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Sumário

2. SUMÁRIO

3. APRESENTAÇÃO

4. QUEM SOU EU

5. PARA COMEÇO DE CONVERSA...

5. COMO CHEGAMOS AO ANALFABETISMO TRINITÁRIO?

6. O QUE É TRINDADE?

7. POR QUE ESTUDAR TRINDADE?

10. A TRINDADE NO ANTIGO TESTAMENTO

14. A DIVINDADE DO PAI E DO FILHO

17. A DIVINDADE DO ESPÍRITO

21. A UNIDADE NA TRINDADE: SUBSTÂNCIA E PERICORESE

24. DISTINÇÕES ENTRE AS PESSOAS DA TRINDADE

29. CONSTANTINO INVENTOU A TRINDADE?

31. A VERDADE SOBRE NICÉIA

32. UMA NOVA CONTROVÉRSIA

34. HERESIAS E “ILUSTRAÇÕES”

38. ADORAÇÃO TRINITÁRIA

42. A TRINDADE E O AMOR CRISTÃO


Apresentação
Lembro de ficar chocado com o resultado de uma pesquisa teológica entre as
igrejas americanas sobre alguns pontos fundamentais da fé cristã. Publicada em
2014, a pesquisa revelou que 31% dos cristãos americanos achavam que Deus o
Pai é mais divino que Jesus. 58% achavam que o Espírito Santo é apenas uma
força, não uma pessoa. Sempre soube que faltava conhecimento teológico em
nosso meio, mas esses dados me alarmaram.

Creio não ser muito diferente no Brasil. Tenho escrito e gravado vídeos sobre a
Trindade e recebo muitas dúvidas nessa área. Recebo também muitas mensagens
negando aquilo que ensino. A verdade é que pouco se estuda sobre Trindade no
Brasil. Quantos livros em português de editoras protestantes você conhece sobre
isso? As ideias erradas de que a Trindade não deve ser estudada por se tratar de
um mistério de Deus e de que é algo muito difícil e sem implicações práticas tem
minado o interesse por essa doutrina maravilhosa. Tudo isso gera o que chamo
de "analfabetismo funcional trinitário". Muitos dos cristãos afirmam a Trindade,
mas possuem grandes dificuldades em pensar e falar sobre ela, principalmente
em enxergá-la nas Escrituras.

Esse e-Book vai te introduzir ao estudo da Trindade. Ele vai te dar um bom
conhecimento básico para que você vença esse analfabetismo e comece a estudar
por conta própria sobre o ser de Deus. Ele é Pai, Filho e Espírito Santo e assim
devemos conhece-lo e adora-lo! Além dos capítulos sobre Trindade você
encontrará um guia de leitura com livros em português e inglês. Ele está no final
do e-Book e você receberá um acesso para um vídeo meu onde comento esse guia
de leitura. Nesse acesso também estará disponível uma aula sobre como ensinar
a Trindade para crianças e novos convertidos!

Espero que todo esse material te ajude a trilhar o caminho do conhecimento e


relacionamento como nosso Deus Trindade!
Quem sou eu?

Antes de começarmos, quem sou eu?

PEDRO PAMPLONA (@pedromcp), esposo de Laryssa, pai do Davi e da Ester,


Pastor na Igreja Batista Filadélfia em Fortaleza, onde também lidera o ministério
de Jovens. Formado em administração de empresas, especializado em estudos
teológicos pelo Centro Presbiteriano Andrew Jumper e mestre em teologia
sistemática no Instituto Aubrey Clark (SIBIMA) com ênfase e pesquisa na
doutrina da Trindade. Sou torcedor do Fortaleza Esporte Clube, fã de Star Wars
e Senhor dos Anéis.
Para começo de conversa...

“Por certo nenhuma outra questão existe que ofereça mais riscos
de erros, mais trabalho na investigação e mais fruto na
descoberta.”1

Agostinho de Hipona

A frase de Agostinho é perfeita para começar esse e-Book e qualquer estudo sobre
a Trindade. Estudar essa doutrina é percorrer um caminho escorregadio, onde o
menor deslize pode nos levar à formulação de erros e heresias. Mesmo assim,
apesar de ser uma jornada trabalhosa, o estudo correto da doutrina da Trindade
produz frutos inestimáveis, que podem nos levar a enxergar de forma mais
profunda o cristianismo como um todo. É exatamente por esse motivo que as
páginas que você está lendo vieram à existência: explicar e aplicar a doutrina
trinitária a todos os que tiverem acesso a este documento.

Infelizmente, nosso tempo é um tempo de analfabetismo funcional trinitário.


Muitos cristãos afirmam a Trindade, mas possuem enorme dificuldade em
explicá-la, principalmente usando a Bíblia. É uma doutrina que a grande maioria
afirma ser verdade, embora negligenciem seu estudo e importância prática. Creio
que essa negligência tem base em dois mitos que foram implantados na cabeça
de muitos cristãos: a Trindade é difícil de ser justificada biblicamente e trata-se
de doutrina sem implicações práticas para a vida cristã. Portanto, por que estudar
sobre algo que está além do entendimento e que não tem utilidade prática? O
objetivo desse texto é corrigir esses equívocos e demonstrar a Trindade como
uma latente verdade bíblica e como uma profunda doutrina que pode
transformar a vida de qualquer cristão. Se você sofre em algum nível com esse
analfabetismo trinitário, esse e-Book vai ajudar você a enxergar com olhos mais
treinados as maravilhas de se crer num Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo.

Como chegamos ao analfabetismo trinitário?


Nem sempre foi assim. Aliás, sempre foi bem diferente de como é agora quando
falamos em estudar, conhecer e adorar o Deus Trino. Nos primeiros séculos da
igreja a doutrina da Trindade foi amplamente explorada e debatida e, por causa

1 Agostinho, A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995, p. 28


disso, se desenvolveu rapidamente, tornando-se um dos principais dogmas
defendidos pelos pais da igreja. Nesse período, o grande debate esteve
delimitado à cerca da divindade de Jesus Cristo e do Espírito Santo, seguindo-se
a esses embates uma verdadeira solidificação da teologia trinitária. Grandes
teólogos como Tertuliano, Atanásio, os pais capadócios (Basílio de Cesaréia,
Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa) e Agostinho foram fundamentais no
estudo trinitário do período da patrística.

No período medieval, esta doutrina, que já era sólida, tornou-se ainda mais
consistente por causa de diversos teólogos escolásticos, que começaram a estudar
e, posteriormente, escrever sobre a Trindade. Muitas especulações vazias foram
feitas e erros cometidos (como em todas as épocas), mas o trabalho de referência
nessa época trouxe uma boa base teológica e filosófica para a defesa da doutrina.
Isso possibilitou que os reformadores, como Calvino, estivessem bem munidos
de conhecimento sobre a natureza trinitária de Deus. Eles reforçaram ainda mais
o estudo da Trindade usando toda a boa base patrística e medieval.

Todavia, o iluminismo e seu pensamento majoritariamente racionalista,


transformou a forma como fazemos teologia. A razão humana ganhou prioridade
sobre os mistérios de Deus e seu sobrenatural. A doutrina da Trindade em todo
seu significado e implicações começou a ser esquecida e deixada de lado,
principalmente em meados do século XVIII e XIX. Nesse período ela passou a ser
considerada algo muito distante, um aspecto de um Deus transcendente que não
se pode conhecer muito bem.

Esses séculos de silêncio trouxeram implicações catastróficas para a igreja


moderna, que deixou de lado o aspecto mais importante para o conhecimento do
ser de Deus. Foi com a ascensão de Karl Barth e sua neo-ortodoxia que a doutrina
trinitária pôde passar por um curto momento de redescoberta, já no século XX.
Barth influenciou outros teólogos para que A Trindade voltasse ao centro do
trabalho teológico. Isso, todavia, não conseguiu apagar o impacto causado pelo
seu esquecimento nos séculos anteriores, fazendo com que, ainda hoje,
experimentemos o resultado dessa negligência, especialmente no nível popular
da igreja, longe dos seminários e centros acadêmicos.

O que é Trindade?
Depois dessa pequena introdução e diagnóstico de nossa situação atual, vamos
começar a resolver esse analfabetismo funcional trinitário. O que vem a seguir é
digno de sua atenção e anotação! Wayne Grudem escreveu em sua teologia
sistemática que “podemos definir a doutrina da Trindade do seguinte modo: Deus existe
eternamente como três pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo – e cada pessoa é plenamente
Deus, e existe só um Deus” 2. Na afirmação de Grudem podemos encontrar três
verdades distintas e, ao mesmo tempo, complementares sobre quem Deus é:

 Deus é três pessoas distintas


 Cada pessoa é plenamente Deus em todos os seus atributos e qualidades.
 Só existe um Deus

A essas três características eu adiciono uma quarta, que é a pericorese. Essa


palavra estranha significa que cada uma das pessoas da Trindade habita
plenamente nas outras. Tentarei tornar esse conceito familiar mais a frente nesse
e-Book, pois ele é um ponto fundamental para a compreensão da Trindade, sua
vida e suas obras. O que você precisa ter em mente daqui para frente é essa
pequena definição e esses quatro pontos. A imagem abaixo ajudará a ilustrá-los.
Partiremos nos próximos capítulos para ver cada um deles biblicamente!

Por que estudar Trindade?


Antes de iniciar o estudo bíblico preciso terminar esse primeiro capítulo falando
sobre a necessidade de estudar sobre a Trindade. Espero abrir seus olhos, instigar
sua mente e empolgar seu coração. Sei que depois dessa breve introdução e
definição você pode estar imaginando algo como: “Tudo bem, mas o que eu tenho a
ver com isso? Por que é necessário estudar esse assunto?”. Preste muita atenção
novamente. Existem pelo menos quatro motivos importantíssimos pelos quais
você deve estudar e entender a doutrina da Trindade, vamos a eles:

 A Trindade é quem Deus é. Conhecê-la é conhecer o próprio ser do


nosso criador.

2 Wayne Grudem, Teologia sistemática atual e exaustiva. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 165
Você deve concordar que grande parte das tragédias e mazelas do mundo se deve
à falta do conhecimento de Deus por parte dos homens. Isso acontece porque o
conhecimento de Deus é o que guia o conhecimento que temos sobre nós mesmos
e sobre a nossa interação com o próprio Deus e com os outros homens. Quando
nos perdemos sobre o conhecimento de Deus, nos perdemos sobre nós mesmos.
Foi exatamente isso que aconteceu no Éden e é o que ainda acontece no mundo.
Estudar a Trindade nos fará conhecer melhor o nosso Senhor e, com isso, também
estaremos mais próximos de um correto autoconhecimento e do padrão ideal de
nossas relações com Deus e com os homens.

