Você está na página 1de 12

Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

Fronteira e Identidade Nacional:


Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos

Débora Cardia de Castro

Introdução

Se há toda uma tradição brasileira de ensaio que vê o nacional 1 como pura soma de raças e
grupos sociais, emprestando à mestiçagem dos corpos funções eminentemente democratizadoras,
há também uma vasta gama de autores que compreendem a formação da nação brasileira como
um todo contraditório onde a força econômica e as dominações políticas subsistem precisamente
porque se exercem em um campo de disparidades seculares. Para a primeira ótica, a nação define-
se homogeneamente como um lugar de encontro de pares, nativos e cidadãos, espaço de
convivência pacífica por natureza, e cuja única qualificação possível se faria em termos de uma
psicologia do povo brasileiro (Bosi: 1981). Nessa psicologia, as diferenças equilibram-se e
alcançam um estado conciliador: seria a “flor amorosa de três raças tristes”, ou seja,
individualista mas gregário e afetivo; inteligente, mas malandro e um pouco displicente.
Para a construção da modernidade no Brasil, a herança ibérica foi, costumeiramente,
tratada como sinônimo de atraso e anacronismo por oposição à “dinâmica herança” protestante
dos nórdicos. Enquanto o final do século XIX, apresentava o Brasil dando os primeiros passos
para a reformulação do arcabouço social herdado no período colonial, os Estados Unidos já
despontavam com uma irresistível potência industrial. Isto é, apesar de um processo de
colonização coevo e de dimensões territoriais similares, o Brasil tornou-se o país de incerto
futuro.
Não temos a pretensão, neste pequeno exercício, de encontrar respostas, ou mesmo
aventar hipóteses, mas de promover um diálogo entre alguns autores sobre as recorrentes

1
A compreensão moderna de nação é muito recente. Originalmente, o Dicionário Real da Academia Espanhola
colocava, em 1884, a nación como “o agregado de habitantes de uma província, de um país ou de um reino”.
Posteriormente, em 1925, em caracteres mais modernos, o termo será alocado no Dicionário da Academia
Espanhola, descrevendo a nação como “a coletividade de pessoas que têm a mesma origem étnica e, em geral, fala a
mesma língua e possui uma tradição comum”. O conceito moderno de nação mais ventilado na literatura, embora dê
ênfase à unidade étnica e territorial, indica, sobremaneira, a noção de independência e unidade política como
substrato para a compreensão do vocábulo (Hobsbawan: 1991).

1
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

discussões acerca do contraponto cultural Brasil – Estados Unidos. Para tanto, lançamos mão da
idéia de fronteira como fomentadora da construção da nação.

Ocupação territorial: “terras livres”

A historiografia clássica norte-americana parte da prerrogativa romântica do homem


desbravador, do pioneiro que se lança à construção de uma sociedade original. De acordo com tal
historiografia, a ocupação dos “espaços vazios” assumiu um caráter fundante para a explicação
do ente americano, constituindo, por assim dizer, o sentimento idealista deste povo. A
experiência da fronteira, isto é, a “marcha para o Oeste selvagem” desenhou os traços do intelecto
do homem americano (branco), ou seja, empreendedor, prático e individualista 2, leito do
protestantismo ascético.
De outra monta, a tese do norte-americano, Frederick Jackson Turner (1940), aponta a
fronteira, também, como agente promotora do desenvolvimento da democracia social e política,
uma vez que a existência de “terras livres” a oeste, enquadradas por uma legislação agrária – que
as tornava acessíveis a significativos contingentes de população – gerou reais oportunidades de
mobilidade social, numa escala nada comparável com as existentes nas sociedades européias 3 de
então.
O quadro brasileiro apresenta a expansão não somente de uma fronteira, foram várias as
fronteiras produtivas que se sucederam ao longo dos séculos: a do gado, a dos metais preciosos,
as de coleta (por exemplo, as de borracha) e as da agricultura.
De acordo com outro historiador norte-americano, Herbert Bolton (1917), as missões
jesuíticas latino-americanas funcionaram como “agências de fronteira”, de maneira que, ao
disseminar o cristianismo, os missionários exploravam, defendiam, desenvolviam e colonizavam
as novas fronteiras. Bolton coloca ainda que, nas localidades onde a intervenção estatal esteve
associada à ação missionária e militar (com o intuito de pacificar os índios), a colonização foi,
mais precisamente, uma conquista4.
2
No sentido de obedecer antes a Deus do que aos homens, e não simplesmente a visão utilitarista acerca da
religião.
3
A este respeito ver: Lígia Osório Silva, A fronteira e outros mitos, tese de Livre-Docência, Campinas,
2001, capítulo 1.
4
A conquista e o genocídio foram assinalados pela tinta mística e religiosa: são dois mundos que se percebem
diferentes e distantes: Homens questionando a humanidade de outros. Ou, segundo o rei D. Fernando (século XVI):
“Se eles fossem realmente humanos seriam descendentes das tribos perdidas de Israel? Mongóis que tivessem
chegado montados em elefantes? Ou escoceses trazidos séculos antes pelo príncipe Modoc? (...) Não havia certeza

