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Franklin Ferreira – O Cristão e a Cultura

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February 19,
2013

Uma definição de cultura


Antes de falarmos da relação do cristão com a cultura, é necessário definirmos o que é
cultura:

Em sentido amplo, refere-se ao cultivo de hábitos, interesses, língua e vida artística


de uma nação: histórias, símbolos, estruturas de poder, estruturas organizacionais,
sistemas de controle, rituais e rotinas.
Tudo o que caracteriza uma realidade social de um povo ou nação, ou então de
grupos no interior de uma sociedade: valores, atitudes, crenças e costumes.

Não raro o cristão se torna uma subcultura dentro de uma nação. Ele tem seus valores,
atitudes, crenças e costumes. Mas daí, surgem as perguntas: O cristão pode participar
das festas nacionais? O cristão pode beber? Como o cristão lida com arte, cinema, etc.?
O cristão pode ser um diretor, ator, etc.? O cristão pode ouvir música do mundo? Como
o cristão lida com economia, política, filosofia? O cristão deve impor sua cultura quando
sai em missões? O que pode ser tolerado? O que deve mudar?

Modelos de como os cristãos lidaram com a cultura ao longo


da história
Para falar sobre o cristão e a cultura, precisamos lembrar que a igreja não nasceu em
nossa geração. Temos que ser humildes e olharmos para a história da igreja para ver
como os cristãos do passado lidaram com a cultura.

H. Richard Niebuhr (1894-1962), apresentou em seu livro Cristo e cultura (download


gratuito) cinco categorias de classificação do relacionamento entre o cristão e a cultura,
fornecendo, assim, ferramentas para descrever a forma que os cristãos encaram
questões sociais, éticas, políticas e econômicas.

1. O cristão contra a cultura


Os que seguem esta corrente enfatizam que, diante da natureza decaída da criação, é
necessário que se criem estruturas alternativas, e que estas sigam mais de perto o
chamado radical do evangelho. Esta posição foi afirmada no Didaquê, na Primeira
Epístola de Clemente, e nos escritos de Tertuliano (c.160–c.225) e dos anabatistas do
século xvi, como Michael Sattler (c.1490–1527).

Resumidamente, a cultura é caída, má e demoníaca; rejeite tudo. Exemplos:

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“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e
da ordem de Deus. De fato, é a filosofia que equipa as heresias… Ó miserável Aristóteles!
Que lhes proporcionaste a dialética, esse artífice hábil para construir e destruir, esse
versátil camaleão que se disfarça nas sentenças, se faz violento nas conjecturas, duro nos
argumentos, que fomenta contendas, molesta a si mesmo, sempre recolocando problemas
antes mesmo de nada resolver. Por ela, proliferam essas intermináveis fábulas e
genealogias, essas questões estéreis, esses discursos que se alastram, qual caranguejos, e
contra os quais o Apóstolo nos adverte na sua carta aos Colossenses: ‘Cuidado que
ninguém vos venha a enredar com suas sutilezas vazias, acordadas às tradições humanas,
mas contrárias à providência do Espírito Santo’. Este foi o mal de Atenas… Ora que há de
comum entre Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja, entre os hereges e os
cristãos? Nossa formação nos vem do pórtico de Salomão, ali nos ensinou que o Senhor
deve ser buscado na simplicidade do coração. Reflitam, pois, os que andam propalando
seu cristianismo estóico ou platônico. Que novidade mais precisamos depois de Cristo?
[…] Que pesquisa necessitamos mais depois do Evangelho? Possuidores da fé, nada mais
esperamos de credos ulteriores. Pois a primeira coisa que cremos é que para a fé, não
existe objeto ulterior.” (Tertuliano, De praescr. haeret., VII)

“Quarto, unimos nossas forças no que diz respeito à separação do mal. Devemos nos
afastar do mal e da perversidade que o diabo semeou no mundo, para não termos
comunhão com isso e não nos perdermos na confusão dessas abominações. Aliás, todos
que não aceitaram a fé e não se uniram a Deus para fazer a sua vontade são uma grande
abominação aos olhos de Deus. Deles não poderão acrescentar ou surgir nada mais do que
coisas abomináveis. Não existe nada mais no mundo e em toda a criação do que o bem e o
mal, crentes e incrédulos, trevas e luz, os que estão no mundo e fora do mundo, os
templos de Deus e dos ídolos, Cristo e Belial, e nenhum deles poderá ter comunhão um
com o outro. Para nós, pois, é obvio o imperativo do Senhor, pelo qual nos ordena que nos
afastemos e nos mantenhamos longe dos maus. Assim, ele será nosso Deus e nós seremos
seus filhos e filhas. Além disso, ele nos exorta a abandonar a Babilônia e o paraíso terreno
egípcio, para não passar pelos sofrimentos e dores que o Senhor enviará sobre eles. (…)
Devemos nos afastar de tudo isso e não participar com eles. Porque tudo isso não passa de
abominações, que nos tornam odiosos diante do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos
libertou da escravidão da nossa natureza pecaminosa e nos tornou aptos para o serviço de
Deus, por meio do Espírito que nos ortogou.” (Confissão de Schleitheim, IV)

