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A questão racial nas letras das canções populares brasileiras

SELMA DE ARAUJO TORRES OMURO (*)

Introdução

A questão racial é um tema que preocupa a intelectualidade brasileira desde o


século XIX, quando, com o estabelecimento do Estado Nacional, se iniciou o processo de
construção da identidade nacional. O interesse pelo assunto se perpetuou ao longo do século
XX e, ainda hoje, em pleno século XXI, repercute de modo polêmico quando se discute a
questão das políticas afirmativas que buscam garantir direitos mínimos às minorias raciais que
não se encontram plenamente integradas na sociedade brasileira.

A música é uma das mais ricas formas de expressão da cultura brasileira. O Brasil
é um país mundialmente famoso pela qualidade de seus músicos e pela criatividade de sua
produção musical, especialmente nas suas versões populares. Além da musicalidade expressa
em diferentes ritmos e melodias, fruto das contribuições das diversas culturas e povos que
aqui se encontraram e formaram uma produção original e diversificada, a música popular
brasileira apresenta também uma poesia que foi capaz de expressar em palavras, versos e
refrões a igualmente rica e complexa realidade social do país. Neste trabalho, pretende-se
analisar as letras de algumas músicas populares que fizeram sucesso no mercado fonográfico
brasileiro ao longo do século XX e que abordaram de alguma maneira a questão racial: um
dos aspectos mais polêmicos da cultura nacional.

Para tanto se fará uma análise das letras de canções de grande expressão na
música popular brasileira do século XX, comparando-as com as abordagens de autores
clássicos da sociologia nacional. Serão analisadas obras de artistas como Ary Barroso (1903-
1964) e Assis Valente (1911-1958), representantes da Época de Ouro da música popular
brasileira (de 1929 a 1945) e como Caetano Veloso (1942) e Gilberto Gil (1942), expoentes
da geração que despontou nos festivais de música popular brasileira - anos de1960 - marcadas
pela modernização musical decorrente da bossa-nova e pelo engajamento político de seus
conteúdos temáticos. As referências sociológicas são Gilberto Freyre (1900-1987), autor de
Casa Grande & Senzala, de 1933, e Florestan Fernandes (1920-1995), autor do estudo A

(*) Doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP


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integração do negro na sociedade de classes, de 1964, obras clássicas da sociologia


brasileira.

I - A questão racial e a identidade nacional brasileira

No Século XIX a consciência da diversidade racial era clara entre a


intelectualidade brasileira. Em 1843, o Instituto Histórico e Geográfico promoveu um
concurso de monografias que versassem sobre a melhor forma de abordagem da história do
Brasil. O naturalista alemão Karl Friedrich Von Martius venceu o certame com uma tese na
qual recomendava que a História do Brasil deveria contemplar a contribuição das três raças
que formaram a população brasileira: o branco, o negro e o índio. Escritores e músicos
brasileiros, adeptos do romantismo chegaram a produzir importantes obras artísticas
idealizando a participação de negros e índios na cultura brasileira. Mas a historiografia e a
sociologia nacional hesitaram em dar o devido destaque a esses grupos raciais efetivamente
marginalizados da vida social. Influenciados pelas teorias racistas que vigoravam na Europa
ao final do século XIX e início do século XX, a existência dos grupos raciais não brancos e,
especialmente, um significativo contingente de população negra tornou-se um problema para
a intelectualidade brasileira. Varnhagen (1816-1878), o mais conhecido historiador brasileiro
do século XIX, ignorou a proposta de Von Martius. Enfatizou a história dos brancos,
considerou os índios como selvagens e ignorou os negros. Na virada para o século XX,
intelectuais como Nina Rodrigues (médico, psiquiatra e antropólogo maranhense, 1862-1906)
e Oliveira Viana (jurista, historiador e sociólogo carioca, 1883-1951) defendiam a
inferioridade biológica do negro e divulgavam os princípios da eugenia (estudo sobre a
melhoria das raças, que embasou o movimento nazista e sua ideologia sobre a existência de
uma raça superior).

