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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Faculdade de Psicologia

Mauro Lúcio de Carvalho

A PSICOLOGIA NA FORMAÇAO SACERDOTAL:


do prescrito à prática.

BELO HORIZONTE
2018
Mauro Lúcio de Carvalho

A PSICOLOGIA NA FORMAÇAO SACERDOTAL:


do prescrito à prática.

Monografia apresentada ao Curso de Psicologia


da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Psicologia.

Orientadora: Dra. Maria Ignez Costa Moreira.

BELO HORIZONTE
2018
Mauro Lúcio de Carvalho

A PSICOLOGIA NA FORMAÇAO SACERDOTAL:


do prescrito à prática.

Monografia apresentada ao Curso de Psicologia


da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Psicologia.

_____________________________________________________
Dra. Maria Ignez Costa Moreira (Orientadora) – PUC- Minas

___________________________________________
Ms. Joana D`Arc Alves (Leitora) – PUC- Minas

Belo Horizonte, 11 de junho de 2018


AGRADECIMENTOS

À minha família, especialmente aos meus pais, Paulo Rodrigues e Nágila Rodrigues, in
memoriam.
À Arquidiocese de Mariana, na pessoa Dom Geraldo Lyrio Rocha, bispo Emérito da
primaz de Minas Gerais.
Às irmãs Escolápias, pela acolhida e amizade.
À Irmã Alice Malheiros, pela leitura e correção da monografia.
À tantas pessoas que motivaram e acompanharam essa aventura acadêmica: amigos,
parentes e companheiros de Ministério Sacerdotal.
Aos amigos e amigas Michelle Mello, Dayane Guedes, Tiago Costa, Luciana Castro,
Rayane Costa.
À Paróquia de São Sebastião em Ponte Nova, por compreender minhas ausências.
RESUMO

Os jovens que chegam ao seminário da Arquidiocese de Mariana, no interior de Minas


Gerais, trazem as incidências das conquistas e dos devaneios da cultura moderna. São
altruístas, mas pouco resilientes. Os novos arranjos familiares, características desses
tempos modernos, impactam a estruturação subjetiva dos seminaristas. Os conflitos
psíquicos se exacerbam, demandando às ciências psicológicas diversas interpelações.
Sabe-se, pela história, que a formação sacerdotal nunca foi um empreendimento fácil de
se realizar. É processo contínuo, pertinente e fundamental na Igreja Católica, que
prolonga as atitudes de Jesus Cristo, através do exercício do ministério Sacerdotal. É
nesse ínterim que a psicologia se apresenta à formação sacerdotal, visando corroborar
com o itinerário formativo presbiteral, acolhendo as demandas dos formandos e
formadores. Para compreender a parceria entre a psicologia e a formação sacerdotal,
realizou-se o presente trabalho, delineando as possíveis demandas da formação sacerdotal
à psicologia. No espaço terapêutico, os seminaristas se desvelam como seres de desejos,
confrontando o eu-atual com o eu-ideal-institucional, que será sempre a pessoa de Jesus
Cristo. Por isso, a pedagogia da formação sacerdotal, desenvolvida nessa monografia, a
partir do referencial teórico “Autotranscendência na Consistência”, propõe a
internalização dos valores autotranscendentes como meta formativa.

Palavras-chave: Formação sacerdotal; psicologia; demandas; valores autotranscendentes;


internalização.
ABSTRACT

The young people who come to the seminary of the Archdiocese of Mariana, in the
countryside of Minas Gerais, bring the incidences of the conquests and the reveries of
modern culture. They are altruistic but not very resilient. The new family arrangements,
a key feature of these modern times, impact the subjective structure of the seminarians.
The mental conflicts increases, demanding to the psychological sciences several
interpellations. History teaches that priestly formation has never been an easy
undertaking. It is an ongoing, relevant, and fundamental process in the Catholic Church
that extends the attitudes of Jesus Christ through the exercise of the ministerial priesthood.
It is in the meantime that psychology presents itself to the priestly formation, in order to
corroborate with the formative itinerary of the priest, welcoming the demands of the
trainees and trainers. To understand the partnership between psychology and priestly
formation, the present work was conceived, outlining the possible demands of priestly
formation to psychology. In the therapeutic space, the seminarians reveal themselves as
beings of desires, confronting the present self with the ideal-institutional self, which will
always be the person of Jesus Christ. For this reason, the pedagogy of priestly formation,
developed in this monograph, based on the theoretical reference "self-transcendence in
Consistency", proposes the internalization of self-transcendent values as a formative goal.

Keywords: Priestly formation; psychology; demands; self-transcendent values;


internalization.
LISTA DE ABREVIATURAS

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


DAp Documento de Aparecida
FIES Fundo de Financiamento Estudantil
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
PDV Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis.
Pro-Uni Programa Universidade para Todos
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 15

1 OS PRIMÓRDIOS DA HISTÓRIA DE MARIANA.................................................. 18

1.1 Os Bandeirantes .................................................................................................... 18


1.2 A contemporaneidade ........................................................................................... 21
1.3 Delimitando fronteiras e criando identidade ......................................................... 25
2. A TEORIA DA AUTOTRANSCENDÊNCIA NA CONSISTÊNCIA. .................... 32

2.1 Antropologia subjacente à teoria da Auto transcendência na Consistência .......... 33


2.2 O Eu-atual e o Eu-ideal ......................................................................................... 36
2.3 A internalização dos valores autotranscendentes .................................................. 38
2.3.1 A ambivalência e a pseudointernalização dos valores .................................. 43
3 A FORMAÇAO SACERDOTAL NA ARQUIDIOCESE DE MARIANA -MG....... 47

3.1 A formação sacerdotal .......................................................................................... 47


3.2 O Itinerário formativo do presbítero diocesano .................................................... 50
3.3 Os formadores ....................................................................................................... 55
4. AS DEMANDAS PSICOLÓGICAS DA FORMAÇÃO SACERDOTAL ................ 61

4.1. Os números do seminário de Mariana- MG......................................................... 62


4.2 Demandas psicologia ............................................................................................ 63
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 75

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 78

APÊNDICE .................................................................................................................... 80
15

1 INTRODUÇÃO

Quais as demandas e as expectativas que o processo formativo sacerdotal, na


Arquidiocese de Mariana-MG, dirige à Psicologia? Essa indagação motivou a construção
da presente monografia, cujo autor se prepara para trabalhar, com a escuta psicológica,
junto aos seminaristas da Arquidiocese primaz de Minas Gerais.

A presença das ciências psicológicas na educação dos futuros presbíteros, sua


inclusão neste processo formativo, é resultado do Concílio Vaticano II, (1962- 1965),
conclamado com o objetivo de renovar a Igreja na sua missão de dialogar com a
modernidade. É nesse clima de renovação que aparecem os estudiosos da formação
sacerdotal, no Brasil, na Europa e em outros continentes. Esses pesquisadores afirmam
que a psicologia pode colaborar com o processo formativo dos futuros padres. Como? É
o que se procurou investigar por meio desse trabalho monográfico.

Para a redação desse, adotou-se o referencial teórico da “Autotranscedência na


Consistência”, do italiano Luigi Rulla, psicólogo e psiquiatra, fundador do Instituto de
Psicologia da Universidade Gregoriana, Itália. Esse autor fundamentou a formação
sacerdotal na internalização dos valores autotranscendentes teocêntricos. Em sua teoria,
Rulla (1987) coaduna psicologia e teologia, além de propor uma antropologia
interdisciplinar, pensando o homem como um ser, ontologicamente, transcendental.

No primeiro capítulo, procurou-se descrever o contexto geopolítico e econômico


da Arquidiocese de Mariana- MG, solo fértil das vocações da Primaz de Minas Gerais.
Os jovens que procuram as casas de formação trazem, na história, os registros de uma
vida marcada pelo contexto rural, pela educação patriarcal, pela escassez de lazer e pela
pouca possibilidade de conseguir um emprego formal. Carregam uma religiosidade
popular, que perdura desde a descoberta do ouro, nas Minas Gerais. São jovens que
anseiam seguir o itinerário vocacional sacerdotal. Eles precisam superar as dificuldades
acadêmicas herdadas do ensino precário ou do impasse em conciliar o trabalho braçal e a
vida acadêmica.

A internalização dos valores, a dialética de base entre o Eu-atual e o Eu-ideal, a


compreensão antropológica fundamentada nos níveis psicofisiológico, psicossocial e
psicoespiritual, são os pressupostos desenvolvidos no segundo capítulo. A
16

intencionalidade deste capítulo é tornar conhecida, mesmo que parcialmente, a teoria da


“Autotranscedência na Consistência”, pois a mesma ainda é desconhecida no Brasil. É
uma teoria pertinente, sobretudo quando se pensa a formação sacerdotal como
configuração a Jesus Cristo. Para Rulla (1987); configurar-se ao Mestre é internalizar os
valores autotranscendentes, o que é possível no nível psicoespiritual. Esse nível é o que
difere o homem de todos os outros animais. O homem é único ser que pergunta pelo fim
último da existência.

O que é a formação sacerdotal, como se constitui e quais são as etapas do itinerário


formativo? Essas indagações estruturam o terceiro capítulo, permitindo ao leitor
familiarizar-se com a pedagogia da formação sacerdotal. Formar é configurar-se a Jesus
Cristo, assumir seu modus vivendi para o bem do Evangelho e do Povo de Deus. Essa
configuração acontece, de forma consciente e pedagógica, ao longo das etapas
formativas: Propedêutico, Filosofia e Teologia, que serão descritas no respectivo capítulo.
A possibilidade de se cultivar a vocação e exercitar o ministério sacerdotal é possível à
medida que o seminarista decide, livremente, internalizar os valores autotranscendentes,
como posto pela teoria da “Autotranscedência na Consistência”.

Redigiu-se o quarto capítulo, como o ápice da pesquisa empreendida. Neste serão


apresentados os momentos em que a psicologia pode participar no processo formativo.
Ela é demandada logo no início, no momento do ingresso no processo formativo
sacerdotal, quando se aplicam alguns testes psicológicos. O desenvolvimento do processo
psicoterápico dos seminaristas e dos formadores é outra possibilidade de contribuição da
psicologia. Além destas duas possibilidades, ela é também útil na elaboração do programa
formativo e nos trabalhos de grupos. A psicologia, dessa forma, entra como parceira no
processo formativo, favorecendo espaços de fala e de escuta, no viés do
autoconhecimento.

Os seminaristas trazem no corpo e no psiquismo as marcas da cultura pós-moderna


que os deixou menos resilientes, vulneráveis à ideologia consumista que promete prazer.
Sentem-se desamparados pela ausência da figura paterna e em conflitos com a própria
sexualidade. Gritam, silenciosamente, pedindo que os escutem. Querem fazer o bem, mas
desconhecem a necessidade de começarem por cuidar de si mesmos. Deste modo, buscou-
se averiguar a colaboração psicológica na educação sacerdotal, focando o seminário da
Arquidiocese de Mariana- MG. Para tal, estudou-se os documentos eclesiais que
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esclarecem os objetivos e as metas da formação, os espaços e as etapas formativas, bem


como os impasses inerentes a essa dinâmica. A outra estratégia metodológica foi a
realização de entrevistas semiestruturadas com alguns formadores do seminário focado
pela pesquisa.

Enfim, é neste contexto que a Psicologia se apresenta como parceira da Igreja no


processo formativo sacerdotal. Há muito trabalho a se fazer. A sociedade tem direito a
padres psiquicamente integrados, cônscios de suas fragilidades e potencialidades. Que
presidam as celebrações, os sacramentos e sacramentais, como as exéquias; que sejam
capazes de colaborar com a promoção da justiça e da paz, inseridos na vida das
comunidades, sendo reflexo da ternura de Deus.
18

1 OS PRIMÓRDIOS DA HISTÓRIA DE MARIANA

A história dos primórdios da cidade e da Arquidiocese de Mariana – MG é um


legado cultural para o Brasil e a Igreja. Conhecer essa realidade é fundamental para
compreender o que neste chão se firmou como resquício da colonização portuguesa: a
exploração dos índios, dos escravos e de outros trabalhadores, bem como a religiosidade
popular. Como sinal de resistência aos desmandos da Coroa e dos bandeirantes, surgiram
movimentos sociais que ainda ecoam nas terras mineiras, mesmo tendo transcorrido quase
três séculos. O que se tem atualmente em Mariana-MG e no Estado de Minas é
consequência da época farta do ouro. Percorrer as páginas dessa história é entender
quando e como tudo começou, as possíveis influências do ciclo do ouro na vida da
população que compõe esse torrão das Minas Gerais.

Olhar pelo retrovisor histórico da Arquidiocese mencionada, possibilita a


compreensão da dinâmica religiosa que marca essa região geográfica do Estado de Minas
Gerais. É do âmago dessa história que surgem as vocações sacerdotais que, após anos de
formação, retornam às comunidades para desempenharem a missão sacerdotal, como
ícone de Jesus Cristo. Os resquícios da história inicial estão impregnados na religiosidade
popular, na música e na arte, características ímpares dessa região, berço do barroco
brasileiro, situado na geografia da Arquidiocese de Mariana, a primaz de Minas Gerais.

1.1 Os Bandeirantes

A história de Mariana-MG, que em 1745 tornou-se a sede da primeira diocese de


Minas Gerais, se confunde com a história do ciclo do ouro. A descoberta desse metal
valioso atraiu para as montanhas de Minas os bandeirantes, os negros, os indígenas e os
portugueses. Os negros e os índios não vieram para as montanhas nas mesmas condições
dos portugueses e dos bandeirantes, os negros vieram na condição de escravos dos
portugueses e dos bandeirantes, e os índios eram os donos da terra, dizimados e expulsos
pelos colonizadores. Embrenhados nos sertões das gerais, atraídos pelo ouro, chegaram
ao arraial do Ribeirão do Carmo. A perspectiva de encontrar ouro nas terras mineiras
19

ocasionou o surgimento da vila Nossa Senhora do Carmo que, em 1745, passou a se


chamar Mariana, homenagem à esposa de Dom João V, a senhora Maria Ana d’Áustria.

A história de Mariana se inicia em 16 de julho de 1696 com Salvador


Furtado de Mendonça e sua Bandeira quando, às margens do Ribeirão
do Carmo, o padre Francisco Gonçalves Lopes celebra a primeira missa
em homenagem a Nossa Senhora do Carmo. (CAMÊLLO, 2016, p. 21).

Os bandeirantes saíram de São Paulo em busca das riquezas escondidas no solo


das Minas Gerais. Eram sedentos de ouro, mas pouco afeitos ao trabalho pesado das
minas, fato que acarretou o abandono das jazidas. Em razão desse descaso com as terras
auríferas surgiram os forasteiros, grupos interessados nas riquezas das jazidas, apelidados
de emboabas. Esses não tinham medo do trabalho pesado, além de contar com o trabalho
escravo dos africanos, detentores de uma larga experiência em mineração, atributos
favoráveis ao trabalho de exploração das minas de ouro.

De um lado, os bandeirantes preocupados com os títulos ou os privilégios da


Coroa. De outro, os emboabas, que trabalhavam duramente, objetivando bons resultados
na procura do ouro. Entre os dois grupos tão logo instaurou-se o conflito; um conflito de
classes que já havia vitimado muitas pessoas. Os primeiros vitimados foram os índios, os
verdadeiros proprietários das terras auríferas, que se contentavam com os frutos, a caça e
a pesca como modo de sobrevivência. Foram catequizados, domesticados e escravizados;
levados para as aldeias não como um meio de protegê-los, mas de contê-los e enfraquecê-
los em sua organização. Outros fugiram da escravidão, alojando-se nas vilas dos
arredores, feridos em sua tradição e em seus costumes.

O massacre dos povos indígenas teve a bênção da Igreja e de Deus. Mas que Deus?
Que Igreja? Do Deus do capital, do lucro, da ganância!? Da Igreja que se deixou alienar
devido as esmolas e os privilégios recebidos da Coroa portuguesa!? Se no passado a
Igreja não se posicionou a favor dos mais fracos, pressupõe-se que, atualmente, esse erro
não deverá se repetir. A luta dos primórdios tornou-se uma prefiguração do que é hoje a
luta de classe entre os latifundiários e os assalariados. As grandes empreiteiras e seus
“escravos” assalariados que trabalham em péssimas condições e cujos direitos trabalhistas
nem sempre são respeitados; aonde políticos em período eleitoral aproximam-se, roubam
a consciência dos seus eleitores com falas promessas, e desparecem depois de eleitos. De
certo modo, os moradores dessas redondezas continuam sendo saqueados e escravizados.
20

À época da luta entre bandeirantes e emboabas, a resistência deu sinais de força,


fazendo emergir o movimento dos forasteiros, reagindo contra o despotismo de Borba
Gato. Tal movimento fora liderado por Manuel Nunes Viana, que enviou a Portugal Frei
Francisco de Menezes para tratar das reivindicações desejadas pelos forasteiros. Para
dirimir os conflitos entre os bandeirantes e os emboabas, o bandeirante paulista Manuel
de Borba Gato assume as funções de “Provedor e Administrador das minas, exercendo
um poder despótico, extorquindo e humilhando.” (CAMÊLLO, 2016, p. 28).

O conflito entre emboabas e paulistas foi apaziguado através do novo governador


da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, o senhor Antônio Albuquerque, cujo governo
foi instalado no Arraial do Ribeirão do Carmo. Empenhado em resolver o impasse entre
emboabas e paulistas, o novo governador tratou de se encontrar com o líder dos
forasteiros, Manuel Nunes Viana. Os dois líderes se encontraram em Caeté-MG, numa
tentativa de consolidar a paz e favorecer a retomada da produção minerária.

O ouro das Minas Gerais atraiu multidões: brancos, afortunados, plebeus,


religiosos, negros e índios. Formava-se acentuada diversificação cultural que exigiu uma
estruturação administrativa, com o apoio da autoridade eclesiástica. Todas as ações
portuguesas contavam com uma presença religiosa, pois, enquanto Portugal vislumbrava
encontrar novas terras, a Igreja propunha cristianizar os povos. “A religião sempre foi um
agente disciplinador do ser humano. Espiritualizando-o, torna-o mais obediente,
inclusive, às normas da autoridade temporal.” (CAMÊLLO, 2016, p. 57).

A primeira vila das Minas Gerais, a vila Nossa Senhora do Carmo, foi fundada
por Antônio Albuquerque, em 1745, em cumprimento à ordem expedida por Dom João
V. Posteriormente, a vila Nossa Senhora do Carmo tornou-se a primeira cidade de Minas,
e a sede do bispado. Atendendo ao pedido de Dom João V, o papa Bento XIV criou as
dioceses de Mariana e de São Paulo em 06 de dezembro de 1745. Nomeou-se Dom Frei
Manuel da Cruz como primeiro bispo da diocese de Mariana-MG, deslocando-o da
diocese de São Luiz do Maranhão- MA. O Então nomeado Dom Frei Manuel da Cruz
viajou durante 14 meses para chegar a Mariana.

O primeiro bispo da recém-criada diocese de Minas, em 20 de dezembro de 1750,


fundou o seminário e entregou sua administração aos padres jesuítas (Trindade, 1951).
Eles foram expulsos do Brasil, sob as ordens do Marquês de Pombal. A partir daí o
seminário ficou sob os cuidados do clero diocesano até o governo de Dom Antônio
21

Viçoso, 1853, que o confiou aos Lazaristas. Em 1967, Dom Oscar de Oliveira retoma a
administração do seminário, confiando-a ao clero diocesano. “Os seminários de Mariana,
denominados Menor e Maior1, foram os pioneiros na formação educacional masculina de
Minas, sendo ainda as primeiras Escolas superiores do Estado.” (CAMÊLLO, 2016, p.
176).

