dançando e folgando,
uma com uma côxa, do joelho até ao quadril, e a nádega, toda uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-
tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria côr. no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife
Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e
também os colos dos pés; e suas vergonhas tão núas e com levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se
tanta inocência descobertas, qu~ nisso não havia vergonha com êles a dançar, tomando-os pelas mãos; e êles folgavam
alguma. e riam, e andavam com êle muito bem ao som da gaita. De-
Tambem andava aí outra mulher moça, com um menino pois de dançarem, fêz-lhes ali, andando no chão, muitas voltas
ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos ligeiras e salto real, de que êles se espantavam e riam e fol-
peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas gavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e
as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum. afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais mon-
Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que teses, e foram-se para cima.
corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e
trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da
esteve com êle, perante nós todos, sem nunca ninguem o enten- terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está
der, nem êle a nós quantas cousas lhe demandávamos àcêrca junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaú-
douro, que nós desejávamos saber se na terra havia. lada por cima e sai a água por muitos lugares.
Trazia êste velho o beiço tão furado, que lhe caberia E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito dêles
pelo furo um grande dedo polegar, e metida nêle uma pedra andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E
verde, ruim, que cerrava por fora êsse buraco. O Capitão lha levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes
fez tirar. E êle não sei que diabo falava e ia com ela direito levou e lançou na praia.
ao Capitão, para lha meter na bôca. Estivemos sôbre isso rindo Bastará dizer-vos que até aquí, como quer que êles um
um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esqui-
dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por vavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa
ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa
Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar como êles querem, para os bem amansar.
a Vossa Alteza . O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça
Andámos por ali vendo a ribeira, a qual é de muita água vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com
e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de
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passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de turaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns
lá para aquém. .:lêles se esquivavam logo. Ali alguns davam arcos por folhas
Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu
:•. de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer
o que já disse, nunca mais aqui apareceram- do que tiro ser coisa. Em tal maneira isto se passou que bem vinte ou trinta
gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém pessoas das nossas se foram com êles, onde outros muitos
e com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos. estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos ar-
E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou ali- cos e barretes de penas de aves, dêles verdes e dêles amarelos,
márias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor dos quais, segundo creio, o Capitão há de mandar amostra a
cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, Vossa Alteza.
tão gordos e formosos, que não pode mais ser. E, segundo diziam êsses que lá foram, folgavam com êles.
Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a N êste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por
que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós andarmos quasi todos misturados. Ali, alguns andavam daque-
ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas . las tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta
Mandou o Capitão àquele degredado Afonso Ribeiro, feição, como em panos de armar, e todos com os beiços fu-
que se fôsse outra vez com êles. Êle foi e andou lá um bom rados, e muitos com os ossos nêles, e outros sem ossos.
pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram êles vir e não . Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na
o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe côr, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos.
tomaram nenhuma cousa do seu. Antes - disse êle - que E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmaga-
um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia dos entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que
com elas, e êle se queixou e os outros foram logo após,e lhas êles andavam tintos . E quanto mais se molhavam, tanto mais
tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. vermelhos ficavam.
Disse que não vira lá entre êles senão umas choupaninhas de Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as
rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Doiro ..
·
sobrancelhas e pestanas.
e Minho.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tin-
E assim nos tornámos às na~s. já quas~ noite, a dormir. tura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois
dedos.
E o Capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro
Segunda-feira, 27 de abril
e a outros dois degredados, que fôssem lá andar entre êles: e
 segunda-feira,de pois de comer, sa~os todos em terra assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que êles fol-
a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como gavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noute.
as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos . Estiveram Foram-se lá todos, e andaram entre êles. E, segundo
assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco mis- êles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação,
f.
