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Todos os direitos reservados a Gabriel Rocha Carvalho

1a edição: 2020
Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação de fonte.
Capa e Diagramação: Marcos Barboza
Ebook: Yuri Freire
Vivemos tempos em que tudo se relativiza. As pessoas são comumente convidadas a
reuniões que usam jargões evangélicos e terminologias que enganam os incautos. Outros
tantos são convidados a uma espécie de encontro de prazeres emocionais em que o
sentir-se bem é o único motivo de se reunirem. Em tempos assim, de confusões e de
dificuldade em entender o culto público como dádiva das Escrituras e herança da
tradição cristã, é um refrigério termos um texto como Razão Visceral: uma proposta
convergente para o culto cristão, de Gabriel Carvalho. É um texto rico em sua pesquisa,
de leitura acessível a qualquer cristão, e que não deixa dúvida alguma quanto à
importância do culto em si, de seu preparo, de sua ordem e de seus contornos
espirituais. Mesmo sendo um texto que, em alguma medida, privilegia o pensamento
pentecostal, creio ser obra de interesse de toda a Igreja de Cristo em nosso Brasil.
Rev. Joel Theodoro, Doutor em Ministério (Reformed Theological
Seminary), pastor na Igreja Presbiteriana do Brasil no Rio de
Janeiro/RJ

O modo como cultuamos reflete nossa teologia. A regra de oração se torna regra de fé.
Por muito tempo ignoramos esse fato dividindo a nossa existência em mero
intelectualismo ou simples emoções. Este livro, Razão Visceral, apontará um caminho
equilibrado, compreendendo a adoração pública ao Deus triúno com todo o nosso ser.
As influências litúrgicas dos diversos movimentos presentes na Igreja ao longo dos
séculos podem contribuir para uma reflexão madura e contemporânea, e dar luz a uma
adoração que seja reverente às Escrituras, reveladas pelo Pai, fervorosa e piedosa ao
mesmo tempo, nas riquezas da obra de Cristo, o Filho. E que assim possamos caminhar
na discussão sobre a liturgia cristã, construindo pontes e promovendo o equilíbrio,
guiados pelo Santo Espírito de Deus. Que Deus abençoe a sua leitura!
Guilherme Iamarino, escritor na área de Culto e Liturgia, fundador e
vocalista da banda Projeto Sola

A obra que o leitor tem em mãos trata de um assunto inevitável no século XXI para a
Igreja Cristã. Não há dúvida de que ao transformar o Evangelho em produto, muita
gente se habituou a tratar a igreja local como um contexto de consumo. Há muita gente
à procura de um lugar onde suas demandas estéticas e afetivas sejam satisfeitas.
Entretanto, um princípio básico é que o culto só ‘serve’ às pessoas na medida em que ele
serve a Deus. Seres humanos necessitam de visão beatífica, de contemplação e
maravilhamento para amarem mais a Deus, e desta forma, suas afeições vão sendo
calibradas. Basicamente, Gabriel Carvalho traz nesta obra a importância formativa do
culto cristão. Recupera as implicações pedagógicas da adoração pública como um ato
dirigido a Deus, portanto, formativa em direção a um tipo de ser humano. A forma do
culto não apenas informa, ela forma pessoas. Cada momento da adoração pública
responde a um currículo e integra-se ao discipulado cristão. O autor procura demonstrar
que o culto envolve a totalidade da vida humana: cognição, afeição, imaginação, visão e
senso de temporalidade. Obra essencial em dias auto-afeição e narcisismo,
principalmente aos interessados na estética e na estrutura da reunião visível dos santos
diante do Trino Deus.
Igor Miguel, Mestre em Letras (Hebraico) pela Universidade de São
Paulo, Vice-presidente da Associação Kuyper para Estudos
Interdisciplinares (AKET) e pastor da Igreja Esperança, em Belo
Horizonte (MG).

Razão Visceral surge em um momento oportuno para a igreja evangélica brasileira, por
tratar de um assunto que ainda não tem sido devidamente explorado em nossa seara: a
liturgia cristã. A obra de Gabriel Carvalho apresenta uma proposta litúrgica convergindo
as quatro principais tradições cristãs: demonstrando que o culto, antes de atender as
demandas ou preferências congregacionais, deve ser o ambiente frutífero para um
encontro vibrante do Deus Triúno com a sua igreja reunida. Teologicamente
fundamentado e orientado à prática, Razão Visceral é indispensável para pastores,
líderes de louvor e todo cristão que deseja prestar um culto agradável a Deus.
João Costa, Mestre em Teologia (Reformed Theological Seminary),
professor do IBRMEC, autor do livro “Missional: uma jornada de
devoção à missão”.

Nem sempre a verdade está no meio. Mas quando falamos sobre culto e liturgia,
podemos encontrar a verdade bíblica no equilíbrio entre a formalidade sacramental e a
espontaneidade carismática. Por esse motivo, celebro o livro do professor Gabriel
Carvalho. O ponto alto do livro é a lembrança que a liturgia deve ser trinitária. Servimos
a um Deus Trino e, sendo a liturgia uma expressão de amor, é necessário que essa
adoração esteja integralmente envolvida na pessoa do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
O culto cristão não pode cair nas amarras do subjetivismo, todavia, deve se resguardar
do racionalismo. O racionalismo transparece vigor intelectual quando, muitas vezes,
esconde a vaidade humana mais primária. Devemos cultivar a razão das vísceras.
Recomendo o livro não apenas pela urgência do tema, mas pela leitura agradável de um
texto bem escrito e que dialoga com o melhor das tradições litúrgicas do cristianismo.
Gutierres Fernandes Siqueira, autor dos livros “Revestidos de Poder:
Uma Introdução à Teologia Pentecostal” e “O Espírito e a Palavra”,
ambos publicados pela Editora CPAD. Editor do blog “Teologia
Pentecostal”.

Há quem encontre todas as soluções para as crises litúrgicas das nossas igrejas no século
XVI. Outros pretendem soltar as amarras do passado e avançar em inovações rumo a
uma relação afinada com os novos tempos. Nenhuma dessas radicalizações está
presente na surpreendente obra de Gabriel Carvalho. O autor sabe dialogar com o
conhecimento acadêmico, mas sustenta uma linguagem acessível ao chão da igreja.
Dessa maneira, introduzindo cada capítulo com experiências pessoais, Gabriel apresenta
os pilares do culto na história do protestantismo: a racionalidade das tradições
reformada e sacramental, e o aspecto visceral das tradições evangelical e pentecostal.
Busca as contribuições positivas de cada experiência, deixando de lado as cansativas e
repetitivas críticas aos aspectos negativos. O resultado é uma proposta de culto
convergente, vivo e profundamente cristão, resumido no feliz título deste excelente
livro: Razão Visceral.
André Daniel Reinke, Mestre em Teologia (Faculdades EST), autor dos
livros Atlas Bíblico Ilustrado, pela Editora Hagnos, e Os outros da
Bíblia, pela Thomas Nelson Brasil.

Muitas pessoas têm por certo que o culto simplesmente acontece. Que não precisam
pensar, refletir ou conversar sobre isso. Basta a igreja se reunir e começar a adorar.
Nada mais longe da verdade. Falando mais propriamente de uma teologia do culto, qual
é o seu papel formador na vida cristã? Por que é essencial que a igreja se reúna? O que
torna a reunião de adoração comunitária da igreja de Jesus algo tão essencial? Tenho
dedicado boa parte de minha vida a responder essas perguntas, e fico extremamente
feliz de ver mais gente séria como Gabriel Carvalho se dedicando a isso também,
buscando ser bíblico, ao mesmo tempo em que respeita as diversas tradições da Igreja
Cristã, sem perder de vista os desafios da contemporaneidade. Somos gratos a Deus pela
contribuição de tantos irmãos ao redor do mundo nessa área, muitos citados aqui nesta
obra, mas também precisamos elaborar uma proposta de culto cristão que seja pensada
e aplicada no chão (diverso e vasto) da igreja brasileira. Que sejamos encorajados, como
pastores, líderes e ministros, a buscar essa razão visceral, integrando mente e coração
em uma adoração que agrade a Deus e que responda aos anseios da humanidade do
século XXI.
Renato Marinoni, Mestre em Teologia (PUC/SP e CPAJ/Mackenzie),
Diretor e Fundador do IACA - Instituto de Adoração, Cultura e Arte,
pastor na Igreja Batista da Metrópole/SP.

O culto é um momento maravilhosamente distinto de celebração comunitária, de


adoração coletiva, de doutrinamento da igreja e de estímulo a se viver a vida cristã de
forma frutífera. Com clareza e equilíbrio, Gabriel Carvalho nos faz perceber essa
dinâmica tão necessária para o culto cristão, sem se basear, entretanto, no engessado
exclusivismo confessional. Ao invés disso, ele consegue respeitar e dialogar com as
diferentes tradições existentes dentro do seio protestante e extrai o melhor de seus
respectivos caminhos litúrgicos. De forma bíblica, histórica e teológica, a leitura desse
livro impulsionará cada cristão a entender e a prestar um culto que glorifica a Deus,
prioritariamente, e que se expressa de maneira espiritual e doutrinária, sem deixar de
ser espontânea e relevante. Fui abençoado lendo esse livro e tenho certeza que você
também o será.
Acyr de Gerone Junior, Doutor em Teologia (PUC-Rio), Secretário
Regional da Sociedade Bíblica do Brasil.

Agradabilíssimas são as lembranças que o autor compartilha de seu início de jornada


pelo culto cristão. Mas este livro vai mexer com muito mais do que só memórias: vai
chacoalhar sua mente (sua razão) e seu coração (suas emoções). Gabriel Carvalho
menciona adequadamente os aspectos positivos das principais tradições de culto,
buscando o equilíbrio e a “convergência” ao incluir no culto os principais elementos de
cada uma delas. O estilo leve e envolvente do autor é perceptível já no “mapa” claro e
sucinto desenhado na introdução, bem como nos capítulos breves e densos, mas
objetivos e claros, que prendem a atenção dos leitores com excelentes aberturas. Gabriel
demonstra conhecimento e boa interação com a literatura de dezenas de expoentes da
reflexão sobre o culto e a adoração cristã, bem como de renomados músicos e líderes de
louvor contemporâneos. O autor realmente nos desafia a pensar. E nem todos vamos
concordar com algumas de suas ênfases. Mas quem discordaria deste resumo, na
conclusão do livro, em que ele realça que o planejamento do nosso culto deve buscar
“equilibrar excelência teológica com fervor da alma; respeito a tradições sadias com
sede da imanência; compromisso de uma pregação bíblica e consistente com
espontaneidade comunitária; lançar mão dos preciosos símbolos e marcos antigos
com a expectativa ardente de um encontro com Deus”. A isso só posso dizer um
consciente e emocionado/vigoroso AMÉM!
Valdemar Kroker, Tradutor e editor de Edições Vida Nova, pastor da
Igreja Irmãos Menonitas do Boqueirão, Curitiba (PR).

O querido Professor Gabriel Carvalho, aliando juventude, competência e entusiasmo,


nos apresenta uma objetiva exposição a respeito das denominadas tradições reformada,
sacramental, evangelical e pentecostal, tendo como alvo extrair aspectos unificadores
que possam embasar uma prática litúrgica convergente. Além de ser leitura atraente, e
de cuidar de assunto de extrema relevância para o cristão, é um convite – irrecusável –
para nos debruçarmos, respeitosa e reverentemente, sobre a teologia que é apresentada
por cada uma das tradições mencionadas. Creio que essa incursão teológica, com as
lentes das Escrituras, tendo em vista a proposta deste livro, é a ‘pedra-de-toque’ que vai
conduzir o leitor na caminhada. E que seja tudo para a glória de Deus!
Reginaldo Campos da Motta, Pastor da Igreja Batista Memorial do
Mallet – Rio de Janeiro/RJ

Perpassando a liturgia das tradições cristãs em suas apresentações ocidentais —


reformada, sacramental, evangelical e pentecostal —, Gabriel extrai o que há de melhor
em cada uma delas para, finalmente, propor uma disposição cúltica traduzida no que ele
chama de Razão Visceral. Vale a pena a leitura.
César Moisés Carvalho, chefe do setor de Livros da Casa Publicadora
das Assembleias de Deus, autor do livro “Pentecostalismo e Pós-
Modernidade (CPAD)”. Professor de Teologia da FAECAD.

Tive a alegria de ler o livro Razão Visceral, e posso dizer que seu conteúdo traz uma
importante contribuição para a discussão sobre as práticas de culto dentro da igreja
evangélica, ao abordar tanto os aspectos didáticos, artísticos e teológicos, bem como as
práticas das diferentes tradições que hoje compõem o universo evangélico. Quando
falamos de culto, e de liturgias, é muito fácil ficarmos no mundo da teoria, sem oferecer
aos leitores e interessados formas de, na prática, aplicarem aquilo que aprenderam, ou
avaliarem se a forma como suas igrejas prestam serviço a Deus poderia ser efetivamente
melhorada ou transformada. Não é o caso com esta obra. O esforço empreendido por
Gabriel em tornar o conteúdo vivo e o diálogo fácil tem um ótimo resultado. Certamente
é mais uma excelente ferramenta para o estudo do culto a Deus, e serve também para
expandir o diálogo, trazer luz e esclarecimento sobre algumas práticas, e especialmente
mais fundamento sobre o pentecostalismo reformado. Deus seja glorificado com esta
obra!
Eduardo Mano, cantor e compositor, fundador do ministério Velhas
Verdades, missionário na Igreja Baptista da Graça, em Lisboa,
Portugal.
À minha amada Bruna,
Amor maior que a Teologia.
AGRADECIMENTOS

A Deus, a causa inicial desses estudos, da minha vida, do universo.


À Bruna, esposa compreensiva, maior incentivadora e exemplo de humanidade.
Ao meu pequeno e querido filho Henrique, pela pureza, alegria e amor
demonstrados o tempo todo.
Aos meus pais Manoel e Eliane, apoiadores desde o berço e colaboradores dessa
jornada.
Ao meu irmão Thiago, à família de minha esposa e aos amigos, pelo incentivo ao
crescimento e maturidade no Reino de Deus.
Aos meus pastores e à minha querida igreja ICNV Freguesia, pela confiança e
apoio incondicional, e pelo suporte imprescindível para a publicação dessa obra.
Aos queridos Bispo Walter McAlister e Nick Ellis, pela cortesia em redigir,
respectivamente, a apresentação e o prefácio desta obra.
Aos líderes e pastores que gentilmente enviaram endossos e preciosas sugestões
ao texto deste livro.
A Andrew, João Costa e Daniel, companheiros de labuta no IBRMEC, pelo
companheirismo e incentivo à produção de conteúdo teológico.
Aos meus queridos alunos, que motivam o trabalho no ensino bíblico, e a todos
quanto se alegram comigo por essa realização.
SUMÁRIO

Apresentação, por Walter McAlister


Prefácio, por Nicholas Ellis
Introdução: Precisamos falar sobre culto

Parte 1: Lançando as bases


Capítulo 1: A capacidade didático-formativa do culto cristão
Capítulo 2: Arte e beleza como formação espiritual
Capítulo 3: Trindade: fundamento litúrgico

Parte 2: Erguendo a estrutura: a razão


Capítulo 4: O pilar Reformado do culto
Capítulo 5: O pilar Sacramental do culto

Parte 3: Finalizando a estrutura: o visceral


Capítulo 6: O pilar Evangelical do culto
Capítulo 7: O pilar Pentecostal do culto

Conclusão: Razão Visceral como ethos litúrgico


Apêndice: Sugestões de Ordens de Culto
APRESENTAÇÃO

Walter McAlister

Sou procurado com uma certa frequência para ler livros na sua fase formativa.
Alguns pedem críticas, outros pedem um prefácio, e ainda outros um endosso. Sendo
um leitor constante, é muito difícil eu ser surpreendido. Geralmente, só aceito
mediante algum conhecimento pessoal do autor. Como conheço um universo
razoavelmente grande de líderes cristãos, isto quer dizer que acabo lendo muitos
livros, fora os que leio para meu trabalho, e os que leio para o meu prazer.
O Gabriel Carvalho é professor no nosso Instituto Bíblico. Ele é um advogado,
blogueiro, mestre, e líder na sua igreja local. Conheço-o há muitos anos. Quando me
pediu para ler o seu livro, mesmo já tendo lido artigos dele no blog do Instituto
Bispo Roberto McAlister de Estudos Cristãos (IBRMEC) e tendo ouvido sua
participação em podcasts do “Igrejeiros”, já esperava algo de bom. Mas, confesso que
fui surpreendido e as minhas expectativas provaram ser muito abaixo da excelência
desta obra.
Esta proposta de diálogo entre as quatro tradições históricas do culto público foi
descrita e documentada com lucidez e graça, mostrando os pontos fortes e fracos de
cada um. A conclusão que leva além do diálogo e recomenda a expressão clara das
quatro no culto é algo que tenho contemplado e procurado fazer ao longo dos
últimos vinte e pouco anos, desde que descobri e abracei a Teologia Reformada,
embora fosse e permaneço um Pentecostal. A minha abertura, sem que isto
redundasse em abandono das minhas origens, fez com que eu valorizasse as quatro
tradições.
Creio que a leitura desta obra, feito com um coração aberto, e sem levantar as
barreiras usuais, em defesa de uma ou outra, pode influenciar a igreja numa direção
saudável, piedosa, inteligente e vigorosa. Recomendo este livro com muito prazer e
planejo fazer dele leitura obrigatória no curso que ministro na Capacitação
Ministerial do IBRMEC, “Fundamentos do Culto Público”.
Boa leitura.
Walter Robert McAlister Junior
Bispo Primaz da Aliança das Igrejas Cristãs Nova Vida, Mestre em
Teologia (Reformed Theological Seminary)
Junho/2020
PREFÁCIO

