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JAIME CORTESÃO

)
*

CABRAL E AS
-
ORIGENS DO BRASIL

(Ensaio de topografia histórica)

*
v.

RIO DE JANEIRO
EDIÇÃO DO MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
1944
BIBLIOGRAFIA DE JAIME CORTESÃO

POESIA

1 - A Morte da Aguia (poema heróico), Lisboa, 1909.


2 - Esta história é para os anjos, Porto, 1912.
3 - Sinfonia da Tarde, Porto, 1912.
4 - Glória Humilde, Porto, 1914.
5-O Infante de Sagres (drama em 4 atos), Porto, 1916. (3 edições).
6 - Egas Moniz - drama em 4 atos, Porto, 1918. (2 edições).
7 - Divina Voluptuosidade, Lisboa, 1922.

PROSA

8 - A Arte e a Medicina. (Antero de Quintal e Souza Martins), Lisboa, 1910.


9 - Daquem e Da/em Morte, contos, Coimbra, 1913.
tO ..- Cancioneiro Popular, (antologia precedida dum estudo crítico), Porto, 19H.
11 ..- Cantigas do Povo para as escoléis, ( seleção e prefácio), Porto, 1914.
12 - Memórias da Grande Guerra, Porto, 1919. (3 edições).
13 - Soror Mariana - Cartas de Amor (nova restituição e esboço critico),
Rio de Janeiro, 1920.
14 ..- Adão e Eva, peça em 3 atos, Lisboa, 1921.
15 - Itália Azul. Rio de Janeiro, 1921.
16 - A Expedição de Pedro Alvares Cabral. ln "ffistória da Colonização do
Brasil", sob a direção de C. Malheiros Dias. 2.• vol., Porto, 1922.
17 - A Expedição de Pedro Alvares Cabral e o Descobrimento do Brasil, Lisboa,
1922.
18 - Do Sigilo Nacional sobre os Descobrimentos, ln "Lusitania", n.• 1, 192~.
19 - Romance das Ilhas Encantadas, literatura infantil, com ilustrações de Roque
Gameiro, Lisboa, 1925.
20 - Le Traité de Tordesillas et la découverte de l'Amerique, comunicação lida em
Roma ao XXII.• Congresso Internacional dos Americanistas. como delegado do
Govêmo português e da Academia de Ciências de Lisboa, 1926, e Roma, 1926.
- Aperçu Historique, (introdução ao "Guide du Portugal" da coleção dos
"Guides Bleus" da Livraria Hachette), Paris, 1929.
22 - L'Expansion des Portugai:~ dans l'Hi:~toire de la Civilisation. Bruxelles, 1930.
-4-
23 - Os fatores Democráticos na Formação de Portugal, introdução à
do Regime Republicano em Portugal", sob a direção de Luis de Montalvor.
Lisboa, 1930.
24 O Franciscanismo e a Mística dos Descobrimentos. in "Revista de las Es·
panas", Madrid, janeiro de 1932 e "Seara Nova'", Lisboa, junho de 1932.
24 - Viagem de Diogo de Toeive e Per-o Vasquez de la Frontera ao Banco da
Terra Nova em 1452, (resumo dalgumas lições feitas na Universidade de
Sevilha, em 1932) in "Arquivo Histórico da Marinha", n. 1, Lisboa, 1933.
26 A Génese da Expansão Portuguesa, in "História de Portugal", edição mo-
numental, sob a direção de Damião Peres, tomo III; O desígnio do Infante
e as explorações atlânticas até à sua morte, ibidem; O Império português no
Orienne até 1554, ibidem, tomo IV; Colonisação do Brasil, ibidem; Influência
dos descobrimentos portugueses na história da civilização, ibidem; O Império
português no Orient~. tomo V; Colonização dos portugueses no Brasil ( 1557-
1640), ibidem; A expansão dos portugueses em Africa (1557-1640), ibidem;
As Colónias do Oriente, ibidem, tomo VI; A integração do território do Brasil,
ibidem; Os domínios portugueses em Africa, ibidem; num total de 500 págs.
1931-1934.
27 The Pre-columbian Discovery of America, conferência realizada em 1936
no Centre lntemational de Synthêse Scientifique, em Paris, in "The Geo-
graphical Journal", Londres, janeiro de 1937.
28 A Crónica do Condestavel de Portugal, adaptação, Lisboa, 1937.
29 A expansão portuguesa no Brasil, in "História da Expansão portuguesa no
Mundo", sob a direção de A. Baião, H. Cidade e M. Murias, tomo III,
Lisboa, 1940.
30 - Teoria Geral dos Descobrimentos portugueses e A geografia e a economia
da Restauração, Lisboa, 1940.
31 Cartas à Mocidade, Lisboa, 1940.
32 - O que o Povo canta em Partugal. Rio de Jan!'iro, 1942.
33 A Carta de Fero Vaz de Caminha, Rio de janeiro, 1943.
34 - A ciência nautica portuguesa e o Descobrimento dos Estados Unidos, ed. de
Dois Mundos, editora, a sair.
35 .- Portugal na História da Humanidade, no prelo, edição da Portucalense edi·
tora, Barcelos.
36 - Los Descubrimientos pre-colombinos de los Portugueses, edição Salvat, Bar-
celona, no prelo.
37 História dei Brasil, edição Salvat, Barcelona, no prelo.
38 A teoria do Segredo e os descobrimentos portuqueses, edição lnquerito,
Lisboa, no prelo.


EXPLICAÇÃO PRÉVIA

A 20 de junho de 1940, o Diário Oficial publicava as


instruções de Sua Excelência o Senhor Presidente da Repú.-
blica, Doutor Getulio V argas, nomeando uma Comissão e
estabelecendo os poderes respectivos para determinar os lugares
onde se realizaram os atos históricos do Descobrimento do
Brasil e estudar a melhor forma de os assinalar.
Há quasi dois anos, o Senhor Ministro Bernardino José
de Souza, ilustre Presidente daquela Comissão, procurou.-nos
na Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores, onde rea.-
lizamos trabalhos preparatórios para o Atlas Histórico do
Brasil, e deu.-nos a honra de pedir o nosso parecer, em relatório,
sobre a parte de identificação topográfica, dos trabalhos a
que presidia.
Ao modesto historiador português, favorecido com aquela
distinção, sorriu o encargo, tanto mais quanto êle n~o
exorbitava das suas funções, nem dos estudos de história da
geografia, em que há muitos anos se especializa. Era uma nova
forma, e sedutora, de servir.
Ao pedido do Senhor Ministro Bernardino José de Souza
respondemos, como não' podia deixar de ser, afirmativamente.
Fiados até êsse momento na versão, que nos parecera defini,..
tiva, da História da Colonização Portuguesa do Brasil, sobre
a localização dos atas e cerimônias do Descobrimento cabralino,
nunca nos havíamos dado ao seu estudo atento. Breve nos íamos
convencer de que merecia ser retocada em mais que um ponto.
-6-

Comecemos por declarar que, para a revisão dêste pro-


cesso, encontramos desde início no Ministério das Relações
Exteriores o indispensável e mais decidido apóio e auxílio.
Iniciado com ardor o trabalho, saía~nos da pena, em
prazo relativamente curto, êste volume. Trata~se daquilo a
que chamamos um ensaio de topografia histórica. Ensaio,
porque não passa duma espécie de trabalho preliminar, a ter--
minar com trabalhos de campo e, especialmente, de ordem ar--
queológica. Ensaio ainda, porque, não obstante havermos tra~
zido novas fontes para o esclarecimento do problema, não
pretendemos haver esgotado o assunto, sob o mero aspecto
documental.
Ao definirmos· o objeto do trabalho como de topografia
histórica, neste caso de identificação do Porto Seguro de
Cabral e dos seus primitivos povoados, pelos textos e repre--
sentações gráficas mais antigas, implicitamente indicamos os
métodos e os limites do nosso estudo .
Desta .sorte, o leitor não estranhará que nos utilizemos
essencialmente da análise geográfica e náutica, nem a impor--
tância quasi exclusiva que damos a roteiros e cartas antigas e,
muito em especial, ao Roteiro~atlas de Luiz Teixeira, espécie
nova e fundamental que tivemos a fortuna de incorporar a êste
processo.
E, dito isso, quasi seria desnecessário fazer de entrada
a seguinte prevenção: esta monografia está longe de ser ou
de aspirar a ser leitura amena.
Obrigados que fomos a trilhar repetidamente o mesmo
árido e escasso terreno, a comparar textos e mapas, a esmiuçar
toponímias e datas, a medir distâncias, a calcular profundida~
des e marés, sempre cingidos a um trecho diminuto do imenso
litoral brasileiro, sabemos que a leitura dêste trabalho só não
será tediosa aos raros iniciados e àqueles, igualmente reduzidos,
-7-

a quem possa tentar a importância do tema. Essa, para nós,


cresceu ainda com as nossas conclusões.
Averiguado, como averiguamos, que, em volta do lugar
onde Cabral ergueu a Cruz~padrão, se fundaram e floresceram
pelo menos duas povoações, nos primeiros tempos da coloniza~
ção, breve destruídas pelos aimorés e hoje totalmente desapare-
cidas, entendemos até que o caso merecia não só o estudo topo~
gráfico local, empreendido pela Marinha Brasileira, e que nos
foi precioso auxiliar#. mas a paciente devassa arqueológica do
terreno.
Um Capart ress.uscitou a majestade da egípcia "Tebas das
cem portas", como lhe chamou Homero; um Schliemann re-
constituiu o perímetro e descobriu os tesouros de "Ilios" e
"Mikenae"; um Schulten, ainda recentemente, retraçou os cam~
pos de Scipião Emiliano. em volta de N.umância, e esforçou-se
embalde, ao que parece. por localizar a antiquíssima e lendária
Tartessos. Em qualquer dos casos, e por mais brilhantes que
sejam os seus esplendores passàdos, trata~se de cidades-mortas
e de Estados~mortos.
Aquí o caso é diferente. Naquele lugar da praia de Porto
Seguro. onde, a 1 de maio de 1500, cerca élas 11 da manhã.
Pedro Alvares Cabral mandou erguer a Cruz com as armas e
divisa reais de Portugal, começa verdadeiramente a história
do Brasil. Os quatro primeiros séculos d'? seu passado vão
desenrolar~se à sombra daquêle símbolo da fé cristã e da sobe-
rania portuguesa. E que aurora sem mácula a do Génesis
brasileiro I
País algum pode orgulhar~se de começar a sua história
com páginas semelhantes às da carta de Caminha, onde se
debuxa, por forma tão graciosa e comovente, a atitude fidalga-
mente humana dos descobrid.cres perante o novo homem do
Novo Mundo,
-8-

Um sorriso de ternura ilumina a missiva do escrivão da


frota. Ele se compraz na descrição fidelíssima do aborigene.
Gaba a força dos homens. a graça das mulheres e a inocêncza
paradisíaca duns e doutras. Medita e inculca ao monarca a
atração das inocentes ovelhas para o grêmio da Igreja. E des-
creve. um a um. com minúcias enternecedoras. aquilo a que
poderíamos chamar os seis quad:-os do Auto do Descobrimento.
Primeiro: o aparecimento. ao longe e na luz da tarde. do
Monte Pascoal. a aproximação da terra. o primeiro e alvoro,...
çado espetáculo dos seus habitantes e a busca. ao longo da
costa. duma arribada. sob a rajada dos suestes.
Segundo : a entrada em Porto Seguro e a chegada dos
dois primeiros tupiniquins a bordo. já de noite e à luz das to-
chas ; as suas reações à cultura européia e à ceia lusitana. que
lhes serviram; e. por fim. o sono ao longo da alcatifa. postas
as cabeças sobre coxins e coberta por um manto a bí'blica nudez.
Terceiro: a primeira missa e o Sermão do Descobrimento
no "ilhéu grande" da baía. e o passeio nos batéis ao longo da
praia. coalhada de indígenas, e, à frente da flotilha Bartolomeu
Dias, o descobridor do Cabo da Boa Esperança. que vai, por
mandado do Capitão-mor, entregar aos tupiniquins "um pau
duma almadia que lhes o mar levara".
Quarto: o bailado de portugueses e aborígenes. dirigido
por Diogo Dias, almoxarife de Sacavem, que toma pelas mãos
os tupiniquins: e eles dansavam e riam e folgavam ao som do
gaiteiro e da gaita de foles, como se fora num festivo arraia?
português das Beiras ou do Minho.
Quinto: a faina da aguada na foz do pequeno rio. facili-
tada pelos aborígenes. que sopesam os barrís para os batéis ;
o corte da lenha na selva próxima e o afeiçoar do madeiro gi-
gantesco perante os tupiniquins. pasmados com a ferrament4
-9-

dos descobridores ; e, por fim, o cortejo dos capitães e marinhei..


ros, que vão, de garras e barretes vermelhos na mão,. beijar
'devotamente a Cruz ..
Sexto : a cerimônia da posse, começada, à portuguesa,
por uma procissão, ao longo da praia, transportando entre
cânticos a Cruz, a ombros de portugueses e tupiniquins; o
erguer solene do madeiro, com as armas e a divisa de EZ.-Rei,
na praia, em frente ao mar ; depois a missa cantada e, por fim,
o sermão de Frei Enrique sobre os Apóstolos do dia, S. Tiago
e S. Filipe e, segundo Capistrano "sobre a missão a eles con..
fiada : docet omnes gentes, o mundo que encontraram adverso
e contra eles não prevaleceu, o triunfar do Evangelho". Quer
dizer: depois dos bailados de arraial. a procissão, a missa can..
tada com sermão, como numa boa festa religiosa em aldeia
portuguesa.
Sôbre estes lugares e sob a invocação da "Santa Cruz"
se fundou mais que um povoado e se desenrolaram vários acon..
tecimentos, de maior ou menor alcance, durante os três pri..
meiros quartéis .do século XV I.
Povoados humildes ~ é certo ~ por mais que um deles
tivesse a sua igreja e outro a casa acastelada dos engenhos
quinhentistas; mas, nomeados sob a invocação da Cruz ..padrão,
eles foram o sacrário da tradição do descobrimento e da ceri..
mônia da posse e os primeiros exemplos do apêgo e fidelidade
à terra com sacrifício da própria vida. Alí, por consequência,
se experimentou uma das virtudes que fez radicar o homem e
evoluir a sociedade até a condição de Pátria independente.
Neste caso, a importância do fato histórico averiguado
não se mede como em Tebas, lvlicenas ou Numância, pelas
relíquias arqueológicas de um passado extinto, mas como raiz
viva do presente, como ato inicial duma nação, que, pela mesma
pujança ascensional, necessita de prender.. se ao solo.
-10-

Por todas estas razões se nos afigura que esses lugares


mereciam a sagração monumental e todos os esforços, por
mais áridos, que conduzissem à sua identificação definitiva.
Assim o entendeu, com a sua elevada compreensão das ori.-
gens portuguesas do Brasil, Sua Excelência o Senhor Presi.-
dente da República, Senhor Doutor Getulio V argas, para
quem, pela sua deliberação, foram as solidárias homenagens
de todos os' portugueses e muito mais de quem, como nós, fez
há muitos anos da história brasileira objeto dos seus estudos
prediletos.
Semelhante compreensão teve Sua Excelência o Senhor
Ministro de Estado das Relações Exteriores, Doutor Oswaldo
Aranha, sem cuja boa vontade não nos haveria sido possível
realizar êste trabalho.
Resta-me agradecer ao Senhor Ministro Bernardino José
de Souza haver-me dado ensêjo de servir o Brasil, colaborando
nos esforços da ilustre Comissão, a que preside, com esta mo-
desta achega, e, com êle, a todos quantos me él;Uxiliaram na
tarefa.
Devo, em primeiro lugar, lembrar os nomes dos funcio.-
nários do Ministério das Relações Exteriores, Prof. Luiz Ca-
milo de Oliveira Neto, Diretor da Biblioteca respectiva, cujas
coleções me estiveram sempre franqueadas; do Sr. Murillo
de Miranda Basto, que na Mapoteca me prestou sempre o mais
comprf;ensivo apôio e solícito auxílio; assim como da Sra. D.
Maria Cecilia Madeira Coimbra, que se encarregou zelosa.-
mente de algumas das fadigas auxiliares do meu trabalho.
Auxílio util deu-me igualmente o Senhor José Jorge Lée, com.,-
petente bibliotecário do Gabinete Português de Leitura. E,
por último, conforme a letra do Evangelho, o meu reconheci--
mento a M estie Rodolfo Garcia, que nos foi sempre guia gene--
roso dos tesouros da Biblioteca Nacional e da bibliografia sôbre
-11-

o primeiro século da história brasileira. que êle. como ninguem,


conhece.
;..---
Para facilidade de consulta do leitor, acrescentamos a
êste trabalho uma adaptação ao português atual da Carta de
Pero Vaz de Caminha.
A~pesar de não faltarem versões da mesma Carta em por~
tuguês atual, algumas, como a de D. Carolina Micaelis de
Vasconcelos, da História da Colonização Portuguesa do Brasil,
sofrem de erros muito graves; outras, como a recente de Antonio
Baião, na mesma coletânea, visam ~~pôr a narrativa de Caminha
ao alcance de todos, até dos menos doutos".
Ora o ensaio presente não se destina a um · público tão
largo. A sua leitura tem forçosamente que confinar~se aos
doutos. Evitamos, por consequência. a versão demasiadamente
livre, buscando, quanto possível, cingir~nos ao texto primitivo.
conservando~lhe o sabor arcaico, sem prejuízo da indispensável
clareza e correção de estilo. Por isso lhe chamamos adaptação
e não versão.
Aos que deseJarem conhecer o texto paleográfico, no
fac~simile, acompanhado da respectiva transcrição. assim como
do seu comentário histórico~cultural, enviamos para o nosso
recente livro - ~~A Carta de Pero Vaz de Caminha".
Aí resumimos muito rapidamente o estudo presente, ao
passo que aquí aproveitamos apenas daquele trabalho a adap~
tação da Carta de Caminha à linguagem atual. Os dois volumes,
pois. completam~se.
"Esses poucos palmos de terra (o lugar onde
se ergueu a cruz) merecem de portugueses e bra-
sileiros, do mundo e da civilização, um respeito
sagrado. Alí reside a pedra-ara da mais bela
iniciação civilizadora de que as idades guardam a
lembrança. Era aí, nesse pequenino trato, que se
deveria alevantar o monumento mais perduravel
que a tosca cruz de madeira deixada pelo desco-
bridor portugues".
Dr. Zeferino Candido, BRASIL, 1900, página
200 .


N. 1. . . de Cantino ( 1502)
O Porto Seguro no planis f eno
..
HISTóRIA DO PROBLEMA

As únicas fontes escritas contemporâneas, que fornecem


alguns dados para identificarmos o lugar da costa brasileira
onde, no dia 24 de abril de 1500, apartou Pedro Alvares Cabral,
ê aqueles respectivamente onde se rezou a primeira missa e se
assentou, em sinal de soberania, a cruz de madeira com as armas
reais, são a carta de Pero Vaz de Caminha, a chamada RELAÇÃO
DO PILOTO ANÔNIMO e a carta de Mestre João, cosmógrafo,
cujo interêsse, no caso que nos ocupa, se resume em fornecer
a latitude de Porto Seguro. A primeira, documento por muitos
títulos do maior interêsse, foi escrita do mesmo lugar do
ancoradouro, a que Pedro Alvares Cabral chamou Porto
Seguro : a segunda, de menos importância, é obra dum dos
pilotos da armada, redigida provavelmente já depois, e logo a
seguir, do regresso da expedição ao porto de Lisboa; a terceira,
obra dum dos cosmógrafos da armada. A estas juntare~
mos nós e desde já, um documento de ordem cartográfica, o
planisfério de Cantino, cujos dados sôbre a Terra da Vera
Cruz, procedem seguramente de algum dos descobridores.
Na ausência de processos científicos que permitissem de~
terminar com perfeita segurança as coordenadas geográficas
de cada lugar, e mau grado a proba e minuciosa exatidão da
carta de Caminha, o conjunto das referências colhidas naquelas
duas fontes tem dado lugar a dúvidas. Não obstante, uma
outra série de depoimentos, de origem diversa, e que vão desde
a segunda metade do século XVI até a primeira do século
-16-

XVIII, coincide na identificação do primitivo Porto Seguro


com a atual baía Cabrália, nome com o qual Aires do Casal
quis perpetuar aquela. tradição.
Por via de regra, citam~se, como mais notórios, os teste~
munhos de Gandavo, de Gabriel Soares de Sousa e Manoel
Pimentel, o que representaria uma tradição de cerca de dois
séculos, visto que o primeiro escreveu o TRATADO DA TERRA DO
BRASIL, cerca de 1570, e a HISTÓRIA DA PROVÍNCIA DE SANTA
CRUZ, poucos anos volvidos; e o último, ainda em 1762, a
perpetuava sumariamente na sua ARTE DE NAVEGAR.
Esta tradição foi, por muito tempo, unanimemente aceita,
até que Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, depois de a
haver acolhido nas duas primeiras edições da sua "História
Geral do Brasil", apresentava em 1877 ao Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro uma "Nota acerca de como não foi na
Coroa Vermelha, na Enseada de Santa Cruz, que Cabral pri~
meiro desembarcou e em que fez dizer a primeira missa". Nesse
estudo, publicado na REVISTA TRIMENSAL daquele Instituto, no
tomo XL, correspondente àquele ano, procurava o grande
historiador provar que o Porto Seguro de Cabral fora no estuá~
rio do rio Buranhem, à margem do qual hoje assenta a cidade
daquele nome ; que a primeira missa fora dita no recife que
borda aquele rio junto da sua foz ; e a cerimônia do levanta~
mento da Cruz se realizara igualmente em lugar duma das suas
margens, que êle não precisava.
Estudo ligeiro, fruto mal ·sazonado duma primeira impres~
são, não tardou a ser impugnado, com razões duma análise
certeira e duma evidência triunfante, pelo General Henrique de
Beaurepaire Rohan na sua memória: o PRIMITIVO E ATUAL
PoRTO SEGURO, publicada, em 1881, na mesma REVISTA TRI·
MESTRAL DO INSTITUTO, a que se seguiram a conferência sôbre
0 DESCOBRIMENTO DO BRASIL EM 1500, do comendador
Oliveira Catramby, publicada em 1895, na REVISTA DA SociE~
-17-

DADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO e a BAíA CABRÁLIA E


VERA CRUZ, pelo Major Salvador Pires de Carvalho e Aragão,
publicado em 1899, os quais coincidiram em aceitar e provar
a genuidade da tradição transmitida desde Gandavo e através
dos séculos por vários escritores.
A obra do Major Salvador Pires merece uma referência
especial, visto ser o primeiro ensaio de monografia geográfica
da Baía Cabrália e de interpretação dos dados fornecidos pela
carta de Caminha, a essa nova luz. Ainda que contendo dados
preciosos sôbre a topografia local, o estudo de Salvador Pires
é desprovido de crítica histórica e não assenta, segundo cremos,
sôbre uma interpretação correta de certos passos da carta de
Caminha. Coincidindo com Beaurepaire Rohan e Oliveira
Catramby na identificação do Porto Seguro de Cabral com a
atual Baía Cabrália; do banco da Coroa Vermelha, como sendo
aquêle onde se rezou a primeira missa : e das margens do
M utarí, como teatro das variadas cenas de contacto entre QS
aborígenes e os portugueses, e da cerimônia de levantamento
da Cruz por estes últimos, Salvador Pires vai mais longe.
Ele identifica o M utarí com o I tacumirim, nome dado por Ga-
briel Soares a um rio distinto e mais ao sul ; supõe a vila de
Santa Cruz, fundada desde 1530 nas margens do rio João de
Tiba, antigo Sernambitibe : e, finalmente, assinala o lugar onde
ficou chantada a Cruz, "que será do rio obra de dous tiros
de besta", numa pequena elevação de 11 metros acima do
nivel do mar, situada a uns 500 da costa e a uns 50 do rio, no
ponto onde êste deixa correr paralelamente ao mar, a~cêrca
de um quilômetro da sua foz .
Estas três conclusões constituem outros tantos êrros, que
se explicam uns pelos outros. Identificando o Mutarí com o
Itacumirim, Salvador Pires não podia localizar a "Povoação
de Santa Cruz a Velha", desconhecendo assim as raizes pr~
fundas da tradição que situava o primitivo Porto Seguro na
700.600 F. 2
-18-

Baía Cabrália. Por sua vez, ignorando a localização de Santa


Cruz a Velha, enganava~se sobre a da Cruz, com as armas reais,
erguida no dia 1 de maio de 1500. As tentativas de localização,
ligeiramente ensaiadas, u,ma por Beaurepaire Rohan, no estudo
citado, a outra, por Zeferino Candido, no seu livro "Brasil"
não foram muito mais felizes, a nosso parecer.
_ A parte estes êrros ou insuficiências, os estudos, a que
vimos de referir~nos, deixaram inteiramente elucidado o pr~
blema da identificação do Porto Seguro de Cabral. Não
obstante, a "História da Colonização do Brasil" reeditava, em
1922, pela pena prestigiosa de Malheiro Dias, todos os êrros
de Salvador Pires, acrescidos duma. versão, nem sempre feliz.
da carta de Caminha, para linguagem atual, mau grado a com...
petência magistral da sua autora, a eminente romanista Caro~
lina Micaelis de Vasconcelos.
Como consequência, levantáram~se, há alguns anos, novas
dúvidas.
Há, pois, interêsse em rever o problema para demonstrar
à saciedade a identificação entre o primitivo Porto Seguro e a
Baía Cabrália e tentar estabelecer em novas bases a do lugar
onde se ergueu a Cruz e celebrou a cerimônia da posse oficial
da terra. Essa revisão nos levará a apurar outros fatos dos
primórdios da história brasileira, que não se nos afiguram des~
providos de importância .
O PRIMITIVO PORTO SEGURO NOS ROTEIROS
E CARTAS ANTIGAS

Iremos, pois, passar em revista os depoimentos mais anti~


gos até hoje conhecidos, começando pelos de Pero Magalhães
Gandavo e Gabriel Soares de Sousa, comentando~os e comple~
tando~os, tanto quanto possível, com documentos até hoje ina-
proveitados ou totalmente inéditos.
De Magalhães Gandavo não se tem citado até hoje mais
que a segunda das suas obras. Citaremos igualmente a pri~
meira, como termo de comparação indispensável.
A obra de Gandavo, como a de Gabriel Soares e a de
Manoel Pimentel, filia~se num fundo comum de conhecimentos
geográficos, que vinha, desde os primeiros descobrimentos,
sucessivamente transmitido e enriquecido de cartógrafo a car~
tógrafo e de roteirista a roteirista. Não devemos esquecer que
a colonização portuguesa do Brasil, durante o século XVI e
parte do seguinte, foi quase exclusivamente de litoral e dum
imenso litoral. Daí o carater roteirista da literatura portuguesa
sôbre o Brasil durante êste tempo, que na cartografia se reflete
na existência exclusiva de cartas náuticas ou litorâneas. Assim é
que a mais completa de todas as obras E;Scritas sobre o Brasil, du~
rante o século XVI, o TRATADO DESCRITIVO DO BRASIL ( 1587),
de Gabriel Soares, começa por um Roteiro Geral de toda a
costa do Brasil, rico de informações de carater exclusivamente
náutico e hidrográfico, que representam uma soma de expe~
riências e tradições acumuladas e perpetuadas durante cêrca
-20-

dum século. Basta ler essa parte do TRATADO de Gabriel Soares


para se concluir que êle utilizou - o que logo iremos ver -
um ou provavelmente vários roteiros anteriores, obra paciente
de muitos pilotos quinhentistas. Ainda que menos claramente,
os dois livrinhos de Magalhães Gandavo, assim como as lnfor~
mações de Anchieta e até de Cardim, beberam muitos dos seus
dados geográficos nos roteiros da época. A comparação entre
essas obras estabelece a sua filiação por ordem cronológica e
até, em certos casos, permite emendar umas pelas outras.
Este carater roteirista, mais ou menos encoberto por infor~
mações de vária espécie, é, aliás, comum a um grande número
de obras semelhantes ,tais como o "Esmeraldo de situ orbis",
de Duarte Pacheco, para a África ocidental, o "Livro de Duarte
Barbosa", para todas as costas, quer africanas, quer asiáticas,
banhadas pelo índico, ou o "Livro de João da Costa", que reune
numa só obra o assunto das duas anteriores.
A constatação dêstes fatos levou~nos a dirigir as nossas
investigações para um campo até hoje mal explorado, o dos
roteiros e das cartas náuticas, o que nos permite, segundo cre~
mos, esclarecer o problema com novas luzes.
Comecemos, pois, pelos testemunhos escritos, e, entre estes,
pelo de Gandavo. Não sem advertir que Pedro Calmon supõe
que o primeiro historiador do Brasil nunca veio aquí e haveria
redigido as suas obras sobre informações alheias. Pode supor~
se à primeira vista que esta circunstância lhe tira, a ser verda~
deira, toda a autoridade. Mas, conforme Pedro Calmon averi~
guou, Gandavo era escriba da Torre do Tombo, onde copiava
livros e documentos. Aqi.tí, sendo possível que esteja o segredo
da elaboração da obra, reside por certo uma razão de autori~
da de ( p. Calmon, HISTÓRIA DO BRASIL, t. 1. o, 1940, pág. 210) .
0

Cerca de 1570, escrevia êle no TRATADO DA TERRA DO


BRASIL: "A Capitania de Porto Seguro está trinta legoas dos
-21-

Ilheos em dezaseis graos e meio. He do Duque d'Aveiro, na


qual tem posto Capitão de sua mão. Tem tres povoações, a
principal he Porto Seguro, que está junto do porto onde os
navios entrão. Outra está dahi uma legoa que se chama Santo
Amaro ; o.utra Santa Cruz, que está dahi quatro legoas pera o
Norte,, (edição do Anuário do Brasil, 1924, pág. 34).
Anos volvidos, nunca depois de 1574, o que se estabelece
pelas licenças do Santo Ofício, escrevia Gandavo na HISTÓRIA
DA PROVÍNCIA DE SANTA CRUZ: "A quinta Capitania, a que
chamam Porto Seguro, conquistou Pero do Campo Tourinho.
Tem duas povoações que estam distantes das dos Ilheos trinta
legoas, em altura de dezaseis graos e meio : entre as quaes se
mete hum rio que faz hum arrecife na boca como enseada, onde
os navios entram. A principal povoaçam está situada em dois
lugares, convem a saber parte della em hum tezo soberbo que
fica sobre o rolo do mar da banda do Norte, e parte em huma
varze.a que fica pegada ao rio. A outra povoaçam a que cha~
mam Santo Amaro está huma légoa deste rio para o Sul.
Duas legoas deste mesmo arrecife, pera o Norte está outro
que he o porto, onde entrou a frota quando esta Província se
descobria. E porque entam lhe foi posto este nome de Porto
Seguro, como atras deixo declarado, ficou dahi a Capitania
com o mesmo nome: e por isso se diz Porto Seguro, ( CoLLEÇÃO
DE OPUSCULOS REIMPRESSOS RELATIVOS À HISTÓRIA DAS NA~
VEGAÇÕEs, VIAGENS E CoNQUISTAs Dos PoRTUGUEZEs PELA
AcADEMIA REAL DAS SciÊNCIAS, tomo I, n. III, Lisboa, 1858,
pág. 12).
Observemos desde já o carater roteirista destas notícias.
Elas começam, quer uma, quer outra, pelas conhecidas fórmu~
las dos roteiros portugueses de Quinhentos: as terras assina~
lam~se ao longo da costa ,diferenciadas antes de mais nada,
pela distância em léguas e graus, umas em relação às outras.
-22-

Destes informes podemos concluir que o escriba do Ar~


quivo Nacional :

1. 0 , identificava a povoação de Porto Seguro do seu


tempo com a atual ;
2. 0
, que situava duas léguas ao norte do recife da barra
do rio Buranhem, um outro recife, com um porto inte~
rio r, onde entrou a frota de Cabral e ao qual êste
navegante designou de Porto Seguro;
3. que quatro léguas ao norte da povoação de Porto
0
,

Seguro havia então uma outra, chamada Santa Cruz ;


4. finalmente, o primeiro cronista do Brasil explicava
0
,

a designação da capitania e, por consequência, da


atual cidade de Porto Seguro, por extensão do pri~
meiro nome dado por Cabral e pelo prestígio histórico
do seu descobrimento.

Medindo sôbre a carta das Baías de Porto Seguro e Ca~


brália, levantadas pela Marinha Brasileira em 1940 (à qual
daquí por diante nos reportaremos, sempre que não façamos
menção especial) a distância em linha reta que medeia entre o
extremo norte do recife do rio Buranhem e a extremidade me~
ridional da Baía Cabrália, verificamos que ela orça por duas
léguas das antigas, bem medidas;

5. por consequência, Gandavo identificava o primitivo


0
,

Porto Seguro de Cabral com a atual Baía Cabrália.

Poucos anos depois de Magalhães Gandavo, e cêrca de


1578, uma relação anônima dos jesuitas, recentemente pu-
blicada pelo Padre Serafim Leite, dava informes muito mais
precisos sobre aquela Capitania. Dela se depreende que entre
-23-

a época em que Magalhães Gandavo escrevia o TRATADO e


aquele último ano, povoações e engenhos de açúcar iam em
decrescimento, por efeito das progressivas assolações dos
aimorés.
Ainda que sem referência direta ao problema. que nos
ocupa, a informação líga~se estreitamente com as notícias de
Gandavo e as imediatamente posteriores de Gabriel Soares
de Sousa.
"Na vila de Porto Seguro, para o Norte meia légua,
escrevia o jesuita anônimo, está outro engenho, a que chamam
Itaicimirim. Este já não faz açuquere, por estar já todo des~
baratado.
Desta vila para o norte, três léguas está a povoação de
CerenambitiP.e. Tem 28 visinhos; terá 150 escravos. Por
outro nome se chama povoação Santa Cruz, porque assim se
chamava o outro Jogar, onde ela já esteve, que era o engenho
da Riaga, que depois foi do Duque de Aveiro. Este engenho
queimaram tambem os Tapuias, segundo alguns dizem. Nunca
mais o Duque o consertou. E assim ficou tudo desbaratado.
E' este rio de Cerenambitipe mui fermoso e grande ... " (Citado
por padre Serafim Leite, HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS
NO BRASIL, tomo I, 1938, págs. 210~211 e nota 1 sobre a data
respectiva) .

Daquí se conclue que


1. a vila de Santa Cruz era à margem do rio Cerenam~
0
,

bitipe, atual João de Tiba ;


2. 0
, que estivera noutro lugar, em volta do engenho
da Riaga;
3. 0
, que êste passou dum antigo proprietário para a
posse do Duque de Aveiro ;
-24-

0
4. ,que o engenho foi desbaratado e, segundo diziam,
queimado pelos aimorés.