 A Trindade é a visão de Deus mais adequada que podemos ter.

Deus não é um ser abstrato que se molda a qualquer visão que tenhamos dEle.
Ele é um ser real, concreto, que temos que enxergar como ele de fato é. O grande
problema de não estudar a Trindade é que nossa adoração pode estar sendo
dirigida a um Deus que nós mesmos inventamos. Sempre que alguém tenta
adorar a Deus sem a consciência de que Ele é trino, ele está adorando, não o Deus
das escrituras, mas um Deus que não existe na realidade. O conhecimento da
Trindade nos leva à adoração a Deus do modo como ele quer ser adorado.

 A Trindade é o diferencial cristão

A doutrina da Trindade é uma verdadeira joia por tudo aquilo que já foi tratado
nos dois pontos anteriores. Todavia, ela se torna ainda mais preciosa quando
enxergamos que é ela quem distingue o cristianismo de todas as religiões do
mundo. Você pode encontrar religiões que preguem o amor, a caridade e até
mesmo um certo tipo de salvação pela graça. Contudo, você jamais encontrará
no mundo outra religião que pregue um Deus Trino. Entender e estudar a
doutrina trinitária faz com que tenhamos a dimensão da sublimidade do
cristianismo e nos mostra que só nele alcançamos o verdadeiro conhecimento de
Deus.

 A Trindade traz importantes implicações à vida prática

Uma das maiores mentiras em que podemos acreditar é que conhecer a Trindade
não traz implicações práticas importantes para a vida cristã. A palavra de Deus
nos mostra algo diferente. Por exemplo, a Bíblia nos informa que Deus é amor.
Infere-se disso que para Deus ser amor, ele precisa amar. E quem Deus ama? Sim,
Ele nos ama, mas a Bíblia não diz que Deus se tornou amor quando nos criou. Na
verdade, ela diz que Ele é e sempre foi amor, desde a eternidade. Na imensidão
da eternidade o Pai já amava o Filho e o Espírito. Portanto, quando somos
convocados a amar, na verdade somos chamados a nos envolver na dinâmica
amorosa da Trindade. E essa é apenas uma das implicações dessa doutrina...
Falarei mais sobre isso ainda.

Leia as próximas páginas com essa convicção: Conhecer a Trindade nos levará a
viver e proclamar um cristianismo mais completo! Sempre que você, leitor, se
prostrar diante do Senhor para fazer a sua oração e adorá-lo, pense em como Ele
realmente é – Pai, Filho e Espírito Santo. Pense no mistério e na glória do Ser
trino. É a Ele que precisamos render toda a nossa adoração.

“Essa, então, é minha posição… adoremos a Deus o Pai, Deus o


Filho, e Deus Espírito Santo, três pessoas, uma divindade,
indivisível em honra, glória, substância e reino.”

Gregório de Nazianzo (Orations)


A Trindade no Antigo Testamento
Vamos para a Bíblia! É lá que devemos procurar pela Trindade antes de
explorarmos o desenvolvimento histórico da doutrina. Esse é outro erro que vejo
muitos cometendo: Ao estudar sobre a Trindade estudamos mais sobre a história
da doutrina do que sua base bíblica. Por isso, vamos ao texto inspirado e
inerrante! E antes de focarmos mais no Novo Testamento precisamos olhar um
pouco para o Antigo afim de esclarecer alguns pontos importantes.

Vou começar afirmando algo essencial que, infelizmente, não é unanimidade


entre os cristãos: o Deus do Antigo Testamento é exatamente o mesmo que se
manifesta no Novo. Alguns hereges famosos na história da igreja, como Marcião,
tentaram afirmar o contrário, mas sempre foram refutados e desmascarados por
teólogos fiéis que mantinham os seus alicerces doutrinários firmados nos
ensinamentos de Cristo e dos apóstolos.

Entretanto, a grande questão que precisa ser respondida nesse capítulo é: Deus
se revelou sempre da mesma forma? A resposta é não. Nossa pergunta mais
específica é: A Trindade está revelada no Antigo Testamento? Minha resposta
novamente é não. Talvez isso possa lhe chocar, mas durante o período de tempo
que compreende o Velho Testamento o correto a se dizer é que a Trindade foi
uma realidade oculta. É certo que Deus já dava vestígios de sua natureza plural,
contudo isso era apenas uma preparação para a revelação trinitária que seria
trazida à luz no Novo Testamento.

É interessante, portanto, olharmos para esses vestígios que, mesmo não


revelando a natureza trina divina, ensinavam ao povo que havia uma pluralidade
na concepção monoteísta de Deus. Teólogos cristãos de diferentes épocas já
discutiram amplamente esses vestígios trinitários que se encontram no Antigo
Testamento, dando-nos uma boa base teórica para compreendê-los. Sendo assim,
vamos analisar rapidamente os quatro vestígios que considero mais importantes
no texto do Antigo Testamento.

 O uso do plural para se referir a Deus

“E Deus disse: — Façamos o ser humano à nossa imagem,


conforme a nossa semelhança” (Gênesis 1:26)

“Então o Senhor Deus disse: — Eis que o homem se tornou


como um de nós, conhecedor do bem e do mal” (Gênesis 3:22)

“E o Senhor disse: — Eis que o povo é um, e todos têm a mesma


língua. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para
tudo o que planejam fazer. Venham, vamos descer e confundir
a língua que eles falam, para que um não entenda o que o outro
está dizendo. Assim o Senhor os dispersou dali pela superfície da
terra; e pararam de edificar a cidade”. (Gênesis 11:6-8)

"Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: — A quem


enviarei, e quem há de ir por nós" (Isaías 6:8)

Há um bom debate sobre esses plurais. Alguns teólogos dizem que Deus está
falando dele e de anjos, mas não creio nisso. Alguns dizem que se trata de um
plural de majestade, onde um rei fala de si mesmo no plural para expressar sua
majestade, glória e autoridade. Também penso que não seja esse o caso. Por mais
que os autores não estejam construindo uma teologia trinitária, creio que essa
oscilação entre singular e plural no texto e na fala de Deus aponta de alguma
forma para a pluralidade na divindade.

 O Espírito de Deus

A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face
do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.
(Gênesis 1:2)

O Espírito do Senhor fala por meu intermédio, e a sua palavra


está na minha língua. (2Samuel 23:2)

Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face


da terra. (Salmos 104:30)

Chegai-vos a mim e ouvi isto: não falei em segredo desde o


princípio; desde o tempo em que isso vem acontecendo, tenho
estado lá. Agora, o Senhor Deus me enviou a mim e o seu
Espírito. (Isaías 48:16)

Perceba que em todas essas passagens do Antigo Testamento o Espírito de Deus


recebe características pessoais e funções divinas específicas. Há diversos outros
textos que poderíamos citar. Eles não parecem tratar apenas da parte espiritual
do Deus de Israel. Isso já é mais um indício que o Deus de Israel nunca foi
meramente singular, mas que existe uma pluralidade em seu ser.

 O conceito personificado de “sabedoria”

Em alguns textos do Antigo Testamento a sabedoria de Deus é tratada como uma


pessoa e isso pode ser um bom vestígio que aponta para a divindade de Cristo,
que viria a ser revelado no Novo Testamento como o Verbo que se encarnou. Em
Provérbios 8 e 9 isso acontece de forma muito vívida. Estes textos mostram a
Sabedoria falando de si mesma e dizendo que foi estabelecida desde a eternidade:
Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes
do começo da terra. (Provérbios 8:23)

então, eu estava com ele e era seu arquiteto, dia após dia, eu
era as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo;
(Provérbios 8:30)

Em um outro momento essa Sabedoria fala como se ela mesma fosse o próprio
Deus:

Mas o que peca contra mim violenta a própria alma. Todos os


que me aborrecem amam a morte. (Provérbios 8:36)

Novamente, não temos uma doutrina da trindade sendo revelada, mas algo que
aponta para uma pluralidade divina e prepara o caminho para revelação
posterior.

 O Anjo do Senhor

Creio que este seja o vestígio mais importante e mais claro da pluralidade divina
que o Antigo Testamento nos fornece. Essa figura chamada de “O anjo do
Senhor” aparece algumas vezes, hora tratado como o próprio Deus, hora tratado
como uma pessoa distinta dEle. O encontro do anjo com Jacó é fundamental para
entendermos essa realidade.

E o Anjo de Deus me disse em sonho: Jacó! Eu respondi: Eis-me


aqui! (Gênesis 31:11)

Eu sou o Deus de Betel, onde ungiste uma coluna, onde me


fizeste um voto; levanta-te agora, sai desta terra e volta para a
terra de tua parentela. (Gênesis 31:13)

Perceba que o personagem em questão, ao mesmo tempo em que é chamado de


“Anjo do Senhor”, também afirma ser o próprio Deus. De modo muito
semelhante, o capítulo 32 de Gênesis relata uma luta misteriosa entre Jacó e outro
personagem identificado como o próprio Deus. Mais tarde, o profeta Oséias fala
desse evento confirmando essa identificação:

"Lutou com o anjo e venceu; chorou e pediu que o abençoasse.


Em Betel, encontrou Deus, e ali Deus falou com ele." (Oséias
12:4)

O uso desse tipo de linguagem para se referir ao “Anjo do Senhor” é o maior


indício trinitário que podemos encontrar no Antigo Testamento. Isso nos mostra
que o Deus Trino já se apresentava de algumas formas em sua pluralidade. Esses
vestígios plurais foram preparando o imaginário do povo de Deus para aceitar a
revelação do messias divino e da Trindade, mesmo em meio a uma forte visão
monoteísta de Deus (Deuteronômio 6:4).

