Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
Se há toda uma tradição brasileira de ensaio que vê o nacional 1 como pura soma de raças e
grupos sociais, emprestando à mestiçagem dos corpos funções eminentemente democratizadoras,
há também uma vasta gama de autores que compreendem a formação da nação brasileira como
um todo contraditório onde a força econômica e as dominações políticas subsistem precisamente
porque se exercem em um campo de disparidades seculares. Para a primeira ótica, a nação define-
se homogeneamente como um lugar de encontro de pares, nativos e cidadãos, espaço de
convivência pacífica por natureza, e cuja única qualificação possível se faria em termos de uma
psicologia do povo brasileiro (Bosi: 1981). Nessa psicologia, as diferenças equilibram-se e
alcançam um estado conciliador: seria a “flor amorosa de três raças tristes”, ou seja,
individualista mas gregário e afetivo; inteligente, mas malandro e um pouco displicente.
Para a construção da modernidade no Brasil, a herança ibérica foi, costumeiramente,
tratada como sinônimo de atraso e anacronismo por oposição à “dinâmica herança” protestante
dos nórdicos. Enquanto o final do século XIX, apresentava o Brasil dando os primeiros passos
para a reformulação do arcabouço social herdado no período colonial, os Estados Unidos já
despontavam com uma irresistível potência industrial. Isto é, apesar de um processo de
colonização coevo e de dimensões territoriais similares, o Brasil tornou-se o país de incerto
futuro.
Não temos a pretensão, neste pequeno exercício, de encontrar respostas, ou mesmo
aventar hipóteses, mas de promover um diálogo entre alguns autores sobre as recorrentes
1
A compreensão moderna de nação é muito recente. Originalmente, o Dicionário Real da Academia Espanhola
colocava, em 1884, a nación como “o agregado de habitantes de uma província, de um país ou de um reino”.
Posteriormente, em 1925, em caracteres mais modernos, o termo será alocado no Dicionário da Academia
Espanhola, descrevendo a nação como “a coletividade de pessoas que têm a mesma origem étnica e, em geral, fala a
mesma língua e possui uma tradição comum”. O conceito moderno de nação mais ventilado na literatura, embora dê
ênfase à unidade étnica e territorial, indica, sobremaneira, a noção de independência e unidade política como
substrato para a compreensão do vocábulo (Hobsbawan: 1991).
1
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
discussões acerca do contraponto cultural Brasil – Estados Unidos. Para tanto, lançamos mão da
idéia de fronteira como fomentadora da construção da nação.
2
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
sequer de que fossem homens e não criaturas diabólicas ou animais”, daí a construção da justificativa na bárbara
conquista. IN: Claude Lévy-Strauss. “Pot-au-noir”. IN: Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70, 1955. p. 69
5
LIST, F. The national system of political economy. Londres: 1885, p. 174. Apud HOBSBAWN, E. “A
nação como novidade: da revolução ao liberalismo”. IN: Nações e nacionalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
p. 42
6
Segundo Silva (1996), as discussões no parlamento brasileiro a respeito do primeiro projeto de lei de terras
dissertavam acerca das teoria de Wakefield sobre o preço da terra, e não a visão das terras de fronteira como um
manancial de riquezas, como ocorreu nos Estados Unidos. A propósito das teorias de Wakefield, consultar A view in
the of art colonization. Londres: John Parker, 1849. Apud: SILVA, L. Terras devolutas e latifúndio. Campinas, São
Paulo: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1996.
7
Apenas em 1850 o Brasil promulga a lei de terras e colonização. Entretanto, a implementação da lei foi
incapaz de reverter o processo já em curso. Para uma análise mais aprofundada sobre a legislação agrária ver Ligia
Osório Silva, A fronteira..., capítulos 2 e 3, e da mesma autora: “Terra, direito e poder – O latifúndio improdutivo na
legislação agrária brasileira”. IN: Boletim da ABA #27.
3
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
(...) composto por índios trazidos de longe, que apenas podiam entender-se entre
si; somados à gente desgarrada de suas matrizes originais africanas, uns e outros
reunidos contra a sua vontade, para se verem convertidos em mera força de
trabalho escravo a ser consumida no trabalho; gente cuja renovação mesma se
fazia mais pela importação de novos contingentes de escravos que por sua
própria reprodução (76-77).
