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A IMPORTÂNCIA DOS DISCURSOS E DOS INDIVÍDUOS NAS

TRANSFORMAÇÕES DA SOCIEDADE

Luiz Carlos Noleto Chaves1

RESUMO
Este artigo apresenta considerações acerca da maneira como o pensador russo Mikhail
Bakhtin vê a importância dos gêneros discursivos nas relações sociais. Apresenta
ligeiras compreensões do filósofo Norbert Elias acerca da relação do indivíduo com a
sociedade. Partindo desses autores, estabeleceremos a importância dos mesmos na
construção deste estudo, que busca a conexão do movimento pan-africanista, da
negritude e do socialismo com as organizações do Movimento Negro no Maranhão.
Nele encontraremos também uma breve exposição dos movimentos em questão.
Palavras-chave: Discurso, Negritude, Pan-africanismo, Socialismo.

RESUME

This article presents considerations about how the russian thinker Mikhail Bakhtin sees
the importance of discoursive genres in social relations. It presents light understandings
of the philosopher Norbert Elias about the individual's relationship with society. Based
on these authors, we will establish their importance in the construction of the master's
thesis that seeks to connect the pan-Africanist movement, blackness and socialism with
the organizations of the Black Movement in Maranhão. In it we will also find a brief
exposition of the mentioned movements.

Keywords: Discourse, Negritude, Pan-Africanism, Socialism.

INTRODUÇÃO
A construção da história penso não ocorre sem uma linguagem (oral, escrita,
imagética, etc.), sem a interação dos indivíduos em sociedade e sem a construção de um
discurso, nas suas variadas formas. Vários autores se destacaram de forma muito
profunda sobre os temas citados. O russo Bakhtin desenvolveu várias teorias sobre o
uso do discurso e de como isso provoca transformações na sociedade. Norbert Elias, ao
apresentar a relação do indivíduo com a sociedade, mostra que o papel do indivíduo na

1
Economista, professor de História em Estudos Africanos e mestrando em História pela Universidade Federal do
Maranhão.
construção da história e dos discursos não existe e não se propaga sem a interação com
o coletivo.

Estudar as conexões do movimento pan-africanista, da negritude e do socialismo


com as organizações do Movimento Negro no Maranhão (MNM), pela via dos
intelectuais africanos, diaspóricos e europeus implica estudar os discursos e a interação
dos mesmos com a sociedade.

Tais intelectuais, pela via de seus escritos, não só transformaram espaços locais
como produziram modificações em outras regiões do planeta. Suas ideias cruzaram
fronteiras e foram fundamentais para a construção de outros indivíduos e grupos para
além dos seus locais de origem. As ideias do pan-africanismo, da negritude e do
socialismo circularam na Europa, no continente africano e chegaram no Brasil e no
Maranhão.

O pan-africanismo tinha originalmente objetivos limitados. Lutava apenas pela


libertação dos “povos de cor”. Seu congresso original não terá o alcance político
transformador pelo qual ele ficará conhecido quando da deflagração dos processos de
libertação dos países africanos muito tempo depois. Agora buscar unificar e libertar os
povos africanos das correntes das nações europeias, mas com uma visão socialista.

O movimento da Negritude que tinha pretensões apenas culturais e contra a


assimilação deflagrada pelas metrópoles europeias e buscava encontrar uma identidade
negra positivada, vai aos poucos, com a proximidade das ideias socialistas sendo
também uma ferramenta política contra seus opressores europeus.

Essas duas correntes se transmutaram quando seus principais intelectuais


abraçaram a ideia do marxismo, ainda que muitos não defendessem, na prática, um
socialismo científico tal qual foi defendido por Marx e Engels. Posteriormente, um
socialismo africano vai se impor na maioria dos das nações africanas que conseguiram
se libertar das suas respectivas metrópoles.

