Episódio 1

côa
& Siega
Verde
A Arte da luz
1
Imagem capa: Rio Côa, AMB

2
côa
& Siega
Verde
A Arte da luz
4
ÍNDICE

Impressões
No trilho dos caçadores paleolíticos.
Um espaço de fronteira.

Episódios de uma viagem entre

o Côa e Siega Verde
Episódio 1 Parque e Museu do Côa.
Episódio 2 Quando o Côa era fronteira, entre
Castelo Rodrigo e Pinhel.
Episódio 3 Estrelas de fronteira: Almeida,
Fuerte de la Concepción e Ciudad Rodrigo.
Episódio 4 Sítio Arqueológico de Siega Verde.

À Descoberta
1 In vino veritas - Douro Superior.
2 Arqueologia de Freixo de Numão.
3 A Comenda de Longroiva e a vila de Marialva.
4 Na curva do rio: de Freixo de Espada à Cinta a
Torre de Moncorvo.
5 Reserva da Faia Brava.
6 Parque Natural do Douro Internacional
7 Parque Natural Arribes del Duero.
8 O Douro navegável.
9 Quando o Águeda era fronteira.
10 Linha Férrea La Fuente de San Esteban-
‑Barca d’Alva.
11 Lumbrales e a Rota dos Castros e Verracos.

Notas Bibliográficas
Ficha Técnica

5
De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente; doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.
Miguel Torga

6
Introdução

Este roteiro é um convite para uma experiência de visita ao Parque Arqueológico

do Vale do Côa (Portugal) e ao Sítio Arqueológico de Siega Verde (Espanha), que
nos mergulham 30 mil anos no tempo através da arte rupestre ao ar livre classifica-
da pela UNESCO como Património Mundial.
Partindo do Parque Arqueológico e Museu do Côa, percorremos essencialmen-
te território português, em sentido norte/sul e, infletindo para leste, um pequeno
trecho das terras de Castela e Leão. Despertamos para a descoberta de vilas e aldeias
medievais, lendas e memórias de batalhas fronteiriças, espaços de natureza pura,
quintas e arcaísmos agrícolas, vinhos e outros sabores da terra, traços de vida dos
últimos 10 séculos das comunidades dos Vales do Côa, Douro e Águeda, muito mar-
cadas, até décadas recentes, pela forte presença da fronteira.
A classificação, pela Unesco, de Siega Verde como Património Mundial enquanto
extensão do Côa, aproxima-nos desse outro tempo, anterior, em que este limite en-
tre as comunidades não tinha ainda sido criado. No fim do itinerário, que termina
em Siega Verde, é essa aproximação, comum à pré-história e aos dias de hoje, que se
procura enfatizar: a inexistência de um limite. Este percurso, que pode tardar uma
jornada, ou vários dias, consoante o tempo para a descoberta for mais ou menos di-
latado, conduz-nos entre duas componentes de uma mesma realidade, um só Patri-
mónio Mundial.
Apesar da forte recessão demográfica dos últimos 50 anos, despontam na re-
gião algumas iniciativas que rasgam novos horizontes. Combina-se nesta dinâmi-
ca a iniciativa pública com a privada, contribuindo para a construção de um novo
alento neste território raiano. Assim ocorreu com a criação do Parque Arqueológi-
co do Vale do Côa, Museu do Côa, do Centro de Interpretação em Siega Verde e com
a articulação entre os dois sítios arqueológicos peninsulares que a Administração
Pública procurou e a Unesco sancionou. O Douro Superior viu chegar jovens produ-
tores e enólogos que aqui se instalaram e estão a criar novos produtos, exigentes
na sua qualidade. Desenvolvem-se projetos, públicos e privados, de conservação e
valorização da natureza e de recuperação do património edificado. Criam-se negó-
cios relacionados com o turismo, sejam lojas de produtos locais ou unidades de
alojamento em espaço rural, que ajudam à fixação de jovens.

7
 Penascosa, JR

É também através destes novos projetos que este roteiro convida a que se
olhe o património antiquíssimo do Vale do Côa. Usando as novas estruturas mu-
seológicas, de acolhimento turístico, contactando as associações que cuidam da
valorização da natureza, da arte e da cultura, os enólogos, os cientistas, arqueó-
logos e biólogos, os novos produtores, que aqui se radicaram, ou que aqui esco-
lheram permanecer.
O património arqueológico, que se conservou no Vale do Côa e em Siega Verde,
suscita iniciativas que trazem modernidade a estes velhos territórios leoneses e
portugueses, exprimindo a força e a perenidade da arte, da expressão gráfica do
Homem, que emerge 10 mil, 20 mil anos depois, transportando, até ao presente,
uma infinitude de reflexões acerca de nós e do território.

8
Barca D’alva, AA

impressões

9
Canada do Inferno, PG

No trilho dos caçadores paleolíticos.

Entre o Vale do Côa e Siega Verde

As jazidas com arte paleolítica de ar livre dispersas pelo Vale

do Côa / Alto Douro português (…) contribuíram decisiva-
mente para a criação de um novo paradigma na Arqueo-
logia europeia e nos padrões de análise da arte do homem
fóssil. Longe das regiões que no Paleolítico superior europeu
mais sofriam com os rigores glaciares, o Vale do Côa é hoje
reconhecido como um dos primeiros e mais notáveis centros
artísticos no território do Velho Mundo.
António Martinho Baptista, 2009

10
 Impressões
As considerações teóricas sobre a arte parietal dos caçadores-recoletores do Pa-
leolítico superior europeu estiveram sempre associadas à chamada “arte das
cavernas”. As descobertas do Vale do Côa vieram, porém, introduzir um novo
paradigma analítico, ao constituir-se este vale como um enorme repositório da
arte gravada em rochas ao ar livre, que obrigou à revisão daquela perspetiva, só
aparentemente consolidada.
É este Paradigma Perdido, segundo A. Martinho Baptista, que nos conduzirá a
partir de agora a um outro olhar na análise e fruição da “arte das paisagens de
liberdade”, por oposição à clássica “arte das cavernas”, levando muito mais longe
o experimentalismo artístico e de conquista do mundo pelo homem do Paleolí-
tico, que explanou no Côa um estádio de “arte maior”, aqui evidenciado desde há
pelo menos 25 mil anos.
Por outro lado, a estilística e o ordenamento figurativo da Arte do Côa, en-
quadram-se perfeitamente com a realidade bem reconhecida pelos arqueólogos
nos principais sítios decorados com arte parietal paleolítica na Europa ocidental,
como sejam os de Altamira, Lascaux, Chauvet, Niaux, Cosquer, Ekain e Covala-
nas, entre muitos outros.
Paralelamente ao processo de salvação das gravuras do Côa, aqui se desen-
volveu também, em meados dos anos noventa do século passado, uma polémi-
ca entre as diferentes abordagens relativamente ao problema das cronologias
desta arte, pondo em confronto os resultados com validade científica duvidosa
de Robert Bednarik (1995) e de Alan Watchaman (1996), frente aos processos mais
tradicionalistas, mas mais sedimentados arqueologicamente (a análise dos esti-
los), que vieram a ser validados pela investigação arqueológica da qual resultou a
inquestionável prova científica da grande antiguidade das gravuras do Côa. Este
profundo trabalho arqueológico aqui continuado nos últimos 15 anos - Zilhão e
al. (1997), Baptista (1999 e 2009), Aubry (2002 e 2009) e outros –, demonstrou que
no Côa está gravada, em painéis rochosos ao ar livre, a mais extensa e impressiva
Arte do Homem Fóssil, à escala mundial, alongando-se temporalmente por toda a
segunda metade do Paleolítico superior (de 25 mil a 10 mil anos antes do presente).
Os resultados destes estudos e o lote de datações arqueologicamente funda-
mentadas obtidas para a arte rupestre do Côa, incluindo a arte móvel – dezenas
de pequenas placas gravadas descobertas em contexto no sítio do Fariseu –, são

11
 Siega Verde, PG

coincidentes com a continuada ocupação humana do vale, entretanto gradual-

mente conhecida pelas escavações arqueológicas (Aubry, 2009), atravessando
todo o Paleolítico superior. O contributo das descobertas arqueológicas aqui
empreendidas é decisivo para a criação de um novo estádio no estudo e interpre-
tação da arte paleolítica na Europa.
De facto, o Baixo Côa e alguns dos seus pequenos afluentes são hoje um exce-
lente laboratório ao ar livre, no trecho final de uma bacia de vertente com orien-
tação geral Sul/Norte, que nesta parte atravessa e rasga essencialmente rochas
xistosas que propiciaram a formação de boas superfícies, lisas e apaineladas, ap-
tas à produção de gravuras rupestres. Sucessivos grupos humanos de caçadores-
recoletores por deambularam e estanciaram, no tempo longo dos finais da gla-
ciação Würmiana, que permitiu a fixação de um nicho de vegetação e vida animal
que os atraiu e confortou.
No Paleolítico superior não haveria seguramente fronteiras tal como hoje as
conhecemos. Os grupos de caçadores-recoletores percorreriam extensos territórios
aproveitando o que a natureza lhes facilitava. O Vale do Côa, tal como Siega Verde,

12
 Impressões
constituíam, pelas suas características, espaços favoráveis à permanência destas
comunidades nómadas. A investigação arqueológica realizada no Côa demonstrou
que a este vale chegaram, no Paleolítico superior, matérias-primas, como o sílex, vin-
das da região de Salamanca e do centro da Meseta, bem como do litoral português,
atestando a sua integração numa vasta rede de intercâmbios, da qual Siega Verde
teria feito parte. Além deste facto, Siega Verde está localizada num corredor natural
que permite a passagem para a Meseta Ibérica. Esta via era certamente utilizada pelos
grandes herbívoros e, consequentemente, por estes grupos humanos.
No Vale do Côa e Siega Verde, por entre paisagens vigorosas, vamos descobrin-
do este património singular, e perseguem-nos perguntas: o que motivava esta
arte? Que significado teria? A arqueologia tem, ao longo de décadas, criado teorias
e interpretações. Mas, como refere António Martinho Baptista “o significado da
arte paleolítica permanecerá para sempre no domínio do secreto”. E é precisamen-
te esta incógnita que torna esta arte de milhares de anos fascinante, magnética...  

13
 Rio Huebra, JR

Um espaço de fronteira
A formação de Portugal como autonomia, se bem que associada, em longínquos
bancos da escola primária, à “Reconquista do Sul aos Mouros”, na verdade lança os
passos originários sobre o vale do Douro, primeiro na densa região do seu curso ter-
minal, e, depois, subindo o rio, articulando senhores e comunidades, em direcção
aos espaços mais vastos situados a oriente. O nome de Portugal era, antes do ano
Mil, o daquela mais densa região, o território portucalense. Foi aqui o solar das fa-
mílias dos infanções que davam pelos nomes de Maia, Sousas, Ribadouro e Baião,
no seio das quais se ergueriam as lideranças do Conde D. Henrique e de seu filho, D.
Afonso Henriques, que viria a ser o primeiro Rei de Portugal.
No século XI, os avanços dos senhores portucalenses rio acima, por ambas as
margens do Douro, fizeram alastrar a senhorialização. Um limite a leste porém, logo
se faria sentir. Ainda em meados do século XII não tinham conseguido alcançar as
terras quentes do Douro Superior. Os domínios de Egas Moniz, o principal senhor
de RibaDouro ao longo da primeira metade do século XII, detinham-se na serra da
Lapa, mal ultrapassando o rio Távora. Para montante de um invisível mas sempre
presente limite, no Douro e na Beira Alta, a moçarabização tinha sido mais intensa,
duradoura, e tinham-se constituído comunidades poderosas. Até às últimas déca-
das do século XII, os planaltos drenados pelo Côa, o Águeda e o Huebra estiveram por
isso entregues a si próprios.

14
 Na verdade, o intransponível penedo granítico do Cachão da Valeira, mergu-
lhando no Douro junto a S. João da Pesqueira, modelou durante séculos (milé-
nios) duas áreas de relação. Obstáculo à navegação até quase ao final do século
XVIII, definia limites à circulação dos homens e dos bens. O Douro, a jusante de
S. João da Pesqueira, conduz à faixa litoral. Mas, para montante, no Douro Su-
perior, as relações que os homens procuraram tomam outras direcções, o litoral
estava já demasiado longe. Sobre a borda da Meseta, um antigo eixo meridiano,
articulando os planaltos do Norte, polarizados em torno de Leão, Astorga e Sa-
lamanca, e as planícies da Andaluzia ocidental, com a antiga cidade de Mérida
à cabeça, estruturava uma outra teia de relações. Era na sua direcção que, mais
facilmente, as terras do Douro Superior se orientavam, voltando as costas ao lito-
ral. A periferia formada entre aquelas duas áreas de relação ofereceu aos poderes
em expansão o espaço incerto de uma fronteira.
No Douro Superior as comunidades parecem imóveis, nos mesmos locais, mi-
lhares de anos seguidos, apenas alternando no tipo de implantação, mais de acor-
do com as exigências de cada época, na encosta, protegidas por entre as fragas, ou
logo abaixo, no sopé desta, junto das terras férteis do vale. Apenas os vestígios e
ruínas arqueológicas, ainda escassamente interrogados pelos investigadores, re-

15
velam comunidades invisíveis na documentação escrita até tempos muito avan-
çados do final da Idade Média e início da Idade Moderna. Foram estas comunida-
des que persistentemente habitaram este interior considerado muito longínquo
para quem olha das terras densas do litoral. A história da região nos últimos mil
anos mostra uma área a repovoar e dominar, quando os poderes estabelecidos
no litoral assumiram uma estratégia expansionista com o objectivo de delimitar
o território de um Reino. Através dessa dominação externa, estas comunidades
acabarão arrancadas às suas ligações tradicionais, configurando, a prazo, um es-
paço desarticulado, periférico, dependente e incapaz de se subtrair por si só a uma
lógica de subdesenvolvimento.
Do lado português, o início do repovoamento régio, que era afinal o enqua-
dramento das comunidades existentes por poderes externos, arranca na década
de 1160. Progredindo sempre para leste, conhece um momento culminante no
final da década de 1190, com o foral da Guarda, e atinge plenamente a linha do
Côa com os termos das vilas de Pinhel, Castelo Mendo, Touro e Sortelha, repo-
voadas já só ao longo do primeiro quartel do século seguinte. Do lado leonês, o
ritmo do repovoamento sob a égide do rei de Leão foi paralelo, mas o movimen-
to de sentido oposto, progredindo para poente. Na década de 1160 iniciava-se o
repovoamento de Ciudad Rodrigo, antes uma aldeia periférica do termo de Sala-
manca, mas as vilas do Riba Côa, como Castelo Rodrigo, Castelo Melhor e outras,
surgirão apenas no início do novo século.
Esta evolução foi tanto uma resposta ao crescente poder português em zonas que
até então tinham estado fora do controlo de um poder central, como à necessidade
de gerar um espaço político próprio e bem definido num contexto de intensa riva-
lidade entre os reinos cristãos. As Batalhas de Argañán (1179) e Ervas Tenras (1199)
permitiram a expansão da autoridade de Leão, que definiu a integração das comuni-
dades através dos foros, acordos que garantiam uma margem de manobra às comu-
nidades, convertidas em concelhos, em troca da aceitação do poder régio.
Na margem sul do Douro, o curso do rio Côa constituiu depois a fronteira do
Reino de Portugal até ao Tratado de Alcanices, em 1297. Assim, entre o Côa e o
Águeda, individualizou-se uma região particular, cuja reorganização e repovoa-
mento medievais foram originalmente realizados na órbita da acção dos reis de
Leão: o Riba Côa. Não obstante, a fronteira política foi alterada devido à pertença

16
 Impressões
Castelo Rodrigo, AA

desta comarca ao bispado de Ciudad Rodrigo, uma circunstância que só pôde

ser corrigida no século XV. Por outro lado, a fronteira foi, nos últimos séculos
medievais, cenário de um crescente controlo por parte dos reis de ambos os la-
dos, especialmente das actividades comerciais, com a formação de portos secos e
alfândegas. As contendas entre Portugal e Castela fizeram-se igualmente sentir,
porém manteve-se uma certa convivência entre os concelhos fronteiriços, que
pretendiam minimizar os efeitos da guerra.
Com o fim da Idade Média, a fronteira começou a deixar de ser entendida como
uma região e um conjunto de comunidades periféricas. Era agora, e cada vez
mais, uma linha bem definida e cartografada, sobre a qual se abriam determina-
das “Entradas Geográficas”, as rotas que permitiam o acesso à capital do Reino.
A localização dos principais conflitos militares do final da Idade Média deixa já
claramente perceber um padrão, que as guerras dos séculos XVII, XVIII e primeira
década do XIX (iniciando-se na Guerra da Restauração, passando pela Guerra da
Sucessão e culminando nas Invasões Francesas), instalariam definitivamente. O
interesse e o investimento do poder régio sobre a organização do território nas

17
Terras de Fronteira tenderão a concentrar-se sobre aquelas “Entradas Geográficas”.
Aí, algumas das antigas vilas transformar-se-ão em imensos quartéis militares
(como Almeida, Miranda do Douro ou Ciudad Rodrigo, em Espanha), enquanto
o restante território da periferia se verá abandonado à sua sorte, arrancado às
suas ligações tradicionais e incapaz, por si só, de inverter o caminho da pauperi-
zação e do despovoamento. Pressão militar e despovoamento, seriam doravante
os resultados de uma relação desequilibrada com um longínquo centro, a cujas
decisões os interesses específicos da periferia são alheios.