Dom Oscar, preocupado com a formação do povo mineiro, criou em 1969, por
meio da Fundação Marianense de Educação, os cursos superiores de Letras, História e
Geografia. Mais tarde, em 1978, Dom Oscar cedeu esses cursos à Universidade de Ouro
Preto, que pretendia instalar-se na região, mas não havia um número mínimo de cursos
superiores e nem de patrimônio compatível.

À época Dom Oscar liberou em comodato os edifícios do seminário


Menor e do Palácio Velho dos bispos e doando, na cidade, um terreno
de 212,000 metros quadrados para futuras instalações escolares. [...].
Consolidou-se, assim, a Universidade Federal que Dom Oscar sonhava
ser de Ouro Preto e Mariana, cidade onde deveriam se instalar todos os
cursos de Ciências Humanas. (CAMÊLLO, 2016, p. 178. Grifo meu).

Atualmente, a Universidade Federal de Ouro Preto-MG e Arquidiocese de


Mariana-MG estão em demanda judicial porque a Universidade não cumpriu as
prescrições do contrato, que estipulava fazer a restauração e a manutenção dos prédios.
A justiça determinou o fim do comodato, entretanto, a Universidade reivindicou para si a
propriedade dos prédios pertencentes à Arquidiocese.

1.2 A contemporaneidade

Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2013),


a Arquidiocese de Mariana-MG tem, aproximadamente, 1.242.936 habitantes,
distribuídos nos 79 municípios que a compõem. Suas cidades são relativamente pequenas,
conservando algumas das características rurais dos seus primórdios. Desses municípios,
10 possuem população superior a 30.000 habitantes; 50 municípios têm população abaixo
de 10.000 habitantes, o que evidencia sua realidade campesina, com predomínio dos
costumes e tradições do homem rural. Pode-se afirmar que a Arquidiocese de Mariana

1
Por seminário menor, entendia-se os alunos que cursavam o Ensino Médio. E por seminário maior os
alunos dos cursos de Filosofia e de Teologia. Essa categorização não é mais usada nos documentos
eclesiásticos, apesar de permanecer no discurso popular.
22

está localizada numa área essencialmente rural, grandes áreas sem os danos da degradação
antrópica, com poucas indústrias, e, portanto, pouca possibilidade de emprego formal.
Contudo, o cenário não é promissor para os jovens e outros cidadãos e cidadãs que
sonham em firmar-se economicamente nos arredores de sua família, mantendo suas raízes
e vínculos familiares. Dos 79 municípios da Arquidiocese, apenas Barbacena,
Conselheiro Lafaiete, Mariana, Viçosa, Ponte Nova e Ouro Preto têm população superior
a 50 mil habitantes, conforme dados do IBGE-2013, disponíveis no Guia Geral da
Arquidiocese de Mariana 2016/2017.

A classificação entre o que é rural e o que é urbano não é tão simples de se


estabelecer como nos anos passados. Houve uma fusão entre o rural e o urbano. Contudo,
esse conceito de fusão não deixa de produzir uma certa ambiguidade na organização
familiar e social; como se houvesse uma perda de identidade, antes melhor definida pelo
que era específico do homem “campo” e da “cidade.” A aproximação entre o urbano e o
rural é descrita com a expressão “rurbanização”, cunhada por Carneiro (2009). Essa
mesma autora constata, apesar das novas políticas públicas de favorecimento da
permanência no mundo rural, que o êxodo rural é constante no Brasil.

Diante disso, percebe-se que a agricultura familiar é o meio mantenedor de


sustentabilidade da população das cidades que compõem essa Igreja Particular. Homens,
mulheres e crianças vão para o campo cultivar a terra, numa agricultura de subsistência
visando a sobrevivência do núcleo familiar. O funcionalismo público também gera boa
parte dos empregos nestas pequenas cidades, estabelecendo dependência e alienação
política partidária, salvo os que foram aprovados em concurso público. A dependência
política partidária é fator bastante comum nas cidades da Arquidiocese. A exploração do
minério, outra fonte de renda, tem causado sérios impactos no território da Arquidiocese
de Mariana- MG. A exploração dos trabalhadores pelas empresas mineradoras, bem como
a degradação ambiental, gera insegurança na população e questões sócias complexas tais
como a prostituição e comércio abusivo de drogas e álcool, acarretando aumento
considerável de violência sexual entre outras. Outros investimentos na construção de
barragens hidrelétricas e de rejeitos de minério estão sendo planejados, ameaçando a
história das comunidades que, na maioria das vezes resistem à desocupação, mas são
derrotadas e arrancadas de suas casas, dizimando povoados inteiros, favorecendo o capital
23

estrangeiro das grandes empresas. A história de exploração e violência dos primórdios


do ciclo do ouro se repete, com outra roupagem, nestas terras mineiras.

São homens e mulheres trabalhadores, mas com pouca consciência política,


tornando-se mão-de-obra de fácil acesso e, portanto, explorada. As lutas sindicais são
quase inexistentes. As políticas públicas não chegam a esses rincões. Ameaças de
desemprego, de perseguição política e de morte enfraquecem a resistência de quem ousa
lutar por mais justiça e direitos trabalhistas. Como forma de buscar melhores condições
de trabalho, os jovens partem para as grandes cidades do país, procurando melhores
colocações empregatícias. Essa “migração” dificulta o acesso ao curso superior ou o
término do ensino médio. Com um cenário mais rural, os jovens inserem-se, em sua
maioria, no trabalho do campo, afetando, diretamente, sua possibilidade de uma formação
acadêmica promissora. Nem sempre é possível conciliar estudos e trabalho no campo,
tendo em vista as distâncias entre os municípios e as cidades com ensino universitário.

O ensino fundamental e o médio, como em todo Estado de Minas Gerais, são


visivelmente, instáveis. Professores desmotivados por salários injustos e infraestrutura
precária. Alunos estafados do trabalho deslocam-se para a escola noturna no transporte
escolar das prefeituras, em longas viagens, sem condições financeiras para fazer um bom
lanche, antes de ingressarem na sala de aula. A motivação para enfrentar uma rotina de
estudos, longo percurso para se chegar à Universidade, depois de um dia árduo de
trabalho, vem do desejo e da tradição familiar que apregoam que, por meio do estudo, o
jovem pode ser “alguém na vida.” Os pais ou responsáveis pelos adolescentes e jovens
utilizam essa expressão como um mantra motivador. Estudar é visto como uma
possibilidade de sair do anonimato, um método para sair da invisibilidade social que o
mundo rural impõe sobre seus habitantes (Carneiro 2009).

Estudar entra como uma demanda do desejo de reconhecimento, de ser alguém na


vida. Desejo que se exacerba quando se leva em consideração que a maioria dos
progenitores desses jovens não concluíram o ensino médio, conforme dados de uma
pesquisa realizada por Pereira (2004) sobre a formação dos jovens que buscam o
seminário. Os dados estatísticos da referida pesquisa confirmam, numa amostragem
24

plausível, a realidade do analfabetismo ou o baixo nível cultural dos que povoam o solo
da Arquidiocese de Mariana, em Minas Gerais:

Cerca de 10 % dos entrevistados, tanto formandos quanto formadores,


afirmam que o pai é analfabeto, 48% deles cursaram da primeira à
quarta série do ensino fundamental. Portanto, pertencem a um grupo
sem capacitação profissional. O percentual de progenitores, que
cursaram entre a 5ª e a 8ª séries é de 26 % entre os formandos e 22 %
entre os formadores[...]. Quanto à escolaridade, a imensa maioria das
mães dos entrevistados é analfabeta ou cursou entre a primeira e quarta
série do ensino fundamental. (PEREIRA, 2004, p. 47 a 49).

Certamente os progenitores acima mencionados não estudaram por falta de


oportunidade, pois se ocuparam dos trabalhos agrícolas, desde a tenra idade, como é
comum nas famílias do meio rural. Além desse entrave à realização dos estudos, existia
a dificuldade de acesso à escola, sempre distante das residências, e a falta do transporte
público escolar. Considerando que o fenômeno da globalização fez com que o desejo de
estudar penetrasse em todas as camadas sociais, os jovens que residem no meio rural
também sonham em cursar uma faculdade, e muitos conseguem graças aos programas
federais como FIES, Pro-Uni e outros. Graças às novas políticas públicas, mesmo estando
aquém das reais necessidades, esse cenário já não é tão desanimador. Em todos os
municípios há transporte escolar para estudantes do ensino básico ao ensino superior.

É possível perceber que no final dos anos 1990 e início do século XXI, com
governos mais populares, preocupados com o bem-estar social, a vida dos homens e
mulheres do campo ganhou novas configurações. Surgiram políticas de incentivo à
permanência das famílias no meio rural. Com o fenômeno da globalização o limite entre
o mundo rural e o mundo urbano foi atenuado. No contexto da Arquidiocese de Mariana,
a diferença entre essas duas zonas vem se estreitando, frente às possibilidades do mundo
globalizado. Sair ou permanecer no meio rural é, em certo sentido, uma opção. É possível
residir no meio rural e ter acesso à tecnologia, sobretudo à internet, à telefonia celular,
TV, veículo particular, maquinário agrícola e luz elétrica. O mundo rural mudou suas
características, apesar de ainda permanecerem algumas dificuldades, como o acesso ao
lazer e a saúde. Sem opções de lazer, o uso abusivo do álcool e os programas televisivos
apresentam-se como alternativas lúdicas. A televisão e o rádio ainda são os meios de
comunicação mais comuns nessas regiões.
25

Inseridos numa realidade pouco favorável ao desenvolvimento cultural e social,


jovens e adultos tornam-se vítimas da depressão. Faltam-lhes opções de lazer. Sala de
Cinema só há em quatro cidades: Barbacena, Conselheiro Lafaiete, Viçosa e Santa
Bárbara, com poucas opções de filmes, dias e horários. Shoppings são inexistentes. As
festas agropecuárias são as principais atrações e são elas que movimentam as cidades,
com shows artísticos, sertanejos em sua maioria. Outros festejos que servem de lazer são
os religiosos, por exemplo, as quermesses. Nesses ambientes, o consumo de bebida
alcoólica é comum entre jovens e adolescentes, pois é acessível a todos devido seu baixo
valor comercial.

1.3 Delimitando fronteiras e criando identidade

Com marcante perspicácia social, na década de 1990, o Bispo Jesuíta, Dom


Luciano Pedro Mendes de Almeida assume o governo da Arquidiocese de Mariana-MG;
vindo de São Paulo onde era bispo auxiliar. Doutor em filosofia, conhecido por sua
desenvoltura no meio universitário em Roma e no Brasil, optou pelos pobres e
marginalizados, tornando-se conhecido como o “bispo da rua.” O Bispo da rua trazia no
coração a preocupação com os mais pobres e excluídos da sociedade; tão logo os
identificou no seu novo campo de trabalho. A pobreza das periferias da cidade de São
Paulo, nas terras mineiras tinha outros nomes. Deparava-se com uma realidade social
sofrida, grandes distâncias geográficas entre as paróquias, crianças desnutridas, péssimas
condições de locomoção entre as cidades da Arquidiocese e com estradas de terra sem
conservação.

Como Arcebispo da Arquidiocese Primaz de Minas Gerais, propôs dividi-la em


cinco áreas pastorais, com o intuito de facilitar o trabalho pastoral e a comunicação entre
as lideranças, comunidades e paróquias. Também organizou a formação sacerdotal,
estabelecendo residência específica para os estudantes de Filosofia, que até então
residiam com os da Teologia. A separação das casas de formação visava dar identidade a
cada etapa, respeitando a singularidade e os desafios de cada uma. Empenhou-se para que
o curso de Filosofia tivesse reconhecimento, primeiro por convênio com a PUC Minas,
depois credenciando-o junto ao Ministério da Educação (Camêllo, 2016). Preocupou-se
em oferecer uma sólida formação acadêmica aos futuros presbíteros; objetivou que todos
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os seminaristas obtivessem graduação acadêmica, o que favoreceria o ingresso no


mercado de trabalho, aos que, por uma razão ou outra, deixassem o processo formativo.

As áreas pastorais ficaram subdividas em região Norte, Sul, Leste, Centro, Oeste.
A região norte abrange os municípios povoados pelo ciclo do ouro, com forte incidência
do Barroco Mineiro. É nessa região que se encontra a primeira capital mineira, a cidade
de Ouro Preto, palco de importantes acontecimentos históricos do país. Nessa região, o
turismo é a maior fonte de renda; é onde está situada a Universidade Federal de Ouro
Preto. Destaca-se também a presença de grandes mineradoras, que perpetuam a
exploração das riquezas do mineiro de ferro e outras, inaugurada pela Coroa Portuguesa,
nos idos da descoberta do ouro.

É na região norte também que em 05 novembro de 2015, no distrito de Bento


Rodrigues, a 35 Km da cidade de Mariana, ocorreu o rompimento de uma barragem de
rejeitos de mineração da empresa brasileira Vale S.A. e a Anglo-australiana BHP
Billiton, controladas pela empresa Samarco, causando a morte de 19 pessoas. O
rompimento dessa barragem ficou conhecido como o maior crime ambiental da história
do país. Além dos óbitos, houve inundação de comunidades do município de Mariana e
de outras cidades. O impacto desse crime ambiental pode ser observado na flora e na
fauna. O desastre atingiu o Rio Doce e sua bacia hidrográfica, afetando 230 municípios
dos Estados de Minas Gerias e do Espírito Santo. Ambientalistas calculam que os danos
causados ao mar perdurarão por pelo menos 100 anos. Esperava-se que a partir do
ocorrido houvesse maior fiscalização na implantação e exploração dessas mineradoras, o
que ficou só na expectativa. Mais uma vez o lucro sobrepôs-se à vida humana!

A região centro da Arquidiocese de Mariana, composta pelo município de


Piranga- MG e outras nove cidades do entorno, é predominantemente rural. Não há
nenhuma indústria, nem unidades de Ensino Superior. A agricultura familiar e a pecuária
predominam na economia local. São municípios pequenos, com acentuado êxodo rural e
estradas sem asfaltamento. Algumas constatações se fazem necessárias: o acesso à saúde
é limitado e comprometido pela escassez de suporte técnico e infraestrutura hospitalar,
ficando à mercê das cidades polos como Conselheiro Lafaiete. É uma região agrícola que
vem sofrendo com a monocultura de eucalipto, que já ocupa grandes áreas. A maior parte
da população dessa área está no meio rural; o número de analfabetos é acentuado.
Segundo o depoimento das lideranças comunitárias, coletado para a elaboração do projeto
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de evangelização da Arquidiocese, “as prefeituras municipais são as principais fontes de


emprego.” (ARQUIDIOCESE DE MARIANA, 2010, p. 15).

Indo para a região sul da Arquidiocese, nota-se outra realidade desafiante,


marcada pelo coronelismo político. Nessa, a cidade polo é Barbacena, com população
próxima a 132 mil habitantes. É na cidade das rosas que se encontram as melhores
estruturas hospitalares e educacionais. Reitera-se que “melhores estruturas” não é
sinônimo de eficiência e qualidade nos serviços prestados. A alienação política é muito
evidente. A unidade de ensino superior da região, a Universidade Antônio Carlos,
pertence a uma família política da cidade, que governa, por séculos, vários municípios da
região, mantendo a população sempre na dependência de favores, como emprego e bolsa
de estudos nas unidades da Universidade citada.

Como a região não possui grandes empresas, as maiores possibilidades de trabalho


e estudo estão nas prefeituras e nas universidades de políticos tradicionais do cenário
brasileiro, deixando os jovens e as famílias dependentes dessa relação de favoritismos. O
“voto de cabresto” é uma realidade acentuada nas cidades que compõem essa região.
Vota-se não na competência do partido ou do candidato, mas na tradição da família que
sempre se manteve fiel a esse ou aquele partido. O voto é uma moeda de troca! O plantio
de rosas e morangos ocasiona o uso exacerbado de agrotóxicos, afetando fortemente a
saúde da população. Outra fonte de renda é a agropecuária, além dos hortifrutigranjeiros,
gerando empregos informais, que oscilam com a entressafra e as intempéries do clima. É
uma região próxima ao Rio de Janeiro, para onde muitos se deslocam a procura de
emprego.

A região leste da Arquidiocese é a maior em extensão e tem como polo a cidade


de Viçosa. O impulso econômico foi dado pelo cultivo da cana-de-açúcar, a suinocultura
e a Universidade Federal de Viçosa. A primeira está em decadência, as demais se mantêm.
É uma região em desenvolvimento no âmbito do ensino Universitário, com abertura de
novos cursos e faculdades. O tráfico de drogas e o alto índice de violência são gritantes
nesta área. Outro fator preponderante na região é a presença das hidrelétricas com seus
projetos de barragens, alterando o ritmo das comunidades e do meio ambiente,
expulsando famílias de suas terras e povoados, situação que gera insegurança. Como sinal
de resistência aos projetos de construção de outras barragens, surgiu o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB).
28

Por conseguinte, a região oeste, é margeada pela rodovia 040, que liga Brasília-
DF ao Rio de Janeiro- RJ. A cidade polo é Conselheiro Lafaiete, com seus 125 mil
habitantes. A economia da região depende das mineradoras que degradam o meio
ambiente em grande velocidade, provocam inchaço populacional com o elevado número
de operários que chegam à região para a exploração do minério de ferro e a construção
de barragens hidrelétricas. Tem-se a presença da Gerdau, LGA-Mineração e Siderurgia,
a Multinacional Vallourec, e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). As cidades do
entorno sofreram com o inchaço populacional desorganizado, além dos impactos
ambientais a médio e a longo prazo. As mesmas empresas que garantem o trabalho para
milhares de homens e mulheres, também degradam o meio ambiente.

Em todos as cinco regionais a expressão religiosa é uma constante. A Igreja


Católica, as neopentecostais e outras denominações estão presentes nessas áreas, mas com
pouca participação direta na luta do povo. Padres, pastores e pastoras omitem-se diante
das injustiças sociais; vivem distantes da realidade sofrida de muitos dos seus fiéis. Há
uma religiosidade de manutenção, não correspondendo às demandas do povo sofrido. As
Igrejas não se despertaram para as lutas sociais, contentando-se com celebrações
triunfantes, e, às vezes, alienadas. Acomodam-se em seus escritórios e casas confortáveis,
enquanto muitas “ovelhas” não têm casa própria, nem acesso a saúde e à educação de
qualidade. Espera-se mais profetismo dessas instituições e participação na luta do povo;
uma voz mais profética, de denúncia das injustiças. Contentam-se com templos cheios de
fiéis e líderes lights, para não dizer alienados. Rezam pedindo milagres, emprego, saúde
e educação de qualidade, no entanto, não se mobilizam para cobrar seus direitos.
Enquanto isso, a “casa grande” dos tempos contemporâneos continua a explorar negros e
brancos assalariados.

