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INVESTIGAÇÕES EM HISTÓRIA NATURAL NO CEARÁ:

OS ESTUDOS DO NATURALISTA JOÃO DA SILVA FEIJÓ


(1760-1824)

MARIA MARGARET LOPES


CLARETE PARANHOS DA SILVA
Instituto de Geociências
Universidade Estadual de Campinas

RESUMO

Esse artigo apresenta resultados de estudos que estamos realizando no campo da História das Ciências no Brasil. João da
Silva Feijó (1760-1824) foi um naturalista luso-brasileiro comissionado pela Coroa Portuguesa, na transição do século XVIII
para o XIX, com o objetivo de fazer investigações em História Natural. Como naturalista, foi enviado para as Ilhas de Cabo
Verde (1783-1797) e para a Capitania do Ceará, no Brasil, em 1799. Acreditamos que nossos estudos sobre as trajetórias de
naturalistas que – como Feijó – exerceram seu ofício na América portuguesa, na transição do século XVIII para o XIX,
podem contribuir para uma compreensão mais abrangente da cultura científica luso-brasileira no período ilustrado.

PALAVRAS-CHAVE: história; história das ciências; Brasil; colônia.

INTRODUÇÃO Embora este seja um período bastante estudado pela


historiografia, Santos (1998), diferenciando as noções de
O século XVIII foi o século da História Natural império colonial e o significado do projeto político que
também em Portugal. Como sugerido por Carvalho concebeu um império luso-brasileiro, lembra que mesmo
(1987), foi nesse campo que os portugueses, durante todo “a história política desse período ainda carece de maior
o século XVIII, mostraram grande capacidade como atenção, tanto no lado português como no brasileiro”.
investigadores. No cerne dos processos que marcam a Muito também ainda está por ser feito, no que se refere a
adesão do império português às ciências da época estão as uma compreensão mais abrangente da cultura científica
investigações em torno da História Natural nos territórios luso-brasileira do período e dos que se seguem. Nesse
do reino e do ultramar1 . Nas “viagens philosophicas”, que sentido o levantamento documental e bibliográfico que
se expandem no final do século XVIII sob a coordenação estamos realizando sobre o naturalista João da Silva Feijó
geral da Academia Real das Ciências de Lisboa e, (1760-1824)3 , um dos integrantes do grupo de seguidores
especificamente, de Domingos Vandelli (1730-1815)2 , de Domingos Vandelli, é exemplar no sentido de
através da direção do Museu de Ajuda, situamos a demonstrar o quanto ainda está por ser feito para se
emergência mais sistemática das atividades relacionadas avançar em uma compreensão mais abrangente sobre as
às ciências naturais também na América portuguesa. trajetórias e produções de naturalistas que tiveram papéis
proeminentes na cultura ilustrada luso-brasileira, no final
dos setecentos, bem como em aspectos particulares da
1 Além de Carvalho (1987), ver também Domingues, A (1991) e Silva, M. História econômica do período colonial nas diferentes
(1999).
2 O italiano Domingos Vandelli (1730-1815) foi o primeiro lente de Química e regiões da América portuguesa.
História Natural da Universidade de Coimbra após as reformas pombalinas.
Exerceu suas atividades naquela instituição entre os anos de 1772 e 1791. Foi
um dos mais vigorosos impulsionadores da criação da Academia Real das
Ciências de Lisboa (1779). Vandelli transitou por alguns dos espaços de
investigação mais importantes criados durante o processo reformista iniciado
pelo ministro de Dom José I, Marquês de Pombal (1699-1782), e continuado
por seus sucessores. Durante seu trabalho como professor e investigador em
Coimbra, Vandelli e seus alunos utilizavam o Laboratório Químico, o Gabinete
de História Natural e o Jardim Botânico. Ao mesmo tempo, Vandelli participava 3 Este artigo se insere no projeto de pesquisa mais amplo “Emergência e
ativamente dos trabalhos da Academia Real das Ciências de Lisboa, como consolidação das ciências naturais no Brasil (1770-1870)”, coordenado pela
diretor da classe das ciências da observação, bem como do Museu da Ajuda profa. dra. Maria Margaret Lopes, que conta com o apoio da FAPESP/Brasil (no.
onde dava aulas desde 1782 (Brigola, 2000). Carvalho (1987) destaca o fato de 00/04751-0). Também integra a pesquisa de doutoramento de Clarete Paranhos
Vandelli ser o encarregado da “direção de todos os departamento de História da Silva, que conta também com o apoio da FAPESP/Brasil (no 00/14396-3).