Nota bibliográfica 1

18
Rio Côa, MA

episódios

19
1 Episódio 1
Parque e Museu do Côa
Ao Vale do Côa tem confluído um nume-
roso caudal de cientistas, curiosos e turis-
tas, vindos, como nós, de alguma parte
do mundo, em busca de uma experiência
única de contacto com a arte gravada nas
rochas, que aqui tem um dos mais ex-
pressivos sítios no planeta.
res, que nos dão cultura e também a
questionam.
Pela manhã, quando a pequena ci-
dade desperta, ouve-se o toque rítmico
dos sinos da igreja de Nossa Senhora
do Pranto, que chama os fiéis e dá vi-
vas aos que aqui estão de visita.
Na Rua Direita, conflui um aper-
to de gente, no café da manhã ou no
pequeno-almoço, entre conversa ani-
mada e leitura dos jornais, que as duas

JPR

A igreja de Nossa Senhora do Pranto é uma peça de arqui-

Quinta de Ervamoira, JR
tetura religiosa manuelina (século XVI), que integra con-
figurações góticas atribuídas aos mestres biscainhos mas
conjugantes com o gótico tardio nacional (ou manuelino). A
pintura, estatuária e paramentaria que esta igreja conserva
revela-nos um rico património de arte sacra.

Foz Côa, acolhe-nos papelarias e tabacarias desta rua sem

Ao chegarmos a Foz Côa encontramos carros exibem junto às floristas, à far-
um mosaico de paisagens com forte mácia, à loja da Dona Etelvina – onde
identidade cénica, um caleidoscópio vemos e compramos produtos da terra,
de cores num relevo com traço de arte, incluindo os lenços de namorados –,
uma terra quente do Alto Douro, onde entre várias outras lojas que pontuam o
a Beira Interior tem o seu limite mas já casario, desde o início da avenida –, do
sentimos a terra trasmontana e encon- velho Palacete Verde e da Casa Verme-
tramos um forte apelo para descobrir-­ lha, até à Praça do Município, formando
‑mos os seus segredos e os seus valo- o eixo de maior vitalidade da cidade.

20
 Na Praça do Tablado, intercalada
neste percurso, atravessamos a pe-
quena feira de viveiristas e sementei-
ros de vides, oliveiras e árvores de fru-
to, que aqui regularmente se faz uma
vez por mês, e onde no passado eram
acolhidas a Feira da Amêndoa e a das
Cebolas, a primeira em finais de se-
tembro e a segunda no início de maio.
O Tablado foi sempre ponto de encon-
tro de trabalhadores que, ao raiar da
luz da manhã, daqui partem para os
trabalhos nas vinhas ou noutros la-
bores agrícolas que ainda marcam a
dinâmica desta terra.
Estas ruas enchem-se de forasteiros
quando desponta nos campos um mar de
flores de amendoeira, antes da chegada
da primavera e, ano após ano, aqui desfila
um cortejo alegórico, integrado nas Fes-
tas da Amendoeira em Flor, que junta na
cidade as freguesias do concelho.
Mas recordemos alguns traços da
história...Foz Côa é uma vila nova cria-
da, protegida e fomentada por D. Di-
nis (Foral de 1299), integrada num es-
paço agrícola que detinha relevância
na região e interagia com a passagem
das barcas, na Veiga que bordeja o
Douro, e que transportavam pessoas
e mercadorias entre as duas margens
desta estratégica barreira de água.
Esta Vila Nova, que se notou pri-
meiro com as manufaturas de cordoa-
ria, lãs, curtumes e seda, fez-se centro
mercantil. Com os anos de Setecentos
e Oitocentos, a vila combinou a sua lo-
calização privilegiada com uma forte
Episódio 1
tradição na produção de cereais (trigo,
centeio e cevada), amêndoa, oliveira e
pó de sumagre. A expansão da vinha é
uma realidade relativamente recente,
estando ainda em curso uma série de
investimentos na região.
É curioso assinalar que o laborar
das atafonas (lagar de transformação
do sumagre) produzia anualmente, no
final do século XIX, 60 toneladas de pó
de sumagre, em grande parte escoada
para outras regiões portuguesas e para
fora do país (2).
Vale da Vila, JR
O sumagre, planta tintureira que aqui é espontânea, tinge
de vermelho a paisagem
Na memória dos mais velhos per-
duram também marcas de sangue e
dor das perseguições aos cristãos-no-
vos de Foz Côa, que daqui fugiram para
vilas e aldeias próximas, em inícios do
século XIX, acusados de cumplicidade
21
com os franceses durante as invasões
(3). Também chegaram até hoje contos
diversos da violência em que os Cam-
pos e os Marçais se envolveram, em
plenas guerras liberais de Oitocentos.
Castelo Melhor, JPR
Os últimos cinquenta anos têm sido
marcados pela emigração, tornando
esta região, como o é todo o interior do
país, uma região de baixa densidade,
caracterizada pela desertificação e enve-
lhecimento populacional. Apesar desta
realidade de difícil contorno, é impor-
tante acreditar nas dinâmicas empreen-
dedoras que nos anos recentes estão a
lançar sementes de uma nova forma de
estar neste interior raiano, que conjuga
o vinho, a cultura e o turismo.
Foz Côa é hoje um património do
mundo. As paisagens vinhateiras que
aqui têm, como dizíamos, uma profun-
da presença cénica, são reconhecidas
pela UNESCO como Património da Hu-
manidade desde 2001. A arte rupestre
de ar livre que existe no Baixo Côa, in-
tegrada maioritariamente no território
de Foz Côa, e que impulsiona esta ex-
22
periência de viagem, foi também clas-
sificada em 1998 pela UNESCO como
Património Mundial.
É este o quadro que encontramos
neste burgo que nos acolhe e de onde
Rio Douro, Foz Côa, JR
partimos à descoberta dos segredos, ex-
periências e recantos do Côa. Pela tarde,
após uma visita ao centro antigo da ci-
dade e casario intramuros, que segue o
traçado da cerca medieval, praça do mu-
nicípio com a igreja matriz, pelourinho
e Paços do Concelho, – deambulamos
pelas paisagens envolventes, quase
sempre desenhadas pelo encaixe acen-
tuado do Côa, do Douro e das ribeiras
afluentes. Nos arredores admiramos as
encostas de vinhedos estendidos como
pequenos mares de cor, alternada com
o passar das estações do ano, os olivais
e amendoais, compassados com tre-
chos de sumagre e mantos de vegetação
rasteira, pontuada por velhos pombais
circulares.
No dia seguinte, antes de nos por-
mos ao caminho, sentamo-nos cal-
mamente num banco sob o arvoredo
do Parque de Santo António (antiga
Lagoa de Foz Côa), ou nos bancos de
xisto da Praça do Município, e procura-
mos saber como se descobriram e estu-
daram as gravuras rupestres, como se
constituiu o Parque Arqueológico e o
que este representa para a região.
Os achados
arqueológicos de Foz
Côa: como foi?
As descobertas de arte rupestre inicia-
ram-se com os trabalhos de construção
da barragem do Pocinho, concluída em
1982. Foram na altura estudadas no
Vale da Casa – ou Vale da Cerva – 23 ro-
chas xistosas decoradas com gravuras
rupestres do Calcolítico e Idades do
Ferro e do Bronze (4).
A partir de 1989, ao iniciar-se a cons-
trução de uma grande barragem no tre-
cho final do rio Côa, na sequência de pros-
peções arqueológicas no vale, da respon-
sabilidade de Francisco de Sande Lemos,
identificaram-se pinturas neolíticas no
sítio da Faia e gravuras de época Histórica.
Mas é Nelson Rebanda, que aqui traba-
lhou e coordenou uma sistemática pros-
peção arqueológica, quem descobre, em
novembro de 1991, na Canada do Inferno,
as primeiras gravuras paleolíticas.
Até aos últimos meses de 1994 estes
achados não foram publicamente divul-
gados, e em novembro desse ano desen-
cadeou-se uma pesada polémica que
alastrou no mundo científico da Arqueo-
logia e na opinião pública, tornou-se in-
ternacional, e fez emergir clivagens mui-
Episódio 1
to vincadas na sociedade local, colocan-
do em oposição duas soluções: concluir
a construção da barragem e submergir
a quase totalidade das rochas gravadas;
ou suspender esta obra e desenvolver
o estudo, a conservação e a divulgação
deste património arqueológico.
A luta pelas gravuras
“que não sabem nadar”
“As gravuras não sabem nadar!” Esta
foi a musicalidade verbal que serviu
de mote a manifestações públicas, de-
bates, inúmeros artigos de imprensa e
outras iniciativas que envolveram as
forças vivas da cultura, da ciência, da
política e da cidadania. Mobilizaram-
se as opiniões públicas e a comunida-
de científica; instalou-se a polémica no
Parlamento e no Governo e o Presiden-
te da República fez uma visita ao Côa.
Após um detalhado Relatório(5)
entregue pela equipa que entretanto
realizou trabalhos científicos no Côa,
ocorre a histórica decisão do Governo
de Portugal em novembro de 1995 (en-
tão chefiado por António Guterres),
da suspensão da obra da barragem
e candidatura do Côa a Património
Mundial.
23
 O papel da sociedade local, embora
na altura dividida entre dois projetos de
futuro, foi determinante para que se de-
cidisse pela investigação arqueológica.
À conversa com o
Professor José Ribeiro
Eu era Presidente do Conselho Diretivo da
Escola de Foz Côa e alertei a Câmara Munici-
pal para o valor do património que estava a ser
descoberto. As conversas foram acesas, até por-
que havia na altura diferentes interpretações
sobre as gravuras rupestres do Côa. Lançámos
um projeto de “área escola” centrado em três
eixos: a ação estritamente pedagógica; a pro-
blemática da preservação do património cul-
tural; e o possível aproveitamento deste para
o desenvolvimento, em especial da face não
agrícola do mundo rural da região – o turismo,
as paisagens, etc.
Escreveu-se e aprovou-se uma moção,
com a participação de alunos, professores e
encarregados de educação. Recolheram-se
mais de 110 mil assinaturas, no país e no es-
trangeiro, em apenas três semanas!
Começaram a vir jornalistas de todo o
lado e diversos especialistas, entre os quais
João Zilhão, que teve um papel muito im-
portante nos meios académicos e na proje-
ção internacional das gravuras do Côa. En-
tretanto, as obras da barragem não para-
vam e houve até aceleração dos trabalhos.
Mas o mais importante foi a vinda do Dr.
Mário Soares – Presidente da República – em
24
março de 1995. A SIC passou à noite uma
reportagem e projetou o slogan “as gravuras
não sabem nadar” criado pelos alunos.
Foi um desafio pedagógico e de partici-
pação cívica muito interessante. Não havia
plano nenhum, o único plano era salvar as
gravuras. Os jovens tiveram uma interven-
ção fantástica mas quisemos que adquiris-
sem consciência do que estavam a fazer e
dar-lhes a possibilidade de discutir o papel
que o património pode ter para o desenvol-
vimento. Mostrámos que a Escola não deve
ser um armazém de aprendizagem, deve ser
muito mais do que isso e ter um papel na
formação de cidadãos que sabem socializar
e participar na vida da comunidade.
A arte do Homem Fóssil
ao ar livre no Côa
A investigação científica alargou-se
e foi criado o Parque Arqueológico do
Vale do Côa (1996) e o Centro Nacional
de Arte Rupestre (1997), dando-se um
grande impulso na prospeção e estudo
detalhado de rochas decoradas, bem
como na escavação de vários sítios de
ocupação humana do vale, sítios de
habitat coevos desta arte.
A densidade do estudo da arte pa-
leolítica do Côa, desde 1997, permite
hoje conhecer em pormenor mais de
30 sítios que integram quase meio mi-
lhar de rochas decoradas ao ar livre, na
maioria com sobreposições de diver-
sas gravuras rupestres(6), números que, atual, como é o caso da rocha 3 da Quinta da
entretanto, vão sendo aumentados Barca – gravura de uma cabra pirenaica com
pela investigação continuada no Par- duas cabeças em perfeita simetria - cuja re-
que Arqueológico. produção em qualquer parte onde seja vista

Episódio 1
já se sabe que é daqui. Ela é um verdadeiro
ícone do Vale do Côa e poderá constituir-se
À conversa com o
no seu mais autêntico “logótipo.”
Arqueólogo António
Martinho Baptista,
responsável pelo extinto
Centro Nacional de Arte
Rupestre
O que faz do Côa um importante patri-
mónio da Humanidade é, desde logo, o facto
da cronologia da arte rupestre ser aqui muito
antiga - na Europa, só tem paralelo nas gru-
tas paleolíticas francesas e da Cantábria – e,
em geral, com uma qualidade e estética su-
blimes, para além do ordenamento do espa-
ço rupestre que aqui está ainda muito bem
conservado. Temos no Côa, passados 20 mil
anos, informação arqueológica fundamental
para a reconstituição de um passado muito
longínquo do Homem. Quinta da Barca, PG

Podemos estudar “in loco” 15 mil anos

de arte paleolítica que conjuga diversos as-
petos dignos de destaque, como a qualidade
dos motivos, a extensão dos sítios e o enqua-
dramento arqueológico que ainda é possível
reconstituir. É por estes (e outros) factos que
o Côa é um lugar único: a mais importante
descoberta arqueológica em Portugal no
século XX. Algumas gravuras do Côa torna-
ram-se verdadeiramente icónicas no mundo
Para entender verdadeiramente bem a
arte do Côa é necessário uma grande paixão.
Paixão desde logo pela arte e pelos seus pro-
dutores, e paixão pelo trabalho de sapa que
tem de ser feito no dia a dia no vale, conju-
gando a emoção e a razão. É fundamental
para que o nosso trabalho não seja seco e
honre o trabalho dos artistas do passado que
nos legaram no Vale do Côa este imenso pa-

25
 Ribeira de Piscos 24 - Painel 27
0 10 cm

trimónio, que é toda a simbólica rupestre na

sua ambiência territorial.
Há ainda um enorme trabalho a fazer,
sempre com uma logística muito difícil
aqui no Côa, mas que poderá condicionar 0 20 cm

a dinâmica do Museu do Côa, onde se po-

Penascosa
Rocha 3
Vale do Côa

derão apresentar as novas descobertas,

porque muito falta ainda saber, apesar de
alguma coisa sabermos já atualmente. Foi
isso, aliás, que permitiu a esta equipa fazer
o Museu do Côa, de que nos orgulhamos,
mas que temos consciência que deverá ser
permanentemente atualizado...
Estão identificadas duas fases do-
minantes na arte paleolítica do Côa (7):
uma mais antiga, essencialmente com
figuras picotadas e gravadas por abra-
são (datação anterior a 18.400 anos BP,
Before Present, de acordo com os dados
arqueológicos do sítio do Fariseu); e
uma menos antiga, que vem até 10 mil
anos antes do presente e corresponde
a arte gravada em painéis rochosos e
a arte móvel —  pequenas plaquetas
decoradas — , com uma técnica e uma
estilística fina e elegante, dominada
por representações filiformes (traço de
gravação muito fina e superficial, por
vezes muito difícil de visualizar), com
composições de traço simples ou de
traço múltiplo.
Na arte paleolítica do Côa 99% das
representações são gravuras e apenas
1% integra restos de pintura.
A ocupação humana do
Baixo Côa no Paleolítico
superior
A cronologia da ocupação humana
no Baixo Côa revelou, através da es-
cavação arqueológica de vários sítios
(Olga Grande, Cardina, Insula, Fariseu
e Quinta da Barca), restos de armas,