2
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

Observando a análise sobre a fronteira e as “terras livres”, o intelectual peruano Victor


Belaúnde, afirma que a fronteira, na América Latina, não exerceu o papel observado nos Estados
Unidos. Afirma ainda o intelectual que tal fato deva ser atribuído aos limites naturais, isto é, a
rain forest latino-americana – composta por “serras marginais” – o que obstava o trabalho
humano, posto que, grande parte das regiões possuíam terras que não podiam ser exploradas de
forma eficaz. Ou seja, para que a fronteira desempenhasse o papel de fomentadora da construção
do Estado nacional, fazia-se necessário que a nação detivesse recursos naturais abundantes e
adequados (consoante uma legislação agrária que possibilitasse democraticamente o acesso a
numerosos contingentes populacionais). Ou, conforme List: a nação teria que ser de tamanho
suficiente para formar uma unidade viável de desenvolvimento. Se caísse abaixo desse patamar
não teria justificativa histórica5.
Todavia, em razão das lutas políticas entre as diversas oligarquias regionais que
retardaram o processo brasileiro de institucionalização, custou-se a elaborar uma legislação
agrária que permitisse ao Estado6 intervir no processo de ocupação de terras públicas 7. Deste
modo, a premissa turneriana perde considerável substância à luz da realidade brasileira,
principalmente se pensarmos que o processo de colonização brasileiro nasceu a partir das
capitanias hereditárias, e, desta forma, não houve “terra livre” a ser disputada e consolidada sob a
tutela de pequenos agricultores.
A aplicação da tese turneriana nos leva à formulação de uma crítica visão acerca do
processo de construção e consolidação de identidade nacional: a experiência da fronteira e seu
alargamento não contribuíram somente para a liberdade e oportunidade, mas também para o
enraizamento de duradouras hierarquias sociais. Sob uma perspectiva recente, Perla Zusman
(1999) sugere, a propósito da tese turneriana, que os imaginários geográficos possam ser

sequer de que fossem homens e não criaturas diabólicas ou animais”, daí a construção da justificativa na bárbara
conquista. IN: Claude Lévy-Strauss. “Pot-au-noir”. IN: Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70, 1955. p. 69
5
LIST, F. The national system of political economy. Londres: 1885, p. 174. Apud HOBSBAWN, E. “A
nação como novidade: da revolução ao liberalismo”. IN: Nações e nacionalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
p. 42
6
Segundo Silva (1996), as discussões no parlamento brasileiro a respeito do primeiro projeto de lei de terras
dissertavam acerca das teoria de Wakefield sobre o preço da terra, e não a visão das terras de fronteira como um
manancial de riquezas, como ocorreu nos Estados Unidos. A propósito das teorias de Wakefield, consultar A view in
the of art colonization. Londres: John Parker, 1849. Apud: SILVA, L. Terras devolutas e latifúndio. Campinas, São
Paulo: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1996.
7
Apenas em 1850 o Brasil promulga a lei de terras e colonização. Entretanto, a implementação da lei foi
incapaz de reverter o processo já em curso. Para uma análise mais aprofundada sobre a legislação agrária ver Ligia
Osório Silva, A fronteira..., capítulos 2 e 3, e da mesma autora: “Terra, direito e poder – O latifúndio improdutivo na
legislação agrária brasileira”. IN: Boletim da ABA #27.