Natural, tanto na Universidade de Coimbra como na de Ajuda”.
João da Silva Feijó não mereceu senão poucas e Lisboa onde elaborou um Discurso Político Sobre as
incompletas menções no amplo estudo de Simon (1983) Minas de Ouro do Brasil8 , sendo também encarregado de
sobre as expedições científicas portuguesas no Ultramar. fazer experiências com o salitre da Ribeira do Alcântara,
Segundo o autor - aparentemente sem maiores deixando sobre esse trabalho um documento intitulado
informações -, Feijó, que partira para uma relativa Estado presente das experiências do salitre na Ribeira do
obscuridade em Cabo Verde4, eventualmente teria Alcântara em 1º de março de 17989 .
retornado ao Rio de Janeiro. Feijó partiu para o Ceará, designado, por Carta
Entre as informações contraditórias sobre a vida de
João da Silva Feijó, o que parece se saber com precisão é Patente de 25 de fevereiro de 179910 , com o mesmo
ordenado de quatrocentos mil réis que já recebia, para
que faleceu já no posto de Coronel, tendo sido enterrado
ocupar o posto de “sargento- mor das milícias, incumbido
na sepultura de no. 24 dos Claustros da Capela de Nossa
de vários objetos de História Natural”.
Senhora da Consolação, do Rio de Janeiro, da Ordem 3a.
de São Francisco de Paula, em 10 de março de 1824 (Silva A TRAJETÓRIA DE JOÃO DA SILVA FEIJÓ NO
Nobre, 1978), após mais de 40 anos a serviço da História CEARÁ
Natural em Portugal, Cabo Verde, Ceará e Rio de Janeiro.
Nascido em Guaratiba, Capitania do Rio de Janeiro em Em 24 de outubro de 1799, depois de 32 dias de
1760, seus biógrafos se dividem quanto ao fato de Feijó ‘terrível viagem’ por terra, o naturalista João da Silva
ter ou não cursado a Universidade de Coimbra5. De Feijó, vindo de Pernambuco, chegou ao Ceará. A 4 de
qualquer modo, em companhia de Alexandre Rodrigues dezembro por ordem do governador, partia para “Vila de
Ferreira (1756-1815) – o conhecido naturalista que Monte Mor o Novo de Baturité”, para examinar a
percorreu a Amazônia brasileira entre 1784 e 1792 – Feijó possibilidade de mineração de salitre na região de
teria examinado a mineração de carvão de Buarcos, na Canindé, distante quinze léguas da vila. Já que não pode
região de Coimbra, em fins de 1788. desempenhar tal missão, por conta das chuvas que
Feijó, que foi sócio correspondente da Academia lixiviavam os terrenos, Feijó dirigiu-se ao “Sitio da
Real das Ciências de Lisboa, empreendeu uma viagem Ribeira do Xoró” onde se supunha existir grande
filosófica pelas Ilhas de Cabo Verde, onde teria abundância de salitre, embora só tenha encontrado sal
permanecido de 1783 a 1797. Durante esse período, Feijó marinho. Comprometendo-se a repetir a análise em outro
manteve correspondência sistemática com Julio Mattiazi – momento mais adequado, Feijó partiria, seguindo as
responsável pelo Jardim Botânico de Coimbra e também informações do Capitão Mor do Distrirto de Baturité, para
da Ajuda, com Vandelli e outras autoridades verificar a existência de um abundante terreno de salitre
portuguesas6 . Elaborou diversos artigos que foram no Sitio de Caxerabomim, próximo à Serra dos Cocos,
posteriormente publicados pela Academia Real das onde, aí sim, a existência de salitre já havia sido
comprovada por suas próprias análises, realizadas ainda
Ciências de Lisboa e outros periódicos7 . Depois de em Pernambuco.
retornar de Cabo Verde, permaneceu por algum tempo em
Estes são alguns dos primeiros informes do
naturalista a Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, em carta
enviada três meses depois de sua chegada11 . Nessa carta
já encontramos muitos dos temas que ocuparão o
4 Para análises dos trabalhos de Feijó em Cabo Verde ver: Guedes (1997, 2000) naturalista nos próximo 15 anos em que se dedicará aos
5 Simon (1983), Carreira (1986), Guedes (1997, 2000) afirmam que sim, embora “vários objetos de história natural”.
não precisem exatamente suas fontes. Silva Nobre (1978) sugere que Feijó teria
cursado a Academia Militar de Lisboa, dado não ter encontrado seu nome nas
relações de alunos formados no período em Coimbra.