26

Ponta Solutrense, JPR
utensílios usados no tratamento de
peles, cabanas e fogueiras, que refle-
tem facetas da vida quotidiana essen-
cialmente associadas à caça. As pontas
de lança exumadas nas escavações
foram talhadas com rochas extrema-
mente duras que não existem no Côa
e vieram de lugares que daqui distam
mais de 200 km – um indicador da mo-
bilidade destes pequenos grupos hu-
manos na Península Ibérica(8).
No sítio da Olga Grande, na área
planáltica entre o Côa e a Ribeira de
Aguiar, durante a última glaciação (há
mais de 16 mil anos), está documenta-
da a caça de auroques (antepassados
dos atuais bois), de cavalos e de outros
herbívoros que aqui procuravam o pas-
to primaveril. Nestes locais encontra-
ram-se restos de utensílios em rocha,
usados quer para o abate daqueles
Episódio 1
animais, quer para o seu corte e des-
manche. Grandes lareiras construídas
com rochas locais eram utilizadas para
conservar ou cozinhar uma grande par-
te da carne. Os acampamentos nestas
áreas mais elevadas, visíveis e despro-
tegidas, eram ocupados em regime sa-
zonal, na primavera, quando a caça era
mais abundante.
Na Cardina (3 km a montante das
rochas gravadas da Penascosa e da
Quinta da Barca), dataram-se ocupa-
ções de duas fases distintas – entre 16
e 15 mil anos, e entre 22 e 20 mil anos
antes do presente – e identificou-se
uma cabana com vestígios de suces-
sivas utilizações, vestígios de foguei-
ras e numerosos fragmentos de pedra
lascada, documentando-se uma maior
frequência de acampamentos em con-
texto de fundo de vale, junto ao rio
Côa, do que nas áreas planálticas, de
ocupação sazonal (9).
O Museu do Côa
O universo numa
casca de noz
A nossa incursão no Parque Arqueológi-
co começa pela visita ao Museu do Côa,
aberto ao público desde agosto de 2010.
27
O moderno edifício é a porta e centro de
interpretação do Parque Arqueológico
do Vale do Côa, que começámos por vi-
sitar e apreciar. É uma arrojada peça de
arquitetura e engenharia portuguesas,
projetada por Pedro Tiago Pimentel e
Camilo Rebelo, dois arquitetos da esco-
la de arquitectura do Porto, que vence-
ram o concurso internacional lançado
pelo Estado português. Causa-nos emo-
ção pelo convívio visual que nos conce-
de com a envolvente, nesta curvatura
do Douro onde o Côa tem a sua foz.
Museu do Côa, AMB
O desenho
arquitetónico do Museu
Num Museu situado numa encosta
sobranceira à foz do Côa, é importan-
te o sentido afirmativo do seu corpo,
desde logo na leitura da sua relação
com a paisagem. Pretende-se enfatizar
a imponente amplitude de vistas que
caracteriza tão fortemente o sítio, evi-
tando que o edifício se assuma como
obstáculo entre quem chega e a paisa-
gem que o rodeia.
28
Há um elemento que estrutura o
corpo – a rampa que rompe a massa
de forma contínua, percorrendo todo
o programa, desde a plataforma de
chegada até às salas de exposição.
Esta fenda descendente conduz o
utente para dentro da massa, trans-
portando-o de modo gradual, da pai-
sagem intensa, luminosa e infinita,
até à realidade interior e escura da
sala gruta, que nos remete para um
tempo primitivo.
Museu do Côa, JPR
A sua perceção é uma realidade mu-
tável, consequência do elaborado jogo
de volumes. A sua observação é possível
de diversos ângulos, mas também de
distâncias variáveis, surgindo como um
monólito de xisto de diferentes expres-
sões – pedra recortada na montanha –,
enquanto na aproximação ler-se-á um
corpo complexo em betão texturado,
cortado por frestas de diferentes cali-
bres, que denunciam o caráter habitável
do espaço e a sua composição interior.
 Ao entrarmos no edifício do Mu-
seu, descemos um longo desfiladei-
ro, que vai estreitando ao ritmo dos
nossos passos, entre paredes de betão
que vão ficando cada vez mais altas,
até estarmos fronteiros à câmara de
receção do espaço museológico que
nos vai levar numa viagem à arte do
homem paleolítico no Côa. Prepara-
mo-nos para nos surpreender com a
sua profundidade estética, obrigan-
do-nos a questionar o significado que
a arte tem para nós, enquanto força
Museu do Côa, JPR
poderosa que vem desde os nossos
antepassados mais remotos.
Nesta manhã, António Martinho
Baptista, arqueólogo especialista na
arte paleolítica do Côa, acompanhava
um grupo de investigadores em visi-
ta ao Côa e explicava que no conjun-
to figurativo da arte rupestre do Côa
integram-se três grandes conjuntos de
motivos: os zoomórficos, os humanos
e humanoides, e os sinais e signos com
profusa geometria simbólica. Nas 117
rochas mais detalhadamente estuda-
das, envolvendo 744 figuras gravadas, a
maioria dos animais representados são
auroques (140), cavalos (132) e cabras
Episódio 1
(131). Acrescentou que existem algumas
gravuras de peixes, 18 de humanos ou
humanoides – destacando a represen-
tação do “homem ictifálico de Piscos”,
com uma grande proeminência fálica –
e 52 sinais ou signos abstratos.
O tamanho das representações va-
ria entre apenas 2 centímetros e 2,8
metros, permitindo em alguns casos
uma boa observação à distância, por
exemplo entre margens opostas do
Côa, como no caso dos grandes auro-
ques junto à foz de Piscos.
Três outras características são re-
veladas, na riqueza artística que o
Côa guarda: a interação figurativa ou
cénica, surgindo representações de
animais articulados entre si (exemplo
de cavalos com cabeças entrelaçadas);
o movimento animado, surgindo fre-
quentemente em gravuras em que se
observam duas ou mais cabeças simé-
tricas, dando sensação de movimento;
a representação de volumetria.
A descoberta de dezenas de placas
de arte móvel no sítio do Fariseu, que
apresentam figuras gravadas nas faces,
alargou ainda mais a dimensão que
atualmente esta “arte da luz” detém,
em oposição à visão clássica da “arte
das trevas”, no interior de cavernas ou
29
grutas com ocupação deste período,
que por muitos anos se pensou domi-
nante na arte paleolítica.
A visita, além de nos mostrar uma ré-
plica de uma cabana datada do Paleolítico
superior no sítio de Fariseu, num fundo
de sons que nos contextualiza, lança-nos
na complexidade da interpretação da arte.
Percebemos que os desígnios intrínsecos
à arte do Côa são de difícil interpretação,
mas parece haver um propósito de monu-
mentalizar o território, em focos específi-
cos que poderão ter-se salientado como
monumentos de demarcação territorial
ou simplesmente de sinalização de espa-
ços ou eventos ocorridos.
O universo numa casca de noz, era o repto
a dimensão que a arte tem em todos nós
e no nosso quotidiano, e a percebermos
a profundidade temporal da sua presen-
ça e da sua relevância, desde que nos co-
nhecemos como humanos.
O Parque Arqueológico
do Vale do Côa
Este Parque foi criado em 1996 e o grupo
de profissionais de que dispõe, em cola-
boração estreita com o Centro Nacional
de Arte Rupestre (desde 2007 integrado
nos serviços do Parque), tem vindo a ga-
rantir a prospeção, estudo e conservação
das rochas decoradas, a visita pública per-
manente a três núcleos de arte rupestre

Pocinho

Vale de José Esteves

Vila Nova de Foz Côa Museu do Côa

Rio Douro

Canada
0 5 cm

Orgal
do Inferno
Muxagata
Fariseu
Castelo
Ribeira Melhor
de Piscos

incutido em nós ao mergulharmos neste

Penascosa
museu que nos transportou ao universo
Chãs Almendra
Rio Côa
da arte rupestre paleolítica e que, afinal,
Tomadias
mais do que revelar-nos que há mais de
22 mil anos os homens já tinham capta- Santa Comba

Algodres
do o génio criativo que chegou até nós, Núcleo de arte rupestre

e está presente na obra de alguns dos Núcleo de arte visitável

Localidade
Centro de Recepção do PAVC

nossos mais relevantes artistas, como

Casa de guarda
Cidadelhe Museu do Côa
Estrada pavimentada
Vale de Afonsinho
Picasso, nos obrigou a questionar sobre
Percurso de visita (não pavimentado)
Cursos de água principais
Limite do PAVC (D.L. 50/99)

30

Rio Côa, Cardina, JPR
paleolítica – Canada do Inferno, Ribeira de
Piscos e Penascosa - entre outras funções.
Para além do património históri-
co e cultural que encerra, é de refe-
rir o importante património natural
do Parque que está inserido na ZPE
(Zona de Proteção Especial) do Vale do
Côa e IBA do Vale do Côa (Important
Bird Area ou Área Importante para
Aves, segundo a ONG internacional
BirdLife International).
O Parque e Museu do Côa integra
hoje, em paralelo com o espaço museo-
lógico e interpretativo que visitámos, o
núcleo de investigação da arte rupestre,
os serviços administrativos, de gestão
e de visita, dispondo de uma biblioteca
especializada, de auditório e espaço de
cafetaria e restaurante.
As oficinas de arqueologia experi-
mental são eventos regulares que ofe-
recem, a possibilidade de sentirmos
como se fazia o fogo, o talhe de rochas,
ou como se preparavam e manipulavam
os artefactos de caça, corte, recoleção e
mesmo de decoração de rochas por di-
ferentes técnicas de gravação.
Episódio 1
Oficina de Arqueologia
Experimental, JPR
É daqui que partimos para a nossa
viagem de descoberta das gravuras do
Côa e do imaginário das caçadas e da
vida dos grupos humanos que deam-
bularam pelo vale e o ocuparam.
A experiência de visita
aos sítios de arte
rupestre
A nossa escolha pelo núcleo da Penas-
cosa leva-nos a deixar Foz Côa e a tomar
a estrada de acesso a Figueira de Caste-
lo Rodrigo, que começa por serpentear
vale abaixo até à passagem na ponte do
Côa, onde se percebe a silhueta da ve-
lha ponte férrea, do comboio que desde
1988 por ali não passa.
31
 Fazemos nesta descida um peque-
no desvio, à direita, seguindo pelo
acesso à Canada do Inferno, e vislum-
bramos as vertentes esventradas, em
ambos os lados do vale, pelas obras de
instalação da barragem, interrompidas
em 1995: uma paisagem que nos inter-
roga e evoca a História recente do Côa.
Mais a montante, na margem es-
querda do rio, labora-se nas velhas pe-
dreiras do Poio, donde saem esteios para
os vinhedos durienses e excelentes xis-
tos para várias outras funções. Ao Orgal,
aldeia que fica no topo das encostas do
lado de lá do vale, ligavam-se em tempos
idos três cabos em aço, através dos quais
se deslocavam trabalhadores das pedrei-
ras, alapados dentro de cestos de vime.
O recorte cénico destas pedreiras lembra-
nos que a destruição pode ser também
um ato de construção.
Após a curvatura da estrada, à vista
da foz do Côa, seguimos em direção a
Castelo Melhor, atravessando paisa-
gens com vinhedos nas encostas que
descem até ao Douro, e aproximamo-
Pedreiras do Poio, AA
32
nos daquela aldeia medieval, orlada de
amendoais e olivais.
Avistamos o Monte de São Gabriel,
à nossa direita, onde os vestígios fossi-
lizados de trilobites nos contam uma
história de tempo muito longo, im-
pregnada em rochas de há mais de 480
milhões de anos.
E chegados a Castelo Melhor, a co-
lina cónica proeminente na paisagem,
sobranceira ao casario da velha aldeia,
acolhe no topo o castelo de construção
leonesa, quando o rio Côa era ainda
fronteira e aqui ainda não era chão de
Portugal. Pelas ruas que descemos por
entre o casario da aldeia, vemos os ve-
lhos sentados no banco de fora de um
pequeno café, uma queijaria, um des-
cansado emigrante regressado e refor-
mado que parte amêndoa com o bruíço,
e cruzamos um autocarro de turistas até
encontrar o Centro de Receção do Par-
que, já no enfiamento do caminho rural
que nos levará à Penascosa.
Seguimos numa viatura todo-o-terre-
no, conduzida por um guia, por 6 km de
Castelo Melhor, JR

Na Penascosa realizam-se com frequência oficinas/visita
“Eles desenharam. Nós continuamos”, organizadas pela
Associação LuzLinar, dirigidas a um público juvenil, com o
intuito de valorizar a observação num contexto especial de
aprendizagem, produzir conhecimento e estimular a criativi-
dade. Esta Associação, já no concelho de Trancoso, localiza-
se numa pequena mas robusta e pacata aldeia granítica, o
Feital. É uma instituição cultural sem fins lucrativos, que tem
por objetivo promover as artes plásticas e performativas,
bem como desenvolver projetos no domínio da arte experi-
mental. Por outro lado, procura dinamizar, com outras insti-
tuições, projetos voltados para a divulgação do património
local e regional. A escultora Maria Lino, natural desta aldeia,
é a Presidente desta Associação e dinamizadora do espaço
que a acolhe desde 1995.
Penascosa, PG
caminhos rurais, ondulando por paisa-
gens secas onde pontuam os amendoais
e olivais, por entre uma vegetação rastei-
ra ou de arbustos, com pombais que dão
Episódio 1
um cunho especial ao trilho.
Numa curva, já à vista do Côa, abre-
se uma visão larga e ficamos com a
retina presa na Quinta da Ervamoira
- antiga Quinta de Santa Maria - entre
Muxagata e Chãs, uma extensa vinha
de desenho moderno e inovador para
os anos 70 (século XX). Ali, marcando
antecipadamente, podemos degustar
refeições e vinhos de excelência e visi-
tar o museu de sítio que a quinta criou
e nos explica, com leveza, pormenores
da viticultura duriense e da História da
ocupação do local.
O sítio de arte rupestre, na mar-
gem direita do Côa, está junto a um
terraço de praia fluvial que contacta
com paredes xistosas, onde estão 36
painéis gravados, 25 com gravuras
paleolíticas, distribuídos em dois
conjuntos: um na parte Norte, com
diversas figuras incisas de cervídeos,
e outro, na parte Sul, com represen-
tações de várias espécies de animais.
Na margem contrária, avistamos a
Quinta da Barca.
A cerca de 3 km, no sentido mon-
tante do Côa, encontra-se o sítio da
Cardina, próximo da ribeira de Mas-
sueime, onde o rio descreve uma curva
apertada, formando um estreitamen-
33
to de apenas 10 metros, com duas sa-
liências rochosas em cada margem,
conhecido como “salto do boi”. Uma
perspetiva deste sítio arqueológico,
classificado também como património
mundial, está integrada na visita do
Parque Arqueológico “No Rasto dos
Caçadores Paleolíticos”.
Podemos alargar a nossa experiência
de descoberta da arte rupestre do Côa, se
para tal dispusermos de tempo. Na Cana-
da do Inferno, na parte final do curso do
Côa, a visita guiada inicia-se no Museu
do Côa (a 6 km de distância), levando à
margem esquerda do vale, junto do local
onde decorreram as obras de implantação
da grande barragem entretanto preterida. Foz de Piscos, AMB

Aqui existiu uma pequena praia

fluvial, hoje submersa pelo enchimen-
to da barragem do Pocinho, e estão
identificadas e estudadas 43 rochas
gravadas, das quais 36 estão enqua-
dradas no ciclo Paleolítico do Côa, que
aqui tem exemplares de todas as fases.
A visita ao núcleo da Ribeira de
Piscos faz-se a partir do Centro de Re-
ceção instalado na aldeia medieval de
Muxagata, que dista 6 km das rochas
gravadas, em todo-o-terreno e depois
segue-se um trilho pedestre final de 500
metros, junto à ribeira de Piscos e já à
vista plena do Côa. Aqui estão 28 rochas
gravadas, tendo, 22 destas, representa-
ções do Paleolítico, incluindo algumas
das mais interessantes do vale.
Ribeira de Piscos, PG

34
 O Centro de Receção de Muxagata
é também ponto de partida de visitas
que se fazem, sob marcação prévia e
num programa apenas sazonal, ao sí-
tio do Fariseu, que dista 7 km da aldeia.
Esta é uma visita em todo-o-terre-
no, em que o visitante traz a sua pró-
pria viatura, por caminhos rurais com
troços muito acidentados, que nos
leva a um conjunto de rochas decora-
das com gravuras paleolíticas interes-
santes, mas em pequeno número.
Junto à rocha 1, hoje submersa e
quase inteiramente soterrada, proce-
deu-se a escavações em 1999, 2005 e
2007 e descobriram-se 94 representa-
ções sobrepostas num único painel ro-
choso, inscritas por picotagem e abra-
são, algumas previamente delineadas
por incisão filiforme. São zoomórficas
93 destas figuras: cavalos, auroques,
cabras, cervídeos e, em menor núme-
Monte do Fariseu, JPR
ro, camurças. A descoberta envolveu
também um impressionante conjun-
to de pequenas placas de xisto grava-
das (classificadas arqueologicamente
Episódio 1
como arte móvel), essencialmente por
incisão filiforme.
Aqui no Fariseu encontraram-se
vestígios de consumo humano de ani-
mais integrantes da fauna paleolítica,
especialmente de veados, camurças,
javalis, coelhos, esquilos, aves e peixes
(sável e escalo).
No local, infelizmente, apenas está
emersa uma parte das representações,
podendo-se observar exemplares de
gravuras de veados bramando (rochas
2 e 6), de cavalos (rocha 3) e de bodes
com interessante traço estético, junto
com uma figura humana caracteristi-
camente paleolítica (rocha 8).
Na Faia, o sítio de arte rupestre pale-
olítica património mundial mais a mon-
35
 Faia, PG
Detalhe
da Rocha 8
do Fariseu
tante no rio Côa, é possível conciliar um
trilho de pedestrianismo que segue a
linha de água, num troço muito encai-
xado em granitos, onde as vertentes do
vale são escarpadas, com a visita a algu-
36
mas gravuras e pinturas paleolíticas.
Aqui foram descobertos restos
de pinturas indicando que esta seria,
com grande probabilidade, uma prá-
tica corrente em muitas outras de-
corações de rochas, que não seriam
apenas gravadas, como hoje visualiza-
mos, mas teriam pintura a cor, como
ocorre na arte em gruta.
Em Cidadelhe está instalado um
centro Difusor e de Informação que
apoia, nos fins de semana estivais,
quem faz esta visita.
Na nossa viagem são também apre-
ciáveis, pelo património que conser-
vam, várias outras aldeias no entorno
 Episódio 1
Cidadelhe, JR

do Parque Arqueológico do Vale do sobressaindo o casario vincadamente

Côa, antes de rumarmos a Castelo Ro- vernáculo, agarrado ao topo da encos-
drigo, que protagoniza o nosso próxi- ta escarpada do Côa, que aqui corre
mo episódio nesta rota de descobertas muito encaixado em duros granitos.
e experiências por terras do Côa: Algo-
dres e Vale Afonsinho, ambas de for-
mação leonesa; Chãs, Tomadias, San-
ta Comba e Cidadelhe, nesta última

37
2 Episódio 2
Quando o Côa era
fronteira, entre Castelo
Rodrigo e Pinhel
Estamos a oriente do Côa e lembramos
aqui a história que este rio guarda,
quando não era, como hoje, um eixo
de união, mas uma fronteira de sepa-
ração entre leoneses e portugueses.
Rio Côa, Cidadelhe, JR
A “Estrada de França”, que entra em
Portugal a partir de Salamanca, passan-
do, nos nossos dias, a fronteira em Vilar
Formoso pela A25, seguia, em tempos
medievais, e talvez mesmo romanos,
um itinerário mais setentrional. Cru-
38
zando a Ribeira de Tourões na zona de
Escarigo, seguia à Vermiosa para atraves-
sar a Ribeira de Aguiar na ponte que se
observa hoje com três arcos redondos.
Continuava em direção a Reigada, onde
uma derivação para norte, por Vilar Tor-
pim, ligava a Castelo Rodrigo. De Reiga-
da passava a Cinco Vilas, ultrapassando
o Côa na Ponte Velha de que apenas res-
ta o arranque do lado direito. Depois de
passar o Côa, subia para procurar, nas
Ponte Velha do Côa, Cinco Vilas, JPR
alturas de Pinhel, um nó de ligações re-
gionais. A partir desta vila era possível
seguir para Celorico e tomar a principal
ligação a Coimbra - a “Estrada da Bei-
ra” - acedendo-se ao litoral Centro e Sul.
Este deveria ser o itinerário conhecido
em tempos medievais por “Calçada Co-
limbriana”, dada a ligação fundamental
que estabelecia com a cidade de Coimbra
através do vale do Mondego. Por outro
lado, seguindo por Trancoso, tomava-se
a estrada de Lamego e daqui ficava à mão
o acesso ao Litoral Norte.
Foi ao longo deste caminho que se
multiplicaram as iniciativas régias reor-
ganizadoras do território na região, tan-
to portuguesas como leonesas, nas últi-
mas décadas do séc. XII e primeiras do
século seguinte, altura em que eram as
águas do Côa que marcavam a fronteira
entre as duas monarquias. Destacam-se
então como principais centros do terri-
tório as vilas de nova fundação de Cas-
telo Rodrigo (Leão) e de Pinhel (Portu-
gal), entre as quais se estrutura o local
da passagem do Côa onde, já no século
XV, se veio a construir uma ponte que,
Episódio 2
depois de abandonada e em ruínas, é
atualmente conhecida por “Velha”.
A pré-existência deste importante
eixo de penetração de viajantes e de co-
merciantes, mas também de conquis-
tadores e repovoadores, determinou a
direção das primeiras iniciativas reor-
ganizadoras do rei de Leão no Riba Côa.
Na década de 1170, D. Fernando II apoia
e protege a instalação do Mosteiro de
Santa Maria, não longe da Ribeira de
Aguiar, e, ao mesmo tempo, a fundação
da Ordem militar de S. Julião do Perei-
ro (mais tarde conhecida como Ordem
militar de Alcântara), por cavaleiros de
Salamanca, que fazem construir a sua
casa-mãe em Cinco Vilas, num cabeço
sobranceiro à “calçada”, imediatamente
antes da passagem do Côa.
Estas foram as “guardas avança-
das” do rei de Leão numa zona pe-
riférica do alfoz de Ciudad Rodrigo,
junto do rio Côa, que por essa altura
começa a ser conhecida por ”terra de
Castel Rodrigo”. Pouco depois, seria
num cabeço destacado, não longe do
assento do mosteiro de Santa Ma-
ria, que o rei haveria de promover a
criação da vila de Castelo Rodrigo
tornada logo de seguida no princi-
pal centro político daquele território.
39
Mais tarde, os acontecimentos que
conduziram ao Tratado de Alcanices
garantiram a posse desta vila pelo rei
de Portugal, tendo-lhe D. Dinis con-
firmado os foros, privilégios e feira
franca em 1296. A este rei se deve-
rá também a realização de obras de
vulto nas fortificações da vila, que
nas 91 moradores ou famílias, quan-
do no lugar de Figueira se contavam
129 moradores. Para este lugar se fo-
ram mudando progressivamente os
moradores, a feira, o governo muni-
cipal, e, em 1836, viu reconhecido ofi-
cialmente o novo estatuto de sede de
concelho.