O cristianismo recebeu influências europeias e africanas, organizando-se, por


muitos anos, por meio das Irmandades, Confrarias e outros núcleos mais tradicionais com
predominância dos brancos. Os negros celebravam a fé no devocionismo popular, como
coroação a Nossa Senhora, procissões, festa dos santos padroeiros, grupo de Folia de Reis
e de Congado. É dessa e para essa realidade que saem e são formados os futuros
presbíteros da Arquidiocese de Mariana. Os que chegam às casas de formação, em sua
maioria são provenientes do contexto rural. Trazem as marcas dessa história: filhos de
pais analfabetos, e, às vezes, dependentes químicos (Pereira, 2004). Foram educados com
muito rigor e sem muita liberdade para conversarem com os pais sobre diversos assuntos,
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inclusive sexualidade e afetividade, vistas como tabu entre pais e filhos. A educação dos
filhos segue o regime do patriarcado, como aponta Pereira (2004):

[...] a estrutura familiar obedece a um tipo patriarcal rígido e mais


voltado para um modelo tradicionalista dos grandes latifundiários, que
é seguido pelos pequenos agricultores e, em contraponto, o excesso de
proteção da mãe. [...] são, ainda, frequentes os atos de violência por
parte do pai, e há grande incidência do alcoolismo. (PEREIRA, 2004,
p.81).

A estrutura familiar no modelo do patriarcado deixa muitas marcas na trajetória


das famílias. É comum encontrar nesses lugares jovens muito tímidos, em conflito com a
figura de autoridade, psiquicamente fragilizados, com uma compreensão repressora da
sexualidade e da afetividade e forte sentimento de inferioridade. Nasceram e cresceram
numa cultura bastante limitada, sem grandes possibilidades sociais e culturais.

A primaz de Minas Gerais, com seus inúmeros desafios, ainda goza de muitas
vocações sacerdotais comprometidas com o trabalho evangelizador. Existem desafios,
como também muitas conquistas em favor do Reino e do Povo de Deus. Os desafios
existem para promover a mudança de mentalidade e de paradigmas. Os novos tempos
exigem novos métodos formativos. Como formar o presbítero diocesano para servir o
povo destas terras mineiras, com suas demandas e expectativas? O presbítero diocesano,
aquele que exerce seu ministério “em comunhão com o seu bispo e os demais
presbíteros.” (CNBB, 2010, n.75) precisará ser um profeta, perito em humanidade,
defensor dos pobres e sofredores do sistema capitalista vigente.

A contemporaneidade e seus fenômenos da globalização produzem um perfil de


jovens diferente dos moldes passados. Tudo mudou rapidamente e seria estranho que o
jovem do século XXI se comportasse como o do século XX. Faz-se necessário tomar
consciência de que os tempos são outros. O jovem dos anos 60 ou 70 conectava-se com
as lutas sindicais e sociais. Os valores morais eram mais definidos; a religião ditava as
normas comportamentais. A realidade atual é adversa. Os valores são relativos, não existe
uma conexão forte com as questões políticas-sociais. Fala-se em cidadãos alienados ou
acovardados, enquanto os direitos humanos estão sendo estrangulados pela arbitrariedade
governamental. A ideologia neoliberal, que, com outra roupagem, é o fortalecimento da
“casa grande”, vai invadido os meandros das lutas sociais, e até mesmo os ambientes
eclesiais. O atual cenário político brasileiro é o retrato mais claro da ascensão da “casa
grande”. Estrangula-se os direitos sociais dos assalariados para favorecer os mais ricos.
30

Ser padre nessa Arquidiocese é caminhar com o povo sofrido em suas lutas por
direito e dignidade. Existem muitos movimentos sociais neste solo gentil: Movimento de
Atingidos por Barragens, o grito dos Excluídos, a Escola e o movimento fé e Política, o
Conselho arquidiocesano de Leigos, as Escolas Famílias Agrícolas, os cursos de extensão
em Psicologia, Filosofia e Teologia para leigos e leigas, o departamento de obras socais,
os fóruns sociais em defesa da vida, as romarias do trabalhadores e trabalhadoras, a
romaria da terra e das águas, a pastoral da Criança e do Menor. Esses movimentos são
sinais da resistência evangélica, uma atualização do profetismo de Jesus Cristo que
sempre se colocou ao lado dos pobres e oprimidos.

A Igreja em Mariana é convocada a ater-se às questões sociais e ambientais que


assolam a vida das comunidades. Os futuros presbíteros dessa Igreja particular, cônscios
de sua riqueza cultural, comprometidos com a dimensão do cuidado do povo de Deus,
são enviados como ovelhas no meio de lobos. Padres, bispos, religiosos e religiosas,
leigos e leigas derramaram seu sangue em defesa da vida, sinalizando que o serviço
sacerdotal não é para si, mas para o outro. Como mostra a história, ser padre em Mariana
é mais do que presidir sacramentos.

Fala-se de formação sacerdotal, mas o que é afinal? A partir da realidade sócio


demográfica da Arquidiocese de Mariana- MG, tem-se um panorama do perfil sacerdotal
a ser formado no seminário. São realidades desafiadoras, de pobreza material e
existencial. Formar presbíteros não é padronizar indivíduos; formar é promover um
processo de identificação, neste caso com a figura parental de Jesus Cristo, que defendeu
a vida e a dignidade dos pobres e sofredores. Pensa-se a identificação não como sinônimo
de imitação. Identificação na perspectiva sacerdotal é assumir as atitudes de Jesus,
identificar-se com seu projeto libertador. Ele é o referencial para os atuais e os futuros
presbíteros. Acredita-se que 90% dos jovens que chegam às casas de formação chegam
identificados com os padres midiáticos. Vêm atraídos por esse glamour! Aqui está o
primeiro trabalho do processo formativo: ajudar o vocacionado a perceber que o
referencial não é esse ou aquele padre, mas Jesus, o lavador de pés; aquele que veio para
servir e não ser servido.

Enfim, formar é suscitar, conscientemente, essa identificação com Jesus! No


contexto de Mariana- MG, essa identificação será com um Cristo mais despojado, como
é o povo dessa Arquidiocese. O seminarista tem o direito de procurar a casa de formação
31

com motivações inconsistentes, por exemplo, porque acha bonito a missa desse ou
daquele padre. Isso é muito comum numa realidade como a de Mariana, em que a maioria
das vocações vêm das camadas menos abastadas economicamente. O sonho de uma vida
melhor é fator de sobrevivência. Não há nada de anormal nisso. Anormal seria passar por
todas as etapas e experiências formativas e permanecer com as mesmas motivações, isto
é, identificado com outros sacerdotes e não com Jesus Cristo. Se isso ocorrer a lacuna não
é do jovem, mas da equipe de formação que não foi capaz de ajudá-lo nesse processo de
identificação e desmitificação, inserindo-o no real contexto da Arquidiocese.

A formação sacerdotal é configuração à Jesus Cristo, internalizando os valores


Teocêntricos, conforme pontua Rulla (1987) em sua teoria da “Autotranscedência na
Consistência”, que será o referencial teórico do presente trabalho. O próximo capítulo
discorrerá sobre alguns pressupostos básicos da referida teoria: a internalização de valores
autotranscendentes e o conflito de base entre o Eu-atual e o Eu-ideal e os três níveis da
vida psíquica.
32

2 A TEORIA DA AUTOTRANSCENDÊNCIA NA CONSISTÊNCIA.

A perspectiva teórica que fundamenta essa monografia é a da “autotranscedência


na consistência,” elaborada pelo italiano Luigi Rulla, padre Jesuíta, doutor em Medicina
pela Universidade de Turim e, também, mestre em Filosofia. Dias (2010), relata que
Rulla doutorou-se em Psicologia, pela Universidade de Chicago, em 1968, realizando
uma pesquisa empírica com mil jovens religiosos.

Os resultados obtidos na pesquisa evidenciaram que a formação sacerdotal carece


de apoio psicológico. A escuta psicológica no ambiente formativo não pretende substituir
a espiritual. Os objetivos da direção espiritual e da escuta psicológica guardam
semelhanças e, ao mesmo tempo, são distintos, pois cada uma delas apresenta
particularidades. O ponto de convergência pode ser encontrado na perspectiva de que
ambas – a orientação espiritual e psicológica - são do foro íntimo no processo formativo
sacerdotal.

Ao empreender o doutorado em psicologia, Rulla (1987) concluiu que a


internalização dos valores autotranscendentes é imprescindível ao processo formativo.
São esses valores que capacitam o homem a ultrapassar, sistematicamente, a si mesmo,
aproximando-se do objetivo último, que é Deus. A internalização desses valores é um
elemento fundamental ao processo de formação sacerdotal. “Os valores de Cristo
precisam ser assimilados, internalizados, integrados com o resto da personalidade, de
maneira que ela seja transformada nele.” (RULLA, 1987, p. 442).

O referencial teórico “autotranscedência na consistência,” faz a distinção entre


valores naturais e autotranscendentes. Por naturais entendem-se aqueles que se referem
à natureza do homem, como a economia, a política e a estética; e os autotranscendentes
são os morais e os religiosos (Rulla, 1987). Apesar de pouco conhecida a teoria adotada
está presente, não explicitamente, nos documentos da Igreja católica sobre a formação
sacerdotal. Veja-se, por exemplo, quando as diretrizes (CNBB, 2010) falam de
configuração a Jesus Cristo no período da Teologia. Essa configuração não é resultado da
internalização dos valores cristológicos?!

Em busca realizada no Scielo, encontrou-se a dissertação de mestrado em


Psicologia, de Josimar Dias (2010), abordando a teoria de Rulla (1987). A partir da
referida dissertação obteve-se algumas informações quantitativas, apontadas neste
33

capítulo, que não se encontram no livro “Antropologia da Vocação Cristã” (Rulla, 1987).
Nesta obra, encontram-se os princípios básicos da teoria em questão. Alguns desses
pressupostos serão abordados a seguir.

2.1 Antropologia subjacente à teoria da Auto transcendência na Consistência

A interrogação sobre o homem é fundamental para os que procuram compreender


a vocação sacerdotal. Ao pensar a formação em vista do presbiterado é preciso considerar
o homem como um todo, monista, ambivalente e, ontologicamente, tendendo para Deus;
sujeito tecido por potencialidades antropológicas e psicológicas. Pensar uma antropologia
no viés das potencialidades, é pensar o homem como um ser que transcende todos os
“ismos” teóricos. O antropocentrismo ou o teocentrismo são limitadores da diversidade
humana. O primeiro pode rejeitar a dimensão transcendental da vida humana.
Ontologicamente, o homem tende para Deus (Rulla, 1987). O teocentrismo pode divinizar
exacerbadamente o ser humano, minimizando sua humanidade. Os extremos continuam
perigosos, talvez seja a razão de Rulla (1987) primar por uma antropologia
interdisciplinar. É o que se percebe em seus escritos.

A visão tradicionalista do homem foi modificada também pela


contribuição da ciência. A antropologia cultural, a sociologia, a
psicologia e a psicanálise trouxeram à ribalta dimensões e capacidades
do homem até agora desconhecidas. [...]a antropologia cristã tem que
se desenvolver de modo que possa integrar gradualmente as aquisições
recentes da filosofia e das outras ciências humanas. (RULLA, 1987,
p.83).

O homem não é só inconsciente ou consciente, como não é só espiritualizado. Ele


é tudo isso e um pouco mais. É mistério. Nesta perspectiva, Rulla (1987) afirma que
muitas correntes filosóficas e psicológicas elaboraram um arcabouço antropológico na
tentativa de dar a conhecer quem é o homem. Platão, por exemplo, desconsiderava a parte
corporal do homem; pensava que o corpo era o cárcere da alma. Já Descartes concebia o
homem no dualismo metodológico entre alma e corpo, espírito e matéria. Tampouco Kant
conseguiu uma concepção globalizante do homem (Rulla, 1987). A psicanálise pensou o
homem como um ser que se move através da pulsão sexual inconsciente, contrapondo-se
ao pensamento filosófico do homem consciente.
34

À procura de uma antropologia que considerasse o homem como um ser holístico,


Rulla (1987) e Ridick (1985) entenderam-no como um sujeito de anseios psicofisiológico,
psicossociais e psicoespiritual. Essa conceituação antropológica interpretada por esses
autores foi elaborada por Joseph Nuttin (1961), que fundamentou seus estudos na
filosofia, conforme se pode ler em sua obra “psicanálise e personalidade” (1961). Os três
níveis de atividade, na literatura de Nuttin (1961), e três níveis de vida psíquica, na
literatura de Rulla (1987), se integram para formar o homem em sua globalidade
antropológica, sem reducionismos, biologismos, espiritualismo, psicologismos e outras
fragmentações.

Os níveis da vida psíquica são considerados por Rulla (1987) como três níveis de
desejo que tendem o homem para a ação (1987). Na perspectiva psicofisiológica, está a
necessidade humana de alcançar a satisfação orgânica por meio do sono e alimentação.
Esse nível compreende as necessidades fisiológicas de bem-estar ou mal-estar.
Enquadram-se neste âmbito as funções sensoriais e motoras e os déficits fisiológicos. O
corpo tem um déficit e logo busca superá-lo, mesmo sabendo que voltará no momento,
fisiologicamente, demandado pelo organismo. O mundo de quem permaneceu no
primeiro nível, possivelmente, girará em torno das necessidades psicofisiológicas. A
valorização estará nas coisas: apego à paróquia, ao carro e outros. “Onde está o teu
tesouro, estará aí o teu coração.” (Mateus 6, 21).

O segundo nível da vida psíquica, o psicossocial, deflagra a necessidade de


relações sociais, como amizade, amor, família, amigos, lazer e outros. “Trata-se de um
nível que nos permite desenvolver uma vida de relação, principalmente com o mundo de
pessoas que nos cercam.” (RULLA, 1987, p. 146). O homem não se basta a si mesmo,
ele carece de relações sociais; o outro é parte constituinte do sujeito. Sabe-se que o nível
psicossocial não é específico do ser humano. Outras espécies também buscam a relação
com outros da mesma ou de espécie semelhante. Neste nível a relação com as pessoas
terá primazia. O outro será entendido como mistério sagrado, diante do qual todo amor e
respeito são recomendáveis; no outro está a imagem e semelhança de Deus e não apenas
um ser coisificado. O risco desse nível é do apego desmedido às pessoas e, a dependência
afetiva, às vezes, comuns nos ambientes formativos (CNBB, 2010). Quando se apega
desmesuradamente às pessoas, elas substituem Deus.
35

Na adolescência, o psicossocial exerce forte pressão, conduzindo o adolescente à


busca de grupos de iguais. O espírito revolucionário do jovem é um marco do nível
psicossocial. Ele quer reformar o mundo com suas teorias e ousadia; depois amadurece e
percebe outras necessidades para completar e significar sua existência. O outro é
importante em si; sua presença remete-se ao Criador das criaturas. “O desejo de posse é
transferido da área das coisas à área das pessoas.” (RIDICK, 1985, p. 37).

Finalmente, tem-se o nível psicoespiritual. Este se vincula à necessidade que o


homem tem de conhecer a verdade e compreender a natureza das coisas. O psicoespiritual
é o que diferencia o homem dos outros seres; diferencia-se pela sua capacidade de
“formular conceitos, conhecer coisas abstratas, julgar, transcender o “aqui e agora” para
afirmar e perseguir valores espirituais.” (CENCINI e MANENTI, 1988, p. 16).

O nível psicoespiritual não é consequência do déficit biológico do organismo ou


fator de autopreservação, como no primeiro nível. Tampouco evidencia a necessidade que
o homem tem do outro para auto realizar-se. O psicoespiritual capacita o homem para a
utilização de símbolos linguísticos, interrogar-se sobre o sentido último da vida e
transcender-se a si mesmo, como num voo para o Totalmente Outro. Dotado de razão, o
homem busca o sentido das coisas e da vida; escolhe viver ou não os valores, acata ou
não as normas morais e sociais. Pela razão o homem faz-se livre ou não; escolhe ser
prisioneiro de si mesmo ou se esforça para transcender-se.

A atitude e o abandono deste nível nos impelem simplesmente a não dar


muito valor às coisas para o nosso bem (primeiro nível), nem mesmo
apegar-nos aos outros para o nosso e para o seu bem (segundo nível),
mas nos abrem a possibilidade de despojar-nos de nós mesmos por ele.
(RIDICK, 1985, p. 39).

Os três níveis da vida psíquica se entrelaçam e se distinguem no terceiro, o


psicoespiritual. Os animais, por exemplo, precisam da sociabilidade e do psicofisiológico,
no entanto, não têm necessidade de ir além de si mesmo, de auto transcender-se. Os três
níveis se entrelaçam, mas um prevalece.

Supõe-se que os formandos, candidatos ao ministério sacerdotal, tendo já


terminado a fase da adolescência, permaneçam mais no terceiro nível. Na vida adulta,
tendo percorrido os dois primeiros níveis, o homem vive-os não como fim em si mesmo;
abre-se às questões mais relevantes da sua vida, como a pergunta pelo sentido da vida.
36

Em qual nível os vocacionados à vida sacerdotal estão ancorados? Espera-se que no


terceiro, entretanto, vivendo a integração entre os três. O psicoespiritual valoriza os
estudos, o trabalho comunitário, as relações interpessoais, a reflexão acadêmica, o
altruísmo, a solidariedade, a vivência integrada da sexualidade, a relação madura com
Deus, com os formadores e a autêntica vida de oração. Os valores internalizados são,
acentuadamente, correspondentes ao terceiro nível.

Enfim, um homem integrado equilibra-se entre os três níveis da vida psíquica. E,


à medida que o seminarista percorre as diversas etapas do processo formativo,
concomitantemente, deverá avançar na vivência integrada, consciente e livre dos três
níveis de vida psíquica. Haverá maior valorização do terceiro nível, sem negar os demais.

O reconhecimento do terceiro nível como adequado ao exercício do ministério


sacerdotal motivará o querer racional em detrimento do emotivo, além, é claro, de exercer
determinante empenho na solidificação do Eu-ideal vocacional e da psicodinâmica
humana.

2.2 O Eu-atual e o Eu-ideal

A psicodinâmica da existência humana é um desencadear das interações da


estrutura e do Eu-atual e do Eu-ideal. O primeiro diz de tudo aquilo que já é; o eu que
sonha, pensa, luta, busca, sofre e ama. O Eu-atual, segundo Rulla (1987), é subdivido em
duas subestruturas: a latente e a manifesta, significando que no Eu-atual subjaz o
inconsciente e o consciente. O latente refere-se ao que é inconsciente, enquanto o
manifesto diz do “conhecimento que a pessoa tem de si mesma e de seus atos.” (RULLA,
1987, p. 200). As duas estruturas do eu, o atual e o ideal, estão intimamente conectadas.

Essa força psíquica chamada Eu-ideal é um constituinte antropológico (Rulla,


1987) que impulsiona o homem a fazer renúncias, a transcender-se a si mesmo por uma
causa social, humanitária ou espiritual. Na perspectiva do referencial teórico adotado, o
conhecimento e a internalização dos valores são possíveis graças ao Eu-ideal que não se
contenta em ser o que é, mas projeta-se para o mais eu; para a transcendência do eu.

O celibato sacerdotal, uma norma da Igreja, entendido na perspectiva do Eu-ideal


torna-se um projeto de vida, aceito livre e conscientemente, numa tentativa de seguir os
valores de Jesus Cristo, traduzidos pela Igreja. O celibato só é possível se entendido no
37

viés da autotranscedência. Também o desejo de se lapidar por meio da análise ou da


psicoterapia é um reflexo dessa idealização do eu. O sujeito sabe que pode ser diferente,
ter mais liberdade interior, projetar-se. Todo o novo almejado pelo Eu-atual torna-se uma
força motriz da vida humana. O homem é sempre um devir, dotado de potencialidades. O
Eu-atual é parceiro do Eu-ideal; um não existe sem o outro e os dois se completam na
tessitura da vida humana.

O sujeito (Eu-atual) desenvolve-se pela força gravitacional do Eu-ideal


(transcender-se). Na dinâmica entre os dois “eus” há um conflito, uma oposição de
fatores motivacionais, a chamada dialética de base (Rulla, 1987), aqui, não entendida
como limitação humana. Ao contrário, a dialética entre as duas estruturas do eu é a força
que faz a vida acontecer em seu mistério existencial.