Nicholas Ellis

“Venham, subamos ao monte do Senhor, ao templo do Deus de Jacó”. Desde os


tempos mais antigos, os adoradores de Yahweh têm procurado preencher a lacuna
entre o céu e a terra, para reunir o reino material criado com a comunhão
harmoniosa, cheia de adoração e alegria com seu Criador. Essa necessidade é
refletida em todo o Antigo Testamento, desenvolvida em todos os judeus pré-
cristãos, continuando a ser desenvolvida nos escritos dos apóstolos cristãos.
No Antigo Testamento, o templo judaico e seu predecessor, o tabernáculo, eram
o foco desta ponte espiritual e física entre o céu e a terra. Em Êxodo, seguindo a
declaração de Deus de que “desceria” ao Seu povo (Êx 3.8), o Senhor estabeleceu
uma morada entre Israel (Êx 40.34, 1Rs 8.10,11, Is 6.4). Este tabernáculo, e por fim o
Templo de Salomão, foram projetados de forma a unir o céu à terra, remetendo ao
Jardim do Éden, onde Deus andou com a humanidade1.
Os Salmos forneceram um livro de orações para a adoração de Deus: essas
orações a Deus, lidas e relidas como palavras inspiradas de Deus ao homem,
tornaram-se uma ponte litúrgica entre o céu e a terra. Desde os tempos de Davi até
sua recepção no judaísmo posterior e na Igreja Primitiva, os Salmos têm sido o meio
escrito de entrar, em comunidade, na presença de Deus, de reencenar Suas obras
poderosas e de tomar assento na Casa do Senhor.
Alguns salmos do segundo templo, como por exemplo, Sl 11.4-7; 25.14; 73.23-26,
demonstram uma esperança carismática, na qual o cantor pode olhar o rosto do
Senhor e ser levado ao seu conselho íntimo, o 'conselho de Deus' que antes era
prerrogativa apenas de profetas e reis eleitos (1Rs 22.19-22; Jr 23.18,22). Esses
salmos sugerem que os levitas que os cantavam nutriam uma esperança de
experiência visionária, como no Salmo 11, que conclui que “os retos verão a sua face”,
como em Is 33.17, “Seus olhos verão o rei em seu esplendor”.
O Profeta Isaías relata uma visão semelhante da realidade, na qual convergem as
cortes do Senhor e as cortes do templo terrestre. Isaías 6 mostra o profeta, de pé nos
pátios do templo, quando Deus abre seus olhos: ele vê os dois templos se unindo, os
sacerdotes em seus deveres e a hoste angelical em seus lugares, ambos juntos em
santo louvor ao Deus do céu e da terra. Isaías 40.1-9 ainda apresenta vozes,
sacerdotais e angélicas, unidas em canções encomendadas pelo Deus de Israel. Esta
visão de uma realidade unida, na qual os reinos celestial e terrestre estão mais uma
vez unidos na adoração ao Criador, continua ao longo de Isaías em sua expectativa
para a Nova Jerusalém, e seria um tema importante abordado por autores
posteriores.
Durante o período do exílio, o povo judeu continuou a adorar ao Senhor e muitos
escreveram sobre essa experiência. Com o acesso ao Templo em Jerusalém
removido, como esses adoradores fiéis deveriam comungar e adorar com seu
Criador?
Considere, por exemplo, os escritos de Filo de Alexandria, um filósofo judeu que
trabalhou como professor em Alexandria, Egito. Filo combina sua lealdade bíblica
com uma estrutura filosófica grega para descrever a ascensão humana a Deus. Para
Filo, essa ascensão ocorre principalmente na mente. Por isso, passa muito tempo
examinando as limitações e oportunidades para o ser humano ascender ao
conhecimento de Deus. Para ele, essa "ascensão a Deus" foi encontrada no estudo
contemplativo (Espec. 3.1–6). A comunidade de crentes era o lugar especial para tal
contemplação, onde as Escrituras eram expostas, a virtude era ensinada e onde a
mente era voltada para Deus (ver, por exemplo, Spec. Leg. 2.62; Contemp. 11–12).
Quando lemos os muitos autores judeus deste período, vemos um povo dedicado
à adoração e contemplação de Deus, como uma comunidade do povo eleito de Deus
que se reunia na presença de Deus e comungava com Deus através do estudo do
texto sagrado, o canto dos Salmos e a contemplação dos atos e da pessoa de Deus.
Em toda a literatura do Segundo Templo, encontramos uma união entre os reinos
celestial e terrestre, costurados precisamente no ponto de adoração comum, música,
oração e estudo contemplativo, mais especificamente no Templo.
No hino encontrado no manuscrito 11QPsa do Mar Morto, “Hino ao Criador”,
Deus marcha acompanhado pelo tumulto de poderosas águas (cf. Ez 1.24), e poderes
angelicais cercam o trono de Deus em louvor: “Grande e santo és Senhor, santo
entre os santos de geração em geração. À sua frente avança a majestade, à sua
retaguarda o tumulto de muitas águas [...] Ele separou as trevas da luz,
preparando o amanhecer com o conhecimento do seu coração. Quando todos os
seus anjos viram, eles se alegraram com a música.”
Melodias semelhantes são ouvidas no Apóstrofo de Judas 4Q88, onde o cantor
instrui estrelas e anjos a se juntarem ao júbilo de Judá nas festas do templo: “Que o
céu e a terra louvem em uníssono, que todas as estrelas do crepúsculo louvem!
Alegra-te, Judá, regozija-te e alegra-te! Faça suas peregrinações, cumpra seus
votos [...] Pois Tu, Senhor, é eterno, Tua glória dura para sempre.”2
Esta participação com o reino celestial mostra ter um impacto cósmico: “[O
Sacerdote] transmitirá para eles seu testemunho. E fará expiação por todos os de
sua geração e será enviado a todos os filhos de seu povo. Suas palavras são como
as palavras do céu e seu ensino é como a vontade de Deus. Então o sol eterno
brilhará e seu fogo dará calor até os confins da terra. Ela brilhará na escuridão;
então a escuridão desaparecerá da terra e a névoa da terra seca.” Embora esse
sacerdote seja terreno, seu ministério dá ressonância nas esferas celestiais.
Esses autores judeus mostram-se profundamente comprometidos com a
adoração ao Deus de seus pais. Com a vinda de Jesus, o Messias, aqueles que
seguiram o Mestre se viram como herdeiros dessa história e como companheiros
participantes daqueles que haviam comungado com Deus no passado. No Livro de
Hebreus, capítulo 11, o autor posiciona a si mesmo e a seus leitores com aqueles que
vieram antes. Os cristãos se viam como co-participantes com eles: seja no Sinai
(12,18), seja na Nova Jerusalém. O Templo terrestre agora está unido ao Templo
celestial.
Como em Êx 25.9,40, onde o tabernáculo é construído de acordo com o 'modelo'
que foi mostrado a Moisés na montanha, em Hb 8.5 este modelo não é um mero
projeto arquitetônico, mas uma visão do Templo celestial: para Hebreus 8.2-5, este é
“o verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, e não o homem”, e o templo terrestre
é apenas “cópia e sombra daquele que está nos céus”. Os cantores do templo se viam
cantando em uníssono com os cantores angelicais. O povo de Deus aqui embaixo tem
cantado "Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos" por milênios, sintonizando-se
na música celestial. Como em Salmos 22.4, onde o Senhor que está entronizado
sobre os querubins no Santo dos Santos (cf. Êx 25.22) também governa os louvores
de Seu povo, esses cantores do templo terrestre se imaginaram em comunhão com
anjos cantando diante do Trono de Deus.
Em Hebreus, essa comunhão de crentes não é conduzida por um Sumo Sacerdote
genérico, porém a figura sacerdotal dessa comunhão é o próprio Senhor Jesus, o
sumo sacerdote final, que se sacrificou no Gólgota, que ocupa o lugar do templo
terrestre. Enquanto sacerdote terreno, Jesus também oficia no santuário real e
celestial, perante o trono de Deus. Como servos deste Sumo Sacerdote, a comunhão
dos crentes se engaja em união carismática com os anjos que oficiam nos céus:
"vocês vieram à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, a milhares de anjos, para
uma santa convocação" (13.22,23): o eschaton foi quebrado, o céu e a terra se
uniram, e o crente participa dessa nova realidade.
É, portanto, neste quadro transcendente que nós, a Igreja de Jesus Cristo,
devemos compreender e nos envolver no culto de adoração. Longe de ser um
desempenho observado, a Igreja, em sua adoração, louvor e contemplação, se engaja
em união sobrenatural com o reino celestial, focada na pessoa e obra unificadora de
Jesus Cristo. Como tal, a Igreja faria bem em cantar e se alegrar com Santo Efrém da
Síria:
Da verdadeira Luz surge para nós a luz que ilumina nossos olhos escurecidos.

Sua glória brilha sobre o mundo e ilumina as profundezas do abismo.

A morte foi aniquilada, a noite desapareceu e os portões do Sheol foram quebrados.

Criaturas que jazem nas trevas desde os tempos antigos são revestidas de luz.

Os mortos se levantam do pó e cantam porque têm um Salvador.

(Hino à Luz)

É na adoração comunitária a este Senhor e Salvador que nossas almas ascendem,


em última análise, para a união com nosso Criador e cumprem a esperança do povo
de Deus de eras passadas.
Dr. Nicholas Ellis
PhD em Novo Testamento pela Universidade de Oxford, Fundador
e CEO da GDiGlobal
Agosto/2020

1. Sobre este assunto, veja especialmente Alexander and Gathercole, Heaven on Earth: the Temple in Biblical
Theology (Paternoster, 2004), bem como Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the
Dwelling Place of God (Downers Grove: IVP, 2004).
2. Para outros exemplos da unificação da comunhão entre céu e terra com a adoração ao Todo-Poderoso, veja
Torlief Elgvin, “From Earthly to the Heavenly Temple”, em Craig Evans, The World of Jesus and the Early
Church (Peabody: Hendrickson, 2011), pp, 23–36.
INTRODUÇÃO

PRECISAMOS FALAR SOBRE CULTO

Você já deve ter assistido ou ouvido falar de algum daqueles filmes de tragédias
aéreas, em que o avião sofre um pane, ou se choca com alguma coisa no ar. É
interessante como muitas vezes é relatado que houve um problema com as turbinas
do avião, e por conta disso ele perde força e altitude, trazendo perigo aos passageiros
e tripulantes. As turbinas mantêm o avião firme e íntegro em seu propósito e função:
transportar pessoas em segurança de um lugar a outro.
“O culto é a turbina central da igreja na formação de discípulos”, afirma o Bispo
Walter McAlister3. Tudo o que é feito na igreja serve para apoiar o culto e tudo o que
a igreja recebe como consequência decorre dele. A essência de nossas reuniões de
adoração coletiva começa pelo ouvir a Palavra de Deus, mudar nossa forma de
pensar e dedicarmo-nos à obediência. O culto deve ser o lugar que aprendemos a
pensar como cristãos4.
O culto é importante. Poucos teriam a ousadia de afirmar o contrário. Porém há
várias formas de cultuar. As diferentes tradições estruturaram liturgias distintas
para adorar a Deus, e parece que estamos num caminho intransponível, onde cada
um segue sua tradição, ressaltando as qualidades próprias e criticando as
deficiências alheias. D. A. Carson expõe esse cenário muito bem:
Às vezes, parece que, para muitos, há apenas duas alternativas: o tradicionalismo imponente (ou
deveríamos dizer “majestoso”?) e a contemporaneidade de modismo (ou deveríamos dizer “avivada”?).
Somos convidados a escolher entre “como era no princípio, é agora e sempre será, no mundo por vir” e o
“antigo como sendo frio, enquanto o novo é verdadeiro”. Um lado pensa na adoração como algo que
experimentamos, muitas vezes em oposição ao próprio sermão (primeiro temos adoração, e depois o
sermão, como se fossem duas categorias distintas); enquanto o outro lado pensa na adoração como uma
forma elaborada, muitas vezes, contra todo o resto na vida5.

Para que a tensão entre tradição e relevância permaneça saudável, será


prejudicial focar excessivamente um dos lados. Muita ênfase em tradições e raízes
pode nos levar a depender demais delas. Nunca haverá uma liturgia perfeita ou
tradição que garanta a fé ininterrupta das gerações futuras. Já a relevância pode
parecer diferente de uma área geográfica para outra. Cada igreja deve certificar-se de
que a história da redenção divina esteja sendo compreendida com clareza e
experimentada por aqueles que procura alcançar com o Evangelho6.
Este livro trata do culto público. Essa distinção é importante, porque é possível
que muitos não tenham muito clara em suas mentes a diferença entre os aspectos
privado e público do culto. Como o próprio nome diz, o culto público é aquele
realizado na companhia da comunidade de fé na igreja local; já o culto privado é
aquele realizamos individualmente, em família ou outros círculos pessoais menores,
como forma de devoção pessoal. Por mais importante que seja, o culto privado não
pode substituir a necessidade do culto público; da mesma forma, o culto público não
substitui a necessidade do culto privado7. Eles são interdependentes e
complementares.
Segundo James White, o fato do culto privado ocorrer à parte da presença do
restante da congregação não significa que não esteja ligada aos cultos privados dos
outros cristãos. O fato é que o culto público e o privado dependem um do outro. O
culto público precisa ser complementado pela individualidade do culto privado. Já o
culto privado precisa ser equilibrado pela estrutura ordenada e comunitária do culto
público8.
Embora na prática o culto público acabe tendo uma precedência maior, o fato é
que ambos deveriam se completar, reforçar e checar mutuamente. Somente nestes
casos podemos encontrar, de fato, uma vida equilibrada de devoção cristã plena9 –
ou seja, que abranja os âmbitos público e privado.
O objetivo deste livro é oferecer uma proposta convergente para o culto cristão.
Nessa convergência encontram-se contribuições das quatro grandes tradições
protestantes: a reformada, a sacramental, a evangelical e a pentecostal. Denomino
tal proposta como Razão Visceral, termo que busca expor o equilíbrio entre um uso
adequado e responsável da mente e da razão no contexto do culto público, somado à
disposição vigorosa e emocional de estar na presença de Deus junto com a igreja
local.
No conceito de Razão Visceral exposto neste livro, partirei do seguinte
raciocínio: no capítulo 1, descreverei o caráter didático- formativo do culto cristão,
buscando entender porque o culto molda nossa vida cristã como um todo, e
determina a temperatura e saúde de nossa caminhada no Reino de Deus.
No capítulo 2, tratarei do papel da arte e da beleza como formadores espirituais
do cristão. Existe muito mais beleza do que estamos acostumados a perceber, e
muito mais arte relacionada à liturgia de adoração comunitária do que pensamos
haver. Precisamos avançar muito no reconhecimento desses artifícios
proporcionados por Deus para contribuir com nossa edificação. O gosto anêmico dos
líderes atuais para a arquitetura de seus templos é um exemplo do que estamos
falando, uma vez que se pautam muito mais na utilidade do que necessariamente na
beleza e em tudo o que isso pode inspirar nos membros da igreja.
No capítulo 3, identifico a Trindade como o fundamento litúrgico da igreja. Essa
doutrina, esquecida ou subvalorizada por muitos séculos na igreja ocidental, tem
recebido certa atenção nos últimos tempos. O resgate de uma reflexão séria a
respeito da Trindade, e sua expressão necessária no culto cristão se tornam
essenciais quando se fala a respeito desse assunto.
Tendo erguido as bases do conceito, nos capítulos 4 e 5, explorarei a primeira
parte da ideia propriamente dita – denominada “razão”. Em primeiro lugar,
analisarei a contribuição da tradição reformada, quais sejam a primazia das
Escrituras e a centralidade da pregação; logo após, destacarei a contribuição da
tradição sacramental, com sua predileção pelos símbolos e liturgias mais fixas, que
são importantes para a fixação do Evangelho na mente do cristão.
Uma vez erguida essa estrutura primária, precisamos finalizar essa “construção”
tratando da segunda parte do conceito – denominada “visceral”. Neste ponto,
analisarei no capítulo 6 a contribuição evangelical para o culto cristão, buscando
superar a crítica quase absoluta a essa tradição, olhando com olhos graciosos para
seus pontos positivos. No capítulo 7, tratarei da contribuição pentecostal, quais
sejam a vigorosa e entusiasmada atitude de louvor, bem como a abertura à ação do
Espírito Santo, expresso, dentre outras coisas, pela ocorrência dos dons espirituais.
Por fim, concluirei tratando do conceito de Razão Visceral como ethos litúrgico.
Entendo que a compreensão e aplicação desse conceito contribuirá para uma postura
cúltica que agregará e trará imensos benefícios à igreja, uma vez que buscarei
valorizar as contribuições positivas de cada uma dessas preciosas tradições da igreja.
Dessa forma, espero contribuir com a discussão a respeito do culto, a fim de que
a igreja seja amadurecida em sua forma de cultuar a Deus. Afinal, as “turbinas”
precisam estar em dia, para que a igreja prossiga em seu propósito e missão no
Reino de Deus.

3. MCALISTER, Walter. Como o culto público forma o verdadeiro cristão. 2017. (59m08s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=zhDgRYhTjkc, acesso em 29 MAI 2020.
4. Ibid.
5. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
6. KAUFLIN, Bob. Curso Vida Nova de Teologia Básica, vol. 11, Louvor e Adoração. São Paulo: Vida Nova, ano
2011, p. 235, 236.
7. AVLIS, Diego. Uma introdução ao culto cristão. Medium, Igreja de Cristo, ano 2020. Disponível em:
https://medium.com/igrejadecristo/uma-introdução-ao-culto-cristão-7902f7f9682b, acesso em 19 JUN 2020.
8. WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. 2a edição. São Leopoldo-RS: Sinodal, ano 1997, p. 22 e 23.
9. UNDERHILL, Evelyn apud WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. 2a edição. São Leopoldo-RS:
Sinodal, ano 1997, p. 23.
PARTE 1

LANÇANDO AS BASES
CAPÍTULO 1

A CAPACIDADE DIDÁTICO-FORMATIVA DO CULTO


CRISTÃO

Ano: 1994. Entre minhas primeiras lembranças da infância, recordo-me de


lampejos da Copa do Mundo conquistada pelo Brasil, nos pênaltis contra a Itália.
Lembro-me ainda de algo, ou melhor, de alguém: irmã Carmélia. Uma senhora
franzina, roupas largas e compridas, coque grisalho e mãos enrugadas.
Extremamente humilde, moradora de um casebre num subdistrito de um sub-bairro
afastado do centro de uma cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O
perfil oposto do que atualmente se considera um “profeta bem-sucedido”.
Minha memória é visual: além do perfil já mencionado daquela irmã de oração,
lembro-me do terreno de chão batido, da ampla varanda onde esperávamos pelas
orações, e pela ajudante da irmã, sempre simpática e tolerante com as traquinagens
de uma criança de 4 anos. Minha memória também é olfativa: a pequena salinha
onde irmã Carmélia orava era tomada por um misto de seu suave “perfume de vó” e
pelo cheiro de óleo e azeite, utilizado nas dezenas de “unções com óleo” feitas
durante todo o dia.

Culto como formação espiritual


Lex orandi, lex credendi. A antiga e famosa frase em latim é um bom resumo
daquilo que desejo tratar a respeito do culto: a norma da oração (e de todo outro ato
litúrgico) determina a regra da crença. O culto cristão historicamente sempre foi
encarado como grande formador do tipo de vida cristã que se pratica. O modo como
adoramos molda o que cremos10.
Não é incomum voltar para casa no domingo cantarolando uma música entoada
no culto, ou mesmo lembrar durante a semana de uma leitura bíblica, ou de algo
mencionado no sermão. Por mais que nossa adoração não se restrinja aos momentos
de adoração coletiva, o fato é que esses momentos são de extrema importância para a
nossa formação espiritual como cristãos. Robin Parry resumiu bem esse fato:
Onde aprendemos a orar e adorar? Onde está a nossa escola de espiritualidade? Onde escolhemos bons e
maus hábitos para nosso relacionamento individual com Deus? No culto público, é claro! É aí que
aprendemos a linguagem do louvor e a maneira de falar de e para Deus [...] A maioria dos cristãos
simplesmente absorve uma teologia da maneira que eles adoram. As canções, leituras das escrituras,
orações e rituais (e mesmo as igrejas carismáticas e não litúrgicas têm rituais) formam os tijolos e
argamassa da espiritualidade e fé da congregação. O conhecimento que obtemos através da adoração não
é meramente informação, mas um conhecimento prático [...] Internalizamos a forma da fé através das
vistas, sons, cheiros, gostos e sensações de toda a experiência. A liturgia, diz Wood, cria um ambiente que,
quando habita nela, molda nossa visão, relacionamentos e conhecimento de Deus de maneira cristã11.

As ocasiões em que a igreja se reúne para cultuar, por mais que Deus seja
adorado nelas, têm a responsabilidade colateral de educar, informar e transformar a
mente daqueles que delas participam, de treinar o povo de Deus em justiça, de
expandir seus horizontes não só para que eles conheçam melhor Deus, mas para que
também compreendam mais adequadamente as dimensões da igreja que Ele redimiu
por intermédio da morte de seu Filho12.
Por que, então, não vemos uma diferença substancial na espiritualidade da
igreja, de forma geral? Como pode ainda haver tanta imaturidade e carnalidade em
nossos arraiais, se semanalmente milhões de cristãos se reúnem nas igrejas ao redor
do mundo? A quantidade de cultos não deveria ser diretamente proporcional ao
crescimento espiritual do povo de Deus?
A. W. Tozer faz um diagnóstico preocupante: nos tornamos uma geração que
perdeu rapidamente todo senso de sacralidade divina em nossa adoração. Para ele,
boa parte da culpa para esse fato é uma aceitação crescente de um secularismo
mundano, que parece muito mais atraente que qualquer fome ou sede de vida
espiritual que agrade a Deus. Muitos dos que criamos em nossas igrejas não pensam
mais em termos de reverência, o que parece indicar que duvidam que a presença de
Deus esteja ali13.

Precisamos falar sobre culto


Se chegamos à conclusão que as reuniões de adoração coletiva são fundamentais
para a formação espiritual, e que muito do que tem acontecido – ou melhor, do que
não tem acontecido – nas igrejas provém de uma falta de visão adequada do culto a
Deus, não temos outra alternativa a não ser considerar esse um assunto urgente para
ser tratado pela Teologia.
Ao dizer “ser tratado pela Teologia” não me refiro a levar o tópico tão-somente ao
ambiente acadêmico de discussões teológicas, mas às conversas de “corredor de
igreja”, ao ambiente real de ação das liturgias de adoração: a própria igreja, pastores
e membros, eruditos e leigos, experientes e iniciantes.
Por conta de minha própria personalidade objetiva e pragmática, e também por
influência de minha formação em Teologia Prática e Pastoral, esse escrito não terá
como característica fazer uma abordagem exaustiva sobre termos e referências
bíblicas, sobre estruturas teológicas sistemáticas necessariamente. Já existe muito
material de qualidade com essa ênfase. Proponho-me a iniciar essa discussão sobre o
viés prático, de aplicação na vida da igreja.
Entendo que essa seja uma boa forma de começar a olhar o culto a partir de uma
perspectiva diferente. Conforme James K. A. Smith já nos alertou, muitas vezes
tentamos definir a essência do Cristianismo por meio de uma síntese de doutrinas.
Consultamos textos e teólogos em busca de ideias e de crenças que sejam específicas
do Cristianismo14.
Esse não é um problema em si mesmo, porém nos deixa com uma visão parcial
da realidade e vivência da fé cristã. Reverberando sua tese de que nem sempre aquilo
que conhecemos é expresso na forma como vivemos, Smith propõe que devemos
analisar mais o que os cristãos fazem em suas liturgias do que necessariamente fazer
consultas a textos, doutrinas e formulações teóricas15. Cultuar é fazer Teologia. E
muito de nossa Teologia é formada no culto.
A visão a respeito do culto, e a forma como cultuamos, é extremamente relevante
para a construção de nossa teologia. Grandes verdades teológicas podem
gradualmente perder força no coração de alguém que cultua com valores diferentes
dessas verdades apreendidas pelo intelecto. E temos nos esquecido disso. Os
seminários não possuem matérias que tratem da adoração, liturgia e culto – quando
possuem, se resumem a matérias eletivas, frequentadas por alguns poucos alunos. É
necessário reafirmar a importância da formação litúrgica na vida do cristão.
A falta de contato e reflexão sobre esses assuntos produz visões deturpadas do
que vem a ser a reunião de adoração. James K. A. Smith exemplifica como isso pode
se desenvolver:
É possível que tenhamos interpretado a adoração como algo, sobretudo, didático e cognitivo e, assim, a
organizamos em torno de uma mensagem que não é capaz de alcançar nosso coração de carne, e por isso é
incapaz de despertar nosso desejo. Ou, então, talvez tenhamos elaborado uma adoração que se comporta
como um evento de reabastecimento – uma chance, sobretudo, de obter aquilo de que “preciso” para me
sustentar durante a semana (talvez com um reforço na quarta-feira à noite). A consequência disso é que a
adoração diz respeito mais a mim do que a Deus, mais à realização individual do que à constituição de um
povo16.