Indivíduos, discursos, história e sociedade

O projeto de pesquisa apresentado e que será desenvolvido no curso do mestrado


em andamento tem como objetivo geral identificar a existência ou não das ideias do
Pan-Africanismo, do Marxismo e da Negritude na formação intelectual do Movimento
Negro do Maranhão (MNM) entre os anos de 1979 e 1990.
Existem também objetivos que serão suportes importantes para o objetivo geral.
Vamos buscar compreender o Pan-africanismo, o Marxismo e a Negritude, no contexto
das lutas negras do século XX; entender a formação do Movimento Negro Maranhense,
a partir dos anos 1970; discutir os impactos das ideias políticas e ideológicas do Pan-
africanismo, Marxismo e Negritude sobre o movimento negro maranhense entre os anos
1970 e 1990 e, por último, apresentar uma leitura que nos leve a compreender o
encontro entre o marxismo e as lutas de emancipação na África.

Para atingir o objetivo geral e os específicos serão feitas pesquisas de ideias,


obras escritas e ação dos indivíduos na sua relação com a sociedade que engendrou
discursos e se transformaram em textos históricos.

As ideias e práticas sociais de intelectuais africanos como Kwame Nkrumah,


Amílcar Cabral, Léopold Sédar Senghor e diaspóricos como Alexander Crummell,
Aimé Fernand David Césaire, William Edward Burghardt Dubois, Frantz Omar Fanon,
Malcolm Ivan Meredith Nurse (George Padmore), Booker T. Washington, Edward
Wilmot Blyden, Marcus Garvey, Malcon X, dos brasileiros Abdias Nascimento e
Ironides Rodrigues e dos europeus Karl Marx e Friedrich Engels são exemplos dessa
relação dos indivíduos com o conjunto da sociedade que, pela via dos discursos,
produziram história.

Tais indivíduos construíram coletivos a serviço de suas causas e pela via dos
diálogos com o conjunto da sociedade em que estavam inseridas suas ações, formaram
grupos minoritários, no primeiro momento, mas depois irão influenciar outros grupos
sociais em várias partes do mundo.

Para isso, eles, no seu tempo, construíram discursos com o objetivo de fortalecer
e fundamentar suas lutas. Mesmo que de forma inconsciente e talvez sem o domínio dos
escritos de Bakhtin eles estavam criando, nas palavras do referido autor, seus próprios
repertórios “de formas discursivas da comunicação ideológica cotidiana. [...] uma
unidade ininterrupta e orgânica entre a forma da comunicação (por exemplo, a
comunicação direta e técnica no trabalho), a forma do enunciado (uma réplica curta
relacionada ao trabalho) e o seu tema. (VOLÓCHINOV, 2018 p.109).

A expansão desses movimentos, como veremos, deu-se por meio da palavra, do


discurso em suas várias formas. Ou seja, a palavra tem um papel fundamental na
construção dos discursos. No dizer de Bakhtin, “a palavra participa literalmente de toda
interação e de todo contato entre as pessoas: da colaboração no trabalho, da
comunicação ideológica, dos contatos eventuais cotidianos, das relações políticas etc.”
(VOLÓCHINOV, 2018 p.106).

Essas relações políticas são realizadas entre indivíduos e muitos deles têm um
papel destacado dentro de determinadas sociedades. Grande parte dos autores que
permeiam minha pesquisa viraram lideranças em movimentos políticos que
transformaram as instituições nas sociedades em que atuaram. De Kwame Nkrumah até
Karl Marx isso fica claro. No entanto, tais indivíduos não são heróis ou seres
iluminados e divinos, são produtores de história a partir de uma relação social.

Em artigo publicado com o título “O papel do indivíduo na história”, Nildo


Silva Viana (2013, p. 118), doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e
professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG),
nos diz que “[...] o papel do indivíduo na história é uma antiga discussão que tem como
objetivo explicar a influência que o indivíduo exerce no processo histórico. Tais
indivíduos, normalmente chamados de “grandes homens”, os “gênios”, os “heróis”, os
“rebeldes”, participam nos processos históricos cumprindo um papel determinante na
história, mas sem a interação com o conjunto da sociedade suas ações não teriam êxito.