Concluindo, o Antigo Testamento nos conclama a abraçar uma fé monoteísta e,


portanto, adorar um único Deus. Contudo, apesar da ausência de uma clara
revelação trinitária temos vestígios suficientes para inferir que os leitores da
época (e nós hoje) puderam ter acesso a esse conceito plural em Deus. Por isso
dizemos que a Trindade no Antigo testamento é uma realidade oculta, mas com
vestígios que apontam para a revelação trina posterior. Assim, o Deus Trindade
revelado no Novo Testamento não é incompatível com a divindade do Antigo
Testamento.
A divindade do Pai e do Filho
Agora vamos para o Novo Testamento. Lembre que no tempo do Antigo
Testamento a Trindade era uma realidade oculta, contando apenas com alguns
vestígios sobre a pluralidade de Deus. No novo testamento, agora, já podemos
dizer que temos revelação trinitária! Isso acontece porque a Trindade se revela
nas missões do Filho e do Espírito na obra de salvação. Quero afirmar então, que
no Novo Testamento temos uma revelação indireta da Trindade.

Por que indireta? Isso é muito importante de se explicar. Digo isso porque não
temos textos que falam diretamente sobre a Trindade de forma sistemática e nem
textos que explicam ou constroem uma doutrina trinitária como temos hoje. O
termo Trindade, por exemplo, não está na Bíblia, foi usado pela primeira vez por
Tertuliano no terceiro século. Então isso não seria um problema? Não. O que
temos no Novo Testamento são os relatos das obras e relações entre Pai, Filho e
Espírito Santo. Temos também alguns textos que no falam como a igreja primitiva
entendia os três juntos. E são esses textos que, de maneira, suficiente nos revelam
e ensinam sobre a Trindade.

Para que esse capítulo não fique muito grande eu focarei nossa análise bíblica
apenas no evangelho de João. Existem outros textos, mas esse é o livro bíblico
que mais explora as relações trinitárias. Vamos ver nele a divindade do Pai e do
Filho agora nesse capítulo, deixando o próximo capítulo para o Espírito Santo.

 A divindade do Pai

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo


era Deus. (João 1:1)

No início do prólogo do evangelho de João o texto nos revela duas figuras divinas
distintas: o Verbo e Deus. Posteriormente essas figuras passariam a ser chamadas
de Filho e Pai. Perceba que logo no início de seus escritos o apóstolo João faz
questão tanto de estabelecer a divindade do Pai quanto de distinguí-lo do Filho,
a fim de evidenciar a pluralidade divina. E é desse mesmo modo que João trata
essa distinção durante todo o evangelho que escreveu.

Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida;


ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 14:6)

Quem me odeia, odeia também a meu Pai. (João 15:23)

Além desses textos, várias outras afirmações que confirmam o caráter divino do
Pai são feitas por Jesus e por diversas pessoas ao longo dos relatos de João.
Segundo Andreas Köstenberger3, só neste evangelho existem 136 ocorrências da
palavra “pater”, a palavra grega para pai, e 120 delas se referem a Deus”. Isso com
certeza não nos deixa dúvidas sobre a divindade daquEle que é costumeiramente
chamado de primeira pessoa da Trindade.

Além disso, diversos outros textos do Novo testamento também dão testemunho
a esse respeito, fazendo com que a divindade do Pai seja uma verdadeira
unanimidade na história da igreja cristã.

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai


de misericórdias e Deus de toda consolação! (2 Coríntios 1:3)

Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do


Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou
sombra de mudança. (Tiago 1:17)

 A divindade do Filho

Apesar de algumas seitas, outra religiões e ateus contestarem, a divindade do


Filho também está expressa de forma muito clara no Novo Testamento. Por isso,
voltemos ao prólogo do evangelho de João:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o


Verbo era Deus. (João 1:1)

Perceba que o texto começa afirmando a divindade do Verbo ao mesmo tempo


em que apresenta a sua unidade, bem como a sua distinção do Pai: o Verbo estava
com Deus, mas o Verbo também era Deus. Logo em seguida, o mesmo texto dá um
outro nome para esse Verbo:

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de


verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.
(João 1:14)

Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio


do Pai, é quem o revelou. (João 1:18)

Nesses versos do mesmo capítulo 1 de João, o texto revela que o Verbo é o Filho
Unigênito do Pai, aquEle que veio a esse mundo justamente para revelar quem é
o Pai. Todo o restante do livro revela que esse Filho é Jesus Cristo e sua divindade
continua sendo afirmada em vários textos do evangelho de João.

3
Andreas Köstenberger, Pai, Filho e Espírito: A Trindade no evangelho de João. São Paulo: Vida Nova,
2014, p. 80
Essas afirmações chegam ao seu ponto mais direto no capítulo 8, onde o próprio
Cristo afirma quem ele realmente é:

Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu vos digo: antes


que Abraão existisse, Eu Sou. (João 8:58)

Nesse texto Jesus choca completamente aqueles judeus que o estavam ouvindo.
Ele se diz maior que Abraão e arroga para si o nome que Deus usou para
descrever a si mesmo quando se revelou a Moisés (Gênesis 3:14). Cristo toma
para si o nome de Deus e se iguala a Yahweh, o Deus de Israel, o grande Eu Sou!.
Ele revela de uma vez por todas que Ele é o Filho de Deus, igual ao Pai em poder
e glória. O texto é tão claro e chocante que é principalmente por causa dessa
afirmação que os judeus passam a acusar Jesus de blasfêmia digna de morte.
Naquele tempo, ficou claro que ele dizia ser divino!

Todo o Novo Testamento concorda com a afirmação de Cristo e segue declarando


a sua divindade, bem como a pluralidade que se revela no ser de Deus:

deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo,


segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para
todo o sempre. Amém! (Romanos 9:5)

aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do


nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus. (Tito 2:13)

Portanto, o Novo Testamento afirma de forma clara e categórica que tanto o Pai
quanto o Filho são divinos. Esse fato foi reconhecido rapidamente pela igreja
cristã do primeiro século, que estabeleceu essa doutrina. Sei que muitas pessoas
têm mais dúvidas sobre a divindade do Espírito Santo e por isso dediquei o
próximo capítulo inteiro para falar sobre Ele. Veremos que, apesar de algumas
dificuldades, sempre poderemos confiar no testemunho das Escrituras que
afirmam a divindade das três pessoas da Trindade.
A divindade do Espírito Santo
Para uma doutrina robusta da Trindade é preciso ter convicção de que o Espírito
Santo é tão Deus quanto o Pai e o Filho. E apesar dessa divindade ser questionada
por alguns teólogos que não acreditam que a Bíblia confirme diretamente esta
verdade e de ser realmente menos explícita nas páginas do Novo Testamento que
a divindade do Pai e do Filho, podemos ter essa certeza de que o Espírito é 100%
divino quando paramos e olhamos com mais atenção para alguns textos
importantes do Novo Testamento, assim como já fizemos com textos do Antigo.

Segundo Robert Letham “o Novo Testamento tem um binitarismo explícito e um


trinitarismo implícito”4. O que Letham quer dizer é que não existe uma passagem
que afirme de forma direta e sistemática a divindade do Espírito Santo. Mesmo
assim, existem textos que claramente apontam para isso. Sendo assim, trataremos
neste capítulo de quatro momentos bíblicos em que a divindade do Espírito de
Deus aparece nas páginas do Novo Testamento. Poderíamos ainda falar sobre as
funções do Espírito que apontam para sua divindade, mas manterei o foco nessas
quatro passagens mais diretas.

 O envio do Espírito Santo

E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que


esteja para sempre convosco, o Espírito da verdade, que o
mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; vós o
conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós. Não vos
deixarei órfãos, voltarei para vós outros. (João 14:16-18)

Este texto narra a promessa de envio do Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho. Jesus
promete “outro” Consolador, fazendo um paralelo consigo mesmo, para
demonstrar aos discípulos que eles não ficariam sem Deus, porque o Espírito
estaria habitando neles. Esse paralelo indica justamente que a presença de Cristo
seria substituída pela presença de outro ser divino, o Espírito. Foi exatamente
nesse sentido que Cristo disse que não os deixaria órfãos, porque Ele subiria aos
céus, mas Deus continuaria no meio e dentro deles. O verso 23 deste mesmo
capítulo revela que o Pai e o Filho fariam moradas nos crentes. O Espírito Santo
é esta presença trinitária no coração de cada cristão.

 A morte de Ananias e Safira

4 Robert Letham, The Holy Trinity. Philipsburg: 2004, p. 52


Então, disse Pedro: Ananias, por que encheu Satanás teu coração,
para que mentisses ao Espírito Santo, reservando parte do
valor do campo? Conservando-o, porventura, não seria teu? E,
vendido, não estaria em teu poder? Como, pois, assentaste no
coração este desígnio? Não mentiste aos homens, mas a Deus.
(Atos 5:3-4)

Esse trecho do livro de Atos descreve a morte de Ananias e Safira, que foram
fulminados ao mentir para Pedro a respeito da doação que fizeram aos apóstolos.
É interessante observar que no verso 3 Lucas relata que eles mentiram ao Espírito
Santo. Contudo, no versículo seguinte, lemos que eles estavam mentindo a Deus.
O texto deixa claro que, para Pedro, mentir para o Espírito é o mesmo que mentir
para Deus porque o Espírito Santo é Deus. Eles são tratados pela mesma
identidade divina que possuem. No Novo Testamentos o Pai e o Filho são
chamados diretamente de Deus (Theos) e aqui o Espírito é indiretamente também
chamado de “Theos”.

 Formulas trinitárias

em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade,


o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes
selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da
nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da
sua glória. (Efésios 1:13-14)

eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do


Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo,
graça e paz vos sejam multiplicadas. (1Pedro 1:2)

A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão


do Espírito Santo sejam com todos vós. (2Coríntios 13:13)

Nestes três textos o Espírito Santo é inserido em um contexto de divindade junto


com Pai e Filho através das fórmulas trinitárias. O capítulo 1 de Efésios explica a
obra de cada uma das pessoas da Trindade no processo de salvação e redenção
do homem, indicando o Espírito Santo como um agente divino de salvação. No
texto da primeira carta de Pedro enxergamos esse mesmo padrão, que cita a obra
do Pai, do Filho e do Espírito Santo como agentes divinos na salvação do homem.
O padrão se repete na famosa saudação e benção final de Paulo no capítulo 13 de
sua segunda carta aos coríntios. Essa união das três pessoas da Trindade indica
a divindade do Espírito, sendo Deus como o Pai e o Filho são.
 A visão de Isaías

Talvez esse seja o conjunto de textos mais interessante e conclusivo a respeito da


divindade do Espírito Santo e sua presença na Trindade. E aqui está a verdade
sobre Deus ser o mesmo no Antigo e Novo Testamento. Da Trindade, mesmo
ainda oculta por um tempo, sempre existir e agir nesse mundo.

