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Arquitetura e a cidade na Antiguidade

Oriental
Prof. André da Silva Bueno
Descrição
As origens da arquitetura, suas funções e papéis simbólicos no mundo antigo oriental e na África antiga.

Propósito
O surgimento e o desenvolvimento das primeiras noções arquitetônicas, seus papéis simbólicos e
funcionais, e como elas acompanharam o desenvolvimento econômico e cultural das civilizações humanas.

Objetivos
Módulo 1

Arquitetura: uma invenção social


Compreender como surgiu e se desenvolveu a arquitetura.

Módulo 2

A arquitetura egípcia: poder e religião


A arquitetura egípcia: poder e religião
Identificar as principais questões que permeiam a formação da arquitetura e suas expressões da África
antiga.

Módulo 3

Rumo ao oriente: a experiência arquitetônica da Índia


e da China antigas
Comparar o desenvolvimento da arquitetura na Índia e na China antigas.

Introdução
Ao estudar o passado, enfrentamos o problema da alteridade com os nossos objetos, especialmente
em relação à Antiguidade. Isto é, muitas vezes, achamos que os antigos eram incapazes de ter boas
ideias – e escorregamos, por exemplo, para hipóteses como “influência alienígena” ou “intervenção
divina”. O simples fato de sabermos pouco sobre o passado não significa que os nossos ancestrais
eram incapazes. Ao contrário: grande parte das boas ideias e ciências que conhecemos hoje tiveram
sua gênese nesses tempos antigos, em que as pessoas tinham muito menos recursos para enfrentar
as adversidades. Assim, eles tinham que buscar soluções criativas, que foram se transformando no
conhecimento de que dispomos hoje.

Ao falarmos de arquitetura ou engenharia, é fácil constatar que a maior parte das pessoas, ainda
hoje, não entende como se constrói um prédio ou uma ponte. Então, ao olharmos para o passado,
precisamos ter cuidado; não é porque sabemos pouco sobre os antigos que podemos achar ou julgar
que eles não dispunham de conhecimentos surpreendentes.

Havia especialistas em arquitetura em todas as civilizações antigas, formados sob a orientação de


mestres, antes do surgimento das grandes escolas e universidades como conhecemos atualmente.
Devemos ter cuidado também com os anacronismos. Se perguntarmos “como era um shopping na
antiguidade?”, não vamos achar um edifício específico que sirva como centro de compras – mas
podemos encontrar ruas inteiras que serviam de mercado, como os famosos “bazares”. Por outro
lado, não podemos achar que a arquitetura antiga é feita apenas de pirâmides, muralhas ou templos
magníficos.
1 - Arquitetura: uma invenção social
Ao final deste módulo, você será capaz de compreender como surgiu e se
desenvolveu a arquitetura.

Arquitetura e demarcação de espaço


Como surgiu a arquitetura?
Definir arquitetura não parece ser uma tarefa fácil. Essa ciência abarca um amplo conjunto de técnicas e
visões, englobando a arte, a engenharia, história, religiosidade e política, entre outras. Em linhas gerais, a
arquitetura é comumente entendida como uma ação de intervenção no espaço físico, visando reorganizá-lo
materialmente de acordo com determinadas intenções funcionais.

Mas quando isso começou? Como é natural, há controvérsias.

Glancey (2001) defende que a arquitetura teve início com a revolução agrícola, diretamente ligada à
formação das cidades e ao surgimento das edificações. O próprio termo “pré-história” estaria ligado à ideia

de um período sem história pela ausência da escrita e de vestígios materiais, ou seja, a história só
começaria com a presença das cidades e de uma cultura bem estabelecida.
Obviamente, essa ideia já está superada, pois sabemos que muitas sociedades se desenvolveram a partir do
nomadismo e sem um sistema de escrita definido; mas o termo “pegou” e ainda é usado como sinônimo
das fases históricas humanas entre 500.000 e 10.000 AEC.

Sítio arqueológico de Göbekli Tepe, na Turquia, onde se encontram as ruínas mais antigas do mundo, com 11 mil anos de idade.

Por isso, Fazio (2011) e Ching (2019) propõem que as primeiras inciativas arquitetônicas tiveram origem em
períodos anteriores ao Neolítico, quando os seres humanos começaram a empreender transformações no
ambiente em que viviam, e esses registros devem ser levados em conta como expressões materiais das
culturas humanas.

As primeiras ideias arquitetônicas surgiram justamente com a


construção da cultura, acompanhando os seres humanos em seus
primórdios. Estamos recuando bastante no tempo, e admitindo que a
intenção de interferir no espaço e no ambiente surgiu precocemente
como uma das necessidades dos primeiros grupos.

Sabemos que um passo decisivo para a humanidade foi o surgimento no cérebro do núcleo no córtex
frontal, área responsável pelo raciocínio, individuação e imaginação (WOOD; GRAFMAN, 2003). Ou seja:
mais ou menos em torno de um milhão de anos atrás, descobrimos que pensamos e começamos a
contemplar nossas próprias ideias, a raciocinar e a criar estratégias e símbolos para explicar a natureza.

Sítio Arqueológico de Harappa, no Paquistão (cerca de 2550 a.C.).

Esse momento foi crucial para que os humanos começassem a fazer mais do que apenas sobreviver; eles
sse o e to o c uc a pa a que os u a os co eçasse a a e a s do que ape as sob e e ; e es
começaram a planejar, a imaginar e a conceber sua percepção no espaço, o que permitiu que eles
diversificassem a alimentação com fontes variadas, organizassem caçadas, criassem instrumentos de
trabalho e aprendessem os ciclos da natureza de forma racionalizada.

Começaram também a interpretar as forças da natureza como espíritos inteligentes, originando as primeiras
formas religiosas. Depois de milhares de anos sendo um dos animais mais frágeis da natureza, os humanos
viraram o jogo e passaram a interferir diretamente na ecologia.

Sítio arqueológico de Skara Brae, com habitações do período neolítico, na Escócia (cerca de 3000 a.C.).

Os primeiros grupos humanos formavam bandos, que perambulavam nos mais diversos ambientes em
busca de recursos para sobreviver. Na época, o nomadismo não era uma opção, era simplesmente o meio
mais eficaz de garantir a continuidade da espécie. Dois elementos fundamentais surgem a partir disso: a
construção de símbolos demarcatórios e a necessidade de abrigo, propiciando as primeiras manifestações
arquitetônicas da humanidade (CHILDE, 1975; GOWLETT, 2007).

Marcar o espaço: os megálitos


Alguns grupos foram estabelecendo rotas mais ou menos regulares, circulando por uma série de territórios
diferentes, ao longo das estações do ano. Isso foi resultado direto dos conhecimentos das estações do ano
e dos movimentos da natureza. É provável que, no intuito de demarcar esses circuitos, esses grupos
começaram a deixar vestígios espalhados pelos territórios, identificando sua presença e servindo de marcos
de orientação.
Cromeleque dos Almendres, círculo de pedras pré-histórico com 95 monólitos, no Distrito de Évora, em Portugal (cerca de 3000 a.C.).

Para que essas marcações fossem mais efetivas, foram usados materiais mais duráveis, principalmente
pedras. Depósitos de lixo de algumas dessas comunidades, acumulados por séculos, formaram os
sambaquis, que, de certa forma, também indicavam marcações no espaço. No entanto, os monumentos em
pedra foram um sucesso duradouro.

Podemos dizer que os megálitos foram uma das primeiras


manifestações efetivas das ideias arquitetônicas entre os humanos. O
trabalho de interpretar essas construções envolve ainda muita
especulação e poucas certezas. De efetivo, podemos notar que os
megálitos tiveram início com simples pedras empilhadas e, depois, com
o uso de rochas maiores, muitas vezes lixadas e polidas com ajuda de
pequenas pedras e areia.

O estudo do ambiente que circunda alguns desses monumentos nos dá pistas de como foram erigidos, com
a ajuda de rústicas estruturas de madeira e cordames feitos de fibras de pele animal.

Em lugares onde a madeira era mais escassa, era possível levantar o megálito pelo encaixe gradual de
várias pequenas pedras, até que a rocha maior se inclinasse e se fincasse em sua fundação; outro meio era
cavar um fosso sob a base do menir e, depois, deixá-lo escorregar para dentro do buraco, preenchendo os
vazios com terra e pedras para fixá-lo.

Círculo de pedra Merry Maidens, com 19 megálitos com cerca de 2,4m de altura, localizado na Inglaterra (entre o IV e III milênio a.C.).

Por fim, pedras maiores, em uma posição privilegiada, podiam ser esculpidas com esse propósito, sem a
necessidade de movimentá-las.

Quanto maior o megálito, mais forte parecia ser o grupo que o havia produzido. Era uma mensagem clara de
que o território tinha dono e era protegido. Contudo, essas rochas parecem ter cumprido igualmente funções
rituais. É provável que a ereção de um megálito fosse dedicada a uma ou mais divindades que protegiam o
grupo, e marcavam um espaço sagrado.

Menir dos Almendres, também no Distrito de Évora, em Portugal.

Há megálitos mais simples, que constituem marcos territoriais e religiosos, como é o caso dos menires (a
origem dos famosos obeliscos egípcios), usualmente formados por uma pedra maciça (mas é possível
encontrar arranjos de pedra provavelmente com a mesma função). Outro tipo de construção, surgida nesse
mesmo período, são os dólmens, arranjo de três pedras com duas de suporte e um servindo de teto.

