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O SOLO DE PIRATININGA

Aziz Nacib Ab’Sáber

In: AB’SÁBER, A. N.; PREZIA, Antes de começar esta breve jornada pelo solo de
BENEDITO; KEHL, L. A. B.; Piratininga, quero dizer que estou em casa nesse admirável
LOMONACO, M. A.; DONATO, H.; Teatro São Pedro porque em outros tempos pertenci ao
SCHWARCZ, L. M.; SEVCENKO, N.; Condephaat, o Conselho de Defesa do Patrimônio His-
BUENO, E. (Org). Os nascimentos de São Paulo. tórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de
Rio de Janeiro, Ediouro, 207 p., 2004. São Paulo, órgão que tomou a iniciativa de tombar vários
teatros ameaçados pela especulação imobiliária. Afinal,
houve um período na história da cidade, o período da
verticalização, em que todos pareciam querer espaço para
erguer arranha-céus. Foi a fase inicial do surgimento, em
alguns bairros, dessas autênticas casas sobrepostas que
são os grandes edifícios. Tivemos então a ideia de tombar
o Teatro do TBC, no bairro da Bela Vista, um teatro em
Santos e o próprio Teatro São Pedro.
Foi uma das maiores lutas de minha vida: os es-
peculadores eram, como sempre, muito fortes. E, ao que
tudo indica, a luta continua. No caso de Santos, fizeram
um buraco na traseira do teatro, retirando os elementos
essenciais do prédio e deixando apenas as paredes exte-
riores. Travou-se lá, como aqui, um confronto político
muito grande, que contrapôs de um lado a política cul-
tural e, do outro, a política econômica especulativa.
Na mesma época, tentamos tombar os teatros do
bairro Bela Vista porque aquela zona estava sofrendo um
processo de degeneração social e urbana, e o que eu tinha
visto acontecer em Buenos Aires, na Boca  onde um
bairro tradicional muito simples transformou-se em um
bairro de maior importância turística  levou-me a pensar
no tombamento dos teatros e de alguns sobrados, e na ins-
tituição de uma discreta política de proteção aos pequenos
restaurantes italianos tão característicos da Bela Vista. Ali,
essa tarefa estratégica de defesa de um patrimônio parece
ter funcionado razoavelmente bem.
Figura 1. Encontro das
águas: confluência dos
rios Tietê e Pinheiros
em foto de c. 1929, de
autor desconhecido

Na verdade, ainda existe um problema com Em um passado não muito recente, escrevi
o Teatro Oficina, cercado por grandes instalações um pequeno trabalho sobre a originalidade do sítio
e estacionamentos que pertencem a uma pessoa urbano da cidade de São Paulo. Publiquei também
muito rica e poderosa, o empresário e apresentador na revista Acrópole, que infelizmente já desapareceu,
de TV, Sílvio Santos. E o pessoal do Oficina reage um ensaio sobre o sítio inicial da grande metrópole
não apenas porque o teatro foi tombado, como paulistana. E para o conjunto da região do planalto
também 300 metros de seu entorno não podem ser paulistano  que, por muitas razões que abordarei
modificados sem autorização do Condephaat. O aqui, eu preferiria que fosse chamado de planalto de
Conselho, porém, vem aventando a possibilidade Piratininga , fiz uma tese chamada Geomorfologia
de retirar a menção àqueles 300 metros  sinal de do sítio urbano de São Paulo. Mas, como tais estudos
que existe quem não se importe com a preservação não foram reeditados, não é nada fácil consultá-los*.
de uma paisagem urbana tão característica de uma * São três principais textos publicados por Aziz Ab’Sáber sobre a
época. complexa história geológica da região de São Paulo. O mais conhecido
Mas não estou aqui para fazer queixas deles é a consagrada tese de doutorado Geomorfologia do sítio urbano de
porque senão ficaria por horas fazendo-as. Ingres- São Paulo, lançada em 1957 no Boletim 219 da Faculdade de Filosofia,
semos, portanto, no nosso tema: o sítio urbano de Ciências e Letras da USP. Os dois outros são: O sítio urbano inicial da
aglomeração paulista, publicado em julho de 1983 pela revista Acrópole,
São Paulo de Piratininga.
n° 259/6, ano XXV, e o ensaio O sítio urbano de São Paulo, parte do livro
Figura 2. Secção morfológico-estrutural da Serra da Cantareira ao oceano, através do planalto paulistano e
da Serra do Mar. Reproduzido do livro A cidade de São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1958.

A) nível máximo atingido pelas camadas de São Paulo 1. depósitos quaternários das várzeas
2. camadas de São Paulo
B) nível da soleira de Barueri (710 m) 3. filitos
4. micaxistos (e gnaisses micáceos)
C) máxima profundidade conhecida da bacia de São Paulo 5. quartzitos
(543 m) 6. calcários
7. biotita-gnaisses (de origem magmática)
D) nível médio da superfície de erosão do Alto Tietê 8. migmatitos facoidais
(825 a 850 m) 9. granitos
10. falhas provadas
E) nível da peneplanície do Japi. 11. falhas prováveis

Desde então  e lá se vão quase 50 anos  à originalidade do sítio urbano de São Paulo.
continuo, dentro das minhas possibilidades, perma- Nessa região do Planalto Atlântico, depois
nentemente trabalhando na região de São Paulo, que se transpõe a Serra do Mar, que é, ela própria,
inclusive percorrendo certos locais que ainda pre- um elemento de grande valor planetário, pois ali,
servam a memória dos bandeirantes e dos aldea- em zonas tremendamente escarpadas, onde os
mentos jesuíticos, em especial na região de Cotia, solos dificilmente são seguros, desenrolaram-se
no sítio do Mambu; na pequena aldeia de Carapi- fatos muito complexos: rochas se decompuseram,
cuíba; na região de Embu e no sítio Santo Antônio, solos se formaram e a vegetação florestal  vinda
localizado no antigo sertão de São Roque. De forma de áreas de redutos, onde ocorreram ilhas de umi-
que já me ocorreu a ideia de que talvez pudéssemos dade em um tempo de grande expansão dos climas
instituir um outro tipo de roteiro turístico, que não secos sobre as áreas costeiras e interplanálticas 
fosse apenas o roteiro do Pátio do Colégio ou da conseguiu, durante o período da retropicalização,
Avenida Paulista e seus arredores, mas um roteiro descer daqueles redutos para as serranias e escarpas,
que recolha o passado dentro do presente, propi- e das escarpas até os piemontes e esporões da serra,
ciando grande satisfação cultural, como sei que é do criando essa porção luxuriante e extraordinária que
feitio da gente de São Paulo  pois, embora não hoje configura um dos trechos mais espetaculares
seja paulistano, sou paulista, nascido em São Luís da Mata Atlântica brasileira.
do Paraitinga. Mas tão logo a barreira natural da Serra do
Mas esta também não é uma palestra sobre Mar era vencida, as coisas não se tornavam mais
turismo histórico. O que pretendo fazer aqui, na simples para os colonizadores, talvez até pelo con-
verdade, é apenas uma tentativa de simplificação trário. De fato, uma vez no planalto, no reverso da
de uma ciência relativamente complexa, a geomor- serra, as condições para ocupação e urbanização
fologia tropical e intertropical. Passemos, portanto, eram relativamente negativas, pois desde Cunha
A Cidade de São Paulo  estudos de geografia urbana, publicado pela
até Guararema, no alto vale do Rio Paraíba do Sul,
Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1958. Embora fundamentado existe um mar de morros cuja topografia é relati-
nos citados estudos, o texto reproduzido nas páginas precedentes foi vamente complexa para a instalação de núcleos de
transcrito e editado por Eduardo Bueno com base na palestra proferida cidades. Após o Vale do Paraíba, na Serra da Man-
por Ab’Sáber em 8 de dezembro de 2003, durante o seminário “Os tiqueira, repete-se a situação existente na Serra do
nascimentos de São Paulo”. Eventuais deslizes são de responsabilidade
Mar e, ultrapassados os altos da Mantiqueira, na
do editor (publicação original).
direção do alto Rio Grande, em Minas Gerais, as Essa é uma questão relevante, pois o pri-
condições para o desenvolvimento de centros ur- meiro fato importante ocorrido na história hidro-
banos igualmente não eram as melhores. geomorfológica recente da região de São Paulo foi
Assim sendo, os sítios favoráveis para a ocu- justamente a constituição dessas planícies aluviais,
pação limitavam-se às colinas do médio Vale do as planícies de inundação do Tietê, do Pinheiros e
Paraíba do Sul (Bacia de Taubaté) e ao sistema de seus principais afluentes, entre os quais o mais
colinoso do alto Tietê (Bacia de São Paulo). Por importante era o Tamanduateí, em cujo vale de-
isso, pode-se dizer que no entremeio das colinas senrolaram-se as cenas primordiais da história do
paulistas os indígenas realizaram uma descoberta povoamento indígena e lusitano no conjunto da
importante, depois continuada com muito mais região.
ímpeto pelos colonizadores dentro da complexa e Nessas planícies existiam vários pequenos
sofrida história que aqui se desenrolou. Tal desco- ecossistemas: o ecossistema de florestas ripárias, ou
berta configurou o achado de um sítio muito es- beiradeiras, na lombada dos diques marginais, em
pecial, uma vez que a zona na qual se ergue hoje a pontos especiais do cinturão meândrico; depois o
cidade de São Paulo combinava um admirável sis- ecossistema lodoso, formado pelo extravasamento
tema regional de colinas, várzeas, terraços e pata- das águas, pois os rios transportavam sedimentos
mares de colinas com uma posição absolutamente por saltação, por arrastamento, por diluição e por
única dentro do Planalto Atlântico paulista. uma série de aspectos mais superficiais.
Além de possuir esse mosaico de colinas No caso particular do Tietê, as águas espar-
tabuliformes e patamares de colinas sulcadas por ramavam-se para os lados a partir da embocadura
rios muito piscosos e navegáveis por canoas, a re- de córregos e afluentes ou extravasavam por cima
gião se encontrava em uma zona extraordinaria- dos diques marginais por ocasião de grandes chuvas
mente estratégica. De um lado, oferecia a possi- e inundações, criando um setor de planície cuja
bilidade para descer da Bacia de São Paulo para ocupação é muito difícil. Logo depois dessa zona
as colinas da Bacia de Taubaté. Da outra banda, havia uma parte mais alta que ia chegando ao sopé
ensejava a possibilidade de transpor as serranias de dos terraços ou colinas. Nessas faixas mais elevadas
São Roque e de Jundiaí e atingir uma zona depri- do terreno desenvolveu-se uma vegetação de flo-
mida, a chamada Depressão Periférica Paulista, de restas de limitada biodiversidade, a mata de várzea
onde se podia seguir tanto para o norte, na direção  muito simples, muito baixa e muito fácil de ser
de Goiás, quanto para os planaltos meridionais do derruída, como de fato o foi ao longo dos séculos.
Brasil. São Paulo unia, portanto, a complexidade Hoje, apenas em pequenos trechos muito restritos
de um aprazível sítio de colinas com as vantagens podemos encontrar aquela frágil matinha da várzea
de um sítio de excelente localização. paulistana.
A região também estava envolvida por um A região toda possuía diversos ecossistemas,
colar de matas e serrinhas: Serra da Cantareira, muitos fácies, muitos componentes de uma fa-
Morro Grande, Caucaia do Alto, Serra de Ita- mília de ecossistemas típicos de planície aluvial. Na
peti, Taxaquara e outras pequenas serras, que eram margem dos rios havia a já citada floresta ripária
todas densamente florestais. E dentro dessa mol- e, na traseira dos diques marginais, para os lados,
dura havia aquele mundo de colinas, várzeas e pla- estendiam-se os chamados helobiomas, que são
nícies. Tais planícies eram muito largas: tinham de biomas adaptados a conviver com brejo e de grande
dois a três ou mais quilômetros de largura. importância, pois reuniam algumas espécies vege-
E aqui já surge um problema didático bas- tais que interessavam sobremaneira às populações
tante revelador da originalidade do sítio urbano de indígenas. Depois, vinha a pequena mata de várzea.
São Paulo: os livros em que estudei quando jovem Faltavam aqui os psamobiomas, ou biomas típicos
definiam planície como todo terreno baixo e plano, de zonas arenosas, devido à ausência de dunas. Os
abaixo dos 200 metros de altitude. Tão logo entrei psamobiomas estavam apenas lá nas restingas ou
em contato com o relevo da cidade de São Paulo nos pequenos e médios campos de duna existentes
e seus arredores, pude perceber que aqui tínhamos no litoral paulista.
largas planícies geradas em condições geológicas Após os diques e matas de várzea, erguiam-se
regionais bastante complexas  estavam situadas as colinas e se subia da planície aluvial para o pa-
a 716, 718, até 720 metros de altura, conforme a tamar das colinas através de pequenos terraços e
declividade da região, desde Mogi das Cruzes até vertentes íngremes. Em muitos lugares, porém,
a Penha e a Lapa, e daí até Barueri. esses terraços já estavam bastante descontínuos e
então se utilizavam as várzeas dos rios secundários, encontrar as primeiras vertentes das colinas. Já as
os famosos rios que vinham do reverso da Serra do colinas estão no nível em que se acha o triângulo
Mar, dentre os quais o mais importante, evidente- histórico, nível esse que, no Largo de São Francisco,
mente, era o Tamanduateí  o rio de Piratininga, tem entre 745 metros e 760 metros. Essa mesma
por excelência , mas também o Aricanduva e o altitude de 745 metros a 760 metros se repete na
Pirajussara, entre outros, todos batizados com os outra banda, na área além do Vale do Anhangabaú,
nomes indígenas que ainda mantêm. nas proximidades da Consolação.
E aqui é preciso abrir um breve parêntese: Pois foi desse nível intermediário bastante
quem quiser estudar São Paulo de Piratininga e o plano que a cidade se serviu para se expandir, uma
Planalto Paulistano, precisará ter sempre em mente vez que sua planura foi o componente que facilitou
o significado dos nomes indígenas, sobretudo dos o crescimento da cidade no primeiro momento em
nomes tupis, já que, quando da chegada dos co- que ela conseguiu transpor o Vale do Anhangabaú
lonizadores portugueses, os povos tupi-guaranis e, por meio do viaduto do Chá, chegar até aqueles
ocupavam não apenas essa região como também patamares.
a maior parte do território brasileiro. Povos esses Só mais tarde é que a cidade, já em fase de
que, apesar de possuir na guerra um de seus com- crescimento industrial, em torno de 1890-1895,
ponentes essenciais, viviam se não em plena har- subiu pelas ladeiras sucessivas e desfeitas em pata-
monia, com certeza em profundo contato com a mares mais camuflados até atingir o Espigão Central
natureza. da Paulista. Ali, na avenida que é tida como símbolo
Por falar nisso, cabe lembrar que, em 1949, de São Paulo, e nos bairros contíguos a ela, batizados
Florestan Fernandes fez sua famosa tese sob o tí- de Jardins, é que se iniciaram em ampla escala os lo-
tulo de O papel social da guerra entre os Tupinambás. teamentos mais luxuosos, fruto de uma especulação
Mas alguns outros sociólogos já acrescentaram a precoce. E muita gente ficou rica em São Paulo; al-
isso uma outra condição, em geral esquecida por guns com o café, outros com os loteamentos.
vários arqueólogos e pré-historiadores. Lá dos Es- Foi através daquele conjunto de bairros que, pela
tados Unidos alguém observou, com toda a pro- primeira vez, se interferiu profundamente nos ma-
priedade, que não se tratava apenas do papel social nanciais da drenagem que se dirigia para os afluentes
da guerra: ainda mais importante era o papel ecoló- do Tietê ou para a margem direita do Pinheiros. É de
gico da guerra, porque, à medida que se esgotavam se registrar também que os primeiros reservatórios de
os componentes de caça, pesca e coleta, os grupos água para o abastecimento da então pequena cidade
indígenas se deslocavam e, como muitos outros lu- de São Paulo se localizavam em barragens dos rios
gares já estavam ocupados por outros grupos, evi- provenientes do Espigão Central, como o Sacadura,
dentemente eclodiam os conflitos. o Itororó e o Bexiga  hoje canalizados e soterrados
As guerras têm, portanto, três razões primor- sob o leito de grandes avenidas.
diais: uma razão social, uma razão geoecológica e No cenário original onde viria a surgir o sítio
uma razão mítica. A ocupação primitiva desse Pla- urbano de São Paulo, em quase todas as colinas e
nalto Paulistano, que tem aproximadamente 3.200 por todos os fundos de vales mais úmidos que de-
quilômetros quadrados no alto Tietê, certamente se sembocariam no Tamanduateí e depois no Tietê,
deu por meio de confrontos entre vários grupos in- bem como ao norte nas colinas de além-Tietê, para
dígenas, especialmente porque se tratava de um sítio os lados de Santana e da Freguesia do Ó, domi-
cobiçado por sua ampla diversidade de ofertas. navam as matas tropicais de planalto. De repente,
Pois existia aqui esse sistema de colinas flo- porém, apareciam alguns entraves de cerrado.
restadas, entre as quais encaixavam-se inúmeros Existiam, e existem ainda, na região de Ibiúna, pe-
rios. O esquema de drenagem fazia com que os quenos trechos de cerrados, o mesmo acontecendo
rios descessem desde o alto do Espigão Central  em Nova Cumbica.
como se chama o grande divisor de águas entre o Nesses lugares, afloramentos de limonita
Pinheiros e Tietê e por cujo topo hoje corre a Ave- criaram solos que não podiam ser atravessados pelas
nida Paulista , em busca das várzeas do Tietê e raízes das árvores. Por isso, surgiram ali pequenas
do Pinheiros. Ao realizar essa jornada, os rios sec- brechas ocupadas por ilhotas de cerrado em meio à
cionavam os níveis intermediários das colinas. mata fechada. No passado, possivelmente existiram
A várzea se encontra a mais ou menos 718 outros setores de cerrado em lugares que hoje não
metros de altitude, enquanto os terraços elevam-se se pode mais identificar, pois foram recobertos pela
a mais ou menos 725 metros, erguendo-se até malha urbana de São Paulo.
Figura 3. Vegetação da área metropolitana de São Paulo em 1911, de acordo com o mapa feito por A. Usteri.
Reproduzido do livro A cidade de São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1958.

Tão logo os colonizadores portugueses che- costas de colinas; as ilhotas de campos cerrados em
garam ao reverso da Serra do Mar e, a seguir, trans- setores de solos rasos sobre crostas de limonita; as
puseram algumas pequenas serrinhas, atingindo a chamadas matas feias em restritos espaços arenosos
zona onde hoje está o ABC paulista, fundaram um fortemente hidratados; e os bosquetes de araucária
vilarejo e o batizaram de Santo André da Borda do cuja existência ficou registrada na toponímia re-
Campo. Esse nome tem significância muito grande. gional de São Paulo, aplicada sobretudo ao bairro
Que campo, afinal, era esse? Eram os campos var- de Pinheiros.
zeanos largos de alguns rios como o Tamanduateí Recentemente pudemos detectar, através
ou eram verdadeiros outros campos? Pois tenho ex- mapas antigos, a presença de outros bosquetes de
cursionado frequentemente na região que está entre pinheiros em áreas da zona leste da cidade, como
Paranapiacaba e São Caetano, e não acho sinais dos também ficaram as narrativas feitas por natura-
campos referidos pela toponímia portuguesa. listas do século XIX, registrando a existência de
De fato, se é razoavelmente fácil entender a araucárias no atual bairro do Cambuci. De todo
história vegetacional das florestas, é bem mais difícil modo, as áreas de legítimas manchas de campos
saber o que os primeiros colonizadores chamaram cerrados ainda remanescentes na região são aquelas
de campos. Mesmo sem mapear com precisão os que existem em Ibiúna, ocupando espaços de solos
ecossistemas regionais que se diferenciavam das arenosos pobres e de topografia colinosa suave.
florestas predominantes, pode-se reconhecer uma Para aqueles que vinham do litoral através
tipologia de formações campestres na região de das densas matas da Serra do Mar e dos morros
São Paulo e arredores. do reverso da serra, os primeiros descampados
Existiam aqui, basicamente, os campos de naturais estavam nas largas planícies do Rio Ta-
várzea semipantanosa entre diques marginais flo- manduateí: daí o nome Santo André da Borda do
restados e as barrancas de terraços fluviais ou en- Campo dado ao primeiro núcleo que os portu-
gueses estabeleceram no interior  não apenas no das áreas ocupadas por eles. Eles travavam contato
interior de São Paulo, mas do Brasil inteiro. cotidiano com o mundo natural, através da coleta,
E aqui quero abrir novo parêntese. A topo- da caça e da pesca e, por isso mesmo, o compreen-
nímia portuguesa tem significância, sim, embora diam muito mais e estavam muito mais próximos
muito pequena, se comparada com a dos indí- dele do que nós, que pretensamente nos chamamos
genas. Afinal, enquanto os nativos davam nomes de cientistas naturais.
para todas as árvores, morros, serras, rios e ria- Essa questão dos redutos de cerrados no
chos, como ainda podemos observar nos mapas e meio das matas, tão importante para os primór-
cartas topográficas de quase todo o Brasil, os por- dios da São Paulo dos Campos de Piratininga  ou
tugueses gostavam mesmo era de dar nomes de São Paulo do Campo, como a cidade era comu-
santos aos lugares. Vila dos Santos, São Vicente, mente chamada em tempos coloniais , me leva
Baía de Todos os Santos, São Paulo e assim por a falar sobre um fato um pouco mais complicado
diante. E essa nomenclatura não tem significância e de enorme relevância. Quando eu era estudante
paisagística alguma, não tem a significância eco- e andava ali pela várzea da Penha e arredores pro-
lógica que as palavras tupis possuem. curando entender, ainda que com muito pouca ca-
Inúmeras vezes fico tentando obter da to- pacidade analítica, a razão de ser de certos fatos
ponímia indígena indícios sobre o mosaico ori-  fatos que hoje conheço melhor, pois hoje sei que
ginal da vegetação de São Paulo, uma vez que isso existem helobiomas, sei o que é um psamobioma, e
não é possível com base na toponímia lusitana. naquele tempo esses conceitos nem sequer existiam
Por exemplo, se as várzeas de Piratininga eram , meus colegas e eu percorríamos aquela zona
percorridas por tamanduás, então com certeza tentando entender a dinâmica da planície aluvial,
existiam aqui algumas ilhotas de cerrado, porque que se alagava durante a estação das águas.
esses animais são típicos do cerrado. Só pode ser Um dia, parei em um daqueles buracos dos
essa a origem do nome Tamanduateí, ou rio do ta- quais se retirava areia, uma daquelas vastas cavas
manduá verdadeiro, como o chamavam os bravos de areia, e perguntei ao cidadão que estava traba-
de Tibiriçá e Caiubi. lhando ali: “Como é que tem areia aí embaixo e
E se havia peixe seco, peixe em posição seca, aqui em cima o solo é predominantemente argi-
nas várzeas desse mesmo Tamanduateí  pois loso?” Então o homem que fazia a cava me disse
esse é o significado do nome Piratininga (peixe algo fundamental. Ele respondeu assim:
seco ou, talvez, peixe no seco) , então aqui está um
sinal claro de que havia um ritmo climático bem Olhe, moço, aqui a gente destampa a várzea e em-
diferenciado na região de São Paulo. Sim, porque baixo pode encontrar areia, só que não é em toda parte que
depois de deixar a região do Ipiranga, o Taman- existem esses areais. Mas, se a gente continua sondando,
duateí chegava até o sopé da colina tradicional, no fim descobre que aqui houve grande concentração de
onde se ergueu o centro histórico, e ali o rio se areia.
desdobrava em três estreitos canaletes que trans-
bordavam durante a estação das chuvas. Pois essa areia deveria ser considerada um
Quando isso acontecia, as águas se emen- patrimônio natural, que, embora tenha sido bas-
davam, formando uma ampla várzea. Mas depois tante degradado, muito contribuiu para a cons-
vinha a seca do outro ano e então, em certo mo- trução da cidade. Com efeito, nenhuma cidade
mento imediatamente posterior ao período de es- teve tanta areia a seu favor quanto São Paulo, que
tiagem, sobretudo de agosto a fins de setembro, se beneficiou imensamente dos grandes areais que
com o recuo das águas, os peixes acabavam ficando estavam, e ainda estão, abaixo da várzea.
no seco por entre aqueles canais anastomosados  E eu percorria aquelas cavas ao lado do canal
como se chamam os canais interligados por meio aberto para a retificação do Rio Pinheiros disposto
de ramificações, canais esses que aparecem repre- a observar como eram suas camadas. Pois em cima
sentados em mapas e cartas antigas, em especial vinham as camadas argilo-arenosas finais, por
entre o Brás e a Glória. vezes muito lodosas, outras vezes misturadas com
Disso tudo resulta que a gente tem que res- silte, que é uma areia extremamente fina. E logo
peitar a toponímia dos que sabiam observar re- abaixo disso havia uma linha de pedras quebradas,
levo, vegetação e todos os fenômenos da natureza. as chamadas stone lines; e sob essa linha de pedras
Aliás, a sobrevivência dos indígenas dependia quebradas encontravam-se camadas de sete, dez,
muito de uma convivência íntima com a natureza quinze metros de areia.
Eram areias dispersas em canais do tipo que lhas geomorfologicamente contrárias. Tal lago era
os geólogos chamam de canais anastomosados, ou relativamente raso: teria cerca de oito metros de
seja, pequenos canais interligados, o que significa profundidade. Os sedimentos argilosos e as ca-
que ali houvera durante algum tempo uma dre- madas de argila e areia finais de seu antigo leito
nagem muito descontínua, repleta de canaletes, constituem o subsolo da maior parte da zona ur-
com as águas transportando muita areia. Já as li- bana da grande São Paulo.
nhas de pedras quebradas que se interpõem entre Mais tarde, dois rios, o Tietê e o Pinheiros,
as areias que estão embaixo e os aluviões argi- foram se encaixando nessa bacia sedimentar,
losos que estão em cima representam um hiato de através do processo que os geólogos chamam de
tempo seco, ocorrido provavelmente entre 23 mil epirogênese par sacate, ou seja, um lento soer-
e 12 mil anos antes do presente. Tal conhecimento guimento sincopado do platô, ocorrido ao longo
tornou-se fundamental para a compreensão da re- do período Quaternário  que se iniciou a 1,5
gião. milhão de anos atrás. Quando eventualmente os
Aquelas areias antigas só podiam ter sido rios pararam seu soerguimento contínuo, houve a
formadas porque nos morros e nas colinas de uma oportunidade para a formação de patamares in-
boa parte da bacia do alto Tietê houvera uma in- termediários, hoje encontrados entre 745 metros
tensa arenização e de lá saía uma grande quanti- e 760 metros, enquanto o interflúvio mais bem
dade de areia, que era transportada pelo rio desde preservado do Espigão Central situa-se entre 800,
suas cabeceiras e vinha se acumular nas planícies 810 a até 820 metros no máximo.
da época, que não eram tão largas quanto as de Portanto, os rios Tietê e Pinheiros for-
hoje, mas com certeza possuíam vasta espessura, maram plainos, sobretudo esse plaino de 745
que em alguns lugares chegava a vinte metros. metros a 760 metros que foi fundamental para
Em termos de espessura total, a bacia fluvio- o desenvolvimento urbano de São Paulo, tanto
lacustre de São Paulo estende-se desde o topo do no sítio histórico do triângulo quanto no sítio de
Espigão Central até uma base irregular delimitada além-Anhangabaú, que se prolonga desde a Praça
por antiquíssimas rochas cristalinas. Trata-se de Ramos e a Praça da República até o bairro da
uma bacia tão espessa que, somando as ocorrên- Luz.
cias das cimeiras no topo da atual Avenida Pau- As idades geológicas disso tudo  das vár-
lista com a maior depressão existente abaixo do zeas, das stone lines e dos grandes depósitos de
terreno  localizada sob o atual bairro da Mooca areia  nós podemos saber porque os areais con-
, atinge de 290 a 310 metros de espessura. servaram alguns troncos fósseis. Afinal, o fato de
Pois essa planície fluviolacustre formou-se existir muita areia na região não eliminava a exis-
ao longo de um processo que eu gostaria de ex- tência de florestas ripárias na borda das planícies
plicar para vocês. Estamos aqui reunidos em um do passado e, graças às árvores que tombaram
auditório descendente. Todos os rios que viessem daquelas matas beiradeiras existentes nos diques
do alto do auditório escorreriam normalmente, marginais durante o período predominante are-
formando o que se denomina de rios conse- noso, formaram-se troncos fósseis.
quentes. Às vezes ocorria, porém, que a tectônica Alguns desses troncos foram encontrados
era ao contrário. Caso a tectônica se desse sempre em uma cava aberta para retirada de areia no
através de falhas geologicamente conformes, os bairro do Butantã. Eles foram datados de 42,5
rios apenas formariam cachoeiras ou corredeiras mil antes do presente, enquanto as aluviões que
no lugar onde existissem essas falhas conformes. tamponaram as espessas réstias das velhas areias
Se, no entanto, as falhas em algum setor da região possuem apenas alguns milênios, entre três e
fossem geomorfologicamente contrárias, cons- quatro mil anos de idade. Entre a várzea e as
tituindo barreiras, haveria condição para que se areias, porém, encontra-se o já mencionado leito
formassem lagos. Foi justamente o que ocorreu na de pedras quebradas, as stone lines.
gênese da Bacia de São Paulo. A existência dessas stone lines indica que,
A imensa região que se estende desde Ca- depois do período de intensa arenização, sobre-
rapicuíba e das proximidades de Cotia até a zona veio um clima muito seco. Tal acentuação climá-
hoje ocupada pela cidade de São Paulo foi toda tica na direção da semiaridez fez com que as flo-
constituída pelos sedimentos argiloarenosos de restas se reduzissem aos setores de solos melhor
um grande lago que deve ter sido formado pela conservados na Serra da Cantareira e de outras
barreira do Tietê, em função da existência de fa- serras próximas sob a forma de ilhas de umidade.
Figura 4. Bacia de São Paulo: os rios Tietê e Pinheiros e seus vários afluentes, antes da retificação e das
canalizações em mapa reproduzido do livro A cidade de São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1958.
Ocorreu então a entrada de campestres de climas Curiosamente, quando se fizeram escavações
semiáridos frios e foram eles que ocasionaram para construção de túneis sob o Parque do Ibira-
o surgimento dos chãos pedregosos descobertos puera, encontraram-se ali algumas pepitas de ouro.
acima das massas de areia mais antigas. E então os jornais alardearam: “Pepitas de ouro en-
Esse clima seco ocorreu entre 23 mil e 12 contradas no Ibirapuera!” Ora, não era nada difícil
mil anos atrás, aproximadamente. Então, entre que isso acontecesse, uma vez que durante o pro-
12 mil e 10 mil anos até os nossos dias, houve cesso de formação da Bacia de São Paulo todos os
uma retropicalização que estendeu por grandes rios convergiam para o lago por centripetismo, ou
espaços o processo de argilitização responsável seja, por drenagem centrípeta.
pela formação das aluviões finais das várzeas mais Algumas dessas drenagens, alguns daqueles
recentes. Tal aluviação tamponou aquele chão pe- rios, saíam justamente do Jaraguá, em cujas fraldas
dregoso em muitos lugares e também escondeu as existia um pouco de ouro  aliás, as primeiras
grandes massas de areia situadas mais abaixo. amostras de ouro encontradas pelos portugueses no
Figura 5. O Tietê nos bons tempos: Remadores do Clube de Regatas em foto de Guilherme Gaensly,
editada em postal de 1909. Coleção de Rubens Fernandes Júnior.

Brasil, isso por volta de 1565, por obra dos bandei- de diversas torres de telefone e antenas de televisão,
rantes Afonso Sardinha e Brás Cubas. E minús- o que, de certa forma, descaracterizou o perfil na-
culas partículas de ouro existentes nas estruturas tural desse morrão quartzítico.
regionais do Jaraguá chegaram até o centro do lago O Jaraguá se ergue a noroeste da terminação
por sedimentação fluvial e lá foram tamponadas. da Serra da Cantareira, cujo terminal está na Serra
Era muito pouco ouro, mas é interessante que ele do Ajoá. Pois justamente entre a Serra do Ajoá e
exista porque o fato tem sua significância tanto ge- a Serra da Cantareira existe uma depressão de co-
ológica quanto histórica. linas e morros por onde passaram os trilhos da es-
E falando do Jaraguá, cabem algumas pala- trada de ferro Santos-Jundiaí, a primeira da vasta
vras sobre essa montanha mágica da região de São rede ferroviária que viria a cortar e a enriquecer o
Paulo, tão diferente da Serra da Cantareira com Estado de São Paulo. E é relevante observar que
suas formas semimamelonizadas e suas escarpas a Santos-Jundiaí  obra do barão de Mauá e de
pouco declivosas. Pois o Jaraguá, localizado a no- seus astuciosos sócios ingleses, na época revelado-
roeste da Grande São Paulo, salientando-se acima ramente conhecida como a Inglesa  copiou por
dos níveis de colinas e morros baixos predomi- inteiro o eixo do Rio Tamanduateí.
nantes no seu entorno, constitui uma das feições A ferrovia saía do porto de Santos e subia
geomorficamente diferentes e de alto valor referen- até Paranapiacaba pelo vale do Rio Moji até as
cial da região. nascentes do Tamanduateí, seguindo exatamente
A partir do fim dos morros graníticos ou a trilha utilizada desde tempos pré-cabralinos
xistosos que se decompuseram muito  e deram pelos indígenas para descer do planalto ao litoral
origem aos solos que se transformaram depois em nos períodos de muito frio em busca dos peixes
oxissolos tropicais , emergia de repente aquele e moluscos que os ajudavam a sobreviver no in-
setor de quartzito, que é a rocha mais dura exis- verno, sempre com muito receio dos grupos que já
tente em todos os setores de terras emersas. Essa se achavam instalados nas pontas de praia, em geral
pequena lente de quartzito deu origem ao morro nas proximidades dos lugares onde desaguavam as
extremamente rochoso que é símbolo da cidade de águas doces dos riachos que desciam a serra nesse
São Paulo. Por sua altitude e isolamento, o Pico do paraíso terrestre que é a zona praiana do litoral
Jaraguá acabou servindo de base para a instalação paulista, do centro para o norte.
Figura 5. Montanha mágica: o Pico do Jaraguá no traço de Otto Bendics. Vinheta reproduzida do livro
A cidade de São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1958.

Pois o eixo do Rio Tamanduateí, historica- paulistanas, embora não tenham conseguido ocupar
mente conhecido como Caminho dos Tupiniquins, os lugares onde o solo era muito arenoso, como
serviu para os engenheiros ingleses projetarem as em Ibiúna e em Nova Cumbica, e provavelmente
linhas de trilhos sobre terrenos mais firmes do que também nos altos do Sumarezinho, onde também
as várzeas, pois, ao estudarem a região, eles desco- afloram as limonitas, que ainda podiam ser vistas
briram que o Vale do Tamanduateí possuía um ter- antes da urbanização nos próprios talhados das
raço lateral assimétrico, em muitos casos mantido ruas que sobem do vale para o Sumarezinho.
por cascalheiras, fruto de uma época climática bem Ao se aproveitar do terraço da margem di-
mais antiga do que os depósitos das planícies. reita do Vale do Tamanduateí, os trilhos da Santos-
Com efeito, o terraço do Tamanduateí foi Jundiaí acabaram passando relativamente distantes
formado por cascalhos arredondados originários da colina histórica, no topo da qual uma diminuta
de uma época climática muito anterior ao período São Paulo se assentava em forma de cidadela. A
das areias que estão embaixo das várzeas e das assimetria dos terraços fluviais do Tamanduateí
stone lines. Esses seixos representam um período viria a se tornar, assim, um fato notável na história
de grande torrencialidade no passado, dentro de da cidade, já que entre a base da encosta da colina
um clima com duas estações bem marcadas na histórica e as bordas do terraço da margem direita
qual havia muitos meses secos, seguidos de poucos do Tamanduateí existia uma ampla área ocupada
meses chuvosos, mas com uma torrencialidade tal por várzeas inundáveis.
que era capaz de rolar os pequenos calhaus trazidos Como aquela era uma faixa sujeita a fortes
de áreas cristalinas e arredondá-los. inundações, decidiu-se retificar centralizadamente
Por isso o terraço lateral do Tamanduateí o eixo do canal do Tamanduateí, cujo curso, justo
tem outra significância, outra história e outra for- ali, no sopé da colina, desenhava suas caprichosas
mação. Enquanto a várzea tem poucos milhares e famosas sete voltas. O processo de retificação
de anos  entre três e quatro mil anos, no máximo acabou resultando no surgimento de um espaço
, as stone lines surgiram entre 22 mil e 10 mil novo para a expansão da cidade, na região onde
anos e as areias há cerca de 42 mil anos, o terraço surgiria a Rua 25 de Março e o Mercado Muni-
deve ter se formado há mais de 110 mil anos. cipal, e onde também foi projetado e implantado o
E é preciso conhecer tudo isso para saber os belo Parque D. Pedro II, hoje bastante prejudicado
inúmeros avanços e recuos da vegetação até que pela construção de viadutos entrecruzados e rele-
um dia, graças a novas mudanças climáticas e à gado a um injustificável abandono.
retropicalização, as matas venceram os cerrados e Em 1876, quando a ferrovia Santos-Jundiaí
tornaram a se instalar na maior parte das colinas foi completada, a cidade de São Paulo se restringia
Figura 6. No topo da serra: mapa da capitania de São Vicente, de autor anônimo e data desconhecida,
retratando a pequena vila de São Paulo no alto do Planalto de Piratininga.

fundamentalmente à colina histórica, o estratégico plantação de sua igreja e sua pequena escola refletia
pontal colinoso de bordos escarpados situado entre a tradição da Europa cristã de localizar igrejas em
o Vale do Tamanduateí e o Vale do Anhangabaú. pontos de alta visibilidade para as populações do
E aquele era um espaço relativamente diminuto: entorno e, no caso de São Paulo, as igrejas insta-
desde o Largo de São Francisco até o Largo de São ladas no triângulo seguiam essa estratégia trazida
Bento, onde o pontal estreitava-se e era quase ter- de além-mar. Mas cabe observar que, enquanto os
minal, estendia-se, no sentido sul-norte, um eixo de jesuítas escolheram a borda superior da escarpa
aproximadamente 1,5 mil metros, ao passo que da colinosa, os tupis-guaranis haviam escolhido, bem
esplanada onde hoje está a Praça João Mendes até antes, outros setores do vale.
o Largo de São Francisco, no sentido leste-oeste, Não estou querendo dizer que esses fatos
a colina tinha entre 600 e 700 metros de largura, sejam de ordem obrigatória para o conhecimento
aproximadamente. dos geólogos ou cientistas naturais. Se os men-
Ao crescer por sobre esse plaino, a cidade ad- cionei é apenas para ressaltar que, além de uma
quiriu a forma de uma cruz alongada. Mais tarde, as história geológica muito especial, a região de São
ruas que surgiram nos bordos do pontal acabaram Paulo tem também uma história humana muito
por dar à estrutura do centro velho um típico tra- especial.
çado triangular, daí, é claro, o nome triângulo his- Sim, porque algum tempo depois da for-
tórico. Cabe salientar que a cidade nasceu toda vol- mação das stone lines, os indígenas vieram ocupar
tada para leste, para a várzea do Tamanduateí, a esse espaço, instalando-se na banda leste da colina
cavaleiro das bordas do pontal colinoso  fato bem da Luz, entre o terraço e o Rio Tamanduateí, pró-
representado pela implantação do Pátio do Colégio ximo à várzea e à linha d’água, na primeira terra
e da igrejinha dos jesuítas, pela igreja do Carmo e firme, tendo água para cozinhar, para beber, para
pelo eixo atual da Rua Boa Vista, nome de grande banhar-se e peixe para pescar. E não há dúvida de
significância, já que dali se obtinha um vasto pa- que essa pré-história faz parte da nossa história,
norama do Vale do Tamanduateí, descortinando-se embora a maioria de nós a conheça tão pouco.
o amplo cenário das planícies, colinas e distantes Antes de encerrar o que deveria ter sido
serranias florestadas, desde o Cambuci até a Can- apenas um passeio informal e muito simplificado
tareira. pela formação do solo de Piratininga, mas que teve
O sítio escolhido pelos jesuítas para a im- seus desvios de rota, gostaria de comentar o con-
teúdo de um mapa altamente revelador, cujo autor sábado ou domingo o dia de ir para a cidade ouvir
e data infelizmente são desconhecidos, mas que missa e vender e comprar mercadorias.
apresenta uma série de fatos históricos bastante Por último, no alto do desenho, há um lugar
significativos, vários dos quais mencionei aqui. em que está escrito: Pinheiros. Havia, como po-
Esse mapa foi reproduzido no calendário demos ver, bosquetes de pinheiros no Cambuci e
de 2000, publicado pela Imesp, a Imprensa Ofi- mais bosquetes na outra banda do Espigão Cen-
cial do Estado de São Paulo. Ele apresenta uma tral, na região ainda hoje chamada de Pinheiros.
