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AS GRANDES DOUTRINAS DA GRAÇA

Um curso de teologia reformada

LEANDRO LIMA

Volumes 1 e 2

BIBLIOLOGIA
TEONTOLOGIA
ANTROPOLOGIA
CRISTOLOGIA

AGATHOS
2017
© Leandro Lima

Projeto Gráfico
Editora Agathos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

Lima, Leandro Antonio de, 1975-


As Grandes Doutrinas da Graça, Vol 1 e 2
São Paulo : Agathos, 2017.
Inclui Bibliografia

1. TEOLOGIA. 2. EXPOSIÇÃO BÍBLICA. 3. MISSÕES TEOLOGIA CURSOS.


4. BÍBLIA ESTUDO E ENSINO. 5. BÍBLIA COMENTÁRIOS. 6. FÉ 7. RELIGIÃO.
i.Título.

2017
Todos os direitos reservados e protegidos
pela Lei 9.610 de 19/02/1998.
Agathos Editora
(011) 5521-4495
www.institutoreformado.com.br
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BIBLIOLOGIA

INTRODUÇÃO — A RELEVÂNCIA DO ESTUDO DA TEOLOGIA 5


1. A RELEVÂNCIA DA REFORMA 9
2. REVELAÇÃO PROGRESSIVA 14
3. O REGISTRO DA REVELAÇÃO 18
4. A ESCRITURA COMPLETA 23

TEONTOLOGIA

5. A EXISTÊNCIA DE DEUS 31
6. O CONHECIMENTO DE DEUS 41
7. A TRINDADE — ASPECTOS HISTÓRICOS E BÍBLICOS 49
8. A TRINDADE — ASPECTOS TEOLÓGICOS E PRÁTICOS 56
9. A IMUTABILIDADE DE DEUS 63
10. SOBERANIA DE DEUS OU LIVRE-ARBÍTRIO DO HOMEM? 70
11. A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO 77
12. IMPLICAÇÕES DA DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO 87
13. O ENIGMA DO MAL 93
14. A DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA 101
15. MILAGRES — DEFINIÇÃO E PROPÓSITOS 109
16. AINDA HÁ MILAGRES HOJE? 115

ANTROPOLOGIA

17. CRIAÇÃO OU EVOLUÇÃO? 122


18. O HOMEM COMO SER CRIADO 130
19. O PROPÓSITO DA CRIAÇÃO 139
20. A QUEDA DO SER HUMANO 145
21. O INIMIGO DAS NOSSAS ALMAS 152
22. O SIGNIFICADO DA MORTE 159
23. PARA ONDE VÃO AS ALMAS? 165

CRISTOLOGIA

24. O EVENTO CENTRAL DA HISTÓRIA 173


25. AS NATUREZAS DO REDENTOR 185
26. A NECESSIDADE DA MORTE DE CRISTO 193
27. O SUBSTITUTO DOS PECADORES 203
28. A EXTENSÃO DA EXPIAÇÃO DE CRISTO 215
29. EVIDÊNCIAS, SIGNIFICADO E EFEITOS DA RESSURREIÇÃO 224
30. O SIGNIFICADO TEOLÓGICO DA ASCENSÃO 234

BIBLIOGRAFIA 241

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BIBLIOLOGIA
INTRODUÇÃO À BÍBLIA

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INTRODUÇÃO — A RELEVÂNCIA DO ESTUDO DA TEOLOGIA

Costuma-se dizer: “Repetir sem entender é coisa de o verdadeiro significado do batismo com o Espírito
papagaio”. Os donos de papagaios domesticam os Santo. E quando sabem, parecem não ter muito inte-
pássaros para que repitam palavras decoradas. As ve- resse a respeito. Se as questões escatológicas causam
zes se pensa que os papagaios estão sendo inteligen- discussão, por outro lado são apenas superficiais, em
tes por repetirem aquilo que foram condicionados. assuntos selecionados e muito mais voltadas para es-
Mas a verdade é que as pobres aves literalmente “não peculações sobre o milênio ou o arrebatamento do
sabem o que estão falando”. que para conteúdo substancial.

Pensamos que muitas vezes uma cena semelhante Uma das razões dessa falta de conteúdo tem a ver
ocorre na igreja. Os líderes eclesiásticos fazem as pes- com as obras teológicas publicadas. Boas obras de
soas engolirem um tipo de cristianismo sem lhes dar teologia, muitas vezes, estão em linguagem inacessí-
explicações convincentes sobre o que estão ensinan- vel para os não iniciados. Enquanto isso as prateleiras
do, e sem demonstrar que seus ensinos têm base na das livrarias cristãs estão cheias de livros de autoaju-
Palavra de Deus. E estes “pobres cristãos” saem por aí da, que prometem soluções milagrosas em apenas
repetindo ensinos que foram condicionados a repe- “alguns passos”, mas que não trazem verdadeiro cres-
tir. Talvez nunca pensaram sobre eles. cimento na graça e no conhecimento de Deus (2Pe
3.18).
O PAPEL DO DISCERNIMENTO
O fato é que ser cristão hoje está se tornando apenas
Um cristão deveria ser alguém com discernimento. questão de sentimentalismo. E as vezes, até de gosto
Não poderia engolir tudo que ouvisse por aí sem pessoal. No senso comum dos nossos dias, o cristão
considerar atentamente o que está ouvindo. O caos verdadeiro não é aquele que “sabe” mais, e sim aque-
da irracionalidade moderna não deveria atingir a fé. le que “sente” mais (teve “experiências”). A ênfase no
Mas infelizmente, hoje em dia, as grandes doutrinas sentimentalismo é uma das marcas do relativismo do
da Palavra de Deus estão quase esquecidas. mundo pós-moderno. Até porque, sentimentos são
coisas extremamente subjetivas e relativas.
Em geral, as pessoas sabem muito pouco sobre os
atributos de Deus, as naturezas de Cristo, ou sobre

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PREPARADOS PARA RESPONDER Mesmo sabendo da complexidade de muitos dos
assuntos aqui considerados, objetivamos dialogar so-
De acordo com a Bíblia, como cristãos, devemos es- bre questões que fazem parte do dia a dia dos crentes
tar “sempre preparados para responder a todo aque- (aqueles que têm fé) e mesmo dos não-crentes. Não
le que nos pedir razão da esperança que há em nós” queremos tratar de assuntos teológicos como se nada
(1Pd 3.15). Esperança é algo que aponta para o fu- tivessem a ver com a vida prática das pessoas. O que
turo. Mas a certeza do futuro se constrói a partir de se pretende é uma análise sincera, de uma perspecti-
um passado e de um presente sólidos. A fé deve ser va bíblica, sobre assuntos selecionados que são vitais
bem fundamentada e amplamente convincente não para um verdadeiro conhecimento de Deus, e uma
somente no aspecto emocional, mas também no ra- vida cristã frutífera. Não importa se nossas fraquezas
cional. Todo cristão sincero deve chegar a um estágio tenham que ser postas a lume, desde que a verdade de
em sua vida em que precisa perguntar a si mesmo: Deus brilhe ainda mais forte diante de nossos olhos.
“Será que minha religião é verdadeira?” É claro que É certo que quando confrontamos nossas crenças
respostas pré-fabricadas não satisfazem e nem devem pessoais com a Escritura percebemos que muitas ve-
satisfazer a ninguém. Como diz Michael Horton, zes essas crenças se demonstram infundadas. A razão
todo cristão deveria ser indisposto a aceitar com o é que, talvez, jamais tenhamos estudado seriamente o
coração uma fé que falha em convencer sua mente1. assunto de uma perspectiva bíblica. De qualquer for-
Mas a verdade é que, muitas vezes, a igreja se torna ma, nosso apego pela Escritura deverá ser maior do
o local onde as mentes são menos exigidas. O fato é que qualquer coisa, até mesmo do que nossos gostos
que quando os rituais substituem a vida, “verdades”, pessoais.
que podem ou não ser verdadeiras, são decoradas e
repetidas quase que com desinteresse pela maioria SOBRE A METODOLOGIA
dos “fiéis”. Infelizmente, os cristãos são acostumados
a não pensar a respeito de sua fé. São como papagaios, Para o estudante uma palavra cabe com relação à me-
ensinados a repetir coisas que não entendem, apenas todologia adotada. Aqui não se lançam questiona-
para causar admiração nos outros. mentos sobre a Bíblia, mas a partir da Bíblia.

Nestes tempos quando a autojustificação ou a au- Nossa concepção é que muitos questionamentos e
toajuda têm dominado a pregação, as publicações e “releituras” da Bíblia já foram feitos e pouco ou ne-
os programas televisionados, precisamos desespera- nhum proveito tem havido para o povo de Deus, es-
damente de um retorno para a mensagem da graça, pecialmente para os mais simples.
para a mensagem do comprometimento bíblico-teo-
lógico. Nosso sentido e propósito, como indivíduos Este trabalho assume a inerrância e suficiência das
e como igreja, dependem largamente de quão cla- Escrituras para a fé cristã e anela por colocar a teolo-
ramente compreendermos as verdades sobre quem gia na linguagem de todos os crentes. Não entende
Deus é, quem nós somos, e o que o plano de Deus também que haja uma teologia para a Europa, outra
para a história envolve. Só assim poderemos dizer para a África e outra para a América Latina. Teologia
por que nossa esperança tem razão (é racional), e é teologia em qualquer lugar do mundo, é a busca
qual é essa razão. pelo conhecimento de Deus, e Deus é o mesmo em
qualquer lugar.

1 Ver Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 19.


Por outro lado, o estudante de teologia nunca pode

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se esquecer de um princípio fundamental: Sua teolo- o entendimento do próprio Jesus, a Palavra de Deus é
gia precisa servir para alguma coisa. Podemos perce- a verdade (Jo 17.17). Dessa forma, entendemos que
ber um excesso de abstrações teológicas em muitas o Espírito Santo nos guia no estudo dessa Palavra. E
obras, profundo conhecimento histórico e pesquisa isso é a verdadeira espiritualidade
séria, porém, pouca aplicação. Enquanto os “intelec-
tuais” cristãos se deliciam com manjares, é possível A história da igreja tem demonstrado, através dos
que o povo simples esteja sem o alimento de que tan- séculos, que a coisa que mais destrói a vida e a co-
to precisa2. Precisamos mais do que nunca traduzir munhão autêntica da igreja é a falsa doutrina. Espe-
a teologia para a linguagem do povo, uma teologia cialmente os falsos ensinos sobre o Pai, o Filho e o
com aplicação prática. O objetivo desse estudo é Espírito Santo. O Senhor Jesus, e especialmente seus
conhecer melhor o Deus das Escrituras para desen- Apóstolos demonstraram profunda preocupação
volver um relacionamento melhor com ele, ou seja, com essa matéria, e apontavam para o futuro como
teologia para a vida. um tempo muito conturbado nesse sentido (Mt
24.11; 2Tm 4.3-4). Percebe-se que eles estavam ri-
Ainda é importante que, por outro lado, se tenha em gorosamente certos, à luz do que temos visto hoje.
mente que vivemos dias em que o estudo das dou- Entendimentos errôneos acerca de Deus têm mina-
trinas bíblicas tem sido deixado em segundo plano. do a verdadeira religião nos quatro cantos do mundo,
Doutrina tem sido associada com frieza espiritual. introduzindo erros e heresias destruidoras na vida
Chavões como: “A letra mata”, “quem estuda esfria” individual do povo de Deus e também em denomi-
usados indiscriminadamente ou fora de contexto, nações inteiras. Conhecer doutrina não é coisa sem
têm impedido muitos crentes de crescer em conheci- importância, é assunto fundamental para os dias em
mento espiritual. É claro que, se você está lendo este que vivemos.
livro é porque não compactua com esse pensamen-
to, mas de qualquer forma, importa relembrar que SOBRE O PROPÓSITO
o conhecimento das doutrinas sempre foi uma das
maiores preocupações de Jesus e da Igreja Primitiva. O propósito desse trabalho é colocar numa lingua-
Conhecer as doutrinas bíblicas sempre foi uma das gem simples e acessível os principais ensinamentos
primeiras marcas da verdadeira espiritualidade na da teologia. Abordamos de forma breve todas as
Igreja Primitiva (At 2.42).3 Quanto mais conhece- oito disciplinas da Teologia Sistemática (Introdução,
mos Deus e suas obras, conforme ele se revela em sua Teontologia, Antropologia, Cristologia, Soteriologia,
Palavra, melhor poderá ser o nosso relacionamento Pneumatologia, Eclesiologia e Escatologia)4, con-
com ele. Se a vida espiritual é a que importa, é inte- centrando-nos nos principais temas da teologia que
ressante lembrar que Jesus disse que o Espírito viria tenham interesse para os teólogos e também para as
para nos guiar a toda a verdade (Jo 16.13). Segundo pessoas em geral. São capítulos avulsos que podem
ser estudados em sequência, ou aleatoriamente, con-
2 Alister McGrath entende que a elitização da teologia tem sido uma
das coisas mais prejudiciais nesses dias modernos. Ele diz: “O distan-
ciamento da academia das realidades da vida diária está estritamente 4 Introdução, também chamada de Prolegômenos, trata dos assuntos
ligado, ao menos na percepção popular, com o elitismo da academia” introdutórios à teologia. Teontologia estuda o ser e as obras de Deus.
(Alister E. McGrath. “Theology and The Futures of Evangelicalism”. In Antropologia é o estudo do ser humano, criação e queda à luz da Es-
The Futures of Evangelicalism. Ed. Craig Barholomew, Robin Parry e critura. Cristologia estuda a pessoa e a obra de Cristo. Soteriologia é
Andrew West, p. 27). estudo da salvação conquistada e aplicada. Pneumatologia estuda a
pessoa e a obra do Espírito Santo. Eclesiologia estuda a Igreja e os
3 Ver John Stott. A Mensagem de Atos, p. 87. meios de graça. Escatologia diz respeito ao estudo das últimas coisas.

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forme o interesse ou a necessidade de alguém. Nosso influenciar o nosso dia a dia, dando-nos maior fir-
interesse não é apenas o conhecimento intelectual meza na fé, um relacionamento mais estreito com
sobre essas matérias, mas também a aplicação prática Deus, e uma condição sempre pronta para dar, a todo
delas. aquele que nos pedir, razão da esperança que há em
nós, porém, fazendo isso com temor, mansidão e boa
Nossa busca é pelo conhecimento que pode e deve consciência.

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1. A RELEVÂNCIA DA REFORMA

Mais do que nunca a religião está transbordante de mais frequência do que gostaríamos de admitir.
legalismo, superficialismo, sensacionalismo, comér-
cio, etc. O mesmo clamor que originou a Reforma Os homens continuam vendendo a salvação tanto
Protestante do século XVI se faz presente em nossos quanto no passado. E o motivo é simples: é difícil crer
dias. na mensagem radical de que Deus fez todas as coisas
para nossa salvação e nada deixou para o homem. Os
Em 1517 um monge que também era professor de homens estão sempre querendo dar sua contribui-
Bíblia colou uma série de proposições na porta de ção, seja com dinheiro, vida santa ou regulamentos
uma igreja com o fim de iniciar um debate acadêmi- eclesiásticos. Estamos sempre querendo pagar a sal-
co. Não imaginava ele que aquilo daria início a gran- vação que nos é dada gratuitamente. Por isso, precisa-
de Reforma Protestante. Seu nome, evidentemente, mos mais do que nunca voltar à Reforma. A Reforma
era Martinho Lutero. continua.

A luta de Lutero era contra a venda de indulgências SOLA SCRIPTURA


por parte da Igreja Católica que pretendia com isso
construir a grande catedral de São Pedro em Roma. A Reforma Protestante procurou desenvolver alguns
O Papa oferecia perdão dos pecados para quem con- slogans que pudessem ajudar as pessoas a identificar
tribuísse financeiramente com o empreendimento. com facilidade seus principais pontos de vista. O pri-
Alguns vendedores de indulgências diziam que no meiro dos slogans que identificaram a Reforma foi o
exato instante em que se ouvia o tilintar da moeda sola scriptura (somente a Escritura)1. É claro que esta
caindo no cofre, uma alma era livre do purgatório. concepção foi tirada da própria Escritura.

Certamente isso parece algo grosseiro e até mesmo O Apóstolo Paulo foi um homem tremendamente
humorístico hoje e logo pensamos que é coisa do
passado, que não acontece mais hoje em dia. Mas,
basta olhar para o método de trabalho de muitas 1 Para uma abordagem semelhante de alguns
denominações, principalmente em seus programas “solas” da Reforma veja Michael Horton, Putting
televisionados para ver que isso acontece hoje com Amazing Back Into Grace. p. 11-20.

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preocupado com a Escritura. Ele argumenta com os relação à Escritura estava na discussão se a Bíblia
Efésios “jamais deixei de vos anunciar todo o desíg- produziu a Igreja, ou se a Igreja produziu a Bíblia. A
nio de Deus” (At 20.27). Paulo estava partindo para Reforma cria que Deus revelou-se a si mesmo para
Jerusalém, onde sabia, enfrentaria muitas persegui- um povo e chamou este povo para si e lhe deu sua
ções. Mas, o que Paulo mais temia era o fato de que Palavra. Entretanto, a Igreja é sempre falível e sempre
sabia que após sua partida se infiltrariam no meio do passível de correção quanto à interpretação da infalí-
rebanho dos Efésios “lobos vorazes que não poupa- vel revelação de Deus.
rão o rebanho” (At 20.30), por isso numa atitude de
fé ele diz “agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e a Em resumo, a Reforma apregoou que a Palavra de
palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar Deus é infalível e absolutamente suficiente para nos
e dar herança entre todos os que são santificados” ensinar tudo o que precisamos saber sobre a Salva-
(At 20.32). Paulo “ensinou que o poder do evange- ção e sobre o próprio Deus. Além disso ela é a única
lho está localizado na pregação da Palavra de Deus”2. fonte suprema desse conhecimento. Ela é o único lu-
Nada pode substituir a Palavra de Deus. gar aonde devemos ir para ter conhecimento pleno a
respeito dos fatos da salvação. Nenhuma outra fonte
Talvez, este tenha sido o maior triunfo da Reforma deve ser aceita ou tentada.
Protestante: o triunfo pela Bíblia. Numa época em
que praticamente ninguém do povo comum tinha SOLUS CHRISTUS
acesso a Palavra de Deus, a Reforma conseguiu colo-
car a Bíblia na língua comum das pessoas e possibili- Como consequência lógica do primeiro “sola” da Re-
tou que o acesso a ela fosse bem mais simples. forma vem o segundo, pois “só quando se defende a
Escritura somente é que estaremos certos de que a
Entretanto, a Reforma não somente possibilitou que igreja se apegará a Cristo somente”.3 Cristo é o centro
as pessoas tivessem acesso à Palavra, mas também da Escritura. Ele próprio disse para alguns religiosos
que ela, a Palavra de Deus tivesse o lugar de honra de sua época: “examinais as Escrituras porque julgais
que lhe é devido e que todos pudessem interpretá- ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testifi-
-la corretamente. Pode a igreja legislar doutrinas ou cam de mim” (Jo 5.39). As Escrituras testificam de
leis morais que não são encontrados na Escritura? A Cristo.
Reforma respondeu: “não, somente a Escritura”. Pode
a Igreja manter uma interpretação infalível da Bíblia? No tempo da Reforma, à semelhança dos dias atuais,
Não, a Reforma respondeu, absolutamente não! A a teologia estava completamente centrada no ho-
Reforma tirou o privilégio do clero de interpretar a mem. Tudo dependia do homem. Em última instân-
Bíblia, mas não jogou este privilégio totalmente nas cia é o homem que decide se vai a Deus, bem como a
mãos dos leigos, de forma que cada pessoa pudesse maneira que lhe convém. Na idade média, a Igreja era
dar a interpretação que quisesse. A Igreja como um a opção, nos dias atuais, as opções são praticamente
todo, como o Corpo de Cristo deve interpretar a Bí- inumeráveis. O pensamento comum é que todos vão
blia. Esse foi o grande lema da Reforma. a Deus de várias formas. É como se Deus fosse uma
grande Home Page da Internet. Todos podem aces-
A diferença básica entre a Reforma e Roma com
3Michael Horton, Os Solas da Reforma, in Reforma
2 R. K. Mc Gregor Wright, A Soberania Banida, p.14. Hoje, p. 111

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sá-lo de diferentes provedores. Mas, a Reforma disse tos do Senhor Jesus Cristo, dessa forma a justiça de
não a todas as tentativas humanas de chegar até Deus. Cristo é colocada sobre nós como se fosse nossa. Era
Solus Christus, ou seja, somente Cristo pode nos isso que Paulo chamava de o “Evangelho da Graça de
conduzir a Deus e nos dar a salvação. Percebemos Deus” sobre o qual ele queria testemunhar, mesmo
claramente que nos dias atuais, a crença geral enfatiza que lhe custasse a própria vida (At 20.24). O Evan-
que a fé em Cristo não é absolutamente necessária gelho da Graça de Deus era a boa notícia de que os
para a salvação, pois Deus certamente salvará todas as pecadores podiam ser salvos através da obra salvado-
pessoas boas, quer tenham crido em Cristo, quer não. ra de Cristo.
Entretanto, o ensino da Escritura enfatizado pela Re-
forma é que Cristo é absolutamente necessário para Na verdade, Roma sempre afirmou que a salvação
a salvação. Paulo disse que jamais havia deixado de era pela graça, mesmo antes dos Reformadores. O
“anunciar coisa alguma proveitosa, e de vola ensinar ensino oficial da igreja dizia que a graça era infusa ou
publicamente e também de casa em casa, testificando derramada como um auxílio para nos ajudar a viver
tanto a judeus como a gregos o arrependimento para uma vida santa, o que eventualmente nos daria o
com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus” (At 20.20- direito de entrar no paraíso. Entretanto, ao longo do
21). Sem Cristo não há salvação. Se alguém não con- caminho todos correm o risco de perder a graça. Por
fiar na obra salvadora de Cristo em hipótese alguma isso, eram necessários os rituais, os exercícios espi-
poderá ser salvo. rituais, as fórmulas piedosas que poderiam ajudar a
reconquistar a graça. Então, a visão era que nós so-
SOLA GRATIA mos salvos pela graça, porque ela nos transforma em
pessoas santas. Contra isso se levantaram os Refor-
Na idade média, as pessoas acreditavam que a única madores dizendo que, na salvação, Deus nos declara
forma possível de poder agradar a Deus era vivendo justos, no exato instante da conversão. A salvação não
em completa santidade. Pensavam que seu relacio- é um processo, mas um ato de Deus em nossas vidas.
namento com Deus dependia inteiramente delas. Para a igreja medieval, salvação e santificação eram
Lutero foi um homem agoniado por estas ideias. Ele uma mesma coisa, mas para a Reforma, a salvação era
pensava na justiça e na santidade de Deus e se via tão um ato instantâneo de Deus que nos declarava jus-
pecador, de modo que se sentia perdido e completa- tos, dando assim, origem ao processo de santificação.
mente sem chances de alcançar a Deus. Foi somente A santificação não era para que alguém fosse salvo, e
quando entendeu pela Escritura que “o justo viverá sim, porque já era salvo.
pela fé” (Rm 1.17), que toda sua vida de fato se trans-
formou. SOLA FIDE

Lutero e a Reforma entenderam que o homem não Lutero não somente entendia que a salvação era ape-
precisa se tornar justo para poder alcançar a vida nas pela graça, mas que a forma ou método de re-
eterna, pois isto, ele jamais conseguiria, uma vez que cebê-la era através da fé unicamente. Por isso surgiu
ninguém jamais cumpriu a lei de Deus (Rm 3.10, 20, mais um slogan na Reforma, o sola fide, ou Somente
Gl 3.11), mas que baseado na justiça de Cristo, Deus a Fé.
pode e efetivamente declara o homem como justo
quando ele crê. Este ato de declarar é algo completa- A igreja, naquele tempo, não negava que a fé era ne-
mente gratuito, pois o homem nada fez para merecer cessária para a salvação. Mas, era uma fé no poder da
isso, uma vez que tudo provém da obra e dos méri- Igreja, dizendo respeito muito mais a uma questão de

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conhecimento e consentimento. A Reforma, entre- foi dada por Deus, se Cristo é único meio de Salva-
tanto, apregoou que a fé era uma questão de confian- ção, se a graça é responsável por tudo o que temos
ça e não confiança na eficácia ou no ensino da Igreja, e somos, e, se a fé que é um dom de Deus é o único
mas no poder de Deus que pode salvar plenamente instrumento para nos apropriarmos de tudo isso, en-
os que se aproximam dele, confiando nos méritos de tão, Soli Deo Gloria, ou seja “A Deus somente a gló-
Cristo. ria”. Na estrutura da Reforma não sobra espaço para
glorificar o homem, toda a glória deve ser rendida a
Uma grande distinção que a Reforma fez e que é Deus.
muito importante para nós hoje, é que quem salva é
Cristo e não a fé. A fé não pode ser considerada uma A Reforma pôde proclamar Soli Deo Gloria por-
pequena obra que em última instância tem poder de que mais do que ninguém, entendeu o ser humano.
nos salvar. A fé é apenas o instrumento pelo qual nos Quando temos uma visão melhor de nós mesmos e
apropriamos da salvação, conquistada plenamente de Deus, diminuímos a nossa importância e aumen-
por Cristo. Porém, ainda assim, poderia ficar a im- tamos a dele. É interessante que a Reforma tenha
pressão de que a fé é uma pequena obra necessária produzido uma era de grandes pensadores e artistas,
para a salvação, não fosse o ensino inequívoco da Es- mas nunca exaltou o ser humano, antes prostrou o
critura de que, mesmo a fé, é um dom de Deus (Cf. Ef orgulho humano diante da majestade de Deus. Mas,
2.8-9; Rm 12.3; Jd 3). hoje as coisas estão muito mudadas. O homem é
exaltado e Deus diminuído. Nossos cultos e servi-
Pregar sobre salvação pela fé dentro dos moldes bí- ços são frequentemente celebrações de nós mesmos
blicos pode ser muito impopular nos dias atuais. Di- mais do que de Deus, há mais entretenimento neles
zer que o homem não tem poder algum para se salvar do que adoração. Nunca antes, nem mesmo na era
pode ser considerada uma frase praticamente extinta. medieval, os cristãos tinham sido tão obsessivos con-
E o motivo não é difícil de se identificar. As pessoas sigo mesmos. Nunca antes, Deus foi tão esquecido.
argumentam: mas ser salvo do quê e por quê? O Auto-estima, auto-imagem, auto-confiança, auto-is-
fato é que elas não se sentem perdidas. Foi o tempo so, auto-aquilo, isto tem sido a ênfase do cristianis-
quando a pregação da Lei desesperava as pessoas de mo moderno. Gastamos a maior parte do tempo,
modo que elas se refugiavam em Cristo. O problema como Narciso, contemplando nossa própria imagem
não é que a Lei não tem mais esse poder, e sim, o fato distorcida no espelho, e não a autêntica imagem de
de que a Lei não está mais sendo ouvida. As pessoas Deus.
não querem ouvir sobre seus pecados, querem ape-
nas mensagens de autoajuda, de “soluções”, não se Mas, tudo isso pode mudar. Já aconteceu uma vez,
preocupam com a Ira de Deus, não veem a maldade na Reforma e pode acontecer de novo. A Reforma
e a ofensa de seus pecados, por isso, ainda confiam Protestante do século XVI trouxe liberdade à cons-
em si mesmas. Elas precisam ouvir a respeito do fogo ciência cristã porque restaurou o foco do Evangelho,
do Inferno e da depravação humana, pois somente tirando-o de ser centrado no homem para ser centra-
assim, deixarão de confiar em si mesmas e se entrega- do em Deus. Precisamos disso hoje.
rão a Cristo pela fé, somente.
Tanto quanto no tempo de Lutero, precisamos de
SOLI DEO GLORIA Reforma. Precisamos deixar de lado todas as su-
postas revelações extras, todas as outras formas de
Se a Escritura é a única regra de fé e prática e ela nos salvação, todo senso de pagamento, de obras e de

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orgulho que possa haver em nossas igrejas, em nos- de engolirmos tudo o que nos é passado com um ar
sos sermões, em nossos livros, e clamar com grande piedoso, mesmo que seja abertamente contrário ao
brado sola scriptura, solus Christus, sola gratia, sola ensino das Escrituras e aos princípios da Reforma.
fide, soli Deo gloria. Chega de aceitarmos de boca Que a Reforma continue hoje, este deve ser o nosso
fechada todos os ataques que o Evangelho tem so- maior objetivo.
frido por supostos pregadores e evangelistas. Chega

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2. REVELAÇÃO PROGRESSIVA

Há duas formas de se fazer teologia1. Depende de mental da teologia.


como se aborda a Escritura. Teologia, necessaria-
mente precisa ser Teologia da Bíblia,2 porém, há duas Anselmo, que foi Arcebispo da Cantuária (1033-
formas de se aproximar da Escritura: 1) Com pressu- 1109), dizia que teologia é a fé em busca de com-
posto da fé. 2) Com pressuposto da dúvida. As duas preensão.3 E de fato, não se estuda teologia necessa-
formas têm sido adotadas ao longo da história. riamente para questionar a fé, embora algumas vezes
ela precise de questionamento, mas para se desenvol-
Quem se aproxima com o pressuposto da fé entende ver e se fundamentar.4 Geralmente aqueles que ado-
que a Escritura é inspirada, infalível e inerrante em tam esta perspectiva são chamados de “conservado-
tudo o que ensina. Este estudioso não se preocupará res” e, às vezes até, de “fundamentalistas”, o que nem
primariamente em encontrar questões como fontes, sempre é um rótulo adequado. É possível identificar
desenvolvimento de tradições, questionamento de uma linha histórica de estudiosos assim, desde os
datas ou autorias. Ele procurará entender o ensino da dias atuais até o tempo dos apóstolos.
Bíblia e se submeterá a ele, porque acredita ser verda-
deiro e normativo. Além disso, entende que, ao longo Recentemente tem surgido uma nova forma de se
dos séculos, a Escritura já deu suficientes provas de abordar a Escritura. É o que se intitula aqui de pres-
sua autenticidade. Essa posição não significa estar fe- suposto da dúvida. Especialmente a partir do ilumi-
chado para discussões, mas significa que não se está nismo (Séc XVII) e, com as descobertas científicas
disposto a abandonar a fé como pressuposto funda- dos séculos seguintes, muitos estudiosos começaram

1 Os teólogos chamam a primeira das oito disciplinas da 3 Anselmo falou sobre a necessidade de entender a fé, e que
teologia sistemática de Introdução ou Prolegômeno. É a parte que isso é uma espécie de “desejo” da fé (Ver Karl Barth. Fé em Busca de
trata das questões introdutórias à teologia, como a questão da Re- Compreensão, p. 28).
velação (Geral e Especial), os pressupostos filosóficos, a função e o
método da teologia, etc. Nesse trabalho, simplificamos bastante essa 4 A perspectiva adotada aqui é de que a fé pode ser com-
parte, tratando apenas da questão da Revelação, e mais especifica- preendida, porém, não no sentido iluminista de que se crê apenas
mente da Revelação Especial. naquilo que se pode compreender (Ver Stanley J. Grenz & Roger E.
Olson. Teologia do Século xx, p. 16). Muitas coisas da fé permanecem
2 Aqui já deixamos de lado todo tipo de especulações ou além da compreensão humana, mas jamais recebemos a permissão
naturalismo. para cruzar os braços.

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a abordar a Bíblia como um livro meramente histó- cristianismo. Além disso, é necessário que se escla-
rico que precisava ser analisado de uma perspectiva reça que todas as teorias racionalistas permanecem
científica. Já não se aceitava mais o pressuposto da apenas como teorias, carecendo de provas documen-
fé. A partir daí começou-se a questionar as narrativas tais. Amplo trabalho apologético (defesa da fé) tem
bíblicas, principalmente aquelas que narram eventos sido feito pelos conservadores no sentido de rebater
sobrenaturais. Um grande esforço foi feito para recu- as teorias racionalistas. De fato, até hoje, não há ra-
perar o Jesus histórico que teria sido distorcido pe- zões suficientes para se abandonar o pressuposto de
los Evangelhos. A autoria mosaica do Pentateuco foi fé na integridade das Escrituras.
rejeitada e, em seu lugar, foi desenvolvida uma com-
plexa teoria de fontes. Assim, o Pentateuco foi divi- PROPÓSITO E PROGRESSIVIDADE
dido em diversas ramificações que seguiriam fontes
anteriores e que teriam sido compiladas por alguém
Uma vez que a integridade da Escritura é assumida,
depois do Exílio. Esta abordagem ficou conhecida
é necessário entender a maneira como ela surgiu e
como Crítica das Fontes. Posteriormente falou-se
chegou até nós. Neste capítulo, que talvez seja o mais
em crítica das formas, crítica das tradições, crítica da
redação, etc. O que todas essas abordagens têm em “técnico” do livro, veremos bastante brevemente
comum é a perspectiva de crítica da Escritura sem como isso se deu.
respeito ao seu caráter inspirado. Este pressuposto de
abordagem não rejeita o cristianismo, mas não está A revelação especial é o ato divino pelo qual Deus
disposto a aceitar que tudo o que está registrado na se torna conhecido de forma redentora, ao homem
Bíblia é verdadeiro. Após tantos estudos e especula- decaído. Sem a revelação, Deus seria eternamente o
ções, no entendimento de tais estudiosos, pouca coi- absconditus (escondido), pois a natureza de Deus é
sa na Escritura permanece como verdadeira e acima tão diferente da dos homens, que os homens jamais
de qualquer suspeita. Os adeptos desta abordagem conseguiriam descobrir qualquer coisa de Deus por
são geralmente rotulados de “liberais”. Como já foi si mesmos. Talvez, por essa razão, Paulo faça eco às
dito, o início desta abordagem se deu no iluminismo, palavras do Salmo 14 ao dizer: “Não há quem enten-
e ela permanece até hoje como a forma mais predo- da, não há quem busque a Deus” (Rm 3.11; Sl 14.2).
minante nos meios acadêmicos teológicos do mun- Isso parece contraditório diante do que se vê no
do todo, embora com muitas variações. mundo, onde as pessoas, quase que freneticamente,
procuram Deus para resolver seus problemas. Mas
Não é o propósito dessa obra discutir profundamen- esse é justamente o problema, pois no fundo as pes-
te esta questão e o estudante mais interessado deverá
soas não estão buscando a Deus, estão simplesmente
se preocupar em pesquisar outras fontes. Justifica-se
buscando algo dele. A rotina comum do ser humano
a opção pela primeira forma de abordagem por ser a
forma histórica mais praticada, por ser a que não vio- é fugir de Deus, como Adão e Eva, escondendo-se
lenta os escritos bíblicos, e por ser a que mantém as por entre as árvores do jardim. E naquela mesma
verdades essenciais do cristianismo. O pressuposto cena, vemos Deus procurando o casal e chamando-o
da dúvida, embora tenha dado alguma colaboração para restaurar o relacionamento. Isso é revelação, pois
para o aprofundamento acadêmico, tem causado es- é um movimento de Deus em direção ao homem,
facelamento no cristianismo mundial, retirando sua dando-se a conhecer, revelando seu plano redentor,
base de fé, comprometendo o ensino bíblico sobre a com o objetivo de restaurar este homem. A revelação
Redenção e, assim demolindo a própria estrutura do especial, que deve ser distinguida da revelação ge-

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ral,5 concentra-se na revelação do plano redentor de pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo
Deus. Adão antes da queda, recebeu revelação espe- Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas,
cial não redentora, mas, após a queda, pode-se dizer pelo qual também fez o universo” (Hb 1.1-2). Mes-
que a revelação especial de Deus é uma revelação mo antes de a Bíblia ter sido escrita, Deus já se reve-
com propósitos redentores. Portanto, é possível iden- lava de forma especial para o seu povo. Dois modos
tificar a revelação especial com a Bíblia. bastante usados por Deus na antiguidade foram: teo-
fania e profecia.
Um aspecto importante da revelação especial é que
ela é progressiva. O que se quer dizer com isto é que, Revelação por Teofania
tudo o que está escrito na Bíblia não foi revelado e
registrado em um único momento, mas, foi revela- Teofania, que literalmente significa “manifestação de
do e registrado progressivamente. Deus usou diver- Deus”, refere-se às aparições de Deus, bem como às
sas pessoas em diversas épocas para registrar o que demonstrações fantásticas de seu poder. A teofania
está na Bíblia, pois ele não revelou tudo de si de uma foi predominante até o período mosaico. Deus se
única vez. De certa forma, Gênesis 1.1 é o resumo de manifestou a homens como Adão (Gn 2.15-17, 22-
toda a Bíblia, pois contém embrionariamente tudo 23; 3.8), Abraão (Gn 12.2; 28.13) e, especialmente,
o que foi explanado depois, mas Deus não revelou a Moisés. A Bíblia afirma que, após Moisés, esta não
tudo de uma única vez. Ao longo da história, Deus foi seria mais a forma “oficial” de Revelação (Dt 34.10),
oferecendo, cada vez mais, conhecimento de si mes- embora alguns homens do Antigo Testamento conti-
mo aos homens. Disto decorre que é preciso enten- nuaram recebendo Teofanias, como Elias, por exem-
der o significado como um todo, em toda a Escritura, plo. A característica principal da teofania é o apelo
entendendo que, muitas coisas que não estão claras ao físico, ao sensitivo. Deus tomava a forma de um
a princípio, serão esclarecidas depois. Isso pode ser anjo, ou de um homem e podia ser visto, ouvido, e
visto nas várias ministrações da Aliança divina que, até tocado. Evidentemente que aquelas eram formas
embora seja uma só, foi renovada em momentos sub- temporárias, assumidas por Deus para se comunicar
sequentes e elementos novos foram acrescentados, com o ser humano.
revelando mais do caráter divino e do plano redentor.
Revelação por Profecia
FORMAS DE REVELAÇÃO
A partir de Moisés, Deus passou a usar mais ampla-
O autor aos Hebreus diz: “Havendo Deus, outrora, mente uma nova forma de revelação. Ele começou a
falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, se revelar através de Profecia (Nm 12.6-8). A revela-
ção por profecia é uma forma mais indireta de revela-
ção. O profeta recebia algo de Deus, porém em forma
5 Revelação Geral, que também é chamada de revelação na- de sonho ou visão. Era responsabilidade do profeta
tural, diz respeito à revelação que Deus faz de si mesmo e que pode
ser vista na natureza, na maneira como Deus conduz a história e na transmitir ao povo aquilo que viu no sonho ou na
própria constituição do ser humano. O propósito desta revelação não visão. Como sempre havia risco de falsificação, Deus
é redentivo, mas demonstrar a glória de Deus como criador (Ver Sl
19.1-6; Rm 1.18-32). A Escritura diz que os “céus proclamam a gló- estabeleceu testes para confirmar o profeta e a profe-
ria de Deus” (Sl 19.1), e que Deus revelou sua divindade e atributos
através das coisas que foram criadas (Rm 1.20). Portanto, a criação é cia. Eram basicamente dois testes, o da veracidade do
a uma forma de Deus manifestar sua existência e sua glória para as fato profetizado (Dt 18.20-22) e o da conformidade
pessoas. No entanto, devemos observar que a Revelação Natural é
sempre Sobrenatural no sentido que parte sempre deliberadamente com a Palavra Escrita (Dt 13.1-5). O tempo predo-
de Deus.
minante dos profetas se estende desde a morte de

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Moisés até João Batista (Mt 11.13). Cristo é a expressão máxima do Ser de Deus. Ele é o
próprio Emanuel, o Deus conosco. Ele é o Deus ma-
A função básica do Profeta era ser um porta-voz de nifestado na carne, pois nele habita toda a plenitude
Deus. Por isso, usualmente o profeta começava sua da divindade (Cl 2.9). Jesus não é uma teofania nos
mensagem com a seguinte sentença: “Assim diz o Se- moldes do Antigo Testamento, pois não é uma ma-
nhor...”. Isso indica que o próprio Deus colocava suas nifestação temporária de Deus. Ele é a manifestação
palavras na boca dos profetas (Jr 1.7; Is 51.14; Ex plena e eterna de Deus, é o Deus conosco. Ele é e para
4.10-12; Dt 18.18). Um detalhe que não pode ser ol- sempre será o Deus-homem. Na pessoa de Jesus esta-
vidado é o caráter orgânico da recepção e da entrega va o ápice da revelação. Ele próprio costumava dizer:
da mensagem profética. Os profetas não falavam em "Quem me vê a mim vê o Pai'' (Jo 14.9). Entretan-
transe, mas usavam seus recursos, qualidades e talen- to, só em algumas ocasiões ele se descortinou mais
tos para transmitir a mensagem de Deus. A mensa- amplamente aos olhos humanos (Lc 9.29). Durante
gem era, de certo modo, acomodada a personalidade todo o seu ministério terreno permaneceu esvaziado
do profeta. de algumas de suas prerrogativas divinas (Jo 17.5; Fp
2.5-8), carregando com alegria o fardo dos homens
Revelação na pessoa do Filho e se submetendo a uma vida de servidão. Mas seus
milagres, suas palavras e, especialmente, sua presença
Jesus Cristo é o clímax de toda revelação de Deus
foram a maior demonstração de Deus para o mundo.
(Hb 1.1-2). Nada antes ou depois dele fala mais, ou
E sua morte na cruz foi a grande prova do amor desse
melhor, do que ele sobre Deus. Aqui, também po-
Deus (Rm 5.8).
demos ver o caráter progressivo da revelação divina.

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3. O REGISTRO DA REVELAÇÃO

Deus se revelou de muitas formas, como diz a Bíblia, inspiração não é uma atividade à parte da revelação.
porém houve um processo pelo qual esta revelação Fazemos essa distinção nesse trabalho apenas para
foi registrada, ou seja, escrita e preservada nas páginas entender os dois momentos, que às vezes acontece-
da Escritura Sagrada. Na revelação de Deus há o mo- ram juntos, às vezes separados.
mento do ato propriamente dito em que Deus reve-
lou algo de si mesmo. Esse ato é uma tarefa exclusiva FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA O
de Deus. A inspiração é o momento de registrar essa REGISTRO
revelação. O registro é uma tarefa divina e humana.
Inspiração é a influência divina sobre os escritores da No ato de registrar a revelação é perfeitamente pos-
Bíblia a fim de preservá-los de erros, e para que regis- sível que alguns fatores tenham contribuído. Porém,
trassem com toda a fidelidade os eventos revelatórios isso não anula, nem torna desnecessária a atuação
de Deus, mesmo os presenciados pelos escritores divina. Os principais fatores que contribuíram para
(Boa parte dos Evangelhos e de Atos, por exemplo).1 o registro da revelação, especialmente nos registros
Em alguns casos, como nos salmos, o ato da revelação posteriores aos eventos, foram a tradição oral e a tra-
coincidiu com a escrituração, pois, no momento em dição escrita. A tradição oral foi, muitas vezes, uma
que o salmista meditava sobre algum assunto, tomava intermediária entre os eventos antigos e o registro
a pena para escrever e acontecia simultaneamente a inspirado. A tradição oral pode ter tido um papel
revelação e o registro. Isto pode ser visto também nas muito importante antes da invenção da escrita. His-
epístolas. Mas em outros casos, houve momentos de tórias que passavam de pai para filho podiam condu-
intervalo entre o ato divino da revelação e sua escritu- zir às gerações subsequentes momentos importantes
ração, como por exemplo, quando o profeta recebia a da revelação de Deus. É provável que Adão tenha
visão, e só a registrava posteriormente. De qualquer transmitido coisas que havia recebido diretamente
forma, todo o processo, desde o ato revelatório até de Deus a seus filhos e esses, às gerações seguintes.
o momento da escrituração é revelação de Deus. A Desta forma o conhecimento a respeito do Jardim
do Éden, da expulsão do Jardim, da torre de Babel, do
Dilúvio, foi transmitido de pai para filho e, provavel-
1 Para uma excelente exposição sobre Inspiração e Inerrân-
cia da Bíblia ver: Hermisten Maia Pereira da Costa. A Inspiração e Iner- mente assim, chegaram até Moisés, que escreveu o
rância das Escrituras. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998. Pentateuco (Js 4.6, 21). Isto explicaria o fato de haver

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relatos antigos em outras culturas primitivas, que se quisa histórica para relatar os fatos. Isso em hipótese
parecem com os relatos bíblicos da criação e do dilú- alguma tornou desnecessária a inspiração, porém,
vio. É importante, porém, que seja notado que estas transparece no texto, pois de fato, Lucas é o que tem
tradições podem muitas vezes ter sido danificadas ao mais detalhes da vida de Jesus, especialmente de seu
longo da história. De qualquer modo, não significa nascimento e infância.
que Moisés e os outros escritores bíblicos fizeram
seus registros sobre a base exclusiva destas tradições. O PROCESSO DE SELEÇÃO
É possível que as tradições tenham colaborado, mas
foi a inspiração divina que garantiu que fosse registra- Nem toda a revelação de Deus foi registrada. Deus
da a pura e exclusiva verdade divina. superintendeu todo um processo de seleção, para
que fosse guardado para a posteridade aquilo que
Quanto à tradição escrita, sabe-se que há muitos Deus julgou mais importante. Grandes porções de
escritos antigos que não são bíblicos, mas que eram revelação divina se perderam ao longo da história.
tidos em grande consideração e, por certo, conti- Possivelmente fossem revelações apropriadas para
nham dados históricos bastante precisos. Estes livros uma determinada época, mas que Deus não julgou
podem ter sido usados como ajuda no processo de relevantes para a posteridade (1R 4.32; Nm 11.26-
registro da Escritura. São exemplos bem claros disto 29; 1Rs 22.5-28; Jr 36.1-3, 27-28; Jo 20.30-31;
os seguintes livros: O Livro das Guerras do senhor 21.25). Até mesmo, pelo menos duas das cartas do
(Nm 21.14). O Livro dos Justos (Js 10.13; 2Sm Apóstolo Paulo se perderam. Ele diz ter escrito uma
1.18). O Livro das Crônicas de Samuel, o vidente; carta anterior aos Coríntios (1Co 5.9) e outra para a
Natã, o vidente; e Gade, o vidente (1Cr 29.29). O igreja de Laodiceia (Cl 4.16). Possivelmente fossem
Livro da História de Salomão (1Rs 11.41). O Livro aplicáveis apenas para a situação daquelas igrejas ou,
da História de Semaías, o profeta e de Ido, o vidente quem sabe, muito semelhantes com outras cartas de
(2Cr 12.15). Todos esses livros se perderam, e ne- Paulo. O fato é que não temos como saber o porquê
nhum mais existe, porém foram úteis no registro da de o Espírito não ter preservado essas cartas para a
revelação de Deus. posteridade. Só podemos dizer que Deus, em seu
processo de seleção, não julgou que elas deveriam ser
Um excelente exemplo do uso de tradições escritas preservadas, bem como muitas outras revelações que
e orais para o registro da revelação de Deus vem do não chegaram até nós.
Novo Testamento, para ser mais preciso, dos escritos
de Lucas. Ele escreve: “Visto que muitos houve que EVIDÊNCIA BÍBLICA DA INSPIRAÇÃO
empreenderam uma narração coordenada dos fatos
que entre nós se realizaram, conforme nos transmi- As principais evidências da inspiração da Bíblia são
tiram os que desde o princípio foram deles teste- internas, ou seja, provêm da própria Bíblia. A Bíblia
munhas oculares e ministros da palavra, igualmente reclama para si a Inspiração Divina: “Toda a Escritura
a mim me pareceu bem, depois de acurada investi- é inspirada por Deus” (2Tm 3.16), disse o Apóstolo
gação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, Paulo. Pedro diz com relação aos escritores bíblicos:
excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, “Homens santos de Deus falaram inspirados pelo
para que tenhas plena certeza das verdades em que Espírito Santo” (2Pe 1.21). Os escritores do Antigo
foste instruído” (Lc 1.1-4). Lucas diz claramente que Testamento tinham a convicção de que escreviam
tinha conhecimento de outros escritos que relatavam a Palavra de Deus (Dt 4.2; Am 3.7). O Novo Testa-
a vida de Jesus, e que fez uma longa e acurada pes- mento reconhece claramente a autoridade divina do

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Antigo Testamento em todas as citações que faz dele processo.
e na consciência de Inspiração de seus próprios au-
tores (Jo 20.30-31; At 4.25; 7.37-38; 28.25-26; 1Co Inspiração Mecânica
2.13; 7.10, 12, 17, 40; 2Co 13.13; Gl 3.8; 1Ts 2.13;
2Tm 3.16-17; Hb 1.1; Tg 4.5; 1Pe 1.12; 2Pe 1.19-21). Essa teoria concebe o ato da Inspiração como uma
Jesus deu testemunho de que a Escritura do Anti- espécie de ditado divino. Dessa forma, Deus teria di-
go Testamento era a Palavra de Deus (Mt 5.17-20; tado literalmente todas as palavras que foram regis-
Jo 10.33-36; Mt 10.19-20; Jo 16.7,13). Além disto, tradas. Ao homem não coube qualquer participação
os escritores do Novo Testamento demonstram ter emocional ou inteligente na obra. Ele foi apenas um
consciência da inspiração dos outros escritores do instrumento, praticamente inanimado, que Deus
Novo Testamento (1Tm 5.18/Lc 10.7; 2Pe 3.16). usou para registrar sua Palavra. Esta teoria lembra
um pouco a ideia espírita da “psicografia”. Ela faz da
Há igualmente evidências externas da inspiração da Bíblia um livro totalmente divino, uma espécie de
Bíblia. Muitos argumentos podem ser usados em fa- “telegrama celestial”. A principal falha desta teoria
vor da inspiração da Bíblia. Por exemplo, a credibili- pode ser verificada ao se observar que a Bíblia não
dade da Bíblia. Suas histórias têm sido comprovadas tem uma uniformidade literária. É difícil conciliar a
cientificamente como verdadeiras. As descobertas ideia de ditado divino com a percepção de que há as-
arqueológicas não conseguem provar que a Bíblia es- pectos variados e estilos pessoais na Bíblia. Se tudo
teja errada, ao contrário a confirmam. A sobriedade fosse “ditado” deveria haver uma uniformidade de
das Escrituras é outro argumento em favor de sua Ins- estilo, o que não ocorre. Geralmente, os estudiosos
piração. Apesar de ser um livro tão antigo, está com- rotulados de “fundamentalistas” advogam esta teoria.
pletamente livre de absurdos. Todos os livros religio- Os “fundamentalistas” são os mais radicais em defesa
sos antigos dos chineses, dos árabes, dos persas, dos do conservadorismo bíblico. A intenção é boa, mas
hindus, dos gregos, etc., estão cheios de superstições para evitar qualquer possibilidade de erro, concebem
e erros históricos, geográficos e científicos. A Bíblia, a inspiração como um ditado. Assim a Bíblia seria to-
porém, não afirma absurdos sobre o sol, a terra, ou talmente divina. Entretanto, essa teoria não nos pare-
as estrelas como aqueles livros ensinam, ao contrário, ce fazer justiça ao caráter literário da Bíblia.
ensina coisas bem precisas (Jó 26.7; Sl 135.7; Ec 1.7;
Is 40.22). O mesmo deve ser falado de sua coerên- Inspiração “Mental”
cia e unidade. É difícil imaginar um livro escrito por
mais de 40 autores diferentes num espaço de mais de Essa teoria é praticamente o oposto da teoria da ins-
1500 anos, que conta uma história homogênea, com piração mecânica. Muitos autores, que se dizem orto-
começo, meio e fim. A Bíblia é este livro. doxos defendem a ideia de que os pensamentos dos
autores foram inspirados, mas que eles foram livres
TEORIAS DE INSPIRAÇÃO para registrar suas ideias. A inspiração mental advoga
inspiração apenas dos conceitos e não das palavras.
Dissemos até aqui que a Inspiração é uma obra divi- É no liberalismo teológico que a ideia da Inspiração
na que conta com a participação humana. Uma das Mental encontra maior aceitação. Uma vez que os
coisas mais difíceis de explicar é justamente esse re- teólogos liberais têm dificuldades em acreditar que
lacionamento entre o aspecto divino e o aspecto hu- Deus se revelou através de atos e principalmente de
mano na inspiração. Qual é a função de cada parte? palavras, preferem pensar que foi o autor quem teve
Algumas teorias foram formuladas a respeito desse uma espécie de “elevação” em seu raciocínio, o qual,

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desta forma, pode ser considerado inspirado. Esta humano usando todos os recursos pessoais, superin-
ideia elimina completamente a noção de uma ação tendendo todo o processo, de modo a garantir a ve-
direta do Espírito sobre os homens na produção racidade absoluta dos escritos. Assim, esses escritos
dos livros da Bíblia. O autor bíblico seria inspirado podem ser considerados humanos, porque foram
como qualquer outro autor pode ser na composi- produzidos por homens, e também divinos, por-
ção de uma poesia ou de uma música. Desse modo, que foram dirigidos pelo Espírito Santo. O Espírito
Deus não é o autor da Bíblia, ele apenas é a fonte da usou um homem da corte como Isaías, um boiadeiro
vida dos autores bíblicos que falaram, com palavras
como Amós, um músico como Davi, um sábio como
imperfeitas, aquilo que vem de Deus. No conceito
Salomão, um general como Josué, um homem for-
mental de inspiração, a Bíblia está condicionada à
mado na corte egípcia como Moisés, um pescador
cultura de cada povo e, às vezes, não passa do registro
da experiência religiosa de um povo numa determi- como Pedro, um erudito como Paulo, um médico
nada situação. Porém, pode haver momentos em que como Lucas ou um cobrador de impostos como Ma-
o escritor se elevou de si mesmo e produziu algo que teus. Em cada texto, o estilo pode ser diferente um do
pode ser considerado divino. Neste sentido, às vezes outro, mas o resultado final é o mesmo. O Espírito fez
se fala no liberalismo que somente algumas coisas na uso das faculdades humanas, adequando-as, para que
Bíblia seriam a “pura” Palavra, e o resto é palavra de o produto final, embora contendo traços do perfil
homens. Daí o método “desrespeitoso” como abor- humano, fosse a exata expressão da vontade de Deus.
dam a Bíblia, ainda que prefiram dizer “científico”, Deus usou os recursos humanos, como por exem-
procurando aqui ou ali indicações de imprecisões ou plo, a capacidade de pesquisa, o raciocínio, a arte ou
pistas que os remetam a outras situações históricas, a musicalidade de uma pessoa, mas, superintendeu
que consideram mais importantes e dignas de crédi- todo o processo a fim de que Sua Vontade fosse ex-
to do que aquilo que a Bíblia relata. Essa teoria não faz pressamente revelada. Há uma ideia de cooperação,
justiça ao que a Bíblia representa para a fé cristã. pois Deus age no homem, dirigindo-o, controlando-
-o, como que energizando-o, de tal forma que, como
Inspiração Dinâmica ou Orgânica
Seu instrumento, ele fica acima de si mesmo, pois es-
A Inspiração Orgânica não diz que a Bíblia é exclusi- creve algo que nunca conseguiria sozinho, permane-
vamente humana e nem exclusivamente divina, mas cendo debaixo da direção de Deus. Deus fala a mes-
que é divina e humana ao mesmo tempo. O Espírito ma coisa de forma diferente e por autores diferentes.
Santo usou homens como organismos vivos e não O produto final é sua palavra inspirada e inerrante.
como meras máquinas. Deus não ditou palavras para Essa é a concepção conservadora de Inspiração. Ela
serem escritas, e nem simplesmente os homens ti- evita os extremos das duas anteriores e faz justiça ao
veram “elevações” que registraram. Deus agiu no ser ensino e ao caráter das Escrituras.

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4. A ESCRITURA COMPLETA

Qual é a base fundamental da religião cristã? Esta é gem científica em suas afirmações. A linguagem da
uma pergunta essencial. Para muitos é a tradição ou Bíblia é a linguagem do homem comum. Neste sen-
a estrutura eclesiástica. Para outros, é o legado his- tido a Bíblia diz que o Sol gira ao redor da terra, que
tórico. Mas a base fundamental do cristianismo só o vento sopra e outras afirmações fenomenológicas,
pode ser a Escritura. Sem a Escritura, sequer haveria ou seja, que podem ser vistas da perspectiva comum.
cristianismo. Neste texto precisamos considerar se a Deve ser entendido que a Bíblia não pretende ser um
Escritura é uma base segura e suficiente para o Cris- compêndio de química, física ou geografia e, por-
tianismo. tanto, ela não tem a necessidade de se apegar às lin-
guagens próprias destas ciências. Inerrância também
A INERRÂNCIA DAS ESCRITURAS não exige uma estrita conformidade com as regras da
gramática. Nos escritos dos melhores escritores se
Quando se fala que a Bíblia é inerrante, se quer dizer permite “errar” em troca da comunicação. O próprio
que em tudo o que a Bíblia ensina, seja religioso, mo- uso de figuras de linguagem como hipérbole (exage-
ral, social ou físico, ela é absolutamente verdadeira e ros), sinédoque (o menor pelo maior) e metonímia
livre de erros (Sl 119.142, 160; Pv 30.5-6; Mt 5.17- (um nome por outro) não comprometem a doutrina
20; Jo 10.34-35; 17.17). Não significa que a Escritu- da inerrância. No contexto da inerrância, os gêneros
ra diga toda a verdade sobre tudo o que ensina, mas literários da Bíblia, como o poético ou o apocalíptico,
que em tudo o que ensina ela diz a verdade. Muitos precisam ser entendidos a partir de suas peculiarida-
defendem uma inerrância limitada (“Inspiração Par- des. As imagens fabulosas e fantasiosas são condicio-
cial”). Desta forma a Escritura seria infalível apenas nadas ao seu próprio gênero, e devem ser considera-
em assuntos de fé e prática no que diz respeito à salva- das a partir de sua interpretação, e não da perspectiva
ção, e nos demais assuntos poderia ter falhas. Porém, literal. O fato de a Bíblia não dar explicações científi-
como acreditar que ela possa falar a verdade sobre cas completas sobre geografia ou geologia não impli-
um assunto e mentir sobre o outro? Além disso, dessa ca em que haja alguma imprecisão. Seria impreciso
forma a base histórica da salvação poderia ser retirada se as informações fossem falsas, mas se são limitadas,
(2Tm 3.16; Sl 12.6; Sl 119.96; Rm 15.4). ainda assim são verdadeiras.

A inspiração da Bíblia não exige que ela use lingua- Nem mesmo as citações imprecisas da Escritura do

23
Antigo Testamento no Novo Testamento podem ser de que, se somente eram inerrantes os autógrafos ori-
consideradas como erros. Quando se citava o Anti- ginais e nenhum deles existe mais, falar em inerrância
go Testamento era necessário fazer uma tradução e não tem muito sentido, respondemos que, de fato
toda tradução envolve muitas variantes. Além disso, não temos mais os originais, porém, pelo estudo que
citações livres sempre fizeram parte da produção lite- se chega da comparação entre todas as cópias (va-
rária antiga. Do mesmo modo não precisamos espe- riantes), pode se concluir que em 99% de tudo o que
rar que, na Escritura, as palavras de Jesus, conforme as cópias tratam, elas concordam e nenhum caso sé-
foram registradas pelos evangelistas, contenham a rio de doutrina se veria afetado pelas variantes. Além
ipsissima verba (palavras exatas), mas a ipsissima vox do mais, se o Espírito Santo inspirou os escritos, não
(voz exata). Ou seja, o que importa é o significado poderia preservar com fidelidade o que estava escri-
preciso e não necessariamente as palavras exatas. Os to neles? Podemos concluir que, apesar de todos os
Apóstolos registraram fielmente o que Jesus ensinou, seus esforços, os críticos não têm conseguido provar
mas é preciso lembrar que muitas palavras de Jesus que a Bíblia contenha erros.
foram ditas em aramaico e os Evangelhos foram es-
critos em grego, portanto sempre houve necessida- A SUFICIÊNCIA DAS ESCRITURAS
de de adaptações. Do mesmo modo, as palavras de
Pedro, de Paulo, ou dos demais apóstolos quando Com relação ao tema da suficiência das Escrituras
foram registradas por Lucas, por exemplo, não foram é preciso entender que na fé reformada somente as
necessariamente citações literais de seus sermões, Escrituras são a regra de fé e prática. Não há outra
pois é compreensível que Lucas tenha feito resumos fonte em que o cristão possa achar orientações infa-
dessas preleções, mas que representam perfeitamen- líveis para sua vida. A tradição, embora considerada
te o significado pretendido pelos Apóstolos. na teologia, não pode ser comparada com a Escritu-
ra. Uma pergunta que normalmente surge quando se
Inerrância igualmente não exige um grau de exatidão pensa em suficiência das Escrituras é: “Ainda há reve-
nos números. Quando se diz que 5000 pessoas esta- lação divina hoje?”. Nossa posição é que não há mais
vam num determinado evento, aponta-se um valor revelações de Deus hoje, pelo menos não em pé de
aproximado, mas não há necessidade de que se conte igualdade com a Bíblia. Entretanto, deve ser dito que
uma por uma. Geralmente aponta-se como erro o fato a Revelação de Deus continua hoje. Deus se revelou
de um evangelista dizer que havia uma pessoa numa na criação, e essa criação continua apontando para
determinada casa, enquanto que o outro evangelista Deus. A providência, que é a continuação da cria-
diz que havia duas. Muitas coisas poderiam explicar ção, ou seja, a maneira como ele dirige a história e o
essa aparente divergência. Os dois poderiam não ter mundo, também o revela. Mas não quer dizer que há
contado as pessoas no mesmo momento. Cada um uma “nova” revelação de Deus. É a mesma revelação
registrou o que viu no determinado momento em dele desde o início, porém, sempre sendo percebida
que viu, o que não implica necessariamente um erro. de formas diferentes. A Escritura também é a mesma,
mas cada vez que vamos até ela descobrimos coisas
Finalmente deve ser entendido que a inerrância se novas, em forma de aplicações diferentes para nossa
refere apenas aos autógrafos.1 Quanto ao argumento vida. Deus continua se revelando, portanto, através
da criação (revelação geral) e através da Escritura (re-
1 Os autógrafos são os escritos originais. Aqueles que saíram velação especial). Essa última é a principal fonte de
da pena dos escritores. conhecimento, especialmente da salvação.

24
Embora cada parte da Bíblia tenha sido escrita em Todas essas considerações devem levar o estudante
uma determinada época, ela nunca esteve limitada de teologia a uma atitude de reverência para com a
ao tempo. De fato, Deus se revelou no passado, mas Bíblia. Não podemos nos aproximar dela como juí-
a mensagem continua significativa para as pessoas zes, e sim como servos. Estudar a Escritura precisa ser
de hoje e de sempre. Deus é o mesmo e sua Palavra fonte de vida devocional e aprimoramento do rela-
também. A mesma denúncia do pecado e o mesmo cionamento espiritual com Deus. O Deus das Escri-
chamado ao arrependimento dirigido às pessoas dos turas é o Deus que deseja estreitar o relacionamento
tempos bíblicos vale para hoje. Embora tenha havido da Aliança com o seu povo. Ele se revelou nessas an-
muito progresso no mundo, as pessoas ainda são as tigas páginas, porque deseja que o conheçamos me-
mesmas e o pecado ainda é o mesmo, pois continua lhor e para que o amemos com mais intensidade. Ao
dominando a sociedade. Da mesma forma as neces- estudarmos essas “sagradas letras”, podemos ter a cer-
sidades são as mesmas e a solução também. teza de que estamos nos aprofundando em algo não
apenas sagrado, mas confiável e que pode aumentar a
Desde sua fundação, a Igreja Romana sustenta outra nossa sabedoria e o nosso vigor espiritual.
fonte de autoridade em pé de igualdade com a Escri-
tura: A tradição. O catolicismo entende que a igreja O CÂNON DAS ESCRITURAS
originou a Bíblia e não a Bíblia originou a igreja, e,
portanto, entre as duas, a igreja tem a prioridade. Esta Cânon literalmente significa “medida”, “regra”, “nor-
é a base para defender muitas doutrinas que foram ma” e refere-se à lista de livros estabelecida para fazer
criadas pelos concílios, ainda que não encontrem em- parte da Escritura. Provavelmente seja uma palavra
basamento na Escritura. A Reforma disse não à teoria derivada do hebraico keneh que significa “cana” ou
da dupla autoridade. No pensamento Reformado, a “vara de medir”. Essa palavra tomou um significado
Escritura tem a primazia. Esta questão de outra fonte metafórico, sendo usado como “padrão”, “limite”, etc.
de autoridade continua sendo um problema nos dias Em 2Coríntios 10.13 Paulo diz que respeitava o limi-
atuais, mas não apenas para Roma, como também te da esfera de ação que Deus havia demarcado para
para os evangélicos. E nem é preciso pensar em ca- ele. Essa “esfera de ação” no grego é canonos (Cf. Gl
sos extremos como o dos Mórmons, que sustentam 6.16). Por causa desse sentido a palavra Cânon pas-
outro livro como fonte de autoridade, pois o subjeti- sou a ter um sentido teológico de delimitação dos
vismo evangélico coloca a autoridade no “Deus me livros normativos. Os livros canônicos são os livros
falou”. Às vezes quando crentes conservadores dizem inspirados e autorais.
que nada além da Bíblia é necessário para o cresci-
mento espiritual, são taxados de “frios” e insensíveis à A INSPIRAÇÃO DETERMINA O CÂNON
atuação do Espírito. Mas é a própria Bíblia quem afir-
ma esta suficiência. Paulo escreveu a Timóteo: “Toda Desde cedo na Igreja primitiva começou-se a ter dú-
a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, vidas sobre a quais escritos deveriam ser considera-
para a repreensão, para a correção, para a educação na dos normativos. Havia muitos escritos religiosos na
justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito época, alguns abertamente heréticos, outros de auto-
e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm ria duvidosa. Mas, como saber quais livros deveriam
3.16-17). De acordo com este texto, tudo o que uma ser considerados canônicos?
pessoa precisa para chegar ao nível espiritual máximo
nesta vida, pode ser encontrado na Escritura. Portan- A inspiração é a única garantia da canonicidade do
to, a Escritura é suficiente. texto. Essa é a grande pressuposição dos conservado-

25
res. Se cremos que a Escritura é parte da revelação de sim teríamos um Cânon bem maior, pois há muitos
Deus e, se cremos que ela é o grande compêndio da livros antigos de reconhecido valor religioso, que não
revelação redentiva, então, para que cheguemos a um obstante, jamais foram incorporados ao Cânon.
Cânon, necessariamente dependeremos da inspira-
ção divina. De acordo com Geisler/ Nix “a inspiração Outro ponto que nos ajuda a entender o fato de que é
é meio pelo qual a Bíblia recebeu sua autoridade: a a inspiração que garante e determina a canonicidade
canonização é o processo pelo qual a Bíblia recebeu do escrito refere-se a discussão sobre quem tem auto-
sua aceitação definitiva”.2 Sendo a inspiração o regis- ridade para designar a canonicidade de um livro. No
tro da revelação que garante que o resultado (mate- catolicismo sempre foi a Igreja quem teve essa prer-
rial escrito) é absolutamente infalível e inerrante em rogativa. Dessa forma, ela mesma é quem garante o
todas as suas asseverações, então, para que tenhamos Cânon, pois cabe a ela dizer se um livro é inspirado
um número limitado desses escritos, a inspiração de- ou não. Assim, a base da autoridade do livro emana
verá ter a palavra final. da Igreja. No protestantismo, especialmente o refor-
mado, a coisa é bem diferente. Não é a igreja quem
É verdade que muitos têm feito tentativas de achar determina se um escrito é canônico ou não, mas o
base para o Cânon à parte da inspiração. Argumen- próprio escrito. É ele quem impõe a sua canonicidade
tam, por exemplo, que a idade dos escritos determi- e cabe à igreja tão somente reconhecer isso. Deve-se
na sua canonicidade. Entretanto, essa asseveração lembrar ainda que este reconhecimento por parte da
é perigosa, pois há muitos escritos de comprovada Igreja é pura obra do Espírito Santo. O Espírito Santo
antiguidade que não são considerados canônicos. testifica em nosso íntimo que o escrito é Palavra de
Além disso “há evidências de que os livros canônicos Deus, e dessa forma o aceitamos definitivamente. Po-
foram introduzidos no Cânon imediatamente, e não rém, é claro que mais conceitos são analisados, como
depois de haverem envelhecido. É o caso dos livros veremos a seguir.
de Moisés (Dt 31.24-26), de Jeremias (Dn 9.2) e dos
escritos do Novo Testamento produzidos por Pau- Assim, não são fatores externos que determinam se
lo (2Pe 3.16)”.3 Outro argumento usado é o de que um livro é canônico ou não, pois “os livros da Bíblia
a língua hebraica determina a canonicidade, porém, não são considerados oriundos de Deus por se haver
nem todos os escritos do Antigo Testamento estão descoberto neles algum valor (humano); são va-
na língua hebraica. É o caso, por exemplo, de partes liosos porque provieram de Deus — fonte de todo
de Daniel e Esdras que foram escritas em aramaico. bem”.4 É a inspiração que determina a canonicidade
Por outro lado, muitos livros, que foram escritos em do Escrito Sagrado.
hebraico, não podem ser considerados canônicos.
Outro exemplo falho deste tipo de tentativa é dizer OS LIVROS APÓCRIFOS
que a conformidade com a Torah garante a canoni-
cidade. Muitos escritos antigos, embora estejam em O Cânon do AT fechou-se em cerca de 435 a.C., e
harmonia com a Torah, jamais foram considerados o último livro escrito foi provavelmente Malaquias.
canônicos. Também não podemos dizer que o valor Continuou-se a escrever a história do povo judeu em
religioso do escrito garante sua canonicidade, pois as- livros como Macabeus, mas esses livros jamais foram
aceitos pelos judeus como inspirados. Na verdade,
2 Norman Geisler & William Nix, Introdução Bíblica. p. 61.

3 Ibidem, p. 64. 4 Ibidem, p. 65.

26
Israel tinha certeza de que desde os tempos de Ma- Trento, que a Igreja Católica Romana canonizou
laquias não havia mais se levantado profeta em Israel aqueles livros. O interesse desse Concílio era atacar
com condições de trazer uma mensagem normati- a Reforma de Lutero e Calvino e os apócrifos ofe-
vos. O próprio autor de 1Macabeus, escrito em 100 reciam material suficiente para atacar a doutrina da
a.C., declara que todos estavam à espera de que viesse salvação pela graça e preservar a oração pelos mortos.
“algum profeta e se pronunciasse a respeito” (1Mac Então, a aceitação católica dos apócrifos foi muito
4.45-46) da terrível situação da nação. Ele chegou mais por causa de um embate histórico e teológico.
a dizer que fazia muito tempo que não se levantava
um profeta, pois falou a respeito de um grande sofri- Para resumir, podemos citar os motivos pelos quais,
mento “qual não tinha havido desde o dia em que não segundo Grudem, os Apócrifos não devem ser acei-
mais aparecera um profeta no meio deles” (1Mac tos: “1) eles não atribuem a si o mesmo tipo de auto-
9.27). Josefo, o maior historiador judeu que nasceu ridade que têm os escritos do Antigo Testamento; 2)
entre 37/38 d.C., disse que aqueles livros que conti- não foram considerados palavras de Deus pelo povo
nham a história dos judeus depois de Artaxerxes não judeu, do qual se originaram; 3) não foram conside-
foram julgados dignos de crédito, porque não havia rados Escrituras por Jesus nem pelos escritores do
mais sucessão profética. Os judeus não aceitavam os Novo Testamento; 4) contêm ensinos incoerentes
Apócrifos, pois criam que depois dos últimos profe- com o restante da Bíblia”.6
tas Ageu, Zacarias e Malaquias, o Espírito Santo havia
se afastado de Israel. A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO
TESTAMENTO
Ainda devemos lembrar que não há qualquer citação
Os Escritos do Novo Testamento foram feitos sob
do Novo Testamento com relação aos livros Apócri-
a autoridade Apostólica. A autoridade dos Após-
fos,5 e não há registro de nenhuma divergência entre
tolos era equivalente à autoridade dos profetas do
Jesus e os judeus com relação a quais livros eram nor-
Antigo Testamento (Cf. Jo 14.26; 16.13-14; At 5.3-
mativos.
4; 2Pe 3.2). Na verdade, temos base suficiente para
dizer que os Escritos Apostólicos eram reconhecidos
A primeira vez que os Apócrifos apareceram na Bí-
como normativos logo de seu “lançamento” (2Pe
blia foi na tradução de Jerônimo chamada Vulgata
3.16; 1Tm 5.17-18), tanto quanto falamos dos livros
(404 d.C.), entretanto Jerônimo havia colocado
do Antigo Testamento. Todos os livros do Novo Tes-
uma nota com relação àqueles livros, dizendo que
tamento foram escritos por Apóstolos ou supervi-
não eram inspirados, não sendo do “Cânon” e sim da
sionados por eles. Como já dissemos é a inspiração
“Igreja” e que, somente como tal poderiam ser úteis e
que impõe o reconhecimento do livro, mas o caráter
proveitosos. Mas a ampla divulgação da Vulgata Lati-
apostólico garante essa inspiração, pois os apóstolos
na assegurou o acesso àqueles livros.
foram comissionados por Jesus para continuar a obra
dele. Todos os 27 livros do Novo Testamento são re-
Entretanto foi somente em 1546, no Concílio de
conhecidamente inspirados. Há outros livros escritos
por cristãos piedosos da antiguidade que podem ser
5 Judas 14-15 cita 1Enoque, mas não como Escritura. Não há até edificantes, mas estão longe de ter o conteúdo dos
uma declaração “assim diz a Escritura”, ou “como está escrito”. Quanto
aos apócrifos Tobias, Judite, acréscimos a Ester, Sabedoria de Salo-
mão, Eclesiástico, Baruque, 1 e 2 Macabeus, não há qualquer citação
do Novo Testamento, que cita o Antigo pelo menos 295 vezes. 6 Wayne Grudem, Teologia Sistemática, p. 32.

27
livros canônicos e, muitos desses contêm heresias e ler nas igrejas os escritos autorizados. Mas, como sa-
afirmações contraditórios. ber quais escritos deveriam ser lidos se não houvesse
uma indicação nesse sentido?
Durante o Século i d.C., os livros apostólicos já des-
frutavam de reconhecida autoridade pela Igreja, mas Em meados do segundo século já começavam a
foi somente no Século II que passou-se a ter uma circular coleções inteiras das cartas de Paulo e dos
ideia de um Cânon do Novo Testamento. Sabemos Evangelhos. Esse colecionamento mostra que esses
que ainda no Século i d.C., muitos dos escritos apos- escritos eram considerados normativos para a Igreja.
tólicos já eram considerados normativos. E sabemos Como já dissemos, por si só os escritos apostólicos
também que só no final do Século IV d.C., é que o já demonstravam sua autoridade canônica, mas o
Cânon como o temos hoje foi definitivamente reco- reconhecimento dos pais apostólicos foi decisivo na
nhecido. Mas foi no segundo século que se começou formação do Cânon. Conforme Geisler/Nix “logo
a formar a ideia de um Cânon. Como declara F. F. após a primeira geração, passada a era apostólica,
Bruce: “os primeiros passos no sentido da formação todos os livros do Novo Testamento haviam sido
de um Cânon de livros cristãos havidos como dota- citados como dotados de autoridade por algum pai
dos de autoridade, dignos de figurar ao lado do Câ- da igreja”.8 São essas citações, datadas do primeiro e
non do Antigo Testamento, a Bíblia do Senhor Jesus do segundo século, aliadas às listas e traduções do se-
e seus apóstolos, parecem haver sidos tomados por gundo século, que constituem a grande base da for-
volta do começo do segundo século, época em que mação do Cânon como o temos hoje.
há evidência da circulação de duas coleções de escri-
tos cristãos na Igreja”.7 O FECHAMENTO DO CÂNON

Havia muitos motivos no segundo século para a for- Em 367 d.C., Atanásio na Trigésima Nona Carta Pas-
mação do Cânon. O principal motivo era a neces- cal citou uma lista com os exatos 27 livros do Novo
sidade de algo que pudesse ser considerado como Testamento, como o temos hoje. Em 397 d.C., o
norma para discussões teológicas e como regra de Concílio de Cartago, concordou com essa lista e en-
fé e prática. Nesse sentido, até meados do segundo tão, o Cânon foi considerado fechado. Não há possi-
século a tradição oral era praticamente dominante. A bilidade de que novos escritos possam ser incluídos
partir daí, os Evangelhos escritos começaram a ocu- no Cânon. Um dos motivos é que não há mais profe-
par o lugar da tradição oral, dando muito maior pre- tas ou apóstolos e outro é que não houve mais even-
cisão na proclamação evangélica. tos redentivos depois da Ascensão de Jesus.

Outro motivo que levou à formação do Cânon foi o A Confissão de Fé de Westminster coloca a questão
falso Cânon de Marcião. Marcião, que era antissemi- da seguinte forma: “foi o Senhor servido, em diver-
ta criou um Cânon particular composto do Evange- sos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à
lho de Lucas e de dez cartas de Paulo, deixando fora sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor
as pastorais. Como resposta a Marcião, a igreja pre- preservação e propagação da verdade, para o mais
cisava mostrar o verdadeiro Cânon. Também havia seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a
necessidade de um Cânon por causa da prática de corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo,

7 F. F. Bruce. Merece Confiança o Novo Testamento? p. 31 8 Norman Geisler & William Nix. Introdução Bíblica. p. 105

28
foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto tor- aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade
na a Escritura Sagrada indispensável, tendo cessado ao seu povo” (CFW, i,1).

29
TEONTOLOGIA
"O SER DE DEUS E SUAS OBRAS"

30
5. A EXISTÊNCIA DE DEUS

A pergunta que serve de título para este capítulo pode em quê? Além do mais, o que poderia ser excluído
soar estranha numa obra de teologia. Mas é uma per- deste princípio? Quando a fé não se faz necessária?
gunta que os incrédulos fazem e, talvez, até os crentes, Será que temos provas suficientes para todas as nos-
algumas vezes. De início, é preciso que se diga que a sas crenças, sejam religiosas, científicas ou morais? O
existência de Deus é a grande afirmação pressuposta fato é que acreditamos. Acreditar nada mais é do que
pela Bíblia. A Bíblia não tenta provar a existência de exercitar a fé. Nesse sentido, muitos defensores da
Deus, ela simplesmente assume esta existência como ciência talvez sejam os mais “crentes”. Eles acreditam
um fato. O excelente teólogo reformado Louis Ber- em teorias, defendem essas teorias fanaticamente, e
khof afirma: “Para nós a existência de Deus é a grande constroem outras teorias em cima dessas teorias. O
pressuposição da teologia”.1 De fato, nenhum teólogo fato é que o ser humano decide em que crê e em que
poderia negar a existência de Deus, pois isso o faria não crê. Uma pessoa consegue ver todas as provas
diante de si e, ainda assim, negar a realidade de algum
automaticamente ficar sem profissão. Mas ao longo
fato, desde que não queira acreditar naquele fato. Isso
da história, filósofos e teólogos têm debatido sobre
pode ser visto facilmente em tempos de eleição para
se a mente humana pode ter certeza da existência
cargos políticos, ou nos tribunais. Por outro lado,
divina. Será que a existência de Deus é um assunto
quando alguém deseja crer, nada o faz mudar de ideia,
que deve ser aceito somente pela fé? Ou será que é ainda que as provas sejam escassas. Uma coisa preci-
possível, a partir da razão e de argumentos racionais, sa ficar clara, mesmo que existissem provas explícitas
provar a existência de Deus? da existência de Deus, as pessoas não deixariam de
negar a existência dele. O assunto deste capítulo não
Desde já é preciso que se admita que a fé é absolu- é a existência da fé em Deus, mas sim a racionalidade
tamente necessária para que se aceite a existência de desta fé. Crer irracionalmente não é uma fé saudável.
Deus. Mas o ponto a ser discutido é: Esta fé se baseia A diferenciação que se pretende estabelecer aqui é
que todos se guiam por algum tipo de fé, mas a fé au-
1 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 22. O próprio Ber- têntica é aquela que tem bases sólidas. Mas isso não
khof não admite uma aceitação cega da existência de Deus pela fé. quer dizer que a razão será o árbitro da fé, como se
Berkhof admite que a fé não é uma fé cega, mas baseada em provas.
Segundo ele, essas provas vêm, em primeiro lugar, da Escritura e, em pretendia no iluminismo. O único árbitro da fé é a
segundo lugar, da Revelação Geral (p. 22-23). revelação. A revelação é uma base bem sólida para se

31
edificar a fé. onde todos vão, não há recompensas ou punições,
louvores ou vaias. Se não existe um Deus que tenha
NATURALISMO IRRACIONAL propósitos para este mundo e para a vida do homem,
então não existe razão, não existe esperança, e nada
O naturalismo está na moda nesse mundo moderno. faz sentido. A conclusão lógica e única que se pode
Tudo o que é da “natureza” é automaticamente mais chegar a partir de uma concepção assim é que não
aceito. As pessoas cultuam a mãe natureza, e procu- vale a pena viver, pois a vida não teria sentido. Não é
ram soluções “naturais” para seus problemas. A exis- de admirar o desespero de homens e mulheres que
tência humana também tem sido explicada a partir se negam a crer na existência de Deus. De fato, como
de elementos naturais. Nesse sentido, evolucionismo diz Schaeffer, eles baixaram a linha do desespero.2 Já
e naturalismo são sinônimos. É a tentativa humana não existe mais nada lógico nem coerente. Tudo vi-
de explicar a existência do homem sem precisar ape- rou irracional. Eis a razão do estado caótico do mun-
lar para o sobrenatural, para o divino.
do moderno que tem construído seu modo de vida
sobre esse frágil alicerce chamado “acaso”. O soalho
Sem Sentido
debaixo de nossos pés treme porque o grande princí-
Mas que sentido teria a vida se não existisse um Deus? pio sustentador da sociedade foi repudiado. Deus foi
Se imaginarmos que tudo é obra do acaso, se acredi- destronado e o acaso posto em seu lugar.
tarmos nas teorias naturalistas e aceitarmos que tudo
o que existe é produto da evolução, no fim das contas, Irracionalismo puro
teremos que dizer que não viemos de lugar algum e
nem vamos para lugar nenhum. Seríamos apenas O Naturalismo é uma das maiores forças que o Teís-
um fruto de um acidente cósmico, de uma espécie mo3 já enfrentou. Definimos naturalismo como o
de conspiração molecular inanimada. Um dia a ma- conjunto de teorias que de uma forma ou de outra,
téria morta, por algum motivo ignorado, tornou-se defende o evolucionismo como explicação da vida.
animada. Após passar por um longo processo evolu- A tese principal do naturalismo é que não existe uma
tivo tornou-se o que somos hoje. É preciso entender, causa absoluta para a existência de todas as coisas.
porém, que não houve propósito algum nisso tudo. Uma definição clássica do naturalismo é: “O homem
Foi apenas obra do acaso. De um terrível e impessoal é o produto de causas que não tinham previsão de fim
acaso que pode se inclinar para qualquer lado, de ma- para o que foram feitas, sua origem, seu crescimento,
neira que alguém viva até ultrapassar os 100 anos, ou suas esperanças e medos, seus amores e suas crenças,
morra daqui a alguns minutos por uma bala perdida, são consequências de acidentais colocações de áto-
sem que exista qualquer ordem ou propósito. Este
rolo compressor chamado “acaso” passa por cima 2 O conceito de Francis Schaeffer é muito interessante. ele
de todos, sem levar em conta sentimentos, sonhos, traça uma linha e diz que é a linha do desespero. Acima da linha ficam
aqueles que acreditam em absolutos, abaixo da linha ficam os que já
planos ou desejos. De qualquer forma, não fará dife- não creem em absolutos. Em sua obra O Deus que Intervém, p. 25-88,
rença viver 100 anos ou 1 minuto, pois o destino de Schaeffer define a ordem como as pessoas começaram a ultrapassar
a linha do desespero. Segundo ele tudo começou com a Filosofia, de-
todos é o mesmo: nenhum. Debaixo dessa sombra pois foi a vez da Arte, depois a Música, depois a Cultura Geral e por
não faz diferença o cultivo das virtudes ou a prática fim a Teologia. Quando se deixou de acreditar em absolutos, e Deus é
absoluto por excelência, não restou coisa alguma para crer, assim, só
dos excessos. Ajudar ou prejudicar, matar ou dar vida, resta o desespero ou o niilismo.
ser honesto ou desonesto, são apenas lados de uma 3 Teísmo é a crença em Deus como o que deu origem e sus-
tenta de toda a criação.
mesma moeda, uma vez que, depois do túmulo para

32
mos”.4 Desse modo, a vida surgiu necessariamente sas? Só há uma resposta: o nada. Essa não é uma res-
da própria matéria inanimada, sendo que, de alguma posta muito convincente, mas não há outra. Ou o na-
maneira a matéria, nos primórdios da vida, foi energi- turalista faz o sacrifício mental e diz que é o nada, ou
zada a tal ponto que, inexplicavelmente, se transfor- cai no desvario de dizer que a matéria é eterna. Neste
mou em matéria animada. Através de um vagaroso ponto só resta para o naturalismo a irracionalidade.
processo evolutivo, sempre impulsionado pelo “com- Não há saídas. A única forma que a ciência tem de se
portamento adaptativo”, o ser humano veio a ser o manter racional é admitindo que Deus existe, e que
que é hoje. Esse comportamento adaptativo é a cha- como diz Kuyper, “o cosmos não se torna vítima dos
ve para entendermos a evolução. Foi ele que selecio- caprichos do acaso, mas que existe e desenvolve-se a
nou naturalmente o que deveria mudar no homem, a partir de um princípio, segundo uma ordem estável,
fim de que sobrevivesse. Se dois braços são melhores visando um plano fixado”.6 Este princípio somente
do que um para a sobrevivência, então, o processo de pode ser Deus. O famoso Big-Bang não pode ser este
adaptação permitiu dois braços. O próprio cérebro princípio, pois é preciso que a causa última de todas
humano é fruto deste desenvolvimento. O cérebro as coisas seja uma “causa em si mesma”. Se ela não for
se desenvolveu para garantir a sobrevivência da espé- a causa de si mesma, terá que ter outra causa, e a ou-
cie. Neste sentido, o homem continuará evoluindo e tra, por sua vez, outra, e assim até o infinito. Kuyper
sempre se adaptando às necessidades do seu habitat está mais uma vez certo ao afirmar que:
natural. Se no futuro as pernas não forem necessárias,
elas poderão deixar de existir e, no lugar delas, talvez Sem uma profunda convicção desta unidade, es-
nasçam asas. De qualquer forma o homem sempre se tabilidade e ordem, a ciência é incapaz de ir além
de meras conjecturas. Somente quando há fé na
adaptará para uma melhor sobrevivência.
conexão orgânica do Universo, haverá também a
A questão que surge é a seguinte: será que o natura- possibilidade para a ciência subir da investigação
empírica dos fenômenos especiais para o geral, e do
lismo é racional? Em última instância podemos dizer
geral para a lei que governa acima dele, e desta lei
que o naturalismo também é questão de fé. Os cien-
para o princípio que domina sobre tudo.7
tistas não têm provas concretas do que dizem, mas
creem que é verdade. Kuyper argumenta que “toda
Ao excluir Deus, o naturalismo se tornou irracional,
ciência num certo grau parte da fé”, pois “toda ciência
pois excluiu o princípio. Caiu num círculo vicioso de
pressupõe fé em si”,5 ou seja, para continuar defendo a
teorias que precisam comprovar outras teorias, como
posição naturalista é necessário acreditar que ela seja se uma mentira pudesse fazer com que outra mentira
verdadeira, apesar da escassez de provas, e isto é fé. A se tornasse verdade.
primeira observação que pode ser feita sobre o natu-
ralismo é que sua base é extremamente frágil. Ele tem O naturalismo é um sistema contraditório, e a nos-
uma belíssima estrutura construída, mas seus pés são sa própria estrutura intelectual e a lógica, como uma
de barro. Uma pergunta sempre ficará sem resposta elaboração daquela, nos ensinam a não crer em con-
no naturalismo: Qual é a causa última de todas as coi- tradições: algo não pode ser e não ser ao mesmo tem-
po. Não dá para acreditar em algo que desminta a si
4 Bertrand Russel. Why I Am Not a Christian. New York: Si-
mon and Schuster, 1957, p 107. Apud Alvin Plantinga. Warranted Ch-
ristian Belief, p. 227. 6 Abraham Kuyper. Calvinismo, p. 122.

5 Abraham Kuyper. Calvinismo, p. 137-138. 7 Abraham Kuyper. Calvinismo, p. 123.

33
mesmo. Alguns tipos de raciocínios são uma espécie Mas antes de falar sobre a explicação teísta, é preciso
de “bomba relógio”, pois destroem a si mesmos. A rebater um argumento bastante usado nos meios aca-
máxima do modernismo, por exemplo, era que “toda dêmicos para se negar a existência de Deus.
verdade precisa ser verificável”. Por muito tempo as
pessoas acreditavam que, com esta afirmação, tinham A EXISTÊNCIA DO MAL
chegado ao máximo do saber. Até que alguém levan-
tou a seguinte questão: se toda verdade precisa ser Sempre que um ateu tentar argumentar contra a exis-
verificável para que seja verdade, então, essa verdade tência de Deus, o principal argumento que usará é o
(a própria declaração) também precisa ser verificável. que explora a existência do mal. O argumento con-
Se não há como verificá-la, não há como comprová- siste nas seguintes partes: 1) Deus existe, ele é oni-
-la, então ela é falsa. Assim, se é verdade que “toda ver- potente, onisciente e onipresente e, acima de tudo, é
dade precisa ser verificável”, então não é verdade que bom. 2) Existe o mal. A questão é: Como um Deus
toda verdade precisa ser verificável. O mesmo pode bom, todo poderoso e todo sábio poderia ter permi-
ser dito do pós-modernismo que apregoa: “Não exis- tido que o mal existisse? Desta forma, ou Deus não
é bom por permitir tanta maldade nesse mundo, ou
tem absolutos”. Se não existem absolutos então essa
ele não é todo-poderoso, nem sabe todas as coisas,
própria afirmação não pode ser um absoluto. Estes
pois, devido a um erro seu, por falta de previsão ou
são exemplos de argumentos autodestrutivos, aos
de poder, o mal entrou no mundo. A lógica parece
quais Aristóteles, se os conhecesse, teria chamado de
irrefutável: Se existe o mal, Deus não existe ou, no
sofismas. O naturalismo também é autodestrutivo.
mínimo, ele não é bom, nem todo-poderoso. Algu-
Alvin Plantinga, um filósofo cristão norte-america-
mas soluções para esse problema não ajudam. Se
no expôs o argumento da seguinte forma.8 1) Se o
dissermos que o mal é independente de Deus, então,
naturalismo é verdade, então nossa mente é um pro- Deus não é todo-poderoso. Se simplesmente disser-
duto da evolução. 2) A evolução seleciona para so- mos que Deus é o autor do mal, então, ele não é bom.
brevivência, portanto, a mente foi desenvolvida para Muitos cristãos não têm resposta para esta argumen-
a sobrevivência, não para conhecer a verdade. 3) Se o tação. Todavia a solução existe.10 Se houver uma ter-
naturalismo é verdade, não temos suficientes razões ceira razão, que pudesse ser consistente tanto com a
para acreditarmos que nossa mente poderia deter- existência de Deus, quanto com a existência do mal,
miná-lo como verdade, e o agnosticismo,9 portanto, então, anularíamos esse argumento. Ou seja, se hou-
faria mais sentido. Então, se o naturalismo fosse ver- ver uma razão pela qual Deus que é bom tivesse um
dadeiro, nunca poderíamos constatar isso. Portanto, bom motivo para tolerar o mal, então, a existência de
percebe-se que o naturalismo não é uma saída racio- Deus e a existência do mal não seriam mutuamente
nal para o enigma da existência do mundo e da vida excludentes. Mas qual seria esta boa razão pela qual
inteligente. o Deus bom, onisciente, onipresente e onipotente
teria permitido o mal? Há uma razão: Para sua gló-
8 O desenvolvimento dessa tese de Plantinga pode ser en-
ria. A Escritura diz que todas as coisas existem para
contrado em James F. Sennett. The Analytic Theist–An Alvin Plantinga a glória de Deus. Deus manifesta sua glória ao per-
Reader, pp. 72-96. O argumento a seguir segue a abordagem de John
Cooper, conforme sua Apostila de Aula (não publicada), de um módu- mitir que o mal exista, pois sabe como lidar com ele.
lo de Cosmovisão Reformada, lecionado no Centro Presbiteriano de
Pós-Graduação Andrew Jumper – SP, em 2002. John Cooper segue a
argumentação de Plantinga.
10 Ver James F. Sennett. The Analytic Theist – An Alvin Plan-
9 A teoria que diz que nada pode ser conhecido. tinga Reader, p. 22-49.

34
A existência do mal permite, por exemplo, que Deus Nosso desejo foi demonstrar que a existência do mal
demonstre sua misericórdia. Se o homem não tivesse não inviabiliza a existência de Deus.
caído no pecado, jamais conheceria a misericórdia de
Deus em sua plenitude. Deus, que “é amor” (1Jo 4.8), De acordo com Schaeffer,12 o cristianismo é o úni-
demonstra a intensidade desse amor que o leva a en- co sistema de crenças que pode dar a resposta para
tregar o próprio Filho pelos pecados dos homens (Jo o enigma da existência do mal, embora esta não seja
3.16). Paulo diz que o fato de Deus entregar seu Filho uma resposta puramente racional, pois ela parte da
para morrer pelos pecadores é a prova de seu amor fé. Somente o cristianismo pode dar esta resposta,
(Rm 5.8). Se o mal não existisse, essa prova não seria porque somente ele crê na descontinuidade da atual
dada. A encarnação do Filho está intimamente ligada condição do homem. O mal não é algo intrínseco ao
a existência do mal. Sem o mal, o Logos não precisa- homem. O homem não foi criado essencialmente
ria se tornar um homem, e o maior e mais espetacular mau, mas se tornou assim por um ato de sua vonta-
acontecimento da história do universo não acontece- de. Como vimos, Deus tolerou o mal, porque tinha
ria: a encarnação (Jo 1.14). Ainda devemos lembrar bons motivos para isso, porém o mal não é a condi-
que uma criação testada e aprovada é mais valiosa do ção “normal” do homem. Disso decorre que o mal
que uma criação que jamais foi testada. Nesta linha pode ser combatido no homem, coisa que o mundo
de argumentação, podemos dizer que o homem, que moderno, que vê o mal como algo natural, não pode
uma vez caiu no pecado e experimentou todas as afirmar, pois se o homem lutasse contra o mal estaria
mazelas decorrentes disso, depois de redimido, não lutando contra si mesmo. A evolução poderia levar
terá mais a mínima vontade de pecar.11 Ainda deve- o homem definitivamente para o lado do mal, des-
mos observar que a qualidade de um objeto deve ser de que isso garantisse a sobrevivência da espécie. De
avaliada primariamente dentro do seu propósito. A qualquer forma, para a evolução não faria qualquer
criação de Deus, dentro de seu propósito, eterno e diferença, pois não há mal, nem bem, tudo é fruto do
soberano, tinha como característica essencial a possi- acaso. No cristianismo, o mal é um intruso que não
bilidade concreta e real, até mesmo, de desobedecer obstante sirva aos propósitos de Deus, no devido
a Deus. tempo será extirpado. É justamente o seu caráter de
intruso que garante que ele pode deixar de existir.13
Concluímos então, que a existência do mal não im- Ainda trataremos mais sobre a origem do mal neste
possibilita à existência de um Deus bom e todo-po- trabalho.
deroso. O mal, como todas as coisas, existe para a
glória de Deus. Entretanto, isso não significa que pos- ARGUMENTOS RACIONAIS
samos entender de forma lógica essa questão. Pela
lógica humana, sempre haverá lacunas em qualquer Até agora percebemos que os grandes argumentos
explicação sobre a existência do mal e a existência de contra a existência de Deus tombam diante de uma
Deus. Não precisamos nos envergonhar de não ter análise mais detalhada. Mas será que somente po-
essas respostas plenas, até porque, para que isso fosse demos ir pelo caminho da defesa, ou há argumentos
possível teríamos que ter uma mente igual a de Deus.
12 Francis Schaeffer. O Deus Que Se Revela, p. 68-69.

11 É claro que isso não será a principal coisa a impedir o peca- 13 O mal deixará de existir não porque será aniquilado, mas
do do homem. Deus mesmo é quem garantirá que o homem restau- porque será confinado a uma prisão de onde jamais poderá sair para
rado não torne a cair. influenciar novamente, o Lago de Fogo (Ap 20.14).