No século XX a questão racial passou a ter um novo enfoque: o livro Casa-grande


& senzala do sociólogo Gilberto Freyre, lançado em 1933, apresentou, pela primeira vez, a
miscigenação da população brasileira como um fator positivo. A diversidade populacional do
país passou a ser analisada com base em aspectos culturais, a questão da raça, de cunho
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biológico, deixa de ser relevante. Freyre destaca a enorme influência que os negros – e índios,
em menor medida – exerceram na cultura brasileira:

Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo - há muita
gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a
pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul e em
Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do
africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos


sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo
que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.
Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar... (Freyre, 1975,
p. 283)

O autor, que revolucionou o enfoque e a metodologia de pesquisa da questão


racial, enfatizou a miscigenação da população brasileira e destacou as relações interpessoais
(afetuosas e sexuais) que teriam atenuado a violência da escravidão no Brasil. Sua análise deu
base para a criação do “mito da democracia racial”: a ideia de que não há racismo no Brasil.
Tal mito vigorou até a década de 1950, quando uma nova geração de intelectuais o
desmascarou. Nessa nova geração destaca-se a abordagem do sociólogo Florestan Fernandes
(1920-1995):

A ideia de que o padrão brasileiro de relações entre “brancos” e “negros” se


conformava aos fundamentos éticos-jurídicos do regime republicano vigente.
Engendrou-se, assim, um dos grandes mitos de nossos tempos: o mito da
“democracia racial brasileira”. Admita-se, de passagem, que esse mito não nasceu
de um momento para o outro. Ele germinou longamente, aparecendo em todas as
avaliações que pintavam o jugo do escravo como contendo “muito pouco fel” e
sendo tão doce e cristamente humano. Todavia, tal mito não possuiria sentido na
sociedade escravocrata e senhorial. A própria legitimação da ordem social que
aquela sociedade pressupunha repelia a ideia de uma “democracia racial”. Que
igualdade poderia haver entre o “senhor”, o “escravo” e o “liberto”? A ordenação
das relações sociais exigia, mesmo, a manifestação aberta, regular e irresistível do
preconceito e da discriminação raciais – ou para legitimar a ordem estabelecida ou
para preservar as distancias sociais em que se assentava. Com a abolição e a
implantação da República, desapareceram as razões psicossociais, legais ou morais
que impediam a subjetivação de semelhante ideia. Então operou-se uma
reelaboração interpretativa de velhas racionalizações, que foram fundidas e
generalizadas em um sistema de referências consistente com o regime republicano.
No passado, o conflito insanável entre os fundamentos jurídicos da escravidão e os
mores cristãos não obstou que se tratasse os escravos como coisa e, ao mesmo
tempo, se pintasse a sua condição como se fosse “humana”. No presente, o
constraste entre a ordem jurídica e a situação real da “população de cor” também
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não obstruiria uma representação ilusória, que iria conferir a São Paulo o caráter
lisonjeiro de paradigma da democracia racial”. (Fernandes, 1978, p. 253-254)

Fernandes (1978) apresenta estudos que comprovaram que o negro não teve
igualdade de condições no acesso à nova ordem social competitiva (mercado de trabalho livre
capitalista) e envolveu-se num ciclo de pauperização e anomia que reduziram ainda mais suas
possibilidades de ascensão econômica. Por outro lado, o sistema jurídico-político implantado
após a abolição da escravidão ignorou a necessidade de políticas de integração do ex-escravo
na economia e sociedade nacional e estabeleceu uma igualdade formal de direitos que não
existiam na prática. Os padrões tradicionalistas de relações raciais foram mantidos: os negros
são admitidos no mundo dos brancos desde que se comportem dentro de algumas expectativas
dos brancos: humildade, submissão, simpatia, consciência de “seus limites”. Assim o negro se
tornava um “negro de alma branca”.

Um pouco dessas ideias sobre as relações raciais no Brasil – confirmando ou


negando o mito da democracia racial - pode ser observada nas letras de músicas populares que
se tornaram clássicas no Brasil, durante o século XX. Algumas delas serão analisadas neste
trabalho.