Entretanto, as dialéticas entre as estruturas permanecem. As duas


estruturas do Eu ideal e do Eu atual estão em relação de dialética, de
oposição: de um lado, há o Eu ideal, isto é, a tendência para a
autotranscedência ilimitada, expressa por aquilo que o homem quisera
ser e fazer; por outro, há o Eu atual, isto é, a limitação do homem,
expressa por aquilo que ele é ou faz. (RULLA, 1987, p. 201).

O Eu-atual é limitado pela constituição faltosa à qual o indivíduo está submetido,


querendo ou não. Com o intuito de preencher essa falta, o Eu-atual idealiza-se. A
limitação do Eu-atual é tanto consciente quanto inconsciente. Da parte inconsciente,
existem repressões, traumas e bloqueios psicológicos que impendem o desenvolvimento
do Eu-ideal. Do consciente, há o medo de lançar-se, de desalojar-se da segurança
encontrada. O jovem quer transcender-se, no entanto não avança muito em seu desejo. O
Eu-atual depende do Eu-ideal para fazer emergir o gigante humano que habita em todo
indivíduo. A ilimitação do Eu-ideal faz com que o Eu-atual movimente-se.

No itinerário da formação sacerdotal, as estruturas do Eu-ideal e do Eu-atual


precisam fazer-se presentes. É aí que o jovem será instigado no seu protagonismo
formativo a reconhecer e potencializar sua capacidade. Formar é retirar da inércia o Eu-
atual do vocacionado ao sacerdócio; é permitir-lhe a “possibilidade de fazer as
experiências que o fazem confrontar-se consigo mesmo.” (RULLA, 1987, p. 439).
Qualquer jovem em processo de formação precisa encontrar-se com a frustração, seja ela
acadêmica, vocacional, sexual ou eclesial. Não será bom para a Igreja e tampouco para o
jovem manter-se como que numa redoma de vidro, protegido dos assédios sociais e das
38

interrogações acerca da vida, da vocação e das normas eclesiásticas. A vocação, qualquer


ela, é ouro testado em fogo.

A idealização do Eu-atual sofre contínua transformação, isto é, o Eu-atual sempre


prossegue em busca, auto transcendendo-se. A mutação é uma característica humana, por
isso, como ser faltoso e desamparado por constituição, o sujeito galga o Eu-ideal
tornando-o processo contínuo da vida humana.

O eu-ideal de cada pessoa individual é um projeto de vida que deveria


ser tanto objetivo como livre. Objetivo, para ajudar a pessoa a auto
transcender teocentricamente nos valores objetivo de Cristo. Livre, para
que a pessoa seja capaz de escolher e de seguir a Cristo. Por isso, o eu-
ideal objetivo e livre é sustento da motivação vocacional. (RULLA,
1987, p. 437).

A vocação sacerdotal e suas implicações, bem como todas as escolhas humanas,


no horizonte do Eu-ideal, recebe um faixo de luz, tornando-as acessíveis à faculdade
humana. As escolhas do Eu-ideal são livres e arquitetadas conforme a opção de vida
pleiteada. Quando se concorda que o Eu-ideal exerce uma força sobre o sujeito, declara-
se a possibilidade perfectível dos seres racionais, isto é, sua integração.

Sentir-se chamado ao ministério sacerdotal pode ser uma mera idealização do eu;
um desejo de reconhecimento e de emancipação social, por exemplo. Tanto um quanto o
outro podem ser estimuladores vocacionais, utopia do Eu-atual que se quer transcendido
pelo Eu-ideal. Oxalá, o processo formativo consiga ajudar o vocacionado a
metamorfosear-se de uma idealização inconsciente à consciente. A meta ideal da
formação é configurar a vida humana aos princípios cristocêntricos.

2.3 A internalização dos valores autotranscendentes

Os resultados da pesquisa desenvolvida por Rulla (1987) vieram à baila quando a


Igreja sentia os ecos do Concílio Vaticano II2 (1962 a 1965). Foi um período dificílimo
para a Igreja, onde muitos não se sentiam preparados para viver as mudanças inauguradas

2
O Concílio Vaticano II, o XXI Concílio Ecumênico da Igreja, foi convocado pelo Papa João XXIII (1961)
e terminou em 1965. No entendimento de João XXIII, a Igreja precisava de aggiornamento, atualização.
Ela distanciava-se da realidade moderna em que a sociedade estava envolvida. Os resquícios da cristandade,
impregnados nos muros da Igreja de Roma, impossibilitava o diálogo com a sociedade moderna. A Igreja
viu-se afetada pela descredibilidade social e pela crise de fé dos seus adeptos. O Concílio Vaticano II deu
aos leigos o direito de participar ativamente da Igreja, passando de espectadores a protagonistas de uma
nova era.
39

por esse Concílio3. Mudou-se de uma Igreja clericalista, hierárquica à Igreja povo de
Deus; do catolicismo ao ecumenismo; da cristandade à modernidade. Ao concluir sua
investigação empírica, valendo-se de diversos instrumentos psicológicos, como
entrevistas e testes projetivos, Luigi Rulla (1987) constatou a necessidade de um
acompanhamento psicológico para os candidatos à vida sacerdotal. Em sua pesquisa,
percebeu que atravessamentos inconscientes, conflitos afetivos e outros fatores psíquicos,
como a inferioridade, a dependência afetiva e uma personalidade patológica, afetam a
vivência dos compromissos vocacionais em diferentes níveis e formas. Essa constatação
foi validada pelos documentos da Igreja, especialmente após o Concílio Vaticano II (1962
-1965).

Com o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja abriu-se à modernidade,


reconheceu seus equívocos e despojou-se da presunção de manter-se como instituição
reguladora do comportamento social. Seu foco não estava mais no discurso metafísico ou
escatológico, mas em seu compromisso com a realidade humana, no aqui e agora.
Desbravava-se uma Igreja mais humana, peregrina, próxima à realidade sofrida do povo.
Muitos membros da hierarquia eclesiástica não entenderam e nem aceitaram os novos
paradigmas eclesiais, gestados durante e depois do Vaticano II (1962 - 1965). A vida
religiosa e a vida sacerdotal sofreram muitas evasões... Por causa das novidades do
Concílio? Não somente. Outras razões vieram à tona e elas foram decodificadas com os
estudos de Rulla (1987).

Pode-se presumir que as evasões da vida sacerdotal e religiosa, pós Concílio


Vaticano II (1962-1965) foram motivadas, mais por questões de inconsistência
vocacional do que eclesiológicas advindas do referido Concílio. Conforme dados
coletados por Rulla (1987) e presentes na tese de Dias (2010), muitos padres se
identificavam mais com a instituição eclesial e seu glamour/status do que com Jesus
Cristo. Se a instituição com que se identificavam não era mais a mesma, o que sustentaria
o ministério sacerdotal? Se atrás dos muros da Igreja o padre sentia-se protegido dos seus
conflitos existenciais, o Concílio o desvelou dessa falsa segurança, impelindo-o a deixar

3
O Concílio é um evento universal da Igreja, convocado pelo Papa, com o intuito de se discutir doutrina,
dogmas de fé e outros assuntos importantes da Igreja que não podem ser deliberados sem a colegialidade
universal dos bispos, padres, o Papa e especialistas no assunto. O Concílio Ecumênico Vaticano II, fora
convocado pelo Papa João XXIII, para unir todos os cristãos e abrir as portas da Igreja à modernidade.
40

esse lugar “uterino” para envolver-se com a comunidade e com os sofrimentos do povo,
despido da batina, do autoritarismo defensivo e outros artefatos isolantes.

Uma vocação sacerdotal ancorada em aparatos secundários, em detrimento dos


valores autotranscendentes, como a busca de prestígio, de gratificações e de defesa de si
e dos outros é inconsistente, e não se mantém diante das flutuações sociais e eclesiais.
Como antídoto às inconsistências vocacionais, Rulla (1987) sugere que a formação inicial
precisa favorecer a internalização dos valores teocêntricos. Esta proposta, registrada nas
entrelinhas dos escritos sobre a formação sacerdotal, sobretudo na Exortação Pós Sinodal
PDV (1992) e nas diretrizes da formação sacerdotal (2010), está em sintonia com a teoria
da “autotranscedência na consistência”. Escritos e teoria, ambos, com nomenclaturas
diferentes, propõem a configuração a Jesus Cristo como essencial ao processo formativo.

Ainda sobre os valores autotranscendentes, o psicólogo Luigi Rulla (1987)


diferencia internalização de identificação de valores. Quanto à internalização, ele
explicita que

Eu internalizo um valor revelado ou vivido por Cristo na medida em


que estou disposto, sou livre de aceitar esse valor que me leva a uma
autotranscedência teocêntrica [...], de ser transformado por esse valor,
e de fazer tudo isso por amor da importância intrínseca que o valor tem,
e não pela importância que ele pode ter para mim. (RULLA, 1987, p.
410).

Enquanto a identificação se dá no momento em que

A pessoa adota as novas atitudes ou ideias, não porque são importantes


em si mesmos, mas porque são importantes para a pessoa. [...] A
identificação é um processo muito poderoso de influência social, mas é
fortemente ambivalente como meio para influenciar a internalização
das atitudes e dos valores vocacionais: pode promovê-los como também
modificá-los. (RULLA, 1987, p. 418 e 420).

Diferente da internalização, a identificação com os valores serve para estabelecer


uma relação gratificante para o indivíduo, como exemplo, manter uma imagem positiva
de si diante de um grupo. Na identificação o fenômeno é o de querer ser reflexo do outro,
imitando o outro que se apresenta como modelo. O fenômeno da identificação é notório
nas etapas iniciais da formação. Muitos jovens chegam ao seminário inspirados por
41

alguns modelos sacerdotais4. Geralmente os padres midiáticos são os que mais inspiram
os vocacionados. Tal fenômeno, clareia a missão pedagógica da formação, a de ajudar o
jovem a amadurecer suas motivações sacerdotais, tendo como foco que o modelo é
sempre Jesus Cristo. Autores como Cencini e Manenti (1988) afirmam que os modelos
são necessários, mas não um fim em si mesmo.

A identificação é, pois, um processo de aprendizagem ambivalente e


constitui-se num estágio intermediário na maturação dos motivos, mas
jamais a meta. O ponto final deveria ser a apreensão dos
comportamentos adotados, porque neles se crê intrinsecamente e, por
isso, independente do reforço social: nascidos numa relação
permanecem além da relação. A identificação como meta em si mesma
impede o crescimento. (CENCINI e MANENTI, 1988, p. 356).

O tempo de formação é favorável ao amadurecimento e ao discernimento


vocacional. Amadurecer é migrar da identificação com o padre Y, à internalização dos
valores autotranscendentes teocêntricos. A identificação pode servir de pontapé inicial,
mas não deverá persistir ao longo do tempo formativo.

Na internalização, os valores e os comportamentos são intrinsicamente


importantes, por isso introjetados, livre e conscientemente pelo sujeito vocacionado.
Acredita-se no valor pela sua importância intrínseca; interioriza-se por convicção,
alterando-se o modus vivendi de quem o internalizou. A internalização de valores se dá
no espaço da razão mais que da emoção; é uma assimilação cognitiva com incidências no
comportamento individual e, portanto, eclesial e social. O seminarista percebe o valor,
reflete sobre o mesmo, decide aceitá-lo, fazê-lo seu, internalizá-lo. Um valor
internalizado é antes um valor acreditado, refletido e assumido como uma bússola
vocacional. O valor internalizado é auto transcendente, porque possibilita o homem
transcender a si mesmo.

Existe no homem a possibilidade, a capacidade de se autotranscender


teocentricamente, isto é, de ultrapassar sistematicamente a si mesmo, a
tudo que adquiriu, a tudo que pensa, quer e realiza, a tudo que é, para
se projetar além de sua situação presente e alcançar Deus como objetivo
último. (RULLA, 1987, p. 5).

4
Informação obtida em entrevista semiestruturada, realizada no dia 22 março de 2018, com formadores
do seminário da Arquidiocese de Mariana- MG. É também a minha percepçao do tempo em trablhei na
formação, entre os anos de 2008 a 2014.
42

O processo de autotranscedência, segundo Rulla (1987), é ontológico. Daí a


possibilidade antropológica do transcender-se a si mesmo, do ir além do simplesmente
biológico. Por que internalizar tais valores? Porque a missão sacerdotal é ser com as
comunidades outro Cristo. “Ele é pastor, a exemplo de Jesus, o Bom Pastor.” (CNBB,
2010, n. 68); e age como Ele. “Os valores de Cristo precisam ser assimilados,
internalizados, integrados com o resto da personalidade, de maneira que ela seja
transformada nele.” (RULLA, 1987, p. 442). Mais que observar comportamentos, a
equipe formativa precisará enxergar o coração dos formandos; tarefa que exige respeito
e presença na cotidianidade dos espaços formativos, como recomendam as diretrizes da
formação sacerdotal no Brasil (CNBB, 2010). A equipe se perguntará se aquele
seminarista está configurado a Jesus, ou ao seu bispo, ao reitor ou a outro modelo
estimulador.

A equipe de formadores e, em primeira instância, o próprio candidato ao


sacerdócio, perceberá o grau de internalização dos valores recomendados a quem opta
pelo sacerdócio. O candidato ao sacerdócio é protagonista da própria formação; “toda e
qualquer formação, naturalmente incluindo a sacerdotal é, no fim de contas, uma auto
formação.” (PDV, 1992, n. 69). A auto formação se dá quando da percepção dessa
fraqueza ontológica, e, parafraseando Pereira (2004), o ato formativo constitui-se como
verdadeiro fazer humano. Nos escritos sobre a formação sacerdotal, enfatiza-se que sem
uma devida formação humana, a formação sacerdotal está comprometida (CNBB, 2010).
Neste ínterim formativo, bem como o pensamento doutrinário da Igreja, toda formação
tem como meta a humanização.

Enfim, a internalização dos valores não deverá ser entendida como uma obrigação,
uma resposta aos formadores e à instituição. Isso seria um caos; não favoreceria o
fortalecimento do ego, que segundo Freud (1937-1939), é frágil, desamparado por
natureza. O seminarista é protagonista da dinâmica formativa, e a valoriza em respeito ao
seu eu, a instituição à qual está vinculado. A internalização dos valores torna-se um
critério norteador ao discernimento vocacional. Como discernir se o seminarista está apto
a continuar no processo formativo, ou não? Está credenciado a responder tal pergunta
quem com ele conviver no processo formativo, a partir dos instrumentos de
acompanhamento e desenvolvimento vocacional. Internalizar os valores cristológicos é
empreender uma ruptura comportamental reflexiva. Mais que uma mudança de
comportamento, é mudança de sentimento, de mentalidade
43

2.3.1 A ambivalência e a pseudointernalização dos valores

Sabe-se que os valores possuem ambivalências, têm função utilitarista e defensiva


(Rulla, 1987). Na primeira, praticam-se os valores para obter gratificações, afetando a
liberdade interior à vivência dos mesmos. Usa-se dos valores para se autopromover. Na
segunda, a defensiva, o sujeito defende-se de suas inseguranças internas. A partir daí a
necessidade de se perguntar pela consistência ou não dos valores. Praticam-se os valores
para agradar ou conseguir prêmios, gratificações, conscientemente ou não. O homem é
influenciado por forças inconscientes que o faz agir de forma defensiva. É possível, com
as tramas do inconsciente que atravessam a existência humana, que haja uma
pseudointernalização dos valores autotranscendentes teocêntricos, conforme o exemplo
anterior do altruísmo. É necessário admitir a incidência do inconsciente sobre o indivíduo,
mas não como “força dominante de nossa vida psíquica.” (RULLA, 1987, p. 89).

Também no âmbito formativo sacerdotal a pseudointernalização pode se


apresentar. Por exemplo, o seminarista acata as normas e os valores inerentes ao processo
formativo, nem sempre por convicção, mas por complacência; por medo de ser orientado
a deixar o processo, de não ser mais o “menino de ouro” do reitor ou dos professores. Ele
faz o jogo para beneficiar-se. Quantos agem por complacência nos ambientes formativos?
A pseudointernalização acontece quando o sujeito age para agradar a terceiros ou
conquistar uma promoção ou a sonhada ordenação sacerdotal.

Os complacentes são vocacionalmente inconsistentes; alguns tantos são


dependentes afetivos; outros se sentem inferiores e incapazes. Os que se comportam de
forma complacente, são motivados pelas necessidades dissonantes: “agressividade,
dependência afetiva, evitar a inferioridade e defender-se, exibicionismo, gratificação
sexual, sentimento de inferioridade.” (RULLA, 1987, p. 558). Tais necessidades não
contribuem com a autotranscedência humana. Autores como Cencini e Manenti (1988),
afirmam que nas necessidades dissonantes a “pessoa se apoia na outra não para se
construir, mas para dela se depender, dada sua incapacidade de auto definir-se.”
(CENCINI e MANENTI, 1988, p. 359). Um olhar observador, que não significa punidor,
saberá identificar esses processos no âmbito formativo e ajudar o jovem a tomar
consciência de suas ações, libertando-o de si mesmo.
44

A internalização dos valores é recomenda tanto aos formandos quanto aos


formadores. Rulla (1987) foi enfático ao apontar possíveis discrepâncias no processo
quando os formadores proclamam, recomendam a internalização dos valores, mas eles
mesmos não alcançaram este estágio de maturidade. Ele afirma que aí está uma “das
maiores deficiências do processo de formação.” (RULLA, 1987, p. 443). Há incoerência,
ou melhor, inconsistência entre o discurso e a prática. Só é possível internalizar valores
quando se está livre interiormente.

Eu internalizo um valor revelado ou vivido por Cristo na medida em


que estou disposto, sou livre para aceitar esse valor que me leva a me
transcender teocentricamente ( em vez de egocentricamente ou apenas
filantrópico-socialmente) sou livre de ser mudado por esse valor e de
fazer tudo isso pela importância intrínseca que o valor tem, antes que
pela importância ou gratificação que ele pode ter para mim. (RULLA,
1987, p. 515).

O seminarista que ao longo da formação inicial internalizou os valores não guia


suas atitudes em busca de elogios e aplausos, nem por temor da desaprovação dos
superiores ou de receber alguma punição. A não internalização dos valores não é atitude
consciente. Pode haver vontade, mas faltar a liberdade interior. A vontade de internalizá-
los pode estar bloqueada por atravessamentos psíquicos, tais como o complexo de
inferioridade, traumas infantis, dependência afetiva e outros. Afetado por um complexo
de inferioridade, de repente, a internalização de um determinado valor pode render ao
seminarista determinada estima de si, passando a gozar de certo status com a comunidade.
Um seminarista altruísta, por exemplo, age assim porque o valor do serviço ao outro é
importante em si, ou percebeu aí uma fonte de satisfação, ao ser elogiado pelos colegas?
Eis uma questão que precisa acompanhar os encontros de crescimento vocacional,
favorecendo o confronto e, portanto, o autoconhecimento.

Em seus estudos, Rulla (1987) constatou uma necessidade emergente: a de que


não se pode partir do pressuposto de que o seminarista já conheça os valores teocêntricos.
Os que chegam, salvo algumas exceções, conhecem o que é secundário 5. Chegam com a
túnica pronta, guardada na mala num esmero só; vestidos de camisas personalizadas com
estampas de Nossa Senhora, quando não vestidos socialmente, estilo advogado.