Qual a forma correta de se cultuar?


Já entendemos que cultuar é importante, e que conhecer mais a respeito das
coisas que englobam a adoração coletiva é essencial para a vida prática do cristão. A
dúvida agora se volta para outra perspectiva: uma vez que temos diversas formas
litúrgicas, qual delas é a correta? Existe uma forma bíblica prescrita detalhadamente
para que cultuemos?
O saudoso Russell Shedd faz um excelente resumo das principais formas de culto
que possuímos: o culto carismático, caracterizado por manifestações emocionais,
expressos em movimentos corporais e entusiasmo na maneira de glorificar a Deus; o
culto didático-pedagógico, que concentra a atenção na centralidade da Palavra de
Deus na pregação e no ensino; o culto eucarístico, que valoriza o momento de
adoração coletiva por meio da celebração da Ceia do Senhor; o culto kerugmático,
que focaliza a atenção no anúncio do Evangelho aos não-convertidos presentes no
culto17.
O Dr. Shedd ainda argumenta que, desde o seu início, o culto cristão tem sido
ameaçado por dois perigos: um formalismo que sacramenta o modo de adorar a
Deus, enquanto anula o poder de um contato vital com Deus; e uma espontaneidade
que encoraja desprendimento e liberdade, desprezando toda e qualquer forma, mas
que cria confusão e desordem18.
Em vez de focar nas diferenças, creio que precisamos reunir esforços para
encontrarmos os pontos em comum, o equilíbrio mediado, levantando os pontos
fortes de cada estilo de culto – o pentecostal-carismático, o reformado (didático-
pedagógico, segundo Shedd), o sacramental-eucarístico e o evangelical
(kerugmático, segundo Shedd), a fim de promover uma estrutura de adoração
coletiva que reúna os esforços que cada grupo tem desenvolvido individualmente.
Sei que minha proposta encontrará resistência, a princípio, em cada uma dessas
tradições. Nenhuma “colcha de retalhos” teológica tem recebido muita atenção,
sendo desmerecida antes mesmo de análises mais detidas e profundas. Porém quero
aqui, com a ajuda de gente muito mais capacitada, descrever porque isso é possível
de ser realizado mantendo a ortodoxia e a sensatez tão características do
Cristianismo.
Essa possibilidade vem do fato de que não existe um direcionamento bíblico
expresso a respeito de qual estilo de culto é “bíblico”. D. A. Carson faz uma excelente
exposição dessa proposição:
A grande diversidade das opções atuais não só contribui para o senso de agitação e divisão em muitas
igrejas locais, mas leva a asserções confiantes de que todas as evidências bíblicas sozinhas dão suporte a
essas e aquelas opiniões. As tentativas contemporâneas de construir uma teologia do culto estão
naturalmente envolvidas no que a “adoração” significa para nós, em nossos vocabulários e nos
vocabulários das comunidades cristãs às quais pertencemos19.

De início, a gama semântica de nossa palavra ‘adoração’, em qualquer teoria


contemporânea de culto, não corresponde de forma alguma a nenhuma palavra ou
grupo de palavras na Bíblia. O que significa estar correto, pelas Escrituras, nesse
caso, é inevitavelmente bastante complexo20.
Com isso, é evidente – e muitas vezes natural – que determinado grupo que se
identifique com uma forma mais sacramental de culto comece sua defesa bíblica
pelos padrões do Antigo Testamento ou mesmo da herança cúltica da sinagoga.
Carismáticos tão logo citarão os capítulos 12 e 14 de 1 Coríntios. O reformado,
baseado em sua estrutura sistematizada do Pactualismo, extrairá as diretrizes para o
seu princípio regulador do culto. O evangelical focará nas passagens bíblicas
narrativas de encontro com Deus para formar sua teologia litúrgica.
De qualquer forma, não é fácil encontrar um método com o qual haja
concordância ou uma abordagem comum para descobrir exatamente como a Bíblia
deve reformular nossas visões sobre a adoração. Utilizar um simples método de
“escolha” de textos bíblicos para construir uma teologia da adoração a partir de toda
a Bíblia, carece de rigor metodológico e, portanto, de estabilidade21.
Tim Keller, um pastor reformado em sua teologia porém contemporâneo em sua
liturgia, assume a coragem de afirmar o que muitos até aqui já entenderam, mas
estão receosos em dizer, para não soarem “pouco ortodoxos”:
A Bíblia simplesmente não nos apresenta detalhes suficientes para moldar um culto completo quando nos
reunimos para adoração [...] Portanto, para estabelecer qualquer forma concreta para nossa adoração
coletiva, devemos “preencher os espaços em branco” que a Bíblia deixa em aberto. Quando o fizermos,
teremos de recorrer à tradição; às necessidades, capacidades e sensibilidades culturais do nosso povo; e
às nossas próprias preferências pessoais22.

Eu imagino você nesse momento. Talvez coçando a cabeça, intrigado; ou mesmo


revoltado com o que acabou de ler. Não é fácil admitir que não temos algum tipo de
informação completamente expressa, pois somos uma geração que tem uma ânsia
insaciável para saber tudo, de todas as coisas, em todos os detalhes.
Vejo esse desejo como uma forma de segurança, e no campo religioso isso é até
bem compreensível: cercar-se de todas as certezas, ter respostas extraídas da Bíblia
(que é diferente de uma resposta bíblica, necessariamente) para todos os mínimos
detalhes da fé cristã. Esse é o ímpeto que move o legalismo, por exemplo, mas em
doses menores atinge a todos nós. Queremos saber tudo, cronometrar tudo,
descrever tudo. A. W. Tozer descreve esse sentimento da seguinte forma:
Há líderes em vários círculos cristãos que sabem tanto sobre as coisas de Deus que oferecerão resposta a
toda pergunta que possamos fazer. Podemos ter esperança de responder perguntas de forma útil o
máximo que pudermos, mas há um senso de mistério divino percorrendo todo o Reino de Deus, muito além
do mistério que os cientistas descobrem percorrendo o reino da natureza. [...] O tipo de atitude “sabe-tudo”
sobre Deus que observamos em alguns mestres hoje os deixa em situação muito difícil. Eles podem criticar
e condenar abertamente qualquer outro homem que tome posição ligeiramente diferente da deles. Nossa
inteligência, desenvoltura e fluência podem muito bem trair nossa falta dessa perplexidade divina sobre o
nosso espírito23.

Só que Deus, por vezes, não nos revela tudo. Ou, pelo menos, não tudo o que
queremos. A Revelação divina nas Escrituras é suficiente, não exaustiva. Deus
revelou o necessário, não a totalidade das coisas. E reconhecer que não sabemos
tudo, em pleno século dos avanços tecnológicos, é quase como uma sentença de
morte. Até porque, em nosso mundo, conhecimento é vida. Quem não sabe, está
morto para aquele assunto.
Apesar de não haver uma lista descritiva plena de todos os passos de um culto a
Deus, Ele nos deixou princípios, que foram muito bem absorvidos pelas diferentes
tradições. E aí que entra o conceito de razão visceral: já que tantos irmãos de origens
tão diferentes se esmeraram na busca por um culto mais coerente e agradável a
Deus, e uma vez que a Bíblia não nos prescreve explicitamente um modelo de culto,
por que não somar os esforços, a fim de construir uma liturgia que englobe as
qualidades de cada um deles?
Creio que a união de uma perspectiva mais tradicional e organizada de culto –
aqui chamado de “razão” -, caracterizado pelas tradições reformada e sacramental,
com uma perspectiva mais contemporânea e espontânea de culto – aqui chamado de
“visceral” -, caracterizado pelas tradições evangelical e pentecostal, seria
extremamente proveitosa para a igreja.
Não pretendo, com isso, formar uma “quinta via” de modelo litúrgico. Como já
dito, essas são reflexões de “chão de igreja”, preocupadas com a vida prática da
igreja. O conceito litúrgico de Razão Visceral não necessariamente precisa integrar
os postulados teológicos da Academia. Se chegar aos púlpitos e bancos das igrejas, o
objetivo já terá sido alcançado.
Por fim, guardemos o precioso alerta de D. A. Carson, que faz uma analogia com
a atividade do mecânico de automóveis: nós não esperamos, ao ir a uma oficina, que
o profissional fique falando a respeito da excelência das ferramentas que ele usa;
nossa expectativa é que ele conserte o carro. O mecânico deve saber usar as
ferramentas, de forma que elas contribuam para o objetivo principal. Da mesma
forma, não devemos nos concentrar nos meios de operacionalização do culto, com
todos os seus detalhes e implicações, a ponto de perdermos de vista a concentração
no objeto supremo da nossa adoração, o próprio Deus24.

10. PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura contemporânea e analítica do Princípio
Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019. Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
11. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon: Cascade
Books, ano 2012.
12. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
13. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
14. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, ano
2018, p. 136.
15. Ibid, p. 136.
16. Ibid, p. 156.
17. SHEDD, Russel. Adoração Bíblica: os fundamentos da verdadeira adoração. São Paulo: Vida Nova, ano 2007,
p. 12, 13.
18. Ibid, p. 15.
19. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
20. Ibid.
21. Ibid.
22. Ibid.
23. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
24. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
CAPÍTULO 2

ARTE E BELEZA COMO FORMAÇÃO ESPIRITUAL

Ano: 2015. Lua-de-mel. Paris. Nos dias finais de nossa estadia na cidade,
resolvemos visitar algumas atrações que não tínhamos planejado, por conta de um
passe turístico que dava direito à entrada em diversos pontos turísticos e
monumentos da cidade. Estavam incluídas a visitação a algumas igrejas. Não
entramos em nenhuma – nem Sacre Coeur, nem Notre Dame. Até hoje não sei o
porquê – deve ter sido meu inconsciente formativo pentecostal que, até então,
tratava com desdém tudo que remetesse ou lembrasse, mesmo que de longe, a
“catolicismos suntuosos” e “idolatrias imagéticas”. Um preconceito irrefletido que
teve um fim naquele dia.
Por uma providência que hoje reputo divina, em meio a um tempo meio nublado,
que anunciava uma chuva em breve, resolvemos entrar em uma das igrejas incluídas
no passe. Lembro-me de haver torcido o nariz, pois não consegui ver a entrada dela,
e até a porta nada havia me impressionado – apenas prédios muito antigos em tons
pastéis com letreiros medievais. No primeiro andar, um salão para abrigar os
turistas, com balcão de informações e loja de souvenirs – eles vendiam réplicas de
vitrais da referida igreja. Pensei comigo: “Alguém compra esse tipo de lembrança?”
Ao subir as escadas para o segundo andar, onde fica o templo principal, sem
expectativas, fui tomado de assalto por uma visão inebriante: poucas vezes na vida
fiquei tão estupefato. Visão incrédula, boca sem palavras. Era a Saint-Chapelle.
Completamente rodeada de vitrais em tons meio roxos, que estavam sendo
iluminados pelo esparsos raios de sol daquele fim de dia meio nublado. O reflexo
daquela imagem meio que me paralisou.
O impacto visual daquela arquitetura e da arte de extremo bom gosto, somadas à
explicação do guia a respeito do desenvolvimento da história bíblica que é contada
por meio dos vitrais me deixou impressionado, e depois reflexivo. Ao descer, antes
de ir embora, passei na loja de souvenirs e admiti: “Agora eu entendo porque
compram isso!”. Caso queiram saber como é essa réplica, é só ir em minha casa...

A vida sem beleza


Muitos de nós estão inseridos, desde pequenos, em um contexto urbano. Nos
acostumamos à “selva de pedra”, ao cinza constante da cidade, dos prédios, das ruas;
dos carros em sua maioria na cor preta ou prata; dos ambientes clean e sóbrios de
nossos escritórios; da arquitetura “encaixotada” dos shoppings e das tímidas linhas
das fachadas de nossos prédios e casas.
Todo esse cenário “carrancudo” e pobre em arte e cor é uma consequência do
pragmatismo, do utilitarismo e do humanismo focado nos resultados. Tudo converge
para alguma utilidade. Parece que fazer algo apenas para ser apreciado em sua
beleza é uma “perda de tempo”, uma vez que tudo deve ser “útil” para algum
propósito.
Dentre os que lamentam esse estado de vida em que vivemos, destacam-se as
palavras de A. W. Tozer, ao afirmar que raramente erguemos os nossos olhos ao céu
de Deus, exceto quando algo nos chama a atenção – um avião passando, por
exemplo. Em meios a tantas coisas espetaculares criadas ao nosso redor, temos
inconscientemente perdido a capacidade de nos maravilharmos25.
Infelizmente, esse pensamento moderno nos conquistou. E, mais infelizmente
ainda, transportamos isso para a nossa experiência espiritual e litúrgica. Nossas
igrejas se assemelham mais a teatros ou casas de espetáculo do que a igrejas, de fato;
a arte sumiu dos templos; nossas linhas arquitetônicas lembram mais os shoppings
do que um ambiente de adoração divina.
Tudo que poderia passar pelo crivo artístico é relegado ao princípio da utilidade.
Por exemplo, um tapete hoje é utilizado não pelo seu fator agregador de beleza, mas
porque pode melhorar a acústica do local. Não incentivamos nossos membros a se
envolverem em artes plásticas porque esse tipo de talento não é muito “útil” para o
cotidiano de uma igreja no século XXI.

Formando o espiritual pelas artes


Precisamos entender que a arte e a beleza também são elementos de formação
espiritual. E, como já vimos, isso tem muito a ver com a adoração. Salmos 147.1
afirma: “Aleluia! Como é bom cantar louvores ao nosso Deus! Como é agradável e
próprio louvá-lo!”. A palavra traduzida como “próprio” tem um significado original
ligado à beleza – “lindo”, “amável”. O conceito de beleza física foi transferido para
uma ideia de beleza moral.
Diante disso, John Piper afirma que as reunião de adoração são lindamente
apropriadas. Envolver o critério da beleza no culto é reconhecer que o culto não é só
ordenado por Deus, mas apropriado; não só apropriado, mas belamente apropriado.
E isso significa dizer que está em perfeita harmonia com a natureza de Deus e com a
maneira como Ele criou o homem26.
A própria criação de Deus é bela. Em Gênesis, quando Deus cria e depois afirma
que aquilo era “muito bom”, isso não significa “bom” apenas no sentido moral e
ético, mas também no aspecto estético – tudo era “muito belo”. Por isso mesmo, o
primeiro capítulo de Gênesis é considerado um escrito litúrgico. Ele deve ser lido
com um senso de admiração e contemplação27.
Esse exercício é fundamental para vencermos o utilitarismo arraigado em nossa
sociedade. Tozer nos dá um excelente exemplo prático de como isso pode ser
cultivado:
Essas pessoas que creem lhe dirão que Deus criou as flores para serem belas e os pássaros para cantar a
fim de que os homens e as mulheres pudessem desfrutar deles. O cientista, com um tipo totalmente
diferente de perspectiva, nunca admitiria esse fato. O cientista argumenta que o pássaro canta por uma
razão totalmente diferente. “É o macho que canta, e canta somente para atrair a fêmea e assim se
acasalarem e procriarem”, ele nos diz. “É uma questão puramente biológica”.
É a essa altura que pergunto ao cientista: “Por que o pássaro simplesmente não range, geme ou pia? Por
que tem de cantar e trinar e fazer harmonias como se estivesse afinando uma harpa? Penso que a resposta
seja simples: é que Deus o fez para cantar.
Se eu fosse um pássaro macho e quisesse atrair uma fêmea, poderia fazer um malabarismo ou alguns
truques. Mas por que o pássaro canta tão lindamente? Porque o Deus que o criou é o principal músico do
Universo. Ele é o compositor do cosmos. Fez a harpa naquelas pequenas gargantas e as penas em torno
delas e disse: “Vão e cantem”28.

Deus é o Senhor de toda beleza. Ele tem depositado algo dentro do ser humano
que é capaz de entender e de apreciar a beleza. Deus tem colocado dentro de nós o
amor pelas formas harmônicas, o gosto e a apreciação pela cor e pelos sons bonitos.
Aquele que é todo belo está lá. Ele é o Senhor de toda beleza29.
A beleza de Deus é uma realidade bíblica. Por toda a Escritura Ele é reconhecido
e louvado por ser belo. Sua beleza pede uma resposta que é forjada por essa mesma
beleza. E isso é arte30. Precisamos apenas “desligar o modo automático” que nos
acostumamos a viver e acordar para este fato, e começar a perceber a beleza ao nosso
redor.
Sendo assim, precisamos entender a arte como uma tentativa, um ímpeto
humano de reproduzir a beleza criada por Deus. Giorgio Vasari resume essa ideia
dessa forma:
Por certo o plano existia em absoluta perfeição antes da Criação, quando Deus Todo-Poderoso, tendo feito
a vasta expansão do universo e adornado os céus com luzes brilhantes, direcionou seu intelecto criativo
para o ar puro e a terra sólida. E então, no ato de criar os homens, ele concebeu as primeiras formas de
pintura e escultura na graça sublime das coisas criadas. É inegável que os homens, as estátuas e as peças
de escultura, bem como os desafios das poses e contornos derivaram-se de um primeiro modelo perfeito.
Quanto às primeiras pinturas, quaisquer que tenham sido, as ideias de suavidade e de unidade e a
harmonia conflitante estabelecida entre luz e sombra derivaram-se da mesma fonte. Estou certo de que
qualquer um que considere a questão cuidadosamente chegará às mesmas conclusões que cheguei: a
origem das artes que estamos discutindo foi a própria natureza e a primeira imagem ou modelo foi o belo
tecido do mundo. O Mestre que nos ensinou foi aquela luz divina infundida em nós pela graça especial, a
qual nos tem tornado não somente superiores à criação animal, como também, alguém poderia dizer,
semelhantes ao próprio Deus31.

Podemos definir, então, que a boa arte tem certas qualidades em comum com a
religião, pois ambas tratam do inexprimível. Por isso, transformar as mensagens
religiosas em formas artísticas significa proteger essa multidimensão religiosa,
apontando para a transcendência em uma forma tangível32. É uma tentativa de
traduzir o que está acima da compreensão humana. Temos fome do belo porque
servimos a um Deus belo33.
Lisa DeBoer afirma que a arte é profundamente compatível com a experiência
transcendente e religiosa. Isso significa que uma arte de qualidade e bom gosto tem
um caráter espiritual. Já que o papel da igreja é tocar e envolver o espiritual, e
crendo que todo assunto é espiritual, concluímos inevitavelmente que o espiritual
está nas artes34.