O abrigo
A segunda revolução arquitetônica: o abrigo

Conjunto de casas neolíticas de Knap de Howar, na Escócia (ocupadas entre 3700 e 2800 a.C.).

Chega a ser fantástico pensar que muitos desses grupos humanos se preocuparam primeiro em marcar seu
território, e depois se preocuparam em onde se abrigar. Entretanto, foi a expansão – e o consequente

choque – dos grupos humanos que os levaram a migrar cada vez mais longe, em busca de novas rotas e
territórios que pudessem garantir sua sobrevivência.
Esses novos ambientes continham desafios significativos, como
variações de temperatura e escassez de recursos, que colocavam em
risco a sua sobrevivência. Cada lugar novo tinha suas particularidades,
por isso, a percepção da necessidade de abrigo variava para cada
comunidade. Lembremos, ainda, que estamos no período “pré-
histórico”, e a maioria dos grupos prosseguia nômade, aprendendo
lentamente a se adaptar.

Seguindo a lógica da praticidade, essas comunidades viram nas cavernas um abrigo natural, rápido e efetivo
para suas necessidades. As exigências não eram grandes: marquises de pedra, pequenos buracos,
depressões entre rochas e as cavernas em si começaram a receber famílias, grupos inteiros e mesmo
viajantes solitários. Em geral, eram abrigos temporários, nos quais se passava determinado período do ano,
partindo em seguida.

Foram nessas grutas onde as primeiras sociedades gravaram suas experiências nas paredes, por meio de
pinturas, como encontramos em Lascaux, Altamira e na Serra da Capivara. Vestígios de alimentos, fogueiras
e utensílios foram encontrados nesses ambientes, mostrando que esse foi um espaço vital na estruturação
dos circuitos nômades.

Gruta da Lapinha, em Lagoa Santa (MG), na mesma região onde foi encontrado o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado na
América do Sul.

Por isso, dizer que essa época era dos “homens das cavernas” não é exagero, é apenas impreciso:
sociedades das cavernas seria mais adequado.

O modelo foi tão bem-sucedido que, mesmo depois da sedentarização causada pela revolução agrícola,
alguns grupos continuaram a morar em estruturas do gênero. Na China, por exemplo, vilas inteiras,
formadas de cavernas artificiais, o que permitia as pessoas morarem perto dos terrenos cultivados.
A Yaodong ou "casa de caverna" representa um tipo de arquitetura característica do norte da China, sobretudo na província chinesa de Shanxi.

Havia alguns inconvenientes nas cavernas e depressões naturais: elas não estavam disponíveis em todos os
lugares; era perigoso fazer intervenções mais radicais nesses espaços; com locais fixos e marcados, alguns
grupos podiam topar uns com os outros, não raro causado choques violentos na disputa pelo espaço; por
fim, elas se incluíam como pontos nas rotas nômades, e seu uso não era flexível.

Inventando novas formas de abrigo


Tais necessidades se impuseram, mais uma vez, sobre o Homo sapiens, que teve que aprender a encontrar
novas soluções. E a genialidade humana concebeu, então, a inovadora ideia de fazer suas próprias
“cavernas”, imitando a natureza com seus próprios meios. As experiências foram múltiplas, variando para
cada ambiente, mas se revelaram extremamente criativas e eficazes.

Nas áreas onde a vegetação era abundante, os primeiros abrigos foram


feitos com galhos, folhagens e cipós, surgindo primeiro como
coberturas descartáveis, e depois evoluindo para cabanas inteiras com
dimensões variadas. Esse tipo de construção podia servir para estações
inteiras e, gradualmente, formaram as primeiras aldeias fixas.

Habitações de povos bosquímanos, tribos de caçadores-coletores que vivem ainda hoje em vários territórios ao sul do continente africano.

Grupos como os !Kung da África, que ainda vivem em um modo de vida nômade, constroem pequenas

cabanas circulares de galhos e vegetação, compartilhando ideias e métodos similares aos dos indígenas
brasileiros. Vestígios encontrados em Banpo, na China, revelam aldeias que empregavam métodos muito
parecidos com os das comunidades que viviam perto de florestas em outros lugares do mundo.
p q p g

Enquanto isso, em regiões mais áridas, quando não era possível fugir para a sombra das formações
rochosas, usaram-se retalhos de tecido animal e vegetal para construir pequenas lonas, amparadas em
espeques, que criavam a sombra artificial necessária para fugir do sol.

Ali estava o embrião das tendas, cuja mobilidade e simplicidade marcaram seu surgimento. Além de se
consolidarem como formas práticas de abrigo, elas podiam ser desmontadas e transportadas de um lugar
ou outro, marcando uma inovação significativa.

Enquanto isso, houve ainda grupos que aprimoraram a arte de empilhar pedras para fazer pequenas grutas
temporárias, nem sempre estáveis e seguras, mas o suficiente para passar o tempo em algum lugar. Um
desdobramento desse modelo foi a ideia de copiá-lo usando terra batida e da argila (onde ela estava
disponível) para confeccionar essas edificações. A terra batida consistia em comprimir várias camadas de
terra até formarem paredes razoavelmente estáveis, e depois cobri-las com algum tipo de teto. O método era
trabalhoso, mas estável – e, hoje, é considerado uma saída ecológica na construção de casas, evitando o
uso de argamassas e materiais artificiais.

Sítio arqueológico no topo da colina Mapungubwe, no sul do Zimbábue.

Bosquímanos fabricam habitações e utensílios de barro, ilustração de Samuel Daniell, pintor e naturalista inglês.

Esses primeiros abrigos seguiam a mesma lógica das cavernas, constituindo-se majoritariamente em um
espaço único, sem janelas e com uma entrada sem porta. Não havia cômodos e, dependendo da
temperatura ambiente, a fogueira podia ser feita dentro ou fora do abrigo.

Alguns grupos perceberam que a fumaça das fogueiras podia afastar insetos, mas também podia intoxicar
as pessoas, e começaram a fazer orifícios pelos quais a fumaça pudesse escapar, criando o protótipo das
chaminés. As necessidades fisiológicas eram realizadas fora do abrigo, e nem sequer imaginava-se o que
seria um banheiro.

A revolução agrícola e o surgimento da


“casa”
O impacto do advento da agricultura

Nuraghe Seruci, edifício megalítico antigo encontrado na Sardenha (cerca de 2000 a.C.).

Após milhares de anos perambulando pelo mundo, alguns grupos humanos juntaram as experiências
acumuladas e decidiram tentar um novo modo de vida. O nomadismo era um jeito de viver permeado de
incertezas e insegurança, principalmente quando se era obrigado a viver em lugares desconhecidos. Porém,
depois de séculos observando a natureza, os “sapiens” empreenderam em o que seria uma verdadeira
revolução tecnológica e cultural: a agricultura e a criação de animais.

Com o arcabouço de conhecimentos sobre vários ambientes, plantas e


animais, os humanos começaram a testar formas novas de gerar sua
própria subsistência. Ao invés de se deslocar no espaço, ao sabor das
estações, eles imaginaram se seria possível se estabelecer em
determinado lugar copiando os ciclos da natureza, produzindo vegetais
e criando rebanhos que tornariam sua vida mais fácil.

Esse processo foi surpreendentemente rápido, parece ter começado em algum momento entre 20.000
-10.000 AEC, sendo usualmente classificado como “Neolítico”. Ele é marcado pela confecção de

instrumentos de pedra com funções práticas (muitas vezes simbólicas), adequadas ao uso agrícola e para a
defesa.
Surge a combinação de materiais, como o arado, o machado e o martelo – que juntavam um cabo de
madeira com a peça de pedra – ou como o arco, que juntava uma peça de madeira, a força elástica da corda
e peças móveis (flechas) compostas igualmente de madeira, pedra e plumas animais. Tiveram início
também as experiências com metais, usados para a confecção de armas e utensílios de trabalho.

Reconstituição de um arado neolítico.

As primeiras comunidades escolheram morar pertos de rios, o que lhes garantia um suprimento regular de
água para as plantações e animais. Por essa razão que encontramos as civilizações mais antigas perto de
curso de água, como é o caso de Egito com o rio Nilo, os povos da Mesopotâmia entre os rios Tigre e
Eufrates, a Índia com o rio Indo e Ganges e a China com o Rio Amarelo e Azul.

Atenção!
O desenvolvimento da agricultura possibilitou os seres humanos a iniciarem projetos para o futuro,
envolvendo o planejamento familiar, o desenvolvimento de atividades de troca mais complexas (comércio) e
uma mudança gradual nas crenças religiosas, com o fortalecimento de divindades ligadas ao novo modo de
vida.

Essa mudança radical teve impacto profundo na vida desses grupos. Autores como Harari (2018) defendem
que a qualidade de vida diminuiu, em função do empobrecimento da dieta e do sedentarismo. Por outro
lado, o aprovisionamento de víveres e a produção com excedente fez com que os grupos familiares
pudessem se reproduzir mais rápido, fortalecendo sua posição de poder nos territórios em que se
estabeleceram, e pudessem igualmente realizar mais operações de troca, convertendo os alimentos
produzidos em riqueza (MAZOYER; ROUDART, 2011).
Sítio arqueológico neolítico de Choirokoitia, localizado no distrito de Larnaca, em Chipre (entre 7000 e 4000 a.C.).