II – Aquarela do Brasil e Brasil pandeiro: reforçando o mito da democracia racial

As músicas Aquarela do Brasil e Brasil Pandeiro foram compostas na chamada


Época de Ouro da música popular brasileira. A Época de Ouro, segundo Severiano e Mello
(1998), foi o período, entre 1929 e 1945, em que a música popular brasileira se
profissionalizou e viveu uma de suas fases mais férteis, estabelecendo padrões que vigoraram
ao longo de todo o século XX.

A Época de Ouro originou-se da conjunção de três fatores: a renovação


musical iniciada no período anterior com a criação do samba, da marchinha e de
outros gêneros; a chegada ao Brasil do rádio, da gravação eletromagnética do som
e do cinema falado; e principalmente, a feliz coincidência do aparecimento de um
considerável número de artistas talentosos numa mesma geração. Foi a necessidade
de preenchimento dos quadros musicais das diversas rádios e gravadoras surgidas
5

na ocasião que propiciou o aproveitamento desses talentos (Severiano e Mello,


1998, vol 1, p.85)

Trata-se de uma época em que o Brasil passou por significativas mudanças


políticas e econômicas. Na realidade a renovação musical reflete as transformações pelas
quais o país passou a partir dos anos 1930, quando Getúlio Vargas assumiu o poder e, ainda
que de forma autoritária, deu um redirecionamento à economia e às relações políticas e sociais
do país. Foi também um momento de revisão da própria história do Brasil, por meio da
produção de intelectuais como o já citado Gilberto Freyre, e outros como Sérgio Buarque de
Holanda (1902-1982) e Caio Prado Jr (1907-1990), autores de Raízes do Brasil (1936) e
Formação do Brasil Contemporâneo (1942), respectivamente. Juntamente com Casa-Grande
e Senzala, estas obras ajudaram a repensar a realidade brasileira.

A música, portanto, acompanhava todos esses acontecimentos. Uma geração


talentosa de compositores e letristas expressaram aspectos da realidade nacional e, entre estes,
a questão racial.

Em 1939, o compositor mineiro Ary Barroso (1903-1964) lançou a música


Aquarela do Brasil, que se tornou a marca registrada do país no exterior. Além de ter sido um
grande sucesso nas rádios brasileiras, gravada ao longo do século por grandes intérpretes da
música nacional e internacional1, foi também trilha sonora do filme Alô Amigos, produzido
por Walt Disney em 1943.

Aquarela do Brasil tornou-se até mesmo um novo gênero musical – o samba-


exaltação – que inspirou uma série de canções que passaram a exaltar as riquezas e belezas do
Brasil: Onde o azul é mais azul, Canta Brasil, Brasil Moreno. Segundo Severiano e Mello
(1998), intencionalmente ou não, essas canções iam ao encontro dos interesses da ditadura de
Getúlio Vargas (1937-1945) que incentivava o nacionalismo.

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Entre os intérpretes de Aquarela do Brasil podemos citar: Silvio Caldas, Antonio Carlos Jobim, Radamés
Gnattali, Elis Regina, Gal Costa, João Gilberto, Caetano Veloso, o próprio Ary Barroso, as orquestras Xavier
Cugat, Morton Gould, Ray Conniff, Tommy e Jimmy Dorsey, Bing Crosby e Frank Sinatra.
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Na letra da música Aquarela do Brasil, Ary Barroso apresenta as belezas e


riquezas naturais e culturais do país, e entre os aspectos culturais insere especialmente
elementos que expressam a influência negra, tal como a obra de Gilberto Freyre (1975) já
havia destacado. Logo no início da música, Barroso já identifica o Brasil como mulato:

Brasil!
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro (Barroso, 1939)

Ainda que o mulato seja inzoneiro, ou seja, manhoso e sonso, o autor admite a
identidade mestiça, assumindo-a com suas vantagens e defeitos. Essa imagem que associa a
identidade nacional à malandragem já foi alvo de alguns estudos2, mas pelos limites desse
trabalho não se pretende aprofundar a questão.