A igreja e as artes
Historicamente, a igreja sempre teve uma boa relação com as artes. Durante a
Idade Média, vimos a construção das grandes catedrais que, além de grande beleza,
eram portadoras de um profundo simbolismo35. Algumas vertentes da Reforma
Protestante, mas principalmente o movimento puritano, caminharam em direção a
uma simplicidade nos aspectos da adoração coletiva. Essa simplicidade afastou-os
não apenas da tradição anglicana e luterana, mas também das práticas das igrejas
reformadas continentais. Esse movimento à simplicidade foi tão profundo que
promoveu uma arquitetura distintiva da igreja naquela época36.
Com a chegada e consequente influência do pentecostalismo, esse local de culto
que era marcado por traços típicos como barrocos e góticos, foi se adaptando à
realidade da população e a necessidade de uma proximidade para com as culturas
locais, e assim, tornando o ambiente de culto cada vez mais simples. Para estes, não
são necessários locais trabalhados para realizar uma reunião religiosa, mas apenas a
presença das pessoas37. Em nossos dias, as artes, a apreciação da beleza e os dons
criativos têm sido relegados e rotulados como não espirituais, sendo completamente
desprezado por muitos38.
Muito do preconceito com a arte vem do falso pressuposto, principalmente em
nosso país, de que expressões artísticas são questões reservadas a uma elite
intelectual, cultural e financeira. Afastamos a arte do homem comum. A elitização do
artístico prestou um desserviço à correta consideração e apreciação da beleza em
nossa sociedade.
Jaci Maraschin faz um bom diagnóstico deste fato, ao dizer que a confusão da
estética com a riqueza transformou obras de artes em mercadorias elitizadas, nos
levando a uma falsa relação entre beleza e ostentação. Precisamos superar a
confusão semântica entre beleza e luxo. Por exemplo, quando comparamos as vestes
de Salomão com as “vestes” dos lírios do campo, não podemos falar em termos de
luxo, pois somente Salomão poderia ter luxo. Os lírios possuem apenas beleza39.
Francis Schaeffer se tornou uma importante fonte de reflexão a respeito da
relação da igreja com as artes. Ele afirma que o senhorio de Cristo deve incluir o
interesse pela arte, e o cristão deve usar a arte para glorificar a Deus, como algo belo
para a glória de Deus40. Seu filho Frank, apesar de sua inaceitável postura atual em
relação à fé cristã, escreveu há alguns anos corroborando o pensamento de Francis,
ao dizer que o melhor da visão da Igreja afirma que as artes e toda a beleza que Deus
colocou em nossa vida é um dom gracioso e benéfico que vem do nosso Pai
Celestial41.

Arte e liturgia
Mas o que tudo isso tem a ver com a realidade do culto e da adoração coletiva?
Por que devemos falar sobre arte e beleza em um livro sobre questões litúrgicas?
José Paulo Antunes ajuda a formular essa resposta ao dizer que as várias linguagens
e expressões de arte são um meio privilegiado, através do qual a ação litúrgica
acontece. A linguagem artística tem revelado, ao longo de todos os tempos, uma
especial aptidão para exprimir e concretizar este diálogo entre Deus e o Homem e
realizar o seu plano salvífico. Por isso, a Arte está presente na liturgia42.
A arte é uma janela para a alma43. A pintura, por exemplo, pode tornar-se uma
janela através da qual um mundo confuso olha e vê a ordem sadia da criação de
Deus. A música, por outro lado, pode tornar-se um eco orquestrado da voz que os
ouvidos cansados da humanidade há séculos têm ansiado ouvir. Essa é arte por meio
da qual Deus é visto e ouvido, na qual Ele é encarnado, é “detalhado” em pintura e
tinta, em pedra, em movimento criativo44. Isso é, dentre outras coisas, liturgia e
adoração.
Talvez o melhor exemplo da relação entre arte e liturgia seja a própria
arquitetura do prédio da igreja. Será que a forma como uma igreja é construída
influencia na adoração coletiva de um povo? Todo estilo arquitetônico comunica
algo. Ao longo da história, quem esteve na liderança da igreja se preocupou com
como a arquitetura iria comunicar a mensagem do Evangelho45.
O abade beneditino Sugério de S. Dinis, um dos mentores do estilo gótico,
afirmou certa vez: “A beleza duma igreja é antecipação da beleza celeste. Embora
constituída por elementos materiais, ela procura ao homem um júbilo espiritual
que o transporta do mundo terreno para o sobrenatural”46. Estamos reaprendendo
que o povo que vai à igreja recebe um poderoso efeito psicológico para a sua visão da
Igreja por tudo aquilo que o edifício diz. O que o edifício comunica, com frequência,
diz inteiramente o contrário daquilo que buscamos expressar por meio da liturgia47.
Mas isso significa que agora devemos voltar a construir catedrais e basílicas aos
moldes da Idade Média? Certamente seria um excesso pensar dessa forma. Sumio
Takatsu entende que essa é uma tentação para quem começa a observar o que temos
dito sobre as artes: tentar recriar uma estética de basílicas romanas revestidas de um
ar de contemporaneidade48. Ele afirma:
A solução para o problema de projetar uma igreja moderna não está em substituir a planta do século XIV
por uma do século IV. A basílica pertence a um época em que os materiais de construção estavam
limitadas às pedras e madeiras. Hoje, graças aos novos materiais e sistemas estruturais, temos meios de
criar relações de espaços incomparavelmente mais sutis e mais expressivas do que as basílicas. Por outro
lado, todas as tentativas de reproduzir formas externas de uma outra época, por mais excelente que seja o
período escolhido, são desvios49.

A arquitetura da Igreja como espaço e funcionalidade não deve ser uma imitação
de uma forma passada, ela deve representar a cosmovisão de um tempo, do seu
povo, na sua realidade. A arquitetura deve representar o seu tempo50. Francis
Schaeffer concorda com esse ponto, ao dizer que a arte cristã dos dias atuais deve ser
uma arte do século atual, uma vez que a arte muda, bem como sua linguagem. Ele
afirma ainda que a arte deve variar segundo costumes e culturas locais e nacionais –
seria um desserviço, por exemplo, forçar africanos a usarem arquitetura gótica em
seus templos51.
Lisa DeBoer esclarece que a discussão a respeito da arte como facilitador da
formação espiritual e litúrgica de um povo deve partir da própria igreja local, uma
vez que nem a arte nem a igreja são temas abstratos. Para DeBoer, quando se trata
de entender o papel das artes na igreja local, podemos julgar útil uma consideração
das ideias dominantes daquela congregação, bem como as formas artísticas
dominantes daquela localidade52.
A igreja cristã era um dos maiores patronos das artes, por isso acredito que é
natural que hoje artistas e observadores encontrem a igreja como lar das artes e um
lugar para ouvir a voz de Deus através da expressão artística53. Como John
Westerhof corretamente conclui: “Nossas igrejas pretendem ser obras de arte [...]
Artistas sempre se sentiram em casa em nossas congregações e desempenharam
papel significativo em nossa adoração e vida comunitária”54.
O culto é atividade de formação espiritual. E a arte pode bem ser um excelente
instrumento para impulsionar tanto o aspecto cúltico da adoração coletiva, quanto a
possibilidade de crescimento e formação espiritual dos cristãos. Precisamos pensar
menos na vida espiritual como uma “selva de pedra”, e mais como uma bela obra de
arte, proporcionada pelo Deus que é belo, e razão de toda a beleza.

25. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
26. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
27. STAM, Juan. La belezza como componente esencial de la liturgia: algunos apuntes para uma estética bíblica.
Azusa Revista de Estudos Pentecostais, ano 2012. Disponível em:
<https://azusa.faculdaderefidim.edu.br/index.php/azusa/article/view/27>, acesso em 28 ABR 2020.
28. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
29. Ibid.
30. CARD, Michael. Cristo e Criatividade: rabiscando na areia. Viçosa: Ultimato, ano 2004, p. 28.
31. VASARI, Giorgio apud SCHAEFFER, Frank. Viciados em Mediocridade: Cristianismo Contemporâneo e as
artes. São Paulo: W4 Editora, ano 2011.
32. MARTI, Andreas apud STEFANI, Wolfgang H. N. A discussão cristã contemporânea da música na adoração.
Centro de Estudos Anglicanos, ano 2013. Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/liturgia/a_discussao_crista_contemporanea_da_musica_na_adoracao.
acesso em 19 MAI 2020.
33. CARD, Michael. Cristo e Criatividade: rabiscando na areia. Viçosa: Ultimato, ano 2004, p. 33.
34. DEBOER, LISA J. Visual Arts in the worshiping church. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing
Company, ano 2016.
35. CAIRES, Elon Saúde; SANTOS Junior, Paulo Jonas dos. O espaço do culto cristão e a sua ressignificação no
pentecostalismo. In Totum, ano 2017. Disponível em:
http://revista.fuv.edu.br/index.php/intotum/article/view/1756/1651, acesso em 18 MAI 2020.
36. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
37. CAIRES, Elon Saúde; SANTOS Junior, Paulo Jonas dos. O espaço do culto cristão e a sua ressignificação no
pentecostalismo. In Totum, ano 2017. Disponível em:
http://revista.fuv.edu.br/index.php/intotum/article/view/1756/1651, acesso em 18 MAI 2020.
38. SCHAEFFER, Frank. Viciados em Mediocridade: Cristianismo Contemporâneo e as artes. São Paulo: W4
Editora, ano 2011.
39. MARASCHIN, Jaci apud BELING, Éder. Liturgia e Hermenêutica: da alegria e da beleza. Tear Online, ano
2014. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/tear/article/view/1869/2223, acesso em 14 MAI
2020.
40. SCHAEFFER, Francis A. A arte e a Bíblia. Viçosa: Ultimato, ano 2010, p. 19.
41. SCHAEFFER, Frank. Viciados em Mediocridade: Cristianismo Contemporâneo e as artes. São Paulo: W4
Editora, ano 2011.
42. ANTUNES, José Paulo. Arte e liturgia ou arte litúrgica? Revista da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, Portugal, ano 2004. Disponível em: https://www.meloteca.com/wp-content/uploads/2018/11/arte-e-
liturgia-ou-arte-liturgica.pdf, acesso em 16 MAI 2020.
43. LITTLEFAIR, Duncan apud DEBOER, LISA J. Visual Arts in the worshiping church. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2016.
44. CARD, Michael. Cristo e Criatividade: rabiscando na areia. Viçosa: Ultimato, ano 2004, p. 19.
45. PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura contemporânea e analítica do Princípio
Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019. Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
46. S. DINIS, Sugério de apud DIAS, Geraldo J. A. Coelho. Liturgia e Arte: diálogo exigente e constante entre os
beneditinos. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal, ano 2003. Disponível em:
https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/8823/2/2920.pdf, acesso em 18 MAI 2020.
47. TAKATSU, Sumio. Arquitetura, Liturgia e Evangelização. Centro de Estudos Anglicanos, ano 2012.
Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/liturgia/arquitetura_liturgia_e_evangelizacao.pdf,
acesso em 12 MAI 2020.
48. Ibid.
49. Ibid.
50. LUNARDINI, Bolson. Desafios atuais para a arquitetura na criação das formas e espaços sagrados. Centro de
Estudos Anglicanos, ano 2011. Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/arte/desafios_atuais_para_a_arquitetura.pdf,
acesso em 19 MAI 2020.
51. SCHAEFFER, Francis A. A arte e a Bíblia. Viçosa: Ultimato, ano 2010, p. 63.
52. DEBOER, LISA J. Visual Arts in the worshiping church. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing
Company, ano 2016.
53. Ibid.
54. WESTERHOF, John apud LUNARDINI, Bolson. Desafios atuais para a arquitetura na criação das formas e
espaços sagrados. Centro de Estudos Anglicanos, ano 2011. Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/arte/desafios_atuais_para_a_arquitetura.pdf,
acesso em 19 MAI 2020.
CAPÍTULO 3

TRINDADE: FUNDAMENTO LITÚRGICO

Ano: 2010. Algo inusitado acontece com um adolescente sem sorte para sorteios
ou para ganhar qualquer coisa de graça: numa semana em que estava sem nenhuma
leitura nova no horizonte, inesperadamente surge, em cima da mesa da sala, um
livro azul com uma “choupana” de madeira coberta de neve, abaixo de uma imagem
noturna de um céu estrelado. Não pensei duas vezes: Vamos à leitura.
Qual não foi minha surpresa ao perceber que aquela história tentava fazer um
paralelo com princípios cristãos. Porém, no decorrer do texto, comecei a me
incomodar com algo que até então era indiferente para mim. A história representava
Deus Pai como uma senhora negra, sorridente e acima do peso; Deus Filho como um
carpinteiro judeu vestido de calça jeans e camisa xadrez; Deus Espírito Santo como
uma mulher asiática.
Como se não bastasse essas associações de, no mínimo, um gosto duvidoso, as
pinceladas de ebionismo, universalismo, e mesmo de conceitos mediúnicos teve um
efeito interessante em mim: uma indignação reveladora! Considerar o conteúdo do
livro absurdo, no fim das contas, foi bom para mim. Eu descobri que não dava a
mínima atenção ao fato de que Deus era uma Trindade – não é que não conhecia a
respeito, mas simplesmente não era relevante pensar em tais coisas até aquele
momento -, e isso perdurou até que alguém ousou mexer nos conceitos e ideias a
respeito de Deus como uma Trindade.
Meu ímpeto cristão de defesa da fé fez-me levantar do “marasmo trinitário”, e
então a doutrina da Trindade passou a, gradualmente (muito mais gradual do que
gostaria) a tomar mais importância prática em meu cotidiano cristão. Ler aquela
publicação, digamos, heterodoxa, foi um grande alerta para o fato de que precisamos
considerar de forma mais comprometida e dedicada os princípios de uma teologia
trinitária, pois essa doutrina, dentre outras coisas, moldará o nosso culto, a nossa
forma de adorar a Deus e, consequentemente, nossa vida cristã de forma global.

Adoração ao Deus ‘genérico’


Uma das questões mais simples de responder quando falamos de culto e
adoração é o objeto, o alvo de nossa adoração. Como sempre brinca meu pai, ‘onze
em cada dez cristãos’ convictos responderiam: “Deus, é claro”. Mas será que
adoramos Deus de forma plena em todos os seus aspectos, ou restringimos nossas
atitudes de culto a referências gerais a “Deus”, ou no máximo à segunda pessoa da
Trindade, como se Ele fosse uma divindade quase impessoal?
Susan White expressa sua preocupação com essa tendência, ao alertar que a
diminuição da ênfase trinitária no culto está diretamente ligada a um aumento da
ênfase cristológica – a pessoa de Jesus tornou-se praticamente o único objeto do
culto congregacional, de forma que Jesus assumiu todos os principais atributos
teológicos do Deus Triúno55. Mesmo que isso não seja feito de forma intencional,
deve-se acender um sinal de alerta em nossas práticas de adoração.
Robert Letham oportunamente atribui esse movimento ao fato de que a teologia
trinitária teve um impacto mais amplo sobre a teologia e piedade da igreja oriental
do que no ocidente. A liturgia oriental foi permeada pelo trinitarismo. Já no
Ocidente, a Trindade, na prática, foi relegada a tal ponto que muitos cristãos
poderiam ser considerados como modalistas práticos. Muitos costumam se referir a
um “Deus” genérico o tempo todo. Letham sugere o exercício de examinar hinários
ou outros livros de hinos e procurar por composições claramente trinitárias. Não
encontraremos muitas canções. Ainda, devemos perguntar a nós mesmos quantos
desses cânticos poderiam ser cantados igualmente por unicistas, judeus ortodoxos
ou muçulmanos56.
“Sempre me pergunto porque rabinos, santos e compositores de hinos da
antiguidade não vieram a conhecer a Trindade apenas por meio da frase dos
serafins em Isaías 6, ‘Santo, santo, santo’”, já dizia Tozer57. É incrível perceber como
a Bíblia, apesar de não mencionar a palavra ‘Trindade’, dá tantos indicativos de que
Deus é, de fato uma Trindade. Saber e viver isso é primordial para um melhor
entendimento da adoração a Deus.
Temos em Jonathan Edwards um bom resumo acerca do que significa entender a
Trindade:
Isto, eu suponho, é aquela bendita Trindade sobre a qual lemos nas Escrituras Sagradas. O Pai é a deidade
subsistindo na maneira mais elevada, não originada e mais absoluta ou a deidade em sua existência
direta. O Filho é a deidade gerada pelo entendimento do Pai, ou tendo ideia de si mesmo, e subsistindo
nessa ideia. O Espírito Santo é a deidade subsistindo em ato, ou a essência divina fluindo e sendo soprada
no infinito amor de Deus para e em deleite de si mesmo. E, eu creio, toda a essência divina subsiste
verdadeira e distintamente tanto na ideia divina quanto no amor divino e que, portanto, cada um deles
são pessoas propriamente distintas58.

Adoração Trinitária
A adoração é sobre Deus; Deus é a Trindade; portanto, a adoração é sobre a
Trindade. A adoração cristã, em outras palavras, é a adoração focada no Deus que se
revelou por meio de Cristo como Pai, Filho e Espírito Santo. Adorar a Trindade é o
centro da devoção cristã59.
Precisamos compreender que a visão trinitária da adoração é o dom para
participar, por meio do Espírito, na comunhão do Filho encarnado com o Pai. Dessa
forma, somos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo na
comunidade, o único corpo de Cristo, que confessa a fé no único Deus, Pai, Filho e
Espírito Santo, e que adora o Pai por meio do Filho no Espírito60.
Vanderson de Sousa Silva sistematiza tais verdades ao dizer que a liturgia cristã é
patrofinalizada, cristomediatizada e pneumato-amalgamada. A despeito das
nomenclaturas assustadoras, o que ele quer informar é que toda oração é dirigida ao
Pai, mediada por Cristo e formada pela ação do Espírito Santo em nós61. Ou seja,
toda relação do ser humano com Deus no contexto do culto deve ser inevitavelmente
trinitária.
Não há como fugir de uma adoração à Trindade. Se não adoramos cada pessoa da
Trindade de forma consciente e dedicada, estaremos adorando de forma incompleta.
Logicamente Deus pode ser referido de forma genérica, porém podemos avançar e
amadurecer muito mais em nossa postura de adoração quando formos diligentes em
estabelecer as devidas distinções e as devidas convergências entre as pessoas da
Trindade em nossos cultos. Precisamos ser intencionalmente mais trinitários em
nossos momentos de adoração coletiva.
O Deus da liturgia é uma Trindade. Quando pensamos na Trindade, tendemos a
pensar na doutrina da Trindade. Uma doutrina não é uma coisa fácil de amar; a
maioria de nós não pode amar termos e fórmulas teológicas. No entanto, o que está
oculto, com e sob a teologia é um entendimento da Trindade que nos transformará62.
A dimensão trinitária da liturgia se expressa na fórmula “Pelo Filho, no Espírito, ao
Pai”63.
É firme e variado o testemunho histórico da igreja acerca da doutrina da
Trindade. Gregório de Nazianzo foi um dos teólogos que se destacou por abordar o
assunto:
Para o melhor de meus poderes, convencerei todas as pessoas a adorarem o Pai, Filho e Espírito Santo
como a única divindade e poder; porque a ele pertencem toda a glória, honra e força para todo o sempre.
Amém64.
Assim que concebo o Um, sou iluminado pelo esplendor dos Três; assim que os distingo, sou levado de
volta ao Um65.
Quando olhamos para a divindade [...] aquilo que concebemos é Um; mas quando olhamos para as
pessoas em quem a Deidade habita, e para aqueles que incansavelmente e com igual glória têm sua
existência a primeira causa - há três a quem adoramos66.

Destacamos também a afirmação de João de Damasco:


[...] Uma essência, uma divindade, um poder, uma vontade, uma energia, um princípio, uma autoridade,
um domínio, uma soberania, feita conhecida em três subsistências perfeitas e adorado com uma adoração
[...] Unidos sem confusão e dividido sem separação67.

Por fim, a fala de Gregório de Narek:


Deus Todo-Poderoso, benéfico e amoroso de todo [...] poderoso Espírito do Pai, suplicamos a você de
braços abertos e oramos com suspiros e clamores, diante de sua presença inspiradora. Aproximamo-nos
com grande tremor e extremo temor de oferecer primeiro esse sacrifício razoável ao seu poder insondável,
como ao participante da honra inalienável do Pai [...] Pai de Emmanuel que o envia e quem é nosso
Salvador, o doador da vida e Criador de todos. Através de você, as três pessoas do único Deus foram
conhecidas68.