Isso teve um impacto direto sobre a estrutura habitacional. As comunidades agrícolas sentiram a
necessidade de trocar seus abrigos instáveis por habitações mais sólidas, onde poderiam descansar,
supervisionar o trabalho nos campos e organizar as tarefas diárias. Os abrigos, antes temporários,
passaram a ser casas, onde a família iria fincar sua presença.

Sítio arqueológico neolítico de Choirokoitia, em Chipre.

As primeiras estruturas, obviamente, eram herdeiras diretas dos antigos abrigos; no caso das civilizações
africanas e asiáticas, a casa de taipa transformou-se em um fenômeno habitacional, sendo o modelo
dominante nessas comunidades.

Algumas variações foram surgindo, como a cabana de madeira (onde esse material estava disponível em
quantidade) ou a caverna esculpida (como as desenvolvidas próximo ao rio Amarelo, na China). É possível
que as janelas tenham surgido nesse período, permitindo uma ventilação melhor do ambiente e uma
vigilância mais ampla sobre as terras circundantes.

Dominar a terra não era algo fácil; além de todo o trabalho nos campos, havia ainda a necessidade de se
defender de grupos que disputavam territórios férteis ou de nômades, que entendiam ser mais fácil saquear
essas comunidades do que migrar para lugares inóspitos.

Ao mesmo tempo em que surgem as aldeias, juntando grupos de casas para proteção e ajuda mútua, é bem
possível que tenham surgido também os muros e as portas. Inicialmente, essas proteções foram feitas de
paliçadas, de taipa ou de terra batida, e os portões – no início, apenas rústicas barreiras na brecha do muro
– surgiram para proteger de visitantes indesejáveis, fossem humanos ou animais selvagens.

Um aspecto importante no desenvolvimento das casas foi o início da compartimentação. Não demorou

muito para nossos ancestrais perceberem que os grãos recolhidos atraíam bichos e insetos, que os animais
produziam gases e esterco, e que as atividades produtivas exigiam a especialização dos espaços. A
revolução agrícola foi responsável diretamente pela criação dos celeiros, dos silos, das oficinas e dos
cômodos. É possível que todas as edificações fossem iguais no início, variando apenas a sua função, mas
com o tempo, os silos de grãos tiveram que aumentar de tamanho e ter melhor vedação, dispensando
janelas.

Reconstituição de uma habitação neolítica em Choirokoitia.

Os cômodos demoraram mais para aparecer e, provavelmente, estão ligados à complexificação das
estruturas familiares e do aprimoramento das atividades de trabalho. A cozinha surgiria em torno do forno,
assim como o quarto de dormir se formaria ao redor da cama do casal que comandava a casa. Novos
cômodos ou espaços poderiam ser adicionados à construção principal quando a família aumentava ou
quando trabalhadores passaram a servi-las (BRYSON, 2011).

Era de revoluções
A invenção revolucionária do tijolo
Na década de 1930, Ole Kirk Kristiansen (1891 - 1958) fabricava brinquedos de madeira na Dinamarca,
produzindo peça de qualidade, mas de custo alto. Nas décadas seguintes, a Segunda Guerra Mundial [1939-
1945] e as crises econômicas subsequentes praticamente quebraram sua fábrica. Ole teve um insight: por
que simplesmente não reinventamos o básico? Vamos fazer tijolos de plástico!

O princípio básico do brinquedo é bem conhecido: são pequenos tijolos que se encaixam, e podem assim
ser reconfigurados de diversas maneiras diferentes. O brinquedo foi considerado um sucesso em termos de
jogos educativos, pois estimulava a criatividade, a cognição e o raciocínio das crianças. Pedagogos
construtivistas ficaram fascinados com os princípios aplicados à dinâmica interativa do LEGO, utilizando-o
como exemplo de como construir ou desconstruir ideias, discursos e teorias.
No campo da arquitetura, o que se convencionou apelidar de método ou teoria LEGO significava repensar a
estrutura de uma edificação a partir de blocos modulares móveis e intercambiáveis, permitindo a montagem
rápida, uniformização de padrões, diminuição de custos, e possibilidade de configurações variadas.

Em algum momento do final do Neolítico, as comunidades agrícolas


estavam desenvolvendo seus métodos de edificação, tentando buscar
modelos e materiais ideais para a construção de ambientes diferentes,
como vimos anteriormente.

Cada um dos modelos tinha suas vantagens e problemas: as cabanas de fibras e madeira não vedavam
bem, as de taipa não sustentavam muito peso, as de terra batida exigiam conhecimentos que muitas vezes
a simples experiência não podia fornecer. As casas de pedra eram duráveis, mas tinham problemas no
controle de temperatura e eram extremamente custosas (e seria mais fácil, de certa forma, voltar para
caverna).

Ruínas de Moenjodaro, da Civilização do Vale do Indo (entre 2800 e 1800 a.C).

Foi quando começou a se disseminar a ideia de usar a argila para criar uma unidade volumétrica similar a
um bloco de pedra, mas em formato uniformizado. Assim, ele poderia ser mais facilmente encaixado,
formando paredes e muros, e resolvendo o problema de construir uma estrutura mais durável. Não é
exagero dizer que o tijolo deveria estar junto ao fogo e à roda como uma das mais importantes descobertas
da humanidade. Os antigos habitantes do Egito e do Oriente pensaram no tijolo e viram um instrumento
poderoso para reorganizar o espaço.

Muito cedo, os descobridores dos tijolos perceberam que ele ficaria mais resistente se fosse seco ao sol ou

cozido, o que afastava o risco do barro em amolecer pela ação da água e umidade. Materiais sedimentares
e palha podiam ser adicionados ao barro para ajudar na formação da liga de argila ideal, estruturando um
bloco firme e duradouro.

Além disso, eles poderiam criar moldes padronizados, o que tornava a produção fácil e rápida, além de criar
um excedente que poderia ser usado em reparos urgentes. Embora as pedras ainda fossem um recurso
apreciado, elas foram sendo deixadas para construções mais rebuscadas, enquanto o tijolo tornou-se
praticamente um sistema mundial de construção, de habitações populares a grandes monumentos.

Ruínas da cidade de Babilônia, no Iraque.

As cidades antigas foram fundadas em tijolos: as paredes das casas, as pontes, os monumentos e mesmo
as estradas eram pavimentadas com eles. Com o tempo, eles seriam aperfeiçoados; embora o tijolo maciço
fosse o mais comum, os antigos também faziam blocos de encaixe e tijolos vazados. Um desdobramento
criativo foi o surgimento da telha para cobrir o teto, mais leve e fina, mas produzida dentro da mesma ideia
de moldagem usada no tijolo, modificando o perfil do teto das casas.

Se o tijolo não fosse encaixado, vários recursos eram utilizados para que eles formassem uma parede
coesa: quando agrupados meio úmidos, aderiam uns aos outros; podiam ser feitos empilhamentos
alternados para criar um equilíbrio estático, inserção de argila e sedimentos com palha, e a gradual
descoberta de argamassas para a colagem dos blocos.

Representação de um leão rugindo numa parede da sala do trono de Nabucodonosor II (entre 604 e 562 a.C.).

Esse tipo de adesivo variava de região; no Egito e na Mesopotâmia, por exemplo, eram usadas argamassas
de cinzas vulcânicas, betume, areia misturada com argila e palha, entre outros. As receitas tradicionais eram
misturas feitas de cal, água, areia e cinzas. Às vezes, azeite era adicionado à fórmula.

Enquanto em outros lugares do mundo surgiam tímidas aldeias feitas


de cabanas de madeira ou taipa o Oriente testemunhava o que seria o
de cabanas de madeira ou taipa, o Oriente testemunhava o que seria o
próximo passo no desenvolvimento histórico da humanidade: o
nascimento das cidades. Tudo isso graças a um singelo bloco de argila
que modificou definitivamente as ideias sobre construção no mundo
antigo, e sem o qual a urbanização teria sido praticamente inviável.

video_library
Entre pirâmides e ET: desmistificando a
arquitetura antiga
Assista agora a um vídeo que apresenta o conhecimento de arquitetura e engenharia dos antigos egípcios,
com o professor André Bueno.
Falta pouco para atingir seus objetivos.
Vamos praticar alguns conceitos?
Questão 1
Um exame mais atual sobre o surgimento da ciência da arquitetura nos permite afirmar que:

Ela surgiu no mundo clássico greco-romano, pois o termo arquitetura é grego, então, não
A
haveria arquitetura em outros lugares do mundo.

B As ideias arquitetônicas só passaram a existir após a revolução agrícola.

As ideias arquitetônicas existem desde a aurora do homo sapiens, que buscou interagir
C
e alterar o espaço e o ambiente em função de sua sobrevivência.

A arquitetura é uma ciência contemporânea, e, por isso, não se aplica a outras fases da
D
história.
A arquitetura não pode ser pensada na antiguidade, são primórdios, sinais que lemos de
E
forma conceitual, pois não tem formação efetiva.

Parabéns! A alternativa C está correta.