A questão da cor ainda aparece nos versos: Meu Brasil lindo e trigueiro, Terra
boa e gostosa, da morena sestrosa. Trata-se de um eufemismo comum em cultura nacional
chamar o negro ou o mulato de “moreno”, evitando destacar a sua condição negra, na
verdade, discriminada. O Brasil é “trigueiro” e a morena é “sestrosa”, ou seja, tem sestro
(agouro), é viva, esperta e malandra. Talvez o autor estivesse se referindo ao próprio “feitiço”
da mulata, que encanta e apaixona os brancos. Então, pode-se associar essa referência à
sexualidade das negras e mulatas, que foi bastante destacada na obra de Freyre (1975).
Ressalte-se que o sociólogo pernambucano alertou que a sexualidade exacerbada das negras e
das índias foi um produto da própria escravidão:

É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio mas
do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não
há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesmo do regime. Em
primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação, criando nos
proprietários de homens imoderado desejo de possuir crias. (Freyre, 1975, p.316)

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Por exemplo, o livro: Carnavais, malandros e heróis do antropólogo Roberto da Matta.
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De qualquer forma, as negras e mulatas depravadas pelo senhor tornaram-se


sedutoras e o tema da mulata também rendeu muitas músicas de sucesso no Brasil: O teu
cabelo não nega (Irmãos Valença e Lamartine Babo, 1932) e Mulata assanhada (Ataulfo
Alves, 1951). As mulatas não serviam para o casamento mas eram muito boas para o amor.
Assim sendo Valença e Babo cantavam: “Mas como a cor não pega, mulata. Mulata, eu
quero o seu amor”. Ter a posse de uma mulata ainda era o sonho de muitos brancos, por isso
a música de Alves dizia: “Ai, meu Deus que bom seria, se voltasse a escravidão, eu pegava a
escurinha e prendia no meu coração”. Enfim a mulata é apresentada como um objeto sexual
do branco.

Sobre as contribuições culturais do negro, observa-se em Aquarela do Brasil a


menção às suas criações musicais: ao samba, ao gingado, ao bamboleio e ao pandeiro. A
musicalidade dos negros foi destacada por Freyre (1975), como uma expressão sua alegria:

Foi o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro de sua melhor alegria. O
português, já em si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do
caboclo nem se fala: calado, desconfiado, quase um doente em sua tristeza. Seu
contato só fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada do negro é que quebrou
toda essa “apagada e vil tristeza” em que foi abafando a vida nas casas-grandes.
Ele deu alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, os
cavalos marinhos, os carnavais, as festas de Reis. (...)

Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro da casa, nos tanques de bater
roupas, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café,
carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá de ioiôs brancos – os
negros trabalhavam cantando: seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô,
os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida
brasileira. (Freyre, 1975, p. 462-463)

A música de Ary Barroso também ressalta a figura da “mãe- preta” e do “rei


congo”:

Ah! Abre a cortina do passado


Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado (Barroso, 1939)
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Sobre a figura da mãe-preta Freyre (1975) salientava que esta era uma das
personagens mais importantes no processo de abrandamento das relações entre negros e
brancos. Ao amamentar o filho de seu amo, a escrava passava a fazer parte da família
ganhando um “status” diferenciado:

Quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que


ficava ocupando no seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavam-se
quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a quem se faziam todas as vontades:
os meninos tomavam-lhes a benção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os
boleeiros andavam com elas de carro. E dia de festa, quem as visse anchas e
enganjentas entre os brancos de casa, havia de supô-las senhoras bem-nascidas;
nunca ex-escravas. (Freyre, 1975, p. 352)

Em relação ao rei congo, Freyre (1975), partindo de uma observação do viajante


inglês Koster, aponta para o sincretismo religioso como uma estratégia de
integração/assimilação do negro à cultura nacional:

Já Koster notara que a instituição dos reis do Congo no Brasil, em vez de tornar os
negros refratários à civilização, facilitava esse processo e o da disciplina dos
escravos: “os reis do Congo eleitos no Brasil rezam a Nossa Senhora do Rosário e
trajam à moda dos brancos; eles e os seus súditos conservam, é certo, as danças de
seu país: mas nas suas festas admitem-se escravos africanos de outras regiões,
crioulos e mulatos que dançam da mesma maneira; essas dança atualmente são
mais danças nacionais do Brasil do que da África”. Vê-se quanto foi prudente e
sensata a política social seguida no Brasil com relação ao escravo. A religião
tornou-se o ponto de encontro e confraternização entre as duas culturas, a de
senhor e a do negro; e nunca uma intransponível e dura barreira. (Freyre, 1975,
p.356)

Em suma, a música Aquarela do Brasil apresenta uma série de referências à


integração da cultura negra à cultura nacional, de forma a reforçar a ideia de que não há
discriminação contra o negro no Brasil. Porém a integração fica restrita a alguns aspectos
ligados a estereótipos: o samba, pandeiro, mulato, ginga, folclore, religiosidade afro-
brasileira, etc.
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A música Brasil pandeiro de Assis Valente também apresenta as mesmas


características embora tenha um enfoque jocoso pois faz uma referência à figura símbolo dos
Estados Unidos: o Tio Sam. Lançada em 1941 pelo grupo Anjos do Inferno, a canção teria
sido feita para Carmen Miranda, mas a cantora luso-brasileira, símbolo do Brasil no exterior,
se recusou a gravá-la, talvez por causa dessa jocosidade, que não era comum aos demais
sambas-exaltação divulgados no período. Esta canção começava assim:

Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor,


Eu fui à Penha, fui pedir à padroeira pra me abençoar,
Salve o Morro do Vintém, Pendura a Saia eu quero ver,
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar (Valente, 1941)

Neste trecho, Brasil pandeiro, assim como Aquarela do Brasil, assume a cor
escura do país: Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Vê-se novamente o
mesmo eufemismo contido nos versos: meu Brasil, lindo e trigueiro e morena sestrosa. Fala
da religiosidade da população dos morros cariocas – a devoção à Nossa Senhora da Penha
nos Morros do Vintém e Pendura a Saia. Em outras passagens os versos falam dos terreiros,
onde se praticam os rituais afro-brasileiros e das rodas de samba. Fala ainda de samba,
pandeiro e batucada.

Outros aspectos da herança cultural afro são destacados nos versos a seguir:

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada.


Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato.
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará.
Na Casa Grande já dançou a batucada de ioiô e iaiá (Valente, 1941)

Nesses versos Assis Valente aborda dois temas bastante destacados por Gilberto
Freyre em Casa Grande & Senzala: a influência africana na culinária e na língua brasileiras:

Um traço importante de infiltração de cultura negra na economia e na vida


doméstica do brasileiro resta-nos acentuar: a culinária. O escravo africano
dominou a cozinha colonial, enriquecendo-a de uma variedade de sabores novos.
[...]

No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-se principalmente


pela introdução do azeite-de-dendê e da pimenta malagueta, tão característicos da
cozinha baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande
variedade na maneira de preparar a galinha e o peixe. Várias comidas portuguesas
ou indígenas foram no Brasil modificadas pela condimentação ou pela técnica
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culinária do negro, alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de


técnica africana: a farofa, o quibebe, o vatapá. (Freyre, 1975, p. 453)

Após citar várias contribuições da culinária africana nas diferentes regiões do


Brasil, o sociólogo pernambucano chega até a dar a receita do acarajé citado na música de
Valente:

[...]. Bem africano é também o acarajé, prato que é um dos regalos da cozinha
baiana. Faz-se com feijão-fradinho ralado na pedra. Como tempero, leva cebola e
sal. A massa é aquecida em frigideira de barro onde se derrama um bocado de
azeite-de-cheiro. Com alguns quitutes baianos de origem africana, se come um
molho preparado com pimenta-malagueta seca, cebola e camarão, tudo moído na
pedra e frigido em azeite de dendê. (Freyre, 1975, p. 456)

E quando Valente usa as expressões “ioiô” e “iaiá”, ele utiliza formas de


tratamento modificados pelos escravos, que na análise de Freyre (1975), introduziram na
língua portuguesa não só vocábulos isolados, mas uma nova maneira de falar:

A linguagem infantil também aqui se amoleceu ao contato da criança com a ama


negra. Algumas palavras, ainda hoje duras ou acres quando pronunciadas pelos
portugueses, se amaciaram no Brasil por influência da boca africana. [...]

O processo de reduplicação da sílaba tônica, tão das línguas selvagens e da


linguagem das crianças, atuou sobre as várias palavras dando ao nosso
vocabulário infantil um especial encanto. O “dói” dos grandes tornou-se “dodói”
dos meninos, palavra muito mais dengosa.

A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que fez com a comida:
machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas só deixando para a boca
do menino as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil,
principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem “RR” nem “SS”; as
sílabas finais moles; palavras que só faltam desmanchar na boca. [...] os nomes
próprios foram os que mais se amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se
deliciosamente na boca dos escravos. As Antonias ficaram Dondons, Toninhas,
Totonhas: as Teresas, Tetês; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Franciscos,
Chico, Chiquinho, Chicó; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto
sem falarmos das Iaiás, dos Ioiôs, das Sinhás, das Manus, das Calus, Bembens,
Dedés, Marocas, Nocas, Nonocas e Gegês”. (Freyre, 1975, p. 331-332)

Enfim ambas as músicas traçam um painel alegre do Brasil, com suas belezas
naturais e sua riqueza cultural: samba, batucada, religiosidade, festas folclóricas,
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sensualidade, culinária saborosa, linguagem macia. Um quadro no qual o negro parece


integrado, mas que não se estende para outros aspectos da realidade econômica e social de seu
dia a dia. Após os festejos do Carnaval, os negros continuam tendo dificuldades de se
integrarem no mercado de trabalho e sendo aceitos somente quando atendem as expectativas
comportamentais das relações raciais tradicionais, conforme a análise de Fernandes (1978).

III – A mão da limpeza e Haiti: desconstruindo o mito da democracia racial

Não obstante ao crescimento do movimento negro ao longo do século XX e a


denúncia do mito da democracia racial a partir dos anos 1950, a realidade da discriminação do
negro demorou a aparecer na música popular brasileira, pelo menos naquelas canções
consagradas pelo público e pela crítica.

Segundo Severiano e Mello (1998) a música popular brasileira viveu uma


“segunda grande fase” entre os anos de 1958 e 1972. Trata-se do período marcado pelo
surgimento da bossa nova, pelos festivais de canção promovidos pelas emissoras de televisão,
e pelo tropicalismo. “É uma fase de renovação e modernização, que introduz novos estilos de
composição, harmonia e interpretação, determinando uma apreciável mudança na linha evolutiva de
nossa canção” (Severiano e Mello, 1998, Vol.2, p. 15)

A bossa nova inovou ao incorporar os elementos do jazz à canção nacional e


alcançou grande sucesso e respeito internacional3. Os festivais marcaram por incorporar
conteúdos sociais e políticos nas letras das canções populares. Finalmente, o tropicalismo, foi
um movimento que marcou pela radicalização total da linha evolutiva da música popular
brasileira ao introduzir as guitarras e a influência do rock ao cancioneiro popular nacional.

Tais movimentos musicais também refletem momento crucial da história do país.


Entre 1945 e 1964 a Brasil viveu sua primeira experiência democrática4, com intensa

3
O sucesso internacional da Bossa Nova pode ser exemplificado pela realização do legendário show do
Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, estrelado pelos então jovens talentos da música brasileira: Antonio
Carlos Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto.
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Considera-se que o período da história do Brasil tradicionalmente chamado Primeira Republica ou República
Velha (1889-1930), não pode ser considerado um período democrático, pois o direito de voto era bastante
limitado e as eleições eram sabidamente manipuladas pelas oligarquias regionais.
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mobilização social na qual partidos políticos, sindicatos e organizações da sociedade civil e


estudantis debatiam os rumos do modelo de desenvolvimento econômico do país. Tal
mobilização influenciou grandemente a produção cultural nacional e resultou no acirramento
das tensões políticas e no golpe militar que derrubou o governo do Presidente João Goulart,
iniciando um novo período de Ditadura no Brasil.

Mas mesmo na fase mais politizada da música popular brasileira, nos anos 1960,
na época dos grandes festivais, a questão do mito da democracia racial não foi enfrentada de
forma direta. Outras questões sociais, políticas e econômicas foram bastante discutidas, mas o
racismo não.

