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GÓIS, Damião de, Livro de Linhagens

de Portugal (edição crítica de António


Maria Falcão Pestana de Vasconcelos),
Lisboa: Instituto Português de Heráldica
/ CLEGH / CEPESE, 2014, 628 pp.
Recensão crítica por Miguel Metelo de Seixas

SEPARATA DA REVISTA

ARMAS E TROFÉUS
REVISTA DE HISTÓRIA, HERÁLDICA, GENEALOGIA E ARTE

IX SÉRIE, TOMO XVI


2014
GÓIS, DAMIÃO DE, LIVRO DE LINHAGENS DE
PORTUGAL (EDIÇÃO CRÍTICA DE ANTÓNIO MARIA FALCÃO
PESTANA DE VASCONCELOS), LISBOA: INSTITUTO PORTUGUÊS DE
HERÁLDICA / CLEGH / CEPESE, 2014, 628 PP.
 1

Recensão crítica por Miguel Metelo de Seixas*

De uma figura cimeira da cultura portuguesa como foi Damião de Góis,


dir-se-ia que não restaria obra volumosa ainda por publicar: aqui se perfila porém
o presente Livro de Linhagens de Portugal para desdizer tal presunção. Em boa
hora, foi por fim dada à estampa esta obra mantida até agora sob forma manus-
crita em diversas cópias dispersas por arquivos e bibliotecas. Espanta que tal
lacuna tenha sido possível. Mas haverá razões que a expliquem.
Em primeiro lugar, a natureza genealógica da obra. Em redor de Damião
de Góis forjou-se ao longo dos séculos a imagem de homem multifacetado do
Renascimento: viajante, diplomata, funcionário régio, escolar, músico, mas
sobretudo humanista que ombreou com alguns dos maiores autores e artistas
do seu tempo. Enquanto escritor, é costume assinalar-se que a sua produção lite-
rária se diversificou em obras de carácter historiográfico, geográfico e corográfico,
algumas das quais de cariz assumidamente polémico, além de um impressionante
contributo epistolográfico. Do retrato biográfico e literário de Damião de Góis
parece assim arredada, ou apenas subjacente, a faceta de homem de corte. Que ele
foi contudo por criação, como moço da câmara de D. Manuel I, a quem serviu

* Doutor em História; investigador do Instituto de Estudos Medievais e do Centro de História


d’Aquém e d’Além-Mar, ambos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade
Nova de Lisboa; bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia;
professor auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa; director do Centro Lusíada de Estudos
Genealógicos e Heráldicos; sócio efectivo e presidente do Instituto Português de Heráldica.

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Recensão crítica por Miguel Metelo de Seixas

de camareiro e de guarda-roupa, e depois moço fidalgo de D. João III; mais tarde,


de regresso a Portugal após a prolongada estadia no estrangeiro, quando este
mesmo rei o nomeou guarda-roupa do príncipe D. João (cargo que não chegou a
assumir) e guarda-mor do arquivo régio da Torre do Tombo. Esta mesma faceta de
cortesão estaria na origem da encomenda que D. João III lhe fez das crónicas do
rei D. Manuel I e do príncipe D. João (futuro D. João II), sem contudo nomeá-
-lo cronista-mor do reino. A dimensão áulica de Damião de Góis foi porventura
obnubilada pela sua aura de humanista cosmopolita perseguido pela Inquisição,
o que permite compreender, pelo menos em parte, que uma obra como o Livro
de Linhagens, desenquadrada do perfil predominante do seu autor, tenha perma-
necido inédita até à presente edição.
Outros motivos se podem porém descortinar para tal preterição, decor-
rentes de questões intrínsecas ao teor da obra. Diversos indícios apontam para uma
recepção polémica deste manuscrito precisamente junto de linhagens na época
detentoras de peso político, tal como sucedeu com as referidas crónicas régias, que
Damião de Góis se viu obrigado a rever e corrigir. Longe de constituírem matéria
inócua, os estudos genealógicos revestiam-se de uma dimensão utilitária para a
modelação da hierarquia social, na medida em que a estrutura linhagística e as
relações de parentesco se revelavam determinantes para a detenção e transmissão
do património material e simbólico que estava na base da condição nobiliárquica.
Não será por isso de espantar que o manuscrito do Livro de Linhagens, arredado
do prelo e ciosamente conservado na Torre do Tombo, tenha misteriosamente
desaparecido a seguir à morte do guarda-mor Diogo de Castilho, em 1632; e que
as buscas empreendidas em 1633 e em 1637 se tenham revelado infrutíferas,
como assinala Pestana de Vasconcelos na sua introdução 1. Felizmente, haviam
entretanto sido tiradas diversas cópias, das quais este estudioso rastreou uma
dúzia, elaborando de seguida uma cuidadosa filiação dos diversos manuscritos
assinalados em tempos por bibliógrafos, uma dezena dos quais ainda hoje iden-
tificáveis e passíveis de serem consultados. Seguindo critérios de autenticidade e
fiabilidade dos manuscritos existentes, Pestana de Vasconcelos procedeu à leitura
comparada dos códices mais próximos do original – o Cód. 977 da Biblioteca
Nacional de Portugal e o Cód. 21-F-37 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
caldeados com o Cód. 49-XIII-19 da Biblioteca da Ajuda, que complementa os
anteriores em alguns aspectos –, estabelecendo assim uma segura edição crítica
do texto goesiano. Todas estas condicionantes heurísticas terão concorrido para
inviabilizar uma anterior publicação do Livro de Linhagens de Damião de Góis.

VASCONCELOS, António Maria Falcão Pestana de, “Introdução”, in GÓIS, Damião de,
1

Livro de Linhagens de Portugal, Lisboa: Instituto Português de Heráldica, CLEGH, CEPESE,


pp. 13-14.

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GÓIS, Damião de, Livro de Linhagens de Portugal

Acresce ainda que, dentro do género genealógico, a obra deste humanista


se situou num hiato singular. A produção medieval portuguesa revelara-se subs-
tancial neste âmbito, desde o Livro Velho de Linhagens de finais do século XIII e o
Livro de Linhagens do Deão do segundo quartel da centúria seguinte, até ao pouco
posterior Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, sem dúvida a obra genealógica
medieval de maior alcance e difusão não apenas em Portugal como nos restantes
reinos peninsulares, onde foi largamente copiado, acrescentado e glosado.
No século XV, a realização de obras genealógicas esmoreceu, para retomar timi-
damente no século seguinte, porém com escassos autores. Finalmente, a partir
do século XVII, voltou a eclodir e as obras genealógicas foram-se multiplicando
até atingir o paroxismo no século XVIII, em que o género genealógico se tornou
numa componente indeclinável do saber histórico. A existência deste intervalo
na produção de obras genealógicas nos séculos XV e XVI repercutiu-se, natural-
mente, nas preferências historiográficas desde o século XX até à actualidade.
Com efeito, foi o próprio Alexandre Herculano, considerado como
fundador da historiografia contemporânea portuguesa, a apontar e debater o valor
histórico das fontes genealógicas 2. O mesmo autor tratou em seguida da edição
de nobiliários medievais logo no primeiro volume de Scriptores dos Portugaliae
Monumenta Historica, com um estudo introdutório em que colocava a ênfase na
questão da crítica das fontes, sem deixar também de assinalar o interesse de que os
textos genealógicos medievos se revestiam como fontes para o conhecimento da
história política e social 3. A orientação assim proposta por Herculano foi prosse-
guida pelo seu principal herdeiro nos estudos genealógicos, Anselmo Braamcamp
Freire, o qual, contudo, não chegou a dar à estampa o nobiliário que pretendia
publicar 4. Ao longo do século XX, sucederam-se as edições parcelares de nobi-
liários medievais 5 até à edição crítica de todos por José Mattoso na nova série
dos Portugaliae Monumenta Historica, que assim dava continuidade ao trabalho

2
HERCULANO, Alexandre, Memoria sobre a origem provavel dos Livros de Linhagens, Lisboa:
Typographia da Academia das Sciencias, 1854.
3
HERCULANO, Alexandre, Portvgaliae Monumenta Historica […] – Scriptores, Olisipone: Typis
Academicis, 1856.
4
FARIA, António Machado de, “Introdução”, in Livro de Linhagens do Século XVI, Lisboa:
Academia Portuguesa da História, 1956, p. 18.
5
Livros de Linhagens – Livro Velho, Lisboa: Edições Bíblion, 1937, 2 vols; BANDEIRA, Luís
Stubbs Saldanha Monteiro (ed.), Livros de Linhagens – Livro Velho, Lisboa: Gabinete de Estudos
Heráldicos e Genealógicos, 1960-1964, 4 vols; NORTON, Manuel Artur, Livro Velho de
Linhagens (achegas para a sua coordenação), Lisboa: Instituto Português de Heráldica, 1971;
NORTON, Manuel Artur, Livro Antigo de Linhagens (achegas para a sua coordenação), Lisboa:
Instituto Português de Heráldica, 1974.

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Recensão crítica por Miguel Metelo de Seixas

pioneiro de Herculano, concluindo-o também com um estudo modelar sobre as


questões heurísticas levantadas por estes diversos textos 6.
No outro extremo cronológico da produção genealógica, as fontes do
Antigo Regime tardaram em ser editadas, quando comparadas com as medievais.
Nenhum historiador oitocentista se interessou por elas; em contrapartida, já no
século XX, foram editadas e por vezes reeditadas algumas das principais obras
genealógicas dos séculos XVII e XVIII, como as de Alão de Morais 7, Manso de
Lima 8 e Felgueiras Gaio 9, além das duas reedições (a segunda parcelar, uma vez
que omitiu os volumes das Provas) da monumental obra de D. António Caetano
de Sousa 10.
Do hiato entre Idade Média e Antigo Regime, apenas se contava até agora
com a excepção do nobiliário publicado por António Machado de Faria: trata-se
de um manuscrito anónimo do século XVI conservado no arquivo da Casa dos
Marqueses de Fronteira 11.
A incidência quase exclusiva na publicação de nobiliários da Idade Média
e do Antigo Regime, com descontinuidade nos séculos XV e XVI, repercutiu-
-se inevitavelmente na atenção que os historiadores portugueses concederam ao
género genealógico, muito diferenciada consoante estes três períodos históricos.
Na esteira de Alexandre Herculano e de Braamcamp Freire, diversos historia-
dores consagraram esforços às questões filológicas e heurísticas dos nobiliários

6
MATTOSO, José, “Introdução”, in PIEL, Joseph; MATTOSO, José (ed. crítica), Portvgaliae
Monvmenta Historica […] – Nova série – Livros Velhos de Linhagens, Lisboa: Academia das Ciên-
cias, 1980, pp. 9-20; MATTOSO, José, “Introdução”, in IDEM (ed. crítica), Portvgaliae Monv-
menta Historica […] – Nova série – Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Lisboa: Academia das
Ciências, 1980, vol. II/1, pp. 7-54.
7
MORAIS, Cristóvão Alão de, Pedatura Lusitana-Hispanica em que se contem varias familias
nobres, e illustres (publicado por Alexandre António Pereira de Miranda Vasconcellos, António
Augusto Ferreira da Cruz, Eugenio Eduardo Andréa da Cunha e Freitas), Porto: Livraria
Fernando Machado, 1943-1948, 12  vols; MORAIS, Cristóvão Alão de, Pedatura Lusitana.
Nobiliário das Famílias de Portugal, Braga: Carvalhos de Basto, 1997-1998, 6 vols.
8
LIMA, Jacinto Leitão Manso de, Famílias de Portugal, Lisboa: s.n., 1925-1931, 16 vols.
9
GAYO, Manuel José da Costa Felgueiras, Nobiliário de Famílias de Portugal, Braga: Edição de
Agostinho de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, 1938-1941, 17 vols.; GAYO,
Manuel José da Costa Felgueiras, Nobiliário de Famílias de Portugal, Braga: Carvalhos de Basto,
1992, 12 vols.
10
SOUSA, D. António Caetano de, História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Coimbra: Atlân-
tida, 1946-1955, 13 vols.; SOUSA, D. António Caetano de, História Genealógica da Casa Real
Portuguesa, s.l.: s.n., 2001, 13 vols.
11
FARIA, António Machado de (ed.), Livro de Linhagens do Século XVI, Lisboa: Academia Portu-
guesa da História, 1956.

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GÓIS, Damião de, Livro de Linhagens de Portugal

medievos, como, entre outros, Costa Veiga 12, António Amora 13, Silva Tarouca 14,
Lindley Cintra 15, Machado de Faria 16, Diego Catalán 17, António José Saraiva 18,
Juan Paredes (Paredes 1995) 19. Nos citados estudos introdutórios à edição dos
nobiliários nos Portugaliae Monumenta Historica, José Mattoso incluiu um estado
da arte, tal como mais tarde o fez José Augusto de Sottomayor-Pizarro 20.
Para lá das problemáticas de filiações e definições textuais, os mesmos
nobiliários foram objecto de estudo enquanto fontes para a história social,
cultural e política. Assim, José Mattoso inseriu as obras portuguesas no contexto
da produção genealógica europeia 21; o mesmo autor prodigalizou, em diversas
ocasiões, interpretações circunstanciadas de determinadas narrativas sob uma
perspectiva política, proporcionando igualmente uma antologia comentada 22;
Luís Krus abordou os nobiliários numa perspectiva cultural e espacial 23; Pedro
Picoito tratou deles do ponto de vista principalmente político, de legitimação

12
VEIGA, Augusto Botelho da Costa, “Os nossos Nobiliários Medievais”, Anais de Bibliotecas e
Arquivos, vol. 15, 1942, pp. 165-193.
13
AMORA, Antônio Soares, O Nobiliário do Conde D. Pedro, São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1948.
14
TAROUCA, Carlos da Silva, “O «Livro do Duque». O «missing link» entre os nobiliários
medievais e os livros genealógicos modernos”, Brotéria, vol. XLIV, 1947, pp. 572-583.
15
CINTRA, Luís Filipe Lindley, “O Liber Regum e outras fontes do Livro de Linhagens do Conde
D. Pedro”, in Miscelânea de Filologia, Literatura e História Cultural. À Memória de Francisco
Adolfo Coelho, Lisboa: Centro de Estudos Filológicos, 1950, pp. 224-251.
16
FARIA, António Machado de, Os Livros de Linhagens, Lisboa: Academia Portuguesa da História,
1977.
17
CATALÁN MENÉNDEZ PIDAL, Diego, De Alfonso X al Conde de Barcelos: quatro estudios
sobre el nacimiento de la historiografia romance en Castilla y Portugal, Madrid: Gredos, 1962.
18
SARAIVA, António José, “O autor da narrativa da batalha do Salado e a refundição do livro de
linhagens do Conde D. Pedro”, Boletim de Filologia, n.º 22, 1971, pp. 1-16.
19
PAREDES NUÑEZ, Juan, Las narraciones de los Livros de Linhagens, Granada: Universidad de
Granada, 1995.
20
SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de, “O género genealógico na historiografia medie-
vística portuguesa”, in Temas de Genealogia e de História da Família, Porto: Centro de Estudos
de Genealogia, Heráldica e História da Família, 1998, pp. 103-132; IDEM, Linhagens Medie-
vais Portuguesas. Genealogias e estratégias (1279-1325), Porto: Centro de Estudos de Genealogia,
Heráldica e História da Família, 1999, 3 vols.
21
MATTOSO, José, “Os Livros de Linhagens portugueses na literatura genealógica europeia da
Idade Média”, Lisboa: separata de Armas e Troféus, 1976.
22
MATTOSO, José (selecção, introdução e notas), Narrativas dos Livros de Linhagens, Lisboa:
INCM, 1983.
23
KRUS, Luis, A concepção nobiliárquica do espaço ibérico (1280-1380), Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1994.

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Recensão crítica por Miguel Metelo de Seixas

da nobreza 24, no que foi seguido, mais recentemente, por Stéphane Boisselier 25;


e José Augusto de Sottomayor-Pizarro realizou um estado da questão da produção
genealógica portuguesa, fornecendo outrossim o enquadramento sociocultural
das narrativas dos nobiliários na sua caracterização das linhagens medievais 26.
Saltando sobre o período renascentista, a historiografia actual, para a qual
a nobreza voltou a ganhar o foro de tema lídimo, retomou o estudo dos nobiliá-
rios nos séculos XVII e XVIII. Contudo, a dimensão de auto-representação da
nobreza moderna tem incidido sobretudo sobre questões de produção tratadística
e de cultura visual (como a heráldica); ao passo que as obras genealógicas têm sido
consideradas mais pelo seu valor prático, para conhecimento das ligações fami-
liares e estudo de casos específicos de criação de narrativas linhagísticas. Exceptua-
-se o trabalho de João de Figueirôa-Rêgo que, com base na obra de D. Flamínio
de Sousa mas fornecendo uma visão geral dos circuitos de produção e circulação
dos nobiliários, pôs em evidência o papel de que o saber genealógico e os seus
cultores se revestiram para a caracterização da nobreza moderna, analisando-os
como instrumentos de construção identitária e de validação da hierarquia social 27.
Em contraponto ao que se verifica para o período medieval e para os
séculos XVII e XVIII, a historiografia portuguesa tem-se revelado menos atenta à
produção de obras genealógicas dos séculos XV e XVI. Situando-se no contexto
da segunda metade deste último século e o período filipino, Guillén Berrendero
estudou a produção tratadística e os mecanismos de reconhecimento nobiliár-
quico com base em categorias e em práticas reconhecidas 28; contudo, este autor
privilegiou a produção tratadística, não aprofundando a análise específica da
produção dos nobiliários portugueses, com excepção do supracitado anónimo
publicado por Machado de Faria que até agora constituía, na verdade, a única
fonte deste tipo dada à estampa.
Este relance sobre a historiografia dedicada à literatura genealógica
portuguesa evidencia, assim, a oportunidade da edição do Livro de Linhagens

24
PICOITO, Pedro Miguel Cordeiro da Costa, As Musas e a História. História, conflito e legiti-
mação política nos livros de linhagens, Lisboa: dissertação de mestrado em Literaturas Medievais
Comparadas Portuguesa e Francesa, FCSH/Universidade Nova de Lisboa, 1997.
25
BOISSELIER, Stéphane, “Les rois, la guerre, les Maures. La (re)construction de l’idéologie de
Reconquête dans une source portugaise généalogico-narrative tardive : les «livres de lignages»”, in
CAROZZI, Claude ; TAVIANI-CAROZZI, Huguette (dir.), Le Pouvoir au Moyen Âge, Aix en
Provence : Université de Provence, 2005, pp. 123-145.
26
SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de, “O género genealógico…”, cit.; IDEM, Linha-
gens Medievais Portuguesas..., cit.
27
FIGUEIRÔA-RÊGO, João de, Reflexos de um poder discreto, Lisboa: Caleidoscópio, 2008.
28
GUILLÉN BERRENDERO, José Antonio, La Edad de la Nobleza. Identidad nobiliaria en
Castilla y Portugal (1556-1621), Madrid: Ediciones Polifemo, 2012.

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GÓIS, Damião de, Livro de Linhagens de Portugal

de Damião de Góis. A sua importância não deriva apenas da projecção do seu


autor na cultura portuguesa, mas também do facto de este livro vir colmatar um
vazio e constituir, por conseguinte, uma espécie de elo perdido entre os nobi-
liários medievais e modernos até agora impressos. A partir desta edição, tornar-
-se-á possível estabelecer filiações pertinentes entre uns e outros, evidenciando
as formas de transmissão, difusão e integração (ou refundição) dos textos desta
natureza. Todo um universo filológico se abre portanto com a publicação da obra
genealógica de Góis.
Mas o interesse do Livro de Linhagens não se esgota nos campos da filologia
ou da genealogia propriamente dita. É importante compreender que a obra genea-
lógica de Damião de Góis não se limita a prolongar os livros de linhagens medie-
vais, actualizando-os. O autor procura inserir o género genealógico no enqua-
dramento do saber histórico tal como era considerado e praticado na sua época,
o que tem consequências de relevo, por exemplo, no campo do método. Góis
revela, em diversos trechos da sua obra, uma preocupação nova no que respeita
à consulta e confrontação das fontes, bem patente nas pesquisas que desenvolve
para tentar resolver, por exemplo, a questão da filiação do Conde D. Henrique.
Mas, e nisso residirá o seu principal interesse para os historiadores do
século XVI, o Livro de Linhagens espelha também o novo paradigma do nobre
cortesão. Desde o século XV, constituíra-se um novo modelo de nobreza, colo-
cada ao serviço do rei e reunida em seu redor numa estrutura de complexidade
crescente: a corte. A curialização da nobreza desenvolveu-se mediante a afirmação
de uma hierarquia própria da corte, em que as linhagens foram criando intrin-
cados mecanismos de estruturação. Tal hierarquização traduziu-se em categorias
ditadas pela Coroa (as moradias da Casa Real), consubstanciadas por disposições
normativas, mas também em instrumentos de cultura visual, com realce para
a apropriação e instrumentalização de que a heráldica foi objecto por parte do
poder régio 29. O que implica que os objectivos e os parâmetros desta obra genea-
lógica quinhentista diferem substancialmente dos das suas congéneres medievais:
embora centrado à mesma na linhagem, o nobiliário goesiano deixa transparecer,

SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo, “Elementos de uma cultura
29

visual e dinástica: os sinais heráldicos e emblemáticos do rei D. Duarte”, in BARREIRA, Cata-


rina Fernandes; SEIXAS, Miguel Metelo de (coord.), D. Duarte e a sua época: arte, cultura, poder
e espiritualidade, Lisboa, Instituto de Estudos Medievais / Centro Lusíada de Estudos Genea-
lógicos, Heráldicos e Históricos, 2014, pp. 257-284; SEIXAS, Miguel Metelo de, “Reflexos
ultramarinos na heráldica da nobreza de Portugal”, in RODRIGUES, Miguel Jasmins (coord.),
Pequena Nobreza e Impérios Ibéricos de Antigo Regime, Lisboa, Instituto de Investigação Científica
Tropical, Centro de História de Além-Mar, 2012, pp. 1-37.

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Recensão crítica por Miguel Metelo de Seixas

sobretudo na sua estruturação, outros critérios que se prendem com a centrali-


dade da dinastia real e com a hierarquização da corte.
O Livro de Linhagens de Damião de Góis assume-se, assim, como reflexo
da sociedade de corte que o gerou: a sua organização interna espelha e em simul-
tâneo participa na construção de uma determinada ordem hierárquica, correspon-
dendo a estratégias de afirmação das linhagens no contexto áulico. Nesse sentido,
como já assinalou Sottomayor-Pizarro, o nobiliário de Góis relaciona-se de forma
íntima com os monumentais armoriais régios da primeira metade do século XVI
e mesmo com a sala dos brasões do paço real de Sintra: todas estas realizações
entendem-se como fontes de criação e perpetuação de uma determinada ordem
social, sob a égide da Coroa 30. Importa também realçar o papel desempenhado
não apenas pelos monarcas, mas também pelos seus familiares mais próximos,
que formavam o importante conceito de dinastia régia, ocupando um patamar
intermédio entre o soberano e a nobreza curial. É conhecida a acção mecenática
dos filhos segundos de D. Manuel nestas áreas, com destaque para a genealogia
iluminada do infante D. Fernando ou para o livro de armas do infante D. Duarte
(infelizmente ainda por publicar); a que se deve juntar o Livro de Linhagens, que
terá resultado de uma encomenda do infante D. Luís.
Deste modo, o rei, os seus parentes próximos e a demais nobreza cortesã
uniam-se na produção de instrumentos diversificados de afirmação da hierarquia
áulica e na partilha de ideais, de interesses e de códigos. Assinale-se, aliás, que é
atribuído a Damião de Góis um livro de Avizos que deve guardar hum Cortezão,
com o qual se completaria esta pouco valorizada faceta do humanista enquanto
homem de corte 31. Por isso, a edição do Livro de Linhagens revela-se tão impor-
tante para o conhecimento integral da obra de Damião de Góis, como para a
caracterização da cultura de corte portuguesa do século XVI, em particular no
entendimento do papel que o saber genealógico nela desempenhou. A edição
crítica de Pestana de Vasconcelos veio abrir as potencialidades de exploração de
campos até agora mantidos em pousio.
Por último, assinale-se o conjunto de circunstâncias propícias que permi-
tiram a existência desta publicação. Antes de mais, o trabalho de pesquisa e fixação
da edição crítica por António Pestana de Vasconcelos, realizado no âmbito do
Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (Porto) sob a orientação
de José Augusto de Sottomayor-Pizarro, trabalho possível mercê da obtenção de
uma bolsa de pós-doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia. Em seguida, o acolhimento que esta obra teve por parte do Instituto

SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de, Linhagens Medievais Portuguesas..., cit., p. 139.


30

MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana […], Coimbra: Atlântida Editora, 1965
31

[1741], vol. I, p. 621.

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GÓIS, Damião de, Livro de Linhagens de Portugal

Português de Heráldica, que patrocinou a sua edição com o apoio do Centro


Lusíada de Estudos Genealógicos, Heráldicos e Históricos (Universidade Lusíada
de Lisboa) e do CEPESE. Como se vê, a edição do Livro de Linhagens de Damião
de Góis resulta portanto do contributo de diversas instituições e da interacção
entre esfera pública e privada. Para o IPH, em particular, esta é sem dúvida uma
excelente forma de dar início a uma nova série editorial.

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