Paulo Prado investiga a formação da identidade do brasileiro sob uma ótica que enseja
analisar de que maneira a psique do colonizador (“envolta por brumas de duas paixões: o ouro e a
volúpia”) pôde infiltrar-se na vida do nativo das Terras de Pindorama; do “neo-brasileiro”, isto é,
o fruto das miscigenações constantes (mameluco e mulato), e do negro cativo. Segundo Prado, o
brasileiro é um povo triste8, tristeza essa legada por “descobridores” que se “sentiam abafados e
peados na vida estreita da Europa”, então, fazia-se necessário romper com a mesmice ocidental,
fazia-se necessário abrir as portas da prisão ocidental: a era dos descobrimentos havia chegado,
os mistérios estavam prontos a serem desvelados, a busca por metais preciosos e pedrarias tinha o
seu começo:
(...) Os homens, a quem o Renascimento revelara prazer de viver, lançavam-se
com a energia da época aos mais arriscados empreendimentos na esperança de
fortuna rápida. A conquista sanguinária da América Espanhola é dominada por
essa paixão frenética. Rio da Prata, Rio do Ouro, Castela do Ouro, Costa Rica,
Porto Rico, assim se batizavam as terras que os conquistadores desvendavam ao
mundo atônito. (Prado: 1928, 19)
8
Para outra análise acerca da formação étnica brasileira ver: Ianni, O. “As três raças tristes”. IN: A idéia do
Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1992.
4
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
(...) tinha como exclusiva preocupação, viver livre e dominar; como único
alento, a miragem que então incendiava a imaginação do mundo inteiro de não
estar longe, mas sempre inatingível, o maravilhoso Dorado, senhor da lagoa de
prata de Manoa e da cidade de ouro rodeada de montanhas reluzentes de
pedrarias (Prado. 1928: 50).
5
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
[...] o Brasil havia sido independente, para todas as intenções e propósitos, desde
1808; desde dezembro de 1815 o Brasil fazia parte de um Reino Unido (...). O
que estava em jogo no início da década de 182010 era mais uma questão de
monarquia, estabilidade, continuidade e integridade territorial do que revolução
colonial (Maxwell, 2000, 186).
6
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
Segundo Moog, a justificativa para esta distinção está assentada no fato de que a nação
norte-americana não se prendeu ao passado, porém o povo brasileiro deixou o passado tomar-lhe
os ombros, como um pálio. Ademais, os mazombos não possuíam o sentimento de “belonging”,
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, FCL – UNESP – Araraquara, sob orientação do
Prof. Dr. Milton Lahuerta.
7
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
isto é, não compreendiam e nem vivenciaram a vida em comunidade, prática consolidada nos
Estados Unidos.
As bandeiras, pensava Moog (e também Paulo Prado), não serviam como mito fundador
da nacionalidade devido ao seu caráter imoral. O bandeirante, tendo por motivações principais a
cobiça e a luxúria, promoveu, com suas andanças pelo interior, a miscigenação. E, deste extrato
foi concebido o mazombo, que era “triste e rixento”, considerado sinônimo de sorumbático,
macambúzio11, ao revés do pioneiro americano, que Moog define como o desbravador anônimo
de estabilidade, reproduzindo o ideal do “yeoman farmer”, que buscava o aperfeiçoamento
moral.
Já, para Alistair Hennessy, há um severo equívoco em sugerir a fronteira como mito
fundador da nacionalidade latino-americana, para o autor,
(...) there was no frontier experience wich could provide the basis for a
nationalist myth. The frontier had either crushed those who had ventured to it, or
in those cases where it had expanded successfully it had done so under the aegis
of foreign capital... this was not material from wich national myths could be
spun.
[Não houve uma experiência que pudesse fornecer a base para um mito
nacionalista. A fronteira ou bem esmagara aqueles que se aventuraram nela, ou
naqueles casos em que houve expansão bem sucedida isto ocorrera sob a égide
do capital estrangeiro... isto não era material do qual mitos nacionais pudessem
desabrochar.] (Silva & Secreto, 1999, 122)
8
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
Considerações finais
Neste exercício, procuramos operar com dois elementos explicativos para a análise da
formação e consolidação da identidade nacional do Brasil e dos Estados Unidos: a articulação
entre idéias e interesses e a procura dos assim chamados estratos condutores, isso é, aqueles
9
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
grupos sociais ou intelectuais capazes de transportar certas idéias ou visões de mundo para a
realidade.
Retomando Weber, e o seu argumento de que existe uma íntima imbricação entre idéias,
práticas e instituições sociais, ou seja, as idéias e os seus condutores correspondentes existem em
comunhão, e não fora dela, perguntamo-nos, como comparar tradições culturais evitando a
reflexão acerca das instituições em operação em determinado contexto?
Jessé de Souza (1998) ao buscar uma explicação para a formação da sociedade brasileira,
resgata diversos autores, entre eles Charles Taylor – que em seu livro The politics of recognition,
recupera o conceito de autenticidade no romantismo alemão, expondo a sua centralidade na
passagem de uma sociedade hierarquizada para uma sociedade igualitária e democrática.
Segundo Souza, para Taylor, o conceito de autenticidade rompe com as identidades socialmente
atribuídas e salienta as identidades geradas internamente que nos permitem reconhecer tanto a
nós mesmos quanto aos outros. O autor utiliza o elemento da autenticidade em Taylor para
articulá-lo à sua análise sobre o processo de formação do Brasil com o intuito de mostrar que no
Brasil foi construída uma “sociologia da inautenticidade”, isso é, uma abordagem sociológica que
articula o iberismo com uma comparação superficial entre o Brasil e os Estados Unidos,
desprezando a variedade dentro da modernidade ocidental e não levando suficientemente em
consideração os elementos específicos da formação brasileira, como a convivência singular entre
o liberalismo e a escravidão, por exemplo.
Sérgio Buarque de Holanda é reconhecido por ter suscitado a matriz explicativa de acordo
com a qual Portugal, devido à sua inserção marginal, tanto do ponto de vista geográfico quanto
do ponto de vista cultural, no mundo europeu, teria dado origem a uma variante em relação aos
principais elementos da cultura européia moderna: a impessoalidade, a igualdade e as demais
formas horizontais de relações interpessoais. Para Souza, o Brasil estaria em continuidade direta
com tal tradição:
(...) no caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a
alguns de nossos patriotas, é a que ainda nos associa à península ibérica, a
Portugal (...) Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual da nossa
cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma. (Souza,
1998, 164)
10
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
Referências bibliográficas
ALMEIDA, P. R. “O estudo sobre o Brasil nos Estados Unidos: a produção brasilianista no
pós-Segunda Guerra”. IN: Estudos Históricos n° 27, Rio de Janeiro, 2001.
ANDERSON, B. “Introducción e las raíces cultarales”. IN: Comunidades imaginadas.
Cidade do México: Fondo de Cultura: 1993.
BOSI, A. “O fio vermelho”. Artigo publicado na Folha de S. Paulo, domingo, 17 de maio
de 1981.
FAORO, R. “A ruptura pombalina” e “Os liberalismos”. IN: Existe um pensamento
político brasileiro?. São Paulo: Ática, 1994.
FURTADO, C. “Fundamentos econômicos da expansão territorial”. IN: Formação
econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 2000.
HOBSBAWN, E. “A nação como novidade: da revolução ao liberalismo”. IN: Nações e
nacionalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
HOLANDA, S. B. “Trabalho & Aventura”. IN: Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das
Letras, 1995.
MAGNOLI, D. O corpo da pátria. São Paulo: Moderna; Unesp, 1997.
MAXWELL, K. “Por que o Brasil é diferente?”. IN: MOTA, L. (Org.) Viagem completa.
São Paulo: Senac, 2000.
MONBEIG, Pierre. Os modos de pensar na geografia humana. IN: Novos Estudos de
Geografia Humana Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1957.
LÉVY-STRAUSS, C. “Pot-au-noir”. IN: Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70, 1955.
PRADO, P. Retratos do Brasil – Ensaios sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Duprat, 1928.
RIBEIRO, D. “O processo civilizatório”. IN: O povo brasileiro – A formação e o sentido
do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2002
SILVA, L. A fronteira e outros mitos. Tese de Livre-Docência, Campinas: 2001.
_______. “Fronteira e identidade nacional”. IN: A política de ocupação de terras
públicas e a construção do Estado: um estudo comparado da “fronteira móvel” na
Argentina, Brasil e Estados Unidos. São Paulo: Fapesp, 2001.
_______. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Unicamp, 1996.
_______. & SECRETO, V. “Terras públicas, ocupação privada: elementos para a história
comparada da apropriação territorial na Argentina e no Brasil”. IN: Economia e
Sociedade, Revista do Instituto de Economia da Unicamp, n° 12, junho de 1999.
SOUZA, J. “A ética protestante a e a ideologia do atraso brasileiro”. IN: _______ (Org.) O
malandro e o protestante – A tese weberiana e a singularidade cultural brasileira.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999
VIANNA, L. “Weber e a interpretação do Brasil”. IN: SOUZA, J. (Org.) O malandro e o
11
Fronteira e Identidade Nacional: Breves notas sobre Brasil e Estados Unidos – Débora Cardia de Castro
12