Para não ser radical nessa afirmação podemos considerar que a questão do negro
foi tratada pelas músicas que faziam parte da peça teatral “Arena conta Zumbi”, que resgatou
a memória das lutas de libertação dos negros escravizados que fundaram o Quilombo dos
Palmares, no período colonial brasileiro. Nesse sentido pode-se destacar, em 1966, o sucesso
da música “Upa, neguinho”, de Edu Lobo e Gian Francesco Guarnieri, na emocionante
interpretação de Elis Regina. Porém, como a música e a peça teatral falam do período da
escravidão, sua mensagem ampla de libertação nem sempre foi compreendida como uma luta
de libertação que permanecia no presente. Afinal, como destacou Fernandes (1978) o mito da
democracia racial pressupõe que a abolição e a república garantiram a igualdade de direitos
entre negros e brancos e que, portanto, os problemas dos negros ficaram no passado
escravista, colonial e imperial.

A partir desse raciocínio, dentro do acervo mais conhecido da música popular


brasileira5, poucas músicas fizeram a denúncia direta da existência de racismo no Brasil e de
sua permanência na atualidade. Foram justamente os compositores oriundos do polêmico
movimento tropicalista6, Gilberto Gil (1942) e Caetano Veloso (1942), que em fase mais
madura de suas carreiras, elaboram duas canções que apontaram diretamente na ferida da
questão racial brasileira.
5
Ressaltamos que nos referimos ao circuito das grandes mídias e não pesquisamos as produções musicais de
circuitos alternativos e populares.
6
Polêmico porque ao introduzir elementos do rock na música popular brasileira e desenvolver temáticas da
contracultura, foi considerado uma tendência musical antinacional e não comprometida com as questões políticas
e sociais do país.
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Em A mão da limpeza, de 1983, Gilberto Gil trabalha em cima de um ditado


popular racista ainda muito presente na cultura nacional, para desconstruir o mito da
democracia racial:

O branco inventou que o negro


Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê (Gil, 1983)

O ditado popular “negro que não suja na entrada, suja na saída” também foi
citado por Fernandes (1978) ao relacionar as expressões e estereótipos negativos sobre o
negro que são correntes na cultura brasileira: “fazer papel de preto’”, “coisas de negro”,
“negro já não conhece o seu lugar”, “feder que nem negro”, “negro cachaceiro”, “negro
beiçudo”, “cabelo de negro”, etc. Estes ditados e expressões que ainda circulam na sociedade
nacional são um grande indicativo do racismo vigente.

Gil (1983) se apoia na história da escravidão no Brasil e seus versos concordam


com a obra de Gilberto Freyre, quando ressalta que os negros, ao contrário do que diz o
ditado, eram os grandes responsáveis pela limpeza das casas de seus senhores:

Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene doméstica e


pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça, das casas para as
praias, os barris de excrementos vulgarmente conhecidos por tigras. Barris que nas
casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro de casa, debaixo da escada
ou num outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que já não
comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios e de podres, às vezes
largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés. Foram
funções vis, desempenhadas pelo africano com uma passividade animal. Entretanto,
não foi com o negro que se introduziu no Brasil o piolho; nem a “mão de coçar”,
nem o percevejo da cama. E é de presumir que o escravo africano, principalmente o
de origem maometana, muitas vezes experimentasse verdadeira repugnância pelos
hábitos menos asseados dos senhores brancos. (Freyre, 1975, p.462)

Com base nesses dados podemos afirmar justamente o contrário do que diz o
ditado popular. Como diz Gil (1983): Êta, branco sujão!
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Entretanto, como a abolição da escravidão e a proclamação da república não


possibilitaram a plena integração do negro no mercado de trabalho competitivo, grande parte
da população de cor permaneceu em funções subalternas, portanto, Gil denuncia que a
opressão do negro não é uma coisa do passado:

Mesmo depois de abolida a escravidão


Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza (Gil, 1983)

A outra música popular brasileira cujos versos enfrentam o “mito da democracia


racial” foi composta por Caetano Veloso, em 1992. Trata-se da música Haiti, que faz uma
grande provocação àqueles que ainda procuram apresentar o Brasil apenas como uma linda
aquarela. Em Haiti, Caetano Veloso faz uma comparação entre o Brasil, um país que, naquele
momento histórico, se reconstruía como uma democracia buscando um papel de destaque na
política e na economia internacional, e o Haiti, um dos países mais pobres e oprimidos da
América e do mundo. De forma bastante incisiva, o compositor baiano aponta toda uma série
de problemas que persistem na organização extremamente desigual, conservadora e perversa
da sociedade brasileira e questiona: afinal somos tão diferentes do Haiti?