6 Ver documentação existente no Museu Bocage. Agradecemos a dra. Estela
Guedes pela referência a essa documentação e ao prof. Dr. Carlos Almaça pela
reprodução desse material.
7 Ver entre outros: Memória sobre a fábrica real de anil da Ilha de Santo 8 Manuscrito no Museu Paulista, Coleção José Bonifácio, D-79. Esta obra se
Antão. Publicada nas Memórias Econômicas da ARCL, tomo 1, 1789, pp. 407- soma a um vasto conjunto de memórias, artigos e discursos escritos naqueles
421. Memória sobre a urzella de Cabo Verde. Memórias Econômicas da ARCL, anos de tentativas de recuperação do setor de produção mineral, particularmente
tomo 5, 1815, pp. 145-154. Ensaio político sobre as ilhas de Cabo Verde para em terras da América Portuguesa. Precedido de breves comentários, o texto
servir de plano à história filosófica das mesmas. Publicado no Patriota, n. 5, integral desse discurso, que até recentemente parece ter permanecido em
nov. de 1813. Memória sobre a última erupção vulcânica do Pico da Ilha do manuscrito, encontra-se em Silva, C. P. & Lopes, M.M. “O ouro sob as luzes: a
Fogo, sucedida em 14 de Janeiro do ano de 1785, observada e escrita, etc.. “arte” de minerar no discurso do naturalista João da Silva Feijó (1760-1824) (no
Publicada no Patriota, tomo 3, n. 5, 1814, pp. 23 a 32. Ensaio Econômico Sobre prelo).
as Ilhas de Cabo Verde, provavelmente lido na Academia em 1797 (Guedes, 9 Biblioteca Nacional de Lisboa, Reservados, códice 610 (F.R. 762).
1997) e publicado pela mesma Academia, em 1815. Itinerário Filosófico que 10 Livro de Registro da Vedoria Geral da Capitania do Ceará. Fls 9v e 10v
contem a relação das ilhas de Cabo Verde, disposta pelo método epistolar.
Dirigidas ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Martinho de Mello e Castro, (publicado em Silva Nobre, 1978, pp. 177-178)
pelo naturalista régio das mesmas ilhas João da Silva Feijó, 1783. Biblioteca 11 Carta de 21/12/1799. Coleção Studart, publicada em Silva Nobre (1978: 179-
Nacional do Rio de Janeiro, manuscritos, cód. 12984. 180)
Feijó chegara ao Ceará no mesmo ano em que a As investigações do naturalista Feijó na capitania
capitania se tornara independente de Pernambuco e em indicam uma retomada dessas iniciativas anteriores. Em
que medidas administrativas estavam sendo tomadas para suas considerações sobre as ‘Minas de Cobre’, na
viabilizar esta autonomia política e econômica da região. Memória sobre a Capitania do Ceará, Feijó reavalia
Sua carta a Dom Rodrigo, em que recorre a fontes antigas explorações – que se supunha de prata - na serra
históricas e a informações locais, evidencia os esforços grande da Ibiapaba, considerando promissora a mina de
das autoridades em identificar e recuperar minerações cobre que se encontrava em estado de “sulfate”,
existentes na região. prolongava-se até a região do Piauí, onde o metal era
Desde pelo menos o ano de 1735 se tem notícias, utilizado na fabricação de arreios. Recomendava atenção
não só de que o governo português buscava inventariar particular a essa exploração, não só pela “qualidade e
possíveis recursos minerais na região que abrange o atual importância do metal” – cobre – como também “porque
estado do Ceará, como também de que esses já eram com efeito me persuado conter também a matriz alguma
objeto de litígio de particulares locais, dados os privilégios porção de prata” (SILVA NOBRE, 1997, p. 15). Por
e as ‘desordens’ em que se teria envolvido Antonio ordem e “debaixo das vistas” do governador Feijó ainda
Gonçalves de Araújo, o superintendente das minas de examinou as antigas lavras de ouro da Mangabeira, que
prata da serra dos Cocos12 . Além da prata e do cobre de demonstraram ser pouco produtivas, adequando-se porém
Ubajara, o ouro também passou a ser explorado nessas ao emprego da faiscação, e não por conta da Real Fazenda,
regiões da serra do Ibiapaba. Em continuidade a essas obrigando-se possíveis interessados a pagar o quinto, e
investigações, por Carta Régia de 11 de outubro de 1742, sendo submetidos ao controle por denúncias públicas,
o mesmo Antônio Gonçalves de Araújo, Manoel dada a facilidade de contrabando possibilitada pela
Fernandes Losada e João Baptista Rodrigues receberam localização das lavras15 .