3
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

compreendidos como, de fato, incentivadores dos processos de ocupação de diferentes áreas do


continente latino-americano mas, também, como promotores da expulsão e genocídio dos
habitantes nativos. Para caracterizar aqui uma distinção, nos Estados Unidos, o caráter guerreiro e
a resistência oferecida pelos índios montados e armados obrigaram o deslocamento da fronteira a
assumir a natureza de um movimento militar (Silva & Secreto: 1999, 135). Já no Brasil, o
fenômeno de retardamento do avanço do povoamento não pode ser constatado segundo a
presença indígena (em geral de caráter pouco agressivo e desarmado), mas sim a mata
impenetrável e fechada. O avanço da fronteira ocorreu de modo linear e por núcleos (Waibel:
1979). Segundo Darcy Ribeiro (2000), os indígenas brasileiros e os escravos africanos
representavam um conglomerado díspar,

(...) composto por índios trazidos de longe, que apenas podiam entender-se entre
si; somados à gente desgarrada de suas matrizes originais africanas, uns e outros
reunidos contra a sua vontade, para se verem convertidos em mera força de
trabalho escravo a ser consumida no trabalho; gente cuja renovação mesma se
fazia mais pela importação de novos contingentes de escravos que por sua
própria reprodução (76-77).

Paulo Prado investiga a formação da identidade do brasileiro sob uma ótica que enseja
analisar de que maneira a psique do colonizador (“envolta por brumas de duas paixões: o ouro e a
volúpia”) pôde infiltrar-se na vida do nativo das Terras de Pindorama; do “neo-brasileiro”, isto é,
o fruto das miscigenações constantes (mameluco e mulato), e do negro cativo. Segundo Prado, o
brasileiro é um povo triste8, tristeza essa legada por “descobridores” que se “sentiam abafados e
peados na vida estreita da Europa”, então, fazia-se necessário romper com a mesmice ocidental,
fazia-se necessário abrir as portas da prisão ocidental: a era dos descobrimentos havia chegado,
os mistérios estavam prontos a serem desvelados, a busca por metais preciosos e pedrarias tinha o
seu começo:
(...) Os homens, a quem o Renascimento revelara prazer de viver, lançavam-se
com a energia da época aos mais arriscados empreendimentos na esperança de
fortuna rápida. A conquista sanguinária da América Espanhola é dominada por
essa paixão frenética. Rio da Prata, Rio do Ouro, Castela do Ouro, Costa Rica,
Porto Rico, assim se batizavam as terras que os conquistadores desvendavam ao
mundo atônito. (Prado: 1928, 19)

8
Para outra análise acerca da formação étnica brasileira ver: Ianni, O. “As três raças tristes”. IN: A idéia do
Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1992.

4
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

Em contrapartida, segundo Max Weber (2003), a prática de enriquecimento para o


americano, realizava-se segundo um modelo diferente:

(...) O puritano quis trabalhar no âmbito da vocação; e fomos todos forçados


a segui-lo. Pois quando o ascetismo foi levado para fora das celas monásticas,
se fez introduzir na vida cotidiana e começou a dominar a moralidade laica,
fê-lo contribuindo poderosamente para formação da moderna ordem
econômica (Weber: 2003, 134-135).

No primeiro quartel do século XVI, o governo português deixou praticamente abandonada


a sua nova “descoberta”. E o aventureiro que no Brasil aportava,

(...) tinha como exclusiva preocupação, viver livre e dominar; como único
alento, a miragem que então incendiava a imaginação do mundo inteiro de não
estar longe, mas sempre inatingível, o maravilhoso Dorado, senhor da lagoa de
prata de Manoa e da cidade de ouro rodeada de montanhas reluzentes de
pedrarias (Prado. 1928: 50).

A lenda perpetuava-se nas falas e sonhos dourados dos bandeirantes. No entanto, à


medida em que a natureza formava uma barreira intransponível para a cruzada em busca da
glória, e, a miragem da mina se dissipava, ainda ficava como consolo o índio escravizado.
Para Pierre Monbeig, as caracterizações das psicologias coletivas acerca dos bandeirantes
não representavam um esforço inócuo, mas “desmontar o mecanismo que as reúne e investigar
suas origens e conseqüências geográficas seria frutuoso”. As remissões, ainda aqui, são os
comentários metodológicos de Lucien Febvre. Em particular, Monbeig lembrou-se de atentar
para um dos temas favoritos do historiador: os riscos, sempre insidiosos, do anacronismo. Assim,
partindo de uma observação de Roger Caillois sobre como o jogo representa um papel
considerável na economia latino-americana, ele aduziu:

(...) Pode-se atribuir às estruturas econômicas a virulência desta mentalidade de


jogador que não aparece como um fator geográfico decisivo, e é apenas invocada
rapidamente, como se fora um pormenor pitoresco e exótico. A percepção de um
modo de pensar radicalmente diferente do nosso exige, se não uma certa
convivência, pelo menos um sério esforço da parte do pesquisador. Se este o
esquece, cometerá um pecado que, para ser situado no espaço, deverá ser
comparado no mínimo aos pecados do anacronismo, de que fala Lucien Febvre.
(Monbeig, 1957, 31)

5
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

Institucionalização e organização nacional

A historiografia brasileira e determinados brasilianistas9 consideraram durante longo


período, a unidade territorial como um legado do passado colonial. Esta visão foi substituída pela
que compreende a unidade territorial brasileira como um empreendimento do Estado imperial
(Magnoli: 1997; Silva: 2001). Segundo o britânico, Kenneth Maxwell (2000),

[...] o Brasil havia sido independente, para todas as intenções e propósitos, desde
1808; desde dezembro de 1815 o Brasil fazia parte de um Reino Unido (...). O
que estava em jogo no início da década de 182010 era mais uma questão de
monarquia, estabilidade, continuidade e integridade territorial do que revolução
colonial (Maxwell, 2000, 186).

Os objetos de análise de nosso estudo, isto é, os processos de formação da identidade


nacional brasileira e norte-americana, a partir da concepção de fronteira, apresentam inúmeros
distanciamentos em relação ao processo europeu. Nas Américas, ao contrário das nações do
Velho Mundo, houve grande disponibilidade de terras, passíveis de serem cedidas em troca de
apoio político:

(...) A construção do Estado e a centralização do poder não estiveram associadas


apenas ao desenvolvimento dos mecanismos de extração fiscal (pouco
desenvolvidos). Ocorreram também com base na distribuição do monopólio da
terra aos grupos que poderiam desafiar a autoridade do grupo hegemônico ou
para sedimentar alianças. (Silva: 2001, 28)

A trajetória da formação da nação, para o Estado brasileiro, apresentava o temor de


provocar, com o fim do governo imperial, a mutilação do país, criando, por assim dizer, uma
vasta variedade de pequenos Estados republicanos, como ocorrido nas outras nações latino-
americanas. Segundo Magnoli, para as elites políticas e econômicas,
9
Segundo Almeida (2001), o brasilianismo é parte integrante do processo de emergência e afirmação das
Ciências Sociais no Brasil na segunda metade do século XX. A designação surgiu em plena era da Guerra Fria e de
preocupações imperiais com a possível desestabilização sócio-política brasileira, e da relação do país com os
vizinhos latino-americanos. O termo “brasilianista” teria sido utilizado pela primeira vez no Brasil em 1969, na
pluma do acadêmico Francisco de Assis Barbosa, “para qualificar o estrangeiro especialista em assuntos brasileiros”.
O conceito foi empregado por Barbosa para referir-se ao historiador norte-americano Thomas Skidmore, no prefácio
à edição brasileira de Politics in Brazil. Para maiores detalhes a respeito da obra brasilianista, ver: Massi, F. &
Pontes, H. (colaboração de Maria Cecília Spina Forjaz) Guia bibliográfico dos brasilianistas: obras e autores
editados no Brasil entre 1930 e 1988. São Paulo: Sumaré/Fapesp, 1992.
10
A propósito da importância da Revolução de 1820 portuguesa e do seu impacto cultural e político no Brasil
ver: Raymundo Faoro, Existe um pensamento político brasileiro?. ob. cit.

6
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

(...) a manutenção da unidade transforma-se em objetivo primordial das políticas


interna e externa, demandando o emprego da força para o sufocamento das
revoltas e fazendo das guerras um elemento crucial para a legitimação do poder
central. (Magnoli: 1997, 42)

As guerras também continham o elemento de reafirmação da nação a partir do “Outro”.


Isto é, a percepção de um “inimigo” comum pôde transubstanciar uma população que
compartilhava linhas territoriais em povo.
Para Luiz Wernneck Vianna e Maria Alice Rezende de Carvalho (2000), o ponto de
partida do Brasil foi o estatuto colonial, ou seja, o Brasil nasce colônia, e não uma nação, de
modo que a formação da sociedade brasileira não engendrou um processo autônomo, mas um
episódio da expansão do moderno sistema mundial centrado na Europa. Os nutrientes da placenta
colonial, que alimentaram a formação do patronato político, continuaram ativos após a realização
da independência formal, e puderam projetar sua influência sobre o ordenamento da vida
econômica, social e política. E, como em uma mordaz anedota, os autores explicitam a situação:
enquanto o inglês, por exemplo, fundava na América uma pátria, o português criava um
prolongamento do Estado.