Em Haiti, Caetano Veloso expõe as mazelas da sociedade brasileira e a hipocrisia


das pessoas (políticos, religiosos e até mesmo intelectuais) que festejam todos os mitos das
“democracias brasileiras”: a racial, a política, a social, a educacional, a cultural, a religiosa,
etc.

O cenário inicial da canção é o centro histórico da cidade de Salvador, o Largo do


Pelourinho, símbolo da cultura negra, pretensamente valorizada no “mito da democracia
racial”. Nesse cenário, onde os escravos eram castigados na época de escravidão, Caetano
Veloso apresenta um quadro atual em que, aparentemente, a grandeza épica de um povo em
formação nos atrai, nos deslumbra e estimula. Onde se vê o batuque de crianças sendo
filmado pelas lentes do Fantástico (famoso programa da televisão brasileira). Lugar em que
turistas do mundo inteiro vêm conhecer os sobrados coloniais tombados como patrimônio da
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humanidade e onde o cantor pop norte americano Paul Simon gravou um disco com o
bloco/banda Olodum. Há ainda, no Largo do Pelourinho, a Fundação Casa de Jorge
Amado, um espaço cultural que expõe e pesquisa a obra do famoso escritor que valorizou a
cultura baiana fortemente influenciada pelos negros. Apesar de todo esse “glamour”, quando
os problemas sociais explodem a repressão policial é violenta. Então, vê-se que a polícia,
cujos elementos mais subalternos são, em sua maioria, negros, batendo violentamente na
população oprimida e marginalizada, que também é predominantemente negra:

Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos


Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos (Veloso, 1992)

A violência contra pretos e pobres é tida como normal, afinal, como diz o ditado
popular: “todos sabem como se tratam os pretos”.

A relação entre a desigualdade econômica e a racial se torna explícita nos versos


em que se afirma que os pobres são quase todos pretos e os brancos pobres são também
considerados pretos:

Só pra mostrar aos outros quase pretos


(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados (Veloso, 1992)

O cenário se desloca para São Paulo. Para a extinta penitenciária do Carandiru,


onde a polícia paulista chacinou 111 presos que se rebelaram no dia 2 de outubro de 1992. E
a grande maioria da população paulistana achou normal, ou merecida, a morte dos presos:

E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo


Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos (Veloso, 1992)
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Caetano Veloso segue denunciando as várias hipocrisias e contradições da cultura


média brasileira: a moralidade contra a legalização do aborto e a favor da pena de morte; a
falta de vontade política para realmente democratizar o ensino de 1º grau; o discurso
esquerdista a favor de Cuba e falta de compromisso com outros deveres do cidadão: respeitar
o sinal vermelho, usar camisinha, cuidar do lixo urbano. Então pode dizer: “O Haiti é aqui”.

Por meio das letras dessas músicas se pode observar como a questão racial no
Brasil foi e ainda é complexa e que há ainda um longo caminho para que se possa construir
uma verdadeira democracia no país: racial, social, política e econômica.

IV – Referências bibliográficas:

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol.1 (O legado


da raça branca) (São Paulo: Ática, 3ª edição, 1978

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 17ª edição,
1975

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas
brasileiras, Vol. 1: 1901-1957. São Paulo: Editora 34, 1998

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas
brasileiras, Vol. 2: 1958-1985. São Paulo: Editora 34, 1998

V – Referências musicais:

ALVES, Ataulfo. Mulata assanhada, 1951

BABO, Lamartine e VALENTE, Irmãos. O teu cabelo não nega,1932

BARROSO, Ary. Aquarela do Brasil, 1939


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GIL, Gilberto. A mão da limpeza, 1983

LOBO, Edu e GUARNIERI, Gianfrancesco. Upa, neguinho, 1965

VALENTE, Assis. Brasil pandeiro, 1941

VELOSO, Caetano. Haiti, 1992

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