Embora o termo arquitetura tenha surgido entre os gregos antigos, ele tão somente representa a ideia
de uma arte de construir. A arquitetura foi conhecida por praticamente todas as civilizações do mundo,
em suas expressões mais básicas até as mais complexas, variando suas técnicas, ideias e materiais. A
arquitetura esteve na base das primeiras iniciativas de sobrevivência humana, acompanhando nossa
necessidade de intervir no meio ambiente em que vivemos.

Questão 2
Podemos afirmar que um dos primeiros efeitos da revolução agrícola foi o surgimento

A da noção de abrigo.

B da noção de casa.

C da noção de templo e palácio.

D da noção de caverna.

E da noção de maravilhoso buscado pelas sociedades.

Parabéns! A alternativa B está correta.


Um dos efeitos diretos da revolução agrícola foi constatar a necessidade de se fixar junto às áreas de
produção, convertendo gradualmente a ideia do abrigo provisório na de uma habitação mais durável, a
casa.
2 - A arquitetura egípcia: poder e religião
Ao final deste módulo, você será capaz de identificar as principais
questões que permeiam a formação da arquitetura e suas expressões da
África antiga.

O nascimento das cidades


Arquitetura Urbana

A Tomada de Jericó, por Jean Fouquet (1475).

Um dos episódios mais famosos do Antigo Testamento é a batalha de Jericó, quando Josué (Livro de
Josué, 6, 1-27) e os israelitas cercaram a cidade de Jericó, ameaçando invadi-la se os cananeus não a
entregassem. Diante da recusa, Josué aguardou sete dias, até que ordenou que os sacerdotes tocassem as
trombetas uma última vez, e as muralhas da cidade desabaram.

O que se seguiu foi uma carnificina, na qual os israelitas assassinaram todos os habitantes da cidade, com
exceção de Raabe e sua família, que ajudaram a abrigar espiões de Josué na cidade.

atalha de Jericó
A imagem à esquerda apresenta uma representação medieval do incidente.

Em torno de três milênios depois, no século XIX, uma das paixões da


nascente ciência da Arqueologia era tentar comprovar que eventos
como o da batalha de Jericó teriam efetivamente ocorrido. Em 1868,
Charles Warren deixou a comunidade científica em polvorosa ao
identificar a localidade de Tell El Sultan (atualmente em território
palestino) como o sítio arqueológico onde estava localizada a antiga
Jericó bíblica.

Era não era só isso: vestígios de um muro derrubado pareciam tornar real tudo aquilo que a Bíblia dizia.
Como os métodos arqueológicos ainda eram muito precários, parecia que Warren conseguira trazer esse
episódio do mundo da fé para os círculos da ciência. Entre 1907 e 1909, Ernst Sellin e Carl Watzinger
realizaram novas escavações no lugar, e reforçaram todas as afirmações de Warren – e da Bíblia,
obviamente.

Foi nesse momento que a história de Jericó começou literalmente a desabar. Havia muros sucessivamente
construídos sobre outros caídos ou reparados, além de mudanças substanciais na planta da cidade. A
datação dos materiais achado no local indicava épocas bastante discordantes com o relato bíblico. As
conclusões de Kenyon provocaram um novo rebuliço, que dividiu definitivamente os pesquisadores de
Jericó.

Era simples: se houve realmente algum Josué, e, se em torno de 1400 AEC, ele levou seu exército até Jericó,
ele não precisaria tocar qualquer trombeta. A cidade estava em ruínas fazia séculos.
Fundações de uma residência desenterrada no Tel Sultão, em Jericó, situada na Cisjordânia, atual Palestina.

Ela fora atacada em diversos conflitos anteriores pelos egípcios e hicsos, mas não pelos israelitas. Por fim,
o lugar seguiu ininterruptamente habitado até ser arrasado em definitivo pela invasão babilônica que
ocorreu somente no século 6 AEC.

Trabalhos paradigmáticos como os de Kenyon demonstraram a capacidade da ciência em revelar novos


ângulos sobre temas antigos e controversos. No caso de Jericó, as descobertas foram mais além; ao
desencavarem as estruturas desse perímetro urbano, os arqueólogos foram descobrindo camadas cada vez
mais profundas, que conectavam as origens ao final do período Neolítico. Jericó seria, portanto, uma das
primeiras cidades do mundo, e poderia nos ensinar muito sobre como elas surgiram.

Ruínas de Çatal Huyuk, na Turquia (entre 7500 a.C. e 6400 a.C.).

Outras muitas cidades foram se juntando à lista das mais antigas, como Çatal Huyuk (Turquia), Damasco
(Síria), Banpo (China), Ur e Uruk (Iraque) e Al-Faium (Egito), algumas ainda existentes, outras não, mas que
nos ajudaram a saber mais como os primeiros seres humanos começaram a construir cidades – e como
isso teve um papel crucial para o desenvolvimento da arquitetura.

Os primeiros perímetros urbanos parecem ter surgido de forma espontânea, juntando casas, pontos de troca
e oficinas. Em alguns casos, a construção de uma muralha protetora parece ter definido o primeiro
perímetro urbano; contudo, o crescimento da comunidade forçava a expansão dos seus limites, envolvendo
sucessivas obras.
Modelo do assentamento neolítico de Catal Huyuk, no Museu da Pré-história, em Turíngia, na Alemanha.

Não havia também um modelo pré-definido, embora cidades como Jericó ou Banpo tivessem casas em
formato similar ao que conhecemos, em Çatal Huyuk, as moradias formavam blocos compactos, e a entrada
das casas eram feitas pelo teto. Por outro lado, praticamente todas essas sociedades construíram suas
edificações com o onipresente tijolo.

As cidades passaram a concentrar atividades diferentes do campo, expressando nitidamente a


especialização das funções. Se no início os agricultores e criadores tinham que fazer de tudo (plantar,
colher, domesticar, alimentar os animais, fabricar seus instrumentos, trocar produtos, defender-se etc.),
ficava evidente que seria inviável realizar e dominar tantos trabalhos em um ambiente social mais complexo.

Atenção!
A urbanização abrigava trabalhadores especializados, artesãos, comerciantes, soldados e dois grupos que
passariam a se destacar na história: os burocratas e os sacerdotes.

Monumentos públicos
Templo e palácio

Complexo de templos de Carnaque, no Egito (Entre 2000 a.C. e 1700 a.C.).

Quando olhamos para a Antiguidade oriental, notamos que algumas cidades foram crescendo ou se
formando em torno de duas grandes instituições: templo e palácio. Existem algumas teorias sobre como

essas duas importantes forças surgiram (CARDOSO, 1986), mas, aparentemente, elas já estariam presentes
nas sociedades antigas, em sua forma mais conceitual. Notemos novamente o caso dos indígenas
brasileiros; em muitos grupos, estão presentes duas figuras centrais, o cacique e o pajé.

O cacique representa a necessidade uma figura jurídica, política e militar – em geral, o cacique não
comandava a vida cotidiana, mas liderava o grupo em situações especiais, como conflitos com outras
tribos ou decidia se deveriam mudar o local da aldeia, por exemplo.
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O pajé representa a figura que a antropologia denominou de xamã, o especialista em artes mágicas,
que é responsável pelas crenças, pelas práticas de cura e pela relação com o mundo espiritual e pela
coesão cultural da comunidade.

Ambas as figuras contribuem para o funcionamento do grupo, constituindo-se ao longo da história como
personagens sociais relativamente distintos. A revolução agrícola e o processo de urbanização não
diminuíram sua importância, ao contrário; os líderes políticos transformaram-se na classe real, no grupo
burocrático responsável por administrar as finanças, a defesa, a distribuição de recursos e recolher
impostos (uma das novidades do mundo antigo) para sustentar todo esse aparato recente – além, claro, dos
próprios privilégios dessa classe dominante.

Ao mesmo tempo, a justificativa para a construção desse sistema vinha da intermediação religiosa
promovida pelos especialistas no sagrado, os sacerdotes, cuja função era manter a ligação com as
divindades e orientar as concepções ideológicas da sociedade.

Quanto mais as cidades cresciam, mais a influência desses grupos se


ampliava. Gradualmente, as cidades adquiriram um papel bastante
específico dentro da história: tornaram-se os centros de reprodução das
ideias e da cultura, capitalizando para si o papel de poder dentro de
uma região.
Essa transformação nas sociedades antigas mudou radicalmente o panorama da arquitetura. Os dois
grupos – sacerdotes e burocratas – precisavam materializar sua presença dentro das cidades. A expressão
definitiva dessa iniciativa foi o surgimento dos templos e palácios. Uma quantidade enorme de esforço,
ciência e recursos passaram a ser destinados para construção de edificações que representassem a religião
e o poder político. Isso fica evidente quando olhamos para o perfil das cidades antigas, nas quais os
templos, os palácios e as necrópoles (tumbas) têm grande destaque, e são as principais construções que
sobreviveram ao tempo.

Templo de Hatshepsut, na cidade de Luxor, no Egito.

O desenvolvimento dessas edificações forçou um salto qualitativo no desenvolvimento arquitetônico das


sociedades antigas, e se tornaria em nossa principal fonte de estudos, como veremos a seguir em algumas
das mais antigas civilizações afro-asiáticas.

Arquitetura egípcia e seus materiais


Contextualizando a arquitetura egípcia
Templo de Hatshepsut, na cidade de Luxor, no Egito.