Pertencimento: o mito “nacionalizante da fronteira”

Para Vianna Moog, o que tornava americanos os imigrantes recém-chegados era o


sentimento de “appartenance”:

(...) os latino-americanos em geral ressentem que os americanos do norte se


chamem a si mesmos americanos tout court, despreocupados em se identificarem
de outra maneira, consideram isto uma usurpação. Na verdade, não o é. Porque
enquanto os filhos de portugueses e espanhóis nascidos na América são no Brasil
os mazombos, na Nova Espanha os criollos, os filhos dos ingleses nascidos nas
colônias americanas são os primeiros a adotar o título americano e a ter orgulho
desta condição. (Vianna Moog: 1966, 145)

Segundo Moog, a justificativa para esta distinção está assentada no fato de que a nação
norte-americana não se prendeu ao passado, porém o povo brasileiro deixou o passado tomar-lhe
os ombros, como um pálio. Ademais, os mazombos não possuíam o sentimento de “belonging”,

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, FCL – UNESP – Araraquara, sob orientação do
Prof. Dr. Milton Lahuerta.

7
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

isto é, não compreendiam e nem vivenciaram a vida em comunidade, prática consolidada nos
Estados Unidos.
As bandeiras, pensava Moog (e também Paulo Prado), não serviam como mito fundador
da nacionalidade devido ao seu caráter imoral. O bandeirante, tendo por motivações principais a
cobiça e a luxúria, promoveu, com suas andanças pelo interior, a miscigenação. E, deste extrato
foi concebido o mazombo, que era “triste e rixento”, considerado sinônimo de sorumbático,
macambúzio11, ao revés do pioneiro americano, que Moog define como o desbravador anônimo
de estabilidade, reproduzindo o ideal do “yeoman farmer”, que buscava o aperfeiçoamento
moral.
Já, para Alistair Hennessy, há um severo equívoco em sugerir a fronteira como mito
fundador da nacionalidade latino-americana, para o autor,

(...) there was no frontier experience wich could provide the basis for a
nationalist myth. The frontier had either crushed those who had ventured to it, or
in those cases where it had expanded successfully it had done so under the aegis
of foreign capital... this was not material from wich national myths could be
spun.
[Não houve uma experiência que pudesse fornecer a base para um mito
nacionalista. A fronteira ou bem esmagara aqueles que se aventuraram nela, ou
naqueles casos em que houve expansão bem sucedida isto ocorrera sob a égide
do capital estrangeiro... isto não era material do qual mitos nacionais pudessem
desabrochar.] (Silva & Secreto, 1999, 122)

Pertencimento: religião e nação

Max Weber, ao examinar a influência da religiosidade nos EUA, característica essa


aparentemente surpreendente num país que foi um dos pioneiros ardorosos da separação entre a
Igreja e o Estado, nos aponta a necessidade econômica e social fundamental da afiliação religiosa
naquele país. O não pertencimento a uma seita significava ruína econômica, perda de crédito e de
clientela (Souza: 1998). Era o pertencimento à seita que produzia a “confiança intersubjetiva”
11
É válido ressaltar que, a adoção da abordagem biológica, como modelo epistemológico cientificamente
legítimo para explicar a realidade social em questão, teve início com a chamada “nova geração” (1870), e
representou uma atualização coeva à determinadas vertentes científicas e filosóficas dominantes na Europa. Sob o
influxo do naturalismo (e do darwinismo social), foi gerada a idéia de que existia uma luta universal dos organismos
pela sobrevivência e, derivação necessária, de uma hierarquia natural que dividiria a humanidade em raças superiores
e inferiores. Tomando esses dogmas como verdadeiras e irrefutáveis leis científicas, não somente a intelectualidade
brasileira, mas a latino-americana em geral, formulou uma série de diagnósticos sobre o trágico destino reservado às
nações egressas do sistema colonial em função de suas constituições étnicas. Para uma investigação minuciosa, ver:
Euclides da Cunha, Os sertões (1947), Arthur de Gobineau, Ensaio sobre a desigualdade das raças (1853) e Sílvio
Romero, História da literatura brasileira (1960)

8
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

enquanto precondição para a aceitação no mercado. Distante de interpretar a maciça afiliação


religiosa americana como resultado utilitário, Weber percebe a especificidade daquele país
precisamente a partir deste fato único. É que sendo o país do protestantismo sectário por
excelência, os Estados Unidos apresentam, no grau mais “puro” e fiel, as qualidades distintivas
do espírito da seita. Ao contrário da Igreja Católica, onde o pertencimento é presumido desde o
nascimento, as seitas pressupõem a associação voluntária do membro adulto, a partir de
qualificações éticas adquiríveis individualmente. Weber (2003) já fazia menção à secularização
deste princípio nos EUA do começo deste século, sendo a filiação religiosa acrescida ou
substituída pela filiação às mais diversas associações, sociedades, clubes e universidades. O
princípio voluntário exigia também severo controle grupal da comunidade local sobre seus
associados, única instância capaz de admitir e atestar a qualificação dos filiados. Temos aqui já
uma interessante influência religiosa do princípio localista e comunitário americano. A coesão
destas comunidades era tão forte que este parece ter sido um dos motivos para o povoamento
citadino, por oposição à colonização rural, da Nova Inglaterra americana (Souza: 1998).
Segundo Weber, as seitas auxiliam a produzir o indivíduo moderno, em flagrante
oposição aos contextos de obediência pessoal da autoridade patriarcal. Elas ajudam a criar
aqueles homens que obedecem antes a Deus que a outros homens (Weber: 2003). Para Weber,
esta seria, inclusive, a característica específica da democracia americana enquanto tal: o fato de
não ser apenas um monte disforme de indivíduos, mas uma reunião voluntária, ainda que
severamente exclusiva, de indivíduos associados (Weber: 2003). A ambigüidade do princípio
associativo é, também, uma continuidade com o judaísmo que é a dupla moral: uma interna,
válida para os irmãos de fé, e outra externa, para os não-crentes. É evidente que esta qualidade
não se mantém apenas no nível do comércio econômico, mas se expande para todas as esferas da
vida pública, inclusive a esfera política (Souza: 1998).

Considerações finais

Neste exercício, procuramos operar com dois elementos explicativos para a análise da
formação e consolidação da identidade nacional do Brasil e dos Estados Unidos: a articulação
entre idéias e interesses e a procura dos assim chamados estratos condutores, isso é, aqueles

9
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

grupos sociais ou intelectuais capazes de transportar certas idéias ou visões de mundo para a
realidade.
Retomando Weber, e o seu argumento de que existe uma íntima imbricação entre idéias,
práticas e instituições sociais, ou seja, as idéias e os seus condutores correspondentes existem em
comunhão, e não fora dela, perguntamo-nos, como comparar tradições culturais evitando a
reflexão acerca das instituições em operação em determinado contexto?
Jessé de Souza (1998) ao buscar uma explicação para a formação da sociedade brasileira,
resgata diversos autores, entre eles Charles Taylor – que em seu livro The politics of recognition,
recupera o conceito de autenticidade no romantismo alemão, expondo a sua centralidade na
passagem de uma sociedade hierarquizada para uma sociedade igualitária e democrática.
Segundo Souza, para Taylor, o conceito de autenticidade rompe com as identidades socialmente
atribuídas e salienta as identidades geradas internamente que nos permitem reconhecer tanto a
nós mesmos quanto aos outros. O autor utiliza o elemento da autenticidade em Taylor para
articulá-lo à sua análise sobre o processo de formação do Brasil com o intuito de mostrar que no
Brasil foi construída uma “sociologia da inautenticidade”, isso é, uma abordagem sociológica que
articula o iberismo com uma comparação superficial entre o Brasil e os Estados Unidos,
desprezando a variedade dentro da modernidade ocidental e não levando suficientemente em
consideração os elementos específicos da formação brasileira, como a convivência singular entre
o liberalismo e a escravidão, por exemplo.
Sérgio Buarque de Holanda é reconhecido por ter suscitado a matriz explicativa de acordo
com a qual Portugal, devido à sua inserção marginal, tanto do ponto de vista geográfico quanto
do ponto de vista cultural, no mundo europeu, teria dado origem a uma variante em relação aos
principais elementos da cultura européia moderna: a impessoalidade, a igualdade e as demais
formas horizontais de relações interpessoais. Para Souza, o Brasil estaria em continuidade direta
com tal tradição:

(...) no caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a
alguns de nossos patriotas, é a que ainda nos associa à península ibérica, a
Portugal (...) Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual da nossa
cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma. (Souza,
1998, 164)

10
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

A partir desta visão, o Brasil-nação é restrito à esfera continuísta, mero prolongamento


dos equívocos do Portugal-Metrópole. E, nesta visão maniqueísta, de certo e errado, os Estados
Unidos adquirem não somente a primazia da nação moderna e “modernizante” das Américas,
mas, também, um modelo a ser almejado. Na busca fantástica de subverter a própria
singularidade, a partir da importação de instituições e modos de pensar, o Brasil afasta-se do
“Brasil invenção”, permitindo que a originalidade lhe seja negada.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, P. R. “O estudo sobre o Brasil nos Estados Unidos: a produção brasilianista no
pós-Segunda Guerra”. IN: Estudos Históricos n° 27, Rio de Janeiro, 2001.
ANDERSON, B. “Introducción e las raíces cultarales”. IN: Comunidades imaginadas.
Cidade do México: Fondo de Cultura: 1993.
BOSI, A. “O fio vermelho”. Artigo publicado na Folha de S. Paulo, domingo, 17 de maio
de 1981.
FAORO, R. “A ruptura pombalina” e “Os liberalismos”. IN: Existe um pensamento
político brasileiro?. São Paulo: Ática, 1994.
FURTADO, C. “Fundamentos econômicos da expansão territorial”. IN: Formação
econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 2000.
HOBSBAWN, E. “A nação como novidade: da revolução ao liberalismo”. IN: Nações e
nacionalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
HOLANDA, S. B. “Trabalho & Aventura”. IN: Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das
Letras, 1995.
MAGNOLI, D. O corpo da pátria. São Paulo: Moderna; Unesp, 1997.
MAXWELL, K. “Por que o Brasil é diferente?”. IN: MOTA, L. (Org.) Viagem completa.
São Paulo: Senac, 2000.
MONBEIG, Pierre. Os modos de pensar na geografia humana. IN: Novos Estudos de
Geografia Humana Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1957.
LÉVY-STRAUSS, C. “Pot-au-noir”. IN: Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70, 1955.
PRADO, P. Retratos do Brasil – Ensaios sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Duprat, 1928.
RIBEIRO, D. “O processo civilizatório”. IN: O povo brasileiro – A formação e o sentido
do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2002
SILVA, L. A fronteira e outros mitos. Tese de Livre-Docência, Campinas: 2001.
_______. “Fronteira e identidade nacional”. IN: A política de ocupação de terras
públicas e a construção do Estado: um estudo comparado da “fronteira móvel” na
Argentina, Brasil e Estados Unidos. São Paulo: Fapesp, 2001.
_______. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Unicamp, 1996.
_______. & SECRETO, V. “Terras públicas, ocupação privada: elementos para a história
comparada da apropriação territorial na Argentina e no Brasil”. IN: Economia e
Sociedade, Revista do Instituto de Economia da Unicamp, n° 12, junho de 1999.
SOUZA, J. “A ética protestante a e a ideologia do atraso brasileiro”. IN: _______ (Org.) O
malandro e o protestante – A tese weberiana e a singularidade cultural brasileira.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999
VIANNA, L. “Weber e a interpretação do Brasil”. IN: SOUZA, J. (Org.) O malandro e o

11
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro

protestante – A tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Editora da


Universidade de Brasília, 1999
VIANNA, L. W. & CARVALHO, M. A. “República e civilização brasileira”. IN: Estudos
de Sociologia 8. São Paulo: Unesp, 2000.
VIANNA MOOG, C. Bandeirantes e Pioneiros – Paralelo entre duas culturas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
WAIBEL, L. Capítulos de Geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1979.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Claret,
2003.
WEGNER, R. “Os Estados Unidos e a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda”. IN:
SOUZA, J. (Org.) O malandro e o protestante – A tese weberiana e a singularidade cultural
brasileira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
ZUSMAN, P. “Representaciones, imaginarios y conceptos en torno de la producción
material de las fronteras. Reflexiones a partir del denate Hevilla-Escamilla”. IN: Biblio
3w Revista Bibliografica de Geografia y Ciencias Sociales. Universidad de
Barcelona, n° 149, 25/03/1999.

12

Você também pode gostar