permissão para mandarem vir da Alemanha cinco mestres As ocorrências de salitre foram objetos da dedicação
e oficiais de fundir e separar metais para trabalharem nas de Feijó, em diversas regiões da Capitania do Ceará, tendo
minas de ouro então em funcionamento no Ceará13 . Além sido construídos pelo menos dois laboratórios para
dessas minas em atividade, achou-se também ouro na extração do produto, que funcionaram regularmente entre
região do Cariri em 1752, e o capitão comandante e 1800 e 180516. Feijó empreende suas primeiras
intendente dessas minas dos Cariris Novos, Jerônimo investigações sobre o salitre na região de Tatajuba, pois,
Mendes da Paz, passou a verificar a existência de novas segundo ele , tratava-se de uma mina muito fecunda. Ali
ocorrências nos riachos dos Crioulos e do Machado, no rio constrói um laboratório, em finais de 1799, que chegou a
Salgado, bem como de prata em um lugar conhecido por funcionar regularmente, recebendo provisões do Estado.
Salamanca. A Serra de Uruburetama foi explorada, bem Em julho de 1804, na administração do governador João
como o salitre de Pilão Arcado e Salinas de Cima, distrito Carlos Augusto Oyenhausen, o laboratório é transferido
da Nova Vila do Rio Grande, por volta de 1754. Ouro para a localidade de Pindoba, na Serra da Ibiapaba. As
também fora encontrado em Ribeira do Caracu e na Serra razões dessa mudança são dadas pelo próprio Feijó em
da Ibiapaba, e o funcionamento de minas de São José dos longos ofícios enviados ao citado governador17 . Segundo
Cariris receberá atenção especial do então ainda governo o naturalista, a produção em Tatajuba estava
de Pernambuco, sendo objeto de diversos ofícios entre sua “empobrecida e deteriorada”. Ao examinar as nitreiras em
descoberta, até 12 de setembro de 1758, quando uma Pindoba e arredores, Feijó chega à conclusão que a
ordem régia recomendou a interrupção de todos os transferência seria um bom negócio. De suas diligências
trabalhos de exploração de minas da Capitania, na região de Pindoba “que me certificaram ser abundantes
possivelmente pelo seu “pouco rendimento”, informado às de minas e salitre”, o naturalista sugere que seu
autoridades portuguesas pelo intendente das minas dos aproveitamento seria de grande vantagem para Sua Alteza
Cariris Novos, Jerônimo Mendes da Paz14 . Real. Para convencer as autoridades, faz um paralelo entre
as nitreiras de Tatajuba e as de Pindoba, apontando, entre
outras coisas, a maior riqueza das últimas, sua
proximidade com “olho d’água” – daí a possibilidade de,
no mesmo lugar, se extrair e purificar o produto para ser
12 Requerimentos de 24/01/1735 – n.164; 20/02/1736 – n.174; Provisão de
15/11/1745 – n.257; Certidão de 20/02/1746 – n. 265 pp. 60, 62, 77 e 79.
Quando não mencionadas outras fontes, a numeração e a página indicadas dos
documentos correspondem ao Catálogo de documentos manuscritos avulsos da
Capitania do Ceará (1618-1832), (CDACC) organizado por Jucá, G.N.M.
Ministério da Cultura; Fortaleza; UFC. Fund. D. Rocha, 1999 (Projeto Resgate-
Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Portugal).
13 Correspondência de Sylva, M.A.R. da - Lisboa, 2 de abril de 1745. Coll. 15 Cartas de 11 e 31/12/1800 (Silva Nobre, 1978, pp.195-199).
Studart, v. 3, p. 407, publicada em Studart, 2001: 211. 16 Carta de 2/05/1804 ao governador do Ceará. (Silva Nobre, pp. 220-223)
14 Ver entre diversos outros documentos:Carta de 6/01/1754 – n.380; Ofício de 17 Ofícios de 24 de abril de 1804, de 02 de maio de 1804 e de 31 de maio de
2/04/1757 – n. 433; Carta de 3/04/1757 - n. 436CDACC, pp. 99, 109, 110. 1804. Publicados em Nogueira (1888: 258-266).
“logo conduzido ao porto do embarque para Lisboa” – , e Em maio de 1811, João da Silva Feijó foi
a menor distância entre Pindoba e o porto mais próximo. promovido a Tenente Coronel agregado ao 1o Regimento
Sugere ainda que se aproveite o mais rápido possível os da Cavalaria de Milícias da Capitania do Ceará e fez uma
produtos de Pindoba, erguendo ali oficinas de extração e viagem ao Rio de Janeiro. Voltaria à capital do Império
refinação, abrindo as estradas necessárias, trazendo as novamente por volta de 1818. Em 1822, encontramo-lo já
caldeiras de Tatajuba, no intuito de poupar gastos. O como Tenente Coronel do Corpo de Engenheiros e lente
laboratório de Tatajuba foi extinto em 1803 pela de História Natural, Zoológica e Botânica da Academia
decadência em que se achavam as minas de salitre da Militar, solicitando ao já ministro José Bonifácio de
região, conforme dito pelo próprio Feijó. O de Pindoba Andrada e Silva “franquear as salas do Museu Nacional,
em 1805 porque para lá serem feitas demonstrações práticas de espécimens
prometendo o naturalista fazer no primeiro ano
de História Natural, um dia por semana22 . De acordo com
uma porção de salitre como se verifica do ofício
Silva Nobre (1997) os problemas políticos enfrentados por
nº 3, exigindo para este estabelecimento a quantia
Feijó, no Ceará, relacionados a princípio aos problemas de
de 200$000 ao muito, o resultado, findo o tempo,
subordinação ou não da região à Capitania de
tendo-se despendido a quantia de 740$000 réis,
Pernambuco, ou os rendimentos das minas de salitre
foi somente uma amostra de salitre, em
considerados não tão promissores como se esperava,
conseqüência do que foi mandado suspender o
mencionado laboratório pelo sobredito Exmo. teriam impedido a continuidade dos trabalhos de Feijó.
Tais problemas teriam, por outro lado, possibilitado as
Governador, como declara o naturalista na
investigações botânicas do naturalista, que resultariam em
Representação que vai por cópia sob nº 1.18 sua Coleção descritiva das Plantas da Capitania do
Em suas múltiplas incumbências como naturalista, Ceará.
Feijó classificou plantas e, por diversas vezes, enviou Seus trabalhos abrangeram de fato o amplo
caixotes ao Real Jardim Botânico da Ajuda e para a espectro da História Natural da época. Alguns de seus
instituição congênere da Prússia, em Berlim19 . As registros se situam entre o que podemos considerar as
relações de plantas e sementes seguiam arranjadas e primeiras observações sobre as características
acondicionadas pelo “Methodo”. Divididas segundo as 24 paleontológicas marcantes da região. Tratando das “Raras
classses da classificação lineana, as plantas e sementes Petrificações” em sua Memória sobre a Capitania do
eram acompanhadas de seus nomes vulgares na remessa Ceará, Feijó aponta que na serra dos Cariris, em Milagres
para a Ajuda 20 . Também seu interesse e planos para a – distante cerca de mais de 80 léguas do mar – encontram-
realização de atividades botânicas já vinham enunciados se “as mais raras e curiosas petrificações vagas de peixes e
em sua correspondência, mencionada acima, ao Ministro de muitos gêneros de anfíbios, e alguns de grandeza de 4
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a quem solicitava o envio palmos, incluídos como em uma espécie de Etites, de
de publicações e o auxílio de um ‘desenhador’, para o substância calcárea, em cujo âmago se observa o animal
bom andamento de seus trabalhos de reconhecimento da totalmente perfeito e reduzido interiormente a uma
flora cearense. cristalização spatosa”. Ressalta também a presença de
A minha particular inclinação ao estudo da grande quantidade de ossadas fósseis de “grandioso
Botânica tem-me conduzido a examinar, alguma tamanho, como vértebras, costelas, fêmures” próximas à
coisa, deste fértil país: ele me oferece vastíssimo serra dos Cariris, na região de Cronzó, na lagoa da
campo para uma interessante flora, se Vossa Catarina. Discutindo não somente as idéias comuns entre
Excelência for servido dignar se de mandar me os naturalistas de então, de que jamais se poderiam
providenciar com alguns livros, que me são petrificar as partes moles e musculares dos animais, mas
necessários, como são a Edição de Gmelin, e a também tomando partido nas controvérsias sobre a
Encyclopedia Botanica de Frabicius e o auxilio de alegada inferioridade da América, iniciadas desde a
publicação, a partir de 1749, da História Natural de
um desenhador.21
Buffon23 , ele se pergunta:

18 Ofício da Junta da Fazenda ao Vice-Rei do Brasil (Luiz de Vasconcelos e


Souza) datado em 02 de junho de 1807. Publicado em Nogueira (1888: 266-268)
19 Carta de 17/10/1803 para D. Rodrigo de S. Coutinho (publicada em Silva
Nobre, 1978: 209-211)
20 Relação das sementes das plantas agrestes da Capitania do Ceará
(17/10/1803) e Relação das sementes das plantas Indígenas da Capitania do
Ceará (17/10/1803) (publicadas em Silva Nobre, 1978:213-214).