Ou seja, o indivíduo é uma unidade que participa de um coletivo amplo e que


sozinho não conseguirá sobreviver. Todo ser humano, ao acordar, tem que recarregar
suas energias vitais para continuar sua sobrevivência biológica. Essa recarga passa pelo
consumo dos produtos direto da natureza (neste momento de forma restrita) e os que são
produzidos de forma artificial no sistema capitalista. Nas palavras de Viana, “para
satisfazer essas necessidades, ele se associa com outros seres humanos e, através da
cooperação, realiza o trabalho, elemento essencial para a satisfação das suas
necessidades”. Fica claro que somente em associação com outros membros da sociedade
e com a natureza o indivíduo consegue se manter vivo (ainda que por um breve tempo)
e perpetuar sua espécie, produzir discursos e fazer história. (VIANA, 2013, p.119).

Os autores que pesquiso e que produziram os movimentos do Pan-Africanismo,


da Negritude e do Socialismo são seres humanos com suas individualidades, mas eles
por si só não produziram história. Norbert Elias (2006, p. 23) nos explica que “todo
indivíduo constitui-se de tal maneira, por natureza, que precisa de outras pessoas que
existam antes dele para poder crescer”. Para ele:
“cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente
dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras
pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas
cadeias que a prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como
grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não
menos reais, e decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que as
pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que
chamamos “sociedade”. (ELIAS, 1994, p. 20

Nesta concepção de sociedade e de indivíduo que eu me irmano vou encontrar a


conexão das ideias de autores que pensaram o Pan-africanismo, a Negritude e o
Socialismo com os indivíduos que fundaram os Movimentos Negros no Maranhão.
Num processo em rede mundial essas ideias foram passando entre os indivíduos até
chegar ao Maranhão. Foi através de uma linguagem que foi construída ao longo da
história que o discurso do pan-africanismo, da negritude e do socialismo vão repercutir
do outro lado do atlântico. É importante, para melhor entendimento deste breve estudo,
explicitar as bases e origens de tais ideias.

O discurso do Pan-Africanismo

Os movimentos da Negritude e do Pan-Africanismo e do socialismo são ideias


nascidas fora do Brasil e que foram importantes na construção dos Movimentos Negros
no Brasil e em particular no Maranhão.

O Maranhão é um estado constituído de população de maioria negra. Essa


população, ao longo de sua história, foi protagonista de grandes lutas libertárias ainda
no período colonial, como a Balaiada, por exemplo. Nossa pesquisa visa dar um salto na
história e verificar a ação de movimentos negros mais contemporâneos e já inseridos no
período da modernidade.

Um desses movimentos é “O Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN) ”,


uma entidade fundada em 19 de setembro de 1979. De acordo com a Fundação Cultural
Palmares, o CCN tem como missão a “conscientização político-cultural e religiosa para
resgatar a identidade étnica, cultural e a autoestima do povo negro”, mas vai além:
pretende viabilizar “ações que contribuam com a promoção de sua organização em
busca de cidadania, combatendo todas as formas de intolerância causadas pelo racismo
e promovendo os direitos da população negra do Maranhão”. (CENTRO..., 2007).
Outro movimento importante e também contemporâneo é do Hip Hop
Maranhense. O Professor Rosenverck Estrela (2007, p.65) diz que “O Hip Hop chegou
a São Luís no início de 1980” pela via da industria cultural, da mesma forma que
ocorrera em “outras cidades brasileiras. Foi por meio de videoclipes, filmes, discos,
revistas, etc., que os jovens maranhenses tiveram os primeiros contatos com o Hip
Hop”. Aqui o gênero discursivo muda de forma, como bem nos informa Bakhtin ao
enumerar os numerosos gêneros. No Hip Hop, a música, a dança e o grafite são
expressões de gêneros discursivos.