Que o saibamos é esta a mais antiga referência a uma


mudança da povoação de Santa Cruz dum assento primitivo
para aquêle onde hoje se encontra. Onde seria, pois, a primitiva
povoação de Santa Cruz e desde quando dataria a sua
fundação?
Não vá supor~se que estas perguntas são ociosas. Ao
contrário, na resposta que podermos dar~lhe, está em grande
parte a solução do problema que nos propomos resolver. Mas
continuemos a analisar os depoimentos até hoje conhecidos.
A informação anônima de que acabamos de servir~nos
não faz menção do ancoradouro de Cabral. A omissão não
significa ignorância. Provavelmente o jesuíta redator omitiu
a referência, por demasiadamente sabida. Outros, coligindo
informações gerais, destinadas a leitores europeus, não olvi~
dariam o fato relevante e devidamente localizado.
Na sua Informação do Brasil e de suas capitanias, escrita
em 1584, o Padre Anchieta começa :
"Os primeiros Portugueses que vieram ao Brasil foram
Pedro Alvares Cabral com alguma gente em uma nau, que ia
para a lndia Oriental no ano de 1500 e aportou a Porto Se~
guro, ao qual pôs este nome porque achou o Porto, que se
diz Santa Cruz, muito seguro e bom para as naus". (Joseph
de Anchieta - 1554 - 1594 - CARTAS, INFORMAÇÕES, etc.,
edição da Academia Brasileira, pág. 301 ) . Quasi pela mesma
época, em fins de 1583, Fernão Cardim . .que nesse mesmo ano
chegara do reino, e visitava as capitanias da Província, em
companhia do Padre Cristovão de Gouveia. recolhia a mesma
tradição, na iUa passagem pela vila Santa Cruz "que foi o
primeiro porto que tomou Pedr' Alvares Cabral no ano de mil
e quinhentos, indo para a lndia; e, por ser bom o porto, lhe
-25-

chamou Porto Seguro" (TRATADOS DA TERRA E GENTE DO


BRASIL, Rio de Janeiro, 1925, pág. 298).
Mas é evidente que- se refere a toda a baía e não ao
porto do Rio João de Tiba, pois, referindo~se a seguir ao
porto do rio Buranhem, tão parecido com aquêle, acrescenta:
"A barra é perigosa, toda cheia de arredfes ... " .
Da informação de Cardim, testemunha visual, um fato
sobressae : a vila de Santa Cruz era, em 1583, "algum tanto
mais abastada qug Porto Seguro," a qual igualava em popula~
ção, circunstância assinalada tambem em 1585 noutra das Infor~
mações do Padre Anchieta (obra cit., pág. 417 ~418) .
Por esta razão a baía e o porto de Santa Cruz voltariam a
ser tão visitados pelos navios, como o de Porto Seguro, e seria
natural que roteiros e cartas se ocupassem mais detidamente
daquêle acidente geográfico e aí recolhessem, da boca dos
moradores da antiga povoação de Santa Cruz, a tradição da
ancoragem de Cabral, ainda ligada às suas fontes vivas.
A notícia de Anchieta, como a de Cardim, limitam... se a
transmitir uma tradição, por forma muito geral e sem preo~
cupações de exação geográfica ou náutica, alheias ao obje~
tivo essencial do seu trabalho. Devemos, pois, voltar a nossa
atenção de preferência para os roteiros e as cartas, ou melhor
os atlas hidrográficos do Brasil .
É, como vimos, na segunda metade do século XVI que a
vila de Santa Cruz começa .a ganhar importância. Felizmente
possuímos dessa época um excelente roteiro abrangendo toda
a costa do Brasil, desde o Amazonas ao Prata, escrito por Ga~
briel Soares de Sousa. Primeiro no gênero, dentre os roteiros
de toda a costa, acha~se incluido, como já dissemos, no TRATADO
DESCRITIVO DO BRASIL, a que se acrescentou nas edições recen~
tes "em 1587'', mas que deve ter sido coligido e composto até
-26-

o mês de agôsto de 1584, em que o seu autor partiu da Baía


para Portugal, ainda que depois ligeiramente retocado.
'
Desta vez trata~se duma vasta obra de informação geo-
' gráfica e náutica, etnográfica e econômica, política e histórica~
Ao contrário do que teem feito os historiadores, que buscaram
resolver êste problema e se contentaram de citar um ou outro
escasso trecho do TRATADO DESCRITIVO de Gabriel Soares, nós
cremos indispensável transcrever aqu,í toda a sua descrição da
baía Cabrália e da parte da baía de Porto Seguro até a povoa~
ção dêste nome.
Será a única forma de estabelecer completa relação entre
os roteiros e os mapas contemporâneos e tirar as respectivas
conclusões. Ouçamos o que diz o autor :
-
"CAPíTULO XXXIV

EM QUE SE DECLARA A COSTA DO RIO GRANDE ATÉ O DE


SANTA CRUZ

Do Rio Grande ao seu, braço são duas léguas, pelo qual


braço entram caravelões, que por ele vão entrar no mesmo
Rio Grande, meia légua da barra para cima. Do Braço do Rio
.Grande ao rio Boiquisape são tres léguas, e do Boiquisape à
ponta dos baixos de Santo Antônio são quatro léguas, e da
ponta de Santo Antonio ao seu rio é meia légua: do rio de
Santo Antônio ao de Sernambitibe são duas léguas; e deste
rio de Santo Antônio e da sua ponta até o rio Sernambitibe
estão uns baixos com canal entre eles e a costa, por onde entram.
barcos pequenos pela ponta de Santo Antônio; e mais ao mar
ficam uns arrecifes do mesmo tamanho com canal entre uns e
outros. E defronte do rio de Santo Antônio tem estes arrefices
do mar um boqueirão, por onde pode entrar uma náo e ir ancorar
pelo canal. que se faz entre um arrecife e o outro, onde estará se..
-27-

guro; no mesmo arrecife do mar está outro boqueirão, por onde


podem entrar caravelões da costa defronte do rio de Sernam~
bitibe, pelo qual se pode ir buscar o porto .
Do rio de Semambitibe ao de Santa Cruz são duas léguas,
onde esteve um engenho de assucar. Neste porto de Santa
Cruz entram náos da lndia de todo o porte, as quaes entram
com a proa a [oeste e surgem em uma enseada como concha,
onde estão muito seguras de todo o tempo. Este rio de Santa
Cruz está em dezesseis graos e meio, e corre~se a costa do Rio
Grande até esta de Santa Cruz nordeste sudoeste, o que se há
de fazer afast~do da terra duas léguas por amor dos baixos.
Neste porto de Santa Cr.u z esteve Pedro Alvares Cabral, quan~
do ia para a lndia, e descobriu esta terra, e aqui tomou posse
dela, onde esteve a vila de Santa Cruz, a qual terra estava
povoada então de Tupiniquins , que senhoreavam esta costa do
rio Camamú até o de Cricaré, de cuja vida e feitos diremos ao
diante. Esta vila de Santa Cruz se despovoou donde esteve, e
a passaram para junto do rio de Sernambitibe, pela terra ser
mais sadia e acomodada par os moradores viverem" .
Assim encerra G. Soares o capítulo XXXIV do seu livro,
mas acrescentemos que já antes no capítulo I dissera que Pedro
Alvares Cabral tomara "posse desta província (do Brasil)
onde agora é a capitania de Porto Seguro, no logar onde já
esteve a vila de Santa Cruz, que assim se chamou por se aqui
arvorar uma muito grande, por mandado de Pedro Alvares
Cabral, ao pé da qual mandou dizer, em seu dia, a 3 de maio,
uma solene missa cdm muita festa, pelo qual respeito se chama
a vila do mesmo nome". ( T RATADO DESCRITIVO DO BRASIL EM
158 7, edição da Brasiliana, pág . 4) .
Como se vê, estes dois trechos completam~se sob o ponto
de vista histórico, identificando o primitivo lugar da vila de
Santa Cruz com aquêle onde Pedro Alvares Cabral mandou
plantar a grande cruz e foi celebrada a segunda missa. Mas.
-· 28-

completemos a descrição da costa até Porto Seguro, conforme


se lê no TRATADO DESCRITIVO:

"CAP~TULO XXXV
EM QUE SE DECLARA A COSTA DO RIO DE SANTA CRUZ
ATÉ O PORTO SEGURO

Do rio de Santa Cruz ao de Itacumirim é meia légua:


onde esteve o engenho de João da Rocha. Do rio de ltacu~
mirim ao de Porto Seguro é meia légua: e entre um e outro
está um riacho, que se diz de S. Francisco junto das barreiras
vermelhas. Defronte do rio de ltacumirim até o de Santa Cruz
vai uma ordem de arrecifes, que teem quatro boq.ueirões, por
onde entram barcos pequenos; e faz outra ordem de arrecifes
baixos mais ao mar, que se começam defronte do engenho de
João da Rocha, e por entre uns arrecifes e os outros é a barra
de Porto Seguro ,por onde entram navios de sessenta tonéis; e,
se é navio grande, toma meia carga em Porto Seguro e vai
acabar de carregar em Santa Cruz. Porto Seguro está em
dezasseis graos e dois terços ... " (lbidem, págs. 63 e 64).
Destes dois longos trechos é possível extrair um certo
número de conclusões, algumas das quais confirmam as ante--
riores, e outras, como adiante veremos, são ratificadas por
novos documentos contemporâneos ou posteriores :

1.\ começaremos por chamar a atenção para a última


informação de Gabriel Soares: os navios grandes
metiam meia carga em Porto Seguro e a metade res~
tante em Santa Cruz, o que está de acôrdo com as
afirmações de Cardim e de Anchieta, e legitima a
nossa conclusão de que os dois portos tinham um
movimento marítimo~comercial semelhante .- fato
que devia refletir--se nos roteiros e cartas do Brasil.
-29-

A minuciosa descrição de Gabriel Soares é o resul~


tado dêsse aumento de tráfico na segunda daquelas
vilas.
2."', entre Porto Seguro ( atual) e o rio de Santo Antô~
nio havia duas massas de recifes, dispostos em linhas
mais ou menos paralelas à costa. Entre esses dois
grupos de recifes ficava situado o porto de Santa
Cruz, no qual entravam "naos da Índia de todo o
porte, as quais entram com a proa a loeste". Esta
descrição nas suas linhas gerais coincide com a rea~
lidade geográfica, pois a entrada da baía Cabrália
está situada entre duas massas de recifes, que se
abrem amplamente para oferecer uma larga pas~
sagem.
3."', da mesma sorte a distinção entre as três "barras",
conforme a designação da cartografia coeva, do rio
de Santo Antonio, do rio de Sernambitibe e do porto
de Santa Cruz está de acôrdo com a realidade geo..
gráfica e até com a cartografia antiga, como adiante
veremos.
4 ... , do texto parece concluir~se igualmente que o rio de
Santa Cruz de Gabriel Soares é o atual Mutarí. Não
há nenhum outro rio dentro da baía Cabrália e duas
léf(uas ao sul do rio de João de Tiba, a não ser o
M utarí. O rio laia, ainda que ao sul do de João de
Tiba, deságua no mesmo estuário dêste. Pode, ao
primeiro relance, parecer excessiva a distância de
duas léguas entre os dois rios, indicada por Gabriel
Soares, mas de fato o recife que acompanha na dire~
ção do norte o estuário do rio João de Tiba remonta
a sua foz a quatro quilômetros acima do ponto onde
o rio se encontra com a linha da costa. Medindo,
pois, desde o desaguadouro terminal do rio de João
-30-

de Tiba até a foz do Mutarí, cujo curso final se


prolonga igualmente ao longo da costa, mas na dire~
ção do sul, a linha dêsse arco da baía orça muito
aproximadamente por duas léguas das antigas.-
0 único obstáculo que se opõe a esta identificação
provem da distância a que o nosso autor coloca o
rio Santa Cruz do Itacumirim e êst~. por sua vez,
de Porto Seguro, ou seja, de meia légua nos dois
casos.
Se o Itacumirim distava meia légua de Porto Seguro
e ficava a meio caminho entre esta :vila e o rio de
Santa Cruz, êste último não poderia ser o Mutarí, a
duas léguas daquela povoação, mas qualquer dos
pequenos rios, que deságuam na atual Baía de Porto
Seguro.
5.a, ora que o Itacu,mirim ficasse a meia légua da vila de
Porto Seguro igualmente o diz, como vimos, o jesuíta
anôrÚmo, que, cerca de 1578, informava sôbre o esta~
do da capitania. Além disso, em todos os atlas de
João Teixeira, . da primeira metade do século XVII,
figura o rio Taçimirí, Tacimirí ou Tacumirim, situado
entre a vila de Porto Seguro e a Ponta Grande, em
cujo espaço deságuam ainda mais dois rios, ao norte
dêste e mais um ao suL Este último tem nessas cartas,
assim como no Roteiro de Gabriel Soares, o nome
de rio ou riacho de S. Francisco, que ainda hoje
conserva. As cartas de João Teixeira ou de João
Teixeira Albernaz, consultadas para o efeito, são,
em primeiro lugar, a do LIVRO QUE DÁ RAZÃO DO
ESTADO DO BRASIL, de c. 1626, guardado no Instituto
Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro e os atlas
de 1631, 1640, · 1642, c. 1650, 1653 e 1666, cujos
originais ou cópias se guardam na Mapoteca do
-31-

Ministério das Relações Exteriores ou na Biblio~


teca Nacional, e que inscrevem entre o rio Taçimirí
e a Ponta Gorda os rios Humuna e dos Mangues.
Este último ainda figura nas cartas contemporâneas
com o mesmo nome. Restam~nos, pois, para identi~
ficarmos com o Itacumirim de Gabriel Soares ou o
rio Mundaí ou o Guarape, situados os dois entre o de
S. Francisco e o dos Mangues. A nosso ver, o Itacumi~
rim é o atual Guarape, situado, com efeito, a três qui~
lômetros, meia légua das antigas, de Porto Seguro.
Acrescente~se que o recife colocado em frente dêste
rio tem na Carta da Marinha Brasileira o nome de
I tassemirim .
6.\ ora do Guarape ao Mundaí, único dos rios, que por
hipótese poderíamos identificar com o de Santa Cruz,
vai apenas um quilômetro. Por consequência, ou
Gabriel Soares copiou mal dum roteiro primitivo ou
há erro de cópia no manuscrito do TRATADO DESCRI~
TIVO, utilizado para a impre.n sa. Provavelmente, no
texto protótipo calcuJava~se em uma e meia légua a
distância entre o rio de Santa Cruz e Ó Itacumirim
ou ltacemirim - cálculo êste que corresponde apro~
ximadamente à realidade. Tudo, pois, leva a crer
que o rio de Santa Cruz seja o atual Mutarí, sendo
inteiramente certo que êste nada tem com o antigo
Itacumirim. Damos assim um passo para a identifi~
cação do rio de Santa Cruz e do lugar onde assentou
a antiga povoação do mesmo nome.
7.a, limitamo~nos a dizer damos um passo, porque o
texto de Gabriel Soares não é suficientemente explí~
cito. Lida com atenção a parte que se refere ao Porto
de Santa Cruz, "enseada como concha", onde vai
desaguar o rio de Santa Cruz, dir~se~á que êle esta~
-32-

belece distinção entre um engenho de açúcar, que


esteve junto daquele rio, e a povoação de Santa Cruz.
que correspondia ao lugar onde Pedro Alvares Ca-
bral tomou posse da terra. Nada no texto nos auto...
. riza a concluir que engenho e povoação fossem O·
mesmo neste caso, embora não ignoremos que as pri-
mitivas povoações foram modestíssimos aglomerados
de casais e que o complexo das labutas do engenho
exigia o número de obreiros e atividades dum dêsses
povoados. Do texto de Gabriel Soares unicamente
podemos concluir que a povoação de Santa Cruz era
no porto do mesmo nome, mas não existe a menor
identificação entre ela e a do engenho. Com efeito,
êle escreve: "Do rio de Sernambitibe ao de Santa
Cruz são duas léguas, onde esteve um engenho de
assucar". E não, onde esteve a povoação de Santa
Cruz. Desta diz: "Neste porto de Santa Cruz esteve:
Pedro Alvares Cabral, quando ia para a índia, e
descobriu esta terra, e aquí tomou posse d' ella, onde
esteve a vila de Santa Cruz ... " . A seguir acres.-
centa: "Esta vila de Santa Cruz se despovoou donde
esteve e a passaram para junto do rio de Sernambi. .
tibe ... " Teriamos assim, segundo Gabriel Soares.
uma povoação de engenho, junto do rio de Santa
Cruz, desaparecida à data em que escrevia; a antiga
povoação de Santa Cruz, no porto do mesmo nome
e, por consequência, próximo do mesmo rio, pois um
e outro aparecem estreitamente fundidos no texto.
ela tambem despovoada ; finalmente, a Santa Cruz
do seu tempo, à margem do Sernambitibe, atual João
de Tiba. Pelo contrário, o jesuita, que, cêrca de
1578, escrevia a informação anônima, identifica a
povoação de Santa Cruz com um engenho a que dá
-33-

o nome da Riaga: "Por outro nome se chama Santa


Cruz (a povoação de Cerenambitipe) • porque assim
se chamava o outro logar, onde ela já esteve, que era
o engenho da Riaga, que depois foi do Duque de
Aveiro".
A tomarmos à letra os dois textos, deveríamos con..
cluir que teria existido uma primitiva povoação de
Santa Cruz, no porto do mesmo nome e nunca longe
do respectivo rio, correspondente ao lugar onde ca..
bral ergueu a Cruz ; uma povoação de engenho, sôbre
o mesmo rio e a que igualmente se chamou Santa
Cruz; e, finalmente, aquela que se continuou até hoje
na margem do João de Tiba, herdeira da povoação
Velha.
8.\ esta árida exegese e confronto dos textos não se
faz por alarde escolástico. Em verdade. não só os
historiadores descuidaram esta circunstância de ter
havido, na primeira metade do século XVI e em parte
do seguinte, uma ou duas povoações junto da foz do
Mutarí, identificada uma delas com o lugar onde
Cabral mandou chantar a Cruz, "com as armas e a
divisa de V. Alteza" no dizer de Caminha, e rezar à
segunda missa, mas um dos últimos, que versaram êste
assunto ·com mais brilho, agravou no seu estu.do um
elemento anterior de grave confusão.
No seu capítulo A SEMANA DE VERA CRUZ, do tomo
II da HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO
BRASIL, Carlos Malheiro Dias aceita, como já dis..
semos, a identificação do Mutarí com o ltacumirim
da descrição de Gabriel Soares, êrro êste que fez
acrescentar aos três mapas das Singraduras, da arma..
da de Cabral, da baía Cabrália e do Mutarí, que
acompanham o seu estudo, os últimos dos quais foram
7G0 . 600 F. 3
'- 34-

copiados da obra de Salvador Pires, a que já nos


referimos, mas onde aquela identificação figura
apenas no texto. Desta sorte ficava sem localização
possível o primitivo rio e primitiva povoação de· Santa
Cruz, descritos por Gabriel Soares - único dos escri~
tores quinhentistas conhecidos, que liga expressa~
mente o povoado ao \ lugar onde Cabral plantou a
.•
Cruz. E, como era lógico, Malheiro Dias supõe que
"em memória da ( Cruz) que levantaram os descobri~
dores veio a tomar o nome de Santa Cruz a povoação
edificada em 1536, à margem do rio João de Tiba,
na baía em que fundeara de 24 para 25 a armada de
Cabral" '(HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO
·BRASIL, tomo II, pág. 123). Já veremos que esta
suposição não tem o menor fundamento .

E' costume, dissemos nós, em apoio da identificação do


Porto Seguro de Cabral com a atual baía Cabrália, citar Ma~
galhães Gandavo, Gabriel Soares de Sousa e Manuel Pimentel.
êste último na sua ARTE DE NAVEGAR (edição de 1762, página
302 );. Aí, e na parte que se refere ao roteiro da ·c osta do
Brasilr dizia o cosmógrafo~mor do reino, ensinando a Derrota
para Porto Seguro, vindo do Norte, ao longo da costa dos
Ilhéus: "Ireis correndo estes baixos (de Santo Antônio) pela
banda do Mar ao sul ; e, como fordes no cabo dos recifes, que
são sete, e se podem éontar, se faz ullla aberta, por ond~ se
entra para o porto de Santa Cruz, onde ancorarão as primeiras
naos, que descobriram o Brasil.
Entra~se a oeste com a sonda na mão por dez braças ; e
indo tanto avante, que vos fiquem os recifes ao mar, ficareis
em rio morto em um recôncavo grande, que tem pela banda do

'
--35-

sul uma ponta de areia, fazendo um formoso porto, com 9 e 10


braças de fundo".
E' inegável mais uma vez que o porto ·d e Santa Cruz.
"onde ancorarão as primeiras naos, que descobriram o Brasil'',
coincide pela posição e caracteres descritos com a atual baía
Cabrália.
Mas todos estes roteiros se filiavam uns nps outr:os e a:;
suas alterações correspondiam por forma geral às variações
demográficas na costa .....- aparecimento de novas povoações,
desaparecimento de outras, com acrescentamento de novos ~11.:'
sinamentos náuticos tornados necessários, e eliminação dos ·
que resultavam inuteis. É, pois, de admirar . que ni~guem
buscasse nos roteiros anteriores alguma referênda·s.imilar, tanto
mais quanto a antiguidade do depoimento reforçaria a sua ãuto~
ridade. Ora, segundo tivemos ocasião de verificar, desde .·o
começo do século XVII que a parte da derrota para Porto
Seguro, que transcrevemos de Manuel Pimentel. aparecia em
todos os roteiros do Brasil, mais ou menos desenvolvida. Hã,
pois, que remontar, tanto quanto possível, ao roteiro protótipo,
o que vale dizer aproximarmo~nos das fontes de tradição.
O roteiro impresso mais antigo, em que podemos filiar o
de Manuel Pimentel, é o de Manuel de Figueiredo, na sua
HIDROGRAFIA E EXAME DE PILOTOS, edição de Lisboa de 160S·,
sendo, tambem, aquêle que, por 'ordem cronológica, se segue
ao de Gabriel Soares. Aí poderemos ler na Derrota para Porto
Seguro, na monção de setembro até março, e vindo igualmente
do Norte, o seguinte : "Advertindo que trez léguas antes que
chegueis à Barra de Porto Seguro, surgindo defronte dond~
vedes arrebentar os Baixos em catorze braças, ou em treze,
ireis a Oeste com a sonda na mão; por entre os arrecifes ireis
chegado às dez braças; e a terra alta diante cortadà a piqu~.
entre vermelha e parda com algum mato verde, e na praià
areia branca e em cima arvoredo não muito alto; e indo pelas
~36-

ditas dez braças, tanto avante que vos fiquem os arrecifes ao l


mar, ficareis em Rio Morto, em um recôncavo grande, que tem
pela banda do sul uma ponta de areia e mato verde, a que cha~
mam a Ponta Gorda; ela vos fecha em arrecife, fazendo um for~
moso porto com nove e dez braças de fundo. Aquí é a Povoação
velha, donde ancorarão as primeiras naos, que descobrirão o
Brasil e deram a esta capitania o nome de Santa Cruz: e, trez .
légu,as deste arrecife ao sul, está a Barra de Porto Seguro, onde
hoje está a povoação" (foi. 15 r. da edição1 de 1625, única que
existe na 1Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro) .
Sublinhamos no texto as frases que, transmitidas de roteiro
em roteiro e geração em geração, chegaram até Manuel Pimen~
tel e à sua "Arte de Navegar" de 1762, isto é, impressa mais
de um século e meio depois 4a "Hidrografia" de Figueiredo.
Comparando os dois textos se verá que Manuel Pimentel
aproveitou do primitivo roteiro apenas o esqu,ema da derrota e,
dos informes de ,c arater histórico, unicamente o que identifica
o Porto de Santa Cruz (designação que não aparece em -Figuei~
redo) com a baía do descobrimento cabralino. Mas a descrição
da costa da baía, a designação geográfica de Ponta Gorda,
aplicada à Ponta da Coroa Vermelha, a menção do recife que
fecha a baía pelo sul, e a referência à Povoação Velha - tudo
foi eliminado. A tradição havia perdido em vitalidade e locali~
zação, pois a própria descrição da baía Cabrália é extrema..
mente sumária ..
No entanto o roteiro de Manuel Figueiredo foi sucessiva~
mente copiado por Antonio de Mariz Carneiro, em 1642 (vide
Fontoura da Costa, A MARINHARIA DOS DESCOBRIMENTOS, edi~
\ ção da Agência Geral das Colônias- Lisboa 1939, pág. 339)
e por Luiz Serrão Pimentel na PRÁTICA DA ARTE DE NAVEGAR.
1673 (vide igualmente edição da Ag. G. das Colônias, pá-
gina 153).
-37-<

Advirta~se que o REGIMENTO DE PILOTOS de Mariz Car~


neiro, com o Roteiro do Brasil, reproduzido da obra de Manuel
de Figueiredo, teve segunda edição em 1655; e que a ARTE
PRÁTICA DE NAVEGAR de Luiz Serrão Pimentel com os respecti-
vos roteiros foi reeditada, em 1699, com ligeiríssÚnas modifi~
cações, por seu filho e sucessor no cargo de Cosmógraf~mor,
Manuel Pimentel (vide Fontoura da Costa, ibidem, páginas
339 e 343).
Mas, se a tradição, ao alcançar a segunda metade do
século XVIII, estava reduzida ao mínimo na ARTE DE NAVEGAR
de Manuel Pimentel, convem observar que no texto de Manuel
de Figueiredo, transmitido durante todo o século XVII, já
a primitiva lição de Gabriel Soares, parcialmente acorde com
a informação do jesuíta anônimo, sofrera duas adulterações.
Fala~se da "Povoação velha" inominadamente, mas depreende~
se do texto que o autor a supunha chamada de Porto Seguro,
ao passo que atribuía à capitania o nome de Santa Cruz. "Aquí,
diz êle, é a povoação velha, onde ancoraram as primeiras naus
que descobriram o Brasil e deram a esta capitania o nome de
Santa Cruz. E três léguas deste recife, ao sul, está a barra de
Porto Seguro, onde hoje está a povoação".
O roteiro de Manuel de Figueiredo e os seguintes, que o
transcrevem, correspondem à fase da decadência definitiva da
Vila de Santa Cruz, durante a qual não só o porto seria rara~
mente visitado, mas a Enseada da Coroa Vermelha, parte da
baía, que confina com o Mutarí, deixou totalmente de ser fre-
quentada. A tradição, sucessivamente recolhida de testemu~
nhos da segunda e terceira mão, extintas por êste tempo as
fontes vivas, degráda~se e reduz~se ao mínimo.
Podemos, aliás, seguir o processo desta ·d egradação, com-
parando o roteiro de Manuel de Figueiredo com os vários Atlas
de João Teixeira, que o explicam e continuam. Esta análise
-38-

·'servirá também de exemplo de confronto e ponto de partida


'para outras averiguações mais fecundas em resultados.
Existem no Rio d~ Janeiro um atlas do Brasil de João
Teixeira, de c. 1626, cópia de outro, de 1612, o LIVRO QUE DÁ
RAZÃO DO ESTADO DO BRASIL, no Instituto Histórico e Geográ~
fico; um Atlas, ·de 1631, de João Teixeira Albernaz; uma
DESCRIÇÃO DE TODO O MARÍTIMO DA TERRA DE STA. CRUZ CHA~
'MADO VULGARMENTE O BRASIL, atlas original, mas quasi intei~
ramente semelhante a outro que existe com aquêle título e a
·data de 1640 na Biblioteca Nacional de Paris (do qual a mesma
Mapoteca ·possue cópia), ambos de João Teixeira; outro seme~
'lhante na Biblioteca da Marinha, ( n. 1397 dQ Catálogo da
Exposição de História do Brasil) , qve me foi gentilmente
·assinalado pelo·prof. Helio Vianna; um Atlas original do Brasil,
na Biblioteca Nacional, de c. 1650, da escola de João Teixeira,
''e pertencente à Coleção Barbosa Machado; finalmente, mais
;'~m Atlas orfginal, de 1666, por João Teixeira Albernaz, na
·Mapoteca do Itamarati.
. Aíem . disso, a Biblioteca Nacional possue tambem cópia
ao Atlas do Brasil, de' João Teixeira, dç 1642, existente na
·Biblioteca Nacional de Paris; e a Mapoteca do Itamaratí, cópia
dum Atlas Universàl de João Teixeira, de c. 1653, existente
na Library of Congress de Washington, com várias folhas
·Sübre o Brasil.
Todos ou quasi todos reeditam no texto, ou nas próprias
·tartas, a tradição que identifica o Porto Seguro de Cabral com
a atual Baía Cabrália. Aliás, roteiros e cartas completavam-se,
·sendo apenas aspectos da mesma ciência, a náutica e, perpe-
tuando, por consequência, as mesmas 'tradições.
Examinemos a mais antiga. No fólio correspondente à
''Capitania de Porto Seguro, do LIVRO. QUE DÁ RAZÃO DO ESTADO,
·a baía Cabrália ou de Santa Cruz figura quasi totalmente fe~
'chada pelos recifes, pela banda de leste e muito ampliada para
-39-

o sul, pois o cartógrafo fundiu numa só a atual Ponta Grande


e a Ponta da Coroa Vermelha, eliminando assim o espaço de
cêrca de quatro quilômetros que medeia entre as duas, com que
foi aumentada a baía Cabrália. Essa ponta única aparece alí
com o nome de Ponta Gorda, como no roteiro de Manuel de
Figueiredo. Nessa vasta baía desaguam o rio de S. Antonio,
o rio Seraobitibe e o rio Doce, aos quais correspondem outras
tantas barras ou melhor estreitas aberturas, entre os recifes,
que bordam a costa. Sôbre a margem direita do rio boce figura
a POVOAÇÃO VELHA e entre a esquerda dêste mesmo rio e o
braço direito do Seraobitibe está situada s. CRUZ, povoações
representadas ambas por aglomerados de casas, desenhadas
no mapa. Na letra C da legenda que acompanha a carta, se
indica "a barra e povoação velha, donde entrarãp as naus da
índia", o que no texto se completa com mais larga referência
à armada de Cabral.
Com o auxílio duma carta dêste tipo completou Manuel
de Figueiredo o seu roteiro, e daí a sua Povoação Velha, ino..-
minada, mas que êle supõe haver tido o nome de Porto Seguro.
Desta carta se conclue que o atu,al M utarí se chamava
então rio Doce, alusão à qualidade das suas águas, que permi..-
tia aos navios fazer alí a aguada, como já Pedro Alvares Cabral
fizera. Figuram, por igual motivo, nos antigos atlas do Brasil,
a começar por êste próprio, muitos rios com a mesma desi~·
gnação.
O mesmo texto, ao contrário do que sucede com outras
cartas, que adiante estudaremos, não é mais explícito.
"De Porto Seguro para o Norte - elucida o LIVRO QUE
DÁ RAZÃO DO ESTADO - está o Porto Velho de Santa Cruz~
donde toda a provinda tomou nome, e donde ancorarão as pri--
meiras naos que alí chegarão indo para a India; mostrão..-se
assoladas estas duas povoações e o engenho do Duque des-
povoado . . . " ·
-40-

De acôrdo com esta parte do texto, na carta respectiva


figuram, além da Povoação Velha, na margem direita do Doce,
Sta. Cruz entre êste e o Seraobitibe e, finalmente, o ENGENHO
DO DUQUE, longe da costa, no lugar, onde nasce o Seraobitibe.
Esta localização afigura-se-nos fantasia do cartógrafo, pois
êste Engenho do Duque deve ser o mesmo ·d a Riaga, também
êle desbaratado, mas à margem do Mutari, segundo o jesuíta
da informação anônima, e sôbre o qual, como adiante veremos,
possuímos outras informações.
Não obstante, chamamos a atenção para êste fato: embora
desfigurada nos acessórios, permanece nos seus elementos
essenciais a tradição recolhida por Gabriel Soares: o porto
Velho de Santa Cruz, como ancoradouro de Cabral, e a exis~
tência de três povoações, uma das quais antiga e outra, povoa~
ção de engenho.
No Atlas de João Teixeira Albernaz, de 1631, a confi. .
guração da Baía é a mesma, mas aparece uma única povoação,
com o nome de S. CRUZ, que se estende desde a margem direita
do rio Dôce à esquerda do Seraobitibe, os dois inominados na
carta respectiva e _que apresenta indícios de não haver sido
terminada.
Nos Atlas de João Teixeira, de 1640, se o desenho da baía
e a nomenclatura permanecem por forma geral idênticos, tam-
bém não figura mais que uma povoação, com a designação de
POVOAÇÃO VELHA DE STA. CRUZ~ embora arrumada sôbre as
duas margens do mesmo rio Doce. Provavelmente, agora ao
cartógrafo pareceu pequeno o espaço pçra duas povoações nas
margens do pequeno rio. Fundiu-as numa só, e eliminou, -por
anacrônica, a do Engenho do Duque.
Mas, em frente do rio Doce, e mais bem localizada que no
Atlas anterior, lê-se "Barra da povoação velha de Sta. Cruz"
Ao que se acrescenta ao texto do fólio anterior: " . . . e torna
-41-

(a costa) a voltar ao nornoroeste athe o rio 'doce, donde está a


povoação velha da Villa de Sta. Cr.uz, que foy a primeira terra
que descobria Pedralvarez Cabral. hindo para a lndia, por
capitão mór de huma Armada, o anno de 1500, nesta grande
província a que chamão de S. Cruz" .
Aqui, quer no texto, quer na carta, a referência é apenas
à POVOAÇÃO VELHA DE SANTA CRUZ, estreitamente ligada ao
descobrimento de Cabral, sempre conforme a tradição recolhida
por Gabriel Soares.
Na DESCRIPÇÃO DE TODA A COSTA DA PROVINCIA DE SANTA
CRUZ A QUE VULGARMENTE CHAMÃO BRASIL, ano 1642, de q~e
existe, como dissemos, cópia na Biblioteca Nacional, a POVOA~
ÇÃO VELHA figura nas duas margens do rio Doce e estende-se
até a margem esquerda do Cernãobitibe, sem outra designação.
Finalmente, no Atlas da escola de João Teixeira, da Cole~
ção Barbosa Machado, e que deve datar dos meados do sé~
culo XVII, vê-se uma POVOAÇÃO NOVA na margem direita do
rio Doce e uma POVOAÇÃO VELHA sôbre a esquerda, uma delas
elaboração mental do cartógrafo, que deduziu da existência da
Povoação Velha, uma outra Nova, que arrumou a seu talante.
Como na anterior, tão pouco figura a atual Santa Cruz, na
margem direita do rio João de Tiba. Esta mesma nomenclatura
e arrumação reaparecem no Atlas de João Teixeira Albernaz.
de 1666.
Desta comparação resulta que a estreita ligação entre a
Povoação Velha de Santa Cruz e o descobrimento de Cabral
perdura até 1640.
O núcleo mais vivo da tradição, tão notável e repetida~
mente assinalada por Gabriel Soares e nos demais roteiros da
costa do Brasil, reflete~se continuadamente, mau grado as
sucessivas deturpações e amputações nos Atlas hidrográficos
do século XVII.
""- 42-

T\!1as qual o lugar da primitiva Povoação Velha de Gabriel


Soares, onde Cabral haveria plantado a Cruz ? Na margem
direita ou esquerda do Mutarí? E onde a povoação de engenho?
A lógica dêste processo de investigação e comparação
entre roteiros e cartas de marear mandava que se buscasse a
carta, contemporânea do roteiro de Gqbriel Soares ou a carta e
roteiro protótipos, que serviram de guia e paradigma ao gran. .
de bandeirante.
Foi o que fizemos .