2. O cristão da cultura
Os ensinos do evangelho têm íntima relação com as estruturas culturais, num processo
de acomodação a esta. Ou seja, toda e qualquer cultura é incorporada no cristianismo.

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Apesar das objeções que são lançadas a esta posição, ela tem sido influente na história
da igreja. Os ensinos de gnósticos do século III, Abelardo de Paris (1079–1142) e dos
teólogos liberais do século XIX refletem esta posição.. A igreja evangélica na Alemanha,
por influência deste entendimento, trocou seu nome para Igreja do Reich e seus
pregadores juraram obediência a Hitler.

O fundamentalismo americano acabou espelhando esta posição, afirmando os valores


básicos da cultura dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, se por um lado rejeitamos toda
cultura local (o cristão contra a cultura), por outro acabamos abraçando a cultura
americana (o cristão da cultura), como se ela fosse uma cultura cristã e achamos que
uma cultura é intrinsicamente superior a outra.

3. O cristão acima da cultura


Este é o conceito católico, influenciado por Clemente de Alexandria (c.150–c.215) e
Tomás de Aquino (1225–1274), que busca uma unidade entre o cristão e a cultura, onde
toda a sociedade aparece hierarquizada. Na Idade Média o ensino eclesiástico alcançou
quase todos os aspectos da sociedade: suas práticas religiosas formaram o calendário;
seus rituais marcaram momentos importantes (batismo, confirmação, casamento,
ordenação) e seus ensinamentos sustentavam crenças sobre moralidade, significado da
vida e a vida após a morte. A igreja e sua mensagem são institucionalizadas e o que
deveria ser condicionado culturalmente é absolutizado. Neste terceiro modelo, o que é
levado não é o evangelho, mas uma cultura.

4. O cristão e a cultura em paradoxo


Posição comumente associada a Martinho Lutero (1483-1546) e Søren Kierkegaard
(1813-1855). Esta posição mantém o entendimento bíblico da queda e da miséria do
pecado, e o chamado para se lidar com a cultura. A relação do cristão com a cultura é
marcada por uma tensão dinâmica entre a ira e a misericórdia.

Lutero enfatizou este tema com sua doutrina dos “dois reinos”: a mão esquerda,
mundana, segura a espada do poder no mundo, enquanto a mão direita, celeste, segura
a espada do Espírito, a Palavra de Deus. Não se pode tentar coagir a fé, nem se pode
tentar acomodar a fé aos modos seculares de pensamento.

Um exemplo: espancamento feminino. A mulher deve processar o marido? Nesta visão


paradoxal, como cristã, ela não deveria (pois o crente não leva outro ao tribunal secular),
mas como cidadã, sim. Então, a mulher vive um conflito paradoxal.

5. O cristão como agente transformador da cultura


A cultura deve ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Sem desconsiderar a queda e o
pecado, mas enfatizando que, no princípio, a criação era boa, os que estão nesse grupo
enfatizam que um dos objetivos da redenção é transformar a cultura. Sendo assim, por

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mais iníquas que sejam certas instituições, elas não estão fora do alcance da soberania
de Deus. Ou seja, mesmo sabendo da queda, o cristão não abandona a cultura (o cristão
contra a cultura), mas busca redimi-la, levá-la aos pés de Cristo.

Agostinho (354-430), João Calvino (1509-1564), John Wesley (1703-1791) e Abraham


Kuyper (1837-1920) são alguns dos que entenderam que os cristãos são agentes de
transformação da cultura, posição que é exposta nesta obra de Niebuhr. Em Apocalipse,
vemos que Deus redime tanto a pessoa, como a diversidade cultural.