AA

No ponto mais elevado da colina em que se implanta Castelo Rodrigo, localiza-se o castelo, de planta trapezoidal com diversas
torres. Transformado nos séculos XVI e XVII em palácio pelo senhor da vila, D. Cristóvão de Moura, foi incendiado aquando da
Restauração da Independência em 1640, tendo ficado em ruínas desde essa data.

se manteria como um dos principais Castelo Rodrigo, que nos fala de

centros da região. Porém, no final da
Idade Média, Castelo Rodrigo come-
çava a exibir um padrão de decadên-
cia e despovoamento. O cadastro da
população do reino, datado de 1527,
contou dentro dos muros da vila ape-
uma densa história, miscigenada en-
tre dois reinos, guarda um património
edificado que descobrimos pelo nosso
passo ao longo do circuito sinalizado
pelas ruas da aldeia. A antiga cisterna,
com entrada por um arco moçárabe,

40
revela-nos quanto estes lugares do In-
terior, aparentemente já tão a Norte,
mantiveram até tarde fortes canais de
intercâmbio cultural com o Al-Andalus,
o Sul Islâmico, foco e modelo irradia-
dor a imitar(10). Neste lugar dominante,
sentados numa esplanada de salão de
chá, com um mosaico de paisagens na
nossa frente, conversamos com o sim-
pático parisiense André Carnet, cujo
sotaque castiço se mantém, com mú-
sica clásica de fundo.
André Carnet,
história de uma vida
Há trinta anos encontrei uma jovem por-
tuguesa em Paris. Passei férias aqui, porque
ela era de Figueira de Castelo Rodrigo. Era a
primeira vez que vinha a Portugal. Gostei da
senhora – estamos casados – e também de
Portugal. A aldeia estava totalmente aban-
donada nessa época.
Pensei, vou comprar uma casa para pas-
sar férias, na época estava totalmente fora
de questão viver aqui, não havia razão ne-
nhuma, trabalhava em Paris como diretor
de comunicação, marketing e publicidade da
Credit Agricole, era outro mundo… Mas, como
eu gosto de tudo o que é bom, gostei disto.
Depois, começou o programa de recupe-
ração das Aldeias Históricas, que no caso de
Castelo Rodrigo penso que foi um programa
muito bem conseguido ao nível de arquite-
tura…bom…e um dia, falando com a minha
esposa, no fim dos anos 80, pensei, vou dar
um impulso, vamos fazer qualquer coisa...
criámos um salão de chá e uma loja gourmet
com produtos típicos locais e artesanato.
Episódio 2
Não estou habituada a ver no retrovisor,
o que me interessa é o futuro. Estou sempre
a inventar qualquer coisa, hoje de manhã
estava a cozer uma coisa que estava a pre-
Castelo Rodrigo, JR
Mosteiro de Sta. Maria de Aguiar, JR
“Os frades recebiam no mosteiro os peregrinos que por aqui
passavam a caminho de Santiago de Compostela, na ala da
hospedaria onde hoje são recebidos turistas. Sempre digo
a quem aqui passa que visitem o alto da serra da Marofa,
porque as vistas chegam muito longe. Não ir lá é como ir a
Roma e não ver o Santo Padre.” diz-nos o Sr. António Varela,
guia do Mosteiro de Santa Maria de Júnias.
parar ontem à noite, uma pasta de figo e de
amêndoas… Valorizei as coisas, e pensei ficar
em Paris e dirigir as coisas, mas não correu
bem e decidi vir para cá. Efetivamente está
a correr muito bem, mas tenho uma grande
41
 Colmeal, AA
tristeza…acho totalmente dramático ver
uma aldeia que foi reconstruida há cerca de
15 anos sem animação nenhuma…
Comecei por amar uma senhora e depois
amar um país inteiro…e depois uma aldeia
pequeníssima! Tenho um coração um boca-
dinho grande…é por isso provavelmente…
Descemos da colina do castelo e,
no mosteiro de Santa Maria de Aguiar,
conversámos com o Senhor Varela, que
há vinte anos aqui recebe os visitantes
e nos explicou o monumento, sem dei-
xar de lado a lenda de Santa Maria, que
teria interferido na batalha da Salgade-
la (1664), apanhando as balas dispara-
das pelos castelhanos para as entregar
aos portugueses e, assim, contribuir
para a sua vitória. Quando o interpela-
mos, fala-nos da região e, ao sairmos,
ouvimo-lo em cantos religiosos.
Nesta nossa viagem pelo vale do
Côa, em direção a Siega Verde, pode-
mos fazer um desvio por Pinhel, pene-
trando no passado histórico em que
42
as vilas de ambos os lados eram im-
portantes centralidades no território.
De caminho, encontramos a curiosa
aldeia do Colmeal, abandonada em
1957 por ordem judicial, e que aqui fi-
cou como fantasma no sopé da Marofa,
vigiada pelos altos grifos. Mas lembre-
mos alguns traços marcantes da histó-
ria deste território, aquém do Côa.
O povoamento da vila de Pinhel, que
parece ser outro caso de povoação nova,
relaciona-se também com o controle
deste importante eixo de comunicação
na sua passagem do Côa, surgindo, do
lado português, com um desenvolvi-
mento paralelo ao de Castelo Rodrigo.
Uma primeira tentativa de povoamento
do local por volta de 1191 ficou registada
na carta de foral concedida nesse ano,
aos “homens que quizessem habitar
em Pinhel”, pelo prior do Mosteiro da
“Ermida de Santa Maria de Riba Paiva”,
com o consentimento do Rei. O reforço
desta iniciativa privada, mas sobretu-

Pinhel, JR
do o assegurar do controle régio sobre
a mesma, levou D. Sancho I a conceder
novo foral em 1209 aos “povoadores de
Pinhel”, no mesmo ano em que, do ou-
tro lado do Côa, em Castelo Rodrigo, o
rei de Leão Afonso IX delimitava o ter-
mo e concedia “o melhor foro que os
seus povoadores escolhessem”.
A D. Dinis se deve a confirmação do
foral em 1282, parecendo ter tido forte
intervenção na vila onde se deslocou
em 1285 e em 1313. Precocemente, de-
senvolveu-se um arrabalde em expan-
são onde, em 1320-21, se localizavam 6
das suas 9 igrejas paroquiais. As fortifi-
cações da vila mostravam, nos últimos
séculos da Idade Média, um castelo e
um muro de cerca de robusta fábrica
gótica. No Numeramento de 1527 a vila
intramuros mantinha um elevado nú-
mero de moradores, com 152 famílias,
número no entanto quase igualado
pelo do arrabalde, que contava com
Episódio 2
136. Um percurso muito diferente do
que conhecia a vila de Castelo Rodrigo,
do outro lado do rio Côa.
À vista de Almeida, preparamo-nos
para um outro episódio desta nossa
viagem, que nos transporta para uma
outra dimensão da fronteira.
AA
No Rol das Igrejas de 1320-21 são mencionadas nove igrejas:
três situavam-se intramuros (Santa Maria do Castelo, S. Mar-
tinho e S. Tiago), distribuindo-se as restantes pelo arrabalde
(Santo André, São Pedro, Santa Maria Madalena, São João,
São João do Seixo e São Salvador). Atualmente, apenas se
conservam algumas daquelas igrejas medievais, a que os sé-
culos XVII e XVIII acrescentaram dois edifícios conventuais.
Para além de vários solares urbanos, preserva-se a antiga
Casa da Câmara, transformada em Museu Municipal. A vila
de Pinhel foi elevada a sede de bispado em 1770, datando do
final desse século a construção do Paço Episcopal situado já
na periferia do arrabalde antigo.
43
3 Episódio 3
Estrelas de fronteira:
Almeida, Fuerte de La
Concepción e Ciudad
Rodrigo
A nossa estada em Almeida revela-
nos uma vila impregnada por sécu-
los de acontecimentos militares.
A vila acolhe-nos bem e leva-nos
num percurso de visita, pelas ruas e
praças, após transpormos as portas
duplas de S. Francisco. Passamos
pelo Picadeiro d’El Rei e pela Casa da
Roda dos Expostos, até culminar nas
Casamatas, que albergam o Museu
Histórico Militar.
Almeida, AA
44
Aqui perto, na Fonte Santa, local de
águas termo medicinais, o Côa dá-nos
paisagens de raro equilíbrio. Mas a pa-
catez destas terras esconde um denso
passado que agora vamos descobrir.
Os episódios bélicos em que Por-
tugal se viu envolvido com Castela no
final do séc. XIV, mostram como se ti-
nham tornado de enorme importância
estratégica a vila de Almeida e a entrada
fronteiriça que esta controlava, e a que
se opunham, do outro lado da fronteira,
as fortificações de Ciudad Rodrigo.
Entre 1372 e 1396 contam-se pelo me-
nos sete grandes entradas de exércitos
entre Almeida e Ciudad Rodrigo, através
do passo fronteiriço de Vale da Mula. Em
1385, seria precisamente a partir de Ciudad
Rodrigo, por Vale da Mula e Almeida, que
teria lugar a marcha de D. João I de Castela
até aos campos da Batalha de Aljubarrota,
não longe de Leiria. Este passo fronteiriço
estava então diretamente relacionado com
a passagem da barca do rio Côa, não exis-
tindo ainda a ponte que só mais tarde se
veio a construir.
Os séculos seguintes não deixariam
de acentuar a importância desta região
como passo fronteiriço, pelo que Almei-
da seria a vila escolhida em 1506 por D.
Manuel I para a construção de um caste-
lo completamente novo, mais adapta-
do às exigências bélicas da altura, e do
qual se conservam atualmente apenas
os fundamentos e os profundos fossos.
A Guerra da Restauração da inde-
pendência aprofundaria ainda mais o
caráter aguerrido da região. Durante
os anos de 1661 a 1664 tiveram aqui lu-
gar as operações do Duque de Osuna
no comando das tropas espanholas, a
quem se deve a iniciativa de construir
uma fortificação junto da Aldea del
Obispo, frente a Vale da Mula, e pouco
distante de Almeida. Entre dezembro
e fevereiro de 1663, uma concentração
de 3500 homens ergueria o primeiro
Real Fuerte de la Concepción, de plan-
ta quadrada, com um baluarte em cada
ângulo e fosso, construído apenas com
terra e madeira. Esta fortificação seria
porém abandonada e destruída logo
em outubro de 1664.
Entretanto, as intervenções realiza-
das pelos engenheiros portugueses en-
tre 1661 e 1695, transformariam Almei-
da num imenso quartel militar com
Episódio 3
fortificações do novo tipo, construídas
segundo o sistema abaluartado. Ainda
por terminar, a obra sofreria uma com-
pleta reconstrução e redefinição após o
desastre ocasionado pela explosão do
castelo manuelino na última daquelas
datas. As intervenções prosseguiriam
depois ao longo das primeiras déca-
das do século XVIII, completando o
complexo de fortificações e estando
também na origem dos mais impor-
tantes edifícios erguidos no interior
das muralhas e ainda duradouros: o
palácio-sede do Governo Militar, o an-
Almeida, AA
tigo Quartel de Artilharia, os Paços do
Concelho, o antigo Quartel de Infanta-
ria e a Igreja e Hospital da Misericórdia.
Frente à máquina militar em que
Almeida se havia transformado, é
decidida, no reinado de Filipe V, a re-
construção do Fuerte de la Concep-
ción, iniciando-se a obra em 1736.
45
A construção deu origem a três cor-
pos estruturantes: O Fortim de São
José, o Quartel de Cavalaria e o Corpo
Principal. O primeiro é um edifício de
planta trapezoidal, com fosso e muros
defensivos, que se implanta sobre a
única elevação vizinha, e de onde era
possível aos sitiantes disparar sobre
o Corpo Principal. Estes dois corpos
estão ligados por um Caminho Co-
berto, com cento e cinquenta metros
de comprimento, e por onde se podia
transitar sem perigo de ser atingido
pelo fogo inimigo. Sensivelmente a
meio daquele percurso situa-se o Quar-
tel de Cavalaria, constituído por um
pavimento semi-enterrado para alber-
gar os cavalos, e outro superior para os
homens. O Corpo Principal compõe-se
de uma construção quadrada com um
baluarte em cada ângulo, no centro do
Fuerte de La Concepción
O Real Fuerte de la Concepción está a ser reabilitado, desde
fevereiro de 2010, com o objetivo de nele se instalar um hotel
de quatro estrelas e sessenta quartos dotado de SPA, museu
de sítio e centro cultural. Com conclusão prevista para dezem-
bro de 2012, o projeto assume um caráter de reversibilidade
através da construção de um pavimento técnico elevado que
acolherá as infraestruturas. Parte dos edifícios que apresen-
tam um estado mais avançado de ruína serão apenas consoli-
dados e transformados em áreas descobertas e de lazer.
46
qual se situa um grande pátio. Fazem
ainda parte do conjunto de disposição
estrelada quatro revelins e o fosso com
quatro metros de profundidade, tudo
rodeado e envolvido por um sistema
defensivo de parapeitos, formando
dezasseis ângulos ocultos pelo terreno
disposto artificialmente em pendente
ligeira e ondulada, o que dificultava a
precisão do fogo atacante.
No decurso da terceira invasão fran-
cesa, entre julho e agosto de 1810, uma
série de dramáticos acontecimentos
acarretariam a destruição violentíssima
das duas estruturas militares. O Forte
seria dinamitado e inutilizado pelas
tropas luso-inglesas diante do avanço
francês que, tendo sitiado a fortifica-
ção de Almeida, a faria arrasar quase
completamente, quando duas bombas
foram cair no paiol da pólvora instalado
no antigo castelo manuelino.
O passo fronteiriço de Vale da Mula,
enquadrado e protegido de ambos os la-
dos por complexas estruturas militares
abaluartadas, conduzia, do lado espa-
nhol, a Ciudad Rodrigo, como hoje o faz
a auto-estrada A25, cruzando a antiga
fronteira mais a Sul, em Vilar Formoso.
Na nossa passagem por estas ter-
ras fronteiriças falaram-nos de histó-
rias e de pessoas que daqui partiram
e deixaram marcas, quer na esfera
económica – caso do Sr. Álvaro Matias
que, nascido em Vale da Mula, se tor-

Aldea del Obispo, JR
nou em Lisboa o empresário dos re-
buçados Dr. Bayard – quer no mundo
intelectual – caso de Eduardo Louren-
ço, um dos mais proeminentes pensa-
dores portugueses contemporâneos,
nascido em São Pedro de Rio Seco, 10
km a Sul de Almeida.
Mas a história recente destas al-
deias raianas, em tempos de ditadura,
lembra-nos a passagem clandestina
da fronteira - nem sempre com suces-
so -, por emigrantes que procuravam
melhor vida fora de Portugal. Diz-nos
um casal de idosos, sentados num
banco que ladeia a rua, em Vale da
Mula, que por aqui o contrabando era
parte da vida de muita gente, que iam
à Aldea del Obispo e a outros lugares
próximos comprar açúcar, café, petró-
leo, panos, azeite e mesmo pão. “Os
guardas uma vez mataram a tiro um
dos contrabandistas, que pela calada
da noite passava para cá”, diz-nos o
Sr. Chico Paula, notando-se a emoção
Episódio 3
de recordar este momento por muitos
anos marcado na aldeia.
Entre um lado e outro da fronteira
desenvolveu-se uma ligação estreita
das gentes do Vale da Mula e da Aldea
del Obispo. Frequentavam mutua-
mente as festas aldeãs e chegaram a
construir juntos, na década de oitenta
do século XX, uma pequena ponte tos-
ca em pedra que atravessa a ribeira de
Tourões, mesmo contra a vontade das
autoridades. Ouvimos falar da histó-
ria de um pastor que contrabandeava
com frequência ovelhas, transgredin-
do a fronteira, e que um dia viu partir
uma filha enamorada por um espa-
nhol; hoje, ela trabalha em Almeida e
vive com o marido e os filhos em Al-
dea del Obispo.
Nestas terras da raia são muitos os
episódios do passado que descobrimos
em cada lugar que visitamos: aqui, tam-
bém as pedras contam histórias, com-
pondo estrelas guardadoras de fronteiras.
47
 Ciudad Rodrigo, JR
Ciudad Rodrigo:
baluarte da fronteira
Ciudad Rodrigo, que era apenas uma
aldeia do limite de Salamanca, emerge
como pólo urbano e fortificado na se-
gunda metade do século XII, ladeada
pela Cidade da Guarda, do lado portu-
guês. A repovoação leonesa de Ciudad
Rodrigo em 1161 foi levada a cabo sobre
uma zona periférica, ainda que habita-
da desde tempos imemoráveis, como
reflectem os dólmens de Pedrotoro,
anexo a Ciudad Rodrigo, datados de
finais do Neolítico (IV milénio a.C.). O
objectivo era fazer frente ao avanço por-
tuguês, mas também ao dos Almóadas,
que assediaram a cidade em 1167.
A condição de baluarte fronteiriço
foi uma componente importante da
48
sua identidade, usada pelos seus cava-
leiros para legitimar os privilégios den-
tro da monarquia leonesa. O contexto
baixo-medieval, em que os conflitos se
multiplicaram e intensificaram, levou
a que essa identidade fronteiriça se
reforçasse e que fosse partilhada pelos
concelhos do outro lado da raia.
Na Época Moderna, especialmente
após a Guerra da Independência portu-
guesa (1640-1668), quebra-se essa apa-
rente harmonia e a fronteira alcança
um alto grau de militarização por ser
porta de entrada em Portugal. A cons-
trução de fortes em estrela, como os
que se mantêm em Ciudad Rodrigo e
o Fuerte de la Concepción, um pouco
mais a norte, mas também em Almei-
da, são vestígios ainda visíveis da con-
flitualidade fronteiriça.