..
O ROTEIRO~ATLAS DO BRASIL DE
LUIZ TEIXEIRA DE c. 1574

Na Biblioteca da Ajuda de Lisboa existe um códice, sem


dúvida do último quartel do século XVI, que abre com o título
seguinte: ROTEIRO DE TODOS OS SINAES, CONHECIM.T05 , FUN-
DOS, ALTURAS E DERROTAS, QUE HÁ NA COSTA DO BRASIL DESDE
CABO DE SANTO AGOSTINHO ATÉ O ESTREITO DE FERNÃO DE
MAGALHÃES. A obra, como o título está dizendo, consta dum
roteiro parcial da costa da América do Sul, acompanhado de
13 cartas e plantas de cidades, vistosamente coloridas e ilumi~
nadas. Roteiro e atlas terminam com uma grande carta desdo~
brável, que abrange toda a costa ·d a América do Sul, desde 3"
de latitude Norte até 55o de latitude Sul, conforme a escala
própria de latitudes, ou seja desde a região do e,s tuário do
Amazonas até a do Estreito de Magalhães. Esta carta, já
ligeiramente deteriorada pelo tempo, ostenta no canto superior
esquerdo uma cartela com extensa legenda; ao sul do estuário
do Prata, uma grande rosa dos ventos, de cujos rumos, aquêle
que aponta o Oriente, termina numa Cruz de Cristo ; e é cor-
tada pela linha da demarcação de Tordesilhas em duas partes.
das quais a que corresponde ao Brasil se apresenta dividida,
por linhas paralelas, em capitanias.
Diz a legenda : "A terra do Brasil he a que parte a linha
vermelha desta do peru a qual linha he a demarcacam que os
Reys de Casteila os Catholicos dom Fernãdo e dona Izabel e
El~rey dom João o 2. de Portugal fizeram no descobrimento
0
-44-

·g eral. As capitanias que vão repartidas por linhas vermelhas


São Merces que os Reys de Portugal dom Manuel e dom Joam
seu filho o terceiro deste nome fizerão a homes que muy bem os
Serviram no descobrimento e conquista das ln dias Orientaes:
A que diz de Sua Magestade foy de Fr.o Pereira Reymão q
morrendo e ficando sem erdr.o ficou á Coroa. nesta está a bahia
de todolos santos e Çidade do Salvador. onde assiste o Gover...
nador e o Bispo. todas as mais sam vilas excepto a çidade de
São Sebastião no Rio de Janeiro capitania de Pero de Goes a
qual çidade foy tomada aos françeses pello Governador Me de
Saa. as melhores e mais ricas destas Capitanias são a de Sua
Magestade e a de Jorge dalbuquerque. estas sam as que mais
yngenhos tem de asucar: e assi tem mais trato de mercadores.
tem cada hüa destas capitanias pella costa do mar 50 legoas
e pera o Sertão tanto até chegar a linha de demarcacam como na
reparticão dellas se ve. he povoada esta terra do Brasil toda
de portugueses quãto dizem as Capitanias e somente ha costa
do mar. e quãdo muito 15. 20 legoas pello Sertão, h e muy
povoada de gentio da terra. tem muytos mãtimentos. em partes
della ha Ouro. assi de Minas como de lavages."
A "linha da demarcacam" passa, ao norte, cêrca e a oeste
do Cabo Branco, cortando o estuário do Amazonas, na sua
parte oriental, e, ao sul, pelo baixo Paraná, abrangendo não
só o ·estuário do Prata, mas todo o curso daquele rio.
As capitanias sucedem... se desde a de João de Barros,
mais ao norte, e sucessivamente pelas de Francisco Barreto,
Jorge de Albuquerque, de Sua Magestade, de Francisco Gi...
raldes, do Duque de Aveiro, de Vasco Fernandez Coutinho e
de Pero de Goes até à de Lopo de Sousa.
Contam... se ainda neste roteiro quatro plantas de cidades:
a primeira, a da "Vila dülinda"; a segunda, da "Bahia de
todolos sãtos" e da "Cidade do Salvador"; a terceira, do "Rio
.de Janeiro"; e a quarta, de "Sam Vid~te", alem de outras
-45-

cartas e plantas representando o "Cabo de Santo Agostifl:ho",


os "Ilheos" e a "Villa de S. Jorge", a capitania de Porto Se-
guro, a região da "Villa do Spirito Sãto", o "C. Frio", a
"Angra dos Reys". o estuário do "Rio da Prata" e, finalmente,
o Estreito de Magalhães.
A letra do roteiro e a das legendas das cartas e plantas
são idênticas. A mão, que escreveu o primeiro, traçou igualmente
as segundas. Mas no códice, que na Biblioteca da Ajuda tem
a cota 5I~IV~38, não figura nome de autor, nem data.
Quanto a esta, do pouco que dissemos se conclue que o
tôdo ,deve ter sido escrito no começo da era filipina, isto é.
nos primeiros anos da penúltima década do século XVI. A
inclusão, inusitada em roteiro português, de regiões da Coroa
espanhola, ao mesmo tempo que no mapa geral se acrescenta:
"he povoada esta terra do Brasil toda de portugueses" sugerer
por um lado, a reunião das duas coroas peninsulares no mesmo
soberano; por outro, o propósito patriótico e ingênuo de dis--
tinguir soberanias. Acrescente~se que o descaso e o silêncio, a
que a costa leste~oeste foi votada em atlas e roteiro, patenteia, a
nosso vêr, que um e outro são anteriores a 1585, em que as re-
giões desde o Cabo de Santo Agostinho ao Amazonas já haviam
começado a entrar na história do Brasil. Mais adiante veremos
que pouco mais se pode adiantar.
Quanto à autoria do Atlas, Armando Cortesão, que o
estudou, inclina~ se para Luiz ·Teixeira. Depois de enumerar as
cartas até hoje conhecidas dêste cartógrafo, faz o seguinte
juizo sobre o Atlas : "Que as cartas nele ·c ontidas não foram
desenhadas e iluminadas por um curioso, é evidente; pode
mesmo dizer~se que o seu autor era cartógrafo de merecimento".
E continua: "Por outro lado, comparando essas cartas com as
duas de Luiz Teixeira, do ATLAS de Ortélio - não perdendo
de vista o serem estas de desenho e letra especialmente cuida.-
dosa, em virtude da obra a que se destinavam, e já através do
- 46~

gravador - nota~se uma certa semelhança na sua execução e


até na maneira como estão representados alguns dos navios
das duas Cartas do ATLAS com o que se vê na Carta da "Villa
Dolinda", do códice da Biblioteca da Ajuda. Quanto à carta
de Florença, o estilo e gênero são muito diversos e a fotografia
que possuímos é em escala demasiadamente reduzida para
podermos fazer qualquer util comparação.
Embora o não possamos afirmar, este conjunto das cir~
cunstâncias apontadas dá~nos a impressão de que . . . as cartas
da Biblioteca da Ajuda foram executadas por Luiz Teixeira"
(CARTOGRAFIA E CARTÓGRAFOS PORTUGUESES DOS SÉCULOS XV E
XVI, vol. II, 1935, pág. 275). Com estes elementos não era
possível ir mais longe.
Ora, do exame que em tempos fizéramos a êste códice fica~
ra~nos a impressão de que uma das suas cartas, a da Capitania
de Porto Seguro, interessava particularmente ao problema, que
nos ocupa. E, se o Atlas fosse de Luiz Teixeira, já veremos
que ela assumia a importância dum depoimento visual e dum
dos melhores cartógrafos da sua época. Sabe~se, por exemplo,
que Teixeira e o célebre Abraão Ortelius se correspondiam e
que êste último se inspirou em cartas daquêle, algumas das
quais, como a dos Açores e do Japão, a primeira de 1584 e a
segunda de 1595, publicada em vários dos seus Atlas, donde
passaram aos de Mercator e outros (Armando Cortesão,
IBIDEM, págs . 265~66) .
Resolvemo~nos, por consequência, a buscar obter a refe~
rida carta da capitania de Porto Seguro, da qual, a nosso pedi~
do, o Ministério das Relações Exteriores obteve a respectiva
fotocópia, em Lisboa .
Com êsse novo documento em mão e reunidas as cartas
até hoje publicadas de Luiz Teixeira, procedemos à revisão
do problema da autoria do Atlas da Ajuda. Advertiremos que
dêste último foram publicadas no volume III da HISTÓRIA D.l\
-47-

COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL, as cartas~plantas de


Olinda, Baía, Rio de Janeiro e S. Vicente, todas a cores: que
.recentemente na HISTÓRIA DA EXPANSÃO PORTUGUESA NO
MUNDO, vol. III e I, se publicaram igualmente a carta geral
do mesmo Atlas e uma carta inédita e desconhecida da Ilha
Terceira ( 158 7) por Luiz Teixeira, assim como A. Cortesão
já havia publicado na obra citada duas outras cartas do mesmo
autor, uma das quais nos interessa particularmente, porque
abrange todo o Brasil.
Digamos desde já que êsse exame nos levou, por uma série
de razões convergentes, à convicção de que o Atlas da Ajuda
é de Luiz ífeixeira. Com efeito, as cartas daquêle Atlas não só
se assemelham, em seu conjunto, a todas as outras que possui~
mos daquêle cartógrafo, mas divergem da obra dos cartógrafos
contemporâneos, pelo estilo cartográfico, a forma de letra, os
acessórios decorativos e pelo tipo característico de represen..-
tação do Brasil.
E' tal a importância desta identificação que não podemos
escusar..-nos a analisar, um por um, esses carateres. Aceitando
a comparação já feita por A. Cortesão com as duas cartas pu..-
blicadas por Ortélio, à qual nada temos que acrescentar, a não
ser que a refacção do gravador as moldou pelo tipo comum do
Atlas, o que as relega para segundo plano, vamos utilizar
principalmente a carta da ilha ,T erceira, de 1587 para o estilo
cartográfico, letra e certos acessórios decorativos: e para a
pm te do tipo da representação do Brasil, a carta da Biblioteca
Nacional de Florença, dos fins do século XVI, publicada por
A. Cortesão na obra citada (estampa LIV) e da qual a Mapa...
teca do Itamaraty tem fotocópia, recentemente entrada, e muito
maior.
Nas cartas do Atlas da Ajuda, como nas cartas assinadas
de Luiz Teixeira, o traço é mole e, com frequência, de contornos
empastados, em oposição ao traço firme e incisivo e aos negros
-48-

geométricos de Vaz Dourado e até de Lazaro Luiz; à finura


quasi filiforme de Bartolomeu Lasso; ao traço empastado e
grosseiro de Pero de Lemos; assim como ao de Domingos
Teixeira, particularmente descuidado.
Por sua vez, a letra do Atlas e Roteiro da Ajuda e das
demais cartas de Teixeira representa um compromisso sui
gener'is entre a letra humanística do século XV e a bastarda
italiana do século XVI. talvez de influência flamenga, mas que
em vão buscaremos nos demais cartógrafos portugueses do seu
tempo. Enquanto Vaz Dourado se ressente do gótico, por
exemplo, no emprêgo constante do a minúsculo, o que o dis~
. tingue dos demais cartógrafos portugueses do seu tempo, e
todos eles utilizam o d cursivo, com a haste inclinada para a
esquerda, nenhum dêsses carateres aparece na letra daquelas
cartas, sempre com as hastes das ·consoantes, retas, segundo o
canon humanístico, ou inclinadas à direita, segundo o tipo da
bastarda italiana. Da mesma sorte ·c ertas maiúsculas ornadas
de aletas, como o A o M e o N, ou de hastes graciosamente
prolongadas, como o E, o D, o L, o Q, o R e o T são típicas
no Atlas da Ajuda e nas cartas de Teixeira, e só encontram
similares nos Atlas flamengos da mesma época.
Quanto a certas particularidades decorativas, lembre..
mos a frequência de ornar com a cruz de Cristo o rumo léste
da rosa dos ventos, visível na carta geral do Brasil e na da
Vila Dolinda do Atlas da Ajuda, assim como na carta da
Terceira de Luiz Teixeira.
Típica também, numas e noutras é a forma apinhoada ou
acastelada de representar os povoados, que se distingue perfei~
tamente na carta da capitania de Porto Seguro e na ·d a Ilha
da Terceira. A graciosa nau da carta~planta da Vila Dolinda,
semelhante às das cartas dos Açores e do Japão, publicadas por
Ortelius, pertence francamente ao tipo da nau dos meados do
século XVI, isto é, mais às origens profissionais de Luiz íi'ei,..
-49-

xeira que às duas últimas décadas do mesmo século, em,qu~


domina o tipo pesado e menos gracioso do galeão (Vide·ima~
gens em Nogueira de Brito, CARAVELAS, NAUS E GALÉS DE
PORTUGAL) . · '·
Se, além disto, compararmos o mapa geral do Brasil do
Atlas da Ajuda com a carta da Biblioteca Nacional de F1o;..
rença dos fins do século XVI. as semelhanças são impressip.-
nantes. E' certo que esta última carta é duma fatura e acaba~
menta muito perfeito e deve pertencer ao número das melh9res.
obras do cartógrafo.
Em primeiro lugar, o desenho geral e arrumação da costa
são idênticos nos dois mapas e diferentes dos mapas dos,
cartógrafos portugueses contemporâneos, em especial Vaz·
Dourado. A linha de demarcação, que no mapa da Ajuda~
passa pela extremidade oriental do estuário do Amazonas; e:
abrange todo o estuário do Prata, não aparece na cart:a de
Florença, mas se a fizéssemos passar aquí pelo mesmo ponto.
daquele estuário, ela abrangeria a mesma porção do Prata •.
com um erro de c. 12 graus no afastamento da costa para léste ..
Este êrro proposital, que os cartógrafos portugueses introdu....
ziam nas cartas para assim anexar à Coroa portuguesa uina
parte vastíssima da América Austral, é comum a toda a carto"',
grafia quinhentista portuguesa, mas, ora muito mais exage--.
r.ado, como nas cartas de Vaz Dourado, ora muito menos acen,..
tuado, como nas cartas anteriores de Bartolomeu Velho, Lázaro,
Luiz, Diogo Homem, Domingos Teixeira. As duas da Ajuda·
e de Florença representam um termo médio e perfeitamente
distinto entre aqueles dois tipos de cartas.
Por outro lado, certas particularidades do traçado apenas.
ou pela primeira vez se encontram nos dois mapas da Ajuda
e de Florença. Assim o estuário do Amazonas, idêntico nestes •.
diverge das demais cartas contemporâneas, pelo maior número..
de ilhas, que ocupam o estuário ,_ particularidade que se. repe...
. .
700.600 F. 4
-50-

tirá em todas as cartas de João Teixeira, filho de Luiz Teixeira


;...w e pelo aparecimento de três afluentes na sua margem direita,

um dos quais, que deve ser o Cuamá, dirigindo~se ao encontro


do Pindaré.
· Da mesma sorte, o trecho da costa, ao sul do estuário
da Prata, compreendido entre o Cabo de Santo Antonio e a
atual Baía Blanca se apresenta nas duas cartas profundamente
entalhado por dois largos golfos, que, na realidade, não exis~
tem, e em vão buscaremos nas demais cartas portuguesas con~
temporâneas. Damos de barato que qualquer destas parti~
cularidades possa aparecer em carta anterior ou contemporâ~
nea, inédita ou ignorada por nós, revelando assim a existência
dum protótipo. A identidade entre as duas cartas, nesses par~
ticulares, não deixa, todavia, de ser um argumento essencial a
favor da sua atribuição ao mesmo autor.
· Semelhantes, pois, no estilo cartográfico, na caligrafia,
nas peculiaridades da decoração e até, pelo que respeita às
cartas do Brasil, no contôrno geral, arrumação e particulari-
dades da linha costeira, e, divergindo nesses carateres dos
mapas portugueses contemporâneos, o Atlas da Ajuda e as
cartas assinadas de Luiz Teixeira pertencem a um mesmo tipo
cartográfico, perfeitamente individuado e, por consequência,
sem sombra de dúvida, ao mesmo cartógrafo.
Esta constatação, feita tão rigorosamente quanto nos foi
possível, assume, como iremos ver, grande importância para
a história da cartografia do Brasil e, em especial, do problema,
a que estamos buscando solução.
Luiz Teixeira deve ser o último dos grandes cartógrafos,
cuja atividade, iniciada em meados do século XVI, se prolonga
ainda pelas duas primeiras décadas do seguinte. Herdeiro da
melhor tradição cartográfica do seu tempo, êle alcança a época
em que uma nova escola cartográfica, a flamenga, substitue a
portuguesa no esplendor, e cujos reflexos nós supomos distin~
-51-

guir, quer na sua arte caligráfica, quer na maneira convencional


de representar certos povoados .
Filho de cartógrafo, pai, avô e bisavô de cartógrafos, êle
ocupa o lugar mais importante na mais dilatada dinastia de
cartógrafos portugueses. De seu pai, Pero Fernandes, de
quem se conhece uma carta, datada de 1528, sabe~se que foi
nomeado em 1558 "mestre de fazer cartas de navegar" e que,
ainda em 1565, exercia a arte.
Dois filhos perpetuaram a sua tradição profissional, Luiz
rfeixeira, que recebeu carta de ofício, em 1564, isto é, ainda
em vida de seu pai, e Marcos Fernandes, que deveria ser
muito mais novo, pois só em 1592 mereceu igual título, mas do
qual se não conhece qualquer trabalho identificado. Neto de
Pero Fernandes·, sobrinho de Luiz- Teixeira e discípulo con~
fessado !dos dois, foi Pero de Lemos, que recebeu carta de
ofício em 1582 e do qual se conhecem alguns trabalhos. Na
escola de Luiz Teixeira, se formou ainda seu filho João Tei~
xeira que, em 1602, recebia carta de ofício, pela qual sabemos
que aprendera com o pai. Da mesma família devem ser Pero
rfeixeira Albernaz, do qual se conhece importante obra geo,..
gráfica sôbre os portos da Península hispânica, e João Teixeira
Albernaz, o primeiro dos quais exerceu sua atividade na pri~
meira metade do século XVII e o segundo na metade seguinte.
Para o nosso caso, o que mais interessa é saber que Luiz
Teixeira foi discípulo de seu pai e que, por sua vez, formou
escola. Na sua carta de ofício, concedida em 1564, se trans~·
creve a carta de El Rei D. Sebastião, que o manda examinar
por Pedro Nunes, e se declara: "que Luiz Teixeira, filho de
Pero Fernandes, mestre de fazer cartas de marear, morador
nesta cidade de Lisboa, me enviou dizer por sua petição que ele
aprendera muito tempo a arte de fazer cartas de marear ...
(Sousa Viterbo, TRABALHOS NÁUTICOS DOS PORTUGUESES NOS
SÉCULOS XVI E XVII, I, pág . 296) ..
-52-

Aprovado em exame naquêle mesmo ano, entrava, ao ser~


viço real, como cartógrafo do Estado, em 1569, circunstância
que indica merecimentos na arte. Em 1584, já assinava a carta
dos Açores, impressa por Abraão Ortélio, como cosmógrafo
de Sua Magestade, categoria que de novo invoca na carta da
Terceira, de 1587. Em 1613, Filipe II de Portugal enviava
uma caravela, sob o comando de Belchior Rodrigues à lndia e
na carta que então remetia ao Vice~Rei, dizia: "E sendo caso,
o que Deus não permita, que faleça Luiz Teixeira, que vai com
o dito Belchior Rodrigues pera graduar, arrumar, sondar e
fazer as medidas, debuxos e mais cousas (na terra da Cafraria,
entre os cabos Negro e o da Boa Esperança) que pelo dito
regimento ordeno, provereis outra pessoa bem entendida nesta
arte, que o faça, como convem ... " ( Viterbo, IBIDEM, páginas
297 ~98). Sousa Viterbo, que publicou o documento hesita,
pela data tardia, em identificar êste Luiz Teixeira com aquêle
de que nos ocupamos. Mas comprovado que êle foi o autor
do Atlas do Brasil, tão semelhante àquele que o monarca de~
sejava em relação à África Sul~ocidental. inclinamo~nos aber~
tamente para que seja o mesmo Luiz Teixeira, já então orçando
pelos 70 anos, o que, aliás, motivava os receios sôbre a sua vida,
na carta expressos .
Esta aproximação parece~nos tanto mais lógica, quanto
o Atlas do Brasil foi obra dum trabalho similar àquêle que em
1613 se lhe pedia, e igualmente realizado sob encomenda. Com
efeito, no seu ROTEIRO DA NAVEGAÇÃO E CARREIRA DA INDIA,
Gaspar Ferreira Reimão, piloto~mor do Reino, ao tratar da
região dos Abrolhos, da costa fronteira e das ilhas que os vizi~
nham, escrevia, em 1612 :
"Luiz Teixeira, Cosmógrafo de Sua Majestade, achando~
se naquelas partes (do Brasil) , em tempo do Governador Luiz
de Brito de Almeida, o mandou ver e emendar a costa do
-53-

Brasil ; e indo no descobrimento sondou e viu os ditos baixos


e depois que os sondou e descobriu, perdeu o fundo e foi na
volta do sueste, seriam bem vinte, vinte e.cinco léguas; houve
vista de ilha da Ascenção, na qual surgiu da banda do sueste
em uma calheta ... " (ROTEIRO ... , edição da Agencia Geral
das Colônias, 1940, pág. 12) .
Dêste passo não só é impossível concluir pelo falecimento
de Luiz Teixeira àquela data, mas parece depreender~se o
contrário .....- digamos de passagem.
Provado que o Atlas da Ajuda é de Luiz 1Teixeira, a auto~
rizada menção de Gaspar Ferreira Reimão, isto é, do Piloto~
mor do Reino, é da maior importância, pois nos permite atribuir
os conhecimentos do cartógrafo a observação ou revisão direta
e situados na época própria.
Elo numa cadeia de cartógrafos, Luiz Teixeira não só
recebeu do pai a lição das experiências e conhecimentos das
duas gerações anteriores, mas teve ocasião de as repetir e
rever, ao longo da costa do Brasil, com o objetivo declarado
de emendar o mapa respectivo .
Em que ano ou anos, por consequência, teria realizado sua
viagem ? Da informação de Reimão ficamos apenas sabendo
que foi em tempo do Governador Luiz de Brito de Almeida.
Vejamos o que pode concluir~se dêste fato. Luiz de
Brito de Almeida foi nomeado governador a 1O de dezembro
de 1572, mas só em maio do ano seguinte chegou à Baía.
Nesse mesmo ano, Antonio Salema, que se encontrava desde
1570 em Pernambuco com alçada de justiça, recebia o encargo
de governador das capitanias do Sul, quer dizer de Porto Se~
guro, inclusive, para o sul, ao passo que as capitanias dalí para o
Norte ficavam sob a jurisdição de Luiz de Brito de Almeida,
o primeiro com sede no Rio de Janeiro, o segundo na Baía.
Salema ainda se encontrava, em janeiro de 1574, nesta cidade,
1-54-

onde, com seu colega, combinou a forma de harmonizar suas


funções, e, em especial, sôbre a lei de 20 de março de 1570,
que mandava suspender o cativeiro de índios, exceto em guerra
justa.
A 12 de abril de 1577, era nomeado Lourenço da Veiga
governador geral do Brasil, em substituição de Brito de Almei ...
da e de Salema, cessando assim a dualidade administrativa.
Mas só no comêço do ano seguinte o novo governador chegou
ao Brasil e os antigos partiram para o reino .
Se a incumbência, confiada por Luiz de Brito de Almeida
a Luiz Teixeira, abrangia toda a costa desde o Cabo de Santo
Agostinho até ao Rio da Prata, isto é, regiões colocadas sob
governadorias distintas, - e o fato de êle haver explorado a .
.região dos Abrolhos o está provando .- seria natural que êle
se entendesse com o seu colega das capitanias do sul sôbre
aquêle trabalho de exploração e revisão cartográfica. Mas
inclinamo ...nos, por motivos que a seguir exporemos, para que
o encargo cometido a Luiz Teixeira tenha sido ordenado, e
com mais amplas vistas, pelo rei D . Sebastião .
Seja como for, supomos que o cartógrafo não tardaria
muito em iniciar a sua missão após a chegada do governador
à Baía, pois êste havia de ter interêsse em contar essa empresa
concluída na folha dos seus serviços, já que as governações
do Ultramar duravam d~ ordinário três anos e a sua poderia
terminar em 1576. Não nos enganaremos muito, por conse...
quência, dizendo que Luiz ,T eixeira deve ter realizado a sua
exploração e emenda cêrca de 1574.
Desde já daremos uma das razões que nos convencem
juntamente da iniciativa régia e da sua execução naquela data.
Nesse mesmo tempo, ou seja a 22 de novembro de 1575, partia
Manuel de Mesquita Perestrelo de Moçambique para reco...
nhecer as costas da região, compreendida entre o Cabo da
Boa Esperança e o das Correntes e aperfeiçoar a carta respe ..
-55-

ctiva. Roteiro e carta da região, os dois executados por Mes...


quita Perestrelo, existem e foram recentemente reeditados. E'
na própria oferta do Roteiro a El~Rei D. Sebastião que o expio-r
rador e cartógrafo declara ter obedecido a mandato do mo.-
narca. (ROTEIRO DA ÁFRICA DO SUL E SUESTE por Manuel de
Mesquita Perestrelo, anotado por Fontoura da Costa, edição
da Agência Geral das Colónias, 1939, pág. 2) .
Já antes, na carta de donataria de Angola, concedida a
Paulo Dias de Novais, em 16 de setembro de 1571, o Rei fazia
a doação "com tal condição e declaração que elle Paulo Dias
levará para a conquista da dita terra á sua própria custa e des...
pesa hum gallião e duas caravellas e cinquo bargantins de defe ...
rente grand~zra e feição e tres muletas pera descobrirem os rios
e portos que ouver pella costa te o Cabo da Boa Esperança..
as quais embarcações levará muito bem providas d'enxarcias 1
velas, tolldos e de todo o mais que for necessario a dita viage
e empresa" (A. de Albuquerque Felner, ANGOLA, APONTA...
MENTOS SOBRE A OCUPAÇÃO ... , 1933, pág. · 411) .
Paulo Dias de Novais só em fevereiro de 1575 apertava
a Luanda, com a sua pequena armada. Albuquerque Felner,
historiador de Angola, supõe que o primeiro governador e do ..
natário de Angola cumpriu em parte com a sua obrigação
( IBIDEM, pág . 125) .
Acrescentemos desde já que estas missões exploradoras,
incumbidas a Mesquita Perestrelo e a Paulo Dias de Novais 1
não obedeciam por certo a mero intuito científico, mas, segundo
cremos, a propósitos de expansão, tão caros ao imperialismo
do monarca. Em trabalho anterior, e referindo~nos às duas
explorações conjuntas, escrevemos: "Este estudo dos portos ~
exploração dos rios, numa costa, que não era então aproveitada
pelas carreiras da navegação, afigura~se~nos a primeira étape
num projeto de col<;mização ulterior, com o qual D. Sebastião,
monarca de tão atrevidos pensamentos, projetava estender o
·-56-

·domínio real dos portugueses a toda a África austral, ou. pelo


'inenos, a alguns dos seus pontos estratégicos, o que, nestas
prudentes condições, haveria sido medida utilíssima de futuro"
·(HISTÓRIA DE PORTUGAL, edição monumental. dir. por D. Perez.
Vol. V, 1933, DOMÍNIO ULTRAMARINO, pág. 451).
Desta aproximação e sincronismo ou quasi sincronismo
entre os três fatos concluímos que a iniciativa da missão, con.-
(iada· a Luiz Teixeira, pertence ao monarca e não a Luiz de
·Brito de Almeida, que terá sido apenas e por disposição do seu
:regimento o mandatário para a organização da empresa, a
·qual. com maioria de razão, não deverá ter ido além de 1575.
Inclinamo~nos até para supor que Luiz Teixeira não se
encontrava por acaso no Brasil, conforme parece depreender~
sé da notícia de Reimão. Pelo contrário, para a exploração
minuciosa duma costa, tão vasta. como a que teve de percorrer
o cosmógrafo e cartógrafo. e já então sede, em certos trechos,
·de importante tráfico marítimo, deve ter sido escolhido, com
antecipação, um dos técnicos melhores do reino, o qual muito
presumivelmente seguiria com o governador Brito de Almeida
.no mesmo ano de 1573.
Resta averiguar quais as relações existentes entre o Atlas
;da Ajuda e as explorações e revisões cartográficas realizadas
por Luiz Teixeira, cêrca de 1574.
Duma análise rápida da carta geral do Brasil, que acom~
,panha o Atlas, se conclue, como vimos, que êle pertence aos
primeiros anos do domínio filipino em Portugal ou seja da pe~
lllúltima década do século XVI .
Como o Brasil aparece dividido em capitanias e estas atri ...
:buidas aos respectivos donatários, pode tentar~se pelos seus
nomes averiguar com mais precisão aquela date:.. Do norte para
o sul os nomes dos donatários escalam~se. conforme dissemos,
pela or'dem seguinte: João de Barros, Francisco Barreto, Jorge
de· Albuquerque, De Sua Majestade, Francisco Giraldes,
-57-

Duque de Aveiro, Vasco Fernandes Coutinho, Pero de Gois


e Lopo de Sousa. Mas não só a área de cada capitania foi
arbitrariamente traçada, invadindo~se mutuamente os respecti~
vos territórios, mas aqueles nomes não coincidem, grupo a
-grupo, no tempo. Quando, por exemplo, Jorge de Albuquerque
e Lopo de Sousa sucederam respectivamente a seu irmão Duarte
Coelho de Albuquerque, e a seu pai, Pero Lopes de Sousa, por
falecimento dos dois, na ou como consequência da batalha de
Alcacer~Quibir, já Pero de Gois havia cessado de existir há
muito, e a sua capitania pertencia igualmente a Sua Majestade.
De Francisco Barreto, Jorge de Albuquerque, Francisco Gi~
raldes e Lopo de Sousa sabemos, por documentos coevos, que
excederam a data de 1590 ou se aproximaram muito dela, como
Francisco Giraldes .
Resta averiguar em que ano poderiam 08 seus nomes
começar a figurar no Atlas.
Lucas Giraldes faleceu em fins de 1565, tendo~lhe suce~
'dido seu filho Francisco Giraldes, cujo nome nos não permite,
pois, aproximação maior. De Jorge de Albuquerque e Lopo
de Sousa sabemos que herdaram as suas capitanias de Per.-
nambuco e S. Vicente, como consequência da catástrofe de
Alcacer~Quibir. Mas, enquanto Pero Lopes de Sousa, filho
de l\tfartim Afonso e pai de Lopo morreu na batalha, Duarte
de Albuquerque, irmão mais velho de Jorge, faleceu apenas em
fins de 1579, quando com outros cativos da batalha, já resga.-
tados, partia de Fez para Ceuta. Mas a notícia só chegou a
Lisboa nos começos de 1580 (Vide Queiroz Veloso, D. SEBAS~
TIÃO, 1935, que dá a lista dos fidalgos mortos e estes porme..-
noreSr. págs. 407 ~418) .
Resta Francisco Barreto.
Mau grado os nossos grandes esforços, pouco mais logra~
mos apurar que erros alheios, aliás, em Mestres. Segundo cre~
'mos, o mais acurado estudo sôbre êste ingrato problema da
-58-

sucessão nas diferentes capitanias brasileiras, cifra~se ainda


nas notas tão substanciais de Capistrano de Abreu à primeira
edição da HISTÓRIA DO BRASIL de Frei Vicente do Salvador.
Alí nos elucida o anotador eminente: "Foi quarto dona...
tário (da capitania de Itamaracá) D. J eronima de Albuquer..-
que, e quarto (si c) a filha desta, D . lzabel de Lima, casada
primeiro com D. Francisco de Lima (aliás, Francisco Barreto
de Lima) e depois com André de Albuquerque (com este último
J já o era em 1585) . Já tinha falecido em 1607" (Obra cit. pá·
gina 102) .
Antonio de Alcantara Machado, o qual com tamanho
brio continua a honrar o apelido glorioso, nas suas notas às
CA~TAS de Anchieta (edição da Academia) cinge~se à mesma
lição, abonando~se com o nome do Mestre e o de Taques, a que
acrescenta o de Benedito Calixto (CARTAS, pág. 440).
Se assim fosse, poderíamos dizer que o Atlas da Ajuda
fora desenhado entre o ano de 1580, em que Jorge de Albu...
querque sucedeu virtualmente a seu irmão, como donatário
de Pernambuco, e o de 1585, em que Francisco Barreto deixou
de representar sua mulher na donataria de ltamaracá.
Mas, na verdade, da leitura atenta da HISTÓRIA DA CAPI~
TANIA DE s. VICENTE de Pedro !Taques e, principalmente, das
MEMÓRIAS PARA A HISTÓRIA DA CAPITANIÃ DE S. VICENTE de
Fr. Gaspar da Madre de Deus, concltte~se sem sombra de
dúvida que André de Albuquerque faleceu antes de Francisco
Barreto, mas ainda era vivo em 1577 e que, por sua vez, Fran...
cisco Barreto de Limq já era casado com D. Izabel de Lima,
em 1596 ( Fr. G. da Madre de Deus, obr. cit., 1797, páginas
180-182).
Por nossa parte, averiguámos que André de Albuquerque,
sobrinho~neto do grande Afonso de Albuquerque, havia casado,
com efeito, em segundas núpcias, com D. lzabel de Lima e fa ...
leceu tambem, erp. 1578, na batalha de Alcacer-Quibir ( Ansel...
-59-

mo Braamcamp Freire, LIVRO SEGUNDO DOS BRASÕES DA SALA


DE CINTRA, 3.a ed., 1927, págs. 204, 212a e 213: e Queiroz
Veloso, OBRA CIT., pág. 407). De Francisco Barreto nada
mais nos foi possível averiguar. Porventura, os nobiliários
manuscritos, portugueses, contenham qualquer precisão quanto
à data do seu casamento. Unicamente podemos avançar que êle
era possível desde 1580 e pouco provável em ano muito afas~
tado dêste. Não podemos, pois, ir mais além dum termo post
quem, o de 1580.
Já dissemos, não obstante, que a circunstância do ROTEIRO
se ocupar apenas das costas do Brasil, do Cabo de Santo Agos~
tinho para o sul, nos fornece como termo máximo ante quem,
um ano cerca de 1585. E como Roteiro e cartas ou cartas~
plantas coincidem no espaço, é de presumir paridade igual
no tempo.
O estudo da carta da capitania de Porto Seguro levou...
nos, todavia, a uma conclusão, que nos permite uma aproxima~
ção maior na data, e que porisso vamos antecipar: o ROTEIRO
GERAL do TRATADO DESCRIPTIVO DO BRASIL, de Gabriel Soares,
cinge~se muito na parte náutica, propriamente dita, às legendas
do ROTEIRO de Luiz Teixeira e excede na parte puramente
descritiva, as suas cartas parciais.
Por consequência, Roteiro e Atlas de Luiz Teixeira são
anteriores ao Tratado Descritivo, ou melhor aos começos de.
1584, em que Gabriel Soares embarcou para a Espanha.
Já atrás frisamos que a adenda de "em 1587'' ao "Tratado
Descritivo do Brasil" era enganosa. Na carta, com que ofertou
a obra a Cristovam de Moura, escrita em Madrid, a 1 de março
de 1587, Gabriel Soares declara: "Obrigado de minha curio~
sidade fiz, por espaço de 17 anos que residi no Estado do
Brasil, muitas lembranças por escrito do que me pareceu digno
de notar, as quaes tirei a limpo nesta côrte em este quaderno,
-61-
-60-
Amaro. Já, em 1584, numa das suas Informações, Anchieta,
emquanto a dilação de meus requerimentos me deu para isso referindo~ se à ilha de Santo Amaro, dizia: " . . . tem o forte
lugar ... " (obra e edição cit., pág. XIII) . que agora se fez por Diogo Florez, general, com gente de
Daquí se depreende claramente que a obra foi escrita guarnição ... " (OBRA CIT., págs. 320 e 336. Consulte~sl?
durante a sua estada no Brasil e apenas tirada a limpo, isto é, igualmente Varnhagem, HISTÓRIA GERAL, 4.a edição, I, pági~
copiada e ligeiramente corrigida em Madrid . nas 473~74).