visão da nascente vila de São Paulo, cerca de 60 Também havia pinheiros emergentes dentro da
ou 80 anos depois de sua fundação, entre 1610 e mata do Caaguaçu, que é a grande mata tropical
1640  durante, portanto, o período da chamada que se alastrava pelo topo do Espigão Central das
União Ibérica, quando Portugal e Espanha esti- colinas paulistanas, mas ali os pinheiros eram emer-
veram unidos sob a mesma coroa. Tanto é que a gentes, ou seja, saíam do dossel das florestas como
folhinha reproduz um documento encontrado em espécies emergentes. Os outros, especialmente no
arquivos espanhóis. Trata-se de uma imagem de aldeamento de Pinheiros, formavam bosquetes ho-
beleza inusitada e que explica muitas coisas. mogêneos, quebrando a continuidade total das flo-
Ao contrário da maioria dos mapas portu- restas por razões que não sabemos bem.
gueses, que se centram na zona costeira, mostrando Um documento desse tipo nos obriga a pensar
com detalhes a Ilha de São Vicente, a Ilha de Santo nos mapas antigos e na sua importância para uma
Amaro e o Canal da Bertioga, esse desenho pratica- compreensão mais plena das nossas cidades. Os
mente despreza o litoral para se concentrar no que mapas revelam a cidade em função dos fatores geo-
havia depois da barreira da Serra do Mar. Podemos gráficos, geoecológicos e históricos que propiciaram
ver o exato local onde foi colocada uma pequena seu desenvolvimento. Em 1954, quando da come-
cruz, justo no topo da serra, em Paranapiacaba, e é moração dos 400 anos da fundação de São Paulo,
fácil perceber que ela fazia um eixo com uma cruz Sérgio Milliet, um intelectual de primeira grandeza,
da Ordem de Cristo, fincada na Praça da Liberdade, realizou um trabalho extraordinariamente impor-
bem no coração de São Paulo. Esse foi o eixo seguido tante no qual reuniu todos os mapas de São Paulo
também pela estrada de ferro Santos-Jundiaí. de todos os tempos. Só que este não aparece lá, pois
E, então, ali adiante podemos ver a cidade- com certeza não chegou às mãos dele.
zinha tal como ela teria sido. Para minha surpresa, O trabalho de Milliet é hoje muito raro. Foi
o lugar onde hoje está o Largo de São Francisco, no publicado pela Comissão do IV Centenário e, em-
qual mais tarde foi construída a Faculdade de Di- bora seja basicamente uma antologia cartográfica,
reito, uma das mais importantes da Universidade deveria ser considerado um trabalho histórico da
de São Paulo e de onde saíram vários presidentes maior importância, pois a cartografia de muitas
do Brasil, era, naquela época, vejam só, um curral. épocas representa exatamente a projeção dos fatos
Percebe-se também que a cidade tinha vá- de um espaço ecológico através de fatos antrópicos
rias igrejas, desde a igrejinha de São Bento, onde os mais diversos. Então, 50 anos depois da publi-
se recolhiam os doentes, até a igreja do Pátio do cação desses mapas, sugiro que eles voltem a ser
Colégio, onde a cidade nasceu, além da igreja do estudados e vou trabalhar para que alguém reedite
Carmo e da Sé. O mais relevante, porém, era que o admirável trabalho de Milliet  parece incrível,
tudo estava, como já mencionei, voltado para leste: aliás, que tal reedição não tenha sido incluída no
ou seja, para a várzea do Tamanduateí, para o Brás, bojo da comemoração dos 450 anos de São Paulo.
para a Mooca, para o Cambuci. Seria importantíssimo republicar aqueles
Havia ainda uma série de cercadinhos, e esses mapas, acrescentando os produzidos nos últimos 50
já mostram uma necessidade de defesa. Podemos ver anos, até o momento de incluir as belíssimas ima-
também cavaleiros marchando da zona rural para a gens de satélite feitas no Brasil. Sim, porque hoje
colina histórica, o velho triângulo de São Paulo. Al- podemos ver o Brasil inteiro através de fotos de sa-
guns deles estão acompanhados de outras pessoas, télite, graças a um projeto da Embrapa que retratou
e esses deveriam ser peões, já que iam a pé, os coi- em quadrículas de diferentes escalas  desde 1 por
tadinhos. O desenho mostra também que existiam 25 mil até 1 por 250 mil  todo o país, de modo
lavouras ao redor da cidade, provavelmente culturas que podemos estudar qualquer pequeno setor e os
de mandioca e de frutas. E por que esse pessoal ia sítios das cidades do Brasil inteiro. Para o sítio de
para a cidade? Possivelmente por uma razão muito São Paulo, eu e meu colega Reinaldo Corrêa da
simples, que me lembro da minha cidade natal: era Costa tivemos que arranjar 24 lâminas para poder
fazer a montagem do conjunto completo da área na qual cheguei em 1940 para meus primeiros es-
metropolitana. Então de fato há muito o que fazer tudos de geografia e de história.
e muito o que estudar nesta imensa cidade, e vale Na verdade, vim por causa da história e se
a pena trabalhar. acabei geógrafo foi apenas porque era muito pobre.
Na época em que vivemos, temos que pensar Como não podia comprar livros e sabia que não
no passado e pensar no futuro, e para pensar o fu- poderia enfrentar a grande carga de leitura que o
turo é preciso ter mais universidades e cursos de estudo da história exige, tornei-me geógrafo, de-
previsão de impacto, pois não é possível falar sobre dicando boa parte de minha vida e de meu estudo
o metabolismo urbano de uma metróple dinâmica à minha cidade de adoção  e se não sou hoje ci-
e complexa como São Paulo sem a metodologia da dadão paulistano é só porque, enquanto estiverem
previsão de impactos. Acredito que estamos pre- na Câmara de Vereadores pessoas que foram da
cisando fazer mais coisas, trabalhar mais e sermos ditadura militar, não vou aceitar o título que tantas
mais criativos a favor de nosso país e a favor dessa vezes já me foi gentilmente oferecido.
cidade que completa 450 anos, tão diferente daquela

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