35
a favor da existência de Deus? Há muita discussão vincente, embora deva ficar claro que ele não prova
entre os teólogos sobre se é possível apresentar pro- objetivamente a existência de Deus. Mas não se pode
vas racionais a respeito da existência de Deus sem o negar que dá uma resposta bastante convincente a
uso da Escritura. O que deve ser esclarecido é que, se uma situação verificável: a ideia do divino que é co-
por provas racionais, se entende que elas devem con- mum em todas as pessoas.
vencer a todos que Deus existe, ou que são o único
instrumento do despertamento espiritual de alguém, O Argumento Cosmológico: Toda Causa tem um
então, não existem tais provas. Somente o Espírito Efeito
Santo, fazendo uso da revelação, pode convencer al-
guém da existência de Deus. Uma outra ideia comum e aceita entre os homens
é que todo efeito precisa ter uma causa. Diz-se que
Historicamente, alguns argumentos têm sido formu- uma obra de arte não surge do nada, ela precisa de
lados para defender a existência de Deus. São argu- um grande artista. Uma das leis da física é que não
mentos filosóficos, tirados do senso comum. Vamos há efeito sem causas. Nesse sentido, o mundo criado
considerá-los primeiro, para em seguida darmos uma é o efeito, enquanto que o criador, a causa. Sendo o
opinião sobre os mesmos.14 mundo tão grandioso como é, necessariamente pre-
cisa ter uma causa grandiosa também. Este argumen-
O Argumento Ontológico: A Ideia de um Ser su- to vai além do anterior que determina apenas a exis-
perior tência de um ser superior, demonstrando que esse ser
superior é também infinito, pois só alguém infinito
Segundo este argumento, uma das coisas que nos poderia ter criado um universo tão grande. Popular-
leva a pensar que Deus deve existir é o fato de que mente se diz que o universo é infinito, mas é claro que
todos têm esta ideia em si mesmos. Em geral, a ideia de forma absoluta isto não é possível. Somente Deus
que as pessoas fazem de Deus é a de um ser superior pode ser infinito, pois a existência de dois infinitos é
e infinito. A questão é: como ideias de um ser infinito uma contradição. O universo, entretanto é enorme,
podem surgir em mentes de seres finitos? O filósofo além da compreensão do homem. A existência de
e matemático francês Descartes (1595-1650) não um universo tão grande pressupõe a existência de
conseguia entender que o homem fosse capaz de um Deus ainda maior. A falha deste argumento tem
criar essas ideias, para ele esta ideia necessariamente sido apontada pelo fato de que se toda causa tem um
precisava ter vindo de fora, ou seja, do próprio Deus. efeito, então, Deus também precisaria ter uma causa.
A resposta é que Deus é a causa de si mesmo; ou seja:
É fato inegável que a crença na existência de um ser A causa não causada. Ele é eterno, ou seja, existe des-
superior é generalizada e, por mais que seja descarac- de toda a eternidade. O valor desse argumento está
terizada em muitos lugares, não anula a evidência de no fato de dar uma explicação para a origem de todas
que aponta para algo além de nós mesmos. Segun- as coisas, o que nenhuma outra teoria consegue de
do este argumento, todos imaginam que exista uma forma mais convincente.
divindade, logo esta divindade deve mesmo existir.
Para muitos teólogos e filósofos o argumento é con- O Argumento Teleológico: Há propósito em tudo
que existe
14 Para uma análise mais completa dos argumentos com
pontos favoráveis e críticos veja: Charles Hodge. Teologia Sistemática, O mundo não é caótico, ao contrário, em todos os
p. 153-180.
lugares é possível ver ordem, propósito, organização

36
e harmonia. O mundo revela um senso de inteligên- tal noção? A explicação é que a noção é implantada
cia que não pode ser ignorado. Há muitos exemplos pelo próprio Deus. Hodge argumenta que “como
disso: No ciclo das águas, a chuva faz a água cair so- a imagem do sol refletida de um espelho ou da lisa
bre a terra, a água corre para o rio, o rio corre para o superfície de um lago nos revela que o sol existe e o
mar, o sol faz evaporar a água do mar que sobe até as que ele é, assim a alma humana, tão clara e infalivel-
nuvens, e das nuvens cai outra vez na terra, e assim o mente, revela que Deus existe e o que ele é”.15 Somos
ciclo reinicia (Ec 1.7). Esta noção de organização e criaturas morais. A moral não poderia se originar em
inteligência pode ser vista até mesmo nas coisas mais nós mesmos, por isso, deve existir um Deus que a
insignificantes, como na vida dos insetos, ou nas coi- implantou em nós. A evolução não consegue expli-
sas mais sofisticadas como na constituição do corpo car a existência dessa moral. Este argumento vai além
humano. Toda a simetria, toda a lógica, toda a harmo- dos anteriores, pois não só diz que Deus existe, que
nia pressupõe uma inteligência maior que tenha pla- é infinito, que é sábio, mas que é um ser moral. Até
nejado tudo. A organização do universo pressupõe mesmo Kant, que procurou rejeitar os demais argu-
a existência de um ser inteligente e com propósitos mentos, aceitava esse argumento, pois entendia que o
definidos. Este argumento vai além dos anteriores caminho próprio da religião era o caminho da moral.
porque determina a existência de um ser inteligente Para Kant, o homem é um ser moral e, portanto, deve
e sábio que planejou o universo. No meio científico refletir a vida de um Deus moral.
moderno este argumento pode ser visto na teoria do
chamado “design inteligente”, que é a base do “criacio- Não achamos que estes argumentos sejam provas
nismo científico”. A ideia é que pode ser vista na na- definitivas de que Deus existe. Como já dissemos,
tureza evidência de um desenho inteligente. Quando em última instância, a fé é necessária para que se creia
se analisa um floco de neve, por exemplo, percebe- que Deus existe. De qualquer forma esses argumen-
-se que ele tem um desenho, mas é um desenho que tos são úteis a ponto de nos ajudar a entender que
pode ser explicado através de causas naturais, como não é irracional crer na existência de Deus. Grudem
a intensidade do frio, a velocidade e a inclinação do pensa que “o valor dessas provas reside principalmen-
vento, etc. Mas quando se analisa uma molécula de te na superação de algumas objeções intelectuais dos
dna que compõe o “genoma” humano, aí estamos descrentes”16 e, podemos acrescentar que são úteis
diante de uma complexidade que não pode ser expli- para demonstrar a racionalidade da fé. Portanto, não
cada simplesmente a partir de elementos naturais. Es- provam que Deus existe, mas provam que a fé em
tamos diante de um “design inteligente”, o que pressu- Deus é razoável, ou seja, que a fé é racional.
põe um criador inteligente.
APELO ÍNTIMO
O Argumento Moral: Há uma ideia de moral im-
plícita em todos Quando as pessoas olham para a natureza algo acon-
tece dentro delas. Ninguém, por mais indiferente que
Há em todos os homens uma noção de certo e er- seja, consegue olhar para as obras da natureza sem
rado. Todos almejam por justiça e se irritam com a sentir nada. Ela fala algo. Nem sempre os homens
injustiça. Esta noção depende muito do aprendizado conseguem entender e, muitas vezes, distorcem esta
que a pessoa recebe durante a vida, mas não total-
mente, pois há um grau em que esse senso é inato em
15 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 175-176.
todos os homens. Até mesmo os piores criminosos
16 Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p.100.
tem uma noção de justiça. A questão é: de onde vem

37
voz, mas é inegável que a ouvem.17 A Escritura diz: que quer, ao final, se parar para pensar, chegará a con-
“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamen- clusão de que tudo não passou de “vaidade e correr
to anuncia as obras de suas mãos. Um dia discursa a atrás do vento” (Ec 2.11). Deus pôs a eternidade den-
outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra tro do homem, ou seja, o homem foi feito para mais
noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles do que se pode conseguir aqui. O que é este anseio
não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a ter- íntimo natural em todos os homens senão uma com-
ra se faz ouvir a sua voz” (Sl 19.1-4). A voz da nature- provação do que disse Agostinho: “Criaste-nos para
za proclama a existência e a glória do Deus criador. O Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não
que se percebe nos chamados argumentos racionais repousa em Vós”?18 O simples fato dos homens bus-
é, na verdade, uma sistematização dos efeitos que a carem tanto algo que os satisfaça, que os torne felizes
natureza produz nas pessoas quando a contemplam. é uma indicação da existência de Deus. No fundo
A voz da natureza proclama, sem usar palavras, a exis- estão procurando a Deus. Procuram-no nos lugares
tência de Deus. Como já foi dito, essa voz é tão alta errados, parecem cegos “tateando” a fim de encontrá-
que ninguém consegue fechar os ouvidos a ponto de -lo (At 17.27). Por outro lado, ao mesmo tempo em
que o buscam, fogem dele, ao mesmo tempo em que
suprimi-la totalmente. A razão disso é porque há um
desejam vê-lo e ouvir sua voz, se parecem com Adão
eco dessa voz dentro das pessoas. O Eclesiastes diz
escondendo-se envergonhado por entre as árvores,
que Deus “pôs a eternidade no coração do homem”
temeroso de que ele veja sua nudez (Gn 3.8-10).
(Ec 3.11), ou seja, existe algo dentro do ser humano
que assegura a existência de Deus. É por isso que Ainda no século XVI, o Reformador João Calvino
nada satisfaz ao homem nesta terra. Por mais que falou de um sentimento natural no homem com res-
ande atrás de prazeres e realizações e consiga tudo o peito a Deus. Ele desenvolveu a ideia de que todos os
homens têm um sentimento inato sobre a existência
17 Estamos cientes do acirrado debate existente entre os teó- de Deus, e o chamou de sensus divinitatis (senso da
logos reformados a respeito da capacidade humana de reconhecer a divindade). Segundo o Reformador, este senso vem
existência da divindade a partir da revelação geral. Quando o assunto
se refere a “efeitos noéticos do pecado” é difícil encontrar concordân- acompanhado de um sentimento de adoração à di-
cia, mesmo entre Reformados. Questões como: “É possível conhecer
a Deus através das obras da natureza?”; “Existe a possibilidade de se
vindade, ao qual chamou semem religiones (semente
fazer teologia natural?”; “Até que ponto a razão humana é inadequa- da religião). Com isso, Calvino não estava querendo
da para conhecer Deus?”; Causam tensões até mesmo entre os mais
ardorosos defensores da Reforma. Podemos dizer que historicamente afirmar que os homens, à parte da Escritura, possuam
os teólogos reformados, quanto à essa questão, basicamente têm se um conhecimento correto a respeito de Deus, mas,
enfileirado atrás de duas posições: 1) Os efeitos são tão devastadores
que impedem que o homem obtenha conhecimento não distorcido que embora cegos, possuem um conhecimento que
sobre Deus à parte da revelação especial. 2) Os efeitos não são tão ter-
ríveis a ponto de impedir que o homem tenha algum entendimento é deturpado, tanto por sua cegueira, quanto por sua
de Deus a partir da revelação natural, o problema está em sua respos- maldade. O Reformador disse: “Pois, ainda que Deus
ta volitiva a essa revelação. Aqueles que defendem a primeira posição
são geralmente conhecidos pelo nome de “Pressuposicionalistas” ou nos represente com tanta claridade quanto possível,
“Fideístas” e entre seus mais conhecidos defensores está Cornelius no espelho de suas obras, tanto a si mesmo, como a
Van Til, um teólogo de Westminster, que nega a possibilidade de co-
nhecimento verdadeiro de Deus à parte da revelação especial (Ver seu reino eterno, sem dúvida, nós somos tão rudes,
Cornelius Van Til. The Defense of the Faith. Philadelphia: Presbyterian
& Reformed, 1955, p. 262). A segunda posição é comumente denomi- que caímos como tontos e não nos aproveitamos de
nada “Evidencialismo” ou “Tradicionalismo”, e assume um lado bem testemunhos tão claros”.19 No entendimento de Cal-
oposto. Nessa linha encontramos Benjammin B. Warfield, que faz par-
te da escola chamada “Old Princeton” que defende a tese de que o in-
crédulo pode formular uma teologia a partir da revelação geral, sem a
necessidade da Revelação Especial (Ver B. B. Warfield. The Inspiration 18 St. Augustine. The Confessions of Saint Augustin, I. 1.
and Authority of the Bible, p. 73-78. Ver também B. B. Warfield. Studies
in Theology. New York: Oxford University Press, 1932, p. 110-111). 19 Juan Calvino. Institucion de la Religion Cristiana, I, 5, 12.

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vino, há coisas externas e internas que fazem apelos Escritura, e abre os olhos dos homens para que vejam
ao homem a respeito da existência de Deus. as maravilhas da graça de Deus.

Que esse sentimento de religiosidade é natural no CONCLUSÃO A ÚNICA RESPOSTA


ser humano, isso pode ser comprovado pelo simples
fato de que todos os homens são naturalmente reli- Francis Schaeffer chegou a uma conclusão admirá-
giosos. A tribo mais longínqua e isolada do planeta vel sobre a necessidade da existência de Deus: “ele
terá alguma organização religiosa. Uma pessoa pode existe. Não há outra resposta e os cristãos ortodoxos
crescer solitária em algum lugar, mas em algum mo- devem sentir-se envergonhados de terem sido defen-
mento desenvolverá ídolos para adorar. A questão sivos por tanto tempo. Não é tempo de sermos de-
é que os argumentos racionais, citados acima, só fa- fensivos. Não há outra resposta possível”21. Podemos
zem sentido, porque encontram dentro das pessoas ter a certeza de que nossa fé bíblica é absolutamente
essas “impressões” de Deus. Como Plantinga afir- racional. A vida tem sentido porque Deus existe. Por
ma: “Não é que alguém contempla o céu estrelado, esta razão, “Deus, e somente Deus é o maior bem
nota que é grande e conclui que precisa existir uma do homem”.22 A existência dele é a garantia da ra-
pessoa como Deus”20. É mais do que isso, é como cionalidade de nossa própria existência. É a certeza
se houvesse um gatilho lá dentro e quando se olha de que a vida tem sentido. O Deus da Bíblia existe,
para as maravilhas da natureza, este gatilho é dispa- e por isso faz diferença ser justo ou injusto. Há um
rado. O ateu passa a vida inteira lutando contra isso,
Deus justo e poderoso o suficiente para julgar reta-
e os demais homens fugindo disso. Mas, embora o
mente, recompensar o que deve ser recompensado
homem se confunda ouvindo a voz da natureza e o
e punir o que deve ser punido. Há um Deus bom e
eco dentro de si mesmo, não dá para negar que a voz
sábio o suficiente para planejar todo esse universo e
está lá, reconhecível até para o mais endurecido, que
estabelecer todas as leis que governam a criação. Nós
não poderá jamais alegar ignorância diante de Deus.
A Escritura é clara: “Porquanto, tendo conhecimen- existimos porque Deus existe. Não é irracional crer
to de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe na existência dele. Não é irracional crer nas Escritu-
deram graças; antes, se tornaram nulos em seus pró- ras. É maravilhoso contemplar as obras da mão dele
prios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração e saber, lá no fundo do nosso ser, que ele é o grande
insensato” (Rm 1.21). A natureza clama pela existên- autor de tudo. Como ao final de uma apresentação
cia de Deus, nosso ser íntimo clama pela existência podemos nos levantar de pé, ante o imenso palco da
de Deus, então, por que duvidar que Deus existe? A natureza e aplaudir o criador pela maravilhosa obra
existência de Deus é a resposta mais convincente e de arte que ele realizou. E acima de tudo, podemos
racional para a origem da vida e de todas as demais nos sentir como parte desta ordem e propósito. Não
coisas. Mas, como dissemos no início desse capítulo, somos fruto do acaso. Somos obra das mãos do Ser
as pessoas sempre duvidarão da existência de Deus, Infinito e Inteligente que nos criou e nos incluiu em
ainda que todas as evidências apontem no sentido seu plano eterno e perfeito.
contrário. Isso porque, em última instância, o único
que pode convencer alguém da existência de Deus
é o Espírito Santo, que faz uso da revelação divina, a
21 Francis Schaeffer. O Deus Que Se Revela, p 52.

20 Alvin Plantinga. Warranted Christian Belief, p. 175. 22 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 17.

39
40
6. O CONHECIMENTO DE DEUS

Não havia cidade mais famosa e religiosa no mun- a filosofia, desde os seus dias mais remotos, sempre
do antigo do que Atenas. A silhueta de seus templos se preocupou em responder perguntas básicas da hu-
majestosos podia ser vista a quilômetros de distância. manidade como: quem somos, de onde viemos, qual
Todos os moradores se orgulhavam da cidade que se a razão da nossa existência e, qual é o conhecimento
preocupava em glorificar todos os deuses. Havia es- verdadeiro. O curioso é que Paulo, em poucas pala-
tátuas de deuses e deusas no Partenon e em todos os vras, deu respostas simples e precisas para todas essas
templos da cidade, até mesmo nos edifícios públicos perguntas. Ele demonstrou que Deus é a origem do
e comerciais. Os moradores construíram um local ser humano, que a existência humana está sobre o
onde ficava o “Altar dos Doze Deuses”. Esse altar ha- controle de Deus, que o homem existe para buscar a
via sido edificado para garantir que nenhum deus fos- Deus, mas que é limitado nesse conhecimento, como
se esquecido. Aquele possivelmente fosse o altar do um cego que tateia (At 17.24-27).
“Deus desconhecido”, aos quais eles adoravam sem
conhecer. Paulo falou desse altar quando esteve em Pela reação, os filósofos obviamente não gostaram
Atenas, tentando fazer os filósofos entenderem que das respostas (At 17.32). Mas é um fato que os filó-
toda a sua filosofia e conhecimento, à parte da revela- sofos mais antigos não tinham dificuldades em admi-
ção de Deus, não passava de um esforço em “tatear” tir a existência de um ser absoluto como o princípio
em busca do Deus verdadeiro (At 17.27). Muitas de todas as coisas. Paulo disse: Na verdade “Deus não
pessoas, nos dias de hoje, à semelhança dos atenien- está longe”, porém, quando alguém está cego, algo
ses, adoram um “Deus desconhecido”. Seu medo ou muito próximo pode se transformar em inalcançável.
preguiça de estudar a Palavra, ou por outro lado, sua E não há filosofia ou espiritualismo que possa tor-
busca apenas por conhecimento intelectual, faz com ná-lo visível. Séculos de buscas, inquirições e racio-
que saibam muito pouco sobre o verdadeiro Deus. cínios não conseguiram dar ao homem o conheci-
mento verdadeiro sobre Deus e, consequentemente,
A passagem de Paulo por Atenas se reveste de um ca- sobre o próprio homem.
ráter muito interessante, pois dois grupos de filósofos
(estoicos e epicureus), que eram como que remanes- Fala-se muito sobre Deus nos dias de hoje. Parece
centes, de segunda linha, dos grandes filósofos do que todos o conhecem, mas são impressionantes as
passado, discutiam assuntos filosóficos. O fato é que diferenças que podem ser vistas. Isso deixa bem claro

41
que as pessoas não estão falando do mesmo Deus. A ele, pelo fato de que ele faz parte de uma outra dimen-
pregação sobre Deus, que pode ser vista nas igrejas, são, que não é a dos homens.2 Muitos argumentam
mostra deuses muito diferentes. Em certas igrejas ele que, como Deus não pode ser compreendido, conse-
é o Soberano, em outras aquele a quem o homem quentemente, também não pode ser conhecido. Mas
pode dar ordens. Em alguns lugares ele é apresenta- antes de falar sobre isso, precisamos analisar o que
do como o Santo, o inalcançável; em outros como al- a Bíblia fala a respeito da incompreensibilidade de
guém muito parecido com os homens, que pode ser Deus. Quando as pessoas têm dificuldade em enten-
tratado coloquialmente. Às vezes parece uma brinca- der algo do modo como Deus age, lembram-se do
deira sobre disfarces e alguém poderia dizer: “O Deus texto de Deuteronômio 29.29: “As coisas encobertas
verdadeiro poderia se apresentar, por favor?”. Diante pertencem ao nosso Deus, porém as reveladas nos
de tudo o que se pode ver, está claro que as pessoas pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para
continuam “tateando”. Será que é impossível conhe- que cumpramos todas as palavras desta lei”. É um
cer a Deus como ele realmente é? Será que Deus fato incontestável que Deus não revelou tudo de si. A
sempre será o “ilustre desconhecido”, ao qual os ho- partir da Bíblia, podemos chegar à conclusão de que
mens adorarão sem nunca realmente compreender? Deus é incompreensível por causa de duas razões.
Primeiro porque ele não revelou tudo de si, e depen-
Neste capítulo trataremos sobre a possibilidade de se
demos inteiramente da revelação para conhecê-lo e
conhecer a Deus. Nossa intenção é entender até que
saber como ele é. Porém, ainda que ela revelasse, o
ponto Deus pode ser conhecido, ou se ele não pode
fato é que a natureza divina é tão diferente da nossa,
ser conhecido de forma alguma. Nosso pressuposto,
tão mais complexa, tão grandiosa, que não consegui-
mais uma vez, é a ideia da revelação.
ríamos entendê-la. Então, a segunda razão é porque
SIMPLESMENTE INCOMPREENSÍVEL somos limitados de entendimento. Somos incapazes
de entender a complexidade do ser de Deus. Sabe-
Os teólogos medievais tinham uma frase interessante mos o quanto o ser humano é complexo em suas
para falar sobre a possibilidade do homem conhecer qualidades e defeitos. Costumamos dizer que não
e compreender a Deus: “O finito não pode conter o entendemos os outros e a razão é porque não conhe-
infinito”. Sobre essa frase, o teólogo reformado con- cemos os pensamentos dos outros. Quando vemos
temporâneo R. C. Sproul afirma: “Nada é mais óbvio suas ações, não conseguimos montar o quebra-ca-
do que isso: um objeto infinito não pode ser compri- beça. Isso nos faz pensar na complexidade do ser de
mido dentro de um espaço finito”.1 Se Deus é infinito Deus. Complexo não por causa de contradições e
e o homem finito, então é impossível que o homem falhas como o nosso, mas pela infinidade das ideias e
tenha todo o conhecimento de Deus. Mas será que propósitos que lá existem.
isso significa que o homem nada pode compreender
a respeito de Deus? Será que o fato de Deus ser in-
finito e o homem finito faz com que nunca possam
se encontrar? Filósofos como Kant (1724-1804) di- 2 Mesmo Kant aceitava a ideia da existência de Deus, e en-
ziam que, se Deus existe, nada se pode saber sobre tendia que ela podia ser estabelecida a partir do senso de moral da
humanidade. Mas Kant fez um desserviço à teologia e à própria filo-
sofia, ao relegar Deus à categoria do “númeno”. Desse modo, Deus
não poderia ser realmente conhecido, pois ficaria em outra dimen-
1 R. C. Sproul. Verdades Essenciais da Fé Cristã. Caderno I, p. são. Kant, e sua crítica da razão pura, abriu espaço para os filósofos
33. relativistas dos nossos dias.

42
Pensamentos elevados é elevada e trata de questões incompreensíveis para
nós, porém tudo o que Deus pensa faz sentido e é
Não conseguimos entender a maneira como funcio- perfeitamente lógico.
na a mente de Deus. Isso é atestado claramente pela
Escritura. O próprio Deus disse: “Porque os meus O incomparável
pensamentos não são os vossos pensamentos, nem
os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, No livro de Jó encontramos a seguinte afirmação:
porque, assim como os céus são mais altos do que a “Deus é grande, e não o podemos compreender” (Jó
terra, assim são os meus caminhos mais altos do que 36.26). Não há medidas que possam ser usadas para
os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais se mensurar Deus. Todas as nossas noções de tama-
altos do que os vossos pensamentos” (Is 55.8-9). A nho derivam da capacidade que temos de medir os
maneira como funciona a mente de Deus é tão dife- objetos. A infinidade de Deus o torna incompreen-
rente, que seus pensamentos e propósitos se tornam sível para nós porque ele é incomparável. Quando
incompreensíveis para nós. Não é sem motivo que queremos entender o tamanho ou a beleza de algo,
Paulo declara: “Ó profundidade da riqueza, tanto da basta colocarmos outra coisa ao lado e teremos uma
sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão noção. O problema é que não podemos colocar nada
insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, ao lado de Deus. Ele é absolutamente incomparável.
os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a men- Isaías questiona: “Com quem comparareis a Deus?
te do Senhor?” (Rm 11.33-34). Essa declaração de Ou que coisa semelhante confrontareis com ele?”
Paulo se torna ainda mais cativante pelo fato de ter (Is 40.18). Nesse texto Isaías está profetizando para o
sido proferida justamente após ter tratado do difícil povo de Judá, que seria cativo da Babilônia, que era o
assunto chamado “predestinação”, ou seja, Paulo re- maior Império daquela época. Aparentemente, o in-
conhece que a mente de Deus está muito acima da significante reino de Judá perante Babilônia não teria
nossa e que, muitas coisas que Deus planeja, não te- a mínima chance de ser libertado. Porém, o profeta
mos como compreender. Entretanto, é preciso que afirma que Deus é maior do que a Babilônia e do que
fique claro que a Bíblia não quer dizer com isso que qualquer nação que exista ou possa existir. Não há a
na mente de Deus a contradição seja aceitável. É co- menor comparação, por isso ele diz: “Eis que as na-
mum, quando nos encontramos diante de uma si- ções são consideradas por ele como um pingo que
tuação aparentemente contraditória, dizermos: “Isso cai de um balde e como um grão de pó na balança;
pode não fazer sentido para nós, mas funciona perfei- as ilhas são como pó fino que se levanta” (Is 40.15).
tamente na mente de Deus”. Essa expressão pode ser E depois arremata: “Todas as nações são perante ele
perigosa, pois, se o nosso raciocínio é contraditório, como coisa que não é nada; ele as considera menos
nem mesmo Deus poderá nos socorrer. A mente de do que nada, como um vácuo” (Is 40.17). A estrutu-
Deus realmente é diferente da nossa, mas isso não ra do texto é fascinante. Primeiro o profeta diz que as
quer dizer que ela admita contradição.3 Sua mente nações, se comparadas a Deus, são como “um pingo
que cai de um balde”. Em seguida ele reduz o tama-
3 Cf. R. C. Sproul. Verdades Essenciais da Fé Cristã, Caderno
I, p. 43. Porém não se deve confundir contradição com paradoxo. Con-
tradição refere-se a dois elementos mutuamente excludentes. Quan- nam as doutrinas da soberania de Deus e da responsabilidade huma-
do nossa teologia é contraditória, nem Deus a poderá harmonizar. na, sendo ambas enfatizadas pela Escritura, como veremos adiante.
Mas, o paradoxo tem a ver com o grau do conhecimento. Algo para Ao mesmo tempo em que Deus é soberano, o homem é responsável
nós pode parecer contraditório simplesmente pelo fato de que não por seus atos. Nisto não há contradição, apenas um paradoxo. Pode-
temos condições de entendê-lo plenamente. É assim que se relacio- mos chamar também este conceito de “paradoxo lógico”.

43
nho, “como um grão de pó na balança”. Não conten- o porquê de certas coisas acontecerem e outras não?
te com essa definição, reduz mais uma vez: “como De alguma forma, entretanto, sabemos pela Escritu-
pó fino que se levanta”. Em seguida volta a reduzir: ra que tudo o que acontece está sob o domínio de
“como coisa que não é nada”. Quando parecia que ha- Deus. Deus é aquele que providencia comida para os
via chegado ao mínimo possível, reduz outra vez: “ele corvos (Jó 38.41), que cuida dos lírios dos campos
as considera menos do que nada, como um vácuo”. A (Mt 6.30), que não permite que um pardal caia sem
definição de vácuo pode ser: “Algo vazio, com ausên- sua aprovação e que sabe, até mesmo o número de
cia até de ar”. É dessa forma que Deus considera as cabelos que temos na cabeça (Mt 10.2930). Por que
superpotências do mundo. Nações como os antigos Deus se preocuparia até com os corvos? Os corvos
Impérios da Babilônia, Grécia, Roma, e poderíamos se alimentam de restos de animais mortos e nisso
acrescentar, os modernos Alemanha, Rússia e Esta- vemos que até a morte cumpre algum papel. Porém,
dos Unidos são diante de Deus, menos do que nada. uma coisa é saber que ele controla tudo, outra é en-
Ele é de fato incomparável. Como compreendê-lo? tender seus propósitos. É difícil entender que as guer-
ras, as catástrofes e, até mesmo, as tragédias, apesar de
Mãos grandes serem originadas pelos homens, de alguma maneira,
fazem parte do seu plano. É difícil entender que mes-
A grandeza de Deus é algo fora de qualquer com-
mo esse mundo de injustiças, opressões e violência,
paração. O profeta pergunta retoricamente: “Quem
não segue um curso independente do plano de Deus.
na concha de sua mão mediu as águas, e tomou a
Sabemos que todas essas coisas acontecem por causa
medida dos céus a palmos? Quem recolheu na ter-
do pecado que entrou no mundo, mas também sabe-
ça parte de um efa o pó da terra, e pesou os montes
mos que Deus não assiste a tudo isso impotente ou
em romana e os outeiros em balança de precisão?”
impassível. Se ele permite que tudo seja dessa forma
(Is 40.12). Sabemos que os céus são tão vastos que
é porque, de alguma maneira incompreensível para
o homem não consegue medir, mas retoricamente,
Isaías diz que Deus mede a palmos. A quantidade nós, faz parte de seus propósitos. O plano de Deus
de água dos mares e dos rios é incalculável, mas o para o mundo e para cada pessoa pode parecer in-
profeta diz que todas as águas cabem na concha da compreensível e até mesmo contraditório em certas
mão de Deus. Além disso, ele pesa os montes em “ro- situações, pois pode se assemelhar a uma grande
mana”, a balança que serve para quantificar mínimas construção inacabada. Quando passamos diante de
gramas de ouro. A grandiosidade da Criação nos fala um prédio e vemos uma placa demonstrando o que
de um criador ainda mais grandioso. Se o universo o prédio será, podemos ter dificuldades em imaginar
que Deus criou não pode ser medido, quanto mais o que toda aquela confusão de materiais e instrumen-
próprio Deus que realizou essas obras tão grandiosas. tos, no final, se transformará em um prédio perfeito.
A imensidão de sua obra, de seu agir, nos mostram o Mas por trás de um prédio bem construído há em ge-
quanto ele é grande e incompreensível ao nosso en- ral um excelente projeto. Na construção de Deus há
tendimento. muitas coisas que parecem estar fora do lugar, porém,
no final veremos que tudo se encaixa perfeitamen-
Comida para os corvos te, e que seguiu um projeto perfeito. Mas agora não
conseguimos ver isso, e assim temos dificuldades em
O modo como Deus dirige a História do mundo entender os caminhos de Deus.
também é incompreensível para nós. Alguém con-
segue entender todos os propósitos dele, bem como Amor incompreensível

44
Não conseguimos entender, sequer, a maneira como que seja conhecido. A única possibilidade de haver
Deus se relaciona com o homem, naquilo que cha- conhecimento de Deus é porque Deus decidiu se re-
mamos de Evangelho. Como Deus pode amar uma velar, caso contrário, haveria realmente uma barreira
criatura decaída como o ser humano? Como enten- intransponível para o homem: a barreira entre o fini-
der o amor que o leva a entregar seu próprio Filho to e o infinito. Porém, foi o próprio Deus quem rom-
como sacrifício pelos pecados de homens corruptos? peu essa barreira, ao criar o homem à sua imagem
De fato: “Não podemos compreender como Deus e, mesmo após a queda, procurar esse homem para
ama, pois o modo de ele amar é muito diferente do lhe transmitir informações sobre como o relaciona-
nosso. A base do seu amor está nele próprio e nunca mento com Deus poderia ser restaurado. De fato foi
nas razões que o objeto amado oferece. Conosco é ele quem rompeu definitivamente a barreira quando
exatamente o inverso e, por isso, o que ele faz por nós “o verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14).
se torna incompreensível”.4 Podemos dizer que o ver- Nesse momento, o eterno adentrou o tempo, o infini-
sículo mais conhecido e proclamado da Bíblia é tal- to adentrou o finito, num paradoxo sem precedentes.
vez o mais incompreensível para nós: “Deus amou ao
mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito, Queremos afirmar que, embora Deus seja infinito e
para todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha incompreensível para nós, ainda assim, podemos co-
a vida eterna” (Jo 3.16). Como explicar esse amor? nhecê-lo. Quando afirmamos que o finito não pode
Como entender a medida dele, ou sua intensidade? conter o infinito, não estamos querendo dizer que
nada pode ser compreendido a respeito de Deus,
Diante de todas essas coisas, é preciso capitular:
queremos afirmar apenas, que Deus não pode ser
“Deus é Incompreensível”. De fato, o finito não pode
compreendido de forma exaustiva, ou seja, em sua
conter o infinito. Mas agora precisamos voltar à per-
totalidade. Ele pode ser conhecido de forma verda-
gunta: Será que isso significa que não podemos com-
deira e isso porque ele mesmo se dá a conhecer e
preender nada dele e que, portanto, não podemos
nos capacita a fazê-lo. Esse é um bom momento para
conhecê-lo?
lembrar as sábias palavras de Clark: “Podemos saber
DEUS PODE SER CONHECIDO que Deus existe, sem sabermos tudo o que ele é. Po-
demos tocar a terra sem, entretanto, sermos capazes
Se por um lado as coisas encobertas pertencem ao de abarcá-la com os braços. A criança pode conhecer
Senhor, como diz Deuteronômio 29.29, por outro a Deus, ao passo que o filósofo não pode descobrir
lado “as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos fi- toda a sua perfeição”.5 Essa é uma daquelas coisas
lhos para sempre”. As coisas reveladas, nesse texto, são que torna a revelação divina ainda mais esplêndida.
uma referência à própria Lei. A Lei não continha toda Ele se faz acessível ao simples, de maneira que o mais
a revelação acerca de Deus, mas continha alguma humilde dos homens o possa conhecer verdadeira-
revelação sobre Deus e essa revelação pertencia, no mente, enquanto que o mais inteligente dos homens
sentido de que estava à disposição do povo, para que nunca poderá conhecê-lo completamente. Portanto,
conhecesse mais sobre Deus e sobre sua vontade. o finito pode conhecer o infinito, pois podemos co-
O que Deus quis que ficasse encoberto jamais será nhecê-lo verdadeiramente sem que o compreenda-
conhecido, mas aquilo que ele revelou, é seu desejo mos exaustivamente.

4 H. C. Campos. O Ser de Deus e os Seus Atributos, p. 69. 5 David S. Clark. Compêndio de Teologia Sistemática, p. 64.

45
Conhecimento revolucionário sofrimento. Sabe que não precisa se revoltar contra o
mundo, contra as pessoas e nem contra Deus por não
O conhecimento que podemos ter de Deus é algo que ter feito aquilo que desejava. Também a concepção
emana do próprio Deus com o propósito de trans- dos prazeres mudará. Em primeiro lugar a busca pelos
formar as pessoas. É um conhecimento que integra prazeres jamais será o principal objetivo nesse mun-
todas as partes de nosso ser e produz transformações do. O principal objetivo de quem conhece a Deus é
profundas em nosso caráter, vontade, sentimentos, conhecê-lo ainda mais. Isso não quer dizer que será
pensamentos e ações. Num resumo, é algo que redi- preciso se privar de todos os prazeres que existem. É
reciona a vida de alguém. Jeremias diz: “Assim diz o certo que dos ilícitos sim e, quais sejam esses, a Bíblia
Senhor: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem tem a palavra final, mas com relação aos prazeres per-
o forte, na sua força, nem o rico, nas suas riquezas; mitidos, eles devem ser considerados uma dádiva de
mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer Deus, e desfrutados nele (Pv 2.24-26). A vida vivida
e saber que eu sou o Senhor e faço misericórdia, juízo em sua plenitude física e espiritual, em conformidade
e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz com a Escritura, é cheia de deleites, encontra alegria
o Senhor” (Jr 9.23-24). Note a completa inversão de na tristeza e sempre se aproxima mais de Deus e, a
valores que o conhecimento de Deus produz na vida cada passo, pode conhecê-lo melhor.
das pessoas. Coisas como “sabedoria”, “força” e “rique-
za” são as grandes fontes propulsoras desse mundo, Antes eu te conhecia só de ouvir...
pois tudo é construído sobre esses alicerces e todos
os homens buscam essas coisas, de uma forma ou É preciso sempre lembrar que há níveis de conhe-
de outra. Conhecer a Deus, entretanto, faz com que cimento a respeito de Deus. Jó era um servo extre-
esses valores sejam invertidos. Conhecer a Deus é o mamente fiel a Deus, mas se viu envolvido numa
verdadeiro motivo de orgulho e não o simples fato acirrada disputa. Sabemos de tudo o que Satanás,
de se possuir sabedoria, força ou riqueza. Conhecer sob a permissão divina, infligiu a Jó. Sabemos tam-
a Deus e experimentar sua misericórdia, juízo e jus- bém que Jó não pecou e o vemos em seu livro ago-
tiça é o grande motivo de nossa existência e faz com nizando, muito mais por não conseguir entender o
que nossa vida tenha real significado e não seja mera motivo de tudo aquilo, do que pela dor das chagas.
vaidade e correr atrás do vento (Ec 2.11). Conhecer Numa certa altura ele desabafou: “Ah! Se eu soubes-
a Deus muda a noção da existência. se onde o poderia achar! Então, me chegaria ao seu
tribunal. Exporia ante ele a minha causa, encheria a
Se conhecemos a Deus, sabemos que a vida tem minha boca de argumentos” (Jó 23.3-4). Deus fi-
sentido e que nada acontece por acaso nesse mun- nalmente concedeu uma audiência a Jó. Deus veio
do. Dentro dessa perspectiva, nossos maiores temo- até ele e lhe falou do meio de um redemoinho (Jó
res podem se dissipar, e nada há que consideremos 38.1). Entre outras coisas, Deus demonstrou que Jó
como impossível ou inalcançável. Conhecer a Deus não entendia nada dos planos eternos de Deus. Mos-
modifica a maneira como encaramos as dificuldades trou que Jó não entendia a maneira como Deus havia
e os prazeres da vida. As dificuldades não serão mais criado o mundo, e nem mesmo como o preservava,
simples “cruzes” carregadas sofridamente ao longo cuidando dos animais pequenos ou grandes, das es-
da vida. Quem conhece a Deus procura achar a ra- tações do ano, da influência dos astros sobre a terra
zão ou o objetivo em estar passando por tudo aquilo. (Jó 38-41). Deus quis demonstrar a Jó que ele não
Alguém que sofre sem ser culpado deve pensar que tinha razões para questionar seus propósitos. Depois
Deus tem um propósito para sua vida com aquele de tudo isso, Jó fez o seguinte reconhecimento: “Eu

46
te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te Conhece-te a ti mesmo
veem” (Jó 42.5). Uma frase como essas na boca de
uma pessoa que se demonstra hesitante em servir ao Conhecer a Deus implica em conhecer a si mesmo,
Senhor é compreensível, mas de alguém como Jó, pois Deus é a origem do homem. Não conhecer a
sobre quem o próprio Deus deu testemunho de que Deus implica em não saber de onde se veio, onde se
era íntegro, temente a Deus e que se desviava do mal está e muito menos para onde se vai. Não conhecer
(Jó 1.8); isso é algo no mínimo intrigante. Ao final a Deus é nada entender sobre o mundo, sobre a vida,
de sua experiência trágica, ele reconheceu que seu ou sobre qualquer outra coisa. Nas palavras de Pac-
conhecimento de Deus havia tomado proporções ker, para aqueles que não conhecem a Deus “o mun-
não imaginadas. O fato é que ele precisou perder as do se torna um lugar estranho, louco, penoso, e viver
três coisas que as pessoas mais valorizam no mundo nele algo de decepcionante e desagradável”.7 Só resta
(bens, família e saúde), para entender que não co- o desespero para quem não conhece a Deus, pois não
nhecia realmente a Deus. Mas foi naquele momento conhecer a Deus significa não conhecer coisa algu-
de dor que Jó pôde reconhecer que, embora não o ma, significa viver uma vida de fracassos, decepções,
compreendesse, agora o conhecia. Um conhecimen- tropeços e desilusões. Não conhecer a Deus é viver
to pessoal, a partir da experiência de vida com Deus. uma vida inferior à dos animais, pois a Bíblia diz que
Não mais um conhecimento de ouvir, mas um co- “o boi conhece o seu possuidor, e o jumento o dono
nhecimento de ver. Evidentemente que Jó não está da sua manjedoura”, mas, com relação a Israel Deus
falando em termos literais, pois ninguém jamais viu a diz tristemente “Israel, não tem conhecimento, o meu
Deus nesse sentido. O que Jó está dizendo é que seu povo não entende” (Is 1.3). A filosofia tem demons-
conhecimento de Deus, naquele momento, já não trado isso vividamente ao longo dos séculos. Desde
era de impressões externas, ou a partir do que os ou- os filósofos estoicos e epicureus que Paulo enfrentou
tros falavam. Ele conhecia Deus a partir de sua pró- no Areópago e que desejavam alcançar a paz da alma
pria experiência. Deus se revelou a ele, e embora não através da imperturbabilidade ou através do afasta-
tenha revelado seus propósitos (Deus não explicou mento dos prazeres, até os modernos filósofos niilis-
o porquê do sofrimento de Jó), demonstrou que era tas,8 todos têm rejeitado o conhecimento de Deus e,
um Deus confiável. Jó percebeu que Deus o amava desse modo, rejeitaram o conhecimento do homem.
ainda que as bênçãos tinham desaparecido. Jó perce-
beu que Deus era suficientemente sábio e poderoso CONCLUSÃO: O BEM SUPREMO
para guiar o destino do mundo sem que seus planos
fossem frustrados (Jó 42.2). Ele entendeu que co- Finalmente, devemos entender que conhecer a Deus
nhecer a Deus era sinônimo de crer e descansar nele. é o alvo do homem. Mas conhecer a Deus não é, ne-
Isso convenceu sua mente e encheu seu coração de cessariamente, sinônimo de buscar as bênçãos dele.
paz. Agora o conhecia de verdade. Na experiência de Percebemos que esse foco está distorcido na vida de
Jó, ele pôde chegar à conclusão de que não conhecia muitos crentes, que estão mais interessados nas bên-
somente algo sobre Deus, mas que conhecia o pró- çãos do que no próprio Deus. Vivemos um tempo
prio Deus.6 Embora esse conhecimento tivesse vin-
do pela experiência. 7 J. I. Packer. O Conhecimento de Deus. p. 11.

8 A palavra “nihil” é Latina e significa “nada”. A filosofia niilis-


ta não vê significado em coisa alguma, entende que a vida não tem
6 Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 103. qualquer sentido ou propósito.

47
em que a oferta de “soluções para todos os proble- deveras considero tudo como perda, por causa da
mas” tem sido a grande proclamação das igrejas. Há sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu
um grande erro por trás disso, pois Deus é o maior Senhor” (Fp 3.8-9). Por isso ele declara: “Uma coisa
bem que o homem pode ter. Deus em si mesmo, seu faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e
ser mais do que seus benefícios, o doador mais do
avançando para as que diante de mim estão, prossigo
que a dádiva, a fonte mais do que o córrego. Deve-
mos parar de buscá-lo apenas com segundas inten- para o alvo' (Fp 3-13-14). O que ele deixava para trás
ções. Não podemos adorá-lo enquanto levantamos era sua vida de regozijos terrenos, seu status de nas-
nossos olhos interesseiros em sua direção. Deus, em cimento. Esse é um exemplo formidável, e é terrível
si mesmo, é o Bem Supremo e todos os nossos es- perceber que não é o alvo da maioria dos crentes que
forços devem se concentrar em conhecê-lo. O exem- trocam Deus por suas bênçãos, ou pelas satisfações
plo do Apóstolo Paulo deve ser nosso lema: “Mas, o do mundo. Assim , por mais que aparentam conhe-
que para mim, era lucro, isto considerei perda. Sim, cê-lo, continuam tateando ...

48
7. A TRINDADE — ASPECTOS HISTÓRICOS E BÍBLICOS

A doutrina da Trindade é uma das mais importantes deuses. Esse importante assunto precisa ser melhor
do cristianismo ortodoxo. Percebe-se, entretanto, estudado. Num certo sentido, a doutrina da Trinda-
que, pelo menos no contexto brasileiro, essa doutrina de é de fato a mais misteriosa e também a mais difícil
recebe pouca consideração. A razão disso talvez seja o de todas as doutrinas bíblicas, porém, como afirma
pragmatismo que a religião brasileira tem como base. Lloyd-Jones: “Ela é, em certo sentido, a mais excelsa
As pessoas só se interessam por aquilo que entendem e a mais gloriosa de todas as doutrinas, a coisa mais
que pode ser útil para sua vida. Elas querem coisas espantosa e estonteante que aprouve a Deus revelar-
práticas e estão enjoadas de teoria. Esse é justamente -nos sobre Si mesmo”,1 ou como afirma Bavinck: “O
o motivo pelo qual não gostam de estudar teologia.
artigo sobre a santa Trindade é o coração e o núcleo
Teologia sugere algo teórico, e as pessoas dizem que
de nossa confissão, a marca registrada de nossa reli-
estão mais interessadas em “experiências” com Deus
e, na prática, demonstram que desejam “soluções” de gião, o prazer e o conforto de todos aqueles que, ver-
Deus para seus problemas. Não é o caso de que os dadeira mente creem em Cristo. Essa confissão foi a
cristãos não acreditem na veracidade da doutrina da âncora na guerra de tendências através dos séculos. A
Trindade, apenas, de forma geral, as pessoas não sa- confissão da santa Trindade é a pérola preciosa que
bem para que ela serve. É aquela velha história de que foi confiada à custódia da Igreja Cristã.”2
para que algo seja importante precisa “falar ao cora-
ção”. Talvez, para a maioria, pouco importa se Deus Deus quis mostrar aos seus filhos esse detalhe tão im-
é um ou três. pressionante de sua essência. Queremos demonstrar
que a doutrina da Trindade não é apenas um concei-
Entretanto, esquecer-se ou descaracterizar a dou- to teórico ou desinteressante, mas um elemento es-
trina da Trindade é perder muito do que a Bíblia e, sencial para a espiritualidade.
especialmente Deus, tem a nos dizer no real sentido
da palavra. É perder de vista a coisa mais essencial
de Deus que podemos saber. Na verdade, é ignorar
a própria essência de Deus. Poucas pessoas pensam
1 D. M. Lloyd-Jones. Deus o Pai, Deus o Filho, p. 114.
na Trindade hoje em dia e quando pensam não seria
2 Herman Bavinck. Our Reasonable Faith, p. 145.
absurdo dizer que em muitos casos, imaginam três

49
O DEUS TRI-PESSOAL que se relaciona pessoalmente com sua criação. A
Bíblia fala de um Deus que tem autoconsciência (Ex
Quando falamos em pessoa, logo imaginamos o ser 3.13-14), inteligência (Sl 147.5; Rm 11.33), autode-
humano, composto de corpo, alma e qualidades pró- terminação (Sl 115.3), afeições (Gn 6.5-6; Jo 3.16;
prias que o tornam um ser relacionável. Não temos Rm 9.13), e muitas outras características de um ser
dificuldade alguma em imaginar o ser humano como absolutamente pessoal.
pessoa. Mas, quando pensamos em Deus, o que é
que nos vem a mente? É quase impossível descrever. Mas, se alguma outra religião do mundo afirma a
Alguém diria: “Deus não tem forma”. Mas a verdade é existência de um Deus pessoal, certamente não há
que todas as religiões do mundo de alguma maneira qualquer outra que afirme a existência de um Deus
aplicam uma “forma” a Deus, mesmo que essa forma Tri-Pessoal.4 A Tripersonalidade divina é característi-
seja apenas uma “força”, como no panteísmo moder- ca exclusiva do cristianismo. De fato “a Trindade de
no (Nova Era). É muito fácil imaginar Deus em ter- Deus é a doutrina fundamental para a fé Cristã; cren-
mos de uma “força”. E, de certa forma, esse conceito ça ou descrença na Trindade diferencia ortodoxia de
tem invadido até mesmo a Igreja Cristã que, em geral, não-ortodoxia”.5 E, de certa forma, defender a triper-
não vê Deus como uma pessoa, mas como uma for- sonalidade divina é muito mais difícil do que a pes-
ça quase impessoal, agindo por detrás dos eventos e soalidade. Desde já precisamos fazer uma opção me-
acontecimentos do mundo. todológica: o que guiará nossos estudos? Muitos têm
enveredado pelo caminho da razão simplesmente,
Dois conceitos errôneos sobre Deus precisam ser ou da ciência para provar a existência de Deus e, até
evitados: o primeiro é o de considerar o mundo mesmo, da tripersonalidade divina, mas nossa opção
como uma extensão de Deus (Panteísmo); o segun- é a Escritura, a qual cremos ser a Revelação de Deus.
do é o de que Deus não age mais no mundo (Deís- Não descartamos a razão, a ciência ou a história, mas
mo). Segundo essa última concepção, Deus criou o nosso pressuposto é o mesmo da Escritura. Será ela
mundo como se fosse um grande relógio e o colocou que dará a palavra final em tudo que estudarmos. Ela
para funcionar. A partir daquele momento, Ele nada nos dirá se existe Trindade ou não.
mais fez pelo mundo, sendo que tudo deverá seguir
seu próprio curso, segundo leis preestabelecidas. ASPECTOS HISTÓRICOS DA DOUTRI-
NA DA TRINDADE
Ao contrário de praticamente todas as demais cren-
ças e religiões, para o Cristianismo Deus é pessoal. No início do cristianismo a Trindade foi motivo de
É função do cristianismo defender a personalidade controvérsias. Antes do Concílio de Niceia (325
divina, até porque sem isso, nem sequer pode haver d.C.), as principais controvérsias trinitárias foram
verdadeira religião, como Berkhof acertadamente influenciadas pelo judaísmo em sua ênfase no mo-
expõe: “sem ela não pode haver religião no real sen-
tido da palavra, nem oração, nem comunhão pessoal,
4 Achamos que o termo “Triunidade” é melhor do que o
nem entrega confiante, nem confiante esperança”;3 termo “Trindade”, pois o primeiro deixa explícita a existência de três
isso parece bem óbvio, pois, como se relacionar com pessoas em um só Deus, enquanto que o segundo é deficitário nesse
sentido, pois dá margem para se pensar realmente em três deuses.
uma força impessoal? Mas, a Bíblia fala de um Deus Mas, como o termo “Trindade” é o mais comum não temos dificulda-
des em usá-lo, desde que devidamente entendido.

5 Paul Enns, The Moody Handbook of Theology, (in Logos


3 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 86. Library System: 10; God; Trinity)

50
noteísmo e na unidade de Deus; também pelo gnos- existia sozinho. O Filho não é eterno. Segundo Ário,
ticismo que via todas as coisas como emanações de a importância do Filho estava no fato de que ele foi
Deus e considerava a matéria má; e pelo platonismo o instrumento através do qual Deus criou todas as
que cria no Logos como a principal criatura de Deus. coisas e nada mais. É impossível não associar o aria-
Essas correntes filosóficas causaram muita influência nismo ao que proclamam hoje as Testemunhas de
nos cristãos primitivos, originando uma série de dis- Jeová.
putas, que deram origem a algumas teorias heréticas
sobre a Trindade.6 As principais foram: Os Concílios

Monarquismo A igreja reagiu à maioria das heresias antigas reunin-


do-se em concílios onde foram formuladas declara-
Essa heresia surgiu da dificuldade em explicar o ções de fé que demonstravam a verdadeira ortodoxia.
elemento divino na pessoa de Cristo, e mesmo Os Concílios que mais trataram a respeito da trinda-
do Espírito Santo, sem cair no erro do triteísmo. O de foram Niceia e Calcedônia.
Monarquismo Modalista não admitia a existência
da Trindade Ontológica (em essência), mas apenas O Concílio de Niceia foi convocado pelo Imperador
Econômica (funcional), ou seja, Pai, Filho e Espírito Constantino por causa do Arianismo em 325 d.C. O
Santo são uma única pessoa que se manifestou suces- Arianismo foi rejeitado nesse concílio, e formulada a
sivamente na história. Deus se manifestou na pessoa seguinte declaração de fé:
do Pai na Criação, na Pessoa do Filho na Encarnação
e na Pessoa do Espírito Santo na Regeneração. Já o “Cremos em um só Deus, o Pai todo-poderoso, cria-
Monarquismo Dinâmico negou a divindade essen- dor de todas as coisas, visíveis e invisíveis; E em um
cial de Jesus, afirmando que Deus é essencialmente só Senhor, Jesus Cristo, o filho de Deus, gerado do
um, e que Jesus havia recebido o dinamis (poder) de Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus
Deus por ocasião de seu batismo, sendo elevado a de Deus, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro
uma categoria divina. Esse poder o abandonou pou- Deus, gerado, não feito, de uma só substância com
cos instantes antes de sua morte. o Pai, pelo qual todas as coisas vieram a ser, coisas
nos céus e coisas na terra, o qual, por nós, homens,
Arianismo e por nossa salvação, desceu e Se encarnou, tor-
nando-se homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro
O Arianismo recebeu esse nome de seu fundador dia, subiu aos céus, e virá para julgar os vivos e os
Ário (250-336 d.C.), que foi um Presbítero da igreja mortos; E no Espírito Santo. Mas, quanto àqueles
de Alexandria. Ário era essencialmente unitarista e que dizem ‘tempo houve em que ele não existia’, e
negava qualquer possibilidade de haver uma Trinda- ‘antes de nascer ele não era’ e que ele veio a existir
de. Segundo Ário, somente Deus era eterno, Jesus era do nada, ou que afirmam que o Filho de Deus pro-
uma criatura intermediária gerada do nada por Deus cede de uma hipóstase ou substância diferente, ou é
antes da criação do mundo. Desse modo o Pai nem criado, ou está sujeito a alteração ou mudança – a
sempre foi Pai, pois antes de ter criado o Filho, Deus esses a igreja Católica (Universal) anatematiza”.

Essa declaração colocou o Filho em pé de igualdade


6 Para uma excelente exposição sobre os conflitos trinitários
deste período, ver: Louis Berkhof. Historia de Las Doctrinas Cristianas, com o Pai, ou seja, ele é da mesma substância do Pai.
p. 47-119.
Não é um Deus diferente e, muito menos, inferior.

51
No Concílio de Constantinopla, em 381, as diferen- Uma coisa que fica absolutamente clara é a ênfase
ças com relação à divindade do Espírito Santo foram do Antigo Testamento na unicidade de Deus (Dt
resolvidas. A Fé Nicena foi reafirmada nesse Concí- 4.35,39; 32.39; 2Sm 22.32; Is 37.20; 43.10). A prin-
lio, mas a questão do Espírito Santo foi melhor escla- cipal confissão de fé do povo hebreu em Deutero-
recida: “Nós cremos no Espírito Santo, o Senhor, o nômio 6.4 diz: “Ouve Israel, o Senhor nosso Deus é
Doador da Vida, que procede do Pai,7 que com o Pai o único Senhor”. Da mesma forma Isaías 45.18 diz:
e o Filho juntamente é adorado e glorificado...” Essa “Porque assim diz o senhor, que criou os céus, o úni-
declaração afirma claramente que o Espírito Santo co Deus, que formou a terra, que a fez e a estabeleceu;
não era subordinado ao Filho e nem ao Pai, mas era que não a criou para ser um caos, mas para ser habi-
da mesma substância do Pai e do Filho. tada: Eu sou o senhor, e não há outro”. Porém, encon-
tramos em muitos outros textos claras indicações de
ASPECTOS BÍBLICOS DA DOUTRINA que dentro da divindade há mais de uma pessoa.
DA TRINDADE
O Nome de Deus. O título “Elohim”, traduzido como
Aqueles que negam a existência da Trindade, em ge- Deus em Gênesis 1.1, é o nome mais comum apli-
ral, acusam os trinitarianos de inventar uma doutrina cado à divindade no Antigo Testamento. Esse nome
que não está na Bíblia. Embora o termo “Trindade” está no plural. Isso por si só não quer dizer que haja
realmente não seja encontrado na Escritura, existe três pessoas na divindade, mas, de alguma maneira,
toda uma convicção de que essa doutrina é ampla- implica em pluralidade dentro da divindade. Enten-
mente comprovada pelos textos sagrados. Aliás, de demos o texto de Gênesis 1.1-3 à luz do texto de João
onde tal doutrina poderia surgir senão da Revelação 1.1-2, como sendo uma referência à obra do Pai, do
de Deus? Quem poderia formular essa doutrina do Filho e do Espírito Santo na Criação.
nada? A igreja teve que reconhecer e defender a Trin-
dade exatamente para poder conciliar os elementos A comunicação de Deus consigo mesmo. Textos
bíblicos. Como crer que há somente um Deus como como Gênesis 1.26, 3.22, 11.7 e Isaías 6.8 têm sido
as Escrituras afirmam (Dt 6.4), se as próprias Escritu- bastante difíceis de explicar. Nesses textos, é como
ras dizem que Jesus também é Deus (Jo 20.28)? E do se Deus falasse consigo mesmo na primeira pessoa
mesmo modo afirmam que Jesus e o Pai são pessoas do plural: “Façamos o homem à nossa imagem, con-
distintas (Mt 3.16-17)? forme a nossa semelhança...” (Gn 1.26). Com quem
Deus estava falando nesses momentos? Certamente
Evidências do Antigo Testamento não era com os anjos, pois o homem não foi feito à
semelhança dos anjos, nem os anjos estão no mesmo
No Antigo Testamento podemos encontrar indícios nível de Deus.8 E a Bíblia não diz que Deus tome con-
da existência da Trindade. Ela não está explicitamente selho com anjos ou qualquer outra criatura (Is 40.13-
exposta, mas à luz da revelação do Novo Testamento 14). A resposta mais plausível é que Deus falava con-
podemos ver indícios claros dessa doutrina ainda no sigo mesmo dentro da Trindade. Esse entendimento
Antigo. só é possível à luz da revelação do Novo Testamento,
a qual, de uma maneira ainda mais clara, demonstra o

7 No concílio de Toledo (589 d.C.) foi acrescentada a expres-


são “e do Filho”, sumarizando a doutrina da igreja Ocidental de que o 8 Ver Gerard Van Groningen. Criação e Consumação, Vol I, p.
Espírito procede do Pai e do Filho conjuntamente. 32.

52
relacionamento dentro da Trindade, conforme pode todas as supostas aparições de Deus no Antigo Tes-
ser visto nas palavras do próprio Jesus: “Respondeu tamento? (Gn 18.1; 28.13; Ex 33.18-23; Dt 34.10).
Jesus: Se alguém me ama, guardará a minha palavra; João mesmo explica: “Ninguém jamais viu a Deus,
e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele o Deus unigênito que está no seio do Pai, é quem o
morada” (Jo 14.23). O mesmo “nós” dos textos do revelou” (Jo 1.18). João chamou Jesus de Logos (Jo
Antigo Testamento pode ser visto no relacionamen- 1.1), que é traduzido como Palavra ou Verbo, e traz
to de Jesus com o Pai. a ideia de fala ou comunicação. Entendemos então,
que Jesus foi o revelador da pessoa divina no Anti-
A repetição dos nomes de Deus na Bênção Araôni- go Testamento. Jesus disse que Abraão havia visto
ca. Na Bênção Araônica lemos: “o senhor te abençoe o seu dia, pois existia antes de Abraão (Jo 8.56-58),
e te guarde; o senhor faça resplandecer o seu rosto referindo-se com certeza à ocasião da destruição de
sobre ti, e tenha misericórdia de ti; o senhor sobre ti Sodoma e Gomorra, quando Abraão viu o Senhor,
levante o seu rosto e te dê a paz” (Nm 6.24-26). Três conforme relata Gênesis 18.1: “Apareceu o senhor a
vezes aparece no texto o título senhor. À luz da revela- Abraão nos carvalhais de Manre, quando ele estava
ção do Novo Testamento, especialmente da Bênção assentado à entrada da tenda, no maior calor do dia”.
Apostólica, na qual as três pessoas estão claramente Quem Abraão viu naquele dia, foi o próprio Jesus
distintas (2Co 13.13), conseguimos ver na Bênção antes de sua encarnação. Depois daquele encontro,
Araônica indícios da Trindade.9 os anjos desceram e destruíram as cidades. Outro
texto que ajuda a perceber que Jesus se manifestou
O Anjo do senhor. Uma boa referência do Antigo no Antigo Testamento é João 12.37-41:“E, embora
Testamento sobre a Trindade encontra-se na pessoa tivesse feito tantos sinais na sua presença, não cre-
do Anjo do senhor. O caso é que algumas vezes esse ram nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías,
Anjo, que deve ser distinguido dos demais anjos, se que diz: Senhor, quem creu em nossa pregação? E a
identifica com o próprio Senhor, enquanto que em quem foi revelado o braço do Senhor? Por isso, não
outras ocasiões, ele é distinguido do Senhor, o que podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes
nos leva a pensar em pluralidade de personalidade os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não
(Ver Gn 16.7-13; 22.15-16; Gn 31.11-13; Ex 3.2-6; vejam com os olhos, nem entendam com o coração,
Ex 23.23, 32.34 e Nm 20.16). Geralmente associa-se e se convertam, e sejam por mim curados. Isto disse
essa figura do Anjo do senhor com a Segunda Pessoa Isaías porque viu a glória dele e falou a seu respeito”.
da Trindade. Note que João disse que Isaías viu a glória de Jesus.
Mas, quando, e em que ocasião? O verso 40 é uma
Aparições de Deus. Talvez a prova mais evidente do citação direta do capítulo 6 de Isaías. E podemos ler
Antigo Testamento com relação à Trindade encon- o seguinte no início do capítulo 6: “No ano da mor-
tre-se nas aparições de Deus. A Escritura do Novo te do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um
Testamento diz que ninguém jamais viu a Deus (Jo alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam
1.18; 5.37; 6.46; 1Jo 4.12). Como explicar, então, o templo. Serafins estavam por cima dele; cada um
tinha seis asas: com duas cobria o rosto, com duas
9 Embora alguns vejam na repetição dos adjetivos “santo,
cobria os seus pés e com duas voava. E clamavam
santo, santo” em Isaías 6.3 um indício claro da Trindade, não dese- uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o
jamos ir tão longe, pois na língua hebraica a repetição visa enfatizar
aquilo que está sendo dito. O mesmo talvez não possa ser dito de senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua
Daniel 9.19 e Isaías 33.22. glória. As bases do limiar se moveram à voz do que

53
clamava, e a casa se encheu de fumaça. Então, disse 13.13). Por que Paulo colocaria esses três nomes em
eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de pé de igualdade, se não considerasse como pessoas
lábios impuros, habito no meio de um povo de im- da mesma divindade? Seria Paulo idólatra? Então,
puros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o senhor fica claro que a Bíblia afirma a existência da Trinda-
dos Exércitos!” (1-5). Isaías disse ter visto o senhor de. Em Apocalipse 1.4-5 a Bênção é pronunciada de
dos Exércitos. E se João disse que Isaías tinha visto forma ligeiramente diferenciada, mas as três pessoas
Jesus, então o senhor e Jesus são a mesma pessoa. A estão presentes: “Graça e paz a vós outros, da parte
conclusão é que todas as vezes que Deus foi visto no daquele que é, que era e que há de vir, da parte dos
Antigo Testamento, era a Segunda Pessoa da Trinda- sete Espíritos que se acham diante do seu trono e da
de se manifestando. Portanto, o Antigo Testamento parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogê-
tem bons indícios da existência da Trindade. nito dos mortos e o Soberano dos reis da terra”.

Provas do Novo Testamento Na obra da Salvação. A Escritura mostra em passa-


gens como 1Pedro 1.1-2 e Judas 20-22, Pai, Filho e
O Novo Testamento é muito mais decisivo em sua Espírito Santo agindo em pé de igualdade na vida dos
ênfase trinitária. Há muitos relatos que nos dão a jus- crentes na eleição, na redenção e durante todo o pro-
ta ideia de que Deus é um e é três ao mesmo tempo. cesso da santificação. A Trindade conjuntamente age
em favor dos escolhidos.
No Batismo de Jesus. O texto do batismo de Jesus
narra: “Batizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se Na Capacitação da igreja. Nas passagens de 1Co-
lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descen- ríntios 12.4-6 e Efésios 4.4-6 que tratam da manei-
do como pomba, vindo sobre ele. E eis uma voz dos ra como Deus capacita sua igreja, para em unidade,
céus, que dizia: Este é o meu filho amado, em quem desenvolver sua tarefa no mundo, as três pessoas da
me comprazo” (Mt 3.16-17). Note que há três perso- Trindade são mencionadas como sendo a base pela
nagens presentes no relato. Jesus está sendo batizado, qual a igreja sobrevive e age no mundo. João 14.16
o Espírito está descendo sobre ele, e o Pai está falan- também faz menção da Trindade, mas nesse caso é o
do dos céus. Inconfundivelmente, aí estão, simulta- Espírito Santo que vem através do pedido do Filho ao
neamente as três pessoas da Trindade. Pai para substituir o próprio Filho no meio da igreja.

Na Fórmula Batismal. Jesus disse: “Ide, portanto, fazei No Ensino de Cristo. Ao mesmo tempo em que
discípulos de todas as nações, batizando-os em nome Cristo disse que Deus era seu Pai que estava no céu
do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19). (Mt 5.16; 7.21; 11.25-27), disse que não eram a mes-
Nesse texto, não somente as três pessoas são citadas ma pessoa (Mt 16.27; Jo 10.17), e disse também
conjuntamente, como a expressão “em nome” está no que era “Um” com ele (Jo 10.30, 38). A comparação
singular. A Escritura não diz “batizando-os no nome entre as palavras de Jesus nos leva a crer que existe
do Pai, no nome do Filho e no nome do Espírito San- mais de uma pessoa na Divindade. E esse certamente
to”. Há apenas um nome para o Deus que subsiste em é o maior argumento bíblico a favor da divindade: a
três pessoas. consciência do próprio Jesus. Ele sabia e demonstrou
que era alguém diferente do Pai e ao mesmo tempo
Na Bênção Apostólica. O texto diz: “A graça do “um” com o Pai.
Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comu-
nhão do Espírito Santo sejam com todos vós” (2Co Em 1João 5.7. O texto mais claro na Bíblia com re-

54
lação à Trindade é 1João 5.7. Entretanto, esse texto a doutrina da Trindade já era tão antiga quanto essa
é amplamente controvertido, e muito provavelmen- data sugere.
te não seja realmente original, pois não aparece na
maioria dos códices gregos antigos, nem nos lati- Todos esses elementos bíblicos considerados con-
nos e não é citado pelos pais Anti-Nicenos. Mas há juntamente deixam a certeza de que há um só Deus,
que subsiste em três pessoas: O Pai, o Filho e o Espí-
grande evidência da antiguidade desse texto, quem
rito Santo.
sabe antes mesmo de 160 d.C,10 demonstrando que

10 Ver Excelente estudo sobre o texto em Herman Bavinck.


The Doctrine of God, p. 265-266. Para uma opinião contrária ver John
Sttot. I, II, III João – Introdução e Comentário, p.155.

55
8. A TRINDADE — ASPECTOS TEOLÓGICOS E PRÁTICOS

Há mais dois importantes aspectos que precisamos pacidade, a imensa essência de Deus, quando nem
considerar a fim de entender a importância da dou- sequer consegue determinar com certeza qual é o
trina da Trindade. Diz respeito a seus aspectos teo- corpo do sol, mesmo que todos os dias o vê com seus
lógicos, que nos ajudarão a estabelecer melhor os olhos? Assim mesmo, como poderá penetrar por si
conceitos em si; e a seus aspectos práticos, que nos só a essência de Deus, uma vez que não conhece
ajudarão a ver como esta doutrina é importante para nem a sua própria? Portanto, deixemos a Deus o
um cristianismo autêntico. poder de conhecer-se.1

ASPECTOS TEOLÓGICOS DA DOUTRI- Definições


NA DA TRINDADE
Podemos definir a doutrina da Trindade dizendo
Falar sobre a base teológica da doutrina da Trinda- que há somente um Deus em essência, mas que este
de significa estabelecer conceitos que nos ajudem a Deus subsiste em três pessoas distintas. Não há ana-
entender melhor a doutrina. É claro que jamais po- logia ou ilustração que possa nos ajudar a entender
demos nos esquecer que estamos lidando com algo como isso é possível. No passado, os Pais da igreja
que ultrapassa, em muito, o nosso entendimento. As acostumaram-se a usar analogias para ajudar a en-
palavras de Calvino sobre a Trindade são muito ins- tender a unidade dentro da Trindade. Falava-se, por
trutivas nesse sentido e servem de advertência contra exemplo, da união da luz, calor e esplendor em uma
especulações: só substância do sol; da raiz, tronco e folhas de uma
planta, ou mesmo do intelecto, vontade e sentimen-
Entendamos que se nos secretos mistérios das Escri- tos na alma humana. O fato é que todas as ilustrações
turas nos convém ser sóbrios e modestos, certamen- conseguem acrescentar muito pouco, e às vezes, só
te este que tratamos no presente não requer menor mesmo distorcer a doutrina da Trindade.
modéstia e sobriedade; mas é preciso estar de so-
breaviso, para que, nem nosso entendimento, nem Essência é a tradução da palavra grega “ousia”, que
nossa língua vá além do que a Palavra de Deus nos
tem demonstrado. Por que, como poderá o enten-
1 João Calvino. Institutas, I, 13, 21.
dimento humano compreender, com sua débil ca-

56
também pode significar substância2 e refere-se à na- pode ser tripessoal, sem deixar de ser um.
tureza divina. Essa natureza essencial é compartilha-
da pelas três pessoas da Trindade. Quando pensamos A Trindade em essência (ontológica)
na raça humana, sabemos que todos compartilham
a mesma natureza, a humana, mas, cada um é um Dentro da Trindade existe absoluta igualdade de
indivíduo autônomo. Compartilhamos a mesma essência, logo, não existe qualquer grau de subordi-
natureza, mas somos seres diferentes. Na Trindade nação, nem mesmo de honra. O Pai não é maior em
há apenas uma natureza, pois há apenas um ser. Há essência do que o Filho e nem o Filho maior do que
três pessoas, mas apenas um ser. Cada uma das três o Espírito Santo. O Pai não deve ser mais adorado do
pessoas da Trindade compartilha da mesma natureza que o Espírito, ou o Espírito mais do que o Filho. En-
divina, a qual é numericamente uma. São três pessoas tretanto, há características próprias em cada uma das
distintas, mas não separadas. Há apenas uma vonta- pessoas da Trindade, as quais não encontramos nas
de, um poder, uma mente, uma determinação, um demais. Estamos falando da Paternidade, da Filiação
sentimento, um ser. A essência de Deus não é divi- e da Processão.
dida entre as três pessoas da Trindade, ela é absoluta,
completa e perfeita em cada uma delas. Não são três A paternidade é uma característica exclusiva do Pai.
partes de um só Deus, nem três deuses, é um Deus, Nesse sentido não podemos chamar o Logos de Pai
e nem o Espírito de Pai. A paternidade do Pai é di-
uma substância e três pessoas.
ferente da que os homens concebem, por ser eterna.
Pessoa é tradução dos termos gregos “prosopon” e Não houve um tempo em que Deus não fosse Pai.
Desde toda a eternidade ele é o Pai do Filho. O Pai se
“hypostasis”, ou o latino “persona”, que foram usados
difere do Filho e do Espírito Santo por não ser gerado
pelos escritores antigos para indicar as distinções da
e nem proceder de ninguém, e por ser o único que
Divindade. Modernamente tem se falado em sub-
gera.
sistência como um termo mais adequado e livre de
ambiguidades. Na verdade, muito tempo foi gasto na
O Filho possui a característica exclusiva de ser gera-
tentativa de encontrar uma palavra que melhor defi-
do. Somente o Filho é filho do Pai. Não houve um
nisse o sentido da distinção, e isso por si só, já mostra tempo em que o Filho não existia (Mq 5.2), ele é
o quanto todas são na verdade inadequadas. O im- eternamente gerado da essência do Pai. A igreja tem
portante é que o termo essência nos fala da unidade historicamente afirmado que a geração do Filho é
de Deus, enquanto que o termo pessoa ou subsistên- desde toda a eternidade como um ato atemporal. Se
cia nos fala das distinções que existem no ser divino. o Pai gerou o Filho em algum momento da história,
Pessoa é o elemento diferenciador na Trindade. Es- então, isso significa que ele mudou de essência e que
sência é uma, pessoas são três. Não são três modos de o Filho não é eterno em essência. A geração do Fi-
manifestações, mas três existências, ou subsistências lho não cria uma nova essência na Trindade, pois é a
reais dentro de um único ser. No Ser de Deus unida- mesma essência que é compartilhada tanto pelo Pai
de e diversidade não são antônimas. Deus, em seu ser, quanto pelo Filho. A Geração é uma comunicação
da essência do Pai ao Filho, num ato atemporal, que
2 Berkhof fala da diferença entre “essência” e “substância” e faz com que tanto o Pai, quanto o Filho tenham vida
da tendência moderna de não usar os dois termos como sinônimo em si mesmos (Jo 5.26). Berkhof dá a seguinte defi-
pelo fato de que na igreja Oriental “substância” traduzia tanto “ousia”
como “hipostasis”, sendo, portanto, um termo ambíguo (Ver L. Ber- nição da geração do Filho: “É ato eterno e necessário
khof. Teologia Sistemática, p. 88-89). da primeira pessoa da Trindade, pelo qual ele, dentro

57
do Ser Divino, é a base de uma segunda subsistência do Pai e do Filho é João 15.26 e os textos nos quais
pessoal, semelhante à Sua própria, e dá a esta segun- o Espírito é chamado de Espírito de Cristo ou de Es-
da pessoa posse da essência divina completa, sem ne- pírito do Filho (Rm 8.9; Gl 4.6; Fp 1.19; 1Pe 1.11).
nhuma divisão, alienação ou mudança”.3 Em geral, os Berkhof define a “espiração” do Espírito como sendo
argumentos mais usados para dizer que Cristo não é “o eterno e necessário ato da primeira e da segunda
eterno são os textos de Colossenses 1.15 e Apocalip- pessoas da Trindade pelo qual elas, dentro do Ser
se 3.14, que falam respectivamente de Jesus como o Divino, vêm a ser a base da subsistência pessoal do
“primogênito” e o “princípio” da criação de Deus. Di- Espírito Santo, e propiciam à terceira pessoa, a posse
zem os unitários, especialmente as Testemunhas de da substância total da essência divina, sem nenhuma
Jeová, que esses termos colocam Cristo como a pri- divisão, alienação ou mudança”.5
meira criatura de Deus, não sendo portanto, eterna.
Em Colossenses 1.15 “primogênito” da criação não A Trindade no trabalho (econômica)
pode se referir ao primeiro ser criado, pois subenten-
deria que Cristo é o primeiro filho da própria Criação Uma maneira interessante de ver a Trindade é enten-
e isso não faz sentido. A interpretação mais provável der a forma como a Trindade age, não em relação a si
é que Cristo é o herdeiro de toda a Criação de Deus. mesma, mas em relação à criação. Quando falamos
Do mesmo modo, em Apocalipse 3.14, falar de Cris- em essência, vimos que, embora haja características
to como o primeiro por causa da palavra “princípio” próprias em cada pessoa da Trindade, não existe qual-
não faz justiça ao uso dessa palavra no próprio livro quer grau de subordinação entre elas. Porém, quando
do Apocalipse, pois o próprio Deus é chamado de falamos em trabalho (economia) da Trindade, per-
princípio (Ap 1.8; 21.6; 22.13). Faz muito mais sen- cebemos que há uma ordem como Deus trabalha.
tido pensar que o texto está falando de Cristo como Isso nos revela bastante do caráter Trinitário. Jesus fez
o mais proeminente de toda a criação, o principal, o algumas declarações que, certamente, poderiam nos
mais importante, o chefe (Ver Cl 1.18). deixar confusos, se não entendêssemos a diferença
de Trindade em essência (ontológica) e Trindade
O Pai gera o Filho, o Filho é eternamente “gerado” do econômica. Já vimos que ele disse ser um com seu
Pai, e o Espírito Santo “procede” eternamente do Pai Pai, porém, em outros textos, ele afirmou ser sub-
e do Filho. Nas línguas grega e hebraica as palavras misso ao Pai, como por exemplo, João 6.38: “Porque
“pneuma” e “ruach”, que são traduzidas como “espíri- desci do céu não para fazer a minha própria vontade;
to”, derivam de raízes que significam “soprar, respirar, e, sim, a vontade daquele que me enviou. E também
vento”. Daí a ideia do Espírito ser soprado por Deus noutra ocasião ele disse: “O Pai é maior do que eu”
(Jo 20.22). A doutrina de que o Espírito “procede” (Jo 14.28). Já dissemos que de acordo com a Bíblia,
do Pai e do Filho levou algum tempo para ser formu- há igualdade absoluta entre as pessoas da Trindade,
lada pela igreja, sendo que somente em 589 no Síno- mas, então, por que Jesus disse que o Pai era maior
do de Toledo, foi formulada a seguinte declaração de do que ele? Certamente porque se referia à sua encar-
fé: “Cremos no Espírito Santo, que procede do Pai e nação e à obra que precisava fazer. Ele foi submisso
do Filho”.4 A base bíblica de que o Espírito procede ao Pai nesse sentido e, portanto, inferior em função,
mas não em essência. Estamos agora falando das
obras que se realizam, não dentro do ser divino, mas
3 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 95.

4 A igreja Oriental (Católica Ortodoxa) nunca aceitou essa


formulação. 5 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 98.

58
em relação à criação, providência e redenção. Vemos a matéria, sendo, portanto, o ponto de contato entre
nas Escrituras algumas obras sendo mais atribuídas a Deus e a matéria. Mas, e onde está o Filho? O Filho é
uma das pessoas da Trindade do que a outra. Entre- a “palavra” de Deus. Foi João quem chamou Jesus de
tanto, devemos tomar o cuidado para não exagerar- o “verbo” de Deus (Jo 1.1). Ele é a Palavra proferida,
mos nas distinções, pois, de certa forma, a Trindade o “haja luz”, é o instrumento através do qual todas as
participa conjuntamente de todas as obras externas. coisas foram criadas. A Bíblia afirma isso categorica-
mente: “Pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos
Não precisamos temer falar de uma subordinação céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam
econômica do Filho ao Pai, desde que entendamos tronos, sejam soberanias, quer principados, quer po-
que não há qualquer subordinação de essência. É por testades. Tudo foi criado por meio dele e para ele” (Cl
isso que Paulo diz: “Quero, entretanto, que saibais 1.16). Portanto, podemos dizer que na obra da cria-
ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem, o ção, o Pai fala, o Filho é a Palavra falada – Mediador,
cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo” (1Co e o Espírito Santo é o agente direto sobre a matéria.
11.3). No contexto ele está tratando da diferença que Em termos semelhantes, a Trindade trabalha na Re-
existe entre o homem e a mulher, e da subordinação denção, cada pessoa executando uma tarefa particu-
que a mulher deve ao homem. Ele não está dizendo lar. O Texto de 1Pedro 1.2 é claro nesse sentido, pois
que a mulher é inferior ao homem, mas que deve ser diz que os crentes são: “Eleitos segundo a presciência
submissa e guardar as diferenças proporcionais.6 Da de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obe-
mesma forma, o Pai é o cabeça de Cristo, mas isso diência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo”. Aqui
não quer dizer que ele é superior, pois a essência é a também o Pai é o idealizador da salvação, pois a ele
mesma. A questão está nas funções, que são diferen- pertence o ato de escolher os que devem ser salvos.
tes. Nesse sentido, o Pai é o autor da eleição. O Filho está
novamente na função de Mediador, ele possibilita a
Devemos evitar a formulação simplista de que o Pai é obediência a Deus através da aspersão de seu sangue.
o responsável pela Criação, o Filho pela Redenção, e Já ao Espírito Santo é indicada a tarefa de santificar,
o Espírito pela santificação, pois a Trindade participa ou seja, separar para si os eleitos. Então, o Pai elegeu,
conjuntamente de tudo isso. A distinção que pode- o filho salvou e o Espírito aplicou a salvação. Na ver-
mos fazer é a seguinte: Ao Pai pertence mais o ato de dade essa ordem de funções pode ser vista por toda a
planejar, ao Filho o de mediar, e ao Espírito o de agir. Escritura: O Pai planejando a salvação (Jo 6.37-38) e
Isso pode ser visto no relato da criação. No texto de escolhendo os eleitos (Ef 1.3-4), o Filho executando
Gênesis 1.1-3, as três pessoas da Trindade estão agin- o plano de Deus (Jo 17.4; Ef 1.7), e o Espírito Santo
do. O texto diz: “No princípio criou Deus os céus confirmando essa obra sobre os crentes (Ef 1.13-14).
e a terra” (Gn 1.1). Note que a criação é atribuída a De fato, como declara Lloyd-Jones, “essa é uma ideia
Deus. Entretanto, em seguida veja algumas manifes- atordoante, ou seja, que estas três bem-aventuradas
tações diferentes desse Deus: “A terra, porém, era sem Pessoas, na bem-aventurada santíssima Trindade,
forma e vazia, e o Espírito de Deus pairava sobre as para minha salvação, quiseram dividir assim o traba-
águas” (Gn 1.2). Aí está a Terceira Pessoa, o “Espíri- lho”.7
to de Deus”. A maioria dos comentaristas concorda
que o Espírito Santo está numa função de “energizar”

6 Ver Augustus N. Lopes. O Culto Espiritual, p. 64-65. 7 D. M. Lhoyd-Jones. Deus o Pai, Deus o Filho, p. 122-123.

59
ASPECTOS PRÁTICOS DA DOUTRINA engano, pois Deus é absolutamente completo em
DA TRINDADE si mesmo. Ele não precisava criar o universo para se
sentir melhor, nem mesmo para experimentar algum
Até aqui vimos aspectos históricos, bíblicos e teoló- relacionamento, pois em seu ser, Deus já é completo e
gicos da doutrina da Trindade. Agora queremos falar relacionável. Na oração sacerdotal Jesus disse: “E ago-
sobre aspectos práticos. ra, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória
que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo...
Claro que isso não significa que o que foi dito acima Porque me amaste antes da fundação do mundo” (Jo
não é prático. Mas até aqui nos preocupamos em de- 17.5,24). Na verdade, esse por si só, já é um grande
finir bem os conceitos, agora queremos tratar sobre argumento em favor da Trindade. Se a Bíblia diz que
como a doutrina da Trindade deve influenciar a nos- Deus é amor (1Jo 4.8), então, o que ele amava antes
sa vida diária. de ter criado alguma coisa? Deus exercitava o amor
consigo mesmo, no relacionamento trinitário, que
É impossível ter um relacionamento correto com por sua vez, veio a ser a base para o relacionamento
Deus sem considerar a Trindade. Hoje as pessoas amoroso com os homens, que assim, também pode
demonstram inconscientemente preferência por ser chamado de “amor eterno” (Jr 31.3). Deus expan-
uma das pessoas da Trindade. Há aqueles para quem diu seu amor intra trinitário para suas criaturas, e isso
a pessoa do Pai é a central. Essas pessoas pensam demonstra de forma assombrosa como é grande esse
muito pouco em Jesus e no Espírito Santo. Princi- seu amor. Quando Deus nos chama para a fé, na ver-
palmente os oriundos da tradição católica, quando dade é um convite para mergulhar no relacionamen-
lembram de Deus, pensam na pessoa do Pai. Outros to trinitário, aquele relacionamento que as pessoas
preferem a pessoa do Filho, geralmente os influencia- da Trindade têm entre si. Jesus disse: “Se alguém me
dos pelo “pietismo”, mas certamente são minoria. O ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e
Espírito Santo é o foco principal da vida da maioria viremos para ele e faremos nele morada” (Jo 14.23).
dos crentes das igrejas carismáticas. Essa fragmenta- Deus não precisava criar nada para se sentir mais
ção das pessoas da Trindade é coisa bem típica do pleno, mas ainda assim decidiu criar para dar maior
nosso mundo moderno. Ela dilui a compreensão expressão ao relacionamento trinitário. Somos cha-
da riqueza de Deus. Por outro lado, na prática, o que mados para participar disso, como Jesus deixou bem
se percebe é uma espécie de unitarismo funcional. claro em sua oração: “A fim de que todos sejam um; e
Quando pensamos em Deus, não trazemos à memó- como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam
ria a existência triúna, mas o imaginamos como uma eles em nós” (Jo 17.21). A ideia somada desses textos
pessoa única. Isso compromete demasiadamente o é: O Deus triúno em nós, e nós no Deus triúno, uma
relacionamento com ele, pois impede que entenda- comunhão com base trinitária. Somos chamados
mos mais completamente o seu caráter. Na verdade para mergulhar no amor da Trindade. Por essa razão,
é impossível compreender a Criação e a Redenção não considerar a Trindade é entender menos o amor
sem pensar na Trindade. Pois, como vimos, tanto a de Deus.
Criação quando a Redenção não são obra de uma
das pessoas divinas, mas da Trindade como um todo. Isso, por sua vez, nos leva a entender nosso chamado
relacional. Jesus continuou orando ao Pai: “Eu lhes
Nesse ponto, outras coisas precisam ser conside- tenho transmitido a glória que me tens dado, para
radas. Um problema é imaginar que Deus precisou que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em
criar o mundo para se sentir mais pleno. Isso é um mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade,

60
para que o mundo conheça que tu me enviaste e os do culto como a música, os instrumentos, e as pró-
amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.22-23). prias pessoas. Mas a adoração verdadeira não pode
É fácil de entender porque a comunhão é tão difícil depender de um cântico animado, de instrumentos
na igreja. As pessoas buscam comunhão através de bem tocados, ou da eloquência do pregador. Se essas
eventos sociais, trabalhos comunitários, músicas coisas são os instrumentos da adoração é provável
que incentivam cumprimentos mútuos, etc. Mas a que não esteja acontecendo adoração. A adoração
verdadeira base da comunhão da igreja é a Trindade. verdadeira é obra da Trindade em nós, e a partir de
Precisamos entender que fomos chamados para re- nós, para a própria Trindade. Por isso o culto bíblico é
fletir o mesmo amor que existe na Trindade. Somos bastante diferente do que se vê na maioria das igrejas.
chamados para mergulhar nesse amor e, de tal forma O culto bíblico é teocêntrico e não antropocêntrico.
ele precisa inundar a nossa vida, que os outros irmãos
receberão os efeitos dele. O próprio sentido de nos- Finalmente, a doutrina da Trindade é um chamado
sa missão no mundo também está explícito nessas ao serviço. Estudamos sobre a absoluta igualdade es-
palavras de Jesus. Queremos que o mundo conheça sencial da Trindade. Nesse sentido não há qualquer
o Evangelho, para isso fazemos imensas campanhas grau de subordinação entre as pessoas da Trindade.
evangelísticas, cultos de evangelização, distribuímos Mas percebemos que nas obras externas, ao traba-
folhetos, mas percebemos que os resultados são in- lhar na Criação e na Redenção, as pessoas da Trin-
significantes. Jesus ensinou que nosso testemunho dade se subordinam umas às outras e trabalham em
depende de nossa unidade. Enquanto o amor da perfeita cooperação. Embora sejam pessoas plenas
Trindade não invadir nosso coração a ponto de al- e cada uma tenha a essência completa da Trindade
cançar os outros, o mundo continuará descrente em em si, não são, nem desejam ser autônomas. São ab-
relação a Jesus. solutamente livres e isso faz com que se relacionem
e promovam a obediência. O Filho faz questão de
A consciência da Trindade muda também o próprio obedecer ao Pai, e o Espírito é obediente ao Filho. A
culto que prestamos a Deus. O culto cristão é essen- dificuldade que os cristãos têm de trabalhar juntos é
cialmente trinitário. Uma definição de culto cristão por causa do ego. Cada um tem seu orgulho pessoal,
poderia ser: “Adorar o Pai, pela mediação do Filho, no e deseja que sua opinião prevaleça. Achamos que
poder do Espírito Santo”.8 Essa é uma definição inte- obedecer e servir uns aos outros nos torna inferiores.
ressante, mas há o perigo de compartimentar as coi- Achamos que a liberdade é a autonomia. A Trinda-
sas, pois não é só o Pai que é adorado, e sim o Deus de nos ensina que através do serviço e da obediência
triúno. A ideia é que o culto como um todo é para a cristã é que desfrutamos da plena liberdade. Quando
Trindade e obra da Trindade. O acesso à presença de o Filho de Deus amarrou a tolha na cintura e lavou
Deus se faz pela pessoa do Filho. A comunicação de aos pés dos discípulos, isso não o fez menos digno
Deus com o povo se dá pelo Espírito que faz uso da nem menos livre, ao contrário.
Palavra. O culto é uma vibrante atuação do Deus triú-
no. Quando temos isso bem claro em nossa mente, CONCLUSÃO
percebemos que a única coisa que precisamos para
adorar a Deus verdadeiramente é a atuação da Trin- Diante dessas coisas, concluímos que devemos valo-
dade. Isso evidentemente não dispensa os elementos rizar mais essa doutrina. Precisamos nos arrepender
por considerar tão pouco esse precioso ensino da
Escritura e passar a considerar o caráter trinitário de
8 Ricardo Barbosa de Sousa. O Caminho do Coração, p. 80.
nosso Deus em nosso relacionamento com ele, com

61
os irmãos e no culto que lhe dirigimos. Acima de quem e o que Deus é”.9
tudo permanece que não podemos conhecer verda-
deiramente a Deus, se não considerarmos seu caráter
trinitário. Como diz Bavinck, “somente quando nós
contemplamos essa Trindade é que nós descobrimos 9 Herman Bavinck. Teologia Sistemática, p. 155.

62
9. A IMUTABILIDADE DE DEUS

Os primeiros capítulos da Escritura narram a criação. verdade, ele percebia que a parte principal da criação,
Ao final de cada dia da criação, Deus contemplava o ser humano, havia se tornado “continuamente mau”.
sua obra e dizia que tudo era bom. À medida que a Então, segundo o texto, arrependeu-se de ter criado
terra foi se delineando, os oceanos se estabelecendo, o homem e decidiu exterminá-lo. A narrativa bíblica
os seres vivos se desenvolvendo, ouvia-se o aplauso é bastante simples, mas deixa alguns problemas teo-
dos anjos (Jó 38.4-7) e Deus se deleitava em sua cria- lógicos: Deus não havia previsto todo o mal que se
ção, vendo que tudo era bom (Gn 1.10,12,18,21,25). estabeleceria depois da queda? Será que de alguma
Ao final do sexto dia, depois de concluir sua obra pri- maneira ele foi pego de surpresa? Teria ele mudado
ma, de criar o ser humano, e colocá-lo para governar seus planos? O que a Bíblia quer dizer com: Deus se
a terra, Deus percebeu que as coisas estavam ainda arrependeu?
melhores. O autor inspirado registra: “Viu Deus tudo
quando fizera, e eis que era muito bom” (Gn 1.31). A maioria das religiões crê num Deus que muda de
Mas logo as coisas se complicaram. O homem e a acordo com as situações. Será que Deus é como os
mulher cederam à tentação. O mundo virou um caos. homens, sujeito a derrotas e fracassos? Será que um
Caim matou Abel. E o número dos perdidos passou a dia acorda bem humorado outro mal humorado?
ser muito maior do que o dos salvos. Ao contrário do Será que ele tem um temperamento instável como o
que se poderia imaginar, Deus tolerou a situação por nosso? Ou será que Deus é sempre o mesmo, nada
vários séculos. Até que um dia deu um basta. Em Gê- lhe afeta, nada o faz retroceder?
nesis 6.56 está registrada a impressão geral de Deus
sobre a criação decaída: “Viu o senhor que a maldade UM CONCEITO NECESSÁRIO
do homem se havia multiplicado na terra e que era
continuamente mau todo desígnio do seu coração; Frequentemente os escritores bíblicos chamam Deus
então, se arrependeu o senhor de ter feito o homem de “Rocha”.1 Entre outras coisas, podemos dizer que,
na terra, e isso lhe pesou no coração. Disse o senhor: quando os escritores usavam este termo tinham em
Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, mente a noção de um local seguro, um abrigo, uma
o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus;
porque me arrependo de os haver feito”. Deus já não
1 Ver 2Sm 22.2; Sl 18.2; Hq 1.12.
podia dizer que tudo na criação era “muito bom”. Na

63
fortaleza. A expressão “rocha” também transmite a mudar para melhor ou para pior.2 Se mudasse para
ideia de algo que não se abala com o tempo, algo que pior estaria se tornando menos perfeito, e se mudas-
permanece, que é eterno. É nesse sentido que Isaías se para melhor significa que ainda não era perfeito.
diz: “Confiai no Senhor perpetuamente, porque o Se- Sendo um ser absoluto e perfeito, Deus está livre de
nhor Deus é uma rocha eterna” (Is 26.4). O profeta todas as causas e possibilidades de mudanças. She-
desafia o povo a confiar em Deus não apenas hoje ou dd usa a questão do conhecimento para demonstrar
amanhã, mas eternamente, porque o Senhor é Eterno que Deus necessariamente não muda: “Uma criatura
e, como uma rocha, não muda. Por essa razão Deus é cresce em conhecimento em certas direções, e perde
uma fonte eterna de segurança. Ninguém confia em conhecimento em outras. Ela adquire informação e
esquece. O criador tem conhecimento infinito a todo
coisas mutáveis. Não arriscamos nosso dinheiro em
instante, ele nunca aprende ou esquece”.3 Isso pode
investimentos instáveis. Não colocamos nossa con-
ser aplicado a todos os atributos de Deus. Por este
fiança em pessoas cujo temperamento muda da noite
motivo não podemos imaginar qualquer espécie de
para o dia, pois é um fato estabelecido que segurança mudança essencial no ser de Deus, e nem precisa-
está intimamente ligada a estabilidade. Não podería- mos, pois a Escritura é farta em afirmações a respeito
mos nos refugiar no esconderijo do altíssimo se ele da imutabilidade dele. O próprio nome pessoal com
não fosse uma rocha eterna. Se Deus não permane- que Deus se revelou no Antigo Testamento atesta
cesse firme em seus propósitos, como poderíamos sua imutabilidade. Ele disse: “Eu sou o que sou” (Êx
ter certeza de que tudo o que ele disse se cumprirá? 3.14). Deus é o eterno “Eu Sou absoluto”. Ele não é
Se ele mudasse de planos a cada momento, de acordo um “vir-a-ser” como se crê no panteísmo, mas o eter-
com as inclinações da hora, e em resposta a situações no “Eu Sou”, conforme a Escritura atesta. O salmista
inesperadas, como saber se sua vontade será feita? diz: “Eles perecerão, mas tu permaneces; todos eles
A Rocha Eterna fala de um Deus que não muda de envelhecerão como um vestido, como roupa os mu-
planos, e que não precisa mudar, porque seus planos darás, e serão mudados. Tu, porém, és sempre o mes-
não têm falhas. A Rocha Eterna é uma fonte eterna de mo, e os teus anos jamais terão fim” (Sl 102.26-27).
segurança. Não dá para fazer uma comparação entre Deus e seus
inimigos, porque todos mudam e perecem, mas Deus
A doutrina da imutabilidade de Deus é uma das mais será o mesmo eternamente. O próprio Deus fala por
importantes para a fé cristã. Crer num Deus imutável meio de Isaías: “Dá-me ouvidos, ó Jacó, e tu, ó Israel,
é fundamental para que se mantenha um sistema ra- a quem chamei; eu sou o mesmo, sou o primeiro e
cional de fé e coerência bíblica. Deus em sua essência também o último” (Is 48.12). Deus está chamando
jamais sofreu ou sofrerá qualquer mutação. Ele é o o povo a confiar nele por causa de sua eternidade e
imutabilidade. A Escritura afirma que Deus é o “pai
mesmo ontem, hoje e eternamente (Hb 13.8). Este é
das luzes, em quem não pode haver variação nem
um conceito necessário. É absolutamente necessário
sombra de mudança” (Tg 1.17). Nesse texto Tiago
que um ser perfeito seja imutável, pois mudança ne-
está argumentando que todo bem é proveniente de
cessariamente pressupõe imperfeição. A ideia de pro- Deus que sempre foi bom e jamais deixará de ser.
gresso ou regresso somente é admitida em alguém Ele nunca deixará de ser bom, porque é impossível
finito e imperfeito. O homem progride ou regride em
sua vida, porque não é um ser acabado, não possui
2 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 61.
perfeições imutáveis e está em constante aprendiza-
3 William G. T. Shedd. Dogmatic Theology, p. 347.
do. Se Deus mudasse algo em sua essência, teria que

64
que haja qualquer mudança nele, nem sequer uma Como seria se Deus resolvesse criar todas as coisas
sombra. No ser de Deus não existe a possibilidade de sem um propósito definido? Se ele fosse improvisan-
mudança. do tudo, sem objetivos, deixando, como se diz por
aí, “a coisa rolar”? Existe uma teoria cada vez mais
Deus é imutável na essência do seu ser e também em aceita entre os evangélicos de que Deus não conhece
seus atributos. Sua onisciência é sempre a mesma, o futuro.4 Essa teoria diz que a onisciência de Deus
sua santidade também, seu poder da mesma forma. alcança apenas o passado e o presente, mas não o
Não devemos interpretar mal certas passagens da Es- futuro, porque o futuro simplesmente não existe. O
critura, por exemplo, quando se fala em santificar ao futuro está totalmente aberto, e Deus e os homens
Senhor ou ao seu nome (Nm 27.14; Is 8.13; Ez 28.22, construirão o futuro num constante ritmo de adapta-
1Pe 3.15). Com isso a Escritura não está dizendo ções e inovações. Como o homem frequentemente
que devemos fazer algum acréscimo à santidade que frustra a vontade de Deus, Deus precisa buscar novas
Deus já possui, mas que devemos render a ele o que soluções. Mas se as coisas fossem realmente assim,
é devido. A imutabilidade divina está intimamente teríamos que pensar que o futuro pode não ser como
conectada com os demais atributos dele, como, por queremos e nem mesmo como Deus quer. Se nem
exemplo, sua infinidade, onipotência, eternidade, etc. Deus conhece o futuro, não há qualquer garantia
A imutabilidade é absolutamente necessária a fim de de que o bem vencerá o mal. Graças a Escritura não
que Deus continue sendo o Deus poderoso, absoluto precisamos mergulhar nesse mundo de incertezas. A
e confiável que é. Uma única mudança no ser divino Escritura diz que Deus conhece o futuro, porque de-
ou em seus atributos afetaria de forma completa sua cretou o futuro. Os decretos divinos são a garantia de
divindade e, desta forma, ele não seria mais o Deus que a vontade de Deus finalmente prevalecerá, não
que é. Por esta razão, a imutabilidade é um conceito a do homem, e muito menos a de Satanás. A recusa
necessário. das pessoas em aceitar que Deus tenha decretos é
infundada. Como imaginar um construtor que co-
Não é tão difícil aceitar que Deus seja imutável em meça a construir uma grande obra sem uma planta?
seu Ser, mas, e com relação ao seu modo de agir? Será
Ninguém faz isso, e, se faz, está condenando a própria
que ele nunca muda de planos ou atitudes? Inicial-
obra. Se até os homens que são falíveis e mutáveis, an-
mente é possível dizer que, do simples fato de sua
tes de realizarem qualquer coisa, planejam detalhada-
imutabilidade ontológica (em seu ser), decorre ne-
mente, por que Deus não faria?
cessariamente que ele também seja imutável em suas
atitudes. Como imaginar um Ser Imutável que, não
Esses propósitos ou decretos foram formulados por
obstante, muda? A fim de entendermos melhor esse
Deus antes da fundação do mundo. Ele os concre-
assunto, podemos dividi-lo em duas seções que de-
tiza durante a história, nas épocas que predetermi-
monstram o agir imutável de Deus: ele é imutável em
nou. Concluímos a partir do ensino da Escritura que
seus decretos e em suas promessas.
Deus decretou todas as coisas que acontecem nesse
mundo. O Breve Catecismo de Westminster define
DECRETOS IMUTÁVEIS
os decretos como “o Seu eterno propósito, segundo o
Quando falamos em decretos divinos estamos nos conselho da Sua vontade, pelo qual, para sua própria
referindo às determinações que Deus tem tomado
desde toda a eternidade. Tem a ver com o propósito 4 Essa teoria é denominada “teísmo aberto”, ou teologia
relacional.
dele com relação a todas as coisas que foram criadas.