Ora, como Gabriel Soares partiu da Baía para a Penín~ Quando Gabriel Soares pedia, solícito, a fortificação da
sula, em agôsto de 1584, mais correto será fixar neste ano, e Barra Grande, já ela estava realizada. Como é natural, êle não
como termo médio, o das notícias do TRATADO. Com efeito, desconhecia a e~stência das duas fortalezas de S. Filipe e
analisando a obra, se conclue que, excetuando alguns parti~ San Tiago, na barra da Bertjoga, construídas respectivamente
culares sôbre a Baía, com a qual devia estar em correspondên~ em 1552 e 1557 e às quais se refere na sua descrição de Santo
cia, e as notícias, de maior vulto histórico, como as da conquista Amaro.
da Paraíba, que soavam na côrte, nenhumas outras excedem Não menos eloquente é o seu silêncio sôbre as aldeias dos
aquela data. Os mesmos informes sôbre os primeiros e demo~ índios administradas pelos jesuítas, dentro da baía de Guana.-
rados passos da expansão portuguesa naquela direção não bara e, em especial, de S. Lourenço, em frente da cidade de
vão além, como aliás é lógico, de outubro de 1586. S. Sebastião, na atual Niterói. Pelo que a esta diz respeito,
Em compensação, do mesmo texto da obra se depreende é para assinalar~se que já em 1583 os Padres da Companhia
alí tinham, não só igreja, mas residência fixa ; e que o autor do
que o autor, escrevendo na Baía, desconhecia inteiramente
TRATADO DESCRIPTIVO nunca deixa, na descrição doutras cidades
certos fatos de grande relevo, ocorridos em S. Vicente. durante
ou capitanias, de assinalar fatos semelhantes.
os anos de 1583 e 1584. "Tem este rio de S. Vicente (rio aquí
está por barra e porto, como sucedeu com o Rio de Janeiro) Carência igual - e essa, como veremos, mais estranhável.
grande comodidade para se fortificar e defender - escrevia observamos nas ,cartas~plantas de S. Vicente e do Rio de
Gabriel Soares - no que é necessário acudir com brevidade. Janeiro do Atlas de Luiz Teixeira. Temos, pois, fundadas
por ser mui importante esta fortificação no serviço de S. Ma~ razões para acreditar que, sendo o TRATADO DESCRIPTIVO, na
gestade, porque, se se apoderaram della os inimigos, serão máos sua quasi totalidade, referido a 1584, e até a anos anteriores, o
de lançar fora, pelo comodo que tem na mesma terra, para se ROTEIRO de Luiz Teixeira e respectiva cartas, que omitem as
fortificarem nélla e defenderem ... " (Obra cit., cap. LX) . mesmas circunstâncias, não excedem aquela data.
Donde se conclue que o autor desconhecia a invasão de Santos Mas a verdade é que, se compararmos não só a descrição
pelos navios de sir Edward Fenton, em 1583, logo expulsos da cidade do Salvador e Baía de T odos~os~Santos, mas a de
por Andres lgino, que comandava três naus da armada de Olinda, Rio de Janeiro e S. Vicente, feitas por Gabriel Soares,
Diogo Flores V aldez - o que deu como resultado a constru~ com as cartas de Luiz Teixeira, estas respiram franco anacr~
ção, nesse e no ano seguinte, da fortaleza da barra Grande, nismo em relação às primeiras.
nas terras da sesmaria de Estevão da Costa, na ilha de Santo
-62- -63 _.

Nenhum termo melhor de comparação para êsse estudo Pintura e descrição não desdizem uma da outra. Tam ...
que a segunda parte do TRATADO, o excelente e minucioso ME- bém na carta se dá ao toponímico "Tarype" um relevo de po-
MORIAL E DECLARAÇÃO DAS GRANDEZAS DA BAHIA DE TODOS- voado, cuja importância então avultaria na vasta e deshabita-
OS-SANTOS, embora esta seja das poucas, cujas noticias alcan- da redondeza. Mas nada ainda que se pareça com a povoação,
çam o ano de 1586. que descreve Gabriel Soares, "arruada e povoada de morado-
Àquela data calculava Gabriel Soares o número de enge- res", com sua igreja de Nossa Senhora do ó (Obra cit., pá-
gina 152).
nhos do Recôncavo em 36 "e quatro que se andam fazendo";
e 0 das igrejas, em 62. Muito ao invés, na carta-planta do Isto nos levaria à conclusão que a carta-planta da Baía,
Atlas de Luiz ,T eixeira, figuram apenas, além da Cidade do sem dúvida alguma bastante anterior à descrição de Gabriel
Salvador e da Vila Velha, uns 12 casais, sumariamente indi- Soares, antecederia ainda o govêrno de Luiz de Brito de
cados, e umas quatro igrejas. O debuxo do Recôncavo e das Almeida. .
suas ilhas é assaz correto: denuncia minucioso exame e conhe- Pelo que diz respeito à carta-planta de Sam Vicente, ob-
ciménto; mas a representação do seu povoamento está infini- serva-se o mesmo anacronismo, em relação à descrição de
tamente longe da animada pintura, que nos deixou Gabriel Gabriel Soares, embora neste caso os pontos de referência
Soares, vasto e ~idente cenário, por toda a parte marchetado sejam menores e a representação cartográfica tenha, como a de
pela casaria dos engenhos, igrejas e ermidas. · Olinda, certo carater, confessadamente sumário, pois o cartó-
A exatidão geográfica dá, por outro lado, carater realista grafo se limita, em mais do que um lugar, a apontar a palavra
a êste anacronismo. Nem se avente que esta pobreza de casais "Fazendas". Em boa verdade, podemos apenas afirmar, neste
e templos seja mais carência do cartógrafo que incipiência rala caso, que ela é anterior a 1583, pois ·d êste ano por diante ne-
de povoado. Já vere~os como na carta de Porto ,Seguro êle nhum cartógrafo, que alí estivesse, deixaria de assinalar o forte
desce a bem menores minúcias. E na mesma carta do Recôn- 'da Barra Grande, omisso na carta.
cavo não se esqueceu de figurar o "curral'' de vacas, assinalado Já quanto à carta do Rio de Janeiro, podemos ir mais longe,
também por Gabriel Soares nas terras do Acum, do conde de segundo cremos. Tanto ou mais rica de toponímia, pelo que
Linhares, genro de Mem de Sá (OBRA CIT., pág. 160) .. respeita a ilhas e rios, ainda que menos exata no contôrno
Verdadeiramente, a carta-planta da Baía mais parece geral que a da Baía, ela apresenta-se igualmente pobre na
a representação gráfica da descrição que Magalhães Gandavo representação do povoamento.
nos deixou no seu TRATADO DA TERRA DO BRASIL, cerca de 1570. Neste caso, o termo de comparação não pode ser a des-
Havia então no Recôncavo três povoações : a Vila Velha, a crição de Gabriel Soares, mais copiosa na toponímia, mas igual-
cidade do Salvador e Taripe. Além disto, 18 engenhos. Na mente carente na geografia humana.
cidade o mosteiro da Companhia e ".afóra este cinco igrejas Na carta do Atlas de Luiz Teixeira figuram a Cidade de
pela terra dentro". S. Sebastiam, a cidade velha, representada, ao que parece,
-64- -65 ~

apenas por vestígios ou ruínas, a Aldea do Martinho e alguns trouxe uma carta, publicada, em 1893, por Gabriel Marcel em
casais na ilha "Do gato", atual do Governador. E nada mms. REPRODUCTIONS DE CARTES ET DE GLOBES RELATIFS À LA DÉCOU~
Aldeia do Martinho, quer dizer, de Martim Afonso, nome VERTE DE L'AMÉRIQUE DU XVI AU XVIII SilkLE, que em tempos
que tomou no batismo o chefe indígena Araribó~a, é;llí ~stabe.­ tivemos ocasião de estudar pa Biblioteca Nacional de Paris,
lecido com muitos outros índios, desde a fundaçao da c1dade. mas da qual existe fotocópia, já muito delida, na Mapoteca do
Mas, em 1568, tornou--se necessário e conveniente aldear os ltamaraty. A carta, que tem a sua assinatura e a data de
índios em terras mais amplas e apropriadas às lavouras. Cedeu-- 1579, intitula-se "Le vrai Pourtrait de Geneure et du Cap
as 0 Provedor Antonio de Mariz, por uma légua do lado do de Frie", ou seja, O verdadeiro retrato do Rio de Janeiro e
mar e duas pa;;a o sertão, no outro lado da baía, junto da do Cabo Frio. Além da cidade de S. Sebastião, lá figura a
atual N iterói. Aí se fundou a aldeia de S . Lourenço, entregue Aldeia de Martinho, com desconhecida designação de Araroue,
aos jesuítas e da qual há notícias, desde 1570, em carta do mas corretamente situada, tendo ao lado a seguinte legenda :
Pe. Gonçalo de Oliveira, que alf edificou uma igreja. Em "Ce vilage fut pris parles françois le voyage de la Sallemende",
alusão ao ataque de quatro naus francesas ao Rio, cerca de
1578 havia crescido por tal forma o número dos seus habitantes
1568. Mas, além da cidade e dessa aldeia, figura igualmente,
que Salvador Correia de Sá resolveu conceder--lhes mais quatro
do outro lado da baía, e corretissimamente situada, a aldeia de
léguas cerca do rio Macacú. Finalmente, em 1583, já os Padres
S . Lourenço com o nome de Rastatue (?) e, finalmente, a do
alí tinham, além de igrejas, residência fixa. Em 1578, formou--
Cabuçú ou de S . Barnabé, esta sem designação alguma. Na
se nova aldeia de índios, no Cabuçú, com o nome de S. Bar--
aldeia de S. Lourenço, ao lado das longas OCAS indígenas,
nabé, a quaL em 1581, foi transferida para as margens do rio
veem-se duas casas mais pequenas, que supomos representam
Macacú, para maior comodidade da catequese da Companhia
a igreja e a casa dos Padres.
( Pe. Serafim Leite, OBRA CIT., I, págs. 123 e seguintes) .
'
Além disso. a mesma cidade de S. Sebastião estende por
Se, a princípio, podemos crer que estes aglomerados des--
sem menos nas vistas que a Aldeia de Martinho e escapassem, mais ampla área bem maior números de edifícios, do que na
por consequência, à figuração num debuxo geral da baía, outro carta de Luiz Teixeira.
tanto se não poderá dizer desde 1578, em que as terras de Assim, sôbre o Morro Cara de Cão vê-se uma casa de
S. Lourenço estavam trasbordantes de moradores e moradas, vigia, "une guerite"; na baía de Botafogo figuram duas casas
à volta ou ao lado da sua igreja. Mas neste caso temos a prova de engenho "maisons à faire le sucre"; outras duas à margem
do que afirmamos . do rio da Carioca, "riviere deau doulce et sapelle cariobe";
Jacques de V audeclaye, cartógrafo normando, do qual mais adiante, sôbre a praia do Flamengo, uma pequena fábrica
existem nos arquivos franceses cartas várias, esteve, em 1579, de telha e de tijolo, "briqueterie - ici on pran la Thuille" e.
ou no ano anterior, na baía do Rio de Janeiro, com a missão para além do morro do Castelo, onde se distingue o castelo
secreta de observar a cidade e colher os informes necessários propriamente dito, com as muralhas e as peças de artilharia,
a um ataque posterior da marinha francesa. Da sua viagem "le fort de hault", por oposição ao "de la riviere", o Colégio
780.696 F. 5
-66- -67~

da Companhia, o pelourinho e o denso casario, estendem~se Para o nosso caso, ou seja, o estudo do Porto Seguro
ainda várias casas nas terras da sesmaria de Manuel de Brito, de Cabral, em suas primeiras incidências históricas, devemos
desde o atual Morro de S. Bento para a esquerda. Trata~se referir o testemunho gráfico de Luiz Teixeira ao ano em que
por certo de novo ou novos engenhos, pois o cartógrafo acres~ êle viu e o~viu. Temos, por mais provável que tenha sido entre
centa : "En ce lieu sont force sucreries,, legenda que se repete 1573, o próprio ano em que chegou Luiz de Brito de Almeida,
quasi pelos mesmos termos na Ilha do Governador - "La e 1574.
Grande Y sle, . E' _q~asi certo que o estudo minucioso, que, por falta de
Observe~se, não obstante, que "O verdadeiro retrato do elementos, não podemos agora fazer, de todo o ROTEIRO...
Rio de Janeiro, de Vaudeclaye é, sob o ponto de vista pro~ ATLAS, levará a maiores precisões e certezas .
priamente cartográfico, menos perfeito e paupérrimo de topo~
nímia, quando comparado com a carta de Teixeira.
Tanto ou melhor, a carta~planta do cartógrafo português
revela excelentes qualidades de observação e figuração, acres~
cidas de melhores informes toponímicos, que não se furta a
registar. Todavia a imagem urbana e a Guanabara do normando
são por tal forma mais evoluídas em povoamento, que devemos
concluir que a carta de Luiz Teixeira é anterior de alguns anos
à de Vaudeclaye, traçada em 1579. Mas, como aí figura o
nome de Manuel de Brito, junto à praia entre o morro de São
Bento e a Aldeia do Martinho, e já em setembro de 1573 era
comum a expressão "praia de Manoel de Brito,, chegamos a
uma data intermédia - cerca de 1574 (V. Tombo dos bens
pertencentes ao Convento de N."' S."' do Carmo do Rio de
Janeiro, em Anais da Biblioteca Nacional, vol. LVII, 1935,
págs. 265 e seguintes) .
E' evidente que neste caso se trata duma cópia, feita cerca
de 1583 (aproximação que apuramos do exame da carta geral)
sõbre o pequeno Atlas do Brasil, debuxado. cerc;a de 1574,
in loco e que lhe serviu de protótipo. Não é para excluir~se a
hipótese de que Luiz Teixeira já nesta data tivesse utilizado
cartas e plantas anteriores. ·
Assim, a data da cópia pouco interessa.
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N. 3. A Baía Cabrália, segundo a carta levantada pela Marinha Brasileira ( 19-40)


O PORTO SEGURO DE CABRAL NO ATLAS DE
LUIZ TEIXEIRA

A carta da Capitania de Porto Seguro foi debuxada no


mesmo fólio em que aparece um trecho do Roteiro; e toda a
linha da costa é acompanhada de legendas roteirísticas, algu-
mas das quais muito longas. Roteiro e carta fazem um só
corpo. Mau grado êste carater intercalado e subsidiário da,
parte cartográfica, o debuxo é dum estilo primoroso, e a carta,
por forma geral. mais correta e rica em toponímia que todas
as demais cartas e plantas do mesmo Atlas, que até agora
examinamos.
Quando a comparamos, por um lado, com a carta 'de
João Teixeira, do Livro que dá razão do Estado, de c. 1626, e,
por outro com a carta última levantada pela Marinha do
Brasil, em 1940, observa-se de golpe que ela está muito mais
próxima, pela exatidão, da segunda que da primeira, em rela-
ção à qual é infinitamente mais perfeita. -
Enquanto, na carta de c. 1626, a baía Cabrália se encontra
quasi inteiramente barrada pela corda dos recifes; a distân-
cia entre o rio João Tiba e o Mutarí, foi consideravelmente
reduzida; o curso dêste último descaracterizado; e as três
pontas da Coroa Vermelha, Mutá e Grande, fundidas numa
só, a "Gorda", com desfiguração completa da baía, tudo
aqui se apresenta corrigido, de sorte que o seu desenho total
cinge-se à realidade, por forma verdadeiramente surpreen-.
dente para a época.
-70- -71-

Por certo, as convenções gráficas do cartógrafo são in- sucessiva e concretamente, ao lado do acidente 'geográfico
feriores às atuais e êle empresta demasiado relêvo a certos aci~ designado.
dentes~ por impossibilidade de lhes dar carater bastante em Estudamos, é certo, em tempo, nos · Arquivos Nacionais
tão curta escala. Trata~se dum senão, comum à cartografia de Paris, um belo Atlas - Livro da descripção de toda a costa
quinhentista, em que as cartas se aproximam por vezes mais da África e ilhas, que a esta parte pertencem com todos o.s
' da caricatura que do "verdadeiro retrato", como pretendia o portos e bahias e baixos e mais particularidades que á minha.
vanglorioso Vaudeclaye. No entanto lá está a baía com sua noticia chegarão, composto de 34 cartas parciais e uma geral,
curva de concha, perfeitamente dielineada e arrumada; o es~ "feito por João Teixeira Albernaz, anno de 1665", em que
tuário do Mutarí desembocando no seu próprio lugar, a se~ texto e carta se misturam por vezes, mas em grau muito me~
guir à volta tão característica do curso final, ao longo da nor. Aliás, várias cartas de João Teixeira ou de João Teixeira
praia; as três pontas da Coroa Vermelha, Mutá e Grande, Albernaz, como, por exemplo, a de 1631, dos seus Atlas do
perfeitamente individuadas, e , a ultima já com a designação Brasil, conteem igualmente pequenas legendas de carater
atual; e a corda dos recifes. ainda que I?ais cerrada que na náutico e até militar. Mas, por via de regra, na cartografia típica
realidade (aqui a caricatura forçava os nau tas a resguardo), dos séculos XVI e XVII, as legendas agrupam~se em cartela
muito mais aberta, proporcionada e correta, que nas cartas de lateral e relacionadas com a carta por meio de letras ou algaris-
João Teixeira e João Teixeira Albernaz{durante toda a primeira mos sôbre o acidente designado. A êsse tipo pertencem as
metade do século XVII. admiraveis cartas do Roteiro de Goa a Suez ( 1541 ) de
O mesmo se pode acrescentar quanto à foz do João de D. João de Castro {vide ed. da Agência Geral das Colô~
Tiba e do Buranhem e seus recifes da barra ou da costa. nias, 1940) e o Livro que dá razão do Estado do Brasil. c. 1626,
A exação é tamanha e tão surpreendente que o escorço do de João Teixeira.
Mutarí não mais aparece tão perfeito até. à carta, proposita~ Os Atlas de João ~Teixeira Albernaz representam, segun..
damente levantada em 1940. Na carta de Mouchez, que do supomos, o último eco duma tradição mal vingada, e da
por tanto tempó serviu de modêlo às demais, êle aparece to~ qual o protótipo ou único modêlo conhecido está no Atlas de
talmente desfigurado: e até a carta monográfica do Mutarí, Luiz Teixeira.
desenhada pelo major Salvador Pires em 1899, lhe é franca .. Por certo, o cartógrafo visava a completar a carta e o
mente inferior. roteiro mutuamente, prevenindo as insuficiências ou obscuri~
Este rigor na representação, quer geral, quer parcial. dades de cada um. E o mesmo processo de fatura faz supor
denuncia, sem a menor sombra de . dúvida, um exame local, que uma e outro se fizeram simultaneamente, pelo cartógrafo
direto e atento - o que atribue aos depoimentos da carta Luiz Teixeira e pelo piloto da expedição. E é de admitir que
singularíssimo valor. Demais, estamos em face dum do-- tanto um como outro houvessem recebido o encargo de emen~
cumento único no gênero, a que poderemos · chamar carta~ dar, o primeiro, as cartas, o segundo, os roteiros anteriores,
roteiro, e em que os avisos e ditames náuticos se inscrevem que desconhecemos, mas, sem dúvida, existiram.
- 72- ,--
i

Com efeito, pelo que diz respeito à carta, a perfeição do


debuxo e a minúcia topográfica são tamanhas, que fazem
supor uma série de reconhecimentos e representações locais
anteriores .
Para o nosso caso, a concomitância do texto e do tra~
çado sôbre o mesmo documento - fruto êste, sem dúvida, de
observação e correção direta, atribue aos seus informes o
carater duma veracidade inexcedível.
Examinado o debuxo da carta, estudemos as legendas.
Ao alto do fólio lê-se, em carateres maiores, que pertencem
'iO texto, propriamente dito :

• "E avisarmeey que partindo dos ditos Ylheos. pera Por.


to Seguro. como sair delles farmeei ao mar por amor e res-
guardo de hús baixos que se chamão do Rio grãde contia de
dez doze legoas. e passando o Rio podermeei chegar ha terra
e ver conhecimêto della como a traz digo. I. Assi como tam-
bem na demonstração abaixo parece/. "
Daqui parece concluir-se que a viagem se fez do Norte
para o Sul, quer dizer na chamada monção dos nordestes,
entre setembro e março, época então preferida, e como ensi-.
nava, em 1608, a Hidrografia de Pilotos de Manuel de Fi-
gueiredo. Esta noção vinha, aliás, de longe. Em 1531, já
os pilotos de Martim Afonso de Sousa sabiam que, entre o
cabo de S. Roque e o Rio de Janeiro, os ventos dominantes
oscilam entre NE. e o SE. segundo as estações; e ainda
hoje se lhes dá o nome de monções de NE. e SE. Mas a
época de transição é em abril ou maio e não em meados de
fevereiro, como supunham os pilotos de Martim Afonso, ou
em março, como afirmava Manuel de Figueiredo (Vide Diá~
rio da N aPegação de Pero Lopes, ed. do Comandante Eugê- I
nio de Castro, 1940, tomo I, pág. 167; e lnstructions Nautiques .I·
Côte est de L'Amérique du Sud, Paris, 1928, págs. 12-13).
N. 4. Porto Seguro no R.oteico-Atlas de Luiz Teixeira (c. 157 4)
Da parte·do texto, que transcrevemos, se cQDdue também
que a carta lhe servia de ''demonstração"'. As legendas, qua
agora vamos ler, servem, por sua vez, de demonstração à
carta. Ao norte, em frente da foz do "rio grande'" (Jequiti-
nhonha) resume..se a lição do texto :
"Baixos do rio grande a que se há de dar Resguardo/. ••
Aventamos, por êste motivo, que as demais legendas late-
rais da carta se relacionem com a parte do texto seguinte, a
qual seria talvez suprível pelo RpTEIRO de Gabriel Soares.
Na carta, 'ao "R. Grande" segue-se o "R. de bouquisape" e a
êste a "Põta dos baixos de S. Ant.o", o "R.o de S. Antonio", o
"R. de Sarnãditibi" e, sôbre a sua margem direita, cerca da
foz, a "Povoação de S. Cruz que mudaram".
Voltemos agora atrás às legendas, que ladeiam a carta.
Em frente da .. Põta dos baixos de S. Ant.o" lê-se "Barra de
barcos ·peque,nos". Gabriel Soares escreve: "e deste rio de
Santo António e da sua ponta até o rio de Semambitibe estão
uns baixos com canal entre eles e a costa, por onde entram
barcos pequenos pela ponta de Santo António... Na carta, '
lá figuram os baixos e o canal. tal como Gabriel Soares des..
cr~ve.

A seguir, na carta, e em frente do "R.o de S. Antonio''


lê-se : "por este boqueirão pode entrar hüa nao" . Gabriel
Soares escreve: "E defronte do rio de Santo Antonio tem
estes arrecifes do mar um boqueirão. por onde pode entrar
uma náo e ir ancorar pelo canal, que se faz entre um arrecife
e o outro, onde estará segura". E lá figura na carta uma
abertura nos baixos.
Logo, em frente do "R. de Samãditibi" da carta de Tei..
xeira, lê-se : "Boqueirão". E Gabriel Soares continua : "no
mesmo arrecife do mar está outro boqueirão, por onde podem
entrar caravelões da costa defronte do rio de Sernambitibe.
pelo qual se pode ir buscar o porto".
-74- -75-

Na carta. à "Povoaçãd de S. cruz que mudaram'' segue- o dobrar hiía ponta. entrão pela barra de p.• seguro ao sudu-
se uma baía ~ curva regular em concha, terminada em ponf:él, este vigiando e dando resguardo a põta. e a costa me guiará".
e esta prolongada em recife. Junto desta ponta desagua um E, ao sul do recife de Porto Seguro, volta a ler-se: "Entrã-
rio, cuja parte final do curso faz uma larga volta. paralela à do por esta barra já dentro descobre o Rio de S. Fr.oo então
costa. Sôbre a sua margem esquerda e cerca da foz está hirei continuãdo para dentro pera navio de 60 tones (tonéis) .
desenhado um povoado, assinalado pelo seguinte toponímico: Se he navio grande toma mea carga em porto seguro e vão
"Povoação de S. Cruz a nova"; e sôbre a margem direita. acabar de carregar a Santa Cruz".
mas menos próximo da foz, um outro denominado "povoação Como iremos ver, de novo o RoTEIRO de Gabriel Soa-
de S. Cruz. a velha''. Em frente da larga baía ( atual ea.. res se ajusta à carta e às legendas de Luiz Teixeira. "Do
brália) lê-se : "aqui surgê naos da india e estão seguras / rio de Santa Cruz ·- continua êle - ao de ltacumirim é
entrão a !oeste e vão surgir em hiía/enseada como cõcha". meia légua; onde esteve o engenho de João' da Rocha. Do
Gabriel Soares, por sua vez, escreve: "Do rio de Ser~ rio de Itacumirim ao de Porto Seguro é meia légua; e entre
nanbitibe ao de Santa Cruz são duas leguas, onde esteve um um e outro está um riacho, que se diz de S. Francisco juntú
das barreiras vermelhas. Defronte do rio Itacumirim até o
engenho de assucar. Neste porto de Santa Cruz entram
de Santa Cruz vai uma ordem de arrecifes. . . e faz outra
naos da lndia de todo o porte. as quaes entram com a proa
ordem de arrecifes baixos mais ao mar.. . . e por entre uns
a loeste, e surgem em uma enseada como concha, onde estão
arrecifes e os outros é a barra de Porto Seguro, por onde
muito seguras de todo o tempo". E logo adeante anota :
entram navios de sessenta toneis; e se o navio é grande, toma
"Neste porto de Santa Cruz esteve Pedro Alvares Cabral,
meia carga em Porto Seguro, e vai acabar de carregar em
quando ia para a lndia, e descobriu esta terra, e aqui tomou
Santa Cruz." E a seguir, referindo-se à entrada pela barra
posse dela, onde esteve a vila de Santa Cruz. . . Esta vila
sul de Porto Seguro : "quem entrar por esta barra, como es-
de Santa Cruz se despovoou donde esteve e a passaram para
tiver dentro d' ella, descobrirá um riacho. que se diz de S.
junto do rio de Sernanbitibe ...
Francisco; e como o descobrir vá andando para dentro até
Antes de compararmos o texto de Gabriel Soares com a chegar ao porto".
carta-roteiro d:e Luiz Teixeira, neste particular da povoaçãc Daí por deante e até ao engenho de Gonçalo Pires, a
de Santa Cruz, analisemos ainda o trecho seguinte da carta . descrição de Gabriel Soares cinge-se estreitamente à carta .
A seguir à povoação de Santa Cruz, a velha, a costa recorta- A mesma "hermida de Nossa Senhora d'Ajuda, que faz mui-
se nas três pontas da Coroa :Vermelha, Mutá e Grande, no-- tos milagres" na vila de Santo Amaro, lá está igualmente fi-
meada apenas esta última, e seguem-se o "R. dos mãgues", gurada e exalçada por Luiz Teixeira, junto da beira-mar,
que ainda hoje conserva a mesma designação, o "R. Ytara.- com sua cruz de Cristo, ao alto : "N. S. da ajuda de gr.e• mi-
merim", o "R. de S. frãcisco", a "Barreira Vermelha" e, .fi- lagres".
nalmente a "Villa do p.o seguro" e a ":Villa de S. Amaro". Fica, por conseguinte, perfeitamente estabelecida a filia ..
No lugar, onde os recifes se abrem, em frente da "p. grande" ção do texto de Gabriel Soares no RoTEIRO..ATLAS de Luiz
e tal como é na realidade, lê-se : "Entrãdo por esta barra com Teixeira.
-76-
-77-
Porventura a leitura total dêste último manuscrito, ainda
à margem do qual assentam as duas povoações de Santa
inédito, permita firmar mais estreitamente êste parentesco.
Cruz, a Velha e a Nova, é o Mutarí, ao qual Gabriel Soares
Mas o fólio, que estamos estudando, já permite não só
e provavelmente Luiz Teixeira chamavam rio de Santa Cruz:
completar analogias, mas emendar algumas pequenas incor-
João Teixeira - rio Doce; e o jesuíta anônimo, talvez - a
reções do Roteiro de Gabriel Soares. Assim, basta olhar
Riaga; assim como o rio de Sernambitibe, em cuja margem se
a carta para se concluir que o Itacumirim não está a meia
légua do Rio de Santa Cruz, mas pelo menos a légua e meia, ergue a "povoação de S. Cruz que mudaram" é o atual João de
e, a meia, como dizem Soares e o jesuita anônimo, da vila de Tiba, cujo nome não passa de corrupção do primitivo e indí-
Porto Seguro. gena.
Também neste ponto da costa, que medeia entre o M u- Segundo cremos, foi o almirante Mouchez o primeiro a
a
tarí e o Buranhem, carta de Luiz Teixeira, assim como as impor o nome de Itacumirim ao Mutarí, o qual, não obstante, já
de seu filho João Teixeira excedem, na figuração da rede aparece assim designado em cartas anteriores, como a de
hidrográfica, todas as cartas moden1as, excetuando a última, Arrow Smith, do primeiro quartel do séclllo XIX.
de 1940 . Nada menos de três rios e três riachos estão assi.. Não se tenha por demasiada esta identificação.
nalados nesta última. Na carta de Luiz Teixeira figuram Ainda recentemente, o comandante Eugenio de Castro
o rio dos Mangues, perfeitamente localizado e com a desig .. nos seus comentários exhaustivos ao DIÁRIO DA NAVEGAÇÃO DE
nação atual; o I tacumirim, atual Guarape, com a curva carac... PERO LoPES DE SousA, e, mau grado sua extraordinária com-
terística do estuário, bem representada, e o riacho de S. Fran.. petência, supunha que, em 1531. "o R. S . João de Tiba ou
cisco, que ainda conserva o mesmo nome. No LIVRO DA RA- R. deSta. Cruz" eram o rio S. João de Tiba e baía deSta.
zÃo DO EsTADO figura, além dêstes o rio Humuna, atual Mun.- Cruz" ( ed . cit . , pág . 171 ) .
daí. Em compensação, a carta de Mouchez, que serviu de Que o Porto Seguro de Cabral fosse a atual baía Ca-
modêlo a todas as cartas seguintes, assinala apenas, o rio dos brália; a primitiva Povoação de Santa Cruz, na foz do Muta-
Mangues e um riacho, provavelmente o de S. Francisco; e rí; e nesse lugar se tenha celebrado a cerimônia da posse da
Salvador Pires, que adrede visitou a região, chega a afirmar, terra e erguido a Cruz, resulta igualmente da perfeita corres-
referindo-se ao Mutarí : "Percorrendo toda a costa, quer da pondência entre as afirmações de Gabriel Soares e o debuxo
baía Cabrália desde a ponta de Santo Antonio até a Coroa e precisões do RoTEIRo-ATLAS de Luiz Teixeira.
Vermelha; quer daí até o rio Buranhen, em Porto Seguro, só Esses três fatos assentavam numa tradição, então ainda
encontramos, desaguando no mar o ribeirão de que trata- viva, e cujas raizes podemos seguir até 1500. É o que vamos
mos"! (obra cit., pág. 27). fazer em relação à tradição cartográfica do Porto Seguro de
Resumindo: mais uma vez se prova que a carta de Luiz Cabral, reservando-nos tratar em capítulos à parte a locali-
Teixeira representa o fruto de longa, cuidada e minuciosa zação das povoações de Santa Cruz e a do lugar onde se
exploração ou exploraçõe~. plantou a Cruz .
Regressemos agora à baía Cabrália. Examinando a Com efeito, se analisarmos as cartas portuguesas ou de
carta de Teixeira, não resta agora a menor dúvida que o rio, influência portuguesa, desenhadas entre a viagem de Ca-
-78- -79-

bral e a época das donatárias, lá veremos que o Porto Seguro ou seja 1534, permanece a mesma forma gráfica de baía semi-
primitivo designa a atual baía Cabrália, já representada nos circular, encerrada ao norte e ao sul pelos recifes.
seus rasgos essenciais, ainda que por vezes acentuados, segun- Mas nenhuma dessas representações cartográficas se
'd o o estilo caricatural, chamemos~lhe assim, próprio da época. aproxima tão específica e irrecusavelmente da verdade, como
Logo no mapa português, chamado de Cantina, de 1502, a de Cantina, traçada em 1502, com a visão objetiva do pró~
a legenda de Porto Seguro se inscreve ao lado duma minús~ prio descobrimento. Na verdade, o Porto Seguro, fechado
e prolongado no sul por uma massa de recifes, que se conti~
cula baía, que uma série de recifes encerra e prolonga ao
nua imediatamente ao longo da costa em duas ordens, só pode
norte e ao sul, daquí descendo, ao longo da costa, em duas
ordens, como na r:ealidade (Ver a excelente reprodução par-
rr
ser a baía Cabrália. A tal ponto que a carta de Luiz eixeira,
nesse particular, se aproxima, mais que de nenhuma outra, da
cial na História da CoLONIZAÇÃO · PoRTUGUESA DO BRASIL, de Cantina.
tomo II, pág. 265) . É esta, aliás, a opinião de Duarte Leite. A razão da semelhança deve ser a mesma : as duas são
Descrevendo êsse trecho do mapa, anota: "A carta de Ca- o fruto direto da experiência, ainda que a última, pela natu-
minha atribue a Cabral as denominações de VERA CRUZ e reza própria do trabalho, muito mais perfeita e sazonada.
PoRTO SEGURO. Este último ancoradouro da armada, di- Aliás, a própria legenda, inscrita ao lado da baía, rela-
ante e ao sul do qual estão figurados vários recifes, que em dom~ a representação de Luiz Teixeira com o descobrimento
verdade existem, é a atual baía Cabrália, de lat. 16°2 1' S ..... de Cabral : "aqui surgem naos da lndia e estão seguras".
( IBIDEM, pág . 264) . A três quartos de século de distância, escuta~se ainda
Acrescentemos nós que o estuário, figurado no extremo na curta frase o eco da ancoragem da armada cabralina e
sul da baía não pode ser senão o do Mutarí; e que naquêle patenteiam~se as razões, únicas naquêle trecho de costa, que
trecho da costa não se encontra outro acidente real com estes levaram o capitão-mar, perseguido pela tormenta do sueste,
caracteres . a dar à "enseada como concha" protegida, pelos recifes, do
Nas cartas seguintes o toponímico de Porto Seguro con- sul e do sueste o nome de PoRTO SEGURO.
tinua figurando ao lado duma baía semelhante. mas de curva
mais acentuada e esquemática, em forma de concha.
É o que sucede no mapa de Canério, que D . Leite supõe
de 1505, e onde figura igualmente uma abertura de estuário
no extremo meridional da curva . Nas cartas de W aldsee-
muller ( 1507 e 1516) acentua~se ainda êste processo de es~
quematização. Na carta de Lopo Homem, de 1519, conti-
nua a mesma representação sumária e característica do Porto
Seguro cabralino, completado aquí pelos recifes do sul. Na
carta de Gaspar Viegas, dos fins do período predonatarial,

!.

l
ORIGENS DA POVOAÇÃO DE SANTA CRUZ

A primeira notícia contemporânea e suficientemente lo--


calizada, que temos da povoação de Santa Cruz, consta duma
interessante carta, escrita de Porto Seguro a D. João III. a
14 de julhe de 1550, por Duarte de Lemos, que então estava
por governador daquela Capitania.
Na curiosa epístola informa o capitão ao monarca: "Se~
nhor, V. A. saberá como Vasco Fernandes Coutinho veyo
ter a este Porto Seguro e ffoy sorgir junto da nao a . Santa
Cruz, [fazenda do Duque d Aveiro, que he desta villa duas
llegoas, omde estava a nao de V. A. á carega de bràzil ...
eu ho ffuy ver e lhe pedi e requery ... " (HISTÓRIA DA CoLo~
NIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL: III. pág . 267) .
Desta pequena notícia se conclue :

1°, que Santa Cruz estava a duas léguas de Porto Se~


guro. Advirta~se que o caminho por terra entre as
duas povoações devia ser então muito frequente~
mente trilhado, por fácil e isento de perigos. Nesta
mesma carta, Pero de Lemos informa dos indígenas
da capitania "estarem de paz e muito nossos ami~
gos". Além disso, o epistológrafo falava por expe--
riência própria, pois tinha lá ido. Quer dizer, o
cômputo das duas léguas era fruto duma experiên-
cia quotidiana, comprovada neste caso pela própria.
Ora, na realidade, o caminho por terra e, a direito,
o que não só era possível, mas mais prático, entre
'00.600 F. '
-82- . -83-