Testemunho deste novo clima vem
do mosteiro de la Caridad, fundado em
1171 na localidade de Sanjuanejo, 4 qui-
lómetros a sul de Ciudad Rodrigo, que
pode atualmente ser visitado. Os mon-
ges deixaram memória do conflito
bélico do século XVII, no qual tiveram
que tomar armas, e também da ocupa-
ção portuguesa de Ciudad Rodrigo no
início do século XVIII, no contexto da
Guerra da Sucessão.
A guerra foi uma componente im-
portante da identidade fronteiriça
mirobriguense até meados do século
XX. Mas a fronteira também trouxe
consigo múltiplas relações económi-
cas e pessoais entre os habitantes de
um lado e do outro da raia, promo-
vendo a vizinhança, apesar dos dis-
tintos contextos.
Episódio 3
As muralhas da cerca e o castelo,
construídos na Idade Média e ainda
hoje observáveis, deram lugar, na Épo-
ca Moderna, a novas e imponentes
fortificações abaluartadas, cuja expli-
cação se pode encontrar no Centro de
Interpretação da Rota das Fortificações
instalado pela Fundación del Patrimonio
Historico de Castilla y León no Corpo da
Guarda da Porta do Conde. Daqui o vi-
sitante acede ao exterior das muralhas
medievais no Passeio de Fernando Ar-
rabal, convertido em Passeio das Guar-
nições, animado com figuras, imagens
e sons que recriam o ambiente bélico
do passado. A visita pode depois ter-
minar no Corpo da Guarda de São Pe-
layo, onde se assiste à projeção de um
audiovisual sobre a história da região e
das suas fortificações.
49
4 Episódio 4 orientação Sul/Norte. Esta localização,
numa área relativamente próxima do
Sítio Arqueológico extremo ocidental da atual Província
de Siega Verde de Salamanca, num vale paralelo ao
vale do Côa, confere ao sítio uma re-
Com algumas características similares, mas lativa similitude, particularmente por
também com algumas dissemelhanças, Siega
Verde e o Vale do Côa são atualmente os dois
mais importantes sítios decorados com arte
paleolítica ao ar livre na Europa ocidental. (11)
Jose Javier Fernández Moreno
e António Martinho Baptista, 2010

A nossa viagem entra agora num novo

episódio que nos leva a terras de Espa-
nha. Passada a fronteira, adiantamos
os relógios uma hora e, à vista da Aldea
del Obispo, percorremos paisagens de
planura cerealífera e de largas pasta-
gens com gado bovino, intercaladas
por montados esparsos.

Lumbrales, JR Rio Àgueda, Siega Vede, PG

O conjunto rupestre de Siega Ver- ambos terem certamente sido habitats

de está situado num pequeno trecho de manadas de várias espécies de ani-
do vale do Águeda, afluente do Dou- mais que serviram de base alimentícia
ro, que corre, como o Côa, com uma aos caçadores do Paleolítico.

50
 A estação arqueológica integra um
conjunto de algumas dezenas de
rochas com 645 gravuras, das quais
446 são figurativas e estão datadas
da segunda metade do Paleolítico
superior.
Este foi um espaço repetidamente
frequentado por caçadores, que dei-
xaram nas rochas representações ar-
tísticas de animais caçados: equídeos,
bovídeos, capríneos e cervídeos. Há
aqui um número apreciável de gravu-
ras (165) esquemáticas ou geométricas,
e 34 são indeterminadas.
A descoberta
e estudo de Siega Verde
Foi no decurso de prospeções arque-
ológicas desenvolvidas por Manuel San-
tonja Gómez e Rosario Pérez Martin que,
em 1988, foram descobertas as primeiras
gravuras rupestres em Siega Verde.
Criou-se um grupo de prospeção
e estudo sistemático deste trecho do
vale, coordenado por Rodrigo de Bal-
bin Berhmann, entre 1989 e 2005, que
empreendeu um vasto programa de
investigação, tendo dado a conhecer
um espaço com longa frequência du-
rante o Paleolítico.
Sigamos a experiência de investi-
gação em Siega Verde nas palavras de
Rodrigo de Balbin Behrmann (Catedrá-
tico de Pré-História – Universidade de
Alcalá de Henares).
Antes de trabalhar no sítio arqueológico de
Siega Verde, já conhecia o cavalo de Mazouco e
Episódio 4
tinha trabalhado na documentação prévia de
Domingo García, pelo que estava familiarizado
com a Arte Paleolítica ao ar livre. Previamente,
tinha também investigado em sítios arqueoló-
gicos de arte rupestre em gruta, dentro da Me-
seta castelhana e no Cantábrico, em sítios ar-
queológicos como Los Casares, La Hoz, El Niño,
La Pasiega, Los Emboscados ou Tito Bustillo.
Explico isto porque a arte ao ar livre não
é mais do que uma manifestação externa da-
quilo que está a ser produzido nas cavernas, e
o nosso enfoque foi esse desde o início do estu-
do de Siega Verde, em 1989.
Inicialmente realizamos a prospeção na
companhia do descobridor do sítio, Manuel
Santoja, e tivemos a sorte, que às vezes acon-
tece nestes trabalhos, que foi encontrar novas
figuras desde o começo. Não é que uma inves-
tigação seja motivada pela descoberta pura
de novas formas, mas a descoberta dá ânimo
para seguir adiante e acrescenta um aliciante
que se agradece.
Estivemos no terreno em todas as esta-
ções do ano, com frio, calor e com colaborado-
res distintos, em jornadas longas e complexas,
nas quais pensávamos e víamos muito. O
nosso modelo de arte em gruta ia funcionando
e adaptando-se à nova realidade.
Foi um caminho longo, acelerado como
no teatro clássico na hora do desenlace e
51
com um final feliz, muito feliz, com o qual
não nos tínhamos atrevido a sonhar quando
iniciamos as nossas investigações. Estamos
a começar a conhecer o que comunicavam os
nossos antepassados nos seus grafismos ao
ar livre, em poucos anos aprendemos muito,
e nos próximos aprenderemos ainda mais.
Siega Verde contribuiu fundamentalmente
para esse processo.
A arte dos caçadores
paleolíticos em Siega
Verde
A montante e a jusante da ponte de
La Unión, numa extensão que pouco
excede mil metros, encontram-se gra-
vuras em rochas xistosas, na sua gran-
de maioria com motivos zoomórficos,
Ponte de La Unión, Siega Verde, PG
52
mas onde estão também presentes al-
guns signos de tipo geométrico e/ou
abstrato. As representações zoomór-
ficas figuram as mesmas espécies de
animais que estão presentes no Vale
do Côa e que são fundamentalmen-
te os bovídeos (auroques), equídeos,
capríneos e cervídeos, os quatro gran-
des herbívoros que constituíam a fau-
na de maior porte típica da região no
final dos tempos glaciares.
Todas as rochas gravadas estão lo-
calizadas apenas na margem esquer-
da do Águeda, onde as águas fluviais
rasgaram e bolearam ao longo de mi-
lhares de anos as superfícies grauvá-
quicas, que ali se agrupam em largas
bancadas, formando painéis alisados
aptos à gravação.
 A maior parte das gravações foram
obtidas por martelagem das superfí-
cies xistosas (gravuras picotadas), mas
há também outras incisas, de tipo fili-
forme (traço finos), obtidas com inci-
sores mais afiados, como sejam os uti-
lizados a partir do sílex, do quartzo ou
até da quartzite. As gravuras obtidas
com esta técnica são as de mais difícil
visualização atualmente, requerendo-
se sempre o apoio de levantamentos
em desenho para melhor serem perce-
cionadas pelos visitantes.
As representações que aqui se con-
servam e que estão datadas do Paleolí-
tico superior, revelam uma forte afini-
dade temática e estilística, quer com al-
guns dos motivos do Vale do Côa e com
os de outros sítios com arte paleolítica
Siega Verde, PG
de ar livre, como as gravuras do Poço do
Caldeirão no rio Zêzere, mas também
com muitas das representações artísti-
cas parietais encontradas em grutas na
região franco-cantábrica. Há em Siega
Verde uma fase mais antiga, bem pa-
ralelizável com os motivos do período
antigo mais abundantes no Vale do Côa
(fase Gravetto-Solutrense, caracteriza-
da pela maior presença de picotagens
profundas e com motivos de maiores
Episódio 4
dimensões) e outra mais recente, tam-
bém com picotagens, que revelam al-
guns pormenores estilísticos, como a
modelagen ventral em M assinalada no
interior do corpo dos equídeos(12), uma
característica comum em Siega Verde e
apenas pontual no Vale do Côa.
O melhor conhecimento que hoje
se tem da evolução estilística das fases
paleolíticas do Vale do Côa, permite-nos
agora também caracterizar melhor a
própria evolução de Siega Verde no tem-
po longo paleolítico, nomeadamente a
sua aparentemente última fase de gra-
vação, com alguns motivos atribuíveis
Siega Verde, PG
aos tempos finais do Paleolítico supe-
rior (período tradi-glaciar, e ao qual al-
guns arqueólogos já chamaram estilo V,
utilizando a clássica sequência estilísti-
ca de André Leroi-Gourhan para a arte
Franco-Cantábrica). É o caso da presen-
ça de representações incisas em grava-
53
do simples ou mais vulgarmente múl-
tiplo ou estriado, muito abundantes no
Côa, particularmente junto à sua foz, e
hoje relativamente bem datados arque-
ologicamente a partir do aparecimento
em contexto da arte móvel do Fariseu
(margem esquerda do Côa). Também
em Siega Verde há algumas representa-
ções incisas eventualmente deste perí-
odo (Magdalenense final), contando-se
mesmo entre elas algumas das mais be-
las figuras zoomórficas do sítio.
Não havendo em Siega Verde uma
tão grande quantidade de gravuras
como as que existem no Vale do Côa, os
dois sítios complementam-se, forman-
do os dois principais “lugares de agre- Siega Verde, PG

gação” das comunidades de caçadores-

recoletores que nos últimos milénios
do Paleolítico superior ocuparam esta
vasta região do interior peninsular.

Uma experiência de
visita a Siega Verde
A nossa viagem leva-nos pelas pla-
nuras da raia leonesa, passando por
vários lugares — Aldea del Obispo e o
Real Fuerte de la Concepción, Vilar de
Ciervo, Vilar de la Yegua e, já no cami-
nho para Ciudad Rodrigo, Castillejo
de Martin Viejo — que nos revelam
paisagens e um património edifica-
do expressivo, com histórias para nos
contar, desde os tempos de lutas pelo
Centro de interpretação de Siega Verde, PG
controlo do território, ao período do
contrabando, que viu chegar e partir
muitos portugueses vindos das terras
da raia, entre Côa e Águeda.
Junto à passagem do Águeda, na
ponte de La Unión, chegamos ao Centro
de Interpretação de Siega Verde, uma es-
trutura de receção e interpretação da arte
rupestre paleolítica aqui conservada.

54

Siega Verde, PG
Na pequena sala que serve de palco
a uma projeção audiovisual, percebe-
mos que Siega Verde e o Vale do Côa são
espaços monumentalizados pelos caça-
dores paleolíticos, em dois ciclos com
longa presença nestes dois sítios — e fa-
lamos de milhares de anos — apesar do
ciclo de gravação ser muito mais amplo
no Vale do Côa.
São visitáveis em Siega Verde ape-
nas 14 painéis gravados, dos 90 que se
identificaram até ao momento. Existem
dois percursos de visita, próximos entre
si. Um que integra cinco painéis, visita
que dura habitualmente 30 minutos, e
outro, que tem de ser necessariamen-
te marcado com antecedência, que é
Episódio 4
mais longo e abrange os 14 painéis vi-
sitáveis. A visita é acompanhada por
um guia especializado, à semelhança
do que ocorre no Vale do Côa, faltando
apenas, por ser desnecessário, o recurso
ao todo-o-terreno. O sítio de Siega Verde
fica próximo da estrada onde os visitan-
tes estacionam a sua própria viatura, e
a dimensão do percurso arqueológico é
adequada a uma visita apenas pedestre.
Acompanhados por Carlos Marcos,
arqueólogo, que nos guia na visita,
atravessamos a estrada que nos trouxe
e descemos por um trilho para a obser-
vação de várias rochas onde descobri-
mos as similitudes e particularidades
de diferenciação de Siega Verde no
55

Siega Verde, PG
contexto da arte rupestre paleolítica.
Visitas como esta que fazemos podem
integrar, como máximo, 20 pessoas.
É no painel 5, o primeiro a visitar no
percurso mais curto, que observamos
uma gravura de um grande auroque
(bovídeo, antepassado do atual boi)
que poderia ser visto a maior distân-
cia, eventualmente até da margem
contrária do Águeda. Nas rochas que
se localizam a montante da ponte da
La Unión, observamos interessantes
representações, designadamente a de
um grande cervídeo com a cabeça vol-
tada para trás, já no painel 7. O nosso
56
guia leva-nos do painel 5 até ao 9, rotei-
ro usual para quem não marcou com a
necessária antecedência a sua vinda.
Tal como no Vale do Côa, também
aqui são oferecidas pontualmente
algumas visitas noturnas, que cons-
tituem experiências excecionais pelo
efeito de contraste que a luz rasante
tem nas gravuras, dando-lhes uma di-
mensão mágica. Estas visitas, inicia-
das há alguns anos no Vale do Côa, e
apenas ao núcleo da Penascosa, repli-
cam o ambiente criado nas longas noi-
tes de estudo e decalque da arte rupes-
tre pelos arqueológos e desenhadores
que têm vindo a revelar ao mundo esta
arte pré-histórica.
Terminada a nossa visita, ruma-
mos a Ciudad Rodrigo, onde nos insta-
lamos para um merecido repouso e re-
cuperar energias para descobrir o velho
burgo medieval no dia seguinte.
 JR

À descoberta

57
Lumbrales y la Ruta de los Castros y Verracos
 Corgo Inferior Corgo Superior Douro Superior

In vino veritas -
Douro Superior
É de facto surpreendente verificar que
o concelho de Vila Nova de Foz Côa não
integra apenas um património Mun-
dial, o da arte rupestre do Vale do Côa,
mas também o Alto Douro Vinhateiro,
classificado pela UNESCO em 2001 pela
sua magnífica paisagem moldada pelo
Homem até aos nossos dias, formando
uma extraordinária obra de arquitetu-
ra paisagista à escala de uma região.
A produção de vinho no Douro re-
monta há 2.000 anos, mas foi no sécu-
lo XVIII, com a criação da Companhia
Geral da Agricultura das Vinhas do
Alto Douro, pelo alvará régio de 10 de
Região Demarcada do Douro
setembro de 1756 do governo de Se-
bastião José de Carvalho e Melo, futu-
ro Marquês de Pombal, que se inicia
o processo de demarcação da atual
Região Demarcada do Douro e o conse-
quente controle da produção do famo-
so Vinho do Porto, e mais recentemen-
te vinho do Douro.
Atualmente a Região Demarcada
do Douro divide-se em três sub-regi-

