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Introdução

Quando falamos em democracia em sentido amplo, não estamos falando apenas de possibilidade
de participação política, mas também de igualdade de direitos, igualdade social, igualdade racial
e liberdade garantida a todas as pessoas. Pensar em democracia racial requer, portanto, pensar
em uma sociedade em que todas as pessoas, independentemente de sua origem étnico-racial e da
cor de suas peles, sejam livres e tenham direitos iguais. Devido ao passado de escravidão,
racismo e exploração de territórios africanos por parte de nações europeias que deixou uma
imensa cicatriz de preconceito e discriminação em nossa sociedade, além do terrível holocausto
que sentenciou à morte injusta milhões de judeus, a Organização das Nações Unidas (ONU)
promulgou, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A declaração enfatiza a
igualdade de direitos entre todos os seres humanos, independentemente de raça, cor, religião,
nacionalidade ou gênero. Segundo o art. 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
“todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição”. O reconhecimento de direitos iguais por parte da ONU consiste num importante
passo para o estabelecimento da democracia racial no mundo A Constituição da República
Federativa Brasileira de 1988 também enfatiza o estabelecimento de direitos iguais entre
pessoas independentemente de qualquer elemento distintivo. O art. 5 da Constituição diz o
seguinte: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade”. Apesar de não mencionar diretamente a questão étnico-
racial, o trecho citado do documento atesta que não pode haver discriminação de qualquer
natureza, ficando implícito que discriminação racial não é permitida.

O que é?
Democracia racial é um conceito que nega a existência do racismo no Brasil. É tratada
como mito e ideologia por buscar exprimir a vigência de uma suposta democracia plena que se
estenderia às pessoas de todas as raças, a despeito das desigualdades motivadas pelo racismo no
país e por estruturas racistas culturais, sociais e políticas que privilegiam brasileiros brancos.

Quem foi Gilberto Freyre?


"O antropólogo e sociólogo brasileiro Gilberto Freyre nasceu na cidade de Recife, Pernambuco,
em 15 de março de 1900. De família tradicional na sociedade recifense, seu pai, Alfredo Freyre,
era professor, advogado e juiz. Freyre estudou no antigo Colégio Americano Gilreath,
atualmente Colégio Americano Batista, instituição de ensino tradicional dirigida por algum
tempo por seu pai. Freyre despontou-se desde cedo como um talento para a literatura e as
ciências humanas. Ainda no colégio, o sociólogo participou como editor e redator do jornal O
Lábaro, produzido pelo Colégio Americano Gilreath.
Freyre estudou sociologia, mas não no Brasil, pois ainda não havia sido fundado o primeiro
curso superior de sociologia no país, o que somente aconteceu em 1933. Em 1918 o intelectual
partiu para os Estados Unidos, onde cursou, na Universidade de Baylor, o bacharelado em artes
liberais e a especialização em ciências políticas e sociais. Na Universidade de Columbia, Freyre
cursou o mestrado e o doutorado em ciências políticas, jurídicas e sociais, defendendo a tese de
doutorado intitulada A vida social no Brasil em meados do século XIX.
Na década de 1920, ele retornou ao Brasil após os seus estudos nos Estados Unidos e várias
viagens pela Europa, voltando também a residir em Recife. Em 1926 participou da formulação
do Manifesto Regionalista, grupo contrário à Semana de Arte Moderna de 1922, de caráter
nacionalista. Os regionalistas eram contra a “deglutição” da cultura europeia para formular uma
cultura brasileira, defendida pelos modernistas, valorizando somente aquilo que era
originalmente brasileiro.
Entre 1927 e 1930, Freyre foi chefe de gabinete do governador de Pernambuco, Estácio
Coimbra, e, em 1933, no exílio político provocado pela Revolução de 1930 e com a chegada de
Getúlio Vargas ao poder, publicou o seu mais famoso livro: Casa-grande e Senzala. Em 1946
foi eleito deputado federal constituinte. Freyre recebeu vários prêmios e doutorados honoris
causa e foi contemplado com o título de Cavaleiro do Império Britânico, concedido pela Rainha
Elizabeth II, da Inglaterra."

O que Gilberto Freyre defendia?


Freyre foi na contramão de quase todas as teorias antropológicas que surgiram no século XIX
por meio de intelectuais como Herbert Spencer. As teorias antropológicas clássicas eram
etnocêntricas e defendiam a supremacia da “raça” branca em relação às demais. Políticos e
intelectuais brasileiros trouxeram tais ideias de “pureza racial” para o Brasil e tentaram, no
início do século XX, um “branqueamento” da população brasileira como proposta para a
melhoria da sociedade.
Para Gilberto Freyre, a miscigenação era positiva. Como estudioso de antropologia, Freyre era
adepto das teorias do antropólogo alemão, radicado nos Estados Unidos, Franz Boas. Boas
defendia que a cultura de um povo deveria ser estudada não em comparação à própria cultura do
antropólogo, mas com uma imersão desse profissional naquela cultura como se fizesse parte
dela. Isso permitiria ao estudioso olhá-la de perto e sem preconceitos.
Para Freyre, o Brasil colonial apresentou uma sociedade que miscigenou e integrou africanos,
índios e brancos, e era isso que teria formado uma raça mais forte, mais intelectualmente capaz
e com uma cultura mais elaborada."

Teorias de Gilberto Freyre


A teoria mais difundida de Gilberto Freyre perpassou toda a sua obra. Em Casa grande e
senzala, ela começou a ser discutida, apesar de ainda não ter sido enunciada. Era a teoria da
democracia racial, criticada por defensores da luta contra o racismo por apresentar-se como um
mito de que havia democracia nas relações entre senhores e escravos no período colonial. Para
Freyre, a miscigenação era um fator corroborativo para pensar-se em uma relação democrática
entre senhores e escravos, apesar da relação de escravidão impregnada entre os dois.

Casa-Grande e Senzala(obra)
A obra Casa-Gande e Senzala foi a mais difundida de Gilberto Freyre, sendo traduzida para
mais de 10 idiomas. A escrita do livro iniciou-se num momento em que o autor exilou-se em
Portugal, por conta da divergência política com o novo governo de Getúlio Vargas, que chegou
ao poder com um golpe em 1930.

Em Casa-Gande e Senzala, Freyre procurou sair do óbvio nas análises sociais: política,
economia, sociedade em geral. Ele preferiu aprofundar-se em outros temas: vida doméstica,
constituição familiar, formação das casas-grandes (onde viviam os senhores brancos) e senzalas
(onde viviam os negros), para entender o engenho de açúcar e a propriedade rural como os
centros do Brasil colonial.
Uma mistificação que Freyre ajudou a promover, talvez por influência de seu professor de
antropologia em Columbia, foi a de que a miscigenação e a localização geográfica do Brasil (na
linha tropical) eram fatores negativos que colocavam o país em uma posição inferior à Europa.
A teoria da democracia racial trata-se de uma mistificação ideológica que Freyre, infelizmente,
ajudou a construir baseado na ideia errônea de que a relação entre senhores e escravos era
pacífica, que os índios aceitaram a colonização de maneira pacífica e que isso promoveu uma
relação democrática e a miscigenação.
Essa visão freyreana, apesar de ter algum valor para o entendimento da vida colonial no Brasil,
não se concretiza. As análises atuais sobre a desigualdade social, inclusive, associam
verdadeiramente a desigualdade e a exclusão com a questão social. Talvez o ponto de partida de
Freyre que o levou a formular a teoria da democracia racial (e que era a relação racial
explicitamente segregacionista dos Estados Unidos) tenha o levado a perceber uma democracia
racial no Brasil por haver nele uma relação mais branda entre negros e brancos.
No entanto, o racismo velado e estrutural nunca deixou de existir por aqui, e a desigualdade
social mostra-se como um fator fortemente provocado pela escravidão e pela relação de
submissão à qual negros e índios foram obrigados pelo homem branco. Portanto, a tese principal
de Casa-grande e Senzala parece não se sustentar, ao passo que o livro constitui uma
interessante ferramenta para a compreensão da vida cotidiana da sociedade colonial.

A ideia de um paraíso racial


A ideia de que o Brasil era uma sociedade sem “linha de cor”, ou seja, uma sociedade sem
barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a
posições de riqueza ou prestígio, era já uma ideia bastante difundida 3 no mundo,
principalmente nos Estados Unidos e na Europa, bem antes do nascimento da sociologia. Tal
ideia, no Brasil moderno, deu lugar à construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e
discriminações raciais. Mais ainda: a escravidão mesma, cuja sobrevivência manchava a
consciência de liberais como Nabuco, era tida pelos abolicionistas americanos, europeus e
brasileiros, como mais humana e suportável, no Brasil, justamente pela ausência dessa linha de
cor

Existe democracia racial no Brasil?


