Você está na página 1de 11

EM BUSCA DA GRANDEZA DO BRASIL: ANOTAÇÕES SOBRE O

RESGATE DAS CRÔNICAS DA AMÉRICA PORTUGUESA

In search of the greatness of Brazil: notes about the rescue of the chronicles of
Portuguese America

REIS, Anderson Roberti dos


dosreiss@gmail.com

Resumo
Este texto pretende analisar alguns usos da crônica colonial durante o século XIX no Brasil.
Parte-se da premissa de que as independências políticas nas Américas foram acompanhadas
por uma constante atividade de escrita da História com o intuito de projetar e construir
memórias a respeito do passado dos Estados que acabavam de nascer como tais. Para o caso
brasileiro, tal meta se iniciou ainda nos anos 1830, com a criação de instituições voltadas ao
resgate e à conservação de documentos do período colonial, e continuou com a produção
historiográfica de destacados intelectuais, entre os quais se inclui Capistrano de Abreu. Para
este artigo, discutiremos certos aspectos dos usos e interpretações desses documentos
propostos por Capistrano.
Palavras-chave: História do Brasil; Capistrano de Abreu; Século XIX.

Introdução
A emancipação política do Estado brasileiro no século XIX trouxe a lume a
necessidade de se fazer e contar a “história da nação”. A legitimação da independência e a
criação da identidade e do caráter nacionais estiveram no centro do debate, sobretudo a partir
dos anos 1830. As criações do Colégio Pedro II (1837) e do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1838) são exemplares nesse sentido. O IHGB foi pioneiro nesse processo,
inclusive contando com subvenção oficial e intervenção direta do Imperador1. Aqueles que se
filiaram a essa instituição tiveram a “missão” de escrever a história do Brasil, discutir as
fronteiras e a geografia das regiões, refletir sobre a unidade cultural a partir da diferença
étnica e criar o Brasil como nação.
Assim a ordem do momento era buscar pelas fontes que viabilizassem a escrita da
história do país recém-emancipado. E não servia qualquer documento, mas apenas aqueles em
que se podia confiar e “observar” a história como ela ocorreu, e de preferência inéditos. Ao
longo da segunda metade do Oitocentos, essa “corrida às fontes” ganhou fôlego, com
destaque para historiadores como Francisco Adolfo de Varnhagen, Joaquim Norberto de

1
CALLARI, C. R. Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do Tiradentes. Revista
Brasileira de História, v. 21, n. 40, p. 60, 2001.
Souza Silva, João Francisco Lisboa e Capistrano de Abreu. O mergulho nos arquivos
brasileiros, as viagens à Torre do Tombo, aos arquivos espanhóis e à Europa tornaram-se
frequentes. O passo seguinte era a publicação, na Revista do IHGB e nos Anais da Biblioteca
Nacional, das “preciosidades” garimpadas em solo nacional ou estrangeiro. Tratava-se de fato
uma (co)missão em busca da História do Brasil, da verdadeira história.
Entre as fontes privilegiadas (mapas, tratados, correspondências, lista de condenados
na Inquisição, atas), as crônicas tiveram destaque. A maioria delas, escrita nos séculos XVI e
XVII por viajantes e religiosos, foi silenciada por mais de duzentos anos, sendo resgatadas
das poeiras das bibliotecas e conventos apenas no século XIX. Aqui é necessária uma
distinção: o que se entende por crônica. O primeiro limite é estabelecido na diferença em
relação aos diários de viagem, como os de Américo Vespúcio e Pero Lopes de Sousa. Os
diários têm a preocupação com o relato dos eventos ocorridos no percurso e com as primeiras
impressões das novas terras. São valiosos instrumentos para a pesquisa do cotidiano das
embarcações2 e, também, para uma imagem dos anos iniciais da colonização, sobretudo até
1530. O segundo limite é com relação às Cartas Jesuíticas que, apesar de serem fontes
indispensáveis para a compreensão da chamada “conquista espiritual”, enquadram-se mais na
tipologia correspondência. A última delimitação é em relação ao que José Honório Rodrigues
chamou de historiografia estrangeira, como os textos de Jean de Léry, Hans Staden e Cabeza
de Vaca3.
Feitas essas observações, pode-se afirmar de modo genérico, e tomando-se a
etimologia do termo, que as crônicas remetem a uma sorte de narrativas que organizam sua
estrutura discursiva em ordem cronológica a fim de relatar uma determinada situação
vivenciada pelo cronista, ou não, já que houve documentos desse tipo que foram escritos por
homens que nunca puseram os pés na América ou que narraram com base em dados colhidos
por terceiros – incluindo-se aí os próprios indígenas. Esses manuscritos encerram uma
atividade ora etnográfica, ora histórica, ora botânica, e discorrem a respeito da população,
natureza e organização política de determinada região. Para a América portuguesa, os
cronistas assim entendidos são: Pero de Magalhães Gandavo; Padre Fernão Cardim; Gabriel
Soares Sousa e o frei Vicente do Salvador4.

2
Veja-se, por exemplo: MICELI, P. C. O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e
da conquista. São Paulo: Editora Página Aberta, 1994.
3
RODRIGUES, J. H. Historiografía del Brasil. Siglo XVI. Cidade do México: IPGH, 1957, p. 20-35.
4
Compartilhamos essas distinções com RODRIGUES, J. H. Historiografía del Brasil. Siglo XVI. Cidade do
México: IPGH, 1957, p. 20-35. A diferença está na definição da obra de Frei Vicente do Salvador que, sob o
nosso ponto de vista, se enquadra no gênero da “crônica”. Para o autor, o texto do franciscano é histórico e
historiográfico.
José Honório Rodrigues ainda sugere outra distinção que deve ser pensada: a
possível distância entre a crônica e a história. Para ele, a obra de frei Vicente do Salvador é
histórica e historiográfica, pois tem a pretensão de generalizar o particular e de criar nexos de
significação e vinculação entre as partes5. José Honório estabelece uma distinção que, em
1627, não existia. Frei Vicente ao escrever sua “História do Brasil” faz tanto história, como
pratica etnografia, botânica e literatura. Como dissemos anteriormente, a crônica abarca essas
dimensões, embora não devamos esquecer que os parâmetros da História, da Etnografia ou da
Zoologia são do século XIX, que garimpou esses documentos e os classificou, num impulso
taxionômico característico. Assim, optamos neste artigo por enquadrar o texto de frei Vicente
elaborado na virada do século XVI para o XVII no gênero “crônica”. Isso não desqualifica as
observações e argumentos de Rodrigues, mas apenas alarga ligeiramente a noção de crônica,
acrescentando o texto do franciscano ao nosso repertório6.
O processo de “resgate” da crônica no século XIX não foi privilégio dos
historiadores brasileiros. Havia na América ibérica movimento semelhante de busca das
origens para a reflexão sobre o Estado e as identidades nacionais. Caso exemplar foi o do
México da segunda metade do Oitocentos, onde a publicação das crônicas do século XVI
tornou-se prioridade. No caso mexicano há uma singularidade: as crônicas foram proibidas e
“sequestradas” por Filipe II, lá em 1577, por versarem acerca de assuntos inconvenientes ao
Catolicismo pós-tridentino. Por essa razão, elas ficaram sumidas até o esforço de recuperação
e publicação desses documentos liderado por intelectuais do XIX, a exemplo de Joaquín
García Icazbalceta. Cronistas como Bartolomé de Las Casas, Toribio Motolinía, Bernardino
de Sahagún e Jerônimo de Mendieta, para citar apenas os “mexicanos”, permaneceram sob a
poeira dos arquivos por quase três séculos7.
No Brasil não ocorreu dessa maneira, mas a densidade do pó foi a mesma.
Semelhantes também foram o afã e a dedicação que intelectuais e historiadores dispensaram
na busca desses documentos. Encontrá-los era importante, porém havia outras necessidades,
como reconhecer a autoria, a data de elaboração e a autenticidade dos manuscritos. Por aqui,
homens, como os já citados Varnhagen e Capistrano de Abreu, passaram grande parte de suas

5
RODRIGUES, J. H. Historiografia del Brasil. Siglo XVII. Cidade do México: IPGH, 1963, p. 12.
6
Para um debate a esse respeito, cf. FERNANDES, L. E. O.; REIS, A. R. A crônica colonial como gênero de
documento histórico. Revista Ideias (Unicamp), Ano 13(II), p. 25-41, 2006.
7
Para uma análise do seqüestro, silêncio e resgate da crônica no México, ver: FERNANDES, L. E. O. Histórias
de um silêncio: as leituras de historia eclesiastica indiana de Frei Jerônimo de Mendieta. 2004. 156 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, 2004.
vidas viajando à procura de documentos para a História do Brasil8. No caso do México,
Icazbalceta passou mais de meio século dedicando-se a essa “ilustre atividade”, legando esse
gosto a seu filho Luis García Pimentel. A partir desses trabalhos pioneiros, eles acreditavam,
tornava-se possível a construção da história e da memória das nações latino-americanas
recém-emancipadas.
A apropriação da crônica no século XIX atendeu a diversos interesses e objetivos,
muitas vezes distantes daqueles imaginados pelos cronistas. O homem do século XVI,
conforme José Alves Freitas Neto assinalou,
se via diante do desígnio divino e as descrições dos cronistas, muitos dos quais
religiosos, reproduziam ‘lugares comuns’ onde apareciam questões da natureza (na
referência ao Deus Criador), a visão que se tinha sobre os nativos (o modo de ser
das criaturas) e a tarefa de evangelizá-los (missão religiosa). [...] No século XIX, a
percepção mudou. O homem queria liderar os processos políticos, queria fazer
História, demonstrava uma intencionalidade e buscava fundamentar-se nos textos
que expressavam valores e idéias que lhes eram úteis9.

Ainda segundo o referido texto de Freitas Neto, é perceptível que a ênfase dada à
crônica na América hispânica centrou-se na discussão a respeito do indígena e sobre a etnia na
construção de uma unidade cultural que se distanciasse da Espanha. Para cumprirmos o
objetivo deste artigo e analisarmos como se deu a apropriação da crônica no Brasil, tomando
como ponto de partida as obras de Capistrano de Abreu, optamos por examinar três tipos de
texto: (1) os prefácios aos cronistas elaborados por esse autor; (2) os estudos e ensaios onde
aparecem questionamentos sobre a crônica; e (3) os livros de história de Capistrano,
especialmente trechos dos Capítulos de História Colonial e d’Os Caminhos Antigos e o
Povoamento do Brasil.
Essa escolha, como todas, é arbitrária, porém segue uma lógica. Os prefácios às
crônicas apresentam a leitura que o historiador fez daqueles documentos, indicando suas
concepções e os usos das referidas fontes, o que constitui o centro de nossa investigação. Nos
estudos e ensaios, é possível notar as reflexões específicas sobre a crônica, especialmente no
que concerne à crítica documental. No terceiro recorte, os textos selecionados apontam
diretamente para o período em que os cronistas escreveram: século XVI e início do XVII.
Capistrano de Abreu teve grande apreço pelo XVI, tornando-se intenso leitor das crônicas.