A caminhada trinitária e litúrgica


O entendimento a respeito da Trindade traz um foco renovado sobre muitos dos
aspectos da vida cristã, principalmente aqueles ligados à realidade do culto público.
Nessa seção, contarei com a ajuda providencial e frequente de Robin Parry, e seu
trabalho de “mapeamento” da Trindade nas diversas atividades cristãs e litúrgicas.
Começamos na conversão. O ato inicial no Reino de Deus é absolutamente
direcionado pela Trindade. Parry afirma que a essência de se tornar cristão é que
Deus Pai envia o Espírito de seu Filho para habitar em nós como um sinal de que
pertencemos a Ele. Toda experiência de Deus é trinitária - não há outra maneira de
experimentar Deus69.
A própria existência da igreja também aponta neste sentido. A igreja é a família
de Deus que compartilha um Pai, o corpo e a noiva de Cristo, e o templo do Espírito
Santo. A comunhão da Trindade é um modelo para a comunidade de Deus da
igreja70. O teólogo ortodoxo John Zizioulas diz que a comunidade cristã é chamada
para ser “uma imagem ou sinal da Trindade”71.
O ímpeto missionário da Igreja é, antes de tudo, Deus enviando seu Filho no
poder do Espírito para reconciliar o mundo consigo mesmo e a missão da igreja nada
mais é do que o dom de compartilhar, pelo Espírito, a missão do Filho ao mundo em
nome do Pai72. A Grande Comissão proposta por Jesus é também intrinsecamente
trinitária, uma vez que devemos ir e fazer discípulos de todas as nações, batizando-os
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Quanto ao cultivo de uma vida cristã saudável, é o Pai que deseja a nossa
santidade, é Cristo quem quebra o poder do pecado e torna a santidade uma
possibilidade, e é o Espírito que aplica o poder da cruz de Cristo em nossas vidas
para nos tornar santos73. Essas verdades precisam nos colocar de joelhos, e nos
convencer à necessidade de uma vida de oração. Se a oração é o “sopro vital do
cristão”, a Trindade é o ar que respiramos. Se a oração é como fogo, a teologia é uma
parte importante do combustível que queimamos74.
Ainda em relação à oração, precisamos incentivar a prática de uma “oração
trinitária” não só no âmbito pessoal, mas comunitário. Líderes de louvor, pregadores
ou quaisquer outros dirigentes de culto precisam orar a Trindade como um modelo
para a congregação. Devemos orar intencionalmente e, por vezes, verbal e
detalhadamente ao Pai, depois ao Filho e depois ao Espírito. Essa atitude concentra
as mentes da congregação na Trindade sem exigir deles um alto nível de sofisticação
teológica antes que possam contribuir publicamente75.
Já que estamos falando diretamente do momento de culto, é preciso pontuar que
a Trindade está presente na Ceia do Senhor. O problema apontado no início deste
capítulo tem ressonâncias neste momento litúrgico também, como bem resume
Robin Parry:
A questão que desejo fazer é a seguinte: como podemos destacar as dimensões trinitárias da Eucaristia? O
lugar de Cristo na Eucaristia é óbvio, e é certo que Cristo é o foco da celebração, mas, infelizmente, o
Espírito e o Pai são frequentemente negligenciados. A comunhão é um ritual centrado em Cristo, mas não
é apenas um ritual de Cristo. Como podemos aumentar a consciência do lugar das três pessoas na
prática? [...] O Espírito é quem nos ajuda a lembrar dessa maneira participativa [...] O Espírito usa o ato
para ser um canal da graça de Deus para nós. [...] O próprio Cristo é o pão da vida dado pelo Pai ao
mundo. O Pai atrai as pessoas (através do Espírito) para Cristo, o pão da vida. A nova aliança que Cristo
estabelece em seu sangue é uma nova aliança entre a humanidade e o Pai76.

Outro importante elemento do culto a Deus é a pregação da Palavra de Deus.


Segundo John Piper, a razão suprema por que a pregação é apropriada na adoração é
que sua singularidade como forma de comunicação se harmoniza com a natureza de
Deus que conhece e desfruta a si mesmo na Trindade, desde toda a eternidade. Piper
afirma que nós adoramos da maneira como o fazemos por conhecermos a verdade e
valorizarmos a beleza e a dignidade, porque Deus conhece e valoriza a si mesmo
desta maneira77.
O alvo da pregação é a glória de Deus; a base da pregação é a cruz de Cristo; o
dom da pregação é o poder do Espírito Santo. Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito
Santo são o começo, o meio e o fim no ministério da pregação78. A pregação é (ou
deveria ser) essencialmente trinitária.
Como podemos tornar os sermões mais trinitários? Primeiro, e mais obviamente,
os pregadores podem abordar a questão da Trindade ocasionalmente. Segundo, e
muito mais importante, é necessário treinar professores e pregadores para dar
palestras e sermões com uma ideia geral e coerente da Trindade em toda a Bíblia79.
Não necessariamente devemos passar a pregar de forma temática sobre a Trindade,
mas em todas as nossas exposições bíblicas, sempre que autorizado pelo texto, tratar
dos assuntos da Trindade.
Pregar é mais do que apenas ensinar. É também mais do que mera estimulação
emocional, uma vez que o ser trinitário de Deus não consiste de conhecer ou de
deleitar-se, mas de ambos. Ele se conhece e se deleita desde toda a eternidade ou, do
contrário, não é Deus. Experimentamos ambas as ações ou, do contrário, não é
pregação. Quando incorpora ambas, se torna uma “exultação expositiva”80.
Incorpora a verdade pela exposição. Incorpora alegria pela exultação81.
No que se refere aos dons espirituais, devemos apreciar a teologia trinitária que
sustenta tais dons. Claramente, esses dons vêm do Espírito, mas também servem
como meio, por meio do qual Pai e Filho falam à igreja e através dos quais a igreja
fala ao Pai e Filho. Em profecia, o Pai ou Cristo fala através de palavras ou visões
inspiradas pelo Espírito, a fim de edificar o corpo de Cristo. Os movimentos
pentecostais e carismáticos têm um grande potencial para serem profundamente
trinitários, e é uma tristeza que eles não tenham visto esse potencial plenamente
realizado. A experiência pentecostal-carismática é essencialmente trinitária82.
A Trindade é o fundamento da liturgia. É a fonte de toda adoração coletiva.
Adorar a Deus é mais do que se referir a Ele de forma genérica. Envolve todos os
nossos esforços em destacar as virtudes plenas de cada uma das pessoas da
Trindade. É glorificar o Pai, por meio do Filho, no poder do Espírito.

55. WHITE, Susan apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição.
Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
56. LETHAM, Robert. The Holy Trinity and Christian Worship. Mid-America Journal of Theology, ano 2002.
Disponível em: https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/13-lethamTrinity.pdf, acesso em 14
MAI 2020.
57. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
58. EDWARDS, Jonathan apud PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José
dos Campos: Editora Fiel, 2019.
59. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
60. TORRANCE, James apud ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy.
Louvor: análise teológica e prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
61. SILVA, Vanderson de Sousa. Lex orandi – fonte da espiritualidade cristã: aspectos da teologia litúrgico-
espiritual. Revista de Cultura Teológica da PUC-SP, ano 2014. Disponível em:
http://ken.pucsp.br/culturateo/article/view/19227/15083, acesso em 14 MAI 2020.
62. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster, Massachusetts:
Paraclete Press, ano 2008.
63. SANTANA, Luiz Fernando R. A celebração litúrgica como uma mística sacramental. Revista do
Departamento de Teologia da PUC-Rio, ano 2012. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/22290/22290.PDF, acesso em 15 MAI 2020.
64. NAZIANZO, Gregório de apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a
edição. Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
65. Ibid.
66. NAZIANZO, Gregório de apud LETHAM, Robert. The Holy Trinity and Christian Worship. Mid-America
Journal of Theology, ano 2002. Disponível em: https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/13-
lethamTrinity.pdf, acesso em 14 MAI 2020.
67. DAMASCO, João de apud LETHAM, Robert. The Holy Trinity and Christian Worship. Mid-America Journal
of Theology, ano 2002. Disponível em: https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/13-
lethamTrinity.pdf, acesso em 14 MAI 2020.
68. NAREK, Gregório de apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a
edição. Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
69. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
70. Ibid.
71. ZIZIOULAS, JOHN apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição.
Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
72. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
73. Ibid.
74. Ibid.
75. Ibid.
76. Ibid.
77. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
78. PIPER, John. Supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do Ministério de
Púlpito. São Paulo: Shedd, ano 2009.
79. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
80. Esse conceito será tratado de forma mais aprofundada mais à frente, quando abordarmos o papel da
pregação no culto cristão.
81. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
82. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
PARTE 2

ERGUENDO A ESTRUTURA: A
RAZÃO
CAPÍTULO 4

O PILAR REFORMADO DO CULTO

Ano: 2007. Recebi um CD emprestado de um irmão da igreja com um pregação a


respeito do texto de Neemias 8. Já que falaríamos sobre o livro de Neemias no Retiro
de Carnaval do ano seguinte, resolvi ouvir aquele áudio de um texto bíblico que,
confesso, na época não era muito atrativo a mim. Ao fim daqueles minutos, eu me vi
num misto de emoções: uma profunda sensação de alegria por entender a
profundidade daquele texto, e uma curiosidade enorme em saber como aquele pastor
havia conseguido falar de forma tão cativante. O pastor? Hernandes Dias Lopes.
Ao término do áudio, fui imediatamente ao Google procurar a respeito de tal
pastor, e um dos primeiros links apresentados a mim foi o seu livro “Pregação
Expositiva”. Pensei comigo: “Ora, que significa isso?” E comecei então a me inteirar
mais sobre o assunto. Ao entender as características e objetivos da pregação
expositiva, qual não foi minha surpresa ao perceber que em minha própria igreja
isso já estava se tornando um hábito também. O problema não estava no púlpito: eu
mesmo não estava identificando bem a riqueza da exposição que fluía semanalmente
a mim ali.

Supremacia da Palavra de Deus


A Reforma Protestante reformou diversos aspectos da religiosidade e da própria
vida social de sua época. Mas talvez o maior legado desse movimento tenha sido o
resgate de uma proeminência da Bíblia, um retorno das Escrituras a um papel de
destaque e protagonismo na vida da igreja. Se antes o acesso à Bíblia era restrito,
agora deveria alcançar o maior número de pessoas possível.
Para alcançar esse objetivo, investiu-se na tradução da Palavra de Deus para os
idiomas locais onde a Reforma estava chegando; a invenção da prensa móvel por
Gutemberg catapultou a produção de Bíblias de forma muito mais eficiente; a
denúncia contra um monopólio de leitura e interpretação bíblica por parte do
Magistério da Igreja Romana; o incentivo à alfabetização, e consequente leitura
bíblica pelo cristão “comum”. Essas foram algumas iniciativas que contribuíram para
tornar a Reforma um movimento firmemente comprometido com as Santas
Escrituras.
Creio que a principal contribuição da Teologia Reformada para o culto cristão
seja a centralidade da Palavra de Deus e da pregação no contexto da adoração
coletiva. Esse é um pressuposto reformado essencial para nossos dias. Devemos aos
nossos irmãos reformadores essa luta perseverante por preservar o púlpito de más
influências e ideias estranhas à doutrina cristã. Herdamos deles o apreço e o cuidado
com a preservação do Evangelho como elemento central do culto.
Questiono até mesmo se um culto sem pregação pode ser considerado um culto a
Deus, uma vez que o anúncio do Evangelho por meio da pregação das Escrituras é
um elemento litúrgico imprescindível e primordial. A pregação não deve ser um
amontoado de ideias aleatórias da mente do pregador, mas este deve se manter
cativo ao que o texto bíblico quer falar à congregação. Pregar é cultuar.
Erik Raymond menciona, de forma muito perspicaz, que a única parte perfeita de
um culto a Deus é quando a Bíblia é lida. Quando abrimos as Escrituras e lemos a
Palavra de Deus, estamos garantindo que a perfeição está em exibição. Por conta
disso, devemos moldar toda a nossa liturgia em torno da Palavra de Deus83.
As Escrituras devem ser lidas não apenas para um texto do sermão, mas para
ouvir que mensagem Deus dirige à congregação reunida. A pregação geralmente se
baseia nisso, mas as Escrituras são lidas por si mesmas como a Palavra de Deus. É
necessário que seja comunicado tudo que for derivado da centralidade das
Escrituras, em sua função de proclamação da Palavra de Deus ao povo reunido84.
Nesse mesmo sentido, Augustus Nicodemus nos informa que a instrução na
Palavra de Deus é uma das principais funções do culto, e a insistência na
centralidade do culto como algo superior e mais eficaz do que os modismos é um
reflexo do apreço pelo ensino das Escrituras pela tradição reformada85. Culto sem
Bíblia é uma contradição.
Não colocaremos o Deus Trino no centro dos cultos da igreja se não tivermos a
Palavra como o centro. Foi a Palavra de Deus que trouxe a Igreja de Deus à
existência, e é o ministério da Palavra de Deus a fonte e o centro da vida da igreja. A
igreja, em sua manifestação local, se define como um grupo de pessoas que se reúne
em torno do ministério da Palavra em um lugar específico. Portanto, o culto não
deve conter somente extratos da Bíblia. Deve ser orientado pela Bíblia86.
Todo o culto ensina o povo de Deus, então tudo - as orações, os cânticos, a
pregação - deve ser bíblico. Em nossas reuniões de adoração, lemos a Bíblia,
pregamos a Bíblia, oramos a Bíblia, cantamos a Bíblia e vemos a Bíblia nos
sacramentos87. Nesse ponto, é interessante mencionarmos os conselhos práticos de
Erik Raymond para que essa centralidade das Escrituras seja posta em prática em
nossas liturgias:
Introduzir diferentes gêneros das Escrituras [...] Ao fazer isso, você ajudará a mostrar a continuidade da
Bíblia e a trajetória em desenvolvimento de temas. Se você é intencional com isso, você pode trabalhar
com uma amostra de toda a Bíblia em um período surpreendentemente curto.
Não tenha medo de ler longas seções das Escrituras [...] Você pode precisar ensinar sua congregação para
isso. Seja paciente, mas busque uma apreciação mais robusta da leitura pública das Escrituras.
Leia a Bíblia antes de pregar [...] Os homens podem estar preocupados com o tempo, mas posso garantir
que você nunca perderá seu tempo quando estiver lendo a Bíblia antes de pregar [...]
Utilize a leitura responsiva. Para aqueles que não leem, a leitura responsiva é simplesmente a
congregação que lê uma parte da Escritura em voz alta em resposta ao líder. [...] Isso ajuda a envolver as
mentes e os corações daqueles reunidos com a Palavra de Deus88.

Por que é importante preservar a Bíblia como centro de nosso culto? Porque ela
garante nossa teologia para a adoração coletiva. Não há reuniões ou liturgias que não
envolvam teologia. É um engano pensar assim. Não devemos nos perguntar se
nossos cultos possuem ou não teologia, mas sim qual teologia esses encontros estão
proporcionando e ensinando. Adoração e teologia caminham juntas e grande parte
de nossa teologia é influenciada por nossa liturgia89.
Uma das principais formas em que essa teologia flui na liturgia, de forma com
que a Bíblia permaneça em seu lugar de primazia, é na pregação da Palavra de Deus.
Um efeito colateral de considerar a Bíblia como central no culto é ter o momento do
sermão, a pregação da Palavra de Deus como o ponto alto, o clímax do momento de
celebração coletiva na igreja. Tudo converge para a mensagem, para a pregação do
Evangelho.

A pregação é necessária
De acordo com Herminsten Costa, pregar é explicar e aplicar a Palavra aos
nossos ouvintes. O pregador prega o texto, de onde provém a verdade de Deus para o
seu povo. Sem a Palavra, o púlpito torna-se um lugar que no máximo serve como
terapia para aliviar as tensões de um auditório cansado e ansioso em busca de alívio
para as suas necessidades mais imediatamente percebidas. Ele pode conseguir o
alívio do sintoma, mas não a cura para as suas reais necessidades90.
John Frame segue na mesma linha, afirmando que “A pregação e o ensino
explicam as Escrituras e aplicam suas verdades às nossas vidas. É por meio da
pregação da Palavra que Deus normalmente, chama as pessoas a crerem em
Jesus”91. As Escrituras são o Evangelho vivo, capaz de transformar corações e levá-
los até Cristo.
Nas mãos de Deus, o sermão é um meio básico pelo qual ocorre a intervenção
profética direta na vida da fé e da igreja, com os objetivos de consolar, exortar,
edificar. A pregação mostra que a Palavra de Deus não pode se tornar prisioneira da
igreja, mas que também é sempre externa à igreja, uma força viva que atinge a igreja
de fora. Todos os cristãos concordam que a Palavra de Deus é um constituinte
essencial da adoração cristã. Sem ela, o culto não seria um encontro efetivo vivo
entre Deus e seu povo, mas um mero monólogo ou diálogo humano. Não seria um
milagre, mas sim um apego cego, distante e desesperado. O culto seria esvaziado de
sua substância e indistinguível de um culto não-cristão92.
Em alguns setores da igreja, é necessário recuperar a sensação de que o sermão é
realmente parte de nossa adoração. Em algumas igrejas, há uma tendência de ver “a
adoração” como a parte da reunião que (geralmente) acontece antes do sermão – a
parte musical, necessariamente. Essa maneira de falar não ajuda, pois coloca a
pregação fora da “adoração”, implicando que ouvir a proclamação da palavra de
Deus de alguma forma não é culto!93
Na perspectiva reformada, apesar de ser um ato objetivamente humano, um
discurso preparado e operacionalizado por seres humanos, a pregação é, em
primeira instância, um ato divino, governado pelo Deus das Escrituras. Os
pregadores se tornam apenas instrumentos para entregar a mensagem que Deus
deseja comunicar aos seus filhos daquela congregação específica.
Bryan Chapell resume bem esse aspecto da pregação, concluindo que os esforços
humanos dos maiores pregadores são ainda muito fracos e manchados pelo pecado
para serem responsáveis pelo destino eterno das pessoas. A glória da pregação é toda
de Deus. Nós somos sempre humilhados e confortados com o entendimento de que
Ele age além das nossas limitações humanas. De forma bem pastoral, Chapell nos
consola ao dizer que podemos jamais ouvir elogios do mundo, ou sermos pastores de
uma igreja com milhares de membros, mas se tivermos uma vida de piedade
associada a uma clara explanação das Escrituras, isso será suficiente para a ação do
Espírito na pregação para a glória de Deus94.
João Calvino também expressou isso de forma muito coerente:
Deus usa o ministério dos homens para declarar abertamente sua vontade conosco por via oral, como
uma espécie de trabalho delegado, não transferindo a eles seu direito e honra, mas apenas que através de
suas bocas ele possa fazer seu próprio trabalho [...] Deus declara sua consideração por nós quando, dentre
os homens, ele leva alguns para servir como seus embaixadores no mundo, para ser intérpretes de sua
vontade secreta e, em suma, para representar sua pessoa [...] O ministro é um homem insignificante
ressuscitado do pó que fala em nome de Deus95.

A pregação da Palavra de Deus é a parte mais importante do culto reformado96.


O ato central no culto é a pregação da palavra de Deus. E isso é melhor realizado
através da cuidadosa exposição das Escrituras. Normalmente, isso significa trabalhar
versículo por versículo através de um livro da Bíblia. Independentemente da
abordagem, todo sermão deve fluir manifestamente das Escrituras e proclamar o
evangelho de Deus97. Isso é o que chamamos de pregação expositiva.
Albert Mohler Jr esclarece o conceito de pregação expositiva como aquele tipo de
pregação cristã que tem como seu propósito central a apresentação e a aplicação do
texto da Bíblia, quando todos os outros assuntos e interesses são subordinados à
tarefa central de apresentar o texto bíblico. Ainda, na pregação expositiva, o texto da
Escritura tem o direito de estabelecer tanto o conteúdo como a estrutura do sermão,
e o pregador tem de mostrar com clareza como a Palavra de Deus estabelece a
identidade e a cosmovisão da igreja como o povo de Deus98.
A tradição Reformada contribuiu de forma importante e fundamental ao
reafirmar, por séculos a fio, a primazia da pregação das Escrituras no contexto do
culto público. Dessa forma, dentro de tudo que ainda veremos a respeito do conceito
de Razão Visceral para o culto cristão, entendo que a proposta de John Piper,
denominada de “exultação expositiva”, é a melhor descrição do que seria uma
pregação dentro de um culto sob a perspectiva “racional-visceral”.