65
glória ele predestinou tudo o que acontece” (Pergun- Jesus proibiu que seus discípulos fizessem juramen-
ta 7). Essa doutrina se fundamenta em muitos textos tos. Ele disse: “De modo algum jureis; nem pelo céu,
bíblicos. Efésios 1.11 diz: “Nele, digo, no qual fomos por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser es-
também feitos herança, predestinados segundo o trado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade
propósito daquele que faz todas as coisas conforme o do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não
conselho da sua vontade”. Deus não se guia pela von- podes tornar um cabelo branco ou preto” (Mt 5.34-
tade dos outros a fim de realizar as coisas que devem 35). Há coisas que fogem ao nosso controle, por isso,
ser realizadas. Ele segue apenas o conselho da sua nem sempre conseguimos cumprir nossas promes-
vontade. De acordo com as Escrituras esses decretos sas. O homem não controla os meios para chegar aos
são imutáveis. Ou seja, aquilo que Deus determinou fins e por isso deve se abster de jurar. Há coisas que
acontecerá exatamente como sua vontade determi- fogem ao seu controle, coisas que acontecem nele
nou. A Escritura diz: “Se ele resolveu alguma coisa, mesmo, como o branquear dos cabelos, e sobre os
quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso ele quais não tem controle. Porém Deus tem controle
fará” (Jó 23.13-14). Deus não precisa de improvisos sobre todas as coisas e sobre si mesmo, por isso ele
ou adaptações. Esse entendimento Jó demonstrou faz juramentos, pois tem poder para cumprir o que
de forma ainda mais abrangente no final do seu livro: jura. Ele não muda. É isso o que o escritor aos He-
“Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos breus tem em mente quando afirma: “Por isso Deus,
pode ser frustrado” (Jó 42.2). Por mais que lute, o quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros
homem não consegue frustrar os planos de Deus. O da promessa a imutabilidade do seu propósito, se in-
Salmista demonstra o mesmo entendimento ao afir- terpôs com juramento” (Hb 6.17). O autor aos He-
mar que “o Conselho do Senhor dura para sempre; breus diz que Deus jurou por si mesmo (Hb 6.13).
os desígnios do seu coração, por todas as gerações” Ele pode jurar, pois tem poder para cumprir, e nada
(Sl 33.11). E comparando a fragilidade dos propósi- pode mudá-lo. Deus nunca precisou fazer um plano
tos humanos com os divinos, o escritor de Provérbios novo, seus planos e propósitos são eternos e imutá-
diz: “Muitos propósitos há no coração do homem, veis.
mas o desígnio do Senhor permanecerá” (Pv 19.21).
Já o profeta Isaías afirma categoricamente: “Jurou o PROMESSAS IMUTÁVEIS
Senhor dos Exércitos, dizendo: Como pensei, assim
sucederá, e, como determinei, assim se efetuará” (Is Deus cumpre todas as promessas que faz. Ele nunca
14.24) e ainda “lembrai-vos das coisas passadas da muda suas promessas, pois essa é a expressão natural
antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou de sua imutabilidade. Números 23.19 diz: “Deus não
Deus, e não há outro semelhante a mim; que desde é homem, para que minta; nem filho de homem, para
o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido,
antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?”. Po-
digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda rém, não devemos dizer que a fidelidade de Deus é
a minha vontade” (Is 46.9-10). Deus é aquele que por nossa causa. Deus não é fiel a alguém, ele é fiel a
pode anunciar as coisas antes que aconteçam, não só si mesmo. Se fosse fiel a nós, então, somente cumpri-
porque as decreta, mas porque deseja e tem o poder ria suas promessas desde que nós permanecêssemos
de realizá-las.5 sempre fiéis a ele. Mas a Escritura afirma: “Se somos
infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma
pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13). Isso jamais
5 Ver William G. T. Shedd. Dogmatic Theology, p. 397.
deve ser entendido como uma autorização da parte

66
de Deus para o pecado, pois as consequências de corpo, e ainda assim, nada mudou?
todo pecado que cometermos, certamente, virão
sobre nós mesmos. O texto está dizendo que Deus Comecemos pelas aparentes mudanças em Deus.
não deixa de cumprir suas promessas, que represen- Alguns textos da Escritura de fato dizem que Deus se
tam seu propósito, devido a alguma falha humana.6 arrependeu. Como já foi visto, Gênesis 6.5-6, diz isso
Pois, se fosse assim, dificilmente Deus conseguiria claramente: “Se arrependeu o Senhor de ter feito o
cumprir qualquer promessa sua. Uma passagem clás- homem na terra, e isso lhe pesou no coração”. O mes-
sica que nos ajuda a entender isso é Malaquias 3.6: mo, porém de forma inversa, pode ser visto em Êxo-
“Porque eu, o Senhor, não mudo, por isso vós, ó filhos do 32.14, onde Deus declara o desejo de exterminar
de Jacó, não sois consumidos”. Nos tempos de Mala- o povo por causa de seu pecado, mas diante da supli-
quias, o povo de Deus havia se desviado dos padrões ca de Moisés, a Bíblia diz que: “Então, se arrependeu
estipulados por Deus, especialmente no que se refe- o Senhor do mal que dissera havia de fazer ao povo”
ria a dízimos e ofertas (Ml 3.7-12). Entretanto Deus (Ver Jr 18.8-10; 26.13; Jn 3.9-10; Am 7.1-3). Como
tinha um plano e havia feito promessas a Abraão, Isa- conciliar essas passagens com o conceito da imutabi-
que e Jacó. Embora os “filhos de Jacó” merecessem lidade? Para começar a responder a questão, precisa-
um extermínio, Deus os pouparia por causa de sua mos fazer uma distinção teológica. Quando dizemos
promessa de abençoar todas as famílias da terra em que Deus é imutável não estamos querendo dizer
Abraão e sua descendência. Com relação ao próprio que Deus é imóvel ou impassível. Não se deve con-
Abraão, Deus demonstrou a imutabilidade de suas fundir imutabilidade com imobilidade7. Deus não
promessas na ocasião em que ele, seguindo a ideia de deve ser descrito como alguém sem movimento, que
sua mulher, resolveu ter um filho com a serva Agar. não se importa com nada. Se fosse assim, Deus não
Aquilo foi desagradável aos olhos do Senhor, mas o teria sentimentos, e não poderíamos atribuir amor,
Senhor não deixou de cumprir a promessa que ha- misericórdia, graça, ou mesmo ira a Deus. Deus não
via feito a Abraão e, no tempo determinado, Isaque é imóvel ou impassível, ele está em constante relacio-
nasceu. Não precisamos ter dúvidas, pois como diz namento com o ser humano, que por sua vez é essen-
Paulo: “Os dons e a vocação de Deus são irrevogá- cialmente mutável. Há realmente um relacionamento
veis” (Rm 11.29). entre Deus e os homens, porém é Deus quem pauta
esse relacionamento e não o homem, como pretende
APARENTES MUDANÇAS EM DEUS o teísmo aberto. Não quer dizer que haja alguma mu-
dança em Deus, mas que ele se apresenta da maneira
Alguém dirá: e como ficam as várias passagens da Es- como o podemos entender. A Escritura diz que Deus
critura que afirmam que Deus se arrependeu de algu- tem boca, nariz, braços, coração, etc. Diz que ele in-
ma coisa que havia dito e mudou de atitude? E como clina os ouvidos para ouvir, como se de outra forma
explicar a própria encarnação de Cristo? Como pode não conseguisse. Essas seriam descrições literais de
Cristo ter tomado um corpo humano, morrido e res- Deus? Evidentemente que são “antropomorfismos”,
suscitado e ainda assim a essência da Trindade per- ou seja, características humanas atribuídas a Deus a
manecer imutável? Ele voltou para o céu com um fim de que possamos compreendê-lo melhor. É des-
sa forma que devemos interpretar a expressão “Deus
se arrependeu”. É uma atitude de colocar em lingua-
6 É necessário que se entenda que há promessas incondi-
cionais de Deus e promessas condicionais. Estamos tratando nesse
ponto sobre as promessas incondicionais, mais a frente falaremos
sobre as promessas condicionais. 7 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 62.

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gem humana algo que é próprio somente de Deus chorou diante do túmulo de Lázaro (Jo 11.35), mas
(antropopatismos8). Ou seja, não sabemos qual foi ninguém poderia dizer que aquele foi um choro im-
o teor do sentimento que Deus teve quando viu a potente, até porque, logo o morto estaria saindo do
degeneração da raça humana, mas não podemos túmulo. Aquele foi um choro de quem se compadece
confundir isso com o arrependimento humano, que da terrível miséria que desabou sobre a humanidade
sempre carrega a ideia de imperfeição, inabilidade ou por causa do pecado. Deus tem sentimentos e os ex-
incompetência. O arrependimento que é atribuído a pressa, mas não há falhas em seus planos e nem mu-
Deus não representa isto, mas carrega a ideia de que danças.
o Deus que tem sentimentos, entristece-se ao ver a
situação da raça humana decaída. Está claro no texto Algumas vezes parece que Deus muda suas promes-
que a situação do ser humano “pesou no coração” de sas ou deixa de cumpri-las, mas aí há outra coisa que
Deus (Gn 6.6). O que é esse sentimento de peso no precisa ser entendida. Algumas promessas de Deus
coração senão tristeza diante da situação trágica da são realmente condicionais. É como se Deus dis-
humanidade? Os estudantes de teologia perguntam sesse: “Se vocês fizerem isso eu vou lhes abençoar,
frequentemente se não havia uma palavra que pudes- mas se vocês não fizerem eu vou lhes amaldiçoar”.
se explicar melhor o que Deus sentiu nos momentos Nesse caso também não há qualquer mudança em
descritos acima. A resposta é não. Não há palavras Deus, pois ele está agindo conforme seu propósito
para explicar que sentimento Deus teve. A palavra em ambos os casos. A própria conversão do homem
que o escritor inspirado usou é a melhor, porém, pre- se enquadra nisso. Antes de se converter, o homem
cisamos entender à luz de toda a Bíblia o que ela real- tinha sobre si a ira de Deus, mas após a conversão
mente significa. E como já vimos, a Bíblia diz: “Deus recebe graça e misericórdia. Note que em todos os
não é homem para que se arrependa” (Nm 23.19). casos citados acima não foi Deus quem mudou, mas
Então, podemos entender os textos que falam do ar- o homem. Deus apenas agiu em conformidade com
rependimento de Deus, como se referindo a um arre- o que havia decretado à respeito das atitudes dos
pendimento diferente daquele que o homem sente. homens, sem mudar algo de seu ser, atributos, pro-
Isso precisa ficar bem claro, pois em Deus não há fa- messas ou decretos. O famoso caso do rei Ezequias
lhas. Ele não precisa lamentar por não conseguir rea- também se enquadra nessa explicação. Ezequias após
receber um ultimato de Deus de que iria morrer, im-
lizar algum plano. Ele jamais poderá ser acusado de
plorou ao Senhor que lhe concedesse mais tempo
não ter planejado ou previsto as dificuldades, como é
de vida e Deus lhe deu uma sobrevida de 15 anos (Is
comum no ser humano. Porém, ele tem sentimentos.
38.1-8). Ezequias morreria se Deus não interviesse,
Jesus deixou isso bem claro ao lamentar sobre Jerusa-
mas estava em seu plano intervir, fazendo uso da ora-
lém, quando esta o recusou, dizendo: “Quantas vezes
ção do próprio Ezequias. Isso tudo faz parte do decre-
quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os do
to divino e, em nada, abala sua imutabilidade, porém
seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o qui-
destaca, de uma forma impressionante, o papel da
sestes!” (Lc 13.34). Será que Jesus não tinha poder de
oração no cumprimento dos decretos de Deus.
mudar aquela situação? Certamente que tinha, mas,
não mudou. Não obstante, entristeceu-se por ver a Falta-nos ainda explicar a encarnação de Cristo, e esta
dureza de coração do povo. Do mesmo modo Jesus é certamente a tarefa mais difícil até aqui. A chave para
entender a questão é que devemos entender a encar-
8 Antropopatismo significa literalmente "sentimentos nação de Cristo como fazendo parte do eterno pro-
humanos". pósito de Deus, que foi levado a efeito por um ato de

68
sua vontade. Nesse sentido, a encarnação não trouxe sobre esse caráter divino que é imutável. É o caráter
nada de novo à divindade, pois era algo eternamente de um Deus que inicia uma obra e a completa, mas
previsto e predeterminado. Às vezes lemos na Bíblia não no improviso, em reação aos erros e vicissitudes
que Jesus é o Cordeiro que foi morto desde a fun- de uma construção, pois ele segue o seu plano como
dação do mundo (1Pe 1.20; Ap 13.8). Mas quando um arquiteto que tem uma planta perfeita. E não é
foi que Cristo morreu? Para Deus, ou seja, em seus só a planta que é perfeita, mas também seu conheci-
planos e decretos, essa morte já estava contada desde
mento e poder para executar o que ele mesmo deter-
o início. O mesmo, portanto, pode ser dito de sua en-
minou. Se o futuro estivesse "aberto' para Deus, en-
carnação. Era algo predeterminado, algo que já fazia
parte da história da Trindade. Nada foi acrescido ou tão, toda a certeza sobre qualquer coisa escorregaria
diminuído de Deus pela encarnação de Cristo, pois pelo ralo. Não saberíamos sequer, se Deus consegui-
foi apenas um agir segundo seus planos eternos . ria estabelecer os "novos céus e nova terra" que estão
prometidos. Tudo deveria ficar em suspense, e talvez,
CONCLUSÃO: VALE A PENA CONFIAR em vez de orarmos a ele que nos ajude, ele teria que
pedir a nós que o ajudássemos a cumprir seu plano.
Concluímos, portanto, que Deus está sempre em Ou pelo menos que não o atrapalhássemos.
movimento, porém, seu ser, seus atributos, sua von-
tade e seus decretos jamais mudam. Como diz Pink Se Deus mudasse seus planos, ou melhor, se algo
"aqui temos consolação firme. Não se pode confiar forçasse Deus a mudar seus planos, como um mau
na criatura humana, mas em Deus sim''.9 De fato, construtor precisa a cada momento consertar os er-
Deus é uma Rocha Eterna, que nunca muda. Ele se
ros cometidos, não teríamos garantias de que as pro-
relaciona com o ser humano e se faz conhecido na
messas que estão na Bíblia de fato aconteceriam. É
linguagem do ser humano. Seus sentimentos não são
artificiais ou forjados, mas puros, sinceros e perfeitos. certo que não precisamos ter medo disso, e o motivo
O futuro existe para Deus e não está aberto. Ele é tão não é outro senão que Deus é imutável. A imutabili-
certo e definitivo quanto o passado. O conhecimento dade de Deus é a garantia de que todas as suas pro-
de Deus sobre as coisas que ainda virão é o mesmo messas se cumprirão. Isso nos dá segurança para crer
que ele tem sobre as coisas que já aconteceram. Seu nele, e podemos mesmo ficar seguros, afinal a Rocha
domínio é pleno e completo. Nossa salvação repousa é Eterna.

9 A. W. Pink. Los Atributos de Dios, p. 52.

69
10. SOBERANIA DE DEUS OU LIVRE-ARBÍTRIO DO HOMEM?

Para muitos, a ideia da soberania de Deus não pode a soberania de Deus e a responsabilidade humana de
ser aceita, porque faria o homem não ser responsá- “paradoxo”. Paradoxo pode ser definido como “a jun-
vel por seus atos. Aqui nos deparamos com um dos ção de dois pensamentos que parecem contradizer
maiores dilemas da teologia. Neste estudo, abordare- um ao outro”.1 J. I. Packer prefere chamar de “Antinô-
mos os aspectos bíblicos a respeito da soberania de mio”. Ele entende que paradoxo é apenas uma figura
Deus e da responsabilidade humana, numa tentativa, de linguagem e que, portanto, não faz justiça à tensão
não de harmonizá-los, mas de demonstrar que am- bíblica entre soberania de Deus e responsabilidade
bos são verdadeiros e bíblicos. Nossa abordagem visa
do homem.2 De qualquer maneira, os termos não são
demonstrar que a Bíblia enfatiza que Deus é sobera-
tão importantes, desde que se entenda que há uma
no, mas que, ao mesmo tempo, o homem é respon-
sável por suas atitudes e que ninguém pode alegar tensão exposta na Bíblia entre a soberania de Deus e
ignorância ou coação em nada do que fez ou deixou a responsabilidade humana. São duas verdades, apa-
de fazer. rentemente contraditórias, ambas sustentadas pela
Escritura e que não são realmente contraditórias.
PARADOXO OU CONTRADIÇÃO? Geralmente as pessoas vão optar por uma ou por
outra. Quem acredita que tudo o que acontece nes-
Sempre imaginamos que Deus seja mais poderoso sa vida acontece exclusivamente, porque o homem
que o homem, mas nem sempre relacionamos isso toma decisões e é responsável por elas, não consegue
com o dia a dia, nas decisões que precisam ser toma- imaginar que Deus tenha, em sua soberania, determi-
das a cada momento. Será que alguém tem livre-ar- nado todas as coisas que acontecem. Por outro lado,
bítrio para tomar todas as decisões, ou será que, de aqueles que pendem apenas para o lado da soberania
alguma maneira, todas as coisas que alguém decide
de Deus, às vezes, fazem do homem algo como um
já foram decididas antes por Deus? Até que ponto
mero robô, isento de responsabilidades pessoais.
Deus é soberano em relação a tudo o que acontece
nesse mundo e até que ponto o homem é responsá-
vel por seus atos? Ou será que esses dois conceitos 1 Anthony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 11
são mutuamente excludentes? Os teólogos têm cha- 2 Ver J. I. Packer. A Evangelização e a Soberania de Deus, p.
16-18.
mado essa tensão aparentemente contraditória entre

70
Como já dissemos, essas duas verdades não podem senvolvei a vossa salvação com temor e tremor; por-
ser realmente contraditórias. Quando dois elemen- que Deus é quem efetua em vós, tanto o querer como
tos se contradizem, apenas um pode ser verdadeiro, o realizar, segundo a sua boa vontade”. A responsabi-
pois é impossível que haja duas verdades contradi- lidade de “desenvolver” a salvação, uma ideia que cer-
tórias. Nesse caso, só podemos admitir que “pare- tamente tem a ver com santificação, é atribuída aos
ça” contradição, como resultado da incapacidade de crentes. São eles que devem desenvolver-se em sua
nossa mente de compreender o todo, mas ambos os fé, buscando o crescimento e demonstrando “temor
elementos são verdadeiros. A Bíblia diz que Deus é e tremor”. Isso nos dá uma noção da seriedade do as-
aquele que “faz todas as coisas conforme o conselho sunto chamado santificação. Mas é um fato que, se o
da sua vontade” (Ef 1.11) e que ninguém jamais “re- texto terminasse no verso 12, teríamos a ideia de que
sistiu à sua vontade” (Rm 9.19). Com relação aos ho- tudo depende exclusivamente do homem. Quando
mens, Paulo diz que Deus é o Oleiro que tem direito lemos o verso 13, entretanto, percebemos que as coi-
sobre a massa “para do mesmo barro fazer um vaso sas não são bem assim. Paulo explica que Deus opera
para honra e outro para a desonra” (Rm 9.21). Es- o “querer” e o “realizar” na vida das pessoas. Isso só
sas expressões demonstram claramente a soberania pode ser entendido como o ato de colocar o desejo
de Deus sobre tudo e sobre todos. Há um número correto em nós, que é a condição de realizar o que
incrivelmente extenso de passagens bíblicas que po- é certo, somado à capacidade de realizá-lo. Nisso ve-
deriam ser usadas em adição. Entretanto, da mesma mos os conceitos de soberania de Deus e responsa-
forma, a Bíblia diz que o homem é absolutamente bilidade humana conjuntamente e, conforme o texto
responsável por suas próprias atitudes. Jesus disse: deixa bem claro, um não elimina o outro. Devemos
“Porque o filho do homem há de vir na glória de seu pensar em Deus como soberano e entender que,
Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um tudo o que acontece nesse mundo, acontece como
segundo as suas obras” (Mt 16.27). Se a retribuição a vontade dele deseja, porém, igualmente entender
de Deus leva em conta as obras de cada um, então que o homem tem a obrigação de agir corretamen-
é porque todos têm profunda responsabilidade por te. Essas duas verdades parecem opostas a princípio,
tudo o que fazem. Tiago em uma de suas frases mais mas, na verdade, se complementam. De nada adianta
famosas sobre oração diz: “Nada tendes porque colocarmos a soberania de Deus e a responsabilida-
nada pedis, pedis e não recebeis porque pedis mal” de do homem uma contra a outra, pois juntas elas
(Tg 4.2-3). Tiago está dizendo que uma das razões demonstram harmonia e propósito, ainda que não
pelas quais os crentes, muitas vezes, não têm nada é entendamos muito bem esse relacionamento.
porque deixaram de pedir o que precisavam. A res-
ponsabilidade, nesse caso, é totalmente deles. Vemos, Há muitos outros textos que mostram esses dois
portanto, que a Bíblia enfatiza tanto a soberania de conceitos unidos, como por exemplo, Lucas 22.22:
Deus quanto a responsabilidade humana simulta- “Porque o Filho do homem, na verdade, vai segun-
neamente, e como a Bíblia não pode se contradizer, do o que está determinado, mas ai daquele por inter-
necessariamente esses dois conceitos precisam ser médio de quem ele está sendo traído!”. Esse texto diz
verdadeiros. que Jesus seria morto, porque estava determinado
por Deus que aquilo acontecesse, porém, o traidor,
Em Filipenses 2.12-13 podemos ver esse conceito no caso Judas Iscariotes, pagaria por isso. Judas jamais
bem explícito. O texto diz: “Assim, pois, amados meus, poderia argumentar diante de Deus que não tinha
como sempre obedecestes, não só na minha presen- culpa na traição, dizendo que simplesmente fizera
ça, porém, muito mais agora, na minha ausência, de- o que já estava decretado, ou que fora forçado pelas

71
circunstâncias. Ele tinha responsabilidade pessoal de Deus: “Lembrai-vos das coisas passadas da an-
no ato, pois quis fazer aquilo. O fato é que ninguém tiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou
o obrigou, embora em última instância, tudo tenha Deus, e não há outro semelhante a mim; que desde
ocorrido segundo a vontade de Deus. o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a
antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que
Apesar dessas explicações, aqui não se pretende dizer digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda
que é possível entender perfeitamente o “paradoxo” a minha vontade; que chamo a ave de rapina desde o
ou “antinômio”. Não é uma questão de entender so- Oriente e de uma terra longínqua, o homem do meu
mente. Seria muito mais fácil excluir uma dessas ver- conselho. Eu o disse, eu também o cumprirei; tomei
dades e tentar viver confortavelmente3 com a outra, este propósito, também o executarei” (Is 46.9-11). Na
como muitos têm feito. Isso, porém, não faria justiça descrição do profeta, Deus é aquele que pode anun-
ao ensino da Escritura. Mesmo que não entendamos ciar as coisas antes que aconteçam por dois motivos:
perfeitamente esse assunto, precisamos manter os primeiro porque tem um plano definido, e segundo,
dois conceitos, crendo e afirmando tanto a soberania porque tem o poder para realizá-lo. Daniel também
de Deus, quanto a responsabilidade do homem. nos fala sobre a vontade decretiva de Deus: “Todos
os moradores da terra são por ele reputados em nada;
A VONTADE DE DEUS e segundo a sua vontade ele opera com o exército do
céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa
O ensino bíblico a respeito da “vontade de Deus” é deter a mão, nem lhe dizer: que fazes?” (Dn 4.35).
essencial para entendermos um pouco mais a respei- Ninguém pode se levantar para impedir que Deus
to do relacionamento entre a Soberania de Deus e a faça algo e nem mesmo questioná-lo. Os moradores
Responsabilidade Humana. Podemos definir a Von- da terra nada são perante ele, mas ao mesmo tempo
tade de Deus de duas formas: uma absoluta e outra ele opera através deles. Isso se parece muito com a
relativa. declaração da Confissão de Westminster: “Desde
toda a eternidade e pelo mui sábio e santo conselho
Vontade Absoluta de sua própria vontade, Deus ordenou livre e inalte-
ravelmente tudo quanto acontece, porém de modo
A vontade absoluta de Deus é conhecida como von- que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada
tade decretiva. Refere-se a tudo o que Deus determi- é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou a
nou que aconteça. Deus tem um plano traçado para contingência das causas secundárias, antes estabele-
todas as coisas e nada neste mundo foge aos seus pro- cidas”.4 À vontade decretiva de Deus é a razão última
pósitos. Através de sua intervenção direta ou através porque qualquer coisa acontece neste mundo, seja
de meios naturais, Deus leva a efeito seu plano, e nada boa ou má. Essa vontade não pode ser contrariada,
pode impedi-lo. Às vezes essa vontade é chamada de pois o eterno propósito de Deus não pode ser frus-
secreta por ser desconhecida (Dt 29.29), e também trado. Parece óbvio, que tudo o que acontece nesse
de vontade de propósito, pois se refere ao supremo mundo, acontece no mínimo, porque Deus permitiu.
propósito de Deus. No Livro do Profeta Isaías encon- Às vezes esse aspecto permissivo da vontade de Deus
tra-se uma excelente descrição da vontade decretiva é o escape dos teólogos para explicar o inexplicável.
Não devemos pensar em Deus como um todo-pode-
3 Esse conforto só existe se o assunto nunca for analisado
mais profundamente, e se os elementos bíblicos nunca forem abor-
dados honestamente. 4 Confissão de Fé, III, 1.

72
roso passível que simplesmente diz: “pode ser”. Deus te do perverso, mas em que o perverso se converta
é ativo. Ele é o soberano do universo. Num simples do seu caminho e viva. Convertei-vos, convertei-vos
ato de permitir, está incluído muito mais do que uma dos vossos maus caminhos; pois por que haveis de
autorização. Mas a Confissão é clara como a própria morrer, ó casa de Israel?”. Deus não tem prazer na
Bíblia: Isso não faz de Deus o autor do pecado.5 morte do perverso, seu prazer está em vê-lo conver-
tido. É nesse sentido que devemos entender o texto
Vontade Relativa de 1Timóteo 2.3-4 que afirma que Deus “deseja que
todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
Há um outro aspecto da vontade de Deus que se di- conhecimento da verdade”. Deus, em seu ser íntimo,
fere do que estudamos acima por não ser absoluto. não deseja que alguém seja condenado (2Pe 3.9).
É a vontade de Deus a qual os homens conseguem Mas nesse ponto é impossível não questionar: En-
contrariar. Um aspecto dessa vontade tem a ver com tão por que nem todos se convertem? Não há outra
seus preceitos e está ligado à Lei de Deus. Nesse sen- resposta senão: Porque não é sua vontade decretiva
tido estamos falando da vontade preceptiva. A vonta- que todos se convertam, e também porque não é a
de preceptiva pode ser também chamada de vontade vontade dos homens de se converter. A certeza que
revelada. Ela refere-se aos mandamentos divinos e ao podemos ter é que se converterão todos aqueles que,
fato de que ele deseja que sua justiça seja cumprida. em seu decreto, foram designados para isso. O fato
Ao contrário da vontade decretiva, a preceptiva pode de Deus desejar que certas coisas aconteçam, como
e frequentemente é contrariada. Deus deseja que to- por exemplo a conversão dos ímpios, não anula o fato
dos os homens cumpram a sua Lei, porém é um fato de que ele tem uma vontade decretiva, e que, muitos
evidente que a Lei não é respeitada por todos. Nesse desses ímpios certamente não se converterão. O sim-
sentido, sua vontade é contrariada, e isso o desagra- ples fato de Deus desejar que todos sejam salvos não
da: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entra- faz com que todos sejam salvos. Podemos perguntar
rá no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de em contrapartida: Deus não tem o poder de salvar a
meu Pai que está nos céus” (Mt 7.21). Quando Deus todos? Só há uma resposta: claro que ele tem. Então
ordenou “não matarás”, estava revelando um aspecto por que não salva? Novamente só há uma resposta:
de sua vontade, porém, não um aspecto absoluto, no porque embora essa seja sua vontade de desejo não
é sua vontade de decreto. A vontade relativa de Deus,
sentido de que não possa ser contrariado e sim um
portanto, refere-se a algo bom que Deus deseja que
aspecto relativo, pois o homem consegue cumprir ou
aconteça, porque Deus sempre deseja o melhor, mas,
descumprir esse mandado de Deus.
ao contrário da vontade decretiva, não precisa neces-
sariamente acontecer. Precisamos pensar na respon-
Um outro aspecto relativo da vontade de Deus é o
sabilidade do homem à luz desses dois conceitos da
que pode ser chamado de vontade de desejo e, nes-
vontade de Deus, que de certo modo, também são
se caso, representa aquilo que Deus gostaria que
conceitos paradoxais.
acontecesse, como Deus bom e justo que é, mas
que nem sempre acontece. Isso poder ser visto, por
Se alguém argumentasse, a partir da exposição da
exemplo, em Ezequiel 33.11: “Tão certo como eu vontade absoluta e da vontade relativa de Deus, se
vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na mor- é possível que alguém, ao mesmo tempo, cumpra e
descumpra a vontade de Deus, teríamos que respon-
5 Ver Loraine Boettner. The Reformed Doctrine of Predesti- der com as palavras de Agostinho: “Este é o signifi-
nation, p. 242. cado da afirmação: ‘as obras do Senhor são grandes,

73
bem consideradas em todos os seus atos de vontade’ Deus constata dos anti-diluvianos: “Viu o Senhor
– que, de uma maneira estranha e inefável, mesmo o que a maldade do homem se havia multiplicado na
que é feito contra a sua vontade [contra eius volun- terra e que era continuamente mau todo desígnio
tatem] não se faz sem a sua vontade [praeter eius vo- do seu coração” (Gn 6.5). A Bíblia indica que a cor-
luntaten].”6 rupção do pecado passou a todos os seres humanos:
“Portanto, assim como por um só homem entrou
O LIVRE-ARBÍTRIO o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim
também a morte passou a todos os homens, porque
Uma pergunta que normalmente surge diante des- todos pecaram” (Rm 5.12). Essa é a terrível constata-
se assunto é: E o livre-arbítrio do homem? Não diz ção que a Bíblia faz de toda a humanidade: “Não há
a Bíblia que o homem tem livre-arbítrio? Por mais justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há
incrível que possa parecer para muitos, o fato é que quem busque a Deus; todos se extraviaram, a uma se
a Bíblia não diz. A expressão livre-arbítrio não se en- fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem
contra na Bíblia e o conceito popular que se tem dele um sequer” (Rm 3.10-12). Os teólogos reformados
também não. Especialmente o conceito de que as chamam essa incapacidade humana em fazer o que é
pessoas tenham a capacidade de agir absolutamente certo de “Depravação Total”. O homem, após a que-
livres e independentes de qualquer coisa. Ninguém da, se tornou depravado. Seu coração, na linguagem
é independente de Deus. Paulo disse aos filósofos de Jeremias – “desesperadamente corrupto” (Jr 17.9)
gregos que em Deus “vivemos, e nos movemos, e –, não tem mais condição alguma de escolher o que
existimos” (At 17.28). Se uma pessoa tivesse a ca- é certo. Todos os homens, por natureza, estão mortos
pacidade de agir completamente livre da influência em seus delitos e pecados (Ef 2.1). Livre-arbítrio não
de Deus, então, ela teria que ser igual a Deus. Nem existe, porque o homem não tem condições de esco-
sequer somos independentes do meio em que vive- lher o que contraria sua natureza pecaminosa.
mos. A sociedade influencia nossas vidas, mas isso
não significa que sejamos menos responsáveis por Apesar de o homem não possuir livre-arbítrio, ele
nossas atitudes. Uma outra definição de livre-arbí- tem uma certa liberdade. O homem não é um robô,
trio seria a capacidade de agir de forma contrária à pois tem alguma liberdade. Em geral os teólogos re-
própria natureza. Essa definição de livre-arbítrio é formados chamam essa liberdade humana de “livre
agência”, uma palavra que dá uma conotação diferen-
mais exata e pode ser encontrada, pois pelo menos
te de livre-arbítrio. A livre agência significa a liberda-
Adão a teve. Adão foi o único homem que tinha a li-
de que o homem tem de escolher certas coisas, mas
berdade de agir de forma contrária a sua natureza. A
dentro de um contexto. É possível que Deus, dentro
natureza de Adão era boa, porém, Deus o capacitou
de sua soberania, mantenha um nível de liberdade ao
com liberdade suficiente para escolher tanto o bem
homem a fim de que este tome certas atitudes e aja
quanto o mal. Assim, fazendo uso de seu livre-arbí-
segundo princípios inerentes a ele. É aquilo que, se-
trio, ele escolheu o mal. Após isso, os homens não ti-
gundo a Confissão de Fé, Deus faz ao estabelecer por
veram mais esse livre-arbítrio, pois se tornaram maus
seu decreto a liberdade ou a contingência das causas
e sem condições de escolher o bem. Após a queda secundárias. Se Jesus nos mandou pedir para que ob-
todos os homens se tornaram corruptos, conforme tivéssemos algo, buscar para achar e bater para que
fosse aberto (Mt 7.7-8) é porque, do contrário, nada
6 Citado por: Anthony Hoekema. Criados a Imagem de disso aconteceria. Se nos disse que deveríamos insis-
Deus, p. 150. tir em oração diante de Deus, como a viúva insistiu

74
diante do juiz iníquo (Lc 18.1-7), é porque Deus em tando o princípio de vida espiritual que chamamos
sua soberania determinou que a oração tivesse papel de regeneração, que capacita o homem a fazer uma
crucial na obtenção das bênçãos. O mesmo pode ser decisão por Cristo. Esse princípio de vida é implanta-
dito da fé. Deus nos deu essa liberdade, porém, ele a do antes da conversão propriamente dita e, em geral
supervisiona de tal forma que não há riscos de que vem acompanhado do ouvir a Palavra de Deus. Nes-
nossa liberdade frustre seu plano eterno. Somos li- se ato, Deus capacita o homem a se converter e a res-
vres, mas não independentes. Somos como peixes no ponder com fé à pregação do Evangelho. O homem
mar, dentro dele temos certa liberdade, mas fora dele é de fato um agente livre, porém, ele sempre agirá de
só resta a morte. Nosso mar é a soberania de Deus, acordo com seus princípios, e em plena conformida-
ela proporciona nossa liberdade, porém, não é uma de com as disposições e tendências de sua alma. Se-
liberdade ilimitada. A diferença é que desse mar não gundo Berkhof o homem não perdeu essa liberdade
podemos sair. apesar da queda, mas o que perdeu foi “o poder ra-
cional de determinar o procedimento, rumo ao bem
Ainda com relação à oração, muitos não entendem supremo, que esteja em harmonia com a constituição
por que Deus nos manda orar se ele já sabe. E não de- moral original de sua natureza”.8
vemos esquecer que foi o próprio Jesus quem disse
que ele sabe (Mt 6.8). A oração faz parte importante Resta agora pensar no convertido, terá ele livre-arbí-
do propósito divino. Além disso, “a oração não existe trio? O convertido possui duas naturezas. A nova foi
para informar a Deus o que ele já sabe a respeito de implantada por Jesus através da regeneração, porém
nossas necessidades, mas para gozar da alegria de ex- a antiga ainda permanece, até porque o homem ain-
perimentar sua vontade justa e soberana e, no mais, da está “na carne”. Como tem duas naturezas pode
as outras coisas nos serão acrescentadas”.7 Ela é de agir tanto segundo uma, quanto segundo a outra.
suprema importância, embora não tenha o poder de Isso não é um livre-arbítrio propriamente dito. De
“mudar” a vontade de Deus. Aliás, se a oração tivesse fato, o convertido não precisa mais agir segundo a
o poder de mudar a vontade de Deus, será que seria carne, como Gálatas 5.16 deixa bem claro: “Andai no
conveniente utilizá-la? Se Deus estabeleceu algo, isso Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da car-
não significa que é o melhor? Afinal quem tem mais ne”. O convertido não tem livre-arbítrio porque age
capacidade de planejamento, previsão e execução? concomitante à sua natureza. Quando faz o bem, age
segundo o Espírito que está nele, quando faz o mal,
Não devemos esquecer que a liberdade humana ca- age segundo a carne.
pacita o homem a agir somente de acordo com sua
natureza. O homem decaído não pode escolher algo Todas as coisas acontecem de acordo com a Vontade
bom porque não existe nada de bom nele. Ele pode de Deus, porém, precisamos tomar cuidado para não
escolher entre uma coisa pior e outra menos ruim, nos tornarmos fatalistas, pois o homem não é uma
mas, uma vez que sua natureza é caída, sempre esco- espécie de robô programado. Embora o homem não
lherá coisas coerentes com ela. Não pode escolher tenha livre-arbítrio, continua sendo um agente livre
o bem (da perspectiva divina), porque sua natureza que faz escolhas segundo a sua vontade. É claro que,
é má (Mt 7.18). Para que o homem escolha o que é em última instância, o decreto de Deus garante que
certo, Deus precisa mudar a natureza dele, implan- até mesmo essas decisões serão tomadas, de tal forma

7 Ricardo Barbosa de Sousa. O Caminho do Coração, p. 163. 8 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 230-231.

75
que seu plano maior não será frustrado, mas o fato é CONCLUSÃO: ASSUNTO DIFÍCIL
que o homem toma essas decisões conforme a sua
vontade. Isaías profetizou que os caldeus invadiriam Concluímos, portanto, que a Bíblia ensina tanto a
Judá, isso estava decretado por Deus, porém, os cal- Soberania de Deus, quanto a Responsabilidade Hu-
deus invadiram Judá porque quiseram fazer aquilo. mana. Estes dois conceitos paradoxais nos dizem que
Todas as atrocidades que aquele povo cometeu ao
nada acontece por acaso, pois tudo segue a ordem
invadir Judá deram-se pelo espírito maligno daqueles
homens. Embora estivesse no plano de Deus, a res- que Deus estabeleceu, e ao mesmo tempo, o homem
ponsabilidade era pessoal. Deus somente usou Isaías participa ativamente de tudo, sempre agindo confor-
para profetizar sobre aquilo, porque, de fato, a invasão me seus impulsos e sendo responsável por suas atitu-
já estava decretada, pois Deus não poderia anunciar des. Concluímos ainda, que esse é um assunto difícil
algo que corresse o risco de não acontecer. Entretan- e que deve ser estudado com reverência. Porém, para
to, os caldeus não vieram em obediência a uma or-
que justiça seja feita ao ensino da Palavra, não pode-
dem direta de Deus, e sim, por causa de sua sede de
conquistas (Ver Is 10.5-15). Os decretos da vontade mos deixar de lado nenhum deles. Deus é soberano
soberana de Deus não contrariam a ação livre do ho- e o homem é responsável, esse é o ensino das Escri-
mem. Na verdade, Deus decretou as ações livres dos turas. Nem a sociedade, nem Deus são culpados por
homens, mas isso não torna os homens menos livres, nossas ações. Nós somos exclusivamente responsá-
nem menos responsáveis por seus atos. O decreto de veis por nossos atos, porém, Deus é Soberano. Tendo
Deus garante que uma determinada coisa acontece- isto em mente, podemos partir para a consideração
rá, mas não que Deus a realizará. Nada poderá frus-
de uma das mais discutidas doutrinas do cristianis-
trar o plano de Deus para este mundo, porém, cada
criatura é absolutamente responsável por todas as mo: a predestinação.
suas decisões e atitudes.

76
11. A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO

Não existe doutrina que cause mais discussão no obras. Essas objeções são dignas de consideração,
mundo cristão evangélico do que a doutrina da mas no fundo, a principal razão para o questiona-
predestinação. Algumas publicações polêmicas que mento é o velho grito de independência do ser hu-
circulam nos meios evangélicos chegam a taxar a mano, tão antigo quanto Adão. A verdade é que o
doutrina como “diabólica”. É um fato que parte dos homem sempre terá dificuldades em se submeter ao
cristãos se sente desconfortável ao ouvir falar dela. governo divino. O homem sempre desejará e fará de
Por outro lado, há muitos cristãos que têm verdadeira tudo para ser o senhor de seu próprio destino, ainda
fascinação por predestinação. Não conseguem ler um que para isto, precise destronar Deus. É difícil para o
texto bíblico sem pensar nela. Ela se torna uma espé- homem deixar Deus ser Deus.
cie de “centro unificador” da Escritura, e em todas as
conversas ou discussões, sempre acaba surgindo e é a A doutrina da predestinação tem um fundo históri-
resposta final para todas as questões difíceis. O que, co bastante amplo e controvertido. Agostinho (354-
afinal de contas, faz dessa doutrina algo tão polêmi- 430), um teólogo do quarto século, foi o primeiro
co? Por que as pessoas amam ou odeiam a doutrina depois de Paulo, a defender a doutrina da predesti-
da predestinação com a mesma intensidade? nação. Aquino1 e Lutero2 falaram sobre a predestina-
ção antes de Calvino, mas coube ao reformador de
O principal argumento daqueles que rejeitam a pre- Genebra a tarefa de sistematizá-la, e assim, eternizá-la
destinação é a questão da justiça divina. Acredita-se dentro do pensamento teológico da cristandade. O
que ela torna Deus injusto, uma vez que não parece entendimento de Calvino (1509-1564) sobre pre-
sensato que Deus escolha uns e outros não. Além dis-
so, afirma-se que crer na predestinação inibe a prega-
1 Aquino (1225-1274) escreveu: “O conceito de predestina-
ção do evangelho, pois não haveria razão de pregar, ção pressupõe a eleição, e esta, o amor (...). Por onde, todos os predes-
se, no fim, todos são predestinados, ou para a vida ou tinados são eleitos e amados”. (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica,
Vol. I, I.23.4. p. 235)
para a morte. Ainda objeta-se que a predestinação
2 Lutero, falando sobre a Predestinação, disse: “Duas coisas
inibe o desenvolvimento do próprio crente, pois, se obrigam à pregação da predestinação. A primeira é a humilhação do
alguém já é predestinado para salvação, então, não nosso orgulho e o reconhecimento da graça de Deus; e a segunda é
a natureza da fé Cristã em si mesma”. (Martin Luther, De Servo Arbi-
precisa fazer coisa alguma para garantir a salvação e, trio. In: E. Gordon Rupp & Philip S. Watson, eds. Luther and Erasmus:
Free Will and Salvation, p. 137).
por isso, não precisa pensar em santificação ou boas

77
destinação está cristalizado na Confissão de West- A teologia de Barth conduz ao universalismo. Brun-
minster, uma confissão eminentemente calvinista,3 ner (1889-1966), outro teólogo da neo-ortodoxia,
formulada por uma grande comitiva de teólogos pu- entendia que predestinação é apenas uma questão
ritanos no século 17. A Confissão define a doutrina de fé, assim aquele que crê é eleito e aquele que não
do seguinte modo: “Pelo decreto de Deus e para a crê é reprovado.6 A concepção de Brunner é muito
manifestação da sua glória, alguns homens e alguns próxima da de Armínio. Atualmente, o Calvinismo e
anjos são predestinados para a vida eterna e outros o Arminianismo são os principais expoentes da dou-
preordenados para a morte eterna”.4 Pouco tempo trina da predestinação, e a maior parte das igrejas se
depois de Calvino, um teólogo reformado chamado enfileira atrás de uma dessas posições.
Armínio (1559-1609) revoltou-se contra o enten-
dimento calvinista da predestinação, reformulando TODOS CREEM EM PREDESTINAÇÃO
a doutrina. Armínio defendeu a predestinação sob a
base exclusiva da presciência divina. Nesse sentido, o Do que foi dito, fica claro que a maioria das denomi-
ato divino de escolha é condicionado por seu conhe- nações crê em predestinação, pelo menos em tese.
cimento do futuro. Deus sabe quais pessoas crerão e Não poderia ser diferente, afinal ela está clara na Bí-
quais não e sobre essa base predestina. blia, inclusive a palavra “predestinados” aparece na
Bíblia explicitamente aplicada aos crentes (Ef 1.11).
Após a Reforma, com o surgimento do iluminismo, a O que ocorre é que há diferença em como se vê essa
teologia cedeu espaço para a filosofia, e as doutrinas predestinação. O arminianismo, de uma forma ou de
místicas foram consideradas impróprias. A teologia outra, é a maneira como as igrejas evangélicas mais
liberal, fruto do iluminismo, não se interessou pela admitem a predestinação. No arminianismo, acredi-
doutrina da predestinação. O movimento da neo- ta-se que Deus predestina as pessoas com base em
-ortodoxia, que foi uma reação ao liberalismo e uma algo que vê nelas. Assim, a base dessa escolha seria
tentativa de volta à ortodoxia reformada, fixou sua a Onisciência divina. Deus não escolhe por sua
atenção na predestinação. Entretanto, os maiores teó- própria vontade, mas porque viu que uma determi-
logos desse período tiveram entendimentos bem di- nada pessoa o aceitaria. Embora uma grande parte
ferentes sobre ela. Barth (1886-1968), o campeão da do cristianismo veja as coisas dessa forma, notamos
neo-ortodoxia, a partir de sua visão “cristomonística” algumas inconsistências nesse tipo de pensamento.
da teologia, entendia que somente Jesus era o eleito Uma delas é que, se fosse assim, então, não existiria
e o preterido, e que nele toda a humanidade é eleita.5 verdadeira escolha da parte de Deus, mas uma sim-
ples constatação antecipada do que viria a acontecer.
Nesse caso a escolha verdadeira seria do próprio ho-
3 Muitos rejeitam a ideia de que a Confissão de Westminster mem, e então, nem haveria a necessidade da Bíblia
seja realmente uma confissão calvinista, pois acreditam que os teó-
logos puritanos modificaram o pensamento de Calvino. No entanto, falar em “predestinar”. Outra inconsistência deve-se
entendemos que a CFW reflete consistentemente o pensamento do
Reformador de Genebra. Tratamos um pouco desse assunto em nos- ao fato de que, se Deus meramente anteviu quem se-
sa dissertação de Mestrado, e um resumo da mesma pode ser encon- ria salvo, escolhendo sob essa ótica exclusiva, então,
trado na revista Fides Reformata: Leandro Antonio de Lima. Calvino
Ensinou a expiação Limitada? Revista Fides Reformata, Vol 9, n.1, que garantias poderia haver de que essa “predestina-
2004, São Paulo: Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, p. 77-99.
ção” divina realmente viria a acontecer? E, se estes
4 Confissão de Fé de Westminster, III, 3.

5 Ver Stanley J. Grenz & Roger E. Olson. A Teologia do Sécu-


lo 20, p. 87. 6 Ver Stanley J. Grenz & Roger E. Olson. A Teologia do Sécu-
lo 20, p. 101.

78
já creriam, por que então escolhê-los? Se Deus não é mais bíblica e coerente. Nela não há risco de Deus
intervém com seu poder para cumprir seu propósito, ser o autor do pecado das pessoas. Por isso, quando
a possibilidade de que seus planos não se cumpram falamos em salvação, o termo correto é eleição, pois
deve ser considerada como algo real. Caso alguém somente são eleitos os que serão salvos. Quando fa-
afirme que o fato de Deus ter previsto garante que lamos em condenação o termo correto é preterição,
o futuro aconteça, as coisas ficam ainda piores, pois que significa “passar por alto”, “deixar para trás”. As-
haveria uma força que não é Deus, garantindo que o sim, os salvos são os eleitos e os condenados são os
futuro aconteça. Essa força seria o acaso. No final das preteridos. Apesar de toda a discussão histórica sobre
contas, o acaso estaria governando, e então, tudo não esse assunto, e de reconhecermos as dificuldades do
passaria de fato de um determinismo. mesmo, pretendemos demonstrar que essa ainda é a
melhor exposição do ensino bíblico sobre predesti-
Na visão reformada, as vezes se fala em dupla predes- nação.
tinação, envolvendo a salvação e a condenação. Nem
todos os reformados aceitam a ideia da dupla predes- VALORIZANDO AS ESCRITURAS
tinação, só os supralapsarianos.7 Os infralapsarianos
não usam o termo predestinação ou eleição para a Cada vez menos as pessoas acreditam e valorizam a
condenação – usam preterição, que é a ausência de Palavra de Deus. O grande movimento da teologia
predestinação, e não dizem predestinados para con- liberal que inundou os seminários e consequente-
denação ou morte eterna, referindo ao decreto divi- mente as igrejas, especialmente a partir do Século
no, mas preordenados que é o termo usado na Con- 19, causou o esfriamento e o esfacelamento da maio-
fissão de Westminster. A diferença básica entre Infra ria das igrejas protestantes da Europa e dos Estados
e Supralapsarianismo tem a ver com a ordem dos Unidos, por causa de sua ênfase no estudo da Bíblia
decretos divinos. A ideia é se Deus levou em conta com pressupostos “científicos” e anti-sobrenaturalis-
a queda ao decretar a eleição. É a questão da lógica tas. Uma grande parte da população cristã mundial
(não cronológica) dos decretos. No Infralapsarianis- deixou de crer na Bíblia como a Palavra de Deus iner-
mo Deus decretou: 1) Criar; 2) Permitir a queda; 3) rante e infalível. Por outro lado, os movimentos teo-
Escolher para a vida eterna parte da humanidade de- lógicos do Século 20, como a neo-ortodoxia e movi-
caída e deixar a outra em seus pecados e condenação; mentos subsequentes, ou o movimento pentecostal e
4) Dar seu filho Jesus para redimir o eleito; 5) Enviar neo pentecostal, todos com ênfase no subjetivismo, e
o Espírito para aplicar a redenção no eleito. No Su- parecendo ser antídotos contra o liberalismo, caíram
pralapsarianismo Deus decidiu: 1) Escolher alguns no mesmo erro, porém pelo caminho inverso. Espe-
para a vida e destinar outros para a perdição; 2) Criar; rando tanto encontrar a Palavra de Deus, acabaram
3) Permitir a queda; 4) Enviar Cristo para redimir o abandonando a Escritura como única fonte de auto-
eleito; 5) Enviar o Espírito para aplicar a redenção ridade, recorrendo ao subjetivismo ou a novas revela-
no eleito.8 Entendemos que a posição Infralapsária ções. Hoje vivemos um tempo de extrema superficia-
lidade. Em poucos lugares a Bíblia é realmente levada
a sério. A moda é usar partes da Bíblia conforme o
7 Para ver a aplicação destes termos antes e depois da Re-
forma ver: Fred H. Klooster, Supralapsarismo: In: Walter A. Elwell, ed. interesse pessoal. Não é como no tempo da Reforma
Enciclopédia Histórico Teológica da Igreja Cristã, Vol. III, p. 424425; Su- em que os reformadores clamavam “sola scriptura”,
pra lapsum: In: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theo-
logical Terms, p. 292. querendo também denotar “toda a escritura”, hoje,
8 Ver Boetner. The Reformed Doctrine of Predestination, p. lê-se apenas o que interessa. Assim, proliferam-se as
126-127. Ver tb: Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 119-121
chamadas “caixinhas de promessas”, recheadas de

79
“boas” palavras para os crentes, contendo apenas par- sua construção. A escolha divina foi a metodologia
te da revelação de Deus. A predestinação se encaixa adotada por Deus para desenvolver seu plano no
nesse assunto por ser uma doutrina bíblica, porém, mundo. Essa é justamente a resposta que Paulo dá, a
extremamente negligenciada. É lamentável que as fim de provar que a Palavra de Deus não falhou. Não
pessoas leiam apenas o que lhes interessa, e que líde- falhou porque os eleitos foram salvos. Eleitos esses de
res ensinem somente o que está em conformidade dentro da própria nação de Israel, como ele diz mais
com sua crença pessoal, sem se dar ao trabalho de tarde, se referindo aos crentes israelitas: “Assim, pois,
meditar nos assuntos que têm dificuldades para acre- também agora, no tempo de hoje, sobrevive um re-
ditar. O velho liberalismo selecionava as porções da manescente segundo a eleição da graça. E se é pela
Escritura, às quais julgava dignas de crédito, enquan- graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não
to abandonava as outras. Hoje não é diferente. O é graça” (Rm 11.5-6). Podemos deduzir, portanto, do
ensino bíblico sobre predestinação é muito extenso, entendimento de Paulo, que a eleição é a garantia de
pode ser visto de Gênesis a Apocalipse, e o fato de que a Palavra de Deus (promessas) não falhou. Nis-
ser tão rejeitado é só mais uma amostra do quanto a so vemos a necessidade da escolha de Deus. Deve
própria Bíblia é rejeitada na fé e na prática devocional ser notado ainda que aquilo que para muitos é um
das pessoas. escândalo, Paulo apresenta com muita naturalidade,
demonstrando que na verdade, a predestinação é ab-
A NECESSIDADE DA ESCOLHA solutamente necessária. Sem ela a Palavra de Deus já
não seria digna de crédito.
Em Romanos 9, Paulo trata sobre uma questão muito
importante para sua época: Se Cristo veio para Israel, ANTES DA FUNDAÇÃO DO MUNDO...
por que os israelitas não se converteram? Essa era
uma pergunta crucial para os crentes daquela época, Falando sobre a escolha de Jacó e não de Esaú, Pau-
pois se Cristo veio para cumprir todas as promessas lo diz: “E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem
feitas a Israel, então, como justamente Israel não re- tinham praticado o bem ou o mal (para que o pro-
conheceu o Cristo? Teria a Palavra de Deus falhado? pósito de Deus, quanto à eleição prevalecesse, não
Esse é o questionamento que Paulo tem em mente por obras, mas por aquele que chama), já lhe fora
ao responder: “E não pensemos que a palavra de dito a ela: o mais velho será servo do mais moço”
Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são, (Rm 9.11-12). Não pode haver uma declaração mais
de fato, israelitas; nem por serem descendentes de precisa e direta sobre a predestinação do que essa. O
Abraão são todos seus filhos” (Rm 9.6-7). O que ele próprio significado do termo “predestinação” implica
está querendo dizer é que o simples fato de alguém necessariamente num ato feito anteriormente. É im-
fazer parte da nação de Israel não o torna salvo. Na portante que fique destacado que Deus tinha planos
visão de Paulo, a descendência de Abraão verdadeira para seu povo mesmo antes de criá-lo.
não é a da “carne”, mas a da promessa (v. 8). Os filhos
da promessa são necessariamente os eleitos. Abraão A eleição não acontece depois do nascimento. Os
teve dois filhos, mas Deus escolheu Isaque, filho de gêmeos foram objeto de escolha e preterição antes
Sara e não Ismael, filho da escrava Agar. Isaque tam- de terem nascido. Deus escolheu Jacó em lugar de
bém teve dois filhos (Esaú e Jacó), porém, Deus es- Esaú antes do nascimento de ambos. Isso está em
colheu Jacó para ser o patriarca da nação de Israel. perfeita harmonia com o ensino de Efésios 3.3-5
Com essas escolhas Deus estava demonstrando que, que diz: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Je-
desde o início, a eleição foi a ferramenta principal de sus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte

80
de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, está decretada antes da fundação do mundo, por isso,
assim como nos escolheu nele antes da fundação Jesus também disse: “Ninguém pode vir a mim se o
do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis pe- Pai que me enviou não o trouxer” (Jo 6.44). Mais à
rante ele; e em amor nos predestinou para ele, para frente, ele disse a mesma coisa com palavras diferen-
a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segun- tes: “Ninguém poderá vir a mim, se isso pelo Pai não
do o beneplácito de sua vontade”. Note a expressão lhe for concedido” (Jo 6.65). Note que ele falou essas
“antes da fundação do mundo”. Não há como negar, palavras a um grupo de pessoas que não criam nele.
Deus escolheu um povo para si antes mesmo de ter Obviamente, Jesus estava dizendo que não eram
criado esse povo. Não foi mera previsão, foi escolha. escolhidas, e por isso, não podiam vir até ele (crer).
É impossível afirmar que o escolhido da passagem de Deus tem escolhido aqueles que serão salvos, que vi-
Efésios 3.3-5 é Jesus e não os crentes. Fazer isso é tor- rão até ele, desde toda a eternidade, assim como havia
cer o significado óbvio do texto que afirma que “nós” escolhido Jacó e não Esaú, antes mesmo dos bebês
fomos escolhidos. Jesus é o instrumento que possibi- terem nascido.
lita a escolha. Deus escolheu pessoas para que fossem
salvas em Jesus, ou seja, mediante sua obra redento- NÃO POR OBRAS
ra. Não pode haver dúvidas, o tempo dessa escolha
foi antes da fundação do mundo, ou seja, antes dos De acordo com o texto de Romanos 9, Deus esco-
eleitos existirem, embora já existissem nos planos de lheu Jacó e preteriu Esaú, mas isso não aconteceu
Deus. por ter visto algo neles. Como vimos acima, os gê-
meos não tinham nascido, e Paulo completa: “Nem
Quando Jesus contou uma parábola para ilustrar o praticado o bem ou o mal”. Deus não escolheu Jacó
julgamento final, ele disse que todas as nações se- porque viu algo melhor nele do que em Esaú, pois
riam reunidas diante dele, e então, seriam separadas na verdade, Jacó era tão mau quanto Esaú, e até podia
as ovelhas dos cabritos (Mt 25.31-33). Para as ove- ser pior. Deus escolheu com base exclusiva em seu
lhas, Jesus dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai propósito, pois é esse propósito que determina a exis-
na posse do reino que vos está preparado desde a tência de todas as coisas (Ef 1.11). Ele não poderia
fundação do mundo” (Mt 25.34). Note que Jesus escolher baseado na capacidade humana de esco-
diz: o reino que vos está preparado. Quando Deus lher, pois a Bíblia afirma que o homem não tem essa
criou o mundo, já preparou um reino para os eleitos capacidade, uma vez que se encontra em estado de
que foram escolhidos desde aquele tempo. É por isso “morte espiritual” (Ef 2.1). Como vimos, Jesus dei-
que Jesus afirma: “As minhas ovelhas ouvem a minha xou bem claro que ninguém pode vir até ele se Deus
voz; eu as conheço, e elas me seguem” (Jo 10.27). Je- não o trouxer. Ele fez questão de deixar bem claro
sus conhece suas ovelhas, pois tem o nome de cada para seus discípulos quem escolheu quem: “Não fos-
uma delas escrita no Livro da Vida, desde a fundação tes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu
do mundo, conforme pode ser visto em Apocalip- vos escolhi a vós outros e vos designei para que vades
se 17.8: “E aqueles que habitam sobre a terra, cujos e deis fruto, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15.16).
nomes não foram escritos no Livro da Vida desde a Esse texto na língua grega tem uma ênfase extraordi-
fundação do mundo, se admirarão, vendo a besta que nária. Jesus está afirmando que não havia a mínima
era e não é, mas aparecerá”. Se os perdidos são os que chance dos discípulos o escolherem, e quando lemos
não têm o nome inscrito no Livro da Vida, então, os os Evangelhos, percebemos que de fato foi assim.
salvos são os que têm seus nomes escritos nesse livro, Jesus encontrou Pedro e João pescando e lhes cha-
desde a fundação do mundo. A salvação das ovelhas mou para serem pescadores de homens (Mt 4.19).

81
Encontrou Levi assentado à coletoria de impostos, e, mesmo que fosse a fé, então teríamos algum mérito
sem explicação alguma, simplesmente ordenou que nisso tudo e a consequência é que não poderíamos
lhe seguisse (Mc 2.14). Os discípulos responderam mais afirmar que somos salvos somente pela graça.
ao chamado divino com obediência. Sem esse cha- Teríamos que dizer que uma obra nossa (ainda que
mado nunca deixariam tudo para segui-lo. De acordo fosse a fé) nos salvou. A Bíblia, entretanto, é clara: não
com a Bíblia, nem sequer temos a capacidade de nos foi por algo que Deus viu em nós, ele decidiu baseado
arrependermos, pois o arrependimento é um dom de apenas em si mesmo.
Deus. Isso pode ser visto da declaração sobre a con-
versão dos gentios no livro de Atos: “Logo, também O VERDADEIRO MOTIVO: AMOR
aos gentios foi concedido por Deus o arrependimen-
to para a vida” (At 11.18, Ver 2Tm 2.25). Para aqueles Há um motivo pelo qual ele escolheu: seu amor. A se-
que pensam que a fé é uma obra humana, a Bíblia diz quência do texto de Romanos é ainda mais clara, pois
que ela é um dom de Deus (Ef 2.8). Deus concede diz que antes de nascerem, antes de fazerem qualquer
fé aos que são destinados para a vida, conforme Lu- coisa, foi dito: Escolhi o mais moço (Jacó). Não há
cas testemunha da pregação de Paulo em Antioquia: como negar no texto a preferência de Deus por Jacó
“Regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, em vez de Esaú. Eleição significa exatamente isso: a
e creram todos os que haviam sido destinados para a preferência divina. Deus preferiu Jacó em lugar de
vida eterna” (At 13.48). Esaú, como preferiu todos os demais eleitos em lugar
dos não eleitos. A questão chave nisso tudo é o seu
Não somos escolhidos por algo que Deus tenha vis- amor, conforme o texto segue: “Como está escrito:
to em nós, pois não há nada de bom no ser humano amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” (Rm 9.13).
para ser visto por Deus (Sl 14.2-3). Paulo declarou a O que motivou esse amor, entretanto, é uma resposta
seu discípulo Timóteo que Deus “nos salvou e nos que não temos. Sabemos o que não foi: não foi por ter
chamou com santa vocação; não segundo as nossas visto algo de bom em Jacó. Eleição é Deus escolher
obras, mas conforme a sua própria determinação alguém que, em absoluto, não merece ser escolhido.
e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos Vemos essa preferência aparentemente injustificada
tempos eternos” (2Tm 1.9). A clareza desse texto é na própria escolha de Israel no Antigo Testamento,
impressionante. Não fomos salvos e convocados por conforme a Bíblia demonstra: “Não vos teve o Se-
coisas boas que tivéssemos feito, nem mesmo por nhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais
uma fé pré-visualizada por Deus, a qual teria que ser numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor
algum tipo de obra nossa, mas pela determinação de de todos os povos, mas porque o Senhor vos amava”
Deus, a qual ele tomou antes de começar a existir o (Dt 7.7-8). O motivo da escolha de Israel não era o
tempo. mérito da nação, mas o amor que Deus devotou a na-
ção, um amor eterno, como o próprio Jeremias o des-
O próprio texto de Romanos que estamos consi- creve: “Com amor eterno eu te amei; por isso, com
derando se auto explica nesse sentido, no parêntese benignidade te atraí” (Jr 31.3). Não temos explicação
que segue: “Para que o propósito de Deus, quanto à para o amor de Deus que atrai os eleitos, apenas sabe-
eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele mos que esse amor é real e eterno. Quanto à escolha
que chama” (Rm 9.11). O que prevalece não é o que de Israel, ninguém poderia negar que Deus escolheu
está no homem, como algo que Deus simplesmente essa nação no Antigo Testamento, em detrimento de
tivesse visto, mas o desígnio daquele que chama. Se todas as demais nações da terra. Deus não escolheu
Deus tivesse nos escolhido por algo que viu em nós, uma nação já estabelecida, com base em méritos dela.

82
Deus mesmo fundou a nação, chamando Abraão e Em Adão todos caíram, e os homens por nature-
demonstrou seu amor por essa nação através de lon- za não desejam servir a Deus. Assim, quando Deus
gas gerações. deixa de escolher alguém, não está tirando algo que
devia ser do homem por direito, mas simplesmente o
Em geral quando os Arminianos argumentam que abandonando a sua própria sorte, ou ao estilo de vida
a predestinação é baseada apenas no pré-conheci- que o próprio homem escolheu para si. Seria mais
mento, usam o texto de Romanos 8.29 que diz: “Aos difícil pensar na predestinação se todos os homens
que de antemão conheceu, também os predestinou”. fossem salvos e Deus tirasse ou dificultasse a salvação
Porém, a ênfase posta sobre a expressão “conheceu” de alguns por meio de seu decreto, porém, todos já
é injustificada no nosso entendimento. O termo estão condenados. Deus escolhe alguns para a vida, e
“conhecer” na Bíblia envolve muito mais do que deixa os demais naquilo que já estão por natureza, ou
simplesmente “saber a respeito de”. Em muitos casos seja, na morte.10 Como diz Sproul:
envolve um profundo relacionamento amoroso (Mt
1.25, Mt 7.23; 2Tm 2.19). Esse é o caso de Romanos A visão reformada ensina que Deus positivamente e
8.29, pois quando é dito que Deus predestinou aos ativamente intervém nas vidas dos eleitos para garan-
que de antemão conheceu, está na verdade dizendo tir sua salvação. O resto da humanidade Deus deixa
que predestinou aos que amou de antemão. Pois, a si mesmo. Ele não cria a incredulidade em seus co-
Deus conhecia, no sentido de “ter conhecimento de”, rações. Essa incredulidade já está lá. Ele não coage a
até mesmo os não salvos, mas estes não foram o ob- pecar. Eles pecam por suas próprias escolhas. No cal-
jeto de seu amor. É sobre o amor de Deus que Pau- vinismo, o decreto da eleição é positivo. O decreto da
lo está falando no final do capítulo 8 de Romanos. reprovação é negativo.11
Segundo ele, nada poderá nos separar do seu amor,
que é de fato eterno. Portanto, Deus conheceu seus É interessante lembrar que, quando Jesus incenti-
escolhidos no sentido de que os amou desde sempre vou as pessoas a entrarem “pelo caminho estreito”,
e para sempre. o caminho da salvação, não disse que alguém “entra
pelo caminho largo” (Mt 7.13-14). Não é preciso en-
Parece fácil falar dos escolhidos, mas não devemos trar pelo caminho largo, porque todos já estão nele.
nos esquecer que existem os “não escolhidos”. Como Não precisam entrar, precisam sair. Podemos ilustrar
diz Sproul, “não é suficiente falar sobre Jacó; precisa- a eleição como um ato de Deus pelo qual ele retira
mos considerar também Esaú”.9 Se a causa da eleição algumas pessoas do caminho largo (através da con-
é o amor, qual seria a causa da preterição de Esaú e de versão) e as coloca no caminho estreito, deixando
todos os demais não-eleitos? Não há necessariamen- as demais no caminho onde sempre estiveram e do
te causa para isso. Apenas sabemos que Deus não os qual, nem sequer desejam sair. Se alguém desejasse
preferiu. Na verdade não é necessária uma causa para sair, sairia com certeza, pois seria um eleito de Deus.
a preterição, pois ela é a ausência da escolha. Deus Deus está sempre disposto a salvar os que clamam
simplesmente não os escolheu, porque não os amou. por ele, conforme a Escritura diz: “Todo aquele que
A palavra “preterir” significa abandonar, deixar para invocar o nome do Senhor será salvo” (Rm 10.13).
trás, deixar de lado. Ajuda-nos pensar que todos os
homens estão perdidos em seus delitos e pecados.
10 Por isso o infralapsarianismo faz mais sentido, pois o de-
creto da eleição segue o decreto permissivo para a queda.

9 R. C. Sproul. Eleitos de Deus, p. 125. 11 R. C. Sproul. Eleitos de Deus, p. 126.

83
É impossível ignorar a preterição no modo de agir igual para com todos os homens. Paulo acrescenta:
divino. Deus escolheu apenas Israel no Antigo Tes- “Pois ele diz a Moisés: terei misericórdia de quem
tamento (Ex 33.16, Dt 7.6; 10.15; Ml 1.2-5). Ele não me aprouver ter misericórdia, e compadecer-me-ei
se revelou diretamente aos outros povos. Aqueles de quem me aprouver ter compaixão” (Rm 9.15). O
povos antigos foram todos preteridos. O próprio Apóstolo dos gentios entende que esta é uma prova
Jesus preteriu povos em sua vinda, ordenando a de que Deus não é injusto, pois a misericórdia é dele
seus discípulos que não fossem a certos lugares (Mt e ele pode usá-la como bem quiser e com quem qui-
10.5-7). Alguém dirá: mais tarde esses povos foram ser. Deus não tem que dar nada a ninguém. Se ele ti-
evangelizados. Nem todos, pois há muitos povos que vesse a obrigação de salvar a todos e salvasse apenas a
até hoje não foram evangelizados. Pense um pouco: alguns, estaria realmente sendo injusto, mas, como já
Algumas pessoas nascem em lar evangélico, ouvem vimos, ninguém merece a salvação. Os homens con-
a Palavra todos os dias, enquanto outras nascem em denados receberão o que merecem,13 pois eles mes-
lares muçulmanos, ou lares de prostitutas, e talvez, mos não desejam a Cristo, como demonstram em
nunca tenham acesso. Pelo menos, as pessoas não sua vida. Os homens perdidos não têm vontade de
têm as mesmas oportunidades na vida. Não há uma encontrar a Deus. A. A. Hodge (1823-1886), consi-
preterição nisso? derando a situação dos “réprobos”, faz uma distinção
entre o aspecto “negativo” e “positivo” da reprovação:
UMA DOUTRINA INJUSTA?
Em seu aspecto negativo a reprovação é simples-
Calvino diz: “Embora a razão carnal nos sugira que o mente a não eleição e é absolutamente soberana,
mundo se move ao acaso e é dirigido a esmo, contu- fundada unicamente no beneplácito de Deus, que
do devemos considerar que o infinito poder de Deus deseja eleger uns porque assim o quer e não porque
é sempre associado à perfeita justiça.”12 Aqueles que sejam menos dignos. Positivamente, a reprovação
rejeitam a doutrina da predestinação fazem isso, por- não é soberana senão judicial, porque Deus deter-
que temem chamar Deus de injusto. Paulo, aparen- minou-se tratar os réprobos precisamente conforme
temente, está preparado para isso, pois antevê a per- os seus méritos e à vista de sua absoluta justiça.14
gunta: “Que diremos pois? Há injustiça da parte de
Deus?” (Rm 9.14). Paulo não ignorava que algumas Hoje em dia as igrejas estão lotadas, mas quantos
pessoas fossem tentadas a imaginar um Deus injusto estão lá em busca de salvação? Parece que a maioria
a partir daquela exposição, mas note que esse risco, quer apenas melhorar de vida. Nunca devemos nos
no entendimento de Paulo, não era motivo suficiente esquecer do que estudamos no capítulo anterior, que
para ignorar a doutrina. Na verdade, Paulo tem abso- a soberania de Deus não invalida a responsabilida-
luta certeza de que a doutrina da predestinação não de humana. Os homens serão condenados por seus
torna Deus injusto, pois sua resposta é: “De modo ne- próprios pecados e por sua falta de vontade de con-
nhum”. O argumento é que a justiça de Deus se con- fiar em Cristo. Paulo não poderia ser mais claro sobre
firma pelo fato de que ele não deve nada a ninguém,
sendo, portanto, livre na distribuição de sua miseri-
córdia e de sua graça. Segundo o Apóstolo, Deus não 13 Entendemos que a preterição é o ato divino em abando-
nar os homens aos seus próprios pecados. Juntamente com esse ato
é obrigado a demonstrar sua misericórdia de forma de preterir está a disposição de condenar os homens pelos seus pe-
cados, o que as vezes os teólogos chamam de pré-condenação (Ver
Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 117).

12 João Calvino. O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 36.5), p. 128. 14 A.A. Hodge, Esboços de Teologia, p. 67. (Edição de 1895).

84
a eleição incondicional ao afirmar: “Não depende de repousa na questão do direito de Deus. A fim de es-
quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua clarecer isso, Paulo usa um exemplo: “Ou não tem o
misericórdia” (Rm 9.16). Não depende da vontade oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fa-
ou do esforço humano, mas de Deus usar a miseri- zer um vaso para honra e outro para desonra?” (Rm
córdia, que ele usa como quer. O caso de Faraó exem- 9.21). A lógica é inquestionável: O oleiro tem ou não
plifica isso, pois Deus endureceu o coração de Faraó a tem direito de fazer do mesmo barro vasos diferentes,
fim de que ele não deixasse o povo sair do Egito e de- como lhe agradar? Veja que a diferença não está na
pois demonstrou, no próprio Faraó, o seu poder. Esse massa, mas no propósito. Se o oleiro fez um vaso para
endurecimento de coração não deve ser visto como uso honroso, terá obrigação de fazer todos os vasos
uma atitude “ativa” de Deus, como se Deus agisse no daquela mesma forma? Não há injustiça da parte de
coração de Faraó endurecendo-o diretamente. O co- Deus, pois Deus tem o direito de agir como quer em
ração de Faraó já era duro, Deus apenas não agiu com relação a sua criação. Sproul é muito feliz em sua afir-
misericórdia e não amoleceu aquele coração. Deus mação sobre o direito de Deus:
tão somente o entregou ao seu próprio pecado.15 A
afirmação de Paulo é categórica: “Logo, tem ele mise- Ele reserva para si o direito de ter misericórdia de
ricórdia de quem quer, e, também endurece a quem quem quer ter misericórdia. Alguns membros da
lhe apraz” (Rm 9.18). A questão toda está na miseri- humanidade caída recebem a graça e a misericór-
córdia de Deus. Todos são pecadores, mas alguns são dia da eleição. Deus ignora o restante, deixando-os
objetos de misericórdia e outros não. Esses últimos em seus pecados. Os não-eleitos recebem justiça. Os
serão atingidos pela ira, pois seus atos merecem isso. eleitos recebem misericórdia. Ninguém é tratado
com injustiça. Deus não é obrigado a ser misericor-
Por certo, a lógica de Paulo não convence a todos, dioso igualmente com todos. É decisão dele o quan-
pois ele próprio antevê um novo questionamento: to será misericordioso.16
“Tu, porém, me dirás: de que se queixa ele ainda?
Pois quem jamais resistiu à sua vontade” (Rm 9.19). Muito importante nessa citação é: ninguém foi in-
Nesse ponto, parece que Paulo perdeu o desejo de justiçado. O ímpio é condenado por seus pecados.
discutir. Sua resposta é decisiva: “Quem és tu, ó ho- O salvo recebeu a misericórdia. Acima de tudo, é
mem, para discutires com Deus. Porventura pode inegável que Deus, o Oleiro Supremo, encontra dois
o objeto perguntar a quem o fez, por que me fizeste tipos de vasos nesse mundo. Existem aqueles que
assim?” (Rm 9.19). A questão está na soberania de foram “preparados para perdição”, que são os “vasos
Deus. Paulo entende que o homem não tem o direito de ira”, os quais servem para “mostrar a sua ira e dar
de questionar as atitudes de Deus, assim como uma a conhecer o seu poder” (Rm 9.22) . E também exis-
criatura não pode questionar os motivos de seu cria- tem os “vasos de misericórdia, que para glória pre-
dor. Para Paulo tudo se resume nisso, de maneira que parou de antemão”. Aos vasos de misericórdia Deus
não precisa dar uma resposta filosófica ou metafísica; dá “a conhecer as riquezas da sua glória” (Rm 9.23).
ele simplesmente afirma: Que cada um se coloque O fato de Deus usar sua graça em escolher os salvos,
no seu lugar, Deus é Deus, e o homem é criatura. ou sua ira em punir os pecadores não invalida sua
Não temos o direito de questioná-lo, quer entenda- justiça. A princípio essa passagem pode sugerir que
mos, quer não entendamos seus propósitos. Tudo

16 R. C. Sproul. Verdades Essenciais da Fé Cristã, Caderno 2,


15 Ver R. C. Sproul. Eleitos de Deus, p. 128 p. 56.

85
Deus tenha “preparado” vasos de ira, fazendo ele ser precisamos capitular diante do fato de que não temos
o responsável pela condenação deles (Supralapsaria- todas as explicações para isso. Paulo não nos deu to-
nismo). Mas isso não está de acordo com o ensino do das as explicações, ele apenas apelou para a soberania
restante das Escrituras. A questão fica mais simples de Deus e para a questão do direito divino. Isso tam-
quando lembramos que o “barro” utilizado por Deus bém deve nos satisfazer.
é um barro decaído (Infralapsarianismo). Como diz
Sproul: “Um lote de barro recebe misericórdia para Concluímos, portanto, que para sua glória, Deus es-
tornar-se vasos de honra. Essa misericórdia pressu-
colheu, antes da fundação do mundo, um grupo de
põe um vaso que já está culpado. Da mesma manei-
pessoas para serem salvas em Jesus Cristo e preteriu
ra, Deus precisa tolerar os vasos de ira, próprios para
destruição, pois eles são vasos de ira, culpados”.17 Ou as demais, as quais serão condenadas por seus peca-
como diz Calvino: “Paulo não pretende reivindicar dos.
para Deus um poder desordenado, senão que lhe
atribui o poder de agir com perfeita equidade”.18 Mas diferente do segundo. Não é preciso entender, no primeiro caso, que
houve um propósito de criação para a perdição (dupla predestina-
ção), até porque a voz é passiva e o sujeito não é indicado. Pode-se
entender que o próprio homem é o sujeito desse verbo. De qualquer
17 R. C. Sproul. Eleitos de Deus, p. 136 modo, ainda que seja Deus, “não devemos supor que sua ação de
endurecer os corações deles, preparando-os assim para a destruição,
18 João Calvino. Romanos, p. 341 (Rm 9.21). Na verdade, os
veio como consequência e castigo porque eles mesmos haviam se
verbos que Paulo usou “preparados” e “preparou” no grego são di-
endurecido?” (William Hendriksen. Romanos, p. 363)
ferentes e a voz também. No primeiro caso o sentido é um pouco

86
12. IMPLICAÇÕES DA DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO

Ao contrário do que se argumenta, entender a pre- zadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as
destinação faz muito bem ao crente. Há muitas impli- que são; a fim de que ninguém se vanglorie na pre-
cações positivas1 sobre a predestinação que poucas sença de Deus” (1Co 1.26-29). O que isso significa?
vezes são consideradas pelos críticos que procuram Que Deus não se deixa levar pelas aparências. Nada
ver apenas coisas negativas. No nosso entendimento, havia de bom em nós que motivasse a escolha divina.
entender a predestinação é essencial para um cresci- Quando um homem escolhe uma esposa, ele procu-
mento saudável na vida cristã. ra a mais bela, ou a mais talentosa, entretanto, Deus
não escolheu dessa forma, pois escolheu aqueles que
HUMILDADE não eram os mais destacados. O motivo, segundo a
Bíblia, é para que ninguém se glorie. Às vezes vemos
A primeira implicação que a doutrina da eleição os crentes confessarem “nada do que eu faço pode
deve produzir em nós é a humildade. Isso é no mí- me salvar”, mas, essa mesma pessoa dirá “sou salvo
nimo curioso, pois geralmente as pessoas acham que por que eu disse sim a Cristo”. A eleição muda essa
a eleição conduz ao orgulho. Mas a verdade é que frase nos nossos lábios, ela humilha nossos corações
não temos do que nos orgulhar, pois Deus não nos orgulhosos e nos faz dizer: “eu fui salvo porque Cris-
escolheu porque viu algo de bom em nós. Ele nos to disse sim para mim”. A superficialidade da nossa
escolheu apesar de sermos seus inimigos. Isso hu- crença na salvação pela graça pode ser vista porque,
milha nossos corações orgulhosos. Paulo disse que frequentemente, nossa língua nos trai e logo esta-
os chamados não eram os mais ricos e sábios desse mos dizendo “eu sou alvo porque eu...”. A natureza
mundo: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo humana é assim, ela nunca consegue se esquecer do
para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fra- “eu”. Outros dizem: “Dê uma chance para Jesus”. Mas
cas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus será que ele é quem precisa de uma chance? Defini-
escolheu as coisas humildes do mundo e as despre- tivamente isso precisa mudar em nossos lábios e em
nosso coração. Precisamos entender, de uma vez por
todas, que não é o homem quem escolhe ou resolve
1 Michael Horton faz uma excelente descrição dessas impli- dar uma chance ao Senhor Jesus, é Jesus quem nos
cações em seu livro As Doutrinas da Maravilhosa Graça, pp. 81-100.
Loraine Boettner também em The Reformed Doctrine of Predestina- tem escolhido. Somos dele porque ele nos escolheu e
tion, p. 327-362.
não porque nós decidimos fazer isso. O conhecimen-

87
to da eleição divina deve nos conduzir à humildade e tá-lo como ele é. Quando isso acontece não existe
não à exaltação. Na verdade entender a predestinação adoração.3
é um grande antídoto contra o orgulho.
SANTIDADE
ADORAÇÃO VERDADEIRA
John Wesley costumava argumentar que não podia
A verdadeira adoração também está diretamente vin- aceitar a doutrina da predestinação, porque ela mi-
culada ao conhecimento da predestinação, pois Deus nava os principais suportes da santidade: temor da
nos escolheu para louvor da sua glória (Ef 1.11-12). punição e esperança da recompensa.4 Se de fato es-
A adoração é uma das tarefas mais sublimes que nós ses são os dois grandes suportes da santidade, então
temos como cristãos. O conhecimento dessa doutri- Wesley estava certo. Mas será que o medo de ser pu-
na é necessário para um louvor adequado. Sem ela, nido e a esperança de ser recompensado são os ver-
Deus não é corretamente conhecido, e quando ele dadeiros suportes da santidade? Paulo escrevendo
não é corretamente conhecido, não pode ser corre- aos Romanos declarou: “Porque não recebestes o es-
tamente adorado. Frequentemente nossos cultos são pírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemori-
voltados mais ao entretenimento do que à adoração, zados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados
e o motivo é simples: os cultos não são centrados em no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15). Em outras
Deus, mas no homem. Também isso tem um motivo: palavras, medo da punição é algo que nós tínhamos
falta de conhecimento de quem é Deus e de quem o antes de sermos cristãos. Agora somos filhos, pois
homem é. Imagine se Jesus entrasse em um dos nos- “ele predestinou-nos para a adoção de filhos” (Ef
sos cultos de Domingo, será que ainda cantaríamos 1.5). Baseado nessa verdade, o crente pode olhar
os mesmos corinhos e faríamos as mesmas orações? para o futuro com destemor, pois tem motivos para
Será que nossas atitudes durante o louvor e a prega- esperar no nome de Deus e na vontade de Deus. A
ção ainda seriam as mesmas? Precisamos confessar: eleição é uma dessas doutrinas que reorientam com-
muitas vezes não estamos interessados em que Deus pletamente a nossa vida. Nossa motivação para santi-
se agrade do culto, queremos sim, que nós mesmos dade baseia-se no fato de que fomos chamados para
sejamos agradados. O conhecimento da eleição faz sermos santos (Rm 1.7). Se não vivermos de forma
com que um respeito muito grande seja produzido santa, estaremos sendo indignos de nosso chamado,
dentro de nós. Como disse Horton: “Nenhuma dou- ou seja, estaremos provando que não somos chama-
trina expulsa o narcisismo das igrejas e dos púlpitos dos. Um eleito que não vive em santidade é uma con-
como ela. Nenhuma doutrina é mais própria para tradição em termos. Como alguém poderia ser parte
fazer a justificação pela graça mais central. Nenhuma de uma “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo
doutrina tem mais sucesso em colocar o homem em de propriedade exclusiva de Deus” (1Pd 3.9), sem
seu devido lugar e Deus no que lhe pertence, por isso, ser essas coisas? Viver em santidade é algo inevitável
entender a predestinação é vital para a verdadeira para o eleito. Devemos andar em boas obras de amor
adoração”.2 Enquanto não rendermos a Deus a gló- e caridade para com nosso próximo, porque Deus
ria que é devida ao seu nome, não estamos adorando
verdadeiramente. Se nos recusamos a permitir que
3 É interessante ver a doxologia de Paulo em Efésios 1.3-14,
Deus seja soberano, estamos nos recusando a acei- na qual Paulo começa bendizendo a Deus justamente por causa da
eleição.

4 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça,


2 Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 87. p. 88-89.

88
“preparou-as de antemão” para que andássemos ne- de separar. Não é o medo de perder algo que deve
las (Ef 2.10). Devemos perseverar em nossa meta de nos levar à obediência, mas a gratidão pela certeza do
ser semelhante a Cristo, não por causa do temor de que já somos, pela graça de Deus.
perder algo, ou pela esperança do lucro, mas porque
temos sido “predestinados para sermos conformes a ORAÇÃO
imagem de Seu Filho” (Rm 8.29). No entendimento
de Paulo, Deus nos escolheu “desde o princípio para Às vezes as pessoas perguntam: “Por que orar se Deus
a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verda- já sabe?”. Essa é uma das principais objeções levanta-
de” (2Ts 2.13). Fé e santificação são coisas essenciais das contra a soberania de Deus. Podemos dar dois
para a confirmação da eleição, pois fomos predesti- motivos para isso: Primeiro porque é um mandamen-
nados “para sermos santos e irrepreensíveis peran- to bíblico. Jesus nos mandou orar, e por isso devemos
te ele” (Ef 1.4). Por isso, segundo Colossenses 3.12 obedecê-lo, pois não estamos em condições de ques-
devemos revestir-nos “como eleitos de Deus, santos tioná-lo. Se ele deu o exemplo orando pessoalmente
e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bonda- tantas vezes em sua vida, se ensinou seus discípulos a
de, de humildade, de mansidão, de longanimidade”. orarem, e se a Escritura nos manda: “Orai sem cessar”
A base de nossa santidade não é o medo de perder (1Ts 5.17), não há o que ser questionado. Ainda que
alguma coisa, mas a alegria por saber que todas as a oração não tivesse nenhum outro valor, só o fato de
coisas já são nossas em Cristo Jesus (1Co 3.21-23). ser um mandado bíblico já é motivo suficiente para
Diante de tudo isso, não há como um eleito não vi- ser obedecido. Mas não é só isso. Há ainda mais um
ver uma vida de santificação. Paulo, escrevendo aos motivo pelo qual devemos orar: Porque Deus ouve
crentes de Tessalônica, disse-lhes: “Damos, sempre, nossas orações. Algumas pessoas demonstram uma
graças a Deus por todos vós, mencionando-vos em grande incoerência, pois dizem que Deus não inter-
nossas orações e, sem cessar, recordando-nos, diante fere na conversão de alguém, que tudo depende em
do nosso Deus e Pai, da operosidade da vossa fé, da última instância da própria pessoa, e que ela, fazendo
abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa espe- uso de seu livre-arbítrio, aceita ou deixa de aceitar a
rança em nosso Senhor Jesus Cristo, reconhecendo, salvação de forma absolutamente livre. Nesse caso
irmãos, amados de Deus, a vossa eleição” (1Ts 1.2-4). poderíamos perguntar: Então por que orar? Ao invés
Paulo era muito agradecido a Deus pelos crentes de de perguntar: “Por que orar se Deus já sabe?”, Per-
Tessalônica, porque eles tinham três coisas especiais: guntaríamos: “Porque orar se Deus não age?” Se eu
fé operosa, amor abnegado e esperança firme, ou seja, não creio que Deus faça alguma coisa, eu não deve-
santidade e boas obras. Ele disse que ver essas coisas ria orar: “Senhor, mude o coração daquela pessoa!”.
naqueles irmãos o levava a reconhecer que eram elei- A teologia de muitas pessoas parece que deixa Deus
tos. Pedro também afirma algo semelhante ao dizer: de “mãos amarradas”, pois ele não pode interferir no
“Por isso, irmãos, procurai, com diligência cada vez “livre-arbítrio” das pessoas. Graças a Deus que esse
maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquan- não é o ensino da Escritura, pois se fosse assim não
to, procedendo assim, não tropeçareis em tempo al- poderíamos esperar muitas conversões. Deus ouve
gum” (2Pe 1.10). Eleição é algo que se confirma com nossa oração e age na vida das pessoas levando-as a
frutos. Nem poderia ser diferente, pois Jesus disse: se converter. É claro que isso não invalida seu plano,
“Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, por- como vimos no capítulo anterior, mas faz parte das
ventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos?” “contingências” do seu plano. Portanto, a eleição não
(Mt 7.16). Santidade e eleição são coisas impossíveis anula a oração, antes a incentiva.

89
EVANGELISMO Jesus, com eterna glória” (2Tm 2.10). Era justamen-
te o fato de saber que Deus tinha seus eleitos o que
Em geral as pessoas acham que predestinação e evan- mais motivava Paulo a enfrentar todas as situações e
gelismo são duas coisas que se excluem. Queremos, dificuldades de sua vida. A eleição não tira o zelo do
porém, argumentar que o evangelismo somente tem evangelista, pelo contrário aumenta esse zelo. Era a
sentido depois que entendemos bem a verdade da eleição que motivava o Apóstolo a ir de cidade em
predestinação. Compartilhar a fé com não-cristãos cidade proclamando a mensagem divina, pois sabia
pode ser uma tarefa muito árdua, até que entenda- que Deus tinha “muito povo” em cada cidade, e foi o
mos a eleição, pois ela muda nosso evangelismo em próprio Deus quem usou esse conhecimento como
três níveis: em nossa mensagem, em nossos métodos uma motivação para o Apóstolo (At 18.10). A gran-
e em nossa motivação.5 A eleição muda nossa mensa- de motivação para pregar o evangelho é que nunca
gem, porque não nos autoriza a dizer a qualquer in- correremos o risco de pregar em vão. Deus sempre
crédulo “Deus ama você e tem um plano maravilho- garantirá que os eleitos ouvirão e se converterão.
so para sua vida”. Ela nos lembra que somente depois Nossa tarefa então, fica bem mais fácil, pois em últi-
que alguém confia em Cristo é que pode descansar. ma instância, a conversão de alguém não depende do
Às vezes, as pessoas dão testemunho em programas pregador, mas daquele que enviou o pregador. Nossa
evangelísticos da seguinte forma: “Eu encontrei a função é pregar com todo zelo e fervor, confiantes de
Deus”. Mas quem estava realmente perdido? A elei- que Deus fará a obra. Esta sem dúvida é uma grande
ção muda também nossos métodos de evangeliza- motivação para pregar o Evangelho. Finalizaremos
ção. Atualmente, o oferecimento do Evangelho é este assunto com as palavras de Calvino:
guiado pelo marketing. A cada momento surgem no-
vos métodos a fim de convencer o incrédulo a aceitar “Se alguém assim se dirige ao povo: ‘Se não credes é
o “produto”. A eleição diz que não são os métodos porque Deus já os há predestinado à condenação’,
que convencerão o incrédulo a aceitar a verdade, e esse não somente alimentaria a negligência como
sim a determinação divina em convertê-lo. É somen- também a malícia. Se alguém também para com o
te a graça redentora de Deus e não o belíssimo pré- tempo futuro estenda a asserção de que não hajam
dio, a decoração celestial, a música ambiente ou a téc- de crer os que ouvem, porquanto hão sido condena-
nica do apelo que convencerá alguém. Dessa forma dos, isto seria mais maldizer do que ensinar. (...)
podemos abordar incrédulos como seres humanos Como nós não sabemos quem são os que pertencem
decaídos que precisam desesperadamente de Deus, ou deixam de pertencer ao número e companhia
e não como consumidores que, com alguma técnica, dos predestinados, devemos ter tal afeto, que dese-
conseguiremos convencer. Por fim podemos dizer, e jemos que todos se salvem; e assim, procuraremos
julgamos isso o mais importante, que a eleição afeta o fazer a todos aqueles que encontrarmos, que sejam
evangelismo em nossa motivação. O Apóstolo Paulo, participantes de nossa paz (...). Quanto a nós con-
de quem todos concordam ser o maior missionário cerne, deverá ser a todos aplicada, à semelhança
da igreja em todos os tempos, escreveu: “Por esta ra- de um remédio, salutar e severa correção, para que
zão, tudo suporto por causa dos eleitos, para que tam- não pereçam eles próprios, ou a outros não percam.
bém eles obtenham a salvação que está em Cristo A Deus, porém, pertencerá fazê-la eficaz àqueles a
Quem pré-conheceu e predestinou.”6

5 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça,


p. 92. 6 J. Calvino. As Institutas, III.23.14. Do mesmo modo asseve-

90
Deste modo, a doutrina da eleição longe de ser um O que torna a doutrina da predestinação tão ame-
obstáculo à evangelização, é na realidade um estímu- drontadora é o falso entendimento dela, aliado a um
lo vital e consolador.7 falso entendimento da justiça de Deus e do mereci-
mento dos homens. Acima de tudo, isso se deve a
CONCLUSÃO um desconhecimento ou a um desprezo da Bíblia.
Entendemos que essa é uma doutrina difícil, porém,
Ao contrário de produzir apatia ou desinteresse, a acima de tudo, bíblica. Se é bíblica, não devemos ter
doutrina bíblica da predestinação é a base para uma medo de proclamá-la. Ao invés de deixarmos nosso
vida de humildade, adoração, oração, santidade e coração se encher com incertezas e questionamentos
evangelismo. A eleição não faz com que o crente cru-
em relação a Soberania de Deus, devíamos, ao exem-
ze os braços, mas arregace as mangas. É verdade que
plo do Apóstolo Paulo, terminar este assunto glorifi-
muitos, confiando em sua suposta eleição, têm vivido
cando a Deus por sua Soberania. Paulo encerra toda
de forma despreocupada, entretanto, a base de sua
confiança é falsa. Um eleito precisa evidenciar certas a discussão sobre a predestinação com as seguintes
coisas em sua vida para que fique claro que é um elei- palavras: "Ó profundidade da riqueza, tanto da sa-
to. De nada adianta alguém se dizer uma boa árvore, bedoria como do conhecimento de Deus! Quão
se seus frutos (obras) provam o contrário. A despeito insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis,
de todos os falsos entendimentos, a doutrina da pre- os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do
destinação é bíblica e amplamente proveitosa para a Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem
vida cristã. A questão crucial que impede o homem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído?
de aceitá-la deve-se ao fato de que, desde o início foi Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as
difícil para o homem deixar Deus ser Deus. Adão e coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!" (Rm
Eva se rebelaram, porque queriam ter direitos iguais 11.33-36).
a Deus. O homem quer sempre tomar todas as deci-
sões e é odiosa para si a ideia de que algo possa fugir Ao Deus dos eleitos, portanto, seja a glória eterna-
ao seu controle. Mas isto é uma grande tolice. Deus é mente amém.
Deus. Ele é o Oleiro, o barro somos nós. Sempre se-
remos o barro, por mais que o lutemos para inverter
essa ordem. O desejo íntimo de moldar Deus con-
forme nos apraz, é o nascedouro da idolatria, a qual
Deus tanto abomina. Em nossos dias, os homens
têm feito deuses para si conforme seu desejo pessoal,
porém, o Deus verdadeiro, o Deus da Bíblia é aquele
que age como sua vontade determina, quer os ho-
mens aceitem, quer não.

ra Packer: “Até onde os cristãos saibam, os reprovados não têm face,


não nos cabendo tentar identificá-los. Devemos, antes, viver à luz da
certeza de que qualquer um pode ser salvo, se ele ou ela arrepen-
der-se e colocar sua fé em Cristo”.
(J.I. Packer. Teologia Concisa, p. 143).

7 Ver. Hermisten M.P. Costa. Breve Teologia da Evangeliza-


ção,p. 33-37

91
92
13. O ENIGMA DO MAL

Uma das coisas mais difíceis de harmonizar com a Sem esquecer o cuidado e o temor que esse assun-
Soberania de Deus é a questão da existência do mal, to requer, nos aventuraremos um pouquinho a pen-
especialmente a origem dele. Falar sobre a origem do sar sobre a origem do mal. Mas não se surpreenda
mal é entrar num dos caminhos mais obscuros e pou- o leitor, se ao final do capítulo a resposta não tiver
co trilhados da teologia. Poucos se aventuraram nes- mudado muito. De qualquer modo, considerar esse
sa estreita senda cheia de armadilhas e dificuldades, assunto pode ser útil para entender muitas outras coi-
onde facilmente se pode tropeçar e cair na heresia e sas, especialmente o relacionamento de Deus com o
até mesmo na blasfêmia.1 A pergunta “quem criou o mal, e o nosso próprio relacionamento com o mal. A
mal?” é uma daquelas de que todo professor de Semi- origem do mal está diretamente ligada à criação do
nário ou de Escola Dominical gostaria de fugir. mundo espiritual, e por isso, precisamos meditar um
pouco nessa criação antes de tratar diretamente so-
Em meus tempos de seminarista, certo dia, deparei- bre o problema do mal.
-me com um livro que versava sobre a doutrina bíbli-
ca do pecado. O livro pretendia falar sobre a origem A CRIAÇÃO DO MUNDO ESPIRITUAL
do mal, e sabendo que era um clássico da teologia,
escrito por um respeitado teólogo reformado, fiquei Antes mesmo de criar a terra e tudo o que nela há,
muito empolgado em lê-lo, esperando encontrar res- Deus criou algo do qual não temos muito conheci-
mento, exceto pelas poucas indicações que a Bíblia
postas convincentes para as minhas muitas dúvidas.
nos dá, estamos falando do mundo espiritual. No
Devorei suas páginas avidamente para desvendar
primeiro versículo da Bíblia está escrito: “No prin-
aquele mistério tão grandioso, e foi grande a minha
cípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). O se-
decepção de calouro ao chegar ao final do livro, e per-
gundo versículo passa a concentrar toda a sua aten-
ceber que, ao longo de todo o livro, a única afirmação
ção na terra: “A terra, porém, era sem forma e vazia”
foi: não sabemos a origem do mal.
(Gn 1.2). A partir daí pouco se fala sobre o céu. De
alguma forma a criação do mundo espiritual está in-
1 A blasfêmia seria dizer que Deus é o autor do mal, e a he- cluída ainda no primeiro versículo. O livro de Jó dá a
resia poderia ser o dualismo, de dizer que o mal é eterno e indepen-
dente como Deus (Ver G. C. Berkouwer. Doutrina Bíblica do Pecado, p.
entender que os anjos foram criados antes que a terra
21). fosse feita porque lemos: “Onde estavas tu, quando

93
eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens racionais (2Sm 14.20; Ef 3.10; 2Pe 2.11), extrema-
entendimento. Quem lhe pôs as medidas, se é que o mente numerosos (Dt 33.2; Sl 68.17; Mt 26.53, Ap
sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre 5.11). São classificados em: Querubins (Gn 3.24;
que estão fundadas as suas bases ou quem lhe assen- 2Sm 22.11; Sl 18.10; Sl 80.1; Ez 1; Ap 4), Serafins (Is
tou a pedra angular, quando as estrelas da alva, juntas, 6.2, 6), Principados, potestades, tronos e domínios
alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos (Ef 3.10; Cl 2.10; Cl 1.16; Ef 1.21; 1Pe 3.22).4 Apenas
de Deus?” (Jó 38.4-7). Sabemos que Deus criou os dois anjos recebem nomes na Bíblia: Gabriel e Mi-
anjos antes dos homens, e que houve uma queda no guel (Dn 8.16; 9.21; Lc 1.19, 26; Jd 9; Ap 12.7). Esse
mundo dos anjos. Essa queda provavelmente aconte- último é chamado de o Arcanjo, que literalmente sig-
ceu após o término da criação, uma vez que a Bíblia nifica o principal anjo (Jd 9), sendo o comandante
diz que ao terminar a obra “viu Deus tudo quanto fi- dos exércitos celestiais (Ap 12.7). Esses elementos
zera, e eis que era muito bom” (Gn 1.31).2 Se tudo bíblicos a respeito dos anjos nos mostram que há
era muito bom, isso nos faz pensar que a queda de uma grande diversidade em relação a eles, e que es-
Satanás ainda não havia ocorrido. Sabemos que hoje tamos num assunto que pode gerar muitas especu-
existem duas classes de anjos, os anjos bons e os an- lações. No tocante a isso, ficamos com as palavras de
jos maus. Os bons são chamados de “eleitos”. Calvino: “Ora, ainda que da diversidade de nomes
concluímos que há várias ordens, todavia, investigá-
Os anjos eleitos -los mais minuciosamente, fixar seu número e deter-
minar suas hierarquias, não seria mera curiosidade, e,
Os anjos eleitos (1Tm 5.21) foram dotados de uma sim, também temeridade ímpia e perigosa.”5
capacidade de não serem mais atraídos pelo mal, ou
seja, Deus os preserva da queda. Se Deus não fizes- Os anjos têm muitas funções, entre elas a de louvar
se isso com os anjos que não seguiram Satanás em a Deus (Jó 38.7; Is 6.3; Sl 103.20; 148.2; Ap 5.11),
sua rebelião, sempre haveria a possibilidade de que a qual talvez seja a principal função deles. Eles tam-
algum anjo fosse iludido pelo diabo e então, até bém se empenham a fim de ajudar os crentes e se
hoje anjos poderiam abandonar o céu para seguir alegram grandemente quando um pecador se con-
o Dragão. Isso não acontece porque Deus preserva verte (Lc 15.10). Hebreus 1.14 diz que eles “são to-
seus anjos do pecado por um processo semelhante dos espíritos ministradores, enviados para serviço a
ao da eleição dos homens. Já vimos que os homens favor dos que hão de herdar a salvação”. De acordo
são eleitos, porém, são eleitos para serem salvos, pois com este texto, de alguma maneira, os anjos ajudam
a queda foi prevista na eleição. Os anjos eleitos, dife- aqueles que serão salvos. Sabemos que não é função
rentemente, são eleitos para que não percam o estado dos anjos pregar o evangelho, e ao contrário do que
que já possuem. às vezes se pensa, a Bíblia não diz que eles desejam
pregar, diz apenas que eles desejam conhecer mais
A Bíblia diz que os anjos são seres sem corpo (Mt sobre o assunto (1Pe 1.12). De qualquer forma,
8.16; Lc 7.21; Lc 24.39) que podem estar em grande eles contribuem obedecendo às ordens de Deus.
quantidade em apenas um lugar ao mesmo tempo Também é função deles proteger os crentes (Sl 34.7,
(Lc 8.30)3. Eles não se casam (Mt 22.30), são seres
eles foram anjos antes de se rebelarem.

2 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 148. 4 Esses títulos também são aplicados aos anjos decaídos.

3 Embora este texto se refira aos espíritos malignos. Mas 5 João Calvino. Efésios, p. 46, Ef 1.21.

94
35.4-5, 91.11-13, Mt 18.10, At 5.19). Pela ação deles Se de fato a rebelião de Satanás8 aconteceu após o
na Bíblia, percebemos que Deus providenciou pro- sexto dia da criação, já que no fim do sexto dia Deus
visão física para Elias (1Rs 19.5-7), encorajou Paulo disse que tudo estava “muito bom” (Gn 1.31), en-
durante suas jornadas (At 27.23-25), libertou Pedro tão, o próprio motivo dessa queda pode ter sido o
da prisão (At 5.19), direcionou Pedro a se encontrar homem. Isso é só uma especulação, mas explicaria o
com Cornélio (At 8.26). Uma tarefa peculiar que a ódio dele ao ser humano. A inveja misturada ao or-
Bíblia parece atribuir a eles é a função de encaminhar gulho por ver Deus colocar sua imagem no homem,
os crentes mortos para o céu (Lc 16.22), e no dia e ao mesmo tempo por não ter a adoração que Deus
do Senhor, serão eles que reunirão os escolhidos do tinha, pode ter sido o pivô da rebelião. O fato é que
Senhor (Mt 24.31; Mc 13.27). Eles também se en- ele não está sozinho em sua luta. Em sua rebelião
volvem nas atividades julgadoras de Deus, como exe- conseguiu arrastar um grande número dos anjos de
cutores. Foram eles que anunciaram a destruição de Deus. A Bíblia fala desses anjos como caídos. Pedro
Sodoma e Gomorra (Gn 19.12-13). Um deles feriu diz: “Deus não poupou anjos quando pecaram, antes,
o Rei Agripa por causa de sua blasfêmia (At 12.23). precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de
Os anjos recolherão os ímpios para levarem ao infer- trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2.4). Judas fala
no (Mt 13.39-42). É função deles derramar os juízos deles como anjos “que não guardaram o seu estado
de Deus sobre a terra (Ap 16.2-17), e a voz do Ar- original, mas abandonaram o seu próprio domicílio”.
canjo anunciará o dia da vinda de Jesus (1Ts 4.16). Estes também têm sido “guardados sob trevas, em
Portanto, percebemos que os anjos possuem muitas algemas eternas, para o juízo do grande Dia” (Jd 6).
funções e são extremamente importantes na consu- Esse texto, junto com o anterior (1Tm 3.6), sugere
mação dos propósitos de Deus para este mundo. Em- que os espíritos malignos, de alguma forma, não esta-
bora não possamos vê-los, e nem precisemos, pode- vam satisfeitos com seu estado antes da queda. Uma
mos ter a certeza de que eles estão sempre próximos, mistura de soberba, orgulho e descontentamento,
agindo em nosso favor segundo as ordens de Deus. portanto, deve ter sido a causa da queda.
Os anjos decaídos Há uma teoria que explica a queda angélica como
algo que aconteceu antes da criação do mundo. A ar-
Como diz Lloyd-Jones, “O diabo, ao cair, tornou-se gumentação se baseia em alguns detalhes de Gênesis
a cabeça daquela esfera que se acha fora da vida de 1.1-2. O verso primeiro diz que Deus no princípio
Deus, e assim podemos descrevê-lo como o império (também poderia ser traduzido “num princípio”)
da morte”.6 Não sabemos como aconteceu a queda criou os céus e a terra. O segundo versículo parece
dos anjos. Hoekema está certo ao afirmar que “nada é trazer algo diferente: “A terra, porém, era sem forma
dito na Escritura a respeito do tempo ou da natureza e vazia, e o espírito de Deus pairava sobre face do
da queda dos anjos”.7 Pelo menos não diretamente.
abismo”. Pergunta-se: Por que Deus teria criado uma
Algumas deduções são possíveis, no entanto, a partir
terra “sem forma e vazia”, um “abismo”, o que sugere
de textos indiretos. Sabemos apenas que de alguma
um estado de caos? Especula-se então, que esse esta-
forma um grupo de anjos liderados por Satanás se
do caótico teria sido o resultado de uma queda pré-a-
rebelou contra Deus.
dâmica, causada por Satanás. Assim, os espíritos ma-

6 D. M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, p. 436.


8 A queda e os propósitos de Satanás serão mais estudados
7 Anthony Hoekema. Criados à Imagem de Deus, p. 140 na seção de Antropologia.

95
lignos de hoje seriam na verdade as almas daquelas Uma pergunta que normalmente surge é: Por que
criaturas criadas e destruídas antes de Adão. A única Deus permitiu e permite a existência de um Sata-
coisa que essa teoria traz de interessante seria alguma nás e seus seguidores? Não há dúvidas de que Deus
explicação para as descobertas geológicas modernas, poderia ter impedido a queda dos anjos ou mesmo
as quais poderiam se referir àquele mundo. O que se exterminado todos eles, a fim de que não causassem
pode dizer dessa teoria é que é uma especulação que todo o mal que vêm causando ao longo das eras. Es-
nunca poderá ser provada.9 sas criaturas são absolutamente perversas, não há um
pingo de bondade ou justiça no caráter de Satanás e
Satanás é o comandante dos demônios (Mt 9.34; seus anjos, são absolutamente maus. Por que Deus
25.41; Ef 2.2). Também é chamado de o príncipe permitiria a existência de um ser tão mau no mundo?
desse mundo (Jo 12.31; 14.30; 16.11), ou deus des- Essa pergunta nos faz voltar à questão da própria ori-
se século (2Co 4.4). Apesar desses títulos sugerirem gem do mal. De onde veio o mal?
uma posição exaltada, não se deve pensar que ele é o
chefe de toda a criação divina. É Deus quem está no A ORIGEM DO MAL
controle desse mundo como um todo. Satanás con-
trola este mundo mau, o mundo naquilo em que está O mundo antigo sempre acreditou que havia um
separado de Deus.10 De acordo com Efésios 6.12, deus bom e um deus mau. Modernamente essa cren-
aparentemente, Satanás e seus anjos formam um ça denominada dualismo tem ressuscitado em mui-
exército com algum senso de organização. O texto tos lugares, especialmente nos movimentos ligados
diz: “Porque a nossa luta não é contra o sangue e a à Nova Era. O dualismo identifica essas duas forças
carne, e sim contra os principados e potestades, con- como iguais e dependentes uma da outra, como se
tra os dominadores deste mundo tenebroso, contra uma completasse a outra que não poderia existir so-
as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef zinha. Esse conceito está muito longe de ser bíblico.
6.12). Parece haver uma espécie de hierarquia sugeri- De acordo com a Bíblia Satanás não é igual a Deus.
da pelos termos “principados, potestades, dominado- Deus é o único Soberano, Satanás é uma criatura re-
res, forças espirituais”. O Antigo Testamento já suge- belde de Deus. Não existe comparação, Deus é o Rei
ria alguma hierarquia maligna. O livro de Daniel fala por excelência, Satanás não passa de um usurpador.
de alguns “príncipes” que provavelmente não sejam
Quanto à origem do mal, talvez essa seja a mais di-
pessoas humanas e que dominavam certas regiões
fícil questão a ser respondida. É um fato que nunca
do mundo antigo. Fala-se do “príncipe da Pérsia” (Dn
teremos uma resposta satisfatória, pelo menos não
10.13) e do “príncipe da Grécia” (Dn 10.20). Esses
nessa vida. Algumas perguntas que podem ser feitas
príncipes resistiram ao mensageiro de Deus que fora
nos ajudam a pensar no assunto. De onde veio o mal,
enviado a Daniel, mas o príncipe do povo de Israel,
se Deus é o criador de todas as coisas? É Satanás o
identificado como o arcanjo Miguel, saiu em socorro
criador do mal? Como ele teria criado o mal, se ele
do mensageiro (Dn 10.21).
próprio era bom antes de pecar? Para começar a res-
ponder, uma coisa precisa ficar absolutamente clara:
O MAL NECESSÁRIO
Deus não é o autor do mal. Seja qual for a resposta
que dermos para a origem do mal, ela precisa neces-
9 Berkouwer oferece excelente argumentação contra essa sariamente excluir Deus, pois se Deus for o autor do
teoria em: G. C. Berkouwer. A Doutrina Bíblica do Pecado, p. 62-75.
mal, não poderia ser o Deus bom e justo no qual cre-
10 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 149. mos. Deus é o criador de todas as coisas, mas não é o

96
criador do mal. Então Satanás é o criador do mal? Se propósitos. Não adianta fecharmos os olhos para
Satanás fosse o criador do mal, isso faria dele alguém o fato de que, se Deus concedeu livre-arbítrio aos
que realmente está em competição direta com Deus. anjos e depois a Adão, assegurou a possibilidade da
A verdade é que o mal não foi necessariamente cria- existência do mal. Porém não podemos imaginar que
do. O que queremos dizer é que ninguém o criou do Deus permitiria algo que pudesse de fato arruinar
nada e de forma específica. Bancroft diz que o mal é o seus propósitos. Deus sempre manteve tudo sobre
que pode ser chamado de uma “originação”.11 É fruto controle, inclusive a origem do mal. A origem do mal
do uso de coisas que já existiam, como por exemplo, nem por um momento colocou em risco o grande
o Livre-arbítrio, a personalidade e o poder de Sata- projeto de Deus. A Confissão de Fé de Westminster
nás. Nesse sentido, Deus dotou Satanás com essas diz: “Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sá-
qualidades e ele as usou para originar o mal. Isso é o bio e santo conselho de sua própria vontade, orde-
máximo que podemos dizer, é somente até onde po- nou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece,
demos ir. Bavinck e Berkouwer, por outro lado, dizem porém de modo que nem Deus é o autor do pecado,
que o pecado não tem origem, mas só um início.12 O nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada
que pretendem dizer com isso é que não podemos a liberdade ou contingência das causas secundárias,
determinar a origem do pecado e do mal, apenas antes estabelecidas” (III, 1). Essa talvez seja a afirma-
constatar o seu início. Muitos apelam para a expres- ção mais precisa que já foi formulada sobre a origem
são de Isaías, onde Deus diz: “Eu formo a luz e crio de todas as coisas. Há uma tensão admitida na fra-
as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o senhor, faço se, a de que por um lado tudo acontece segundo a
todas estas coisas” (Is 45.7), como uma prova de que vontade de Deus, e por outro, a de que isto não faz
Deus é o autor do mal. O contexto da passagem em de Deus o autor do pecado, nem elimina a liberdade
questão sugere que esse mal não se refere ao mal úl- do homem. A única responsabilidade pelo mal que
timo, metafísico, mas a uma situação específica, que pode ser atribuída a Deus é que ele criou um mundo
no caso dos judeus, seria a vinda dos caldeus contra no qual o mal era possível, e isto para demonstrar sua
a nação. O mal neste texto se refere mais a algo como glória pelo fato de ele saber lidar com isso e, ao final,
a calamidade, e não ao pecado. O fato de a Escritu- conduzir tudo para um fim bom.
ra não dar explicação direta sobre a origem do mal,
A verdade é que a existência do mal segue os propó-
mas por outro lado mostrar o papel do mal, é uma
sitos de Deus para este mundo. Uma coisa precisa fi-
indicação de que esse último deve ser o foco da nossa
car clara: Deus não tem nenhum prazer em Satanás e
atenção. A origem do mal sempre será uma incógnita
não compartilha de nenhuma de suas maldades, po-
para nós.
rém, Deus pode usar Satanás para cumprir seus pro-
pósitos. Não é que Satanás queira gentilmente servir
O PROPÓSITO DO MAL
a Deus, na verdade, ele luta desesperadamente contra
Deus, mas tal é a Soberania do criador, que Satanás,
Voltando à questão do porquê da permissão de Deus
mesmo em sua luta desesperada, acaba contribuin-
para a origem do mal, devemos pensar se de alguma
do para que o supremo propósito de Deus se realize.
forma o mal não poderia ser usado por Deus em seus
Uma das maneiras que Deus usa o mal é para testar
seu povo. O teste é uma prova de qualidade. Qual-
11 Ver E. H. Bancroft. Teologia Elementar, p. 307. quer produto para que seja confiável precisa ser co-
12 Ver G. C. Berkouwer. Doutrina Bíblica do Pecado, p. 79. locado sob alguma pressão, a fim de que se confirme
Ainda assim deve haver uma origem. sua resistência. Os crentes recebem sobre si a pressão

97
de Satanás e essa é uma boa forma de testá-los. Deus A duração do mal
pode usar Satanás como instrumento de punição
também. Satanás é um instrumento de punição divi- O mal não é eterno, pois não faz parte da essência das
na por causa da maldade do mundo, e até dos crentes. coisas que existem. O mal é um parasita, um impos-
Há pelo menos dois casos na Bíblia em que pessoas tor, e a certeza de sua existência é a garantia de sua
foram “entregues a Satanás” como um castigo por destruição. O fato de que Deus vencerá o mal torna
seus pecados, um crente e um incrédulo (1Co 5.5; a existência dele razoável. Deus permitiu o mal para
1Tm 1.20). Como diz Loraine Boettner que seu poder fosse testado, mas o mal não terá conti-
nuidade na criação de Deus. O mal cumpre um papel
As obras de Satanás são tão controladas e limitadas estabelecido por Deus e quando esse papel se acabar,
que elas servem aos propósitos de Deus. Quando Deus o eliminará e nunca mais permitirá que o mal
Satanás vorazmente deseja a destruição do ímpio e reapareça.
diligentemente trabalha para isso, ainda assim a des-
truição procede de Deus. Em primeiro lugar é Deus No mundo vindouro o mal nunca mais será uma
quem decretou que o ímpio sofra, e a Satanás é me- possibilidade. Aqueles que tentam explicar a exis-
ramente permitido trazer essa punição sobre ele. Os tência do mal baseados no livre-arbítrio não têm res-
motivos que subjazem nos propósitos de Deus e posta para a questão: o homem poderá novamente
aqueles que subjazem nos propósitos de Satanás são, pecar? Se o livre-arbítrio de fato faz parte da consti-
é claro, infinitamente diferentes.13 tuição humana, sendo essencial para que o homem
seja homem, então não há garantias de nossa salva-
Isso demonstra o quanto Deus é incomparável, ele ção nem nessa vida, nem na vindoura. Nessa vida, a
usa a maldade de Satanás para o bem de seu povo qualquer momento, podemos perder a salvação por
e para o cumprimento de seu supremo propósito. um ato deliberado de nossa vontade, e mesmo no fu-
Deus permite a contínua existência de Satanás, por- turo, embora não tenhamos mais motivos para pecar,
que ele é, de fato, o seu “chicote” para esse mundo. sempre teremos a possibilidade de pecar, se o livre-ar-
Porém, acima de tudo, Deus o usará pessoalmente bítrio continuar existindo. Se alguém quiser afirmar
para demonstrar seu poder. Deus fará uma grande que no futuro o homem não terá mais livre-arbítrio,
demonstração de seu poder sobre o maior inimigo poderia se perguntar então, por que deveria ter hoje?
quando o aprisionar definitivamente no lago de fogo. Se no mundo vindouro não houver livre-arbítrio é
Entretanto, Deus já tem demonstrado seu poder so- porque ele não é tão essencial assim ao ser humano.
De fato não haverá livre-arbítrio no futuro, como, de
bre Satanás hoje, resgatando as vítimas do império
fato, nem se quer existe hoje. Depois de tudo o que
das trevas e trazendo-as a salvo para o reino celestial.
aconteceu, Deus não permitiria que o mal pudesse
Ainda podemos dizer que, pelo fato de ter deixado
de novo entrar em sua criação e corrompê-la outra
que o mal se originasse, Deus criou a oportunidade
vez. Essa é uma certeza que podemos ter: “A morte já
de expressar ainda mais plenamente sua graça e mi-
não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor,
sericórdia. Esse caráter gracioso e misericordioso de
porque as primeiras coisas passaram” (Ap 21.4).
Deus jamais teria sido demonstrado, se o mal não ti-
vesse se originado.
A ATITUDE CORRETA FRENTE AO MAL

13 Loraine Boettner. The Reformed Doctrine of Predestina- Em tudo na vida devemos ser equilibrados, e, portan-
tion, p. 243. to, nesse assunto também devemos demonstrar mo-

98
deração. Dois erros devem ser evitados: o primeiro, o bo tem sido o alvo principal de muitos movimentos
de não dar qualquer importância ao mal, e o segundo evangélicos, que o veem praticamente em tudo. Em
o de exagerar a sua importância. Muitos, nos dias de muitos casos a responsabilidade pessoal de cada um
hoje, praticamente negam a existência do mal. Os é minimizada, pois tudo o que acontece de ruim é
teólogos liberais têm negado a existência do Diabo, e atribuído ao diabo. Eles dizem: Para ter prosperidade,
assim possibilitado uma capa em que ele possa atuar repreenda ao diabo; para ter saúde, repreenda o dia-
ainda mais sorrateiramente. O resultado da teologia bo; para ter o casamento feliz, repreenda ao diabo. Há
liberal que fez com que a grande parte das igrejas uma verdadeira obsessão pelo diabo, o que por cer-
evangélicas da Europa e dos Estados Unidos perdes- to somente o agrada ainda mais. É errado sacrificar
se a relevância bíblica é uma das maiores vitórias que o tempo do culto que deveria ser dedicado à adora-
Satanás já alcançou. O esvaziamento dessas igrejas é ção a Deus para promover uma luta contra o Diabo.
uma prova incontestável disso14. O apóstolo Paulo Equilíbrio, portanto, é necessário. Não devemos nem
dizia que devemos sempre ter uma postura íntegra exagerar nem minimizar a importância do Diabo.
“para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, Seguir a Bíblia sempre será a melhor opção para não
pois não lhe ignoramos os desígnios" (2Co 2.11). termos surpresas desagradáveis em nossa luta contra
Ignorar os desígnios dele é praticamente decretar o mal. A atitude do cristão é descrita na Bíblia como
a vitória dele. Numa guerra a pior coisa que pode uma atitude de resistência. Pedro diz: "Sede sóbrios e
acontecer é alguém ser pego de surpresa. Conhecer vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derre-
o inimigo e suas táticas é uma garantia de enfrentá-lo dor, como leão que ruge procurando alguém para de-
mais eficazmente. Paulo fala dos "desígnios" de Sata- vorar; resisti-lhe firmes na fé, certos de que sofrimen-
nás indicando a ideia de que ele tem metas definidas, tos iguais aos vossos estão se cumprindo na vossa
estratégias elaboradas, um programa de ação com va-
irmandade espalhada pelo mundo" (1Pe 5.8-9). Tia-
riedades de técnicas e opções a serem aplicadas con-
go compartilha dessa opinião: "Sujeitai-vos, portanto,
forme as circunstâncias. Satanás "fará qualquer coisa
a Deus; mas resisti ao diabo, e ele fugirá de vós" (Tg
para conseguir vantagem sobre nós, diz o apóstolo,
4.7). Também essa é a grande explicação de Paulo:
fará qualquer coisa para derrubar-nos, para fazer-nos
"Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que
parecer ridículos e para pôr em desgraça o nome de
possais resistir no dia mau e, depois de terdes vencido
Deus."15 Não devemos ignorar que, " ... quando o ini-
tudo, permanecer inabaláveis" (Ef 6.13). Não precisa-
migo é invisível, maior é o perigo."16
mos ir atrás dele, precisamos resistir aos ataques dele.
Por outro lado há também aqueles que exageram a Resistência é a palavra de ordem.
importância de Satanás. Os monges da Idade Média
se recolhiam em mosteiros para não serem fascina-
dos pelo diabo. Nos dias de hoje, ao contrário disso,
muitos estão desafiando o diabo abertamente, e até
supostamente, entrevistando-o na televisão. O dia-

14 Deve ser entendido que o liberalismo não negava apenas


a existência de Satanás, mas comprometia toda a revelação bíblica.

15 D. M. Lloyd Jones. O Combate Cristão, p. 90.

16 J. Calvino. Efésios, p. 190, Ef 6.12.

99
100
14. A DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA

Quando os fariseus recriminaram Jesus por ter cura- pensam que o acaso governa, ou, por outro, defen-
do no Sábado, Jesus afirmou que o sexto dia não sig- dem uma espécie de fatalismo, como se tudo estives-
nificava o fim do trabalho divino. Jesus disse: “Meu se determinado e nada pudesse ou devesse ser feito
Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (Jo para mudar. O fato é que o homem sempre teve cren-
5.17). Estritamente falando, a obra da criação termi- ças interessantes sobre o curso que o mundo segue.
nou no sexto dia. De lá para cá Deus tem sustentado Uma crença já embrionária no século XVI chamada
o mundo, providenciando tudo o que é necessário “Deísmo” entendia que Deus havia criado o mundo,
para isso. Deus continua trabalhando no mundo, a mas a partir de então, não atuava mais nele. Deus teria
isto chamamos de providência. Uma boa definição estabelecido leis fixas para todas as coisas, e então, o
de providência pode ser: “O permanente exercício da mundo simplesmente passou a seguir o curso dessas
energia divina, pelo qual o criador preserva todas as leis, sem nenhuma interferência do criador. Nessa
Suas criaturas, opera em tudo que se passa no mundo visão, o mundo seria uma máquina que Deus acio-
e dirige todas as coisas para o seu determinado fim”.1 nou e que agora trabalha por conta própria. A visão
A doutrina da providência está em relação direta deística implica que a matéria, depois de sua criação,
com duas doutrinas que já estudamos: soberania de se tornou auto-subsistente e auto-sustentada, pratica-
Deus e Criação. Ela é uma espécie de “continuação da mente autônoma, mas essas características são pro-
criação”, é a maneira como Deus, em sua soberania, priedades incomunicáveis de Deus, são caracterís-
conduz a criação em direção aos seus propósitos. A ticas apenas do criador e não da criatura.2 Por outro
doutrina da providência trata a questão sobre como lado, popularmente as pessoas acreditam na “sorte”,
o mundo sobrevive e em que direção caminha. Ela no “acaso”, na “fortuna” ou no “destino” e idealizam
procura dar resposta para a pergunta se há uma or- um deus misturado com a criação, numa espécie de
dem por detrás de todos os acontecimentos, ou se panteísmo.3 É como se o mundo e o destino de todos
tudo acontece de forma aleatória.
2 Ver William G. T. Shedd. Dogmatic Theology, Vol I. p. 528.
Vivemos num tempo em que, por um lado as pessoas
3 De certo modo isso apenas reflete aquilo que alguns teó-
logos têm entendido como sendo o principal ponto da discussão
teológica (e quem sabe até filosófica) em todos os tempos: o rela-
1 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, P. 165 cionamento entre a Transcendência e a Imanência divina. Stanley J.

101
os homens estivessem nas mãos de alguma força im- fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a
pessoal e incompreensível. terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quan-
to há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o
Nas Escrituras, podemos ver três formas como a pro- exército dos céus te adora”. Esse também é o enten-
vidência divina se manifesta: Na preservação, na con- dimento do salmista: “Em ti esperam os olhos de
corrência e no governo. Esses três modos providen- todos, e tu, a seu tempo, lhes dás o alimento. Abres
ciais de Deus revelam a maneira e o propósito pelo a tua mão e satisfazes de benevolência a todo ser vi-
qual o mundo continua a existir, após ter sido criado. vente” (Sl 145.1516). Deus preserva e sustenta todos
os seres que criou e quando deixa de sustentá-los,
DEUS PRESERVA TODAS AS COISAS eles morrem, conforme o salmista constata: “Todos
esperam de ti que lhes dês de comer a seu tempo. Se
Deus não apenas criou o mundo, como também o lhes dás, eles o recolhem; se abres a mão, eles se far-
sustenta. A Escritura diz que o mundo foi criado atra- tam de bens. Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam;
vés de Jesus, e que é sustentado igualmente através se lhes cortas a respiração, morrem, e voltam ao pó”
dele “pela palavra do seu poder” (Hb 1.1-3). É este (Sl 104.27-29). O que mais se destaca neste texto é a
poder de Deus o responsável pela sustentação do partícula “se”, que revela a condição pela qual a natu-
mundo. Se Deus criasse todas as coisas e as entregas- reza continua existindo. Tal é o controle preservador
se à sua própria sorte, ele não seria um Deus pessoal, de Deus sobre sua criação que Jesus disse: “Obser-
mas distante, impessoal e despreocupado. A Escri- vai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem
ajuntam em celeiros; contudo vosso Pai celeste as
tura, entretanto, ensina que Deus se envolve com
sustenta” (Mt 6.26); e acrescentou mais tarde: “Não
tudo aquilo que criou até nos mínimos detalhes. Em
se vendem dois pardais por um asse? E nenhum de-
Neemias 9.6 há uma afirmação maravilhosa sobre a
les cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai.
criação e a providência de Deus: “Só tu és Senhor, tu
E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça
estão contados” (Mt 10.29-30). Se Deus cuida até
Grenz e Roger E. Olson mostram como a visão desequilibrada entre dos passarinhos, alimentando-os e sustentando-os
essas duas características divinas, ao longo da história da teologia,
tem criado tantos problemas para os estudos teológicos (Stanley J.
durante toda a vida deles, se Deus sabe até o número
Grenz & Roger E. Olson. A Teologia do Século XX, p. 9-11). A teologia de cabelos que temos na cabeça, então é porque seu
da Reforma procurou manter um equilíbrio entre a Transcendência,
ou seja, Deus como aquele absolutamente separado, autossuficiente envolvimento é total, desde as menores até as maio-
e que não precisa do mundo; e a Imanência, ou seja, Deus que se re- res coisas.
laciona com o mundo, que está presente na criação e está envolvido
nos acontecimentos da história humana. O iluminismo colocou es-
sas crenças em xeque, destruindo o equilíbrio clássico. O Liberalismo
teológico (Schleiermacher, Ritschl, Harnack) tentou dar uma resposta
Diante dessas coisas como alguém pode crer no aca-
ao iluminismo, mas enfatizou exageradamente a Imanência divina. so ou na sorte? A conclusão lógica do assunto discu-
A Neo Ortodoxia (Barth, Brunner, Bultmann), em revolta ao Liberalis-
mo, foi ao outro extremo e exagerou na Transcendência. De lá para tido é que não existe algo como a “sorte”, o “acaso”,
cá, quase todas as novas teologias reagem ao Liberalismo ou a Neo ou o “destino”. Ninguém tem a “sorte” de estar vivo,
Ortodoxia e se polarizam em extremos, como por exemplo, o Neo Li-
beralismo secular de Paul Tilich (1886-1965), a Teologia do Processo tudo acontece por obra da providência de Deus. O
de Teilhard de Chardin (1881-1955) e de A. N. Whitehead (18611947),
o radicalismo de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), a Teologia da Es-
próprio envolvimento de Deus com a criação exclui
perança de Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannemberg, a Teologia da a possibilidade do Panteísmo. Deus não está mistura-
Libertação em todas as suas ramificações (Negra, LatinoAmericana,
Feminista). De uma forma ou de outra, o equilíbrio entre Transcen- do com a criação, ele é separado dela, mas cuida dela
dência e Imanência não tem sido alcançado, como na Reforma. Isso até nos mínimos detalhes. Do mesmo modo, imagi-
pode ser visto também nos movimentos ainda mais modernos como
a “teologia da prosperidade”, a “teologia relacional” (Open Theism), e nar um Deus que criou o mundo, mas o abandonou
todo o movimento carismático. à sua própria sorte é algo absurdo, pois segundo a

102
Bíblia, a providência de Deus é a causa do mundo Vejamos alguns exemplos bíblicos sobre concorrên-
ainda existir. E quanta misericórdia há nisso, pois o cia ou concursus. Já estudamos, em um capítulo ante-
mundo é rebelde contra Deus, não obstante, Deus o rior, sobre o texto de Lucas 22.22, quando o decreto
preserva, fazendo nascer o sol sobre “maus e bons”, e de Deus e a traição de Judas acontecem paralelamen-
cair “chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.45). Só o te. Deus determinou, mas Judas foi o responsável por
louvor cabe a Deus pela grandiosidade de sua obra seu ato. O mesmo também se vê no sermão de Pedro
providência, como faz o salmista: “Cantai ao Senhor registrado em Atos 2, quando ele justificou que Jesus
com ações de graças; entoai louvores, ao som da har- morreu “sendo entregue pelo determinado desígnio
pa, ao nosso Deus, que cobre de nuvens os céus, pre- e presciência de Deus”, porém, os culpados pelo ato
para a chuva para a terra, faz brotar nos montes a erva infame foram os homens, conforme Pedro inequi-
e dá o alimento aos animais e aos filhos dos corvos, vocamente aponta: “Vós o matastes, crucificando-o
quando clamam” (Sl 147.7-9). A providência mostra por mãos de iníquos” (At 2.22-23). Note que Jesus
o cuidado divino com a criação. foi entregue porque Deus havia determinado que
isto acontecesse, no entanto, o povo era o verdadeiro
DEUS AGE EM TODAS AS COISAS culpado da morte de Jesus. O povo gritou para que
ele fosse crucificado, preferindo a libertação de Bar-
Uma outra forma de ver a providência de Deus é rabás (Mt 27.2021). Esta mesma ideia repercute no
através de sua operação imediata em todas as coi- capítulo 4 de Atos, quando a igreja ora ao Senhor:
sas que acontecem. Os teólogos têm chamado isso “Porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade
de Concorrência ou “Concursus”. “Concursus” se contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, He-
rodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel,
refere à junção de duas forças. Não significa neces-
para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito
sariamente que sejam duas forças em pé de igualda-
predeterminaram” (At 4.27-28). Como diz Boettner,
de, mas, apenas que dois lados cooperam de alguma
“aqueles que crucificaram Cristo agiram em perfeita
forma. Berkhof define concorrência ou “concursus”
harmonia com a liberdade de suas próprias naturezas
como “a cooperação do poder divino com todos os
pecaminosas e foram os únicos responsáveis por seu
poderes subordinados, em harmonia com leis pré-
pecado”.5 Está claro que a culpa pela morte de Jesus
-estabelecidas de sua operação, fazendo-os agir, e agir foi dos homens, porém, tudo o que aconteceu, se-
precisamente como agem”.4 Nessa junção, quando guiu a vontade e a soberania de Deus, conforme seu
dizemos que Deus e o homem agem conjuntamen- plano pré-estabelecido. O que os homens fizeram foi
te, não estamos querendo dizer que é 50% para cada errado, pecaminoso, e eles certamente pagarão por
lado. Não dá para comparar a vontade divina com a isso, porém, ao fazerem aquilo, em última instância,
vontade humana. Nesse ponto, precisamos ter em fizeram o que Deus havia determinado. Isto é con-
mente que estamos tratando de um assunto difícil, corrência ou “concursus”.
porém, devemos ser honestos com o ensino da Pala-
vra de Deus, mesmo que tenhamos dificuldades em O “Concursus” e os Atos Bons6
entendê-lo. Por isso, acima de tudo, devemos manter
uma atitude reverente ao meditarmos nos textos que
5 Loraine Boettner. The Reformed Doctrine of Predestina-
estão a seguir. tion, p. 247.

6 Uma excelente exposição sobre o Concursus pode ser vis-


ta em H. C. Campos. O Ser de Deus e as Suas Obras – A Providência e
4 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 170 . a Sua Realização Histórica, p. 292-315.

103
Nunca conseguiremos excluir Deus de qualquer coi- ainda que Ciro não conhecesse ao Senhor. Ciro foi
sa que fazemos em nossa vida. Precisamos nos lem- usado para que o povo pudesse voltar do cativeiro da
brar que Paulo disse que “nele vivemos, e nos move- Babilônia para sua própria terra. O imperador foi o
mos, e existimos” (At 17.28). Jamais o homem age de responsável pela ordem que permitiu a volta do povo,
forma independente de Deus, por isso, todas as ações e essa foi uma boa ação, mas ele não fez isso pensan-
boas, que os crentes praticam, são ações que Deus do em agradar a Deus, na verdade, ele estava fazendo
direcionou. Já vimos que, segundo Filipenses 2.13, uma manobra política, porém, acima de tudo, estava
Deus opera tanto o querer quanto o realizar para que cumprindo a vontade decretiva de Deus. Ciro agiu
uma obra seja concretizada. O que isso quer dizer é em conformidade com seus próprios interesses, mas
que, se eu faço alguma boa ação, o mérito é do Se- acabou fazendo algo benéfico para o povo, e nisso ele
nhor. Quem realizou a obra fui eu, mas ela só foi pos- foi dirigido por Deus, que agiu na vida de Ciro. Foi
sível, porque o Senhor me capacitou. É o que Paulo uma obra boa de um homem mau, uma obra realiza-
fala sobre seu próprio trabalho apostólico: “Mas, da através do concursus.
pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que
me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei Todas as boas ações desse mundo sofrem a ação do
muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas “concursus” de Deus. Tudo o que acontece de bom,
a graça de Deus comigo” (1Co 15:10). Paulo tinha acontece porque duas coisas participaram: A von-
consciência de duas coisas: A graça de Deus e seu tade do homem e a vontade de Deus. Em sua sobe-
trabalho árduo. Mas, acima de tudo, sabia que tudo rania, Deus não anula a vontade do homem, mas a
era pela graça. Ele tinha mais resultados do que os vontade do homem em hipótese alguma inviabiliza
outros Apóstolos, e numa primeira instância, pode- a vontade de Deus.
ria ser dito que foi porque ele trabalhou mais, mas ele
reconhece que tudo foi por causa da graça de Deus. O “Concursus e os Atos Maus”

O interessante é que isto pode ser visto também nas Não é difícil ver a atuação de Deus nas atitudes boas
ações boas dos homens não-regenerados. Eles tam- dos homens, afinal de contas Deus é bom e é a fonte
bém fazem coisas boas, mas evidentemente que não de todo bem, mas e com relação as coisas más que
no sentido de aceitáveis para salvação, porém boas, acontecem? Uma das coisas mais difíceis nesta vida é
porque podem ter resultados benéficos para as pes- conciliar a vontade soberana de Deus e os atos maus
soas. Podemos ver na Bíblia, que mesmo essas ações das pessoas. Uma forma de responder à questão é di-
sofrem o “concursus”. Ciro, o rei da Pérsia, é um gran- zer simplesmente que Deus permite que as pessoas
de exemplo disso. Isaías escreve algo muito interes- façam coisas más. Em parte esta resposta está certa,
sante a seu respeito: “Assim diz o Senhor ao seu un- mas as atitudes más dos homens são permitidas por
gido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita (...). Eu Deus, embora firam sua vontade preceptiva. Mas
irei adiante de ti, endireitarei os caminhos tortuosos, como já estudamos, a vontade preceptiva é apenas
quebrarei as portas de bronze e despedaçarei as tran- um aspecto da vontade de Deus. Nunca poderemos
cas de ferro” (Is 45.1-2). Deus está dizendo que age nos esquecer que ele também tem uma vontade de-
na vida de Ciro para o ajudar. Em seguida expõem cretiva. A questão é: Como os atos maus dos homens
o motivo: “Por amor do meu servo Jacó e de Israel, se relacionam com os decretos de Deus?
meu escolhido, eu te chamei pelo teu nome e te pus
o sobrenome, ainda que não me conheces” (Is 45.4). Podemos ver na Bíblia alguns casos que mostram
Deus usou o Imperador Ciro por amor de seu povo, que, mesmo os atos maus das pessoas, não foram fei-

104
tos independentes de Deus. O “concursus” pode ser direta de Deus, e sim fazendo sua própria vontade
visto nessas atitudes também. Em sua vontade decre- pessoal.
tiva, Deus determinou tudo o que deve acontecer,
inclusive os atos maus dos homens, porém isso não Deus atua até mesmo nos atos maus dos próprios
faz de Deus o autor do pecado deles. Embora certas homens maus. Sempre imaginamos os irmãos de
coisas ruins estejam decretadas, os homens as fazem José como membros da Aliança, e por isso não os
de sua própria vontade, e a culpa é somente deles, consideramos ímpios. Mas quando vemos o que a
porque desejaram fazê-las. Ninguém os obrigou. Bíblia fala sobre o caso de Nabucodonosor, o ímpio
rei da Babilônia, percebemos que a soberania divi-
A história de José do Egito é novamente útil para na não tem limites. Nabocodonosor invadiu Judá e
entendermos isso. José era o filho preferido de Jacó cometeu todo tipo de atrocidades, porém, a Bíblia
e seus irmãos tinham ciúmes dele. Num certo dia, diz que Deus é quem o trouxe e determinou que fi-
aproveitaram uma ocasião e venderam-no a alguns zesse aquilo (Jr 25.9-11). Nabucodonosor agiu em
mercadores que iam para o Egito. Aquele foi um ato conformidade com sua iniquidade, ele queria saciar
muito mau da parte dos irmãos. José enfrentou mui- sua sede de conquistas, entretanto, Deus determinou
tos problemas por causa disso, vindo a tornar-se um que aquilo acontecesse usando Babilônia, império
escravo no Egito, e por fim, parou na prisão. Porém de Nabucodonozor, segundo seus propósitos. Deus
o Senhor agiu na vida de José que acabou chegando declarou a respeito de Babilônia: “Tu, Babilônia, eras
ao cargo mais importante do Egito logo após o Fa- meu martelo e minhas armas de guerra; por meio
raó. Com isso, anos mais tarde, José pôde ajudar sua de ti, despedacei nações e destruí reis; por meio de
família que passava dificuldades com a grande seca. ti, despedacei o cavalo e o seu cavaleiro; despedacei
Quando se encontrou novamente com seus irmãos, o carro e o seu cocheiro; por meio de ti, despedacei
José disse-lhes: “Vós, na verdade, intentastes o mal o homem e a mulher, despedacei o velho e o moço,
contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fa- despedacei o jovem e a virgem; por meio de ti, des-
zer, como vedes agora, que se conserve muita gente pedacei o pastor e o seu rebanho, despedacei o lavra-
em vida” (Gn 50.20). Tal foi o entendimento de José dor e a sua junta de bois, despedacei governadores e
daquela situação que até mesmo declarou: “Não fos- vice-reis” (Jr 51.20-23). Deus disse que ele fez toda
tes vós que me enviastes para cá, e, sim, Deus, que me aquela destruição, porém, Babilônia pagaria, pois
pôs por pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa” (Gn havia agido conforme ela própria desejava: “Pagarei,
45.8). O ato de vender José foi uma ação má dos ir- ante os vossos próprios olhos, à Babilônia e a todos
mãos, e eles eram responsáveis por ela. Eles agiram os moradores da Caldeia toda a maldade que fizeram
segundo seus impulsos pecaminosos, porém, a Bíblia em Sião, diz o Senhor” (Jr 51.24). Babilônia agiu con-
diz que, em última instância, Deus havia planejado forme sua cobiça e deu vazão à sua própria maldade,
tudo. Deus não foi o autor do pecado dos irmãos, entretanto, em última análise, agiu como Deus havia
mas agiu na vida deles, para que seu propósito maior determinado. Ao mesmo tempo, Babilônia e seu im-
se cumprisse. Eles fizeram o que desejavam, pecaram perador seriam castigados por Deus por causa disto.
e se tornaram passíveis de punição, mas não deixaram
de fazer o que Deus desejava. Embora esta não seja Muitos outros casos podem ser considerados e de-
uma coisa fácil de entender, precisa ser aceita pela fé, monstram o concursus nos atos maus de homens
pois Deus quis que os irmãos vendessem José, mas, maus, como por exemplo, o caso de Jeroboão (1Rs
o pecado foi somente deles, uma vez que ao agir da- 14.10; 15.27-30); de Roboão (1Rs 12.13-15; 22-
quela forma, não estavam obedecendo a uma ordem 24); do rei da Assíria (Is 10.5-15); de Absalão (2Sm

105
16.20-23; 12.11-12; 17.14) e de tantos outros casos de ver sua providência. Não quer dizer que seja algo
que demonstram o mesmo que aconteceu com Na- necessariamente diferente de preservação e concor-
bucodonosor.7 Em todos eles, os homens ímpios rência, pois a providência deve ser vista como um
agiram conforme seus desejos pecaminosos e são todo. Ao enfatizarmos a ideia de governo estamos
culpados por isso, porém, ao agir daquela forma, es- nos referindo ao propósito final de Deus para este
tavam fazendo o que a vontade decretiva de Deus mundo. Todas as coisas que existem e todos os acon-
havia determinado, pois estavam cumprindo pro- tecimentos são governados para que este propósito
pósitos divinos. Isso nos leva a entender que tudo se concretize, pois como diz Hodge “se Deus governa
o que acontece nesse mundo, acontece debaixo do o universo, então ele possui algum grande alvo, inclu-
olhar e do comando eficaz de Deus. Nada foge ao sive um número infinito de fins subordinados, e ele
controle divino, porém, tudo o que o homem faz, faz tem de controlar a sequência de todos os aconteci-
de acordo com sua própria vontade. O “concursus” mentos de maneira que se assegure o êxito de todos
nos ajuda a entender a maneira como Deus age neste os seus propósitos”.9
mundo e também como os homens agem. Há uma
concorrência entre os dois, porém, não uma simples A Bíblia apresenta Deus como o Grande Rei que está
junção equivalente de forças, como se o homem fi- assentado no trono e governa todas as coisas confor-
zesse metade e Deus o resto. O fato é que Deus age me o conselho da sua vontade. O que seria do mun-
no homem, levando-o a fazer a Vontade Suprema, do se Deus não tivesse propósitos? Se ele simples-
mas sem ferir a responsabilidade pessoal por cada ato mente deixasse a “coisa rolar”, seguindo o livre curso
das decisões dos homens? Que garantias haveria de
seu, e sem ser o autor do pecado deles. Percebemos,
que as promessas bíblicas se cumpririam? Como po-
portanto, que a Escritura ensina que Deus está no
deríamos saber que de alguma forma, o homem não
controle de tudo, e que, até mesmo os pecados dos
sabotaria o plano divino? Toda expectativa de fé se
homens, estão no decreto de Deus. Porém, como
torna muito efêmera se Deus não tem propósitos e
nota Hodge, “Esta providência universal de Deus é
ao mesmo tempo poder para realizá-los. A visão que
tudo o que a Bíblia ensina. Em parte alguma ela ten-
muitos têm de Deus, como se fosse alguém em cons-
ta informar-nos como Deus governa todas as coisas,
tante mutação (processo), sempre se adaptando ao
ou como seu controle eficaz pode conciliar-se com
ser humano, apesar de parecer bonita (ao ego hu-
a eficiência das causas secundárias”.8 Resta, portanto, mano), é completamente incompatível com a visão
aceitar pela fé que de fato é assim, ainda que não pos- bíblica e lança fora toda possibilidade de segurança e
samos conciliar tudo em nossas mentes. Precisamos confiabilidade nos planos divinos.
aceitar, porque esse é o ensino bíblico e a Bíblia é a
verdade. Deus tem propósitos. A providência de Deus nos fala
que ele guia os eventos do mundo para um determi-
DEUS GOVERNA TODAS AS COISAS nado fim. Esse fim é o “beneplácito de sua vontade”
(Ef 1.5), é o seu supremo propósito para esse mun-
A perspectiva do governo de Deus é mais uma forma do que redunda em “louvor da sua glória” (Ef 1.12).
Como já vimos, nada acontece por acaso, não existe
7 Uma boa exposição de algumas dessas passagens está em a sorte ou a fortuna, nem destino cego. Às vezes fa-
Loraine Boettner. The Reformed Doctrine of Predestination, p. 243-
248.

8 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 439. 9 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 433.

106
lamos: “Hoje foi meu dia de sorte”, e nem percebe- berou todas as suas bênçãos na pessoa de Jesus, e que
mos o quanto essa afirmação é perigosa. Deveríamos agora são as pessoas que precisam tomar posse da
evitar falar coisas assim, pois é como se estivéssemos bênção que está à disposição delas. É como se Deus
dizendo que o acaso pendeu para o nosso lado, e, de permanecesse impassível somente esperando que os
alguma maneira inusitada, impensada e não-plane- homens façam a obra dele. Assim as pessoas exigem,
jada, nos favoreceu. Isso tende até mesmo a ser uma determinam e rejeitam certas coisas. Na visão destes,
forma de idolatria, já que algo está sendo coloca- a providência já não é mais uma prerrogativa divi-
do no lugar de Deus. Esta atitude é muito parecida na, passou a ser um atributo do homem. No fundo
com a que teve o povo de Israel após ter sido tirado
é uma desconfiança de que Deus tenha os melhores
do Egito. Naquela ocasião fizeram bezerros de ouro
planos para nós. E isso nada mais é do que falta de
para si e disseram: “São estes, ó Israel, os teus deuses,
que te tiraram da terra do Egito” (Ex 32.4). Também fé, por mais se diga o contrário. Em comparação com
fazemos isso quando, ao recebermos alguma bên- todos esses falsos entendimentos sobre a razão por
ção do Senhor, dizemos: “Mas que sorte”. Por outro detrás de cada acontecimento nesse mundo, a dou-
lado, imaginar que o destino cego é o que guia to- trina da providência é uma das mais belas doutrinas
das as coisas não melhora nada. Às vezes, as pessoas para a vida cristã. Ela nos fala da maneira como Deus
confundem a doutrina da soberania de Deus com preserva e dirige este mundo que criou para o cum-
o fatalismo. A religião islâmica assume uma espécie primento de seus objetivos. Fala do Deus absoluto
de fatalismo. O muçulmano, ao se deparar com um e transcendente, que está acima e além do mundo,
acontecimento inusitado, costuma dizer “está escrito”. que não se mistura com a matéria, que é imutável e
Esse tipo de fatalismo diz: “O que tiver que ser será”. todo-poderoso. Mas fala também do Deus próximo,
Há uma grande diferença entre dizer que Deus diri- atuante e vivo, que se importa conosco , que está
ge a história para seus propósitos e dizer que o des- presente e age em cada detalhe da nossa vida. Nada
tino a dirige. O destino não tem sentimentos e nem é demasiado simples ou insignificante que não seja
vontade, ele é cego, surdo e mudo. Nosso Deus tem do interesse dele, nada acontece por acaso, não existe
sentimentos e propósitos, pois ele fala, ouve e age.
sorte ou fortuna, Deus existe e seus propósitos eter-
Não dizemos: "O que tiver que ser será", dizemos: O
nos . Esse é o Deus que causa admiração, pois como
propósito de nosso Deus, sua vontade boa, agradável
diz Isaías, "Desde a antiguidade não se ouviu, nem
e perfeita prevalecerá (Rm 12.2). E ela sempre será o
que é melhor para nós, pois para isso, todas as coisas com ouvidos se percebeu, nem com os olhos se viu
cooperam (Rm 8.28). Da mesma forma, não faz sen- Deus além de ti, que trabalha para aquele que nele es-
tido a tendência moderna de que o homem é quem pera" (Is 64.4). Nosso Deus, o Criador Soberano, é o
determina o que deve acontecer. Muitos líderes reli- Deus que trabalha.
giosos falam em programas televisivos que Deus já li-

107
108
15. MILAGRES — DEFINIÇÃO E PROPÓSITOS

Como vimos na doutrina da providência, Deus atua por muita coisa, mas nunca orei para uma perna
na criação o tempo todo. Isso não significa que toda crescer. Puseram uma cadeira em frente ao primei-
essa atuação seja miraculosa, pois então, não haveria ro banco para nela ele espichar as pernas. Com ele
como separar o miraculoso do natural. O milagre se ali fiz a minha oração (...) e a perna do homem foi
refere a uma providência especial de Deus, tanto que esticando, crescendo... E se igualou à outra!1
alguns teólogos chamam os milagres de Providentia
Extraordinaria, referindo-se a um evento que não se- Relatos como este podem ser vistos em livros, pro-
gue as leis secundárias estabelecidas por Deus. Mila- gramas de televisão. Milagres cada vez mais im-
gre é quando Deus deixa de lado a ordem estabeleci- pressionantes são reivindicados por todo tipo de
da por ele próprio para agir de forma extraordinária. pregadores e evangelistas, como um atestado de au-
Vamos explicar assim: as coisas deveriam seguir um tenticidade e autoridade divina. Parece estar havendo
determinado rumo, porém, Deus suspende esse uma nova onda de milagres ao redor do mundo. Mas,
rumo natural através de seu poder, que está acima da até que ponto podemos confiar nestes relatos? Até
natureza, neutralizando o resultado natural e em seu que ponto são verdadeiros? E até que ponto os mila-
lugar produz algo sobrenatural. gres realmente atestam a autoridade divina? Na ver-
dade, todas as culturas do mundo são extremamente
O seguinte relato descreve a experiência de um su- ricas em relatos de milagres. Não há um único povo
posto milagre: que não tenha crença em intervenções sobrenatu-
rais. Todas as religiões do mundo exibem “provas”
Um dia, estávamos no meio de uma multidão de de que milagres aconteceram dentro de seus arraiais,
pessoas sofridas e ansiosas numa igreja em São e alguns milagres são supostamente comprovados
José, na Califórnia. Era fácil notar a dor em seus cientificamente.2 Mas será que milagres realmente
semblantes. Acabamos de pregar e falamos como acontecem? Será que eventos sobrenaturais realmen-
sempre: quem quer receber uma graça do Senhor?
E apareceram diversas pessoas. Um homem se 1 Erlie Lens Cesar. O que Deus fez por mim pode fazer por
aproximou, disse: eu tenho a minha perna direita você, p. 98-100
mais curta que a esquerda 4cm. Será que o senhor 2 O Vaticano exige essa comprovação para canonizar o
santo que realizou o milagre.
pode orar por mim? Eu lhe respondi: tenho orado

109
te ocorrem, ou esses acontecimentos não passam de Deus, e que “ele não difere do curso ordinário da na-
mitos e lendas criados pela fértil imaginação das pes- tureza porque requer uma grande atuação do poder
soas que, desejosas de ver algo sobrenatural, exage- divino, mas porque ele requer uma diferente atuação
ram nos relatos? Será que os diversos milagres regis- desse poder”.4 Isso é muito importante, pois não sig-
trados na Bíblia podem ser considerados verídicos? E nifica que Deus precise usar mais do seu poder para
será que ainda há milagres hoje? realizar um milagre, do que, por exemplo, fazer o Sol
aparecer amanhã. Ambos os eventos dependem da
DEFINIÇÃO DE MILAGRE Onipotência divina, a diferença não está no poder,
mas no propósito. Os milagres sempre são realiza-
Há uma banalização do termo milagre nos dias atuais, dos por Deus com algum propósito especial, daí a
a palavra perdeu o sentido verdadeiro. Alguém acer- ideia de providência especial. Hodge define milagre
ta um alvo difícil num jogo e ouve-se a expressão: como: “Um acontecimento no mundo externo pro-
“Milagre”! Alguém escapa “por um triz” de algum aci- duzido pela eficiência imediata ou simples volição
dente e chama isso de milagre.3 Alguém acerta uma de Deus”.5 Ele usa essa definição para diferenciar o
questão difícil numa prova e pensa que é um milagre. milagre dos demais atos providenciais de Deus, bem
Na verdade, esses eventos acima não são verdadeiros como das atuações do Espírito Santo na conversão
milagres, porque podem ser explicados. É certo que de uma pessoa.
às vezes são estranhos e não muito rotineiros, porém,
são perfeitamente explicáveis, pois ocorreram por Adotamos aqui, a definição de Young: “Milagre é um
causa da combinação de certos fatores. O milagre ato, realizado no mundo externo pelo poder sobrena-
verdadeiro, porém, sempre será inexplicável da pers- tural de Deus, contrário ao curso comum da natureza
pectiva humana. Suas causas não podem estar na na- (embora não necessariamente levado a efeito contra
tureza ou na simples combinação de elementos. os meios ordinários da natureza) e seu propósito
é servir de sinal ou comprovação. Um milagre, por
O milagre é um evento “sobrenatural”, o que já indica conseguinte, não deve ser considerado meramente
que não pode ser comprovado ou produzido pela na- como uma obra poderosa, mas como uma obra po-
tureza. Nesse sentido, o nascimento de um bebê, por derosa designada a comprovar os propósitos reden-
exemplo, não é um milagre, por mais que o evento tores de Deus”.6
seja grandioso, e até certo ponto, algo que ultrapassa
o entendimento humano. O nascimento de um bebê Explicações inaceitáveis
pode ser explicado a partir das leis da concepção.
Porém, o mesmo não se pode dizer do nascimento A explicação que muitos dão para certos milagres bí-
de um bebê de um ventre estéril, pois não há explica- blicos elimina completamente a ideia de milagre. Por
ções para isso, a menos que algum tipo de tratamen- exemplo, dizem que os israelitas atravessaram o Mar
to o explique, mas então, não seria milagre. É preciso Vermelho aproveitando um local de pântanos cheio
entender que o milagre é um ato extraordinário de de plantas acima da água, sobre as quais passaram, ao

4 William G. T. Shedd. Dogmatic Theology, Vol. 1, p. 533.


3 Na verdade essa banalização é por causa do significado
técnico da palavra milagre, pois etimologicamente, um evento como 5 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 459.
esse poderia ser chamado de milagre, pois, a palavra deriva de “ma-
ravilhar” ou algo que produz espanto (Ver Charles Hodge. Teologia 6 .J. Young, Daniel: In: F. Davidson, ed. Novo Comentário da
Sistemática, p. 459). Bíblia, p. 821b.

110
invés de terem atravessado o mar aberto por Moisés. Alguns estudiosos afirmam que os milagres são sim-
Em geral as pessoas que tentam achar uma expli- ples exceções da natureza como a conhecemos. O
cação “racional” para os milagres são direcionadas que isso quer dizer é que se tivéssemos um conheci-
por pressupostos anti-sobrenaturalistas. Como têm mento mais completo da natureza, poderíamos expli-
dificuldades em aceitar que possam existir eventos cá-los de forma perfeitamente natural. Esse conceito
sobrenaturais, tentam explicar de outra forma, mas é insustentável não só porque prevê duas naturezas,
acabam anulando a existência do milagre.7 O relato mas porque priva o milagre de seu caráter excepcio-
bíblico não dá o menor apoio a essa ideia, pois fala nal.9 Novamente teríamos que dizer que se esse fosse
que os israelitas atravessaram a pé enxuto (Ex 14.29). o caso, não haveria milagre no sentido específico da
A estrela de Belém é outro objeto de reinterpretação. palavra, porque haveria uma explicação natural para
Dizem que foi apenas um brilho mais intenso de al- ele, embora não a conhecêssemos.
guma estrela, uma combinação estelar, o planeta Vê-
nus, ou o cometa Halley. É preciso que se diga que, Sobrenatural
se foi apenas isso, então não aconteceu um milagre
Quando falamos que milagres são eventos sobrena-
realmente. Porém, fica difícil manter essa explicação
turais, é importante lembrar que isso é da perspectiva
diante da afirmação bíblica de que os magos seguiam
humana. Como diz Shedd, “milagres não são eventos
a estrela, que por fim parou sobre o local onde Jesus
anaturais; eles são naturais para Deus”10. Milagres,
estava (Mt 2.1-9). Uma outra reinterpretação do mi-
no sentido exato da palavra, contradizem a natureza,
lagre é dada a partir da multiplicação dos pães e dos
conforme a reconhecemos nesse mundo, embora es-
peixes (Jo 6.1-14). Não teria acontecido um milagre tejam em perfeita harmonia com a natureza de Deus.
no sentido de algo extraordinário, mas simplesmente Jesus transformando água em vinho, ou ressuscitan-
através do menino que trouxe seu pão e seus peixes, do Lázaro de entre os mortos após quatro dias são
todos os demais teriam sido despertados para repar- exemplos claros de operações contra ou sobre as leis
tir o pão e os peixes que traziam escondidos, e assim, da natureza. De todos os milagres, a ressurreição de
todos se fartaram. Essa é mais uma engenhosa expli- Lázaro foi o mais impressionante. O corpo de Lázaro
cação humana para um milagre divino, mas que é estava em decomposição, seguindo o curso normal
antibíblica e elimina a própria existência do milagre, da natureza. Jesus parou esse curso natural de decom-
pois “Um milagre que pode explicar-se cientifica- posição e depois reverteu o processo aceleradamen-
mente não é um milagre em absoluto.”8 te, fazendo com que num instante, fosse restaurado o
que estava já em estado de putrefação (Jo 11.39-44).
7 A teologia liberal do século 19, cedendo à pressão da ciên-
O que ele fez ali foi contra a natureza e absolutamen-
cia, rejeitou a existência de milagres e procurou “demitizar” a Bíblia, te sem explicação natural.11
ou seja, retirar os milagres para tentar encontrar a verdade que es-
taria escondida. Assim, a teologia liberal se lançou à busca do Jesus
Histórico, pensando que o Cristo descrito pelos Evangelhos não fosse Milagres podem ser feitos sem conter qualquer ele-
o verdadeiro, por causa do sobrenaturalismo. Bultmann, um teólogo
da neo-ortodoxia, por outro lado, entendeu, junto com muitos ou-
tros, que a busca pelo Jesus Histórico era impossível. Ele propôs que,
ao invés de “demitizar” a Bíblia, ela deveria ser “desmitologizada”. Isso 9 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 175.
significa não retirar os mitos, mas interpretá-los, para que a mensa-
gem desses mitos falasse ao homem moderno. Ver Rudolf Bultmann. 10 William G. T. Shedd. Dogmatic Theology, p. 535.
Demitologização. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1999. Mas de qual-
quer modo, ambas as escolas rejeitam a historicidade do milagre. 11 Ver William G. T. Shedd. Dogmatic Theology, p. 540. Evi-
dentemente que foi contra a natureza no caso específico de Lázaro.
8 Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. Os demais mortos continuaram o processo de decomposição. Nesse
66. sentido a natureza geral não foi afetada.

111
mento, e noutros casos podem conter elementos na- O PROPÓSITO DOS MILAGRES
turais, mas, então, os elementos são usados de forma
totalmente extraordinária. Deus pode até mesmo Milagres também são chamados na Bíblia de “sinais”.
usar um meio natural para realizar o milagre, como Um sinal aponta para alguma coisa e, normalmente,
por exemplo, a estrela de Belém, porém, fica bem cla- não para si mesmo. Um sinal de trânsito, por exem-
ro que o resultado configura-se em algo impossível plo, não pretende chamar a atenção para si mesmo,
apenas através dos meios naturais.12 e sim, apontar para uma situação importante. Assim,
os milagres não são simples demonstrações de poder
Necessários para impressionar as pessoas, eles têm um propósi-
to quando ocorrem. Os sinais de Cristo nunca eram
A existência do milagre é algo completamente neces- praticados com fins egoístas ou com o propósito de
sário ao próprio caráter de Deus, pois ele é o Deus se mostrar aos seus ouvintes. Na realidade vimos
que age. Um conceito de um Deus imóvel, que não sempre o propósito de glorificar a Deus, relacionar
interfere na natureza, não é um conceito autêntico de de forma fundamental a base sobrenatural da reve-
Deus. Quando Jesus se manifestou, uma das coisas lação e também satisfazer e aliviar as necessidades
que ficou bem clara era sua atuação miraculosa como humanas.
comprovação de seu apostolado celestial. Desde o
batismo, Jesus demonstrou a seus discípulos que ve- Obsessão por milagres
riam os céus abertos em franca atuação. Os milagres
de Jesus apontavam para o seu caráter, a ideia era de- Nos dias atuais as pessoas têm alegado realizar mila-
monstrar que nele estava o poder sobre as enfermida- gres, e em geral esses milagres apontam somente para
des, sobre as dificuldades e sobre a própria morte. Ber- si mesmos. Acabam sendo um “fim em si mesmos”.
khof entende que o milagre está intimamente ligado Não é de hoje que as pessoas querem ver sinais ape-
à existência do pecado. Ele diz: “A entrada do pecado nas para se impressionarem. Paulo disse: “Os judeus
no mundo torna necessária a intervenção sobrenatu- pedem sinais” (1Co 1.22), referindo-se à exigência
ral de Deus no curso dos eventos, para a destruição do povo judeu de ver milagres para crer. O próprio
do pecado e para a renovação da criação”.13 A síntese Jesus foi confrontado por algumas pessoas com a
dessa ideia é que, como o pecado é algo sobrenatural, seguinte exigência: “Mestre, queremos ver da tua
no sentido de que, aconteceu fora da naturalidade, parte algum sinal” (Mt 12.38). Percebe-se, portanto,
Deus precisou agir também de forma sobrenatural. que desde aquele tempo, os homens já eram ávidos
Assim, os milagres seriam uma demonstração divina por verem coisas extraordinárias. Jesus censurou as
de que Deus está agindo firmemente no mundo com multidões que o seguiam querendo ver milagres, di-
propósitos redentivos. Isso se encaixa perfeitamente
zendo: “Se, porventura, não virdes sinais e prodígios,
com a definição de Providência Especial.
de modo nenhum crereis” (Jo 4.48). Tristemente,
apesar de ter visto tantos sinais, não creram, confor-
12 A definição de Hodge, vista acima, parece contrariar essa me a Escritura afirma: “E, embora tivesse feito tantos
noção. Hodge não aceita que Deus use meios para realizar milagres,
mas nesse caso teríamos que remover vários acontecimentos bíblicos sinais na sua presença, não creram nele” (Jo 12.37).
da categoria de milagres, como por exemplo, as pragas no Egito, ou Frequentemente sabemos de pessoas que testemu-
a pesca maravilhosa. Hodge prefere chamar esses eventos de “provi-
denciais” e não milagres absolutos (Ver Charles Hodge. Teologia Sis- nharam milagres, talvez, até mesmo receberam curas,
temática, p. 466).
mas, no entanto, jamais se firmaram na igreja. O que
13 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 176.
se percebe, portanto, é que Deus tem um propósito

112
com os milagres, mas não lhe agrada a ideia de que dos céus autorizando seu Filho, no monte da Transfi-
as pessoas focalizem a atenção no milagre em si, nem guração: “Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos
que vivam ansiosas para ver algum milagre. quando estávamos com ele no monte santo. Temos,
assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e
Confirmação da Palavra fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que
brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a es-
O maior propósito que podemos ver na Bíblia para trela da alva nasça em vosso coração” (2Pe 1.19-20).
tantos milagres que Deus realizou foi para confirmar A Palavra Profética de Deus foi confirmada de forma
a Revelação. Evidentemente que essa confirmação miraculosa e sobrenatural, pois como diz Calvino, “A
precisa ser entendida como um “testemunho”, pois importância dos milagres é que eles nos despertam
“a mais elevada evidência da verdade é a própria para alguma verdade particular sobre Deus.”15
verdade”.14 Em Números 14.11, o Senhor diz: “Até
quando me provocará este povo e até quando não As três grandes épocas
crerá em mim, a despeito de todos os sinais que fiz no
meio dele?”. Veja que Deus diz que havia feito sinais Numa análise bíblica mais cuidadosa, percebemos
suficientes para que o povo cresse, pois seus sinais que houve três ocasiões cruciais na história em que as
autenticaram a revelação que havia dado através de
operações miraculosas foram grandiosas: no período
Moisés. No Novo Testamento isso pode ser visto de
de Moisés, no período dos profetas, e no período de
forma ainda mais clara quando Jesus comissionou
Jesus e dos Apóstolos. O que esses três momentos
seus doze apóstolos para irem por todo o mundo pre-
históricos têm em comum? Foram as ocasiões em
gando o Evangelho da salvação. Sobre essa ocasião,
que as maiores porções das Escrituras surgiram. No
Marcos relata: “E eles, tendo partido, pregaram em
toda parte, cooperando com eles o Senhor e confir- período de Moisés o Pentateuco foi escrito, e Moisés
mando a palavra por meio de sinais, que se seguiam” realizou as dez pragas, abriu o Mar Vermelho, tirou
(Mc 16.20). O mesmo relata Lucas com relação à água da rocha, fez o Jordão parar e muitos outros si-
pregação de Paulo e seus companheiros: “Entretan- nais que confirmavam sua autoridade. No período
to, demoraram-se ali muito tempo, falando ousada- dos profetas, especialmente Elias e Eliseu, também
mente no Senhor, o qual confirmava a palavra da sua houve muitos milagres, e surgiram os escritos que
graça, concedendo que, por mão deles, se fizessem compõem a maior parte do Antigo Testamento. Já
sinais e prodígios” (At 14.3). O objetivo dos sinais, no período de Jesus e dos Apóstolos foram realizados
de acordo com esses textos era confirmar a Palavra milagres como nunca na história, e foi nesse perío-
da graça. Paulo, se dirigindo a alguns que duvidavam do que todo o Novo Testamento foi escrito. Vemos,
de seu apostolado disse que os milagres eram a cre- portanto, que as principais concentrações de sinais e
dencial de seu ministério recebido do Senhor: “Pois maravilhas ocorreram nas épocas em que Deus deci-
as credenciais do apostolado foram apresentadas diu revelar as maiores porções das Escrituras Sagra-
no meio de vós, com toda a persistência, por sinais, das. Então, biblicamente falando, os milagres foram
prodígios e poderes miraculosos” (2Co 12.12). E Pe- dados para confirmar a Escritura.
dro disse que a Palavra profética foi confirmada pela
interferência miraculosa do próprio Deus que falou

14 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 473. 15 João Calvino. Romanos, p. 500, Rm 15.18

113
Milagres para condenação vitas. Eles tinham todos os motivos do mundo para
crer e não creram, ao passo que os ninivitas tinham
Milagres também servem para juízo do povo. Quan- poucos motivos para crer e ainda assim creram, por
do os fariseus e escribas tentaram colocar Jesus con- isso, os próprios ninivitas seriam juízes dos israelitas.
tra a parede exigindo um milagre para comprovar sua O grande milagre de Jonas foi ter convertido toda
messianidade, Jesus disse: “Uma geração má e adúl- uma cidade sem realizar um único sinal. Talvez, com
tera pede um sinal; mas nenhum sinal lhe será dado, isso, Jesus estivesse querendo dizer que os verdadei-
senão o do profeta Jonas. Porque assim como este- ros crentes não precisam de sinais para crer, pois sua
ve Jonas três dias e três noites no ventre do grande fé vem pela pregação da Palavra de Deus (Rm 10.17).
peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e três Isso está em perfeita harmonia com as palavras de Je-
noites no coração da terra. Ninivitas se levantarão, no sus dirigidas a Tomé, o discípulo que somente creria
Juízo, com esta geração e a condenarão; porque se ar- quando visse a Jesus e lhe tocasse: "Porque me viste,
rependeram com a pregação de Jonas. E eis aqui está creste? Bem-aventurados os que não viram e creram"
quem é maior do que Jonas” (Mt 12.39-41). O único (Jo 20.29). Crer sem ver é melhor do que ver para
sinal que Jesus daria para seus inimigos seria sua res- crer. Em outra ocasião Jesus disse: "Ai de ti, Corazim!
surreição após três dias de morte. Jesus ainda estava Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom se
chamando a atenção para outra coisa: O fato de os tivessem operado os milagres que em vós se fizeram,
ninivitas terem crido na pregação de Jonas sem que há muito que elas se teriam arrependido com pano
Jonas tivesse realizado qualquer milagre. Ao contrá- de saco e cinza" (Mt 11.21). Naquelas cidades, apesar
rio do povo que supostamente só acreditaria se visse de tantos milagres e sinais , não houve muitas con-
milagres, os ninivitas creram sob a exclusiva autori- versões. Disso vemos que os sinais, muitas vezes, são
dade da palavra de Jonas. Jesus demonstrou que os mais usados para a condenação do que para a con-
israelitas eram mais duros de coração do que os nini- versão.

114
16. AINDA HÁ MILAGRES HOJE?

A resposta depende muito do que se entende por mi- milagres1. E Jesus diz que milagres acompanhariam
lagres. Se quem faz essa pergunta entende por mila- os que cressem (Mc 16.17).
gre o fato de que Deus está vivo e ativo nesse mundo,
e que através de sua providência ele influi nos acon- Entretanto, se por milagres, as pessoas entendem que
tecimentos relacionados aos seres humanos, a res- devem ocorrer hoje as mesmas demonstrações de
posta terá que ser inegavelmente: Sim. Se com essa poder conforme estão registradas na Bíblia, os mes-
pergunta alguém está querendo saber se Deus ouve mos ministérios de cura e operação de sinais e pro-
e responde as orações do seu povo e atua miraculo- dígios que vemos na vida de Paulo, Pedro, Moisés ou
samente na vida deles, novamente não pode haver Elias, pensamos ter motivos suficientes para respon-
outra resposta senão “sim”. Milagres podem acon- der que não. São três os argumentos principais que
tecer hoje, porque o Deus da Bíblia não é distante e podem ser usados nesse sentido, um da teologia, um
impessoal, mas próximo e pessoal dirige a história dos fatos e um da Bíblia.
para o cumprimento de seus objetivos, e para isso,
EVIDÊNCIA TEOLÓGICA
providencialmente, ele atua em todas as coisas, ora de
forma imediata, ora fazendo uso de meios secundá- Não estamos dizendo que milagres não aconte-
rios. Isso significa, portanto, que às vezes Deus dirige cem, mas que não acontecem mais milagres iguais,
o mundo através de leis pré-estabelecidas, e que em na mesma proporção que os dos tempos bíblicos.
outras ocasiões, ele atua diretamente, de forma mi- Como o objetivo dos milagres feitos em larga escala
raculosa, conduzindo a história para seu propósito. era o de autenticar a revelação Divina, hoje, por não
Para ele não faz qualquer diferença, mas para nós faz. haver mais revelação não há a mesma necessidade
Embora devêssemos reconhecer o cuidado divino dos milagres como no passado, pois não vivemos
através de milagres ou da providência invisível, am-
bos demonstram a bondade dele. O argumento utili-
1 Ver Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p.291-297. Gru-
zado por muitos de que os milagres cessaram com os dem argumenta bastante convincentemente contra a cessação dos
milagres, porém, ele parece não ver qualquer diferença entre o tem-
Apóstolos não é muito convincente. O Novo Testa- po dos apóstolos e os nossos dias, o que sem dúvida é ignorar os fa-
tos.
mento não diz que somente os apóstolos realizavam

115
num período revelacional de Deus. Isso não quer di- de dor de cabeça, problema nas costas ou dor de bar-
zer que vivemos uma época inferior à de nossos an- riga, mas aleijados de nascença que eram curados,
tepassados, na verdade, talvez essa seja uma época até doenças hereditárias que eram interrompidas e até
superior, pois já dispomos da Revelação completa e mortos que eram ressuscitados. Alguns dizem estar
registrada, que é a Escritura Sagrada. A igreja Cristã fazendo isso hoje em dia, mas a única prova que apre-
tem historicamente defendido o fechamento do Câ- sentam é a sua própria palavra.
non, ou seja, que o último livro inspirado pelo Espí-
rito Santo foi o Apocalipse de João e que após esse EVIDÊNCIA BÍBLICA
livro, não houve outro inspirado. Não quer dizer que
Deus não “fale” mais nos dias de hoje, mas que ele A Bíblia também indica que os milagres hoje não
“fala” fazendo uso da revelação que é a Sua Palavra. precisam ser iguais aos dos tempos apostólicos. Deus
Com o Cânon fechado não há necessidade de sinais manifestou poderes extraordinários quando quis que
em larga escala para autenticá-lo. o Evangelho fosse pregado em todo o mundo. Não
é difícil imaginar o porquê. Pense bem, como um
EVIDÊNCIA FACTUAL grupo de galileus, simples pescadores, levaria a men-
sagem do Evangelho aos confins do mundo, tendo
Além disso, há um argumento que pode ser retirado contra si a mais poderosa instituição que já existiu, o
dos fatos. O que queremos dizer com isso é que es- Império Romano? A resposta é: Na força do poder
ses sinais, conforme os apóstolos realizavam, não têm de Deus. Deus muniu seus humildes discípulos de
sido vistos nos dias atuais. Alguém pode argumentar: poderes especiais para que cumprissem a impossível
Mas, e as curas e milagres que estão acontecendo em tarefa, da perspectiva humana de proclamar a men-
tantas igrejas evangélicas? Deve ser dito que o mes- sagem da salvação ao mundo inteiro. Impressiona o
mo é reclamado nas igrejas Católicas, nos Centros fato de que, por volta do ano 30 desta era, havia cerca
Espíritas e em todas as formas de religião existentes de 120 discípulos que seguiam o Senhor, mas dentro
ao redor do mundo. Recentemente o Vaticano re- de 60 anos, o Evangelho já estava nas fronteiras do
conheceu uma santa brasileira. Ao que tudo indica, mundo civilizado, distribuído em todas as camadas
a santa realizou dois milagres, mas, isso porventura da sociedade, de escravos a nobres, das cidades bár-
prova que ela deve ser adorada e que o milagre veio baras a Roma. Os milagres abriram as portas para a
de Deus? Muitos “milagres” de hoje são fraudes com- pregação do Evangelho.
provadas, e a maioria dos que não foram desmascara-
dos, também não foram comprovados. O tipo de mi- Percebe-se, entretanto, que mesmo aquelas demons-
lagre mais reivindicado hoje é aquele em que o líder trações de poder não subsistiram durante todo o
religioso dirige-se à congregação dizendo: “Irmãos, ministério apostólico. O mesmo poder que Deus
Deus me revelou que nessa carreira de bancos à mi- demonstrou na vida de Paulo no início de seu minis-
nha direita, tem alguém com problema num dos rins, tério, não parece ter usado no final. A Bíblia diz que,
mas que agora foi curado. Aqui na frente tem alguém quando Paulo chegou a Éfeso, durante dois anos,
com dor nas costas, lá atrás uma mulher que brigou pregou a palavra “dando ensejo a que todos os ha-
com o marido, etc”. E assim as curas e soluções vão bitantes da Ásia ouvissem a palavra do Senhor” (At
sendo distribuídas, supostamente comprovadas, de 19.10). Em seguida Lucas relata: “E Deus, pelas mãos
forma imediata. Convém que entendamos que não de Paulo, fazia milagres extraordinários, a ponto de
era dessa forma que os milagres ocorriam no tempo levarem aos enfermos lenços e aventais do seu uso
dos Apóstolos. Nem as curas eram meras expulsões pessoal, diante dos quais as enfermidades fugiam

116
das suas vítimas e os espíritos malignos se retiravam” mandavam e aconteciam. Hoje Deus cura pela ora-
(At 19.11-12).2 Aquela demonstração de poder vin- ção da igreja.
da de Deus tinha como objetivo demonstrar que a
pregação de Paulo era verdadeira. Claramente, esse AS OBRAS MAIORES
mesmo poder já não é visto na vida de Paulo anos
mais tarde, após as igrejas já estarem organizadas, e Um argumento muito usado nos dias atuais para
o Evangelho ser conhecido em quase todo o mundo. contrariar a noção exposta acima baseia-se nas pala-
Nem mesmo seu fiel escudeiro Timóteo foi curado vras de Jesus registradas em João 14.12: “Em verda-
por Paulo, como o próprio Paulo reconhece: “Não de, em verdade vos digo que aquele que crê em mim
continues a beber somente água; usa um pouco de fará também as obras que eu faço e outras maiores
vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequen- fará”. Há pregadores dizendo que podemos realizar
tes enfermidades” (1Tm 5.23). Por que Paulo não co- milagres maiores do que o próprio Jesus realizou se
locou um avental sobre Timóteo para ele ser curado? tivermos fé suficiente. Entre os feitos de Jesus lembra-
Com respeito a outro de seus ajudantes Paulo diz: “A mos que ele andou sobre as águas, multiplicou pães,
Trófimo, deixei-o doente em Mileto” (2Tm 4.20). Se fez tempestades se acalmarem, ressuscitou um morto
de quatro dias, fez um homem andar sobre as águas,
Paulo teve durante toda a sua vida o poder extraordi-
abriu as vistas de cegos de nascença, restaurou para-
nário para curar, por que não teria curado Trófimo?
líticos, etc. Será que alguém na história ultrapassou o
Teria ele perdido a fé? Não é o que parece. Inclusive,
número e a intensidade destes milagres? Não é pre-
é possível que uma enfermidade tenha sido a maior
ciso ter dúvidas: ninguém fez sinais maiores do que
provação pela qual o próprio Paulo passou durante
Jesus. Os Apóstolos fizeram grandes sinais, mas se
seu ministério. Estamos nos referindo àquilo que ele
fizermos duas listas, veremos que não se comparam
chama de “espinho na carne”, e do qual diz que orou aos de Jesus. Em toda a história da igreja ninguém fez
três vezes ao Senhor para que o retirasse dele, mas sinais como Jesus. Então, não faz sentido pensar que
recebeu uma resposta negativa quanto à cura, po- Jesus estivesse falando em “maiores obras” como mi-
rém positiva quanto a ter forças para resistir: “A mi- lagres maiores. Mas, não é difícil entender o que Jesus
nha graça te basta” (Ver 2Co 12.7-9). Diante dessas tem em mente. Quando pensamos que Jesus res-
evidências bíblicas, que muitas vezes passam desa- tringiu seu ministério apenas à nação de Israel e que
percebidas pelas pessoas, chegamos à conclusão de durante todo o seu ministério, cerca de apenas 120
que Deus usou milagres de forma mais concentrada pessoas se mantiveram fiéis a ele, podemos entender
durante o período inicial da pregação do Evangelho e o real sentido de suas palavras. Num único sermão
que aos poucos as manifestações miraculosas foram de Pedro, após o Pentecostes, se converteram três mil
diminuindo. Não que necessariamente cessaram, pessoas, e, posteriormente, o Evangelho foi levado
mas que cumpriram um papel designado por Deus pelos Apóstolos até os confins da terra. Estas eram as
para uma época específica. Talvez a maior diferença obras maiores, não milagres maiores, mas uma obra
esteja na maneira como Deus operava milagres na- de expansão maior do que a do próprio Jesus. Esta
quele tempo e como opera hoje. Naquele tempo os obra, os apóstolos realizaram, e nós continuamos a
apóstolos eram os instrumentos diretos de Deus, eles realizar hoje, porém, é o próprio Senhor quem nos
capacita. De qualquer modo, continua sendo obra
dele.
2 Veja outros milagres impressionantes de Paulo registrados
em Atos 13.6-12; 14.8-18; 16.16-18; 19.8-11; 28.1-6. Note que estão as-
sociados mais ao início da pregação apostólica em algum lugar novo.

117
MILAGRES MENTIROSOS existência deles não provava que os operadores eram
crentes verdadeiros. Até aqui já sabíamos que alguém
É, portanto, inegável que Deus opera milagres nos pode ver e receber um milagre e não ser convertido, e
dias atuais, apesar de não operar como no início da agora ficamos sabendo que alguém pode até mesmo
pregação do Evangelho, ou nos períodos de revela- realizar um milagre sem ser convertido. De acordo
ção. Porém, é um fato que muitos supostos milagres com Jesus o que faz de uma pessoa alguém que ele
são psicológicos, frutos da imaginação e do emo- “conhece”, não é se ela viu ou operou algum milagre,
cionalismo das pessoas. Uma doença psicológica só mas se essa pessoa faz a “vontade dele”. A vontade do
pode receber uma cura psicológica. Isso quer dizer Senhor está registrada em sua Palavra, a Bíblia.
que, nem a doença nem a cura eram reais. Na ex-
pectativa de verem coisas sobrenaturais as pessoas Não devemos olvidar que o próprio Satanás é perito
frequentemente as veem, pois a mente é hábil em em operar prodígios e sinais. A Bíblia tem anunciado
criar estas coisas. Não são poucos os relatos de pes- que a manifestação final do maligno será recheada de
soas que, ao participarem de um momento de êxtase eventos sobrenaturais. Jesus disse que “surgirão falsos
emocional, se sentiram curadas, mas depois voltaram cristos e falsos profetas operando grandes sinais e
a sentir os sintomas da doença. Até mesmo aleijados prodígios para enganar, se possível, os próprios elei-
tos” (Mt 24.24). Paulo também falou que “o apare-
se levantam num momento de extrema pressão psi-
cimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás,
cológica e emocional, mas após passar o frenesi do
com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira”
momento, voltam a ser dominados pelas retenções
(2Ts 2.9). Satanás é um imitador de Deus; ele pro-
dos músculos, e pelo esforço indevido, ficam piores
cura produzir obras semelhantes às de Deus a fim de
do que antes. Mas infelizmente há muitos se promo-
confundir os homens. Neste texto (2Ts 2.9) fica claro
vendo às custas da ingenuidade das pessoas.
que Satanás se vale de todos os recursos a ele dispo-
níveis, contudo, como não poderia ser diferente, am-
Por outro lado, milagres reais podem acontecer, e
parado na “mentira”, já que ele é seu pai (Jo 8.44). E
ainda assim, serem mentirosos. Mateus 7.21-23 diz:
a segunda Besta que João viu e registrou no Apoca-
“Nem todo o que me diz: 'Senhor, Senhor!', entrará lipse, e que representa a religião dominada pelo ma-
no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de ligno, “também opera grandes sinais, de maneira que
meu Pai, que está nos céus. Muitos, naquele dia, hão até fogo do céu faz descer à terra, diante dos homens.
de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos Seduz os que habitam sobre a terra por causa dos si-
nós profetizado em teu nome, e em teu nome não ex- nais que lhe foi dado executar diante da besta” (Ap
pelimos demônios, e em teu nome não fizemos mui- 13.13-14). João não poderia usar uma palavra mais
tos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca precisa para demonstrar o efeito que os milagres cau-
vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a sam nas pessoas do que “seduzir”. O maligno seduz as
iniquidade”. Dá para imaginar a surpresa dessas pes- pessoas lhes dando o que elas mais querem. O desejo
soas diante do Senhor Jesus quando ele lhes disser: desenfreado do ser humano por ver milagres será afi-
“Nunca vos conheci”. É muito difícil entrar na cabeça nal, como já tem sido, usado contra ele mesmo.
de alguém que viu e até mesmo realizou milagres em
nome de Jesus, que Jesus não o conhece. Mas, isto é MILAGRES SUBSTITUINDO A MENSA-
o que o próprio Jesus disse que acontecerá no dia de GEM
sua vinda. Note que Jesus não disse que os milagres
não haviam acontecido, mas simplesmente que, a Precisamos meditar ainda sobre o perigo dos mi-

118
lagres ocuparem o lugar da mensagem. Isso é uma Vivemos na chamada “terceira onda do Espírito”,4 em
aberração, pois Jesus realizava milagres justamente que a grande ênfase é colocada nos sinais e maravi-
para chamar a atenção para a sua mensagem. Jesus lhas, e somente é considerado como Evangelho ver-
operou muitos milagres, mas nunca colocou os mi- dadeiro aquele que contém o maior sensacionalismo.
lagres no centro do seu ministério. O centro era o A ênfase em sinais e maravilhas pegou no mundo
seu ensino, era sua própria pessoa. Quando conce- todo. Na igreja, isso já está sendo considerado como
deu autoridade aos discípulos para realizarem sinais, evidência da verdade. Se não existirem sinais e prodí-
eles voltaram alegres por causa do poder que agora gios, Deus não está se manifestando. Uma caracterís-
tinham, mas ele disse que deveriam se alegrar no fato tica deste movimento é que quase não fala na Bíblia.
de seus nomes estarem escritos no céu (Lc 10.20). O Evangelho pregado é praticamente destituído dos
Jesus curou o cego logo após dizer: “Eu sou a luz do verdadeiros elementos bíblicos: Cruz e ressurreição
mundo” (Jo 8.12; 9.1ss). Quando multiplicou os de Cristo. As pessoas não se importam se as expe-
pães afirmou: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6.1-14,35). riências podem ser comprovadas pela Escritura, ou
Quando ressuscitou Lázaro disse: “Eu sou a ressur- mesmo se são abertamente confrontadas por ela. A
reição e a vida” (Jo 11.25). Seus milagres apontavam experiência vale por si mesma. Se algum sinal aconte-
para sua mensagem. ceu, então dizem, é de Deus. Ignoram que mais de 15
mil pessoas por ano dizem ter sido curadas em Lour-
Gradualmente, o mundo tem deixado de ser racio- des. Em cada edição da “Sentinela” da Ciência Cristã
nalista para ser espiritualista. Até bem pouco tempo há muitos relatos de curas. Muçulmanos paquistane-
atrás, tudo aquilo que não podia ser comprovado ses dizem que um de seus reverenciados santos, Baba
cientificamente era considerado uma farsa. Não ha- Farid, tem curado pessoas de doenças fatais. Milhares
via espaço para o sobrenatural. Mas, as coisas já não de hindus, a cada ano, dão testemunho de curas em
são rigorosamente assim. Uma prova disso é o mo- seus templos. Portanto, se os sinais comprovam a ver-
vimento da Nova Era. Este movimento une ciência dade, todas estas religiões são verdadeiras.
com mágica. Ao mesmo tempo em que se utiliza da
tecnologia, mergulha no ocultismo. De fato, cada Com tristeza podemos ver que a tendência evangé-
vez mais as pessoas creem no oculto, no espiritual. lica atual é colocar os milagres no centro de tudo.
Os livros mais vendidos atualmente são aqueles que Livros evangelísticos somente falam de sinais e não
visam despertar as pessoas para a espiritualidade. Li- têm uma palavra sobre a cruz de Cristo, sobre santi-
vros que falam de anjos, mantras, espiritismo, e toda dade ou compromisso. Sermões evangelísticos dei-
sorte de ocultismo, vendem como água. A cultura xam a Bíblia de lado para se concentrarem em ricas
moderna está se movendo rapidamente para a super e comoventes histórias de milagres pessoais. Somos
espiritualidade, ou melhor, para a superstição. Isso se admoestados pela Palavra de Deus a não nos des-
torna cada vez mais evidente “à medida que alguns viarmos da centralidade de Cristo. Não devemos
reputados cientistas, filósofos e artistas de todos os nos deixar fascinar por nada que queira nos desviar
tipos expressam hostilidade aberta contra o pensa- da obra redentora de Cristo. O conteúdo central de
mento racional e voltam-se na direção de uma mistu-
ra de mágica e ciência”.3
4 Este nome foi dado por Peter Wagner, professor de mis-
sões do Seminário Fuller nos Estados Unidos. Segundo ele a primeira
onda veio no começo do século 20 com o surgimento do pentecosta-
3 John H. Armstrong. “Evangelismo de Poder”, in Religião de lismo. A segunda onda aconteceu em meados dos anos 70, e, a partir
Poder. ed. por Michael Scott Horton, p. 59. dos anos 90 a terceira e mais poderosa onda do espírito está atuando.

119
nossa mensagem precisa ser a do Cristo crucificado,
ocorrido pela providência de Deus. Devemos lem-
a qual Paulo diz ser escândalo para os judeus que
queriam apenas sinais e loucura para os gregos que brar que não é certo louvar a Deus mais pelo milagre
buscavam sabedoria (1Co 1.22-23). do que pela providência. Um pastor uma certa noite
recebeu o pedido de uma membro de sua igreja para
CONCLUSÃO dar um testemunho. A irmã testemunhou que naque-
le dia, quando estava voltando da cidade vizinha para
Milagres são intervenções divinas sobrenaturais, atra- sua cidade, ao parar no sinaleiro, dois ladrões entra-
vés das quais Deus age revogando as leis da natureza, ram no carro e apontaram uma arma para ela. Era um
mas de acordo com sua vontade pré-estabelecida.
assalto. Apavorada, silenciosamente começou a orar
Deus age no mundo hoje e sempre, o que não quer
pedindo por livramento. De repente , sem mais nem
dizer que ele aja sempre da mesma forma.
menos, ao parar noutro sinaleiro, os ladrões desceram
Os milagres bíblicos tinham o objetivo de compro- do carro e foram embora. Deus havia livrado a moça
var a veracidade da Revelação divina, e esses milagres miraculosamente do assalto. Aquele foi um belo tes-
não têm mais acontecido nos dias atuais, porém, temunho, mas ao final do culto o pastor chamou a
Deus age de forma sobrenatural conforme seus pro- irmã e falou: "Eu também recebi uma graça de Deus
pósitos, curando e beneficiando de várias formas. hoje, e posso dizer que foi até mesmo maior do que
a sua". "É mesmo?", falou a irmã , "o que aconteceu?".
Não devemos, entretanto, viver somente em busca
O pastor disse: "Também vim da cidade vizinha, mas
de milagres, pois Deus age através de causas secundá-
rias, e alguém pode ser curado de câncer por meio de nada aconteceu comigo". "Não entendi'', respondeu
um tratamento e não apenas por intervenção sobre- a irmã , "qual foi a graça?". Ele completou: "Nenhum
natural. De qualquer forma, o beneficio existirá e terá ladrão entrou no meu carro, Deus não permitiu''.

120
ANTROPOLOGIA
"O SER HUMANO CRIADO POR
DEUS"

121
17. CRIAÇÃO OU EVOLUÇÃO?

O antigo Credo Apostólico começa com a seguin- claramente quão trágica é a tentativa de condicionar
te declaração: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, a teologia e a revelação aos paradigmas da ciência
criador dos Céus e da Terra”. A igreja sempre acredi- sazonal. No final sacrifica-se a teologia, sacrifica-se a
tou que Deus é o criador de tudo o que existe. A ideia revelação e a própria mensagem da igreja. E, quando
de que a terra surgiu como resultado de um processo menos se espera, a ciência muda sua concepção.
evolutivo é relativamente recente. Somente a partir
do século 18, até mesmo dentro da igreja começou- A história da modernidade tem demonstrado a exis-
-se a questionar a validade do Gênesis como exata tência de ideologias sustentando praticamente todos
expressão da verdade histórica. os movimentos influentes no nosso mundo. Hoje,
quando se pensa em ciência, muitos imaginam uma
Desde a fundação do cristianismo, a crença em Deus metodologia imparcial e livre de ideologias, mas
como o criador do mundo foi dominante, mas, a par- isto é um grande mito. A ciência moderna é essen-
tir do iluminismo, o homem decidiu se livrar deste cialmente ideológica. Se não fosse assim, cientistas
paradigma. O homem da idade moderna resolveu famosos não estariam dispostos a forjar provas para
complementar o grito de independência de Adão. suas teorias, como a vergonhosa “prova” da existência
Adão bradou: “Eu não preciso de um mantenedor”. do homem de Neanderthal, cujo crânio mais famoso
E o homem moderno foi mais longe ao bradar: “Eu foi uma prova forjada de um crânio de um homem
não preciso de um criador”. Agora o homem moder- do século 18. A ciência moderna está intimamente
no quer explicar sua existência sem precisar admitir ligada às ideologias do mundo moderno. O relativis-
que haja um Deus por detrás dela. Desde que Dar- mo dos costumes, da ética e da própria existência está
win fundamentou a controvertida teoria da “evo- por detrás da maioria das teorias científicas moder-
lução das espécies” (1859), o homem pensou que nas. Para a maioria, negar os absolutos significa se ver
conseguiu dar seu grito de independência definitiva. livre de condenações ou exigências da religião. Mas
Infelizmente as ideias modernas da ciência têm con- este é mais um mito da modernidade.
vencido muitas pessoas crentes, algumas até sinceras,
que na tentativa de tornar a Bíblia supostamente mais Gênesis é o livro que afirma expressamente que
acessível para o mundo moderno, têm negociado Deus criou o mundo e o ser humano. Muito se tem
princípios inegociáveis. A história da teologia mostra discutido a respeito do Livro de Gênesis, especial-

122
mente sobre seu caráter histórico e literário. O cris- e direito do próprio povo à terra. A linguagem é sim-
tianismo conservador tem se posicionado a favor do ples, porém histórica. O gênero literário não é poéti-
caráter histórico da obra. Mas muitos eruditos mo- co, mas narrativo. É uma narrativa histórica.
dernos têm relegado o livro à categoria de poético,
algo como um fruto da experiência religiosa de um ANTES DE TUDO, DEUS...
povo, com verdades submersas ou escondidas atrás
de mitos. Essa visão do Gênesis é extremamente pre- É interessante a forma como a Bíblia apresenta Deus.
judicial ao entendimento da Bíblia como livro inspi- Ela não se preocupa em começar provando a existên-
rado e inerrante e não deveria ser aceita por crentes cia dele. Ela diz: “no princípio Deus...”, pressupondo
sinceros que honram a Palavra de Deus. Mas infeliz- sem possibilidade de dúvidas a existência de Deus.
mente professores de teologia de diversos seminários Para a Bíblia, crer no Deus criador é uma matéria de
e instituições teológicas ensinam isso para alunos fé, conforme o escritor aos Hebreus declara: “Pela fé,
inexperientes e despreparados, que ficam fascinados entendemos que foi o universo formado pela palavra
pela suposta erudição e se esquecem da inspiração. de Deus, de maneira que o visível veio a existir das
Quando muitos desses alunos voltam como pastores coisas que não aparecem” (Hb 11.3). Como já dis-
para suas igrejas, já não acreditam na infalibilidade da semos, para alguém aceitar que Deus é a origem de
Escritura e, consequentemente, não têm mensagem todas as coisas, a fé é necessária. Não porque não haja
para proclamar. Basta olhar para o que aconteceu em evidências de que Deus é o criador, mas porque para
tantas igrejas da Europa, dos Estados Unidos e até aquele que não crê, nenhuma evidência lhe é sufi-
mesmo do Brasil, que desacreditaram da Escritura, e ciente. Embora acreditemos que há boas evidências
se tornaram secularizadas, para perceber que essa é racionais para se aceitar a ideia de Deus como cria-
dor, entendemos que para que as pessoas aceitem
uma péssima opção. O cristianismo não sobrevive, se
essa ideia precisam receber o dom da fé.
a Bíblia for rejeitada.
Todas as coisas possuem uma origem. Você sabe a
O livro de Gênesis foi escrito por Moisés1 com a in-
data do seu nascimento, sabe quando seus pais nas-
tenção de demonstrar ao povo saído do Egito quais
ceram, talvez até mesmo quando seus avós nasceram.
eram suas origens. A criação descrita não se apropria
Você tem conhecimento da época em que suas rou-
de termos científicos, até porque, termos científicos
pas foram confeccionadas, do seu carro, da sua casa,
são coisas bem recentes. A tentativa é de dar ao povo
etc. Todas essas coisas tiveram um início. Mas, será
daquela época uma compreensão da terra prometida
que é possível afirmar que todas as coisas que existem
onde iriam habitar, sobre a origem dela, e da origem
no Universo tiveram um início? Pense bem antes de
responder, pois se você disser que sim, então, poderá
1 Nos atrevemos a continuar insistindo na autoria mosaica entrar num caminho de contradições. Se sua resposta
do Pentateuco apesar de toda a argumentação do criticismo moder-
no no sentido contrário. Por muito tempo os eruditos críticos assu-
é sim, então, o que havia antes da primeira coisa sur-
miam a definição de Wellhausen (1844-1918) de que o Pentateuco gir? A resposta só poderá ser uma: o nada. Mas, e o
era composto de quatro tipos de materiais ou fontes: A fonte “J” ou Ja-
vista, a fonte “E” ou Elohista, a fonte “D” ou Deuteronômica e a fonte P nada pode existir? Você consegue imaginar o nada? E
ou Sacerdotal. Mas os próprios estudos críticos têm lançado dúvidas para piorar, como é que o nada poderia dar origem ao
sobre essa teoria, como admite o próprio Gordon Wenham, pois as
discussões sobre esse assunto têm surgido dentro do próprio coração tudo?2 Se em algum tempo houve o “nada”, então, lo-
do criticismo (Gordon Wenham. Word Biblical Commentary, Volume
1: Genesis 1-15, Introduction). Não há razões convincentes para não
acreditar que Jesus soubesse quem escreveu o Pentateuco, e ele ad-
mitiu que foi Moisés (Ver Lc 24.44) 2 A máxima “ex nihilo nihil fit” é verdadeira, pois “nada vem

123
gicamente o nada precisaria existir para sempre, mas necessário”,3 pois se algo existe hoje, então um Ser
note que mesmo o conceito do tempo não poderia supremo precisa existir, do qual todas as coisas pro-
existir. O nada não produz algo. Para dar origem a al- cedem. Se este ser supremo não existe, a vida é irre-
guma coisa, o nada não poderia ser realmente nada, levante.
ele precisaria ser no mínimo algo. E esse algo precisa-
ria necessariamente ser incriado. Mas o incrível é que O ATAQUE DO EVOLUCIONISMO
para ser incriado, esse algo precisaria ser absoluto ou
supremo. A diferença entre o absoluto e o relativo é A partir do século 18 o mundo mudou. O huma-
nismo do iluminismo começou a desbancar Deus
exatamente essa questão da eternidade. Na verdade,
de seu trono tanto da filosofia quanto da teologia.
por mais que as pessoas neguem, precisam acreditar
A ciência, influenciada pelo panteísmo e pelo mate-
que algo existia antes que as outras coisas apareces-
rialismo e alimentada pelas ideologias modernistas,
sem. Esse “algo”, a Bíblia apresenta como Deus, e o investiu com força total contra a doutrina da criação
Credo Apostólico afirma que é o Todo-Poderoso. sustentada pela igreja e pela Bíblia. A ideia da origem
Ou então, nós precisaríamos sustentar a existência de de todas as coisas pelo Fiat do criador foi ridiculariza-
um milagre estupendo: o nada originou algo. da, e em seu lugar a ideia da evolução ganhou noto-
riedade. Da noite para o dia, uma teoria que tem mais
Para a Escritura, o mundo não foi criado pelo nada, furos do que um queijo suíço, tornou-se a expressão
mas do nada. Quem criou o mundo foi Deus, porém máxima da verdade, um dogma inquestionável. Foi
Deus não tinha algo material para usar a fim de criar o assim que o homem moderno rejeitou os dogmas
mundo, então ele precisou formar a matéria. Não sig- medievais, mas colocou seus próprios dogmas no
nifica que a matéria seja, portanto, uma extensão de lugar daqueles.
Deus, como crê o panteísmo, pois Deus transcende
a matéria. Deus, em seu poder absoluto, criou a ma- Há muitas teorias evolucionistas. O conceito popu-
téria do nada, como Hebreus diz que “o visível veio a lar associado à evolução é de que o homem veio do
existir das coisas que não aparecem” (Hb 11.3). Os macaco, porém isso é uma redução demasiadamente
teólogos têm chamado esse ato criador de Deus de simplista da teoria. O conceito evolucionista foi po-
Fiat, que é o momento criador, representando o po- pularizado por Charles Darwin em sua obra “A Ori-
der que Deus tem de criar as coisas do nada. gem das Espécies” publicada em 1859.4 Porém, hou-
ve muitos desenvolvimentos dessa teoria. A teoria da
Quando Gênesis diz: “No princípio criou Deus os evolução entende o mundo como estando em cons-
céus e a terra”, não está lançando um conceito mera- tante transformação, melhoramento e adaptação. As-
mente religioso. Esse é um conceito necessário. É a sim, os seres humanos são um produto de milhões
explicação que esclarece o que, até então, seria inex- de anos de evolução, cuja origem deve remontar a
matéria inanimada. Toda a vida, segundo a teoria da
plicável. Todos os homens, cristãos ou não, deveriam
acatar esse conceito a fim de que tudo faça sentido. Se
Deus não é o criador, não existe mais "razão". Como 3 R. C. Sproul. Verdades Essenciais da Fé Cristã, Caderno 1,
p. 54.
Sproul afirma, esse “é um conceito racionalmente
4 A ideia da evolução já foi sustentada por filósofos gregos
antigos como Tales de Mileto. No século 17 homens como Swammer-
dan (1637-1785), Leibniz, Diderot, Robert Chambert também a defen-
do nada”. Veja excelentes argumentos sobre isso em: Wiliiam G. T. She- deram. Foi Herbert Spencer quem introduziu a ideia do evolucionis-
dd. Dogmatic Theology, p. 467. mo na comunidade científica.

124
macroevolução, deve ter surgido de uma única célu- substitui o Criacionismo, que é a teoria daqueles
la, que por sua vez, se originou de alguma possível que defendem ter sido Deus o criador do cosmos. A
transformação química.5 A vida seria, portanto, um teoria da evolução deixa uma grande lacuna em sua
acidente cósmico, e nós, seres humanos, poderíamos exposição, pois se as coisas evoluíram, necessaria-
dizer pejorativamente, não passaríamos de “amebas” mente precisam ter evoluído de algum ponto. Não é
superdesenvolvidas. Se a evolução é verdade, não se- possível evoluir do nada, então, algo deve ter existido
ríamos criaturas criadas com um propósito, mas cria- antes para que pudesse evoluir. A teoria da evolução
turas (este termo nem poderia ser usado) existentes não consegue responder a questão da origem de to-
a partir do acaso, vindos do nada e voltando para o das as coisas, e a menos que defenda a eternidade da
nada, e, portanto, nada sendo. Como já postulamos matéria, o que é um absurdo, terá que acreditar num
no quinto capítulo desse livro, não há como disfarçar “criador” em última instância. O máximo que a teoria
os fatos: se Deus não existe e a teoria da evolução é da evolução conseguiria explicar, e isso com muitas
verdadeira, então, a vida não faz sentido. lacunas, seria o desenvolvimento das coisas criadas,
mas quanto ao surgimento delas, fracassa completa-
As pessoas pensam, em geral, que os teístas rejeitam a mente. Como diz Hodge, isso não é solução, “é mera
teoria da evolução por causa de sua fé, mas o motivo negação de que alguma solução é possível”,6 ou como
principal nem é este. Precisamos rejeitar a teoria da diz Machen “é preciso dar um salto no vazio para acei-
evolução por causa da razão. Essa teoria não é racio- tar a hipótese evolucionista”.7 Mas mesmo a questão
nal. Infelizmente é ensinada nas escolas como ver- do desenvolvimento das coisas fica com muitas lacu-
nas na teoria do evolucionismo. Desde muito tempo
dade, porém não passa de um grande mito, ao qual
os cientistas têm notado que existe uma espécie de
é necessária uma imensa dose de fé para se acreditar.
“desenho inteligente” no mundo. É impossível ima-
De fato, é preciso ter muito mais fé para crer na teoria
ginar que um acaso impessoal estivesse por detrás
da evolução do que para crer no que a Bíblia fala. Não
deste “design” do universo. Quando se contempla
admira que para muitos a ciência se transformou
uma molécula de DNA, por exemplo — que apesar
numa espécie de religião. É um fato indiscutível que
de toda a tecnologia moderna e das mentes mais bri-
a ciência moderna está muito ligada ao ateísmo, e o lhantes do mundo que estão a serviço de desvendar
ateísmo, por mais incrível que possa parecer é uma seus mistérios, ainda é algo bastante incompreensível
religião, pois é um sistema de fé. O ateu crê que Deus para o ser humano, temos um exemplo claro de um
não existe. Podemos dizer que ele crê, pois suas ideias “design” inteligente. A confirmação deste “design” in-
não podem ser provadas, ou seja, ele não consegue teligente tem sido a principal tese dos defensores do
ir até um laboratório e provar que Deus não existe. chamado “criacionismo científico”, que é uma tenta-
Portanto, o ateísmo também é uma questão de fé. tiva de demonstrar cientificamente que a proposta
da existência de um criador faz muito mais sentido
Engana-se quem pensa que a teoria da evolução do que a ideia da evolução. Como citamos no início
deste trabalho, Einstein entendia que somente Deus
5 Há uma diferença entre macroevolução e microevolução. poderia ser o criador de tudo o que existe, e isto por-
São duas teorias, a primeira fala que todas as coisas surgiram da que ele pôde ver a complexidade da criação. Isto não
evolução, enquanto que a segunda enfatiza o fato de que, de cer-
ta forma, muitas coisas evoluem nesse mundo. A macroevolução é
decididamente antibíblica, mas a microevolução aparentemente não
contraria os princípios bíblicos, afinal o homem realmente se adapta 6 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 180.
em vários lugares diferentes, e há um progresso claro na história da
humanidade atestado pela própria Bíblia. 7 J. Gresham Machen. Visión Cristiana Del Hombre, p. 123.

125
significa que Einstein fosse um cristão, mas ele se viu DIAS OU ERAS?
obrigado a admitir que as evidências da complexi-
dade e da inteligência na natureza apontavam para a Algumas questões importantes em nossos dias, dado
existência de Deus.8 o progresso da ciência, são: Quantos anos tem a Ter-
ra? Quanto tempo Deus levou para criar o universo?
Algumas coisas em particular tornam a teoria da
evolução ainda mais inaceitável. Como algo morto A primeira consideração que precisa ser feita é que
pode dar origem à vida? Como algo simples pode calcular a idade da Terra, a partir de elementos bíbli-
originar o complexo? Uma brincadeira é feita com cos, é impossível. Embora um Arcebispo chamado
relação à teoria da evolução: uma vez que é dito que James Ussher (1581-1656), cerca de quatro séculos
o “Big Bang”, uma grande explosão, originou todas as atrás, tentou provar que a criação se deu no ano 4004
coisas, pede-se que se jogue uma bomba numa relo- a.C., chegando a esse número através da soma das ge-
joaria e depois se verifique se todos os relógios estão nealogias relatadas na Bíblia, deve ser dito que esse
sincronizados após a poeira baixar. Como pode uma número é tão imaginativo quanto qualquer outro. É
explosão originar um universo sincronizado? Na um fato que a Bíblia não se preocupa em dizer quan-
verdade a teoria da evolução contraria leis científicas tos anos a Terra possui. Somar gerações é algo ina-
como, por exemplo, da termodinâmica, que diz que propriado, pois não sabemos se a Bíblia cita todas as
as coisas tendem a se extinguir e não a evoluir. Uma gerações. Parece-nos que a Bíblia se preocupa apenas
chama acesa não aumenta mais e mais, ela queima com as principais, como se percebe da genealogia de
até se extinguir. Uma chaleira de água quente não Jesus em Mateus. Portanto, não há como dizer, à luz
se aquece mais e mais, ao contrário ela esfria. Uma da Bíblia, quantos anos a Terra possui.
teoria da involução seria muito mais provável, a par-
tir desta concepção. As coisas somente evoluem en- Diante disso, será que as afirmações dos cientistas de
quanto são alimentadas. A água aquece enquanto há que a Terra tem bilhões de anos é conclusiva? Nova-
fogo em baixo, e o fogo queima enquanto há lenha ou mente precisamos nos lembrar que a ciência é muito
algum combustível que o alimente. Até mesmo para limitada para definir coisas tão grandiosas. Nossa tec-
sustentar a teoria da evolução seria necessário supor nologia ainda é muito incipiente, e frequentemente
que há um mantenedor por trás de cada ato evoluti- vemos novas “descobertas” de cientistas contrarian-
vo, e novamente Deus seria necessário. Os homens do antigas “descobertas” que até então, eram verda-
não podem deixar Deus de lado, precisam dele para des máximas. Aliás, algo axiomático na ciência é a
que algo faça sentido. Se o deixarem de lado, estarão sua condição provisória (Popper). Um dos métodos
abrindo mão da razão, e mergulhando no caos da ir- mais conhecidos dos últimos anos para se saber a
racionalidade. Só uma época de relativismo como a idade de algum objeto é o Carbono 14, mas hoje esse
atual poderia aceitar uma teoria destas.9 método é bastante questionado, inclusive por muitos
cientistas evolucionistas. Certamente, as gerações
8 O mesmo pode ser dito de outros cientistas famosos do
vindouras vão rejeitar a teoria da evolução e muitas
passado como Johannes Kepler, Leonhard Euler, James Clark Max- das descobertas “científicas” da atualidade. Um pou-
well, James Prescott Joule, Werher Von Braun. Os filósofos gregos Pla-
tão e Aristóteles também sustentavam a ideia de que o universo foi co de ceticismo com relação à ciência não faz mal a
criado.

9 Para uma abordagem interessante do Evolucionismo, que


ajuda a entender os principais pressupostos dele, bem como algu- Como Derrotar o Evolucionismo com Mentes Abertas. São Paulo: Edi-
mas respostas para os seus questionamentos veja: Phillip E. Johnson. tora Cultura Cristã, 2000.

126
ninguém. Além disso, há muitos cientistas que defen- há uma luta de deuses, somente a figura soberana de
dem que a terra tem milhares de anos e não milhões. Deus aparece. Além disso, por que o hino babilônico
não pode ser uma cópia distorcida do relato bíblico?
O livro do Gênesis diz que o cosmos foi criado em Ou mesmo ambos resultados de tradições orais ou
seis dias. Depois do aparecimento da teoria da evo- escritas que se divergiram ao longo da história?12 Não
lução, muitos teólogos readaptaram essa crença, a fim há problemas em admitirmos que existem relatos an-
de se harmonizar com a ciência. Uma das primeiras teriores ao do Gênesis sobre a criação, porém, a inspi-
tentativas, nesse sentido, foi apelar para o caráter poé- ração do Espírito Santo deu ao relato bíblico a certeza
tico de Gênesis. O primeiro capítulo deixou de ser da verdade.
histórico para ser poético. Como um livro poético,
então, os detalhes não importam, o que importa é a Há três teorias mais ou menos aceitas no meio cris-
mensagem. Assim, dizem eles, não devemos conside- tão sobre a criação que fazem com que os seis dias de
rar os seis dias como literais, e sim a mensagem por Gênesis 1 se multipliquem bastante, ou pelo menos
detrás que afirma ser Deus o criador, não importa em que a semana da criação seja mais "extensa". A primei-
que época nem em quanto tempo. Mas, considerar ra afirma que, cada dia da criação representa uma era.
o livro do Gênesis como poético é fazer um ataque Baseados no texto de 2Pedro 3.8, que afirma que para
muito sério à integridade da Escritura. Muitos con- o Senhor um dia é como mil anos, muitos crentes
ceitos bíblicos comprovados pelo Novo Testamento entendem que cada dia da criação pode representar
se demonstrariam inexistentes. É importante que se um longo período de tempo, algo como um “dia geo-
entenda que o Novo Testamento não vê o Gênesis lógico”. Outra tese bem aceita por muitos eruditos
como um livro poético e sim histórico. Jesus fala de considera os dias como sendo de 24 horas, mas ad-
Adão e Eva como personagens históricos (Mt 19.3- mitindo espaços de tempo entre esses dias.13 Assim,
Deus teria agido de forma criadora no primeiro dia,
5), bem como de Abraão, Isaque, Jacó, etc (Lc 13.28).
em seguida teria se passado um período de tempo,
Teria ele se enganado? Como justificar a Queda se
e novamente Deus atuaria de forma criadora no se-
Gênesis é poético? Se a Queda não é histórica, por
gundo dia. Entre um dia e outro poderia ter havido
quê a Redenção seria?
milhões de anos. Por fim, podemos citar uma terceira
tese, bem menos provável, que vê um longo espaço
Um ataque ainda mais sério à integridade do relato
de tempo entre os dois primeiros versos do Gênesis.
bíblico da criação veio com a descoberta de um hino
O primeiro versículo diz: “No princípio criou Deus
babilônico. Destaca-se nesse hino a figura do deus
os céus e a terra”. O segundo versículo diz: “A terra era
Marduque que vence o deus Tiamat (que é o ocea-
sem forma e vazia”. Da primeira sentença para a se-
no), dividindo o seu corpo e fazendo dele a terra e o
gunda haveria um lapso de tempo, talvez de milhões
céu.10 Por haver algumas semelhanças entre essa his-
ou até mesmo bilhões de anos. Alguns inclusive de-
tória e o relato bíblico, o relato bíblico foi declarado fendem que houve uma pré-criação e que na terra vi-
como uma cópia daquele. Porém, as diferenças entre viam os anjos (e talvez os dinossauros), e que após a
os relatos são muito grandes.11 No relato bíblico não

12 Para uma exposição de narrativas míticas semelhantes en-


10 Paulo J. Achtemier. Harper’s Bible Dictionary, (tópico: “Tia- tre culturas ver: David E. Aune. Word Biblical Commentary, Volume
mat”). 52b: Revelation 6-16, (Rev 12.1).

11 Ver Gerard Van Groningen. Criação e Consumação, Vol I, p. 13 O próprio Van Groningen defende essa teoria (Ver Gerard
407-408. Van Groningen. Criação e Consumação, Vol I, p. 56-57)

127
queda dos anjos, a terra tornou-se sem forma e vazia. biológica, quantos anos lhe seriam dados? Biologica-
A partir daí, Deus teria começado a recriar a terra.14 mente talvez tivesse 20, 30 ou 40. Cronologicamente,
porém, tinha alguns segundos. Quando os cientistas
Há dificuldades com todas essas posições, e todas analisam uma pedra ou um fóssil calculam a sua ida-
são especulações num certo sentido, porém não de em milhões, mas essa poderia ser sua idade bioló-
podemos afirmar categoricamente que sejam todas gica, qual seria sua idade cronológica? Deus poderia
impossíveis. Mas, deve ser dito que para se fazer mais ter feito a terra nova com idade de velha. De qualquer
justiça ao ensino da Bíblia, precisamos dizer que a modo, não precisamos ter todas as explicações para
interpretação mais plausível é a de que o mundo foi isto. É suficiente o fato de que o evolucionismo sus-
criado em seis dias literais, num espaço literal de seis cita mais problemas do que oferece soluções. A fé na
dias. O fato de o sétimo dia ser o do descanso cor- existência do Criador, mesmo que não saibamos exa-
robora para isso, pois esse dia, certamente precisa ser tamente como ele criou o mundo,15 é mais racional e
um dia literal. Além disso, a palavra “dia” que aparece fundamentada logicamente.
no texto, geralmente, tem na Bíblia a ideia de dia de
24 horas, e não é boa exegese interpretar de outra for- CONCLUSÃO
ma, a menos que o contexto exija. Além disso, cada
um dos dias citados na criação tem uma tarde e uma Assim como a declaração de independência de Adão
manhã. Fica difícil imaginar uma manhã que dura não o fez ser independente de Deus, da mesma for-
milhões de anos. ma, a negação do homem moderno não muda o fato
de que Deus é o criador do homem e de tudo o que
Uma outra explicação poderia ser dada para a idade existe. A igreja fará muito bem em continuar crendo
da terra, é a que leva em conta a aparência das coisas em Deus como o criador de todas as coisas. Não te-
quando Deus as criou. Quando Deus criou Adão, já o mos resposta para tudo, porém, não há argumentos
criou um homem adulto. Deus não fez um bebê que suficientes para que esta crença seja modificada. Pen-
cresceu até chegar à maturidade. Se Adão, no mo- sar que o mundo se originou de um processo evoluti-
mento em que foi criado, passasse por uma análise
15 É preciso admitir que a preocupação central do Livro do
Gênesis não é dar uma descrição pormenorizada da criação. A narra-
14 É preciso que se entenda que o “caos” original descrito tiva é relativamente simples e enxuta, principalmente, quando con-
pela Bíblia, o “sem forma e vazia” não contém necessariamente a ideia sideramos que um espaço muito maior no livro foi dedicado a narrar
de “mal”. Pode significar apenas que a terra não era própria para habi- a história de apenas quatro gerações (Abraão, Isaque, Jacó, José). En-
tação, então Deus a tornou própria (Ver Gerard Van Groningen. Cria- tão, fica claro que o propósito maior não é contar a história da criação,
ção e Consumação, Vol. I, p. 47). mas a história da redenção.

128
vo levanta mais questões sem solução do que afirmar altamente satisfatória para o mundo moderno, pois
que Deus foi seu criador. No fim das contas, mesmo não há explicação melhor. O criacionismo é mais ra-
os evolucionistas necessitam de um criador. Portan- cional do que as teorias científicas. Ser criacionista é
to, a mensagem bíblica da criação continua atual e a melhor opção.

129
18. O HOMEM COMO SER CRIADO

A evolução faz do homem um ser auto existente homem aparece como a base de todos os valores e
sem propósito. É na criação que encontramos o ver- de toda excelência. Uma palavra que pode ser sinôni-
dadeiro sentido e o valor do ser humano. A criação ma de “humanismo” é “egocentrismo”. Ou seja, tudo
é a chave para entendermos o homem, mais do que deve ser centralizado no homem e em seus desejos. É
a própria redenção. Quando as pessoas começam a nossa opinião que o humanismo tem causado mais
apresentação do Evangelho a partir da queda, quase problemas para o homem do que qualquer outro sis-
que podem dizer: “Errar é humano”, como Shakes- tema filosófico. O humanismo tenta fazer do homem
peare costumava dizer.1 Mas errar não é humano, ou o que ele não é.
seja, não é algo próprio da humanidade por criação,
é algo que sobreveio com a entrada do pecado no Para entendermos o homem, precisamos voltar às
mundo. Por isso, o problema não está no criador da primeiras páginas da Bíblia.
humanidade, nem na criação em si, mas no que a
criatura decidiu fazer com a liberdade que o criador O relato do Gênesis afirma coerentemente estes dois
soberanamente lhe concedeu. É muito importante aspectos do ser humano: o fato de ser uma criatura e
estudar a criação, pois somente assim poderemos en- uma pessoa.
tender o homem, e a própria redenção.
O HOMEM COMO CRIATURA
Um filósofo chamado Protágoras no quinto sécu-
lo a.C. disse que o “homem é a medida de todas as Está muito claro que o homem não é o resultado
coisas”. De lá para cá, o humanismo, uma corrente de algum processo evolutivo. Deus criou o homem
filosófica, que como o próprio nome sugere, coloca do “pó da terra” (Gn 2.7). Deus usou um material já
o homem no centro das atenções, tem fomentado existente para formar o homem. Aqui não temos um
o pensamento da humanidade com a noção de que exemplo direto de criação “do nada”. Ainda assim, é a
tudo existe por causa do homem. No humanismo o mão do criador a responsável pela formação do ser
humano. O profeta disse: “Mas agora, ó Senhor, tu
és nosso Pai, nós somos o barro, e tu, o nosso olei-
1 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p
25. Parte da abordagem a seguir pode ser vista nesta obra de Horton ro; e todos nós, obra das tuas mãos” (Is 64.8). Deus
(p. 25-39). poderia renovar a situação do povo de Israel como

130
o oleiro renova o vaso de barro. Isso é possível por- isso quando revela que Deus colocou algo dentro
que nossa origem foi literalmente sendo formada do do homem que não foi posto nos animais, ou seja, o
barro pelas mãos de Deus. É preciso entender que, “sopro” de Deus, e a consequência é que o homem
como oleiro, Deus teve o “direito” de nos fazer como passou a ser “alma vivente”. É preciso destacar a ati-
ele quis. Isso significa que somos o resultado de um tude íntima de Deus ao se aproximar e soprar nos
desejo exato de Deus. Deus quis nos fazer assim e fez. lábios do homem. Ele infunde no homem um pouco
Nem poderia ser diferente, pois a maravilhosa com- de sua própria vida. A expressão “alma vivente” é um
plexidade que é o corpo humano só poderia ser obra equivalente de “pessoa”.3 Isso destaca a singularidade
de um artista como Deus. Por outro lado, se Deus é do homem como criação de Deus. Ele é mais do que
o oleiro e nós somos o barro, então isto demonstra uma simples criatura, ele recebe o dom da personali-
nossa absoluta dependência de Deus. Paulo usa esta dade. Por que Deus fez isso? Porque Deus queria um
imagem do oleiro modelando o barro para explicar relacionamento pessoal com o homem.
por que Deus tem o direito de predestinar as pessoas:
“Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do Agora isso nos leva a uma implicação ainda maior.
mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para Como pessoa, o homem tem liberdade para agir. Se
desonra?” (Rm 9.21). Aqui percebemos que, uma como criatura ele é totalmente dependente de Deus,
vez que somos criaturas, somos absolutamente de- como pessoa ele é livre. Aqui chegamos mais uma
pendentes da vontade de Deus. Paulo disse isto aos vez no paradoxo. Precisamos nos acostumar a isso,
atenienses: “Ele mesmo é quem a todos dá vida, res- pois a teologia bíblica é toda ela paradoxal. Paradoxo
piração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana significa que há duas verdades que podem parecer
para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado
contraditórias, sendo difíceis de serem reconciliadas
os tempos previamente estabelecidos e os limites da
em nossa mente finita. Ainda neste curso veremos so-
sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura,
bre o paradoxo da soberania de Deus e da responsa-
tateando, o possam achar, bem que não está longe de
bilidade humana conjuntamente. Vemos claramente
cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos,
na Bíblia que Deus determinou todas as coisas que
e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito:
acontecem e tudo segue um plano pré-estabelecido,
Porque dele também somos geração” (At 17.25-28).
no qual estão inclusive nominados aqueles que serão
Cada atitude nossa durante toda a nossa existência é,
de algum modo maravilhoso, “em Deus”. salvos. Por outro lado, a Bíblia ensina igualmente que
cada homem é absolutamente responsável por seus
Somos absolutamente dependentes dele, e não con- atos e jamais poderá atribuir a Deus uma parcela da
seguimos viver longe dele mais do que um peixe culpa que lhe pertence por não ser salvo. Hoeke-
consegue viver fora da água (sem confundir com ma vê o paradoxo aqui também, na constituição do
panteísmo). homem como criatura e pessoa. Aliás, ele vê aqui a
base de todo o paradoxo da vida humana: “Este é o
A PERSONALIDADE DO HOMEM mistério fundamental do homem: como pode o ser
humano ser igualmente uma criatura e uma pessoa?
Como diz Hoekema “o homem não é somente uma Ser uma criatura, como já vimos, significa dependên-
criatura; também é uma pessoa”.2 O Gênesis destaca cia absoluta de Deus; ser uma pessoa significa inde-

2 Anthony Hoekema, Criados à Imagem de Deus, p. 16. 3 Ver Derek Kidner, Gênesis, p. 57.

131
pendência relativa”.4 De fato aqui temos a chave para cionismo6 por ele parecer refletir melhor o ensino
compreender o homem em seu relacionamento com do Gênesis. Deus teria soprado apenas em Adão a
Deus. Devemos sempre lembrar que ele é ao mesmo alma, e assim ela foi passando a todos os seus descen-
tempo uma criatura, ou seja, que está totalmente de- dentes, que geralmente são vistos como estando nos
baixo da direção de Deus; e que é uma pessoa, ou “lombos” dos pais (Gn 46.26; Hb 7.9-10). Quando a
seja, Deus lhe concedeu uma certa liberdade para mulher foi criada, nada se fala da alma, o que pode sig-
agir, e tem toda a responsabilidade por seus atos. nificar que ela a herdou de Adão. O problema maior
com o traducionismo é que ele parece fazer da alma
A ORIGEM DA ALMA um objeto que se divide, se originando da alma do
pai, da mãe, ou de ambos. Talvez uma forma de sair
Vimos que o homem possui a característica distin-
deste problema seja dizer que no surgimento da alma
tiva de ter uma alma. A pergunta que ainda precisa
acontece tanto uma herança natural, quando um ato
ser respondida é: como surge a alma no ser humano?
Será que Deus tem um “estoque de almas” no céu, e criativo de Deus. Será que não podemos afirmar isto
as faz encarnar em algum momento propício? Enten- também do próprio corpo humano? De certo modo,
demos que a alma humana não tem uma espécie de o corpo é apenas o resultado de heranças genéticas,
“pré-existência”. Ou seja, ela passa a existir juntamen- mas isto significa que Deus não participa ativamen-
te com o corpo. Mas ainda assim, precisamos identi- te da formação do corpo humano? O salmista disse:
ficar como acontece esse “surgimento” da alma. “Pois tu formaste o meu interior tu me teceste no seio
de minha mãe” (Sl 139.13). Ele está descrevendo a
Há duas teorias principais que podem conter ele- maneira como Deus o formou dentro do ventre de
mentos verdadeiros: criacionismo e traducionismo. sua mãe. Assim, dizemos que a alma é, tanto o resul-
O criacionismo diz que cada alma é uma criação ime- tado de um traducionismo, uma espécie de herança
diata de Deus. O momento desta criação não se pode dos pais, como de um ato criador de Deus.
deduzir com certeza, mas é em algum momento na
formação do feto. Segundo esta teoria, a alma é uma MARCA REGISTRADA
“criatura pura” unida a um corpo depravado. Mas não
significa que no momento da união a alma seja cor- Gênesis 1.26-31 é um dos textos mais conhecidos
rompida pelo contato com o corpo, e sim que, a alma da Escritura. É a narrativa histórica do sexto dia da
é criada juntamente com o corpo, na geração feita pe- Criação, quando Deus criou o ser humano. Até en-
los pais, e então, é formada dentro da complexidade tão, Deus já havia criado todas as outras coisas, mas
de pecado que pesa sobre toda a humanidade.5 somente do homem ele disse “façamos a nossa ima-
gem e semelhança”. Hoekema expõe esse assunto do
A outra teoria, o traducionismo, diz que a alma é seguinte modo: “Deve-se notar também que a cria-
herdada dos pais. Ela é produzida juntamente com o ção do homem foi precedida por uma deliberação ou
corpo pela geração natural. Ambas as teorias encon- conselho divino: ‘Façamos o homem...’ Isso demons-
tram alguma base bíblica e é difícil escolher entre as
tra novamente a ideia da singularidade da criação do
duas. Inclinamo-nos um pouco mais para o tradu-
homem. Esse conselho divino não é mencionado

4 Anthony Hoekema, Criados à Imagem de Deus, p. 17.


6 Ao contrário de Berkhof (Ver Louis Berkhof. Teologia
5 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 199. Sistemática, p. 201).

132
com relação a nenhuma outra criatura”.7 Como diz do nada (ex nihil), com tantas variedades de tons,
Bavinck: “Ao chamar à existência as outras criaturas, cores, e formatos quantas se poderiam imaginar. Ele
nós lemos simplesmente que Deus falou e essa fala criou tanto o mundo macro como o micro em todos
de Deus trouxe-as à existência. Mas quando Deus os seus detalhes de forma, tamanho, cor e função.
está prestes a criar o homem Ele primeiro conferen- O plano de Deus era que a humanidade se tornasse
cia consigo mesmo e decide fazer o homem à Sua imitadora dele nesse sentido. É claro que o homem
imagem e semelhança. Isso indica que, especialmen- não poderia criar coisa alguma “do nada”, mas como
te a criação do homem, repousa sobre a deliberação, foi feito à imagem de Deus, poderia refletir a criativa
sobre a sabedoria, bondade e onipotência de Deus. imaginação do criador em singular e impressionan-
(...) O conselho e a decisão de Deus são mais clara- te imitação. Aprendemos isso do texto de Gênesis.
mente manifestos na criação do homem do que na Deus disse: “Façamos o homem a nossa imagem,
criação de todas as outras criaturas”.8 conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio...”
(Gn 1.26). Note a expressão “domínio”. Dominar é
A imagem divina, portanto, é uma característica ex- algo próprio de Deus, mas o homem que foi criado
clusiva da humanidade. O que torna o homem tão à imagem divina também tinha a função de dominar,
especial? Num certo sentido nós somos iguais a tan- numa clara imitação de Deus. Uma das primeiras
tas espécies de seres vivos. Os pássaros voam em ban- funções do homem foi dar nome aos animais (Gn
dos, as bestas viajam em manadas e nós vivemos em 2.19-20).9 Deus estava estimulando a criatividade do
tribos sociais. Mas, há algo que nos torna diferentes ser humano. Deus queria um imitador seu, mas que
de todas as demais criaturas de Deus. Nós sabemos tivesse qualidades originais. Van Groningen diz que
e sentimos isso. A Bíblia explica o que é: Deus nos “Deus trouxe a humanidade para sua família real. Ele
criou à sua imagem e semelhança. não lhes concedeu sua deidade; ele os dotou com o
privilégio e a responsabilidade de serem co-trabalha-
IMITADOR DE DEUS dores com ele nas tarefas reais a serem executadas na
criação”.10
Quando Deus terminou a obra da criação, que in-
cluía o homem, viu que tudo “era muito bom” (Gn ASPECTOS DA IMAGEM DIVINA
1.31). Ou seja, Deus não viu qualquer defeito moral
no homem, porque de fato não havia. Havia justiça, Resumidamente, a imagem divina no homem pode
santidade e piedade em todas as atitudes. Tudo o ser vista em quatro sentidos.11 A primeira ideia é a de
que o homem fizesse, seria parte da adoração a Deus. personalidade. Deus é um ser pessoal, e o homem fei-
Planejar o futuro, nomear os animais, dar à luz filhos, to à sua imagem dispõe dessa mesma personalidade.
construir cidades, escrever músicas, praticar esportes, Isso não faz o homem ser “algo mais” que os animais,
refletir sobre o significado de cada coisa, etc., tudo mas faz o homem ser “ímpar”. A personalidade pres-
deveria estar centrado em Deus. Além de perfeição
moral, Adão e Eva foram dotados da mesma criati-
vidade de seu criador. Deus imaginou um mundo 9 É interessante que, enquanto o homem foi submisso a
Deus, o resto da criação foi submisso ao homem. Mas após a queda
perfeito e o trouxe à existência. Ele criou o mundo tudo isso mudou (Ver John L. Dagg. Manual de Teologia, p. 119).

10 Gerard Van Groningen. Criação e Consumação, Vol 1, p.


85.
7 Anthony Hoekema. Criados à Imagem de Deus, p. 24.
11 Ver Gerard Van Groningen. Criação e Consumação, Vol 1,
8 Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 184. p. 84.

133
supõe consciência, conhecimento e responsabilida- os capacitam a funcionar, a se expressar e a exercer
de. influência”.12 Machen tem uma definição ainda mais
inspiradora: “
A segunda ideia é a da espiritualidade. Deus é um ser
espiritual, e os seres humanos também são personali- Que mistério estupendo é isso! Aqui temos o ho-
dades espirituais. Apesar de ser criatura num sentido mem, criatura finita, saído da mão criadora de
material, pois faz parte da matéria criada, o homem Deus, e que anda pela terra com um corpo feito do
é também extra material, pois tem em si o elemen- pó da terra. E apesar disso, este ser, tão insignifi-
to espiritual, que o impele a viver uma vida além da cante como possa parecer à primeira vista, possui o
matéria. Quando Deus fez o homem à sua imagem, dom estranho e terrível da liberdade pessoal, e é ca-
colocou nele um senso insuperável da eternidade (Ec paz de desfrutar uma relação pessoal com o Deus
3.11). É aquilo que Paulo fala aos atenienses: “Pois infinito e eterno”.13
nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28).
Todos aspiram ao divino. Ninguém consegue negar DICOTOMIA OU TRICOTOMIA?
isso de forma completa. É por isso que não existe um
ateu no sentido exato. Mesmo quando as pessoas ne- Uma das características mais marcantes do homem
gam a existência de Deus, lá no fundo sabem que ele que foi feito à imagem de Deus é a sua natureza que é
existe. A imagem de Deus nos faz pessoas espirituais composta de corpo e alma.
capazes de se relacionar e se comunicar com Deus.
Essa é a visão dicotômica do homem. Mas há mui-
A terceira ideia que a imagem de Deus delega ao ser tos que sustentam uma tricotomia, insistindo que o
humano é a da liberdade. Como ser pessoal e espiri- homem é composto de alma, corpo e espírito. A tri-
tual Deus é um ser livre. Deus criou o homem com cotomia originou-se com os gregos, especialmente
liberdade para amar, conhecer, confiar, desejar, obe- Platão, que via o ser humano como composto de três
decer e também para se recusar a fazer essas coisas. partes. A alma seria o meio de ligação entre o corpo
e a mente (nous).14 Entre os cristãos, Irineu ensina-
A quarta característica pode ser chamada de expres- va que, enquanto os incrédulos têm apenas corpo e
sividade. Deus tem a capacidade de se expressar, de alma, o crente tem alma, corpo e espírito, este último
fazer sua vontade conhecida e de executá-la. Deus criado pelo Espírito Santo.
expressa sua personalidade porque tem capacida-
de para isso. A Bíblia diz que Deus tem olhos, nariz, Há dois textos na escritura que sugerem uma divisão
boca, ouvidos, mãos, cabelo, etc. Evidentemente que tripartida do homem. Um deles é 1Tessaloniscenses
esse é um linguajar antropomórfico, pois são qualida- 5.23: “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo;
des humanas aplicadas à divindade, para sugerir que e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados
ele consegue se expressar. O ser humano se expres- íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor
sa igualmente através de partes de seu corpo, e pode
transmitir sua personalidade, espiritualidade, virtu-
12 Gerard Van Groningen. Criação e Consumação, Vol 1, p.
des, etc. Van Groningen define: “Fica bem claro que 85.
pensar nos seres humanos feitos à imagem de Deus é 13 J. Gresham Machen. Visión Cristiana del Hombre, p. 145-
considerar a relação ímpar de semelhança e um vín- 146.
culo amoroso, vivo; é considerar o que os seres hu- 14 Ver Anthony Hoekema. Criados à Imagem de Deus, p.
228.
manos são e quais as suas capacidades ímpares que

134
Jesus Cristo”. O outro é Hebreus 4.12: “Porque a pa- de “espíritos” (Mt 10.28; Ap 6.9; Hb 12.23).18 Parece
lavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que mais certo, portanto, dizer que o ser humano é com-
qualquer espada de dois gumes, e penetra até a ponto posto de corpo e alma, sendo esta última também
de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta chamada de espírito. Porém, devemos evitar tratar
para discernir os pensamentos e propósitos do cora- dessas coisas como se fossem separadas. O ser huma-
ção”. Porém, a dicotomia é mais amplamente defen- no deve ser considerado como um todo indivisível.
dida pela Bíblia, o que nos leva a pensar que os textos Não significa que a alma seja mais valiosa do que o
acima não estejam ensinando uma divisão tripartida corpo, como pretendia Platão e os gregos. O corpo
do ser humano. Parece que Paulo está falando em ter- e a alma possuem o mesmo valor, e ambos decaíram
mos generalizados, tentando acumular palavras para em Adão, precisando ser redimidos. Por essa razão, a
Bíblia enfatiza a ressurreição. Não basta ao homem
expressar a ideia de que o cristão como um todo será
estar em espírito junto de Deus após a morte, para
guardado até o fim.15 O autor aos Hebreus, por outro
ser completo, ele precisará ter de novo o seu corpo, e
lado, está falando do poder que a Palavra tem de colo-
assim, com corpo e alma restaurados, o ser humano
car certas coisas umas contra as outras dentro do ser
viverá feliz para sempre...
humano. Ele não está falando em termos literais, até
porque seria difícil entender uma divisão entre "jun- A DIGNIDADE DO SER HUMANO
tas e medulas", mas enfatizando que a Palavra penetra
nos recônditos mais interiores de nosso ser, trazendo Do que foi dito até agora, dá para perceber que a cria-
à luz as razões secretas das nossas ações.16 Como diz ção é a chave para entender o homem. Quando pen-
Kistemaker, “o escritor recorre ao simbolismo para samos em redenção, precisamos limitá-la a um certo
dizer que, o que o homem habitualmente não pode número de pessoas, pois ela se limita ao número da-
dividir, a Palavra de Deus separa completamente”.17 queles a quem Deus, no curso da história, moveu e
chamou para si mesmo. Mas, quando pensamos em
A dicotomia é a visão mais bíblica, pois a Bíblia usa criação, precisamos incluir tanto cristãos quanto não-
indistintamente as palavras alma e espírito (Mt -cristãos, pois todos são criaturas de Deus. Isto quer
10.28; 1Co 7.34; Tg 2.26). Os mesmos sentimen- dizer que todos são feitos à imagem e semelhança di-
tos são atribuídos à alma e ao espírito (1Sm 1.10; Is vina. Não é que o ser humano possui a imagem divi-
54.6; Jo 12.27; 13.21; At 17.16; 2Pe 2.8). O louvor na, ele é essa própria imagem.19 Esta é uma das coisas
e o amor de Deus são atribuídos tanto à alma quan- que frequentemente esquecemos. A universalidade
to ao espírito (Lc 1.46-47; Mc 12.30). A salvação é da criação que colocou a imagem divina em todos
associada tanto à alma quanto ao espírito (Tg 1.21; os seres humanos implica em que seu próximo, seja
1Co 5.3,5). Morrer é descrito igualmente como o ele o mais obstinado ateu ou a mais dedicada anciã
da igreja, foi feito igualmente à imagem divina. Isso
partir da alma e do espírito (Gn 35.18; 1Rs 17.21;
é um resultado da criação e não da redenção. Se to-
Mt 10.28; Sl 31.5; Mt 27.50; Lc 8.55; Lc 23.46; At
das as pessoas são imagem divina, então é necessá-
7.59). Os mortos ora são chamados de “almas” ora
rio que as respeitemos e reconheçamos a dignidade

15 J. Gresham Machen. Visión Cristiana del Hombre, p. 143.


18 Essas observações podem ser encontradas em: Anthony
16 Anthony Hoekema. Criados à Imagem de Deus, p. 230. Hoekema. Criados à Imagem de Deus, p. 229-230.

17 Simon J. Kistemaker. Hebreus, p. 144. 19 Vd. Morton H. Smith. Systematic Theology, p. 238.

135
de todos os seres humanos, independente de quem não faz isso. Ele analisa o homem em sua relação com
sejam, do que creiam ou do que façam. Além disso, o criador. E este é o único modo confiável para se en-
se a imagem é comum, então, significa que todos os tender realmente quem ou o que é o homem.
seres humanos têm uma comum dimensão moral,
criativa e religiosa, que embora imperfeita, não pode A INSIGNIFICÂNCIA HUMANA
ser removida sob qualquer esforço humano. Ter
sido criado à imagem de Deus é algo vantajoso para A primeira conclusão que o salmista chegou a respei-
o homem, porque lhe dá dignidade, por outro lado, to do homem nos parece a princípio muito negativa:
lhe traz responsabilidade. As impressões digitais que o homem é insignificante diante da grandeza da cria-
Deus deixou sobre o ser humano o fazem muito sig- ção. O autor, Davi, muito antes de ser rei em Israel, era
nificativo para todo o universo criado, mas ao mesmo pastor de ovelhas nas regiões montanhosas de Be-
tempo o fazem tremendamente responsável diante lém. E, como pastor, muitas noites dormiu ao relento,
de Deus. Por isso dissemos que não pode existir algo tendo apenas o céu estrelado como cobertura. Lá, no
como um ateu. Deus deixou tão gravado no coração céu límpido do Oriente, Davi podia contemplar a
do homem o senso de sua existência que ninguém Lua e as estrelas, criadas por Deus, e se admirar dian-
poderá argumentar diante de Deus: “eu não sabia”. te da grandeza das obras do criador. Quem já teve a
Nestes tempos modernos, talvez antes de falar para oportunidade de deitar-se numa bela noite estrelada
as pessoas sobre aceitar Jesus como salvador, devês- e contemplar o céu, sabe da sensação de pequenez
semos falar sobre aceitar Jesus como criador.20 Parte que toma conta diante da imensidão que os olhos
da ciência tem tentado negar esta verdade essencial. tentam inutilmente captar. Provavelmente pensando
nisto, Davi se perguntou: “Que é o homem?”. Diante
QUEM É O HOMEM? da imensidão das coisas que foram criadas, o homem
é insignificante. E quanto mais o homem tem pro-
Nada melhor para entender o homem do que ouvir gresso em seu conhecimento da criação, mais motivo
o que o seu criador tem para dizer a respeito dele. tem para sentir-se pequenino. Com todas as desco-
Quando não entendemos uma obra de arte, a melhor bertas científicas que nos ensinam sobre a imensidão
coisa é pedir informações a quem a fez. A Escritura das galáxias e das estrelas incontáveis, bem como de
nos ensina o que o criador tem a dizer sobre o ho- tudo quanto se esconde dentro do tamanho minús-
mem. No Salmo 8, há uma pergunta que o homem culo de uma simples célula, o senso de nossa insigni-
tem tentado responder desde o começo do mundo. ficância diante do todo se acentua.
É uma pergunta que diz respeito à identidade, e à
razão de existir da humanidade. O salmista pergun- Porém o motivo maior que torna o homem insignifi-
ta: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus cante não é a grandeza da criação, mas a grandeza do
dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o seu criador. Esta criação tão grande e majestosa pos-
homem, que dele te lembres E o filho do homem, sui um criador ainda maior e muito mais majestoso.
que o visites?” (Sl 8.4). O que é o homem? O mundo Aquele que criou todas as estrelas dos céus e é o cria-
tem oferecido muitas respostas, mas todas têm se de- dor do próprio homem é o único realmente grandio-
monstrado insatisfatórias, porque analisam o homem so, e diante dele, o homem não passa de uma sombra.
como se ele fosse independente de Deus. O Salmo 8
A GRANDEZA HUMANA
20 Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p 30.
A partir do verso 5, entretanto, parece que o autor co-

136
meça a desfazer tudo o que disse. cionar com o homem, é que ele vai se sentir humano
de verdade. O humanismo moderno ou antigo é an-
Ele passa a falar o quanto o homem é grande e im- ti-humano, porque sempre tentou fazer do homem
portante. Mas se olharmos atentamente veremos aquilo que ele não é, e nem foi planejado para ser. A
que não há contradição alguma. O Salmo nos mos- Bíblia é um livro humanista no verdadeiro sentido da
tra duas verdades com respeito ao homem. Por um palavra, pois coloca o homem no seu verdadeiro lu-
lado sua insignificância diante de Deus e de tudo o gar: Criatura de Deus, criado para o louvor de Deus,
que Ele é e faz. Por outro, sua grandeza, por ter sido e, importante, por causa disso. O homem não é o
feito à imagem de Deus e por ter recebido uma fun- centro do universo, Deus é. O homem não se sentirá
ção de suma importância das mãos do próprio Deus. satisfeito enquanto quiser ser mais do que é. Nunca
O salmista diz: “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, se realizará tentando ocupar o lugar que é de Deus.
menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste”
(Sl 8.5). A maior de todas as qualidades do homem É interessante que, na estrutura da Reforma, nunca
é ser criatura de Deus, feito à sua imagem. Isso não sobrou espaço para glorificar o homem, pois toda
quer dizer que o homem é divino, mas antes que foi a glória devia ser rendida a Deus. A Reforma pôde
criado para refletir perfeitamente o caráter de Deus. proclamar Soli Deo Gloria, porque, mais do que nin-
Com a queda no pecado, essa imagem se distorceu, guém, entendeu o ser humano. Quando temos uma
mas não deixou de existir. visão melhor de nós mesmos e de Deus, diminuímos
a nossa importância e aumentamos a dele. É interes-
O Salmista continua: “Deste-lhe domínio sobre as sante que a Reforma tenha produzido uma era de
obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste” grandes pensadores e artistas, mas nunca exaltou o
(Sl 8.6). Quando Deus criou o homem, determinou ser humano, antes prostrou o orgulho humano diante
que ele tivesse domínio sobre todas as coisas criadas, da majestade de Deus. Mas, hoje as coisas estão mui-
referindo-se principalmente ao reino animal e vege- to mudadas. O homem é exaltado e Deus diminuído.
tal. O homem deveria ser o administrador de Deus Nossos cultos e serviços são frequentemente celebra-
neste mundo. Nem é preciso dizer que esta função ções de nós mesmos mais do que de Deus, há mais
satisfazia plenamente, tanto a Deus, que se deleitava entretenimento neles do que adoração. Nunca antes,
em seu “administrador”, quanto ao próprio homem, nem mesmo na era medieval, os cristãos tinham sido
que se sentia completamente útil e integrado com a tão obsessivos consigo mesmos. Nunca antes, Deus
obra de Deus. Deus criou o homem com a função foi tão totalmente esquecido. Gastamos a maior par-
de representá-lo perante a criação, nisso está a gran- te do tempo, como Narciso, contemplando nossa
de dignidade do ser humano. A criação, portanto, dá própria imagem distorcida na água. Desse modo o
toda a dignidade ao homem. homem jamais se entenderá, pois fomos criados a
imagem de Deus, mas como a nossa própria imagem
O homem somente tem importância porque Deus
foi distorcida pelo pecado, o melhor lugar para nos
existe e tem um plano para o homem. Somente
entendermos é olhar não para nós mesmos, mas para
quando o homem reconhece sua pequenez diante
o criador, no qual não há qualquer distorção.
de Deus e reconhece que Deus é gracioso por se rela-

137
138
19. O PROPÓSITO DA CRIAÇÃO

Uma teoria popular diz que Deus nos criou porque das nesta discussão são: A criação está centrada no
se sentia sozinho. Seria algo inacreditável imaginar homem ou está centrada em Deus? Deus existe para
que Deus precisasse dos seres humanos para preen- nosso propósito ou nós existimos para o propósito
cher um vazio em seu ser. É o homem que possui dele? A resposta bíblica é que nós existimos por cau-
este vazio em decorrência da queda. Como poderia sa dele, para louvor da sua glória (Ef 1.6). A Escritu-
a divina trindade se sentir só em meio a milhões e ra diz que Deus tem prazer em suas obras. O Salmo
milhões de anjos? Mas mesmo os anjos nunca foram 104 diz: “A glória do Senhor seja para sempre! Exulte
a base da comunhão trinitária. A Trindade basta a si o Senhor por suas obras!” (v. 31). Como o artista se
mesma, pois há um perfeito relacionamento de amor alegra em sua obra prima, assim Deus se alegra nas
nela, conforme Jesus nos revelou (Jo 17.524). Não é coisas que criou. Ou seja, todas as coisas existem por
Deus quem está sozinho sem o ser humano, é o ser causa Dele e não por nossa causa.
humano quem está sozinho sem Deus.
“Qual é o fim principal do homem?” Essa é a per-
Uma outra teoria diz que Deus criou os seres huma- gunta número um do nosso catecismo (Breve Cate-
nos, porque ele queria ter alguém que o amasse de cismo de Westminster), e a resposta é: “Glorificar a
livre vontade. Esta teoria tem coisas a seu favor, mas é Deus e gozá-lo para sempre”. Existimos para glorifi-
incompleta. Ela sugere que os anjos amavam a Deus cá-lo e para nos alegrarmos nele. Deus nos criou para
não por livre vontade, mas por compulsão. Entretan- ter prazer em nós, e nós, da mesma forma, devemos
to, isso pode conferir demasiado crédito ao ser huma- ter prazer nele. É por isso que nos foram dados os pra-
no. Além disso, como então boa parte dos anjos se zeres terrestres. Eles servem para nos elevar o sentido
rebelou contra Deus? (Ver 2Pe 2.4; Jd 6; Ap 12.7). para a verdadeira alegria nele. Isso significa que a nos-
sa busca por prazeres foi calculada para ser algo como
PARA O LOUVOR DA SUA GLÓRIA uma motivação para uma busca de Deus. Imagine a
implicação deste pensamento. Por que será que Israel
Alguém pode pensar que esta discussão não tem tinha tantas festas em seu calendário litúrgico? Pense
muita importância, mas dela depende a nossa visão na história do Deus-homem, que não somente viu
da criação e do próprio homem, e consequentemen- uma bênção na união de um homem e de uma mu-
te, do próprio Deus. As perguntas que estão envolvi- lher, mas até mesmo providenciou um milagre a fim

139
de que houvesse vinho para celebrar aquela ocasião são: o espiritual, o social e o cultural. Na integração
(Jo 2.1-11). desses elementos o homem encontraria sua plena
realização e felicidade.
Talvez você questione: Mas nós não somos ensina-
dos a abandonar o mundo e os seus prazeres? De Mandato Espiritual
fato a Bíblia ensina isso, mas é justamente porque a
queda deturpou toda a ordem da vida. Na verdade, o O mandato espiritual foi dado como parte da ordem
que estamos querendo afirmar é que o mundo em si da criação. Há três particularidades na criação do ser
não é o problema, nem mesmo a humanidade em si humano que apontam para o fato de que Deus de-
e seus prazeres. O problema é a rebelião do mundo e sejava ter um relacionamento íntimo com o homem.
da humanidade contra o seu criador. Primeiramente o homem foi criado à imagem de
Deus. Isso nos fala de uma semelhança e de uma pos-
Um antigo culto, conhecido como Maniqueísmo, sibilidade plena de relacionamento, que nenhuma
que foi grandemente influenciado pelo Gnosticismo, outra das criaturas dispunha. Deus elegeu o ser hu-
afirmava que toda matéria era má e que somente o mano para espelhar sua própria grandeza. O segun-
espírito era puro. Desta forma o corpo, a inteligência do aspecto foi a instituição do Dia de Descanso. Ao
e os apetites carnais eram inerentemente demonía- estabelecer o Sábado Deus havia proporcionado não
cos. Contra isso, o calvinismo afirmou que toda a só um dia de descanso para o homem, mas, acima de
depravação, ou os pecados que surgem dela, não se tudo, um dia de íntimo relacionamento consigo. E o
levantam da natureza, mas da corrupção desta natu- terceiro aspecto foi a ordem divina para não comer
reza. Portanto não são naturais, mas completamente do fruto da árvore do conhecimento do bem e do
anormais. O problema não é a matéria que é má, mas mal. Se esta obediência fosse mantida, Deus, Adão e
o pecado que existe na nossa existência. Eva continuariam a manter o lindo relacionamento
pessoal que possuíam entre si, sendo que nada pode-
Precisamos considerar o propósito de nossa criação ria haver entre eles que pudesse atrapalhar.
como centrado em Deus. Ele nos fez para louvor da
sua glória. Somente quando entendemos isso é que Adão e Eva deveriam permanecer em comunhão
podemos compreender o significado por trás do tra- com Deus. Eles deveriam continuar andando com
balho e do lazer, do prazer e da restrição, da vida e da Deus quando ele viesse no final da tarde (Gn 3.8). O
morte, do riso e do temor. A criação mostra que Deus fato de Deus vir na “viração do dia” para se encontrar
tem um imenso propósito para a vida de cada ser hu- com o ser humano demonstra que Deus queria que
mano que é chamado para ser um imitador de Deus. o homem “andasse” com ele. No Antigo Testamen-
to, apenas dois homens tiveram esse privilégio pleno
CRIAÇÃO E RELACIONAMENTO de “andar” com Deus: Enoque (Gn 5.24) e Noé (Gn
6.9). O primeiro foi transladado aos céus, e o segun-
Deus idealizou para a coroa de sua criação três rela- do foi o único sobrevivente (junto com sua família)
cionamentos, que fariam com que o sentido da exis- da maior catástrofe que esse mundo já viu: o dilúvio.
tência humana fosse completo.1 Esses três aspectos
O mandato Espiritual, portanto, nos fala de nosso re-
lacionamento pessoal com Deus. Sua origem está na
1 Uma ótima exposição sobre os três mandatos, e que serviu
de base para esse texto, pode ser encontrada em: Harriet e Gerard própria criação do ser humano. Ele precisa ser o mais
Van Groningen. Família da Aliança, p. 55-199.
importante de nossa vida, mas é claro que não isola-

140
do dos outros aspectos, como veremos a seguir. Deus caminho certo, pois ele fez a primeira declaração de
deve ocupar o lugar central em nossa vida. amor da história: “Esta, afinal é osso dos meus ossos e
carne da minha carne, chamar-se-á varoa, porquanto
O alvo principal de obedecer ao mandato espiritual do varão foi tomada” (Gn 2.23).
consiste em gradualmente conhecer, aceitar e crer na
realidade da presença do nosso Deus trino em todas Deus também concedeu a bênção de ter filhos. Não
as áreas da vida. Não existe área da vida ou aspecto podemos nos esquecer que Adão e Eva pecaram
que Deus não conheça, não compreenda ou não veja. contra Deus, e Deus havia dito para eles, que se pe-
Deus quer que todos os aspectos e situações sejam cassem morreriam. Portanto, o fato de Deus permitir
tratados com uma clara consciência, fundamentada que eles ainda tivessem filhos é uma prova de que
no relacionamento com ele. Como filhos de Deus, a maldição foi diminuída ou mitigada, pois filhos
pertencemos a ele em primeiro lugar e precisamos representam continuidade. Ainda que Deus tenha
saber que ele nos reivindica para si. A partir disso, é cumprido a maldição espiritualmente, permanece
preciso uma resposta pessoal a Deus e um desejo de a possibilidade da bênção pelo simples fato da vida
obedecer, amar e viver para ele. continuar.

Mandato Social Deus concedeu a bênção do relacionamento sexual.


Muitos afirmam que o pecado original foi um peca-
O aspecto espiritual visto acima precisava transbor- do sexual. Nada poderia ser mais equivocado. Foi
dar para todos os demais aspectos da vida humana, Deus quem instituiu o relacionamento sexual. Ele
especialmente para o próximo relacionamento que abençoou o homem e a mulher e lhes ordenou que
Deus instituiu na criação: o relacionamento familiar, fossem fecundos, que se multiplicassem e depois de-
que também é chamado de Mandato Social. clarou que isto era “muito bom”. Deus não inventou
o sexo apenas para procriação. Homem e mulher se
Mais do que um mandato, a responsabilidade social completam pertencendo um ao outro dentro do ca-
do homem é uma bênção de Deus para sua vida. Veja samento, e isto certamente agrada a Deus.
o que diz a Bíblia: “Criou Deus, pois, o homem à sua
imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mu- O papel do marido e da mulher no cumprimento
lher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: sede do mandato social é crucial. O desempenho corre-
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra....” (Gn 1.22). to desses papéis, sendo o homem o cabeça que deve
Deus lhes deu a bênção de serem fecundos, de pode- amar sua esposa, e a esposa a auxiliadora que deve
rem se multiplicar e povoar a terra, também a fim de respeitar o marido, é de vital importância para que
dominá-la. Portanto, o mandato social de constituir haja estabilidade na família, para que os filhos sejam
família, de ter filhos e educá-los no caminho do Se- criados dentro dessa estabilidade e assim sejam pes-
nhor é uma grande bênção para a vida das pessoas. soas equilibradas que irão influenciar positivamente
a sociedade.
Deus deu ao homem a bênção do companheiris-
mo. Deus percebeu que não era bom para o homem A família é a unidade básica mais importante e orde-
permanecer só, e por isso, fez-lhe uma auxiliadora nada por Deus dentro da sociedade, mas ela precisa
idônea que o completasse como nenhuma outra ser equilibrada para cumprir seu papel. O mandato
criatura poderia fazer (Gn 2.18). E a reação de Adão, social de Deus, com todas as suas ramificações, não
ao se deparar com Eva, demonstra que estamos no deve nunca ser ignorado ou rejeitado, pois a obediên-

141
cia ao mandato social produz satisfação, alegria e paz Ninguém expressou melhor essa relação com o
que somente Deus pode dar. A família sempre foi mundo do que o Filho de Deus. Jesus não se limitou
muito importante e quando falhou, como no caso de a pregar o amor de Deus, ele também pregou o en-
Eli (1Sm 2.1-36), de Samuel (1Sm 8.1-5) e de Davi volvimento sadio com a vida. Seu primeiro milagre
(2Sm 11; 1316; 18), houve tristeza e tragédia. O fato no Evangelho de João foi transformar água em vinho
de o mundo atual estar um verdadeiro caos tem uma para um casamento. Além disso, claramente ele tinha
das suas causas principais no fato de que o mandato conhecimento sobre os mais variados assuntos cultu-
social tem sido deturpado. rais de sua época. Ele falou sobre ouro, prata, e outros
metais preciosos. Ele sabia sobre a moeda corrente.
Mandato Cultural Falou também sobre árvores e seus frutos. Sabia so-
bre a vida militar. Lidou com tempestades no mar.
Por fim, vemos também na criação, o Mandato Cul- Falou do semeador semeando em solos diferentes.
tural que engloba a vida chamada “comum”, mas que, Ele entendia sobre a vida dos fazendeiros e falou so-
de comum não tem nada. Deus disse para o homem bre relvas e sementes. Conhecia o ofício da pescaria.
que sujeitasse a terra, dominando sobre “os peixes do Entendia sobre impostos, inclusive pagava impostos.
mar, sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que Falou ainda sobre o relacionamento dos empregados
rasteja pela terra” (Gn 1.28). Nessa ordem vemos a e seus patrões, dos inquilinos e proprietários. Mos-
imensa responsabilidade que o homem tem com re- trou que sabia sobre lâmpadas e óleo. Falou de ove-
lação a esse mundo. Cabe a ele ser o administrador lhas e de cabras e de muitos outros aspectos culturais
de todos os bens que Deus lhe confiou. O trabalho e econômicos de sua época. Ele não costumava dizer:
se encaixa nisso como um dom de suprema impor- essa não é a minha área. Todas as áreas da vida eram
tância. Isso tem implicações sociais, econômicas, cul- importantes para Jesus. Nesse sentido, podemos di-
turais e ecológicas. zer que Jesus era um homem deste mundo. Mas ao
mesmo tempo, ele era um perfeito mestre da espiri-
Geralmente, as pessoas fazem uma grande distinção tualidade que entendia da alma humana e do relacio-
entre o secular e o espiritual. Mas o fato é que a obe- namento correto com Deus em oração e adoração.
Ele era um homem completo.
diência ao mandato cultural está intimamente ligada
à obediência aos mandatos social e espiritual. Deus é
Portanto, nós, como pessoas completas, precisamos
o criador de tudo. Foi ele quem nos deu todos esses
viver a vida em sua integralidade. Como Hoekema
aspectos culturais na criação. Deus quer ser honrado,
coloca “esta terra ainda é terra de Deus. Ele a criou e
servido e adorado em todas as esferas da vida porque
mantém e a dirige de tal forma que o pecado em certa
a vida, é uma unidade. medida é refreado, a civilização ainda é possível e a
cultura humana é importante”.2 Por isso, a obediên-
Quando Deus criou o homem, num só ato colocou cia ao mandato cultural é parte integral da vida hu-
em sua esfera todos os três mandatos. Fez o homem mana. As pessoas não devem separar as dimensões
à sua imagem, com relacionamento pessoal com ele, sociais, espirituais e culturais da vida, mas considerar
o abençoou para que se multiplicasse, ou seja, cons- todos esses aspectos como uma unidade, pois, tudo
tituísse família e tivesse filhos; e ordenou que domi- está debaixo do reino de Deus. Todos os aspectos da
nasse sobre toda a terra. Através disso, Deus estava
demonstrando que a vida é uma integração total, na
2 Anthony Hoekema. Criados à Imagem de Deus, p. 222.
qual tudo está interligado.

142
vida são estabelecidos por Deus e pertencem a Deus. te, divinizam a criação. A criação não é Deus. Deus é
Não podemos pensar que só por sermos obedientes separado da criação, mas se agrada que nós cuidemos
espiritualmente e socialmente já teremos cumprido dela. O que dizer de crentes que jogam lixo na rua?
nosso serviço e obedecido ao Senhor. Como já afir-
mamos, o homem foi feito para administrar o mundo Deus estabeleceu os três mandatos a fim de tornar a
de Deus, e “esta administração é parte da vocação hu- nossa vida completa. Isso significa que há prazer para
mana em Cristo”,3 de modo que, não podemos agra- nós quando desenvolvemos o mandato cultural. O
dar a Cristo, se não estivermos envolvidos de forma erro é viver em busca do prazer que o aspecto cultural
sadia com todas as coisas que ele tem domínio. oferece. Mas, quando o equilíbrio é respeitado, pode-
mos dizer como Salomão: “Sei que nada há melhor
O domínio que Deus concedeu ao homem implica para o homem do que regozijar-se e levar vida rega-
em privilégio e responsabilidade, como todas as de- lada; e também que é dom de Deus que possa o ho-
mais bênçãos de Deus. Além do direito explícito do mem comer, beber e desfrutar o bem de todo o seu
homem de utilizar todas as coisas criadas, de explo- trabalho” (Ec 3.12-13). Tudo deve ser integrado. Por
rar os seus recursos, de dominar, de ser o príncipe de essa razão, o sábio Salomão já havia dito antes: “Nada
Deus, existe a responsabilidade de fazer isso de forma há melhor para o homem do que comer, beber e fa-
coerente. Há muita responsabilidade inclusa na de- zer que a sua alma goze o bem do seu trabalho. No
claração: “Vos tenho dado”. Isso quer dizer que, antes entanto, vi também que isto vem da mão de Deus,
de tudo pertence a Deus, mas ele nos deu para que pois, separado deste, quem pode comer ou quem
façamos bom uso. pode alegrar-se?” (Ec 2.24-25). Temos a responsabi-
lidade de viver uma vida integral, fazendo uso pleno
Embora Deus tenha dado todas as coisas ao homem, e apropriado de todos os bens e dons que Deus co-
“não implica que a humanidade, como imagem de locou à nossa disposição. Não podemos agradá-lo, se
Deus na terra, possa viver como melhor lhe aprou- não vivermos a plenitude que ele nos dá.
ver”.4 O bom uso envolve um uso equilibrado das
coisas de Deus. Isso tem implicações ecológicas. IMPLICAÇÕES DA CRIAÇÃO
Deus nos deu este mundo natural no qual vivemos.
Este é o nosso lar e, portanto, deve ser bem cuidado. Há muitas implicações da doutrina da criação e agora
O mundo deve ser visto como nosso paraíso apesar podemos selecionar algumas.5 Primeiramente, impli-
de afetado pelo pecado e pela corrupção. Evidente- ca respeito pelo semelhante. Não importa se nosso
mente que não substitui, nem se compara ao paraíso próximo é um cristão ou não, ele merece respeito.
final. Além disso, implica que tenhamos relacionamentos
comuns com não-cristãos em praticamente todas
Nós devemos fazer o máximo para manter nosso
as esferas de nossa vida. Podemos construir carros
meio ambiente limpo e saudável para a vida cotidia-
juntos, participar de assembleias ou de concílios es-
na. Muitos cristãos não têm atentado para os desafios
colares sem ser adversários, pois, de fato, a vida cívica
do meio ambiente e têm deixado isso para pessoas
encontra sua origem na Criação mais que na Reden-
que tomam posições extremadas, e que, praticamen-
ção. É uma vergonha, para nós evangélicos, que sejam

3 J. I. Packer. Teologia Concisa, p. 217.


5 Algumas dessas implicações podem ser vistas em: Mi-
4 Fred Van Dyke, et al. A Criação Redimida, p. 99. chael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p 35-38.

143
os não-cristãos que lideram as campanhas contra o qual Deus o dotou. Isso significa que um bom cristão
aborto, contra a destruição da natureza, contra as deve ser necessariamente um bom profissional e um
drogas ou contra a Aids. Será que estas funções não bom integrante da família. Se algum desses aspectos
deveriam ser nossas também? Quanto mais nós nos falhar, todos falharão.
apegarmos a doutrina da criação mais seriamente to-
maremos nossa responsabilidade social. Finalmente, implica termos o verdadeiro sentido da
vida. É somente quando entramos em contato com o
Também implica alegria no trabalho. A ideia popular eterno que o significado desta vida pode ser adequa-
é que devemos trabalhar na semana para desfrutar damente compreendido. De acordo com a religiosa
do fim de semana. Mas, Deus estabeleceu o trabalho ideologia científica dos dias atuais não há perspectiva
antes da queda para ser santo, algo como um culto de eternidade e, por isso, tudo é permitido. Mas a Es-
a Deus, uma atividade criativa (no sentido de usar critura nos explica o significado de cada ação diária
criatividade) como a do próprio Deus. A doutrina da como fazendo parte de uma longa trajetória. Numa
criação nos fala em termos alegria em nosso trabalho,
perspectiva de longo prazo, tudo faz sentido. Cada
considerando-o algo positivo, louvável e de grande
cabelo está contado, cada palavra terá que ser explica-
importância. Não faz diferença se alguém é um enge-
da e cada ato será avaliado. A imagem divina em nós
nheiro, um físico nuclear, uma doméstica ou um gari.
e no próximo deve nortear o nosso comportamento
O trabalho deve ser considerado como um chamado
de Deus e todos devem buscar se alegrar nele e glo- e acentuar a nossa responsabilidade. A doutrina da
rificar a Deus, colocando em prática a criatividade da criação nos mostra que é maravilhoso ser humano.

144
20. A QUEDA DO SER HUMANO

A criação fala da glória do homem, criado à imagem da criação divina, demonstra os privilégios e as obri-
de Deus, porém, uma grande tragédia aconteceu gações do homem nesta posição, mas, principalmen-
com o homem: ele caiu. A doutrina bíblica do pe- te, enfoca o teste de fidelidade que Deus propôs ao
cado não é uma doutrina muito atraente para a so- homem. O relato de Gênesis 3.1-13 mostra como o
ciedade moderna. Nos dias atuais quando se prega a homem falhou no teste. A serpente, que segundo a
plena liberalidade, e quando as pessoas já não acre- Bíblia representa o próprio Satanás (Ap 12.9; 20.2),
ditam mais que algo seja totalmente certo ou errado, foi o agente que levou o ser humano ao pecado. Rele-
então, não devemos esperar admiração por ensinar gar a descrição do Gênesis à categoria de “mito”, é ig-
que todos são pecadores. A recusa do ser humano em norar a intenção do autor que narra um fato histórico
admitir sua condição decaída impede que ele se co- e pretende que seja aceito dessa forma. A sequência
nheça realmente e trate do verdadeiro problema de do relato é muito simples: A serpente tentou a mu-
sua alma. Compreender bem esta doutrina trará uma
lher, levando-a a duvidar da Palavra de Deus. De tal
grande contribuição para viver melhor neste mundo.
forma a serpente estimulou a mulher que ela se sen-
Somente quando o homem reconhece suas limita-
tiu atraída pelo fruto proibido, e, sem resistência, co-
ções e descansa em Deus é que ele encontra a paz
meu e deu ao esposo que, silenciosamente, também
verdadeira e herda a salvação de sua alma. A intenção,
ao contrário do que possa parecer, não é denegrir o comeu. Logo eles perceberam o erro que comete-
homem, antes colocá-lo no seu lugar próprio. Todas ram, mas já era muito tarde. Com vergonha de si mes-
as explicações dadas pela filosofia, pela psicologia, ou mos e de Deus, tentaram se esconder da presença de
mesmo pela genética, para os problemas da humani- Deus. Deus os encontrou, interrogou e eles tentaram
dade, sem levar em conta a queda no pecado, falham se desculpar, tirando a culpa de si mesmos. Esse é um
em diagnosticar o verdadeiro mal do homem. E sem relato realístico que marca a queda da humanidade,
um diagnóstico preciso o tratamento está compro- mostrando-nos a estratégia do Diabo, a fragilidade
metido. do ser humano pós queda e a misericórdia de Deus
em buscar o pecador, oferecendo-lhe uma possibili-
A queda está registrada nos primeiros capítulos do dade de redenção.
Livro do Gênesis. O texto de Gênesis 2.15-17 marca
o estabelecimento do homem como administrador

145
REBELDE SEM CAUSA ver as bênçãos de Deus quando há algum problema.

A Bíblia diz que Deus, após criar o homem à sua ima- Distorcendo a Palavra de Deus
gem e semelhança, o colocou no jardim do Éden e
lhe deu a tarefa de cultivar e guardar esse jardim. Em O maligno, porém, foi muito hábil em desviar a aten-
seguida lhe acrescentou uma ordem: “De toda árvo- ção dos nossos primeiros pais. Primeiro ele tentou
re do jardim comerás livremente, mas da árvore do corromper a afirmação divina torcendo suas pala-
conhecimento do bem e do mal não comerá; porque vras: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda
no dia em que dela comeres, certamente morrerás” árvore do jardim?” (Gn 3.1). Realmente não foi aqui-
(Gn 1.16-17). Poucas vezes pensamos em todos os lo que Deus havia dito, mas a mulher mordeu a isca:
privilégios que o homem tinha no jardim, afinal ele “Respondeu a mulher: do fruto das árvores do jardim
poderia comer livremente de todas as árvores do jar- podemos comer, mas do fruto da árvore que está no
dim, com exceção de uma. Ou seja, nada lhe faltaria meio do jardim, disse Deus: dele não comereis, nem
e ele poderia desfrutar abundantemente de todas as tocareis nele, para que não morrais” (Gn 3.2-3). O
bênçãos de Deus sempre que quisesse. grande plano de Satanás foi transformar Deus em
um ditador. Se o homem entendesse que Deus es-
Essa descrição é útil para perceber o quanto a que- tava sendo injustamente exigente, então, seria bem
da foi injustificada. Foi uma verdadeira rebelião sem mais fácil induzi-lo ao pecado, e foi exatamente isso
causa. Isso faz lembrar um pouco dos acontecimen- o que aconteceu. Induzida pela astúcia de Satanás,
tos dos anos 70. Depois das lutas de resistência às a mulher começou igualmente a torcer a Palavra de
ditaduras ao redor do mundo, um novo tipo de re- Deus. Deus não havia proibido olhar para a árvore, e
nem mesmo tocar nela, simplesmente, eles não deve-
beldia surgiu. Em meio à revolução sexual, musical e
riam “comer” da árvore. Essa, porém, não foi a única
intelectual, novos rebeldes começaram a se levantar,
distorção, pois Deus havia dito: “No dia em que dela
eram os “delinquentes juvenis sem causa”. Esses ar-
comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17). A morte
ruaceiros não faziam tumultos em protesto à alguma
não era apenas uma possibilidade, era uma certeza
injustiça social, eles simplesmente queriam protestar,
absoluta, porém, na resposta da mulher, apenas a pos-
pelo simples prazer de protestar. Eram “rebeldes sem
sibilidade aparece: “Para que não morrais”. Quando
causa”. A primeira rebelião do ser humano também
Satanás viu que havia conseguido enredar o ser hu-
foi sem causa, mas isso não significa que seja impos-
mano em sua argumentação, opôs-se diretamente à
sível achar um motivo para a queda. O impossível é
Palavra de Deus: “Então a serpente disse à mulher:
achar um motivo justo, muito embora Satanás tenha
é certo que não morrereis” (Gn 3.4). Em outras pa-
convencido Eva do contrário. Devemos pensar na lavras, ele disse à Eva: “Deus fala, mas não cumpre”.
posição de extremo significado que Deus conferiu Como diz Horton, “o segundo estágio no plano de
ao homem. Feito à própria imagem e semelhança de Satanás foi usar, em Eva, a mesma linha que havia usa-
Deus, administraria toda a criação, podendo explorar do tão efetivamente em si mesmo, na sua própria re-
livre e responsavelmente todos os recursos naturais belião. Eva mordeu a isca, e os humanos têm seguido
do cosmos. Deus apenas desejava um teste de fideli- seu exemplo desde então: ‘Vocês serão como Deus’
dade, e por isso a “Árvore do Conhecimento do Bem (Gn 3.5)”.1 Grande ilusão...
e do Mal” foi posta no meio do Jardim. Aquela era a
única exceção, tudo o mais estava à disposição do ho-
1 Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 42.
mem. Parece que é próprio da natureza humana não

146
A fuga A origem do pecado

Estava dado o golpe final, a mulher e o homem2 eram A narrativa do Gênesis não se preocupa em dizer
como passarinhos hipnotizados pela serpente. O pró- quem é o autor do pecado, ela simplesmente narra
ximo passo, uma vez que a dúvida já estava arraigada o fato de que o pecado entrou no mundo. Se quiser-
no coração, foi sucumbir à tentação e comer da árvo- mos entender a sua origem precisamos considerar
re (Gn 3.6). A mulher, atraída pela beleza do fruto e várias coisas. Primeiramente precisamos lembrar que
pelas promessas mentirosas do diabo, comeu do fru- já houve uma queda antes, a queda de Satanás, e, por-
to e deu ao marido que também comeu. O texto diz tanto, o mal já existia. Em seguida precisamos consi-
que então “abriram-se os olhos de ambos; e, perce- derar a atuação de Satanás junto ao ser humano, des-
bendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e pertando no ser humano a cobiça. De alguma forma,
fizeram cintas para si” (Gn 3.7). A partir daí começou o pecado nasceu dentro do ser humano. Deus precisa
o filme mais repetido da história da humanidade: A ser excluído de responsabilidade em tudo isso, pois,
Fuga. O pecado cortou de uma forma precoce e dolo- como Gênesis demonstra, tudo aconteceu no rela-
rida o relacionamento pessoal do homem com Deus. cionamento entre Satanás e o ser humano. Embora o
Conscientes do erro, envergonhados de sua nudez e decreto permissivo de Deus assegurasse a entrada do
temerosos de se encontrar com Deus, só podiam ten- pecado no mundo, o mal se originou em Satanás e no
tar fugir da presença dele, se escondendo por entre as ser humano. Talvez a melhor explicação bíblica para
árvores do jardim (Gn 3.8). Esta é a cena mais trágica isso venha da carta de Tiago:
que poderia ser descrita. Ela representa quão profun-
do é o poço em que o homem caiu. Quem antes se Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por
encontrava alegremente com o Senhor para conver- Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal
sar sobre a criação e para desfrutar da presença san- e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada
ta, agora, só pode fugir desesperadamente. A última um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta
coisa que ele desejava era encontrar-se novamente o atrai e seduz. Então, a cobiça, depois de haver
com o criador. A quebra desse relacionamento com concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez
o criador foi o maior prejuízo humano com o pecado consumado, gera a morte. Não vos enganeis, meus
e mostra o verdadeiro caráter do pecado. Como diz amados irmãos. Toda boa dádiva e todo dom per-
Plantinga: “Pecado não é apenas a quebra da lei, mas feito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em
também a quebra da aliança com o Salvador. Pecado quem não pode existir variação ou sombra de mu-
é uma nódoa na relação pessoal, uma ofensa ao pai dança (Tg 1.13-17).
divino e benfeitor, uma traição do companheiro ao
qual se está unido por laços santos”.3 O pecado des- Tiago está falando sobre a tentação para cristãos já
truiu o mais importante dos nossos relacionamentos, regenerados, mas é possível traçar um paralelo com
o relacionamento com Deus. Logo estariam afetados a queda.4 Ele faz questão de dizer que a tentação não
os aspectos sociais (familiares) e culturais (trabalho). pode vir de Deus, porque Deus não é tentado, nem
tenta ninguém. Essa declaração demonstra uma an-
2 Aparentemente, o homem esteve desde o início presente
em toda aquela discussão (Gn 3.6).
4 Kistemaker vê algum paralelo: Simon J. Kistemaker. San-
3 Cornelius Plantinga Jr. Não Era Para Ser Assim, p. 26. tiago, 1-3 Juan, p. 63.

147
títese absoluta entre Deus e o mal.5 Portanto, Deus der usar da droga onde bem quiser? “Seus olhos serão
não pode ser o autor da tentação e muito menos da abertos” prometeu Satanás (Gn 3.5), mas como diz
consumação do pecado. Em seguida Tiago diz de Horton, “ele sempre foi mentiroso”.8 Na verdade foi
onde vem a tentação: ela vem de dentro do ser que Jesus quem disse: “Ele é o pai da mentira” (Jo 8.44).
peca. Primeiramente surge a cobiça. A cobiça se tor-
na como que “grávida”, e então gera o pecado, que por Cada vez mais trágico
sua vez acarreta a morte. Em seguida vem uma adver-
tência: não vos enganeis. É um sério engano imagi- Quando vemos a queda em contraste com a glória
nar que o pecado e o mal possam vir de Deus. De da criação podemos entender um pouco da tragé-
Deus só podem vir coisas boas, ele é o Pai das luzes, dia do pecado. Todas as áreas da vida humana foram
a sombra não é uma possibilidade em seu caráter. O afetadas com a queda, e nada do que foi criado por
que fica bastante claro na declaração de Tiago é que Deus foi deixado intacto. A queda no pecado nos
a origem do pecado está dentro do próprio homem.6 deixou corruptos, pois “a depravação significa que o
mal contaminou cada aspecto da humanidade – co-
Se isso levantar a pergunta sobre se Deus colocou
ração, mente, personalidade, emoções, consciência,
dentro do homem esse desejo, só podemos dizer que
razões e vontade (Ver Jr 17.9; Jo 8.44)”.9 Ela nos dei-
Deus concedeu liberdade ao primeiro homem para
xou corruptos fisicamente, emocionalmente, psico-
que escolhesse. O pecado se originou dentro do ho-
logicamente, mentalmente, moralmente e espiritual-
mem, isso é tudo o que podemos dizer.7
mente. Quando nosso relacionamento com Deus
se quebrou, não perdemos apenas nossa religião ou
INDEPENDÊNCIA FRACASSADA
devoção, mas nossa saúde, nossa felicidade e todas as
coisas pertencentes à vida social e cultural. Deus dis-
O espírito de nossa época é o de quebra de tabus. As
se: “Maldita é a terra por tua causa” (Gn 3.17). Toda
pessoas dizem que a única coisa que deve ser proi-
a criação se tornou corrupta por causa do pecado
bida é proibir. As pessoas devem ter liberdade para
do homem. Por isso Paulo diz que a natureza “geme
fazer o que quiserem com suas vidas. Mas, será que e suporta angústias até agora” (Rm 8.22). Todas as
estas pessoas que foram liberadas para fazerem o que tragédias do mundo, toda a violência e corrupção do
quiserem são realmente livres? As pessoas são livres homem e da natureza são consequências do pecado.
para fazer sexo tanto quanto para contrair o vírus da E o pecado gera ainda mais tragédias, violência e cor-
Aids. Afinal de contas, do que é esta liberação? Que rupção. De fato “o pecado é tanto causa quanto resul-
liberdade tem um viciado em cocaína no fato de po- tado da miséria humana”.10 Toda a miséria começou
com ele, e agora o homem não consegue exterminá-
5 Ver G. C. Berkouwer. A Doutrina Bíblica do Pecado, p. 31 -lo, pois ele origina a miséria e se origina dela, se tor-
6 Hoekema entende que a causa do pecado do homem é
na um círculo vicioso. Isso mostra que a escolha de
apenas externa, ou seja, veio apenas de Satanás, e que isso é a grande Adão foi uma má escolha.
diferença entre o pecado dos homens e o pecado dos anjos. Os anjos
pecaram sem qualquer influência externa, enquanto que os homens
pecaram a partir de uma influência externa (Ver Anthony Hoekema.
Criados à Imagem de Deus, p. 141). Certamente essa é uma diferença
existente, porém, não se pode ignorar que algo dentro do próprio
homem o fez pecar. Ele tinha liberdade de escolha.
8 Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 46.
7 Berkhof está certo em afirmar que, no fim das contas, é im-
possível dizer como a tentação pôde encontrar um ponto de contato 9 John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, p. 81.
numa pessoa santa como Adão (Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemá-
tica, p. 225). 10 Cornelius Plantinga Jr. Não Era Para Ser Assim, p. 17.

148
Herdeiros de Adão natureza. Não nascemos como se fôssemos uma
“tabula rasa”, ou uma folha em branco, nem em uma
Estamos todos juntos com Adão e Eva, pois herda- zona neutra, mas como inimigos de Deus, sendo
mos deles o veneno do pecado. Como ilustração, “por natureza filhos da ira” (Ef 2.3). Nós não fazemos
podemos dizer que ele corre em nossas veias. É isto o mal meramente, nós somos maus. Não somente
o que os teólogos chamam de pecado original. Adão caímos, continuamos decaídos. Não somente nos
incluiu a todos em sua decisão e esta decisão foi fatal perdemos, estamos perdidos. Pecamos, porque nossa
para a raça. A escolha de Adão atingiu a todos, porém, natureza é pecar, somos escravos, pois, o Senhor dis-
num sentido não podemos dizer que cada um de nós se: “Todo o que comete pecado é escravo do pecado”
é considerado pessoalmente responsável pelo que (Jo 8.34). Não conseguimos abandonar o pecado
Adão fez, como se cada um de nós tivesse pecado o quando queremos. Na verdade, nem queremos. Po-
pecado de Adão. O fato é que Adão agiu como nosso demos até controlar algumas atitudes pecaminosas,
representante, e por esta razão, sua escolha nos atin- mas não podemos deixar de ser pecadores.
ge.11 Nesta questão não temos liberdade de escolha.
Totalmente depravados
Uma ilustração útil para entender isso é a da Indepen-
dência do Brasil. Quando Dom Pedro fez a declara- É claro que isso não significa que cada um de nós faz
ção de independência nós estávamos incluídos nela. todo o mal imaginável, mas significa que temos ca-
Nenhum de nós bradou “independência ou morte”, pacidade para isso. E mais do que isso, significa que
mas todos nós usufruímos os efeitos daquele brado. estamos completamente perdidos, pois Deus requer
Da mesma forma Adão foi nosso representante dian- de nós a perfeição com que nos capacitou quando
te de Deus, ele falou por nós, e, portanto, a queda dele nos criou, entretanto, não há área em nossa vida que
foi a nossa queda. Seu grito de independência jogou não tenha sido afetada pelo pecado. De forma algu-
a todos nós na morte. Nenhum dos efeitos da queda, ma poderemos dar aquilo que ele espera de nós. A
como pecado, dor, sofrimentos ou tragédias pode ser essa incapacidade de dar a Deus o que ele deseja, os
atribuído a Deus. Deus criou o mundo perfeito, foi teólogos têm chamado de “Depravação Total”.13 Isso
a escolha deliberada do homem que trouxe o caos, não representa alguma incapacidade física, nem sig-
portanto, a humanidade é absolutamente responsá- nifica que as pessoas não consigam fazer algo bom
vel por tudo o que acontece de ruim neste mundo. E nesse mundo, pois não é uma completa ausência de
continuamos a destruir a terra com o processo de ex- bem relativo. A questão é que, para que algo seja acei-
ploração desenfreada. A ironia é que nós poluímos o to por Deus como bom, precisa ter pelo menos três
mundo e colocamos a culpa em Deus quando ocor- elementos: fé verdadeira, estar de acordo com a lei de
rem cataclismos da natureza.12 Deus, ser para a glória de Deus. Nenhum herdeiro de
Adão consegue fazer isso naturalmente. Uma obra
Não somos pecadores apenas por escolha, mas por pode parecer boa externamente, mas Deus sabe o
que se passa no coração. Imagine um ladrão que rou-
ba 5000 e doa 100 para uma instituição de caridade.
11 Estamos defendo aqui o conceito de “imputação imediata”
do pecado, e não a ideia de imputação “realista”, segundo a qual o pe- Ele é bom por causa disso? Há ateus que negaram
cado de Adão é o nosso pecado porque há só uma natureza humana,
e Adão a possuía integralmente. (Ver Anthony Hoekema. Criados à
Imagem de Deus, p. 176-180).
13 Esse é o primeiro ponto do Calvinismo. (Os cinco são: De-
12 Isso evidentemente não exclui o fato de que tudo segue a pravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresis-
vontade soberana de Deus. tível, perseverança dos santos).

149
o cristianismo, mas foram servir as pessoas carentes sa justiça própria nunca passará de “trapos da imun-
na África. A depravação total significa que o homem dícia” diante de Deus (Is 64.6). Ele não se agrada de
nunca consegue fazer algo que agrade a Deus, de nossas tentativas de agradá-lo, e muito menos de nos
modo que Deus resolva salvá-lo por seus méritos. desculparmos. Enquanto acharmos que as folhas da
Como diz Berkhof, “numa palavra, ele é incapaz de nossa justiça própria são suficientes, jamais podere-
fazer qualquer bem espiritual”.14 mos ser salvos.

O homem nem sempre peca da pior forma possível, Liberdade que aprisiona
mas peca em tudo o que faz, pois o pecado está ar-
raigado em nossa natureza. Segundo a Bíblia, o ho- E o que é mais irônico para nós seres humanos é que
mem não pode fazer o bem (Mt 7.17-18; 1Co 12.3; a declaração de independência foi totalmente fracas-
Jo 15.4-5; Rm 8.7), não pode entender o bem (At sada. Ainda precisamos de Deus, pois “não podemos
16.14; 2Co 3.15-16; Jo 8.43; 1Co 1.18; 1Co 2.14; viver independentemente de Deus mais que um pei-
2Co 4.3-4), nem desejar o bem (Jo 5.40). Eviden- xe pode viver independentemente de água”.15 Como
temente, essa é a visão calvinista do homem. O ar- o brado às margens do Ipiranga não tornou o Brasil
miniano pensa diferente, pois vê o homem como se independente das potências estrangeiras, também o
afogando, gritando desesperadamente por socorro; o grito de independência de Adão não o fez livre. Ao
calvinista vê o homem como afogado no fundo do contrário, o aprisionou totalmente, pois ele passou
oceano. Ele nem sabe que necessita de ajuda. Para a servir ao pecado (Jo 8.34), e por consequência, à
salvá-lo é preciso uma obra sobrenatural de Deus, é Satanás (Ef 2.2). A tão desejosa liberdade nunca veio.
necessário trazê-lo para a superfície e introduzir vida Antigamente uma propaganda de cigarros foi bastan-
em seu coração. te popular. O nome do cigarro podia ser traduzido
como “livre”. E o slogan era: “Cada um na sua, mas
A depravação total explica os problemas do nosso com alguma coisa em comum”. A única coisa que os
mundo e fala-nos que a sociedade não resolverá es- viciados tinham em comum era o vício. A liberdade
tes problemas básicos até que todos nasçam de novo. era apenas um sonho.
Porém, nem mesmo a conversão do mundo resolve-
ria todos os problemas, pois os cristãos continuam O QUE FAZER COM A CULPA?
pecando. A doutrina da depravação total, por outro
lado, nos fala do imenso amor de Deus por nós. Nun- Algo que o pecado deixa dentro de nós é o senso de
ca poderíamos ser salvos por nós mesmos, foi so- culpa. Não estamos falando aqui da culpa a ser tra-
mente o seu amor que possibilitou a nossa salvação. tada num tribunal, mas do que ocorre dentro do ser
humano, em termos de consciência. O ser humano
As folhas da figueira não agradaram a Deus (Gn não sabe como lidar com a culpa. Gasta muito di-
3.6,21). Aquela foi uma tentativa humana de escon- nheiro com terapeutas para tentar se livrar de algo
der a própria nudez, que poderíamos dizer, já era que tanto o atormenta. Um método mais barato é
muito mais do que física. Talvez isso signifique que culpar os outros. Foi exatamente isto que Adão e Eva
Deus não se impressiona com nossos jeitinhos. Nos- fizeram. Quando Deus interrogou o casal, Adão res-
sas ofertas não lhe despertam qualquer interesse, nos- pondeu que a mulher que Deus havia lhe dado era

14 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 249 15 Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 48.

150
a responsável por tudo aquilo, e a mulher tratou de que temos culpa. Nem todo o dinheiro do mundo
responsabilizar a serpente (Gn 3.12-13). Cada um gasto com terapias ou distrações poderia mudar esta
posou de vítima da situação. Não é assim que os ad- realidade.
vogados tentam fazer com o júri hoje em dia? Ten-
tam dizer que o criminoso é apenas uma vítima da CONCLUSÃO
sociedade, mas Deus sabe muito bem que não somos
vítimas, pois intimamente nos deleitamos no pecado. Aprendemos algumas lições muito importantes com
Jogar a culpa nos outros nunca nos tornará inocentes. a doutrina bíblica do pecado. Primeiramente, que o
homem depende inteiramente de Deus para a salva-
Se o filme mais repetido da história é “A Fuga”, o se- ção. De tal forma a queda afetou o homem que ele não
gundo mais repetido é “Não Fui Eu”. Evidentemente pode se salvar por si mesmo e depende inteiramente
esta é uma forma de auto engano. Como diz Corne- de Deus querer e usar a Sua misericórdia para salvá-
lius Plantinga, -lo. Essa convicção é necessária para a igreja hoje. Te-
mos perdido a visão realística do homem conforme
“o auto engano é um fenômeno sombrio através a Bíblia a demonstra. Vivemos no tempo em que os
do qual puxamos a coberta sobre alguma parte crentes idolatram líderes religiosos e se surpreendem
de nossa psiquê. Nós nos movemos dentro de nós. quando veem esses homens caírem em pecado. Essa
Negamos, suprimimos ou minimizamos o que sa- doutrina também nos ensina que não há pessoa boa
bemos sobre a verdade. Asseveramos, adornamos e do ponto de vista de Deus. Deus não olha para o que
elevamos o que sabemos ser falso. Tornamos belas nós tentamos fazer, mas para o que nós somos. Por
as realidades feias e compramos a versão maquia- isso, precisamos abandonar nossas folhas de figuei-
da”.16 ra e deixar que Deus mesmo nos vista com a justiça
de Cristo. Finalmente, esta doutrina glorifica a graça
Esta é a imagem que o homem tenta produzir de si de Deus. Conhecendo bem o diagnóstico de nos-
mesmo, desde o início. A grande defesa é: Eu não sou sa doença podemos nos maravilhar diante da cura.
o responsável por isto. E então, o homem segue o seu Deus não oferece, no Evangelho, apenas uma anes-
caminho como se nada tivesse acontecido. Mas esse tesia para a dor, mas uma cura definitiva, que pode
é um engano tolo. Lá dentro, sabemos que somos até mesmo causar algum desconforto a princípio,
culpados. Sabemos que a culpa que sentimos é por- mas que extirpa completamente a doença. Ignorar o
pecado, como o mundo moderno tem feito, só piora
as coisas. É como negar a existência de uma doença
16 Cornelius Plantinga Jr. Não Era Para Ser Assim, p. 113.
gravíssima. A negação não fará ela desaparecer.

151
21. O INIMIGO DAS NOSSAS ALMAS

Uma das grandes armas de Satanás é o extremismo rupção espiritual.


das pessoas. Por extremismo queremos dizer que,
por um lado, há muitas pessoas que negam a existên- Como em quase todos os assuntos espirituais, tam-
cia do diabo, ou vivem totalmente despreocupadas, bém neste há a necessidade de equilíbrio. Queira-
como se ele não existisse. Ao fazerem isso, dão todo o mos ou não, todos estamos envolvidos numa batalha
espaço que ele precisa para agir sem ser notado, pois contra o diabo, pois como disse Pedro, ele é nosso
quando somos atacados de surpresa, temos poucas adversário (1Pe 5.8). A melhor tática nesta guerra é:
chances de vencer. Paulo escreveu aos crentes de conheça o inimigo, não o superestime, mas também
Corinto que todos deviam tomar muito cuidado: não o subestime.
“Para que Satanás não alcance vantagem sobre nós,
pois não lhe ignoramos os desígnios” (2Co 2.11). O CARACTERÍSTICAS DO INIMIGO
fato é que muitas pessoas têm ignorado largamente
os desígnios do diabo. Muitos pintam um retrato mi- Entendemos que o segredo para conhecer bem o
tológico dele, todo vermelho, com chifres e tridente inimigo é primeiro, conhecer bem a Deus. Quem é
na mão. A Bíblia, ao contrário, diz que ele prefere se Deus para nós? Um tio celestial, a quem nos dirigi-
apresentar como “anjo de luz” (2Co 11.14). E de fato, mos sempre que precisamos de alguma coisa? Então,
agindo às escondidas, ele tem conseguido vitórias es- o diabo é um mal-humorado cósmico que gosta de
petaculares. estragar tudo. Se Deus é um ser poderoso, mas não
todo-poderoso, então o diabo tem quase o mesmo
No outro extremo, alguns crentes prestam mais aten- poder que Deus e disputa palmo a palmo com ele.
ção ao diabo do que em Deus. Parecem ver o diabo Mas se entendemos que Deus é o único soberano, o
em tudo e atribuem tudo que acontece de ruim a ele. todo-poderoso, o incomparável (Is 40.25), etc., en-
Ele, que gosta de estar no centro das atenções, por tão, o Diabo só pode ser um usurpador que tenta se
certo se agrada de toda essa publicidade que alguns beneficiar da graça de Deus, antes que a justiça divina
crentes lhe prestam, como se lhe fosse uma homena- seja executada sobre ele definitivamente.
gem. Achar demônios em toda parte é uma obsessão
pessoal que Satanás usa como uma cortina de fuma- Para termos uma compreensão clara a respeito do
ça, desviando a atenção do verdadeiro plano: a cor- inimigo, temos que, primeiro conhecer bem quem é

152
o nosso Deus. Hoje em dia, muitos crentes ficam fas- 25.41; Ef 2.2). Apesar de receber os títulos de prín-
cinados com revelações de pessoas que praticavam cipe desse mundo (Jo 12.31; 14.30; 16.11), e deus
bruxaria, magia negra ou eram satanistas. Pensam desse século (2Co 4.4), não se deve pensar que ele é
que estas pessoas podem nos ensinar a respeito do o chefe de toda a criação divina. É Deus quem está no
diabo e concorrem para ouvir suas palestras. Por que controle desse mundo como um todo. Satanás con-
acreditaríamos nelas? O Diabo é o pai da mentira (Jo trola este mundo mau, o mundo naquilo em que está
8.44). Quem garante que não as enganou o tempo separado de Deus.1
todo. O mais importante é conhecer bem a Deus e
a sua Palavra, pois as informações que temos na Pa- A QUEDA DE SATANÁS
lavra de Deus são infalíveis e dignas de todo crédito.
Deste modo não seremos surpreendidos pelo Diabo. Satanás significa “Adversário” e é o grande líder da
rebelião que arrastou muitos anjos de Deus para as
Embora as informações que temos da Escritura a trevas. Ele recebe muitos nomes na Bíblia, e o mais
respeito do Diabo não sejam muitas, são suficientes conhecido, Lúcifer (portador da luz), não está na
para entendermos quem ele é e o que ele pode fazer. Bíblia. Esse nome vem do Latim e era aplicado ao
O livro de Jó localiza o diabo como sendo um dos Planeta Vênus. O motivo deste nome ser associado a
anjos de Deus: “Num dia em que os filhos de Deus Satanás foi porque as versões Latinas da Bíblia deram
vieram apresentar-se perante o senhor, veio também esse nome ao título “estrela da manhã” que aparece
Satanás entre eles” (Jó 1.6). Pedro e Judas o identifi- em Isaías 14.12 (no hebraico Helel). O texto de Isaías
cam como um anjo que pecou (2Pe 2.4; Jd 6). Paulo diz: “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da
o chama de “o príncipe da potestade do ar” (Ef 2.2). alva! Como foste lançado por terra, tu que debilita-
Ele é o governador de um mundo de trevas (Cl 1.13; vas as nações! Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao
Lc 22.53). Do ponto de vista de Cristo, o mundo céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono
é um território sob o poder do inimigo (Jo 12.31; e no monte da congregação me assentarei, nas extre-
14.30; 16.11). Isso significa que, de algum modo, ele midades do Norte; subirei acima das mais altas nu-
conseguiu usurpar o domínio deste mundo. Eviden- vens e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo, serás
temente que não é um domínio absoluto, pois o úni- precipitado para o reino dos mortos, no mais profun-
co que está realmente no controle de todas as coisas é do do abismo” (Is 14.12-15). Em geral esse texto tem
Deus. Satanás governa o coração dos homens que se sido entendido como uma referência à queda de Sa-
mantêm alienados de Deus. Devemos pensar que ele tanás, a qual teria acontecido no passado, talvez antes
conseguiu este “direito” quando convenceu o primei- da criação do mundo. O que não pode ser ignorado,
ro homem e a primeira mulher a romper com Deus, entretanto, é que, em princípio, esse texto está sendo
passando para o lado dele. É nesse sentido que ele é dirigido ao rei da Babilônia. É uma profecia a respeito
o usurpador deste mundo, pois é o chefe da estrutura do rei da Babilônia e não uma explicação direta so-
mundana que tenta negar a Deus de todas as formas bre a origem de Satanás. É certo, porém, que o rei da
possíveis. Paulo chama Satanás de o “deus deste sé- Babilônia tem lá as suas semelhanças com Satanás e,
culo” (2Co 4.4), pois ele dita as normas e os valores no mínimo, é um representante dele na terra. Por esse
para a vida daqueles que estão distanciados do Deus motivo, é possível que, por detrás do que está sendo
verdadeiro. Ele tenta substituir o verdadeiro lugar de dito ao rei da Babilônia, haja alguma reminiscência
Deus na vida das pessoas.

1 Ver Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 149.


Satanás é o comandante dos demônios (Mt 9.34;

153
sobre o próprio Satanás. O texto descreve a queda suceder que se ensoberbeça e incorra na condenação
desse rei, que em seu orgulho queria ser semelhante do diabo” (1Tm 3.6). Isso sugere que o grande peca-
a Deus e, realmente, esse parece ser o motivo princi- do do diabo foi a soberba ou o orgulho,2 provavel-
pal da queda de Satanás. Porém, deve ser visto que o mente motivado por ver que Deus concedeu tanto
texto é uma profecia de algo que ainda aconteceria ao destaque e dirigiu tanto amor ao ser humano.
rei de Babilônia, portanto, não há base para dizer que
trata de algo que "já" havia acontecido com Satanás. ESFERA DE ATUAÇÃO

Outro texto que em geral se aplica a Satanás é Eze- O Apocalipse descreve o diabo como alguém que
quiel 28.11-19, que é uma profecia contra o rei de se revoltou contra Deus, e que juntamente com seus
Tiro. O mesmo que falamos sobre o rei da Babilônia aliados, foi expulso do céu: “Houve peleja no céu.
pode ser aplicado ao rei de Tiro. A profecia diz: Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão.
Também pelejaram o dragão e seus anjos; todavia,
“Assim diz o senhor Deus: Tu és o sinete da per- não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar
feição, cheio de sabedoria e formosura. Estavas no deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpen-
Éden, jardim de Deus; de todas as pedras precio- te, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo
sas te cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante, o o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os
berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a seus anjos” (Ap 12.79). E o anjo proclamou: “Por
esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os isso, festejai, ó céus, e vós, os que neles habitais. Ai da
ornamentos; no dia em que foste criado, foram eles terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de
preparados. Tu eras querubim da guarda ungido, e grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta”
te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, (Ap 12.10). Embora o texto tenha sido escrito em
no brilho das pedras andavas. Perfeito eras nos linguagem simbólica, é possível entender que o dia-
teus caminhos, desde o dia em que foste criado até bo foi expulso do céu e que está na terra, agindo com
que se achou iniquidade em ti” (Ez 28.12-15). toda fúria, pois sabe que seus dias estão contados. A
estrutura narrativa do capítulo 12 de Apocalipse ates-
Algumas expressões desse texto são interessantes ta que essa expulsão aconteceu na ascensão de Jesus
como: “estavas no Éden”, “eras querubim da guarda (Assunto que ainda será tratado neste trabalho).
ungido”, “permanecias no monte de Deus”, “perfeito
eras nos teus caminhos desde o dia em que foste cria- Por ora, é importante entender que, segundo a Bí-
do até que se achou iniquidade em ti”. De fato essas blia, Satanás e seus anjos estão na terra. Eles não estão
expressões extrapolam em muito o que se poderia nem no céu, nem no inferno. As figuras mitológicas
dizer de um homem, mesmo de um rei. Parecem ter que descrevem o diabo como sendo o chefe do in-
alguma aplicação ao próprio Satanás do qual o rei de ferno que atormenta as almas dos perdidos não são
Tiro era um representante. Mas é impossível afirmar bíblicas. Tanto o céu quanto o inferno estão sob o
com certeza essas coisas. controle de Deus, pois o inferno é o lugar de puni-
ção. O diabo só será lançado no Lago de Fogo que
O que podemos ter boa certeza é que o grande pe- é o inferno definitivo, após a segunda vinda de Jesus
cado do diabo foi a soberba. Deduzimos isto de um (Ap 20.10). Até lá, ele age neste mundo, ferozmente,
texto do Apóstolo Paulo, no qual ele fala sobre o
cuidado na escolha dos Presbíteros. Paulo diz que o
2 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 222.
Presbítero da igreja não deveria ser neófito “para não

154
sabendo que seu tempo não é muito longo. é necessário que ele seja solto pouco tempo”. Alguns
olham para este texto e pensam que está falando de
Mas é preciso considerar qual é a liberdade que ele um milênio futuro, depois da vinda de Jesus. Acredi-
tem de agir neste mundo. Evidentemente que não tamos que o texto não esteja falando disso, mas justa-
é uma liberdade ilimitada, pois Deus impôs sérias mente do que já está acontecendo desde a morte e a
restrições ao agir do inimigo. Ainda no Antigo Testa- ressurreição de Jesus. João descreve, de forma simbó-
mento, quando Satanás quis colocar Jó à prova, preci- lica, o aprisionamento de Satanás. Mil anos represen-
sou da expressa autorização de Deus para tocar em Jó tam um tempo completo e entendemos que é uma
(Jó 1.12; 2.6). O Novo Testamento deixa ainda mais referência ao intervalo entre a primeira e a segunda
claro que existem pesadas restrições sobre o inimigo. vinda de Jesus. Satanás está impedido apenas de en-
Jesus disse que sua vinda foi uma atitude de “amarrar ganar as nações, ou seja, ele não pode impedir que o
o valente” e, por causa disso podia saquear sua casa evangelho seja pregado em todas as nações. Um pou-
(Mt 12.29). Através de sua morte e ressurreição, Je- co antes do fim ele é solto, e então, terá uma liberdade
sus impôs uma derrota definitiva a Satanás. maior para agir. Então, neste exato momento, ele está
na terra com certas restrições de Deus para agir, mas
Paulo descreve os efeitos da obra de Jesus sobre o dia- não podemos dizer que ele esteja totalmente impedi-
bo e seus anjos com as seguintes palavras: “E, despo- do de agir.
jando os principados e as potestades, publicamente
os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz” (Cl É evidente que todo o poder que ele pode demons-
2.15). E o autor aos Hebreus diz que ele foi destruído: trar depende de uma permissão divina. Mesmo que
“Visto, pois, que os filhos têm participação comum ele não queira admitir, é uma ferramenta nas mãos de
de carne e sangue, destes também ele, igualmente, Deus. Como um homem pode usar um cão bravo,
participou, para que, por sua morte, destruísse aque- Deus usa Satanás para disciplinar o mundo. A Bíblia
le que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb diz que os demônios estão acorrentados (Jd 6; Mt
2.14). Porém, esses textos devem ser vistos da pers- 25.41; Ap 20.10). Isto significa que há limitações im-
pectiva correta. Num sentido, o diabo ainda não foi postas a eles. Ou seja, eles não podem fazer tudo o
totalmente destruído, nem totalmente impedido de que querem, pois Deus ainda preserva este mundo.
agir. A obra de Jesus na cruz já impôs a derrota, mas Satanás gosta de ser chamado de governante (Mt
ainda falta a capitulação final. Por isso João disse que 4.6), mas seu poder é limitado pelo poder de Deus.
ele foi expulso do céu e desceu à terra com grande Entretanto, num tempo final parece que Deus con-
ira sabendo que seus dias estão contados (Ap 12.10). cederá uma liberdade bem maior para ele agir, por
Ele já está derrotado, mas ainda tem alguns dias para um tempo limitado, antes da Segunda Vinda de Jesus
agir antes de ser banido de uma vez por todas. (2Ts 2.3-9).

