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Sobre ''.Agradecimentos" . .. . .. . .. . .. . .. . .. • .. . .. . .. . .. . .. . ..

Ficha Técnica Prefácio: Luís Jorge Ferrão ................................ .. 9

1. Um "Monstro" chamado Neoliberalismo ........................ .. 15


Título:
A "Liberdade" do Neoliberalismo: Leituras Críticas II. "Mau Debate" versus "Bom Debate" sobre o Neoliberalismo .. 33
Autor: José P: Castiano
Editora: III. Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão ................... ..
Editora Educar/CEMEC-Modernizando Tradições
Maquetização/Layout: Jubel D. Castiano
O Fim da Verdade ................................................. .. 64•
Revisão do texto: Çhegados aqui, tiremos algumas conclusões sobre Hayek ...... .. 67
Felizardo Pedro, Arsénia·Muianga, João Chimene Jr.
ISBN: 978-989-20-8259-2
Nº Registo: rv. Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman ....... .. 71
9131/RLINLD/2017
Tiragem: 2000 exemplares
Uma Convicção: Mudar a Política pela Porta da Economia" .... .. 73
Copyright:
©Reservados todos os direitos.
Defender a Liberdade: "O que posso fazer através do Estado?" ... 80
Ano de Publicação 2018, Maputo Liberdade Económica, a Componente Fundamental das Liberdades 85
Estado: Legislador, Árbitro, Regulador de "Efeitos de Vizinhança" 94
É expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta O Estado e a Educação: Um Caso Dificil ..................... .. 106
obra por qualquer meio incluindo a fotocópia e o tratamento
informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos.
V. Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica 115
(Biopolí tica) ........................................................ ..
O "Método" de Foucau]t.............. .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. 119
O Mercado como Instância Crítica: O Surgimento da Economia
Política.. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. 122
O Mercado: Instância e Princípio do novo Regime de Veridicação.. 126
O Liberalismo Alemão versus o Liberalismo Americano ............: 131
O Problema da Governamentabilidade (Gesellschaftspolitik)......... 141
Será Foucault um Neo-Marxista?.... .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. 142
VI. Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-
Chul Han .................•..........................•.•.. 14<7
O Diagnóstico do Nosso Tempo: Coerção e Coacções Internas..... 149
Afastamento de Marx ................................................ . 156
O Fim da Política ..................................................... . 158
A Ditadura da Transparência ........................................ . 160 Sobre ''Agradecimentos"
A Facebook Society . .................................................... . 164
O Afastamento de Foucault ........................................ .. 167
"Yes, l Can": Neoliberalismo, a Era de Emoções Livres ........... .. 169 Uma leitura atenta à secção "agradecimentos" nos livros
I Lave You Big Brother! . .............................................. . 173 mostrou-me duas tendências; Primeira: alistamos nos
A "Ditadura" do Dataísmo ........................................... . 176
"Idiota" procura-se! .................................................. .
agradecimentos aquelas pessoas sobre as quais nos sentimos
180
"culpados"; sai o livro e não estão mencionadas! Teríamos 5
LF.rtURAS CRITICAS

VII. A Intercultura em Ngoenha: ''.Alternativa" ou nova· que viver angustiados de tanta vergonha por nos termos
Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo? 189 "esquecido" o quão elas nos ajudaram para a escrita do livro.
Uma Carta à. lntercultura, o ''.Aroma" Africano do Tempo Neoliberal 191 Segunda: queremos "eternizar" certas pessoas ao lado do
Um Continuum da Crítica do Liberalismo (Rousseau) ao nosso nome. E isto por uma razão qualquer. E duas delas,
Neoliberalismo (N goenha).. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. 194
Neoliberalismo a partir da Filosofia da Interculturalidade.......... 200
entendo, podem ser: ou a escrita "frescamente" acabada nos
tirou o tempo de convivência íntima com essas pessoas; ou
VIII. A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo ......... 215 os "agradecimentos" são uma forma de refazer as relações
A Refracção do Sujeito na Condição Neoliberal .................... . 217
··.·• turbulentas que provocamos com as pessoas queridas por
A Intercultualidade, uma Dessubjectivação Epistémica? .......... .. 226 ·f''>i:ªzão, entre outras, da própria escrita. Enfim, quando o dia do
·•· J,a:µçamento do livro chega, é dessas pessoas que esperamos
Bibliografia ......................................................... 239 ;~; rdão".

· .Eu não escapei a nenh4ma dessas razões. Entretanto, como


wsecção dos "agradecimentos" é (quase) a única num livro que
não obedece a uma sistematização obrigatória, irei reconhecer
"~umas pessoas que contribuíram para este livro numa ordem
·~não o é. Tinha que começar sempre por alguém.
Ao Adérito Adriano Miguel que, pela segunda vez, Agradeço especialmente à Dulce Passades que, desde que
proporcionou o seu tempo na transcrição das Aulas Abertas. ouviu dizer sobre a preparação deste livro, tem sido incansável
O presente livro foi retrabalhado em cima dos textos que ele em enviar artigos ou sites sobre o neoliberalismo que ia
me foi enviando. Agradeço também à Arsénia M uianga pela encontrando. O último deles, Noam Chomsky: Neoliberalism
releitura e correcção profissional que fez ao texto. is destroying our Democracy, uma entrevista conduzida por
À Domingas Kaphesse ("Dó") que, intuindo, me informava Christopher Lydon, "entrou" para o meu telemóvel quando já
mais sobre o mundo do neoliberalismo do dia"'."a-dia estava a colocar o "corajoso" ponto final neste livro.
moçambicano maputense: das suas dificuldades em tornar-se Falando ainda sobre o "nascimento" desta ideia, devo ao
"empreendedora'', em registar uma empresa e de como ela usa meu caro companheiro de lutas, Severino E. Ngoenha, que
e pensa sobre as redes sociais. Bem "por acaso", estas são as introduziu o tema neoliberalismo no horizonte e na paisagem
duas características do neoliberalismo com que ela se debate do debate teórico-filosófico moçambicano. Uma vez, na
quando se lança diariamente com uma força de mulher incrível Suíça, nas ruas de Lausanne, à procura do tabacco para o seu
pela estrada fora em busca do seu "auto-emprego". cachimbo, ele perguntou-me de rompante: Vocêjá ouviufalar
6 Ao Luís Cipriano que preparou e abraçou de peito àBerto ' da biopolítica? E exclamou um "olalá" à resposta que na altura
ilUl/\OE" DO NEOUBl!RAllSMO

o projecto de Aulas Abertas sobre o neoliberalismo na lhe dei.


Universidade Pedagógica. E à Stélia Muianga que divulgou À minha mãe, que o seu espírito descanse em paz, por ter
o evento pelas suas redes sociais e me apoiou (ajudada por "aparecido" numa das noites existencialmente derradeiras
Valéria Zandamela) na preparação do material. enquanto preparava estas leituras. Ao "mano" Jubel que me
A ideia das aulas abertas nasceu e cresceu durante a minha "vigia" diariamente no estilo do Big Brother orweliano. "Sei"
estadia no Centro de Estudos Sociais (CES), um laboratório que os irmãos lvandro e Zildo o ajudam neste empenho dificil.
de investigação associado à Universidade de Coimbra. Ao Obrigado.
Professor Boaventura de Sousa Santos e à Professora Paula
Meneses devo agradecer todo o acolhimento académico.
Ambos mostraram-me a sua vida de lutas nos movimentos
sociais contra o neoliberalismo pelo mundo fora. Ao pessoal
da Biblioteca do CES, especialmente Maria José Carvalho
(responsável) e seus colaboradores Acácio Machado e Inês
Lima, que estiveram sempre disponíveis, para além do seu
dever, em ajudar no acesso aos livros que precisava, devo o
meu profundo agradecimento.
Prefácio

Por : Jorge Ferrão

Com a publicação da obra A "Liberdade" do Neoliberalismo


a filosofia moçambicana está de parabéns devido à sua
9
contribuição emblemática, actual e inovadora, premiando LEITURAS CRITICAS

uma visão filosófica africana sobre a praxis do Neoliberalismo


nas nossas sociedades contemporâneas. A epistemologia
filosófica, em todos os tempos, sempre se reconheceu na
sua virtualidade de captar na essência o "aroma do tempo"
nos fenómenos da natureza, da sociedade e do pensamento
humano, conceptualizando a génese existencial e evolutiva,
desmistificando seus mitos e oferecendo a apreensão da
sua inteligibilidade causal. Com rigor científico e elevado
pragmatismo crítico, o autor procura, na presente obra,
desmistificar os fundamentos da liberdade na época
neoliberal. O autor, nas suas leituras.críticas da "liberdade"
no neoliberalismo debruça-se sobre as mais relevantes teorias
filosóficas que fundamentam os conceitos de liberdade no
liberalismo e a sua radicalização no neoliberalismo. O autor
critica ainda o neoliberalismo com recurso a dessubiectivacão
::r:
ltj
1
ltj
()
Li
>::
Li
do Sujeito no Neoliberalismo e apresenta, entre outras, a exclusivo de todas as outras formas de liberdade. A defesa (\.)

"intercultura" como alternativa a governação biopolítica. Em 1-'


deste fundamento teórico de liberdade económica, como
()
abono da verdade, é ·a inquietação da reafirmação identitária papel essencial vital do Estado moderno, mais do que rever a o
3
no espaço histórico socioeconómico universal, que instiga o natureza da economia política num Estado moderno, obriga- 3
CD
autor a procurar respostas sobre a génese, desenvolvimento e o nos are-significar o papel da filosofia política e social do Estado ::i
rt
impacto do neoliberalismo, no desenvolvimento sociocultural moderno. Na verdade, ·.nesta base conceptual, a liberdade ()
e económico das sociedades africanas e em especial de política e toda riqueza social, são, exclusivamente, resultado o
~
Moçambique. E, parafraseando o autor, o objectivo desta obra da liberdade económica de cada cidadão individualmente e '-<
ti
1-'·
fica, cabalmente, definido quando toda reflexão argumentativa não como sujeito colectivo, numa aberta oposição às filosofias lQ
P'
procura dar resposta à questão - "Em que medida a teoria defendidas pelos Estados totalitaristas, promotores da rt

sobre o neoliberalismo se aproxima e se distancia da praxis servidão. E talvez, também dai, a animosidade com que os (}

política por ele inspirada ou em nome dele?" Para cumprir fazedores de política, cultura e economia em África, encaram
(\.)
essa missão onde África, por força das visões eurocentristas a praxis da mundialização do neoliberalismo,. que pode ser o
1-'
10
do desenvolvimento humanitário, se revêem e cito, como explicada pelas implicações forçadas de adopção de modelos de \.O
11
"LUll!RDADE" DO Nl!OUDl!RAUSMO
"vítimas duma "conspiração organizada pelo Ocidente ~ravés' desenvolvimento, onde a economia política passou a constituir- LEIT~SCRfTICns
()
do programa neoliberal económico-financeiro "correctiv';" e se numa instância crítica privilegiada e no barómetro de o
de "reajustamento estrutural'', o autor, nesta obra, recorre- ::r:
aferição real da acção governativa. "Bom Governo passa a ser
()
se dos fundamentos teóricos da "liberdade" defendida pelos aquele que respeita o mercado livre( ... ), mantém uma taxa de o
3:
clássicos do neoliberalismo Friederich Hayek e Milton crescimento satisfatória, um poder de compra em expansão, ltj

Friedman e seus críticos Michael Foucault, Byung-Chul uma balança de pagamentos favorável." (Citando M. Foucault ~t<:
~

Han e Severino E. Ngoenha. Assim, o autor, com eloquência, em O Nascimento da Biopolítica). O mercado, torna-se assim na Li
1-j
argumenta o processo de focalização da liberdade no indivíduo instância e princípio do novo regime de veridicação. O Estado t:J
. . '
pnme1ro através da recusa de espaço à liberdade do sujeito de direito neoliberal, promovido pelo neoliberalismo, não
colectivo (povos, nações) e depois, radicalizando o conceito de se compadece com esquemas de corrupção que permitam às <:
CD
liberdade individual, no neoliberalismo, com fundamenta vital ti
classes médias, promover a acumulação primitiva do capital tf.l
1-'·
da liberdade económica. E, por essa via, Hayek e Friedman, saqueando o erário publico. o
::i
defendem a intocabilidade da propriedade privada e reservam
Com discernimento e acuidade, o autor sugere para o
para o Estado moderno, como razão existencial única, 0 o
este bom debate sobre a nossa realidade sócio-política e
papel de garante daquela máxima. Deste modo, a liberdade 1-'
económica actual, fundamentada nas críticas alternativas ao
económica, no neoliberalismo, constitui-se no alicerce o
neoliberalismo, a pertinência de observarmos na nossa reflexão. -li
a importância do dinheiro na actualidade contemporânea.
Moçambicana e utiliza a economia como inst~ncia de
Para tanto socorre-se dum postulado feito por P. Slotedijk,
avaliação do papel de Estado na sociedade Moçambicana.
em Palácio de Cristal, cito "O neoliberalismo quebrou a
questão política da divisão entre a esquerda e a direita para O autor precisa também de convidar Byung-Chul Han
a questão económica entre devedores e credores. E o facto para rever 0 conceito de trabalho no Neoliberalismo. O
central da época moderna não é a terra que gira em volta do conceito de Empreendorismo, onde o homem passa a ser
sol, mas que o dinheiro gira à volta da Terra." Mais adiante, a sua própria empresa, ao juntar em si próprio, o capital, o
para estas Aulas Abertas de crítica do Neoliberalismo, o trabalho e 0 produto, é aqui revisitado por Byung-Chul
autor leva-nos a convivência com o M. Foucault e todo seu Han no contexto duma nova perspectiva Psicopolítica. Na
postulado filosófico definido pela biopolítica, caracterizando · · - d e Ha 11 "O Neoliberalismo transforma o cidadão
opmiao .. em
o papel do Estado no neoliberalismo e força a academia consumidor. A liberdade do cidadão cede ante a pass1v1dade
filosófica moçambicana a iluminar a compreensão entre do consumidor. A vontade, enquanto consumidor, não tem
a praxis das políticas sociais do governo e os postulados interesse pela política( ... ) A votande reage de forma passiva
da economia liberal. Esta abordagem, porém, Eão pode à política - como um consumidor, i.e., protestando, tal como
12
A "J.IDliRDADE" no Ní:OL!l!ERl\USMO
ser feita sem o concurso das críticas feitas por Foucault a ele perante a mercadoria( ... ) A sociedade actual é uma prova
LErrUllASCft[TlCtl.S

Friederich Hayek, o pai do NeoliberalismO, nas suas teorias de' que 0 homem tornado por completo trabalhador, não é
de luta contra o expansionismo do socialismo ("regimes de capaz de ter um tempo livre que não seja tempo de trabalh~.
servidão") após segunda guerra mundial, conceptualizadas A produtividade crescente cria, no entanto, cada vez n~ais
em Os Fundamentos da Liberdade, e definindo a liberdade liberdade. Mas esta não é usada para uma actividade superior,
como ''.A condição para que cada indivíduo possa assumir a nem para 0 ócio. É posta, antes, ao serviço da recuperação do
sua capacidade humana de pensar e avaliar, de escolher os trabalho ou do consumo. O animal laborans só conhece pausas,
seus próprios fins. A Liberdade, também, permite a criação mas não tranquilidade contemplativa. A dialéctica do senhor e
da riqueza material que se tornou distintiva das sociedades do escravo como dialéctica da liberdade só se consuma quando
que souberam preservá-la. O que nos foi prometido como supera 0 trabalho - quando tem presente o outro trabalho.
caminho para a Liberdade era, na verdade, o caminho Com este filósofo são passados em revista importantes
para a servidão". O autor, não pode ainda, deixar de fazer conceitos filosóficos, como, Sociedade de transparência,
menção, particular, ao Neoliberalismo Americano de Milton ditadura do dataismo, era de emoções livre para a compreensão
Friedman nas suas teorias que fundamentam o capitalismo da coerção de liberdade do indivíduo em tempos de
como liberdade económica e a titulo exemplificativo refere- Neoliberalismo. E, como alternativa crítica ao Neoliberalismo,
se ao discurso do Primeiro-ministro sobre a dívida Externa 0 autor convida-nos para o debate apresentado os fundamentos
José P. Casriano

do ultraliberalismo de Severino E. N goenha, oferecendo uma


nova alternativa de interpretação do neoliberalismo, definida
por ele como intercultura. As aplicações destes conceitos e
teorias no contexto africano contemporâneo, ilustra o impacto
da mundialização do Neoliberalismo e convida o leitor a
experienciar a vivência conturbada das nossas sociedades e I
vidas, captadas com singularidade.

Esta não é uma obra para ficar na prateleira. É um


Um "Monstro" chamado Neoliberalismo
instrumento vigoroso de luta para reafirmação de nossa
cidadania e de repensar os caminhos do nosso desenvolvimento Vivi en el monstro,
sócio-político e económico. y le conozco en las entraiias.

(José Martí, em Nuestra América)

14• Nestas leituras destaco dois processos característicos deste 15


A "LIDERD>.DE" DO NF.OLlbERAUSMO

aparente "monstro" chamado neoliberalismo e que têm 1.f.ITUP.AS CRfTJÇ,\S

consequências directas na condição africana hoje. O primeiro


processo, seguindo a linha da biopolítica de Foucault, é
o aparecimento, desde os finais do século XIX, do homo
economicus; a economia torna-se a instância-mãe crítica e
vigilante da Política e fundamentadora do Direito. O segundo
processo, seguindo a linha da psicopolítica de Byung-Chul
Han, condicionou o aparecimento do Big Brother, derivando
este da mundialização das redes sociais por via da navegação
web; como consequências das redes, destacam-se aqui o
aparecimento de novos espaços públicos, a reconfiguração
(e até a restrição) dos espaços da liberdade individual assim
como o perecimento de utopias.
Estes dois processos tiveram como resultado final o que
chamarei dessu~ectivação. Ou seja, o desaparecimento contínuo
Um "Monstro" chamado Neolibr'"'lismo José P. Castiano

do sujeito histórico-revolucionário de engajamento social e críticas teóricas sobre este fenómeno? Em que medida a teoria
lutas. Esta "morte" do sujeito engajado pelo devir libertário sobre o neoliberalismo se aproxima e se distancia da praxis
pode ter sido de forma voluntária ou devido à força do capital política por ele inspirada ou em nome dele?
financeiro que, como um monstro real, fagocita todas utopias,
Estas são algumas das questões principais levantadas nas
reflactando-as a seu belo prazer.
últimas duas décadas por actores políticos e activistas sociais
José Martí em Nuestra America, na citação introdutória, em Moçambique. Nestes questionamentos encontram-se
referia-se a um "monstro" com uma cara concreta: a de uma também intelectuais moçambicanos. 2
América capitalista e expansionista dos finais do século
O 'trabalho' da filosofia tem sido, primordialmente,
XIX. Porém, este novo que aparece no século XX, chamado
perguntar-se sobre a essência dos fenómenos da natureza, da
neoliberalismo, provavelmente por estar a ser vivido como
sociedade e do pensamento, ou seja, sobre a sua gênese, as suas
"monstro", a maioria dos intelectuais africanos contenta-se
condições de existência e sobretudo sobre as possibilidades
em sentir a sua presença ameaçadora, sem ter a coragem de o
de sua inteligibilidade ou interpretação crítica. Repito, este
conhecer na sua essência. Todavia, para - e aqui quero deixar
é o trabalho da filosofia, para além da perplexidade inicial
16 clara, desde já, a minha posição - poder melhor combatê-lo
A"UBERDADF."DONF.OU8ERAllSMO
que espevita a curiosidade que lhe é intrínseca. Ao fazer 17
com alternativas não somente de interpretação, mas sobretudo LF.LTURASCRfTlC't.S

isso a filosofia desmistifica os fenómenos da natureza, da


de acção, impõe-se conhecer o monstro pela frente; isto é, na '
sociedade e elo pensamento. Ou seja, o trabalho da filosofia
sua gênese teórica. Não se combate a quem não se conhece.!
é exorcizar mitos que, em certos momentos da nossa
Não obstante à promessa de uma nova liberdade que o historicidade, se instalam na memória e consciência públicas
"monstro" nos vendeu logo desde o início da sua existência, menos avisadas. O neoliberalismo é um desses mitos que
em Moçambique hoje, em África em geral, e, mesmo no
Ocidente1, avolumam-se críticas ao modelo neoliberal de 2····No· f'6iúiii ·Mó'ZEFó' ·.:.: ·ie"áii'ià<lô ..em
2016 na Cidade de Maputo, onde
desenvolvimento. Este modelo parece, na retórica de muitos, participaram intelectuais, empresários, políticos, e~tudantes moçambic~nos
e portugueses - o modelo neoliberal de desenvolvnnento em Moçambique
ser a causa de todos males sociais e económicos dos países da esteve de novo no centro das discórdias. O programa Pontos de Vzstas da
periferia, sejam do dito Norte, sejam do dito Sul. STV ;ambém é' um exemplo de um permanente interrogar às "imposições"
atribuídas ao modelo neoliberal de desenvolvimento em Moçambique, embora
Convenhamos, alguém sabe ao certo o que é o neolibera- também h<~a foco nos actores políticos internos. Avolumaram-se trabalhos e
publicações que analisam o impacto social, eco?ómko, polí~ico e ambiental
lismo? Quem são os seus "pais" e o que escreveram exactamente? em consequência da entrada massiva das multmacionms mmera.doras e da
exploração do gás natural e do petróleo e outros recursos (madeira, p.e.). A
E talvez o mais importante, qual a possibilidade de exercer obra Sopa da Madrugada de Luíza Diogo descreve, en~re outros aspectos, a
penetração do Banco Mundial e do FMI em Moçambique, centrando-se na
"i · · ''pàísêii ~ônio 'f>üitiigà(Gi:êêíà;i.tspànha e outros estão no centro da produção privatização e morte da indústria do Caju ("caso Caju") e nas. negociaçõesyara
crítica contra o que chamam por modelo neoliberal de desenvolvimento, o "perdão" da dívida pelo Clube de Pans. O Curandezm, a revista moçambicana
estando Alemanha no centro das suas críticas. de filosofia, dedicou o seu primeiro número ao Neohberahsmo.
José P. Castiano
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo

Evidentemente que a minha posição inicial - porém que


se instalou no debate público moçambicano devido à sua
veio a mostrar-se ser somente hipotética - a par~i~ da ;ual
suposta "monstruosidade". O neoliberalismo tornou-se
fiz a releitura dos textos do neoliberalismo aqui. mclmd~s
um Gespenst (fantasma, do alemão) a quem se atribui todas
(Hayek e Friedaman) e dos seus críticos filosóficos (o frances
possíveis aparições mal-explicadas.
Michel Foucault, o alemão-sul-coreano Byung-Chul Ha.n e o
Paralelamente, a filosofia é e deve ser um pensamento moçambicano Severino E. Ngoenha), estava (pré)determm~da
engajado por uma causa. Somente interpretando os fenómenos pelo contexto do debate público em Moçambique e. Áfn~a.
ela fica oca; para ganhar sentido e significado, a filosofia deve Neste debate público actual, Moçambique e a Áf~ica '~ao,
ter uma causa pela qual se engaja. Consequentemente, uma das . · d tiva de "vítimas da
habitualmente, vistas a partir a perspec
prerrogativas actuais da filosofia moçambicana deve ser engajar- conspiração organizada pelo Ocid~nte ~través .do" progra-
se em desmistificar a suposta monstruosidade por, trás do dito ma neoliberal económico-financeiro correctivo e de
modelo neoliberal de desenvolvimento. A sua monstruosidade "reajustamento estrutural". É que o neolibera;i~mo, seg~ndo
assusta mais por estar para além da possibilidade de imaginarmos Peter Sloterdijk teria eliminado da cena pohtica mundial a
um futuro diferente do neoliberalismo. A sua crítica chegou a um divisão entre a direita e a esquerda para restar apenas, no seu 19
LEJTURJ\SCRITICAS

18 tal ponto que somente se imagina enquanto oposição e p-ouco ou lugar, a divisão entre credores e devedores.
nada como alternativa. Este aparente monstro parece manietar d 'vida. a recente experiência africana com o
Sem u ' d d't
a nossa capacidade de pensar um futuro diferente. Parece .b l'
neo li era ismo e' ·determinada pelas medidas o i o
estarmos quase perante a derrota da capacidade de pensai~ sem reajustamento estrutural dos anos oitenta do século XX. Esta
que seja pela mesma via que o próprio neoliberalismo oferece. pré-posição foi determinante para que, de a~gum~ forma, o
Tornou-se dificil inventar palavras e utopias que possam ir para . . lhar meu para a dita agenda do neoliberalismo fosse
primeiro o " . r "
além deste modelo. sob a pressuposição de tratar-se de um projecto capita i~ta
't' e práticas
Por isso, achei esta ser uma ocasião intelectualmente e ""impena . l'ista" que determina o rumo d as pol i icas .
frutífera para convidar o leitor a envolver-se, nas páginas de desenvolvimento nos nossos países; e sobretu~o, o ~ais
seguintes, em leituras críticas sobre os fundamentos da dramático, há o pressuposto de que o "monstro" neohberah~mo
. . d b te público as opções ou alternativas
"liberdade" do neoliberalismo. Esta decisão da ocasião justifica- condic10na, no e a ' .
economia política e na filosofia social em
se sobretudo pelo fracasso da promessa da nova liberdade que se b uscam na .
articulada pelos intelectuais "clássicos" do neoliberalismo. Moçambique e por toda África. Se quisermos, .trata-se ~qm
, . - . r rmada pela perspectiva filosofica
Estas leituras, acredito, ficam ainda mais iluminadas se forem de uma pre-posiçao 11110 . . . .
libertária e por forte influência das reiminiscências ideológicas
feitas adicionalmente ao corrente debate público, com base
sobretudo em textos fundantes do neoliberalismo. herdadas do marxismo-leninismo.
José P. Casciano
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo

A "experiência" que tive na leitura dos clássicos revelou- '!vada. Ou seja, a liberdade económica deixou de ser somente
se constrangedora e desoladora, porém vivificante. E suspeito iberdade fundamental e o alicerce de outros tipos de
que o leitor desprevenido sobre estes temas faça a mesma dades (de certa forma o liberalismo já defendia isso), para
experiência durante as leituras dos clássicos: o "monstro" a defesa passar a ser quase a única razão de ser do Estado
inicial do neoliberalismo, aquele que é visto como o "culpado" erno .
pelas nossas desgraças nos debates comuns entre africanos e ., quando chega-se ao ponto de conceber a defesa da
nas redes sociais, deixou, paulatinamente, de sê-lo. O "monstro" . dade económica como o fundamento principal da razão do
foi-se des-construindo pelas entrafías das leituras dos seus 'do moderno, abandona-se .o campo da economia política
textos. O gigante monstruoso e atroz, chamado neoliberalismo, ,,para entrar-se no campo da filosofia política e social.
começou a perecer em cada página dos clássicos, para dar lugar a ajuda de Habermas (referindo-se a Hegel), iremos ver
a "defensores da liberdade". Os clássicos apareceram, cada vez .Foucault transforma o neoliberalismo num problema
mais, como defensores da liberdade perante os perigos da sua Íico. Ou seja, na busca da possibilidade e necessidade da
usurpação pelos estados modernos ocidentais, aparentemente J~entação desta nova razão do Estado moderno.
democráticos. Numa palavra: constatei, aos poucos-~ a partir 21
20 que teria incomodado aos estados e políticos africanos LF.rrURA.~ CRÍTICAS
/l •tlBERDAOE" DO NEOL.fDEll.AhSMO das leituras de textos que aqui se apresentam, que o essencial
~pção teórica que fizeram do neoliberalismo? Porque é
do neoliberalismo reside no facto de ter radicalizado o conceito
. eoliberalismo foi vivenciado como um "monstro" que
liberdade.
or suas políticas e pouco interesse ter-se mostrado
A radicalização do conceito geral liberdade numa liberdade ar o monstro a partir da su<;i. própria gênese e
específica económica pelo neoliberalismo decorre em duas •.• Porquê é que os modelos de desenvolvimento que
perspectivas: Primeiro por via da individualização do sujeito ónaram com o neoliberalismo foram recebidos com
da liberdade: ao cidadão individual não se deve tocar por estar :Ôstilidade, não somente por políticos africanos, mas
investido de mais direitos que deveres perante a sociedade. .dentemente também por intelectuais africanos?
O liberalismo inicial admitia a possibilidade da liberdade do :taria por trás da hostilidade e da fúria política que
sujeito colectivo (povo, nações, etc.); o neoliberalismo põe o nomes e adjectivos como "intervenção estrangeira",
indivíduo como o exclusivo portador da liberdade. A segunda .· s imperialistas", "estratégias anti-africanas",
perspectiva da radicalização reside no facto de os clássicos do desenvolvimento africano"? Enfim, porquê
do neoliberalismo, eventualmente mais no caso de Friedman intelectuais moçambicanos não optaram (ainda)
do que Hayek, terem procurado fundamentar, quase com crítica teórica do neoliberalismo, concentrando-se,
um fundamentalismo político, a liberdade individual a partir . ente ao esperado, por uma crítica às consequências
da liberdade económica e a intocabilidade da propriedade
José P. Castiano
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo

práticas dos estados neoliberais? Desculpamos os teóricos e concentrou-se na esfera mais susceptível da administração e
culpamos os praticantes do neoliberalismo? da gestão estatal, que é a economia. A liberdade política e a
prosperidade total seriam resultados implícitos da liberdade
Achei, deveras, que estas perguntas, muito curiosas para
económica de cada cidadão individualmente, na óptica do
mim logo no início das leituras sobre o neoliberalismo
' neoliberalismo.
mereciam uma análise que iniciasse a partir dos seus
fundamentos. No entanto, a resposta a elas todas apresentou- Senão vejamos esta citação de Hayek retirada do seu livro
se "clara e distinta", uma vez terminadas as leituras. · Os Fundamentos da Liberdade:
A liberdade ou a falta de liberdade dos indivíduos
Há um provérbio, do qual não me lembro o autor e nem
não depende da gama de escolhas, mas da possibilidade
onde lí, que diz mais ou menos assim: se não queres deixar
de odiar o monstro (ou o teu "chefe"), não te sentes nunca de determinar sua conduta de acordo com as suas
na sua cadeira e nem convivas com ele em ambiente privado. pretensões correntes, ou da existência de alguém
cujo poder lhe permite manipular as condições de
Acho que este conselho visa evitar que passes a gostar do
modo a impor àqueles a sua vontade. Assim, liberdade
"trono" dele quando te sentares na cadeira ("afinal é possível 23
22 eu também sentar-me aqui!"); ou, no segundo caso, para-evitar pressupõe que o indivíduo tenha assegurada l.E.ITURAS CRITICJ\S

que passes a "ver" o lado humano do teu chefe-monstro ("afinal uma esfera privada, que existe certo conjunto de
3

é possível gostar dele: ele é tão humano!"). Simultaneamente, circunstâncias no qual outros não possam interferir.
este provérbio fez com que me recordasse da frase de José Esta "esfera privada" de que se refere Hayek é a economia.
Martí, o intelelectual cubano, que escreveu em NuestraAmérica: Os governos devem governar por conta da liberdade
"Vivi en el monstro, y le conozco en las entraíias". O "monstro" a económica dos indivíduos.
que ele se refere são os Estados Unidos da América, onde ele Com esta radicalização, a economia política tornou-se
escreveu uma grande parte da sua obra e a quem cunhou por
uma instância crítica a partir da qual começou a avaliar-se
"imperialismo yanqué'.
qualquer governação africana: tem dívidas públicas? Como
De facto, com as leituras, não "descobri" um monstro está distribuído o pacote financeiro? Qual é o rendimento per
'
senão a razão da hostilidade contra a suposta monstruosidade capita? Quão forte é a moeda nacional? etc. Respostas positivas
atribuída ao chamado modelo de desenvolvimento neoliberal. ou negativas a estas questões levam a classificar os governos
E a razão está por trás da sua essência originária: O facto de africanos como "bons" ou "maus". Mais do que os Direitos
o neoliberalismo ter radicalizado a protecção da liberdade Humanos, o que se tornou critério real da acção governativa,
do indivíduo defendendo-a teoricamente contra a agressão
totalitarista dos estados e governos. Esta "defesa" do indivíduo 3·.. 'i'!ay~i~,' 'F. '(i983fo; 'F'úiidà.metÍt~s· da Liberdade. Editora Versão. São Paulo,
Brasil. p. 6.
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo José P. Castiano

o ,"critério de veridicação" (Foucault), nos países africanos nossos políticos, na sua maioria, estavam pouco dispostos
foi .º grau do cumprimento das medidas de reestruturação e a pagar: o fim da corrupção e de esquemas estatais para
reajustamento económico inspiradas mais no neoliberalismo conseguir para que a classe média tivesse acesso facilitado
do modelo americano (o do "empresário de si mesmo" ou à "acumulação primitiva" do capital. De facto, por esta via
empreendedorismo) do que o alemão (o do Rechtsstaat ou "alemã", neoliberalismo significaria um jogo de empresas
Ordoliberalismus), como iremos notar nas leituras no capítulo reguladas por um quadro jurídico-institucional garantido pelo
~obre Foucault em particular. Nos diversos rankings mundiais Estado, e cuja regra seria o não-controlo do jogo económico
mteressa pouco o grau das medidas sociais de um Governo e desencorajar à formação de monopólios nos mercados
africano, senão a sua balança de pagamentos. nacionais. Então, também por esta via alemã, espreitava um
Ma~ mai~ do que isso, com Foucault ficamos a saber que grande potencial de inviabilização ao "desenvolvimento" da
o ne~hberahsmo, enquanto teoria, substituiu, nos tempos classe média africana; porque a condição para ela endinheirar-
actuais, a teoria crítica. Esta havia sido concebida pela Escola se seria o beneplácito, o (des)controlo económico, dos estados
de Franlifurt como crítica da razão pois esta podia tornar- africanos. Não havia possibilidade e nem conveniência
se "instrumental" ou "negativa" ou, poderia mesmo;-cair no possível, por esta via, de abraços carinhosos ao neoliberalismo
A "UBf.KOAl>f." DO NWUllERAJISMO
25
se~- contrário, a "irracionalidade". Os estados e· governos na vertente alemã. l.l!ITURAS CRITICAS

~fn.canos passaram a ser avaliados, mais directamente do que Em suma, pelo facto de o neoliberalismo ter nascido, pelo
mdirectamente, por critérios desenhados pelo neoliberalismo menos em Hayek e em Friedman, no contexto de crítica ao
na sua versão americana. Isto equivale dizer que a forma nacional-socialismo (nazismo) alemão e ao modelo soviético
como se comportam perante a economia e as finanças e como do socialismo, isto é, como um apelo contra regimes de
tratam os seus cidadãos da classe média de empresários e servidão, obrigou (\ repensar-se, na escala mundial, sobre a
"empreendedores", passou a ser o cardápio do comportamento possibilidade do retorno ao totalitarismo dos governos após
e das decisões políticas dos estados africanos. a segunda guerra mundial. Obrigou também, ainda à escala
No que diz respeito ao modelo alemão do neoliberalismo mundial, a repensar-se sobre o papel do Estado, sobre a forma
parece que este assustaria mais aos nossos governos africanos.' de conduzir a política, sobre as leis aprovadas e sobretudo sobre
Foucault escreve em O Nascimento da Bio1>olftica·
r " se e'
....
o sistema económico na sua totalidade. Poderíamos dizer que
ver~a~e que há um modelo alemão que assusta( ... ) não é( ... ) 0 ó neoliberalismo introduziu o paradigma da problematização
Polzzezstaat. É o Estado de Direito". total do papel, das funções e até mesmo da essência do Estado
moderno em África. É natural que este conjunto de "obrigações
Pois, a implementação de um Estado de Direito neoliberal
de cariz alemão nos países africanos, teria um preço que os para pensar" tenham soado, aos ouvidos atentos dos estados
africanos, como "ingerências nos assuntos nacionais e contra
José P. Castiano
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo

a soberania nacional" dado que eles próprios estavam ainda é ajudado pelo propagandista e ideólogo do regime, o porco
num processo de tentar "escangalhar" os aparelhos do Estado Tagarela.
colonial, este ainda recente, mantido alive and well por sua Bola-de-Neve, um porco que na realidade representa
própria conta. Trotsky, desapareceu perseguido ideologicamente, para depois
Por fim, para ilustrar a gênese do neoliberalismo ter sido incriminado como o grande inimigo e criminoso
enquanto possibilidade de uma teoria crítica motivada pelo por conta das desgraças que iam surgindo na "república
temor de um retorno a regimes de servidão e autocráticos independente" Quinta dos Porcos.
que espreitam a Europa depois da II guerra mundial, serve As desgraças iniciaram porque o porco Napoleão,
o livro-sátira de George Orwell A Quinta dos Animais4' ajudado pelo seu acólito porco Tagarela, foi alterando os sete
(sobre este autor voltaremos ainda mais tarde no capítulo do mandamentos 5 • Por exemplo, ao 7º mandamento acrescentou-
neoliberalismo enquanto psicopolítica). A obra foi publicada
se "...mas alguns são mais iguais que os outros"; ao 6º, que
em 194,5, portanto no fim da Guerra, sob o título original proíbe que um animal seja morto por um outro, acrescentou-
Animal Farm. Na primeira tradução em português recebeu o se "... sem motivo"·, ou ainda ao 5º, que proíbe o consumo do
título O Porco Triunfante e na segunda edição O Tr_iun:fo dos 27
26 álcool pelos animais da Quinta, acrescentou-se "... em excesso", LE!l'UllASCRIT!CAS

Porcos. etc. Assim, a declaração inicial de uma democracia popular


A "quinta dos animais'', de facto, é um não-lugar criado baseada na igualdade dos cidadãos foi sendo substituída,
por Orwell para referir-se ao Estado da União Soviética, cuja aos poucos, por várias excepções das quais somente poucos
história, desde a proclamação da sua "independência" até à tinham 0 poder de violar: a pequena elite em torno do porco
instauração de uma autocracia chefiada por Napoleão (porco- Napoleão.
ditador ), é narrada como tendo sido uma grande decepção: A culpa de toda esta desgraça que se abate sobre os animais
os porcos da Quinta do Sr. Reis tinham condµzido com da revolução foi 0 seu início. Este foi marcado pelo "sonho" do
sucesso uma "revolução" dos animais contra os humanos sem, porco Major de ar sábio e benevolente - um varrão da raça
contudo, jamais terem experimentado a liberdade "colectiva Middle Whité' - proferido em forma de um discurso eloquente
e individual" então prometida. Napoleão, depois de ter
derrubado o Sr. Reis - o proprietário da Quinta do Infantado .. '~1· · · ·: ·1·0·,:tôêias· 'às. ériatú~as .q..lie..caminham sobre duas pernas são nossas
...... E
6 1 os. . b t' n
· · · . 2º Todas as criaturas que caminham so re quatro patas ou que e1
1mm1gas, ºN h · 1
-, mudou o nome da quinta. Ele foi violando, aos poucos, os asas são nossas aliadas; 3º Nenhum animal usará roupas; 4 en. um amma
dormirá na cama; 5° Nenhum animal beberá .ál~ool; 6° Nenhum ammal matará
sete mandamentos acordados numa assembleia geral onde ele
outro animal e 7º Os animais são todos iguais. .
própio foi eleito. Neste empreendimento, o porco Napoleão 6
Uma espécie de porco especializado na reprodu~ão por ~rescer depres.sa e p1 o-
duzir carne suculenta. Dele .se produzem o mais ap~eciado bacon: Diz-se qu~
4.... cir;;.;éii,"G.". Uúfrif 'A" QÜznt~· 'jü"s' Ánimais.
0

Cardume Editores. Matosinhos, era uma alimentação predilecta do imperador ppones e que, por isso, este foi
Portugal. ao ponto de erigir uma estátua deste suíno no Japão.
José P. Castiano
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo

capaz até de provocar inv~ja ao I lzave a dreamde Martin Luther seu inimigo mortal, o Homem. Uma fórmula simplificada
King Jr. O discurso da revolução tinha duas características: que parece ter tido o seu auge pelo facto de o Leste europeu
denunciar a opressão 7 e mostrar o Homem como um animal pintar o seu inimigo mortal - o capitalismo e o imperialismo
inútil e opressor8 • Neste discurso, o homem é definido como ocidental. Oriente amigo, Ocidente inimigo, digo eu. Orwell
"... a única criatura que consome sem produzír" 9 ; dado que, pretende demonstrar que a Revolução Russa, que se vendia
apesar de não pôr ovos como as galinhas, dar leite como a a si própria como zona-modelo para a libertação total de
vaca, ter força suficiente para puxar o arado como o cavalo o todo o proletariado mundial, escondia uma demagogia e uma
faz, ou caçar como o cão, o Homem apodera-se de tudo isto ditadura por baixo da ideologia marxista.
e comporta-se como se fosse o senhor de todos os animais. O ambiente intelectual da Europa pós-guerra,
O porco Major declara com a eloquência necessária: ''Nunca particularmente na Inglaterra, estava fértil para os intelectuais
esqueçam a vossa inimizade para com o Homem e todos os seus que viam como sua obrigação alertar para os novos ventos da
usos e costumd' (it. meu) 1º. Os usos e costumes referiam-se ao servidão vindos do Leste, mas que se vendiam como cordeiro.
viver numa casa, usar roupas, beber álcool, fumar tabaco e Era preciso monstrar o lobo por baixo da pele do cordeiro.
gostar de dinheiro para fazer comércio com o Homem,_porque Esta face anti-autoritária que está na génese das correntes 29
28 lF.ITURAS CRITICAS

"todos os hábitos do Homem são perverso/>" 11 • neoliberais do pós-guerra, parece ter sido "escondida" pela
E o "povo" ia decorando que "quatro patas bom, duas literatura (filosófica) de esquerda. Impõe-se, por isso e nas
pernas mau". Uma fórmula simplificada para reconhecer o circunstâncias em que nos encontramos - isto é, de uma
generalizada diabolização do neoliberalismo por parte de todo
7.... Ass.iiii prêiêiàm~ opÓrcó' .M~)ór s'óbre a situação dos animais: "Pois bem, cama- intelectual que se julgue sensato hoje em África -desmistificar
radas, de que é feita esta nossa vida?( ... ) nascemos, dão-nos comida suficiente e deconstruir o diabo neoliberalismo a partir da sua génese.
apenas para não morrermos de inanição, e aqueles de entre nós capazes de
trabalhar veem-se obrigados a consumir todas as suas energias.numa labuta Esta foi a primeira intenção destas aulas abertas. No entanto,
penosa; por fim, mal deixamos de ser úteis, trucidam-nos com a mais hedionda não se trata de parar por aí. Contudo este é um passo necessário
das crueldades. N';nhum animal da Inglaterra sabe o que é ser feliz ou sequer
ter descanso depois de completar o primeiro ano de 1·ida. Nenhum animal na para separar a teoria da prática inspirada pelo neoliberalismo.
Inglaterra é livre. A vida dos animais é feita de infelicidade e escravidão: eis a
verdade nua e crua". (Idem, p. 10) O texto que se segue, baseia-se na transcrição de seis
8 A causa das desgraças dos animais é vista pelo porco Major como sendo cul-
~a do Homem. Pois, a dado .passo, ele acusa os seres humanos de parasitas:
Aulas Abertas ocorridas em Abril do ano 201 7 na Universidade
... quase tudo o que produzimos (... )nos é roubado pelos seres humanos. Aí Pedagógica. Às aulas atenderam, em média diária, 30
reside, camaradas, a resposta a todos os nossos problemas. Tudo se resume a
uma só resposta-o Homem. O Homem é o nosso único inimigo genuíno. Bas- estudantes. Na sua maioria frequentavam o programa de
ta que o homem desapareça e a causa fulcral da fome e do trabalho excessivo doutoramento em Filosofia. Outros vieram da Universidade
será abolida para sempre." (Idem, p. 11)
9 Ibidem. p. I J. Eduardo Mondlane e uma boa parte foram docentes-colegas.
10 Ibidem. p. 11.
11 Ibidem. p. 14.
José P. Casciano
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo

Também inscreveram-se assistentes de fora da universidade. havia pegado a moda de discutir o neoliberalismo a partir de
Uma menção especial deve ser dada ao Pedro Luemba Balo, uma perspectiva teórica (e não somente pelas consequências).
um antigo estudante de mestrado que viera de Angola Minhas senhoras, meus senhores: eis as minhas leituras
exclusivamente para estas aulas. críticas à "liberdade" do e no neoliberalismo. O "do" expressa
Estas aulas abertas foram a forma de a filosofia "sair da sala a sua teorização; o "no" refere-se às suas "monstruosas"
de aulas" sem sair da universidade, todavia abordando temas práticas. E, como sempre - e isto aconteceu com o marxismo
actuais e de interesse que vão para além do filosófico, e não _ quando uma teoria política, pensada como tal, tenta ser
podia ser de outra forma, porém polémicos na sua interpretação. implementada na prática como ela originalmente é, ou partes
Depois destas aulas desdobrei-me em outras aulas abertas, dela corre o risco de transformar-se ela própria num perigo às
'
liberdades, particularmente à liberdade de expressão porque,
como "convidado". Neste sentido fui para Beira, Quelimane,
Tete, Chimoio, Maxixe, Xai-Xai e, por via do filósofo Adriano resultando disso, a sociedade pinta-se de uma só côr; torna-
Rufino, na Universidade São Tomás. Nestes locais recebi críticas se um caminho para a servidão. - como nos alertou Hayek.
e muitas questões que viriam a enriquecer este o final. Também No caso do neoliberalismo, o perigo de estar-se perante uma
30 muitas ideias sobre o neoliberalismo em Moçambique-ficaram sociedade do "homem unidimensional", na qual uma única 31
LFJTUllASCll!TICAS

pelo caminho. O interesse mostrado em todos os lugares era ideologia de mercado atravessa a governação e as instituições
12
muito. Tornou-se, depois, dificil responder a todas inquietações "democráticas" - como dizia Herbert Marcuse - permanece,
levantadas nestes encontros. Na Beira, por exemplo, tivemos somente que, desta vez e do meu ponto de vista, sem côr
que encontrar uma "sala maior" para poder albergar a todos. nenhuma. Não se sabe bem o seu destino.
Infelizmente também não couberam todos os interessados. Muitos-principalmente os que Théophile Obenga chamou
O nascimento de grupos de leitura sobre o neoliberalismo, "africanistas eurocêntricos" 13 -poderão pensar ainda que fazer
particularmente na Beira e em Quelimane, constitui um filosofia africana hoje é dedicar-se aos temas tradicionalistas
outro resultado destas aulas. Na Beira esteve à frente do (
0
que é diferente dizer "tradicionais") tais como feitiçaria,
grupo de estudo um jovem filósofo Tiago Tendai. No caso de curandeirismo, provérbios, magia, etc. Esse tempo já se foi.
Quelimane orientei o início do grupo de leituras formado por Há novos mitos que afectam a filosofia africana. São mitos
jovens filósofos sobre a obra-prima de Foucault, O Nascimento modernos, dos quais o neoliberalismo faz parte. Pois, como
da Biopolítica. O filósofo Eugénio Corôa, jovem com muito escreví já no livro Em Busca da Intersubjectivação: o projecto
futuro ainda, fez uma boa introdução à obra. Surpreendeu- filosofia africana contempla a deconstrução e a construção.
me a sua definição de biopolítica. Retorno a esta definição ao
"j2' · ·MárcÚse)-i:: '( i 999):' Ei'Hàn1b1°.ê ·u;,,i·'dimensional. Editoria Ariel. Barcelona:
longo do texto. Por agora, porém, o mais importante é que já Obenga, T. (2013 ): O Sentido da Luta contra o Ajrzcanzsmo Eurocentrzsta. Edições
13
Pedago. Luanda, Angola.
José P. Castiano
Um "Monstro" chamado Neoliberalismo

A deconstrução vai-se impor para sempre porque o discurso


sobre África nasce da confrontação com a Europa (Masolo)
e é intrisecamente intercultural (Ngoenha). Este projecto de
leituras críticas sobre o neoliberalismo faz parte dos esforços
de deconstrução do discurso do Ocidente sobre a África. O II
projecto Inter-Munthu, título do livro que segue, faz parte
dos esforços de 'construção' de novas aberturas conceptuais e
temáticas para a filosofia africana. "Mau Debate" versus "Bom Debate" sobre o
Neoliberalismo
O livro termina com a constatação de que o neoliberalismo
tem como efeito a dessubjectivação do sujeito. Quer dizer, na
O neoliberalismo quebrou a questão política
condição neoliberal "desaparece" o sujeito histórico. Mesmo
da divisão entre a esquerda e a direita
quando se trata do aparente ressurgimento das "massas" de para a questão económica entre
demonstrantes - o Magreb inaugurou, vimos no Wall Street devedores e credores.
32 - o sujeito fica engolido. No dia seguinte às "manifestações" E ofacto central da época moderna 33
U.ITURASCRITIC".AS
A "UBP.RDAIJJ:." 001'11:.0IJBBRAJJSMO

já não haverá quem fale por elas. O próximo Inter-Munthu, não é a terra que gira em volta do so4
ora em anúncio, irá perseguir a gênese e as utopias do sujeito mas que o dinheiro gira à volta da Terra.
africano, numa continuidade da busca pelo sujei~o dos tempos
neoliberais a partir da condição pós-libertária em África. p=>. Slotedijk, em Palácio de Crista0
De facto, 0 neoliberalismo, desde que se expandiu como
modelo de desenvolvimento pelo mundo inteiro, "quebrou a
questão política da esquerda e direita" para impor-se como
uma questão económica da divisão entre os devedores e os
credores, dentro de cada país e também na relação entre os
países, independentemente de pertencerem ao chamado Norte
"desenvolvido" ou ao Sul "subdesenvolvido". Esta parece ser
uma das mudanças fundamentais da nossa época quando
discutimos sobre 0 novo carácter da política no nosso século.
Tivemos uma época em que pertencer à esquerda ou à
direita era uma linha divisória em termos de opções políticas;
"Mau Debate" versus "Bom Debare" sobre o Neoliberalismo José P. Castiano

entretanto, agora estamos divididos entre devedores e Então isso significa que "dinheiro" deveria ser um assunto
credores; isto levou Peter Sloterdijk a afirmar, no seu livro muito actual; não estando a sê-lo, esta lacuna foi uma das
Palácio de Crista~ que "o facto central da época moderna motivações para conceber estas leituras, embora, como iremos
contemporânea não é que a terra gira em torno do sol, mas ver, não seja a principal.
que ~ dinheiro gira a volta da terra" 1'1', e eu acrescentei, num E vou citar, ainda como nota de introdução, uma
tom Jocoso: ou que todo mundo gira em torno de dinheiro.
entrevista publicada no jornal Savana do dia 23 de Março
De facto, o dinheiro tornou-se uma questão importante na de 2016 (p.2). No referido artigo, João Pereira, na abertura
nossa época. Este facto levou também a que Milton Friedman, duma Conferência sobre Economia e Governação em Moçambique
m_na das fi~uras que vamos conviver com ela ao longo destas interpela os moçambicanos como sendo "accionistas" do
le1tu~as, citando por sua vez a Clemenceau, afirmasse o seu Estado nos seguintes termos: "estamos a defender a
se~umte: "O dinheiro é um assunto demasiado sério para ser nossa empresa pública chamada Estado; todos devemos
deixado (somente) aos homens dos bancos centrais"].'. defender esta empresa onde todos nós somos accionistas".
Ou seja, sobre o dinheiro temos que falar todos. Todavia, Ou seja, como aqui está evidente, o Estado vai sendo cada
f\"UllEROf\DE"DOlil!OllhfllAl!SMO p_aradoxalmente, se forem olhar para todo 0 curtículo do vez mais concebido a partir da sua perspectiva económica 35
LE!TIJRASCR/TIC/\S

sistema de educação de Moçambique, desde escola primária ou economicista. Por isso, podemos afirmar que o assunto
até ao ensino universitário, não irão encontrar nenhum "dinheiro" começou a ser de tal índole importante, que
capítulo sobre "dinheiro". Parece ser tabu falar sobre 0 quanto ultrapassa o escopo dos economistas ou dos banqueiros e
cada ~m de nós recebe, mesmo que seja em casa com o nosso dos financeiros; ele está transbordar para a esfera social e, já
parceiro ~u nossa parceira. Quando convidamos alguém agora, para um assunto filos1ifico.
par~ um Jantar, ~ega.teamos pagar a conta ou lutamos por Numa categorização rápida sobre as perspectivas em
paga-la. Então ha dois assuntos que no nosso de sistema de que se debate o "dinheiro" (economia), pude encontrar duas
educação não aparecem: um é o dinheiro e o outro é a morte. categorias ou chaves de abordagem ou questionamento. A
Na~~ralm~nte, por hoje vamos deixar a morte de lado porque primeira, chamaria por "chave restrita" e a segunda por "chave
euJa tratei dela num dos livros anterioresrn. ampla" 11 •

'j7···râ~a.ési:~·~átêg~~lzáÇã'ciºê!Oºêiebàt'éºéin torno da economia em "chefe restrita"


·i«i; .. s·!ÜtDêi:<lA.ijk P.' (~ôoà ); "i5~iit~ià. dd drist~l. Para uma Teoria da Globalização
R l '_ e "chave ampla" beneficiei-me na apresentação do livro A Financeirização do
g10 gua. Lisboa. p. 5. · eo Capitalismo em Portugal feita pelo professor José Reis na Universidade de
15 ~riedman, M. (2006): Capitalismo e Liberdade. Actual Clássicos da E . Coimbra (Livraria Almedina), no dia 2 de Março de 2016. Desta apresentação
01mbra,. Portugal. (orig. 1962 ). · conomia. também beneficiei as categorias de "má economia" e "boa economiaº', sobre
16 ~: ~:~~;~d:~~~i
o· ·
2~~ 5): 1:zdlosoU?fiPa AMifricana: da Sagacidade à Intersubjectivação-
ucai a . aputo.
as quais me refiro a seguir. O conteúdo das categorias é, porém, da minha
responsabilidade.
"Mau Debate" versus "Bom Debate" sobre o Neoliberalísmo José P. Castiano

À chave restrita correspondem questões ligadas à regulação ajude, à comunidade em que vive, a "ler" o dilúvio numéri~o
da economia, ao papel do Estado na economia, à protecção disparado pelo processo de "financeirização" da economia
social, ao direito ao trabalho e, finalmente, às questões da moçambicana. Observo na jovem nascente filosofia em
redistribuição da riqueza social e privada. Aliás, os pontos que Moçambique uma certa apatia ou mesmo aversão pela
mencionei estão, de facto, na dita agenda neoliberal, sobre a leitura de números, finanças e dos processos puramente
qual voltarei a falar mais adiante. Para já, chega dizer que é económicos. Ora, para participar neste amplo debate sobre
uma agenda que resume a necessidade de abordar a economia a "boa economia" o filósofo precisa de "gostar" manusear e
a partir de cinco pontos: a sua regulação, o papel do Estado, manipular os números e os dados estatísticos fornecidos pela
a questão da protecção social e possibilidade de um Estado economia e por instituições financeiras, especialmente os
social em Moçambique. Portanto, como eu dizia, esta é a chave bancos e os institutos de segurança social. Todavia, o filósofo
restrita segundo a qual nós iremos acompanhar estas leituras. deve saber "sair" do debate puramente economicista ao qual
0 neoliberalismo parece nos querer prender, e abstrair-se
Ao mesmo tempo, a nossa situação económica em
do campo da necessidade, dos números, das estatísticas p~ra
Moçambique obriga-nos a entrar nas discussões sobre a
36 poder passar para o campo da possibilidade ou das utopias.
A ·unl!ll.DAOB" DO NEOURER/\!ISMO economia através de duas perspectivas. Uma primeira, que eu 37
Porém, abstrair-se não deve significar distrair-se; e nem não léITURASCRfTlCAS

considero por um mau debate (ou "má economia"), oprime o


ter 0 domínio e conhecimento sobre os processos.
público (exceptuando os próprios economistas e banqueiros)
porque, precisamente por ser um mau debate, afoga-nos A argumentação filosófica, embora não se construa em
com números, com gráficos, com taxas de crescimento, de primeira mão na base de números, não deve porém ignorar
sobrevalorização ou de inflação da moeda e outros números e a dimensão quantitativa da economia que é sempre levantada
nos debates públicos. Esta dimensão é que nos dá a noção
dados complicados para uma pessoa comum. Este debate nos
de maioria e de minoria. E uma filosofia engajada não pode
manieta de tal sorte que uma participação activa do cidadão
abstrair-se, e muito menos distrair-se, de saber se está do lado
comum se torna impossível; nos manieta por conta das várias
da maioria ou das minorias no "uso público" que faz da razão,
perspectivas numéricas, quantitativas pouco acessíveis
como diz Kant; ºl! ainda ter a certeza se está do lado justo
para que um debate se torne público. Veja-se os relatórios
do assunto, 0 que não se deve confundir de estar do lado da
publicados pelos jornais sobre os lucros dos bancos, das
maioria ou da minoria.
agências seguradoras, do Instituto Nacional de Segurança
Social, etc. Por causa do dilúvio numérico, o público não No bom debate (ou "boa economia") - que considero ser
consegue participar. Por isso eu considero um mau debate. a "chave ampla" para penetrar no mundo da economia -
discutem-se ideias sobre as instituições económicas existentes
Não obstante, é preciso e até necessário que a filosofia
"Mau Debate" versus "Bom Debate" sobre o Neoliberalismo
José P. Castiano

e como influenciam na realização da felicidade, paz e harmonia


de que se deve ocupar? A resposta é: o Governo deve ocupar-
entre os moçambicanos, africanos e entre as pessoas do mundo
se da sociedade civil e preocupar-se por ela. No contexto
no geral. Este debate é bom porque nele discute-se o dinheiro,
do neoliberalismo a sociedade civil passa a ser um conceito
a financeirização pública e toda a economia a partir de uma
meramente de tecnologia governamental, Foucault chega à
perspectiva social, i.e. de providência às necessidades básicas
conclusão nesta lição. Surge assim a "política da sociedade"
elos moçambicanos e manutenção da paz social (igualdade
(Gesellschaftspolitik) que não se deve confundir com "políticas
conjugada com a equidade). Trata-se de um debate em que
sociais". De facto, as políticas sociaís são simples formas
procura entender-se como a economia de Moçambique nos
de aparição da sua essência enformada, i.e., dar forma à
facilita o acesso de forma igual e equitativa, por exemplo,
Gesellschaftspolitik. E é nesta dimensão da encruzilhada entre
à água; como ela nos facilita o acesso à habitação, à uma
a política social do Governo e a economia neoliberal ~ue a
educação para todos, etc. Em suma, tratar-se-içi. de um debate
filosofia moçambicana é chamada hoje a intervir. Estas leituras
democrático que nos levaria a uma perspectiva crítica ao modo
críticas ao neoliberalismo situam-se nesta encruzilhada.
como se conduz a economia. Este "bom debate", que nos falta,
haveria de abrir o dinheiro, as finanças e a economia a um Então, para iniciar esse processo de esclarecimento ou ele
38
A "U!ll!RDAOf." DO l'lf.OUBISllAIJSMO
debate realmente democrático, i.e., onde todos os particip;intes iluminação do debate, a partir de uma perspectiva mais ampla, 39
LEITURASCll.1TtCAS

entendem sobre o assunto e, sobretudo, estão medianamente e isto é da "chave ampla", do bom debate, da boa economia, ou
razoavelmente informados sobre os dados em jogo. seja duma perspectiva mais social e filosófica no contexto
moçambicano, eu escolhi autores que, na minha perspectiva,
Resumindo, temos em nosso poder duas opções para
colocaram as pedras fundamentais do que hoje é conhecido
debater a questão da economia: um;i é deixarmo-nos afogar
como correu tes (economicistas) neoliberais.
no dilúvio de números esgrimidos pelos economicistas
liberais; e a outra é debatermos a economia em função daquilo A escolha de autores clássicos do neoliberalismo está muito
que são os projectos de utopias disponíveis na sociedade aliada à metodologia que vou usar. Em primeiro lugar, nos
moçambicana e no continente africano (o que os economistas nossos programas de doutoramento a questão neoliberalismo
universitários coimbrenhos denominaram recentemente por é transversal. Nós temos vários campos disciplinares nos
"financeirização"). quais os estudantes abordam o neoliberalismo. Este tema
aborda-se não somente na filosofia, senão também em alguns
Na última lição, de 4 de Abril de 1979 e incluída n'O
cursos de mestrado; em ciências pedagógicas, só para dar um
Nascimento da Biopolítica, Foucault dedica-a à seguinte
exemplo, aborda-se cada vez mais; entretanto existem poucos
questão básica: Se o Governo não se deve ocupar da economia
fóruns onde o conceito neoliberalismo é equacionado de uma
(deixando-a, segundo os neoliberais, ao sector privado), então
forma crítica. Também abunda, nos debates, uma crítica cujo
José P. Castiano
"Mau Debate" versus "Bom Debate" sobre o Neoliberalismo

discurso é feito por cima de uma outra crítica. Escaceiam, fenómeno que estamos a viver desde os princípios do século
todavia, perspectivas críticas baseadas nas escrituras XX em Moçambique e em África em geral.
originais dos considerados "clássicos" (da economia política) Irei iniciar com Hayek abordando a sua veemente escrita
do neoliberalismo; baseadas nos que lançaram as pedras que alerta sobre a possibilidade do retorno da Europa,
para a sua compreensão teórica e filosófica, em particular de particularmente na Inglaterra, à "servidão" por conta da
Foucault. Portanto, o meu primeiro método de abordagem crescente aderência da esquerda e dos intelectuais pós-guerra
desta temática será uma leitura ou uma incursão digamos, ao socialismo. Vou abordar Friedman que escreveu Capitalismo
"cerrada", aos textos clássicos do neoliberalismo (claro, aqui e Liberdade; mas ele tem outro livro que escreveu com a esposa
escolhidos). quando percebeu que o primeiro não foi bem entendido. Neste
Também escolhi esta releitura porque já houve um livro ele aborda os aspectos do neoliberalismo no contexto
seminário doutoral sobre o neoliberalismo, inclusive um Americano.
dos números da Revista Moçambicana de Filosofia, O Com Foucault entro na perspectiva propriamente
Curandeiro, editada pela Escola Doutoral de Filosofia da filosófica da análise do neoliberalismo. Não podíamos entrar
Universidade Pedagógica, possui artigos dos estudantes n' O Nascimento da Biopolítica sem entrar para os livros com lEtTUR.ASCRfT!Cl\S
A "U&llRDA.DE" DO HF.OIJllBllAJLSMO
sobre o neoliberalismo; apesar de tudo isto, fui verificar que os quais Foucault dialoga. Ele dialoga sobre o neoliberalismo
os artigos inseridos naquela revista não fazem menção ou não americano e com Hayek; com este, porque a primeira
deixam entender ter havido uma leitura atenta aos "clássicos" preocupação dele neste livro é o neoliberalismo na Alemanha
do neoliberalismo por parte dos estudantes do doutoramento. que ele denomina por "ordoliberalismo"; e depois deste é que
A partir desta constatação, senti-me na obrigação de repensar se dedica ao neoliberalismo nos Estados Unidos.
o neoliberalismo a partir dos fundamentos, a partir do que os
A descoberta de foucault, que este faz a partir da leitura
clássicos mesmo escreveram sobre este tema para podermos
sobre o Neoliberalismo, e que nos vai interessar, está na
fazer um juízo ainda maior e ter direito de participar num bom
reviravolta sobre o que ele chama "governação biopolítica",
debate sobre uma boa economia. Para que as nossas críticas
conceito que veio a pregar na filosofia política. Para além
ao neoliberalismo possam ser responsáveis e, por esta via,
deste conceito, Foucault foi, no meu ponto de vista, o
deixem de ser levianas, como tem sido o caso de algumas a que
primeiro a encontrar e a esclarecer o potencial crítico dos
se assiste quando politizadas e veiculadas actualmente nos
textos neoliberais relativamente aos sistemas totalitários
mídeas e nas redes sociais, torna-se incontornável proceder a
produzidos pelos modernos (o nazismo e o socialismo "real").
uma leitura crítica feita em cima dos textos originais. E assim
Como iremos sublinhar adiante, ele defende a tese segundo a
poderemos ter uma compreensão abrangente em relação a este
"Mau Debate" versus "Bom Debate" sobre o Neoliberalismo José P. Castiano

qual, o neoliberalismo substitui a teoria crítica frankfurtiana como Ngoenha vai mais além do que procurar uma alternativa
na função de teoria crítica social e da acção governativa. de interpretação ao Neoliberalismo; de facto, ele busca uma
Enquanto esta se revoltou contra a instrumentalização da nova fundamentação da crítica africana ao neoliberalismo a
razão, os neoliberais levantam sérias críticas aos governos partir do que ele chama "intercultura".
com tendências autocráticas. É por isso que, na retórica
dos sistemas totalitários ou autoritários, o neoliberalismo é
pervertido numa espécie de "grande inimigo" (ou de "monstro"
na linha de José Martí) nessa batalha pela liberdade. Sobre
Foucault, vou também, a partir da perspectiva psicopolítica de
Byung-Chul Han, abordar o "grande erro" na análise que este
faz do neoliberalismo.
Depois, com base no livro do professor Severino N goenha,
Intercultura: uma Alternativa para a Governação Biopolítica?,
4•_2_ _ vou re-discutir os conceitos "neoliberalismo" que ele re-
, ___
no
A "l.1111'.RDADE:" Nl'.OLlllEl\AtlSMO
conceptualiza para "segundo liberalismo'' ou "ultraliberalismo".
Ngoenha chama, portanto, por ultraliberalismo ao
neoliberalismo por razões que podem ler por si mesmos.
Todavia, podemos especular que a razão principal seja: ele não
vê no neoliberalismo uma nova fundamentação da liberdade
no contexto a anti-servidão, senão porque "ultrapassa" o
liberalismo enquanto defesa da liberdade individual. Em
Ngoenha, nos vai interessar, todavia, como ele, nas pegadas
de Foucault, transforma o neoliberalismo num problema
filosófico a partir de uma perspectiva filosófica africana.
Acima de tudo, porém, N goenha coloca um desafio filosófico
superior à biopolítica de Foucault que consistiu em procurar
uma alternativa à interpretação biopolítica do neoliberalismo.
Ngoenha, neste livro, reinterpreta o neoliberalismo a partir
da possibilidade da interculturalidade. Iremos (de )monstrar
José P. Castiano

III

Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão

O que nos foi prometido


como caminho para a Liberdade
era, na verdade,
o caminho para a servidão!

(F. Hayek, em Fundamentos da Liberdade) 45


tEITURASCRlTlCAS

Vamos começar pelos textos de um dos que é considerado o


pai do neoliberalismo: Friederich Hayek. Este autor escreveu
vários livros e artigos na área da economia, cheios de números
e reflectindo sobre a inflacção e outros temas. Entretanto, não
é isso que nos interessa. Interessa-nos sim os textos nos quais
ele reflecte sobre a economia a partir duma posição social,
filosófica e política. Portanto, nos textos onde ele procura
re-fundamentar a liberdade num contexto pós-clássico do
liberalismo.
O primeiro livro com o qual nos deparamos, e por sinal o
mais conhecido dele, é O Caminho para a Servidão, publicado
em 1944, um ano antes do fim da II guerra mundial! A
essência deste livro reside no facto de ter sido uma acérrima
defesa da liberdade individual e um apelo à responsabilidade
que cada indivíduo tem em relação a evitar que o mundo caia,
Hayek e o f'erigo do Retorno à Servidão José P. Castiano

de novo, no totalitarismo. Ele argumenta em volta de um tipo possa assumir a sua capacidade humana de escolher os seus
de liberdade que apelida por "liberdade sem coerção". próprios fins"; e que a liberdade assim vista (i.e. como ausência
de coerção), tem um enorme valor instrumental dado que
O segundo livro do Hayek que usaremos, para completar
"permite a criação da riqueza material que se tornou distintiva
a nossa análise, chama-se Fundamentos da Liberdade publicado
das civilizações que souberam preservá-la". Em discurso
em 1960. Aliás, ele publica o Caminho da Servidão ainda na
directo: a liberdade é a base para a inovação tecnológica que
Inglaterra, embora Hayek seja, de origem, alemão-austríaco;
caracteriza o mercado livre.
ele emigra da sua terra natal fugindo da perseguição
hitleriana aos judeus na Áustria e Alemanha, para a O terceiro livro de Hayek, também importante, intitula-se
Inglaterra, onde adquire a sua nova cidadania. Depois de um Le~ Legislação e Liberdade foi publicado na última fase da sua
tempo é convidado para dar aulas nos Estados Unidos onde vida. Este é composto por três volumes, escritos ao longo de
publica Fundamentos da Liberdade. Este título não é original, uma década. O primeiro saiu em 1973, o segundo três anos
porque primeiro deu o nome Constituição da Liberdade (The depois, em 1976, e último em 1979. Este livro é uma reflexão
Constitution ef Liberty). Quando o livro é traduzido para o a posteriori de toda sua vida académica; é um resumo onde
46 português-brasileiro o tradutor lhe propõe que mude o título ele nos apresenta todo o seu pensamento, inclusive sobre o 47
"·uoHllOAUF." DONF.OLl8EIV.flSMO Lf.lTURA5 CllfTIC,\S
de Constituição da Liberdade para Fundàmentos da Liberdade. neoliberalismo.
Este livro é importante porque nele Hayek preocupa-se em Dois conceitos são fundamentais para entender o
definir e justificar o seu próprio uso do conceito liberdade, pensamento de Hayek: o primeiro é o da "ordem espontânea";
reformulando o conceito clássico de liberdade, segundo o ele denomina ao capitalismo liberal por ordem espontânea,
"primeiro" liberalismo (Rousseau, Voltaire, Hobbes, etc.). Eu dado este estar orientado com base numa livre concorrência.
entrarei ligeiramente neste livro, embora o que é importante O segundo conceito é "organização"; este contrapõem-
no contexto destas aulas abertas, seja o que ele define liberdade se ao conceito ordem espontânea. Organização, segundo
como ausência de coerção, como referi anteriormente. Portanto, Hayek, refere-se a indivíduos integrados numa comunhão de
neste sentido, o conceito liberdade é negativo. Hayek expõe a propósitos que obedecem a um comando.
sua ideia sobre a liberdade nos seguintes termos: Liberdade
Aplica-se o conceito organização, por exemplo, aos
é o "... estado no qual o homem não está sujeito à coerção
pela vontade arbitrária de outrem ... " 18 • Mais adiante volta a sistemas socialistas nos quais, segundo Hayek, os indivíduos
integram uma sociedade em que obedecem a um comando,
insistir, já pensando nas sociedades modernas capitalistas, que
seja este derivado de valores, seja de leis. Enquanto na ordem
a liberdade (negativa) é a "condição para que cada indivíduo
espontânea os indivíduos obedecem regras, na organização
os indivíduos obedecem objectivos. Mas posso adiantar, a
'ia··· ii1:' áàjêk. '( i 9'83): 'F'úiid:dmé~'t~s· Já 'Liberdade. Ibidem. p. 4.
José P. Casei ano
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão

Esta é uma "experiência" que fará aquele que for a ler os seus
título de exemplo, que o objectivo do qual Hayek pode ter
textos originais.
tido em mente fosse "justiça social". Então, nesta sociedade
os indivíduos obedecem a esse ideário, essa utopia da justiç~ Outros aspectos importantes da vida de Hayek: ele
social, enquanto que na ordem espontânea as regras são mais acolheu Karl Popper na London School of Economics em 1946,
importantes, sem necessariamente analisar-se o fim último quando este enfrentou problemas na Áustria por causa do
destas regras. seu anti-marxismo; recebeu, em 1974, o Prémio Nobel da
Economia; foi reconhecido por Margaret Thatcher e Ronald
Hayek terminou o seu último livro Os Erros do Socialismo
Reagan e finalmente por George Bush como inspirador dos
em 1988, no qual defende um "construtivismo racionalista".
seus modelos económicos recebendo, por isso, a Medalha da
Este livro não é muito relevante no quadro destas leituras
Liberdade pelo Bush-pai. Finalmente Wilson Churchill, que
críticas, pelo que não irei regressar a ele. Todavia, recomendo
dirigiu a Inglaterra durante a segunda guerra mundial, teria
a sua leitura aos que queiram dedicar-se a Hayek duma forma
citado Hayek na sua campanha.
mais profunda, sobretudo com a finalidade de compreender as
razões pelas quais ele continuava a insistir nos "avisos" sobre O Caminho da Servidão de Hayek não é o primeiro livro
49
o totalitarismo que teima em espreitar por trás do-chamado que põe a "servidão" de um homem (ou de muitos) para com l.EITURASCRfTICAS
48
socialismo real. um outro homem igual (ou para com poucos) em questão.
No livro de Étienne de Lá Boétie: Discurso sobre a Servidão
Hayek nasce em 1899 na Áustria e morre com 93 anos. A
Voluntária questiona-se se, de facto, o homem, por natureza,
sua vida intelectual foi caracterizada, na sua grande parte, por
é um ser para a liberdade ou para a servidão. Se for para a
contrapor as teorias de Keynes, que tinham muita aceitação no
liberdade, então o que lhe faz submeter-se à servidão de forma
seio da política britânica e americana; era a teoria predominante
daque1a epoca
, 19 . p ortanto, o seu engajamento intelectual era
voluntária? Sobre isso. há uma passagem de La Boétie que
seria interessante retomar:
demonstrar a impossibilidade da existência de uma sociedade
Há três espécies de tiranos: uns reinam pela eleição
a partir duma planificação central, como, a grosso modo,
do povo; outros pela força das armas; outros
l'\eynes defendia. Ele considerava ser uma "aberração" querer
sucedendo os da sua raça. Os que chegam ao poder
planificar o desenvolvimento duma sociedade como um todo. pelo direito da guerra, portam-se como quem pisa
Nos escritos de Hayek, sente-se quase um ódio visceral contra terra conquistada; aqueles a quem o povo deu o
a planificação social ou de uma sociedade corno "organização". poder, geralmente transmitem aos seus filhos o
poder que o povo lhes concedeu. Os eleitos procedem
'i9' .. Aiíás;. íréii:iõi;' :Yéi·"cil.ié,' 'F'óu'éãuit;' êii'stingue
o tratamento do Neoliberalismo
como quem doma touros; os conquistadores como
en? ~erri_ios ec?n?micos e ~m ~ermos filosóficos: em termos económicos, é uma
cnt1ca a teona mto:rvenc10msta .estat~l na economia advogada por Keynes. quem se assenhoreiam duma presa a que têm direito;
E, em termos filosoficos, o Neohberahsmo é a "fobia pelo Estado" nas suas
versões alemã e americana nos inícios do Séc. XX.
José P. Castiano
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão

e os sucessores, portanto aqueles que escolhem da 0 prefácio 21 • Ele estima ser "... uma defesa apaixonada,
sua raça, portam-se como quem lida com escravos veemente e inspiradora, da civilização ocidental da liberdade
naturais 2 º. e responsabilidades pessoal". Mais adiante acrescenta que esse
E a resposta que ele encontra sobre a causa de sermos livro tem "críticos menores" que opinam que se trata de um
servis, embora amemos a liberdade, está assente em três manual do capitalismo selvagem ou do que hoje é designado
características: primeiro somos servis por causa do "hábito" neoliberalismo.
ou dos "costumes"; para ele, ambos nos impelem à servidão Espada defende que essa opinião é "insustentável" [de
e são reforçados pela educação que recebemos. Segundo, o facto eu próprio, antes de ter tido a experiência de leitura
que reforça a escravidão voluntária nos homens é a cobardia; directa do livro, ia com essa ideia preconcebida, imatura de que
os homens tendem a renunciar a sua liberdade e optar pela neoliberalismo é este "monstro" de "capitalismo selvagem" e
servidão por causa da cobardia, e isto acontece principalmente que, por isso, esperava encontrar no livro toda uma selvajaria,
com os homens da corte: Estes são aqueles que i·odeiam o Rei dado que Hayek é tido como o pai teórico do neoliberalismo.
(modernamente falando poderíamos dizer "ao Presidente"). Mas o prazer que tive ao ler o livro, deve-se ao facto de
Por fim, em terceiro lugar, são as "artimanhas" que o tirano ter encontrado um texto de alguém que se engaja por uma 51
50 LEITURAS CRfT/ChS
11•1Jllr:Rl)ADF."DONEOllllEMHSMO
usa para dominar os outros, entre outras criando símbolos de defesa profunda e ferrenha das liberdades individuais] e que
poder para assustar os incautos. esses críticos, ao fazerem desta forma as suas observações do
Então, continuando na linha iniciada pelos textos de La neoliberalismo como um capitalismo selvagem, se colocam na
Boétie, e continuada pelos textos de Hayek (e essa "experiência posição de "críticos menores".
de leitura" sente-se nos textos deles), o ímpeto de um filósofo, O Caminho para a Servidão é uma defesa apaixonada,
ou de um intelectual em geral, é denunciar as tendências para veemente e inspiradora da civilização ocidental da liberdade
a servidão. Hayek considera a servidão uma possibilidade e da responsabilidade pessoal. É por isso que Hayek dedica o
eminente (em 194<4) na Inglaterra: ou seguir o caminho do livro "aos socialistas".
nazismo alemão ou seguir o caminho da União Soviética na
Então, não são os próprios clássicos do neoliberalismo
construção do socialismo.
que se chamaram a si próprios "neoliberais" e que, por isso,
No entanto, antes de entrar na discussão do livro, fizeram um conluio sistemático para se chegar ao "capitalismo
queria chamar atenção a alguns comentários dele feitos em selvagem". De facto, foram os seus leitores ou co-leitores que
torno, principalmente de João Carlos Espada, que escreve fizeram com que o neoliberalismo ganhasse ou deixasse essa

·20· .. Lá"'Bóêúe '(i i"i? iJfbisêurso scibré ºà ·servidão Voluntária. Antfgona. Lisboa. p. 29- 2i ... Espâéià;J.cn2oi4):"''üirl"i.;éqüerióº"Grande Livro". ln: Hayek, F. O Caminho
so para a Servidão. Ed. 70. Lisboa, Portugal. pp ix-xix.
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão José P. Castiano

impressão de "capitalismo selvagem". Para Hayek - como Para Hayek, a concorrência é tão cega como a justiça; ele
destaquei antes....:. a liberdade tem valor instrumental: permite compara a concorrência como mecanismo do mercado livre
a criação da riqueza material que se tornou característica como a justiça o é.
distintiva das sociedades que preservaram a mesma. Portanto, [Se eu for a abrir um parêntese agora e vos recordar a
a liberdade para ele tem um valor fundamental porque permite posição que foi defendida por Elísio Macamo no fórum Mozefb,
criação da riqueza material no indivíduo que, de outra forma, é mesmo esta! Afirmava, ele na tal conferência, que nós não
sem essa liberdade, não teria possibilidades de a criar. O precisamos de negociar a paz, mas precisamos de regras para
mercado é o mecanismo de defesa, não só da liberdade, mas conviver, porque elas é que determinam o resultado de tudo.
sobretudo, de inovação da criatividade. Se há uma parte dos moçambicanos que quer "províncias
Portanto, os defensores da liberdade devem impedir que autónomas" e outros não; nós não precisamos de entrar nesse
o Estado abuse dos seus poderes ilimitados para limitar as debate, mas sim, definir as regras! Se por exemplo assumimos
liberdades, em particular a liberdade económica que é a que devam existir as ditas "províncias autónomas" defendidas
fundamental para Hayek. A liberdade económica só é possível pela Renamo, o mais importante é saber quais as regras básicas
em sociedades de ordem espontânea, contrariamente ao que para que possamos continuar a viver como moçambicanos.] 53
52 LP.TfURASCRfTICAS
11 "LIBHRDADE" 00 NEOUBUAllSMO
acontece nas sociedades de organização. É importante salientar O Caminho para a Servidão começa com duas afirmações
que, numa sociedade ele ordem espontânea, os indivíduos importantes. A primeira, logo na dedicatória, ele escreve: "aos
obedecem apenas a regras gerais de boa conduta, que são socialistas de todos os partidos". A segunda afirmação que
iguais para todos, e independentes das vontades particulares. nos chama atenção, está patente no prefácio; ele escreve: "este
Sobre este assunto há uma citação interessante de Hayek: livro é político e não pretende ser da filosofia social e nem
económico". Portanto, é nesta perspectiva que nós devemos ler
É significativo que uma das habituais objecções à
o livro: primeiro é dedicado aos socialistas da Inglaterra que
concorrência é que seja 'cega'. Não é despiciendo
na altura, favorecidos pelas teorias de Keynes, estavam a cair
recordar que, para os antigos, a cegueira era um
numa sociedade com tendência para o planeamento central.
atributo da deusa da justiça. Embora a concorrência
e a justiça pouco possam ter em comum, diga-se O objectivo do livro era mesmo este: alertar ao movimento,
em abono tanto da concorrência como da justiça que Hayek achava ser "crescente" entre os intelectuais, que
que nenhuma delas tem em conta casos pessoais. É apoiava o planeamento estatal da economia; segundo ele, isto
impossível prever quem são os felizardos, ou sobre aponta para uma ascensão de um novo nazismo, fascismo e
quem se abaterá a desgraça. 22 socialismo comunista. Portanto, a questão fundamental que
ele se coloca é entender para onde nos levará este movimento
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão José P. Castiano

ao aceitar o planeamento central. E aqui importa trazer uma para superar a crise em todos os domínios; ou seja, havia o
citação interessante: "haverá maior tragédia do que acabar mito de uma ciência todo-poderosa.
involuntariamente por produzir precisamente o oposto
Os indícios que acima mencionei assemelham-se ou
daquilo que havíamos aspirado?".
aproximam-se à situação da Alemanha de 30 anos antes de ter
Ou seja, a aspiração dos socialistas era uma maior iniciado a segunda guerra mundial. Hayek chega à conclusão de
liberdade. Entretanto, Hayek avança a ideia contrária de que, ter havido "um caminho abandonado"; ou seja, havia evidências
pelos "indícios", o rC>sultaclo iria ser uma grande "tragédia": de que no mundo, muito particularmente nos países europeus,
vai ser a "servidão". pouco a pouco abandonava-se "o caminho para liberdade", e
Para demonstrar o seu medo que a Inglaterra se tornasse principalmente a defesa da liberdade individual como sendo
o baluarte do socialismo do estilo alemão ou soviético, Hayek a fundamental. E ele culpa este abandono a muitos teóricos,
menciona alguns indícios do espírito que ele julgava estarem particularmente a Adam Smith, David Hume, John Locke e
a preparar o totalitarismo na Inglaterra. O primeiro indício ao keynesianismo. Indo mais além, Hayek "regressa" - na sua
"espiritual" deriva do facto de ter constatado um entusiasmo busca para encontrar a culpa pelo "abandono do indivíduo"
54 muito grande pela "organização" social que contrastava com como o sujeito principal da liberdade - às civilizações mais 55
A "LlllUIUJ..\llf." DONf.OUll!iRAllSMO
l.f.ITURASCR!TlC.\S

a ideia da ordem espontânea, onde simplesmente as regras antigas, porque ele acreditava que este "caminho do abandono"
é que eram mais importantes. O segundo indício é que o tinha sido já "preparado" pelo cristianismo, pelos gregos e
Estado se confundia com a sociedade inglesa, ou seja, havia romanos.
tendência de os teóricos e políticos ingleses inclinarem- O princípio fundamental da organização social, que Hayek
se perigosamente para a teoria hegeliana ou marxista. defende para voltarmos a essa liberdade, é: "devemos recorrer
Portanto, para Hayek, haviam já indícios de confundir-se tanto quanto possível às forças espontâneas da sociedade e o
entre o Estado e a Sociedade. O terceiro indício no "espírito" menos possível à coerção". E deixa claro que este princípio
é que havia, na Inglaterra, um ambiente de chamamento à ora por ele anunciado, é qualitativamente diferente do laissez
união e unicidade do Estado em consonância com a suposta faire do primeiro liberalismo. Hayek termina o capítulo I - O
"grandeza" da Inglaterra perante o mundo. O quarto indício Caminho Abandonado - alertando para o facto de os alemães
derivava do facto de que, na Inglaterra, estava na moda, entre terem conseguido conduzir toda Europa para o caminho da
os intelectuais, defender um Estado planificador, um Estado Servidão por terem pervertido o sentido da palavra "ocidente".
que devia intervir na economia, no mercado, mas sobretudo Pois, "civilização ocidental", que antes significara liberalismo,
na sociedade e sua moralidade. O quinto indício é que havia a democracia, capitalismo individualista e comércio livre, os
crença ou o mito segundo o qual a ciência tinha competência alemães nazis teriam restringido "ocidente" ao que se passa em
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão
José P. Casti•

volta do "rio Reno"; ou seja, dando o sentido de "hegemonia da Então, segundo o que Hayek diz, os socialistas acreditam
Alemanha sobre as outras nações da Europa e os outros povos em duas coisas que são absolutamente diferentes e talvez até
do mundo". contraditórias: Por um lado, em terem liberdade (estarem
Da mesma forma, segundo Hayek, os alemães haviam livres); por outro, em estarem a viver numa sociedade baseada
pervertido o termo "liberalismo" pelo Nationalsozialismus ou em "organização", e não numa baseada na ordem espontânea.
seja "nacional-socialismo'', donde se compõe a palavra nazi Eles, os socialistas, difundem que os fins desta sociedade
(National e Sozialismus). Nesta óptica, o socialismo traria organizada são ajustiça social, a igualdade e a segurança social.
a liberdade económica, a qual se acrescentaria à liberdade E trazem isso a partir de um método que é contrário à própria
política já conseguida no ocidente, sem a qual não seria digno liberdade: a abolição da propriedade privada sobre os meios
possuí-la; ou seja,· e em outros termos mais interessantes: de produção e criação de um sistema económico planificado.
o socialismo "real" da União Soviética e em outros países Por outras palavras, prometeu-se justiça social, igualdade
europeus, segundo Hayek, perverte o termo liberdade e segurança através de um método de reprivatização das
prometendo "nova liberdade". E essa nova liberdade não era empresas para o Estado ou a estatização de toda propriedade
a política senão a económica. Por outro lado, a liberdade teria para concentrá-la nas mãos do mesmo.
56 57
A "UBERIJ ... DF." 00 NEOL!BERAllSMO
adquirido outro significado com o advento do socialismo Como é possível fazer um povo ou povos acreditarem
LEITURASCRIT!Ci\S

"real": que é o de "poder" ou de "riqueza" social e individual em coisas tão profundamente contraditórias como essa? No
somente tornada possível no quadro de uma "revolução" entanto, muita gente que se diz socialista, diz o autor, "só
socialista; a "subversão" consistiu, portanto, primeiro em acredita nos fins nobres mas não se interessa pelos meios, ou
perverter a liberdade individual para uma "nova" liberdade seja, os fins nobres são justiça social, igualdade, liberdade e
que é económica; e segundo, em atribuir um outro significado segurança; nisto acreditamos embora não nos interessamos
segundo o qual a liberdade estaria ligada ao poder ou então pelos meios".
à redistribuição da riqueza. "Liberdade social" seria o termo
A diferença que o socialismo tem perante o liberalismo
talvez mais correcto para expressar a liberdade prometida.
político reside, de facto, nos métodos colectivistas que no
Perante a perversão e a subversão da liberdade no seu socialismo "real" são propagados para alcançar os mesmos
sentido liberal por parte do socialismo, Hayek formula a suà fins; isto porque, segundo Hayek, tanto o liberalismo como o
famosa frase: "... o que nos foi permitido como caminho para socialismo têm, pelo menos em sua teoria de génese, o mesmo
liberdade era, na verdade, o caminho para servidão". fim: a liberdade e a justiça. Porém, diferem no método da
apropriação dos meios de produção, método este defendido
pelos socialistas.
José P. Castiano
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão

o acesso aos indivíduos que, de princípio, deveriam ser


A partir deste ponto, chega-se a urna fase muito
portadores da liberdade 23 •
interessante do livro, nomeadamente a da desconstrução da
possibilidade de uma economia planificada. Aliás, o capítulo Para Hayek está claro que deve ser a "concorrência"
II, A Grande Utopia, tem por objectivo demonstrar que o o "princípio da organização social". Este princípio é
socialismo e o comunismo não são uma "nova utopia" social, classificado por ele como sendo "superior" porque -
senão que ambos, como projectos de organização social, estão justifica-se - "não só ( ... ), na maioria dos casos, é o método
intrinsecamente, organicamente e até mesmo historicamente mais eficaz( ... ), mas também porque é o único método pelo
ligados ao nazismo alemão. qual as actividades podem ser adequadas umas às outras sem
a intervenção coerciva ou arbitrária da autoridade". E o autor
Para isso, o autor distingue dois sentidos diferentes da
termina defendendo axiomaticamente: "O planeamento e
palavra "planificação": o sentido "moderno" de planificação
diferencia-se do seu sentido "normal". No sentido "normal" a concorrência podem ser combinados apenas planeando
a (própria) concorrência, mas não planeando contra a
trata-se duma ideia geral humana segundo a qual todos
concorrência" 21••
gostaríamos de contar com uma certa previsibilidade nas
58 nossas vidas quando seguimos certas metas prevramente Como o trecho acima citado mostra, Hayek é somente 59
LEITURAS CRITICAS

definidas. No entanto, o sentido qúe é usado pelos contra um determinado tipo de planeamento que tenha
socialistas é o "moderno". Os especialistas socialistas do como objectivo impedir a concorrência entre os indivíduos
planeamento exigem o estabelecimento de uma "direcção ou empresas. De resto, ele parece tolerar qualquer outro
central" de toda actividade económica de acordo com tipo de "planificação". Por exemplo, ele acha o planeamento
um só plano o qual indica como os recursos de uma "inevitável" quando se tratar de mudanças tecnológicas que
sociedade (comunista ou socialista, neste caso) devem ser possam tornar a concorrência difícil ou mesmo impossível.
"conscientemente dirigidos" de um modo específico para Neste caso seria preciso que o Estado interviesse para
servirem determinados fins concebidos por eles ou pela concentrar as indústrias a fim de facilitarem o uso das
cúpula; melhor: conforme uma "utopia" pré-concebida por TICs. Em geral, Hayek está consciente que podem eclodir
alguns "iluminados" da sociedade. problemas modernos em que a sua resolução dependeria
Contrastando o tipo de planificação centralizada, na sua duma "intervenção estrutural" ou planificada do Estado.
conclusão, Hayek defende que"( a) lei não deve tolerar qualquer Apesar disso, esta não deve "tocar" a própria concorrência.
tentativa de grupos ou indivíduos para restringir pela força, de
modo manifesto ou dissimulado, o acesso igual às actividades
23' .. Cfr.' SÓbré' a' pi~iiifica'Çã(j "iiioêierna'' de Hayek, em
O Caminho para a Servidão,
económicas". Ou seja, uma planificação centralizada restringe Idem. pp. 63-70.
24 Cfr. Hayek, F. (2011<): O Caminho ... Ibidem. p. 70. (itálicos meus)
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão José P. Castiano

Há um outro capítulo, Planeamento e Democracia25 , no qual pensado e funciona. A primeira fraqueza que lhe preocupava
Hayek alerta para a possibilidade de a "democracia degenerar diz respeito à Assembleia (ou Parlamento), pois esta mostra
em ditadura econónica através do planeamento". Ele advoga dificuldade em executar a vontade do povo. Para ele, os
que isso é possível a partir das próprias "fraquezas da parlamentos são incapazes de tratar assuntos económicos.
democracia" que podem conduzir para que os parlamentares [E aí eu acrescentaria: nós assistimos intelectuais que
recorram cada vez mais a especialistas: "pela incapacidade (dos dizem "nessas coisas de economia não quero entrar"; "nessas
parlamentares) de planificar recorrem a especialistas ou a um coisas de dinheiro não quero perceber"; têm uma posição de
homem só para se resolver a situação". Quando há crise, por distanciamento, apesar de, como eu afirmei na introdução,
exemplo, e por os parlamentares não perceberem de contas, do estar a ser cada vez mais importante para um intelectual
orçamento ou, em geral, de dados estatísticos, recorrem cada que se preze, entender matérias de financiamento, bancos,
vez mais a grupos de especialistas. Como resultado, cria-se um estatísticas ou, enfim, "como é gasto o nosso dinheiro"].
espírito de que quando duas pessoas se encontrarem podem Então os parlamentares, pela sua incapacidade, recorrem cada
resolver a situação do país, isso por se tratar de especialistas. vez mais a terceiros. Essa "incapacidade" levou Hayek a dizer
que se estabelece, no Parlamento, um "caos" de tal sorte que
60 Segundo ele, os vários tipos de colectivi~nos - o 61
11 "LIMROADE" 00 NEOUllERAtlSMO
comunismo ou o fascismo - diferem entre si pela natureza do "chama automaticamente a um ditador económico"; vivemos LEITURA.~ CRITICAS

objecto para o qual pretendem dirigir os esforços da sociedade; num caos económico e só podemos sair dele se governados por
porém ambos diferem do liberalismo e do individualismo por uma "liderança forte". E foi precisamente isso que aconteceu
na Alemanha com Hitler. Hitler não precisou de destruir a
quererem organizar a sociedade como um todo (querem atingir
um "objectivo social", "bem comum" ou "bem-estar geral''). democracia, apenas se aproveitou da decadência da missão do
Parlamento.
Efectivamente, a grande diferença entre o liberalismo e os
sistemas colectivistas é que os últimos almejam organizar a Hayek conclui o capítulo dizendo que "todo sistema tende
sociedade como um todo e recusam reconhecer a legitimidade a uma ditadura plebiscitária, em que o Chefe do Governo será
de haver esferas autónomas onde os fins dos indivíduos confirmado de tempo a tempos pelo voto popular, mas que o
deveriam ser supremos. Em consequência, Hayek defende que . ditador terá à sua disposição todos os poderes para garantir
"num Estado há poucas probabilidades de todos membros que a eleição irá na direcção que ele quiser" 26 •
estarem de acordo quanto aos (seus) últimos fins". [Há um vídeo que circula na internet que diz que a África,
Então, para Hayek, a democracia tem "fraquezas" . mesmo com a democracia eleitoral, escolhe "lobos" para o
intrínsecas ao seu próprio sistema, isto é, como ele está .poder e depois admira-se quando o lobo sai gordo e as ovelhas
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão
José P. Castiano

que ele devia guardar desaparecem do curral ou estão mais deixa de garantir essa liberdade individual em nome de um
magras do que quando lá entrou por via de "eleições"]. fim mais nobre, o bem comum, justiça social, etc., ela degenera
A governação democrática tem funcionado bem quando em ditadura mesmo que tenha sido suportada pela maioria; ela
e desde que as funções do Governo estejam restringidas à degenera em um tipo de ditadura que se chama "democrática"
áreas em que pode obter-se concordância através da livre ou "proletária"; isto porque o sistema económico é dirigido
discussão; a condição para que uma governação funcione centralmente a partir de uma pequena minoria partidária
democraticamente é quando o Governo restringe ao máximo (Politbeaureau) que aumenta a probabilidade de estreitar
as suas áreas de intervenção. Governar, segundo Hayek, é estar (Hayek fala de "destruir completamente") a liberdade
constantemente a restringir as áreas nas quais o Governo individual, como qualquer aristocracia o faria. Para manifestar
pode intervir e que os cidadãos livres - isto é, portadores de o seu temor por uma ditadura "socialista" disfarçada em
direitos e livres de coerção de qualquer tipo - tomem por si "democracia popular", Hayek expressa axiomaticamente o
mesmos as decisões; na prática quereria dizer que um cidadão, que ele chama por "argumento económico para a adopção do
a título de exemplo, tem a liberdade de escolher onde seu Estado de Direito" da seguinte forma: "Quanto mais o Estado
62 filho pode estudar; todavia, em condições de uma planjficação planifica, mais dificil se torna o planeamento do indivíduo" 27 •
~ "UAERDADF." DO Nf.OURl>llAUSMO 6S
centralizada, a decisão é restringida pelq Estado que (pré) lErrLJRASCRITlCAS

O argumento político para o Estado de Direito baseia-se na


determina, seguindo ainda o exemplo da educação, onde cada
ideia de que, se o Estado planificasse, a economia restringiria as
cidadão deverá colocar seus filhos a estudar; neste caso, não é
acções assim como a possibilidade de os projectos individuais
uma decisão "livre" do cidadão.
se realizarem segundo o rumo que as pessoas poderiam desejar,
O Estado centralizador da planificação económica, ao não deixando alternativas de acção. Para Hayek, o Estado
predeterminar ou condicionar coercivamente as decisões que
deixa de ser uma peça da máquina utilitária destinada a ajudar
cada indivíduo deve tomar segundo os seus próprios fins,
as pessoas no plano de desenvolvimento da sua personalidade
contraria a essência da democracia. Pois, segundo Hayek, uma
individual e torna-se uma instituição moral.
democracia não é um meio para um fim político "mais nobre";
bem pelo contrário, ela caracteriza-se por ser essencialmente Hayek acha que a história mostra que a evolução do
um meio, um mecanismo utilitário, para salvaguardar a paz Estado de Direito coincide com a introdução de regras cada
interna e a liberdade individual. vez mais vagas na legislação. Segundo ele, o Estado moderno
deve caracterizar-se por dois aspectos: pelo primado da lei
Numa democracia, as regras servem para relacionarmo-
formal; i.e. pela ausência de privilégios legais de determinados
nos pacificamente e elas, as regras, são feitas para salvaguardar
membros duma sociedade designadas pela autoridade; e por
a liberdade individual, não para restringí-la. Se a democracia
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão José P. Castiano

excluir uma legislação que vise directamente determinadas Deixou de significar "liberdade individual" para passar a
pessoas ou permita a alguém usar o poder coercivo do "liberdade colectiva" 28 • A questão liberdade ficou, naqueles
Estado para descriminar uma parte dos cidadãos ou grupo regimes, refém de um certo processo de planificação; de um
determinado de indivíduos. dirigismo. E aqui Hayek revolta-se contra o uso "enganador"
que Karl Mannheim faz do termo liberdade por este ter-se
Existe uma outra afirmação de Hayek que gostaria de
referido à liberdade colectiva como sendo uma "nova". Hayek,
partilhar convosco. Ele escreve, que "seria mais livre quando
em resposta, acha que liberdade colectiva como Mannheim
submetido a um rico do que a um burocrata duma sociedade
emprega, em condições de uma sociedade centralizada na
planificada". Porque - prossegue Hayek - um rico não se
planificação económica, significa "liberdade sem limites"
interessaria com a sua liberdade, porque ele limitar-se-ia
apenas para os membros do E,stado centralizado. E Hayek
em verificar se ele tinha ido trabalhar ou não. "Enquanto
alerta tendo em vista a crítica a Karl Manheim: "Sempre que
um burocrata duma sociedade centralmente planificada (... )
a liberdade foi destruída, foi em nome dela mesma"! E cita a
vai perseguir-me até cortar todos os caminhos da minha
Peter Drucker, em reforço a este argumento, do livro The End
liberdade". E pior, o poder numa sociedade centralmente
planificada é exercido de forma arbitrária e, por conseE]_uência
ef Economic Man: "quanto menos liberdade houver, mais se
65
falará da 'nova liberdade' ." 29 LEITURAS CR[TJCAS

disso, nunca se sabe quando o mesmo pretende fazer uma


coisa não planificada. A segunda palavra pervertida é o termo "verdade". Com o
advento do socialismo ou das revoluções socialistas, verdade, ao
Formulado de forma mais geral, Hayek defende que "(n)
invés de se ligar ao facto acoplou-se-lhe à moral. Surge a grande
ão é a origem, mas a limitação do poder que o impede de ser
pergunta: primeiro de que lado estás? Antes mesmo dos factos!
arbitrário. O controlo democrático pode impedir o poder de
As revoluções socialistas perverteram a questão da verdade
se tornar arbitrário"; ou seja, se não houver regras fixas, a
ligando-a não aos factos mas às categorias ético-ideológicas.
democracia pode degenerar em arbitrariedades dos burocratas
Este acoplamento da verdade à moral teve consequências na
do Governo e o cidadão tornar-se-ia refém permanente delas.
prática científica e na educação: por um lado fez aparecer uma
espécie de aversão para com o pensamento abstracto (p.e., via-
O Fim da Verdade se a teoria da relatividade de Einstein como sendo "ataque ao
.· materialismo dialético"; ou que a matemática e a estatística
Com a revolução socialista ou o regime do socialismo, as estariam "ao serviço da burguesia", etc.); por outro lado, toda
palavras e significados introduzidos pelo liberalismo foram
28º .. Oi.i. tàiiibêiii ºà. êffta "'ÍÍbei;dadé"so~!edade" em aqueles que Axel Honneth vai
reinventadas ou até mesmo pervertidas. O principal conceito a chamar "primeiras socialistas" Cfr. Honneth, A.: A Ideia de Socialismo. Tentavi-
ta de Atualização. Edições 70. Lisboa. pp..34-44.
serre- significado pelos regimes do socialismo foi "liberdade". Cfr. Hayek, F. (2014): O Caminho ... Ibidem. p. 194.
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão José P. Castia1

a actividade científica tinha que ser políticamente aceitável, resultado de uma colaboração entre o capital organizado e o
na medida em que deveria alinhar-se, como justificação, a um trabalho organizado (sindicatos)".
propósito social oficialmente reconhecido. A ciência ficou ao
serviço da "sociedade" ou de uma "classe", e não da verdade.
A verdade não é algo "a descobrir", senão ela torna-se algo Chegados aquz; tiremos algu,mas conclusões sobre Hayek.
"imposto" pelos objectivos sociais. A última consequência
disto tudo, segundo Hayek, é o "desprezo" pela liberdade Primeira: Hayek tenta demonstrar que a propagação sobre os
dos intelectuais porque se perdeu a crença na Razão. Assim, "fins do Estado", de tal modo a parecerem como se fossem
numa sociedade planificada centralmente, escolhe-se ou (e coincidissem com) os fins dos indivíduos, é uma forma de
decide-se sobre quem deve ter razão ou não; numa sociedade uniformizar não só a acção mas também o pensamento no
de concorrência não há nenhuma instância publicamente seio dos cidadãos; e, por isso, o Estado ganha poder sobre a
instituída para decidir sobre a posse ou não da razão ou da imaginação das pessoas. Este mecanismo é fundamental para
verdade sobre as coisas e processos. compreender-se a lógica das sociedades baseadas na servidão,
e é descrito por Hayek como sendo um mecanismo baseado
66 Em terceiro lugar é o termo "sociedade". No lib_eralismo
/\ "llnF.RDA.DE" llONWUllllRAltSMO na prevenção da linguagem e na alteração da significação 67
político primava-se pela separação. do Estado e a sociedade. Lal'UR.ASCll.ITIC.AS

das palavras-chave, nomeadamente "liberdade", "verdade" e


Entretanto, nas sociedades de servidão, isto é no nazismo e no
"sociedade".
comunismo, sociedade e Estado se confundem. Portanto, tudo
que é contra o Estado é visto como "desestabilização". Isso Segunda: fixemos as decepções com a liberdade; que
aconteceu porque na sociedade onde havia planificação central prometem-se "novas liberdades" em troca das antigas; sempre
era importante que as pessoas encarnassem os fins do Estado que a liberdade foi destruída foi em nome dela mesma. [pense-
como se de seus próprios se tratasse. Se o fim do Estado fosse se por exemplo, na luta contra a pobreza: foi em nome da
"estabilidade", então os indivíduos deviam encarnar a ela pobreza mesmo que ficamos cada vez mais pobres]. Portanto,
como se fosse o seu próprio fim. Os interesses do Estado estão o uso da palavra liberdade é enganador; falar-se de uma
acima de todos outros. Há muitos factores que justificam a liberdade colectiva como algo "novo", é enganador. De facto
diluição e perversão do termo sociedade nas sociedades de quando se fala de liberdade colectiva quer dizer-se liberdades
servid.ão: propaga-se, deliberadamente, um entusiasmo pela sem limites somente para os membros da burocracia estatal e
organização Estado; também propaga-se um entusiasmo pela não exactamente para a maioria das pessoas.
"unidade" e pela "grandeza da Nação"; há um entusiasmo pelas Terceira: é surpreendente como a argumentação neoliberal,
obras do Estado e sua intervenção na economia; e há também aqui baseada em Hayek, coloca a liberdade económica em
apetência pela formação de monopólios industriais "r·omo primeiro lugar; e, por isso, se aproxima ao argumento
Hayek e o Perigo do Retorno à Servidão José P. Castiano

marxista segundo a qual, e cito de memória dos "tempos neoliberais e, por conta desta situação, intelectuais, a elite
socialistas" de Moçambique, "a economia (ou a infraestrutura) política e económica moçambicana, exige "mais segurança" e
determina, em última instância, todas as outras liberdades (ou "mais estabilidade'', muitas das vezes à custa das liberdades;
a superestrutura)". Então, a partir daqui nos questionamos até como podemos equacionar isso?
que ponto o marxismo pode ser re-chamado para uma crítica
efectiva ao neoliberalismo?
Quarta: há uma outra aproximação com a tese marxista
sobre o comunismo com a qual pode traçar-se um paralelo: é a
tendência para abolição do papel do Estado. Hayek argumenta
em reduzir ao máximo o papel do Estado; Marx, por seu lado,
defende, na sua tese sobre o "comunismo científico'', a abolição
sucessiva do Estado, reduzindo-o a um simples aparato
administrativo regulador. O próprio Hayek, diz que Marx foi
68 o primeiro a perceber, olhando para o passado, que a evolução 69
A·uar.ROADli" ºº NliOLllJliRAllSMO
do capitalismo privàdo e do mercado livi::~ foram pré-condição L.Ertuw Cll.ITICAS

para a evolução de todas as nossas liberdades democratas.


Mas ao olhar para o futuro nunca lhe ocorreu que se assim
era, as outras liberdades podiam desaparecer com a abolição
do mercado livre. Ou seja, podemos perguntar, será Hayek
um marxista escondido que não quer revelar-se marxista
(no mínimo um marxista moderado)? Que mais outras
aproximações podemos encontrar em Hayek (neoliberalismo)
com o marxismo?
Quinta e por última: seria interessante discutir, na
perspectiva de Moçambique, a questão como defender a
liberdade individual na condição actual de instabilidades
que exige de nós um eminente reforço da capacidade de
intervenção do Estado. Tendo em conta as circunstâncias
actuais do nosso país, de estar a viver estes "tempos difíceis"
José P. Casciano

IV

Capitalismo como Liberdade Económica em


Friedman

O dinheiro
é um assunto demasiado sério
para ser deixado
aos homens dos bancos centrais.
71
LEITURAS CRhlCAS

(Clemenceau citado por Friedman, em Capitalismo e


Liberdade)

No semanário Canal de Moçambique lí um artigo que analisava


o discurso do Primeiro-Ministro acerca da dívida externa de
Moçambique. O referido artigo foi, na verdade, uma reação de
um grupo de organizações da sociedade civil, mais exatamente
o Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), a Organização
Mundial do Trabalho e o Observatório Rural. Estas entidades
reclamavam, na essência, a velha exigência neoliberal: que
economia é um "assunto público", razão pela qual nada deve
ser escondido.
No referido artigo considera-se que um dos "grandes
cancros da economia moçambicana são as empresas públicas";
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

justifica-se esta posição, nas suas palavras, devido à sua Uma Convicção: Mudar a Política pela Porta da Economia"
"generalizada ineficiência" e, de consequência, prestam maus
e caros serviços às empresas, instituições e aos cidadãos. Este Devo começar contando uma história sobre o método usado
aspecto, dizem, foi, mais uma vez, completamente ignorado por Milton Friedman nas aulas. Porque foi a partir delas
no discurso do Governo Moçambicano, na pessoa do seu que ele concebeu e, progressivamente, foi escrevendo o livro
Primeiro-Ministro. Para os signatários do artigo, não foi Capitalismo e Liberdade. Nas suas aulas Friedman iniciava,
reconhecida a necessidade imprescindível de uma profunda quase que invariavelmente, com um diálogo junto dos seus
reforma modernizadora do Estado, a começar pelo seu papel na estudantes, dizendo: 'Você votou hoje?' E a maior parte dos
economia e na sociedade no combate à corrupção generalizada, estudantes pensava para com os seus próprios botões: 'este
incluindo a corrupção do alto nível; também não foi considerado prefessor deve estar mesmo velho! As eleições foram no ano passado
o imperativo da descentralização e da des-partidarização da ... ' Friedman prosseguia, ignorando a perplexidade com que
administração pública. De seguida, considera-se no artigo, os estudantes o olhavam: 'Sim! De certeza que você foi comprar
que estes (a descentralização e a des-partidarização) são qualquer coisa lzqje numa lqja qualquer'. O estudante dizia 'sim'.
"elementos sem os quais não haverá reformas e~nómicas E Friedman: 'O que você comprou?' O estudante: 'Comprei uma
72 73
/\ "U!IEIUJADE" DO NF.OtlllERAllSMO eficazes e eficientes" em Moçambique. ~or fim, opinam que egerogr4fi'ca'. E Friedman prosseguia: 'Você comprou qualquer LEITURAS CRITICAS

o referido discurso não continha uma única palavra acerca da e~ferográfi'ca ou uma determinada? E quando você comprou essa
gestão da política monetária, que actualmente para eles era egerográfica reparou por acaso no preço?' O estudante: 'Sim,
"comprovadamente desajustada e inoportuna e, não questiona reparei'. E de novo Friedman: 'Quanto é que custa?' O estudante
as intervenções desacertadas do Banco de Moçambique, e nem dizia o preço. Neste momento Friedman perguntava: 'Deste
este foi em algum momento chamado para prestar informações preço qual é o imposto que você pagou ou qual é a percentagem
na Assembleia da República". do imposto que você pagou?' O estudante naturalmente não
Vemos aqui uma utilização da economia enquanto pretexto sabia porque poucas pessoas reparavam na percentagem dos
e instância de avaliação do papel do Estado na sociedade impostos estampados no preço.
moçambicana. Vamos voltar a este tema na próxima lição Milton usava este tipo de conversa para demonstrar que,
quando for a vez de debruçarmo-nos sobre a biopolítica em na sua generalidade, intelectuais acham esta ser uma pergunta
Foucault. Para já, este assunto conduz-me à introdução do banal, dado que eles não estão muito atentos ao que se passa
tema de hoje sobre a economia de mercado e liberdade de na economia, e muito menos com os preços. Precisamente os
Milton Friedman. intelectuais acham que a economia não lhes diz respeito no
dia-a-dia; muitos intelectuais, continuava ele, têm uma atitude
de não interessar-,se em contas e percentagens dos impostos.
Capitalismo como Liberdade Económica e111 Friedman José P. Castiano

E regressava de novo ao assunto: 'E se eu perguntar a vocês: empresas nos Estados Unidos. E concluía dizendo: 'Nós todos
sabem qual é a percentagem do IJ//J?' O estudantes:' 17%!'. Então pensamos que somos uma sociedade de mercado livre; na verdade,
Milton continuava, 'o que é que significa você comprar uma coisa porém, 48% do rendimento é tomado pelo Estado; e se repararmos
cuja percentagem do IJ//J é 17%? Simplesmente significa que esses pormenorizadamente somos tão socialistas como a Jugoslávia que
17% vão para o Estado, são os impostos que você está a pagar'. toma 66% dos lucros de cada empresa!
Para facilitar as nossas contas, vamos operar usando [Já agora, num país moderno, o imposto é um assunto
números redondos, por exemplo 20% do IVA. O que é que fundamental da política. Eu recordo-me que na Alemanha,
significa isso? Que uma parte do nosso salário está a ser pago onde eu viví por alguns anos, de estudo, a discussão sobre os
para o Estado funcionar e uma outra parte dos mesmos 20% impostos era fundamental em todas eleições de tal sorte que a
são destinados para redistribuir por vários sectores. proposta de cada partido em relação aos impostos, a subir ou
a descer para poder financiar a economia alemã, constituía o
A este ponto Friedman perguntava: e o que é que isso tem
elemento decisor para ganhar ou perdê-las].
a ver com as eleições? E prosseguia, sem esperar pela resposta
dos estudantes: 'Na loja tu compras precisamente o q!1:._e queres, e Friedman seguia eµi frente ilustrando: Então, como épossível
74 se comprares um produto estragado, devolv_es. Se uma loja não te você alhear-se da questão políticafundamenta~ a saber, como é que o 75
A "U!ll-.RIJADE" DO NêOLllJERA!ISMO U!ITUltASCRtnC'.AS

satiifaz, tu simplesmente vais a uma outra. No entanto, estas decisões Estado usa esse dinheiro para o qual você trabalhou, para ele pagar
económicas tomadas por pessoas singulares estão cada vez mais a ser os salários dos funcionários públicos e para o Aparelho do Estado
tomadas pelo Governo e não pelas próprias pessoas individualmente. funcionar pagando as suas despesas? É importante para cada um
A forma mais simples e evidente de medir a influência de um de nós - conclui Friedman - perceber que o primeiro exercício de
Governo nas tuas decisões é conhecer a percentagem do incarne cidadania é interessarmo-nos por aquilo que todos nós produzimos,
público que é engolido por via dos impostos' (na altura o Governo com o nosso eifàrço, para o Estado; e, depois, estarmos informados
americano engolia 40% da renda total!). E Milton concluía: sobre como o Estado usa esta riqueza. O que chamamos gestão
'Cada um de nós trabalha de Janeiro a Abril/Maio para pagar as pública do Estado.
despesas do Governo, antes de começar a trabalhar para o si e para Para Friedman, o estar atento aos impostos é apenas o
a sua família '30• primeiro passo que cada um de nós deve dar para o exercício
Chegado aqui, Friedman prosseguia explorando a da cidadania; é mais importante ainda que, numa sociedade,
intervenção do Estado na indústria americana. Segundo ele, se garanta a "liberdade de escolha"; esta consubstancia-se em
através dos impostos o Governo detinha 48% de cada uma das possibilidades de cada um poder mudar do sítio onde compra
os produtos que necessita, escolher a escola onde pode colocar
36' ··O'';iilá'Iügo'; '(ài i-ºêtii~<lü'i!O 'ârtigü; Iiâniel, James ( 1978): Milton Friedman: Cap- os filhos a estudar, o hospital onde quer ser tratado, ou ainda
italism Champion. ln: The Reader's Digest. Agosto, Vol. 113. pp. 110-1 H.
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

a farmácia onde comprar medicamentos; essas possibilidades Departamento de Finanças, um sistema "revolucionário"
de escolha também são partes integrantes da liberdade do de pagamento de impostos, para a época. Naquela altura os
cidadão. Porquê? Porque a possibilidade de escolha é onde se americanos pagavam os seus impostos correspondentes ao ano
concretiza a liberdade do cidadão em ter os melhores serviços; anterior uma só vez por ano, em Março. Em 1941 estava-se em
e, por outro lado, é nesse campo em que se pressiona para plena Segunda Guerra Mundial; os Estados Unidos queriam
que os serviços melhorem; a ausência da liberdade de escolha, financiar essa guerra e não tinham dinheiro. Então, Milton
significaria, em termos práticos, que é o Estado que estaria a tem uma 'brilhante' ideia que consistiu em ajudar a desenhar
tomar decisões por ti; que ele está a exercer a liberdade por um sistema de imposto que cobrava antes do ano começar.
tua conta. Ou seja, estaria já pré-determinado que só podes O objectivo era amealhar rapidamente dinheiro para que o
comprar esta mercadoria aqui; só podes colocar os teus filhos Governo pudesse pagar a sua entrada na guerra; portanto,
numa determinada escola que o Estado te indicar; que só podes em vez de pagar depois, Milton desenhou um sistema em que
ir ao hospital "x", ou comprar os medicamentos numa certa pagava-se os impostos antes; o dinheiro passou a ser deduzido
farmácia, etc. lá onde o Estado achar que deve fazer. De facto, directamente do salário. Este sistema por ele proposto foi
a ser assim, isto é, o Estado a determinar as tuas escolhas, não aceite rapidamente porque, assim, nem todos nos damos conta
76 77
A "LlllllROADE"lJO NEOl.IBl!M.USMO há liberdade, não haveria sequer à possibilidade da liberdade. de quanto é que se tira (deduz) do nosso salário directamente. LF.ITURASCRfTlC'AS

Friedman adorava tomar posições aparentemente Antes o pagamento dos impostos era em dinheiro 'vivo': cada
impopulares; uma delas, que provocou-lhe discórdias nos cidadão tinha que ir pagar pessoalmente. Assim "doía" mais
Estados Unidos, é o princípio seguinte que gostava de pessoalmente.
apregoar nas suas palestras: "os sistemas só trabalham bem Friedman ensinou na Escola de Chicago onde liderou
quando os interesses do Governo são menos", ou seja, quanto um grupo de pesquisa forte. O objecto de pesquisa estava
em menos esferas da sociedade um Governo intervir, melhor relacionado com o sistema monetário mundial; e, neste sentido,
funciona esse sistema social. Friedman era um bom orador, quando estuda os impostos do Governo cai numa grande
a sua audiência poderia não estar de acordo com o que dizia, surpresa: o Governo americano retirava 48% do salário. E é
mas ninguém ficava indiferente às suas ideias. Em 1976 ele foi assim que ele começa a interrogar-se: qual é a diferença com
galardoado pelo Prémio Nobel da economia. As suas ideias o país socialista que declaradamente diz, como era o caso da
foram populares nos anos 50 nos Estados Unidos. Jugoslávia, que retirava 46%, porque o Estado detinha os
A sua primeira grande influência deveu-se aos rastos meios de produção ou as fábricas? Ele chega à conclusão que,
que ele deixou no sistema financeiro americano. Ele propôs, afinal, os Estados Unidos eram um "país socialista" porque
em 1941, quando tinha apenas 29 anos e trabalhava no metade do salário paga impostos, ou seja, seis dos doze meses,
o cidadão trabalha para o Estado. Essas ideias começaram a
José P. Castiano
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman

A partir dessa experiência, Friedman organizou uma série


fervilhar na cabeça do Milton Friedman para poder pensar
radiofónica e entrevistas nos jornais entre 1979 e 1980; e foi
na possibilidade de mudar essa realidade; e a questão que
a partir particularmente da série televisada que ele elabora
se colocava a si mesmo era: como é que posso maximizar a
o livro Capitalismo e Liberdade. O livro tem dois capítulos
liberdade do cidadão a partir de mudanças económicas? Isto é:
teóricos; os restantes são aplicações dos dois capítulos teóricos
como posso mudar a política por via da economia?
a diversas áreas em que a política monetária tem influência
Uma outra influência que Friedman teve na sociedade sobre a liberdade do cidadão. Com as palestras Milton
americana e mundial da época foi na política monetária, mais Friedman queria ousar mudar os rumos da política por via da
concretamente sobre o fenómeno que conhecemos como economia. Por isso, o seu lema era: "Colombo não procurou
"flutuação" (do dólar). Durante a segunda guerra mundial ou o caminho marítimo para a Índia por decreto da maioria. Do
até lá, o dólar estava ligado ao ouro: trinta e cinco dólares mesmo modo, Newton, Shakespeare, Albert Einstein, nenhum
correspondia a uma onça. Milton lutou pela flutuação do deles abriu novas fronteiras do conhecimento como resposta à
valor do dólar, já que antes esse valor era fixo. Em termos directivas governamentais; as suas conquistas foram produto
simples o que é "flutuação"? Ele conseguiu convencer ao do génio individual, com pontos-de-vista fortes de uma
Governo americano_ a ligar o dólar a cada moeda;-ou seja, 79
78 minoria, no entanto, num ambiente social que permitia a LEITURAS CRITICAS

a uma equivalência específica para cada moeda; como por variedade e a diversidade".
exemplo, em relação ao metical (que hoje está a 60 por 1), com
Portanto, o que é mais importante para o desenvolvimento
um valor diferente em relação à libra (Inglaterra); portanto, a
técnico científico é o ambiente social que permita cada
desligar-se do ouro para flutuar de acordo com as economias
individualidade florescer na base do seu génio; essas
com quem se tratava; o Governo americano deixava de fixar o
individualidades não são produtos de um decreto; por
dólar em função do ouro, mas em relação a uma outra moeda
exemplo: dizer "senta aqui e faz isso"! Foi, portanto, a
directamente. O resultado desta medida foi o aumento do
partir desta ideia que Milton foi-se tornando num grande
comércio entre os Estados Unidos e os restantes países do
advogado do mercado livre, da liberdade das corporações e
Mundo, em particular com a Europa. Assim, em 197 3 o dólar
dos indivíduos que nele operam; ou seja, grande defensor da
foi "liberalizado" da sua relação exclusiva com o ouro e em
liberdade individual na sua perspectiva económica. E é tendo
relação à outras moedas nacionais. Esta medida foi tomada
em conta estes aspectos que considerei o neoliberalismo
sob muitos protestos dos outros países que temiam um caos
como uma radicalização das liberdades num único tipo de
no mercado mundial. De facto, ela somente veio a aumentar
liberdade, a económica.
o volume e a centralidade dos Estados Unidos nos mercados
mundiais.
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. (astiano·

Defender a Liberdade: "O que posso fazer através do Estado?" proteger a nossa liberdade?" 32 • O Estado é um meio para nós
fazermos qualquer coisa; mas essa "qualquer coisa" deve partir
Importa entrar agora, depois desta introdução, no conteúdo das nossas responsabilidades individuais, e não do Estado para
deste livro, Capitalismo e Liberdade. Na parte introdutória, nós e nem nós fazermos "alguma coisa" para o Estado; ele, o
Milton Friedman escolheu confrontar-se com o aforismo Estado, deve, acima de tudo, proteger a nossa liberdade e, ao
pronunciado pelo Presidente democrata John Kennedy: "Não mesmo tempo, o indivíduo deve e tem a: responsabilidade de
perguntem o que o vosso país pode fazer por vós -perguntem defender a sua liberdade através do Estado.
o que podem fazer pelo vosso país" 31 • Segundo Friedman Daqui Milton começa a desenvolver, ainda na sua
nenhuma das metades desta declaração exprime uma relação introdução, a questão: como bcneficiarmo-nos com o
entre o Cidadão e o Estado que seja digna de ideais de homens Estado mas ao mesmo tempo defender a liberdade? Como
livres; ou seja, a primeira parte ("Não perguntem o que o vosso é que podemos beneficiar-nos do Estado e ao mesmo tempo
país pode fazer por vós"), segundo Friedman, exprime um defender a nossa liberdade, usando o mesmo Estado como o
paternalismo; esta frase sugere que o Estado é protector; que instrumento principal?
o Estado seja "obrigado" a fazer alguma coisa pelo gdadão é
80 Ele encontra duas razões para se abordar esse tema, 81
incompatível com o ideal de um cidadão n~sponsável; portanto, LEITIJRAS cJIJ'rtCAS

nomeadamente a relação entre o Estado e a liberdade. A


essa parte para ele não é verdadeira. A segunda ("perguntem o
primeira razão - que ele chama por "razão preventiva" para
que podem fazer pelo vosso país") revela um certo organicismo,
defender a liberdade - reside no facto de que as esferas de
já que sugere que o Estado é o senhor ou a divindade e o
actuação do próprio Estado devem ser reduzidas ao máximo;
cidadão é um servo ou adorador: por que é que o cidadão tem
por outras palavras, e este é um axioma que podemos assim
que fazer qualquer coisa pelo país? O Estado é um meio, um
formular, para nós defendermos a liberdade do indivíduo o Estado
instrumento, e não um concessor de favores e dádivas e nem
deve ser o mínimo possíve~ reduzido a quê? A manter a lei e a
sequer um senhor ou Deus a quem se deve servir ou idolatrar.
ordem, a fazer cumprir os contratos privados e a fomentar
.É desta forma que Friedman diz "não!". O que devia mercados competitivos. Os contratos privados referidos não só
acontecer é o seguinte: "O homem livre não perguntará o que entre indivíduos mas também entre corporações e empresas.
é que o país pode fazer por si, nem o que ele pode fazer pelo seu Porém, ressalva Friedman, os contratos devem ser assinados
país -perguntará antes 'o que é que eu e os meus compatriotas por indivíduos responsáveis nessas corporações ou empresas;
podemos fazer através do Estado' e que nos ajude a assumir não deve haver assinaturas colectivas. E, neste sentido, o poder
as nossas responsabilidades individuais (... ) acima de tudo, a do Estado deve ser disseminado e reduzido; porque o poder de
3i' ··tif.' Fi·!ediÍ1~·11)vi::'(2o66; ·1.: ECiiÇãêi publicada em 1962): Capitalismo e Liber-
dade. Actual. Clássicos da Economia. Coimbra, Portugal. p. 25.
'1

Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

o Estado fazer o bem é também o poder que ele pode ter para apoia a criação de Governos representativos, de parlamentos,
executar maldade. "Disseminado" significa descentralizado. O de instituições democráticas e, consequentemente, a redução
poder do Estado não pode ser concentrado somente porque do poder do Estado arbitrário. No século XX, por sua vez
podemos partir da perspectiva de que o Estado é para o e segundo Friedman, assiste-se a uma maior intervenção do
bem-estar do cidadão. O mesmo poder que nós entregamos Estado nos assuntos económicos que é feita de uma forma
ao Estado "para o bem-estar" pode ser também usado no seu "pervertida" (vamos justificar depois porque é "pervertida"),
contrário, fazer o mal; e, para não cairmos nesta possibilidade isto é, é feita principalmente através da assistência social em
de nos conduzir ao mal, o poder do Estado deve ser não só detrimento dos mecanismos privados, ou seja, em detrimento
diminuído, senão também descentralizado ao máximo. Esta é das liberdades individuais.
uma razão "preventiva" no sentido de garantir a preservação Entretanto, aqui deixa-se antever que Milton acha que a
da liberdade prevenindo a possibilidade do poder do Estado "assistência social", (com~ por exemplo na educação, na saúde,
vir a ser usado para o "mal". Ou simplesmente mal usado! na habitação), que era para atender aos problemas sociais
À segunda Friedman chama "razão construtiva". E esta resultados da guerra mundial principalmente dos mobilizados
é civilizacional. Quer dizer,. é só ,através do Estado que os retira a possibilidade da liberdade fundamental do indivíduo 83
82 LEIT\JRASCllfTICAS
/+.. "UllF.RIMDll" DO NllOl.IDERAUSMO
avanços civilizacionais podem ser benéficos e realizáveis para e não o responsabiliza para lutar pela defesa dessa mesma
cada cidadão. E aqui contam os avanços na arquitectura, na liberdade contra a possibilidade de o Estado transgredi-la.
ciência, na literatura, na tecnologia, na indústria; esta é a razão Muitos programas de assistência social, segundo Friedman,
principal para o cidadão ligar-se ao Estado, nomeadamente eram em detrimento de mecanismos do mercado que é,
para ser-lhe possível beneficiar-se dos avanços nestas áreas. como vimos antes, o campo por excelência do exercício das
liberdades individuais. 'Resumindo, Friedman escreve: "O
Quais são as motivações que levaram Milton a escrever
liberal do século XIX via no aumento da liberdade a maneira
este livro? Ele repara em duas mudanças fundamentais que se
mais eficaz de promover a assistência social e a igualdade;
fazem, sendo uma no século XIX e a outra no século XX. No
no entanto, o liberal do século XX entende a assistência
século XIX surge o liberalismo individual segundo o qual o
social e a igualdade como condições prévias ou alternativas
indivíduo torna-se a entidade portadora da liberdade. Segundo
à liberdade" 3 ·~; ou seja, o liberal do século XX até seria c~paz
Milton, esta doutrina apoia-se num Estado que é laissezfaire,
de entregar a sua liberdade para, em troca, beneficiar-se da
laissez passer (deixai fazer, deixai passar) na economia!, ou
assistência social, receber uma casa num sítio onde não teria
seja, apoia-se no comércio livre interno e no estrangeiro,
escolhido viver. Mas porque precisa daquela casa, abdica-se
que era assunto da economia. Na política, por seu lado, no
contexto desse liberalismo surgido no século XIX, o Estado
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

da sua liberdade de viver onde quiser; para receber um lugar Liberdade Económica, a Componente Fundamental das Liberdades
na escola onde é a única possibilidade da sua criança estudar,
abdica da sua liberdade de escolher onde a criança deveria Ao estudar a Constituição americana, Friedman nota que a
ser educada. Desta forma, o liberal do século XIX favorecia a ela (aqui também podemos fazer um paralelo com a nossa) é
descentralização política por causa da liberdade, mas o liberal redigida em defesa das liberdades políticas, mas não é regida
do século XX favorece um Governo centralizado, conclui. pela defesa da liberdade económica. Portanto, segundo ele,
Esta constatação deriva do objectivo central do Capitalismo há uma inversão. Como é que ele nota isso? Nota por causa
e Liberdade: analisar o papel do capitalismo competitivo como do seu pressuposto principal: se a liberdade económica é a
um sistema de liberdade económica e condição necessária para fundamental e condição necessária para as outras liberdades,
a liberdade política; ou seja, analisar o capitalismo competitivo então, resulta daí que devemos garantir a própria liberdade
ou de concorrência como um sistema de garantia da liberdade económica a partir já do texto constitucional. Se esta liberdade
económica sendo esta a condição para a liberdade política. económica não é garantida, então as outras liberdades estarão
Então, encontramos aqui semelhança ao marxismo, q11er em causa. Milton Friedman repara que, para o caso da defesa
dizer, a liberdade económica é condição necess,ária para da liberdade política, a Constituição americana formula leis
84 85
A'tlllfiRDAllE" ))O NEOl.llmAAUSMO
a liberdade polítiu1; é a partir daqui, como veremos, que e princípios para que ela não seja agredida; já para o caso da LEITURASCl\ITIC,\S

Foucault sustenta que é a economia que determina os "regimes liberdade económica, em vez de princípios e regras, impõe
de verdade". Quando nós dissemos aqui, com Friedman, que a instituições para regularem conforme os casos. E aí a questão
liberdade económica é a condição necessária para a liberdade surge: Como é que podemos garantir que esta liberdade
política, isto quer dizer também que é a economia que tem o fundamental, a económica, seja garantida pela constituição?
papel de avaliar a eficácia e a eficiência do Governo; e que ela, Como ficou patente na introdução deste livro, segundo o
a economia, é um instrumento político. Neste aspecto reside meu ponto de vista, a posição central do argumento neoliberal
o que podemos denominar por a "grande" reinterpretação de reside no facto de ter radicalizado a liberdade económica por
Foucault em relação ao neoliberalismo, que ele chama por formas que esta é vista como o fulcro do 'novo' liberalismo
biopolítica. Porém, esta questão já foi levantada no final do no século XX. E esta radicalização atingiu o seu auge em
capítulo sobre Hayek. "Assustam-me" as semelhanças entre o Friedman que praticamente não vê outra forma de defender
neoliberalismo e o marxismo neste aspecto! a liberdade individual dos tentáculos e da agressão do Estado
moderno senão por via da liberalização da economia. Porque,
ainda como disse acima, a economia do mercado livre é o
campo principal onde se concretiza a liberdade de escolha do
indivíduo.
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

Usando o próprio livro para sustentar esse meu ponto de Friedman começa por assinalar que os sistemas
vista sobre Friedman, escolhi alguns pontos que considero económicos desempenham um papel duplo em relação à
importantes para nós "conversarmos". O primeiro diz respeito liberdade económica e a liberdade política; por um lado,
à relação entre a liberdade económica e a liberdade política, e a liberdade no sistema económico em sí mesmo é a parte
como esta relação é argumentada por Friedman. Ele levanta ou o elemento integrante da própria liberdade, entendida
dois argumentos principais desta relação. O primeiro diz que na sua forma mais ampla. Por outro lado, e ainda segundo
o mercado é componente directo da liberdade; isto quer dizer Friedman, a liberdade económica é indispensável para a
a liberdade individual tem muitas formas de se manifestar, realização das liberdades políticas; quer dizer, não é possível
mas aquela que se manifesta no mercado é a sua componente que haja liberdade política sem haver liberdade económica;
fundamental. O segundo argumento sustenta que existe uma isto, dito de uma outra forma, significa que a liberdade
relação intrínseca entre o mercado e a liberdade política. económica é um pressuposto fundamental para que o cidadão,
Comecemos, antes, por uma breve introdução sobre a individualmente, goze de liberdades políticas. A história
relação entre a liberdade económica e a liberdade política; mostra que o capitalismo é uma condição necessária para
clarifiquemos a questão se existe uma relação directa_entre o haver liberdade política - diz-nos Friedman. Mas ela não
86 87
·unERDADF." no HF.OLIMAAllSMO
liberalismo económicó e o liberalismo polític;o. Aparentemente, é suficiente. Porquê é que ele insiste nesse aspecto? É que LFJTURASCRfTICAS

nos nossos países africanos que padeceram pela imposição também existiam sociedades capitalistas, ou seja, baseadas
de medidas neoliberais por via das instituições da Bretton no mercado e numa economia privada, mas apesar disso eram
Woods, esta parece ter sido vista como uma relação unívoca, totalitárias. Segundo o autor, no seu tempo existiam países
designadamente sem o liberalismo económico não poderia capitalistas como a 1tália, Espanha, Japão, etc., que tinham
existir liberalismo político, e vice-versa. [Num artigo que uma economia privada capitalista, e contrariamente, na sua
escrevi em meados da década de 90 do século passado, cujo composição política, eram totalitárias. Assim, ser capitalista
título era Liberalismo Político e Liberalismo Económico em com base na garantia da propriedade privada não garante,
Moçambique, procurava eu desmistificar, com base em Chantal por si mesmo, a possibilidade de haver liberdade política.
Moffe, esta relação que parecia ser natural. Na altura, defendia Então, o que é necessário para que a liberdade económica
algumas medidas de natureza social - e até mesmo "socialista" seja a condição não só necessária mas suficiente para que
- tomadas pelo Governo moçambicano e que me pareciam haja liberdades políticas? Quais são as ligações lógicas que
estar em perigo pelos excessos de liberalização económica e queremos construir entre a liberdade económica e a liberdade
do modelo "Estado mínimo" resultante das recomendações política? É neste sentido da questão que aparecem os dois
(melhor: "recados") das forças internacionais de cariz argumentos antes expostos.
neoliberal].
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

O primeiro argumento sustenta que o mercado é um deixarmos o mercado livre, de "trocas livres", que implique
componente directo da liberdade. Quando falamos de "coordenação" apenas. Aqui há uma escolha básica que temos
liberdade, entra-se no campo da ética e, sobre isto, Friedman que fazer; e, segundo Milton, a escolha óbvia deve ser na base
diz que a ética da liberdade não é "abrangente"; quer dizer de trocas livres, que ele chama por "modelo de capitalismo
que a ética da liberdade não tem que prescrever ao indivíduo competitivo"; trata-se de um modelo que funciona num
o que tem que fazer com a sua própria liberdade. O objectivo regime de "colaboração" e de "troca entre pessoas livres sem
desta ética é exactamente o seu contrário: deixar que cada um coerção".
se debata com o seu problema ético em conviver com a sua Para Friedman, "colaboração é estrictamente individual
própria liberdade, e não tem que prescrever os valores a serem e voluntária desde que (a) as empresas sejam privadas para
seguidos; ela, a liberdade, é em si auto-suficienteH. que as partes contratantes finais sejam indivíduos e (b) os
Para explicar este seu argumento, Friedman nos remete indivíduos sejam livres de fazer ou não qualquer troca". Neste
para o que ele chama "o problema básico de uma organização contexto de "colaboração" individual e voluntária, o papel do
social" que é: como coordenar as actividades económicas de Estado resume-se em manter a Lei e a Ordem para impedir a
88 grande quantidade de pessoas que compõem uma organização coerção física ou psicológica de um indivíduo sobre o outro e
89
social? E é na resposta a este problema que começa a questão fazer cumprir os contratos celebrados 35 • LEITURASCRÍTJC,\S

ética; para o autor, o 'ético' não é lidar com problemas do Desta forma, numa verdadeira economia de mercado
comportamento das pessoas numa sociedade capitalista. O livre, impede-se que uma pessoa possa ter a possibilidade
problema ético é organizacional, nomeadamente, o de co- de prejudicar à outra pessoa: o consumidor está protegido
ordenar as actividades económicas dado serem fundamentais da coerção do vendedor, porque as outras pessoas que estão
para todos nós quefazemos parte de uma determinada sociedade; a vender, às quais um consumidor-livre pode recorrer para
na linguagem de Friedman isto equivale perguntarmo-nos - e comprar [nós podemos ir comprar um fato tanto numa loja
aqui se compreende o problema axiológico - como poderíamos no Alto-Maé ou ir para Xipamanine adquirir um fato de
coordenar as liberdades económicas individuais dos membros "calamidades" ou ainda deslocarmo-nos à baixa da cidade
da sociedade. onde vendem fatos caros] estão protegidos devido à presença
Como resposta a este problema Friedman apresenta- dos outros vendedores. E essa liberdade çle não-coerção é
nos duas possibilidades de coordenar a economia: haver somente possível num sistema de mercado livre; portanto,
uma direcção do Estado que centraliza essa coordenação em si mesmo o mercado garante essa liberdade. O vendedor
e que implique certa "coerção" para os seus actores; ou também está protegido pelo mercado contra coerção do
José P. Castiano
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman

consumidor porque há muitos outros consumidores que Portanto, note-se, não somente necessária, mas também
podem vir parar aí. O trabalhador está protegido contra sefzâente em si mesma.
a coerção do patrão porque ele pode ir trabalhar para um Então, neste segundo argumento (relação da liberdade e
outro patrão e, por via disto, não é obrigado a trabalhar o mercado), trata-se de demonstrar que o mercado constitui
para um único patrão. Então, como vemos, o mercado é o a condição principal da liberdade política. Em conformidade
garante da liberdade ou, pelo menos, da falta de coerção. Este com isto, significa poder demonstrar as consequências que
aspecto é o mais importante. O mercado regula isto tudo de uma economia capitalista livre tem na política. Em primeiro
forma impessoal, não obedecendo à vontade de um grupo lugar, o mercado livre reduz o número de questões que são
centralizado e, de novo, com base em regras impessoais. decididas pela política; e, por conta Jisso, aumenta o número
Entretanto, é a partir daqui que Friedman liga a liberdade de decisões tomadas livremente pelos consumidores e
económica numa economia capitalista-livre à liberdade política. pela sociedade em geral. Quando o mercado é centralizado
Efectivamente, a regulação que o mercado faz é "impessoal" aumenta o número de decisões que são tomadas pela política.
porque ao consumidor, ao escolher por exemplo um fato, não Por exemplo, as decisões económicas e sociais têm que ir todas
lhe vai interessar saber quem o fabricou; não lhe inter.essa que ao Parlamento ou o Governo tem que decidir sobre quase 91
90 tudo. Pelo contrário, o mercado livre aumenta o número de
llJTURAS CRITICAS
A "!,lílERlli\Oll" t:IO NEOllDERAllSMO
tenha sido um judeu, um negro, ou um árabe; ele vai comprar
somente segundo o preço; portanto, o mercado em si já é questões que nós, como cidadãos, temos que decidir por nossa
impessoal, não é discriminador; é indiferente relativamente à conta e responsabilidade. E a isto se chama "decisões livres".
origem étnica, racial, do género, religião ou outra espécie de Em segundo lugar, o mercado é um sistema de
origem do fabricante. O mais importante: O mercado regula representação proporcional o que o Parlamento não é. Cada
estas relações comerciais de forma impessoal não obedecendo homem pode "votar" na cor da gravata que quer; se quiser uma
à vontade de um certo grupo de pessoas no centro do poder. vermelha pode "votar" por ela e não tem que saber qual é a cor
A economia "dá às pessoas o que elas querem e não o que que a maioria quer; e, no mesmo diapasão, se o consumidor
determinado grupo acha que deviam querer" 36 . estiver em menoria, não tem que conformar-se com o gosto
O segundo argu~nto centra-se na relação entre o da maioria. Portanto, o mercado livre tem uma representação
mercado e a liberdade política. Não esqueçamos que Friedman proporcional, embora "cega", e, sobretudo, impessoal.
está à seguir o objectivo do livro, que é o de saber como um Em terceiro lugar, se liberdade política significa ausência
sistema de liberdade económica pode ser condição necessária, de coerção de um sobre o outro ao afastar a "organização"
e sobretudo suficiente, para a garantia da liberdade política. da actividade económica do domínio da política, o mercado
elimina a possibilidade da coercividade; se liberdade política é
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

falta de coerção como vimos em Hayek, então ao afastarmos o numa economia de mercado, ninguém compra uma gravata
Estado desta coerção, na organização da economia, o mercado sabendo de antemão que o algodão usado no seu fabrico foi
elimina automaticamente a coerção que pode vir do poder produzido, na verdade, por um comunista ou por um fascista.
político. Neste aspecto, Friedman concretiza a definição de Não interessa absolutamente nada. Portanto, a sociedade de
Hayek, segundo a qual liberdade é ausência de coersão. mercado livre é, em si mesma, uma sociedade com pluralidade
E quarto, e o último argumento, descansa sob o facto de garantida. E isso, mais uma vez, demonstra que o mercado
ser muito mais difícil descentralizar o poder político enquanto é impessoal e, por isso, pode separar actividades económicas
o poder económico continuar centralizado; ou seja, se nós das opiniões políticas; e, por fim, impede que pessoas sejam
estivermos numa economia centralizada nas mãos do Estado descriminadas com base nas suas opiniões políticas.: eu posso
seria muito mais difícil descentralizar o poder político. Então, ir comprar a gravata no fascista porque não é possível no
é mais fácil inverter os termos: descentralizar o poder político mercado saber quem a fabricou. Neste sentido, separa bem
quando a economia está descentralizada ou quando a economia as pessoas a partir das suas opiniões políticas: "Negócio é
·é livre. negócio, polílita é polílita'', soi dizer-se.

92 Peguemos uin exemplo de Moçambique: depois- de, no Termino esta parte com a questão crucial sobre a definição
A "llBl!RDAOE" OONEOUDERAHSMO
93
Governo de Armando Emílio Guebuza, terem sido alocados os de um liberal para Milton Friedman. Ele eleva a característica LEITURA5CRITICA5

sete milhões para cada distrito, torna-se mais fácil descentralizar- de ser alguém que quase sempre anda profundamente
se políticamente. Porquê? As pessoas começam a tomar as suas desconfiado e, por isso, sempre alerta contra a possibilidade
decisões sobre aquele dinheiro; são decisões, à primeira vista, de o Estado sob o qual vive retorná-lo - é aqui uso o termo
económicas; mas depois transformam-se em decisões políticas de Hayek - de novo à condição de servidão. Pois, segundo
quando se criam "Conselhos Distritais" onde, como ideal, Friedman, um liberal é aquele que se caracteriza por:
todos os locais estão directamente representados. Friedman ( ... ser) receoso da concentração de poderes. O seu
ilustra estas suas ideias com alguns exemplos. Numa sociedade objectivo é preservar o maior grau de liberdade
capitalista, diz-nos ele, nota-se que o cidadão é livre porque é para cada indivíduo separadamente mas que seja
compatível com a liberdade de um homem sem
mais fácil para ele lutar, por exemplo, por ideias socialistas; a
prejudicar a liberdade de outros homens. Ele [o
mesma "liberdade" não se verifica no socialismo; ou seja, numa
liberal] acredita que esse objectivo implica que o
sociedade socialista, sem a liberdade de decisão, é muito mais poder seja disseminado. Desconfia da atribuição
dificil encontrar pessoas livres a lutarem pelo capitalismo. E de quaisquer funções ao Estado que possam ser
isto significa o mesmo que não haver liberdade. desempenhadas através do mercado, não só porque
isto substitui a colaboração voluntária pela coerção
Um outro exemplo que Friedman usa é o seguinte:
na área em questão mas também porque, ao dar ao
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman
José P. Casciano

Estado um papel mais importante, põe em perigo a neoliberalismo como um problema filosófico, que tinha que
liberdade noutras áreas. 37 ser tratado filosoficamente. Então, nesta perspectiva, uma das
E, com esta citação, chegamos ao seguinte ponto: mostrar, questões que se levanta no neoliberalismo, é o papel do Estado
por via de Friedman, como o papel do Estado numa sociedade numa sociedade livre, isto do ponto de vista filosófico.
de cariz neoliberal, é concebido na sua generalidade. Milton Friedman desenvolve três argumentos sobre
o papel do Estado numa economia de mercado livre. O
Estado: Legislador, Árbitro, Regulador de "Efeitos de Vizinhança" primeiro, é o de legislador e árbitro; o segundo é que o
Estado deve intervir somente em assuntos que o mercado
Recorde-se que estou a analisar o neoliberalismo não a não pode corrigir por si; e o terceiro é que o Estado não
partir da sua vertente economicista, designadamente, não a deve ser paternalista. Este último argumento é contra a
partir da vertente da sua "chave restrita", como eu chamei assistência social ou sobre, o que é pior para nós africanos, a
na introdução, senão a partir da "ampla". Compete-nos, assim, impossibilidade do Estado social. Vou passar a desenvolver
interrogar o papel do Estado num contexto neoliberal em estes três argumentos, mas antes disso devo chamar a vossa
94 geral. Milton é apenas um suporte importante porque, para atenção para alguns pressupostos. 95
J81ôllJJAUF.•ooNf.OLIBERAl!SM'O
LF.ITUll.ASCRfTICAS

nós em Moçambique, o neoliberalismo entra mais à imagem O liberalismo, segundo Milton, é organizado na base de
e semelhança ao norte-americano, pelo menos no que diz dois princípios: debate livre e colaboração voluntária. Isto
respeito à filosofia aplicada no respeitante processo histórico é, sem coerção. Assim, daí resulta que: quanto maior for o
de liberalização da economia moçambicana·~ 8 , que ao, por número das actividades abrangidas pelo mercado, menos serão
exemplo, alemão. os assuntos sobres os quais são necessárias decisões políticas
E o segundo elemento que eu desejo recordar prende-se e, consequentemente, sobre os quais é necessário chegar-se a
com o facto de estarmos a caminhar lentamente para o que "acordo" político. O Parlamento vai discutir menos leis, vai
Foucault vai denominar "biopolítica". Este foi o primeiro legislar menos, vai precisar de recorrer a menos energias para
[salvo outras interpretações, se o não ter sido, pelo menos chegar a um acordo. D.ito de outra forma, somente assuntos
foi o que mais profundamente o fez] a levantar o problema que se revelarem fundamentais iriam ao debate parlamentar;
do neoliberalismo a partir de urna perspectiva filosófica~ não vai ser necessário que os assuntos e desentendimentos
Isto quer dizer que Foucault foi o primeiro a reconhecer o sociais que se revelarem fundamentais cheguem às mãos do
político; e quanto menor forem os assuntos sobre os quais é
necessária um acordo, maior é a probabilidade de conseguí-lo
37" ·crr: Frlê<liúaü)J.'(iúio6):' c~pliàlz~·,iio ... Ibidem. p. 1 i.
38 Leia-se, a este respeito, o livro da antiga Primeira-Ministra de Moçambique, e, desta forma, manter ao mesmo tempo urna sociedade livre.
Luísa Diogo, intitulado A So11pa da Madrugada.
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

Por causa do mercado que absorve muitos assuntos, e resolve- sobre os quais se tinha que aplicar a "ditadura da maioria" que
os, não será necessária uma grande sobrecarga de trabalho lesa, muitas vezes, o principio ideal da unanimidade. Se todos
dos deputados e haverá maior probabilidade de se atingirem os assuntos sobre os quais temos que estar de acordo forem
consensos sociais; porque não haverá, consequentemente, desaguar ao Parlamento, e sobre estes mesmos não houver
assuntos que sejam de atritos para chegar-se a
acordos consenso, dado que nesse mesmo Parlamento a decisão é
fundamentais. E assim, a possibilidade de uma convivência tomada em função da maioria, significaria haver muitos
pacífica numa sociedade de mercado livre é maior. [Seria, no assuntos sobre os quais a minoria não vai assumir a decisão
mínimo. Porque, quanto a mim, o neoliberalismo, por causa final como sendo justa; exactamente por terem passado devido
mesmo desta obsessão de deixar o Estado fora dos assuntos à dita ditadura da maioria. A bancada maioritária vai decidir
sociais, sofre, sem solução possível dentro de si mesmo, de sempre em função dos seus interesses - é lógico - para
uma contradição fundamental, que Marx aliás já previa: a de garantir a sua manutenção no poder. Então, em condições
uma extrema apropriação privada do capital disponível em de uma liberdade económica maior, haveria cada vez menos
poucas mãos, enquanto a maioria vive na miséria. Para além assuntos sobre os quais a ditadura da maioria vai aplicar as
de se apregoar que esta sociedade é livre, o que ela n~o C', não suas vantagens J.
96 97
poderá ser por si mesma, justa. Porque, li?erdade sem justiça O papel primordial do Estado, segundo Friedman, é o de LEll1.JRAS CRITICAS

social, é impossível, quanto a mim]. ser legislador e/ ou árbitro. Há três tipos de actividades de
[Nos últimos anos Moçambique enfrentou o problema membros numa sociedade. Enquanto umas são do quotidiano
da paz (melhor: da guerra). E é um acordo fundamental ao como comer, beber, jogar, dormir, etc., outras necessitam
qual devemos chegar enquanto moçambicanos. Não sei se de um enquadramento jurídico, designadamente contratos,
vamos ter que rever a Constituição porque se trata de uma matricular os filhos numa escola, etc. e, por isso, precisam
questão fundamental para manter coesa a nossa sociedade de regras e acordos entre os nelas envolvidos; por fim, há
moçambicana. Mas, no meio desse problema da guerra, há um terceiro tipo de actividades ligadas aos costumes, ou
ainda muitos assuntos que o Parlamento moçambicano recebe seja, do fórum familiar. A função do Estado é proporcionar
e que engordam o pacote de assuntos que provocam atritos, e um meio através do qual podemos alterar as regras para
acrescentam o clima de suspeição já bastante corroído. Então, resolver as prováveis divergências sobre o significado e o
o que Milton Friedman parece estar a dizer é, quanto menos sentido das regras por parte dos poucos que, de outra forma,
acordos tivermos que tomar a nível político, melhor será não participariam no jogo. O Estado não tem e nem pode
porque o Parlamento concentrar-se-ia nos fundamentais (na ter a função de resolver as divergências que surgem. A sua
guerra, neste caso) da nossa vida. E isto só pode ser possível função deve limitar-se em rever as regras básicas que possam
no mercado livre onde diminuiria os momentos e assuntos permitir a resolução das divergências.
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

Aqui encostamos a Habermas que diz que uma acção Ou seja, o Estado deve ser capaz de definir onde o meu
comunicativa (ou agir comunicativo) é aquela que é dirigida punho deve parar: a minha liberdade em deslocar o meu
para fixar as regras ou normas pelas quais vamos discutir punho eleve ser limitada pela proximidade do teu nariz. Por
como, apesar das nossas divergências, continuarmos juntos, outra, equivale a dizer que o principal problema do Estado é
como membros da mesma comunidade. Ou seja, o que estou renegar os conflitos que surjam entre as diferentes liberdades
a fizer agora, falar sozinho não é um agir comunicativo; mas individuais. E neste sentido, o Estado age como um árbitro
se vocês disserem "professor, pare ai! Isto não pode continuar (que não resolve conflitos, mas que estabelece as regras) entre
assim porque temos que renegociar as condições sob quais as liberdades individuais.
vamos continuar nesta sala. E uma delas é deixar-nos falar ou
Milton assevera existirem três áreas nas quais o Estado
termos o direito de interrompê-lo, quando assim o acharmos
pode arbitrar segundo este princípio. São áreas onde há maior
individualmente"; ou seja, se quisermos continuar a termos
probabilidade de surgir mais conflitos entre as liberdades
aulas devemos mudar ou discutir sobre as regras. Ai estamos
individuais. A primeira é a económica porque aqui verifica-se
perante um discurso comunicativo, porque ele está a discutir
um conflito entre liberdade de combinar e de competir, ou seja,
a possibilidade de continuarmos com as aulas. l[m outro
98 um conflito entre a liberdade individual e o monopólio. O que
exemplo: de certeza que hoje regressarãq tarde para casa. E 99
significa ser livre aqui? Por exemplo, qualquer pessoa pode LEITURAS CRITICAS

quando chegarem, o parceiro ou a parceira diz: "espera ai pá,


iniciar uma empresa, e as empresas têm liberdade ele fixar seus
tem que haver um dia no qual você sen téi-se à mesa e janta com
preços, defenderem o seu mercado, afastar a concorrência, etc.
as crianças; não podes continuar a chegar todos os dias com as
Então aqui há um campo ele tensão entre liberdade e Estado;
crianças já a dormir!". O que está em debate, no fundo, não é o
por um lado, qualquer empresa não pode fixar os seus preços,
seu atraso; senão a condição para continuarem a ser uma família,
embora, por outro, têm que manter a liberdade de fixar os
que é ele você estar presente, pelo menos uma vez por semana,
preços. É o Estado que fixa os preços, então o "balanço" ou
ao jantar. Então esse é que é um discurso comunicativo porque
meio-termo aqui é o Estado fixar os preços dos produtos
se discutem as regras constitutivas que nos tornam membros
básicos e deixar os outros preços relativamente "livres".
ele uma comunidade, neste caso ele uma família.
Uma outra área difícil é a do direito de propriedade, direitos
Portanto, a função básica do Estado é a de "proporcionar de autores, patentes, acções em sociedades. Não vou entrar
um meio através do qual possamos alterar as regras, resolver muito nisso, mas o mais importante é que nesta se discutem
divergências sobre o significado das regras por parte dos os limites de um proprietário: onde estão os limites do direito
poucos que de outra forma não haveriam de participar no de usar a minha propriedade? Por exemplo, se eu possuir uma
jogo'', é assim que Friedman resume. 39 lagoa, tenho o direito de isentar aos outros da "vista ao lago"
("direitos ribeirinhos")? E uma outra área tem a ver com o
39· .. cri.' Frléêimari; 'M:: '(2066):' c~pz'i~iz's'iria ... Ibidem. p. 55.
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

sistema monetário. A questão do Estado ter, em seu poder, o Friedman - são os "efeitos de vizinhança". Estes efeitos
direito e dever de cunhar a moeda, regular o seu valor contra aparecem quando determinados actos de indivíduos isolados
as moedas estrangeiras; então aqui aqui o problema que se afectam os outros pelos quais não é possível cobrar-lhes o
colaca é o meio-termo ou balançar entre esta competência do seu pagamento. Um exemplo: construção de autoestradas e
Estado e não prejudicar algumas regiões que podem também portagens; ao instalar portagens afecta-se o acesso a todos e
usar a moeda estrangeira, sobretudo entre as populações cobra-se somente a certos indivíduos.
fronteiriças.
[Esta construção da portagem da Matola, por exemplo,
Perante estes desafios que dissemos acima, isto é, questão afectou muita gente mas os que são cobrados são apenas alguns
onde o Estado não deve meter a mão, Milton Friedman conclui indivíduos que por lá passam de carro. O mesmo raciocínio
que este deve apenas intervir naquelas áreas onde o mercado serve, por exemplo, para os casos dos Parques Nacionais
não pode e nem consegue corrigir por si mesmo: no monopólio que se priva a todos para alguns que pagam ou podem pagar,
técnico e nos "efeitos de vizinhança". usufruírem deles].
Quanto ao monopólio técnico refere-se aos momentos de Friedman escreve que os efeitos de vizinhança são uma "faca
100 ausência de alternativa para uma plena liberdade nas trocas. de dois gumes": "podem ser a razão para limitar as actividades 101
LEITURASCR.CTICAS

Por exemplo, os caminhos-de-ferro no século XIX constituíam do Estado, mas também para aumentá-las" porque "impedem
um bem público regulado pelo Estado observando o direito a troca voluntária" dado ser dificil avaliar a magnitude das
de todos poderem gozar a sua liberdade de viajar. O Estado suas consequências, ou seja, "saber quando são suficientemente
"intervinha" na liberdade individual garantindo, através do fortes para justificar determinados custos e ainda mais dificil
monopólio sobre os caminhos-de-ferro, que todos possam distribuir os custos" pelos membros de uma sociedade4 º.
gozar do direito à viagem. Todavia, a mesma atitude de
Um outro exemplo, também curioso, é na educação.
monopólio do Estado não se justifica já no século XX onde
Friedman justifica que uma das razões para o Estado
há várias possibilidades de transporte, designadamente por
intervir na educação são os seus efeitos de vizinhança dado
via de aviões, camiões, etc. Era preciso garantir que houvesse
que, neste campo, acções dos indivíduos isolados infligem
um monopólio na importação das tecnologias ou técnicas
custos significativos a outros indivíduos pelos quais não se
para poder construir os caminhos-de-ferro, o que teve como
pode obrigar a compensá-los. Ou seja, a sociedade, os pais,
consequência impedir a concorrência nesta esfera da economia.
não podem exigir o pagamento do que gastam para que os
O segundo elemento sobre o qual o Estado deve intervir seus filhos sejam educados. Da mesma forma, a educação cria
quando o mercado por si só não pode resolver - e aqui trata- circunstâncias em que se .concede ganhos significativos para
se de um conceito muito importante e fundamental para
4ó. ··cri: F'rleCiili~iii; "M: '( 2oó6):' cãpitáii'.s'iria ... Ibidem. p. 61-62.
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

outros indivíduos a quem não seria viável e nem razoável inicial, onde portanto, aplica a teoria aos diferentes sectores da
obrigá-los a compensar. Os pais pobres, porque não podem política social (trabalho, saúde, sistema de educação, escola),
pagar todos os serviços educacionais prestados aos seus filhos, deve ter-se este conceito sempre em vista.
não se lhes pode exigir, na lógica mercantil, que compensem Só a partir dos efeitos de vizinhança é que se percebem
aos ricos pelo facto dos seus filhos terem beneficiado daqueles as posições 'anti-sociais' de Friedman e as consequentes
serviços. imposições anti-socialistas neoliberais para com os países
Também podemos olhar para os efeitos de vizinhança africanos. Ou seja, que se entendem as ditas "receitas"
na educação de um outro ângulo, pois, nós todos pagamos neoliberais aplicadas para Moçambique e outros países nos
impostos ( 17% do salário) que servem para construir escolas, anos 70 e 80 do século passado. Mas também é a partir deste
hospitais, etc. Por isso, automaticamente, nós teríamos o direito conceito que podemos iniciar uma crítica teórica contra as
de frequentar essas escolas gratuitamente, ou pelo menos, com posições neoliberais.
taxas reduzidas. Porém, na mesma sociedade, encontramos É a partir da racionalidade por debaixo dos efeitos de
uma pequena elite cujos filhos frequentam escolas privadas. Só vizinhança que eu, enquanto um duplo pagador de impostos,
que 0 mesmo já pagou para a escola pública e ao emr_j._ar o seu tenho que me revoltar precisamente por estar a pagar duas IOS
102 LEITURAS CltfTICAll
A "L!Ol!IUMDE" DONl'.OUBERAll5MO
filho para uma escola privada (ou seja, nã9-pública), no fundo, ou três vezes aos indivíduos (neste caso "vizinhos" da mesma
está a pagar duplamente os impostos; para a escola pública, nação) que não querem trabalhar; apesar disso, tenho que
porque ao pagar as propinas na escola privada, paga também continuar a subsidiar a sua vida por via de impostos. Nesta
mais impostos. Está, com este gesto e segundo Friedman, a perspectiva, o neoliberal encontra espaço para perguntar: de
pagar duplamente pelos mesmos objectivos. onde é que viria a responsabilidade dele enquanto cidadão
Por que é este um "efeito de vizinhança"? Porque o mesmo para consigo mesmo e para com os outros? Se ele, enquanto
indivíduo paga o imposto normal e depois paga ainda a escola desempregado, por exemplo, recebe tudo por via de impostos
que escolheu para o seu filho estudar, mas não pode pedir para (quase que é possível dizer 'de graça'); os efeitos de vizinhança
que seja compensado por este duplo pagamento, no qual um impedem a troca voluntária por ser dificil, segundo Friedman,
deles é pago indirectamente para o "vizinho". avaliar a magnitude das suas consequências, saber quando são
suficientemente fortes para justificar determinados custos; e
Este conceito - efeitos de vizinhança - é fundamental para
ainda, o mais dificil, distribuir os custos dum certo sistema
entender as posições de Milton Friedman frente às políticas
social de forma equitativa pelos seus beneficiários.
sociais liberais para a educação, em relação ao trabalho, à saúde,
sobre os quais desenvolve nos capítulos subsequentes. Ao ler- Mais tarde vamos notar que, por causa desses efeitos
se Capitalismo e Liberdade nos capítulos que seguem ao teórico de vizinhança, a máquina burocrática do Estado, segundo
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

Friedman, tende a aumentar o seu número de funcionários a justificação de que "o sistema apropriado num mercado livre
e isto explica-se pelo seguinte: Porque o cidadão X paga é a força militar voluntária"; (12) gerir "parques nacionais";
duas vezes os impostos, se se multiplicar por todos membros (13) proibir os correios com fins lucrativos e (13) exploração
de uma comunidade ou sociedade, então significará que a privada de portagens nas autoestradas.
máquina burocrática ou o número de pessoas para gerir Estas propostas de medidas neoliberais terminam o capítulo
todas estas (chamemos por) "contribuições sociais" também "teórico" do livro que, em resumo, defende: um Estado não
terá necessariamente que aumentar. O ponto de Friedman deve ser paternalista para com os seus concidadãos, excepto
é 0 seguinte: torna-se, com efeito, difícil saber qu~nd~ são para com os loucos e as crianças. Pois, segundo ele, "a liberdade
suficientemente fortes esses efeitos de vizinhança para Justificar é um objectivo defensável para indivíduos responsáveis"; e
determinados custos, como por exemplo com os funcionários loucos e crianças não o são. Recorde-se aqui a introdução do
da máquina burocrática que aumenta 'necessariamente' quanto livro onde se afirma que o "homem livre" não questiona-se
maior impostos pagarmos. Há pouco, o ministério que tutela sobre o que ele pode fazer pelo seu país ou o que o país pode
0 Ensino Superior decidiu "engordar" o aparato burocrático fazer por ele (duas faces do paternalismo) senão o que é que
criando uma Autoridade para a inspecção do Ensino ~uperior. os homens podem fazer através do Estado. O Estado não está . 105
104 Novos funcionários para velhas tarefas! para proteger as liberdades, mas para ajudar a cada um de nós
Ll!ITUR.ASCRITIC/\S
11 "UDl!RDAUli"DO HEOUBERAUSMO

Embora abordada em páginas iniciais do Capitalismo e a protegermos as nossas próprias liberdades.


Liberdade, a seguinte lista de "actividades que não deviam Se repararmos com alguma atenção, o capítulo onde
ser feitas pelo Estado" passam a ser, agora, claras. Friedman Friedman explana as suas posições sobre a educação, e
alerta que esta "lista proibida" não está completa. Segundo a principalmente o livro que ele escreveu com a sua mulher -
lista, o Estado não deveria: ( 1) apoiar a paridade dos preços A Liberdade de Escolher - notamos que ele aplica o conceito
agrícolas; (2) restringir as importações por exemplo de . "efeitos de vizinhança" a partir dos seus resultados e efeitos,
açúcar, petróleo, etc.; (s) fazer um controlo da produção; (4) principalmente na economia. Por ser um economista, ele
controlar a renda; (5) fixar qualquer salário mínimo ou preço faz cálculos que demonstram que o sistema de educação
máximo; (6) regular pormenorizadamente as actividades americano é muito caro e que poderia ser organizado com
industriais; (7) controlar a rádio e a televisão; (8) desenvolver maior eficiência. Pois, segundo Friedman, o resultado final é
programas sociais; (9) promulgar leis de licenciamento de que os custos para sustentar a educação são muito caros, já
profissões [ou seja, "reservar" determinadas empresas ou que alimenta-se toda máquina burocrática de funcionários.
profissões a pessoas com licença como médicos, advogados,
etc.]; (10) promulgar programas de habitação social; (11)
recrutar pessoas para o serviço militar em tempos de paz com
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedrnan José P. Castiano

O Estado e a Educação: Um Caso Diflcil A segunda razão (melhor, talvez, sena dizer "ponto de
partida") de Milton Friedman é o paternalismo do Estado.
No que diz respeito ao cuidado ou intervenção do Estado Por que é que o Estado deve investir e cuidar da educação
na educação das crianças, Friedman sustenta ser um caso das crianças anulando a responsabilidade própria? melhor: a
difícil por decidir. Friedman acredita que os pais em geral possibilidade de os pais serem responsáveis por si mesmos?
podem fazer melhor aos seus filhos se cuidarem da sua
Então, segundo ele, tendo em conta os efeitos de vizinhança
transformação em indivíduos responsáveis para quem a
e o paternalismo do Estado na educação, decorrem daqui três
liberdade é apropriada; porém, não acredita na liberdade
consequências: primeiro, impossibilita as trocas voluntárias,
dos pais em disporem como quiserem com as outras pessoas,
ou seja, a liberdade; segundo, ambo:s têm efeitos na educação
mesmo que sejam filhos. Estes têm valor e liberdade próprios;
geral para cidadania; e, terceiro, têm efeitos na formação
não são uma simples extensão da liberdade dos pais. E aqui
profissional.
é um caso difícil balançar até onde vai a liberdade dos pais
sobre os filhos e onde começa a liberdade dos . filhos de Em relação ao efeito na educação geral para a cidadania,
decidirem por si próprios. Ou s~ja, os pais não podem usar a é importante que se diga que a opinião de Friedman incide
106 sua liberdade para decidirem pelos filhos, sem respell:arem a na "desnacionalização da educação". Ele constata que os 107
Ll!ITUkAS CRITICAS

liberdade dos filhos. argumentos que levaram à nacionalização da escola pública


resultaram ser uma falácia. Quais são esses argumentos?
Friedman parte do princ1p10 que o Estado não deve
cuidar da educação por duas razões: A primeira é pelos O primeiro argumento parte da necessidade de preservar
efeitos de vizinhança sobre os quais falamos acima; ou seja, e transmitir "valores comuns" de uma sociedade por via da
as circunstâncias em que acções de indivíduos infligem custos educação. Temos que dar às crianças alguns valores comuns
significativos aos outros indivíduos pelas quais não se pode para que a sua socialização seja possível.
obrigar a compensá-los de volta; a sociedade, por via dos O segundo argumento para a nacionalização da escola
pais, não pode exigir o pagamento que gastam pelos filhos baseia-se no perigo de perpetuar a estratificação social;
na educação; ou seja, nem os pais, nem o Estado não podem segundo este argumento, a escola pública é dada como aquela
exigir a compensação pelos gastos na educação dos filhos. que distribui oportunidades iguais, evitando, portanto, uma
Tu, convenhamos, não podes exigir de volta o teu dinheiro à diferenciação social acentuada entre os membros de uma
uma escola argumentando ter gasto muito pelo teu filho para mesma sociedade. Ou seja, defende-se a escola pública devido
estudar, sem estares, no entanto satisfeito com o resultado. ao facto de que a escola privada conduziria ao agravamento
O normal é que tu culpes ao teu próprio filho pelo seu baixo das diferenças entre as classes sociais; porque os pais com
aproveitamento escolar. rendimentos mais altos pagariam as melhores escolas para os
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

seus filhos, o mesmo não podendo acontecer com os parentes argumento, Friedmann conclui: "O actual sistema centralizado
de rendimentos mais baixos. [da escola pública], longe de equilibrar as oportunidades,
dificulta a possibilidade de alguns indivíduos excepcionais
O terceiro argumento em favor da nacionalização da escola
saírem da pobreza" 41 •
centra-se na qualidade de prestação de serviços; ou seja, a
necessidade de garantir uma boa qualidade do ensino por O segundo contra-argumento apresentado por Friedman
via da formação dos professores, garantindo salários iguais refere-se ao facto de que não podemos imaginar que, por mais
para que possam prestar bons serviços em todas escolas onde pobres sejam os pais, não sejam capazes de se sacrificarem
estiverem a trabalhar. Por último, há o argumento tecnológico: para proporcionar as melhores escolas para os seus filhos.
por via da escola pública deve garantir-se que todas as crianças Muitas famílias pobres - diz ele - poupam ou juntam dinheiro
tenham acesso simultâneo aos avanços da tecnologia. para comprar um bom carro ou para construírem uma boa
casa. Se tiverem o dinheiro nas suas mãos (i.e. o dinheiro que
Entrementes, Milton Friedman vai depois apresentando
pagam impostos para a escola pública lhes fosse retido nas
contra-argumentos (contra a "ideopia" da Escola Pública)
suas próprias mãos para decidirem por eles como usá-lo),
relativamente a cada um deles. Sobre o primeiro argumento
também seriam capazes de adicionar montantes necessários 109
108 (necessidade de haver um núcleo principal de valores por UITURA.'i CRITICAS
'U!IERCMDli" DO NEOUUEMHSMO
para conseguir uma boa educação numa boa escola para os
conta de garantir um grau mínimo de educação para um
seus filhos. O Estado deveria deixar o dinheiro destinado à
consenso social; e isto, por sua vez, por conta do mínimo das
assistência social para a educação nas mãos dos pais para eles
competências de literacia e conhecimentos científicos) ele
fazerem as suas próprias escolhas relativamente à escola onde
contra-argumenta sustentando que este "grau mínimo de
educar os seus filhos.
educação" não é atingível, pelo menos como o demonstra a
história humana até hoje. Porque a consequência directa de Então, com base nestes contra-argumentos contra a
uma extensão dos serviços educacionais controlados pelo estabilização da escola pública, qual é a solução que o autor
Estado seria o aumento permanente de custos em relação ao advoga? Os governos poderiam, aos seus olhos, impor um
beneficio; e isto não seria eficaz, porque esta necessidade de nível mínimo de escolaridade que seria financiado pelos
garantir um grau mínimo de educação para todos por via do próprios pais através de "vales esgotáveis". Este seri~ um
Estado, na verdade, aumentou a máquina da administração montante máximo especificado por criança/ ano dependendo
burocrática que ficou muito pesada; aliás, não é garantido que se o pai colocou o seu filho no ensino privado ou público;
o Estado consiga controlar se todas as crianças atingem um os pais poderiam então gastar esse montante "retido" e
"grau mínimo" de valores e que esses valores sejam atingidos qualquer montante adicional que eles próprios conseguissem,
através da educação na escola pública. Sobre este contra-
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Casei ano

na compra do ensino adicional. Neste modelo poderiam até segundo o nosso autor, a liberdade dos pais escolherem
escolher uma instituição privada ou pública segundo o que projectos educacionais para os seus filhos.
poderiam adicionar. A solução que Friedman nos sugere aqui é uma combinação
Vou ser mais claro: Friedman diz que os pais devem ter de escolas privadas e escolas públicas. Os pais que decidirem
"liberdade de escolher" entre as propostas educacionais enviar seus filhos para a escola privada receberiam uma quantia
que são apresentadas aos filhos e, para usufruírem desta igual ao custo estimado de educar um filho numa escola
liberdade de escolha, a única forma de o fazer é instituir- pública, na condição de que esta quantia seja aplicada para a
se a possibilidade de vale especialmente dirigido aos gastos educação numa escola autorizada pelo Estado; ou seja, ficaria
adicionas com relação aos filhos. Segundo este pensamento, livre em meter o filho. numa escola privada em que se paga
atribui-se à cada criança um determinado valor, que é um mais. Ao Estado, segundo Friedman, caberia proporcionar a
"vale" baseado no valor que, ao invés de ir para os impostos, quantia básica em dinheiro que cada um decidiria se o gastaria
devia ser dado aos pais. O pressuposto é que já existe um "valor numa escola pública, ficando sob a sua responsabilidade se
básico" para a educação que se usa normalmente para o ensino vai pagar uma escola privada ou não. Na verdade, Friedman
básico. Então, a partir deste valor básico, os pais poçleriam formula assim: "Os pais que decidissem enviar os seus filhos 111
110 lEITURASCRfTICAS
"LllllillDAllt" DO NWLIBE~HSMO
decidir aumentá-lo para que os seus filhos p9ssam ir para uma para as escolas privadas receberiam uma quantia igual ao
escola privada ou então escolherem a escola pública, todavia custo estimado para educar o seu filho numa escola pública na
e mesmo assim, pagando. Isto evitaria que o mesmo dinheiro condição (... ) de que essa quantia fosse gasta com a educação
fosse para o Estado e depois voltasse indirectamente para a numa escola autorizada." 4·2
escola através do efeito de vizinhança. Pois, como vimos, os Por último, sobre o financiamento dos salários dos
efeitos de vizinhança aumentam os custos burocráticos; se o professores, Friedman defende que sistema no qual os
pai pagasse directamente de um vale fixo, aí ele escolheria qual pais decidem enviar os filhos para as escolas que quiserem,
é a proposta educacional que deve dar seus filhos; portanto, permitiria a flexibilização nos sistemas escolares e os salários
mantendo a liberdade fundamental que o pai tem na educação dos professores seriam sensíveis ao mercado. Para colocar o
do seu filho. seu filho na escola privada aumentando o dinheiro a partir
O que Friedman deveras procura destacar é que o duma base universal de financiamento, essa escola privada
argumento para manter o Estado na escolha de "valores estaria em condições de pagar mais ao professor. Então, o
comuns", não pode ser implementado em detrimento da salário não seria o mesmo que numa escola pública e isso havia
liberdade de escolha dos pais em relação aos projectos de flexibilizar o sistema de pagamento dos professores. No
educacionais. O argumento de valores comuns asfixia,
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

mínimo seria sensível ao mercado. Os melhores professores especiais que podem frequentar se quiserem, mas não se pode
teriam maiores salários. Assim, segundo Friedman, o sistema usar o dinheiro público para isso.
social em geral teria a quantidade de dinheiro que precisa O certo, e falo-vos a partir do que chamei no início por
para construir boas instalações e pagar bons salários aos "experiência de leitura", antes de ler Friedman, esperava ir
professores. O "problema essencial não é estarmos a investir ao encontro de um "monstro" neoliberal que nada quer saber
pouco na educação; mas estarmos a receber pouco por dólar acerca de almofadas sociais para os pobres. Fui descobrir
gasto". Quer dizer, é falso dizer que estamos a pagar pouco para um acérrimo defensor da liberdade económica sem que,
a educação; o problema para ele reside no facto de estarmos a necessariamente, estivesse de acordo com todas as suas
receber pouco pelo dinheiro gasto na educação dos filhos. Por posições. Insisto na questão da experiência que se faz durante
outro lado, o problema dos salários dos professores é de serem a leitura directa (e não de interpretações sobre o livro) porque,
uniformes ou rígidos: os maus professores recebem muito suspeito, este é o fundamento para uma certa honestidade
mais do que merecem e os bons professores muito menos do intelectual que de nós se exige permanentemente. Sob o
que mereceriam. risco e pena de cairmos no fundamentalismo teórico, isto
é, rejeitar a leitura de um teórico somente porque ele é um 113
112 LEITURASCRIT!C/\S
A ·us~llDAl>ll" DO NEOUDllRAUSMO

Concluindo: a educação não está a ser sub'-financiada como "neoliberal", assim também provocador de todos os males ao
diz-se sempre no discurso público. O que acontece é que em desenvolvimento.
relação à qualidade de serviços que recebemos de volta, estamos Para terminar, eu gostaria de voltar ao essencial que
a pagar muito para a educação dos nossos filhos. Friedman revejo em Friedman, isto é no sentido de "menos Estado, mais
inverte a forma como julgamos o financiamento da educação. mercado" e, nisto Friedman sublinha que a essência do Estado
Pois, segundo ele, o que se gasta em disciplinas "exóticas" é a defesa da liberdade; ou seja, nós precisamos de um Estado
culturais, como em cestarias, com danças tradicionais e desde que esteja para garantir as liberdades. Como ele próprio
outras, devia deixar-se aos pais decidirem por si mesmos e tratou de dizer, desde que nós todos possamos olhar para o
não obrigar-se às crianças a frequentarem-nas dado que essas Estado como um instrumento necessário para nos ajudar a
disciplinas aumentam os gastos públicos na educação. Com defendermos as nossas próprias liberdades.
estas "frivolidades", como ele as chama, cada prli não deveria Neste sentido, o que penso ser essencial na sua posição
ser obrigado a gastar o seu dinheiro, especialmente para os é a questão: Como é que posso construir um Estado que me
que têm pouco. Dever-se-ia dar oportunidade de escolha de garanta essas liberdades? Essa é a ideia fundamental. Então
pacotes para evitar efeitos de vizinhança nefastos. Se uma fomos dar o exemplo da educação para mostrar como, neste
criança quer aprender artes, música, etc, esses são cursos sector, se podem desenhar políticas estatais que tenham como
Capitalismo como Liberdade Económica em Friedman José P. Castiano

seu núcleo a garantia de que os parentes tenham a liberdade


de escolher o projecto educativo que acharem mais apropriado
para os seus filhos e educandos; nisto deixei outros sectores
sobre os quais Friedman também sustenta pontos-de-vista
interessantes, por exemplo sobre a profissionalização por via V
da intervenção no licenciamento das empresas, registos, etc.
Se nós pensarmos a partir deste ponto (como é que
posso usar o Estado para garantir a minha liberdade como Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria
pai, educador, para escolher o projecto educativo que o meu Crítica (Biopolítica)
filho vai aprender) então estamos a acertar no ponto principal
da preocupação de Friedman. A educação não aparece em "Bom Governo passa a ser aquele
que respeita o mercado livre (...),
primeira linha como um bem público isolado mas é vista sob o
mantém uma taxa de crescimento satiifactória,
ponto de vista de que o seu acesso possa ser uma realização da
um poder de compra em expansão,
liberdade de escolha por parte dos seus utentes. uma balança de pagamentos favorável. " 115
114< ll!ITURAS CR!"nC--AS

(. ..)
\ "llDERDA!lE" DONEOUBERAHSMO

/1 História tinha dito não ao Estado Alemão.


Mas agora é a economia que lhe vaipermitz"r ajfrmar-se."

(Foucault, em O Nascimento da Biopolítica.)

A tese que pretendo defender, nesta leitura crítica sobre


Foucault, é a seguinte: Ele foi o primeiro a analisar o
neoliberalismo a partir de uma perspectiva filosófica no
contexto do debate sobre a pós-modernidade. Esta tese resulta
de uma leitura atenta à obra O Nascimento da Biopolítica -
[Devo esclarecer que na lição a seguir, sobre a intercultura
em Ngoenha, desenvolvo mais sobre a questão o que significa
elaborar o conceito de uma época como um problema
filosófico baseando-me na "acusação" feita por Habermas a
Hegel. Habermas defende que "foi Hegel quem transformou
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P. Castiano

a modernidade num problema filosófico"Jh~. leitura de três acontecimentos-chave: a Reforma e Contra-


Os argumentos que sustentam esta tese são basicamente reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa].
três. O primeiro baseia-se no facto de que Foucault reelaborou O terceiro argumento, o principal, para defender a tese,
um novo princípio para a compreensão do neoliberalismo refere-se ao facto de Foucault, coerente com o novo princípio
ao qual ele chamou por "novo regime de veridicidade". de veridicação por ele elaborado, ter descentrado o conceito
Este princípio, como iremos ver, fundamenta-se na ideia neoliberalismo num outro: "biopolítica". Este novo conceito
foucaultiana de que, no neoliberalismo, a economia perfila explica-se porque Foucault, no seu livro O Nascimento, parte
como a instância crítica do acto de governação; por outras da seguinte questão central: "Como pensar a política de uma
palavras, a economia torna-se uma "limitação interna" ou sociedade liberal sem recurso à noção soberania (pensemos na
"limitação de facto" em relação à razão do Estado. Esta foi filosofia política francesa), ao princípio do constitucionalismo
uma "descoberta" de Foucault quando estuda os regimes de ou aos direitos humanos?" ou seja, como pensar a Governação
veridicidade e de legitimação em diferentes épocas. liberal a partir do mercado? 44
O segundo argumento é: Foucault produz este novo O próprio Foucault, no "resumo" das suas aulas, refere-se
116
A "Unl:ílUADl!"DO NBOL11!6~JISM0
princípio de veridicidade a partir de uma leitura atenta que biopolítica é a maneira como, a partir do séc. XVII, se tentou 117
Lf;tlURA.~ CRITICAS

de determinados "acontecimentos-chave" (expressão de racionalizar os problemas criados à prática governamental


Habermas) que o ajudaram a justificar esta posição. Estes pelos fenómenos específicos dos seres vivos, isto é, pela
acontecimentos-chave são três: a Alemanha, principalmente a "população": saúde, higiene, natalidade, longevidade, trabalho,
República de Weimar, o Nazismo e a reconstrução pós-guerra; emprego, raça, etc.
Os Estados Unidos principalmente a política económica
Estes fenómenos levaram os governos a elaborarem
e social levada a cabo por Roussevelt conhecida por New
políticas públicas e sociais para os resolverem. Enfim,
Deal e as subsequentes críticas. O terceiro acontecimento-
biopolí tica.
chave que Foucault toma para sustentar a sua análise são
os acontecimentos da Inglaterra e as propostas de Adam Resumindo estas notas introdutórias: Foucault, ao
Smith para a economia política principalmente a tese da "deslocar" o conceito neoliberalismo para o de biopolítica,
"mão invisível" do Estado efectivadas também pelas medidas segue a linha do aconselhamento de Hegel, segundo o qual,
propostas por l'\eyns, defendendo este uma certa intervenção o trabalho da filosofia é resumir o seu tempo num conceito
do Estado na economia. [Veremos que Hegel, para tornar a ou no pensamento. E para se chegar ao novo conceito que
modernidade como problema filosófico, baseia-se também na deve resumir o tempo que é dado ao filósofo viver passa-se,

43· ··Cf1:: i{ál);:íffiiis,T( i 9"98):" iYblsêitrso Filos~fico sobre a Modernidade. Publicações 44"". Segúiido '!'!T"tiii~·MàÇães. i-i,i"i11ti-'ô(iúÇão à Edição Portuguesa d' o Nascimento
Dom Quixote. . da Biopolítica, pp. VII-XV.
\.
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica {Biopolítica) José P. Castiano

necessariamente, por repensar os fundamentos da sociedade permitir-lhe-ão, já na quarta parte, aplicá-los especificamente
(para o caso de Foucault, da "razão governamental" do tempo para os casos do "ordoliberalismo" alemão e do anarco-
neoliberal). E Foucault encontrou este novo fundamento, não liberalismo americano, este último caso como foi pensado pela
no Direito, nem na Ética, senão no mercado. Como iremos ver, Escola de Chicago. A Foucault interessa, nestes dois casos,
o mercado se torna a instância a partir da qual e para a qual a descrever como o mercado se teria transformado na dita
governamentabilidade é julgada. "instância crítica" para a governamentabilidade; ou seja, como
Porém, antes de entrar por esta lição adentro, interessa o mercado se colocava permanentemente "contra os excessos
dizer que Foucault divide as suas lições (integrantes do da economia dirigista e planificada", uma tentação a que os
livro O Nascimento) em quatro partes: na primeira o terna é governos não resistem. Enquanto para o caso alemão Foucault
a biopolítica mesma. Como dissemos acima, era a questão chega à conclusão que "o mercado deve ser organizado'', já na
como conceber a governação não a partir do princípio clássico análise do caso americano a Escola de Chicago pensa que a
"soberania" e outros, senão a partir do mercado. racionalidade do mercado deve ser alargada para os campos
não-económicos como a famflià, a educação, a natalidade, etc.
Na segunda parte Foucault dedica-se à questão "o que é
118 liberalismo"? Para este filósofo o liberalismo deve ser-pensado
como uma nova racionalização da acção gbvernamental baseada O "Método" de Foucault
na economia. Aliás, por causa do liberalismo nasce a economia
política. Esta é a especificidade do liberalismo, segundo Cabe, antes de prosseguir, olhar para o método ou o caminho
Foucault. Neste aspecto, ele analisa duas formas de liberalismo: que Foucault usou para chegar ao neoliberalismo enquanto
o alemão (ordoliberalismo) e o americano (anarco-liberalismo ). biopolítica. Podemos chamar o seu método fi"losófico. Isto por
conta da forma radical como rompe com o método filosófico
Na terceira parte mostra como este núcleo do liberalismo,
tradicional de começar pelas universais. Foucault, neste caso,
a economia, vai-se constituindo, paulatinamente, como
radicaliza metodologicamente a sua análise do neoliberalismo
uma instância crítica da prática da governação e da
porque estuda o novo liberalismo (neoliberalismo) a partir do
governamentabilidade; por outras palavras, o objectivo desta
que podemos denominar "suspensão das universais". Explico-
parte é mostrar "a partir de que ponto governar era sempre
me a segmr.
governar demasiado". Ele chama este fenómeno por "limites
da governação" liberal. Assim, para este autor, liberalismo Segundo o próprio Foucault, nas suas lições segue um
é simplesmente "a forma de reflexão crítica sobre a prática caminho no qual supunha que não existe separação entre o
governamental". Estado e a Sociedade. Todavia, esta era a forma universal que
os filósofos modernos usaram para as suas análises históricas,
Estes '1imites" de governação traçados pelo mercado
Foucault: O Neoliberalismo en~uanto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P. Castiano

principalmente influenciados pelas "bipartições", enquanto governativa. Também quero chamar atenção para um aspecto
método de análise filosófica social da modernidade, inaugurada importante para a compreensão da biopolítica em Foucault:
pela filosofia hegeliana e seguida pelos jovens hegelianos, "Governo", para este, não é concebido no sentido de "acto de
sobretudo da esquerda, a quem interessava separat o Estado governar" ou "prática governamental" e nem na sua acepção
da respectiva Sociedade, a "classe dominante" da "classe clássica de instituição. São as "práticas concretas" da sua acção
dominada". que constituem objecto da sua investigação.
As bipartições da modernidade pressupunham, entre Foucault acha esta sua escolha metodológica ser uma
outras, que exista uma esfera da acção do Estado e uma distância do historicismo porque afasta as universais como
outra da Sociedade Civil que se consubstanciava no conceito "raladores" da história; quer dizer, afasta-se do método
"esfera pública". É esta forma de análise que Foucault decide historicista de "ver como a história muda as universais". Com
"suspender" nas suas lições n' O Nascimento da Biopolítica. Isto este afastamento, Foucault quer reescrever a história sem as
significava deixar de lado as noções universais que "pensam" "ferramentas analíticas" habituais da sua época, impregnadas
o acto de governar a partir da divisão Estado e Sociedade, o sobretudo por Hegel e, mais sublinhadamente, por Rousseau;
120 Soberano e os Súbditos, o Capitalista e o OperáriQ,_ etc. Ele este último por "inventar" a sociedade separada do Estado.
explica-se da seguinte forma sobre este_ponto: "( ... ) em vez Deixo, por último, que o próprio Foucault resuma o seu
de partir das universais como grelha de intelígibilidade para método nas páginas iniciais d'O Nascimento: "Não interrogar
algumas práticas concretas, gostaria de partir destas práticas as universais utilizando a história como método crítico mas
concretas e, de certa maneira, passar os universais para a '
partir da decisão da inexistência das universais para saber que
grelha das práticas."·~ 5 história se pode fazer." 46
É a partir deste ângulo metodológico suspensivo dos Da mesma forma ele volta a explicar o seu método, desta
universais que se deve entender o objecto de estudo d' O vez, nas páginas finais: "Em vez de fazermos da distinção
Nascimento da Biopolítica: a "arte de governar" como ela se Estado-Sociedade uma universal histórica e política que
apresenta a si mesma, à qual Foucault chama hegelianamente pode permitir pensar todos os sistemas, podemos tentar ver
por "consciência de si"; ou seja, a consciência que a arte de nela uma forma de esquematização própria a uma tecnologia
governar tem de si mesma ["maneira como no interior e particular do Governo." 47
no exterior do Governo (... ) se tentou conceptualizar esta
prática que consiste em governar"]. Portanto, para Foucault,
o objecto é como o Estado racionaliza a sua própia prática
45'"F'ôiicài.iit,'i\1:·(2oioj("o'Nasc.imerii~·da Biopolítica. Curso no Colégio da França 46"'C:fr.'FÔ.Úcaúit;i\1::(iêiiof o'Na's'Cimeiito ... Ibidem. p. 21.
(1978-1979). Edições 70. Lisboa, Portugal. 47 Cfr. Foucault, M. (2010): ONascimento ... Ibidem. p. 395.
José P. Castiano
Foucault: O Neoliberalismo en~uanto uma Teoria Crítica (Biopolítica)

O Mercado como Instância Crítica: O Surgimento da Economia passa a ser autónomo, ou, mais exactamente, uma realidade
autónoma e específica, fora da sua sociedade. Autónoma e
Política
específica porque deixa de se justificar por um Deus ou por
Na primeira lição de 10 de Janeiro de 1979, Foucault faz uma natureza fora dele mesmo. Esta nova racionalidade do
questão de mostrar que a partir do século XIX, à luz do seu Estado permitiu que ele desenvolvesse também novas formas
método de suspensão dos universais, o mercado surge como de governar: o mercantilismo como forma de organização da
uma nova esfera a partir do qual o acto de governar é crivado produção e consumo; o policiamento como forma de regulação
de críticas. Nas suas palavras: a razão do Estado ganha uma interna de um país segundo o modelo "cidade"; e a diplomacia-
nova "limitação interna" de facto, que é a economia. E a militar para manter o equilíbrio e a soberania do território
economia política se torna, por consequência, uma "instância com o exterior.
crítica" por excelência. Como aconteceu isto? Desta forma, segundo Foucault, o Estado autolimita-se
É preciso regressar às suas lições de Março de 1978, e até para o exterior num jogo de equilíbrios e não se limita para
às de 1975-76 (estas resumidas no livro É Preciso Defender o interior para constituir-se num Polizeistaat; ou seja, num
a Sociedade) para respondermos a duas questões principais, Estado-Polícia para poder estar em condições e ser capaz de 123
122 l..l!ITURASCRl'rlC'.AS
A "LlllEJl.lJJ\DR"DO NEOUDEIWISMO nomeadamente o que Foucault considera "Razão doEstado" regular tudo o que se encontra no seu interior, especialmente
e como este se estabeleceu em contraposição à "Sociedade". O a população, as terras e as suas relações. Porém, nesta sua
Estado é ( 1) aquilo que existe e (2) aquilo que não existe de expansão ilimitada para o próprio interior, o Estado encontra
forma suficiente, ou seja, ainda não existe e que somente se a Teologia e o Direito como primeiras formas de resistência
encontra em potência. Daí que um Estado seja, para Foucault, ao seu "apetite" de se estender cada vez mais. Só mais tarde é
uma prática de racionalização que se situa entre "um Estado que se perfila o mercado como a limitante. Nos séculos XVI e
apresentado como dado e um Estado apresentado como a ser XVII, nenhum Estado deveria transgredir os direitos naturais
construído". Assim, também podemos compreender a "arte" do homem - esta é uma limitante séria ao apetite pelo poder
de governar para Foucault: "fazer passar ao ser o dever-ser por parte do soberano. Ao soberano se impunha dizer: não
do Estado". Em minhas palavras, isto significa dar como real ultrapassarás esta linha, não ultrapassarás este direito, não
o que na verdade (ainda) é uma utopia. É a partir daqui que violarás esta liberdade fundamental. Ou seja, só se levantam
o Estado deve passar a ser "forte" no sentido de não permitir objecções à razão do Estado quando este ultrapassasse a
que ele possa ser destruído por qualquer força e de qualquer linha-limite estabelecida pelo Direito. Daí que surgisse
maneira. o contratualismo em oposição à extensão desmedida dos
Ao longo do século XVI a Europa assistiu a constituição, no poderes estatais e em defesa do indivíduo contra a agressão
seu seio, de uma nova racionalidade do Estado. Este, o Estado, progressiva do Estado sobre ele. Portanto, o Direito nasce
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P. Castiano

em oposição à afirmação da Razão do Estado, substituindo governamental, portanto crucial para a governamentabilidade.
a Igreja na função de legitimação e limitação dos actos de A primeira razão: não se trata, desta vez, de uma limitação "de
governação, diz-nos Foucault. direito", senão "de facto"; ou seja, um governo que ignorasse o
[Um Comentário endógeno, de "cá-entre-nós": Podemos que acontece no mercado, o que dele emerge como sugestões
hipoteticamente, explicar porquê a Faculdade de Direito para melhor governar-se, como linhas ele gestão, não faria o
que aos olhos do público e da sociedade civil seria conveniente.
foi a primeira a ser fechada por Samora Machel após a
Independência; por esta querer "estudar", e até "criticar", Por isso correrria o risco de se deslegitimar a si próprio.
a Constituição de 197 5, da Praia cio Tofo, que declarava a A segunda razão: sendo esta uma limitação "de facto",
FRELIMO como o único "guia cio Estado" moçambicano. Por também é, por isso mesmo, "geral"; pois, não se trata apenas de
outro lado, este fecho da faculdade representava um desafio "conselhos de prudência" que saiem do mercado sobre o que
futurista-revolucionário aos estudantes e docentes daquela deve ou não ser feito pelo Soberano - assim o era no caso do
faculdade: deviam olhar para a nova era pós-colonial ·que Direito ou da Igreja como limitante do seu poder. Desta vez
nascia e, assim, reinventarem um Direito "independente". trata-se de intervir na regulamentação interna do Estado (vai-
124 Podemos considerar aquele acto, de certa forma, se n_~o como se para além de uma regulamentação apenas para o mercado), 125
LFJTUllA.SCllfTICAS
o acto fundador, no mínimo como o a~to gerador para a
A "Ulll!RDADE" OONnoUDERAUSMO
pois se exige princípios que sejam feitos válidos para todas as
reflexão sobre novos fundamentos "revolucionários" para um circunstâncias e esferas de toda a sociedade.
novo Direito pós-independentista Moçambicano!]. A terceira razão: com a economia política, os princ1p1os
Entretanto, com o desenvolvimento económico dos países que orientam a organização social dos países são estabelecidos
europeus, o que se passava no mercado, passou a ser directamente já não indo buscá-los num Deus ou numa moralidade e Direito
do interesse público, portanto da "política". Assim, casam-se a específicos, senão cio mercado; nem Deus, nem as escrituras
economia e a política nascendo a sua filha "economia política". divinas, nem o cidadão: a Razão Governamental faz os cálculos
Aliás, aos poucos, a política passou a ser não muito mais do que e traça os seus próprios limites com base nos princípios desta
a política para o mercado. O Direito vai deixando assim de ser nesta nova instância, a economia.
a instância crítica para outorgar esse papel à Economia Política. A quarta razão: com o mercado, a divisão que se faz na
Esta é uma "descoberta" especial de Foucault n'O Nascimento função governamental já não é entre o que se deve fazer e o
da Biopolítica. É o "nascimento" em si deste conceito, economia que se deve deixar de fazer e nem em função do súbdito; o
política, ou biopolítica no seu sentido filosófico. mercado simplesmente não distingue os súbditos.
Foucault aponta cinco razões pelas quais considera E a quinta razão deriva desta última. É seguramente
que a economia política torna-se a instância crítica à acção a mais importante para considerar o mercado como uma
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica)
José P. Castiano

nova instância crítica: baseia-se na ideia de que a limitação "anónimo" no jornal économique, que Foucault comenta 50 • Na
já não é decidida pelos que governam com toda a soberania, verdade, foi escrito por Marquês d'Argenson (1694-1757) que
não é imposta: agora a limitação é um resultado de conflitos, foi o Secretário do Estado para os negócios estrangeiros da
acordos, debates, às vezes contraditórios que têm a sua origem França 51 • Neste artigo, o autor reportava a conversa entre
nas disputas do própio mercado. um comerciante de nome Legendre e Jean-Baptiste Colbert,
Por estas razões, a economia política ganha precedência na provavelmente numa reunião (alguns dizem que foi quando
determinação crítica da acção governamental em relação ao visitava o mercado). Nesta conversa, este último, então
Direito; pois, já não é o abuso da soberania que se vai criticar, Ministro do Estado e da Economia do Rei Luís rv; conhecido
senão os excessos causados por uma governação poderosa, "pai" do mercantilismo, pergunta ao comerciante: que posso
sobretudo quando lesa a economia. fazer por vós? Ao que Legendre responde: que podeis fazer por
nós? Deixai-nosfazer.
A economia política torna-se, e aqui Foucault recorre a
Rousseau, uma "espécie de reflexão ger;i] sobre a organização, Ou seja, para Foucault, naquele momento estabeleceu-
distribuição e limitação de poderes na socieclade" 1•8 • Estas se claramente o princípio da autolimitação da Razão
126 mudanças ocorrem no século XVIII .. Governamental. Isto é, a emergência do novo liberalismo ou do 127
A"UM!!Uli\Uf." DO Nf.OtlbEMUSMO LEITURA.~Cll.fTICAS
neoliberalismo (biopolítica) deveu-se ao surgimento deste novo
regime da veridicidade e princípio de governamentabilidade.
O Mercado: Instância e Princípio do novo Regime de Veridicação
Como dissemos, o anterior regime de veridicidade era o
Direito; agora é o mercado que determina, mais do que o
Foucault introduz, a este passo, um novo conceito. Trata-se
Governo pode fazer, o que se deve fazer em geral na sociedade
de "regime de veridicação". E o mercado se torna a "instância"
como um todo. O "deixai-nos fazer" do pobre Legendre é o
e o "princípio" deste. Pois, quando falamos em regime de
grito da liberdade fundamental do neoliberalismo, desta feita
veridicação: "Não se trata de uma determinada lei da verdade,
uma liberdade virada para o mercado. Com este gesto acende-
[mas] sim o conjunto de regras que permitem, a propósito de
se o rastilho para um novo regime de veridicidade.
um discurso dado, fixar quais os enunciados que nele poderão
ser categorizados como verdadeiros ou falsos."'~ 9 É importante clarificar que, para Foucault, fazer uma
história de regimes de veridicidade não é fazer uma história
Como nasce este novo regime? Recuemos, para isso,
como o próprio Foucault o fez, à política económica laissez
5ó···cri-."F'â"iiêaúit;"!\f.(2éiiéif ci"N"asci;~;iito ... Ibidem. p. 45.
faire, onde, decerto, tudo nasceu. Em 1751 saiu um artigo 51 D'Argenson é também autor de: Não Governar Demasiado; e também de: Para
governar melhor, dever-se-ia governar menos. Também é dado, por Foucault,
como o autor das seguintes palavras: "Sim, a liberdade regulada e esclarecida
48... dr...Fâ.úêaºúit;'rvC(2éiiéif oNâ:sclmeiito ... Ibidem. p. ss. fará sempre mais pelo comércio de uma nação do que o domínio mais inteli-
49 Cfr. Foucault, M. (2010): O Nascim.ento ... Ibidem. p. 63. gente". Cfr. Foucault, M. (2010): O Nascimento ... Ibidem. p. 52.
Foucaulc: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P. Castiano

da verdade ou do erro, e nem é recapitular todo o processo Esta mudança do regime de veridicação, suspeita Foucault,
da crítica da racionalidade, desde o romantismo até à Escola significa um deslocamento do centro de gravidade do Direito
de Frankfurt, pois esta centrava-se em denunciar os ditos Público, deslocamento este provocado pela economia: em vez
"limites da racionalidade" positiva. Bem pelo contrário, seria de como legitimar o poder do soberano, a questão passa a ser
"determinar sob que condições e com que efeitos se exerce uma como estabelecer os limites do poder público exercido pelo
veridicação"; dito de uma outra forma, determinar as condições Estado.
sob as quais os discursos podem ser considerados verdadeiros No fim da lição de 17 de Janeiro de 1979, Foucault chega
ou falsos. Mas, mais do que isso, seria "... fazer aparecer as a três conclusões. A primeira sustenta que surgem duas
condições que tiverem de ser preenchidas para que pudesse condições pelas quais se fundamenta a legitimação ao acto
ser sobre o mercado os discursos que podem ser verdadeiros de governar: (a) A via axiológica, ou também chamada via
ou falsos" 52 • Em minhas palavras, o "público" desperta para rousseauista, que estipula a sua fundamentação a partir dos
dar maior atenção, e até mesmo vital, aos discursos sobre o Direitos Humanos como sendo "intocáveis" e "inalienáveis". É
mercado. no contrato social onde se inscrevem os limites do soberano
Entre os séculos XV e XVIII a questão que se colocava ao sobre os súbditos, ou do Estado sobre os seus cidadãos. Aqui
128 129
Direito era como fundamentar a soberania e em que condições há uma delimitação da.s competências do Governo. (b) A via IJ'.lTURASCllf11Ci\S

se poderia considerar o soberano coberto de legitimidade para "radical" onde a limitação dos poderes públicos - a chamada
governar. Nestas condições, os Direitos Humanos aparecem governamentabilidade - estabelece-se a partir da própria
como uma "limitação externa" ao poder soberano. Entretanto, prática governamental, como já explicamos, por "verdades
com o mercado, passa-se a uma "limitação interna" ao acto de de facto" ditados pelo mercado. A questão, nesta segunda via,
governar: a questão vai ser, segundo Foucault, "como acolher deixa de ser "é justo?" como na primeira, para ser "é útil para
no Direito os regimes de veridicação ditados pelo mercado". quê?". A utilidade de um acto ou discurso marca o limite assim
Foucault dá o exemplo dos preços dos cereais: como legislar como o critério de uma verdade. Demos o exemplo do preço
de formas que o seu estabelecimento não seja matéria do dos ceriais acima, para explicar este aspecto.
Governo-do-dia? Por ou tas palavras, significa perguntar: onde A segunda conclusão a que Foucault chega refere-se às
o Governo deve parar de legislar sobre os preços dos cereais? duas concepções da liberdade que surgem. Por um lado uma
É por isso que Foucault, como dissemos acima, chama estas concepção jurídica (qualquer indivíduo detém, por natureza,
limitações do mercado por "razões de facto" para limitar os propriedades de ser livre) e, por outro, a concepção radical
actos de governação (as anteriores eram "razões do Direito"). e utilitarista (liberdade como independência dos governados
relativamente aos governantes).
Foucault: O Neoliberalismo enqu.1nto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P. Casciano

E, neste passo, Foucault aproveita para introduzir a terceira O Liberalismo Alemão versus o Liberalismo Americano
conclusão que desafia à lógica dominante, nomeadamente a
"dialética", já desenvolvida por Hegel. E ele propõe a "lógica É notável que Foucault dedique quatro lições (de S 1 de Janeiro,
estratégica". A dialética faz contraditórios entre dois termos de 7 de e de 14< Fevereiro e, finalmente de 7 de Março de 1979)
do mesmo elemento. Há, segundo esta lógica, uma promessa ao caso do neoliberalismo alemão. Isto mostra a importância
implícita e "lógica" de se chegar a uma "síntese" através de que ele dava a este caso;· para o caso americano dedica em
uma fusão dos dois. A lógica estratégica, por seu lado, gira em contrapartida, somente a lição de 14 de Março do mesmo ano.
volta de "conexões possíveis entre termos díspares". Segundo Para efeitos de compreensão a partir da sua gênese
o nosso autor, trata-se de uma lógica que procura uma histórica, Foucault começa por estabelecer diferenças entre os
conexão entre os heterogêneos sem, contudo, ter a finalidade dois neoliberalismos. O neoliberalismo alemão implanta-se a
em homogeneizar os contraditórios, ou levá-los a elaborar partir de três contextos; a saber: o imperativo da reconstrução
uma síntese. Nesta lógica a fusão não está em causa como no pós-guerra mundial, a exigência de uma planificação estatal
objectivo. Esta última lógica é, portanto, da "não exclusão dos para o desenvolvimento económico com base no Plano Marshal
contrários'', senão da sua coexistência. A inteligibil!_?ade do e a inserção de objectivos sociais na planificação económica
130 131
mercado baseia-se exactamente nestá lógica não-exclusiva, ou· por formas a evitar-se o retorno à situação da crise de 1929 LE!TUltASCR.ITtC/\S

seja, de convivência e de debate permanente. que possibilitara a vitória nazi e de Hitler.


Em resumo, a grande mudança que o novo liberalismo Para o caso americano, a emergência do neoliberalismo
provoca é na própria concepção da liberdade. Ela já não é tem ligação directa ao New Deal, com a crítica às políticas
considerada a partir de um~ posição longícua que se vai de Franklin Delano Roosevelt, contra o intervencionismo do
realizando aos poucos; a liberdade passa a ser uma "relação Governo Central Federal nas federações e, finalmente, contra
actual" entre os governantes e governados, entre o Estado e os programas sociais de Truman, Kennedy e Johnson. É fácil
os seus cidadãos na esfera económica. E esta se consubstancia notar que as condições históricas americanas levaram a um
em liberdade do mercado, do vendedor, do comprador, de neoliberalismo crítico mais radical contra o intervencionismo
propriedade e, finalmente, de expressão. A liberdade como utopia estatal na vida económica e nos assuntos da sociedade civil,
tranifOrma-se, com a lógica estratégica, em liberdade "de facto" que como, por exemplo, era o caso da assistência social para a
se realiza no dia-a-dia, no "aqui" do mercado supostamente livre. educação e saúde (vimos este aspecto em Friedman).

a) O Ordoliberalismo: O Caso Alemão


No que diz respeito ao neoliberalismo alemão particularmente,
quase tudo - pelo menos o debate para a sua teorização -
José P. Casriano
Foucaulr: O Neoliberalismo en~uanto ""'"Teoria Crítica (Biopolírica)

(intervir sobre os Rahmenbedingungen da economia, isto é,


parece começar no colóquio Walter Lippman (Le Cité Libre), somente no "quadro geral" da economia; em aspectos que se
realizado na França em 1938, onde participaram o próprio considerem estruturantes e fundamentais somente) e a questão
Lippman, Rõpke, Rüstow, Hayek, von Mises e Raymond das políticas sociais ("não se vai à Sociedade que proteja os
Aron. Este colóquio chamou-se, depois, Comité Internacional indivíduos contra os riscos; pede-se à economia que faça com
de Estudo para a Renovação do Liberalismo. E, para recapitular, que qualquer indivíduo seja directamente responsável pela
foram quatro pontos principais postos à discussão neste sua segurança", ou seja, uma política social individualizada).
colóquio: a regulação da economia, a intervenção do Estado
Com este debate entra-se, segundo Foucault, na
na economia, o direito ao trabalho e a distribuição da riqueza
Gesellschaftspolitilc, ou seja, na Política sobre a Sociedade, que
social através dos sistemas sociais. E, como também já disse,
já não se restringe ao que vimos denominando até agora
estes temas tinham a ver com uma espécie de cruzada teórica
como "políticas sociais". Pois, na Gesellschaftspolitik trata-se
contra o keyensianismo que estava em voga na Inglaterra e na
de assuntos mais gerais como o processo da formalização da
Europa.
sociedade que deve funcionar segundo o modelo "empresa"
Neste fatídico colóquio, Rõpke defende que a liberdade e o problema da redefinição da relação entre as instituições, 133
do mercado necessitava de uma política activa e vígilante, leis, regulamentos no sentido de pôr a sociedade a funcionar
Lf.1TURASCRfTICA5

132
LlnERDo\l>f!"i)ONEOl.IGl!RAllSMO
todavia com plena consciência das suas limitações. Este com base numa economia concorrencial. Com efeito, conclui
modelo seria, para ele, um "liberalismo positivo". Por seu lado Foucauit, a vida económica é que passa a fixar e a desenvolver-
Euken considera o Estado ser responsável pelo resultado da se num "quadro geral" (o que os alemãos chamam por
actividade económica, posição que viria a ser corroborada por Rahmenbedingungen) previamente determinado.
Bõhm53 •
Os alemãos, reunidos no colóquio, achavam que a questão
Porém, o que se encontrava em jogo era, de facto, o papel do "quadro legal" fixo para a economia funcionar socialmente
do Estado na regulação da economia alemã; mais exactamente tinha sido completamente ignorada pelos primeiros liberais
três questões se colocavam: a questão do monopólio para e pelos economistas clássicos. Surge, assim, uma nova
evitar os efeitos colaterais e nefastos da livre concorrência; a compreensão do que é ser liberal, que Foucault vai buscar em
questão da acção económica do Estado como reguladora (não Rouger:
intervir nos mecanismos da economia do mercado, mas sim
Ser liberal não é [como nos economistas clássicos J
nas suas condições, como por exemplo, na redução dos custos, deixar os automóveis circularem em todos os
estabilidade dos preços, controlo da inflacção, etc.) e ordenadora sentidos ao seu belo-prazer, de que resultariam
engarrafamentos e acidentes incessantes; não é,
53···pàj.~ºéste·êJ~l)à'ié,"i•'ôücà"üit"dé<liéàºà"ü"ção de 14 de Fevereiro de 1979. Cfr. Fou- como o "teórico da planificação'', determinar a cada
cault, M. (2010): O Nascimento ... Ibidem, mais exactamente da pág. 176 em
diante.
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P. Castiano

automóvel a sua hora de saída e o seu itinerário: A característica fundamental deste é que os actos do poder
é impor um Código de Estrada, admitindo que não público não ganham validade senão estiverem enquadrados
é forçosamente o mesmo tempo dos transportes em leis que os limitem previamente; é um Estado onde há
rápidos e no tempo das diligências.H
"disposições legais" como expressão da sua soberania e que
Desta citação de Rouger, Foucault tira várias conclusões emprestam validade aos actos.
que o levam ao mesmo objectivo, nomeadamente demonstrar O Estado de Direito nasce, pois, em oposição ao despotismo
que surge aqui o que ele chama por um "conjunto económico- (sistema que faz da "vontade geral" rousseana a vontade de um
jurídico", portanto um sistema de formalização jurídica dos soberano) e do Polizaistaat(Estado de policiamento em que se
mecanismos económicos da concorrência. Já não é, como Marx mistura o público e o individual, sem diferença da sua natureza
defendia, que o jurídico fazia parte de uma superestrutura. Ele e origem). É por aqui que, o que distingue o Estado de Direito,
agora faz parte da própria economia. E, baseando-se numa é a possibilidade concreta que cada cidadão tem de impugnar
afirmação do próprio Rouger ("o processo económico não pode um acto público por via dos tribunais administrativos. Estes
ser dissociado de um conjunto institucional [. .. .]jurídico. Ele são instâncias de recursos dos cidadãos que se tenham sentido
não é simplesmente o seu efeito"), Foucault conclui q~e "[O] lesados por um acto administrativo do Estado; na verdade
134 135
""UllEIUJADF." DO HEOUBERARSMO
capitalismo actual não deriva simplesm~nte do capital ou arbitram a relação entre o Estado e o cidadão. LfJTURAS CRITICAS

da lógica do capital; é também constituído por um conjunto


Estas são as razões pelas quais Foucault chama ao
económico-institucional". E com Euken afirma: "... aquilo do
neoliberalismo alemão por Ordoliberalismo ou, traduzido
que os historiadores não têm consciência não é º· económico
livremente, uma espécie de "liberalismo ordenado". É um
[como Marx creia], mas sim o institucional. O institucional
liberalismo com um forte intervencionismo-quadro do Estado.
era o 'inconsciente' dos economistas clássicos: Devemos passar
Este Ordoliberalismo foi defendido pela Escola de Friburgo
para um nível de direito económico consciente." 55 E este direito
cujo objectivo era fundar uma nova legitimidade do Estado
económico consciente é, em outras palavras, o neoliberalismo.
a partir. de um espaço da liberdade de parceiros económicos.
Atingimos, com isto, um estágio em que podemos perceber Esta escola nasce sabendo muito bem o que não queria: um
porque é que a retórica sobre o "Estado de Direito" inscreve- regime autocrático do estilo nazi que acabava de desaparecer;
se no neoliberalismo. Pois, é através do Rechtsstaat - que não queria também regressar a uma nova Zollverein (União
estabelece o Rufe ef Law - que o neoliberalismo deixa de se Alfandegária formada no Séc. XIX); nem queria a experiência
inscrever na teoria económica da concorrência ou economia "socialista" de Bismark; menos ainda seguir um modelo
política, para estar na linha da teoria do Estado de Direito. de economia centralmente planificada como o da Europa
ctr-:
:~4; · · F'ó"úC:iúiiJ\1: ·(20 i éif i:Hrà"s"Cime.nto ... Ibidem. pp.211-212. Socialista; e muito menos ainda olhar para as medidas do
55 Cfr. Foucault, M. (2010): O Nascimento ... Ibidem. pp. 216-217.
José P. Castiano
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Ter>ri' Crítica (Biopolítica)

"boa governação" é aquela que respeita sobretudo a liberdade


keynesianismo inglês que lhes recordava uma possibilidade
económica, mantém sólida a moeda alemã (Deutschmark), uma
socialista, ou seja, um possível "caminho para a servidão". O
taxa de crescimento boa e também uma favorável balança de
Ordoliberalismo "sente" que o modelo do liberalismo baseado
pagamento.
na troca livre e no laissez Jaire, da resposta de Legendre a
Colbert, já estava ultrapassado. Eles notam que o principal Enfim, como o próprio Foucault remata de forma sábia:
no mercado não é a equivalência no valor dos produtos, "A história tinha dito não ao Estado alemão; mas agora é a
princípio subjacente nas trocas livres, mas sim a concorrência economia que lhe vai permitir afirmar-se". Repare-se na força
baseada na desigualdade e no desequilíbrio. Então o Estado desta expressão!
é chamado a colocar ordem, a estabelecer o equilíbrio e a Portanto, concluímos, a função principal do Estado de
igualdade de circunstâncias entre os contendores. Assim, cabe . Direito, e que explica o seu surgimento, é a necessidade de
ao Estado organizar uma estrutura formal (ordem) para que a eliminar a tendêncià aglutinadora da economia de mercado
concorrência não degenere em caos e desordem da sociedade. que resultaria na formação de monopólios; estes, estariam
Ludwig Erhard, na sua qualidade de responsável da longe de ser uma economi·a em defesa do cidadão sem posses.
Administração Económica e mais tarde Chanceler da Alemanha, É daqui que, para Foucault, "se é verdade que há um modelo 137
Ll!ITUAAS cRJ·no.s
136
,\ "Ulll!RDAVf." DO NWUBERAllSMO
viria resumir, no seu discurso de 28 de Abr-il de 1948, bastante alemão que assusta (... ) não é o Estado Policial. É o Estado
bem o Ordoliberalismo: "É necessário libertar a economia dos do Direito" 57 . O modelo alemão que hoje é temido, portanto,
constrangimentos estatais [. .. ] e só um Estado que estabeleça já não é o totalitarismo, já ultrapassado. Senão o que se
simultaneamente a liberdade e a responsabilidade dos cidadãos tem é este modelo que hoje se difunde por toda a parte,
"5<i
pode legitimamente f:l a ar em nome d o seu povo . (... ) particularmente temido pelos franceses: o modelo da
O que estava aqui em causa está cristalino: tratava-se governamen tabilidade neoliberal.
de mostrar que a legitimidade de um Estado repousa na [Nas minhas notas-de-roda-pé para o debate nas aulas
forma como respeita a liberdade económica. E esta liberdade levantava duas perguntas: (1) O Estado de Direito pode
económica, - este aspecto estava também subjacente - deveria explicar porquê é que os estados africanos diabolizam tanto
passar a ser a fonte da legalidade institucional e, de forma mais o neoliberalismo? De facto, fingem estar a revoltar-se contra
alargada, do próprio Direito; do Estado de Direito, portanto. as políticas económicas, enquanto, o que temem, de facto, é a
Para o caso alemão, é a economia que produz a soberania e instauração de um Estado de Direito que limitaria imenso o
exercício dos poderes públicos; e mais, haveria de instaurar
0 desenho das instituições políticas adjacentes. "A Economia é
criadora do Direito Público", resume-se. Assim também uma mecanismos que permitam ao cidadão levantar queixas contra

·55· .. cti-." Fc)úi:à'úit;'i.1: '(2êiiiif 0"Nas~lnze1ito ... Ibidem. p. 11.'3.


Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P, Castiano

actos públicos. (2) Terá sido o apartheid na África do Sul, ao Todavia, o modelo americano conhece, no seu surgimento
mesmo tempo, um Estado-Polícia e um Estado de Direito em outras nuances históricas, diferentes às do modelo alemão.
termos formais?] Os alvos da crítica dos neoliberais americanos foram outros.
O primeiro alvo das suas críticas foi a política do New Deal
devido às semelhanças ao, e inspirações do, keyensianismo,
b) O Caso do Neoliberalismo Americano: um Ultra- liberalismo?
desenvolvida por Roussevelt ( 1933-1934); o segundo alvo de
críticas é o plano Beveridge que incluía um intervencionismo
No final da sua abordagem ao tipo do neoliberalismo alemão
estatal por via de programas de segurança para o emprego,
e antes de entrar para o americano, Foucault mostra-se
saúde, acidentes e incidentes; enfim, estava em construção, no
preocupado com o que chama "crítica inflaccionista do Estado"
caso americano, um pacto de segurança social contra o qual os
(lição de 7 de Março de 1979). Esta remontava de Hayek
cultores do neoliberalismo americano se opunham; Todavia, o
que, como vimos, nutria uma fobia contra o Estado a ponto
"inimigo" número um, desta feita sob o ponto de vista teórico,
de afirmar, desta feita assumindo a posição de um cidadão
foi o texto de 1934 por Simons Henry, intitulado Um Programa
inglês: "estamos em perigo de ter o destino da Alemanha
Positivo para o Laissez Faire, escrito com o intuito de adaptar o
138 [nazz]". Era uma fobia que se justificava por Hayek-pensar 139
grito de Legendre à situação americana. LEITURAS CRITICAS
estar a ver sinais do regresso de uma Alemanha ela altura
em que se preparava para a guerra, a ascensão do fascismo. Foi sob os escombros destes inimigos que se ergueu o
Os sinais na Inglaterra eram: a insistência na planificação neoliberalismo americano. E é sob estes escombros que o
estatal da economia, o intervencionismo, a crise, ventos modelo americano do neoliberalismo se ergue consoante duas
socialistas entre os intelectuais e políticos ingleses [não características principais: desenvolvendo o que veio a ser a
esqueçamos que Hayek dedica O Caminho para a Servidcio teoria do Capital Humano e o surgimento do Homo Economicus.
"aos socialistas!"]. Na teoria do Capital Humano consideram-se três pilares,
Como dissemos antes, Friedman lê e '1té torna nota do que nomeadamente a terra, o capital e o trabalho, no qual este
Hayek escreveu na sua obra supramencionada; e até reconhece-o último elemento, o trabalho, abandona o carácter abstracto
no prefácio que escreve em 2002 ao Capitalismo e Liberdade, da sua definição - como, aliás, o fizeram os economistas
qualificando aquela obra por um "ensaio brilhante e incisivo clássicos e Marx inclusive - para incorporar na sua concepção
de 1944"58 • Ele retém sobretudo a "crítica inflaccionada" sobre elementos mais concretos e quantitativos (horas, tempo,
o Estado, sendo ainda mais radical na sua fobia contra esta desenvolvimento de capacidades, termos de referência, etc.).
instituição. Ou seja, a noção de economia que aqui se inaugura centra-se
no comportamento humano e suas capacidades: "O problema
58". Cfi·.' FrléCiãüià;..',·F. '(2oi 4):'('..'ápliàiís~i1~0 e Liberdade. Actual. Lisboa. p.12.
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica)
José P. Castiano

fundamental (... ) que se formulará quando se pretender fazer se uma instância crítica permanente, tanto da política como
uma análise do trabalho em termos económicos, será saber de aspectos sociais. A "realidade" social total passa a ser a
como é que quem trabalha utiliza os recursos de que dispõe." economia: um comportamento racional e real é aquele que
É desta forma que Foucault sintetiza o que chamou por se liga à uma análise económica e ao cálculo que a economia
a mutação epistemológica que o neoliberalismo americano impõe. É importante notar aqui que até às universidades se
opera na concepção do trabalho no quadro da teoria do Capital lhes é exigida a good governance. Não é, pois, por acaso que
Humano 59 . A noção trabalho passa, debaixo desta teoria, a no Plano Estratégico das instituições do Ensino Superior
decompor-se em rendimento (salário) e capital-investimento em Moçambique se passa a integrar uma componente ou 0
(rendimento futuro). capítulo "Governação Universitária".

Uma definição mais simples da segunda característica o Quem pode ser mais "realista" senão o Homo Economicui?
HomoEconomicus-é ser "empresário de si mesmo", o que cá entre Para Foucault o Homo Economicus submete-se apenas à "mão
nós moçambicanos se popularizou como "empreededorismo" invisível" do Estado porque ele é um átomo de interesses é
. '
no tempo de Armando Guebuza no poder. A sua força de ateu, sem totalidade, anti-soberano e rejeita a fórmula jurídica
140 trabalho passa a ser o seu próprio capital. O homem passa do soberano. A sua realidade, a economia, orienta-se por esta
141
a ser a sua própria empresa [esta característica vai ser mais "mão invisível" de Adam Smith. Lf:lTURASCll(TICAS

desenvolvida por Byung-Chul Han no próximo capítulo] onde


se junta, no mesmo homem, capital, trabalho e produto. É O Problema da Governamentabilidade (Gesellschaftspolitik)
sob esta perspectiva do desenvolvimento do Capital Humano
que a formação (educação) e capacitação permanente ganham Foucault, termina as suas lições debruçando-se sobre o
importância como instâncias de sua valorização ao "longo da problema principal que o levou, talvez, a elas: Se o Governo não
vida". deve ocupar-se da economia, então de que se deve ele ocupar?
Enquanto problema da governamentabilidade nas condições
Assim, o proprium do neoliberalismo amencano foi
do neoliberalismo, esta questão pode reformular-se da seguinte
"generalizar uma Gesellschaftspolitik baseada no modelo
forma: Como governar·num espaço de soberania constituído
empresa" i.e. com uma "grelha" de avaliação do acto de
por pessoas - o Homo Economicus - que se caracterizam por
governar (ou simplesmente good governance, boa governação).
ser soberanas nos seus interesses? A resposta que Foucault
O modelo empresa passa a ser aplicado em todas as outras
encontra é: o Governo deve ocupar-se da Política da Sociedade
áreas não-económicas onde a questão "rendimento" era a
( Gesellschaftspolitik) e não de cada indivíduo em particular. E
principal para a sua legitimação. O modelo empresa torna-
aqui podemos compreender a definição que o Eugênio Corôa,
um filósofo de Quelimane ao qual me referi na introdução, dá
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica) José P. Castiano

conjunto humano.
sobre a biopolítica.
Por isso, a "nova razão da governação" passa a ser agora ª· Com estas ideias, pode parecer, e facilmente se pode
dita Sociedade Civil (ou em nome dela). Na óptica de Foucault, demonstrar isso, que Foucault ressuscita a velha tese do
a sociedade civil não é um conceito filosófico, senão uma noção marxismo no contexto actual em que o liberalismo parece ter
que resulta de uma estratégia de tecnologia governamental; a última palavra a dizer; nomeadamente que a infraestrutura
é uma espécie de criação de uma entidade que se justifica o determina, em última instância, a superestrutura. Poder-
acto de governar perante a intocabilidade do individual Homo se-ia ver nisto um marxismo renovado na sua forma mais
Economicus. O homem singular, que aparece no neoliberalismo refinada? Penso que não, e por duas razões. A primeira é que
com toda a sua força individual, só pode ser governado se para Marx, a noção economia era um conceito estratégico
estiver inserido no contexto de uma sociedade ou comunidade. para pôr a nu, por um lado, como o capitalismo funciona
Corôa falava de, recordo, olhar o indivíduo, a sua vida, no e a partir da relação entre o capital e a força de trabalho,
por meio de uma sociedade ou comunidade, como "pÓpulação" esta última como única "substância criadora do valor"; por
ou como "público"; daí a noção políticas públicas ganhar força outro, Marx servia-se deste conceito para mostrar uma
legitimadora do acto de governar por ver-se o indivíduo a determinada especificidade histórica que se apresentava
142
A "UUERD/\Dli" DO HEOU&ERAU~MO partir da sua inserção societal ou comunitá~ia. Cá entre nós, transitória, porque situada no horizonte da historicidade
os livros do Guilherme Basílio 60 testemunham esta tendência humana. Porque, segundo Marx d'O Manffesto, o fantasma
de olhar para o Governo por via das "Políticas Públicas" do comunismo sobrevoava a Europa.
Foucault, pelo contrário, sucumbe perante a força do
mercado em legitimar o Direito e a Política, e até em substituir
Será Foucault um Neo-Marxista?
a ética como o último fundamento. Da forma descritiva
Foucault terá dado uma nova chave para analisar perante a qual Foucault nos coloca o neoliberalismo, parece
estarmos realmente confrontados com a última historicidade
filosoficamente a mutação para uma nova legitimidade da
possível. O mercado neoliberal de Foucault ganha quase uma
acção governamental, a economia. E ele vai mais longe
dizendo que, por trás desta mutação há algo mais. O mercado dimensão ontológica a partir do qual "tudo" parece encontrar
não somente trás um novo regime de veridicidade, como passa explicação. Ora, na economia podemos estar perante acordos
a ser uma verdadeira nova teoria política, cujo objecto (da sobre as formas de vida ou de interesses, e não muito mais
política) já não é mais o cidadão no seu singular com a sua do que isso. Uma sociedade ou comunidade, porém, não se
carga de direitos individuais, senão a sociedade enquanto um constitui (apenas e nem se esgota aí) em torno de acordos
ligados à nossa bio ou à relações de interesses que mais ou
6à' .. (;[i-; ·àa:siliii,' a: '(foi ii): 'f>àiiii~às 'Pdbilcas e Eduüição. Publifix. Maputo.
Foucault: O Neoliberalismo enquanto uma Teoria Crítica (Biopolítica)
José P. Castiano

menos nos conduzam a acumular mais riqueza material. como a explicação para o capitalismo/liberalismo, mas
Por exemplo, somente para ilustrar o que está em jogo o afasta~-se, penso, no facto de que este deriva uma utopia (o
quão é problemática acho esta visão de Foucault, ele parece ter c01~u111smo) da sua análise, enquanto Foucault permanece
exagerado o papel da economia para o caso do Ordoliberalismo mais pragmático, quase que recusando-se a fazê-lo. o devir
na Alemanha. O contexto em que a Alemanha se encontrava enquando o dever-pensar de um filósofo ficou atrofiado n~
no pós-guerra, derrotada, humilhada colectivamente, que não bipolítica de Foucault, concluo. '
se compreendia a sí mesma ("como poderá ter sucedido este
crime contra a humanidade a partir do nosso solo sem nos
apercebermos?"), poderá ter contribuído muito mais para que
o neoliberalismo alemão fosse construído a partir da oferta
de "garantias" do Estado do que o foi no caso americano. A
constituição de um Estado parece-me mais explicável a partir
de factores históricos e culturais que da esfera da économia.
144 No caso alemão era o "terror" generalizado do retorno ao
, -Ulllil\IJAD~·oo NF.OLIBEJWISMO
nazismo, que espreitava. 145
Lll!lURAS CRITICAS

Já agora, observando a metodologia que Foucault decide


usar (recordo que se trata da "suspensão temporária das
universais") o que lhe fez vir a cair na economia e não ir
buscar estes seus fundamentos na cultura e ou na história? A
"decisão" por uma suspensão das universais parece-me tê-lo
conduzido à uma escolha aleatória na busca por novos alicerces
que explicassem, em última instância, o acto de governar. Pois,
se quisermos afastarmo-nos filosoficamente da biopolítica
de Foucault, como aliás vamos ver como o faz Byung-Chul
Han a seguir, deveríamos começar por pôr em dúvida a
metodologia por ele escolhida para chegar à "biopolítica"
enquanto a "última" e a única alternativa de explicação sobre
o neoliberalismo.
Com Marx, portanto, juntam-se no acto de ver o mercado
José P. Castiano

VI

Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de


· Byung-Chul Han

O Neoliberalismo traniforma o cidadão em consumidor.


A liberdade do cidadão cedeante a passividade do consumidor.
A vontade, enquanto consumidor,
não tem interesse pela política (.. .)
O votante reage deforma passiva à política 147
LEITURAS 0tf·r1cAS

- como um consumido1; i.e.,


protestando, tal como ele, perante a mercadoria.

(Byung-Chul Han, em Psicopolítica)


Participei actualmente, numa palestra - proferida por um
motivational speaker, como dizem os ingleses - que satirizava
o comportamento que temos em relação ao telemóvel. E a
ideia com que fiquei é que o palestrante nos alertava para
uma "lei", diria pós-moderna, segundo a qual nós os homens
não podemos e nem devemos, em circunstâncias nenhumas,
mexer no telemóvel da esposa. Segundo o mesmo palestrante,
os homens estão menos preparados para encaixar o saber das
pequenas "privacidades" do telemóvel do que as suas parceiras.
Um simples saudar "oi" numa mensagem ou um final "beijo!"
basta para nos estragar o dia e aumentar o stress- dizia ele. Só
que, apesar de o telemóvel entrar nas nossas vidas como um
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José I'. Casciano

assunto privado, não resistimos todos à tentação de vasculhar sua filosofia ter estabelecido rupturas profundas em relação à
o telemóvel do outro - terminava ele. filosofia das luzes e principalmente em relação aos "colossos"
Então, isso era para introduzir a psicopolítica. Esta analisa Marx e Hegel. (Nesta lista de rupturas dever-se-ia acrescentar
a questão, como é que as novas tecnologias transformaram e Schopenhauer e Kiekergaardl)
ainda continuam a transformar o nosso mundo, e ainda mais Porém, na leitura do texto de Byung-Chul Han, entra-se
exactamente a noção liberdade que nos foi e é, individual e em contacto com uma conjunção de filósofos com os quais
colectivamente, tão caro conquistar. ele mais se confronta como são os casos de Nietzsche, de
Byung-Chul Han, que eu saiba, escreveu, até agora Heidegger principalmente (aliás, a sua tese de doutoramento
traduzidas para o português, cinco obras relevantes, a última foi sobre Heidegger) e de Hegel. Lendo Byung-Chul Han
das quais é Psicopolítica. Ele escreveu outra, A Sociedade do entramos em contacto fundamental com estes esses três e
'
Cansaço, de 201 O; depois produziu a Sociedade da Transparência, muito pouco sobre Edmundo Husserl (que completaria os
tendo sido esta publicada em 2012; devo mencionar também "famosos três Hs").
a obra A Agonia do Eras de 2002; e por último O Aroma do Para além destes, outros interlocutores importantes
148 Tempo publicada, na versão portuguesa, em 2016;--embora de Byung-Chul Han são Marx, Foucault, Betham, Kant, 149
originalmente, em alemão, seja de 2009. Nietzsche, Deleuze, Rousseau. Particularmente na obra O
l.ElfURA5CRfTIC/\S

Neste capítulo concentro-me em duas obras (Psicopolítica: Aroma do Tempo trata-se de uma "conversa" quase íntima com
Neoliberalismo e Novas Técnicas de Poder e O Aroma do Tempo: Heidegger.
Ensaio Fzlosiji'co sobre a Arte da Demora) apesar de poder
referir-me a outras para esclarecer este ou aquele assunto. É O Diagnóstico do Nosso Tempo: Coerção e Coacções Internas
em ambas, porém, onde se concentra mais em diagnosticar a
"liberdade" no neoliberalismo, matéria deste livro.
Em geral, Byung-Chul Han preocupa-se pelas características
Byung-Chul Han é sul-coreano de origem e foi viver na do "tempo" neoliberal e como recuperar a filosofia como uma
Alemanha. Ele acaba estudando filosofia e vai trabalhar na reflexão sobre o "aroma do tempo". A este filósofo interessa-
universidade Freiburg onde o reitor era Peter Sloterdijk. Lá, nos mais - e esse é o tema central que iremos 'recortar'
por conta de algumas desavenças, acaba por sair e ir trabalhar dos seus escritos aqui - o diagnóstico do tempo actual, do
na Universidade de Berlin. Ele é actualmente um dos autores neoliberalismo, em relação à liberdade individual. Como
mais lidos juntamente com Sloterd~jk, Zizek e Agamben sobre iremos ver, Han considera que não é a partir da biopolítica,
os temas contemporâneos da filosofia no contexto neoliberal. como Foucault entendeu, senão da perspectiva psicopolítica a
Todos eles acham Nietzsche incontornável pelo facto de a partir donde podemos encontrar maior força explicativa para
Psícopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José P. Castíano

fazer um diagnóstico filosófico sobre o tempo neoliberal. modernidade e na interpretação dos primeiros liberais - ter-
Comecemos, então, com o diagnóstico do tempo neoliberal se-ia libertado das coações externas pré-modernas medievais
n' O Aroma do Tempo: (absolutismo, moral cristã, servidão, etc.), no neoliberalismo,
ele submete-se à novas coações; porém, desta vez, trata-se de,
A sociedade actual é uma prova de que o homem não já externas, senão "internas".
tornado por completo trabalhador, não é capaz de
ter um tempo livre que não seja tempo de trabalho. Esta nova coacção, interna, surge no neoliberalismo
A productividade crescente cria, no entanto, cada devido ao imperativo do aumento constante do rendimento e
vez mais liberdade. Mas esta não é usada para a optimização da peiformance. Enquanto na época liberal e nas
uma actividade superior, nem para o ócio. É posta, anteriores também, lutava-se pela liberdade, ou seja, para que
antes, ao serviço da recuperação do trabalho ou do o indivíduo se livrasse das coações externas [vimos em Hayek
consumo. O animal Jaborans só conhece pausas,
e em Freidman, também vimos em Foucault, que liberdade é
mas não tranquilidade contemplativa. A dialéctica
do senhor e do escravo como dialética da liberdade haver menos intervenção e coerção do Estado, menos força
só se consuma quando supera o trabalho - quando externa, deixar o indivíduo livre] no neoliberalismo, segundo
150 tem presente o outro trabalho 61 • Byung-Chul Han, a característica principal é que essas coações 151
"UllERD~IJf;." DONWU3EM\\SMO

e coerções são produzidas internamente pelo próprio sujeito. LElllJAASCRfTICA5

Ou seja, a liberdade do homem neoliberal está escondida


O sujeito coage-se a si mesmo, por formas que, se ele quer
no "próximo trabalho". Segundo o autor, esta nova condição
lutar pela sua liberdade, tem que vencer as coações e coerções
neoliberal da liberdade pode ser explicada somente pela
internas; tem que se vencer a si mesmo.
psicopolítica (e não pela biopolítica). Porquê? É o que veremos
Trata-se aqui, portanto, de uma fase da história em que o
a seguir.
maior "inimigo" da liberdade, as coações, são intrínsecas ao
O que está no centro do pensamento de Byung-Chul Han,
próprio sujeito, encontra-se nas suas entraflas, como diria José
portanto, é o facto de começar por constatar que na sociedade
Martí. E a essência destas (novas) coerção e coacção internas
neoliberal há crise da liberdade.
reside no facto de a liberdade do "poder fazer" engendrar
O neoliberalismo, segundo Byung-Chul Han, transformou mais coerções e coacções do que o "dever disciplinador" (no
a liberdade numa nova submissão do sujeito. Portanto, a contexto do capitalismo liberal). Vou trocar isso em palavras
liberdade já não é liberdade, embora aparente sê-lo. O "eu" mais explícitas, talvez: o sujeito no neoliberalismo, tem a
como projecto - que devido às "luzes" (iluminismo) na liberdade de poder fazer, sentir e pensar, tem a liberdade do ter.
Mas esse mesmo "poder fazer", aparentemente livre, resulta
iii' · ·H:'àri; 'íi~c '(iiii 6)'. ·i-YAi-àma da· t~mpo. Um Ensaio Filosiji.co sob1·e a Arte da De- duma coacção interna em cada sujeito (do "empreededorismo'',
mora. Relógio d'Água. Lisboa. p. 120. (originalmente de 2009).
José P. Castiano
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han

por exemplo). De facto, a dita liberdade de poder fazer e dizer, que engendra a coerção e a coacção do seu interior. O sujeito
segundo Byung-Chul Han, é uma "astúcia" do capital. A dita do rendimento, que se pretende livre, torna-se, na realidade,
livre concorrência, que assenta na ideia da liberdade individual, um "escravo absoluto" _porque se explora a si mesmo. Neste
é somente "a relação do capital consigo próprio enquanto outro ponto, portanto, Byung Chul-Han insurge-se contra Hegel
capital..." 62 • Nesta frase espreitam as afinidades marxianas e Marx. Estes defendem que o trabalho liberta o homem; é
do autor, tanto na terminologia como na ideia subjacente do através do trabalho que o sujeito dá-se conta da sua condição
carácter fetichista do capital. não-livre. Em resposta, Han observa que no neoliberalismo,
este suposto "sujeito livre" continua escravizado: "O sujeito
Mais abaixo 6·\ Byung-Chul Han explica-se melhor sobre
neoliberal é um empresário de si próprio." 64 E, porque 0
a grande transformação que se opera no neoliberalismo em
neoliberalismo transforma o trabalhador em empresário (de
relação à liberdade individual:"( ... ) é uma forma de escravatura
si mesmo), elimina-se assim a classe trabalhadora que, no
na medida em que o capital se apodera da sua própria
sentido marxiano, se submetia à exploração alheia. Hoje, o
proliferação. Para se reproduzir, o capital explora a liberdade
sujeito é trabalhador e escravo de si mesmo. Portanto, a "luta
do indivíduo: na livre concorrência não são os indivíduos que
de classe" se transforma, no neoliberalismo, em luta contra si
se afirmam como livres, mas o que se afirma como livre é o 153
152 mesmo. LE!TUllASCklTIC./IS
A "UllEl\fL\[}f,"00 NEOL!JlliRAl!SMO
capital".
Byung Chul-Han chega mesmo a dizer que estamos hoje
Ou seja, na minha interpretação, a essência do capitalismo
perante uma "ditadura total do capital". Devido a esta ditadura
primário permanece no neoliberalismo, que é de manter a livre '
as necessidades do capital (reprodução, multiplicação), passam
circulação do capital, condição para que ele se multiplique. O
a aparentar serem necessidades do próprio sujeito (consumo,
que é novo no neoliberalismo, porém, é que se dá a impressão
por exemplo). Perante esta ditadura do capital, que impõe as
que esta liberdade está incarnada no sujeito, individualmente.
suas necessidades de multiplicação como se fossem individuais
A liberdade individual é a forma de aparição, distorcida, da
por via do consumo, segundo Han, desaparece a possibilidade
liberdade do capital, a essência. Parafraseando Hayek: nos
do "nós político". Ou seja, torna-se quase impossível organizar
prometem e vendem liberdade oferecendo escravidão perante
uma acção de comunhão de interesses, uma acção que se dirija
o capital. ao fundamental, pois o capital escraviza a política: "Não serão
Se Hegel pretendia que a liberdade fosse uma "contra- talvez as dívidas elevadas uma prova de que não temos em
figura" da coerção na [{nechtschaft (do alemão: "servidão"), nosso poder sermos livres? Não será o capital um novo Deus
no neoliberalismo, como defende Han, é a pr6pria liberdade que nos torna de novo devedores em falta?" - pergunta-se

62... cti.' i'iaí1, ·íi~c.' (2'6 i'4j:' Psz~~p~iiiíc'à..' ibidem. p. 13.


63 Isto é, na mesma pág. 13. Ibidem.
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José P. Castiano

Han depois de ter aventado uma resposta segundo a qual "nos fotos que eu julgava que os meus filhos e a família não
endividamos para não termos de agir'. 65 deveriam necessariamente - e sublinho necessariamente - vê-
Chegados a este ponto, vou fazer um pequeno "desvio" para las ). Apesar de todas as precauções tomadas durante o voo
recorrer à uma história para ilustrar sobre a ideia do controlo de regresso, ligo o computador da mesa, a primeira coisa que
psicoplítico do indivíduo pela tecnologia. Eu estive no Brasil aparece, é o tal do I Cloud e, com todos osji'les de documentos
com algumas e alguns colegas da Diversidade Pedagógica. bem organizadinhos; "clico" na pasta das fotos, e lá estou eu
O propósito da visita era estreitarmos relações com uma no Pelourinho; lá estou eu numa cervejaria do Pelourinho; lá
universidade situada no Recôncavo da Bahia. Ao passarmos estou eu a beber vinho outra vez ... no Pelourinho, etc.; as fotos
pelo Largo do Pelourinho na Cidade da Bahia começamos a já estavam em casa, o I Cloud encarregou-se de as guardar e
tirar fotos aos edificios, igrejas, etc66 • Mas também tiramos transportar. Então, eu começo a apagar de novo todas aquelas
algumas nas compras e no almoço; quase todas as fotos tiradas fotografias que eu tinha "deletado" no avião. E chego, na
mostravam tudo dos momentos do lazer e menos de trabalho segunda-feira, ao gabinete do serviço, abro o computador, e
que realizamos. Estando eu distraído a tirar fotos, entrou zás, lá estavam as fotos de novo no I Cloud e começo, outra vez,
uma mensagem no meu telemóvel que perguntava__ (só dei- a apagá-las! Num belo dia, depois deste trauma, estava a jantar
154·
com a família abro o telefone e imaginem o que aconteceu: 155
me conta depois o que aquela mensagem significaria para a LEITURASCRIT!CflS

minha vida) se eu gostaria aderir ao I Cloud ou não. Eu cliquei lá estavam as fotos gravadas, de novo! Então, a partir deste
imediatamente no "yes'', sim. Cloud significa nuvens. I Cloud dia, começou um grande terror em mim: comecei a esconder
quer dizer que lá "em cima'', nas nuvens, em você aderindo o telefone porque eu não sabia quando é que estas fotos
a esse programa, guardam documento, fotos, etc. do teu poderiam aparecer; já não tinha controlo sobre o momento do
telemóvel; e a qualquer altura você pode chamar ou "baixar'', seu ressurgimento; então em vez de sofrer pressões externas,
tudo safe. Então "guardou" todas as fotos que eu tinha tirado coerções externas, o que começou a restringir a minha
no Pelourinho, o tal do I Cloud. liberdade de conviver com a minha família, talvez até com
colegas, passou a ser esta coerção interna em mim.
A minha surpresa foi, porém, quando cheguei à casa em
Maputo (aliás, no avião, começo a apagar, a "deletar'', algumas É a isto que Han está a referir-se: "na época neoliberal 0
fenómeno principal da crise da liberdade é que a coerção em
relação à liberdade individual deixou de ser externa e passou
65 .. ·cri-.' H:'àr1;-i3~t.' (ifri i 4j:"P'si~~pôiiti'C'a ·::.
Ibidem. p. i 1.
66 O Largo do Pelourinho é a parte histórica da cidade ela Bahia e que recorda a ser interna"; passando a internalizar-se particularmente
o tempo da escravidão; Pelourinho per si tratava-se de uma pedra ou madeira
onde se puniam os escravos condenados por "lei" pelos portugueses; era colo-
devido a esse objecto que chamamos telemóvel.
cado numa praça pública para se assistir aos escravos condenados por "crimes"
a serem torturados ou chicoteados, alguns até à morte, contava-nos um guia
negro bastante constipado para o calor que fazia
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José P. Castiano

Afastamento de Marx * Para Han, repetimos, o SU.Jeito de rendimento ou da


liberdade, que se pretende a si próprio ser livre, é na realidade
O neoliberalismo, para retirar a liberdade ao indivíduo, segundo
um escravo absoluto escondido por trás da retórica libertária.
Byund-Chul Han, explora a emoção, o jogo e a comunicação.
O neoliberalismo "explora o indivíduo para que ele se explore
Ele relembra que Marx define liberdade em termos de uma
voluntariamente a si mesmo."
relação dentro de uma colectividade e não como atributo
individual. Como atributo relacional, a liberdade só se torna O segundo aspecto sobre o qual Han se debruça em relação
possível e vivível pelo indivíduo, segundo Marx, no interior de à época contemporânea, para além da crise da liberdade, é a
uma comunidade, porque uma pessoa, fora desta, não lhe seria "ditadura do capital". Marx tinha afirmado a possibilidade
possível equacionar a sua liberdade. E, como dissemos acima, de uma revolução comunista a partir de um determinado
Han considera que a exigência dos neoliberais para a defesa nível de desenvolvimento. Esta revolução séria possível,
da liberdade individual a todo o custo, trata-se, na verdade, de segundo Marx, por causa da contradição entre as relações de
uma "astúcia do capital" para que este possa satisfazer a sua produção e as forças produtivas capitalistas que atingem o seu
necessidade de produção e reprodução. máximo no capitalismo financeiro internacional. Portanto,
156 Assim, na livre concorrência, cujo fundamento rnwliberal esta contradição cria condições para uma revolução socialista
A "Ullf.lllMDf." DO N~OLl~EMHSMO 157
para mantê-la é liberdade individual, é, de facto, a i·elação do dirigida pela classe operária que já não teria nada a perder. LEJTURASCRfTlCAS

capital com o próprio indivíduo enquanto "outro" capital que Mas, e neste ponto Han está a seu favor, esta contradição é
está em causa. Nesta livre concorrência, continuamos com insuperável; porém, segundo Han e agora contrariamente a
Marx, não são os indivíduos que se afirmam corno livres senão Marx, "porque o capitalismo escapa sempre em direcção ao
o capital que se afirma como livre sobre a aparência da liberdade futuro", aqui está a razão de o capitalismo não ter perecido para
individual. Na verdade, para Marx, a livre concorrência dar lugar ao comunismo, como Marx previa. O capitalismo
não garante, e nem sequer tem a possibilidade de garantir a renova-se em forma de neoliberalismo.
liberdade individual. A única '1iberdade" que é garantida com
a exigência da livre concorrência é a do capital poder circular O neoliberalismo, enquanto forma de mutação do
livremente. É por isso que Han chama a isso "astúcia do capitalismo, e este é o seu "segredo", transforma o trabalhador
capital"; precisamente devido à sua capacidade de se esconder em empresário de si mesmo. Por isso mesmo, no momento
por trás da retórica libertária. Em outras palavras, nós sentimo- ou tempo neoliberal, elimina-se a possibilidade de uma classe
nos '1ivres" na economia do mercado de concorrência "livre" trabalhadora. Então, segundo essa visão de Han, desaparece
porque temos dinheiro. Porém, esta "liberdade" é do capital e o o trabalhador clássico, dada a possibilidade de nós todos
capital precisa ser livre para circular. transformarmo-nos em trabalhadores de nós mesmo; daí a
impossibilidade de haver "proletariado".
José P. Castiano
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han

sociedade neoliberal. Nesta obra ele refere-se à "violência


O Fim da Política
neural" para explicar a auto-agressão, a violência e a depressão;
Para iniciar, quero chamar para aqui o neornarxista António à sociedade liberal do século XIX e à primeira parte do século
Negri. Este opina que o proletariado, na condiçã~ do XX, ele chama por época "imunológica" (um pouco em direcção
neoliberalismo, é substituído pela "multidão"; ou sep, a ao Sloterdijk); trata-se de um período em que havia uma clara
"missão histórica do proletariado" - declarada por Marx e distinção entre amigo e inimigo, o indivíduo do estranho, o
Engels no Manifesto Comunista-, a de derrubar o capitalism~, interior do exterior, o nacional do estrangeiro; portanto era
de derrubar todas as formas de exploração, para o Negn, possível "imunizar" estas dimensões.
nesta idade contemporânea, não é já o proletariado que a vai Em consequência da violência neural, a era do
fazer cumprir. Ele chega a esta conclusão analisando os actuais neoliberalismo é também chamada, por Han, como "época
processos ou "revoluções" na primavera do médio oriente. No neuronal": de um ponto de vista patológico-esclarece ele-não
mesmo tom de "massas" ou "multidão" que tornam-se a força
é o princípio bacteriano e nem tão pouco viral que caracterizam
motriz das revoluções actuais, escreve Peter Slottedijk na obra a entrada do século XXI. Na época neoliberal constitui-se
O Despertar das Massas. o "princípio neural'', ou seja, determinadas doenças neurais 159
158 Vejamos, como exemplo, os aconteci1ncntos no Brasil onde tais como a depressão, o transtorno por défice de atenção, a
Lf.!TUllA.~CR(TICAS

A ·unl!IIDADI!" DO Nf.OUBCllA!!5MO

uma "multidão" nas ruas reclama a reinstalàção de Dilma como hiper-actividade (ele chama TDAH) e certas perturbações da
presidente. A "mesma" multidão esteve nas ruas no Egipto, na personalidade descrevem o panorama patológico do indivíduo
Argélia, e outros países. do século XXI.
Sobre isto Han avisa que seria errado pensar que uma As doenças do século XXI são aquelas que temos todos os
"multidão" pode derrubar o império neoliberal e construir dias; são doenças de (manias de) perseguição. Toda gente quer-
uma nova sociedade; porque o domínio do novo capital ou a nos fazer mal, e, por isso, ficamos deprimidos, estressados, etc.
"ditadura do capital" faz com que esta função de revolução esteja Estas já não são, como antes, doenças provocadas directamente
sempre a dilatar para um futuro. O neoliberalismo, por causa por bactérias, embora continuem a existir; a maior doença
da autoexploração, faz com que cada um oriente a agressão do Homo Economus é a depressão. Todos não querem que
em direcção, não a um capitalista, senão para consigo mesmo. tu atinjas os teus objectivos, menos tu próprio; é assim que
Trata-se de uma espécie de autoagressão que transforma o funciona a depressão. Então, como "solução'', precisamos
explorado, ao invés em revolucionário, em um ser deprimido. de encontrar uma coerção interna para continuarmos em
Eu queria trazer para este ponto, algumas ideias d' A diante. Isto acontece, segundo Han, porque as necessidades
Sociedade de Cansaço onde ele também faz um diagnóstico da do capital, como expliquei acima, passam a aparentar ser
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José P. Castiano

próprias do indivíduo. E quais são as necessidades do capital? neoliberal, é habitada por "espectadores" e "consumidores"
É que tu consumas mais. O princípio é o consumo que acciona que transmutam a democracia republicana em democracia
o seu mecanismo para reproduzir o capital. Desaparece, em para espectadores. O que acontece na política, e por isso
consequência, o politicum zoon de Aristóteles; e a própria interessa mais, é o espectáculo dos políticos por via dos media.
política transmuta-se em uma nova forma de escravidão ao Os casos do Brasil, o caso da EMATUM, interessam enquanto
capital. espectáculo público. O que sugere que, se forem "resolvidos'',
Citando da Psicopolítica: "O votante reage de forma passiva o público de espectadores esperará por outros espectáculos
à política, como um consumidor, i.e. protestando, tal como por vir. É o fim da política, é a era da pós-política (política de
este, perante a mercadoria (serviços que [lhe] desagradam); espectáculo ).
os políticos e os partidos políticos comportam-se na lógica do Hoje os políticos acusam o endividamento como causa que
consumo: you mustjust detiver." (tens apenas que providenciar limita, em enorme medida, a sua liberdade de acção. Portanto,
serviços!) a dívida! Não posso fazer nada porque nós estamos a dever,
não há possibilidade de financiar a educação porque não temos
160
A Ditadura da Transparência dinheiro, não há possibilidade de financiar a saúde porque não
/&"t.IBHM,,Ult"DOHF.OLlllERAhSMO
161
há dinheiro; nós estamos a dever! A dívida transformara-se Ll!ITURASCRfTIC/l.S

Por trás da exigência pela "transparência" nos actos do em justificação plausível para a paralisis institucional, ou seja,
político, não se esconde qualquer utopia que não esteja fora do para a não-acção, o não-movimento.
cerco político do neoliberalismo: "A transparência que se exige [É até possível que nos endividemos permanentemente
boje dos políticos é tudo menos uma reivindicação política" - para não termos de agir, para não sermos livres e nem
afirma Han. E continua mostrando que a transparência "( ... ) responsáveis. A palavra alemã Schuld significa, por um lado,
serve sobretudo para expor os políticos, para os desmascarar, "dever dinheiro" e, por outro, "culpa"; então não serão as
para os transformar em objecto de escândalo. A reivindicação dívidas (no sentido de "dever dinheiro") elevadas uma prova de
da transparência pressupõe a posição de um espectador que sermos incapazes, como moçambicanos, de podermos exercer
se escandaliza. Não é uma reivindicação de um cidadão com a nossa liberdade enquanto cidadãos e instituições livres? Não
iniciativa, mas de um espectador passivo"Gª. será o capital um novo Deus que nos torna novos devedores (no
Desta forma, e este é o diagnóstico-resumo que Han sentido de "culpados") em falta? Analisado bem: as dívidas em
faz, a "sociedade da transparência", ou também a condição dinheiro contraídas no processo conhecido como EMATUM
transformaram-nos em "culpados", porém ironicamente e não
por acaso, no final de tudo é o capital financeiro internacional
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Castiano

dos bancos que emprestaram o dinheiro com juros altos, que Quantas vezes nós não levamos o trabalho para casa porque
vai sair vencedor por terem sido nossos "salvadores". Culpados possuímos um computador para "poder trabalhar depois" da
por devermos dinheiro e, no fim de tudo isto, vamos ser mais hora oficial do trabalho, ou porque nós podemos, através dele,
pobres do que antes da contracção das dívidas. É assim que "entrar em rede". Não podemos perder rede!
funciona o capital neoliberal]. [Um professor contou-me que ele e um outro colega, para
fazer o currículo segundo as regras do novo curso de mestrado,
Segundo Byung-Chul Han, na sociedade neoliberal, a
ficaram no chat até de manhã "porque tinham que entregar
"liberdade" se consubstancia em termos do "tempo livre"
no dia seguinte". No entanto, eles "sabiam" que já era o ~eu
disponível; e de facto temos a po'ssibilidade de termos
"tempo livre" e que deveria ser dedicado à família. E ainda por
"muito" tempo livre. Porém, por causa da auto-fagocitação
cima a usarem o seu dinheiro em internet para o serviço. O que
do homem, da auto-prisão e auto-coerção a que o homem
justifica este "sacrificio" na condição neoliberal?
neoliberal sujeita-se a si próprio, este vê-se obrigado a
utilizar o aparente "tempo livre" para recuperar o trabalho Agora, ao nível da UP, existem "grupos de trabalho" em
que não fez em tempo útil. Então auto-coage-se para voltar rede tais como "troca científica", "Kupisakira" (investigação),
ao trabalho no seu tempo livre. Daqui a aparência-de tempo "Dream Team" do corpo directivo, "grupo PROPPE", etc. cuja. 163
162 !.EJTURASCR(TlCAS

A "Ll9ERD.\DI!." DO Nl!OLIBERA!ISMO
livre porque o homem neoliberal tem possibilidade e "poder" função é fundamentalmente a troca de informações, anúncios,
de fazer tudo; aqui está subjacente a ideia, segundo a qual, a combinar agendas, etc. As mensagens destes grupos entram
nossa liberdade está assente na possibilidade ou no poder de a qualquer hora, de dia ou mesmo de noite ou de madrugada.
cada um de nós poder "continuar a trabalhar", mesmo no que é Basta alguém não poder dormir para ter a ideia de enviar
suposto ser tempo-livre; isto é, depois do tempo-de-trabalho; uma mensagem sobre uma nova ideia esquecida. O drama do
nós temos a possibilidade de "levar o trabalho para casa". A homem neoliberal é ·que paga voluntariamente para pertencer
nossa liberdade é caucionada pelo facto de termos poder de aos grupos de trabalho aumentando assim a nossa presença
ser livres e decidirmos, "voluntariamente", deixar de ser livres no mercado do capital. A resposta está na emergência da
no tempo-livre. "coerção interna" da qual falamos antes. Liberdade, significa,
no fundo, "poder trabalhar mais" nos tempos livres].
A possibilidade da liberdade encontra-se na necessidade de
continuar a trabalhar para além do tempo para tal reservado. Desta forma, a "liberdade" já não tem o gosto em si; é uma
Parece um paradoxo para o campo teórico, mas para o campo liberdade falsa que acontece no neoliberalismo. Então, segundo
prático não o é. Eu não sei quantos aqui pagam a taxa do seu Byung-Chul Han, emerge uma "ditadura da transparência".
telemóvel para poderem tratar "assuntos do serviço": telefonar
ao colega, combinar uma reunião ou uma sessão de chat.
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Casriano

A Facebook Society sem saber a quem e nem em que ocasião. Ou a que lugar, esse
saber a nosso respeito, cabe. O que nos interessa é colocar
O jacebook, o whatsApp, o Instagram e outras formas de redes nossos dados no facebook, no WhatsApp, na internet, mas não
sociais transformaram a nossa sociedade de tal sorte que tudo nos interessa quem vai ler, onde vai ser lido e a que horas o vai
se pode expôr, melhor, deve expôr-se livremente. N' A Sociedade ser. Há uma total competição de likes e "visualizações". Menos
da Transparência Han cita o slogan inicial da Microseft que era: nos interessa quem está a ver, para que é que serve e como é
where do you want togo today? [Onde que queres ir hoje?] De que vai ser usado. Passamos para a característica distintiva da
facto, neste slogan, não se tratava de uma pergunta, senão de época, que é o big data, ou simplesmente dataísmo. [Há dias o
uma afirmação. Hoje é possível, deslocarmo-nos para todos meu reitor reenviou um email solicitando que me encontrasse
lugares estando sentados num lugar, por via digital. Podemos com a pessoa que lhe tinha enviado um email para tratar
encontrar-nos virtualmente seja com pessoas nos Estados assuntos académicos. Dois dias depois de uma troca de e-mails
Unidos, seja com amigos e parentes que estejam na Ásia, a com a pessoa virtualmente, eis que, à saída de um encontro
título de exemplo. oiço alguém, que estava dentro de um carro, a chamar-me pelo
Pois, a liberdade e a comunicação ilimitadas transf~rmam­ nome. Respondi distraidamente, mas a pessoa insistiu dizendo
164 165
/\ "l.!BEIUMDE" DO f'IEOUDERAUSMO se em controlo e vigilância através do uso_do que Han chama que era com ele com quem eu trocava e-mails. Quando, mais Lf.!TURA.~Cll.fTICAS

69
pan-óptico (qualquer coisa como "visibilidade total") • O pan- tarde no encontro, interroguei como tinha-me reconhecido,
óptico vigia o social, o político, o económico, o cultural. Assim, respondeu com um gesto de obviedade que me pôs, por
esta sociedade que aparenta ser de transparência, é, de facto, minutos, na posição de um fora-do-seu-tempo: "fui ao google
de controlo. Nela usa-se intensamente a aparente liberdade antes para saber quem o senhor era"].
ilimitada da comunicação. A transparência é reclamada em Quais são as características do dataísmo? O big data
nome da liberdade de informação. A transparência é um permite adquirir conhecimento integral duma sociedade e dos
dispositivo neoliberal com o qual a transmissão e troca de seus cidadãos. Ele permite a dominação; permite intervir na
dados resulta duma necessidade interior "e não externa", psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo, mesmo antes
como aliás várias vezes já se sublinhou. Tudo, neste tipo de da reflexão. A nossa mente é condicionada pelo big data para
sociedade deve transformar-se em informação. O segredo, poder reflectir sobre os diversos assuntos.
a estranheza, a alteridade e até a privacidade, devem ser
O cidadão, mesmo no gozo da sua liberdade, positiva-se, ou
tornados em estados da transparência.
seja, torna-se quantificável, mensurável e controlável (o que
Prestamos à rede social todo tipo de dados e informações é um chip senão um concentrado de dados pessoais?). É o fim
da pessoa e da vontade livre. O smart phone [esses telefones
69' .. Pàii~ój)tíéó' é' üill' concêító' q~e· úáii 'repesca do livro Panoptikum oder Kontrol-
haus de Betham (Berlim 2012 ).
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Castiano

que estão aqui na sala a gravar enquanto eu falo] é um pela negatividade e sobre o corpo (biopolítica).
objecto digital de devoção, não já de pura necessidad~' [todo~ O poder "inteligente'', pelo contrário, não exerce,
lembram-se do pavor e do trauma do dia em que esqueci aparentemente, nem violência, nem repressão. Apenas seduz,
meu telemóvel em casa!"]. E essa devoção transforma-se num é amável. É amável, porque "orienta, não opera, influencia
objecto de dominação. A dominação aumenta a su~ eficácia as vontades, ele é afirmativo, gera emoções positivas, não
ao delegar a própria vigilância a cada um que possm o smart enfrenta o sujeito, mas gera facilidades ao sujeito". Seduz, em
plwne. Todos nós temos no bolso um ou dois ou mesmo três vez de proibir. Não impõe silêncio, exige que partilhemos,
instrumentos da nossa própria vigilância; e trazemos todos os participemos, comuniquemos as nossas opiniões e os nossos
dias por vontade própria, nos bolsos ou carteiras. sentimentos ["X está a sentir-se feliz com Y"J.
O like, por seu lado, é o amen digital. Quando clicamos Segundo Byung-Chul Han: "A presente crise da liberdade
lzJce no post de alguém, submetemos-mos a uma "estrutura consiste em que estamos perante uma técnica de poder que não
virtual de dominação", a um controle. O smartphone não é nega ou submente a liberdade, mas antes a explora. Explora a
somente um aparelho de vigilância eficaz, mas também, um própria liberdade. A decisão livre é eliminada em favor da livre
166
"confessionário móvel". Em qualquer altura estás em condição escolha entre as ofertas. Porque o poder oferece facilidades". 70 167
"·unEl!.OAVf." DONf.OUll!iRAltSMO
de fazer "confissões" com a expectativa de serem lidas por Ll!ITURAS CRITICAS

Então o neoliberalismo transforma-se num capitalismo


muitos anónimos que vão colocar o seu like ou comentário. Até
de like, "gosto" com o qual nos submetemos às estruturas
há competição sobre as estatísticas dos like [Quando a Stélia
de dominação neoliberal: "no neoliberalismo domina-se
"posta" uma foto aparecem logo trezentos e quarenta e tal
agradando". A pessoa tem o "gosto" de submeter-se a si
likes em dez minutos; pelo contrário, quando eu ponho uma
mesma a esse poder, portanto "eu gosto" de ser vigiado. E
coisa qualquer só tenho dois ou três]. A estatística qµe se gera
submeto os meus "comentários'', sentimentos, amizades, etc.
provoca a competição: quem tem mais like e em quanto tempo?
voluntariamente numa estrutura virtual do poder - ao Big
Quando é um artista, por exemplo, há um vídeo de Justin Bieber
Brother.
que é Sorry, aparecem logo milhões de like e/ ou visualizações.
O Jacebook, ainda continuamos com Byung-Chul Han, é
a igreja, a sinagoga, a congregação digital ele hoje. A partir O Afastamento de Foucault
desta realidade, melhor desta virtualidade, o poder começa a ser
Para Foucault, nós vimos na biopolítica, o poder tem como
"inteligente". Na modernidade, o poder exterioriza-se como
função administrar corpos, gerir vidas; o poder não serve para
violência, repressão e negação da liberdade, como um poder
matar ou ameaçar, mas disciplinar vidas e corpos.
"disciplinador" - segundo Foucault o adjectiva - dominado
Psico política: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José P. Castiano

Antes, na condição pré-liberal ou pré-moderna, o poder


no indivíduo a possibilidade de optimização de melhoria de
manifestava-se, não raras vezes, tirando a vida ou ameaçando qualidade a tal ponto e extremo de ele estar predisposto a usar
os inimigos e oponentes ao poder instituído; no liberalismo
o seu "tempo livre" para optimizar e melhorar a qualidade
e segundo Foucault, o poder serve para disciplinar a vida e o
elo seu trabalho. Inculca no indivíduo a necessidade de estar
corpo. sempre a autosuperar-se. Cada um ele nós está préclisposto a
A biopolítica baseia-se no poder disciplinar, descobre a optimizar o seu trabalho através da sua participação voluntária
"população" como uma massa de produção e reprodução. A em seminários, workshop ele manegement, treinamento ela
biopolítica, segundo Byung, desta feita a interpretar Foucault, é inteligência emocional, terapias, couching empresarial e de
uma forma de governo numa "sociedade disciplinar"; mas, e esse liderança, etc. O fim último é, segundo Han, a exploração da
é o ponto crítico do Byung Han, Foucault não explora o psíquico. totalidade do tempo do trabalho e a totalidade das emoções da
Por isso ele (Foucault) é totalmente inadequado para tomar-lhe pessoa, até a sua própria vida.
corno uma possibilidade para uma interpretação adequada (e
suficientemente explicativa) sobre o neoliberalismo. Ou seja o
"Yes, I Can ": Neoliberalismo, a Era de Emoções Livres
168 elemento fundamental que ocorre no neoliberalismo, t que já
169
não é o corpo senão é a mente que é, no se~i lugar, explorada.
'•trneRDADli" DO Nf.O!.!BERAIISMO

Para maximizar o trabalho, o neoliberalismo explora LEITURAS CRITIC\S

Então toda análise foucaultiana sobre o neolibe1'alismo principalmente emoções: o medo, o esgotamento, a ansiedade,
"despreza" o elemento principal de exploração - a mente. a dor, a angústia, etc. É desta forma que assistimos a presença
Foucault não efectua essa passagem importante da massiva de empresas de aconselhamento emocional, de
biopolítica para a psicopolítica; ele não está totalmente certo terapia, de auto-ajuda. A psicopolítica funciona como se fosse
de que a biopolítica e a população, enquanto categorias da unia indústria da consciência em que o sujeito da sociedade
sociedade disciplinar, possam descrever apropriadamente o neoliberal está permanentemente confrontado com o
regime neoliberal. imperativo de optimização pessoal e coagido a gerar cada vez
Então, o elemento principal que Byung acrescenta na mais rendimento. O homem neoliberal não fica satisfeito com
análise sobre o neoliberalismo reside no facto de destacar que o que possui e, por isso, precisa produzir cada vez mais, para
este descobre a mente, a psique, como uma força produtiva para atingir patamares cada vez superiores.
fundamentar a exploração de homem pelo homem; a "nova Ultimamente foram escritos muitos livros atraentes
forma de exploração", na linguagem ele Byung-Chul Han, de gestão emocional ou de terapia individual e de grupo.
consiste na optimização pessoal para o aumento d~ eficácia Quase todos nós lemos livros que pretendem ajudar-nos a
no trabalho. No sentido prático, o neoliberalismo inculca ser vitoriosos, a perseguir os nossos objectivos e "sonhos",
a sermos pessoas de sucessos, etc. enfim, a confiarmo-nos a
José P. Castiano
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han

dar curso livre às emoções, e já não simplesmente às opiniões


nós mesmos; a motivação mais alta é quando se conclui quase
e pensamentos racionais públicos. Nós sentimos a sensação de
sempre yes, J can; sim, eu posso ou és capaz de conquistar o
liberdade quando temos a liberdade de expressarmos emoções
mundo. São terapias ou "filosofias de auto-ajuda". E, nesta
ou deixamos que os outros o façam. [Não é raro, é até muito
terapia, cada um de nós aparece considerando-se a si mesmo,
frequente, que alguém esteja numa reunião e de repente
quase sempre, melhor do que outro.
"explode" dizendo "eu tive que dizer a eles para saberem o que
Com um dos meus colegas, por exemplo, estamos a ler é a realidade"; ou às vezes no gabinete, enquanto trabalhas,
livros de Irving Yalom. Um deles tem o título Quando Nietzsche de repente entra alguém de quem nos damos conta que o seu
chorou. Trata-se de um encontro hipotético entre Nietzsche objectivo é dar curso livre às suas emoções, mesmo que se trate
e Bruno Bauer na Áustria, na altura em que começavam de emoções relativas ao trabalho. A propósito deste aspecto,
experimentos na área da psicoterapia. Um outro, do i~e~mo enviaram-me um WhatsApp, supostamente um dos "conselhos"
autor, é As Mentiras no Divan, que explora as emoções femmmas do famoso actor negro afroamericano Denzel Washington,
quando são "abandonados" por um homem, tipo de vingan~a que dizia assim: "Deus deu vinte e quatro horas para cada um
que preparam contra o homem e depois vão "cair" na terapia de nós cuidar da sua vida. Mas mesmo assim tem gente que
etc. E 0 último, que estamos .a ler e. a debater sobre- ele, de 171
170 adora fazer horas extras na vida do outro!"]. E a pessoa sai LEIT\JRASCRIT!CAS

terapia colectiva, intitula-se A Cura de Schopenhauer. Neste,.º com a sensação de ter estado num confessionário: "eu disse"
autor imagina Schopenhauer a curar problemas fundamentais ou "fiz o que deveria ser feito"; sai satisfeita porque acha-se
da existência humana, neste caso de um médico a quem é dito livre ou acha ter exercido o seu direito de reclamar. Se disso
que teria somente um ano de vida pela frente! O autor c~ama resulta uma acção, já não interessa muito. E você transforma-
a Schopenhauer para a contemporaneidade porque foi um se, e isso é importante, num gestor de emoções, mais do que
filósofo da angústia, tendo vivido ele próprio em permanente de interesses, numa instituição. Um chefe responsável hoje
tensão e angústia. tem que se transformar em gestor de emoções de pessoas que
Todos esses livros concorrem para um resultado: acham ser o seu "direito" deixar que suas emoções corram
deixarmos de culpar aos outros pelos nossos fracassos e o seu curso "livremente". A sua liberdade, assim, reduz-se
despertar o herói (adormecido) em cada um de nós; todavia à falácia da liberdade de emoções. Já não se trata, pois, do
heróis não a partir de grandes feitos, senão da auto-superação exercício público e livre da razão, como Kant queria. Agora
das próprias angústias, frustrações, etc. Estamos perante um são as emocões no público que manifestam a "liberdade".
verdadeiro yes, 1 can! Segundo Han, o neoliberalismo introduz propositadamente
Este tipo de capitalismo neoliberal, como diz Byung-Chul as emoções para estimular a compra e engendrar a impressão de
Han, explora emoções, no qual ser livre acaba significando necessidades crescentes em cada consumidor. Até há emotional
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Castiano

designers, aqueles que projectam as nossas necessidades 1 Lave You Big Brother!
por via das emoções ou simplesmente que fazem "acordar"
necessidades aparentemente dormentes em nós. O que é o Big Brother? [Um participante responde: eu não sei
o que é exactamente, mas sei que é um reaHty show que passa
Precisamos de dois ou três telemóveis? Hipoteticamente não!
na TV com demasiada assistência. Trata-se de um grupo de
Precisamos de vinte pares de sapatos? Hipoteticamente não!
jovens que fica confinado numa casa e vive lá. Na verdade é
Precisas de não sei quantas carteiras? Hipoteticamente não!
a lei do mais forte, porque estão todos a lutar por 100 mil
Mas o neoliberalismo consegue fazer desenhos de emoções a dólares e cada um faz coisas inusitadas como tentar mostrar
ponto de que todas essas coisas apareçam como necessidade. ser carismático, tem que mostrar ter emoções fortes; e vemos
Hoje não se procuram objectos, procura-se satisfazer algumas coisas, com as quais a moral e a ética, às vezes, não
emoções. De facto quando eu compro um novo relógio, novo concorda. Autor. mas _quem é exactamente o Big Brother?
cinto, novos sapatos, estou a satisfazer emoções; a: "prova" Onde está ele? Participante: é uma competição, em que os
disto é que depois de dois dias do seu uso, recomeço a comprar jovens é que recebem um prémio enfim, ... não sei .. .Autor. O
outros; aqui já não se trata de necessidades, senão da .e.moção Big Brother são vocês todos, somos todos nós que assistimos.
172 173
\ "UUHRDADB" DO Hl!O!.IBl>R/J!SMO de estar a adquirir sempre uma coisa nova, um novo telefone Passamos a fingir que gostamos, e acabamos m-esmo gostando, l.EITURASClllTLC.\S

que talvez possua uma nova função, que nunca ou pouco será a quem nos vigia: 1 lave you big brother! Como aconteceu isto?
usada. Como chegamos a este ponto?]

Então aqui estamos perante uma mudança de paradigma Há uma anedota segunto a qual um polícia pergunta a um
apontado por Byung-Chul Han; de gestão dos corpos para ladrão: "como é que soubeste que na casa onde arrombaste
gestão de emoções porque para as estruturas de condução e no Natal não havia ninguém?". "Foi fácil saber", retorquiu o
dominação das sociedades as emoções tornaram-se cada vez larápio, "foi no Jaceboo!C'. E continuou ele: "No face de cada
mais relevantes. O gestor actual afasta-se do princípio do um dos membros da família estava lá postado 'Feliz Natal e
comportamento racional e assemelha-se cada vez mais a um conduzam com cuidado', com fotos do lugar onde estavam e
orientador motivacional. As emoções são performativas na tudo!" A questão psicopolí.tica, agora, é, como chegamos ao
medida em que invocam acções determinadas. O capitalismo ponto de que o homem e a sociedade são controlados por
neoliberal começa a interessar-se mais pelas emoções, porque (melhor: através de) máquinas? Talvés a melhor formulação
compreende que é daí onde pode maximizar os rendimentos é como chegamos ao ponto de todos sermos potencialmente
do capital. Pode aproveitar as emoções para vender e vencer. Big Brothers?E como chegamos ao ponto de termos um "olho
universal" que pode "ver" tudo e a qualquer hora por via de
um simples click?
José P. Castiano
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han

O professor João MariaAndré, da Universidade de Coimbra, e f01jar várias identidades ... ". Na Telépolis há também "tele-
trabalho", "tele-vendas", "tele-sexo", etc.
no capítulo "As Utopias do Renascimento e o Renascer das
Utopias" inserido no seu livro Diálogo Intercultura~ Utopia e Segundo o professor André, esta utopia, descrita por
Mestiçagens em Tempos de Globalização facilitou uma breve, Echevarria, marca uma grande diferença com a literatura
mas explicativa "história" da perca da liberdade do homem utópica anterior. Primeiro, na Telépolis trata-se de uma "cidade
devido ao aumento da capacidade da vigília das máquinas de todos", e não de alguns; ou seja, todos caem sob a tele-
submetidas ao capital financeiro 71 • A seguir apoio-me nele vigília. Segundo, ela abrange "todos os espaços" e não somente
para, brevemenete, reconstituir esta "história". uma Ilha, como se tratava, por exemplo, na Utopia de Thomas
"Tudo" começa em 1932 quando Aldous Haxley publica Moro. Em terceiro lugar, "alcança a todos" em toda a parte e
O Admirável Mundo Novo. Este mundo é habitado por clones em simultâneo.
onde tudo (emoções, valores, humor, etc.) pode ser programado Seguindo o mesmo padrão, em 1949 é a vez de Georges
pela administração Ford e seus dez administradores. Estes Orwell escrever uma obra de ficção cujo título é 1984. Ele
controlam os seus "cidadãos" (clones) por via de programas imagina o que seria a sociedade em 1984, ou seja, trinta e
174 que eles produzem. cinco anos mais tarde em relação à data da escrita; trata-se de 175
LF.ITIJRASCRfTICAS
n "UBCIUl,.UE" DONF.OUBE!tAMSMO

Em 1945 von Neuman idealiza um computador. Logo, a esboço de uma socieda'1e na qual toda a privacidade desaparece
28 de Dezembro do mesmo ano, Dominique Dubarte escreve porque um "olho grande" - aliás, a capa do livro é um olho
para o Le Monde, quase a predizer uma governação virtual do que enche toda ela - vigia, através de câmaras (tele-écrans)
homem moderno: "podemos sonhar com um tempo em que a espalhadas pela cidade, tudo o que acontece nela. Vigia gestos,
máquina de governar virá preencher (... ) a insuficiência (... ) vigia pensamentos, emoções, etc.; vigia também o que se diz
nas cabeças e nos habituais aparelhos políticos". e o que se escreve, os passos na sombra e em todo lado; este
vigilante, o olho, é conhecido como o Big Brother, o grande
Todavia, mais tarde surge Telépolis, livro escrito por Javier
irmão (o mano).
Echevarria e que descreve o drama de uma cidade vigiada.
Ele escreve o seguinte sobre ela: "... cidade sem longe nem O autor descreve a vida numa casa de vidro - glass
perto, circula-se à velocidade de luz, movimento coincide com house - que, na sua versão, seria a sociedade mundial em
repouso, ruas são canais de fibra óptica, montras e pontos de 1984. O Big Brother governa através de quatro ministérios,

encontro são 'sites' e páginas WEB, a 'ágora' (praça pública) nomeadamente da Riqueza, da Paz, do Amor e da Verdade.
são foros de debate virtual onde cada um pode estar sem estar Winston, o protagonista, deixa-se vencer no fim pelo Big
Brother declarando I lave you Big Brother. Ele amava alguém
·7 i ···Cif.' Aiiclré; 1: 'M". ·(2oô5j:' b'idlag·~· Jniércultural,
Utopia e Mestiçagens em Tempos que sabia que o vigiava por via de tele-câmaras espalhadas por
de Globalização. Ariadne Editora. Coimbra, Portugal.
Psi copo lítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José i'. Castiano

toda a cidade72 • a estatística; com esta pensava-se que o homem podia libertar-
De facto, aqueles que estão no programa que assistimos se da mística na interpretação dos fenómenos, sobretudo os de
hoje na televisão, o Bíg Brother, os participantes não têm natureza social. O dataísmo, por sua vez, é uma ideologia que
conduz ao totalitarismo digital.
onde se esconder. É um programa que expõe as emoções dos
participantes, podendo todos nós avaliá-las live: a resistência Byung-Chul Han conta o caso da empresa americana
de cada um, as amizades, os seus ódios, as intrigas e os Acxiom que usa o big data para o big deal (grande negócio);
desesperos. De facto o Big Brother, como disse o colega na esta empresa possuía dados pessoais de mais de 300 milhões
introdução, diverte-se vendo-nos lutando pela vida uns contra de pessoas. O seu spot dizia "oferecemos-lhe uma visão de 360
os outros na glass lwuse que se tornou este mundo. graus dos seus cli.éntes". O big deuL consistia em acumular
Então o Big Brother somos todos nós que assistimos a dados pessoais (carreira, emprego, estado civil, gostos, vida
tela grande, o teleecran. É como se estivéssemos a olhar o escolar, etc.) como um capital. Os bancos eram os maiores
mundo através dum vidro grande. E isso é escrito em 1949; utilizadores. A Acxiom cruzava-os e tratava de cuspí-los para
porquê? Foi o ano um pouco depois de ter sido inventado o cá fora. Entre os maiores utilizadores desses serviços de dados
176 computador. O autor imaginava que chegaria um-dia no qual encontramos também grandes empresas para enviarem a sua
• A "UUllROl\DJ\" /lONf.OUllERl\!1~"10 177
todos estariam disponíveis, para serem vistos de qualquer publicidade. Se você coloca um like num site de publicidade LEIWRASCRITICAS

canto do mundo, sempre que alguém (não sabemos bem quem qualquer, o mais provavel é que, logo a seguir, recebas uma
está a ser o Bíg Brother, a que momento e nem a partir de que dezena de sites semelhantes, isto é, que oferecem 0 mesmo
lugar) precisasse de ver; e, de facto, hoje, qualquer um pode produto. Na indústria hoteleira, por exemplo, isto é mais
frequente.
colocar o seu nome na internet e aparecem seus dados para
consultar. Na realidade o Big Brother somente precisa "cruzar Quando você vai ao banco e diz "eu quero empréstimo", e
dados". E com este "cruzamento", estamos no dataísmo. dão-te urna folha para preencher seus dados, eles vão, depois,
ao mesmo tipo de empresa, para ver se contraíste outras
dívidas em outros bancos. Se esse for o caso, 0 computador
A "Ditadura" do Dataísmo
"cos~e" todas as dívidas; e quando "cospe" ao mesmo tempo
Para Byung-Chul Han, a sociedade actual vive de "cruzar" classifica em "lixo", ou seja, não tem valor económico, você é
dados que o big data fornece diariamente. É a idade do da classe inferior; não tem direito a um crédito bancário; pode
"registo total". Como dissemos antes, trata-se das segundas dar voltas por outros bancos, mas acaba havendo sempre uma
luzes. As primeiras luzes, em termos de dados, surgiram com form~ de você desistir sozinho. Existe também a categoria·
shootzng star; nesta, você é considerado uma "estrela" que se
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José P. Castiano

pode "lançar" ao mercado do emprego. Normalmente pode ser


pelo cruzamento de dados. Segundo Byung-Chul Han: "Numa
"lançado" quem um está entre os trinta e cinco e quarenta
correlação, por muito forte que seja, nada absolutamente se
e cinco anos, porque tem valor superior no mercado. Tem
sab~ do porquê do comportamento em causa. É simplesmente
valor superior no mercado se é casado, sem filhos (porque os
asszrn. Trata-se de uma relação de probabilidade, mas não de
filhos prendem), gosta de viajar, está disponível e faz footing necessidade" 7".
(caminhadas) matutinas ou no fim da tarde.]
O dataísmo é um nihilismo no sentindo de Nietzsche. Ele
Porque é que surge o dataísmo ou essa apetência por
renuncia ao sentido, às narrativas e promete uma falsa clareza
ter cada vez mais dados? Por que, aparentemente, nos
tornando-se numa barbárie de dados. Nietzsche tem uma
proporcionam transparência; tudo deve ser transformado em
expressão: "à falta de sossego a no~sa civilização desemboca
dados e informação para que "todos" tenham potencialmente
numa nova barbárie".
acesso; [então nós moçambicanos não estamos a exigir que
todos os dados sobre as dívidas estejam "disponíveis" para, Porquê os dados não nos dão o sossego que precisamos?
por via de um click, podermos aceder? Na mesma senda se Segundo Han, é porque os dados estão sempre disponíveis.
Eles culpam o sujeito; o facto de não tê-los é um problema
colocam os escândalos revelados pela Panarna papersl_
17 8 que se transfere para si mesmo, porque "você não os procurou 179
/1\ "LIRF.l!OADE" DO t-lllOUllERAllSMO

Temos, então, a sensação de estarmos numa sociedade l.Ell1JR!r.SClllTJC.AS

como deve ser". Mas eles estão aí, você tem a impressão de que
transparente que deve ser suportada pelos dados "disponíveis"
o computador tem tudo e "sabe" tudo, e nós é que não temos
e "abertos" para qualquer um que os precisar, desde que os
tempo para explorar. Eu já vi muitos deprimidos porque não
compre, é claro. Na sociedade transparente os dados tornam-
tiveram "tempo para baixar os dados". Ou ficam até às duas
se uma mercadoria de vantagem sobre o outro. da manhã porque o computador está ainda a "cuspir novos
Assim, o dataísmo sugere uma nova era de conhecimento, a dados:'; en~ã~ isto nos oprime. A culpa transfere-se para 0
do "conhecimento absoluto" em que tudo deve ser quantificado, própno SUJelto; e é o que Nietzsche diz "falta de sossego";
mensurável. E, segundo Han, o dataísmo transforma-se essa falta de sossego vai culminar numa barbárie; quem é 0
numa ideologia que conduz evidentemente ao totalitarismo opressor dessa nova barbárie? É a ditadura, a ideologia do
digital em que nós não nos podemos compreender fora de dataísmo é a barbárie dos dados.
dados. A teoria cai sob suspeita de ser ideologia se não estiver
Há uma anedota bem interessante que circulou por aí
acompanhada por "dados" que a sustente; a teoria torna-se
nos WhatsApps originalmente de um facebook num site do
supérflua por si mesma na ausência de dados; a melhor coisa
B.rasil, que diz assim: "de manhã acordo e torno café, depois
que podemos perguntar hoje a alguém é "tens dados para dizer
lzgo o computador para ver se a democracia ainda está lá". E
isso?" Nesta era, as "causas" são substituídas por "correlações",
Psico política: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han
José P. Castiano

eu conjugo com a minha versão: "de manhã acordo e tomo sobre o seu tempo, um filósofo portanto, pode "salvar" o
um café, depois ligo o computador para ver se a guerra já mundo desta decadência. Expliquemo-nos.
acabou". A primeira informação de que a guerra acabou
Para Byung Han a solução deste dilema libertário e
virá, de certeza, por via do computador, no faceboolc ou no
existencial é simples, porém complicada; é preciso voltar à
JFhatsApp. De facto, ligamos este objecto para informarmo-
"vida contemplativa". A vida contemplativa! Para justificar
nos sobre o que aconteceu; então do computador informamo-
esta "solução", o autor socorre-se a Nietzsche que afirma 74:
nos sobre a realidade, uma realidade que já não o é; de facto,
"Falta habitualmente aos activos [na modernidade] uma
ela tornou-se virtual.
actividade superior: refiro-me à actividade individual. São
Tive um tio que, quando sentiu que já estava prestes activos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é,
a "ir para o outro mundo", deitava-se encima do telemóvel, como seres genéricos, mas não como pessoas singulares e
acabando este sendo o último objecto de luxo da sua vida; únicas inteiramente determinadas" 75 ,
não só porque tem a capacidade de se comunicar (essa é
Nietzsche deplora, neste trecho, a presença em demasia
parte positiva), senão também porque lá estão todos os dados
do "homem genérico", querendo dizer que o homem aparece
180 "escondidos" por uma password. Esta fechou a sete chaves os
enquanto o que Marx chamou "valor de uso": como detentor
·1..mmmADE" DONEOUDF.RAUSMO
seus segredos. Acho que lhe aliviava um pouco das angústias --LEITU~l=-~::.,;RI!=-.,=-- •, ' .·'
de uma força especializada de trabalho. Só há funcionários! Já
desta vida aberta ao Big Brother.
não há homens verdadeiros como os que Diógenes andava à
procura com a sua torcha ao meio-dia.
"Idiota" procura-se!
Byung-Chul Han serve-se deste trecho para fazer notar que
A biopolítica fornece material da demografia mas não da não seria este homem genérico a evitar o "perigo da perda da
psicologia; ela pode explorar-se demograficamente, todavia experiência" no contexto do neoliberalismo: "quem não é capaz
não psicologicamente. A psicopolítica digital pode explorar de deter-se não tem acesso a alguma coisa verdadeiramente
os processos psíquicos: o big data, o seu cruzamento, revela diferente". As experiências transformam, interrompem a
padrões de comportamentos colectivos dos quais o indivíduo repetição do sempre igual; não é estando cada vez mais activo,
não é consciente. como o homem genérico nitzcheano faz, que alguém se torna
acessível às experiências. Segundo Han, para tanto é necessária
Então qual é a saída para isso? Esse é que é o problema.
uma certa passividade, é necessário que nos deixemos afectar
O diagnóstico do nosso tempo já foi dado por Han: é a perca
por aquilo que escapa à actividade do sujeito activo.
da liberdade por usarmos, voluntariamente, o nosso suposto
"tempo livre", sempre disponível, para trabalhar ainda mais 74·. "E.ffi. ô:d~ôiilâ "jô' téiizpo ::."íhi<lêii-i."p:. i25.
para o capital. A saída é a contemplação. E somente um idiota 75 Este trecho é citado pelo autor do texto de Nietzsche: Humanos, demasiado
Humanos.
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Castiano

Só a experiência transforma o homem não a "vida activa" Então, quem não é capaz de duvidar, de introduzir o
- como queria Hannah Ahrendt - e nem o trabalho - como momento de reflexão, um momento de contemplação, é
defendiam Hegel e Marx. "O ser não se abre na actividade" somente um trabalhador e só pode agir como um "homem
(Han), ou seja, o que Marx dizia e Hannah Arendt repete, que genérico" no sentido nitzscheano. Para reverter, torna-se
é através do trabalho que o homem se torna livre, no sentido preciso introduzir mom~ntos de meditação, momentos em que
de "livre da natureza", já não constitui defensável nos tempos deixamos de trabalhar. Só no momento de detenção temos a
do neoliberalismo. Para Han, o Ser, de facto, não se abre no possibilidade de formação. Trata-se da formação espiritual.
trabalho ou na actividade; a própria acção tem que conter Han decide usar a figura heideggeriana de "mão calma".
em si mesma "momentos de interrupção" para se tornar Esta é aquela que embeleza porque se abstém da violência;
petrificada num mero trabalho. A pausa, a interrupção do porque a mesma mão que trabalha, que pega um instrumento
trabalho, é importante para que o indivíduo reflicta sobre a para trabalhar, no fundo, ela está a provocar uma agressão
experiência; a liberdade não está intrínseca no trabalho senão à natureza; essa não é mão calma. De consequência, a mão
na contemplação do próprio trabalho. Por isso é importante tem que se abster da violência para ser contemplativa. Essa
duvidar, embora não seja um acto positivo. Todavia, o dµvidar mão calma deixa que a coisas aconteçam e não tem pressa de
182 183
"UBV.llD/\Df:"DOHF.OUBEJl.AUSMO é constitutivo da acção. Nesses tempos atrapalhados do intervir nos processos correntes. LEITURAS CRITICAS .. .. ;~

neoliberalismo, em que "não temos tempo", duvidar é um


A vida ocupada não é capaz de mover-se para a belo; ou
elemento necessário.
seja, uma vida ocupada, como a que nós levamos na época do
A diferença entre o agir e trabalhar já não passa pela neoliberalismo, não é capaz de nos fazer contemplar o belo;
actividade mas pela capacidade da interrupção da própria neste sentido a produção se torna uma destruição acelerada
actividade. Quem não é capaz de duvidar é simplesmente um do belo, do estético.
trabalhador. A meditação começa quando o pensar no trabalho
A vida ocupada consome tempo, porque o tempo é
se detém; só no momento da detenção atravessa-se o lugar no
preenchido pela compulsão de trabalhar. Nós todos queixamo-
qual a formação se situa em diante. Que quer dizer isso? Nós
nos que "não temos tempo". A coerção para "não ter tempo",
estamos numa sociedade de trabalho, homo laborans; nesta base,
como vimos, é interna. E a vida ocupada consome o tempo,
segundo agora Byung-Chul Han, a sensação do tempo livre
principalmente o tempo livre, aquele que devíamos ocupar
faz-nos usar o nosso próprio tempo para continuar a trabalhar com a contemplação.
por causa da pressão da optimização, da melhoria de qualidade
e da opressão de sermos melhores; enquanto sermos assim As coisas destroem-se e, ao mesmo tempo, matam o tempo. Na
somos simples trabalhadores. altura em que lí esta frase, recordo-me que pensei no seguinte
exemplo. Vocês nunca notaram o quão cansados ficamos depois
Psicopolítica: Diagnósrico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Casriano

de passar horas a fio pelas montras de um shopping? Podem ir pressa neoliberal, é fazer um "ensaio filosófico sobre a arte
para lá às 14 horas e, como tem luzes intensas no interior, da demora" [este é subtítulo d'O Aroma do Tempo]; devemos
quando saem às 2oh, já está escuro cá fora; e a sensação é que o parar para "sentir o aroma de tempo". Já não se trata do
"tempo passou rápido". O que "matou" o tempo foram as coisas conceito do tempo enquanto síntese ou de uma época, como
que estavam a contemplar e a apreciar nas montras. Coisas em Hegel; "sentir" o tempo através do aroma trata-se de uma
"matam o tempo'', destroem-no; é este o sentido da frase. reflexão e contemplação da experiência.

Portanto, é somente no momento da pausa, o da O filósofo é o tal id~ota de que se precisa. É um idiota neste
contemplação, que a "mão calma pode ter acesso ao espírito. nosso tempo em que o espírito de big data inaugura uma nova
O espírito tem a sua origem no excedente do tempo, no ócio, era do conhecimento em que, como dissemos, as causas são
no escutar o aroma do tempo". Como Nietzsche nos advertiu substituídas por correlações. A quantificação do real em busca
acima, se perdermos o sossego, a capacidade de contemplar, a de dados expulsa o espírito do conhecimento.
nossa vida vai correr para a barbárie, para uma nova barbárie. Um dos idiotas foi Sócrates que dizia "só sei que nada sei" e
Falta, assim, o idiota, o filósofo, que "pare no tempo", que assim acalmava o ímpeto daqueles que diziam saber a resposta
não esteja a matar o tempo com as coisas e que recupere a de imediato e que tudo sabem (sofistas). Foi Descarte que 185
184• lEITUltASClllTICi\S

A "tll!URUADF." DO HEOLIBERAllSMO
capacidade perdida de sentir o "aroma-do tempq". Idiotas disse "penso logo existo". O pensar dava-lhe a possibilidade de
precisam-se no tempo neoliberal! penetrar na essência do ser, o que não aconteceria sem as suas
"meditações". É Deleuze que filosofa em volta do absurdo. É
O espírito tem a sua origem no ócio. Este livro chama-
Nietzsche que chama "camelos" a todos porque agem segundo
se "aroma do tempo" porque o tempo, durante gerações, foi
a religião. O idiota é um homem cuja experiência e existência
medido de diversas formas: pelo sol, pela areia. O relógio vem
se constituem pelos acontecimentos e não pelas qualidades
medir o tempo de uma forma abstracta dividindo todo dia em
pessoais.
horas.
Na lição anterior vimos o que é um "acontecimento" para
Houve uma cultura na Ásia em que o tempo era medido
Nietzsche. O acontecimento destrói o válido, a norma, até
pelo aroma. O "relógio" era o aroma. Podem imaginar começar
ao momento em que ele surge; destrói a ordem existente; o
a dividir o tempo pelo aroma do dia? Nas tardes emite-se um
acontecimento é imprevisível, dá lugar a um estado totalmente
aroma diferente que nas manhãs; ao meio-dia o aroma também
novo. O acontecimento escapa ao cálculo e à perdição. São
é diferente. Cada pessoa tem o seu aroma; quando duas pessoas
rupturas e descontinuidades que abrem novos espaços. Para
estão juntas surge um outro aroma, o da proximidade.
Foucault, vimos, o acontecimento é a invenção da correlação de
O que está aqui em causa é uma figura de estilo para forças; fala-se "de repente" uma outra língua. São "viagens nas
chamar à atenção do filósofo. A tarefa do filósofo, perante essa
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Castiano

quais se produz uma subversão como a queda da dominação"; essência desligado, desconectado, desinformado. O idiota é um
portanto, o acontecimento é aquilo que provoca fraqueza das eras moderno. E este eras está em agonia, constata Han em A
forças que tendem a dominar o homem. Agonia do Eras. O herético dispõe de eleição livre. O termo eras
[Nas nossas teorias, nas nossas teses de doutoramento significa podes eleger livremente. Liberta-se corajosamente
ou dissertaçoes de mestrado, o "acontecimento" seria a da coerção interior e da coerção da conformidade que as redes
descoberta de novos conceitos que contrariam a interpretação digitas nos proporcionam; é uma figura de resistência contra
vigente; dominante e que mostra novas luzes de interpretação a violência do cansaço.
e que consegue farejar o aroma do tempo. Portanto, se uma Aliás, aqui n'A Sociedade de Cansaço, Byung-Chul Han, a
dissertação ou uma tese não constituir um "acontecimento" dado momento, retoma Nietzsche (::m Crepúsculo dos Deuses.
dentro da teoria vigente, então ela deixa de ter o respectivo Este sugere que educadores são necessários para ensinar três
valor intelectual. Uma verdadeira "tese" deve contrariar as tarefas: Ensina a ver, ensinar a pensar e ensinar a falar e a
interpretações vigentes ou tem que se destacar a partir destas escrever. Esse falar e escrever é a mesma tarefa que a primeira
interpretações, dessas teorias vigentes, tem a ver com uma ("ver"), pensar a segunda, depois falar e escrever. O objectivo
criação de conceito(s) novo(s)]. desta aprendizagem seria uma cultura distinta. Aprender a 187
186 U .frtJRASCRITICAS
A '1.IBl!ROADI!" ooNl!OUBEAAUSMO
Biopolítica é uni conceito desenvolvido por Foucault para ver significa acostumar o olho à serenidade; a paciência ao
registar um acontecimento - o neoliberalismo. Modernidade é paulatino aproximar das coisas; isto é, educar o olho para
uma atenção profunda e contemplativa, para uma visão
0 conceito registado por Hegel para evidenciar esses "tempos
novos". Então, o idiota está muito atento aos acontecimentos; lenta e morosa, esse aprender a ver seria o primeiro estado
fazer-se de idiota foi sempre a função de filosofia; todo filósofo preparatório para a espiritualidade. É necessário aprender a
engendra um novo idioma, uma nova linguagem, um novo não reagir de imediato ao impulso e a fazer o uso dos instintos
pensamento. Este que assim fizer será necessariamente que travam ou inibem as reacções.
um idiota. O idiotismo escapa sempre à psicologização Portanto o idiota deve possuir paciência. É uma figura de
neoliberal e descobre o campo imanente de acontecimentos resistência contra a violência do consenso, contra a violência
e de singularidades dentro do aparente derrotismo perante o do consumo e contra a violência à sua própria liberdade.
neoliberalismo. O que distingue os .idiotas dos outros que não o são? Eles
Hoje o que seria um idiota? Um tipo marginal, um louco. O impõem a sua individualidade, a sua subjectividade, enfim a sua
louco hoje desapareceu praticamente porque as redes digitais "singularidade"; o que o homem genérico não pode fazer é esta
aumentam em proporção igual ao seu desaparecimento. Quanto capacidade de provocar acontecimentos, sejam eles na teoria,
mais redes aumentam, menos idiotas temos. O idiota é por sejam eles na sociedade, ou ainda na sua vida individual. Essa
Psicopolítica: Diagnóstico do Tempo Neoliberal de Byung-Chul Han José P. Castiano

capacidade de provocar acontecimentos é, por fim, a tarefa


principal do filósofo, quer dizer, do idiota. Esta sociedade tem
falta de idiotas; a sociedade neoliberal, por natureza, fagocita
os idiotas. No entanto, idiotas procuram-se, idiotas precisam-
set VII
[Queria terminar dizendo que é uma grande alegria para
mim, e para todos os meus colegas que estamos aqui, porque
estamos a participar na formação de "idiotas", neste sentido de A Intercultura em N goenha: "Alternativa" ou nova
rebeldes no pensamento; porque estamos a formar pessoas com Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
esta missão na nossa sociedade moçambicana temos que ter a
consciência que têm de resistir às agressões constantes contra Em Portugal sam urna estatística segundo a qual os
a liberdade nos tempos do neoliberalismo e no nosso país em moçambicanos estão em segundo lugar nas compras,
particular. Porque o neoliberalismo, não nos deixa o "tempo ultrapassando os angolanos. Esta estatística foi produzida
livre" no seu verdadeiro sentido. Aquela liberdade indi~idual, com base em lojas de luxo no Rossio, na baixa de Lisboa.
189
188
Ullf.ROADH" 00 NHOUn~ru.us~o
que o neoliberalismo aparenta propordonar_por via dos meios Muitos podem pergu~tar: mas como é que sabem isso? U.l'íURASCldTICAS

modernos de comunicação, se não tornarmo-nos em idiotas, Simples, pelos cartões que usamos nas compras. Você chega
vai rapidamente transformar-se em tempo de servidão. Este lá e compra usando o cartão; são dados que estão a ser
tempo promete liberdade mas que pode transfigurar-se em trabalhados estatisticamente; os moçambicanos compraram
servidão voluntária]. mais! É por via do cartão que são reunidos os dados. O Byung-
Chul Han alertou-nos, na lição passada sobre este fenómeno
no neoliberalismo. E concluiu que precisamos de idiotas que
leiam o tempo sem pressa, sentindo o seu "aroma".
Nesta leitura crítica cabe apresentar as ideias do filósofo
moçambicano, Severino Ngoenha, a partir da perspectiva
que ele chamou por "intercultura". Devo dizer que o que
segue somente se torna perceptível a partir do que já escrevi
sobre este autor, particularmente no meu livro Referenciais
da Filosefia Africana: nos prefácios a dois dos seus livros -
Axiologia e Educação em Moçambique: O Estatuto Paradigmático
da Missão Suíça e Tempos de Filosefia: Filosefia e Democracia
A lntercultura em Ngoenha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
José P. Castiano

em Moçambique - assim como o meu artigo inserido num


Uma Carta à Intercultura, o "A.rama" Africano do Tempo Neoliberal
dos números da revista Philosophia Africana intitulado The
Reception ef Contemporary African Philosophy in Mozambique. Para N goenha, o "aroma" do tempo africano reside na
Também incluo o meu texto, publicado num dos jornais da interacção entre as culturas! Estas marcam as diferenças entre
praça, e de que não me lembro qual, aquando da publicação os homens, não temporais, mas de perspectivas de vida.
do livro Machel, Ícone da I República? Eu defendia que era o
Por isso, quero nesta lição introduzir esta outra alternativa
primeiro manifesto da filosofia política de Moçambique.
de interpretação da crítica ao neoliberalismo - na verdade uma
Portanto, o texto a seguir deve ser recebido como nova fundamentação à crítica - ao que chamamos governação
um continuum lógico às análises feitas anteriormente, biopolítica em Foucault. Segundo o Han, é a governação
consubstanciadas no seu recente livro Intercultura, uma psicopolítica, cuja base são dados, a nova arte de governar.
Alternativa para a Governação Biopolítica? Para governar não precisas de ir ao povo para saber do que ele
Irei dividir em cinco partes: Na primeira reproduzo uma precisa e nem quem é opositor.
carta - na verdade reescrita - que enviei ao autor ainda no Quando tomei a decisão de preparar estas leituras críticas
entusiasmo das "leituras". Na segunda parte estabeleço o que sobre o neoliberalismo, escrevi uma carta para o autor que
191
chamarei por "vestígios" da crítica rousseana ao liberalismo na queremos tratar: Severino Ngoenha. Trata-se de uma carta lf.ITIJRASCP.ITICAS

crítica ngoenhiana ao neoliberalismo a partir da perspectiva que intitulei deliberadamente por "intercultura enquanto o
da filosofia da interculturalidade. Segue-se, na terceira parte, aroma africano do temp9".
uma análise sobre como Ngoenha transforma (à semelhança
Olá Severino, espero que est(fjas bem! Acabo de enviar
de Hegel relativamente à modernidade e de Foucault ao
um e-mail em reacção às iniciativas de actividade da escola
neoliberalismo) o neoliberalismo num problema filosófico
doutoral enviado pelo bom do Cipriano. Acrescento o seguinte
no quadro da filosofia africana, ao cultivar uma perspectiva
- e isto é um pouco em reacção ao teu "desapontamento" -
intercultural africana crítica. Em quarto lugar vou analisar
quando pediste um seminário sobre os teus livros ln tercul tura
a obra Intercultura demonstrando a natureza deconstrutiva
e mesmo Terceira Questão; eu tive algumas reservas porque
do seu método. Por fim, na quinta, farei algumas objecções
queria eférecer, aos estudantes, não uma chave-de-leitura
críticas, não exactamente à ideia da intercultura em Ngoenha,
comum e apressada, o que seria se eu o tivesse feito naquele
mas usando a ele como um pretexto. E esta última parte
momento. Acho que eu disse a eles que ambos livros "ainda
da apreciação está inserida no último capítulo deste livro -
não se tinham sedimentado, nem em mim e muito menos na
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo.
história intelectual"; pelo que seria ainda uma aventura a
abraçar-se a eles em seminários. Acho que foi pela primeira
vez que tive um olhar distante em relação aos teus livros,
José P. Castiano
A lntercultura em Ngoenha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?

o humanismo J. O meu método é simples: faço primeiro


mas eu estava à procura de uma "distância" para uma
leitura consistente. Os estudantes também olharam-me, então, leituras pessoais que se resumem na biografia académica
com alguma incredibilidade; talvez não esperassem que eu e as ârcunstâncias segundo as quais o autor em causa
me justiji'casse daquele modo; mas eu queria escapar à uma escreveu as obras. Segundo, faço leituras históricas para
interpretação demasiado apressada, do momento. Não queria saber dos debates e temas com que o autor se confrontava.
ser vítima da pressão do tempo; queria sentir o "aroma" dos Estas duas leituras justificam-se para iluminarem as
dois livros. Acho ser este o dever de um amigo de filoscjia. leituras teóricas, ou sr;ja do conteúdo dos seus livros. Acho
Na filosefza, se esta for a base da amizade, uma amizade que é uma chave que me tem fascinado muito, sobretudo
baseada no amor pelo saber, quase que somos obrigados a quando "bisbillzoteio a vida dos outros".
estar distantes. E a distância, como sabes, não anuncia a sua Há um outro aspecto muito importante que quero dizer,
chegada. Somente aparece. que aliás, penso que já sabes: é que para ler precisa-se de
Não digo que não fosse bom; mas achava que não fosse tempo; mas para se jazer leituras verdadeiramente críticas
o meu papel· há muito boa gente que pode Jazer esse género de obras como Intercultura que desajfom o seu tempo e
de interpretação apressada das obras, o que aliás .E_conteceu. introduzem novos .·conceitos na sua interpretação, precisamos 193
192
A"t.IBmUIADE' DO l'l.EOLIBEl!AllSMD
Agora estou a propor uma interpretaçã? quefará parte de um de três condições: tempo, concentração e dinheiro (esta última LF.JTUJV.S CRITICAS

c01y'unto de "Leituras Críticas ao Neoliberalismo", que penso condição para comprar livros, não ter que cozinhar e sentar-
Jazer no estilo de Aulas Abertas, onde penso poder enquadrar se num cqft todo o dia incluindo para refeições, para ir ao
justamente esses dois livros. cinema, museus, poder comprar jornais e, nos últimos tempos,
Por isso convido-te a mantermos essa tradição de leituras ter acesso à internet sobretudo para enviar e-mails, consultar
abertas, uma forma, penso, de nós mesmos pôr-nos à prova, rapz'damente as frases correctas, etc.)
o que aliás não é nada novo para quem já viveu no mundo Porque estou a escrever esta carta? Por duas razões: a
académico e do conhecimento. Se isso serviu de explicação, primeira é para justificar a minha chegada ao entardecer na
embora não de justificação para o meu relativo "afastamento': leitura desses livros que acima mencionez; eu somente tinha
já é muito. E se o produto, o livro com as aulas críticas, não leituras pessoais e não me contentava com elas; a segunda
ter merecido o tempo "gasto" nele, então acho que vais aceitar razão é mais egoísta: foi uma boa ocasião para eu ir ao
um grande perdão. confessionário e compartir contigo. Tanto mais que acabei de
Informo-te ainda que nas semanas passadas acabei ouvir que o Papa João Paulo II compartia cartas íntimas com
de fazer leituras neoliberais (se bem que falta ler o uma mulherfilósqfa polaca há mais de 40 anos.
Foucault) e penso na próxima semana vou iniciar com o [Assinado: Coimbra, 17 de Fevereiro de 2016].
humanismo [não cheguei a concluir as leituras sobre
A lntercultura em Ngocnha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo? José P. Castiano

Eu quero alertar logo de início que, de facto, o meu muitas vezes arriscadas, entre dois pensadores. Porém, muitos
objectivo final, quando acabarmos esta leitura crítica sobre o despercebidos podem apenas tentar estabelecer uma ligação
livro teremos uma outra visão sobre ele. Este livro, Intercultura, teórica entre ambos. Antes dela, todavia, existe uma ligação
transformou a interpretação sobre o neoliberalismo em geográfica: Rousseau, é suíço e Ngoenha viveu e trabalhou
Moçambique, tratando-o como um problema filosófico a na Suíça. Ainda assim, não é somente por isso que se podem
partir da perspectiva crítica dos "campeões do sofrimento", os estabelecer ligações.
africanos. E este desafio, o de trazer uma nova interpretação, Os vestígios de Rousseau nos escritos de N goenha são,
não se faz com pressa; faz-se durante uma "interrupção", para um leitor atento, deveras visíveis. No conteúdo desses
durante uma "demora no tempo'', como diz Han. Temos que escritos (com ênfase no contratualismo político em torno
sentir o aroma do livro e, quando tens a certeza que é esse o das preocupações pela justiça social) e no seu método crítico,
aroma, então podes pôr-te a escrevê-lo. conseguimos descobrir "conselhos" soprados por um Rousseau
A demora encarrega-se de elevar o conceito do tempo ao rebelde: enquanto Rousseau declarou a corrupção da e na
espírito individual. E estou profundamente convencido disto. Sociedade Civil do seu tempo como seu cavalo de batalha;
Esta é a experiência que eu fiz e espero que, com o tempo, N goenha acusa as elites políticas e económicas moçambicanas
194 195
"LlhtROt.Dn"ooN!tOLIOERAllSMO
possamos ver este livro numa perspectiv~ mais arnPia, isto de dançarem fora do seu palco, a cultura. -=1.En=u.'°'"~c•li'::T1c"'°'",--- · · • ~·

é, no quadro do debate sobre uma das possibilidades de Este introito deve-se ao facto de não ser possível entender
existência da filosofia africana hoje. É o debate sobre o lugar a crítica radical que Ngoenha submete ao neoliberalismo
desta filosofia no contexto da batalha pela universalização em todos os seus escritos, sem regressarmos ao seu 'mestre'
de todas as culturas por via da intersubejectivação. Esta será Rousseau relativamente ao liberalismo pois, N goenha vive o
a tarefa que atribuiremos ao inter-sujeito africano, o inter- neoliberalismo como Rousseau viveu o seu tempo de fervor
munthu. liberal. Mais do que liberal, Rousseau foi um crítico acérrimo
do liberalismo, diferentemente dos pensadores liberais como
Um Continuum da Crítica do Liberalismo (Rousseau) ao Maquiavel, Hobbes e Locke.
Neoliberalismo (Ngoenha) Se o fundamento do liberalismo reside na separação entre
o Estado e a Sociedade Civil, na qual o Estado deve, por via
Introduzir· a crítica que Ngoenha faz ao neoliberalismo de um "contrato'', garantir as liberdades dos membros desta,
a partir de um pensador muito conhecido, Jean-Jaques a crítica rousseana ao seu tempo parte e fundamenta-se
Rousseau, é um empreendimento de criatividade própria na exactamente desta 'bipartição' da modernidade. Do mesmo
escrita filosófica pois, trata-se de estabelecer ligações teóricas, modo, se o fundamento de todo o empenho filosófico de
A lntercultura em Ngoenha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
José P. Casriano

N goenha baseia-se na constatação, quase que evidente, de está estabelecida, a monarquia absoluta é detestável, mas
que as independências dos países africanos não resultaram está interiormente morta e, aliás (.. .) ele está certo de que
ainda em plenas liberdades, a razão do seu empenho crítico é não tardará uma 'revolução' que a fará ruir. O que lhe
almejar um contrato social baseado em justiça como equidade importa é aquilo que virá substituí-la, que está presente
e, de consequência, na separação lógica que faz entre a e a transformou substancialmente. O quê? Aos olhos de
Independência (a liberdade-maior, quase que metafísica) e as Rousseau a França já não se caracteriza pelo poder do rei.
liberdades (que se historicisam). Quem governa? A opinião. A opinião de que? Da sociedade.
No entanto, há uma zona de semelhança entre RoussPau O que é a sociedade? É a desigualdade. 76
e Ngoenha que me parece ainda não explorada, e que é de Ora, essas desigualdades sociais na sociedade civil
extrema importância. Trata-se da importância que ambos dão preocupam Rousseau a ponto de escrever um discurso sobre
à dimensão futuro (Rousseau) ou utopia (Ngoenha). Ambos elas; refiro-me ao Discurso sobre a Origem e os Fundamentos
criticam o hoje não a partir de uma nostalgia do passado, da Desigualdade entre os Homens. Ou seja, podemos aventurar
senão a partir de um devir próximo. Ora, esta constatação dizer que Rousseau se interessa pouco pelo Estado. Melhor:
196 exige maior precisão. ele se interessa por ele somente à medida em que este se
197
Todos os iluministas, nomeadamente Maquiavel, Hobbes, contrapõe ao seu oposto, a Sociedade Civil. E, olhando para LEITURAS CRITICAS

Locke, Montesquieau e até o eterno kõnigberguiano l'\.ant, esta, ele nota extremas desigualdades entre os homens, cujo
exerceram, no seu tempo, uma crítica radical ao absolutismo fundamento está na propriedade privada e, por isso mesmo,
em decadência dado que este encerrava o homem na ela não permitirá efectivar-se o sonho do liberalismo: a
"infantilidade". O absolutismo - diria Kant por exemplo - não liberdade individual que esta corrente defende. Nestas
deixava o homem usar a sua própria razão em público. Os condições de desigualdades, a "opinião" estaria reduzida à
escritos de Rousseau, em contrapartida, importavam-se pouco opinião do proprietário e não de qualquer homem. Por isso,
pelo absolutismo em si e em descrever todo o "mal" que ele quando tratamos de liberalismo, Rousseau não pode ser visto
provocara no homem moderno. Rousseau importava-se sim na linha do seu defensor como os outros. Pelo contrário,
pelo devir próximo. Pois, Rousseau se dá conta que, no pós- Rousseau foi o seu crítico acérrimo por não acreditar na
absolutismo, uma vez o Rei destronado, este seria substituído possibilidade da liberdade, mesmo que o homem esteja
pela "opinião pública". Como escreve o professor de filosofia dentro da dita "sociedade civil". Aliás, ele tratou este termo
Perre Manent: de discernir, retirando dele o adjectivo "civil", para deixar
somente "sociedade".
Na realidade, que Rousseau 'critique o Antigo Regime'
(... ) não nos deve induzir em erro: aos seus olhos, a causa
75···Mai1e;]t;P.. (2oi5):" i-iz'st6·,:z'd"iiztê"kaú~·z do Liberalismo. Dez Lições. Ibidem.
p.122.
A lnterculcura em Ngoenha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
José P. Castiano

E, para Rousseau, nesta" sociedade" a ideia da desigualdade é é uma miragem, e cada vez mais os povos africanos se
"omnipresente" 77 ; quer dizer, os homens são socialmente, até por afastam deste "valor cardinal'' em torno do qual gira todo
natureza, diferentes e desiguais. Por isso, a ideia do seu contrário, o pensamento (e a acção, digo eu) do africano - a liberdade!
a igualdade, é abstracta, embora também omnipresente. No entanto, se Rousseau ainda aguardava uma "revolução"
Todavia, apesar de estar consciente do carácter abstracto não somente contra o absolutismo mas também contra
da igualdade na sociedade, Rousseau exerce a sua crítica ao o liberalismo (ambos, i.e. o absolutismo e o liberalismo,
liberalismo a partir da sua possibilidade. Assim se compreende baseiam-se no individualismo e na propriedade privada,
que, para Rousseau, o Estado tenha o seu sentido fundàmental inimigos de Rousseau), Ngoenha trilha por uma via mais
e significado único, como o contraposto à sociedade, e enquanto reformista do contratualismo político, social e cultural7 8 •
nivelador das desigualdades sociais. Dito de outra forma, o Pois, na construção dos novos estados africanos, estes devem
Estado na sociedade moderna desigual, somente tem sentido necessariamente reencontrar-se com as culturas autóctenes.
efectivo se for concebido como uma instância suprema na luta E daqui começamos a pisar o terreno ngoenhiano da
por uma sociedade cada vez mais igualitária. intercultura.

198
Ora, o que seria um Estado para Ngoenha, senãQ a sua De facto, se o inimigo da igualdade social em Rousseau
"!.llmRIMlni" DO NE.OUJIERt.USMO
natureza "social"? No seu "Contrato Social" dentro do triplo -==19=9~- ·. ',
era o próprio liberalismo individualista, o inimigo number LEITURAS CRITICAS

contrato (político, social e cultural), N goenha compara o Estado one da liberdade do "povo" em N goenha é o neoliberalismo.
algo como para dar mais força aos que estão naturalmente ou A receita ou saída de Ngoenha para o neoliberalismo? A
socialmente desfavorecidos. Numa corrida desigual - dizia ele Intercultura.
numa palestra - o Estado deve garantir que os coxos, por não
Vejamos como Ngoenha adopta e adapta a crítica
poderem correr, cheguem à meta e ainda apanhem o pe~aço
rousseauana ao absolutismo e ao devir liberal para o tempo
do bolo que lhes corresponde. O Estado deve garantir a
e o contexto da crítica ao neoliberalismo e ao devir de uma
"partilha" e até mesmo a "comunhão" do bem público, diz-nos
filosofia da interculturalidade:
Ngoenha rousseanamente falando. A "sociedade" de Rousseau
é o "povo" samoriano em N goenha. Criticar o segundo liberalismo ou o neoliberalismo não
E em que situação se encontra o "povo"? :Pois, para é possível ignorar a história sub-liberal do negro como

N goenha, era suposto estar livre após as Independências figura anti-moderna( ... ). [Porque] não se pode ignorar este
continuum histórico do africano que faz dele, como diz Blyden,
africanas. Todavia, corridos os colonialismos europeus,
o 'campeão do sofrimento"'. 79
0 uhuru tarda em chegar. O futuro das liberdades ainda
78. ··(;t;: Ngoei{Iià; ·s. ·(2'óo4 j:" ·Tempós. da ·Filosefia. Filosefia
e Democracia Moçambi-
cana. Editora Universitária (UEM). Maputo
·77··. cri-." Manéi-it;·r.· (2óú);ii!.ii6rlà)iiúúctual ... Ibidem. p.147.
79 N goenha, S. ( 2011 ): Intercultura, uma Alternativa à Governação Biopolítica?
José P. Castiano
. "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
A Jntercu 1cura em Ngoen ha.

para se afirmar como um novo tempo dado ter criado do e no


Neoliberalismo a partir da Filosqfi"a da Interculturalidade
seu âmago os seus próprios princípios de legitimação e auto-
Vou, de seguida, arriscar uma nova interpretação deste certificação. Por outras palavras, a modernidade não surge
livro; pelo menos uma outra. A tese é: à sei~1elhança do que como um continuum do passado, senão como ruptura com o
sustentamos em Foucault, que ele foi o primeiro a transformar mesmo e as suas sujestões normativas.
o neoliberalismo num problema filosófico a partir da sua E como é que Habermas fundamenta a sua afirmação de
perspectiva biopolítica; na mesma esteira, N ~oenh~ é ~ que foi Hegel que torna a modernidade num problema de
primeiro a tornar o neoliberalismo (ou o "ultrahbe~absmo natureza filosófica? Ele-propõe três razões para sustentar esta
como ele o chama) num problema filosófico a partzr de uma interpretação.
perspectiva dafilosefia africana da in~ercultu~alidade. T~ata-se, no
A primeira reside no facto de que Hegel reivindica ter
fundo, de uma refundação da condição africana neoliberal.
resumido a "subjectividade" como sendo o princípio dos tempos
Porém, para argumentar em torno desta tes~, vamos. se~u.ir modernos (ou simplesmente o princípio da subjectividade).
as pegadas de Habermas porque, este, no seu Dzscurso Fzlosóftco Hegel encontra, segundo Habermas, quatro conotações da
da Modernidade, começa por 'acusar' a Hegel de ter dess:oberto subjectividade enquanto princípio dos novos tempos: (i) o 201
LEIT\JRASCllfTICAS
200
"UIH!RDAllll" DO HF.OUM;llAllSMO
a modernidade como problema filosóficoªº: "Hegel é o individualismo, ou seja, o reconhecimento do sujeito singular
primeiro a elevar à categoria de problema filosófico o p~ocesso como uma partícula primeira e fundamental da sociedade; (ii)
da separação da modernidade das sugest.ões normativas do o direito à crítica, que é uma conquista do sujeito moderno
passado que lhe são exteriores"ª!. Ou seja, nas palavras ~e como consequência do iluminismo baseado no direito ao uso
Habermas, Hegel foi o primeiro a formular filosoficamente o público e individual da razão; (iii) a autonomia no agir, que
problema da auto-certificação da modernidade". confere ao sujeito a responsabilidade em justificar os seus actos,
A auto-certificação da modernidade apresenta-se mais ou menos segundo a máxima kantiana; e finalmente (iv)
como problema filosófico, como Hegel sugeriu, q~ando a Hegel vê na filosofia como este lugar onde o pensamento deve
época anterior (idade média) já não ofe~-cce paradigmas e apreender o seu tempo por si mesmo; ou, como ele mesmo a
fundamentos a partir dos quais a nova sociedade - os temp~s define, a filosofia torna-se o resumo do tempo no pensamento
novos ou a modernidade - se justificam. Hegel descob~m ou no conceito. Filosofia, resumindo a fórmula hegeliana, é
que a modernidade não tinha necessidade da época anterior a preocupação pelo tempo que ao filósofo lhe é dado a viver
intensamente.
Publifix. Maputo. p.74. . • 'd d p bl' õ D m A segunda razão apresentada por Habermas sugere que
80 Cfr. Habermas, J. (1998): Discurso Fzlosójzco da Modernz a e. u icaç es o
Quixote. pp. 26-32. ' Hegel não apreendeu o princípio da subjectividade como
8i Cfr. Habennas, J. (1998): Discurso ... Ibidem. p.26.
A lntercultura em Ngoenha: i'Alcernativau ou nova Fundamentação à Crítirn Africana do Neoliberalismo?
José P. Castiano

regulador da modernidade a partir do nada. Fo~ preciso


seja, a subjectividade é concebida fora do sujeito concreto. A
encontrar (ou fazer uma leitura a partir de) "acontecnnentos-
mim sempre me pareceu que Hegel concebia urna racionalidade
chave" para apreender o espírito da subjectividade ~a é_poca.
para além do sujeito moderno, quase sem historicidade.
Segundo Habermas, estes acontecimentos são: pnn~e1ro, a
Reforma no seio do cristianismo que resulta no aparecimento Ora, a meu ver, a partir desta argumentação de Habermas,
mas sem limitar-me a ela, o acto de transformar uma época
de várias igrejas, seitas e facções, quebrando o ~ito de ~~ma
como 0 centro e abrindo o acesso directo às escrituras d1v111as num problema filosófico deve obedecer à duas características:
a qualquer indivíduo; em segundo lugar está o ilumi~isrno a primeira, o filósofo deve formular um novo, ou, no
que, corno dissemos, eleva o sujeito a urna cate~ona de mínimo, reformular um conceito de si mesmo, da sua época
autonomia no pensar e no agir; e o terceiro acontecnnento- (princípio da novidade), segundo formularam Deleuze e
chave ao qual Hegel recorre para justificar os novos tempos Guattari (O que é a Filosefza?). Em segundo lugar, o filósofo
foi a Revolução Francesa enquanto símbolo do derrube deve reformular a possibilidade crítica de si mesma, ou seja,
do absolutismo que coloca, pela primeira vez na História, apresentar alternativas de interpretação da realidade epocal
a possibilidade de um Rei não mais governar (sozi~ho ). A e total. Enquanto a primeira característica que apresento vai
202 na linha do entendimento hegeliano do que seja a filosofia
leitura e a apreensão que Hegel faz destes acontecimentos- 203 .·•
chave leva-o ao conceito categorial autónomo de neue Zeiten (pensamento-conceito), a segunda, por sua vez, vai ao encontro LEITUllASCRfTICAS

ou Neuzeit. do entendimento marxiano do que deve a filosofia no sentido


de contribuir para "transformar o mundo" (pensamento-
Esta segunda razão deixa-nos antever a coerência acção ), e não somente pensar sobre si mesma.
hegeliana com o seu próprio conceito de filosofia enquanto
pensamento-resumo do seu tempo, ou de apreender o seu Estas razões apresentadas por Habermas para expor Hegel
tempo num conceito (modernidade). como o filósofo da modernidade devem servir de estratégia de
argumentação para eu sustentar a tese em desenvolvimento
A terceira razão sugerida por Habermas é consequência da
aqui, nomeadamente que N goenha foi o primeiro filósofo
primeira - o princípio da subjectividade. Segundo Habermas,
moçambicano a tornar o neoliberalismo num problema
Hegel submeteu a vida religiosa, o Estado e a Sociedade, a
filosófico usando a perspectiva que ele chama "intercultura".
ciência, a moral e o direito ao princípio da subjectividade. Ou,
por outra, as próprias "bipartições" da modernidade somente Primeiro: Tal como Hegel 'descobre' a subjectividade como
tornam-se concebíveis a partir deste princípio da raz-ão ("todo fundamento dos Neuzeiten, Ngoenha cunha o pensamento
o real é racional; e todo racional é real"). Hegel eleva:, assim, africano do seu tempo como sendo o "paradigma libertário".
a subjectividade ao estado mais absoluto possível ao concebê- Ou seja, Ngoenha 'descobre' que a liberdade é o distintivo
la como princípio de organização social e da historicidade; ou peculiar de toda a trajectória do pensamento e acção africanas.
A lnterculrura em Ngoenha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
José P. Castiano

A liberdade constitui o fulcro da nossa historicidade enquanto conceito abarca é o seu tempo (modernidade), para Ngoenha
africanos no mundo, declara o Ngoenha do Das Independências não é exactamente o horizonte temporal fixo e distintivo,
às Liberdades (1992). Do mesmo modo, reafirma a mesma tese senão a condição periférica a partir da qual os africanos
em Tempos da Filosefia (2004) ao declarar a liberdade como
atravessam as diferentes épocas (escravatura, colonialismo,
o "valor cardinal" do ser africano ao longo da sua história neocolonialismo, neoliberalismo). Temos, portanto, um
enquanto sujeito da mesma.
Ngoenha que se preocupa mais pelo percurso da liberdade na
Chegado aqui, Ngoenha volta à mesma ideia, desta feita historicidade africana - sendo que, a esta característica, David
no livro Intercultura no qual centraliza a sua análise sobre o Mudzenguerere tratou de cunhar por "liberdade historicizada"
neoliberalismo. Ele, repete-se aqui, volta à mesma afirmação, na sua tese de mestrado em filosofia 83 •
desta vez mais forte quando nos alerta para não esquecermos Tendo dito isto; fica demonstrado que Ngoenha, ao
que, criticar o neoliberalismo, é não ignorar o continuum reconceptualizar a condição libertária do africano a partir,
histórico que o "campeão do sofrimento" (negro) faz desde desta vez, da "condição neoliberal" 84 do negro, transforma o
a escravatura até aos tempos neoliberais; ou seja, na sua neoliberalismo num problema filosófico. E, diferentemente de
204· longa marcha para sair da servidão involuntária em_que foi
Hegel, não se trata aqui de um conceito-ruptura ou de busca
obrigado a ser. Assim, ainda na senda do .nqsso autor, criticar 205 .··
de uma auto-certificação do interior dum novo tempo, mas sim LF.ITUll.MiCRfTtc.AS

o neoliberalismo hoje, é lembrar que a pretensão universalista de um continuum libertário. Diríamos que Ngoenha estabelece
do caminho do (neo )liberalismo desqualifica-se a si mesma uma relação ambígua com Hegel. Ele é uma espécie de um
pelo facto de a liberdade defendida [pelo liberalismo e pelo hegeliano não-comprometido. N goenha junta-se a Rousseau
neoliberalismoJ é à custa do sofrimento de uma maior parte
quando o assunto da filosofia é a preocupação primordial com
da "outra" humanidade - homens e mulheres negras. Mais
o tempo que vivencia; enquanto, ao mesmo tempo, ele afasta-se
concretamente o dito segundo liberalismo, ou ultraliberalismo,
de Hegel na medida em que recicla, para os tempos neoliberais,
só se interessa pelos negros, árabes e outros na medida em
o seu velho conceito liberdade. Compreende-se esta ginástica
que estes permanecem na periferia da zona da liberdade. 82
de Ngoenha, porque esta "historicisação" do conceito liberdade
Então, encontramos aqui um N goenha da tradição filosófica lhe interessa por causa da dimensão "futuro" que ele encerra;
inaugurada por Hegel, nomeadamente a preocupação por e também lhe interessa por causa da possibilidade de abertura
encontrar um conceito distintivo epocal, mas para Ngoenha para a acção libertária, no sentido de que o nosso futuro não
particular para os africanos. O que separa Ngoenhà de Hegel, seja como o ontem da escravatura. Seja um "futuro melhor".
no entanto, é que, se para este o horizonte temporal que o seu
83 ·· ·Mt1<l.zezigt1eréi·e;-í)." (2o:i i Y·jj~"i,i'be~dade Ontol6gica (Sartre) à Liberdade His-
torzczzada (Ngoenha). Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade
Pedagógica.
84 Desenvolvo este conceito no meu próximo livro O Inter-Munthu.
José P. Castiano
, "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
A lntercu 1tura em Ngoen ha.

princípio legislador do que deve ser filosofia no mundo de hoje,


Esta dimensão "futuro" na conceitualização ngoenhiana
diríamos, nos tempos modernos. Não há uma outra forma e
da liberdade permitir-lhe-à olhar a intercultura como uma
possibilidade de fazer filosofia que não seja intercultural!
"alternativa" à uovernação neoliberal. É considerando esta
b fj' Com isto chegamos ao elemento "acontecimentos-
dimensão alternativa que ele afirma que a filosofia a ncana
"... é intrinsecamente intercultural porque nasce na e da sua chave" para sustentar (ou argumentar para) a escolha de
confrontação com o Ocidente" 85 . Então, para um leitor que, um "princípio", como vimos em Habermas referindo-se a
como eu, está seguindo a estratégia que Habermas descobre em Hegel. Estes acontecimentos (recordemos a definição de
Hegel para formular uma época como um problema fil~só~c~, Foucault sobre "acontecimento") são a via pela qual N goenha
dar-se-á conta que a intercultura se transforma num pnnc1p10 demonstra, melhor deduz, o seu paradigma libertário.
distintivo não somente da "condição neoliberal" (expressão Os acontecimentos-chave deste princípio libertário
minha), mas de toda uma criteriologia do pensa~ento e da acç~~ e intercultural são a escravidão, o colonialismo - ambos
libertários do negro na história. E quando assim acontece, Jª regimes de servidão - e o neocolonialismo na sua versão
não estamos nos domínios de uma "alternativa" interpretativa, neoliberal. Pois, cada um deles privou o homem africano, de
senão de fundamentação nova, de uma novidade. Trata-s~ de um 207
forma particular, da sua liberdade. A escravidão representou - - - ---·'Lf.ITURAS CR!TICA..'1

206 "acontecimento" provocado por Ngoenha nafilosofia, seguindo a negação do homem negro da sua condição de ser humano.
"UUl!llDA!ll\"DONl\Ol.IBl!RAllSMO

0 entendimento de Foucault sobre este conceito. O colonialismo, por seu lado, representou a negação
E isso - repito, a intercultura corno princípio distintivo fundamental de identidade e cidadania ao colonizado. Por
da filosofia africana - notamos na seguinte afirmação exemplo, os moçambicanos eram "portugueses" e foi na sua
forte: "A Filosofia Africana, apesar, de na sua génese, condição de negação da identidade própria que (não) deviam
epistemologicamente viciada pelo discurso antropoló~ico, exercer a sua cidadania libertadora. Na verdade e em resumo,
nasce deste mas contra este, como um esforço de afirmaçao de a condição colonial representou também e sobretudo a
uma racionalidade africaná'ª 6 • retirada ao negro do direito de ser "civilizado". Ser civilizado
E 0 que é intercultura para Ngoenha? A Filosofia era uma prerrogativa reservada ao homem do Ocidente.
Intercultural não seria mais uma a adicionar-se ao catálogo de Por fim, o neocolonialismo representa a negação do direito
saberes "mas sim a única maneira possível de fazer filosofia ao desenvolvimento ou, o que ainda é pior, a negação ao
no mu~do". Desta afirmação retira-se que a intercultura deixa africano da sua capacidade de se desenvolver pelos próprios
de ser apenas uma prerrogativa africana para passar a ser um meios, vendo-se-lhe apenas na sua eterna condição de
receptor das ajudas ao desenvolvimento. Como vemos, estes
·s;;· ··cri:: i·~'gü.e1~h~: ·s: ·(20 i ·1r Yiiidi~1;ziü;.;,- :.. ibidem. p.H. acontecimentos-chave que Ngoenha alinha, conferem-lhe a
86 Cfr. Ngoenha, S. (2011): Intercultura .... Ibidem. pl23.
A lntercultura em Ngoenha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo?
José P. Castiano

passagem para a generalização do pensamento e da acção


de hoje; ele está em potência, como impaciência pelo futuro cada
libertária do africano. E representam graus de liberdades
vez mais fugitivo. Deste modo, a intercultura, na sua dimensão
consoante uma historicidade particular. São, no fundo,
crítica, não é apenas, e não pode limitar-se a ser, uma denúncia.
diferentes tamanhos da abertura de uma gaiola (quero dizer
É uma "alternativa" utópica.
sistema), embora ainda não suficientemente grande para que
o negro consiga escapar da servidão. Para sustentar este carácter crítico da filosofia, N goenha
escreve que a filosofia da interculturalidade, na sua versão
Em terceiro lugar, tal como Habermas descreve o
"extra-muros'', ou seja, na sua relação Norte-Sul, não deve
procedimento de Hegel em relação à subjectividade, a
ser limitada a uma crítica demonstrativa, mas (re)formular
liberdade se torna o critério fundamental ao qual Ngoenha
critérios universalmente válidos para resolvei: os problemas
recorre para submeter à análise crítica da acção religiosa, do
actuais. Por outras palavras, para Severino N goenha, não basta
Estado, da sociedade civil, da ciência, da moral e do direito
o que Foucault fez em mostrar a gênese, os mecanismos e as
e até mesmo da educação. Ngoenha afirma que se existe um
consequências do neoliberalismo. É preciso, marxianamente
critério para julgar a acção de um governo, esse critério seria
falando, "transformar o mundo" neoliberal mostrando outras
208
em que medida a acção em causa aumenta ou diminui os_ graus
·unHllDA\Jf." DO Nf.OS.!Bl!RAUSMO
alternativas à governação biopolítica.
209 ..·
de liberdade do "povo" no seu todo, e de cada um dos membros LEITURAS CRÍTICAS

da sociedade em particular. 87 É somente debaixo desta lógica de uma filosofia engajada


na busca de alternativas, mais do que de interpretação, de acção
Faltar-nos-ia a dimensão crítica, que dissemos ser inspirada
política, que podemos entender a definição de Ngoenha sobre
por Marx. Se seguirmos fielmente o paradigma libertário
a filosofia intercultural, pois, segundo ele, esta deve mudar
ngoenhiano, notaremos que, para ele, o filósofo africano tem
a forma como o mundo é pensado. Recusa-se à fatalidade
como única condição vociferar a partir de uma posição periférica
neoliberal 88 •
em diferentes historicidades dos acontecimentos-chave acima
descritos. O filósofo africano, a partir desta posição, transforma- Esta definição é muito farte porque, para além de buscar
se intrinsecamente num denunciador permanente dos sistemas uma alternativa ao neoliberalismo, ela própria se afirma com
ou regimes de servidão. Mas mais do que um denunciador que a única forma de compreensão e de acção do homem no mundo
vocifera a partir do seu canto localizado na periferia, o filósofo contemporâneo. Será o último homem de Huntington, de
da intercultura torna-se também um utopista. Ele contrapõe à tradição nietzscheana e hegeliana, que aqui se transfere para
governação biopolítica de Foucault uma nova fundamentação: as circunstâncias do neoliberalismo? É a intercultura a última
uma governação intercultural. O estado da intercultura não é palavra filosófica contra neoliberalismo e no mundo? já agora,
uma pergunta radical: é possível a intercultura?
A lmercultura em Ngoenha: "Alternativa" ou novci. Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo? José P. Castiano