Nesta posição, não há divisão entre o sagrado e o profano – essa é uma dicotomia
católica (a divisão sagrado/profano afirma que na igreja fazemos atividades sagradas e,
no mundo, atividades profanas; ou seja, rezar, ser padre é algo sagrado, mas construir
um prédio e ser um engenheiro são coisas profanas). A divisão bíblica é entre o que é
santo e está em pecado; e que está em pecado deve ser santificado.

Relatório de Willowbank
A afirmação de que o cristão é um agente transformador da cultura pode ser resumida
na compreensão de que “uma vez que o homem é criado por Deus, parte de sua cultura
será rica em beleza e bondade. Por causa da queda e do pecado do homem, toda a sua
cultura [usos e costumes] está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca” (Pacto
de Lausanne §10) — o evangelho nunca é hóspede da cultura, mas sempre seu juiz e
redentor.

O Grupo de Teologia e Educação de Lausanne propôs um modelo hierárquico de ação


sobre a entrada do evangelho na cultura (Relatório de Willowbank, 1978) que pode ser
de auxílio em nosso trato com a cultura ao nosso redor.

Categoria de costumes
Como um missionário deve proceder em uma cultura diferente? O Relatório de
Willowbank propõe uma relação quádrupla do cristão com a cultura:

1. Alguns costumes não podem ser tolerados, como a idolatria, infanticídio,


canibalismo, vingança, mutilação física, prostituição ritual, entre outros.
2. Alguns costumes podem ser temporariamente tolerados [por uma geração], como
a escravidão, o sistema de castas, o sistema tribal, a poligamia, entre outros.
3. Há alguns costumes cujas objeções não são relevantes para o evangelho, como o
costume de o homem e a mulher sentarem separados nos cultos, os costumes
alimentares, vestimentas, hábitos de higiene pessoal, entre outros.
4. Assuntos secundários (adiáforos) sobre os quais há controvérsias mas que pode-
se ter liberdade de análise, como escatologia, governo da igreja, ceia e batismo

Exemplo do ponto 2: quando chefes tribais polígamos se convertiam, eles eram


obrigados pelos missionários a abandonar todas suas esposas, que ou morriam de fome
ou se prostituiam, podendo morrer apedrejadas. Vendo isso, os missionários acharam

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uma medida sábia não exigir desse chefe tribal o abandono da poligamia, mas exigir tal
atitude da próxima geração de cristãos.

Aplicação do ponto 3: Se você é um novo pastor, não tente mudar a cultura da igreja, se
ela se encaixa neste nível. Pregue o evangelho!

“Não se distinguem os cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos
costumes. (…) Seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à alimentação e ao
restante estilo de viver, apresentando um estado de vida admirável (…). Enquanto
cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. (…) Se a vida
deles decorre na terra, a cidadania, contudo está nos céus. Obedecem as leis estabelecidas,
todavia superam-nas pela vida. Amam a todos, e por todos são perseguidos (…) Para
simplificar, o que é a alma no corpo são no mundo os cristãos”. (5-6) (Epístola a
Diogneto)

Bibliografia Complementar

No final da palestra, Franklin Ferreira apresentou uma bibliografia sobre o assunto:

Bruce J. Nicholls – Contextualização: uma teologia do evangelho e cultura


H. Richard Niebuhr – Cristo e cultura (download gratuito)
Comissão de Lausanne – O Evangelho e a Cultura
Michael Horton – O Cristão e a Cultura (leia um trecho)
D. A. Carson – Cristo & Cultura: Uma releitura (Ferreira indicou este livro para quem
quiser ler uma abordagem diferente sobre a questão – leia um trecho – leia uma
resenha – leia uma resposta)

Recomendo a leitura destes artigos também:

Mauro Meister – Os Filhos de Deus e a Cultura Popular


Cornelius Van Til – Cristo e Cultura
Abraham Kuyper – Existe um lugar para a Arte, no Calvinismo?
Solano Portela Neto – Cultura: A Fé Cristã é Contra ou A Favor?
Ronaldo Lidório – Teologia Bíblica da Contextualização

Não sei se vocês lembram, mas já falamos, de forma simplificada, sobre o assunto aqui
no VE: Os 3 Rs do Envolvimento do Cristão com a Cultura. Os 3R de Mark Driscoll
(Rejeitar, Receber ou Redimir) encaixam-se bem nos quatro pontos apresentados pelo
Relatório de Willowbank.

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Por: Franklin Ferreira. Palestrado no dia 11/02/13, na 15ª Consciência Cristã (VINACC).
Copyright © Franklin Ferreira.

Resumo por: Voltemos Ao Evangelho. Original: Franklin Ferreira – O Cristão e a


Cultura

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