Um modo de entender isso é considerar o que João MÉTODOS MALIGNOS


fala a respeito de Satanás em Apocalipse 20.1-3 “En-
tão, vi descer do céu um anjo; tinha na mão a cha- Pedro chama o diabo de adversário: “Sede sóbrios e
ve do abismo e uma grande corrente. Ele segurou o vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derre-
dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o dor, como leão que ruge procurando alguém para de-
prendeu por mil anos; lançou-o no abismo, fechou-o vorar” (1Pe 5.8). Isso sugere que desatenção pode ser
e pôs selo sobre ele, para que não mais enganasse as fatal. Satanás é um ser totalmente mau. Nele não há
nações até se completarem os mil anos. Depois disto, qualquer vestígio de bondade ou de verdade, apenas

155
ódio em seu potencial máximo. Um ser mau, seguido pério (Cl 1.13), e vai fazer de tudo para torná-lo um
por uma hoste dotada de maldade inimaginável. Es- cativo novamente. Ele pode operar através de dese-
ses são os nosso inimigos: são mais cruéis, mais mali- jos inocentes (Gn 3.6; Lc 4.2-3), de conselhos bem
ciosos, mais orgulhosos, mais zombadores, mais per- intencionados (Mt 16.22-23) e tem seus servos até
vertidos, mais destrutivos, mais repugnantes, mais dentro da igreja (Mt 13.38).
imundos, mais desprezíveis do que qualquer coisa
que a mente humana possa conceber. Se ele conseguir produzir o engano, terá alcançado
vitória, por isso concentra toda sua força na tentativa
Uma das coisas que ele pode fazer é se apresentar de desacreditar a Bíblia, ou no mínimo de deixá-la de
como “anjo de luz” (2Co 11.14). Talvez imitando lado. Sua intenção sempre é levar ao pecado, para de-
algo que foi antes de cair. Isso significa que feiura não sonrar a Deus. E faz isto induzindo ao erro ou distor-
é necessariamente uma característica dele. Sua maior cendo o certo. Se formos fiéis em um ponto da mu-
arma é se parecer ao máximo com o que é verdadeiro. ralha, ele tentará abrir outro, assim, sucessivamente,
Por isso, os crentes devem tomar muito cuidado, pois todos os dias.
os falsos mestres incentivados por ele se apresentam
disfarçados como ovelhas, sendo por dentro lobos De acordo com Efésios 6.12, aparentemente, Satanás
vorazes (Mt 7.15). Seguem seu líder, o mestre dos e seus anjos formam um exército com algum senso
disfarces. de organização. O texto diz: “Porque a nossa luta não
é contra o sangue e a carne, e sim contra os principa-
É dito que ele pode manipular eventos físicos (2Ts dos e potestades, contra os dominadores deste mun-
2.9; Jó 1.12), pode sugerir pensamentos errados em do tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas
nossa mente (Mt 4.3), causar doenças (Lc 13.16), regiões celestes” (Ef 6.12). Parece haver uma espécie
cegar os incrédulos (2Co 4.4), causar sofrimento (At de hierarquia sugerida pelos termos “principados, po-
10.38), induzir à queda (1Ts 3.5), iludir os homens testades, dominadores, forças espirituais”.
(2Tm 2.26), roubar a palavra semeada (Mc 4.15),
impedir e resistir os servos de Deus (1Ts 2.18, Zc COMO VENCER O INIMIGO
3.1) e até possuir o corpo dos homens (Jo 13.27).
Em linguagem futebolística, às vezes se diz que “a de-
Uma das afirmações mais espantosas sobre Satanás fesa é o melhor ataque”. Nem sempre isso funciona
é que ele “detém (detinha) o poder da morte” (Hb nos campos de futebol, mas é o que funciona na ba-
2.14). Isso não quer dizer que ele é o que decide talha contra o inimigo. Somos chamados para uma
quem morre ou deixa de morrer, pois essa é uma luta de resistência, porque o inimigo ataca incessante-
prerrogativa divina. O que o texto está dizendo é que mente. A palavra de ordem é: “Sujeitai-vos, portanto,
por causa do pecado a morte entrou no mundo. Sata- a Deus; mas resisti ao diabo, e ele fugirá de vós” (Tg
nás foi o instrumento através do qual a morte entrou, 4.7). A conversão nos coloca no centro de uma bata-
então, nesse sentido ele detinha o poder da morte, lha da qual não podemos fugir: a batalha espiritual.
como um acusador que exigia a condenação dos pe- Paulo disse: “Quanto ao mais, sede fortalecidos no
cadores, porém, através do sacrifício de Jesus, Satanás Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a
perdeu esse poder, pelo menos na vida dos salvos. armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra
as ciladas do diabo; porque a nossa luta não é contra
Ainda assim, o mundo inteiro jaz no maligno (1Jo o sangue e a carne, e sim contra os principados e po-
5.19). Ele vê o crente como um fugitivo de seu im- testades, contra os dominadores deste mundo tene-

156
broso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões da couraça da justiça. Calçai os pés com a prepa-
celestes” (Ef 6.10-12). ração do evangelho da paz; embraçando sempre o
escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os
A carta aos Efésios demonstra o plano maravilhoso dardos inflamados do Maligno. Tomai também o
de Deus para sua igreja, que foi escolhida antes da capacete da salvação e a espada do Espírito, que
fundação do mundo, que experimenta a salvação é a palavra de Deus; com toda oração e súplica,
pela graça através dos méritos de Cristo, que servirá orando em todo tempo no Espírito e para isto vi-
como demonstração pública do poder e da sabedo- giando com toda perseverança e súplica por todos
ria de Deus, etc. Mas as coisas não serão fáceis, pois os santos” (Ef 6.13-18).
uma guerra sem tréguas se torna a realidade do cris-
tão. Paulo diz que o maligno usa “ciladas” para apa- Podemos dividir esta armadura em sete partes: 1)
nhar os crentes (Ef 6.11). Uma cilada é uma espécie Verdade, 2) Justiça, 3) Evangelho, 4) Fé, 5) Salvação,
de “armadilha”. É um engano engenhoso que faz com 6) Palavra, e, 7) Oração.
que as pessoas caiam sem perceber. Em duas passa-
gens Paulo fala sobre o “laço do diabo”. Numa delas O cinto da verdade aponta para a segurança baseada
diz que o Presbítero deve ter bom testemunho dos de
não em falsas ilusões, mas na sinceridade e na certeza
fora, a fim de não cair no opróbrio e no laço do diabo
da verdade que é o próprio Jesus (Jo 14.6).
(1Tm 3:7). Na outra fala de pessoas que faziam opo-
sição ao Evangelho, as quais precisavam ser libertas
Vestir a couraça da justiça aponta para a necessidade
dos laços do diabo, pois tinham sido feitas cativas por
de se viver aquilo que se crê, ou seja, a necessidade da
ele para cumprirem a sua vontade (2Tm 2.25-26). O
vida justa.
engano, portanto, é sua principal tática de guerra, e
isso, tanto em relação aos incrédulos, quanto em re-
Calçar os pés com o Evangelho só pode significar fir-
lação aos crentes.
meza no Evangelho e prontidão para anunciá-lo.
As recomendações de Paulo seguem a seguinte or-
dem: 1) Precisamos nos fortalecer no Senhor. 2) Embraçar o escudo da fé é usá-la como uma defesa
Precisamos entender que estamos em meio a uma contra os dardos malignos que induzem a pensa-
batalha contra inimigos que não são de “carne e san- mentos de dúvida, de rebeldia, de malícia, etc.
gue”. 3) Precisamos entender que estes inimigos jo-
gam sujo e não desistem facilmente. 4) Precisamos O capacete da Salvação mostra que nossa cabeça está
nos revestir da armadura de Deus para enfrentar este segura e não poderemos ser feridos mortalmente.
combate.
A Espada da Palavra parece ser a única arma que ser-
A armadura de Deus é composta de virtudes espiri- ve tanto para defesa quanto para ataque. De fato, foi
tuais que nos ajudarão a resistir aos ataques malignos. a Palavra a arma que Jesus usou para se defender da
Paulo diz: tentação de Satanás (Mt 4).

“Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para E a oração, embora não apareça como um aspecto es-
que possais resistir no dia mau e, depois de terdes pecífico da armadura, pode indicar a maneira como
vencido tudo, permanecer inabaláveis. Estai, pois, cada uma das peças da armadura deve ser vestida e
firmes, cingindo-vos com a verdade e vestindo-vos utilizada.

157
É interessante que esta armadura não tem defesa para visão bíblica dele, entendendo que é um ser mau
as costas, talvez porque o inimigo precisa ser encara- que aproveita as brechas para destruir, mas que está
do de frente, na força de Deus, com a armadura sem limitado pelo poder de Deus. Devemos relembrar
brechas, para que não sejamos atingidos no calcanhar as palavras de Tiago: "Sujeitai-vos, portanto, a Deus;
como o herói lendário Aquiles. Algo que precisa ser mas resisti ao diabo, e ele fugirá de vós. Chegai-vos
dito ainda é que numa guerra a vitória só vem com a Deus, e ele se chegará a vós outros" (Tg 4.7-8). O
muita dedicação, com treino e com luta. Não existe segredo da vitória contra o inimigo é rejeitar toda so-
passe de mágica. Existe o fortalecimento do Senhor e berba e humildemente se aproximar mais de Deus. O
o uso da armadura. mundo jaz no maligno, mas ele não pode tocar aque-
les que são guardados por Deus (1Jo 5.18-19).
CONCLUSÃO

Não devemos nem superestimar, nem subestimar


o inimigo. Isso significa que devemos manter uma

158
22. O SIGNIFICADO DA MORTE

O pintor medieval Jan Van Eick impressionava as continuamos nosso trabalho e voltamos às diversões
pessoas com seus quadros que demonstravam, ao e à rotina do dia a dia. De algum modo, “há, dentro
mesmo tempo, a futilidade da busca pelos prazeres de nós, uma espécie de sentimento de imunidade em
do mundo e a realidade da morte, que assolava de relação à tragédia e a morte”.1 Mas, de súbito, a morte
forma despercebida. Não raro, num mesmo quadro bate à porta. Um pai, uma mãe, um esposo ou filho
ilustrava a loucura dos homens que viviam para satis- são levados abruptamente. Então, todo o desespero
fazer seus caprichos, enquanto muitos ficavam pros- cai sobre nós com o peso de milhões de toneladas.
trados abatidos pela morte. Isso realmente retrata a Uma imensa confusão se estabelece dentro de nós, e
situação da humanidade decaída. Deus deixou bem uma pergunta brota da agonia: Por quê?
claro, desde o início, que a consequência pela deso-
bediência seria a morte, e nada há mais certo a res- A ORIGEM DA MORTE
peito da vida do que a morte, mas é impressionante
o quanto os seres humanos conseguem ocultar de si Pedro faz uma declaração de causar inquietação em
mesmos essa verdade. todos aqueles que se sentem imortais: “Pois toda car-
ne é como a erva, e toda a sua glória, como a flor da
Quando somos jovens, a vida parece radiante e a erva; seca-se a erva, e cai a sua flor” (1Pe 1.24; Ver Is
morte distante. Ano após ano a vida prossegue, vi- 40.6-8). E o Salmo de Moisés já dizia coisas seme-
vemos nosso dia a dia, fazemos planos, construímos lhantes, contrastando a eternidade de Deus com a
casas, e nos envolvemos com muitos projetos. Fre- temporalidade do ser humano:
quentemente lemos nos jornais que pessoas estão
morrendo de fome na África ou em explosões ter- Antes que os montes nascessem e se formassem a
roristas no Oriente Médio. Mas esses lugares estão terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és
muito distantes de nós. Paramos alguns instantes em Deus. Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai,
frente à televisão, horrorizados pelas tragédias, mas filhos dos homens. Pois mil anos, aos teus olhos,
em seguida retornamos a nossa vida normal, e tudo são como o dia de ontem que se foi e como a vigí-
aquilo foge de nossa mente. De repente, um vizinho
morre. Vamos ao enterro, confortamos a família e
1 Loraine Boettner. Imortalidade, p. 10.
ficamos abalados por alguns momentos, mas logo

159
lia da noite. Tu os arrastas na torrente, são como declarado um pouco antes aos romanos: “Portanto,
um sono, como a relva que floresce de madrugada; assim como por um só homem entrou o pecado no
de madrugada, viceja e floresce; à tarde, murcha mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a mor-
e seca. Pois todos os nossos dias se passam na tua te passou a todos os homens, porque todos pecaram”
ira; acabam-se os nossos anos como um breve pen- (Rm 5.12). Ele diz que o pecado entrou no mundo
samento. Os dias da nossa vida sobem a setenta através de um só homem, e como consequência, a
anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o morte também [entrou no mundo]. A morte é con-
melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa sequência do pecado. Se não houvesse pecado, não
rapidamente, e nós voamos (Sl 90.2-6; 9-10). haveria razão para pensar que a morte existiria.

Não há como fechar os olhos: a morte é a realidade Um questionamento surge, em relação a essa noção
mais concreta que conhecemos. A vida é muito breve. de que o pecado de Adão e Eva gerou a morte. Por
Todo esse sentimento negativo que os seres huma- que Adão e Eva não morreram no dia em que peca-
nos e os animais têm em relação à morte explica-se ram? Deus havia dito: “No dia em que dela comeres,
porque a morte é uma anomalia. Como diz Packer, “a certamente morrerás”, mas Adão e Eva viveram ainda
Bíblia confirma nosso sentimento instintivo de que, centenas de anos. Na verdade não precisamos inter-
no seu sentido mais profundo, toda morte é anor- pretar essa expressão literalmente. Ela é uma expres-
mal”.2 A morte não faz parte da criação de Deus, ela são idiomática hebraica que significa “se você comer
é uma intrusa. você vai morrer com certeza”. Isso pode ser visto
em outros textos da Bíblia Hebraica (1Rs 2.37; Ex
A Bíblia demonstra que a morte entrou no mundo 10.28). Como diz Hoekema, “baseado nessa inter-
como consequência do pecado. Quando Adão e Eva pretação, pois, o fato de Adão e Eva não terem mor-
foram criados e Deus lhes colocou numa digna posi- rido fisicamente no mesmo dia em que comeram
ção de administradores da Criação, o Senhor fez uma da árvore proibida, não precisa nos causar nenhuma
exigência, pois desejava obter deles obediência com- dificuldade especial”.3 O fato é que a morte era certa,
pleta e por isso lhes disse: “De toda árvore do jardim porque o pecado aconteceu. Adão e Eva ao desobe-
comerás livremente, mas da árvore do conhecimento decerem a Deus, tiveram a sua sentença de morte
do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que decretada. Eles morreram espiritualmente imedia-
dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.1617). tamente – ficando separados de Deus –; todavia, a
Alguns estudiosos insistem que a morte existia pelo morte física, que veio também como consequência
menos no mundo animal e vegetal antes da queda. do pecado (Gn 2.16,17; 3.11-24; Rm 5.12), não foi
Devemos lembrar que tanto o homem quanto a cria- imediatamente executada, porque Deus usou de sua
ção foram amaldiçoados pela queda. Paulo fala que graça, protelando a execução da sua sentença (Gn
a criação “está sujeita à vaidade, não voluntariamen- 3.15), concedendo oportunidade para o arrependi-
te, mas por causa daquele que a sujeitou (...). Porque mento do homem: Entretanto, o seu juízo entrou em
sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e processo de concretização, tornando a vida uma ca-
suporta angústias até agora” (Rm 8.20-22). A criação minhada para a morte.
é prisioneira da “corrupção” por causa da entrada do
pecado no mundo (Ver Gn 3.17). E Paulo já havia

2 J. I. Packer. Vocábulos de Deus, p. 185. 3 Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 108.

160
O SIGNIFICADO DA MORTE sua nudez e fugiram da presença de Deus se escon-
dendo por entre as árvores do jardim (Gn 3.7-8). A
A morte é a consequência do pecado, mas não uma comunhão estava quebrada. Essa morte é a forma
consequência natural. Devemos considerar a mor- como todas as pessoas vivem! Paulo descreveu todas
te como um aspecto penal de Deus em relação à as pessoas como estando mortas em seus delitos e
desobediência do homem. Morte, portanto, antes pecados (Ef 2.1). Nesse estado, o homem não conse-
de qualquer coisa é punição. Deus disse a Israel: “A gue agradar a Deus e, nem se quer, dar um passo em
alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.4), e Paulo disse direção a Deus. Este estado de morte espiritual, que é
aos Romanos: “O salário do pecado é a morte” (Rm consequência do pecado, torna o homem cego para
6.23). Como diz Berkhof: as coisas de Deus (2Co 4.4), e incapacitado de ir a Je-
sus antes que Deus realize uma obra de sua livre graça
A morte não é descrita como algo natural na vida dentro dele. Só quando Deus muda o seu coração e
do homem, mera falha de um ideal, e sim, assaz de- sua disposição, então, o homem consegue se voltar
cisivamente como algo alheio e hostil à vida huma- para Deus (Ver Jo 6.44).
na: é uma expressão da ira divina, Sl 90.7,11, um
julgamento, Rm 1.32, uma condenação, Rm 5.16, Morte física
e uma maldição, Gl 3.13, e enche os corações dos
filhos dos homens de temor e tremor, justamente Nesse sentido, a morte deve ser entendida como a
porque é tida como uma coisa antinatural.4 separação do corpo e da alma. Quando a alma deixa
o corpo, a morte chegou (Tg 2.26). Nesse ponto, se
Todos esses elementos devem ser considerados cumpre a Palavra que Deus dirigiu ao homem após o
numa definição de “morte”. pecado: “No suor do rosto comerás o teu pão, até que
tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és
Quando pensamos em morte, precisamos entender
pó e ao pó tornarás” (Gn 3.19; Ver Ec 3.20). Porém,
que há três sentidos para esse acontecimento: morte
o Espírito não vira pó, pois como diz o Eclesiastes, o
física, espiritual e eterna.
pó volta à terra, mas o Espírito volta a Deus que o deu
(Ec 12.7). A morte física é uma punição, porque o ser
Morte espiritual
humano não foi feito para viver sem corpo.
O primeiro aspecto da morte a ser considerado é
seu caráter espiritual, estamos falando da quebra da Os gregos antigos entendiam que a alma era divina e
comunhão com Deus, pois, “uma vez que, de acor- o corpo uma espécie de sepultura da alma. No enten-
do com as Escrituras, o significado mais profundo dimento deles, a melhor coisa que poderia acontecer
da vida é a comunhão com Deus, o significado mais para a alma era se ver livre do corpo. A Bíblia não en-
profundo da morte tem de ser a separação de Deus”.5 dossa essa visão. Apesar de a alma continuar vivendo
Isso aconteceu com Adão no mesmo dia em que pe- após a morte, ela não se encontra em felicidade com-
cou. A Escritura diz que, após comerem do fruto da pleta, pois Deus criou o ser humano com dois aspec-
árvore proibida, Adão e Eva tomaram consciência de tos, o espiritual e o físico, e ambos precisam um do
outro. Por essa razão, a Bíblia não diz que a alma que
vai para o céu depois da morte encontrou seu destino
4 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 676.
final, mas anuncia o dia da ressurreição, quando o ser
5 Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 108
humano ressurgir completo em corpo e alma.

161
Morte eterna como toda potestade e poder” (1Co 15.24). Eviden-
temente ele está falando de Satanás e suas hostes ma-
A morte eterna deve ser vista como uma consumação lignas. A morte e a ressurreição de Jesus já garantiram
da morte espiritual após a morte física. A morte física a vitória sobre Satanás, tanto que ele perdeu seu pos-
vem sobre todos, mas a morte eterna somente sobre to de acusador (Ap 12.10). Porém, ainda falta o dia
os que estão sem Cristo. Nesse ponto, é interessante quando ele será totalmente esmagado, cumprindo a
pensarmos que a salvação depende de um “novo nas- promessa de Gênesis 3.15, ou como diz Paulo: “Por-
cimento” (Jo 3.3). Quem nasce uma vez morre duas, que convém que ele reine até que haja posto todos
mas quem nasce duas só morre uma. Durante essa os inimigos debaixo dos pés. O último inimigo a ser
vida, embora grande parte das pessoas esteja no es- destruído é a morte” (1Co 15.26-27). Os inimigos
tado de “morte espiritual”, mediante a graça comum, que assim serão submetidos não são somente seres
Deus lhes concede muitas bênçãos e restringe o mal. inteligentes hostis a Cristo, como também todas as
Porém, na morte eterna “as restrições do presente de- formas de mal, físicas e morais, já que se inclui espe-
saparecem, e a corrupção do pecado tem a sua obra cialmente a morte.7 A morte, na linguagem de Paulo,
completa. O peso total da ira de Deus desce sobre os é justamente o último inimigo. Naquele dia, Cristo e
condenados, e isto significa morte, no sentido mais a morte se encontrarão pela última vez.
terrível da palavra”.6 Morte eterna deve ser associada
com o Inferno, e em última instância, com o Lago de O próprio Cristo conheceu muito bem os poderes
Fogo do Apocalipse. da morte. Lembramos daquela inesquecível cena do
Senhor diante do túmulo de Lázaro. Quando Maria,
DIAS CONTADOS irmã de Lazaro, se aproximou de Jesus, João relata:
“Jesus, vendo-a chorar, e bem assim os judeus que a
A morte será a última das consequências do pecado a acompanhavam, agitou-se no espírito e comoveu-se.
ser retirada do mundo. No capítulo 15 de 1Coríntios, E perguntou: Onde o sepultastes? Eles lhe respon-
o Apóstolo Paulo faz uma defesa magistral da ressur- deram: Senhor, vem e vê! Jesus chorou” (Jo 11.33-
reição de Cristo e dos crentes. Nesse capítulo, ele tam- 35). Essa foi uma das poucas ocasiões em que Jesus
bém fala muitas coisas sobre a morte. Primeiramente chorou. Qual teria sido o motivo desse choro? Cer-
ele repete o ensino de Romanos 5.12-19: “Visto que tamente não era um choro de impotência diante das
a morte veio por um homem, também por um ho- mazelas da vida. O Senhor, que ressuscitaria Lázaro
mem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim em seguida, não precisaria chorar por isso. Era o cho-
como em Adão todos morrem, assim também todos ro de alguém que sabia o quanto a morte deteriorou
serão vivificados em Cristo” (1Co 15.21-22). Essa a perfeita criação de Deus. Era o choro de alguém
promessa de vitória pessoal sobre a morte descansa que definitivamente não se conformava com a mor-
sobre a vitória de Cristo. Ele abriu o caminho para a te. Mais tarde, ele próprio experimentou a fúria da
vitória sobre a morte e agora os homens podem tran- morte dependurado no madeiro. Portanto, Jesus sabe
sitar por ele. Mas, além de ter aberto o caminho, o Se- mais do que ninguém o significado dela. Porém, três
nhor ocupa uma posição de governo e luta para des- dias depois, na maior demonstração de poder entre a
truir todos os seus inimigos. Paulo diz que o fim só criação e o fim do mundo, o Senhor derrotou a mor-
virá “quando houver destruído todo principado, bem te ressuscitando gloriosamente. A partir daquele dia,

6 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 262. 7 Charles Hodge. I Corintios, p. 305 (1Co 15.25).

162
os dias da morte estão contados, em breve, o último (Sl 90.12). A consciência de nossa própria finitude
inimigo cairá definitivamente. ajuda a exercitar a sabedoria. Assim, a expectativa da
morte é benéfica para o nosso progresso espiritual,
MAL TRANSFORMADO EM BEM ela mostra que nossos dias aqui são limitados, como
tudo mais nessa vida. E a experiência da morte, de
Ainda falta considerarmos uma questão importan- alguma forma, nos será útil na eternidade. Jamais
te: Se a morte é resultado do pecado e deve ser vista será caso de vergonha, antes de regozijo, pois nosso
como punição, por que os cristãos ainda precisam Senhor também a experimentou. Será um motivo de
morrer? A morte dos cristãos não deve ser conside- louvor ao Deus que transforma o mal em bem.
rada como punição pelo motivo que não existe mais
qualquer punição para o cristão. Paulo diz: “Agora, A atitude dos crentes perante a morte deve ser total-
pois, já nenhuma condenação há para os que estão mente diferente da atitude do mundo que não tem
em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Se Deus quisesse, poderia esperança. Aos olhos de Deus, a morte dos crentes
transladar todos os cristãos para o céu, como fez com não é uma retribuição por suas más ações, é algo que
Enoque e Elias, sem que passassem pela morte, po- causa deleite no Senhor, pois “preciosa é aos olhos do
rém, ele resolveu deixar que a natureza seguisse seu senhor a morte dos seus santos” (Sl 116.15). Seja a
curso normal. Apesar de nascidos de novo, nossos morte de um crente de cem anos ou de uma criança
corpos ainda são decaídos, eles não foram aperfei- de alguns dias, perante os olhos do Senhor, essa mor-
çoados, e o motivo disso é que continuamos adoe- te é preciosa, pois o Senhor sabe que o céu é muito
cendo, cansando, suando e morrendo (Gn 3.19). A melhor. Para nós é difícil aceitar a ideia de que uma
morte deve ser vista, no caso do cristão, não como criança deixe esse mundo só com alguns dias. Porém,
uma punição, mas como uma consequência natural devemos nos lembrar que a vida é como a erva e logo
do corpo decaído. Nesse sentido, ela tem realmente estará murcha de qualquer forma. Perante a eternida-
ainda um sentido negativo, porém, ela evoca, pelo de, e diante daquele para quem mil anos é como um
menos, dois aspectos imensamente positivos. Pri- dia (Sl 90.4), talvez faça pouca diferença viver cem
meiramente devemos considerar que ela abre as por- anos ou alguns minutos.
tas para a eternidade. No momento da morte, a alma
fica livre de todo o peso da corrupção e passa a aguar- O entendimento de que a morte nos conduz a um
dar o dia em que será reunida ao corpo aperfeiçoado estado superior levou o Apóstolo Paulo a dizer: “Por-
da ressurreição. A morte para o crente é o portal para quanto, para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro.
uma situação imensamente mais abençoada do que Entretanto, se o viver na carne traz fruto para o meu
a presente. Em segundo lugar, embora a morte, em si trabalho, já não sei o que hei de escolher. Ora, de um
mesma, continue sendo um verdadeiro mal natural e outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de
para os filhos de Deus, na economia da graça se faz partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmen-
subserviente ao seu progresso espiritual e aos me- te melhor” (Fp 1.21-23). Aqui está um homem que
lhores interesses do reino de Deus.8 A expectativa da viveu uma das existências mais gloriosas e, ao mes-
morte leva o crente a considerar seus dias e a manter mo tempo, mais sofridas de todos os tempos. Apesar
a humildade. O salmista orou: “Ensina-nos a contar de todo sofrimento, ele não estava desanimado para
os nossos dias, para que alcancemos coração sábio” continuar vivendo. Porém, claramente demonstrou
sua preferência por partir e estar com Cristo o que,
para ele, não tem comparação. Ele desejava entrar
8 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 676.
naquele estado de bem-aventurança que João des-

163
creveu no Apocalipse: “Então, ouvi uma voz do céu, existia quando partiu de junto de mim; e continua
dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que, tão capaz, como antes, de levar a sua carga ao porto
desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espíri- de destino. O seu tamanho diminuiu para mim, nada
to, para que descansem das suas fadigas, pois as suas mais; e, precisamente no momento em que alguém
obras os acompanham” (Ap 14.13). Não precisamos diz ao meu lado 'despareceu', noutra praia, lá longe, há
esperar a morte com receio ou angústia no coração, outros olhos que esperam a sua chegada e outras vo-
pois ela é um benefício do Senhor para nossa vida. zes prontas a exclamar, 'ele aí vem'; e é assim a morte
Ela não é o fim, por mais que pareça ser. A seguinte (autor desconhecido).9
estória poderá nos ajudar a entender o que é a morte:
As pessoas queridas que desapareceram dos nossos
Eis-me numa praia. Um barco, perto de mim, abre olhos, e que morreram no Senhor, desembarcaram
as velas brancas ao vento e parte em direção ao alto nessa outra praia, aonde todos nós, que espera-
mar. Este barco é belo e forte. Fico ali de pé, a con- mos em Cristo, um dia também desembarcaremos.
templá-lo, até que por fim parece como que uma Quando o último inimigo for definitivamente der-
pequenina mancha, lá longe, precisamente no lugar rotado, então todo o sofrimento de Adão finalmente
em que o mar e o céu parecem juntar-se. Alguém ao desaparecerá.
meu lado, diz nesse momento: 'desapareceu'. Desa-
pareceu para onde? Desapareceu da minha vista, eis
tudo. Continua a existir da mesmíssima maneira que 9 Citado por Loraine Boettner. Imortalidade, p. 32.

164
23. PARA ONDE VÃO AS ALMAS?

Uma pergunta que sempre fascinou os cristãos ao municar com as almas dos mortos que estão desen-
longo dos séculos é: Para onde vão as almas das carnadas esperando uma reencarnação. Todas essas
pessoas que morreram? Ao longo da história várias crenças demonstram que a vida após a morte é uma
possibilidades têm sido levantadas pelos cristãos. expectativa cristã, mesmo que divergente.1 Porém, o
Classicamente, o cristianismo tem defendido que, que nos importa aqui, é entender o ensino bíblico so-
após a morte, enquanto o corpo vai para a sepultura, bre o lugar para onde vão as almas dos mortos.
o espírito vai para o chamado “Estado Intermediário”.
Esse local diz respeito a onde estão, por um lado os O SHEOL E O HADES
que foram salvos por Cristo, no caso o céu, ou o pa-
raíso, e por outro, os que foram condenados por seus O Antigo Testamento fala relativamente pouco acer-
pecados, no caso o Hades, ou o inferno. ca do estado das almas depois da morte. Encontra-
mos em alguns livros do Antigo Testamento a indi-
Outras interpretações têm sido igualmente susten- cação de que as almas vão para um lugar chamado
tadas desde os tempos mais antigos. Alguns, como Sheol depois da morte. O Sheol mais comumente
os Testemunhas de Jeová e Adventistas, defendem o significa “sepultura”. É esta palavra que Jacó disse ser o
chamado “sono da alma”, ou seja, que todas as almas, seu destino quando morresse: “Se lhe sucede algum
quer de ímpios quer de crentes ficam "dormindo" até desastre no caminho por onde fordes, fareis descer
o dia da ressurreição, quando finalmente acordarão, minhas cãs com tristeza à sepultura (sheol)” (Gn
juntamente com o corpo e enfrentarão o Juízo Final. 42.38). No entendimento do Antigo Testamento,
Outros ainda, como os Católicos, sustentam que as todos os homens acabam no Sheol. O salmista decla-
almas ficam num local de “purgação” de seus peca- ra: “Que homem há, que viva e não veja a morte? Ou
dos, tendo a possibilidade, depois que tiverem feito que livre a sua alma das garras do sepulcro (Sheol)?”
satisfação por seus pecados, de entrar no céu. Muitos (Sl 89.48; Ver 88.3; Os 13.14; Nm 16.33; Sl 49.14;
teólogos medievais sustentavam que a alma depois Sl 9.17). Se o Sheol é o destino de todos os homens,
da morte ficava num estado de semiconsciência, nem
feliz, nem infeliz, esperando a ressurreição do corpo. 1 As religiões não cristãs também falam de vida após a
E os espíritas dizem que é possível até mesmo se co- morte, como por exemplo, o Budismo, o Induísmo e o Islamismo.

165
então, ele não deve, nesse sentido, ter significado po- posto de duas partes: A parte mais profunda era o lo-
sitivo, nem negativo. A interpretação mais plausível cal de punição, algumas vezes chamado de Tártaro, e
é que significa apenas sepultura, o lugar do esqueci- o lugar de bênçãos era chamado de Campos Elísios.3
mento, a morte no sentido genérico. Assim, o Sheol Isso se assemelha em parte com a noção cristã de um
é absolutamente igual para todos, como o Eclesiastes lugar de punição e outro de recompensa. Entretanto,
deixa bem claro: “Tudo quanto te vier à mão para fa- o Novo Testamento usa o termo Hades apenas no
zer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além sentido negativo, como lugar de punição. Assim, o
(Sheol), para onde tu vais, não há obra, nem proje- rico da parábola que Jesus contou foi para o Hades
tos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma” (Ec (Lc 16.23). E Jesus disse que Cafarnaum seria preci-
9.10). Todos os homens, bons ou maus, vão para o pitada ao Hades por ter recusado sua pregação (Mt
Sheol, pois ele significa apenas o estado de morte, 11.23). Igualmente Jesus disse aos fariseus que difi-
não necessariamente de recompensa ou de punição. cilmente escapariam da condenação do Hades (Mt
23.33). Todos esses textos sugerem que, para o Novo
Por outro lado, o Antigo Testamento fala que a morte Testamento, o Hades é o lugar de punição, o Inferno.4
do justo é mais digna que a morte do ímpio. Balaão,
quando chamado para amaldiçoar Israel, demons- O PURGATÓRIO
trou seu desejo: “Que eu morra a morte dos justos, e
o meu fim seja como o dele” (Nm 23.10). Se o profeta A teologia católica afirma que, os crentes do Antigo
infiel Balaão desejava morrer a morte do justo, é por- Testamento, antes da ressurreição de Cristo estavam
que ela deve ser diferente da morte do perverso e, de num lugar chamado Limbus Patrum (limbo dos
algum modo, melhor (Ver Sl 16.11; 73.24). Porém, pais). Eles estavam nesse lugar sem receber qual-
o que se percebe lendo o Antigo Testamento é que quer sofrimento, porém, sem a felicidade do paraíso.
não se tinha uma doutrina completa sobre o Estado Quando Jesus ressuscitou, providenciou para que al-
Intermediário. Isso não representa problema algum, guns fossem libertos do limbo e levados para o céu.
pois entendemos que a Revelação é progressiva, ou Pensa-se que, foi enquanto seu corpo estava na sepul-
seja, Deus não revelou tudo de si de uma única vez. tura, que o Senhor foi até o limbo e os libertou de lá.
Mas, o simples fato de haver esperança para o justo Geralmente a passagem de 1Pedro 3.18-20 é usada
depois da morte é uma evidência concreta de que, de como texto prova nesse sentido. Porém, essa obscura
alguma maneira, os justos estariam melhor no Sheol passagem não parece afirmar que Jesus tenha resgata-
do que os injustos.2 do os crentes do Antigo Testamento do limbo, antes,
fala de uma "proclamação" de Cristo a espíritos apri-
Se o Antigo Testamento usa a palavra Sheol para sionados. A teologia católica fala também do Limbus
definir o lugar dos mortos, o Novo Testamento usa Infantum (limbo das crianças) que seria o lugar para
a palavra Hades. Na mitologia grega, Hades era um onde vão todas as crianças não batizadas que morrem
deus das profundezas, o mundo dos mortos com- na infância, representando um lugar que, embora não

2 Parece não haver, até agora, melhor interpretação do que 3 Ver Charles Pfeiffer. Ed. Wycliffe Bible Encyclopedia, Ver-
a que considera que, da perspectiva do Antigo Testamento, o sheol bete: Hades.
é um lugar onde estão ímpios e justos. O fator primeiramente dis-
tintivo entre eles é a perspectiva da ressurreição. O Senhor pode livrar 4 2Pedro 2.4 usa o termo Tártaro, num verbo composto,
o justo do sheol (Sl 49.15). Se por um lado isso significa impedir que que significa "lançar para o tártaro", porém, referindo-se aos anjos
ele vá até lá (Sl 30.3), por outro, significa acordá-lo do estado de sono caídos. Portanto, o Tártaro no Novo Testamento, parece ser uma
(Sl 13.3, 2Rs 4.31, Dn 12.2, Jó 14.12, Is 26.19). prisão de demônios.

166
seja de condenação, também não é de bênção. Evi- ve aos interesses da igreja romana, mas que não tem
dentemente que a ideia da existência de um “limbo” qualquer base da Escritura. A Escritura não ordena
não é bíblica, mas criada e sustentada pelos homens, que as pessoas façam qualquer coisa pelos mortos,
numa tentativa de minimizar as penas eternas. exceto sepultá-los (Dt 26.13-14; Lv 19.28). A doutri-
na do Purgatório é uma afronta à suficiência da obra
A mais conhecida doutrina católica sobre o Esta- de Cristo para salvação, acrescentando a necessida-
do Intermediário é a do Purgatório. A doutrina do de de uma reparação humana. A Bíblia claramente
purgatório formulada pela igreja Católica sustenta a diz que “aos homens está ordenado morrerem uma
possibilidade de salvação depois da morte. Segun- vez, vindo depois disso o juízo” (Hb 9.27). Quem já
do a teologia católica somente os verdadeiramente foi para o paraíso ou para o inferno não pode mais
santos vão diretamente para o céu onde estão salvos sair de lá (Lc 16.26). Os únicos textos da Escritura
para sempre, e somente os piores pecadores vão para geralmente usados para defender a existência do
o Inferno, onde estão perdidos para sempre. Todos purgatório são 1Coríntios 3.15 que fala de ser salvo
os demais homens vão para o purgatório, que é um através do fogo, e Judas 22-23 que fala de arrebatar
local de punição, porém, temporário. Depois que os duvidosos do fogo. Porém, estes textos nada falam
uma alma passa algum tempo sofrendo as penas, li- sobre o Purgatório, pois o fogo deve ser identificado
teralmente “purgando” seus pecados, pode ir para o com a própria atividade julgadora de Deus, significa
céu. Na concepção católica, o fogo do purgatório é que os salvos serão livrados, no sentido de isentados
o mesmo fogo do Inferno, a única diferença é a du- do fogo5.
ração. Por isso, nas orações católicas se fala em “levar
as almas todas para o céu”, ou seja, tirá-las do purga- O SONO DA ALMA
tório. Na Idade Média, a doutrina do purgatório foi
muito útil para os cofres da Igreja Católica. Segundo Como já vimos, outras seitas insistem que as almas
o ensino oficial, o Papa tinha poder para libertar as depois da morte ficam num estado de “sono”, espe-
almas do purgatório e vendia esta libertação por algu- rando o dia do Juízo. Essa doutrina é defendida por
ma quantia de dinheiro. Esta prática ficou conhecida causa de algumas expressões usadas no Novo Tes-
como venda das “indulgências”. Até hoje, o costume tamento, como por exemplo, o fato de Jesus ter dito
de pagar para “rezar” missas é fundamentado no mes- que Lázaro dormia, significando que estava morto
mo antigo sistema, e portanto, o purgatório continua (Jo 11.11,14; Ver Mt 9.24; At 7.60; 1Co 15.51; 1Ts
rendendo dividendos. O pagamento pode ser feito 4.13-14). Apela-se também para aqueles textos do
pela própria pessoa ou por parentes. Aqui também Antigo Testamento que descrevem a morte como
encontramos a origem da “missa de sétimo dia”. Um um estado de inatividade (Ver Sl 6.5; 115.17; 146.4;
questionamento óbvio a esta ideia é que, se o paga- Dn 12.2). Porém, esses textos descrevem o morto
mento faz com que a alma saia do Purgatório, isso é apenas do ponto de vista humano. Além do mais, o
um favorecimento ao rico que pode pagar mais mis- que está sendo enfatizado nesses textos é o destino
sas. Além disso, se o Papa realmente tem poder para
do corpo das pessoas e não necessariamente da alma.
tirar as almas do Purgatório, por que bondosamente
não faria isso por todas?
5 No livro de 2Macabeus12.43-45, existe a menção de
sacrifícios feitos por mortos, como para torná-los aceitáveis perante
A doutrina do Purgatório não tem qualquer respaldo o Senhor. Essa é uma das razões pelas quais 2Macabeus foi reconhe-
cido como inspirado pela Igreja Católica no Concílio de Trento.
bíblico. É uma formulação humana que serviu e ser-

167
Evidentemente que o corpo dorme até o dia da res- almas estão conscientes, e até a ressurreição, não de-
surreição, no sentido de que fica na sepultura aguar- vem sair dos lugares onde estão.
dando aquele dia, porém, a Bíblia não diz que a alma
também dorme, pelo contrário. Há muitos outros textos que demonstram o estado
consciente dos crentes após a morte. Jesus disse ao
Há suficiente ensino na Escritura para que entenda- ladrão que se converteu na cruz: “Hoje estarás comi-
mos que as almas dos mortos ficam conscientes após go no paraíso” (Lc 23.43). Embora os Testemunhas
deixarem os corpos. Jesus contou uma parábola na de Jeová tenham até mesmo mudado a tradução des-
qual há explicações suficientes sobre o lugar das al- ta frase (em verdade te digo hoje, estarás comigo no
mas depois da morte (Lc 16.19-31). A grande maio- Paraíso), a evidência textual não deixa margem para
ria dos judeus daqueles dias (exceto os saduceus), dúvidas, Jesus disse que ainda naquele dia, a alma do
acreditava que as almas dos justos e dos ímpios per- ladrão convertido estaria no Paraíso, que provavel-
maneciam no Hades, porém em lugares diferentes, mente é o mesmo lugar descrito na parábola como
aguardando o juízo final.6 Ao contar a parábola, Jesus o destino de Lázaro. Todo o sentido da frase de Je-
concordou com a ideia de que as almas ficam mesmo sus depende do “hoje”, pois o ladrão pediu que Jesus
em lugares distintos, porém, contrariou a ideia deles lembrasse dele "no futuro", e Jesus disse que não seria
de que os ricos tinham mais chances de serem salvos. preciso esperar.
Jesus disse que havia um homem rico que vivia para
aproveitar suas riquezas e um homem pobre, chama- Outro texto claro, nesse sentido, é o da cena da trans-
do Lázaro, o qual nada tinha para se consolar. Os dois figuração, quando Moisés e Elias foram vistos con-
morreram, mas foram para lugares diferentes. Lázaro versando com Jesus (Mt 17.1-8). Eles não estavam
foi conduzido pelos anjos para o seio de Abraão e o dormindo. Paulo também dizia que sua expectativa
rico fo sepultado e acabou no Hades (Inferno). Se- após a morte era de estar imediatamente na presen-
gundo Jesus, eles permaneceram num estado cons- ça do Senhor (Fp 1.21-23). Ele disse que ao deixar
ciente, um estava no lugar de punição e o outro no o corpo, tinha a convicção de que passaria a habitar
lugar de recompensa, e não havia possibilidade de com o Senhor (2Co 5.6-8).7
saírem de onde estavam. Esta parábola sozinha elimi-
na tanto a questão do sono da alma quanto do purga- Há mais dois textos da Escritura que demonstram
tório. Depois da morte as almas dos salvos vão para claramente que existem almas de salvos no céu, as
o Paraíso, chamado por Jesus de "seio" ou "fazenda" quais estão em um estado de consciência diante de
de Abraão, enquanto que as almas dos perdidos vão Deus. O primeiro é Apocalipse 6.9-11:
para o Inferno. Só existem esses dois lugares e quem
Quando ele abriu o quinto selo, vi, debaixo do al-
foi para um deles não pode mais sair. O Espiritismo
tar, as almas daqueles que tinham sido mortos por
também leva um golpe decisivo, pois os mortos não
causa da palavra de Deus e por causa do testemu-
são autorizados a voltarem. E finalmente, Jesus deixa
bem claro que a salvação somente é possível através
da Bíblia (Lc 16.31). Portanto, Jesus ensinou que as 7 Mesmo que aquilo fosse uma recompensa especial a Paulo
como um "mártir", talvez um privilégio especial de ir diretamente ao
céu, à presença de Deus, por morrer por Cristo, isso não anula o fato
de que todos os crentes ao menos vão ao paraíso após a morte, como
6 No livro de 1Enoque há a descrição de compartimentos Jesus ensinou na parábola, ou como foi dito do ladrão arrependido.
no submundo, como cavernas, onde estão separadas as almas dos Ou seja, se paraíso e céu não são o mesmo lugar, isso não invalida a
justos das almas dos ímpios (1En 22). doutrina da consciência das almas no Estado Intermediário.

168
nho que sustentavam. Clamaram em grande voz, discípulos. Muitos espíritas dizem encontrarem base
dizendo: Até quando, ó Soberano Senhor, santo e na Bíblia para suas práticas.
verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue
dos que habitam sobre a terra? Então, a cada um A Bíblia, porém, ensina claramente que as almas dos
deles foi dada uma vestidura branca, e lhes dis- mortos geralmente não têm autorização para voltar.
seram que repousassem ainda por pouco tempo, Jó disse: “Antes que eu vá para o lugar de que não
até que também se completasse o número dos seus voltarei, para a terra das trevas e da sombra da morte”
conservos e seus irmãos que iam ser mortos como (Jó 10.21; Ver 7.9-10). Davi disse com respeito ao
igualmente eles foram. seu filho morto que a criança não voltaria: “Porém,
agora que é morta, por que jejuaria eu? Poderei eu
Ainda que essas almas sejam descritas como de már- fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para
tires, ou seja, pessoas que morreram por Cristo, de mim” (2Sm 12.23). Além do fato de que os mortos
qualquer modo aponta para uma consciência e uma não podem voltar, a Bíblia ensina expressamente que
promessa de recompensa para almas de mortos. é proibido tentar se comunicar com as almas. Deus
disse para Israel:
O segundo é Apocalipse 7.14-15: “ele, então, me
disse: São estes os que vêm da grande tribulação, la- Quando entrares na terra que o senhor, teu Deus,
varam suas vestiduras e as alvejaram no sangue do
te der, não aprenderás a fazer conforme as abomi-
Cordeiro, razão por que se acham diante do trono de
nações daqueles povos. Não se achará entre ti quem
Deus e o servem de dia e de noite no seu santuário;
faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem
e aquele que se assenta no trono estenderá sobre eles
adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro,
o seu tabernáculo”. João viu almas de muitos crentes
nem feiticeiro; nem encantador, nem necromante,
mortos no céu. Elas estão lá conscientes, descansan-
nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois
do e esperando o último dia. Não faz sentido pensar
que estivessem dormindo na sepultura. todo aquele que faz tal coisa é abominação ao se-
nhor; e por estas abominações o senhor, teu Deus,
A BÍBLIA APROVA O ESPIRITISMO? os lança de diante de ti (Dt 18.9-12).

Resta ainda considerar se os mortos podem ser invo- É impossível não notar, na passagem acima, o repú-
cados. Como já dissemos, na Parábola do Rico e de dio divino ao ato de consultar os mortos. Ele disse
Lázaro Jesus deixou claro que eles não podem voltar. que isso era uma coisa abominável. O Profeta Isaías
A doutrina do estado intermediário é uma das que também disse: “Quando vos disserem: Consultai os
mais se opõem ao Espiritismo. O Espiritismo, que necromantes e os adivinhos, que chilreiam e murmu-
foi uma das religiões que mais cresceu no Brasil e no ram, acaso, não consultará o povo ao seu Deus? A fa-
mundo nas últimas décadas, se baseia na comunica- vor dos vivos se consultarão os mortos? À lei e ao tes-
ção entre os mortos e os vivos, geralmente através temunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais
de um médium (pessoa com o “dom” de invocar os verão a alva” (Is 8.19-20). Portanto, a comunicação
mortos). O Espiritismo está intimamente ligado à com os mortos é expressamente proibida, e não há
adivinhação, quiromancia, astrologia, etc. O médium a mínima possibilidade de que alguém que conhece
mais famoso do Brasil, Chico Xavier, que morreu há realmente a Bíblia encontre elementos para defender
algum tempo, já estaria se comunicando com seus essa prática.

169
Apesar de a Bíblia dizer que os mortos não podem certeza, é a posição que levanta menos dificuldades.
voltar e que os vivos não devem tentar consultá-los, Porém, ainda que Samuel tenha realmente aparecido
há muitas experiências nos centros espíritas que pa- ali,8 algumas coisas na passagem são bastante sugesti-
recem comprovar a consulta aos mortos. Às vezes se- vas, e de qualquer modo, não aprovam o Espiritismo.
gredos são revelados, a voz do morto é imitada, e até O que aconteceu aquele dia em Endor não se parece
o cheiro é sentido, segundo o relato de alguns. Como com o que acontece numa seção espírita. A feiticeira
explicar essas coisas? Nos casos em que tudo não pas- não entrou em transe, pelo contrário, ela mesma se
sa de encenação (na maioria é), segundo a Bíblia, isso assustou quando viu Samuel. Parece que nem ela es-
pode acontecer pela atuação de espíritos malignos. tava acreditando no que estava vendo. É possível, em-
Paulo diz que o maligno faz coisas impressionantes bora não se possa provar, que Deus tenha trazido o
para enganar as pessoas: “Ora, o aparecimento do iní- espírito de Samuel do Paraíso (ou do Seio de Abraão)
quo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, para condenar o rei Saul (Ver Mt 17.1-8: neste texto
e sinais, e prodígios da mentira, e com todo engano Moisés e Elias voltaram para conversar com Jesus),
de injustiça aos que perecem, porque não acolheram porém, futuramente, Deus deixou bem claro que o
o amor da verdade para serem salvos. É por este mo- fato de ele ter consultado a feiticeira foi uma das cau-
tivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, sas de sua própria morte. Assim está escrito em 1Crô-
para darem crédito à mentira” (2Ts 2.9-11). O diabo nicas 10.13-14: “Assim, morreu Saul por causa da sua
prende as pessoas na ignorância e, para isso pode uti- transgressão cometida contra o senhor, por causa da
lizar sinais que impressionem as pessoas. Espíritos palavra do senhor, que ele não guardara; e também
malignos atuavam enganando no Antigo Testamen- porque interrogara e consultara uma necromante e
to, tanto o rei Saul (1Sm 16.14; 18.10), como o rei não ao senhor, que, por isso, o matou e transferiu o
Acabe (1Rs 22.21-23). Por que não fariam isso hoje?
reino a Davi, filho de Jessé”. Portanto, essa passagem
Eles têm todo o interesse em prender as pessoas nes-
ao contrário de dar suporte à doutrina espírita, na
sas práticas, porque sabem que são coisas abominá-
verdade, a condena. Quem consulta os mortos terá
veis diante do Senhor.
que sofrer a ira de Deus.
Um dos textos que sugerem que a consulta aos mor-
tos, ao menos em tese, é possível está em 1Samuel
POR QUE ESTADO “INTERMEDIÁRIO”?
28.3-25. Esse texto descreve a ocasião em que Saul
As almas dos que já morreram estão no paraíso, ou
consultou a médium de Endor. Nesse episódio o rei
no inferno, e estão lá conscientes. Um dado interes-
Saul, que já não obtinha nenhuma resposta do Se-
sante quanto a isso, é que elas estão nesses dois lu-
nhor devido ao seu próprio pecado, resolveu consul-
tar uma médium para tentar falar com Samuel, o pro- gares temporariamente. O estado em que estão as
feta que já estava morto. Ao consultar a médium, o almas depois da morte, seja o paraíso ou o inferno,
texto diz que Samuel "subiu" e falou com Saul. Como é chamado de intermediário, porque não correspon-
explicar isso? A primeira possibilidade é que algum
espírito maligno tenha se feito passar por Samuel. 8 A Bíblia parece assumir que Samuel estava falando (1Sm
28.15-16). Ao menos em parte, a referência ao julgamento de Saul
Isso é possível porque Saul não viu Samuel, mas está correta (1Sm 28.1718). E Israel acabou realmente caindo nas
confiou na descrição da médium (1Sm 28.14). E, mãos dos filisteus, sendo Saul e seus filhos mortos (1Sm 28.19. Ver
1Sm 31.1-6). O cumprimento indireto da profecia pode ser visto des-
além disso, a profecia de Samuel aparentemente não sa forma. Por isso, alguns entendem que Deus permitiu que Samuel
voltasse para julgar Saul.
se consumou plenamente (1Sm 28.19). Essa, com

170
de ao local definitivo onde, tanto os salvos quanto os termediário assegura a justiça divina, pois, ninguém
condenados, habitarão eternamente. As almas dos terá mais vantagem por ter mais dinheiro, como a
salvos no paraíso e as almas dos condenados no in- doutrina do Purgatório prega. Do mesmo modo,
ferno aguardam pelo último dia, o dia da ressurreição. segundo a Bíblia, uma alma não precisa reencarnar
Naquele dia, de acordo com a Bíblia, todos ressusci- centenas de vezes até alcançar a perfeição.9 Isso é
tarão. Daniel já dizia: “Muitos dos que dormem no possível com uma única vida, basta confiar de todo
pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e coração naquele que deu a vida dele para que fôsse-
outros para vergonha e horror eterno” (Dn 12.2; Ver mos aperfeiçoados. Para o perdido, por outro lado, a
1Co 15.52; 1Ts 4.16). Após a ressurreição os perdi- doutrina do Estado Intermediário é a certeza de que
dos irão para o Lago de Fogo (Ap 20.15), e os salvos seus pecados não passarão impunes. É a certeza de
para o novo céu e a nova terra (Ap 21.1). O motivo é que a justiça pode parecer demorada, mas não falha-
simples: Deus não criou o ser humano para viver sem rá. As pessoas que não querem compromisso com
corpo. Atualmente, tanto no paraíso como no infer- Deus anelam que o túmulo seja o fim de tudo, mas
no, as almas estão despidas de seus corpos, o futuro terão uma surpresa terrível quando perceberem que
lhes assegura que um dia se reunirão a seus corpos. estavam enganadas. A doutrina do Estado Interme-
Para os salvos isso é um consolo, para os perdidos, diário demonstra que a salvação é possível apenas
um tormento a mais, pois o novo céu e a nova terra nessa vida. Isso demonstra a importância central do
serão melhores do que o céu atual, porém, por certo, Evangelho, a necessidade de conhecê-lo plenamente
o lago de fogo será pior do que o inferno atual. e proclamá-lo apaixonadamente.

Para o crente, a doutrina bíblica do Estado Interme- 9 Até mesmo a lógica está contra o Espiritismo. Imagine
uma alma que tem que reencarnar sucessivamente para se aperfei-
diário é uma grande bênção. Ela nos assegura que o çoar, mas que sempre carrega os erros da vida anterior. Isso é pior
crente não precisará ficar dormindo, esperando pelo do que dever em banco com juros altíssimos, a pessoa mal consegue
pagar os juros, que dizer do capital? Além disso, se a visão espírita
consolo. Ele não precisará esperar o dia em que o estivesse certa, então um crente fiel estaria certo em continuar sendo
um crente fiel. Se ele for bem fiel e realizar boas obras, como deve
Senhor voltar no seu reino para desfrutar de recom- fazer, pois são frutos de sua conversão, progredirá de qualquer modo.
pensas, pois já estará naquele mesmo dia no Paraíso O contrário não é verdadeiro para o espírita. Segundo a Bíblia, aquele
que não se converter a Jesus está perdido. Portanto, até a lógica ensi-
com o Senhor. Além disso, a doutrina do Estado In- na a continuar crente em Jesus.

171
CRISTOLOGIA
A PESSOA E A OBRA DE CRISTO

172
24. O EVENTO CENTRAL DA HISTÓRIA

Fala-se que John Lennon disse certa vez: “o Cristia- homossexual, outro revolucionário, etc. Mas qual é o
nismo acabará. Ele desaparecerá. Eu não preciso ar- Cristo verdadeiro?
gumentar sobre isso. Eu tenho certeza que o tempo
provará que é verdade. Nós somos mais populares No século XIX a teologia liberal se lançou numa
que Jesus agora”. A expectativa de Lennon não se verdadeira odisseia para “desenterrar” o Cristo ver-
confirmou afinal, apesar de toda a certeza dele. A dadeiro. Foi a chamada “busca pelo Jesus histórico”.
verdade é que ninguém na história da humanidade Aqueles teólogos entendiam que os Evangelhos bí-
foi popular e, ao mesmo tempo, tão impopular como blicos haviam distorcido e “enfeitado” demais o per-
Jesus Cristo. Ninguém causou tanto impacto sobre o sonagem histórico de Jesus de Nazaré.1 Como não
mundo. Desde que o homem de Nazaré andou pe- estavam mais dispostos a crer na mensagem dos dis-
las colinas áridas da terra santa, o mundo tem reve- cípulos, se lançaram a uma busca audaciosa por pis-
renciado seus ensinamentos e confessado seu nome, tas extrabíblicas do “verdadeiro” Jesus. Nem é preciso
ou, por outro lado, vituperado sua pessoa. A vinda de dizer que foi uma busca totalmente fracassada. Ao
Cristo permanece até hoje como o maior aconteci- final, apesar de terem encontrado certas referências
mento que esse planeta já viu, mas as opiniões sobre à pessoa de Jesus em escritos não bíblicos, nada do
ele são muito divididas. que encontraram foi substancial ou mesmo útil para
uma reconstrução histórica de Jesus. Portanto, a Bí-
Mas afinal quem é Jesus Cristo? Não há como enu- blia é o único lugar onde se pode encontrar o Jesus
merar as respostas possíveis para essa pergunta. De- verdadeiro.
pende do número de pensamentos e filosofias que
O Cristo verdadeiro é o que nasceu numa humilde
existirem no mundo. Pode haver um “Cristo” para
manjedoura e morreu numa cruz. Isso nos fala de sua
cada tipo de pessoa. Se reuníssemos um grupo de
humildade. Mas é também o Cristo sem pecado ori-
pessoas numa sala e pedíssemos para que fizessem
uma descrição de Cristo, mas que não fosse pareci-
do com aquela tradicional das pinturas, certamente 1 Os principais teólogos desse período foram Scheleierma-
cher, Albrecht Ritschl e Adolf Harnack (Ver Louis Berkhof. Teologia
apareceria um Cristo rico, outro pobre, outro mártir, Sistemática, p. 309310; Stanley J. Grenz & Roger E. Olson. Teologia do
Século XX, p. 43-71).
outro oriental, outro negro, outro “sem terra”, outro

173
ginal, que venceu a morte pela ressurreição e subiu dadosamente, e assim os grãos de areia do tempo
à destra de Deus. Isso nos fala de sua divindade e de foram se enchendo, até que, no momento planejado,
sua glória. As várias facetas de Cristo que as pessoas Deus enviou seu Filho. Não poderia ser diferente, a
têm pintado podem ser inspiradoras para as minorias maior e mais definitiva intervenção de Deus na his-
que se sentem rejeitadas pela sociedade, mas não po- tória do mundo não poderia acontecer de qualquer
dem redimir ninguém. O ser humano não precisa de forma. No contexto da afirmação de Paulo aos Gála-
um mero exemplo, pois já teve demais, e não houve tas, sobre a plenitude do tempo, destaca-se o papel
muita diferença. O ser humano precisa de um Salva- realizado pela lei do Antigo Testamento. Ela foi um
dor. Redenção, somente o Cristo da Bíblia comprou instrumento divino para preparação do mundo para
para seu povo. Por isso, o Cristo da Bíblia é suficiente, a vinda de Jesus.
e somente ele é o verdadeiro.
O Antigo Testamento
O apóstolo Paulo descreveu a vinda de Jesus da se-
guinte forma: “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Segundo a Bíblia Israel foi o povo que Deus escolheu
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido da descendência de Abraão, ao qual estabeleceu na
sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim terra de Canaã, revelando-lhe sua expressa vontade e
de que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl 4.4-5). o culto verdadeiro. Ao contrário do resto do mundo,
Muitas expressões usadas nesse texto ajudam a en- Israel era monoteísta, pois cria num único e supremo
tender quem é Jesus e o que significa a sua vinda. Deus. Não há relatos, em nenhuma cultura do mun-
do antigo, de algum povo com crença semelhante.
A PLENITUDE DOS TEMPOS Através de Israel, Deus queria espalhar a ideia do mo-
noteísmo até aos confins da terra, e para isso, conce-
Os antigos contavam o tempo como um recipiente deu a Israel uma perfeita revelação de seu caráter e de
onde gotejavam os minutos, horas, dias, semanas, sua vontade: a lei.
meses e anos. É possível que Paulo tenha isso em
mente, e segundo ele, quando esse tempo se “en- No sexto século antes de Cristo, o povo de Israel foi
cheu”, Deus enviou seu Filho. Deus esperou o tempo levado cativo para Babilônia. O cativeiro ajudou a
do mundo (chronos) se encher, todavia, não esperou curar a idolatria de Israel, e assim homens como Da-
que o último grão de areia caísse no recipiente do niel e Neemias, e mulheres como a rainha Ester, pu-
tempo de braços cruzados. Ele agiu efetivamente, a deram testemunhar a príncipes e imperadores sobre
fim de preparar o mundo para o nascimento de seu o Deus de Israel. O povo de Israel nunca voltou total-
Filho. Ao contrário do que diz Baillie, não foi o ho- mente para sua terra, apesar do cativeiro ter cessado
mem quem retardou a vinda de Cristo por seu des- após 70 anos, e espalhou-se entre as nações, porém,
preparo,2 mas Deus que preparou o mundo, através sempre guardando e honrando sua religião e sua lei.
dos séculos, para o nascimento de Jesus. A vinda dele Quando Jesus chegou, os judeus haviam dado uma
não foi uma decisão tomada de última hora, como importante colaboração para sua missão em grande
se surpreendentemente o mundo ficasse pronto de parte do mundo. O mundo sabia que existia um povo
uma hora para outra. Deus preparou o mundo cui- que não adorava os deuses e que dizia existir somente
um Deus. Durante o exílio, os judeus desenvolveram
as Sinagogas que eram locais onde adoravam e apren-
2 Donald M. Baillie. Deus Estava em Cristo, p. 169.
diam a lei. A Sinagoga teve grande contribuição para

174
que a mensagem de Jesus fosse proclamada e ouvida. O Antigo Testamento revelou ao mundo a existência
Jesus pregou nas sinagogas e os apóstolos também de um Deus supremo e justo que estabeleceu uma
as usaram largamente para anunciar o Evangelho em lei santa. Essa lei apontava para Cristo, pois demons-
todo o império romano. O mundo tinha consciência trava o padrão exigido por Deus (lei moral), e ao
de uma lei superior, a lei do Deus de Israel. Essa, sem mesmo tempo, o sistema de expiação através do que
dúvida, foi o principal instrumento de preparo do Deus demonstrava sua misericórdia (lei cerimonial).
mundo para a Vinda de Jesus. Portanto, a lei cumpriu seu propósito de mostrar ao
homem seu estado de completa inaptidão para servir
Jesus disse: “Examinais as Escrituras, porque julgais a Deus e indicou a forma de salvação pelo derrama-
ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testifi- mento de sangue, conforme o sistema de sacrifício
cam de mim” (Jo 5.39). Nenhuma única vez o nome vigente no templo demonstrava. Além disso, sabe-se
de Jesus aparece no Antigo Testamento, mas toda sua que Israel desejava ardentemente a vinda do Messias,
vida e ministério estão lá amplamente descritos atra- pois Deus se incumbiu de deixar pistas, por todo o
vés de profecias e “tipos” de Cristo. Chamamos de Antigo Testamento, sobre a vinda de um escolhido
“tipos” de Cristo personagens ou objetos do Antigo que libertaria o povo e o levaria a uma era de paz e
Testamento que, em suas qualidades inerentes, anun- prosperidade. Sem essa crença, Jesus não teria tido o
ciaram a vida e a obra de Jesus. Nos dias de hoje, mui- mesmo impacto em sua vinda. O próprio Jesus disse
tos estudiosos não acreditam nesse relacionamento que sua vinda tinha a ver com o cumprimento dessa
entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento. lei (Mt 5.17).
Pensam que são coisas totalmente distintas e irre-
conciliáveis. É verdade que essa posição não é nova, A cultura grega
como diz Berkouwer, pois já vem desde os dias do
herege Marcião do segundo século que desprezava o Olhando para o mundo daquela época, podemos ver
valor do Antigo Testamento.3 Porém, o crente deve outros modos como Deus aparentemente preparou
ver o Novo Testamento em relação ao Antigo num a vinda de Jesus. A cultura da época foi bastante pro-
relacionamento de promessa e cumprimento. Apesar pícia para a manifestação de Jesus. Após a queda da
do imenso cuidado que se deve ter para não alegori- Babilônia, o próximo império mundial foi o de Ale-
zar4 o Antigo Testamento, é necessário que vejamos xandre o Grande, que espalhou a cultura grega levan-
nele as promessas a respeito de Jesus. Pois de fato, do ao mundo o interesse pela razão, pela meditação
Jesus compreendia o Antigo Testamento, não como e pela pesquisa. Os famosos filósofos da antiguida-
uma obra reservada ao povo judeu e alusivo só à his- de eram na maioria gregos. Quando Jesus nasceu, o
toria de Israel, mas como um livro que, diretamente mundo estava impregnado do tipo de pensamento
diz respeito à sua Pessoa e Obra”.5 que deixava as pessoas curiosas por ouvir algo in-
teressante, e ao mesmo tempo, descontentes com a
mitológica religião grega. Ao ouvir sobre algo mais
3 G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 86.
consistente, o mundo grego acolhia com interesse.
4 Alegoria foi uma forma de interpretação muito comum
feita por alguns pais da igreja, que procuravam o sentido oculto do Percebemos isso pela maneira como as pessoas rece-
texto, sem muita preocupação com o sentido literal. Olhava-se sem- beram Paulo em Atenas (Ver At 17.1621). A maior
pre o lado místico de uma passagem, e assim palavras, frases ou situa-
ções eram interpretadas num sentido que extrapolava totalmente o contribuição, porém, da cultura grega foi sua própria
aspecto literal da passagem bíblica.
língua. No tempo de Jesus, o mundo falava pratica-
5 G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 87.
mente uma só língua, a grega. Isso facilitou, não só

175
a pregação do Evangelho de Jesus Cristo a todos os No plano de Deus, nos dias de Herodes, o mundo
povos através dos Apóstolos, como contribuiu para estava pronto para a vinda do Filho. Por essa razão,
que os ensinamentos de Jesus e dos Apóstolos fos- os anos 1-30 foram os mais plenos que já existiram.
sem registrados na língua que todos pudessem ler. O Nada do que aconteceu antes, mesmo quando os
Novo Testamento foi escrito integralmente em gre- grandes impérios surgiram e desapareceram, mudou
go.6 A disseminação dos escritos neotestamentários a monotonia do tempo quando os pequenos grãos
com isso foi impressionante. de areia caíam um a um. Por isso a vinda do Filho de
Deus tornou os anos 1 a 30, um tempo pleno, mais
A cultura romana que cheio, porque alimentaram de sentido toda a his-
tória da revelação antes e depois deles e, assim, a his-
Embora o mundo adotasse a cultura grega, fazia tem- tória propriamente dita.8 O tempo que Jesus esteve
po que a Grécia não dominava o mundo. O grande aqui foi a grande intervenção de Deus na história, foi
império da época de Jesus, e de praticamente todo o a plenitude dos tempos, pois de fato, “com plenitude
desenvolvimento do cristianismo, foi o Romano. A do tempo não está se falando, apenas, da maturação
organização desse império foi inigualável no mundo de uma determinada questão dentro da grande estru-
antigo. Até hoje sua estrutura política, social, civil e tura da história redentora, mas do cumprimento do
militar é referência. Esta organização política também tempo num sentido absoluto”.9 Aqueles dias tornam
contribuiu bastante para a implantação do cristianis- o resto da história cheia de sentido e expectativa. O
mo. As estradas romanas cortavam todo o império antes e o depois somente têm valor, porque o evento
facilitando a locomoção. Havia também relativa se- Cristo aconteceu.
gurança por causa da Pax Romana que proibia todo
tipo de conflito dentro de seus domínios. Isso ajudou DEUS ENVIOU SEU FILHO
a disseminação do Evangelho. Paulo, como cidadão
romano, tinha acesso livre em praticamente todos os O título “Filho” está intimamente ligado ao conceito
lugares do império. da divindade de Jesus. Uma das coisas que a expres-
são “Deus enviou seu Filho” representa é a própria
Portanto, a Plenitude dos Tempos se refere ao tempo pré-existência do Filho. Isso fazia a criança nascida
quando Deus, em sua soberania, terminou os prepa- em Belém diferente de todas as demais crianças que
rativos para executar o plano da redenção. Essas con- já nasceram nesse mundo. Todas as outras não exis-
jecturas históricas nos ajudam a ver um aspecto da tiam antes de sua concepção, mas Jesus não passou
preparação divina, porém, como diz Hendriksen “só a existir em Belém. Seus dias são eternos, sua vinda
Deus sabe plenamente por que, em seu inescrutável aqui foi tão somente para cumprir uma missão que o
decreto, decidiu que nesse momento específico ter- Pai lhe confiou muito anteriormente. Como diz Ber-
minaria o longo período de tempo (chronos) em que kouwer, “longe de ser uma invenção teológica, a fé na
chegam ao seu final todos os eventos preparatórios”.7 pré-existência de Cristo aparece, através de todo o
NT, como condição decisiva no plano da salvífico”.10
6 Um outro aspecto interessante é que o grego é uma língua
bastante desenvolvida para a antiguidade, com graus de precisão
bastante elevados. Isso contribuiu para a preservação e a integridade 8 Adolf Pohl. Carta aos Gálatas, p. 143.
original da mensagem do Novo Testamento, quando traduzido para
outras línguas. 9 Herman Ridderbos. A Teologia do Apóstolo Paulo, p. 48.

7 William Hendriksen. Gálatas, p. 229-230. 10 G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 134.

176
Pensar que o Logos pudesse ter passado a existir so- 22.8-9), mas Jesus aceitou e até a incentivou, como
mente a partir da encarnação é minar o plano da re- pode ser visto de suas próprias palavras: “Vós me cha-
denção. Quem veio aqui foi o herdeiro do universo, mais o Mestre e o Senhor, e dizeis bem; porque eu o
por esta razão, a morte do Filho de Deus é o maior sou” (Jo 13.13; Ver Mt 14.33; Lc 5.8; 24.52; Jo 4.10;
crime da humanidade. No entanto, paradoxalmente, 20.27-29). Dele é dito em Hebreus 1.6: “E, novamen-
esta morte foi o maior presente de Deus para os ho- te, ao introduzir o Primogênito no mundo, diz: E to-
mens. dos os anjos de Deus o adorem”. Aquele que deve ser
adorado por anjos não pode ser um mero homem. A
Atributos divinos Escritura diz que diante dele todo joelho se dobrará
e toda língua confessará que ele é o Senhor (Fp 2.10-
A divindade de Jesus está muito clara no Novo Tes- 11). Durante seu ministério, várias vezes as pessoas,
tamento. O Novo Testamento aplica uma série de e até seus discípulos, tiveram atitudes de adoração
atributos a Jesus que somente podem ser aplicados perante ele e não foram repreendidos (Mt 8.2; 9.18;
a Deus. O próprio Jesus atribuiu expressões para si 15.25; Mc 5.6; Jo 9.38). O texto mais importante,
mesmo que são conotativamente divinas. Jesus disse nesse sentido é João 20.28, quando Tomé reconhe-
aos Judeus: “Antes que Abraão existisse eu sou” (Jo ceu a divindade de Jesus, chamando-o de “Deus
8.58). Claramente essa é uma referência à sua eterni- meu”. A importância desse texto, em sua estrutura no
dade e somente Deus é eterno. A própria expressão Evangelho de João, é muitas vezes ignorada. R. M.
“eu sou”, dessa passagem, é um eco do que Deus disse Bowman percebeu claramente que: “O Evangelho
a Moisés quando se revelou na sarça ardente: “Eu sou segundo João começa (1.1) e termina (20.28, exce-
o que sou” (Ex 3.14). Outra declaração surpreen- tuando-se o cap. 21, que é um tipo de epílogo) com a
dente de Jesus foi: “Assim como o Pai tem vida em confissão de dois dos discípulos originais de Jesus de
si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si que Jesus Cristo é Deus”.11 E de fato a primeira confis-
mesmo” (Jo 5.26). Ele está falando de uma autono-
são, no primeiro capítulo, é do discípulo que talvez te-
mia com relação à vida, e só Deus pode ter isso. Os
nha a fé mais firme no Cristo Deus (João), enquanto
homens dependem totalmente de Deus para ter vida,
que a última, do capítulo 20, do discípulo mais fraco
pois não têm vida em si mesmos. Jesus disse ter vida
(Tomé). Tomé adorou a Jesus e lhe chamou de “Se-
em si mesmo, como Deus, portanto, ele se equiparou
nhor meu e Deus meu”. E o mais impressionante é
a Deus.
que não há qualquer repreensão de Jesus com relação
ao que Tomé falou. Se Jesus achasse aquilo uma blas-
Jesus disse ainda: “Toda autoridade me foi dada no
fêmia certamente teria tratado de corrigir o discípulo,
céu e na terra” (Mt 28.18), o que é uma referência
assim como Pedro corrigiu Cornélio quando esse o
clara à sua Onipotência. O mesmo pode ser dito de
sua Onipresença, pois disse: “Eis que estou convos- quis adorar (At 10.25-26), e o próprio João, escritor
co todos os dias até à consumação do século” (Mt do livro, foi corrigido pelo anjo, quando quis adorá-lo
28.20). Sua Onisciência, por outro lado, pode ser vis- (Ap 22.8-9). Jesus repreendeu Tomé apenas por sua
ta no fato de que ele conhecia os pensamentos dos incredulidade, mas não por adorá-lo e chamá-lo de
homens (Mt 9.4; 12.25; 22.18; Lc 5.22; 6.8). Deus.

Somente Deus pode ser adorado. Pedro, Paulo e an- 11 Robert M. Bowman Jr. Por Que Devo Crer na Trindade –
Uma Resposta às Testemunhas de Jeová, p. 91.
jos recusaram adoração (At 10.2526; 14.14-15; Ap

177
Somente Deus pode perdoar pecados, e Jesus per- na, também tem uma natureza divina. Ele é Deus.12
doou pecados, como no caso do paralítico que foi
descido pelo telhado diante dele. Marcos relata: Em Tito 2.13, a tradução mais comum do verso é:
“Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, os “Aguardando a bendita esperança e a manifestação da
teus pecados estão perdoados” (Mc 2.5). O mesmo glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus”.
ele fez com a mulher pecadora que lhe ungiu os pés: Claramente o texto chama Jesus de “grande Deus”.
“Então disse à mulher: perdoados são os teus peca- Apesar de que alguns têm tentado traduzir o texto
dos” (Lc 7.48). Aquele que perdoou pecados, que como “do nosso grande Deus e do Salvador Cristo
recebeu adoração, que demonstrou consciência de Jesus”, tentando fazer uma distinção, isso não faz sen-
atributos divinos, com certeza, era muito mais do tido, pois a partícula “do” não se encontra no original,
que um homem. e há apenas um artigo indicando uma única pessoa.
Ainda podemos acrescentar que a manifestação es-
Reconhecido como “Deus” perada é a Segunda Vinda de Jesus e não do Deus Pai.

O Novo Testamento claramente chama Jesus de Em Hebreus 1.8-12, o Pai fala com o Filho e lhe cha-
Deus (theos). Em João 1.1-2, 18, Jesus é chamado de ma de “Deus”. Todo o início desse capítulo descreve
o Verbo de Deus. Esses versos dizem que Jesus era Jesus como “Criador, Sustentador, Dono e Salvador,
o Verbo (Logos) que, desde o princípio, estava com a quem é atribuída adoração pelos habitantes do
Deus e era Deus. A tradução “Novo Mundo” das Tes- céu”.13 Esses atributos somente podem ser de Deus, e,
temunhas de Jeová fez uma pequena modificação no portanto, aqui está mais uma prova da divindade de
texto, afirmando que a palavra theos, no verso primei- Jesus. O mesmo pode ser visto em 2Pedro 1.1, que
ro que é aplicada a Jesus, está sem o artigo definido e deve ser traduzido por: “Simão Pedro, servo e após-
que, portanto, pode e deve ser lida como “um deus”. tolo de Jesus Cristo, aos que conosco obtiveram fé
Desse modo, as Testemunhas de Jeová referem-se a igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Sal-
Jesus como um deus menor do que o Deus Supre- vador Jesus Cristo”. E, em 1João 5.20, embora os uni-
mo. Essa argumentação cria muitos problemas, pois taristas tentem diminuir o impacto desse texto que
há textos na Escritura onde theos é aplicado ao “Deus chama Jesus de “o verdadeiro Deus e a vida eterna”,
Supremo” sem o artigo definido, como por exemplo, afirmando que essa frase não pode se referir a Jesus,
Lucas 20.38: “Ora, Deus não é Deus de mortos, e sim mas ao Pai, permanece a evidência gramatical e con-
de vivos; porque para ele todos vivem” (Ver também textual de que Jesus é o sujeito dessas declarações.
Mc 12.27; Jo 8.54; Fp 2.13; Hb 11.16). Também há Não há base para negar, o Novo Testamento catego-
muitos outros textos na Escritura em que theos apa- ricamente afirma a divindade de Jesus.
rece, no mesmo contexto, tanto com o artigo, como
sem ele, mas referindo-se ao mesmo Deus (Jo 3.2; A divindade de Jesus é um conceito necessário para
a redenção. Ninguém menos do que o Filho poderia
Rm 1.21; 1Ts 1.9; 1Pe 4.10-11).
vir para resgatar o homem. Berkhof lista três razões
Em Romanos 9.5, Jesus é chamado de “Deus bendito pelas quais o Messias precisava ser divino: “Era ne-
para todo o sempre”. Paulo está dizendo que, embo-
ra Cristo descenda humanamente do povo Judeu, e, 12 Ver William Hendriksen. Romanos, p. 347
portanto é um judeu, ele é também muito mais do 13 Robert M. Bowman Jr. Por Que Devo Crer na Trindade –
Uma Resposta às Testemunhas de Jeová, p. 101.
que um judeu. Ainda que tenha uma natureza huma-

178
cessário que (1) ele pudesse apresentar um sacrifício Deus enviou seu Filho, e ele nasceu da mulher.
de valor infinito e prestar perfeita obediência à lei de
Deus; (2) ele pudesse sofrer a ira de Deus redentora- Nascimento Virginal
mente, isto é, para livrar outros da maldição da lei; e
(3) ele pudesse aplicar os frutos da Sua obra consu- Desde o início a igreja sustentou que Jesus havia nas-
mada aos que o aceitassem pela fé”.14 Sua divindade, cido sem a cooperação do homem. Recentemente
além de evidente no Novo Testamento, é absoluta- essa doutrina tem sido atacada, não por falta de base
mente necessária para a redenção. bíblica, mas porque contraria os princípios moder-
nos e anti sobrenaturalistas da ciência e da filosofia.
NASCIDO DA MULHER A Bíblia afirma explicitamente que Maria era virgem
quando Jesus foi concebido: “Ora, o nascimento de
Se Jesus é o Filho, o que aponta para sua divindade, Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, des-
por outro lado Paulo diz que ele nasceu da mulher, posada com José, sem que tivessem antes coabitado,
o que enfatiza sua humanidade. Não somente Jesus achou-se grávida pelo Espírito Santo” (Mt 1.18).
veio ao mundo realizar a missão de salvar o homem, José, o esposo prometido, ao tomar conhecimento
como a de tornar-se ele próprio um homem. Tam- da gravidez quis abandoná-la, mas foi aconselhado
bém isso estava no plano de Deus. Paulo aponta pelo anjo a não fazer isso. O anjo lhe disse: “José, filho
para isso com a expressão “nascido da mulher”. A de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, por-
expressão, por sua vez, nos conduz ao maior misté- que o que nela foi gerado é do Espírito Santo” (Mt
rio desta vida. Por séculos os teólogos têm debatido 1.20). E confirmou: “Ora, tudo isto aconteceu para
acerca do mistério cristológico e não têm entendido que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por
suficientemente a essência desse Deus que se fez intermédio do profeta: Eis que a virgem conceberá
homem. Esta, porém, é a essência do cristianismo: e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome
Deus adentrou ao tempo e se fez um de nós. Ao vir de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)” (Mt
para este mundo, Jesus entrou pela porta comum 1.22-23). Um dos motivos do nascimento virginal de
pela qual todos entram, nascendo da mulher. O autor Cristo, segundo o anjo, era justamente para cumprir
do quarto Evangelho diz: “O verbo se fez carne” (Jo a profecia de Isaías. Desde aquele momento José aco-
1.14). Tudo isso nos aponta para a real e específica lheu Maria, porém, não teve relações sexuais com ela
encarnação de Cristo, que é o maior de todos os mis- até que Jesus nascesse (Mt 1.25).
térios da teologia e da própria história. Ele não apenas
parecia um homem, ele foi um homem em todos os Lucas acrescenta alguns detalhes importantes à nar-
sentidos. Não poderia ser diferente, pois se ele veio rativa do nascimento virginal. Ele diz que quando o
salvar os homens, precisava ser também um homem, anjo Gabriel anunciou a Maria que ela seria a mãe
pois se somente Deus poderia oferecer um sacrifício do Messias, Maria questionou: “Como será isto, pois
de valor infinito, somente um homem poderia pagar não tenho relação com homem algum?” (Lc 1.34).
como homem. O adentrar do divino na esfera do hu- A resposta do anjo foi: “Descerá sobre ti o Espírito
mano nos fala da junção do eterno com o temporal, Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua
do especial com o comum. Na plenitude dos tempos, sombra; por isso, também o ente santo que há de nas-
cer será chamado Filho de Deus” (Lc 1.35). A des-
cida do Espírito Santo sobre Maria, fazendo o poder
14 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 319.
do Altíssimo envolvê-la, se parece muito com a des-

179
crição do primeiro ato criador de Deus em Gênesis bo (Logos), que João disse existir desde o princípio,
1.1-2, quando o Espírito de Deus “pairava” sobre as num dado momento da história, na plenitude, veio
águas. Deus usou o mesmo poder diretamente sobre aqui fazer sua habitação. João diz: “E o Verbo se fez
Maria, e isso fez de Jesus um “ente santo”, ou seja, al- carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verda-
guém sem pecado. O nascimento de Jesus foi um ato de, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do
criador direto de Deus, o que fazia do Jesus homem, Pai” (Jo 1.14).
um ser especial.15
O homem Jesus não foi constituído de uma nova na-
A grande consequência de Jesus ter sido concebido tureza humana, ele herdou a natureza humana com-
pelo Espírito Santo, no ventre da virgem Maria, é pleta de sua mãe, por isso a Bíblia diz que é o “nascido
que não foi herdeiro do pecado original. Não é o fato da mulher” (Gl 4.4). Mateus começa seu Evangelho
em si de Maria ter sido virgem que o livra do pecado com a seguinte declaração: “Livro da genealogia de
original, pois o relacionamento sexual não é o origi- Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1.1).
nador desse pecado. O que garante a impecabilidade Ele não poderia ser descendente de Davi e de Abraão
original de Cristo é a concepção pelo Espírito Santo. se tivesse recebido uma natureza inteiramente nova.
Não sendo um filho de Adão, Jesus não estava incluí- Ele possuía a natureza humana normal e comum, ex-
do na Aliança das Obras e, portanto, não foi incluído ceto pela diferença de ter sido concebido sem peca-
na disseminação do pecado. do, e de ser, ao mesmo tempo, Deus.

A Humanidade de Jesus Jesus sentia sede, fome, cansaço, tristeza, e muitos ou-
tros tipos de sentimentos, necessidades e limitações
Hoje poucos discutem a humanidade de Jesus, pois que são próprios de um homem. É verdade que ele
é sua divindade que é posta em xeque. Na verdade, possuía o poder de fazer o que quisesse conforme
há até mesmo uma ênfase exagerada em sua humani- sua divindade lhe conferia, mas isso não anulava suas
dade, uma tentativa de torná-lo um homem comum, condições humanas. Após os quarenta dias de jejum
com vitórias e fracassos, erros e acertos. Querem fa- no deserto, a Bíblia simplesmente diz que Jesus teve
zê-lo um homem como outro qualquer, que se dife- fome (Mt 4.2). Durante sua viagem à Galileia, João
renciava apenas pela consciência esclarecida, desejo o descreve como um viajante cansado que se apro-
de liberdade e de justiça. Berkouwer nota nessa ênfa- xima dum poço com sede (Jo 4.6-8). Em outra oca-
se humanística, uma tentativa de elevar o ego do ser sião, o vemos profundamente adormecido na popa
humano. Ele diz: “Porventura não há um motivo hu- da embarcação durante uma tempestade no mar, o
manístico secreto, o desejo de fazer surgir a salvação que certamente denotava esgotamento físico (Mc
da própria natureza humana?”16 A consideração da 4.36-41). A maior prova de suas limitações humanas,
humanidade de Jesus não deve seguir qualquer outra e que comprovam sua humanidade, foi sua própria
influência senão a da sinceridade em relação à Escri-
morte. Ele realmente morreu, tendo padecido dores
tura. Pois, se a Escritura atesta a divindade de Jesus
e privações humanas antes e durante a crucificação
não é diferente em relação a sua humanidade. O Ver-
(Mt 26.38; Jo 19.28).

15 Ver R.C. Sproul. Doutrinas Centrais da Fé Cristã, Livro I, p. NASCIDO SOB A LEI
79.

16 G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 174. Podemos dizer que Jesus veio a esse mundo por cau-

180
sa da lei. A lei condena o pecador, e Jesus veio para A tentação de Jesus
salvar o pecador. Para isso, era necessário que ele ob-
servasse todos os mandamentos e vivesse em abso- A divindade de Jesus não tornou fácil a tarefa de cum-
luta santidade. Só então poderia oferecer a sua vida prir a lei, nem anulou toda possibilidade de tentação.
como um sacrifício no lugar dos transgressores da lei. O autor aos Hebreus diz: “Porque não temos sumo
sacerdote que não possa compadecer-se das nossas
O cumprimento da lei fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à
nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15). Esse
Jesus deixou bem claro que não estava revogando texto diz que Jesus foi tentado “em todas as coisas, à
a lei e nem mesmo modificando-a com sua vinda. nossa semelhança”, ou seja, foi submetido a todo tipo
Suas palavras foram inequívocas: “Não penseis que de testes nessa vida, conforme qualquer ser humano
vim revogar a lei ou os Profetas; não vim para revo- é submetido. Isso era absolutamente necessário a fim
gar, vim para cumprir” (Mt 5.17). A pregação e o de que cumprisse sua missão, que não era apenas a de
ministério de Jesus sempre estiveram em total acor- sofrer no lugar dos homens, mas também de obede-
do com os preceitos da lei e dos Profetas. Jesus não cer no lugar deles. A Bíblia chama Jesus de o “Segun-
do Adão” (1Co 15.22,45). A grande característica do
era um revolucionário como muitos imaginavam,
Primeiro Adão era representar a humanidade no tes-
pelo menos não nesse sentido. A lei tinha destaque
te que enfrentou e do qual saiu reprovado, e conjun-
e função especial em seu ministério. Isso não quer
tamente toda a humanidade. O Segundo Adão tam-
dizer que Jesus pensasse, como muitos fariseus, que
bém foi submetido a teste, porém saiu-se vencedor, e
a rígida observância da lei era a única forma de salva- assim concede sua vitória a todo o seu povo.
ção existente. Jesus sabia muito bem que os homens
não conseguem cumprir integralmente essa lei e sa- Um questionamento levantado é se a tentação de Je-
bia, também, que o próprio Deus havia estabelecido sus teria sido mesmo real. Muitos teólogos defendem
desde o início um sistema de sacrifícios, que fazia ardorosamente que Jesus não tinha a menor possibi-
propiciação pelos pecados cometidos. Ele tanto sabia lidade de pecar, e que, por conseguinte, sua tentação
disso que seria o próprio sacrifício que consumaria não podia ser real. Se essa posição estiver correta, te-
todo aquele sistema (Jo 1.29). É nesse sentido inclu- ríamos que dizer que a tentação de Cristo não passou
sive que devemos entender a expressão: “Não vim de uma encenação. Alguns defendem a ideia de que
para revogar, vim para cumprir”. Ele veio cumprir a a humanidade de Cristo podia pecar, mas como ela
lei tanto ativa quanto passivamente. Ativa no sentido está ligada à divindade de Cristo, que não pode pe-
de que obedeceu a todos e a cada um de seus manda- car, então, Jesus não pecaria. Sproul se inclina a favor
mentos, estatutos e princípios. Passiva no sentido de da possibilidade humana de Cristo pecar. Ele diz: “A
que preencheu a exigência penal da lei ao ser execu- tentação de Cristo não foi uma peça de final previsto,
tado como um malfeitor no lugar dos homens. Por uma imitação vazia. Toda a força do Inferno estava
isso ele disse que nem um “i” ou um “til” passaria até mobilizada contra a natureza humana de Jesus. Em
que tudo fosse cumprido. Se o amor de Deus foi o sua natureza humana, ele sofreu sob o peso da fome,
motivo maior pelo qual Jesus foi enviado ao mundo da solidão e todos os outros perigos do deserto”.17 A
(Jo 3.16), no mesmo nível está o zelo pela lei.
17 R.C. Sproul. A Glória de Cristo, p. 67. Ver Também Boa
Pergunta, p. 34.

181
declaração é interessante, mas isso quer dizer que ha- tório perdido, para reconduzir o mundo ao propósito
via alguma chance do propósito de Deus ir por água de Deus. Com isso, não se pretende dizer que até a
abaixo? Talvez, devêssemos dizer o seguinte: Cristo vinda de Jesus, Deus ficou sem testemunho ou ação
tinha e não tinha a possibilidade de pecar em sua pes- no mundo. Todas as profecias, tipos e manifestações
soa integral.18 Ele tinha a possibilidade, porque era de Deus ainda no Antigo Testamento, já apontavam
humano e foi submetido a um teste real, e não a uma para a vinda de seu Filho, coisa essa que nem sempre
encenação. Mas Cristo não pecaria, e isso por três os estudiosos da lei conseguiam identificar. A vinda
razões: 1) Não tinha uma natureza inclinada para o de Jesus é a concretização do plano divino estabeleci-
pecado. 2) O Espírito Santo o capacitava a não pecar. do desde a fundação do mundo, assegurado ainda no
3) Não estava no plano de Deus que ele pecasse. Esse Éden (Gn 3.15) e manifestado em Belém da Judeia
último ponto é, sem dúvida, decisivo, como nos lem- no tempo do Imperador César Augusto. O ato do Pai
bra Berkouwer: em enviar seu Filho é o desfecho da história da gra-
ça, é o supremo ato de misericórdia, é a manifestação
Não podia ser de outro modo, não havia outro ca- mais abundante de amor por sua criação (Jo 3.16), e
minho para evitar a paixão. Mistério de santidade por seu povo (Rm 5.8).
e de misericórdia! Cristo não podia cair na tenta-
ção, nem de fato caiu: não por ter-lhe faltado liber- De acordo com Paulo a grande missão do Filho
dade, mas precisamente por causa de sua liberda- que veio na Plenitude dos tempos foi “resgatar os
de, que era uma liberdade para as coisas de Deus, que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a
para os planos Divinos de salvação e libertação dos adoção de filhos” (Gl 4.5). Ele expressa o benefício
homens.19 concedido de uma forma negativa: “Resgate”, e outra
positiva: “Adoção”. O resgate da lei tinha a ver com o
PARA RESGATAR assumir a maldição do ser humano (Gn 3.17). Como
o próprio Paulo diz: “Cristo nos resgatou da maldição
Paulo disse que Jesus veio ao mundo porque foi en- da lei, fazendo-se ele próprio maldito em nosso lugar,
viado. Isso significa que veio aqui com uma missão. porque está escrito: maldito todo aquele que for pen-
A missão de Jesus é resolver o estado caótico em que durado em madeiro” (Gl 3.13). Ao mesmo tempo
se encontra o mundo. Com a queda e a entrada do em que fomos livrados da escravidão por esse ato de
pecado, o mundo se tornou “território” usurpado por Cristo, também fomos elevados à categoria de filhos
Satanás.20 O homem corrompido pelo pecado, desti- por adoção. Tanto o resgate de escravos, como a ado-
tuído de qualquer capacidade de mudar sua situação, ção de filhos são aspectos legais comuns no tempo
marcha para a auto destruição numa vida de comple- do Apóstolo Paulo. O que a adoção sugere é a maio-
ta alienação de Deus. A vinda de Jesus é a grande in- ridade do cristão, que em Jesus deixa de ser escravo
tervenção de Deus na história, para recuperar o terri- dos rudimentos do mundo, e passa a desfrutar da ver-
dadeira liberdade de filho, em todos os seus direitos.

18 Essa resposta parece estranha, mas nós também dizemos Enviando Jesus ao mundo, Deus, não só resgatou o
que ele tinha e não tinha onisciência, pois ao mesmo tempo em que
conhecia os pensamentos dos homens, não sabia a data da sua vinda homem da escravidão da lei e do mundo e o elevou
19 G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 195. à categoria de filho, como deu plena garantia disso,
20 Não que Satanás seja o Senhor do Planeta, mas é o enviando o Espírito Santo. Paulo diz: “E, porque vós
Senhor do mundo decaído.
sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espíri-

182
to de seu Filho, que clama: Aba, Pai! De sorte que já ele mesmo é o caminho.21
não és escravo, porém filho; e, sendo filho, também
herdeiro por Deus” (Gl 4.6-7). A certidão de nasci- Às vezes as pessoas se dizem cristãs, porque fazem
mento do filho de Deus é o Espírito Santo, que habi- certas obras ou têm certos comportamentos tipica-
ta em seu interior e que clama: “Aba, Pai”. Esta é uma mente cristãos, mas isto pode ser um equívoco. Nin-
expressão íntima de um filho para seu pai. O Espírito guém é cristão apenas por algo que faz ou deixa de
Santo, também chamado por Paulo de “penhor da fazer, e sim por sua postura em relação a Jesus. Não
somos salvos pelos ensinos de Jesus, somos salvos
nossa herança” (Ef 1.14), é a garantia de que somos
por Jesus. De certa forma, ele nunca pretendeu fun-
herdeiros de Deus e que certamente receberemos a
dar realmente uma religião, a não ser que entenda-
herança. Portanto, Jesus é o Filho de Deus, que nas-
mos que esta religião é ele próprio.
ceu da mulher, cumpriu a lei e resgatou o seu povo.
Esse é o verdadeiro Jesus histórico. Por causa de sua singularidade, Jesus é o persona-
gem mais debatido em toda a história do mundo.
O MILAGRE DO ENTENDIMENTO Ninguém é como ele, amado ou odiado, adorado ou
profanado. Uma coisa é certa, ele mexe com todos.
O impacto histórico de Cristo é inigualável. Toda Há, desde aqueles que lutam para transformá-lo num
uma civilização foi construída sobre as bases do cris- simples mito da fé, como os que desejam encontrar
tianismo. O mundo tem uma dívida impagável com suas raízes históricas para provar apenas sua histori-
o homem de Nazaré mais do que com qualquer líder cidade como um homem comum. Da mesma forma,
religioso. Muitos líderes já passaram por este mundo há aqueles que desejam demonstrar que ele não pas-
como Buda, Maomé, Confúcio, mas nenhum deles sa de uma grande fraude. No Brasil, algumas revistas,
causou tanto impacto na história quanto Jesus. Além como a Super Interessante, por exemplo, têm atacado
disso, dá para imaginar um budismo sem Buda e até sistematicamente a credibilidade do registro bíblico
um islamismo sem Maomé, e muitas outras religiões sobre Jesus. Porém, têm feito isso sempre de forma ir-
também passariam muito bem sem seus fundadores, responsável, sem provas e com teorias bastante espe-
pois não dependem deles, e sim dos ensinos deles. culativas e superadas. O que permanece é que todos
Qualquer um poderia ser o fundador do budismo ou se importam com ele. O curioso é que, enquanto os
do islamismo, bastaria ensinar certas doutrinas, mas mais eruditos e capacitados pesquisadores se calam
o cristianismo não existe sem Jesus. Cristo é o Cris- ou falam demais perante o mistério de sua pessoa,
tianismo, como diz Bavinck: pessoas simples têm a coragem de dizer: Eu o conhe-
ço, ele é o Filho de Deus, o meu Salvador. Até aos dias
Ele não foi o fundador do Cristianismo em um de hoje, o problema ainda é o mesmo que Jesus já en-
sentido usual, ele é o Cristo, o que foi enviado pelo frentou em seus dias, quando questionou seus discí-
pulos sobre a opinião do povo e deles próprios sobre
Pai e que fundou Seu reino sobre a terra e agora
sua pessoa. Ele lhes perguntou: "Quem dizeis que eu
expande-o até o fim dos tempos. Cristo é o próprio
sou?" (Mt 16.15). Mateus relata o que os discípu-
Cristianismo. Ele não está fora, ele está dentro do
los responderam: "Uns dizem João Batista; outros;
Cristianismo. Sem Seu nome, pessoa e obra, não
há Cristianismo. Em outras palavras, Cristo não é
21 Herman Bavinck. Teologia Sistemática, p. 311.
aquele que aponta o caminho para o Cristianismo,

183
Elias; outros: Jeremias, ou algum dos profetas" (Mt conforme a realidade dele".22 A resposta de Pedro é
16.14). A dúvida sempre pairou sobre a verdadeira a única digna de aprovação: "Tu és o Cristo o Filho
identidade do homem de Nazaré. Os mesmos con- do Deus vivo (Mt 16.16). Em seguida Jesus revelou
ceitos desencontrados vistos no seu tempo podem a verdadeira origem daquela resposta: "Não foi car-
ser vistos hoje, nas mais diversas áreas da teologia, ne ou sangue quem to revelou, mas meu Pai que está
das ciências naturais ou dos conceitos populares. No nos céus" (Mt 16.17). Entender quem é Jesus não é
texto de Mateus o verdadeiro interesse de Jesus não é coisa que se consiga seguindo simplesmente pistas
pela opinião do povo, mas pela opinião do "seu" povo. racionais. Entender Jesus é um milagre concedido
O máximo que lhe interessou a opinião dos outros, somente ao povo de Deus. É um dom de Deus, algo
foi com o intuito de fazer seus discípulos pensarem como um ato de conceder visão ao cego. O mundo
sobre o assunto. A pergunta que realmente importa nunca entenderá realmente quem é Jesus, mas seus
é: "Mas vós, quem dizeis que eu sou?" (Mt 16.15). discípulos sempre sabem, não por algo de si mesmos,
Nas palavras de Berkouwer, "com esta pergunta Cris- e sim por esse tremendo testemunho interno do Es-
to não espera ouvir, ao lado dos múltiplos conceitos pírito Santo que os leva a proclamar sem medo: Tu
que correm a seu respeito, mais uma opinião à altura és o Cristo, o Filho do Deus Vivo, ou simplesmente:
das demais; pretende provocar uma decisão de outra Jesus, o meu salvador.
índole, existencial, diretamente correlata com a ver-
dade vista em sua Pessoa; quer uma resposta que su-
pere toda consideração teórica, resposta real e única, 22 G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 12.