A arquitetura antiga recebe maior destaque nas produções da civilização africana da antiguidade: o Egito. A
cultura egípcia foi uma poderosa influência dentro do continente africano e do mundo mediterrânico. O Egito
africano foi o epicentro de uma comunidade de saberes, para os qual milhares de viajantes gregos,
romanos, do oriente médio e talvez mesmo da Índia, convergiram na busca de aprendizado.

A historiografia demostra a necessidade de ressignificar nosso entendimento sobre a importância do Egito e


do Oriente em nossas vidas e história, e Margareth Bakos (2011), por exemplo, provou que ainda
incorporamos várias ideias e fantasias sobre o Egito em nosso imaginário.

Essa civilização foi uma das primeiras a se urbanizar, mas mantendo uma ligação profunda com suas raízes
do neolítico.

O rio Nilo nas proximidades da cidade de Luxor, no Egito.

Não é exagero dizer que os egípcios construíram sua cultura aprendendo a se harmonizar com o ritmo do
rio Nilo. Seguindo o padrão dos primeiros agricultores sedentários, os egípcios foram estabelecendo suas
comunidades ao longo do rio, e do ritmo de plantio e colheita, ciclo que era planejado com base nas cheias
regulares do rio.

A presença da religião na vida egípcia era o grande catalisador das técnicas e tradições. A arquitetura, assim
como os outros domínios da arte, era fundamentalmente hierática, ou seja, expressava cenas e imagens do
sagrado, e possuíam funções rituais e espirituais. As edificações egípcias evidenciariam essa relação,
conjugando o longo processo de adaptação ao ambiente com motivos e funções sagradas.

Materiais e casas populares


Os assentamentos neolíticos no Egito mostram como se descobriram os mecanismos adaptativos
necessários à convivência harmoniosa com o rio Nilo. Com muita água, argila, pedra e vegetação pantanosa,
mas carente de madeira, os egípcios logo evoluíram da taipa e do pau-a-pique para as moradas de tijolos. O
adobe era a forma mais comum do bloco de argila, misturado com palha, água e seco ao sol. A argamassa
era feita com variações na mistura da argila, usada como cimento e reboco.

Em forma de quadrado, as casas dispunham de paredes com janelas, porta e teto com armação de madeira,
que formavam uma espécie de laje retilínea. Como as chuvas eram escassas, não havia necessidade de
fazer tetos inclinados para escoá-las. As casas maiores podiam dispor de jardins, piscinas e peristilos, que
projetavam sombra e ajudavam a refrescar o interior do ambiente.

As variações climáticas fizeram com que as primeiras cidades fossem um amontoado de casas, com vielas
estreitas de terra batida, no qual os prédios faziam sombra uns aos outros, e canalizavam possíveis influxos
de vento.

Reconstituição de moradias características do neolítico.

Curiosidade
Graças à textura e à composição, o tijolo de adobe auxiliava a controlar a temperatura interna.

Espaços de poder
Templos, palácios e obeliscos
O tijolo tornou-se peça tão importante na vida dos egípcios que A. J. Spencer (1979) dedicou um livro inteiro
à forma como esse pequeno bloco de argila estava presente em praticamente todas as estruturas e
monumentos dessa civilização, sendo usado nos arranjos mais diversos possíveis.

Em torno do terceiro milênio AEC – mais ou menos três milênios após os primeiros assentamentos
neolíticos –, uma nova fase de grandes construções começou a materializar as instituições templárias e
palacianas, ricamente decorados com pinturas e inscrições hieroglíficas. O surgimento dessas edificações
parece coincidir com o processo de unificação política do reino, o que permitiu a concentração de recursos
e o planejamento de obras em patamares nunca vistos.
Colunas do hipostilo do templo de Amun, no norte do Sudão.

Os complexos dos templos e palácios consumiram milhares de tijolos, usando as técnicas já consagradas,
mas com dimensões maiores que exigiram soluções mais ousadas. Blocos e colunas de pedra (arenito ou
calcáreo) foram esculpidos por meio de quebra por vibração, choques térmicos e lixa de areia para dar
suporte ao teto altos, algumas vezes com mais de vinte metros.

O hipostilo, a sala com teto sustentado por colunas, é justamente uma invenção egípcia, mas que se tornaria
famosa pelas mãos dos arquitetos greco-romanos.

Soluções como essas foram encontradas por funcionários e membros da elite que se especializaram em
questões de arquitetura e engenharia, e alguns desses conhecimentos estão disseminados em papiros,
pinturas e murais que nos explicam como os egípcios realizavam seus empreendimentos.

Vale ressaltar que as edificações egípcias eram decoradas com pinturas


coloridas, mas somente as dos compartimentos interiores
sobreviveram; do lado de fora, a ação do clima e da luz solar acabaram
com a cromagem, criando o perfil (não original) que hoje observamos
de “pedra nua”.

Os templos e os palácios formavam construções à parte, com estruturas muradas, em torno dos quais as
cidades foram se formando. É possível que algumas dessas construções fossem planejadas de forma
isolada, e as habitações populares foram se estabelecendo a redor dela depois, mas essa afirmação não é
precisa. Muitas edificações foram feitas junto a assentamentos já existentes, e é possível ainda que uma
formação urbana tenha se originado espontaneamente, de forma concomitante à construção de um templo
ou palácio.

Como afirmamos antes, o Egito não conheceu um largo uso da mão de obra escrava, e as obras públicas
eram feitas pela convocação de trabalhadores livres. Já que todas as terras pertenciam ao faraó, quando

necessário, ele podia convocar um membro de cada família para trabalhar metade de um ano em uma
dessas obras (corveia real).
Ruína da vila dos operários, no oeste da cidade de Tebas, no Egito.

Eles recebiam alimentação, moradia, e foi relatado que, diante de condições de trabalho aviltantes, podiam
realizar greves. No geral, contudo, parecia que o sentimento era de estar participando de uma grande obra
nacional, o que entusiasmava muitos trabalhadores. A maioria voltava para suas terras, mas outros optavam
por ficar nas instalações planejadas para as obras, formando novas comunidades.

Uma outra prova da conexão profunda do Egito com suas raízes ancestrais foi a construção de gigantescos
obeliscos, colunas monumentais de pedra, contendo inscrições e imagens religiosas, muito relacionados
aos megálitos. Os obeliscos são uma forma aprimorada esculpir diretamente em pedra e de grandes
dimensões.

A peça era projetada para corte diretamente na pedreira, transportada até seu lugar de instalação por meio
de esquis que deslizavam sobre areia levemente molhada, e instalada por meio de um fosso, onde o
obelisco era posicionado e depositado com ajuda de cordas – há um debate, ainda não resolvido, se os
egípcios conheciam ou não roldanas.

Obelisco do complexo de templos de Karnak, em Luxor, no Egito.

Espaços funerários
Mastabas, hipogeus e pirâmides
Contudo, se há um domínio no qual os egípcios ficaram famosos foi por sua arquitetura funerária,
manifestada pelo grande número de tumbas magníficas, que são nossa principal fonte de informações
sobre essa civilização. Conforme suas tradições religiosas, os defuntos mais importantes eram
mumificados. Em suas câmaras mortuárias eram depositados milhares de objetos usados em vida, como
móveis, livros, tesouros, entre outros.

Muito antes das pirâmides, os egípcios começaram (e continuaram por milênios) a depositar seus mortos
em dois tipos de tumbas: as mastabas e os hipogeus.

Mastaba de Shepseskaf, antiga tumba egípcia localizada na área do sul de Sakkara (cerca de 2500 a.C.).

Mastabas
A mastaba era uma construção de tijolos, retangular ou quadrangular, sem janelas e com uma entrada
principal, que era edificada sobre o fosso onde o corpo fora guardado ou enterrado. Algumas vezes, o
fosso era simples, coberto com terra batida e continha um acesso ao sarcófago. A construção da
mastaba marcava o lugar do enterramento, e buscava proteger o defunto da ação de ladrões. Era um tipo
de edificação geralmente feita para nobres, governantes, sacerdotes ou pessoas com alguma posse.

Tumba de Senenmut, na necrópolis da cidade de Tebas, no Egito.

Hipogeus
Os hipogeus consistiam em grutas escavadas na rocha, podendo ter uma ou mais câmaras, e sua entrada
recebia um pórtico. Foram igualmente desenvolvidas para atender às classes superiores e, por vezes,

formavam verdadeiras necrópoles (quando várias tumbas e sarcófagos eram depositados próximos uns
aos outros, ou aproveitando o espaço de uma câmara já aberta).

Até aquele momento, as técnicas e materiais já eram bem conhecidas entre os arquitetos egípcios, e não
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representavam grandes dificuldades. Em torno do século 27 AEC, um dos primeiros pensadores conhecidos
da arquitetura mundial, Imotepe (Inhotep), resolveu empreender uma nova concepção de tumba para o faraó
Djoser, dando origem à primeira pirâmide conhecida, Sacara. Projetou uma mastaba e depois acrescentou
mais cinco novos pavimentos, igualmente de alvenaria, formando uma estrutura em degrau.

