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Introdução
A música é uma das mais ricas formas de expressão da cultura brasileira. O Brasil
é um país mundialmente famoso pela qualidade de seus músicos e pela criatividade de sua
produção musical, especialmente nas suas versões populares. Além da musicalidade expressa
em diferentes ritmos e melodias, fruto das contribuições das diversas culturas e povos que
aqui se encontraram e formaram uma produção original e diversificada, a música popular
brasileira apresenta também uma poesia que foi capaz de expressar em palavras, versos e
refrões a igualmente rica e complexa realidade social do país. Neste trabalho, pretende-se
analisar as letras de algumas músicas populares que fizeram sucesso no mercado fonográfico
brasileiro ao longo do século XX e que abordaram de alguma maneira a questão racial: um
dos aspectos mais polêmicos da cultura nacional.
Para tanto se fará uma análise das letras de canções de grande expressão na
música popular brasileira do século XX, comparando-as com as abordagens de autores
clássicos da sociologia nacional. Serão analisadas obras de artistas como Ary Barroso (1903-
1964) e Assis Valente (1911-1958), representantes da Época de Ouro da música popular
brasileira (de 1929 a 1945) e como Caetano Veloso (1942) e Gilberto Gil (1942), expoentes
da geração que despontou nos festivais de música popular brasileira - anos de1960 - marcadas
pela modernização musical decorrente da bossa-nova e pelo engajamento político de seus
conteúdos temáticos. As referências sociológicas são Gilberto Freyre (1900-1987), autor de
Casa Grande & Senzala, de 1933, e Florestan Fernandes (1920-1995), autor do estudo A
biológico, deixa de ser relevante. Freyre destaca a enorme influência que os negros – e índios,
em menor medida – exerceram na cultura brasileira:
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo - há muita
gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a
pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul e em
Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do
africano.
não obstruiria uma representação ilusória, que iria conferir a São Paulo o caráter
lisonjeiro de paradigma da democracia racial”. (Fernandes, 1978, p. 253-254)
Fernandes (1978) apresenta estudos que comprovaram que o negro não teve
igualdade de condições no acesso à nova ordem social competitiva (mercado de trabalho livre
capitalista) e envolveu-se num ciclo de pauperização e anomia que reduziram ainda mais suas
possibilidades de ascensão econômica. Por outro lado, o sistema jurídico-político implantado
após a abolição da escravidão ignorou a necessidade de políticas de integração do ex-escravo
na economia e sociedade nacional e estabeleceu uma igualdade formal de direitos que não
existiam na prática. Os padrões tradicionalistas de relações raciais foram mantidos: os negros
são admitidos no mundo dos brancos desde que se comportem dentro de algumas expectativas
dos brancos: humildade, submissão, simpatia, consciência de “seus limites”. Assim o negro se
tornava um “negro de alma branca”.
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Entre os intérpretes de Aquarela do Brasil podemos citar: Silvio Caldas, Antonio Carlos Jobim, Radamés
Gnattali, Elis Regina, Gal Costa, João Gilberto, Caetano Veloso, o próprio Ary Barroso, as orquestras Xavier
Cugat, Morton Gould, Ray Conniff, Tommy e Jimmy Dorsey, Bing Crosby e Frank Sinatra.
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Brasil!
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro (Barroso, 1939)
Ainda que o mulato seja inzoneiro, ou seja, manhoso e sonso, o autor admite a
identidade mestiça, assumindo-a com suas vantagens e defeitos. Essa imagem que associa a
identidade nacional à malandragem já foi alvo de alguns estudos2, mas pelos limites desse
trabalho não se pretende aprofundar a questão.
A questão da cor ainda aparece nos versos: Meu Brasil lindo e trigueiro, Terra
boa e gostosa, da morena sestrosa. Trata-se de um eufemismo comum em cultura nacional
chamar o negro ou o mulato de “moreno”, evitando destacar a sua condição negra, na
verdade, discriminada. O Brasil é “trigueiro” e a morena é “sestrosa”, ou seja, tem sestro
(agouro), é viva, esperta e malandra. Talvez o autor estivesse se referindo ao próprio “feitiço”
da mulata, que encanta e apaixona os brancos. Então, pode-se associar essa referência à
sexualidade das negras e mulatas, que foi bastante destacada na obra de Freyre (1975).