Exultação expositiva
Conhecimento e deleite. Sabedoria e prazer. Entendimento e satisfação.
Pensamento e desejo. Essa dualidade é comum na pregação e ministério de John
Piper, dentro do que se convencionou chamar de doutrina do “Hedonismo cristão”
proposto por ele. Isso tem aplicações em diversos aspectos da vida da igreja.
Inclusive da pregação. Pregar conjugando um profundo conhecimento bíblico e
exegético com uma alma alegre e efusiva pelo Evangelho e o Reino de Deus é uma
forma de expressar o conceito de Piper para a pregação, a “exultação expositiva”.
Ela é exultação porque demanda esse grau de deleite e satisfação em Deus, que só
pode ser proporcionada pelo Espírito Santo. Os principais e supremos alvos da
pregação são impossíveis sem a obra miraculosa do Espírito Santo. Sem a sua obra
sobrenatural, nem o pregador nem as pessoas podem ver ou desfrutar a beleza e a
dignidade de Deus99.
O fundamento dessa ação do Espírito na pregação está em Gálatas 3.5: “Aquele
que lhes dá o seu Espírito e opera milagres entre vocês, realiza essas coisas pela
prática da lei ou pela fé com a qual receberam a palavra?” Paulo está nos
orientando em relação ao suprimento do Espírito ao pregador. Um pregador sem
dependência do Espírito não pode afirmar ser um pregador, de fato.
Devemos pregar pelo Espírito. Nós devemos fazê-lo. Mas, apesar disso, outro
deve fazê-lo por meio de nós. É algo profundamente sobrenatural e maravilhoso
entender essa dualidade. É como se os seguintes versículos tomassem essa
conotação: “Já não sou eu quem prego, mas Cristo prega em mim”; “Não fui em
quem pregou, e sim a graça de Deus que esteve comigo”; “Eu preguei, mas quem
pregou não é coisa alguma, e sim Deus, que dá o crescimento”; “Pregue, porque Deus
é quem dá o querer e o realizar da pregação em você”. Trabalhamos na pregação
porque Deus está produzindo o realizar. Ele cria o milagre de falar sustentado pelo
Espírito. Você realiza o milagre100.
Jonathan Edwards expressa a ideia de que não somos meramente passivos nisto.
Não podemos afirmar que Deus faz alguma coisa e nós fazemos o resto. Deus produz
tudo, e nós fazemos tudo. Deus produz tudo, e nós realizamos tudo. Podemos
afirmar isto por crermos que Ele tudo produz, inclusive nossos próprios atos. Deus é
o único autor e fonte, e nós somos apenas os atores. Em diferentes aspectos, somos
totalmente passivos e totalmente ativos101.
Martyn Lloyd-Jones também contribui para o assunto nestes termos:
Um homem pode ter conhecimento e ser meticuloso na preparação de seus sermões, mas, sem a unção do
Espírito Santo, não terá qualquer poder, e a sua pregação não será eficaz102.
Ninguém pode ser cheio do Espírito Santo e não saber o que está acontecendo [...] O enchimento do
Espírito dá clareza de pensamento, clareza de expressão, facilidade de expressão, um profundo senso de
autoridade e confiança na pregação, além da certeza de um poder não de você mesmo, um poder que se
manifesta por todo o nosso ser, e um senso indescritível de alegria [...] Este poder produz a verdadeira
pregação, que é a maior necessidade de todos nós hoje – mais do que nunca. Nada pode substituir este
poder103.
Se ele realmente acredita no que está dizendo, tem de ser comovido pelo que diz; é-lhe impossível não ser
comovido [...] Onde está a paixão na pregação que sempre caracterizou as grandiosas pregações do
passado? Por que os pregadores modernos não são comovidos e enlevados pela verdade, como ocorria tão
frequentemente aos pregadores do passado104?

Mais recentemente, temos o testemunho de Kent Hughes a esse respeito


também. Ele expõe que a Palavra e o Espírito não podem ser separados. O Espírito
de Deus está ligado de forma tão íntima às Escrituras quanto a respiração está ligada
à fala. Como John Woodhouse comenta: “A lógica é que onde está a Palavra de
Deus, ali também está o Espírito de Deus. Pois a palavra de alguém não pode ser
separada da respiração”105. Se tivermos algum desejo pelo Espírito Santo em
nossas reuniões coletivas, precisamos que os cultos sejam radicalmente
centralizados na Palavra.
Sem a obra sobrenatural do Espírito, o propósito da adoração e da pregação
fracassará. Portanto, Deus designou que na adoração coletiva a atividade humana de
pregar seja feita no poder do Espírito Santo. Como tal, a pregação se torna adoração
e desperta adoração106. Uma boa pregação tem como objetivo encorajar “emoções
santas”, tais como ódio ao pecado, deleite em Deus, esperança em suas promessas,
gratidão por sua misericórdia, desejo de santidade e compaixão terna107.
Por outro lado, é essencial que a pregação seja marcada pelo compromisso com a
fidelidade às Escrituras. E isso demanda estudo e conhecimento da Palavra de Deus
e de ferramentas para a exegese e a correta hermenêutica dos textos bíblicos.
Nenhum pregador deve criar desculpas para a sua falta de estudo das Escrituras. O
pregador é, dentre outras coisas, um estudante diligente e convicto da Palavra de
Deus.
Esse tipo de conhecimento é importante porque o discurso cristão não é uma
linguagem de código fechado. É aberto, público, compreensível e compartilhável. O
pregador cristão não tem nada a esconder. O negócio do Diabo é ocultar. O pregador
revela. O Diabo obscurece. O pregador esclarece. O Diabo entenebrece a mente e o
coração. O pregador brilha e queima108. Mas ele só poderá agir dessa forma se
estiver concentrado na fidelidade ao texto bíblico.
O próprio Piper confirma a importância dessa ênfase: a Palavra deve ser o foco.
Toda pregação cristã deve ser simplesmente a exposição e aplicação dos textos
bíblicos. A autoridade de alguém como pregador das Escrituras está diretamente
relacionada com a lealdade evidente com o texto da Palavra de Deus109. Não basta
ser algo “baseado nas Escrituras”; a pregação deve ser saturada, encharcada da
Bíblia. A pregação que proclama a supremacia de Deus não começa com base na
Palavra de Deus e depois se desvia para assuntos outros. Pelo contrário, a verdadeira
pregação destila as Escrituras110.
Uma das grandes tentações do conhecimento bíblico e teológico é tornar a
pregação uma grande aula de conceitos teológicos e informações históricas
desconectadas da realidade do povo ouvinte, ou mesmo um amontoado de
informações irrelevantes para a realidade cristã da comunidade local. Pregação não é
uma vitrine para exaltar a quantidade de conteúdo bíblico do pregador, mas para
glorificar a Deus. O Dr. Martyn Lloyd-Jones faz um alerta importante sobre isso:
O pregador jamais deve ser monótono, nunca deve ser enfadonho; ele nunca deve ser o que se chama de
“cansativo” [...] Quero dizer que um “pregador monótono” é uma contradição; se ele é monótono, não é um
pregador. Pode subir ao púlpito e falar, mas certamente não é um pregador. Ante o grandioso tema e
mensagem da Bíblia, a monotonia se torna impossível111.
Esse elemento de empatia e emoção é extremamente vital para mim. No entanto, trata-se de algo tão
lamentavelmente ausente neste século, sobretudo entre os irmãos reformados. Tendemos a perder o
equilíbrio e nos tornamos excessivamente intelectuais; de fato, chegamos a quase desprezar o elemento de
sentimentos e emoção. Somos tão eruditos, dominamos tão profundamente a verdade, que tendemos por
desprezar os sentimentos. As pessoas comuns, pensamos, são emocionais e sentimentais, mas não têm
qualquer compreensão! Não é este o perigo? Não é esta a tendência? Desprezar os sentimentos, que são
parte essencial do homem, colocados nele por Deus? Não sabemos mais o que significa ficar extasiados,
não sabemos mais o que significa sentir-se profundamente comovidos112.

Para Piper, as marcas da pregação, levando em conta o equilíbrio necessário que


abordamos, devem ser: Intensidade de sentimento, argumentos poderosos, uma
mente séria, profunda e penetrante, o aroma do poder de devoção, fervor de espírito,
zelo por Deus113. A falta de intensidade na pregação só comunica que o pregador não
crê ou nunca foi seriamente dominado pela realidade da qual está falando – ou que o
tema em questão é insignificante114.
Como essa aparente tensão entre o natural, operacionalizado pelo homem, e o
sobrenatural, garantido por Deus, se juntam no ato de pregar? Como é feito esse
equilíbrio? Até onde é o homem e a partir de onde é Deus na pregação? O versículo 7
de 2 Timóteo 2 pode nos ajudar a responder tais questões: “Reflita no que estou
dizendo, pois o Senhor lhe dará entendimento em tudo.”
Vale a pena considerar o comentário de John Piper sobre essa passagem e esse
tema:
A boa pregação e o bom ouvir envolvem o bom pensar. O apóstolo deixa claro que o esforço humano de
pensar e o dom divino de iluminação não são alternativos. Eles se completam. Nós fazemos o esforço de
pensar. Deus dá livremente o entendimento. Um e outro. Não um ou outro.
Alguns pregadores se desviam para um ou outro dos dois lados desse versículo. Alguns enfatizam a
primeira parte: “Reflita no que estou dizendo”. Enfatizam o papel indispensável da razão e do pensar e,
em seguida, minimizam a obra sobrenatural de Deus em tornar a mente capaz de ver e abraçar a glória
da verdade. Outros enfatizam a segunda parte do versículo: “O Senhor lhe dará entendimento em tudo”.
Enfatizam a futilidade da razão. Então, a pregação deles descamba para manipulação emocional ou
misticismo. No entanto, Paulo não ficou dividido entre meditação diligente e iluminação sobrenatural.
Para ele, não havia uma ou outra; havia ambas115.

Este é o alvo de nossa pregação – genuínas experiências sobrenaturais da beleza


e da dignidade de Deus, radicalmente transformadoras e fortalecedoras, incluindo o
seu amor por nós. O alvo de nossa pregação não é mera transferência, nem mera
persuasão de verdades doutrinárias, nem mera empolgação humana em relação a
Deus. Nosso alvo é a autêntica experiência do próprio Deus, dada pelo Espírito116.
O equilíbrio que estamos querendo demonstrar aqui é muito bem sintetizado
pela expressão de Jonathan Edwards, “luz na mente e fogo no coração”. Edwards
explica seu conceito da seguinte forma: se um ministro tem luz sem calor, ele pode
entreter seu auditório com discursos eruditos, sem qualquer manifestação de fervor
de espírito, de zelo por Deus e pelo bem das almas. Por outro lado, se ele for
impulsionado por um calor veemente, mas sem luz, ele provavelmente acenderá uma
chama não santificada em seu povo, inflamando suas paixões e afeições corruptas117.
O Dr. Martyn Lloyd-Jones, como admirador explícito da obra de Jonathan
Edwards, reverbera a ideia de equilíbrio da vida do pregador de Edwards com um
trecho que talvez seja um dos mais conhecidos da obra do Doutor como pregador na
Westminster Chapel:
Precisamos ter luz e calor, sermão e pregação. Luz sem calor jamais afetará a quem quer que seja; calor
sem luz não tem valor duradouro. Pode ter um efeito passageiro, mas, na realidade não ajuda as pessoas,
não as edifica e realmente não lida com elas.
O que é pregação? É a lógica pegando fogo! É raciocínio eloquente! Estas coisas são contraditórias? É
claro que não. A razão concernente à verdade deve ser poderosamente eloquente, conforme percebemos no
caso do Apóstolo Paulo e de outros. É teologia em chamas. E a teologia que não pega fogo, insisto eu, é
uma teologia defeituosa; ou, pelo menos, a compreensão de quem a prega é defeituosa. A pregação
verdadeiramente é a teologia expressando-se por meio de um homem que está em fogo.
A verdadeira compreensão e a experiência da verdade tem de levar a isso. Repito que o homem que pode
falar sobre essas coisas de maneira desapaixonada não tem qualquer direito de subir a um púlpito; e
jamais se deveria permitir que ele subisse a um púlpito118.
83. RAYMOND, Erik. The only perfect part of Sunday Service. The Gospel Coalition, ano 2017. Disponível em:
<https://www.thegospelcoalition.org/blogs/erik-raymond/the-only-perfect-part-of-the-sunday-service/>,
acesso em 20 ABR 2020.
84. WHITE, James apud The Primacy of the Word in Worship. The Gospel Coalition, ano 2013. Disponível em:
<https://www.thegospelcoalition.org/article/the-primacy-of-the-word-in-worship/>, acesso em 26 ABR 2020.
85. LOPES, Augustus Nicodemus. O culto segundo Deus: a mensagem de Malaquias para os dias de hoje. São
Paulo: Vida Nova, ano 2012, p. 69, 70.
86. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
87. DEYOUNG, Kevin. A Theology of Worship. The Gospel Coalition, ano 2015. Disponível em:
<https://www.thegospelcoalition.org/blogs/kevin-deyoung/a-theology-of-worship/>, acesso em 23 ABR 2020.
88. RAYMOND, Erik. The only perfect part of Sunday Service. The Gospel Coalition, ano 2017. Disponível em:
<https://www.thegospelcoalition.org/blogs/erik-raymond/the-only-perfect-part-of-the-sunday-service/>,
acesso em 20 ABR 2020.
89. SANTOS, Valdeci dos. Refletindo sobre a Adoração e o Culto Cristão. Fides Reformata, ano 1998. Disponível
em:
<https://cpaj.mackenzie.br/wp-
content/uploads/2019/04/7_Refletindo_Sobre_a_Adoracao_e_o_Culto_Cristao_Valdeci_Santos.pdf>, acesso
em 29 ABR 2020.
90. COSTA, Herminsten Maia Pereira da. A centralidade da pregação da palavra no culto. Monergismo.net.br,
ano 2007. Disponível em:
<http://www.monergismo.com/textos/pregacao/centralidade_pregacao_hermisten.htm>, acesso em 24 ABR
2020.
91. FRAME, John apud BETIM, Luciano Azambuja. O culto e seus elementos sob a perspectiva bíblico-
reformada. Revista Teologia e Espiritualidade, ano 2018. Disponível em:
<https://faculdadecristadecuritiba.com.br/storage/2018/12/Numero8-Junho-2018-Art7.pdf>, acesso em 27
ABR 2020.
92. VON ALMEN, J. J. apud WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical
Theology. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
93. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
94. CHAPELL, Bryan apud COSTA, Herminsten Maia Pereira da. A centralidade da pregação da palavra no
culto. Monergismo.net.br, ano 2007. Disponível em:
<http://www.monergismo.com/textos/pregacao/centralidade_pregacao_hermisten.htm>, acesso em 24 ABR
2020.
95. CALVINO, João apud WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical
Theology. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
96. BETIM, Luciano Azambuja. O culto e seus elementos sob a perspectiva bíblico-reformada. Revista Teologia e
Espiritualidade, ano 2018. Disponível em:
<https://faculdadecristadecuritiba.com.br/storage/2018/12/Numero8-Junho-2018-Art7.pdf>, acesso em 27
ABR 2020.
97. DEYOUNG, Kevin. A Theology of Worship. The Gospel Coalition, ano 2015. Disponível em:
<https://www.thegospelcoalition.org/blogs/kevin-deyoung/a-theology-of-worship/>, acesso em 23 ABR 2020.
98. MOHLER JR., R. Albert. Deus não está em silêncio: pregando em um mundo pós-moderno. São José dos
Campos: Fiel, ano 2011, p. 76, 77
99. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
100. Ibid.
101. EDWARDS, Jonathan apud PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José
dos Campos: Editora Fiel, 2019.
102. LLOYD-JONES, Martyn. Pregação e Pregadores. São José dos Campos: Fiel, ano 2010, p. 296.
103. Ibid, p. 300, 301.
104. Ibid, p. 88, 89.
105. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
106. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
107. PIPER, John. Supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do Ministério de
Púlpito. São Paulo: Shedd, ano 2009, p. 84.
108. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
109. PIPER, John. Supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do Ministério de
Púlpito. São Paulo: Shedd, ano 2009, p. 38.
110. Ibid, p. 86.
111. LLOYD-JONES, Martyn. Pregação e Pregadores. São José dos Campos: Fiel, ano 2010, p. 86
112. Ibid, p. 91.
113. PIPER, John. Supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do Ministério de
Púlpito. São Paulo: Shedd, ano 2009, p. 48.
114. Ibid, p. 101, 102.
115. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
116. PIPER, John. Supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do Ministério de
Púlpito. São Paulo: Shedd, ano 2009, p. 84.
117. Ibid.
118. LLOYD-JONES, Martyn. Pregação e Pregadores. São José dos Campos: Fiel, ano 2010, p. 95.
CAPÍTULO 5

O PILAR SACRAMENTAL DO CULTO

Ano: 2006. Minha família desembarca na Igreja Cristã Nova Vida, sob regência
do querido Pr. Roberto Azem. Dentre as novidades e adaptações comuns de uma
chegada de uma família já cristã a uma nova igreja, algo chamou a minha atenção: o
pastor dirigia o culto de forma bem evangélica, mas ele vestia uma “gola de padre” –
o famoso colarinho clerical. Ora, que tipo de igreja era essa que ‘misturava’
elementos litúrgicos (que, na minha visão limitada da época, eram “católicos”) em
um culto protestante?
Seria aceitável se tivesse parado por aí. Qual foi minha surpresa ao ir me
deparando, com o tempo, com recitações do Credo Apostólico e do Pai-Nosso na
liturgia dos cultos; com a orientação de celebração da Ceia do Senhor todo domingo;
com a observância de datas do Ano litúrgico como o Advento e a Quaresma, dentre
outros fatores. Por que seria importante incluir tais coisas na adoração coletiva? Em
que isso poderia contribuir para a edificação da igreja? Não seria tudo isso muito
“católico”?

Existe lugar para uma tradição litúrgica?


Somos seres emblemáticos e simbólicos. Os símbolos são como placas de
trânsito: marcos regulatórios que nos lembram coisas que já sabemos, mas que, por
vezes, esquecemos. Aplicar tais elementos ritualísticos ao culto, sem nos prendermos
ou darmos importância excessiva a eles, faz com que nossa experiência litúrgica se
torne mais profunda e didática.
Herdamos da tradição episcopal a devida importância aos símbolos e à liturgia
da fé. Não corroboramos com a ritualística excessiva que por vezes é expressa por
representantes dessas tradições, porém reconhecemos que algumas delas são de
grande contribuição para o cotidiano de culto e adoração da igreja. Cultuar também
é algo visual, e os símbolos nos ajudam neste sentido.
Para aqueles acostumados com uma cultura evangélica protestante, o termo
“liturgia” soará como uma palavra ofensiva, quase proibitiva. Ela vem carregada de
conotações que nos deixam desconfiados: soam automaticamente como “vã
repetição”, a terrível “religião” que é uma expressão do esforço humano. Em resumo,
podemos reagir ao termo “liturgia” como se ele estivesse intrinsecamente ligado à
salvação pelas obras, à salvação por meio da observância de rituais119.
O curioso é que os reformadores protestantes tinham exatamente esse tipo de
reservas com relação à adoração católica romana medieval. Contudo, sua reação, em
vez de ser antilitúrgica, era a de serem corretamente litúrgicos. O problema não
estava na liturgia propriamente dita, mas em liturgias desordenadas120. Esse tipo de
preconceito superficial e infundado precisa ser superado, e para isso precisamos
entender melhor o que essa tradição ensina, para que possamos entender sua
contribuição para a igreja durante a história.
Mas como podemos definir essa tradição de culto? Seguiremos as definições de
Jean-Jacques von Allmen e James K. A. Smith para traçar as diretrizes fundamentais
dessa perspectiva acerca da adoração coletiva. A obra de von Allmen, mais clássica e
influente no assunto do culto no século XX, juntamente com os escritos recentes de
Smith, que já reverberam de forma substancial nas discussões litúrgicas do século
XXI, trarão uma visão abrangente a respeito do que vem a ser o culto a Deus.
Para von Allmen, o culto é a recapitulação da história da salvação. Ou seja, os
atos de culto da igreja resumem e confirmam as relações de Deus com a humanidade
ao longo do tempo — desde o momento da criação até a consumação final de todas as
coisas. Essas relações enfocam, em particular, um objetivo histórico único: a
encarnação, o ministério, a morte, a ressurreição e a ascensão de Jesus de Nazaré.
Assim, o culto está interessado em um passado, presente e futuro temporais
cósmicos — à medida que estes são destilados e focalizados em Cristo121. Ele
exemplifica esse conceito com os Evangelhos sinóticos:
O próprio plano dos evangelhos sinóticos corresponde à ordem de culto que, sem dúvida alguma, remonta
aos tempos apostólicos… [A] primeira parte — o ministério na Galileia — tem como tema central a
pregação de Jesus, o chamamento dirigido aos homens e a decisão que se lhes defronta [...] Segue-se então
uma segunda parte que explica, justifica e valoriza o verdadeiro conteúdo da primeira. Trata do
ministério em Jerusalém e centraliza-se na morte de Cristo e na ressurreição escatológica, levando os
acontecimentos até à altura em que Jesus se separa dos que são Seus, abençoa-os e os envia ao mundo
para dar testemunho de Sua pessoa122.