Porto Seguro e a parte mais austral do curso do 1546; já então pertencia igualmente ao Duque e era bastante
Mutarí, equivalia a duas léguas das antigas, bem grande para ter igreja, o que se depreende também das decla...
medidas. rações do próprio Tourinho, que afirmava ter mandado cons..
Por mar o trajeto, devido à configuração da costa · truir sete igrejas na sua capitania, duas das quais, na vila de
e dos recifes, orçava por três léguas. Na mdrgem Porto Seguro • !
direita do rio e naquela parte do seu curso, colo- Como vimos, Gabriel Soares informa que Pero Touri...
cava Luiz Teixeira a povoação de Santa Cruz, a nho edificara a "vila de Santa Cruz": e para que a povoação
velha. Concluímos, pois, que está era igualmente tivesse igrej~ e a terra fosse objeto duma transação com o
a Santa Cruz de Duarte de Lemos; Duque, e êste enviasse a povoá-la gente sua, é de supor que
2", o capitão de Porto Seguro qualificava Santa Cruz a fundação date da chegada do donatário às suas terras ou
como "fazenda do Duque de Aveiro", quer dizer, pouco depois, ou seja de 1535 ou do ano seguinte.
vasta porção de terra, já em 1550 pertencente ao Observemos igualmente que na povoação de Santa Cruz
Duque, e onde podia caber, além duma pequena po· a velha, a da margem direita do Mutarí, na carta de Luiz
voação um engenho de açúcar, a construir ou, por... Teixeira, figura igualmente uma igreja.
ventura, em construção, o chamado ENGENHO DO Da carta de Duarte de Lemos se averigua ainda que ;
DUQUE;
capitania de Porto Seguro era sede dum movimento marítimo
3°, podemos, com efeito, supor que ainda naquêle ano
de certa importância e regularidade., Não só por ela sabe-
se não produzia açúcar ou em quantidade apreciá--
mos que, em 1550, estava no porto de Santa Cruz (a velha)
vel em Santa Cruz.., Não só Duarte de Lemos afir...
uma nau de El Rei a carregar, mas que ali fora ter em seu
ma que na capitania havia "ainda pouco açuquare"
navio o desditoso donatário do Espírito Santo, Vasco Fer...
mas expressamente declara que a nau de El Rei
nandes Coutinho. Mais importante é a referência aos "ar-
estava carregando pau brasil em Santa Cruz.
madores desta capitania", aos quais as imposições do mono-
Donde é de presumir que ou não havia açúcar ou
pólio real limitavam a possibilidade de obter "fretes de seus
em quantidade para carregar • !
navios", para carregar o pau-brasil. Como complemento na...
De quando dataria a fundação de Santa Cruz nas mar... tural dêste fato, existia na capitania "hum pilloto que he so..
gens do Mutarí? Na inquirição tirada na vila de Porto Se- brinho de Pero do Campo, que se chama Jorge Dias", prático
guro, em 1546, "sobre as heresias e blasfemias que Pero do na arte de astrolábio, capaz de em terra "reger-se pela altu-
Campo Tourinho Governador desta Capytanya dyzya e fa- ra" e àquele tempo em viagem para a Baía, por mandado de
zya contra Deus nosso Senhor" depõe um "morador em San... Duarte de Lemos, para adquirir os resgates, necessários a
ta Cruz" e, além disso, Manoel Colaço, capelão do Duque,
uma entrada pelo sertão de Porto Seguro à busca do ouro e
que fez de inquiridor, e Pero Mousinho, escudeiro do duque da qual havia de ser guia e "um dos principais"r·l
(HisTÓRIA DA CoLONIZAÇÃo PoRTUGUESA Do BRASIL, III,
Em 1550, o pequeno núcleo dos colonos da capitania,
págs. 204, 277 e seguintes) . A povoação já existia, pois, em
mau grado as perturbações causadas pela destituição e envio
-84- -85-

sob custódia para Lisboa do primitivo donatário, tinha não tamanha ruína e tão viva inquietação que os moradores se
só os elementos necessários para desenvolver o seu comércio viram em sério risco de ter que abandonar a terra. Esta in...
por mar, mas capacidade e sêde de expansão para o interior. formação nos dá um morador de Porto Seguro, o castelhano
Já os pilotos do mar queriam prolongar suas empresas p_or Filipe Guilhem, que alí exercia o cargo de provedor da fa~
terra, guiando bandeiras. E assim se compreende tambem zenda real. Em carta, ao que parece pouco conhecida, dizia
que a pequena povoação de Santa Cruz pudesse oferecer ao êle à Rainha D. Catarina, referindo~se aos repetidos assai...
infortúnio três metamorfoses. tos de "un gentio que llaman aymurés; y estos de tal manera
Essa tríplice povoação de Santa Cruz - a velha, a nova acometierõ a esta capitania, por tantas partes en las herda~
e a que mudaram, a darmos inteiro crédito à toponímica de des y vilhas que, de tres que son, tan cotidianamente acome~
Luiz Teixeira, põe o problema da localização e sucessão cro-- tierõ la una delhas que se despoblo y en las otras .matarõ
nológica respectivas . . hombres y mugeres y muchos esclavos y fue de manera que
Segundo a carta de. Teixeira, as duas primeiras sucede~ todos los moradores estavan para Ia despoblar" . Mas acres-
ram~se nas duas margens opostas do Mutarí e na parte final centa o provedor que, sabidas estas notícias na Baía, o go-
Ho curso respectivo. Mas, dada a brevidade dêsse trecho do vernador Mem de Sá mandou em socorro da aflita capitania
rio, - cerca de 800 metros ao longo da costa - e a distância o ouvidor geral, Braz Fragoso, que ali chegou a 17 de janei~
de poucos metros duma margem à outra, as du~s. vil~s esta~ ro de 1561 dando por então remédio à situação (Sousa Vi~
riam tão próximas, que só podemos encarar a d1stmçao entre terbo, TRABALHOS NÁUTICOS, I, pág. 151).
velha e nova, como fases no desenvolvimento do niesmo po-
Se das três vilas - Porto Seguro, Santo Amaro e Santa
voado. Afigura~se~nos que o problema, se de fato existiu
Cruz - uma se despovoou, deve ter sido a última, por mais
a dualidade toponímica, é principalmente de ordem crono~
afastada e débil, em relação às outras, cuja proximidade re~
lógica e breve estudaremos êsse aspecto.
cíproca, melhoria de posição e maior importância e número de
Outro é o caso da Santa Cruz que mudaram. A distin~ moradores favoreciam a resistência aos invasores. Coloca~
ção do lugar e o número e qualidade dos depoimentos sôbre da em terreno raso e à beira da selva, sôbre a margem ou as
a transferência não dão lugar a dúvida. Conhece~se, aliás, margens dum pequeno rio, cujo escasso leito pouca defesa
a causa do êxodo dos moradores desde o estuário do Mutarí oferecia, Santa Cruz devia, pelo contrário, ser alvo fácil de
para 0 de Sernambitibe : os repetidos assaltos e assolações
agressões.
dos aimorés.
O certo é que o TRATADO DA TERRA DO BRASIL, redigido
Fiados nos testemunhos de Gandavo e Gabriel Soares,
em 1570, ou antes, segundo a opinião autorizada de Rodolfo
os historiadores reportam o comêço daquela devastadora in...
Garcia, já menciona "Santa Cruz, que está d'aí (de Porto
vasão, nas capitanias dos Ilhéus e Porto Seguro, ao ano de
Seguro) quatro Iegoas para o Norte", quer dizer, "a que
1564. O apuro da data tem certa importância para o caso;
mudaram", a atual povoação nas margens do João de Tiba. Diz
e podemos afirmar que os estragos causados pelos aimorés Gabriel Soares que "a passaram para junto do rio de Sernan...
na capitania de Porto Seguro já, em 1560, eram causa de bitibe, pela terra ser mais sadia e acomodada para os mora...
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radores viverem". Em boa verdade, a grande comodidade dre Serafim Leite, obra cit., I, pág. 201). Nesse mesmo ano
vinha..lhe da posição. Colocada sôbre um outeiro, duns 40 ou muito próximo, Magalhães Gandavo, fazendo de novo o
metros de altura, o rio favorecia..lhe a defesa em metade do balanço das capitanias na sua HISTÓRIA DA PROVÍNCIA SANTA
perímetro, e a pequena elevação, na metade restante. CRUZ, refere-se apenas às duas povoações de Porto Seguro
e Santo Amaro e ao Porto Seguro de. Cabral, duas léguas
A segurança decidia então as preferências . Em 1553,
ao norte do recife do Buranhem, segundo a sua própria lo..
alguns anos antes das ameaças dos aimorés, o governador
calização. Dir..se-ia, em face desta flutuação entre a refe..
Tomé de Sousa percorrera toda a costa e escrevia ao Rei,
rência do TRATADO, escrito cerca de 1570, e a HISTÓRIA,
dando-lhe conta de que: "Todas as vilas e povoações de
engenhos desta costa fiz cercar de taipa com seus baluartes quatro anos após, que nesse intervalo ou nascera ou ganhara
e as que estavão arredadas do mar fiz chegar ao mar e lhes importância a Santa Cruz, neste caso, a nova, na margem
dei toda a artilharia que me pareceu necessária ... " (HISTÓRIA esquerda do Mutarí~ assinalada apenas por uma povoação
da CoLONIZAÇÃo PoRTUGUESA DO BRASIL, III, págs. 364-65). de engenho, como tantas outras, o que explicaria da parte
Quando, em 1553, se fazia sentir tal necessidade, pode de Gandavo a menção daquelas duas e a referência ao porto,
imaginar-se o que seria nos anos seguintes ao de 1560. de.. de novo frequentado.
pois de invasão dos aimorés . Aliás, neste mesmo ano em Esta nos parece a interpretação mais plausível à simul..
que o flagelo dos terríveis tapuias começa a açoutar a capi.. taneidade das três povoações de Santa Cruz, à distinção en..
tania, passava ela de vez para a posse do Duque de Aveiro, tre velha, a que mudaram, e a nova e à maneira como apare..
D. João de Lencastre, "o qual - diz Gabriel Soares - a fa- cem representadas na carta de Teixeira.
voreceu muito com gente e capitão que a governasse, e com Propositadamente colocamos a que mudaram a seguir à
navios que ele todos os anos mandava, e com mercadorias; velha. Não só a designação de nova, para Luiz Teixeira, que
onde mandou fazer à sua custa engenho de açucar e provo- viu, devia significar atributo atual e, em relação às duas res ..
cou a outras pessoas de Lisboa a que fizessem outros enge- tantes, mas o cartógrafo representa-a com mais relevo e cui..
nhos ... ; em a qual houve em tempo do duque sete ou oito en- dado. Não deixaremos de apontar a circunstância de que a
genhos de açucar, onde se lavrava cada ano muito, que se povoação de Santa Cruz, a nova, ao contrário das outras
trazia a este reino ... " (obra cit. pág. 67) . duas, é nitidamente representada em forma acastelada: e que
A mudança de povoado deve ter..se operado, por con- é êsse o tipo da povoação de engenho nobre desde c. 1570,
sequência, ao favor do novo e opulento donatário, nalgum como se depreende do inventário de Mem de Sá, de 1572.
dos primeiros anos da década que decorre entre 1560, em Aí à casa grande do engenho se chama "fortaleza" ou se des..
.q ue a povoação foi assolada, e 1570, em que nos aparece já creve como "casa fortaleza nova de pedra e cal telhada de
nas margens do Sernambitibe. novo e mais assoalhada e toda cercada de madeira para se
Cerca de 1574. haviam crescido de novo os núcleos de fazer varandas, qual está por assoalhar". Além da casa..
portugueses, então em número de cinco, contando com a pe- fortaleza, havia mais "baluarte telhado e cercado de pau a
quena metrópole, possuindo alguns engenhos e fazendas ( Pa.. pique" e a casa do padre, a do feitor, a do escumeiro, as três

I
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casas compridas e de palha "em que se agasalham os negros a isso" (HisTÓRIA DA CoLoNIZAÇÃO PoRTUGUESA DO BRASil.,
aa Guiné", a "casa d'argueira", a dos meles e a de purgar III. pág . 365) .
(Wanderley Pinho, TESTAMENTO DE MEM DE SÃ, 1941, Pelo que respeita a Porto Seguro, só a terrível experiên~
pág. 108). da da invasão destruidora dos tapuias em 1560 deve ter con-
W anderley Pinho, de cuja excelente monografia sôbre vencido moradores e o novo donatário, D . João de Lencas~
o Testamento de Mem de Sá extraímos estas notas, comenta: tre, que nesse mesmo ano comprava a capitania, a construir ou
"Somados os característicos destas duas construções, temos a reconstruir o engenho, conforme ao padrão exigido pelo regi~
noção completa da caza forte quinhentista, morada do senhor mento real.
ou, aqui, do administrador do engenho, capaz de resistir aos Provavelmente, na década entre 1560 e 1570, sob a
ataques dos gentio& - de pedra e cal, telhada, assoalháda, pressão das circunstâncias, se terá formado êsse primeiro tipo
com varandas, em forma de baluarte, com sua cerca de pau da casa grande acastelada de engenho, recordando ainda a
a pique em derredor. Neste ponto Mem de Sá não falhava torre de menagem medieval, com sua cerca e baluartes, mas
já amplamente avarandada, para desabafar--se das sufocações
às prescrições dos regimentos, que determinavam, ao con~
do trópico, e rodeada pelas senzalas da escravaria. Essa
ceder--se uma sesmaria, a exigência da construção de "torres
criação, obedecendo ainda ao molde peninsular, mas acomo-
ou casas fortes" ( IBIDEM, pág. 55) .
dada às exigências do clima e da mão de ol?ra, importada
Esta exigência, acrescentamos, vinha, é certo, do tempo do continente fronteiro, acabava, por volta de 1570, de nascer
de Tomé de Sousa e do seu regimento e devia estender~se a e seria de comêço apenas apanágio dos grandes senhores de
todos os engenhos a construir daí por diante (vide Regimen~ engenho, à frente dos quais, em opulência e poderio podemos
to de Tomé de Sousa, em HISTÓRIA DA CoLONIZAÇÃO PoRTU~ contar o duque D. João ou seu filho D . Pedro Diniz,. que
GUESA DO BRASIL, III, pág. 345 e seguintes) . lhe sucedeu em 1571 .
Pelo mesmo regimento deveria o governador obrigar os A nosso ver, a figuração da Santa Cruz, a Nova, ,por
senhores de engenhos a ter, além das torres ou casas fortes, forma tão distinta das outras duas, na carta de Luiz Teixeira
"quatro berços e dez espingardas com a pólvora necessária não é obra de fantasia ou de acaso. Ainda que dentro dum
e dez bestas e 20 espadas e dez lanças ou chuças e 20 corpos molde esquemático e convencional, ela representa uma p~
darmas dalgodão". voação nobre de engenho, o engenho do duque, - o único
I

Mas só, em 1553, Tomé de Sousa fez a viagem de ins~ seu, a que se refere Gabriel Soares, como já antes o jesuíta
peção à costa, e da carta, em que nesse ano dá conta ao m~ anônimo, e construido na fazenda de Santa Cruz, que já, em
narca de suas diligências, se conclue que donatários ou ca~ 1550, pertencia a D. João Lencastre.
pitães e moradores se esquivavam a cumprir esses novos en... Entretanto os assaltos dos tapuias renovavam--se e cres~
cargos, que se lhes afiguravam desnecessários : "porque os ciam de fúria. Cerca de 1578, dizia o jesuíta anônimo que o
capitães ....- dizia êle ....- não querem ter a (artilharia) a que engenho da Riaga, pertencente ao duque, a que chamavam
são obrigados a ter, nem tem fazendas por onde os obrigue "povoação Santa Cruz" fora queimado, segundo alguns di~
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ziam, pelos tapuias. "Nunca o duque o consertou. E assim Depois de 1585, tornada impraticável com os assaltos
ficou tudo desbaratado"; e acrescentava o padre que, por isso. dos tapuias, a indústria do açúcar, base da prosperidade eco-
a povoação de Cerenambitipe. que então tinha 28 vizinhos nômica da colônia, a capitania e seus povoados deperecem.
e 150 escravos, lhe herdara o nome de Santa Cruz .. Porto Seguro e Santa Cruz, que, ainda em 1585, contavam,
Tamanhos foram os estragos causados pelos aimorés. segundo Anchieta, 50 moradores cada uma, vão-se despo-
,q ue dos cinco engenhos, numerados por Gandavo em 1570 voando lentamente. Em 1602, os jesuítas resolvem abando-
e que teriam subido a oito, segundo Gabriel Soares, não exis- nar a capitania.
tia mais que um ou dois, cerca de 1584 - infor am unanime- A carta do superior do Brasil, Pero Rodrigues, escrita
mente Soares, Cardim e Anchieta. Em 15 5, segundo o nesse ano ao geral da Companhia, a expor-lhe os motivos do
último, já não havia engenhos. abandono, pinta a cores negras, talvez demasiado negras, o
Daqui se infere claramente que, Gabriel Soares quan- estado da donatária. Os aimorés haviam ocupado a terra
do, cerca de 1584, dizia que os navios grandes faziam meia por tal modo, dizimado os moradores e seus escravos, que
carga em Porto Seguro e a outra meia em Santa Cruz, não dos primeiros restavam apenas 30, e estes inibidos sequer de
repetia mais que o eco sediço duma realidade, anterior de cavar mantimento e sustentar-se a si e aos padres. Os
dez anos . Esta regularidade no carregamento dos navios padres corriam perigo de vida, quer na visita às suas aldeias
grandes supõe carga de açúcar, isto é, confirma a atualidade de índios, quer na própria vila de Porto Seguro. A aflitiva
de Santa Cruz, a nova, (engenho do duque), ao tempo em situação chegara a ponto que "ultimamente o capitão da terra,
que Luiz Teixeira a designava na carta; e uma época muito para a gente a não despejar, não tem outro remédio senão
anterior a 1585, em que não havia engenhos, e até distante de tomar-lhe as velas (dos navios) e impedir a fugida ... " E
1578, como se infere dos dizeres do jesuíta anônimo : "Este o superior terminava : "Por estas razões, com parecer dos
engenho queimaram os tapuias, segundo alguns dizem. padres consultores, me resolvi a mandar vir os padres, cujas
Nunca mais o duque o concertou". Mais uma vez, além da vidas estão arriscadas, sem nenhum fruito" (Padre Serafim
identidade Santa Cruz, a nova - engenho do duque, nos Leite, obra cit. , I. pág . 204) .
aproximamos irrecusavelmente do ano de 1573, como aquêle Os colonos, esses, a-pesar-de tudo, continuaram. Em
em que Luiz Teixeira traçou a sua carta da capitania de Porto 1610, Porto Seguro, cercada pelos índios, esteve em risco de
Seguro. sossobrar definitivamente. Mas logo, em 1612, o autor da
Nesse ano, segundo cremos, existiriam ainda as ruínas RAzÃo DO EsTADO proclama que a paz está assegurada; nu-
de Santa Cruz, a velha, contíguas a Santa Cruz, a nova, mera em 100 os moradores brancos de Porto Seguro; fala
em plena atividade, e separadas ~penas e se tanto pelo es- dum engenho de açúcar em Tabatinga; de muitas roças de
treito Mutarí. Mais ao norte, sôbre o Sernambitibe, eleva- mantimentos e "madeiras em quantidade de que se valem e
va-se a mais longínqua e pequena "Santa Cruz, que muda- fazem embarcações, não tantas, como em outro tempo, em
ram'' . Mas as duas primeiras formavam, na verdade, um que, carregadas de suas coisas da terra e ali feitas, tratavam
único povoado. em Angola e no Reino...
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Alma estoica devia ter o relator! Não esconde que em Resta saber se a tradição era legítima e qual o processo
Porto Seguro "as mais das casas estão postas em terra"•• que da sua perpetuação. Não faltam elementos, quer novos
1
os engennos se perderam com a guerra dos tapuias; que as guer desatendidos, até hoje, pfl;ra êsse estudo. Passemo-los
duas povoações de Santa Cruz "mostram-se assoladas e 0 em rápida revista.
engenho do duque despovoado". Mas atribue a culpa prin~ Dum documento, recentemente publicado, a certidão de
cipal à "i~s.uficiência de mandadores e pouco socorro e ajuda Yalentim Fernandes, passada em Lisboa a 20 de maio de
do donatano, fazendo 1503, e por nós pela primeira vez comentada, se conclue que
, a guerra dos aimorés mais espantosa • a expedição de 1501..-1502, em que viajava Vespúcio, tocou
do que em e f eito era .
em Porto Seguro e no Porto Seguro de Cabral. Nesse extra-
A censura, a que não faltava sua percentagem de jus..
ordinário documento, Valentim Fernandes, depois de reve:
tiça, atin~ia também os jesuítas, que, em 1621, acabaram por )ar o descobrimento de "um outro mundo, num mar desconhe-
voltar a mstalar-se na capitania, mas que, ao abandoná..la 19 cido, sob a linha equinocial" e de haver descrito a novidade
anos antes, proclamavam : "e, sem falta, acabar..se..á de des .. dos seus habitantes, da sua fauna e flora, declara :
povoar a terra" .
"E eu ... li a carta presente diante da régia Magestade,
Na época, em que o censor da RAZÃO oo EsTADO sen- aos seus barões, supremos capitães e pilotos ou governadores .
tenciava aquêle veredito, na carta, que acompanha 0 texto dos seus navios da supracitada terra dos antípodas com o
j~ ~ão figu~ava mais.. que a "povoação Velha", na marge~ novo nome de Terra de Santa Cruz e todos unanimemente a
dtretta do no Doce, Santa Cruz", entre êste e o Sernambi.. confirmaram; e eu coligi tudo isto dum livro escrito por mim,
tibe, para cujas nascentes fantasiosamente se desterrara o mediante a narração de dois homens da terra acima referida
"engenho do duque", cuja posição, bem sabemos agora, os e abaixo assinados, que durante 20 meses lá mor~ram" (Jai-
aimorés forçavam a situar junto da costa, onde, em caso me Cortesão, A ExPANSÃO PoRTUGUESA NO BRASIL, na H1s ...
de necessidade, os barcos ofereciam a esperança última de TÓRIA DA ExPANSÃO PoRTUGUESA NO MuNDO, sob a direção
salvação. de A. Baião, H. Cidade eM. Múrias, vol. III, pág. 21..-22).
A tradição apagára-se a ponto de se deslocar aberrati..- Referido o acontecimento à expedição imediatamente
vamente a toponímia. E, à falta de frequência, a carta do posterior à de Cabral, não é difícil concluir que a pequena
porto de Santa Cruz degenerara numa imagem grosseira e frota haja tocado em Porto Seguro e aí recolhido os dois de-
maculada de falsidades . gredados deixados na viagem anterior.
Esta. comparação mais faz ressaltar o cara ter experi~ É para lembrar que, durante a sua estadia em Porto Se-
mental, VIsto e objetivo da carta de Luiz Teixeira. Ali, na guro, Pedro Alvares Cabral chegou a pensar em levar consi-
foz do Mutarí, teria êle recolhido a tradição, que ligava a go dois dos tupiniquins da terra, em lugar dos dois degreda-
povoação de Santa Cruz ao desembarcadouro de Cabral e ao dos que ficavam. A semelhante alvitre opuseram os demais
lugar onde o capitão-mor celebrara a cerimônia da posse da capitães várias razões, acordando todos que seria melhor dei-
terra. xar apenas os degredados. E acrescep.tavam: "Nem eles
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(os tupininquins) tão cedo aprenderiam a falar para o sabe- Santa Maria da Arrábida, e que êle identificava com a atual
rem tão bem dizer que muito melhor o estoutros não digam baía da Traição ( Capistrano, MATERIAIS E ACHEGAS, ESCLA·
quando V. A. cá mandar". Assim se fez. Ficaram dois RECIMENTOS do n. I ) •
degredados em terra. E Caminha, impressionado com a ino- Mas a simples aproximação da nomenclatura não se nos
cência dos indígenas e a disposição que mostravam para imi- ..tfigura prova bastante. Ao contrário, a existência de tu pi...
tar os gestos exteriores da devoção dos portugueses, insinua- niquins cristãos desde o ano anterior em Porto Seguro torna
va ao monarca: "E bem creio que, se V. A. mandar quem muito mais natural a continuidade da catequese em relação
entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao a esses catecúmenos, tanto mais que a franciscanos perten...
desejo de V. A. E por isso, se alguem vier, não deixe de cera igualmente a celebração no mesmo lugar dos primeiros
vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhe.. atos religiosos •.
cimento da nossa santa fé pelos dois degredados, que aqui Inclinamo-nos, pois, para aceitar como exata a notícia
entre eles ficam . .. , do cronista arrábido, sem excluir a hipótese de que o primi...
Ora, os clérigos vieram. A insinuação de Caminha foi tivo nome da baía da Traição fosse imposto por frades da
aceita por D. Manuel. A mesma certidão de Valentim Per-· mesma ordem.
nandes acrescenta que, durante a expedição de 1501-1502, Nesta persuasão nos ratifica outro fato, que afirma da
foram batizados muitos indígenas, para o que teriam servido parte de D . Manuel o propósito de continuar a assistência
de intérpretes os dois degredados, pois doutro passo daqu,êle espiritual ao primitivo núcleo dos indígenas catequisados.
documento se conclue que estes haviam aprendido a língua da A 6 de janeiro de 1550, o jesuíta Manuel da Nóbrega,
terra. em carta escrita de Porto Seguro, informava o padre Simão
A cerimônia devia ter-se dado de preferência em Porto Rodrigues : "Neste Porto Seguro e em Ilhéus (refere... se,
Seguro, e não seria natural que D. Manuel abandonasse to.. pois, às capitanias) encontrei uma certa gente, que é casta de
talmente à sua gentilidade êsse primeiro núcleo de cristãos. tupiniquins, entre os quais existem muitos dos nossos e dos
E sabido que frei Antonio da Piedade, confirmado por Jaboa- naturais,. . . e entre esses há cerca de 20 ou 30 cristãos e
tão, refere a vinda de frades arrábidos a Porto Seguro, em alguns que foram batizados por certos padres qu,e mandou a
1503. Ali teriam chegado a construir um pequeno templo boa memória de El Rei D. Manoel a este país, os quais padres
e duas estreitas moradas (Frei António da Piedade, CRÔNI... foram mortos por culpa dos mesmos cristãos, segundo ouvi"
CA DA PROVÍNCIA DA ARRÁBIDA, parte I, livro 3°, cap. 40, (CARTAS DO BRASIL de Manuel da Nóbrega, ed. da Academia,
n. 603). pág. 107).
V arnhagen não prestava crédito à localização em Porto Estes fatos reportam-se ao período que medea entre 1503
Seguro desta primeira missão dos arrábidos, parecer a que e 1521, ano em que o monarca faleceu. Acrescente-se para se
também se inclinou Capistrano, o qual situava êsse primeiro aquilatar em seu valor do acontecimento revelado por Nó-
estabelecimento no lugar assinalado nos mapas quinhentistas, brega, que o estabelecimento de padres, entregues à catequese,
ao norte do Cabo de Santo Agostinho, com a designação de exige um suporte social e econômico de certa impor tância.
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A permanência de padres em Porto Seguro deve, pois,
ter coincidido com a fundação das fortalezas~feitorias na a excelência dos intérpretes fazem supor nestes um contacto
época do arrendamento, ou mais provavelmente com a das mais demorado com os indígenas, isto é, permanência desde
capitanias de terra, iniciada em 1516. A nosso ver, a sua uma época anterior às donatárias.
categoria social e até o exercício da sua missão exigiam uma Mas, a nosso ver, o depoimento do próprio Azpilcueta
estabilidade no domicílio, regularidade na vida econômica e Navarro não deixa lugar a dúvida. "Nesta capitania (de
comodidade mínima da vivenda, que mal se compadecem com Porto Seguro) - escrevia êle em 1551 - achei um homem
o cara ter precário e transitório da feitoria. de boas partes, antigo na terra, e tinha dom de escrever a
Por estas razões inclinamo~nos a relacionar o envio dos língua dos índios, que foi para mim grande consolação, e as~
padres por D. Manuel com a primeira tentativa, em 1516, de sim o mais do tempo gastava em (lhe) dar Sermões do Tes~
povoamento e aproveitamento de terra pela cultura da cana, tamento Velho e Novo, e Mandamentos, Pecados mortais e
revelada por V arnhagen. Artigos da Fé e Obras de Misericórdia, etc., para me tornar
Seja como for, a notícia dada pelo cronista arrábido não em a língua da terra". CARTAS AVULSAS, ed. da Academia,
deve confundir~se com aquela que Nóbrega transmitia na sua págs. 71, 76, 85, veja~se igualmente a sábia nota de A. Pei~
carta. No primeiro caso, trata~se de frades; no segundo, xoto, à pág. 54).
simplesmente de padres, advertindo~se que o grande jesuíta De novo êste profundo estudo e conhecimento da terra
recolhera essa notícia da boca de contemporâneos, o que parece supõem permanência não vulgar. Mas, quando Navarro lhe
afastar a hipótese duma confusão. De contemporâneos, e con~ chama "antigo na terra", é, por certo, para o distinguir do
temporâneos portugueses, parece igualmente concluir~se do comum dos moradores, chegados em 1535, com o primeiro
confuso trecho. donatário.
Outras razões temos, aliás, para acreditar que da época _ Assim o entendeu V arnhagen, pois ia até admitir que
do arrendamento ou das capitanias de terras, anterior às do~ esse antigo intérprete fosse algum dos que ficaram da armada
natárias, existisse ainda, ao tempo em que Nóbrega escrevia, de Cabral ou da primeira expedição exploradora.
um certo remanescente dos primitivos colonos - degredados, Não resistimos a chamar a atenção para a excepcional
náufragos, marinheiros fugidos de bordo e atraídos pela vida c~~acidade e zêlo dêste homem e seu eminente papel na his~
livre e fácil do aborígene, e até povoadores, vindos de Portu~ torta da civilização do Brasil, entre os primeiros estudiosos da
gal. mas que voluntariamente ficassem, integrados pelo ambi~ língua geral, que possuiu a ponto de a escrever e verter para
ente, como noutras capitanias sucedera·: ela 0 português. No texto do padre Navarro incluímos entre
É sabido que o padre Nóbrega encarregou Azpilcueta chavetas o pronome - lhe - autorizados pelo subsequente
Na varro de estudar a língua dos indígenas e verter as ora~ - me - e pelo sentido do contexto. A êsse "homem de boas
ções e sermões "com alguns interpretes que para isso havia partes" cabe glória, que aquí lhe atribuímos e de que anda
mui bons" na capitania de Porto Seguro - informava em por vezes, com manifesta injustiça, defraudado. Devia ser
1551 o padre António Pires. A simples escolha do local e de cultura pouco vulgar entre os seus companheiros de des~
tino - Ramalhos e Cara~urús - aos quais devemos equi~
700.GOO
F. 7
-98- - 99 ---

parar como intermediário entre indígenas e alienígenas, na fase Mas, ainda quando tenham sido estes os exploradores
decisiva da colonização, e na sua parte mais elevada e isenta, da referência, o ~ato, coincidindo com a época da instalação
a da cristianização dos aborígenes. dos colonos, supoe um trabalho de preparação que, se não
Chamemos ainda a atenção para um fato. Azpilcueta nos enganamos, pertence à geração anterior, a dos homens
Navarro diz que encontrou êsse homem na capitania e não antigos, como aquêle que ensinara o tupí ao padre Azpilcueta
em Porto Seguro, o que parece indicar outro lugar e mais Navarro.
provavelmente, cercanias de Santa Cruz. Seja como fôr, a capitania de Porto Seguro tornou-se es-
Outro fato nos convence desta anterioridade dalguns co~ tação de partida das primeiras entradas e escola dos primei-
lonos portugueses, na região de Porto Seguro, à época das ros bandeirantes.
donatárias : a precocidade no movimento das entradas para Naquela mesma carta
d .. de 1550, Filipe Guilhem inform a _
oeste, à procura de metais e pedras preciosas, aí localizado. va o n:onarca e que esteve toda a jente de Porto Seguro
A não ser, na capitania de S. Vicente, e por motivos demovida ou a mais dela para yrem buscar" a certa serra
semelhantes, apenas Porto Seguro se volverá logo após a che~ que _os índios chamavam "sol da terra" pelo muito ouro ~u=
gada do primeiro donatário, centro duma precoce e expontâ~ contmha, e que estava situada junto dum grande rio ( s-
nea penetração no interior, por parte dos primeiros colonos. Francisco ? ) (HISTÓRIA DA CoLONIZAÇÃo PoRTUGUE~A ;~
A.lí se vai formar a lenda da SERRA DAS EsMERALDAS, que le~ BRASIL, III, pág. 359) .
vará ao descobrimento definitivo das minas e à exploração A êsse tempo, Duarte de Lemos, que exercia interina...
intensiva dos sertões de Minas Gerais, Goiaz e Mato Grosso. mente as funções de capitão-mor de Porto Seguro, organi-
Em 1550, Filipe Guilhem escrevia a D. João III : "() z~va, como vimos, uma entrada que devia partir, em agôsto
primeiro ano que a esta Baya cheguei me dixeram que por desse ano de 1550, à busca do ouro do Perú (Ibidem, pág. 267).
Porto Seguro entravão pela terra a dentro e: andavam lá cinco . .. Tomé de Sousa deferiu essa entrada, que só veio a par-
e seis meses, pella qual rezam me fui a Porto Seguro e tirey ~r pela via ~e Porto Seguro"., em 1554, sob o comando de
hum estromento que mandei a V. A., desejando seu favor ruza de Espmosa, assistido pelo padre Azpilcueta Na varro.
para buscar e dar maneira como fosem descubrir has minas Mas, com essas notícias, trazidas de Porto Seguro da
douro que os negros (índios) diziam que havia ... " existência do ouro do p eru, - JUn
· t o d um gran d e rio, relaciona-
'
Pela mesma carta se conclue que Filipe Guilhem chega- m~s a entrada de Miguel Henriques, que, por ordem de To-
ra ao Brasil em 1538. Capistrano supunha, todavia, que fôra me_ de Sousa, partiu numa galé, em novembro de 1550, da
em 1537. Se nesta época constava já, como um fato comum. Bata
F de
. Todos-o s- S an t os, e em vao
- tentou galgar o rio São
que de Porto Seguro se realizavam entradas pelo sertão, de ranctsco · Com efeito, no ano seguinte, o governador, em
cinco e seis meses - o que foi comprovado pelo próprio epis,.. carta para o monarca, justificava a expedição, dizendo "pois
tológrafo, pois enviou o instrumento respectivo ao monarca. esta terra e o Perú é todo hum" (Ibidem, pág. 361).
chega a ser difícil relacionar a notícia com os colonos, compa'"' r Pelo mesmo interior da capitania de Porto Seguro, anda-
nheiros do primeiro donatário, em 1535 . am, cerca de 1567, Martim Carvalho; poucos anos depois,
-100- -101-