Ressalte-se que o sociólogo pernambucano alertou que a sexualidade exacerbada das negras e
das índias foi um produto da própria escravidão:
É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio mas
do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não
há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesmo do regime. Em
primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação, criando nos
proprietários de homens imoderado desejo de possuir crias. (Freyre, 1975, p.316)
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Por exemplo, o livro: Carnavais, malandros e heróis do antropólogo Roberto da Matta.
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Foi o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro de sua melhor alegria. O
português, já em si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do
caboclo nem se fala: calado, desconfiado, quase um doente em sua tristeza. Seu
contato só fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada do negro é que quebrou
toda essa “apagada e vil tristeza” em que foi abafando a vida nas casas-grandes.
Ele deu alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, os
cavalos marinhos, os carnavais, as festas de Reis. (...)
Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro da casa, nos tanques de bater
roupas, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café,
carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá de ioiôs brancos – os
negros trabalhavam cantando: seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô,
os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida
brasileira. (Freyre, 1975, p. 462-463)
Sobre a figura da mãe-preta Freyre (1975) salientava que esta era uma das
personagens mais importantes no processo de abrandamento das relações entre negros e
brancos. Ao amamentar o filho de seu amo, a escrava passava a fazer parte da família
ganhando um “status” diferenciado:
Já Koster notara que a instituição dos reis do Congo no Brasil, em vez de tornar os
negros refratários à civilização, facilitava esse processo e o da disciplina dos
escravos: “os reis do Congo eleitos no Brasil rezam a Nossa Senhora do Rosário e
trajam à moda dos brancos; eles e os seus súditos conservam, é certo, as danças de
seu país: mas nas suas festas admitem-se escravos africanos de outras regiões,
crioulos e mulatos que dançam da mesma maneira; essas dança atualmente são
mais danças nacionais do Brasil do que da África”. Vê-se quanto foi prudente e
sensata a política social seguida no Brasil com relação ao escravo. A religião
tornou-se o ponto de encontro e confraternização entre as duas culturas, a de
senhor e a do negro; e nunca uma intransponível e dura barreira. (Freyre, 1975,
p.356)
Neste trecho, Brasil pandeiro, assim como Aquarela do Brasil, assume a cor
escura do país: Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Vê-se novamente o
mesmo eufemismo contido nos versos: meu Brasil, lindo e trigueiro e morena sestrosa. Fala
da religiosidade da população dos morros cariocas – a devoção à Nossa Senhora da Penha
nos Morros do Vintém e Pendura a Saia. Em outras passagens os versos falam dos terreiros,
onde se praticam os rituais afro-brasileiros e das rodas de samba. Fala ainda de samba,
pandeiro e batucada.
Outros aspectos da herança cultural afro são destacados nos versos a seguir:
Nesses versos Assis Valente aborda dois temas bastante destacados por Gilberto
Freyre em Casa Grande & Senzala: a influência africana na culinária e na língua brasileiras:
[...]. Bem africano é também o acarajé, prato que é um dos regalos da cozinha
baiana. Faz-se com feijão-fradinho ralado na pedra. Como tempero, leva cebola e
sal. A massa é aquecida em frigideira de barro onde se derrama um bocado de
azeite-de-cheiro. Com alguns quitutes baianos de origem africana, se come um
molho preparado com pimenta-malagueta seca, cebola e camarão, tudo moído na
pedra e frigido em azeite de dendê. (Freyre, 1975, p. 456)
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que fez com a comida:
machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas só deixando para a boca
do menino as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil,
principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem “RR” nem “SS”; as
sílabas finais moles; palavras que só faltam desmanchar na boca. [...] os nomes
próprios foram os que mais se amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se
deliciosamente na boca dos escravos. As Antonias ficaram Dondons, Toninhas,
Totonhas: as Teresas, Tetês; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Franciscos,
Chico, Chiquinho, Chicó; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto
sem falarmos das Iaiás, dos Ioiôs, das Sinhás, das Manus, das Calus, Bembens,
Dedés, Marocas, Nocas, Nonocas e Gegês”. (Freyre, 1975, p. 331-332)
Enfim ambas as músicas traçam um painel alegre do Brasil, com suas belezas
naturais e sua riqueza cultural: samba, batucada, religiosidade, festas folclóricas,
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O sucesso internacional da Bossa Nova pode ser exemplificado pela realização do legendário show do
Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, estrelado pelos então jovens talentos da música brasileira: Antonio
Carlos Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto.