Esses e outros movimentos que farão parte da pesquisa do mestrado em


construção, imagino, tiveram que se apropriar da linguagem, dos discursos e tiveram
que conhecer os autores e atores sociais que engendram o pan-africanismo, a negritude e
o socialismo. A interação do pan-africanismo, da negritude e do socialismo com essas
organizações do MNM com certeza ocorreu pela via da linguagem em suas variadas formas e
pela via do diálogo. Percebemos pela letra de Bakhtin “ que as relações dialógicas são a
condição sine qua non da linguagem, pois elas são relações de sentido, a partir das quais
é possível aos parceiros de interação construírem sentidos para os enunciados, textos,
discursos, etc.”. A importância de entender a linguagem e como ela se relaciona no
diálogo entre os indivíduos, principalmente nesta conexão atlântica, será crucial na
construção do trabalho a que me proponho. (BAKHTIN, 2011b, p. 307-330).

Pela escrita de Noleto (2020), pela obra de Márcio Paim, verifica-se que o
movimento pan-africanista será uma das mais importantes expressões políticas do
Movimento Negro Mundial. Embora ele tenha atingido grande parte do planeta (África,
América e Europa), na sua constituição original nem continha a denominação de pan-
africanista e nem foi criada por atores ou autores africanos. Sua origem ocorre nos
países de língua inglesa e por negros que já faziam parte da diáspora africana. Sua
perspectiva ideológica estava restrita ao binômio: libertação e integração. (PAIM, 2014,
p.88)

Tal binômio (libertação e integração) que serve de estratégia do Movimento Pan-


africanista não existe desde a sua origem. Sua principal tarefa era se opor ao tráfico
escravista nas Américas, Ásia e Europa. Para além disso, buscava a igualdade das
populações africanas fora do continente africano. Tinha um caráter de solidariedade e
era “restrita às populações de ascendência africana das Antilhas Britânicas e dos
Estados Unidos. Isso fica claro na linguagem utilizada na primeira reunião que debateu
as estratégias iniciais. Nela, a expressão “Pan-Africanismo” não existia. Foi identificada
como a “Conferência dos povos de cor”. O termo Pan-Africanismo só se fará presente
no ano de 1900. Na voz de William Bugart Du Bois “a reunião de Londres foi
importante porque “colocou pela primeira vez em moda a palavra “pan-africanismo”.
(PAIM, 2014, p. 88-89).

A pesquisa nos revelou que alguns autores, entre eles Paim (2014), classificaram
as várias fases e os respectivos protagonistas do movimento pan-africanista. Teremos
Du Bois como representante do Pan-africanismo educacional, Booker T. Washington
como representante do Pan-africanismo econômico, Edward Wilmot Blyden e
Alexander Crummel do Pan-africanismo religioso, Marcus Garvey responsável pela
universalização e radicalização da unidade pan-africana, mas ao mesmo tempo foi o
difusor do Rastafarianismo dentro da vertente do pan-africanismo religioso e, por
último, George Padmore e Kwame Nkrumah como representantes do Pan-africanismo
socialista. Por essa divisão percebemos que a cada fase, com certeza, iremos encontrar
linguagens diferenciadas e, por conseguinte, discursos também diferenciados, ainda que
todos buscassem a mesma estratégia.

Esse discurso pan-africanista vai chegar no Maranhão, vamos buscar descobrir


em que grau, dentro de algumas organizações políticas do Movimento Negro no
Maranhão. Essa visão se expressa em importantes ações políticas do Centro de Cultura
Negra. Porém, tão fundamental e importante quanto esse movimento político do pan-
africanismo está o da Negritude. A afirmação do discurso indenitário, que está contido
no movimento da Negritude, vai trazer grandes transformações nas ações da população
negra do Maranhão, em particular de São Luís do Maranhão. Em seguida,
descreveremos um pouco do que foi esse movimento.

O discurso do movimento da Negritude

O movimento da Negritude nasceu fora da África, da mesma forma que o pan-


africanismo, e tem como base linguística o inglês e o francês. Depois de surgir nos
Estados Unidos e passar pelas Antilhas, ele atingiu a Europa e vai chegar até a França,
onde será sistematizado, e após esse longo percurso vai atingir toda a “África negra e as
Américas (inclusive o Brasil), tendo sua mensagem, assim, alcançado os negros da
diáspora”. (DOMINGUES, 2005, p. 2).
Foi no período entre guerras que um grupo de estudantes negros oriundos dos
países colonizados (Antilhas e África) iniciou um processo de mobilização cultural na
busca de positivar a identidade negra. Tais estudantes, no contato com as universidades
europeias, em particular as de Paris e Londres, verificaram que “a civilização ocidental
não era um modelo universal e absoluto tal como era ensinado na colônia. ” A partir daí
foram despertados para uma nova consciência racial e, por extensão, para a luta em
favor do resgate da identidade cultural do povo negro. Isso foi materializado na revista
intitulada Légitime Défense, publicada em junho de 1932 por estudantes negros.
(DOMINGUES, 2005, p. 27).
O periódico pode ser considerado como um manifesto inicial do movimento
Negritude na Europa. “A revista denunciava a opressão racial e a política de dominação
cultural colonialista. O alvo do ataque também era o mundo capitalista, cristão e
burguês”. (DOMINGUES, 2005). Verifica-se, pelas palavras de Domingues, que o
movimento Negritude, ao criticar o colonialismo e aqueles a quem ele estava a serviço,
o modo burguês e cristão de produção, já estava dando sinais de que ia avançar além da
questão racial e cultural. Tal extensão ideológica fica mais clara, segundo o autor, anos
depois:
Dois anos depois, em 1934, os estudantes negros em Paris lançam a revista L
´étudiant Noir (o Estudante Negro). Léon Damas proclamava: "não somos mais
estudantes martinicanos, senegaleses ou malgaches, somos cada um de nós e
todos nós, um estudante negro". Daí o título da revista. Contrapondo-se a
política assimilacionista das potências europeias retomaram a bandeira a favor
da liberdade criadora do negro e condenaram o modelo cultural ocidental.
Como instrumentos ideológicos de libertação, advogavam o comunismo, o
surrealismo e a volta às raízes africanas. A revista teve importância
fundamental na difusão do movimento. Organizando reuniões, exposições,
assembleias, publicando artigos e poemas em outras revistas, esse grupo
conseguiu progressivamente transmitir uma imagem positiva da civilização
africana. Deste período adquiriram notoriedade os três diretores da revista:
Aimé Césaire (Martinica) - que foi o criador da palavra negritude - Léon
Damas (Guiana Francesa) e Léopold Sédar Senghor (Senegal).
(DOMINGUES, 2005, p. 28).

A presença do discurso do comunismo começa a ser incorporada pelos estudantes


que decidiram se contrapor a política assimilacionista das metrópoles europeias. Isso
implica uma ruptura com o discurso do outro (a metrópole) e a construção de outro e em
oposição cultural e política aos seus opressores.
É uma quebra de paradigma, pois se considerarmos o sentido original da palavra
negritude, percebe-se que ela veio a ser cunhada pela primeira em 1939, com o objetivo
claro de positivar o termo negro. Neste primeiro momento as ideias e discursos
marxistas não estavam presentes. Dessa forma, fica fácil entender as dificuldades que
este movimento terá ao se aproximar do marxismo:
A palavra négritude em francês deriva de nègre, termo que no início do século
XX tinha um caráter pejorativo, utilizado normalmente para ofender ou
desqualificar o negro, em contraposição a noir, outra palavra para designar
negro, mas que tinha um sentido respeitoso. A intenção do movimento foi
justamente inverter o sentido da palavra negritude ao polo oposto, impingindo-
lhe uma conotação positiva de afirmação e orgulho racial. Nessa perspectiva, a
tática foi de desmobilizar o inimigo em um de seus principais instrumentos de
dominação racial: a linguagem. O próprio Aimé Césaire assinalava que o
movimento da negritude representou uma revolução na linguagem e na
literatura. [...] O termo negritude apareceu com esse nome, pela primeira vez,
em 1939, no poema Cahier d´un Retour au Pays Natal (Caderno de um
regresso ao país natal), escrito pelo antilhano Césaire e editado por Volontés.
(DOMINGUES, 2005, p. 28 - 29).

O termo negritude é um ato do individual de se assumir enquanto negro e “ser


consciente de uma identidade, história e cultura específica”, em três aspectos:
identidade, fidelidade e solidariedade. Ser negro significava para o movimento [...] ter
“orgulho da condição racial, expressando-se, por exemplo, na atitude de proferir com
altivez: sou negro! A fidelidade é a relação de vínculo indelével com a terra-mãe, com a
herança ancestral africana. A solidariedade é o sentimento que une, involuntariamente,
todos os "irmãos de cor" do mundo”. Aqui mais uma vez se comprova que não existe
nem uma dose do discurso socialista. Quando essa corrente do alemão Karl Marx
começa a ter influência, o que contribui enormemente para sua consolidação, ao mesmo
tempo vai provocar rupturas. (DOMINGUES, 2005, p. 30).
Um expoente importante deste movimento, que mais tarde vai se distanciar do
marxismo, inclusive vindo a receber severas críticas de Nkrumah, será o poeta senegalês
Léopold Sédar Senghor. No entanto, já no início, o Negritude recebe severas críticas
mesmo entre aqueles que viam o movimento apenas como expressão cultural.
Domingues explica que Senghor ao afirmar que:
Existe uma "alma negra" inerente à estrutura psicológica do africano. A
"alma negra" teria uma natureza emotiva em detrimento da racionalidade do
branco. Trata-se de um conceito de negritude essencialista em que "a emoção
é negra como a razão é grega". Enquanto a civilização europeia seria
fundamentalmente materialista, os valores negro africanos estariam fundados
na vida, na emoção e no amor. Para Senghor, estes atributos constituíam um
privilégio do negro. O perigo dessa acepção é que reforça o preconceito,
segundo o qual a raça negra é incapaz de atingir certos níveis de inteligência
e de promover autonomamente o desenvolvimento de uma nação, ou seja, a
raça negra seria incapaz de alcançar determinado estágio do conhecimento
científico e tecnológico, posto que sua natureza fosse, essencialmente,
munida de valores espirituais. (DOMINGUES, 2005, p. 6).
Léopold Sédar Senghor já mostrava, desde o início do movimento Negritude,
que não criara, de fato, sua identidade negra mantendo-se preso às ideologias
eurocêntricas. Talvez por isso, quando presidente do Senegal, seu governo não fora
diferente das gestões coloniais. Após a conquista da independência do Senegal em 1960,
quando Senghor assumiu o poder naquele país africano, seu governo foi uma frustração
geral. Ele capitulou totalmente à dominação da metrópole, no caso ao governo francês.
(DOMINGUES, 2005, p. 11).