8
Os cronistas foram “descobertos” nessa seqüência: Gabriel Soares de Sousa, em 1825; Pero M. Gandavo, em
1826; Padre Fernão Cardim, 1881; Frei Vicente do Salvador, em 1889. Cf. RODRIGUES, J. H. Historiografía
del Brasil. Siglo XVI. Cidade do México: IPGH, 1957, p. 36-47.
9
FREITAS NETO, J. A. O Resgate da Crônica, Questões sobre etnia e a identidade na América hispânica do
XIX. Revista Ideias (Unicamp), Ano 11(I), p. 22, 2004.
O uso das crônicas: métodos, modos e imaginação em Capistrano de Abreu.
A pergunta que motiva este artigo é: como a crônica foi lida e utilizada pelos
historiadores do século XIX? As leituras iniciais (partindo dos escritos de Capistrano)
parecem indicar dois caminhos: o primeiro aponta para uma crítica documental que valide, ou
não, as fontes como confiáveis; e o segundo acena para a utilização como comprovação ou,
nas palavras de Capistrano de Abreu, “para alcançar a realidade e conseguir maior clareza”10.
Os dois percursos são reveladores do trabalho histórico no último terço do Oitocentos. Apesar
de Capistrano ser considerado um “historiador de transição” do século XIX para o XX e cuja
obra não é datada, ele não está fora de seu tempo.
Esses caminhos são percorridos na atuação de Capistrano junto às crônicas,
sobretudo em três etapas, quais sejam: a publicação, o estudo dos cronistas e os usos dessas
fontes. Esses três momentos marcaram suas atividades profissionais: a primeira é resultado
dos anos de pesquisas nos Arquivos e na Biblioteca Nacional; o segundo relaciona-se aos
prefácios aos cronistas e aos estudos isolados, nos quais ele se preocupou diretamente com a
crônica e sua relevância para o ofício do historiador; o último aparece em suas obras,
sobretudo nas citações (e na ausência delas) ao longo do texto e nas próprias notas de rodapé.
A primeira etapa, publicação, pode ser vislumbrada nos prefácios que fez às obras de
Frei Vicente do Salvador, Pero de Magalhães Gandavo e nos diários de Pero Lopes de Sousa.
Em todos eles, Capistrano indica suas preocupações com os documentos. A pesquisa e a
possível descoberta de novos manuscritos implicavam alguns procedimentos. Inicialmente a
análise das condições materiais. As observações do estado físico, da presença e seqüência das
páginas, tipo da letra, estado de conservação e deterioração eram de extrema importância.
Exigiam-se esses passos para indicar se o documento era útil e, para além, se ele era autêntico.
A operação prosseguia com um conjunto de preceptivas chamado “crítica documental”
externa e interna, em que é possível notar os ecos dos procedimentos da Escola Metódica do
século XIX. Nessa acepção de crítica, segundo Elias Thomé Saliba, o documento
deveria passar pelas sucessivas grades [de questionamento]: da crítica da
autenticidade (é documento original ou cópia? É artefato fiel?); da crítica de
proveniência (quem redigiu o texto? De que maneira, ou seja, qual o formato
paleográfico?); da crítica de interpretação (o que o testemunho disse ou quis
dizer?); até chegar ao seu momento máximo, que era a crítica de credibilidade –
que o historiador brasileiro Varnhagen, num raro vislumbre de sinceridade, chegou

10
Embora Capistrano acreditasse na possibilidade de se alcançar a realidade por meio da fonte, é preciso
lembrar, junto com José H. Rodrigues, que ele deu um passo adiante ao não concordar com uma anulação total
do Eu frente a construção da História. Isso implicou um avanço em relação às propostas de Leopold von Ranke
que, em parte, lhe agradavam. RODRIGUES, J. H. Explicação. In: ABREU, J. C. Capítulos de História
Colonial. 4. ed. Brasília: Ed. Unb, 1982, p. 31.
a compará-la a uma paciente ‘acareação’ (a testemunha enganou-se ou quis
enganar-nos? Foi obrigada a isso? Foi testemunha direta, ocular ou secundária?)11.

Ao apresentar o cronista e prefaciar seu respectivo texto, Capistrano de Abreu


pretendia perpassar esses tópicos. E não só ele, mas também Rodolfo Garcia, na introdução
que faz ao Padre Cardim12, demonstra atenção em informar os níveis de reconhecimento e
validação da fonte. Surge, assim, um “modo de prefaciar” que pode ser presenciado nos
cronistas e que segue uma lógica definida: trajetória do documento, crítica interna e externa,
vida e obra do autor e, por fim, apresentação sucinta dos temas presentes na crônica. De
Capistrano e Rodolfo Garcia até Francisco Iglesias13, das descobertas e publicações do XIX
até as reimpressões do XX, esse modelo é seguido com poucas alterações.
Os prefácios e alguns artigos isolados (publicados na série Ensaios e Estudos)
fornecem-nos indícios para pensar a segunda etapa do trabalho junto às crônicas: o estudo
específico delas. Nesses textos podemos apontar os dois caminhos (preocupações) de
Capistrano de Abreu aos quais nos referimos no início desse tópico: a discussão sobre a crítica
documental e a crônica como possibilidade de se alcançar a realidade. Do primeiro aspecto, a
crítica, nós já tratamos. A preocupação de Capistrano passava, seja na hora da publicação,
seja na hora de um estudo (como naquele intitulado “Diálogos das grandezas do Brasil”14),
pela discussão sobre a autoria da fonte. Procedimento lógico num tempo em que as pesquisas
históricas ainda tomavam corpo.
Ao se dedicar às crônicas nos prefácios e ensaios, Capistrano reforça a hipótese da
crônica como um vidro transparente onde era possível perceber a sociedade que aos poucos se
constituía. Um erro de data ou a deterioração material implicava a desconfiança em relação a

11
SALIBA, E. T. Documentos, Relíquias, Lembranças: Pequena História de Aventuras e Desencantos. In:
KARNAL, L.; FREITAS NETO, J. A Escrita da Memória: interpretações e análises documentais. São Paulo:
Instituto Cultural Banco Santos, 2004, p. 24. Elias Saliba lembra que Langlois e Seignobos ao proporem tal
procedimento não inovavam, mas retomavam muito da crítica das fontes do século XVII. De nossa parte, é
importante dizer que há em Capistrano as influências dos pressupostos de Leopold von Ranke (que em muito
estão afinados com os da Escola Metódica francesa), sobretudo da sugestão do historiador alemão para o
tratamento das fontes, a partir de quatro operações: (1) Heurística e crítica: identificação, rejeição, crítica interna
e externa, definição da importância das fontes secundárias; (2) Interpretação: inserção dos dados organizados no
contexto das intencionalidades dos agentes históricos e das perspectivas históricas; (3) Historiografia:
transmissão das regras para a composição do texto (formas de representação); e (4) Didática: preocupação com a
utilidade pessoal e social do conhecimento de determinados dados.
12
GARCIA, R. Introdução. In: CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil. 3. ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1978, p. 7-21.
13
IGLESIAS, F. Prefácio à Terceira Edição. In: CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil. 3. ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 1-5.
14
ABREU, J. C. Ensaios e Estudos. 1ª Série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1975, p. 205-232.
Neste ensaio, Capistrano discute se a autoria dos Diálogos é de Bento Teixeira ou de Brandônio.
determinado documento15. As noções de verdadeiro e falso eram os elementos pelos quais se
balizava a produção do conhecimento histórico, e a crônica não estava imune. Outra
preocupação de Capistrano é saber, nesses estudos, se os relatos com os quais está
trabalhando foram “vistos” pelo autor, ou se foram obtidos de “oitiva”, o que, neste último
caso, indicava um abalo no crédito da fonte. Tudo isso supõe a busca da verdade, para
alcançar a realidade e conseguir maior clareza, apontando para uma concepção de história
arraigada às fontes primárias confiáveis.
Contudo, Capistrano avançou no estudo das crônicas ao sugerir a análise do estilo
dos cronistas. Ao criticar o texto de frei Vicente do Salvador, o historiador brasileiro deixa
entrever a importância dada ao estilo e à escrita na elaboração da História, sobretudo no
cuidado com o texto e no recurso às figuras de linguagem. “O estilo”, escreve Capistrano ao
criticar frei Vicente, “pouco preocupa o autor. Pode escrever com elegância e graça, mas em
geral desenvolvem-se os períodos descuidosos, à maneira de contas de rosário debulhadas
maquinalmente. Às vezes oculta o substantivo para maior realce”16. Ainda nesse quesito,
Capistrano menciona as figuras de linguagem utilizadas pelo franciscano e constata que “não
desgostava de aliterações e trocadilhos”17.
Às vezes Capistrano projetava seus anseios na leitura da crônica, a exemplo das
ocasiões em que ele vê no texto de Gandavo uma espécie de propaganda para a imigração ou,
ainda, uma psicologia do “povo brasileiro”. Assim, ele trazia à tona a temática da nação e do
povo, tão discutida até meados do século XX. Segundo o historiador, encontramos em
Gandavo “uma importante contribuição [...] para a psicologia do povo brasileiro. Os primeiros
viajantes que viram nossas plagas ficaram enlevados de suas belezas [...] 18”. Aqui parece que
Capistrano extrapola os limites do documento e constrói um raciocínio estranho à sua fonte,
como no uso da noção de “psicologia do povo”. Esse tipo de “deslize” não é recorrente em
sua obra.

15
Sobre o aparecimento do livro de frei Vicente: “O mais ligeiro exame do códice revelava seu passado: - a
encadernação de couro à portuguesa, o aspecto do papel, a letra do copista, denunciavam-no como um dos
numerosos volumes copiados dos arquivos e bibliotecas lusitanas na era de 50 por comissão do governo
imperial, confiada primeiro a Gonçalves Dias e por fim a João Francisco Lisboa”. ABREU, J. C. Nota
Preliminar. In: SALVADOR, V. História do Brasil (1500-1627). São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1972,
p. 30.
16
ABREU, J. C. Nota Preliminar. In: SALVADOR, V. História do Brasil (1500-1627). São Paulo: Companhia
Melhoramentos, 1972, p. 39.
17
ABREU, J. C. Nota Preliminar. In: SALVADOR, V. História do Brasil (1500-1627). São Paulo: Companhia
Melhoramentos, 1972, p. 39.
18
ABREU, J. C. Introdução. In: GANDAVO, P. de M. Tratado da Terra do Brasil. São Paulo: Edusp, 1980, p.
16.
Percorrendo os estudos específicos de Capistrano a respeito das crônicas (nos
prefácios e nos ensaios), observamos que não há um eixo temático definido, como ocorre com
a figura do indígena na historiografia sobre a América hispânica. As únicas persistências
ocorrem na crítica documental, que perpassa todas as análises, e no que nós chamamos de
“modo de prefaciar”, caminhando da trajetória dos documentos até chegar à vida e à obra do
autor. Com relação à freqüência temática, é difícil identificar um assunto invariável. Em geral
(excetuando-se o caso da “psicologia do povo” acima mencionado), Capistrano “ouve” o
cronista e rende-se ao seu ritmo e tema. O invariável nos estudos de Capistrano era o aspecto
metodológico, conforme assinalou Jaime Jaramillo Uribe, ao escrever que “no careció este
grupo [citando Varnhagen e Capistrano] de formación científica ni de preocupación por los
problemas teóricos y metodológicos de la historia”19.
A terceira etapa, os usos, buscaremos em dois textos de Capistrano: nos Capítulos de
História Colonial e n’Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil. Nossa intenção é
perceber como Capistrano usou e dialogou com as crônicas, usando-as como fontes.
Observaremos as citações dos cronistas e, também, as possíveis relações estabelecidas com
eles, sem a referência direta. O objetivo final, na análise desta etapa, é notar qual é o status
dado à crônica por Capistrano de Abreu. Partiremos da hipótese de que há a manutenção das
concepções sugeridas nas duas primeiras etapas: a crônica funcionando em sua reflexão como
uma espécie de invólucro transparente20 que possibilitava “descobrir ou revelar os fatos”.
Antes de procedermos à análise dos usos, é importante apresentar as fontes
identificadas nos textos de Capistrano. Dentre as mais diversas, destacamos para o século XVI
e XVII as Cartas de Caminha, de Duarte Coelho e as Correspondências Jesuíticas. Os Diários
de Viagem também são bastante utilizados, sobretudo os Diários de Navegação de Pero
Lopes de Sousa. Além das crônicas, as fontes secundárias – como publicações do IHGB e dos
demais historiadores do século XIX – são recorrentes. A respeito dos cronistas, aparecem com
frequência aqueles que estamos usando nesta investigação: Gandavo, Gabriel Soares de
Sousa, Padre Cardim, frei Vicente do Salvador e Brandão (citado indiretamente uma vez). A
citação e usos dessas fontes variam de acordo com o tema e o período sobre os quais se
debruçava Capistrano. Por exemplo, nos Capítulos, a narrativa que vai da segunda metade do

19
URIBE, J. J. Frecuencias temáticas de la Historiografía latinoamericana. In: ZEA, Leopoldo (coord.).
América Latina en sus Ideas. México DF: Siglo Veintiuno Ed., 1986, p. 24.
20
A metáfora do invólucro transparente implica aa visualização total do passado através da crônica. As outras
possibilidades seriam: o invólucro opaco, que não possibilita qualquer tipo de visão; e por fim, o invólucro
translúcido, que permite “ver” por meio da crônica, porém impõe limites à percepção total. Sobre esse tema, cf.:
KARNAL, L. Os textos de fundação da América: a memória da crônica e a alteridade. Revista Ideias
(Unicamp), Ano 11(I), p. 9-14, 2004.
século XVII até o início do XVIII não faz referência às crônicas, que só voltam a aparecer nas
menções a Antonil21.
Capistrano também se apropriou das crônicas sem mencioná-las explicitamente. Isso
ocorre em seu texto de dois modos: o primeiro, quando ele narra situações que, certamente,
retirou dos cronistas, mas não os cita; o segundo, quando ele usa um trecho da crônica e faz
suas as palavras do autor. Nos Capítulos percebemos a ocorrência da primeira forma de
apropriação, por exemplo, quando ele narra os costumes dos indígenas (ao longo dos cinco
capítulos iniciais), tão abordados por Cardim22, sem fazer referência ou menção ao jesuíta. Na
mesma obra encontramos exemplo do outro modo de utilização da crônica sem referência
direta. À página 79, nota 28, José Honório Rodrigues percebe que Capistrano seguiu o texto
original da crônica “livremente”, inclusive citando Gandavo sem aspas. O autor dos Capítulos
se demora a falar sobre a aquisição de escravos, recorre a trechos do cronista, mencionando-o
apenas de forma indireta.
A que poderíamos atribuir essas “omissões”? No lugar de vislumbrar possíveis
desatenções de Capistrano, preferimos pensar no que José Honório chamou de imaginação
histórica23. A propósito, uma das críticas de Capistrano à História Geral do Brasil de
Varnhagen, era justamente a falta de imaginação na criação de nexos de significação, o que
não lhe faltou. As fontes (ou sua ausência), a escassez de informações e o fato isolado eram
portas abertas à criatividade do historiador. Assim, por vezes era necessário fugir das citações
ou da rigidez do estilo de alguns cronistas. Acreditamos que essa liberdade de omitir ou
transgredir (sem violentar) o ponto de partida não interfere no resultado final da reflexão. Isso
pode ser evidenciado quando Capistrano constatou que “circunstância notável da narrativa de
Gabriel Soares, é que de uma viagem ele diz por onde voltaram, de outra diz apenas por onde
partiram. Talvez que as seguintes considerações [sem fazer qualquer referência] superam até
certo ponto esta lacuna”24.

Caminhando para a conclusão


Caminhando para o final deste artigo, devemos nos perguntar então: se em algumas
ocasiões Capistrano não cita, por que em outras há a preocupação com a referência e, até
mesmo, com longas citações? A resposta pode ser buscada, primeiro, nos termos usados pelo

21
ABREU, J. C. Capítulos de História Colonial. 4. ed. Brasília: Ed. Unb, 1982, p. 141.
22
CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p.
102-127.
23
RODRIGUES, J. H. Explicação. In: ABREU, J. C. Capítulos de História Colonial. 4. ed. Brasília: Ed. Unb,
1982, p. 20.
24
ABREU, J. C. Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil. 4. ed. Brasília: Ed. Unb, 1982, p. 288.
historiador para remeter-se ao cronista. Os mais usados são “informa” ou “informa-nos”,
“dizia” e “escreveu”. Assim, Capistrano traz o relato do cronista ipsis verbis para arrematar
um raciocínio que iniciou. A utilização dos verbos “informar”, “dizer” e “escrever” ganha
força em seu texto, pois remetem ao tempo do cronista e à idéia de que eles presenciaram tal
evento25. Já mencionamos acima a importância dada ao fato de o autor da crônica ter
presenciado o acontecimento sobre o qual narrou. Essa operação de remissão às palavras do
documento dá sustentação aos argumentos dos historiadores do século XIX. Geralmente a
citação segue a premissa lançada no início do parágrafo ou raciocínio. Em Os Caminhos
Antigos e o Povoamento do Brasil, Capistrano diz:
Portanto, não podiam ser freqüentes as comunicações entre o litoral e o planalto,
como logo o vestuário o malsinava. [...] E frei Vicente do Salvador, descrevendo a
viagem feita por D. Francisco de Sousa uns quinze anos mais tarde, repara: ‘Até
então os homens e mulheres se vestiam de algodão tinto, e se havia alguma capa de
baeta e manto de sarge, se emprestavam aos noivos e noivas para irem à porta da
igreja’26.