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Considera-se que o período da história do Brasil tradicionalmente chamado Primeira Republica ou República
Velha (1889-1930), não pode ser considerado um período democrático, pois o direito de voto era bastante
limitado e as eleições eram sabidamente manipuladas pelas oligarquias regionais.
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Mas mesmo na fase mais politizada da música popular brasileira, nos anos 1960,
na época dos grandes festivais, a questão do mito da democracia racial não foi enfrentada de
forma direta. Outras questões sociais, políticas e econômicas foram bastante discutidas, mas o
racismo não.
Para não ser radical nessa afirmação podemos considerar que a questão do negro
foi tratada pelas músicas que faziam parte da peça teatral “Arena conta Zumbi”, que resgatou
a memória das lutas de libertação dos negros escravizados que fundaram o Quilombo dos
Palmares, no período colonial brasileiro. Nesse sentido pode-se destacar, em 1966, o sucesso
da música “Upa, neguinho”, de Edu Lobo e Gian Francesco Guarnieri, na emocionante
interpretação de Elis Regina. Porém, como a música e a peça teatral falam do período da
escravidão, sua mensagem ampla de libertação nem sempre foi compreendida como uma luta
de libertação que permanecia no presente. Afinal, como destacou Fernandes (1978) o mito da
democracia racial pressupõe que a abolição e a república garantiram a igualdade de direitos
entre negros e brancos e que, portanto, os problemas dos negros ficaram no passado
escravista, colonial e imperial.
O ditado popular “negro que não suja na entrada, suja na saída” também foi
citado por Fernandes (1978) ao relacionar as expressões e estereótipos negativos sobre o
negro que são correntes na cultura brasileira: “fazer papel de preto’”, “coisas de negro”,
“negro já não conhece o seu lugar”, “feder que nem negro”, “negro cachaceiro”, “negro
beiçudo”, “cabelo de negro”, etc. Estes ditados e expressões que ainda circulam na sociedade
nacional são um grande indicativo do racismo vigente.
Com base nesses dados podemos afirmar justamente o contrário do que diz o
ditado popular. Como diz Gil (1983): Êta, branco sujão!
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humanidade e onde o cantor pop norte americano Paul Simon gravou um disco com o
bloco/banda Olodum. Há ainda, no Largo do Pelourinho, a Fundação Casa de Jorge
Amado, um espaço cultural que expõe e pesquisa a obra do famoso escritor que valorizou a
cultura baiana fortemente influenciada pelos negros. Apesar de todo esse “glamour”, quando
os problemas sociais explodem a repressão policial é violenta. Então, vê-se que a polícia,
cujos elementos mais subalternos são, em sua maioria, negros, batendo violentamente na
população oprimida e marginalizada, que também é predominantemente negra:
A violência contra pretos e pobres é tida como normal, afinal, como diz o ditado
popular: “todos sabem como se tratam os pretos”.
Por meio das letras dessas músicas se pode observar como a questão racial no
Brasil foi e ainda é complexa e que há ainda um longo caminho para que se possa construir
uma verdadeira democracia no país: racial, social, política e econômica.
IV – Referências bibliográficas:
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 17ª edição,
1975
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas
brasileiras, Vol. 1: 1901-1957. São Paulo: Editora 34, 1998
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas
brasileiras, Vol. 2: 1958-1985. São Paulo: Editora 34, 1998
V – Referências musicais: