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20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

milagres que nos apresenta S. Gregório Magno e o


legislador inspirado que teria composto este texto
entre 530 e 560. Além do mais, a primeira menção
bem precisa da regra de S. Bento (fora a breve
passagem de S. Gregório já citada) não é anterior aos
anos 620-630 e o manuscrito mais antigo que dela
nos chegou (Oxford, Biblioteca Bodleiana, cód. Hatton
48) data do ano 700, mais ou menos.
Há uns quarenta anos, uma dúvida séria sobre a
identidade dos dois Bentos — o dos Diálogos e o da
Regra — começou a invadir os espíritos quando se
deu conta de que uma regra anónima muito longa,
conhecida pelo nome de Regula Magistri ("Regra do
Mestre") e contida em dois manuscritos dos anos 600,
era na realidade anterior à de S. Bento. Longe de ser,
como se tinha acreditado até então, uma glosa prolixa
desta última, ela constituía a sua fonte e Bento, de
autor original, via-se remetido para a categoria de um
simples abreviador deste "mestre" desconhecido.
Imagine-se a emoção que esta notícia suscitou nos
claustros! Não vamos entrar no pormenor das
controvérsias eruditas que grassaram sobre este tema
no decorrer das últimas décadas. Seria escusado,
tanto mais que uma solução acaba de ser dada a esta
questão disputada pelo Padre de Vogüé, na in-
trodução à edição de La Règle de Saint Benoit que
publicou recentemente, e as suas conclusões
obtiveram a adesão da maior parte dos historiadores.
Abandonando as posições tradicionais que se
tornaram insustentáveis, o sábio beneditino considera
um facto adquirido a anterioridade da Regra do
Mestre em relação à de S. Bento e admite que este se
inspirou no primeiro texto, o qual abreviou
consideravelmente. Longe de complicar as coisas, a
aceitação desta dependência simplifica -as e toma
sobretudo mais verosímil o facto de o homem de
Deus elogiado por Gregório Magno e o abade
legislador do Monte Cassino serem uma única e a
mesma pessoa. Se Bento não redigiu a carta do
monaquismo ocidental mas simplesmente retocou um
texto anterior, adaptando-o às circunstâncias e
incorporando nele outros contributos, compreende-se
melhor
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Monges e Religiosos na Idade Média

m
apresentação de
JACQUES BERLIOZ Terramar
Colecção PEQUENA HISTÓRIA
• Segredos de Alcova Laure Adler

• As Doenças Têm História


Jacques Le Goff e outros autores
• Amor e Sexualidade no Ocidente
Georges Duby e outros autores
• A Vida nos Bordéis de França Laure Adler

• A Piedade e a Forca — História da Miséria e da Caridade


na Europa
Bronislaw Geremek
• A Formação da Família Moderna
Edward Shorter
• Monges e Religiosos na Idade Média
Jacques Berlioz e outros autores
A publicar:
• Desfazer o Nó — Breve História do Divórcio Roderick
Phillips

• Uma História da Contracepção — Da Antiguidade à


Actualidade
Angus McLaren
num momento particularmente trágico na história de Roma e da
Igreja. A Itália, abandonada pelos imperadores de Constantinopla
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 19

e sangrada até à última gota de sangue pelas guerras "góticas"


que haviam oposto durante mais de trinta anos os generais
bizantinos aos sucessores de Teodorico, achava-se então
entregue sem defesa à invasão destruidora de um novo povo
bárbaro e, o que mais é, hostil ao catolicismo: os Lombardos, que,
depois de terem conquistado a planície do Pó, chegavam às
portas de Roma. Diante deste desfraldar de violência e como que
para o esconjurar, Gregório optou por exaltar a memória de alguns
indivíduos — bispos, monges ou simples leigos — cujos milagres
tinham feito recuar as forças do mal à sua volta, lançando assim
as bases de uma nova ordem cristã fundamentada, não em
estruturas de poder, mas numa fé absoluta na omnipotência de
Deus. É verdade que o pontífice indica de passagem que Bento
tinha escrito uma regra monástica notável, mas trata-se de uma
menção isolada da qual não seria possível extrair a argumentação
para pretender que este fosse considerado por volta do ano 600 o
grande legislador do monaquismo em Itália 4.

Nascimento de uma regra


O outro documento sobre o qual se baseia o conhecimento que
podemos possuir de S. Bento é precisamente a regra cuja
paternidade lhe é atribuída. Tratando-se de um texto normativo,
concebe-se sem dificuldade que o seu autor não se mencione a si
mesmo nem faça referência explícita à sua própria experiência,
ainda que esta tenha sem dúvida influenciado os preceitos que ele
prescreve. Escreve-se muito sobre esta regra desde há séculos e
inúmeros comentadores ou apologistas apresentaram S. Bento
como um autor genial, que soube codificar de uma vez por todas
as observâncias que estão na base do monaquismo ocidental.
Mas, nesta perspectiva, já não se vê tão bem a relação que
poderia existir entre o fazedor de
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Mas Bento entrou em conflito com o sacerdote Florêncio, que


tinha jurisdição sobre a região e que tentou sublevar os jovens
noviços contra ele. Cansado destas afrontas, partiu com alguns
monges e foi estabelecer-se uma centena de quilómetros mais a
sul, no monte Cassino. A esta migração, a qual deve ter ocorrido
por volta de 530, seguiu-se o estabelecimento da comunidade no
local, desta feita definitivo. Foi construído um mosteiro no cimo de
uma montanha que dominava a cidade e a região de Cassino,
sobre as ruínas de um antigo templo de Apolo. Segundo Gregório,
Bento teria aí tido um encontro, em 542, com o rei dos Godos,
Totila, a quem convidou a mostrar-se mais clemente para com as
populações civis. Depois de ter fundado um outro inosteiro em
Terracine, pensa-se que terá morrido em 547 (ou antes, por volta
de 560, segundo as hipóteses mais recentes). Foi enterrado com a
irmã, Santa Escolástica, no Monte Cassino, logo a seguir
destruído pelos Lombardos (em 580) antes de voltar a ser
arrasado, primeiro em 1349 por um tremor de terra e depois em
1944 pelos bombardeamentos americanos.
Ao apresentar as coisas assim, na sequência de todos os que,
no passado, escreveram a vida de S. Bento, faz-se passar o texto
de Gregório Magno por uma deformação que engana o espírito.
Com efeito, este último não quis compor uma biogfafia do santo,
mas pôr em relevo o poder sobrenatural de um homem caris-
mático, que tinha realizado uma quantidade de milagres
extraordinários: a reparação de um crivo para separar cereais que
se tinha partido em dois ou de um sino quebrado pelo diabo; o
salvamento de Plácido por Mauro, que correu sobre as águas de
um lago, graças à oração do santo, para ir em socorro do seu
companheiro; o resgate de um camponês feito prisioneiro por um
godo ou a ressurreição de uma criança — tais são os sinais que
retêm a atenção do Papa e só nos meandros das suas narrativas
que constituem a trama dos Diálogos se podem apreender as
diversas fases da existência de Bento.
Esta tendência de valorizar os milagres não deve surpreender-
-nos: Gregório escreveu estas páginas em 593-594, quer dizer,
Apresentação de JACQUES BERLIOZ

Monges e Religiosos ha Idade Média

Terramar
Este livro resulta de uma recolha de artigos inicialmente
publicados pela revista L'Histoire e posteriormente
editados, sob a forma de livro, pelas Éditions du Seuil. A
apresentação de Jacques Berlioz foi expressamente
escrita para este livro.

FICHA TÉCNICA
© Société d'Editions Scientifiques,
1994 Titulo original: Moines et
Religieux au Moyen Âge Edição
original: Éditions du Seuil, Paris,
1994 Tradução: Teresa Pére:
Ilustração da capa: pormenor de um fresco (A Verificação
dos Estigmas),
de Giotto, na igreja de Santa Cru:,
em Florença Fotocomposição e fotolitagem:
b&f Gráficos Impressão e acabamento: Rolo &
Filhos - Artes Gráficas, Lda. Depósito legal:
96873/96 ISBN: 972-710-127-5
Todos os direitos desta edição
reservados poT TERRAMAR- Editores,
Distribuidores e Livreiros, Lda. Av.
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 17

António Augusto de Aguiar, 74-r/c-Esq.


Telefones 315 68 74 - 316 08 97 - Fax:
314 22 48 1050 LISBOA-PORTUGAL
tantes trabalhos que tiveram o mérito de "recuperar S.
Bento para a história"3. De que se trata? De facto, duas
fontes bem diferentes informam-nos da sorte do fundador
do Monte Cassino. A primeira é constituída pelos Diálogos
de S. Gregório Magno, que foi papa de 590 a 604, cujo
segundo livro é consagrado na totalidade à vida e
sobretudo aos milagres de um certo Benedictus (Bento)
que tinha vivido na primeira metade do século vi.
O seu retrato insere-se numa visão de conjunto
consagrada àqueles a que Gregório chama os "padres
italianos", isto é, a homens de Deus comparáveis a esses
"padres do deserto" cujos feitos ascéticos e poderes
taumatúrgicos tinham sido celebrados, do século IV em
diante, pelo Oriente. Que nos diz Gregório sobre Bento?
Nascido na região de Nórcia, no Apenino úm- brio, no seio
de uma família abastada, Bento cedo se dirigiu para
Roma. Aí recebeu uma educação escolar fortemente im-
pregnada pela cultura antiga, ainda muito viva nesses
últimos anos do século v em que Teodorico, rei dos
Ostrogodos, reinava na Itália e restaurava as moradas
imperiais do Palatino. Mas este ensino suscitou no jovem
uma reacção de aversão e ele depressa se retirou para o
isolamento a fim de aí aprender a "douta ignorância".
Após uma estada nos arredores de Palestrina,
alcançou regiões mais selvagens e mais afastadas, a
leste de Roma, e estabeleceu-se numa gruta, perto de
Subiaco, no meio de montanhas agrestes que se
debruçavam sobre o alto vale do Aniene. Aí viveu três
anos, entregando-se ao ascetismo mais extremo, à
maneira dos solitários do Egipto ou da Síria. Depois de
uma vã tentativa para se inserir numa comunidade das
redondezas — os monges, dos quais se tornara o abade,
consta que o tentaram envenenar —, voltou a Subiaco e
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 18

aí fundou doze pequenos mosteiros que reuniam os


eremitas da vizinhança. Dado que o seu prestígio pessoal
não parava de crescer, aristocratas romanos levavam-lhe
como oblatos crianças pequenas, das quais as mais
célebres foram os seus principais discípulos, Mauro e
Plácido.
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

• em última análise, se esta hesitação não reflectisse a


nossa ignorância de tudo o que se refere à
personalidade do grande legislador monástico e a
incerteza na qual mergulha a sua biografia. Certos
autores muito sérios levaram mesmo o paradoxo ao
ponto de se interrogarem se ele alguma vez existiu...
Com efeito, ao contrário da maior parte das ordens
religiosas posteriores (franciscanos, dominicanos,
jesuítas, etc.), os ) beneditinos não devem a sua
difusão à irradiação pessoal do ^seu fundador mas ao
êxito de um texto — a regra beneditina — que,
segundo a fórmula do seu último editor, constitui "a
expressão mais feliz e mais prática da sabedoria
tradicional do cenobitismo"2. No mínimo tratando-se
de um santo, poder-se-ia esperar saber onde se
encontra o seu corpo, uma vez que o culto que lhe é
prestado deve ter irradiado da sua sepultura. Para
cúmulo do infortúnio, subsiste também uma dúvida,
não obstante todas as investigações que foram
efectuadas a seguir à Segunda Guerra Mundial, sobre
a localização e a autenticidade das relíquias de S.
Bento. O Monte Cassino, em Itália, pretende tê-las
integralmente conservadas. Mas esta afirmação é pelo
menos parcialmente contradita por uma tradição
largamente documentada, segundo a qual os restos
do patriarca teriam sido trazidos para Saint-Benoít-
sur-Loire, em 673, por um monge franco que as teria
encontrado nas ruínas do Monte Cassino. Teriam de-
pois permanecido, no essencial, no nosso país, como
afirmam as recolhas de milagres de S. Bento que
foram compostas por monges de Fleury entre os
séculos ix e xii.
De tudo o que ficou dito, o leitor poderia ficar com a
impressão de estar mergulhado num universo
lendário. Seria o "pai dos monges do Ocidente", para
retomar a expressão consagrada,. desses fundadores
míticos que as instituições — religiosas ou outras —
gostam de situar nas suas raízes, depois de terem
atingido grande.desenvolvimento, como que para
mostrar que o seu êxito ulterior estava já contido em
gérmen na perfeição das origens? O problema é
complexo e deve ser estudado atentamente. Por
acaso, ele acaba de ser recentemente renovado por
impor-
Apresentação

A experiência monástica da Idade Média é fascinante


pela sua riqueza, pela sua amplitude e pelas suas
contradições. Como é que homens — e mulheres —
enclausurados, fechados, emparedados, votados à
ascese e à pura busca de Deus puderam ter uma tal
influência sobre os seus contemporâneos, exercer uma
tal hegemonia religiosa e cultural? Como conseguiram
eles aliar a fuga do mundo a um papel de primeiro plano
na vida económica e até política do seu tempo? Como é
que seres voluntariamente afastados do mundo deram
consigo a exprimi-lo, a querer mudá-lo e a fazê-lo pender
para o domínio do divino? Porquê também no século Xin
essa ruptura, essa atracção irresistível pelas multidões,
nesse desejo de as evangelizar numa -rigorosa pobreza?
Curiosamente, estas perguntas parecem muitas vezes
supérfluas, por estarmos na presença de uma sociedade
medieval implantada sob o cunho do cristianismo. Afinal,
não há dúvida de que existiu na Idade Média um
"mistério" monástico. Os estudos aqui reunidos têm uma
ambição: afastar uma grande parte do véu.
No Ocidente, o movimento monástico triunfou sob a
sua forma cenobítica (do gregokoinobion, "vida em
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

comum") e não • eremítica. Por outras palavras, os


monges (do grego monakhos, "solitário") viram-se
reunidos num conjunto de edifícios: o mosteiro. Com
alguma pena, aliás. Os monges irlandeses e anglo-
saxões pretenderam durante muito tempo ser herdeiros
dos anacoretas egípcios, fugindo do mundo e tentando
reencontrar individualmente a experiência espiritual e
religiosa dos Apóstolos de Cristo. Mas as figuras de proa
do monaquismo egípcio foram por sua vez seguidas por
discípulos desejosos de beneficiar dos conselhos e das
orações de um abba, de um mestre. Numerosos são os
anacoretas que se agrupam em torno de um Antão ou de
um Pacómio e lhes impõem a sua presença. Daí a
necessidade que se impunha a esses chefes, contra a
sua vontade, de estabelecer um código de
comportamento para os solitários, vivendo então
paradoxalmente o seu isolamento em grupo, num lugar
retirado, auto-suficiente e rigorosamente organizado. O
movi mento monástico ocidental é ritmado, desde o
século iv, pelas fundações de mosteiros, regidos por
regras diversas mas todas baseadas na obediência ao
chefe da comunidade e numa disciplina de vida ordenada
em torno da oração e do trabalho. Destas regras
múltiplas, há uma que triunfa: a que se institui sob o
nome de S. Bento. As razões do seu êxito são evidentes:
longe dos excessos orientais — lembremo-nos dos
santos estilitas que viam o mundo do alto das suas
colunas —, a regra proposta por Bento de Núrsia —
fundador do célebre mosteiro do Monte Cassino por volta
de '529 — é moderada, maleável e equilibrada: cabe ao
abade na sua discrição ter em conta a diversidade dos
sujeitos e dos locais: "S. Bento repartiu harmoniosamente
o trabalho manual, o trabalho intelectual, a actividade
mais propriamente espiritual no emprego do tempo
monástico" (Jacques Le Goff).
Sem querer à viva força atribuir simplesmente o triunfo
de uma experiência às qualidades de personagens de
excepção, há que reconhecer que o monaquismo soube
impor-se por intermédio de figuras notáveis, cuja
santidade pessoal e cujo carisma foram ampliados e
enlevados pela narrativa das suas vidas copiosamente
divulgadas: os Diálogos do papa Gregório Magno ■—- a
sua "ingenuidade" levou mesmo a duvidar de que fossem
S. Bento e a revolução dos mosteiros
André Vauchez

Em 1980, um pouco por toda a parte no mundo inteiro,


colóquios científicos, manifestações religiosas e
exposições assinalaram o décimo-quinto centenário do
nascimento do pai dos monges do Ocidente, S. Bento, a
quem alguns não hesitam em chamar o pai da Europa. A
França não ficou alheia a este movimento, o que não é
senão de justiça, uma vez que se avalia em mais de vinte
mil (em cem mil para o conjunto da cristandade) o número
das abadias e priorados beneditinos que floresceram no
seu solo1. Basta pensar no que representam na nossa
história nomes como Saint-Benpit-sur-Loire, Saint-
-Germain-des-Prés, Cluníaco (Cluny), Cister (Citeaux),
Saint-Wandrille ou Sénanque — atendo-nos apenas aos
mosteiros mais notáveis do ponto de vista cultural e
artístico — para nos apercebermos de que este
aniversário não dizia respeito unicamente aos monges
dos nossos dias. Forneceu, em todo o caso, uma
excelente ocasião para nos interrogarmos sobre o
fenómeno monástico encarado nas suas origens e na sua
significação histórica.
Ao examinar os dados sobre os quais repousam estas
comemorações, não pode deixar de nos surpreender a
sua imprecisão: segundo os trabalhos mais recentes,
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

parece mesmo que S. Bento terá nascido por volta de 490


e não de 480. Pouco importaria,
APRESENTAÇÃO 7

da autoria de tão grande personagem —


apresentando a gesta de S. Bento de Núrsia foram um
prodigioso instrumento de propaganda, cujo êxito se
não desmentiu ao longo de toda a Idade Média.
Quando os Carolíngios chamam a si os destinos do
mundo ocidental, o monaquismo é sobretudo
beneditino; mesmo tendo as missões irlandesas e
anglo-saxónicas trabalhado antes laboriosamente,
fundando mosteiro atrás de mosteiro, como é o caso
de Luxeuil em 590 ou Bobbio em 613. O modelo
beneditino achou-se imposto sob o impulso de outro
Bento, este de Aniane, no século ix. Quando nos
séculos x e xi se faz uma vigorosa renovação
monástica, os grandes fundadores continuam lá. A
frente de Cluníaco (Cluny), fundado em 910, impõem-
se chefes incontestados. O movimento eremítico
renascente vê-se aberto e canalizado por
personagens como Romualdo, Etienne de Muret,
Norberto, Robert d'Arbrissel ou Bruno. Tantas
reformas, tantos retornos ávida apostólica, tantas
fundações: Camaldoli, Grandmont, Prémontré,
Fontevraud, a Grande Cartuxa (Chartreuse). Se
Bernardo de Claraval (Clairvaux) não é o fundador da
ordem cistercience, é o propagador dela. Quanto a
Abelardo, vindo da escola do claustro, funda um
mosteiro dedicado ao Espírito Santo, o Paráclito, e em
breve é eleito abade pelos monges da abadia de
Saint-Gildas-de-Rhuys, na Bretanha. O monaquismo
medieval é pois realmente uma sequência
ininterrupta, mas dependente das condições
históricas, de afirmações de uma vontade de retorno a
uma verdadeira vida apostólica. E isto até ao final da
Idade Média, ainda que este arrebatamento
esmoreça. Mas não nos devemos esquecer de que o
próprio Lutero é um monge: não seria a Reforma um
APRESENTAÇÃO 8

avatar /■ de um perpétuo retorno às fontes? ———~


,
"T!Rãdè pãznüm^ünHõTTòsfi 1, o mosteiro é um
refúgio para i quem deseje ter uma relação absoluta
com Deus: "O mosteiro de S. Bento é uma escola ao
serviço de Deus e não é mais que isso" (Dom Jean
Leclerq). Busca que pressupõe mais que um
afastamento do mundo: uma verdadeira separação. E
isto na
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

antecipação da vida celeste. Este mundo fechado tem a


sua cultura própria, feita de literatura clássica — é graças
aos mosteiros que numerosos escritores latinos chegaram
até nós —da Sagrada Escritura e da tradição dos Padres
da Igreja. A lectio divina, essa "leitura divina", é a
abordagem incessante, remoída da Bíblia. A liturgia
(enlevada e absorvente em Cluny) mediatiza-a, unifica-a,
expressa-a. Aliás, compreende-se porque razão os
monges cultivam o gosto pela história: os acontecimentos
particulares (calamidades, infortúnios) inscrevem-se na
história da redenção, ditada pela Escritura. A busca
intelectual deve pois manter-se subordinada à de Deus:
daí a desconfiança no século xii de um S. Bernardo
perante uma teologia especulativa que parecia desprezar
a humildade monástica face aos mistérios divinos.
O mosteiro, que se pretende um recipiente fechado,
está todavia aberto ao exterior. Começa por ser um
objecto de poder: os grandes apoiam-se nele para
fortalecer o domínio sobre um território. É também um
lugar de poder. Cluny, "clarão de esperança num mundo
de violência" (R. Fossier), subtrai-se ao mundo feudal,
ligando-se directamente a Roma, e funda um imenso
império monástico, independente, tentacular. As enormes
dimensões da sua igreja abacial — formava a igreja mais
vasta da cristandade -— "éra evidentemente a imagem
pura desse império sem igual" (A. Guerreau). Os
superiores da ordem, como os grandes abades, exercem
uma influência política inegável, sobretudo do século x ao
século xn. Tanto no plano loca! como ao nível da Europa
inteira. O abade de Cluny, Pedro, o Venerável, lança-se
em perpétuas viagens. Bernardo de Claraval faz o
mesmo. Suger, abade de Saint-Dénis, substitui, com
autoridade e talento, Luís vil quando este parte em
cruzada. E um sentimento poderoso do dever de exercer
um magistério moral sobre o mundo que leva
paradoxalmente estes homens de Deus a deixar o seu
claustro.
Se as regras monásticas proscrevem a propriedade
individual, não excluem em geral de forma alguma a
posse colectiva.
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

1. FUNDAÇÕES E
RENOVAMENTOS
APRESENTAÇÃO 9

Os mosteiros, grandes e incomensuráveis


proprietários de terras, são centros económicos
importantes. Desde a época merovíngia que os
mosteiros atraem as populações e formam centros de
aglomeração urbana. Em breve os mosteiros,
cumulados de doações piedosas, comportam vastos e
ricos domínios. Riqueza essa parcialmente
redistribuída através da esmola e do acolhimento aos
indigentes. A vida autárquica dos mosteiros
cistercienses—situados todavia longe das povoações
—acabará por ter uma influência que não é de
desprezar na economia geral; os cisterçienses vão
implantando com efeito várias formas de exploração
do meio: o sistema dos celeiros e das adegas, mas
também o saneamento das terras pela condução de
águas e a piscicultura, a captação e a canalização da
água para utilizar a sua força motriz ao serviço dos
moinhos e dos pisões, a implantação da siderurgia por
extracção dos minérios e redução nos altos-fornos: a
abadia de Fontenay, na Borgonha, é disso um
exemplo acabado.
O mosteiro é também um local privilegiado de
mediação espiritual entre este mundo e o além. A
tarefa dos monges, perpétuos triunfadores sobre o
Maligno — as narrativas hagiográficas encontram-se
recheadas de lutas vitoriosas com Satanás —, é orar
pelos que não abraçaram como eles esta vida
fundamentada no abandono de si no amor de Deus.
Esta élite "que sabe e quer medir a integridade do
abismo que a separa do resto da humanidade" (G.
Miccoli) também sabe que é uma garantia, para os
outros, de um além promissor.
Nesta Idade Média masculina, qual é o lugar do
monaquis- mo feminino? Pergunta importante —
desde os primeiros séculos da Igreja e ao longo de
todo o período medieval existiram comunidades
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

religiosas femininas —, mas que só muito recen-


temente foi colocada pelos historiadores. Daí o
interesse da terceira parte desta compilação. Há um
tema constante que se destaca: a Igreja não recusa às
mulheres consagrarem-se plenamente a Deus mas
desconfia delas, da sua natureza diabólica sempre
pronta a ressurgir. É que debaixo da arrependida,
debaixo da virgem pura, continua a ocultar-se a Eva
tentadora. As comunidades de virgens e, depois, de
monjas enclausuradas são pois severamente
controladas. E não se põe sequer a questão de as
mulheres poderem ser eremitas: "O deserto continua a
ser o domínio dos homens" (P.-L. Garier). No
Ocidente, as reclusas (cujo modo de vida alcança um
grande êxito a partir do século xu) vivem numa cela —
geralmente uma casinha ligada a uma igreja—de onde
lhes é impossível sair, mas que não as priva de todo o
contacto com o exterior. Temos pois um isolamento vi-
giado. Do século vi ao século x, os mosteiros
femininos multiplicam-se, mas acolhendo as filhas e as
viúvas da aristocracia. Se as mulheres participam no
grande impulso de reforma dos séculos xi e xii, não se
poderá falar de uma promoção. Em Fon- tevraud,
fundado em 1101, a abadessa dirige o mosteiro "du-
plo" (homens e mulheres). Humilhação suprema para
os monges ter de obedecer a um superior que
considerado, secretamente, indigno do seu posto:
Fontevraud é "uma ilha de escravos, um mundo às
avessas" (J. Dalarun). Por outro lado, a maior parte
dos superiores do monaquismo tentam esquivar-se a
encarregar- -se das comunidades femininas. É certo
que no final da Idade Média o monaquismo feminino
se desenvolve—as cistercienses vêem o seu número
crescer grandemente —, mas a Igreja permanece
desconfiada e vigilante, sendo nomeadamente as
APRESENTAÇÃO 11

comunidades de beguinas objecto de uma vigilância


muito particular.
O começo do século XIII assinala uma ruptura
capital na história do monaquismo ocidental. O
sistema monástico baseado na fuga do mundo e no
retiro num lugar protegido desmorona-se. Já nòs
séculos XI e XII — G. Miccoli lembrava-o há pouco —,
os monges tinham saído dos claustros para pregar ou
para serem investidos nas paróquias. Mas estas
incursões no século eram bastante contraditórias com
a tradição beneditina. O aparecimento das ordens
mendicantes — como aliás a reforma dos cónegos—é
um testemunho da adaptação às novas necessidades
dos tempos. A partir de então a autenticidade de uma
vida apostólica deixa de se confundir com o esquema
monástico de perfeição.
O desenvolvimento das cidades, onde os
habitantes eram mal acompanhados por padres que
se deixavam abater sob o peso da tarefa, a extensão
da heresia maniqueísta, a escalada de movimentos
contestatários (como os Valdenses) que exaltavam a
pobreza e o regresso a uma vida evangélica exigiam
uma reacção. Ela foi forte e eficaz. Pregação do
Evangelho na pobreza, eis o que caracteriza as ordens
religiosas fundadas por Domingos de Calaruega e
Francisco de Assis. Os irmãos mendicantes são
religiosos—mais vale guardar o termo monges para os
membros das ordens que se excluíam voluntariamente
da sociedade — que scquerem mergulhados no
mundo. O papado exerce o seu controlo, exige uma
regra, mas não será a de S. Bento (Domingos adopta
a regra chamada de Santo Agostinho). Os irmãos
pregadores, dotados de uma sólida formação
teológica, depressa se impõem nas universidades —
Alberto Magno e Tomás de Aquino são disso insignes
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

exemplos. Pregadores, constituem também os


principais colaboradores dos tribunais da Inquisição.
Quanto aos franciscanos, também eles portadores de
uma palavra nova virada para os leigos, no Ocidente e
no mundo inteiro, fornecem professores às
universidades, de Boaventura a Guilherme de Occam.
Mas a discórdia instala-se nestas ordens novas. Em
breve surgem outras crises, outras reformas, outras
cisões.
As ordens monásticas e religiosas modelaram no
seu conjunto o Ocidente medieval. Numa incessante
dialéctica entre a fuga do mundo e a acção sobre o
mundo, formaram um fenómeno total: religioso, social,
económico, político, artístico e cultural. As relações
complexas que se prendem com a sociedade do seu
tempo obrigaram-nas a modificar-se, a reformar-se e
por vezes a apagar-se.
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

submeti-o ao seu poder e ao seu domínio." As


mulheres detêm pois o poder na ordem. Alguns dias
mais tarde, Robert interroga-se: vale mais confiar o
comando supremo a uma matrona vinda do mundo ou
a uma virgem criada no convento? A primeira solução
parece-lhe a mais sábia para proveito do património e,
em fins de Outubro, escolhe Petronilha de Chemillé
para abadessa geral, tendo autoridade sobre os
irmãos e as irmãs e sobre todas as casas da ordem.
Não fica assim a mulher colocada num pináculo e o
homem, seu cavaleiro servo, como João Evangelista
ao serviço de Maria? Fazendo exactamente referência
a esse casal célebre, o irmão André precisa: "Não digo
isso para comparar o nosso serviço ao de S. João,
pois está para mim fora de dúvida que essa Virgem
excelente, colocada junto do seu filho no Paraíso, não
tem réplica." Curiosa restrição, como se o servidor
julgasse indigna aquela a quem se devota... Sem
dúvida há que reler mais de perto as instruções de
Robert: "Obedecer às servas de Deus para salvação
das vossas almas." O confronto destas duas citações
desvenda o segredo da ordem de Fontevraud.
Renunciando, sob o dilúvio das críticas, a expor-se à
grelha do desejo, o fundador encontrou um requinte
novo na sua ascese. A Regra de S. Bento não incita
os monges desejosos de se elevar nos degraus da
humildade a suportar valorosamente, silenciosamente,
tudo o que a obediência pode conter de penoso e de
injusto? E o que haverá de mais penoso do que ter um
superior indigno? Não há na eleição de Petronilha de
Chemillé qualquer exaltação da mulher; ela é aqui,
uma vez mais, um meio de remissão para os homens.
A alguns anos de distância, na mesma vontade de
humilhação, Etienne de Muret submete os sacerdotes
e os letrados da sua ordem aos conversos acabados
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

de sair da sua gleba. No mesmo espírito, Robert não


quer ser inumado nem na igreja de Fontevraud nem
no convento, mas em pleno lodo. Por estas situações
de excepção, esboçam-se sem dúvida deslocações ín-
fimas. Mas não vejamos na submissão dos irmãos de
Fontevraud às suas irmãs em religião uma grande
revolução mental.
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 23

que a sua obra não tenha produzido uma impressão


extraordinári a nos seus contemporâneos, numa época
em que floresciam em toda a cristandade numerosos
textos normativos visando codificar os usos da vida
monástica. Renunciando a fazer dele um novo Moisés
e do Monte Cassino um outro Sinai, reencontramos o
próprio espírito do texto, cujo autor declara constituir
simplesmente "uma pequena regra para os que se
iniciam" (RB, 73, 8). Não se trata de uma manifestação
de falsa humildade: S. Bento teve com efeito
consciência de uma decadência da vida monástica.
Para ele, a idade de ouro pertence ao passado; foi a
época dos grandes solitários, esses padres do deserto
que se tinham entregado no Oriente à ascese mais
total e tinham conseguido, nem que fosse à custa de
grandes tentações como um Santo Antão, viver unidos
em Deus na oração e na meditação, ignorando total-
mente o mundo e as suas vãs seduções5.
O abade do Monte Cassino toma em consideração
as transformações sobrevindas desde então e parte
das condições concretas que eram as do seu tempo:
já que a vida solitária (ou anacoretismo) — que ele
mesmo tinha experimentado em Su- biaco — não
convinha senão a almas de eleição e muitos dos que
pretendiam ser monges não passavam de vagabundos
que se-guiam a inspiração da sua fantasia, importava
antes de mais definir as regras de uma vida
comunitária (ou cenobitismo) solidamente estruturada.
Nisso, Bento distingue-se da Regra do Mestre, que
concebia a vida monástica acima de tudo como uma
iniciação, colocando-se o noviço sob a orientação de
um "guru" — o mestre — que devia prepará-lo para a
vida solitária. Sem romper com o anacoretismo que
permanece para ele "o além glorioso e desejável do
cenobitismo"6, S. Bento acrescenta à relação vertical
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

que une os monges ao abade uma relação horizontal


baseada na caridade mútua que deve reinar entre os
"irmãos". Doravante, as palavras monachus ou
monacha (do grego monos - só) não designam
necessariamente um homem ou uma mulher que vive
para o amor de Deus como solitário e celibatário, mas
sim todos aqueles que, ao abrigo de um claustro e no
seio de uma comunidade, procurarem refazer em
Deus a unidade radical do seu ser. O monge define-se
menos pelo seu isolamento do que por um coração
unificado.
O mesmo realismo, inspirado não por um
pessimismo de princípio mas pelo estado da
sociedade do seu tempo, levou S. Bento a limitar as
exigências ascéticas ao mínimo. Não se contentando
em reduzir os jejuns, sobretudo no Verão, concede aos
monges uma medida de vinho a cada refeição, ao
passo que os eremitas da "grande época" só bebiam
água. Do mesmo modo, a sua insistência no trabalho
manual, em particular o dos campos, procede de uma
adaptação às novas condições económicas. Escrita no
momento em que esmorecia definitivamente a
prosperidade da Itália antiga, a regra beneditina visa
criar comunidades religiosas autónomas — com os
seus moinhos, a sua forja e a sua sala de cópia dos
manuscritos —, adaptadas a tempos de penúria
alimentar e de regressão cultural. É uma das razões
que explicam o seu extraordinário êxito, a partir do sé-
culo ix, altura em que a economia de trocas estará
tolhida e todas as estruturas unitárias — quer se trate
do Estado ou da rede urbana — terão sossobrado na
tormenta para dar lugar a um mundo novo baseado
em células rurais autárquicas.
Subsiste contudo um elemento de mistério no êxito
excepcional que se deparou à regra de S. Bento, para
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

cuja explicação o sentido prático do seu autor não é


suficiente. Como é que este texto escrito para três
mosteiros italianos do século vi, que não se
encontravam entre os maiores, se pôde impor à quase
totalidade das comunidades religiosas, a ponto de se
tornar a carta do monaquismo ocidental? Dois motivos,
de ordem diferente, estão na origem deste
empreendimento esmagador: o próprio conteúdo da
regra e os apoios exteriores que esta recebeu no
decurso dos séculos da parte das autoridades
eclesiásticas e laicas em razão das vantagens que
apresentava
O texto de S. Bento tem, com efeito, o mérito de ser
claro e relativamente curto. Está dividido em setentae
três pequenos capítulos precedidos do célebre prólogo
("Escuta, ó meu fiiho. os o atleta intima Deus a que lhe
responda. Mas Robert é mais audaz do que os outros;
não é o fogo, substituto da carne, que ele defronta,
mas a mulher em si, corpo a corpo.
Alguns anos mais tarde, em 1106-1107, Geoffroy,
abade do mosteiro da Trindade de Vendôme, dirige por
sua vez uma epístola a Robert5. Nela denuncia a
mesma prática, essa coabitação ilícita em que se
brinca com o fogo; desvenda-lhe o sentido, sacrílego:
"Crucificas-te no leito delas por um novo martírio."
Transmutar a paixão da carne na Paixão de Cristo, tal
é a alquimia desta ascese. Que, na coabitação, Robert
descubra pouco a pouco as mulheres, que aprenda a
olhá-las, a conhecê-las, para finalmente as reconhecer
sem dúvida. Mas, sobre o motor desta busca que o
impele para o sexo oposto e sobre a imagem original
que ele forma dela, o contra-senso não é permitido.
Devorado pelo seu sentimento de culpa, Robert vê a
mulher como ela se afigura ao seu detractor Marbode:
"Uma cabeça de leão, uma cauda de dragão, todo o
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

resto do seu corpo não é outra coisa que não seja um


fogo ardente." Uma criatura infernal... É por isso que
ele a defronta, como o pior dos suplícios.
Em 1101, Robert fixa o seu bando em Fontevraud, a
algumas léguas a leste de Saumur, onde funda um
impressionante mosteiro. As críticas têm efeito?
Continuando a conservar os dois sexos sob o seu
báculo, Robert toma muito cuidado em separá-los um
do outro. A regra que preconiza é, neste ponto,
draconiana. O êxito da ordem não tarda. Os discípulos
afluem, as doações também; os priorados multiplicam-
se: perto de uma vintena em vida do fundador e breve
trecho mais de cem. Eis o nosso eremita à cabeça de
uma poderosa e pesada máquina. Em Setembro de
1115, sente que a morte o espreita. Chama para junto
dele os homens da ordem. Um deles, o irmão André,
que narra os últimos momentos de Robert, relata
assim as suas palavras6: "Perguntai a vós mesmos,
enquanto tenho vida, se quereis perseverar no vosso
desígnio, a saber, obedecer às servas de Deus para
salvação das vossas almas. Pois sabeis que tudo o
que eu edifiquei em todos os lugares, com a ajuda de
Deus, que lhes pareciam até então legítimos. Da sorte
das mulheres de elevado nascimento, há que deduzir
a das mais modestas: esposas de segunda categoria,
companheiras de sacerdotes tocados pelas
prescrições gregorianas, "donzelas" fáceis, prostitutas.
Sem dúvida que lhes vem também o desejo de
tratamentos mais doces de que finalmente se lhes
dirija uma palavra. Àquelas que são rejeitadas,
condenadas ou que fogem, Robert abre os braços. O
sacerdote concubinário, reprovado, e as mulheres
desamparadas encontram-se. O êxito de Fontevraud é
fruto deste acaso necessário, da associação
extravagante das vítimas da confusão moral. Que quer
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ele delas? Robert não se explicou no que se refere à


força que o atrai para o sexo oposto. Mas podemos
cercá-la com a ajuda de exemplos vizinhos e das
críticas que ele suscitou na lógica do seu tormento.
Pouco antes de 1100, Marbode, bispo de Rennes,
escreve a Robert para denunciar o escândalo que ele
provoca3: o asceta compraz-se na companhia das
mulheres. De noite, o extravagante bando dos dois
sexos estende-se a trouxe-mouxe. O mestre pernoita
no meio e fixa as vigílias e o sono. Marbode não
acusa abertamente Robert de ter sucumbido; ele sabe
que, por meio desta estranha prática, o asceta tenta
expiar uma falta antiga. O seu pecado é de orgulho:
julgar-se mais forte do que o desejo que o assombra.
Pela mesma época, dois companheiros de Robert,
Guillaume Firmat e Giraud de Salles, entregam-se a
gestos insensatos que esclarecem o seu. Para provar
às mulheres que querem seduzi-los o império que têm
sobre os seus sentidos, um queima o braço com um
tição, o outro deita-se num leito em brasa e convida a
sua sedutora a reunir-se-lhe. Nesta idade feudal, a
prova judicial suprema é o ordálio, o juízo de Deus, e
Dominique Iogna- -Prat demonstrou justamente que,
fiéis a uma tradição que remonta também ela aos
Padres do Deserto, Firmat e Giraud se. submetem à
provação do fogo4. Depois do tempo de treino no
deserto em que o atleta doma os seus sentidos, vem
o tempo da pergunta: expiei o bastante? Sou de gelo?
Por meio do ordálio, preceitos do Mestre e inclina o
ouvido do teu coração"), ao longo dos quais os
conselhos espirituais alternam com directivas práticas.
Não podemos deixar de ficar impressionados pela
simplicidade do tom e pela impressão de serenidade
que dele se desprende: para S. Bento, a vida
monástica deve ser acessível a todos aqueles que
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

procuram Deus; ela apresenta-se como uma "escola


do serviço do Senhor", que se opõe àescola profana.
Aí se aprende como chegar à santidade: não por uma
actividade febril ou esforços excessivos, mas
entregando-se à acção da graça de Cristo e deixando-
a agir no próprio ser. Os instrumentos deste retorno a
Deus são o silêncio — que permite ouvir a sua voz —,
a obediência, em particular ao abade que ocupa o
lugar de Cristo na comunidade, e a humildade, "mãe e
senhora de todas as virtudes". Uma vez fixados estes
objectivos, a regra precisa dos meios que permitirão
atingi-los e define um quadro de vida: o tempo do
monge partilha-se entre o trabalho, a oração e a lectio
divina, isto é, a leitura e a meditação da Bíblia. Cada
um destes três elementos é muito importante: o
trabalho manual, consequência da dureza dos
tempos, constitui para o cenobita a forma mais normal
da ascese: "Se os monges viverem do trabalho das
suas mãos, como os nossos pais e os Apóstolos,
então é que serão verdadeiramente monges." 7 Seis
horas por dia (no Verão) são consagradas às ac-
tividades laboriosas, ou seja, três vezes mais que à
oração. Esta é simultaneamente pública e privada, a
sua expressão comunitária é o ofício divino: recitação
de uma série de salmos e leituras tiradas dos livros
santos; a hora fixa, vigílias às completas. Mas a
liturgia não deve ser um formalismo vazio: "Que o
vosso espírito esteja de acordo com a vossa voz"—diz
S. Bento. Pela oração, o monge intercede junto de
Deus por ele e pelos outros; suplica-lhe que faça
recuar as forças do mal ("Deus in auáitorium nostrum
intende"), dá-lhe graças pelas suas mercês e louva-o
por ter criado e salvado o mundo. Quanto aos tempos
previstos para a leitura, que prossegue durante a
refeição em silêncio, eles ilustram concretamente o
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

primado absoluto reconhecido pela regra à palavra de


Deus, da qual o monge deve impregnar-se a fim de a
interiorizar e de a ela submeter a sua vida.
A última parte da regra é consagrada à disciplina
comunitária: trata-se aí do dormitório onde os monges
dormem completamente vestidos, das penitências
infligidas aos que não respeitam as prescrições, da
interdição da propriedade privada ("Que esse vício do
espírito seja cortado até à raiz", "Que tudo seja comum
a todos") e da caridade que deve reinar entre os
irmãos. De notar que o nem texto primitivo previa —
salvo excepções — que os monges recebessem o
sacerdócio, nem os sacerdotes beneficiavam na
comunidade de qualquer prioridade. O abade deve ser
eleito pelo conjunto da comunidade, se possível de
comum acordo, ou então pela "parte dirigida por um
juízo mais são, mesmo que seja a menos numerosa".
Homem de meios termos ou, mais »exactamente, da
síntese ecléctica, S. Bento combina habilmente para o
governo do mosteiro os três sistemas políticos que a
Antiguidade havia conhecido: a monarquia, a
oligarquia e a democracia. O abade beneditino é eleito
para toda a vida e possui poderes extensos, mas não
pode em princípio tornar-se um tirano. Servidor da
comunidade, deve rodear-se dos conselhos dos mais
velhos e consultar a totalidade dos monges, os quais
têm todos voz no cabido no que se refere às decisões
importantes. Em todos os domínios se encontra esta
"discrição", isto é, o sentido da medida e do-equilíbrio,
que é uma das marcas essenciais da espiritualidade
beneditina.

Um êxito progressivo
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

Contudo, a regra de S. Bento não se impôs de


repente à totalidade dos mosteiros do Ocidente. No
século vu, era com frequência utilizada em
concorrência com outras regras, procedendo a
comunidade a uma matização mais ou menos
harmoniosa entre as diversas observâncias: foi o que
aconteceu nas abadias fundadas por S. Columbano
em Luxeuil (Alto Sona) e em Bobbio, na Lombardia, a
partir da década de 630. Na rea-1 idade, só no termo
de um longo desvio é que a regra beneditina acabou
por
Deixa a casa do pai para se juntar ao grupo de Robert.
Trata-se então de uma viúva? De uma mulher
repudiada? De uma mulher fugindo ao marido? Não
sabemos. Filha de Fulco IV, conde de Anjou,
Hermengarda tinha sido rejeitada pelo seu primeiro
marido, Guilherme IV da Aquitânia, voltando depois a
casar-se com Alain Fergent, conde da Bretanha. Por
volta de 1106, animada de igual repulsa pelo seu
marido e pela Bretanha, foge para Fontevraud e tenta
fazer anular o seu casamento; debalde: tem de
regressar ao domicílio conjugal. Aí, consegue
convencer o marido a entrar para a abadia de Redon
enquanto ela regressa a Fontevraud. Alain deixa-se
enfraquecer e morre no convento, ao passo que
Hermengarda repudia o véu logo que Robert morre.
Filipa, segunda esposa de Guilherme IX da Aquitânia,
sucedeu a Hermengarda neste posto perigoso. Tem
pois marido quando, cansada da companhia das
concubinas de Guilherme, se refugia em Fontevraud.
Finalmente, Bertrade d'Anjou, mulher de Fulco IV,
"raptada" por Filipe I, rei de França, é perseguida pela
cólera da Igreja pois o seu companheiro real é primo
em sétimo grau do seu primeiro marido: incesto
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

flagrante! Só a morte a separa de Filipe e ela retira-se


então para Fontevraud.
Todas estas mulheres se situam pois no âmago da
crise matrimonial que abala então a cristandade, essa
crise que Georges Duby nos deu a descobrir 2. Ele
situa precisamente em 1100 o ponto culminante do
conflito que opõe duas visões do casamento. Para os
guerreiros, convém antes do mais assegurar a sua
linhagem, tornar firme o seu poderio, afirmar a sua
categoria; daí o repúdio das esposas estéreis, as
uniões com parentas próximas que evitam a dispersão
do património, a presença, em torno do senhor e amo,
de mulheres de segunda categoria. Para os clérigos, o
casamento deve ser indissolúvel, monogâmico e
isento de qualquer elo de parentesco. Desta crise, as
recrutas de Robert são duplamente vítimas: vítimas do
casamento segundo os príncipes, repudiadas ou
humilhadas pela presença de concubinas; vítimas da
nova moral do casamento segundo os clérigos,
descobrem-se de súbito incestuosas ou adúlteras em
laços
Os Padres do Deserto: um horizonte
medieval A partir do século IV, um número
crescente de homens retira-se para os desertos do
Egipto (em particular para os arredores de Tebas: a
Tebaida) e, mais tarde, para os desertos da Síria e
da Palestina. Os mais célebres são Antão, Paulo
de Tebas, Pacómio e os dois Macários. Irão eles
procurar nesses lugares impossíveis o martírio que
lhes é doravante recusado no Império
cristianizado? A verdade é que se vão dilacerando
sob os golpes que infligem a si próprios. A princípio
eremitas, em breve se reagrupam em comu-
nidades: é a origem do monaquismo. As suas
Vidas e as suas Sentenças, traduzidas em latim,
circulam por todo o Ocidente. Esta literatura exerce
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

uma influência considerável em toda a Idade Média


e depois dela, por todo o período que vai da época
de S. Martinho de Tours até á época dos Senhores
de Port-Royal.

Eis chegado o tempo em que Robert começa a


surgir na crónica e entra a direito na historiografia.
Será ele o "cavaleiro errante do monaquismo", votado
ao serviço das damas como os heróis da literatura
cortês?
Sobre este ponto delicado, o seu hagiógrafo, Baudri
de Bour- gueil, pouco desejoso de revcflver os
aspectos sulfurosos de Robert, priva-nos do seu
testemunho. Porquê esse encontro do asceta
inspirado com as mulheres do seu tempo? E antes do
mais, quem são elas, as que o seguem assim pelos
caminhos errantes?
Como sempre, sabemos muito pouco delas. E
preciso esperar que a turba mista dos dicípulos se fixe
em Fontevraud para que alguns nomes surjam da
massa opaca das mulheres. Como sempre também, a
história não guardou traço algum a não ser das mais
eminentes; as humildes mantêm-se para sempre
ocultas. Dos casos individuais identificados no meio da
aristocracia, há um denominador comum que se
destaca: a irregularidade, segundo as normas actuais,
da sua situação matrimonial.
Petronilha de Chemillé, que em breve tomará a
direcção da ordem de Fontevraud, foi casada e teve
pelo menos dois filhos.
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 33

abrir uma passagem decisiva no seio do monaquismo


europeu. A superioridade que ela alcançou está ligada
à cristianização da Inglaterra. Este país foi convertido
no século vn pelos enviados do papa Gregório Magno,
que é do conhecimento geral ter sido um admirador de
S. Bento. Após a destruição do Monte Cassino, por
volta de 580, os monges desta abadia tinham
encontrado refúgio em Roma, o que permitiu à Cúria
apreciar devidamente o texto que regia a sua vida. De
qualquer das formas, foi este texto que os missionários
difundiram nos reinos anglo-saxões, onde conheceu
de imediato um vivo êxito. Desde cedo ali foram
fundadas abadias votadas a um brilhante futuro como
Lindisfarne, Malmesbury, Wearmouth ou Yarrow.
Levados por razões ao mesmo tempo étnicas e
políticas a distanciar-se dos Irlandeses, os monges
ingleses adoptaram os costumes "romanos", isto é, o
estilo de vida beneditino, cuja moderação contrastava
com a procura excessiva da austeridade e a
instabilidade crónica que caracterizavam o
monaquismo céltico.
Como a conversão da Germânia foi, em larga
medida, obra dos monges anglo-saxões, não é de
estranhar que a regra de S. Bento tenha logo adquirido
nessa zona uma situação de monopólio. S. Bonifácio
fê-la adoptar pela grande abadia que fundou em
Fuldae, em 742, o primeiro sínodo dos bispos ger-
mânicos prescreveu a todos os monges que a
seguissem. A partir daí o, movimento alastrou e
estendeu-se, sob o impulso dos soberanos carolíngios,
à totalidade do Ocidente. A difusão das observâncias
beneditinas foi facilitada pela colaboração estreita que
se havia instaurado desde o reinado de Pepino entre
os reis francos e o papado, abandonado por Bizâncio
e ameaçado pelos Lombardos, bem como pelo
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

renascimento do Monte Cassino, reconstruído a partir


das suas ruínas em 718 pelo abade Petronax. Carlos
Magno mandou ali recopiar o texto da regra beneditina
e este exemplar "autêntico", conservado no palácio
imperial, serviu de referência para todos os mosteiros.
Conhecemos o seu teor graças a uma cópia
efectuada, sob o reinado de Carlos, o Calvo, pelos
monges de Saint-Gall, na
Suíça, onde o manuscrito se encontra ainda
actualmente conservado.
A extensão da regra beneditina a todos os
mosteiros do Império foi obra de Carlos Magno e do
seu sucessor Luís, o Piedoso. Tomados do espírito
românico e desejosos de fazer reinar a ordem e a
uniformidade, reuniram vários concílios, em particular
os de Mogúncia (Mayence) em 813 e Aquisgrano (Aix-
la- -Chapelle) em 817, no decurso dos quais ficou
decidido que a "Santa Regra" seria desde então a
única admitida. Aí se procedeu a uma revisão do texto,
de onde foram eliminadas as prescrições que se
haviam tornado inaplicáveis, enquanto se fazia o
possível por preencher as lacunas relativas ao
emprego do tempo e às formas da oração litúrgica.
Estas medidas tinham sido preconizadas por um
abade beneditino dóLanguedoc, Bento de Aniane, que
desfrutava do apoio do poder imperial. Foram
promulgadas sob a forma de um "Capitulário
monástico" que viria a ter força de lei e visava
restabelecer em todo o seu rigor a observância da
vida regular. Um dos principais objectivos da reforma
consistia efectivamente em reagir contra a tendência
para a secularização dos mosteiros. Estes foram
convidados a abandonar as suas actividades anexas,
sobretudo o ensino que era prestado em escolas
destinadas em princípio aos noviços, mas onde
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

crianças provenientes da aristocracia que não


prosseguiam necessariamente na vida religiosa
podiam aprender a ler e a escrever. Esta injunção, no
seu conjunto, foi pouco seguida e, em bastantes
regiões, as abadias continuaram a ser até ao século
xn os principais, se não mesmo os únicos lugares de
elaboração e de transmissão da cultura erudita, tanto
profana como sagrada.
Os Carolíngios tinham finalmente em vista um outro
objectivo: o de reunir no seio de uma única ordem, da
qual Bento de Aniane devia ser o abade geral, todos
os mosteiros beneditinos do Império. Mas o rápido
enfraquecimento do poder imperial, no decurso do
século ix, impediu este último de dar sequência a
estas veleidades centralizadoras, tão contrárias ao
espírito do monaquismo antigo. A tentativa foi
retomada mais tarde sob tas pululam neste final do
século xi: Guillaume Firmat, Bernard de Thiron, Vital
de Savigny... Nunca houve deserto tão povoado! A
séculos de distância, estes atletas de Deus aceitam o
desafio lançado pelos Loucos do Egipto (cf. o quadro
"Os Padres do Deserto "). É-nos difícil imaginar a
influência que os Padres do deserto tiveram sobre a
espiritualidade ocidental. As suas Vidas,
incessantemente aprofundadas pela reflexão, são
outros tantos desafios para quem é pela Porta Estreita
que de facto quer chegar ao Reino.
Na floresta de Craon, no limite da Bretanha e de
Anjou, Robert castiga a sua carne por meio das
privações e das sevícias. Mas a sua austeridade
suscita a admiração: vêm multidões para o ver e
escutar. De facto, ele prega, apelando à renúncia e à
conversão. Os discípulos multiplicam-se; acabou-se o
deserto. Para alimentar esta turba errante e dar-lhe um
estatuto, Robert funda uma abadia de cónegos
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

regulares, em La Roe, na região de Mogúncia.


Vivendo como monges, estes clérigos, ansiosos por
recuperar a tradição dos Apóstolos, mantêm-se, mais
do que os beneditinos, abertos ao mundo: servem de
boa vontade as paróquias em redor. As doações
afluem à comunidade cujo superior recebe a
consagração mais alta: de passagem por Anviers em
Fevereiro de 1096, o papa Urbano II confia oficial-
mente a Robert uma missão de pregação, a qual lhe
assenta como uma luva. Nesta vida regular, no meio
de convertidos, ele reprimia-se; em breve se aproveita
da licença de pregação concedida pelo Papa para
levantar de novo voo. A gente que segue o pregador
itinerante torna-se numa multidão e as mulheres, de
entre todos, são quem se apressa a rodeá-lo.
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

eclesiásticos, e o nicolaísmo, o não cumprimento da


castidade pelos clérigos. O sentimento de culpa que
nasce neste estudante tardio deve ser muito vivo, tanto
mais que eclodiu serodiamente — Robert ultrapassou
já os trinta anos —- e resulta de uma falta até então
insuspeitada. Para lá de uma crise de consciência in-
dividual, confrontam-se neste caso duas culturas, duas
maneiras de ser: uma de gerações de padres de
paróquia e outra, a que a Igreja tenta impor neste
último quartel do séculoxi. Deste choque de universos
mentais, a alma do sacerdote bretão conservará
sempre a fenda: "Nele havia uma espécie de conflito
interior, um bramido do espírito, um estertor das
entranhas que se pode julgar inumano e ímpio."
Convertido à moral nova, Robert acha-se animado por
dois impulsos: tirar os outros da lama, onde crê agora
ter-se atolado, e castigar-se — castigar essa carne que
acabam de lhe ensinar a odiar.
Ora eis que o bispo de Rennes, Sylvestre de La
Guerche, velho soldado e conduzido ao episcopado
mas também ele conquistado pelas teses
reformadoras, procura clérigos capazes de o apoiar na
sua empresa de reparação. Apela a Robert que,
ostentando o título de arcipreste, tente durante quatro
anos "libertar as igrejas da infame sujeição aos leigos e
reprimir as copu- lações incestuosas dos sacerdotes e
dos leigos." Vasto programa, que se presta a criar-lhe
inúmeros inimigos! Quando da morte de Sylvestre, o
arcipreste tem de fugir a toda a pressa, exposto à
vindicta dos seus confrades. Refugia-se em Angers,
onde retoma os estudos. Em segredo, Robert mortifica
a sua carne por meio de uma couraça oculta debaixo
das suas vestes preciosas. É demasiada "discrição"
para o tormento que o agita. Dois anos mais tarde,
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

"renunciando ao mundo, vai para o deserto há tanto


tempo por ele desejado".
Do início do século xi em diante, o eremitismo
conhece no Ocidente um espantoso recrudescimento.
Um por um, Romualdo, Jean Gualbert, Pierre Damien
vão para o deserto afrontar a tentação para merecer a
sua salvação: é o espaço do tudo ou nada, a queda ou
o triunfo. Nas florestas do oeste da França, os eremi-
outras formas, quando certos mosteiros procuraram
constituir "fraternidades" que reuniam diversas abadias
e priorados sob a direcção de um deles. O mais célebre
e o mais importante destes "impérios monásticos" foi o
de Cluriíaco, que, entre o início do século x e o início
do século xii, reuniu centenas de casas religio- „ sas
que tinham aceitado a sua reforma e os seus
costumes.
Mas o êxito permaneceu sempre parcial. Mesmo
na época do maior esplendor de Cluníaco, muitos
mosteiros, particularmente na Alemanha e em Itália,
souberam conservar a sua autonomia e permanecer
fiéis às suas tradições, antigas ou recentes. A
preponderância de Cluníaco e a sua organização de
tipo monárquico em breve foram contestadas pelos
cistercienses, que se dotaram de estruturas
centralizadas mas mais democráticas; as fundações
de S. Bernardo e dos seus sucessores formavam uma
ordem dotada de uma constituição, a "Carta de amor"
(Carta caritatis), em que o poder supremo pertencia
ao cabido geral que reunia os abades de todas as
casas. Assim, sem entrar nas minúcias de uma
história institucional infinitaíhente complexa, podemos
afirmar que os mosteiros beneditinos nunca
constituíram uma ordem unificada, o que lhes
permitiu, no decorrer dos séculos, adaptar-se às
condições particulares de cada país e de cada época.
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Da Idade Média-até aos nossos dias, eles sentiram


contudo a necessidade de se reagrupar em
congregações, cada uma com a sua orientação e as
suas finalidades, e até de criar outras novas para
responder às exigências de reforma que
periodicamente vêm a lume no seio do monaquismo.
As aparências, a este respeito, não devem iludir-
nos: desde que Leãoxin, em 1880, convidou as
diversas observâncias beneditinas a reagrupar-se sob
a autoridade de um abade primaz, a ordo monasticus
encontra-se, no plano das estruturas canónicas, muito
próxima das outras ordens religiosas. Mas trata-se de
uma simples fachada e pode dizer-se que os monges
do Ocidente — que, exceptuando apenas os cartuxos,
seguem todos a regra de S. Bento — souberam
conservar por um lado uma unidade fundada na
adesão comum a este texto normativo e5
por outro lado, uma diversidade real. Esta conjunção
rara deve-se ao génio do seu autor que, ao definir a
vida monástica como uma progressão para a união
com Deus, se preocupou menos em estabelecer um
código jurídico do que em traçar um itinerário espiritual,
deixando assim a cada comunidade e a cada indivíduo
uma margem considerável de interpretação e de
liberdade.
Notas
1
J. Dubois, Les Ordres Monastiques, Paris, PUF,
1985, e id., Sous la Règle de Saint Benoit, Genebra,
Droz, 1982.
- A. de Vogué, La Communauté et l'Abbé selon la
Règle de Saint Benoît, Paris, Desclée de Brouwer,
1961, p. 17.
3
Segundo a feliz expressão do historiador italiano G.
Arnaldi, no seu estudo "S. Benedetto guadagnato alla
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

storia (in margine a una nuo- va edizione delia regola)",


publicado em La Cultura, 12, 1974, pp. 80-99.
4
Gregório Magno, Diálogos, II, 36: "Ele escreveu
uma regra para os monges, notável pela sua discrição
e pela precisão do estilo."
5
Sobre os Padres do deserto e a sua concepção do
monaquismo, ver J.-C. Guy. Paroles des Anciens.
Apophtegmes des Pères du Désert, Paris, Éd. du Seuil,
1976, 186 pp.
6
A. de Vogiié, La Règle de Saint Benoît, t.l,
Introdução, Paris, Le Cerf, 1964, p.530.
7
RB, 48, 5.
* RB, 64, ï.

Orientação

bibliográfica 1. Textos

e documentos:
* La Règle de Saint Benoît, editada e comentada por
A. de Vogiié e J. Neufville, 6 vols, de texto e 1 vol. de
introdução, Paris-Lyon, Le Cerf, "Sources chrétiennes",
t. 181-186 bis, 1964-1972. Trata-se de uma edição
cientifica, munida de imponente aparato critico. Na
mesma colecção, o Pe. A. de Vogiié publicou La Règle
du Maître (Paris, 3 vols., 1964-1965, 1.105-107) e
empreendeu a edição dos Diálogos de S. Gregório
Magno.
beneficio eclesiástico. Robert seguiu por algum tempo
estudos medíocres para adquirir o pouco que deve
saber um sacerdote do campo. Por morte do seu pai,
toma a seu cargo a guarda de Arbrissel.

A alma fendida
É de supor que, de maneira igualmente natural,
constitua família. O seu hagiógrafo, que escreve uns
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

quarenta anos mais tarde, num momento em que o


celibato passa a estar ligado ao sacerdócio, não pode
dizê-Io claramente; mas emite curiosas reservas em
relação à sua castidade. Na Bretanha, a proibição
imposta aos sacerdotes de transmitir os seus benefícios
aos filhos é reiterada em 1127 e há uma passagem da
Vida do Bem- -Aventurado Bernard de Thiron que
atesta que, na província vizinha, o casamento dos
clérigos é, nas últimas décadas do século XI, prática
corrente: "Era um hábito nesse tempo em toda a
Normandia que os sacerdotes tomassem mulher
publicamente, celebrassem as suas bodas, procriassem
filhos e filhas a quem, por direito de sucessão,
deixavam as suas igrejas após a sua morte. CáSavam
as filhas e, se não possuíam outros bens, dotavam-nas
frequentemente de uma igreja. Quando tomavam
mulher, e antes de se unir a ela, juravam em presença
dos pais dela que nunca a abandonariam." Se é
verdade que Robert tenha prestado este juramento, não
o cumpriu de maneira alguma. Por volta de 1078,
comprometido nas irregularidades que rodearam a
eleição de um novo bispo de Rennes, foge da Bretanha
e vai para Paris onde recomeça os seus estudos.
Vai aí cair no meio de debates inflamados: está-se
no auge da reforma gregoriana, da recuperação do
poder do clero, operado pelo papado e por uma parte
do episcopado, que culmina sob o pontificado de
Gregório vn, de 1073 a 1085. Subitamente, Robert
descobre-se culpado dos dois piores males
denunciados pelos reformadores: a simonia. isto é. o
tráfico dos careos andam misturados e misturados se
estendem, à noite, no meio dos bosques. O próprio
mestre não diz que não a partilhar o leito das suas
companheiras, o que lhe traz a condenação das
autoridades eclesiásticas. Robert fixa-se em
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

Fontevraud, onde funda uma ordem monástica. Nova


audácia sua, confia a sua direcção às mulheres,
submetendo-lhes os irmãos e submeten- do-se-lhes ele
próprio também.
Michelet, antes de qualquer outro, apropria-se da
personagem de Robert, eleva-o a pioneiro da
promoção da mulher neste alvor do século xi. Na
brecha aberta pelo historiador romântico, precipitamo-
nos sem hesitar. A fundação de Fontevraud torna-se
gesto de cortesia para com as nobres damas. Quanto
ao fundador, embora ostente, como os seus discípulos,
uma vestimenta "digna dos hippies do nosso tempo",
"não deixa de levar no meio desta multidão
heterogénea uma vida de perfeita castidade" — afirma
Régine Pernoud. Não ficaremos a saber aqui se Robert
dormia no meio dos seus discípulos com a melhor das
intenções já que isso, pura e simplesmente, não vem
escrito em nenhum lado. Ora, é no âmbito das fontes
que nos convém atermo-nos se queremos escutar essa
gente de uma outra época bem como o que ela diz,
para aprendermos desse tempo passado algo que não
o mero eco dos nossos sonhos.
Robert nasce provavelmente em 1045. O seu
hagiógrafo, Baudri de Bourgueil, bispo de Dol, não se
dá ao trabalho de tomar nota de uma data que, nessa
época, tem pouca importância1. Em contrapartida,
indica que o seu herói é natural de uma aldeia de
Arbrissel, situada na Bretanha, na região de Rennes, e
precisa a sua proveniência: "filho de sacerdote,
procedente de gerações de sacerdotes". Nada mais
normal neste meio do século xi. Se os monges estão
então obrigados ao seu voto de castidade, a Igreja não
procurou de modo algum impor aos seus sacerdotes
seculares — os padres de paróquia — que vivessem
em celibato. Empregados pelo senhor local, seu
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

patrono, vivendo numa penúria material e espiritual


próxima da das suas ovelhas, transmitem entre si de
geração em geração o seu pequeno
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 29

* Os documentos antigos referentes a S. Bento (isto


é, o Livro II dos Diálogos de S. Gregório e a Regra)
foram publicados na íntegra em tradução francesa num
pequeno volume cómodo, La Vie et la Règle de Saint
Benoît, por E. de Solms, Paris, Desclée de Brouwer,
1977,320 pp.

2. Aspectos biográficos e contexto histórico:


* Boa visão de conjunto na pequena obra de Dom
Claude-Jean Nesmy, Saint Benoît et la Vie Monastique,
Paris, Éd. du Seuil, "Maîtres spirituels", 1977, 192 pp.
* Dois historiadores italianos, S. Boesch Gajano e G.
Cracco, propu- seram-se renovar o conhecimento que
podemos ter de S. Bento e da sua experiência
rrfonástica situando-os no contexto social e cultural do
seu tempo. Encontra-se um eco dos seus trabalhos no
volume colectivo: Hagiographie, Culture et Sociétés
(IVe-XIIe siècles), Paris, Études Augustiniennes, 1981,
pp. 263-297, sob a direcção de E. Patlagean e P. Riché.
* Sobre a iconografia dos milagres de S. Bento na
arte românica francesa, ver P. Verdier, "La vie et les
miracles de saint Benoît d'après les sculptures de Saint-
Benoît-sur-Loire", in Mélanges de l'École Française de
Rome (Moyen Age-Temps Modernes), 89, 1977, pp.
117-187 (difusão De Boccard).
3. História do monaquismo:
* P. Cousin, Précis d'Histoire Monastique, Paris,
Bloud et Gay, 1956, 594 pp.
* P. Schmitz, Histoire de l'Ordre de Saint Benoît, 7
vols., Ma- redsous, 1948-1956.
* Para o monaquismo medieval, ver os volumes
colectivos seguintes (numerosos contributos em
francês): U Monachesimó nell'Alto Médio Evo e Ia
Formazione delia Civiltà Occidentale, Spoleto, 1957; II
Monachesimo e la Riforma Ecclesiastica (1044-1122),
Milão, Ed. Vita e Pensiero, 1871, 541 pp., e M. Pacaut,
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Les Ordres Monastiques et Religieux au Moyen Age,


Paris, Nathan, 2.a ed., 1993.
4. Espiritualidade monástica ontem e hoje:
* Apresentação de conjunto em A. Vauchez, La
Spiritualité du Moyen Age Occidental, VlIJe-Xlí/e
siècles. Paris. Éd. du Seuil. "Points histoire", 1994.
* Ver também J. Leclercq, Aux Sources de la
Spiritualité Occidentale, Paris, Éd. du Cerf, 1964, 317
pp.
* Os objectivos permanentes do monaquismo foram
estudados por Dom P. Miquel, La Vie Monastique selon
saint Benoit, Paris. Beauchesne. 1980,334 pp. Os seus
problemas actuais foram evocados por J.-C. Guy, "Saint
Benoît, 480-1980. Des moines parmi nous", na revista
Études, Março 1980 (t. 352-353), pp. 365-378.
Robert d'Arbrissel e a salvação
das mulheres
Jacques Dalarun

Como todos os períodos da história, este talvez


mais do que outros, a Idade Média é o espelho dos
nossos estados de alma: tempo da barbárie ou da
cortesia, lenda negra ou lenda cor-de-rosa... Em vez
das idades sombrias de pesadelo, há quem prefira ver
hoje uma Idade Média de sonho, bela demais para ser
verdadeira, onde o nosso século projecta os seus
desejos da mesma forma que as gerações passadas
projectaram nas brumas góticas as suas reputsas e os
seus medos. No âmago desta inversão, detenhamo-
nos na mulher e no seu lugar na sociedade medieval:
ontem, julgava-se ter sido desprezada, espezinhada;
ei-la agora de súbito mulher, num pináculo.
Que se passou realmente, nesse tempo, em relação
à mulher e ao seu destino? Questão demasiado vasta,
à qual não temos a ambição de responder. Aqui,
estudaremos o caso único, mas exemplar, de Robert
d'Arbrissel, o fundador de Fontevraud. Mais que um
caso, uma aposta. Este eremita da zona oeste de
França, pregador itinerante nos últimos anos do século
xi, é objecto da crónica pela sua postura, pelos seus
excessos verbais, mas sobretudo pelo estranho
comércio que mantém com o sexo oposto. Na turba
que se avoluma seguindo-o, homens e mulheres
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Assim, de maneira paradoxal, à luz destas


publicações e trabalhos recentes, o perfil de Abelardo
turva-se em vez de se clarificar. Mas aquilo que perde
em nitidez aparente, ganha-se incontestavelmente em
profundidade histórica.

A formação escolar
O universo de Abelardo foi à partida e sempre o das
escolas. Neste aspecto, Abelardo aparece num
momento decisivo da história intelectual da Idade
Média. Numa altura em que já não existia senão uma
débil rede de escolas monásticas ou catedrais, com
um raio de açcão local e de níveL geralmente assaz
modesto, alguns centros surgiram no final do século
XI, os quais asseguraram desde então um ensino mais
profundo e susceptível de atrair estudantes de origem
longínqua. Esta renovação escolar, indissociável do
progresso geral do Ocidente nesta época, aproveitou
sobretudo às escolas urbanas, ligadas a capítulos das
catedrais ou dos colégios.
Contudo, a vocação imperiosa de Abelardo para os
estudos decorre essencialmente das suas inclinações
pessoais e de uma escolha voluntária. Teria sido mais
natural que, filho mais velho de um cavaleiro bretão,
nascido no burgo de Pallet, perto de Nantes, em 1079,
tivesse seguido o seu pai na carreira das armas. O
pai, que por seu turno sabia ler, o que era bastante
raro no meio, proveu a que o seu filho recebesse a
instrução inicial. Por outro lado, o condado de Nantes
mantinha relações de grande abertura com a região
do Loire, com o Chartrain e com a região parisiense,
centro do renovamento escolar. Pouco antes de 1100,
Abelardo pôde pois decidir, sem uma ruptura brutal,
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

abandonar aos seus irmãos mais novos os seus


direitos hereditários, e deixar a sua região e os seus
para "ir para as escolas".
As primeiras páginas da Histoire de mes Malheurs
contam com uma pressa conquistadora a sua
vagabundagem escolar entre Angers, Loches, Tours e,
mais tarde, Melun, Corbeuil e Laon.
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

Robert d'Arbrissel, porém, é um pioneiro do espírito


e a salvação das mulheres é para ele importante,
como testemunham os dois episódios que se seguem.
Um dia, Robert entra num lupanar de Ruão para
aquecer os pés7. Julgando ter nele um cliente, as
pensionistas apressam-se a atendê-lo mas ele dirige-
lhes palavras de vida e promete-lhes a misericórdia de
Cristo. A dona da espelunca invectiva-o: "Quem és tu
para falar dessa maneira? Podes ter a certeza de que,
em vinte cinco anos desde que entrei para esta casa
para perpetrar crimes, nunca ninguém veio a este lugar
para falar de Deus ou para nos fazer esperar a sua
misericórdia." Robert encoraja-a: "Tem confiança (...) e
terás também, sem dúvida alguma, a misericórdia de
Deus." As prostitutas caem então aos seus pés e, no
meio de grande alegria, ele leva-as para o deserto.
Cena espantosa de audácia e de vida, mas
deveremos fazer fé neste testemunho que, sob alguns
aspectos, se assemelha a uma montagem literária?
Robert, quando penetra no lupanar, é a réplica de
Pafnuce tentando salvar a cortesã Taís. Quando pro-
mete a misericórdia às mulheres caídas a seus pés, é
à imagem de Cristo anunciando a redenção à
pecadora que, em casa de Simão, banhou com as
suas lágrimas os pés do Salvador e a quem
chamamos Madalena. Tenho porém para mim que toda
esta fonte é autêntica. A Idade Média quer
precisamente que a Escritura dite a realidade, que seja
palavra de vida. E é isso mesmo o que se passa aqui.
Qual é o maior espanto destas mulheres? Que se lhes
fale de Deus no fundo da sua abjecção ou, muito
simplesmente, que uma palavra dirigida a elas seja
proferida? Atentemos antes de mais nas palavras. O
termo-chave de Robert é a misericórdia; quatro vezes
a palavra surge na sua boca e na boca delas. São
59

também as mulheres perdidas que falam de


penitência. E não é para um lugar cheio de coacções e
de sevícias que ele as leva, mas sim para o espaço da
sua liberdade e do arrebatamento, com alegria; é o
deserto da Santa Gruta de onde, sete-vezes por dia,
Madalena eremita é arrebatada para o céu.
Desdenhando qualquer outra fonte, Michelet, no seu
Moyen Age, centrou o seu estudo de Robert neste
único testemunho onde sentia despontar um novo
mundo sob a ordem antiga8.
Um segundo texto — de que Michelet não teve
conhecimento — permite situar o que o fundador de
Fontevraud traz de novo ao seu tempo 9. Um belo dia,
Robert chega à Auvérnia (Auvergne), à aldeia de
Menat, acompanhado por monjas da sua ordem. Quer
pregar na abadia da localidade, mas os habitantes
explicam-lhe que toda a mulher que penetrasse na
igreja morreria imediatamente. Robert, contudo, faz
entrar as monjas, de entre as quais nenhuma morre...
Os porteiros, monges sem dúvida encarregados de
fazer respeitar a interdição, reclamam então vingança
ao santo do sítio, S. Menelau. Encontra-se o rasto
desse curioso tabu em diferentes localidades da
Auvérnia e até do Maine. Parece remontar ao período
merovíngio e deve ter mantido vestígios da primeira
vez em que a clausura monástica foi estabelecida
nessas regiões. Confrontada com esta interdição, a
comunidade aldeã não compreende que haja homens
que tenham um comportamento contrário à lei natural,
que requer que homens e mulheres coabitem e
procriem. Apercebe-se ao mesmo tempo íla suspeita
de culpabilidade que a cultura monástica lança sobre
aquele que toca a carne. Os homens defendem-se
então à sua maneira: integram o novo dado, mas para
desviar à partida para a mulher o peso de toda a falta.
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Há uma lenda que conta que uma impúdica que tinha


querido desafiar a interdição deu consigo com "a
cabeça entre as coxas, horrivelmente deformada,
obrigada a beijar as partes vergonhosas do seu
corpo.'"0
Face à crença enraizada nos cérebros há seis ou
sete séculos, a palavra de Robert soa clara: "Ai, gente
simples, não façais em vão rezas tão tolas! Mas ficai a
saber que os santos não são inimigos das esposas de
Jesus Cristo. Que o que dizeis é uma coisa absurda e
a pureza da fé católica conhece bem o contrário; como
se diz no Evangelho dessa beata pecadora que beijou
os pés do Redentor tanto com as suas lágrimas
purificadas como que esses textos são no essencial
obra de Abelardo, não é possível excluir manipulações
ou modificações importantes nem, sobretudo, lê-los,
de maneira insuficientemente critica, à maneira de
textos autobiográficos modernos, desejosos acima de
tudo de introspecção e de veracidade psicológica.
Tanto como a narrativa complacente dos seus
infortúnios, parece que Abelardo quis relatar a sua
conversão monástica e a de Heloísa, sua mulher, sua
"irmã bem-amada em Cristo". Mais do que dos seus
infortúnios, é pois da transposição deles em Deus que
aqui se trata. E é em relação a esta intenção mística,
no fim de contas bastante tradicional, e que é de
edificação mais que de autojus- tificação, que
devemos interpretar os episódios narrados na Histoire
des mes Malheurs.
Por outro lado, graças a edições críticas modernas,
o conhecimento renovado da obra filosófica e teológica
de Abelardo mostra que, sem serem falsas, as
etiquetas que outrora lhe eram aplicadas —
nominalismo, racionalismo — estão longe de explicar a
complexidade de um pensamento muitas vezes
59

pioneiro e, por consequência, matizado, hesitante, por


vezes inacabado.
Finalmente, graças á preocupação actual de não
separar já a história das ideias da dos indivíduos e das
instituições que possibilitaram a sua difusão, Abelardo
deixa de surgir hoje como uma figura solitária no limiar
do século XI1, precursor genial, isolado e
incompreendido por parte dos grandes mestres da es-
colástica1 que virão a impor-se nas universidades do
século XIII. Conhecem-se já os nomes e por vezes as
obras dos seus alunos, dos seus confrades, dos seus
protectores ou dos seus adversários. É possível
descrever com uma certa precisão os meios concretos
onde ele viveu e um melhor conhecimento da história
social, religiosa e intelectual do início do século XII
permite reintegrá- -io com alguma verosimilhança no
contexto do seu tempo, no seio de uma sociedade em
mutação, em progresso, atravessada por correntes
múltiplas, por vezes contraditórias, face às quais lhe foi
forçoso situar-se, não sem hesitações ou falta de
perícia.
demonstra este episódio famoso, no que se refere a
Abelardo, à sua personalidade, ao que move no
íntimo o seu pensamento, a incerteza surge e o
historiador hesita entre interpretações divergentes.
Contudo, até 1972, a biografia de Abelardo (1079-
1142) parecia bastante clara e em perfeita
concordância com o conteúdo teórico da sua obra
filosófica e teológica. Esta clareza aparente provinha
essencialmente daqualidade excepcional da nossa
principal fonte no que se refere à sua vida e à sua
personalidade. Trata-se desse escrito autobiográfico
já mencionado, a Histoire de mes Malheurs: Abelardo
relata nele a sua existência, desde o início dos seus
estudos pouco antes de 1100 até à sua permanência
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

como abade no mosteiro de Saint-Gildas-de-Rhuys na


Bretanha, na década de 1130. O tema central deste
texto é o contraste permanente entre a glória
intelectual de Abelardo e os "infortúnios" que a
malevolência dos "invejosos" desencadeou contra ele
e que o conduziram a esse exílio bretão. De todas as
autobiografias do século XI1, mais ou menos
inspiradas nas Confissões de Santo Agostinho, a de
Abelardo parece a mais límpida, a mais pessoal, a
mais sincera.
As coisas complicaram-se um pouco quando, em
1972, o historiador americano J. F. Benton apresentou
no colóquio de Cluníaco uma comunicação que fez
sensação: ele afirmava que a Histoire de mes
Malheurs era uma falsificação composta no século
XIII, Para dizer a verdade, já desde o século XIX dúvi-
das mais ou menos fundadas sobre a autenticidade
deste texto tinham surgido a alguns eruditos mas
nenhum ousara expressá-las de maneira tão definida.
A argumentação de J. F. Benton não estava todavia
isenta de falhas e raros foram os que aceitaram segui-
lo até ao final. Desde então, o próprio Benton
renunciou à sua tese radical e admite hoje em dia a
autenticidade global da Histoire de mes Malheurs e da
correspondência entre Abelardo e Heloísa.
O seu gesto iconoclasta de 1972 teve porém um
efeito salutar nos estudos abelardianos. Desde então,
ainda que se admita com os seus cabelos e que
espalhou o unguento sobre o seu digníssimo chefe."
Contra a tradição local, Robert recorre à tradição mais
alta, a do Evangelho, e é ainda Madalena que ele
invoca em socorro das mulheres humilhadas.
"Quem é aquele que ousará dizer que haja uma
igreja qualquer na qual não será lícito entrar mulher, se
pelas suas faltas e culpas não lhe fosse proibido?" Ao
59

reconhecer a responsabilidade pessoal face ao


pecado, Robert pulveriza a ideia da feminilidade, no
sentido de uma essência maligna da mulher.
Colocando-a sob o patronato de Madalena, salva-a
duplamente do pecado: só é pecadora quando peca e,
nesse caso, beneficia da misericórdia de Cristo vindo
para salvar os pecadores.
A mulher é reconhecida enquanto consciência.
Todavia, Robert sente que o obstáculo mais pesado
está por levantar, a imagem desse corpo sobre o qual
se encarniçou a velha lenda. "O que é maior, o templo
material de Deus ou o templo espiritual no qual Deus
habita? Se a mulher toma e come o corpo e o sangue
de Jesus Cristo, pensai na loucura que é crer que não
deve entrar na igreja!" O tabu é afastado com uma
bofetada com as costas da mão: templo do Espírito,
tabernáculo da Eucaristia, o corpo da mulher é
sagrado. Coerência profunda, de Betânia à Ceia: a
mulher que "toma e come o corpo e o sangue de Jesus
Cristo" está, como Madalena, destinada à redenção. A
Eucaristia celebra a União ao corpo de Cristo em
Betânia. As barreiras vacilam entre consciência e
carne, entre homem e mulher. Eis que um sentimento
novo acaba de despontar, já cheio de segurança na
sua audácia juvenil: uma certa ideia do indivíduo e da
sua dignidade. Robert renova à sua maneira a antiga
ideia: a salvação veio ao mundo através da mulher;
nela, tomou corpo.
O fundador de Fontevraud toma decididamente o
partido das auroras, mas o que ele antecipa de novo
para as mulheres não tem relação com os curiosos
suplícios a que se dedica ou com a eleição de uma
abadessa à cabeça da sua ordem. Por essas mesmas
tiradas, ele acha-se, pelo contrário, ainda envolvido por
inteiro no discurso maior e na imagética do seu tempo:
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

uma mulher-Eva, que a reforma gregoriana pintou das


cores mais negras para melhor dela afastar os clérigos
seculares e que ele mesmo aprendeu a odiar e a
temer. Mas não será prestar homenagem à sua real
audácia medi-la com a medida das suas reticências?
Uma tímida aurora; pois, para as mulheres desse
tempo, a realidade é ainda bem sombria. Uma última
tirada vem lembrar-no-lo. Petronilha de Chemillé
compreendeu perfeitamente o espírito no qual Robert
d'Arbrissel a colocou à cabeça da comunidade. Por
ser de alta linhagem, por ser orgulhosa talvez, esforça-
se por fazer desaparecer tudo o que poderia recordar
a vontade de humilhação que animou o fundador.
Deste modo recusa ao santo corpo o lodo tão
desejado e sepulta-o com todas as honras, junto ao
altar-mor de Fontevraud, ao abrigo de um culto
popular espontâneo. Não pode evitar mandar redigir
uma biografia de Robert. Deseja-a lenificante, dulcifi-
cada de tudo o que despertasse o eco dos escândalos
passados ou lançasse uma luz demasiado viva sobre
o sentido da sua própria promoção.
Para escrever esta biografia, teve de recorrer a
clérigos, pois só eles detêm a ciência das palavras, só
eles sobretudo conhecem as leis do sapientíssimo
bordado que é uma Vicia de Santo. Baudri de
Bourgueil, o irmão André, cada um por seu turno, vão
ao encontro dos desejos de Petronilha. Não há nada
no arquivo hagiográfico de Robert que nos dê a ouvir a
voz das mulheres. A autoritária abadessa não encontra
por sua vez uma pena que nos deixe o seu
testemunho. O manuscrito de André, que atestava
com a maior fidelidade a estranha espiritualidade do
mestre, foi na altura despojado de todos os elementos
que o tornavam incómodo". Acto de violência
irrisório,.que presta uma homenagem arrebatada à
59

omnipotência do Verbo e dos que o detêm, entre os


homens.
Abelardo. Escolas no claustro
Jacques Verger

"Havia então em Paris uma jovem chamada


Heloísa, sobrinha de um certo cónego Fulberto (...)" e
um brilhante filósofo, chamado Pedro Abelardo, que
ensinava teologia na escola da catedral de Notre-
Dame. Abelardo hospedou-se em casa do cónego, que
lhe confiou imprudentemente a educação da sua
sobrinha. Em breve uma paixão irresistível nasceu
entre o preceptor e a sua aluna e Heloísa deu à luz um
filho. Embora com algumas reticências, os dois
amantes consentiram num casamento secreto. Mas
este procedimento clandestino não lavava de maneira
alguma a honra de Fulberto e dos seus. No seu furor,
para punir Abelardo, mandaram-no castrar por
serviçais. Este drama levou à separação definitiva dos
esposos. Cada um por seu lado tomou o hábito
monástico, ela em Argenteuil, ele na grande abadia
real de Saint-Denis.
Ter-se-á Abelardo comportado como um sedutor
cínico, como dará a entender mais tarde na sua
Histoire de mes Ma- Iheurs, confissão escrita em que a
narrativa da falta devia necessariamente preceder a da
expiação e da conversão ulterior? Ou estaremos em
vez disso, muito antes do tempo dos romances
corteses, perante um exemplo comovente de uma
autêntica e profunda paixão amorosa em que o ardor
do desejo em nada exclui a gravidade dos
sentimentos? Na verdade, como o
/Sand, 2." ed., revista e corrigida, 1992. (I. a ed., 1990).
Importante obra realizada por ocasião da exposição
"S. Bernardo e a ordem cisterciense" na Conciergerie
de Paris (Dezembro 1990-Fevereiro 1991).
* L. Pressouyre, Le Rêve Cistercien, Paris,
Gallimard, "Découvertes", n.° 95, 1990.
* E. Vacandard, Vie de Saint Bernard, Abbé de
Ciairvaux, 2 vols ., 4.aed„ Paris, 1910.
* J. Verger e J. Jolivet, Bernard-Abélard ou le
Cloître et l'école, Paris, Fayard-Mame, 1982.

Sobre a posteridade lendária de S. Bernardo:


* Brian P. McGuire, The Difficult Saint Bernard of
Ciairvaux and his Tradition.^Kalamazoo, Michigan,
Cistercian Publications, "Cistercien Studies-series",
136, 1991.
* Vies et Légendes de Saint Bernard. Création,
diffusion, réception (Xlle-XXe siècles). Actas dos
encontros de Dijon, 7-8 Junho 1991, publicadas por P.
Arabeyre, J. Berlioz e P. Poirrier, Cîteaux, Commen-
tarii Cistercienses, "Textes et Documents ", 5,19—3.
Com várias comunicações sobre a "lenda negra".

Obras de S. Bernardo:
* Edição crítica (em latim) por Dom J. Leclercq e H.
Rochais, Roma, 9 vols., 1957-1977.
* Concordances Verbales. Thesaurus sancti
Barnardi Claraeval- lensis, Turnhout, Brepols, 1988,
em microfichas.
* Saint Bernard, Sermons pour l'Année. Tradução
francesa, introdução, notas e índice analítico por P.-Y.
Emery, Turnhout, Brepols, Taizé, Les Presses de
Taizé, 1990.
* Saint Bernard de Ciairvaux, Textes Politiques,
selecção e trad, francesa de P. Zumthor, Paris, 10/18,
1986 (l.aed. 1944).
* Saint Bernard, Oeuvres Mystiques, Paris, Ed. du
Seuil, 1953.
* Saint Bernard de Ciairvaux, Les Combçtts de
Dieu. Textos escolhidos e trad, por H. Rochais, Paris,
Stock, 1981.
* As obras de S. Bernardo estão a ser traduzidas
para o francês para a colecção "Sources Chrétiennes"
(Paris, Le Cerf).
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

Notas
1
Baudri de Bourgueil, "Vita B. Roberti de
Arbrissello", em Patrolo- gie latine, t. 162. col.1043-
1058. Não existe tradução em língua francesa desta
Vida latina sobre a qual se apoia a primeira parte
deste estudo.
2
Georges Duby, Le Chavalier, Ia Femme et le
Prêtre, Paris, Hachette, 1981. Aí se encontrará o
relato pormenorizado dos casamentos referidos do rei
Filipe I.
3
Marbode de Rennes, Epistola 6 em Patrologie
Latine, t. 171, col. 1480-1492.
4
Dominique Iogna-Prat, "La femme dans la
perspective péniten- cielle des ermites du Bas-Maine",
em Revue d'Histoire de la Spiritualité, t. 53, 1977, pp.
47-64.
5
Geoffroy de Vendôme, Epístola 47 do livro IV, em
Patrologie Latine, t. 157, col.181-184.
6
"Vita altera B. Roberti de Arbrissello", em
Patrologie Latine, t. 162, col. 1058-1078.
7
Este texto é reeditado por J. Dalarun em
L'Impossible Sainteté. La Vie Retrouvée de Robert
d'Arbrissel, Paris, Le Cerf, "Cerf Histoire", 1985, p.349.
8
Jules Michelet, Le Moyen Age, em Oeuvres
Complètes, Paris, Flammarion, t. 4, 1974, pp. 459-
460.
9
Texto editado por Jacques Dalarun em
L'Impossible Sainteté (...), pp. 207-298.
10
Sobre as ramificações deste tabu, ver J. Dalarun,
"Eve, Marie ou Madeleine: la dignité du corps féminin
dans l'hagiographie médiévale", em Médiévales, n.°
8,1985, pp. 18-32.
" Ver L'Impossible Sainteté (...).
Orientação bibliográfica
Sobre Robert d'Arbrissel:
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 55

* J. Dalarun, L'Impossible Sainteté. La Vie


Retrouvée de Robert d'Arbrissel (v. 1045-1116), Paris,
Le Cerf, "Cerf-Histoire", .1985.
* J.-M- Bienvenu, L'Etonnant Fondateur de
Fontevraud, Robert d'Arbrissel, Paris, Nouvelles
Éditions latines, 1981.
* J. Dalarun, Robert d'Arbrissel, Fondateur de
Fontevraud, Paris, Albin Michel, 1986, prefácio de G.
Duby.
Sobre o universo mental do período:
* G. Duby, Le Chevalier, la Femme et le Prêtre. Le
mariage dans la France féodale, Paris, Hachette 1981.
* A. Vauchez, La Spiritualité du Moyen Age
Occidental, VllIe-XIIIe siècle, Paris, Éd. du Seuil,
1934.
As fontes sobre Robert d'Arbrisse! encontram-se
quase exclusivamente em latim, editadas por J.-P.
Migne na Patrologie Latine. É porém possível
encontrar a Vida atribuída ao irmão André e a Regra
de Fon- tevraud numa versão em francês arcaico, em
L'Impossible Sainteté (...).
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

à l'époque romane", em Cahiers de Civilisation


Médiévale, 1959, pp. 53-63.
7
Abrégé des Gestes et Miracles des Saints, trad,
francesa A. Dondai- ne, Paris, 1947, p.351. C, Caroline
W. Bynum, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of
the High Middle Age, Londres, Berkeley, Los Angeles,
University of California Press, 1982.
8
Tradução francesa deste tratado em Zoé
Oldenbourg, Saint Bernard, Paris, Albin Michel, 1970,
pp. 303-336.
9
Héminand de Froidmond, Chronique (Patrologia
Latina, 212, 1038).
10
Trad, francesa M. Pérez, Lille, Centre d'études
médiévales et dialectales, 1988, pp. 51-54; cf. também J.
Berlioz, "Saint Bernard dans la littérature satirique, de /
'Ysengrimus aux Balivernes des Courtisans", em Vies or
Légendes de Saint Bernard. Création, diffusion,
réception (Xlle-XXe siècles), Cîteaux, Commentarii
Cistercienses, 1993, pp. 211-228.
11
Histoire de France..., s/d, E. Lavisse, 11/2, Paris,
1901, p. 282.

Orientação bibliográfica
O IX centenário (1990) do nascimento de S. Bernardo
foi motivo para a realização de numerosos colóquios, em
França e no estrangeiro, que permitiram avançar de
novo com as pesquisas sobre o abade de Claraval,
caídas um pouco no esquecimento (aliás continua a não
existir nenhuma biografia crítica do santo).
Sobre S. Bernardo:
* J. Berlioz, Saint Bernard en Bourgogne. Lieux et
mémoire, Dijon, Le Bien Public, 1990.
* Bernard de Clairvaux. Histoire, mentalités,
spiritualité. Colóquio de Liâo-Cîteaux, Dijon, Paris,
"Sources Chrétiennes", 380, Le Cerf, 1992.
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 55

* M.-M. Davy, Bernard de Clairvaux, Paris, Editions du


Félin, 1990. Trata-se da edição revista do prefácio de S.
Bernardo, Oeuvres, Paris, Aubier, 1945.
* Dom J. Leclerq, Bernard de Clairvaux, Paris,
Desclée de Brou- wer, 1989.
* L. Pressouyre e T.N. Kinder, s/d, Saint Bernard et le
Monde Cistercien, Paris, Caisse Nationale des
Monuments Historiques et des Sites/ ergueu-se; mas a
criança não se ergueu, pois jazia morta." Então repliquei:
"Foi o mais malfadado dos monges; pois nunca ouvi
dizer que um monge se deitasse sobre uma criança sem
que a criança se levantasse logo a seguir a ele." O
abade ficou vermelho e houve muita gente que saiu para
se rir.»
Esta história—onde se notará a alusão à
homossexualidade, que provoca a hilaridade geral — é
por certo suspeita. Não se conhece, no século XII,
nenhum "marquês de Borgonha". Mas a anedota é
reveladora da suspeição que recaía, pelo menos na
corte do rei de Inglaterra, sobre a personagem. Esta
lenda negra não deve todavia ser subestimada.
0
carácter intratável de Bernardo, os seus malogros,
fizeram dele um homem de acção frequentemente
condenado. O juízo de Achille Luchaire, no começo
deste século, mantém-se célebre: "Que foi então a obra
de S. Bernardo? A oposição de um homem de génio às
correntes que arrastavam o seu século. (...) A tentativa
isolada desse admirável sonhador estava condenada, à
partida." Tentativa apaixonada e desmesurada de um
homem que queria fazer pender a sociedade inteira
para o universo monástico.

Notas
1
André Malraux, Les Chênes qu'on abat (...), Paris,
Gallimard, 1971, p. 81 ; e cf. J. Berlioz, "De Gaulle et
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

saint Bernard. La rencontre de deux géants", em Cité,


n.° 25, 1991, pp. 47-50.
2
Cf. Arsênio Frugoni, Arnaud de Brescia dans les
Sources du Xlle Siècle, trad. francesa. A Boureau, Paris,
Les Belles Lettres, 1993.
3
Cf. Anselme Dimier, "Outrances et roueries de saint
Bernard", em Pierre Abélard-Pierre le Vénérable, Paris,
CNRS, 1975, pp. 655-670.
4
Dom Jean Leclercq, Nouveau Visage de Bernard de
Clairvaux. Approches psycho-historiques, Paris, Le
Cerf, "Essais", 1976, p.47.
5
Sermon 83 (trad. francesa R. Aigran, Paris,
Flammarion, 1929, p. 286).
6
Cf. Jacques Verger e Jean Jolivet, Bernard-Abélard
(...), Paris, Fayard-Mame, 1982,p.133; PaulRousset,
"Recherches sur l'émotivité
S. Bernardo, o soldado de Deus
Jacques Berlioz
Até ao século XII, os monges são os pilares do
cristianismo ocidental. Vivendo na sua grande maioria
sob a regra de S. Bento (morto em 547), formam, no
seio dá Igreja Católica, uma verdadeira milícia de Cristo.
Os seus mosteiros, providos de imensas bibliotecas, são
além disso os conservatórios do saber e da cultura
antigos.
Face à hierarquia secular, muitas vezes enfeudada às
potências laicas, os monges defendem a sua autonomia.
Tentam converter as populações rurais ao cristianisino e
reformar a Igreja inteira. S. Bernardo de Claraval
(Clairvaux), 1090-1153) surge como a figura
emblemática deste espírito de conquista. Assinala
igualmente o seu Final.
Proveniente da ordem de Cister, criada em 1098 por
Robert de Molesme (que queria restaurar o sentido
evangélico da regra beneditina), convencido da
superioridade do estado monástico, S. Bernardo partiu
cheio de paixão ao assalto da sociedade cristã para a
modelar segundo o seu ideal. Foi igualmente o pregador
inflamado da segunda cruzada, empurrando os homens
para as estradas, para o desastre. A sua reputação de
intolerância é inegável: ele representa, para muitos, o
ayatollah da fé católica. O general de Gaulle (enquanto
vizinho, já que Colombey- -les-Deux-Églises [a sua terra]
se encontra a alguns quilómetros de Claraval)
interrogou-se um dia na presença de André Malraux: "S.
Bernardo era de certeza um colosso; mas era também
um homem de coração?"1
Bernardo nasceu em 1090 em Fontaine-lès-Dijon. O
seu pai é um cavaleiro de categoria modesta. Bernardo
é enviado nos primórdios da sua mocidade para a
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

escola dos cónegos de Saint-Vorles, situada em


Châtillon-sur-Seine, onde adquire uma formação sólida
(latim, cultura bíblica e retórica). Por volta de 1110,
projecta entrar em Cister (Citeaux) onde se pratica a as-
cese mais rude, longe das agitações do mundo.
Em Abril de 1112 (ou em Maio de 1113, a cronologia
não é certa), Bernardo chega a Cister em companhia de
cerca de trinta companheiros. São acolhidos com
alegria pelo abade Etienne Harding: com eles abrem-se
novas perspectivas de expansão do mosteiro. Elemento
dinâmico e seguro, Bernardo é enviado para
Champanha em 1115, para aí fundar, com alguns
monges, a abadia de Claraval. Aí se conservará toda a
sua vida um simples abade, recusando energicamente
qualquer outra dignidade na Igreja (foi-lhe proposto uma
quantidade de vezes que se tornasse bispo). Não ficou
a dever a sua influência religiosa e política— fora da sua
ordem (e sem ser ainda o seu superior) — senão aaseu
carisma, ao seu prestígio pessoal, ao seu poder de
convencer e à sua habilidade retórica.
Mas por que razão Bernardo, entrado numa ordem
que prega o afastamento do mundo, se intromete assim
nas questões do seu tempo a ponto de passar um terço
da sua actividade fora da sua abadia? É ele mesmo
quem responde: "Nenhum dos assuntos de Deus me é
estranho" (Carta 20). O ideal monástico é para ele um
ideal de combate. Sentindo-se investido de um espírito
de missão, obriga-se, contra o seu desejo de solidão, a
intervir no mundo que o rodeia. "Todo poderoso a
contragosto e condenado a governar a Europa" — diz
Michelet. Contradição que o abade de Claraval formula
deste modo: "Sou a quimera do meu século, nem clérigo
nem leigo. Abandonei já a vida do monge, mas continuo
a usar o hábito" (Carta 250). Dois princípios o sar. Os
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 55

irmãos são-lhe favoráveis, contra Bernardo (Carta 70). A


sua ingerência nos assuntos da Igreja deixa os bispos
descontentes: "O que deve um monge ter de comum
com as cortes e os concílios?" — escreve o cardeal
Aimeri.
Em quase todos os casos que defende, encontra
violentos detractores. Como um tal Béranger de Poitiers
que defende desde 1140 o seu mestre Abelardo num
fogoso libelo (a ponto de ser obrigado a exilar-se nas
Cevenas): "Tomaste Abelardo como alvo das tuas
secas, para vomitar contra ele o veneno do teu
azedume, para o riscar da terra dos vivos, para o pôr na
categoria dos mortos (...) Enquanto lhe fechas as portas
da clemência, os teus hediondos furores traem-te, o teu
ódio cego é reconhecido."8
Os ataques visam também o fazedor de milagres.
Em vida de Bernardo, um discípulo de Gilbert de la
Porrée — teólogo cuja condenação a abadia de
Claraval procura obter debalde — conta que o santo
não conseguiu, em Auxerre, ressuscitar um homem,
não obstante as suas orações, e depois de ter
anunciado à multidão que era capaz de tal! 9 Mais tarde,
o galês Gautier Map (morto em 1210), adido à corte do
rei de Inglaterra Henrique II compraz-se em narrar nas
suas Balivernes des Courtisans, após um violento
requisitório contra Bernardo e os cisterciens- es,
conversas à mesa relatando três tentativas malogradas
do santo no sentido de produzir um milagre. 10 E são
cistercienses quem disto fala!
Um exemplo: «Dois abades brancos falavam de
[Bernardo] na presença de Gilbert Folliot, bispo de
Londres [ 1163-1187], e louvavam-no pelo valor dos
seus milagres; depois de ter exposto grande número
deles, um dos dois disse: "Se bem que aquilo que
dizemos de Bernardo seja verdade, vi todavia uma vez
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

a graça dos milagres faltar-lhe: um marquês da


Borgonha pediu-lhe ■ um dia que lhe fosse curar o filho;
fomos lá e encontrámos a criança morta; então,
Bernardo mandou transportar o corpo para í um quarto
retirado e, depois de ter mandado sair toda gente,
deitou-se sobre a criança (1 Reis XVII, 21) e orou;
deoois ciclotímico que passa por fases de depressão
que alternam com fases de hipomania" 4. Esta paixão
pode igualmente ler-se nos escritos místicos do santo. A
intensidade dessas experiências explica o carácter
fervoroso, por vezes mesmo desmesurado da
expressão: "O amor não procura fora de si a sua razão
de ser nem o seu fruto: o fruto do amor é o exercício do
amor; amo porque amo, amo para amar" — escreve
num dos seus Sermões sobre o Cântico dos Cânticos,
sua obra principal5.
Evitemos o anacronismo: enquadrada nas exigências
monásticas da reforma da Igreja e nos comportamentos
aristocráticos do século XI1, a personalidade de
Bernardo, não obstante o seu poder e os seus
excessos, está em uníssono com a dos seus con-
temporâneos. É isso que explica que ele tenha podido
ter tanta influência sobre eles: ele respohde a uma.
expectativa geral, mesmo nos seus exageros, neste
período de viva "emotividade" em que mudar
bruscamente de atitude, passar das lágrimas ao riso ou
à violência eram habituais6. Difícil igualmente é
destrinçar em Bernardo as tradições literárias (como a
arte da sátira) da agressividade instintiva. Sem
esquecer que, como que para baralhar as cartas, o
abade de Claraval mostra uma complexa ironia a
propósito dele mesmo, tratando-se a si mesmo por
jogral de Deus, por humilhação. Além do mais,
passando das causas aos seres, esta personagem
violenta consegue ser terna. Recomenda a doçura à
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 55

condessa de Blois, que o interroga sobre a educação do


seu filho. A caridade leva-o a tomar atenção aos
indivíduos: "A solicitude de Bernardo" — escreverá no
início do século XIII o dominicano Jean de Mailly —
"pela salvação de cada um em particular era tão grande
que parecia amar todos os homens com uma verdadeira
afeição materna."7 Mas não sem paradoxo, é em termos
de uma rara autoridade que ele ordena à duquesa da
Lorena que preste assistência a uma prostituta
arrependida. E este homem de paixão teve também
adversários apaixonados.
Quando, encolerizado, o abade expulsa o seu irmão
Barthélemy de Claraval, este expõe as suas condições
para regres- regem: a defesa da ordem cisterciense e a
da reforma da Igreja, levada a cabo desde um século
antes.
Até 1130, Bernardo consagra-se ao desenvolvimento
de Claraval, acção que assumirá até ao fim da sua vida,
procurando estender o mais possível a influência da
ordem cistercience (quando da sua morte, em 1153, esta
comporta 345 conventos, 167 dos quais se encontram
dependentes de Claraval). A partir de então (já com mais
de quarenta anos), Bernardo está em todas as frentes. E
a primeira é a da reforma monástica: considerando que
Claraval está em posição de exercer um magistério
moral, Bernardo censura a ordem de Cluníaco por uma
falta de ascetismo na sua conduta, na arte e na liturgia.
Se Bernardo aceita de boa vontade receber na sua
ordem monges que deixaram Cluníaco (ou cabidos de
cónegos), recusa o passo inverso.
Citemos a carta que escreveu por volta de 1119 ao
seu primo co-irmão Robert de Châtillon, que passara
dos cistercienses para Cluníaco (Bernardo reagiu como
um senhor cujo parente desleal tivesse traído a
linhagem): " Ó criança insensata, o que foi que te
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

fascinou, o que foi que te fez infringir os votos pronun-


ciados pela tua própria boca? (...) Por que deixaste tu a
tua Ordem, os teus irmãos, a tua casa, por que me
deixaste a mim, teu parente chegado pelo nascimento,
mais chegado ainda pelo espírito?" (Carta J). Notemos
que o envio de cartas (destinadas na realidade a um
vasto público) é um meio privilegiado de pressão.
Bernardo distingue-se neste exercício: encontraram-se
550 cartas suas! O abade de Cluníaco, Pedro, o
Venerável (1092-1156), dá provas de paciência, evita
zangar-se irremediavelmente com Bernardo,
conservando com ele uma amizade, se não sincera, pelo
menos diplomática.
Bernardo intervém no funcionamento da Igreja
secular, por sua própria iniciativa ou por solicitação.
Toma a defesa de prelados vítimas da intrusão de
príncipes laicos* apoiando assim em 1129-1130 o bispo
de Paris, depois arcebispo de Sens contra o rei de
França. Aguarda as férias e as eleições episcopais (os
cistercienses estão submetidos à autoridade do bispo) e
apoia o candidato que lhe parece ser de melhor nível
moral. Contam-se dezassete intervenções deste tipo.
Aconselha os prelados, incita-os a cumprir as suas
obrigações ou critica, acerbo, a vida que levam.
Chega a tomar posição quando da eleição do Papa:
por morte do papa Honório II, dois papas rivais,
Inocêncio II e Anacleto II, são eleitos sucessivamente
— é o cisma dito de Anacleto (1130). O Ocidente divide-
se. Bernardo escolhe Inocêncio, que acha mais apto a
dirigir a Igreja: durante oito anos, luta para o impor,
levando os príncipes (Luís VI, Lotário) e as cidades
(Milão) a admitir as virtudes do seu protegido, a custo
de incessantes viagens, de inúmeras intervenções. A
morte de Anacleto, em Janeiro de 1138, põe fim ao
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 55

cisma e Bernardo ganha em autoridade por toda a


cristandade. '
Paralelamente, a campanha que conduz contra a
violência exercida pelos nobres culmina com o Elogio
da Milícia Nova, livro dirigido aos Templários e que
propõe aos homens de guerra um rigoroso itinerário
espiritual.
Torna-se então teólogo para impor a todos a
ortodoxia da fé. O movimento das escolas urbanas,
onde os professores aplicam a dialéctica às verdades
da fé, inquieta-o. Quando se dirige aos estudantes
parisienses, em 1140, é para os desviar para Claraval
(uns vinte, entre os quais o seu futuro biógrafo,
Geoffroy d'Auxerre, seguem-no então). Faz condenar o
teólogo e filóso- - fo francês Pedro Abelardo (1079-
1142) e o seu discípulo, o reformador político e religioso
italiano Arnaldo de Brescia2. Tendo descoberto os
progressos da heresia maniqueísta propagada no
Languedoc por um certo Henrique, monge beneditino,
desloca-se aí em Maio e Junho de 1145. Se o
acolhimento é entusiástico em Tolosa, Bernardo tem
depois alguns dissabores: em Verfeuil, burgo fortificado
a uma vintena de quilómetros de Tolosa, os heréticos,
conduzidos pela aristocracia da localidade, atacam-no
fazendo tal barulho que ele não consegue fazer-se
ouvir.
O fim da vida de S. Bernardo é assinalado pelo
alistamento na cruzada. A 31 de Março de 1146, dirige
um vibrante apeio aos clérigos e aos nobres reunidos
em Vézelay. Durante o Outono e o Inverno seguintes,
percorre o nordeste da França e o Império para pregar
a cruzada e pôr fim aos massacres de judeus alemães.
O desentendimento entre os cruzados e os Francos do
Oriente conduz ao fracasso do empreendimento: o
cerco de Damasco é abandonado em Julho de 1148.
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Afectado pelas críticas que lhe são dirigidas, tenta


justificar-se, ao mesmo tempo que o seu estado de
saúde piora. A morte do papa Eugénio III, seu discípulo,
desfere-lhe um golpe de que não voltará a refazer-se.
Morre a 20 de Agosto de 1153, com sessenta e três
anos de idade.
Este empenhamento no serviço da Igreja é mantido
por uma energia indefectível (pão obstante uma saúde
frágil, pois que desde a sua juventude que enfraqueceu
o seu corpo por meio de macerações rigorosas) e por
um carácter veemente e autoritário. Para cada uma das
sua missões, uma vez fixado o objectivo, Bernardo
identifica a sua causa com a de Deus e só deixa de
combater uma vez atingida a meta. E isto sem recuar
perante a astúcia, a má fé, as invectivas ou as injúrias
que lhe são dirigidas para o desqualificarem 3. Quando
um monge de Cluníaco é eleito em 1137 bispo de
Langres (diocese na qual se encontra Claraval),
Bernardo dirige-se de imediato a Roma: o seu parecer
não foi solicitado! As suas cartas são ultrajantes: "Que
espécie de monstro e não de esposo escolheste tu para
a tua filha! Não te reconhecemos nisso como mãe, mas
como madrasta"—escreve ele ao arcebispo de Lião
(carta 165). Numa carta ao Papa, torna-se pérfido: "O
pudor impede-me de repetir o que o rumor público diz
dele" (Carta 167). Noutra, acusa o arcebispo de Lião e
Pedro, o Venerável, de estarem corrompidos pelo
dinheiro (Carta 168).
Bernardo obtém a deposição do do monge de
Cluníaco: as vozes dirigem-se para ele mesmo; recusa e
é o seu primo, Geoffroy de la Roche-Vanneau, que é
eleito: Bernardo alcançou os seus fins. Sanado o
conflito, Bernardo acalma-se. Em termos médicos, a crer
em Dom Jean Leclercq, o abade é "um
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Foram precisos ainda quatro anos de negociações


penosas, primeiro na sequência de um conflito ardente
entre o Imperador Frederico Í l e o papa Gregório IX,
cujo acordo era necessário, no seguimento das
hesitações de Conrado de Masóvia, inquieto,
justificadamente, com a amplitude do privilégio imperial.
Mas deu o seu assentimento em 1230 e Gregório IX
lançou um apelo à cruzada contra os Prussianos.
A conquista, sob o estímulo do provincial Hermann
Balk, foi conduzida metodicamente e, a princípio, com
êxito. Tendo atravessado o Vístula, os Cruzados
edificaram o seu primeiro castelo em Torun; este em
breve se viu rodeado de uma povoação. O nome
provinha do castelo de Torum na Palestina, que os
Teutónicos acabavam de edificar: para eles, a luta
contra os Infiéis era em toda a parte o mesmo combate
e qualificavam prontamente os seus inimigos de Turcos
ou de Sarracenos. No ano seguinte (1232), um segundo
castelo foi construído em Culm, a cidade foi dotada de
um estatuto, o qual foi depois aplicado a todas as
cidades prussianas e que se caracterizava sobretudo
pela obrigação de um serviço militar muito pesado. A
progressão fez-se igualmente por mar, com navios
fornecidos principalmente por Lubeque, o que permitiu a
fundação das eidades de Elbing (1237), de Braunsberg,
e finalmente de Conisberga (1255), nome escolhido em
honra de Otocar, rei da Boémia, que viera prestar auxílio
aos Cruzados.
A penetração no interior foi mais rude. Os cavaleiros
eram pouco numerosos — no total, talvez um milhar,
contrariamente a valores exagerados outrora avançados
— e o seu papel era sobretudo o de enquadrar os
contingentes de Cruzados vindos da Alemanha, da
Polónia e da Boémia, em geral pelo período de um ano,
após o qual eram substituídos por outros. A cada
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 61

campanha edificavam um castelo, ponto de apoio para a


seguinte. Em cada etapa dispunham as tendas em
círculo, no meio do qual eram colocados o material e os
cavalos. Muitas vezes as expedições eram feitas no
Inverno, sendo a marcha facilitada pelos pântanos e
pelos lagos gelados.
Mas a sua meta essencial era Paris e as escolas da
catedral de Notre-Dame que atraiam já numerosos
alunos. Abelardo foi aí um estudante brilhante,
combativo e indócil que, a crer nele, superava os seus
condiscípulos e contestava os seus mestres,
multiplicando os seus êxitos sem se preocupar com as
invejas que suscitava. Em breve quis ser ele a ensinar.
O seu humor batalhador — traço de mental idade
herdado da sua origem cavalheiresca — trouxe-lhe
então dificuldades. Foi-lhe difícil vencer as reticências
das autoridades eclesiásticas e dos mestres. Depois de
várias tentativas frustadas e de uma estada em Laon,
em 1113, onde se iniciou na exegese bíblica, conseguiu
ser
admitido na escola de Notre-Dame em Paris. «
Aí ensinou ao mesmo tempo as "artes liberais" —
gramática (entenda-se: o latim), retórica e sobretudo
dialéctica, seu domínio de predilecção — e teologia. A
sua fama era considerável e atraía de longe alunos
brilhantes. Muitas personagens importantes do século
XII, que virão por sua vez a ser mestres das escolas
parisienses, bispos ou cardeais, encontraram-se, então
ou mais tarde, entre os seus ouvintes. Vivia em boa
parte do dinheiro que estes lhe pagavam para seguir os
seus cursos, o que lhe garantia uma certa
independência face às autoridades do cabido de Notre-
Dame, se bem que estivesse teoricamente agregado à
sua escola. Foi deste modo possível apresentar Abe-
lardo como o primeiro exemplo acabado de intelectual
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

medieval, de professor vivendo essencialmente de e


para o seu trabalho de ensino.
É então, em 1117, que intervém o episódio dramático
dos seus amores com Heloísa, o qual rompe
brutalmente o curso do seu destino. É certo que
continuará a ensinar e os seus tratados filosóficos e
teológicos são praticamente todos posteriores a esta
data. Podemos todavia deter-nos nesta curva da vida de
Abelardo para tentar apreciar o que representou para
ele a experiência dos estudos e da escola.
Esta experiência foi, antes do mais, intelectual. A
disciplina favorita Hp AhelarHn pra a dialéctica — hoje
em dja chamar- -lhe-íamos a lógica — a arte do
raciocínio justo que permite discernir, unicamente pelos
recursos da linguagem, o verdadeiro e o falso. Abelardo
não inventou nem sequer redescobriu esta disciplina
cujos textos fundamentais, os da "velha lógica" de
Aristóteles, traduzidos em latim desde o século VI, eram
já comentados pelos seus mestres parisienses. Mas ele
aperfeiçoou- -a com uma mestria axtraordinária e,
sobretudo, demonstrou que ela podia ser um
instrumento de uso universal em todos os ramos do
saber, em particular em teologia. Parece pois que
Abelardo foi o primeiro na Idade Média a dar à palavra
"teologia" o seu sentido moderno de esforço de
exposição racional e sistemática do conteúdo das
Escrituras e das verdades da fé. Exposição e não
explicação, pese embora aquilo que lhe censurarão,
sem nenhuma razão, os seus adversários. Cristão sin-
cero, Abelardo não ignorava nem os mistérios nem a
transcendência divina. Mas pensava que, graças à
dialéctica, se podia, de maneira evidentemente
aproximativa, analógica, apresentar as verdades
reveladas (como o dogma da Trindade) de maneira tal
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 61

que ao menos parecesse que não estavam em


contradição com as exigências da razão.
Esta perspectiva achava-se no extremo oposto da
perspectiva da cultura monástica tradicional, que S.
Bernardo conduzia então ao seu apogeu e que se
exprimia acima de tudo pelo comentário alegórico e
místico do texto sagrado, preparado na meditação, na
oração e na humildade. Existiam, face ao mistério da
Revelação, duas atitudes, duas concepções da relação
do homem e de Deus verdadeiramente incompatíveis.
Sobre este ponto, Abelardo não variará e as
condenações que, mais tarde, recairão sobre a sua obra
nos concílios de Soissons (1121) e de Sens (1140 ou,
segundo alguns estudiosos, 1141), para além dos mal-
entendidos que tenham podido acarretá-las (falta de
habilidade de Abelardo, má fé dos seus adversários),
manifestarão claramente a existência deste fosso.
O primado da dialéctica tinha para Abelardo uma
outra consequência prática muito importante. Significava
que a discussão,
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 79

A nova ordem, promulgada por Inocêncio III logo em


1199, beneficiou de privilégios e de doações
consideráveis em quase toda a Europa e na Palestina.
Os Teutónicos puderam assim construir vários castelos,
dos quais os mais importantes foram os de Montfort, a
nordeste de São João de Acre, e de Torum, mais longe,
na estrada de Damasco. Todavia confrontavam-se com
as contestações e a hostilidade dos Mandianos.
Foi o que incitou o quarto grão-mestre, Hermano de
Salza, umadas cabeças políticas mais sagazes do
século XIII, a procurar um estabelecimento na Europa
oriental, onde o paganismo estava ainda largamente
difundido (1210-1239). Uma primeira tentativa de
instalação na Transilvânia gorou-se na sequência da
oposição do rei da Hungria. Mas então chegou um
pedido de ajuda do duque polaco de Masóvia. A situação
do cristianismo no sector do baixo Vístula era, com
efeito, alarmante. Os Prussianos, ramo do povo lituano,
cujas múltiplas tribos se achavam repartidas entre o
Niémen, o Báltico e o Vístula, eram ferozmente pagãos
e travavam contra os seus inimigos uma luta ao mesmo
tempo nacionalista e religiosa. A evangelização
empreendida por missionários polacos e alemães tinha
alcançado algum êxito no início do século X, mas uma
reacção pagã acabava de arruinar a obra começada.
Mais: os Prussianos efectuavam incursões devastadoras
em terras cristãs, e daí o apelo aos Teutónicos.
Hermano de Salza aceitou a oferta. Conselheiro
íntimo de Frederico II, obteve do imperador, em Rimini
(1226), um diploma selado por uma bula de ouro
atribuindo à ordem a região de Culm, na margem direita
do Vístula (cf. mapa, p. 85), bem como todos os
territórios que fossem conquistados aos Prussianos. A
ordem ficava por meio deste diploma investida dos
atributos de plena soberania sobre todos os habitantes,
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 80

de independência completa em relação a todo o poder


exterior, eclesiástico ou laico. Era o reconhecimento de
um Estado soberano, colocado, é certo, "sob a
monarquia do Império", mas esta restrição era
puramente platónica e nunca teve efeito Drático.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Em França, um preconceito desfavorável particular


liga-se por vezes aos Teutónicos. Em parte por causa do
próprio nome, que evoca a investida em Itália dos
Teutões bárbaros no século II antes da nossa era. Mas
nesse caso trata-se de uma assimilação totalmente
errónea. A palavra deutsch, no velho alto alemão diutisc,
foi traduzida para latim, a partir do século VIII, por
theodiscus, depois por teadiscus e, finalmente, por
intervenção de eruditos entusiasmados com a
Antiguidade clássica, por teutonicus, etimologia
evidentemente fantasista. Com efeito, os cavaleiros
ditos "teutónicos" não passam de cavaleiros alemães.
Como as suas predecessoras, a Ordem Teutónica
deve a sua origem a um hospital fundado em Jerusalém
na primeira metade do século XII para albergar e tratar
os peregrinos alemães. Não sabemos quase nada deste
estabelecimento, que desapareceu quando da
reconquista de Jerusalém por Saladino (1187). Mas, três
anos mais tarde, burgueses de Brema e de Lubeque
fundavam, em frente a São João de Acre sitiada pelos
cristãos, um novo hospital, cedo confirmado pelo Papa.
Entretanto, em 1198, nobres e príncipes alemães, entre
os quais o duque da Suábia, filho de Frederico Barba
Roxa, decidiram transformar o estabelecimento numa
ordem monástica e militar dotada da regra dos
Templários, mais tarde completada por "costumes"
particulares.
Os cavaleiros tomaram o nome — que mantiveram
sempre oficialmente depois — de "Irmãos da Casa do
Hospital dos Alemães de Nossa Senhora em
Jerusalém", recordando a sua origem e a sua missão
hospitalária. O nome assinalava também o seu carácter
estritamente nacional : face aos Hospitalários e aos
Templários dominados pelos Franceses, a sua ordem
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

era a dos Alemães (Teutonicorum). A bem dizer, a regra,


se exigia a origem nobre do cavaleiro, nada especificava
quanto àsua nacionalidade. E pois possível que tenha
havido alguns estrangeiros admitidos de pleno direito na
ordem, nomeadamente poiacos na época da instalação
dos cavaleiros na Prússia. Mas esses casos foram ex-
tremamente raros e não estão confirmados com
segurança.
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 63

a "questão disputada", se tornava doravante o exercício


escolar fundamenta! que a leitura magistral mais não
fazia que preparar. E isso modificava as próprias
condições do trabalho intelectual, a atmosfera das
escolas, e as relações dos estudantes entre si e com o
seu mestre.
Até 1117, Abelardo conheceu apenas as escolas
urbanas e sobretudo parisienses. A afinidade profunda
entre Abelardo e Paris é um leitmotiv das primeiras
páginas da Histoire de mes Malheurs: "Cheguei
finalmente a Paris", "Voltei a Paris", "De regresso a
Paris, aí ocupei as escolas que há muito me estavam
destinadas", etc. Ora a Paris do rei Luís VI (1108-1137)
era uma verdadeira cidade nova, em pleno progresso
demográfico e em plena mutação económica e política,
afirmando-se o seu papel novo de grande mercado, de
centro cultural e de residência régia. E as escolas, tal
como Abelardo no-las descreve, participavam da
atmosfera deste "estaleiro urbano" em pleno trabalho.
Oficialmente, estavam sob o controlo da Igreja mas a
maior parte parece ter sido bastante autónoma, vigiadas
quando muito de maneira irregular e infomal; só mais
tarde as coisas se endurecerão. Com frequência pago
pelos seus alunos, o mestre achava-se bastante livre
nos seus movimentos, e no seu ensino, aliás tal como os
seus estudantes.
Esta liberdade era a garantia de mudanças
intelectuais intensas, estimuladas pelo êxito da dialéctica
e da disputa, instrumentos de um verdadeiro progresso
do conhecimento. O resgate desta atmosfera de
emulação permanente e de curiosidade intelectual
sempre desperta era a frequência das querelas e a
aspereza das invejas entre alunos da mesma escola ou
entre mestres rivais que disputavam entre si os
auditórios de estudantes. Abelardo estava sempre
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

pronto para estas polémicas e os seus adversários


recrutar-se-ão entre os outros mestres "invejosos" das
escolas laonesas ou parisienses bem como entre os
monges ou clérigos tradicionalistas.
Estes dados incontestáveis inspiraram a imagem,
avançada por Michelet, no século XIX, de um Abelardo
"progressista", laicizante e propagador de uma
racionalidade "burguesa" que certamente se opunha à
cultura "feudal" e eclesiástica ainda dominante. "Os
prodigiosos êxitos de Abelardo [sic] explicam-se
facilmente. Parecia que pela primeira vez se escutava
uma voz livre, uma voz humana. Tudo o que se havia
produzido na forma pesada e dogmática do ensino
clerical, sob o rude invólucro da Idade Média, apareceu
na elegância antiga que Abelardo tinha reencontrado. O
arrojado jovem simplificava, explicava, popularizava,
humanizava. Quase não deixava nada de obscuro ou de
divino nos mistérios mais transcendentes. Parecia que
até então a Igreja tinha balbuciado e que Abelardo
falava. Tudo se tornava doce e fácil; ele tratava
delicadamente a religião, manejava-a docemente, e ela
fundia-se-lhe na mão. Ele restituía a religião à filosofia, à
moral, à humanidade (...) Esta filosofia circulou
livremente: atravessou num instante o mar e os Alpes;
desceu a todas as categorias. Os leigos puseram-se a
falar das coisas santas. Por toda a parte, já não apenas
nas escolas, mas nas praças, nos cruzamentos, grandes
e pequenos, homens e mulheres discorriam sobre os
mistérios. O tabernáculo via-se violado; o santo dos
santos era arrastado pelas ruas. Os simples eram
sacudidos, os santos vacilavam, a Igreja calava-se."2
Esta figura de um Abelardo libertador da razão contra
todas as "autoridades", repisada até aos nossos dias,
nomeadamente na historiografia marxista, confronta-se
porém com múltiplas dificuldades, nascidas de uma
leitura mais minuciosa das obras de Abelardo ou de um
exame mais atento da sua biografia.
Em primeiro lugar, mesmo durante o período em que
estava directamente ligado às escolas urbanas,
Abelardo não parece ter estado grandemente em
contacto directo com os meios propriamente burgueses,
os dos ofícios e do negócio. Os problemas da troca e do
trabalho não aparecem de modo algum na sua obra e,
se ele reconhece na Histoire de mes Malheurs ter ganho
dinheiro a ensinar, não se trata da reivindicação de um
novo estatuto social do trabalho intelectual mas antes a
confissão de
Os Cavaleiros Teutónicos, monges-soldados
do germanismo
philippe Dollinger

Exaltados pelo regime nacional-socialista como


pioneiros da "arremetida para Leste" do germanismo, os
Cavaleiros Teutónicos, devido a isso, são ainda bastante
mal vistos. Censurados pela brutalidade na conquista e
colonização da Prússia Oriental, é com base nesse
aspecto que o Grande Dicionário de Meyer, editado em
Leipzig, na curta notícia que lhe consagra, fala da ordem
"macula-da de sangue" e estigmatiza a "tradição clérico-
militarista" que os seus membros ainda mantêm nos
nossos dias.
É incontestável que os Teutónicos derramaram
sangue, por terem sido criados para combater os
inimigos da fé, mas a censura poderia igualmente ser
dirigida aos Templários e aos Mandianos. E haverá
necessidade de recordar o carácter inexpiável das
guerras religiosas da Idade Média, e até em épocas
menos antigas? Será necessário evocar as atrocidades
da cruzada contra os Albigenses, o banho de sangue
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

derramado pelos Cruzados, aquando da conquista da


Jerusalém (1099), o massacre de quatro mil prisioneiros
em represália de uma sublevação dos saxões pagãos,
por ordem de Carlos Magno, cuja glória em nada foi
manchada por essa crueldade? Poíamos multiplicar este
tipo de exemplos: os Teutónicos não foram nem piores
nem melhores do que os guerreiros do seu tempo.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

* Sobre o problemada autenticidade das cartas, cf.


J. Verger, "Héloïse et Abélard: leurs lettres d'amour
sont-elles des fauxT\ L'Histoire, n.° 165, pp. 68-70.
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 70

uma falta da qual se arrependeu, de um pecado


resgatado pela sua conversão ulterior.
Aliás, Abelardo não manifesta qualquer interesse
pelas necessidades religiosas novas dos leigos, a
evangelização das multidões urbanas. Nesse aspecto,
os cónegos de Saint-Victor, comunidade fundada nos
arrabaldes de Paris, por volta de 1108, por Guillaume
de Champeaux, antigo professor e adversário de
Abelardo, eram muito mais "modernos", pois
procuravam combinar ensino filosófico e teológico de
alto nível na sua escola conventual e serviço pastoral
do povo urbano. Abelardo, que criticou violentamente
os cónegos regulares, era totalmente insensível a este
ideal novo no qual apenas via hipocrisia ou
inconsequência.
As suas reacções espontâneas mantinham-se pois
as do clérigo ambicioso e do filho de cavaleiro que ele
era profundamente. Aliás, foi ainda nos meios
eclesiásticos e aristocráticos que procurou
acolhimento e protecção. Paris era para ele a Cidade,
a ilha do rei e dos clérigos, não a margem direita, e ele
consegue tornar-se o protegido da família de
Garlande, a linhagem mais poderosa do séquito de
Luís VI. Os estabelecimentos eclesiásticos aos quais
se ligará, o cabido de Notre-Dame, mais tarde Saint-
Denis, eram igualmente de recrutamento aristocrático;
entre os seus alunos, encontram-se vários filhos da
nobreza romana que virão a ser cardeais. A própria
Heloísa era certamente nobre, ainda que a sua família
não tenha podido ser identificada com segurança.
Mais tarde, já como abade de Saint-Gildas, Abelardo
frequentará a corte do duque da Bretanha, antes de se
retirar para Cluníaco, o mais aristocrático dos
mosteiros.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Abelardo procura pois o seu lugar da banda das


elites sociais tradicionais. Procura-a também na Igreja.
Nunca sonhou suscitar uma cultura e um ensino
propriamente laicos. Qualifica-se prontamente como
filósofo, mas esse vocábulo antigo não abrange nele
nenhuma reivindicação de autonomia para a filosofia;
neste aspecto, as suas diversas Teologias e o seu
célebre Sic etNon são claros3. Também se não verifica
nenhuma reivindicação de um estatuto social laico.
Abelardo, "filósofo", mas filósofo cristão, mantém-se
um clérigo. É essa uma das razões da sua
repugnância pelo casamento com Heloísa (casamento
canonicamente possível pois que apenas recebera
então as ordens menores) numa época em que, ao
sacralizar esse rito, a Igreja dele faz precisamente um
dos elementos mais nítidos de discriminação entre
clérigos e leigos4. Na realidade, com o titulo de
filósofo, Abelardo reivindica o reconhecimento, pela
Igreja e na Igreja, da sua vocação própria de teólogo e
de docente, vocação nova tornada indispensável pelo
movimento do saber e os progressos da "procura
escolar" dos jovens clérigos. Ele gostaria que se
constituísse na Igreja uma nova "ordem" de magis- tri:
professores encarregados de uma verdadeira função
docente e a quem seria reconhecida a autonomia
necessária para desenvolver essa actividade.
A carreira de Abelardo, que se inscreve no contexto
do movimento generalizado do Ocidente no século XII,
o qual significa afrouxamento das limitações antigas,
renascimento das cidades e dos intercâmbios,
progresso do saber, libertação do indivíduo e
despertar da consciência, deve igualmente ser
reintegrada no seio da Igreja no grande movimento
concomitante de reforma que é assinalado pela
diversificação das instâncias eclesiásticas, numa
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 72

preocupação de melhor adaptação aos tempos novos,


e pelo reforço do enquadramento clerical na
sociedade.
Abelardo foi duas vezes condenado, objectar-se-á.
Mas essas condenações, pronunciadas por concílios
locais sob a pressão de alguns clérigos
tradicionalistas, especialmente S. Bernardo em 1140,
não exprimem o juízo unânime de toda a Igreja desse
tempo: de ambas as vezes, prelados de elevada
categoria e de elevada cultura defenderam-no e
acolheram-no após as suas condenações, que aliás
não tiveram senão um efeito limitado na difusão das
suas ideias, das suas obras e do seu método. Longe
de se achar isolado, Abelardo criou, graças aos seus
alunos e aos alunos dos seus alunos, uma verdadeira
"escola"5 filosófica
Orientação bibliográfica
A vida e a obra de Abelardo foram objecto, nestes
últimos anos, de trabalhos e de colóquios importantes
que renovaram a nossa concepção da sua situação
histórica — renovação essa de que o presente artigo
tenta, pelo menos sobre certos pontos, fazer o
balanço —, ao mesmo tempo que permitem percorrer
comodamente a abundante bibliografia abelardiana.
São de reter:
* O magnífico ensaio (ignorando embora qualquer
dúvida sobre a autenticidade da Histoire de mes
Malheurs) de E. Gilson, Heloïse et Abélard, 2." ed.,
Paris, Vrin, 1964.
* Os numerosos trabalhos de J. Jolivet,
especialmente: Arts du Langage et Théologie chez
Abélard, Paris, Vrin, 1969; Abélard ou ta Philosophie
dans le Langage, Paris, Seghers, 1969, reed. em 1994
por Éd. Univ. de Friburgo e Le Cerf, Paris. "Abélard
entre chien et loup", em Cahiers de Civilisation
Médiévale, 20, 1977, pp. 307-322.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

* Várias monografias recentes: A. Crocco, Abelardo.


L '"altro versante" dei Medioevo, Nápoles, Liguori,
1979; J. Verger e J. Jolivet, Bernard/Abélard le Cloître
et l'Ecole, Paris, Fayard-Mame, 1982; M. fu- magalli
Beonio Brocchieri, Eloisae Abelardo, Milão,
Mondadori, 1984.
* Vários colóquios onde se encontrarão numerosos
artigos (em diversas línguas) associando um balanço
dos resultados adquiridos e perspectivas de
investigação .Peter Abelard, Lovaina-Haia, Leuven
Univ. Press e M. Nijhoff, 1974; Pierre Abélard. Pierre
le Vénérable. Les courants philosophiques, littéraires
et artistiques en Occident au milieu du XHe siècle,
Paris, Éd. du CNRS, 1975; Petrus Abaelardus (1079-
1142). Person, Werk und Wirkung, Tréveros (Trier),
Pauli- nus-Verlag, 1980; Abélard en son temps, Paris,
Les Belles Lettres, 1981.
* Traduções em francês: a Histoire de mes
Malheurs e as quatro primeiras cartas trocadas entre
Heloísa e Abelardo foram traduzidas por P. Zumthor
sob o título: Abélard et Héloïse, Correspondance, Pa-
ris, UGE-col. 10/18, 1979; ver também Pierre Abélard,
Conférences (Dialogue d'un Philosophe avec un Juif
et un Chrétien) — Connais-toi Toi-même (Éthique),
intr. e trad. de M. de Gandillac, Paris, Le Cerf, 1993
(de notar que, nesta nova tradução, M. de Gandillac
se opõe à datação tradicional do Diálogo, aquela que
nós atrás utilizámos (1141), e propõe remontar a sua
composição a 1125; nesse caso, teríamos
evidentemente, que renunciar a ver nela o
"testamento" de Abelardo).
encontrou a vinda do Visitador evangélico, não
adormecido como tantos outros, mas desperto (...)
com a lâmpada acesa".

Notas
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 74

1
Escolástica: forma de ensino tido em apreço na
Idade Média, principalmente em teologia, e cuja
característica principal consiste em assentar no uso
sistemático da dialéctica como método universal de
explicação dos textos e de exposição das questões.
2
Histoire de France, livro IV, cap. IV, texto de 1869,
em J. Miche- let, Oeuvres Completes, ed. por P.
Viallaneix, t. 4, Paris, 1974, pp. 453-454.
' Terminado por volta de 1136-1140, o Sic et Non
(Sim e Não) é uma vasta recolha de citações dos
Doutores da Igreja sobre pontos essenciais da fé,
parecem sustentar opiniões contraditórias; o prólogo
explica claramente que o propósito deste livro não é
de forma alguma incitar ao cepticismo mas, pelo
contrário, propor um método para resolver essas
contradições aparentes e melhor estabelecer assim a
verdade cristã.
4
Cf. o artigo de Michel Sot, "La genèse du mariage
chrétien", L'Histoire, n.° 63, pp. 60-65.
5
Tal como ficou perfeitamente demonstrado por D.
E. Luscombe, The School of Peter Abelard, The
Influence of Abelard's Thought in the Early Scholastic
Period, Cambridge, 1969.
6
Abelardo, Historia Calamitatum, ed. J. Monfrin,
Paris, Vrin, última ed., 1978, pp. 81-82.
7
Patrístico: relativo aos Santos Padres.
8
Este texto foi recuperado e publicado por L. J.
Engels, "Adtendite afalsis prophetis (Ms. Colmar 128,
f. 152v/153v). Un texte de Pierre Abelard contre les
cisterciens retrouvé?", em Corona Gratiarum (Mé-
langes E. Dekkers), t. 2, Bruges-s' Gravenhage, 1973,
pp. 195-228.
* Cf. o artigo de Jacques Dalarun, "Robert
d'Arbrissel, l'homme qui aimait les femmes", L'Histoire,
n.° 82, pp. 38-46, reatado neste volume, pp. 45.
10
Carta 115 em The Letters of Peter the Venerable,
cd. G. Constate, vol.l, Cambridge, Mass., 1987.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

e teológica à qual se ligam, directa ou indirectamente,


a maioria dos mestres parisienses do século XII e
séculos posteriores.
Resta um último ponto, essencial. Abelardo entrou
como monge para Saint-Denis em 1117 e morrerá em
1142, no priorá- do cluniacense de Sairit-Marcel perto
de Chalon. Logo, são vinte cinco anos de uma carreira
monástica tão tumultuosa como a sua carreira
professoral. São muitas as biografias de Abelardo que
se detêm em 1117 e em nada tratam do último período
da sua vida, ou pelo menos não atendem à sua
especificidade. Devemos tomar a sério, porém, esses
episódios monásticos, ricos de ensinamentos sobre a
personalidade de Abelardo e sobre o seu verdadeiro
lugar na sociedade e na história cultural e religiosa do
seu tempo.

A impossível tebaida
O drama de 1117 não introduz na vida de Abelardo
uma ruptura total. Ele continuou, pelo menos
episodicamente, a ensinar nos diversos mosteiros,
priorados e eremitérios em que residiu. "Logo que
tiveram conhecimento do meu retiro, os alunos
começaram a acorrer de toda os lados. Abandonando
cidades e burgos, vinham viver comigo no deserto" —
escreve. Já em Saint-Denis o mesmo fenómeno se
havia produzido: "Mal me encontrei restabelecido do
meu ferimento, os clérigos, acorrendo de toda a parte,
puseram-se a importunar o nosso abade e a mim
mesmo com as suas súplicas: como o tinha feito até
ao presente pela glória e o lucro, diziam eles, que me
consagrasse agora ao estudo pelo amor de Deus (...)
Retirei-me para uma dependência para aí retomar o
meu ensino segundo a minha maneira habitual. A
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 76

multidão dos alunos que aí acorria era tal, que essa


casa não chegava para os albergar nem a sua terra
para os alimentar. Como convinha ao meu estado
religioso, tinha a intenção de me consagrar sobretudo
à teologia; não rejeitava contudo completamente as
artes liberais que me eram mais familiares e que eram
o que mais me era pedido; servia-me pois delas como
de um isco para atrair os meus auditores, dando-lhes
o gosto da filosofia para os conduzir ao estudo da
verdadeira filosofia."6 Em 1136, regressou mesmo a
Paris; teve de reabrir aí uma escola particular e por lá
ficou talvez até à sua comparência perante o concílio
de Sens. Sobretudo, parece que o ensino do seu
período monástico, do qual data a redacção definitiva
de quase todos os seus tratados, seguiu a sequência
do anterior a 1117: o mesmo gosto pela dialéctica, o
mesmo esforço para tratar de maneira tão racional e
matemática quanto possível certos pontos
fundamentais da Revelação. A única originalidade
deste período é um interesse marcado pela teologia
moral que se exprime num tratado, Éthique ou
Connais-toi Toi-même, redigido por volta de 1136-
1140.
Esta constância num ensino pouco conforme com
as tradições da cultura monástica bastará para
encarar Abelardo como "monge sem regra, abade sem
disciplina, não tendo de religioso senão o nome e o
hábito", como fez S. Bernardo? O próprio Abelardo diz
ter sido à partida um monge sem vocação, entrando
para Saint-Denis por desespero e por necessidade, e
a sua carreira monástica foi marcada por peripécias
pouco compatíveis com o voto tradicional de
estabilidade: após uma curta estada em Saint-Denis,
onde depressa entra em disputa com os seus con-
frades, reside em diversos priorados e mosteiros
champanheses filiados ou aliados a Saint-Denis. Em
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

1122, tentado pelo retiro "no deserto", funda um


pequeno eremitério; três anos mais tarde, parece
voltar à norma ao aceitar o cargo de abade do
mosteiro de Saint-Gildas-de-Rhuys perto do golfo de
Morbihan. Mas, perseguido pelos seus próprios
monges, foge para regressar a Paris em 1136.
Finalmente, após a sua condenação de Sens, retira-se
para o mosteiro de Cluníaco, a convite do abade
Pedro, o Venerável. Muitos outros monges dos
séculos XI e XII, contudo, darão exemplos análogos
de instabilidade.
Importa, isso sim, reter tudo o que faz de Abelardo
um monge autêntico: o aparecimento, entre os seus
escritos, de textos (a "reforma da Igreja"), com as
exigências filosóficas incontornáveis nascidas de um
domínio consumado da dialéctia e de uma atenção
minuciosa centrada nas estruturas da linguagem.
Abelardo nunca duvidou de que essa conciliação
fosse possível e até mesmo, no futuro, necessária.
A estas certezas intelectuais opõe-se a incerteza de
um destino mal dominado. Fascinado pelas correntes
novas de uma sociedade em pleno desenvolvimento
sem ousar romper todos os laços com a ordem antiga,
perdendo-se nos espaços abertos pelo afrouxamento
das velhas constrições sociais e morais, hesita sem
cessar entre a cidade e o mosteiro, entre a escola e o
claustro. Sentir-nos-íamos tentados a falar de
individualismo em relação a este autor que, na sua
Ética, como critério do juízo moral, coloca o colóquio
da consciência consigo mesma e com Deus em vez da
objectividade brutal das velhas listas tabeladas de
pecados da alta Idade Média.
Mas, ainda neste ponto, Abelardo furta-se e refugia-
se no sonho e na utopia. Com toda a probabilidade, a
sua última obra, iniciada em Cluníaco após 1140 e
inacabada, o Dialogue entre m Philosophe, unjuif et un
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 78

Chrétien, espécie de apologia do cristianismo que,


num espírito muito aberto, procura mostrar que a
religião cristã consuma-uma Revelação da qual certos
elementos se achavam já presentes entre os pagãos e
entre os judeus. Mas notemos que, neste espantoso
"sonho nocturno", o papel que Abelardo reserva para
si não é o do cristão mas o de árbitro do debate.
Houve quem sorrisse desta auto-exaltação, por vezes
qualificada como quase paranóica.
Prefiro pensar que, na sua última obra, Abelardo,
esse combatente, essa personagem infeliz,
atormentada, muitas vezes maltratada, preferiu
descrever-se como artesão de paz, conciliador.
Nostalgia de uma vocação impossível neste homem
que, colocado no cerne de um dos centros do
progresso do Ocidente, viveu intensamente, sem
conseguir dominá-las, as tensões que transformavam
esse mundo. Mas podemos crer que foi nesta
esperança de conciliação que, como diz Pedro, o
Venerável, "o gias que o terão retido, mas a
regularidade de uma vida sem austeridades
formalistas, a liberdade que lhe deixavam para se
preparar em paz, na oração e no estudo, para a morte
que a sua idade e a má saúde o levavam a pressentir.
É pelo menos assim que o descreve Pedro, o
Venerável, em carta na qual anunciou a sua morte a
Heloísa: «Não me lembro de ter visto ninguém que
tenha tido e demonstrado uma tal humildade (...) Lia
continuamente, orava com frequência, não quebrava o
silêncio senão para conversar familiarmente com os
irmãos ou quando tinha de falar publicamente das
coisas divinas na assembleia. Frequentava tanto
quanto podia os santos sacramentos, oferecendo a
Deus o sacrifício do Cordeiro imortal (...) Pelo espírito,
pela boca, pelo trabalho, não cessava de meditar, de
ensinar, de professar, tanto sobre as coisas de Deus
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

como sobre os assuntos filosóficos e os outros


domínios do saber (...) Foi assim que Mestre Pedro
consumiu os seus derradeiros dias, na doçura e na
humildade, como discípulo daquele que disse:
"Aprendei de mim que sou manso e humilde de
coração" (Mateus, XI, 29), ele que tinha sido
conhecido quase no mundo inteiro, e célebre em toda
a parte, como um mestre de uma ciência singular.»'0
Podíamos apresentar de Abelardo um retrato ainda
mais matizado, de tal forma os textos que com ele se
prendem — quer os seus, quer os dos seus
contemporâneos — são ricos mas muitas vezes
incertos, e até contraditórios. Mesmo no seu tempo,
circulavam já várias imagens de Abelardo. No entanto,
há dois traços que ressaltam, no meio das incertezas.
Em primeiro lugar, a constância do projecto
intelectual. Com os meios de que dispunha, isto é, a
colecção de escritos tradicionais (a "velha lógica", a
Bíblia e os Doutores da Igreja) que não tinha ainda
sido enriquecida por todos os textos filosóficos que
virão a ser traduzidos do árabe, muito cedo ele definiu
a sua ambição e a ela se ateve sem desfalecimentos:
combinar fé e razão, conciliar um sentimento cristão
autêntico, alimentado ao mesmo tempo de tradição
(Santo Agostinho) e de modernidade que provêm de
géneros conformes com a tradição literária monástica:
sermões, diálogos e poemas litúrgicos, a adesão
explicita aos valores mais profundos do monaquismo
que são a fuga do mundo, a contemplação e a oração,
o serviço exclusivo de Deus. Abelardo tornou seu e
viveu este ideal. O remorso dos seus erros passados,
o traumatismo dos "infortúnios" sucessivos, a sua fé
sincera e a sua sede de salvação, expressas com
fervor na sua bela Confissão de Fé de 1140, são as
componentes desta conversão de cuja autenticidade
nada permite suspeitar. Ela apoiava-se, graças às
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 80

suas vastas leituras patrísticas7, num excelente


conhecimento das tradições do monaquismo primitivo.
Deixando de lado o episódio parisiense de 1136,
Abelardo abandonou desde então, como um
verdadeiro monge, a cidade, trocando-a pelo deserto,
floresta champanhesa ou costas bretãs.
Que género de monge foi Abelardo? O século XII é
um tempo de desenvolvimento mas também de
diversificação, de explosão da vida regular. Ao lado da
velha ordem de Cluníaco aparecem ramos mais
jovens, impelidos simultaneamente pelas exigências
da reforma da Igreja e as aspirações novas dos fiéis,
Nas cidades, os cónegos que combinam observância
regular e serviço pastoral multiplicam-se. Eremitas
povoam os ermos e aí fundam pequenas comunidades
originais e ascéticas.
Com Cister e Claraval aparece nos primeiros anos
do século XII o segundo grande ramo da árvore
beneditina. Sob o impulso de S. Bernardo, os
cistercienses fazem triunfar o seu ideal de respeito
literal da Regra, de ruptura completa com o mundo, de
retorno rigoroso à obediência, à ascese e à vida co-
mum. As casas cistercienses multiplicam-se e esta
ordem em breve desempenha um papel de primeiro
plano na vida da Igreja. S. Bernardo é chamado a toda
a parte para arbitrar querelas de toda a espécie;
viajante infatigável, institui-se como guardião vigilante
e influente da doutrina tradicional contra o erro e
contra anovidade, que para ele são uma só coisa. E a
este título que em 1140, informado apressadamente
dos escritos de Abelardo, faz condenar em Sens
aquele em quem não vê senão um monge fugitivo e
um dialéctico pernicioso "que quer compreender pela
razão humana tudo o que é de Deus".
Nesta constelação, onde situar Abelardo? Esta
personagem, cuja modernidade é habitualmente
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

elogiada, desconfia globalmente das ordens novas.


Critica os cónegos regulares cuja vocação pastoral
não entende. Critica também os cistercienses, pelo
menos a avaliar por um panfleto recentemente
descoberto, do qual terá sido o autor, onde os
cisterciences são caracterizados como hipócritas
sequiosos de poder8. Inversamente, mantém com
frequência boas relações com os representantes das
formas tradicionais de vida religiosa: os cónegos não
reformados de Notre-Dame ou de Sainte-Geneviève
em Paris, os monges de Saint-Denis e sobretudo os
de Cluníaco, enseada de paz onde termina a sua vida
tumultuosa.
Devemos então colocar Abelardo entre os
tradicionalistas? Ou terá ele sido um "Herodes sob as
aparências de João Baptista", como o acusava S.
Bernardo, um hipócrita que demandou as
comunidades laxistas cujo relaxamento cobriria o seu
mau procedimento e os seus erros? Ainda neste
ponto, a situação de Abelardo parece sobretudo situar-
se sob o signo da ambiguidade. Professor fascinado
pela cidade, não ousou inscrever-se verdadeiramente
nas correntes novas e específicas da realidade
urbana. Monge fascinado por um ideal ao qual se
converteu sinceramente, não consegue escolher a sua
forma concreta. Não é certamente um defensor dos
abusos; denuncia-os em Saint-Denis e por pouco não
é assassinado pelos seus monges em Saint-Gildas
por ter querido combatê-los. Qual o clérigo sincero e
culto da época que não teria aliás aderido às palavras
de ordem da reforma da Igreja, ao regresso à vida
verdadeiramente apostólica? Nesta data, esse ideal já
não é muito contestado. Mas a Abelardo repugnava
realizar esta aspiração num quadro rígido; este
moralista da intenção não se vergava de boa vontade
ao respeito literal da Regra; esta personalidade
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 82

desconfiada acomodava-se mal à vida comunitária


permanente e à estrita obediência.
A vida monástica com que ele sonhava inscrevia-se
antes no registo da utopia, da santidade impossível.
Ele gostaria que ela tornasse compatível o que se
excluía muitas vezes brutalmente na prática quotidiana
das instituições concretas: a vida comunitária com o
retiro eremítico, a contemplação com o estudo, a
liturgia com a filosofia, a força e a sabedoria
masculinas com a fragilidade e a espiritualidade
femininas. Os episódios mais salientes da carreira
monástica de Abelardo podem interpretar-se como
tentativas para realizar esta aspiração.
O lugar por excelência destas experiências foi o
Paráclito, esse retiro champanhes que ele colocou sob
a invocação da Santíssima Trindade. Aí tentou a
aventura eremítica até que o afluxo excessivo dos
estudantes constituísse em torno dele uma
comunidade que ele não conseguiu gerir. Depois, feito
abade de Saint-Gildas, aí instalou Heloísa e as suas
religiosas; para esse novo mosteiro do Paráclito, que
visitava de tempos a tempos, concebeu uma regra que
teria feito dele um mosteiro misto, colocado sob a
dupla autoridade de uma abadessa, Heloísa, e do
fundador, pai espiritual das monjas, ele mesmo. Este
sistema subtil, reconstituição quase mística do casal
separado em 1117, caiu num completo malogro e o
Paráclito depressa se tornou, sob a firme autoridade
de-Heloísa, num mosteiro feminino assaz clássico.

Artesão de paz
Este itinerário monástico complexo, que lembra o
do seu contemporâneo Roberto d'Arbrissel 9, exprime o
jogo de uma personalidade a um tempo lúcida e
irresoluta, numa encruzilhada de influências múltiplas
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mas inábil em fazer escolhas claras, susceptíveis de


uma realização concreta. Abelardo só encontrou a sua
serenidade quando a escolha lhe foi imposta, tanto
pelos golpes de S. Bernardo como pela solicitude
paternal de Pedro, o Venerável, a do retiro em
Cluníaco. Não serão sem dúvida nem o poderio da
ordem nem a sumptuosidade das litur- operação. Mas
todas as nações cristãs rivalizavam no grau de
notabilidade dos seus templos. Dir-se-ia que o mundo
despertava para se despojar da sua velhice e vestir
uma veste branca de igrejas. Enfim, quase todos os
edifícios religiosos, catedrais, mosteiros dos santos,
capelas de aldeia, foram convertidos pelos fiéis em
qualquer coisa de melhor."
Ora, desde meados do século XIX, este mesmo
texto de Raoul Glaber é interpretado de maneira
tovalmente diversa. Deixou de ser entendido como um
testemunho retrospectivo sobre as catástrofes do ano
Mil para ser simplesmente a prova de que a geração
do começo do século XI possuía o meio de fazer "me-
lhor" ou, pelo menos, diferente em relação às
gerações anteriores. Constata-se pois um "progresso
na arte". Mas este progresso não implica que não
tivesse existido arte antes.
Voltemos atrás. Em 987, o rei Luís V morre,
deixando como herdeiro o seu tio Carlos da Lorena.
No entanto, é Hugo Capeto que o arcebispo de Reims,
Adalberão, sagra rei dos Franceses a 3 de Julho de
987 em Noyon. Apesar de algumas dificuldades, Hugo
Capeto conseguiu associar à coroa o seu filho,
Roberto, que reinará sozinho sob o nome de Roberto I
a partir da morte de Hugo, em Outubro de 996.0
domínio real encontra-se então essencialmente
limitado à Ilha de França, entre Compiègne e Orleães,
com Senlis, Paris e Saint-Denis. Mas a .realidade da
França do ano Mil é bem mais variada do que a que
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 84

se limitaria a este território. A França encontra-se


então fragmentada e a diversidade dos dados
geográficos, étnicos, culturais e políticos continua a
ser muito grande. Reinando nos seus principados, os
senhores estão pouco submetidos à autoridade do rei
e, tanto na Borgonha como na Aquitânia, na
Gasconha, em Tolosa ou na Auvergne, estes príncipes
edificam uma história paralela à da unidade real.
*!• 4* «f* »}*
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 85

Uma peripécia imprevista veio ainda pesar sobre a


tarefa dos Teutónicos, ao mesmo tempo que lhes
assegurava uma extensão territorial inesperada. Os
Países Bálticos tinham começado a ser evangelizados
a partir do final do século XII. A fundação de Riga
(1201), sede de um bispado, a criação da ordem dos
Cavaleiros Porta-Gládio permitiram a princípio uma
ocupação bastante fácil da região. Mas em 1236, os
lituanos pagãos infligiram na Curlândia uma derrota
esmagadora aos Porta-Gládios e toda a obra de
cristianização voltou a ser posta em causa. Balk,
aprovado por Hermano de Salza, interveio à pressa.
Incorporou os Porta-Gládios — não sem alguma
resistência — nos Teutónicos e conseguiu
restabelecer a situação. Durante os anos que se
seguiram, aliada aos Suecos, a ordem dominou toda a
Livó- nia. Chegou a ter esperanças de conquistar uma
parte da Rússia e de aí eliminar a religião ortodoxa em
proveito do catolicismo. Mas Alexandre Nevski,
príncipe de "Novgorod, cedo cortou estas ambições.
Depois de ter vencido os Suecos nas margens do
Neva, o que lhe valeu o seu cognome, infligiu uma
pesada derrota aos Teutónicos sobre os gelos do lago
Peipus (5 Abril 1242). Foi o primeiro grande confronto
da história entre Russos e Alemães. O resultado foi
que o lago passou a formar o limite oriental das
possessões teutónicas, enquanto os Dinamarqueses
se instalavam na Estónia nas costas do golfo da
Finlândia, que só foram cedidas à ordem um século
mais tarde (1346). Para o sul, todos os esforços
despendidos para trinchar a Samogícia pagã foram
vãos, de tal maneira que o Estado teutónico
continuará dividido em dois blocos mal ligados entre si
(cf. mapa, p. 85).
Entretanto, na Prússia, uma primeira revolta, em
1240, veio mostrar que os indígenas não se
resignavam ao domínio dos Alemães. A segunda
revolta, em 1260, reuniu quase todas as tribos
prussianas contra o invasor. A região foi saqueada, os
castelos do interior recuperados as cidades
incendiadas. Mas logo os Cruzados vindos da
Alemanha permitiram à ordem levar a cabo uma
guerra vitoriosa e inexpiável. Não será exacto, I
certamente, ao contrário do que se disse, que os
habitantes tenham sido exterminados ou expulsos na
sua quase totalidade. Algumas tribos, que não haviam
participado na sublevação, beneficiaram de um
estatuto relativamente favorável, bastante próximo do
dos Alemães, e alguns dos seus chefes foram depois
admitidos na nobreza. Mas os revoltosos escapados
aos massacres foram submetidos a uma dura
servidão.
No final do século XIII, todos os territórios do
Estado teutó- nico estavam pacificados e convertidos
ao cristianismo, tanto na Livónia como na Prússia.
Restava a Samogícia, que não parecia poder resistir
por muito tempo. Foi, no entanto, preciso um século
para que tal se efectuasse. Periodicamente, foram
empreendidas cruzadas nesse sector, sob a forma
tanto de esplendorosas cavalgadas como de guerras
locais, mas sem resultado. Finalmente, foi apenas por
volta da década de 1400, na sequência da conversão
de Jagelão, grande príncipe dos Lituanos, e dos
esforços de missionários vindos de Leste, que caiu o
último bastião do paganismo na Europa.
O século XIV assinala o apogeu da Ordem
Teutónica. O prestígio da obra realizada na Prússia
recebeu a sua coroação quando a sede suprema da
ordem, localizada em São João de Acre até à queda
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

da cidade (1291), a seguir retirada para Veneza, foi


transferida para o castelo de Mariemburgo no braço
oriental do delta do Vístula (1309). Aí permaneceria
durante século e meio.
Além das possessões orientais, a Ordem Teutónica
desenvolveu-se numa grande parte da Europa, graças
ao afluxo de doações e ao prestígio da cruzada. Na
Alemanha, cerca de duzentas comendadorias tinham
sido fundadas no século XIII, sem falar dos hospitais.
Foram agrupadas regionalmente em treze bailiados
(Balleien) cada uma sob a autoridade de um co-
mendador regional (Landkomtur), dependendo a
totalidade do mestre da Alemanha(Deutschmeister).
Em Itália, graças ao apoio do imperador Frederico II,
seis comendadorias tinham sido criadas na Sicília,
seis na Apúlia, quatro em Veneza e nos arre-
A paisagem arquitectónica do ano Mil
Xavier Barrai i Altet
Qual o historiador que acredita ainda, hoje em dia,
nos terrores do ano Mil? Essa lenda forjada pelos
nossos antepassados e as considerações pessimistas
que a acompanhavam sobre o estado do Ocidente no
século X há muito que são postas em causa. Fala-se
mesmo hoje de um certo renascimento da civilização
ocidental durante este período. Mas os mitos são
tenazes e há muitos manuais escolares que
continuam inquebrantavel- mente a propagar a
sedutora teoria romântica que associava o fim do
mundo à chegada do ano Mil. Do monge Mabillon, no
século XVII, a Michelet, no século XIX, a imagem de
uma Alta Idade Média (séculos V-X) sem esperança e
povoada de ruína propaga-se.
Os que sustentam esta teoria apoiaram-se com
frequência num texto do monge Raoul Glaber, que
completava em Cluníaco, por volta de 1084, cinco
livros de "histórias", para provar que a França do
século X tinha conhecido devastações tais, ou pelo
menos que tinham produzido monumentos tão
medíocres, que se tinha sido obrigado a reconstruir
tudo a seguir. Este religioso escrevia com efeito pouco
depois do ano Mil: "Estando o terceiro ano após o ano
Mil prestes a começar, por toda a terra, e
particularmente nas Gálias e em Itália, puseram-se a
renovar as naves das igrejas, ainda que na maior
parte estivessem estabelecidas com sumDtuosidade
suficiente para passar bem sem tal
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 83

dores. Na Grécia, as possessões formavam o bailiado de


România. A Ordem dos Cavaleiros Teutónicos chegou
mesmo a implantar-se em Espanha e em França, onde a
sua regra foi introduzida em meados do século XIV.
Distinguem-se comen- dadorias no Mosa perto de Bas-sur-
Aube, perto de Tannay na região deNièvre, mais dois
hospitais, um em Montpelliere outro perto de Aries. Mas os
débeis traços deixados por estes estabelecimentos provam
que não se desenvolveram de maneira alguma. O meio
não era evidentemente favorável e, em 1501, a ordem
vendeu à abadia de Claraval todas as suas possessões de
França.

Um Estado dentro do Estado


O Estado teutónico da Prússia foi, no século XIV, um
dos mais coerentes e mais bem administrados da Europa.
O seu território era de um só mantenedor, contrariamente
aos principados alemães de senhorios enredados. Sem
dúvida, os quatro bispos da Prússia possuíam domínios
alargados. Mas em toda a parte a ordem conservava a
preponderância militar, o levantamento das armas e a
manutenção das fortificações, de modo que estes abades
não se achavam em posição de manifestar veleidades de
independência.
A instância suprema, como entre os Templários, era o
cabido geral. Ele nomeava ou depunha o grão-mestre,
fiscalizava a sua gestão, controlava as admissões na
ordem, alienava os bens e modificava eventualmente a
regra. Os cabidos mais frequentes eram os que procediam
à eleição do grão-mestre. Eram convocados com vários
meses de avanço, a fim de que, se possível, todos os
bailiados pudessem enviar delegados. Era instituída uma
comissão eleitoral de treze membros, composta por oito
irmãos cavaleiros, quatro irmãos serventes e um único
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

padre. Os membros do cabido juravam ratificar a escolha


deste colégio e o eleito proclamado recebia diante do altar
o anel e o selo da ordem. Parece que este procedimento é
que assegurava geralmente a eleição do mais digno, não
tendo a categoria social um papel determinante. Entre os
grão-mestres, encontram-se com efeito, ao lado de
príncipes como o landegrave de Turíngia ou o duque de
Brunsvique, homens provenientes da pequena nobreza ou
do ministrado, como Hermano de Salza.
O grão-mestre não dispunha em princípio do poder
absoluto. Era assistido por cinco grandes dignitários,
igualmente nomeados pelo cabido: o grande comendador
— seu substituto, o marechal, o hospitalário, o dispenseiro
e o tesoureiro (Tresler) que podiam até certo ponto limitar a
sua acção, e até depô-lo, como se viu no século XV.
Na segunda metade do século XIV, o grão-mestre dos
Teu- tónicos surgia como um dos soberanos mais
poderosos e mais ricos da Europa, à cabeça de uma
milícia que tinha estendido os limites do cristianismo, de
um Estado bem administrado, de uma frota que singrava
os mares setentrionais e lhe trazia, da Inglaterra e da
Flandres sobretudo, os produtos mais procurados do
mundo ocidental e mediterrânico, rodeava-se de uma corte
faustosa no seu castelo de Mariemburgo, recebendo com
magnificência embaixadas vindas dos principados alemães
e eslavos. As prescrições de austeridade impostas aos
cavaleiros pela regra não eram aplicáveis a ele. As suas
vestes e as do seu séquito eram de bom corte, feitas dos
tecidos mais finos, importados de Londres, de Bruges e da
Itália. No Inverno, era protegido do frio por uma profusão
de peles, de qualidades variadas que iam da simples
raposa à marta e à zibelina.
A mesa, coberta de "toalhas francesas" vindas de Paris,
oferecia em abundância a caça das florestas vizinhas, os
peixes dos rios e do Báltico. Os vinhos mais diversos, da
Grécia, da Península Ibérica, de França e do Reno eram
servidos em recipientes pró-prios para cada espécie, de
estanho, de prata, de cobre ou de alabastro; certas taças
eram esculpidas e engastadas de âmbar. As refeições
eram acompanhadas de festividades, animadas nor
poetas, malabaristas, músicos em número de uma trintena,
aos quais por vezes se juntavam os enviados por altos
2. ESPAÇO E VIDA MONÁSTICOS
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

senhores. O grão-mestre tinha também o seu


bobo.
Depois de um deles ter sido emprestado ao grande
príncipe da Lituânia, este achou graça a armá-lo
cavaleiro, com a condição porém de só arvorar a sua
armadura e o seu gibão de manhã: de tarde, devia
retomar o seu traje e o seu chapéu de bobo.
O jardim comportava uma reserva de animais,
onde se encontravam não apenas veados e cabritos-
monteses, mas também auroques — presente do
grande príncipe da Lituânia —, macacos, ursos e até
um leão. Particularmente afamada era a escola de
falcoaria, que permitia ao grão-mestre espalhar por
toda a Europa presentes muito apreciados.
Finalmente, a caça — interdita aos cavaleiros —
dispunha de matilhas numerosas, que provocavam
com frequência sérios estragos nas culturas e nos
rebanhos.
A ordem compreendia várias categorias de
"irmãos". Só os cavaleiros e os padres eram membros
de pleno direito, só eles usavam o manto branco
ornado de uma cruz negra. Os irmãos padres, pelo
menos na Prússia, eram os menos numerosos.
Dedicavam-se ao serviço divino, ao ensino, ao
cuidado dos doentes. Para eles, a única condição de
admissão era a de não serem servos. Quase nunca
exerciam altas funções.
Os cavaleiros, monges-soldados, deviam
pronunciar quando da sua entrada na ordem os votos
de probreza, de obediência e de castidade. Os
postulantes, admitidos a partir dos catorze anos de
idade, tinham de provar, por meio do juramento de
testemunhas, que eram nascidos de pais nobres.
Tinham igualmente de afirmar não serem nem servos,
nem casados, nem se encontrarem endividados, nem
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ligados por outros votos. Depois de se terem


comprometido a servir a ordem com todas as suas
forças e segundo as suas aptidões, eram cingidos
com a espada, o que lhes conferia a dignidade de
cavaleiros, Na sua maior parte, eram originários da
Alemanha central, da Turíngia, do Hesse, do Médio
Reno; tinham sido preparados para a sua missão nas
comendadorias da sua região. Pouco numerosos
eram os que provinham da nobreza local alemã, o que
contribuiu no século
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 95

* As obras gerais recentes consagram apenas


desenvolvimentos reduzidos, fragmentados em
diversos capítulos. A exposição menos sumária de
Pierre Gaxotte, Histoire de 1'Allemagne, Paris,
Flammarion,1963, ti, pp. 243-263, 458-459.
* Em alemão, a obra mais completa é a de Tumber,
Der deutsche Orden im Wesen, Wachsen und Wirken
bis 1400 {com um capítulo resumindo os factos
principais até aos nossos dias), Viena, Panorama,
1955.
* Mais condensado e sugestivo é E. Maschke, Der
Ordensstaat. Gestalten seiner grossen Meister,
Hamburgo, Hanseatische Verlagsanstalt, 1942.
Detém-se em 1525.
* O livro de E. Hering, Der deutsche Ritterorden,
Leipzig, 1943, ressente-se da época em que foi
concebido.

:
!
i

\
l
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

prova os da Áustria. Após um descanso no século


XVIII, a anexação da margem esquerda do Reno, spb a
Revolução Francesa, trouxe a nacionalização dos bens
nesse sector. Napoleão pronunciou a dissolução da
ordem nos Estados da Confederação do Reno (1809),
isto é, sobretudo os da Vestefália e os do Sul da
Alemanha. Após a sua queda, a decisão foi revogada,
mas quase todos os Estados alemães se recusaram a
restituir os bens confiscados. Na Áustria, a ordem
reconstituiu-se lentamente. A sua regra, remodelada em
1839, admitia agora comunidades de mulheres ao lado
das de homens, votadas, como elas, a tarefas
caritativas e educativas. Os papas confirmaram a regra
e Pio XI modificou-a para fazer dos Teutónicos uma
ordem puramente monástica (1929).
Uma nova provação a aguardava com o advento do
nacional-socialismo. Hitler, por decreto, suprimiu a
ordem, primeiro na Alemanha, depois na Áustria e na
Checoslováquia. A medida foi anulada em 1945 e, mais
uma vez, a ordem pôde reconstituir-se, graças a
donativos, no Sul da Alemanha e na Áustria. O grão-
mestre e os seus quatro altos dignitários, eleitos por
seis anos pelo cabido, estabeleceram a sua sede em
Viena, muito próximo de Saint-Étienne. A ordem conta
uma dezena de cavaleiros, distinção evidentemente
honorífica, concedida em 1958 ao chanceler Adenauer
e a Franz Josef Strauss.
Depois de tantos percalços, a Ordem dos Cavaleiros
Teutónicos subsiste ainda assim nos nossos dias, tal
como a de Malta, unindo-se a sua actividade
hospitalária à sua vocação original. Mas a sua grande
obra histórica, a saber, a expansão do germanismo no
Leste europeu mantida durante setecentos anos, foi
definitivamente aniquilada pela derrota de Hitler e a
transferência maciça para o oeste das populações
alemãs da Prússia. Sic transit...
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Orientação bibliográfica
* Não existe um estudo global em francês sobre o
assunto desde a Histoire de l 'Ordre Teutonique par un
Chevalier de l 'Ordre, por Wilhelm von Wal (um
alemão), 3 vols., Paris e Reims, 1784.
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 87

XV para avivar a hostilidade da nobreza prussiana


contra os Teutónicos. Devido a esta origem, a língua
utilizada na chancelaria da ordem era o alto alemão e
não o baixo alemão falado em todas as regiões da
costa do Báltico: outro motivo para serem considerados
estrangeiros.
Abaixo dos cavaleiros havia os irmãos serventes
(Sariant- brüder), não nobres, que não usavam o manto
branco com a cruz negra; eram menos fortemente
armados e formavam uma cavalaria ligeira de apoio.
Encontravam-se também, pelo menos no castelo de
Mariemburgo, "familiares", de origem diversa, nobres
ou eclesiásticos, por vezes de categoria elevada
(salientam-se teólogos e um abade de Prüm), vindos
por devoção agregar-se à ordem. Finalmente, no
escalão inferior, a massa dos criados era de condição
variada, livres ou servos, homens e mulheres casados
ou solteiros, assalariados ou não; também eles
prometiam ser rigorosamente obedientes e levar uma
vida cristã, evitar o pecado, as actividades interditas,
não realizar ganhos ilícitos. Por sua morte, a ordem
herdava os seus bens.
A regra da ordem insiste minuciosamente nos
deveres morais e na aplicação dos votos pronunciados.
Os irmãos devem dar provas de humildade, de
solidariedade, de sacrifício pelo próximo. Estão sujeitos
à vida em comum, ao refeitório, ao dormitório sem que
uma fechadura proteja os seus objectos de uso
pessoal. Nada possuem de seu; todos os bens, terras,
imóveis e servos pertencem à ordem. São flagelados
todas as sextas-feiras e três vezes por semana durante
a Quaresma. Se o cavaleiro comete uma falta, deve ser
acusado por duas testemunhas pelo menos, as quais
sofrerão o castigo em vez dele se prestarem falso
testemunho. Os três crimes maiores são a fuga do
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

campo de batalha, o facto de ir viver com os pagãos,


mesmo sem renegar a sua fé, e a sodomia. Os dois
primeiros crimes são punidos com a exclusão da
ordem, o terceiro com a reclusão por toda a vida. As
faltas menos graves, sancionadas por uma penitência
de um ano, obrigam o culpado a viver com os servos, a
comer e a dormir com eles, a ficar a pão e água três
vezes por semana, a receber a sua flagelação ao
domingo, na igreja, pelas mãos do sacerdote.
A aplicação do voto de castidade provoca
prescrições cheias de desconfiança. As mulheres não
são admitidas de pleno direito na ordem, "pois sucede
muitas vezes que a valentia masculina fica
enfraquecida pelo convívio com as mulheres". Todavia,
é possível recebê-las a título de meias-irmãs por
"diversos cuidados prestados aos doentes e ao gado
serem mais bem assegurados pelas mulheres do que
pelos homens". Mas devem alojar-se num edifício
separado, pois, em caso de coabitação, "a castidade
poderia eventualmente ser preservada, mas isso não é
seguro e, com o tempo, existe o risco de tal não
terminar sem escândalo". Os irmãos são aliás
convidados a abster-se de falar às mulheres, sobretudo
às jovens, mesmo que sejam as irmãs ou a mãe, pois
isso é um sinal evidente de amor profano. Reco-
menda-se-lhes que não frequentem as cerimónias de
casamento, os torneios, os espectáculos, a não ser
para desagravo ou para conquistar almas. Finalmente,
uma notação bizarra nos "costumes" da ordem
enumera, "segundo os doutores de Paris e os
astrólogos", os trinta e dois dias nefastos do ano, de um
a seis segundo o mês, durante os quais se não deve
empreender coisa nenhuma: o ferido morreria, o recém-
nascido não viveria por muito tempo, o casamento
malograr-se-ia.
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 93

A obra realizada pelos Teutónicos na Prússia


durante dois séculos foi considerável em todos os
domínios. A actividade primordial foi evidentemente a
construção de castelos, primeiro em terra batida,
protegidos por paliçadas e ramaria, depois substituídos
por um edifício de tijolos, uma vez que a pedra
escasseava na planície do Norte. O castelo teutónico
era em suma um mosteiro fortificado. Em volta de um
pátio central quadrado elevavam-se os edifícios de
habitação, com as vastas salas abobadadas do cabido,
dos refeitórios e dos dormitórios. A igreja, por vezes
situada no primeiro andar, era encimada por um
campanário quadrado que fazia também as vezes de
torre de aí consultar Lutero, que o aconselhou a abolir a
regra, a tornar- -se secular e a casar. Lutero lançou
análogo apelo aos Cavaleiros Teutónicos da Prússia,
exortando-os a "renunciar à falsa castidade e a
entregar-se à verdadeira castidade no matrimónio", e
também a assumir funções seculares no Estado "com
uma compreensão cristã e a aprovação dos súbditos".
Alberto submeteu-se ao seu parecer. Foi à Cracóvia,
prestou-se à cerimónia de vassalagem, despiu o seu
manto branco com a cruz negra e recebeu em troca, do
rei, um estandarte, símbolo do feudo principesco laico.
O Estado teutónico tornou-se então o ducado da
Prússia. De regresso a Conisberga, Alberto fez reco-
nhecer esta mudança por parte dos Estados da
Prússia, sem encontrar resistência, ao que parece, e
proclamou depois oficialmente a sua adesão à Reforma
protestante (1525). Casou-se no ano seguinte e reinou
na Prússia, não sem dificuldades, até à sua morte
(1568).
A secularização, porém, não dizia respeito apenas à
Prússia. Nos Países Bálticos a ordem conseguiu
manter-se sob a direcção do provincial da Livónia, mas
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 94

por pouco tempo. Foi incapaz de resistir aos ataques do


czar Ivan IV, o Terrível, e o último provincial, Gotthard
Ketteler, submeteu-se em 1561, imitando Alberto de
Brandeburgo. Foi-lhe deixado o ducado secularizado da
Curlândia, a oeste de Riga, ao passo que a Livónia foi
cedida à Polónia e a Estónia à Suécia. Os Cavaleiros
Teutónicos não conseguiram permanecer aí.
A secularização do Estado prussiano também aboliu
a ordem na Alemanha, onde os fiéis continuaram a ser
numerosos. Um cabido geral reuniu-se em
Mergentheim, junto do Tauber, na Francónia, e elegeu
um novo grão-mestre em 1526, que aí fixou a sua sede.
A sua autoridade limitou-se praticamente às regiões
que se mantinham católicas: a Renânia, a Alemanha do
Sul e a Áustria, ou seja, cinco bailiados.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

A partir do século XIV, a história da Ordem Teutónica


é assinalada por uma longa série de reveses, sempre
seguidos de esforços de renovação e de adaptação. A
guerra dos Trinta Anos pôs duramente à prova os
bailiados da Alemanha; a conquista turca pôs à paz que
não era desfavorável à ordem. Cedia apenas a
Samogícia, mas tinha de pagar pesados resgates pelos
prisioneiros, o que o obrigou a estabelecer um imposto
novo. O seu irmão, comendador do castelo de Danzig,
cometeu o erro de mandar executar os dois
burgomestres da cidade, que tinham vindo negociar.
Henrique de Plauen compreendeu a necessidade de
consolidar o Estado associando mais intimamente a
nobreza e as cidades ao seu governo. Mas deparou
com a incompreensão do seu séquito e quando quis
reatar a guerra, foi preso e destituído; o cabido, reunido
à pressa, confirmou a sua deposição.
Os anos que se seguiram foram marcados por uma
guerra endémica, que pôs a saque a região e arruinou
as finanças da ordem. Continuando esta a recusar-se a
associar os seus súbditos ao governo, cidades e
nobres formaram uma nova "liga prussiana", aliada à
Polónia, o que provocou uma longa guerra de treze
anos (1454-1466). O grão-mestre teve de recorrer a
mercenários, mas, não podendo pagar-lhes, hipotecou
vários castelos, de entre os quais Mariemburgo, que
foram imediatamente vendidos ao rei da Polónia.
Finalmante, a segunda paz de Torum (1466) consagrou
a derrota da ordem, que perdia assim metade do seu
território: toda a Pomerélia, a margem direita do Vístula
à excepção de Marienwerder e os vastos domínios dos
bispos eram cedidos em plena soberania ao rei da
Polónia, sendo o resto deixado ao grão-mestre a título
de feudo. A sede da ordem foi transferida para
Conisberga.
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 89

Mas os Cavaleiros Teutónicos não perderam a


esperança de reconquistar o seu território e a sua
independência. Tal era a intenção de Alberto de
Brandeburgo quando foi eleito grão- -mestre com vinte
anos de idade (1510). Recusou-se a prestar
homenagem ao rei da Polónia a procurou aliados para
reatar a guerra. Como não os encontrou, os seus
projectos tomaram outro rumo. Muito devoto, foi
progressivamente, após 1520, conquistado pela
Reforma e deixou o luteranismo espalhar-se nos seus
Estados. Empreendeu uma longa viagem à Alemanha,
no decurso da qual se deslocou secretamente a
Vitemberga para menagem. As caves eram espaçosas
para poderem armazenar material, cereais e vinho, na
eventualidade de um cerco prolongado. À volta do
mosteiro, para lá de um pátio de entrada, uma cintura
de muralha flanqueada por torres constituía os aprestos
militares propriamente ditos; comportava um castelo
avançado, centro da defesa, ligado aos edifícios por
uma galeria, igualmente de tijolos. Esta galeria alta,
assente em arcadas descobertas, é uma das
originalidades marcantes da arquitectura dos
Teutónicos.
O mais vasto destes castelos era evidentemente o
de Mariemburgo, restaurado no século XIX, destruído
em 1945 e reedificado depois pelos Polacos. A uma
primeira construção quadrada do final do século XIII foi
acrescentada uma segunda, mais ampla e rectangular,
em meados do século XIV. Compreendia o palácio do
grão-mestre, três refeitórios e múltiplas salas
destinadas aos grandes oficiais e aos hóspedes. De um
e de outro lado deste conjunto foi edificada uma
muralha que protegia as igrejas e os edifícios.
A grande obra da Ordem Teutónica foi contudo a
colonização da região. A revolta de 1260 mostrara que
só o povoamento da Prússia por alemães poderia
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

assegurar a segurança e a paz. A ordem apelou a


colonos do Norte da Alemanha e dos Países Baixos e
prosseguiu metodicamente o arroteamento e o cultivo
de terras novas. Dezenas de cidades, centenas de
aldeias foram fundadas, muitas vezes ao lado de
antigas aldeias e lugarejos prussianos. Gradualmente,
os elementos indígenas fundiram-se na massa dos
recém-chegados; a sua língua declinou, para
desaparecer completamente no século XVII — só a dos
Sorábios eslavos se tendo mantido até aos nossos dias
a sul de Berlim.

Comércio e cultura
A agricultura desenvolveu-se notavelmente, a ponto
de o centeio se ter tornado um dos principais artigos de
exportação da Prússia. A grande riqueza do país era o
âmbar, recolhido nas costas de Samland e procurado
em toda a Europa e no Oriente: a ordem passou a deter
o monopólio da venda. O comércio também prosperou.
Mercadores das seis cidades principais da Prússia,
desde a sua fundação, participaram nos privilégios
hanseáti- cos da Inglaterra e dos Países Baixos. Como
estas cidades estavam estritamente dependentes da
ordem, o próprio grão- -mestre foi reconhecido como
membro da Hansa, caso único para um príncipe
territorial. Mais: os Teutónicos constituíram uma
poderosa sociedade de comércio, dirigida pelos
grandes ecónomos (Grosschaeffer) de Mariemburgo e
de Conisberga, com os seus navios, os seus
mercadores, os seus cobradores, os seus depositários
próprios.
O economato de Conisberga exportava sobretudo o
âmbar — para Lemberga (Lvov) ou Kosice, na
Eslováquia, de onde era encaminhado para
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 91

Constantinopla ou para a Flandres —, mas também


peles e cera. O de Mariemburgo expedia cereais,
madeira, cinza, provavelmente cobre eslovaco vindo
pelo Vístula. Importava essencialmente panos
flamengos mas também especiarias e arenque da
Escânia. Contrariamente aos Templários, os Teutónicos
não praticaram quaisquer operações financeiras, mas a
sua actividade comercial, favorecida na Prússia por
franquias especiais, suscitou o descontentamento
crescente das cidades.
Ao lado da obra militar e económica, refira-se as
preocupações culturais, a bem dizer, bastante
modestas. O grão-mes- tre Lutero de Brunsvique (1330-
1335), que também foi poeta, rodeou-se de letrados. Na
corte de Mariemburgo, apreciavam-se particularmente
os romances da Távola Redonda e os feitos de
cavalaria do rei Artur. Três crónicás, inspiradas pela
ordem, expunham a sua história desde as origens.
O Estado teutónico, entretanto, alàrgou-se
notavelmente no decurso do século XIV. A partir de
1310, aproveitando-se de uma querela de sucessão,
deitou a mão à Pomerélia, o que lhe assegurava o
controlo exclusivo da navegação no Vístula inferior. Em
1302, adquiriu a Nova Marca de Brandeburgo, a leste
do
Oder (Neumark), marco para o futuro reino da Prússia
no século XVIII. Pouco antes (1384), a soberania pelo
menos teórica dos Teutónicos sobre a Samogícia tinha
sido reconhecida pelo grande príncipe dos Lituanos.
No início do século XV, a ordem parecia
omnipotente. Todavia, o seu poder era frágil. Com a
conversão dos últimos pagãos lituanos, perdera o
prestígio e os apoios numerosos de que durante tanto
tempo beneficiara. No interior, os seus súbditos,
sobretudo os citadinos e os nobres, achavam-se
irritados com a sua dominação considerada tirânica e
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

aspiravam a sacudir a sua tutela. Em 1397, anobreza


da região deCulm uniu-se numa liga prussiana, que em
breve se revelou hostil aos Teutónicos. No exterior, a
união, ainda que precária, entre a Lituânia e a Polónia
sob a autoridade do rei Vladislav Jagelão (1386-1434)
era uma ameaça directa para a ordem. Dos dois lados
faziam-se preparativos para a guerra, que eclodiu em
1410 por iniciativa do grão-mestre Ulrique de
Jungingen. Os dois exércitos encontraram-se perto de
Tanneberg e Grünwald a 15 de Julho. Apesar da sua
inferioridade numérica, Ulrique decidiu travar batalha e
enviou ao seu adversário, em sinal de desafio, duas
espadas desembainhadas. Os Teutónicos obtiveram a
princípio alguns êxitos. Mas tendo-se Ulrique-.lançado à
carga no centro com o grosso das suas forças, no
momento em que os nobres da região de Culm se
punham prematuramente em fuga, foi cercado pelos
inimigos e sucumbiu sob o seu número. O grão-mestre,
a maior parte dos grandes oficiais, onze comendadores
e mais de duzentos cavaleiros encontraram a morte.
Imediatamente a nobreza e as cidades prussianas
prestaram fidelidade a Vladislav.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Todavia, o desastre não pareceu a princípio


irremediável. O chefe de uma modesta comendadoria,
Henrique de Plauen, conseguiu reunir os fugitivos e
defender o castelo de Mariembur- go. Os Polacos não
puderam apoderar-se dele e levantaram o cerco ao
cabo de dois meses. Eleito grão-mestre, Henrique de
Plauen pôde concluir, no ano seguinte, a paz de
Torum, uma edifício puramente arquitectónico é um
testemunho impressionante de uma arte pré-românica,
fortemente tributária da tradição visigótica. No século
XI, o abade Oliba mandou acrescentar a oeste da igreja
construções das quais subsiste apenas a parte baixa, a
igreja da Virgem do Presépio. Este edifício circular, cuja
abóbada em arco parece girar em torno de um enorme
pilar central em forma de palmeira, parece inacabado; o
traço das ripas da armação de madeira continua visível
na abóbada. Os capitéis do claustro românico são
esculpidos num mármore cor-de-rosa, com veios e
quase transparente, proveniente das pedreiras de
Villefranche que alimentaram os principais estaleiros
românicos do Rossilhão. Do claustro subsistem apenas
as alas sul e oeste: o resto foi disperso, vendido e
reconstruído em Nova Iorque, no museu dos Claustros!
Em Sant Pere de Rodes, voltamos a encontrar as
origens lendárias da Catalunha cristã: a abadia teria
sido fundada sobre as relíquias de S. Pedro — a
cabeça e um braço —, trazidas de Roma e escondidas
na montanha a fim de escaparem à fúria dos
Lombardos que ameaçavam a Cidade Eterna (século
VI). A referência mais antiga de um priorado data em
880. Isolada, exposta à pirataria sarracena, a abadia
rodeou-se de muralhas. Das duas torres que defendem
o acesso a oeste desta fortaleza, uma é um magnífico
campanário com três andares de janelas duplas, a
outra uma simples torre de defesa sem aberturas. A
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 101

igreja é um edifício abobadado com três naves às quais


a sobreposição de duas ordens de colunas e de
capitéis confere uma elevação excepcional.
É preciso passar à Catalunha ocidental e meridional
para encontrar abadias cistercienses, já que a
densidade dos mosteiros já instalados a norte não
deixou qualquer lugar para os apaixonados pelo
deserto como eram os cistercienses. Em contrapartida,
as terras recentemente reconquistadas da Catalunha
"nova", libertadas e recristianizadas na primeira metade
do século XII, abriam-se amplamente à colonização
monástica. Santes Creus reconstitui admiravelmente a
realidade do mosteiro medieval,
A imbricação entre poder civil e poder eclesiástico
coloca a Igreja à cabeça da sociedade e do seu saber
cultural. As intervenções do poder laico no domínio
sagrado e as do clero no domínio temporal contribuem
para impor a imagem de uma Igreja do século X que
dispõe de um verdadeiro poder feudal. Impõe-se uma
reforma religiosa. Ela virá da instituição monástica e do
papado. A abadia de Cluníaco, fundada em 910,
estende a sua rede e torna-se de facto uma potência
independente, simultaneamente do Papa e do
Imperador do Sacro-Império Romano- -Germânico. O
desenvolvimento dos estudos literários e das ciências
que resulta desta nova autonomia permite então falar
de um verdadeiro renascimento cultural. Nas
bibliotecas cultiva-se o saber antigo e nos scriptoria, as
safas de cópia dos mosteiros, procede-se a uma
actividade criativa. Mesmo que esta cultura não atinja
senão uma pequena minoria, ela desempenha um
papel essencial na eclosão de uma arquitectura de
importância maior durante a segunda metade do século
X.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Entre os grandes monumentos religiosos edificados


na viragem desse século, são de notar, a norte, a
reconstrução da catedral de Reims por Adalberão, por
volta de 976, e as fundações de Roberto, o Piedoso,
em Orleães, relatadas pelo monge de Fleury, Halgaud,
no começo do século XI. "Mesmo na cidade de
Orleães, ele construiu o mosteiro dedicado a Santo
Aignan (...) e também um outro em honra de Santa
Maria (... ) Aí elevou o mosteiro de S. Vicente (...) o
mosteiro de S. Paulo na aldeia de Chanteuses, o
mosteiro de S. Medardo no burgo de Vitry, o mosteiro
de S. Léger na floresta de Yvelines, o mosteiro de
Santa Maria no burgo de Melun, assim como outra
igreja, o mosteiro de S. Pedro e S. Rieul na cidade de
Senliz, o mosteiro de Santa Maria no burgo de Étampe
e também, no mesmo burgo, uma igreja no palácio, na
cidade de Paris, uma igreja em honra de S. Nicolau,
bispo, no palácio, o mosteiro de S. Germano de
Auxerre e a igreja de S. Miguel na floresta dita de Bière,
e também o mosteiro de S. Germano de Paris, assim
como a igreja S. Vicente na floresta de Laye e, na
aldeia de Gometz, uma
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 103

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EVOLUÇÃO DA PLANTA DA IGREJA ABACIAL DE S. MIGUEL


DE CUXA.
1) A igreja no final do século X.
ábside principal/transepto/nave
2) Estado do edifício depois das ampliações
empreendidas no final do primeiro terço do século XI.
De notar o invólucro que encerra a parte central da
capela-morprimitiva e a nova construção dedicada à
Trindade, organizada em torno de uma cripta e de
um edifício de planta centrada.

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A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 105
natural: em Sant Miquel de Fay, a água que ressuma
da abóbada reveste os arredores da igreja de uma
espessa camada de musgo.
Cinco nomes, cinco abadias — Ripoll, Cuxa, Sant
Pere de Rodes, Santes Creus e Montserrat —
resumem os grandes momentos da história catalã. À
entrada de Ripoll, aldeola industrial sem atractivos, de
casas besuntadas de poeira de tijolo, um painel lembra
que a vila é o berço da Catalunha. Desenvolveu-se em
redor da abadia de Santa Maria, elevada em 880 pelo
conde Guifredo, o Peludo, fundador da dinastia dos
condes de Barcelona. Panteão condal de 897 a 1162, a
abadia foi, nos séculos X e XI, uma espécie de capital
espiritual comum aos diferentes condados, onde foram
redigidas as crónicas locais mais antigas, primeiros
esboços de uma história "nacional". A igreja "românica",
inteiramente reconstruída entre 1886 e 1893 pelo
arquitecto Élie Rogent, é um edifício solene e frio. Os
restauradores pouparam o magnífico portal esculpido
em meados do século XII. Desdobrando em seis frisos
sobrepostos uma vasta composição glorificando a
gesta dos reis de Israel e, através dela, a reconquista
cristã que os condes catalães acabavam de levar a
bom termo, este "arco do triunfo da cristandade" acha-
se, infelizmente, atingido de uma lepra da pedra que
torna as figuras pouco a pouco irreconhecíveis, mas
inspirou vários portais da rota de Compostela e o portal
dos Ourives da catedral de Santiago.
Fundada em 878, Saint-Michel-de-Cuxa é um
testemunho vivo dos primórdios do monaquismo e da
primeira arte cristã na Catalunha. Com os seus altos
muros cegos, a sua imensa cobertura de telhas e a sua
torre maciça, a abadia assemelha-se exteriormente a
uma gorda herdade catalã. A entrada na igreja reserva-
nos um choque; num imenso espaço nu, sombrio, ver-
AS ABADIAS DA CATALUNHA 119

dadeira caverna de pedra, pilares enormes sustentam


arcos em ferradura que separam a nave principal das
naves laterais; as arcadas são tão rudes, os pilares tão
pouco afastados que dão a impressão de uma parede
ininterrupta, apenas perfurada por algumas passagens.
Datada do terceiro quartel do século X, este
As abadias da Catalunha

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AS ABADIAS DA CATALUNHA 119

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A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 127

igreja dedicada a Santo Aignan, e na aldeia de Faida


também uma igreja dedicada a Santo Aignan, o
mosteiro de Santa Maria em Poissy, o mosteiro de S.
Cassiano em Autun."
Este impulso arquitectónico não é então
completamente novo, como testemunha o mesmo
Helgaud a propósito de Hugo Capeio e do seu pai,
Hugo, o Grande, conde de Paris e duque de França:
"Hugo, cognominado «o Grande», (...) construiu com o
seu filho o esplêndido mosteiro de S. Magloire na
cidade de Paris (...) A mãe do rei, Adelaide (...) fundou
na cidade de Sen- lis o mosteiro de S. Framburgo (...)
Esta construiu também em Paris, no lugar a que
chamam Argenteuil, um mosteiro onde reuniu um
número considerável de servos do Senhor, vivendo
segundo a regra de S. Bento."
Estas grandes construções situam-se muitas vezes
em meios urbanos, em cidades que, como a paisagem
em geral, recordam o passado antigo. Mas depois, por
volta do ano Mil, que é feito do forum, dos
monumentos públicos ou de espectáculo, da cintura
de muralha ou ainda das basílicas da Antiguidade
tardia? De facto, as fortificações de Béziers,
Carcassona, Die, Autun, Soissons, Tours ou Angers
continuam a ser testemunhos da presença antiga. E,
no interior das paredes, as construções antigas
continuam a modelar o espaço urbano medieval,
ainda que a sua reutilização mascare por vezes a sua
origem. Ibrahim ben Yà'qûb, judeu de Espanha que
por razões comerciais ou religiosas empreende em
965 uma longa viagem através da Europa, não se
enganou quando, ao descrever Bordéus, observa que
"a cidade tem edifícios muito elevados suportados por
enormes colunas". Em Nîmes, uma aglomeração
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

desenvolve-se em torno do anfiteatro romano que


conhece uma nova vida durante a Idade Média.
Estas reaplicações arquitectónicas, tão numerosas
no Meio- -Dia como no Norte da França, provêm de
um gosto pela Antiguidade ou representam
simplesmente uma solução pouco cara para o
problema da falta de materiais de construção? O facto
de em S, Framburgo da Sanlis, por exemplo, a ábside
da igreja ter sido instalada numa torre romana deixa
uma dúvida quanto ao papel simbólico do monumento
antigo. Na região do Língua- doque-Rossilhão, Nímes
oferece um inventário completo de reaplicações e de
reutilizações de materiais antigos, e até de
monumentos inteiros: o anfiteatro, a Casa Quadrada,
o templo de Diana ou o Pont du Gard são disso
testemunhas. A norte, na zona do Sacro Império, a
igreja de Saint-Pierre-aux-Nonnains instala-se em
Metz numa basílica antiga. A residência angevina de
Doué-Ia-Fontaine utiliza uma antiga carreira de
sarcófagos. A Basse-Oeuvre de Beauvais foi quase
inteiramente edificada com a ajuda de materiais
reempregados.
A cidade é uma das componentes prestigiosas da
paisagem da França por volta do ano Mil, com a sua
cintura de muralha, os castelos urbanos, as
fortificações elevadas às suas portas junto dos
santuários, tanto no interior como no exterior dos
muros. Aberta ou fechada, centro de protecção e de
morada dos príncipes, a cidade pequena é igualmente
um lugar de habitação que se confunde por vezes
com o campo graças aos bairros periféricos. Sede do
poder religioso, vê aparecer um bairro protegido, o da
catedral ou de um mosteiro, bairro por vezes fortifi-
AS ABADIAS DA CATALUNHA 117

cado e que pode ocupar uma parte importante do


espaço urbano.
Na região oeste da França, as cidades pequenas
recuperam muito depressa das dificuldades que
conheceram quando das invasões escandinavas
reparando as suas muralhas danificadas. As
pesquisas arqueológicas do bairro da República em
Angers permitiram provar a existência de uma
segunda muralha, que foi possível situar no final do
século X ou no início do século XI. Noutra parte, no
sul provençal, as cidades formam por elas mesmas
redes fortificadas. Em geral, a continuidade na
ocupação das localidades encontra-se atestada. A
muralha antiga é muitas vezes conservada, mesmo
que não seja sempre utilizada na sua totalidade, e os
monumentos já existentes servem para reforçar a
protecção. Grupos episcopais e santuários
suburbanos tornam-se elementos fixos da paisagem.
dos monumentos históricos, dá uma imagem
rebarbativa do priorado de Serrabone no relatório da
sua prospecção metódica através das províncias
francesas. Perdido no meio de uma antiga clareira de
arroteamento, "o local é triste e selvagem. As cons-
truções que dependiam da antiga abadia elevam-se a
meia encosta sobre uma montanha árida acima de um
vale estreito e profundo que a rodeia de três lados.
Sobre qualquer ponto em que a vista se detenha, não
encontra senão rochas xistosas, de cor escura e
esverdeada, entre as quais alguns arbustos mirrados
crescem a custo." Nada deixa presentir que o rude
edifício de xisto azulado abriga um espaço interior
iluminado por uma tribuna de mármore cor-de-rosa a
qual parece que é erguida da terra pelos animais que
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

se confrontam, se perseguem e se desafiam sobre os


capitéis.
Abadias de montanha, abadias de planície, abadias
visíveis numa vasta região, abadias escondidas pela
orla da floresta ou numa gruta. Ainda ninguém
destacou uma tipologia da vida monástica fundada na
variedade das localizações. Conten- temo-nos em
olhar. Indestrutíveis, alguns mosteiros coroam há um
milhar de anos o cume de montanhas: Sant Pere de
Rodes domina a mais de 600 metros o cabo Creus,
onde os Pirenéus vêm morrer no Mediterrâneo; Sant
Llorenç dei Munt verga sob o seu próprio peso no
cimo do Mola, a perto de 1100 metros, e dissimula-se
de Inverno atrás de um véu de neblina. Construídas
na planície, outras abadias surgem, pelo seu lado, na
curva de um caminho: às portas de Perpignan, os
vinhedos cercam as paredes de Santa Maria dei
Camp; o campanário de Saint-Michel-de-Cuxa eleva-
se pesadamente acima dos pomares em flor,
dominado pela alvura insolente do Canigou. Outras
ainda, edificadas sobre uma encosta, não parecem
aguardar visitantes a não ser do céu: Sant Pere de
Casserres, suspensa num declive instável acima de
um ponto do Ter; Saint-Martin- -du-Canigou, assente
num estreito promontório imerso na floresta, defronte
de uma imensa parede rochosa que reflecte os raios
do sol. Alguns monges estavam tão desejosos de fugir
do mundo que construíram a sua abadia no interior de
uma gruta mas colunas do coro constituem os últimos
vestígios do antigo mosteiro feminino de Sant Pere de
les Puelles.
Outros edifícios bem vivos mantiveram-se em bom
estado ou foram restaurados ou reconstruídos com
um zelo por vezes excessivo; perpetuam no mundo
actual o espírito dos fundadores. Fundada por volta de
AS ABADIAS DA CATALUNHA 117

1025 nos postos avançados da Reconquista cristã,


Montserrat foi, nas últimas décadas do franquismo, o
centro de um protesto permanente contra a ditadura.
No coração de Barcelona, num bairro pobre e
barulhento, a pequena igreja de Sant Pau dei Camp,
oásis de paz ignorado do mundo mercantil que o
cerca, recorda a época em que, entre a colina de
Montjuic e a torrente do Rambla, se estendia uma
vasta planície deserta.
Também intactas, as duas irmãs cistercienses de
Poblet e Santes Creus constituem conjuntos
consideráveis: a primeira, imensa massa de
construções compósitas no coração de uma paisagem
austera e luminosa, verdadeira fortaleza cercada por
uma cintura de muralha de dois quilómetros; a
segunda, aberta numa perspectiva de acolhimento,
estende a sua tutela reconfortante sobre a
aglomeração que nasceu dela.
Para viver o seu ideal de solidão e de oração, os
monges instalam-se longe dos homens; é a "fuga ao
mundo", a fuga mundi. Para se aproximarem de Deus.
Para reencontrarem a natureza também: os locais
escolhidos para as abadias são ao mesmo tempo
grandiosos e imprevisíveis. Alguns acham-se
entregues à invasão turística estival, mas, ainda hoje,
alguns só são acessíveis depois de um longo percurso
solitário.

Grutas e ninhos de águia


O primeiro contacto pode ser decepcionante: a
natureza mediterrânica é muitas vezes austera e a
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

riqueza de uma abadia é, antes do mais, interior. Em


1835, Prosper Mérimée, inspector-geral
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 133

Entre os trabalhos empreendidos no século X nas


cidades da Gália, muitos referem-se à forticação de
mosteiros ou de zonas episcopais situadas nos
arrabaldes. Em Tours, a cidade da Antiguidade tardia
faz frente, desde o primeiro quartel do século X, ao
castrum Saint-Martin, o qual, cercado por uma zona
suburbana e dotado de uma cintura de muralha, se
torna tão autónomo como a cidade. Descrevendo os
cercos da cidade de Verdun por volta de 985, o monge
de Saint-Rémi de Reims, Richer, autor de quatro livros
de "histórias" de França que englobam um período
comprendido entre 888 e 995, menciona um bairro
suburbano abrigado por muralhas e reservado aos
mercadores. Estes centros protegidos multiplicam-se
a partir do começo do século XI. Os monumentos civis
e as casas particulares das cidades pequenas não
são tão bem conhecidos. As menções de cessões de
terrenos comprados para lá construir casas são
numerosas, mas só a arqueologia nos pode dar conta
do aspecto destas. As pesquisas de Tours mostraram
que a pedra, a madeira e a terra eram os materiais de
base da sua construção. Em Barcelona, sabe-se que
pouco depois do ano Mil as casas possuíam um
primeiro andar.
A cidade constitui pois o elemento fortificado por
excelência da paisagem do ano Mil, como testemunha
Dudon — veterano da direcção colegial de Saint-
Quentin-en-Vermandois, o. qual redigiu por volta de
1015-1026 uma Histoire des Normands seguida até ao
momento da morte de Ricardo I, em 996 — a
propósito de fortalezas da Normadia, falando
concretamente, das cidades episcopais de Bayeux e
de Évreux, assim bem como da metrópole de Ruão.
Esta é a mais bem protegida, com bairros suburbanos
abertos rodeando um núcleo fortificado de muros
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

poderosos, por sua vez guarnecidos de elementos em


sacada. Em paralelo, os castra, termo cujo sentido se
mantém fluido e que designa uma construção
intermédia entre a cidade fortificada e o castelo,
completam a paisagem. Para lá dacidade, os castelos
organizam a rede das fortificações. Trata-se de
fortalezas de terra ou de construções de pedra. A
motte é a fortificação típica do ano Mil. Trata-se de um
outeiro artificial cercado de um fosso, muitas vezes
acompanhado de uma cintura de muralha. As cinturas
de muralha, com ou sem motíe, fortificam um espaço
com a ajuda de um fosso e de um talude de pedras.
Situam-se na linha das fortificações da Antiguidade.
As cinturas de muralha de grandes dimensões
correspondem a habitats ou cercam explorações. As
de pequenas dimensões, circulares ou ovais e que o
arquéologo assinala mais facilmente, acham-se
muitas vezes agrupadas sob a forma de uma cintura
de muralha propriamente dita e de um pátio de
criação. A edificação destas cinturas de muralha
parece remontar à segunda metade do século X, mas
datam mais frequentemente da primeira metade do
século seguinte.
Enquanto por volta do ano Mil a construção
religiosa é geralmente de pedra, sejam quais forem a
alvenaria e o aparelhamento utilizados, a realidade do
castelo é mais complexa. Na Catalunha, onde se
pôde provar a existência de castelos de madeira na
época carolíngia (século IX), estes foram substituídos
quase por todo o lado por fortificações de pedra,
fenómeno que parece estender-se a uma boa parte
do Meio-Dia francês. A norte de França, em
contrapartida, a madeira subsiste provavelmente mais
tempo. O atraso revelado neste domínio pelos
castelos em relação às construções religiosas tem
sido explicado invocando as fracas disponibilidades
financeiras das linhagens senhoriais, inferiores às do
clero. Mas nem sempre se trata de uma simples
questão de meios. É igualmente possível explicar este
atraso por razões complexas que se prendem simul-
taneamente com os problemas económicos, técnicos,
militares e climáticos.
Nas regiões meridionais, temos que distinguir a
planície da montanha e a palavra castrum, que nem
sempre designa uma fortificação privada, de villa, que
permanece ligada à ideia de um território. Quando,
em 960, o conde Borrei 1 de Barcelona descreve o
seu castelo de La Roqueta como "uma roka (cume
rochoso) com as suas muralhas e as suas
superestruturas", define um tipo de fortificação que
tira .vantagem dos locais elevados
As abadias da Catalunha
Michel Zimmermann
Conhece Serrabone? Sant Pere de Rodes? Saint-
Mar- tin-du-Canigou? Da passagem de Salses ao
delta do Ebro, não há um catalão que responda
negativamente. A familiaridade de um rico património
cultural foi suficiente para conservar entre catalães de
França e de Espanha o sentimento de comunidade
que as vicissitudes da história recente não
conseguiram enfraquecer. O viajante capaz de fugir às
praias sobrepovoadas da Costa Brava trará da região
uma imagem onde pululam abadias e colegiadas.
Poucas regiões conservaram uma tal densidade de
■construções ou vestígios monásticos. Só no período
de 800 a 1300, numa região de 36 500 quilómetros
quadrados, mais de 300 abadias ou priorados foram
fundados, metade dos quais antes do ano Mil.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Alguns tiveram apenas uma existência efémera,


como foi o caso da abadia de Eixalada, no Haut-
Conflent, que foi arrastada em 878 por uma enchente
do Têt; quinze monges morreram com ela. De abadias
prestigiosas só restam por vezes vestígios ameaçados
e irrisórios. Às portas de Andorra esconde-se num
pomar, a ábside de Sant Sadurni de Tavernoles, que
foi no século VIII um dos raros centros de resistência
cristã ao Islão e manteve de maneira duradoura a
tradição visigótica. Da imensa cartuxa da Scala Dei,
subsiste apenas o arco da porta de entrada que abre
para três hectares de ruínas. Em Barcelona mesmo,
algu-
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 137

compensando as imperfeições do terreno por meio de


muros e de muralhas. Nas zonas pirenaicas ou nos
vales profundos, uma densa rede de grandes e
pequenos castelos povoam a paisagem evocada pelo
Livre des Miracles de Sainte Foy de Conques, recolha
que abrange um período entre 1012 e 1050
aproximadamente. Alcandorados em locais
escarpados, como verdadeiros ninhos de águia, estas
fortificações ou as torres que as ligam proporcionam
uma panorama magnífico sobre os as mediações. O
castelo propriamente dito é constituído por um
pequeno conjunto de saias em alvenaria, construídas
em pedra local, agrupadas no cimo do rochedo e
protegidas por alguns muros. O que mais impressiona
continua a ser a inacessibilidade da maior parte
destes locais. O seu abastecimento parece difícil e a
sua ligação às zonas de cultura e às terreolas
habitadas pouco cómoda.
Salientam-se, logo em meados do século X,
referências a fortificações obtidas através da
construção de uma torre rodeada por fossos e por
paliçadas. Todavia, o termo turris nem sempre
corresponde à torre propriamente dita e pode
designar igualmente uma fortificação ou uma parte de
um conjunto. As informações recolhidas quando das
escavações da localidade de Doué-la-Fontaine
esclareceram as etapas da transformação de uma
construção residencial por meio da elevação do
edifício e da sua disposição em torre sobre um escuro
piso térreo: o problema do torreão residencial
fortificado é deste modo abordado. Entre as fortalezas
de Foulques Nerra em Anjou, as novidades
arquitectónicas mais notáveis são as grossas torres-
torreões quadrangulares destinadas a conhecer um
êxito seguro no decorrer da Idade Média. Em
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Langeais, o domicilium propriamente dito tinha, por


cima de um piso térreo muito baixo, uma grande sala
iluminada a leste por um vão de janela e aberta a
norte por uma porta. A sala era por sua vez encimada
por uma divisão amplamente iluminada: bela
combinação de residência e de fortificação.
Fora das cidades, das residências e das fortalezas,
é certo que os homens habitam em aldeias que se
discernem com maior precisão nos períodos
posteriores. Robert Fossier descreve esses "magotes
de homens reunidos em aldeias, nuns lados junto de
uma paliçada no sopé de uma motte de terra onde
domina a morada do senhor, noutros lados
encerrados num "castro" onde a torre do amo domina
as casas de pedra; por toda a parte uma construção
de culto onde se reúnem camponeses e familiares do
senhor'". O habitat rural muito móvel das regiões
setentrionais contrasta com uma forte estabilidade no
Meio-Dia, onde o seu reagrupamento se efectua em
torno da igreja e do cemitério. Na região do Biterrois,
por exemplo, o habitat em nada parece ter evoluído
até à época carolíngia e é no século X que começa a
formar-se a textura de aldeias em breve fortificadas
que tendem para o encastelamento, termo que
designa um agrupamento de casas situadadas umas
acima das outras.
A arqueologia informa-nos sobre as diversas
formas adoptadas pela aldeia no seio do século XI.
Na Catalunha, é desde muito cedo sobrelevada, com
uma rua principal ladeada de casas, uma capela e
uma torre em cada extremidade. NoNorte de França,
por exemplo em La Grande-Paroisse (Sena e Marna),
pode observar-se uma ampla aglomeração rural com
fundações de cabanas, silos, fossos e construções de
uso variado. Foi possível reconstituir a estrutura das
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 139

casas, cobertas de um vigamento com quatro


vertentes e divididas interiormente por paredes de
estacaria. Na Bretanha, a casa rural do-ano Mil é feita
para durar, com paredes largas assentes em alicerces
e uma cobertura vegetal què se prolongava até ao
chão, mascarando assim a base externa de uma
parede que não possui mais de 40 a 50 centímetros
de altura. As descobertas de bens móveis feitas na
maior parte destas aldeias matizam a impressão
muito divulgada de uma miséria da vida comunitária.
Do mesmo modo, a observação de um sítio
arqueológico como o de Andone (Charente) permite
medir melhor a separação entre a vida camponesa e
a vida militar ou aristocrática. As habitações principais
são aí solidamente construídas em pedra e, tal como
nas aldeias da região do Morbihan, não possuem
chaminé.
da arte românica propriamente dita. O desabrochar
desta última faz-se graças ao desenvolvimento das
experiências arquitectónicas de que o Ocidente se
enriqueceu por volta do ano Mil.

Nota
1
R. Fossier, Enfance de l'Europe, Xe-XIIe Siècle, t.
1, "Nouvelle Clio", 17, PUF, 1982, p. 288.

Orientação bibliográfica
* Xavier Barral í Altet, s/d, Le-Paysage Monumental
de la France autour de J'An Mil, com a participação de
mais de uma centena de historiadores, arqueólogos e
historiadores da arte, Paris, Picard, 1987. Ver
igualmente as actas do colóquio internacional "Hugo
Capeto, 987- -1937. A França do ano Mil".
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

* Robert Delort, s/d, La France de l'An Mil, Paris,


Ed. du Seuil, "Points Histoire", 1990.
* Sobre os "terrores" do ano Mil: Jacques Berlioz,
"Les terreurs de l'an Mil ont-elles vraiment existé?",
L'Histoire n.° 138, pp. 16-18.
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 141

edifícios construídos graças ao mecenato são santuários


de grande reputação ou locais de peregrinação
particularmente frequentados, como a catedral de
Chartres, Saint-Denis ou Clu- níaco. Oportunidade
política, devoção sincera ou investimento interessado: é
difícil apreender o sentido real do mecenato.
Os bispos detêm também um papel primordial no
impulso da reconstrução. É o que acontece em Reims
com Adalberão, que "nos primeiros tempos da sua
promoção se ocupou muito das construções da sua
igreja. Abateu inteiramente as arcadas que, estendendo-
se desde a entrada quase até um quarto da basílica, a
cortavam até ao cimo, de maneira que toda a igreja,
embelezada, adquire maior extensão e uma forma mais
conveniente. Ele colocou, com as honras que lhe eram
devidas, o corpo de S. Calisto, papa e mártir, mesmo à
entrada da igreja, isto é, num lugar mais aparente, e aí
elevou um altar com um oratório muito bem disposto para
aqueles que aí viessem orar. Decorou o altar-mor de cruz
de ouro e envolveu-o com uma grade esplendorosa [...]
Iluminou esta mesma igreja por meio de janelas onde
estavam representadas diversas histórias e dotou-a de
sinos bra- mantes à semelhança do trovão." Na
sequência de tais trabalhos, as cerimónias de
consagração eram faustosas, pelo menos nos grandes
edifícios.
Este texto de Richer sobre Adalberão ilustra a febre de
construção que se apodera das altas esferas da
sociedade em torno do ano Mil. Assim, o século X e o
primeiro quartel do século XI aparecem doravante
claramente como um período de prosperidade cultural e
rico de experiências, no decurso do qual são
estabelecidas as estruturas políticas, religiosas e sociais
que preparam a Idade Média feudal. Se a Antiguidade
continua presente na cultura desta época, literária ou
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

artística, a paisagem monumental está então em vias de


mudar. As fontes dão disso testemunho, mas, mais ainda,
as descobertas da arqueologia e da história da arte
fornecem novos métodos de interpretação. Estes definem
a existência, no decorrer do século X, de uma arte pré-
românica, claramente diferenciada da arte caroííngia e
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 109

Felizmente, os nossos conhecimentos no domínio da


arquitectura religiosa são mais bem fornecidos, pois o
número de monumentos conservados é importante. A
organização das comunidades eclesiásticas está na
origem destas construções. Richer, monge de Saint-Rémi
de Reims, recorda que, no último terço do século X, o
arcebispo de Reims, Adalbéron, pede aos cónegos que
vivam em comunidade — deixando de viver, como antes,
em casas particulares, onde se ocupavam unicamente
dos seus assuntos pessoais. Este requerimento obriga a
definir um lugar de vida comum e uma regra. A fundação
da abadia de Cluníaco em 910 por Guilherme II da
Aquitânia, em terras borgonhesas que são propriedade
sua, é uma das manifestações mais significativas desta
renovação monástica. Cluníaco será um grande centro
renovador na observância da antiga regra beneditina e o
mosteiro libertar-se-á de toda a ingerência secular ou
episcopal com homens como Mayeul ou Odilão, que
exercerão uma influência considerável no Ocidente. A
abadia tecerá uma rede de dependências monásticas
através de toda a França e o seu exemplo propagar-se-á
rapidamente.
As reconstruções medievais ou modernas fizeram
desaparecer, pelo menos parcialmente, um bom número
de igrejas maiores do século X, como a catedral de
Chartres de Fulbert, a de Orleães, a abadia de Saint-
Aignan igualmente em Orleães ou, no Meio- -Dia, Saint-
Victor de Marselha ou ainda as grandes abadias do
Sudoeste. No plano arquitectónico, na maior parte dos
casos, as torres e as criptas são os únicos vestígios deste
período. Com efeito, um dos elementos de maior
importância da arquitectura no Ocidente a partir do século
IX é a introdução da cripta, segundo santuário
subterrâneo ou meio-enterrado que reproduz geralmente
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

o plano da ábside superior. Destina-se a receber relíquias


e um culto particular.
O tipo de cripta mais corrente apresenta uma sala
única de paredes arredondadas que traduzem a curva da
ábside e que é compartimentada em três naves com
colunas e capitéis em que assentam abóbadas de
arestas. A generalização das criptas responde igualmente
à preocupação de valorizar o edifício religioso. Na
Borgonha, os modelos sobrepostos de criptas inferiores e
superiores vão resultar na Rotunda de Saint-Bénigne de
Dijon. Por vezes, acrescenta-se-lhe uma confissão, como
em Saint- -Aignan de Orleães, que pode tomar a forma de
uma segunda sala como em Saint-Avit de Orleães. Em
Clermont-Ferrand encontramos ábsides ou pequenas
capelas que evocam a ideia do deambulatório com
capelas irradiantes. A expansão deste sistema em Saint-
Martin de Tours constituirá o grande grito da grande
arquitectura do final do século XI e XI1 nas igrejas de
peregrinação. O cuidado de que é alvo toma formas
diferentes segundo as regiões, como testemunha a série
de ábsides de Saint- -Michel-de-Cuxa (situado na zona
oriental dos Pirenéus). As naves da igreja são separadas
pór grandes arcadas e geralmente cobertas em madeira;
só recebem uma abóbada no final do nosso período.
Infelizmente, a maior parte das vezes não conhecemos
a arquitectura religiosa do século X através de edifícios
menores cuja nave e ábside são rectangulares, sendo
esta de dimensão menor que a nave. Restam mesmo
assim alguns edifícios maiores elevados nesta época, de
entre as quais a igreja abacial de Cluníaco II, construída
por volta de 963-981 e que apresenta uma das ábsides
escalonadas, um transepto bastante estreito, bem como
uma nave central com naves laterais. Esta igreja obedece
a um tipo de planta que foi retomado por outros monu-
mentos religiosos no século XI. A igreja de Saint-Vorles de
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 111

Châtillon-sur-Seine, com a sua elevação por andares,


responde admiravelmente ao modelo de Cluníaco. Com
outras proporções, a Basse-Oeuvre de Beauvais, que
está a ser reconstituída lentamente graças a pesquisas
recentes, possuía três naves e três ábsides. Apresentava
uma elevação bastante simples de paredes dotadas de
grandes janelas que iluminavam a nave e as naves
laterais e correspondia a certas características das igrejas
carolíngias. A Ilha de França capetiana possui algumas
construções interessantes edificadas por volta do ano Mil,
sendo lima delas a igreja abacial de Saint-Germais-des-
Prés, que teve um papel importante na difusão da
primeira escultura românica e das formas arquitectónicas
do campanário-pórtico.
Todas estas experiências e estas realizações definem
realidades regionais que padecem de demasiadas
lacunas para que se possa apresentar o quadro completo.
Todavia, conduzem à arquitectura românica propriamente
dita que aparece durante a primeira metade do século XI.
A escultura de Saint- -Germain-des-Prés ou dos edifícios
de Orleães, a arquitectura normanda, os primeiros
ensaios de construção de abóbadas (substituindo as
antigas basílicas de cobertura de madeira), os con-
trafortes e o aparelho que vemos já plenamente
elaborados em Saint-Jean-Baptiste de Argenteuil são
outros tantos marcos que permitem já considerar alguns
destes edifícios como românicos. Ao norte,
nomeadamente nas regiões em contacto com o mundo
germânico, os monumentos mantêm-se com sólido
madeiramento, apresentam tribunas maiores e recebem
uma iluminação abundante de tipo "paleocristão". Ao sul,
pelo contrário, os pedreiros dotam os edifícios de
abóbadas, fechando-os e decorando-os com arcaturas
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

exteriores: a primeira arte românica meridional foi


igualmente preparada pela arquitectura do século X.
Em termos económicos e financeiros, se as esmolas
contribuem para o relançamento da arquitecura religiosa,
da mesma forma que o progresso das técnicas agrícolas
que permite guardar o excedente das colheitas sob a
forma de moedas e depois investir esse ganho, o
mecenato dos príncipes fornece o essencial do tesouro
das abadias e das igrejas. Favorece assim o finan-
ciamento das construções. Todo o senhor sente a
necessidade de se afirmar por meio de um apoio material
e público às igrejas. E o caso dos príncipes capetianos,
muito generosos para com Chartres, ou dos senhores
normandos. Os elogios fúnebres propagam estes favores.
Por vezes o contributo é pontual, mas no Mont-Saint-
Michel, por exemplo, é regular. Em geral, os levavam
ambos uma vida ascética e respeitavam a regra do ce-
libato.
Foi assim que o espírito de Cluníaco, não obstante as
diatribes e os requisitórios dos seus adversários,
penetrou em mundos longínquos. Também modelou as
manifestações religiosas da sua época. E que a abadia
borgonhesa se havia tornado um mundo único, uma
totalidade viva: tal como o seu modo de vida, a sua arte
dava testemunho de uma espiritualidade nova e exigente.
Notas
1
Este documento pertence à Biblioteca Vaticana (ms.
latino 68S0). Foi redigido na sequência da visita a Cluny,
em 1031, do abade de F arfa, Hugo.
2
A planta de Saint-Gall elaborada, após o concilio de
Aachen (Aix-la-Chapelle 816-817), na abadia de
Reichenau perto de Constança, representa um mosteiro
ideal, com a sua igreja abacial única (com 103 metros de
comprimento), as suas qfficinae (edifícios conventuais),
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 113

os seusjardins e as suas construções económicas.


Durante séculos, a disposição dos edifícios claustrais
será decalcada dos conceitos elaborados pouco antes
em Aachen sob a direcção de Bento de Aniane e de
Heito, bispo de Basileia e abade do mosteiro de
Reichenau.
3
Esta regra, que define o desenrolar da vida
comunitária e reduz as exigências ascéticas ao mínimo
dos mínimos, regeu a vida monacal ocidental durante
longos séculos. Em França, ela opõe-se, desde o século
VIII, à regra bem mais ascética, logo mais difícil de
suportar, do missionário irlandês Columbano.
4
Pedro, o Venerável, acrescentou em 1132a obrigação
de celebrar uma terceira missa quotidiana em honra da
Virgem.
5
Cf. a obra de P.-R. Gaussin, L'Europe des Ordres et
des Congrégations, Saint-Étienne, CERCOM, 1984, p.
82.
6
Georges Duby, "Économie domaniale et économie
monétaire. Le budget de l'abbaye de Cluny entre 1085 et
1155", Annales ESC, VII, 1952, pp. 161-162.
7
Querela das Investiduras: conflito que opôs o Papa ao
imperador germânico, nos séculos XI e XII, a propósito da
investidura dos abades e dos bispos. Desde os
Carolíngios, a investidura era conferida pelo menos
refúgio protector do que lugar de vida comunitária. Ali se
penetra como numa cidade; uma vez franqueado o portal
barroco, chega-se a uma comprida praça rectangular,
ladeada de construções iluminadas de pinturas de
trompe-l'oeil. Diante da fachada ameada da abadia que
fecha a praça, uma fonte de água cristalina convida a
meditar sobre a duração e a fidelidade. No claustro,
magnífico edifício flamejante do início do século XIV, os
onze fios de água que alimentam o lavatório dos monges
e o cor-de-rosa velho da pedra conferem ao local uma
paz de qualidade excepcional. Na cave dos monges,
continua a pairar o odor do vinho... Construída quando
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

estava a terminar a formação territorial da Catalunha,


Santes Creus afirma certezas com uma ventura tranquila.
Mas é em Montserrat que bate o coração da
Catalunha, é aí que a sua alma encontra refúgio quando a
história se torna adversidade. Surgindo sobre a margem
direita do Llobregat, impenetrável, de uma alvura
inquietante ao luar, a montanha cuja forma faz pensar nos
dentes de uma serra guarnece a floresta vertiginosa com
as suas torres e os seus picos. "Nem o pincel nem a pena
podem descrever as perspectivas que ela oferece a quem
aí se aventure. Alinhamentos de cilindros e de cones de
dimensões variadas, mais ou menos aproximados,
deixando o lugar suficiente somente para que a natureza
os decore e os debrue de finas grinaldas verdes..." —
extasiava-se em 1806 o padre Jaime Villanueva1. Muitas
vezes dissimulado no nevoeiro, do qual emerge para nele
desaparecer de novo, o maciço de Montserrat é um
mundo estranho e fantástico. Richard Wagner aí foi
buscar o modelo de Montsalvat onde os cavaleiros da
Távola Redonda, no termo das suas aventuras, celebram
o serviço do Santo Graal.
Na parte oriental do maciço, há muito povoado de
ermidas, na proximidade da "santa gruta" onde alguns
pastores descobriram uma estátua da virgem negra,
Ripoll construiu em 1025 um priorado. Passando à forma
de abadia em 1409, tomou-se, no final da Idade Média,
um local de peregrinação internado- nal e um centro
cultural de primeira ordem. Aí foi instalada uma tipografia
em 1499; o futuro papa Júlio II, protector das artes, foi o
seu abade durante o seu exílio nos últimos anos do
século XV e, no final do século XVIII, a biblioteca da
abadia possuía 8500 volumes e 322 manuscritos.
Montserrat encarna sobretudo a vontade de viver de um
povo muitas vezes maltratado pela história recente.
Destruída pelas tropas de Napoleão em 1811, restaurada
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 115

em 1844, a abadia é hoje o santuário nacional dos


Catalães, que falam com ternura da sua Moreneta, uma
estátua de madeira polícroma do século XII. Durante os
anos sombrios do franquismo, Montserrat esteve à frente
no combate pela defesa dos valores culturais e das
liberdades cívicas; quando a polícia de Franco bloqueava
as vias de acesso à abadia onde se achava reunida a
clandestina Assembleia da Catalunha, Montserrat estava
realmente isolada do mundo. Hoje, aí se continua a ouvir
a Escolania, um dos mais antigos e mais belos corais
infantis que existem.
Se nos interrogarmos sobre o momento e os motivos
de um florescimento monástico cujos traços se mantêm
tão vivos, somos reconduzidos às próprias origens da
Catalunha. Logo a seguir à "libertação" pelos exércitos de
Carlos Magno da região compreendida entre Pirenéus e
Barcelona (785-803), a futura Catalunha é uma terra
despovoada e de novo bravia. Os documentos da época
evocam extensões "desertas", reino do "terror e da
solidão imensa", precisamente boas para a pastagem de
"rebanhos de onagros, de cervos e de outros herbívoros".
Os monges foram dos primeiros a aventurar-se nessa
região. A fundação de abadias acompanha a lenta
descida para as regiões baixas das populações até então
amontoadas nos altos vales dos Pirenéus; ela encoraja e
enquadra a empresa de arroteamento que os textos
designam pelo nome evocativo de "ruptura".
A progressão da frente de colonização para oeste e
para sul é em cada etapa assinalada por novas
fundações. A primeira abadia conhecida é a de Arles-sur-
Tech em 778; a partir de 812, o movimento alcança o Sul
dos Pirenéus, com a fundação de igrejas e o novo estado
de espírito que revelava essa ostentação de riquezas. O
seu planfeto Apologia ad Guillelmum (Apologia dirigida em
1124 a Guilherme, abade de Saint-Thierry perto de
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Reims) é directamente dirigida contra a arte cluniacense


"As paredes da igreja resplandecem, mas os pobres
sofrem! (...) As suas pedras estão recobertas de ouro,
mas as suas crianças estão nuas! (...) Que fazem todos
esses monstros nos claustros, esses macacos impuros,
esses leões selvagens? Se todas estas inép- cias não
provocam a vergonha, ao menos que se recuasse perante
os gastos!"
A arte cluniacense, carregada de toda uma significação
intelectual, era concebida para contribuir para a
edificação das almas. Houve quem preferisse considerá-
la como uma fonte de distracção, e até de escândalo. A
influência da instituição sobre o mundo religioso começou
a declinar a pouco e pouco, até se reduzir a nada. Resta
dizer que o mosteiro, através da personalidade notável de
alguns dos seus abades, havia marcado o seu tempo até
no desenvolvimento dos assuntos políticos. Quando da
querela das Investiduras7, foi o abade Hugo, presente em
Canossa, que soube aplacar o Papa Gregório VII, antigo
cluniacense, e levá-lo a conceder o seu perdão ao
soberano penitente, de que era padrinho. A irradiação de
Cluníaco estendera-se mais longe ainda: Hugo de Semur
tinha vivido na Hungria, na qualidade de legado do Papa
junto do rei André 1. Este fundou em 1055 o mosteiro de
Tihany: beneditinos de inspiração cluniacense coabitavam
aí com monges de obediência bizantina. E, quando em
1091-1092, Ladislau, o Santo, concluiu uma aliança com
Henrique IV, foi severamente chamado à ordem por uma
cartado Papa Urbano 11, que fora monge de Cluníaco. O
sucessor de Ladislau, Kolornan, vergou-se às exigências
papais, nomeadamente no que se referia ao celibato dos
sacerdotes, revigorado pela reforma gregoriana. Nada
atesta melhor a influência cluniacense sobre essas
regiões longínquas da bacia dos Cárpa- tos do que a
piedosa lenda de Emérico e de Mauro — um, filho de rei,
A. PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 117

o outro, monge, que se tornará mais tarde bispo de Pécs:


cia administrativa certa: "A ordem não produz na
proporção da sua importância."
Durante o abaciado de Hugo de Semur (1049-1109),
Cluníaco tinha todavia vivido na opulência: da Provença,
de Itália, da Península Ibérica sobretudo, o ouro e a prata
afluíam para os cofres. Mas esta riqueza não fora
capitalizada. "Mais vale" — dizia o abade Hugo —
"despender o ouro e a prata do que guardá-los intactos e
todos fulgurantes." Ele esperava vivificar esses recursos
destinando-os a obras de caridade — centenas de pobres
tinham eleito para seu domicílio as redondezas de Cluny
—, mas também ao conforto dos seus monges, que,
desligados das preocupações materiais, podiam entregar-
se sem reservas á prática litúrgica e à meditação.
Georges Duby tira desta política a mais esclarecedora
das conclusões: "Como se estava bem provido de
numerário, ganhou-se o hábito de comprar regularmente
no exterior, não apenas, como outrora, o vestuário e
alguns víveres, mas o pão e o vinho quotidianos [...]
Revolução completa: numa geração, a comunidade
cluniacense substituiu a economia dominial pela
economia monetária [...] Esta mudança produziu-se no
final do século XI e no início do século Xll [...] O remédio
mais seguro teria sido regressar à frugalidade de outrora,
renunciar às belas vestes, à alimentação abundante e
variada dos refeitórios, fechar mesmo a estância de obras
da basílica ainda inacabada. Mas era impossível romper
brutalmente com hábitos que os santos abades do século
XI tinham favorecido e quando Pedro, o Venerável —
confrontado com uma primeira crise a partir de 1125 —,
quis reprimir muito moderadamente um luxo supérfluo,
muitos dos irmãos puseram-se a murmurar6.
O luxo das igrejas e dos conventos cluniacenses
acabou por provocar a ironia, e depois a vingança, das
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

outras ordens. Bernardo de Claraval, chefe da ordem


cisterciense, foi o adversário mais determinado dos
monges de Cluníaco: dotado de uma força de convicção
inaudita, baseada numa retórica fervorosa mas também
na arte da sátira, Bernardo reprovava a decoração das
AS ABADIAS DA CATALUNHA 123

Sant Esteve de Banyoles, no condado de Besalu. O


apogeu da vaga de construções situa-se entre 880 e 980,
no momento em que ganham raízes as dinastias condais
a caminho da soberania. Depois do ano 930, dois rosários
contínuos de abadias desfiam-se ao longo do litoral e
acompanhando o curso do Llobregat, durante muito
tempo fronteira da cristandade catalã. Entretanto, a zona
intercalar é por sua vez semeada de abadias, depois de o
conde Guifredo, o Peludo, ter empreendido a repovoação
do condado de Ausona-Vic, vasto deserto em pleno
coração das suas possessões. O movimento de
fundações começa a enfraquecer no século XI e algumas
abadias desaparecem, demasiado frágeis
economicamente ou por falta de vocações em número
suficiente. Em 914, cinco abadias do condado de Urgell
não têm "nem abade nem monge para assegurar o
serviço de Deus, nem para trabalhar as terras e os
vinhedos, nem para reparar as casas em ruínas".

Povoamento e defesa
No final do século XI, os condes servem-se do seu
direito de patronagem — direito da família do fundador —
para obrigar as grandes abadias a submeterem-se a
abadias exteriores que se propõem reformá-las. Durante
mais de um século, de 1070 a 1131, Ripoll e quinze
outras abadias são reduzidas ao estado de priorados de
Saint-Victor de Marselha; outras tornam-se filiais de
Moissac, Lagrasse ou Saint-Pons-de-Thomières. Após
1130, põe-se em marcha a expansão do novo
monaquismo — cistercienses e cartuxos — na Catalunha
"nova", reconquistada por Ramon Berenguer IV entre
1137 e 1149.
A escolha dos locais novos manifesta uma vontade
evidente de continuidade em relação aos primeiros
AS ABADIAS DA CATALUNHA 124

séculos do cristianismo: por toda a parte onde tal é


possível, a abadia é construída no local de uma antiga
igreja visigótica arruinada pela invasão muçulmana. Em
Banyoles, os monges instalam-se onde "outrora tinha sido
fundada uma igreja". Em Arles-sur-Tech, é no interior de
antigas termas romanas que se inscreve esta vontade de
restauração. A iniciativa da fundação cabe a simples
particulares, muitas vezes trânsfrugas hispanique fugiram
à dominação muçulmana. O fundador de Aries é um certo
Castella, "vindo da região de Espanha". Na origem de
Saint-Michel-de-Cuxa, sete sacerdotes e vários leigos
vindos de Urgell. Nos condados de Pallars e Ribagorça,
os bispos tomaram directamente a seu cargo as
fundações, segundo uma tradição visigótica que reserva-
va às abadias o serviço pastoral dos fiéis. Em 807, o
sacerdote Espanell reuniu em seu redor cinco clérigos e
transforma numa abadia a sua pequena igreja de Gerri.
A partir de 880, porém, no momento em que ganham
raízes as dinastias condais (dinastias de condes
indígenas), a erecção de abadias torna-se um elemento
essencial da política de repovoamento e de defesa
fronteiriça dos condes hereditários e a escolha dos locais
responde doravante a preocupações políticas ou
militares. Todavia, as abadias condais continuam a ser
antes de mais fundações familiares: lugar de sepultura
dinástica e de oração permanente pelos antepassados.
Quando funda sucessivamente Ripoll (880) e Sant Joan
de les Abadesses (885), Gui- fredo cede às novas
abadias o seu filho Radulfo e a sua filha Emma; apenas
Emma se tornará abadessa. Finalmente, a abadia,
fundação familiar, pode tornar-se o local de uma
conversão pessoal: em 1035, o conde Guifredo de
Cerdagne retira-se para a inacessível abadia de Saint-
Martin-du-Canigou que tinha fundado em 1007; ali viveu
AS ABADIAS DA CATALUNHA 125

catorze anos antes de ser sepultado num túmulo


escavado pelas suas próprias mãos na rocha.
Durante algumas décadas, o fundamento da vida
comunitária continua a ser o pacto monástico tirado da
regra de S. Frutuoso de Braga, em uso em toda a
Espanha antes da conquista muçulmana. O acto
constitutivo é um contrato escrito entre o abade e os
monges: o abade abandona o seu património à
comunidade e os seus companheiros prometem-lhe
obediência. O pacto é renovado em cada eleição abacial
e todo o novo monge deve
OS CONSTRUTORES DE CLUN Y 126

Vários mosteiros estrangeiros aderiram a este movimento


de reforma. Tomou corpo uma congregação, cada vez
mais ramificada, cada vez mais poderosa. Nos séculos XI
e XII, esta rede estendeu-se à Alemanha (do Sul e do
Centro principalmente), aos Países Baixos, à Inglaterra
(Thetford, Bermondsey, Lewes), à Itália e ao nordeste e
noroeste da Península Ibérica, até aos limites da
reconquista cristã desta zona ainda parcialmente ocu-
pada pelos árabes. Na Itália, comunidades prestigiosas
como a de Pontida junto do lago de Como e de S. Pedro
do Céu de Ouro, em Pavia, tornaram-se priorados de
Cluníaco. Até em Roma S. Lourenço, S. Pedro fora de
Portas e Santa Maria no Aventino sofreram a influência
cluniacense.
No seu apogeu, a ordem cluniacense contava entre
1100 e 1200 dependências. Esta nebulosa que se
astendia à Europa ocidental inteira compunha-se de
priorados muito numerosos, conventuais ou não,
estabelecimentos estreitamente sujeitos à casa-mãe.
Existiam mais de mil em França, uns quarenta na Itália e
em Inglaterra, uns trinta na Península Ibérica 5. Cinco
deles tiveram uma importância particular: La Charité-sur-
Loire, Souvigny, Sauxillanges, Saint-Martin-des-Champs,
em Paris, e Lewes, em Inglaterra. Quanto às abadias
(quinze em França), algumas viam o seu abade
designado por Cluníaco, outras, ditas "ordenadas",
elegiam o seu abade mas deviam em seguida obter a sua
confirmação, como era o caso de Vézelay. A ordem dis-
punha finalmente de alguns mosteiros de mulheres,
muitas vezes também com uma casa de homens.
Estas dependências obtinham para a casa-mãe
substanciais rendimentos, tanto em géneros como em
numerário. Um registo de 1321 informa-nos de que a
província que pagava mais impostos era a do reino de
AS ABADIAS DA CATALUNHA 127

França, que pagava 8956 libras. A seguir vinham Poitu


(844 libras) e a cidade de Lião, ainda não integrados no
reino (776 libras), e, no estrangeiro, os mosteiros .
ingleses (629 libras), ibéricos (201 libras), alemães (66
libras) e lombardos (7 libras). A disparidade dos valores
revela uma carên- gradas ao trabalho manual, ao passo
que a liturgia se estendia por mais de três horas.
Mas esta sábia repartição, este feliz equilíbrio pregado
pelo fundador da ordem e consolidado por séculos de uso
monástico acabaram por ser progressivamente alterados.
Já S. Bento de Aniane, o austero reformador carolíngio
(concílio de Aix- -la-Chapelle, 816-817), tinha alongado o
ofício divino, aumentando o tempo reservado à salmodia.
Mas Cluníaco irá muito mais longe: por volta de 1100, a
duração total do ofício atingia seis horas e meia. Esta
liturgia era essencialmente sálmica: em certos dias, a
comunidade chegava a recitar 215 salmos! Cantava-se
todos os dias o ofício de todos os santos; celebrava-se
longamente a memória dos mortos. Com as duas missas
conventuais cantadas, a celebração dò ritual acabava por
ocupar a maior parte do dia dos monges 4. Não haveria
nisso um risco para a vida interior do religioso
cluniacense? Não seria ele presa do perigo do
formalismo? Não faltam testemunhos acerca da lassidão
que provocava a multiplicidade dos ofícios. O próprio
Pedro, o Venerável, deplora esta sobrecarga que
confessa ser "odiosa a muitos" (odiosa pluribus). Em
nenhuma outra parte se leu o Evangelho com este "grau
heróico" (a expressão é de Dom Philibert Schmitz, na
Histoire de l 'Ordre de Saint Benoit, Maredsous, 1942).
Este movimento colectivo que, no dizer do cronista
Udalrico de Zell, o autor da obra Três Anciennes
Coutumes de Cluny, redigida em 1077, pesava a alguns
como uma chapa de chumbo, duplicava-se por uma
espiritualidade individual: as missas privadas, celebradas
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

no fim das matinas, mais não fizeram que aumentar de


número com o correr dos anos, de tal maneira que em
1120 cada monge celebrava uma missa privada por
semana. Esta prática explica em parte o grande número
de altares que se encontram nas igrejas da ordem e, no
plano arquitectónico, a quantidade de absidíolos que
rodeiam a capela-mor.
Fosse ou não contestada do interior, a espiritualidade
cluniacense difundiu-se, a partir do século X, por toda a
Europa.
subscrevê-lo. Mas a regra de S. Bento impõe-se em
breve a partir das abadias mediterrânicas; atestada no
ano 812 em Sant Cli- ment de Codinet, preside desde
meados do século X à vida de todas as abadias.
A influência directa de Cluníaco parece ter sido
insignificante na Catalunha; a abadia borgonhesa nunca
aí possuiu senão dois modestos priorados. O espírito
reformador conquistou a região por intermédio das
abadias languedócias já reformadas por Cluníaco, em
particular Moissac. Em 965, o abade de Lézat, Gari, foi
chamado a dirigir Cuxa e fundou uma pequena
congregação de cinco abadias não-pirenaicas que se
desfizeram quando da sua morte em 998. No século XI,
Oliba, abade de Ripoll e de Cuxa, conseguiu reagrupar a
quase totalidade das abadias da Catalunha sob a sua
autoridade, mas, desprovido de qualquer elo institucional
e baseado unicamente no prestígio de Oliba, este
agrupamento não lhe sobreviveu. Foi de uma
enxameação a partir de Fontfroide e Grandselve que
nasceram as abadias cistercienses da Catalunha nova,
Poblet em 1149 e Santes Creus em 1153.
Entre 850 e I0502, o monaquismo exerceu uma
influência considerável sobre a Catalunha em formação. A
reorganização da vida religiosa foi confiada às abadias,
tendo várias delas fundado filiais, destinadas a assegurar
AS ABADIAS DA CATALUNHA 129

o serviço paroquial. Os bispos não devem ter apreciado


esta situação paradoxal; a partir de 1050, por várias
ocasiões transformaram uma abadia recentemente
fundada numa colegiada de cónegos, mais adaptada à
"cura das almas", cura animar um.
As abadias desempenharam um papel de pioneiras no
repovoamento e na valorização das terras libertadas. Em
812, um certo Bonito, "homem devoto", consegue que lhe
seja cedida, pelo conde de Gerona e Besalu Odilo, uma
terra deserta próxima do lago de Banyoles. Depois de a
ter desbravado "com o suor do seu rosto" ali edifica uma
igreja, dedicada a Santo Estêvão, e algumas
dependências; a seguir reuniu uma comunidade de
monges da qual se tornou o primeiro abade. Em 822, o
imperador Luís, o Piedoso, concede o seu diploma de
imunidade à nova abadia e coloca sob a sua protecção
um património que foram os próprios monges a arrancar
ao deserto. A abadia de Sant Julia dei Munt "trouxe ao
cultivo uma terra inculta e deserta" e as religiosas de
Santa Cecília d'Elins "puseram em cultivo uma terra
inculta". Como os terrenos incultos pertencem ao fisco, os
monges têm de pedir ao conde autorização para aí se
instalarem.
No fim do século IX, os condes hereditários chamam a
si as coisas. Guifredo, o Peludo, funda as abadias irmãs
de Ripoll e Sant Joan; ao apoiar-se nelas, aspira a
repovoar os vastos territórios desabitados no coração das
suas possessões. Em menos de trinta anos, a abadia de
Sant Joan, sob o abadado de Emma, filha do conde,
assegura o repovoamento do vale: 17 lugares habitados
são fundados entre 887 e 913 e mais de um milhar de
pessoas instalam-se neles.
Hoje em dia, os historiadores têm tendência a reduzira
importância da colonização monástica; os monges, nos
preâmbulos dos diplomas régios que redigiam eles
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mesmos com frequência, exageraram sem dúvida o seu


papel e a documentação escrita não dá notícia de
numerosos desbravadores anónimos. Nem por isso deixa
de ser verdade que os monges contribuíram para a
revalorização da região: no século XII, os cistercienses
oiga- nizam a trasnsumância ovina das planícies do Ebro
para as montanhas pirenaicas e é revelador que os
cartuxos do Scala Dei tenham deixado o seu nome ao
vinhedo do Priorado.
As abadias são importantes centros de cultura,
instituindo- -se mesmo como dos principais da
Cristandade. Com 246 manuscritos em 1057, a biblioteca
de Ripoll é uma das primeiras da Europa. Fora os textos
litúrgicos e ligados à Escritura Sagrada, contém
gramáticas, glossários (latim-grego-hebreu), clássicos
latinos, obras de história, tratados de cômputo (cálculo
das festas móveis, como a Páscoa), medicina, geometria
e música. A originalidade da sua situação geográfica
predispõe a Catalunha a ser uma terra de encontro.
Separada politicamente do resto da do com extremo rigor,
era de uma solidez tal que o braço sul do transepto, única
parte poupada pela destruição do século XIX, se mantém
ainda de pé sem se ter movido uma polegada, nove-
centos anos após a sua construção.
Dois outros traços de arquitectura impressionaram, de
um ponto de vista mais profano, os contemporâneos: a
claridade e o asseio. Os mosteiros cluniacenses abrem-se
amplamente ao ar e à luz. Encontram-se aí duas
canalizações, uma para a água limpa, a outra para as
águas usadas. Foram instalados, com a mesma
preocupação de higiene, latrinas e banho de estufa. A
enfermaria dispõe de uma sala para a limpeza da louça,
de uma outra para a lavagem dos pés, de uma terceira
para o arranjo dos defuntos... Este humanismo de todos
os dias equilibra o que a liturgia podia ter de grandioso.
AS ABADIAS DA CATALUNHA 131

Na sua Vita Odilonis, o monge-poeta Jotsaud, ao


descrever, por volta de 1050, as construções de Cluníaco
II, usa com efeito frequentemente as palavras "glória",
"ornamento", "nobreza", "decoração". Isso mesmo se
aplica ainda mais à nova abacial e ao seu claustro,
ampliado pelo abade Pons de Melgueil (1109-1123). As
indicações dos costumes indicam tudo o que, num dia de
festa se pode acrescentar ao esplendor da igreja e do seu
mobiliário: cortinados, tapetes, círios, candeeiros,
relicários e outros objectos de arte. Tudo erajeito para
elevar a alma e mantê-la num estado de satisfação e de
quietude propícia à meditação: Cluníaco tornara-se o
centro de uma vida monástica irradiante, que ia modelar
em profundidade a vida espiritual do século.
Em 910, a abadia contava apenas doze monges. São
quatrocentos e cinquenta em 1156, no fim do quarto
grande reinado abacial, o de Pedro, o Venerável: a
progressão do efectivo foi constante até meados do
século XII. Esta comunidade impõe a si mesma um fervor
litúrgico sem igual, pois a mais alta função de um monge
beneditino consiste em glorificar Deus por meio da
oração. A regra de S. Bento 3, elaborada pelo fundador da
ordem por volta do 535 no Monte Cassino, ordena-lhe
ainda que se entregue ao trabalho e à lectio divina. Esta
leitura das coisas divinas duravacerca de quatro horas,
seis horas eram consa- designada como Cluníaco III,
apareceu aos contemporâneos como a realização na terra
da Jerusalém celeste.
Sem dúvida que o seu plano e a sua elevação terão
sido longamente amadurecidos por Hugo, assistido pelos
monges Héze- lon e Gauzon. Encontra-se em La Vie de
l'Abbé Hugues, da autoria de Hildebert de Lavardin, bispo
de Mans e de Tours (1055-1133), a narrativa do milagre
que esteve na origem do empreendimento. S. Pedro
apareceu uma noite a Gauzon, que estava semi-
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

paralisado, e ordenou-lhe que fosse à procura do abade


Hugo: tinha de o persuadir a construir uma nova igreja
abacial. Gauzon seria recompensado com uma cura total
e sete anos de vida suplementares. O monge viu mesmo
S. Pedro medir, com a ajuda de cordae (cadeias de
agrimensor), o comprimento e a largura da nova igreja.
Hugo, tocado pelo restabelecimento de Gauzon, acedeu
ao seu voto e, "durante vinte anos, ajudado por Deus,
erigiu uma basílica em que não se sabia o que mais
admirar, se o seu tamanho se a arte dos seus
ornamentos".
Cluníaco III oferecia daí em diante aos monges um
vasto espaço, que lhes evitava misturar as ordens
(monges, conversos ou servos que se consagravam aos
trabalhos manuais) e garantia uma perfeita evolução das
procissões, sem confusão das estações exigidas pela
oração litúrgica. O coro, em meia-rotunda, como o que
subsiste em Paray-le-Monial, era rodeado de um
deambulatório majestoso que valeu ao edifício o seu
sobrenome de deambulatorium angelorum
("deambulatório dos anjos"). Dava por sua vez para
capelas resplandecentes. Dezassete absi- díolos
guarneciam a capela-mor, entrecortados por dois tran-
septos dispostos à maneira de uma cruz da Lorena.
Quatro possantes torres dominavam a parte oriental do
edifício. Na direcção oeste, uma nave central imensa
estendia as suas cinco naves laterais, quíntupla avenida
herdada das maiores basílicas romanas.
Com a sua galilé ocidental, a igreja abacial media mais
de 187 metros de comprido. Este grandiosos habitáculo,
construí- península depois da sua "libertação" pelos
Francos, continua todavia fiel à herança cultural
visigótica; as obras de Isidoro de Sevilha
(aproximadamente 560-636) constituem a base das
AS ABADIAS DA CATALUNHA 133

bibliotecas e do ensino prestado nas escolas monásticas:


exercícios gramaticais de base etimológica. A influência
franca afirma-se com a adopção da letra minúscula e, no
final do século IX, com a substituição da liturgia de Toledo
pela liturgia franco-romana; é nos scripíoria que são
copiados os novos saltérios e homiliários.
Finalmente, a Catalunha encontra-se em contacto com
o Islão. A estada em Ripoll, entre 967 e 970, do jovem
monge Gerbert d'Aurillac, o futuro papa Silvestre II, atesta
o papel de intermediário desempenhado pelas abadias
catalãs na difusão da ciência árabe na Europa. O seu
biógrafo, Richer, diz-nos que ele estudou ali "duma
maneira aprofundada e com êxito as matemáticas" e, na
realidade, o conjunto das ciências exactas: aritmética,
geometria, astronomia e música, então ignoradas no resto
da Europa. Vários manuscritos da biblioteca de Ripoll são
traduções de tratados científicos árabes e a presença de
glosas à margem prova que certos leitores — talvez
monges refugiados da Andaluzia — utilizavam o árabe
como língua quotidiana.
As abadias também são lugares de criação artística.
Do scriptorium de Ripoll provêm duas Bíblias ilustradas
que são sem dúvida os dois manuscritos mais ricamente
decorados do século X. Os desenhos à pena que as
ilustram são um documento excepcional sobre a
civilização contemporânea: soldados em combate,
pedreiros e canteiros, convivas em plenos festejos, é um
fresco da sociedade catalã o que propõem. Pode mesmo
ai ver-se beber regaladamente pelo purro (garrafa com
um longo bico)! Ripoll deu igualmente nascimento a uma
importante produção literária, tanto poética como
historiográfica: a Breve Histoire du Monastère de Ripoll é
o primeiro esboço de história narrativa na Catalunha! Pelo
seu lado, o monge Gotmar de Sant Cugat dei Valles
escreveu por volta de 940 uma história dos reis francos;
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

depois de se tornar bispo de Gerona, dedicou-a ao califa


de Córdova.
A irradiação das abadias estende-se muito para além
da Catalunha e até mesmo da França meridional. Em
978, Cuxa acolhe Romualdo, futuro fundador da ordem
dos Camáldulos, e o doge Pietro Orseolo, que veio expiar
as circunstâncias contestáveis da sua elevação. Ripoll
mantém relações continuadas com Fleury-sur-Loire e os
rolos mortuários3 de abades ou de condes catalães
chegam até Liège.
Finalmente, as abadias tiveram um papel essencial na
formação da própria Catalunha e do sentimento nacional
catalão. Algumas encontram-se muito ligadas às famílias
condais. Ripoll é o local de sepultura das dinastias de
Barcelona e Besalu; após 1150, Poblet torna-se o local de
retiro e o panteão dos condes-reis de Aragão. Os abades
são frequentemente aparentados com as famílias
reinantes: Oliba era conde antes de professar em Ripoll.
Abades e monges são encarregados de missões
diplomáticas e vários abades, promovidos ao episcopado,
criam a instituição tipicamente catalã do bispo-abade, que
se mantém até meados do século XII.
As primeiras formas de reagrupamentos monásticos
que ignoram os limites dos condados prefiguram os
reagrupamentos políticos que irão surgir. Oliba apareceu
como o pai da maior parte das abadias catalãs e Ripoll é
um viveiro de abades e de bispos para o resto da
Catalunha. Reciprocamente, vários bispos renunciam ao
seu cargo para irem acabar os seus dias em Ripoll. Nesta
abadia nasceu à historiografia catalã. A partir dos finais
do século XI, ali são redigidas curtas crónicas que apre-
sentam a história sob uma luz local: os acontecimentos
são ordenados por referência a 801, ano da libertação de
Barcelona, e 985, data da destruição da cidade por lbn
Abi Amin al-Mansur, o senhor de Córdova e o terror dos
AS ABADIAS DA CATALUNHA 135

cristãos ibéricos. Entre 1154 e 1162, a versão primitiva


das Gesta Comitum Barcinonensium, primeira história
nacional catalã, é elaborada. No momento de celebrar a
dinastia, ela une claramente a sua origem à manifestação
de uma hostilidade entre dois povos. A Catalunha, dizem
os monges, nasceu contra os Francos! Eles falam de
uma eficaz, grande construtor. Foi o mestre obreiro
inspirado da segunda igreja construída no local —
Cluníaco 11.
A planta de Cluníaco 11, nivelada desde o início do
século XII para permitir a extensão do claustro, chegou
até nós graças à minuciosa descrição conservada na
costumagem do mosteiro italiano de Farfa 1. A igreja, de
tamanho médio (cerca de 63 metros de comprimento), e
as construções conventuais tinham sido concebidas a
partir do modelo ideal da planta de Saint-Gall 2.
O sucessor de Mayeul, Odilão (994-1048), levou a bom
êxito uma política de expansão da ordem, que se
espalhou primeiro pela França e depois por toda a
Europa. Em 1010, Saint-Jean d'Angély é ligada à
Congregação por um verdadeiro acto da força, contra a
vontade de uma parte dos monges. Em 1016, chamados
pelo bispo Meinwerk de Paderborn, treze monges de
Cluníaco reformam a antiga abadia carolíngia de
Abdinghof. É a primeira fundação cluniacense de Além-
Reno. Outras surgirão no decurso do século XI,
nomeadamente no Sudoeste da Germânia (a actual
região de Bade-Wurtemburg, abadias de Hirsau e de
Alpirsbach), assim como ao sul do Harz (Hamersleben) e
na Turíngia (abadia de Paulinzella), regiões anexadas
pouco tempo antes à civilização cristã do Ocidente.
Finalmente, em 1033, a ordem instala-se em Espanha: os
bispos e o rei de Castela restabelecem a vida regular em
San Salvador d'Ona, sob a direcção de Garcia, um monge
formado na disciplina cluniacense.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Odilão morreu em Souvigny na noite de S. Silvestre de


1048- -1049. Tinha oitenta e sete anos de idade. Tinham
bastado dois abadiados (Mayeul: 948-994; Odilão: 994-
1048) para assegurar ao mosteiro cem anos de vida e de
expansão. Era Hugo de Semur (1049-1109) que ia levar
Cluníaco a franquear o limiar do século XII. Recebeu o
mais notável auxílio que a ordem podia esperar: Afonso
VI, rei de Leão e de Castela, decidiu entregar-lhe uma
renda anual, que permitiu à abadia renovar o seu quadro
de vida e sobretudo dotar-se de uma nova abacial, mais
rica e mais bela do que todas as outras. Esta última
igreja, habitualmente abacial, Cluníaco III. Foi em 1088
que os Cluniacences começaram a construir esta igreja
cujas dimensões só serão ultrapassadas cinco séculos
mais tarde: para tal ter-se-á de aguardar pela catedral de
S. Pedro de Roma, nascida do génio dos grandes
arquitectos italianos do século XVI. A rainha das igrejas
românicas tem pois exactamente novecentos anos.
Os começos, porém, haviam sido bastante modestos.
Em 910, Bernão, abade dos mosteiros jurassianos de
Baume e de Gigny, instalou-se aí com seis monges
vindos dessas duas abadias para uma villa que lhe tinha
sido oferecida por Guilherme, o Piedoso, conde da
Aquitânia. Desde a sua chegada, Bernão propôs-se
construir um novo santuário Cluníaco I — uma igreja de
dimensões reduzidas (35 metros de comprimento), se a
compararmos às vastas abaciais do século anterior, como
Cen- íw/tf/Saint-Riquier, na Picardia, ou Fulda, na
Alemanha central, construídas por Carlos Magno.
O sucessor de Bernão, Odão (924-942), teve um papel
determinante na história do mosteiro: fundador da
espiritualidade cluniacense, não cessou de desenvolver
— como prova o seu livro Occupatio — o paralelo entre
os apóstolos e os monges: a vida do monge deve atingir,
por sete etapas sucessivas, a felicidade angélica (vita
AS ABADIAS DA CATALUNHA 137

angélica) e uma perfeita e eterna intimidade com Cristo.


Segundo Odão, os monges cluniacenses celebram a
Páscoa dia após dia numa igreja que é "a sua Jerusalém
descida dos Céus".
O segundo abade de Cluníaco deixou, além disso, à
jovem abadia um legado de uma importância
considerável: a dispensa que, ligando-a directamente,
sem nenhum intermediário, a Roma, lhe assegurava uma
independência perfeita tanto em relação ao poder laico
como ao do bispo de Mâcon, tentado a impor a sua
autoridade ao novo mosteiro. Seis anos após a morte de
Odon, cento e trinta e dois monges pertencentes ao
mosteiro e,- sem dúvida, aos priorados vizinhos,
apuseram a sua assinatura à confirmação desta dispensa
papal. O ano 948 foi também o primeiro de um longo e
glorioso abaciado: o de Mayeul, organizador dinastia
soberana cujos feitos, o portal da abadia perpetua, ao
mesmo tempo, através da narrativa dos triunfos do povo
eleito.
A Catalunha já não é hoje em dia a que as abadias
ajudaram a nascer há um milhar de anos. Mas ainda é
para essas abadias que se viram os Catalães de Espanha
e de França, tão apaixonadamente ávidos de conhecer as
suas origens e de viver a sua diferença. Por isso nunca
estiveram tão vivas como hoje. Não sendo nem museus
nem refúgios, estão à escuta de um mundo que tem
necessidade delas. A biblioteca mais completa referente à
última guerra de Espanha encontra-se em Montserrat,
que por outro lado acolhe os mais importantes
agrupamentos de jovens. E há uma vintena de anos,
depois de alguns monges de Montserrat se instalarem em
Cuxa, centenas de barceloneses vinham à missa em
França e manifestavam a sua fé no futuro.

Notas
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

1
Sacerdote espanhol que, no decurso do primeiro terço
do século XIX, visitou as principais igrejas de Espanha e
fez, em cartas dirigidas ao seu irmão, a descrição
simultaneamente precisa e crítica dos arquivos, tesouros
e bibliotecas.
2
No decurso destes dois séculos, os condados catalães
libertam-se progressivamente da dependência do reino
franco. O advento de Hugo Capeto marca o termo desta
marcha para a soberania, ao mesmo tempo que os
condados até então independentes começavam a
agrupar-se em torno do conde de Barcelona.
3
Elogio fúnebre enrolado num rolo de madeira, enviado
às abadias com as quais o defunto se achava em
comunidade de orações.

Orientação bibliográfica
A melhor abordagem monumental das abadias catalãs
em língua francesa é fornecida pelas obras das Éditions
du Zodiaque, La Pierre-qui-vire:
* E. Junyent, La Catalogne Romane, 2 vois., 1960.
da autoria de tão grande personagem —
apresentando a gesta de S. Bento de Núrsia foram um
prodigioso instrumento de propaganda, cujo êxito se
não desmentiu ao longo de toda a Idade Média.
Quando os Carolíngios chamam a si os destinos do
mundo ocidental, o monaquismo é sobretudo
beneditino; mesmo tendo as missões irlandesas e
anglo-saxónicas trabalhado antes laboriosamente,
fundando mosteiro atrás de mosteiro, como é o caso
de Luxeuil em 590 ou Bobbio em 613. O modelo
beneditino achou-se imposto sob o impulso de outro
Bento, este de Aniane, no século ix. Quando nos
séculos x e xi se faz uma vigorosa renovação
monástica, os grandes fundadores continuam lá. À
frente de Cluníaco (Cluny), fundado em 910, impõem-
AS ABADIAS DA CATALUNHA 139

se chefes incontestados. O movimento eremítico


renascente vê-se aberto e canalizado por
personagens como Romualdo, Etienne de Muret,
Norberto, Robert d'Arbrissel ou Bruno. Tantas
reformas, tantos retornos à vida apostólica, tantas
fundações: Camaldoli, Grandmont, Prémontré,
Fontevraud, a Grande Cartuxa (Chartreuse). Se
Bernardo de Claraval (Clairvaux) não é o fundador da
ordem cistercience, é o propagador dela. Quanto a
Abelardo, vindo da escola do claustro, funda um
mosteiro dedicado ao Espírito Santo, o Paráclito, e em
breve é eleito abade pelos monges da abadia de
Saint-Gildas-de-Rhuys, na Bretanha. O monaquismo
medieval é pois realmente uma sequência
ininterrupta, mas dependente das condições
históricas, de afirmações de uma vontade de retorno a
uma verdadeira vida apostólica. E isto até ao final da
Idade Média, ainda que este arrebatamento
esmoreça. Mas não nos devemos esquecer de que o
próprio Lutero é um monge: não seria a Reforma um
avatar / de um perpétuo retorno às fontes?

.
"nHã'3e pãzTíí™ o mosteiro é um refúgio
para (
quem deseje ter uma relação absoluta com Deus: "O
mosteiro de S. Bento é uma escola ao serviço de
Deus e não é mais que isso" (Dom Jean Leclerq).
Busca que pressupõe mais que um afastamento do
mundo: uma verdadeira separação. E isto na
Os construtores de Cluníaco (Cluny)
Carol Heitz
Ctuny! O nome, na sua brevidade melodiosa, evoca
bem o pacífico vale do Grosne, que as carruagens do
TGV hoje em dia sulcam. Ao longe, o viajante vê aparecer
os contornos ainda nitidamente desenhados da antiga
cidade monástica. Uma bela torre octogonal eleva-se aí,
encimada por uma cúpula de formas geométricas, lisas e
elegantes. Alguns instantes mais tarde, o comboio
penetra nas colinas de Mâcon, passando no sopé de
Berzé-la-Ville, que foi, no seu tempo, o Castelgandolfo do
homem da Igreja mais poderoso do mundo.
Por que razão o fenómeno cluniacence é tantas vezes*
privilegiado? E que em Cluny, melhor que em qualquer
outra parte, pode compreender-se como funcionava uma
formidável instituição de oração e liturgia. As buscas
arqueológicas pacientemente levadas a cabo entre 1928
e 1968 pelo arquitecto americano Kenneth John Conant
informam-nos com precisão acerca desta abadia
beneditina, da sua irresistível ascensão, do seu breve
apogeu e, depois, do seu implacável declínio, o qual
evoluiu a seguir à Revolução, precisamente entre 1802 e
1816, para uma destruição quase total.
O zénite deste mosteiro, que o legado do papa Pedro
Damião qualificava em 1063 como "incomparável",
coincide com a realização do mais extraordinário projecto
arquitectónico realizado até então: a construção da sua
terceira — e última — fixo, hóstia, imagens de devoção. A
adoração do Santíssimo Sacramento (o culto eucarístico
está então em pleno desenvolvimento) é acompanhada
de genuflexão, bem distinta de dois gestos rituais em que
a flexão de um só joelho se encontra prescrita: para um
padre durante a missa e para um súbdito conduzido à
presença de um príncipe.
OS CONSTRUTORES DE CLUN Y 141

Os autores de manuais práticos de liturgia, como


Guillaume Durand, no final do século XIII, no seu
Rationale, não cessam de prescrever a genuflexão
perante a hóstia sagrada. Os opúsculos que alguns
clérigos ingleses destinam à edificação dos simples leigos
pregam também a genuflexão, mas de mãos erguidas
durante a consagração. Sinal da importância simbólica
deste gesto: na mesma época, os heréticos distinguem-se
ao recusá-lo.
Deste modo, a análise dos gestos permite ao
historiador penetrar no mais profundo de uma sociedade 5.
E, no presente caso, definir as suas hierarquias
fundamentais, como a superioridade de Deus sobre os
homens, dos homens sobre as mulheres, do rei sobre os
seus súbditos, dos clérigos sobre os leigos.
De mais a mais, a Idade Média é, pelo menos ate ao
século XIV, uma verdadeira "civilização do gesto". Antes
que se constitua uma cultura do escrito, aberta ao mundo
laico, os gestos possuem uma força superior ao
pergaminho. Não nos esqueçamos de que é o gesto que
dá o seu valor a um acto (no caso da homenagem de um
vassalo ao seu senhor, por exemplo): o facto de tal ser
posto por escrito não passa de uma recordação para a
posteridade. Do mesmo modo, na Idade Média, o corpo
cristão é profundamente ambivalente: ocasião de pecado,
é também — os teólogos não cessam de o recordar —
meio de salvação, uma vez que permite gestos de oração,
de caridade e de arrependimento.
Seguir os movimentos do corpo nas impressões que
deles os homens puderam deixar (sobretudo nos iextos e
nas imagens, mas também por meio da arqueologia),
interrogar as interpretações explícitas que a Idade Média
deles pôde dar (teologia, príncipe laico e era
acompanhada as mais das vezes por um beneficio ou um
feudo que acarretava de imediato um elo de vassalagem.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

A oposição romana a este género de nomeação atingiu o


seu paroxismo sob Gregório VII, que conseguiu isolar
politicamente o Imperador Henrique IV. Para levantar a
excomunhão que o Papa lhe lançara, Henrique foi em
penitência em Janeiro de 1077 a Canossa (o que não o
impediu dc reatar as hostilidades depois).
Orientação Bibliográfica
Sobre o monaquismo cluniacense:
* A.H. Bredero, Cluny et Cîteawc au XIle Siècle.
L'histoire d'une controverse, Amesterdão-Lille, APA
Holland University Press, dif. Presses universitaires de
Lille, 1985.
* G. Charvin, Atlas des Monastères de l'Ordre de Cluny
au Moyen Age, anexo aos estatutos, cabidos gerais e
visitas da Ordem de Cluny Paris, 1977.
* G. Duby, Adolescence de la Chrétienté Occidentale,
Paris-Genebra, Skira, 1966.
* J.-P. Migne, Patrologie Latine (sobre Odão, t. 133,
Mayeul, t. 137, Odilon, t. 142, Hugues, t. 159, e Pedro, o
Venerável, t. 189).
* M. Pacaut, L'Ordre de Cluny, 909-1789, Paris, Fayard,
1986.
* J.-P. Torell, D. Bouthillier, Pierre le Vénérable, Abbé de
Cluny. Le courage et la mesure, Paris CLD, 1988.
* Le Gouvernement d'Hugo de Semur à Cluny. Actas do
colóquio científico internacional, Cluny, Setembro 1988.
* D. Jogna-Prat, B. Rosenwein, X. Barral i Altet, G.
Barruol, Saint Mdieul, Cluny et la Provence, expansion
d'une abbaye à l'aube du Moyen Age, "Les Alpes de
Lumières", 115, Mane, 1994.
Sobre a arquitectura:
* K. Conant, Cluny, les Églises et la Maison du Chef
d'Ordre (The
Medieval Academy of America, n.° 77), Mâcon, 170 pp.
121 pl. (276 fig-)-
* C. Heitz, "'Réflexions sur l'architecture clunisienne",
em Revue de l'Art, n.° 15, 1972, pp. 81-94.
OS CONSTRUTORES DE CLUN Y 143

* F. Salet, "Cluny III", em Bulletin Monumental, t. 126


(1968), pp. 235-292.
* P. Piva, Da Cluny a Polirone, un recupero essenziale
dei românico europeo, San Benedetto Po, 1980.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

É nos séculos XI e XII que dois gestos de oração se


impõem no Ocidente: as mãos juntas à altura do peito
(com os dedos esticados) e a genuflexão (com os dois
joelhos no chão). O primeiro gesto vem do ritual laico
da homenagem e permite instaurar com Deus uma
relação pessoal hierarquizada, feita de "afeição
mútua". Mas a oração continua a ser um acto de
adoração, de humildade ou de penitência, não uma
cerimónia ritual pela qual um indivíduo se
reconheceria como o "homem" de Deus. As mãos
juntas tornam-se assim o símbolo de toda a oração
cristã.
Este gesto, "inventado" pela Idade Média, insere-se
na genuflexão, já bem conhecida mas que se impõe
então como a atitude corrente da oração. E, por uma
curiosa inversão de significado, a posição de pé é
doravante interpretada como um sinal de tibieza
religiosa: ela basta aos que ficam à porta da igreja,
sem avançar para o altar. Na mesma época, tem-se
cada vez menos em conta a interdição tradicional da
genuflexão nos tempos de regozijo.
A Igreja preocupa-se então, mais do que no
passado, com as práticas religiosas dos leigos e toma
em consideração a sua atitude no ofício divino. Um
opúsculo, devido sem dúvida ao teólogo Pedro, o
Chantre (morto em 1197), distingue sete modos de
oração. Cada modo é descrito, justificado e ilustrado
por uma imagem. O quarto modo é a atitude a partir
de então usual no cristão: de joelhos em terra, as
mãos juntas. O autor por- menoriza-a
cuidadosamente: todo o apoio (pedra ou pedaço de
madeira) é interdito; os joelhos devem tocar em terra,
assim como as extremidades dos pés. Senão a oração
torna-se uma fraude!
A RAZÃO DOS GESTOS: 159

Esta generalização da genuflexão, "dobragem" do


corpo sobre si mesmo, corresponde à busca de uma
devoção individual mais interiorizada — devoção que
levará à leitura solitária e silenciosa, no final da Idade
Média, dos livros de horas4. Além disso, os objectos
sagrados diante dos quais se ora, e que instauram um
novo espaço da oração, multiplicam-se: altar, cruci-
inclinamos para a terra, mas em que, ressuscitando
com Cristo, somos elevados ate às alturas do céu." 2 O
resto do tempo, é permitido ajoelhar livremente. É
preciso erguer as mãos para rezar, mas sem gestos
excessivos.
Verificou-se, desde os primeiros séculos do
cristianismo, uma reflexão sobre os gestos da oração.
Santo Agostinho (354-430) faz uma primeira síntese.
Para ele, o corpo tem um papel importante na
condução da oração: os gestos estimulam a elevação
da alma. Esta ideia fundamental é repetida durante
toda a Idade Média. S. Tomás de Aquino escreve no
século XIII: "Os homens praticam acções sensíveis,
tais como as prostações, as genuflexões, as
exclamações vocais e os cânticos, não para despertar
Deus, mas para se estimularem a eles mesmos para
as coisas de Deus" (Suma contra os Gentios, III, 119).
Os clérigos carolíngios tinham já abordado a
questão depois de Santo Agostinho. Em meados do
século IX, Walafrid Estrabão procura os modelos da
oração cristã. Conclui que a expressão física deve ser
reduzida ao mínimo; a adoração de joelhos carac-
teriza o "costume" da Igreja, justificado pelos
exemplos de Daniel, de Cristo e dos Apóstolos. É
verdade, tomando apenas dois exemplos, que o o
próprio Jesus orou de joelhos durante a sua agonia
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

(Lucas 22, 41) e que S. Pedro se ajoelhou para pedir


a ressurreição de Tabita (Actos 9, 40).
Walafrid Estrabão condena aqueles que batem no
peito com os punhos, batem na cabeça ou assumem o
tom de voz alto das mulheres. E toma como modelo o
comportamento dos monges irlandeses que se
ajoelham por penitência e por devoção "um grande
número de vezes, uns mais, outros menos". Walafrid
parece aprovar a genuflexão mas parece também
reprovar os excessos que a acompanham por vezes.
Alguns atletas da fé, com efeito, seguiam o exemplo
de S. Tiago Menor (martirizado em 62) que, à força de
orações de joelhos, tinha calos semelhantes aos dos
camelos. Não se ajoelhava S. Columbano (540- -615),
pelo que se diz, doze mil vezes por dia?3
Claraval (Clairvaux), de abadia a prisão
Jean-François Leroux-Dhuys
Ao pé de Co!ombey-les-Deux-Églises, o trecho de
velha floresta gaulesa que Charles de Gaulle
costumava contemplar permanece uma terra de
silêncio. O Aube escavou os contrafortes
champanheses do planalto de Langres. A catorze
quilómetros de Bas-sur-Aube, o Val d'Absinthe
continua a abrigar uma cidade fechada, atrás dos
muros muito altos, em fiadas sucessivas que impedem
a vista de alcançar os vestígios da abadia de Claraval
e o centro penitenciário reconstruído depois, quase ao
lado das construções históricas preservadas.
Todos os sábados, de Maio a Outubro, o Ministério
da Justiça autoriza a visita à localidade: o viveiro do
primeiro mosteiro (Claraval 1), o grande edifício dos
conversos — despensa e dormitório — do século XII
(Claraval II), o grande claustro imenso, as nobres
cavalariças e a sala-de-jantar desmesurada do século
XVIII (Claraval III). Visita-se também a prisão do
século XIX, os seus dormitórios e os seus
"galinheiros", testemunhos de uma história social que
entrou, desde 1834, na literatura com o Claude Gueux
de Victor Hugo.
Tudo remonta ao século XII. Para assegurar o seu
desenvolvimento, a Ordem de Cister (Cíteaux),
fundada em 1098 pelo beneditino Roberto de
Molesme, tinha decidido engendrar quatro "filhas": La
Ferté-sur-Grosne nasceu em 1113, Pontigny em 1114,
Morimond e Claraval em 1115.
O padre abade, Estevão Harding, tinha designado
um certo Bernardo (1090-1153), filho de um pequeno
senhor de Fontaine perto de Dijon, para dirigir a nova
comunidade de Claraval. Embora contasse apenas
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

vinte cinco anos de idade, este tinha já uma séria


reputação de condutor de homens. Quando da sua
chegada a Cister, em 1112, levara consigo trinta
companheiros, parentes e amigos, trazendo assim à
ordem novo vigor e entusiasmo.
A escolha da localidade de Claraval deve-se a uma
oportunidade ligada à posse de terras: um primo de
Bernardo, visconde de La Ferté-sur-Aube, possuía
uma terra livre de qualquer ocupação em Val
d'Absinthe. Era uma clareira com dois quilómetros de
comprimento e trezentos metros de largura. O local
era isolado, soalheiro e a terra, rica em aluviões, facil-
mente cultivável pela nova comunidade.
A água corria com abundância. Permitia o
estabelecimento de redes hidráulicas subterrâneas,
alimentava numerosos tanques onde os monges
criavam carpas e, sobretudo, accionava as mós, os
martelos e os foles das forjas e dos moinhos de trigo
da comunidade laboriosa sonhada por Bernardo, o
qual, como reacção à vida senhorial dos monges de
Cluníaco, entendia regressar estritamente à ordem de
S. Bento.
Durante muito tempo pensou-se que as
construções em madeira do primeiro mosteiro
(Claraval I) tinham sido realizadas em plena floresta,
no lugar hoje chamado "Fontaine Saint-Bernard". Mas
a análise dos raros documentos antigos em nossa
posse mostra que o "velho mosteiro" ocupava, desde
a origem, o espaço denominado Petit Clairvaux, a
duzentos metros da porta de entrada do mosteiro
definitivo.
Graças às admiráveis plantas da abadia
desenhadas em 1708 por Dom Milley e que
comportam a traça dos vestígios do Mo- nasterium
vetus, podemos esboçar uma descrição do mosteiro
inicial de Claraval. Uma pequena capela quadrada,
com uma nave lateral sobre o recinto e encimada por
uma cobertura em coruchéu, estava ligada a uma
pequena construção destinada ao
A razão dos gestos: por que se
reza de joelhos
Jacques Berlioz

Orar de joelhos, eis uma atitude que parece natural,


eterna mesmo. Uma atitude que parece escapar ao
empreendimento da história. Em certas línguas
semitas, como o hebreu, a raiz brk não significa em
primeiro lugar ajoelhar-se, e depois orar, louvar,
bendizer? E no entanto este gesto simples teve na
Idade Média interpretações diversas, como
demonstrou Jean-Claude Schmitt'.
A posição de pé, com os braços levantados (na
posição dita do suplicante) ou com os braços em cruz,
imitando o gesto do Redentor é, desde a Antiguidade
até à Alta Idade Média, uma das atitudes mais
frequentes da oração; ela provém da tradição bíblica.
Mas existem outras: a prostração, a inclinação da ca-
beça ou do busto e a posição de joelhos que exprime
a adoração, a humildade e a penitência.
Desde os primeiros séculos do cristianismo, o uso
da oração de joelhos é regulamentada: os cristãos
reunidos solenemente mantêm-se de pé para rezar ao
domingo e da Páscoa ao Pentecostes — sendo a
genuflexão interdita durante este período. Este
costume litúrgico é imposto pelo concílio de Niceia, em
325. Porquê? S. Jerónimo (c. 347-420) explica-o: "É
um tempo de alegria e de vitória em que não flectimos
os joelhos e não nos
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

dormitório dos monges e ao seu refeitório. Estas


relíquias monumentais foram demolidas por volta de
1750, mas é provável que haja paredes e abóbodas
de Claraval I que subsistam ainda numa construção
abandonada que se pode ver ao centro do Petit
Clairvaux. Só uma longa campanha de buscas
permitiria conhecer a composição exacta de Claraval
I.
Ao cabo de vinte anos de existência, a abadia
alcançou logo grande reputação. Os começos não
deixaram de ser difíceis, porém. Muitos tinham sido
desencorajados pelo extremo ascetismo daquele a
quem se passara a chamar Bernardo {Bernard de
Clairvaux).
Durante estes primeiros anos, Claraval desenvolve-
se de uma forma* singular. Única abadia
champanhesa entre as cinco grandes abadias
cistercienses, usufrui da benevolência de uma
nobreza local esclarecida para a qual um grande
mosteiro era por definição uma potência aliada. Na
confluência dos três principados territoriais que eram o
condado da Champanha, o ducado da Alta Lorena e o
condado de Borgonha, Claraval saberá contudo
guardar sempre a sua independência em relação aos
grandes senhores feudais.
O local privilegiado da abadia, a dois quilómetros
da grande estrada-que ligava Reims a Langres,
explica igualmente o desenvolvimento da abadia. Esta
via de comunicação, muito frequentada, perfeitamente
protegida, era então o maior eixo itinerário do
Ocidente, verdadeiro traço de união entre as feiras da
Champanha, da Flandres e da Lombardia. Claraval
encontrava-se assim no coração de uma das mais
importantes zonas de intercâmbios económicos e
intelectuais da época.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Mas é sobretudo após 1135 que o renome da


abadia se torna considerável. A população da Ordem
de Cister aumenta então e a morte de Estevão
Harding, em 1133, deu a Bernardo maior liberdade de
acção para intervir em nome da ordem. Acha-se este
doravante presente em todas as frentes da Igreja do
seu tempo e é escutado pelos bispos, pelos reis e
pelo Papa. No
dos seus primos, Godofredo
de la
Roche-Vanneau, tornou-se prior em 1127. Tornar-se-á
a pouco e pouco o verdadeiro organizador de
Claraval.
Enquanto Bernardo de Claraval prossegue nas
suas missões1, Godofredo decide mandar construir
uma nova abadia que responda melhor ao papel de
chefe de ordem que Claraval se está a tornar. Os
planos foram elaborados pelos ecónomos do
mosteiro, Godofredo d'Aignai et Achard, dois antigos
arquitectos que se haviam tornado monges. O conde
Thibaud da Champanha prometeu apoiar o
empreendimento. A construção de Claraval 11 começa
em Dezembro de 1135 e vai durar uma dezena de
anos.
Desta segunda abadia, hoje em dia só subsiste um
edifício, um dos mais belos da arquitectura
cisterciense, o dos conversos, composto por uma
despensa no rés-do-chão e por um dormitório no
primeiro andar. Este único vestígio precioso, a planta
dc 1708, algumas gravuras antigas e a narrativa de
viajantes dos séculos XVI e XVII permitem-nos
reconstituir a grande abadia que Bernardo de Claraval
conheceu.
Este Alto Claraval faz pensar numa verdadeira
cidade medieval. Por detás da muralha, em redor da
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

abacial, comprimiam- -se mais de cinquenta


construções: hospedaria, cavalariças, edifício dos
monges, edifício dos conversos, cozinha e refeitório,
sala dos arquivos, sala dos copistas, claustro e sala
capitular, habitação do abade, enfermaria, lavadouro,
padaria, etc.
A estrutura da abadia correspondia a uma planta-
tipo que se encontra em quase todos os mosteiros
cistercienses. O edifício dos monges era construído
perpendicularmente à abacial ao nível do coro, com o
fim de facilitar o acesso aos ofícios, tanto de noite
como de dia. O edifício dos conversos, também ele
perpendicular à abacial, encontrava-se ao nível da
entrada para marcar bem a separação entre monges
e conversos camponeses. O claustro estava situado
na ala norte para escapar à sombra da abacial que
comportava sem dúvida três naves e essa famosa
capela-mor chã característica das "igrejas
bernardinas". Mas não se sabe mais, pois a actual
prisão não permite fazer buscas nesse local.
Orientação bibliográfica
Sobre S. Bernardo e os cistercienses:
* J. Berlioz, Saint Bernard en Bourgogne. Lieux ei
mémoire, Dijon, Le Bien Public, 1930.
* Don J. Leclercq, Bernard de Clairvaux, Paris,
Desclée de Brou- wer, 1989.
* L. Pressouyre e T.N. Kinder, s/d, Saint Bernard et
le Monde Cistercien, Paris, Caisse Nationale des
Monuments Historiques et des Sites, Sand, 2. a ed.,
1992.
* L. Pressouyre, Le Rêve Cistercien, Paris
Gallimard, "Découvertes", 95, 1990.
* M. Pacaut, Les Moines Blancs, Paris,

Fayard, 1992. Sobre Claraval:


100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

* L'Abbaye de Clairvaux, número especial de Vie


en Champagne, 1986.
* Histoire de Clairvaux. Actas do colóquio de Bar-
sur-Aube/Clair- vaux, 22-23 Junho 1990, Bar-sur-
Aube, Association Renaissance de l'Abbaye de
Clairvaux, 1991.

Sobre as prisões no século XIX:


* J.-G. Petit, Ces Peines obscures. La prison
pénale en France, 1780-1875, Paris, Fayard, 1990.

Para visitar os vestígios da abadia:


* A Associação "Renaissance de l'Abbaye de
Clairvaux" organiza três visitas (13 h 45, 15 h 45 e 16
h 45) todos os sábados de Maio a Outubro (munir-se
de bilhete de identidade).

L'histoire publicou:
* "Saint Bernard, un prédicateur irrésistible", por
André Vauchez, n.° 47, pp. 26-29.
* "Saint Bernard, le soldat de Dieu", por Jacques
Berlioz, n.° 135, pp. 16-21, publicado neste volume.
De há vinte anos para cá, a degradação de
Claraval III acelerou-se. Mas os créditos
importantíssimos que seria preciso empregar para
salvar a enorme abadia do século XVIII só se podem
justificar se as construções encontrarem uma
aplicação. Ora, longe dos grandes centros urbanos e
fora dos eixos de passagem do turismo, o local tem
poucas probabilidades de a encontrar. E assim o
Grande Claustro não passará de uma esplêndida
ruína para os amadores de arte dos séculos
vindouros.
Em contrapartida, o edifício dos conversos de
Claraval II (despensa e dormitório) será salvo, pois o
Ministério da Cultura e a região Champanha-Ardenas
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

empreenderam uma restauração onerosa, de grande


qualidade, justificada pelo facto de se tratar da mais
vasta construção cisterciense de França, e de uma
das mais belas.
Claraval-prisão (perto de quatrocentos presos)
deve ficar nos seus novos edifícios. A sua existência é
importante para a economia local (mais de duzentos
empregos) numa região que conhece dificuldades
para sobreviver. Não obstante, é preciso que Claraval-
abadia possa libertar-se das limitações carcerárias e
encontrar de novo uma vida autónoma, mediante
algumas modificações progressivas.
Notas
1
Sobre as polémicas e os "combates" de Bernardo
de Claraval, cf. L'Histoire, n.° 35, pp. 16-21, versados
neste volume.
2
L'Apologie (Apologia) (redigida entre 1123 e 1127),
de onde provém este trecho, é uma crítica de tudo o
que não é o monaquismo tal como o concebe
Bernardo, quer se trate do primeiro Cister, de Saint-
-Denis ou de Cluny. Cf. Léon Pressouyre, Le Rêve
Cistercien, Paris, Gallimard, 1990.
3
Cf. André Vernet, La Bibliothèque de Clairvaux du
XIle au XVIIle Siècle, t.l, catalogues et répertoirs,
Paris, CNRS, 1979.
A arquitectura da nova abadia, característica da
arte cister- ciense, bania o mínimo ornamento
susceptível de desviar o espírito do pensamento de
Deus. Nada de tímpanos gloriosos, nem de capitéis
com imagens, nem de vitrais coloridos, nem de livros
santos iluminados, nada senão o traçado funcional
que faz a abóbada mais simples e paredes despidas
de toda a decoracão. Bernardo não tinha palavras
suficientemente duras para fustigar o gosto de
Cluníaco
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

pela decoração. Exclamara, aliás, a esse propósito:


"Que vêm fazer nos vossos claustros, onde os
religiosos se entregam às santas leituras, esses
monstros grotescos, essas extraordinárias beldades
disformes e essas belas defor-midades?"2
Quando Bernardo morre a 20 de Agosto de 1153, a
ordem cisterciertse, com a força dos seus 350
mosteiros — dos quais 164 dependentes de Claraval -
—, domina o conjunto das ordens religiosas. Em 1174,
por ocasião da canonização de Bernardo, são
celebrados festejos numa nova abacial acabada de
terminar. Desde a morte do padre abade, tinha sido
decidida a ampliação da igreja de Claraval. A nave é
alterada com novas abóbadas com janelas de ogivas,
o coro ampliado por uma ábside de deambulatório,
com nove capelas irradiantes, e o transepto é
modificado.
Mas a ortodoxia e o rigor arquitectónicos do criador
de Claraval são abandonados. Os construtores
cistercienses passam a ser influenciados pela nova
arquitectura gótica admirada nas cidades da Picardia
e da Ilha de França.
Nessa mesma época, uma outra parte da doutrina
de S. Bernardo é novamente posta em causa: até
então, a actividade económica da abadia estava
limitada à satisfação das necessidades monásticas.
Ora, no próprio ano da morte de Bernardo, a abadia
adquire novas terras para ampliar o seu património.
No século XIII, os monges de Claraval transformam-
se em grandes proprietários de terras desejosos de
inovações técnicas. Praticam o afolhamento trienal,
adoptam a charrua puxada por cavalos. Dominando
perfeitamente a irrigação e a drenagem, procuram
também melhorar o gado praticando o cruzamento de
raças, nomeadamente com búfalos vindos de Itália A
vinha prospera e a totalidade do domínio florestal é
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

objecto de uma gestão racional. Grandes forjas são


criadas a partir de 1157.
A espiritualidade cisterciense não resiste por muito
tempo ao contágio do século. Ainda em vida,
Bernardo opusera-se ao filósofo Abelardo. O ideai
cisterciense fundava-se na oração e no trabalho
manual, e a primeira biblioteca de Claraval
comportava apenas alguns livros religiosos. Ora, em
meados do século XIII, o prestígio das ordens
mendicantes obriga os sucessores de Bernardo a
situar-se por seu turno no terreno das ideias. Em
1224, a abadia compra uma casa em Paris a fim de
dar um ensino universitário a alguns monges. Em
1244, é criado o colégio S. Bernardo onde os
estudantes cistercienses prepararão a sua
licenciatura em teologia.
Do século XIV ao século XVI, a história da abadia é
mais obscura. Claraval sofre das perturbações
causadas pela Guerra dos Cem Anos e, depois, pelas
Guerras Religiosas. A partir de 1380, o declínio
demográfico da região da Champanha acarreta uma
baixa dos rendimentos provenientes das terras da
abadia. Apesar disso, a abadia toma medidas de
defesa e fortifica com grande despesa a cintura de
muralha. O Alto Claraval é mesmo isolado por uma
ponte levadiça. Os religiosos têm todavia de se
refugiar, por várias ocasiões, em Bas-sur-Aube,
quando o perigo se torna demasiado. Em 1587, por
exemplo, o anúncio da chegada iminente de tropas
calvinistas provoca a partida da maior parte dos
religiosos. Apenas um punhado ds monges e de
conversos assegura a defesa da abadia sitiada.
Miraculosamente, o chefe protestante morre na
véspera do assalto, enquanto uma violenta
tempestade impede as suas tropas de atacar!
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

O século XVII é sem dúvida o segundo século de


ouro de Claraval. Quase deserta de monges, a abadia
está mais rica do que nunca. Em 1768 só já restam
cinquenta e quatro religiosos em Claraval; vinte cinco
monges e dez conversos em 1790. As suas
propriedades representam 15 a 16 000 hectares de
florestas e mais de 4000 hectares de terras de
lavoura. Dirigem uma de Claraval, enconta-se
também o príncipe Pedro Kropotkine, niilista russo,
internado em Claraval de Março de 1883 a Janeiro de
1886 por ter estado envolvido nas conspirações dos
anarquistas de Lião. Em 1890, Filipe de Orleães fará
uma curta estada em Claraval antes de ser exilado.
Depois dos motins de 1917, Claraval recolhe
alguns condenados do Tribunal Militar, e depois, até
1923, André Marty, o "rebelde do Mar Negro". Vinte
cinco anos mais tarde, é Pierre Daix e numerosos
resistentes parisienses que aí são encarcerados.
Todos são encerrados no Grande Claustro de Claraval
III. Sob o duplo controlo das autoridades de ocupação
e das de Vichy, a prisão tornou-se uma mola
indispensável do aparelho de repressão como o
testemunha a execução de 21 detidos comunistas
fuzilados numa pedreira, ao fundo de Val d'Absinthe.
Quando da Libertação, os senhores de ontem
encontram-se nas celas daqueles que haviam
condenado. Claraval recebe apoiantes da
Colaboração, milicianos, antigos voluntários da divisão
Charlemagne antes de albergar antigos ministros de
Vichy como Xavier Vallat e Benoist-Méchin, bem como
os almirantes Esteva e La Borde, responsáveis pelo
rombo na frota em Toulon. Finalmente, Charles
Maurras faz a sua estada no Pequeno Claustro de
1947 a 1951.
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

Mas a longa carreira de prisão política de Claraval


não terminou. Durante a guerra da Argélia,
responsáveis da FLN, três dos generais do putsch de
Argel, alguns oficiais que os tinham seguido, tais
como Hélie de Saint-Marc, são por sua vez internados
na velha central. Alguns responsáveis por actos ter-
roristas como o iraniano Anis Naccache são os mais
recentes detidos de "longas penas" desta prisão
carregada de história.
Desde 1971, a administração penitenciária ocupa
edifícios modernos, com celas individuais, locais
comuns e oficinas, sempre situadas no recinto da
abadia, mas fora dos edifícios históricos que já não
utiliza (a não ser o pequeno claustro do século XVII).
Salvou, ao conservá-ia, a herança monumental da
abadia.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

encarreguados do inquériro sobre as condições de


vida em Claraval defrontam-se com a conivência
existente entre os três empresários e os
representantes da administração dependente do
Ministério do Interior.
O governo consegue diferir o processo até 1849 e
confia o caso ao tribunal de Bas-sur-Aube para evitar
a repercussão demasiado considerável de um
processo parisiense. Declarados culpados de
homicídio involuntário, os empresários acabam por ser
condenados somente a penas leves e continuarão
ainda em função vários anos.
O caso colocou mesmo assim perante a opinião
pública o problema da empreitada geral nas centrais.
Ele virá a contribuir para a introdução gradual do
sistema de trabalho por conta do Estado, limitando o
empresário a sua intervenção ao fornecimento de
trabalho e conservando a administração penitenciária
a gestão da vida dos detidos.
O abrandamento relativo das condições de
detenção no início da I I I República não suprime
todavia a vocação carcerária de Claraval e a antiga
abadia torna-se prisão política. Em 1871, várias
centenas de partidários da Comuna aí são
encarcerados. São ainda 152 em 1874 e conta-se que
Louise Michel, antes da sua partida para a Caledónia,
passou por Claraval antes dechçgar à prisão de
Auberive, oütra abadiq cisterciense transformada em
centro de detenção.
Auguste Blanqui fica sete anos em Claraval, de
Setembro de 1872 a Junho de 1879. Os seus oito
primeiros meses, passa-os numa cela de 2,5 por 1,5
metros, sem outra janela além de uma fenda na
parede. Só consegue escapar a este "enterramento
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

vivo" graças à sua grande disciplina física e à sua


extraordinária resistência moral adquirida durante os
vinte anos de detenção precedentes. Depois de 1875,
teme-se que a sua morte venha a fazer dele um
mártir; o eterno encarcerado é então transferido para
uma grande cela situada no "claustro pequeno", antiga
enfermaria do século XVII. Entre os outros prisioneiros
célebres vasta bacia industrial compreendendo minas,
altos fornos, forjas, havendo ainda a acrescentar
inúmeras casas em Bas-sur-Aube, Troyes e Dijon.
Uma das principais actividades destes monges,
doravante, é a de enriquecer a biblioteca da abadia.
Em 1782, o abade François Le Blois compra a imensa
biblioteca do conde d'Avaux: 31 652 volumes, 2010
manuscritos entram em Claraval, que possui assim
um fundo único de manuscritos raros3.
O embelezamento da abadia continua a ser a outra
preocupação importante dos religiosos. Durante a
primeira metade do século, contentam-se em adaptar
ao gosto da época 35 cavalariças, 3 portarias e a
hospedaria. Mas depois de 1740, sob o abaciado de
Pierre Mayeur, começam transformações de grande
vulto. O essencial de Claraval II é destruído, a não ser
a abacial e o edifício dos conversos. O novo Claraval
III é edificado, em torno de um claustro de cinquenta
metros de lado, como um vasto castelo cássico
provido de uma fachada de cento e trinta metros. No
interior, constroem-se apartamentos espaçosos e uma
sala de jantar grandiosa. Os grandes órgãos
instalados am 1736 são restaurados em 1788 por
François Henri Clicquot, fabricante de órgãos do rei. O
instrumento, notável, não chega a ser utilizado senão
alguns meses, pois a Revolução vem interromper
brutalmente os fastos desse palácio monástico em
que Claraval se tornara.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Como as outras propriedades eclesiásticas, os


edifícios da abadia são confiscados e declarados bens
nacionais a 2 de Novembro de 1789. São vendidos
em 1792 a um empreiteiro que aí instala as suas
oficinas, depois vários proprietários se sucedem em
pouco tempo. Claraval transforma-se em fábrica de
papel, depois em fábrica de cerveja, para acabar em
fábrica de vidro onde se fabricam vidraças. Os fornos
ocupam a nave principal da igreja, as naves laterais
servem de local de trabalho.
Graças a estas actividades industriais, os edifícios
foram salvos da destruição: Claraval estava
demasiado afastado de uma grande cidade para servir
de pedreira. Mas quanto ao resto, todos os bens
móveis da abadia se encontram dispersos. Uma parte
das cadeiras de coro e os grandes órgãos são
transportados para a catedral de Troyes; o púlpito
encontra-se na igreja de Vendeuvre-sur-Barse; o altar-
mor em Saint-Pierre de Bas- -sur-Aube. A grande
grade em ferro forjado do coro pensa-se que está nos
Estados Unidos. A biblioteca da abadia, verdadeira
"catedral de livros", assim como os arquivos, ainda
pouco explorados, encontram-se actualmente na
biblioteca municipal e nos arquivos departamentais de
Troyes. Os túmulos de S. Bernardo e das
personagens ilustres enterradas na abadia, como
Margarida de Navarra, não foram poupados. Única
relíquia, o crânio de S. Bernardo pôde contudo ser
salvo. Repousa hoje no tesouro da catedral de Troyes.
A igreja vizinha de Ville- -sous-la-Ferté possui, por fim,
o sudário de seda em que o corpo de S. Bernardo foi
depositado quando da sua canonização em 1174.
Mas é a chegada da ordem imperial que modifica
de maneira decisiva a sorte de Claraval. O ministro do
Interior, Emmanuel Cretet, procura colocação para
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

uma rede de casas centrais de detenção para os


condenados criminais e correccionais (decreto de 16
Junho 1808). Sob o Império, com efeito, o
encarceramento dos criminosos de direito comum
torna-se sistemático e na detenção, a única resposta
do poder à delinquência e à marginalidade.
Os imensos edifícios monásticos desertos atraíram
a atenção do ministério. Claraval e oito outras abadias
são transformadas em estabelecimentos prisionais. O
Estado compra a abadia a 27 de Agosto de 1808. Aí
são efectuadas obras importantes para criar oficinas.
A abacial, que tinha atravessado a tormenta revo-
lucionária sem demasiados danos, é quase totalmente
demolida em 1812 e desaparece depois, em 1819. O
famoso edifício dos conversos de Claraval II e os
edifícios de Claraval III são transformados. As
habitações do abade e do prior passam a servir para
alojamento dos directores e para os escritórios do
Centro Penitenciário. O grande claustro é fraccionado
em dormitórios, a sala de jantar do abade torna-se
uma capela que pode chegar a conter 1500 detidos de
pé!
Em 1813, os primeiros prisioneiros, insubmissos do
Grande Exército, chegam a Claraval. Durante todo o
século XIX, a antiga abadia tem o triste privilégio de
reunir uma população penal considerável. A partir de
1819 contam-se 1456 detidos (num total de 9392
detidos nas catorze casas centrais francesas). Em
1858, há em Claraval 1650 homens, 489 mulheres e
555 crianças, ou seja, perto de 2700 condenados. Na
mesma data, a guarda do estababelecimento
comporta 67 guardas, 16 religiosas, 1 director, 2
inspectores, 3 capelães, 2 médicos, pessoal
administrativo e 220 soldados. Um pequeno número
de guardas assegura uma organização interior
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

miníma. Fora das paredes, um regimento impede as


evasões. Um "empresário" concessionário (um
industrial dos têxteis) dispõe da força de trabalho dos
detidos em troca da gestão da sua vida quotidiana,
alimentação, vestuário, dormida, cuidados... De dia,
nas oficinas, o empresário é senhor. A noite, os
detidos, amontoados em dormitórios onde dispõem de
uma cama má para dois, estão entregues a eles
mesmos, isto é, aos chefes de bandos.
Sob a monarquia de Julho, a prisão de Claraval
volta a encontrar-se no centro da actualidade. Primeio,
graças a Victor Hugo, que empreende uma campanha
contra a pena de morte na sequência do caso Claude
Gueux (1834): um detido injustamente castigado tinha
morto um chefe dos guardas antes de ser condenado
ao cadafalso. Depois, em fins de 1847, uma verda-
deira campanha de imprensa é lançada por jornalistas
escandalizados com a mortalidade que reina então em
Claraval: só nos meses de Abril e Maio de 1847, foram
registados 117 óbitos para um total de 1968 detidos. O
inquérito judicial revelará que no decurso dos trinta
últimos meses anteriores tinha havido mais de 700
óbitos.
A alimentação estragada e insuficiente, a falta
generalizada de higiene, o vestuário em farrapos
transformam os detidos em espectros incapazes de
trabalhar. Os mais débeis de entre eles morrem de
fome e de frio, no abandono mais absoluto. Os juízes
0
deserto mantém-se como domínio do homens.
Retenhamos contudo o belo cumprimento dos
monges do Egipto a Susana: "Uma cidade, Mãe, se tu
lá vives, para ti é um deserto."

Nota
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

1
Autor anónimo de uma narrativa atribuída
erroneamente a Atanásio, bispo de Alexandria, o
biógrafo de Santo Antão.

Biografias

ANTÃO: conhecemo-lo pela biografia que lhe


dedicou Atanásio, bispo de Alexandria. E, se não o
único, pelo menos um dos primeiros fundadores do
monaquismo e o mais ilustre. Nasceu no Egipto,
numa família que passava por abastada, no final do
século III. Orfao, distribui, por volta dos vinte anos,
todos os seus bens pelos pobres e entrega-se à
ascese e à oração, primeiro no exterior da sua aldeia,
seguindo os conselhos de um velho asceta vizinho, e,
depois, num túmulo de uma montanha próxima. Parte
finalmente para o deserto e a recusa do velho em
segui-lo assinala a ruptura entre a ascese "civilizada"
e o monaquismo "selvagem". As lutas,
simultaneamente físicas e espirituais, de Antão contra
os demónios tornaram-se célebres sob o nome de
"tentações de Santo Antão".
PACOMIO: egípcio, como Antão, e seu
contemporâneo, organiza em comunidade, segundo
uma regra, monges que viviam anteriormente em
celas separadas. Cria igualmente um mosteiro de
mulheres que confia a sua irmã.
JERÓNIMO (ap. 347-420): nascido na Dalmácia,
pertence à parte ocidental do Império Romano, onde
se fala latim, mas conhece o grego e aprende o
hebreu no Oriente, onde vive durante muito tempo.
Vive a vida monástica no deserto de Chalcis, na Síria,
fe acaba por se instalar em Belém. Erudito e tradutor,
teólogo violento, não é sem razão que S. Jerónimo é
o protector dos sábios. Atrai a Belém algumas
grandes damas da aristocracia romana, entre as
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

quais Paula e a sua filha textos normativos), eis as


duas abordagens que permitiram a Jean-Claude
Schmitt construir aquilo a que chama "a razão dos
gestos". A Igreja submete então às regras da sua
moral as "gesticulações" dos malabaristas, das
mulheres ou dos jovens impulsivos. Condena ou
integra, segundo os casos, cânticos, danças, jogos
dramáticos e indo até os movimentos dos possessos
ou dos místicos, ataca os gestos "mágicos".
Mas o corpo, refreado pela "razão teológica", pela
moral ou o ritual, nunca se confessa vencido. Assiste-
se então à irrupção de outras gestual idades, lúdica
nos malabaristas, folclórica e grotesca no Carnaval,
mística nos devotos e nos flagelantes do final da
Idade Média.

Notas
1
Jean-Claude Schmitt, La Raison des Gestes dans
l'Occident Médiéval, Paris, Gallimard, "Bibliothèque
des histoires", 1990. Cf. também J. Berlioz, N. Bériou
e J. Longuère, s/d, Prier au Moyen Age. Pratiques e
expériences (Ve-XVe siècles), Tumhout, Brepols,
"Témoins de, notre Histoire", 1991 ; M.G. Briscoe e
B.H. Jaye, Artes Praedicandi, Artes Orandi, Turnhout,
Brepols, "Typologie des sources du Moyen Age
occidental, 61", 1992.
3
E. Benaud, art. "Génuflexions et rnétanies", em
Dictionnaire de Spiritualité, t. 6, Paris, Beauchesne,
1965, col. 219.
3
Henri Leclercq, art. "Génuflexion", em Dictionnaire
d'Archéologie Chrétienne et de Liturgie, t. 6/1, Paris,
1924, col. 1020-21.
4
Paul Saenger, "Manières de lire médiévales", em
Histoire de l'Édition Française. I, Le Livre conquérant.
Du Moyen Age au milieu du XVIlle siècle, Paris,
Fayard-Promodis, 2.° ed., 1989, pp. 131-141.
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

3
Sobre a antropologia histórica do gesto, cf. Jean-
Claude Schmitt. "Gestes", Dictionnaire des Sciences
Historiques, Paris, PUF, 1986, pp. 300-305.
MULHERES NO DESERTO? 179

veras privações, não obstante a sua pouca idade.


Forçada pelas querelas doutrinais da época a
abandonar a Palestina, Susana foi para o Egipto com
algumas irmãs, monofisitas* como ela. Esforça-se por
viver como eremita numa caverna, mas sem o
conseguir totalmente — irmãs, bem como monges que
acorrem, impedem-na de se isolar por completo.
No entanto, Susana luta contra os demónios
poderosos "que mostram o poder da sua malignidade
mais particularmente nos desertos". Esta "mulher
divina" atrai auditores a quem prodigaliza
ensinamentos.
Cura os doentes pela imposição das mãos e chega
mesmo a triunfar, numa espécie de duelo de
santidade, sobre um eremita vizinho que, aterrorizado
pelos demónios, lhe vai pedir conselho. Todavia,
durante vinte cinco anos, Susana não vê um rosto de
homem nem mostra o seu rosto a homem nenhum. É
um dos raríssimos casos de Grande Mulher Santa, à
imagem dos Grandes Santos Homens de Deus; estes
monges ilustres tiram o seu poder da relação
privilegiada que mantêm com Deus e atraem as
multidões em busca de conselhos, de curas e de
protecção. As perseguições desencadeadas contra os
monofisitas forneceram as circunstâncias
excepcionais desta vida excepcional.
No final da Antiguidade, a santidade é uma coisa
demasiado séria para ser entregue às mulheres.
Nesta época, uma experiência religiosa fora do
comum permite, por caminhos escusos, o acesso ao
poder político e social. O santo homem atrai as
multidões, resolve os diferendos, cura uns, aconselha
outros, admoesta os funcionários ou os imperadores,
serve de intermediário entre comunidades aldeãs e as
forças que as controlam. É impossível às mulheres
exercer durante muito tempo e fortemente este poder.
Elas apenas podem apoderar-se de parcelas dele e as
que o conseguem, aproveitando-se de crises
doutrinais como a dos monofisitas ou de uma situação
social favorável como as aristocratas italianas, dão
provas de qualidades admiráveis que lhes permitem
forçar as portas de um círculo muito fechado, mas não
ocupam nunca os lugares de honra.
em Cristo Jesus." Assim se podem apagar, na vida
espiritual, as hierarquias da vida social. Na História
Lausiaca, o autor de uma série de narrativas relativas
à santidade monástica refere as mulheres: "Mas é
necessário fazer também menção, neste livro, às
mulheres viris, a quem Deus concedeu pelas suas
lutas os mesmos favores que aos homens; e isto para
que não se possa argumentar que elas são
demasiado fracas para a prática regular da virtude."
Ao multiplicar os esforços, a mulher pode pois alçar-se
acima da sua condição; ela pode dar provas de
virilidade e ultrapassar em mortificações e em
santidade os ascetas mais encarniçados. Ao esquecer
a sua fraqueza "natural", a mulher atinge a virilidade,
isto é, a força e pode tornar-se um modelo de
santidade. Melânia, grande dama de Roma, visita os
monges do Egipto: "Os santíssimos padres lá de baixo
recebem a bem- -aventurada como se de um homem
se tratasse; verdade se diga que ela tinha
ultrapassado a medida do seu sexo e adquirido uma
mentalidade viril, ou antes, celeste." Ela é uma das
grandes organizadoras do monaquismo na Palestina e
vive já a vida angélica.
Amma Sarra mantém-se perto de sessenta anos à
beira do Nilo e não se debruça nunca para o ver. Um
dia, dois velhos, grandes anacoretas*, vão visitá-la:
"Ao dirigir-se para lá, iam dizendo um ao outro:
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

"Vamos humilhar essa velha". Disseram-lhe: "Guarda-


te de te orgulhares dizendo: eis que os anacoretas
vêm a mim, que sou uma mulher."
A amma Sarra respondeu-lhes: "Por natureza, sim,
sou uma mulher, mas não no espírito." E disse-lhes
ainda: "Eu sou um homem; vós é que sois mulheres."
Susana, outra mulher forte, nasceu numa grande
família da região do Alto Tigre que se encontrava na
época nas mãos dos Persas. Parte sozinha com a
idade de oito anos para Jerusalém, apesar da
oposição dos pais, e alcança a Palestina com um
grupo de peregrinos a que se junta. Depois apresenta-
se num mosteiro de mulheres e não consegue ser
admitida senão depois de ter ficado sete dias a chorar
diante da porta. Obriga-se então a se-
Guiberto de Nogent, o monge jornalista
Michel Parisse
Dois arcediagos de Laon, candidatos à sede
episcopal, foram rejeitados pelo Papa em 1105: um
"sempre se tinha comportado não como um clérigo
mas como um homem de guerra; quanto ao outro,
inclinava-se mais do que é razoável para as
mulheres". Um terceiro cativa o rei mas morre antes
de ser entronizado. Finalmente, os clérigos elegem o
chanceler do rei de Inglaterra, um certo Gaudry, cujo
episcopado ia ser magistralmente narrado por um
observador atento, Guiberto de Nogent, abade
beneditino de um mosteiro vizinho.
Trata-se de um texto desde há muito célebre, que
relata a revolta da comuna de Laon, a fuga do bispo
escondido na adega, o seu massacre pela populaça.
Este extracto da autobiografia de Guiberto de Nogent
fez esquecer o livro de que é tirado, longa narrativa,
feita pelo monge laonês, da sua vida, da sua família e
dos acontecimentos que viu desenroraiarem-se junto
dele, mesmo no início do século XII. E.-R. Labande,
ao oferecer ao público uma tradução integral 1, permite
seguir passo a passo o percurso de um homem cuja
pena revela grandes qualidades de observador e de
memorialista.
A elevação de Gaudry, que ele relata, é já uma pura
obra-prima: a viagem a Langres até junto do papa
Pascoal II para obter o seu acordo, a interrogação
pelo soberano pontífice dos abades acompanhantes, a
influência das somas de dinheiro distribuídas aos
cardeais, a consagração adquirida lá longe, em
Avinhão. Guiberto seguiu o caso pessoalmente, tomou
a palavra, transportou o dinheiro, interrogou
testemunhas; parece-lhe que o Papa era "um homem
menos culto do que seria conveniente para o seu
ofício," coloca-se constantemente em cena, sempre
parecendo ser uma testemunha imparcial. É ainda na
qualidade de jornalista que ele descreve o
afrontamento do bispo dos Laoneses e, ainda antes, a
conjura contra Gerardo, protector das monjas de
Saint-Jean, assim como o seu assassinato: «O inten-
dente do bispo (...) disse-lhe: "Eis-te apanhado." Mas
Gerardo virou para ele o olho (era zarolho),
considerou-o com o ar altivo que lhe era habitual e
disse: "Fora daqui, porco, adulador." O intendente,
dirigindo-se então a Rorigon, gritou-lhe: "Fere!" Este
fez um desvio pela esquerda e golpeou-o com a
espada mesmo entre a testa e o nariz. Gerardo, que
se sentiu atingido disse: "Levai-me para onde
quiserdes." Logo os dois se puseram a crivá-lo de
golpes; sentindo-se esmagado por eles e
desesperando nas suas próprias forças, exclamou:
"Santa Maria, acode-me!" A estas palavras, mergulhou
nos sofrimentos supremos.»
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Guiberto teve um preceptor quando era ainda


pequeno (por volta dos sete anos) e recebeu muitas
vezes açoites quando aprendia mal. Entrou depois
para o mosteiro de Saint-Germer de Fly e aí adquiriu
uma boa formação clerical e monástica. Uma manobra
da sua família para obter para ele um benefício
eclesiástico gorou-se. O seu abade incitou-o a tornar-
se monge. Guiberto não hesitou e vestiu o hábito
monástico, continuando ao mesmo tempo a cultivar-
se. Pobre monge! Teve visões, viu fantasmas,
encontrou-se com o diabo, deixou-se tomar de
desejos "pelas concupiscências e a cupidez". A
ambição do que poderia ter-se tornado no século
importunava-o. Há que dizer que a regra e o claustro o
tinham definitivamente aniquilado. A própria Virgem
interveio para lhe fazer compreender que não podia
deixar Saint-Germer. Mas o nosso monge também
rima, rivaliza com Ovídio, faz o elogio do amor, deixa
no seu espírito que as doces palavras derramem um
gosto lascivo. "Permitia-me usar
MULHERES NO DESERTO? 179

Os mosteiros de mulheres são pouco conhecidos.


Os autores antigos assinalam com uma certa
complacência as perpétuas querelas que agitam
esses mundos fechados. As monjas não iêm
actividades agrícolas e as suas casas não servem
nem de albergue nem de escola. Das raras obras de
caridade, a participação em enterros parecia ser das
suas únicas actividades sociais. As religiosas
subsistem graças às doações.
Parece também que as famílias não procuram
separar-se das filhas: vale mais casá-las, sobretudo
com parentes chegados, e receber em troca uma
doação do que pô-las num convento e correr o risco
de as ver partir com os seus bens ou a sua parte da
herança. A vocação monástica de uma mulher deve
assim ser precedida da renúncia dos seus pais. O sírio
Rabula confia a sua esposa e os filhos a mosteiros
quando escolhe para si mesmo a vida monástica.
Pacómio e Antão são órfãos que decidem votar as
suas irmãs à virgindade. Sinclético tem de esperar
pela morte dos pais para poder partir com a sua irmã
cega e ir instalar-se num túmulo às portas de
Alexandria.
Diversas mulheres —judias convertidas, escravas,
membros da família de um imperador assassinado,
servas de sacerdotes escandalosos — são enviadas
para conventos. Grandes damas da aristocracia
romana, viúvas ricas ou esposas que conseguiram
convencer os maridos, deixam o Ocidente e instalam-
se em conventos na Palestina; elas representam uma
elite muito influente e as suas possibilidades de
escolha são asseguradas pela sua fortuna, mas não
são suficientemente numerosas para encher os
mosteiros de mulheres.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Uma comunidade de monjas, que devia ser o lugar


de um desabrochar religioso, pode igualmente permitir
escapar a certas coacções sofridas pela generalidade
das mulheres: casamentos forçados ou partos
repetidos. Seria erróneo crer que a Igreja se
desinteressa da vida religiosa das mulheres ou
reserva a santidade à casta masculina. Repete-se a
palavra do apóstolo Paulo: "Não há judeu nem grego,
não há escravo nem homem livre, não há homem nem
mulher, pois que todos vós sois um amigos
masculinos são indispensáveis, uma vez que
asseguram o contacto com o mundo exterior, que é
em grande parte reservado aos homens nas
sociedades mediterrânicas: eles "vão às compras",
informam e ocupam-se da gestão dos bens materiais
da gente da casa.
Estes directores espirituais fazem murmurar judeus
e pagãos. Na Antioquia (Síria) do final do século IV,
em que cristianismo e paganismo coexistem e por
vezes se confrontam, desencadeiam-se querelas a
propósito destas "coabitações suspeitas" que João
Crisóstomo combate com arrebatamento. O futuro
bispo de Constantinopla, antigo monge de regresso a
Antioquia e grande pregador, luta contra esta vida em
comum, na castidade mas no equívoco, de religiosos
e de virgens "subintroduzidas", como são designadas.
Ele adivinha tudo o que têm de suspeito e de tentador
estas relações aparentemente fraternas, sem
perceber a que ponto é difícil às mulheres escapar a
esta protecção masculina. Não será de espantar tam-
bém que se encontrem casos extremos. Na sua
Apologia pela sua fuga, Atanásio (século IV) evoca
um sacerdote, Leôncio, que "em presença da
acusação e da proibição de coabitar com uma mulher,
GUIBERTO DE NOGENT, O MONGE JORNALISTA 165

ainda jovem, de nome Eutólion, castrou-se a fim de


poder viver impunemente com ela"!
A vocação ascética ou monástica das mulheres, no
Oriente mediterrânico dos primórdios do
cristianismo,revela-se pois extremamente perigosa.
Embora a virgindade seja vivamente encorajada pela
Igreja, é praticamente impossível conciliar as duas
exigências opostas: vigiar as mulheres e neutralizar
as tentações de que elas são responsáveis e vítimas.
Assim, o monaquismo feminino não pode
verdadeiramente desenvolver-se; é ocultado pela
radiação do eremitismo masculino ou das grandes
comunidades monásticas de homens. Pouco
numerosos, os conventos de monjas enclausuradas
situam-se sobretudo nas cidades importantes ou nos
lugares de peregrinação: Jerusalém, o santuário de
Santa Tecla em Isáuria (cf. "Biografias"), Edessa,
Antioquia e Alexandria.
um vocabulário um tanto obsceno; compunha
pequenos poemas que eram tudo o que há de menos
ponderado e comedido, os quais, antes pelo contrário,
devo dizê-lo, ignoravam a mais elementar decência."
Noutras partes, o autor leva-nos a reviver o clima
das conversões de um Thibaud de Provins, de um
Simão de Valois, de um S. Bruno. Conta, com muita
inspiração, o movimento monástico do seu tempo;
pelo facto de haver muitos monges, "não se
encontrava em parte alguma forma de os alojar, a não
ser nalguns mosteiros muito antigos; começou-se
então em todo o lugar a construir outros novos, assim
como a consagrar abundantes rendimentos ao
sustento desses homens que acorriam de todo o
lado." Mas a vida dos monges é também a perfídia de
um que não segue a regra, o assassinato de uma
abadessa, a visão de um frade, o medo da heresia, os
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

abusos de um abade, um doente curado


miraculosamete, um falso monge: "Foi outra a sorte de
um monge de Fleury que foi o primeiro, depois de ter
prometido dinheiro ao rei de França, a tentar extorquir
ao abade Abão, homem tão profundamente santo
como sábio, essa igreja do glorioso S. Bento. O dito
Abão perseguiu-o, com a intenção de corrigir essa
ovelha desgarrada e de a condenar ao degredo; ora
quis o acaso que topasse com o culpado em Orleães.
Esse simoníaco, tendo compireendido que o abade se
encontrava ali e não achando nenhum meio de fugir
para onde quer que fosse, refugiou-se nas latrinas,
como se o peso do seu ventre a isso o instasse. Abão
chegou pois, procurou-se o culpado, mas não se pôde
descobrir em parte alguma a sua pessoa, encontrou-
se apenas a sua cogula pendurada num gancho, pois,
uma vez desaparecido o homem, já só ao seu santo
hábito era devido respeito."
Mas o que impressiona o leitor da Autobiographie
de Gui- berto é a devoção que ele teve pela sua mãe,
o retrato que dela nos dá, os traços que narra. Jovem
esposa, ficou sete anos sem ter com o marido
relações conjugais e a sua família insistia com ela
para que se divorciasse quando "uma velha mulher
pôs termo a esses maus artifícios". Depois de ter tido
vários filhos (não se saberá quantos), ficou viúva
depois do nascimento de Guiberto, recusa-se a voltar
a casar, ocupa-se da educação dos seus rapazes,
defende os seus direitos perante alguns barões ávi-
dos, leva uma vida de orações e de privações: "Com
os meus próprios olhos vi, com as minhas mãos
toquei, um cilício muito severo que ela usava
directamente sobre a pele, ao mesmo tempo que,
exteriomente, o seu trajar era muitas vezes bastante
aprimorado; não o usava unicamente de dia, mas
GUIBERTO DE NOGENT, O MONGE JORNALISTA 165

dormia também revestida deste cilício de noite, o que


era tratar bem duramente um corpo tão delicado." Fez-
se religiosa junto do mosteiro de homens de Saint-
Germer, como era então prática frequente; "mandou
construir uma pequena casa perto da igreja", aí se
colocou sob a autoridade de uma velha mulher, cortou
os cabelos, vestiu-se de feios hábitos remendados,
adoptou um bébé, que a impedia de repousar de noite
porque chorava. Morreu após ter tomado o véu das
monjas: "Nessa mesma noite, à hora em que se
celebra e canta o envio do anjo Gabriel à Virgem por
Deus, foi ela ao encontro dessa Senhora que ela dizia
ser a sua, e a quem notei que sempre desejara com
um amor sem fim."
Que ímpeto e que estilo! São vinte as situações
que se poderiam extrair do texto de Guiberto para
reviver a vida quotidiana do século XII, a fée o terror, a
sua bondade e as suas violências. Não se trata de um
romance, não se trata de uma história. Como um
jornal, pode-se, à vontade, percorrer em desordem as
suas colunas a partir do fim ou do princípio.

Nota
1
Guibert deNogent, Autobiographie. Introdução,
edição e tradução de Edmond-René Labande, Paris,
Les Belles-Letres "Les Classiques de l'histoire de
France au Moyen Age", 1981, 496 pp.
MULHERES NO DESERTO? 179

maneira "perigosas" que o monge deve viver


continuamente em guarda. Citam-se os exemplos dos
monges que, sem consideração por nada, soçobraram
no pecado em companhia de uma religiosa "caída". S.
Jerónimo pretende que se devem afastar as religiosas
mesmo dos eunucos e Moisés, o Egípcio, escreve às
virgens: "Não deixeis as crianças do sexo masculino
entrar no vosso convento a fim de que não sejam um
escândalo para vós". As ocasiões de contacto entre os
monges e as irmãs, nomeadamente o ritual dos
enterros, são regulamentadas e limitadas com
precisão.
Na Histoire Lausiaque de Paládio (princípios do
século V), o asceta Elias, o Egípcio, é chamado
philoparíhenos, amigo das virgens: construiu um
grande mosteiro na cidade de Athribis e aí reúne
mulheres errantes. Põe-lhes ao dispor jardins e, para
estabelecer a paz entre as trezentas virgens, que
discutem entre si, passa dois anos no meio delas. No
entanto, Elias, "atravessando a idade da mocidade, é
tentado pela volúpia" e tem de fugir para o deserto.
Adormece e aparecem-lhe três anjos que lhe propõem
desembaraçá-lo da paixão, depois emasculam-no com
uma navalha, "não na realidade mas em sentido
figurado". Elias regressa ao seu mosteiro e, "desde
então, mantém-se numa cela de lado, donde, estando
mais próximo, faz continuamente a correcção" às
irmãs.
Os regulamentos eclesiásticos e a legislação
imperial que condenam toda a intrusão de homens
nos mosteiros de mulheres conseguem em breve
interditar os mosteiros duplos que, em consequência,
desaparecem nos séculos VI e VII. Para os monges, é
demasiado forte a contradição entre a necessidade de
vigiar e guiar as virgens e os riscos de pecado e de
escândalo que isso acarreta. Anterior e depois
contemporânea da vida ce- nobítica, a vida ascética
suscita as mesmas dificuldades. Os grupos de virgens
mais ou menos reclusas, que vivem na cidade num
enquadramento familiar, recebem visitas de monges,
de ascetas ou de sacerdotes dos quais se encontram
dependentes. Por vezes, monges e virgens têm o
mesmo domicílio. Estes
A realidade é bem diferente do teor destas
narrativas, que apesar de tudo difundem um
ensinamento: o ideal da vida angélica é acessível a
todos e a todas. Trata-se, à força de renúncia, de se
desapegar da condição humana e de estar já nos
céus, semelhante aos anjos, liberto não só de toda a
vida sexual mas sobretudo de toda a distinção sexual.
João Crisóstomo, pregador do final do século IV,
escreve: "Aqueles que eram os mais ardentes no mal,
mais arrebatados e mais voluptuosos do que os
outros, rivalizam agora com os anjos pela sua
temperança e pela sua impassibilidade."
Não só a prestigiosa vida eremítica, que confere a
alguns seres excepcionais irradiação e poderes
miraculosos está reservada aos homens, como ainda
o ascetismo e a vida cenobítica das mulheres são
estreitamente vigiadas. A religiosa, "que está unida ao
Esposo celeste, cumpre pois a vontade do seu
esposo"; em consequência, deve preservar o seu
tesouro, conservar para Cristo essa virgindade tão
valorizada nas sociedades mediterrânicas. As monjas,
mulheres fracas, não podem governar por si mesmas
a sua existência. É certo que se encontram submeti-
das à direcção de uma anciã, a que chamam mãe,
Amma, mas é a maior parte das vezes um capelão,
de preferência um velho monge, quem as comanda—
só ele tendo o direito de as visitar.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

A direcção masculina traduz-se frequentemente,


em particular no Egipto, pela constituição de
mosteiros duplos: o superior de um mosteiro de
homens torna-se igualmente responsável pelo
convento vizinho de monjas. Por vezes, um fundador
constrói imediatamente um mosteiro duplo. Assim, um
príncipe arménio do século VI instala a sua mulher
Maria, a sua família, os seus escravos e o seu séquito
em construções gémeas mas separando bem as
mulheres dos homens. No Egipto, os mosteiros de
mulheres são mantidos com o supérfluo dos
conventos de homens; por vezes um grupo de monjas
é separado dos monges pelo Nilo, e só o cemitério é
comum.
Todos estes intercâmbios engendram tentações.
Mesmo conduzidas por um pulso viril, as mulheres
são por natureza de tal
3. AS MULHERES DE DEUS
MULHERES NO DESERTO? 179

partilhada entre as profundezas da libertinagem e os


cumes da ascese. Elas passam a sua juventude em
Alexandria na prostituição, convertem-se subitamente
e lançam-se no fundo dos desertos do Egipto e da
Palestina, nas mais terríveis macerações da vida
solitária, antes de morrerem em estado de santidade.
Mas estas belas lendas, redigidas desde a
Antiguidade, muito apreciadas na Idade Média e que
os romancistas modernos se comprazem em
remodelar, não passam de puras ficções! Temos de
nos abstrair destas vidas imaginárias para discernir na
literatura cristã do século IV ao VII o rosto das
mulheres que, do Egipto à Síria do Norte, adoptaram o
modo de vida monástico e rivalizaram assim com os
gandes homens do seu tempo: os monges Antão,
Pacómio, Simeão Estilita e Sabas (cf. "Biografias").
A figura da prostituta convertida é forjada pelo
modelo da pecadora anónima que, segundo o
Evangelho de S. Lucas, verteu um vaso de perfume
sobre os pés de Cristo e que, por confusão, será
denominada mais tarde Maria Madalena. A
documentação de que dispomos, feita de narrativas
hagiográficas* ou históricas, redigidas quase
unicamente por homens, inventa ou recompõe as
vidas das santas mulheres ao sabor dos fantasmas
masculinos e das exigências do ensinamento cristão.
Houve dois tipos de lendas que encontraram um
imenso êxito, imposto por uma imagem estereotipada
da ascese feminina. A "cortesã arrependida" acha-se
bem representada por ThaTs ou Maria, a Egípcia;
chegar-se-ia a escrever que Porfíria-Pelágia dirige um
convento inteiro de antigas prostitutas em Tiro. A
"mulher disfarçada de monge", como é o caso de
Marina, Anas- tásia ou Hilária, é uma jovem que vive
num mosteiro de homens fazendo-se passar por um
MULHERES NO DESERTO? 179

eunuco; a verdade surge, seja no momento em que se


enterra o cadáver do pseudo-monge, seja na
sequência de um reconhecimento romanesco. A
história de Pelágia, a penitente, reúne os dois temas:
Pelágia, actriz e dançarina, ou seja, para os Antigos,
dançarina de strip-tease e prostituta, torna-se asceta,
disfarçada de homem, numa cela murada do monte
das Oliveiras em Jerusalém.
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ou de permitir que uma mulher viva sozinha num lugar


selvagem. Várias histórias contam o encontro de um
santo eremita com uma mulher solitária no fundo de
um deserto. Aba* Elias, o "herbívoro" (que se alimenta
de ervas selvagens), recebe a visita de uma mulher
que habita uma gruta próxima da sua no deserto da
Judeia; ela pede-lhe água. Após a sua partida, Elias,
"vencido e não podendo mais suportar o ardor da
paixão", sai da sua gruta: "Tendo o calor tornado
mesmo as pedras escaldantes, dirige-se para ela para
satisfazer o seu desejo." Uma aparição providencial
detém-no a tempo. As narrativas deste tipo são sinais
de cautela, destinados a recordar ao monge que em
parte alguma ele se encontra ao abrigo das tentações.
Não existem mulheres eremitas, nem mulheres que
levem a vida excepcional dos dendritas, instalados
nas árvores, ou dos estilitas, empoleirados no cimo de
uma coluna em pleno vento. As grutas, as montanhas
selvagens e os desertos infestados de demónios são
a morada dos solitários barbudos. S. Jerónimo (cf.
"Biografias ") proíbe o eremitismo às mulheres pois "o
seu pensamento mutável e flutuante desliza
facilmente para o pior".
A reclusão é a forma de vida feminina mais
próxima do eremitismo, mas ela não passa de uma
variante do ascetismo urbano antigo. Na Síria do
Norte, região caracterizada pelas tendências
extremistas das suas devoções, Marana e Cira, duas
irmãs de uma grande família de Bereia-Alepo (na
Síria), encerram-se à entrada da sua cidade num
recinto cuja porta é encerrada. Constroem um
alojamento vizinho para as suas servas "e ordenam-
lhes que lá se mantenham. (...) Vigiam por uma
pequena lucarna o que elas fazem, incitam-nas muitas
vezes à oração e inflamam-nas no amor divino".
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Marana e Cyra cobrem o corpo de pesadas cadeias


de ferro, segundo um costume que não é raro na
Síria.
Na espantosa história do monaquismo oriental dos
primeiros séculos do cristianismo, muitos dos nossos
contemporâneos retiveram apenas dois nomes: a
Thais de Anatole France e a Marie d'Egypte de
JacquesLacarrière, que fascinam pela sua existência
Mulheres no deserto?
Pierre-Louis Gatier

No decurso da Antiguidade tardia (séculos IV-VII),


numa sociedade mediterrânica oriental conquistada
pelo cristianismo mas largamente dominada pelos
homens, o lugar da mulher na Igreja mantém-se
restringido. A exemplo do sacerdócio, a vida de
eremita (do grego eremos: "vazio", "solidão",
"deserto") é-lhe interdita. Não se consegue imaginá-la
entregue a si mesma, só e sem tutor masculino: pai,
irmão ou marido. Os santos homens, esses podiam
subtrair-se ao mundo para se aproximarem de Deus
partindo para irem viver no deserto — numa caverna,
numa cisterna fora de uso, no fundo de um túmulo,
sobre uma coluna de pedra (os estilitas*) ou nas
árvores (os dendritas*).
É certo que desde as suas origens as comunidades
cristãs das cidades praticaram um ascetismo
tradicional, depressa caracterizado pela abstinência
sexual, virgindade para os jovens dos dois sexos,
continência parcial ou total para os cristãos casados. A
viúva, a virgem e o cristão continente são figuras
respeitadas da Igreja primitiva. Desde a sua Primeira
Epístola aos Coríntios (cerca de 55-57), S. Paulo
sublinha aliás a eminente virtude da abstinência: "
Digo todavia aos solteiros e às viúvas que lhes é
conveniente conservarem-se assim como eu (não
casado). Mas se não puderem viver continentes, que
se casem: mais vale casarem do que arderem de
volúpia."
Mas o monaquismo difere fundamentalmente
desse ascetismo acompanhado de jejuns e de
práticas caridosas. Ele só aparece no final do século
MULHERES NO DESERTO? 179

III, no momento em que se interrompem as


perseguições aos cristãos no Império Romano e em
que as comunidades cristãs se alargam, passando da
dimensão da seita à da sociedade inteira. O
monaquismo começa por ser uma reacção a esta
última evolução: mostra a vontade de conservar um
ideal religioso, nascido nas perseguições, não con-
vertendo lentamente a sociedade greco-romana como
a Igreja se aplica a fazer, mas isolando-se dessa
sociedade e rejeitando os compromissos a que ela
obriga os cristãos.
Um dos primeiros, segundo parece, o egípcio
Antão (cf. "Biografias ", p. 180) teve também a ideia
de fugir, não somente das cidades, mas também da
terra cultivada — a chôra —, zona povoada na orla do
Nilo. Retirando-se para o deserto, por volta do ano
270, aí desenvolve a vida eremítica, a seguir agrupa
discípulos que vivem em celas separadas, mas
exercem algumas actividades em comum sob a
direcção do seu mestre e pai. Estes grupos,
chamados "lauras", são uma das primeiras formas
que se conhecem do monaquismo. Pouco depois,
igualmente no Egipto, Pacómio (cf. "Biografias ")
institui um outro monaquismo, o cenobitismo (de
koinobion: "vida em comum").
Eremita ou cenobita, o monge (de monachos:
simultaneamente "solitário" e "unido") começa por ser
um ser que renuncia à sociedade para levar uma
existência toda consagrada a Deus. Deixa assim a
sua família, a sua cidade e a civilização, apesar de
cristianizadas, e substitui-as pela solidão ou por uma
comunidade restrita inteiramente virada para a
perfeição. Numa época em que as perseguições
terminaram, o ideal monástico faz pois as vezes do
martírio. Já não se dá testemunho da sua fé vertendo
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

o próprio sangue, mas deixando secar lentamente os


ossos no fundo do deserto.
Nascido no final do século III, na Síria do Norte e
na Alta Mesopotâmia ao mesmo tempo que no Egipto,
o monaquismo expande-se em seguida na Palestina,
na totalidade da Síria e na
Ásia Menor — regiões submetidas, no essencial, ao
Império Romano, mas com algumas zonas dominadas
pelos Persas. Atinge o seu apogeu no Oriente entre os
séculos IV e VII. No Mediterrâneo ocidental, o
monaquismo inspira-se fortemente nos modelos
importados do Oriente, antes de dar início ao seu im-
pulso próprio.
No seio deste vasto movimento, a vida monástica
feminina só lentamente emerge do ascetismo
tradicional. As mulheres que escolhem o monaquismo
são de resto muitas vezes denominadas "virgens" e
muito mais raramente "monjas". A Igreja propõe-lhes o
modelo de uma pequena comunidade de mulheres
pertencentes à mesma família, com algumas servas.
As saídas são muito raras; a oração e os trabalhos
têxteis ocupam o essencial do tempo. Não se está
muito longe do ideal da leiga virtuosa, mulher discreta
e reservada mas que privilegia a virgindade ou, para
as viúvas, a recusa de segundas núpcias.
Progressivamente, são acrescentadas algumas
regras. "Que o tecido das tuas vestes não seja
precioso. O teu vestido será negro, não tingido, mas
da cor natural. (...) Se encontrares um homem, vela o
teu rosto e baixa os olhos. (...) Quando estás de pé
para a oração, que os teus pés estejam ocultos em
calçado. Tal deve ser a postura de uma pessoa
consagrada. (...) Se estás de boa saúde, não vás ao
banho senão em caso do grande necessidade. (...)
Quando lavas o rosto, não o faças com as duas mãos,
MULHERES NO DESERTO? 179

não esfregues as faces, não empregues nem erva,


nem lixívia, nem produtos semelhantes: isso fazem as
mundanas. Usa unicamente água pura" — ordena o
pseudo-Atanásio1 no seu Discurso às Virgens.
Alguns anos antes, o egípcio Antão recomenda a
sua jovem irmã "a virgens conhecidas e fiéis" e deixa-
a a elas confiada para que seja "educada na
virgindade". Numa altura em que o monaquismo se
desenvolve e que a partida para o deserto se torna a
sua característica, a ascese familiar na cidade (as
mais das vezes de uma mãe com a sua filha) continua
a ser, para as mulheres, o modelo da vida santa. O
eremitismo feminino não existe pois, praticamente. Um
Antigo parece incapaz de imaginar
P. Hofmeister, Von den Nonnenklöstern, Mogúncia,
1934.
Dom J. Hourlier, Histoire du Droit et des institutions
de l'Eglise en Occident. T. 10, L'Age classique des
religieux (1140-1378), Paris, Cujas, 1974.
E. Power, Medieval English Nunneries c. 1275 to
1535, Cambridge University Press, 1922.
Dom P. Schmitz, Histoire de l'Ordre de Saint Benoît,
t. 7, Les Moniales, Éd. de Maredsous, 1956.
Medieval Women, Oxford, éd. Derek Baker, 1978.

As obras gerais dão referências precisas a artigos e


a estudos que versam sobre cada ordem em
particular. .Mas será preciso acrescentar-lhes a
literatura recente relativa às mulheres na Idade Média
e nomeadamente o número especial dos Cahiers de
Civilisation Médiévale (1977) ou o estudo de M.
Bernards, Spéculum Virginum. Geistigkeit und
Seelenleben der Frau im Hochmittelalter, Colónia,
1955.
MULHERES NO DESERTO? 179

Eustochium, que ali fundam um mosteiro. Contudo,


parece ter estado em desacordo com Melânia, uma
outra romana rica que tinha instalado um convento em
Jerusalém.
SIMEÃO EST1LÍTA: Há duas ilustres personagens
que têm sido frequentemente confundidas pela
tradição. S. Simeão Estilita, o Velho, inventa no século
V o modo de vida estilita, isto é, a instalação no alto
de uma coluna, ao vento, sobre uma montanha, por
sobre o burgo de Telanissos, hoje Qalaat Seman,
entre Antioquia e Bereia (Alepo). Com o correr dos
anos, Simeão manda construir colunas cada vez mais
altas. Teodoreto, bispo de Ciros, é um dos hagiógrafos
que relataram a sua vida. S. Simeão Estilita, o Jovem,
filho de Santa Marta, leva igualmenete uma vida de
estilita, um pouco mais tarde, nas proximidades de
Antioquia, numa montanha chamada Monte
Admirável. Ambos conheceram um êxito considerável
e produziram grande número de milagres. Simeão, o
Velho, prestajustiça, luta contra pagãos, judeus e
hereges, corresponde-se com o imperador Teodósio II,
com os magistrados e com os bispos. Simeão, o
Jovem, corresponde-se igualmente com o imperador e
conversa com Cristo e os anjos.
SANTA TECLA é uma "heroína de romance cristão".
Os Actos apócrifos de Paulo e Tecla contam que o
apóstolo Paulo convertera a bela Tecla. Esta foge aos
ardores do seu noivo e conhece então uma vida
errante. Por toda a parte onde passa, tem de escapar
ao desejo dos homens e ao suplício dos
perseguidores; é assim que é lançada a leões, touros
e até "focas (!), mas é sempre poupada. Acontece-lhe
disfarçar-se de homem para encontrar a tranquilidade.
Finalmente, retira-se para uma região montanhosa e
acaba por desaparecer para sempre numa fenda do
solo. O principal santuário de Tecla encontra-se ao
lado de Selêucia de Isáuria, na Ásia Menor; é hoje a
AS FREIRAS 199

localidade arqueológica de Meriamlik, com várias


igrejas, uma das quais está construída sobre uma
gruta. A popularidade de Tecla é tal que numerosos
santuários a reivindicam em todo o Oriente.
Léxico
ABBA (aba): pai, termo geral de respeito empregue
em relação a numerosos monges e que não significa
forçosamente "superior de um mosteiro".
ANACORETA: a anachoresis, acção conjunta de se
retirar e de se refugiar, é, na origem, a fuga dos
camponeses egípcios que, para escaparem aos
encargos, em particular fiscais, que os esmagavam,
se refugiam em lugares desérticos ou nos pântanos
do Delta. A anacorese, esse abandono, virá a tornar-
se o esforço constante do monge, o anacoreta, para
se desapegar do mundo que deixou.
APÓCRIFOS: obras que a Igreja não aceitou no
Antigo ou no Novo Testamento. Existem assim
Evangelhos apócrifos, Actos apócrifos dos Apóstolos,
etc.
DENDRITA: de dendrion, árvore, em grego; os
dendritas habitavam em árvores, levando uma vida
solitária; é uma forma de existência vizinha da do
estilita, mas não tem nem o seu êxito nem a sua aura.
A Síria é o lugar privilegiado para as práticas
ascéticas extravagantes e por vezes ostentatórias.
HAGIOGRAFIA: literatura consagrada a descrever
os altos feitos, nomeadamente os milagres, das
santas personagens do cristianismo.
MONOFISISMO: as principais querelas teológicas
dos primeiros séculos referem-se à natureza de Cristo
e da sua encarnação. As correntes monofisitas não
querem reconhecer em Jesus senão uma só natureza
(mono-physis), isto é, insistem na divindade de Cristo
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

em detrimento da sua humanidade. Por oposição, as


correntes nestorianas (de Nestório, patriarca de
Constantinopla, deposto), ao separarem as duas
naturezas, humana e divina, parecem deter-se no
Cristo-homem. Os Calcedonianos (de Calcedónia,
onde teve lugar o Concílio de 461) condenavam as
duas atitudes e defendiam a união da humanidade de
Cristo com a sua divindade. São as suas teses que
vêm a triunfar em Roma e em Constantinopla.
ESTILITA: de siylos, coluna, em grego. Monge
instalado sobre uma pequena plataforma no alto de
uma coluna ao ar livre.
O aparecimento destas "terceiras ordens"
acessíveis a todos e a todas permitiu lutar contra o
monopólio aristocrático do recrutamento das freiras e
das irmãs. Ela permite-nos também compreender
melhor o problema fundamental das mulheres re-
ligiosas: enquanto umas, as aristocratas, entravam por
vezes na Igreja regular por necessidade social, outras,
de origem humilde, viviam intensamente o seu ideal
fora do claustro e do convento, ao serviço dos
desafortunados. Poder-se-ia pois esperar das
primeiras uma vocação que nunca tinham sentido?
Será de espantar ainda que as vejamos prontas a
olhar para fora, que encontremos a mulher debaixo do
hábito da freira?
Por difícil que seja a análise do fenómeno religioso
feminino, por contestáveis que sejam certas
definições, há factos que ressaltam com evidência: as
reticências da Igreja face às mulheres, a atitude por
vezes desconfiada das ordens masculinas, o
abafamento e — perante e contra todos — o impulso
feminino permanente, a forte procura de belos êxitos
devidos a personalidades notáveis, santas mulheres,
piedosas reclusas, abadessas de grande classe.
AS FREIRAS 199

Neste plano como noutros, a Idade Média é de uma


extrema riqueza e, ao reter apenas a irmãzinha dos
romances em verso, tenta-se mascarar uma vasta
ignorância.

Orientação bibliográfica
M. Parisse, Les Nonnes au Moyen Age, Le Puy, éd.
Christine Bon- neton, 1983.
Colóquio, Les Religieuses en France au Xlle Siècle,
Presses Universitaires de Nancy, 1985 (2.a ed., 1990).
Penelope D. Johnson, Equal in Monasîic
Profession. Religious Womenin Medieva! France, The
University of Chicago Press, 1991.
Paulette L'Herm.ite-Leclercq, Le Monachisme
Féminin dans la Société de son Temps. Le monastère
de La Celle (Xle-début du XVle siècle), Paris, éd.
Cujas, 1989.
M. de Fontette, Les Religieuses à l'Age Classique
du Droit Canon. Recherches sur les structures
juridiques des branches féminines des ordres, Paris,
J. Vrin, 1967.
("Pucelles ") de Metz, organizadas em comunidades a
partir do século XIII? Tal permitiria, como alguns
pensam, explicar o qualificativo de donzela dado a
Joana d'Arc. Ou estarão elas mais próximas das
arrependidas, ou das penitentes, daquelas que se
encontram nas "madalenas", assim chamadas porque
a santa patrona era, a maior parte das vezes, Maria
Madalena?
No final da Idade Média, a diversidade das
religiosas não pára de crescer; as regras, os
costumes, os preceitos multiplicam-se, diversificam-
se. Pouco importava, sem dúvida; a cor das vestes, o
véu, as restrições de alimentação, a liturgia, o ideal
distinguiam mal todas aquelas que constituíam o
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mundo das freiras e das religiosas de todas aquelas


que, por vias diferentes, renunciavam a tudo para
servir a Deus; pois é certamente essa a definição
fundamental da religiosa, da freira: ela é uma serva de
Deus (ancilla Dei), a criada e a familiar de Cristo
(famula Christi), a que ama o seu próximo (soror), a
que é piedosa (sanctimonialis).
A mulher é impura; diz-se dela que é a criatura do
demónio; é preciso protegê-la dela mesma e evitar as
tentações que ela suscita. Ela só tem duas "carreiras"
possíveis, o casamento ou a vida religiosa e, a partir
do século XII, esta é uma outra forma de casamento,
a união com Cristo; a freira é também a sponsa
Christi, a esposa de Cristo. Na realidade, esta
alternativa elementar é aquela que conhecem as
famílias nobres e, depois, as dos patrícios das
cidades e dos cavaleiros; em ambos os casos, era
necessário fornecer um dote, mas a Igreja era com
frequência menos exigente. A um nível social inferior,
a jovem não casada não tinha o mesmo problema,
pois podia trabalhar, ajudar os pais, labutar nos
campos ou na oficina, estar ao serviço de uma família
rica; se verdadeiramente.o queria, entrava para o
convento para aí ocupar as mesmas funções
subalternas. Mas, a partir do século XIII, ela pôde —
novidade importante — continuar a viver no século e
participar no ideal de uma ordem tornando-se
terciária, ao entrar para aquilo a que se chamou uma
terceira ordem, a dos leigos (sendo a primeira ordem
a dos irmãos, a segunda a das irmãs).
MULHERES NO DESERTO? 179

Orientação

bibliográfica

Estudos:
P. Brown, La Société et le Sacré dans l'Antiquité
Tardive, Paris, Éd. du Seuil, 1985 (recolha de artigos
traduzidos).
P. Canivet, Le Monachisme Syrien selon Théodoret
de Cyr, Paris, Beauchesne, 1977.
D.J. Chitty, Et le Désert devint une Cité, Abadia de
Bellefontaine, 1980 (tradução francesa).
A.-M. Vérilhac, éd., La Femme dans le Monde
Méditérranéen, t. 1, Antiquité, Lião, TMO, dif. De
Boccard, 1985.
Textos:
R. Arnauld d'Andille, tradução (do século XVII) de
Sofrónio, Vie de Sainte Marie Egyptienne Pénitente,
reed. Paris, J. Millon, 1985.
P. Canivet, tradução de Teodoreto de Ciro, Histoire
des Moines de Syrie, 2 ts„ Paris, Le Cerf, 1977-1979.
A.-J. Festugière, Les Moines d'Orient (numerosos
textos traduzidos em francês), 4 ts. (7 vols.), Paris,
Le Cerf, 1960-1965.
Romances:
A. France, Thaïs, Paris, 1890.
J. Lacarrière, Marie d'Egypte, Paris, Lattès, 1983.
AS FREIRAS 197

mais uma vez, os grupos sociais de condição humilde


forneciam apenas irmãs leigas e criadas.
Mas nem todas as vocações religiosas conduziam
ao claustro ou ao convento, à oração e à
contemplação. Houve mulheres que acharam maneira
de se manter activas levando ao mesmo tempo uma
vida de religião. Com o desenvolvimento das cidades
(séculos XII-XIII), as maisons-Dieu tornaram-se muito
numerosas: albergues para os peregrinos e viajantes,
asilos para os pobres, para os doentes, para os
enfermos, hospitais, leprosarias. As irmãs tiveram aí
um lugar importante, ao lado de alguns irmãos e sob a
direcção de um "mestre", reencontrando nesta ocasião
a ideia de comunidade dupla. A sua tarefa era muito
penosa, mas essencial, pontuada por orações simples
ditas com os doentes na sala grande, marcada pela
preparação para a morte e a vida no Além. Aceitando a
pobreza e a obediência juntamente com a castidade,
elas viviam uma vida religiosa e profana ao mesmo
tempo. Não eram freiras no sentido em que o termo é
entendido habitualmente, tal como não o eram as
beguinas que se expandiriam pelo norte da França,
Lorena e Alemanha no século XIII.
Muita gente se tem interrogado sobre a génese das
begui- narias, essas instituições ainda hoje visíveis na
Bélgica com as suas pequenas casas alinhadas em
volta de um pátio e de uma igreja. Poder-se-á dizer que
essas mulheres eram religiosas laicas? A expressão é
em si contraditória. Seja como for, as mulheres não
podem ser clérigos, isto é, não podem ser ordenadas,
logo, mantêm-se laicas em certo sentido; mas, ao
professarem, entram na Igreja regular e são desde logo
consideradas a par dos clérigos e dos monges. Pouco
a pouco, as beguinas, cuja piedade provocava o
agrupamento, organizaram-se em comunidades cada
AS FREIRAS 198

vez mais rigorosas, seguiram uma regra e, como ficou


dito, viveram nessas beguinarias cuja disposição geral
não deixa de recordar certos mosteiros. O seu êxito foi
particularmente grande na antiga Lotaríngia, da
Flandres a Be- sançon. Será sensato compará-las com
essas Donzelas
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

Se o século XII foi o tempo dos cistercienses e dos


cónegos regulares, o século XIII foi o que viu nascer as
ordens mendicantes, votadas a um vasto êxito. Os
dominicanos (de branco) e os franciscanos (de
castanho) precederam amplamente os carmelitas e os
agostinhos. Mas, ainda antes de a sua ordem estar
constituída, S. Domingos e S. Francisco tiveram de
agrupar em comunidades as piedosas mulheres vindas
na sua esteira. Uma grande figura emerge, Santa
Clara, que queria com algumas companheiras realizar
o ideal franciscano e foi a primeira abadessa das
"reclusas" de San Damiano. Com efeito, nem as
clarissas (franciscanas) nem as pregadoras
(dominicanas) puderam verdadeiramente levar a vida
pregada pelos chefes das suas ordens; não se podia
pensar em que andassem mendigando o seu pão e
pregando, de aldeia em aldeia. Num primeiro tempo,
bastante longo, elas fizeram no convento uma vida
análoga à das monjas e das cónegas. A dependência
de um convento feminino relativamente a uma das
ordens mendicantes não surgia a não ser através do
seu chefe espiritual, cuja tarefa era aconselhar as
religiosas e mantê-las dentro do ideal do fundador.
O problema da regra a seguir colocou-se para as
irmãs com acuidade; vários textos diferentes foram
escritos e difundidos, com um êxito desigual. A solução
só chegou, para as dominicanas, após 1259 e, para as
clarissas, após 1236. A tensão provinha muito da carga
que representava um convento de mulheres, peso
morto económico: mantidas na clausura, as religiosas
dependiam dos elementos masculinos da ordem. A
direcção espiritual e temporal só com reticência era
aceite pelos irmãos. E esse facto não era exclusivo das
ordens mendicantes; tocava todas as ordens
masculinas nas quais uma comunidade de mulheres se
encontrava agregada à dos homens. Para os
mendicantes, como no século XII com Cister e
Prémontré, o problema foi resolvido pelo
estabelecimento de casas de mulheres independentes.
O recrutamento conheceu a mesma evolução que nas
ordens antigas: em inúmeras cidades, clarissas e
pregadoras provinham da elite social, sobretudo nobre,
por vezes burguesa;
As freiras
Michel Parisse
A religiosa da Idade Média é-nos menos bem
conhecida do que o monge; os historiadores deram-
lhe um lugar muito pequeno e, no folclore medieval, a
irmãzinha dos romances em verso presta-se a
sorrisos, ao passo que ashistórias referentes à
atracção que exercem em todos os tempos as
abadias de mulheres, tanto sobre os leigos como
sobre os eclesiásticos, não faltam. Porém, apresentar
esse mundo das religiosas em algumas frases, sob o
pretexto de que os arquivos dos mosteiros femininos
são muitas vezes falhos, sobretudo no que se refere à
época alta, seria fazer pouco caso de um grupo social
rico e variado.
Quando se fala do lugar e do papel das mulheres na
Igreja, regular ou secular, dever-se-ia dizer muito
singelamente as "religiosas", pois o termo traduz o latim
sanctimoniales. Diz-se todavia mais prontamente as
"freiras" (em francês: "nonnes ") — ; foi a palavra que
mantive —, embora os especialistas pretendam ;
reservar o termo para aquelas que optaram pela
clausura, isto é, as monjas ("moniales "), por oposição
às piedosas mulheres que se mantêm em contacto com
o mundo. Em todo o caso, a variedade dos seus
géneros é grande: virgens consagradas, viúvas res- .
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

peitadas, monjas enclausuradas, cónegas, beguinas,


gilbertinas, fontevristas, irmãs leigas, clarissas,
pregadoras e outras.
Uma coisa é certa: as mulheres sempre quiseram,
tanto como os homens, ter na Igreja um lugar que
sempre lhes foi parcimoniosamente atribuído. "Que se
calem nas assembleias" — escreve S. Paulo e, no
século IX, num outro espírito, Bento de Aniane,
tratando da vida monástica, enumera com humor a
lista dos defeitos femininos onde ocorre por várias
vezes a ideia de loquacidade. Elas não têm o direito
de estar em contacto directo com o sagrado. As suas
intenções piedosas são de louvar, mas não lhes dão
os mesmos direitos que aos homens são dados.
Nos primeiros séculos da Igreja, diaconisas intervêm
por ocasião de sessões de baptismo por imersão,
quando se trata de baptizar mulheres. Exige-se delas
uma prática virtuosa e a assistência aos ofícios divinos.
Os concílios merovíngios dão ainda um grande lugar às
viúvas que continuam a viver no século, em suas
casas, impondo a si mesmas um comportamento
rigoroso: estas servas de Deus vestem o hábito de
viuvez e fazem profissão de castidade e de penitências.
Inquietam por vezes as autoridades eclesiásticas, que
lhes prescrevem repetidamente que respeitem os seus
compromissos e as encorajam a juntarem-se às
comunidades monásticas. A estas mulheres maduras,
como às virgens não veladas que impõem a si mesmas
os mesmos preceitos, S. Jerónimo deixou conselhos
seguidos ao longo de toda a Idade Média: as suas
cartas a Marcela, Paula, Principia, Eustóquio, Demétria
informam-nos com precisão a respeito de muitos dos
problemas de espiritualidade e de vida femininas, como
testemunha este trecho da sua carta a Demétria:
"Fora a série dos salmos e a oração, cujos
exercícios deverás fazer às horas de terça, sexta, nona,
vésperas, à meia-noite e à alvorada, fixa o número de
horas que deverás consagrar ao estudo da Sagrada
Escritura e o tempo que empregarás na leitura já não
laboriosa, mas agradável e instrutiva para a tua alma.
Depois de teres determinado esses momentos e as
numerosas orações de joelhos que os cuidados da tua
alma te tiverem inspirado, tem sempre à mão um
trabalho de lanifício: ou então, com a ajuda do polegar,
puxa o fio da roca, ou, para tecer a trama, faz girar o
fuso na lançadeira, e, com aquilo que as outras fiaram,
forma novelos ou então junta-o para o tecer; exami-
levariam o cabido geral da ordem a condenar esta
fórmula e os parténons desapareceram a pouco e
pouco; só um século mais tarde foram de novo
integradas abadias independentes para as mulheres na
congregação de Prémontré, na qualidade de cónegas
regulares.

... "e reacção nobiliária "


Um acolhimento mais caloroso foi reservado às
mulheres por Roberto d'Arbrissel. Este curioso
personagem, clérigo muito instruído, de origem bretã,
que se tornou já tarde pregador errante (1096), teve um
êxito prodigioso e foi seguido por muitíssimas
mulheres, ricas, pobres, nobres e não nobres, mulheres
casadas e prostitutas. Foi-lhe indispensável organizar
esta comunidade que reuniu em Fontevraud (situado no
departamento de Maine e Loire). Ali agregou os
homens e as mulheres, que colocou sob o governo de
uma prioresa e, depois, de uma abadessa. A
complementaridade dos trabalhos de uns e outros
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

tornava esta fórmula muito desejável. Rendido aos


imperativos sociais, Robert pôs os nobres num grande
mosteiro e repartiu os outros por pequenas casas dos
arredores. A atitude de Roberto foi vigorosamente
criticada por alguns; é verdade que ele provocava os
sarcasmos. Não tinha ele o costume de dormir no meio
das mulheres para que as privações fossem mais
vivamente sentidas?
O caso de Fontevraud deu origem à seguinte
observação: no século XII, os novos mosteiros de
mulheres foram quase regularmente "recuperados" pela
pequena nobreza, à semelhança dos mais antigos, que
tinham sido controlados pela aristocracia carolíngia. Os
catálogos de abadessas, as menções isoladas de
entradas de noviças no claustro atestam-no e isso
coloca uma vez mais o problema do lugar concedido às
mulheres na sociedade medieval. Só uma elite social
entrava normalmente na hierarquia da Igreja. As
rústicas, as pobres, acolhidas ocasionalmente, eram
mantidas numa posição subalterna.
só Cluníaco tinha operado um vasto reagrupamento
sob a au- l toridade do seu abade e integrado na sua
ordem alguns priorados ! de mulheres, dos quais o
mais célebre foi Marcigny (situado no \ departamento
administrativo de Sona e Loire). A partir do século ] XI,
criaram-se mais ordens novas, como a de Cister, as
dife- j rentes congregações de cónegos regulares do
tipo de Prémontré, ) as ordens militares e hospitalares.
De uma maneira geral, ] mostraram-se reticentes para
com as mulheres, mas todos tiveram j de ceder perante
os pedidos que lhes foram dirigidos. O mo- i naquismo
foi profundamente alterado pelas reformas eclesiásti- í
cas do século XI e as condições sociais e económicas
novas que i criaram um outro clima de recrutamente e
de acção. O monaquismo feminino pôde finalmente
exprimir-se, pois as mulheres de origem não nobre
tiveram acesso mais livre à vida I religiosa. Era uma
inversão total de perspectiva.
A atitude dos fundadores foi neste aspecto muito
variável. j Cister e S. Bernardo foram durante muito
tempo hostis a um j recrutamento feminino;
finalmente, a abadia borgonhesa de Tart foi a primeira
a reunir cistercienses mulheres e tornou-se a principal
de um pequeno grupo de mosteiros femininos desta
or- j dem. Pelo contrário, Norbert de Prémontré
mostrou-se muito \ acolhedor: foram construídos
"parténons" perto das abadias de homens, a
escassos metros de distância. Eram quase mosteiros
duplos. As religiosas eram chamadas conversas, mas
é preciso não dar a esta palavra o sentido que tinha
entre as beneditinas e as cistercienses, para as quais
designa domésticas mantidas ã parte. Aqui o termo
refere-se certamente às religiosas desta con-
gregação, cuja origem podia ser nobre mas era a
maior parte das vezes do nível dos cavaleiros e dos
oficiais senhoriais. Conhecem-se algumas das suas
limitações: cabelos cortados até às orelhas, roupas
de lã ou de pele de carneiro, vestido de tecido
ordinário, proibição de sair, silêncio. Ter-se-ão
verificado dez mil entradas nesta ordem, como foi
escrito? Não seria possível pretender tal coisa, mas o
êxito foi rápido. Contudo, foi preciso refrear o
entusiasmo, infelizmente! As dificuldades e as criticas
na o que já está tecido, corrige os defeitos, põe ordem
no trabalho." (Ep. CXXX, 15; trad. francesa de J.
Labourt.)
Dualidade da ocupação feminina retomada sem
cessar, oração e trabalho manual.
Rapidamente, as mulheres puderam agrupar-se nos
mosteiros tal como os homens, mas com menos
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

facilidades. Uma enumeração sistemática das suas


abadias na Alta idade Média, antes do ano mil, dá-nos
uma ideia da repartição cronológica e espacial dos
seus estabelecimentos.
No século VI, havia em França umas trinta casas, ou
seja, sete ou oito vezes menos que as dos homens. O
século VII viu fundarem-se perto de outras setenta e
cinco graças à dupla influência, por vezes oposta, do
santo irlandês Columbano e dos seus discípulos, bem
como da aristocracia merovíngia associada à dinastia
real. E já um facto se destaca: o fraco número de
fundações a sul do rio Loire, uma única a sul do rio
Garona, menos de uma dezena entre estes dois rios. O
movimento de fundação, em contrapartida, desenvolve-
se em direcção dos rios Moseía e Escalda, para leste e
norte, com os Carolíngios, alcançando a Germânia no
século VIII. No que virá a ser a Lotaríngia, vinte e duas
criações antes do ano 900. Outro tanto na Saxónia em
pouco mais de um século, um pouco menos nas outras
províncias. Porquê? É que o lugar cedido à mulher na
sociedade é diferente segundo as regiões. Se ao sul
ela é considerada maior e dotada de um poder de
acção, já a norte é mantida sob rigorosa vigilância.
Em França, o reinado de Carlos Magno e dos seus
sucessores representa uma pausa; depois ocorrem as
invasões normandas e húngaras que arruínam,
esvaziam ou destroem as abadias do nordeste da
região. E não só estas: no ano 919, os Húngaros vão
até Remiremont, a sul dos Vosges, e obrigam as
religiosas a procurar refúgio na montanha próxima. Os
seus mosteiros abandonados são muitas vezes
recuperados por monges ou cónegos. No século
seguinte, a retomada é lenta, a não ser em relação ao
Império Germânico, onde se nota um florescimento de
mais de cinquenta abadias, das quais 80% na
Saxónia e na Lorena. É então que se pode constatar
este facto espantoso: na Vestefália, defronte dos
monges de Fulda, única abadia só de homens,
importante, é verdade, conta-se uma dezena de
mosteiros femininos; é uma proporção inversa do que
existe no sul de França. Talvez não haja valor numérico
mais significativo para mostrar a oposição de duas
atitudes, de duas civilizações, até.
Entre os diferentes estabelecimentos, há dois tipos
que sobressaem: o mosteiro duplo e o mosteiro
familiar; encontram-se um pouco por todo o lado na
Europa de então. Os especialistas nem sempre
concordam quanto à definição do primeiro. O ver-
dadeiro mosteiro duplo seria aquele em que homens e
mulheres coexistem com iguatdade de importância sob
a autoridade única de um abade ou de uma abadessa.
É o que se encontra em Córdova, por exemplo: um
muro separa os homens das mulheres e uma janela
gradeada permite as comunicações indispensáveis. Já
o mesmo se não passa quando os monges de S.
Columbano fundam uma abadia de mulheres, à qual
associam um grupo de irmãos; são então abadessas
que os governam, como em Nivelles, Chelles ou
Remiremont mas há um pai espiritual que tem à partida
um papel activo. Os homens podem nesse caso
encarregar-se de trabalhos manuais pesados; há,
sobretudo, sacerdotes para os ofícios. Estas últimas
instituições são, a meu ver, pseudo-mosteiros duplos.
Muito diferentes são os mosteiros familiares; para
simplificar, poder-se-ia dizer que se trata de refúgios e
de casas de educação que acolhem as viúvas e as
jovens de uma família ou de um grupo de famílias
aliadas. Estes estabelecimentos são frequentes entre
os moçárabes — cristãos da Península Ibérica -—,
como na Saxónia; só agrupam algumas dezenas de
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

pessoas, isto é, menos do que acontece com os


homens.
Santo Agostinho (t 430) tinha dado, numa carta,
instruções para organizar uma comunidade feminina
em Hipona; este escrito, juntamente com outros, serviu
finalmente de base à regra agostiniana dos homens no
sécuio XI. S. Jerónimo (t 420), já o dissemos, não
poupou os seus conselhos às viúvas e às virgens.
AS FREIRAS 193

Alguns textos — raros — informam-nos sobre a vida


destas mulheres. Quanto ao século IX, um dos mais
notáveis, apresenta-nos Liutbirga, uma saxã de origem
modesta; tinha entrado para as monjas de Herford e
vivia no meio delas, parece que ao seu serviço; tinha
recebido uma educação bastante alargada, mas,
sobretudo, manifestava qualidades tais que ultra-
passava de longe as suas companheiras. Uma nobre
dama, de passagem pelo mosteiro, reparou nela e
tomou-a na sua companhia. A jovem Liutbirga ficou
desde então junto da sua família. Um dia, pediu para se
tornar reclusa. O bispo de Münster abençoou-a
solenemente e ela enterrou-se na sua cela. Aí se
ocupava com a oração, a boa palavra e pequenos
trabalhos. Particularmente dotada, manejava cores
para tintas. Fazia uma alimentação frugal, suavizada
por vezes por frutos da época. A sua cela era
frequentada mesmo pelos nobres que tinham
necessidade de conselhos. Liutbirga viveu lá cerca de
trinta anos.
Houve mais reclusas que reclusos. A proporção é de
vinte para um nas menções que deles são feitas nos
necrológios de Metz. As reclusas não se achavam ao
abrigo das críticas lançadas contra as monjas ou as
cónegas. Assim, o abade cisterciense inglês Aelred de
Rievaux, que escreveu no século XII uma carta muito
longa à sua irmã reclusa, antes de lhe fornecer princí-
pios para a organização da vida quotidiana e de lhe
fazer um comentário dos textos sagrados de uma
grande elevação, apresenta com muito humor os
excessos de certas reclusas, cativadas pela tagarelice
das velhas, esquecidas dos seus deveres religiosos,
apoquentadas pelas alucinações. Observações
análogas, para dizer a verdade, são feitas noutra parte
a propósito dos reclusos.
AS FREIRAS 194

"Democratização "...
Até ao século XI, houve uma única ordem monástica,
a ordem beneditina. Na realidade, as abadias eram
independentes: penetra sem dificuldade no mosteiro
onde se encontra a jovem Matilde, que ele deseja
conhecer; vai até ao oratório, onde a surpreende a ler o
saltério e, loucamente apaixonado, leva-a ime-
diatamente para na Saxónia. Uma recolha de milagres
conta que, em Maubeuge, um nobre cavaleiro tinha por
hábito visitar uma cónega; a intervenção miraculosa da
santa patrona Hunegundes levou-o uma primeira vez a
renunciar à sua visita. Depois, quando reincidiu para
agradar à sua amante, foi fulminado pela santa. De
notar que não há nenhuma referência a qualquer
punição para a religiosa.
Monjas e cónegas são todas recrutadas na
aristocracia, a qual funda e dota todos os mosteiros. As
plebeias, mesmo de condição livre, só têm como
recurso servir-lhes de criadas. Tal afirmação não figura
nos textos, mas a contrario, está escrito uma
quantidade de vezes que as jovens nobres afluíam aos
mosteiros. E possível que a sociedade de certas
regiões, onde os critérios de nobreza e de liberdade
eram menos estritos do que na Germânia, se tenha
mostrado igualmente menos rigorosa nos seus
exclusivos. Parece-nos todavia confirmado que as
mulheres piedosas de origem "medíocre", para retomar
o vocábulo latino, não podiam viver plenamente a sua
religião nas mesmas condições que as nobres.
Uma vocacão particularmente bem enraizada pode
então levá-las a encerrarem-se durante longos anos
numa cela de reclusa. Se um eremita pode instalar-se
no meio das florestas, numa gruta ou no fundo de um
vale retirado, as mulheres, em contrapartida, não
AS FREIRAS 195

podem isolar-se da mesma maneira; a Igreja e os


poderes estabelecidos apontá-las-iam como
desavergonhadas. É por isso que se tornam reclusas,
refugiando-se numa pequena cela ou numa casinha
ligada a uma igreja. Porta, não há;, apenas uma
pequena janela permite comunicar com o exterior; é por
aí que a reclusa recebe as oferendas dos que passam,
é por lá que distribui os seus conselhos e os seus
encorajamentos. Em certos casos, uma segunda
abertura dá para a igreja e permite seguir o serviço
religioso.
AS FREIRAS 189

S. Cesário de Aries (t 543) dedicou-se a compor uma


regra particular para a abadia que a sua irmã Cesária
governou e onde se encontravam reunidas por volta do
ano 525 cerca de duzentas monjas. O irlandês
Columbano (t 614) não assinalou qualquer interesse
pelas religiosas, mas os seus discípulos aplicaram-lhes
os preceitos do mestre. Na realidade, a regra de S.
Columbano não organizava nada, mas impunha a
obediência, a austeridade, a oração; o seu penitencial
— lista de penitências a que se ficava sujeito por cada
falta —, pormenorizado em extremo, tinha nela um
lugar preponderante e convinha com efeito apenas a
homens.
Vinda no século VI para as nossas regiões, a regra
mais antiga de S. Bento (t 547), escrita em Itália para
homens, recebeu por toda a parte um acolhimento
favorável, pois comportava um verdadeiro emprego do
tempo para os monges e fornecia muitos pormenores
de organização. Impôs-se tanto entre as mulheres
como entre os homens. Todavia, era profundamente
inadaptada a estas, como demonstra bem Heloísa
quando pede a Abelardo que componha uma regra em
intenção das irmãs do Paráclito, no século XII:
"Até hoje, as mulheres e os homens professam
igualmente a regra de S. Bento, embora seja evidente
que esta regra foi feita unicamente para os homens e
que só pode ser observada por eles (...); é a mulheres
que se dirigem as prescrições sobre os capuzes, os
calcões e os escapulários? Que têm elas a ver com
essas túnicas e esses calções de lã, cujo movimento
periódico de sangue nelas lhes torna o uso
completamente impossível? Em que lhes toca a elas o
artigo que ordena ao abade que seja ele a ler o
Evangelho e que comece o hino depois dessa leitura?
E aquele que estabelece que uma mesa particular seja
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

posta para os peregrinos e os hóspedes, à qual ele


presidirá? Convém aos nossos votos que uma
abadessa dê alguma vez hospitalidade a homens ou
que tome as suas refeições com os que tiver recebido?
Oh, como são fáceis as quedas quando nesta reunião
dos homens e das mulheres debaixo do mesmo tecto,
sobretudo à mesa, sede da intemperança e da
embriaguês, à mesa onde é tão doce chegar aos lábios
a taça que verte a luxúria com o vinho!" (carta VI, trad.
francesa de O. Gréard, s/d, p. 111.)

O rigor das monjas


Finalmente, os princípios da vida quotidiana, os
costumes monásticos parecem mais importantes que a
própria regra. A vontade do fundador, de uma
abadessa ou a reticência das religiosas bastavam sem
dúvida quase sempre para aplicar os preceitos de S.
Bento num sentido rigoroso ou, pelo contrário, para
interpretar muito amplamente os seus dados com vista
a oiga- nizar a vida das cónegas por oposição às
monjas.
Poder-se-ia com efeito, por prudência, como o fez
Bento de Aniane em 816, falar das "religiosas" das
abadias; na realidade, havia com certeza dois grupos
nitidamente distintos e a diferença entre eles dizia
respeito, antes do mais, a dois pontos: a propriedade
ou a recusa de bens pessoais, o respeito ou a não
observância da clausura monástica. Para conhecer os
costumes seguidos por cada um dos dois grupos,
podemos reportar-nos às narrativas que nos são feitas,
nas Vidas das Santas, como as de Gertrudes de
Nivelles, Batilde de Chelles ou Cunegundes de
Luxemburgo.
AS FREIRAS 191

As monjas fazem uma vida comunitária desprovida


de fantasia e de conforto. Professam, empenham-se
portanto para a vida inteira, recebem o véu sagrado
com bênção do bispo; no que se refere a Gertrudes de
Nivel les, o seu biógrafo fala mesmo de tonsura e
Cunegundes de Luxemburgo corta solenemente os
cabelos quando da sua entrada para o mosteiro.
Exceptuando o voto de castidade e os de obediência,
nenhuma outra promesa é mencionada. Não é certo
que a pobreza total, isto é, a não posse de bens
pessoais, seja exigida. Quer isto dizer que certas mon-
jas podiam por vezes recolher bens patrimoniais,
receber doações, possuir roupas mais ricas.
Porém, o rigor manifestava-se na maior parte das
vezes no hábito severo, sem fausto nem conforto, de lã.
A vida quotidiana era regulada pela liturgia; as irmãs
iam à igreja em grupo, sob a direcção da abadessa,
assim como deviam manter-se juntas no dormitório, no
refeitório e no trabalho. Os contactos com estranhos no
mosteiro eram severamente regulamentados e só po-
diam ocorrer na presença de terceiros, na igreja.
Mesmo os padres franqueavam a grade do convento o
menos possível.
Por oposição, o género de vida das cónegas surge
singularmente diferente. Estas religiosas têm celas ou
pequenos apartamentos no recinto da abadia, uma ou
várias criadas; além da prebenda — parte dos
rendimentos da comunidade — que lhes é assegurada,
detêm o direito de dispor de bens patrimoniais, que
podem gerir directamente ou por intermédio de
serviçais; têm ocasião, embora com permissão, de
visitar parentes, de os receber, de lhes oferecer de
comer; podem usar hábitos confortáveis e mesmo
luxuosos, alimentam-se de pratos requintados. Entrevê-
se que não professam e nomeadamente parece não se
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

pôr a questão quanto aos seus propósitos de


empenhamento na castidade.
Estabelecimentos destes encontram-se quase
exclusivamente no Império Germânico; trata-se antes
do mais de mosteiros familiares, isto é, como já foi dito,
de casas de educação para jovens nobres, de asilos
para viúvas ricas. Aí se recebe uma formação
intelectual bastante séria, mas limitada à literatura
religiosa e litúrgica, e uma educação manual. Rosvita,
religiosa saxónica que pôs em verso uma biografia de
Otão I e compôs sete peças de teatro à maneira de
Terêncio, representa uma excepção. Inúmeras jovens
são aí colocadas pelos pais enquanto aguardam a
idade núbil e um bom partido. São feias, ou menos
dotadas? Têm fortes hipóteses de ficar toda a vida no
mosteiro. São ricas ou belas? Só lá ficam se o
desejarem ardentemente, pois podem sair para se
casarem.
Estas abadias eram de acesso bastante fácil aos
visitantes do exterior. É assim que o futuro rei
germânico Henrique (919-936) seus jejuns repetidos
tinham contudo sido sempre de curta duração. E a
Igreja medieval pregou seguidamente uma certa
moderação nas práticas de abstinência, cingindo-se a
recomendar o jejum periódico tanto para os fiéis como
para os monges.
Foi a partir do final do século XII que a prática do
jejum tomou nova direcção: numerosíssimas mulheres,
muitas vezes leigas, desejosas de levar uma vida
perfeita, fizeram então da privação de alimentos, por
vezes total, um dos elementos essenciais da sua
experiência espiritual. Várias de entre elas foram
reconhecidas santas após a sua morte e a narrativa da
sua vida foi posta por escrito.
AS FREIRAS 193

Estas mulheres mais não faziam a princípio do que


observar com grande rigor os períodos de abstinência
previstos pela Igreja. Passaram depois a prolongá-los,
empreendendo jejuns estendidos por vários anos.
Muitas baniam completamente da sua alimentação a
carne e o vinho; alimentavam-se apenas de pão, de
frutos silvestres e de ervas. Algumas chegavam a
rejeitar tudo o que fosse cozido, aceitando apenas
alimentos crus. Não obstante as pressões dos seus
próximos, que as forçavam a alimentar-se, a sua
abstinência tornava-se cada vez mais radical.
Marie d'Oignies, morta em 1213, foi uma das
primeiras penitentes a ser objecto de uma biografia,
redigida pelo sfcu confessor, um pregador formado em
Paris, que viria a ser bispo e depois cardeal, Jacques
de Vitry: "Durante muito tempo ela comeu um pão
muito escuro e muito duro, que nem os cães queriam.
Também o interior da sua boca era abençoado, em
razão desse amargor e dessa dureza excessiva" —
escreve ele. No fim da sua vida, já não podia absorver
nenhum alimento e até o cheiro do pão lhe dava
vómitos. O confessor de Lut- garde, piedosa mulher da
diocese de Liège morta em 1246, conta igualmente
que, "forçada muitas vezes pela obediência, ela
tentava introduzir na sua boca um pouco de carne. Mas
nada maior que uma fava lhe conseguia passar pela
garganta." As privações conduziam por vezes as
santas mulheres à morte. Após o falecimento de Marie
d'Oignies, os seus restos mor-
A vida quotidiana das reclusas
Paulette UHerniitc-Leclercq

Quem não viu no cinema a Nossa Senhora de Paris


de Victor Hugo? A acção situa-se no final do século XV.
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

Nessa Paris transbordante de vida, ele põe em cena


duas personagens estranhas, próprias para inspirar,
como na tragédia antiga, o horror e a piedade. A
primera é Quasímodo; a outra mantém-se por muito
tempo privada de nome e de rosto: é uma mulher, ou o
que dela resta, "esqueleto vivo", vegetando no fundo de
um cubículo da praça de Grève. Na parede exterior,
uma divisa latina: "Tu, ora " ("Tu, reza"), convite ao
recolhimento que o bom povo, que não a compreende,
leu como "Trou awc rats " ("Buraco de ratos"). Esta
mulher é uma reclusa*, o seu alojamento é uma cela de
recluso. Ao longo das páginas, o romancista conta-nos
a sua história: nos tempos da sua mocidade, Paquette
La Chantefleu- rie tinha poucos recursos e vendia os
seus encantos em Reims. O único sol da sua vida era a
sua filhinha, que alguns "egípcios", um dia, lhe haviam
roubado. Louca de dor, tinha-se encaminhado para
Paris e vivia desde então nessa "horrível cela" sem
porta, "espécie de elo intermédio da casa e do túmulo,
do cemitério-e da cidade".
Terá esta personagem saído directamente dos
fantasmas da imaginação romântica? A existirem
reclusas na idade Média, o fenómeno não é
excepcional? No século XIX, há muito tempo que se
não conhecem já reclusos e os reclusórios são já
difíceis de encontrar. Mas Victor Hugo, consciencioso,
tinha lido os historiadores da velha Paris. Era aí que se
lhe havia deparado a menção de numerosos reclusos
parisienses, alojados, se não na praça de Grèves, pelo
menos perto das igrejas, e em particular perto do
cemitério dos Santos Inocentes (o qual, desaparecido
no século XVIII, fora o maior cemitério da imensa Paris
medieval — 200 000 habitantes no século XV —). Ora
Paris não constituía uma excepção mórbida. Um registo
dos estabelecimentos religiosos de Roma, organizado
AS FREIRAS 195

por volta de 1320, enumera 260 reclusas —


nitidamente distintas das religiosas*: todas mulheres,
notemo-lo. De um.extremo ao outro do Ocidente
cristão, encontravam-se reclusas e muitas vezes em
povoações muito modestas, em Valladolid como em
Norwich, em Colónia como em Lião ou Tolosa. Hugo
havia sentido que a sua Paquette "tinha um ar de
verdade" na paisagem urbana medieval. Na época,
com efeito, a reclusão não era uma curiosidade, mas
uma instituição.
Se se estudou tão pouco a reclusão foi porque, por
definição, os reclusos eram solitários e indigentes. O
historiador considerou-os durante muito tempo como
um conjunto abstracto, um agregado de unidades e não
uma sociedade humana. Há sessenta anos, porém,
Dom Gougaud consagrara-lhes um estudo pioneiro.
Mas servira-se apenas das fontes "nobres" da reclusão,
interessara-se apenas pelos santos reclusos, os das
hagiografias*; ora sabe-se que os santos são raros. E
Dom Gougaud tinha estudado essa instituição
independentemente do seu contexto histórico; coisa
que o encafuara num beco sem saída, pois como
explicar que um belo dia tivesse passado de moda? Ele
tinha-se deixado iludir sobretudo pela semelhança
aparente entre o eremita* e o recluso. O eremita pode
viver perfeitamente autónomo, o recluso é o mais
dependente dos homens. A não ser que se creia nas
Vidas de santos que nos contam que ele é miraculosa-
mente alimentado por um corvo, é bom de ver que o
recluso solitário não pode existir: ele deve ser tomado
pela comunidade
Santas e anoréxicas: o
misticismo em questão
Michel Lawers
Em 1989 abriu-se o inquério preliminar ao processo
de beatificação de Marthe Robin. É sem dúvida a razão
pela qual florescem hoje em dia as biografias
"empenhadas" que a celebram1.
Foi em 1928 que Marthe Robin, filha de modestos
agricultores, com yinte seis anos de idade, foi atingida
por uma misteriosa doença e caiu de cama. Pouco
depois apareceram no seu corpo os estigmas de Cristo:
a coroa de espinhos e a chaga no flanco. Desde então,
até à sua morte ocorrida em 1981, Marthe Robin não
voltou a deixar o leito. Achava-se paralisada, vivia na
obscuridade e participava todas as semanas na paixão
de Cristo, cujas dores sentia, perdia sangue e conhecia
o êxtase. Durante mais de meio-século, Marthe Robin
não comeu nem bebeu fosse o que fosse: à parte a
eucaristia, era-lhe impossível ingerir alimento ou
bebida.
Este jejum total, tal como o da sua contemporânea
Teresa Neumann na Alemanha, parece-nos hoje
surpreendente. Houve contudo uma época em que
semelhantes abstinências não eram casos isolados ou
excepcionais, mas constituíam quase práticas sociais.
Assim, nos séculos IV e V, havia eremitas que se
tinham retirado para o deserto para viver na ascese é
na privação. Os
RELIGIOSA OU MONJA (moniale): equivalente
feminino do monge. Sendo a vida eremítica mais
perigosa para as mulheres, as comunidades femininas
foram precoces, muitas vezes geminadas com os
mosteiros de homens.
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

Orientação bibliográfica
Dictionnaire d'Archéologie Chrétienne et de Liturgie,
t. 14, 2." parte (1948), art. "Reclus", col. 2149-2159.
Dictionnaire de Spiritualité, t. 4 (1960), art.
"Érémitisme", col. 936-982.
Dom L. Gougaud, Ermites et Reclus. Etudes sur
d'anciennes formes de la vie religieuse, Ligugé, 1925.
M. C. Guigue, Recherches sur les recluseries de
Lyon, Lião, 1887. P. L Hermite-Leclercq, "Reclus et
recluses dans le Sud-Ouest de la France", Cahiers de
Fanjeaux, n.° 23, 1988 (dedicado à mulher na vida
religiosa do Linguadoque).
A. K. Warren, Anchorites andtheir Patrons, University
of Califórnia Press, Berkeley, Los Angeles, Londres,
1985.
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

a seu cargo, deve existir entre ela e ele acordo tácito


sobre a repartição das tarefas. É pois reunindo a
documentação mais vasta, mais variada, que se poderá
apreender o nascimento e a evolução desta forma de
vida religiosa, a sua finalidade, a sua organização, o
seu lugar nas estruturas eclesiásticas e nas sociedades
que lhe permitiram desabrochar. Deste modo
compreenderemos melhor por que razão a reclusão é,
em larga medida, uma especialidade feminina.

Despedir-se do mundo
O recluso surge na mesma época que o monge*. No
final do século III e início do século IV, no Egipto, muitos
homens e algumas mulheres seguiram o exemplo de
Santo Antão (aproximadamente 251-356). Aquele a
quem chamaram o Pai dos eremitas era originário de
uma família abastada de Mênfis. Aos vinte anos, ouviu
o chamamento de Cristo (Mat. XIX, 21): "Se queres ser
perfeito (...), vende os teus bens e dá-os aos pobres (...)
depois vem e segue-me." Estes homens queriam estar
sós (em grego, monos, de que resultou a palavra
monge em português e, em francês, moine), com o
Único, romper com o mundo (é o sentido da palavra
anacorese*), instalar-se no deserto (eremos, "ermo",
que deu o seu nome ao eremita), construir uma cabana
ou encerrar-se numa gruta ou num sepulcro não
utilizado como fizeram os primeiros reclusos. A partir do
século IV, porém, é a vida em comunidade (o
cenobitismo) que leva a melhor. Os grandes
fundadores, Pacómio, Basílio e em breve Bento, o "Pai
dos monges do Ocidente", não condenavam essas
formas primitivas de recusa do mundo que haviam sido
o eremitismo* e a reclusão. Seria o mesmo que
condenar o próprio Santo Antão! Só para falar dela,
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

uma vez que se tornou "a" regra dos monges do


Ocidente, a regra de S. Bento redigida em meados do
século VI, afirma mesmo que a solidão radical é mai s
perfeita do que a vida em com unidade; mas é contudo
mais difícil, perigosa e inacessível aos que se iniciam.
De facto, depois de Bento como antes dele, alguns
"loucos de Deus" tentaram-no sem de antemão se
terem treinado numa comunidade monástica. Gregório
de Tours, o grande historiador do século VI, assinala
vários reclusos: Santo Eparco, que Angolema
reivindicará como patrono e que era confirmadamente
monge; o jovem Anatólio, que se tinha feito encerrar
com a idade de doze anos e enlouquecera, não
pertencia, em contrapartida, a nenhuma comunidade.
E apenas no segundo milénio que se observa um
desenvolvimento espectacular da reclusão. É uma
consequência da formidável manifestação repentina de
eremitismo que reuniu milhares de homens e de
mulheres atrás de alguns líderes fora do comum. Entre
estes, muitos grandes santos dos séculos XI e XII. As
suas diligências continuam a ser as mesmas: abando-
nam tudo e põem-se a pregar a penitência e a imitação
dos Apóstolos. Atraem multidões e organizam nas
clareiras novas comunidades muito pobres que se
entregam à oração, à ascese e ao trabalho manual.
Estas conversões ardentes só se explicariam por um
conjunto de factores demográficos — sabe-se que o
"nascimento da Europa" coincide com um báby-boom
—, políticos, económicos, sociais e psicológicos.
Assiste-se por toda a parte às mesmas transformações:
novas repartições dos poderes, remodelação dos
terrenos agrícolas, expansão do artesanato, do
comércio e das cidades, reorganização das
sociedades. As mentalidades religiosas transformam-se
paralelamente, aguilhoa- das pela reflexão sobre Cristo,
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

Deus feito homem, tão pobre que "não tinha onde


repousar a cabeça" e convidava os homens a segui-lo.
Aos que eram capazes de abandonar tudo nesta terra,
prometia o Reino. Esses grandes pregadores
itinerantes, como Roberto de Xanten, Vital de Savigny
ou Roberto d'Arbrissel, davam o exemplo desse
despojamento voluntário. Mas está fora de dúvida
também que atraíam muitos pobres contra a sua von-
tade — as numerosas vítimas das transformações
sociais: esses destroços da vida encontram-se muitas
vezes no reclusório.
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

Para nós, hoje, a reclusão já não é um estado de


perfeição, é uma pena infligida pelo legislador.

Léxico
ANACORESE: do grego anachorein, retirar-se, fazer
um retiro. Primeira forma do monaquismo cristão. O
anacoreta deixa o mundo para seguir Cristo. O
fenómeno começa por ser egípcio, e é depois imitado
nos desertos da Síria-Palestina. O termo conservou-se
no inglês arcaico: ancren, anchoress, que designa
muitas vezes as reclusas.
CENOBITISMO: do grego coinobios, que vive em
comunidade. E o agrupamento dos voluntários de
secessão. Eles acham-se separados do mundo exterior
pela clausura e obedecem ao abade e à regra. A
primeira é a de S. Pacómio, contemporâneo de Santo
Antão.
CÓNEGO: do grego cânon, regra. Os cónegos
(canonici) têm um estatuto religioso intermédio entre os
monges (como eles, seguem uma regra) e os clérigos
(não se separam dos leigos e celebram os ofícios).
EREMITA; EREMITISMO: do grego cremos, ermo, o
deserto. Tem o mesmo sentido que anacoreta, com a
diferença de que aqui é a formação geográfica que
designa o solitário.
HAGIOGRAFIA: do grego hagios, sagrado, e
graphein, escrever. A hagiografia é um género literário e
religioso adoptado pelos biógrafos dos santos, isto é,
daqueles que, na Igreja cristã, atingiram um elevado
grau de perfeição e mereceram um culto público.
MONGE, MONAQUISMO: do grego monos, só. Na
origem, o termo é utilizado tanto pára os eremitas como
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

para os cenobitas. Mas o poder do cenobitismo (ligado


nomeadamente ao triunfo da regra de S. Bento) explica
que as mais das vezes o monaquismo designe uma
instituição de tipo comunitário.
RECLUSO: termo mais corrente para designar aquele
que se faz encerrar (em latim reclusus, inclusas).
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

biógrafo de Juette de Huy assinala-nos incidentalmente


que o bispo de Liège queria deixar de encerrar
reclusos: já havia demasiados. No século XVII, uma
das últimas reclusas de que há conhecimento, Jeanne
de Cambry, teve de esperar pacientemente durante
cinco anos.
Mas as razões não eram só de ordem doutrinal. Os
séculos XIV e XV foram conturbados em todo o
Ocidente: guerras — particularmente a Guerra dos
Cem Anos entre a França e a Inglaterra —, epidemias
de peste, marasmo da Igreja provocado pelo Grande
Cisma. Estes "infortúnios dos tempos" conseguiram pôr
em desordem as situações anteriores. Em França, por
exemplo, as necessidades da guerra obrigaram a maior
parte das cidades a arrasar bairros inteiros para
melhorar o valor defensivo das cinturas de muralha:
certamente nessa altura desapareceram reclusórios.
Na segunda metade do século XV, com a "Re-
construção", reedificaram-se, alargaram-se as igrejas:
de novo, pode ter sido às custas dos reclusórios. Sabe-
se também que, desde o século XIV em diante, por
toda a Europa há queixas em relação a todos os que
não trabalham, "inúteis ao mundo": não irão os reclusos
passar por parasitas? Fosse como fosse, constata-se
com frequência que antigas reclusarias se reconvertem
em mosteiros, em escolas, em hospitais, em sacristias.
Pode invocar-se uma outra razão, estade ordem
jurídica. Com efeito, a reclusão, concebida como um
castigo, desenvolve-se; a Inquisição utilizou a prisão
perpétua contra os hereges e, no final do século XV, os
governos civis intrometem-se — uma das últimas
reclusas do cemitério dos Inocentes de Paris encontra-
se aí por ter assassinado o marido. Reticências da
Igreja, redisposição da paisagem urbana, evolução do
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

direito: todos estes factores parecem ter-se


encaminhado no mesmo sentido.
É surpreendente, em todo o caso, constatar que o
encerramento pelas autoridades dos loucos, dos
vagabundos e dos desocupados, que Michel Foucault
estudou, coincide com a extinção do encerramento
voluntário e que a palavra reclusão deixa de pertencer
ao campo do religioso para se agregar ao do jurídico.
Perante estas mutações, a hierarquia eclesiástica
achava-se dividida entre a esperança e a inquietação:
os fermentos espirituais eram prometedores na
condição de serem vigiados. Ela temia os excessos, os
desvios para a imoralidade ou a heresia. Encorajava
pois o enquadramento, a criação de novas ordens. Foi
nesta época que foram fundados os camáldulos, os
cartuxos, os cistercienses e novas ordens de cónegos*
como os pre- montrenses. A multiplicação dos
reclusórios inscreve-se na mesma vontade de
sedentarizacão: é certo que só ofereciam asilos
individuais, mas eram sumários e era possível lá
instalar muitos. Tudo valia mais que deixar esses
homens e sobretudo essas mulheres percorrer as
estradas e os bosques. Encontrar-lhes um abrigo era
um primeiro passo.
A imensa maioria dos reclusos era constituída por
simples leigos que haviam passado sem preparação
para esta forma de vida religiosa. E doravante a Igreja
secular, e em primeiro lugar os bispos e as
comunidades dos fiéis, quem vai passar a ocupar-se
deles. Os problemas a resolver são numerosos. É
preciso encontrar um local para o alojamento, prever os
custos da sua construção, da sua manutenção, depois
os da alimentação, do vestuário e do aquecimento do
seu locatário. O eremita pode viver de esmolas, da
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

recolha de alimentos, entrever uma ponta de clareira,


entrançar cestos e ir vendê-los ao mercado, como já o
faziam os Padres do deserto do Egipto que se dirigiam
de tempos a tempos a Alexandria. Em contrapartida, o
recluso depende inteiramente da caridade pública. Tem
necessidade de um servidor habitual que o aprovisione
e desembarace o local dos seus excrementos. Se se
esquecem dele, morre.
Mas encontra-se de tudo entre os postulantes à
reclusão, até homens de fortuna que mandam construir
o cubículo às suas custas e possuem uma pensão
pessoal e um criado. Se o recluso é pobre como Job, a
colectividade toma-o a seu cargo. Os governos são com
frequência protectores de reclusos. Carlos V manda
instalar em Paris uma reclusa de La Rochelle que tem
uma excelente reputação. Manda-lhe construir um
'"belo oratório de madeira". As contas régias inglesas
mostram que, de um reinado para outro, os reis
concedem rendas a um certo número de reclusos. Nas
cidades, são muitas vezes as autoridades municipais
que se ocupam deles. Vêem-se os conselhos da cidade
em Limoges, Nimes ou Saint-Flour proceder a um
inquério de moralidade entre os candidatos à reclusão.
Uma vez nomeado, o recluso pertence à cidade; é ela
que o alimenta, o veste, paga as poções se ele está
doente, o sudário e os custos das exéquias. Noutras
partes, são os mosteiros ou os cabidos que têm o patro-
nato do reclusório. É bem conhecido o recluso de S.
Pedro de Westminster, que é um monge da abadia.
Mas há vários mosteiros lioneses que têm um recluso
laico. ,
Onde se situam os reclusórios? O recluso foge do
mundo, tal como o eremita que se instala muitas vezes
na espessura dos bosques; Tristão e Isolda vão
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

consultar o eremita Ogrin na floresta de Morois. Mas o


recluso tem necessidade dos seus semelhantes. Por
uma razão prática: morreria de fome sem eles. Por uma
razão espiritual: antes mesmo de ser um exemplo e um
símbolo, ele é um instrumento da penitência e da
oração colectiva. Recorda a todos que temos que
pensar na morte e no Juízo, dar a esmola que "extingue
o pecado como a água extingue o fogo". O seu
sacrifício pessoal deve servir a comunidade inteira. Ele
não se exclui; pelo contrário, inclui-se. E nos pontos
vitais do espaço urbano que o recluso é mais útil. E
conhecido o terror experimentado pelas cidades
medievais perante a ideia de serem tomadas pela força
ou pela argúcia. Elas protegem-se pois por meio de
cinturas de muralha. O recluso assegura, nessas
muralhas, uma vigilância espiritual: ele está
particularmente presente nas articulações da couraça,
isto é, às portas. Não obstante as pontes levadiças, os
fossos, as torres e todo um estendal de ferrolhos e de
fechaduras, as cidades acham-se muitas vezes à
mercê do assaltante ou do traidor que rouba as chaves.
No seu cubículo, materialmente impotente mas
vigilante, o recluso pode fazer milagres e salvar a
cidade. Um cronista do final do século XV conta-nos
que foi graças à reclusa de Bavay (Norte da gravidade
da sua renúncia? Ter-se-ia curado dos seus terrores?
Não sabemos. Em Lião, um recluso dá azo a
murmúrios. Obteve maneira de sair de tempos a
tempos, mas aproveita para falar a mulheres: se
persistir, será expulso do seu reclusório, o qual
desonra. Apercebemo-nos aqui daquilo a que chegou a
lógica da instituição: o reclusório tornou-se um
benefício eclesiástico invejado, com pensão e
alojamento de cargo. No total, que ideia se há-de fazer
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

da imensa maioria dos reclusos na Idade Média, por


exemplo, dessas 260 reclusas romanas de 1320, das
quais nenhuma mereceu as honras da canonização
nem forneceu material para escândalo, em suma, nem
anjos nem demónios?
O que nos parece é que o recluso vulgar não
ultrapassava as qualidades de um bom funcionário
municipal encarregado da oração. Muitos deles só
conheciam aliás o Pai Nosso e a Avé Maria e, quando
não sabiam ler como os reclusos sábios o saltério ou os
ofícios, repetiam indefinidamente as mesmas orações.
Não se lhes podia exigir mais. É preciso crer que a
privação definitiva da liberdade de movimentos em
princípio, de todas as alegrias profanas da vida, era um
sacrifício suficiente para obrigar ao reconhecimento das
populações, na falta da veneração que suscitavam os
grandes reclusos, os que faziam milagres e
profetizavam. O recluso vulgar, se não era suspeito de
glutonaria ou de desejos luxuriosos, podia já prestar
bastantes serviços: distribuir conselhos e consolações,
rezar por todos ou por cada um em particular, aliviar a
fome dos enxames de crianças que se acotovelavam ao
postigo, e até — se bem que a regra o proibisse —
"ensinar as letras", quando as conhecia!
Se os reclusos se encontram tão bem integrados na
sociedade, por que razão desaparecem
progressivamente no final do século XV e no início do
século XVI? Seria superficial dizer que a instituição teve
o seu tempo e ingénuo supor que bastou passar da
Idade Média ao Renascimento. Podemos avançar
várias explicações: a Igreja nunca aceitara sem
reticências esse género de vida. E!a conhecia as
advertências da Escritura — "Ai do homem só!" —, bem
como a de Aristóteles ou de S. Bento! O nem de fé nem
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

de esperança e não dá sentido aos seus sofrimentos.


Vítima do destino e dos homens, ela remói a oração,
sem Deus para a escutar e converter em flor eterna das
Verdes Pastagens. As fontes medievais oferecem
também a imagem inversa: a crer nas regras
destinadas aos reclusos, há preguiçosos inveterados do
reclusório, falsas vocações que desonram a confraria.
O grande abade cisterciense do século XII, Aelred de
Rielvaux, escreve uma Vida de Reclusa para a sua
irmã, uma santa jovem; mas as outras! Têm todos os
defeitos. A distância que separa o bem do mal reduz-se
assim ao espaço compreendido entre o oratório e o
postigo:..pouco mais ou menos metro e meio. A boa
reclusa mantém-se de joelhos, em contemplação diante
do crucifixo; a má passa os seus dias à janela, chama
quem passa, estica os braços e dá-os a tocar, abraça
as crianças, tagarela, informa-se dos últimos mexericos.
Pode adivinhar-se o que se segue.
Um dia, encontra meio de mandar alargar a abertura
que dá para o mundo e introduz um amante. "Ei-la
grávida" — diz Aelred. Se é demasiado velha, serve de
alcoviteira. Avarenta, ocupada em fazer frutificar o seu
pecúlio, preguiçosa, provocante, muito mais ligada às
cores com que decorou o seu alojamento do que às~
recompensas futuras,-hipócrita — dê ouvido à escuta,
quando ouve passos na rua, põe-se a resmonear as
suas orações: quer que a admirem e fica decepcionada
se os passos se afastam. Terá esta reclusa "mundana"
existido sem ser na imaginação misógina dos homens
da Igreja?
Houve sem dúvida reclusas indignas: em Limoges, a
piedosa viúva que se tinha feito encerrar no início do
século XVI logo pede para sair: encontra-se
aterrorizada pelas tentações diabólicas que a assaltam
todas as noites. O conselho da cidade, muito
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

embaraçado, tenta em vão chamá-la à razão. Mas


teme um resultado fatal — suicídio ou loucura. É o
patrono do reclusório: abre a porta. Uma outra viúva é
instalada, mas morre pouco tempo depois. E,
sabiamente, a primeira retoma o seu lugar: teria má-
consciência? Tê-la-ia a Igreja persuadido da
França) que os "ferozes capitães" que queriam queimar
a igreja renunciaram a fazê-lo. "Ela suplicou tanto, em
nome de Jesus Cristo, prometendo-lhes rezar todos os
dias por eles, que se foram embora." Nas localidades
fluviais, a municipalidade instala muitas vezes sobre um
pegão da ponte um reclusório que tem o seu lugar no
sistema de fortificação: é o que se passa em Saint-
Flour.
Lugar sagrado, o reclusório está também associado
às igrejas, aos cemitérios, aos hospitais e às
leprosarias, cuja vocação se mantém, na Idade Média,
religiosa ao mesmo tempo que laica. O recluso morto
para o mundo é muitas vezes alojado perto de um lugar
de culto. Mas a localização do reclusório próximo da
igreja varia muito. Em Veneza, vários reclusos alojam-
se sob os pórticos que precedem frequentemente a
entrada do lugar santo. Em Saint-Omer, é uma das
torres da fachada que os abriga. Em Inglaterra,
numerosos reclusórios são dispostos no interior da
própria igreja, no lugar que corresponde ao das
capelarias onde as famílias ricas guardam a memória
dos seus mortos. Mas o mais frequente é ser no
exterior dos muros, contra a parte central do edifício e
muitas vezes no flanco norte, do lado da sombra e do
frio, no meio dos túmulos, que se encontra o reclusório,
que só por si já é um sepulcro. Nesse caso, o local
possui geralmente uma estreita abertura fendida
obliquamente na espessura da parede da igreja, o
hagioscópio, graças ao qual o recluso poderá seguir os
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

ofícios. Algumas das regras para uso dos reclusos


chegam a prever as dimensões do alojamento: 8 pés
por 8 segundo um texto do século XII, ou seja, 2,4 por
2,4 metros. As buscas confirmam a exiguidade destas
habitações, tão modestas que são naturalmente
designadas por diminutivos: cellette, logette,
maisonnette...
A característica mais impressionante do reclusório é
que já não tem porta: foi condenada. Já no século IX, a
cerimónia de reclusão dos monges previa que o bispo
selasse a fechadura. O comprometimento do recluso é
irreversível; ele pertence, como diz um texto, à "ordem
dos mortos". A sua única saída é do lado do céu. Não
de imediato, porém, uma vez que ele é tanto um vivo-
morto como um morto-vivo e que a Igreja proíbe o
suicídio. Há pois que prever uma pequena abertura
para manter a comunicação com o mundo: é o postigo.
Este é munido de barras, de uma portada e de cortinas
negras. Deve ser intransponível. Em princípio, pois a
infeliz reclusa de Ruão, de quem um texto literário nos
conta a história, conseguiu passar... para ir a correr
lançar-se no forno ardente do padeiro vizinho: deixara
de ter vontade de viver.

O refúgio dos infortúnios humanos


A disposição interior é muito despojada. Várias
fontes precisam que é ali escavada uma fossa, aquela
onde o recluso tomou lugar quando foi posto na posse
da sua "última morada" e onde será deitado quando da
sua morte. Acrescentemos um pequeno altar, um
crucifixo, por vezes a reserva eucarística. O mobiliário
profano reduz-se a um catre, uma mesa, um escabelo.
A bem-aventurada Juette, de Huy (junto ao Mosa),
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

morreu em 1228; a sua biografia informa-nos que o seu


reclusório tinha dois níveis: Juette mantinha-se em
cima, a sua companheira em baixo. Os locais para duas
ou três pessoas não são excepcionais, ainda que a
solidão estrita seja bem de longe a situação mais
corrente. Antes de ir reformar as clarissas* (donzelas de
Santa Clara e ramo feminino da ordem franciscana),
Colette de Corby tinha sido reclusa perto da igreja;
possuía três pequenas divisões: um quarto, um oratório,
um parlatório para receber os visitantes — noutros
locais, quando existe, este reduz-se com frequência a
um guarda-vento. Os reclusos heróicos recusam-se a
aquecer-se, mas as buscas revelam frequentemente a
presença de uma chaminé. Quem se faz recluir?
Primeiro, desconfiemos dos nossos reflexos: hoje em
dia só entendemos a vida consagrada como uma
vocação. Na Idade Média, as coisas não eram tão
simples. Houve voluntários numerosos — e muitas ral
entre a morte desempenhada e a morte vivida, não tem
outra vocação que não seja sofrer. O seu tempo de
reclusão é uma Paixão. Espaço fechado, murado: a
exiguidade do local é voluntariamente procurada como
instrumento de sofrimento. Também aqui, a tradição é
antiga; numerosos Padres do deserto tinham imposto a
si mesmos viver em cavidades de rochedos onde não
podiam nem estar de pé nem deitados. Ainda como
eles, os santos reclusos industriam-se no castigo do
corpo; munidos de todo um arsenal de cadeias, de
chapas, de couraças, acrescentam um invólucro
suplementar a essa encaixotagem concêntrica no meio
da qual arde a alma incorruptível. A carne faminta,
comprimida, rebentada, apodrecida, deve favorecer a
libertação do espírito. Jejuns, vigílias, prostrações,
macerações não têm outro objectivo. "Ave nocturna
num buraco de muralha", no seu reclusório-prisão ou
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

túmulo, vemo-lo comido pelos vermes e rodeado pelos


animais da sombra e da terra — figuras do demónio
que Deus autoriza a pôr à prova a constância do herói.
Não há santo reclusório sem serpentes e sem sapos.
A bem-aventurada Wilbirge, reclusa da Alta Áustria no
século XIII, cometeu o pecado de sentir vontade de
comer carne: trazem-lha, mas quando ela quer prová-la
encontra sapos no prato. Uma outra vez, uma vizinha
má deu-lhe alimentos envenenados: eta vomitou rãs
vivas. Quando se prostra por terra para a oração,
serpentes fervilham de encontro ao seu ventre. E de
duvidar que o recluso ideal triunfe de todas estas
provações. O que o salva é que ele se acha certo de
que o seu sofrimento é meritório e lhe valerá as
recompensas celestes.
De repente, os sinais invertem-se: a prisão torna-se
um paraíso, a porta do céu; o túmulo, um berço onde
germina o grão de imortalidade bem-aventurada.
Âncora do navio da Igreja, o reclusório é um
acumulador de graças para a colectividade inteira, aqui
na Terra e no Além. Esses santos reclusos saídos do
imaginário dos clérigos e dos documentos hagiográficos
podem ter existido. Pouca semelhança têm, porém,
com a Paquette de Victor Hugo, que não é uma atleta
da maceração. Ela não vive sinos dobram a finados. O
bispo benze as paredes, o recluso deita-se no seu
túmulo e o prelado lança sobre ele um pouco de terra:
"Que os anjos te conduzam ao céu." O bispo sai e mura
a porta.
A reclusão assinala pois a passagem a uma forma
de vida consagrada, mas está em oposição aos votos
pronunciados pelo monge. O voto de religião é
assimilado a um segundo baptismo: é um segundo
nascimento na graça, enquanto que, no rito de
reclusão, a Igreja exalta a morte para o mundo como
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

nunca antes o houvera feito. Assistimos a uma


verdadeira condenação à morte simbólica, mas este
"como se" da morte é um jogo turvo, para não dizer
transgressivo. É que, finalmente, o recluso, deitado na
sua tumba, levanta-se de imediato, reconduzido à sorte
comum: resta-lhe viver a sua vida e a sua morte — a
verdadeira, que está no futuro e não no passado.
Observemos ainda que esta quase-morte convém
particularmente à representação que essas sociedades
têm da mulher. Porque ela fabrica a vida, tem pacto
com a morte: é a mulher que se encarrega de vestir os
mortos. Eva é reponsável pela condição mortal da es-
pécie humana, mas foi uma mulher que trouxe em si o
Redentor: na matriz obscura de um reclusório, a mulher
pode transmutar a morte em vida, as lágrimas podem
brotar em chuva fecundante.
Qual é então o dever de um recluso, concretamente,
no dia-a- -dia? Vimos que o reclusório era um dos
elementos mais familiares da paisagem urbana
medieval; é preciso toda a imaginação romântica de um
Victor Hugo para a transformar em objecto de horror e
de assombro. A documentação de que dispomos
fornece-nos três retratos-robó: o recluso-herói, o anti-
herói e, finalmente, o recluso "mediano", sem dúvida o
mais próximo da realidade.
A hagiografia e as regras destinadas aos reclusos
impõem uma imagem heróica do reclusório. Também o
monge deve "ser crucificado com Cristo", mas a
reclusão, como vimos, é considerada uma forma
superior de monaquismo*. O recluso modelo
interiorizou tão bem a metáfora da morte que, no crivo
tempo- vezes decepcionados, por falta de lugar — para
este género de vida austera, mas muitos tinham de a
adoptar por razões a que chamaríamos hoje
"negativas". O reclusório acolheu nomeadamente
prostitutas arrependidas.
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

O exemplo, também aqui, vinha de longe. A mais


sublime das pecadoras era Maria Madalena, convertida
por Cristo, que a elegera entre todas para manifestar a
sua Ressurreição. Não era porém o reclusório que ela
escolhera para expiar os seus pecados, mas o
eremitério. A lenda fazia-a desembarcar na Provença
com Lázaro, em Saintes-Maries-de-la-Mer, e os seus
passos levaram-na até à gruta da Sainte-Baume, não
longe de Marselha. Em contrapartida, uma outra ilustre
cortesã acabara como reclusa: Thais, cuja lembrança
alimenta a imaginação desde a época dos Padres do
deserto até Anatole France que dela fez a heroína de
um romance do qual Jules Massenet tirou uma ópera. O
santo eremita Pafnuce, seu tio, tinha ido tirá-la do
lupanar, convertera-a à penitência e encerrara-a depois.
Uma gravura do final da Idade Média que ilustra a
Lenda Áurea — célebre compilação de Vidas de santos
composta no século XIII — representa-a no limiar da
sua guarita, já nimbada mas ainda vestida com as
vestes do mundo.
A Igreja tentava arrancar as prostitutas à luxúria:
construíam -se aqui e além casas de arrependidas, de
disciplina toda ela monástica, que eram aliás tomadas
de assalto, pois não bastavam à procura. Os reclusórios
puderam desempenhar, mais modestamente, o mesmo
papel. E significativo que uma igreja de Paris
consagrada a uma outra destas pecadoras santificadas
pela penitência, Maria, a Egípcia, possuísse um
reclusório contíguo: era a igreja a que se chamava na
Idade Média «la Jussienne» — deformação de
"«1'égypcienne»". Podemos apostar sem risco que o
reclusório serviu de porto de abrigo a muitas outras
misérias: Jovens sem dote que não podiam por essa
razão encontrar marido nem entrar para o mosteiro,
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

esposas de padres impiedosamente expulsas do lar


conjugal quando Roma, em 1139, pela primeira vez na
história da Igreja, decretou que o casamento dos
padres era inválido; mulheres abandonadas pelo marido
e substituídas por uma concubina, viúvas sós e sem
recursos nem apoio, ou que guardam uma recordação
tão má do primeiro casamento que preferem encerrar-
se para o resto dos seus dias.
Juette de Huy, por exemplo, filha única de um pai
basta- mente rico, não queria casar-se. Obrigam-na
quando tem treze anos. Sente tal repugnância pelo
dever conjugal que deseja ardentemente a morte do
marido. Fica viúva aos dezoito anos, com três crianças,
recusa-se indomitamente a voltar a casar e ocupa-se
dos pobres com tamanha generosidade que a família
se inquieta por vê-la dilapidar a herança. Tiram-lhe as
crianças para a chamar á razão. Em breve se dá a
arrancada definitiva: ela abandona tudo e ninguém a
retém — podemos até perguntar-nos se não a
expulsam. Não vai muito longe, para trás dos muros da
cidade, perto do rio, para o local onde vivem os
leprosos, esses rejeitados pela sociedade, totalmente
entregues à sua miséria. Ela cuida deles para expiar os
seus pecados; terá chegado mesmo a desejar ser
contaminada pela horrível doença. Encerra-se
finalmente no meio deles, nesse reclusório que já
descrevemos.
E possível adivinhar quantos infortúnios físicos e
morais, martírios e desgostos o reclusório deve ter
albergado. E também é possível compreender por que
razão existe uma tal proporção de mulheres entre os
reclusos: a vida de eremita é mais perigosa para elas
do que para os homens, e por várias razões. Por
exemplo, porque é raro que elas tenham uma
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

independência económica e porque a violação é uma


ameaça constante. Os trabalhos recentes sobre a
prostituição medieval demonstraram a frequência das
violações colectivas pelos bandos de jovens solteiros.
As prostitutas pensionárias dos lupanares que fazem
parte — como os reclusórios — da paisagem da cidade
são muitas vezes recrutadas entre as raparigas que
foram vítimas dessas violações. As jovens nem sequer
se acham tranquilas no reclusório! A bem-aventurada
Wilbirge, de quem voltaremos a falar mais adiante, foi
por diversas ocasiões perseguida por um apaixonado.
Um dia, ele apoiou uma escada contra a parede do
cubículo para passar pelo tecto. Felizmente, a Virgem
velava; uma trave parte-se e o homem quebra os
ossos. Muitas mulheres são maltratadas e
abandonadas nestas sociedades medievais. Como, por
outro lado, a sua vocação é a submissão e o seu lugar
é em casa, o reclusório satisfaz exigências
fundamentais: é um mundo tão fechado, tão "privado",
que já não tem porta e que dele se não sai nunca —
um oratório e um asilo. Daí o estatuto particular que a
Igreja deu a este género de vida.
Os reclusos dependem pois da autoridade
eclesiástica secular: o bispo e já não o abade. E ela que
define o estado do recluso, que prevê as modalidades
de acesso a esse estado e que regulamenta a sua
organização. Uma liturgia nova vem adaptar-se-lhe. No
século XII, as recolhas de que se servem os bispos
para a ordenação das cerimónias — chamam-se os
pontificais — vêem aparecer vários rituais novos,
nomeadamente — e ao mesmo tempo, não se trata de
um acaso — aquele que prevê o encerramento solene
do recluso e o corte dos leprosos com a comunidade
dos vivos. Estes rituais foram bem conservados em
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

Inglaterra e em França, mas é difícil determinar se


foram utilizados por toda a parte.
Todos os rituais exprimem a mesma solenidade: o
comprometimento é irreversível. Estamos decerto
perante aquilo a que os etnólogos chamam um "rito de
passagem". Mas de que passagem se trata? É toda a
originalidade do encerramento do recluso: corresponde
a um rito fúnebre. Vários dos rituais conservados
retomam a liturgia dos defuntos. O pontifical de Exeter,
por exemplo, estipula que o candidato seja recebido
solenemente à entrada da igreja por todo o clero
paramentado com ornamentos sacerdotais e conduzido
diante do altar onde assiste, prostrado, à cerimónia:
missa de defuntos, absolvição geral, extrema-unção. No
fim do ofício, o recluso volta a erguer-se e o bispo,
seguido por todo o clero e pelo povo em cortejo
cantando salmos, condu-lo ao reclusório enquanto os
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

Obras publicadas sem ser em França:


D. L. d'Avray, The Preaching of the Friars. Sermons
diffusedfrom Paris before 1300, Oxford, Clarendon
Press, 1985.
R.C. Trexler, Naked before the Father. The
Renunciation of Francis of Assisi, Nova Iorque, P.
Lang, 1989.
G. Micopli, Francesco d'Assisi. Re alta e memoria di
un esperienza Cristiana, Turim, Einaudi, 1991.
K. Elm, ed., Stellung und Wirksamkeit der
Betterlorden in der städtischen Gesellschaft, Berlim,
1983.
R. Manselli, Nos qui cum eo fuimus. Contributo alia
questione fran- cescana, Roma, Instituto Studico dei
Cappuccini, 1980.
Francescanesimo e vita religiosa dei laia nel'200,
Assis, Univer- sità degli studi di Perugia, 1981.
R. W. Emery, The Friars in Medieval France. A
Catalogue of French Mendiant Convents, 1200-1550,
Nova Iorque e Londres, 1961.
D. R. Lesnick, "Dominican preaching and the
creation of capitalist ideology in late-medieval
Florence", em N. S. n.° 89, 1977-1978, pp. 199-247.
Le Scuole degli Ordini Mendicanti (secoli XIII-XIV).
Atti del XVII Convegno di Studi (1976), Todi, 1978.
E. Guidoni, "Cità e ordini mendicanti: il ruolo dei
conventi nella crescita e nella progettazione urbana
del XIII e XIV secolo", em Oua- derni Medievali, 4,
1977, pp. 69-106.
D. L. d'Avray, "Sermons to the upper bourgeoisie by a
thirteenth | century Franciscan", em Studies in
Church History, ed. D. Baker, 1979, pp.187-199.
Francescanesimo e Società Cittadino: I esempio di
Perugia, Perugia, 1979.
C. Delcorno, Giordano da Pisa e l'Antica
Predicazione Volgare, I Florença, 1975.
|
SANTAS E ANORÉXICAS: O MISTICISMO EM QUESTÃO 221

B. E, J. Stüdeli, Minoritersniederlassungen und


mittelalterliche % Stadt. Beiträge zur Bedeutung von
Minoriten - und anderen Mendikanl J enanlagen
offentlichers Leben der mittelalterlichen
Stadtgemeinde,
g
insbesondere der deutschen Schweitz, Werl/Westf,
1969.
L. Pellegrini, "L'ordine Francescano e la società
cittadina in época j bonaventuriana, un analisi dei
«Determinationes»", Laurentianum, 15, 1974, pp.
154-200.
A. Benvenuto Papi, "Ordini mendicanti e città.
Appunti per un indagine, il caso di Firenze", Da
Dante a Cosimo. I Richerche di storia I
tais foram encontrados "tão emaciados e reduzidos pela
doença e os jejuns que a espinha dorsal tocava no
ventre; como sob um pequeno véu de linho, sob a
delgada pele do ventre, aparecia a ossatura das
costas".
Um dos casos mais célebres foi sem dúvida o de
Catarina de Sena (Siená), morta em 1380. A partir dos
dezasseis anos, praticamente não se alimentou mais.
Depois de ter perdido rapidamente metade do peso,
deixou de poder engolir fosse o que fosse, apesar da
insistência dos que a rodeavam. Segundo um
contemporâneo, "a fim de evitar dar lugar ao escândalo,
ela tomava por vezes um pouco de salada ou um pouco
de outros vegetais crus ou de frutos e mastigava-os, e
depois virava-se para os deitar fora. E, se chegava a
engolir uma parcela mínima, o estômago não lhe dava
repouso enquanto não vomitasse." Nos últimos séculos
da Idade Média, são às dezenas as narrativas deste
género que se contam. Jacques de Vitry afirma que na
diocese de Liège era possível na época ver numerosas
mulheres "enlanguescendo de desejo" por Deus, "não
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

podendo levantar-se do leito durante muitos anos",


vivendo unicamente da hóstia. Era também o caso de
AlpaTs de Cudot, morta em 1210, na Borgonha, que
passou a sua vida de cama, sem receber outro alimento
a não ser a comunhão dominical.
O historiador americano Rudolph M. Bell demonstrou
recentemente que as santas penitentes da Idade Média
manifestavam todos os sintomas da anorexia mental tal
como a definem hoje os médicos2. Esta explicação pela
patologia tem, evidentemente, as suas limitações.
Permite todavia compreender melhor por que razão, a
partir do século XIII, semelhantes casos se tenham
multiplicado. Estas mulheres que se recusaram a
alimentar-se a ponto de morrer eram ou adolescentes
em revolta contra os pais, como Clara de Assis, morta
em 1253, e Catarina de Sena 3, ou mulheres casadas,
ou ainda mães desejosas de abandonar a vida conjugal
ou familiar, como Marie d'Oignies, Margarida de
Cortona, que morreu em 1297, e Ângela de Foligno,
morta em 1309.
A maior parte das penitentes do final da Idade Média
aspiravam com efeito a uma certa autonomia que a
sociedade da época não lhes concedia. Recusavam o
casamento, mas recusavam igualmente o claustro;
queriam, fazendo uma vida religiosa, manter-se ao
mesmo tempo leigas e viver no mundo. As autoridades
eclesiásticas, que assim não entendiam, esforçaram-se
por reunir as penitentes em beguinarias ou levá-las a
integrarem-se nas ordens religiosas. A "santa anorexia"
tornava-se então para essas mulheres a única maneira
de se subtraírem à autoridade e ao controlo dos
homens, fossem eles os pais, os maridos ou os padres.
Podiam assim definir e afirmar a sua identidade e a sua
SANTAS E ANORÉXICAS: O MISTICISMO EM QUESTÃO 221

relação com Deus. Catarina de Sena. afirmava: "Devo


obedecer a Deus, e não aos homens."
A historiadora Caroline W. Bynum chamou a atenção
para o facto de as privações alimentares que as
penitentes impunham a si mesmas na Idade Média não
poderem ser dissociadas das outras manifestações da
sua piedade e da sua santidade, em particular a sua
devoção ao corpo de Cristo4, os milagres eucarísticos
de que beneficiavam5 e as distribuições de alimentos
feitas aos pobres, todas elas práticas ligadas à
nutrição, realidade que as mulheres conheciam bem 6.
Elas não controlavam nem o poder, nem o dinheiro,
nem o sexo, como sucedia com os homens, mas a
alimentação e a sua preparação eram domínios que
lhes eram próprios, recursos que elas dominavam e
com os quais souberam jogar. O jejum podia ser um
meio de pressão eficaz — talvez o único — sobre a
família, assim como a devoção eucarística podia ser
um meio de pressão sobre os eclesiásticos.
E, ao recusar todo o alimento com excepção do
corpo de Cristo, elas tornavam-se carne sofredora
como Cristo o havia sido. Várias santas foram aliás
marcadas com os estigmas, associando com essas
práticas de ascese o seu corpo martirizado ao de
Cristo. Das feridas de Marie d'Oignies "corria sangue,
um sangue que a recordação de Cristo lhe tornava
doce. Pelos ferimentos de Cristo, os seus ferimentos
eram mitigados e pela des status communaux et les
accords de paix", em Mélanges de l'École Française de
Rome, 78, 1969, pp. 503-549.
J. Kloczowski, "Les ordres mendiants en Pologne à la
fin du Moyen Age", em Acta Poloniae Histórica, XV,
1967, pp. 5-38.
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

J. Le Goff, "Apostolat mendiant et fait urbain dans la


France medié- vale: l'implantation des ordres
mendiants. Programme. Questionnaire pour une
enquête", em Annales ESC, 1968, pp. 335-352.
J. Le Goff e diversos autores, "Ordres mendiants et
urbanisation dans la France médiévale", em Annales
ESC, número especial Histoire et Urbanisation, 1970,
pp. 924-965.
E. Fugedi, "La formation des villes et les ordres
mendiants en Hongrie", em Annales ESC, ibid., pp.
966-987.
C.-M. De La Roncière, "L'influence des franciscains
dans la campagne de Florence au XI Ve siècle ( 1280-
1360)", em Mélanges de l'École Française de Rome,
Moyen Age-Temps modernes, 70, 1975.
M.-H. Vicaire, Dominique et ses Prêcheurs, Friburgo
(Suíça), Éditions universitaires, Paris, Le Cerf, 1977.
A. Vauchez, éd. Mouvements Franciscains et Société
Française (Xlle XXe siècle), Paris, Beauchesne, 1982.
T. Desbonnets, De l'Intuition à l'Instituition. Les
franciscains, Paris, 1983.
R. Manselli, Saint François d'Assise, Paris, Les
Éditions franciscaines, 1981.
R. Favreau, "Les ordres mendiants dans le Centre-
Ouest au XlIIe siècle", em Bulletin de la Société des
Antiquaires de l'Ouest, 1977, pp. 9-35.
A. Guerreau, "Analyse factorielle et analyses
statistiques classiques: le cas des ordres mendiants
dans la France médiévale", em Annales ESC, 1981,
pp. 869-912.
"Les mendiants en Pays d'Oc au XlIIe siècle", Cahiers
de Fan- jeau, 8, Tolosa, 1973.
H. Martin, Les Ordres Mendiants en Bretagne (v. 1230-
v. 1530), Paris, 1975.
Les Ordres Mendiants et la Ville en Italie Centrale (v.
1220-v. 1350), Roma, École française de Rome, 1978.
B. Montagnes, Architecture Dominicaine en
Provence, Paris, éd. do CNRS, 1979.
SANTAS E ANORÉXICAS: O MISTICISMO EM QUESTÃO 221

nerosidade dos prelados do Meio-Dia e de Avinhão e


da elite urbana, constroem uma igreja e um convento
cheios de magnificência.
No seus sermões pronunciados em Florença de
1303 a 1309, o dominicano Giordano de Pisa exalta a
solidariedade da comunidade urbana e exprime o seu
menosprezo pelos rurais; mas ao pregar um modelo
escatológico que não tem consequências para a vida
quotidiana, ao limitar a um nível psicológico a acção
penitencial que ele insufla, ele justifica e fortalece os
poderes dos senhores da cidade.
Não é pois de espantar que as críticas feitas desde
meados do século XIII no interior e no exterior da
ordem (pelos poetas Rutebeuf e Guillaume de Meung),
depois de ter vilipendiado o irmão mendicante hipócrita,
a construção de conventos afastados do espírito de
pobreza e de humildade, o enriquecimento de ordens
que se viravam cada vez mais para a posse de rendas
urbanas, tenham desembocado numa franca crítica
anti-urbana.
Os agostinhos passam dificilmente "de eremitas
para cidadãos" (ex heremitis urbaniste). S.
Boaventura, contra uma fracção de espirituais
animados do espírito do "deserto", teve de defender a
implantação na cidade. No concílio de Viena em 1311,
o franciscano contestatário Ubertino de Casale escan-
daliza-se com a construção, no coração das cidades,
em pleno centro da especulação imobiliária, de
sumptuosos conventos mendicantes. No século XV, os
franciscanos observantes retomam estas críticas e
alguns, na Bretanha, por exemplo, querem inverter o
movimento estabelecendo conventos nas florestas e
nas ilhas. Muita gente pensava que os mendicantes ti-
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

nham sido perdidos pelas cidades que haviam querido


salvar.

Orientação bibliográfica
Obras em francês:
A. Vauchez, "Une campagne de pacification en
Lombardie autour de 1233. L'action politique des ordres
mendiants d'après la réforme
AS ORDENS MENDICANTES 239

SANTAS E ANORÉXICAS: O MISTICISMO EM


QUESTÃO

suavidade do pão celeste, a austeridade do pão rugoso


era dul- cificada." Do corpo das santas mulheres, da
sua boca, do seu peito, dos seus dedos escapava-se
sangue, mas também, por milagre, perfumes, óleo e
leite. Elas transformavam o seu corpo de santa em
alimento, tal como tinha sucedido com o de Cristo.
"Quero morrer de fome para saciar os pobres" — dizia
Maiga- rida de Cortona. Tratava-se de uma forma de
imitatio Christi, uma "imitação de Cristo" tipicamente
feminina.
Entre o fim do século XII e o século XV, as funções
sociais reconhecidas às mulheres serviram pois de
modelo às devoções femininas. As penitentes
transformavam em sinais divinos a sua experiência
ordinária e quotidiana. Deste ponto de vista, as práticas
de abstinência das "santas anoréxicas" diferiam da
ascese vivida pelos Padres do deserto; mas sem dúvida
também, num contexto diferente, estavam bastante
afastadas, não obstante um modelo comum e de
impressionantes semelhanças, da vida de uma Marthe
Robin.
Notas
1
Para citar apenas uma das últimas: Jean-Jacques
Antier, Marthe Robin. Le voyage immobile, Paris, Perrin,
1991.
1
Rudolph M. Bell, L'Anorexie Sainte: jeûne et
mysticisme du Moyen Age à nos jours. Paris, PUF,
1994. Cf. também Ginette Raim- bault e Caroline
Eliacheff, Les Indomptables. Figures de l'anorexie,
Paris, O. Jacob, 1989.
3
A questão das "resistências" familiares às vocações
religiosas durante a Idade Média acaba de ser estudada
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I 223

por Alessandro Barbero, Un santo in Famiglia.


Vocazione religiosa e resistenze sociali nell,
agiographia latina medievale, Turim, Rosenberg e
Sellier, 1991.
4
Cf. Miri Rubin, Corpus Christi. The Eucharist in Late
Medieval Culture, Cambridge University Press, 1991.
5
Algumas recebiam a comunhão das mãos de um
anjo ou de uma pomba, outras viam aparecer o menino
Jesus na hóstia.
6
Caroline W. Bynum, Jeûnes et Festins Sacrés. Les
femmes et la nourriture dans la spiritualité médiévale,
Paris, Le Cerf, 1994.
AS ORDENS MENDICANTES 239

deste movimento. Como em muitas cidades o


urbanismo e a implantação dos mendicantes são
contemporâneos, os conventos mendicantes modelam
a nova morfologia urbana. Em muitas destas cidades,
a presença das três principais ordens, (dominicanos,
franciscanos e agostinhos), traduz-se por um modelo
de estrutura triangular (cf. E. Guidoni): foi o que se
passou em Sena, em Cortona, em Palermo, em
Colmar. Quando, no início do século XIV, os
pregadores constroem a sua igreja de San Domênico
em Sena com a sua praça, exprimem as suas preo-
cupações simultaneamente práticas (criar um espaço
idóneo de pregação) e estéticas (realizar um belo
edifício e embelezar a paisagem urbana). Na segunda
metade do século XIV o franciscano catalão Francesch
Eximeniç traça no seu Regiment de Prirtceps o plano
da cidade ideal: é um quadrilátero, com a praça da
catedral ao centro, dividido em quatro bairros, tendo
cada um no seu centro uma praça "grande e bela", a
de cada uma das ordens mendicantes.
Os mendicantes desempenham também um papel
importante no desenvolvimento, no final da Idade
Média, de uma historiografia propriamente urbana, de
uma história de que as cidades são as heroínas.
No decurso desta urbanização dos mendicantes,
estes não deixaram de estar cada vez mais ligados
aos grupos dominantes das cidades, isto é, a essas
famílias a que se chama o patriciado (nobres e
burgueses) e de quem acolhiam nas suas igrejas os
monumentos funerários ostentatórios, como se pode
ainda ver em Florença e em Veneza. A sua obra de
recuperação, de justificação da sociedade urbana
acompanhava o reforço da dominação dos ricos e dos
poderosos. Estudando o alargamento dos conventos
dos jacobins de Tolosa, o padre Vigário demonstrou
AS ORDENS MENDICANTES 239

que num primeiro período (1229-1234), os pregadores


constroem um convento baixo è pobre unicamente
com as esmolas da população sem distinção social;
num segundo (1242-1254), beneficiam além disso do
apoio de uma parte das grandes famílias de Tolosa; na
última campanha (1275-1340), graças à ge- mestres e
estudantes que têm de encontrar formas de subsistên-
cia fora das escolas monásticas e episcopais. Os
espíritos tradicionais acusam-nos de vender a ciência
que só a Deus pertence. Os mercadores que se
multiplicam e detêm na cidade os lugares mais
favoráveis praticam o empréstimo a juros e outras
formas de actividade cujo benefício vem do facto de
poderem adiantar dinheiro. A Igreja tradicional acusa-
os de praticar a usura e de vender o tempo, que,
também ele, só a Deus per- cence. As ordens
mendicantes legitimam o essencial da actividade dos
universitários e dos mercadores, fazendo valer o seu
trabalho que merece ser remunerado.
De maneira geral, os mendicantes favorecem e
legitimam a nova sociabilidade. Os conselhos
municipais, as universidades, instituições novas,
durante muito tempo não têm locais próprios.
Almotacés, cônsules, universitários reúnem-se nas
vastas igrejas dos conventos mendicantes.
As gentes das cidades exprimem a sua devoção
através das organizações novas, as confrarias. Os
mendicantes criam e enquadram as principais
confrarias — a da Virgem, a do Espírito Santo, a de S.
Domingos, por exemplo —, sob o impulso dos
pregadores.
Quando podem fazê-lo, em Itália sobretudo, região
das Cidades-Estado, os mendicantes dominam a vida
espiritual e a política inteira das cidades. No norte de
Itália, em 1233-1234, o "revivalismo" religioso do
AS ORDENS MENDICANTES 239

Alleluia, dirigido pelos dominicanos e pelos


franciscanos, conduziu a uma reforma dos estatutos
comunais e a acordos de paz entre as classes e as
facções de habitantes. As medidas visam os hereges,
abolem as disposições contrárias às liberdades
eclesiásticas, reprimem o luxo, a libertinagem e a
usura. É o caso de Parma, de Bolonha, de Vermeuil,
de Milão, etc. Numa cidade como Foligno, os
mendicantes surgem no começo do século XIV como
os garantes de uma verdadeira "república
eclesiástica".
O século XIII assiste ao nascimento do urbanismo
e do patriotismo urbano. Os mendicantes encontram-
se na primeira fila
4. A ORDEM DOS IRMÃOS PREGADORES E A
ORDEM DOS IRMÃOS MENORES
AS ORDENS MENDICANTES 239

dacção da nova forma de expressão das últimas


vontades, os testamentos, acolhem, por um golpe de
génio, os cadáveres laicos não só nos cemitérios
contíguos às suas igrejas, mas no interior das próprias
igrejas, ao lado dos irmãos. São os melhores
propagandistas da crença nova no Além, intermediário
entre o Inferno e o Paraíso, terceiro reino onde se pode
ainda ser resgatado entre o juízo individual que se segue
imediatamente à morte e o juízo final: o Purgatório,
nascido, enquanto lugar específico, no final do século.
Ora, escreveu-o o cisterciense Cesário de Heisterbach
por volta de 1220, o Purgatório, para muitos pecadores
dantes votados ao Inferno, é a esperança.
Promotores — mas não inventores a maior parte das
vezes — de devoções novas, é também o culto mariano
que eles difundem, por vezes graças a novas utilizações
da oração, tal como o rosário que os dominicanos lançam
ou o uso do escapulário espalhado pelo bem-aventurado
Simão Stock, mestre-geral dos Carmelitas, morto em
1258.
Sobretudo eles tornam-se os grandes especialistas da
nova forma da confissão, a confissão auricular imposta a
todos os cristãos pelo menos uma vez por ano pelo
quarto concílio de Latrão de 1215. Revolução espiritual e
psicológica que cria um diálogo insólito entre os
sacerdotes e os leigos, desenvolve o exame de
consciência, sofistica a casuística moral. Para colocar as
boas questões e dar-lhes as respostas apropriadas, as
que têm em conta os problemas religiosos colocados
pelas novas actividades urbanas e as novas mentalidades
que estão ligadas, são preciosos manuais, os manuais do
confessor. Os redactores dos manuais de êxito nos
séculos XIII e XIV são quase todos mendicantes.
Influência social e politica
Assim, os mendicantes fornecem as justificações
religiosas de que a sociedade urbana tem necessidade.
Surgem numerosos verdadeiramente a ele. Esforça-se
por lhe falar dos seus problemas específicos e distingue
auditórios segundo as suas actividades socio-
profissionais, o seu "estado" (sermones ad status):
sermões para os clérigos, para os universitários, para os
negociantes, os artesãos, os camponeses, etc. Recorre a
narrativas que divertem, apela para a fábula ou para a
vida do dia-a-dia: os exempla.
Entre os dominicanos, as igrejas comportam por vezes
duas naves, como nos jacobins de Paris, ou nos de
Tolosa, das quais uma, reservada aos leigos, lhes oferece
um espaço particular de audição. A pregação acabará por
sair às praças, em púlpitos exteriores, provisórios ou
permanentes (em Paris, em 1439, Michelozzo e Donatello
constroem e ornamentam um), o sermão com os seus
pregadores populares em voga, verdadeiros "ídolos" da
multidão, tomará proporções de meeting.
Os mendicantes também sabem encontrar a fórmula
que satisfaz as aspirações dos leigos a viver uma vida
espiritual que seja simultaneamente a sua e os associe à
dos clérigos. E a descoberta das Ordens Terceiras, qué
tem lugar no final do século XIII.
O êxito é menor no que se refere às mulheres. Desde
cedo, os franciscanos, graças a S. Francisco e à sua
amiga Santa Clara, criam uma ordem feminina, as
clarissas, cuja atracção porém não é maior que a que
exerce em muitas mulheres, na cidade, um novo género
de vida a meio-caminho entre a vida laica e a vida
religiosa, o das beguinas. É certo que são as ordens
mendicantes que tomam a seu caigo o enquadramento
espiritual das beguinas. Em Paris, as superioras das
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

beguinas são enterradas nas igrejas dos jacobins e na


beguinaria criada por S. Luís entre o Sena e a igreja de
S. Paulo os pregadores são na sua maioria irmãos
mendicantes. Mas a segunda ordem dos pregadores só
dificilmente chega a constituir-se e as irmãs dominicanas
— como as clarissas — mantêm-se enclausuradas, numa
presença reclusa na cidade.
Os mendicantes são mais felizes com os mortos.
Sabem ser os mais zelosos na assistência aos
moribundos, ajudam à re-
As ordens mendicantes
Jacques Le Goff

A inscrição no espaço de uma manifestação religiosa


ou, com mais forte razão, de uma instituição religiosa é
rica de sentido. Árvores ou fontes sagradas, postes
totémicos, templos, igrejas não se situam em qualquer
parte. A sua implantação releva de uma relação dupla,
com o divino e com o terreno, com o sagrado e com o
social. Aqui, a topografia, como acontece com frequência,
mais que de comodidade natural, é suporte de
significação simbólica. As ordens religiosas cristãs não
fugiram a esta ligação reveladora com a geografia:
situação e localização.
Um dístico que se tornou proverbial a seguir à Idade
Média declarava:

Bernardus valles, montes Benedictus amabat,


Oppida Franciscus, celebres Dominicus urbes.
«Bernardo amava os vales, Bento as montanhas,
Francisco as povoações, Domingos as cidades
populosas.»
Assim eram sublinhados, por um lado a ligação do
mona- auismo antigo ou novo, beneditino e cisterciense,
com a natureza e a solidão, por outro lado a dos irmãos
mendicantes, franciscanos e dominicanos, que não são
monges, com as cidades e os homens que as habitam.
APRESENTAÇÃO 7

da autoria de tão grande personagem —


apresentando a gesta de S. Bento de Núrsia foram um
prodigioso instrumento de propaganda, cujo êxito se
não desmentiu ao longo de toda a Idade Média.
Quando os Carolíngios chamam a si os destinos do
mundo ocidental, o monaquismo é sobretudo
beneditino; mesmo tendo as missões irlandesas e
anglo-saxónicas trabalhado antes laboriosamente,
fundando mosteiro atrás de mosteiro, como é o caso
de Luxeuil em 590 ou Bobbio em 613. O modelo
beneditino achou-se imposto sob o impulso de outro
Bento, este de Aniane, no século ix. Quando nos
séculos x e xi se faz uma vigorosa renovação
monástica, os grandes fundadores continuam lá. À
frente de Cluníaco (Cluny), fundado em 910, impõem-
se chefes incontestados. O movimento eremítico
renascente vê-se aberto e canalizado por
personagens como Romualdo, Etienne de Muret,
Norberto, Robert d'Arbrissel ou Bruno. Tantas
reformas, tantos retornos à vida apostólica, tantas
fundações: Camaldoli, Grandmont, Prémontré,
Fontevraud, a Grande Cartuxa (Chartreuse). Se
Bernardo de Claraval (Clairvauxj não é o fundador da
ordem cistercience, é o propagador dela. Quanto a
Abelardo, vindo da escola do claustro, funda um
mosteiro dedicado ao Espírito Santo, o Paráclito, e em
breve é eleito abade pelos monges da abadia de
Saint-Gildas-de-Rhuys, na Bretanha. O monaquismo
medieval é pois realmente uma sequência
ininterrupta, mas dependente das condições
históricas, de afirmações de uma vontade de retorno a
uma verdadeira vida apostólica. E isto até ao final da
Idade Média, ainda que este arrebatamento
esmoreça. Mas não nos devemos esquecer de que o
AS ORDENS MENDICANTES 239

próprio Lutero é um monge: não seria a Reforma um


avatar /• de um perpétuo retorno às fontes?
HTlKãWpainT^ 1, o mosteiro é um refúgio
para (
quem deseje ter uma relação absoluta com Deus: "O
mosteiro de S. Bento é uma escola ao serviço de
Deus e não é mais que isso" (Dom Jean Leclerq).
Busca que pressupõe mais que um afastamento do
mundo: uma verdadeira separação. E isto na
Uma palavra nova
Descobrimos, através da implantação e da acção dos
conventos mendicantes, as relações entre cidades e
campos tais como eram na Idade Média. A cidade domina
o campo circundante. Os dominicanos, por exemplo,
limitam em torno de cada um dos seus conventos urbanos
um território — que se pode considerar como "o interior"
da cidade — a que chamam praedi- catio, território de
pregação de facto mas também de peditório, completando
o espaço de apostolado e de exploração da cidade
propriamente dita. Humberto de Romans, mestre-geral
dos dominicanos de 1254 a 1263, enumera entre os três
motivos principais da escolha das cidades como local de
estabelecimento dos conventos da ordem o facto de pelas
cidades se chegar ao campo, pois o campo imita a
cidade. Resta dizer que os mendicantes raramente
procuraram instalar-se directamente num meio rural e
que, quando procuraram fazê-lo, isso constituiu quase
sempre um fracasso, como na Toscana no século XIV.
O período em que as ordens mendicantes chegam às
cidades, no segundo terço do século XIII, é também
aquele em que começa a funcionar a nova rede paroquial
que então se estabeleceu, com um desnível mais ou
menos grande tendo em conta o extraordinário
crescimento urbano do século. Face a esta rede
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

paroquial, os conventos mendicantes, mesmo nas


cidades onde eles partilham entre várias ordens o espaço
urbano, formam uma rede extra-paroquial e supra-
paroquial. Os conventos mendicantes não "cobrem"
apenas uma parte do território urbano, mas sim o seu
conjunto. E um primeiro contratempo. Há outros.
O primeiro é a palavra, e não apenas para os
pregadores. Desde finais do século XII, face aos hereges
que discutem nas praças públicas, face à sociedade
urbana que tem necessidade de que lhe falem de maneira
diferente de Deus e da sua salvação, uma palavra nova
começa a fazer-se ouvir. A pregação conhece um impulso
extraordinário e uma metamorfose profunda. Não cai já do
alto sobre o povo dos fiéis, mas dirige-se guas, cerca de
60 quilómetros; 2) "a cidade está situada numa região
povoada, fértil e abundante, perto do mar, e recebe a
visita regular, por terra e por mar, de numerosos
mercadores vindos de todas as partes do mundo"; 3) o
número da população é superior ao mínimo necessário,
três mil habitantes. A punção efectuada nos recursos da
cidade pelos peditórios permitirá pois aos irmãos
"subsistir e fazer face aos encargos que lhes competem".
As ordens parecem assim ter "quadriculado" todo o
espaço urbano da cristandade a tal ponto que o mapa
dos conventos mendicantes se confunde com o mapa
urbano e que o "critério mendicante" pode surgir como o
melhor meio de referenciar a rede urbana numa época
em que o vocabulário urbano é muito incerto e as
definições da cidade muito vagas.
Por exemplo, em França no ano 1335 existem 222
aglomerações "com conventos mendicantes" e é possível
estabelecer uma lista das cidades por níveis de
importância. As "grandes cidades" — cidades com 3 ou 4
conventos mendicantes — são em número de 52,37 das
quais no reino tal como era então e 15 nos limites da
AS ORDENS MENDICANTES 239

França actual, mas fora do reino no século XV. Deste


número, 28, as maiores de entre as "grandes", têm 4 con-
ventos: Agen, Angers, Baiona, Béziers, Bordéus, Cahors,
Carcassona, Figeac, La Rochelle, Orleães, Limoges,
Lião, Montpellier, Narbona, Pamiers, Paris, Reims, Ruão,
Tolosa e Tours, no reino; Aix, Aries, Avinhão, Marselha,
Metz, Nice, Perpinhão e Estrasburgo fora do reino. 24
delas têm 3: Albi, Amiens, Arras, Bergerac, Burges, Caen,
Châlons-sur-Marne, Clermont, Condom, Lectoure, Le
Puy, Limoux, Millau, Mon- tauban, Nantes, Nîmes e
Valenciennes, no reino; Bourg, Colmar, Draguignan,
Grasse, Haguenau, Verdun e Vissemburgo, fora do reino.
A mesma relação estreita entre o mapa urbano e o mapa
da implantação mendicante foi verificada no que se refere
à Hungria medieval.
AS ORDENS MENDICANTES 239

As ordens mendicantes
As ordens mendicantes surgem no século XIII.
Receberam essa designação desde essa época porque a
sua maneira de subsistir pelo peditório e não pela
recepção de dízimos e de proventos de tipo feudal
impressionaram os contemporâneos. A mendicidade —
que eles praticam de uma maneira diferente dos
"verdadeiros" mendigos — é um "valor" e um
comportamento discutidos no século XIII. As duas
principais ordens mendicantes são a ordem dos irmãos
pregadores (comummente chamados hoje dominicanos e,
na França medieval, jacobins por causa do nome do seu
convento, Saint-Jacques, de Paris), fundada pelo
espanhol Domingos de Calaruega (ap. 1170-1221,
canonizado em 1233) e a ordem dos irmãos menores
(comummente chamados hoje franciscanos e, na França
medieval, cordeliers por causa do grosso cinto de corda
da sua túnica), fundado pelo italiano Francisco de Assis
(1181-1226, canonizado em 1228).
Os mendicantes não são monjes, mas irmãos que
vivem entre os homens e não na solidão. Tendo o quarto
concílio de Latrão (1215) proibido a formação de ordens
que observassem novas regras, os dominicanos
adoptaram a regra dita de Santo Agostinho e
apresentaram-se pois canonicamente como cónegos
regulares. Em virtude de uma ficção segundo a qual S.
Francisco teria apresentado à Santa Sé um projecto de
regra anteriormente a Latrão IV, os franciscanos tiveram
em 1223 uma regra redigida por Francisco de Assis após
um primeiro projecto recusado em 1221 pela cúria
romana. As duas ordens são dirigidas por um cabido geral
que se reúne de três em três anos e elege um mestre
gera] no caso dos dominicanos e um ministro geral no dos
franciscanos.
Outras ordens adoptaram no decorrer do século XIII o
modelo mendicante mas o segundo concílio de Lião em
1274 deixou subsistir apenas quatro ordens mendicantes:
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

os pregadores, os menores, os carmelitas (Irmãos da


Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo),
reconhecidos em 1247, e os agostinhos (eremitas de
Santo Agostinho), formados pela reunião de diversos gru-
pos eremíticos em 1243 e em 1256
neficiado desde muito cedo do apoio da cúria romana e
dos príncipes laicos — Branca de Castela e S. Luís, por
exemplo, favoreceram-nos muito —, foram com muita
frequência sustentados pelos bispos e puderam, no
conjunto, triunfar com bastante facilidade sobre a
hostilidade do clero paroquial que via neles — com justa
razão — concorrentes.
Contudo, era preciso encontrar um local para construir
os seus conventos e as suas igrejas, arranjar os meios
para construir ' esses edifícios, assegurar os recursos
necessários para viver, manter os conventos,
desempenhar o papel tradicional dos mem- j bros da Igreja
face aos pobres e aos necessitados. Embora os j
testemunhos formais sobre o estudo preliminar destas
condições i só sejam precisos em relação à Baixa Idade
Média, é possível, a ' partir dos processos e das demoras
da fundação dos conventos ! e dos mapas desses
conventos, concluir que o estabelecimento j dos
mendicantes nas cidades foi cuidadosamente
planificado. ! Dominicanos e franciscanos constituíram,
quase ao mesmo ! tempo, as suas redes, com a diferença
de que os dominicanos j preferiam estabelecer conventos
bastante grandes em cidades í bastante importantes, ao
passo que os franciscanos estavam I desejosos de
instalar também conventos mais pequenos em i
aglomerações urbanas mais modestas.
As outras ordens mendicantes mais tardias alojaram-
se sobretudo nos interstícios deixados livres pelas duas
grandes ordens e nas cidades mais importantes que
AS ORDENS MENDICANTES 239

podiam tolerar a ins- tal ação de mais de dois conventos


mendicantes. Antes de 1294, as grandes cidades
receberam dentro dos seus muros uma multiplicidade de
conventos mendicantes. Paris, a maior cidade da
cristandade latina, acolheu sete (oito, se contarmos os
trinitários).
Há três tipos de documentos que ilustram esta
planificação do estabelecimento das ordens
mendicantes nas cidades.
Uns precisam os processos a utilizar para a
fundação de um convento no século XIII. Por exemplo,
os dominicanos exigiam duas fases preparatórias: 1)
uma inciativa atribuída a um
generoso doador ou a um religioso da província (a
cristandade foi dividida por cada ordem em territórios
chamados províncias) fazia surgir a "candidatura" de uma
cidade, mas parece que o mais frequente era a iniciativa
partir dos superiores da ordem; 2) a tomada em
consideração era decidida a dois níveis: primeiro pelo
prior provincial e os definidores da província,
seguidamente pelo cabido geral. A fundação propriamente
dita fazia-se em três momentos distintos:
1) um ou vários religiosos eram enviados ao local para
se informarem das "vias e meios" da fundação; 2) um
lugar (isto é, uma cidade) era recebido como propício à
fundação de um convento e para lá eram enviados irmãos
para preparar a fundação definitiva; 3) o convento era
definitivalmente fundado, com um prior, um leitor, irmãos
clérigos e conversos, sendo o número estatutário de um
prior e doze irmãos no mínimo. Os fracassos parecem ter
sido muito pouco numerosos.
Textos pontificais precisam, por outro lado, a forma
como o espaço no interior da mesma cidade devia ser
repartido entre as diferentes ordens mendicantes. O papa
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

Clemente IV unificou na bula Quiaplerumque de 28 de


Junho de 1268 diveras medidas promulgadas
anteriormente. A distância mínima que devia separar as
igrejas de duas ordens mendicantes no interior de uma
cidade era fixada em trezentas cannes em linha recta, isto
é, cerca de quinhentos metros (é preciso não esquecer
que a maior parte das cidades medievais contavam
apenas alguns milhares de habitantes numa superfície
pequena).
Finalmente, documentos mais tardios fornecem
pormenores sobre as condições requisitadas para o
estabelecimento de um convento mendicante, condições
examinadas no decurso de um inquérito prévio. Uma bula
de Bento XIII em 1404, pela qual o Papa reconhecido em
França (estamos no tempo do Grande Cisma) autoriza a
fundação de um convento de dominicanos na Bretanha,
em Guérande, enumera as condições satisfeitas: 1) a
distância entre Guérande e a cidade com um convento
mendicante mais próxima (Nantes) é satisfatória: é de
catorze lé- de tudo, de assegurar o triunfo da ortodoxia. A
sua obediência à Igreja exclui qualquer servilismo e não
deixa de reivindicar o apelo particular que Deus lhe
dirigiu. Como ele diz no Testamento, "ninguém me
mostrou o que devia fazer, mas foi o próprio Altíssimo que
me revelou que eu devia viver segundo o santo
Evangelho". Foi precisamente esta certeza de estar com a
razão que esteve na origem dessa dilaceração que vemos
acentuar-se nele no decurso dos últimos anos. As
biografias não oficiais (mas também a segunda Vida de
Tomás de Celano) põem em evidência as tentações que o
assaltaram então, os conflitos que o opuseram aos
ministros, isto é, à hierarquia da ordem, e a ansiedade
que suscitava nele a evolução da sua fundação. Por
medo do escândalo preferia as mais das vezes calar-se
"não sou um carrasco que castiga e flagela" — teria dito
AS ORDENS MENDICANTES 239

então aos que o convidavam a reagir publicamente -—) e


redobrar de austeridade para deixar aos seus irmãos um
exemplo que não pudesse ser discutido.
Nem sempre se viu com acerto a natureza desta última
provação. Na realidade, não é a existência da ordem nem
sequer o seu desenvolvimento que estão na sua origem.
Francisco tinha acolhido com alegria a chegada dos seus
companheiros e tinha visto no êxito dos irmãos menores
uma graça pela qual dava graças a Deus. Mas nunca
tinha sonhado, ao'contrário do seu contemporâneo, S.
Domingos, criar uma ordem de pregadores especializados
que fizessem concorrência ao clero secular e suprissem
as suas deficiências. Para ele, os irmãos deviam constituir
"um pequeno povo diferente dos povos precedentes e que
se contentaria em possuir, como riqueza, o Altíssimo",
seriam uma fraternidade de homens evangélicos menos
preocupados em convencer e criar polémicas do que em
edificar e converter pelas suas acções e pelo seu
testemunho. Ora, diante dos seus olhos, a sua fundação
transformava-se numa ordem religiosa como tantas
outras, desejosa acima de tudo de eficácia apostólica a
curto prazo e pronta, para isso, a renunciar a certos
aspectos do género de vida evangélica que lhe pareciam
inúteis ou religiosa e culturale toscana nei secoli XIV-XVI,
ed. D. Maselli, Pis- toía, 1976.
Lester K. Little, Religious Poverty and the Profit
Economy in Medieval Europe, Londres, 1978.
J. B. Freed, The Friars and German Society in the
Thirteenth Century, Cambridge, Mass., 1977.
S. FRANCISCO DE ASSIS 259

caminho da simplicidade (...) O Senhor disse-me que


queria fazer de mim mais um louco no mundo e Deus
não quer conduzir-vos por outra ciência a não ser
essa."
Sob a influência .da obra de Paul Sabatier, a
historiografia recente manteve-se em larga medida
dominada pela imagem de um S. Francisco
"recuperado" pela Igreja romana e obrigado a aceitar,
contra a sua vontade, a trasnsformação da sua
fraternidade primitiva numa ordem religiosa dotada de
instituições pelos cuidados da cúria. Nem tudo é falso
nesta maneira de ver as coisas e é certo que o
Poverello sofreu muito no fim da sua vida por ver os
irmãos — ou pelo menos alguns deles — afastarem-se
do género de vida que fora o seu, em Rivo Torto e na
Porciún- cula, na época dos começos. Mas temos de
abordar o problema das suas relações com a Igreja
banindo todo o romantismo e sem querer conduzi-lo a
todo o custo a um confronto sistemático entre o
sacerdócio e o profetismo, a instituição e o carisma, ou
a qualquer outro esquema simplista deste tipo.
Francisco não era só espontaneidade e doçura;
logo que os seus companheiros se tornaram
suficientemente numerosos, ele mesmo tomou a
iniciativa de os repartir por "províncias", à cabeça das
quais foram colocados ministros e não houve nenhum
outro fundador de ordem, talvez antes de Santo Inácio,
que tivesse insistido tanto como ele na necessidade da
obediência. Quanto à sua atitude face ao clero, é clara
e sem equívocos: "Mesmo que me persigam" — diz
ele no seu Testamento — "é ainda assim a eles que
quero recorrer (...) pois é o filho de Deus que eles
recebem e eles são os seus únicos ministros." Pelo
simples facto de consagrarem e darem aos fiéis o
corpo e o sangue de Cristo, "os sacerdotes são os
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

nossos senhores", ainda que a sua dignidade moral


não esteja à altura da missão que Deus lhes confiou.
Longe de opor a autoridade da Escritura à dos
homens, S. Francisco não concebeu a sua acção
senão no seio da Igreja e em colaboração com ela.
Mas enganar-nos-íamos igualmente ao ver nele
simplesmente o fundador de uma ordem religiosa
particularmente dedicada à Santa Sé e desejosa,
acima mais bem compreendida. Todavia,
contemporâneo do impulso das escolas e das
universidades, tinha igualmente entrevisto os riscos
que o gosto pelos estudos podia fazer correr à sua
fundação. Por isso multiplicou as advertências nesse
capítulo, acentuando os estreitos elos existentes entre
a ciência, a riqueza e o poder. Numa época em que os
livros valiam muito e eram ainda assimilados a
tesouros, o simples facto de os possuir não se
arriscaria a colocar os irmãos ao lado dos ricos e a
conduzi-los à presunção, dando-lhes a ilusão de ter
resposta para tudo? Por isso se encontra com tanta
frequência na sua boca o elogio da simplicidade e um
convite a abster-se de uma cultura livresca a que
estavam ligadas tantas tentações. A um irmão que
queria possuir um saltério respondeu um dia, não sem
alguma vivacidade: «Quando tiveres um saltério, hás-
de querer um breviário e quando tiveres um breviário,
hás-de instalar-te no púlpito como um grande prelado
e ordenarás ao teu irmão: "Traz-me um breviário!"»
Posto isto, todo exaltado, pegou em cinza da lareira,
espalhou-a na cabeça e esfregou-a, repetindo: "Aqui
está o breviário." O incidente é significativo: pelo seu
gesto, Francisco situa-se deliberadamente do lado da
natureza. Saído da sociedade urbana mais avançada e
mais refinada do seu tempo, nela condena pelo seu
comportamento o orgulho e a avareza, e propõeum
modo de vida alternativo baseado na recusa desta
"sociedade de consumo". Foi pelo menos assim que o
seu testemunho foi recebido pelos contemporâneos:
como diz a Lendados Três Companheiros a propósito
dos primeiros irmãos, "o seu hábito e a sua vida
tornavam-nos bem diferentes de todos os outros
mortais e faziam por assim dizer deles homens das
florestas" (poder-se-ia igualmente traduzir por "homens
selvagens"). Num mundo em que se afirmavam duas
formas novas de poder — o dinheiro e o saber —, o
Pobre de Assis remava conscientemente contra a
corrente da evolução, como o testemunha a famosa
frase que pronunciou em 12.19, no cabido de Nattes,
diante de todos os irmãos reunidos em torno dele:
"Deus chamou-me a caminhar na senda da humildade
e mostrou-me o
S. Francisco de Assis
André Vauchez

Há oito séculos — no final do ano de 1181 ou no


começo de 1182 — nascia no coração da Úmbria uma
personagem de origem obscura. Era o filho de um
mercador de panos que viria a marcar a história do
Ocidente de maneira muito mais profunda do que a
maior parte dos reis ou dos papas do seu tempo:
Francisco de Assis. Decerto foi menos célebre em vida
do que os seus contemporâneos Inocêncio III ou
Frederico II, mas a influência da sua acção e o fascínio
do seu ideal fazem-se sentir ainda nos nossos dias,
como o testemunham tanto a vaga crescente da
peregrinação a Assis como o impulso dos estudos
franciscanos, ambos tendo conhecido uma constante
renovação, desde as últimas décadas do século XIX
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

até agora. Não esqueçamos também as numerosas


famílias religiosas que, a títulos diversos, o reclamam
para si e rodeiam a sua memória de uma veneração
particular. Tudo isto contribui para fazer dele uma
figura familiar, mesmo para aqueles que são
insensíveis à sua dimensão mística: quem não ouviu
falar da pregação de S. Francisco aos pássaros ou do
episódio do lobo de Gúbio?
Não está porém confirmado que a ideia que se tem
habitualmente do Pobre de Assis (o Poverello, em
italiano) abarque a realidade histórica da personagem.
A visita aos "lugares santos" do franciscanismo pode
neste ponto induzir em erro. Cidade-museu e cidade-
santuário, Assis conservou um cenário arquitectónico
que, no essencial, não variou desde o século XIV e
pode-se assim reconstituir sem esforço o quadro no
qual se desenrolou a vida do filho de Pietro
Bernardone. Mas a calma e o silêncio que aí se
desfrutam nada evocam das suas actividades
económicas hoje desaparecidas, assim como das lutas
de partidos e de clãs de uma extrema violência de que
a cidade medieval foi palco. Do mesmo modo, o
espectáculo dos pequenos claustros harmoniosos e
floridos, reverberando o rumor das fontes e dos cantos
dos pássaros, leva por vezes o turista apressado a
identificar o espírito franciscano com uma simples
estética do despojamento, e até com uma certa
pieguice. Não será só o clima da Úmbriaque mantém a
ilusão: a sua doçura primaveril ou outonal arrisca-se a
fazer esquecer os rigores da canícula dos meses de
Verão e sobretudo os do Inverno, muitas vezes rude
nesta região montanhosa; as biografias de S.
Francisco estão repletas de menções a bátegas de
chuva, a caminhos cheios de neve e a ventos glaciais
dos quais lhe era bastante difícil proteger-se a não ser
acrescentando à sua túnica alguns pedaços de
fazenda. Só os eremitérios de Carceri ou de Fonte
Colombo, perto de Rieti, sugerem que a vida do
Poverello e dos seus contemporâneos tenha sido um
tanto diferente da vagabundagem folgazã no meio de
uma natureza amena que numerosos pintores se delei-
taram a representar.
Outras razões — estas de ordem historiográfica —
fazem com que não seja sensato aderir ao
"verdadeiro" S. Francisco, pelo menos a uma
representação deste que não seja demasiado
arbitrária ou duvidosa. Esta observação pode parecer
surpreendente tratando-se de uma personagem que
não se perde na noite dos tempos, uma vez que viveu
na mesma época que um Filipe Augusto ou um João
Sem Terra, cuja biografia é bem conhecida e se apoia
em dados solidamente estabelecidos. Mas Francisco
não era um dos grandes deste mundo e, exceptuando
duas regras (a de 1221 e a de 1223) que chegaram
até nós, não deixou qualquer texto legislativo. A maior
parte da sua corres- homem de Deus conferindo-lhe
um sentimento de poder e de autonomia. Assim se
explica a sua hostilidade visceral face ao dinheiro, que
ele proibia aos irmãos de receber e possuir. Isto
porque a posse da moeda não confere apenas uma
sensação de poder ilusória, falseia igualmente as
relações entre os homens e situa os que a possuem
entre os opressores. Em conformidade com as ideias
económicas do seu tempo, o filho de Pietro
Bernardone estava convencido de que a quantidade
de dinheiro disponível no mundo era constante e que,
ao enriquecer ou acumular riqueza se empobrecia os
outros.
Além disso, Francisco tinha compreendido que o
apego aos bens deste mundo conduz fatalmente à
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

violência. Ao bispo de Assis, que se inquietava por ver


os irmãos recusarem toda a forma de propriedade,
respondeu simplesmente: "Se possuíssemos bens,
teríamos de defendê-los." Ora ele tinha escolhido
colocar-se de uma vez por todas do lado dos fracos,
dos deserdados e dos marginais: leprosos,
vagabundos, mendigos e salteadores, todos os que
constituíam a escória da sociedade, eram para ele
objectos de predilecção. Neles, mais que em qualquer
outro homem, ele encontrava o rosto do Cristo
sofredor. Mas, consciente das ambiguidades da
pobreza voluntária, queria que os irmãos partilhassem
com os miseráveis as esmolas que recebiam e no seu
Testamento recordou a necessidade de trabalhar com
as próprias mãos — não para ganhar um salário mas
para não estar a cargo de ninguém —, sendo a
mendicidade admitida apenas em caso de
necessidade. Concebia-a ainda como uma troca
desigual, em que aquele que mendigava, ao chamar a
bênção de Deus sobre aquele que lhe dava esmola,
dava infinitamente mais do que recebia.
É no mesmo registo que convém situar a atitude,
assaz complexa e até contraditória aparentemente, de
S. Francisco face à cultura. Ele mesmo, sem ser um
letrado, sabia ier e escrever, tendo mostrado por várias
ocasiões, nas suas obras, a estima pelos teólogos,
graças aos quais a Palavra de Deus pode ser fazer ver
para fazer crer. A inscrição na sua carne dos estigmas
da Paixão — as chagas das mãos, do pés e do lado —
mostra que esta maneira de viver a realidade do
Evangelho se situa muito para além do procedimento
pedagógico ou do jogo.
De facto, foi primeiro na sua vida quotidiana que
Francisco se esforçou por imitar Cristo. Daí a
importância, fundamental aos seus olhos, da
humildade e da pobreza. O próprio nome que ele deu
à sua ordem, os irmãos menores, atesta o apego que
ele sentia pela primeira destas virtudes. "Éramos
simples e submissos a todos" — diz ele no
Testamento, ao evocar a época das origens. E quando
os seus companheiros lhe faziam queixas por terem
sido mal recebidos pelos sacerdotes e pelos bispos,
ele recomendava-lhes que não insistissem e se
afastassem sem recriminações ou sem fazer caso dos
seus direitos. Quanto à pobreza, sabemos que ela está
no âmago da experiência franciscana. A entrada na
ordem implicava aliás que se renunciasse a todos os
bens pessoais, que estes fossem distribuídos pelos
pobres e que se ficasse apenas com uma túnica, umas
ceroulas e uma corda, uma vez que os irmãos
menores, ao contrário dos monges e dos outros
religiosos, não deviam possuir nada, nem de seu nem
sequer em comum. Viver segundo o Evangelho era
recusar toda a segurança e entregar-se à providência
no que se referia à subsistência, ao alojamento e a
todas as outras necessidades. As polémicas que
surgiram na ordem após a morte de S. Francisco em
torno da noção de pobreza obscureceram um pouco o
sentido da sua escolha da "Pobreza" como do apego
apaixonado que ele lhe manifestava. Para ele, tratava-
se menos de recusar, a priori, toda a forma jurídica de
propriedade (em 1213 aceitou que o conde Orlando de
Chuisi lhe desse a localidade de La Verna para aí
estabelecer um eremitério) do que de aniquilar em si
mesmo o espírito de apropriação. Foi assim que dei-
xou um dia precipitadamente uma cela que os irmãos
lhe tinham preparado por um deles se lhe ter referido
dizendo "a tua cela". O facto de se instalar em algum
sítio ou em alguma coisa que se podia reivindicar
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

como seu arriscava-se com efeito a afastar o


pondência não foi conservada e as únicas obras
autênticas que dele se conhecem são uma dúzia de
cartas ou bilhetes, algumas orações, fórmulas de
louvor e bênçãos, o Cântico do Irmão Sol ou Das
Criaturas e sobretudo o Testamento que ditou pouco
antes de morrer. Conjunto precioso, é certo, mas afinal
de volume pouco espesso e que — à excepção do
Testamento — nos informa mais sobre a devoção do
seu autor do que sobre a sua história. Nos textos da
época, as menções do Poverello não são muito
numerosas. Fora da Itália, Jacques de Vitry—um
prelado francês que se tinha dirigido em 1216 à Cúria
antes de ir ocupar uma sede episcopal no Oriente —
foi um dos raros a discernir em vida a importância
histórica do movimento franciscano. Além disso, as
passagens da sua correspondência que lhe fazem
referência ilustram sobretudo os primórdios da ordem
dos irmãos menores.
Restam as biografias. São numerosas e prolixas, mas
a sua utilização como fontes coloca aos historiadores
graves problemas. Todas, com efeito, foram redigidas
posteriormente à canonização de Francisco pelo
papado, a qual teve lugar em 1228, dois anos após a
sua morte. Ora as vidas de santos e, de maneira
geral, os textos hagiográficos constituíam na Idade
Média um génefo literário bem definido, regido por um
certo número de convenções e visando a edificação.
Tomar à letra e encadear todos os episódios que
figuram nas vidas medievais de S. Francisco, como
fizeram certos autores modernos, constitui pois um
contra-senso. Finalmente, e acima de tudo, a biografia
de S. Francisco tomou-se rapidamente uma aposta
importante e uma fonte de contradição no seio dos
irmãos menores. Temos ainda que as diversas lendas
foram compostas em função de preocupações muito
precisas que correspondiam a vicissitudes internas da
ordem. Tal como é bem visível nas variações que
apresentam as duas primeiras biografias oficiais,
obras do franciscano Tomás de Celano. Enquanto na
primeira, composta em 1229-1230, o irmão Elias de
Cortona (comanditário da obra com o papa Gregório
IX) ocupa um certo lugar e é apresentado sob uma luz
favorável, a sua acção e as suas relações com S.
Francisco são evocadas em termos nitidamente mais
discretos na segunda, que data de 1246. É que
entretanto esta personagem contestada fora obrigada
a abandonar a direcção da ordem e reunira-se ao
imperador Frederico II em luta contra o papado.
Mais completa que a anterior, esta última Vida só
parcialmente tomou em consideração as recordações
que os primeiros companheiros de Francisco, os
irmãos Leone (morto em 1271), Angelo e Rufino,
tinham relatado por escrito após 1224, por medo de
ver caída no esquecimento a verdadeira imagem
daquele a quem tinham amado e seguido. Inquietos
com a evolução da ordem, sublinhavam sobretudo o
espírito de pobreza do fundador, a desconfiança de
que tinha dado testemunho face aos estudos e o seu
apego apaixonado aos valores evangélicos. Ignora-se
qual foi a forma exacta desta preciosa recolha a que
se chama o Florilégio de Greccio e os especialistas
ainda hoje discutem o seu conteúdo e a sua
organização interna. Mas o essencial foi transmitido
em dois textos compostos em meados do século XIII:
a Lenda dos Três Companheiros e a Lenda
(denominada) de Perúsia, que se revestem
efectivamente de uma importância particular. Um
pouco mais tarde, um ministro geral, S. Boaventura
(1257-1274), desejoso de restabelecer á unidade e a
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

concórdia no seio da ordem, compôs uma nova


biografia oficial, a Legenda Major, que foi a única
autorizada a partir de 1266. A maior parte dos
manuscritos das biografias anteriores foram então
destruídas, o que explica—para tomar apenas um
exemplo — que tenha sido necessário aguardar o
início do nosso século para que se redescobrisse o
texto da Lenda de Perúsia já citada, assim como
outras biografias de S. Francisco compostas no início
do século XV pelos franciscanos "espirituais" — isto é,
hostis ao relaxamento e às atenuações das exigências
da regra em matéria de pobreza —, como é o caso do
Espelho dê Perfeição.
Ainda mais tarde, nos eremitérios da Marca de
Ancona, foram postas por escrito tradições orais mais
ou menos folcloriza- das. São os Ac tus Beati
Francisci et Sociorum, recolha que influência da
exegese monástica, a Igreja considerava a Escritura
como "uma floresta de símbolos" e um conjunto de
textos tão difícil e rico de significações ocultas, que só
os clérigos formados nas disciplinas do arcano eram
capazes de desvendar o seu sentido velado.
Francisco inova radicalmente, recusando toda a
interpretação alegórica da Palavra de Deus. Longe de
se comprazer, como muitos espirituais ou teólogos do
seu tempo, em especulações sobre os textos mais
obscuros do Antigo ou do Novo Testamento, — por
exemplo, o Apocalipse que Joaquim de Flore tinha
comentado alguns anos antes — o Poverello destacou
o que constituía aos seus olhos o âmago da
mensagem evangélica: ó amor divino encarnado em
Jesus Cristo, Deus feito homem, nascido num
estábulo, tendo vivido pobre no meio dos pescadores
e tendo sofrido os tormentos da sua Paixão para que
depois dele possamos ressuscitar de entre os mortos.
Esta invocação simples e firme dos dados centrais
do mistério cristão não teria talvez bastado para
despertar o espírito dos seus contemporâneos se ele
lhos não tivesse apresentado de uma maneira própria
para os tocar. O encontro de S. Francisco foi para
milhares de homens ocasião de um choque emocional
e religioso profundo, porque ele lhes falava de Deus de
maneira igualmente nova. Aquele que se definia a si
mesmo como "o arauto do grande rei" ou o "jogral de
Deus" não se limitava a pregar: mimava a vida de
Cristo e, no sentido mais concreto do termo,
"representava-a" perante os homens. Sabemos que
ele organizou em Greccio o primeiro presépio [vivo]
numa noite de Natal, ilustrando assim para os seus
irmãos e para os aldeãos a realidade do mistério da
Natividade. Para fazer compreender aos habitantes de
Assis a nudez e os opróbios de Cristo na cruz assim
como as exigências do despojamento, não hesitou em
pregar nu na cidade, depois de lá ter enviado o irmão
Rufino no mesmo preparo. Com ele, a experiência
íntima dos mistérios da salvação encarna-se numa
cultura gestual. Torna-se simultaneamente acção e
espectáculo. Mas não se trata unicamente de seu
poder temporal e aos seus bens, acabaram por entrar
em conflito com a hierarquia. Foi, um pouco mais
tarde, o caso dos Valdenses, discípulos de Valdo, um
rico mercador lionês que se despojou dos seus bens
para ir anunciar o Evangelho. O Papa declarou-os
heréticos em 1184. Sob o golpe das condenações
eclesiásticas, os movimentos evangélicos populares
tenderam a constituir seitas à margem da instituição
oficial ou foram contaminados pelas teses dualistas
propagadas nas regiões meridionais da França e em
Itália pelos cátaros. Entre uma Igreja desejosa, antes
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

de mais, por desenvolver as suas estruturas e de


acentuar a sua preponderância sobre a sociedade, e
as aspirações religiosas de numerosos fiéis cada vez
mais críticos face aos clérigos e aos monges, cavara-
se um fosso que não parava de se aprofundar.
Francisco de Assis situa-se na esteira deste
evangelismo popular que acabamos de evocar. A partir
da sua conversão, esforçou-se por "seguir nu o Cristo
nu", calcorreando as pisadas do "Filho do Homem que
não tinha onde repousar a cabeça". Com ele, pela
primeira vez na história do cristianismo, a vida
religiosa deixa de ser concebida como uma
contemplação do mistério de Deus e passa a ser
concebida antes como uma imitação de Cristo ou,
melhor ainda, como a busca de uma conformidade
sempre mais estreita com o seu exemplo e a sua
pessoa. Depois da morte de S. Francisco os irmãos
menores celebrarão nele um novo ou um segundo
Cristo (alter Christus), o que permitirá mais tarde a
Lutero censurá-los por quererm fazer dele "um outro
Deus". Quer esta crítica seja fundada quer não, não
há no Pobre de Assis nenhuma ambiguidade: não se
encontra nele nem ambição prometeica nem
aspiração panteísta, mas o desejo ardente de se
tornar semelhante ao Crucificado e de permitir a cada
cristão fazer o mesmo. Para o conseguir, não havia
aos seus olhos outro caminho senão o de uma
fidelidade literal — o que não quer dizer estreita — ao
Evangelho. Ainda neste ponto é-nos difícil imaginar a
novidade da mensagem franciscana a que os
contemporâneos foram tão sensíveis. Numa época em
que, sob a obteve um êxito duradouro na sua tradução
italiana de 1390 conhecida pelo nome de Fioretti.
Conforme optamos por nos apoiar essencialmente
nesta ou naquela dessas fontes, obtemos imagens de
S. Francisco assaz diferentes. No fim do século
passado, o pastor protestante Paul Sabatier pôs em
causa a autenticidade até então incontestada das
biografias oficiais (I e II Celano, Legenda Major) e
suscitou um grande escândalo ao escrever uma Vida
de S. Francisco inspirada no Espelho de Perfeição, no
qual julgava ter encontrado a Vida mais antiga do
Poverello. O santo aparece nela como uma
personagem totalmente carismática, esmagada e
alquebrada pela Igreja Romana na pessoa do cardeal
Hugolino, que, sob pretexto de proteger a ordem
nascente, lhe teria imposto um quadro institucional
que repugnava a Francisco. Com esta publicação
retumbante se abre a "Questão Franciscana",
polémica erudita que tende hoje em dia a esgotar-se
mas que levou à descoberta e à publicação de
numerosos textos inéditos. A hipótese de Sabatier era
falsa, mas teve o mérito de suscitar pesquisas que
permitem hoje aos historiadores avançar sobre um
terreno menos minado.
Francisco, como vimos, era filho de um rico
mercador de panos que frequentava esse grande
centro de trocas da Europa da altura que eram as
feiras de Champanha. Seria essa a razão pela qual
teria querido que o seu filho se chamasse Francesco
— "o Francês" —, nome próprio que não era então
muito corrente. Sabe-se que teve irmãos e que a mãe
lhe manifestava uma afeição particular. Pelas suas
origens familiares e a sua profissão, pertencia aos
Popolo, isto é, a um grupo social que, no quadro ainda
feudal que caracterizava Assis no fim de séculoXII,
estava submetido à preponderância da nobreza e
excluído do poder. Mas, como em todas as cidades de
Itália nessa época, a franja superior desse Popolo —
em particular os homens de negócios e os
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

proprietários de imóveis urbanos — tendia a


aproximar-se da aristocracia pelo seu género de vida.
A fortuna de Pietro Bernardone permitia assim ao seu
filho viver à maneira dos nobres e fazer parte da
mocidade dourada da cidade. Chefe de uma confraria
de alegres estróinas, tornara-se bem popular junto dos
amigos já que se achava sempre disposto a pagar-
-lhes coisas.
Francisco, com efeito, reagiu muito cedo aos
valores dominantes do seu meio — avidez do lucro,
avareza — e sofreu a influência do ideal cortês
veiculado pelas obras literárias — canções de gesta e
poemas de amor — vindas de França que invadiam
então a Itália. Foi profundamente marcado por esta
moda e, mesmo após a sua conversão, continuará a
cantar poemas em francês e a evocar os paladinos da
Canção de Rolando e os Cavaleiros da Távola
Redonda. Seja como for, por volta dos vinte anos foi
tentado pela carreira das armas e, em 1204, pensava
colocar-se ao serviço de um condottiere para se tornar
cavaleiro quando uma doença o obrigou a renunciar
aos seus projectos.
Começou então para Francisco um período de
inquietação e de 'Vazio na alma" que iria durar dois
anos (1205-1206) e levá-lo ao que os seus biógrafos
chamam a sua conversão. Decepcionado pela vida
que levara até então, procurou durante muito tempo a
sua via e tomou progressivamente consciência da sua
vocação: servir não qualquer nobre dama mas a
Pobreza e realizar proezas não nos campos de
batalha mas ao serviço de Cristo, cujo rosto lhe era
revelado nos desafortunados. Foi nesse momento que
começou a visitar e a tratar os leprosos e essa vitória
que conquistou sobre si mesmo foi de uma
importância decisiva, como ele próprio reconheceu no
seu Testamento: "Quando os deixava, o que me havia
parecido amargo tornava-se para mim em doçura para
o espírito e para o corpo. A seguir, pouco mais esperei
e disse adeus ao mundo." De facto, não tardou a
romper de maneira espectacular com o pai, que o
censurava por dilapidar a fortuna, distribuindo pelos
pobres dinheiro que não lhe pertencia. Conhece-se,
quanto mais não seja por intermédio de Giotto que o
ilustrou magnificamente, o episódio de Francisco
despojando-e das suas roupas e restituindo-as ao pai
para se ir colocar sob a protecção do bispo Guido de
Assis. Por este lianismos não deixou uma obra
importante mas um testemunho: o de um homem que
quis viver o Evangelho à letra e ser uma testemunha
do amor de Deus no seio do mundo. Não há
aparentemente nisso nada de original. E contudo
todos os testemunhos contemporâneos se acham de
acordo ao sublinhar a novidade do seu propósito e do
seu género de vida. É a natureza exacta desta
experiência religiosa inaudita, a qual suscitou tanto
entusiasmo e tantas paixões, que temos agora de
apreender melhor.
"Viver segundo o santo Evangelho", segundo a
fórmula empregue por S. Francisco no seu
Testamento, era, nos alvores do século XI, uma ideia
nova. É certo que desde o final do século XI, um certo
número de movimentos religiosos tinham fixado para si
mesmos ambições assaz próximas: Papas
reformadores como Gregório VII ou Urbano II,
pregadores populares como Roberto d'Arbrissel ou
eremitas como Estevão de Muret tinham difundido na
cristandade o ideal da vida apostólica, isto é, um
retorno à vida da Igreja primitiva tal como se encontra
descrita nos Actos dos Apóstolos (II, 44-47): a de uma
comunidade em que "os crentes tinham um só
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

coração" e punham em comum tudo o que possuíam.


Este mito dinâmico tinha suscitado o aparecimento de
novas formas de vida religiosa: cónegos regulares
vivendo segundo a regra de Santo Agostinho, ordens
monásticas reformadas como as de Grandinont ou de
Cister ou grupos de laicos que se colocavam ao
serviço dos religiosos como conversos. Mas estas
novas ordens, por rigorosas que fossem as suas
exigências em matéria de austeridade, mantinham-se
no quadro feudal e senhorial. Se os religiosos eram
pobres individualmente, eram ricos e poderosos
colectivamente. Além disso, a maior parte deles foram
vítimas do seu próprio êxito. Cumulados de bens pela
nobreza, não tardaram a atenuar o rigor das suas
observâncias e a deixar-se monopolizar pelas tarefas
de gestão e pela preocupação em estender o seu
património. Os que com isso se escandalizaram e que,
como Arnoldo de Brescia na década de 1140,
preconizaram que a Igreja renunciasse ao agravaram
o seu padecimento. Foi neste estado de sofrimento e
de desânimo — começava a tornar-se importuno para
um certo número de irmãos e tinha consciência disso
— que compôs em Assis o Cântico do Irmão Sol,
extraordinário louvor ao Deus criador no qual se
exprime — em italiano — toda a sua sensibilidade
poética e cósmica. No Verão de 1226, o seu estado
tornou-se desesperado e foi levado para Assis onde
morreu a 3 de Outubro, depois de ter ditado o seu
Testamento, texto fundamental que dá o sentido último
da sua experiência religiosa e do itinerário que
percorrera após a sua conversão. Em 1228, foi
canonizado pelo papa Gregório IX e os seus restos
mortais foram solenemente transportados em 1230
para a nova basílica que começava a ser construída
em sua honra a oeste da cidade, num terreno plano
até então reservado para os enforcamentos.
Nessa época, a ordem dos irmãos menores contava
já perto de três mil membros e o seu êxito continuava
a aumentar. Não havia cidade de certa importância,
primeiro na Itália e em breve em toda a cristandade,
que não quisesse ter dentro dos seus muros um
convento franciscano. O papado apoiava-o com todos
os seus esforços, seguro de poder contar com esta
nova "milícia" toda devotada — assim como com a
ordem dos irmãos pregadores criada namesma época
por S. Domingos — na luta contra a heresia. Mas era
mesmo isso o que Francisco teria querido?

A mensagem espiritual
Quando se tenta defini-la em termos abstractos, a
mensagem de S. Francisco reduz-se a algumas
fórmulas que podem parecer bastante banais. Ele não
foi, com efeito, nem um grande teólogo, como Santo
Agostinho, por exemplo, nem um pensador profundo
como S. Tomás de Aquino, nem sequer um teórico da
vida espiritual como um S. Bernardo ou um Inácio de
Loiola. Este leigo que escrevia um latim rugoso e cheio
de ita- gesto, tornava-se um "homem religioso",
deixando de depender da autoridade paterna e dos
tribunais civis e passando a depender da Igreja.
Isso não significava contudo que tivesse a intenção
de se tornar padre ou monge, coisas que nunca foi.
Mas existia na cristandade medieval um estado
intermédio entre o dos clérigos e o dos leigos: tratava-
se dos penitentes, isto é, de fiéis que optavam por
renunciar à vida mundana sem no entanto passarem a
fazer parte das ordens. Esses convertidos (ou
conversos) levavam uma existência ascética e
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consagravam-se à oração e às obras de beneficência.


Francisco adoptou este estilo de vida que começava
então a conhecer um certo êxito em Itália: vestido com
um hábito de eremita, dedicou-se à reparação de
pequenas igrejas em ruínas na periferia de Assis,
rezando e meditando diante dos grandes crucifixos
pintados sobre madeira que ali se encontravam. Os
seus concidadãos não andavam longe de o considerar
um louco ou um iluminado. Apesar disso, em breve se
lhe juntaram alguns companheiros originários da
cidade: Bernardo de Quintavalle, Pedro Cattani, Gil,
Filipe, Ângelo e Silvestre. Este último era um sacerdote
que se agregou em pé de igualdade com os outros à
nova "fraternidade dos penitentes de Assis" de que
Francisco era o chefe e o animador. O grupo instalou-
se em cabanas de pedra seca, em Rivo Torto, na
planície pantanosa situada em nível inferior em relação
às muralhas da cidade. Mas um camponês desalojou-
os ao ir ali instalar o seu burro. Como não queriam
entrar em conflito com ninguém, retiraram-se e foram
instalar-se na igreja de Santa Maria dos Anjos, dita a
Porciúncula, que o abade de S. Bento do Subásio lhes
concedeu depois.
Este período primitivo é evocado com emoção pelo
Francisco dos últimos anos e pelos textos que
dependem do testemunho dos três companheiros: não
contentes em orar apenas e servir os pobres na
alegria, os irmãos anunciavam o Evangelho e
pregavam a penitência, isto é, a conversão, nas
aldeias e nas pequenas cidades da Umbria e das
Marcas. Este "tomar a palavra", da parte de leigos que
não tinham recebido nenhum mandato da hierarquia,
nem sempre era bem recebido. Muitos fiéis
manifestavam hostilidade para com esses pés-
descalços que ninguém ou quase ninguém distinguia
dos verdadeiros pobres e os clérigos desconfiavam
deles, suspeitando que pertencessem a movimentos
heréticos, então bastante numerosos.
Mas Francisco soube convencer a hierarquia da
sua ortodoxia e da sua submissão à Igreja. O encontro
decisivo teve lugar em Roma em 1210. O papa
Inocêncio III, parece que não sem algumas
hesitações, acedeu a aprovar oralmente a regra que o
Pobre de Assis tinha composto para a sua pequena
comunidade. Este texto, que não foi conservado, era
composto por versículos do Evangelho encadeados e
não comportava nenhum aspecto jurídico. Confortados
por este apoio, os irmãos menores — foi o nome que
então adoptaram, no seguimento de várias propostas
que surgiram — desenvolveram a sua acção
apostólica em toda a Itália central e viram afluir
numerosos recrutas. Em 1212, Clara, uma jovem da
aristocracia de Assis, impressionada pela pregação e
pelo exemplo de Francisco, foge de casa para ir
juntar-se a ele. Em breve foi seguida por várias
parentas e amigas que constituíram sob a sua
direcção uma comunidade de penitentes
enclausuradas, as "Damas Pobres", que se instalam
dentro em pouco no pequeno convento de S. Damião.
A continuação já é conhecida e contentar-nos-emos
em evocar as datas principais: em 1217, quando do
cabido geral (reunião anual de todos os irmãos que
tinha lugar na Por- ciúncula), foi decidido sair das
fronteiras da Itália. O próprio Francisco teria querido ir
a França, mas o cardeal Hugolino, com quem se
encontrou em Florença, descreveu-lhe os perigos que
a sua partida se arriscava a fazer correr à sua
fundação ainda muito frágil. Não tendo essas
primeiras "missões" a norte dos Alpes dado quaisquer
resultados, a experiência foi retomada em 1219 em
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

melhores condições e grupos de irmãos alcançaram a


Alemanha, a França e a Hungria e em breve a
Inglaterra, onde começaram a estabelecer-se. Alguns
foram até Marrocos, onde foram massacrados. O
próprio Francisco partiu para a Terra Santa, juntando-
se em Damieta, no Egipto, à quinta cruzada, que, sob
a direcção de um legado pontifical, se esforçava por
quebrar o poderio militar do Islão. Descoroçoado pelo
espectáculo das violências que acompanharam a
tomada da cidade, partiu com um só companheiro em
direcção às linhas inimigas. Preso e conduzido diante
do sultão Malek-al-Kamil, teve com ele uma conversa
sobre as questões religiosas (cuja realidade se
encontra bem estabelecida) e foi reconduzido com
todas as honras ao campo dos cruzados. Chamado a
Itália pelas más novas que lhe chegavam, encontrou a
ordem em plena efervescência em razão de certas
iniciativas que tinham sido tomadas na sua ausência
pelos seus "vigários" e das tensões que começavam a
manifestar-se no seu seio. Inquieto com esta
evolução, esforçou-se por contrariá-la dotando os
irmãos menores de uma regra e pedindo à Santa Sé a
nomeação de um cardeal protector que foi Hugolino, o
futuro papa Gregório IX. '
A regra que ele compôs em 1221 não conseguiu a
unanimidade no seio da ordem nem foi aprovada pelo
Papa. Foi preciso esperar pelo ano de 1223 para que
um último texto, que Francisco considerava como um
mínimo e que possuía um aspecto mais jurídico que os
anteriores, fosse oficialmente promulgado. Entretanto
o Poverello tinha renunciado a dirigir os irmãos,
alegando o seu estado de saúde, o qual, de facto, se
tornara muito mau depois do seu regresso do Oriente
onde contraíra uma doença nos olhos. Distanciando-se
de um organismo cada vez mais espalhado e que lhe
escapava, alternou campanhas de pregação na Itália
com estadas prolongadas em eremitérios, rodeado de
um pequeno número de companheiros. Foi num deles,
o do Verna, a norte do Arezzo, que recebeu em 1224
os estigmas da Paixão de Cristo, enquanto se achava
absorvido na meditação desse mistério doloroso. Os
seus últimos anos foram sob todos os espectos um
calvário. Quase cego e sofrendo além disso do baço e
do fígado, foi transportado de uma cidade para outra
para aí receber os cuidados de médicos que só
devem-se a informadores — clérigos ou leigos — que
o dominicano tem geralmente o cuidado de citar: fica
esclarecida a autoridade da narrativa. Esta, para ser
eficaz, deve ser com efeito apresentada como uma
história verídica, ou pelo menos verosímil. É assim
possível reconstituir as redes de relações do irmão
Estêvão6. Não nos surpreenderá encontrar em primeiro
lugar dominicanos. Estêvão vai buscar exempla tanto
aos irmãos mais conhecidos e afamados da ordem,
como é o caso de Jordão de Saxe ou Humberto de
Romans, como aos anónimos. Estas narrativas que
geralmente só nos foram dadas a conhecer através
dele são preciosas para a história dos primórdios da
ordem. Assim, Guilherme de Limoges, subprior do
convento de Saint-Jacques em Paris, rei ata-lhe como
o diabo procurava, sob a forma de um dominicano,
desviar do seu apostolado os irmãos parisienses.
Estêvão de Bourbon encontra igualmente
franciscanos como Guilherme de Cordelle, principal
agente do papado para a pregação e a colecta dos
fundos da cruzada. Convive também os pastores das
diversas dioceses que percorre: Aimon, bispo de
Mâcon; Reinaldo II de Forez, arcebispo de Lião;
Nicolau de Fla- vigny, arcebispo de Besançon; Hugues
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

de la Tour, bispo de Cler- mont. Os sacerdotes de


paróquia dão igualmente o seu contributo.
Os próprios aldeãos, na condição de serem
pessoas honestas e dignas de fé, podem tornar-se
informadores; relatam em geral um feito público,
muitas vezes um escândalo que perturbou a
comunidade. Um exemplo único bastará: "Aconteceu
na diocese de Mâcon que um homem foi levado
perante o tribunal eclesiástico pelo seu capelão e os
seus vizinhos. Foi acusado e excomungado
publicamente. Um irmão pregador exortou-o a deixar
uma das suas parentas ou aliadas que tinha então por
concubina. Nem as ameaças nem as lisonjas
conseguiram convencê-lo. Crendo ainda poder
chafurdar por muito tempo no seu pecado opondo-se
a Deus, deixou o irmão sem mudar de parecer. No
caminho de volta, depois de encontrar o pai e de se
pôr a falar com ele, foi subitamente fulminado pela
morte e logo aü ficou caído, na estrada. Foi o que me
contaram, quando incómodos. Instalações fixas,
construção de conventos e de igrejas, introdução de
práticas ascéticas ou litúrgicas de tipo monástico,
relaxação em matéria de pobreza e de simplicidade,
interesse crescente pelos estudos e a ciência, todas
estas entorses do ideal primitivo Francisco parece tê-
las sentido como outras tantas traições. Mas falar,
como muitas vezes se faz, a propósito disto, de uma
decadência da ordem, a qual teria começado antes do
falecimento do seu fundador, é um abuso de
linguagem que mais não faz do que baralhar as
cartas. Trata-se, mais profundamente, de uma
divergência de pontos de vista que era quase
inevitável entre aqueles — os ministros franciscanos,
o papado — que eram sobretudo sensíveis às
necessidades imediatas da Igreja (escalada das
heresias, insuficiências do clero, ignorância religiosa
dos leigos) e que procuravam fazer-lhes face
utilizando para tal essa "massa de manobra"
providencial que era a ordem dos irmãos menores e,
por outro lado, o fundador, que, sem ignorar estes
problemas, via para além deles.
É que — e talvez o essencial seja isso — Francisco
de Assis estava muito avançado em relação ao seu
tempo. O seu apelo à fraternidade universal, da qual
não excluía nem os animais nem os elementos, nem
mesmo "a nossa irmã, a morte corporal", era
demasiado carregado de consequências para que se
apreendesse imediatamente o seu alcance. Além
disso, se ele tinha pessoalmente transcendido as
clivagens que existiam então na sociedade e na Igreja
e se tinha pretendido que no seio do movimento a que
dera origem não houvesse mais ricos e pobres,
letrados e gente inculta nem, poder-se-ia mesmo dizer,
homens e mulheres, estas distinções não tardaram a
reaparecer entre os que o tinham seguido, por amor, é
certo, mas sem sempre compreenderem onde ele os
queria conduzir. Não temos que nos escandalizar ou
que censurar os seus contemporâneos. Podemos
mesmo pensar que é na medida em que a sua
mensagem foi, no decorrer dos séculos, empobrecida
ou deformada que Francisco de Assis continua a ser
uma personagem actual que continua a ser
constantemente redescoberta.
Orientação bibliográfica
Escritos (em francês):
O conjunto das obras de S. Francisco e das suas
biografias medievais foi publicado nas Editions
franciscaines numa boa tradução francesa: Saint
François d'Assise. Documents, écrits et premiers
biographies, reunidos pelo Pe. Théophile Desbonnets
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA I

e pelo Pe. Damien Vorreux, Paris, Éd. Franciscaines,


1968.
Oeuvres de Saint François d'Assise, tradução
francesa de Alexandre Masseron, Paris, Éd. du Seuil,
1982.
François d'Assise, Ecrits, Paris, Le Cerf, 1981.
Vida de S. Francisco:
E. Renan, "Saint François d'Assise", em Nouvelles
Etudes d'Histoire Religieuse, Paris, 1884, pp. 323-352.
P. Sabatier, Vie de Saint François, 2." ed., Paris,
1931. I. Gobry, Saint François d'Assise et l'Esprit
Franciscain, Paris, Éd. du Seuil, 1977.
E. Longpré, Saint François d'Assise et son
Expérience Spirituelle, Paris, Éd. Franciscaines, 1966.
R. Manselli, François d'Assise, Paris, Éditions
Franciscaines, 1981.
Cassetes-video:
Podem sêr adquiridas na France-Culture (Av. du
Président-Kennedy, n.° 116 Paris XVIe) as cassetes-
vídeo da emissão "Un homme, une ville: saint François
et Assise", que foi transmitida em Julho de 1981.
trição, confissão, jejum, peregrinação e cruzada), o
quarto — o mais importante em volume—aos pecados
capitais, e finalmente o quinto às virtudes da prudência,
da temperança e da força. O sexto dom deveria ter sido
consagrado aos dogmas e aos artigos de fé e o sétimo
ao amor de Deus.
Os manuscritos do seu tratado testemunham-no:
Estêvão de Bourbon faz questão de que o seu livro
seja utilizado eficazmente. Remete frequentemente de
uma parte para outra. Para atrair o olhar do leitor, os
anúncios das diversas subdivisões são sublinhados a
vermelho, tal como os títulos marginais das narrativas.
O manuscrito mais antigo que possuímos pertenceu,
na Idade Média, à biblioteca da Sorbona: encontrava-
se entre as obras "usuais" e preso por uma corrente à
sua estante para não ser roubado.
A recolha contém perto de três mil narrativas. Há
que incluir neste número as comparações extraídas
dos bestiários (pequenas enciclopédias sobre os
animais) ou dos lapidários (obras consagradas às
propriedades dos minerais). As fontes dos episódios
são muito variadas. O autor foi buscar grande número
deles a documentos escritos cuja lista elabora no prólo-
go. Aí encontramos vidas de santos — e nesse aspecto
a recolha é uma verdadeira colecção de lendas —,
enciclopédias, obras históricas. Os exempla que põem
em cena a Antiguidade pagã (Oriente, Grécia, Roma) e
são empregues sobretudo para propor modelos de
virtude ou exemplos a não seguir, representam perto
de 10% do total das narrativas. A maior parte das
vezes, o autor não copia os textos palavra por palavra,
mas resume-os e adapta-os ao seu objectivo. A rica
biblioteca do convento de Lião — infelizmente
desaparecida na sequência da pilhagem a que já
fizemos referência — forneceu-lhe o essencial da sua
documentação. Mas aconteceu-lhe, ele mesmo o diz,
recopiar uma narrativa interessante na biblioteca de
uma abadia onde se achava de passagem.
Alguns dos episódios factuais provêm da
experiência pessoal e das recordações de Estêvão de
Bourbon. Outros ainda escutar argúcias teológicas e
pronto a deixar-se adormecer? Pode rechear-se o
sermão de historietas destinadas a ilustrá-lo para
convencer os auditores, O método não é novo: não
pregou Cristo por meio de parábolas? No século XII, os
cistercienses utilizam igualmente nos seus sermões
episódios factuais morais. Mas este modelo de
pregação por meio da utilização maciça de narrativas
exemplares amplifica-se e torna-se preponderante no
decurso do século XIII, sob o impulso das ordens
mendicantes, dominicanos e franciscanos. Daí uma
procura muito forte da parte dos pregadores,
impacientes por encontrar narrativas quando preparam
os seus sermões. Essas histórias são designadas na
Idade Média pelo nome latino de exempla.
Desejoso de ser útil aos seus confrades, Estêvão
de Bourbon começa então, por volta de 1250, um
volume que deve propor não só narrativas exemplares,
como ainda argumentações teológicas, acompanhadas
de citações bíblicas e patrísticas sobre todos os
assuntos abordados nos sermões. O título que dá à
obra é explícito: "Aqui começa" — escreve no prólogo
— "o Tratado das diversas matérias a pregar". Este
tipo de obra está na altura por inventar. Não se trata
certamente da primeira recolha de narrativas
exemplares — os cistercienses tinham já composto
obras dessas — nem a primeira obra que alia
narrativas, raciocínios de ordem escolástica e citações:
Tiago de Vitry havia já redigido, entre 1228 e 1240, ano
da sua morte, recolhas de sermões-mode- lo. Mas
trata-se da primeira obra que oferece, sob a forma de
um tratado único, uma tripla matéria para compor um
sermão.
Estêvão de Bourbon opta por dividir a sua recolha
segundo os sete dons do Espírito Santo. Mas,
surpreendido pela morte, não chega a terminá-la. A
recolha contém portanto apenas cinco partes que
tratam dos dons de temor, de piedade, de ciência, de
força e de conselhos. Também esta última parte se
encontra inacabada. O conjunho da vida cristã é
todavia abordado, uma vez que o primeiro dom é
consagrado aos fins derradeiros (Morte, Purgatório,
Inferno, Juízo Final), o segundo a Cristo, à Virgem e à
misericórdia, o terceiro à penitência e às suas obras
(con-
S. Domingos, "o mal-amado"
André Vauchez

Não se teria a posteridade enganado? Se a figura de


S. Francisco, o Pobre de Assis, suscita estima e
simpatia mesmo no exterior do mundo cristão, a de S.
Domingos mantém-se pouco atraente. Michelet
contribuiu em larga medida para fazer de Domingos o
"terrível fundador da Inquisição". Sem qualquer in-
dulgência, escrevia ele em 1861: "Ninguém mais do
que ele teve o dom das lágrimas, que com tanta
frequência se alia ao fanatismo.'" Dois historiadores
dominicanos, o padre M.-H. Vicahe e padre G.
Bedouelle2, chamaram a si a tarefa de reagir contra
estas ideias que consideram falsas.
Nascido em Caleruega, uma terra castelhana, por
volta de 1170, Domingos de Gusmão (Guzman),
oriundo de uma família nobre, foi desde muito cedo
destinado ao estado clerical. Por volta de 1186, foi
enviado para as escolas de Palença. Segundo uma
tradição a que não falta verosimilhança, ter-se-ia
distinguido desde essa época pela sua caridade, não
hesitando em pôr à venda os livros da sua biblioteca
para poder distribuir esmolas aos pobres depois de
uma fome generalizada se ter abatido na região. Em
1196, o jovem clérigo foi eleito cónego do cabido da
catedral de Osma, primeira etapa de uma carreira
eclesiástica brilhante, à qual as suas origens sociais e
a sua formação escolar pareciam destiná-lo.
Em 1203, o jovem subprior do capítulo de Osma
acompanhou o seu bispo, Diego, numa missão
diplomática que os levou à Dinamarca. Tendo, de
caminho, atravessado o condado de Tolosa e
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

pernoitado nessa cidade, patentearam os êxitos aí


alcançados pela heresia cátara e ressentiram-se disso.
Uma segunda missão levou os dois homens à mesma
região em 1205-1206; tiveram ocasião de encontrar,
em Montpellier, os legados cistercienses que o Papa
Inocêncio III tinha enviado ao Linguadoque para aí
pregarem contra os "Albigenses". Desencorajados pelo
mau acolhimento encontrado junto das populações
locais, os cistercienses pediram conselho ao bispo de
Osma, que criticou vivamente a amplitude da sua
equipagem e o luxo das suas vestes: "Não é assim,
irmãos, que se deve proceder"—ter-lhes-ia declarado
—"pois os hereges mostram as aparências da devoção
e dão às gentes o exemplo mentiroso da frugal idade
evangélica e da austeridade. Portanto, se expondes
maneiras de viver opostas, edificais pouco, destruireis
muito e as gentes recusar-se-ão a aderir [à Igreja
católica]."
Domingos não esqueceria esta lição. Renunciou
logo ao seu título de subprior para passar a chamar-se
irmão. Com Diego e alguns clérigos que se lhes
juntaram, empreendeu, sem aparato nem escolta, uma
campanha de pregação itinerante através das
províncias eclesiásticas de Narbona e Tolosa. O seu
programa de evangelização baseava-se na imitação
dos Apóstolos, tema que havia inspirado numerosos
pregadores do século XII. Tratava-se de anunciar a
palavra de Deus na humildade e na penitência, de pôr
em prática a mendicidade que testemunhava o
abandono à providência na vida quotidiana.
Toda a pretensão à autoridade teria sido mal
recebida nesta região onde os defensores da Igreja
romana estavam em vias de se tornar minoritários.
Diego e Domingos aceitaram pois enfrentar os cátaros
e os valdenses por ocasião de controvérsias públicas
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

que, sem acarretar necessariamente conversões em


grande número, contribuíram para modificar a imagem
da ortodoxia católica. Em 1207, Diego fundou, em
Prouille, um centro destituído e encarcerado. É certo
que o nosso dominicano aprovou a execução no Mont-
Aimé, na Champanha, em 1239, de mais de 180
heréticos, após a sentença proferida pelo mesmo
Roberto o Velhaco, sentença que deu origem, em
Roma, a um afluxo de protestos. Para ele, os heréticos
não são mais que horror e fedor: não o espanta que o
cheiro horrível de um herético particularmente
obstinado e queimado longe de Clermont consiga
chegar até à cidade.
O irmão Estêvão conhece bem os heréticos: elabora
dos seus "erros" um longo catálogo, que será retomado
por bastantes inquisidores, nomeadamente por
Bernardo Gui, no seu Manuel de l'Inquisiteur. Mas se
convém lutar a todo o momento contra a heresia, não
se trata nunca de acusar com ligeireza. As narrativas
que dão conta da sua própria actividade inquisitorial
mostram um homem calmo, comedido, prudente,
procurando antes do mais chamar ao redil as ovelhas
tresmalhadas. Uma nobre dama foi um dia ter com ele
para se confessar herética e digna da fogueira:
Estevão fá-la confessar que detesta os seus
pensamentos heréticos e manda-a embora em paz
com ela mesma.
O inquisidor Estêvão também não dá fé facilmente
às denúncias. E quando o dominicano põe termo à
superstição que reinava perto de Villars-lès-Dombes
em torno de um santo cão — episódio admiravelmente
estudado por Jean-Claude Shmitt —, a sua sentença é
das mais moderadas: estamos a braços com um
inquisidor intratável mas prudente. É preciso não o
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

julgar à luz do que foi a Inquisição da Península Ibérica


dos séculos XV e XVI.
Esta actividade missionária e inquisitorial dura perto
de trinta anos, de 1223 a 1250 aproximadamente.
Estêvão de Bourbon retira-se então, com os seus
sessenta anos de idade, para o convento de Lião para
aí redigir o seu testamento espiritual: uma recolha de
episódios exemplares. Os pregadores, que devem
nesta época dirigir-se não a um público letrado mas ao
"povo" e aos leigos, vêem-se com efeito confrontados
com um grave problema: como solicitar a atenção do
auditório, pouco inclinado a
Recolhe numerosas histórias factuais sobre esta
região, tal como uma lenda sobre a queda do monte
Granier (1248) — uma das mais importantes
catástrofes naturais da Idade Média ocidental 5 — ou o
relato da caça selvagem empreendida pelo rei Artur ao
monte do Gato, que transcreve por ter ouvido contá-la.
Descreve a rude existência dos pastores saboianos
com quem teve ocasião de contactar.
Estêvão de Bourbon é um pregador infatigável. A
maior parte dos episódios factuais que presenciou
começam por estas palavras: "Estava eu a pregar na
diocese de..." Pregar é para ele um meio de converter
e de incitar à penitência: é também confessor, pois,
como diz Humberto de Romans, "semeia-se pela
pregação, mas colhem-se os frutos pela confissão". É
preciso que se saiba que, desde 1215, cada cristão
tem a obrigação de se confessar pelo menos uma vez
por ano. A concorrência entre os sacerdotes seculares
e as ordens mendicantes é, neste terreno, muitas
vezes viva! A confissão também é concebida pelos
dominicanos como um meio de melhor conhecer as
consciências: não é raro que Estêvão de Bourbon seja
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

posto ao corrente, quando de uma confissão, de


práticas supersticiosas.
Corajoso, não hesita em afrontar o perigo para
ganhar almas. Conta por duas vezes como tentou
convencer um salteador da estrada real, de
nascimento nobre, que havia sete anos vivia escondido
no meio dos bosques, desconfiando de toda a gente,
mesmo dos cúmplices dos seus crimes. Malogrou na
sua tentativa e o salteador foi enforcado.
Estêvão de Bourbon é um dos primeiríssimos
inquisidores: esse ofício é-lhe confiado por mandado
apostólico por volta de 1236 (em 1231, o Papa
nomeava o seu primeiro delegado para o Império,
escolhido entre os dominicanos; no ano seguinte, o
sistema estendia-se à França). Ele acrescenta então à
pregação o exame e o interrogatório dos heréticos. O
irmão Estêvão não é um inquisidor cruel e sanguinário,
como por exemplo Roberto le Bougre (Velhaco),
inquisidor-geral para o Norte da França, que mandou
queimar um grande número de heréticos e acabou de
missão e uma comunidade feminina destinada a
receber as jovens vindas do catarismo para a Igreja.
Confiou a sua direcção espiritual ao seu companheiro
e voltou depois para a sua diocese, onde veio a morrer
pouco tempo depois.
Domingos prosseguiu a sua acção em condições
bem difíceis, porquanto os cisterciences, desiludidos
pelos magros resultados obtidos nesta região, voltaram
para o norte da França e a cruzada provocada pelo
assassinato do legado pontifical Pedro de Castelnau se
abateu sobre Tolosa a partir de Julho de 1209. Apoiado
pelo novo bispo de Tolosa, Fulco, Domingos
estabeleceu nesta cidade uma comunidade de
clérigos. A sua missão? Consagrarem-se à salvação
das almas assistindo os prelados no seu ensinamento
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

e esforçando-se por suprir as insuficiências do clero


paroquial. Foram-lhes atribuídas três igrejas, cuja
manutenção era assegurada pela outorga de um sexto
dos dízimos da diocese.
Esta nova congregação de pregadores foi aprovada
em 1215 pelo bispo de Tolosa, com o qual Domingos
se dirigiu ao concílio de Latrão IV a fim de obter uma
confirmação do Papa. Inocêncio III ratificou o título de
Ordo Fratrum Praedicatorum (Ordem dos Irmãos
Pregadores). Contudo, pelo facto de o Concílio ter
acabado de proibir a criação de nova ordens religiosas,
este impôs-lhe a adopção de uma regra que existia já,
a de Santo Agostinho.

Mendigar para viver


A ordem dominicana não teria sem dúvida
conhecido o êxito de que temos conhecimento se o
seu fundador não tivesse tomado, no fim do ano de
1217, a iniciativa de abandonar a região na qual tinha
nascido. Entretanto, a situação tornara-se
extremamente tensa no Linguadoque onde parecia que
a única saída seria o recurso à coacção e à guerra
para reprimir a heresia triunfante. A ideia de génio do
fundador foi dispersar os seus companheiros — ainda
pouco numerosos nesse momento — pelos grandes
centros urbanos da cristandade: Paris, Orleães,
Bolonha, Madrid e Segóvia. Nestas cidades — as três
primeiras eram centros universitários afamados —, os
irmãos pregadores iriam consagrar-se aos estudos e
ao reforço da sua preparação teológica visando a
pregação. A crer nos testemunhos recolhidos quando
do processo de canonização de S. Domingos, o seu
fervor e a austeridade do seu género de vida
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

impressionaram os meios intelectuais no seio dos


quais fizeram numerosos recrutas de valor.
Com o apoio da Cúria, que a cumulava de
privilégios, a ordem dominicana depressa adquiriu uma
dimensão universal: quando da morte do seu fundador,
em 1221, contava já algumas centenas de irmãos,
vinte cinco conventos e cinco províncias. Não tardaram
a associar-se-lhes comunidades femininas em Itália,
tais como as de Santa Inês em Bolonha, dirigida por
Diana de Andalo, e a de S. Sisto em Roma. No cabido
geral de 1221, ficou decidido o envio de irmãos a
Inglaterra e à Hungria.
No ano anterior, em 1220, a instâncias do seu
fundador, os pregadores tinham introduzido nas suas
instituições a renúncia a toda a propriedade e a todo o
rendimento. Isso implicava o recurso à mendicidade
para sobreviver. Estava pois achada a fórmula
fundamental das ordens mendicantes. Desde 1220 que
o papado apelara a Domingos para que participasse,
ao lado de outros religiosos, numa grande missão,
animada pelo cardeal Hugol ino, na Lombardia. Em
1231, isto é, dez anos após a morte do santo,
Hugolino, tornado papa sob o nome Gregório IX, ins-
tituiu a Inquisição. Em 1233-1234, confiou aos seus
filhos espirituais o cuidado de perseguir e de extirpar a
heresia do Linguadoque e da Provença. Esses
mesmos anos viram a canonização de Domingos
(1234).
Em certos aspectos, os irmãos pregadores surgem
como uma criação menos original do que os irmãos
menores de S. Francisco, quanto mais não seja porque
adoptaram, como se disse, uma regra já antiga, a de
Santo Agostinho. Além disso, enquanto o "Pobre de
Assis" tinha voluntariamente associado na sua or- prior
do seu convento, e é totalmente livre de se deslocar. A
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

sua vida assemelha-se à dos seus irmãos, que deixam


o convento durante vários dias, por vezes várias
semanas, e percorrem uma região determinada de
antemão, seja para pregar (ao ar livre ou nas igrejas),
seja para inquirir. São em princípio acompanhados por
um outro irmão que lhes obedece em tudo "como ao
seu próprio prior".
Os irmãos pregadores circulam a pé, com um
bastão na mão. Vestidos pobremente, não levam
dinheiro consigo. Têm por bagagem alguns livros, em
particular certos livros da Bíblia. Têm de mendigar a
comida ou recebê-la dos seus auditores, assim como o
alojamento. Depois da sua missão, regressam ao
convento para aí recuperarem as forças e refazerem os
seus conhecimentos de teologia.
Estêvão de Bourbon percorre sobretudo a região
lionesa, nomeadamente a zona de Dombes e da
Borgonha. Filho da terra, falando a língua dos
habitantes, deve sentir-se particularmente à vontade. A
região que conhece melhor é sem dúvida alguma o
actual departamento de Saône-et-Loire. Faz estadas
em Cluníaco, em Chalon, em Marcigny. Mas não se
acantona só na Borgonha meridional: prega contra os
heréticos albigenses por volta de 1226 em Vézelay;
encontramo-lo em Fontaine-lès-Dijon, em Dijon (depois
de 1240) e em Auxonne.
Faz igualmente incursões para leste e para
nordeste: demorã-se em Besançon; assiste em Reims
no ano de 1223 ou de 1226 à sagração de um rei de
França — Luís VIII ou S. Luís; participa em 1239 no
processo de heréticos champanheses, no Mont-Aimé;
atravessa a diocese de Toul na Lorena. As suas
missões levam-no também a Forez e ao Maciço
Central: em Sury-le-Comtal, perto de Montbrison, está
em contacto com a família condal de Forez e em Saint-
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Pourçain (Allier), convocado pelo bispo de Clermont


Hugo de la Tour, interroga heréticos. Mais ao sul, prega
na diocese de Valence e chega mesmo a ir até ao
Rossilhão, na diocese de Eine; a sueste, atravessa a
Sabóia sem dúvida no intuito de se dirigir ao Piemonte.
Notre-Dame de Confort. O convento ocupa a partir de
então um lugar central na cidade, entre o Sona e o
Ródano, a alguns passos da actual praça Bellecourt.
Estêvão de Bourbon chega a Lião por volta de
1223. Lião pertence então, não ao reino de França,
mas ao Império, tal como a margem esquerda do Sona
e do Ródano. Mas nenhum dos sucessores de
Frederido Barba-Roxa se interessou realmente pela
cidade, que está, em contrapartida, aberta à influência
francesa. O todo-poderoso arcebispo exerce aí o poder
condal; ela é então um centro vital da cristandade.
Acolherá em 1245 o papa Inocêncio IV, que, fugindo
do imperador Frederico II, ali organizará o concílio dito
de Lião I. Lião viu igualmente nascer um importante
movimento religioso contestatário, o dos valdenses,
condenado por heresia em 1184. Esses leigos,
conduzidos por um mercador, Valdo, aspiravam a viver
na pobreza, em conformidade com o Evangelho.
Estêvão de Bourbon esteve de resto muito ligado a um
certo Bernardo Ydros, que tinha traduzido para os
valdenses livros da Bíblia em linguagem vulgar.
O convento dominicano é um verdadeiro viveiro de
talentos: grandes personagens da ordem de lá saíram,
tais como Hugo de Saint-Cher, futuro cardeal,
Humberto de Romans, futuro mestre geral da ordem,
Guilherme Peyraut, Chabert de Sabóia (que veio a ser
dclarado pela Igreja bem-aventurado), ou Pedro de
Tarentaise, arcebispo de Lião, cardeal e finalmente
Papa sob o nome de Inocêncio V. O franciscano Fra
Salimbeno perguntou um dia a Guilherme Peyraut por
que razão os irmãos pregadores não tinham nenhuma
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

instalação em Vienne (no Delfinado). Guilherme


respondeu que preferiam ter um único convento em
Lião mas bom. Estêvão de Bourbon encontra-se pois
em excelente companhia.
E deste convento que ele vai irradiar para cumprir
incessantes missões de pregação e de inqusição. S.
Domingos e os seus irmãos receberam com efeito do
Papa, desde o mês de Janeiro de 1217, o poder de
pregar por toda a parte. Além do mais, Estêvão de
Bourbon é um pregador geral, isto é, tem a
possibilidade de pregar em todo o lado, sem a
autorização do dem clérigos e leigos num pé de
igualdade, Domingos de Gusmão fundou uma ordem
de clérigos que recebiam normalmente a ordenação
sacerdotal. Os conversos (religiosos não sacerdotes)
que os assistiam eram remetidos para as tarefas
materiais: assegurar a vida quotidiana dos conventos e
ganhar o alimento dos irmãos clérigos indo mendigar.
Parece que S. Domingos desejou conferir-lhes um
poder importante no seio da ordem, confiando-lhes a
inteira responsabilidade do aspecto temporal a fim de
que os pregadores, livres de toda a preocupação,
pudessem entregar-se unicamente a tarefas
espirituais. Mas os seus companheiros opuseram-se.
Ateve-se assim a fórmulas mais tradicionais,
inspiradas em Cister e Prémontré, onde os conversos
se achavam subordinados aos clérigos em todos os
planos.
Seria injusto dar ênfase unicamente ao que podia
haver de arcaico nas estruturas edificadas por S.
Domingos. Com efeito, como o Poverello, ele tinha
compreendido a importância fundamental da palavra
na transmissão e na educação da fé cristã. Mas os
pregadores eram clérigos e, longe de se oporem à
cultura livresca ou de considerarem com suspeita as
escolas e as universidades então em pleno
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

desenvolvimento, procuraram logo apoiar-se nelas


para tornar mais eficaz o seu ministério. Do- . mingos
dava o exemplo, trazendo sempre consigo 0
Evangelho de S. Mateus e as Epístolas'de S. Paulo,
prescrevendo aos seus irmãos que "não levassem
consigo senão comida, roupas e livros".
O objectivo que Domingos designara para os
irmãos pregadores era simples e grandioso: "Falar
com Deus e de Deus." Para tal, não hesitara em dar
prioridade ao trabalho intelectual; na recitação do
ofício, o ritmo da salmodia não devia ser demasiado
lento "para não prejudicar os estudos" e ele tinha
previsto numerosos casos de dispensa a fim de que a
regra não pudesse em caso algum tornar-se um
obstáculo ao cumprimento da missão fundamental do
pregador. Esta aposta na cultura erudita deu os seus
lucros: num mundo onde o saber teórico e prático
começava a desempenhar um papel importante e
onde os professores de teologia, de filosofia e de
direito em breve iriam constituir um terceiro poder, ao
lado do Sacerdócio e do Império, havia lugar, no
Ocidente, para uma ordem de "doutores".
Todavia, S. Domingos tinha convivido bastante com
os valdenses e com os cátaros, no Linguadoque e em
Itália, para saber que a ciência dos pregadores não
bastava para induzir a adesão dos seus auditores. De
resto, ele próprio parece ter sido mais um homem de
oração que de cultura, ainda que esses dois aspectos
da vida do espírito fossem indissociáveis aos seus
olhos. Para além de tudo o mais, ele achava-se
animado de uma grande compaixão pelas almas em
perigo e desejava ardentemente a salvação dos
heréticos, dos pagãos e até dos condenados cujo
destino póstumo lhe arrancava abundantes lágrimas —
que estão na origem do juízo severo de Michelet.
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

A despeito de uma lenda tenaz, Domingos nunca foi


inquisidor, quanto mais não fosse porque a Inquisição,
no sentido em que se entende habitualmente o termo,
não existia ainda. Mais: ele tinha compreendido que a
sua mensagem e a dos seus irmãos não seria credível
senão fosse apresentada na humildade e na pobreza.
Por isso recusou, por diversas vezes, o episcopado e
quis que os pregadores vivessem como os Apóstolos:
andar de pés descalços, não trazer consigo ouro nem
prata, mendigar e proclamar a vinda do Reino de
Deus. S. Domingos não é menos apegado à pobreza
que Francisco, mas atribui-lhe um lugar diferente. Para
ele, ela é antes de mais uma arma contra a heresia; é
um instrumento, não um absoluto, nem sequer um
meio de partilhar as condições de vida dos mais
desprotegidos. Os dominicanos mostraram-se pois
rapidamente mais flexíveis que os franciscanos neste
domínio, aceitando sem escrúpulos possuir as igrejas
que lhes davam e os terrenos nos quais eram cons-
truídos os seus conventos.
Tudo isso não basta todavia para explicar a má
reputação — persistente — de Domingos. Já no século
XIII, um cronista franciscano — é certo que bastante
dado à má-língua —, Salim- beno de Parma, notava
com uma ironia pérfida que os irmãos
O jovem deve contar-se entre os melhores alunos
desta escola, uma vez que o voltamos a encontrar, em
1215, na universidade de Paris. Deixou-nos preciosos
relatos sobre a capital e a vida universitária do seu
tempo: acorre a Notre-Dame quando para lá levam as
vítimas do "mal des ardents"4e vê-os curarem-se ou
expirar diante do adro; conta como um dos seus
companheiros recorreu a um mágico para encontrar os
livros que lhe tinham roubado...
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Durante o Verão de 1217, um acontecimento capital


vai revolver o destino deste sábio estudante: S.
Domingos, que fundou a sua ordem dois anos antes,
decide dispersar pelo mundo o irmãos da sua
comunidade de Tolosa. Sete deles são enviados a
Paris para "lá estudar, pregar e fundar um convento".
Instalam-se perto de Notre-Dame e depois, em 1218,
na casa de S. Tiago (Saint-Jacques), em pleno bairro
estudantil. Estêvão de Bourbon, seduzido pelo fervor e
o dinamismo desta nova ordem, não tarda a entrar
nela. Entre os fundadores de S. Tiago, conheceu
pessoalmente Mateus de França, primeiro prior do
convento, enviado pelo próprio S. Domingos, assim
como vários irmãos que tinham acompanhado este
último ao Linguadoque quando ele pregava contra os
Cátaros. Mas Estevão de Bourbon parece não ter
encontrados. Domingos, que morre em Agosto de
1221. Ele pertence já à segunda geração dos
dominicanos, os que entraram na ordem levados não
pelo santo fundador propriamente dito, mas pelos seus
discípulos mais próximos.
Estêvão de Bourbon, após entrar na ordem, não fica
em Paris — tinha pouco gosto pelos estudos e pelas
subtilezas teológicas —, mas regressa à sua terra
natal. No fim de 1218 ou logo no começo de 1219,
Arnaldo de Tolosa e Romeu de Lívia fundaram o
convento dominicano de Lião. Os irmãos, acolhidos
pelo arcebispo Reinaldo (Renaud) de Forez (1193-
1226), começaram por se estabelecer na colina de
Fourvière. Em breve a deixam para se irem instalar na
Rigaudière, onde permanecerão até 1236. Nesta data,
o abade de Ainay cede-lhes, por trás da casa dos
Templários, o terreno onde se encontrava a capela de
também uma curta nota biográfica redigida pelo
dominicano Bernardo Gui no início do século XIV. Pela
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

primeira vez, ficamos a saber o nome do inquisidor —


que não mencionava nunca senão o seu nome próprio:
"Irmão Estevão de Bourbon". A nota indica
seguidamente que ele nasceu em Belleville, na diocese
de Lião, isto é, na actual Belleville-sur-Saône, pequena
localidade de Beaujolais situada a uns quinze
quilómetros a norte de Villefranche, na margem direita
do Sona. Dá-nos por fim a data aproximada da sua
morte, 1261, e o local: o convento dos dominicanos de
Lião. Os arquivos deste convento, que teriam podido
informar-nos, foram infelizmente destruídos em grande
parte, em Abril de 1562, quando da pilhagem do
convento pelos protestantes, conduzidos pelo
impiedoso barão dos Adrets.
As origens precisas do irmão Estevão são difíceis
de estabelecer. Ele mesmo nada nos diz da sua
família. O nome de Bourbon é comum em Beaujolais e
em Forez. Entre os benfeitores das igrejas de S. João
e de S. Paulo de Lião, figuram vários membros de uma
família dita de Bourbon, à qual muito provavelmente
ele pertencia. O que é certo é que ele não tem nenhum
elo de parentesco com os senhores de Bourbon 3.
Étienne nasceu pois em Belleville-sur-Saône, entre
1190 e 1195. Faz os seus primeiros estudos na escola
episcopal .de Mâcon. Conta-nos aliás uma tradição, a
propósito desta igreja de S. Vicente, que ele faz
remontar ao fim do século XI. Os pássaros sujavam-na
com os seus excrementos e impediam o bom
desenrolar da missa. Como não era possível enxotá-
los, o bispo Landri de Berzé (147-1096) excomungou-
os — a excomunhão dos animais não era rara na
Idade Média e tinha o sentido de uma poderosa
maldição —, ameaçando-os de morte se persistissem
em querer penetrar na igreja. Abandonaram o local
para não mais voltar. "Eu mesmo" — escreve Estevão
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

— "vi uma multidão que fazia ninho em redor de toda a


igreja e a sobrevoava. Mas nunca vi lá entrar nenhum
pássaro. E todos pensavam que se alguém capturasse
um pássaro e o introduzisse à força na igreja, esse
pássaro morreria imediatamente." pregadores tinham
esperado mais de dez anos antes de se aperceberem
da santidade do seu fundador! Mesmo que se recuse
este testemunho, como faz o padre Vicaire, não se
pode deixar de ficar surpreendido com a "discrição"
com a qual Jourdain de Saxe, o seu primeiro sucessor,
evoca o papel de S. Domingos na sua obra sobre as
origens da ordem, que data de 1233. É verdade que S.
Domingos não tem nem a profundidade espiritual de
um Santo Inácio — não deixou qualquer obra escrita
significativa — nem o génio poético e religioso de um
S. Francisco. Muito mais que este último, Domingos de
Gusmão identifica-se com a sua ordem e não é, afinal
de contas, senão o primeiro dos dominicanos. Talvez
seja afinal justificadamente que sobre ele recaíram,
com o decorrer dos séculos, todas as simpatias ou as
antipatias que os seus filhos espirituais foram
inspirando.
Notas
1
Michelet, Oeuvres Complètes, Paris, éd. P.
Viallaneix, 1974, t. 4, p. 657.
2
M.-H. Vicaire, Histoire de Saint Dominique, Paris, Le
Cerf, 1982, 2 vols. Trata-se da segunda edição, muito
corrigida e enriquecida, de uma obra aparecida com o
mesmo título em 1957. G. Bedouelle, Dominique ou la
Grâce de Ia Parole, Paris, Fayard/Marne, col. "Douze
hommes dans l'histoire de l'Église", 1982; W. A.
Hinnebusch, Brève Histoire de l'Ordre Dominicain,
Paris, Le Cerf, 1990.
Estêvão de Bourbon, o inquisidor exemplar
Jacques Berlioz

Estêvão (Etienne) de Bourbon, inquisidor


dominicano do século XIII, autor de uma volumosa
recolha de narrativas exemplares para uso dos
pregadores, é uma personagem que se manteve
durante muito tempo desconhecida. A sua obra,
amplamente explorada, mesmo pilhada, durante toda
a Idade Média, manteve-se anónima durante muito
tempo. A sua notoriedade póstuma data do início do
século XVIII1. E só em 1877 é que a personagem
nasceu verdadeiramente para a história, quando foi
publicada uma edição abreviada da sua recolha.
De há alguns anos a esta parte, o interesse
crescente pela cultura popular da Idade Média valeu a
Estevão de Bourbon a atenção dos investigadores 2.
Esta espantosa figura de inquisidor acabou mesmo por
tocar o grande público; a antiga assistente de François
Truffaut, Suzanne Schiffman, dedicou-lhe um filme em
1987 com o título— inexacto, pois este dominicano
não era monge — Le Moine et la Sorcière. Em pouco
tempo, Estevão de Bourbon tornou-se uma verdadeira
"diva" da história medieval,
Quem era então ele e como é que o conhecemos?
As principais informações são-nos fornecidas pela
recolha de episódios variados que ele redigiu no
convento de Lião entre 1250 e 1261
aproximadamente, Muitas vezes ele mesmo surge em
cena e cita a sua experiência de pregador e inquisidor.
Possuímos dernizar" o cristianismo, conciliar a fé e a
razão, a natureza e a graça, Deus e mundo.
Hoje como outrora, esta maneira de ver, demasiado
optimista para uns, um pouco "totalitária" para outros,
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

utópica para muitos, não alcança forçosamente a


unanimidade. No mínimo, a referência persistente ao
"Doutor comum", como lhe chamaram a partir do
século XIV — entenda-se o mais aberto, também o
mais capaz de chamar a si a concordância do maior
número —, exprime sem dúvida, entre os nossos
contemporâneos, a nostalgia de uma unidade perdida
da civilização ocidental.

Notas
1
Na Idade Média, o termo "Sicília" designava toda a
Itália do Sul, peninsular e insular. Falar-se-á também,
mais tarde, das "Duas Sicí- lias".
2
Frederico II de Hohenstaufen (1194-1250) era ao
mesmo tempo, por parte do pai, imperador do Sacro
Império Romano-Germânico e, por parte da mãe, rei
da Sicília.
3
O "erro dos maniqueus" era o erro dos "dualistas"
que, como cs cátaros, acreditavam na existência
distinta de dois princípios, o do Bem e o do Mal, em
luta eterna.
4
A edição "leonina" chama-se assim porque foi
lançada, em 1880, pelo papa Leão XIII; trinta e oito
volumes, dos cinquenta previstos, estão actualmente
editados.
5
A partir de 1266, Carlos de Anjou, irmão de S. Luís,
reina sobre o reino da Sicília, investido pelo Papa.

Orientação bibliográfica
Obras de S. Tomás em francês:
Opuscuies Théologiques, 6 vols., Paris, Vrin, 1984.
Somme contre les Gentils, 4 vols., Paris,
Lethielleux, 1951-1961, reed. em 1 vol. por Cerf, Paris,
1993.
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

Somme Théologique, 4 vols., Paris, Le Cerf, 1984-


1986.
eu pregava nessa terra a que chamam La Chapelle de
Dun, o seu pai e o capelão. Estavam igualmente
presentes os que o haviam admoestado vivamente e
diante dos quais ele pereceu, fechado na sua
obstinação."
Estêvão de Bourbon tem contactos frequentes com
a aristocracia local, sobretudo borgonhesa. Entre as
suas relações mais prestigiosas, duas mulheres. Sibila
de Hainau, cunhada do rei de França Filipe Augusto,
esposa de Guichard IV, o senhor de Beaujeu, fornece-
lhe duas narrativas: uma sobre a morte de Filipe
Augusto, a outra sobre a bem-aventurada Alpaís de
Cudot7. Depois,, Alix de Vergy, mulher do duque de
Borgonha Eudes III, que trouxe os dominicanos para
Dijon em 1237. Entre os homens, citemos Calon de
Fontaine, sobrinho-neto de S. Bernardo e Guilherme
de Contres, senhor nivernês que se tornou ilustre
durante a guerra contra os Albigenses. Estêvão vai
buscar ao primeiro o relato da conversação do pai
fundador de Claraval e ao segundo o da aparição
póstuma de um parente que lhe foi pedir que
restituísse os bens mal adquiridos durante a sua vida.
Estêvão de Bourbon fornece por outro lado numerosas
informações sobre a aristocracia borgonhesa e
particularmente sobre esses senhores rapinantes, que
vemos a exercer as suas sevícias durante o século XII
e no começo do século XIII.
Para além do seu interesse descritivo, esta recolha
do irmão Estêvão, prodigioso viveiro de matérias
narrativas, permite apreender o catecismo "exemplar"
do século XIII, pois o exem- plum é feito para
transformar o auditor, para o emendar. Esta catequese
resume-se em três pontos: 1) inspirar o medo da con-
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

denação eterna; 2) mostrar o caminho da salvação; 3)


lutar contra os vícios.
Em meados deste século XIII, a existência do Além,
onde os mortos desfrutam de uma retribuição
determinada pelo comportamento que tiveram na
Terra, é uma certeza bem estabelecida. Para evitar a
condenação eterna, é preciso morrer de acordo com o
Senhor, no perdão das faltas cometidas. E por isso
que Estevão insiste na necessidade de pensar
incessantemente na morte. Os exempla são pois
pequenos lembretes que os fiéis levam consigo, após
o sermão, e que evocam a todo o momento um fim
talvez iminente. Daí uma insistência particular nos hor-
rores do Inferno e do Purgatório, que devem provocar
um temor salutar8. A simples evocação do quarto, da
cama e da coberta que viria a ter no inferno leva assim
um estudante a entrar para os irmãos pregadores.
O caminho da salvação passa pela confissão, a
qual ajuda a triunfar sobre o Maligno. É testemunha
disso esta narrativa, localizada na Irlanda e que lhe foi
trazida por um irmão dominicano de passagem por
Lião. Um homem presta homenagem ao Diabo e traz
o seu selo impresso na mão. Ouve pregar o irmão e
confessa-se-lhe: o selo desaparece e o diabo deixa de
o reconhecer. As obras de penitência e de misericórdia
são os complementos indispensáveis da confissão. E
as múltiplas vantagens do jejum, da peregrinação, da
cruzada, das esmolas são demonstradas a poder de
exempla. O apelo aos santos e a Nossa Senhora
também não é menos recomendado. Estêvão de Bour-
bon tem o cuidado de narrar milagres
contemporâneos. Conta deste modo, segundo o
testemunho d'"os que estavam presentes", como
Maria manteve em vida um homem do conde de
Macon que- guardava o castelo de. Roche-de-Solutré
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

— passava-se isto em 1231 aproximadamente — até


que um pregador foi receber a sua confissão. É
verdade que o soldado observava escrupulosamente
as vigílias da mãe do Senhor.
É finalmente necessário denunciar os vícios, com
toda a veemência possível. O tratado consagra a isso
mais de metade. O autor ordena, sob os sete pecados
capitais, todos os crimes do seu tempo. Alguns
exemplos: sob o orgulho, lá estão as heresias, as
"superstições", tal como a garridice das mulheres,
essas aliadas de Satanás, ou o escandaloso
comportamento dos prelados. Sob a cólera, os
blasfemos. Sob a avareza, lá estão condenados os
uâurários, os senhores rapinantes, os mercadores
fraudulentos, os advogados rapaces, os prelados —
ainda os prelados — ávidos de riquezas 9. Sem falar da
luxúria, de conse- têntica, da criação ("a verdade das
coisas") é possível e até necessária a uma boa
compreensão do plano divino.
Uma das dimensões essenciais desta teologia é o
seu optimismo ou, se assim se preferir, o seu
humanismo. Em S. Tomás, o homem não é nem
esmagado pela enfermidade da sua condição nem
dilacerado entre uma parte espiritual virada para a
"pátria celeste" e uma parte carnal prometida ao
pecado e à morte. Sem ignorar as exigências do
Evangelho e os limites da razão, sem contrapor a
tirania da ciência à do temor, ele afirmou a liberdade e
a responsabilidade pessoal do homem, ensinando-o
ao mesmo tempo a não desprezar a criação, a
começar pelo seu próprio corpo. O universo sensível é
um livro inteligível que nos fala de Deus.
É sem dúvida legítimo pôr esta vontade de síntese,
este humanismo cristão, em relação com as façanhas
da civilização ocidental em meados do século XIII.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Trata-se de um momento de equilíbrio aparente, o qual


será mais tarde lamentado como "o bom tempo de
Monsenhor S. Luís". Com efeito, graças ao desen-
volvimento demográfico, as cidades e as escolas
povoam-se. Os êxitos económicos tornam a existência
menos incerta. Se a cruzada não traz consigo senão
dissabores, a Igreja pelo menos triunfou sobre o
Imperador Frederico II e sobre os heréticos. Em Paris
como em Nápoles, os príncipes capetos, aliados ao
Papa, favorecem o desenvolvimento das ordens
mendicantes, a expansão da arte gótica, a actividade
das universidades5.
É sem dúvida legítimo ver igualmente na
construção tomis- ta um testemunho de maturidade
intelectual, a obra-prima de uma escolástica em plena
posse dos seus meios.
Finalmente, é preciso não ignorar que S. Tomás
não foi criticado, em vida, senão por adversários de
má fé. A sua teologia não era a única possível. Aquilo
que se conhece da sua personalidade deixa adivinhar
que ele mesmo, para além dos raciocínios impassíveis
da Suma, nem sempre esteve ao abrigo da
inquietação, e até da dúvida. Mas foi ele sem dúvida o
primeiro a afirmar — e com que força e coerência! —
que se podia "mo- esquece-se que no seu século era
nova, contestada e, afinal de contas, sempre
minoritária.
Disse-se que o tomismo era um "modernismo", isto
é, um esforço para adaptar ao seu tempo a mensagem
cristã, para tomar em consideração (em vez de
condená-los ou de ignorá-los) elementos novos e
exteriores à Revelação. E era precisamente assim que
o apresentava o discípulo de S. Tomás, Guilherme de
Tocco: "O irmão Tomás colocava no seu curso
problemas novos, descobria novos métodos,
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

empregava novas redes de provas; e, ao ouvi-lo


ensinar assim uma nova doutrina, com argumentos
novos, não se podia duvidar de que Deus, pela
irradiação desta nova luz e pela novidade desta
inspiração, lhe tinha dado a ensinar, na palavra e por
escrito, uma nova doutrina." A repetição obsidiante da
palavra novus (novo), de força inegável no latim
medieval, é significativa.
Como todos os universitários da época, Tomás foi
confrontado com o contributo considerável que
representavam as obras de Aristóteles e dos outros
pensadores e sábios gregos, judeus e árabes. Seria
necessário, por fidelidade à tradição, repudiar todo
esse saber? Seria necessário abandoná-lo unicamente
aos filósofos, correndo o risco de os ver propor uma
religião puramente filosófica, naturalista e determinista,
muito afastada da religião de amor que o cristianismo
pretende ser? Recusando semelhante demissão,
sensível à expectativa dos seus alunos em busca de
novas razões para crer, Tomás elaborou pois uma
doutrina que era simultaneamente filosófica e
teológica. Mas com ele, a filosofia, embora
desdobrando-se amplamente, mantinha-se rigo-
rosamente submetida à teologia. Ao contrário de
Alberto Magno, ele nunca se perdeu na minúcia da
exegese aristotélica, nunca namorou a tentação do
enciclopedismo. A sua teologia não separava Deus da
Sua Criação.
S. Tomás coloca pois o homem e o mundo a uma
luz que é a de Deus — é aquilo a que ele chama
"exprimir Deus", manifestar a sua presença universal,
a omnipotência do seu gesto criador — e mostra ao
mesmo tempo que urna ciência positiva, au- quências
terríveis: um normando, mestre das artes em Paris, é
assim feito em pedaços ao penetrar em casa da sua
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

amante, uma mulher casada. Tinha todavia sido


prevenido por duas visões sucessivas.
Não se poderá ver em Estêvão de Bourbon um
brilhante teólogo ou um agradável narrador. Ele fez
parte desses irmãos obscuros, humildes mas ao
mesmo tempo eficazes artesãos da reconquista do
povo cristão pela Igreja no século XIII. E este homem
cuja palavra se virava sobretudo para a gente do povo
soube — e é o que constitui todo o apreço e todo o
sabor da sua obra -— escutar e conservar a sua.
Notas
1
Os irmãos J. Quétif e J. Échard tinham-lhe
dedicado uma importante nota no seu catálogo dos
escritores dominicanos surgido em 1719.
2
A recolha de Étienne de Bourbon foi objecto de três
teses da École des Chartes, por J. Berlioz em 1977, D.
Ogilvie-David em 1978 e J.-L. Eichenlaub em 1984. A
edição integral do tratado em língua francesa
encontra-se em preparação para as Éditions Brepols
sob a direcção de J. Berlioz. Entretanto, cf. a edição
parcial de A. Lecoy de la Marche, Paris, .1877.
3
M.-A. Chazaud, Etude sur ta Chronologie des Sires
de Bourbon (...), 1865, Moulins, 2." ed., 1935, pp. 350-
351.
4
O mal des ardents era uma doença terrível devida
a um fungo parasita do centeio. Provocava convulsões
ou gangrena. A morte sobre- vinha no meio de dores
atrozes (cf. L'Histoire, n.° 74, p. 66). [Nota da edição
portuguesa: trata-se de uma espécie de eripsela
gangrenosa. Ver: As Doenças Têm História, nesta
mesma edição.]
5
J. Berlioz, "L'effondrement du mont Granieren
Savoie (fin 1248)", in Le Monde Alpin et Rhodanien.
1987/1-2, pp. 7-68.
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

6
V. Massignon, Étude sur la Transmission et les
Représentations des "exempla" d'Étienne de Bourbon
(...) (Dissertação de mestrado, Paris-I), 1976.
7
Alpaís, nascida na aldeia de Cudot (Yonne), de
pais pobres, foi atingida por uma doença grave aos
doze anos de idade. Nossa Senhora curou-a por volta
de 1170. Manteve-se contudo de cama, sem receber
outro alimento além da comunhão dominical. Operou
milagres, teve visões, gozou de êxtases, predisse o
futuro. Atraiu numerosos peregrinos, como a esposa
do rei de França Luís VII, Adélia de Champanha, que
a foi visitar por diversas ocasiões. Morreu em
Novembro de 1211.
8
O Purgatório é aliás, na obra de Estêvão de
Bourbon, enquadrado num contexto de medo
escatológico onde se abeira do Inferno; cf. J. Le Goff,
La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard, 1981,
pp. 416-423. Sobre a concepção do inferno na obra de
Estêvão de Bourbon, cf. J. Baschet. Les Justices de
l'Au-Delà. Les représentations de t'enfer en France et
en Italie (XIIe-XVe siècle), Roma, École Française de
Rome, 1993, pp. 64-82.
9
Sobre os usurários, tradução de numerosas
narrativas por J. Le Goff, La Bourse et la Vie.
Economie et religion au Moyen Age, Paris, Hachette,
1986.

Orientação bibliográfica
Sobre Estêvão de Bourbon:
J. Berlioz, "Étienne de Bourbon", em G. Hasenohr e
M. Zink, s/d., Dictionnaire des Lettres Françaises. Le
Moyen Age, 2." ed., Paris, Le Livre de Poche,
"Encyclopédies d'aujourd hui", pp. 418-420 (bi-
bliografia importante); id., Saints et. Damnés. La
Bourgogne du Moyen Age dans les récits d'Etienne de
Boubon, inquisiteur (1190-1261), Dijon, Éditions du
Bien Public, 1989. Tradução e apresentação do con-
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

junto das narrativas (mais de cinquenta) relativas a


Borgonha.
J.C. Schmitt, Le Saint Lévrier. Guinefort, guérisseur
d'enfants depuis de XHIe siècle. Paris, Flammarion,
"Bibliothèque d'Ethnologie historique", 1979.