cerca de 1572, Sebastião Fernandes Tourinho, sobrinho do Basilio de Magalhães inclue todas estas viagens naquilo
primeiro donatário; e, já em tempos do governador Luiz de a que chama o "Ciclo baiano", ao qual dá a primazia na pri-
Brito de Almeida ( 1573~78) e por seu mandado, Antonio Dias meira fase da exploração sistemática do interior, por êle de~
Adorno e Sebastião Alvares. O primeiro deles, tendo par~ nominada "Ciclo das entradas ou ciclo oficial da expansão
tido de Porto Seguro, buscou o curso de J equitinhonha; e geográfica do Brasil ( 1504 a 1696)" (EXPANSÃo GEOGRÁ-
teria descoberto, segundo Calogeras, as areias auríferas de FICA DO BRASSIL, 1935, pág. 21 ) . Mas, verdadeiramente,
Minas Novas, e depois de percorrer as serras, onde se divi~ aquêle primeiro grupo de entradas, no qual se filiará mais
dem as bacias· dos rios Doce, Mucurí e S. Mateus, baixou tarde o "ciclo das bandeiras" propriamente ditas, se poderia
por êste até a costa. 'fourinho, tendo partido igualmente de designar de CICLO PoRTo~SEGURENSE, pois se originou e per~
Porto Seguro, fez um trajeto semelhante, mas em sentido in~ petuou durante vários decênios no território dessa capitania.
verso. Entendem alguns explicar esta precedência das en.tra~
Segundo o relato de Magalhães Gandavo, no TRATADO das pela capitania de Porto Seguro por m~tivos de ordem
DA TERRA DO BRASIL, Martim Carvalho já ia à busca das es~ geográfica. Mas havemos de confessar que orografia e hi~
meraldas, de cuja existência, no interior, os índios haviam drografia estavam longe de oferecer as vantagens que os por~
dado notícia, mas que êle não alcançou, trazendo em compen~ tugueses encontraram na capitania de S. Vicente, onde, gal~
sação o ouro "em grão". Tourinho trouxe notícias confir~ gando a serra do Mar, deparavam logo um rio, o Tieté, que
mando a existência de pedras verdes. lhes facilitava e apontava o caminho do sertão.
Comenta Pedro Calmon: "É a história das esmeraldas Achamos mais lógico que os colonos da época donata~
que começa ... De fato (Tourinho) não trouxe da longa via~ rial encontrassem já a porta do interior mais ou menos aberta
gem senão uma lenda. Mas fecunda e tentadora : para ve-- pelos "homens antigos", que eles foram deparar na capitania,
rificá~ la andaram pelos sertões durante 200 anos sertanistas em boas relações com os pacíficos tupiniquins, à semelhança
do sul e do norte, desde Marcos de Azeredo, cujo roteiro das do que acontecera a João Ramalho e a Diogo Alvares .
esmeraldas os jesuítas conheceram ( 1611), a Fernão Pais Estes fatos : permanência durante 20 meses dos dois
Leme. . . .. (HISTÓRIA DO BRASIL, tomo I, págs. 31 o~ 11 ) . degradados de Cabral, em Porto Seguro, substituídos, por~
Mas antes de Marcos de Azeredo e do GovERNADOR ventura, em dezembro de 1501, pela armada que os recolheu;
DAS EsMERALDAS, Antonio Dias Adorno refazia os trajetos a provavel fundação duma feitoria no mesmo lugar, em 1503,
de Carvalho e Tourinho, ligeiramente modificados. ~orno pretendem Varnhagen e Duarte Leite; a estadia de fra-
des arra'b·d
I as,
~
d es d e esse mesmo ano e durante um prazo inde~
O primeiro ia penetrar no sertão pelo rio das Caravelas, t . d
mas uma parte dos seus companheiros dava fim à entrada ermma o, conforme depoimento de frei A. da Piedade,
baixando, mais uma vez, o Jequitinhonha; Sebastião Alvares, cuja veracidade aceitamos; a missão dos sacerdotes, enviados
êsse partia de Porto Seguro a explorar o rio S. Francisco, por D · Manuel, isto é, antes de 1521; a existência em 1549
emprêsa, em que, no dizer de Gabriel Soares, consumiu "qua~ dum grande língua, "homem antigo" na terra, escolhido de
preferência o~n t re to d os os antigos
. . para
colonos do Brastl,
tro anos e um bom pedaço da fazenda de El~Rei".
-102- -103-

mestre de Azpilcueta Navarro, assim como a primazia da que foi durante o século XVI o tabernáculo - permita-se a
capitania como pista de penetração das primeiras bandeiras, expressão - da tradição da arribada de Cabral.
constituem, a nosso ver, os elos soltos duma cadeia de testemu- O primitivo grupo de tupiniquins, que assistiram ao ar-
nhos, que perpetuaram, no Porto Seguro de Cabral a tradição vorar da Cruz na baía Cabrália, logo fundido com os primei-
da arribada, do desembarque e da cerimônia da posse, cerca ros colonos pelos inte~esses econômicos e os da catequese
da foz do M utarí. em volta dum estabelecimento português anterior a 1521, lo-
Ao tempo em que Tourinho fundou a primeira povoação calizado mais tarde nas povoações de Santa Cruz e na vila de
de Santa Cruz, plausivelmente no lugar onde teria existido Porto Seguro, constituiu um dos núcleos fundamentais, uma
alguma pequena feitoria-fortaleza, ainda perduravam muitos das ~élulas~mater da formação do Brasil. Contemporâneo
dos tupiniquins, que haviam presenciado aqueles aconteci- do nucleo de Ramalho, em S. Vicente, de Diogo Alvares n
mentos, velhos apenas de 35 anos. Baía, e da primitiva feitoria portuguesa em terras de Pern~m~
Podemos, pois, estar certos de que a tradição, unanime- b~uc~, só o ~rimeiro, segundo cremos, se lhe iguala em impor-
mente transmitida desde 1570 por Gandavo, primeiro histo- tanCia ._ . Ah se formou, pela interpenetração das culturas,
riador do Brasil, Luiz Teixeira, Cardim, Gabriel Soares e adventicia e aborígene, um dos primeiros e mais resistente~
Anchieta e tão repetida durante o século XVI, da arribada gérme~es ~:cultura luso-ameríndia; e ao lado da fusão e per:
de Cabral e da sua permanência durante uma semana na muta
. . mevitavel . das técnicas econômicas e da miscegenaçao
· -
atual baía Cabrália, se vinculava, tanto às primeiras repre~ etmca, se cnou expontaneamente a primeira escola de tupí
sentações cartográficas, como ao testemunho vivo de portu-- e o pri~eiro complexo de lendas maravilhosas e noções de
gueses e indígenas, quer espectadores diretos, uer descen- g.e~grafw, que iniciaram a lenta integração do território bra-
sileiro.
dentes na primeira geração.
Luiz Teixeira, cartógrafo real e filho do cartógrafo Pero _ De entre esses quatro, ou melhor seis núcleos da forma-
Fernandes, era já o herdeiro direto duma tradição cartográ-- çao. brasileira, incluindo o do bacharel da Cananéia e o de
fica, que remontava ao · tempo do descobrimento, mas a qual A~eixo Garcia em Santa Catarina, êste, o da baía Cabrália,
c. 1573, ao percorrer a costa da capitania de Porto Seguro, foi 0 ~ais provado pelo flagelo tapuia. Sobre êle, já quando
recolhia de viva voz da boca dos mais velhos habitantes, indí- repartido pelas povoações de Santa Cruz, a velha, Porto Se-
genas ou colonos, da tríplice Santa Cruz. g.uro e Santo Amaro, se empenhou a fúria assoladora e assas-
sma dos a· · C 1 d
Não pode, pois, restar a menor dúvida sobre a genui- des e I~~res. 0 ~~os . os dois sexos e de todas as ida-
dade dessa tradição . Cabe av~riguar apenas se as intorma-- . condtçoes e tupmiqums seus aliados cairam, um a um,
ções de Caminha se lhe opõem de qualquer modo . É o que ~ dta a dia, varados traiçoeiramente pelas frechas do inimigo.
vamos fazer. s plantações foram taladas; as moradias violadas; e os ~­
genhos consumidos pelo incêndio.
Mas, antes de passarmos a essa análise, sumariemos c
que acabamos de apurar sôbre êsse esquecido e ignorado ca- Daquelas pnmetras
· · povoações - uma, a de Santa Cruz,
pítulo da localização e história da povoação de Santa Cruz, mereceu bem o nome· A b ata . C a b rata
'1· foi o seu tríplice cal-
-104-

vano. Sobre as três Cruzes, assinaladas e distinguidas por


Luiz Teixeira, aquêle primeiro núcleo de fusão das duas
raças, onde alvorava uma sociedade e uma cultura novas,
sofreu, sangrou, mudou de posição, mas persistiu em sua fé -<

colonizadora; e, nessa fidelidade à terra, tão cimentada pelo


sofrimento, afunda o Brasil de hoje algumas das suas mais
sólidas raizes .
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'L
o
Q

Carecemos de elementos bastantes para estabelecer com :.1


.o
exatidão a cronologia das três incarnações da povoação de ~ N
.o
Santa Cruz; e não são maiores as nossas precisões sôbre os ....
u
fatos desastrosos, que motivaram o seu vai~vem migratório . z ·;;;
<13
o ....
Supomos, como muito provável, que os primeiros fun~ o:)
z "C!
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damentos da povoação, junto do Mutarí, datem de 1503 ou o
"C!

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1504, isto é, duma das feitorias~fortalezas, a que se obrigou o ,.:: .;:;
u Lt.l"'
arrendatário. Uma das razões da escolha do local seria a ..t-7 o
continuidade na catequese, iniciada em 1501 ~ 1502, que me~
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1!-.n
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receu ainda em tempos de D. Manuel visita prolongada de
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sacerdotes . .,
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Definitivamente fixada, cerca de 1535, pelos colonos de ...
Pedro Tourinho, na margem direita do Mutarí, era assolada ·},'
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cerca de 1560 pelos aimorés ~- o que terá motivado num dos ~
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anos próximos e seguintes a transferência para a margem di- ...o


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reita do João de Tiba. """'


{/)

.8...
Novas condições de segurança e a iniciativa do opulento o
0..
duque de Aveiro fizeram~na resuscitar, na margem esquerda N

do Mutarí, sob a espécie do engenho~fortaleza, nalgum dos z


anos anteriores a 1570 e posteriores a 1560.
Ao tempo em que Luiz Teixeira visitou a baía Cabrália
coexistiam provavelmente a povoação de Santa Cruz, a nova,
a que mudaram, e as ruinas da velha.
Entre 1573 e 1578 ou ano próximo o Engenho do Duque
- povoação nova - foi, por sua vez destruido.
lCl:iníl~~ttos para crer que certa notícia de V arnhagen
a esta e não à Santa Cruz do João de Tiba.
~~tD~tJ• ...o.n••.... - escreveu - em virtude de repetidas invasões
U"'-'"L""'"' aimorés, não devidamente castigados ou repri-
, começou em decadência, chegando a perder-se a vila
Santa Cruz, ao sul de Sernambitiba, depois da derrota
sofreram os moradores em Comagí, dali a algumas lé-
... " Capistrano acrescentou em nota : "Desta derrota
fala o autor na l.a edição, e ignora o anotador da pre-
em que fonte foi bebida a notícia" (visconde de Porto
HisTÓRIA GERAL DO BRASIL, tomo I, 4a ed., pág. 220).
A fonte, podemos nós acrescentar, foi a carta da capita-
de Porto Seguro, no LIVRO QUE DÁ RAZÃO DO ESTADO Do
, onde cerca das nascentes do braço meridional do
se lê: "CoMAGI. Aqui se fez a junta e se tra-
a brigua com que se perdeo a povoação de Santa Cruz".
lado escreveu o cartógrafo : "Engenho do Duque".
Ora o braço meridional do rio João de Tiba chama-se
"""'''""'"'' e aproxima-se muito no seu curso superior das lati--
do Mutarí.
Por estas razões supomos que a briga nas margens dêsse
uma e outro desconhecidos na carta de Luiz Teixeira, se
ter dado depois de 1573 e até 1578, tendo como deito
destruição de Santa Cruz, a nova .....- Engenho do Duque,
que levaria o cartógrafo, mal informado, a transferir êste
o mesmo lugar da briga.
Quís assim o destino que o duque de Aveiro, neto e her--
direto de D. João II, o negociador genial do Trata-
de Tordesilhas, ficasse com o seu nome ligado, como do-
e grande senhor de engenho, ao mais fecundo e de-
~~ ...·~v dos dramas coloniais daquela época .
O LUGAR ONDE CABRAL TOMOU POSSE
DA TERRA

Em 1900, Zeferino Candido escrevia : "Diz Caminha :


"fomos desembarcar acima do rio, contra o sul, onde nos
pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para ser melhor
vista". "Se desembarcaram - continua - onde resolveram
colocar a cruz, esta foi arvorada junto do mar; na praia e
nunca no interior. Se dois tiros de besta fosse uma medida
exata, o lugar onde Cabral chantou a Cruz poderia deter~
minar~se com exatidão.

E bem de desejar seria fazê~lo, porque esses poucos pal-


mos de terra merecem, de portugueses e brasileiros, do mundo
e da civilização, um respeito sagrado. Ali reside a pedra~ara
da mais bela iniciação civilizadora de que as idades guardam
a lembrança. Era aí, nesse pequenino trato, que se deveria
alevantar o monumento mais perduravel que a tosca cruz de
madeira, deixada pelo descobridor português" (BRASIL,
pág. 200).
A êste problema, posto pelo Dr. Zeferino Candido em
tão elevados termos, podemos responder que, se os dois tiros
de besta não são uma medida exata, pode, não obstante, cal-
cular~se com sofrível aproximação o seu equivalente no sis~
tema métrico atual; e que essa aproximação bastaria, para o
efeito, pelos motivos da localização da povoação de Santa
Cruz, tão eminentemente digna, como vimos, de ser assina-
lada.
-108-
-109-

Zeferino Candido, aliás, foi de todos os historiadores,


rou, com a expressão, o sentido inicial do texto, num que
que se ocuparam do problema, aquêle, a nosso ver, que mais
outro passo, como iremos ver, de importância fundamental.
se aproximou da solução. "O capitão-mor - escrevia êle - Sabemos que o almirante Gago Coutinho, que repetiu,
na véspera do dia em que largou para o Cabo, mandou assen- por outra via, mas com ciência e audácia semelhantes, o feito
tar uma cruz alta num ponto escolhido, ao sul do pequeno rio, de Cabral, pertence ao número daqueles que ultimamente
que desembocava na baía da ancoragem . . . Nesse mesmo puseram em dúvida que a arribada de Cabral houvesse sido
lugar, ou muito perto, levantou-se a primeira povoação; cha- na baía Cabrália. Não nos foi possível ler qualquer dos arti-
mou-se Santa Cruz, e esse nome se estendeu a toda a terra"
gos que sôbre o assunto escreveu em jornais e nos últimos
(Ibidem, pág. 152) .
anos.
O autor partilhava, neste particular, a opinião de Beau ~ Mas ouvimo-lo, de viva voz e em conversa particular,
repaire Rohan, que situava igualmente êsse lugar ao sul do sôbre o assunto. Ao que nos pareceu, as suas dúvidas assen-
M utarí e na praia, mas acrescentavam os dois que no mesmo tavam fundamentalmente em duas razões. Sobrevoando a
lugar ou cerca se levantara a primeira povoação, à qual se baía Cabrália, não distinguira, junto da chamada ponta da
chamava Santa Cruz. Depreende-se assim que o autor supunha Coroa Vermelha, qualquer ilhéu, em que Pedro Álvares Ca-
a fundação do povoado, anterior à mesma época das donatarias. bral e os seus tripulantes pudessem assistir à celebração da
É êle, ao que supomos, o único historiador a referir-se à po- primeira missa.
voação de Santa Cruz cerca da foz do M utarí e em período tão Como não visitamos o local, por qualquer via - o que
recuado, ainda que sem apontar as razões que o levaram a tanto desejaríamos fazer - não podemos pronunciar-nos com
uma e outra conclusões . a segurança da experiência própria .
Por tudo o que acabamos de expor, convencemo-nos. Mas não podemos pretender encontrar hoje todos os aci-
contudo, que êle se aproximou muito da verdade, enganando- dentes geográficos descritos por Caminha, com os mesmos
se apenas, como Beaurepaire Rohan, em haver loLalizado o caractéres de há quatro séculos e meio. E' sabido que os pe-
assentamento da Cruz ao sul do pequeno rio. Este proble- quenos ilhéus de areia, pequenos cursos de água e lagoas,
ma só pode resolver-se, aliás, lendo com a maior atenção a junto de costa arenosa, estão sujeitos a grandes modificações;
carta de Caminha sôbre um mapa contemporâneo da baía Ca~ que vão até o desaparecimento completo, atravez dos tempos.
brália e, em especial, da região do Mutarí, ou melhor ainda Constituiria, ao contrário, motivo de surpresa que não se hou-
uma carta antiga dos mesmos lugares, ou seja a da capitania vessem feito sentir os efeitos do açoreamento sôbre alguns
de Porto Seguro do Atlas de Luiz Teixeira. dêsses acidentes, muito mais em região, onde se operou um
Nesse estudo torna-se necessário utilizar conjuntamente desflorestamento intenso. Sob esta última ação, pequenos
com aqueles mapas, a carta de Pero Vaz de Caminha, na sua cursos de água ou lagoas tendem a desaparecer e os ilhéus 3
leitura paleográfica, e não nas versões em linguagem atual. ser anexados à costa .
como, por exemplo, a de D . Carolina Micaelis de Vascon- Muito mais sólida nos pareceu a segunda das razões,
celos, a qual, mau grado a sua grande competência, desfigu- em que assentava o ceticismo daquêle nosso ilustre amigo.
111
-110 ~

e na carta de Caminha se lia: "E hoje, que é I


Era o caso qu h- · t rra
. primeiro dia de maio, pela man a, satmos em e Na noite de 23 de abril de 1500, a armáda de CabraL
sexta f etra, · · ntra
bandeira. e fomos desembarcar no actma c o quando velejava nas costas do Brasil, cerca do monte Pas-
com nossa ' C · h toda a razão,
r Argumentava Gago outm O, e com . coal foi assaltada por forte sueste, acompanhado de chuva-
o su s~melhante manobra se não podia aplicar ao Mutan. ceiros. Na manhã seguinte, e por conselho dos pilotos, a
que . . 1 de Caminha se não lê semelhante armada seguiu para o norte, ao longo do litoral "para ver se
Simplesmente, no ongma . d R'
. . . .. e fomos desembarcar actma o to achavamos alguma abrigada e bom pouso onde jouvesemos
c 01sa mas s1m · ··· d' ·
' 1 , 0 que J'á veremos, é totalmente tstmto e para tomar agoa e lenha". Como era costume em casos tais,
contra o su · · · ' ' b · M t ·
·f· Idade à topografia do atxo u an. 0 capitão-mor mandou aos navios pequenos "que fosem mais
se acomo d a, sem d 1 lCU ' 1
A desfiguração pertence a Carolina M. de Vasconce os. chegados à terra e se achassem pouso seguro para as naus, que
.
amamassem ".
Mas antes de chegarmos a êsse ponto, essencial para a
' . _ . d ·amos primeiramente se A exploração no rumo norte, isto é, ao arrepio do cami-
localização da cenmoma a posse, veJ .
a tradição quinhentista está de acôrdo com os mmtos po~~e- nho, fez-se, por conseguinte, com o fim de buscar pouso seguro
, f os ue Pero Vaz de Caminha anotou, ta a para as naus, que as abrigasse do sueste.
n~res topogra ttc qD Manuel enviada .. deste porto seguro
dta na sua car a a · ' d Corridas umas 1O léguas desde o ponto da largada, os
da 'vosa jlha da vera cruz oje sesta feira prim.o dia e mayo navios pequenos, continua Caminha, achavam "um recife com
de 1500". um porto dentro muito bom e muito seguro, com uma mui larga
Para isso dividiremos o problema em quatro partes : entrada". Sondado convenientemente, logo, no dia seguinte,
25, sábado, pela manhã, as naus demandaram "a entrada a
1o,
o Porto Seguro de Caminha e os motivos que leva- qual era mui larga e alta" e ancoraram dentro "a qual anco-
ram Pedro Álvares Cabral a demandá-lo; ragem é tão grande e tão formosa e tão segura que podem
2o' o ilhéu, e as razões que levaram o c':pitão-m~r a jazer dentro nela mais de 200 navios e naus ... " .
escolhê-lo para lugar de folgança e de celebraçao da mtssa, Na manhã dêsse mesmo dia, Nicolau Coelho e Bartolo-
nos primeiros dias; meu Dias, acompanhados do mesmo Pero Vaz de Caminha,
3o, 0 rio e seus caracteres topográficos; foram mandados pelo capitão-mor a terra. Os batéis foram
4o, finalmente, 0 lugar, onde foi celebrado o ato de "de frecha direitos à praia" e logo reconheceram que havia
posse e os motivos que decidiram da sua escolha para assento ali "um rio. . . de água doce, de muita água" facilmente trans-
ponível pelos índios, aos quais "dava pela braga", isto é,
da Cruz. pela coxa.
Para evitar as contínuas citações prevenimos q~e ~o~as
- daptaçao a hn- Desta sorte, e segundo Caminha, o objetivo da armada,
se reportam à transcrição d a C arta e a sua a d ao remontar a costa na direção norte, estava realizado em
b · · ·t
guagem atual, por nós f eitas na o ra Ja c1 a da - A Carta e
9rãu superlativo : porto muito bom e muito seguro, por con-
Pero Vaz de Caminha .
-112-
-113-
sequência .que resguardava os navios do sueste; entrada muito
navios" entrão a ]oeste". E o mesmo
larga; ancoragem tão formosa e segura que podia abrigar
200 navios e naus; e. finalmente, um rio de água doce, abun~ mava, como vimos, do Buranhem . .. A
cheia de arrecifes ... " ·
badre A
. . .
nc~teta, mfor-
arra e pengosa, toda
dante e facilmente acessível. sem falar na floresta próxima,
não menos pródiga de lenha. Assim não só, durante 0 século XVI .1
Ora. no trecho de costa, situado cerca de 17. de lat.
0 fos e outros se referem à baía Cabr'l" • pt oto~, ~artógra-
a ta nos mesmtsstmos ter
sul. atribuída por Mestre João a Porto Seguro (e neste caso mos com que Vaz de Caminha descrevia o Port S -
o erro não excederia 40', aproximação razoável para a época) Cabral. mas distinguem a barra do B h o eguro de
o único porto, que satisfaz, em conjunto, a estas condições de guro atua, 1 com caracteres e qua]"f· uran
t"
em - Porto Se
-
. . d I tca tvos opostos E - t
grande amplitude, segurança para naus e contra suestes, for- JUIZo os _quasi contemporâneos de C . h . es e
finitivo. amm a nos parece de-
mosura e desaguadouro de rio de água doce, pequeno e aces-
sível é, sem dúvida, a baía Cabrália. Por mais que possamos Não é de estranhar que mais tarde m . h .
taxar de hiperbólico, num ou noutro passo, o estilo de Cami- Mouchez, que fez o estudo e o 1ev t • arm etros, como
nha, e de fácil o seu entusiasmo de leigo em assuntos de ma- d an amento da costa
cor em com o juizo dos antigos. Falando da h . d 'scon-
rinharia, nos caracteres gerais da descrição êle refletia a opi~ Cruz e Cabrália diz . "La , ata e anta
nião dos entendidos, que escutara, e sabemos que uma das · mer n y est ja · h·
même avec les vents de S E mats ten grasse,
suas preocupações era a rigorosa exacção, muito mais tratan~ . . ' parce que la houle t
propager et sortir par le Nord entre la -t 1 . peu se
do-se de números. Porto, que abrigasse do sueste com inteira panema · avec les v t d co e et E:'! rectf I tasse-
segurança 200 navios e naus, não era por certo o estuário do ' en s e cette directio d' ·z
excellent abri au Sud d l b . n on a at leurs un
Buranhem ou de João de Tiba. Vermelha . l , ans a ate Cabral, derriére la Coroa-
, ou a mer reste cal
Nord et d l'E me·
s·1 1es vents dépendent du
Acrescentemos que, por volta de 1573, Magalhães Gan...
e st, on se tient au N d d 1
davo falando da baía Cabrália se lhe referia em termos muito Cruz" (LEs c- B or ans a baie Santa-
üTEs DU RESIL DESC
semelhantes aos de Caminha: "Duas léguas deste mesmo NAUTIQUES p · . ' RIPTION ET INSTRUCTIONS
, arts, 1876 ' pag . 91 ) .
arrecife (de Porto Seguro - atual), para o Norte - está
outro que é o porto, onde entrou a frota quando esta Pro-• ~ certo que os navios d
Seguro e fora d b po em ancorar na baía de Porto
víncia se descobriu". Por sua vez, Luiz Teixeira, nessa mes- a arra do Buranh . d
escreve bem . . em, mas essa ancoragem
ma data, inscreve, ao lado da baía Cabrália : "aqui surgé abrité ~ontre laeos mves, dMouchez : "Ce moui11age est bie~
naos da lndia e estão seguras", quer dizer, caracterizava-a vents e No d - l'E
tement ouvert r a st, mais il est complé-
com dois dos traços essenciais da carta de Caminha. serait surpris pau~ vents de S. et de S. E.; un na vire qui y
Bem pelo contrário, o mesmo ROTEIRO-ATLAS limita .
t res ar un coup de vent d d
gravement . e cette irection serai~
a entrada da barra do Buranhem aos navios, que não excedam compromrs car ·
sans doute pas - l ' ses amarres ne résisteraient
60 tonéis, e as indicações da pilotagem são bem mais cuidadosas Pectwe . qu'un lita da grosse mer du large, et 1·z n •auratt. en pers,..
que para a baía Cabrália, onde sumariamente indica que os 98) . e roches sous le vent" ( lbidem, pág . 97~
700.600

F. 8
-114-
-115-
Não seria fácil encontrar expostas com maior eloquên~
meses de cárcere balouçado, limitam-se a vogar ao longo da
cia, clareza e competência, as razões inviolaveis que con~
praia e saltar num ilhéu. "À tarde saiu o capitão mor em
venceram os pilotos de Cabral a evitar a atual baía de Porto
seu batel com todos os outros e com os outros capitães das
Seguro e a abrigar-se por detrás dos recifes da C~roa ye~­
naus em seus bateis a folgar p~la baía a caram (em frente)
melha, na atual baía Cabrália e a dar-lhe o nome tao proprto
da praia, mas ninguem saiu em terra pelo capitão não que...
que aquela hoje usurpa.
rer sem embargo de ninguem nela estar".
A..-pesar-da praia estar deserta, e talvez por isso mesmo,
II o capitão-mor opõe-se a que alguem salte em terra. Das pa-
lavras de Caminha se depreende claramente que só a ordem
Pode à primeira vista afigurar-se absurdo e inexplicá·
formal de Cabral impediu que os mais insofridos satisfizes-
vel que o capitão-mor escolhesse para lugar de cele~ração. ~a
sem a sua ânsia de desembarcar em terra firme. E a carta
primeira missa um ilhéu, quando tinha ao lado alguns qmlo-
continua : "Somente saiu ele com todos em um ilhéu gran-
metros de praia com profundidade bastante para acolher a
~e que na baia está que de baixa-mar fica mui vasio, porem
tripulação de várias armadas como a sua.
e de todas partes cercado dagoa que não pode ninguem ir
A prática dos descobrimentos ao longo das costas de a ele sem barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros
Africa e do Industão aconselhava no entanto a maior pru- be~ _uma hora e mea". Mau grado esta sêde de folgar, 0
dência, e ensinava que os aborígenes, com frequência, passa- capitao-mor apenas se permite aquela curta hora e meia de
vam do mais afetuoso dos acolhimentos à mais · violenta hos- desenfado num ilhéu, onde, ingenuamente, acrescenta Cami-
tilidade. nha, não se pode ir, a não ser de barco ou a nado.
A regra passou a ser uma conduta de calculada reserva
Dispor duma ilha junto 'da terra firme foi ·uma das pre-
perante todas as populações de terras desconhecidas; e nos ocupações constantes dos portugueses, através de toda a sua
regimentos dos capitães das armadas davam-se-lhes, aliás, h· t- · I
IS ona u tramarina. A primeira das suas feitorias africanas
ainda e~ vida do Infante D. Enrique, foi na pequena ilh~
instruções da maior prudência nos seus contatos com esses
povos.
de Argmm, cerca do continente. Mais tarde Loanda Mo-
Lendo com atenção a carta de Caminha, observa-se que
~ambique, Mombaça, Diu, Goa e Macau, pequenas proJeções
as relações entre portugueses e tupiniquins vão progressiva• Insulares dos continentes africano e asiático, testemunham
mente desde uma atitude de retraimento receoso e cautelosa essa necessidade elementar 'de segurança que havia de guiar
observação até à confiança quasi perfeita e à crença ingênua os lusitanos nos · · b
seus pnmeiros esta e1ecimentos nas terras dis-
numa espécie de inocência paradisíaca dos aborígenes, capaz
tantes· Dessa preocupação não faltam igualmente exemplos
duma fácil iniciação na elevada moral cristã. na história dos · ·
primeiros passos portugueses na América, a
No primeiro dia, totalmente passado na baía, sábado, 25 começar por estes de Cabral.]
de abril, à tarde, Pedro Alvares Cabral e os seus capitães,
. _No dia seguinte, 26, domingo de Pascoela, a piedade
que haviam de estar ansiosos de pisar terra, após quase dois cnsta dos port d
ugueses man ava que se ouvisse missa e pre-
-117-

-116- Rei
- : d"andavam
. já mais mansos e seguros en t re nos
- do qu
nos an avamos entre eles". e
gação de agradecimento pelo achado da terra, que tão bom Dentro desta cautelosa e persistente reserva se passam
.
abrigo lhes dispensava. Mas tudo se passou no mesmo ilhéu. e exp1tcam os atos dos portugueses , d uran t e a sua estância
Finda a cerimônia, de novo os batéis passaram ao longo da
em P orto Seguro.. Eles não querem ser ofen d'd 1 os pe Ios in~
praia, povoada de aborígenes, aos quais os portugueses' ace~ d'
tgenas, aos quats, porisso mesmo , poup am t o d a a o f ensa
navam "que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo
Esta
. a razão
. do desembarque· nos d ots. pnmetros
. . dias·
pôr em terra". Daí por diante, nunca mais os portugueses
deixaram de ter essa precaução com os indígenas . d e mats
.. suspeitosa reserva, no ilhéu • onde se ouvm . a pnmei~
.
ra mtssa. Resta saber se êle bastava e d' _
Na tarde dês se mesmo dia, depois do conselho a bordo, efeito. correspon ta a esse
o capitão~mor, mais confiado, resolve que fossem nos batéis
a terra, "e ver~se~ia bem o Rio quejando era, e tambem para . . Da descrição de Caminha se infere tratar~se d ..
tlheu grand e. . . que d e b atxamar
.. fica mui vazt'o" e um d
folgarmos". Folgar, interromper por momentos a estreita e esp · ·t • e on e
dura vida de bordo, constituíia irreprimível necessidade. rata mm o a agoa e descobre muita areta
. e mm.to cascalhau".
E foram, mas todos armados e com o sinal bem visível Ilhéu e grande são termos que até certo ponto
da bandeira à frente : "Fomos todos nos bateis em terra cluem. Ainda. mesmo referindo essa grandeza às dim::s~::
armados e a bandeira conosco. Eles andavam alí na praia ;.xtrem~s de ba~x~~mar, seria prudente aferir daquêle qualifica~
à boca do rio omde nós íamos e antes que chegássemos do en~ tvo pe as relattvtdades dum embarcadiço que acabava de .
sino que dantes tinham poseram todos os arcos e acenavam ~~~Oc.erca de dois meses na estreita cobertura duma nau ~~
que saíssemos." Os mesmos indígenas haviam já compreen~
dido os receios dos portugueses e a forma de os tranquilizar .. sôbr Da descrição de C amm · h a pouco mais podemos colher
Mas talvez, por ver os adventícios armados, atravessa~ nos ~ af grand:zba do ilhéu, já que o epistológrafo tão pouco
ram à pressa o rio, logo imitados dos forasteiros, a quem a à · m orma D. so re o número d os tnpu . Iantes que assistiram
sofreguidão de espaço e contacto não continha. Mas o pru~ mtssa ·
capitães tz apenas
b que o capitao~mor
M· ordenou a todos os
'd ente capitão, sôbre cujos ombros pesava a responsabilidade fe dque. em arcassem nos batéis e fossem com êle Re~
daquelas vidas, "fez~se tomar ao colo de dous homens e pas~ re~se .epots
pressão I a "todos ri·os " , os que asststlram
. . ·
à missa, ex~
sou o rio e fez tornar todos". que umatgua f mente
- vaga ' mas qu e nao ~
po d ia a b ranger mais
Apenas, volvida uma semana de continuada experiên~ guarda a· s raçao dos tripulantes, pois a restante ficaria de
naus e aos bat'' M ·
cia, Pedro Alvares Cabral resolve fazer rezar a segunda ilhéu, no relat d- d' e~s · ais uma vez se refere ao
missa em terra firme, a 1 de maio. Já então os aborígenes superfíci .. o .esse . ta' mas p ara d'1zer apenas que à sua
. cascalha
mutto e esprata
.. mmto a agoa e d escobre mmta . areia e
não manifestavam o menor sinal de receio dos portugueses,
aos quais e, a~pesar~de tudo, uma longa e dolorosa prática foram algun bu e acrescentar que, enquanto aí estavam
s uscar marisc0 • mas apenas acharam camarões,'
noutras terras mandava estar sempre de guarda. Na vés~
pera, a 30 de abril, o concencioso Caminha diria deles ao
-118-
-119-

um dos quais d e tamanho nunca visto e cascas partidas de As medidas da Coroa Vermelha na Carta da Marinha
berbigões e ameijoas. _ _ . Brasileira oferecem, por consequência, um excelente ponto de
Podemos acrescentar ainda _que o ilhéu era ~ao proximo referência. Elas representam a grandeza máxima do ilhéu,
da praia que os indígenas, que ali anda:am, _estiveram con- atingida apenas no momento · da baixa-mar das chamadas
templando a cerimônia, e Caminha podm afirmar que tra- águas vivas .
ziam arco e seta e computar-lhes o número. A diferença de altura entre as águas da preia e as da
Ora a atual Coroa Vermelha, desde Aires do Casal identi- baixa-mar oscila nas costas do Brasil entre 1,50 m e 2 m; mas
. d com 0 ilhéu referido por Caminha, está hoje ligada à
f Ica pode atingir 2.50 m no fundo das baías, como deverá precisa-
a · E' mente suceder na Enseada da Coroa Vermelha.
onta do mesmo nome e só descobre na maré vasm. o que
:ode verificar-se na Carta da Marinha do Brasil. ~ão pouco Entre esses dois momentos culminantes deve variar mui-
pela sua extensão merece o nome de "ilhéu grande . ~cres­ to a superfície descoberta do ilhéu desde o máximo da Carta
centemos que 0 senhor Cte. Oliveira Belo, co~ ~ autondade da Marinha Brasileira ao mínimo da preia-mar.
·d de estudioso dêste assunto e de quem VISitou e obser- Ora, se lermos com atenção o relato de Caminha, con ..
e gran "O ·f
vou minuciosamente a baía Cabrália, nos informa: . rect e cluiremos que Pedro Alvares Cabral desceu no ilhéu de Por..
da Coroa Vermelha que descobre totalmente na batxa-mar to Seguro, quer na tarde do dia 25, quer na manhã do dia
viva, a ponto de ser atravessado a pé enxuto, tem uma ex- seguinte, no momento da baixa-mar. No primeiro daqueles
tensão de 1. 700 metros e uma largura média de 500, e a dias, esclarece Caminha que o ilhéu "de baixa-mar fica mui
Coroa Vermelha, que é oval e nêle encrustada, também des- vazio" ; e acrescenta que, ao regressar dali às naus, era "já
cobre igualmente em idêntica circunstância e mede 128 x_ 100 bem noute". No segundo dia, em que pela manhã ouviram
metros". Estes números, aliás, estão mais ou menos de ~co_rdo missa e pregação no ilhéu, em vez de nomear, descreve os
com os dados fornecidos pela Carta da Marinha Brastleira. efeitos da baixa-mar, o que não é menos eloquente. Diz êle
que naquele ilhéu espraia muito a água e descobre muita areia
Salvador Pires diverge muito dêstes números, pois diz
e muito cascalho, quer dizer, durante a baixa-mar aumenta
que a Coroa Vermelha "forma .~ma ilhot~. com 55 metros
muito a superfície emersa. Como é costume na baixa-mar,
de comprimento por 19 de largura e se acha sobre u~a roc~a
os marinheiros foram à busca de marisco na parte descoberta
calcárea de cento e trinta e cinco metros de compnmento . ·
do ilhéu, onde apenas encontraram alguns · camarões e os de-
Mas estas medições são destituídas de carater científico, pois
tritos das cascas de moluscos marítimos, que a água da mar~
o autor não nos diz, como é de observância elementar em casos vazante deixa sôbre a praia. .
tais, a que nivelamento das águas se reporta.
Caminha, que era tão fino observador e fiel escrivão,
Pelo contrário, a Carta da Marinha Brasileira refere as
deixou aqui a imagem viva do ilhéu percorrido no perímetro
medidas de profundidade e, por consequência, as de altitude,
pela marinhagem, buscando, entre o cascalho e os detritos
ao nível da baixa-mar média das sizigias, isto é, ao zero do das valvas, algum marisco de refresco. E, como na véspera
marégrafo.
haviam deixado o ilhéu "já bem noute", entre êsse momento
-120- -121-

e a manhã seguinte deveriam transcorrer as 12 horas e meia, Finalmente, o ilhéu era de areia, como a Coroa Verme-
que medeiam aproximadamente entre uma e a seguinte baixa- lha. Assim, entre o ilhéu descrito por Caminha e a Coroa
mar. Vermelha e o seu recife existem sinais bastantes de identifica-
Nesta averiguação podemos ir mais longe. Cqnhecido ção, embora a ação do mar, em 443 anos, tenha modificado
o }unário de 1500 e o estabelecimento do porto na enseada da bastante o cortôrno respectivo. A essa Coroa Vermelha, nota-
Coroa Vermelha, poder-se-ia calcular aproximadamente a velmente ampliada pelo recife, nas horas da maré viva, se
hora e a fôrça da baixa-mar, em 25 e 26 de abril de 1500, referia, em nosso entender, Caminha, em cuja pena já não
nesse recanto da costa. soa tão enfaticamente a çlesignação de "ilhéu grande". Que
Luciano Pereira da Silva, para averiguar se o domingo ela hoje esteja unida à terra por uma restinga de areia entra
da Pascoela, festa, como é sabido, ligada às revoluções lu- por tal forma na ordem natural das coisas que êsse fato
nares, caíra, como caiu, em 1500, a 26 de abril, organizou, mais confirma do que infirma a velha identificação do P.e
servindo-se do Almanach perpetuum de Zacuto, o calendário Aires do Casal .
daquêle mês e naquêle ano (vide HISTÓRIA DA CoLONIZAÇÃO Ao invés, a quem penetrou, através da sua carta, o ca-
PoRTUGUESA DO BRASIL, II, págs. 134 e 135). Ora, a 28 de rater e o processo descritivo, tão preciso e minudente, de Ca- '
abril de 1500, foi lua nova; por consequência, a 26, estava-se na
minha, torna-s~ evidente qve o ilhéu descrito não tem nada
antevéspera da baixa-mar estrema das águas vivas; e, COD;J.O,
que ver com o "recife ilhado" do Buranhem; e que também,
segundo a Carta da Marinha Brasileira, o estabelecimento do
sob êste aspecto, a identificação de Varnhagen não oferece
porto em Santa Cruz é de 3 h. e 44 m., podemos calcular grosso
a menor base. Se o escrivão da armada de Cabral aqui hou~
modo que a baixa-mar na noite de 25 seria cerca das 19 h. e
vera estado durante algumas horas, a sua aguda retentiva
meia e na manhã do dia seguinte, cerca das 8 horas. Tráta-se,
não deixaria de apreender e referir mais tarde o aspecto sui
repetimos de números meramente aproximados . Para a de-
JJeneris da formação coralínea do recife; o seu prolongamen"'
Vida exatidão era indispensável conhecer o estabelecimento
do porto na enseada da Coroa Vermelha e as irregularidades to cordiforme de cerca de légua e meia, ao longo da costa e
locais das marés. na sequência de outros; a sua integração na barra do Bura-
nhem e a grande proximidade a que fica a sua extremidade
Mas esta averiguação nos basta para podermos afirmar meridional da margem direita dêste rio; nem tão pouco cala-
que Pero Vaz de Caminha descrevia o ilhéu, não só no mo-
ria em que parte - no extremo norte, a meio ou no sul da
mento da baixa-mar, mas num dos dias em que esta se apro-
extensa corda - se havia realizado a cerimônia religiosa.
ximava do ponto culminante das águas vivas. Nesses dias e
àquelas horas, aumentava, por certo de maneira notável, a su~ O ilhéu de areia - irrefragavelmente se colhe da sua
prdície do ilhéu e a sua capacidade para templo improvisado; narrativa - era bem mais incaracterístico e anódino que o
e tornava-se menos impróprio o qualificativo de "grande" na recife do Buranhem, cheio de novidades típicas para um es-
pena do probo Caminha. pírito tão curioso, como o de Caminha.
-123-