184
25. AS NATUREZAS DO REDENTOR

A oração mais popular do catolicismo diz: “Santa nece”.1 É na absoluta união das naturezas na pessoa
Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores”. Mui- do Redentor que repousa a nossa confiança de que
tos protestantes discordam desse título concedido Deus e o homem podem ter paz.
à Maria. Entendem que ela não pode ser a Mãe de
Deus, uma vez que Deus existia antes dela. Para o O GRANDE MISTÉRIO DA TEOLOGIA
catolicismo, pelo fato de Maria ter dado à luz Jesus,
Nenhum outro assunto (exceto a Trindade) é tão
e sendo Jesus Deus, então, ela é também a Mãe de complexo e extrapola tanto a capacidade da razão
Deus. Esta discussão levanta outra que diz respeito humana do que o assunto que se refere à Encarnação
à pessoa de Jesus, sobre como se relacionam as duas de Cristo. De certo modo isso é natural, afinal esta-
naturezas (humana e divina) na pessoa de Cristo. Só mos tratando, como já dissemos, do acontecimento
podemos responder à pergunta se Deus tem mãe, central e mais decisivo da história do mundo, a oca-
após entendermos se Jesus é uma pessoa única, ou sião em que o Deus eterno adentrou o mundo dos
se há nele duas pessoas. Apesar desse assunto pare- homens, ou nas palavras de João, a ocasião em que
cer “teológico” demais, e, talvez muitos o considerem “o Verbo se fez carne” (Jo 1.14). Paulo reconhece o
aparentemente, sem muita importância, o fato é que mistério do acontecimento ao escrever: “Evidente-
mente, grande é o mistério da piedade: Aquele que
as aparências enganam. Esse é um dos assuntos mais
foi manifestado na carne foi justificado em espírito,
importantes para a fé cristã. Redenção só é possí-
contemplado por anjos, pregado entre os gentios, cri-
vel, porque, na pessoa de Cristo há duas naturezas: do no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16). Esse
a humana e a divina. O sacrifício dele só tem valor, texto é considerado um fragmento de algum hino
porque ambos os aspectos estão presentes. Jesus veio primitivo, uma espécie de credo ou confissão de fé
para transpor o abismo entre Deus e os homens. Esse dos primeiros cristãos. Interessante é que Paulo usa
abismo foi transposto em sua própria pessoa, pois a expressão “evidentemente”, que dá uma ideia de
mesmo que Jesus fosse Deus e homem ao mesmo
tempo, mas se as duas naturezas não fossem unidas, 1 Millard J. Erickson. Introdução à Teologia Sistemática, p.
300.
então, “mesmo que diminuído, o abismo perma-

185
“consentimento comum”,2 demonstrando que havia sa que, mesmo nos pronunciamentos positivos dos
um reconhecimento entre os crentes, de que estavam concílios e dos credos, nunca pretendeu superar o
lidando com um mistério, “o mistério da piedade”. A mistério nem dar-lhe uma interpretação racional.
primeira declaração do mistério envolve justamente a Todavia, refugiar-se por detrás do mistério não
encarnação, ou “aquele que foi manifestado na carne”. pode satisfazer; fechar a porta ao racionalismo
As seis declarações de Paulo no versículo demons- não significa silenciar o que o próprio Deus revelou,
tram um estilo de poesia muito comum no mundo nem subestimar os dados escriturísticos relativos a
hebreu, o quiasmo.3 Podemos ver um contraste cla- Cristo, embora sejam supra racional.4
ro e constante entre sua humanidade e divindade a
cada declaração. A primeira declaração aponta para a Calvino compreendia bem esta tensão. Depois de
terra: “Manifestado na carne”. As duas seguintes para advertir contra a vaidade especulativa nas coisas da fé
sua exaltação celeste: “Justificado em espírito” e “con- e lembrar a limitação de nosso entendimento, ele fala
templado por anjos”. Em seguida duas que apontam contra a preguiça de quem negligencia aquilo que foi
novamente para a terra: “Pregado entre os gentios” e revelado.5 A encarnação de Cristo é um grande mis-
“crido no mundo”. A última aponta novamente para a tério para todos nós, mas ela está revelada na Bíblia,
exaltação celeste: “Recebido na glória”. Há claramen- portanto é nossa obrigação e privilégio estudar sobre
te um jogo poético de palavras, e o objetivo é destacar ela.
a divindade e a humanidade de Jesus, sua humilha-
ção e sua glória, numa íntima relação, sem perder a O CREDO DE CALCEDÔNIA
ideia do mistério da encarnação. É justamente esse
relacionamento entre o divino e o humano em Jesus Desde o início, a igreja se preocupou em tomar as
que compõe o mistério. decisões importantes através de Concílios. A origem
dessa prática é Atos 15.6 Os Concílios eram convo-
De certa forma, teologia é uma ciência que se esfor- cados para solucionar problemas teológicos na igreja.
ça por adentrar o mistério. Porém, devemos sempre O Concílio de Calcedônia foi convocado para solu-
lembrar de nossas limitações, especialmente ao lidar cionar o impasse cristológico, ou seja, a questão do
com a grandeza daquele que é o próprio Deus. Por entendimento a respeito das duas naturezas de Cris-
outro lado, é muito importante que mantenhamos to. Nesse Concílio, em 451, foi formulada principal
uma visão equilibrada ao tratar do assunto, pois declaração feita até hoje sobre a pessoa de Cristo. Em
quando falamos de “mistério”, ou mesmo quando a geral, os estudiosos concordam que, de lá para cá,
Bíblia o faz, a ideia não é colocar uma placa dizendo pouca coisa foi acrescentada às definições daquele
“mantenha distância”. Berkouwer é muito útil nesse concílio. Naquela época, a igreja lutava com dois pro-
ponto: blemas internos: O “nestorianismo” e o “eutiquianis-
mo”. O primeiro, o “nestorianismo”, era a concepção
Quando a igreja proclama a santidade do mistério,
ela declara a impossibilidade de elucidar o proble-
4 G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 248.
ma mediante o raciocínio e, ainda mais, ela confes-
5 João Calvino. As Institutas, (III.21.1-3). Ver G. C. Berkouwer.
A Pessoa de Cristo, p. 250.

2 Ver J.N.D. Kelly. I e II Timóteo e Tito, p. 89. 6 Atos 15 narra a primeira vez em que a igreja se reuniu em
Concílio. Os Apóstolos e Presbíteros se reuniram em Jerusalém para
3 Ver William Hendriksen. 1 y 2 Timoteo y Tito, p. 158-162. tratar da questão da circuncisão dos gentios.

186
de que em Cristo havia duas naturezas separadas, a O credo confirma que Jesus é “verdadeiro Deus e ver-
divina e a humana. Assim, o Deus Cristo e o Homem dadeiro homem”. Também declara que ele tem “alma
Cristo eram aspectos separados em Jesus. Certas coi- racional e corpo”. Quanto à sua pessoa é enfático em
sas ele experimentava como homem e certas coisas dizer que é “uma só pessoa”, porém “duas naturezas
como Deus. Já o “eutiquianismo” defendia o “mono- sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem sepa-
fisismo”, ou seja, que Jesus tinha apenas uma nature- ração”. De acordo com o Credo, em Jesus não há duas
za a partir da mistura entre o homem e o Deus. Era pessoas, a humana e a divina, há uma só pessoa, mas
como se, em Jesus existisse uma “terceira natureza”, há duas naturezas que, se por um lado não estão sepa-
diferente da humana e da divina, formada a partir da radas, também não estão misturadas.
mistura dessas duas. O Credo formulado no Concí-
lio de Calcedônia rejeitava ambas as posições: A expressão mais polêmica do credo é a que chama
Maria de “Mãe de Deus”. É uma expressão anterior
Portanto, em harmonia com os santos pais, todos ao credo, que um homem chamado Nestório, já vi-
nós, unânimes, ensinamos que devemos confessar nha combatendo numa série de sermões proferidos
que nosso Senhor Jesus Cristo é o mesmo e único em 428.8 Essa fórmula seria usada pouco depois pelo
Filho, o mesmo perfeito na Divindade e o mesmo Concílio de Éfeso (431), alcunhada por Cirilo de
perfeito na humanidade, verdadeiramente Deus Alexandria. O Concílio de Éfeso utilizou essa expres-
e verdadeiramente homem, o mesmo com uma são, não como uma atribuição de majestade à Maria,
alma racional e um corpo, consubstancial ao Pai mas sim, como reconhecimento de que, quem dela
na Divindade e consubstancial a nós na humani- nasceu, por obra do Espírito Santo, era o Filho de
dade, semelhante a nós em todas as coisas, exceto Deus, o Deus encarnado desde à concepção. Nestó-
no pecado; gerado do Pai antes das eras quanto à rio, por sua vez – fugindo do que considerava o ex-
Sua Divindade, e, nos últimos dias, por causa de tremo oposto, que dizia ser Maria “mãe do homem”
nós e de nossa salvação, o mesmo gerado da Vir- (anthropotoko)9 – entendia que a expressão correta
gem Maria, a Mãe de Deus (theotoko) quanto à seria “mãe de Cristo” (Cristotoko), por considerar
Sua humanidade; o mesmo e único Cristo, Filho, distintas as qualidades da divindade e da humani-
Senhor, Unigênito, conhecido em duas naturezas dade. No entendimento dos participantes daquele
sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem se- Concílio (Calcedônia), pelo fato de que em Jesus
paração, sendo a diferença das naturezas de modo não há duas pessoas, mas uma só, Maria pode ser
algum anulada por causa da união, mas sendo a chamada de mãe de Deus. Ela é a mãe da natureza
propriedade de cada natureza preservada e reuni- humana de Jesus que juntamente com a natureza
da em uma só pessoa e em uma só subsistência, não divina compõe a Pessoa única e indivisível de Jesus
separado ou divido em duas pessoas, mas sendo o Cristo. Voltaremos a falar disso mais adiante.
mesmo e único Filho, Unigênito, Palavra divina, o
Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas do passa- No século XIX, uma nova heresia surgiu como uma
do e o próprio Jesus Cristo nos ensinaram a respei- tentativa de explicar a encarnação. Foi a teoria da
to dEle e o credo de nossos Pais transmitiu.7
8 Ver H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: EHTIC, III, p. 18.

7 Extraído de J.N.D. Kelly. Doutrinas Centrais da Fé Cristã, p. 9 Ver Lorenzo Perrone. De Niceia (325) a Calcedônia (451):
256. In: Giuseppe Alberingo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 74.

187
Kenosis (do verbo Kenoo: esvaziar). Usando como Paulo fala que nossa salvação foi possível porque
base o texto de Filipenses 2.7, que fala que ele se es- Deus enviou “o seu próprio Filho em semelhança de
vaziou, argumenta-se que ele se esvaziou de sua pró- carne pecaminosa” (Rm 8.3). E a mesma ênfase pode
pria divindade. Ele teria deixado a divindade no céu ser vista nas palavras de Paulo sobre a descendência
e se tornado um homem. Assim ele não seria simul- de Cristo em relação aos Patriarcas: “Deles descende
taneamente Deus e homem, mas sucessivamente. o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus
O problema dessa teoria é que desconsidera todos bendito para todo o sempre. Amém!” (Rm 9.5). Esse
os elementos bíblicos que mostram a divindade e a texto fala da natureza humana e divina de Jesus como
humanidade presentes em Jesus. Nem mesmo a in- uma só pessoa. Ele é, ao mesmo tempo, o eterno Fi-
terpretação de Filipenses 2.7 está correta, pois nesse lho e o homem que tem uma descendência humana.
texto Paulo não diz que Jesus se esvaziou da sua di- Não há distinções.
vindade, mas dos seus direitos como Deus.
Um dos textos que deixam mais explícita a ideia de
BASE BÍBLICA DA UNIPERSONALIDA- que Jesus é visto como uma só pessoa é Hebreus
DE 2.14: “Visto, pois, que os filhos têm participação co-
mum de carne e sangue, destes também ele, igual-
Por mais que as decisões dos Concílios sejam im- mente, participou, para que, por sua morte, destruís-
portantes, somente a Bíblia pode ser a palavra final se aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo”.
em assuntos teológicos. Precisamos ver pela Bíblia a Jesus, que é Deus, participou da carne e do sangue
maneira como a humanidade e a divindade de Jesus como todos os demais homens, portanto é inegável,
se relacionam. A primeira coisa que notamos é que a ele é uma só pessoa, porém, tem duas naturezas, até
Bíblia não faz distinções entre a humanidade e a di- porque esses textos demonstram que ele é Deus e
vindade de Jesus, como se fossem pessoas distintas. também é homem.
Para a Bíblia há só uma pessoa. Há muitos textos que
comprovam isso. Paulo, falando da promessa de Deus Nos textos a seguir, acontece uma aparente inversão
com relação ao Evangelho disse: “Com respeito a seu de atributos. Às vezes Jesus é tratado como homem,
Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência mas lhe são atribuídas coisas da divindade e vice-ver-
de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, sa. Isso nos mostra como a divindade e a humanidade
segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos não são aspectos que devem ser vistos separadamen-
mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1.3- te. Elas estão unidas, formando uma única pessoa,
4). Nesse texto, Paulo se refere a Jesus como o Filho mas não devemos pensar que sejam misturadas.
de Deus, e ao mesmo tempo, como o descendente
humano de Davi. Homem e Deus estão unidos na Há momentos que os atributos de uma natureza são
pessoa do Redentor. atribuídos a Jesus enquanto ele é tratado pelo nome
da outra pessoa. Aos presbíteros de Éfeso Paulo disse:
O mesmo pode ser visto em Gálatas 4.4, que já abor- “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o
damos anteriormente: “Vindo, porém, a plenitude Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastorear-
do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, des a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu
nascido sob a lei”. O Filho de Deus foi enviado e nas- próprio sangue”. (At 20.28). Ele está falando de Jesus,
ceu da mulher, tanto sua divindade quanto humani- e trata Jesus como Deus, mas diz que comprou a igreja
dade fazem parte da pessoa única de Jesus de Nazaré. com sangue. O sangue que seria próprio do homem

188
é atribuído a Deus. Ele não está fazendo distinção na estranho. Sempre que usamos analogias, corremos o
pessoa de Cristo, antes a está considerando uma pes- risco de esconder mais do que iluminar. Entendendo
soa integral: humana e divina. Da mesma forma ele o risco, nos atrevemos a falar de duas analogias que
se dirige Coríntios: “Sabedoria essa que nenhum dos podem lançar alguma luz sobre o assunto. A primeira
poderosos deste século conheceu; porque, se a tives- é a da alma humana e a do corpo humano.11 No ho-
sem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor mem há duas substâncias, a material e a espiritual que
da glória” (1Co 2.8). Paulo pôde dizer que o Senhor estão unidas, mas não misturadas. O corpo influencia
da glória foi crucificado porque o vê como uma única a alma e a alma influencia o corpo de uma forma inin-
pessoa, embora composta de duas naturezas. teligível para nós. Tudo o que acontece, seja na alma
ou no corpo, é atribuído a pessoa toda. Se uma parte
Por outro lado, as vezes o próprio Jesus, que se auto do corpo dói, digo que eu estou com dor. Se tenho
chamava “Filho do Homem”, demonstrava sua divin- algum problema espiritual, eu estou com problema.
dade: “Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que Não digo que é uma parte separada do meu ser que
de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no está com problema. Essas coisas também podem ser
céu” (Jo 3.13). O título Filho do Homem enfatiza sua atribuídas à pessoa de Cristo e ao relacionamento
humanidade,10 mas Jesus disse que o Filho do Ho- entre suas duas naturezas. A outra ilustração seria das
mem havia descido do céu e, num certo sentido, ain- duas naturezas no próprio homem, mais especifica-
da estava lá. O mesmo pode ser visto em João 6.62: mente no crente. Segundo o entendimento da maio-
“Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir ria dos teólogos, o homem regenerado possui uma
para o lugar onde primeiro estava?”. Como homem, natureza nova e outra velha, uma espiritual e outra
poderíamos dizer que Jesus nunca esteve no céu, mas carnal.12 Ambas as naturezas estão no crente, entre-
ele não é homem apenas, nem sua humanidade deve tanto, não dá para saber até onde vai uma e até onde
ser considerada separadamente de sua divindade. Ele vai a outra. Mas sabemos que não são misturadas,
é uma pessoa integral, indivisível e unipessoal. A Bí- pois são distintas.
blia não faz distinção entre as naturezas de Cristo, elas
não devem ser consideradas separadamente. Mas Ao afirmarmos que Jesus é uma única pessoa com
por outro lado, também não devem ser misturadas. duas naturezas estamos dizendo que a pessoa de
Jesus possui atributos das duas naturezas.13 Assim,
NATUREZAS INSEPARÁVEIS não há perigo algum em afirmar que Jesus era uma

Em geral ouvimos as pessoas dizerem que Jesus é 11 Hodge fala bastante dessa analogia, embora reconheça
cem por cento Deus e cem por cento homem. Pare- que toda analogia é incompleta quando se refere à Pessoa de Cristo.
Ver Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 764-765.
ce uma boa explicação a princípio, mas no fundo, é
12 Hoekema discorda da ideia de que há duas naturezas no
um tanto quanto confusa, pois pode sugerir que ele crente. Ele defende que o regenerado tem apenas uma natureza: a
é, ao mesmo tempo, duas pessoas, o que não é verda- espiritual. A natureza carnal foi crucificada com Cristo. Ele explica o
pecado que continua a habitar na carne como uma consequência do
deiro, ou uma pessoa duzentos por cento, o que soa viver como homem (Ver Anthony Hoekema. Salvos pela Graça, p. 216-
221). A Confissão de Fé, de fato, não concebe duas naturezas equiva-
lentes, porém, assevera que temos uma nova natureza e "restos de
corrupção" (CFW XIII, 2).
10 Não ignoramos o fato de que o título “Filho do Homem”
tenha conotações messiânicas e até divinas. Cullmann afirma que 13 Devemos lembrar que, nesse ponto, não há semelhanças
a noção de Filho do Homem é mais ampla do que qualquer outra, com a doutrina da Trindade. Na Trindade há um Deus, mas há três
e descreve a obra total de Jesus (Ver Oscar Cullman. Cristologia do pessoas, havendo só uma natureza, a divina. No ser de Jesus há ape-
Novo Testamento, p. 181) nas uma pessoa, mas duas naturezas, a divina e a humana.

189
pessoa onipotente, onisciente e onipresente, mas que sua natureza humana como se fosse separada da divi-
também era sujeita a limitações, sendo um varão de na. As duas naturezas permanecem distintas, porém,
dores, sujeito a fraquezas e deficiências de conhe- se unem para formar a pessoa completa de Jesus que
cimento. Ele podia ser tentado, sofrer e até morrer. sofre, cansa e é ao mesmo tempo imortal e onipoten-
Como disse Hodge, “a mesma pessoa, eu, ou ego, que te. Pela união sem confusão das duas naturezas Jesus
disse ‘tenho sede’, disse: ‘antes que Abraão existisse, realizou a obra redentora como um todo. Ele resistiu
eu sou”.14 Não devemos pensar que, de alguma ma- ao pecado, morreu e ressuscitou, e isso foi possível,
neira, as duas naturezas se misturaram e qualidades somente porque era homem e era Deus. Mas a obra
da divina foram atribuídas à humana e da humana à não é nem do homem nem do Deus, e sim da Pessoa
divina, como se o homem fosse divinizado e o Deus de Jesus, o Deus-Homem.
humanizado. Se isso acontecesse, de fato seria produ-
zida uma nova e terceira substância, a qual não seria Talvez esta seja a dica essencial para interpretar aque-
humana nem divina, mas possuiria as propriedades le texto difícil da Escritura no qual Jesus confessa não
de ambas.15 Como diz Hodge, isso “equivaleria a saber o dia nem a hora da sua vinda (Mt 24.36). A
uma extensão não estendida, a uma intangibilidade resposta que ele sabia como Deus e não sabia como
tangível, a uma invisibilidade visível”.16 Se as nature- homem é demasiadamente simplista e até mesmo
zas divina e humana se misturassem teríamos uma pode ser perigosa, pois pode fazer uma ruptura na
terceira natureza, uma natureza “teantrópica”.17 Por pessoa de Cristo. Precisamos entender que ele fez
essa razão não podemos concordar com Strong que todas as coisas com sua pessoa inteira que era tanto
entende que “a união das naturezas divina e humana humana quanto divina. A única coisa que podemos
torna esta possuída dos poderes pertencentes àque- dizer é que como homem-Deus ele era, ao mesmo
la”.18 É a pessoa de Jesus que tem esse poder e não a tempo, onisciente e limitado de conhecimento. Sua
onisciência pode ser vista porque ele conhecia até
os pensamentos das pessoas (Mt 9.4; 12.25). Por
14 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 766.
outro lado não sabia que não havia fruto na figuei-
15 Ver Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 772.
ra (Mc 11.23). Da mesma forma vemos que ele era
16 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 772.
onipotente e limitado de poder, até porque cansava
17 A pessoa de Jesus é de fato teantrópica, pois, há duas na-
turezas nessa única pessoa. Porém, a natureza não é teantrópica, ela
e precisava dormir (Jo 4.6; Lc 8.23), mas em outras
é dupla: humana e divina. ocasiões andava sobre as águas e ressuscitava os mor-
18 Augustus H. Strong. Teologia Sistemática, Vol 2 p. 350. Na tos (Mt 14.26; Jo 11.43-44). Podemos não entender
Reforma, Calvinistas e Luteranos se debateram em torno da questão
dos atributos divinos na pessoa humana de Jesus. Estamos falando bem como isso funciona, e talvez o melhor mesmo
aqui principalmente da disputa existente quanto ao relacionamento
das naturezas de Cristo em sua Pessoa, particularmente ligadas à in-
fosse dizer “não sabemos”, mas o que não podemos
terpretação da presença de Cristo na Ceia. Os Luteranos defendiam é dizer: “Isso ele fez como homem e aquilo como
uma espécie de comunicação e atributos entre a natureza divina e
a natureza humana de Jesus. Assim, a natureza divina comunicou à
natureza humana de Jesus o atributo da Onipresença. Dessa forma,
Jesus se tornou fisicamente Onipresente. Isso é chamado de “ubiqui- Cristo, criando uma espécie de terceira natureza, sustentando o mo-
dade” do corpo de Cristo. Essa foi a forma que Lutero encontrou para nofisismo. Os Calvinistas acusavam os Luteranos de serem neo euti-
defender a presença física de Jesus na Ceia baseado na expressão: quianos. Por outro lado, a afirmação dos calvinistas de que o corpo de
“Isto é o meu corpo”. Uma vez que segundo as ideias de Lutero, Je- Jesus estava no céu, enquanto que seu Espírito estava na terra soava
sus se tornou fisicamente onipresente por causa da comunicação de como heresia nestoriana, e os Luteranos acusavam os Calvinistas de
atributos, então, no momento da Ceia, o corpo físico de Jesus está serem neo nestorianos. Entretanto, a posição calvinista não é nesto-
“consubstanciado” com o corpo de Cristo. Para os Calvinistas, essa riana, mas em conformidade com Calcedônia, em que as naturezas
mistura de naturezas na pessoa de Cristo se parecia muito com a anti- de Cristo estão unidas, porém, não misturadas. A natureza divina é
ga heresia de Êutico, que misturava as naturezas humana e divina de onipresente, mas a humana não é.

190
Deus”, pois assim, estaríamos dividindo a pessoa in- Calcedônia, Maria foi chamada de “Mãe de Deus”
divisível de Cristo. Hodge diz: (Theotoko). A concepção, entretanto, da frase na-
quela época era muito diferente do que se entende
Como de um homem pode-se afirmar tudo o que é hoje. Ao chamar Maria de “Mãe de Deus” pretendia-
verdadeiro de sua natureza humana, e tudo o que é -se apenas evitar a divisão da pessoa de Cristo, como
verdadeiro de sua divindade; como podemos dizer queria a heresia nestoriana. Nestório queria chamar
que uma pessoa é mortal e imortal, que é uma cria- Maria simplesmente de “Mãe de Cristo” (Christoto-
tura do pó e é filha de Deus, igualmente podemos ko). A preferência de Nestório pelo termo christoto-
dizer que Cristo é finito e infinito; que é ignorante ko originou-se em sua propensão de separar as duas
e onisciente; que é menor que Deus e igual a Deus; naturezas de Cristo, falando da natureza humana em
que existiu desde a eternidade e nasceu no tempo; si, autônoma e independente da natureza Divina,
que criou todas as coisas e foi varão de dores.19 sendo Maria a mãe dessa natureza independente.22
Calcedônia se posicionou a favor da unipersonali-
A pessoa de Cristo é indivisível. As duas naturezas dade de Cristo. Cristo é uma única pessoa composta
estão unidas, e, “nessa união Cristo controla todos da natureza humana e divina, e essa pessoa nasceu de
os atributos e poderes que são próprios de ambas Maria. Mas com isso não se pretendia dizer que Ma-
as naturezas”.20 Por esse motivo, achamos perigosa a ria gerou a divindade.
opinião de Grudem, quando ele diz que “Jesus tinha
duas vontades distintas, uma vontade humana e uma A posição que Maria ocupa na teologia católica atual
divina, e que às vontades pertenciam as duas natu- é resultado de séculos de desenvolvimento. É verda-
rezas distintas de Cristo”.21 Isso sugere que poderia de que Calcedônia contribuiu para isto, pois, se não
haver algum tipo de conflito na pessoa de Cristo. Po- tinha a intenção de exaltar Maria, pelo menos abriu
rém, Grudem, entende que as vontades são distintas as portas. Hoje, no catolicismo, Maria é considerada
nas naturezas, mas não na pessoa. Então, haveria duas Mediatriz da Graça e Co-Redentora. Ela não é mãe
vontades procedentes de cada natureza, mas uma só apenas no sentido humano de Jesus, mas no sentido
vontade procedente da pessoa. De qualquer forma, pleno de ser assistente na obra da redenção. Certa-
esse assunto se torna bastante especulativo, e é me- mente isso é ir muito além de Calcedônia, e da Bíblia.
lhor pensar, como diz Bavinck, que a união das na- Mais longe ainda foi o catolicismo em sua crença de
turezas leva Cristo a controlar os atributos peculiares que Maria nasceu sem pecado, que sua virgindade foi
de cada natureza. Na pessoa de Cristo não há confli- perpétua, e que ela teve uma ascensão aos céus sem
passar pela morte. Todos esses conceitos, evidente-
to, há plena harmonia. Afinal ele veio para estabelecer
mente, são extrabíblicos23.
a harmonia entre Deus e o homem.

MUITO ALÉM DE CALCEDÔNIA 22 Ver G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, p. 219.

23 Em 392 d.C. pela primeira vez Maria foi declarada perpe-


tuamente virgem pelo papa Siríaco, mas somente no Concílio de
Como vimos no Credo formulado pelo Concílio de Trento em 1547 isso foi considerado um dogma católico, e somente
em 1854 o papa Pio IX declarou Maria totalmente livre de pecados
através de sua vida inteira. A declaração desse Papa foi: “Nós, pela au-
toridade de nosso Senhor Jesus Cristo, sob a bênção dos Apóstolos
19 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 774-775.
Pedro e Paulo e por nossa própria autoridade declaramos, pronuncia-
20 Herman Bavinck. Teologia Sistemática, p. 359. mos e definimos que a doutrina que assegura que a Bendita Virgem
Maria desde o primeiro momento de sua concepção foi, pela singular
21 Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 462 graça e privilégio do Todo-Poderoso Deus, em vista dos méritos de

191
Uma vez que nenhuma dessas posições encontra que podemos dizer é o que disse Isabel: "Bendita és
base ou apoio na Escritura e não passam de decisões tu entre as mulheres" (Lc 1.42). Ela era uma mulher
de homens, não devem ser aceitas. A Bíblia não fala entre tantas outras, mas que recebeu a graça de ser a
qualquer coisa sobre nascimento sem pecado origi- mãe do Redentor. Por isso é, e sempre será, bendita
nal ou ascensão de Maria e mostra claramente que entre as mulheres. A sua escolha para ser a mãe do Fi-
ela não teve virgindade perpétua (Mt 1.25; 13-55; lho de Deus não aponta para o mérito de Maria, mas
Me 3-31), nem possui caráter de Medianeira (Jo 2.1- para a Graça de Deus.
4; 1Tm 2.5). Com relação, porém à expressão "Mãe
de Deus", se com ela se pretende manter a unidade Como ela própria entendeu e disse: ''A minha alma
da pessoa de Jesus, não é uma expressão a ser despre- engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou
zada, mas precisa ser bem entendida. Se, porém, com em Deus, meu Salvador, porque contemplou na hu-
ela se pretende exaltar a pessoa de Maria como Mãe mildade da sua serva. Pois, desde agora, todas as ge-
do Deus Todo-Poderoso, originadora da divindade, rações me considerarão bem-aventurada, porque o
como tendo poder ou autoridade sobre Jesus, ou Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu nome.
destacar Maria como alguém superior às demais mu- A sua misericórdia vai de geração em geração sobre
lheres, não deve ser aceita. De Maria, a melhor coisa os que o temem'' (Lc 1.46-50). Maria rendeu toda a
glória a Deus.
Cristo Jesus o Salvador da raça humana, preservada imune de toda
mácula de pecado original”. O Papa Leão XIII em 1891 na Encíclica CONCLUSÃO
Octobri Mense declarou que “O Eterno Filho de Deus, quando quis
tomar a natureza de homem para redenção e glorificação da huma-
nidade, (...) não fez sem primeiro ter o absoluto livre consentimento Concluímos, portanto, que na Pessoa indivisa do
de sua escolhida mãe (...) então, assim como ninguém pode ir ao su-
premo Pai senão através do Filho, é certo que, ninguém pode ir ao Redentor há duas naturezas, a divina e a humana. Ele
Filho senão através da Mãe (...) Maria é a única, Maria é digna de todo
louvor; ela é poderosa, mãe do todo-poderoso Deus”. Em 1892 esse
não se esvaziou de nenhuma delas. Essas naturezas
mesmo Papa na Encíclica Magnae Dei Matris declarou: “Ela perma- não se misturaram, pois mantiveram as qualidades
nece sobre todas as ordens de anjos e homens, e ela somente está
próxima de Cristo”. Na Encíclica Mystici Corporis Christi de 1943 o inerentes de cada uma, estando em completa unida-
Papa Pio XII declarou que Maria foi imune de todo pecado; ofereceu de. Essa união aponta para o sucesso da obra reden-
seu filho no Gólgota ao Pai; obteve o derramar do Espírito Santo no
Pentecostes; providencia cuidado materno para a igreja; e reina nos tora de Cristo. Em sua própria pessoa, o Redentor
céus com Cristo. Em 1950 ele declarou: “Ela conquistou a morte e foi
elevada com corpo e alma para a glória dos céus, onde como Rainha transpôs o abismo entre Deus e os homens, entre o
reina refulgente a direita de seu Filho... Nós proclamamos e definimos
esse dogma revelado por Deus que a imaculada Mãe de Deus, Maria
eterno e o temporal, entre a justiça e os pecadores.
sempre Virgem, quando o curso de sua vida terrena se acabou, foi Graças ao verbo que se fez carne (Jo r.14), podemos
tomada com corpo e alma para a glória dos céus”. Tudo isso foi confir-
mado pelo Concílio Vaticano II. (Ver Paul Enns. The Moody Handbook ter paz com Deus (Rm 5.1).
of Theology, Parte 4, Cap. 37).

192
26. A NECESSIDADE DA MORTE DE CRISTO

Desde os tempos do Apóstolo Paulo, muitos consi- Como vimos ao estudar a Trindade, o caráter de Je-
deravam a pregação sobre a morte de Jesus uma lou- sus como Mediador esteve presente desde o início
cura: “Certamente, a palavra da cruz é loucura para nas relações entre Deus e a Criação. Mas chegou o
os que se perdem” (1Co 1.18, 23). Não é apenas nos dia quando o Mediador realizou a mais difícil das
dias de hoje que as pessoas se recusam a aceitar que obras: Pagar com seu sangue a dívida do ser humano
Jesus precisava morrer para salvar o mundo. A ideia perante a lei.
de que Jesus se sacrificou para substituir o pecador é
rejeitada por muitos, como algo inconcebível, anima- O MEDIADOR DA ALIANÇA
lesco e desprovido de sentido. Argumentam: “Como
poderia Deus matar seu próprio Filho inocente pelos O Cristo, humano e divino, veio para restabelecer o
pecados dos outros? Como poderia isso ser aceitá- relacionamento entre Deus e os homens. Um Me-
vel diante de Deus? Que Deus é esse que se propõe diador somente é necessário quando existe algum
a aceitar tal troca?” Daí o esforço antigo e moderno conflito entre duas ou mais partes. A função de um
por encontrar outras formas de salvação, e outros sig- Mediador é fazer ligação entre dois oponentes na
nificados para a morte de Jesus. tentativa de alcançar a paz. Quando dois oponentes
não têm qualquer intenção de fazer as pazes, nem
De acordo com o ensino da Bíblia, o pecado do ho- pensam em mediador. Isso mostra que, o simples fato
mem levou Cristo a morrer para satisfazer a justiça de de existir um Mediador na relação homem-Deus, de-
Deus. Esse assunto é vital para a salvação, entendê-lo monstra interesse da parte divina em resolver o im-
bem, portanto, é indispensável. A tendência atual é passe. Em geral importa que o mediador seja neutro,
dizer que Jesus morreu para dar um exemplo. Alguns e tenha acesso aos dois lados. Ele precisa buscar o
vão mais longe dizendo que foi apenas o fracasso de melhor para as duas partes envolvidas no conflito e
um fracassado. Neste capítulo procuramos demons- não pode favorecer uma em detrimento da outra.
trar que a ideia da morte de Jesus pelos pecados não
é algo absurdo, pois segundo a Escritura, ele morreu A Escritura apresenta Jesus como o único Mediador
para cumprir uma missão que Deus lhe confiou: entre Deus e os homens: “Porquanto há um só Deus
Salvar o mundo através de seu sacrifício expiatório. e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo

193
Jesus, homem” (1Tm 2.5; At 4.12). Como Mediador, de de Deus ao povo através de admoestações, exor-
sendo Deus e homem ao mesmo tempo, Jesus conse- tações, promessas ou ameaças. Jesus é o profeta por
gue tratar com os dois lados, e procura o bem para as excelência. Moisés, o grande profeta de Israel anun-
duas partes. Como Deus, ele consegue se aproximar ciou a vinda de um profeta que devia ser ouvido: “O
de Deus e como homem, consegue se aproximar dos senhor, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de
homens. O grande conflito a ser resolvido é a ques- ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás”
tão da transgressão do homem. O descumprimento (Dt 18.15). Quando os homens viram os milagres de
humano em relação à lei de Deus, que exige que a Jesus, especialmente a multiplicação dos pães e dos
sentença de condenação seja executada. Jesus se co- peixes, declararam: “Este é, verdadeiramente, o pro-
locou entre essas duas partes para fazer um acordo feta que devia vir ao mundo” (Jo 6.14). Certamente
de paz. Porém, a paz somente pode ser alcançada, se eles estavam pensando na promessa de Moisés. Pe-
Jesus conseguir inocentar o homem. O caminho de dro entendeu que o anúncio de Moisés se referia a Je-
Jesus para isso não é negando a existência do pecado sus, e deixou isso bem claro em seu primeiro sermão:
ou minimizando a gravidade do mesmo, mas mor- “Disse, na verdade, Moisés: O Senhor Deus vos sus-
rendo no lugar do homem, desviando a ira de Deus citará dentre vossos irmãos um profeta semelhante a
do pecador para si mesmo. Dessa forma, os crentes mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser” (At
podem ter, nas palavras de Paulo, “paz com Deus por 3.22). O Novo Testamento diz que todos os profetas
meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1). As- do Antigo Testamento eram movidos pelo Espírito
sim, sempre devemos ver a posição de Mediador de de Cristo, ou seja, era o caráter profético de Jesus que
Cristo em relação à salvação, pois como diz Hodge, dava aos profetas a revelação, conforme as palavras de
“como o desígnio da encarnação do Filho de Deus Pedro em sua Primeira Epístola: “Foi a respeito desta
era reconciliar-nos com Deus, e como a reconcilia- salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os
ção das partes inimizadas é uma obra de mediação, quais profetizaram acerca da graça a vós outros des-
Cristo é chamado de nosso mediador”.1 Cristo exer- tinada, investigando, atentamente, qual a ocasião ou
ce seu papel de Mediador para nossa salvação como quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Es-
profeta, sacerdote e rei. No Antigo Testamento, para pírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão
benefício de seu povo, Deus concedeu aos homens testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo
reis, sacerdotes e profetas. Cristo reúne os três ofícios e sobre as glórias que os seguiriam” (1Pe 1.10-11).
em sua pessoa, e, portanto, consuma toda a obra divi- Ele está dizendo que os profetas puderam antever as
na de aproximação com o ser humano. coisas futuras porque o Espírito de Cristo estava ne-
les e lhes concedia a revelação.
O Ofício Profético de Cristo
Como profeta, Jesus tem a grande função de revelar o
A grande função de profeta era anunciar algo da par- caráter do Pai. João diz: “Ninguém jamais viu a Deus;
te de Deus para o homem. O profeta não tinha uma o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o
mensagem de si mesmo para transmitir, ele transmi- revelou” (Jo 1.18). Jesus revelou o caráter de seu Pai,
tia a Palavra de Deus, a qual precisaria ter recebido de especialmente através de seu ensino. Suas explicações
Deus anteriormente. O profeta comunicava a vonta- sobre Deus, bem como seu amor, sua misericórdia,
sua graça, sua justiça, sua santidade, seu propósito,
sua natureza e pessoa, foram manifestações de seu
1 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 822.
ofício profético. Cristo é a eterna sabedoria do Pai,

194
ele se tornou o tradutor entre Deus e a raça decaída ta Deus para com o homem, como sacerdote, ele
que não conseguia falar a linguagem de Deus. Tentar representa o homem na presença de Deus; e como
entender Deus à parte de Cristo é como tentar en- Rei, ele exerce domínio e restabelece o domínio ori-
tender uma nação estrangeira sem um embaixador. ginal do homem”.5 Cristo é rei supremo sobre todas
Cristo disse: “Quem vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Je- as coisas, desde toda a eternidade, mas isso diz mais
sus precisava ser Deus, para poder falar a verdade so- respeito a seus atributos de soberania. Quando pen-
bre o Pai, e, ao mesmo tempo, precisava ser homem samos no ofício real de Cristo estamos nos referindo
a fim de que entendêssemos o que ele estava falando. ao governo que ele exerce a partir de sua obra na cruz.
Cristo é a ponte que liga o finito ao infinito, sua Cruz Embora Cristo seja rei desde sempre, após sua mor-
liga os céus à terra, atravessa o imenso abismo entre o te e ressurreição, ele foi mais uma vez coroado, agora
bem e o mal, entre a santidade e a iniquidade. Lloyd- como aquele que tem em suas mãos o destino do
-Jones está certo em assegurar a importância disso, mundo para efeitos redentivos. Evidentemente este
pois de fato “uma parte de nossa salvação consiste é um reino espiritual. João descreve essa cerimônia
em nossa recepção desse conhecimento que nosso de coroação de Jesus nos capítulos 4 e 5 do Apoca-
Senhor nos tem comunicado”.2 Dessa forma, o Me- lipse, quando Jesus, descrito por um lado como um
diador estava fazendo a ponte entre Deus e o ser hu- Cordeiro (Ap 5.6) e por outro como o Leão da Tribo
mano, revelando-nos um pouco da maravilhosa pes- de Judá (Ap 5.5), toma o livro da mão direita do que
soa do Pai. Toda a revelação está, de certa forma, na está assentado no Trono (Ap 5.7), e começa a abrir
pessoa de Cristo como profeta. Assim, de fato, “desde esse livro, que contém os eventos que consumam o
o início, tanto em seu estado de humilhação quanto plano redentivo de Deus para o mundo. Os efeitos
de exaltação, tanto antes quanto depois de seu ad- dessa coroação levaram Jesus a dizer: “Toda auto-
vento na carne, Cristo executa o ofício de profeta ao ridade me foi dada nos céus e na terra” (Mt 28.18).
revelar-nos, por meio de sua Palavra e seu Espírito, a Aquele que desceu do céu, se fez homem, padeceu a
vontade de Deus para nossa salvação”.3 Deus orde- mais terrível das mortes, agora voltou a seu lugar de
nou aos homens, no monte da transfiguração que glória e assumiu um posto ainda maior de autoridade
ele fosse ouvido (Mt 17.5). Se ele devia ser ouvido é (1Tm 3.16).
porque, de fato, é o portador da revelação. Na pessoa
de Cristo, segundo Paulo, estão escondidos “todos os Paulo narra toda essa trajetória de Jesus em sua carta
tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 3.2), e aos Filipenses, numa passagem que bem poderia ser
nas sábias palavras de Calvino “fora dele não há nada um cântico dos primeiros cristãos:
que valha a pena conhecer”.4
Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não jul-
O Oficio Real de Cristo gou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a
si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo,
Em seus três ofícios, Jesus age como Mediador en- tornando-se em semelhança de homens; e, reconhe-
tre Deus e os homens: “Como profeta ele represen- cido em figura humana, a si mesmo se humilhou,
tornando-se obediente até a morte e morte de cruz.
2 D. M. Lloyd-Jones. Deus o Pai, Deus o Filho, p. 375.
Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e
3 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 829.

4 João Calvino. Institutas, III,15,2. 5 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 358.

195
lhe deu o nome que está acima de todo nome, para oferecidos com verdadeiro arrependimento, e com fé
que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, no método de salvação usado por Deus. Só tinham
na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse significação salvadora na medida em que levavam a
que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai atenção do israelita a fixar-se no Redentor vindouro
(Fp 2.6-11). e na redenção prometida.6

A humanidade (seu povo) participa dessa glorifica- Jesus consumou sacerdotalmente todo o sistema do
ção, pois Cristo é o seu representante, e por causa Antigo Testamento. O autor aos Hebreus fala de for-
dela, ele assumiu o posto mais alto do universo, para ma muito clara sobre a função sacerdotal de Jesus e
ajudá-la e sustentá-la até a consumação de todas as de sua oferta: “Com efeito, nos convinha um sumo
coisas. É nesse sentido que Cristo é chamado por sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácu-
Paulo na carta aos Efésios de “cabeça da igreja” (Ef la, separado dos pecadores e feito mais alto do que
1.22), estando assentado “acima de todo principado, os céus, que não tem necessidade, como os sumos
e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, pri-
se possa referir, não só no presente século, mas tam- meiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do
bém no vindouro” (Ef 1.21-22). Ele governa todas as povo; porque fez isto uma vez por todas, quando a si
coisas para benefício de sua igreja. Seu governo é a mesmo se ofereceu” (Hb 7.26-27). A auto-oferta de
garantia de que a redenção finalmente se consumará Jesus tem um valor incalculável diante de Deus. É o
e de que sua morte não foi em vão. Sacerdote perfeito que oferece um sacrifício perfeito.
Isso nunca foi achado no Antigo Testamento e nem
O Ofício Sacerdotal de Cristo poderia ser. Por isso o ofício sacerdotal de Cristo faz
seu sacrifício ser, não só superior a todos os sacrifí-
De todos os três ofícios, o sacerdotal é o que se rela- cios do Antigo Testamento, mas à própria razão, por-
ciona mais diretamente com a expiação. O sacerdo- que aqueles sacrifícios tinham valor.
te se apresentava perante Deus para interceder pelo
povo. A função do sacerdote era “oferecer tanto dons A obra sacerdotal de Cristo na terra é a base para sua
como sacrifícios pelos pecados” (Hb 5.1). No Antigo obra no céu. Assentado à destra de Deus, Jesus conti-
Testamento, quando os homens pecavam, precisa- nua intercedendo por seu povo (Rm 8:34). O Após-
vam se dirigir ao sacerdote que lhes ajudaria na oferta tolo João demonstra claramente esse entendimento:
do sacrifício pelo pecado. Como Sacerdote, a função “Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que
de Cristo é nos reconciliar com Deus, oferecendo não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advo-
um sacrifício que desvie a ira de Deus de sobre nós. A gado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” (1Jo 2.1).7 Os
diferença de Jesus em relação aos sacerdotes do Anti- advogados humanos tentam provar a inocência do
go Testamento é que Jesus é o sacerdote e a vítima si- acusado, mas Jesus sabe que seus “clientes” não são
multaneamente. Esse sacrifício foi, na verdade, o úni- inocentes. A defesa se baseia no fato de que Deus não
co sacrifício aceito, uma vez que todos os sacrifícios
do Antigo Testamento dependiam dele para terem 6 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 366.
valor, e que, após isso, nenhum sacrifício a mais deve 7 Deve ser notado que tanto Jesus quanto o Espírito Santo
ser oferecido. Os sacrifícios do Antigo Testamento recebem o título de Parakletos (Advogado ou Consolador). O Espírito
Santo é o advogado de Cristo na terra e dos próprios crentes contra
eram tipos dos sofrimentos vicários de Cristo, e só o mundo, e Cristo é o advogado dos crentes no céu junto a Deus e
contra Satanás.
obtinham perdão e aceitação de Deus quando eram

196
pode punir um mesmo crime duas vezes. Se Jesus já juntamente se corromperam; não há quem faça o
pagou com seu sacrifício o pecado do crente, a justiça bem, não há nem um sequer” (Sl 14.1-4). A busca
divina não poderá mais condená-lo. divina por alguém justo apresenta apenas resultados
negativos, pois Deus vê algo comum em todos os
A JUSTIÇA DE DEUS E O PECADO DO seres humanos: o pecado. Como diz Schaeffer, “esta
HOMEM concepção da universalidade do pecado é o maior e
mais genuíno ‘nivelador’ da humanidade”.9 Todos os
A Bíblia não tem ilusões românticas a respeito do ho- homens possuem esta marca terrível em suas vidas,
mem. O ensino bíblico é que, apesar do homem ter estão todos na mesma situação.
sido criado em perfeita santidade, ele corrompeu-se
completamente. A primeira descrição bíblica, que o Mesmo quando as pessoas ouvem o que foi exposto
próprio Deus dá sobre o homem após a queda está acima, muitas vezes, ainda não se conscientizam da
registrada em Gênesis: “Viu o senhor que a maldade necessidade da morte de Jesus. Elas pensam: “Por
do homem se havia multiplicado na terra e que era que Deus não poderia simplesmente perdoar o peca-
continuamente mau todo desígnio do seu coração” dor?”. Em geral se pensa assim: Se nós devemos per-
(Gn 6.5). Essa forte expressão “continuamente mau doar os outros sem exigir nada dessas pessoas, então,
todo o desígnio do coração”, não deixa muita coisa por que Deus não poderia simplesmente perdoar os
positiva sobre o homem, pelo menos não aos olhos homens caso visse neles o arrependimento?10 Será
de Deus.8 Como diz o autor do Eclesiastes: “Deus que o seu amor não é suficiente para perdoar? Esta
criou o homem perfeito, mas ele se meteu em muitas pergunta ignora duas coisas: O quanto o pecado é
astúcias” (Ec 7.29). Essa habilidade humana de ser terrível e o quanto Deus é justo. Deus não tolera o
astutamente falso e mentiroso recebe uma ênfase em pecado. Deus ama a justiça, mas odeia a iniquidade
Jeremias que diz: “Enganoso é o coração, mais do que (Sl 45.7). Adão e Eva sabiam muito bem disso, pois
todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jr antes que transgredissem, ouviram de Deus que no
17.9). Olhando sem preconceitos para esse versículo, dia em que comessem da árvore iriam morrer com
percebe-se que está dizendo que nenhuma outra coi- certeza (Gn 2.17). O estabelecimento da lei no Sinai
sa do mundo consegue ser tão enganosa e desespe- deixou claro que a transgressão acarretava a morte
radamente corrupta, quanto o coração humano. Tão (Ex 21.1229; Lv 20.2-15; Nm 35.16-30). O Novo
corrupto é o ser humano que consegue dizer de seu Testamento é ainda mais explícito: “O salário do
criador: ele não existe (Sl 14.1). O mesmo salmista pecado é a morte” (Rm 6.23). Para que a justiça de
diria: “Corrompem-se e praticam abominação; já Deus seja mantida, o homem precisa ser condenado
não há quem faça o bem. Do céu olha o senhor para por seus atos. Esta condenação não pode ser outra
os filhos dos homens, para ver se há quem entenda, senão a morte, ou seja, sofrer a morte de um crimino-
se há quem busque a Deus. Todos se extraviaram e so, como o homem de fato é. Ou o homem morre a
morte de um malfeitor e aguenta o fardo de ser sepa-

8 Embora os dias de Noé representem, teologicamente, os


piores dias que esse mundo já viu. Deus entregou o ser humano ao 9 Francis Schaeffer. A Obra Consumada de Cristo, p. 70.
seu próprio pecado, e o homem foi liberado para ser tão mau quanto
possível. Depois do dilúvio, Deus impôs restrições ao ser humano, e 10 A primeira complicação com esta ideia é que o ser huma-
não permite que chegue facilmente ao limite da maldade. Jesus dis- no nunca conseguiria oferecer a Deus um verdadeiro arrependimen-
se, porém, que logo antes de sua vinda, o mundo voltaria a ser seme- to. O ensino bíblico é que o arrependimento é um dom de Deus
lhante ao mundo dos dias de Noé (Mt 24.37-39). (Ver At 11.18; Rm 2.4; 2Tm 2.25).

197
rado de Deus, ou Deus deixa de ser justo. observar os Evangelhos para perceber que ele sem-
pre teve essa consciência. Quando, pela primeira vez,
Só quando temos isso em mente, é que podemos os discípulos, liderados por Pedro reconheceram que
entender a necessidade da morte de Jesus. No plano Jesus era o Cristo, o mestre fez questão de lhes dizer:
de Deus, Jesus é enviado ao mundo, nasce como ho- “É necessário que o Filho do Homem sofra muitas
mem, cumpre integralmente os requisitos da lei de coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais
Deus, e se oferece como um substituto para receber a sacerdotes e pelos escribas; seja morto e, no terceiro
condenação do homem, pois “nossos pecados eram dia, ressuscite” (Lc 9.22, Mt 16.21). É interessante
o obstáculo que nos impedia de receber o dom que que Jesus tenha dito: “É necessário”. Ele tinha o enten-
ele desejava dar-nos”.11 Como Mediador, ele sofre a dimento de que precisava morrer pelos pecados dos
morte do transgressor que a lei de Deus exige. Deus homens. Pedro, na mesma ocasião, se ofereceu para
não pode passar por cima de sua lei sem ferir sua dissuadi-lo daquela ideia, conforme Mateus relata:
própria justiça, e consequentemente, sua divindade. “E Pedro, chamando-o à parte, começou a reprová-
Deus não pode perdoar como nós devemos perdoar. -lo, dizendo: Tem compaixão de ti, Senhor; isso de
Nós perdoamos, porque somos igualmente pecado- modo algum te acontecerá” (Mt 16.22). A reação de
res e se deixarmos de perdoar estaremos, em última Jesus foi imediata: “Arreda, Satanás! Tu és para mim
instância negando o perdão a nós mesmos (Mt 6.14- pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de
15). Isso não ocorre com Deus. Ele é absolutamente Deus, e sim das dos homens” (Mt 16.23). A respos-
justo e santo. Se ele tolerar o pecado, estará abrin- ta de Jesus refletiu o entendimento de que, pelo ho-
do uma exceção que, por fim, o tornaria tão injusto mem, aquilo jamais aconteceria, mas por Deus sim.
quanto o homem. Os ímpios perderão seu tempo Sua morte era necessária, era coisa de Deus, ele tinha
implorando pelo amor de Deus no Juízo Final, pois plena consciência disso.
seu amor não pode anular sua justiça. O amor não
pode levá-lo a transgredir sua própria lei. Mas foi jus- Jesus Cristo não veio enganado, ele tinha perfeita
tamente esse amor que levou Jesus a morrer na cruz consciência do que teria de passar (Is 53). Jesus sabia
para satisfazer a justiça divina (Jo 3.16). Só a morte que a Sua vida de obediência espontânea ao Pai tinha
de Jesus faz justiça ao caráter amoroso e justo de Deus como rota obrigatória a cruz. Ele sempre soube que
simultaneamente. Deus não quebra a sua justiça por não havia desvios nem atalhos, a cruz era a sua mis-
amor; antes, cumpre a justiça em amor; pois como são, a única alternativa para a salvação de seu povo. Je-
diz Murray: “De fato a graça reina, mas uma graça sus conhecia as profecias do Antigo Testamento, que,
reinante à parte da justiça não é apenas inverossímil, desde Gênesis 3.15, já indicavam as dores do Messias
mas também inconcebível.”12 (Ver Lc 24.26,46/Is 53.112/At 3.18; Jo 17.1-3; 1Pe
1.10,11).
A CONSCIÊNCIA DE JESUS
Em geral, Jesus falou sobre sua morte nos momentos
Nos estudos teológicos modernos, às vezes nega-se de maior glorificação aqui na terra. Ele fez isso quan-
que Jesus soubesse que precisava morrer, mas basta do os discípulos o reconheceram como Messias. É
importante lembrar que eles esperavam um liberta-
dor político e Jesus fez questão de dizer que sua mor-
11 John Stott. A Cruz de Cristo, p. 55.
te era necessária. Mesmo quando anunciava sua se-
12 John Murray. Redenção: Consumada e Aplicada, p. 19.
gunda vinda gloriosa sobre as nuvens, (Lc 17.24), ele

198
advertia: “Mas importa que primeiro ele (o Filho do receber sobre si o peso da maldição dos pecados dos
Homem) padeça muitas coisas e seja rejeitado por homens, e por causa disso, ser abandonado por Deus.
esta geração” (Lc 17.25). Ele tinha a noção clara de Em toda a eternidade, nunca houve um instante em
que seu sofrimento precisava acontecer para se cum- que ele não pudesse contemplar o rosto amoroso de
prir o que estava determinado: “Pois vos digo que im- seu Pai, mas agora esse momento estava muito pró-
porta que se cumpra em mim o que está escrito: ele ximo. Daí suas palavras: “Meu Pai, se possível, passe
foi contado com os malfeitores. Porque o que a mim de mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero,
se refere está sendo cumprido” (Lc 22.37). Não só e sim como tu queres” (Mt 26.39). Ele perguntou a
entendia que precisava morrer, como a forma como Deus se não haveria alguma outra possibilidade do
morreria e o porquê: “E do modo por que Moisés mundo ser salvo, sem que precisasse enfrentar a cruz,
levantou a serpente no deserto, assim importa que mas ele mesmo sabia a resposta, por isso orou nova-
o Filho do Homem seja levantado” (Jo 3.14). A ser- mente: “Meu Pai, se não é possível passar de mim este
pente de bronze foi levantada sobre uma haste, como cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (Mt
um antídoto contra a picada das serpentes que feriam 26.42). É evidente, portanto, que Jesus entendia sua
o povo de Deus, por causa da rebelião (Nm 21.4-9). missão de morrer pelo mundo, como está claro em
Jesus entendia que seria levantado como um instru- todas essas passagens.
mento de cura para os pecadores, sua morte seria um
antídoto contra o pecado. Outras passagens dos Evangelhos sinóticos demons-
tram a consciência de Jesus a respeito de sua morte
Jesus sabia que sua morte era necessária para implan- expiatória. Por exemplo, Marcos 10.45: “Pois o pró-
tar o reino de Deus no mundo. Por isso, mesmo sen- prio Filho do Homem não veio para ser servido, mas
tindo a dor da partida e vendo a tristeza nos olhos de para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”
seus discípulos quando anunciava essas coisas, lhes (Ver Mt 20.28). Se Jesus sabia da necessidade de sua
disse: “Mas eu vos digo a verdade: convém-vos que morte, é inimaginável que não soubesse o propósito
eu vá, porque, se eu não for, o Consolador não virá dela. Se ele falou a seus discípulos do serviço, e falou
para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei” de seu próprio ministério como serviço é natural que
(Jo 16.6-7). A partida (morte) de Jesus era necessária ele estivesse pensando no cântico do servo de Isaías
para que o Espírito Santo pudesse ser enviado e com- e pensando em seu próprio chamado à luz disso.13
pletasse a obra da redenção. O mesmo pode ser visto nas palavras de Jesus em
Marcos 14.24: “Então, lhes disse: Isto é o meu san-
O momento em que Jesus demonstrou a maior gue, o sangue da nova aliança, derramado em favor
consciência da necessidade de sua morte, talvez te- de muitos” (Ver Mt 26.28). A evocação à questão da
nha sido o seu maior momento de dúvida. Estamos Aliança é fundamental para entender o sentido do
falando do episódio do Jardim do Getsêmani. Aque- sangue derramado. O Deus que estabeleceu a Alian-
la noite, todo o pavor do mundo caiu sobre suas ça e que assumiu a responsabilidade por ela diante de
costas. Jesus estava angustiado, não pelo que muitos Abraão, foi o Deus que enviou o seu Filho para assu-
gostam de enfatizar, porque estivesse com medo do mir a maldição da Aliança. Deus assumiu, ele mesmo,
sofrimento físico, dos pregos, da agonia da morte ou a responsabilidade pelo cumprimento ou não cum-
do ridículo público. Por mais que essas coisas fossem
terríveis, seu temor era por algo muito pior do que to- 13 Ver Donald A. Hagner. Word Biblical Commentary, Volume
33b: Matthew 14-28, Mt 20.26.
das elas juntas. Jesus se angustiava pela expectativa de

199
primento da Aliança.14 Agora pelo sangue de Cristo, to. Especialmente os judeus, poderiam argumentar:
o Mediador, a Aliança poderia ser renovada. É nesse E os que estão tentando obedecer à lei? As pessoas
sentido que é chamada de Nova Aliança. pensam que se buscarem obedecer a Deus, ao final
serão salvos pela misericórdia de Deus, como se a
Essas passagens demonstram claramente a consciên- boa intenção fosse suficiente. Paulo diz: Caminho er-
cia de Jesus a respeito de sua morte e, como diz War- rado. A lei não foi feita para salvar, mas para apontar
field “as questões críticas que têm sido levantadas so- o pecado: “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos
bre essas passagens são negligentes”.15 Jesus sabia da que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e
necessidade de sua morte e do porquê dela. todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que
ninguém será justificado diante dele por obras da lei,
JUSTO E JUSTIFICADOR em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento
do pecado” (Rm 3.19-20). Que opção resta então?
A morte de Cristo foi necessária, porque somente as- De acordo com Paulo, a opção da morte de Cristo.
sim os seres humanos poderiam ser perdoados, sem Ele diz: “Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça
que Deus deixasse de ser justo. Jesus morreu para de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rm
conciliar a justiça e o amor de Deus. Talvez a melhor 3.21). A expressão “justiça” que Paulo usa, poderia
explicação bíblica desse assunto se encontre no capí- sugerir que Deus iria punir os homens, mas Paulo
tulo 3 de Romanos. Há algo que Paulo deseja provar: está falando de um outro aspecto da justiça de Deus.
Deus somente pode salvar o homem pecador através É a “justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo,
de Cristo Jesus, independentemente de obras da lei, para todos e sobre todos os que creem; porque não
e isso não desfaz sua justiça. Nesse capítulo, Paulo faz há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória
questão de enfatizar a realidade do pecado de todos de Deus” (Rm 3.22-23). Ele não está falando de uma
os homens: “Já temos demonstrado que todos, tanto justiça punitiva, mas de uma justiça que absolve, que
judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como inocenta. A justiça, porém, só pode inocentar alguém
está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há que seja realmente inocente, e não é esse o caso do
quem entenda, não há quem busque a Deus; todos ser humano. O argumento de Paulo é que a justiça de
se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem Deus em Cristo, somente é possível “mediante a re-
faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). Ele denção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.24). A palavra
está citando o Salmo 14 demonstrando que todos os chave aqui é “redenção”. Paulo explica como funciona
homens, sem exceção, são pecadores. A questão é: esta redenção: “A quem Deus propôs, no seu sangue,
pecadores devem ser julgados e, como consequên- como propiciação, mediante a fé, para manifestar a
cia, receberão a ira de Deus sobre si. Deus precisa sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado
fazer isso, caso contrário estará deixando de ser jus- impunes os pecados anteriormente cometidos; ten-
do em vista a manifestação da sua justiça no tempo
14 No texto em que Deus renova a Aliança com Abraão, ele
presente, para ele mesmo ser justo e o justificador da-
manda Abraão organizar uma cerimônia comum daqueles dias que quele que tem fé em Jesus” (Rm 3.25-26). Esses dois
simbolizava um pacto. Animais eram cortados ao meio e as metades
eram colocadas umas defronte as outras, deixando um corredor ao versos são o centro da argumentação de Paulo. Deus
meio. Os proponentes passavam juntos pelo meio dos animais assu- mesmo propôs a morte de seu filho, como uma for-
mindo a responsabilidade em caso de quebra do pacto, que seria a
morte. No caso de Abraão, Deus passou sozinho pelo meio dos peda- ma de propiciação. A ideia de propiciação sugestiona
ços, assumindo inteiramente a responsabilidade (Gn 15.9-17).
algo que apazigua a ira de Deus. O pecado humano
15 B. B. Warfield. Biblical Foundations, p. 193.
como quebra da lei despertou a ira de Deus, e o sacri-

200
fício de Jesus apazigua essa ira. de sua justiça no tempo presente” (3.26). O tempo
presente representa o momento do sacrifício de Je-
A questão da Ira de Deus não é bem vista no meio dos sus. Grudem argumenta: “Como Jesus carregava so-
estudiosos de inclinação liberal, pois eles vêm Deus zinho a culpa de nossos pecados, Deus Pai, o podero-
apenas como amor. Baillie é dessa opinião: “Sua ira so criador, o Senhor do Universo, derramou sobre ele
não deve ser vista como alguma coisa que precisa ser a fúria de sua ira: Jesus se tornou objeto do intenso
propiciada e assim transformada em amor e miseri- ódio e da vingança contra o pecado que Deus tinha
córdia, mas deve ser identificada com o fogo consu- guardado com paciência desde o início do mundo”.18
midor do amor inexorável de Deus em relação com Cristo recebeu sobre si toda a ira acumulada de Deus.
os nossos pecados”.16 Certamente ele tem bastante Devemos pensar realmente que:
dificuldade em compreender que Deus possa ficar
irado contra os pecadores que ele mesmo criou.17 A cruz foi o cálice do castigo eterno, destilada da
Mas é um fato bem visível na Bíblia que a ira de Deus ira que estava sendo armazenada desde o peca-
se dirige contra o homem pecador (Ver Jo 3.36; Rm do de Adão, concentrada numa poção terrível. O
1.18; 3.5; 9.22; Ef 5.6; Ap 14.10). O sacrifício expia- Filho bebeu o cálice da ira para que pudéssemos
tório de Cristo faz propiciação pelos pecados dos beber o cálice da salvação. E quando ele terminou
homens que creem, porque satisfaz o requerimento seu cálice, não sobrou nenhuma só gota para nós
da lei de Deus de que o pecado fosse julgado e con- que, de forma grata, recebemos o benefício da sua
denado, e assim, ele satisfaz a Ira de Deus. morte.19

Na cruz o pecado do homem é julgado e condena- Paulo continua: “Para ele mesmo ser justo e justifica-
do na pessoa de Jesus. Isso cumpre o requerimento dor daquele que tem fé em Jesus”. Com a morte de
da lei de Deus e, segundo Paulo, explica também o Jesus, Deus continua sendo justo ao mesmo tempo
porquê de Deus ter tolerado os pecados “anterior- em que justifica o pecador, a cruz não é algo que in-
mente cometidos”. Ele está se referindo aqui aos pe- fluencia o amor de Deus; antes, foi o amor de Deus
cados realizados na Antiga Dispensação, ou seja, no que a produziu20. Sem a morte de Jesus, se Deus justi-
Antigo Testamento. Precisamos lembrar que os pe- ficasse o pecador, estaria sendo injusto e se condenas-
cadores do Antigo Testamento ofereciam sacrifícios se estaria sacrificando seu amor. A única forma para
pelos seus pecados. Estamos falando aqui do povo que estas duas virtudes divinas, o amor e a justiça,
de Israel. Aqueles sacrifícios não tinham poder em permaneçam intocáveis é através da morte de Jesus.
si mesmos de perdoar pecados (Hb 10.1). O fato é Por essa razão, a morte de Jesus foi absolutamente ne-
que eles apontavam para Cristo e na morte de Cristo cessária, pois ela é condizente com o caráter de Deus.
encontravam sua razão de ser e sua eficácia. Por esse Como diz Stott:
motivo, na explicação de Paulo, os pecadores do An-
tigo Testamento que os praticavam não foram puni- O modo pelo qual Deus escolhe perdoar os peca-
dos, e Deus não deixou de ser justo por causa disso. dores e reconciliá-los consigo mesmo deve, acima
Desde o início Deus tinha “em vista a manifestação
18 Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 477.

16 Donald M. Baillie. Deus Estava em Cristo, p. 216. 19 Michael Horton. Creio, p. 100.

17 Ver Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 478. 20 Ver D.M. Lloyd-Jones. Deus o Pai, Deus o Filho, p. 426.

201
de tudo, ser totalmente coerente com seu próprio do próprio caráter de Deus. Como diz Lloyd-Jones:
caráter. Não é somente que ele deve subverter e de-
sarmar o diabo a fim de resgatar os seus cativos. A dificuldade real que as pessoas têm com esta dou-
Nem é somente que ele deve satisfazer à sua lei, sua trina é geralmente devido ao fato de que todo o seu
honra, sua justiça ou a ordem moral: é que deve conceito de Deus é inadequado. Ignoram alguns as-
satisfazer a si mesmo.21 pectos do Seu caráter. Enfatizam só um lado, com
a exclusão dos outros. Se elas tomassem a Deus
Ao morrer na cruz, Jesus estava satisfazendo o caráter tal como ele é e compreendessem a verdade acerca
santo e justo de Deus, ao mesmo tempo em que esta- dele, suas dificuldades se desvaneceriam.22
va dando vazão ao seu amor eterno. Nada demonstra
de forma tão espetacular, e simultaneamente, estes Concluímos, portanto, que não havia outro jeito do
dois atributos de Deus. A cruz demonstra de forma homem ser salvo sem que Cristo morresse. A morte
impressionante a justiça e o amor de Deus. do Mediador é a grande demonstração do poder, da
soberania, da justiça e do amor de Deus. Acima de
CONCLUSÃO tudo cabe alegria e louvor a Deus por ter estabeleci-
do o plano da salvação através do sacrifício de Jesus.
Apesar da descrença de muitos, Deus continua sal-
Não devemos questionar o método de Deus, pois
vando os homens pela loucura da pregação do Cristo
crucificado. A dificuldade das pessoas com a doutri- ele, em sua sabedoria, é o único que tem condições
na da morte de Cristo se deve a uma incompreensão de estabelecer o que é certo.

22 D. M. Lloyd-Jones. Deus o Pai, Deus o Filho, p. 425.


21 John Stott. A Cruz de Cristo, p. 116.

202
27. O SUBSTITUTO DOS PECADORES

Agora que já entendemos a necessidade da morte contra um Deus infinitamente santo”.1 A transgressão
de Jesus, precisamos entender um pouco mais pro- não depende apenas do ato em si, mas de quem é o
fundamente o modo como sua morte traz a salvação ofendido. Nossos pecados podem até parecer insig-
para o seu povo. É impossível entendermos a neces- nificantes em certos momentos, mas o fato é que
sidade e o significado da redenção sem entender o ofendem a santidade infinita de Deus. Isso os torna
que o pecado significa. As pessoas têm um conceito terríveis. Por essa razão, a redenção se reveste de ain-
equivocado a respeito do pecado. Isto é compreensí- da maior importância, ela é o caminho divino para
vel, pois o pecado é algo que faz parte de nós, é algo nos tornar aceitáveis diante dele, apesar de nossos
absolutamente comum em nosso dia a dia. Ele está pecados.
presente em praticamente todos os nossos momen-
tos, e isto significa que nos acostumamos com ele. As TEORIAS DE EXPIAÇÃO
pessoas têm esta imensa capacidade de adaptação.
O conceito de expiação levou algum tempo para ser
Nos acostumamos às coisas à nossa volta, e então,
desenvolvido na teologia da igreja cristã. A Doutrina
elas deixam de ter o significado que um dia tiveram.
da expiação surgiu da mesma forma que as outras
Se uma família se muda do interior para uma grande
doutrinas, pois, como diz Benjamin Warfield, toda
cidade, nas primeiras noites não conseguirá dormir
doutrina surge através de “um processo gradual e or-
por causa do barulho, mas uma semana depois estará denado”.2 Os pais da igreja trataram da expiação, po-
perfeitamente adaptada, exceto por alguns sobressal- rém havia muitas discordâncias entre eles. O concei-
tos de madrugada. Depois de alguns meses, dormirá to antigo mais difundido sobre a expiação entendia
como se estivesse no sítio. Ao longo de uma vida de a morte de Cristo como um resgate pago a Satanás.3
acomodação ao pecado, ele não parece mais algo tão
assustador. Para muitos é inconcebível que pecados
1 Francis Schaeffer. A Obra Consumada de Cristo, p. 75.
cometidos durante uma vida tão curta, causem uma
2 Benjamim B. Warfield. La Persona y La Obra de Cristo, p.
eternidade de perdição, mas, como diz Schaeffer, “o 324.
problema não está na quantidade de pecados que 3 Benjamim B. Warfield. La Persona y La Obra de Cristo, p.
306-307.
praticamos, mas em quem ofendemos. Nós pecamos

203
Essa teoria foi muito popular, especialmente na igreja ao próprio Deus. Deus precisava ser satisfeito, e não
antiga. Por mais de mil anos, foi a ideia mais aceita o diabo.
sobre a expiação. Como o próprio nome indica, essa
teoria sugere que Jesus pagou um resgate ao diabo Muitas outras teorias sobre a expiação foram desen-
para a libertação dos pecadores. A partir do entendi- volvidas ao longo da história. A seguir veremos algu-
mento de que o pecador está sob o domínio de Sa- mas:
tanás, sendo esse o deus deste século ou o príncipe
deste mundo, Jesus precisou morrer para satisfazer as Teoria da Influência Moral: Essa teoria foi formu-
exigências do diabo. Essa teoria, aos poucos, caiu em lada em resposta à teoria de Anselmo e seu autor foi
desuso pela falta de evidência bíblica. A principal fa- Abelardo. Segundo essa teoria Deus não tem qual-
lha dessa teoria é colocar Satanás numa posição pra- quer dificuldade em perdoar os homens, ele pode
ticamente superior à de Deus, como se Deus tivesse perdoá-los até mesmo sem a cruz. A cruz é apenas
que prestar contas ao diabo. uma demonstração do amor de Deus. Na cruz, Deus
está dizendo que não importa o tamanho do pecado,
Anselmo (1033-1109), um arcebispo da Cantuária, ele pode perdoar até mesmo o pecado de matar seu
foi o primeiro a dar um tratado mais amplo para a Filho. A morte de Jesus, segundo essa teoria, é uma
doutrina da expiação. Segundo Warfield, “Anselmo tentativa de amolecer o coração do homem, influen-
estabeleceu para todos os tempos as linhas gerais so- ciando-o moralmente, para que mude de atitude e
bre as quais há de ser concebida a expiação, quando receba o perdão. Essa é uma teoria muito popular nos
se pensa nela como uma obra de libertação do cas- dias de hoje, mas é completamente antibíblica, pois,
tigo do pecado”.4 Com base nas relações comerciais embora enfatize o amor de Deus, falha em reconhe-
de sua época entre senhores e servos, Anselmo argu- cer sua justiça e a seriedade com que Deus considera
mentou que o pecado havia ferido a honra de Deus. sua lei.
Essa honra precisava de reparo. A função de Cristo
é obedecer a lei e morrer para satisfazer a honra de Teoria do Exemplo: Segundo essa teoria, Deus
Deus. Ele adquire para si um mérito muito grande, pode perdoar a quem ele quiser sem exigir qualquer
mas o fato é que não precisa desse mérito, então, pede satisfação. A vida e a morte de Cristo foram apenas
que o mérito seja derramado sobre o povo.5 O úni- exemplos, não há qualquer poder objetivo de salva-
co problema com essa teoria é que ela deixa de lado ção em seu sacrifício. As pessoas podem ser salvas,
a questão da justiça de Deus, enfatizando apenas a se seguirem o exemplo de amor, fé e abnegação de
honra de Deus que precisava ser satisfeita. A seu favor Cristo. Não há qualquer ideia de perdão incluída na
ela tem o fato de que localiza a expiação em relação morte de Jesus, é apenas um exemplo de fé a ser se-
guido. Essa teoria oculta muitos erros, por exemplo,
4 Benjamim B. Warfield. La Persona y La Obra de Cristo, p. um grande equívoco a respeito da justiça do homem
324. e de Deus. Ela não vê o homem como perdido e não
5 Anselmo argumenta extensivamente sobre esse assun- faz justiça ao caráter santo de Deus. Jesus seria apenas
to em seu livro Cur Deo Homo? O livro de Anselmo tem forma de
diálogo entre ele mesmo e Boso, um de seus discípulos. Boso faz as um mártir, alguém que deu a vida por uma causa, e
perguntas e Anselmo as responde. Na cosmologia de Anselmo, Deus
criou o mundo para sua glória, e quando o ser humano pecou, a hon-
nada mais do que isso. Essa, talvez, seja a ideia mais
ra de Deus foi ferida. Isso foi um insulto à sua honra e alguma satis- popular a respeito da morte de Jesus que se tem hoje.
fação precisava ser tomada. Assim, Jesus Cristo realizou um sacrifício
em prol da honra de Deus. (Ver Bengt Hägglund. História da Teologia,
p. 146-148)
Teoria do Governo Moral: Segundo essa teoria,

204
Deus poderia perdoar os homens independente- blia a revela, é uma questão de substituição.
mente das exigências da lei, às quais, se ele quisesse,
poderia até mudar. Deus resolveu aceitar o sacrifício EXPIAÇÃO COMO SUBSTITUIÇÃO
de Jesus, porque assim demonstra que não está con-
tente com o pecado e assegura o seu governo moral Quando o homem pecou, ele se colocou debaixo da
sobre o universo. Dessa forma o sacrifício de Jesus é condenação da lei de Deus. Ele ficou devendo uma
muito mais uma demonstração da vontade de Deus reparação a Deus. Essa reparação é exigida pela jus-
do que algum tipo de expiação pelo pecado. Essa teo- tiça de Deus, que estabeleceu uma lei para ser cum-
ria falha em não considerar a lei como Deus a consi- prida e uma punição para quem a descumprisse. Ao
dera, fazendo dela algo secundário e sem importân- contrário do que diz a maioria das teorias expostas
cia. acima, Deus não poderia ignorar sua lei, pois, se fizes-
se isso, estaria negando um princípio que ele mesmo
Teoria Mística: Segundo essa teoria a natureza hu- estabeleceu e, consequentemente, estaria negando a
mana de Jesus não era perfeita, mas pecaminosa. si mesmo. O homem somente poderia fazer essa re-
Como Jesus obedeceu perfeitamente à lei de Deus, paração se sofresse eternamente a penalidade fixada
essa natureza foi elevada ao nível da divina, especial- pela transgressão. De fato, segundo a Bíblia, muitos
mente por causa de sua morte que extirpou todas as passarão a eternidade pagando por seus crimes, mas
impurezas. Dessa forma a natureza humana é reunida isso exclui a possibilidade da redenção. Deus poderia
a Deus. Quando essa obra de Cristo é aplicada ao ser exigir isso de todos os homens, mas em sua miseri-
humano, a redenção acontece, pois produz mudança córdia providenciou uma maneira de salvar o peca-
de vida na pessoa. Essa teoria não faz justiça ao cará- dor. Deus designou um substituto para tomar o lugar
ter santo de Jesus, nem à sua divindade. do homem no ato de receber a punição. Se alguém
objetasse que um homem só em lugar do mundo
Teoria do Arrependimento Vicário: Essa teoria afir- inteiro parece desproporcional, diríamos que de fato
ma que a única coisa que o homem precisa fazer para é, mas para o lado de Jesus. Ele sendo Deus-Homem
ser salvo é demonstrar um arrependimento autênti- ofereceu um sacrifício mais valioso do que se todos
co. O problema é que o homem não tem condições os homens fossem sacrificados ao mesmo tempo.
de oferecer esse arrependimento. A obra de Cristo Do mesmo modo que a intensidade da transgressão
consistiu justamente no fato de ele oferecer esse arre- depende da dignidade do ofendido, também o valor
pendimento em lugar do homem. Essa teoria falha ao do sacrifício segue o mesmo princípio. Não importa
desconsiderar o sacrifício de Jesus, reduzindo tudo à a quantidade de sacrifícios, mas o valor deles. O sa-
questão de simples arrependimento.6 crifício de Jesus, o perfeito Deus-Homem, é de valor
infinito, e, portanto, amplamente suficiente para sal-
Todas essas teorias falham, pois minimizam a impor- var todos os homens em todos os tempos, ainda que,
tância do sacrifício de Cristo, tornando-o supérfluo e efetivamente não faça isso.
desnecessário. A razão disso é um falso entendimen-
to do pecado do homem, da lei e da justiça de Deus. Substituição no Antigo Testamento
Na concepção reformada, a expiação, conforme a Bí-
Para muitos estudiosos, os sacrifícios do Antigo Tes-
6 Para outras teorias sobre expiação ver: Robert Letham. tamento possuíam apenas caráter de “adoração ou
The Work of Christ, p. 159-175. culto” e não eram expiatórios. Como aponta War-

205
field, “a diferença fundamental é que em um caso o a vítima era um ato de imputar o pecado. O ato mais
sacrifício descansa sobre a consciência do pecado e solene do Antigo Testamento apontava claramente
tem sua referência à restauração por causa da iniqui- para isso: No dia da expiação, um bode deveria ser
dade do ser humano para o favor de um Deus conde- trazido diante do sacerdote, e a seguinte instrução
nador: no outro permanece fora de toda relação com deveria ser seguida:
o pecado e tem sua referência somente na expressão
de uma atitude própria de deferência”.7 Nossa defesa Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode
é que os sacrifícios do Antigo Testamento eram subs- vivo e sobre ele confessará todas as iniquidades dos
titutivos, e, portanto, expiatórios. É certo que havia filhos de Israel, todas as suas transgressões e todos
sacrifícios de louvor ou gratidão, mas a ênfase central os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode
dos sacrifícios era a expiação. A primeira instrução e envia-lo-á ao deserto, pela mão de um homem
sobre sacrifícios dada em Levítico já deixa isso bem à disposição para isso. Assim, aquele bode levará
claro: sobre si todas as iniquidades deles para terra so-
litária; e o homem soltará o bode no deserto (Lv
Chamou o senhor a Moisés e, da tenda da con- 16.21-22).
gregação, lhe disse: Fala aos filhos de Israel e di-
ze-lhes: Quando algum de vós trouxer oferta ao A “transferência” de pecados do povo para o bode
senhor, trareis a vossa oferta de gado, de rebanho está claramente especificada no texto. O bode era o
ou de gado miúdo. Se a sua oferta for holocausto de substituto do povo. Toda essa cerimônia apontava
gado, trará macho sem defeito; à porta da tenda da para Cristo, pois como diz Hodge, “o sentido em que
congregação o trará, para que o homem seja aceito ele foi sacrifício é o mesmo que aquele em que eram
perante o senhor. E porá a mão sobre a cabeça do sacrifícios as ofertas pelo pecado do Velho Testamen-
holocausto, para que seja aceito a favor dele, para to”.9 Os sacrifícios pelo pecado no Antigo Testamen-
a sua expiação. Depois, imolará o novilho perante to eram substitutivos ou vicários, e isso demonstra
o senhor; e os filhos de Arão, os sacerdotes, apresen- que a substituição é o método divino para expiação.
tarão o sangue e o aspergirão ao redor sobre o altar
que está diante da porta da tenda da congregação O messias anunciado em Isaías 53, que é uma pro-
(Lv 1.1-5). fecia sobre Jesus de acordo com o Novo Testamen-
to, seria aquele que sofre e morre pelos pecados do
Quando o pecador cometia uma transgressão, ofere- povo. Em quase todos os versos daquele capítulo, a
cia um animal que era sacrificado em seu lugar. Por morte substitutiva do Messias é anunciada. O verso
mais que escritores de inclinação liberal como Bail- 4 diz: “Certamente, ele tomou sobre si as nossas en-
lie8 se recusem a aceitar que os sacrifícios eram feitos fermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o
pelos pecados a fim de trazer o perdão, a evidência bí- reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido”.
blica é imensa nesse sentido. Colocar as mãos sobre As enfermidades e dores destacadas no texto são es-
pirituais e sinônimas do pecado, ele as carregou sobre
si. O verso 5 continua: “Mas ele foi traspassado pelas
7 B.B.Warfield. Biblical Foundations, p. 169-170.
nossas transgressões e moído pelas nossas iniquida-
8 Baillie diz que “o tema do sacrifício no antigo Israel é bas-
tante complicado e controvertido”. Ele não entende que os pecados
graves eram absolvidos pelos sacrifícios. (Ver Donald M. Baillie. Deus
Estava em Cristo, p. 200-201). 9 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 855

206
des; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e si, mas a culpa pelos nossos pecados que ele carregou
pelas suas pisaduras fomos sarados”. Talvez esse seja o e, por causa disso foi condenado. E ele somente pôde
verso mais claro da Bíblia que fala do sacrifício subs- carregar essa culpa porque não era algo inerente a
titutivo do Messias. Ele foi transpassado pelas iniqui- nós, mas uma consequência formal pela quebra da
dades do povo. O castigo que proporciona a paz com lei.10
Deus estava sobre ele. O verso 6 arremata: “Todos
nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um São muitas as passagens do Novo Testamento que
se desviava pelo caminho, mas o senhor fez cair so- apontam para a Substituição. João Batista relacio-
bre ele a iniquidade de nós todos”. Os homens são os nou Jesus com o sacrifício do Antigo Testamento ao
verdadeiros pecadores, mas Deus fez cair sobre Jesus apontar para ele e dizer: “Eis o Cordeiro de Deus, que
a iniquidade do povo. O verso 8 ainda diz que ele foi tira o pecado do mundo!” (Jo 1.29). O sacrifício de
ferido pela transgressão do povo. O verso 10 diz que Jesus é substitutivo, porque consuma os sacrifícios
ele deu a sua alma como oferta pelo pecado. O verso substitutivos do Antigo Testamento. No capítulo 5
11 que ele leva as iniquidades de seu povo sobre si. E de Romanos, Paulo também trabalhou bastante com
o verso 12 que ele levou sobre si o pecado de muitos. essa ideia. Primeiro ele disse “Porque Cristo, quando
A obra expiatória substitutiva do Messias está bem
nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos
demonstrada nessa passagem profética.
ímpios” (Rm 5.6). Essa, de acordo com Paulo, é a
prova do amor de Deus, o “fato de ter Cristo morrido
Substituição no Novo Testamento
por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Aos
Toda essa evidência do Antigo Testamento está em Gálatas Paulo falou a mesma coisa com palavras dife-
perfeita harmonia com o ensino do Novo Testamen- rentes: “O qual se entregou a si mesmo pelos nossos
to sobre a expiação. Pedro afirma que Jesus, ao mor- pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso,
rer na cruz estava “carregando ele mesmo em seu cor- segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (Gl 1.4).
po, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, Por causa dessa entrega, segundo Paulo, em Cristo
mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por “temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos
suas chagas, fostes sarados” (1Pe 2.24). Claramente a pecados” (Ef 1.7). O sangue que faz remissão de pe-
referência às chagas de Cristo que saram os pecado- cados somente pode ser um sangue substitutivo, nos
res é uma referência à profecia de Isaías 53. Pedro está mesmos moldes do sangue derramado no Antigo
aplicando a profecia de Isaías 53 que falava do sacrifí- Testamento (Lv 17.11; Hb 9.22). Dois versículos em
cio substitutivo do Messias para Jesus. Pedro diz que Hebreus são bastante precisos sobre esse assunto:
Jesus carregou sobre o madeiro os nossos pecados. “Nessa vontade é que temos sido santificados, me-
A substituição está muito evidente nessa passagem, diante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por
porém, não significa que Jesus tenha carregado nos- todas” (Hb 10.10). E logo adiante ele complemen-
sos pecados literalmente, como se tivesse carregado ta: “Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um
a nossa natureza pecaminosa, pois não haveria modo único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra
de a nossa natureza pecaminosa ser arrancada de nós de Deus” (Hb 10.12). O sacrifício de Jesus foi pelos
e transferida para Cristo. Às vezes as pessoas dizem pecados e foi único.
que Jesus, na cruz, se tornou o pior dos pecadores,
porque recebeu os pecados do mundo inteiro sobre
10 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 378.
si. Isso não é muito exato. Não foram os pecados em

207
A mesma ideia ecoa nos escritos de Pedro que afirma: contínua”,11 ou seja, “toda a sua vida foi uma cruz per-
“Sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, pétua”.12 Isso ecoa na resposta à pergunta 37 do Ca-
como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso tecismo de Heidelberg: “Que entendes pela palavra
fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas ‘sofreu’?”. “Que durante toda a sua vida na terra, e es-
pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defei- pecialmente no fim dela, ele suportou no corpo e na
to e sem mácula, o sangue de Cristo” (1Pe 1.1819). alma a ira de Deus contra os pecados de todo o gêne-
O resgate dos cristãos acontece pelo pagamento de ro humano, de modo que, pelo seu sofrimento, como
algo mais precioso que o ouro ou a prata, o sangue o único sacrifício expiatório, ele redimisse o nosso
de Cristo. Pedro diz ainda que “Cristo morreu, uma corpo e a nossa alma da maldição eterna, e para nós
única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conseguisse de Deus a graça, a justiça e a vida eterna”.
conduzir-vos a Deus” (1Pe 3.18). A expressão “o jus-
to pelos injustos” significa “o justo no lugar dos injus- Desceu ao Inferno?
tos”. A morte substitutiva de Jesus é que nos conduz a
Deus. Ele foi nosso substituto na cruz. Existe uma crença de que durante o período em que
Jesus esteve morto, ou seja, entre a sexta-feira e o pri-
O CASTIGO DO INFERNO meiro dia da semana, ele desceu ao Inferno. Isso pare-
ce ser visto no próprio Credo Apostólico que diz em
Isaías falou sobre a transferência do castigo pelas certa altura: “Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos,
transgressões do povo para o Messias. Ele disse: “Ele foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao Hades”.
foi traspassado pelas nossas transgressões e moído O Credo surgiu ainda no início da igreja e refletia os
pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz ensinamentos dos Apóstolos.13 Mas a expressão “des-
estava sobre ele” (Is 53.5). Se o castigo pela quebra da ceu ao Hades (Inferno)” é bastante discutida. Primei-
lei é a morte em todos os sentidos: física (da carne), ramente, é preciso que se entenda que essa expressão
espiritual (separação de Deus) e eterna (Inferno), não fazia parte do Credo em suas primeiras versões.
como podemos dizer que Jesus recebeu todo o nos- A frase “desceu ao Inferno” não se encontrava em
so castigo? nenhuma das versões primitivas (nas versões usadas
em Roma, no resto da Itália e na África) até que ela
A princípio, parece que ele sofreu apenas a morte apareceu em uma das duas versões de Rufino em
física. Normalmente as descrições da cena da pai- 390 d.C.14 O próprio Rufino não entendia que a frase
xão, sejam em filmes ou em teatro, mostram apenas
o sofrimento físico e a morte física de Jesus. Porém, 11 J. Calvino. Institución, III.8.1
segundo a Bíblia, Jesus sofreu muito mais do que a 12 João Calvino. A Verdadeira Vida Cristã, p. 45. “Ele não so-
mente padeceu constante aflição, mas também que toda a sua vida
morte física, ele padeceu os horrores da separação de foi uma espécie de cruz perpétua” (João Calvino, As Institutas, (1541),
Deus e do próprio Inferno. Também deve ser enten- IV.17).

dido que a cruz não foi o único lugar onde Jesus so- 13 O Credo dos Apóstolos tem a sua origem no Credo Ro-
mano Antigo, elaborado no segundo século, tendo algumas decla-
freu pelos pecadores, mas como bem disse Calvino, rações doutrinárias acrescentadas no decorrer dos primeiros séculos,
chegando à sua forma como temos hoje, por volta do sétimo século.
“Com toda verdade se pode dizer que não somente Ver J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 125ss.; P. Schaff, The
Creeds of Christendom, Vol. I, p. 19-22; II. 45-55.
passou toda sua vida em perpétua cruz e aflição, se-
14 Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 489.
não que toda ela não foi senão uma espécie de cruz

208
significasse que Jesus desceu ao Inferno literalmen- O primeiro texto a ser analisado é o da pregação de
te, mas à sepultura. De qualquer forma, é somente a Pedro logo após o Pentecostes. Pedro está defen-
partir de 650 d.C. que outros começaram a usar a ex- dendo que Jesus não permaneceu na morte, antes
pressão. Considerando isso, será que essa frase pode ressuscitou para se cumprir a Escritura. Pedro cita o
ser realmente considerada “apostólica”, uma vez que o Salmo 16 composto por Davi: “Porque não deixarás
Credo é considerado tão antigo quanto os apóstolos? a minha alma na morte, nem permitirás que o teu
Santo veja corrupção” (At 2.27). A palavra “morte”
A igreja Católica Romana entende que Jesus após sua usada nesses versos é a palavra Hades na língua gre-
morte foi para o Limbus Patrum (Limbo dos Pais). ga. A partir desse texto, muitos têm argumentado que
Nesse lugar estavam os santos do Antigo Testamento, Jesus de fato foi até o Hades após sua morte, mas saiu
na espera de que Jesus completasse sua obra redento- de lá na ressurreição. O fato é que Pedro está usando
ra, para que eles pudessem ir para o céu. No enten- o Salmo 16 para provar que Jesus ressuscitou e não
dimento católico, os santos do Antigo Testamento para dizer que Jesus foi fazer uma visita ao Inferno.
A palavra Hades nesse texto significa simplesmente
não estavam no Inferno, mas também não estavam
morte, e quer dizer que Jesus não permaneceu morto,
no céu, porque Jesus não havia consumado a obra da
antes obteve vitória sobre a morte através de sua res-
salvação. Assim, após sua morte, Jesus foi até aquele
surreição. Aqui, Hades é apenas sinônimo de morte
lugar, anunciou a vitória do Evangelho para aquelas
ou sepultura.
almas e as conduziu ao céu.
O próximo texto que devemos considerar é Efésios
Muitos luteranos, por sua vez, defendem que Cristo 4.8-9: “Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, le-
após a morte e talvez até após a ressurreição, foi ao vou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens.
Inferno e proclamou sua vitória sobre Satanás e sobre Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia
todos os poderes das trevas, e pronunciou a sentença descido às regiões inferiores da terra?”. Nesse texto,
de condenação daquelas forças malignas. A igreja da há um contraste entre a ascensão de Jesus e sua desci-
Inglaterra, por outro lado, defende que Jesus desceu da. Muitos interpretam isso como o ato de Jesus ir até
apenas com seu espírito até o submundo, enquanto o Hades, descrito aqui como as “regiões inferiores da
seu corpo permanecia na sepultura. Nesse estado, ele terra”, e depois disso ter levado os cativos de lá para o
foi até o lugar da habitação dos justos e lhes procla- paraíso, por causa da expressão “levou cativo o cati-
mou a vitória e o plano de Deus através do Evange- veiro”. O fato é que nesse texto a palavra Hades nem
lho.15 Percebe-se, portanto, que há muitas opiniões sequer aparece e “regiões inferiores da terra” é uma
diferentes sobre a questão de Jesus ter descido ao expressão de contraste com “às alturas” para onde
Inferno. Precisaremos analisar a Bíblia para entender Cristo subiu. Devemos entender o texto, portanto,
esse assunto. como demonstrando a humilhação e a exaltação de
Cristo (Fp 2.8-9). Quanto ao cativeiro levado cativo
Há algumas passagens bíblicas que parecem dar deve ser uma referência aos espíritos malignos que
apoio à ideia de que Jesus desceu ao Inferno após sua foram derrotados através de sua morte, ressurreição
morte na cruz. Deveremos estudá-las uma a uma. e ascensão (Ef 1.20-21, Cl 2.15, 1Pe 3.22). Mas o tex-
to não pretende dizer que Jesus foi até o Inferno para
derrotá-los. Esse texto fala da vinda de Jesus a esse
15 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 342-343.
mundo e de sua volta para a glória.

209
A passagem mais usada para defender a descida de fim, foi o Evangelho pregado também a mortos, para
Jesus ao Inferno é 1Pedro 3.18-20: que, mesmo julgados na carne segundo os homens,
vivam no espírito segundo Deus”. Normalmente os
“Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos defensores da descida de Jesus ao Inferno ligam esse
pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a texto com o anterior, e dizem que, Jesus pregou às al-
Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espí- mas dos mortos após sua morte. Novamente precisa
rito, no qual também foi e pregou aos espíritos em ser dito que se isso é verdade, então a Bíblia estaria
prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedien- sugerindo que a salvação após a morte é possível. De-
tes quando a longanimidade de Deus aguardava vemos, no entanto, buscar outra interpretação para a
nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na passagem. O contexto nos ajuda a entender o que Pe-
qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, dro está querendo dizer. Pedro está dizendo, a partir
através da água”. do verso primeiro, que os crentes não deveriam mais
viver em luxúrias como os demais homens, ainda
Entendendo o texto como uma sequência literal, al- que com isso ofendessem seus contemporâneos que
guns argumentam que Jesus morreu, foi sepultado, vivem dessa forma, e fossem ultrajados por eles (v.
e então, no espírito foi até o Inferno e pregou aos 2-4). Os ultrajadores teriam que prestar contas diante
espíritos aprisionados desde os tempos de Noé, ou de Deus, que é competente para julgar os vivos e os
seja, às almas dos homens maus que morreram no mortos (v. 5). Por essa razão, o Evangelho foi pregado
dilúvio. Essa pregação poderia ter sido uma procla- aos mortos, para que mesmo tendo sido condena-
mação de vitória sobre os espíritos malignos que agi- dos na carne diante dos homens, fossem vivificados
ram no tempo do dilúvio, ou um anúncio às almas no espírito por Deus. O texto não está dizendo que
dos justos que ainda não tinham ido para o céu. O Jesus foi até o Inferno e pregou aos mortos para sal-
fato é que Pedro não cita o Hades nesse texto. Apesar vá-los, mas que os cristãos que estavam mortos, no
de reconhecermos a dificuldade da passagem, deve- momento em que Pedro escrevia aquela carta, ouvi-
mos entender a pregação de Cristo “no espírito” (v. ram a palavra enquanto estavam vivos. E que embora
18), aos homens desobedientes dos dias de Noé (v. tivessem sofrido e até sido mortos na carne, ainda
20), como possivelmente tendo acontecido "após a ressuscitariam e viveriam segundo Deus. A expressão
ressurreição", pois o texto diz que ele foi "vivificado “foi o Evangelho pregado” está no passado, ao passo
no espírito". Se Jesus fosse anunciar o Evangelho aos que “mortos” está no presente. Eles estavam mortos
mortos estaria sugestionando uma possível salvação no momento em que Pedro estava escrevendo, mas
após a morte, o que é totalmente repudiado pelas Es- quando a palavra lhes foi pregada, estavam vivos. Até
crituras (Hb 9.27). O texto nada fala sobre o Inferno. porque somente poderiam estar vivos para poderem
Além disso, no Inferno só estariam os homens do “ser julgados na carne”. Como poderiam ser julgados
tempo de Noé? Isso não faz sentido. Também este na carne se já estavam mortos antes? Apesar dessa ser
texto, portanto, deve fazer menção à vitória de Cristo uma passagem bastante difícil e obscura, não é neces-
sobre os poderes hostis, a proclamação de sua vitória sário pensar que ela ensine a salvação após a morte.
contra todos aqueles poderes malignos através de sua
ressurreição. O Inferno veio à cruz

Resta-nos apenas analisar uma última passagem tam- Duas expressões de Jesus não deixam dúvidas de que
bém na carta de Pedro, é 1Pedro 4.6: “Pois, para este ele não foi ao Inferno após sua morte. As duas estão

210
relatadas no Evangelho de Lucas no capítulo 23. Ao deixar seu estado de glória para assumir um corpo de
ladrão que estava ao seu lado na cruz e que se arre- homem já era em si uma punição. Mas o momento
pendeu naquele momento ele disse: “Hoje estarás mais crucial disso tudo aconteceu no Gólgota. É so-
comigo no Paraíso” (Lc 23.43). E sua última palavra mente assim que podemos entender o real sofrimen-
na cruz foi: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espíri- to de Cristo ainda no Jardim de Getsêmani quando
to” (Lc 23.46). Esses textos parecem sugerir que, se a sua alma “começou a entristecer-se e a angustiar-se”
alma de Jesus ficou separada de seu corpo enquanto (Mt 26.37). Naquela ocasião ele disse: “A minha alma
estava no sepulcro, certamente ela não foi até o Infer- está profundamente triste até à morte” (Mt 26.38).
no, antes pelo contrário foi até o Paraíso, até Deus.16 Em profundo estado de angústia ele, prostrado sobre
Quanto ao que Jesus disse a Maria Madalena, após seu rosto, orava ao Pai: “Meu Pai, se possível, passe
sua ressurreição, que ainda não havia subido ao Pai de mim este cálice!” (Mt 26.39). Lucas diz que “es-
(Jo 20.17), devemos entender como uma referência tando em agonia, orava mais intensamente. E aconte-
à sua subida física. Com o corpo ressuscitado, na- ceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue
quela manhã da Páscoa, ele ainda não tinha subido caindo sobre a terra” (Lc 22.44). Jesus estava naquele
ao céu. Mas nada impede que seu espírito já tivesse estado de agonia, porque antecipava o sofrimento do
ido até Deus para recepcionar o ladrão convertido, a Inferno, o qual se consumaria na cruz. Muito mais
menos que o paraíso precise ser considerado como do que medo pelo sofrimento físico, Cristo naque-
um lugar "diferente" do céu. le momento passava por um conflito íntimo, pois
havia o “temor muito maior de se tornar tudo o que
Desde João Calvino, os protestantes reformados têm mais odiava no mais profundo do seu ser”,18 ou seja,
defendido que Jesus de fato sofreu as angústias do o temor de se tornar um maldito, um condenado do
Inferno, mas não foi ele quem desceu ao Inferno, e Inferno. Calvino, falando sobre a necessidade desse
sim o Inferno quem veio até ele na cruz e no jardim sofrimento de Cristo, diz: “Nada teria acontecido se
do Getsêmani. Ele sofreu os terrores do Inferno no Jesus sofresse apenas a morte temporal. Pois era ne-
momento de sua condenação. A punição do Inferno cessário que sentisse em sua alma o rigor do castigo
deve ser entendida como um estado de separação de de Deus, para se por sob a sua ira e satisfazer a seu jus-
Deus, e abandono sob sua Ira. De fato os condenados to juízo. Pelo qual convinha também que combatesse
no Inferno estão separados de Deus e abandonados com as forças do Inferno e que lutasse com o hor-
sob sua Ira eterna. Os reformados defendem que Je- ror da morte eterna”.19 A explicação de Calvino para
sus sofreu isso na cruz. É importante entender que o fato de a declaração “desceu ao Hades” do Credo
Jesus tinha que sofrer as angústias do Inferno, pois Apostólico ter sido posta após a expressão “foi sepul-
ele substituiu o homem em todo o processo de con- tado” é porque está falando da realidade espiritual da
denação que o pecado acarreta. Num sentido, Jesus morte de Cristo. Foi posta após a descrição da morte
experimentou um estado de punição pelos pecados física “para que saibamos que não somente o corpo
durante toda a sua vida.17 O simples fato dele ter que de Jesus Cristo foi entregue como preço por nossa re-
denção, como que também pagou outro preço muito
16 Berkhof prefere falar que a alma de Jesus ficou num es-
tado passivo e não ativo (Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p.
343). de todo o gênero humano”
17 O Catecismo de Heidelberg na resposta da pergunta 37 18 Michael Horton. Creio, p. 99.
diz: “Que Cristo, em corpo e alma, durante toda a sua vida na terra,
mas principalmente no final, suportou a ira de Deus contra o pecado 19 João Calvino. Institutas, (II,16,10).

211
maior e mais excelente, que foi padecer e sentir em ve alguma espécie de separação entre a Primeira e a
sua alma os horrendos tormentos que estão reserva- Segunda Pessoa da Trindade no momento em que
dos para os condenados e réprobos.”20 Jesus foi crucificado. Não devemos pensar numa se-
paração definitiva, devemos pensar numa separação
É importante que fique bem claro que, na visão re- mais em termos de um abandono, ou melhor, um
formada Cristo, em momento algum, foi ao Inferno abandono da graça. Jesus se viu responsabilizado pe-
para sofrer, ou para salvar pecadores. Ele sofreu os los pecados da raça humana, e se sentiu abandonado
tormentos do Inferno que precisava sentir para subs- por Deus. Naquele momento, o filho já não podia ver
tituir seu povo enquanto esteve crucificado. Por isso o olhar terno do pai. Tudo o que ele via era o olhar de
dizermos: “O Inferno veio até a cruz”. Mas é claro que ira.22 Essa foi a maior punição que o Filho de Deus
essa é apenas uma força de expressão. Bavinck diz “de recebeu. Essa punição se igualou aos tormentos do
fato, não em um sentido espacial, mas em um sentido Inferno. Pois o Inferno significa separação da graça
espiritual, ele desceu ao Inferno”.21 Ou seja, ele não de Deus, e abandono perante a ira dele. Nas três ho-
precisou sair da cruz para ir até o Inferno. Sua ida ao ras de trevas daquela sexta-feira, o Inferno veio até a
Inferno não foi física, mas espiritual. cruz.23 O substituto do homem recebeu sobre si todo
o peso da condenação divina pelo pecado.
A passagem bíblica que mais demonstra a razoabi-
lidade dessa ideia é a que relata as palavras de Jesus OS EFEITOS DA EXPIAÇÃO
quando estava pendurado na cruz. Mateus diz que
“desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas so- Os efeitos da expiação são imensos, eles não alcan-
bre toda a terra. Por volta da hora nona, clamou Jesus çam apenas o povo de Deus, mas toda a criação. To-
em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni? O que das as coisas existentes, de um modo ou de outro, se
quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me de- viram afetadas pela expiação de Cristo. Ela é sem dú-
samparaste?” (Mt 27.45-46). A Bíblia não diz o que vida, a obra divina mais abrangente.
aconteceu durante aquelas três horas de escuridão
que antecederam o grito desesperado do Senhor.
Mas certamente ele sofria angústias indescritíveis. As
trevas do Inferno envolveram o Calvário, enquanto
22 Berkhof enfatiza que ainda assim, o amor do Pai não se re-
Deus fazia cair sobre Jesus “as nossas iniquidades” tirou do Filho, o que por certo é verdade (Ver Louis Berkhof. Teologia
(Is 53.6). Era o momento que ele “estava sendo fei- Sistemática, p. 340).

to pecado por nós” (2Co 5.21) e recebia em nosso 23 Cabe ainda uma explicação à questão do Credo Apostóli-
co. Ainda que a expressão não se encontre nas versões mais antigas,
lugar o pleno “salário do pecado” (Rm 6.23). Como ela se encaixa na sequência das expressões. O Credo faz uma espécie
de sequência em “V” para demonstrar a trajetória de Cristo. A primeira
consequência, e como real sofrimento do Inferno, declaração sobre Jesus é: “Creio em Jesus Cristo seu único filho, nosso
Jesus se viu abandonado por Deus, igual ao Bode Senhor”. Esta afirmação aponta para a divindade de Jesus. A próxima
para a encarnação, que representa um ponto abaixo: “Que foi conce-
Expiatório que recebia sobre si o pecado do povo e bido pelo poder do Espírito Santo”. A próxima mais um ponto abaixo:
“Nasceu da virgem Maria”. E continua a descida: “Padeceu sob Pôncio
então era expulso e enviado solitário ao deserto (Lv Pilatos”. Desce ainda mais: “Foi crucificado, morto e sepultado”. A pró-
16.21-22). Contudo não podemos pensar que hou- xima expressão representa o ponto mais inferior de todos: “Desceu ao
Hades”. Daí começa a subida: “Ressuscitou ao terceiro dia. Subiu aos
céus. Está assentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso. Donde há
de vir para julgar os vivos e os mortos...”. Portanto, a expressão “Des-
20 João Calvino. Institutas, (II,16,10). ceu ao Hades” quer indicar o ponto máximo da humilhação de Cristo
antes de sua exaltação. Significa simplesmente: Esteve sob o poder
21 Herman Bavinck. Teologia Sistemática, p. 401. da morte em todos os sentidos.

212
Em relação a Deus (Hb 10.19-20). Para resumir, a expiação garante aos
remidos toda sorte de bênção espiritual (Ef 1.3). Para
Podemos dizer que a redenção foi feita totalmente aqueles que pensam que a expiação deve garantir a
em relação a Deus. Cristo não pagou resgate a Satanás todos os homens a salvação, a Bíblia é bastante clara
ou a qualquer outro. Ele estava satisfazendo uma exi- ao afirmar que Jesus morreu apenas pelo seu povo.
gência do próprio Deus. Isso não quer dizer que algo
da imutabilidade de Deus foi afetado pela expiação. Em relação ao diabo
Deus simplesmente dirige, sobre a base do sacrifício,
seu amor e bondade ao homem, ao passo que sem Satanás foi o grande prejudicado com a obra de
o sacrifício, somente a ira seria dirigida ao homem. Cristo. A expiação de Cristo não pagou um resgate
A expiação não produz o amor de Deus, como mui- a Satanás, antes o despojou de tudo o que ele tinha.
tos imaginam, a expiação é fruto do amor de Deus. Uma das coisas que ele perdeu com o sacrifício de
Porque Deus ama as pessoas, é que enviou seu Filho Jesus foi seu posto de acusador. Jesus disse de Sata-
a fim de redimi-las (Jo 3.16). Com relação a Deus, nás: “Eu via Satanás caindo do céu como um relâm-
explicitamente a Escritura diz que a expiação garante pago” (Lc 10.18). Na batalha descrita no Apocalipse,
que ele seja “justo e justificador daquele que tem fé que simboliza a vitória de Jesus sobre Satanás, é dito
em Jesus” (Rm 3.26). Somente por causa da morte dele: “E foi expulso o grande dragão, a antiga serpen-
de Cristo, Deus pode justificar o pecador e continuar te, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo
sendo totalmente justo, ou seja, pode usar seu amor o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os
sem ferir sua justiça. A expiação vicária (substitutiva) seus anjos. Pois foi expulso o acusador de nossos ir-
de Cristo satisfaz inteiramente o caráter de Deus. mãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante
do nosso Deus” (Ap 12.9-10). Ele perdeu o lugar de
Em relação ao homem acusador diante de Deus. É sobre isso que o autor aos
Hebreus por certo está falando, quando diz que Jesus
O homem, sem sombra de dúvida, foi o grande bene- derrotou o diabo que detinha o poder da morte (Hb
ficiado com a expiação. O homem que por natureza 2.14). Evidentemente que o poder da morte, que é
está “morto em delitos e pecados” (Ef 2.1), que “care- atribuído a Satanás, não é o poder de tirar a vida de
ce da glória de Deus” (Rm 3.23), a partir da expiação alguém fisicamente, pois somente Deus dispõe deste
pode se tornar filho de Deus. Nas palavras de Pedro: poder. Somente Deus estabelece os limites da vida
“Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação de alguém. O poder da morte que Satanás dispunha
santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim era o poder de exigir a morte diante de Deus para os
de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou transgressores da lei. Ao morrer pelos pecados, Cris-
das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, to satisfez a justiça de Deus, e Satanás não tem mais
antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, o que exigir, nem o que acusar. Ninguém pode inten-
que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, tar “acusação contra os eleitos de Deus”, pois, “é Deus
alcançastes misericórdia” (1Pe 2.9-10). Esse é o sta- quem os justifica” (Rm 8.33). Eles não podem ser
tus que a expiação de Cristo garante ao povo salvo. mais condenados, pois Cristo Jesus morreu e ressus-
Os pecadores, outrora privados da presença de Deus, citou por eles, e estando a direita de Deus, intercede
agora têm “intrepidez para entrar no Santo dos San- por seu povo (Rm 8.34). O acusador perdeu o direi-
tos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho to de acusar. A expiação não apenas tirou os direitos
que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne” de Satanás sobre o homem, como garantiu a própria

213
destruição de Satanás. Na cruz, Jesus feriu a cabeça da deiro, porém no mesmo céu, para comparecer, agora,
serpente (Gn 3.15), ou seja, quebrou seu poder. Na por nós, diante de Deus” (Hb 9.23-24). De alguma
segunda vinda, Satanás será definitivamente banido. forma o pecado que entrou no mundo, e que se origi-
nou primeiramente no diabo e depois em Adão, tor-
Em relação à criação nou necessária a purificação do tabernáculo celestial
(Ex 25.40). Esse lugar celestial precisava ser purifica-
Todo o universo se beneficia da redenção. A terra que do e Jesus fez isso com seu sangue. Não sabemos exa-
foi posta sob maldição a partir da entrada do pecado tamente que tipo de impureza adentrou o céu, mas
no mundo (Gn 3.17), tem em Cristo a garantia de sabemos que Satanás estava lá e foi expulso por causa
sua restauração. Por isso Paulo diz: da morte, ressurreição e ascensão de Jesus. Pode ser
que Paulo tenha isso em mente quando diz: “E que,
A ardente expectativa da criação aguarda a revela- havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio
ção dos filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas,
vaidade, não voluntariamente, mas por causa da- quer sobre a terra, quer nos céus” (Cl 1.20). O texto
quele que a sujeitou, na esperança de que a própria está dizendo que Cristo através de seu sangue recon-
criação será redimida do cativeiro da corrupção, ciliou não somente coisas na terra, mas também no
para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Por- céu. Talvez seja essa uma das razões porque a Bíblia
que sabemos que toda a criação, a um só tempo, diz que haverá não só uma nova terra, mas também
geme e suporta angústias até agora (Rm 8.19-22). “novos céus” (Is 66.22; 2Pe 3.13; Ap 21.1). Tudo o
que o pecado influenciou terá que ser renovado.
A morte de Cristo não foi somente para salvar as
pessoas, mas para renovar a própria terra e tirá-la da CONCLUSÃO
maldição do pecado. Literalmente, para fazer uma
nova terra, afinal, ele é o cordeiro que tira o pecado Há muita pregação do Evangelho nos nossos dias que
do mundo (cosmos Jo 1.29). não enfatiza o caráter substitutivo da morte de Jesus.
Isso é um grave erro. As pessoas precisam entender
Por mais estranho que possa parecer a princípio, de a realidade e a gravidade de seu pecado, bem como
alguma maneira, o próprio céu também se beneficia o custo da redenção que foi a morte substitutiva de
da redenção. Estamos falando aqui de algumas coisas Cristo. Uma coisa precisa ficar bem clara: “Onde não
que não entendemos ao todo. Mas o autor aos He- há expiação não há Evangelho”.24 O Evangelho sem
breus diz: “Era necessário, portanto, que as figuras cruz pode ser agradável aos homens, mas em hipóte-
das coisas que se acham nos céus se purificassem se alguma agrada a Deus.
com tais sacrifícios, mas as próprias coisas celestiais,
com sacrifícios a eles superiores. Porque Cristo não
24 James Denney. The Death of Christ, p. 157.
entrou em santuário feito por mãos, figura do verda-

214
28. A EXTENSÃO DA EXPIAÇÃO DE CRISTO

Conta-se que há mais de cem anos atrás, um ameri- concordam que todos os homens, mesmo os incré-
cano foi condenado à morte, mas recebeu o perdão dulos, recebem algum benefício da morte de Cristo.
do governador.1 O homem, entretanto, se negou a O grande fato divergente é: A morte expiatória de
aceitar o perdão e apelou para a corte suprema para Cristo foi realizada com a intenção de salvar somen-
garantir o seu direito de morrer. A atitude daquele te os eleitos ou todas as pessoas sem exceção? Cristo
homem pode ter sido uma loucura, mas ele de fato morreu pelos pecados, mas isso foi apenas num sen-
tinha o direito de morrer. Ele era o único culpado por tido de “provisão” ou foi algo realmente “eficaz”?
um crime que precisava de reparação. Ele tinha o di-
reito de morrer, porque o perdão do governador não Os arminianos creem que Cristo não morreu por
era um ato de dar vida, mas simplesmente um ato de qualquer pessoa em especial, mas, por todo o mun-
garantir que não houvesse morte. Porém, em última do. Assim, ele apenas tornou possível a salvação a to-
instância, a escolha era pessoal. dos, mas depende exclusivamente de cada um fazer
uso, ou não, do poder redentor que Cristo conquis-
Todos os cristãos ortodoxos creem que Cristo mor- tou. Nesse sentido a morte de Cristo teria apenas po-
reu para redimir as pessoas, mas nem todos concor- tencialmente o caráter salvífico, e não objetivamente.
dam sobre por quais pessoas ele morreu. Arminianos, Isso equivale a dizer que a morte de Cristo pode sal-
luteranos e calvinistas concordam, por exemplo, que var a todos ou a ninguém, pois depende da resposta
a satisfação de Cristo é suficiente para salvar todos os de fé que cada pessoa dá. Ela só se torna efetiva quan-
homens. Também concordam que os benefícios da do alguém a “aceita” demonstrando arrependimento
salvação não são aplicados a todos os homens, mas e fé, e então passa a usufruir dos benefícios salvíficos
apenas sobre os que creem. Concordam ainda que a da morte do Redentor.
oferta do Evangelho deve ser feita a todos os homens
com a real intenção de que se convertam. Por fim A TRADIÇÃO REFORMADA

A partir do desenvolvimento da doutrina da expia-


1 Nos Estados americanos onde a pena de morte existe, so-
mente o governador pode, numa ligação final, impedir a execução do ção na tradição reformada, que tem a ver com a obra
condenado. da redenção realizada por Cristo na cruz, a pergunta

215
“por quem Cristo morreu?” começou a ter grande reformado Charles Hodge diz:
importância.2 Devido ao entendimento de que o
sacrifício de Cristo não apenas possibilita, mas real- Deus, em sua infinita misericórdia, havendo de-
mente expia, ou seja, perdoa os pecados, a teologia re- terminado salvar uma multidão que ninguém po-
formada sustenta que Cristo morreu exclusivamente deria enumerar, deu-a a seu Filho como herança,
pelos pecados de seu povo. Os teólogos reformados providenciou para que ele assumisse a natureza
começaram a pensar que a morte de Cristo não deles e em seu lugar cumprisse toda justiça. No
poderia de fato se estender a todos os homens sem cumprimento deste plano, Cristo veio ao mundo e
exceção. O que a morte de Cristo poderia fazer por obedeceu e sofreu no lugar daqueles que lhe foram
um Judas Iscariotes? Qual teria sido o benefício de dados e para a salvação deles. Este foi o objetivo
Cristo derramar seu sangue por alguém que já esta- concreto de sua missão, e por isso sua morte teve
va no Inferno quando ele morreu? Como diz Louis uma referência a esses que não pôde ser feita àque-
Berkhof, “a posição reformada é que Cristo morreu les que Deus decidiu entregar à justa recompensa
com o propósito de real e seguramente salvar os elei- por seus pecados (...) Segue-se, pois, da natureza
tos, e somente os eleitos. Isso equivale a dizer que ele do pacto da redenção, tal como se apresenta na Bí-
morreu com o propósito de salvar somente aqueles blia que Cristo não morreu igualmente por toda a
a quem ele de fato aplica os benefícios da Sua obra raça humana, senão que se deu a si mesmo por seu
redentora”3. Segundo essa interpretação, Cristo não povo e pela redenção deles.5
poderia ter morrido pelos pecados do mundo inteiro,
pois, se tivesse feito isso, teria necessariamente salvo Essas palavras de Hodge refletem consistentemen-
todas as pessoas do mundo inteiro. te o ensino da Confissão de Fé de Westminster que
também identifica a eficácia da morte de Cristo com
A doutrina da expiação Limitada ou Definida4 é os eleitos de Deus:
construída sobre a doutrina da eleição ou predestina-
ção. A doutrina da predestinação diz que Deus, desde O Senhor Jesus, pela sua perfeita obediência e pelo
toda a eternidade, tem escolhido para si um número sacrifício de si mesmo, sacrifício que, pelo Eterno Es-
certo e limitado de pessoas, as quais serão salvas, en- pírito, ele ofereceu a Deus uma só vez, satisfez plena-
quanto que tem preterido o restante que deverá pa- mente à justiça de seu Pai, e, para todos aqueles que
gar por seus próprios pecados. O eminente teólogo o Pai lhe deu, adquiriu não só a reconciliação, como
também uma herança perdurável no Reino dos céus.6
2 No século XVII, a teologia escolástica protestante produziu
extensas obras sobre a expiação. Uma das obras mais conhecidas foi a
do puritano John Owen, que tratou extensivamente sobre a questão
A posição da Confissão de Fé de Westminster é cor-
da expiação limitada. Ver: John Owen. Por Quem Cristo Morreu? (Pu- relata ao que havia sido desenvolvido no Sínodo de
blicações Evangélicas Selecionadas). Essa obra é uma versão simplifi-
cada e condensada do clássico “A Morte da Morte na Morte de Cristo” Dort (1619) na Holanda. Naquele sínodo, formu-
(16161684). Ver: William H. Good Ed. The Works of John Owen, Vol X.
Livro I.
lou-se o sistema que até hoje é conhecido como “Os
3 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 395.
Cinco Pontos do Calvinismo”. São eles: Depravação
Total, Eleição Incondicional, Expiação Definida, Gra-
4 Os teólogos reformados usam ambas as expressões para a
doutrina. A expressão “definida” parece melhor pelo fato de que não
faz parecer a expiação de Cristo limitada em poder. A ideia é que a ex-
piação é definida em relação aos eleitos, mas não limitada em poder. 5 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 892
Neste trabalho, há uma preferência pelo termo “expiação definida”,
embora não seja descartado o termo “expiação limitada”. 6 Confissão de Fé de Westminster, VIII.V.

216
ça Irresistível e Perseverança dos Santos. Esses cinco Portanto, o calvinista insiste que a expiação é limitada
pontos foram oficialmente reconhecidos a partir des- não em poder, mas no seu objetivo. Para o calvinis-
se sínodo, como um esforço no sentido de rebater os ta o poder da expiação de Cristo é ilimitado, mas o
cinco pontos do arminianismo que são anteriores e objetivo não é. Ela é uma expiação definida, ou seja,
afirmam exatamente o oposto.7 Em relação à expia- feita com o propósito específico de salvar os eleitos. A
ção definida, os teólogos do Sínodo de Dort fizeram seguir veremos se a expiação definida pode ser com-
questão de enfatizar seu caráter ilimitado em termos provada pela Bíblia.
de poder: “A morte do Filho de Deus é a oferenda e
a satisfação perfeita pelos pecados, e de uma virtude O ENSINO DE JESUS
e dignidade infinitas, e totalmente suficiente como
expiação dos pecados do mundo inteiro”.8 Porém, ela Inicialmente devemos perceber que Jesus fala em
não se estende eficazmente aos homens de todo o morrer pelas suas ovelhas. Ele disse: “Eu sou o bom
mundo, conforme o sínodo explicitou: pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo
10.11). Nesse texto, ele está falando do amor do pas-
Porque este foi o conselho absolutamente livre, a tor em contraste com os interesses do mercenário.
vontade misericordiosa e o propósito de Deus Pai: O pastor dá a vida pelas ovelhas, enquanto o merce-
que a virtude vivificadora e salvadora da preciosa nário, na hora do perigo, foge. Jesus está afirmando
morte de seu Filho se estendesse a todos os predes- que ele, como bom pastor, iria dar a vida pelas ove-
tinados, para, unicamente a eles, dotar da fé justi- lhas. Dessas ovelhas ele disse: “Conheço as minhas
ficadora, e por isso mesmo levá-los infalivelmente à ovelhas, e elas me conhecem a mim” (Jo 10.14). Em
salvação; ou seja: Deus quis que Cristo, pelo san- seguida ele disse: “Ainda tenho outras ovelhas, não
gue de sua cruz (com a qual firmou o Novo Pacto), deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas
salvasse eficazmente, de entre todos os povos, tribos, ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um
linhagens e línguas, a todos aqueles, e unicamente pastor” (Jo 10.16).
a aqueles, que desde a eternidade foram escolhidos
Mas certamente essas ovelhas não eram todas as pes-
para salvação, e que lhe foram dados pelo Pai.9
soas do mundo sem exceção. Mais à frente ele disse
para um grupo de incrédulos: “Vós não credes, por-
7 Os cinco pontos do arminianismo são: depravação parcial, que não sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas
eleição condicional, expiação ilimitada, graça resistível e possibilida-
de de perda da salvação. ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem”
8 Os Cânones de Dort, II.III.
(Jo 10.26-27). A conclusão óbvia que podemos che-
9 Os Cânones de Dort, II.VIII. Esta linha de argumentação é
gar a partir dessa afirmação de Jesus é que, como
considerada calvinista. O nome “calvinista” vem do reformador João aquelas pessoas não eram suas ovelhas, portanto, ele
Calvino (1509-1564) que foi o grande sistematizador da Reforma
Protestante. Ele produziu uma vasta obra teológica através de co- não morreria por elas, pois disse que morreria pelas
mentários da Sagrada Escritura, tratados teológicos, sermões e car- suas ovelhas. Então, significa que Jesus não morreu
tas. Sua obra magna, as Institutas, é geralmente considerada a maior
obra teológica da Reforma Protestante, e uma das mais importantes por todas as pessoas, mas apenas por suas ovelhas.
da história. João Calvino, apesar de possivelmente ter baseado boa
parte de sua teologia do célebre Agostinho, é considerado o Pai da
Teologia Reformada, e todo o sistema reformado depende essen-
cialmente dos ensinos do reformador de Genebra. Porém, a questão Calvino (Ver Leandro Antonio Lima. Uma Apologia da expiação Defi-
que se tem levantado nos últimos tempos é se Calvino concordaria nida em Calvino. São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação
com todos os cinco pontos do calvinismo. Especialmente o que fala Andrew Jumper, 2002). Para um artigo com essa exposição resumida
da expiação Limitada. Em minha Dissertação de Mestrado, procuro ver: Leandro Antonio de Lima. Calvino Ensinou a expiação Limitada?
demonstrar que a doutrina da expiação limitada tem sua base em São Paulo: Revista Fides Reformata, Vol 9, n.1, 2004, p. 77-99.

217
Essa afirmação de Jesus limita o alcance da expiação. mim, por intermédio da sua palavra” (Jo 17.20). Je-
Ele morreu pelo seu povo, pelas suas ovelhas. sus orou naquele dia em Jerusalém somente por seus
discípulos e pelos que ainda viriam a crer nele e se
Em outras passagens, Jesus deixou claro que morreria tornariam seus discípulos. Não orou pelo mundo in-
não por todos, mas por muitos: “O Filho do Homem, crédulo. Sua obra de intercessão depende de sua obra
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua de expiação, pois é só através de sua morte que pode
vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). Embora seu conceder benefícios aos homens. Se ele não orou pe-
sacrifício tenha poder para salvar a todos, ele mesmo las demais pessoas do mundo é porque não morreria
disse que objetivamente daria sua vida em resgate por elas. Se Jesus tinha em mente dar sua vida por to-
por muitos.10 A mesma linguagem pode ser encon- das as pessoas do mundo, então não haveria razão em
trada em Hebreus 9.28: “Também Cristo, tendo se orar apenas pelos que já eram ou seriam seus discípu-
oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados los. Ele deveria orar para que os demais se tornassem
de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos discípulos, mas não foi isso o que ele fez.
que o aguardam para a salvação”. Segundo esse texto,
Cristo se ofereceu objetivamente para “tirar” os peca- OBJEÇÕES À EXPIAÇÃO LIMITADA
dos de muitos, e é para esses que ele aparecerá segun-
da vez. É lógico que ele não poderia tirar os pecados Existem algumas passagens bíblicas que geralmente
de todos, senão todos seriam salvos. são apontadas para mostrar que Cristo morreu por
todos os homens. A mais famosa delas é João 3.16:
Jesus intercedeu apenas por aqueles que considera- “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que
va seus discípulos. O capítulo 17 de João transcreve deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele
a oração que Jesus fez pouco antes de morrer. Nessa crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Ver Jo 1.29;
oração ele faz questão de orar por seus discípulos: 6.33, 51; Rm 11.12; 2Co 5.19; 1Jo 2.2). Esse texto de
“Manifestei o teu nome aos homens que me deste fato diz que Deus amou o “mundo” e por causa disso
do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm enviou seu filho. Mas o próprio texto faz uma restri-
guardado a tua palavra” (Jo 17.6). Em seguida Jesus ção em relação à salvação: serão salvos apenas os que
faz questão de delimitar o escopo de sua oração: “É creem. Será que nesse texto, e noutros, a expressão
por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por “mundo” se refere a cada pessoa sem exceção? Se
aqueles que me deste, porque são teus” (Jo 17.9). Ele conseguíssemos provar que tenha existido pelo me-
estava orando por seus discípulos apenas. Uma per- nos uma pessoa que Deus não tenha amado, então,
gunta permanece: Por que não oraria pelas outras não teríamos razão para crer que “mundo” em João
pessoas do mundo, se tivesse dado sua vida em res- 3.16, ou mesmo noutras passagens, diga respeito a
gate delas também? O texto claramente diz que ele cada pessoa sem exceção. O fato é que encontramos
orou apenas pelos crentes: “Não rogo somente por tal pessoa: Esaú. Dele, em contraste com seu irmão
estes, mas também por aqueles que vierem a crer em Jacó, a Bíblia diz: “Amei Jacó, porém me aborreci de
Esaú” (Rm 9.13). Deus está fazendo uma compara-
ção entre Jacó, pai da nação de Israel e Esaú pai da
10 Quanto a aparente contradição entre o “muitos” de Jesus e
o “poucos” que entram pela porta estreita (Mt 7.13-14), é preciso que
nação de Edom. Ele amou Jacó, mas não amou Esaú.
se entenda que a soma dos salvos em todos os tempos pela morte de Isso é suficiente para dizermos que quando a Bíblia
Jesus forma um “muitos”, mas o número de salvos em cada época, cer-
tamente forma o grupo dos “poucos”, especialmente em comparação diz que Deus amou o mundo, não está se referindo a
com o número de não-salvos.
cada pessoa sem exceção. Ele está falando do mundo

218
como a criação (cosmos), por quem ele mandou seu vadora a todos os homens”. O mesmo se vê em He-
Filho a fim de criar um novo mundo, mas nem todas breus 2.9 “Vemos, todavia, aquele que, por um pouco,
as pessoas desse mundo serão renovadas. tendo sido feito menor que os anjos, Jesus, por causa
do sofrimento da morte, foi coroado de glória e de
Quando o Novo Testamento fala do mundo, a quem honra, para que, pela graça de Deus, provasse a mor-
se oferece a redenção, está fazendo uma comparação te por todo homem”. O que se pode dizer de todas
entre o exclusivismo nacional do Antigo Testamento, essas passagens é que é evidente que não podemos
e a abertura para todos os povos do Novo Testamen- interpretar a expressão “todos os homens” como se
to. Nesse sentido devemos entender o amor de Deus referindo a todos os homens sem nenhuma exceção.
e a morte de Jesus como sendo pelo mundo inteiro. Se fizéssemos isso estaríamos efetivamente dizen-
Não significa cada pessoa do mundo sem exceção, do que todos os homens serão factualmente salvos.
mas o mundo visto de uma perspectiva global, não Por causa disso, necessariamente a expressão “to-
apenas Israel. dos” desses textos se refere a todos os que, no final
das contas, serão salvos. Em Romanos 5.18 e 1Co-
Cristo é o Salvador do Mundo no sentido de que é o ríntios 15.22 a expressão “todos” inclui somente os
Salvador de toda a Criação. Neste sentido ele carrega que estão em Cristo em contraste com os que estão
o pecado do mundo, pois no fim, todo o pecado será em Adão. Nos textos de 2Coríntios 5.14 e Hebreus
removido da criação, mesmo que não seja removido 2.9 o mesmo deve ser dito, caso contrário todos os
de todas as pessoas. Cristo por sua morte assegurou a homens acabarão sendo salvos. A passagem de Tito
purificação, não somente de pessoas, mas da criação 2.11 refere-se a todas as classes de homens, mas não
inteira. Cristo assegurou por sua morte a redenção de a cada homem sem exceção, senão todos serão salvos
indivíduos (novas criaturas) tanto quanto a redenção por Deus. E por fim 1Timóteo 2.6 fala sobre a inclu-
da criação (novos céus e nova terra). O mundo caído são tanto de judeus quanto de gentios na salvação. É
em Adão será restaurado em Cristo (Rm 8.19, 21- evidente, portanto, que essas passagens não falam de
23). todos os homens sem exceção, caso contrário, todos
os homens teriam que ser salvos, pois a expiação de
Existem outras passagens que dizem que Cristo mor- Cristo nesses textos é descrita como um ato real de
reu por todos os homens, por exemplo, Romanos conceder a vida.
5.18: “Pois assim como, por uma só ofensa, veio o
juízo sobre todos os homens para condenação, assim O texto que parece afirmar de forma mais clara que a
também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre morte de Cristo foi pelo mundo inteiro é 1João 2.2:
todos os homens para a justificação que dá vida”. O “E ele é a propiciação pelos nossos pecados e não
mesmo pode ser dito de 1Coríntios 15.22: “Porque, somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do
assim como, em Adão, todos morrem, assim também mundo inteiro”. O argumento em favor da expiação
todos serão vivificados em Cristo”. E também 2Co- definida entende a expressão “mundo” nesse texto
ríntios 5.14 “Pois o amor de Cristo nos constrange, como uma descrição generalizada, querendo apon-
julgando nós isto: um morreu por todos; logo, todos tar para um grupo especial, o grupo dos salvos do
morreram”. E ainda 1Timóteo 2.6 “O qual a si mes- mundo inteiro. Não significa cada pessoa do mundo
mo se deu em resgate por todos: testemunho que sem exceção, pois caso contrário, essa propiciação
se deve prestar em tempos oportunos”. E ainda Tito evidentemente salvaria todas as pessoas. É preciso
2.11 “Porquanto a graça de Deus se manifestou sal- lembrar que propiciação significa “apaziguar a ira de

219
Deus”. Se Jesus apaziguou a ira de Deus para cada definida com esses textos e com a livre oferta do
pessoa do mundo, então, Deus não estaria mais irado Evangelho?
com ninguém, e todos poderiam ir para o céu. De-
vemos entender a expressão “mundo inteiro” como Quanto ao questionamento sobre a impossibilida-
algo que visa fazer um comparativo com o “filhinhos” de de pregar o Evangelho de forma sincera a todos,
do verso 1: “Filhinhos meus, estas coisas vos escre- uma vez que Cristo não morreu por todos, podemos
vo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, dizer o seguinte: Nós não sabemos por quem Cris-
temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” to morreu! Sabemos que ele morreu pelos eleitos,
(1Jo 2.1). Os “filhinhos” de João eram aqueles para mas não quem são os eleitos! Precisamos oferecer a
quem ele escrevia a carta. Jesus era o Advogado des- salvação igualmente a todos, e quem crer será salvo.
ses filhinhos, pois fez propiciação por eles, e não so- Não temos o direito de excluir ninguém, porque não
mente por eles, mas pelos pecados do mundo inteiro, sabemos quem será salvo ou quem será condenado.
ou seja, pelos pecados dos crentes do mundo inteiro Qualquer atitude preconceituosa de nossa parte será
(os outros filhinhos). João liga a propiciação de Je- pecaminosa.
sus com sua obra como Advogado diante de Deus.
Jesus não pode ser o advogado de todos os homens, Quanto aos textos bíblicos que dizem que Deus de-
senão todos os homens terão todos os seus pecados seja que todos sejam salvos, o que podemos dizer é
perdoados. que isso é a mais pura verdade. Não podemos fugir
das evidências bíblicas, nem torcer textos para que se
Outro argumento bastante usado contra a expiação encaixem na nossa teologia. Mas isso não quer dizer
definida é que se Cristo morreu apenas por um nú- que esses textos não se encaixem. Precisamos enten-
mero limitado de pessoas, isso tornaria impossível o der que Deus, como criador de todos, não tem prazer
oferecimento livre do Evangelho. O questionamento em ver suas criaturas perecendo, antes seu prazer é
parece lógico: Se Cristo não morreu por todos, então, vê-las se convertendo e sendo salvas.
por que o Evangelho é oferecido a todos?
A questão que precisa ser feita é: Então quer dizer que
Além do mais, há passagens que claramente indicam ele salvará a todas as pessoas? A resposta é: Não. A
que Deus deseja que todos sejam salvos, por exem- segunda questão é: Por acaso ele não tem poder para
plo, Ezequiel 33.11: “Tão certo como eu vivo, diz o salvar a todas? A resposta agora é: Sim. Poderíamos
senhor Deus, não tenho prazer na morte do perverso, perguntar então: Se ele deseja que todas sejam salvas
mas em que o perverso se converta do seu caminho e tem poder para salvar a todas, então, por que não
e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus salva a todas? Só há uma resposta: Porque, num senti-
caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de do, não quer salvar a todas. Então, ele quer, e, ao mes-
Israel?” Também 1Timóteo 2.4 fala algo semelhante: mo tempo, não quer salvar todas as pessoas? Como
“O qual deseja que todos os homens sejam salvos e entender isso? Aqui precisamos relembrar a diferen-
cheguem ao pleno conhecimento da verdade”. E ain- ça entre a vontade de desejo e a vontade decretiva de
da 2Pedro 3.9: “Não retarda o Senhor a sua promes- Deus.11 O primeiro aspecto tem a ver com os desejos
sa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, íntimos de Deus. Assim como ele estabeleceu uma
ele é longânimo para convosco, não querendo que
nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arre-
11 Ver capítulo 10.
pendimento”. Como encaixar a noção da expiação

220
lei e é sua vontade que todos obedeçam, mas ele não Se Cristo de fato tivesse morrido por todos os ho-
obrigará ninguém a fazer isso, do mesmo modo, é mens sem exceção, então em muitos casos, ele teria
desejo seu que todos sejam salvos, mas ele não agirá sido impotente, porque apesar de ter dado a vida
para que todos sejam de fato salvos. Porém, quando por alguma pessoa, talvez aquela pessoa acabasse no
falamos em vontade decretiva, estamos nos referin- Inferno. Com relação a isso, ainda poderíamos per-
do àquela sua vontade que acontece inevitavelmente guntar: Quando Cristo morreu, pessoas já estavam
(Ver Rm 9.19; Is 46.9-11; Dn 4.35). Diz respeito a no Inferno? Sim, todas as pessoas que morreram sem
seus decretos para esse mundo, os quais invariavel- salvação antes de sua vinda. A questão é: Ele morreu
mente acontecerão, pois se não acontecerem, Deus por elas também? Parece ilógico dizer que sim, pois
perderá o controle do Universo. O desejo que todos seria um desperdício de um sangue tão precioso.
os homens sejam salvos faz parte de sua vontade de Teria Cristo morrido por Judas Iscariotes? A Bíblia
desejo, mas não faz parte de sua vontade decretiva. chama Judas de “o filho da perdição” (Jo 17.12) e
Ou seja, Deus deseja que todos sejam salvos, mas diz que tudo o que aconteceu através dele aconteceu
segundo o que as próprias Escrituras haviam profeti-
não decretou que todos serão salvos. Portanto, o fato
zado (Mt 26.24). De acordo com a Escritura, Judas
de Deus desejar que todos sejam salvos não obriga
não tinha chances de ser salvo, então, por que Jesus
Jesus a morrer por todos os homens, até porque, nem
morreria por ele?
todos serão salvos.
A Escritura fala da obra de Cristo em termos defi-
LIMITADA EM ALCANCE OU EM PODER nitivos em favor do salvo. Se ele morreu por todos
os homens, então todos os homens precisariam de
Apesar de muitos ficarem surpresos com essa decla- fato ser salvos. Só há duas opções, ou a redenção é
ração, a verdade é que todo cristão ortodoxo terá que limitada em seu alcance ou é limitada em seu poder.
por limites à obra salvífica de Cristo. Pois se alguém É preferível pensar que ela seja limitada no alcance,
crê que Cristo morreu por todas as pessoas deste ou seja, que não foi posta para alcançar todos os ho-
mundo, entretanto, nem todas as pessoas deste mun- mens. Ela não é limitada em poder, pois pode salvar
do serão realmente salvas, então, a obra de Cristo é completamente todos aqueles por quem foi destina-
limitada em seu poder, pois ela não salva efetivamen- da. Se dissermos que Cristo morreu por todos os ho-
te ninguém. Entretanto, se alguém crê que a obra de mens, então limitamos a expiação em seu poder, pois
Cristo, embora poderosa o suficiente para salvar toda nesse caso, ela não consegue salvar todos os homens.
e cada pessoa, foi feita apenas em favor do povo esco- A Escritura, entretanto, deixa bem claro o poder e a
lhido, a igreja, então, esta expiação é limitada em seu eficácia da obra de Cristo.
escopo ou em seu propósito, mas não em poder. Se
Cristo morreu por pessoas que estão no Inferno, en- Nesse ponto, é importante rever alguns termos bí-
tão seus esforços não podem realmente ser chamados blicos que descrevem a expiação de Cristo, como
de obra salvífica. Muitos afirmam que Cristo ao mor- redenção, propiciação, reconciliação e substituição,
rer não salvou ninguém realmente, ele apenas tornou os quais descrevem o que realmente Cristo fez ao
os homens salváveis, entretanto, se isso é assim, então morrer na cruz.12
não há real “poder no sangue”. Ao contrário, parece
que o poder está na vontade da criatura, como se a 12 Estes conceitos são baseados na exposição de Michael
Horton. As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 130-131.
criatura conferisse poder ao sangue de Cristo.

221
REDENÇÃO RECONCILIAÇÃO

É provavelmente o principal termo bíblico para des- Define-se por apaziguar oponentes. As pessoas serão
crever a expiação. Significa “comprar de volta”, ou “re- destinadas ao Inferno por toda a eternidade, porque
tornar a possessão de alguém mediante o pagamento elas estão, e sempre estarão, opostas a Deus. Mas as
de um preço”. A morte de Cristo foi o resgate dos pessoas que são reconciliadas são feitas amigas, e é a
salvos, não um resgate pago à Satanás, mas um res- morte de Cristo que efetua esta reconciliação. Mas,
gate exigido pela lei de Deus e oferecido ao próprio então, será que Deus vai mandar seus “amigos” para o
Deus. Agora imagine: Uma pessoa foi sequestrada Inferno? É claro que não, pois a reconciliação é ape-
e feita refém pelo pecado, mas agora é crente, então nas para os eleitos, os reconciliados serão efetivamen-
Cristo pagou o resgate para libertá-la, a fim de que se te salvos (Rm 5.10).
tornasse posse dele. Que tipo de redenção seria esta
se a maioria dos cativos permanecesse no cativeiro e SUBSTITUIÇÃO
nunca fosse libertada?
É o ato de alguém assumir toda a responsabilidade
Em Isaías 53.10-11 é dito que Cristo veria o fruto de pela falta do outro. Suponha que um criminoso esteja
seu penoso trabalho e ficaria satisfeito. Mas, como ele no corredor da morte, esperando a execução. Um es-
tranho se encontra com o juiz, e o juiz concorda em
poderia estar satisfeito se visse que a maior parte das
aceitar a execução do estranho (que é em si mesmo
pessoas por quem morreu, no fim das contas, perma-
inocente) no lugar do verdadeiro criminoso. Aquele
necerão condenadas? Isso não seria muito mais caso
estranho se tornou o substituto do criminoso. En-
de desapontamento do que de satisfação?
tão, suponha que, depois de executar o substituto, o
juiz executa também o criminoso. O juiz poderia ser
PROPICIAÇÃO
acusado de assassinato em pelo menos uma morte.
O ser humano é o criminoso, mas Cristo morreu em
Refere-se a interromper a inimizade e a hostilidade
seu lugar, por causa disso Deus não mais condenará
de Deus em relação ao homem. Quando propiciação
tal pessoa, pois não pode condenar o Redentor e o
é feita, a ira de Deus é removida. Se Cristo fez pro-
redimido ao mesmo tempo. Se Cristo morreu por to-
piciação pelo mundo, então, removeu a Ira de Deus das as pessoas, então, todas as pessoas terão que ser
do mundo. Mas, não é isto o que a Escritura ensina, salvas.
pois Deus continua irado com o mundo (Rm 1.18).
Além disso, se Cristo não “propiciou” a ira de Deus É preciso que se entenda que as palavras acima são
por mim, mais do que por Judas Iscariotes, então, aplicadas objetivamente para a morte de Cristo. Ele
como eu posso ter certeza que Deus, no final, não não apenas tornou essas coisas possíveis, ele as reali-
irá me consumir com sua ira? Alguém diria: “Porque zou na cruz. E se ele realizou essas coisas por todas as
você crê?”. Mas, se é só por isso, então significa que no pessoas do mundo, então todas podem se preparar
fim das contas, nós, mais do que Cristo, é que propi- para passar a eternidade com Deus, e o inferno estará
ciamos a ira de Deus e nos tornamos nossos próprios absolutamente vazio. Porém, esse ensino não pode
salvadores. Ou, no mínimo, colaboramos para a sal- ser sustentado pela Bíblia, que fala em muitos cha-
vação, e aí, já não poderíamos mais dizer que fomos mados, mas poucos os escolhidos. Os escolhidos são
salvos pela graça. todos aqueles por quem Cristo morreu.

222
CONCLUSÃO vernador concedeu ao condenado. O governador
apenas possibilitou a chance de salvação, mas Cristo,
Para concluir, de volta à historinha do início, o pri- ao morrer na cruz, concedeu eficazmente a salvação.
sioneiro americano tinha o direito de morrer, porque
ninguém morreu efetivamente em seu lugar. Mas Ao contrário disso ser um problema para nós, deve-
um homem por quem Cristo morreu não pode ser ria ser um motivo de gratidão e louvor, pois se Cris-
condenado novamente, porque Deus não pode con- to tornou tão certa a nossa salvação, então, é porque
denar o mesmo pecado duas vezes. Se o pecado de Deus não está disposto a abrir mão de nós. Além
alguém foi condenado em Jesus, Deus não o con- disso, Deus nos considera individualmente. Quando
denará novamente, por essa razão se Cristo tivesse
Cristo orou por seus discípulos, e quando morreu na
morrido por todos os homens, Deus não poderia
cruz, ele sabia exatamente por quem estava morren-
mais condenar ninguém. Entretanto, Jesus morreu
do. Ele via o fruto do seu penoso trabalho, e isso o
pelas suas ovelhas, e só elas serão salvas. O perdão
que Cristo concede é diferente do perdão que o go- alegrava, apesar de todo o seu sofrimento.

223
29. EVIDÊNCIAS, SIGNIFICADO E EFEITOS
DA RESSURREIÇÃO

A ressurreição de Cristo põe um ponto final em todo corpo começou a se recompor. As correntes inven-
um sistema até então invencível: o sistema da morte. cíveis começavam a ceder, impotentes diante de um
A rotina de todos os seres humanos, desde o início poder incomparável, as cadeias da morte se arreben-
do mundo, sempre foi: nascer, crescer e morrer. Ne- taram como se fossem cordas podres. O corpo ter-
nhum homem jamais conseguiu fugir deste sistema. rivelmente maltratado se revelava intacto, radiante,
Todos, inevitavelmente, encontraram a morte, mais invicto. O terrível sistema aprisionador era demolido.
cedo ou mais tarde. Esta indesejada visitante sempre A morte já não era invencível.
se apresentou, às vezes nos momentos mais inespe-
rados, rompendo elos, quebrando relacionamentos, Infelizmente, o mundo moderno tem dificuldades
destruindo sonhos e arrasando projetos. Algo que em aceitar esse acontecimento como um fato histó-
sempre esteve muito claro na mente do ser huma- rico. Isso se deve à dificuldade moderna em aceitar
no é que tudo pode ser vencido, menos a morte. a existência dos milagres. Não há mais espaço para a
Quando ela chega, as esperanças se acabam. Por isto ressurreição na mente dos homens modernos. Mui-
os homens dizem: “Enquanto há vida, há esperan- tos teólogos no século XIX, ao olhar para o progresso
ça”. Quando a morte chega é o fim. Mas um dia, um da ciência e para as maravilhas da tecnologia, chega-
homem adentrou as portas da morte. Pela maneira ram a essa conclusão, imaginando não haver mais es-
como tudo aconteceu, parecia ser só mais um. Aque- paço para os conceitos sobrenaturais nesse mundo.
le corpo maltratado pelos açoites e pelo esforço desu-
mano de carregar a cruz, se deixou vencer pela velha É incrível pensar que a ressurreição física de Jesus seja
conhecida dos seres humanos. Ela lançou suas anti- negada, não só por cientistas ateus, mas por teólogos
gas e inquebráveis cadeias sobre ele e o dominou. A da igreja. Desde aqueles que negam a existência do
escuridão o engoliu. O último sinal de vida desapare- sobrenatural, até aqueles que tentam interpretar os
ceu. A velha inimiga já começava sua rotineira tarefa eventos sobrenaturais descritos na Bíblia, mais em
de eliminar completamente quaisquer resquícios da função de sua mensagem do que de sua evidência
vida, pois o corpo já começava a se desintegrar, quan- histórica, de um jeito ou de outro, a ressurreição física
do, de repente, algo inusitado aconteceu, o processo de Cristo tem sido desacreditada. É preciso analisar
de desintegração se inverteu. Em vez de apodrecer, o as implicações dessa lógica: Se a ressurreição física e

224
literal de Jesus não aconteceu, o que resta do Cristia- Paulo faz questão de dizer que, tanto a morte quanto
nismo? Por outro lado, também precisamos questio- a ressurreição de Cristo, ocorreram de acordo com as
nar se faz sentido crer que Jesus de fato ressuscitou Escrituras. Para os crentes, o testemunho das Escritu-
após três dias de sua morte? Será que o mais impor- ras é o maior testemunho da ressurreição de Cristo.
tante é crer na ressurreição literal de Cristo, ou o que Tanto o testemunho do Antigo Testamento, ao qual
importa é a mensagem do cristianismo que aponta Paulo se referia naquele instante, como o próprio tes-
para a vitória sobre as dificuldades, uma espécie de temunho do Novo Testamento são as provas defini-
“interpretação” ou releitura da morte e da ressurrei- tivas para o crente. Note que são provas, porque eles
ção de Jesus? Esses assuntos terão que ser tratados possuem fé na Escritura como material fidedigno.
nesse capítulo. Infelizmente, nem todas as pessoas veem a Escritura
desse modo.
EVIDÊNCIAS DA RESSURREIÇÃO DE
O Antigo Testamento anunciou que o Messias não
CRISTO
seria vencido pela morte. O Salmo 16 testemunhou:
“Alegra-se, pois, o meu coração, e o meu espírito exul-
Ao contrário do que possa parecer, há boas e sufi-
ta; até o meu corpo repousará seguro. Pois não dei-
cientes evidências a respeito da ressurreição de Jesus.
xarás a minha alma na morte, nem permitirás que o
Essas evidências são muito fortes e convincentes,
teu Santo veja corrupção” (Sl 16.9-10). Igualmente
porém, com isso não estamos querendo dizer que
o profeta Isaías fala que o Servo Sofredor, após todo
devem convencer a todos. Acima de tudo permane-
o sofrimento que teria que passar, não seria vencido
ce sendo uma questão de fé. A fé, cuja ausência não
pela morte: “Todavia, ao senhor agradou moê-lo, fa-
pode agradar a Deus, é que determina se alguém zendo-o enfermar; quando der ele a sua alma como
aceitará a veracidade da ressurreição ou não. oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolon-
gará os seus dias; e a vontade do senhor prosperará
O Testemunho das Escrituras nas suas mãos” (Is 53.10). O profeta diz que, após
oferecer sua alma pelo pecado, o Messias veria seus
No capítulo 15 de 1Coríntios o Apóstolo Paulo
dias se prolongarem. Isso só pode ser um anúncio de
desenvolve uma longa argumentação em defesa da
sua ressurreição. Como poderia ele ver seus dias se
real e histórica ressurreição de Cristo. Ele começa o prolongarem se estivesse morto? O texto está suge-
capítulo falando sobre os aspectos escriturísticos da rindo que, após a morte, o Messias voltaria à vida.
ressurreição:
Para os crentes do Novo Testamento, os registros dos
“Irmãos, venho lembrar-vos o Evangelho que vos Apóstolos e discípulos, que testemunharam a ressur-
anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseve- reição de Cristo, são suficientes para a fé. Marcos re-
rais; por ele também sois salvos, se retiverdes a pa- lata:
lavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais
crido em vão. Antes de tudo, vos entreguei o que Havendo ele ressuscitado de manhã cedo no pri-
também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pe- meiro dia da semana, apareceu primeiro a Maria
cados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e Madalena, da qual expelira sete demônios. E, par-
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” tindo ela, foi anunciá-lo àqueles que, tendo sido
(1Co 15.1-4). companheiros de Jesus, se achavam tristes e chora-

225
vam. Estes, ouvindo que ele vivia e que fora visto ceu vivo, por um intervalo de 40 dias (At 1.3).
por ela, não acreditaram. Depois disto, manifes-
tou-se em outra forma a dois deles que estavam de Os discípulos não foram os únicos que tiveram o pri-
caminho para o campo. E, indo, eles o anunciaram vilégio de ver o Senhor Jesus ressuscitado. O apósto-
aos demais, mas também a estes dois eles não de- lo Paulo nos diz que Jesus “foi visto por mais de qui-
ram crédito. Finalmente, apareceu Jesus aos onze, nhentos irmãos de uma só vez” (1Cor 15.5-6). Era até
quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incre- possível que alguns poucos discípulos inventassem
dulidade e dureza de coração, porque não deram uma história com respeito à ressurreição de Cristo,
crédito aos que o tinham visto já ressuscitado (Mc mas, seria difícil mais de 500 pessoas confirmarem
16.9-14). isso. Seria impossível que tantas pessoas tivessem
se enganado a respeito de quem havia visto. Como
É importante que se entenda que este é um relato que diz Josh MacDowell, “quando ocorre um aconteci-
tem a pretensão clara de ser histórico. Marcos não mento na história e existem pessoas vivas suficientes
está contando uma lenda, não está fazendo poesia que foram testemunhas oculares ou participaram do
ou qualquer outra coisa, ele está narrando um even- acontecimento, e quando se publica essa informação,
to que acredita ser histórico, o qual, possivelmente é possível verificar-se a validade de um determinado
testemunhou. Assim também relatam Mateus (Mt acontecimento mediante as provas circunstanciais”.1
28.1-10) e João (Jo 20.1-18), que foram testemu- Num tribunal, o testemunho de tantas pessoas seria
nhas oculares da ressurreição, e Lucas (Lc 24.1-15), amplamente convincente. Além disso, ainda estavam
que empreendeu uma extensa pesquisa histórica vivas quando Paulo escreveu a carta. Se não fosse
para apurar e relatar os fatos. O testemunho do Novo verdade, procurariam demonstrar a mentira. Se fosse
Testamento é uma prova documental que não pode uma invenção e havendo tantas supostas testemu-
ser ignorada. Por mais que muitos estudiosos se es- nhas, a fraude não duraria muito tempo. É interessan-
forcem em desacreditar o Novo Testamento, o seu te Paulo dizer que viu o Senhor ressuscitado. Ele está
testemunho da ressurreição permanece. testemunhando não de algo que ouviu falar, mas de
algo que viu. Ele é mais uma testemunha ocular, e em
Testemunhas oculares qualquer tribunal, seu testemunho seria considerado
uma prova.
Dentre as muitas provas convincentes que Jesus ofe-
receu aos discípulos durante aqueles 40 dias, estavam O Testemunho do Sepulcro Vazio
sua aparição dentro da sala com as portas fechadas
(Jo 20.19), sua permissão para que os discípulos to- Os túmulos daquele período normalmente tinham
cassem nele para verem que não era meramente um uma entrada de até 1,5 metro de altura. A constru-
espírito (Lc 24.39; Jo 20.27; 1Jo 1.1-4), além de ter, ção era feita de tal forma que a pedra ficava numa
até mesmo comido com eles (Lc 24.41-43). Estudos vala bem na entrada do túmulo e um tipo de supor-
têm demonstrado que as pessoas perdem a memória te era usado para fazê-la escorregar e tapar a entrada.
sobre fatos que ocorreram com extrema rapidez ou Mateus diz que aquela era uma “grande pedra” (Mt
sob muita pressão, mas, este não foi o caso dos discí- 27.60). De fato para cobrir uma entrada de 1,5 metro
pulos que descreveram minuciosamente as aparições
de Jesus. Ou seja, eles devem ter passado muito tem- 1 Josh McDowell. Evidência que Exige um Veredicto, p.
239240
po com Jesus. E de fato, Lucas nos diz que ele apare-

226
precisaria pesar cerca de duas toneladas. Mas, a pedra suas casas, numa demonstração clara de desistência
não era o único empecilho a impedir a saída do tú- (Lc 24.13). Mas, de repente, Pedro está pregando
mulo, Mateus diz que foi colocada uma escolta junto com ousadia para uma multidão (At 2.12-41). O que
ao sepulcro para impedir que os discípulos roubas- poderia explicar uma mudança tão grande? Da deso-
sem o corpo. A guarda romana era composta de até lação para euforia em tão pouco tempo? Significativa
16 homens. Além disso, aquela guarda selou a pedra é a descrição dos capítulos quatro e cinco de Atos.
(Ver Mt 27.65-66). O selo foi provavelmente forne- Os Apóstolos têm a coragem de proclamar a ressur-
cido por Pilatos e demonstrava que o túmulo estava reição de Cristo perante as autoridades (At 4.10), e
sob a proteção do Império Romano. Não seria fácil mesmo após serem ameaçados (At 4.21), presos e
roubar o corpo. Não havia a mínima possibilidade de açoitados (At 5.40), não só continuam, como se re-
que o grupinho de desanimados discípulos fosse en- gozijam (At 5.41-42). Ninguém colocaria sua vida
frentar a escolta romana e retirar o corpo. A punição em risco por uma mentira, por isso, o entusiasmo dos
para a quebra do selo seria a crucificação. Os judeus Apóstolos fala muito acerca da ressurreição de Cristo.
admitiram a evidência do túmulo vazio. Existem evi- E deve ser lembrado que não foi só entusiasmo que
dências históricas de que eles mandaram mensagei- eles demonstraram, foi martírio também. Eles não só
ros aos quatro cantos do mundo desmentindo que colocaram suas vidas em risco, como realmente mor-
Jesus tinha ressuscitado, alegando que os discípulos reram pela causa de Cristo. Aparentemente, o único
tinham roubado o corpo, ou seja, admitiram que o Apóstolo que não foi martirizado foi João,2 todos
corpo desapareceu. O fato histórico permanece: O os demais sofreram a morte de mártir. Se negassem
corpo sumiu, o túmulo está vazio. a Jesus antes da execução poderiam ser perdoados,
mas não fizeram isso. Alguém até pode defender uma
O Testemunho de Vida dos Apóstolos
mentira para benefício próprio, mas quantos esta-
riam dispostos a morrer por uma mentira? O martí-
De onde teria vindo todo o entusiasmo dos discípu-
rio dos apóstolos é uma evidência poderosíssima da
los e toda intrepidez para proclamar a mensagem da
ressurreição de Cristo.
ressurreição? A morte de Jesus foi um duro golpe para
eles. O próprio João descreve que eles estavam reuni-
O fato mais atestado
dos às escondidas, ainda naquele domingo à tarde,
portas fechadas “com medo dos judeus” (Jo 20.19).
Como diz Charles Hodge, “pode-se asseverar com
Quê medo era esse? Era o medo natural de homens
segurança que a ressurreição de Cristo é, ao mesmo
que viram seus planos frustrados e seu líder morto.
tempo, o fato mais importante e mais autenticado da
Sabiam que se aparecessem, certamente seriam puni-
história do mundo”.3 Esse autor descreve uma série de
dos, e quem sabe até mortos, até porque os boatos do
razões que confirmam isso:4 1) Foi predita no Velho
desaparecimento do corpo estavam se espalhando
Testamento. 2) Foi predita pessoalmente por Cristo.
e eles eram os principais suspeitos. É claro que não
3) Foi um fato que admitia muito fácil verificação. 4)
estavam dispostos a aparecer. Quem arriscaria a sua
vida por um homem morto? Essa pergunta é muito
importante, pois ninguém arriscaria a sua vida desse 2 João, entretanto, foi prisioneiro na terrível Ilha de Pat-
mos.
modo. Dá para perceber que, até aquele momento,
3 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 951.
eles não estavam dispostos a isso, pois estavam reuni-
4 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 951.
dos secretamente. Muitos até mesmo voltaram para

227
Forneceu evidência abundante, apropriada e reitera- Ele desejava levar as alegações da Bíblia ao tribunal e
da de sua verdadeira ocorrência. 5) As testemunhas verificá-las a partir das técnicas do direito. Queria de-
do fato de que Cristo foi visto vivo após sua morte monstrar a mentira intencional dos escritores a partir
na cruz eram numerosas, competentes e em todo da improbabilidade dos relatos e suas contradições
o sentido dignas de confiança. 6) A sinceridade da internas. Qual foi sua conclusão? Ao final dos traba-
convicção delas foi demonstrada por seus sacrifícios, lhos, aquele homem estava plenamente convencido
inclusive o de suas vidas, em decorrência de seu teste- da veracidade da ressurreição a partir do testemunho
munho. 7) Seu testemunho foi confirmado por Deus, do Novo Testamento.6 Ele se tornou um crente.
ao dar testemunho juntamente com eles, com sinais
e prodígios, com diversos milagres e com os dons do O corpo ressuscitado
Espírito Santo. 8) Esse testemunho do Espírito conti-
nua até o tempo atual e é concedido a todos os genuí- Um argumento que, em geral, é levantado contra a
nos filhos de Deus, porque o Espírito dá testemunho ideia da ressurreição é a da impossibilidade de trazer
da verdade no coração e na consciência. 9) O fato de de volta todas as moléculas de um corpo, especial-
que a ressurreição de Cristo tem sido comemorada mente se ele já tiver se desintegrado, uma vez que
como uma observância religiosa do primeiro dia da as partículas se espalham e passam a fazer parte de
semana, desde sua ocorrência até hoje. 10) Os efeitos outros corpos. Paulo antevê esse questionamento:
produzidos por seu Evangelho, e a mudança que ele “Mas alguém dirá: Como ressuscitam os mortos? E
tem efetuado no estado do mundo, não admitem ne- em que corpo vêm?” (1Co 15.35). Ele usa uma ilus-
nhuma outra solução racional além da veracidade de tração da própria natureza para explicar isso: “O que
sua morte e subsequente ressurreição. A igreja cristã semeias não nasce, se primeiro não morrer; e, quan-
é seu monumento desse fato, e todos os crentes são do semeias, não semeias o corpo que há de ser, mas o
suas testemunhas. simples grão, como de trigo ou de qualquer outra se-
mente. Mas Deus lhe dá corpo como lhe aprouve dar
Josh MacDowell, em um excelente livro intitulado e a cada uma das sementes, o seu corpo apropriado”
“As Evidências da Ressurreição de Cristo”, narra a his-
(1Co 15.36-38). Assim como a semente lançada na
tória de um importante advogado de Harvard, o Dr.
terra é bastante diferente da planta que um dia chega-
Simon Greenleaf, que decidiu aplicar as regras do di-
rá à idade adulta, também o corpo lançado à sepul-
reito para o acontecimento da ressurreição e acabou
tura fará nascer um corpo bem diferente. É verdade
convencido da veracidade do evento.5 Horton, con-
que, embrionariamente, poderíamos dizer que as ca-
tando a mesma história, diz que esse advogado que
racterísticas principais da planta já estão na semente.
fundou a Escola de Direito de Harvard, começou
O mesmo então poderíamos dizer do corpo atual em
com a intenção de contestar a alegação da ressurrei-
ção, certo de que, uma atenção simples e constante às relação ao futuro.
alegações do Novo Testamento, com relação às teste-
Nesse ponto é interessante a discussão sobre a na-
munhas dos Evangelhos e aos testemunhos externos
tureza do corpo ressuscitado de Jesus. Muitos não
dos historiadores seculares daquele período, iriam fi-
nalmente extinguir as crenças cristãs remanescentes. entendem que ele possa ser realmente físico. Mas, o
ensino da Escritura nos aponta para o aspecto físico

5 Josh MacDowell. As Evidências da Ressurreição de Cristo,


p. 25-26. 6 Ver Michael Horton. Creio, p. 111-112.

228
do corpo de Jesus, sem qualquer possibilidade de dú- evidência não haveria igreja”.10 Foi a certeza da ressur-
vida. Jesus apareceu aos discípulos, comeu e bebeu reição que transformou aqueles homens simples da
com eles (At 10.41); disse-lhes: “Vede as minhas Galileia em poderosas testemunhas de Jesus em todo
mãos e os meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me o mundo. A convicção de que Jesus venceu a morte
e verificai, porque um espírito não tem carne nem os- lhes dava a certeza de que, mesmo que morressem
sos, como vedes que eu tenho” (Lc 24.39). Como diz no testemunho, poderiam experimentar a mesma ex-
Grudem, “teria sido muito errado ensinar aos discí- periência do Senhor: a vitória sobre a morte.
pulos que ele tinha um corpo físico, se no seu modo
normal de existência ele realmente não possuía”.7 Por- SIGNIFICADO DA RESSURREIÇÃO DE
tanto, Jesus possui um corpo físico, embora, como CRISTO
diz o Apóstolo Paulo, possa ser chamado também
de corpo espiritual. Não temos condições de enten- Uma vez que as evidências da ressurreição de Cristo
der exatamente como é esse corpo, a única coisa que são bastante convincentes, agora é preciso pensar um
podemos dizer é que ele é “material” e “espiritual” ao pouco mais no significado desta ressurreição. Pode-
mesmo tempo. É um corpo absolutamente perfeito mos agora, pensar no significado prático da ressurrei-
e sem os limites impostos pela fraqueza ou pelo pe- ção.
cado. A seguinte definição de Hodge é muito útil:
“O corpo ressurrecto de Cristo, portanto, tal como Consumação da redenção
existe agora no céu, ainda que retenha a identidade
com seu corpo enquanto estava na terra, é glorioso, Continuando a argumentação do capítulo 15 de
incorruptível, imortal e espiritual. Continua ocupan- 1Coríntios, Paulo enfatiza o verdadeiro significado da
do determinada porção de espaço e retém todas as ressurreição, ele diz: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã
propriedades essenciais como corpo”.8 A definição a nossa pregação, e vã, a vossa fé” (1Co 15.14). Disso
de Berkhof é semelhante: “Sua ressurreição consistiu decorre que a ressurreição de Cristo tem um enor-
em que nele a natureza humana, o corpo e a alma, foi me significado para a fé cristã. Em seguida ele com-
restaurada à sua prístina força e perfeição e até mes- plementa: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa
mo elevada a um nível superior, enquanto que o cor- fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (1Co
po e a alma foram reunidos num organismo vivo”.9 15.17). A ressurreição de Cristo tem um significado
crucial para a obra da redenção, podemos dizer que
Por mais que os críticos modernos rejeitem a noção se a ressurreição não ocorresse a redenção não seria
histórica da ressurreição de Cristo, afirmando ser possível. Por isso Paulo diz que a fé cristã seria vã,
uma mensagem inventada pelos discípulos, como diz caso Cristo não tivesse ressuscitado, pois os pecados
Ladd, o que deu origem à igreja “foi a crença em um não teriam sido removidos como o Evangelho prega.
evento acontecido no tempo e no espaço: Jesus de Paulo diz isso, não só porque a fé cristã está profun-
Nazaré ressuscitou dentre os mortos. Fé na ressurrei- damente ligada aos eventos históricos, e que sem es-
ção de Jesus é um fato histórico inevitável. Sem essa ses, ela não tem sentido, como porque a ressurreição
consuma a redenção. Cristo morreu pelos pecados
7 Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 512.
na sexta-feira, se ele tivesse permanecido morto, que
8 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 953.

9 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 347. 10 George Eldon Ladd. Teologia do Novo Testamento, p. 303.

229
esperanças haveria de salvação? Um Deus morto que esse mundo já vivenciou. Ela consuma a redenção.
não consegue salvar a si mesmo, não poderia salvar
toda a humanidade. Sem a ressurreição, o argumento Certeza da Justificação
irônico dos soldados na trágica sexta-feira seria váli-
do: “Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se” A ressurreição está ligada à nossa justificação. Paulo
(Mt 27.42). A ressurreição de Cristo é uma demons- diz que Cristo foi: “Entregue por causa das nossas
tração majestosa do poder de Deus, ele pode salvar a transgressões e ressuscitou por causa da nossa jus-
todos. É uma proclamação estrondosa de que Deus tificação” (At 4.25). A justificação que é mediante a
não está morto, de que ele ainda está no controle do ressurreição nos dá a paz com Deus, conforme Paulo
universo e de que não há impossíveis para ele. continua: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz
com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”
Por essa razão, precisamos discordar inteiramente de (At 5.1). Sem a ressurreição não seríamos justifica-
Lewis Sperry Chafer que diz que “pelos teólogos do dos, pois a obra de Cristo realizada através de sua
pacto, não há praticamente importância doutrinária morte não poderia ser aplicada a nós. A ressurreição
dada à sua ressurreição”.11 Esse é um entendimento de Cristo deu valia à sua própria morte em nosso
equivocado a respeito do entendimento reformado lugar. Se Cristo não ressuscitasse, a justificação não
sobre o pacto e sobre a ressurreição. A ressurreição poderia ser aplicada a nossas vidas, e nós, de acordo
é a consumação do pacto, é o restabelecimento da com as palavras do Apóstolo Paulo: permanecería-
vida do pacto. Sem a ressurreição, no entendimento mos em nossos pecados (1Cor 15.17). Jesus Cristo
da teologia reformada, simplesmente não haveria re- foi ressuscitado para nos assegurar diante de Deus
denção. O teólogo reformado Louis Berkhof resume que estamos livres dos nossos pecados, ou seja “a res-
o significado da ressurreição da seguinte forma: surreição de Cristo tinha como propósito trazer à luz
o feito de que todos os que reconhecem a Jesus como
Constituiu uma declaração do Pai de que o último seu Senhor e Salvador têm entrado em um estado de
inimigo tinha sido vencido, a pena tinha sido cum- justiça diante dos olhos de Deus”,13 pois “o Pai, ao res-
prida, e tinha sido satisfeita a condição em que a suscitar a Jesus de entre os mortos, nos assegura que
vida fora prometida. Foi um símbolo daquilo que o sacrifício expiatório tem sido aceitado; em conse-
estava destinado a suceder aos membros do corpo quência, nossos pecados são perdoados”.14
místico de Cristo em sua justificação, em seu nas-
cimento espiritual e em sua bendita ressurreição Possibilidade do Novo Nascimento
futura. Relacionou-se também instrumentalmente
com a justificação, a regeneração e a ressurreição Podemos dizer, além disso, que é através da ressur-
final dos crentes.12 reição de Jesus que Deus opera o Novo Nascimento
em nossas vidas. 1 Pedro 1:3 diz: “Bendito o Deus e
Diante disso, fica absolutamente sem sentido a decla- Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua
ração de que a ressurreição não tem importância para muita misericórdia, nos regenerou para uma viva es-
os teólogos do pacto. Ela é o fato mais importante que perança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo den-

11 Lewis Sperry Chafer. Teologia Sistemática, Vol 5-6, p. 218. 13 William Hendriksen, Romanos, p. 184

12 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 347. 14 William Hendriksen, Romanos, p. 184

230
tre os mortos”. Regenerou significa literalmente “nos bamos, que amanhã morreremos” (1Co 15.32). É
fez nascer de novo”. Pedro diz: Isso foi possível me- importante entender que, se não há ressurreição, não
diante a ressurreição de Cristo. Em vários lugares a existe qualquer vantagem em ser honesto, justo ou
Bíblia compara o novo nascimento como um tipo de piedoso. Se não há ressurreição, a lei da selva seria a
ressurreição, pois o novo nascimento é uma ressur- única válida. Mas Paulo tem certeza de que suas lutas
reição espiritual possibilitada pela ressurreição física e dificuldades não foram em vão. Ele sabe que Jesus
de Cristo. Paulo diz: “Fomos, pois, sepultados com ressuscitou, e sabe que os crentes ressuscitarão tam-
ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo bém (2Co 4.14).
foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai,
assim também andemos nós em novidade de vida” EFEITOS DA RESSURREIÇÃO DE CRIS-
(Rm 6.4). Esta novidade de vida é a vida que se origi- TO
na com o novo nascimento. Também Efésios 2:6 fala
que “juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez Os efeitos da ressurreição de Cristo são inumeráveis.
assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Ver Toda uma nova ordem se estabeleceu a partir dessa
também Cl 2.12). Ou seja, já experimentamos uma ressurreição.
ressurreição em nossa vida: o novo nascimento. Isso
somente foi possível por causa da ressurreição de Mudança do dia de Descanso
Cristo.
O próprio dia de descanso mudou a partir da ressur-
Vitória sobre a Morte reição de Jesus. Sabemos que no Antigo Testamento
os israelitas observavam o sétimo dia como dia de
Certamente, o maior significado da ressurreição é a descanso. Mas, a partir da narrativa da ressurreição de
vitória sobre a morte. Conforme as palavras do Após- Jesus, acontecida no primeiro dia da semana, ou seja,
tolo: “Mas, de fato, Cristo ressuscitou dentre os mor- no Domingo, esse passou a ser o dia de culto e adora-
tos, sendo ele as primícias dos que dormem. Visto ção do povo de Deus. Isso pode ser visto, porque há
que a morte veio por um homem, também por um centenas de citações sobre o Sábado no Antigo Tes-
homem veio a ressurreição dos mortos” (1Co 15.21- tamento, mas nem uma única ordenança sobre ele
22). Por causa de Adão a morte entrou no mundo e no Novo. Mas encontramos a declaração de que os
por causa de Cristo a ressurreição do mortos entrou cristãos se reuniam e até celebravam a Santa Ceia no
no mundo. Por isso ele é as primícias dos mortos. Em primeiro dia da semana: “No primeiro dia da sema-
Adão instalou-se a ordem da morte, em Cristo ins- na, estando nós reunidos com o fim de partir o pão,
talou-se a ordem da ressurreição. Como diz Paulo: Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exor-
“Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim tava-os e prolongou o discurso até à meia-noite” (At
também todos serão vivificados em Cristo” (1Co 20.7). Da mesma forma Paulo manda coletar ofertas
15.23). Mas o estado de ressurreição somente é apli- nesse dia: “No primeiro dia da semana, cada um de
cado aos que “são de Cristo”. A ressurreição de Cristo vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prospe-
é o golpe decisivo contra o último inimigo: a morte. ridade, e vá juntando, para que se não façam coletas
Sem a ressurreição de Cristo, a morte é o único des- quando eu for” (1Co 16.2). Não foi preciso um novo
tino do homem, daí o desabafo de Paulo: “Se, como mandamento, o evento histórico da ressurreição,
homem, lutei em Éfeso com feras, que me aproveita acontecido no primeiro dia da semana, foi suficiente
isso? Se os mortos não ressuscitam, comamos e be- para que a igreja primitiva passasse a guardar esse dia

231
como o Dia do Senhor (Ap 1.10). Sabemos isso não Paulo diz: “Assim também vós considerai-vos mor-
apenas dos escritos bíblicos, mas também dos escri- tos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo
tores primitivos, dos tempos da igreja pós-apostólica, Jesus” (Rm 6.11). A partir da ressurreição de Cristo,
como Justino,15 Dionísio, Irineu, e outros que foram o crente é elevado a um novo status, pois já dispõe
inclusive discípulos dos apóstolos. Eles nos dizem do status de ressuscitado, graças à ressurreição de Je-
que os cristãos guardavam o primeiro dia da semana. sus. E também está a sua disposição o mesmo poder
A ressurreição mudou o dia de descanso e de ado- demonstrado na ressurreição de Cristo. Paulo orava
ração. É claro que havia uma diferença na maneira para que os crentes de Éfeso pudessem compreender
como os cristãos guardavam o Domingo, em relação tudo o que estava reservado para eles, especialmente
ao modo como os Judeus guardavam o Sábado. Para qual era a “suprema grandeza do seu poder para com
o Judeu era uma obrigação legal, para o cristão um os que cremos, segundo a eficácia da força do seu
dia de adoração e serviço voluntário. poder; o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o
dentre os mortos e fazendo-o sentar à sua direita nos
Poder na vida dos crentes lugares celestiais” (Ef 1.19-20). Esse poder está dis-
ponível para transformar dia a dia a vida dos crentes,
A ressurreição de Cristo não traz benefícios apenas para que experimentem cada vez mais o assemelhar-
para o futuro dos crentes, mas também para o pre- -se com Cristo.
sente. É através da ressurreição de Cristo que Deus
dá vitória para o crente nessa vida. Paulo diz que nós Nossa própria ressurreição futura
fomos “sepultados com ele na morte pelo batismo;
para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os A ressurreição de Cristo garante que todos os crentes
ressuscitarão. O futuro corpo ressuscitado será nos
mortos pela glória do Pai, assim também andemos
moldes do corpo de Cristo, e apesar de ser a partir
nós em novidade de vida” (Rm 6.4). A conversão in-
desse corpo atual, será incomparavelmente mais
troduz duas novas realidades na vida do crente, uma
glorioso: “Pois assim também é a ressurreição dos
de morte e outra de vida. O crente é unido na morte
mortos. Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita
e na ressurreição de Cristo, assim morre juntamente
na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita em
com Cristo para o pecado, e ressuscita juntamente
glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder.
com Cristo para uma vida totalmente nova. Por isso,
Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual”
(1Co 15.42-44). A explicação de Paulo é que na res-
15 Justino (100-167 d.C.), por volta do ano 150, fez a mais surreição acontecerá uma grande transformação, de
completa descrição do culto na Igreja Primitiva, na qual ele se referiu
ao Domingo como dia de culto: “No dia que se chama do sol [domin- corpo natural as pessoas passarão a ter um corpo es-
go], celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou piritual. A seguinte transformação acontecerá: “Eis
nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as Memórias
dos apóstolos [quatro Evangelhos] ou os escritos dos profetas....”. (Ver que vos digo um mistério: nem todos dormiremos,
Justino de Roma, I Apologia, 67.7. p. 83-84). Justino inclusive explicou
o porquê de a Igreja guardar o Domingo: “Celebramos essa reunião
mas transformados seremos todos, num momen-
geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus, transfor- to, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última
mando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Je-
sus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos.” (Justino de Roma, trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão
I Apologia, 67. p. 83-84). Um outro documento que atesta a antigui-
dade da guarda do domingo por parte da Igreja Cristã, é o Didaquê
incorruptíveis, e nós seremos transformados” (1Co
(c. 120 d.C.), documento anônimo, o qual usa a mesma linguagem de 15.51-52). Os que estiverem vivos na volta de Cristo
João se referindo ao domingo como o “dia do Senhor”: “Reunindo-vos
no dia do Senhor, parti o pão e dai graças....” (Didaquê, XIV. In: J.G. não passarão pela morte, mas serão transformados e
Salvador, ed. O Didaquê, p. 75).
terão o mesmo corpo da ressurreição de Jesus. Nos-

232
so coração regenerado encontra muita dificuldade do que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1Co
em relação ao corpo atual, pois o corpo que temos 15.58). A ressurreição de Cristo garante o presente e
agora é na melhor das hipóteses, instrumento inefi- o futuro dos crentes.
caz para expressar os desejos e propósitos do coração
regenerado. De fato, como Packer coloca, “muitas das Graças à ressurreição de Cristo, estabeleceu-se, para a
fraquezas com as quais os santos lutam – timidez, humanidade, uma nova ordem, a Ordem da Ressur-
temperamento agressivo, luxúria, depressão, frieza reição. A morte perdeu pela primeira vez e, em breve,
nos relacionamentos, e outras – estão intimamente será derrotada para sempre. Não há razões para du-
ligadas à nossa constituição atual”,16 mas, “os corpos vidarmos de que Jesus realmente tenha ressuscita-
que se tornam nossos na ressurreição geral serão cor- do, e certamente, há espaço para milagres hoje, tan-
pos que harmonizam com nosso caráter aperfeiçoa- to quanto no passado ou no futuro. A existência de
do e se revelarão instrumentos perfeitos para santa Deus garante que os milagres também existam. Jesus
auto expressão por toda a eternidade”.17 Tudo isso so- Cristo ressuscitou, essa é a grande proclamação e a
mente será possível, porque Cristo ressuscitou. Paulo grande verdade do Cristianismo. Podemos aumentar
tinha certeza dessa ressurreição, por isso podia dizer: nossa esperança e nossa fé, pois Cristo ressuscitou.
“Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabalá- Graças a ele podemos desfrutar dos benefícios que
veis e sempre abundantes na obra do Senhor, saben-
essa ressurreição nos traz, tanto para essa vida, como
para a vindoura. Louvemos ao Cristo ressuscitado, ao
16 J. I. Packer. Teologia Concisa, p.233. triunfante Rei que venceu a morte, pois um dia tam-
17 J. I. Packer. Teologia Concisa, p.234. bém a venceremos.

233
30. O SIGNIFICADO TEOLÓGICO DA ASCENSÃO

Quando o primeiro cosmonauta russo voltou da pri- fica lá em cima, então, os críticos taxam esse relato de
meira missão que lançou um homem ao espaço, ele cheio de primitivismo e impropriedade terminológi-
disse que lá em cima não havia visto Deus ou o Paraí- ca. O fato, porém, é que até hoje dizemos que as es-
so em lugar algum.1 Infelizmente as pessoas gostam trelas ficam lá em cima. A ascensão de Cristo foi uma
de brincar com coisas que não entendem. A ascensão demonstração visível aos Apóstolos de que ele estava
de Jesus não significou que ele saiu viajando pelo uni- partindo pela última vez, e que não mais o veriam
verso até chegar ao céu. O que essas críticas e brin- como já estavam acostumados a ver. Por 40 dias, ele
cadeiras escondem é uma profunda falta de entendi- se manifestou aos discípulos após sua ressurreição, e,
mento do que é o céu e, acima de tudo, do que foi naquele dia, ele se elevou da terra, e depois de alguns
a ascensão de Jesus. A ascensão de Cristo representa instantes desapareceu. A importância desse evento é
o momento em que ele partiu em definitivo desse excepcional, pois marca o fim da obra de Cristo na
mundo, para assumir sua posição de governo celeste, terra e o início de sua obra celestial.
até que retorne glorioso para o julgamento. Apesar de
não ser uma doutrina muito considerada pela igreja, O RETORNO DO FILHO
ela é fundamental para a fé cristã.
Não existe lugar melhor do que o nosso lar. Isso é o
O relato de Lucas em Atos 1.6-11 é um relato históri- que quase todos sentem quando retornam de algu-
co. Lucas não está contando uma lenda ou uma his- ma viagem longa. A ascensão marcou a volta de Jesus
tória religiosa. Ele está narrando um evento histórico para o seu lar, porém isso não quer dizer que o lar de
que pesquisou e apurou minuciosamente (Lc 1.1-4). Jesus seja em algum lugar no espaço acima de nós. É
Portanto, a ascensão não é uma lenda, é um evento comum a Escritura descrever o céu como acima, mas
histórico. O que é bastante criticado no relato de Lu- isso é uma força de expressão. O céu é um lugar real,
cas é a elevação de Jesus às alturas, fisicamente. Uma mas a dimensão é espiritual. Não é apenas um estado
vez que a terra é redonda, não dá para dizer que o céu é um lugar, porém, não é possível chegar a esse lugar
através de algum meio de transporte criado pelo ho-
mem. Para chegar ao céu é preciso mudar da dimen-
1 Ver Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 517. são física para a espiritual.

234
O Evangelho de João narra a trajetória da vida de Je- teu a ser homem e a viver como homem. Mas, em
sus como uma viagem de ida e de retorno. Ele veio momento algum, Jesus fez questão de demonstrar
aqui através de seu nascimento e voltou para o seu sua divindade, exigir deferência ou reconhecimento.
lugar através da ascensão. Nascimento e ascensão são Após sua morte e ressurreição, ele retornou à posição
aspectos opostos da manifestação de Cristo. que sempre foi sua de direito. Como bom Filho, ele
retornava ao lar.
Em João 17 Jesus falou da posição que ocupava no
céu com Deus antes de sua encarnação: “Eu te glo- De certa forma, Jesus voltou ao céu para reassumir
rifiquei na terra, consumando a obra que me con- sua antiga posição, e ao mesmo tempo, para assumir
fiaste para fazer; e, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo uma nova posição. Sua obra Redentora lhe garantiu
mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes um status ainda maior: o de rei Supremo sobre o des-
que houvesse mundo” ( Jo 17.4-5). E ele completou: tino final do universo. Assentado à destra de Deus,
“Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam ele está investido dessa posição. Por isso Paulo, após
também comigo os que me deste, para que vejam a falar da humilhação de Cristo, fala de sua exaltação:
minha glória que me conferiste, porque me amaste “Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e
antes da fundação do mundo” (Jo 17.24). Antes de lhe deu o nome que está acima de todo nome, para
vir a esse mundo, Jesus desfrutava de uma posição que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus,
de glória e amor em seu relacionamento com o Pai, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que
porém, por algum tempo, ele ficou longe disso, em- Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp
bora não de forma total (exceto talvez no momento 2.911). Esse status de Redentor investido de autori-
da crucificação). dade suprema, Jesus não possuía antes de sua vinda
aqui, pelo simples fato de que ainda não havia morri-
O fato é que ao adentrar o mundo, Jesus se esvaziou do pelos pecados. A ascensão marca o momento em
de algumas prerrogativas suas. Paulo diz aos Filipen- que o Salvador recebeu a coroa e o direito absoluto
ses: “Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não de governar o mundo para fins de consumação do
julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a plano de Deus. A ascensão introduz um novo estágio
si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, no processo redentivo que é tão importante quanto
tornando-se em semelhança de homens; e, reconhe- a ressurreição. Bavinck diz que “sua ascensão é um
cido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tor- triunfo, em um sentido mais forte, que a ressurrei-
nando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fp ção”.2 Embora, talvez essa frase possa ser entendida
2.6-8). Como já dissemos, Jesus não se esvaziou de como um exagero, não é exagero dizer que a ascensão
sua divindade quando adentrou o mundo, ele nunca é fundamental para a obra da salvação. De qualquer
deixou de ser Deus, ele apenas abriu mão de seu sta- modo, a ascensão é o triunfo supremo que conduz à
tus divino, pois precisava se humilhar como homem. entronização de Jesus ao posto máximo de governo
Paulo não está dizendo que Jesus se esvaziou de sua do Universo.
divindade, mas que se esvaziou de seus direitos di-
vinos, especialmente sua glória. E de fato, o carpin- Pela ascensão, Jesus assumiu sua posição de auto-
teiro de Nazaré não foi reconhecido como um dos ridade nos céus. A bíblia costuma usar a expressão
grandes desse mundo. Ainda que João tenha dito que
sua glória pôde ser vista na Encarnação (Jo 1.14), é
2 Herman Bavinck. Teologia Sistemática, p. 408.
justamente a glória do Verbo eterno que se subme-

235
“sentado à destra de Deus” (Mc 16.19) para exprimir Por esse motivo, podemos dizer que a ascensão é o
o significado da posição de autoridade que Jesus se fim de uma obra e o começo de outra. É o fim da obra
encontra investido desde a ascensão. Pedro, em seu expiatória terrena e o começo da obra celestial.
primeiro sermão após o Pentecostes, depois de rela-
tar a trajetória de Jesus desde sua pregação na Galileia Lucas relata que no momento em que Jesus subiu
até sua morte e ressurreição, diz que Jesus foi: “Exal- aos céus, os discípulos ficaram com os olhos como
tado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a que hipnotizados, fixos no céu. Naquele momento
promessa do Espírito Santo” (At 2.33). No próximo anjos apareceram e lhes disseram: “Varões galileus,
testemunho que o mesmo Pedro deu, falando então por que estais olhando para as alturas? Esse Jesus que
para as autoridades judaicas, ele foi ainda mais espe- dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o
cífico: “Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a vistes subir” (At 1.11). Aquela era uma ordem para
Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arre- não permanecerem parados olhando para o céu. Eles
pendimento e a remissão de pecados” (At 5.31). tinham muito trabalho a fazer. Antes da segunda vin-
da de Jesus tem que acontecer uma outra “vinda” e
Estevão, pouco antes de ser apedrejado, teve uma vi- uma outra “ida”. É a “vinda” do Espírito Santo e a “ida”
são da posição de Cristo: “Eis que vejo os céus aber- dos discípulos a todas as nações. Jesus subiu aos céus
tos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus” exatamente para possibilitar essas coisas. A vinda do
(At 7.56). Mas a maior descrição da posição de au- Espírito Santo, para capacitar os discípulos na tarefa
toridade que Jesus recebeu ao assentar-se à destra de que precisavam realizar era imprescindível, pois sem
Deus após a ascensão é o próprio Pedro que nos dá o Espírito Santo, não havia chances de realizarem a
em sua primeira epístola: “O qual, depois de ir para o imensa tarefa de evangelização. Basta ver o Pedro que
céu, está à destra de Deus, ficando-lhe subordinados nega Jesus três vezes, ou o Tomé que mesmo tendo
anjos, e potestades, e poderes” (1Pe 3.22). Assentado recebido a notícia dos dez apóstolos sobre a ressur-
à destra de Deus, Jesus tem em sua subordinação to- reição de Cristo, ainda tem dúvidas, para perceber
dos os poderes existentes. Ele é o comandante supre- que eles não estavam prontos. Além do testemunho
mo de tudo o que existe. Especialmente os poderes da ressurreição de Cristo, era necessário o poder do
sombrios foram a ele subordinados, pois que foram Espírito Santo, e para que isso acontecesse, a ascen-
derrotados na cruz (Cl 2.15). Na ascensão, Jesus se são precisou acontecer primeiro. Jesus deixou bem
colocou "acima" deles (Ef 1.21). claro que, se não partisse e fosse exaltado, não pode-
ria conceder o Espírito Santo, e sem o Espírito, o in-
FIM DE UMA OBRA E COMEÇO DE OU- constante Pedro, o duvidoso Tomé e os outros fracos
TRA discípulos jamais conseguiriam levar o Evangelho até
aos confins da terra.
Na ressurreição, Cristo consumou a vitória sobre o
pecado e sobre a morte e, desse modo, cumpriu tudo Horton diz que nosso Rei Redentor ascendeu ao
o que era necessário para a salvação de seu povo, céu com um duplo propósito: Defender a segurança
porém faltava justamente a tarefa de distribuir esses eterna do seu povo e executar o julgamento eterno
dons e conduzir a obra de conversão até aos confins contra aqueles que não o receberam.3 A fim de defen-
da terra. Para isso, ele precisava subir à destra de Deus
e assumir a posição de autoridade suprema, de onde
3 Michael Horton. Creio, p. 138.
poderia realizar a obra que ainda faltava (Jo 7.37-39).

236
der o seu povo, a principal obra que Cristo iniciou, a só no presente século, mas também no vindouro” (Ef
partir de sua ascensão, foi a de Advogado diante do 1.21). Pedro também fala dessa subordinação força-
Pai em favor dos crentes. O Apóstolo João o chama da: “O qual, depois de ir para o céu, está à destra de
explicitamente de nosso advogado junto de Deus Deus, ficando-lhe subordinados anjos, e potestades,
(1Jo 2.1). A obra sacerdotal de Jesus, especialmente e poderes” (1Pe 3.22). É um tanto quanto redundan-
a celestial, se iniciou graças a ascensão de Cristo. O te dizer que os anjos bons se subordinariam a Jesus
autor aos Hebreus fala bastante sobre o caráter de Je- após a ascensão porque eles já eram subordinados
sus como nosso Advogado, e nos encoraja a usufruir antes, no entanto, agora eles o veem de uma forma
os benefícios que Jesus concede como sacerdote de especial, como Rei Celeste e Terreno. Por outro lado,
seu povo: é bem evidente que Pedro e Paulo estão falando ta-
bém dos poderes malignos. Paulo declarou que o fim
“Tendo, pois, a Jesus, o Filho de Deus, como grande somente virá quando Jesus “houver destruído todo
sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos principado, bem como toda potestade e poder. Por-
firmes a nossa confissão. Porque não temos sumo que convém que ele reine até que haja posto todos
sacerdote que não possa compadecer-se das nossas os inimigos debaixo dos pés” (1Co 15.24-25). Com
fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, sua ascensão, Jesus assumiu o posto de governo do
à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo- universo, ou seja, ele já está reinando, e sua preocu-
-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da pação principal é subjugar e eliminar todo o mal da
graça, a fim de recebermos misericórdia e achar- criação de Deus. Evidentemente que ele faz isso me-
mos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hb diante sua obra na cruz, que lhe deu autoridade para
4.14-16). executar o plano de Deus para esse mundo.

Por causa da ascensão, Jesus “pode salvar totalmen- A partir desse entendimento, podemos interpretar
te os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre aquela batalha no céu, descrita em Apocalipse 12,
para interceder por eles” (Hb 7.25). Assentado à des- entre Miguel e os anjos bons contra Satanás e seus
tra de Deus, ele realiza sua obra de intercessão, como anjos decaídos como uma descrição da vitória de Je-
o autor aos Hebreus ainda declara: “Ora, o essencial sus na ascensão. João descreveu uma mulher radiante
das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo que deu à luz um filho varão (Ap 12.1-2). O dragão
sacerdote, que se assentou à destra do trono da Ma- fez de tudo para devorar o filho da mulher (Ap 12.3-
jestade nos céus, como ministro do santuário e do 4), mas o filho foi arrebatado para Deus até ao seu
verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o trono (Ap 12.5). Em seguida João descreveu a peleja
homem” (Hb 8.1-2). no céu: “Miguel e os seus anjos pelejaram contra o
dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos; to-
Mas ele está lá em cima com o objetivo de terminar davia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu
de destruir os inimigos também. A Bíblia diz que, o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga
com a ascensão de Jesus, os exércitos malignos sofre- serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de
ram uma baixa irrecuperável. Paulo diz que quando todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele,
Deus ressuscitou a Jesus e o fez sentar à sua direita os seus anjos” (Ap 12.7-9). Com a entronização de
nos lugares celestiais, ele passou a ocupar uma posi- Jesus, o Diabo perdeu seu lugar e com ele todos os
ção “acima de todo principado, e potestade, e poder, seus anjos. Eles foram expulsos em direção à terra,
e domínio, e de todo nome que se possa referir, não porém, mesmo na terra não poderão ficar muito tem-

237
po (Ap 12.12). Os inimigos já estão debaixo de seus sumação do século (Mt 28.20).4
pés, o esmagamento final é apenas questão de tempo.
A ascensão de Cristo nos fala de um novo estado
UM NOVO ESTADO PARA A HUMANI- para a humanidade. A humanidade decaída em Adão,
DADE agora passa a ser exaltada em Cristo. É lógico que isso
é privilégio somente dos crentes em Jesus. A Bíblia
A igreja é a grande beneficiada com a exaltação de diz que Deus juntamente com Jesus “nos ressuscitou,
Jesus, pois graças a essa exaltação, Jesus tem capaci- e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Je-
tado sua igreja na tarefa de evangelização, o que de sus” (Ef 2.6). De alguma forma maravilhosa, Cristo
certo modo, também é uma maneira de fazer os ini- está no céu assentado à destra de Deus, e nós estamos
migos baterem em retirada. Os dons que ele distribui lá com ele. Nós não só experimentamos a ressurrei-
para seu povo são frutos de sua ascensão. Paulo fala ção de Cristo, o que foi estudado no capítulo ante-
disso na carta aos Efésios: “Por isso, diz: Quando ele rior, como participamos de sua ascensão. O fato de
subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu estarmos espiritualmente assentados com Cristo nos
dons aos homens” (Ef 4.8). Os dons que foram da- lugares celestiais nos garante uma autoridade que o
dos à igreja para realizar a difícil tarefa de convencer homem nunca dispôs, exceto talvez, no caso de Adão
o mundo e edificar os crentes vêm a nós por causa da antes da queda. Não só participamos do combate
ascensão de Cristo. Sua exaltação era necessária para espiritual, lutando “contra os principados e potesta-
que pudesse conceder a seu povo um pouco de seu des, contra os dominadores deste mundo tenebroso”
poder. (Ef 6.12), como somos armados de armas que “não
são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir
Paulo tem mais a falar sobre a importância da exalta- fortalezas, anulando nós, sofismas e toda altivez que
ção de Cristo para a igreja. Ele diz que Deus fez Cris-
to “sentar à sua direita nos lugares celestiais, acima de 4 Entretanto, não devemos pensar que ele esteja “fisicamen-
todo principado, e potestade, e poder, e domínio, e de te” entre nós, como se seu corpo físico fosse onipresente. Segundo o
calvinismo, a natureza divina de Jesus é onipresente, mas sua nature-
todo nome que se possa referir, não só no presente za humana não é, porque não há comunicação de atributos entre as
naturezas de Jesus. Na Reforma, uma longa discussão sobre isso se
século, mas também no vindouro. E pôs todas as coi- estabeleceu entre Luteranos e Calvinistas. Até mesmo um catecismo
sas debaixo dos pés, e para ser o cabeça sobre todas surgiu para tentar fazer a conciliação entre as duas partes: o Cate-
cismo de Heidelberg. Esse catecismo foi formulado para estabelecer
as coisas, o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a pleni- um consenso, porém, suas ideias em relação à Santa Ceia inclinam-
-se muito mais para a teologia reformada. O Catecismo dá um des-
tude daquele que a tudo enche em todas as coisas” taque imenso à ascensão de Jesus, pois há só uma pergunta sobre
(Ef 1.20-23). Cristo exaltado e assentado à destra de a ressurreição e quatro para a ascensão, e como nota Klooster, isso
aponta, evidentemente para o debate sobre as naturezas de Jesus à
Deus é o governador supremo de todas as coisas, mas luz da discussão sobre a Santa Ceia (Ver Fred H. Klooster. A Mighty
Comfort – The Christian Faith Acording to the Heidelberg Catechism,
quem se beneficia com isso é a igreja, de quem ele é p. 53). A Questão 47 do catecismo antecipa uma dúvida e provável
objeção: Se Cristo está no céu, então, como ele pôde ter dito que es-
o Cabeça. Sua posição de autoridade garante a segu- taria conosco todos os dias até a consumação do século? A resposta
rança e a eficácia de sua igreja durante a peregrinação é: “Segundo sua natureza humana, não está agora na terra, mas se-
gundo sua divindade, majestade, graça e Espírito, jamais se afasta de
dela nesse mundo. nós”. Desde o momento da ascensão, Jesus não está mais fisicamente
entre nós. Não há qualquer comunicação de atributos na pessoa de
Jesus. A natureza humana permanece humana e não recebeu o atri-
O fato de Cristo estar no céu, não significa que ele buto da onipresença. Já a natureza divina, que sempre foi onipresen-
te, está em todo lugar ao mesmo tempo. É nesse sentido que Jesus
esteja limitado ao céu, pois sua onipresença garante está presente entre nós. Por causa de sua onipresença divina ele está
conosco todos os dias até o fim do mundo.
que ele esteja com seu povo todos os dias até a con-

238
se levante contra o conhecimento de Deus, e levan- comigo no meu trono, assim como também eu venci
do cativo todo pensamento à obediência de Cristo” e me sentei com meu Pai no seu trono”. Assim como
(2Co 10.4). Também somos colocados numa posi- a ressurreição de Jesus garante nossa própria ressur-
ção de juízes desse mundo e até dos anjos (1Co 6.3). reição, podemos dizer que sua ascensão garante a
Assim se cumpre em nós aquilo para o que, desde o nossa ascensão.
início, Deus nos criou, conforme a Bíblia testemunha
do homem: “Fizeste-o, por um pouco, menor que os CONCLUSÃO
anjos, de glória e de honra o coroaste e o constituíste
sobre as obras das tuas mãos” (Hb 2.8). Em Cristo É comum a tendência de se valorizar a obra que Jesus
estamos exaltados à destra de Deus, fomos eleva- realizou durante seus dias aqui na terra e minimizar
dos a um novo estado, o estado da ascensão. Essa é a obra que ele realiza hoje no céu, mas as duas coi-
uma doutrina maravilhosa e que os crentes precisam sas são igualmente importantes. Por isso a ascensão
aprender mais (Cl 3.1-4). Não tem nada a ver com o é tão importante quanto o nascimento ou a paixão
triunfalismo da teologia da prosperidade, é apenas o de Cristo. Na verdade uma coisa depende da outra.
reconhecimento de nosso status em Cristo, que nos Precisamos ver a obra de Cristo como um todo, e
traz privilégios e também responsabilidades. nisso devemos incluir o nascimento, a vida perfeita, a
morte, a ressurreição, a ascensão, o derramamento do
Por fim, poderíamos dizer que a ascensão de Cris- Espírito e a segunda vinda. Todos esses eventos são
to garante também a nossa própria ascensão física igualmente importantes e necessários para a salvação
futura. Jesus disse a seus discípulos pouco antes de do povo de Deus. O resumo disso é que tudo o que
sua partida: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Jesus realizou foi absolutamente necessário para que
Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou prepa- a obra fosse completa, pois todos esses eventos são
rar-vos lugar. E, quando eu for e vos preparar lugar, igualmente necessários para a salvação, e nenhum
voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, poderia faltar.
onde eu estou, estejais vós também” (Jo 14.2-3). Para
o mesmo lugar onde Jesus foi, ele deseja levar seus A ascensão de Jesus ao céu foi um acontecimento de
discípulos. Isso acontecerá na Segunda Vinda, como importância indizível. Ela marca, de forma definiti-
Paulo diz: “Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua va, a passagem de Jesus por esse mundo e demons-
palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada tra que a encarnação e o esvaziamento do Filho de
a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos Deus não foram em vão. Ela é a evidência de que a
em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vi- expiação foi realizada e que o sacrifício foi aceito. Ela
vos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamen- demonstra que a vida venceu a morte, e que agora, é
te com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor só uma questão de tempo até que todos os elementos
nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o Se- do plano de Deus se encaixem e conduzam o mundo
nhor” (1Ts 4.16-17). Do mesmo modo como Jesus à consumação.
foi elevado entre nuvens para o céu, nós também
experimentaremos uma ascensão física. Esse estado Assim como sua morte e ressurreição, a ascensão
de exaltação, Jesus o descreve simbolicamente em dirige a humanidade para um novo status, para um
Apocalipse 3.21: “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se novo modo de vida. Através de sua ascensão, Jesus

239
assumiu sua posição de poder e autoridade, de onde são. Ao cristão, nenhuma vida é digna, a não ser a que
governa todas as coisas para o cumprimento do pla- é lá do alto. A verdade é que somos lá de cima. Lá é
no de Deus. De onde também intercede e dirige sua nosso lar. Portanto, enquanto estivermos aqui, se-
igreja, protegendo-a e fortalecendo-a para que a mis- gundo o Apóstolo Paulo, nossa vida deve ser assim:
são dela seja cumprida integralmente. “Buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assenta-
do à direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto, não
Nossos corações devem se alegrar pela posição que nas que são aqui da terra; porque morrestes, e a vossa
Cristo ocupa à destra de Deus. Também devemos vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus”.
nos esforçar para viver a vida de pessoas exaltadas (Cl 3.1-4). Nada menos do que uma vida assim pode
que Cristo nos confere por sua ressurreição e ascen- agradar a Deus e a nós mesmos.

240
BIBLIOGRAFIA

241
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