21 Silva Nobre, 1978. pp.179-180. Trata-se das obras “Onomatologia Botânica” 22 Documento do Museu Nacional do Rio de Janeiro, n. 11, Pasta 1.
publicada entre 1771 e 1777 por Friedrich Gmelin (1748-1804) e a obra de 23 As controvérsias suscitadas pelo trabalho de Buffon são exaustivamente
Johann C. Fabricius (1745-1808), discípulo de Lineu e professor de História discutidas por Gerbi (1996).
Natural em Kiel.
Que exemplos pois para suas provas não CONSIDERAÇÕES FINAIS
deduzirão destes objetos os sectários do célebre
sistema de Buffon? Não menos para aqueles Pelo volume de informações sobre a história
naturalistas, que se persuadem que não podem natural e a economia do Ceará, as obras de Feijó são
petrificar as substâncias moles ou carnosas dos consideradas umas das mais completas da época, sendo o
animais (SILVA NOBRE, 1997, p. 13). naturalista, considerado por diversos historiadores
brasileiros (BRASIL, 1997; BRAGA, 1962) o melhor
Ao longo de sua permanência no Ceará, o conhecedor da capitania do Ceará de sua época. Os
naturalista redigiu diversas memórias, resultantes de suas conhecimentos por ele produzidos foram de tal maneira
investigações sobre salitre, ouro, ferro, gado, além de seus válidos que foram referência para as investigações em
trabalhos botânicos. Cumpriu seu ofício de naturalista na ciências naturais após passados mais de 30 anos de sua
região, mapeando, descrevendo e explorando objetos de morte. Os trabalhos de Feijó no Ceará, retomados no final
História Natural. Desse trabalho, emergem algumas cartas da década de 1850, permaneceram referenciais para aquela
topográficas e um grande número de memórias que vão que será a primeira expedição científica nacional,
ser posteriormente publicadas, como se poderá ver pela brasileira24 , organizada pelo Instituto Histórico e
relação dos trabalhos que localizamos até o presente Geográfico Brasileiro - IHGB, e pelos diretores do Museu
momento e que mostraremos a seguir. Nacional do Rio de Janeiro – a Imperial Comissão
Entre os trabalhos que localizamos e estamos Científica também chamada Comissão Exploradora das
analisando podemos mencionar: Preâmbulo ao ensaio províncias do Norte.
filosófico e político sobre a Capitania do Ceará para
servir para a sua história geral. Rio de Janeiro: Imprensa ABSTRACT
Régia, 1810. Memória econômica sobre a raça do gado
lanígero da Capitania do Ceará, com os meios de This paper results from our studies into history of science
organizar os seus rebanhos por princípios rurais, in Brazil. João da Silva Feijó (1760-1824) was a Luzo-
aperfeiçoar a espécie atual das suas ovelhas e conduzir-se Brazilian naturalist commissioned by the Portuguese
ao tratamento delas e das suas lãs em utilidade geral do
Crown in the transition of 18th to 19th centuries with the
comércio do Brasil e prosperidade da mesma capitania;
escrita e oferecida ao príncipe regente. Rio de Janeiro, aim of carrying out some investigation on natural history.