A resposta imediata à pergunta iniciada no tópico é “não”. Não existe democracia racial no
Brasil, como não existe democracia racial em qualquer lugar do mundo. Existe, no máximo, um
mito de uma democracia racial pelo fato de o racismo aqui não ser tão evidente quanto é nos
Estados Unidos, na Europa ou na África do Sul. Os Estados Unidos e a África do Sul
mantiveram sistemas legais de segregação racial que perduraram, no caso dos Estados Unidos,
até a década de 1960 e, no caso sul-africano, até a década de 1980. Nesses casos, a população
negra era tratada como cidadã de segunda categoria, tendo acessos restritos a serviços públicos e
direitos civis restritos ou até negados. Desde a abolição da escravatura no Brasil, nunca houve
lei restritiva que segregasse oficialmente a população negra da população branca. No entanto, há
uma ideologia racista que perdura até hoje e, sobretudo, há um racismo velado, estrutural, que
mantém a população negra à parte da plenitude de seus direitos em nosso país. Segundo
Kabengelê Munanga, congolês naturalizado no Brasil e professor emérito de Antropologia da
USP, “a democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o
negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e
segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. Por isso, a luta de classes, para o
negro, deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita” |3|. Desse modo, o
racismo estrutural brasileiro é um impedimento para que haja ascensão social dos negros, e,
enquanto houver distinção de classes sociais marcada também pela cor da pele, é impossível
falar-se em uma democracia racial. O racismo estrutural é aquele que não é explícito em um
preconceito e uma discriminação claros e distintos, ele está enraizado na sociedade. O racismo
estrutural finca-se nas bases da sociedade brasileira e só é perceptível por um olhar apurado que
veja a discrepância de renda, de empregabilidade e de marginalização da população negra em
relação à população branca. Pelo fato de o Brasil não ter apresentado um projeto oficial de
segregação entre negros e brancos, houve aqui a disseminação de uma ideologia (ou mito) da
democracia racial.

Conclusão:
É verdade que as profundas desigualdades sociais existentes no país estão por trás de muitos dos
nossos dramas (como as cidades partidas; as diferenças de letalidade entre pobres e ricos; e
entre negros e não negros), por outro lado, a questão social não esgota a explicação das gritantes
diferenças de vitimização violenta que acometem mais a população afrodescendente, que
refletem, em parte, o racismo ainda prevalente no Brasil.

Questões:

1. É correto dizer que Gilberto Freyre procurou pensar a formação da sociedade


patriarcal brasileira, a partir da publicação de Casa Grande & Senzala, influenciado:

a) pelas teorias raciais do nazismo.

b) pela antropologia de Franz Boas.

c) pelo marxismo britânico dos anos 1920.

d) pela teoria crítica da Escola de Frankfurt.

e) pelo pensamento autoritário do fascismo italiano.

2. Análise por cor ou raça para o último ano disponível mostra que, regionalmente, a
situação da população preta ou parda também é mais vulnerável do que a da branca.
Enquanto para a população branca, 14 UFs [Unidades da Federação] registraram taxa de
desocupação até 10,0%, sendo três delas inferiores a 6,0%, para a população preta ou
parda, a maioria das UFs registrou taxas acima de 10,0%, sendo que, em sete delas, a
taxa superou os 14,0%, índice não alcançado pela população branca (IBGE, 2017, p.
26). Ainda sobre esses dados, o IBGE (2017) demonstra que a população branca tem
maior participação no mercado formal de trabalho (68,6%) – com carteira assinada – em
relação à população negra (54,6%).

Os dados levantados pelo IBGE estão associados:


A) ao equilíbrio estrutural de poder.

B) à intolerância cultural.

C) à discriminação territorial.

D) à desigualdade étnico-racial.

3. VEJA – Vê uma atitude racista no culto à mulata ou reafirma sua tese de que esse
culto está uma prova da ausência de problemas raciais no Brasil? O Brasil é, realmente,
uma democracia racial perfeita?

GF (Gilberto Freyre) – Perfeita, de modo algum. Agora, que o Brasil é, creio que se
pode dizer sem dúvida, a mais avançada democracia racial do mundo de hoje, isto é, a
mais avançada nestes caminhos de uma democracia racial. Ainda há, não digo que haja
racismo no Brasil, mas ainda há preconceito de raça e de côr entre grupos de brasileiros
e entre certos brasileiros individualmente. (Trecho de entrevista de Gilberto Freyre
publicada na revista Veja de 14 de abril de 1970).

É possível afirmar que a resposta de Gilberto Freyre:

a) reforça o preconceito racial dos antigos senhores escravocratas.

b) desrespeita a figura da mulata.

c) pondera a questão do racismo no Brasil com a evidência de que há democracia racial,


ainda que imperfeita.

d) incita o ódio entre as raças

e) ignora a história do passado escravista brasileiro.

4. Sobre a teoria da democracia racial, assinale o que for correto.

01) No Brasil a democracia racial se efetivou de modo a impedir a existência do


racismo.

02) Florestan Fernandes, em seus estudos sobre a questão racial no Brasil, corrobora a
visão do convívio harmonioso entre as raças.

04) A instalação da democracia racial no Brasil fez que os negros e as negras sejam
maioria entre o 1% de pessoas mais ricas do país.

08) Segundo a teoria da democracia racial, existe no Brasil um convívio sem conflitos
entre brancos e negros.

16) Os estudos de Gilberto Freyre foram um contraponto às teorias raciais oriundas do


século XIX, que condenavam sociedades com grande contingente de mestiços.
Legenda:
AZUL: PRESTES

ROXO: HENRIQUE

MARROM: ALMEIDA

VERDE: TURRA

LARANJA: GUSTAVO.S

GIOVANNA: VINHO

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