Para aumentar a durabilidade, ele escolheu fazer a pirâmide com tijolos de pedra calcárea, mas usando a
argamassa de argila tradicional. Com o aumento das dimensões da edificação, foi possível criar um labirinto
de câmaras internas, dificultando o acesso ao cômodo mortuário de Djoser, onde ficavam seu corpo e
tesouros. Essa câmara interna era sustentada por grandes blocos de granito, e ajudavam a sustentar os
novos pavimentos que foram adicionados.

A primeira pirâmide egípcia, do faraó Djoser. (cerca de 2670 a.C.).

Para esculpir e transportar blocos e tijolos de rocha, foram usadas as mesmas técnicas anteriores: a quebra
por vibração, com inserção de cravos de metal em fissuras na rocha e o choque de temperatura, com
aquecimento e rápido resfriamento, causando quebras na estrutura da rocha; e os blocos eram
transportados em esquis, que deslizavam com facilidade pela areia úmida, ou com a ajuda de troncos,
fazendo o rolamento das peças por uma pista pavimentada.

O desenho revolucionário e arrojado de Imotep inspirou os arquitetos seguintes, que passaram a concorrer
para criarem projetos mais impressionantes. Contudo, isso não significa que todos foram bem-sucedidos.
Uma das revelações mais instigantes da arqueologia é ver as pirâmides que deram errado. A pirâmide de
Sekhemkhet, por exemplo, desabou antes de ficar completa.

A pirâmide de Sekhemkhet, completamente arruinada.


A pirâmide de Meidum.

Pirâmide Curvada do Faraó Sneferu, em Dahshur, no Egito (entre 2613 a.C. e 2589 a.C.).

A pirâmide de Meidum iniciou uma transição entre a pirâmide de degraus e uma pirâmide de formas lisas,
com um revestimento de calcáreo que deveria preencher os ângulos dos degraus, mas algumas partes
acabaram desmoronando. Em Dahshur, uma pirâmide similar também ruiu e desistiram de reformá-la.

No mesmo lugar, outra pirâmide próxima mostra os primeiros ensaios em direção a uma edificação maior e
de ângulos novos, em direção ao cume em forma de ponta.

Esses projetos mostram ensaios sucessivos e o desenvolvimento de


técnicas mais aprimoradas para atingir finalmente o projeto das três
maiores pirâmides conhecidas, Queops, Quefren e Miquerinos,
realizado em torno de 2300 AEC. Elas são, antes de tudo, exceções, e
não a regra. É possível que suas dimensões colossais tenham tragado os
recursos do reino, causando desequilíbrio econômico e social.

video_library
O nascimento das cidades
Assista agora a um vídeo em que é discutido o fantástico processo da criação das cidades e como esse é
capaz de promover uma transformação na perspectiva sobre a arquitetura.
Falta pouco para atingir seus objetivos.
Vamos praticar alguns conceitos?
Questão 1
Em relação aos materiais usados para construção no Egito, podemos afirmar que:

A Destaca-se a abundância de madeiras, disponíveis nas florestas do baixo Egito.

Adaptados ao meio ambiente, os egípcios usavam argila, vegetação do Nilo e, em


B
grandes obras, rochas.

Os egípcios destacaram-se por usar pedras e cimento, e desprezaram o uso de


C
materiais locais como argila.

Cabanas de madeira conviviam em perfeita harmonia com casas de barro, graças à


D
disponibilidade de ambos no delta do Nilo.

A construção de templos feitos de forma inexplicável marca o que conhecemos de


E
arquitetura egípcia.

Parabéns! A alternativa B está correta.


A desenvolvimento da arquitetura envolve a exploração e o desenvolvimento dos recursos naturais
disponíveis na região em que intervém. No caso do Egito, uma civilização que buscava estar em
harmonia com o rio Nilo, o uso da argila, do junco, da pedra e areia foram exaustivamente investigados

e testados. Madeira e outros tipos de rocha precisavam ser importados e, por isso, tinham uso mais
restrito.
Questão 2
As pirâmides são muitas vezes elencadas como a maior realização dos egípcios. O seu processo de
desenvolvimento pode ser caracterizado como:

Um demorado e sucessivo conjunto de experiências, adquiridas ao longo dos séculos


A
em vários projetos desenvolvidos a partir das mastabas.

Um surto de desenvolvimento científico sem razões conhecidas, a partir de


B
conhecimentos que não tinham paralelo.

C O uso de tecnologia importadas de outras civilizações, não sendo originais.

As pirâmides já existiam desde antes do Neolítico, e o modelo já era bem conhecido,


D
sendo apenas desenvolvido pelos Egípcios, a partir de hipogeus.

As experiências arquitetônicas repetiam a natureza, olhando o céu, imitando os efeitos


E
da natureza.

Parabéns! A alternativa A está correta.


As pirâmides não são os únicos monumentos magníficos do Egito, mas sempre foram objeto de
controvérsia e discussão por parte de especialistas e de pessoas fascinadas por essa cultura. A
desinformação sobre a trajetória histórica do Egito contribuiu para a criação de muito equívocos, e seus
monumentos têm sido analisados de maneira incompleta e superficial. Os egípcios souberam conjugar
técnicas e experiências de milênios para elaborar os projetos piramidais – não sem acidentes, como
vimos.
3 - Rumo ao oriente: a experiência
arquitetônica da Índia e da China antigas
Ao final deste módulo, você será capaz de comparar o desenvolvimento da
arquitetura na Índia e na China antigas.

História da Índia antiga pela perspectiva


arquitetônica
Contextualizado a Índia antiga
Em 1857, os engenheiros do império inglês estavam construindo uma estrada de ferro no noroeste da Índia
(atual Paquistão), entre as cidades de Lahore e Multan. Um dos técnicos notou que os operários estavam
assentando os trilhos com ajuda de tijolos de excelente qualidade, e ficou curioso de saber de onde eles
estavam tirando tantos blocos. Os trabalhadores indicaram um pequeno morro próximo, de onde foram
extrair terra, mas acabaram achando um enorme muro que demoliram para aproveitar os tijolos. Quanto
mais escavavam o morro, mais ruínas achavam, com um suprimento inesgotável de tijolos. Para o espanto
dos olhares da atualidade, os engenheiros consideraram o achado providencial, e ordenaram que os
operários continuassem com sua ideia de usar tijolos daquelas antigas estruturas para completar o
assentamento da ferrovia.
Muros da antiga cidade de Harappa.

Uma das cidades mais antigas do mundo, Harappa, acabara de ser encontrada e vandalizada; e somente em
1922 ela receberia uma visita arqueológica científica, disposta a decifrar que estranhas construções eram
aquelas.

Aproximadamente vinte anos depois, uma cidade praticamente igual, chamada de Mohenjo Daro, foi
descoberta a 670km de distância de Harappa, revelando a existência de uma sociedade mais complexa e
extensa. Na sequência, outras cidades foram brotando do chão, e formariam o que seria conhecido como
Civilização do Vale do Indo.

Mapa do rio Indo e das principais cidades da Civilização do Vale do Indo ao longo de seu traçado.

A descoberta dessa civilização reescreveria a história da Índia e do Paquistão, jogando sua cronologia para
o passado mais remoto. Contemporânea do Egito e dos sumérios, a cultura harappeana remonta ao quarto
milênio AEC, revelando uma civilização avançada que incorporou experiências herdadas desde o Neolítico.

Michael Wood (2007) mostrou como as mais recentes descobertas conectam os indianos genética e
culturalmente aos mais antigos ancestrais humanos, tornando as cidades do Indo um objeto crucial para
compreender o fenômeno da urbanização.

Isso poderia explicar algumas marcas comuns às culturas do Oriente


Médio, como o uso maciço de tijolos, mas as cidades do Indo
apresentam aspectos singulares em sua construção. Em primeiro lugar,
ainda não ficou claro se elas possuíam estruturas análogas ao templo e

ao palácio, o que dificulta a compreensão dos padrões religiosos e


políticos da cidade
políticos da cidade.

Uma das cidades mais antigas do mundo, Harappa, acabara de ser encontrada e vandalizada; e somente em
1922 ela receberia uma visita arqueológica científica, disposta a decifrar que estranhas construções eram
aquelas.

Aproximadamente vinte anos depois, uma cidade praticamente igual, chamada de Mohenjo Daro, foi
descoberta a 670 km de distância de Harappa, revelando a existência de uma sociedade mais complexa e
extensa. Na sequência, outras cidades foram brotando do chão, e formariam o que seria conhecido como
Civilização do Vale do Indo.

Uma série de pequenos selos de barro foi encontrado nessas cidades, sugerindo a existência de divindades
que seriam o embrião do sanatana dharma (hinduísmo), mas pouco sabemos sobre seus possíveis ritos e
crenças. Há quem sugira que eram sociedades igualitárias, com pouca diferenciação social, e que os
personagens que exerciam os papéis políticos e religiosos poderiam ser pessoas comuns.

Eles já haviam desenvolvido uma escrita e concebido sistemas de pesos e metragens padronizados, mas
era na arquitetura que elas mostrariam seu potencial criativo.

Selo encontrado em Mohenjo-Daro.

Cidade Indo
Cidades planejadas
Plano aéreo da cidade de Mohenjo-Daro.

As cidades do Indo eram planejadas, contando com traçado retilíneo, distribuição uniforme de construções
e sistema de encanamento para água e esgoto. As avenidas e os quarteirões tinham tamanhos uniformes e
as casas já apresentavam separação de cômodos. Além de espaços próprios para cozinhar e dormir, a laje
da casa era aproveitada como área de trabalho e lazer, com coberturas de tecido ou madeira que criavam
sombra.