Um dos expoentes do Pan-Africanismo, Kwame Nkrumah, na sua fase


socialista, faz sua crítica mais forte contra a teoria da Negritude. Uma adaptação servil à
ideologia burguesa europeia levou a burguesia africana a criar mitos e isso transformou
a teoria da “negritude” em uma pseudoteoria de conciliação da classe média africana
com a ideologia burguesa francesa. Agora a negritude não passa de uma “concepção
contrarrevolucionária, irracional e racista, imbuída dos valores ocidentais”.
(NKRUMAH, 1970, p. 27).
Como se verificou, o movimento da Negritude teve uma forte influência do
marxismo, (apesar de algumas rupturas) para sua consolidação política, o que vai fazer
com que a ideia do socialismo floresça neste movimento e no Pan-africanismo.
Importante salientar é que o discurso se transmuta, como bem salientou Bakhtin ao
afirmar que os gêneros dos discursos não são estáticos, são dinâmicos. Ao longo de suas
trajetórias, tanto o movimento da Negritude como o do Pan-africanismo sofrerão
metamorfoses ao se conectarem com o socialismo científico europeu. É dessa corrente
europeia que trataremos a seguir.

O Discurso do Movimento Socialista

O Socialismo Científico tem sua origem no pensamento europeu e foi


desenvolvido por Engels e Karl Marx. Sua aparição vai ocorrer, de forma sistematizada
pela primeira vez, por ocasião do lançamento do Manifesto do Partido Comunista, em
1848. É um discurso contundente contra a afirmação do capitalismo que começava a
avançar no continente europeu. Se contrapunha ao crescimento da burguesia, que
destruía não só os interesses da aristocracia feudal, mas atingia em cheio os pequenos-
burgueses e os pequenos camponeses da Idade Média.
No início, esse movimento contra a burguesia nascente não tinha o caráter
científico que Marx e Engels vão impulsionar mais à frente. Era liderado pelos
socialistas pequeno-burgueses. Eles revelaram a concentração de capitais, os efeitos do
uso da maquinaria que estava impulsionando a revolução industrial, a superprodução de
mercadorias, a anarquia da produção, enfim, várias categorias que caracterizam o
capitalismo moderno. No entanto, se eram progressistas na compreensão analítica do
capitalismo, eram reacionários e utópicos na solução. Para Marx e Engels:

a finalidade real desse socialismo pequeno-burguês é ou restabelecer os


antigos meios de produção e de troca e, com eles, as antigas relações de
propriedade e toda a sociedade antiga, ou então fazer entrar à força os meios
modernos de produção e de troca no quadro estreito das antigas relações de
propriedade que foram destruídas e necessariamente despedaçadas por eles.
Num e noutro caso, esse socialismo é ao mesmo tempo reacionário e utópico.
(MARX e ENGELS, 1998, p. 100)

Em seguida ao socialismo utópico, antes do socialismo científico, vão


surgir várias correntes e vários discursos. Teremos o socialismo alemão que era
“formado por filósofos, semifilósofos e impostores alemães” na letra de Marx e Engels.
Para os autores do Manifesto Comunista, o socialismo alemão não era uma teoria
socialista de verdade, mas “uma interpolação da fraseologia filosófica nas teorias
francesas” e:

Desse modo, emascularam completamente a literatura socialista e comunista


francesa. E como nas mãos dos alemães essa literatura deixou de ser a
expressão da luta de uma classe contra outra, eles se felicitaram por ter-se
elevado acima da "estreiteza francesa" e ter defendido não verdadeiras
necessidades, mas a "necessidade do verdadeiro"; não os interesses do
proletário, mas os interesses do ser humano, do homem em geral, do homem
que não pertence a nenhuma classe nem a realidade alguma e que só existe no
céu brumoso da fantasia filosófica. (MARX E ENGELS, 1998, p. 101).

