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ANAIS U E.

8-9, 1998-1999: 41'12

BRASIL, FRONTEIRA DE PORTUGAL.


NEGÓCIO, EMIGRAÇÃO E MOBILIDADE SOCIAL
(SECULOS XVII E XVIID

Jorge M. Pedreira
Instituto de Sociologia Histórica
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa

Introdução: fronteiras e sociedades de fronteira

Em 1893, o historiador nofie-americano Frederick Jackson Turner avançava


uma tese que viria a revelar-se uma das mais fecundas e controversas interpre-
I
tações da história dos Estados Unidos da América ( ). No âmago dessa tese, estava
a ideia de que o permanente alargamento do território, a existência de uma fronteira
em constante recuo, marcou profundamente a sociedade americana, de tal forma
que poderia constituir explicação suficiente para alguns dos traços distintivos
d"tru sociedade e do povo americano. A longa conquista do Oeste, além de ter
legado o material histórico para a construção de uma das mitologias com maior
poO". de fascinação e de vinculação social, estaria na origem de características
êssenciais da civilização americana. A cultura dos pioneiros forjava-se no con-
fronto com a natureza em estado bruto e na amálgama das suas diversas origens
culturais. O individualismo, o materialismo, a tendência para a auto-regulação
social, o frequente recurso à violência, a forte mobilidade geográ,fica e social, a
crença na democracia, elementos matriciais da civilização americana, explicar-se-
-iam afinal pelo processo de expansão para Oeste. Nos confins de um território em
contínuo alàrgamento, onde a autoridade do Estado não chegava ou chegava muito
diluída, as comunidades tomavam sobre si a sua própria organizaçáo, segundo

(| ) Tevron, «The significance of the Íiontier in American history» [ 1893], in Frontier and Sectiott.
F. J.
SelecteclEssay.r. Englewood CliÍls, NJ: Prentice Hall, 1961, pp.31-62. Veja-se também Rise ol the New West
18t9-1529 il9061. Gloucester, Mass: Smith, 1961.

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regras adaptadas às circunstâncias em que viviam. Ao mesmo tempo, a existêncta
de recursos disponíveis proporcionava novas oportunidades, cuja apropriação
(forçosamente desigual) gerava conflitos e tensões. Neste contexto, o individua-
lismo, a energia, a capacidade de iniciativa, a própria turbulência dos pioneiros
pareciam ser recompensados, convertendo-se em valores encarecidos pelo povo
americano.
Aplaudida e largamente aceite durante as primeiras décadas do século XX,
a tese que acabamos de expor de forma abreviada haveria de suscitar uma viva
controvérsia. Turner, postumamente acusado de ter apresentado uma perspectiva
monocausal e de ter desprezado aspectos fundamentais da história do Oeste (entre
os quais a corrida ao ouro), passou de herói a inimigo público da historiografia
americana. Apesar do acerto de algumas das críticas que lhe foram dirigidas, nem
por isso a interpretação que Turner apresentou há mais de um século deixou de
constituir uma referência impreterível. Se a vitalidade da sociedade americana
e o seu êxito económico não podem ser elucidados apenas pelo longo processo de
dilatação do território, a verdade é que foi Turner quem primeiro chamou a atenção
para o facto de que a fronteira e a sua deslocação perrnanente (com a correspon-
dente incorporação de novos recursos, no caso. de terra livre) criaram as condições
para o desenvolvimento económico e para a construção de uma sociedade com
uma fisionomia própria. Alóm disso, o conceito de fronteira, tal como Turner o
desenhou, demonstrou importantes virtualidades heuísticas (2). Em especial
desde que foi renovado pelo contributo da Antropologia (particularmente atenta às
trocas culturais e aos fenómenos de aculturação, não apenas entre pioneiros de dife-
rentes origens mas entre estes e os povos indígenas). esse conceito foi usado para
conduzir a análise de sociedades ou comunidades que se encontravam na frente
dos processos de expansão e colonização (principalmente quando está em causa a
fronteira entre civilizações) e em que se reconhecem, por esse facto, características
específicas. Deste modo, forjou-se a noção de comunidades ou sociedades de
frónteira, designação que foi muitas vezes usada para designar as formações sociais
do continente americano, não apenas da América do Norte, mas também da
América espanhola.
Com efeito, antes da conquista do Oeste, em certas regiões, nos extremos do
Império Espanhol na América, a mesma situação, embora com alguns cambiantes,
havia ocorrido. Mas a colonização do Brasil oferece um paralelo porventura ainda

(2) Menln Cunrt, «The section and the Íiontier in American history: the methodological concepts
of Frederick Jackson Turner>> in Methods in Social Science: a Case Book, University of Chicago Press, 193 I ,
pp. 353-367.

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mais próximo. A epopeia dos bandeirantes é naturalmente a primeira que nos
acode à memória. Os paulistas formaram verdadeiras comunidades de fronteira,
com traços semelhantes aos que são apontados como característicos das colecti-
vidades norte-americanas. O permanente avanço sobre o território de tribos índias
e a correspondente anexação de novos recursos, o império da força e o triunfo
dos aventureiros, o ténue controlo pelo Estado e a auto-regulação das comunidades,
tudo evoca a experiência norte-americana. Haverá certamente diferenças, pois a
miscigenação, tanto biológica como cultural, com os povos nativos, foi muitíssimo
mais longe no Brasil, em especial durante a primeira fase da colonrzaçáo. Outra
distinção, e muito significativa, residia na instituição da escravatura (dos próprios
indígenas), que tão ponderosas implicações tinha para a organizaçáo social na
fronteira no Brasil (3). Apesar de'tais dissemelhanças, o paralelo traçado justifica
amplamente o uso do conceito de fronteira, tal como foi cunhado por F. J. Turner,
para descrever a expansão territorial no Brasil e as suas implicações económicas
e sociais. Mesmo no caso de outras frentes da colonização, onde são manifesta-
mente menores as afinidades com a situação do Oeste americano, como as que
avançavam por acção dos fazendeiros do sertão da Baía, dos lavradores de cana de
Pernambuco ou dos jesuístas do Pará e do Maranhão, esse mesmo conceito poderá
descrever aspectos fundamentais da vida social.
O Brasil pode portanto ser visto como uma sociedade de fronteira durante um
largo período da sua história. Contudo, é necessário tornar mais preciso o alcance
desta asserção. De facto, tratar-se-á apenas de um agregado de comunidades de
fronteira, isoladas umas das outras, ou será que as várias frentes de expansão
territorial e de aquisição de novos recursos contribuíam para configurar não apenas
as áreas mais próximas mas a sociedade colonial brasileira no seu conjunto?
Segundo Russell-Wood, a fixação dos portugueses no Brasil, concentrando-se na
zona mais próxima do litoral, e avançando a partir de um pequeno conjunto de
regiões (aYárzea de Pernambuco, o Recôncavo da Baía e a Baixada Fluminense)
não merece a designação de fronteira em movimento: <<Eram arquipélagos de
colonização, isolados uns dos outros por enormes extensões territoriais» (a).

13; Sobre a colonização do Brasil e em particular sobre as bandeiras paulistas, vejam-se Stuart
Schwartz, «Plantations and peripheries, c.1580-c.1750» e John Hemming, «Indians and the frontier», in
CoknialBrazil(ed. LeslieBethell),Cambridge, 1987,pp. l-38e67-144 eosestudosfundadoresdeAÍbnso
de Escragnolle Taunay, História Geral das Bandeiras PauListas, I I vols., São Paulo, 1924-1950 e de Jettte
ConrBsÃo, Rnposo Tavares e a Formação TeruitoriaL do Brasil, Rio de Janeiro, 1958 e Introdução à História
dcts Bandeiras,2 vols., Lisboa, 1964.
(4) A.J. R. Russell-WooD, «Políticas de fixação e integração», in História da Expansão Portuguesa
(ed. Francisco Bethencouft e Kirti Chauduri), Círculo de Leitores, Lisboa, 1998, vol.2, p. I 36.

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contudo, não se crraria, pelo menos em certos períodos um efeito geral da
conquista territorial? E as estruturas sociais das principais cidades do litoral, como
Salvador da Baía, olinda, o Rio de Janeiro, cabeças de regiões onde estava mais
solidamente implantada a presença portuguesa, não seriam, também elas, ao menos
em parte, afeiçoadas pelo recuo de fronteiras, que afinal não estavam tão distantes,
e pela promessa de novas oportunidades?
A existência de recursos disponíveis, susceptíveis de serem apropriados pelos
colonos mais empreendedores (porque eram altos os riscos que enfrentavam e
intensos os esforços que tinham de desenvolver), e as dificuldades das autoridades
na regulação dessa apropriação deixaram forçosamente a sua maÍca na sociedade
do Brasil colonial, ainda que sob diferentes formas, consoante as regiões e a
natüÍeza dos aglomerados populacionais. Não obstante, a mobilidade, às vezes a
turbulência, da vida social brasileira, que, mesmo nas cidades mais importantes, era
em boa parte alimentada pelas ocasiões criadas pelo alargamento do território, não
impediram a constituição, em algumas dessas cidades, de estruturas sociais forte-
mente estratificadas (s). Em certas conjunturas, porém. nas fases de mais intenso
crescimento, e em particular durante a expansão mineira, generalizou-se o efeito
de fronteira, que modificou as condições de vida, fez oscilar os equilíbrios regio-
nais (sustentando o crescimento do Rio de Janeiro) e mobilizou as energias de
todo o espaço brasileiro e mais além.
Neste breve ensaio, procuramos ir ainda mais longe e pensar esse efeito de
fronteira não apenas no quadro estrito das comunidades que se encontravam na
frente da penetração territorial ou mesmo da sociedade colonial brasileira, mas à
escala do império português e portanto da própria sociedade metropolitana. Não se
pretende, e o contrário seria estultícia, que esta constituísse, por via da colonização
do Brasil, uma sociedade de fronteira. Contudo, os efeitos que as oportunidades e
os recursos que se geravam no Brasil exerceram nas estruturas sociais do Portugal
europeu merecem certamente ser averiguados.
O problema pode ser indagado de diversos pontos de vista. Por um lado, pode
ser situado na continuidade histórica, na longa duração. A expansão a Oriente
representarajá um ensejo paraa exploração de novos recursos, que seduzira alguns
milhares de portugueses. Contudo, o controlo do Estado sobre essa exploração
foi mais forte (apesar dos aventureiros que se espalharam pelo Golfo de Bengala

1-51 Sobre a Baía vejam-se por exemplo Stuart Schwanz, Sovereignty arul Society in Colonial Braz.il,
Berkeley e Los Angeles, 1973 e A.J.R. Russel-Wood, Fidalgos and Phibntropists: the Santa Casa da
Misericordia of Bahfu, Berkeley e Los Angeles, 1968 e sobre Pernambuco os vários trabalhos de Evaldo Cabral
de Mello e em especial A Fronda dos Mazombos. Nobres contra mascates. Pernambuco t6ó6-t715,
Companhia das Letras, São Paulo, 1995.

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e ainda mais além, a oriente), aspirando mesmo, de forma intermitente, ao mono-
pólio. Por outro lado, o problema pode ser considerado precisamente na perspec-
iiva da construção do Estado. Num ensaio seminal, Vitorino Magalhães Godinho
inaugurou esta via, chamando a atenção pafa a excepcional importância que as
receitas geradas pelo comércio marítimo e pelo império adquiriram para as
finanças públicas portuguesas, facultando os meios para a consolidação do poder
central e ao mesmo tempo conferindo ao Estado em construção as características
particulares de um Estado-mercador (6). Seguindo o caminho assim aberto, pro-
curámos pela nossa parte explorar as implicações sociais deste processo, para
além das que Magalhães Godinho já enumerara (por exemplo o surgimento da
figura do cavaleiro-mercador), sublinhando que a obtenção (e distribuição) de
recursos externos possibilitou o reforço do Estado sem que houvesse necessidade
de aumentar a pressão fiscal sobre a terra e os rendimentos por ela gerados e
portanto sem que fosse preciso estabelecer complexas e incertas negociações com
os titulares desses rendimentos, em especial os grandes proprietários ou donatários,
que puderam mesmo contar com novas doações e a renovação dos seus privilégios,
ou sem que fosse necessário também exercer um controlo apertado sobre todo o
território (7).
Não se trata aqui de repetir essas abordagens, mas de cingir o mesmo fenó-
meno de outro ponto de vista. Por uma parte, circunscrevendo-o territorialmente,
considerando apenas o Brasil, numa época em que o Oriente perdera muito do seu
poder de atracção (que manteve porém durante grande parte do século XVII).
Por outra parte, procurando chegar aos próprios actores sociais e à forma como as
trajectórias pessoais revelam as configurações sociais, ao mesmo tempo que aS
podem deslocar e reestruturar. Assim, trata-se de examinar o problema, tal como o
àefinimos, a partir da observação de um conjunto de itinerários individuais, que
nos permitirá verificar o papel que a exploração de oportunidades que se criavam
no Érasil desempenhava na estruturação do espaço social em Portugal, isto é,
verificar como o Brasil funcionava como fronteira de Portugal. Poderíamos, nesta
perspectiva, acompanhar os percursos de letrados, oficiais régios e governadores,
procurando isolar a função que os postos na administração brasileira cumpriam no
ãesenvolvimento das suas carreiras e na acumulação de recursos simbólicos e

(6) Vrronrr.ro MecelHÃes Go»rNuo, «Finanças públicas e estrutura do Estado», in Ensaios - II. Sobre
HisÍória de Portugttl,2.'ed., Lisboa, 1978'
,§ocial, vol. xxtlt
121 «As consequências económicas do Império. Portugal (1415-1822)», Análise
(146-l4i), 1998, pp.433-460 e «Costs and Financial Trends in the Portuguese Eqrpire, 1400-1800», in
portuguese Expansion, t400 to 1800 (coord. Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto), Cambridge
University Press, no prelo.

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materiais que propiciavam a sua promoção social (8). Contudo, na sequência de
trabalhos anteriores (e), preferimos seguir aqui as trajectórias de alguns dos que
mais directamente exploravam as oportunidades propiciadas pela construção do
Brasil, os homens de negócio, e verificar o modo como essas oportunidades favo-
receram os seus percursos de mobilidade. Antes, porém, haverá que estabelecer
o cenário em que se desenvolvem tais percursos e situá-los no contexto da
emigração de Portugal para o Brasil.

A saga dos reinóis

Em 1570, a população branca do Brasil contava apenas 20000 colonos.


Quinze anos mais tarde, apesar do crescimento da plantação de cana-de-açúcar (o
número de engenhos duplicara entretanto), ainda não chegava aos 30000 (lo),
vindo a atingir os 50000 em 1610. Este número, por força do surto da produção
de açúcar e depois de tabaco e também da grande expansão da criação de gado,
duplicaria até final do século XVII. O crescimento realizou-se através do aumento
e da irradiação das populações a partir de algumas das áreas inicialmente coloni-
zadas (outras entraram em declínio), mas também, embora em menor grau, pela
implantação em territórios novamente conquistados (Curitiba, Paraguaná, São
Francisco do Sul; e, a norte, Paraíba, Pará e Maranhão, que contudo contavam
ainda com diminutas comunidades portuguesas). Em qualquer caso, a emigração
foi fundamental para alimentar esta expansão demogrâfica. A dificuldade de
adaptação dos colonos a um meio muitas vezes hostil e o relativo desequilíbrio na
composição sexual dos emigrantes (sobretudo nos primeiros tempos) limitavam o
crescimento natural da população de origem portuguesa. exigindo a chegada de
novos colonos para manter o esforço de ocupação do território brasileiro.
Tal como acontecera durante na fase inicial da colonização, em que os capi-
tães-donatários mais empreendedores se encarregaram de recrutar os primeiros

(8)Veja-se a este propósito o estudo de Virgínia Rau, «Fortunas ultramarinas e a nobreza no


século XVII», Revista Portuguesa de Histório. vrrr. Coimbra, 196l , pp.5-29
1o; «Os Negociantes de Lisboa na Segunda Metade do Século XVIII. Padrões de Recrutamento e
xxvn ( I 16-117),1992,pp.407-440 e Os Homens de Negócio da Praça
Percursos Sociais», Análise Social, vol.
de Lisboa, de Pombal ao Vintismo (1755-1822). Diferenciação, Reprodução e ldentificação de um Grupo
,Soclal, dissertação de doutoramento, policopiada, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade
Nova de Lisboa, 1995.
(ro) H. B. JouNsoN, .Portuguese seÍtlement, 1500-1580», in Cobnial Brazit (ed. Leslie Bethell),
ob. cit., p.31.

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povoadores portugueses, esta emigração continuava a ser em parte dirigida ou
patrocinada. A Coroa assegurava terras de sesmaria a quem se prontificasse a
cultivá-las, pagar os respectivos impostos e permanecer na colónia por um mínimo
de trôs anos e chegou mesmo a promover e custear a instalação de casais açorianos
para ajudar a fundar localidades como S. Luís do Maranhão, em 1619, ou Laguna
(Santa Catarina), em 1684 (prática que haveria de repetir-se depois, principalmente
nas regiões do sul, nas primeiras décadas do século seguinte). Contudo, a instalação
de portugueses no Brasil tinha um carácter cadavez mais espontâneo.
Como Sempre sucede com oS fenómenos de emigração, a explicação deve
encontrar-se tanto em factores de repulsão, como em factores atracção. Entre os
primeiros, cabe referir imediatamente a persistente insuficiência de recursos que
afectava boa parte da população, assim rural como urbana, agravada, particular-
mente em certas regiões, pela pressão do regime senhorial e pelos procedimentos
sucessórios não igualitários (de primogenitura ou outro modo de favorecimento
entre herdeiros). Este problema alargara-se já a certas áreas de colonização, desig-
nadamente às ilhas atlânticas. Além disso, a intolerância religiosa e os efeitos do
esforço de guerra do império espanhol e depois da própria Guerra da Restauração
contribuíam também para impulsionar a emigração. Factores de ordem circuns-
tancial, como os que ocoÍreram em S. Tomé a fechar o século XVI, com as revoltas
dos negros e o ataque dos holandeses, podiam também provocar vagas de partidas.
Por outro lado, no que diz respeito aos motivos de atracção, deve sublinhar-se que
o Brasil, como destino para os potenciais emigrantes, concorria com o Oriente e a
América espanhola. Maior proximidade e segurança e uma colonização com
carácter menos militar aliavam-se à divulgação de imagens do Brasil como terra de
grande riqueza, à promessa de terras livres ou gratuitas e à inexistência de um
tribunal da Inquisição como condições que jogavam claramente a favor do Brasil.
Contudo, o próprio desenvolvimento da economia brasileira terá sido o mais
importante factor de atracção. A criação de gado e a agricultura de plantação, em
especial a produção do açúcar, que tinha também uma feição industrial, favore-
ceram a emergência de centros urbanos e criaram uma oferta de trabalho mais
diversificada, mormente para os artífices, que se dedicaram à construção e manu-
tenção dos utensílios e equipamentos necessiários.
Depois de 1570, a emigração para o Brasil não só aumentou, como mudou de
caúrctet Os degredados e aventureiros, homens solteiros e desenraizados,
perderam progressivamente importância. O desequilíbrio na composição sexual
dos contingentes que iam estabelecer-se além-Atlântico reduziu-se, à medida que
a emigração de carácter familiar se tornava mais frequente. Não eram só os
casais enviados pela Coroa (como os açorianos remetidos para o Maranhão ou para

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Santa Catarina) ou as famílias inteiras de cristãos-novos que desde
finais do século
XVI e principalmente durante a ocupação holandesa de Pernambuco rumaram para
da
o Brasil, ondi estavam mais defendidos, embora não a salvo, das perseguições
oportu-
Inquisição. Eram agora em maior número os casais que iam explorar as
nid'ades que se abrilm nas plantações, nos ofícios ou no comércio'
A promessa
de bem-eitar, de riqueza, de promoção social parecia agora poder
cumprir-se, e o
êxito de alguns dos que regressavam - porque alguns Sempre regressavam a
portugal - ou as notíciás de hãranças de parentes falecidos no Brasil constituíam
u rn"úo, propaganda para aemigração, que se desenvolvia
em cadeia'
Essa promessa tórnou-se ainda mais tangível após a descoberta do ouro na
rondava
região Oo ifio das Velhas. A emigração, que entre 1640 e o final do século
u. Z OOO almas por ano, intensificou-se poderosamente, atingindo-se níveis sem
porventura
precedentes. Na fase de maior vigor, cerca de 10000 pessoas por ano,
sua sorte no Brasil (l t)' O ouro e
mais, atravessavam o Atlântico para tentarem a
os diamantes excitavam a imaginação de tantos portugueses, que as autoridades
em
procuraram restringir as saídas de homens activos para as Minas, instituindo,
estancar a
ilZO, um apertado regime de passaportes, que contudo não conseguiu
sangria, poi. muita a gente continuava a sair sem autorização' Em contrapar-
".u
tida] a Càroa continuava a promover a fixação de casais em zonas de fronteira'
e

particularmente no sul, de modo a garantir a ocupação do território, o levantamento


e no Rio Grande
de milícias e o desenvolvimento da agricultura. Em Santa Catarina
que
de São pedro, mais a sul, estabeleceram-se cerca de 4 000 casais açorianos
promoveram o crescimento da agricultura e da criação de gado (12).
não. foi
Para muitos dos que purrurá* então à América, a miragem de fortuna
pretendiam
mais do que isso *"r11o, uma ilusão. Perderam-se na turba dos que
talhar a sua parte nos lucros, que julgavam fáceis, da mineração do ouro e dos
que se
diamantes. Nêm por isso, porém, deixavam de ser amplas as oportunidades
Não se tratava
ofereciam, mas só alguns estavam em condições de as aproveitar'
apenas da exploraçal Oo ouro nos rios ou nos campos de Minas,
Goiás ou Mato
drorro. A pópria concentração da população que vinha em busca de fortuna
utensílios
gerava norâ. possibilidades. O abastecimento em alimentos, vestuário,
famílias e dos escravos' eo
áomésticos e ferramentas, dos mineiros, das suas
trabalho
fornecimento dos próprios escravos, criavam uma oferta diversificada de

(I I) Para os números da emigração, veja-sevtroRtNo MAGALHÃES Go»tt'lHO, «L émigration portugaise


(xrve-xv" siêcles), une constante stiuturale el les réponses aux changements du monde» ' Revista de História
Económica e social, 1978 (l), pp.5-32. JoRce Annorere, A Emigração Portuguesa' suas origens e
Distribuição, Lisboa, ICALP, I 983.
1ri) Sru,+nr ScHwnnrz, «Plantations and peripheries "'>>, ob' cit', p'l l8

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(na agricultura, nos ofícios, nos serviços) e proporcionavam novas oportunidades
de negócio. Eram estas oportunidades, as efectivas e as imaginadas, que levavam
uma torrente de gente do reino para o Brasil.
Quem eram estes reinóis que desembarcavam nos portos brasileiros? Não
eram já apenas, como vimos, os jovens solteiros, mais temerários, ainda que para
as Minas fossem sobretudo estes. Iam também famílias, casais e clérigos, nume-
rosos clérigos, tantos que por VeZeS viam recusados os passaportes que pediam e
seguiam mesmo assim como capelães nos navios mercantes(t3).E continuava
a ir gente para se estabelecer no Rio de Janeiro, em Pernambuco ou naBaía, como
os artífices (especialmente na construção e na metalurgia), que se fixavam em
Salvador ( t o). Na versão de Antonil (pseudónimo do jesuíta italiano Andreoni), era
esta a variedade da gente que todos os anos chegava a terras brasileiras: <<A mistura
é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e
ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de vários institutos, muitos
dos quais não têm no Brasil convento nem casar, (ls).
Sob esta variedade, porém, é possível divisar um padrão, pelo menos no
que às origens geográficas dos emigrantes diz respeito, que distinguia este movi-
mento migratório de outros, que noutros tempos se haviam orientado para destinos
diversos. No século XV o Algarve havia fornecido boa parte dos contingentes.
No século seguinte, apesaf da falta de elementos de que dispomos, parece não
haver um padrão ou uma origem dominante entre os que se dirigiam ao Oriente.
Para o Brasil, porém, desde cedo se revela o peso da região de Entre Douro e
Minho. Foi aí que Duarte Coelho, o primeiro capitão-donatátrio de Pernambuco,
recrutou a gente com a qual procurou iniciar a colonização da capitania(16).
Ao longo do século XVII, os dados, embora esparsos, confirmam eSSe mesmo
padrão. Numa amostra de 1684 portugueses residentes em Salvador da Baía, em
1685-1699, perto de metade eram originários do Minho. A Estremadura (25Vo), as
llhas (l|Vo) e a Beira (87o) formavam as outras proveniências significativas (17).

(t 3) A. J. R. Russer-l-Wooo, «A emigração: fluxos e destinos», in Hist(tria da Expansão Portuguesa


(ed. Francisco Bethencourt e Kirti Chauduri), Círculo de Leitores, Lisboa, 1998, vol. 3, p' 165
(r4) Canlos Orr, Formação e Evolução Émica da Cidade de Salvador, vol. t, Salvador, 1955,
pp. 46-47.
( 1 s) Ar.ronÉ JoÃo ANroNrl , Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogrts e Minas, II ." ed., Lisboa,
l7l ll, São Paulo, 1967, parte III, cap. v.
(t6) H. B. JouNsoN, «Portuguese settlement, 1500-1580», in Colonial Brazil (ed. Leslie Bethell),
ob. cit.. p. 35.
(r7) Russell-Wooo, «Ritmos e destinos da emigração»,in História da Expansão Portuguesa, ob. cit.,
vol. 2, p. I 17.

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Este padrão manteve-se ao longo de Setecentos, tornando-se mesmo mais
nítido aos olhos dos observadores contemporâneos. No relatório que dirigiu ao seu
sucessor em 1779, o vice-rei Marquês do Lavradio, assinalava que os portugueses
que se iam estabelecer no Brasil eram pela maior parte naturais da província do
Minho; ideia reiterada por António Henriques da Silveira, um dos colabora-
dores das Memórias da Academia Real das Ciências, que afirmava: «Milhares de
minhotos passam anualmente para o Brasil» 118). Esta informação é amplamente
confirmada por um estudo inédito sobre os viajantes na rota do Rio de Janeiro
e o retorno dos reinóis: em 900 que regressaram à metrópole entre 1769 e l'719,
68,3Vo haviam nascido no Minho(,e). S" na composição geral da emigração,
sobrepujavam os naturais dessa província, essa preponderância era ainda mais
acentuada no que diz respeito aos meios dos negócios, conservando-se ao longo
dos séculos XVII e XVIII. É pelo menos o que poderá concluir-se dos elementos
disponíveis sobre a naturalidade dos comerciantes de Salvador da Baía (quadro
n." 1, na página seguinte).
Este padrão verificava-se também, embora em menor grau, no recrutamento
da comunidade mercantil de Lisboa. No século XVII, quando o peso dos negoci-
antes de ascendência hebraica era ainda significativo, as regiões raianas, de Trás-
os-Montes ao Alentejo, forneciam contingentes significativos. Restringida porém a
análise aos cristãos-velhos, era já a província de Entre e Douro e Minho, depois da
própria cidade de Lisboa, que dava o maior contributo (com 23,7vo dos grandes
mercadores), e era ainda maior a proporção dos que que tinham ascendentes
minhotos (exactamenÍe ll3) (2o). Na segunda metade do século XVIII, a impor-
tância dos naturais do Minho cresceu (ao mesmo tempo que os cristãos-novos
iam desaparecendo). De facto, 35Vo dos negociantes de Lisboa haviam nascido
no noroeste, e quase metade (487o) eram descendentes (filhos ou netos) de minho-

1t
s; do Marquês do Lavradio, apresentado ao vice-rei do Brasil seu sucesson), in VrscoNos
"Relatório
oe Cannnxt»e, O Brasil na Administração Pombalina [I." ed., 1940], São Paulo, 1979, p.243; ANróNro
HeNntquns oe StLvelne, <<Racional discurso sobre a agricultura, e população da província de Alentejo», in
Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, vol. I (1789), 2." ed., Lisboa, Banco de
Portugal, 1990, p.54.
(le; Nlneu Ouvrrna CnveLcaNrr, «Passaportes dos viajantes que saíram do Rio de Janeiro: o regresso
dos reinóis (1769-1779)», comunicação ao Encontro de Investigadores da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, baseada no registo de passaportes da Junta do Comércio. Ao autor, que nos facultou o seu estudo, ainda
inédito, apresentamos os nossos agradecimentos.
12$ David Grant Smith, The Mercantile Class oJ Portugal antl Brazil in the Seventeenth Century: a
Socio-Economic Study ofthe Merchants of Lisbon and Bahia, 1620-1690, dissertação de doutoramento, poli-
copiada, Universidade do Texas, Austin, 1975, pp.34-39.

56
Que»Ro N." I
Origens geográficas dos negociantes da Baía (séculos XVII-XVIU)

l 600- I 660 r 680- I 740 I 790- I 807

Cristãos-novos Cristãos-velhos Total

94,2 80. I 80.6 83,3 77,6


PORTUGAL
36,6 t 3,6 20,6 6,8 l4,l
Estremadura
36,6 t0,2 l9,t 0,8 t4.l
Lisboa
Alentejo 19,2 7,6 1,5
'7 '1 ),t 0.8
Algarve
9,6 6,8 9,9 )7 4,7
Beira
17,3 66,2 4?5 60.6 49.4
Minho
3,4 1,5 8,3 12,9
Braga
9,6 r 1,9 13,0 16.7 20.0
Porto
Viana 7,7 27,1 r 5,9 23,5 '7
,l
1,7 1.5 0.8 15
Trás-os-Montes 1,9

8,5 51 9,8 1,2


ILHAS
3,8 al a
5,8 3.4 6.1
BRASIL
6.8
ESTRANGEIRO
Íl= 52 59 r3t t32 85

Dudos em p€rcenlagem.
Fontes: David Grant Smith,
'fhe Mentuttile Ckss oJ Portugal tmd Bruzil in the Seventeetúh Century: t Sot:io-Et:onomic
policopiada' Universidade doTexas'
Study ofthe Merchunts of Lisbon ttnd Btthiu, 1620-l,gT,dissertação de doutoramento,
Buhitut h the Mitl-Coktnitil Periocl: the Sugtrr Pktn'ters, Tobac«t Gntwers'
Austin, 1975, pp.29l-292;Rae Flory, Sociery
Merchtmts, tmtl Artisttns ttf Sulvardor urul the Recôm:uvtt, t680'1725, dissertação de doutoramento' policopiada'
p. 226;Rae Flory e David Crant Smith, «Bahian merchants and planters in the seven-
Universidade do Texas, Austin, 1978,
teenthandearlyeighteenthcenturies», Hisptmi<:AmeriruttHistoriuilReview,5S(4)'1978,p'575;CatherineLugar'The
policopiada' universidade do Estado
Men:h0ní Community oÍ sulvruktr Bahiu, 1780-1830, dissertação de doutoramento,
de Nova Iorque, Stony Brook, 1980, p. 55.

<<a maior parte


tos (21). Nessa época, o já citado Henriques da Silveira afirmava:
pro-
dos homens de negócio do reino, e das conquistas são nascidos naquelas
víncias, (22).Na sú maioria, eram oriundos das freguesias rurais dos concelhos
urbanos
de Barcelos e de Guimarães, e em muito menor escala de aglomerados
com maior número
como Braga, Viana, Guimarães ou Porto, que concoÍTiam então
de emigrantes Para o Brasil.

(2r) Jonce M. Peonslnn, Os Homens de Neg,ócio '.., ob. cit'' pp' 194-195'
e1 A.HeNntques oe Stlverne, «Racional discurso "'», ob' cit', p' 50'

57
A explicação para este padrão de recrutamento, que é verdadeiramente
excepcional no contexto internacional, reside numa configuração social que
conjuga as estruturas económico-sociais da região de origem - que impulsionam a
emigração de forma permanente - e os dispositivos de recepção e integração dos
que iam chegando, assim a Lisboa como às praças do Brasil. O carácter estrutural
da emigração minhota e as redes que se teciam com base em laços de parentesco,
em relações de amizade e vizinhança ou nos próprios contactos do negócio
propiciavam a reprodução do movimento migratório e até dos itinerários pessoais.
Seria ocioso repetir aqui porque constituíam as províncias do Noroeste a principal
fonte da emigração: os motivos são sobejamente conhecidos. Yaletá a pena
sublinhar, porém, os aspectos que melhor se prestam a elucidar a expressiva contri-
buição do Minho para o recrutamento do corpo mercantil na capital do império
e mais ainda no Brasil. A pressão demográfica não constituía o único factor de re-
pulsão e a mera associação entre densidade populacional e emigração é uma
explicação claramente insuficiente. Como antes referimos, os regimes sucessórios
não igualitários, que privavam da posse da terra a maioria dos descendentes,
obrigando-os a encontrar meios próprios de subsistência e a abandonar a explo-
ração agrícola familiar, formavam um poderoso incentivo ao abandono das terras
de origem er.Apreferência entre herdeiros, ao afastar da herança vários elemen-
tos em cada geração, conferia um âmbito intergeracional às redes sociais e fami-
liares que permitiam a colocação, em Lisboa ou no Brasil, dos minhotos que
procuravam na viagem um caminho para a prosperidade. Por isso era tão frequente
que o acolhimento dos recóm-chegados ficasse a cargo dos tios, que tinham percor-
rido o mesmo itinerário na geração anterior.
Uma vez instaladas, estas redes, que não tinham um suporte exclusivamente
familiar, pois mobilizavam também compadres, amigos e outros conhecimentos,
serviam para encaminhar também aqueles que, como os filhos dos oficiais mecâ-
nicos, saíam não porque fossem excluídos da exploração da teffa- da qual grande
parte dos seus pais, que eram eles mesmos filhos de lavradores ou camponeses, já
haviam sido privados - mas simplesmente porque encontravam na expatriação
uma oportunidade para melhorar as suas condições de vida. Segundo o Marquês do
Lavradio, eram essas redes que permitiam a perpetuação do controlo dos reinóis
sobre o comércio nas praças brasileiras, impedindo aos naturais da terra o acesso

(23) O instituto dos prazos de livre nomeação facilitava a preferência entre herdeiros e portanto
limitava o acesso à posse da terra. Sobre esta questão, veja-se FenNeNoo Dones Cosla., <<Prazos, sucessão e
poder paternal no Minho: a livre nomeação contra a transmissão igualitária (contribuição para o seu estudo)»,
Revista de História Económica Socirtl, 1989 (26), pp' 85- I I 8.

58
à actividade mercantil: «logo que aqui chegam não cuidam em nenhuma outra
coisa que em se fazerem senhores do comércio que aqui há, não admitirem filho
nenhum da terra a caixeiros, por onde possam algum dia serem negociantesr, (24).
De facto, era impressionante o peso dos reinóis nas comunidades mercantis
das principais praças brasileiras. Apesar do desenvolvimento ocorrido ao longo do
século XVI[, na Baía, em vésperas da suspensão do regime colonial e da abertura
dos portos à navegação estrangeira, os homens de negócio naturais do Brasil eram
menos da quarta parte (quadro n.o l). No Rio de Janeiro, pela mesma época,
embora nos faltem elementos comparáveis, alguns dos maiorés negociantes (como
os Carneiro Leáo, Martins Pedra, Amaro Velho, Gomes Vale, Pereira de Almeida
e outros), eram emigrantes de fresca data ou continuavam a manter relações
familiares e comerciais próximas com os seus congéneres lisboetas (2s). Mas em
nenhum lugar o predomínio dos mercadores reinóis fora tão grande como em
Pernambuco. Segundo uma crónica de começos do século XVIII: <<Em poder
desses forasteiros ou mascates residia todo o comércio; eles portanto eram os que
supriam os engenhos e também os únicos que recebiam as caixas de açúcarr, (26).
Aqui, a exclusão entre os emigrantes e a gente da terra polarizou-se no enfrenta-
mento entre esses mascates, isto é, os comerciantes portugueses estabelecidos no
Recife após a restauração da soberania portuguesa e a expulsão dos holandeses, e
os senhores de engenho de Olinda. Nesse conflito, sobre a oposição de classe
(entre credores e devedores), e coincidindo com ela, veio justapor-se uma oposição
entre identidades territoriais, tanto de residência (Recife contra Olinda), como
de naturalidade (reinóis contra mazombos), o que lhe conferiu uma excepcional
intensidade (27).
Uma explicação para a persistente dependência das comunidades mercantis
brasileiras relativamente à chegada dos emigrantes da metrópole poderá ser
encontrada nas considerações que a este propósito fazia o Marquês do Lavradio no
relatório que citámos. Sustentava o vice-rei que então, no Brasil, os comerciantes,
mesmo os mais eminentes, náo realizavam negócios por sua própria conta e

1241 «Relatório ...», ob. cit.,p.244.


(2s) Sobre a comunidade mercantil do Rio de Janeiro, vejam-se JoÃo LuÍs Rtsrlno FRAGoso, Homens
de Grossa Aventura. Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830),F.io de
Janeiro, 1992 e MeNolo FlonrNrrNo , Em Costas Negras. Llma história do tráJico de escravos efire ÁÍrica e
o Rio de Janeiro (sécukts XVIII e X/X), São Paulo, 1997. Confrontem-se os nomes com JoncB M. PepRnrna,
Os Homens de Negócio..., ob. cit.
126; «Guerra civil ou sedições de Pernambuco», transcrito em J. B. FERNANDES Geve, Memórias
Históricas da Província de Pernambuco, t.rv, Recife 1847, pp.57-58, apud Everoo Cesnel oe MEll-o,
A Fronda dos Mazombos, ob. cit., p. 126.
(27) Evr,t-oo CasnrL nE Mpllo, A Fronda dos Mazombos, ob. cit., pp. 144-145.

59
iniciativa, limitando-se a conduzir o comércio de importação e exportação como
meros agentes ou comissários dos negociantes de Lisboa. Os mais ricos eram
afinal os que mais ganhavam nas comissões sobre as fazendas que recebiam e
expediam para os seus correspondentes na capital do império (28). Esta era uma
modalidade de negócio que não permitia a autonomizaçáo e a consolidação dos
corpos mercantis das praças brasileiras e, de facto, o controlo exercido pelos
negociantes metropolitanos sobre as relações com os comerciantes estrangeiros
estabelecidos em Portugal (que se encarregavam de exportar os géneros brasi-
leiros), conferia-lhes uma apreciável vantagem no comércio de importação e
exportação. Assim, há uma parte de verdade no comentário depreciativo do
Marquês do Lavradio, mas há também algum exagero. No caso do tráfico de
escravos, por exemplo, mormente na Baía, os negreiros estabelecidos no Brasil
conduziam os seus negócios com grande autonomia, tendo mesmo conquistado
uma posição dominante. Deste modo, mais do que na posição de dependência
das praças de comércio brasileiras, a explicação deve ser procurada na instabi-
lidade geral dos meios de negócios e na porosidade da estrutura social dessas
mesmas praças.
A fluidez é uma característica de grande parte dos círculos mercantis na
época moderna, que no entanto tinha uma incidência particular em Portugal, nome-
adamente em Lisboa. No século XVII, segundo os elementos reunidos por D. G.
smith, 56va dos homens de negócio sucediam aos pais na mesma ocupação, mas
se nos cingirmos aos cristãos-velhos, essa proporção cai para25vo (,e).Na segunda
metade do século XVIII, eram apenas 28,8% os filhos e menos de l\Vo os netos de
outros negociantes. Além disso, a duração da sua actividade era relativamente
breve. Só 40Vo se mantinham em exercício depois de dez anos e apenas a quarta
parte ao fim de quinze (3o).Há todas as razões para pensar que no Brasil essa
fluidez era ainda superior, pois no Rio de Janeiro eram frequentes os casos de
comerciantes que permaneciam apenas um ano no mercado e participavam num
escassíssimo número de operações mercantis (31). Isso significa, portanto, que
nos corpos de comércio das cidades brasileiras se criava espaço para a contínua
entrada de novos membros provenientes do reino. Contudo, talvez mais do que
uma explicação para a persistente hegemonia desses elementos, a fluidez da
comunidade mercantil ó um sintoma ou um indicador dessa hegemonia.

(28) «Relatório ...», ob. cit., pp. 244-245.


(2e) D. G. SurrH, The Mercantile Clrtss .... ob. cit., pp.43-44.
(3o) Jonce M. PBonerna, Os Homens de Negócio..., ob. cit., pp. 199-200 e 133
(3t) J.L.RIBEIRoFnecoso, HomensdeGrossoAventura...,ob.cit,pp. 162-167 eManoloFlorentino,
Em Costas Negras ..., ob. cit., p. I 5 I .

60
E preciso, por isso, ir mais além na análise dessa fluidez. Por um lado, resul-
tará da presença de inúmeros mercadores de ocasião ou do precoce abandono da
actividade pelos que nela não conseguem vingar. Alguns serão forçados a voltar
para Portugal, outros perrnanecerão no Brasil, exercendo porém outras ocupações.
Mas, por outro lado, corresponderá a um processo de mobilidade, tanto geográfica,
como social. Geográfica, porque não eram poucos os que consideravam o seu esta-
belecimento na América como temporário. Regressavam a Portugal depois de
terem amealhado o suficiente para viverem dos rendimentos ou para se estabele-
cerem com negócio seu em Lisboa ou noutro ponto do país, ou vinham após terem
cumprido o seu papel como correspondentes de sociedades ou parcerias comerciais
(muitas delas de base familiar) constituídas para explorar o tráfego transoceânico.
Não é de estranhar, por isso, que entre os residentes na colónia que retornavam
a Portugal uma grande parte exercesse actividades comerciais. Entre 1769 e 1779,
num conjunto de 688 passageiros domiciliados no Brasil que embarcaram no
Rio de Janeiro em direcção ao reino e dos quais se conhece a ocupação,38Vo eram
comerciantes e l0,6Vo caixeiros e afins. Uma parte significativa destes (42,3Vo)
haviam-se estabelecido em Minas Gerais, de onde agora regressavam. Apesar da
evolução do figurino da emigração a que já nos referimos, predominavam os
solteiros, mesmo nas gerações mais velhas, nomeadamente no grupo etário entre os
40 e os 60 anos. Em 745 viajantes moradores no Brasil que partiram do Rio de
Janeiro para Portugal e dos quais há registo do estado civil, 690, isto é, perto de
807o, eram solteiros (e a percentagem desce apenas para73,7Vo entre os maiores de
40 anos) (32).
Contudo, os percursos de mobilidade social ascendente não terminavam sem-
pre pelo regresso a Portugal. Alguns dos mais bem sucedidos ficavam no Brasil.
Não eram raros, de resto, os senhores de engenho com antecedentes familiares
mercantis. Os homens de negócio adquiriam terras e engenhos de açúcaq juntando
as plantações aos seus interesses comerciais, que os filhos ou netos, quando soli-
damente instalados, progressivamente abandonavam. A diferenciação entre comer-
ciantes e senhores de engenho nem sempre foi perfeita, mantendo-se situações
de acumulação das. duas condições, principalmente na Baía e no Rio de Janeiro.
Em Pernambuco, onde essa especiahzaçáo se aprofundou, em finais do século XVII
e princípios do XVIII, havia ainda senhores de engenho que podiam ser apontados
como cristãos-novos por descenderem dos mercadores de extracção judaica que
um século antes se haviam estabelecido na capitania (33). Acresce que entre os

(32; Nrneu CavalcaNrr, «PassapoÍtes dos viajantes ...», tabelas r e rr.


(33) Ever-oo CaenA.r- »e Mello, O Nome e o Sang,ue, São Paulo, 1989, pp.l9-85 e A Fronda dos
Maz.ombos, ob. cit., pp. 125 e 163-164.

61
comerclantes era comum a práÍica, documentada em pernambuco e na Baía, de
escolher os seus agentes, correspondentes e associados entre os seus contactos
em Portugal e até entregar a sucessão nos negócios a irmãos mais novos, sobrinhos
ou primos (por vezes expressamente mandados chamar a Portugal). A figura do
homem de negócio que ficava solteiro e ajudava a lançar os seus protegiàos, em
geral os sobrinhos, era mesmo, segundo Catherine Lugar, uma das peironagers
típicas da comunidade mercantil de Salvador da Baía em finais do períódo colonial,
como o fora em épocas anteriores (34). Mesmo os que casavam e tinham des-
cendência deixavam o negócio a esses protegidos, com os quais eventualmente
casavam as filhas. Quanto aos filhos, ou porque não se mostrassem aptos para o
trato ou porque se buscasse para eles uma ocupação de staíus superior, ficavam na
posse e na administração das propriedades ou engenhos ou eram encaminhados
para outras carreiras, de letrados, clérigos ou militares (3s). De resto, aqueles
que vinham completar os seus estudos no reino formavam também um impoitante
contingente entre os que viajavam do Brasil para Portugal. Esta permanência
na metrópole tinha naturais implicações para o desenvolvimento ulterior das
suas carreiras, mesm-o que um dia regressassem à América como magistrados ou
funcionários régios (36).
Tudo isto explica afinal porque não se consolidavam comunidades mercantis
locais e porque persistiu até táo tarde a hegemonia dos negociantes do reino. Este
modelo de reprodução proporcionava permanentes oportunidades aos emigrantes.
Tais ocasiões podiam ser aproveitadas de diversas maneiras. Eram grandes as
diferenças entre os que desembarcavam nos portos brasileiros como agentes de
casas de comércio de Lisboa ou do Porto ou que iam remetidos a familiares para se
iniciareni no negócio por grosso e os que chegavam providos apenas àu ruu
ambição. Ajudados ou não pelas famílias, entrando directamente no grosso trato
ou subindo a pulso os degraus da carreira comercial, de aprendizes e caixeiros
em lojas de mercadores a comerciantes da praça, os emigrantes, na sua maioria
gente de origem relativamente modesta, filhos de lavradores e artífices minhotos,
conseguiram chegar por vezes ao topo da hierarquia mercantil, nas praças brasi-
leiras ou mesmo na capital do império. para os mais desprovidos de meios, sem
capitais ou patrocínios, a passagem pelo Brasil oferecia iustamente as maiores
possibilidades de uma rápida promoção. Acompanhemos agora as suas histórias.

(34) CnrnentNs Lucen, The Merchant Conununitl' oJ'salvaelor, ob. cit., pp.226-34; R. Flony e D.G.
Svtrs, «Bahian merchants and planters ...», ob. cit., pp. 575-516.
(3-5) R.Flonv e D. G. Srrarrs, «Bahian merchants and planters ...», ob. cit., p.5i6 e E. CaeReL
oE MelLo, «A Fronda dos Mazombos», ob. cit., p. l2g
(36) Russell-Wooo, «Ritmos e destinos da emigração», ob. cit., p. 125.

62
Trajectórias individuais e mobilidade social

A desintegração da comunidade de origem judaica em Portugal veio modi-


ficar o campo de recrutamento dos homens de negócio tanto no reino, e particular-
mente em Lisboa, como no Brasil. Em finais do sóculo XVII, a situação mudara
substancialmente. Referindo-se a essa ocorrência no caso específico de Per-
nambuco, onde a mudança se fazia notada, especialmente depois da forte presença
dos mercadores hebreus durante a ocupação holandesa, Evaldo Cabral de Mello
descreveu-a nestes termos:

O recrutamento dos homens de negócio processava-se agora enÍre os escalões subal-


ternos (artesãos e gente do campo) da população cristã-velha do Reino, maioritariamente
do Norte de Portugal, emigrantes sem eira nem beira que, trabalhando como caixeiros
ou mascateando pelos distritos rurais, acumulavam os recursos com que abrir negócio
no Recife, onde mediam e pesavam, exercícios manuais e portanto aviltadores, subindo
por vezes a «mercador de sobrado», isto é, capitalista, última escala no processo de
promoção económica mas primeira no de ascensão social (37).

Neste breve trecho estão condensados os itinerários individuais de muitos


mercadores do Recife, mas também de outros portos ou praças brasileiras e até do
reino. Se o campo de recrutamento socio-profissional, tal como o geográfico, dos
comerciantes do Brasil não se afastava muito do que vigorava em Lisboa, e tudo
indica que eram semelhantes, a asserção de Cabral Mello é inteiramente válida.
No século XVII, entre os negociantes cristãos-velhos da capital, 28Vo eram filhos
de lavradorese2l%o de artífices (esó257o descendiam de outros negociantes) (38).
Na segunda metade do século XVI[, o figurino era exactamente o mesmo (3e).
Já quanto à condição social e à pobreza dos emigrantes será necessário fazer
algumas advertências. Na própria época, era corrente a imagem de que eram pobres
os reinóis que chegavam ao Brasil. Por vezes, o relevo dado à sua condição infe-
rior constituía uma forma que os seus detractores usavam para os denegrir, como
na já citada crónica sobre a gueÍra dos mascates:

Posto que alguns portugueses para Pernambuco viessem que, já pela sua educação, já
pelo seu nascimento e já pela índole de que eram dotados faziwn justiça aos naturais
do país e fratemalmente os tratavam, eram um número tão limitado que se perdia no

(37) E. Casnel oe MBlr-o, A Fronda dos Ma«tmbos, ob. cit., p. 125


(38) D. G. Svrru, The Mercantile Class ..., ob. cit., pp.43-44.
(3) J. M. Peonerne, Os Homens de Negócio..., ob. cit., pp. 199-200.

63
meio do turbilhão de aventureiros aurissedentos, que, todos os anos, nus e miseráveis,
aportavam no hospitaleiro Pernambuco. Desta gente, pois, a mais abjecta de Portugal,
ignorante e sobremaneira mal educada, abundava esta província(4o).

Contudo, mesmo as crónicas favoráveis aos mascates não deixavam de assi-


nalar as suas origens modestas, encarecendo por essa forma o trabalho e a indús-
tria por meio dos quais haviam adquirido os seus patrimónios. Um dos advogados
dos comerciantes sustentava então essa ideia, não hesitando em afirmar que os
filhos de Portugal estabelecidos no Recife vinham «pela maior parte pobres» (41).
Mais de cinquenta anos depois, António Henriques da Silveira, que por mais de
üma yez citámos, referindo-se à emigração minhota para o Brasil, dizia que se
contavam por milhares os que para lá passavam <<sem levarem bens alguns, que
lhes possam segurar boa fortunar, (42).
A imagem da pobreza original dos emigrantes predominava então e certa-
mente eles não abundavam de recursos. Porém, a maior parte dos que partiam das
suas terras, para Lisboa ou para o Brasil, saíam durante a adolescência, com doze,
quinze, raramente com mais de vinte anos, sendo <<rapazes de escola>> e depois
de terem aprendido a ler e escrever. Para quem não soubesse ler, escrever e contar
era de facto muito difícil encetar uma carreira nos negócios (ainda que sejam
conhecidos alguns casos excepcionais). Ora esses conhecimentos, na aparência
elementares, só eram então acessíveis a uma escassa minoria, numa sociedade
largamente iletrada. Significa isto que a maioria dos emigrantes que tomaram
uma ocupação comercial não provinham das camadas mais baixas da sociedade, a
menos que pudessem contar com o patrocínio de alguém influente (por exemplo
um clérigo), que lhes garantisse o acesso à instrução. Eram em geral de condição
humilde, mas dispunham apesar de tudo de meios suficientes para suportar os
custos da sua educação (designadamente a renúncia ao produto do seu trabalho).
Não contavam certamente, porém, com os cabedais necessários para se lançarem
imediatamente no negócio por grosso, e na maioria dos casos começavam por
baixo, pelos escalões inferiores da actividade mercantil.

1ao; «Guerra civil ou sedições de Pernambuco,. transcrito em J. B. FERNANDES Gerv.e, Memórias


Históricas da Província de Pernambuco, t.. rv, Recile 1847, pp.56-57, apudEvnt»o CesneL oB Mello,
A Fronda dos Mazomhos, ob. cit., p. 130.
1ar; MeNuol oos SeNtos, Caktmidades de Penrumbuco U7 l2l, ed. J. A. Gonsalves de Mello, Recit'e,
1986, p. 84 e «Guerra civil ou sedições de Pernambuca>,, loc. cit., pp. 51-58, apud E. Cnenat- »e MsLLo,
A Frondu dos Mazombos, ob. cit., pp. 126 e 130.
(42) ANróNro HeNnrques oe SrLvorne., «Racional discurso ...», ob. cit., p. 54.

64
Um relato pouco lisonjeiro para os mercadores reinóis do Recife (composto
pelo já citado partidário dos seus adversários, os senhores de engenho de Olinda)
descrevia nestes termos os começos dos emigrantes em Pernambuco:

Chegando a Pernambuco, esses forasteiros conseguiam, a troco de algum trabalho


pessoal, adquirir quatro ou seis mil réis; com este fundo, compravam cebolas, alhos, etc.
etc., e carregados destes géneros saíam a vender pelas ruas e freguesias do interior.
Deste giro mesquinho, se procediam bem e não se embriagavam continuamente, os
seus patrícios (que tinham como eles principiado) os livravam, fiando-lhes fazendas
para venderem aos moradores do campo e, assim, arvorados em mascates, em
breve aqueles estúpidos, que em Portugal nem para criados serviam, tornavam-se
capitalistas t...1 (43).

Na Baía, também era raro que começassem logo pelo comércio por grosso.
Mais comum era principiaram como agentes de negociantes da metrópole ou
caixeiros ou ainda como capitães de navios, alguns dos quais se estabeleceram
como mercadores de loja em Salvador. Os recém chegados, caixeiros ou apren-
dizes, iniciavam-se no comércio à comissão, aproveitando depois o primeiro
ensejo que se lhes apresentasse para negociarem por conta própria. Para tanto, as
relações que conseguiam tecer na comunidade mercantil ou com homens de
negócio em Lisboa ou no Porto desempenhavam um papel fundamental (aa).
O êxito dessas primeiras operações comerciais possibilitavam-lhes o estabeleci-
mento independente e depois a ascensão a negociante de grosso trato. Alguns, que
permaneciam solteiros, acabavam por voltar ao Reino, para viverem de rendi-
mentos ou para se instalarem nessa qualidade na capital do império. Outros inte-
gravam-se na sociedade local, casavam com filhas da terra (de outros negociantes
ou de proprietários) e, segundo o modelo reprodutivo a que acima aludimos,
acabavam por transmitir a outros emigrantes os seus negócios, em que os filhos
só raramente lhes sucediam. Entre as carreiras de uns e de outros, até à opção pelo
regresso ou pelo casamento, poucas diferenças havia e esse padrão conservou-se
praticamente até ao fim do sistema colonial.
De facto, não eram poucos os homens de negócio da praça de Lisboa na
segunda metade do século XVIII que haviam residido pelo menos algum tempo no
Brasil. Essa situação era particularmente frequente no caso dos naturais do Minho,
muitos dos quais (45Vo, segundo uma amostra significativa), antes de se instalarem
definitivamente em Lisboa, faziam uma passagem pelo Brasil. Este expediente

1a3; oGuerra civil ou sedições de Pernambuco», loc. cit., pp. 57-58, apud p. Cennel os Met-lo,
A Fronda dos Mazombos, ob. cit., p. 126.
('14) R. Flonv e D. G. Srrarrn, «Bahian merchants and planters .. .rr, ob. cit., pp. 578-579.

65
não era porém exclusivamente usado pelos minhotos: só 56Vo dos homens de
negócio de Lisboa que viveram temporariamente em terras brasileiras provinham
do noroeste. os beirões e transmontanos seguiam, com frequência, esse mesmo
caminho e quase 40Vo de todos os negociantes nascidos fora de Lisboa transitavam
pelo Brasil, que não deixava de tentar tos próprios lisboetas. Uns eram filhos de
negociantes que procuravam iniciar a sua própria carreira ou iam como coÍres-
pondentes dos pais ou irmãos, mas a maioria (filhos de artífices e outros) procurava
simplesmente melhorar a sua condição. No entanto, os naturais de Lisboa repre-
sentavam apenas 1/5 dos que rumavam ao Brasil (4s).
As raízes da emigraçáo para Lisboa ou para o Brasil eram afinal as mesmas e
eram comuns casos como o de José da Mota Pereira, que, depois de ter aprendido
a ler e a escrever na sua terra, <<embarcou para o Brazil para casa de hum parente
que tinha no Rio de Janeiro, mandado por seus Pays. por thes ficarem outros filhos
que lhes avião de succeder no cazal>> (46). A opção por Lisboa ou pela América
podia inclusivamente decidir-se já depois de iniciado o percurso migratório.
Alguns, antes de partirem para o ultramar. podiam exercer transitoriarnente em
Lisboa um ofício mecânico ou um emprego de caixeiro, e havia até os que
mudavam de projecto, como Manuel Pereira de Faria, que estava destinado ao
Brasil, mas acabou por não sair da capital:

veyo para esta Corte remetido a hum Balthazar Fernandes que tinha loges, e negocio
groço de mercearia, para este, ou hum seu socio Alvaro de Sousa o prepararem para hir
para o Rio das Mortes, para hum seu Tio homem de negocio muito avultado que tinha
na dita vila, do qual tinham ordem para lho enviarem, e como achou que a frota tinha
partido, ficou em casa do dito Balthazar Fernandes alguns meses, the que o dito seu
Pay the ordenou, que passasse para casa do socio Alvaro de Sousa, homern de negocio
de grosso trato para com elle aprender o negocio. the que a frota voltasse, para nella
haver de passar para o Rio das Mortes. e como conhecesse nelle seriedade e actividade
para o negocio o induziu, e persuadiu ao Pa1'. para que ficasse na sua Companhia e nào
passasse para o Brasil, e que the daria pane no negocio que tinha o que fez com o
interesse de ter ao Tio dele por seu correspondente e logo cuidou também em casar huma
filha unica que rinha com elle (47y.

Assim, Lisboa era um dos locais de embarque preferidos pelos emigrantes,


mesmo pelos que vinham do Norte. João Gonçalves Leite, por exemplo, foi de
Cabeceiras de Basto com catorze anos para o Brasil. Passou primeiro por Lisboa,

(as; Jonce M. Pnonerne, Os Homens tle NestitiL) .. . ob. cit., pp. 218-221.
(46) Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) Habilitações da Ordem de Cristo (HOC), Letra J.
Mç.61, n." 5 (1719).
(47) ANTT, HOC,LeÍraM, Mç.39, n."ill (175 l).

66
chamado por um irmão, com quem atravessou o Atlântico em direcção ao Rio
de Janeiro, para ser caixeiro de um homem de negócio. Ao fim de alguns anos,
tornou-se ele próprio negociante, e voltou à capital onde formou uma sociedade
com o irmão (a8). Outros, porém, saíam pelo Porto, como José Moreira Leal,
natural de Arrifana de Sousa, filho de tendeiro, de quem um seu contemâneo
contava que <<embarcou no Porto para o Brasil, donde veio com alguns cabedaes,
voltou a esta vila e tornou a embarcar e dahi veyo para Lisboa aonde dizem que
está negociando>>. Seria depois, durante vários anos, deputado da Junta do
Comércio (4e). U* percurso semelhante ao de João Rodrigues de Freitas, nascido
no termo de Guimarães que <<sendo moço>> ausentou-Se para o Porto, para com-
panhia de um tio, e dali fez viagem para o Brasil. Anos depois, regressou à metró-
pole e estabeleceu-se como homem de negócio em Lisboa (so).
A maior parte destes emigrantes (657o, segundo os dados da nossa amostra)
iam remetidos a um parente ou conhecido, que se encarregava de os encaminhar.
Era raro que se aventurassem sem uma promessa de auxílio, como foi o caso de
Manuel Rodrigues Pontes, um portuense que com quinze anos de idade foi enviado
pelo pai para o Brasil para que não o fizessem soldado (sl). Em terras brasileiras,
os que iam dirigidos a um familiar negociante, depois do inevitável tirocínio,
entravam com maior facilidade no comércio por grosso. António Martins Pedra,
por exemplo, saiu do termo de Barcelos para Lisboa, onde serviu como caixeiro, e
depois foi para o Rio de Janeiro, aprender o negócio em casa de um primo, que,
por sua vez, já tinha ido para companhia de um irmão (um exemplo claro da
migração em cadeia). Foi sócio do primo, Brás Carneiro Leão, que negociava em
lã e seda e haveria de transf,ormar-se no maior negociante do Rio, com uma fortuna
verdadeiramente fabulosa e1. Esteve algum tempo em Vila Rica de Ouro Preto,
até que voltou ao Rio de Janeiro, onde permaneceu oito ou nove anos <<com esta-
belecimento grande e avultado cabedal». Enriqueceu e tornou a Lisboa, onde, apro-
veitando os conhecimentos que fizera no ultramar, manteve um tráfego volumoso,
em que empregava o seu próprio navio (s3). Quando faleceu, com quase 80 anos,
em 1805, deixou uma foftuna de 250 contos (sa)'

(48) ANTT, HOC,Letra J, Mç.4, n." 4 (1755).


(4e) ANTT, Hahilitações do Sdnto Ofício (HSO), José, Mç.52, n.'825 (1745).
(so) ANTT, HSo, Joáo, Mç.75, n." 1382 (1740).
(s1) ANTT, HoC,LetraY Mç.1, n." 8 (1756).
(s2) J. L. RrsEtno Fnecoso, Homens de Grossa AvenÍura ..., ob. cit.' p. 262.
(53) ANTT, HSo, António, Mç.159, n." 2505 (1767) e HOC,Letra A, Mç.33, n'' 7 (17'79).
(.r) Em rigor de 486 contos, mas onerada por dívidas no valor de 240 contos; ANTT, lnventári,,ç
Orfanológicos, Letra A, Mç. 136.

61
Muitos dos queembarcavam iam para não voltar ou, se pensavam no regresso,
era da sua terra natal que se lembravam. Era o sucesso e o ênriquecimento
lue os
trazia novamente à capital do império. A passagem por terras brásileiras p".Áitiu
u
alguns acumular cabedais e fazer amizades e conúecimentos que facilitavam
ou
aconselhavam o seu estabelecimento na capital, que representava
o culminar
de uma carreira. Eram vastas as oportunidades qu" r" abriam do outro lado
do
oceano aos que pretendiam iniciar-se no comércio, especialmente se
tivessem
como mentor um negociante iá instalado. Por vezes, a teia das protecções
era
complexa, envolvia ao mesmo tempo familiares e conhecidor, pioporúonando
ocasiões imprevisíveis. Veja-se o depoimento de um magistrado g11 qu"
conta os
começos de um negociante, natural de Lamego, qu. ajudou durante a sua
passagem pelo Brasil: "1"

[...] tendo hum Irmão Clerigo por Capellão em casa do Dez.do. do passo Ant.., Teix...
Alvares, o mandou vir da terra, e por empenho do mesmo Dez.d.,. o remeteu
na frota a
elle, ao Rio de Jan.r" onde estava servindo de Juiz de Fora, e despachadojá por
ouvidor
geral da comarca do Rio das Velhas em as Minas, recomendanat
tn" práerse granjear
fortuna pois hera irmão de hum seu capellão a quem estimava; e porque
não tintra
commodo que lhe dar o levou em sua companhia para as Minas
[...] it" qr" lhe deu a
serventia do off." de Meirinho q serviu alguns meses; e indo seu irmão
atima dito na
frota [...] e subindo as Minas em vezita o meteu por socio de hum Mineiro,
e depois
alcançou do Bispo para ele o off..'de Escrivão do vigr.., da vara do sabará (ss).

No Brasil, as oportunidades eram tais que, mesmo sem beneficiar de pro-


tecção ou patrocínio, era possível enriquecer pelo comércio. principiavam
os
mais arrojados como mercadores ambulantes ou caixeiros. Exploravam então
as possibilidades que oferecia o abastecimento das frentes de cúonização
e em
especial a região mineira, sempre âvida de homens e mercadorias. Faziam
por
vezes longas viagens, conduzindo escravos, víveres, utensílios e vestuiário
entre os
portos e o interior. Com o que ganhavam podiam então estabelecer-se
como merca-
dores de sobrado. uma vez atingida esta condição, com protecção ou sem
ela, eram
diversas as actividades que podiam conduzir e que lhls permitiam consolidar
a
sua posição económica. Em Pernambuco, na versão de Evaldo Cabral
de Mello,
essas actividades eram as seguintes:

Ao comércio de grosso trato, actividade de base, com ou sem Ioja aberta (mais
frequen-
temente com loja aberta), esses homens associavam a arrematação dos contratos
de
impostos; a propriedade de embarcações de cabotagem ou desiinadas
ao comércio

(5s) ANTT, HOC, Letra A, Mç. 7, n." 9 ( I 750).

68
com a costa de Africa; a exploração de trapiches e armazéns; a operação de curtumes e
de fábricas de atanados; a posse de bens de raiz no Recife, aforados à Câmara de Olinda,
ou de engenhos situados nos seus arrabaldes, que muitas vezes lhes vieram às mãos por
via de execução de dívidas de senhores relapsos; e, desde o fim do século XVII, após a
«guerra dos bárbaros» e a abertura da fronteira pecuária no Rio Grande do Norte e no
Ceará, a obtenção de sesmarias e o estabelecimento de fazendas de gado (56).

Na Baía, era semelhante a variedade de interesses que os homens de negócio


mantinham, independentemente das origens da sua carreira (s'), e o mesmo pode-
ria dizer-se, mutatis mutandis, do Rio de Janeiro (e até de Lisboa) 1s8;. Ao fim
de alguns anos no Brasil, podiam regressar ao reino com os frutos do seu trabalho.
Em 1173, por exemplo, alguns negociantes que voltavam do Rio traziam consigo
diferentes quantias em dinheiro: um deles mais de 20 contos, outro mais de 10,
outros ainda 3, 4 ou 5 contos (se). Mas além do capital ftaziam um património
de conhecimentos e de relações que os ajudavam a prosseguir a carreira mercantil
na capital do império.
Neste conjunto de itinerários, que em boa parte configuram a biografia colec-
tiva de um importante sector do corpo mercantil de Lisboa, revela-se como a
passagem, mais ou menos longa, pelo Brasil era essencial para o lançamento e
desenvolvimento de uma carreira comercial. A emigração temporária exerceu,
portanto, uma influência considerável no recrutamento e na reprodução dos
homens de negócio de Lisboa, ao longo dos séculos XVII e XVI[.

Conclusão

A observação de alguns itinerários individuais, que ilustram um movimento


colectivo, social, permitiu-nos apreciar o papel que a emigração temporária para
o Brasil desempenhou no desenvolvimento das carreiras de uma parte muito
significativa dos homens de negócio de Lisboa. Para muitos, esse papel foi verda-
deiramente decisivo, tanto assim que a passagem por terras brasileiras constituiu a

(s6) Eve,r-oo Cesnel oe Mello, A Fronda dos Mazombos, ob. cit., p. 132.
(-57) R.Flonv e D. SnarrH, «Bahian merchants and planters ...», ob. cit.,p.579.
(s8) J.L. RrBErRo Fnacoso, Homens de GrossaAventura...,ob. cit., pp. 262-273 e Jonce M. Psonetna,
«Tratos e contratos: actividades, interesses e orientações dos investimentos dos negociantes da praça de
Lisboa ( I 755- I 822)>>, Análise SociaL, vol. xxxr ( I 36- I 37), 1996, pp. 355-379.
(se) Nrnnu CnvelceNrr, «Passaportes dos viajantes ...», ob. cit, tabela III.

69
condição essencial para que vários jovens obscuros,
naturais de freguesias rurais
do Minho e desprovidos de recursos económicos, pudessem
encetar um percurso
de mobilidade ascendente que os haveria de elevar à condição
de negociantes
de grosso trato, provavelmente a mais alta posição na
ordem social , qrã podiam
r azo av elmente aspirar.

Que as relações com o Brasil eram fundamentais paru acomunidade mercantil


de Lisboa e constituíam o esteio da sua actividade económica (com
que só os
contratos de exploração de monopólios públicos e de
cobrança de impostos podiam
tivalizat), é já, uma trivialidade que não carece de demonstrações
adicionais.
Neste ensaio não se.trata, por conseguinte, de documentar
uma vez mais esse lugar-
comum' O que aqui se pretende sublinhar é que os laços
com o Brasil cumpriam
uma função não menos importante para a estruturação
dessa comunidad e, para a
configuração propriamente social. E que essa funçãose
fica a dever em parte a um
efeito de fronteira.
As oportunidades que se ofereciam aos emigrantes portugueses
no Brasil
para desenvolverem uma carreira comercial
constituíam uma das Londições funda-
mentais para a reprodução do corpo mercantil, tal como
se processava. porque
eram mais acessíveis do que as que se apresentavam
em Lisboa, arargavam o
campo de recrutamento dos homens de negócio aos que
possuíam *"nã, meios
e menos possibilidades de mobilizar patrocínios. Ora
àssas oportunidades proce-
diam, em grande parte, directa ou indirectamente, do et-eito
de fronteira na
economia e na sociedade brasileira.
o avanço das frentes de expansão territorial e a exploração de novos recursos
disponíveis criavam a ocasião para o desenvolvi*.rto
do comércio a longa
distância, da exportação para a metrópore, mas também
para o arargamento do
comércio interno, que tanta importância teve nas fases iniciais
das carreiras comer-
ciais dos mercadores residentes no Brasil, facultando
a alguns deles a acumulaÇão
de cabedais e de conhecimentos que rhes permitiam
estabe]ecer ,..;;l;jü;
mesmo negociantes de grosso trato. Deste ponto de vista,
a expansão na região de
Minas, revelando uma impressionante capacidade de atracção
demográfica,
suscitou um intenso movimento comercial para abastecer
a população e paru
fornecer utensílios e mão-de-obra às explorações mineiras.
As oportunidades de
negócio que se forjaram com essa expansão tiveram repercussões
em quase todas
as regiões do Brasil e certamente nas principais
cidades do litoral, demonstrando
que, embora não numa existisse uma única fronteira
em movimento, o avanço de
uma única frente, ainda que geograficamente afastada
de outras, podia ter conse-
quências significativas para a sociedade colonial
brasileira no seu conjunto e de
forma indirecta também para a sociedade portuguesa.

70
O efeito de fronteira fez-se sentir indirectamente ainda de outro modo.
A mobilidade da sociedade brasileira, que tinha a ver com a expansão territorial
e a respectiva incorporação de novos recursos, possibilitava uma permanente
abertura de lugares na comunidade mercantil, à medida que alguns regressavam a
Lisboa, mas também à medida que os grandes mercadores de sobrado adquiriam
terras e engenhos, de que se tornavam senhores, e que os seus filhos encetavam
outras carreiras. A permeabilidade das estruturas sociais brasileiras, mesmo nas
cidades do litoral onde havia uma hierarquia mais pronunciada, abria os corpos
comerciais a uma renovação permanente e portanto à entrada dos emigrantes bem
sucedidos. Neste sentido, o efeito de fronteira na colónia, que criava as condições
para uma forte mobilidade social, acabava por se transmitir à metrópole, por via da
ampliação das oportunidades para a emigração de carácter mercantil.
Deste modo, para além dos benefícios puramente económicos que o reino, em
geral, e os homens de negócio, em particular, retiravam da expansão territorial no
Brasil e da consequente exploração de novos recursos, convém sublinhar que,
de um ponto de vista social, esses recursos e as oportunidades que directa ou
indirectamente thes estavam associadas precipitavam a mobilidade social não só no
Brasil, como em Poftugal. Ora, na antiga sociedade portuguesa, o comércio ou,
mais genericamente, os negócios formavam um dos mais importantes canais de
mobilidade. A posição do mercador poderia mesmo tonar-se uma condição provi-
sória, um estado transitório, na busca da ascensão social (60). Depois, a partir
do momento em que, pelo menos no plano simbólico e legal, os homens de
negócio conseguiram diferenciar-se dos mercadores de retalho (processo que só se
concretiza plenamente na segunda metade do século XVIII), o estatuto do negoci-
ante de grosso trato foi dignificado, tornando-se não só economicamente compen-
sador, mas também socialmente vantajoso. Reforçou-se assim o papel da carreira
mercantil como via de promoção social. Para tanto, contribuíam também, como
vimos, as reverberações do efeito de fronteira.
Como é óbvio, tais reverberações não atingiam apenas o mundo mercantil.
Os servidores da coroa, desde os oficiais régios aos letrados, e em especialmente
os governadores coloniais também acabavam por aproveitar do recuo da fronteira
e da distância relativamente ao poder central. Contudo, ao fazermos incidir a nossa

(60) Joe,eurrra RoMERo MacalHÃes, «A Sociedade», in No Alvorecer da Modernidttde, vol. III de


História de PortugaL (dir. José Mattoso), Lisboa, 1993, p. 507. Veja-se também, Joncs M. Pponetne,
«Mercadores e tbrmas de comercialização», in O Tempo de Vasco da Gama, direcção de Diogo Ramada Curto.
Lisboa, Difel, 1998, p.l76eOs Homens de Negócio..., ob. cit., p. 18.

71
atenção sobre os meios dos negócios, cremos ter
escolhido uma das vias pelas quais
se pode melhor elucidar como o Brasil funcionava,
de facto, como fronteira de
Portugal. E a estrutura da sociedade portuguesa, tal como se configurava nos
séculos XVII e xvlll, em especial no que aos padrões
de mobilidade dlz respeito,
foi em parte modelada por essa reração, qr" nem a secessão
do Brasil intenompeu
completamente.

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