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CAPITULO II

Objeto sociológico e problema social


por Remi L enoir

M uitas vezes, a sociologia é assimilada às disciplinas cujo objeto é definido


segundo as categorias da prática social - por exemplo, a ergonomia ou a
criminologia. É verdade que a história das origens da sociologia tende a
credenciar essa representação do sociólogo como especialista dos problemas
“sociais” do m omento. Com efeito, a sociologia apareceu em meados do
século X IX e desenvolveu-se na sua segunda metade, isto é, no m om ento
em que as lutas entre as classes sociais exacerbaram-se consideravelmente
com a irrupção de um proletariado urbano, associada ao desenvolvimento
da industrialização - o que se designava por “pauperism o”1.
Desde o início do século XIX, a ciência econômica estava constituída
como tal e a atividade propriamente econômica encontrava-se disso­
ciada - tanto para os teóricos (professores, filantropos, políticos),
quanto para os homens de ação (empresários industriais ou financis­
tas) - dos outros setores da atividade social. Com efeito, é na primeira
metade desse século que se estabelece a oposição entre a economia
“política” e a economia “social”: a primeira limitando seu interesse
ao “valor venal e capital de um operário”, segundo a expressão de A.
de Villeneuve Bargemont2; e a segunda, às condições da vida operária.
Tal distinção não é somente o produto de uma divisão do trabalho
intelectual, mas resulta, no essencial, de um conflito político que, ao
longo de todo o século X IX, não deixou de opor - principalmente em
tudo o que diz respeito ao que, então, começa a ser designado por

1. H. Hatzfeld (1971),£)« Paupérisme à la Sécuriié sociale, Paris, A. Colin.


2. J.-B. Duroselle (1951), Les Débuts du catholicisme social ert France (J822-1870), Paris, PUF, p. 230.

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“problemas sociais” - os representantes da burguesia industrial aos
da aristocracia conservadora. Ao denunciar os efeitos da indus­
trialização, as frações mais conservadoras da aristocracia contestavam
a legitimidade dessa “nova feudalidade”, baseada na produção de
bens manufaturados e que, nesse momento, estava conseguindo ter
acesso ao poder político.
Essa dissociação da vida social em dois setores e a autonomização
conceituai e teórica (como, aliás, é testemunhado pelo rápido desen­
volvimento da filosofia utilitarista na França e Grã-Bretanha) do que
será designado por “gestão das populações”* é, sem dúvida, um dos
fatores que facilitou a emergência da sociologia como disciplina
distinta de outras ciências sociais, em particular, da economia. Na
maior parte das teorias sociológicas dessa época, encontramos o eco
de tal divisão, simultaneamente, política e intelectual, sob a forma de
pares de oposição entre dois tipos de sociedade (“comunidade/socie­
dade”, sociedade com estatuto/sem estatuto, etc.).
Alguns sociólogos tão diferentes entre si como Ferdinand Tõnnies,
Georg Simmel, Max Weber, etc. tiveram consciência do que Émile
Durkheim designava por “abalo” das sociedades européias no século
X IX e tomaram isso como objeto, mais ou menos direto, de seus
trabalhos. Em particular, a maior parte das obras de Durkheim visam
servir de remédio à crise social que grassava sob seus olhos, como é
confirmado pelo exemplo do último capítulo de um de seus livros mais
conhecidos, Le Suicide (1897), com um título bastante explícito (“Con-
seqüências práticas”), ou a distinção entre “normal” e “patológico” que
é desenvolvida em Les règles de la méthode sociologique (1895). Um grande
número de pesquisas ditas “sociológicas”, empreendidas desde então,
incidem sobre “problemas sociais”, isto é, sobre o que é constituído em
determinado momento como uma “crise” do sistema social, quer se trate
da “delinqüência”, “droga”, situação das “pessoas idosas”, “imigração”,
“desemprego”, beneficiários da “renda mínima”, etc.

Essa definição, socialm ente constituída, do objeto da ciência sociológi­


ca encontra-se, além disso, am plam ente reforçada pela utilização dos soció­
logos pelas diferentes instituições (adm inistrações, coletividades locais,
empresas, organism os sociais, etc.). Ficam na expectativa de que eles aju­
dem a resolver um “problem a”, por definição, “social”; ora, esse term o
remete, pelo m enos, a duas acepções. A prim eira, herdada da “economia 3

3. M. Foucault (1976), La Volortté de savoir, Paris, Gallimard.

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social” como ciência auxiliar e ancilar da economia política, abrange o
campo da “ajuda social” (pobres, casos “sociais”, m arginais, etc.), da “segu­
ridade social” (vida fora do trabalho, em particular, a vida de família e a das
pessoas idosas, etc.), em sum a, dos problem as enfrentados, profis­
sionalm ente, pelos trabalhadores “da área social” (assistentes “sociais”,
educadores especializados, etc.) e para a solução dos quais são elaboradas
políticas e leis “sociais”. A segunda acepção provém de um outro sentido
que o term o já tinha no século XIX: próxim o do term o “socialismo”,
“questão social”, ou “pesquisa social”, encontra-se atualm ente nas expres­
sões como “parceiros sociais”, “direito social”, “conflito social”, etc. Esse
term o designa, então, tudo o que diz respeito às relações entre grupos
“sociais”, em particular, as relações entre patronato e “assalariados”, isto é,
as condições de trabalho no âmago do que é designado por “m undo do
trabalho”.
A prim eira dificuldade encontrada pelo sociólogo deve-se ao fato de
estar diante das representações preestabelecidas de seu objeto de estudo que
induzem a m aneira de apreendê-lo e, por isso mesmo, defini-lo e concebê-lo.
O ponto de partida de qualquer pesquisa é constituído por representações
que, como escrevia Ém ile D urkheim em Les règles de la méthode sociologique,
são como “um véu que se interpõe entre as coisas e nós e acaba por dissimulá-
las tanto m elhor quanto mais transparente julgamos ser tal véu”4. Trata-se
do que ele designava por “pré-noções” que podem tom ar a forma de
“imagens sensíveis” ou “conceitos grosseiram ente formados”; com efeito,
“a reflexão é anterior à ciência que se lim ita a utilizá-la de forma mais
m etódica”5. No entanto, Émile D urkheim indica com precisão que não
basta afastar, pura e sim plesm ente, as “falsas evidências” e o “jugo das
categorias empíricas que, m uitas vezes, hábitos m uito arraigados acabam
por tornar tirânicas”6. Gom efeito, essas pré-noções encontram sua força em
um fundam ento e função social: “Produzidas pela experiência banal, [as
pré-noções] têm como objeto, antes de tudo, harm onizar nossas ações com
o m undo que nos cerca; são formadas pela e para a prática”, o que lhes dá
essa espécie de “ajustam ento prático”7 que dificulta ainda mais a tarefa de
nos libertar delas na m edida em que se tornam banais, evidentes, legítimas.

4. É. Durkheim (1895), Les Règles de la méthode sociologique, Paris, Alcan, p. 16; nova ed., Paris, PUF (col.
“Quadrige”), 1995; ou ainda, Paris, Flammarion (col. “Charaps”), 1988.
S.Ibid.,p. 15.
6 .Ibid.3p. 32.
l.Ihid .,p . 16.

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Entre essas representações, a que aparece sob a forma de um “problem a
social” constitui, talvez, um dos obstáculos mais difíceis de ser superado.
Com efeito, os “problem as sociais” são instituídos em todos os instrum entos
que participam da formação da visão corrente do m undo social, quer se trate
dos organismos e regulamentações que visam encontrar um a solução para
tais problemas, ou das categorias de percepção e pensam ento que lhes
correspondem. Isso é tão verdadeiro que um a das particularidades dos
problemas sociais é que, em geral, estes se encarnam , de forma bastante
realista, nas “populações” que apresentam “problem as” a serem soluciona­
dos. M uitas vezes, tais populações chegam a ser determ inadas segundo
critérios “fisiológicos” (“m ulheres”, “jovens”, “velhos”, “excepcionais”,
certas categorias de doentes ou deficientes físicos, etc,)..
Por exemplo, um a noção como a de acidente de trabalho é, atualm ente,
uma categoria corrente. Elaborada e codificada juridicam ente, encontra-se
na origem da atividade de numerosos organismos e serviços especializados
na avaliação das taxas de incapacidade ou do m ontante das indenizações,
etc., assim como para a prevenção desse tipo de acidente e a defesa dos
interesses das vítimas. Ora, tal noção, que se tom ou tão evidente em nossos
dias, foi o produto de um verdadeiro “trabalho social” que culm inou na
criação e difusão de um a nova categoria de percepção do m undo social que
não se reduz, unicam ente, em considerá-lo sob o ponto de vista jurídico.
Por trás da substituição da noção moral de “culpa” pela categoria estatística
de “ risco”, está implicada uma verdadeira concepção da justiça social, uma
definição das relações sociais no seio da empresa, uma relação com o
trabalho e, mais amplam ente, uma atitude diante da vida. Desde então, a
pesquisa da origem do acidente desloca-se da imputação a culpas “pessoais”
para efeitos do meio ambiente, condições de trabalho, etc., correndo o risco,
embora de forma distorcida, de acabar incrim inando sempre a própria
vítima. Em suma, a m udança verifica-se na representação das causas do
acidente: não será que a definição do que é designado por acidente de
trabalho prej ulga a respeito da natureza de sua causa? De modo que a análise
das causas dos acidentes de trabalho corre o risco de se assemelhar a um
círculo.
Com efeito, a maior parte desses estudos estabelecem que as catego­
rias sociais, cuja taxa de acidentes de trabalho é a mais elevada, são
as que se encontram menos protegidas contra os riscos e vicissitudes
da condição operária: trabalhadores imigrantes, operários inexpe­
rientes, temporários, etc. No entanto, não será que tal “descoberta”
se deve ao fato de que essas mesmas categorias sociais são, precisa­
mente, as escolhidas para os postos de trabalho mais perigosos,

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colocadas nas oficinas mais imundas, nos setores mais “arriscados”?
Não será também porque os especialistas das “relações sociais no seio
da empresa” e os diretores dos recursos humanos consideram as
vítimas dos acidentes de trabalho como “desajeitados”, “impruden­
tes” e “indisciplinados” que os estudos “científicos” têm “encontra­
do”, entre os acidentados, “menos plasticidade funcional”, menos
“inteligência concreta”, mais “gestos fatais”, mais manifestações de
“rebelião contra a autoridade”?8

As pesquisas sobre as causas do suicídio são também um bom exemplo


da incidência e peso das definições instituídas que comandam as condições
de observação e, ao mesmo tem po, as explicações dos fenômenos estudados
pelos sociólogos. Com efeito, foi possível m ostrar que as estatísticas sobre
as causas do suicídio são, em parte, o resultado das representações elabora­
das pelos especialistas (médicos, psicólogos, sociólogos, policiais, etc.). Os
indícios utilizados por estes últim os implicam necessariamente uma teoria
das causas do suicídio. D e fato, existem casos em que as causas de uma m orte
acidental não são assim tão evidentes: será que a vítima escorregou, ou
atirou-se deliberadam ente debaixo do trem? De modo que os especialistas
são levados a utilizar critérios que perm item estatuir se um a m orte resulta
de um suicídio ou não. Assim, a análise deve começar pelo estudo do
processo de elaboração dessas categorias que classificam determ inada m orte
como suicídio, porque “as diferentes teorias do suicídio constituem , ao
mesmo tempo - pelo menos parcialm ente - as causas do que elas explicam”9
(cf. cap. III).

1. R E A LID A D E P R É -C O N S T R U ÍD A E C O N ST R U Ç Ã O D O
O B JE T O SO C IO L Ó G IC O
H erbert Blumer m ostrou que era inútil definir os “problem as sociais”
através de uma natureza que lhes fosse peculiar, por meio de um a população
que apresentasse características específicas10. O que é constituído como
“problemas sociais” varia segundo as épocas e as regiões e pode desaparecer
como tal, precisamente no m omento em que subsistem os fenômenos desig­

8. R. Lenoir(1980), “La notion d’accident du travail: un enjcu de linces”, in Actes de la recherche en Sciences
sociales, n° 32-33, março-abril de 1980, p. 77-88.

9. D. Merllié (1987), “Le suicide et ses scatistiques: Durkheim et sa postérité”, in Revue philosophique, CXII,
n° 3, julho-serembro de 1987, p. 303-325.
10. H. Blumer (1971), “Social problems as collective behavior”, in Social Problems, XVIII, n° 3 (1971), p.
298-306.

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nados por eles. É o caso, por exemplo, da pobreza que, nos Estados Unidos,
foi um grave problem a “social” durante os anos 30, desapareceu na década
de 1940-1950 e voltou a aparecer nos anos 80; ou ainda o caso do racismo
que só se transform ou em um “problem a social” nos anos 60.
Além disso, o mesmo problem a “social” pode ser constituído por vários
motivos. Tal é o caso da “velhice” que rem ete a problem as de natureza
bastante diferente: a sorte das pessoas idosas mais desprovidas (a "pobreza”
ou a “dependência”), o “desequilíbrio” demográfico (o “envelhecim ento”
da população) e, enfim , o alongam ento da duração da vida biológica e seus
efeitos sobre as relações entre gerações, tanto na família e no am biente de
trabalho, quanto no funcionam ento dos sistemas de aposentadoria. Ora, a
“velhice” é um a categoria aparentem ente natural e evidente. É a razão pela
qual um a pesquisa sobre a constituição da “velhice” como um problem a
social enfrenta todos os obstáculos nos quais o sociólogo esbarra, habitual­
m ente, para construir o objeto de sua pesquisa11.

1.1. Uma categoria “natural”: a idade


Os princípios de classificação do m undo social, até mesmo os mais
naturais, referem-se sempre a fundam entos sociais. Sem falar de “ raça” - é
conhecida a implicação social dessa noção e das categorias utilizadas por
ela12- os estigmas físicos e, de forma geral, as particularidades biológicas,
como o sexo e a idade, servem, quase sempre, de critérios de classificação
dos indivíduos no espaço social. Em geral, a elaboração de tais critérios está
associada ao aparecim ento de insntuições e agentes especializados que
encontram nessas definições a força-motriz e o fundam ento de sua ativida­
de. Por conseguinte, esses princípios de classificação não têm sua origem
na “natureza”, mas em um trabalho social de produção das populações
elaborado, segundo critérios juridicam ente constituídos, por diferentes
instituições - as mais conhecidas e estudadas são o sistema escolar, o sistema
m édico, os sistemas de proteção social, o mercado do trabalho, etc.
M aurice Halbwachs ficava im pressionado pelo fato da idade ser u tili­
zada como princípio de formação de grupos com um a certa “consistência
social”. Segundo este autor, a idade não é um dado natural, em bora possa

11. F Bourdelais (1993), Le Nouvel âge de la meillesse: histoire du vieillissement de la population, Paris, Odile
Jacob.
12. C. Lévi-Strauss (1973), “Racc et histoire”, in C. Lévi-Strauss,/!«r/iropo^fw structurale / / , Paris, Plon, cap.
XVIII.

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servir de instrum ento para avaliar a evolução biológica dos indivíduos,
assim como a dos anim ais: enquanto instrum ento de medição, não poderia
dar corpo àquilo que mede. Ainda mais: a idade não é um dado imediato
da consciência universal. “Um indivíduo hum ano isolado, privado de
qualquer relação com seus semelhantes e que não se apoiasse na experiência
social, nem chegaria a saber que deve m orrer [...]. É, portanto, um a noção
social, estabelecida por comparação com os diversos m em bros do grupo”13.
A própria noção de idade - a que é designada em núm ero de anos - é o
produto de determ inada prática social: m edida abstrata cujo grau de preci­
são - reconhecido em certas sociedades - é explicado sobretudo pelas
necessidades da prática adm inistrativa (na m edida em que já não é suficien­
te a identificação dos indivíduos, o nome e o lugar de moradia). Como
critério de classificação, a idade cronológica apareceu na França, no século
XVI, no m om ento da generalização da inscrição do nascim ento nos regis­
tros paroquiais14.
Podemos lembrar que as primeiras categorizações das populações
segundo a idade dependem, de forma bastante explícita, das prerro­
gativas estatais, como é testemunhado pelos reagrupamentos opera­
dos pelos primeiros recenseamentos. Assim, o de Treviso, efetuado
em 1384, distingue duas categorias: os homens com idade superior
ou inferior a catorze anos, sendo que “religiosos e criados são conta­
dos à parte” porque estes ú ltim os-assim como as crianças com menos
de catorze anos e as mulheres excluídas, durante muito tempo, de
qualquer recenseamento - não pagando impostos e andando desar­
mados, não eram “bens a serem recenseados”. Da mesma forma, os
primeiros “levantamentos” venezianos distinguem apenas duas cate­
gorias de pessoas: a “útil”, isto é, a população masculina de 15 a 60
anos e a “inútil” que reagrupa os demais15.
categorias
nominais Se a idade cronológica e as divisões que, por seu interm édio, se tornam
possíveis podem ser consideradas noções sociais, as categorias que ela
perm ite distinguir não chegam a formar grupos sociais. Com efeito, as
divisões “aritm éticas” da escala das idades podem vir a ser categorias
“nom inais” (os “velhos”, os “jovens”, os “adolescentes”) sem désignar

13. M. Halbwachs (1972), “La statisiique en sociologie”, 1935, reproduzido irt M. Halbwachs, Classes sociales
et morphologiej Paris, Ed. de Minuii, p. 329-348.
14. P Ariès (1960), LEnfant etlavie familiale sous VAncieti Régimey Paris, Le Seuil (col. “Poiim ”), 1975.
15. R. Molls (1954), Jntroduction à la démographie des villes d’Europe des XIV* et X V IIf siècles, Duculot,
Gembloux, to m o l,p . 170-171.

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grupos sociais definidos nesses termos. M auricé Halbwachs observa, em
prim eiro lugar, que tais grupos não podem ter consistência já que, por
definição, os indivíduos lim itam-se a passar por essas fases, a não ser que o
intervalo seja consideravelmente ampliado; nesse caso, tais grupos não
poderíam , a rigor, ser definidos em term os de idade. Sobretudo, como
escreve esse autor, “segundo a época, os costumes, as instituições e a própria
composição da população, damos mais ou menos im portância a essa carac­
terística; sendo assim, a juventude, a idade adulta e a velhice são definidas
pela opinião de forma bastante diferente”. E acrescenta: “Outrora, um
europeu de 50 anos julgava-se jovem para iniciar sua vida de negócios na
América, enquanto em nossos países as pessoas com essa idade retiravam-se
do comércio ou se aposentavam”16.
Ao comparar a pirâmide das idades das populações francesas e ale­
mãs, entre as duas guerras - depois de ter verificado que os dados
numéricos mostravam, claramente, diferenças que diziam respeito à
representação das faixas etárias nos dois países (nessa época, havia
um número maior de “jovens” na Alemanha do que na França) -
Maurice Halbwachs se pergunta qual é o alcance dessa comparação
do ponto de vista sociológico. “Seria necessário, indica ele com precisão,
saber se o limite estabelecido, pela opinião pública, para a separação
entre idade adulta e juventude, entre velhice e idade adulta, é o
mesmo nos dois países. Podemos duvidar porque nas regiões onde
existe um grande número de idosos, estes consideram-se talvez mais
jovens do que sua idade, e nas regiões onde existem mais jovens -
como um grande número deles ocupam ou aprestam-se a ocupar
situações reservadas, alhures, a adultos - talvez se considerem e são
considerados como mais velhos do que são realmente, ao ser tida em
conta sua idade cronológica.
“Inversamente, se levarmos em consideração que, por um lado, um
desses países fica mais ao norte enquanto o outro se situa mais ao sul,
e, por outro, têm uma composição étnica diferente, pode acontecer
que os homens sejam mais precoces, por exemplo, na França: então,
as pessoas tornar-se-iam aí adultas mais cedo; entrariam também,
mais cedo, na categoria dos idosos, de tal modo que a população
francesa seria ainda mais idosa e a população alemã ainda mais jovem
do que podería resultar dessas configurações. Enfim, como não levar
em consideração a diversidade das classes sociais, profissões, meios
urbanos e rurais? Será que, em determinado país, a pirâmide das

16. M. Halbwachs (1972), op. c i t p. 334.


idades é a mesma na cidade e na zona rural, na indústria, comércio,
agricultura e profissões liberais, nas classes abastadas e nas classes
pobres?
“Observemos que, nos Estados Unidos, a proporção dos adultos é
praticamente tão elevada quanto na França, não porque, há bastante
tempo, o índice da natalidade esteja também em baixa nesse país, mas
em decorrência do afluxo dos imigrantes. Seria necessário identificar
essa diversidade de condições. O estudo estatístico deveria incidir
sobre esses grupos diferentes. De tudo isso, as pirâmides das idades
dão-nos uma idéia tão esquemática e pobre quanto as pirâmides do
Egito em relação à sorte das multidões humanas que tiveram como
tarefa a sua construção”17.

Ao reter os princípios da análise de M aurice Halbwachs sobre a com ­


paração entre as pirâm ides de idade de dois países, podemos nos interrogar
sobre a noção de “envelhecim ento demográfico” que se apoia também sobre
divisões que, sem serem arbitrárias, não deixam de ser abstratas, sendo que
a definição social das idades se modifica segundo a composição da popula­
ção. Em seu estudo sobre ua nupcialidade na França durante e depois da
guerra”, M aurice Halbwachs m ostra como a definição social das idades
depende da composição num érica das gerações: a diminuição extrem am en­
te sensível, consecutiva à guerra, da população masculina de vinte e três a
trinta e oito anos, teve como efeito “prom over os jovens nas escalas das
idades” na m edida em que, levados a ocupar posições deixadas vagas por
pessoas mais velhas, foram induzidos a exercer responsabilidades que, até
então, estavam “acima de sua faixa etária”: essa transformação foi acompa­
nhada por uma redefinição da idade legítima para o casamento e, de forma
geral, da idade em que os “jovens” têm acesso ao estatuto de “adulto”18.
Inversamente, “a doença do século”, para retom ar a expressão de Alfred
Musset, que atingia a juventude burguesa e pequeno-burguesa de 1830
deveu-se, em grande parte, ao fato de que as carreiras nas profissões liberais
e na alta adm inistração estavam bloqueadas, nessa época, pela presença de
hom ens relativam ente jovens, recrutados durante a Revolução e o Im pério,
e pelo retorno dos im igrantes no reinado de Luís XVIII. A definição da ,
idade de acesso a tais profissões (e ao que estava ligado a ela, em particular, |
o casamento) foi avançada de m aneira que os “jovens” dessas categorias j

17. Ibid.j p. 335-336.


18. I b i d p. 270.

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sociais encontraram -se em posição.de adolescência prolongada. Ao mesmo
tem po, tal fenômeno condenou essa geração ao que o autor de Confession
d ’un enfant du siècle designava por “horrível desesperança” e explica, pelo
menos parcialm ente, a forma assumida pelo rom antism o francês, ou seja, a
“vida boêmia” e seu sucesso durante esse período19.
Assim, não seria possível tratar “a idade” dos indivíduos como uma
característica independente do contexto no qual ela toma sentido, tanto
'm ais que a fixação de um a idade é o produto de uma luta que envolve
Idiferentes gerações20.

1.2. Categorias “naturais” e implicações sociais


Nesse aspecto, as faixas etárias são tam bém um bom exemplo dos
desafios implicados em qualquer classificação: com efeito, é evidente que,
na m anipulação das classificações em term os de idade, o que está em questão
é a definição dos poderes associados aos diferentes m om entos do ciclo da
vida, sendo que a am plitude e o fundam ento do poder variam segundo a
natureza das implicações - peculiares a cada faixa etária ou a cada fração de
faixa - da luta entre as gerações. O mesmo acontece com a percepção da
atividade profissional como “trabalho”, segundo é confirmado pelas lutas
que dizem respeito à idade da aposentadoria ou ao reconhecim ento da
atividade-doméstica da mulher.
Para o sociólogo, o que constitui o objeto da pesquisa não é tom ar
partido nessas lutas simbólicas, mas analisar os agentes que asjravam ^as
arm as utilizadas, as estratégias postas em prática, levando em c.onsideração
não só as relações de força entre as gerações e entre as classes sociais, mas
tam bém as representações dom inantes das práticas legítimas associadas à
definição de um a faixa etária. Assim, desse ponto de vista, fica excluída a
eventualidade de fixar para os membros da mesma classe social, a fortiori
para quaisquer indivíduos, a idade a partir da qual se tornam “velhos”, isto
é, “velhos dem ais” para exercer determ inada atividade ou ter acesso, de
form a legítim a, a certas categorias de bens ou posições sociais.
E precisam ente a determinação dessa idade, m om ento em que as gera­
ções mais jovens obrigam as gerações mais velhas a se retirarem das posições
de poder a fim de virem a ocupá-las, que constitui o pretexto da luta entre

19. G. Bertier de Sauvigny (1955), La Restauration, Paris, Flammarion.


20. P Bourdieu (1980), Questions de sociologie, Paris, Éd. de Minuic.

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as gerações. Assim, podemos nos perguntar se a sociologia da velhice, que
toma como objeto um a população definida, no essencial, pela idade legal
ou pelo estado de envelhecim ento biológico, não aniquila, antecipadam en­
te, seu objeto de estudo na m edida em que considera como resolvido o que,
justam ente, deve ser explicado.
É o que fazem D avid H erlihy e Richard Trexler ao relacionarem o
aparecim ento da noção de “adolescência”, em algumas grandes cidades
italianas da Renascença, às transform ações das relações entre gerações no
seio da burguesia. Os pais retardavam a idade do casamento dos filhos para
não serem despojados de um a parte de seus bens e poder porque, nessa
categoria social e nessa época, o casam ento era também acompanhado por
um a transferência do p atrim ônio familiar.
D iante da pressão exercida pelos jovens (nesse tempo, os parricídios não tolerãncia com
relação a
eram raros), os pais davam prova de um a grande tolerância no que dizia
sexualidade - para
respeito à sexualidade, a fim de não cederem o que consideravam como poder preservar e
conservar o poder
essencial, ou seja, a preservação e conservação do poder sobre a gestão do sobre o patrimônio
patrim ônio fam iliar até sua m orte21. familiar.

A m anipulação das faixas etárias implica sempre - certam ente, em


diferentes graus - um a redefinição dos poderes ligados aos diversos mo­
m entos do ciclo da vida peculiar de cada classe social. Ela constitui uma
forma da luta pelo poder travada, em cada grupo social, pelas diferentes
gerações. Em particular, vemos tal fenômeno quando esse estado de relações
de força se modifica, como m ostra o exemplo da evolução, na segunda
m etade do século X IX , das relações entre gerações de artesãos vidraceiros,
consecutiva à transformação das técnicas de produção nesse setor22.
Com efeito, a mecanização e a simplificação das tarefas que estão associadas
a tal evolução m inaram um dos fundam entos do poder dos mestres vidra­
ceiros, a saber, o m onopólio da detenção das técnicas de fabricação e,
correlativam ente, o de sua transmissão: os oficiais encarregados de soprar
o vidro controlavam até então, em seu proveito, as relações entre as gerações
pela imposição de tem pos de formação e níveis de competência a seus

21. D. Herlihy (1972), “Some psychological and social roots o f violencc in Toscan cities”, in Lauro Martines
(ed.), Violenceand Civil Disorder in Italian Cities, 1200-1SOO, Berkeley, p. 129-154.
R.-C. Trexler (1974), “Ritual in Florencc: adolescent and salvation in the Renaissance”, in C. Trinkaus e
H.A. Oberman, The Pursuit of Holiness in Late Medieval and Renaissance Religion, Leyde, E.J. Brill, p.
200-264.
22. J.W. Scott (1974), Les Verriers de Carmaux: la naissance d ’un syndicalisme, trad. de Thérèse Arminjon, Paris,
Flammarion, 1982.

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sucessores - “garotos” e “jovens adultos” eram denominações que designa­
vam tanto uma posição na escala das idades e da profissão, quanto, de forma
geral, uma posição social (baixa remuneração, estado de solteiro, etc.).
Depois de terem tentado, sem sucesso, retardar a idade de acesso à apren­
dizagem e prolongar a duração da formação, os vidraceiros foram obrigados
a adotar, diante da concorrência dos jovens aprendizes, estratégias defensi­
vas; em particular, vieram a reconhecer - para os concorrentes mais peri­
gosos que possuíam um a qualificação equivalente - um estatuto especial
que fixava de forma perm anente a função desempenhada e, ao mesmo
tempo, impedia que fossem desalojados pelos “jovens” que se tornavam
“adultos”.
Da mesma forma, Georges Duby mostrou que, no século XII, na
sociedade aristocrática francesa, a constituição de uma nova etapa
bem determinada da existência designada como “juventude”, mo­
mento compreendido entre a cerimônia que marcava a saída da
infância e o casamento, que definia o adulto realizado, era o produto
das estratégias familiares de conservação do poder e de preservação
do patrimônio das linhagens. O fato de pertencer à “juventude” dizia
menos respeito à idade biológica do que à idade, bastante variável,
em que os herdeiros assumiam a sucessão da gestão do patrimônio,
isto é, em geral no momento da morte do pai. Ao prolongar a
“juventude” dos filhos, isto é, afastando-os do feudo (cruzadas, tor­
neios, etc.), os pais recuavam da mesma forma a idade em que eram
considerados como “velhos”. Assim, os “jovens” eram cavaleiros
celibatários votados à errância e aventura, esperando o momento em
que poderiam assumir a sucessão dos pais e se casar23.

As terminologias das idades são em si mesmas o resultado “desse


antagonismo latente e dessa luta surda, cada um reclamando seu lugar ao
sol”24. Essas observações m ostram que “a idade” não é um dado natiiral,
nem um princípio de constituição dos grupos sociais, tampouco um fator
explicativo dos com portam entos. Como m ostra G.I. Jones, a propósito de
uma população africana, os ibos, a idade de um indivíduo resulta de três
fatores: em prim eiro lugar, do que N orm an B. Ryder designou por “m eta­
bolismo demográfico” que depende das taxas de fecundidade e m ortalidade

23. G. Duby (1964), “Les ‘jeunes* dans la sociétéaristocratique dans la Fraoce du Nord-Ouest au XIICsiècle”,
\nAnnalest E.S.C., XIX, n° 5, setembro-outubro de 1964, p. 835-846 (reproduzido in G. Duby, Hommes
et structures du Moyen-Age, Paris, Mouton, L973).
24. M. Halbwachs (\958)yMorphologie sociale, Paris, A. Colin, p. 108; nova ed., A. Colin (col. “U2”), 1970.

70
e cujas variações contribuem para definir o estado da concorrência entre as
gerações para a ocupação das posições de poder2526; em seguida, da relação de
força entre pais e filhos na família e, de forma mais ampla, no seio da
linhagem ; enfim, da capacidade dos jovens para colocarem, como se diz
atualm ente, “a opinião pública a seu favor” dem onstrando que eles detêm
as qualidades socialmente exigidas para passar de um a para a outra faixa
. • 26
etaria .
No entanto, pelo fato “de que não se sabe em que idade ou m omento da
vida começa a velhice”, será necessário seguir o procedim ento dos sociólo­
gos que, como observava Pareto, “não podendo traçar uma linha para
estabelecer, de forma absoluta, a separação entre os ricos e os pobres”,
chegavam à conclusão da ausência dos antagonismos de classes e à dedução
de que não existem pessoas idosas?27 O objeto da sociologia da velhice não
consiste em definir quem é e não é velho, ou em fixar a idade a partir da j
qual os agentes das diferentes classes sociais se tornam velhos, mas em |
descrever o processo através do qual os indivíduos são socialmente desig- ’
nados como tais.
Isso não significa tam pouco que a idade cronológica - “quantidade
m ensurável legalmente” que, segundo a expressão de Philippe Ariès, em er­
ge do m undo “da exatidão e do cálculo” - não tenha qualquer realidade
social: é evocada continuam ente pelos indivíduos (aniversários, diligências
adm inistrativas, etc.) e constitui um a espécie de padrão abstrato e omnibus
de identificação ou, se preferirm os, um referente que perm ite fazer compa­
rações. Além disso, a fixação de uma idade legal, por exemplo, a da m aiori­
dade aos dezoito anos ou a da aposentadoria aos sessenta e cinco, exerce
seus efeitos sobre a luta entre as gerações. Tende a constituir uma espécie
de norm a oficial que deve ser levada em consideração pelos agentes (“é
necessário dar lugar aos jovens”, etc.) nem que fosse pelo fato de que a essas
idades estão associados determ inados direitos.
A “velhice”, assim como a “juventude”, não é uma espécie de caracte­
rística substancial que acontece com a idade, mas uma categoria cuja
delimitação resulta do estado (variável) das relações de força entre as classes

25. N.B. Ryder (1965), “The cohort as a concept in Lhe studyof social change”, in American sociological reviezv,
XX X , nJ 6, dezembro de 1965, p. 843-865.
26. G.I. Jones (1962), “Ibo ages organization, wich special reference to the Cross River and North-Eastern
Ibo”, ia Journal of the Royal Anthropological Instilute of Great Britam andíreland, XLII, n° 2, july-december
1962, p. 191-211.
27. V. Pareto (1964), Cours d’économiepolitique> Genebra, Droz, tomo 2; nova ed., 1986, p. 285.

71
e, em cada classe, das relações entre as gerações, isto é, da distribuição do
podçr e dos privilégios entre as classes e entre as gerações.
O exemplo da m anipulação da idade da aposentadoria é, particu­
larm ente, esclarecedor porque encontram -se aí em ação as duas dimensões
das lutas que dizem respeito às definições das faixas etárias: as que estabe­
lecem oposição entre grupos sociais e aquelas nas quais se enfrentam as
gerações. É tam bém porque o valor dos indivíduos - e, em particular, o dos
hom ens - no mercado do trabalho é, sem dúvida, um a das variáveis
essenciais que, atualm ente, age sobre o envelhecim ento social em razão do
peso da atividade profissional na definição do valor social dos indivíduos.
A hierarquia das formas e graus de envelhecimento no campo das
profissões parece reproduzir a hierarquia social e respeitar, se pode­
mos falar assim, a “hierarquia” até mesmo no interior das empresas.
É o que ressalta de uma pesquisa na qual, segundo os empregadores,
a mais importante “deficiência” dos trabalhadores que estão envelhe­
cendo, é “o enfraquecimento das faculdades de adaptação às novas
tarefas, métodos ou técnicas”; em seguida, é mencionada a “perda de
velocidade”, a “perda de força”, e depois a perda da “vivacidade
intelectual”, da “habilidade”, da “memória” e, em último lugar, “a
inaptidão para o comando”28. Por outras palavras, isso significa que
a dimimuição, com a idade, das qualidades julgadas necessárias pelos
empregadores para o exercício das diversas atividades profissionais
ou, se preferirmos, a idade a partir da qual as diferentes categorias
sociais começam a “envelhecer”, é mais precoce para os membros das
classes mais baixas: para os empresários, os trabalhadores braçais são
considerados como “ 100% produtivos” somente até a idade média de
51,4 anos; os operários sem qualquer qualificação até 53,5; os contra-
mestres até 55,9; os executivos até 57,9; e nenhuma idade é fixada
para os empresários...29

Através dessa avaliação diferencial da “produtividade” das diversas


categorias de trabalhadores, efetuada pelos empresários, isto é, por agentes
socialmente interessados em impor uma definição do envelhecim ento, id
est um valor no mercado do trabalho, apreendemos que o envelhecimento

28. Pesquisa elaborada, em 1961, pela agência IFOP junto a 100 empresários e diretores dos recursos humanos
de grandes e médias empresas particulares. Ver MLes travailleurs ügés dans 1’entreprise", tn Le Haut-Co-
mité consultacif de la Population et de la Famille (1962), Les Personnes âgées et Vopinion en France, Paris,
La Documentation française, p. 99-100.
29. Ibid., p. 97.

72
é avaliado, nesse mercado, não tanto à “escala das idades”, mas sobretudo
à escala de critérios cuja imposição depende do estado das lutas entre as
diferentes categorias de vendedores e com pradores da força de trabalho.
D e m aneira geral, os princípios da divisão do trabalho estruturam a
distribuição das tarefas entre os grupos sociais e, ao mesmo tempo, as
categorias de percepção e avaliação destas últimas. A divisão do trabalho
social é um trabalho social de divisão, isto é, um a luta entre grupos para
im por os princípios de uma visão do m undo social que contribua para a
m anutenção ou transformação de sua posição no espaço social30.
Essas lutas em volta da classificação podem chegar a transformações da
visão e das divisões do m undo social, sobretudo quando, às categorias cuja
definição está em jogo, são associados determ inados direitos, por exemplo,
a aposentadoria para as pessoas que tenham atingido determ inada idade.
Isso contribui, certam ente, para dar um a certa “consistência social” a essa
categoria que os aposentados tendem a form ar porque a defesa dos direitos
pode se tornar um fator de mobilização quando estes são ameaçados.
A “ realidade social” é o resultado de todas essas lutas. Ela se manifesta
sob diferentes formas: no estado de direitos, equipam entos coletivos, cate­
gorias de pensam ento, m ovim entos sociais, etc. Nesse aspecto, o estudo da
em ergência de um problem a social é um dos melhores reveladores desse
trabalho de “construção social da realidade”, para retom ar o título de uma
célebre obra de sociologia31, porque condensa todos os aspectos desse
processo. E, tratando-se de um problem a social, o objeto de pesquisa do
sociólogo consiste, antes de tudo, em analisar o processo pelo qual se
constrói e se institucionaliza o que, em determ inado m om ento do tempo,
é constituído como tal.

1.3. Inconsciente semântico e objeto pré-construído: a “família”


A universalidade da noção de família, como instância de reprodução
biológica e social deve-se, sem dúvida, ao fato de que, como indica com
precisão Françoise Héritier, “todo o m undo sabe ou julga que sabe o que é.
a família na m edida em que, inscrevendo-se de forma tão evidente na nossa
prática cotidiana, ela aparece im plicitam ente a cada um como um fato

30. Ver E Bourdieu (1984), “Espace social et genèse des classes”, in Actes de la recherche en sáertces socialesy n°
52-53, junho de 1984, p. 3-12.
31. PL. Berger, T. Luckmann (1967), La Consiruction sociale de la réalitéy trad. de Picrre Taminiaux, Paris,
Méridiens-Klincksieck, 1986.

73
natural e, por extensão, como um fato universal”32. No entanto, tal crença
a respeito da “ família”, baseada na natureza e cujas únicas mudanças, entre
as diferentes sociedades, se lim itam à sua composição e funções, é também
o produto de um trabalho social. Esse trabalho de construção da realidade
social, segundo a expressão já consagrada atualm ente, efetua-se e manifes­
ta-se no próprio plano das palavras, sendo que estas contêm sem pre um a
visão do m undo. Com efeito, a linguagem é, como escreve E rnst Cassirer,
não som ente “um m ediador na formação dos objetos”33, mas sobretudo um
“condicionam ento do com portam ento”, como foi sugerido de m aneira
diferenciada por Edward Sapir e Benjam in Lee W horf34.
Assim, o simples fato de falar de “família” equivale a pressupor uma
certa representação social dos grupos. Com efeito, a linguagem usual des­
creve a família como um “círculo” no qual alguém entra ou do qual é
excluído (o “círculo da família”). A família designa im plicitam ente o modo
de fazer parte de um grupo baseado em um a com unidade de condição social,
habitação, sangue, etc. Em suma, um conjunto homogêneo dotado de
coesão resultante, sobretudo, da “semelhança” existente entre os agentes
que o compõem, no sentido em que Em ile D urkheim dá a essa palavra
quando fala da “solidariedade mecânica” ou por “semelhança”35. Isso mes­
mo é evocado por expressões como “ar de família” ou “espírito de família”
e, até m esm o, “desgosto de família”. Por últim o, de todos esses pressupostos
implicados na simples utilização do term o “ família” - e ao qual levam a
pensar, irresistivelm ente, fórmulas do senso comum , tais como “(bom) pai
de família”, “ filho de (boa) família”, sem falar de “sagrada família” -
sobressai um a valorização ético-social dessa m aneira de estar junto. Isso
m esmo é sugerido ainda pelas expressões como “sustento da família”,
“ajuda fam iliar”, e também “chefe da família” porque, na família nem tudo
é sentim ento, desinteresse e benevolência. Em suma, a noção de “família”
(assim como, e de um ponto de vista negativo, a de “sem família”) designa
im plicitam ente um todo coerente, estruturado, em um a palavra, uniüõT

32. F. Héritier(1979), verbete “Famiglia”, in Enciclopédia Einaudi, Turim, Giulio Einaudi, vol. 6, p. 3-16 eC.
Lévi-Strauss (1983), Le Regard ébigné, Paris, Plon, p. 65-92.
33. Ver E. Cassirer (1969), “Lc langage et la construction du monde des objeis”, in Journal de psychologie,
janeiro-abril de 1933 (número especial), reproduzido in E. Cassirer et a i, Essais sur le langage, Paris, Ed.
de MinuiL
34. Ver E. Sapir (1967), Amhropologie, tomo 1, Culture et personalité, Paris, Ed. de Minuit, p. 37-50 e B.-L-
W horf (1969), Linguistique et anthropologie, Paris, Denoél, p. 69-115.
35. Ver É. Durkheim (1893), De la division du travail social, Paris, PUI^ 1967, cap. I.

74
Assim, inclusive no vocabulário, encontra-se enraizada um a proble­
mática, a da união e da unicidade do grupo que, aliás, são referidas nas
categorias do discurso comum nesse campo. Pode-se reunir estas últimas
sob a oposição família unida/famflia desunida. Integram essa tipologia
familiar, até mesmo familiarista, tanto as diferentes formas que podem
assum ir as uniões, casamento, concubinato (notório ou não) ou o seu
contrário, divórcio, separação, e essas formas híbridas, tais como a “coabi-
tação” ou a família “recomposta”. É também o caso dos modos de afxliação,
filiação legítima, natural ou adotiva; e, ao contrário, os modos de rejeição,
negação, abandono, deserdação dos filhos. Nessas condições, compreende-
se a razão pela qual, atualmente, é ainda tão difícil nom ear estruturas
“fam iliares” que não correspondem - pelo menos form alm ente - a essa
representação inconsciente da família (família “ recomposta”, “composta”,
“incerta”, “união civil”, “união social”, “descasamento”, etc.)36.
A essa representação da família como um todo harm onioso está ligada
essa espécie de obsessão pela perm anência do grupo doméstico. Isso mesmo
é m anifestado tam bém pela linguagem corrente que associa à noção de
“família” as noções de linhagem , posteridade, origem, em suma, descen­
dência. Com efeito, a família é um grupo que tem um a história, um a vida
e, como para todas as “histórias de vida”, essa história é inseparavelmente
um relato da vida dessa história (“histórias de família”, “álbum de família”).
As etapas são sem pre as mesmas, evocadas nesse trabalho oficial (bem -su­
cedido ou fracassado) de unificação e integração do grupo: nascimentos,
casamentos, sucessões, etc. Como as gerações, umas após as outras, esses
acontecim entos sucedem-se de m aneira cronológica e linear e tendem a
apresentar a “família” como a imagem de um grupo coerente, integrado e
cujo princípio é em si mesmo seu próprio fim: a perpetuação da unidade
(doméstica) e o que a fundam enta: “os bens de família”.

2. F U N D A M E N T O SO CIA L DAS CA TEG O RIA S


P R É -C O N ST R U ÍD A S
Por conseguinte, o trabalho sociológico não poderia consistir em regis­
trar os dados construídos segundo categorias que são o produto de um
trabalho social. Nesse aspecto, a sociologia da velhice fornece um bom
exemplo das operações empreendidas pelo pesquisador porque trata-se de
um dos casos em que a sociologia da construção da noção é o próprio objeto
da pesquisa.

36. Ver P Bourdieu (1996), “Des familles sans nom”, in Actes de la recherche en Sciences sociaies, n° 113, junho
de 1996, p. 3-7.

75
O pesquisador enfrenta, necessariamente, definições institucionais de
seu objeto, isto é, os problem as colocados a essas instituições pelas popula­
ções “idosas” que elas adm inistram . Assim, a “sociologia da velhice” resulta
de um a divisão não científica da sociologia que foi constituída para levar
em consideração o aparecim ento de um problem a social.
Com efeito, a divisão das idades e as definições das práticas legítimas
que lhes estão associadas têm a ver com o aparecimento de institui­
ções e agentes especializados - como foi estabelecido, por exemplo, a
propósito da distinção das primeiras idades da vida, ligada ao desen­
volvimento do sistema escolar. A invenção da “infância”37, da “ado­
lescência” e, mais recentemente, da “primeira infância”38, resultam,
em grande parte, do prolongamento da duração dos estudos e da
difusão da escola maternal. Da mesma forma, atualmente, a invenção
da “terceira idade”, essa nova etapa do ciclo de vida que tende a se
intercalar entre a aposentadoria e a velhice, é, no essencial, o produto
da generalização dos sistemas de aposentadoria e da intervenção
çprrelativa de instituições e agentes que, ao se especializarem no
tratamento da velhice, contribuem para o processo de autonomização
da categoria e, ao mesmo tempo, da população designada por ela39.

O obstáculo, no qual esbarra o sociólogo, refere-se não tanto a uma


espécie de complexidade inerente ao objeto, mas sobretudo às condições
em que se processa sefrestiídõ: o próprio campo, ou seja, õ do£agêntés da
gestão da velhice, do qual èíe participa necessariamente, e que constitui o
' verdadeiro obstáculo à construção do objeto sociológico. Assim,"ãofazer'a
sociologia desse campo, o sociólogo encontra o meio de superar tal óbice
revelando, em particular, as implicações das definições e das classificações
elaboradas pelos agentes interessados pelo tratam ento e gestão da velhice.
O sociólogo tem um a consciência mais apurada da “imposição da
problem ática” quando estuda as populações mais dom inadas, isto é, as que
levantam os problem as ditos “sociais” no duplo sentido de “caso social” e
de “problem as de sociedade”.
É, assim, o caso do imigrante que, segundo a análise de Adbelmalek
Sayad, acumula todas as formas de dominação: “O imigrante em

37. E Ariès (1960), op. cit.


38. J.-C. Chamboredon, J. Prévot (1973), MLe ‘métier d’enfant\ Définition sociale de la prime enfance et
fonctions différentielles de 1’école maternelle”, in Revue française de sociologie, XIV, n° 3, julho-setembro
de 1973, p. 295-335.
39. R. Lenoir (1979), “Uinvention du ‘troisième âge’ et la constitution du champ des agents de gestioo de la
vieillesse”, in Actes de la reckerche en Sciences sociales, n° 26-27, março-abril de 1979, p. 57-82.

76
questão (a respeito do qual falam a ciência e todas as ciências, o
discurso político, etc.) é simplesmente o imigrante tal como foi
constituído, tal como foi determinado [...]”. A força da definição
social do imigrante e dos “problemas” que levanta “deve-se ao fato
de que ele encarna todas as formas possíveis de dominação: é, simul­
taneamente, operário, colonizado, delinqüente, alienado mental, de­
sempregado, etc. D e modo que, como para todas as populações
dominadas (camponeses, operários, assim como crianças, mulheres,
pessoas idosas, etc.), mas talvez ainda mais para o imigrante (e aí,
ainda mais para o argelino do que para o português, e mais para o
português do que para o italiano, etc.), não existe objeto social cuja
problemática (e todas as orientações de pesquisa que lhe estão asso­
ciadas) seja tão imposta40.
“Uma das formas de tal imposição, continua ele, é perceber o im i­
grante, pensar sempre nele referindo-nos a um problema social, isto
é, um problema que remete às suas condições de existência e, em
último lugar, ao seu direito de existir. Esse acoplamento entre uma
população e um problema social (os imigrantes e o mercado de
trabalho, os imigrantes e o desemprego, os imigrantes e a formação,
os imigrantes e o retorno a seus países de origem, etc.) é o indício
mais evidente de que a problemática da pesquisa encontra-se em
continuidade direta com a percepção social previamente constituída
a respeito do imigrante: aquele que-provoca o problema e também
levanta os problemas que têm de ser resolvidos por uma sociedade”.
Com efeito, podemos nos perguntar qual é exatamente a natureza dos
“problemas” da imigração. Será que se trata de problemas peculiares
aos imigrantes, ou antes dos problemas que a sociedade francesa se
coloca a respeito deles e que, por isso mesmo, acabam provocando
problemas para os próprios imigrantes?

Por conseguinte, o sociólogo deve contar com tais “representações


coletivas” que, segundo é indicado com precisão por Emile D urkheim ,
“um a vez constituídas, tornam -se realidades parcialm ente autônom as”41,
atuam sobre a realidade pela ação da explicação, formulação e informação
(no duplo sentido de modelagem e difusão), inerente a qualquer forma de
representação. No entanto, tais representações serão tanto mais eficazes

40. A. Sayad (1986), “‘Coüts’ et ‘profits* de 1’immigration. Les présupposés politiques d’un débai économi-
que”, in Actes de la recherche en Sciences sociales, n° 61, março de 1986, p. 79-82.
41. E. Durkheim (1898), “Les représentations individuelles et les representa tio ns collectives”, in Reviu*de
Métaphysique et de Morale, tomo VI, maio de 1898; reproduzido in E. Durkheim, Sociologie etphilosophie,
Paris, PUF, 1973, p. 4.

77
quanto mais corresponderem a transformações objetivas que, antes de tudo,
deverão m erecer a atenção do pesquisador porque se encontram na origem
do aparecim ento e conteúdo das mesmas.
Tal aspecto costum a ser negligenciado pelas perspectivas “constru-
tivistas” da análise dos problemas sociais, como a de H erbert Blumer: nem
tudo pode ser constituído como “problem a social”.

2.1. Transformações morfológicas e econômicas


Se, por exemplo, considerarmos a “invenção” de uma “doença” que
toma todos os aspectos de um “flagelo” social - como foi o caso, na França,
da tuberculose, das doenças venéreas e, desde os anos 20, do câncer -
veremos que esta é acom panhada por aquilo que Patricé Pinell designa por
“m ovim ento social”42. Sem negligenciar os fatores internos do campo
médico (em particular, o desenvolvimento da tecnologia) que perm itiram
alargar a intervenção médica tanto no plano das investigações do diagnós­
tico, quanto no plano da própria terapêutica (principalm ente a radiologia
e a radioterapia), esse autor descreve as implicações propriam ente sociais
surgidas com o aparecim ento da cancerologia enquanto disciplina médica
autônom a, cristalizada na criação da Liga contra o Câncer.
Essa Liga reunia representantes de todo o espaço da classe dom inante
(aristocracia, burguesia financeira e industrial, políticos, médicos, etc.),
condição necessária, mas não suficiente, para que um “problem a” enfren­
tado por “particulares”, até mesmo, mais amplam ente, por um campo da
vida social (médico, militar, escolar, etc.), se torne um “problem a social”,
um problem a de sociedade no duplo sentido do termo. Se, na época, o
sucesso da Liga dependeu, em grande parte, da “sua capacidade em ter
conseguido transform ar o ‘câncer’ em um produto concorrencial no m er­
cado das obras caridosas, isso resulta de fatores objetivos que a análise
exclusivam ente centrada na produção das categorias tende a negligenciar
ou esquecer, em particular, a evolução da m ortalidade e suas causas revela­
das pelas estatísticas: o envelhecimento dos franceses aum enta a parte da
população suscetível de m orrer com tal doença que, da oitava causa de óbito
dos parisienses, em 1956, passa, 30 anos mais tarde, para o quinto lugar”.
Esse aum ento da incidência do câncer sobre a m ortalidade é acompanhado
por uma transform ação da população em questão: os hom ens são cada vez
mais atingidos e, sobretudo - como m ostra a objetivação estatística - tende
a se reduzir a diferença entre os bairros pobres e os bairros ricos. Cresci­

42. E Pinell (1992), Naissance d*un fleaiL Histotre de la lutte contre le câncer (1890-1940), Paris, Metailie.

78
m ento do núm ero, elevação do estatuto social da população em questão, tais
são as condições que, entre outras, podem ser reunidas para transform ar
um “problem a” em um “problem a social”.
O mesmo acontece com a constituição da “velhice” como problem a
social que é correlativa das reviravoltas econômicas que afetaram as estru­
turas familiares que, até então, assum iam o encargo dos pais idosos, inca­
pazes de atender a suas necessidades. Aí também, o exemplo da velhice
confirma a complexidade e diversidade dos fatores que se encontram na
origem da em ergência de um problem a social e lem bra que é, m uitas vezes,
o conjunto da ordem social que está em questão.
“Que fazer com os velhos que já não servem para nada?” Tàl era a questão
form ulada pelos “econom istas” e “políticos” de meados do século XIX , a
propósito da velhice nas classes “deserdadas” em que se tornaram as classes
proletarizadas. Desde a origem, o problem a das aposentadorias foi o de
saber qual grupo deveria assum ir o encargo da velhice dessas classes, por
definição, desprovidas de capital a ser transm itido: a família ou a empresa,
cujos campos de atividade iam -se dissociando com o desenvolvimento do
capitalismo.
A “velhice” como problem a social surgiu, antes de tudo, na classe
operária pelo fato da extensão rápida, sobretudo a p artir de meados do
século X IX , da organização capitalista do trabalho e do sistema de atitudes
que lhe está associado43. Presum e-se que o salário rem unera apenas a força
investida no trabalho, sem levar em consideração todos os encargos que um
indivíduo deve assum ir além da satisfação de suas próprias necessidades.
O rendim ento dessa força é tanto mais mensurável quanto se desenvolve o
m aquinismo acompanhado pela desqualificação operária; além disso, tal força
tende a ser reduzida unicam ente à força física. A “velhice” dos operários é,
então, assimilada, pelo patronato capitalista, à “invalidez”, isto é, à “incapa­
cidade para produzir”, como é indicado com precisão por Émile Cheysson,
um dos especialistas da política social dos diretores das grandes empresas da
época. Como é observado pela historiadora Rolande Trempé, a propósito da
Com panhia das M inas de Carmaux, foi a p artir dessa lógica que as caixas
de aposentadoria foram instituídas pelos empresários a fim de “ reduzirem
os custos da produção, desfazendo-se em condições honrosas, dos traba­
lhadores idosos que ganhavam demais pelo rendim ento fornecido”44.

43. B. Dumons, G. Pollet (1994), UÉtat et les retraites. Gertèse d ’unepolitique, Paris, Belin.
44. R. Trempé (1971 \L e s Mineursde Carmaux (1848-1914)t Paris, Les Éditions ouvrières, 2 vols.

79
2.2. Problema social e formas de solidariedade
Estamos vendo que a velhice, como problem a social, não é o resultado
mecânico do crescim ento do núm ero de “pessoas idosas”, como tende a
sugerir a noção am bígua de “envelhecim ento demográfico”, freqüentem en-
te utilizada pelos demógrafos. Podemos ver um exemplo disso na seguinte
proposição: “Para qualquer população, escreve Alfred Sauvy, em determ i­
nado m om ento, encontram o-nos diante da distribuição: P = J + A + \Çna
qual P representa a população total, J o núm ero de jovens, A o núm ero de
adultos, V o núm ero de velhos. Esses três grupos perm item calcular três
índices de envelhecim ento: a) a relação V/P do núm ero dos velhos com a
população total; b) a relação V/J do núm ero dos velhos com o núm ero dos
jovens; c) a relação V/A do núm ero dos velhos com o núm ero dos adultos”4546.
D iante de tais abstrações, o sociólogo é levado a em preender um a dupla
abordagem que im plica rom per com as definições socialmente adm itidas
do fenômeno que estuda, na m edida em que são demasiado gerais e/ou
históricas. A prim eira consiste em observar as diferenças entre os grupos
sociais em relação ao seu objeto (nesse caso, a m ortalidade, a idade da
aposentadoria, a evolução dos salários ao longo do ciclo da vida, etc.). A
segunda visa recolocar essas diferenças em conjuntos mais gerais que
podem ser designados por “contexto”, no qual se desenrola o fenômeno
observado. Assim, não é tanto, talvez, referindo-nos ao asilo de idosos que
vamos ter a possibilidade de com preender a evolução dos m odos de assum ir
o encargo da velhice, mas levando em consideração as transformações da
relação de força entre gerações no interior das famílias que, por sua vez,
resultam de fatores externos à vida familiar. De modo que o estudo socio­
lógico da velhice rem ete à consideração dos fatores que m odificaram o que
Ém ile D urkheim designava por “modos de solidariedade”, isto é, “a natu­
reza dos elos que unem os indivíduos”, em determ inado grupo44.
Em bora a “velhice” da classe operária tivesse constituído, na origem,
um “problem a social”, como é testem unhado pelos num erosos e prolonga­
dos debates parlam entares sobre as “aposentadorias operárias e campone­
sas”, ao longo da segunda metade do século XIX , acontece que, mais
tardiam ente e em outras condições, também se colocou a questão de saber

45. A. Sauvy (1963), “Le vieillissement déraographique”, in Revue Internationale des Sciences socialesy XV, n°
3, 1963, p. 371-380.
46. E. Durkheim (1893), De la division du travail socialy op. cit.

80
5e o encargo dos m em bros idosos das outras classes sociais seria assumido
?elas famílias. Já não se tratava dos efeitos diretos das transformações de
ím modelo econômico de produção, mas, de form a mais global, das conse-
jüências da m udança do m odo de reprodução da estrutura social que, nessas
:lasses, parece ter afetado, sobretudo, as relações entre gerações.

TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS E
EVOLUÇÃO DAS ESTRUTURAS
FAMILIARES: A INVENÇÃO DA VELHICE
Todos os observadores da época descreveram o que Max Weber designou por
“decomposição da comunidade doméstica” que, segundo ele, acompanha necessa­
riamente o desenvolvimento da economia capitalista47. Sua argumentação é a seguin­
te. A introdução da moeda favoreceu o cálculo das contribuições que cada um dos
membros trazia para a vida do grupo e permitiu, para alguns deles e a partir de um
certo patamar, a livre satisfação das necessidades individuais. Sem dúvida, como
observa o próprio Max Weber, tal paralelismo não é perfeito, mas, desde o momento
em que a atividade econômica está orientada para o lucro, torna-se uma “profissão”
distinta que, diferentemente dos modos de produção que ele chama “comunistas”,
se exerce no quadro de uma “empresa”. Estabelece-se, então, essa distinção, a seu
ver decisiva, “calculável” e “jurídica”, entre “casa” e “exploração”, “trabalhos
domésticos” e “oficina”, etc.
Tal separação é acompanhada de uma dissolução dos valores de solidariedade e troca
que regulavam as relações entre parentes: a atividade dos membros do grupo,
fortemente diferenciada - em particular, segundo o sexo, ao ponto de ser instituída
sob forma de ritos - individualiza-se e tende, daí em diante, a definir e fixar o
estatuto social de cada um. Nas economias tradicionais, essencialmente rurais, o
princípio da distribuição das funções de cada um dos membros do grupo doméstico
- que constitui uma unidade de produção e, ao mesmo tempo, uma unidade de
consumo - apóia-se na indivisão do patrimônio; ora, como foi mostrado por muitos
antropólogos, tal indivisão é correlativa de um recalque do espírito de cálculo,
favorecido por esse modo de apropriação e gestão das riquezas (e que, ao mesmo
tempo, permite salvaguardá-lo).
Certamente, em tal economia, o “trabalho” está socialmente definido (é objeto de
uma distribuição, de uma diferenciação, etc.), segundo o conjunto do sistema dos
valores da comunidade (em particular, comandado pela satisfação das necessidades
e da segurança do grupo) e não pela troca monetária e pelo que esta implica (um
trabalhador “isolado”, um mercado “livre”, etc.): não é pensado ou percebido como
distinto de outras funções sociais.

1. M. Weber (1922), Économie et Société> tomo 1, crad. sob a direção de J. Chavy e E. de Dampierre, vol. 1 e
vol. 2, Paris, Presses Pocket (col. “Agora”), 1995.

81
| A partir do momento em que, com o crescimento do número de assalariados e a
imposição da definição do trabalho como atividade produtora e rentável, a interde­
pendência dos membros do grupo familiar tende a se desfazer, constitui-se uma nova
visão da “atividade”: a que é remunerada e valorizada, ou seja, o “trabalho”, e a que
não o é e como tal é depreciada ao ponto de deixar de ser considerada como tal (“a
! inatividade”). A percepção da “velhice” como um “encargo” a ser suportado e como
; um custo para o grupo familiar é tanto mais forte na classe operária quanto menores
i são os meios à disposição das famílias.
j A maior parte das pesquisas da época descreveram as condições miseráveis dos
j operários idosos. No final do século XIX, mais da metade da população urbana com
| idade superior a 65 anos não recebia pensão, nem salário, sendo que o encargo da
maior parte dessas pessoas era assumido pelos filhos ou instituições de assistência.
Nesse aspecto, podemos lembrar que mais de 40% dos asilos foram construídos no
século XIX contra 26,5% antes de 1800,23,3% entre 1900 e 1944, e 9,3% entre 1945
e 1970; além disso, a maior parte desses estabelecimentos foram criados ou finan-
| ciados, em parte, por fundos privados, muitas vezes provenientes das famílias de
I industriais ou de banqueiros. _____________________________________________

De fato, a passagem de um m odo de sucessão segundo o qual as relações


entre gerações eram diretam ente controladas pelos pais, para um modo em
que o acesso às posições de poder e aos bens é feito cada vez mais pela
mediação de diplomas e concursos, teve como efeito transform ar o âmbito
das relações entre filhos e pais e modificar a definição do conteúdo e da
intensidade das trocas entre eles, em suma, das obrigações recíprocas. Além
disso, um grande núm ero de campos que, tradicionalm ente, eram da alçada
da família e contribuíam para que ela existisse como grupo, foram, pouco
a pouco, delegados a instituições e a um pessoal especializado. Assim, a
guarda e educação das crianças são confiadas, desde a mais tenra idade, à
escola; o acesso dos jovens ao mercado do trabalho é cada vez mais garantido
pela via do concurso ou por agências de emprego; os empréstimos aos casais
jovens podem ser concedidos por instituições financeiras; enfim, a m anu­
tenção m aterial da velhice é, daí em diante, garantida por caixas de aposen­
tadoria e estabelecimentos especializados, etc. Tal transferência tende a
limitar, por uma parte variável segundo as classes sociais, o poder que os
pais exerciam sobre os filhos48.
Uma parte dos fundam entos da unidade e da estrutura do grupo familiar
encontra-se, assim, abalada e o que dava lugar a trocas e negociações de

48. R. Lcnoir (1985), aUeffondremeni des bases sociales du famiiialisme”, in Actes de la reckerche en Sciences
socialesy n° 57-58, junho de 1985, p. 69-88.

82
pessoa a pessoa tende, daí em diante, a ser assumido por instituições que
atuam segundo um a lógica própria.
Nesse aspecto, a família camponesa constitui um caso típico da
solidariedade que organiza entre as gerações e da qual é o produto:
apóia-se em um patrimônio que é, ao mesmo tempo, um meio de
produção, um meio de existência e o símbolo da posição social da
linhagem. A crise da sucessão no meio camponês permite fazer
aparecer o princípio da transformação das relações de força entre
gerações no interior da família. Sem dúvida, mais do que nas outras
categorias sociais, em particular assalariadas, nas quais a entrada dos
jovens no mercado do trabalho não obriga os pais a se aposentarem,
a velhice, entre os camponeses, chega através dos filhos que, para se
tornarem chefes da empresa familiar, necessitam da retirada, pelo
menos parcial, dos pais. No caso desses pequenos empresários fami­
liares, a sucessão parece, com efeito, confinada em uma alternativa e
se apóia em um equilíbrio sempre frágil; ou os pais conseguem
conservar a autoridade sobre os filhos e os mantêm o mais longamen­
te possível como “ajudantes familiares”, ou então os filhos, para
tomarem mais cedo a sucessão, necessitam da renúncia antecipada
dos pais à gestão do patrimônio. No meio rural, a idade em que os
filhos tomam o lugar dos pais depende do estado das relações de força
entre gerações que, por sua vez, dependem da possibilidade dos filhos
“saírem” da empresa familiar, isto è, exercerem uma profissão e terem
condições de se estabelecer alhures. Assim, o acesso generalizado dos
filhos de camponeses ao primeiro ciclo do ensino secundário* trans­
formou as relações de poder no interior do grupo familiar camponês,
modificando a divisão do trabalho de educação entre a família e a
instituição escolar, favorecendo as comparações com os jovens das
outras classes sociais, enfim e sobretudo, dotando as jovens gerações
de um capital escolar.
Com efeito, o único futuro possível dos filhos de camponeses já não
é o de continuarem camponeses ou, quando tivessem de abandonar
a terra, o de subproletários. Tornar-se camponês, enquanto ajudante
familiar, pressupõe uma expectativa percebida, daí em diante, como
demasiado longa. Tanto mais que, em decorrência do desenvolvi­
mento das indústrias locais e da reviravolta das atitudes em relação
às profissões citadinas, estão em condições de considerar a possibi­
lidade de se tornarem operários ou empregados, isto é, “assalariados”,

* N.T.: Corresponde ao período entre a 5ae a 8a séries.

83
com todas as vantagens relativas que tal situação implica em relação
às “servidões” da condição camponesa (independência material pre­
coce, férias semanais, tempo fixo de trabalho cotidiano, etc.). Desde
então, a sucessão tardia deixa de ser evidente e os filhos encontram-se,
assim, em posição de negociar as condições da eventual retomada da
empresa familiar por uma espécie de “chantagem de irem embora”,
com o objetivo de abaixar a idade em que os pais devem se retirar4950.

Em bora um problem a social seja, como toda problem ática sociológica,


o produto de um a construção, acontece que seus princípios são diferentes.
Um problem a social não é somente o resultado do m au funcionam ento da
sociedade (o que pode levar a pensar na utilização, por vezes abusiva, de
termos como “disfunção”, “patologia”, “transgressão”, “desorganização”,
etc.), mas pressupõe um verdadeiro “trabalho social” que compjreende-duas
etapas essenciais: o reconhecim ento e a legitimação d a ^ r ó b le m a ” como
tal. Por um lado, seu “reconhecim ento” : tornar visível uma situação parti­
cular, torná-la, como se diz, “digna de atenção”, pressupõe a ação de grupos
socialm ente interessados em produzir um a nova categoria de percepção do
m undo social a fim dê agir e m sõ b re o mèsmõ^. PõFõTftro ladõTsualegiti-
mação: esta nãõ é necessariamente induzida pelo simples reconhecim ento
público do problem a, mas pressupõe uma verdadeira operação de promoção
para inseri-lo no campo das preocupações “sociais” do m om ento. Em suma,
a essas transform ações objetivas, sem as quais o problem a não seria levado
em consideração, acrescenta-se um trabalho específico de enunciação e
formulação públicas, ou seja, um a operação de mobilização: as condições
sociais de tal mobilização e de seu sucesso constituem um outro aspecto da
análise sociológica dos problemas sociais.

3. A G Ê N E S E SO C IA L D E U M PR O B LEM A SO CIA L
O trabalho de formulação pública pode surgir da iniciativa dos atores
do próprio campo político que, na constituição de um problem a social,
encontram um a causa de interesse geral a ser defendida. Assim, a luta que,
ao longo de todo o século X IX , opôs os representantes da burguesia
industrial aos da aristocracia conservadora a propósito dos sistemas de

49. R Champagne (1979), “Jeunes agriculteurs et vieux paysans. Crise de la succession et apparition du
‘troisième âge'”, in Actes de la recherche en Sciences sociales, n° 26-27, abril de 1979, p. 83-107.
50. E. Goffman (1963), Stigmate, trad. de Alain Kihm, Paris, Éd. de Minuit, 1975.

84
proteção social, em particular das aposentadorias dos operários, não des­
pertava o interesse daqueles em favor de quem o problem a tinha sido
levantado, como é testemunhado pela ausência de reivindicações e manifes­
tações populares sobre esse tema51. No entanto, embora tenha sido, sobretudo,
a ocasião e o pretexto de lutas políticas que não se limitaram a encontrar
soluções para o problem a, este acabou sendo formulado de forma pública,
isto é, enunciado e integrado na problem ática política do m omento.
Essa integração pressupõe, quase sempre, um trabalho prévio de
tomada de consciência e de formulação que não é imediatamente
perceptível quando, no século XIX, a velhice da classe operária foi
constituída como problema social. Com efeito, somente um mínimo
de segurança, garantida pela permanência do emprego, regularidade
do salário, etc., favorecendo a organização da vida cotidiana, permite
o aparecimento de uma percepção racional do mundo e autoriza a
formação de projetos e previsões, em suma, uma certa previdência em
relação ao futuro que constitui, entre outras coisas, o objeto das
reivindicações em matéria de aposentadorias5253. Na França, tais con­
dições não serão garantidas antes do final do século X IX e somente
em favor das categorias mais bem aquinhoadas da classe operária.

3.1. Pressão e expressão


Um estudo sobre a transform ação do direito da família e do trabalho
das m ulheres, nos anos 1955-1975 , perm ite revelar essas operações que
precedem a formalização jurídica das soluções para um problem a social.
Com éfeito, na origem, a revolta contra o estatuto da mulher, tal como era
definido no código civil de 1804 (apenas modificado um século e meio mais
tarde), traduziu-se, antes de tudo, em práticas cotidianas de certas catego­
rias de m ulheres e foi sentida mais sob a forma de um m al-estar confuso,
impreciso e relativam ente indeterm inado, e para retom ar um a metáfora
química, como em estado de suspensão. Essa espécie de distúrbio quase
incom unicável verbalm ente - mas com partilhado por num erosas m ulhe­
res, cuja posição social e nível escolar se tinham elevado, em média, desde
o início do século XX - encontrou, sobretudo após a guerra, um a forma de
expressão pública entre os “especialistas do inefável” como são, m uitas
vezes, os romancistas, neste caso as romancistas.

51. M. Perrot (1974), Les Ouvriers en grève. France 1871-1890, Paris - Haia, Mouton, 2 vols.
52. E Bourdieu et a i (1963), Travail et travailleurs en Algérie, Paris - Haia, Mouton.
53. R. Lenoir (1985), “Transformations du familialisme ct reconversions morales", in Actes de la recherche en
Sciences sociales, n° 59, setembro de 1985, p. 3-47.

85
No entanto, é sobretudo o rápido desenvolvimento da “im prensa femi­
nina” (Elle, Marie-Claire são publicadas nesse m om ento, etc.) que, para
prosseguir a metáfora, precipitou e solidificou essa espécie de “doce m elan­
colia” familiar de caráter fem inino, definindo-a não tanto sob a forma de
reivindicações do tipo jurídico, mas servindo-se de modelos da arte de viver
ou não viver, prestando-se à identificação, quer se trate da apresentação de
si (moda, tratam entos prodigalizados ao corpo, etc.), da vida doméstica
(cozinha, decoração, recepção, etc.), ou da moral (sexualidade, m aneira de
educar os filhos, atividades profissionais, etc.).
O mesmo é dizer que delinear a gênese de um problem a social pressupõe
o estudo desses interm ediários, culturalm ente favorecidos, e que desempe­
nham a função de porta-vozes. Por esse fato, podem ser considerados como
representantes, senão de um grupo social, pelo menos de um a causa im pli­
citamente com partilhada; além' disso, contribuem para sua explicitação.
Acontece que essa form a de pressão, como é a expressão pública, traz a
m arca socialmente determ inada dos homens e m ulheres que têm acesso às
diferentes mídias, de modo que o sociólogo não pode fazer a assimilação
dos discursos organizados, quase sistemáticos e coerentes, peculiares a
certas categorias sociais, até mesmo a profissionais, com as formas de
revolta, sentidas, mas não verbalizadas e tematizadas.
No caso das reivindicações feministas, tais discursos são proferidos,
sobretudo, por m ulheres que não somente tinham acesso aos meios de
expressão pública (escritoras, jornalistas, advogadas, professoras, médicas,
etc.), mas tam bém a posições sociais que lhes perm itiam falar - publica­
m e n te -a respeito da crise a que estavam subm etidas e as soluções desejadas
para superar tal situação. Encontram o-nos, aqui, em um caso extremo em
que problemas que existem na vida particular, sob forma de “problemas
pessoais”, como se diz, acabam se transform ando em “problem as de socie­
dade” : tornaram -se públicos não tanto graças aos meios de informação e
formação a que essas m ulheres têm acesso, mas graças à sua própria posição
que lhes perm itia, de saída - à m aneira do “profeta exemplar”, segundo Max
Weber - fazer de sua “pessoa” um exemplo, apresentar-se como exemplo,
dirigindo-se ao “interesse pessoal dos que sentem a ardente necessidade de
serem salvos e comprom etê-los a seguir a via trilhada por ele”54.
No lado oposto, outras categorias não dispõem de meios sociais, nem
dos instrum entos de acesso à expressão pública, pelo menos sob sua forma

54. M. Weber (1922), op. cit.

86
verbal. O caso das “pessoas idosas” é, particularm ente, interessante na
m edida em que fazem parte dessas “categorias estigmatizadas” - como são
designadas por Erving Goffman - “incapazes de um a ação coletiva” e
“obrigadas a se subm eter”, para serem reconhecidas e ouvidas como tais, a
uma “organização superior”55. Apesar de algumas tentativas (“congressos”,
“estados gerais”, etc.) prom ovidas com o objetivo de organizar um a repre­
sentação do tipo democrático, os representantes das “pessoas idosas” são
sobretudo “experts”, cuja competência é oficialmente reconhecida e remete
a uma especialidade constituída como científica, a saber, a “gerontologia”56.
Como em relação ao m ovim ento fem inista, esses especialistas foram
levados a form ular um a nova definição da velhice (uma nova m aneira de
ser “velho”; neste caso, de preferência, um a forma de não o ser) que
correspondería, por um a parte, à dem anda que poderiamos cham ar “iden-
titária” de novas categorias sociais de “pessoas idosas” cuja velhice já não
era assumida pela família, mas pelos sistemas de aposentadoria. Essa nova
imagem da velhice (“a terceira idade”) pressupôs um trabalho de categori-
zação que consistiu, principalm ente, em eufemizar o vocabulário utilizado
para designar os “velhos”. Tratava-se de dar um nom e, isto é, tom ar público,
o que tinha sido, até então, recalcado e não podia se exprim ir oficialmente.
Um outro exemplo 'é o do aborto. No m om ento em que a autorização do
aborto foi objeto de um debate público, essa noção foi substituída pela
expressão “interrupção voluntária da gravidez”, e depois por “IVG”, sigla
que tem como particularidade excluir todas as conotações semânticas pejora­
tivas.
A constelação semântica tradicional que designa a velhice - de fato,
a das classes populares, a única de que se falava publicamente, ainda
nos anos 50, com seus “velhos sem recursos”, seus “entrevados” e seus
“enfermos senis”, abandonados nos “asilos” - apaga-se em benefício
de uma outra que tende a exprimir a forma como ela é considerada
nas classes médias com suas “pessoas idosas” (por vezes, designadas
simplesmente pelas iniciais “p.a.”** ou “3.A”**): essas pessoas com
“idade avançada” ou “idade de ouro”, moram nos “lares do sol” ou
nas “residências-luz”, “se distraem” nos “clubes da terceira idade”
ou seguem cursos nas “universidades da terceira idade”.

55. E. Goffman (1963),.Sngmató, op. d/., p. 36-40.


56. R. Lenoir (1984), “Une bonne cause. Les ‘A ssises des retraités et des personnes ágées’", in Actes de la
rechercke en Sciences socialesy n° 52-53, junho de 1984, p. 80-87.
* N.T.: Sigla de “personnes âgées'\ ou seja, pessoas idosas.
** N.T.: Sigla de "troisième ãge ”, ou seja, terceira idade.

87
Sem dúvida, a produção propriam ente dita de um certo tipo de neces­
sidades (em especial, a necessidade de atividades culturais e psicológicas
que, no essencial, formam o conteúdo da expressão “terceira idade”) resulta
da transformação das relações entre gerações (abaixam ento da idade da
aposentadoria, dim inuição do campo das profissões familiares e de sua
duração, etc.). Q uanto ao trabalho político, irá consistir, principalm ente,
em nomear, isto é, designar de forma oficial tais necessidades e, por conse­
guinte, perm itir que se exprimam de forma legítim a e legal.
Portanto, o discurso sobre a “terceira idade” não é um simples discurso
de acom panham ento de processos objetivos. Exerce, tam bém, um efeito
peculiar de legitimação que, por um a parte, contribui para acelerar esses
processos na m edida em que tenta operar a reclassificação sim bólica de
gerações socialmente desclassificadas. O trabalho de classificação efetuado
por agentes que têm tam bém, quase sempre, o encargo da gestão cultural e
psicológica da velhice - e, por isso mesmo, são sem dúvida os prim eiros
interessados na classificação que im põem - tem como conseqüência, senão
por função, “norm alizar” um “problem a social”, isto é, fazer aceitar como
“norm al” um novo estado das relações entre gerações, nem que fosse pelo
fato de lhe dar um nom e oficial e inventar novas norm as que orientam a
vida cotidiana e as atividades associadas a essa “nova idade da vida”.

3.2. Força do discurso e forças sociais


A análise do discurso, das representações que veicula e das pretensões
que formula, é inseparável do estudo dos que o enunciam e das instaric^snas
quais é pronunciado ou publicado. Do ponto de vista sociológico, esses fatores
sãoüslnesmos que dáóforça e eficácia a essa forma particular de expressão que
é o discurso; aliás, não seria possível isolá-lo dos outros instrumentos que
visam dar uma certa “consistência social” a determinadas reivindicações. Se é
verdade que a força (e o sentido) de um discurso resulta, por uma grande parte,
das características daquele que o faz, é importante também nos interrogarmos
sobre a “representatividade” do porta-voz e de sua capacidade para “mobilizar
a opinião”. Assim, o estudo deve incidir sobre todas as formas de mobilização
e condições que os tornam possíveis e têm como efeito credenciar a causa, em
particular, junto aos poderes públicos.
De fato, para que um “problem a” tome a forma de um problem a social,
não basta que encontre agentes socialmente reconhecidos como com peten­
tes para exam inar sua natureza e propor soluções aceitáveis; ainda será
preciso, de alguma forma, impô-lo no cenário dos debates públicos. Por
exemplo, a denúncia da condição da m ulher pelos m ovim entos feministas
nos anos 1960-1970, foi acom panhada por um trabalho de mobilização. Tal

88
fenôm eno pressupõe um a instrum entação social elaborada, como a criação
de “grupos” cujas funções são, sim ultaneam ente, materiais (divisão do
trabalho de informação e difusão) e simbólicas (dar a enunciados singulares
a força de um “trabalho coletivo”).
Isso equivale (pelo m enos, em um prim eiro tempo), a garantir e confir­
m ar as “convicções”, como afirma Max Weber, por meio desse conjunto de
técnicas de integração social e intelectual que vão das “pequenas reuniões”
aos “m eetings” e da redação de folhetos e slogans ou de brochuras à
publicação de revistas especializadas. Os “m eetings” e as manifestações
exibem-se de form a oficial, desenrolam-se em espaços públicos e visam
tom ar-se um “acontecim ento comentado por todo o m undo”, em particu­
lar, fazendo apelo, determ inante em nossos dias, à im prensa57(cf. cap. IV).
No processo de constituição da “terceira idade” como problem a social
- e apesar de tom ar um a outra forma - encontram os esse trabalho coletivo
de imposição de um a identidade social específica. No entanto, diferen­
tem ente do “m ovim ento fem inista”, emanou não tanto de associações de
defesa de aposentados ou de pessoas idosas - quase sempre, lim itando-se a
existir, como se diz, “no papel” - mas das diferentes categorias de profis­
sionais da gestão da velhice (trabalhadores e anim adores sociais, gerontó-
logos, geriatras, etc.) que, nessa ocasião, desem penharam um papel
homólogo ao dos “m ilitantes”. Com efeito, são eles que, habitualm ente,
estão na origem de tais associações, redigem e difundem as brochuras e
revistas, participam de todas as manifestações em que são apresentadas
reivindicações específicas, assinalando a existência social do “grupo” e, ao
mesmo tempo, a im portância política do problem a que ele coloca.

3.3. Consagração estatal e trabalho de legitimação


É por um processo de consagração estatal que determ inados problemas
da vida particular e apenas tematizados são transform ados em problemas
sociais que exigem soluções coletivas, m uitas vezes sob a forma de regula­
mentações gerais, direitos, equipam entos, transferências econômicas, etc.
Tais soluções são elaboradas, quase sempre, po r “especialistas” benévolos
ou profissionais. Um a das fases essenciais da constituição de um problem a
como problem a social é justam ente seu reconhecim ento como tal pelas
instâncias estatais.
Assim, o sociólogo deve recensear os espaços nos quais se elaboram essas
“políticas” (como as comissões do Commissariat Général du Plan, as das

57. R. Lenoir (1985), “Transformations du familialisme et reconversions morales”, loc. cit.

89
assembléias parlam entares ou do Conseil Économique et Social, etc.), descre­
ver as características dos agentes que contribuem para a definição das
m edidas, sendo que estas ficam devendo sempre um a parte de seu conteúdo
às características sociais e profissionais desses “especialistas”. Assim, estão
criados os meios de apreender um dos princípios da evolução das políticas
em determ inado setor, no pressuposto de que podem m udar os agentes
envolvidos e as relações de força que os ligam.
Pelo fato de se tratar de um desafio com m últiplas dimensões, sobretudo
econômicas, mas tam bém profissionais e morais, a análise da consagração
oficial dos “problemas da velhice” revela, pelo menos, duas formas de
legitimação que se com binam e reforçam m utuam ente: a consagração pelos
“sábios”, isto é, principalm ente pelos m embros da alta função pública e o
reconhecim ento pelos “experts”.
Com efeito, a invenção da “velhice” como um a categoria da ação política
(fala-se de “política da velhice” que é elaborada e aplicada por instâncias
m inisteriais criadas especificamente para tal fim) é típica desse trabalho de
reconhecim ento, unificação e oficialização, em suma, de normalização que,
em grande parte, define a ação política estatal.
No início dos anos 60, o governo criou uma “Comissão de estudo dos
problem as da velhice”. Em relação às que a tinham precedido, que não
reuniam m em bros tão elevados na hierarquia profissional respectiva e não
dispunham de meios m ateriais e simbólicos tão im portantes, essa comissão
reagrupava as personalidades mais im portantes dos setores interessados
pelo problem a não da “velhice”, mas do “envelhecim ento”.

A COMISSÃO DE ESTUDO DOS PROBLEMAS


DA VELHICE (1960-1962)
A análise do processo pelo qual determinadas ações, até então isoladas e dispersas,
empreendidas em geral por trabalhadores da área social, obtêm o estatuto de
medidas políticas com a força e a visibilidade que estão associadas a tudo o que é
oficial, é importante para compreender o que está em jogo na construção de um
problema social. No entanto, tal transmutação não teria sido tão rápida se não tivesse
constituído o objeto de uma consagração oficial por uma dessas novas instâncias de
legitimação da ação social, instância que se poderia chamar político-administrativa.
Tal é o caso da “Commission d’étude des problèmes de la vieillesse”58.

58. Comission (Tétude des problèmes de la vieillesse (1962), Politique de la vieillesse, Paris, La Documentation
française. Este relatório é freqiientemente designado por “rapport Laroque” - nome do presidente da
comissão.

90
Diretamente ligada ao primeiro-ministro, reuniu em volta de Pierre Laroque -
presidente da seção social do Conseil d’État e principal responsável pela instalação,
em 1945, da seguridade social - os dois especialistas mais capacitados e famosos em
assuntos relativos ao envelhecimento: François Bourlière, titular da primeira cáte­
dra de geriatria na faculdade de medicina de Paris, e Alfred Sauvy, professor no
Collège de France e diretor do Institut national d’études démographiques (INED). Ambos
participaram - muitas vezes, como promotores - da maior parte dos colóquios sobre
o envelhecimento, desde a realização do primeiro, em 1948, subordinado ao tema
“Joumées scientifiques sur le vieillissement”. Além disso, fizeram parte dessa
comissão o presidente diretor geral de uma companhia de seguros, o comissário
adjunto do Commissariat général duplan, vários especialistas em ciências sociais que
foram encarregados de empreender pesquisas sobre os diferentes aspectos das
condições de vida das pessoas idosas (Pierre Chevry, diretor adjunto do INSEE;
Louis Chevalier, professor de história no Collège de France\ Pierre George, professor
de geografia na Sorbonne; assim como Jean Fourastié, economista, professor no
Conservatoire national des arts et métiers). Apesar da comissão ter contado com a
participação de representantes dos diferentes ministérios interessados, sobretudo,
pelo destino das pessoas idosas das classes populares, a “política da velhice” adotada
na seqüência do “rapport Laroque” aplica-se “não somente às pessoas idosas mais
desfavorecidas..., mas também ao conjunto da população idosa” (p. 215); além disso,
não se limita a olhar pelos idosos indigentes, mas se preocupa com a “inserção das
j pessoas idosas na sociedade” (p. 9).

Essa problem ática do “envelhecim ento” (dito do “envelhecimento de­


mográfico”) está apta a se tornar um a “causa nacional”, como a da crise da
natalidade da qual é o com plem ento. Como no caso do sistema de assistência
tradicional, já não se trata de aperfeiçoar as condições miseráveis de vida
das pessoas idosas sem recursos e dos indigentes - o que teria mobilizado
outros agentes especializados, tais como assistentes sociais, médicos de asilo
ou de centros de saúde, responsáveis pelos organismos de beneficência e de
obras caritativas, etc. - mas de resolver um problema definido como um
questionam ento da reprodução da sociedade e da perpetuação do grupo
nacional (e da ordem social a que está associado). Com efeito, o “envelhe­
cim ento” é concebido como um “perigo” nacional, o que fornece a uma
certa categoria de agentes a ocasião de exercer uma espécie de m agistratura
metapolítica em campos relativam ente pouco constituídos do ponto de
vista político.
A essa mudança de “problem ática”, isto é, de uma visão estatal da ordem
das coisas - cujas categorias são, atualm ente, m uito mais “econômicas” do
que “m orais” - corresponde, não som ente um a transformação do sistema
dos agentes interessados em resolver o “problem a”, mas também o estatuto
daqueles a quem é confiada a função de definir o conteúdo da “política” a

91
ser seguida, em particular, no campo político. A “gravidade” do problem a
(“perigo”), o tam anho da população (o conjunto das “pessoas idosas”), a
m ultiplicidade dos setores envolvidos (economia, saúde, seguridade social,
etc.) são outros tantos fatores que m obilizam tais “personalidades públicas
incontestáveis, tanto em sua profissão - encontram -se no mais elevado grau
da respectiva hierarquia profissional - quanto em sua m aneira de ocupar o
espaço público - são “técnicos” e não “políticos”. No entanto, diferentemente
de seus pares, esses “profissionais” exerceram tam bém, quase sempre,
funções públicas e adm inistrativas, quer se trate da diretoria de grandes
organismos adm inistrativos ou de grandes associações com vocação de
ordem moral. Em suma, eles é que são designados por “sábios”, isto é,
espécie de “generalistas” dos problem as sociais.
A nova representação da velhice deve um a parte de sua força ao fato de
que se encontra caucionada por certos agentes do campo científico - na área
da m edicina e das ciências sociais - e apóia-se na difusão de uma “vulgata
gerontológica” correlativa da institucionalização recente da gerontologia
como disciplina “científica”. A gerontologia confedera as diversas especia­
lidades que se foram constituindo em volta do tratam ento da velhice. N o
entanto, inversam ente, a consistência e a força dessa nova “especialidade”
deve-se, sem dúvida, não tanto aos fundam entos propriam ente científicos
e reconhecidos como tais pelo conjunto do campo científico, mas à neces­
sidade de um a nova crença coletiva que tem a ver com a transformação das
relações entre gerações e à autonom ização da gestão da velhice resultante
daí, increm entada por esses “especialistas”.
Se a nova representação coletiva da velhice tomou as aparências da
ciência é porque esta se tornou um modo legítim o de representação do
m undo social. Nesse aspecto, a gerontologia é exemplar dessas “morais
científicas” que acom panham a instalação das instituições de gestão dos
“problem as sociais”. Um dos indícios da fraca “autonom ia” de tais disci­
plinas em relação à dem anda adm inistrativa é a própria definição de seu
objeto. São sem pre decalcadas a partir da m atriz juridicam ente determ i­
nada das instituições; aliás, m uitas vezes, não passam da emanação das
mesmas. Com efeito, as definições dessas “especialidades”, tais como a
gerontologia, a crim inologia, a ergonom ia, etc., são construídas segundo os
próprios princípios dos modos burocráticos de gestão das relações sociais,
a saber: a formação de “populações” dotadas ou privadas de direitos social­
m ente garantidos pelo Estado. Tal adequação entre o objeto científico e o
objeto jurídico encontra-se, talvez, na origem da representação “realista”
dos objetos subm etidos à formulação científica, à qual estão inseparavel-

92
m ente ligados o crédito e os créditos: “aposentados”, “acidentes de traba­
lho”, “mães celibatárias”, “famílias num erosas”, etc.
Nas lutas pela imposição da definição legítima do objeto científico, o
fato de “ter a realidade em seu favor”, como dizia Gaston Bachelard, é uma
arma cujo valor é inestimável junto aos responsáveis administrativos. Estes
exigem que os especialistas em ciências sociais sejam “realistas”. Tudo o
que lhes pedem é o que faz, em bora de outra forma, o direito - e, nesse caso,
em ligação com ele - de proceder a um trabalho de racionalização e justificação
da decisão. Esse trabalho consiste em dar a medidas administrativas e
políticas o estatuto de decisões justas, isto é, racionalm ente justificadas. Em
retorno, tais especialistas são consagrados, senão pela “realidade”, ao menos
pelos agentes cujos atos, pela posição ocupada, têm o poder de “concreti­
zar”, em particular graças aos meios financeiros de que dispõem, as repre­
sentações elaboradas e legitimadas por esses especialistas.
Por exemplo, a invenção pelos gerontólogos de uma nova repre­
sentação do período que começa com a aposentadoria, como “as
grandes férias da vida”, favoreceu o rápido desenvolvimento da
indústria do lazer (ou, de qualquer modo, de uma rentabilização
maior dos investimentos nesse setor) desenvolvendo a utilização,
durante a baixa estação, de equipamentos cuja freqüentação é, habi­
tualmente, sazonal. Aliás, o mercado das “férias da terceira idade”
não se teria desenvolvido tanto, se não tivesse sido tão amplamente
subvencionado pelas municipalidades e caixas de aposentadoria que
se encarregaram de garantir sua publicidade, prospectar sua clientela
e financiar uma parte das despesas.

Assim, ao defender que “o estado norm al da terceira idade é o lazer”, o


gerontólogo contribui com sua parte para o crescimento das empresas de
lazer. Em retorno, ao criar serviços especificamente destinados à “terceira
idade” - levando essa expressão a entrar nas categorias de percepção do
senso comum - os agentes do campo econômico reforçam a posição de tais
especialistas que, no desenvolvim ento desse novo mercado, vêem a confir­
mação, à m aneira de um plebiscito, das necessidades que, em parte, são o
produto de suas análises e pesquisas.

3.4. O especialista e o sociólogo


Não se trata de uma novidade convocar especialistas para assessorar as
instâncias adm inistrativas. Robert Castel descreveu a evolução da lógica
que conduz tais instâncias a recorrer a especialistas, cuja função era, na

93
origem, “avaliar determ inada situação a partir de seu saber peculiar”59. Eis
o que caracterizava tal intervenção: a competência mobilizada, o “capital
de perícia”, era independente em relação aos interesses da instituição que
fazia apelo a esse serviço.
O caso-lim ite desse aspecto técnico da relação de perícia é o do contador
a quem a autoridade judiciária pede para fazer o balanço financeiro de uma
empresa. É tam bém o caso do especialista em balística. É a p artir dessa
“relação de serviço” entre duas instituições que se constituiu a perícia
enquanto “instância de legitimação”. Robert Castel, cuja análise é reprodu­
zida aqui, utiliza o exemplo do recurso ao relatório psiquiátrico pelos
tribunais - no meio judiciário, tal prática veio a impor-se no início do século
XIX.
O recurso explica-se por uma contradição interna ao funcionamento
do aparelho judiciário. Para ser punido, segundo o código penal, é
necessário ser responsável por seus atos. Quando um ato foi cometido
em condições tais que parece ter sido realizado fora de qualquer
racionalidade, o tribunal deve se pronunciar, mas os critérios sobre
os quais se apóia para fundamentar seu julgamento não podem ser
pertinentes para a instituição jurídica. O recurso ao “expert”, isto é,
a um agente dotado de uma competência específica externa à da
instituição que faz apelo a seus serviços, irá permitir que ela possa
sair dessa contradição. “Ao dizer, prossegue Robert Castel, que o
acusado é ou não responsável (e ao constituir um saber para fazer tal
afirmação, ao construir conceitos como o de monomania, etc.), o
especialista-médico irá permitir que o aparelho judiciário funcione
segundo sua própria lógica, isto é, condenar “com toda justiça” ou
renunciar ao processo com boa consciência, conforme o ato incrimi­
nado entre ou não em suas próprias categorias”.
Vemos que, neste caso, trata-se de uma relação de serviço: o especia­
lista não está constituído, aqui, como “decididor”. Transmite um
parecer que será ou não utilizado pelos demandantes de tal serviço.
N o entanto, até mesmo no caso em que “o parecer não compromete”,
como se diz em direito, o conteúdo da perícia acaba influenciando a
decisão. De modo que a legitimidade judiciária tende a se apagar
diante da legitimidade da perícia. “De forma mais exata, apóia-se em
uma legitimidade da perícia, contentando-se em reformulá-la segun­
do seu próprio código”. No que diz respeito aos problemas sociais, o

59. R. Castel (1985), “Üexpert mandatéetrexpcrt instituam”, inSituations d ’expertise et socialisation des savoirs,
Ata da mesa-redonda organizada pelo CRESAL em março de 1985, p. 84-92.

94
especialista - quase sempre médico, psicólogo ou sociólogo - é assim,
muitas vezes, o agente que, em última análise, tem a autoridade
legítima para definir as categorias de classificação dos indivíduos e
para reconhecer, nestes últimos, os sintomas e indícios corres­
pondentes a tais categorias.

Assim, a perícia “instituinte” exerce um a espécie de magistério, certa­


m ente, baseado em um saber (o “capital específico” do especialista), mas
que produz “fatos norm ativos”, classificações e desclassificações que têm
um estatuto de direito. Por conseguinte, esse m andato do especialista não
é essencialmente um m andato técnico, mas um a capacidade para definir
normas. “Não serve de árbitro entre opções técnicas, mas entre escolhas de
valores”. Assim, encontram os exatam ente a mesma lógica a propósito das
decisões de orientação nas seções especializadas de educação60, ou na utili­
zação dos testes de inteligência para a orientação escolar61.
Desse modo, o aparecim ento de um problem a social resulta de duas
séries de fatores: das transformações que afetam a vida cotidiana dos
indivíduos na seqüência de diversas reviravoltas sociais e cujos efeitos
diferem segundo os grupos sociais; no entanto, essas condições objetivas
apenas dão origem a um problem a social quando este chega a receber uma
formulação pública. Tal fenômeno remete à segunda série de fatores (traba­
lho de evocação, de imposição e de legitimação) que acabam de ser lembra­
dos. Resta um a terceira fase: o processo de institucionalização que tende a
im obilizar e fixar as categorias segundo as quais o problem a foi colocado e
resolvido ao ponto de torná-las evidentes para todos.

4. A IN S T IT U C IO N A L IZ A Ç Ã O
O obstáculo a um a análise propriam ente sociológica não se deve tanto
à complexidade do objeto, mas às condições sociais de seu estudo. O
sociólogo encontra-se diante de representações já constituídas que têm
diversas formas: apresentam -se não somente no estado de discurso, erudito
ou político-m oral, mas também no estado de instituições como sistemas de
retribuição ou redistribuição, equipam entos, etc. São outros tantos fatores
que contribuem para im por ao sociólogo a definição de seu objeto. Por

60. G. Balazs, J.-E Faguer (1986), “Un conseil dc classe particulier”, in Actes de la recherche en Sciences sociales,
n° 62-63, junho de 1986, p. 115-117.
61. F. Muel-Dreyfus (1975), “Uécole obligatoire et la naissance de 1’enfance anormale”, in Actes de la recherche
en Sciences sociales, n° 1, janeiro de 1975, p. 61-74.

95
consegüinte, ao tentar fazer a sociologia dessas diferentes formas de insti­
tucionalização de seu objeto, é que o sociólogo encontra o instrum ento que
dá toda a força à crítica epistemológica. Nesse aspecto, e para retom ar o
exemplo que nos serviu de fio condutor desde o início, a gestão coletiva da
velhice ainda é típica dessas diferentes formas, a p artir das quais é in stitu­
cionalizado um problem a social, assim como as propostas feitas no sentido
de resolvê-lo.

4.1. A burocratização das relações sociais


A instauração dos sistemas de aposentadoria - e, de form a geral, dos
sistemas de seguro - é característica dos modos de resolução dos problem as
sociais constituídos, desde o final do século X IX , em todos os países
industrializados. O aspecto principal dessa nova tecnologia social é a
transferência para mecanismos, que funcionam segundo as técnicas do
seguro, daquilo que se encontrava, m uitas vezes, na origem da força-m otriz
da vida privada e fam iliar ou, em caso de falência, da caridade e de sua forma
racionalizada, a assistência (o que, então, se designava por filantropia), até
mesmo o que passou a ser designado por ajuda social.
Todos os sistemas de proteção social consistem em um a redistribuição
dos recursos; no entanto, diferentem ente da ação “caritativa”, ato singular
que coloca em relação um particular com outro particular, os seguros sociais
colocam em relação os detentores de direitos com agentes socialmente
m andatados para classificar os indivíduos nas categorias jurídicas corres­
pondentes. No que diz respeito à velhice, o modo tradicional (familiar) de
gestão coloca em relação direta a pessoa idosa com aqueles que tomam seu
encargo; o custo desse encargo e as obrigações correlatas constituem o
objeto de negociações de pessoa a pessoa, levando em consideração a pressão
social favorável aos pais idosos. D aqui em diante, esse tipo de encargo é
substituído por um m odo de m anutenção cuja característica se deve à
mediação anônim a operada, entre os agentes envolvidos, por um a instância
que intervém a p a rtir de mecanismos despersonalizados.
De fato, a instauração de sistemas de pensão tem como efeito confiar
(pelo menos parcialm ente) a m anutenção financeira da velhice a leis esta­
tísticas (as da m ortalidade) sobre as quais se apóia o funcionam ento dos
“regim es” de aposentadoria. Tais regimes estão assentes em “populações”
cujo princípio de constituição não está relacionado, como nos grupos
“ reais” de solidariedade, com “elos pessoais” dos membros que os compõem;
pelo contrário, como em todos os sistemas de seguro, tem a ver com o
estabelecim ento da relação de “dependência m útua” de pessoas que não se

96
conhecem e desconhecem que estão ligadas por tais relações. São “grupos”
nos quais as relações entre os m embros são exclusivamente jurídicas, como
as que são m antidas, por exemplo, pelos acionistas de um a sociedade
anônim a: as relações são definidas pelo direito de se apropriar, em condi­
ções determ inadas e independentes dos indivíduos, de um a parte do capital
colocado em com um que, no caso particular das caixas de aposentadoria, é
formado pelo conjunto das cotizações dos sócios. Esse modo burocrático de
gestão das populações pressupõe a elaboração e reconhecim ento de princí­
pios universais e abstratos de classificação, distinguindo as características
dos titulares de direitos, assim como a produção de agentes especializados
e ajuram entados para aplicar tais princípios.
Para a “velhice”, os critérios adotados são bastante simples: idade,
duração e montante da cotização. Para a “família”, as fórmulas são
mais complexas. São utilizadas duas séries de critérios. A primeira
diz respeito ao “modelo familiar” que deve ser favorecido (a família
“numerosa”, por exemplo, com três filhos ou mais). Com essa finali­
dade, são utilizadas as seguintes variáveis: situação matrimonial (tal
como é definida pelo direito em determinado momento do tempo),
espaço de tempo entre o casamento e o primeiro nascimento, número
de filhos, diferença intergenésica, trabalho da mulher e nacio­
nalidade. Assim, o modelo da família privilegiado pelo Código da
Família de 1939 é o da família de nacionalidade francesa, tendo pelo
menos três filhos e no qual a mãe, casada, permanece em casa. A
segunda série explicita os critérios segundo os quais são pagas e
avaliadas as prestações: dizem respeito à criança (presença, posição e
idade), casamento (existência, duração), nacionalidade e montante
dos recursos. Toda “política familiar” poderia ser definida pela im­
portância que reconhece a este ou aquele conjunto de critérios.

Sem dúvida, as categorias segundo as quais são instituídas as soluções


políticas para os problem as sociais constituem , como nos modos de gestão
anteriores m enos formalizados, um pretexto para lutas entre diferentes
categorias interessadas pela imposição desta ou daquela fórmula. No entan­
to, com este novo m odo de gestão das populações, o essencial da m udança
é que o terreno tende a se deslocar, sendo que as armas tradicionais dos
conflitos políticos dão um espaço cada vez maior para esses confrontos entre
responsáveis político-adm inistrativos e especialistas da instituição. É como
se as transformações da estrutura social (evolução das relações entre as
classes, evolução das relações entre gerações, etc.) fossem, daqui em diante,
mediatizadas pelo que é designado com a expressão “política social”. Com
efeito, a “política” e suas funções sociais não se lim itam à representação

97
jurídica (partidos, parlam ento, governo, etc.) a que estamos habituados,
graças à m ídia e às próprias tecnologias políticas (eleições, debates parla­
m entares, votação das leis, etc.).
A política - principalm ente, “social” - atua de duas maneiras: por um
lado, produz representações que têm um grau de generalidade e validade
legitim ado pela ciência (biologia, demografia, psicologia, sociologia) e
consagrado pelo d ireito, sendo que tais representações são in stitu ­
cionalizadas em num erosos organismos especializados e encarnados por
técnicos cuja competência é reconhecida e garantida juridicam ente; por
outro, atua através da modificação das próprias práticas e através do desen­
volvim ento de um conjunto diversificado de instituições que cobrem certos
aspectos da vida e são utilizadas pelos atores sociais.

4.2. Os discursos das instituições


No entanto, o sociólogo tem de enfrentar, sobretudo, discursos que
tendem a constituir, como especialidade, o fenômeno que estuda. Essa
espécie dt senso comum erudito emerge, m uitas vezes, de disciplinas reconhe­
cidas como científicas que encontram , nesse novo objeto de estudo, uma
nova aplicação. As problem áticas dos diferentes discursos feitos sobre a
velhice refletem, à m aneira das camadas geológicas, ás etapas da evolução
das disciplinas que transform aram a “velhice” em um a especialidade. O
conteúdo de cada um deles corresponde aos problemas encontrados, no
decorrer de seu desenvolvimento, pelas instituições especializadas nesse
campo.
Os prim eiros discursos com caráter científico provêm do campo médico
e, na origem, incidem sobre o envelhecim ento orgânico. No entanto, se o
envelhecim ento fisiológico constituiu, bem cedo, um terreno de estudo e
pesquisa no campo médico, a “gerontologia” (ou a “geriatria”) enquanto
disciplina autônom a das ciências médicas, dispondo de um corpo de saberes
e especialistas reconhecidos, só apareceu, na França, após 1945. Esta disci­
plina lim ita-se a considerar o envelhecim ento como processo contínuo de
usura fisiológica. Tal definição do envelhecim ento encontrou na extensão
da atividade m édica (crescimento e especialização dos médicos e pessoal
param édico, desenvolvim ento dos serviços hospitalares) as condições favo­
ráveis para sua difusão, como é testem unhado, entre outros indícios, pelas
num erosas obras de divulgação gerontológica escritas por médicos, desde
o final dos anos 50. A “vulgata gerontológica” consiste em difundir regras
de higiene corporal e contribui para reforçar a representação do envelhe­
cim ento como um processo individual de enfraquecim ento orgânico.

98
Em seguida, com a instalação dos regimes de aposentadoria (1950), a
problem ática mais especificamente econômica dos demógrafos (desde a
origem, associados à criação dos sistemas de aposentadoria) tende a se
impor, em particular, no campo político-adm inistrativo. Para estes últimos,
trata-se de avaliar o custo da m anutenção da velhice, colocando em relação
a população ativa com a que deixou de ser; nesse caso, a relação “demográ­
fica” é o instrum ento utilizado pelas caixas de aposentadoria para calcular
o m ontante das cotizações de seus sócios e o das pensões pagas a seus
aposentados. Desse ponto de vista, a velhice é assimilada à aposentadoria.
A generalização dos regimes de aposentadoria a categorias sociais que,
até então, não se beneficiam deles, e o abaixamento contínuo da idade da
aposentadoria durante esse período (entre 1954 e 1968, a taxa de atividade
dos hom ens com 65 anos e acima passou de 36,2% para 19,1%) levaram as
caixas de aposentadoria e, em particular, as caixas de aposentadoria com­
plem entar, a enfrentar novas populações com outro tipo de demandas. A
fim de responder a essas novas demandas de serviço, mais culturais e
psicológicas, as caixas fizeram apelo a especialistas em ciências sociais (psicó­
logos e, sobretudo, sociólogos).
A intervenção dos especialistas em ciências sociais no campo dos agentes
de gestão da velhice contribuiu para difundir um a nova problem ática da
velhice, a da “inserção social das pessoas idosas”; assim, o envelhecim ento
é descrito como um processo de dim inuição da vida social, uma “redução
dos papéis sociais”, que desemboca em “m orte social”.
Tais discursos (e as instituições correspondentes) constituem o princi­
pal obstáculo encontrado pelo pesquisador para construir seu objeto, na
m edida em que cooperam para delim itar o campo da pesquisa. Nesse caso,
a velhice é definida como uma etapa do ciclo da vida, identificável como
tal, segundo critérios que diferem segundo as disciplinas intervientes: usura
“biológica” para os médicos, idade “cronológica” para os demógrafos,
ausência de “ funções sociais” para os sociólogos. No entanto, além de tais
divergências, esses discursos contribuem , sobretudo, para credenciar a
representação da velhice como um a faixa etária autônom a com caracte­
rísticas específicas, relacionadas fundam entalm ente com os efeitos da ida­
de. A velhice tom a-se, deste modo, uma faixa etária para os demógrafos (“as
pessoas com 65 anos e acima”), um a categoria m édica para os médicos (os
“entrevados”), enfim, um a categoria social para os sociólogos (as “pessoas
idosas”, os “aposentados”), etc.
Assim, para estudar “a velhice”, o sociólogo é levado, quase inevita­
velm ente, a efetuar um a pesquisa sobre as populações designadas, do ponto

99
de vista social, como “velhas” ou “envelhecidas”, essas mesmas que são
assumidas pelas instituições das quais, m uitas vezes, ele depende financei­
ram ente: por um lado, asilos, lares para aposentados, clubes ou universida­
des da terceira idade; e, por outro, beneficiários de aposentadoria.
Essa autonomização conceituai da “velhice” é, em parte, o produto da
formação de um campo de instituições e agentes que, em luta para imporem
a definição da velhice mais conforme a seus interesses, contribuem - com
seus discursos e as formas “ realizadas” (prédios, serviços, etc.) ou “encar­
nadas” (gerontólogos, geriatras) desse discurso - para transform ar uma
“representação m ental” da realidade, segundo a expressão de D urkheim ,
na realidade. Pela ação que esses agentes exercem sobre os indivíduos,
acabam transform ando as categorias m entais em instituições com a força e
a eficácia do real. Vemos um exemplo desses efeitos na constituição recente
da oposição entre “terceira idade” e “quarta idade”, que corresponde à
chegada de novos especialistas no sistema dos agentes que adm inistram a
problem ática da velhice: ao estabelecerem a diferença entre “quarta idade”
- objeto de acolhim ento e de tratam entos “ fisiológicos” - e “terceira idade”
que exige, sobretudo, “atividades de ordem cultural e psicológica”, eles
tendem a im por novas necessidades e, ao mesmo tempo, a necessidade de
seus serviços.

4.3. A institucionalização de uma nova moral


Enfim , a ruptura com as definições socialmente pré-construídas da
velhice ainda se torna mais difícil devido a esses novos discursos que
acom panham o aparecim ento de novas formas de tratam ento; aliás, estas
correspondem a um a dem anda social cuja manifestação mais aparente, por
ser a mais com partilhada, é a difusão de uma nova moral que rege as relações
entre gerações.
Com efeito, o discurso sobre a “terceira idade” (e a fortiori sobre a
“quarta”) é um discurso de delegação. Os gerontólogos são especialistas
autorizados a falar em nom e da velhice; além disso, ao promoverem novas
formas de consumo e de práticas destinadas às pessoas idosas, contribuem
tam bém para inventar um a nova moral doméstica, isto é, uma nova defini­
ção social do que devem ser as relações entre gerações no interior do grupo
familiar. Os discursos sobre a “terceira idade” legitim am o recurso a essas
novas formas de gestão da velhice como um a solução normal que está se
im pondo com o caráter oficial que lhe dá a consagração política e, atual­
m ente, m idiática.

100
No entanto, se a transformação das atitudes em relação ao tratam ento
coletivo da velhice obteve um tão grande sucesso, como é testem unhado
pelo desenvolvimento dessas novas instituições e, sobretudo, pela rápida
difusão do discurso sobre a “terceira idade”, é porque, pelo menos, em parte,
essas atitudes lhe eram preexistentes. Os idosos que fizeram poupança, em
particular os da classe média, estavam bastante voltados para os filhos: os
pais faziam poupança “pensando nos filhos”; mas, em troca, esperavam que
estes se comportassem como “bons filhos”, isto é, se dedicassem pessoal­
m ente, de forma incondicional, aos pais envelhecidos. Delegar a institui­
ções especializadas a preocupação de tratar dos aposentados e tornar
legítim o o fato de que os pais idosos deixaram de fazer poupança, mas
gastam suas pensões em lazer e férias, tal atitude equivale também a
econom izar uma parte im portante desse trabalho de m anutenção de rela­
ções e afeição que, anteriorm ente, incum bia aos filhos.
N a m edida em que as relações com as gerações idosas comprometem
sempre, em diversos graus, a moral do grupo fam iliar e, portanto, a honra
de seus m em bros, não basta tornar os asilos “mais acolhedores” para que
venham a ser ipso facto uma solução m oral e afetiva mais aceitável. Para que
o abandono das soluções familiares tradicionais não seja assimilado a um
abandono puro e simples pela família (“eles desembaraçaram-se da pessoa
idosa”) ou, pior, a uma espécie de desclassificação (“colocaram-na aí como
um a pobre”), é necessário evitar que o fato de enviar alguém para tais
instituições seja assimilado a uma internação em asilo. A redução do custo
m oral ou afetivo pode, assim, passar pela elevação do custo econômico das
novas formas de tratam ento: a delegação da m anutenção dos pais idosos a
agentes especializados só é possível ao preço, sem pre elevado do ponto de
vista econômico, de uma transformação e de um a transfiguração do asilo
convertido em “residência”, em “casa de saúde e tratam ento m édico”, etc.
No entanto, a variedade e qualidade da oferta de tratamento coletivo
não basta, por si só, para desencadear o processo de liberação do
sentimento de culpa. Com efeito, não é suficiente colocar os pais
idosos em “asilos de luxo” para apagar os interesses, ainda aparentes
demais, dos filhos em relação a essa situação dos pais. Para que o
recurso a tais instituições não apareça, para os próprios indivíduos,
como a expressão pura e simples dos interesses das gerações mais
jovens, é necessário que tal decisão seja preconizada por agentes
exteriores à família e investidos de autoridade, em nome de uma nova
definição do interesse bem compreendido das “pessoas idosas”. As­
sim, apesar da “decisão” de colocar um dos pais em determinada
instituição ser tomada oficialmente pela família, acaba por se apoiar,

101
quase sempre, no “conselho” de um desses ministros oficiosos da boa
ordem familiar como são, segundo as classes sociais, o padre, a assistente
social ou o médico - aliás, este último ajuda não somente com seu
“diagnóstico”, mas também através de seus conhecimentos, para
encontrar um lugar para a pessoa idosa. Ao mandarem agentes insus­
peitos redefinir qual é o interesse das “pessoas idosas” (serem bem
“tratadas” por uni pessoal “especializado e competente”), os indiví­
duos podem adotar soluções conformes a seus próprios interesses,
embora pareça que se limitam a obedecer aos interesses de seus pais.
Conformam-se, assim, à moral e podem tirar os benefícios ligados a
tal conformidade.

Assim, o derradeiro “serviço” que os pais idosos devem prestar a seus


filhos talvez seja, segundo um a expressão utilizada frequentem ente pelos
gerontólogos, não “cúlpabilizá-los”. As novas formas de tratam ento da
velhice operam não somente a gestão dos “velhos”, mas tam bém a gestão
do sentim ento de culpa proveniente do custo “psicológico” do abandono
de pais que se tornaram idosos. “Não se tornar um peso” tal é, em resumo,
o conteúdo dessa m oral da renúncia, difundida pela m aior parte dos
m anuais de “saber envelhecer” e pelas revistas destinadas às pessoas idosas
que se m ultiplicaram ao mesmo tempo que as instituições para a “terceira
idade”.
Sem dúvida, a “política da velhice” oferece um dos exemplos mais
completos de um a das funções assumidas pelo modo político de gestão das
relações sociais: proceder de forma que os antagonismos entre os grupos,
quer se trate das gerações ou de categorias sociais, mais ou menos consti­
tuídas, em determ inado momento, se esfumem e encontrem , como se diz,
um a “solução”, isto é, um “acordo”, sob um a forma jurídica (convenção
coletiva), financeira (subvenção) ou política (reconhecim ento oficial).
N o entanto, a invenção da “terceira idade” e, de forma geral, a consti­
tuição da “velhice” como categoria da ação política faz lem brar que esses
“acordos” pressupõem uma espécie de acordo prévio sobre a sua necessi­
dade, sendo que sua formalização resulta do trabalho propriam ente político.
Um a de suas condições de possibilidade é, entre outras, o aparecimento
dessas noções “grosseiram ente formadas”, segundo a expressão pela qual
D urkheim definia as “pré-noções”. Essas noções “confusas” são o indício,
mas tam bém um dos meios utilizados por essas operações de negociação e
integração social que, em parte, caracterizam a atividade política. Algumas
noções como a de “família”, “velhice”, “emprego”, etc., são tão imprecisas

102
e indeterm inadas que favorecem os reagrupam entos mais amplos possíveis,
elim inando os diferentes sentidos que lhes estão associados.
O impacto dessas políticas “sociais”, que não são de modo algum
mensuráveis em term os de cálculo, embora dêem lugar - por exemplo, no
m omento das eleições - a “ batalhas de núm eros”, podería consistir em
favorecer esses acordos fundam entalm ente ambíguos, ao dar uma certa
“consistência social” a essas expressões cuja polissemia contribui para
reforçar esse em aranham ento de todoá os sentidos que lhes estão associados.
Por exemplo, não chegaríamos a compreender, talvez, o alcance
político que, atualmente, pode ter uma expressão como a de “trabalho
em tempo parcial” se não soubéssemos que ela constitui uma dessas
fórmulas passe-partout que são aceitas por todo o mundo, embora não
lhe seja dado o mesmo sentido. Ela é, ao mesmo tempo, um “modo
de gestão da mão-de-obra” particularmente favorável para o patrona­
to (já que está associado à precariedade de emprego, ausência de
promoção, salário baixo, etc.), uma “medida de política familiar” que
permite “conciliar” a vida profissional e doméstica das mulheres;
enfim, corresponde igualmente - entre certas categorias tanto de
“mulheres”62, quanto de “jovens”63- a expectativas socialmente cons­
tituídas. Também tende a se tornar, pelo menos entre os especialistas,
a solução para os encargos cada vez maiores com a manutenção das
pessoas idosas que são cada vez mais numerosas.

4.4. O positivismo do estado


A constituição de um a situação como “problema social” interessa os
poderes públicos por dois motivos: a essa definição estão associadas “solu­
ções” que o Estado poderá aplicar através de medidas apropriadas; ou tal
situação é suscetível de ser apreendida e avaliada com uma aparente exati­
dão, dando assim a impressão de que os poderes públicos têm condições de
controlá-la, o que acaba por reforçar a representação de um Estado onis­
ciente e, portanto, onipotente. O objetivo é tomar a m edida dos “fatos” e
colocá-los em relação com os meios de que dispõe ou deveria dispor um
Estado racional. Não se trata de explicar um fato social enquanto tal, mas
de apreender os aspectos em que o Estado poderá intervir.

62. M. Maruani (1985), Mais qui a peur du travail des femmes?, Paris, Syros.
63. M. Pialoux (1979), “Jeunesse sans avenir et travail intérimaire", in Actei de la recherche en Sciences sociales,
n° 26-27, março-abrü de 1979, p. 19-47.
G. Mauger, C. Fossé-Polliak (1983), “Les loubards”, in Actes de la recherche en Sciences sociales, n° 50,
novembro de 1983, p. 49-67.

103
A abordagem positivista que considera como tais os Mfatos” instituídos,
tanto nas categorias oficiais de classificação, quanto nas respostas dadas por
entrevistados a perguntas cujo sentido parece evidente, é como que repri­
m ida, im prensada entre adoxa oficial e os bons sentim entos convencionais
e comedidos como convém quando se trata de problem as sociais. De m odo
que toda contradição é autom aticam ente desqualificada com a ajuda de
argum entos não som ente científicos, mas também morais. A contestação
só poderá vir de pessoas percebidas necessariamente como mal inform adas
- para não dizer mal-formadas - ou de ideólogos partidários e caluniadores,
grosseiros e exagerados, em suma, inconvenientes e intem pestivos64. Tàl
situação é tanto mais constrangedora na m edida em que, m uitas vezes,
trata-se de trabalhos que incidem sobre populações ou instituições {a
fortioriy as duas coisas ao mesmo tem po) inatacáveis e irrepreensíveis, de tal
m odo que todas as críticas se voltam contra aquele que as faz sim plesm ente
porque, injúria suprem a, não “gosta” delas.
Com efeito, esse positivism o é acompanhado por um a preocupação
filantrópica, constitutiva de disciplinas, que à semelhança da sociologia ou
demografia, retém, entre os “problem as de populações”, em particular, “as
populações com problem as” (pessoas idosas, alcoólatras, crianças que vivem
em meios de risco, famílias num erosas e desfavorecidas, pai isolado, etc.).
Esse hum anism o, até mesmo hum anitarism o, participa dessa operação de
universalização com base científica e alcance ético de interesses particu­
lares. Com efeito, ao transfigurar tais interesses em grandes “causas” a
serem defendidas, os “especialistas” em ciências sociais am pliam , ao mesmo
tem po, aos registros m orais, políticos, econômicos e científicos, o âm bito
legítim o das intervenções do Estado. É o que se passa, por exemplo, com os
“velhos” e as “pessoas idosas” cujas condições de vida estiveram ligadas,
durante m uito tempo, à instalação e funcionam ento dos sistemas de apo­
sentadoria. Esse modo de redistribuição das rendas de uma geração a outra
acaba por levantar problem as, sim ultaneam ente, econômicos (idade da
aposentadoria) e morais (relações entre gerações).
O mesmo pode ser dito a respeito da “família” que tem sido constituída
por sociólogos ou demógrafos especializados como princípio de todas as

64. A propósito de Sócrates, Maurice Merleau-Ponty descreveu bem o que é propriamente insuportável para
os representantes do pensamento do Estado - não é tanto o questionamento da doxa, mas sua objetivação:
MSe tivesse conseguido uma explicação mais convincente, teríamos visto que [Sócrates] não estava
procurando novos deuses e não menosprezava os de Atenas: limitava-se a dar-lhes sentido, interpretava-
os”, ver M. Merleau-Ponty (1960), Éloge de la philosaphie, Paris, Gallimard (col. “Folio”), p. 42.

104
coisas, desde os bons resultados escolares ao sucesso social, passando pelo
alcoolismo ou delinqüência, e sobretudo, como categoria da ação política,
enquanto é portadora de um a visão m oral da ordem social. Nada é mais
difícil do que rom per com essas visões do m undo que se beneficiam,
sim ultaneam ente, da caução da ciência e da autoridade do Estado. Se isso
acontece dessa form a é talvez porque a forma extrema assumida, daqui em
diante, pelo processo de institucionalização passa por essas duas instâncias,
inextricavelm ente m isturadas, como é possível ver, ainda hoje, em deter­
m inadas questões relativas à saúde pública.

C O N C LU SÃ O : O F U N D A M E N T O SO CIA L DAS
R E PR ESEN TA Ç Õ ES SO CIA IS
As categorias que servem de base para a construção da realidade social
e que, por conseguinte, se apresentam diante do sociólogo, são o resultado
de lutas. Podem assum ir diversas formas. Se, por exemplo, as lutas para a
representação da velhice se exprim em , quase sempre, em termos morais,
encontram também seus fundam entos nessa economia das relações entre
gerações nas quais as relações propriam ente econômicas são, em geral,
negadas como tais. Inversam ente, como m ostrou Abdelmalek Sayad a
propósito da imigração, a representação do “problem a” dos imigrantes,
colocado habitualm ente em termos de “custos e benefícios” é, na realidade,
o exemplo típico de um problem a político (o fato de fazer parte de um grupo
nacional) que se dissimula sob as aparências de um a simples operação de
ordem econômica65.
• O processo de institucionalização de um a problem ática sob forma
científica (econômica, biológica, etc.) ou ética encobre também toda uma
série de questões que, por esse m otivo, se tornam im pensáveis: por exemplo,
considerando ainda a imigração, a questão de saber quem tem tido prejuízo
e quem tem obtido lucro com a mesma; ou em relação à velhice, a questão
das lutas, por definição “im orais”, entre gerações. Talvez seja necessário
atribuir, em parte, a essa dissociação entre economia política e economia
social, a origem desses artefatos instituídos dos quais o sociólogo tem tanta
dificuldade em se desfazer. Através da análise dos pressupostos das repre­
sentações sociais, o trabalho sociológico podería consistir na construção
dessa economia que integraria em tal abordagem todos os “custos” e todos
os “ benefícios” não levados em consideração pelas teorias econômicas no

65. A. Sayad (1986), loc. ctr., p. 74.

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;entido estrito do term o, isto é, o conjunto das lutas travadas pelos agentes
3ara construírem a representação da realidade e, a p a rtir daí, a realidade
nais conforme a seus interesses.
Esse tipo de análise poderia ser desenvolvido a propósito de múltiplos
abjetos de estudo - por exemplo, o de Francine M uel-Dreyfiis sobre “a
iscola obrigatória e o surgim ento da infância anorm al”.

A NOÇÃO DE “INFÂNCIA ANORMAE’


Em seu estudo sobre “A escola obrigatória e o surgimento da infância anormal”,
Francine Muel-Dreyfus mostra o que os sistemas de classificação psiquiátricos e
psicológicos, concernentes à infância, ficam devendo às características sociais dos
que os produzem e daqueles a quem se aplicam66. A pesquisadora estabelece as
relações entre o aparecimento dessas nosografias e a formação, no final do século
XIX, desse campo de atividades que é o setor “médico-pedagógico”; além disso,
descreve o contexto no qual surgiu esse setor da ação administrativa da qual a escola
primária gratuita, laica e obrigatória, é a ossatura e o pretexto. Todas essas institui­
ções (associações, comitês, ligas, sociedades de beneficência, etc.) têm como objeto
a educação, tanto das crianças, quanto dos adultos. Em nome da “previdência
social”, visam modelar os indivíduos cujo comportamento deve ser, daí em diante,
“previsível” (a Comuna de Paris não está longe). Por conseguinte, a ação em favor
da “infância anormal” está associada a um movimento mais amplo que diz respeito
à “infância em perigo”.
Se os organismos criados em favor da infância anormal são diferenciados e se os
zeladores da ação médico-pedagógica exercem diversas profissões (médicos, advo­
gados, filantropos, professores, etc.) acontece, no entanto, que “os especialistas da
infância anormal foram, muitas vezes, propagandistas das sociedades de beneficên­
cia; parece igualmente que as crianças envolvidas são socialmente as mesmas e que,
entre a ‘correção moral* e a ‘ortopedia mental*, existe apenas uma troca de palavras;
da mesma forma, as profissões previstas para os pobres desgraçados (abandonados,
delinqüentes ou doentes mentais), reeducados por tais instituições, não sofrem
qualquer alteração (ajudantes de jardineiros, trabalhadores braçais, entregadores,
faxineiras). O perigo social futuro está dissimulado entre os mais pobres dos pobres;
depois de tudo o que foi tentado para que eles viessem a entrar na escola primária,
tudo será feito para que a deixem com o rótulo de anormais”. Assim, “a anormali­
dade” dessas categorias de crianças, assim como os riscos que representam, são
definidos tendo como referência a norma escolar67.

66. E Mucl-Dreyfus (1975), “D écolc obligatoire et la naissance dc 1’enfance anormale”, in Actes de la recherche
en Sciences socialesy n° 1, janeiro de 1975, p. 61-74.
67. R. Castel (1983), “De la dangerosite au risque”, in Acies de la recherche en Sciences sociales , n0* 47-48, junho
de 1983, p. 119-127.

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