Nesta enumeração e crítica às vertentes que antecedem o socialismo científico,


os autores do manifesto serão implacáveis com os anarquistas. Os autores classificam os
anarquistas como produtores de um socialismo conservador ou burguês (MARX;
ENGELS, 1998, p.103). Sua máxima representação intelectual naquele período era o
anarquista francês Proudhon, com sua obra Filosofia da Miséria. Marx e Engels
afirmam que estes desejavam uma sociedade burguesa sem o proletariado
revolucionário. Eles almejam uma sociedade moderna sem as lutas, buscam uma
burguesia sem o proletariado, a classe revolucionária. No geral não desejam transformar
a sociedade burguesa, mas conviver pacificamente com ela. (MARX; ENGELS, 1998,
p.103).
A leitura do Manifesto Comunista nos permite enxergar que seus autores tinham
um discurso diferente daqueles que eles chamavam de socialistas utópicos. Para eles, o
verdadeiro socialismo tinha que ser mais elaborado, mais cientifico. O socialismo
científico, desenvolvido por Marx e Engels, tem como ponto de partida uma concepção
materialista da história que eles desenvolvem na sua importante obra “A Ideologia
Alemã”. Trata-se de uma análise científica das condições materiais (econômico-
sociais) e das contradições do próprio capitalismo. As diferenças com o discurso e a
prática dos socialistas burgueses não para por aí.
Outra diferenciação importante tem a ver sobre como deve ser a relação que os
socialistas precisam estabelecer com o Estado Burguês. Os socialistas anteriores não
viam o Estado como inimigo declarado e nem viam a necessidade de destruí-lo. Já Marx
e Engels, tinham claro o que o proletariado deve tomar o Estado em suas mãos e
converter os meios de produção da burguesia em propriedade deste estado proletário e
quando o Estado estiver atendendo às necessidades de todos os membros da sociedade,
ele deve ser destruído para, depois, surgir uma sociedade sem classes, a sociedade
comunista.
De forma resumida, podemos considerar que o socialismo científico é uma
elaboração para a classe trabalhadora, com base científica, e que tem como objetivo
final a destruição do Estado para, como ato seguinte, construir uma sociedade
comunista.
Aqui percebemos que quando o discurso de um grupo social se modifica, ele
pode alterar a realidade. O movimento socialista cumpriu durante muito tempo essa
tarefa quando foi uma ferramenta importante dentro do movimento pan-africanista e da
negritude e contribuiu para os processos de Libertação Nacional em vários países do
continente africano.

Considerações Finais

O estudo da disciplina “Análise Dialógica do Discurso em Mikhail Bakhtin e


Relação entre Individuo e Sociedade em Norbert Elias”, ministrado pela Professora e
Dra. Maria Izabel Barbosa de Morais Oliveira, dentro do programa de Pós-Graduação
em História e Conexões Atlânticas, do curso de História da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA), que faz parte da grade curricular do Mestrado de História dessa
universidade, nos permitiu ter uma visão mais aprofundada dos discursos que são
proferidos pelos indivíduos. O russo Mikhail Bakhtin foi muito debatido entre os
participantes da disciplina, o que propiciou uma compreensão sobre a construção e os
gêneros dos discursos.

De outra importância foi o debate sobre a relação do indivíduo com a sociedade


pela letra de Norbert Elias, complementada com as observações de Viana. Descobrimos
ao longo do debate que o conceito de sociedade não é de fácil definição e que o
indivíduo não existe e não produz, sozinho, nem sua sobrevivência e nem suas ideias e
discursos. A ausência da contribuição do outro cria dificuldade para a propagação de
suas ideias e produção material.

As conexões das ideias do Pan-Africanismo, da Negritude e do Socialismo


ocorreram em relação dialógica, por meio da linguagem que engendra discursos. Tais
discursos se expressam através de signos e viram ideologias. No entanto, esses discursos
para se propagarem no coletivo, precisam da participação muito forte e destacada de
atores individuais. Só nesta relação dialógica os discursos podem se enraizar na
sociedade para, em outro momento, virarem história.

REFERÊNCIAS

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Verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2011a. 1974, p. 393-410.

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tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011b, p. 307-336.

CHAVES, Luiz Carlos Noleto. Luta de Classes em África na Visão de Kwame


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CORDEIRO DOS SANTOS, Andre. Linguagem e construção de sentido: o


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