No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre


um alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam o
templo. Então, disse eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou
homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros
lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!
Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei,
e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim.
(Isaías 6:1, 5, 8)

Nesse texto Isaías relata o seu encontro com o Senhor dos Exércitos, O Yahweh,
Deus único de Israel. Todavia, é extremamente interessante ver como o Novo
Testamento olha para esse episódio. João, citando a conversa entre Isaías e Deus
durante a visão escreve o seguinte:

Por isso, não podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes
os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os
olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por
mim curados. Isto disse Isaías porque viu a glória de Jesus
e falou a seu respeito. (João 12:39-41)

Essa citação que João faz ao profeta Isaías é justamente do capítulo 6, a partir do
verso 10. João está citando diretamente o texto escrito pelo profeta Isaías e, mais
do que isso, está dizendo que aquEle que o profeta viu assentado no alto e
sublime trono era Jesus Cristo. A glória de Yahweh é a glória de Jesus Cristo.
Jesus, o Filho, é o Deus que Isaías viu! Assim como João, Paulo também falou
sobre esse episódio. No registro de Lucas lemos:

Houve alguns que ficaram persuadidos pelo que ele dizia; outros,
porém, continuaram incrédulos. E, havendo discordância entre
eles, despediram-se, dizendo Paulo estas palavras: Bem falou o
Espírito Santo a vossos pais, por intermédio do profeta
Isaías, quando disse: Vai a este povo e dize-lhe: De ouvido,
ouvireis e não entendereis; vendo, vereis e não percebereis. (Atos
28:24-26)
Essa citação de Paulo também é do capítulo 6 do livro de Isaías. Paulo está
revelando que foi o Espírito Santo que falou com o profeta durante aquela visão.
Isaías, em seu encontro com Yahweh, Viu a glória de Cristo e ouviu o Espírito
Santo. Quem, então, estava na visão do profeta naquele período do Antigo
Testamento? Deus! A Trindade! Isso traz à luz não apenas a divindade do
Espírito Santo, mas também a eterna existência da Trindade: Isaías viu Yahweh,
viu Jesus Cristo assentado em um trono e ouviu o Espírito Santo, todos
igualmente descritos como Deus. Essa revelação do Novo Testamento é incrível
e deve nos conduzir a adoração trinitária! Deus é trino e o Espírito Santo habita
em nós como o Deus que é e que sempre foi. Aleluia!
A unidade na Trindade: substância e pericorese
Nos capítulos anteriores você aprendeu sobre a divindade de cada uma das
pessoas da Trindade. Pai, Filho e Espírito Santo são pessoas divinas distintas uma
das outras. Agora olharemos para a unidade e diversidade na Trindade. Como
Deus é um? Como as pessoas são realmente distintas? Nesse capitulo
responderemos a primeira pergunta. O que significa dizer que Deus é um? Como
essa unidade se manifesta na Trindade? Minha resposta será dupla. A unidade
na Trindade se baseia na substância divina e na pericorese.

Vamos começar pela substância, ou “essência” se você achar melhor. Já vimos


que tanto o Pai quanto o Filho e o Espírito Santo são identificados nas Escrituras
como Deus. Isso nos revela que essas três pessoas possuem, igualmente, a
identidade e a mesma substância divina. Todos eles são essencialmente divinos
e possuem os mesmos aspectos de Deus. Nenhum é mais ou menos Deus que o
outro.

Sendo assim, quando dizemos que Deus é um, estamos declarando que as três
pessoas trinitárias são da mesma substância, e, portanto, iguais em ser, santidade,
amor, atributos, glória e poder. Eles são um único Deus por possuírem todos a
mesma essência e identidade divina. Não há nenhuma ilustração adequada para
representar essa realidade. Não há nada no nosso mundo assim. Vou chamar essa
unidade de unidade substancial.

O segundo aspecto importante da unidade trinitária é o da pericorese. Entender


esse conceito e enxerga-lo nas Escrituras é fundamental para termos uma visão
mais adequada da unidade em Deus. É sobre isso que vamos nos aprofundar um
pouco neste capítulo.

Segundo Harrison, “esse termo foi utilizado teologicamente pela primeira vez
por Gregório de Nazianzo e, subsequentemente, adotado por Máximo o
Confessor para se referir à união das duas naturezas de Cristo”5. Somente com
Pseudo Cirilo de Alexandria, em meados do século VII, é que o termo foi
utilizado para falar sobre as relações trinitárias. Através dos escritos de João
Damasceno, no Século VIII, esse uso trinitário do termo se popularizou tanto no
oriente quanto no ocidente. Mesmo sem a palavra, a ideia da pericorese já era
ensinada antes desse período, como por Atanásio, por exemplo.

No contexto de estudo trinitário, o termo “pericorese” significa a habitação


mútua entre as pessoas divinas. Significa dizer que o Pai habita plenamente no
Filho e o Filho no Pai, bem como o Espírito Santo habita no Pai e no Filho. Essa

5 Verna Harrison, Perichoresis in the greek fathers. St. Vladimir’s Theological Quarterly, 35, no. 1 (1991)
doutrina pode ser confirmada pela Palavra de Deus no evangelho de João, onde
está descrito com maior riqueza de detalhes o relacionamento entre o Pai e o
Filho.

Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.


Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me
tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu:
Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai
está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim
mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras.
Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos
por causa das mesmas obras. (João 14:8-11)

Perceba como Jesus argumenta com Filipe dizendo que o Filho está no Pai e o Pai
está no Filho. Quem vê um também vê perfeitamente o outro. Nesse sentido, o
teólogo alemão Jurgen Moltmann, embora tenha desenvolvido uma doutrina
trinitária que merece algumas críticas importantes, contribuiu positivamente
para o correto entendimento desta unidade pericorética. Para ele, Pai, Filho e
Espírito Santo “vivem e habitam tão intimamente um no outro, por força do
amor, de tal sorte que são um só”6. Essa visão contribui para o equilíbrio da
doutrina trinitária em sua unidade e diversidade. Deus é três pessoas distintas,
mas unidas pericoreticamente. Veja o que ele escreveu:

“Em sua “pericorese”, e com base nela, as três pessoas trinitárias não
devem ser entendidas como três indivíduos diferentes, que apenas
supletivamente estabelem relações entre si, atraindo assim a pecha do
“triteísmo”. Mas também não três modos de ser, ou tripla repetição do
Deus único, como insinuado pelo modalismo. A doutrina da
“pericorese” liga de maneira genial a trindade e a unidade, sem reduzir
a trindade à unidade, ou diluir a unidade na trindade. Na eterna
“pericorese” das pessoas trnitárias reside a união na Trindade.”7

Ao contrário destas duas heresias do modalismo e triteísmo (veremos mais à


frente), a doutrina pericorética liga de forma genial a Trindade, sem negar a sua
unidade ou diluir a sua pluralidade. Nesta eterna pericorese das pessoas
trinitárias reside também a unidade da Santíssima Trindade. E nessa unidade
existe uma aplicação prática interessante que deixarei aqui para você refletir. Na
famosa oração do Filho ao Pai em João 17 Jesus ora para quem os cristãos sejam
um como o Ele e o Pai são um:

6 Jurgen Moltamm. Trindade e Reino de Deus. Petrópolis : Vozes, 2000, p. 182


7 Ibid.
“Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em
ti” (Jo 17:21).

Esse é um texto que deve nos conduzir para uma unidade mais plena, amorosa,
santa e de vida na vida. Na pericorese Pai, Filho e Espirito compartilham suas
vidas por completo uns com os outros. Nunca chegaremos nesse padrão trinitário
perfeito, mas temos um bom alvo de unidade na igreja quando entendemos a
pericorese divina.

Resumindo, A Trindade é um único Deus pela mesma substância e identidade


divina das pessoas e pela comunhão plena e perfeita de cada pessoa com as
outras. Nesses dois aspectos trabalhados reside a unidade trinitária, que pode ser
descrita como unidade substancial-pericorética. Assim podemos entender, sem
cair em erros e heresias que, mesmo sendo trinitários, somos absolutamente
monoteístas. Pai, Filho e Espírito são igualmente divinos e vivem numa
comunhão pericorética tão perfeita e amorosa que podemos dizer com convicção
que eles são três e também um.
As distinções entre as pessoas da Trindade
Se no capítulo anterior vimos que Pai, Filho e Espírito Santo são um único Deus
por sua unidade substancial-pericorética, uma pergunta ainda paira sobre a
mente de leitores atentos: como nós poderíamos distinguir pessoas eternas que possuem
a mesma essência e habitam plenamente umas nas outras? Pense comigo: eles sempre
existiram, então não possuem distinção de origem, eles também não possuem
distinção de essência e na pericorese eles não possuem nem mesmo distinção
espacial (eles podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo). Como eu
reconheço o Pai, o Filho e o Espírito e mantenho a verdade Trinitária de três
pessoas distintas e plenamente divinas? É justamente isso que vamos estudar
nesse capítulo.

Ao longo dos primeiros séculos da igreja o modo de distinção entre as pessoas


da Trindade foi amplamente estudado e discutido. Muitas teorias foram
formuladas a esse respeito, sendo a de Irineu uma das mais famosas. Esse teólogo
trabalhou com a hipótese de uma distinção das pessoas trinitárias com base em
suas ações, principalmente em relação à criação. Nesse primeiro momento essa
era hipótese mais aceita, uma distinção por ações diferentes.

Todavia, conforme o estudo da doutrina da Trindade se desenvolveu e


aprofundou, passou-se a acreditar que a distinção entre as pessoas trinitárias se
encontra em suas relações umas com as outras. E aqui está o ponto que importa:
As pessoas da Trindade não são diferentes em substância/essência mas em suas
relações. Cada uma tem um aspecto relacional em referência as outras que as
mantém distintas. É exatamente esse ponto que iremos analisar.