Mas antes de retornarmos a esta questão de fundamento ter-se-ia originado quando os europeus navegavam em torno
da intercultura, vejamos o livro Intercultura a partir do método do Mundo e à medida que iam dominando as terras e povos
de argumentação percorrido pelo autor. E a este método o alheios. Porquê é que a estratégia pedagógica da intercultura
chamo por deconstrução progressiva do conceito em causa - não foi pensada pelos europeus na altura? Porque a sua cultura
a intercultura. Este método consite em apresentar hipóteses não estava em perigo, senão que se tratava exactamente do
progressivas sobre o conceito em causa, eliminando-as contrário: impor a sua própria aos povos "descobertos".
contudo uma a uma.
A segunda hipótese ·de intercultura deconstruida pelo
A primeira hipótese que Ngoenha descreve para autor tem a ver com a "viragem axiológica" da humanidade:
compreender a gênese da intercultura tem a ver com o "A interculturalidade tem que ser vista e considerada como
processo de imigrações para a Europa, em particular para um avanço moral da humanidade". Pàra mostrar esta hipótese,
Alemanha e França. Estes países e outros adoptaram uma Ngoenha cita Voltaire que teria dito que a humanidade avança
estratégia "intercultural" para integrar mais efectivamente em direcção à sabedoria; socorre-se também a Levinas e a
aos emigrantes turcos, argelinos e da Europa do Leste nos Martin Buber que defendem e fundamentam uma nova ética
210 seus países. Assim, a intercultura começou a ser elãborada da relação com o Outro que contrarie à ética de interesses e de 211
teoricamente e implementada praticamente como urna artimanhas de confrontação. LEITURAS CRÍ11CAS

estratégia pedagógica nas escolas. Para além da língua


Ngoenha rebate esfa hipótese de ver a intercultura dado
nacional, aos emigrantes se exigia compreenderem a sociedade
que, para ele, há contra-exemplos ou "contra-indicadores": a
europeia e a sua cultura. Daí a importância de uma abordagem
guerra no Iraque, na Líbia, no Mali, e o próprio "terrorismo"
pedagógica que atendesse às particularidades culturais de cada
não seriam demonstrativos o suficiente de que a moral da
grupo dos vientes para, aos poucos, socializá-los segundo os
humanidade não está a avançar? Pelo contrário, revelam
valores ela cultura ocidental.
uma contagem regressiva duma moralidade universal e
Em resposta de N goen ha nega esta interpretação ela universalista mais avançada. A violência na relação com o
intercultura. Para este autor "intercultura nada tem a ver Outro parece estar a ser o comum, mais do que uma excepção.
com o encontro entre os povos (que se verificava na Europa), Portanto, afastemos esta hipótese do humanismo como
mas com a viragem dos rumos migratórios e a consequente estando na gênese da intercultura.
necessidade que os europeus sentem ele protegerem as suas
Na sua deconstrução progressiva do conceito
conquistas sociais" 89 • De facto, se a intercultura tivesse que
interculturalidade, N goenha esbarra, como terceira hipótese,
ter a sua gênese no chamado encontro entre as culturas, então
com a ideia de que ela esteja intrinsecamente ligada ao
processo de globalização e de mundialização. Assim, as
A lntercuftura em Ngoenha: "Alternativa" ou nova Fundamentação à Crírica Africana do Neoliberalismo? José P. Castiano

posições sustentadas pela filosofia da intercultura estariam "critérios universamente válidos" para os problemas também
universais. Não se trata de insistir e limitar-se somente a
na frente de combate contra uma "globalização hegemónica
críticas deconstrutivas. E Ngoenha menciona, como exemplo,
do capitalismo" (expressão que empresto de Marcelino
a proposta da 'justiça restaurativa" elaborada teoricamente
dos Santos). Para Ngoenha, no entanto, a questão não é
na África do Sul pós-apartheid: "podemos perguntar-nos
combater a globalização em si, senão encontrar alternativas à
se Moçambique não deveria ·também percorrer o mesmo
globalização de cariz neoliberal. Aqui, Ngoenha soe.arre-se a caminho!".
Fronet-Betancourt que fala de um "diálogo intercultüral" que
Assim, na intercultura extra-muros, como eu a percebo,
devia basear-se numa ética de acolhimento aos outros seres
trata-se de olharmos para a possibilidade de universalizar a
humanos.
nossa experiência africana na solução dos problemas que a
Todavia, sem rejeitar completamente [seria interessante governação biopolítiea provoca. E um destes problemas, para
estudar as convergências e as divergências presentes entre os além da 'justiça social'', é também a própria democracia, ou
dois autores em relação ao conceito intercultura] Ngoenha seja, mais concretamente o sistema de representação que cada
constroi a sua tese e conclusão a partir de Fronet-Betancourt. vez mais separa os eleitores e os respectivos "representantes".
Pois, para Ngoenha, quando adaptamos uma posição- crítica A questão da crise da representatividade democrática pode ter
212 213 ...
\ "Lllli:ROl!llF." 00 N~OltllflRAUSMO
a partir ela intercultura não se trata de fazer manifestar respostas interculturais. E a filosifia africana é chamada hoje LEITURAS CRhl('.Afi

diferenças mas ele "procurar um ponto de vista diferente para a apresentar respostas interculturais à crise da democracia
problemas que podem ser equivalentes" para todos. O autor representativa. Antes, porém, esta filosofia é chamada
justifica que isso significa um diálogo entre culturas (sic.) sem a perguntar-se sobre o sujeito anti-neoliberal e inter-
que cada uma tenha a pretensão de ser a única universalidade culturalista.
possível.
Chegado a este ponto, o autor identifica, para a era do
que ele chama "ultra-liberalismo", dois tipos ele intercultura
possíveis: intra-muros e extra-muros. Sem nos alongar muito
na sua análise, intra-muros refere-se a "entre africanos" e
requer uma espécie de um "contrato cultural" entre eles.
E o propósito deste contrato (inter)cultural é a busca de
alternativas ao tipo ele governação biopolítica, neoliberal.
Por seu lado, na interculturalidade extra-muros trata-se
da relação Norte-Sul. E, para Ngoenha, trata-se aqui ele uma
intercultura ocupada e preocupada em elaborar ou reformular
A 1ntercu 1r:ura em NgO.nha., "Alternat"ova" ou nova Fundamentação à Crítica Africana do Neoliberalismo? José P. Castiano

VIII

A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo

Dizer que a realidade se torna espectáculo


é de um provincianismo de cortar fôlego.
É universalizar os hábitos de visão da reduzida população
instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias se
convertem em entretenimento.
214 215 ,·
l!ll!RDAUF." DO NF.OLIBl!RAllSMO
-,-,,1.m=m"""'"°"cRl"'Toc"°'"--
(Susan Sontag, em: Olhando o Sqfrimento dos Outros)

Do mesmo "provincianismo" se pode acusar o neoliberalismo


enquanto teoria e praxis. Enquanto teoria universaliza
uma visão unidimensional do desenvolvimento a partir do
Ocidente. E enquanto praxis não deixa alternativas para
alternativas. Teoricamente, fez-nos concentrar no seu objecto,
a "liberdade", radicalizando-a na economia; ao mesmo tempo,
como consequência, fez "esquecer" aos filósofos (aqui tratados,
diga-se) a busca e a fundamentação do seu sujeito histórico,
dessubjectivou o sujeito. Concentrou-nos no mercado e
não nos produtores; distraimo-nos com o "espectáculo"
da virtualidade - alguns até declaram que se trata de uma
"sociedade de espectáculo", outros ainda falam de ciber society
-fazendo-nos esquecer a realidade crua e nua em que o sujeito
vive.
José P. Castiano

possibilidade de articular-se e lutar, em acção coordenada, por


É por isso que o pressuposto sob o qual iniciamos estas
um mundo melhor de uma forma comunitária e na sociedade.
leituras críticas foi: o neoliberalismo deve ser visto como
Este desaparecimento do sujeito hoje nota-se de várias
produto de dois processos historicamente continuados.
formas, sendo algumas delas pelo fracasso das lutas do homem
Primeiro, a surgimento de uma econometria como base dos
na condição neoliberal por um "meio ambiente saudável",
processos político-sociais. E, segundo, o surgimento do novo
pela "igualdade de gênero", pela "inclusão educativa", pela
espaço público ocupado por internautas-cidadãos.
"igualdade racial", etc. Os excessos neoliberais na existência da
No entanto, há uma pergunta que ficou no ar. E esta é liberdade individual não se consubstaciaram em "igualdade" e
fundamental a partir da perspectiva da filosofia da história: "fraternidade'', segundo as promessas da Revolução Francesa.
qual será o sujeito que vai conduzir o "monstro" neoliberalismo
à agonia? Serão as massas ou multidões que vão à rua, os tais
que Sloterdijk ironicamente titulou de "pretume de gente"? Ou A RefTacção do Sujeito na Condição Neoliberal
serão os internautas a partir de um simples click nas diferentes
redes sociais? Ou seja, sob que condições a "liberdade" na Começamos, nestas leituras, por analisar os dois processos-
condição neoliberal, pode retomar ao seu sentido original de chave que levaram à condição neoliberal na qual mundo hoje
liberdade no pensamento e na acção? Como reerguer o-sujeito 217
vive. Em primeiro lugar, o neoliberalismo caracteriza-se pela LelTURASCRl'f/C'l!.S
,•

histórico a partir dos escombros do "monstro" neoliberal? Ou emergência duma economia que se quer "livre" da política,
então será o 'ídiota" de Han a conduzir-nos para fora desta originando, de consequência, a economia política enquanto
"avalanche" neoliberal que como Sloterdijk diz, está numa disciplina filosófica. Como resultado, o mercado emergiu e
"mobilidade infinita"? desenvolveu-se, pouco a pouco, todavia com sucesso, para o
Nesta última parte irei, primeiro, argumentar como a critério-mãe da vida política, social e cultural. Assistimos a
dessubjectivação torna-se consequência destes dois processos. um mercado que se eleva paulatinamente para a posição de
Ou seja, iremos ver como o neoliberalismo, independentemente fundamento do direito e critério principal de governação. Para
de ser a partir da vertente de fundamentação interpretativa além disso, a sociabilidade humana é cada vez mais baseada
da biopolítica, da psicopolítica ou da interculturalidade, em critérios mercadológicos e menos numa eticidade sólida;
por conta dos dois processos, refracta o sujeito histórico, o a eticidade religiosa, e mesmo a cívica que se lhe seguiu
individuo na sua qualidade de cidadão, reduzindo-o apenas a após o iluminismo, foi sendo refractada por critérios de
um emissor de opinião, ao direito ao pensamento, mas sem veridicação cada vez mais baseados nas posses materiais. É
possibilidade de acção cívica transformadora, restringido o nesta perspectiva que, nas primeiras leituras sobre Hayek e
cidadão a um simples manifestante. O sujeito se descobre um Friedman, procurei mostrar como ambos fundamentaram -
bom reclamador ("podes dizer e reclamar o que quiseres, desde na verdade "radicalizaram" - a liberdade geral do homem a
que não mudes a ordem ou sistema") sem, contudo, qualquer partir do que eles consideraram a liberdade fundamental: a
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo
José P. Castiano

liberdade económica (propriedade privada) e a intocabilidade Como poderá ele lutar contra si mesmo, uma vez encontrando-
do "mercado livre" pelo Estado. se nas posições de operário e de capitalista de si mesmo
Em segundo lugar, o neoliberalismo caracteriza-se pelo simultaneamente? É por isso que a luta já não é entre "classes
surgimento dum novo espaço público onde o "cidadão" já sociais" se não entre devedores e credores
não é mais aquele que emite o seu juízo e age publicamente Estes dois processos constituiram a minha proposta de
no sentido clássico, se não cada vez mais um "internauta" chave-de-leitura para a crítica ao neoliberalismo, não somente
que se limita apenas à uma liberdade de "opinião vigiada" e na sua dimensão mundial, mas sobretudo com o olhar posto
"controlada". em espaços glocalizados como sejam Moçambique e os países
Devido ao rápido desenvolvimento da internet criam-se africanos em geral. No fundo, e de acordo com o que eu
diversificadas redes de relações virtuais em torno de diferentes penso ser uma das tarefas da filosofia africana, trata-se de um
temas ou frentes de combate do sujeito. Já não é a voz directa, exercício de deconstrução do discurso ocidental, este que se
que deveria coordenar a acção política para um combate por vende como sendo de natureza global. E o neoliberalismo é um
um mundo melhor, mas uma password que abre a porta para o destes pacotes neocoloniais do mundo cttjo discurso aparece
like fazer-se mais um dado, não para fazer-se ouvir. Ao mesmo como "universal" e, por isso, aparentemente sem alternativas
218 tempo que a internet abre a possibilidade de conhecer tudo, que nasçam das particularidades. 219
-=lljl~m..
-,-co~ITIC-,,-- ...

de acessar a todos os dados disponíveis; abre-se também a A primeira leitura crítica foi uma breve resenha das ideias
possibilidade do seu contrário: a de ser conhecido e vigiado principais de Hayek, cuja questão principal era evitar que
permanentemente pelo Big Brother. O que racionalmente o mundo caminhasse de novo para o que entendeu ser um
aparenta ser "mais liberdade" do sujeito expressar-se e poder estado de "servidão", inspirado em La Boétie; escolhi, para
intervir, sente-se emocionalmente como maior stress no isso, o livro O Caminho para a Servidão. "Servidão", para o caso
indivíduo isolado, com ligações virtuais ao seu mundo societal de Hayek, constituía um perigo eminente de a Europa, saída
e comunitário. dos regimes belicistas do nazismo e fascismo, regressassem
Este sentimento deve-se à possibilidade permanente, novamente para um novo regime autoritário que se adivinhava,
ainda que aparente, de o sujeito isolado produzir mais "no seu no seu entender, vir a ser o socialismo "real" soviético e do
tempo livre", isto é para além do tempo normal do trabalho, Leste. Alguns intelectuais ingleses, sobretudo os "socialistas",
para o crescimento do capital global. Este sujeito produz mostravam-se simpáticos a estes regimes à espreita no leste
sob a ditadura da "transparência", "inovação" e da "qualidade da Europa. A semelhança destes, os "socialistas" ingleses,
e excelência'', que lhe pressionam permanentemente para assim como as teorias económicas vigentes, defendiam a
a sua "autosuperação", para ser o seu próprio patrão, isto é planificação estatal central da economia e, consequentemente,
"empreendedor" de si mesmo. O próprio sttjeito refi:ac La- a intervenção social do Estado. No ouvido de Hayek, estas
se em, ao mesmo tempo, capitalista e operário de si n1esmo. posições "socialistas" dos intelectuais da esquerda inglesa
A Dessubjeccivação do Sujeito no Neoliberalismo
José P. Casciano

soavam a degenerar numa agressão do Estado às liberdades as palavras de Kennedy, sobre as quais Milton faz uma
individuais; enfim, um "caminho" direccionado para uma nova observação crítica logo no início do seu livro Capitalismo e
servidão. Liberdade. Entretanto, este autor tem uma posição peculiar,
O facto de a obra de Hayek ter sido publicada um ano antes ligeiramente diferente da posição expressa por Hayek,
da II guerra mundial terminar, mostrou que o autor estava dado que aquele põe tónica numa definição de cidadão cuja
preocupado com os novos desenvolvimentos que as sociedades característica não é "perguntar-se o que ele, como cidadão,
ocidentais da Europa procuravam trilhar. Ele escreve a obra deve fazer para o Estado" (Kennedy), senão que o cidadão
"aos socialistas", justamente para alertar aos ingleses, e precisa do Estado só na medida em que este pode garantir
por extensão aos europeus, uma vez terminada a II guerra a sua liberdade. Não é o Estado que tem a obrigação de
mundial, que não saíssem de um regime e caíssem num novo garantir a liberdade e a igualdade dos seus cidadãos; senão
regime "autoritário socialista". A razão principal apresentada que cabe a estes usar o Estado para defender-se dos impulsos
por Hayek para justificar o seu temor residia no facto de que, interventivos do p~óprio. Efectivamente, um dos marcos
no novo regime socialista que se avizinhava ao Ocidente, as fundamentais de Friedman é dizer que o homem deve gozar
liberdades individuais estavam em causa devido ao que achava de várias liberdades políticas e de escolha, todavia a liberdade
220 ser uma intervenção excessiva do Estado na vida social e na económica é a fundamental; esta é o alicerce para os outros
.lffP.llDo\DI!" DO NUOLIR!ll\MISMO

economia, assim como nas liberdades de escolha do cidadão. tipos de liberdade se realizem. Em Milton Friedman também _ __:;2:..:2:_:1:___ .-
UrTURAS CRITICAS

Neste aspecto, Hayek surge como crítico ao keynesianismo, exploramos as consequências que os "efeitos de vizinhança"
uma doutrina económica que defendia o intervencionismo do podem ter na restrição do que ele chamou "liberdade de
Estado na economia e medidas sociais do Estado por causa do escolha" e no aumento das desigualdades de oportunidades
desemprego e da miséria que se seguiu à II Guerra MUndial. entre os membros de uma mesma nação.

Nestas ideias de Hayek, notamos uma defesa acérrima da Ambos, Friedman e Hayek, concluo, deslocam a
liberdade, definindo-a como um estado no qual o indivíduo possibilidade da acção do sujeito, aliás radicalizam-na, para
deveria ser livre de qualquer coerção, mais particularmente a esfera económica . .É assim que se explica o surgimento dos
da coerção que pudesse ser exercida pelo Estado. Para ele a sindicatos dos trabalhadores, as associações profissionais,
liberdade assenta na possibilidade de cada indivíduo poder etc. Nestas organizações, os interesses políticos do sujeito se
pensar, avaliar e escolher os seus próprios fins. Aliás, a liber- refractam em interesses reformistas do sistema capitalista.
dade permite a criação da riqueza material; esta que se tornara, Nada de mudanças revolucionárias! Pois, a liberdade que se
na sua óptica, "a característica distintiva das sociedades que exige em ambos, nos neoliberais e também nos que defendem
souberam preservar a liberdade individual". a reforma, não é, de facto, a liberdade do cidadão, mas uma
abertura para a liberdade do capital financeiro poder circular
Milton Friedman começa por criticar o papel paternalista
livremente. Esta aliery.ação do conceito liberdade viria a ser
que o Estado americano prenunciava tornar-se. Recordemos
denunciada mais tarde por Byung-Chul Han.
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo José P. Castiano

As dissertações feitas em torno de Friedman e Hayek não interessa-se pelo cidadão enquanto "número'', ou seja, vê-o no
fazem parte do grupo do que considerei estrictamente por seio de um conjunto ("sociedade") sobre o qual se deve delinear
"leituras críticas". Fazem parte sim da busca da gênese do "políticas públicas". Não é por acaso que nasce o conceito
neoliberalismo enquanto conceito. Por via delas in~eressava "população", na verdade um conceito biológico na sua origem,
trazer à luz os fundamentos e a fundamentação da "liberdade" que transita depois para a política, após mesmo de ter sido
do neoliberalismo. Esta busca permitiu-me chegar à uma alojado, por um tempo breve da sua carreira, na estatística. É
importante conclusão: o st\jeito neoliberal é um sujeito que no meio desta "população" que desaparece o sujeito singular
articula, por conta das próprias circunstâncias, interesses (cidadão) e colectivo (massas, povo, proletariado). Toda a
económicos; o fundamento para o gozo das suas liberdades na ciência se vira para o colectivo.
condição neoliberal, segundo as palavras de ambos autores,
Portanto, o sajeito neoliberal aparenta ser livre, enquanto,
deve buscar-se na posse de uma propriedade privada, que se
de facto é um sujeito duplamente "submetido": ao determinismo
quer intocável pelo Estado, e na livre concorrência no mercado.
economicista do capital financeiro mundial, por um lado; e, por
Na história da análise da nova condição do liberalismo, outro, está "submerso" em comunidades virtuais "oferecidas"
Foucault foi o primeiro a levantar o neoliberalismo enquanto de forma fluída, por via da navegação e da navegabilidade em
222 um problema filosófico. Esta é a segunda grande coHclusão páginas web. É uma submissão e submersão que resulta em seu 223
LlllURDADF." D0NF.OL!llEIW1SMO ,•
que cheguei. E esta significa, por um lado, Foucault ter desaparecimento, isto é, sua dessubjectivação pela máquina LEITURAS CRITICAS

proposto um novo conceito que reconfigura esta realidade neoliberal.


concreta neoliberal e ilumina novas partes desta mesma
Em segundo lugar, dissertei sobre como interpretar uma
realidade. Surgem, desta forma, elementos do neoliberalismo
determinada realidade de tal sorte que se apresente como
que antes não estavam assim tão iluminados por se terem
"problema filosófico"; anotamos que isto significa engendrar
usado ferramentas conceituais obsoletas para classificar a
uma espécie de possibilidades de auto-reflexão, autocrítica ou
mesma realidade. Assim, Foucault cria o seu conceito analítico
até mesmo auto-certificação, possibilidades essas de dentro do
fundamental que é a "governação biopolítica" que serviu para próprio sistema neoliberal.
referir a esta nova situação em que o sujeito da condição
neoliberal é visto a partir da ordem social estabelecida. Trata-se agora de descobrir um potencial crítico no e
Explico-me a seguir. do interior do mesmo sistema neoliberal, ao mesmo tempo
que se faz esforços por encontrar o sajeito que encarne este
O objecto da governação biopolítica já não é o sujeito
papel crítico; procura-se um "idiota" que consiga sair desta
liberal na sua singularidade cidadã; isto é, um sujeito enquanto
dupla-amarra neoliberal. Com Foucault, nós anotamos,
detentor de liberdades políticas, mais especificamente a
o neoliberalismo subverte-se o critério fundamental da
liberdade de expressão, de ser eleito e eleger, mas sobretudo
normatividade - ele chamou-o critério de veridicidade. O
como portador dos direitos económicos. O neoliberalismo
critério fundamental para a legitimação da governação
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo
José P. Castiano

neoliberal deixa de ser a Moral (cristã) e o Direito (liberal), espaço utópico, que se situe para além da condição neoliberal e
como eram nos períodos do absolutismo e do liberalismo do homo economias.
iluminista respectivamente; este novo critério aloja-se no
Penso que Foucault, ao introduzir o conceito biopolítica
mercado, desta vez no neoliberalismo. Isto vai até às últimas
como modelo para a inteligibilidade e compreensão da
consequências, a pior das quais reside no aparecimento, nas
governamentabilidade neoliberal, "piorou" a situação dos
constituições ditas democráticas, de uma legalidade em que
teóricos e militantes que buscam, não apenas uma "alternativa"
"regular o mercado" torna-se o elemento fundamental, a
de compreensão e de acção, mas uma possível "nova" ordem
dimensão principal da normatividade.
social pós-neoliberal. Foucault não foi capaz de ver um sujeito
Nisto, não surge no mercado, e nem é possível que surja por trás da sua instância crítica ria governamentabilidade
espontâneamente, qualquer projecto social que tenha um (mercado).
sujeito capaz de iniciar uma reviravolta ao sistema. Aparece
Byung-Chul Han, na sua análise sobre o neoliberalismo,
um sujeito que não o é, por não ser capaz de vislumbrar o
parte do seguinte ponto crucial: não basta que o neoliberalismo
fim possível do seu sofrimento. É um sujeito que sucumbe
seja analisado a partir do mercado como critério de veridicidade;
perante as circunstâncias neoliberais. O sujeito é tomado pela
há um outro fenómeno neoliberal, nomeadamente o datafsmo
'2'24 ideologia do "que fazer?" resignado; não se trata de u~ "que
AllF.• DO NfJJt.IB!!IV<llSMO que, por via das tecnologias de informação, mudou por completo '2'25
fazer?" enquanto pergunta para a acção, cow a _qual Lenme se --,,"'=ru"°'""=c.""1·n=c.",-,- •"
toda estrutura do liberalismo. Portanto, o neoliberalismo não
debatia na sua famosa questão revolucionária na Rússia.
surge somente como consequência dos actores e interesses do
Por isso se torna intrigante um Foucault que procura e mercado, e nem lhe parece ser este um elemento fundamental
encontra no mercado, este não-sujeito. E este é o aspecto mais para a compreensão do neoliberalismo. Han não permite que
decepcionante que encontro em Foucault: não encontra, nem o mercado mereça ascender ao estatuto de uma teoria crítica,
foi capaz de encontrar, algum sujeito crítico na "sociedade como Foucault pretende; para Han, estas mudanças se devem
civil" e nem na "comunidade'', senão no próprio mercado, também às grandes infraestruturas da esfera da internet, das
apesar de este ser anónimo. Em contrapartida, contra todas as redes sociais e outras ferramentas de internautas-cidadãos.
previsões, ele decide, com esse seu lance filosófico, subjectivar o
As novas redes sociais tiram a possibilidade de a liberdade
mercado. É desta forma que ele deixa o problema filosófico do
ser entendida como "tempo livre'', no qual o sujeito não se
neoliberalismo, praticamente no mesmo sítio onde o encontrou,
encontra "submetido" à pressão de aumentar quase que
isto é, no mercado. Com esta saída, Foucault deixa também a
infinitamente o capital. A "liberdade" do neoliberalismo, devido
'1iberdade" no neoliberalismo refém do mercado. Trata-se, de
a este investimento massivo na psicopolítica, deixa de ter a
facto, de uma saída que não o é: fecha-se a liberdade à porta
sua acepção original de "decisão livre" que o próprio indivíduo
da economia. Daí que seja compreensível que Foucault não
pode tomar em quê e de quê se ocupar. Bem pelo contrário, o
encontre nenhuma alternativa, e nem deixe entrever nenhum
sujeito é transformado em empresário de si próprio - o que
AOtitubjecuv01{iio do Sufe1'0 no Neollbt.mismo
JoX P. C.a11i..lin:t
1
c hamamo s "empreendedor " - dado q ue :> sujeito usa 0 seu
do _tcrcc1r~ •:wndo; ou seja, a partir dos "campeões de
tempo livre, a :.ua "liberdade" virtual e n ão real, para aumt"Nar
sofrimento 1 ara :ilém da pura in terpretação do fenómeno,
o c~pital. Pois, quem paga as longas horas de "navegação'', N gO<'nha noJ> oferece, no fi m do li"ro, também possibilidades
muitas vezes que se alo ngam noite a den tro em que o sujeito de acção, por vra do !>UJCllo intercultural, para opor-se à~
fica "su b m erso", ainda, n o trabalho •,•olunãrio"? consequckcía~ nefastas da mundialização do neoliberalismo,
N a , ·erdadc, conclui-se, a "liberdade" do neoliberalismo no ca'o concreto de Moçambique e a partir dele.
trata de abrir alas para que o rapítal flua livremente; trata-se . Pt·nM> que Foucault desempen hou um papel teór ico
da '11bcrdad e" do capital. Ele, o capital, necessita ultrapassar importante ao capta r o novo espirita trazido pelo
li vr e mente todas as fron teiras para poder 1·cp1·oduzir-se, sem 1wolrl><'r:tl1smo no que diz respeito A governação. Ngoenha
cons tra n g1 menlos. É disso que se trata. não da liberdark cultiva, nJ lnltrtulturo, o além duma pura interpretação
d o S llJCllO, senão d o própno capi tal qL.e circule e "flutue' ac-resrc-ntnndo a d im ensão "sofredora" (polftica) e, por
li v1" m e nte. (..VU~cll u.:-11Lia d1 ~tu, tli1 iu.. -,:a:o " i1aJd para o futuro; isto é, para
n ut opia. Este éo pri meiro aspecto importameadestacardeste
O s uje ito to rna-se, nestas condições, n um g uarda-chaves
auto r no quadro des tas leituras criticas ao neoliberalismo.
da sua pró pria cadeia: é somente li vre de di7.er "q uero ser
1~111 scg11ndn lugar, des taca-se em Ngoenha a ideia de que
226 livre" (liberdade d e exprrssão), não podendo, a pal' Lir da
11ào há 11e11ll11111n ç rftica neoliberal que se possa fazer que
condição neoliberal, empreender qualquer acção para se
passe por r ima de unui grande parte da população mundial
liberrnr do capital (liberdade efcctiva). 1J: isto acontece poi·que,
µobre; 0 11 11ue es teja :\ 111argern dos campeões do sofrimento.
nem Foucault na biopolltica, nem Byung-Chul llan na
O nu tor chama à alençl!o para o facto de, neste processo de
psicopol!tica, conseguiram <lescorlinar o s ujei LO histórico para
111unclial1 iaç~o neoliberal, existir roda uma população que
esta nova era neolibcrnl. Uma pergunta !ica no ar, pe ndente, de
<>stá aqui, periférica, e que suportou, com seu trabalho e
ora em diante: Scrâ que o 'campeão d o sofrimento", o sujeito sofrunento, 11111 modelo em que o dito 'desenvolvimento' (ou
Intercultural ngoenhiano, poderá ocupar o lugar do sujeito
sej a, crescimento) apenas abrange a poucos e reserva uma
histórico deixado vago por ambos?
,, desgraça permanente para muitos. Ngoenha chamou este
tipo d<' m1 nclrahzação do neoliberalismo o "caminho para o
A lllttr<:ultualidnd,, uma Dtssulyuttva(4o Epistimica? sofrimento" d os novos negros.
Portanto, em nossa busca por uma alternaÔ''ll A
Enquanto Byung-Chul Han e Foucault centraram-se na governamentabíhdade na condição neoliberal. devemos
análise do fcnóm<'no neoliberal, uma caminhada diferente ' ter cm conta essa parte larga da humanidade à margem. E
· • egro que está
foi feita pelo Ngoenha da ln~rrolturu. Este, contrariamente, aqui depanmo-nos com um novo conceito n • .
procura oferecer uma "alternativa" de compreensão crítica do · li · h. ·á a ~ o negro no sen udo
1mp cito 113 escrita ngoen rana: J n o
modelo de governação biopolltica a partir de uma pcrspectiva
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo
José P. Castiano

da cor-da-pele; os "negros" do neoliberalismo já não têm considerar "intercultural". Aliás, sou céptico à possibilidade
côr; melhor, são de todas as cores: os árabes, os judeus, os de diálogo entre culturas.
europeus e pessoas de todas as culturas e cantos do mundo
No lugar do conceito diálogo intercultural, venho
que estão na parte escura do neoliberalismo; são simplesmente
advogando para o conceito diálogo intersujectivo. E isto em
os perdedores da mundialização deste modelo. Aliás, esta é
atenção à capacidade crítica do sujeito geralmente convocado
uma extensão ao conceito "negro" que encontramos já no
para participar no dito espaço de diálogo, mas submerso nas
livro Crítica da Razão Negra do Achille Mbembe quando este
diversas culturas "intra-muros".
expõe a sua ideia de "clínica do sujeito". Da mesma forma,
Nelson Mandela incluíu na categoria "negro" aos cidadãos Por conta disso, eu penso que as situações sociais nas quais
sul-africanos de origem indiana e aos coloureds no seu recente se pensa que possa ocorrer o diálogo intercultural, não passam
livro Dare not Linger (2017) onde ele conta sobre o longo de apenas urna "possibilidade teórica". Na prática, no entanto,
caminho para a reconciliação nacional9°. Com N goenha existe um diálogo sim, mas este se processa na presença de
terminamos mostrando que, na sua concepção, a filosofia determinados "sujeitos intelectuais" ou "sujeitos culturais",
africana nasce da condição de uma interculturalidade vertical dependendo dos casos. O sujeito intelectual proveniente do
(ele chama por "extra-muros"). Partindo deste pressuposto, Sul, que é suposto ser o parceiro no diálogo com o Norte é
228
na verdade, representante de si mesmo e não de um "Sul" ' ' 229
mDADI!" DO Nl!OtlDEfVll!SMO
ele acha que toda a filosofia com a pretensãg de ser universal,
entanto que tal. Não vejo como uma pessoa pode emitir juízo~
lf.tTURAS CRITICAS

é intrinsecamente intercultural; por isso, para que a filosofia


africana seja considerada "filosofia", não há como ela isolar- epistemológicos ou mesmo morais em nome deste suposto
se do movimento da globalização; aliás, segundo este filósofo "Sul". Na verdade, muitos intelectuais africanos, ou expressam
moçambicano, não se trata de encontrar alternativas à os seus próprios pensamentos, ou, quando o fazem em nome e
globalização, senão de encontrar "globalizações alternativas". na qualidade de "representantes do Sul'', representam ideais e
interesses de certas posições sociais de origem.
A definição ngoenhiana da intercultura ocorre sobre
uma base que, historicamente, se tem tomada como óbvia: Por seu lado, o "sujeito cultural" do Sul, quando é convocado
que é possível haver diálogo entre culturas diferentes. para o "diálogo-entre-culturas", quase sempre é no quadro da
Naturalmente que não nego a possibilidade de duas "culturas" conv~cação de um conceito de cultura residual da antropologia
se influenciarem umas às outras na forma corno constroem colomal, que evoca um "passado" essencializado, porém não
as suas instituições (de casamento, por exemplo) ou nos seus ultrapassado em mentes não-livres. Pois, a antropologia
valores (religiosos, por exemplo) quando se "encontram". Ao colonial legou em algumas mentes modernas uma acepção
longo dos séculos tem sido esta a nossa história comum: a colonizada de "cultura": enquanto artefactos ou tradições que
de "trocas culturais"; mas isto está longe do que podemos se resumem em costumes, hábitos, danças e conjunto de tabus.
Um "homem de cultura~' do Sul tem conotações diferentes do
9à. ··i:f'r: 'M'a~Ci~ià; ':N.' S[Lànga,' M.: (2à'i 7); Dare not Linger. The Presidencial Years.
"homem de cultura" do Norte. Hountondji já tinha notado
Macmillan. Londres. pag. 220
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo José P. Castiano

este tratamento diferenciado dos mesmos conceitos, quando o Para além disso, coloco ainda a seguinte questão que me
seu referencial é a Europa e a África. Na acepção europeia, por parece mais profunda: porquê, quando se trata de filósofos
exemplo, quando se fala de "homem culto" ou "de cultura", africanos ou quando emitimos os nossos juízos a partir
é uma pessoa letrada ou cientista de renome; enquanto que desta posição, insistimos na "cultura" como a plataforma
a conotação reservada para o Sul é a de um sujeito social única e fundamental para o diálogo? Porquê é que o campo
que vive submetido e submerso nas suas "tradições" e cujo cultura se mostra tão atractivo para o diálogo e não por
arcaboiço conceptual não ultrapassa, em sua abrangência, exemplo, os campos da ciência, da tecnologia, ou mesmo da
a sua comunidade imediata. Neste contexto, somente o política? Por exemplo, seria mais interessante, nos tempos
"africano original" pode ser tomado como o sujeito cultural modernos, insistir, como Boaventura de Sousa Santos o faz
'
e, muitas vezes apenas nesta, qualidade de membro de uma num diálogo entre epistemologias. Aliás, o Hountondji da
con-Àinidade particular, e convocado para o "diálogo" entre Filosefia 4fricana: Mito e Realidade, já insistia, no seu afã de
culturas diferentes 91 • Ele não é convocado na sua qualidade de apagar os vestígios do antropologismo da etnofilosofia, na
crítico endógeno relativamente à sua própria cultura, e muito necessidade de a filosofia africana ter a sua base na filosofia
menos como uma possibilidade de ser crítico aos modelos de da ciência e não da cultura.
pensamento e de convivência social universalizados. Bern pelo Deste modo, não seria de todo descabido, insistirmos numa
230 231
'Dllll.DA.l)li" DO Nf.OLlBERAl!SMO
contrário, quando o é, ele é considerado deyido, muitas vezes, "alternativa" ao neoliberalismo na qual a "cultura" esteja LEITURASCRITIC".AS

à impossibilidade de universalização da sua cultura. subjacente às tecnologias ou às formas diferentes de conceber


Assim, e ainda na minha óptica, o que se idealiza política enquanto forma de gestão da coisa pública. A liberdade
teoricamente constituir uma situação de diálogo intercultural, conquistada pelos africanos, poderia ser a plataforma para
ou o que se convoca como base para o nosso imaginário da dialogar sobre as epistemologias, sobre as alternativas políticas
possibilidade de uma condição intercultural, na verdade, à democracia representativa e, enfim, sobre formas diferentes
não passa de um diálogo intersubjectivo. Neste último tipo que cada particular da nossa humanidade pode tirar proveito
de diálogo, os participantes seriam sujeitos convocados não dos avanços tecnológicos universais. A insistência no objecto
para, em primeira linha, representarem os interesses e valores "cultura" para o diálogo nos levaria, no contexto actual do
das suas culturas de origem. Melhor, não seriam convocados neoliberalismo de cariz biopolítico, a um não-objecto de diálogo.
somente nesta qualidade. Eles seriam sim parceiros Sobre a impossibilidade do "diálogo intercultural'', ou seja,
verdadeiros no diálogo quando representarem o potencial a questão se é possível um diálogo intercultural na forma como
crítico existente em culturas endógenas, relativamente aos ele é imaginado e quais são as condições e possibilidades da sua
problemas do mundo moderno. existência, vou socorrer-me a um texto escrito por de Nicolau
de Cusa, em 1453, cujo título é A Paz da Fé. Ele escreve esta
obra movido por notícias que lhe chegavam das perseguições
9i ... Cfr.' cà'sti'ài1ó,' J:P. ·(~úii 6)':. ba Sagáêi'dade Filosófica .... Ibidem.
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo José P. Castiano

e guerras ocorridas, sendo essas na sequência da queda da judeu; no segundo o interlocutor passa a ser o ap6stolo Pedro
Constantinopla. A obra põe em diálogo a Verbo Divino com que responde às questões levantadas por um sita, pelo francês,
Pedro, com Paulo e com sábios-representantes de algumas pelo persa, por um sírio, por um espanhol, pelo turco e por um
tradições religiosas e culturais mais significativas da época. A alemão. Finalmente na terceira cena é Paulo, o "doutor dos
Paz da Fé não era a primeira obra do seu calibre. Abel ardo já gentios" que responde às interpelações de um tártaro, de um
tinha escrito O Diálogo entre um Filósefà, um Judeu e um Cristão. roménio, de um boémio assim como de um inglês.
Raimundo Lúlio, no século XIII, também escreveu o livro O
Uma primeira constatação básica e que podemos tirar
Gentio e os Três Sábios.
rapidamente: não há um representante dos africanos. Nicolas
A Paz da Fé, contudo, é a primeira obra desta magnitude na de Cus a "esqueceu-se" (ou recu~ou-se) a conceder aos
área da intercultura, segundo o professor João Maria André. O africanos a possibilidade de participarem neste diálogo que
que é característico no diálogo é que ele não se apresenta numa era, na sua essência, interreligioso. [À mesma constatação
perspectiva de diálogo inter-religioso meramente exclusivista chegou Wole Soyinka quando escreve Off África, quando
s6 por incluir, pois, tem uma finalidade visível em perspectiva: a analisa a apresentação de uma peça de teatro, que pretendia-
aproximação ao próximo diferente e a compreessão das razões se inter-religiosa, em Berlim 92 • Soyinka pergunta-se: onde é
32 do "outro", em que esse "outro" se desveste da pretensão de que estão as religiões africanas? Embora ele note que elas
• DOt<IEOLIRllltAHSMO
233
ser dono ou o progenitor da universalidade. estejam espalhadas por todos os cantos do mundo, sobretudo --;;;"'"'""°'""'°"c•"'°ITl'°"cA::-,- ••

Ora, é seguindo o princípio da aproximação que o livro nas américas e na ásia, ninguém se dá conta da sua presença].
é composto por dois actos. O primeiro acto correspondente Se minimizarmos a ausência aparentemente "normal" dos
aos primeiros dois capítulos no qual os disputantes reúnem- africanos nos espaços em que se espera serem de diálogos
se com o Rei supremo, com o Verbo, com os anjos que são inter-religiosos, e mesmo interculturais, supostamente porque
mensageiros e com os guardiões dos povos que lhes dão conta da África não sairam religiões e nem culturas que mereçam
das guerras e das religiões; ou seja, o Rei e o Verbo reúnern- o adjectivo universais, mesmo assim, se formos a olhar de
se com os anjos que são os mensageiros dos diferentes povos perto este livro de Nicolau de Cusa, notaremos rapidamente
que vão dar notícias sobre as guerras que existem entre as que quem participa do "diálogo" para a "paz perpétua" entre
religiões. O segundo acto correspondente aos restantes as religiões, são os "sábios-representantes"; ou seja, na nossa
capítulo. Para este, são convocados os homens mais sábios e linguagem, são sujeitos do saber religioso.
eminentes deste mundo, representantes de diferentes povos e
A partir daqui, se estabelecermos paralelos deste livro com
crenças para um diálogo para chegarem a conc6rdia entre as
a possibilidade do chamado "diálogo intercultural" entre o
religiões, então quem são os convocados? No primeiro acto
Norte e Sul, fazemos urna simples constatação: que são sujeitos-
temos o Verbo, que é um grego; o Verbo coordena a reunião
participantes. Eu uso o termo sujeito pouco ou nada no sentido
em que se encontram um árabe, um índio, um caldeu e um
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo
José P. Castiano

carte siano de um sujeito "consciente" do cogito. Uso-o sim mais mesma "nação" em África? Será um diálogo entre diferentes
no se:=ntido e na acepção de "submetido à" e "submerso em" "culturas" africanas que se encontram enclausuladas dentro
um d..eterminado contexto. Recorro, para isso, parcialmente ao de uma mesma nação? Penso que, tal como vimos no ponto
sentido que Byung-Chul Han dá ao termo sujeito. Aplicando anterior, o contra-argumento seria o mesmo. Neste diálogo
esta ::i_deia segundo a qual um sujeito é um submetido à ou horizontal participariam na mesma aqueles sujeitos que,
sub~ erso em, resulta que o sujeito participante de um devido às circunstâncias políticas nos nossos estados, estariam
"diálc:Jgo intercultural'', preencha como condição básica de ele, mais ligados ao poder político local, do que especialmente aos
0
sujeito, ter estado antes submerso e, por conta disso, estar sistemas da cultura-origem. Porque se entramos para ambas
sublll-etido à cultura-origem específica. Então, a pré-condição dimensões, a "africana" e a "nacional", de facto, a fronteira
da in "êerculturalidade é que este mesmo sujeito específico seja entre o político e o cultural torna-se muito fluída. E penso
ou te=-11ha sido, de facto, "sujeito" (desta feita no sentido de que a razão principal para esta fluidez de fronteiras entre o
suhr11-€tido ou submerso) às condições de uma cultura-origem; cultural e o político prende-se com o facto de o debate cultural
em ol.Jtras palavras, que ele conheça a sua cultura e que esteja resvalar para o etnocêntrico, quando trazido para a esfera
em condições de articular conceitos e mundividências a ela pública. ·
adj ac«entes. É nesta condição, i.e. de consciência e ~iência
Insisto neste ponto porque, algumas vezes de forma 235
mmQUBf.Rllll:SMO
w bre=- a sua cultura, que ele poderá representar
- a "sua" cultura comum, se atribui como causa das guerras inter-africanas ll!ITURASCRl'f!CAS

nesse diálogo. Ora isto, hipoteticamente, não acontece com a


à falta do diálogo entre as culturas endógenas [o termo
maior- parte da intelectualidade africana, pelo menos enquanto
que se usa é "guerras étnicas" para suavizar a cultura]. O
tratarmos o conceito cultura na sua acepção legada pelo
problema, de facto, é a falta de diálogo entre as elites políticas
antro _pologismo colonial. que, aparentemente, representam as suas culturas-origem.
A-c::licionalmente a esta constatação, a minha seguinte Estas, na verdade, apelam à essa "cultura" por conta de seus
objecção à possibilidade de um diálogo intercultural dirige- interesses particulares ou de grupos nas reconfigurações do
se à V"ertente horizontal desta; isto é, na possibilidade deste poder a que as democracias modernas nos obrigam a fazer
diálogo no interior dos africanos mesmos e, por esta vertente, periodicamente. Não há, atrevo-me a dizer, vozes culturais no
no in-Cerior de cada "nação" africana. campo da política; há.sim jogos de interesses que fazem apelo
O professor Ngoenha denomina por "diálogo intra- às culturas como pontos de vantagem argumentativa.
muro s" ao o que eu chamo "dimensão horizontal" da O terceiro aspecto da ininha argumentação é, do meu
interc:::ulturalidadé13 • Será este um diálogo entre diferentes ponto de vista, o mais trivial, mas que importa denunciar.
"povos" ou culturas no e do interior de cada nação africana E está ligado à questão da origem histórica africana da
ou entre as diversas culturas internas que compõem uma intercul tura. Nesta está implícita a definição da própria filosofia
africana, nomeadamente o facto de ela ser "intrinsecamente
A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo José P. Castiano

intercultural". E por intercultural percebe-se que ela nasce conhecimentos sólidos para argumentar que houve muita
na e da sua confrontação com o Ocidente, especialmente influência conceptual africana com origem no conhecimento
pelo facto de o debate sobre a existência ou não da filosofia egípcio e antes desta civilização, no aparecimento dos ditos
africana dever-se ao livro de Tempels, Filosefia Bantu. "primeiros filósofos" gregos. Não terá sido esta uma primeira
Este livro, recordo, foi acusado por Hountondji de ser uma e forte região intercultural? Podemos localizar alí a origem da
antropologia com pretensão de ser filosofia. E, por este facto, condição intercultural na filosofia africana, como hiopótese de
acredita-se, a filosofia africana ter nascido em confrontação, e fundamentação do carácter e essência "intrínsecos" da filosofia
principalmente em oposição, à uma antropologia cultural que africana.
queria negar a racionalidade aos povos africanos, e a filosofia Para além disso, uma outra hipótese da origem da
africana ter sido tomada como uma reacção à suposta falta interculturalidade, seria a emigração dos escravos para as
de racionalidade em África. Recordemos aqui, a propósito, Américas, Europa e Ásia; os escravos não levavam consigo
as primeiras palavras de Masolo no livro African Philosophy: somente os seus corpos e mãos; levavam suas culturas,
ln Search ef Identit;y: Na origem do debate sobre a existência conhecimentos científicos, religiões e saberes; basta, para isso,
ciu não da filosofia africana estão dois factos: a negação da dar-se conta do que Wole Soyinka escreve em Oif África. O
racionalidade aos africanos e a reacção destes à negação da dito comércio transatlântico, foi, na sua essência, recheado
236 237
"LlnF.RDADI;" 00 NJIOUBEMllSMO
racionalidade pelo Ocidente por via de autores como Hegel de trocas culturais. Atrevemos a dizer que a cultura africana
UffTURAS CRITICAS

("a África 'própria' não está consciente da sua historicidade") transportou bases para a americana no seu geral e a brasileira
e Lévy-Bruhl ("mentalidade primitiva" e "pré-lógica"). Trata- muito particularmente. Será este facto "desprezível" para não
se do famoso rationalit;y debate. Ou seja, uma boa parte dos ser tomado como uma situação historicamente válida como o
filósofos africanos defende que a filosofia africana nasce no ponto de partida para a interculturação da África no mundo?
contexto da crítica à racionalidade supostamente universal
europeia ou ainda da sua aceitação implícita pelos filósofos Resumindo, o ponto que eu desejo marcar é o seguinte:
africanos modernos. com esse ímpeto de regresso à cultura (ou, como neste caso,
à inter-cultura), o lugar do sujeito africano fica omisso, enfim·
Eu entendo que, para situarmos a origem da dessubjectiva-se. Na "cultura" entendida como réstias do
interculturalidade, deveriamos tomar a sério os estudos antropologismo fica imerso o sujeito que, de facto, reconstroi
feitos por autores como Martin Bernal e Cheikh Anta Diop. e reconfigura o que deve ser considerado como "cultural", num
Estes reconhecem que houve trocas conceptuais, ou seja exercício de negação permanente ao o que a cultura oferece
interculturais, e até mesmo de "filosofias", entre a Grécia e como segurança. A interculturalidade encerra o sujeito
o Egipto da antiguidade. Não só, houve troca de mitós entre africano numa marcha contínua cuja direcção não se sabe bem
estas duas regiões que, segundo estas correntes africanas se é o futuro ou o seu passado ultrapassado. Talvez esteja a
"euro-fónicas" (este termo é usado por Ousmane Kane), a acontecer o pior perante os nossos olhos: que o sujeito, colocado
Grécia procedeu à sua racionalização. Entretanto, agora temos
1

A Dessubjectivação do Sujeito no Neoliberalismo


José P. Casriano

na sua condição de ter que estar submetido ou submerso à


uma determinada "cultura", sem a qual não pode participar
na interculturalidade, assim promovido, este sujeito, esteja a
inventar ele próprio culturas do seu imaginário.
Atenção que trazer novos imaginários em nome da
cultura, em si, não é nada mau. Pelo contrário. O pior é não
reconhecê-lo e continuarmos a vender pacotes subjectivos e
elitários sob a capa de serem culturais, o que dá no mesmo
dizer homogeneizados. De facto, a possibilidade de um diálogo Bibliografia
intercultural, não deve passar por cima elo reconhecimento
do sujeito que "representa" essas culturas e, nesta qualidade,
Castiano, J. P. (2015): Filosqfia Africana: da Sagacidade à
dialoga. Não estou contra a culturalidade do sujeito, mas sim Jntersuqjectivação com Viegas. Editora Educar da UP. Maputo.
contra o total desaparecimento deste que se julga representante
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das suas culturas, desvestido da sua capcidade de emitir juízos Reader's Digest. Agosto, Vol. 113. pp 110-114.
238 morais críticos - o que Odera Oruka chama moraljudgements
Diogo, L. (2013): A Sopa da Madrugada. Das refOrmas à tranifOrmação 239
- às suas circuntâncias sócio-culturais. económica e social em Moçambique. 1994-200, Porto: Porto
Ll!ITURA.~CRITICAS

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