5
Sabem os nomes dos paramentos episcopais, conhecem os livros litúrgicos, cumprem as posturas
litúrgicas, as de Roma, sobretudo, mas desconhecem-se a si mesmo, uma possível repressão do seu eu atual.
45

Apresentam-se familiarizados com a linguagem litúrgica, os paramentos e os devocionais,


mas pouco afeitos à Palavra de Deus.

Sobre a vivência dos valores proclamados, Rulla (1987) enfatizou que “os valores
autotranscendentes de Cristo devem ser apresentados como o ideal supremo e mais
importante de viver, ao qual todo o resto deve ser subordinado.” (RULLA, 1987, p. 440).
Ele continua afirmando que

A diminuição de muitos valores morais e religiosos que se verificou nos


últimos tempos em diversas nações do mundo cristão vai requerer que,
desde o começo da formação sacerdotal e religiosa, o formador
concentre seus esforços na apresentação desses valores. (RULLA,
1987, p. 441).

A formação inicial consiste, essencialmente, na apresentação desses valores.


Como acontece a apresentação dos valores autotranscendentes nos espaços formativos da
Igreja no Brasil? “O seguimento a Cristo não pode ser reduzido a uma espécie de relação
moral baseada na observância de normas.” (RULLA, 1987, p 548). Mais do que observar
normas canônicas e rubricas litúrgicas é preciso perguntar pela capacidade da amar
gratuitamente, de trabalhar em comunhão presbiteral e comunitária; há que se perguntar
pela capacidade de renúncias por causa de um bem maior, o Reino de Deus e sua justiça.

No seminário de Mariana- MG, que provavelmente não difere muito da realidade


das demais dioceses brasileiras, o desejo de usar a túnica6 - veste litúrgica dos sacerdotes
- deixa entrever que a identificação com tais vestes tem primazia sobre a internalização
dos valores morais e religiosos, o que parece confirmar a percepção de Rulla (1987). O
problema não se limita em usar ou não a túnica; o foco deverá ser outro. O déficit será
quantificado quando depois de oito anos de formação, o seminarista ainda permanecer
motivado por esses aparatos externos e distantes da identidade cristológica que deve
pautar o agir sacerdotal. A vivência do ministério sacerdotal não se sustenta por meio de
motivações frívolas, como o uso de indumentárias eclesiásticas.

A não internalização dos valores morais e religiosos no tempo da formação inicial


pode ser uma das explicações dos escândalos da Igreja, não só os sexuais. Existem outros

6
Essa percepção é notada por mim nos tempos em que estive à frente de uma comunidade formativa, entre
os anos de 2008 a 2014, bem como o que ouço dos formadores e dos próprios jovens que desejam ingressar
nos seminários. Outros padres formadores, da Igreja no Brasil, constatam, atualmente, a mesma tendência.
46

espinhos na carne da Igreja; os afetivos dão mais ibope. Existem outros que causam danos
ao povo de Deus, por exemplo, as questões administrativas, autoritarismo, abuso de
poder, alcoolismo, dependência das redes sociais, padres e leigos afetados por uma
personalidade patológica (Pereira, 2004) ou por inconsistências vocacionais.

Alguns dos que procuram o seminário com o discurso de sentirem-se chamados


por Deus ao ministério sacerdotal, não preenchem os requisitos básicos para o ingresso
no processo formativo. Não poucos apresentam sinais de possíveis distúrbios psíquicos,
como concluíram Rulla (1987) e Pereira (2004) em suas pesquisas. Além dessas
dificuldades psíquicas, existem outras, como a defasagem acadêmica.

A formação sacerdotal, tema do próximo capítulo, tem sua pedagogia específica,


sustentada nas cinco dimensões da formação: humana, espiritual, comunitária, pastoral e
acadêmica. O início formativo inicia-se no propedêutico7, segue com a filosofia e a
teologia. Essas etapas são consideradas como formação inicial, para distinguir da
permanente, que se destina a todos os presbíteros ao longo do seu ministério.

7
Existem algumas dioceses que iniciam a formação sacerdotal no Ensino Médio. Essa etapa era chamada
de seminário menor. Essa modalidade é optativa. A Igreja no Brasil propõe o início da formação sacerdotal
com o Propedêutico.
47

3 A FORMAÇAO SACERDOTAL NA ARQUIDIOCESE DE MARIANA -MG

A formação sacerdotal é tema complexo, sobretudo no desafiante contexto


cultural do século XXI. Escândalos sexuais envolvendo membros do clero, fragmentação
dos valores vocacionais e ausência de resiliência frente aos desafios inerentes à opção
vocacional. O processo formativo requer planejamento, atenção, atualização
metodológica e de entendimento referente às demandas da juventude. O tempo muda, a
cultura muda e os jovens também mudam. “na contemporaneidade não há, por exemplo,
o aluno indignado de 40 anos atrás.” (PEREIRA, 2004, p. 124). Sofrem impactados pelas
possibilidades das redes sociais, como compras, jogos e relacionamentos virtuais.
Inquietam-se e fragmentam-se frente a ideologia capitalista que associa a felicidade ao
consumismo. A sociedade líquida promove relações e opções líquidas (Bauman, 2001).

O seminário Arquidiocesano de Mariana, no interior do estado de Minas Gerais,


que em 20 de dezembro de 2018 comemorará 260 anos de existência, percebe as nuances
dos novos tempos culturais. Portanto, procura aprimorar a singularidade das três etapas
formativas, seus objetivos e projetos, a partir dos documentos eclesiais referentes ao
processo formativo. Sabe-se que a formação sacerdotal só é compreensível e possível
como configuração a Jesus Cristo.

Formar o presbítero é conduzi-lo a si mesmo, favorecendo o autoconhecimento


e, simultaneamente, o conhecimento de Jesus Cristo, o pescador de gente. Formar é
entendido como lapidar a vida, internalizar os valores teocêntricos e aprofundar a fé na
audácia libertadora do Evangelho. Nesta perspectiva, descrever-se-á a pedagogia
formativa a partir do referencial teórico da “Autotranscendência na consistência”, Rulla
(1987).

3.1 A formação sacerdotal

A Igreja Católica entende que toda vocação é um chamado de Deus; uma iniciativa
Divina que requer a resposta humana. A vocação é uma escuta ao chamado de Deus que
se dá no seio da comunidade, no real da luta do povo crente na libertação salvífica. O
chamado é feito a frágeis homens, que vivem à mercê das lutas psicológicas, comum ao
ser falante e pensante. O padre não é um super-homem, antes é um indivíduo de carne e
48

osso, com desejos e sonhos; com potenciais humanos, conflitos e traumas, e desejoso em
fazer o bem.

Os documentos da Igreja sobre a vocação sacerdotal afirmam que “A vocação


sacerdotal é um dom de Deus, que constitui certamente um grande bem para aquele que
é o seu primeiro destinatário.” (PDV, 1992, n. 41). O fundamento bíblico dessa afirmação
encontra-se no Novo Testamento, especificamente na Carta aos Hebreus, onde se lê:
“todo sumo sacerdote, escolhido entre os homens, é constituído para o bem dos homens
nas coisas que se referem a Deus.” (Carta os Hebreus, 5,1). A relevância desse texto
bíblico é evidente quando se leem os documentos da Igreja sobre a formação sacerdotal,
como a Exortação PVD (1992), as diretrizes da CNBB (2010), e a Ratio (2016). A
presença do supracitado texto bíblico, nesses três documentos, explicita a compreensão
teológica e o mysteryum que fundamentam a vocação sacerdotal.

Partindo do pressuposto teológico de que a vocação sacerdotal é um chamado de


Deus e uma resposta humana, o processo formativo visa ajudar o jovem a fazer o
discernimento vocacional. Muitos se sentem chamados ou afirmam serem chamados por
Deus ao ministério sacerdotal. O itinerário formativo ajudará o jovem a responder,
primeiro a si mesmo e depois à Igreja, se Deus o chama ou não. Como se alcançará tal
objetivo? Percorrendo as diversas etapas da formação inicial: Propedêutico, Filosofia e
Teologia, segundo as orientações pedagógicas da Igreja no mundo e no Brasil. Para cada
etapa mencionada existe um projeto formativo a ser trilhado pelo jovem, com o apoio
qualificado da equipe responsável pelo itinerário formativo.

Desta forma, os documentos distinguem a “formação inicial da formação


permanente.” (PDV, 1992, n. 42). A primeira coincide com o tempo do seminário e, de
acordo com as diretrizes da CNBB (2010), o processo pedagógico da formação inicial
incide, especialmente, sobre o desenvolvimento dos seguintes componentes da pessoa:

Formação do ser: que o vocacionado venha ser uma autêntica pessoa


humana[...]. A formação do saber: que o seminarista alcance a sabedoria
humano-espiritual, como discípulo e missionário do Senhor Jesus, mediante os
estudos acadêmicos à altura dos desafios da contemporaneidade [...]. Formação
do servir: que o seminarista adquira o espírito de serviço, a exemplo do bom
samaritano, para lidar criativamente com a multiplicidade de desafios da ação
pastoral em novos contextos sócio-culturais e religiosos[...]. (CNBB, 2010, n.
204).
49

Portanto, a formação do ser, do saber e do servir, na perspectiva da formação


sacerdotal, é a estruturação da subjetivação do sujeito. É orientá-lo para que seja
protagonista da sua escolha, do seu itinerário formativo, responsabilizando-o por suas
escolhas e decisões; ajudando-o a amadurecer as motivações vocacionais, sempre no
horizonte da imitação de Cristo, o Bom Pastor. Essa dinâmica acontece no seio
contemporâneo da sociedade, onde prestará serviços ao povo, como pastor que cuida das
ovelhas feridas e ameaçadas pelos lobos, no contexto social e religioso.

O processo formativo é também autoformativo. O que significa essa assertiva?


Que as estruturas institucionais não substituem o protagonismo do sujeito implicado na
dinâmica formativa. É tempo de o formando se confrontar, de se perceber como chamado
a assumir um serviço eclesial, tendo como referência Jesus Cristo. Contudo, o itinerário
formativo visa ajudar o seminarista a conhecer Jesus, de quem será seguidor e imitador.
Diz-se de um conhecimento teórico e místico, imbricadamente! Um conhecimento
internalizante das atitudes do Homem de Nazaré. Daí a expressão In Persona Cristhi,
cunhada na Igreja primitiva para afirmar que o sacerdote não imita o Cristo, mas O
atualiza. A internalização dos valores e das atitudes cristólogicas se dá pelo conhecimento
acadêmico, bíblico, pela meditação e pela oração.

Pereira (2004) sintetizou a proposta da formação sacerdotal, narrando a


necessidade do protagonismo do formando, sem, é claro, escusar o formador. Este último
é um facilitador do itinerário formativo. Sua presença na dinâmica formativa é
fundamental; é um parceiro de caminhada que incentiva a confrontação intrínseca ao
processo formativo. O protecionismo, por parte de alguns formadores, parece causar a
esterilidade espiritual, acadêmica, pastoral e comunitária. É preciso deixar o ser fluir com
liberdade e angústia, ancorando-se em Jesus Cristo e na comunidade formativa, sem criar
uma dependência paralisante. Inevitavelmente, qualquer formação do sujeito será por
meio de uma dialética psicológica do eu; essa dialética nasce da relação entre o Eu-atual
e o Eu-ideal, que é transcender-se a si mesmo ou permanecer no Eu-atual.

O fortalecimento da chamada identidade sacerdotal - o ideal institucional- que é o


propósito formativo, é uma construção permanente, que tem início na formação inicial,
como parte do Eu-ideal, prolongando-se na formação permanente. A identidade
presbiteral, à qual se propõe cultivar o seminarista e o presbítero, pode ser descrita com
o discurso do Apóstolo Paulo à comunidade dos Gálatas, “já não sou eu quem vivo, é
50

Cristo que vivem em mim.” (Gálatas, 2, 5). O mesmo Apóstolo recomenda que a
comunidade de Filipos cultive os mesmos sentimentos que há em Jesus Cristo (Filipenses,
2, 5). Dito de outra forma, as recomendações do Apóstolo Paulo são apresentadas na
teoria da transcendência na consistência, quando Rulla (1987) prescreve a internalização
dos valores teocêntricos como a meta e a pedagogia da formação sacerdotal.

Em seus escritos, Rulla (1987) reafirma e evidencia a presença do formador como


propulsor da internalização dos valores, promovendo a identidade sacerdotal, à medida
que a internalização dos valores autotranscendentes vão se solidificando. O itinerário
formativo é ajudar o formando a internalizar os valores teocêntricos, configurando-se a
Jesus Cristo. O formador apresenta os valores que precisam ser internalizados, como uma
oferta pedagógica, um modelo a ser seguido. Nesta proposta formativa, o critério para
prosseguir nas etapas não é a mera aprovação acadêmica. Formando e formador devem
se perguntar pela capacidade de internalização e vivência dos valores teocêntricos.

É notório que a busca da autotranscedência, como caminho formativo em vista do


presbiterado, pode ludibriar o formando, caso faça esse movimento apenas por o
considerar algo importante para si, uma espécie de lucro pessoal. É importante para si
porque lhe dá ganhos secundários, como, por exemplo, admiração, elogios e status; uma
forma de superar uma frustração, uma inferioridade ou até uma baixa autoestima.

A autotranscedência teocêntrica precisa ser almejada pela sua importância em si,


sem presunção de ganhos secundários. Formar-se é autotranscender-se em Deus,
almejando a liberdade interior, amadurecendo e confrontando as motivações vocacionais
do Eu-atual com os valores que constituem o Eu-Ideal, configurando-se a Jesus, Sumo e
eterno Sacerdote. Uma vocação consistente é uma vocação amadurecida na
autotranscedência teocêntrica; significa fazer e agir por uma causa maior, e não para obter
satisfação dos impulsos e das carências narcísicas. “A autotranscedência é o movimento
com que o homem ultrapassa sistematicamente a si mesmo, em tudo que é, quer, pensa e
realiza.” (RULLA, 1987, p. 171).

3.2 O Itinerário formativo do presbítero diocesano

A formação inicial, na Arquidiocese de Mariana-MG, inicia-se no Propedêutico,


após a conclusão de Ensino Médio. É a primeira experiência de vida comunitária
institucional; um tempo de preparação humana, cristã, intelectual e espiritual. A etapa
51

propedêutica conclama o jovem vocacionado a mergulhar “no conhecimento de si para o


crescimento pessoal.” (RATIO, 2016, n. 59). Por ser uma comunidade menor, torna-se o
tempo propício para o formador conhecer e perceber os conflitos subjacentes à
fragmentação da vida familiar, as perturbações emocionais, as motivações inconscientes
e inconsistentes, que acompanham os vocacionados.

O Propedêutico tem como prioridade, conforme as Diretrizes para a formação dos


presbíteros da Igreja no Brasil (2010), o amadurecimento da personalidade; o
aprimoramento da formação humano-afetiva; aprofundamento do discernimento
vocacional; orientação da sexualidade masculina e feminina; formação da consciência e
do caráter; equilíbrio no relacionamento interpessoal. Superação da tendência ao
isolamento e individualismo; experiência de trabalho em grupo; seriedade nos
compromissos assumidos. Aprofundamento da experiência de Deus e de amizade com
Jesus Cristo. Complementação da formação intelectual do Ensino Médio; metodologia de
estudo, leitura e aprendizagem. Conhecimento da pastoral orgânica da Igreja; visita a
presídios, asilos, casas de recuperação de usuários de drogas ilícitas; atenção especial a
temáticas que envolvem fortemente a humanidade toda, como direitos humanos e
aquecimento global. São questões pertinentes a serem discutidas num curto tempo de um
ano.

Terminada a etapa do Propedêutico, inicia-se o período da Filosofia, com duração


de três anos, na Arquidiocese de Mariana-MG. A formação filosófica é de fundamental
importância no itinerário formativo sacerdotal. Com o saber filosófico o seminarista se
instrumentalizará para adequada compreensão do ser humano, das correntes culturais e
religiosas da cultura atual. O conhecimento filosófico fomentará o diálogo com o mundo
contemporâneo, além de suscitar a descoberta da dimensão transcendental da existência
humana.

Com uma sociedade cada vez mais plural, o diálogo aberto ao diferente torna-se
uma necessidade fundamental, até mesmo nos meandros de uma Igreja mais rural, como
a Arquidiocese de Mariana, em Minas Gerais. Saber dialogar com quem tem o direito de
pensar diferente é o caminho de superação dos conflitos humanitários e da formação da
consciência crítica. O presbítero é um formador de opinião, e, em cidades pequenas, o
padre poderá ajudar o povo a se defender e a lutar pelos seus direitos, geralmente
52

sucateados por lideranças políticas, por grandes empreiteiras e pelo mercado financeiro.
Como Jesus, é preciso, às vezes, expulsar os vendilhões do templo. (João 2,13-25)

O documento mais recente sobre a formação sacerdotal, a Ratio (2016), descreve


a etapa da filosofia como oportuno à formação da consciência do discipulado. Segundo o
referido documento, a Filosofia precisa proporcionar um trabalho sistemático sobre a
personalidade, uma educação para a verdade, para a liberdade e para o domínio de si.

Com a finalidade de atingir uma sólida maturidade – física, psico-


afetiva e social -, que se exige do pastor, será um apoio útil a prática de
exercício físico e desportivo, além da educação a um estilo de vida
equilibrado. Além do essencial acompanhamento pelos formadores e
pelo diretor espiritual, para integrar os aspectos fundamentais da
personalidade, em certos casos poderia servir de ajuda um específico
acompanhamento psicológico. (RATIO, 2016, n. 63).

O curso de Filosofia é mais do que obrigatoriedade científica, ou simplesmente


academicismo; por meio do saber filosófico o sujeito social pode alcançar um maior
conhecimento do homem, do mundo, de Deus, e abrir-se ao diálogo com grupos, culturas
e outras demandas próprias da contemporaneidade. A humanidade vive numa época de
grandes desafios, exigindo da Igreja capacidade de dialogar com o diferente. O contexto
atual impõe à formação sacerdotal inúmeros desafios, desde a dificuldade no núcleo
familiar, passando por conflitos psíquicos até as dificuldades de aprendizagem.

A pesquisa realizada por Pereira (2004), detectou os desafios supracitados. As


novas diretrizes da formação sacerdotal (2010), que foram elaboradas a partir do âmbito
nacional, registraram o que a pesquisa detectou.

Parte dos vocacionados e seminaristas padecem as consequências de


uma aprendizagem deficiente, advindas do sistema educacional do país,
da falta de oportunidade em seu ambiente de origem e dos limites do
seu desenvolvimento psico-físico. Sem hábitos de estudo, leitura e
reflexão, com dificuldades para raciocinar, ler e redigir textos,
necessitam de ajuda sistemática para cultivar a leitura e redação, para
fazer sínteses e pensar em meio a complexidade do mundo de hoje.
(CNBB, 2010, n. 39).

A modernidade trouxe muitos benefícios à sociedade, mas também um clima de


insegurança. Fala-se de uma época de mudanças. Diante das inseguranças e das flutuações
sociais, a tendência do indivíduo é apegar-se ao que lhe parece mais seguro. Para alguns
53

jovens a segurança da Igreja pode ser um atrativo equivocado à vida sacerdotal. “Muitos
vocacionados e seminaristas buscam, de início, um mundo de certeza a partir da
idealização do “ser padre”, como expressão do eu idealizado.” (CNBB, 2010, n.36).