Essas duas fases mencionadas se correlacionariam com os movimentos primários


da liturgia da igreja — isto é, um primeiro movimento centrado na pregação da
Palavra, e um movimento subsequente centrado em torno da mesa da Ceia do
Senhor. Assim, von Allmen apelou para um retorno ao padrão antigo e bíblico do
testemunho apostólico e da comunhão semanal no corpo e no sangue de Cristo,
chamando isso de “pulsação da vida litúrgica”123.
Isso nos indica fortemente que J. J. von Allmen tem em mente um “esqueleto”
básico da liturgia, baseado na pregação e na Ceia do Senhor. A implicação óbvia é
que as igrejas devem idealmente estruturar suas liturgias de culto — todas as
semanas — em torno dos polos da pregação e do banquete124. Ele afirma isso em
outras palavras, ao dizer que a proclamação da Palavra de Deus é necessária ao
sacramento, a fim de evitar que este se torne autossuficiente e mágico, assim
também o sacramento é necessário à pregação, a fim de tornar óbvio o perigo da
auto justificação sob a forma de intelectualismo ou tagarelice na pregação125.
Alinhado com a perspectiva reformada, ele ainda afirma que se a liturgia vincula
a Igreja à história da salvação, o sermão recorda-lhe que ela participa dessa história
no meio deste mundo. Dois caminhos escapistas são assim barrados: fugir em
direção a uma Igreja praticando de forma complacente uma “liturgiolatria” de
caráter espiritualista, protegida do mundo por sua forma de adoração, ou mesmo
escapar para uma Igreja entregando-se à atividade profética sem fôlego, afastada da
paz de Deus, de seu descanso escatológico por meio de um esforço de pregação
contínuo126.
De forma complementar ao conceito do teólogo suíço, James K. A. Smith afirma
que:
O culto da igreja é um ambiente especialmente intenso da presença transformadora do Espírito. Como
assinalou Marva Dawn, Deus é tanto o sujeito quanto o objeto de nossa adoração [...] O culto não é para
mim – não se trata essencialmente de uma experiência que “atenda minhas necessidades”, nem
deveríamos reduzi-lo a uma mera pedagogia do desejo [...] A adoração é, em vez disso, sobre Deus e para
Deus. Afirmar que Deus é tanto sujeito quanto objeto significa enfatizar que o Deus triúno tanto recebe a
adoração como é seu agente: o culto é para Deus e por Deus, e Deus age no culto por meio da Palavra e
dos sacramentos127.

Dessa forma, o culto deve ser entendido como um ambiente para a atuação de
Deus, não apenas para sua presença. Deus está presente em todos os lugares, mas
não se manifesta em todos os lugares128. A manifestação de Deus se dá
especialmente no contexto do culto. Deus é o primeiro e principal protagonista no
culto. Isso não significa que a postura de adoração humana seja meramente passiva,
transformando-nos em mera audiência, espectadores do que outro alguém está
fazendo - esse era o grande problema do culto medieval. Em vez disso, essa ênfase na
ação de Deus no culto inclui um cenário de interação graciosa entre Deus e seu povo,
uma forma litúrgica de chamado e resposta, graça e gratidão129.
Essa interação é especificada por Smith da seguinte forma: o culto consiste de
um movimento inicial ‘de cima para baixo’, começando na revelação gratuita e
graciosa, feita pelo Pai, da natureza divina à igreja no Filho, por meio do Espírito.
Contudo, há também um movimento ‘de baixo para cima’, a resposta humana em
adoração, que também é fundamentalmente motivada por Deus. Essa resposta,
comumente chamada de ‘sacrifício de louvor e ações de graças’, surge a partir da fé,
cuja fonte está no Espírito Santo que habita o homem130.
Na adoração cristã, reconhecemos a excelência insuperável de Deus. Certamente
é possível reconhecer essa grandeza por meio de nosso cotidiano, mas em nenhum
desses momentos de nossos dias encaramos Deus. No culto estamos “cara a cara”
com Ele, mesmo que não o vejamos. Quando adoramos a Deus coletivamente em
nossa comunidade de fé, nosso reconhecimento da grandeza insuperável de Deus é
devidamente orientado e voltado para Deus. Posicionamos nossos corpos de acordo:
nos ajoelhamos, nos inclinamos, ficamos com o rosto e as mãos levantadas131. Como
bem resume von Allmen, “por sua adoração, a igreja se torna ela mesma, se torna
consciente de si mesma e se confessa como uma entidade distinta”132.

O espírito sacramental
Umas das principais características da tradição sacramental é o fato dela ser
extremamente visual. Aliás, podemos ir além e afirmar que, mais do que apenas
visual, ela é sensorial. Mexe com nossos sentidos de forma a nos mudar. Na liturgia,
todo o nosso corpo é envolvido e influenciado por toda a ocasião de adoração
coletiva em que estamos envolvidos.
Como já diriam os antigos, “Liturgia é coisa que se vê”, e, nesse ponto, a visão
ocupa um lugar especial. Por isso essa tradição investe nas cores litúrgicas, nos
vitrais, na arte e na beleza de forma geral. A liturgia deve levar o olhar mais adiante
para que veja além dos olhos; A liturgia também trabalha com o nosso paladar, e isso
é muito bem representado na Ceia do Senhor. Participamos juntos da comida e da
bebida, antecipando o banquete celestial que celebraremos juntos na presença de
Deus133.
Outro ponto forte na liturgia é o uso da audição. O rito nos vem em palavras,
recitadas ou cantadas. Ouvimos o sermão, as leituras bíblicas, as palavras recitadas,
a voz da igreja nos cânticos – tudo muito auditivo; temos ainda o toque, o tato, por
meio da imposição de mãos, do gestual espontâneo da congregação, dos abraço
oriundos da comunhão da igreja, as orações de mãos dadas. Devemos cuidar para
que os elementos presentes na nossa prática litúrgica permitam que usemos
diferentes sentidos do nosso corpo, ampliando assim a nossa capacidade de
percepção da suprema beleza134.
O espírito sacramental ainda faz uma distinção importante do culto como um ato
de expressão ou de formação. Quando tacitamente supomos que nós somos os
principais atores na adoração, então também presumimos que o culto é basicamente
um esforço de expressão. Por essa razão restringimos a “adoração” aos cânticos de
louvor de nossas reuniões, ao momento em que podemos nos expressar. Quando
pensamos dessa forma sobre a adoração, então também supomos que a
característica mais importante de nosso culto é que ele deve ser sincero. Se ele é uma
expressão de nossa devoção a Deus, então a última coisa que queremos ser é
hipócritas: nossa expressão precisa ser honesta, verdadeira, original, genuína,
“autêntica”135.
James K. A. Smith faz um interessante diagnóstico desse problema:
Isso, no entanto, cria um interessante desafio, uma vez que sinceridade e autenticidade tendem a gerar
uma inclinação para a inovação. Se eu adoro para mostrar a Deus o quanto o amo, talvez eu comece a me
sentir hipócrita se me limitar a fazer sempre as mesmas coisas. Minha expressão começará a ficar menos
“autêntica”. Por causa disso, precisamos encontrar novas formas de adorar, novas formas de demonstrar
nossa devoção, formas inéditas de expressar nosso louvor. Por meio de inovações tentamos conservar a
sinceridade límpida de um culto que é essencialmente entendido como uma expressão [...]
Com a melhor das intenções, esse paradigma de “expressão” é então unido a uma separação questionável
entre a forma de culto e o conteúdo do Evangelho [...] Em nosso desejo de incorporar o conteúdo do
Evangelho em formas que sejam mais atraentes, acessíveis e não sejam perturbadoras, saímos em busca
das formas culturais contemporâneas que nos sejam mais familiares [...] O problema, logicamente, é que
essas “formas” não são apenas recipientes neutros ou canais descartáveis para uma mensagem. Como já
vimos, aquilo que adotamos meramente como novos formatos são, na verdade, práticas que já estão
orientadas para um novo telos (finalidade), uma visão tácita da boa vida136.

Ouvir essa perspectiva é um desafio inédito para muitos. Falamos naturalmente


de nossa experiência cúltica como uma “expressão”. Fomos ensinados por muito
tempo de que devemos nos “expressar” a Deus no culto e que essa seria a coisa mais
importante a fazer, e que isso demonstraria nossa sinceridade e “autenticidade”.
Porém devemos refletir que o culto é mais do que mera expressão, ele é formação. O
caráter formativo do culto tem sido esquecido por muitos, e deve ser reavivado
quando falamos de culto e liturgia.
O paradigma do culto como expressão faz com que nós sejamos os principais
atores da adoração. Em vez de uma ênfase exclusiva no culto de baixo para cima
como nossa expressão de devoção e louvor, a adoração cristã histórica se baseia na
convicção de que Deus é o principal ator ou agente no encontro de adoração. O culto
funciona principalmente de cima para baixo, poderíamos dizer, tendo a percepção de
baixo para cima apenas como resposta à percepção divina anterior.
Nele, nós não apenas comparecemos para demonstrar nossa devoção a Deus e
lhe dar nosso louvor; somos chamados a adorar porque, nesse encontro, Deus nos
reforma e molda de cima para baixo. O culto é o ambiente onde Deus recalibra nosso
coração, reforma nossos desejos e reabitua nossos amores. O culto não é apenas o
que fazemos, mas é onde Deus faz algo a nós137.
Quando entendemos o culto como formação de vida e caráter cristãos, o próprio
entendimento do que ocorre em nossos momentos de adoração coletiva é renovado:
quando separamos o culto da mera expressão, mudamos nossa visão a respeito da
repetição. Se você pensar que o culto é um esforço de expressão, de baixo para cima,
a repetição parecerá falsa e pouco autêntica.
Quando você, porém, vê o culto como um convite para um encontro de cima para
baixo, no qual Deus remolda nossos hábitos mais profundos, então a repetição
parece totalmente diferente: é assim que Deus muda nossos hábitos. Em um
paradigma de formação, a repetição não é insincera, porque você não está se
exibindo, mas se submetendo. Não há formação sem repetição. A formação de
virtudes requer prática, e não existe prática que não seja repetitiva138.

A importância histórica da tradição sacramental


Por sermos criados e influenciados por uma sociedade pós-moderna do século
XXI, fomos sendo acostumados, pouco a pouco, a rejeitar toda e qualquer tradição,
autoridade ou ensinamento antigo, histórico ou “medieval”. Temos a tendência de
rejeitar o antigo em prol do novo. Enquanto que “novo” é quase que uma qualidade
incondicional em nosso vocabulário, “antigo”, ou sua forma pejorativa “velho” são,
talvez, dos piores adjetivos que se possa determinar. Nesse contexto, entendemos a
tendência da igreja de desconsiderar as práticas litúrgicas do passado. Porém
precisamos vencer esse pensamento e sentar para aprender com nossos irmãos a
respeito da forma de cultuar a Deus.
Existe riqueza nas formas litúrgicas do passado. Por anos, os cristãos têm
buscado articular o que lhes é mais importante ouvir e dizer quando estão reunidos.
Ao longo da História, as liturgias têm procurado ajudar a prática teológica de uma
comunidade e protegê-la dos ventos de doutrina das heresias que agitam todas as
gerações. As boas liturgias também podem evitar que uma igreja se amolde a uma
determinada cultura ou comprometa sua fé139.
A força da tradição sacramental se consolidou no tempo. Sua vitalidade e
sobrevivência por tantos séculos é um sinal de suas qualidades. A liturgia não tem
como alvo nenhuma idade ou subgrupo cultural. Nem sequer atinge este século. Em
vez disso, a liturgia apresenta uma forma de adoração que transcende nosso tempo e
lugar. A liturgia imediatamente sinaliza que nossas necessidades não são tão
relevantes quanto imaginamos140.
Isso é bem descrito nas palavras de Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI.
Ele afirma que a grandeza da liturgia não se baseia no fato de oferecer um
entretenimento interessante, mas em tornar tangível aquele que é ‘Totalmente
Outro’, aquele a quem não somos capazes de convocar. Ele vem porque deseja141.
Essa solidez que ultrapassa tempos e estações não significa um engessamento.
Mesmo sendo uma tradição de séculos, ela passou e passa periodicamente por
atualizações e melhoramentos. Por exemplo, Mark Ashton destaca que as partes
significativas dos cultos medievais aconteciam no presbitério, tendo os membros da
congregação apenas como observadores, em vez de participantes, de acordo com a
teologia católica medieval. Em contraste, os cultos de Thomas Cranmer no
Anglicanismo tinham uma enorme quantidade de orações e envolvimento
congregacional bem maior142.
Outro exemplo é o fato de que a Igreja Cristã incluiu quatro palavras em seu culto
ao longo de sua história: Ajuntamento, Palavra, Mesa e Envio. Já vimos que von
Allmen identificou um padrão “Palavra- Mesa” nos Evangelhos sinóticos. Por volta
do século III, a Igreja adicionou os elementos ‘Ajuntamento’ e o ‘Envio’ para
estabelecer o culto quádruplo básico característico dessa tradição143.
Isso não significa que toda mudança foi bem recebida ou automaticamente
colocada em prática em sua plenitude. É perceptível que o ‘pêndulo’ balançou ao
longo da história da Igreja, com a Mesa ofuscando todos os outros elementos na
Igreja Católica Romana Medieval e o sermão prevalecendo em muitas tradições
Protestantes. Porém a tradição sacramental entende que estes quatro movimentos
fornecem uma dieta equilibrada que nutre uma vida cristã saudável144.
Greg Scheer faz um bom resumo desses movimentos:
Ajuntamento: Deus nos chama. Vemos isso de forma mais notável no batismo, no qual somos enxertados
na família de Deus. Da mesma forma que Deus nos chama, nós estendemos o convite de Deus para os
outros. [...] Criamos uma atmosfera convidativa para pessoas em todos os estágios de fé e de todas as
esferas da vida.
Palavra: Cristo nos chama para viver vidas transformadas. Nos reunimos em torno da Palavra de Deus
durante o culto, na educação cristã, em pequenos grupos e individualmente. [...] Alguns exercitam dons de
ensino e pregação, mas todos crescemos em nossa capacidade de nos tornar ouvintes e praticantes da
Palavra.
Mesa: O Espírito Santo nos une com a Trindade e uns com os outros. Temos uma lembrança visível disso
quando nos reunimos em volta da Mesa do Senhor a cada semana. Nós também experimentamos isso
quando temos comunhão uns com os outros e quando nos comunicamos com Deus em oração e meditação.
Envio: A Igreja é parceira de Cristo no ministério terreno. Nós não existimos para construir riqueza
terrena ou espiritual para nós mesmos. Em vez disso, saímos das paredes da igreja procurando maneiras
de servir tanto às necessidades espirituais como às necessidades materiais do mundo145.

O aspecto comunitário da liturgia


Uma das grandes contribuições da tradição sacramental-litúrgica para uma visão
equilibrada do culto é a sua ênfase coletiva, a importância que é dada ao caráter
comunitário da adoração. De acordo com Mark Galli, o grande dom da liturgia - e é
precisamente por isso que precisamos tanto disto - é que ela nos ajuda a ouvir não
tanto “minha pequena voz”, mas sim a voz mansa e delicada de Deus. A ênfase dessa
tradição se afasta do eu e nos aponta para a comunidade de Deus146.
Essa forma de enxergar o culto não é pautado pelo clero com o objetivo de
satisfazer as necessidades e desejos dos congregantes, sejam essas necessidades e
desejos espirituais, emocionais, estéticos ou qualquer outra coisa. É a igreja que
representa a liturgia, não o clero. A igreja representa a liturgia não para satisfazer as
necessidades e desejos de cada congregante, mas para adorar a Deus. Não são os
membros individuais que fazem essas coisas simultaneamente; é o corpo de Cristo,
reunido e estruturado, que faz essas coisas147.
Galli resume a importância comunitária na liturgia dessa forma:
A liturgia nos leva primeiro ao Deus Triúno. Não [...] adoramos um “monodeus” solitário, suficiente para
si mesmo, mas alguém que existe desde a eternidade em amor de doação entre os membros da Trindade.
[...] Se Deus como Trindade é a realidade central do universo, isso significa que o núcleo da realidade é a
comunidade. [...] A Liturgia não apenas expressa o que sentimos; também nos ensina o que devemos
sentir. O dobrar de joelhos, mesmo que seja feita com pouca devoção consciente, representa um ideal de
adoração, e frequentemente o próprio ato desperta nossa atenção lenta. Da mesma forma, levantar as
mãos em louvor me ajuda a sentir-me inserido na adoração, desejar a paz de Deus com apertos de mão e
abraços me conecta a outros seres humanos, e levantar- me para a leitura do Evangelho gera reverência.
Todas as ações da liturgia moldam sutil e profundamente nosso caráter, para que avancemos ao mundo
com mais capacidade de amar e servir148.

Essa ênfase pode ser vista em vários momentos do culto. A recitação


compartilhada do Credo, por exemplo, faz de nós um povo histórico. Somos
herdeiros de uma tradição, em dívida com aqueles que nos transmitiram a fé através
das gerações149. A Ceia do Senhor tem um caráter escatológico. É uma espécie de
refeição “para viagem”, ou, no mínimo, uma refeição que se faz a caminho. Dessa
forma, ela se torna um ‘aperitivo’ da celebração do Reino150.
Peter Leithart descreve que o momento da Ceia do Senhor é diferente da refeição
comum do cotidiano, mas está também em continuidade com ela. Isso é sinal de que
o Reino não requer a eliminação dos interesses deste mundo; não se trata de um
mundo totalmente distinto; trata-se, antes, deste mundo transformado e
transfigurado151.
O momento do ofertório também não é uma expressão individual. Não se trata de
um negócio entre Deus e os homens individualmente. Ela é uma expressão de
gratidão coletiva, consciente de que a relação da igreja com Deus nunca será
proporcional, pois aquilo que Ele fez a nós está em ampla desproporção com o que
podemos oferecer. Dessa forma, as contribuições financeiras passam a ser uma
atitude generosa e voluntária de participação no crescimento do Reino de Deus.
Quando os adoradores cantam coletivamente, eles rejeitam todas as pretensões a
coisas deste mundo que possam ser implicitamente reivindicadas por outras forças,
como as narrativas culturais sedutoras do consumismo, ou explicitamente
reivindicadas pelo Estado e suas exigências de obediência152. A voz da igreja é mais
sublime e impactante que nossas vozes individuais, por mais talentosos que sejamos
na arte do canto.
Nossas orações coletivas demonstram a unidade da igreja em suas petições e
ações de graças a Deus. O direcionamento litúrgico do conteúdo de nossas orações
públicas molda a teologia e a forma de nossa oração e devoção particular. Na igreja
aprendemos a orar, forma e conteúdo, palavras e motivações. A oração coletiva é um
legado imensurável da comunidade de fé que se reúne em nome de Deus.
Culto sacramental e missão
Não costumamos associar evangelismo e missões ao culto público. Esses temas
parecem sempre algo “externo” à vida litúrgica da igreja. É algo que fazemos “fora do
culto”. Porém, a tradição sacramental nos ajuda a relacionar novamente o culto e a
missão.
A igreja não é um celeiro que oferece fuga do “mundo real”. Se formos analisar
historicamente, a adoração cristã não termina apenas com uma despedida,
desejando uma boa semana a todos. Antes, a adoração culmina em uma bênção que
é ao mesmo tempo bênção e sentença, pois nos envia ao mundo de Deus como
portadores da imagem divina. Por isso devemos entender o “fim do culto” como um
envio. Estamos reunidos diante da Palavra e da Mesa de Deus para sermos nutridos
para cumprir a missão de ser humano153.
Uma das imagens favoritas de Jean-Jacques von Allmen da igreja no culto é a de
um coração batendo. A igreja, então, é orientada para Deus na sístole, e em direção
ao mundo na diástole154. Não pode haver um sem o outro; nem os dois podem ser
confundidos. Sim, von Allmen diz, a igreja deve colocar mais energia em seus
esforços evangelísticos, e sempre pode servir a Deus no mundo com mais vigor e
obediência. Mas não se deve confundir essas coisas valiosas com o culto que a igreja
oferece como assembleia dos cristãos155. Em suas próprias palavras:
Efetivamente, tal como o coração, a vida da Igreja pulsa por sístole e diástole. O que o coração é para a
vida animal, o culto é para a vida da Igreja, ativando a circulação, para intensificar e santificar essa vida.
É a partir da vida de adoração [...] que a Igreja se dissemina no mundo, para misturar-se a ele, como
levedura na massa, para dar-lhe gosto, como sal, e iluminá-lo, como luz. E é ao culto, à Eucaristia, que a
Igreja retorna do mundo, como pescador que recolhe as redes ou agricultor que colhe a safra156.

O teólogo suíço ainda reforça que, pelo mero fato de sua celebração, o culto tem
uma força evangelizadora porque tem um “poder que irradia alegria, paz, liberdade,
ordem e amor”. O culto possui um poder evangelístico maior do que muitas vezes se
supõe. É por isso que “importa que o culto seja celebrado com o máximo de
correção teológica e fervor espiritual”157.