Havia enormes piscinas públicas e privadas ligadas ao esgoto que resolviam o fundamental problema de
higiene pública das cidades.

Tudo isso foi construído com vários tipos de alvenarias de tijolos e pedras, que uniformizavam o aspecto do
espaço público.

Sítio arqueológico de Mohenjo-Daro.

Os domicílios particulares eram muito semelhantes entre si, nivelados em construções de dois ou três
andares, e não se encontrou uma estrutura palaciana ou templária mais elaborada. Havia espaços
destinados aos silos e aos mercados, e vestígios encontrados nas cidades testemunham um comércio ativo
com a Mesopotâmia.

Em Harappa, há uma cidadela (Stupa), instalada em uma colina central, que mostra que seus habitantes
eram capazes de construir grandes edificações.

As funções desse prédio são objeto de debate: ele poderia atender a necessidade de um espaço político-
religioso (ou seja, não teríamos um templo e um palácio, mas uma construção única para isso), uma torre de
defesa ou uma habitação para um grupo privilegiado da sociedade (o que mostraria que, de um jeito ou de
outro, havia diferenças de classe dentro dessa sociedade).
Estrutura da piscina pública de Mohenjo-Daro; ao fundo, a cidadela (Stupa) no plano superior da cidade.

A cidadela destoa ligeiramente do plano geral da cidade por apresentar um grande dólmen ou cúpula sobre
uma estrutura de tijolos, o que torna mais complicado definir seu papel.

Por fim, os habitantes do Indo cercavam suas cidades com muros de alvenaria de tijolos, que podiam servir
tanto para evitar inimigos quanto inundações do rio Indo.

A capacidade de planejamento estrutural, que envolvia o traçado


retilíneo em grade e a uniformização de padrões de materiais entre as
cidades, revelam uma capacidade avançada de interferir no espaço,
adaptando-o com a exploração adequada de recursos ambientais e o
desenvolvimento de plantas sofisticadas.

Ademais, essas teorias, métodos e planos eram comuns aos perímetros urbanos, mostrando uma cultura
geral e um provável corpo de especialistas capacitados a desenvolverem essas obras.

A mudança dos cursos d’água do Indo, o assoreamento e a desertificação de certas áreas fizeram com que,
ao longo do século 20 e 19 AEC, essas cidades fossem gradualmente abandonadas, com a migração das
populações em direção ao sul do subcontinente indiano. Lá, eles encontrariam um outro ambiente, repleto
de recursos diferentes, que levariam a novas transformações no pensamento arquitetônico indiano.

História da China antiga pela perspectiva


arquitetônica
Contextualizando a China antiga
Torre noroeste da Cidade Proibida, em Beijing, na China.

A civilização chinesa é uma das poucas no mundo a continuar seu desenvolvimento histórico e cultural
desde os primórdios do Neolítico. Unidos por traços poderosos, como a escrita e a ritualidade. A China
incorporou continuamente diversos elementos da antiguidade em seu conjunto de ideias e tradições. Por
essa razão, no dia a dia, é difícil para os próprios chineses precisar o que é recente e o que é milenar.

Grande parte dos maiores monumentos chineses era bastante recente na história, embora soubéssemos
que desde a antiguidade eles eram capazes de produzir esse tipo de obra. O que ocorrera com as artes e o
patrimônio histórico chinês?

Em função da farta oferta de materiais perecíveis como a madeira e a


argila, um relativo desprendimento da ideia de eternizar monumentos
e a formação de assentamentos populacionais contínuos sobre sítios
históricos, os chineses transferiram o problema de como conservar as
edificações para como preservar os métodos, técnicas e estilos
arquitetônicos.

Isso teve um impacto profundo na arquitetura chinesa: diferentemente das controvérsias que envolveram a
edificação das pirâmides egípcias, por exemplo, os chineses elaboraram e transmitiram seus métodos de
construção desde a antiguidade remota. Ao longo de sucessivos trabalhos históricos, eles conseguiram
transmitir os principais conteúdos e teorias de suas ciências arquitetônicas.

Dois elementos fundamentais contribuíram para fortalecer essa tradição arquitetônica: a cultura da cópia e
a produção em massa. Para os chineses, copiar plantas, técnicas, obras de arte ou modelos de edificação
não era um problema, mas era considerado um meio eficaz de preservar e reproduzir a originalidade de uma
determinada ideia ou elaboração artística. O ato de copiar também era usado como forma de treino, na arte
chinesa, para o desenvolvimento de habilidades de percepção e execução.
Vasos da dinastia Qing, no Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Quanto à produção em massa, ela parece ter sido descoberta pelos chineses em torno do século 17 ou 16
AEC e aplicada em vários setores produtivos. Eles conceberam a produção a partir de moldes, que foram
empregados na produção de utensílios domésticos, vasos, armas, estátuas, entre muitos outros objetos.

A capacidade de produzir materiais e instrumentos em larga escala impulsionou a expansão do fenômeno


de urbanização na China antiga, permitindo o surgimento de milhares de cidades.

Revoluções e materiais
Traços Neolíticos
As primeiras comunidades agrícolas procuraram se estabelecer próximas a cursos d’água. No caso da
China, isso era ainda mais importante, pois a principal cultura, do arroz, exigia terrenos constantemente
encharcados. As primeiras aldeias a surgirem foram se estabelecendo ao longo do rio Amarelo, onde um
terreno chamado Loesse favorecia tremendamente o empreendimento. Extremamente fértil, e com uma
consistência peculiar, o Loesse permitia ser trabalhado de várias formas diferentes.

Por essa razão, os habitantes locais preferiram escavar o terreno e construir cavernas artificiais, imitando a
mais antiga forma de abrigo conhecida. Essas cavernas-casas, porém, eram muito diferentes, contando com
espaço planejado e, eventualmente, com pátios, cômodos e janelas de frente.

Yaodong, habitação escada em cavernas, em Shaanxi, na China.

Curiosamente, no mesmo vale da região de Shaanxi, encontramos a vila de Banpo, datada do sétimo milênio
AEC, que revela uma outra direção totalmente diferente. Eram igualmente agricultores, mas investiram na
construção de cabanas de palha, madeira ou taipa dentro de um perímetro em forma circular.

No centro da vila, uma edificação mais ampla e alta parecia ter uma função ritual e política comunitária. A
sustentação desse prédio maior era feita por traves de madeira internas, enquanto as casas menores
podiam combinar estruturas de madeira com armações de bambu.

Estrutura de arquitetura tradicional chinesa, na província de Fujian, sudeste da China.

O bambu merece uma nota especial dentro das tecnologias chinesas. Ele serve até hoje para construir
andaimes, armações de teto, canos de água, móveis e o descarte desse material era usado na produção de
combustível; talhado, podia ser usado em utensílios, ferramentas, e sua fibra podia ser usada para fazer
cestos, roupas e calçados. Em Banpo, também eram usadas ferramentas de osso e pedra, e havia uma
avançada cultura ceramista, que produzia potes de vários tipos diferentes, cada um com funções
específicas.

Dois sistemas de construção tão distintos mostram que vários grupos


humanos convergiam para o Vale do Rio Amarelo, e interpretaram o
meio ambiente com perspectivas e experiências igualmente diferentes.
No entanto, esses movimentos estimularam o encontro e a síntese de
aprendizados, constituindo o cerne do que seria a civilização chinesa.

A primeira unidade cultural chinesa parece ter surgido sob a égide da dinastia Xia (2070-1600 AEC), sobre a
qual ainda sabemos muito pouco. Sua sucessora, a dinastia Shang (1600-1027 AEC), ficou melhor
conhecida graças a uma série de tumbas e ruínas escavadas, que revelaram substanciais informações
sobre o período.

Dinastia Shang

A arquitetura Shang
Templo de Dakaiyuan, em Xingtai, uma das muitas capitais da Dinastia Shang (entre 1600 a.C. e 1046 a.C.).

As tumbas Shang constituíam de grandes fossos ou cavernas, escavados na terra ou na rocha, que
formavam estruturas simples, mas recheados de objetos que acompanharam o enterrado ao longo de sua
vida. Seus animais preferidos, e alguns de seus familiares e servos, eram ritualmente sacrificados, e iam
junto para o mundo espiritual.

Os Shang parecem ter formado um conjunto de crenças politeístas,


inspiradas nas forças da natureza, que foram desenvolvidas
diretamente do antigo xamanismo. As crenças em um mundo
espiritual não fizeram, porém, com que os Shang tivessem uma nítida
preocupação com edificações religiosas, como no Egito ou
Mesopotâmia. Suas tumbas se aproximavam do modelo das mastabas e
hipogeus, mas não foram construídos grandes templos.

Vivendo um sistema de realeza palaciana, em que as cidades tinham uma relativa autonomia (acatando a
liderança de um rei comum, o Wang), e governadas por uma elite ativa e opulenta, a construção das casas e
palácios acompanhou a projeção do poder político sobre a sociedade, incorporando grande parte das
experiências acumuladas ao longo da história.