Uma distinção relacional


Mas como funciona na prática essa distinção de relações? Existe uma linha de
pensamento mais clássica e histórica que entende essa distinção relacional com
base nas relações de geração e procedência: o Pai gerou eternamente o Filho, o
Filho é eternamente gerado pelo Pai e o Espírito procede eternamente do Pai e do
Filho. Eu creio nessas relações, mas considero que somente dizer isso não resolver
nossa questão. Falta base bíblica para dizer que as distinções estão no simples
fato de origens eternas distintas. Falando nisso, o que seriam origens eternas, se
a eternidade de Deus pressupõe que Ele nunca teve uma origem? Como relações
de origem podem fazer sentido quando estamos falando de pessoas eternas?
Voltaremos a esse assunto daqui a pouco.
Uma visão mais recente é a visão relacional. Segundo esse modelo, as distinções
entre as pessoas trinitárias podem ser explicadas ao afirmar que cada pessoa da
Trindade é um centro de autoconsciência distinto, existindo em Deus três
consciências, três “eus” que se relacionam entre si. Essa linha de raciocínio faz
mais sentido bíblico que a anterior, contudo ainda não revela como as pessoas
trinitárias são distintas: como diferenciar consciências eternas, que habitam uma
nas outras e que possuem as mesmas vontades e pensamentos? A resposta ainda
me parece incompleta.

Para responder essa pergunta fico com a explicação de Wayne Grudem, que
afirma que “somente através das relações eternas de autoridade e submissão nós
podemos distinguir as pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo”8. Nas
relações entre si, o Filho está subordinado ao Pai e o Espírito subordinado ao Pai
e ao Filho. Sei que essa é a afirmação mais polêmica desse e-Book, mas creio que
esse é o único elemento encontrado nas escrituras para distinguir e individualizar
as consciências das três pessoas trinitárias. Eles estão eternamente numa relação
livre e amorosa de autoridade e submissão.

Rechaçando a acusação de subordinacionismo e arianismo


Alguns podem acusar esse pensamento de seguir os ensinamentos
subordinacionistas de Ário, teólogo do século III, que defendeu que Pai e Filho
possuem essências divinas diferentes. Para ele, o Filho estaria subordinado ao Pai
porque seria um tipo de Deus inferior ao Pai, tendo sido, inclusive, criado pelo
Pai. Ocorre que a visão que estamos estudando defende que Pai, Filho e Espírito
Santo possuem a mesma essência divina. Ah Pedro, mas uma relação hierárquica
eterna aponta para uma inferioridade de essência!”. Onde isso está Bíblia? Me
permita uma citação de Agostinho:

“Entretanto, porque o Pai só é chamado Pai por ter um Filho; e o filho


só é assim chamado por ter um Pai, essas relações não emanam da
substância, pois cada uma das pessoas não é mencionada em relação a
si mesma, mas sim em relação à outra e entre si reciprocamente...
Portanto, ainda que seja diferente ser Pai e ser Filho, não significa
que haja diferença de substância, pois isso não é dito conforme a
substância, mas sim segundo uma relação.”9

8 Wayne Grudem. Teologia sistemática atual e exaustiva. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 185
9 Agostinho, A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995, p. 196
Agostinho elucida a questão: diferenças relacionais não alteram a substância
divina. Ter uma hierarquia nas relações não significa ter hierarquia na essência
divina. Isso nos afasta da heresia ariana.

Fundamentação bíblica
Como fundamentar biblicamente essa minha afirmação sobre as distinções? É
isso que importa e veremos agora A visão da distinção relacional com papéis
eternamente ordenados tem o seu fundamento no evangelho de João. Como já
vimos, o prólogo desse evangelho começa citando a eternidade e nela o Verbo e
Deus. Depois desse momento inicial João identifica esse Verbo como o Filho
unigênito de Deus. Por fim, durante todo o restante do evangelho eles são
tratados como Pai e Filho, sendo o Filho revelado como Jesus Cristo.

Nessa relação entre Pai e Filho, Jesus sempre aparece sendo subordinado ao Pai.
O evangelho relata que Ele foi enviado pelo Pai, obedece ao Pai, fala o que o Pai
o ordena, faz aquilo que o Pai lhe determina e busca em todos os seus atos a
glorificação do Pai. Nesse mesmo sentido, o Pai sempre é descrito como aquele
que tem autoridade sobre o Filho. Aqui vai uma lista de referência em João para
você dar uma olhada se quiser: 4.34; 5.23,30; 6.38; 7.16,18,28-29; 8.26,29,42;
12.44,49; 14.24; 17.3. A passagem abaixo no capítulo 5 é importante.

E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado.


Mas ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho
também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-
lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que
Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus. Então,
lhes falou Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho
nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir
fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também
semelhantemente o faz. Porque o Pai ama ao Filho, e lhe
mostra tudo o que faz, e maiores obras do que estas lhe
mostrará, para que vos maravilheis. Pois assim como o Pai
ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica
aqueles a quem quer. E o Pai a ninguém julga, mas ao Filho
confiou todo julgamento, a fim de que todos honrem o Filho do
modo por que honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra
o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve
a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna,
não entra em juízo, mas passou da morte para a vida. Em verdade,
em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos
ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão.
Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também
concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. (João 5:16-26)

Este é um texto central para mim que justifica a distinção de Pai e Filho conforme
a sua própria relação. Aqui encontramos Cristo em uma controvérsia com os
fariseus em relação ao sábado. Eles estavam o acusando de violar o sábado. O
principal argumento de Jesus em sua resposta aos fariseus é que Ele é igual a
Deus: meu Pai trabalha no sábado, eu também trabalho. Cristo se declara igual a
Deus. Logo em seguida vemos Jesus focar em sua distinção do Pai:

“o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que


vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também
semelhantemente o faz” (João 5:19).

Porque o Pai ama ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz, e maiores
obras do que estas lhe mostrará, para que vos maravilheis. (João
5:20)

Jesus se faz distinto do Pai em sua relação de submissão no verso 19. Perceba
também que João está descrevendo que, nessa relação, o Pai demonstra o seu
amor revelando ao Filho aquilo que Ele vai fazer, ou seja, sendo autoridade sobre
o Filho. Essa verdade é complementada por outro texto muito interessante,
também no evangelho de João.

Ouvistes que eu vos disse: vou e volto para junto de vós. Se me


amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai, pois o Pai é
maior do que eu. Disse-vos agora, antes que aconteça, para que,
quando acontecer, vós creiais. Já não falarei muito convosco,
porque aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim;
contudo, assim procedo para que o mundo saiba que eu amo o
Pai e que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos, vamo-
nos daqui. (João 14:28-31)

O contexto dessa passagem é de completa subordinação da parte de Jesus,


inclusive quando diz que o Pai é maior que Ele. Jesus está dizendo que nessa
relação Ele demonstra amor ao Pai obedecendo-o em posição de total submissão.
Enquanto o Pai ama o Filho através de sua autoridade, o Filho ama o Pai através
de sua obediência. Além de serem distintos por esse tipo de relação eles
demonstram amor um ao outro por meio de autoridade e submissão. Que
exemplo para nós.

É nesse sentido e com base no verso 26 do mesmo capítulo 5 de João que creio na
geração eterna. Nesse texto encontramos a verdade de que “o Pai concedeu ao Filho
ter vida em si mesmo”. Creio que isso está no contexto dessa relação de autoridade
e submissão. Mesmo que eu não entenda perfeitamente o texto e todo o mistério
trinitário envolvido, faz sentido teologicamente que esse conceder vida em si
mesmo esteja apontando para a autoridade relacional do Pai sobre o Filho.

No texto de João não há nenhum indício de que essa autoridade esteja limitada
ao período em que o Filho esteve encarnado e cumpriu sua obra de salvação.
Incluir isso no sentido do texto seria distorcê-lo e espremê-lo de uma forma que
não nos é lícita. Além disso, existem outros textos nas Escrituras que apontam
fortemente para essa relação de obediência e submissão do Filho ao Pai.

“Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo


homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de
Cristo.” (1 Coríntios 11:3)

“Porque todas as coisas sujeitou debaixo dos pés. E, quando diz


que todas as coisas lhe estão sujeitas, certamente, exclui
aquele que tudo lhe subordinou. Quando, porém, todas as
coisas lhe estiverem sujeitas, então, o próprio Filho também se
sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que
Deus seja tudo em todos.” (1 Coríntios 15:27-28)

Esse e-Book não tem o propósito de fechar esse assunto e esgotar o debate.
Escrevei mais sobre isso em outro momento. Encerro dizendo que estas e outras
passagens da Bíblia parecem não nos deixar dúvidas sobre essa relação eterna de
autoridade e submissão entre Pai e Filho, que entendemos também com o
Espírito, já que ele foi enviado tanto pelo Pai quanto pelo Filho. É por isso que
defendo aqui o que estou chamando de “papéis eternamente ordenados”: Pai,
Filho e Espírito são distintos um dos outros por suas relações eternas de
autoridade e submissão.
Constantino “inventou” a Trindade?
Tendo encerrado nossa análise bíblica de pontos fundamentais da Trindade,
entraremos agora numa rápida análise histórica sobre o desenvolvimento da
doutrina e de algumas heresias nos primeiros séculos da igreja cristã. De forma
mais específica, neste capítulo responderemos a uma objeção comum que as
vezes é feita por aqueles que não creem na Trindade: teria sido o imperador
Constantino o inventor da doutrina trinitária?

Essa acusação normalmente é feita por aqueles que não creem na divindade de
Jesus Cristo (e nem do Espírito). Essas pessoas afirmam que a doutrina da
Trindade passou a existir apenas a partir do momento em que o imperador
Constantino convocou o Concílio de Nicéia, no ano 325 d. C, para a formulação
e validação da doutrina da divindade de Cristo. Dessa forma, a Trindade não
seria um ensino Bíblico, mas uma adição posterior da tradição cristã.

Para ter uma ideia da envergadura e do alcance desse pensamento, veja o que
Dan Brown escreveu em seu famoso livro “O código da Vinci”. Ele usa um dos
personagens para propor essa interpretação da doutrina:

O estabelecimento de Jesus como Filho de Deus foi proposto e


votado pelo concílio de Niceia… Ao endossar oficialmente Jesus
como Filho de Deus, Constantino transformou Jesus numa
divindade que existia além do escopo do mundo humano, uma
entidade cujo poder era incontestável.

Neste mesmo sentido, a Sociedade Torre de Vigia (ou Watchtower Society), a


maior corporação publicadora dos Testemunhas de Jeová, também defende que
Constantino reuniu os bispos em Nicéia para debater sobre a divindade de Cristo
e, com isso, interferiu diretamente para o estabelecimento da ideia de que Jesus
era Deus.