. :~ ·,
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em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão com~ turaram~se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a
pridas, cada uma, como esta nau capitaina. Eram de ma~ acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos
deira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de ra~ e tomavam muito prazer.
zoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento. Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros
tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rêde uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se Muitos dêles vinham alí estar com os carpinteiros. E
aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro
pequenas, uma num cabo, e outra no outro. com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque êles
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou qua~ não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e
renta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau
comer daquela vianda, que êles tinham, a saber, muito inhame entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que an~
e outras sementes, que na terra há e êles comem. Mas, quando dam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas
se fez tarde, fizeram~nos logo tornar a todos e não quiseram casas foram, porque lhas viram lá.
que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir Era já a conversação dêles conosco tanta que quasi nos
com êles. estorvavam no que havíamos de fazer.
Resgataram lá por cascave1s e por outras coisinhas de O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias
pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito gran~ que fôssem lá à aldeia (e a outras, se houvessem novas delas)
des e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda
penas verdes, e 'um pano de penas de muitas côres, ma~ que êles os mandassem. E assim se foram.
neira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atra~
estas cousas verá, porque o Capitão vô~las há de mandar, vessavam alguns papagaios por essas árvores, dêles verdes
segundo êle disse. e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me
E com isto vieram; e nós tornámo~nos às naus. parece haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria
mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos,
sõmente algumas pombas seixas, e pateceram~me bastante
Terça~feira, 28 de abril maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram
rôlas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui
À terça feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda muitos e gra~des, e de infindas maneiras, não duvido que por
de lenha e lavar roupa. êsse sertão haja muitas aves !
Estavam na praia, quando chegámos, obra de sessent3 Cêrca da noite nos volvemos para as naus com nossa
ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegámos, vie- lenha.
ram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aquí a Vossa
muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e mts~ Alteza da feição de se~s arcos e setas. Os arcos ·são pretos
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e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão co-
canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que zido, frio, e arroz.
- eu creio - o Capitão a Ela há de enviar. Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que
o não bebiam bem.
Quarta~[eira, 29 de abril Acabado o comer, metemo~nos todos no batel e êles co-
nosco. Deu um grumete a um dêles uma armadura grande , de
À quart.a feira não fomos em terra, porque o Capitão an- porco montês, bem revôlta. Tanto que a _tomou meteu~a logo n~
dou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá~lo e beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram~lhe uma
fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Êles pouca de cêra vermelha. E êle ageitou~lhe seu adereço detrás
acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer para tear segura, e meteu-a no beiço, assim revôlta para cima.
de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande jóia.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apa~
Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, receu mais aí .
volveram~se já de noite, por êles não quererem que lá ficas~
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez dêles; e
sem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quasi de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam,
como pêgas, a não ser que tinham o bico branco com rabos êste dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
curtos.
Traziam alguns dêles arcos e setas, que todos trocaram
Quando Sancho de T ovar se recolheu à nau, queriam
por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam
vir com êle alguns, mas êle não quis, senão dois mancebos
conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns dêles vinho; ou..-
disp~stos e homens de prol. Mandou~os essa noite mui bem
tros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem,
pensar e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e
o beberão de boa vontade.
mandou fazer~ lhes cama de lençóis, segundo êle disse. Dor-
Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes
miram e folgaram aquela noite.
com suas tinturas, que pareciam bem . Acarretavam dessa
E assim não houve mais êste dia que para escrever seja. lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam..-na
aos batéis.
Quinta~feira, 30 de abril Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós
andávamos entre êles.
À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quasi foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por êste ar..-
pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água . E, em voredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso
querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de T ovar parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós
com seus dois hóspedes . E por êle ainda não ter comido, tomámos água.
puseram~ lhe toalhas. Trouxeram~ lhe vianda e comeu. Aos Alí ficámos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo
hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o dela, entre êsse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto
700 . 600 F. 11
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e de tantas prumagens, que homem as não pode contar. Há Nêste dia, enquanto alí andaram, dançaram e bailaram
entre êle muitas palmas, de que colhemos muitos e bons pai~ sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em
mitos. maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Quando saímos do batel. disse o Capitão que seria bom Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam~se
irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, logo prestes para isso, em tal maneira que se a gente todos
junto com o rio, para se erguer àmanhã, que é sexta~feira, e quisera convidar, todos vieram. Porem não trouxemos esta
que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos para noute às naus, senão quatro ou cinco, a saber : o Capitão~
êles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. mor, dois; Simão de Miranda, um que trazia já por pajem; e
A êsses dez ou doze que aí estavam acenaram~lhes que fi~ Aires Gomes, outro, tambem por pajem.