Paisagem vinhateira do Douro Superior, JR

58
ões: Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro
Superior. A primeira, onde tudo come-
çou, a segunda, o “Douro das famosas
Quintas” e do esplendor da arquitetura
vinhateira, a terceira, a mais recente, e
onde a paisagem se torna mais árida e
a natureza ainda nos espanta.
Na área relativa ao Douro Superior
calcula-se que desde o período roma-
no se produz vinho, porém, a produção
agrícola assentava na sua maioria na
produção cerealífera, constituindo a
base alimentar destas populações ru-
rais. No entanto, outras culturas foram-
se alastrando progressivamente como a
oliveira e a amendoeira, ainda hoje bem
presentes na paisagem, dando origem a
produtos da terra de alta qualidade, e a
vinha, que inicia a sua expansão nos fi-
nais do século XVIII com o rebentamen-
to do Cachão da Valeira, um maciço gra-
nítico na zona de S. João da Pesqueira,
permitindo assim a navegabilidade do
rio Douro até Barca D’Alva.(13)
No inicio do século XIX a família Fer-
reira teve um papel fundamental na com-
pra e fundação de quintas pioneiras no
Douro Superior, como a Quinta do Vesú-
vio e a Quinta de Vargelas, sendo poste-
riormente impulsionadas por uma das
figuras mais emblemáticas do Douro, D.
Antónia Adelaide Ferreira. No ano de 1887,
já com 76 anos e um império e prestígio
alcançados, a “Ferreirinha”, aventura-se
na construção da quinta que viria a ser
In vino veritas - Douro Superior
Quinta Vale Meão, VM
um modelo para a região – a Quinta do
Vale Meão. As condições estavam reuni-
das: o rio era já navegável, a linha de com-
boio do Douro foi acrescentada até Barca
D´Alva, o limite da área demarcada foi
alargado até ao Douro Superior.
É também de referir a grande praga
de filoxera (inseto que se alimenta da
seiva da vinha) que assolou a região vi-
nhateira, que foi mais precoce e violenta
no Cima Corgo, valorizando-se assim o
Douro Superior, juntamente com a capa-
cidade de resistência desta área vitícola
perante o oidium (doença fúngica).
E mãos à obra! Estiveram mais de
mil jornaleiros a trabalhar na cons-
trução da quinta, sendo a dimensão
da obra de tal forma que se justificou
a construção de um hospital privati-
vo. Em 1890 começa-se a plantar uma
59
variedade de videira americana imune
à filoxera, introduzida por Joaquim
Pinheiro de Azevedo Leite Pereira, na
qual enxertou as castas portuguesas.
Outra inovação vitícola foi a utiliza-
ção de esteios de xisto extraídos da
pedreiras do Poio em Vila Nova de Foz
Côa, que suportavam arames por onde
as videiras cresciam ordenadamente.
No ano de 1896 é anunciada a morte
de D. Antónia Adelaide Ferreira, recor-
dada como uma mulher de coragem e
visão empresarial ímpar, mas também
como uma mulher generosa e solidária
com as gentes do Douro, deixando um
imenso legado. (14)
Foi esta mesma Quinta que deu ori-
gem, em 1952, ao mítico vinho “Barca Ve-
lha”, do visionário enólogo Fernando Ni-
colau de Almeida, então diretor técnico
e provador da Casa Ferreira. Até então os
vinhos do Douro eram associados exclu-
sivamente ao género de vinho do Porto,
mas o pioneiro enólogo, após conhecer e
estudar outras regiões vinhateiras, como
Bordéus, Borgonha e Rioja, acreditou que
a Quinta do Vale Meão tinha as condições
ideais para a criar o primeiro grande vi-
nho de consumo no Douro. O resultado é
um sucesso definitivo, sendo ainda hoje
o mais conceituado vinho nacional. Ini-
cia-se assim uma nova etapa no Douro,
mais concretamente no Douro Superior,
que vem revolucionar toda a perspetiva
vitivinícola: a potencialidade do terroir
60
Qta. Vale Meão, VM
desta região para a criação de vinhos de
mesa durienses, abrindo assim o espetro
comercial desta indústria. Atualmente a
quinta é propriedade da Olazábal e Filhos
Lda., liderada pelo trineto da “Ferreiri-
nha”, Francisco Javier Olazabal, cujos vi-
nhos honram a tradição e inovação sem-
pre presentes nesta quinta.
Mas havia ainda muito por fazer e
o Douro Superior continuava a não ter
uma representação significativa em ter-
mos de área de vinha plantada. Eis en-
tão que João Nicolau de Almeida, filho
de Fernando, criador do já mítico vinho
Duas Quintas, é desafiado pelo seu tio,
José António Rosas Ramos Pinto, então
administrador da casa Ramos Pinto, a
realizar o projeto de viticultura para a
Quinta de Ervamoira, em 1976. Os terre-
nos tinham já sido adquiridos em 1974
por José Ramos Pinto, que depois de
uma exploração incansável, encontrou
finalmente na Quinta de Santa Maria
(nome original) o terreno ideal para a
implantação de uma quinta moderna.
Assim sendo, o jovem enólogo João, aca-
bado de chegar de Bordéus, inicia o estu-

Quinta da Ervamoira, Rio Côa, AMB
do das castas da região, as suas proprie-
dades e afinidades com porta-enxertos.
Até então, na mesma vinha coexistiam
uma série de variedades de castas. De
entre as 80 castas de uvas tintas e bran-
cas identificadas, acabou por selecionar
o que são ainda hoje as cinco castas tin-
tas selecionadas do Douro, tanto para
vinho de mesa como do Porto: Touriga
Nacional, Touriga Francesa, Tinto Cão,
Tinta Roriz e Tinta Barroca, e para o vi-
nho branco as castas Viozinho, Rabigato
e Arinto. Como resultado destes estu-
dos, as vinhas da Quinta de Ervamoira
foram plantadas em talhões divididos
pelos tipos de casta, pela primeira vez.
Outra inovação foi o modo de plantação:
a vinha ao alto, que permite uma melhor
mecanização dos trabalhos na vinha e
uma maior densidade de plantação.
A Quinta de Ervamoira é hoje uma das
quintas de referência do Douro Superior,
não só pela inovação que trouxe à região,
In vino veritas - Douro Superior
mas também pelo casamento entre o vi-
nho, turismo e arqueologia, dispondo de
um Museu de Sítio, onde após a visita se
pode desfrutar de uma refeição inesquecí-
vel perante uma paisagem única.
Hoje, a sub-região do Douro Supe-
rior é palco de uma série de projetos
inovadores reconhecidos internacio-
nalmente, que conciliam a tradição e a
inovação. As novas gerações de enólo-
gos, que ao contrário do passado hoje
vivem na região, procuram avidamen-
te transmitir nos seus vinhos este ter-
roir único. À Vossa!
Quinta da Ervamoira, JR
61
 Arqueologia
de Freixo de Numão
Ao chegarmos a Freixo de Numão visi-
tamos a Casa Grande, um solar barroco
do século XVIII, que alberga um museu
de arqueologia e etnologia, integrado
na Rede Portuguesa de Museus e que
nos desperta para um circuito de des-
coberta da romanização do território
que nos envolve. Recebe-nos António
do Nascimento Sá Coixão, presidente
da ACDR de Freixo de Numão, que gere
o Museu e sítios arqueológicos.
À conversa
com Sá Coixão
Em 1980 havia aqui muita juventude, mui-
tos estudantes, sei lá...havia muita imagi-
nação na altura, hoje há menos. Começámos
a juntar-nos, a tomar consciência do patri-
mónio arqueológico...e um dia, numa mesa
de café, decidimos formar uma associação
cujo principal objetivo era precisamente a
defesa e preservação do património. Tudo na
luta pelo património!
Em 1980 fizeram-se as primeiras son-
dagens com o apoio da Faculdade de Letras
do Porto, começou-se a fazer a prospeção do
património arqueológico. Quando come-
çámos a escavar as pessoas perguntavam
– e então o tesouro, já apareceu? Ninguém
acreditava nos calhaus, achavam que an-
dávamos atrás do oiro...é preciso ter muita
62
coragem para não desistir, achavam que
éramos doidos.
O certo é que tinhamos de fazer inves-
tigação e criar um museu, aquilo era quase
uma utopia! Conseguimos o apoio da Câ-
mara para a compra do solar, e começámos
a trabalhar no projeto do museu de Arque-
ologia. Começámos a criar equipas, para a
área da pré-História ficou a Susana e Vitor
Oliveira Jorge, mais malta da Universida-
de do Porto, de Coimbra, e até hoje nunca
deixamos de ter campanhas de escavação
no verão, para as quais temos uma série de
protocolos com Universidades nacionais e
estrangeiras.
Em 1983, para sensibilizar a população,
fizemos no solar uma exposição de arqueolo-
gia e etnografia. A verdade é que foi um êxito
porque houve montes de gente a dizer – olha,
lá no meu prédio também tenho lá disto – e
começámos a registar uma série de sítios e a
recolher peças. Como já tínhamos um milhar
ou dois de peças de etnografia, incluímos no
espólio do Museu. Ainda hoje qualquer pes-
soa que tenha uma mala velha não deita fora
sem ir ao Museu.
O Museu que era para ser só de Arqueo-
logia, passou também a ser de etnografia e
história. Passados uns anos, eh pá, afinal a
utopia é possível de ultrapassar!
No vale do Douro verifica-se uma
intensificação da ocupação humana
do espaço, entre o IV e o III milénios
a.C., de que resultou a criação de um
grande número de novos povoados.
 Implantado num morro de xisto,
o Castelo Velho de Freixo de Numão
está ladeado por ribeiras e em posi-
ção dominante na paisagem, e tem as
suas primeiras estruturas construídas
cerca de 3000 a.C. Mas a permanência
de ocupação deste conjunto monu-
mental estendeu-se por mais de um
milhar de anos, até ao seu abandono
cerca de 1300 a.C.
Hoje, visitamos este local místico,
apoiados numa leitura arqueológica
no núcleo interpretativo e na torre de
observação que aqui recentemente fo-
Prazo, AA
ram colocados, juntamente com um
pequeno circuito sobre as ruínas.
Na estação arqueológica do Prazo,
encontramos ruínas bem preservadas
de uma villa romana com um caráter
marcadamente rústico, que teve su-
cessivas ocupações, entre os séculos I
e IV d.C.. Os vestígios iniciam-se, aqui,
no Neolítico Antigo e passam pelo
Bronze Final.
No conjunto que estrutura o sí-
tio do Prazo, identificam-se ruínas de
construções com várias funções: a par-
te urbana ou habitacional, dotada de
um edifício termal; os espaços desti-
nados ao armazenamento e moagem
Arqueologia de Freixo de Numão
de cereais e uma ferraria, entre outros.
Foi erguido aqui, posteriormente, um
templo paleocristão cuja estrutura terá
resultado, em parte, de uma reforma e
ampliação que os arqueólogos datam
do século X. Este templo tem planta re-
tangular e é dotado de três naves e ca-
pela-mor, tendo reutilização de bases,
fustes e capitéis de colunas romanas
decorativos.
Rumansil, JR
Ali perto, no Rumansil, villa rústi-
ca de ocupação romana entre os sécu-
los I e IV d.C, encontram-se vestígios
que sugerem ter aqui existido uma
unidade agrícola próspera, que con-
jugava um núcleo habitacional com
uma segunda estrutura, de suporte
aos trabalhos de artífice e funções
de apoio, como moagem, celeiro, la-
gareta e lagar de vinho, fundição de
chumbo, ferreiro, tecelagem e arma-
zenagem.(15)
63
 A Comenda
de Longroiva
e a vila de Marialva
Longroiva e Marialva constituíram os
centros de dois territórios contíguos,
cuja história medieval e moderna con-
solidaram distinta identidade.
O castelo e a antiga vila de Lon-
groiva, centrados sobre um afluente
do rio Côa, dominavam o passo entre
as terras altas dos planaltos e as terras
da Veiga, tendo sido no interior do pri-
mitivo termo daquele castelo que se fi-
zeram depois povoar a Meda, hoje sede
de concelho, e Muxagata, hoje fregue-
sia do concelho de Foz Côa. A Ordem
Longroiva, JR
64
do Templo, na posse deste território
desde os meados do séc. XII, e poste-
riormente a Ordem de Cristo, procu-
raram valorizar a sua vocação pastoril,
pela alternância que permitia, entre os
pastos de inverno, nas terras baixas, e
os pastos de verão, nos planaltos. Era
então cabeça de uma Comenda, na
qual se incluíam Muxagata e a Meda, e
de que o topónimo Chão d’ Ordem, de
atual quinta, guarda memória.
Foi em 1145 que Fernão Mendes Bra-
ganção e sua mulher, D. Sancha Hen-
riques, doaram à Ordem do Templo
o Castelo de Longroiva, o qual dizem
haver povoado na Extrematura entre os
Castelos de Numão e Marialva. Esta comu-
nidade, que surge já referenciada em
960, viu-se assim incluída no senhorio
da Ordem do Templo, a quem se deve a
construção do castelo. Com efeito, na
fachada poente da torre de menagem
existe uma inscrição que data a sua
construção de 1176, sendo Mestre da
Ordem do Templo Gualdim Pais.
O território alti-medieval desta co-
munidade, centrado sobre o curso da
Ribeira dos Piscos ou das Centieiras,
incluía as terras baixas — da Veiga e de
Muxagata — e as terras altas dos planal-
tos — nas Chãs e na Meda —, formando
uma unidade económica que a Ordem
do Templo procurou explorar. Os cana-
dos, topónimo aqui muito comum, re-
ferindo-se a uma encosta estreita entre

Muxagata, JR
dois montes, eram os caminhos que os
gados seguiam entre as duas zonas de
pasto, vigiados a partir de pontos altos
e destacados, as esculcas. A implantação
do castelo e da vila de Longroiva permi-
tia dominar o passo entre as terras altas
e as terras da Veiga. A Meda, situada no
planalto das terras frias, desenvolveu-
se junto de um morro rochoso - o Castelo
- que tinha as condições ideais para ser-
A Comenda de Longrovia e a Vila de Marialva
vir de vigia dos pastos de altitude. Mu-
xagata situava-se na zona dos pastos de
inverno, de baixa altitude, e foi povoada
ainda em tempo da Ordem do Templo,
que lhe concedeu carta de foral. Ainda
nos finais do séc. XVII, o Padre Carvalho
da Costa, na sua Corographia Portugueza,
fazia memória da antiga unidade for-
mada pelas três vilas afirmando todas
terem sido termo de Longroiva.
65
 Depressão de Longroiva, JR

A falha Manteigas-Vilariça-Bragança corresponde a uma

fratura NNE/SSW, originada há cerca de 300 milhões de
Marialva, que domina uma ampla
anos e ainda hoje ativa. Estende-se por cerca de 220 km, depressão agrícola, que foi o seu termo, é
separa dois blocos que se deslocaram horizontalmente en-
tre si e está na origem do abatimento e da formação de hoje uma aldeia e freguesia do concelho
uma depressão central em Longroiva, por onde hoje corre
a IP2 e se estendem campos agrícolas, em amplas veigas, de Meda, cujos restos monumentais guar-
com oliveiras e vinhedos.
A depressão da Longroiva, com um desnível de 200 m, é li-
dam a memória de um relevante passado.
mitada a leste e a sul por escarpas de falha com acentuados O principal núcleo de população está atu-
declives, onde se observam granitos, e, a oeste, do lado da
Longroiva, por vertentes menos inclinadas, compostas por almente numa área de sopé de encosta,
uma sucessão de patamares de xistos e arenitos. Podemos ob-
servar a continuidade da falha da Vilaraça desde o miradouro a que chamam a Aldeia da Devesa, onde
de Santo Amaro com o abatimento de cerca de 300 metros do
seu bloco oriental – onde está instalada a cidade de Vila Nova
surgem abundantes vestígios de época
de Foz Côa – em relação ao bloco ocidental, onde se localiza romana. Era aqui a capital dos “Aravi” um
Freixo de Numão.
O movimento de desligamento está na origem da curva que dos povos da província da Lusitânia.
o rio Douro descreve entre a foz do rio Côa, a foz do rio Sa-
bor e, mais a jusante, na longitude de Santo Amaro/ Lousa. Desconhece-se a história alti-medie-
Os sismos documentados em torre de Moncorvo em 19 de
dezembro de 1751 e 19 de março de 1858, este com uma in-
val deste lugar, e a carta de foral conce-
tensidade superior a 7 (escala Medvedev-Sponheuer-Karnik, dida por D. Afonso Henriques, entre 1157
semelhante à escala de Mercalli modificada) terão na sua ori-
gem a atividade desta falha.(16) e 1169, é um dos primeiros documentos
que faz referência à vila de Marialva. A
implantação, a meia encosta entre pe-
nedos graníticos, sobranceira ao sítio
da antiga “cidade” dos Aravi, estabelece

66
 uma nítida descontinuidade com esta,
ao mesmo tempo que parece mostrar
continuidade com um povoado anterior,
pré-existente, que foi adaptado aos mo-
dos de ser e de fazer de uma vila urbana
baixo-medieval: a transformação do cas-
telo roqueiro num castelo românico ou
gótico, a construção de um muro de cer-
ca urbana com torres adossadas, a cria-
Marialva, JR ção de três igrejas paroquiais e, já para o
final da Idade Média, a formação de um
arrabalde no exterior da cerca. Nos sécu-
los seguintes a vila mostra um padrão
de despovoamento, com o crescimento
de uma aldeia à cota baixa, para onde se
transfere a feira. Posteriormente, perde-
ria o estatuto de sede de concelho, inte-
grando-se no da Meda.
Marialva, AA

67
 Na curva do rio:
de Freixo de
Espada à Cinta a
Torre de Moncorvo
Antes da confluência com o Águe-
da, a partir da qual o Douro estabelece
a fronteira com Espanha, localiza-se o
sítio de Alva, lugar ancestral de traves-
sia do rio, a barca de Alva. A ponte de
betão, desenhada em 1955 por Edgar
Cardoso, veio substituir o barqueiro
que durante milénios havia assegura-
do aquela travessia.
O antigo itinerário que atravessa-
va o Douro na Barca de Alva vencia as
arribas do Douro através da ribeira do
Mosteiro, ligando a Freixo de Espada à
Cinta e ao Planalto Mirandês. Esse tro-
ço inicial é conhecido como a Calçada
de Alpajares. Ainda na primeira metade
do século XX era o caminho mais curto
para quem, chegado a Barca de Alva de
comboio pela Linha do Douro, se fazia
transportar no dorso de muares em di-
reção à vila de Freixo de Espada à Cinta.
Ribeira do Mosteiro, JR
68
Alva, Urros, Freixo de Espada à Cinta
e também Mós, eram pequenas comu-
nidades vizinhas, há muito aqui insta-
ladas. Na segunda metade do século
XII, por via de uma nova proximidade e
aliança com o rei de Portugal, expressa
pela concessão do foral, também elas se
integram no plano reordenador da Mo-
narquia. Porém, ao longo dos séculos
seguintes, estas comunidades conhe-
cem diferentes percursos que conduzi-
ram à transformação de uma delas, Frei-
xo de Espada à Cinta, numa populosa e
poderosa vila, ao mesmo tempo que
as outras decaíam — Urros e Mós —, ou
mesmo irremediavelmente se despovo-
avam, caso de Alva.
Porta Lateral Manuelina,
Igreja de Freixo de Espada a Cinta, AA
 Na curva do Rio: de Freixo de Espada à Cinta a Torre de Moncorvo
Dubradoura de Seda, JR

“Nestas terras nasceram amoreiras. E com a ajuda delas

se criou o bicho-da-seda cujos ovos as mulheres coloca-
vam em pequenos sacos de camurça e traziam junto ao
peito, para os proteger até ao seu nascimento (...). Depois
extraía-se o fio da seda dos casulos. O finíssimo e luxuoso
fio da seda que era também o da história das populações,
uma tradição de há séculos perpetuada nas sábias mãos
das mulheres das aldeias, o luxo numa terra aparentemen-
te agreste para quem chegava dos grandes centros onde,
afinal, essa seda era maioritariamente consumida.” (17)
Hoje apenas existe um centro de atividade sericícola em
Freixo de Espada à Cinta graças à Associação para o Estudo,
Defesa e Promoção do Artesanato de Freixo, onde se pode
apreciar o processo de fabrico da seda e adquirir têxteis to-
Igreja Matriz, Torre de Moncorvo, AA
talmente artesanais.