Todavia, essas afirmações não possuem nenhum fundamento histórico e, por


isso, não podemos considerá-las verdadeiras. Sendo assim, vamos analisar
algumas evidências históricas que demonstram como esse pensamento não se
sustenta:

 O testemunho das Escrituras

Já vimos que, por mais que a palavra Trindade não apareça na Bíblia, a doutrina
trinitária foi revelada nas páginas do Novo Testamento. A própria Bíblia já nos
passa a ideia de três pessoas divinas – Pai, Filho e Espírito Santo – como único
Deus. Isso, por si só, já seria mais que suficiente para rejeitarmos a afirmação de
que Constantino foi o inventor dessa doutrina.
 Citações de pais da igreja

Uma segunda evidência de que a doutrina trinitária surgiu muito antes do


imperador Constantino é o testemunho dos pais da igreja. Esses teólogos
afirmaram a divindade de Cristo muito antes do Concílio de Nicéia, que só viria
acontecer no ano 325. Observemos algumas dessas citações 10:

"Pois nosso Deus, Jesus o Cristo, foi concebido por Maria de


acordo com o plano de Deus, ambos da semente de Davi e do
Espírito Santo."

Inácio de Antioquia (50-117)

"Consequentemente toda maldição e todo tipo de feitiço foram


dissolvidos, a ignorância tão característica da maldade
desapareceu, e o reino antigo foi abolido quando Deus apareceu
em forma humana pra trazer as boas novas da vida eterna."

Inácio de Antioquia (50-117)

"Agora que Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e o próprio


eterno sumo sacerdote, Jesus Cristo o filho de Deus, te edifique
em fé e verdade... e para nós contigo, e para todo aquele debaixo
do céu que ainda crerá no Senhor e Deus Jesus Cristo e em seu
Pai que o ressuscitou dos mortos"

Policarpo de Esmirna (69-155)

“E aquele Cristo sendo Senhor, e Deus o Filho de Deus, e


aparecendo anteriormente em poder como Homem.”

Justino, o Mártir (100-165)

10
Todas as citações estão registradas no artigo: Nathan Busenitz, Did constantine invent the trinity?: the
doctrine of the trinity in the writings of the early church fathers. The Master’s Seminary: MSJ 24/2 (Fall
2013), p. 217-242
"Cristo Jesus [é] nosso Senhor, e Deus, e Salvador, e Rei,
conforme a vontade do Pai invisível."

Irineu (120-202)

"O mistério da dispensação [economia] ainda está guardado, o


qual distribui a unidade em Trindade, coloca em ordem as três
pessoas: o Pai, o Filho, e o Espírito Santo.”

Tertuliano (160-225)

Além dessas, existem muitas outras citações do primeiro, segundo e terceiro


século que provam a crença na divindade de Cristo e na doutrina trinitária muito
antes de Constantino e do Concílio de Nicéia. Dizer que a Trindade foi inventada
sob a influência e ordem de Constantino é ignorar inúmeros livros e documentos
históricos.

A verdade sobre Nicéia


Se a doutrina da Trindade não foi inventada em Nicéia, o que exatamente teria
acontecido nesse concílio?

A verdade é que o Concílio de Nicéia foi um evento central na história da


doutrina trinitária sem, contudo, ser a sua fundação. Ocorre que todo esse debate
teológico a respeito da Trindade e da divindade de Cristo chegou no final do
século III de forma muito aquecida. Teólogos desse período debatiam fortemente
em discussões a respeito da divindade do Filho e da possibilidade de existir ou
não uma relação hierárquica entre Ele e o Pai. Na tentativa de explicar essas
relações entre os entes divinos, algumas heresias foram formuladas e propagadas
nesse período.

É nesse contexto que surge um teólogo chamado Ário. Esse teólogo se preocupou
verdadeiramente em combater as heresias do sabelianismo da qual falaremos
com mais detalhes no próximo capítulo. Todavia, reagindo a esses erros
gravíssimos e buscando uma chave para harmonizar a cristologia do Novo
Testamento com o monoteísmo, Ário caiu em um outro extremo. Ele passou a
defender a ideia de que Cristo seria uma espécie de semi-deus criado pelo Pai,
construindo assim uma visão de absoluta distinção entre Pai e Filho.
Em meio a toda essa tensão teológica de diferentes grupos, o Imperador
Constantino, preocupado com a unidade do Império Romano, convocou um
concílio que seria realizado na cidade de Nicéia, com vistas a promover a unidade
da igreja. Em Junho do ano 325 esse concílio teve início com cerca de trezentos
bispos cristãos que, depois de muito debate, decidiram pela rejeição completa do
arianismo e pela excomunhão de Ário. Nesse concílio ficou decidido como
ortodoxia cristã o seguinte credo:

Cremos em um só Deus, o Pai todo-poderoso, criador de todas as


coisas, visíveis e invisíveis;

E em um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado do Pai,


unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz de luz,
verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só
substância com o Pai, pelo qual todas as coisas vieram a ser, coisas
nos céus e coisas na terra, o qual, por nós, homens, e por nossa
salvação, desceu e Se encarnou, tornando-se homem, sofreu e
ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, e virá para julgar os
vivos e os mortos;

E no Espírito Santo.

Uma nova controvérsia


Você deve ter percebido que no Credo de Nicéia, além de uma afirmação
categórica sobre a verdadeira divindade de Cristo, existe uma omissão quase
completa a respeito da pessoa do Espírito Santo. Por causa disso, após Nicéia, a
discussão sobre a divindade do Espírito Santo passou a ser constante.

Nesse período, um grupo chamado de macedonianos começou a negar a


divindade do Espírito e este ensino começou a se espalhar e tomar grandes
proporções. Atanásio, que já tinha lutado em defesa da divindade de Cristo
contra os arianos, também pelejou teologicamente em favor do reconhecimento
da divindade do Espírito Santo. Nesta batalha pela ortodoxia, Atanásio recebeu
ajuda do grupo denominado de pais capadócios, principalmente de Basílio, que
desenvolveu a defesa da divindade do Espírito, sendo acompanhado por
Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa.

Toda essa disputa levou à realização de mais um concílio, desta vez na cidade de
Constantinopla, no ano de 381, algumas poucas décadas após o Concílio de
Nicéia. No Concílio de Constantinopla o Credo de Nicéia foi reafirmado e a ele
foi adicionada uma explicação mais profunda a respeito da pessoa do Espírito
Santo. Sua parte final ficou definida da seguinte maneira:

E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai e


do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e
glorificado, que falou através dos profetas. E na igreja una, santa,
universal e apostólica. Confessamos um só batismo para remissão
dos pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do
século vindouro. Amém.

A junção das conclusões destes dois importantes concílios ficou conhecida como
Credo Niceno-Constantinopolitano. Esse credo foi responsável por solidificar a
doutrina da Trindade nos primeiros séculos da igreja cristã.

Esses dois concílios foram fundamentais para a afirmação da doutrina trinitária


como ponto central na teologia cristã. Logo após essa afirmação, no final do
século IV e início do século V, Agostinho escreve sua obra “A Trindade”. Desde
então esse documento se tornou a fonte mais influente sobre a doutrina trinitária,
solidificando ainda mais seus pontos básicos como a verdadeira ortodoxia
histórica da igreja.

Que glória! Aquilo que foi afirmado nas páginas das Escrituras, defendido e
preservado pelos pais da igreja e reafirmado por Agostinho chegou até nós hoje
e continua sendo proclamado pelos servos de nosso Senhor. Deus é Trindade!
Que o Senhor nos guie em um caminho de ortodoxia.
Heresias e “Ilustrações”
Como já constatamos, ao longo dos primeiros séculos da igreja cristã surgiram
erros e heresias sobre a doutrina da Trindade que reverberam até hoje. Desde o
primeiro século, o debate e a produção teológica a respeito da divindade do Filho
e da Trindade foram constantes, se intensificando século a século. Nesse período
inicial os teólogos buscavam boas formulações doutrinárias para explicar a
coexistência de Pai, Filho e Espírito Santo, bem como suas relações e a
possibilidade de harmonização com o monoteísmo cristão. Desse ambiente de
efervescência intelectual e teológica surgiram algumas heresias. Neste capítulo
vamos estudar as três mais importantes. Me baseei principalmente no livro
“Patrística: Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã” de J.
N. D. Kelly (Vida Nova).

 Modalismo

De modo geral, os teólogos ocidentais sempre tiveram uma grande preocupação


em preservar a unidade de Deus e defender o monoteísmo cristão. Ocorre que
alguns teólogos se voltaram para um pensamento tão extremo na defesa dessa
doutrina que passaram a negar as distinções verdadeiras entre as pessoas
trinitárias e a pluralidade do ser de Deus.

No final do século II essa tendência levou ao surgimento de um movimento que


ficou conhecido como monarquianismo. Os teólogos que faziam parte dele
defendiam exatamente a ideia da singularidade de Deus, uma espécie de
monarquia individual de um único Deus. Dentre os monarquianistas, a vertente
mais famosa e que ganhou mais expressividade na época foi chamada de
monarquianismo modalista.

Essa heresia defendia que Deus era único e apenas se manifesta de formas
diferentes. Para os modalistas Pai, Filho e Espírito Santo não são pessoas
distintas, mas apenas modos diferentes pelos quais o Deus absolutamente
singular costuma agir. Hora ele se manifesta como Pai, hora como Filho, Hora
como Espírito Santo. Noeto foi um dos primeiros grandes defensores dessa
teologia modalista, mas foi com o teólogo Sabélio que essa doutrina herética
ganhou força, negando de forma tão veemente as distinções entre Pai, Filho e
Espírito Santo que, mais tarde, passou a ser chamada de sabelianismo. Até hoje,
pessoas ainda costumam explicar a Trindade em termos modalistas. É um erro
comum que precisa ser evitado.