Durante o período Shang, observamos um desenvolvimento significativo das estruturas prediais. As casas
comuns possuíam, em geral, um chão e paredes de terra batida (eventualmente de pau-a-pique), e tetos de
palha ou madeira sustentados por armações igualmente de madeira ou bambu.
Palácio em Anyang, na província de Honã, na China.

Quanto às edificações mais complexas, em Anyang, a capital dinástica, encontramos um grande prédio
estruturado por traves e colunas de madeira esculpida e modelada, que parece ter servido de palácio para os
governantes. O teto era duplicado, com um vão entre eles, para entrada de luz e ar. A estrutura retilínea era o
padrão das construções, e se tornaria o modelo básico da civilização chinesa.

Esse palácio era fechado e dispunha de várias portas e janelas, mas casas com pátios internos iriam surgir
em breve.

As cidades parecem ter sido elaboradas com algum tipo de planejamento. Podemos notar, pelos
assentamentos, que os chineses já estavam delineando os princípios básicos da sua ciência de paisagismo
e arquitetura, conhecida como Feng Shui [água e vento].

Inicialmente, esse conjunto de teorias parecia não estar ligado a concepções místicas, mas às experiências
práticas, como não residir muito próximo à água, não se instalar em barrancos instáveis, observar o ciclo do
sol para aproveitar a luminosidade, definir culturas vegetais que influenciassem a consistência do solo etc. A
adição de ideias mágicas parece ter vindo com o tempo, cumprindo o papel das dimensões religiosas da
cultura.

Diagrama dos encaixes em madeira e modelos de estruturas.


Diagrama dos encaixes em madeira e modelos de estruturas.

Diagrama dos encaixes em madeira e modelos de estruturas.

Diagrama dos encaixes em madeira e modelos de estruturas. Esses


desenhos estão presentes no livro Yingzao fashi ou Tratado sobre
métodos arquitetônicos. O livro foi escrito no período Song (1100 EC) mais
de três mil anos depois da dinastia Shang.

Os muros, que eram feitos de terra batida ou pedras empilhadas, começaram também a ser construídos
com tijolos de argila cozida e blocos de pedra, colados com a argamassa de arroz pegajoso que, como
comentamos, ainda hoje é considerado um excelente cimento. As conhecidas técnicas de produção em
massa contribuíram para popularizar as telhas e os tijolos, que se disseminaram em todas as edificações,
ensejando o surgimento de torres e pavimentos.
Guerreiros de terracota depositados na tumba do imperador Qinshi Huangdi.

Embora esteja fora de nosso escopo, vale comentar a tumba do imperador Qinshi Huangdi (que governou
entre 221-206 AEC), e que consubstanciava exatamente todo esse conjunto de experiências. Sua tumba, em
forma de palácio (combinando estruturas de tijolo com vigas de madeira e teto de telhas), foi enterrada sob
um monturo de terra até transformar-se em uma colina. Dentro dela, milhares de figuras de terracota foram
colocadas para acompanhar o soberano na vida espiritual.

Ali estavam todos os elementos da arquitetura tradicional chinesa, desenvolvidos mais de um milênio antes,
envolvendo a produção em massa, a cópia, o uso de designs consagrados e atendendo às necessidades
políticas e religiosas de seu tempo. Esse monumento é um dos recursos que podemos utilizar para observar
a continuidade das tradições chinesas no campo arquitetônico.

Guerreiros de terracota.

video_library
Exemplificando a arquitetura antiga oriental
Assista agora a um vídeo em que são apresentadas as técnicas e os aspectos mais marcantes da
arquitetura indiana antiga.
Falta pouco para atingir seus objetivos
Falta pouco para atingir seus objetivos.
Vamos praticar alguns conceitos?
Questão 1
Uma das dificuldades para identificar os templos e os palácios nas cidades indianas é

A presença de claras estruturas com fins religiosos e políticos.

B presença de templos, mas não de palácios.

C presença de palácios, mas não de templos.

D ausência de estruturas claramente voltadas para fins religiosos e políticos.

E ausência de estruturas para banhos rituais.

Parabéns! A alternativa D está correta.


Com certeza, as sociedades do vale do Indo tinham suas práticas religiosas, e algum tipo de
organização política que hoje conhecemos pouco. A questão é que a ausência de estruturas claramente
voltadas para ritos e/ou administração torna difícil classificar e entender como funcionaria essa
civilização, fazendo-nos supor que tais atividades (política e religião) estariam disseminadas ou diluídas
na comunidade, como ocorre ainda em muitas sociedades indígenas. Nesse caso, a análise da
arquitetura é fundamental para compreender o pensamento das sociedade do vale do Indo.

Questão 2
Marcada por forte influência das técnicas desenvolvidas pelas comunidades no neolítico, podemos
afirmar que a arquitetura Shang

A é marcada pelo uso de madeira e barro.


B é marcada pelo vasto uso de pedra e junco.

C não é uma sociedade nascida próxima aos rios, isso não tem influência.

D dedicou-se a construções piramidais grandiosas como Egito e Mesopotâmia.

é constituída por técnicas de uso dos metais de maneira a mostrar sua superioridade
E
técnica.

Parabéns! A alternativa A está correta.


Os Shang não chegaram a produzir grandes templos ou palácios como os egípcios, sumérios ou
babilônicos, e seus perímetros urbanos eram bem diferentes das construções indianas. As cidades
Shang têm uma relação direta com seu meio e com suas tradições arquitetônicas anteriores,
construindo linhas e projetos bastante singulares.

Considerações finais
Esperamos que você tenha aproveitado essa viagem pelo passado de África e Oriente. A lista de
monumentos que poderíamos examinar é enorme, e não caberia aqui; buscamos focar nas ideias
essenciais, nos princípios que guiaram nossos ancestrais para encontrar soluções de bem viver.

Como vimos, os caminhos foram difíceis, mas a criatividade humana muitas vezes é subestimada. Os
antigos foram os criadores de grande parte das ideias, teorias e métodos que conhecemos hoje. Muitas das
linhas e concepções de intervenção do espaço nasceram ali, fosse por motivos práticos ou religiosos.
Vimos também a importância de reconhecer a ação de nossa inteligência na criação da Arquitetura,
escapando de explicações estranhas ou equivocadas.

Por isso, nosso objetivo fundamental foi tentar apresentar os caminhos do pensar arquitetônico em suas
origens, e oferecer os meios para que possamos explorá-los melhor. Nossas raízes, de uma forma ou de
outra, estão fincadas na África e no Oriente. Quando nos deslumbramos com a arte grega, por exemplo,
precisamos saber antes o quanto ela bebeu dos egípcios; ou se olhamos o muro de uma típica casa inglesa,
com seus tijolos multicolores, saudemos a sabedoria dos ancestrais sumérios.

No Brasil, encontraremos esses conhecimentos, seja pelas mãos criativas de nossos indígenas, seja pelos
migrantes que para cá vieram, trazendo os saberes africanos e orientais. Nosso país é resultado desse
mundividência, desse fértil encontro de culturas que reproduz heranças e memórias dos antepassados.

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Podcast
Agora, é hora de um bate-papo com um excelente resumo do conteúdo trabalhado.

Referências
BAKOS, M. Egiptomania: o Egito no Brasil. São Paulo: Contexto, 2011.

BRYSON, B. Em casa: Uma breve história da vida doméstica. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CARDOSO, C. F. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Ática, 1986.

CHILDE, V. G. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

CHING, F.; JARZOMBEK, M.; PRAKASH, V. História Global da Arquitetura. São Paulo: Bookman, 2019.

FAZIO, M.; MOFFETT, M.; WODENHOUSE, L. A história da arquitetura mundial. Porto Alegre: AMGH, 2011.

GLANCEY, J. A história da Arquitetura. São Paulo: Loyola, 2001.

GOWLETT, J. Arqueologia das primeiras culturas. São Paulo: Folio, 2007.

HARARI, Y. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre, L&PM, 2018.
KENOYER, J. Ancient Cities of the Indus Valley Civilization. Oxford: Oxford University Press, 1998.

KENYON, K. M. Digging up Jericho: the results of the Jericho excavations, 1952-1956. Nova York: Praeger,
1957.

MAZOYER, M.; ROUDART, L. História das Agriculturas. São Paulo: UNESP, 2010.

SPENCER, A. J. Brick Architecture in Ancient Egypt. Londres: Aris e Phillips, 1979.

WOOD, J.; GRAFMAN, J. ‘Human prefrontal cortex: processing and representational perspectives’. Nature
Neuroscience, 2003.

Explore +
Leia o livro de Francis Ching e outros autores, História Global da Arquitetura (2019), que traz uma
perspectiva comparada e cronologicamente organizada das produções arquitetônicas ao redor do mundo.

Para conhecer mais sobre as civilizações asiáticas na antiguidade, veja o sítio do Projeto Orientalismo. Lá
você encontrará fontes e bibliografias sobre a história da China, Índia e Antiguidade oriental.

A série Construindo um Império (The History Channel, 2005-2007) traz uma série de episódios que mostram
o desenvolvimento dos conhecimentos científicos, artísticos e arquitetônicos no mundo antigo, contando
com especiais sobre o Egito e sobre a China.

Procure no YouTube pelo vídeo Computer Generated City of Mohenjo daro, uma reconstituição animada da
cidade de Mohenjo-Daro, com suas estruturas, sua vida cotidiana e tecnologias.

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