A primitiva cerca ovalada de Freixo Vilariça, entretanto despovoada. A ele-

de Espada à Cinta estava transformada,
no séc. XVI, num forte castelo em silha-
res de granito. Intramuros, apenas vivia
o alcaide, enquanto a população, que
constituía a terceira maior concentra-
ção populacional em Trás-os-Montes,
habitava no arrabalde a partir do largo
terreiro formado na envolvente da igre-
ja de S. Miguel. É esta dinâmica de en-
tão que ficou plasmada na arquitetura:
os vãos manuelinos, classificados como
monumento nacional, que marcam ainda
hoje a paisagem urbana.
Já Torre de Moncorvo, antes de finais
do séc. XIII era apenas uma aldeia inte-
grada no termo da vila da Santa Cruz da
vação a vila, no reinado de D. Dinis, ini-
cia uma nova etapa que a tornará uma
das mais relevantes urbes da região
duriense. Ergue-se o castelo da vila e, no
interior de um alongado muro de cerca,
instala-se um casario urbano. O castelo,
hoje completamente entulhado e trans-
formado numa plataforma elevada,
dominava o largo central, a atual Praça
da República, de onde partiam os dois
principais caminhos de saída e estru-
turadores do arrabalde. Foi num deles
que se construiu a nova igreja matriz de
Santa Maria, terminada no séc. XVII, e
cuja dimensão reflete bem a pujança da
vila e sede de comarca.

69
 Reserva
da Faia Brava
Uma iniciativa de
Biólogos e Naturalistas
Com os anos 90 do século passado, torna-
ram-se muito visíveis as ameaças sobre
algumas espécies de aves, em resultado do
abandono agrícola dos campos, da ocor-
rência de incêndios, da atividade livre da
caça e da artificialização de espaços que in-
tegravam os seus corredores migratórios.
No Côa, um pequeno grupo de
biólogos entusiastas, liderados por
António Monteiro e Ana Berliner, co-
meçou a preocupar-se com estas ame-
aças ao estudar a avifauna desta área,
Rio Côa, AB
70
e iniciou contactos nacionais e inter-
nacionais que culminaram, em 1999,
na constituição da Associação Tran-
sumância e Natureza (ATN), numa
parceria luso-neerlandesa com a TNF
- Transumance and Nature Foundation,
que se mantém até à atualidade, ten-
do também contado com o apoio, nos
primeiros anos, da Fundação MAVA
– Foundation Pour La Nature, criada por
Luc Hoffmann, na Suíça.
“Pensámos — explica-nos a atual di-
reção da ATN — num projeto que não de-
pendesse do Estado e no qual participasse
um grupo de naturalistas interessados na
causa da conservação da natureza, quer na
proteção de aves prioritárias, quer na gestão
e proteção global dos espaços.
 O grande objetivo foi sempre o de desenvolver
ações de conservação da natureza, através de uma
iniciativa que se esforça por ser sustentável, quer
economicamente, quer do ponto de vista funcio-
nal das atividades que estamos a desenvolver.”
A Reserva da Faia Brava tem hoje
uma área de 625 hectares de terrenos que
têm vindo a ser adquiridos pela ATN,
desde a Quinta da Ervideira, a oeste, às
Hortas da Saboia, a leste. Está protegida
pela Zona de Proteção Especial (ZPE) do
Vale do Côa e tem também o estatuto de
Important Bird Area (IBA), atribuído pela
BirdLife International. Hoje, a constituição
da Faia Brava como área protegida priva-
da é já uma realidade, o que constitui o
primeiro caso em Portugal.
“A ATN tem gerido este espaço e conse-
guiu que não ocorressem incêndios, desde
2003. A introdução de herbívoros, a semen-
teira cerealífera extensiva e uma reflores-
tação com propósito de proteção do coberto
florestal, estão a dar resultados muito posi-
tivos. As iniciativas mais recentes envolvem
também a captação de novos sócios e mece-
nas, a oferta de atividades de visitação na
Reserva e a criação de uma marca de azeite
extra virgem biológico. Procuramos proteger
e divulgar a Faia Brava.”
No silêncio das fragas,
o movimento das aves
O ponto de encontro é na aldeia de
Algodres. Espera-nos Alice Gama, bi-
óloga da ATN, no seu todo-o-terreno,
com um sorriso aberto. A caminho
da Reserva, tentamos perceber o que
está por detrás deste sorriso, e, con-
Reserva da Faia Brava
sequentemente, iremos conhecer me-
lhor este projeto.
“Vim trabalhar como voluntária na ATN
e depois comecei a trabalhar como técnica...e
fiquei cá desde então! É um projeto fantás-
tico. Tenho a responsabilidade de fazer toda
a monitorização de biodiversidade na Faia
Brava, mas no momento sou mais gestora de
projetos que bióloga. Não tenho tempo para
fazer tudo! Quem faz o trabalho de campo
neste momento são estudantes universitá-
rios através de estágios, não fazem o meu
trabalho de monitorização, mas apoiam
com muitos dados, vou com eles para o cam-
po quando posso.
Grifo, FR
O trabalho tem-se concentrado na moni-
torização das espécies prioritárias de aves,
isso exige um seguimento na época de ni-
dificação, que é entre janeiro e junho, e é aí
que recolhemos os dados sobre a presença dos
casais no território, a localização dos ninhos,
a postura, o sucesso reprodutor das aves...
71
Agora queremos expandir o programa de
monitorização e isso vai exigir mais conhe-
cimentos da nossa parte, mas também mais
parcerias. Estamos a desenvolver agora uma
pareceria com uma Sociedade Micológica
aqui de Ciudad Rodrigo, por exemplo. Ainda
na fase de inventário, tivemos um investiga-
dor alemão a inventariar a flora da Faia Bra-
va, temos uma estudante a trabalhar com as
aves mais comuns, e alguns trabalhos muito
específicos sobre o abutre do egipto, que é
uma espécie ameaçada, e que ainda não se
sabe muito bem que ações de conservação é
que podem apoiar o seu sucesso reprodutor
aqui no Vale do Côa.”
Deixamos o todo-o-terreno. Vamo-nos
apercebendo da paisagem vertiginosa do
Côa, esmagadora, talhada pelo rio que cor-
re lá em baixo, sem se sentir oprimido pe-
las escarpas de granito. Seguimos por ve-
redas que nos levam ao abrigo que a ATN
instalou e que nos permite, dissimulados
no vasto silêncio das pedras, observar
com binóculos e fotografar várias espécies
que se alimentam nas escarpas, do outro
lado do vale: grifos, abutres-do-egipto e
milhafres-pretos...mas também corvos e
pegas-azuis por ali passam.
“O grupo das aves foi sempre bastante
apreciado pelo Homem, para observação,
para caça! Têm a vantagem de ser bastante
visíveis na natureza, têm a beleza do can-
to... Em Portugal começa a haver procura de
atividades de birdwachting, noutros países
é já uma atividade para milhões e milhões
72
de pessoas, que fazem viagens de turismo só
para observar aves. Acho que é uma das re-
giões que tem mais potencial para birdwa-
tching, não só a Faia Brava, mas também o
Douro Internacional, para além de ativida-
des com outros temas, como as atividades
tradicionais. O próprio voluntariado como
uma atividade não necessariamente ligada
à sensibilização, mas ligada ao Turismo de
Natureza. Temos tentado desenvolver todos
os anos muitos campos de trabalho e cam-
panhas de voluntariado em que uma pessoa
pode aparecer em qualquer altura do ano e
participar nas próprias ações do projeto.
Sempre gostei muito das atividades em que
as pessoas têm a oportunidade de trabalhar
connosco no campo, gosto muito quando as
pessoas “mexem” na reserva e deixam o seu
contributo.”
Birdwatcing, AB
Depois deste vôo sobre o Côa, segui-
mos caminho pela Reserva. Ao longe avis-
tamos um grupo de cavalos selvagens
que contribuem para a gestão do espaço
natural através do maneio extensivo,
equilibrando, assim, a área de clareiras
com as áreas florestais. Mais à frente, cru-
zámo-nos com o Sr. José Saraiva, pastor
desde pequeno, e o seu rebanho.
“Até agora a área da Faia Brava tem
sido utilizado pelos mesmos pastores que
a utilizaram durante anos e anos. São
indispensáveis para o trabalho de con-
servação... Os incêndios que existiram na
reserva ao longo destes 10 anos tiveram
sempre origem nestes pastores, nós fo-
mos sempre falando com eles, tentando
sensibilizá-los de forma a não fazerem
queimadas na época estival.
A ligação com a população também é
uma das temáticas que tem sido bem su-
cedida com ATN no projeto da Faia Brava,
através da educação ambiental junto dos
mais novos. Já tivemos alguns estagiários
de cursos da escola secundária a trabalhar
Visita Escolar, AB
Garrano, AB
na gestão do viveiro florestal, no ano pas-
sado tivemos também um estagiário de
fotografia, foi muito interessante porque o
rapaz era de Algodres, já foi várias vezes à
Reserva da Faia Brava
zona da Faia Brava, mas estar ali e partici-
par nas atividades da associação, permitiu-
lhe olhar para a terra dele de outra forma.
Através das fotografias que tirou, a dar-lhe
mais valor, espero eu!”
Terminamos a nossa visita à Faia
Brava cheios de imagens, luzes, tons,
texturas e ideias, percebendo perfeita-
mente o sorriso da Alice.
“Este projeto não seria o que é sem a
paixão que as pessoas que trabalham nele
têm pelo que fazem. E essas pessoas vão e
vêm, pode ser um visitante, um membro da
equipa. A Faia Brava... Todas as vezes que
entro na Faia Brava tento imaginar como
é que seria há 40 anos e como será daqui a
outros 40...isto é o que mexe comigo todos
os dias, é o que me faz trabalhar. Estamos
numa fase de regressão da presença do Ho-
mem no vale e a caminhar para uma Faia
Brava muito mais selvagem, virada para a
biodiversidade...”
Libertação de Grifo, FR
73
 Parques Naturais
no Douro Internacional
A Natureza não conhece fronteiras... Os dois Parques Naturais comple-
mentam-se, formando no seu conjunto um dos maiores espaços pro-
tegidos da Europa, com uma superfície de cerca de 200.000 ha e uma
assinalável biodiversidade: mais de 200 espécies de aves (nidificantes
e inverneiras), 47 classes de mamíferos, diversos peixes e anfíbios e
21 tipos de répteis; ou, no âmbito da flora, os bosques de carvalhos,
sobreiros, azinheiras e zimbros, que combinam com galerias de freixos,
salgueiros e amieiros e extensos matos com giestas e estevas.
Dos diversos trilhos e passeios sugeridos e descritos pelos Parques,
destacamos cinco, três do lado português da fronteira e outros dois do
lado espanhol.

Parque Natural
do Douro
Internacional

Com existência legal desde 1998 (De-

creto-Lei nº 8/98, de 11 de maio) tem as
principais entradas situadas em Moga-
douro, onde se localiza a respetiva sede,
e delegações em Miranda do Douro e
Figueira de Castelo Rodrigo.
Ribeira do Mosteiro, JR
No primeiro percurso que escolhe-
mos, vindos de Torre de Moncorvo,
atravessamos a Serra do Reboredo, até
Ligares, e daqui descemos pela velha es-
trada que acompanha a Ribeira do Mos-
teiro, até ao Douro. A paisagem começa
a adquirir um recorte cada vez mais vi-
goroso à medida que descemos. O voo
Penedo Durão, JR

74

Dobras geológicas, Ribeira do Mosteiro, AA
das aves das escarpas combina com o
silêncio do vale, que nos revela a his-
tória da terra, nas dobras das rochas e
nas cristas proeminentes de quartzitos.
Optamos por uma experiência pedestre,
ao longo de 7 km, que deixa conhecer a
Calçada de Alpajares, o Castro de São
Paulo, perceber a implantação da aban-
donada Vila Medieval de Alva, e os pom-
bais que pontuam as encostas.
O segundo percurso inicia-se em Frei-
xo de Espada à Cinta e passa pela aldeia
de Poiares. Conduz ao proeminente mi-
radouro do Penedo Durão, um impressi-
vo rochedo quartzítico, sobrevoado por
grifos e debruçado sobre uma escarpa
abrupta com várias centenas de metros,
dominando o vale do Douro e a Meseta.
Parque Natural do Douro Internacional
Santo André das Arribas, JR
Entre Almofala, situada a leste de
Figueira de Castelo Rodrigo, e Santo An-
dré das Arribas, percorremos o terceiro
percurso, um caminho rural que nos di-
reciona para aquele pequeno santuário,
onde, além da romaria que ali continua
a juntar anualmente as famílias, com
o farnel e as oferendas, acompanhadas
pela banda filarmónica, oferece vistas
com grande amplitude cénica sobre o
vale encaixado do Águeda, e o contraste
com a planura que se estende para orien-
te. Este é um itinerário pedestre de 8 km,
que dura cerca de 5 horas e que se inicia
e termina em Almofala (Chafariz do Gri-
fo). É possível no entanto ir numa viatu-
ra até ao miradouro de Santo André das
Arribas por uma estrada de terra batida.
75
 Parque Natural
Arribes del Duero
A criação legal data de 11 de abril de 2002
(de acordo com a Ley 5/2002 de CyL). As
duas principais portas de entrada desta
área de paisagem protegida localizam-se
em Fermoselle (Zamora) e em Sobradillo
(Salamanca). Aqui o visitante encontrará
pontos de referência com informação es-
pecializada. A Casa del Parque de Arribes del
Duero, Convento de San Francisco, situa-se
num antigo convento do município de
Fermoselle. A segunda Casa del Parque de
Arribes del Duero, Torreón de Sobradillo, está
instalada na Torre de Menagem do Cas-
telo de Sobradillo. Paralelamente, o mu-
Ponte dos Franceses, Rio Águeda, JR
nicípio salmantino de Trabanca dispõe
de um Centro de Recepción de Visitantes do
Parque Arribes del Duero.
Agora do lado espanhol, a nossa
quarta experiência leva-nos a um tre-
76
cho da Grande Rota Senda del Águe-
da (GR 14.1), que se inicia, num per-
curso pedestre, entre Puerto Seguro e
San Fellices de los Gallegos, passan-
do pela impressionante Ponte dos
Franceses. Rumo ao norte, conhece-
mos Hinojosa del Duero, procurando
a Fuente del Obispo e a Igreja româ-
nica de São Pedro, e desfrutamos de
um miradouro com grande alcance.
Depois de La Fregeneda procuramos
o miradouro de Mafeito e, daqui, des-
cemos às margens do Douro, rumo a
Barca D’Alva.
Por fim, podemos seguir um pouco
mais para norte em direção a Saucelle,
acompanhando a Grande Rota Senda
del Duero (GR 14), e visitar o miradou-
ro de Las Janas , avistando amplamen-
te as curvas e contracurvas do Douro,
a foz do rio Huebra e Camaces. Segui-
mos percurso até Vilvestre visitando
 Parque Natural de Arribes del Duero
Miradouro de La Code, Rio Douro, JR

Miradouro del Fraile, Rio Douro, JR

mais um miradouro sobre o Douro e no rio Uces, ao longo de uma parede

depois até Mieza, ao miradouro de La granítica, criando uma paisagem me-
Code. Em seguida, passando por Ma- morável. Por fim visitamos o miradou-
sueco, vamos ao ao Pozo de Los Hu- ro del Fraile, onde as escarpas de grani-
mos, uma imponente queda de água to se tornam vigorosas e abruptas.