Junto à noção de reforço do argumento, há outra ideia: a crônica revela a época. Aqui
se torna adequada a imagem do invólucro transparente (crônica) que permite observar a
sociedade, costumes, organização etc. Como exemplo temos, à página 139 dos Capítulos de
História Colonial, um trecho em que Capistrano exalta a atitude de Gabriel Soares, “que
abandonou o próspero engenho de Jeriquiriçá e perdeu anos com requerimentos junto às
cortes de Lisboa e de Madrid para prestar à pátria o serviço de revelar-lhe as riquezas ocultas”
(grifos nossos).
É necessário anotar mais dois fatores relativos aos usos das crônicas feitos por nosso
historiador. Primeiro: ele coteja as fontes em busca da informação mais confiável. Por vezes
ao longo do texto, Capistrano aproxima e distancia os cronistas em busca da “verdade”. Por
fim, mestre na arte de escrever e dotado de rica imaginação, o autor articula suas reflexões e
as citações dos cronistas com rara habilidade. Sem perder o ritmo e a beleza de seu texto, ele
mescla a erudição e densidade do trabalho junto às fontes com o prazer da produção de um
bom texto. Deixamos aqui, a título de encerramento, um trecho final exemplar:
A criação de gado começou no governo de Tomé de Sousa. ‘As primeiras vacas
que foram para a Bahia, escreve Gabriel Soares, levaram-se de Cabo Verde e

25
Os cronistas e viajantes preocupavam-se em atestar que tinham sido testemunhas oculares dos processos
narrados. “Faz parte desse esforço a insistência em afirmar a qualidade de observador direto e imediato do
acontecimento que ia sendo narrado. Era a autoridade do testemunho pessoal, paradigmática, afirmada e
reafirmada, que procurava legitimar a história que se contava, também para que a poesia do relato pudesse servir
de alguma forma a quem não vira a cena descrita”. MICELI, P. C. O ponto onde estamos: viagens e viajantes
na história da expansão e da conquista. São Paulo: Editora Página Aberta, 1994, p. 31.
26
ABREU, J. C. Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil. 4. ed. Brasília: Ed. Unb, 1982, p. 235.
depois de Pernambuco, as quais se dão de feição que parem cada ano... e acontece
muitas vezes mamar o bezerro na novilha e a novilha na vaca juntamente, o que se
vê também nas éguas, cabras, ovelhas e porcas’. Dentro do recôncavo e em certas
ilhas deles havia alguns currais; a força da criação começava da ponta de Santo
Antônio para o Norte; no tempo em que Gabriel escrevia já alcançava o rio
Itapicuru, e avultavam como criadores os jesuítas e Garcia de Ávila, o fundador
dessa casa da Torre que mais tarde devia tornar-se opulenta.27

Referências Bibliográficas

ABREU, J. C. Capítulos de História Colonial. 4. ed. Brasília: Ed. Unb, 1982.


______. Ensaios e Estudos. 1ª Série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1975.
______. Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil. 4. ed. Brasília: Ed. Unb, 1982.
CALLARI, C. R. Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do
Tiradentes. Revista Brasileira de História, v. 21, n. 40, p. 60, 2001.
CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1978.
FERNANDES, L. E. O. Histórias de um silêncio: as leituras de historia eclesiastica
indiana de Frei Jerônimo de Mendieta. 2004. 156 f. Dissertação (Mestrado em História) –
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2004.
______.; REIS, A. R. A crônica colonial como gênero de documento histórico. Revista Ideias
(Unicamp), Ano 13(II), p. 25-41, 2006.
FREITAS NETO, J. A. O Resgate da Crônica, Questões sobre etnia e a identidade na América
hispânica do XIX. Revista Ideias (Unicamp), Ano 11(I), p. 22, 2004.
KARNAL, L. Os textos de fundação da América: a memória da crônica e a alteridade.
Revista Ideias (Unicamp), Ano 11(I), p. 9-14, 2004.
MICELI, P. C. O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e da
conquista. São Paulo: Editora Página Aberta, 1994.
RODRIGUES, J. H. Historiografía del Brasil. Siglo XVI. México DF: IPGH, 1957.
______. Historiografia del Brasil. Siglo XVII. Cidade do México: IPGH, 1963.
SALIBA, E. T. Documentos, Relíquias, Lembranças: Pequena História de Aventuras e
Desencantos. In: KARNAL, L.; FREITAS NETO, J. A Escrita da Memória: interpretações
e análises documentais. São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004.
SALVADOR, V. História do Brasil (1500-1627). São Paulo: Companhia Melhoramentos,
1972.
URIBE, J. J. Frecuencias temáticas de la Historiografía latinoamericana. In: ZEA, Leopoldo
(coord.). América Latina en sus Ideas. México DF: Siglo Veintiuno Ed., 1986.

27
ABREU, J. C. Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil. 4. ed. Brasília: Ed. Unb, 1982, p. 243.

Você também pode gostar