A pedagogia da formação sacerdotal precisa conscientizar-se acerca das mudanças


culturais, antropológicas, sociais, mercadológicas, eclesiais e existenciais , e acompanhar
essa revolução temporal na qual estão mergulhados os futuros sacerdotes. A metodologia
formativa precisa atualizar-se. É preciso dar aos jovens autonomia e protagonismo
formativo. Estabelecer diálogo aberto e franco sobre questões ligadas à sexualidade e
afetividade; trazer para as rodas de conversas os desafios da Igreja local, sem querer
passar um verniz em madeira carcomida. Por isso é tão importante a rotatividade da
equipe de formadores, não dispensando a experiência construída, mas também não
colocando remendo velho em roupa nova. Os novos tempos exigem formadores
comprometidos, estruturados para o trabalho formativo e cientes das flutuações juvenis.
Vive-se na era dos avanços tecnológicos e da internet; da relatividade das verdades e dos
valores; num mundo plural, dessacralizado e afeito às experiências. “A sociedade pós-
moderna faz coexistir, de fato, diversas contemporaneidades.” (PEREIRA, 2004, p. 240).
Aqui fundamenta-se a razão de se propor que os presbíteros percorram as sendas da
formação contínua.

Concluídos os estudos filosóficos, inicia-se a Teologia. Os estudos teológicos


constituem a última etapa da formação inicial; é considerado como tempo da configuração
ao Cristo Bom Pastor. Essa configuração se efetiva por meio do saber teológico e da
relação íntima com Jesus de Nazaré, por meio da internalização dos valores teocêntricos.
Por meio da formação teológica o futuro presbítero obterá sistemático conhecimento das
Sagradas Escrituras, do Magistério da Igreja, da Sagrada liturgia e das Teologias moral e
dogmática. Percorrerá pelas sendas da Doutrina Social da Igreja, tendo presente os temas
emergentes ao contexto atual, como, por exemplo, as questões ecológicas e humanitárias.
Diante dos desafios atuais, os estudos teológicos são fundamentais para que o
seminarista dialogue com o mundo contemporâneo, tornando o Evangelho compreendido,
e fortalecendo sua identidade de presbítero diocesano, capaz de dialogar com o novo que
se ergue a cada dia.
[...] dever-se-á prestar muita atenção aos destinatários do anúncio da fé
e, por isso, aos questionamentos e às provocações emergentes da cultura
secular: a economia de exclusão, a idolatria do dinheiro, a iniquidade
que gera violência, a primazia da aparência do ser, o individualismo
pós-moderno e globalizado, e a realidade do relativismo ético e da
indiferença religiosa. (RATIO, 2016, n. 175).
54

Formandos e formadores precisam aproximar-se dessa nova realidade mundial,


com o intuito de sentir os novos tempos e elaborar os programas formativos a partir dessa
realidade global, da qual nenhum ser humano está isento de ser atingido. Facilmente o
mercado financeiro e suas respectivas ideologias de acúmulos e vantagens engolem a
proposta do Evangelho. É justamente essa proposta aniquiladora da dignidade humana
que o Evangelho denuncia: “Não leveis duas túnicas; dai-lhes vós mesmos de comer;
estive nu e me vestistes; buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça; vende tudo o
que tens e dá aos pobres”8.

O seminarista vai, à medida que se aproxima do conhecimento filosófico e


teológico, abrindo-se ao encontro com o seu eu, identificando potencialidades e áreas de
fragilidades. Abre-se à experiência com Deus, com o mundo contemporâneo e ao diálogo
com as diversidades religiosas e culturais. Novamente vale salientar que essa
aproximação deverá ser dos formandos e dos formadores. Os dois grupos precisam ouvir
os apelos das novas configurações sociais; autoconhecer-se, inculturar a formação
presbiteral.

Assim, as três etapas da formação inicial estão imbricadas. O término de uma não
significa, automaticamente, aprovação à seguinte. A formação acadêmica é uma das
dimensões do itinerário formativo. Não basta êxito acadêmico se o mesmo não é sentido
nas dimensões espiritual, comunitária, humana e pastoral. A ordenação não é um diploma,
mas um serviço ao povo de Deus, sobre o norte das cinco dimensões formativas. Tais
dimensões possibilitam o crescimento integral da pessoa do formando, assim conclui a
PDV (1992).

A continuidade no processo formativo dependerá do equilíbrio harmonioso das


cinco dimensões da formação. A Ratio (2016) evidenciou essa questão quando assegurou
que não se deve chegar ao sacerdócio somente em razão de sucesso de etapas dispostas,
segundo uma ordem cronológica. Os critérios para prosseguir no itinerário formativo não
podem ser unicamente o êxito acadêmico. Faz-se necessário ater-se ao amadurecimento
integral ao longo de cada etapa.

8
São expressões do discurso Cristológico. A omissão das citações bíblicas após cada frase se justifica
pelo fato de serem conhecidas, e facilmente identificadas na Bíblia indicada nas referências.
55

3.3 Os formadores

Em cada momento do processo formativo - Propedêutico, Filosofia, Teologia – há


uma equipe de formadores responsável pela dinamização e acompanhamento do processo
que visa fomentar, na formação inicial, a identidade sacerdotal. Os responsáveis pelo
acompanhamento formativo se unem ao bispo diocesano, o responsável primeiro pela
formação sacerdotal. O primeiro representante de Cristo na formação dos sacerdotes é o
bispo, assim como deve ser o primeiro a “sentir sua grave responsabilidade na formação
daqueles que serão encarregados da educação dos futuros presbíteros.” (PDV 1991, n.
66). O bispo convoca, com ajuda dos Conselhos Presbiteral e Episcopal, órgãos
representativos dos presbíteros da Igreja local, outros sacerdotes para desempenharem o
papel de formadores, por tempo determinado, de acordo com as circunstâncias locais e
do próprio envolvido na dinâmica formativa da Igreja local.
As diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil recordam que os
formadores, antes de assumirem o trabalho na equipe de formação devam receber uma
adequada formação que os capacite para esta missão (CNBB, 2010). Contudo, a realidade
que se vê no Brasil não é bem essa. Há uma dicotomia entre o prescrito nos documentos
e o que é vivido nas dioceses do Brasil, sobretudo onde há escassez de formadores.
Existem formadores que se sentem despreparados para o trabalho; outros se sentem
infelizes, mas continuam por obediência e por não haver quem assuma o leme do barco,
o que não é bom para nenhuma das partes envolvidas. Tal realidade é espaço aberto ao
adoecimento psíquico dos presbíteros.

Durante o exercício da função de formadores, os presbíteros normalmente residem


na mesma casa que os formandos, criando a cotidianidade da casa formativa, respeitando
a sã liberdade e a responsabilidade pessoal. Em Mariana-MG, cada etapa tem sua
residência própria, o que não é comum em outras Igrejas particulares do Brasil. Em outras
dioceses, há casos em que os filósofos e os teólogos residem juntos; ou os propedeutas e
os filósofos. Isso é possível em Mariana-MG devido ao número de presbíteros
diocesanos, aos espaços físicos e ao elevado número de vocações que procuram o
seminário Arquidiocesano. A formação sacerdotal em Mariana-MG segue as diretrizes da
Igreja no Brasil. Essas diretrizes referendam as percepções da V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizada em Aparecida - SP, em maio de
56

2007. Nesta Conferência apontaram-se os novos desafios da formação sacerdotal na


Igreja do Brasil.

A realidade atual exige de nós maior atenção aos projetos de formação


dos Seminários, pois os jovens são vítimas da influência negativa da
cultura pós-moderna, especialmente dos meios de comunicação,
trazendo consigo a fragmentação da personalidade, a incapacidade de
assumir compromissos definitivos, a ausência de maturidade humana,
o enfraquecimento da identidade espiritual, entre outros, que dificultam
o processo de formação de autênticos discípulos e missionários. (DAp.
2007, n .323).

Os bispos do Brasil registraram, nas diretrizes (2010), a mesma preocupação do


documento de Aparecida (2007). A mudança de época requer da Igreja uma preocupação
de via dupla. Faz-se necessário perceber que não se forma no período da cristandande( a
palavra é cristandade?), tampouco na época da proibição, da intimidação. Os tempos são
outros. A supremacia da Igreja foi enfraquecida. A sociedade está cada vez mais laicizada,
decretando a morte de Deus. “O século XX trouxe consigo o declínio do status da religião
católica.” (PEREIRA, 2014, p. 140).

Diante da atual mudança de época ou de paradigmas, há que se cuidar com mais


diligência do processo formativo; há que se cuidar dos que exercem, em nome da Igreja
local, a função de formadores. Os que se ocupam da formação sacerdotal são pessoas
marcadas por fragmentações humanas; homens imperfeitos, desejantes e,
psicologicamente, em construção, capazes de se equivocar em seu trabalho formativo.
Equivocam-se os que não conseguem, por exemplo, perceber que os jovens de hoje vivem
em duas sociedades, uma física e outra virtual. A segunda altera a forma de compreender
a primeira. As mídias sociais alteraram o comportamento dos jovens; eles raciocinam
mais rapidamente; conectam-se com o mundo em minutos; trocaram os livros impressos
pelos ebooks. Com isso a noção de tempo e de espaço sofrem alterações pertinentes.

A Ratio (2016) traduz a atual atenção da Igreja quanto às novas demandas do


cenário formativo. Insiste em ater-se à saúde psíquica dos candidatos ao ministério
sacerdotal, por exemplo. No entanto, parece não haver a mesma clareza e preocupação
com os critérios para a escolha dos formadores como há para a admissão dos novos
seminaristas. O mesmo documento evidencia que o Reitor seja pessoa idônea, prudente,
sábia e equilibrada; que o diretor espiritual, escolhido pelo bispo, seja um sacerdote
competente e experiente para a direção espiritual.
57

Na Igreja particular de Mariana-MG parece haver um esforço para observar tais


critérios. O elevado número de presbíteros possibilita o cumprimento dessas orientações
(retirei ;) e ainda favorece uma rotatividade dos formadores, seguindo o tempo prescrito
de seis anos, conforme a provisão eclesial do ofício. Além da riqueza da rotatividade e da
diversidade eclesiológica e antropológica, comuns à equipe de formadores do seminário
da primaz de Minas Gerais, ressalta-se, ainda, o valor que é ter uma equipe maior,
conforme pontuou o formador C. Nenhuma das três casas de formação da Arquidiocese
tem menos de três padres formadores residentes. Indubitavelmente, o trabalho realizado
com uma equipe maior qualifica e enriquece o itinerário formativo.

As casas de formação da Arquidiocese de Mariana- MG -, Propedêutico, Filosofia


e Teologia - integram outras pessoas na equipe de formação, conforme orientação da
Igreja, como os psicólogos, professores e professoras.

Vários especialistas podem ser chamados para oferecer a sua


contribuição, como, por exemplo, no âmbito médico, pedagógico,
artístico, ecológico, administrativo e no uso dos meios de comunicação.
[...] A presença da mulher no percurso formativo do Seminário, entre
os especialistas ou no âmbito do ensino, do apostolado, das famílias ou
do serviço à comunidade, tem um valor formativo próprio, também em
ordem ao reconhecimento da complementariedade entre homem e
mulher. (RATIO, 2016, n. 145 e 151).

Abrir-se à presença das mulheres e de especialistas é uma conquista


imprescindível, que se desvelou após o Concílio Vaticano II, realizado em Roma, entre
os anos de 1962 a 1965. Portanto, a abertura que se assiste atualmente é uma hermenêutica
conciliar, especialmente no Brasil. A Exortação Pós Sinodal sobre a formação dos
presbíteros, PDV (1992), ressonância do Concílio Vaticano II (1962- 1965) apresenta um
significativo avanço ao dizer: “é oportuno incluir, de forma prudente e adaptada aos
vários contextos culturais, a colaboração dos leigos, homens e mulheres, no trabalho
formativo dos futuros sacerdotes.” (PDV, 1992, n. 66). São os ecos do mencionado
Concílio indicando novos caminhos no itinerário formativo.

O pressuposto, apresentado na Exortação Pós Sinodal, ecoa em outros documentos


sobre a formação presbiteral; fato notável, por exemplo, nas diretrizes (2010), onde se
registrou a mesma recomendação Pós Sinodal. A partir de então, os responsáveis pelo
acompanhamento formativo nos seminários receberam uma pulverização de saberes, ao
58

abrir-se à participação dos leigos e leigas no itinerário pedagógico formativo.


Progressivamente vão-se conquistando novas experiências na dinâmica formativa. O
desejo de acertar e enriquecer o processo, em vista do bem do sujeito e da Igreja, tem
dado sinais de que o caminho é de abertura e cooperação.

Ainda sobre os formadores a Ratio (2016) considera:

É necessário que existam formadores destinados exclusivamente a tal


função, a fim de que se lhe possam dedicar inteiramente; por isso, é
importante que vivam no Seminário. Regularmente, a comunidade dos
formadores junto com o Reitor deve encontrar-se para rezar, programar
a vida do seminário e verificar periodicamente o crescimento dos
seminaristas. (RATIO, 2016, n. 132).

A exclusividade sugerida pela nova Ratio significa ter como prioridade o trabalho
que fora confiado pelo bispo e o presbitério local. A recomendada exclusividade
evidencia o valor e a importância do trabalho formativo, não o colocando acima dos
demais serviços eclesiais. A prioridade de tempo deverá ser para o acompanhamento dos
vocacionados. Na Arquidiocese de Mariana-MG, ainda há um abismo entre o ideal da
exclusividade e o real do exercício da missão formadora. Os que se ocupam desse
ministério, na maioria das vezes, estão envolvidos em outras frentes de trabalho da
Arquidiocese. As razões por envolver-se em outros trabalhos são as mais diversas!
Algumas são por consequência da missão assumida, como é o caso do Reitor, que
participa de muitas outras comissões e de Conselhos Arquidiocesanos. Há o fato de o
presbitério, quase em sua maioria, considerar o trabalho formativo como algo simples de
empreender, não compreendendo, portanto, as minúcias do acompanhamento vocacional.

Aqui está o grande desafio da formação: fazer que o presbitério e o presbítero


percebam que o trabalho na formação é uma dinâmica sagrada, no sentido da seriedade e
do respeito que se deve ter com a história e a vida do indivíduo. Formar é caminhar com;
é promover a internalização dos valores autotranscendentes, com uma pedagogia própria
a cada sujeito, resguardando-se do risco de massificar o trabalho formativo. Os tempos
fúlgidos exigem novas metodologias para o desenvolvimento de um trabalho sério e
responsável no âmbito da formação sacerdotal.

Vê-se que no clero de Mariana há padres comprometidos com o trabalho


formativo dos futuros presbíteros, mas as demandas pastorais e administrativas acabam
59

roubando-lhes as energias que deveriam ser empregadas na formação inicial dos que
almejam o presbiterado. A realidade encontrada nesta Arquidiocese afeta o pressuposto
da cotidianidade, ressaltada nas diretrizes da CNBB (2010), e da exclusividade que a
Ratio (2016), apontou como recomendável. Mais do que uma ausência, constata-se uma
lacuna na dinâmica das casas de formação.

A casa e o cotidiano exigem a presença de todos os formadores[...]. A


pedagogia da presença visa a facilitar o crescimento da comunidade e
do formando. À comunidade, possibilita evoluir em cooperação e
companheirismo; ao formando, oferece ajuda para assimilar e apropriar
valores e atitudes. (CNBB, 2010, n. 234 e 235).

Obviamente que, ao ressaltar o valor da cotidianidade e da presença, os


documentos deixam entrever que a presença precisa ser de qualidade, assim como precisa
ser a ausência do formador. “Cabe à equipe de formadores exercer uma paternidade sem
paternalismo.” (CNBB, 2010, n. 215). O que as diretrizes sugerem é uma presença que
gera confiança, liberdade e autonomia. Levar o indivíduo a ser ele mesmo, tendo como
baliza a presença e ausência qualificadas do formador.

As demandas da formação sacerdotal, em tempo de novas tecnologias e de novas


configurações familiares, de uma compreensão global da vida e do mundo, aumento
significativo de depressão entre os jovens, crescente desemprego no Brasil, direitos
sociais conquistados e deixados em frangalhos pelo neoliberalismo, de influências
midiáticas e do mundo digital, as questões de gênero e o governo Pontifício do Papa
Francisco questionam o modelo vigente de formação e o faz abrir-se a parceiras como,
por exemplo, as ciências psicológicas.

O atual cenário social e eclesial faz emergir novas demandas do processo


formativo, entre elas a psicologia, fato notável nos documentos mais recentes que
exacerbam a contribuição das ciências psicológicas nos ambientes formativos, algo que
merece compreensão e esclarecimento. Assim, descreve a Congregação para Educação
católica: “o especialista - quando solicitado - ajudará o candidato a obter um maior
conhecimento de si, das suas potencialidades e vulnerabilidades.” (CONGREGAÇAO
PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2008, n. 15).
60

Sobre a participação das ciências psicológicas no processo formativo abordará o


próximo capítulo. O que a Igreja institucional, no caso a formação sacerdotal, quer da
psicologia? Quais as demandas da formação sacerdotal à psicologia, uma ciência não
normativa?
61

4 AS DEMANDAS PSICOLÓGICAS DA FORMAÇÃO SACERDOTAL

Escrever sobre a contribuição da psicologia à formação sacerdotal é uma


empreitada que exige cautela e coragem. De um lado, tem-se a Igreja com sua vasta
experiência, quase intocável; de outro, a psicologia com seus pressupostos teóricos. O
que antes era impensável, hoje, é possível; a parceria entre Igreja e Psicologia faz-se
necessária e suscita mais perguntas que respostas.

A formação sacerdotal tem sido objeto de estudos e discussões entre teólogos,


sociólogos e psicólogos. Parece haver uma preocupação da instituição em acertar,
configurando a pedagogia formativa aos novos parâmetros sociais. Os desafios da cultura
atual entram no seminário, registrados na existência de cada seminarista. O padre, assim
como a Igreja, veem-se questionados pela sociedade; questionados no método
administrativo, na vivência e no anúncio do Evangelho; questionados nas verdades
salvíficas e nos dogmas de fé. São questionamentos que partem, inclusive, da própria
psicologia enquanto ciência.

Os que batem às portas das casas de formação chegam influenciados pelas


ideologias políticas, econômicas, religiosas e pelas novas configurações familiares.
Interrogam-se sobre as possiblidades afetivas-sexuais e o poder das mídias digitais, que
alargam cada vez mais o mundo globalizado. Essa mesma realidade é notada nas escolas
de ensino público e ou privado, como nas universidades. O jovem de hoje nasceu no
mundo das mil possibilidades, como, por exemplo, dos relacionamentos e dos jogos
virtuais. Frente aos novos paradigmas do mundo moderno, é preciso estabelecer parcerias
para a realização do trabalho formativo. Uma parceria possível é com a psicologia,
inserindo-a no meandro formativo eclesial.

Como a psicologia pode contribuir com a formação sacerdotal? Na eira das novas
demandas do campo formativo sacerdotal, a psicologia se coloca aí, como que num
suposto saber, para ajudar os formadores, talvez mais que os formandos. Ajudá-los a se
correlacionar com as novas realidades juvenis, pois nem sempre é fácil para o formador
perceber as mudanças do mundo juvenil. Há uma distância cronológica e social entre
formandos e formadores que não corrobora com o processo formativo. Isso pode se
agravar quando os formadores não se sentem interpelados a acompanhar esses processos
62

mutantes da vida social; preferem ficar com o já conhecido, desconsiderando os avanços


tecnológicos, por exemplo. Vive-se a era da Netflix; do mundo visitado pelo Tablet.