 Arianismo
Essa com certeza é a mais famosa heresia a respeito da doutrina da Trindade.
Como já vimos, Ário foi um teólogo que se preocupou em combater o
sabelianismo. Todavia, ao tentar fazer isso, cometeu o erro de se colocar
exatamente no extremo oposto, negando completamente a unidade das três
pessoas trinitárias e afirmando Cristo como uma espécie de semi-deus, tirando
seu caráter divino e dando a ele o status de criatura. Por conta disso, sua doutrina
ficou conhecida como subodinacionismo ou simplesmente arianismo. Robert
Letham bem resumiu as afirmações de Ário em cinco pontos 11:

1. Deus é solitário, sendo o Pai somente;

2. O Filho teve uma origem ex-nihilo (a partir do nada) e houve


um tempo em que ele não existia. Foi criado pela vontade de Deus;

3. Deus fez uma pessoa quando desejou criar, ele criou por um
intermediário;

4. A Palavra, ou seja, O Filho, tem uma natureza mutável,


mantendo-se bom pelo seu livre arbítrio;

5. A substância do Pai, do Filho e do Espírito são diferentes uma


da outra.

Mais tarde os seguidores de Ário desenvolveram esses pontos, mas as ideias


centrais permaneceram as mesmas. Com isso, essa heresia foi estabelecida
negando a igualdade do Pai, do Filho e do Espírito Santo ao afirmar que somente
o Pai possui essência e substância divinas. Mesmo depois de Niceia Ário
continuou influenciando muitas igrejas, até que a ortodoxia conseguiu silenciar
mais essa heresia. Ainda hoje percebemos o ensino Ariano entre nós,
principalmente com os Testemunhas de Jeová.

 Triteísmo

De modo semelhante ao arianismo, o triteísmo nega a unidade da Trindade,


contudo, diferentemente da última heresia, ele não nega a divindade de Jesus e
do Espírito Santo. Na verdade, essa heresia afirma que Pai, Filho e Espírito Santo
são divinos, porém completamente distintos. Isso significa que os triteístas creem
na existência de três diferentes deuses. Essa doutrina abandonou o monoteísmo
cristão. Algumas visões mais atuais sobre a Trindade focam em sua comunidade
de três pessoas e podem correr o risco de não sustentarem adequadamente a
plena unidade em Deus.

11 Robert Letham, The Holy Trinity. Philipsburg: 2004, p. 52


Perceba que essas três heresias partem da tentativa de explicar mais do que foi
revelado. De fato, não temos como responder tudo sobre como harmonizar a
Trindade e o monoteísmo. Como Deus pode ser três e um ao mesmo tempo? Toda
essa tentativa de sondar a mente e a realidade divina provocou a formulação de
heresias desastrosas para a igreja cristã. A busca por adaptar as doutrinas bíblicas
à racionalidade humana provocou erros irreparáveis que não devem jamais ser
repetidos. Devemos sempre adotar uma postura humilde diante dos mistérios da
Bíblia e colocar em prática aquilo que Alister Mcgrath já ensinou quando disse
que o papel da doutrina é preservar o mistério na teologia cristã e, quando corrompemos
o mistério, temos uma heresia12.

Ilustrações
Para evitar o risco de heresia e preservar o mistério trinitário costumo dizer que
não gosto de usar ilustrações para ensinar a respeito da doutrina da Trindade.
Quando se trata de ensinar crianças, gosto ainda menos. Isso porque nenhuma
ilustração consegue explicar corretamente a realidade trina. Não há nada em
nossa realidade que se assemelhe e não temos a capacidade de compreendê-la
completamente. Usar ilustrações pode atrapalhar mais do que ajudar,
principalmente quando as pessoas não possuem uma boa base teológica
trinitária.

Quando utilizamos ilustrações para explicar e aplicar a Trindade para crianças,


por exemplo, assumimos o risco de que essas crianças cresçam com ideias erradas
sobre essa doutrina. Essas falsas concepções sobre a Trindade são extremamente
difíceis de serem desfeitas posteriormente e, por diversas vezes, acabam crendo
durante toda a sua vida em uma visão distorcida, herética, em alguns casos.
Vejamos os exemplos mais famosos de ilustrações sobre a Trindade e como eles
podem ser perigosos e escorregadios.

 Água

Alguns afirmam que a Trindade seria como a água, um único elemento que se
apresenta em três estados: sólido, líquido e gasoso. Infelizmente isso é
exatamente o que ensina a heresia modalista, ou seja, que Deus é uma única
pessoa que se manifesta de três formas diferentes. A água (H2O) em seu estado
líquido, sólido ou gasoso continua sendo água. Ela muda apenas o seu modo de

12
Alister McGrath, Heresia: Uma história em defesa da verdade. São Paulo: Hagnos, 2009, p. 42
manifestação. Essa ilustração elimina a real distinção das pessoas da Trindade. E
como vimos, não é isso que a Bíblia ensina.

 Ovo

Outras pessoas afirmam que a Trindade seria como um ovo, sendo um único
objeto formado por casca, clara e gema. Contudo, Pai, Filho e Espírito Santo não
são partes de Deus, mas todos eles são completamente Deus. Essa ilustração
ensina que não existem três pessoa e sim um único Deus formado por três partes
(cada pessoa), como se Deus fosse um quebra-cabeças. A casca sozinha não é
100% ovo, assim como a gema e a clara também não são. Todavia o Pai é Deus, o
Filho e o Espírito Santo também. Compará-los com um ovo nega a plena
divindade de cada um deles.

 Sol

Segundo essa ilustração Deus seria como o sol, composto pelo próprio sol, pelos
raios do sol e pelo calor do sol. Ocorre que os raios de sol não são o próprio sol e
nem o calor o é. Mais uma vez a ilustração cai na heresia do modalismo, onde
Deus seria um único ser que se manifesta simultaneamente de formas diferentes.
Essa analogia, inclusive, foi usada pelo próprio Sabélio, no século III, para
explicar a sua teologia herética. Segundo ela, Filho e Espírito seriam apenas
expressões do Pai. Novamente, isso não condiz com o ensino bíblico e com a
tradição história da teologia.

Mas se essas ilustrações são problemáticas, quais deveríamos usar? Minha


recomendação é que não usemos nenhuma. É melhor estudarmos e ensinarmos
aquilo que podemos a partir da revelação bíblica e deixarmos que o mistério
trinitário nos maravilhe todos os dias. Essa doutrina é o maior mistério do
cristianismo e isso aponta para a glória de Deus. Se deleite nessa grandeza ao
invés de tentar resolvê-la por completo. Encerro essa parte sobre Bíblia e História
com esse trecho da Teologia Sistemática de Millard Erickson:

“Nós não sustentamos a doutrina da Trindade porque ela é


autoevidente ou logicamente convincente. Nós a
sustentamos porque Deus revelou que é assim que ele é.
Como alguém disse acerca dessa doutrina: tente explica-la,
e perderá a cabeça; mas tente nega-la, e perderá a alma.”13

13 Millard Erickson, Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 337.
Adoração trinitária
Um dos objetivos centrais para a confecção deste pequeno e-book foi arrancar da
mente de muitos cristãos o mito de que a doutrina da Trindade não possui
nenhuma implicação prática na vida cristã. Esse é um engano clássico que precisa
ser deixado de lado o mais rápido possível. Nesse capítulo olharemos para como
uma visão trinitária de Deus altera nossa adoração. A verdade é que a consciência
da realidade trinitária de Deus muda completamente a mentalidade com que nos
aproximamos dEle para adorá-lo.

Nos tempos do Antigo Testamento uma fórmula litúrgica chamada “berakah” era
constantemente usada para adorar a Deus. Essa fórmula consistia em bendizer o
nome de Deus e, em seguida, afirmar atributos ou ações de Deus pelos quais Ele
estaria sendo louvado. Essa fórmula litúrgica pode ser vista e bem entendida em
diversas partes do Antigo Testamento, principalmente nos salmos.

Bendito seja Deus, que não me rejeita a oração, nem aparta de


mim a sua graça. (Salmos 66:20)

Bendito seja o Senhor Deus, o Deus de Israel, que só ele opera


prodígios. (Salmos 72:18)

Perceba a Estrutura de bendizer o nome de Yahweh e depois afirmar seu caráter


ou obras. Já no novo testamento, alguns autores usam essa mesma fórmula
litúrgica para adorar o Deus trino. O que eles fazem é digno de destaque. Paulo
e Pedro, por exemplo, adaptam essa adoração judaica para a nova realidade da
revelação de Deus em Jesus Cristo. No novo testamento o Berekah é usado por
eles para incluir Jesus nesse louvor.

“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o


Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação; Que nos
consola em toda a nossa tribulação.” (2 Cor 1:3-4)

“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que,


segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma
viva esperança.” (1 Pedro 1:3)

Paulo e Pedro estão “cristianizando” a forma de louvor judaica. Inserindo nela


um novo objeto de adoração. Esse Deus agora não é adorado somente como Deus,
mas é o Deus que é Pai de Jesus Cristo. Nós já começamos a enxergar uma
aproximação da ideia trinitária aqui. E isso fica mais claro e completamente
trinitário no grande berakah do novo testamento 14. Veja abaixo o texto em que
Paulo inclui toda a Trindade nessa fórmula litúrgica de adoração.

Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos


tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões
celestiais em Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da
fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante
ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos,
por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade,
para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu
gratuitamente no Amado, no qual temos a redenção, pelo
seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua
graça, que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda a
sabedoria e prudência, desvendando-nos o mistério da sua
vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de
fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos,
todas as coisas, tanto as do céu como as da terra; nele, digo, no
qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o
propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da
sua vontade, a fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os
que de antemão esperamos em Cristo; em quem também vós,
depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa
salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo
Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança,
até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória.
(Efésios 1:3-14)

Perceba que Paulo adora a Deus pensando na Trindade, refletindo sobre Deus
como ele realmente é. Paulo mostra a transição da revelação divina e estabelece
um novo padrão de adoração. Do verso 3 ao 6 ele fala da pessoa do Pai e de suas
ações. De modo semelhante, do verso 7 ao 12, fala das obras do Filho e, por fim,
nos versos 13 e 14 se refere ao Espírito Santo. Vale lembrar que, no final de cada
uma dessas subdivisões textuais, Paulo rende graças a cada uma das pessoas da
Trindade, mostrando a todos um novo padrão de adoração e louvor, aquele que
considera Deus na sua revelação trinitária.