III É evidentíssimo, pois, .q ue se não trata do Buranhem, 0


Na baía, onde a armada de Pedro Alvares Cabral an- qual. em boa verdade, merece, pela extensão e o caudal, 0
corou, desembocava um rio.1 nome de rio; que mede, na sua foz, entre 300 e 500 metros
Segundo a descrição de Caminha, tratava-se dum pe- de largura, com profundidade bastante para afogar um
queno rio "dagoa doce de muita agoa que lhes dava pela homem; que não corre paralelo à costa e, só muito longe dela,
braga"; que não era mais largo "que um jogo de manquat'; oferecerá condições de abastecimento de água doce.
e ··que anda sempre a caram da praya", isto é, corre paralela- Averiguado, como está, que a última ancoragem de Ca...
mente à linha da costa. bral em terras brasileiras foi na baía Cabrália, e a distância
Caminha refere, com frequência, que aborígenes e por- relativamente pequena da Coroa Yermelha, o rio em que a
tugueses transpunham o rio com grande facilidade, o que é tripulação da frota fez aguada não pode deixar de ser o Mu-
perfeitamente compreensível, se nos lembrarmos que não era tarí. E já veremos que outras circunstâncias concorrem ini-
mais largo que um jogo de mancai, quer dizer, cerca de 8 ou 10 ludivelmente para essa identificação ,1
metros, e que a água dava pela virilha ou pela coxa de quem
o atravessava. Em boa verdade, tratava-se mais dum ri...
beirão que dum rio. : I~

Essa estreiteza, a circunstância de correr junto da praia


Resta averiguar em que lugar se ergueu a cruz, símbolo
e, por consequência, de ser facilmente abordável numa larga
da soberania portuguesa, e se realizou a segunda missa no
extensão, o seu conteudo em água doce e tão próximo do mar, dia 1 de maio de 1500 .
realizavam, aliás, um conjunto excepcional de vantagens para
os portugueses. Assim como, ao entrar na baía Cabrália, Da mesma sorte que a escolha da baía, do ilhéu e do
encontraram porto seguro contra os suestes; e, ao descer na pequeno rio, também a do lugar onde assentou a Cruz obe-
Coroa Vermelha, ouviram missa tranquilamente e ao abrigo decia a objetivos práticos. A Cruz representava juntamente
de qualquer cilada dos indígenas. naquêle ilhéu seg.uro; · tam- um símbolo de piedade cristã; afirmava "com as armas e de-
bém para eles, o pequeno rio era acessível e de água doce, onde visa de vosa alteza que lhe primeiro pregaram" a soberania
tão facilmente podiam fazer aguada, e ao qual. nos mapas portuguesa sobre a terra descoberta; finalmente, assinaiava
seiscentistas se chamará ,por isso mesmo- Rio DocE. Ainda aos que viessem depois o lugar da excelente aguada e aquela
na segunda metade do século passado, os roteiros· da costa mesmo onde haviam ficado os dois degredados, para apren-
'do Brasil indicavam a fácil aguada no rio Mutarí. derem a língua e os costumes da terra.
É certo que o Sr. Cte. Oliveira Belo nos informa que a Comecemos por observar ,que a cruz foi posta "onde
largura média do Mutarí, cerca da sua foz, oscila entre 4 e nos pareceo que seria milhor. . . para ser milhor vista".
5 metros. Quer dizer : o pequeno curso tornou... se mais es... Cabral tinha interêsse em que se visse bem o sinal exterior da
treito, - efeito natural e quasi necessário, acrescentamos nós, s~berania portuguesa e em apontar, com segurança, aos pró-
do seu açoreamento progressivo. xunos visitantes, mais provaveis,- os portugueses- o lugar
-124-

onde fazer aguada e buscar as preciosas informações dos -125-


dois degredados que ali ficavam.
ximadamente~ dentro da baía Cabrália, foi o ancoradoiro da
:Vinha do tempo de D . Afonso V o costume de marcar
armada.
com cruzes de madeira as novas terras descobertas. Em
O minudente Caminha informa : "entraram todas as
1484, D. João II, em vez de cruzes, mandou a Diogo Cão
naus dentro e amcoraram em 5,6 braças". Se fosse a braça
que assinalasse com padrões de pedra, adrede fabricados em
marítima de hoje, as naus teriam ancorado . entre oito e 1O
Portugal, os descobrimentos seguintes (Barros, DÉCADA I DA
metros aproximadamente, Por essa profundidade, a oeste e
ÁSIA, livro III, cap. 3°). Bartolomeu Dias e Vasco da Ga-
a 800 metros da extremidade setentrional do recife da
ma continuaram a obedecer a esta prática. Este último levou ponta da Coroa Vermelha, coloca a carta da Marinha
consigo do reino três padrões de pedra, para as-s inalar três Brasileira o sinal gráfico da ancoragem atual. As Instruções
novos descobrimentos e aos quais D . Manuel dera anteci- náuticas da Marinha Francesa mandam·ancorar mais ao norte,
padamente os nomes de S . Gabriel, S . Rafael e Santa Maria. quer dizer, a uma milha da ponta da Coroa Vermelha, por
Mas, ao passar, pela baía de S. Brás, excelente lugar de nove metros de fundo ( INSTRUCTIONS NAUTIQUES, CôTF..
aguada, junto ao cabo da Boa Esperança, anteriormente des- EsT DE L'AMÉRIQUE ou Suo, Paris, 1928, pág. 262).
coberto por Bartolomeu Dias, plantou no lugar não só um Afigura-se-nos preferível o primeiro dêstes dois ancoradoi-
padrão, aliás, sem nome, mas uma cruz, "a qual fizemos de ros, mais abrigado dos ventos suestes. Aproximadamente
uma mezena e era muito alta" (RoTEIRO DA PRIMEIRA VIAGEM entre os dois, mais próximo do primeiro, deverá ter ancorado
DE VAsco DA GAMA, ed. da Agência G. das Colônias, 1940, a armada de Cabral, atendendo para êste cálculo mais às van-
pág. 13). tagens gerais de posição, do que às medidas em braças da
Mais tarde, nas suas instruções para a Viagem de Pedro carta de Caminha, pois não só estas poderiam ser maiores que
Álvares Cabral, V asco da Gama apontava, com frequência, as atuais, como a profundidade do local da baía ter mudado.
a agoada de S. Braz, como ponto de referência e encontro Posto isto, vejamos que outras indicações nos fornece
para os navios. Cremos, pois, que o Gama, ao erguer uma Caminha para a solução do problema. Para isso transcreva-
cruz muito alta, na baía de S. Brás, anteriormente descober- -se a parte da carta respectiva : "E hoje que é sexta feira, pri-
ta, pretendia assinalar aos que viessem depois, com aquêle meiro dia de maio, pela manhã, saimos em terra com nossa
símbolo cristão, um outro porto seguro com uma aguada "que bandeira e fomos desembarcar acima do rio contra o sul onde
aquí está muito boa à beira do mar". nos pareceo que seria milhar chantar a cruz para ser milhar
Nesta prática devemos, segundo cremos, filiar o ato de vista e alí assinalou o capitão onde fizessem a cova para a
Cabral, que desejava plantar a Cruz, não só próximo da chantar. E, emquanto a ficaram fazendo, êle com todos nós
aguada, mas onde fosse melhor vista. Melhor vista do anco... outros fomos pela cruz abaixo do rio, onde ela estava. Trou-
radoiro pelos futuros navegantes, que demandassem a terra. xemos-Ia dalí com esses relegiosos e sacerdotes diante can-
Convem pois, antes de mais nada, saber em que lugar, apro- tando em maneira de procissão. . . pasamos o rio ao longo da
praia e fomo-la pôr onde havia de ser que será do rio obra
. de dous tiros de besta ... ".
-126- -127-

Ficamos, pois, sabendo que a cruz foi assentada : uma curva sinuosa em S, cuja metade inferior se desenrola
em frente da praia. Assim, nesta forma esquemática dum S,
a) em lugar donde fosse "melhor vista" do ancoradoi· e com as respectivas variações gerais de proximidade em re-
ro normal; lação à praia, aparece o Mutarí na carta de Luiz Teixeira; e
b) na praia, quer diser, onde desembarcaram; êsse devia ser o aspecto de conjunto que o pequeno rio apre-
c) acima do rio contra o sul; sentou aos seus primeiros observadores. Advirta-se que, a
d) e a cerca de dois tiros de besta do rio. 1 de maio, já os portugueses haviam vadeado e seguido o di-
minuto curso várias vezes, o que lhes permitia possuir o seu
A parte da praia mais próxima e, por consequência, mais esquema topográfico. .
visível do lugar do ancoradoiro, é precisamente a foz do Mu- · Ora, e por forma geral, a praia situa-se acima, quer di--
tarí e o trecho que a vizinha numa e noutra margem. Que a zer, ao norte, do baixo Mutarí, mas muito mais na parte ex--
Cruz ficou assente na praia não pode restar dúvida. Nesse trema e meridional, nos últimos 400 metros de curso, quasi
particular, a carta de Caminha e a Relação do piloto anônimo oeste--leste e paralelo à praia. Assim, quem desembarcar
estão de acôrdo. Aquêle diz expressamente que desembar- nesse trecho da carta desembarca acima do rio e contra o sul,
caram no lugar onde lhes pareceu melhor chantar a cruz. em relação ao curso restante e ao ancoradoiro, ponto de
Logo esta foi erguida na praia. Por sua vez, o piloto anô..- partida.
nimo informa que o capitão : "mandou fazer uma cruz de Compreendida esta expressão, igualmente se entende
madeira muito grande, e a plantou na praia" (HISTÓRIA DA que fossem buscar a cruz "abaixo do rio, onde ela estava" .
CoLONIZAÇÃO PoRTUGUESA Do BRASIL, II, págs. 116--117) . Da descrição de Caminha se depreende que só para lá
Vejamos agora onde será "acima do rio, contra o Sul''. da praia e do rio, ou seja abaixo dêste, começava a floresta.
Como já vimos, a versão de D. Carolina Micaelis de Vas- Aí era mister abater a árV"ore, donde talhar a cruz.
concelos impossibilitava a identificação do rio . da carta de Essa árvore foi cortada, segundo Caminha, no dia 27,
Caminha com o Mutarí. "Fomos desembarcar rio acima segunda--feira. No dia seguinte "enquanto nós fazíamos le-
contra o sul" constitue manobra incompatível com êste rio, nha", por conseguinte, na floresta, "faziam dous carpinteiros
pois não se navega a montante nessa direção. Ao contrário, uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortou".
desembarcar acima do Mutarí e contra o Sul não só é possí-- Caminha, que tomava parte na empreitada dos lenhadores,
vel, mas exigido pelo contexto·: refere--se à curiosidade com que os aborígenes observaram a
Abstraindo dos seus meandros, pode afirmar--se que a "farramenta de ferro" dos carpinteiros, cena que se passava,
direção geral do baixo Mutarí, ou seja da parte do seu curso pois, sob os seus olhos. E logo acrescenta : "Emquanto an·
que corre paralelamente à praia, é noroeste--sueste, advertin-- dávamos nessa mata a cortar a lenha atravessavam alguns pa--
do que nos seus últimos 400 metros, êle se afasta mais da pagaios por essas árvores" - espetáculo êste, impossível de
costa e corre quasi na direção oeste--leste. Verdadeiramente contemplar na praia, mas, sim, dentro da selva, onde lenha·
poderá dizer-se que o pequeno rio descreve, na sua totalidade, dores e carpinteiros trabalhavam.
-129-
-128-
com a grande cruz não comportava demorado rodeio e cami-
Ao dia seguinte, quinta~feira, 30, foram a terra por mais nhada.
lenha; e "foi o capitão com alguns de nós um pedaço por êste E, aquí chegados, resta apenas saber a quanto corres-
arvoredo. . . que é tamto e de tantas prumagens que lhe não ponderão os dois tiros de besta e o lugar do rio, que servia
pode homem dar conto". Estavam em plena selva, que devem a Caminha de segundo ponto de referência.
ter alcançado, desembarcando áo sul da foz do rio, como, O alcance do tiro variava, conforme se tratava de bestas
aliás, era natural, pois Caminha não fala de o haverem atra~ de g arrucha (para cavaleiro) , de polé (para peão ) , estas
vessado. E logo adiante acrescenta : "Quando saímos do maiores e de maior alcance, ou de badoque e pelouro ou es~
batel disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz que corpiões, que arrojavam balas, em vez de setas.
estava encostada a uma árvore junto com o do". Donde O mais natural é que Pero Vaz de Caminha se refira à
devemos concluir que nesse dia a cruz estava igualmente besta vulgar de peão, que desferia a seta, quer em combate,
abaixo e junto do rio. quer na caça. Essa era, por certo, a medida mais aproxima-
Desta sorte, compreende~se claramente o desenrolar da damente calculada e conhecida, e com frequência, menciona~
cerimônia no dia seguinte. Pedro Álvares Cabral, seguido da em crônicas e documentos do século XV e ainda na pri~
pelos capitães e tripulantes, desembarcou ao norte da parte meira metade do seguinte, para avaliar distâncias.
terminal do baixo Mutarí. Na praia assinalou o lugar onde Maurice Maindron, arqueólogo e especialista em arma-
deveria ficar a cruz, e enquanto alguns tripulantes ficavam ria antiga, afirma que um bom besteiro matava o inimigo a
abrindo a cova para a assentar, o capitão, com os restantes, mais de duzentos passos ( veja~se o grande DICTIONNAIRE
atravessou a pequena corrente para fazer transportar o ma~ UNIVERSEL ENCYCLOPEDIQUE LAROUSSE lLLUSTRÉ, em ARBA-
deiro para ali . LETE). Como o passo varia entre 65 a 75 centímetros, con-
Com êle às costas, cantando e em procissão passaram o forme ordinário ou acelerado, um tiro de besta, segundo Main-
rio, "ao longo da praia", quer dizer, na foz, onde o leito e dron, devia orçar por 140 a 150 metros.
a corrente alargam e era mais fácil atravessá~lo. E assim, Carlos Selvagem faz um cálculo mais modesto. "O uso
cantando a foram pôr "onde havia de ser que será do rio da besta - diz ele - em mãos de bons frecheiros, rendia
obra de dous tiros de besta" . por vezes grande velocidade de tiro, cujo alcance ia a mais
Naquêle dia, a baixa~mai, ainda próxima das águas de 100 metros, com suficiente força de penetração" (PoR...
vivas, devia culminar cerca das 12 horas . Ora, Caminha. TUGAL MILITAR, CoMPENDIO DE HisTÓRIA MILITAR E NAVAL
referindo~se ao fim da cerimônia, esclarece : .. . . . e isto aca,. DE PoRTUGAL, 1931, pág. 76). O autor abona~se sumaria...
bado era já bem uma hora depois do meio dia". Podemos, mente, em nota, para esta afirmação, com a CRôNICA DE D. PER...
assim, calcular que a travessia da foz se faria cerca das 11 NANDO de Fernão Lopes.
horas e da plena baixa~mar, ou seja em excelentes e muito As crônicas de Fernão Lopes abundam em avaliações
aconselhaveis condições . de distâncias por tiros de besta, de um a três. Na CRôNICA
Como atravessaram a corrente, a cruz ficou acima DE D. FERNANDO há um único passo, do qual possa inferir...se
dela e, por certo, a pequena distância da foz, pois a procissão 700.600 F. 9
-130- -131-

com relativa aproximação a equivalência atual do tiro de Entre o atual Conventinho (mais reduzido que o primeiro)
besta. e o lugar mais próximo por onde passava a antiga muralha,
Em tempos daquêle monarca, o r("i de Castela mandou medeiam cerca de 150 metros, conforme o cálculo que fizemos
uma armada atacar Lisboa. Historiando o acontecimento, o sôbre uma carta da Lisboa contemporânea.
cronista relata: "A frota como pousou amte a cidade, Iam~ Este número se aproxima mais da avaliação de Maindron,
çaram todos os batees fóra armados e pavesados, e foram jun~ e, como Fernão Lopes, que ainda era vivo em 1459, escreveu
tamente assi sahir amte o moesteiro de Samta Clara, que será as suas crónicas nos meados do século XV, supomos que
huum tiro de beesta aalem da cidade... " ( CRÔNICA DE EL REY êsse seria igualmente o cálculo de Caminha.
D. FERNANDO, cap. CXXXV).
É certo que devemos aceitar semelhante espécie de me~
Como então a cidade era perfeitamente limitada pela mu ~
dida- "obra de dois tiros de besta" - como sujeita a gran~
ralha, o cálculo seria muito simples: medir a distância entre
des erros e com os largos descontos da confessada aproxima~
o convento, se êle existisse, e o lugar onde aquela se erguia,
ção. Duas circunstâncias concorrem, não obstante, para li~
êste bem conhecido. Damião de Goes, na descrição de Lis~
mitar esta imprecisão.
boa, em 1554, situava fora e cerca da muralha êsse mosteiro,
do qual dizia : "o grandioso e notabilissimo mosteiro de Santa Primeiramente, o trecho da praia "acima do rio contra
Clara alcança quasi a margem do rio (LISBOA DE QmNHEN ~ o sul" onde se assentou a Ctuz, não excede 400 metros; em
TOS, texto latino de D. Gois e tradução de Raul Machado, segundo lugar, fôra não só várias vezes palmilhado por Cami~
Lisboa, 1937, pág. 42). A célebre e conhecida gravura de nha, mas êste havia~o percorrido, em procissão, antes daquela
Braunio, posterior de alguns anos, figura na sua representação cenmoma. Acrescentemos ainda que Caminha ~ mestre da
de Lisboa, o mosteiro também fora da muralha,· mas a distân~ Balança da moeda, na cidade do Porto, cargo que herdara do
cia, evidentement~ excessiva, quer desta, quer do rio. Mas, pai~ reflete abundantemente na sua carta o vinco profissio~
corrigindo a imagem dum, pela descrição do outro, obtem~se . nal da exatidão nas contagens e medidas.
o panorama local e conclue~se que o mosteiro ficava muito
Supomos, pois não andar muito longe da verdade cal~
próximo, quer do Tejo, quer da cinta amuralhada da urbe. culando os dois tiros de besta entre 250 e 300 metros, dis~
A quando o terremoto, o mosteiro foi destruido e recons~ tância a que a Cruz ficou do rio. Mas aquí novo problema
truido mais tarde, mas em proporções menores, ficando então se levanta. Qual a parte do curso que serviu de ponto de
conhecido pelo nome, que ainda conserva, de Conventinho ou partida para a contagem do mestre da Balança ?
Convento do Desagravo ( veja~se Vilhena Barbosa, FRAG~
Se tivéssemos de entender o ponto mais próximo do pe~
MENTOS DE UM RoTEIRO DE LISBOA (inédito) ARQUIVO queno rio, naquela minguada parte do seu curso, o cálculo
PITORESCO, T. VII, 1864, págs. 27~28, e João Maria Baptista, de Caminha seria excessivamente errado. Ainda nos luga~
CoROGRAFIA MoDERNA Do REINO DE PóRTUGAL, vol. IV. 1876, res em que o rio se afasta mais da praia, ao longo dêsses 400
pág. 499). metros, essa distância não excederá os 100 metros, não alcan~
-132- -133-

çando, pois, um tiro de besta. Por outras razões, ainda, con~


cluimos que Pero Vaz de Caminha tomava, sim, como ponto
de referência a foz do rio: porque êsse era o lugar mais certo
e definido, nas suas relações com a linha da costa, e porque
êle acabava de o referenciar, e compassar, na marcha, a dis-
tância a que ficava da Cruz .
Aliás, ainda quando '- o que não cremos - Caminha
contasse os dois tiros de besta do norte para o Sul, o ponto
da praia em que essa avaliação é menos precária por insuficiên-
cia, divergeria de poucos metros daquêle que fica 250 a 300
metros a oeste da foz do Mutarí.
Por tudo quanto acabamos de dizer se conclue que Beau-
repaire Rohan e Zeferino Candido estavam na razão, situando
na praia o assentamento da Cruz e se iludiam quando o su-
punham ao sul do Mutarí. Erros bem maiores são os de Sal-
vador Pires, que avaliou os dois tiros de besta em 45 ou 50
metros; e supõe aquela cerimônia realizada, não na praia, mas
numa pequena eminência a mais dum quilômetro a noroeste da
foz do rio e a meio quilômero da costa.
Em conclusão: a Cruz, símbolo da fé cristã e da sobe-
rania dos portugueses sôbre a terra descoberta foi plantada,
a 1 de maio de 1500, na praia, a cerca de 300 metros, a oes-
noroeste da foz do Mutarí.
E, ainda quando o monumento comemorativo dessa ce-
rimônia não assentasse - o que seria difícil - no mesmo e
exato lugar da Cruz de 1500, ficaria a meio da área sagrada,
onde nasceram, lutaram e sofreram até desaparecimento total,
três das incarnações da povoação de Santa Cruz - provavel-
mente a primitiva feitoria, anterior às donatárias, mais tarde
a Santa Cruz, a velha, da margem direita, fundada por T ou-
rinho e, por fim, a Santa Cruz, a nova - engenho acaste-
lado do duque.
-134-

O monumento, que alí viesse a erigir. . se, conforme o voto


de Zeferino Candido, comemorava desta sorte, além da ceri-
mônia da posse, sob a invocação da fé e da civilização cristã,
o martírio anônimo e esquecido dos muitos colonos. que re-
garam com o sangue os fundamentos da Pátria brasileira.

CONCLUSõES

Chegados ao termo, supomos conveniente resumir as con-


clusões dêste estudo e, com elas, os fatos novos apurados pelas
nossas investigações.

I
O último ancoradoiro da armada em terras brasileiras foi
na atual baía Cabrália, por 8 a 1O metros de profundidade, a
• cerca de quilômetro e meio da Coroa Vermelha e por detrás dos
recifes do mesmo nome, a coberto dos suestes.

II
A parte da costa mais próxima dêsse ancoradoiro é preci-
samente a foz do Mutarí e as praias, que imediatamente a la-
deiam - por êsse motivo, as primeiras e únicas frequentadas
pelas tripulações do prudentíssimo Cabral .

III
Na primeira incerteza sôbre a atitude do aborígene, Pedro
Alvares Cabral evitou o desembarque em terra firme, conten--
tando-se com uma visita, no dia 25 de abril, ao ilhéu da Coroa
Vermelha, onde fez, no dia seguinte, rezar a primeira missa,
ainda por motivos de segurança.
-136- -137-

IV VIII
Por causa desta contiguidade sôbre um terreno tão redu~
As duas visitas àquele ilhéu fizeram~se à hora propícia da
baixa~mar e muito próximo das águas vivas - medida ditada
zido, Gabriel Soares identificou, um com o outro, o lugar onde
pela prudência e a sabedoria náutica dos portugueses e que assentaram a Cruz e a povoação velha, sendo que, na realida...
explica até certo ponto a denominação antinómica de "ilhéu de, uma ficava aquém e a outra além do rio, ainda que separa...
grande", dada por Caminha à Coroa Vermelha . das por algumas dezenas de metros .

IX
v Entre o Mutarí e o Itacumirim ou Itassemirim não houve
Quando se ·realizaram as cerimônias da manhã do dia 1 identidade no passado; nem existiu provavelmente em nossos
de maio, após uma semana de estadia na baía Cabrália, Cami~ tempos fundamento para a confusão feita por Mouchez e con~
nha conhecia perfeitamente o esquema topográfico do baixo tinuada por Salvador Pires e Malheiro Dias, pois a carta da
Mutarí, conhecimento, sem o qual é impossível entender essa Marinha Brasileira já a não repete.
parte da sua narrativa e reconstituir o pequeno trajeto feito
pelos portugueses, desde que desembarcaram e atravessaram o X
rio à busca da Cruz, para de seguida o cursar de novo junto da Desde o descobrimento de Cabral, em 1500, até a década
foz e realizar, a pequena distância, a cerimônia da posse. de 1570, em que surgem e se repetem novos depoimentos sôbre
o lugar do último ancoradoiro, perpetuaram . . se nas margens do
VI Mutarí os testemunhos vivos da arribada da frota descobri...
dora e das cerimônias desenroladas no local.
Com êsse conhecimento, hoje tornado possível pelas cartas
de Luiz Teixeira (c. 1574) e da Marinha Brasileira ( 1940) , XI
tão concordes, pode afirmar~se que a Cruz ficou assente na
Essa tradição objetivamente conservada, através de dois
praia, a cerca de 300 metros, a oes~noroeste da foz do Mutarí.
séculos, num grande número de mapas e roteiros e, para maior
objetividade, no Roteiro~atlas de Luiz Teixeira, coincide nas
VII suas linhas gerais com a carta de Caminha.
Em memona desta cenmoma e talvez pela sugestão do
XII
símbolo presente, rio de Santa Cruz, porto de Santa Cruz e
povoação de Santa Cruz se chamaram, durante o século XVI. O Roteiro. . atlas de Luiz Teixeira, elaborado ao longo da
o Mutarí, a baía Cabrália e o povoado que assentou sucessiva~ costa do Brasil, desde' o Cabo de Santo Agostinho até ao Rio
mente às duas margens daquêle rio e no curto espaço onde da Prata, cerca de 1574, por iniciativa oficial. foi uma das
hoje não caberia um bairro citadino. fontes, e preciosa, do Roteiro inserto por Gabriel Soares no
-138-

seu Tratado Descritivo do Brasil; e constitue o melhor comen-


tário gráfico à carta de Pero Vaz de Caminha.

XIII
Na margem direita do Mutarí, direita do João de Tiba e
esquerda do Mutarí sucederam-se. respectivamente, a povoa-
ção de Santa Cruz, a velha, a povoação de Santa Cruz. que
mudaram e a povoação de Santa Cruz, a nova, ordem esta,
suposta na carta de Luiz Teixeira, e implícita no texto de
Gabriel Soares .
XIV
O lugar onde Cabral mandou erguer a Cruz tornou-se
digno de sagração monumental, não só, e estritamente, porque
alí começou a história brasileira, sob o signo da soberania por-
tuguesa e a invocação do Cristianismo, mas, mais latamente, A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
porque alí se iniciou a catequese do aborígene; porque ali ADAPTAÇÃO À LINGUAGEM ATUAL

dois ~egredados deixados por Cabral, um dos quais Afonso


Ribeiro, foram os primeiros a aprender a língua geral e a
elaborar alguns dos elementos essenciais do conceito dum
Novo Mundo, pelo estudo e diferenciação dp homem, da
fauna e da flora da nova terra; e, finalmente, porque ali
assentou um dos passos do martirológico português, na for-
mação do Brasil, durante o século XVI .
Senhor:

Pôsto que o Capitão~mor desta vossa frota, e assim os.


outros capitães escrevam a Vossa Alteza a novo do acha-
mento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se
achou, não deixarei também de dar minha conta disso a Vossa
Alte~a. o melhor que eu puder, ainda que - . para o bem
contar e falar - , o saiba fazer pior que todos.
Torne Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa
vontade, e creia bem por certo que, para alindar nem afear,
não porei aquí mais do que aquilo que ví e me pareceu.
Da marinhagem e singraduras do caminho não darei
aquí conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e
os pilotos devem ter êsse cuidado. Portanto, Senhor, do que
hei~de falar começo e digo :