zessem assim, e foram logo todos beijá~ la. Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que
lhe trouxeram da primeira vez, quando aquí chegámos, o
Parece~me gente de tal inocência que, se homem os en~
qual veio hoje aquí. vestido na sua camisa, e com êle um seu
tendesse e êles a nós, seriam logo cristãos, porque êles, se~
irmão; e foram esta noute mui bem agasalhados, assim de
gundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais
E portanto, se os degredados, que aquí hão de ficar amansar.
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que
êles. segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de
Sexta~feira, 1 de maio
fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso
Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de E hoje, que é sexta feira, primeiro dia de maio, pela
boa símplicidade. E imprimir~se~à ligeiramente nêles qual~ manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desem~
quer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, barcar acima do rio contra o sul. onde nos pareceu que seria
que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Alí assinalou o
por aquí nos trouxe, creio que não foi sem causa. Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a Enquanto a ficaram fazendo, êle com todos nós outros fo~
santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá mos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dalí a trou~
a Deus que com pouco trabalho seja assim. xemos com êsses religiosos e sacerdotes diante cantando, em
Êles não lavram, nem criam. Não há aquí boi, nem vaca, mane •.ra de procissão .
nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra ali~ Eram já aí alguns dêles, obra de setenta ou oitenta; e,
mária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo
senão dêsse inhame, que aquí há muito, e dessa semente e dela, para nos ajudar. Passámos o rio, ao longo da praia e
frui tos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto fomo~la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois
andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, tiros de besta. Andando~se alí nisto, vieram bem cento e cin~
com quanto trigo e legumes comemos. qüenta ou mais.
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guns que viessem para alí. Alguns vinham e outros iam-se.
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa AI. . E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse mui...
teza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé t~s cruzes de estanho com cruxifixos, que lhe ficaram ainda
dela. Alí disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi can,... da outra vinda, houveram por bem que se lançasse lima ao
tada e oficiada por esses já ditos. Alí estiveram conosco a pescoço de cada um. Pelo que o Padre Frei Henrique se
ela obra de cinqüenta ou sessenta dêles, assentados todos de
assentou ao pé da Cruz e alí, a um por um, lançava a sua
joelhos, assim como nós . atada em um fio ao pescoço, fazendo . . lha primeiro beijar e
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos
alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram. . nas to . .
em pé, com as mãos levantadas, êles se levantaram conosco e
das, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta .
alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tor . .
naram. . se a assentar como nós . E quando levantaram a Deus, Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio...
que nos pusemos de joelhos, êles se puseram assim todos, dia - viemos a comer às naus, trazendo o Capitão consigo
como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal ma... aquele mesmo que fez aos outros aquela mestrança para o
neira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez. muita altar e para o Céu e um seu irmão com êle. Fez . . lhe muita
devoção. honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois destoutras.
da qual comungaram êsses religiosos e sacerdotes e o Capitão E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente
com alguns de nós outros. não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão en . .
Alguns dêles, por o sol ser grande, quando estávamos tender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer,
comungando, levantaram. . se, e outros estiveram e ficaram. Um como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma
dêles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, con. . idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza
tinuou alí com aqueles que ficaram . :Ê:sse, estando nós assim, aquí mandar quem entre êles mais devagar ande, que todos
ajuntava estes, que alí ficaram, e ainda chamava outros. E serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se
andando assim entre êles falando, lhes acenou com o dedo alguem vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, por...
para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se que já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois
lhes dissese alguma coisa de bem; e nós assim o tomámos. degredados, que aquí entre êles ficam, os quais hoje também
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e comungaram ambos.
ficou em alva; e assim se subiu, junto com o altar, em uma Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que
cadeira. Alí nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem
é o dia, tratando, ao fim da pregação, dêste vosso prosse,... deram um pano com que se cobrisse. Puseram. . Iho ao redor de
guimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devo... _si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o es,...