Sobre as narrativas exemplares na Idade Média:


Prêcheur d'Exemples. Narrativas de pregadores da
Idade Média, apresentadas por J.-C-. Schmitt, Paris,
Stock, "Moyen Age", 1985. Com a tradução em
francês de uma dezena de exempla de Étienne de
Bourbon, pp. 82-92.
C. Bremond, J. Le Goff e J.-C. Schmitt,
L'Exemplum, 'Typologie des sources du Moyen Age
occidental, 40", Turnhout, Brepols, 1982.
TOMÁS DE AQUINO 299

que não fez estudos universitários, iam mais para os


franciscanos; em 1273, nomeou Boaventura cardeal. A
ordem dominicana julga então mais avisado chamar S.
Tomás a Itália, com a tarefa menos exposta de
reorganizar a escola de teologia do convento de
Nápoles.
Mas o seu humor esmorece e, a 6 de Dezembro de
1273, bruscamente, dá-se a crise. Arruma todo o seu
material de escrita. Ao seu secretário estupefacto, que
lhe suplica que termine a sua Suma Teológica,
responde simplesmente: "Não, não posso; tudo o que
escrevi me parece palha." Reacção completamente
desconcertante da parte de um homem aparentemente
tão sólido. Na realidade, S. Tomás não tem mais de
três meses de vida. Em Fevereiro de 1274, parte para
o concílio de Lião, onde foi convocado por Gregório X.
Um dominicano não desobedece ao Papa. Tratava-se
do anúncio de um retorno dos favores, da promessa
de uma mitra de cardeal? O que se passa é que
Tomás não chegará nunca a Lião. Em breve cai
doente, arrasta-se até Fossanova, a menos de
duzentos quilómetros do seu ponto de partida, e aí
vem a morrer a 7 de Março. Não tinha ainda cinquenta
anos.
Aqui começa a vida póstuma de S. Tomás. É certo
que a sua doutrina se mantém suspeita para muitos,
sobretudo entre os franciscanos. Em 1277,
condenando de novo o "averroísmo", o bispo de Paris
não hesita, desta feita, em visar algumas proposições
tomistas. Nos séculos XIV e XV, os teólogos "mo-
dernos" definem-se em primeiro lugar pela sua
oposição à síntese de S. Tomás. Todavia, no mesmo
momento, esta é reconhecida como a doutrina oficial
da ordem dominicana (1309). E S. Tomás é
canonizado em 1323. Um pouco esquecido na época
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

moderna, o tomismo — ou antes, o neo-tomismo —


regressou em força no fim do século XIX, a ponto de
figurar hoje como teologia oficial da Igreja Católica.
Este "triunfo de S. Tomás", tão frequentemente
celebrado pela pintura dominicana, em nada serve a
inteligência histórica da sua obra. A força de ver nela
um monumento intemporal,
É verdade que os mestres da faculdade das artes
em nada apresentavam este género de exegese
filosófica como uma "verdade" que se opusesse à da
Revelação, mas, para muitos teólogos, já era
demasiado, tanto mais que, em relação a alguns, este
ensinamento era acompanhado de uma exaltação da
dignidade do "filósofo" que, como tal, teria encarnado
a forma mais alta de felicidade e de liberdade
acessível ao homem nesta ter-

A hostilidade provinha em particular dos teólogos


mais tradicionais, apegados aos ensinamentos de
Santo Agostinho, privilegiando portanto a fé em
relação à razão, a intuição iluminadora em relação ao
esforço lógico, a contemplação das essências em
relação ao conhecimento sensível, a humilde
sabedoria do coração em relação à ciência orgulhosa.
Esses teólogos eram numerosos entre os
franciscanos. O seu grande homem, Boaventura, que
na década de 1250 tinha aliás lutado ao lado de S.
Tomás contra Guilherme de Saint-Amour, já lá não
estava, tendo sido eleito ministro geral da sua ordem
em 1257. Mas os seus discípulos, reunidos em torno
do inglês John Peckham, mantinham a sua tradição.
S. Tomás teve pois de combater em duas frentes
ao mesmo tempo: contra os agostinianos que
recusavam toda a ideia de uma ciência teológica que
aplicasse aos princípios da fé os procedimentos da
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

demonstração racional e contra os "averroístas" que,


em nome da autonomia da filosofia, pareciam
empenhar-se na via de um intelectualismo puro. Se
ele se demarcou destes afirmando, no seu tratado Da
Unidade do Intelecto, a sua fé na imortalidade da alma
individual, mantinha que era possível extrair de
Aristóteles um saber compatível com o ensinamento
de Cristo. Foi assim que por pouco não foi citado na
condenação do "averroísmo" que os agostinianos
obtiveram do bispo de Paris.
Esta suspeita desenvolvia-se com mais facilidade
ainda, na medida em que S. Tomás era então menos
apoiado por Roma. Os favores do novo papa Gregório
X (1271-1276), que parece
J. Berlioz e M.-A. Polo de Beaulieu, s/d., Les
exempla Médiévaux (...), Carcassonne,
GARAE/Hésiode, 1992.
Le Rire du Prédicateur. Récits facétieux du Moyen
Age. Textos traduzidos por A. Lecoy de la Marche.
Apresentação, notas e anexos por J. Berlioz, Turnhout,
Brepols, "Miroir du Moyen Age", 1992.
J, Horowitz e S. Menache, L'Humour en chaire. Le
rire dans l'Eglise médiévale, Paris, Labor et Fides,
"Histoire et société", 28,1994.
Sobre a vida religiosa da época:
J. Le GofFe R. Rémond, s/d., Histoire de la France
Religieuse, t.l, Des Dieux de la Gaule à la Papauté
d'Avignon (des origines au XlVe siècle), Paris, Éd. du
Sueil, 1988. As narrativas de Estêvão de Bourbon são
particularmente utilizadas na quarta parte desta obra,
as "superstições", por J.-C. Scmitt.
A. Vauchez, Les Laïcs au Moyen Age. Pratiques et
expériences religieuses, Paris, Le Cerf, 1987.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

IV (1265-1268), fazem dele seu conselheiro em todos


os domínios, incluindo a liturgia. Em 1264, compõe o
ofício romano do Corpo de Deus (celebrado em honra
do "Corpo de Cristo", isto é, da Eucaristia) quando
Urbano IV decide estender a toda a Igreja esta
solenidade até então local: revela-se poeta e músico.
Em 1269, a sua ordem volta a enviá-lo a Paris. E
trata-se de novo de se defrontar com uma situação
crítica. Tem, mais uma vez, de travar polémica com
alguns seculares que retomaram a ofensiva contra os
mendicantes. Mas é apenas um combate de
retaguarda. Há coisas mais graves. A faculdade das
artes encontra-se então no centro dos debates. O
desenvolvimento dos estudos de filosofia tinha aí
atingido um ponto crítico. Apoiando-se em Averróis
(1126-1198), principal comentador árabe de Aristóteles,
certos professores não hesitavam já em reivindicar a
autonomia da sua disciplina e em expor integralmente
as teses aristotélicas, mesmo quando estavam em
contradição flagrante com o dogma cristão.
Para Aristóteles, o universo era uma máquina vasta
e perfeita, eterna e imutável. Um "primeiro motor
imóvel", identificado com a Divindade, achava-se na
origem do movimento que se transmitia, por intermédio
das esferas celestes, até chegar ao nosso mundo
sublunar. Daqui se infere que deixa de haver criação,
deixa de haver amor e liberdade divina, mas há
apenas uma necessidade absoluta que preside a todos
os acontecimentos terrenos, a qual é possível prever
observando os movimentos dos astros. Do mesmo
modo, na sua preocupação em afirmar e inteligibilidade
do sensível e do indivíduo, Aristóteles definira o ser
vivo como o. combinado de uma matéria — o seu
corpo — e de uma forma — a sua alma. Mas esta
TOMÁS DE AQUINO 299

alma, "forma do corpo", não podia evidentemente


sobreviver-lhe. A imortalidade só era prometida àquilo
a que ele chamava o "intelecto agente", espécie de
princípio de energia intelectual, de capacidade de
conhecimento, comum a toda a espécie humana e que
se podia ser tentado a identificar com a Razão ou com
Deus.
colocaram-no na primeira fila entre as tensões e as
lutas que, no século XIII, agitaram a Igreja e a
Universidade.
A partir de 1252, quando voltou de Colónia para
Paris para terminar os seus estudos, encontra a
faculdade de teologia em plena ebulição. Professores
seculares tinham decidido, conduzidos por um dos
seus, Guilherme de Saint-Amour (1205-1272
aproximadamente), excluir os religiosos mendicantes
dominicanos e franciscanos, ou pelo menos reduzir a
sua importância. As causas do conflito eram múltiplas:
inveja perante o êxito das novas ordens, hostilidade de
teólogos tradicionalistas para com colegas muito mais
abertos aos contributos do aristotelismo; furor de
cónegos ricos face ao ideal de pobreza evangélica dos
recém-chegados; desconfiança de notabilidades,
ciosas da sua recente autonomia, face a religiosos
pouco apegados aos privilégios universitários e que
pretendiam obedecer apenas aos seus superiores ou
ao Papa.
Fosse como fosse, a contra-ofensiva dos seculares
vinha demasiado tarde. O Papa, o rei, uma boa parte
dos estudantes e dos fiéis apoiavam os mendicantes.
Em 1255-1257, uma série de bulas pontificais veio
confirmar a até fortificar a sua implantação na
universidade. A sua vitória era total, mas a luta tinha
sido por vezes rude: intimidações físicas, disputas
agitadas, panfletos violentos. S. Tomás foi, neste caso,
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

o porta-voz dos dominicanos. Sem prescindir da sua


calma, refutara um a um os argumentos de Guilherme
de Saint-Amour. Este queria remeter os religiosos para
a solidão dos claustros e para o trabalho manual. Não
— responde S. Tomás —, nos nossos dias, os irmãos
têm o direito de salvar as almas ensinando e
pregando; a vida deles de pobreza e de mendicidade
está em conformidade com o Evangelho.
Eis S. Tomás no apogeu da sua fama. Em breve
deixa Paris, de acordo com o princípio de rotação dos
professores aplicado na sua ordem. De regresso a
Itália, a sua actividade não enfraquece. Dá início
sucessivamente às suas duas Sumas. Dois papas de
origem francesa, Urbano IV (1261-1264) e Clemente
Tomás de Aquino, um universitário na Idade
Média

Jacques Verger

Observemos o S. Tomás de Aquino de Justo de


Ganda (Gand), no Louvre. Pintado a partir de um
fresco desaparecido, este quadro passa por ser um
verdadeiro retrato. O cenário é reduzido ao mínimo.
Corpulenta, maciça, serena, a personagem de Tomás
invade todo o espaço. As vestes dominicanas—túnica
branca, capa negra — reforçam o seu carácter
imponente: chamavam-lhe "o boi da Sicília'". O olhar
deste célebre distraído parece vago, virado para o
interior. Todo o movimento aparente, reflexo da activi-
dade intelectual, se concentra nas mãos, longas e
finas. S. Tomás é pintado aqui como professor. Mas
este professor não "lê" — o livro lá está, mas pousado
nos joelhos, fechado —, raciocina, disputa, enumera
cuidadosamente os seus argumentos e as suas
respostas às objecções: "Adprimum... " ("em primeiro
lugar...").
O religioso sob o hábito, o professor infatigável na
sua cátedra, a personalidade calma e possante... O
pintor anónimo que copiou Justo de Ganda soube
exprimir de maneira impressionante os traços mais
característicos deste homem, deste "grande clérigo"
que domina toda a história intelectual do século XIII.
A este século não faltaram certamente pensadores
eminentes, mas S. Tomás é um caso à parte. É o único
a ser conhecido fora do círculo dos especialistas, o
único a ter dado o seu nome a uma doutrina — o
tomismo —, o único cujas obras principais, largamente
traduzidas nas línguas modernas, ainda hoje são lidas.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Homem do seu tempo, é certo, S. Tomás representa


também alguma coisa para os nossos
contemporâneos. Onde se encontram as raízes
históricas desta "modernidade"?
Na sua vida? À primeira vista, trata-se da vida
absolutamente simples de um professor, de um
intelectual que só se sente à vontade na sua sala de
aula ou entre os seus livros. Ignorou as honrarias, das
poucas que lhe propuseram. Ao contrário de muitos
dos seus colegas, não chegou a ser bispo nem
cardeal. Mesmo na sua ordem, a dos irmãos
pregadores, dominicanos, era respeitado mas não
acedeu às posições dirigentes. Como qualquer outro
irmão, obedeceu sem murmurar às injunções dos seus
chefes ou do Papa; vai onde lhe dizem que vá, ensina
onde o nomeiam, parte para onde é transferido.
Na globalidade, contudo, a vida de S. Tomás não é
tão insignificante como parece. Conhecemo-la bem.
Em vida ainda e após a sua morte, todos os
historiadores e cronistas da ordem dominicana lhe
dedicaram algumas linhas abundantes. Em 1318, o
seu antigo aluno Guilherme de Tocco escrevia a sua
grande Vie du Bienheureux Thomas d'Aquin e, no ano
seguinte, o inquérito de canonização permitiu recolher
os depoimentos de numerosas testemunhas de entre
as quais uma dúzia tinham conhecido pessoalmente S.
Tomás.
Poder-se-á explicar S. Tomás pelo seu meio de
origem, essa grande nobreza feudal um pouco
decadente do reino da Sicília, dividida entre o serviço
ao imperador-rei Frederico II2 e a fidelidade ao Papa?
Sem dúvida que não, já que o jovem Tomás, último
filho do fidalgo Landolfo de Aquino, nascido em 1224
ou 1225 no castelo de Roccasecca, cedo recusou a
carreira monástica tradicional que lhe haviam traçado
TOMÁS DE AQUINO 299

os seus pais ao confiarem-no muito pequeno aos


beneditinos do Monte Cassino.
Em 1239, parte para ir estudar filosofia na
universidade de Nápoles. É lá que descobre
Aristóteles. Lá descobre também a
Tudo, na actividade de Tomás de Aquino, tem
proporções colossais. E certo que ele beneficiou das
condições de trabalho muito favoráveis que a ordem
dominicana, ordem de pregadores e de doutores
segundo a própria vontade do seu fundador, reservava
aos seus professores de teologia. Além dos recursos
da biblioteca do convento S. Tiago, S. Tomás tinha a
vantagem de poder dispor de três ou quatro
secretários que recopiavam os manuscritos de que ele
tinha necessidade ou transcreviam as suas próprias
obras ditadas por ele ou a partir dos rascunhos,
apressadamente redigidos e quase ilegíveis, que ele
lhes entregava.
Mas estas condições privilegiadas não explicariam
nada sem o génio pessoal e o poder de trabalho de S.
Tomás. A sua capacidade de concentração e
abstracção era tal, que dava origem a uma distracção
que se tornou lendária. Mil histórias circulavam a esse
respeito: abismado nos seus pensamentos, uma vez
não terá sentido a queimadura de uma vela que se
consumia e lhe escorria para a mão. Convidado um dia
para a mesa de S. Luís e esquecendo-se de onde se
encontrava, mergulhou numa reflexão silenciosa da
qual saiu de repente batendo com o punho na mesa e
exclamando, para grande surpresa dos convivas:
"Achei, eis aquilo que dá cabo do erro dos
Maniqueus!"3
Sempre em busca de melhores manuscritos ou de
traduções novas de Aristóteles, dominava, graças às
suas inúmeras leituras, todo o saber teológico e
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

filosófico do seu tempo; só por si, as duas Sumas


contêm cerca de trinta e oito mil citações. Era
infatigável. Em Paris, além das suas lições, organizava
aproximadamente uma disputa por semana. Calcula-se
que, durante perto de um quarto de século, compôs
regularmente, por ano, o equivalente a um milhar de
páginas impressas. A edição científica das suas obras
completas, chamada "edição leonina", está em curso e
comportará cinquenta volumes in-fólio4. Esta obra
majestosa é, em grande parte, uma obra de debates e
de combates. Firme nas suas convicções mas plácido,
S. Tomás parece não ter tido um temperamento
agressivo. Mas as circunstâncias fisiologia, ciências
naturais, moral, política, etc., outras tantas disciplinas
autónomas cujas portas o aristotelismo abria. Um
mundo confuso de aparências, que a Igreja
aconselhava tradicionalmente a "desprezar", era
substituído, bem de acordo com as aspirações de
homens vivendo num tempo de desenvolvimento geo-
demográfico e económico, de estabilização social e
política, por um universo concreto e sólido, bem
estruturado, cognoscível e dominável.
Fora o ensino, S. Tomás foi chamado a prestar, à
medida que a sua reputação crescia, consultas que
lhe pediam os papas ou os príncipes sobre assuntos
variados (a astrologia, o cisma grego, o estatuto dos
judeus, etc.). A bem dizer, estes escritos de
circunstância, muitas vezes um pouco apressados e
insuficientemente informados, são bastante banais e
não acrescentam muito à sua glória.
Em contrapartida, não se pode subestimar a
importância das suas duas grandes Sumas, as únicas
de entre os seus escritos a ter escapado à pressão
das circunstâncias imediatas. A Suma contra os
Gentios (= os pagãos, isto é, os Muçulmanos), com-
TOMÁS DE AQUINO 299

posta de 1259 a 1264, é uma espécie de enciclopédia


teológica, uma exposição completa do dogma cristão;
o seu plano em quatro livros inspira-se no dos Livros
das Sentenças de Pedro Lombardo, mas com
infinitamente mais originalidade e força.
Mais monumental ainda, a Suma Teológica,
começada em 1266 e inacabada, foi comparada a
uma catedral gótica. Tem a mesma majestade, a
mesma clareza, o mesmo equilíbrio. Mantendo-se fiel
ao procedimento escolar da "questão", S. Tomás
expôs nela, segundo um plano maduramente
reflectido, toda a sua ciência teológica e filosófica, com
um sentido da síntese de que nenhum outro autor
escolástico foi capaz. Transportada num prodigioso
movimento circular de descida e subida, do Criador
para o homem e deste para o Cristo salvador, a Suma
apresenta-se, sem dúvida pela primeira vez, como
uma verdadeira exposição completa de filosofia cristã,
uma visão de conjunto simultaneamente de Deus e da
Criação vista à luz de Deus.
TOMÁS DE AQUINO 299

ordem dos irmãos pregadores, instituída por S.


Domingos em 1216 e estabelecida em Nápoles desde
1227. Fascinado, como tantos outros estudantes do
seu tempo, pelo seu modo de vida e pelo seu ideal
evangélico, toma o hábito em 1244, no convento de
San Domênico de Nápoles. Prudentemente, é
imediatamente enviado para Paris a fim de aí fazer o
seu noviciado e os seus estudos de teologia. A família
tenta opor-se, alcança-o na estrada, leva-o à força
para Roccasecca. Mas tiveram de ceder: a sua
vocação era irresistível e, em 1245, ei-lo de novo a
caminho de Paris.
Terá sido a ruptura total? Por detrás de uma
formação, de uma cultura, de uma carreira que tudo
ficarão a dever à sua ordem e à universidade,
adivinha-se por vezes em S. Tomás, sobretudo no fim
da sua vida, durante a sua estada napolitana, a
nostalgia de uma infância feliz e de uma família
perdida. Como que exilado na sua própria terra, no
momento em que a lassidão física começa a
acabrunhá-lo e a dúvida a minar as suas certezas, ele
aproxima-se dos seus.
Não passam, apesar de tudo, de indícios ténues,
breves desfalecimentos, numa vida inteira ao serviço
da sua sua ordem e da Igreja. Ora esse serviço, nos
dominicanos, já não se acomodava ao ideal monástico
de "estabilidade". S. Tomás foi, como todos os seus
irmãos, um grande viajante. Calcula-se que terá
percorrido onze mil quilómetros, a pé ou de burro, com
alguns companheiros e grandes sacos contendo os
seus manuscritos. Os seus estudos e o ensino
levaram-no a Paris, Colónia e Nápoles.
Por que é que não havemos de pensar que estas
numerosas deslocações, os contactos humanos que
elas permitiam, tantas cidades e paisagens
atravessadas, Contribuíram para dar a Tomás essa
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

visão global da Igreja e da Cristandade do seu tempo,


esse sentimento da solidez, da diversidade e da beleza
da Criação material, essa confiança, enfim, no
testemunho dos sentidos — outras tantas marcas da
sua filosofia? Napolitano viajante, S. Tomás era
todavia, também e sobretudo, um professor parisiense.
As escolas, nomeadamente as de Paris onde ele viveu
mais de treze anos, foram o universo habitual de S.
Tomás, o verdadeiro lugar da sua aventura intelectual,
A que se assemelhava então a universidade de
Paris? Era uma instituição jovem, nascida com o
século, e em pleno desenvolvimento. Alguns milhares
de estudantes, vindos de todo o Ocidente, algumas
centenas de professores. A maioria, os mais jovens,
os mais turbulentos, pertenciam à faculdade das artes
onde se estudava, com um entusiasmo crescente, a
filosofia de Aristóteles e a ciência greco-árabe. Tomás,
que já tinha estudado as "artes" em Nápoles, não
frequentou esta faculdade, mas será aí popular. Os
filósofos apreciavam com efeito a tal ponto este
teólogo tão sensível às suas próprias preocupações,
que pedirão em vão, após a sua morte, a transferência
do corpo para Paris: "Era dos nossos" —
escrevem'eles ao Papa.
Na realidade, S. Tomás pertencia à faculdade de
teologia, mais exactamente à escola de teologia do
convento S. Tiago, o convento parisiense dos irmãos
pregadores, fundado em 1217. Esta escola tinha os
seus próprios professores e duas cátedras, sendo
detentor de uma delas um francês, e da outra um
estrangeiro. Estava integrada na faculdade de
teologia, o que permitia aos seus estudantes obter os
graus universitários.
Os estudantes de teologia preparavam-se para o
doutorado seguindo as lições dos mestres e
TOMÁS DE AQUINO 299

ensinando depois eles mesmos, como "bacharéis". A


este título, deviam comentar, de maneira concisa,
alguns livros da Bíblia e, sobretudo, explicar aos
estudantes principiantes os Livros das Sentenças, de
Pedro Lombardo. Tratava-se de um manual prático,
doutrinalmente assaz neutro, composto por volta de
1150 por um mestre parisiense e reunindo, sobre os
principais pontos do dogma cristão (Deus, a Criação,
Cristo, os sacramentos), recolhas de citações dos
Padres da Igreja. Mas o exercício mais formador para
os bacharéis consistia em participar nas "disputas",
essas discussões públicas sobre, os temas mais
diversos que davam a cada um a ocasião de pôr à
prova o perfeito domínio da dialéctica apresentando
ao mesmo tempo as suas teses pessoais.
Foi assim o cursus de Tomás de Aquino. Primeiro
aluno do mestre alemão Alberto Magno, é recebido
como doutor em teologia em 1256. Por seu turno,
ensina, preside a disputas, forma discípulos.
Regressando em 1259 à Itália, onde sulca a província
"romana" da sua ordem e assiste aos cabidos
provinciais anuais na qualidade de "pregador geral", só
em 1269-1272 retomará a sua actividade em Paris.
Compreenderemos mal a obra de S. Tomás se não
a situarmos nesse mundo escolar, onde elaborou a
maior parte dos seus livros. Mundo turbulento da
palavra e da livre discussão. Mundo autónomo, que os
privilégios pontificais autorizavam a administrar-se a st
mesmo, ao abrigo das intervenções abusivas do rei de
França ou do bispo de Paris. Mundo fechado, geogra-
ficamente concentrado nas vertentes da colina de
Santa Genoveva, em Paris no qual os conflitos,
debates de ideias ou rivalidades de pessoas depressa
se inflamavam.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Todas as audácias pareciam então ser permitidas e


os livros de Aristóteles proibidos em 1215 (a Física e a
Metafísica) estudavam-se daí para a frente
abertamente, juntamente com os dos seus
comentadores árabes. E-nos difícil imaginar o que isso
terá representado para os intelectuais desse tempo.
Até então, tinham estudado sobretudo a gramática e a
lógica, que eram simples utensílios de análise, que
permitiam compreender melhor os textos e colocar
melhor os problemas. Com a descoberta, graças às
traduções feitas nas décadas anteriores, do conjunto
da filosofia de Aristóteles, era, pelo contrário, todo um
saber positivo, o saber, pensavam eles, que se lhes
oferecia.
Situação exaltante, mas perigosa, pois tratava-se
de um saber elaborado por autores "pagãos", sem
referência ao cristianismo. A base era constituída por
uma filosofia do ser (ontologia) que permitia apreender
de maneira rigorosa a realidade concreta do mundo
sensível, que a tradição cristã tinha o hábito de
desvalorizar em proveito das únicas realidades
espirituais. Desse mundo sensível, um conhecimento
científico, edificado sobre demonstrações claras,
tornava-se possível: física, psicologia,
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

S. Columbano (nascido na Irlanda


por volta de 540) funda o mosteiro
de Luxeuii (Alto-Sona).
Santo Agostinho (de Cantuária) e os
seus monges partem de Roma para
evangelizar os Anglo-Saxões.
S. Columbano funda o mosteiro de
Bobbio, perto de Pavia.
Fundação da abadia de S. Dinis
(Paris) Vida de S. Bento de Aniane,
restaurador da observância da
Regra Beneditina. O duque
Guilherme da. Aquitânia funda
Cluny, na Borgonha. S. Romualdo
funda um eremitério em Camaldoli
(Itália, diocese de Arezzo). Estevão
de Muret funda a ordem de
Grandmont.
S. Bruno funda a
comunidade da Grande
Cartuxa.
Roberto de Molesme funda a abadia
de Citeaux (Cister), perto de Dijon.
Roberto d'Arbrissel (falecido em
1116) funda o mosteiro "duplo" de
Fontevrault. Guilherme de
Champeaux funda o mosteiro
(cónegos regulares) de S. Vítor de
Paris.
O papa Pascoal II reconhece a
Ordem dos Hospitalários de São
João de Jerusa. S. Bernardo
(falecido em 1153), partido de
(Citeaux Cister), funda a abadia de
TOMÁS DE AQUINO 299

590 Clair- vaux, (Claraval), na


Champanha. Hugo de Payns funda
a Ordem do Templo.
596 S. Norberto funda o mosteiro de
Prémon- tré, na floresta de Coucy.

614
ap. 625
ap. 750-
821

910

1012

ap. 1076

1084

1098

1101

ap. 1108

111

111

1118/1119

1120
TOMÁS DE AQUINO 299

Sobre S. Tomás:
M.D. Chenu, Introduction à l'Étude de Saint Thomas
d'Aquin, Montréal-Paris, Institut d'Études
Médiévales/Vrin, 1954; Saint Thomas et la Théologie,
Paris, Éd. du Seuil, 1959.
E. Gilson, Le Thomisme. Introduction à la
Philosophie de Saint Thomas d'Aquin, Paris, Vrin, 6."
ed., 1964.
J.A. Weisheipl, Frère Thomas d'Aquin. Sa Vie, sa
Pensée, ses Oeuvres, trad. fr., Paris, Le Cerf, 1993.
J.-P. Torrell, Initiation à Saint Thomas d Aquin. Sa
Personne et Son Oeuvre, Friburgo-Paris, Éd. Univ. de
Friburgo-Le Cerf, 1993.

Para o contexto geral:


M.-M. Dufeuil, Guillaume de Saint-Amour et la
Polémique Universitaire Parisienne, 1250-1259, Paris,
Picard, 1972.
TOMÁS DE AQUINO 299

J. Le GofÇ Les Intellectuels au Moyen Age, Paris,


Éd. du Seuil,
1985.
F. Van Steenberghen, La Philosophie au XHIe
Siècle, Lovaina-Paris, Publications Universitaires/B.
Nauwelaerts, 1966.
J. Verger, s/d., Histoire des Universités en France,
Tolosa, Privât,
Referências cronológicas

ap. 280 O anacoreta egípcio Santo Antão


(falecido
em 356) funda uma comunidade em
Pispor. ap. 320 S. Pacómio (falecido em 346) funda
o seu
primeiro
mosteiro. ap. 360 Regra de S.
Basílio.
361 S. Martinho funda o mosteiro de
Ligugé,
perto de Poitiers. 391 Santo
Agostinho organiza uma comunidade
em Hipona (num sítio muito perto de
Bone, na Argélia).
ap. 400 Santo Honorato cria os mosteiros de
Lérins
(próximo de Cannes). ap. 415
João Cassiano estabelece o
mosteiro de
S. Vítor em Marselha. 515
fundação da abadia de S.
Maurício
. d'Agaune (Valais suíço). ap. 540
Cassiodoro funda o mosteiro de
Vivarium
(extremo sul da Itália). ap. 529
S. Bento de Núrcia funda o mosteiro
do
Monte Cassino (Itália
central). ap. 500-530 Elaboração da regra de
S. Bento. 590-604 Pontificado de S.
Gregório Magno.
Guilherme de Rubrouek entre os Mongóis
Marie-France Auzépy

"Tínheis-me dito, quando vos deixei, que


escrevesse para vós tudo o que visse entre os
Tártaros (os Mongóis). Cumpro o que me haveis
ordenado." Assim começa a longa carta que o
franciscano Guilherme de Rubrouek escreve ao rei de
França Luís (S. Luís), de São João de Acre, em
Agosto de 1255. Ele volta de Caracorum, capital do
khan (soberano) mongol. Como julgava que S. Luís
continuava retido pela cruzada na Terra Santa, optou
por fazer um desvio pelas neves do Cáucaso em vez
de regressar directamente pela planície do Norte. Mas
em Chipre topa com o ministro provincial da sua
ordem, que o nomeia para Acre e lhe proíbe que
regresse a França para junto do rei. Demos graças à
perversidade deste superior: sem ela, teríamos sido
privados do relato de viagem de Rubrouek.
Por que foi que Rubrouek empreendeu esta viagem
tão distante (dezasseis mil quilómetros percorridos a
cavalo ou a pé, em dois anos)? Diz-nos ele: para
converter os "Tártaros" (por outras palavras, os
Mongóis), ao cristianismo. Em vinte anos, por meio de
fulminantes invasões, estes acabam de virar às aves-
sas o mapa político do continente euro-asiático. Em
1238-1241, no decorrer da expedição conduzida pelo
neto de Gengis Khan, Batu, bateram sucessivamente
os exércitos russo, polaco, húngaro e atingiram o
Adriático; aproximavam-se de Viena quando, por sorte
para a Europa ocidental, a notícia da morte do grande
khan chamou Batu à Mongólia para participar na
eleição do sucessor do defunto. Os Mongóis não
voltaram ao Ocidente, nem em 1242 nem mais tarde,
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

apesar das excelentes pastagens que a planície


húngara oferecia aos seus cavalos. Sobre as razões
profundas desta retirada, só se podem colocar
hipóteses incertas.
O império assim constituído unia o Mediterrâneo ao
Mar da China. Por ferozes que fossem, os Mongóis
tinham, aos olhos dos cristãos, uma vantagem que
fizera noutro tempo todo o valor de Clóvis: eram
pagãos, logo conversíveis. Um ganho inesperado. De
interesse para o Papa e as duas ordens, franciscana e
dominicana, que, acabadas de nascer, se tinham
especializado, entre outras, na actividade missionária.
A partir de 1245, o Papa Inocêncio IV enviou sem
êxito duas missões — franciscana e dominicana — ao
khan dos Mongóis para lhe explicar os fundamentos
da religião cristã e lhe dar a conhecer o interesse que
lhe merecia a salvação da sua alma.
Mas Guilherme de Rubrouck, embora franciscano,e
missionário, não é enviado pelo Papa. As cartas que
leva são escritas pelo rei Luís IX. Depois do fracasso
da embaixada que enviou em 1249-1250 ao khan
mongo.l, este-já não espera uma aliança contra os
muçulmanos, inimigos comuns dos Mongóis e dos
Francos da Terra Santa. Mas, se este franciscano que
o seguiu ao Oriente e que ele pensa querer tentar
converter os Mongóis, por que não fornecer-lhe
dinheiro e cartas de recomendação? Durante muito
tempo acreditou-se que Rubrouck era o enviado,
talvez secreto, de S. Luís. Não é assim. Rubrouck quis
partir por vontade própria, tentado por esse
extraordinário scoop missionário: converter o khan dos
Mongóis.
Este forte desejo de glória, que ele deixa
transparecer quando confessa o seu malogro — "Se
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

eu tivesse o poder de fazer milagres como Moisés,


talvez o khan se tivesse humilhado (...)" — não terá
sido do gosto do seu superior. Mas era necessário
para o decidir a partir e para o sustentar na sua
viagem. Era 40 pp., que é uma apresentação luminosa
da Alta Ásia, geografia, povoamento, religiões), sem
data. Este texto foi também publicado na reedição de
La Croisière Jaune de Georges Le Fèvre, Paris,
L'Asia- thèque, 1991.
J.-P. Roux, Les Explorateurs au Moyen Age. Paris.
Ed. du Seuil, 1967, e Fayard, 1985.
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

dente do mundo mongol quando termina a sua carta


ao rei com estas palavras: "Digo com toda a
segurança que se os vossos camponeses — e não
falo dos reis e dos cavaleiros—quisessem caminhar
como o fazem os reis dos Tártaros, e contentar-se
com a mesma comida, poderiam conquistar o mundo
inteiro." Frase de viajante que nos ensina, tanto
quanto o torna possível a viagem, a relatividade. Ela
espanta-nos já que, no fundo, por causa da espessura
do tempo e da nossa ignorância, do alto do nosso
século XX, temos tendência para considerar como
igualmente "subdesenvolvidos" o camponês francês e
o cavaleiro mongol. Mas Rubrouck recorda-nos que as
pessoas que se encontram longe, tanto no tempo
como no espaço, não são por isso semelhantes entre
si nem diferentes de nós.

Nota
1
O "comos" (kumis) é a bebida mongol por
excelência. Trata-se de soro de leite de égua
fermentado.

Orientação Bibliográfica
Os textos:
Jean de Plan Carpin, Histoire des Mongols, trad. e
anexos de J. Becquet e L. Hambris, Paris,
Maisonneuve, 1965.
Guillaume de Rubrouck, Voyage dans l'Empire
Mongol, trad. e comentário de C. e R. Kappier, Paris,
Payot, 1985; a mesma tradução, apresentada,
comentada e ilustrada pelos mesmos autores, Paris,
Imprimerie Nationale, 1993.
H. Yule, Cathay and the Way Thither, Londres,
Hakluyt Society, 1886.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

"Histoire du patriarche Mar Jabalah III et du moine


Raban Çauma", trad. de J.-B. Charbot, em Revue de
l'Orient Latin, t. 1, 1893.

Os estudos:
R. Grousset, L'Empire des Steppes, Paris, Payot,
1965.
P. Pelliot, La Haute Asie, Paris, L'Édition Artistique
(brochura de preciso com efeito uma audácia sagrada
e uma santa audácia para arrostar com os perigos da
aventura.
Em primeiro lugar, para partir era preciso não ter
medo dos Mongóis. Ora os Mongóis aterrorizavam
toda a gente. A rapidez, a crueldade destes inimigos
surgidos sabe-se lá de onde perturbaram o Ocidente
cristão. Sob o choque, foram assimilados a um flagelo
de Deus: os pecados dos cristãos. Deus tinha deixado
os povos de Gog e Magog passar os portões de ferro
detrás dos quais Alexandre os tinha fechado e os
Mongóis, que eram tratados pelo nome funesto e
infernal de Tártaros, eram esses povos do Apocalipse
que anunciavam o fim dos tempos.
A seguir, era preciso não ter medo do
desconhecido. Sem mapa, com efeito, Rubrouck não
tinha meio de ter de antemão uma representação da
sua viagem. É uma evidência que é para nós difícil de
compreender. O nosso primeiro reflexo, quando lemos
o seu relato de viagem, é "ir ver ao mapa" por onde foi
que ele passou (cf. mapa, página seguinte). Assim se
organiza para nós o quadro da sua viagem: o triângulo
da Crimeia, a estepe entre Crimeia e Ural, a lenta
passagem pelo deserto a norte e a leste do Mar de
Arai, os oásis no sopé dos montes Tien-Chan, os vales
e altas montanhas do Altai, a extremidade norte do
deserto de Gobi são assinalados e inscritos numa
representação conhecida e tranquilizadora do espaço,
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

o mapa. Através dele, ficamos a par do caminho, o


que para ele foi impossível antes da viagem. Os
mapas da sua época não serviam para representar a
natureza, mas sim a palavra da Escritura referente ao
mundo conhecido e desconhecido, figurando neles o
Paraíso, para lá do Oceano. Assim os mapas não
eram próprios para preparar uma viagem e não teria
vindo à ideia de ninguém consultar um antes de partir.
A única preparação útil consistia em entrevistar quem
já tivesse feito a viagem: o que Rubrouck fez junto dos
franciscanos, missionários nessas regiões antes da in-
vasão mongol, e junto do enviado do Papa e de S.
Luís, André de Longjumeau.
Finalmente, era necessário ter uma resistência
física fora do comum: Rubrouck, homem corpulento a
quem eram reservados
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

junto de pessoas muito diferentes, incluindo chineses.


É de um grande rigor intelectual: submete à
experiência os dados da ciência do seu tempo, refuta
o enciclopedista Isidoro de Sevilha (século VII) que era
ainda uma autoridade e considerava ô Mar Cáspio um
mar aberto, pergunta aos seus informadores se têm
conhecimento dos homens monstruosos que Isidoro
situa no grande Norte e, na ausência de uma resposta
positiva, põe em dúvida a autoridade do sábio. Com
Guilherme de Rubrouck não há maravilhas. Esta
tranquila audácia alia-se a uma neutralidade, também
ela científica. Ele transmite as informações recolhidas
sem as julgar, pois, como verdadeiro etnólogo de
campo, admite a diferença. As suas informações sobre
as cerimónias xamânicas, o habitat, as práticas
alimentares, são uma fonte de primeira ordem para a
história dos Mongóis.
Encontramos nele um outro traço de modernidade,
a saber, um misto, frequente nos viajantes, de
consciência da superioridade da sua própria civilização
e de aculturação à sociedade visitada. Assim,
Rubrouck acha-se persuadido da excelência da ci-
vilização ocidental: a mais rica, a mais própria, a que
possui a bebida civilizada (o vinho), mas também das
maneiras à mesa, das técnicas de construção, da
moeda e de Deus. No entanto, os meses passados
com os Mongóis fazem com que estes passem a
afigurar-se-lhes como simpáticos, conquistando
mesmo a sua admiração e acostumando-se a certos
traços do seu género de vida. A atitude de Rubrouck
face à bebida mongol, o "comos" 1, é significativa neste
aspecto. A ida, o guia deu-lha a beber, depois de dois
meses de marcha. "Nessa noite, o rapaz que nos
guiava deu-nos a beber comos: fiquei cheio de suores,
sob a influência do horror e da novidade, pois nunca
tinha bebido dela." Na volta, no Cáucaso, detém-se no
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

último acampamento mongol: "Fui a casa de Bachu e


ele deu-nos a beber vinho. Ele bebia comos, que
também eu teria bebido de boa vontade, se mo tivesse
dado. Era porém vinho novo de eleição, mas o comos
é mais proveitoso a um homem afamado."
Por fim, último traço de modernidade, Rubrouck
apresenta como evidente a diferença de nível de vida
que separa o Oci- nestorianos, é ele que defronta os
budistas. Fala. As suas palavras estão ainda presentes
no seu espírito quando escreve, assim como a
maneira hábil pela qual levou o seu adversário onde
queria, a saber, a dizer "que não havia nenhum Deus
todo-poderoso". Então todos os Sarracenos desataram
em grandes gargalhadas.
Foi de facto prevendo esta aliança dos monoteístas
contra os budistas que ele sugerira começar por estes
em vez dos muçulmanos. Finalmente, a sua formação
é-lhe útil e permite-lhe dominar a conferência religiosa
internacional ordenada pelo khan em Caracorum em
1254. Naturalmente, não se verifica nenhum resultado
concreto, pelo menos imediato: é Kubilai, o sucessor
de Mangu, o Grande Khan de Marco Polo, quem se
converterá, mas ao budismo, ao mesmo tempo que se
instalará na China. Não obstante, este debate é um
grande prazer que Deus oferece a Rubrouck antes que
Mangu lhe ordene que regresse à sua terra, portador
de cartas para S. Luís. E é o regresso. Fala-se de
regresso? Um ano de trajecto contido em algumas
páginas.
O que espanta neste relato de viagem tão marcado
pela sua época é a modernidade. Muitas das reacções
de Rubrouck não nos são estranhas e tornam-no-lo,
pelo contrário, familiar. Talvez porque a experiência da
viagem, em todos os tempos, conhece algumas
constantes. Antes do mais, a aprendizagem da relati-
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

vidade. Para Rubrouck, esta aprendizagem é


percuciente. Ele está habituado a um mundo em que o
cristianismo reina sem partilha, universal ("católico"),
repelindo o Islão nas suas fronteiras, e encontra-se de
repente num mundo em que a sua religião não é
senão uma das peças do jogo entre outras, tratada
como o Islão e o budismo, que ele nem sequer sabia,
ao partir, que existia, sem contar com o xamanismo.
Singular reviravolta.
Rubrouck sobrevive bem a este choque cultural.
Ainda que abalado ao ver a cruz utilizada como um
auxiliar mágico e a palavra do Senhor inoperante, não
as põe em causa. A sua fé mantém-se intacta, sem
contudo a fechar num esplêndido isolamento. De uma
incansável curiosidade, interroga e informa-se os
cavalos sólidos, possuía-a sem dúvida, mas não o seu
fraco companheiro, Bartolomeu de Cremona, a quem
faltaram as forças para voltar a partir e que preferiu
ficar em Caracorum.
A narrativa de Rubrouck traz a marca deste
contexto. É um verdadeiro relatório onde o viajante
toma nota de todas as informações que pensa que
podem interessar a monarca: o que lhe disseram da
história dos Mongóis, o que viu dos seus costumes, da
sua religião, dos seus meios de existência, tudo é ano-
tado. Este estudo de geografia política confunde-se
sem enfado com a narrativa da viagem e da estada.
Primeiro, a viagem: partida com cinco pessoas,
Rubrouck e o seu companheiro franciscano, um
clérigo, o "truchement" (o intérprete) e um jovem
escravo comprado em Constantinopla graças às
"esmolas" do rei Luís. A partida tem lugar no começo
do mês de Junho de 1253 de um porto da Crimeia,
Soldaia (Ialta), onde Rubrouck chegou de barco. Os
homens vão a cavalo e seguem o passo lento dos bois
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

que puxam as carroças onde vão as coisas; vão para


norte, para o campo de Sartach, filho de Batu, de
quem se ouviu dizer que talvez seja cristão. A três dias
de Soldaia, é ó primeiro encontro com os Tártaros. E
tudo vacila: "Quando entrei no meio deles, pareceu-me
verdadeiramente que entrava noutro mundo?" Mundo
do nómada, da marcha, do ar livre e do vento, das
manadas, onde as próprias casas se deslocam,
montadas em carroças. Já nada há de estável e de
construído: as aldeias de casas de pedra apertadas
em torno do campanário da igreja, no centro das
culturas, as cidades de edifícios múltiplos, mercado,
torre e catedral, desaparecem nas costas dos viajantes
que entram no "outro mundo".
Mas, neste espaço desconhecido, o tempo mantém-
se familiar. Graças à leitura quotidiana do seu missal,
Rubrouck mantém o domínio dele! Cada dia é
identificado, situado no calendário cristão que
estabelece uma continuidade que permite suportar a
estranheza dos lugares e dos homens: no dia de Saint-
-Pierre-aux-Liens (1 de Agosto), Sartach recebe-o; na
véspera do dia de Todos os Santos mudam de
direcção, abandonando o leste pelo sul; a partir do dia
de S.Nicolau (6 de Dezembro), duplicam as etapas; no
dia de S. João Evangelista (27 de Dezembro), chegam
à corte do grande khan Mangu.

Logo que entra no "outro mundo", Rubrouck faz a


aprendizagem da viagem. Ele é para os Mongóis
objecto de curiosidade: apertam-no, mexem nas suas
coisas, reclamam presentes — "queriam ver tudo o
que tínhamos" —, roubam-no às vezes. Os seus
hábitos repugnam-lhe: aliviam o ventre "a menos de
um lanço de fava, conversando entre si". O meio que
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

devia permitir viajar em condições convenientes, a


saber, as moedas sonantes e de peso, não circula:
são as peças de tecido, ali, que servem de moeda. E
quase morrem de fome, com a bolsa cheia. Sem
contar que o intérprete não sente qualquer interesse
pela santa doutrina cristã e se recusa a traduzir ou diz
qualquer coisa à toa quando Rubrouck tenta
evangelizar os Mongóis. Para o nosso franciscano,
isso é o que mais lhe custa e, assim que o
compreende, opta por se calar.
Mas há também a surpresa dos encontros: Alanos
(povo de origem iraniana) cristãos que lhe levam carne
e lhe perguntam se virão a ser salvos ainda que
comam carne sangrada como os Sarracenos e bebam
"comos"1 como os Mongóis; Rubrouck sossega-os e
dá-lhes algumas noções adequadas a consolidar a
sua identidade cristã; no acampamento de Batu,
húngaros, dos quais um deles compreende o latim e
para quem ele copia o Ofício dos Mortos; um cumano
que o saúda em latim por ter sido aluno dos irmãos na
Hungria...
A viagem é mais longa do que o previsto pois que,
de acampamento em acampamento, de khan em
khan, Rubrouck é lançado como uma bala. No
acampamento de Sartach, entre o Don e o Volga,
julgando-se chegado, emprega todos os seus meios e
organiza uma magnifica encenação: entra na casa de
Sartach vestido de ricos hábitos sacerdotais, trazendo
sobre uma almofada princesas em agonia, força-as a
prostarem-se diante do símbolo todo-poderoso;
espezinha o sacerdote nestoriano doente, a quem as
suas orações darão fim... E arrasta Rubrouck para
uma estranha aventura. A segunda esposa do khan,
idólatra, está muito mal de saúde. Mangu manda
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

perguntar ao monge o que ele pode fazer e este


responde sem reflectir: "Se não a curar, que me
cortem a cabeça!" Quando compreende o que acaba
de dizer, põe-se a chorar e chama Rubrouck em seu
socorro. Passam a noite em orações e o monge
prepara a sua arma secreta: uma "água de cruz e de
ruibarbo". Receita: reduzir a pó uma raiz de ruibarbo
(?), dissolver o pó em água onde se põe de molho
uma cruz de metal. Deixar repousar uma noite antes
de servir esta bebida fortificante. Rubrouck tenta
"rectificar" a coisa benzendo a água em que a cruz fica
de molho e lendo à cabeceira da doente a paixão
segundo S. João. São bem sucedidos. Mas Rubrouck
dá consigo a fazer perguntas que provam a sua in-
quietação. "Que há de comum entre Cristo e Belial
[Satanás]? Que há de comum entre a nossa Cruz e
estes ídolos?" — diz ele um dia ao monge, citando S.
Paulo, diante dos ídolos de feltro das casas de Mangu.
Felizmente, um episódio permite-lhe por fim falar e
mostrar todo o seu valor. Aborrecido com as querelas
que agitam em redor da sua casa cristãos, sarracenos
e budistas, Mangu ordena uma confrontação entre eles
"para que pudesse ser ele mesmo a conhecer a
verdade". "Bendito seja Deus!" — responde Rubrouck.
Tendo Mangu pedido um resumo escrito de cada dou-
trina, os nestorianos têm um reflexo de uma outra
época, da época em que os seus antepassados
deixaram a bacia mediterrânica. Como.se fossem
bizantinos da Síria ou da Mesopotâmia no século V,
escrevem uma crónica universal desde a criação do
mundo até ao tempo presente. Rubrouck escreve
simplesmente o Credo e prepara a assembleia.
Organiza um ensaio geral com os nestorianos onde os
manipula magistralmente e lhes aconselha "que lhe
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

permitam discutir primeiro" com os budistas. Com que


gosto trabalha! Finalmente um debate! Tendo
convencido os devia abster-me inteiramente do
sacramento?" É adoptada uma solução ecuménica: no
material litúrgico dos nestorianos, Ru- brouck consagra
as suas próprias hóstias, feitas num molde do fabrico
de Guilherme Boucher, o joalheiro: "Demos a bênção
ao povo (...) eles mesmos baptizaram na véspera da
Páscoa sessenta pessoas. E foi uma alegria muito
grande partilhada por todos os cristãos."
Ao mesmo tempo que Rubrouck começa a admitir
que os nestorianos são cristãos, vê-se confrontado
com uma triste realidade: o catolicismo romano não
está apto a evangelizar os Mongóis. Porquê? Porque é
uma religião da palavra, do Verbo. E uma religião do
Livro, ao passo que os Mongóis querem uma religião
eficaz, produtora de melhorias, uma religião do acto.
Sem descanso Rubrouck quer falar, explicar o dogma,
ler o texto santo: o seu intérprete não traduz, sabe-se
lá se por recusa se por disso não ser capaz — mas
mesmo que traduzisse, os Mongóis não o escutariam.
O que lhe pedem, com efeito, é que se saia tão bem
como o xamã e, como se costuma dizer, se quiser
"apanhar a fatia maior", que se saia melhor. Deste
modo ele é levado, contra a vontade, a desempenhar
um papel próximo do do feiticeiro. Um episódio da sua
viagem mostra bem o dilema em que se encontrava.
Num desfiladeiro medonho dos montes . Altai onde os
demónios têm o costume de arrebatar homens, o guia
pede a Rubrouck, que o seu comportamento lhe fez
reconhecer como um homem de Deus, que afaste os
demónios. "Cantámos então em voz alta Credo in
unum Deum e, pela graça de Deus, passámos com
todo o grupo sem dano. Então pediram-me que lhes
escrevesse papéis para levarem na cabeça; eu dizia-
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

lhes: «Ensinar-vos-ei uma palavra que levareis no


coração»... Mas de cada vez que os queria instruir, o
meu intérprete faltava-me. Escrevia-lhes porém o
Credo e o Pater dizendo-lhes: «Aqui está escrito o que
o homem deve crer em Deus.» O Credo a servir de
amuleto!"
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

O monge arménio, esse era entendido em


encenações hábeis: armado da cruz, com um
desplante incrível, obriga a levantar as a Bíblia e o
saltério ornados de miniaturas que lhe ofereceram o
rei e a rainha, seguido do seu companheiro, que traz o
missal e a cruz, e do clérigo, que traz o turíbulo. A
entrada faz-se cantando o Salve Regina. Sartach
observa os livros com atenção, compreende mal a
situação exacta de Rubrouck e envia-o ao seu pai,
Batu. Mas, antes da partida, um secretário de Sartach,
agindo provavelmente por sua própria conta, acerca-
se das carroças e manda retirar casula, cruz, Bíblia e
saltério... Eis Rubrouck reduzido ao seu hábito de
monge para afrontar Batu. S. Luís, na sua carta, pedia
que Rubrouck ficasse em terras mongóis para aí viver
e pregar: Batu recusa-se a tomar a responsabilidade
desta decisão e envia-o ao seu primo Mangu, o
grande khan. E é a segunda parte da viagem, a mais
penosa. Em marchas forçadas, percorrendo cada dia,
diz Rubrouck, exagerando um pouco, a distância de
Paris a Orleães (116 km), caminham de 14 de Se-
tembro a 27 de Dezembro, do Volga ao Gobi: "Uma
provação bastante rude (...) a fome e a sede, o frio e a
fadiga..." Os alimentos e a bebida são fornecidos pelo
guia, que desconsidera hóspedes tão desprezíveis,
uma vez por dia apenas: um quarto de carneiro com
as costelas, meio cozido, pois é o excremento de
cavalo que serve de combustível, e caldo em
quantidade insuficiente,
Após este longo martírio que Rubrouck descreve
simplesmente, sem dramatizar, é a chegada à corte de
Mangu. Ali se torna imediatamente notado: sob o
pretexto de que chegou ao destino e de que tem pois
de seguir a regra da sua ordem, passeia-se descalço...
No planalto mongol, em pleno Inverno! Estupefactos,
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

os Mongóis perguntam-lhe se os pés não lhe servem


para nada... Os pés gelam-lhe imediatamente e ele re-
nuncia a seguir a regra. Fica três meses na corte de
Mangu, isto é, no imenso acampamento itinerante que
rodeia o khan, e, a seguir, três meses em Caracorum,
a capital rude que "não vale o burgo de Saint-Denis".
Por distantes e de difícil acesso que sejam, estes
dois lugares são locais de encontro mundiais: os
embaixadores comprimem-se em torno do khan que
domina o mundo do Mediterrâneo ao Mar da China.
Rubrouck cruza-se com as embaixadas bizantinas,
turcas, com as do califa de Bagdad, desencontra-se
com o rei da Arménia, volta a partir com os
embaixadores do Soudan (sultão) da índia com
cavalos carregados com leopardos e galgos. Cativos
de toda a nacionalidade fazem de Caracorum uma
encruzilhada dos povos: a senhora Pascha, de Metz, é
de uma filha do khan, refez a sua vida com um ruteno
(um russo) de quem tem três belos filhos; Guilherme
Boucher, joalheiro parisiense, cujo irmão tem uma loja
na Grand Pont em Paris, fabrica para Mangu uma
árvo- re-fontenário digna das Mil e Uma Noites; um
inglês, sobrinho de um bispo normando — como os
outros — capturado na Hungria, rutenos, alanos,
georgianos... Encruzilhada das religiões também: há
budistas a quem Rubrouck chama idólatras. Há um
preconceito de certa forma favorável para com esta
religião desconhecida que ele toma, quando a
descobre, por um avatar do cristianismo. O
recolhimento, as imagens familiares de figuras aladas,
de personagens que fazem o gesto da bênção levam-
no a tomar o primeiro templo onde entra por uma
igreja.
GUILHERME DE RUBROUCK ENTRE OS MONGÓIS 317

Mas há também em torno do khan xamãs a quem


ele chama os adivinhos, muçulmanos e... sacerdotes
cristãos. Cristãos de uma espécie muito rara,
desaparecida na Europa há oito séculos, que
sobreviveu na Pérsia concentrada na Ásia Central:
nesto- rianos. Heréticos, ignaros, bêbedos, polígamos,
corrompidos mas cristãos e até sacerdotes. Instalados
ali há gerações e que formam, aos olhos do khan, a
comunidade cristã. Mais: educam o seu filho mais
velho. É uma severa desilusão. Em vez de ser o único
representante de Cristo face ao pagão mongol, como
deve ter sonhado ao longo de toda a sua viagem, nos
rigores do caminho, ei-lo assimilado a sacredotes que
são, aos seus olhos, o contra-exemplo da vida cristã.
Na qualidade de recém-chegado, fica mesmo depois
deles e depois do monge arménio junto de quem o
khan o acantonou. Um exemplo: pela altura da
Páscoa, Mangu manda vir os cristãos à sua "casa":
"Os sacerdotes nestorianos cantaram abençoando a
sua bebida; depois deles o monge deu a sua bênção
e, para terminar, cabia-nos a nós abençoá-lo."
Momentaneamente, alia-se ao monge arménio, uma
personagem estranha que mandou fazer para seu uso
um barrete de bispo ornado de penas de pavão e
esconde frutos secos debaixo do altar nos dias de
jejum. Mas fala mongol e Mangu aprecia-o: mandou
colocar a "casa" dele defronte da sua, honra que esse
monge partilha unicamente com os xamãs. Sobretudo,
possui uma cruz de prata ornada de pedras preciosas,
trunfo de apreço na dura batalha que travam em torno
do khan os representantes das diferentes religiões. A
cruz anda pelas casas dos príncipes e das princesas
mongóis onde é adorada, o que vale ao monge sedas,
alimentos e inveja da parte dos sacerdotes
nestorianos... Montada sobre uma lança, é levada em
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

passeio através de todo o acampamento por


Rubrouck, cantando o Vexilla Régis — "o que deixava
os Sarracenos cheios de assombro". Mas depressa
Rubrouck se apercebe de que o monge arménio é um
impostor que nem sequer sabe ler e escrever e, o que
mais é, um impostor perigoso que não hesita em
apressar a morte do mais importante dos sacerdotes
nestorianos: "Não estejais em cuidados por causa
dele. Matei-o por meio das minhas orações. Só ele era
instruído e era nosso inimigo." A estada em Caracorum
desembaraça Rubrouck do monge arménio e sela uma
forma de aproximação com os nestorianos.
Pouco a pouco, o seu desgosto para com eles
atenua-se. É certo que essas pessoas que se dizem
cristãs se embriagam, vendem os sacramentos,
praticam a adivinhação, repetem como papagaios os
textos litúrgicos siríacos cujo sentido ignoram, festejam
o sábado como os Sarracenos (os muçulmanos). Mas
Caracorum não é Paris e, nesse mundo estrangeiro,
eles representam apesar de tudo a comunidade cristã:
têm cruzes, igrejas, um calendário cristão. A
celebração da Páscoa aviva estas contradições:
"Devia receber os sacramentos das suas mãos,
celebrar com as suas vestes e o seu cálice sobre o seu
altar, ou
REFERÊNCIAS
CRONOLÓGICAS

1410
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA
1122- Abelardo é eleito pelos monges da
1156 abadia de Saint-Gildas-de-Rhuys
1129 (Morbihan). Vida de Joaquim de
Flore. Vida de S. Domingos. A
ap. 1130/1145- primeira beguinaria surge em Liège.
1202 ap. 1170- Vida de S. Francisco de Assis. A
1221 ap. 1180 Ordem Teutónica passa de
ap. 1182-1226 hospitalar a militar.
1198 S. Domingos funda o convento de
mulheres de Prouille.
1206 Francisco de Assis funda uma nova
família de religiosos (os irmãos
ap. 1209 menores). Clara de Assis funda a
Ordem das "Pobres Reclusas de S.
ap. 1213 Damião". O papa Honório III
reconhece a Ordem dos irmãos
1217 pregadores fundada por São
Domingos.
1221 Primeira regra da ordem
1228- franciscana. Vida de S. Tomás de
1274 Aquino. Criação da Inquisição
1231- pontifical. O papa Inocêncio IV
1232 concede aos Carmelitas, fundados
1247 no século-XII, o estatuto de ordem
mendicante.
Missão do franciscano flamengo
1253-1255 Guilherme de Rubrouck na Ásia
Central. Fundação da ordem dos
1256 eremitas de Santo Agostinho.
Clemente V condena certas
1311 comunidades de beguinas
(Alemanha). Os altos dignitários da
1314 Ordem do Templo são queimados
como relapsos. Condenação pelo
1317 Papa João XXII da Frati- celles.
Batalha de Tannenberg (Polónia):
Pedro, o
Venerável, Ladislau II Jagelão inflige aí uma
1410
abade de sangrenta derrota à Ordem
Cluny. Teutónica.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

1435 Francisco de Paula funda a Ordem dos



nimos.
1498 Morte de Savonarola.
ÍNDICE GERAL 335

A vida quotidiana das reclusas


por Paulette L'Hermite-Leclercq ....................................
................................................ 201
Despedir-se do mundo, 203. O refúgio dos infortúnios
humanos, 208.

Santas e anoréxicas: o misticismo em questão


por Michel Lauwers................................................. 219
4, PREGADORES E MENORES
As ordens mendicantes
por Jacques Le Goff........ ....................................... 227
Os pecados da cidade, 228. Uma palavra nova, 233.
Influência social e politica, 235.

S. Francisco de Assis
por André Vauchez......................... ....... ................ 243
A mensagem espiritual, 252.

S. Domingos, "o mal-amado"


por André Vauchez.......................... ...... ........... 263
Mendigar para viver, 265.

Estêvão de Bourbon, o inquisidor exemplar


por Jacques Berlioz.,............................. ................. 271
Tomás de Aquino, um universitário na idade Média
por Jacques Verger. .............. ...... ........ 287
Guilherme cie Rubrouck entre os Mongóis
por Marie-France Auzépy ........................................................................... ..................................... 303
Referências cronológicas ......................................................................................... 319
Bibliografia gerai ................................................. 323
O s a u t o r e s „ „ . „ . , , . „ „ , „ 3 2 9
Os Cavaleiros Teutónicos, monges-soldados do
germanismo
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

por Philippe Dollinger................................................ 77


Um Estado dentro do Estado, 83. Comércio e cultura,
89.

2. ESPAÇO E VIDA MONÁSTICOS


A paisagem arquitectónica do ano Mil
por Xavier BarRa! i Altet............................................ 99
As abadias da Catalunha
por Michel Zimmermann......................................... 115
Grutas e ninhos de águia, 116. Povoamento e defesa,
123.

Os construtores de Cluníaco (Cluny)


por Carol Heitz........................................................ 131
Claraval (Clairvaux), da abadia à prisão
por Jean-François Leroux-Dhuys........................... 143
A razão dos gestos: por que se reza de joelhos
por Jacques Berlioz................................................ 157
Guiberto de Nogent, o monge jornalista
por Michel Parisse.................................................. 163
3. AS MULHERES DE DEUS

Mulheres no deserto?
por Pierre-Louis Gatier............................................ 169
As freiras
por Michel Parisse. ................................................ 185
O rigor das monjas, 190. "Democratização"... 193. ... e
"reacção nobiliária", 195.
Bibliografia geral

1. Obras de referência:
Dois livros essenciais:
Marcel Pacaut, Les Ordres Monastiques et Religieux
au Moyen Age, Paris, Nathan, 2.a ed., revista e
aumentada, 1993 (série fac. "Histoire"). Bibliografia
publicada.
Gaston e Monique Duchet-Suchaux, Les Ordres
Religeux. Guide historique, Paris, Flammarion,
1993. Preciosas notas-devidas a dois arquivistas
paleógrafos -, por ordem alfabética, sobre as
personagens, as abadias, os tipos de ordem, o fun-
cionamento do convento, os termos de direito ou de
administração que regulamentam a vida das
ordens.

Obras a completar imperativamente por este ensaio


magistral:
Giovanni Miccoli, "Les Moines", in Jacques Le Goff,
s/d., L'Homme Médiéval, Paris, Éd. du Seuil,
L'Univers Historique", 1989 (rééd. "Points Histoire",
1994), pp. 45-85.

A 1er igualmente:
Bernard Bligny, Saint Bruno le Premier C hartreux,
Rennes, Ouest-France, 1984.
Alain Demurger, Vie et Mort de l'Ordre du Temple,
1118-1314, Paris, Éd. du Seuil. 2.a ed., revista e
publicada, "Points Histoire", 1989 (l.a ed., 1985).
Jacques Dubois, Les Ordres Monastiques, Paris,
Presses Universitaires de France, "Que sais-je?",
n.° 2241, 1958.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Georges Duby, Les Trois Ordres ou l'Imaginaire du


Féodalisme, Paris, Gallimard, "Bibliothèque des
Histoires", 1978.
Pierre-Roger Gaussin, Les Cohortes du Christ,
Rennes, Ouest-France, 1985.
Gabriel Le Bras, s/d., Les Ordres Religieux, Paris,
Flammarion, 2 vols., 1972.
Henry Marc-Bonnet, Histoire des Ordres Religieux,
Paris, Presses Universitaires de France, 4.a ed.,
revista, "Que sais-je?", n.° 338, 1968 (1.3 ed.,
1949).
C.H. Lawrence, Th'ë Friars. The impact of the early
mendicant movement on western society,
Londres/Nova Iorque, Longman, 1994.
Il Monachesimo nell 'Alto Medioevo e la Formazione
délia Ci- viltà Occidentale, Spoleto, Centro Italiano
di Studi sull'Alto Medioevo, 1957.
Naissance et Fonctionnement des Réseaux
Monastiques et Canoniaux, Saint-Étienne,
CERCOR, 1991.
Michel Parisse, Les Nonnes au Moyen Age, Le Puy,
Christinne Bonneton, ed., "Des Français
ensemble", 1983.
Prieurs et Prieurés dans l'Occident Médiéval,
Paris/Genebra, Champion/Droz, 1987.

Sobre a vida quotidiana dos monges:


Léo Moulin, La Vie Quotidienne des Religieux au
Moyen Age. Xe-XVe siècle, Paris, Hachette, 1978.
Danièle Choisselet e Placide Vernet, Les Ecclesiastica
Officia Cisterciens du XlIIe siècle, Oelenberg, "La
documentation cistercienne, 22", 1989 (difusão
Turnhout, Brepols). Síntese - erudita mas acessível
- de documentos referentes à vida do dia-a-dia dos
cistercienses no século XII.
Sobre a cultura monástica, duas obras indispensáveis:
Dom Jean Lerclercq, L'Amour des Lettres et le Désir
de Dieu.
r
Indice geral

Apresentação
por J acques B erl i oz................................................ 5

1. FUNDAÇÕES E RENOVAÇÕES
S. Bento e a revolução dos mosteiros
por André Vauchez....*............................................• 15
Nascimento de uma regra, 1 9. Um êxito progressivo,
24.

Roberto d'Arbrissel e a salvação das mulheres


por Jacques Dalarun................................................ 31
A alma fendida, 33.

S. Bernardo, o soldado de Deus


por Jacques Berlioz.................................................. 47
Abelardo. Escolas no claustro
por Jacques Verger................................................... 57
A formação escolar, 60. A impossível tebaida, 67.
Artesão de paz, 71.
VERGER, Jacques: professor da Escola Normal
Superior, de Paris. Ocupa-se especialmente da
história cultural dos últimos séculos da Idade Média.
Publicou, na revista L'Histoire, os artigos «Les
étudiants au Moyen Age» (n.° 34) e «La République
des lettres au Moyen Âge» (n.° 110).
ZIMMERMANN, Michel: professor de História da Idade
Média, na Universidade de Versailles - Saint-
Quentin-en-Yvelines. Tem-se ocupado da história
BIBLIOGRAFIA GERAL 325

das origens da Catalunha e da história cultural da


alta Idade Média. Em 1992, defendeu uma tese de
Estado: Écrire et Lire en Catalogne (vf-xtf Siècle),
editada por Publications de la Sorbonne/Casa
Velasquez, Paris.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Age,


Paris, Le Cerf, 3.a ed., 1990 (l.a ed., 1957).
André Vauchez, La Spiritualité du Moyen Age
Occidental. VlIIe-XIIIe siècle, Paris, Éd. du Seuil, 2a
ed., revista e aumentada, "Points Histoire", 1994 (l.a
ed., 1975).
As sínteses sobre a história religiosa da Idade Média
abrangem sempre importantes desenvolvimentos
sobre as ordens monásticas e religiosas. A reter:
Jacques Le Goff e René Rémond, s/d., Histoire de la
France Religieuse, 1.1. Des dieux dela Gaule à la
papauté d'Avignon (des origines au XlVe siècle); t.
2„ Du christianisme flamboyant à l'aube des
Lumières (XlVe-XVIIIe siècle). Paris. Éd. du Seuil.
"L' Univers historique", 1988.
Jean-Marie Mayeur, Charles Piétri, André Vauchez,
Marc Ve- nard, s/d., Histoire du Christianisme des
Origines à nos Jours: t. 4 (s/d., G. Dagron, P. Riché
e A. Vauchez), Évêques, moines et empereurs,
612-1054, Paris, Desclée, 1993; t. 5 (s/d., A.
Vauchez), Apogée de la papauté et expansion de la
chrétienté, 1054-1274, Paris, Desclée, 1993; t .6
(s/d., A.Vauchez e M. Mollat du Jourdin), Un temps
d'épreuves, 1274-1449, Paris, Desclée/Fayard,
1990.
Gabriele de Rosa, Tullio Gregory, André Vauchez, s/d.,
Storia dell'Italia Religiosa, t.l, L'Antichità e il
Medioevo, Bari, Laterza, 1993.
Os dicionários gerais sobre a Iadde Média ou sobre o
cristianismo fornecem uma quantidade de rubricas
interessantes sobre monges e religiosos. Citemos:
Jean Favier, Dictionnaire de la France Médiévale,
Paris, Fayard, 1993.
BIBLIOGRAFIA GERAL 325

Nicole Lemaître, Marie-Thérèse Quinson, Véronique


Sot, Dictionnaire Culturel du Christianisme. Paris.
Le Cerf/ Nathan. 1994.
André Vauchez, s/d., Dictionnaire Encyclopédique du
Moyen Age Chrétien, Paris, Le Cerf, no prelo.
Os dicionários especializados - em vários volumes,
mas facilmente consultáveis nas bibliotecas -
oferecem notas de um grande interesse. Entre os
principais:
Catholicisme (...), Paris, Letouzey et Ané, desde 1948.
Em 1993, t. 13, fase. 63, até Sida.
Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique:
doctrine et histoire, Paris, Beauchesne, 1937-1994.
Dictionario degli Isttititíi di Perfezione, Roma, Edizioni
Pao- line, desde 1974, 10 volumes previstos, 8
volumes editados.
Dictionnaire d'Histoire et de Géographie
Ecclésiastiques, Paris, Letouzey et Ané, desde
1909. Em 1994, t. 25, fase. 145, até Hyacinte de
Saint-Vincent.
Lexikon des Mittelalters (Dicionário da Idade Média),
Munique/Zurique, Artemis, desde 1977. Em 1993, t.
6, fase. 8, até Patrimonium Sancti Petri.

2.1dentificar uma abadia ou um priorado:


L.H. Cottinou, Répertoire Topo-Bibliografhique des
Abbayes et des Prieurés, Mâcon, 3 vols., 1935-
1970.
M.J. Heimbucher, Die Orden und Kongregationen der
katholischen Kirche (As ordens e congregações da
Igreja
. católica), 3." ed., Paderborn, 2 vols., 1933-1934.
Dom Beaunier, Dom Besse e cofab., e a seguir dom
Jean Bec- quet, Abbayes et Prieurés de l'Ancienne
France (...), Ligugé-Paris, desde 1905.
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

3. Reunir a documentação:
Para além das obras gerais e dos dicionários acima
citados, ver, para os trabalhos franceses recentes:
Société des Historiens Médiévistes de l'Enseignement
Supérieur, L ' Histoire Médiévale en France. Bilan
et perspectives. Prefácio de Georges Duby. Textos
reunidos por Michel Baiard, Paris, Éd. du Seuil,
1991.
Société des Historiens Médiévistes de l'Enseignement
Supérieur, Bibliographie de l'Histoire Médiévale en
France (1965- 1978), Éditions Retz; Histoire de la
France Religieuse (com R. Rémond), 1988-1992,
Éditions du Seuil. Dirigiu o 2.° volume da Histoire
de France (s.d., G. Duby), La Ville Médiévale, 1982,
Éditions du Seuil; o 2.° volume da Histoire de la
France (s.d., A. Bruguière e J. Revel), L'État et les
Pouvoirs, 1990, Éditions du Seuil.
LEROUX-DHUYS, Jean-François: professor de
Ordenação Territorial e Urbanismo, no Instituto de
Estudos Políticos de Paris. Membro da Academia de
Arquitectura e presidente da associação
Renaissance de l'Abbaye de Clairvaux (Aube).
LHERM1TE-LECLERCQ, Paulette: professora
agregada de História e Geografia, com
doutoramento de Estado. Professora da
Universidade de Paris IV. Publicou: Garéoult, un
Village de Provence dans la Deuxième Moitié du xvf
Siècle (Éd. du CNRS, 1979) e a sua tese Le
Monachisme Féminin dans la Société de Son
Temps. La Celle-lès-Brignoles, xf- xvf siècle (Éd.
Cujas, 1989).
PARISSE, Michel: professor da Universidade de Paris-
Panthéon-Sorbonne. Colaborador da revista
Annales de l'Est e autor de uma tese sobre a
BIBLIOGRAFIA GERAL 325

nobreza lorena (séculos xi-xin). Especialista de


história religiosa. Publicou: Histoire de la Lorraine
(Privât, 1977) e um livro sobre as freiras na Idade
Média (1993). É também co-director da colecção
«Faire l'Europe» (publicada em Portugal pela
Presença).
VAUCHEZ, André: professor de História Medieval, da
Universidade de Paris X - Nanterre e membro do
Instituto Universitário de França. Participou na
Histoire de la France Religieuse(t. 1, Paris, Ed. du
Seuil, 1988, p. 283-416) e é autor de numerosas
obras sobre a história religiosa da Idade Média, em
especial La Sainteté en Occident aia Derniers
Siècles du Moyen Age, Roma-Paris, 2.a ed., De
Boceard, 1988, e Les Laïcs au Moyen Age, Paris, Le
Cerf, 1987. Sob a sua direcção foram publicados o
1.° vol ume da Storia de H'Italia Religi osa, Roma,
Laterza, 1993, e os três volumes medievais (tomos
4, 5 e 6) de Histoire du Christianisme, Paris,
Desclée-Mame, 1990-1993).
GATIER, Pierre-Louis: investigador do CNRS. Estuda
a helenização e a romanização do Próximo-Oriente,
antes do Islão. Publicou: Inscriptions de la Jordanie.
Région Centrale (Geuthner, 1986); com M.A.
Calvet-Sébasti, Lettres de Firmus de Césarée (Le
Cerf, 1989); com B. Helly e J.-P. Rey- Coquais,
Géographie Historique du Proche-Orient (CNRS,
1988).
HEITZ, Carol: professora emérita de História de Arte,
na Universidade de Paris X - Nanterre. Publicou:
Architecture et Liturgie à l'Époque Carolingienne,
Paris, SEVPEN, 1963; Du VIIIe au xf Siècle: Édifices
Monastiques et Culte en Lorraine et en Bourgogne
(em colaboração com Fr. Heber- Suffrin, Éd. de
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

l'Université de Nanterre, 1977); L'Architecture


Religieuse Carolingienne: les formes et leurs
fonctions (Picard, 1980); La Peinture Pré-Romane
et Romane (Genebra, Famot, 1981); Gallia
Praeromanica (Viena, Schroll, 1982); La France
Pré-Romaine. Archéologie et Architecture
Religieuse en France au Haut Moyen Age. Du IVe
siècle à l'an mil (Errance, 1987).
LAUWERS, Michel: professor da Universidade de
Nice. Especialista de cultura popular medieval, em
especial sobre a morte, defendeu uma tese, em
1992, sobre La Mémoire des Ancêtres, le Souci des
Morts. Fonction et usage du culte des morts dans
l'Occident médiéval (Diocèse de Liège, xf-xuf
siècle).
LE GOFF, Jacques: historiador, medievalista. Director
de estudos da Escola de Altos Estudos de Ciências
Sociais (EHESS), de Paris, da qual é presidente
honorário. Opondo-se quer à tendência para
«enegrecer» a Idade Média quer à tendência para
«dourar» a mesma época, é autor de alguns livros
fundamentais a tal respeito: Os Intelectuais na
Idade Média (Gradiva), A Civilização do Ocidente
Medieval e Para uma Outra Idade Média (ambos
publicados pela Estampa). Co- -dirigiu (com Pierre
Nora) a edição de Fazer a História (Bertrand), La
Nouvelle Histoire (com R. Chartier e J. Revei,
-1990). Textos reunidos por Michel Balard, Paris,
Publications de la Sorbonne, 1992, pp.131-136.

No que se refere à França, encontrar-se-á a


bibliografia corrente na:
BIBLIOGRAFIA GERAL 325

Bibliographie Annuelle de l'Histoire de France, Paris,


CNRS, desde 1953. Com índice dos assuntos e dos
autores.

No que se refere à cultura monástica do Ocidente


medieval, consultar:
Medioevo Latino. Bolletino bibliográfico delia cultura
europea dal secolo VI a XIII, Espoleto, Centro
Italiano di Studi sul 1'Alto Medievo desde 1980.
Bibliographie Annuelle du Moyen Age Tardif. Auteurs et
textes latins vers 1250-1500, Turnhout, Brepols,
desde 1991.
É igualmente útil o Bulletin du CERCOR (Centre
Européen de Recherches sur les Congrégations et
Ordres Religieux, Maison Rhône-Alpes des
Sciences de l'Homme, 35, rue du Onze-Novembre,
F-42023 Saint-Étienne Cedex 2; telef.: 77 38 96 67
ou 77 42 16 70; fax 77 42 16 84). Este boletim
fornece nomeadamente o resumo das grandes
revistas internacionais dedicadas ao moiíaquismo e
informações sobre os trabalhos em curso, as
publicações recentes e os colóquios.
Os Autores

AUZÉPY, Marie France: professora da Universidade


de. Paris VIII - Vincennes, em Saint-Denis.
Especialista de iconografia bizantina.
ALTET, Xavier Barral i: antigo director da Missão
Histórica Francesa na Alemanha e do Museu
Nacional de Arte, da Catalunha. Professor de
Ciências Históricas na Universidade de Rennes-II.
Autor de Les Mosaïques de Pavement Médiévales
de Venise, Torcello et Murano (Picard, 1984) e L'Art
Pré-Roman en Catalogne, Df-X e Siècle (Ed. 62,
1981).
BERLIOZ, Jacques: arquivista paleógrafo. Antigo
membro da Escola Francesa de Roma, encarregado
de investigação no CNRS (Centro Nacional de
Investigação Científica, Paris) e membro da
Redacção da revista L'Histoire.
DALARUN, Jacques: director dos Estudos Medievais
na Escola Francesa de Roma. Publicou:
L'Impossible Sainteté. La Vie Retrouvée de Robert
d'Arbrissel (Le Cerf, 1985), Robert d'Arbrissel,
Fondateur de Fontevraud(Albin Michel, 1986), La
Sainte et la Cité. Micheline de Pesaro, Tertiaire
Franciscaine (École Française de Rome, 1992),
Lapsus Linguae. La Légende de Claire de Rimini
(SISMEL, 1994), Questa Donna era Francesco (La
Viella, 1994).
DOLLINGER, Philippe: professor honorário da
Universidade de Estrasburgo. Especialista de
história da Alemanha medieval. Autor de La Hanse,
xif-xuf Siècle (Aubier, 1970).

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