As a naturalist he was sent to Cabo Verde (1783-1797)
1811. Publicada no Auxiliador da Indústria Nacional, em
and to Ceará, Brazil, in 1799. We believe that our studies
1842 e na Edição fac-similar de Separatas de artigos da
of the trajectories of some naturalists who – like Feijó –
Revista do Instituto do Ceará, tomo 3. Fortaleza:
Biblioteca básica cearense/Fundação Waldemar Alcântara, carried out their work in Brazil in the transition of 18th to
1997, p. 368-397. Memória sobre a Capitania do Ceará, 19th centuries may contribute to a better comprehension
1814. Publicada no Patriota, tomo 3, n. 1, p. 46-62 e na about the Luzo-Brazilian scientific culture during the
edição fac-similar de Separatas de artigos da Revista do illustrated period.
Instituto de Ceará, tomo 3. Fortaleza: Biblioteca básica
cearense/Fundação Waldemar Alcântara, 1997, p. 4-27. Key-words: history, history of science, Brazil, colony.
Memória sobre as minas de ferro do Cangati do Choró na
Capitania do Ceará, escrita em 1814. Biblioteca Nacional REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
do Rio de Janeiro, Obras raras, 39,5,9. Memória sobre as
antigas lavras de ouro da Mangabeira da Capitania do BRAGA, R. História da Comissão Científica de
Ceará, (1814). Publicada na Edição fac-similar de Exploração. Fortaleza: Imp. Uni. do Ceará, 1962.
Separatas de artigos da Revista do Instituto do Ceará,
tomo 3. Fortaleza: Biblioteca básica cearense/Fundação BRASIL, T. P. de S. Ensaio Estatístico da Província do
Waldemar Alcântara, 1997, p. 367-370. Carta topográfica Ceará, 1863 - ed. fac-símile de 1997. Fortaleza: Fundação
do Ceará à mina Salpetra, descoberta no sítio da Waldemar Alcântara. V. I e II.
Tatujuba na distância de 55 léguas da villa da Fortaleza,
1800. Autógrafo na BNRJ. Carta topográfica da BRIGOLA, J. C. P. Coleções, gabinetes e museus em
Capitania do Ceará para servir à sua história geral, 1809. Portugal no Século XVIII. 2000. 340 f. Tese (Doutorado) -
Autógrafo no Arquivo Militar. Planta demonstrativa da Universidade de Évora, Portugal, 2000.
Capitania do Ceará para servir de plano à sua carta
topográfica, delineada pelo sargento mor naturalista, etc.,
1810. Cópia no Arquivo Militar. Coleção descritiva das
plantas da Capitania do Ceará, 1818. In: Estudos sobre a
coleção descritiva das plantas do Ceará (com o original 24 Para uma discussão sobre os vínculos entre essas atividades ver Pinheiro, R.
inédito do naturalista Feijó. Fortaleza: Gráfica editorial & Lopes, M. M. (2002)
Cearense Ltda, 1984 (coleção Estudos Cearenses).
CARREIRA, A. “Apresentação e comentários”. Ensaio e SANTOS, A. C. M. dos. Do projeto de Império à
memórias econômicas sobre as Ilhas de Cabo Verde Independência: notas acerca da opção monárquica na
(século XVIII), por João da Silva Feijó. Lisboa: Inst. autonomia política do Brasil. Anais do Museu Histórico
Caboverdiano do Livro, 1986. Nacional, v. 30. Rio de Janeiro, 1998, p. 7-35.

CARVALHO, R. de. A História Natural em Portugal no SILVA, C. P.; LOPES, M. M. O ouro sob as luzes: a
século XVIII. Lisboa: ICALP/Ministério da Educação, “arte” de minerar no discurso do naturalista João da Silva
1987. Feijó (1760-1824). História: questões e debates.UFPR:
Curitiba (no prelo).
GERBI, A. O Novo Mundo: história de uma polêmica
(1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SILVA NOBRE, G. da. “Apresentação”. Memória sobre a
Capitania do Ceará e outros trabalhos. Ed. Fac-similar de
DOMINGUES, A. Viagens de exploração geográfica na Separatas. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Amazônia em finais do século XVIII: política, ciência e Fundação Waldemar Alcântara, 1997 (Biblioteca básica
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