ção. tender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta
:Ê:sses, que estiveram sempre à pregação, quedaram. . se gente é taL que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
como nós olhando para êle. E aquele, que digo, chamava al-
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Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive E que aí não houvesse mais que ter aquí esta pousada para
se converterá ou não, ensinando~lhes o que pertence à sua sal~ esta navegação de Calecute, isso bastaria. Quanto mais dis~
vação. posição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto
Acabado isto, fomos assim pe~ante êles beijar a Cruz, deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
despedimo~nos e viemos comer. E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam do que nesta terra vi . E, se algum pouco me alonguei, Ela
mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez
esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que pôr assim pelo miúdo.
ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos E pois que, Senhor, é certo que, assim nêste cargo que
daqui nossa partida. levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for,
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela
contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, peço que, por me fazer graça especial, mande vir da ilha de
de que nós dêste pôrto houvemos vista, será tamanha que São Tomé a Jorge de Osório, meu genro- o que d'Ela rece~
haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, berei em muita mercê.
ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e
muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo Dêste Pôrto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje,
praia~palma, muito chã e muito formosa. sexta~ feira,
primeiro dia de maio de 1500.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande,
PERO VAZ DE CAMINHA.
porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com
arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem
prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos.
Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e tem~
perados, como os de Entre Doiro e Minho, porque nêste
tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é gra~
ciosa que, querendo~a aproveitar, dar~se~á nela tudo, por bem
das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece
que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal se~
mente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
ÍNDICES
I
rNDICE ONOMÁSTICO
A C
D. Afonso V - 124. Calixto (Benedito) - 58.
Albuquerque (Afonso de) - 58. Calmon (Pedro) - 20, 100.
Albuquerque (André de) - 58. Campo Tourinho (Pero de) 21,
Albuquerque (D. Jerônima de) - 58. 82. 83, 102, 104, 133.
Albuquerque (Jorge de) - 44, 56, Candido (Dr. Zeferino) 13, 18,
57, 58. 107, 108. 133, 134.
Alcântara Machado (Antônio de ) Canério - 78.
58. Cantino - 15, 78, 79.
Alvares (Diogo) - 101, 103. Cão (Diogo) - 124.
Alvares (Sebastião) - 100. Capart - 7.
Albuquerque Felner (A, de) - 55. Capistrano de Abreu - 9, 58, 94, 95.
Alvarez Cabral (Pedro) - 6, 7. 8, Caramurú - 97.
15, 16, 17, 18, 22, 24. 25, 27. Carvalho (Martim) - 9cf.
32, 33, 34, 38, 39, 40, 41. 42, Cardim ( Pe. Fernão) - 20, 24, 25,
67. 69, 74, 77, 78. 79, 92, 93, 28, 90, 102.
97, 101. 102, 103, 107, 109, 110, Casal (Pe. Aires do) - 16, 118. 121.
111, 113, 114, 115. 116, 119. 121. Castro (Comandante Eugénio de)
122. 123. 124, 125, 128, 135, 137, 72, 77.
138. Castro (D. João) - 71.
Anchieta (Pe. Joseph) - 20, 24, 25, D. Catarina (Rainha) - 85.
28, 61, 90, 91. 102. 113. Coelho (Nicolau) - 111, 143, 145,
Ataide (Vasco de) - 141. 147, 148. 165.
Azerêdo (Marcos de) - 100. Coelho de Albuquerque (Duarte) -
Azpilcueta Navarro - 96, 97, 98, 57.
99. 102. Coimbra (Frei Henrique de) - 150,
164.
B Colaço (Manuel) - 82.
Correia (Aires) - 145.
Bacharel da Cananeia - 103 . Correia de Sã ( Salvador) - 64 .
Baião (Antonio) - 11. Cortesão (Armando) - 45, 46, 47.