77
 O Douro
navegável
Na atualidade, embarcações de grande
porte navegam desde o Porto até Vega
Terrón, junto à foz do rio Águeda no
Douro. No passado, barcaças de carga
podiam passar até ao embarcadouro de
Vilvestre, mas apenas em períodos de
grande caudal. Existiam também inúme-
ras “barcas” que cruzavam de uma mar-
gem para a outra em diversos pontos do
troço fronteiriço de ambos os rios.
Com a construção das barragens de-
sapareceram estas barcas, e desde há
alguns anos existem duas embarca-
ções turísticas: uma que circula en-
tre La Barca de Vilvestre e o Centro
Turístico da Congida em Freixo de
Rio Douro, JR
78
Espada à Cinta (dotado de praia flu-
vial, embarcadouro, e de uns origi-
nais apartamentos semi-enterrados
na escola do vale), e outra numa das
zonas mais espectaculares de Arribes,
em Aldeadávila, na Playa del Rostro.
A partir destas embarcações pode-se
apreciar, de uma perspectiva inusita-
da, a abundante avifauna (garça, cor-
vo, cegonha- preta, grifo, águia-real,
falcão-peregrino, milhafre-preto e mi-
lhafre, abutre do Egipto, etc.) e flora
(oliveiras, sobreiros, zimbro, lódão-
bastardo, cornicabra, bordo-comum,
etc.) nalguns casos quase exclusivas
deste espaço natural.
Destacam-se, as formações rochosas
existentes no desfiladeiro do Douro
formadas no bloco granítico do Maciço
 O Douro navegável
Rio Douro, JR

Hespérico conhecido como “Domo del

Tormes”, o Picón de Felipe, o Salto del
Gitano, o Balcón del Fraile, são alguns
dos nomes das inúmeras formas que
adquirem as rochas gastas pela erosão.
Atualmente tem-se revelado como es-
paço ideal para a prática do remo, visto
que se trata de águas estáveis e sem va-
riações climatéricas excessivas, resguar-
dadas dos ventos fortes.

Corvo-Marinho, Rio Douro, JR

79
 Quando o Águeda
era fronteira
A região que se estende a Sul do Dou-
ro, para leste do Águeda, constituiu
um território disputado, por vários
séculos, entre os Reinos de Portugal e
Espanha. A vila de San Felices de los
Gallegos implantou-se como cabeça
Burgo de San Felices de los Gallegos, JR
deste território, numa encruzilhada
de caminhos, e o seu domínio alter-
nou entre ambos os Reinos até ao
século XIV, tendo recebido múltiplas
obras de fortificação, medievais e mo-
dernas, que visaram reforçar-lhe este
papel estratégico.
80
Diferenciam-se neste centro ur-
bano duas cercas amuralhadas e um
castelo, obra exterior e independente.
A construção da Cerca Velha, de que se
identificam ainda hoje as Portas del
Moro e a chamada Torre-Porta, data
dos séculos XII e XIII. Depois, em 1297,
o rei português D. Dinis anexaria a vila
de San Felices no decurso das guerras
Torre de Menagem de San Felices de los Gallegos, JR
fronteiriças que acompanharam a as-
sinatura do Tratado de Alcanices, de
acordo com o qual também passaram
para a Coroa portuguesa todas as vilas
do Riba Côa, como Castelo Rodrigo ou
Almeida. É nesse contexto que se edifi-
cou o primeiro castelo, atribuído àque-
le rei português. Da segunda cerca da
vila, cuja construção também se atri-
bui a D. Dinis, apenas subsistem duas
portas, a das Campanas e a do Puerto.
Regressada à posse de Castela, os
reis Católicos doaram o senhorio da
vila, em 1476, ao primeiro Duque de
Alba, que mandou construir a atual
Torre de Menagem de mais de trinta
metros de altura, quatro pisos aboba-
dados, um dos quais subterrâneo, e
uma barreira defensiva sobre a qual se
abrem numerosas troneiras para dispa-
ro dos canhões.
A cerca da vila conheceria, ainda no
decurso da Idade Moderna, obras de
adaptação ao sistema abaluartado com
a construção de uma nova barreira de-
fensiva, de planta estrelada, da qual sub-
sistem numerosos troços. Os conflitos
dos séculos XVII, XVIII e inícios do XIX,
como a Guerra da Restauração Portugue-
sa (1640-1666), a Guerra da Sucessão Es-
panhola (1707) ou as Invasões Francesas,
deixaram marcas numerosas, como a da
ocupação pelas tropas francesas entre
março de 1809 e inícios de 1812.
Nas proximidades de San Felices en-
contramos Sobradillo, que conta com
outra imponente fortaleza senhorial de
finais do século XV, com uma Torre de
Menagem onde se encontra a Casa do
Parque, rodeada pelas ruínas museali-
zadas das restantes construções (cister-
nas, muralhas, armazéns, etc.). Esta vila
Vista da Torre de Menagem sobre a aldeia de Sobradillo, JR
foi protagonista de várias escaramuças
entre espanhóis e portugueses na Guer-
ra da Restauração (1640-1668).
Mais para o interior localiza-se o cas-
Quando o Águeda era fronteira
telo senhorial de Cerralbo, que teve um
papel notável na defesa do campo de
Camaces e de Abadengo, nesta mesma
guerra, fustigado continuamente pelas
tropas portuguesas de Pedro Jacques de
Magalhães até 1664. Teve Torre de Mena-
gem até ao século XIX, quando foi der-
rubada para aumentar as instalações
do convento franciscano das proximi-
dades. O recinto do castelo é quadrado,
com grandes cubos redondos, fortes,
maciços e duradouros, recobertos de
boa cantaria e com seteiras.
No topo do Cerro do Castelo de
Vilvestre, tal como em Hinojosa de
Duero, existiu um poderoso castelo
com torre de menagem e muralhas,
mas na atualidade só se conservam os
restos da fortaleza abaluartada que se
construiu durante a referida confron-
tação bélica.
81
 Linha Férrea
La Fuente de
San Esteban-Barca
d’Alva
Linha férrea, La Fregeneda, JR
As obras de construção da Linha
do Douro começaram no ano de 1883
e, 4 anos depois, no dia 9 de Dezembro
de 1887, foi inaugurada esta via-férrea
com a presença da rainha Victória Eu-
génia num acto solene em que dois
comboios, um português e outro es-
panhol, se uniram no meio da Ponte
Internacional da Fregeneda. Trabalha-
ram nesta obra mais de 4.000 pessoas,
tendo muitas delas perdido a vida, o
82
que ditou a necessidade de se cons-
truir um novo cemitério. A linha foi
fechada em 1985, e 14 anos depois, em
Dezembro de 1999, o governo espa-
nhol declara-a como Bem de Interesse
Cultural na categoria de Monumento
Histórico.
Foi uma das obras de engenharia
mais impressionantes da sua época,
visto que nuns escassos 17 quilóme-
tros, desde a estação de La Fregeneda
até Barca D`Alva, construíram-se 13
viadutos de metal ou mistos, de pedra
e aço, e foram escavados 19 túneis. De
entre os primeiros, destaca-se a pon-
te de Poyos, que se presume ter sido
desenhada por um dos discípulos de
Eiffel, e a ponte de Poyo Valiente, uma
das primeiras em curva da Europa.
Também vale a pena conhecer a ponte
de Arroyo Lugar, que possui um pri-
Linha férrea, La Fregeneda, V
meiro troço da fábrica de cantaria de
Cuatro Ojos, e um segundo, metálico,
que se eleva a mais de 60 metros. Nos
túneis podemos encontrar grandes
colónias de morcegos, especialmente
no Túnel nº 3 ou do Morgado, as mar-
cas das brocas e os refúgios para evitar
atropelamentos dos operários da ma-
nutenção.
Destaque-se também a estação in-
ternacional de La Fregeneda, que con-
tava com um impressionante edifício
principal (com entrada e saída indepen-
dentes de passageiros, bilheteira e reco-
lha de bagagens, agência internacional,
telégrafo, gabinete do chefe da estação
e gabinete de circulação), o edifício da
inspecção do Estado, a inspeção de sec-
ção e o posto de polícia, a cantina, os
Linha férrea de La Fuente de San Esteban à La Fregeneda
cais, a alfândega, e o depósito de água.
Linha férrea, La Fregeneda, V
E forçosamente, a também estação in-
ternancional de Barca D’Alva, talvez o
edifício de maior grandeza de toda a
linha-férrea, e que ainda conserva frisos
decorados com azulejos, dependências
administrativas, cais de carga de gran-
des dimensões, depósitos de água ,
agulhas, placa giratória, cocheiras…
Realizar o percurso a pé pela via
não é seguro, mas podemos conhecer
muitos dos locais que enumeramos
acedendo-lhes através das numerosas
rotas sinalizadas desde a povoação de
La Fregeneda, ou de carro até às referi-
das estações.
83
 Lumbrales e a
Rota dos Castros
e Verracos
Num momento avançado da Segun-
da Idade do Ferro desenvolveram-se
pelo menos treze povoados castrejos
no sector fronteiriço da área salman-
tina, a que se somam os equivalentes
na área portuguesa de Miranda de
Douro, Penafiel e Mogadouro, cujo
povoamento, no território histórico
dos vetões, obedece a factores geo-
gráficos – em lugares estratégicos nas
margens dos rios e em antigas vias de
comunicação –, e económicos – como
a riqueza mineira local.
Verraco, Lumbrales, JR
Castro de Las Merchanas, JR
84
Entre os exemplos mais represen-
tativos destacam-se os castros de Yecla
la Vieja em Yecla de Yeltes, Las Mercha-
nas, em Lumbrales, e El Castillo em
Saldeana, pelo fácil acesso e centros de
interpretação disponíveis.
Os castros estavam na sua maioria
rodeados por uma possante muralha
de traçado sinuoso, com acesso atra-
vés de portas e postigos. Nas zonas
mais vulneráveis existiam barreiras de
pedras fincadas para dificultar a apro-
ximação do inimigo e impedir os ata-
ques surpresa da cavalaria.
A manifestação arqueológica mais
chamativa dos castros neste sector, em
especial no de Yecla, é um numeroso
conjunto de gravuras localizadas nas
rochas próximas do castro e nas pedras
das muralhas. Estão executadas com
traço contínuo para marcar o contorno
das figuras que representam, na sua
maioria cavalos e outros quadrúpedes,
além de uma cena singular de caça, com
cavaleiros armados com lanças cercan-
do um javali. Igualmente oferecem re-
presentações não figurativas de labirin-
tos, espirais, reticulados e cruzes, que
em conjunto conferem a estes sítios
uma forte personalidade e permitem
estabelecer, juntamente com outras
peças escultóricas singulares, , como as
chamadas “cabeças cortadas”, paralelos
com o noroeste peninsular.
 Lumbrales e a Rota dos Castros e Berrões
Castro de Las Merchanas, JR

Gravuras do Castro de Yecla e Yeltes, JR Gravuras do Castro de Yecla e Yeltes, JR

A maior parte destes povoados arqueológicas associadas, mantendo

castrejos sofreu uma intensa roma- a sua ocupação, com maior ou menor
nização, como indica o numeroso vigor, até momentos avançados da
conjunto de estelas funerárias e peças Idade Média.

85
Notas Bbibliográficas

1 ALMEIDA, C. A. F. de, “Muralhas Românicas e Cercas Góticas de algumas cidades do centro e norte
de Portugal. A sua lição para a dinâmica urbana de então”, Cidades e História, Lisboa: Fundação
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BEIRANTE, Maria Ângela, A ”Reconquista” Cristã, Nova História de Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. de
Oliveira Marques, Vol. II, Portugal das Invasões Germânicas à “Reconquista”, coord. A. H. de Oliveira
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CORTÉS CORTÉS, Fernando, Guerra e Pressão Militar nas Terras de Fronteira, 1640-1668. Lisboa: Livros
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DORDIO GOMES, Paulo, “O povoamento medieval em Trás-os-Montes e no Alto Douro. Primeiras
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DORDIO, Paulo, “Centros de Povoamento: um percurso pelas vilas medievais”, Terras do Côa. Da
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DORDIO, Paulo, “Trás-os-Montes e o Alto Douro: da definição do território da Monarquia
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2005, Salamanca: Ediciones Universidad).
MATTOSO, José, A Monarquia Feudal. 1096-1325. História de Portugal direcção de José Mattoso, segundo
volume. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.
2 PEREIRA, Gaspar M. (1995) – Notas para a História Contemporânea de Foz Côa. “Boletim da Universidade do
Porto”, 25, pp. 33-362.
3 CARVALHO, Aida M. O. (2000) – A Comunidade Cristã-Nova de Vila Nova de Foz Côa. Rupturas e
continuidades. Vila Nova de Foz Côa: Câmara Municipal.
4 BAPTISTA, António M. (1983) – O complexo de gravuras rupestres do Vale da Casa (Vila Nova de Foz
Côa). “Arqueologia”, 8. Porto, pp. 57-69; BAPTISTA, António M. (2009) – O Paradigma Perdido. O Vale do
Côa e a Arte Paleolítica de Ar Livre em Portugal. Porto: Afrontamento/IGESPAR.
5 AUBRY, T.; CARVALHO, A. F. de; ZILHÃO, J. (1997) - Arte rupestre e Pré-História do Vale do Côa, Trabalhos
de 1995-1996. Relatório científico ao Governo da República Portuguesa elaborado nos termos da Resolução do
Conselho de Ministros n.0 4/96, de 17 de Janeiro. Lisboa: Ministério da Cultura.
6 BAPTISTA, António M. (2009), op. cit.; AUBRY, Thierry (ed.) (2009) – 200 séculos de história do Vale do

86
Coa:incursões na vida quotidiana dos caçadores-artistas do Paleolítico. Lisboa: IGESPAR; LUÍS, Luís (2008) –
A Arte e os Artistas do Vale do Côa. Vila Nova de Foz Côa: IGESPAR / Parque Arqueológico do Vale do Côa
e AMVC – Associação de Municípios do Vale do Côa.
7 BAPTISTA, António M. (2009), op. cit.
8 AUBRY, Thierry e SAMPAIO, Jorge (2009) – Escavações e sondagens. In “200 séculos de história do Vale
do Côa: incursões na vida quotidiana dos caçadores-artistas do Paleolítico”. Lisboa: IGESPAR, pp.
36-83.
9 Idem, ibidem.
10 MARTÍN VISO, Iñaki - Una Frontera Casi Invisible: Los Territorios Al Norte del Sistema Central en la
Alta Edad Media (Siglos VIII-XI), Sep. de “Studia Historica, Historia Medieval, Fronteras y límites
interiores”, I, vol. 23, 2005, Salamanca: Ediciones Universidad.
11 BAPTISTA, António M.; MORENO, José J. (2010) – Siega Verde, Extensão do Vale do Côa, Arte Rupestre
Paleolítica de ar livre na bacia do Douro. Porto: Junta de Castilla y León, IGESPAR, IP.
12 ALCOLEA GONZÁLEZ, J. Javier y BALBÍN BEHRMANN, R. (2006), Arte paleolítico al aire libre. El
yacimento de Siega Verde, Salamanca, Junta de Castilla y León, Arqueología en Castilla y León, 16.
13 REBANDA, Nelson C. (2003): A evolução da paisagem agrária no Douro Superior, em AA. VV., “Viver e
saber fazer: tecnologias tradicionais na região do Douro. Estudos preliminares”, pp. 241-316. Peso da
Régua: Ed. Museu do Douro.
PEREIRA, Gaspar M. (2003): A evolução histórica, em AA. VV., “Viver e saber fazer: tecnologias
tradicionais na região do Douro. Estudos preliminares”, pp. 103-128. Peso da Régua: Ed. Museu do
Douro.
14 PEREIRA, Gaspar M. e OLAZABAL, Luísa M. (1996) – Dona Antónia. Lisboa: Ed. ASA
15 COIXÃO, António N. Sá (2000) – Carta Arqueológica do Concelho de Vila Nova de Foz Côa. 2.ª ed.Vila Nova
de Foz Coa: Câmara Municipal de V.N. de Foz Côa.
16 BATISTA, J. C. SOUSA OLIVEIRA, A. (s/d) — Falha da Vilariça. Geomorfologia e recursos geológicos
associados. UTAD, s/d, 7 pp.
17 FARO, Suzana (1998) - Olhares sobre a seda nas terras do Côa, em AA. VV. “Terras do Côa da Malcata ao
Reboredo”, Parque Arqueológico do Vale do Côa (coord.), pp. 151-159. Guarda: Ed. Estrela Côa.

87
Ficha Técnica

TÍTULO
Côa a Siega Verde – A Arte da Luz

EDIÇÃO
Instituto de Gestão do Património Arqueológico e Arquitectónico, IGESPAR,I.P.
Junta de Castilla y Léon

COORDENAÇÃO
APDARC – Arte e Cultura no Douro e Côa

CONCEPÇÃO
Alexandra Cerveira Lima, José Rafael Sirgado, Mafalda Nicolau de Almeida e
Paulo Dordio

TEXTOS
Impressões
Paulo Dordio e José Rafael Sirgado
Colaboração: António M. Baptista e Iñaki Martin Viso
Episódios
Paulo Dordio, Iñaki Martín Viso, José Rafael Sirgado
Colaboração: António M. Baptista, Alexandra C. Lima, Mafalda N. Almeida
À Descoberta
Mafalda N. Almeida, José Rafael Sirgado (1, 2, 5, 6, 7) ; Paulo Dordio (3, 4, 9);
Fernando Paricio (8, 9, 10) Carlos Macarro (11).
Revisão
Alexandra C. Lima e Mafalda N. Almeida

FOTOGRAFIAS
Alexandre Afonso (AA), Ana Berliner (AB), António Martinho Baptista (AMB),
Fernando Romão (FR), João Romba (JR), José Paulo Ruas (JPR), Manuel Almeida
(MA), Pedro Guimarães (PG), Vacceo Integral de Patrimonio, S.L. (V), Propriedade
da Quinta do Vale Meão (VM)

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GESTÃO EDITORIAL
Setepés. Arte

DESIGN GRÁFICO
GSA Design

TRADUÇÃO
Nelly Silva
Rui Silva

AGRADECIMENTOS
Alice Gama, André Carnet, António Batarda, António do Nascimento Sá Coixão,
António Monteiro, Balbín Behrmann, Carlos Abreu, José Ribeiro, Luis Eugenio,
Togores, Mauro Búrcio

IMPRESSÃO E ACABAMENTOS
Diário do Porto

TIRAGEM
2000 exemplares

ENTIDADES FINANCIADORAS

ZONA ARQUEO LÓGICA

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www.coasiegaverde.com

ZONA ARQUEO LÓGICA