Devemos adorar a Deus todos os dias do mesmo modo que Paulo fez no primeiro
capítulo de Efésios, elevando nosso pensamento ao Deus Trino. Deus não é um
conceito filosófico ou um ser abstrato que se adapta ao modo como pensamos
sobre Ele. Na verdade, Deus é absoluto, imutável e pessoal e quer ser adorado
como ele é: Trindade. Quando deixamos de lado a verdade trinitária corremos o

14 Peter O’brien, The Letters to the Ephesians: The Pillar New Testament Commentary. Grand Rapids: 1999.
risco de não estarmos adorando o Deus bíblico, mas apenas uma criação de nosso
intelecto.

Deixe-se maravilhar pela glória do Deus Trino e isso mudará completamente o


modo como você vive e enxerga a existência. Reconhecer e deleitar-se nesse
mistério te levará a uma adoração mais forte e mais real a Deus! Algumas citações
de teólogos dos primeiros séculos da história da igreja são úteis como exemplos
de reflexões trinitárias. Esses homens tinham a mentalidade de pensar sobre
Deus com base na doutrina da Trindade e assim puderam elevar suas mentes ao
Deus Trino e louvá-lo. Muito dessa prática se perdeu em nosso tempo, por isso
nos cabe analisar e resgatar esse tipo de adoração e reflexão sobre Deus.

“Um só é o Poder do qual tudo procede. Um só é o filho por quem


tudo começa e Um só é o Dom que é o penhor da esperança
perfeita. Nada falta a tão grande perfeição, tudo é perfeitíssimo na
Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo a infinidade no Eterno, o
esplendor na Imagem e a atividade no Dom”

Hilário de Poitiers (300–368)

“Mal me dou conta do Um e sou iluminado pelo esplendor dos


três, mal os distingo e sou levado de volta ao Um, quando penso
em qualquer um dos três penso nEle como um todo. Meus olhos
são preenchidos e a maior parte do que estou pensando me escapa.
Quando contemplo os três juntos vejo apenas uma chama e não
posso dividir ou mensurar a luz indivisível. [...] Essa é minha
posição, adoremos ao Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Três
pessoas, uma unidade indivisível em honra, glória, substância e
Reino”

Gregório de Nazianzo (329-390)

“Senhor Deus, cremos em ti, Pai, Filho e Espírito Santo. [...] Oh


Senhor, meu Deus, ouve-me, afim de que eu jamais me entregue
ao cansaço e não queira mais te buscar, mas ao contrário, que eu
sempre procure tua face com todo ardor, Senhor, único Deus,
Trindade.”

Agostinho de Hipona (354-430)


“Uma essência, uma divindade, um poder uma vontade, uma
energia, um começo, uma autoridade, um domínio e uma
soberania. Reveladas em três perfeitas subsistências e adorado
com uma adoração, unidos sem confusão divididos sem
separação.”

João Damasceno (676-749)

Ao lermos essas citações percebemos como esses teólogos dos primeiros séculos
pensavam, refletiam e adoravam a Trindade. Você pensa na Trindade quando
canta na igreja? Você fica maravilhado com a misteriosa unidade e pluralidade
em Deus? Você adora pensando em como cada pessoa da Trindade agiu para
nossa salvação? Te garanto que sua adoração será mais intensa e prazerosa
quando você começar a considerar a realidade de Pai, Filho e Espírito Santo. A
Trindade é visão mais elevada e gloriosa que podemos ter de Deus porque é
exatamente como Ele é, e assim deve ser adorado.
A Trindade e o amor cristão
Nosso último capítulo é sobre o amor. Não qualquer tipo de amor, mas o amor
cristão que segue o modelo do amor trinitário. Sim, o conhecimento da doutrina
da Trindade contribui de forma prática para a nossa vida cristã mudando
completamente o modo como amamos e enxergamos o próprio amor. Sem a
Trindade o conceito de amor cristão simplesmente rui, tornando-se apenas um
termo vazio de significado. A Trindade, como veremos adiante, é o modelo de
amor para o qual devemos olhar em nossas relações.

Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de


Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.
Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor.
Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus
enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio
dele. (1João 4:7-9)

O apóstolo João inicia essa passagem com um imperativo: devemos amar uns aos
outros. Essa é a ordem do nosso Senhor e a marca principal de qualquer cristão.
Quem é cristão ama aos outros, quem não o faz nunca foi cristão. Mas o que seria
esse amor? Em que ele se fundamentaria? João dá seguimento ao texto justamente
respondendo a estas perguntas. Ele nos informa que esse amor está baseado no
próprio ser e caráter de Deus. É impossível que alguém conheça a Deus e não
consiga amar, porque Deus é amor. Ele é o padrão e a fonte do amor cristão.

Mas você já parou para pensar na afirmação “Deus é amor”? O texto não diz que
Deus tem amor ou que Ele manifesta amor. As Escrituras afirmam que Deus é
amor. Um ser que é amor obviamente precisa amar. E o amor pleno ama sempre
algo fora de si mesmo. E quem Deus ama? Os seus filhos? Sim! Mas quem Deus
amava antes de criar o mundo? A Bíblia não diz que o Senhor se tornou amor
depois de nos criar. Ele é e sempre foi amor, isso é a sua essência. Como um ser
solitário pôde ser amor enquanto esteve sozinho na eternidade? O significado de
amor não seria justamente olhar para fora de si e criar laços com o que é distinto?

“O que é, portanto, o amor senão uma certa via que enlaça dois
seres, ou tenta enlaçar, a saber, o que ama e o que é amado.”15

Agostinho de Hipona

Essa frase de Agostinho em seu livro “A Trindade” explica que o amor consiste
uma relação de, no mínimo, duas pessoas. Como Deus pode ser amor sendo
apenas um? A quem Deus amava antes de nos criar? Não é viável dizer que Ele

15
Agostinho, A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995, p. 284
não amava ninguém porque isso contradiz as Escrituras, que dizem que Deus é
amor. Também não é viável dizer que Ele nos criou pelo desejo de amar, porque
isso faria Deus dependente de suas próprias criaturas.

A única resposta coerente para esses questionamentos é a doutrina da Trindade.


Um ser só pode experimentar a plenitude do amor e todo o seu significado se ele
ama o diferente, portanto Deus só pode ser amor se Ele amar em si mesmo. Perceba
que Deus não ama a si mesmo, mas em si mesmo. Ele não é um Senhor narcisista,
mas possui pessoas distintas em seu próprio ser, às quais vivem em relação
perfeitamente amorosa. A única concepção de divindade que se encaixa nessa
ideia é o Deus Trino do cristianismo, onde o Pai ama o Filho e o Espírito e estes
também amam o Pai em uma relação perpétua.

É daí o entendimento de que a Trindade é exatamente esse Deus que é amor em


si mesmo. Ele experimenta o amor desde muito antes de criar os homens e, por
mais que a raça humana fosse extinta permanentemente, Ele continuaria
manifestando eternamente o seu amor perfeito em suas relações trinitárias. Nessa
dança de amor entre as pessoas da Trindade Agostinho identifica o Pai como
aquele que ama, o Filho como o amado e o Espírito como o próprio elo de amor
entre eles.

A descrição de Agostinho é um bom ponto de partida. Mas um teólogo medieval


chamado Ricardo de São Vitor propôs uma ideia que a complementou. Para
Ricardo, o amor perfeito e pleno necessita de uma terceira pessoa, pois quando
se restringe à apenas duas ele corre o risco de se tornar egoísta. A ideia é que o
amor precisa ser aberto para que uma terceira pessoa entre e complete esse
relacionamento. Essa terceira pessoa é o Espírito, que Ricardo descreve como “o
outro amado” ou “o co-amado”, que forma e fecha uma relação de amor perfeito
na Trindade.

O mais coerente é que façamos uma junção dessas duas visões, sendo o Espírito
Santo o elo que liga o Pai e o Filho em amor, mas sem nos esquecermos que Ele
também é uma pessoa, um agente tanto ativo quanto passivo desse amor perfeito.
Deus só pode ser amor se Ele for Trindade, recebendo e doando amor em suas
relações trinitárias desde a eternidade.

Mas João, ainda no nosso texto base, nos revela em que se consiste esse amor
trinitário, bem como a forma exata em que ele se manifesta:

Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus


enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio
dele. (1 João 4:9)
O amor trinitário é o amor sacrificial, é assim que Deus é, e é assim que ele quer
que sejamos. Quando o Pai envia o seu Filho, Ele está enviando a si mesmo para
morrer, doando de si mesmo para a salvação de seres humanos pecadores. Na
Trindade podemos dizer que Deus deu de si mesmo! Amar é doar a si mesmo!
Nosso padrão de amor é esse do Pai que trabalha para glorificar o Filho, o Filho
que trabalha para a exaltação do Pai e o Espírito que age em prol do louvor ao
Pai e ao Filho. Eles sempre buscam o outro e se doam dentro de suas relações.

Olhando para a doutrina da Trindade aprendemos como devemos amar aqueles


que estão à nossa volta. Devemos nos doar uns aos outros, amando-nos sem
esperar nada em troca. Esse foi o exemplo que a Trindade nos deu quando
decidiu estender o amor eterno que tinha em si a seres humanos pequenos e
pecadores. Nós não tínhamos nada para contribuir e mesmo assim Ele nos amou.
É isso que Ele nos ensina e é isso que Ele quer que façamos.

Imagine esse amor sacrificial, que é ensinado pela Trindade, sendo aplicado na
igreja. Todas as pessoas se doando uns aos outros sem esperar nada em troca.
Pense em como seriam as famílias, os relacionamentos e os casamentos se todos
tivessem essa mesma visão do amor. A Trindade tem servido de modelo para
que esse padrão amoroso seja aplicado, mas infelizmente a maioria dos cristãos
têm negligenciado essa doutrina por achá-la demasiadamente teórica e pouco
prática.

As relações trinitárias são o nosso padrão, devemos buscar imitá-las


constantemente. É claro que jamais alcançaremos tal nível de amor nessa terra,
contudo esse é o horizonte, é isso que temos que desejar ser uns para os outros.

Essa é a maravilha de quem Deus é no seu eterno poder: Pai, Filho e Espírito
Santo. Contemplar e refletir sobre suas relações deve sempre nos levar à adoração
e ao amor despretensioso. Diferente do que muitos pensam, essa rica doutrina
nos ensina a verdadeira adoração e o amor genuíno. É olhando para ela que
crescemos e nos tornamos mais parecidos com Deus, tanto em nossa
individualidade quanto em nossa vida de comunhão com a igreja. O meu desejo
é que você conheça e prossiga em conhecer a Deus, o Deus Trino que se revelou
nas Escrituras!

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