Baptista (João Maria) - 130. Cortesão (Jaime) - 93.
Barbosa ( Duarte) - 20. Costa (Estevão da) - 60.
Barbosa Machado (Diogo) - 41. Costa (João da) - 20 .
Barreto (Francisco) - H, 57, 59.
Barreto de Lima ( D. Francisco) -
58. D
Barros (João de) - H, 56, 124.
Beaurepaire Rohan (Gal. Henrique) Dias (Bartolomeu) - 8, 111. 124, 147,
16, 17. 18, 108, 133 .• 149, 151. 155, 165.
Braamcamp l:'reire (Anselmo) - 59 . Giraldes (Lucas) - 57.
Braunio - 130. Dias (Diogo) - 8.
Brito ( Manoel de) - 66. Dias (Diogo, Almoxarife de Sacavem)
Brito de Almeida (Luis de) - 52, 53, - 155, 157, 159, 160.
54, 56, 63, 67, 100. Dias (Jorge) - 83.
Bruza de Espinosa - 99. Dias Adorno (António) 100.
172- -- 173 -
H
Míchaellis de Vasconcelos (D. Caro-
lina) ~ 11. 18, 108, 110, 126.
s Vilhena Barbosa ~ 130.
Vaudeclaye (Jacques) ~ 64, 66, 70.
Miranda (Simão de) ~ 145, 163. Sá (Mem de) ~ 44, 62, 85, 87, 88. V isconde de Porto Seguro (Vide V ar-
Henriques (Miguel) ~ 99. Mouchez (Almirante) ~ 70, 76, 77, Salema (António) ~ 53, 54. nhagen).
Homem (Diogo) ~ 49. 113, 137. Salvador (Frei Vicente do) ~ 58.
Homem (Lopo) ~ 78. Moura (Cristovão de) ~ 59. Scipião (Emiliano) - 7.
Mousinho ( Pero) ~ 82 . Schliemann ~ 7. w
J D. Sebastião (El-Rei) ~ 51. 55, 57.
Waldseemuller 78 .
Igino (Andres) ~ 60. Selvagem (Carlos) ~ 129.
N Schulten ~ 7. W anderley Pinho ~ 88.
D. Isabel (Rainha) ~ 43.
Jaboatão (Frei A. de Sta. Maria) Smith ( Arrow) - 77.
94.
Nobrega (Pe. Manuel de)
Nogueira de Brito ~ 49 .
95, 96. Soares de Sousa (Gabriel) ~ 16, 17,
19. 20, 23, 25, 26. 27, 28. 29,
z
Jesuíta Anónimo ~ 22, 23. Nunes (Pedro) ~ 51. 30, 31. 32, 33, 34, 35, 37, 40, Zacuto (Abraão) 120.
fNDICE DO TEXTO
PÁG.
Explicação prévia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
História do problema ............................. : . . . . . . . 15
O primitivo Porto Seguro nos roteiros e cartas antigas. . . . . . . . 19
O Roteiro~atlas do Brasil de Luiz Teixeira de c. 1574... . . . . . . 43
O Porto Seguro de Cabral no Atlas de Luiz Teixeira......... · 69
Origens da povoação de Santa Cruz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
O lugar onde Cabral tomou posse da terra.. .. ....... ..... . . 107
Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I 35
A Carta de Pero Vaz de Caminha - adaptação à linguagem atual 139
.,
lNDICE DAs GRAVURAS FúRA DO TEXTO
PÁGS.
N. 1. O Porto Seguro no planisfério de Cantina ( 1502) ......... · · ·. · · · HA
N. 2 . Porto Seguro no Li"'ro que dá razão do Estado do Brasil (c. 1626) ... 38A
N. 3 . A Baía Cahrãlia segundo a Carta levantada pela Marinha Brasi~
!eira ( 1940) ................................. _................. . 68A
N. 4. Porto Seguro no Roteiro~Atlas de Lui:z; Teixeira (c. 157~) ....... ·. · 72 A
1944
IMPRENSA NACIONAL
RIO DE .JANEIRO - BRASIL