Com efeito, quais as demandas da formação sacerdotal à psicologia? A análise das


considerações feitas por três formadores do seminário de Mariana- MG, por meio de
entrevistas semiestruturadas, serão apresentadas e discutidas no presente capítulo. Eles
foram entrevistados (roteiro em apêndice I), em março de 2018. Todos os entrevistados
têm mais de cincos anos de envolvimento com o trabalho formativo dos futuros padres.
As respostas obtidas na entrevista foram anotadas, simultaneamente, pelo entrevistador.
Além das informações produzidas na entrevista, buscou-se também percorrer as páginas
de documentos da Igreja que orientam as práticas da formação sacerdotal. Foram eles: a
Ratio (2016), as diretrizes da CNBB (2010), a Exortação PDV (1992), e as orientações
para a utilização das competências psicológicas na admissão e na formação dos
candidatos ao sacerdócio (2008). Leu-se os autores Rulla (1987), Pereira (2004), Goya
(1999), Pinto (2016) e outros. Todo o esforço de articulação dessas variadas fontes foi
feito para responder à pergunta posta no início desse parágrafo: como a psicologia
trabalha as demandas psicológicas no eixo da formação sacerdotal?

4.1. Os números do seminário de Mariana- MG

Os candidatos ao seminário de Mariana-MG são oriundos das pequenas e pacatas


cidades que compõem sua geografia. São cidades marcadas pela cultura rural, sem opções
de lazer e de estudo de qualidade, com pouquíssimas oportunidades de emprego. Em
relação às outras Arquidioceses do Brasil, em Mariana-MG, há um número considerável
de candidatos. A Arquidiocese de Mariana- MG acolhe seminaristas de outras dioceses:
Governador Valadares- MG e Januária- MG.

O jovem que deseja ingressar no seminário, em janeiro, participa da semana de


experiência vocacional. É uma semana em que todos se reúnem no seminário de Filosofia,
e são acompanhados por padres, leigos, psicólogos e os seminaristas mais experientes no
processo formativo, isto é, que já estão nos anos finais da formação inicial. Realizam-se
diversas atividades de lazer, de oração, de reflexão, de avalição psicológica e de
entrevistas. São duas entrevistas: uma com um dos padres responsáveis e outra com um
psicólogo. Durante esses dias, chamados de semana de experiência vocacional, os jovens
são submetidos a alguns testes psicológicos, conforme critério da equipe de psicólogos
63

que atua nessa semana. Geralmente se usam as Escalas Progressivas de Raven, as


Técnicas de Apercepção Temática(TAT), o Palográfico, além de motivarem a escrita da
autobiografia e promoverem dinâmicas de grupo. O critério de escolha dos testes é
responsabilidade dos psicólogos. “Esses que foram elencados não são todos utilizados.
Usam-se um ou dois. As aplicações são realizadas em grupo, sob a orientação do
profissional da psicologia.” (relato do formador B).

Em 2018, 22 jovens, que ainda cursam o Ensino Médio, procuraram o seminário


para fazerem a experiência vocacional. Ao acompanhá-los, um dado despertou a atenção
da equipe responsável: “desses 22 vocacionados, 14 não têm contato com o pai ou não
sabem quem é o mesmo; foram criados pela mãe, com o apoio dos avós.” (relato do
formador A). Cruzando esses dados com a pesquisa de Pereira (2004), vê-se que essa
configuração familiar vem se tornando comum no século XXI. Como esses jovens lidam
com as organizações familiares? Que incidência há dessas configurações no processo
formativo, considerando a força do inconsciente e suas marcas mnêmicas?

Quando entrevistados, os formadores da Arquidiocese de Mariana- MG,


apontaram as demandas à psicologia, quase todas ligadas às questões afetivas. Relataram
as fragilidades com as figuras parentais, carências afetivas, isolamento, dependência
afetiva, superficialidade nas relações, a homossexualidade9 e questões ligadas à
identidade sexual. Essas situações justificam, segundo os formadores, a demanda de
atendimento psicoterápico. Os três entrevistados foram unânimes em apontar essas
demandas. Serão elas apenas a ponta do iceberg?

4.2 Demandas à Psicologia

Novos tempos exigem novas metodologias, possibilidades, repertórios,


indagações e questionamentos. E na circularidade dos novos fenômenos sociais e
culturais, está o sujeito vocacionado que bate à porta do seminário com a utopia da
formação sacerdotal. Batem à porta da instituição formativa impregnados da cultura
dessacralizada, com questionamentos existências e eclesiais. Entram com um universo de

9
Essa temática não será abordada neste trabalho, tendo em vista sua complexidade. As vocações
homossexuais tem sido tema de estudos e debates entre psicólogos, teólogos e pastoralistas.
64

experiências, mas ainda fragilizados por uma educação patriarcal, ou por experiências
religiosas muito intimistas, para não dizer alienantes.

Afinal, o que dizem os documentos sobre a parceria da psicologia com a formação


sacerdotal? Está prescrito nos documentos PDV (1992), Ratio (2016) e no Código de
Direito Canônico (2001) que a psicologia contribuirá na fase do discernimento inicial, até
mesmo antes do ingresso sistematizado do processo formativo, salvaguardando o bem da
pessoa e da instituição. Recomenda-se conhecer a saúde psíquica do candidato ao
presbiterado, antes de sua acolhida na instituição. Registra-se assim a primeira demanda
da formação sacerdotal à psicologia, que se apresenta antes do ingresso oficial na
instituição formadora. Assim sendo, a psicologia responde a essa demanda com o uso dos
testes psicológicos, entrevistas e outras técnicas apropriadas ao processo de conhecimento
dos candidatos. Em algumas situações, diz a Ratio (2016), não será possível sua admissão
ao seminário. Desse modo, tem-se alguns critérios para nortear a admissão.

Será, por norma, evitada a admissão no seminário dos que sofram de


qualquer patologia, manifesta ou latente (por exemplo, esquizofrenia,
paranoia, distúrbio bipolar, parafilias, etc.), que seja capaz de minar a
discrição de juízo da pessoa e, por consequência, a sua capacidade de
assumir os compromissos e empenhos da vocação e do ministério.
(RATIO, 2016, n.191).

A contribuição das ciências psicológicas não terá a palavra final quanto a


admissão ou não ao seminário, cabendo esta aos responsáveis eclesiásticos, após ouvir os
pareceres dos profissionais da psicologia. “[...]convém que se realize uma avaliação
psicológica, seja no momento da admissão ao seminário, seja no período sucessivo,
quando isso pareça útil aos formadores.” (RATIO, 2016, n. 193). Somente os responsáveis
pela formação sacerdotal terão acesso às informações transmitidas pelos profissionais da
psicologia, seguindo as normas do Conselho Federal de Psicologia.

Depois de ter preparado o seu relatório, seguindo as leis civis vigentes,


o perito deverá comunicar o resultado do seu trabalho diretamente ao
interessado e exclusivamente às pessoas legitimamente autorizadas a
conhecer tais dados em razão do próprio oficio. (RATIO, 2016, n. 195)

Na perspectiva da avaliação psicológica, a Ratio (2016) frisa a necessidade do


consentimento prévio do candidato para se recorrer aos especialistas da psicologia. Estes,
continua a Ratio (2016), tendo processado algum relatório, conforme as leis civis
65

vigentes, comunicará o resultado da sua averiguação diretamente ao interessado e


exclusivamente às pessoas legitimamente autorizadas a conhecer tais resultados: o bispo,
o reitor do seminário e o diretor espiritual (Ratio, 2016). Os peritos recomendarão, se for
o caso, o acompanhamento psicoterápico.

Somam-se ao parecer dos párocos, os testes psicológicos, as entrevistas, as


dinâmicas de grupo, a observação da equipe responsável e a manifestação do jovem
vocacionado. É praxe, na Arquidiocese de Mariana- MG, pedir ao respectivo pároco do
aspirante ao seminário uma carta de apresentação, redigida com o parecer de leigos
idôneos que atuam nas comunidades e possuem um conhecimento daquele que pleiteia
ingressar no seminário. O parecer do pároco e dos leigos é um instrumento fundamental
para ratificar algumas informações levantadas pelos psicólogos, após aplicação das
técnicas de avaliação psicológica. Os testes psicológicos não são tomados como capazes
de dizer tudo sobre o sujeito vocacionado, porém, quando bem aplicados, respeitando sua
fundamentação teórica e objetivos, corroboram com o conhecimento parcial dos futuros
seminaristas. As hipóteses levantadas nesta fase inicial, por meio das técnicas disponíveis,
precisam ser estudadas cautelosamente. Não se pode tomar a parte pelo todo. O ser
humano é mais do que resultados de testes psicológicos; ele é mistério; é um devir
constante. Tanto da parte dos psicólogos quanto da parte dos responsáveis pelo processo
formativo há essa consciência da contribuição e do limite da avaliação psicológica. Todos
os recursos disponíveis das ciências psicológicas são validados no âmbito formativo com
a intenção de possibilitar o autoconhecimento.

A pessoa seja verdadeiramente dona de si mesma, decidida a combater


e a superar as diversas formas de egoísmo e de individualismo que
atacam a vida de cada um, pronta a abrir-se aos outros, generosa na
dedicação e no serviço do próximo. (PDV, 1992, n 44).

A citação anterior descreve as perspectivas que a psicologia oferece ao itinerário


formativo. Do lugar de uma ciência que escuta, explanará as possibilidades do ser existir,
ajudando-o a redefinir, quando desejado, o caminho e o modo de caminhar. Frente ao
dito, é possível afirmar que a psicologia é um suporte técnico ao sujeito, do qual poderá
ou não se valer em benefício do seu desenvolvimento humano e, portanto, existencial e
vocacional. “O especialista – quando solicitado – ajudará o candidato a obter um maior
conhecimento de si, das suas potencialidades e vulnerabilidades.” (CONGREGAÇAO
PARA EDUCAÇAO CATÓLICA, 2008, n. 15). É a partir do autoconhecimento ou
66

autoconsciência que o sujeito consegue sua transformação. Autoconhecimento produz


liberdade de escolhas. “Liberdade é o outro aspecto da autoconsciência: se não tivermos
consciência de nós mesmos seremos impelidos pelo instinto, ou pela marcha automática
da história.” (MAY, 1982, p. 134).

De certo modo, na etapa inicial do processo formativo, ou mesmo antes de


efetivar o ingresso no seminário, as ciências psicológicas ajudam os jovens a se conhecer
e apoiam-nos na aventura de reestruturarem o comportamento e o existir. A psicologia
identifica, relata e favorece o crescimento humano, mas a adesão a esses propósitos é
sempre do sujeito. Quando o sujeito decide aceitar e assumir a história pessoal, ele se
encontra diante do chamado: abraçar sua existência, assumindo a responsabilidade do seu
futuro que o leva ao caminho da ética, ao contrário da atitude de culpabilização, que o
conduz à escravidão (Pereira, 2004). Isso significa reconciliar consigo e com sua a
história; ressignificar os acontecimentos, sobretudo os da primeira infância, que deixam
marcas profundas na personalidade humana10.

A psicologia entra no âmbito formativo sacerdotal para aprimorar a formação


humana; formação que está recomendada na Ratio (2016) e na PDV (1992). “A formação
humana é fundamento de toda formação sacerdotal.” (RATIO, 2016, n 93). Nas etapas
iniciais do processo formativo, as ciências psicológicas favorecem a formação humana
dos jovens. Muitos chegam às casas de formação sem se conhecerem, com medo dos seus
desejos e fantasias; querem perguntar ou falar de seus medos e dúvidas, mas ainda não
haviam encontrado espaços de confiança, como no setting terapêutico. A psicoterapia é,
então, esse espaço do sujeito para recontar sua história, com o intuito de ressignificar sua
existência.

É comum, nessa região rural de Minas Gerais, encontrar uma educação familiar
que tende a colocar o jovem rural ou o de baixa renda como um ser de menos valia. Neste

10
A compreensão de personalidade adotada coaduna com a concepção de personalidade de Rulla (1987),
que assim a descreve: É um conceito muito discutido em psicologia, com variações de significado que vão
da generalização à negação. Neste livro, entendemos por personalidade os componentes estruturais de um
indivíduo que se manifesta em processos dinâmicos que explicam os comportamentos que o próprio
indivíduo assume na sua vida em relação ao ambiente em que vive. Portanto, é dinâmica a concepção que
propomos da personalidade, em que estão presentes tanto as características inatas do indivíduo como os
comportamentos com que se expressam, como também a realidade ambiental, em cujo relacionamento esses
comportamentos se desvelaram e também modificaram (RULLA, 1987, p. 577).
67

contexto, o acompanhamento psicológico se apresenta como suporte, destituindo o jovem


desse lugar de menos valia, fazendo-o se descobrir como ser de potencialidades e abrindo-
se às relações interpessoais. É comum nos seminários encontrar jovens muito talentosos,
mas que não acreditam em si, por nutrirem certa baixa estima. No contexto rural da
Arquidiocese de Mariana- MG, esse sentimento de menos valia parece ser comum, algo
herdado dos pais, que em sua maioria são analfabetos (Pereira, 2004).

Essas hipóteses, identificadas por Pereira (2004), ainda se fazem presentes e foram
diagnosticadas por um dos formadores entrevistados, como uma demanda à psicologia.
“Percebe-se uma fragilidade humana acentuada; eles se desestabilizam na sala de aula e
denotam pouca capacidade de enfrentamento dos desafios.” (Relato do formador B).
Entre os formadores, acredita-se que a psicoterapia contribuirá para que o jovem se torne
cônscio de sua psicodinâmica. Neste espaço entre terapeuta e cliente é que será possível
a este último ressignificar a sua história, aumentando sua liberdade diante do seu Eu-atual
e podendo traçar as metas do Eu-ideal, conforme pontua Rulla (1987).

Como que para suprimir a inferioridade, muitos jovens deixam-se seduzir pela
lógica do consumo, manipulados pela ideia de que o ter empodera o ser. Seduzidos pela
política capitalista que incita o consumo, muitos jovens chegam ao seminário com
aparelhos celulares arrojadíssimos. Estão conectados com o mundo global, mas com
dificuldades de se conectarem à própria realidade, ao próprio eu. São acolhidos e
introduzidos à vida comunitária formativa, com horários para estudo, oração, lazer,
trabalho comunitário e descanso. É um momento complicado para formando e
formadores. Ambos estão sondando uns aos outros, à procura de pactos e alianças que
garantam a sobrevivência do formando e do formador. Estão diante de um universo
desconhecido, pois cada grupo que chega tem suas particularidades. Um formador atento
à diversidade constitucional do ser humano, não incorrerá no erro de impor ao grupo atual
estratégias que foram adotadas com grupos anteriores. “Não se coloca vinho velho em
odres novos.” (Mateus, 9, 16s).

No processo de acolhida dos novos integrantes da vida comunitária,


especificamente na etapa do Propedêutico, onde o grupo se renova a cada ano, recorrer
ao “auxílio de especialistas pode ser útil aos formadores também para traçar um caminho
formativo personalizado, segundo as exigências especificas do candidato.”
(CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, n 8, 2008). Abre-se com essa
68

citação outra demanda da formação sacerdotal à psicologia, superando a ideia da


psicologia de consultório, do atendimento individual, do um-a-um. As ciências
psicológicas podem contribuir, por exemplo, com a elaboração e aplicação de um projeto
formativo, ou até mesmo na elaboração de um programa de trabalho em grupo.

As demandas manifestas se apresentam na convivência comunitária, através dos


sintomas, mas não revelam o todo do sujeito. Os sintomas que os seminaristas “fazem”
são apenas um sinal à psicologia; um sinal que precisa ser escutado, sem pressa e
amadorismo. Esta escuta é específica das ciências psicológicas. A demanda manifesta é
detectada pela equipe de formadores, após o tempo de observação, conversas individuais,
ou orientação de outro formador que convive na mesma comunidade, ou do diretor
espiritual11, ou mesmo dos psicólogos que realizam trabalhos de grupos nas três etapas
da formação: Propedêutico, Filosofia e Teologia. A demanda surge, também, não poucas
vezes, como iniciativa do próprio seminarista, a partir da auto percepção ou de alguma
pesquisa na internet acerca do seu sintoma. Se no fim do século XX, os seminaristas
temiam um possível encaminhamento psicoterápico, a realidade do século XXI é bem
outra. Há mais procura pela terapia que rejeição. Quando a motivação vem do sujeito, ele
já está implicado no processo terapêutico, já dá sinais de maturidade, de vontade de
crescer no autoconhecimento.

Com efeito, na atual dinâmica pedagógica do seminário de Mariana-MG, um


seminarista que procura a psicoterapia terá que conquistar esse espaço, não sem muito
esforço, considerando que a razão desse esforço é múltipla. A primeira razão diz da
escassez de profissionais contratados para o trabalho no seminário. Atualmente são
quatros profissionais, escolhidos conforme a orientação da Santa Sé12. Frente ao limitado
número de profissionais contratados, encaminha-se à psicoterapia, prioritariamente, os

11
Cada seminarista ao ser admitido no processo formativo escolhe um padre ou uma religiosa para
percorrer um itinerário de conversas espirituais. São encontros mensais ou quinzenais, onde se partilha as
experiencias de oração e reflexão, além de outros assuntos que podem surgir. A direção espiritual é do foro
interno do processo formativo, o que é dito ali não pode ser usado, nem a favor nem contra o seminarista,
com risco de punição severa a quem quebrar esta ética normativa o sigilo. É um espaço de verbalização do
sujeito, mas distinta da escuta terapêutica.
12
A Congregação para Educação Católica (2008) afirma no número 6 b: para melhor garantir a integração
com a formação moral e espiritual, evitando nocivas confusões ou divergências, na escolha dos especialistas
aos quais se recorrerá no aconselhamento psicológico, tenha-se presente que estes, além de se distinguirem
pela sólida maturidade humana e espiritual, devem inspirar-se numa antropologia humana, da sexualidade,
da vocação para o sacerdócio e para o celibato, de modo que a sua intervenção tome em conta o mistério
do homem no seu diálogo pessoal com Deus, segunda a visão da Igreja.
69

“recomendados” pelos formadores, após observação dos mesmos, e conversas individuais


destes com os formandos. O seminarista poderá buscar a terapia com outros profissionais,
desde que aceitos pela equipe de formadores, mas neste caso ele assumirá as despesas
com o processo, o que quase sempre é impossível, tendo em vista que o mesmo não
trabalha, o que o impossibilita de arcar com as despesas inerentes à psicoterapia.

Assim, quem busca de livre e espontânea vontade a psicoterapia, terá um longo


percurso a fazer. Terá que aguardar a possibilidade de ser “encaixado” na agenda dos
profissionais contratados, que normalmente pois já estão com ela completa, em vista da
prioridade dada os que foram encaminhados pela equipe de formadores. Parece que a
medida adotada, priorizar os que são recomendados, não deixa de ser uma prerrogativa
deficitária, tanto para o seminarista, quanto para a instituição. Ambos perdem a
oportunidade de amadurecimento do sujeito e, portanto, do crescimento humano e
vocacional da instituição. Há o risco iminente daquele que foi orientado a frequentar o
setting terapêutico ir simplesmente para atender à exigência/recomendação formativa,
mas não se abrir ao processo, ocupando o espaço de outro seminarista que está,
verdadeiramente, interessado no processo. Mais uma vez o justo pagando pelo pecador.