A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi, se-


gunda feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as
oito e as nove horas, nos achámos entre as Canárias, mais
perto da Grã Canária, onde andámos todo aquêle dia em
calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E do--
mingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos,
houvemos vista das Ilhas de Cabo Verde, ou melhor da
Ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, pilôto.
Na noite seguinte, segunda~feira, ao amanhecer, se
perdeu da frota V asco de Ataíde com sua nau, sem haver
-142- -143-

tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o Dalí avistámos homens que andavam pela praia, obra de
capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos por chega-
mas não apareceu mais ! rem primeiro.
Então lançámos fora os batéis e esquifes; e vieram logo
todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde
Quarta-feira, 22 de abril
falaram entre si. E o capitão-mor mandou em terra no batel
E assim seguimos nosso caminho, por êste mar, de longo, a Nicolau Coelho para ver aquêle rio. E tanto que êle começou
até que, terça feira das Oitavas de Pá~coa, que foram vinte c de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois,
um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 ou 670 lé- quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à bôca do
guas, segundo os pilotos diziam, topámos alguns sinais de rio, já alí havia dezoito ou vinte homens.
terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes co-
a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a brisse suas vergonhas . Nas mãos traziam arcos com suas
que dão o nome de rabo-de-asno. E, quarta-feira seguinte, se~s. Vinham todos rijamente sôbre o batel; e Nicolau Coe-
pela manhã topámos aves a que chamam furabuchos . lho lhes fez sinal que pousassem os arcos . . E êles os pou-
Nêste dia, a horas de véspera, houvemos vista de saram.
terra ! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; Alí não poude dêles haver fala, nem entendimento de
e doutras serras mais baixas ao sul dêle: e de terra chã, com proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um
grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome - o barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na ca-
Monte Pascoal e à terra- a Terra da Vera Cruz. beça e um sombreiro preto. Um dêles deu-lhe um sombreiro
Mandou lançar o prumo . Acharam vinte e cinco bra- de penas de ave, compridas. com uma copazinha pequena
ças; e, ao sol pôsto, obra de seis léguas da terra, surgimos .de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-
âncoras, em dezenove braças ancoragem limpa. Alí per- lhe um ramal grande de continhas brancas, miudas, que que-
manecemos toda aquela noite. rem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão
manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser
tarde e não poder haver dêles mais fala, por causa do mar.
Quinta-feira, 23 de abril Na noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros
E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos que fez caçar as naus, e especialmente a capitaina.
direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezassete,
dezasseis, quinze, quatorze, treze, doze, dez e nove braças, até Sexta-feira, 24 de abril
meia légua, onde todos lançámos âncoras em frente à bôca de
um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menps,
mais ou menos. por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras
-144- -145-

e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes furados e metidos nêles seus ossos brancos e verdadeiros, do
amarrados à pôpa na direção do norte, para ver se acháva- comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de
mos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos. algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela
para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre 0
aqui nos acertarmos. beiço e os dentes é feita como roque de xadrês, a1í. encaixado
Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no
perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se comer ou no beber.
-haviam juntado alí poucos e poucos. Fomos de longo, e Os cabelos se1:1s são corredios. E andavam tosquiados, de
mandou o Capitão aos navios pequenos.- que seguissem mais tosquia alta, mais que de sôbre-pente, de boa grandura e ra-
chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, pados até por cima das orelhas . E um dêles trazia por baixo
que amainassem. da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabe-
E, velejando nós pela costa, acharam os ditos navios leira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de
pequenos, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos le- um côto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço
vantado ferro, um recife com um pôrto dentro, muito bom e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena,
e muito seguro, com uma mui larga entrada . E meteram-se com uma confeição branda como cêra (mas não o era) , de
dentro e amainaram. As naus arribaram · sôbre êles; e um maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e
pouco antes do sol-pôsto amainaram também, obra de uma mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
légua do recife, e ancoraram em onze braças. O Capitão, quando êles vieram, estava sentado em uma
E estando Afonso Lopes, nosso pilôto, em um daqueles cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao
navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de
vivo e destro -para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia,
porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e nós outros que aqui na nau com êle vamos, sentados no
e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um dêles trazia chão, pela alc:atifa. Acenderam-se tochas . Entraram. Mas
um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a
seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os ninguém . Porém um dêles pôs ôlho no colar do Capitão, e
logo, já de noite, ao capitão, em cuja nau foram recebidos começou de acenar com a mão para a terra e depois para o .
com muito prazer e festa. colar, como que nos dizendo · que ali havia ouro. Também
A feição dêles é serem pardos, maneira de avermelha- olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para
dos, de bons rostos e bons narizes, bem feitos . Andam nus, a terra e novamente para o castiçal, como se lá também hou-
sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir vesse prata .
ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz
como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra,
700.600 F. 10
,
-146- -147-

como quem diz que os havia alí. Mostraram~lhes um carneiro: seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancora-
não fizeram caso. Mostraram~lhes uma galinha; quasi tive- ram em cinco ou sei& braças - ancoragem dentro tão grande,
ram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a to- tão formosa e tão segura que podem abrigar~se nela mais de
maram como que espantados. duzentos navios e naus. E tan.to que as naus quedaram anco-
Deram~lhes alí de comer : pão e pei.x e cozido, confeitos, radas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão~mor.
fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quasi E daquí mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu
nada daquilo; e, se alguma coisa provavam, logo a lançavam Dias que fôssem em terra e levassem aqueles dois homens e
fora. Trouxeram~ lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar
boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram~ a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um ro~
lhes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram sário de contas brancas de ôsso, que êles levaram nos braços,
na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora. seus cascavéis e suas campaínhas. E mandou com êles, para ·
Viu um dêles umas contas de rosário, brancas; acenou lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a
que lhas dessem, folgou muit~ com elas, e lançou~as ao pes~ que chamam Afonso Ribeiro, para .lá andar com êles e saber
coço . Depois tirou~as e enrolou~as no braço e acenava para de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fôsse com
a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão. Nicolau Coelho.
como dizendo que dariam ouro por aquilo. Fomos assim de frecha direitos à praia. Alí acudiram
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas logo obra de duzentos homens, todos ntis, e com arcos e
se êle queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram~ lhes
não o quedamos nós entender, porque não lho havíamos de que se afastassem e poisassem os arcos; e êles os poisaram,
dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera. mas não se afastaram muito. E mal poisaram os arcos, logo
Então estiraram~se de costas na alcatifa, a dormir, sem saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com
buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as quais não êles. E saídos não pararam mais; nem esperava um pelo
eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um
feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças rio que por alí corre, de água doce, de muita água que lhes
seus coxins; e o da cabeleira esforçava~se por a não quebrar.
dava pela braga; e outros muitos com êles. E foram assim
E lançaram~lhes um manto por cima; e êles consentiram, que- correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde es-
daram~se e dormiram.
tavam outros. Alí pararam. Entretanto foi~se o degredado
com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou
até lá. Mas logo tornaram a nós; e com êle vieram os outros
Sábado, 23 de abril
que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela
fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam
-148- -149-

cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos; nós levávamos e tornámo~nos às naus. Mas quando assim
enchiam~nos de água e traziam~nos aos batéis. Não que êles
vínhamos, acenaram~nos que tornássemos . Tornámos e êles
de todo chegassem à borda do batel. Mas junto a êle, lan~ mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com
êles . Êste levava uma bacia pequena e duas ou três cara~
çavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem
puças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse.
alguma coisa. Levava Nicolau, Coelho cascavéis e manilhas.
Não cuidaram de lhe tirar coisa alguma, antes o mandaram
E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira
com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar,
_que com aquele engôdo quasi nos queriam dar a mão. Da~
ordenando que lhes desse aquilo. E êle tornou e o deu, à
vam~nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de
vista de nós, àquele que da primeira vez o agasalhara. Logo
linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
voltou e nós trouxemo~ lo.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vi-
Êsse que o agasalhou era já de idade, e andava por lou~
mos mais.
çainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia
Muitos dêles ou quasi a maior parte dos que andavam alí asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de
traziam aqueles bicos de ôsso nos beiços . E alguns que an~ penas am. relas; outros, de vermelhos; e outros, de verdes. E
davam sem êles, tinham os beiços furados e nos buracos uns uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela
espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros tintura; e certo era tão bell}. feita e tão redonda, e sua vergo~
traziam três bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos. nha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres
Aí andavam outros, quartejados de côres, a saber, metadé da nossa terra, vendolhe tais feições, fizera vergonha, por não
dêles da sua própria côr, e metade de tintura preta, a modos terem a sua como ela. Nenhum dêles era fanado, mas, todos
de azulada; e outros quartejados de escaques. Alí andavam assim como nós . E com isto nos tornámos e êles foram~se.
entre êles três ou quatro moças, oem moças e be~ gentis, À tarde saiu o Capitão~mor em seu batel com todos nós

com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a
folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saíu em
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabe~
terra, porque o Capitão o não qu_ís, sem embargo de ninguém
leiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma
nela estar. Somente saiu - êle com todos nós - em um
vergonha.
ilhéu grande, que na baía está e que na baixa~mar fica
Ali por então não houve mais fala nem entendimento mui vas!o. Porém é por toda a parte cercado de água, de
com êles, por a berberia dêles ser tamanha que se não en~ sorte que ninguem lá pode ir a não ser de barco ou a nado.
tendia nem ouvia ninguém. Ali folgou êle e todos nós outros, bem uma hora e meia.
Acenamos~lhe que se fôssem; assim o fizeram e passaram~ E alguns marinheiros, que alí andavam com _um chinchorro,
se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvem~nos às
batéis, e encheram não sei quantos barris de água que naus, já bem de noite.
-150- -151-

Domingo, 26 de abril Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós,


para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcámos e fomos
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Ca~
todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde
pitão de ir ouvir missa e pregação naquêle ilhéo. Mandou a
êles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bar-
todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fôssem
com êle. E assim foi feito. Mandou naquêle ilhéu armar um tolomeu Dias em seu esquife 1 com um pau de uma almadia
esperavel, e dentro dêle um altar mui bem corregido. E ali com que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra· de tiro
todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre de pedra, atás dêle.
frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se
voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram alí. A logo todos à água, metendo~se nela até onde mais podiam.
qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com Acenaram~lhes que pousassem os ârcos; e muitos dêles os
muito prazer e devoção. iam logo pôr em terra; e outros não.
Alí era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que Andava aí um que falava muito aos outros que se afas~
saíu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do tassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham aca-
Evangelho. tamento ou mêdo. Êste que os assim andava afastando trazia
Acabada a missa, desvestiu~se o padre e subiu a uma seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos
cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou peitos, espáduas, quadris, côxas e pernas até baixo, mas
uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, os vasios com a barriga e estômago eram de sua própria côr.
ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem
terra, conformando~se com o sinal da Cruz, sob cuj~ obedi~ desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.
ência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção. Saíu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e an~
Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia dava entre êles, sem implicarem nada com. êle para fazer~ lhe
outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do
seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando~nos, esquife que saíssem em terra.
sentaram~se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e vie-
pregação, levantaram~se muitos dêles, tangeram côrno ou bu~ mo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem
zi~a e começaram a saltar e a dançar um pedaço. E alguns lhes dar mais opressão. E êles tornaram~ se a assentar na
deles se metiam em almadias - duas ou três que aí tinham praia e assim por então ficaram.
- as quais não são feitas como as que eu já ví; sõmente são Nêste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água
três traves, atadas entre si. E alí se metiam quatro ou cinco, espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a des~
ou êsses que queriam, não se afastando quasi nada da terra, coberto. Enquanto ali estávamos, foram alguns buscar ma~
senão enquanto podiam tomar pé. risco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos,
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entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em Acabado isto. disse o Capitão que fôssemos nos batéis
nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de ber- em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e tambem para foi . .
bigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça in- garmos.
teira. Fomos todos nos batéis em terra. armados e a bandeira
conosco. Êles andavam ali na praia, à bôca do rio, para onde
E tanto que comemos. vieram logo todos os capitães a
nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes
esta nau. por ordem do Capitão-mar. com os quais êle se
tinham. puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos.
apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos
Mas. tanto que os batéis puseram as prôas em terra, passaram-
parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa
se logo todos além do rio. o qual não é mais largo que um
Alteza pelo navi~ dos mantimentos, para melhor a mandar
jôgo de mancai. E mal desembarcámos. alguns dos nossos
descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber.
passaram logo o rio. e meteram-se entre êles. Alguns aguar,...
por irmos de nossa viagem .
davam; outros afastavam,...se. Era, porém, a coisa de maneira
E entre muitas falas que no caso se fizeram. foi por que todos andavam misturados. Êles ofereciam dêsses arcos
todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto com suas setas por sombreiras e carapuças de linho ou por
concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada. preguntou qualquer coisa que lhes davam.
mais se lhes parecia bem tomar aquí por fôrça um par dêstes Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim mis--
homens para os mandar a Vossa Alteza. deixando aquí por turados com êles, que êles se esquivavam e afastavam-se.
êles outros dois dêstes degredados. E dêles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Sôbre isto acordaram que não era necessário tomar por Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao
fôrça homens. porque era geral costumé dos que assim le- colo, passou o rio. e fez tornar a todos.
vavam por fôrça para alguma parte dizerem que há alí de A gente que alí estava não seria mais que a costumada.
tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a êle ai . .
informação da terra dariam dois homens dêstes degredados guns daqueles. não porqúe o conhecessem por Senhor, pois
que aquí deixassem. do que êles dariam se os levassem, por me perece que não entendem, nem tomavam disso conheci-
ser gente que ninguém entende. Nem êles tão cêdo apren,... mento, mas porque a gente nossa passava já para aquém
deriam a falar para o saberem tão bem dizer que muito me,... do rio.
lhor estoutros o não digam. quando Vossa Alteza cá mandar. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas
E que portanto não cuidassem de aquí tomar ninguém por já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira
fôrça nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar que os nossos trouxeram dalí para as naus muitos arcos e
e apacificar. senão sõmente deixar aqui os dois degredados, setas e contas .
quando daqui partíssemos. Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudi,...
E assim, por melhor a todos parecer. ficou determinado. ram muitos à beira dêle.
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Ali veríeis galantes, pintados de preto e de vermelho, e em que há muito bons palmitos . Colhemos e comemos dêles
quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, muitos.
pareciam bem assim . Então tornou-se o Capitão para baixo para a bôca do rio,
Também andavam, entre êles, quatro ou cinco mulheres onde havíamos desembarcado.
moças, núas como êles, que não pareciam mal. Entre elas andava Além do rio, andavam muitos dêles dançando e folgando,
uma com uma côxa, do joelho até ao quadril, e a nádega, toda uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-
tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria côr. no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife
Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e
também os colos dos pés; e suas vergonhas tão núas e com levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se
tanta inocência descobertas, qu~ nisso não havia vergonha com êles a dançar, tomando-os pelas mãos; e êles folgavam
alguma. e riam, e andavam com êle muito bem ao som da gaita. De-
Tambem andava aí outra mulher moça, com um menino pois de dançarem, fêz-lhes ali, andando no chão, muitas voltas
ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos ligeiras e salto real, de que êles se espantavam e riam e fol-
peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas gavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e
as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum. afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais mon-
Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que teses, e foram-se para cima.
corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e
trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da
esteve com êle, perante nós todos, sem nunca ninguem o enten- terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está
der, nem êle a nós quantas cousas lhe demandávamos àcêrca junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaú-
douro, que nós desejávamos saber se na terra havia. lada por cima e sai a água por muitos lugares.
Trazia êste velho o beiço tão furado, que lhe caberia E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito dêles
pelo furo um grande dedo polegar, e metida nêle uma pedra andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E
verde, ruim, que cerrava por fora êsse buraco. O Capitão lha levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes
fez tirar. E êle não sei que diabo falava e ia com ela direito levou e lançou na praia.
ao Capitão, para lha meter na bôca. Estivemos sôbre isso rindo Bastará dizer-vos que até aquí, como quer que êles um
um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esqui-
dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por vavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa
ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa
Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar como êles querem, para os bem amansar.
a Vossa Alteza . O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça
Andámos por ali vendo a ribeira, a qual é de muita água vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com
e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de
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passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de turaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns
lá para aquém. .:lêles se esquivavam logo. Ali alguns davam arcos por folhas
Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu
:•. de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer
o que já disse, nunca mais aqui apareceram- do que tiro ser coisa. Em tal maneira isto se passou que bem vinte ou trinta
gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém pessoas das nossas se foram com êles, onde outros muitos
e com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos. estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos ar-
E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou ali- cos e barretes de penas de aves, dêles verdes e dêles amarelos,
márias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor dos quais, segundo creio, o Capitão há de mandar amostra a
cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, Vossa Alteza.
tão gordos e formosos, que não pode mais ser. E, segundo diziam êsses que lá foram, folgavam com êles.
Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a N êste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por
que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós andarmos quasi todos misturados. Ali, alguns andavam daque-
ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas . las tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta
Mandou o Capitão àquele degredado Afonso Ribeiro, feição, como em panos de armar, e todos com os beiços fu-
que se fôsse outra vez com êles. Êle foi e andou lá um bom rados, e muitos com os ossos nêles, e outros sem ossos.
pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram êles vir e não . Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na
o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe côr, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos.
tomaram nenhuma cousa do seu. Antes - disse êle - que E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmaga-
um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia dos entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que
com elas, e êle se queixou e os outros foram logo após,e lhas êles andavam tintos . E quanto mais se molhavam, tanto mais
tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. vermelhos ficavam.
Disse que não vira lá entre êles senão umas choupaninhas de Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as
rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Doiro ..
·
sobrancelhas e pestanas.
e Minho.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tin-
E assim nos tornámos às na~s. já quas~ noite, a dormir. tura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois
dedos.
E o Capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro
Segunda-feira, 27 de abril
e a outros dois degredados, que fôssem lá andar entre êles: e
 segunda-feira,de pois de comer, sa~os todos em terra assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que êles fol-
a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como gavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noute.
as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos . Estiveram Foram-se lá todos, e andaram entre êles. E, segundo
assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco mis- êles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação,

f.
. :~ ·,
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em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão com~ turaram~se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a
pridas, cada uma, como esta nau capitaina. Eram de ma~ acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos
deira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de ra~ e tomavam muito prazer.
zoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento. Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros
tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rêde uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se Muitos dêles vinham alí estar com os carpinteiros. E
aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro
pequenas, uma num cabo, e outra no outro. com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque êles
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou qua~ não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e
renta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau
comer daquela vianda, que êles tinham, a saber, muito inhame entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que an~
e outras sementes, que na terra há e êles comem. Mas, quando dam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas
se fez tarde, fizeram~nos logo tornar a todos e não quiseram casas foram, porque lhas viram lá.
que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir Era já a conversação dêles conosco tanta que quasi nos
com êles. estorvavam no que havíamos de fazer.
Resgataram lá por cascave1s e por outras coisinhas de O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias
pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito gran~ que fôssem lá à aldeia (e a outras, se houvessem novas delas)
des e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda
penas verdes, e 'um pano de penas de muitas côres, ma~ que êles os mandassem. E assim se foram.
neira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atra~
estas cousas verá, porque o Capitão vô~las há de mandar, vessavam alguns papagaios por essas árvores, dêles verdes
segundo êle disse. e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me
E com isto vieram; e nós tornámo~nos às naus. parece haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria
mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos,
sõmente algumas pombas seixas, e pateceram~me bastante
Terça~feira, 28 de abril maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram
rôlas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui
À terça feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda muitos e gra~des, e de infindas maneiras, não duvido que por
de lenha e lavar roupa. êsse sertão haja muitas aves !
Estavam na praia, quando chegámos, obra de sessent3 Cêrca da noite nos volvemos para as naus com nossa
ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegámos, vie- lenha.
ram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aquí a Vossa
muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e mts~ Alteza da feição de se~s arcos e setas. Os arcos ·são pretos
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e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão co-
canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que zido, frio, e arroz.
- eu creio - o Capitão a Ela há de enviar. Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que
o não bebiam bem.
Quarta~[eira, 29 de abril Acabado o comer, metemo~nos todos no batel e êles co-
nosco. Deu um grumete a um dêles uma armadura grande , de
À quart.a feira não fomos em terra, porque o Capitão an- porco montês, bem revôlta. Tanto que a _tomou meteu~a logo n~
dou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá~lo e beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram~lhe uma
fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Êles pouca de cêra vermelha. E êle ageitou~lhe seu adereço detrás
acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer para tear segura, e meteu-a no beiço, assim revôlta para cima.
de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande jóia.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apa~
Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, receu mais aí .
volveram~se já de noite, por êles não quererem que lá ficas~
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez dêles; e
sem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quasi de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam,
como pêgas, a não ser que tinham o bico branco com rabos êste dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
curtos.
Traziam alguns dêles arcos e setas, que todos trocaram
Quando Sancho de T ovar se recolheu à nau, queriam
por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam
vir com êle alguns, mas êle não quis, senão dois mancebos
conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns dêles vinho; ou..-
disp~stos e homens de prol. Mandou~os essa noite mui bem
tros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem,
pensar e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e
o beberão de boa vontade.
mandou fazer~ lhes cama de lençóis, segundo êle disse. Dor-
Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes
miram e folgaram aquela noite.
com suas tinturas, que pareciam bem . Acarretavam dessa
E assim não houve mais êste dia que para escrever seja. lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam..-na
aos batéis.
Quinta~feira, 30 de abril Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós
andávamos entre êles.
À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quasi foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por êste ar..-
pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água . E, em voredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso
querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de T ovar parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós
com seus dois hóspedes . E por êle ainda não ter comido, tomámos água.
puseram~ lhe toalhas. Trouxeram~ lhe vianda e comeu. Aos Alí ficámos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo
hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o dela, entre êsse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto
700 . 600 F. 11
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e de tantas prumagens, que homem as não pode contar. Há Nêste dia, enquanto alí andaram, dançaram e bailaram
entre êle muitas palmas, de que colhemos muitos e bons pai~ sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em
mitos. maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Quando saímos do batel. disse o Capitão que seria bom Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam~se
irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, logo prestes para isso, em tal maneira que se a gente todos
junto com o rio, para se erguer àmanhã, que é sexta~feira, e quisera convidar, todos vieram. Porem não trouxemos esta
que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos para noute às naus, senão quatro ou cinco, a saber : o Capitão~
êles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. mor, dois; Simão de Miranda, um que trazia já por pajem; e
A êsses dez ou doze que aí estavam acenaram~lhes que fi~ Aires Gomes, outro, tambem por pajem.
zessem assim, e foram logo todos beijá~ la. Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que
lhe trouxeram da primeira vez, quando aquí chegámos, o
Parece~me gente de tal inocência que, se homem os en~
qual veio hoje aquí. vestido na sua camisa, e com êle um seu
tendesse e êles a nós, seriam logo cristãos, porque êles, se~
irmão; e foram esta noute mui bem agasalhados, assim de
gundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais
E portanto, se os degredados, que aquí hão de ficar amansar.
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que
êles. segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de
Sexta~feira, 1 de maio
fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso
Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de E hoje, que é sexta feira, primeiro dia de maio, pela
boa símplicidade. E imprimir~se~à ligeiramente nêles qual~ manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desem~
quer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, barcar acima do rio contra o sul. onde nos pareceu que seria
que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Alí assinalou o
por aquí nos trouxe, creio que não foi sem causa. Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a Enquanto a ficaram fazendo, êle com todos nós outros fo~
santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá mos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dalí a trou~
a Deus que com pouco trabalho seja assim. xemos com êsses religiosos e sacerdotes diante cantando, em
Êles não lavram, nem criam. Não há aquí boi, nem vaca, mane •.ra de procissão .
nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra ali~ Eram já aí alguns dêles, obra de setenta ou oitenta; e,
mária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo
senão dêsse inhame, que aquí há muito, e dessa semente e dela, para nos ajudar. Passámos o rio, ao longo da praia e
frui tos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto fomo~la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois
andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, tiros de besta. Andando~se alí nisto, vieram bem cento e cin~
com quanto trigo e legumes comemos. qüenta ou mais.

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guns que viessem para alí. Alguns vinham e outros iam-se.
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa AI. . E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse mui...
teza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé t~s cruzes de estanho com cruxifixos, que lhe ficaram ainda
dela. Alí disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi can,... da outra vinda, houveram por bem que se lançasse lima ao
tada e oficiada por esses já ditos. Alí estiveram conosco a pescoço de cada um. Pelo que o Padre Frei Henrique se
ela obra de cinqüenta ou sessenta dêles, assentados todos de
assentou ao pé da Cruz e alí, a um por um, lançava a sua
joelhos, assim como nós . atada em um fio ao pescoço, fazendo . . lha primeiro beijar e
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos
alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram. . nas to . .
em pé, com as mãos levantadas, êles se levantaram conosco e
das, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta .
alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tor . .
naram. . se a assentar como nós . E quando levantaram a Deus, Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio...
que nos pusemos de joelhos, êles se puseram assim todos, dia - viemos a comer às naus, trazendo o Capitão consigo
como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal ma... aquele mesmo que fez aos outros aquela mestrança para o
neira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez. muita altar e para o Céu e um seu irmão com êle. Fez . . lhe muita
devoção. honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois destoutras.
da qual comungaram êsses religiosos e sacerdotes e o Capitão E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente
com alguns de nós outros. não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão en . .
Alguns dêles, por o sol ser grande, quando estávamos tender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer,
comungando, levantaram. . se, e outros estiveram e ficaram. Um como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma
dêles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, con. . idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza
tinuou alí com aqueles que ficaram . :Ê:sse, estando nós assim, aquí mandar quem entre êles mais devagar ande, que todos
ajuntava estes, que alí ficaram, e ainda chamava outros. E serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se
andando assim entre êles falando, lhes acenou com o dedo alguem vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, por...
para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se que já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois
lhes dissese alguma coisa de bem; e nós assim o tomámos. degredados, que aquí entre êles ficam, os quais hoje também
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e comungaram ambos.
ficou em alva; e assim se subiu, junto com o altar, em uma Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que
cadeira. Alí nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem
é o dia, tratando, ao fim da pregação, dêste vosso prosse,... deram um pano com que se cobrisse. Puseram. . Iho ao redor de
guimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devo... _si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o es,...
ção. tender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta
:Ê:sses, que estiveram sempre à pregação, quedaram. . se gente é taL que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
como nós olhando para êle. E aquele, que digo, chamava al-
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Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive E que aí não houvesse mais que ter aquí esta pousada para
se converterá ou não, ensinando~lhes o que pertence à sua sal~ esta navegação de Calecute, isso bastaria. Quanto mais dis~
vação. posição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto
Acabado isto, fomos assim pe~ante êles beijar a Cruz, deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
despedimo~nos e viemos comer. E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam do que nesta terra vi . E, se algum pouco me alonguei, Ela
mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez
esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que pôr assim pelo miúdo.
ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos E pois que, Senhor, é certo que, assim nêste cargo que
daqui nossa partida. levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for,
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela
contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, peço que, por me fazer graça especial, mande vir da ilha de
de que nós dêste pôrto houvemos vista, será tamanha que São Tomé a Jorge de Osório, meu genro- o que d'Ela rece~
haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, berei em muita mercê.
ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e
muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo Dêste Pôrto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje,
praia~palma, muito chã e muito formosa. sexta~ feira,
primeiro dia de maio de 1500.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande,
PERO VAZ DE CAMINHA.
porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com
arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem
prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos.
Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e tem~
perados, como os de Entre Doiro e Minho, porque nêste
tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é gra~
ciosa que, querendo~a aproveitar, dar~se~á nela tudo, por bem
das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece
que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal se~
mente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
ÍNDICES
I
rNDICE ONOMÁSTICO
A C
D. Afonso V - 124. Calixto (Benedito) - 58.
Albuquerque (Afonso de) - 58. Calmon (Pedro) - 20, 100.
Albuquerque (André de) - 58. Campo Tourinho (Pero de) 21,
Albuquerque (D. Jerônima de) - 58. 82. 83, 102, 104, 133.
Albuquerque (Jorge de) - 44, 56, Candido (Dr. Zeferino) 13, 18,
57, 58. 107, 108. 133, 134.
Alcântara Machado (Antônio de ) Canério - 78.
58. Cantino - 15, 78, 79.
Alvares (Diogo) - 101, 103. Cão (Diogo) - 124.
Alvares (Sebastião) - 100. Capart - 7.
Albuquerque Felner (A, de) - 55. Capistrano de Abreu - 9, 58, 94, 95.
Alvarez Cabral (Pedro) - 6, 7. 8, Caramurú - 97.
15, 16, 17, 18, 22, 24. 25, 27. Carvalho (Martim) - 9cf.
32, 33, 34, 38, 39, 40, 41. 42, Cardim ( Pe. Fernão) - 20, 24, 25,
67. 69, 74, 77, 78. 79, 92, 93, 28, 90, 102.
97, 101. 102, 103, 107, 109, 110, Casal (Pe. Aires do) - 16, 118. 121.
111, 113, 114, 115. 116, 119. 121. Castro (Comandante Eugénio de)
122. 123. 124, 125, 128, 135, 137, 72, 77.
138. Castro (D. João) - 71.
Anchieta (Pe. Joseph) - 20, 24, 25, D. Catarina (Rainha) - 85.
28, 61, 90, 91. 102. 113. Coelho (Nicolau) - 111, 143, 145,
Ataide (Vasco de) - 141. 147, 148. 165.
Azerêdo (Marcos de) - 100. Coelho de Albuquerque (Duarte) -
Azpilcueta Navarro - 96, 97, 98, 57.
99. 102. Coimbra (Frei Henrique de) - 150,
164.
B Colaço (Manuel) - 82.
Correia (Aires) - 145.
Bacharel da Cananeia - 103 . Correia de Sã ( Salvador) - 64 .
Baião (Antonio) - 11. Cortesão (Armando) - 45, 46, 47.
Baptista (João Maria) - 130. Cortesão (Jaime) - 93.
Barbosa ( Duarte) - 20. Costa (Estevão da) - 60.
Barbosa Machado (Diogo) - 41. Costa (João da) - 20 .
Barreto (Francisco) - H, 57, 59.
Barreto de Lima ( D. Francisco) -
58. D
Barros (João de) - H, 56, 124.
Beaurepaire Rohan (Gal. Henrique) Dias (Bartolomeu) - 8, 111. 124, 147,
16, 17. 18, 108, 133 .• 149, 151. 155, 165.
Braamcamp l:'reire (Anselmo) - 59 . Giraldes (Lucas) - 57.
Braunio - 130. Dias (Diogo) - 8.
Brito ( Manoel de) - 66. Dias (Diogo, Almoxarife de Sacavem)
Brito de Almeida (Luis de) - 52, 53, - 155, 157, 159, 160.
54, 56, 63, 67, 100. Dias (Jorge) - 83.
Bruza de Espinosa - 99. Dias Adorno (António) 100.
172- -- 173 -

Dias de Novals (Paulo) ~ 55. D . João II (EI-Rei) ~ 43, 105, 124.


Duque de Aveiro (D. João) ~ 21. D. João III (El-Rel) ~ 44. 81. 98.
o ·H, 42, 59, 60, 61. 62, 63, 73,
23, 33, 39, 40, 81, 82, 83, 86, 75, 76, 77, 83, 84, 85, 86, 89,
Oliveira (Pe. Gonçalo de) ~ 64. 90, 100, 102, 137, 138.
89, 104, 105. Oliveira Belo (Comandante) ~ 118, Sousa (Bernardino José de) ~ 5, 10.
Duque de Aveiro (D. Pedro Dinis) ~ L 122. Sousa (Lopo de) - 44, 57.
44. 57, 89, 90. Oliveira Catramby (Comendador) Sousa (Martim Afonso de) - 57, 64,
Lasso (Bartolomeu) ~ 48. 16, 17. 72.
E Lemos (Pero de) ~ 48, 51. Ortelio (Abraão) 45, 46, 48, 52. Sousa (Tomé de) ~ 86, 88, 99.
Leite (Duarte) ~ 78, 101. Osorio (Jorge de) ~ 167. Sousa Vlterbo ~ 51, 52, 85.
D. Henrique (Infante) ~ 115. Leite (Pe. Serafim) ~ 22, 23, 64, 87,
Escolar ( Pero) ~ 141 . 91.
Lemos (Duarte) ~ 81, 82, 83, 99. p T
F Lima (D. Francisco de) ~ Vide D.
Francisco Barreto de Lima ~ 58. Pacheco (Duarte) - 20 . T aques (Pedro) ~ 58.
Fenton (Edward) ~ 60. Lima (D. Isabel de) ~ 58. Pais Leme (Fernão) 100. Teixeira (Domingos) - 48, 49.
D. Fernando (El-Rel) ~ 43, 129, 130. Linhares (Conde de) ~ 62. Peixoto (Afrânio) - 97. Teixeira (João) ~ 30, 37, 38, 40,
Fernandes (Marcos) ~ 51. Lopes (Afonso) ~ 1H. Pereira Reimão (Francisco) ~ 41. 41. 50, 51. 69, 70, 71, 76, 77.
Fernandes (Pero) ~ 51. 102. Lopes (Fernão) ~ 129, 131. Pereira da Silva (Luciano) - 120. Teixeira Albernaz (João) ~ 30, 38,
Fernandes (Valentim) - 93, 94. Lopes de Sousa ( Pero) ~ 57, 72, • 77. Peres (Damião) - 56. 40, 41, 51, 70, 71.
Fernandez Coutinho (Vasco) ~ H, Luiz ( Lazaro) ~ 18, 49. Piedade (Fr. António) - 94, 101. Teixeira (Luiz) - 6, 43, 45, 46, 47,
57, 81, 83. Piloto Anónimo - 15, 126. 48, 50, 51, 52, 53, 54, .56, 59, 61,
Fernandes Tourinho (Sebastião) Pimentel ( Luiz Serrão) - 36, 37. 62, 63, 65, 66, 67, 69, 71. 71,
100. M Pimentel (Manuel) - 16, 19, 34, 35, 75, 76, 77, 79, 82, 83, 81, 87,
Ferreira Reimão (Gaspar) ~ 52, 53, 36, 37. 89, 90, 92, 102, 104, 105, 108,
56. Machado (Raul) 130. Pires (Pe. António) ~ 96. 112, 127, 136, 137, 138.
Figueiredo (Manuel de) ~ 35, 36, 37, Madre de Deus (Frei Gaspar da) ~ Pires (Gonçalo) ~ 75. TeJo (D. João) ~ 147.
39, 72. 58. Pires de Carvalho e Aragão (Major Tovar (Sancho de) ~ 145, 160, 161.
Flores Valdez (Diogo) ~ 60, 61. Magalhães (Basilio de) ~ 101. Salvador) ~ 17, 18, 34, 70, 76,
Fontoura da Costa (Antonio) ~ 36, Magalhães Gandavo (Pero) ~ 16, 17, 118, 133, 137.
37, 55.
Fragoso (Braz) ~ 85.
19, 20, 21, 22, 23. 34, 52, 84,
87, 90, 100, 102, 112.
v
Gago Coutinho (Almirante) ~ 109, Maindron (Maurice") ~ 129, 131. Q Varnhagen (Adolfo) ~ 1'. 61 1 94,
110. Malheiro Dias (Carlos) ~ 18, 33, 96, 97, 101, 105, 121.
Queiroz Veloso ~ 57, 59.
Gama (Vasco da) ~ 124. 34, 137. Vaz de Caminha (Pero) ~ 7, 11. 15,
D. Manoel (El-Rei) ~ 44, 94, 95, 17, 18, 33, 78, 94, 102, 107, 108, 109,
96, 101, 104, 110, 124. R 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116,
G Marcel (Gabriel) ~ 65. 117, 118, 119, 120, 121. 122, 125,
Garcia (Aleixo) 103. Mariz (António de) ~ 64. Ramalho (João) ~ 97, 101, ' 103. 126, 127, 128, 129, 131 , 133, 136,
Garcia (Rodolfo) ~ 85. Mariz Carneiro (Antonio de) ~ 36, Ribeiro (Afonso) ~ 138, 147, 156, 157, 137, 138, 139, 167.
Giraldes (Francisco) ~ H, 56, 57. 37. 160. Vaz Dourado (Fernão) ~ 48, 49.
Gois (Damião) ~ 130. Martinho ~ 64, 65, 66. Rocha (João da) ~ 28, 75. Veiga (Lourenço da) ~ 54.
Gois (Pero de) ~ H, 57. Mercator ~ 46. Rodrigues (Belchior) ~ 52. Velho (Bartolomeu) ~ 49 .
Gom'!s (Aires) ~ 163. Mesquita Perestrelo (Manuel de) ~ Rodrigues (Pe. Pero) - 91. Vespúcio (Américo) - 93.
Gouveia ( Pe. Cristovão) ~ 24. 54, 55. Rodrigues ( Pe. Simão) ~ 95. Vianna (Hélio) - 38.
Guilhem (Filipe) ~ 85, 98, 99. Mestre João ~ 15, 112. Viegas (Gaspar) - 78.

H
Míchaellis de Vasconcelos (D. Caro-
lina) ~ 11. 18, 108, 110, 126.
s Vilhena Barbosa ~ 130.
Vaudeclaye (Jacques) ~ 64, 66, 70.
Miranda (Simão de) ~ 145, 163. Sá (Mem de) ~ 44, 62, 85, 87, 88. V isconde de Porto Seguro (Vide V ar-
Henriques (Miguel) ~ 99. Mouchez (Almirante) ~ 70, 76, 77, Salema (António) ~ 53, 54. nhagen).
Homem (Diogo) ~ 49. 113, 137. Salvador (Frei Vicente do) ~ 58.
Homem (Lopo) ~ 78. Moura (Cristovão de) ~ 59. Scipião (Emiliano) - 7.
Mousinho ( Pero) ~ 82 . Schliemann ~ 7. w
J D. Sebastião (El-Rei) ~ 51. 55, 57.
Waldseemuller 78 .
Igino (Andres) ~ 60. Selvagem (Carlos) ~ 129.
N Schulten ~ 7. W anderley Pinho ~ 88.
D. Isabel (Rainha) ~ 43.
Jaboatão (Frei A. de Sta. Maria) Smith ( Arrow) - 77.
94.
Nobrega (Pe. Manuel de)
Nogueira de Brito ~ 49 .
95, 96. Soares de Sousa (Gabriel) ~ 16, 17,
19. 20, 23, 25, 26. 27, 28. 29,
z
Jesuíta Anónimo ~ 22, 23. Nunes (Pedro) ~ 51. 30, 31. 32, 33, 34, 35, 37, 40, Zacuto (Abraão) 120.
fNDICE DO TEXTO

PÁG.
Explicação prévia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
História do problema ............................. : . . . . . . . 15
O primitivo Porto Seguro nos roteiros e cartas antigas. . . . . . . . 19
O Roteiro~atlas do Brasil de Luiz Teixeira de c. 1574... . . . . . . 43
O Porto Seguro de Cabral no Atlas de Luiz Teixeira......... · 69
Origens da povoação de Santa Cruz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
O lugar onde Cabral tomou posse da terra.. .. ....... ..... . . 107
Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I 35
A Carta de Pero Vaz de Caminha - adaptação à linguagem atual 139

.,
lNDICE DAs GRAVURAS FúRA DO TEXTO

PÁGS.
N. 1. O Porto Seguro no planisfério de Cantina ( 1502) ......... · · ·. · · · HA
N. 2 . Porto Seguro no Li"'ro que dá razão do Estado do Brasil (c. 1626) ... 38A
N. 3 . A Baía Cahrãlia segundo a Carta levantada pela Marinha Brasi~
!eira ( 1940) ................................. _................. . 68A
N. 4. Porto Seguro no Roteiro~Atlas de Lui:z; Teixeira (c. 157~) ....... ·. · 72 A
1944
IMPRENSA NACIONAL
RIO DE .JANEIRO - BRASIL

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