Sobre esse risco Pinto (2016), em artigo publicado, fez uma constatação plausível,
apontando três motivos que inspiram a busca psicoterápica. São esses os três motivos:

O primeiro, e mais comum, é uma dor existencial que aponta para a


necessidade de mudanças difíceis, para que o desenvolvimento pessoal
não fique estagnado; dor à qual se associa a consciência de que é preciso
alguma ajuda especializada. Outro, geralmente de prognóstico um
pouco pior, é a obediência cega, ou seja, a pessoa que procura a terapia
porque uma autoridade (um médico, um bispo, um provincial, um
professor) recomendou ou ordenou que assim se fizesse. Quando a
pessoa obedece cegamente por temer punições, poderá desenvolver
basicamente três atitudes que praticamente inviabilizam a utilidade de
qualquer processo psicoterapêutico: o cálculo de riscos, a resignação
passiva ou a ampliação da má vontade. O terceiro motivo surge quando
a pessoa aproveita a recomendação (ou, em alguns casos, especialmente
na vida consagrada atual, a obrigatoriedade) para transformar a
obediência em oportunidade de atualização e crescimento. (PINTO,
2016, p. 3).

E, ainda de acordo Pinto (2016), a procura pela psicoterapia como resposta à


instituição não é uma raridade na pedagogia formativa. Há uma submissão à instituição
que perpassa, sobremaneira, os corredores do seminário. Ela existe por razões muito
diversas; seja por identificação com a figura do reitor, símbolo da lei institucional, seja
70

por medo de ser afastado do processo formativo. Contudo, não é uma recomendação
simples; ela vem carregada do simbólico “manda quem pode, obedece quem tem juízo.”

Por mais que a psicologia tenha ganhado a simpatia da Igreja, o encaminhamento


psicoterápico está emergido numa perspectiva mítica, de que a mesma é para quem está
com “problemas.” Não são poucos os que acreditam que a psicoterapia é para ajudar a
solucionar dificuldades. Infelizmente, ainda paira sobre a ciência psicológica o véu do
preconceito humano, que a apregoa, lamentavelmente, como coisa para “doido.” Na
verdade, o que está subjacente é o binômio normalidade e anormalidade.

Ainda com o intuito de conhecer e estabelecer as demandas psicológicas no


itinerário formativo sacerdotal, formador e formando precisarão entender qual o lugar da
psicologia nesta trama institucional. Sem esse entendimento o risco de incorrer num
psicologismo é iminente; como se a psicologia tivesse todas as respostas e soluções aos
problemas enfrentados neste espaço eclesial. Há situações que fogem do escopo
psicológico e são, às vezes, da dinâmica espiritual. Ter essa clareza nem sempre é fácil.
Identificar o que é competência espiritual e o que é competência psicológica é um
princípio recomendável, mas nem sempre fácil.

Goya (1999) esclarece os objetivos da psicologia no âmbito da formação


sacerdotal. Segundo o autor, a psicoterapia, antes de ser instrumento de “cura” é,
exclusivamente, fomentadora do autoconhecimento. Neste sentido, o espaço terapêutico
poder contribuir para que o jovem vocacionado reflita sobre suas motivações vocacionais;
saber se são consistentes ou inconsistentes. São inconsistentes quando a busca pelo
sacerdócio é fuga defensiva: “Diante das dificuldades ou das responsabilidades
individuais ou públicas, aspira-se à segurança da obediência; diante do medo do sexo, do
matrimônio e da solidão, então a pessoa se refugia ou no celibato ou na comunidade.”
(GOYA, 1999, p. 52).

Retornando a Goya (1999), vê-se que o mesmo delineia a participação psicológica


na formação sacerdotal, e salienta o que já está pautado em Rulla (1987) e retomado por
Pereira (2004), bem como nos documentos da Igreja, já mencionados no percurso desse
trabalho. A participação dos psicólogos na formação sacerdotal pode oferecer aos jovens
seminaristas uma escuta qualificada que contribua para a descoberta de si, das próprias
potencialidades, de ressignificação da própria história presente e passada e a projeção de
71

um futuro. Enfim, ajudar o sujeito a aceitar-se como único e singular, convidado a


escrever uma nova história, sem vitimismo histórico, mas com os pés fincados no chão
da realidade. Está posta mais uma demanda à psicologia no itinerário formativo
sacerdotal.

A psicoterapia, no âmbito formativo, não visa penalizar ninguém; tampouco ser


instrumento de “delação premiada” à instituição demandada, neste caso, o seminário. A
ética profissional não titubeia quanto a isto; o sigilo é parte do pacto transferencial entre
psicoterapeuta e cliente. O acompanhamento psicológico no seminário não é entendido
como método capaz de moldar o sujeito ao perfil da Igreja. A intencionalidade é favorecer
o autoconhecimento, conforme recordou Goya (1999).

Em entrevista realizada com os formadores da Arquidiocese de Mariana-MG,


enfatizou-se que o acompanhamento psicológico é sugerido ao seminarista, depois de
expostas as razões pelas quais se sugere tal empreendimento.

É sempre uma sugestão e nunca uma imposição. Salientamos que ele


precisa se cuidar para depois animar o povo de Deus. Há sempre um
cuidado linguístico ao recomendar o acompanhamento psicoterápico,
para não haver interpretação dúbia, achar que o consideramos um
problemático e os outros os normais. (Relato do formador A).

A ponderação apresentada pelo entrevistado encontra eco no livro de Goya (1999),


sobre psicologia e vida consagrada. Este autor considera o encaminhamento psicoterápico
como necessário e delicado, simultaneamente. É fundamental que o envolvido na
recomendação entenda, claramente, seus objetivos.

É preciso, porém, afirmar que o convite feito da parte dos formadores


responsáveis a um candidato, para receber ajuda psicológica, se não for
positivamente motivado como sendo uma colaboração ao seu bem
integral, pode ser entendido unicamente como uma defesa das
instituições diante das potencialidades de serem falsas vocações. Com
mais frequência procura-se tal ajuda só em caso de dúvida, então a
pessoa tende a fechar-se e a sua cooperação se torna muito deficiente.
Se, ao contrário, essa se apresenta como um meio a mais para capacitá-
lo a uma resposta livre e eficaz, pode ser acolhida de modo positivo e
transformar-se numa grande ajuda ao discernimento e ao crescimento
vocacional. (GOYA, 1999, p. 18).

O sucesso do acompanhamento psicoterápico depende da abertura e da confiança


do cliente com o terapeuta. Se o cliente não ficar à vontade para falar de si, certamente,
72

a proposta psicoterápica não fluirá. Quando a procura pela psicoterapia vem da


instituição, a resistência terá uma força incrível, mas com maestria, técnica e respeito tudo
favorecerá a transferência, que nada mais é que a capacidade de acreditar no processo, na
técnica e no profissional. Por essas razões é que a recomendação precisa ser realizada
com clareza e cautela, visando o bom andamento da dinâmica terapêutica.

Na relação entre formando e formador há o fantasma ambivalente do formador


imagem do pai, causando repulsa ou idolatria à recomendação psicoterápica. Há um
conflito nesta interação: agradar o formador e desagradar a si mesmo, tocando em
questões prazerosas. A recomendação é dada ao seminarista por meio do coordenador da
respectiva casa formativa onde ele se encontra. Por isso, a importância dessa figura no
âmbito formativo, e, no caso, na recomendação psicoterápica. A reação do seminarista ao
pedido que lhe é apresentado vai depender da vinculação afetiva que permeia a relação
entre ele e o formador. De um lado, há sempre uma idealização do formando para com o
formador e vice-versa. Neste ínterim formativo, o “formador deve ficar atento às
transferências, identificações e projeções que os formandos depositam em sua pessoa,
como figura de semideus, todo-poderoso, onipotente, herói, castigador, vigia,
centralizador.” (PEREIRA, 2004, p. 295).

Não havendo isenção de conflitos psíquicos também nos formadores, põe-se aqui
outra demanda da formação sacerdotal à psicologia: a de que o formador seja
encaminhado à psicoterapia. Possivelmente esta proposta causará angústia e medo, mas
nem por isso deixará de ser pertinente. Neste sentido, vale recuperar a preocupação de
Rulla (1987) com as inconsistências dos formadores, que criam cisão entre o discurso e a
prática; cisão percebida, com muita indignação, pela comunidade formativa, gestando
descredibilidade com a proposta formativa.

A prerrogativa de que os formadores deveriam apoiar-se no processo terapêutico,


como suporte ao trabalho realizado, surge na entrevista, quando um formador manifesta
o desejo de fazer psicoterapia, percebendo-a como útil ao processo de autoconhecimento,
de reconhecimento das forças inconscientes e dos registros mnêmicos que constituem a
história pessoal do ser falante. Essa ponderação surgida na entrevista encontra eco em
Rulla (1987) e na pesquisa sobre a formação, realizada por Pereira (2004). Este último
afirma:
73

Daí a necessidade dos formadores procurarem uma supervisão técnica


ou, melhor ainda, uma psicoterapia, para exercerem, adequadamente,
suas funções. Os aspectos da contratransferência (sentimentos e
fantasias de amor e ódio dos formadores) tem sido um grave entrave ao
processo da formação religiosa. (PEREIRA, 2004, p. 295).

O formador precisa saber que sua função de suposto saber sobre o seminarista
desperta infinitas fantasias, dependências e rivalidades, evidenciando que o trabalho
formativo é bastante desafiador. Há formadores que adoecem, sobretudo se seu
desamparo original permanece um ponto não resolvido, haja vista que os mesmos são
fragilizados, proprietários de uma história de vida marcada por sofrimento e outros
atravessamentos humanos e psíquicos, comuns à constituição humana, dos quais ninguém
está isento.

É inevitável o lugar ambivalente que o formador ocupa no ínterim da formação


sacerdotal; o homem amado e temido, simultaneamente. “Ele é a figura do “pai” que ativa
as energias internas, que estimula o crescimento dos participantes.” (PEREIRA, 2004, p.
294). Se entre os seus liderados houver dependentes afetivos ou com complexo de
inferioridade, estes o empreenderão como aquele que tem o discurso do mestre. Essa
trama sutil de obediência e de saber afetará a relação emancipadora do formando. Se ao
contrário da dependência, houver uma rivalidade com a figura do pai biológico, há
possibilidades de tal rivalidade ser transferida para o formador.

Independente das hipóteses levantadas, seja de dependência, inferioridade ou


rivalidade, o formador não deverá entrar nesse jogo de fantasias e transferências. E para
não cair nessa cilada comum nas relações de poder, um possível caminho é ousar fazer o
processo terapêutico. Por isso, volta-se a afirmar que a psicologia se coloca como
instrumento de valia para formandos e formadores, especialmente como espaço de fala e
de escuta. É a escuta do desejo e do inconsciente. Aliás, o grande álibi da ciência
psicológica é a escuta; a escuta do sujeito consciente e inconsciente. Ela se difere de
outras escutas, especialmente porque está pautada num marco teórico que sustenta o
processo terapêutico. Com isso evitam-se os achismos. Uma hipótese diagnóstica, por
exemplo, precisa se sustentar na moldura teórica adotada.

A psicologia sustenta o desejo de mudança que emerge no sujeito a partir da escuta


psicológica. Ela ampara o movimento que o seminarista faz de mudar; movimento que é
sempre do interior para o exterior. Para tal ação ele precisa se implicar no processo,
74

deixar-se afetar pelo seu sintoma. Não basta a equipe de formadores se implicar com o
sintoma do seminarista, fazer dele a causa sua. Enquanto ele, o sintoma, continuar sendo
uma causa dos formadores, o processo terapêutico será um passatempo.

De certo modo, a psicologia pode colaborar com o processo formativo sacerdotal.


As experiências concretizadas em muitos seminários no Brasil e em outros países,
indicam que é possível essa parceria. Não obstante, não é uma parceria simples. Tanto a
Psicologia quanto a Igreja terão que se esvaziar de suas pretensões e abrir-se mutuamente.
O fechamento de uma ou de outra atrapalha o diálogo possível entre esses dois fatores de
compreensão humana. Ainda há um longo caminho a se desbravar entre a psicologia e a
formação sacerdotal. Como já dito, existem mais perguntas que repostas.

Toda ciência tem suas fronteiras, e a psicologia não foge à regra. Propriamente,
no escopo da formação sacerdotal, sua inserção enquadra-se no favorecimento, como já
mencionado, do autoconhecimento. Ela difere, quanto ao método e a essência de um
aconselhamento ou autoajuda. Não existe efeito imediato ao início do processo
terapêutico. A psicologia não se apresenta com a promessa de cura. Esse discurso, essa
promessa é da área médica. O propósito psicológico é outro, pois quem tem o saber do o
sujeito é o próprio sujeito. A psicologia acolhe o discurso desse saber subjetivo. Não
existe na psicoterapia o intuito de dizer ao cliente o que ele deve ou não fazer. O que se
faz nesse espaço é implicar o sujeito no seu processo histórico, retirando-o do lugar de
vítima. Neste caso, a escuta psicológica tentará implicar o seminarista no seu processo
formativo, levando-o ao diálogo entre o Eu-atual e o Eu-ideal com o Eu-institucional,
com suas respectivas expectativas.
75

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa cientifica não deve ser tomada como um processo fechado. Geralmente
começa-se com uma pergunta e encerra-se o trabalho com a produção de tantas outras. É
essa a impressão que se exacerba ao término deste trabalho. A percepção de um trabalho
“inacabado” se intensifica quando se põe a pesquisar um tema bastante singular: as
demandas da formação sacerdotal à psicologia. À primeira vista, tem-se a percepção da
impossibilidade de haver uma cooperação entre esses dois campos, distintos e tão comuns
ao mesmo tempo. Comuns, porque visam, por diferentes modos, o autoconhecimento do
sujeito implicado na trama formativa sacerdotal. Distintos, pela especificidade
metodológica de cada.

Com o intuito de tentar traçar as demandas e as expectativas da formação


sacerdotal em relação às ciências psicológicas, iniciaram-se as leituras, os debates e
discussões acerca do tema. No afã de tentar responder às questões, vieram à baila
indagações outras, bem pertinentes, que até então pareciam não existir, ou estavam
adormecidas no berço da indiferença acadêmica, do não se questionar,
pormenorizadamente, a questão norteadora da presente pesquisa.

No início do levantamento bibliográfico, na elaboração das perguntas que


comporiam as entrevistas semiestruturadas com os formadores e do estudo dos
documentos da Igreja, referentes à formação sacerdotal, pensava-se que a demanda e a
expectativa à psicologia advinham dos formandos. No entanto, no desenvolvimento do
trabalho, constatou-se que os formadores também têm suas demandas à psicologia.
Alguns formadores reconhecem a necessidade de se submeterem à terapia, como
ferramenta capaz de sustentar o ego na função de formador. Tal constatação abre o leque
de possibilidades da atuação da psicologia no espaço formativo em questão.

Da parte dos formandos, as demandas são levantadas pela percepção dos


formadores na interação comunitária e no acompanhamento personalizado do formador
com o formando. Os formadores são catalizadores das demandas e dos anseios de seus
formandos. São esses que interrogam, validam as queixas e ajudam a abrir a caixa das
potencialidades de cada sujeito. Estão nessa função para cuidar dos que lhes foram
confiados. Mas quem cuida dos cuidadores? Quem acolhe as demandas e as angústias dos
formadores? Também são humanos; seres desejantes, que trazem as marcas mnêmicas da
76

história pessoal e familiar. Quem os escuta? Apenas Deus! Quisera... São formadores,
missão que a Igreja lhes confiou, mas não são super-heróis ou semideuses.

Nos formadores, a expectativa com a psicologia parece ser maior que as


demandas. Acreditam na técnica psicológica como ciência capaz de ajudar os
seminaristas no seu autoconhecimento. Na perspectiva dos formandos, não foi possível,
nesta pesquisa, perscrutá-los, pois não era esse o objetivo. Portanto, essa questão ficou
suspensa, conservando sua pertinência. Como os seminaristas entendem a psicologia,
espaço de verbalização do sujeito, de autoconhecimento e formação do ser sacerdotal?
Está aí uma indagação que se alargou ao realizar a pesquisa atual, que poderá ser objeto
de outro estudo.

Vê-se, pela leitura dos documentos eclesiásticos e dos autores citados nessa
monografia, que a Igreja se abriu à psicologia, aceitando sua contribuição e valendo-se
da mesma para, por exemplo, obter, segundo as leis vigentes do Conselho Federal de
Psicologia, informações sobre a saúde psíquica dos que pleiteiam ingressar no seminário.
A Igreja conta, então, com mais um saber capaz de favorecer o crescimento humano e
espiritual dos jovens vocacionados: a Psicologia. E os formandos querem e acreditam na
possibilidade de serem favorecidos com a escuta psicológica?

Como se afirmou em vários momentos, a presença da psicologia nos corredores


formativos dos seminários é uma articulação bem recente, tendo como marco inicial o
Concílio Vaticano II, 1962- 1965, e os escândalos afetivos de membros da hierarquia
eclesial. Exemplo recente é a prisão do bispo e alguns padres da Diocese de Formosa,
Estado de Goiás, no último dia 19 de março do corrente ano, acusados de desviar um
enorme montante financeiro dos cofres daquela Igreja particular. Esse episódio questiona
o processo formativo sacerdotal, traz à tona as fragilidades intrínsecas da instituição.

Registrou-se nas linhas desse escrito monográfico a abertura da formação


sacerdotal à psicologia. No entanto, vale ressaltar que tal afirmação se deu a partir da
leitura dos documentos, isto é, a partir do prescrito, o que não garante ser um fato
consumado em todas as casas de formação. Escreveu-se a partir da Arquidiocese de
Mariana- MG, que se empenha em cumprir o que está prescrito nos documentos. E aqui
se levanta outra indagação: como a Igreja no Brasil está recepcionando o prescrito nos
documentos?
77

O trabalho realizado permitiu responder à questão original, mas suscitou tantas


outras que merecem tempo e dedicação para estudá-las. Os profissionais da psicologia,
no seminário de Mariana- MG, podem contribuir com a elaboração de um projeto
formativo para a dimensão humana; além da escuta psicológica individual, trabalhos em
grupos. Parece que os serviços psicológicos ainda não gozam de muita credibilidade
nesses espaços formativos. Há, sem dúvida uma abertura, mas falta clareza sobre o que
se quer e o que se espera da parceria, prescrita nos documentos da Igreja, entre a formação
sacerdotal e a psicologia.

Por fim, pode-se salientar que tanto a psicologia quanto a formação sacerdotal
estão se entendendo, encontrando os espaços e definido as fronteiras de uma parceria
formativa dos futuros presbíteros da Arquidiocese de Mariana- MG. Existem ofertas e
demandas. As expectativas e as demandas da formação sacerdotal à psicologia ainda
perduram num universo desconhecido, isto é, pouco estudado. Há muito o que se
pesquisar sobre o tema.
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REFERÊNCIAS

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gráfica Dom Viçoso, 2016.
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da autora, 2014.

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Janeiro: Jorge Zahar, 2001. MATEUS. In: A Bíblia: tradução Ecumênica. São Paulo:
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RIDICK, Joice s.s.c. Os votos: um tesouro em vasos de argila. São Paulo: Paulinas,
1985.
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APENDICE

Roteiro para a entrevista semiestruturada com os formadores do seminário da


Arquidiocese de Mariana-MG.
Nome:
Idade:
Tempo de exercício da função de formador:
1- Como é sua experiência neste lugar?
2- Existe um projeto de encaminhamento de formação humana afetiva dos seminaristas?
Se sim, descreva-a.
3- Como você percebe a demanda dos seminaristas para o acompanhamento
psicoterápico? E como é encaminhado?
4- Como você acompanha os desdobramentos da psicoterapia?
5- Como vocês formadores avaliam o encaminhamento à psicoterapia?
6- Se possível, descreva, em linhas gerais, algumas demandas dos seminaristas para a
psicologia nos últimos anos?
7- Qual a sua percepção sobre a contribuição da psicologia na formação dos presbíteros?

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