Arte e beleza sacramental


Já tratamos, na primeira parte deste livro, a respeito da importância da arte e da
beleza como formadores espirituais da igreja de Cristo, e como isso pode ser refletido
no próprio ambiente de culto e nos elementos da adoração coletiva em si. Aqui,
portanto, precisamos tão somente reconhecer a contribuição da tradição
sacramental para a preservação da arte e da beleza na esfera do culto cristão.
Em primeiro lugar, essa tradição valoriza o espaço de culto. Santuários são
lugares onde Deus encontra e abençoa seu povo. São espaços onde Deus deixa sua
marca em seu povo. Por conta desse encontro transformador, tais lugares se tornam
“sagrados” não pela sua própria virtude, mas por terem abrigado o encontro
incomparável de Deus com sua igreja158.
Certamente, podemos adorar a Deus em qualquer lugar, e a igreja não é o
edifício, mas as pessoas. Mas essa constatação não é mutuamente excludente com
uma valorização sóbria e equilibrada do espaço de culto. Não idolatramos templos,
mas devemos lembrar deles com uma memória afetiva e viva, por serem o lugar onde
Deus fala, muda caminhos e amadurece pessoas.
As igrejas da tradição sacramental entendem essa realidade. Daí a sua saudável
observância de magníficos espaços de adoração, cuja própria arquitetura evoca a
realidade da presença de Deus. Mas as igrejas litúrgicas também são aquelas que
provavelmente (mas não unicamente) idolatram tais lugares, tratando-os como se
tivessem uma existência santa à parte de Deus159.
No culto, nossas emoções, corpos e imaginação têm um papel vital, e as artes
servem para levá-los a uma participação intencional e intensiva160. Mas como as
artes visuais, em particular, contribuem para a nossa formação no culto? David
Taylor nos ajuda, afirmando que a arte faz isso ao treinar nossa visão a enxergar o
mundo de forma menos ‘opaca’ à presença de Deus, mas encharcado dela. Todos nós
precisamos dessa ajuda. Por isso as artes nos ajudam, ao nos convidar a olhar o
mundo como ele é – ou como deveria ser161.
Recorrendo novamente a von Allmen, concluímos que o culto é “uma escola de
bom gosto”162. Portanto, a liturgia é o âmbito privilegiado onde se forja a expressão
estética cristã, dentro das dimensões que lhe são propostas pela simplicidade
evangélica. A liturgia permite o desenvolvimento da vida estética na Igreja. Pois,
para von Allmen, a arte não é senão, em essência, autodoação em forma de beleza163.

Ano litúrgico como discipulado


Uma das características mais marcantes da tradição sacramental é a aceitação do
ano litúrgico como balizador da vida cúltica da congregação. É uma pena que muitos
cristãos, mesmo de igrejas históricas dentro do Protestantismo, nunca tenham
ouvido falar desse conceito, ou mesmo que os associem imediatamente a “coisas
católicas”.
A observância do ano litúrgico não é prescrita no Novo Testamento. É uma das
dezenas de práticas devocionais que os cristãos desenvolveram como ajuda à sua
vida de oração pública e pessoal. É útil pensar no ano cristão como um guia
devocional, como qualquer outro que você pode comprar em uma livraria cristã. A
vantagem é que este guia é quase universal. Seguindo o ano cristão, nós unimos os
nossos corações em oração com os cristãos ao longo da história e em todo o
mundo164.
Como qualquer outro arranjo institucional, o ano cristão pode ser abusado. E de
fato foi. Os reformadores do século 16 e os puritanos do século 17 protestaram contra
o ano cristão, porque eles sentiram que este estava sendo tratado como um fim em si
mesmo. Eles temiam que os adoradores estivessem mais preocupados com a correta
observância de certos dias, ao invés de focar sobre os acontecimentos a que as
celebrações apontam.
Mas o que vem a ser o ano litúrgico? Em Mark Galli temos uma definição
suficiente:
O Ano Cristão consiste no ciclo das estações litúrgicas que determinam quando os dias festivos são
observados, quais partes das Escrituras são lidas e quais orações são oradas [...] O ano da igreja começa
não em 1º de janeiro, mas com a estação do Advento [ ...] A temporada começa quatro domingos antes do
Natal e termina na véspera de Natal [...] A temporada de Natal começa na noite do Natal (24 de
dezembro) e termina na Festa da Epifania (6 de janeiro) [...] A época da Epifania dura até a quarta-feira
de cinzas, quando começa a estação da Quaresma. A Quaresma é uma época importante para o jejum,
durante o qual as orações e leituras nos preparam para a Páscoa. Começa na quarta-feira de cinzas e
termina no domingo de ramos, início da Semana Santa [...] a Semana Santa inclui Quinta-feira Santa,
Sexta-feira Santa, Sábado Santo (dias para lembrar o sofrimento e a morte de Cristo) e culmina com o
Domingo de Páscoa. A estação da Páscoa [...] se estende até o Pentecostes [...] celebrado no quinquagésimo
dia após o Domingo de Páscoa [...] Ela dura até que um novo ano comece com outro Advento (este período
também é chamado de Tempo Comum)165.

E por que deveríamos segui-lo? É tão importante assim? O ano cristão está
ancorado nos principais eventos da história da salvação descritos no Novo
Testamento. Suas âncoras são as celebrações do nascimento, morte, ressurreição e
ascensão de Jesus e a vinda do Espírito Santo. Assim, o ano cristão é um memorial
para os eventos-chave na história da salvação. O ano cristão garante que os
adoradores serão alimentados com uma dieta equilibrada de temas bíblicos166.
O ano cristão é uma antiga herança que nos traz à mente que somos parte de um
povo que é mais antigo do que nosso presente; que somos herdeiros de tradição167. O
calendário da igreja visa nada menos que mudar a maneira como experimentamos o
tempo e percebemos a realidade. Para a igreja, o Advento sinaliza o ano novo. Para a
igreja, o ritmo anual não é inverno, primavera, verão e outono, mas Advento, Natal,
Epifania, Quaresma, Páscoa e Pentecostes168.

Porque precisamos de liturgia


Uma série de estudiosos e observadores dos movimentos da Teologia ao redor do
mundo têm percebido recentemente um reflorescimento do interesse pelas questões
sacramentais e litúrgicas nos últimos, assim como houve um interesse pela Teologia
Reformada no início do século XXI169.
Dentre as muitas razões propostas para essa reaproximação, cremos que
Winfield Bevins conseguiu resumir tais aspirações da forma mais objetiva e
consistente. Ele nos aponta, dentre outros fatores: uma espiritualidade holística – a
nova geração quer uma fé que não só engaja a mente, mas envolve todo o ser; o
senso de mistério - abrigam um anseio por uma igreja que transcende qualquer
cultura particular, não uma abordagem que simplesmente se acomoda à cultura
circundante; um desejo por enraizamento histórico – em resposta aos nossos tempos
muito mutáveis, procuram encontrar um senso de estabilidade, engajando-se com as
raízes de sua fé170.
Ainda, buscam uma fé contracultural – muitos estão incomodados com a
presença maciça de tendências culturais na igreja; o pertencimento à igreja global –
cansados dos cismas, entendem a liturgia como um caminho para a unidade; uma
espiritualidade sacramental – redescoberta da experiência de adoração rica e
multissensorial promovida pelos sacramentos; uma ortodoxia graciosa – desejam
uma fé consistente que os comunique e uma a outros cristãos, caminhando para uma
fundamentação de sua fé nos Credos; por fim, o ancoramento em práticas espirituais
– muitos estão famintos por práticas e hábitos espirituais que os formem e ajudem a
crescer171.
Tendo visto as diversas formas pelas quais a tradição sacramental pode
contribuir para o culto a Deus, fechamos o argumento em relação à segunda parte
desse livro, tendo traçado e delimitado a relevância e imprescindibilidade das
tradições reformada e sacramental, pilares do eixo “razão”, que colaboram com uma
experiência de adoração coletiva fundamentada nas Escrituras, na pregação do
Evangelho e nas práticas da tradição cristã provada pelo tempo. Já tendo exposto a
“razão”, vejamos o “visceral”.

119. SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo: Vida Nova, ano 2017, p.
102.
120. Ibid, p. 103.
121. RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24 ABR 2020.
122. VON ALMEN, Jean-Jacques apud RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano
2018. Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24
ABR 2020.
123. RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24 ABR 2020.
124. Ibid.
125. VON ALMEN, Jean-Jacques apud RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano
2018. Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24
ABR 2020.
126. RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24 ABR 2020.
127. SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo: Vida Nova, ano 2017,
p. 103, 104.
128. Devidos créditos da frase ao estimado Bispo Walter McAlister.
129. Ibid, p. 105, 106.
130. Ibid, p. 106.
131. WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical Theology. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
132. VON ALMEN, J. J. apud WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical
Theology. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
133. BARROS, Saulo Maurício de. Introdução à liturgia. Centro de Estudos Anglicanos, ano 2010. Disponível em:
http://centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/liturgia/introducao_a_liturgia.pdf, acesso em 15 MAI
2020.
134. Ibid.
135. SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo: Vida Nova, ano 2017,
p. 109.
136. Ibid, p. 109, 110, 111.
137. Ibid, p. 112.
138. Ibid, p. 116.
139. KAUFLIN, Bob. Curso Vida Nova de Teologia Básica, vol. 11, Louvor e Adoração. São Paulo: Vida Nova, ano
2011, p. 234.
140. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
141. RATZINGER, Joseph apud GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian
liturgy. Brewster, Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
142. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
143. SCHEER, Greg. O padrão quádruplo de culto. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/padrão-quádruplo-de-culto-d4c4b3dfc14a>, acesso em 24 ABR 2020.
144. Ibid.
145. Ibid.
146. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
147. WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical Theology. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
148. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
149. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, ano
2018, p. 194.
150. Ibid, p. 202.
151. LEITHART, Peter apud SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São
Paulo: Vida Nova, ano 2018, p. 202.
152. RIENSTRA, Ron. O culto como ameaça e promessa. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-ameaça-e-promessa-efb6bc8d2757> acesso em 24 ABR 2020.
153. WAX, Trevin. Why the Form of Worship Matters: A Conversation with James K. A. Smith. The Gospel
Coalition, ano 2013. Disponível em: <https://www.thegospelcoalition.org/blogs/trevin-wax/why-the-form-of-
worship-matters-a-conversation-with-james-k-a-smith/>, acesso em 24 ABR 2020.
154. A sístole é o movimento de contração da batida do coração, quando há o esvaziamento dos ventrículos. A
diástole é o relaxamento ventricular, quando os ventrículos recebem sangue dos átrios.
155. RIENSTRA, Ron. O culto como ameaça e promessa. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-ameaça-e-promessa-efb6bc8d2757> acesso em 24 ABR 2020.
156. Ibid.
157. Ibid.
158. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
159. Ibid.
160. TAYLOR, David. Discipulando os olhos através da arte no culto. Lecionário, ano 2017. Disponível em:
<https://lecionario.com/discipulando-os-olhos-através-da-arte-no-culto-5d10b2998516>, acesso em 20 ABR
2020.
161. Ibid.
162. VON ALMEN, Jean-Jacques. Culto e Cultura. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/culto-e-cultura-f65973feb230>, acesso em 26 ABR 2020.
163. Ibid.
164. WITVLIET, John D. Introdução ao Ano Cristão. Lecionário, ano 2016. Disponível em:
<https://lecionario.com/introdução-ao-ano-cristão-3f54b4b7cb05>, acesso em 20 ABR 2020.
165. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
166. WITVLIET, John D. Introdução ao Ano Cristão. Lecionário, ano 2016. Disponível em:
<https://lecionario.com/introdução-ao-ano-cristão-3f54b4b7cb05>, acesso em 20 ABR 2020.
167. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, ano
2018, p. 160.
168. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
169. Para saber mais sobre este “avivamento” reformado, recomenda-se a leitura de “Young, Restless, Reformed:
a journalist’s journey with the new calvinists”, Collin Hansen, editora Crossway.
170. BEVINS, Winfield. 8 Razões pelas quais a próxima geração anseia pela liturgia antiga. Lecionário, ano 2019.
Disponível em: <https://lecionario.com/8-razões-pelas-quais-a-próxima-geração-anseia-pela-antiga-liturgia-
f7551534fb9a>, acesso em 26 ABR 2020.
171. Ibid.
PARTE 3

FINALIZANDO A ESTRUTURA: O
VISCERAL
CAPÍTULO 6

O PILAR EVANGELICAL DO CULTO

Ano: 2007. Estância Árvore da Vida, em Sumaré-SP. Evento: Instituto Integrity


de Adoração. Simplesmente o treinamento mais cobiçado de todo músico de igreja
dos anos 2000. Colocando à parte todo deslumbramento por estar naquele lugar tão
desejado por um singelo adolescente de 16 anos, aqueles dias foram emblemáticos
em muitos sentidos. Talvez o principal deles tenha sido o impacto da proposta
evangelical de culto sobre a minha vida.
Conviver durante alguns dias com ícones do movimento de louvor e adoração no
país, como Asaph Borba, Adhemar de Campos, Gerson Ortega, dentre outros, foi
extremamente importante para contribuir com meu entendimento a respeito da
adoração e do culto a Deus. Ouvir seus conselhos e questioná-los de forma ilimitada
nos corredores do evento foi uma grande escola, principalmente pelo fato de
continuarem sendo pessoas extremamente acessíveis e solícitas, mesmo com todo o
reconhecimento nacional por seus legados musicais nas igrejas.
Gente de todo canto, de tudo que é denominação estava presente. Então havia a
hora do culto. Dessa forma, cada um cultuava da maneira que estava acostumado –
os mais pentecostais de forma fervorosa; os mais tradicionais, de forma mais
comedida; alguns de forma excessivamente efusiva; outros, de forma excessivamente
crítica e glacial. Era muito interessante olhar ao redor e perceber aquela diversidade
de formas de cultuar, e, principalmente, ver e admirar a forma como esses ministros
de louvor mencionados anteriormente conseguiam lidar com tais diferenças, de
forma que em determinados momentos podia-se perceber a unidade de propósito
em meio à diversidade de formas. Aquilo era uma experiência de culto evangelical,
de fato.

Esclarecendo os termos
Certamente você deve estar se perguntando porque está sendo utilizado o termo
‘evangelical’, em vez de se referir simplesmente ao termo mais conhecido,
‘evangélico’. Alguns podem até achar que se trata de um equívoco gramatical e
linguístico, porém utilizarei tal termo de forma intencional, a fim de deixar claro a
que tipo de vertente protestante me refiro neste capítulo.
Em nosso país, o termo ‘evangélico’ generalizou-se, passando a significar, no
senso comum, qualquer tipo de manifestação ou grupo protestante. ‘Evangélico’ hoje
é quase que um gênero que comporta as diversas denominações e tradições
protestantes. Como já deve ter percebido, neste capítulo não tenho a intenção de me
referir a toda a cristandade, mas a um ramo específico, ligado ao Evangelicalismo.
O termo ‘Evangelicalismo’ é pouco conhecido por aqui, mas seu conceito é mais
difundido na América do Norte, sendo uma vertente protestante de muito impacto –
positivo e negativo – em todo o mundo. Como já existem dezenas de publicações
ressaltando os aspectos negativos do movimento, gostaria de fazer um exercício
gracioso, a fim de encontrar uma boa contribuição evangelical para o culto a Deus.
Alguns dizem que o evangelical é alguém que admira Billy Graham. Randall
Balmer propõe uma dupla definição: a centralidade da conversão e a crença de que a
Bíblia é a Palavra de Deus e, portanto, está no centro da vida cristã172. De acordo
com David Bebbington, o Evangelicalismo é fundamentado em quatro bases: o
conversionismo, o biblicismo, o crucicentrismo e o ativismo173.
Em outras palavras, é a ênfase na conversão de novos cristãos, o literalismo
bíblico, morte e ressurreição de Cristo como eventos principais, e uma atividade
intensa de “serviços religiosos”, de trabalho na igreja. Nem todo “evangélico” que
conhecemos se enquadra no perfil do evangelicalismo, mas todo evangelical pode ser
enquadrado como “evangélico”. Vejamos mais duas definições que nos ajudarão a
delinear o conceito do evangelicalismo:
As igrejas evangelicais são geralmente aquelas que enfatizam a conversão (a necessidade de uma decisão
pessoal de seguir Jesus Cristo), a atividade missionária (a obrigação de compartilhar com outras pessoas
essa necessidade de conversão), o biblicismo (ver as Escrituras como a única autoridade para crença e
ação) e crucicentrismo (a crença no sacrifício de Cristo na cruz como expiação pelo pecado humano)174.
O evangelicalismo é capaz de sustentar uma crença significativa em Deus, encapsulando-se em uma
espécie de casulo pré-moderno. Deus é visto como intervindo diretamente nos assuntos humanos; as
orações são ou podem ser respondidas milagrosamente; existe um forte senso de demarcação entre a
comunidade de crentes e seu ambiente incrédulo; as palavras da Bíblia são consideradas qualitativamente
diferentes de todas as outras expressões humanas175.

A joia perdida da igreja


A. W. Tozer se tornou um voz profética no século XX quando afirmou que a
adoração era “a joia perdida da igreja”. Ele fez um dos diagnósticos mais precisos das
tentações as quais o Evangelicalismo estava se rendendo naquele século, e que ainda
possuem reflexos hoje:
Nós temos sido ousados. Temos construído grandes templos e formado enormes congregações. Gloriamo-
nos de padrões elevados e falamos muito sobre avivamento. Mas tenho uma pergunta, e ela não é apenas
retórica: O que aconteceu com a nossa adoração? A resposta, dentre muitas, é: “Estamos ricos e não
precisamos de nada. Isso não diz algo sobre a bênção de Deus? [...]
Somos levados à fé e à salvação para que possamos adorá-lo. Não chegamos até Deus para que possamos
ser cristãos automáticos, cristãos formatados, cristãos marcados a ferro. Deus nos proporcionou sua
salvação para que pudéssemos ser, individual e pessoalmente, filhos vibrantes de Deus, amando-o de todo
o coração e adorando-o no “esplendor do seu santuário” [...]
Há, no entanto, em torno de nós, um substituto muito evidente e contínuo da adoração. Falo da tentação,
envolvente entre os crentes, de estarem constantemente engajados em atividades religiosas durante todas
as horas em que estão acordados.
Não podemos negar que ela seja definitivamente uma ideia “igrejeira” de culto. Muitos de nossos sermões
e muito do nosso ensino na igreja apoiam-se nessa ideia de que, com certeza é plano de Deus que
estejamos ocupados, ocupados e ocupados, porque estamos envolvidos com a melhor de todas as causas do
mundo176.

O evangelicalismo é caracterizado por alguns pela falta de uma ritualística, ou


mesmo pela informalidade litúrgica. Porém, é impossível ser totalmente “sem
liturgia”. A própria ideia “sem rituais” já é uma forma de estabelecer uma ordem de
culto, mesmo que seja marcada pela falta de elementos cúlticos. Como afirma Aidan
Kavanagh: “Uma igreja cristã não-litúrgica é uma contradição de termos, assim
como uma sociedade humana é uma contradição sem a linguagem”177.
O pensamento em “preto e branco”, popularmente conhecido como “oito ou
oitenta”, muito característico de nossa sociedade, também influencia o imaginário
evangelical. Quando se fala em convergência com outras tradições para uma ideia de
culto cristão – que é a proposta deste livro - pensa-se ou em aceitação absoluta,
impossível quando se fala de várias tradições simultâneas, ou em rejeição total.
Propor uma via media no assunto do culto é um desafio, especialmente quando se
fala na cultura evangelical já enraizada.
Nesse processo de redescobrimento da adoração por meio da observância e
absorção das principais virtudes de cada tradição cúltica, um dos primeiros e
principais exercícios é o da humildade. Gordon Lathrop dá um exemplo que mexeria
com muitos de nós: será que as megaigrejas, representantes emblemáticas do
evangelicalismo norte-americano moderno, teriam algo a ensinar sobre culto às
igrejas reformadas e sacramentais?
Para Lathrop, sim. Por exemplo, a consciência de que muitas pessoas hoje não
entendem todas as tradições e convenções do cristianismo; a honestidade de que o
cristianismo está genuinamente em um aglomerado de produtos culturais; ou
mesmo a coragem de acolher emoções na assembleia do povo de Deus e a abertura
ao desconhecido178.
Nesse exercício de humildade, precisamos ainda reconhecer que, como Klaus
Douglass diz, “todas as grandes tradições começaram como inovações”179. Então a
crítica absoluta às descobertas e novidades no contexto do culto, sem que se avalie
seu mérito, são posturas lamentáveis, muitas vezes preocupadas com a preservação
de um certo método litúrgico acima de qualquer coisa.
Essa distinção rígida entre as tradições é infrutífera porque é ilusória. Mesmo
que de forma não intencional, existem pontos de convergência entre elas. O
propósito deste livro não é criar ou inventar tais pontes de conexão, mas apenas
explicitá-las. Há interação, por exemplo, entre as tradições sacramental e
evangelical.
Evangelicais acreditam em simbolismo. Eles não rejeitam o ritual anglo-católico
porque não acreditam no ritual, mas porque acreditam. A rejeição de práticas rituais
é simplesmente uma decisão em direção a um ritual alternativo. Os símbolos são
poderosos comunicadores da nossa compreensão teológica. Eles são inevitáveis no
contexto de reuniões e edifícios, especialmente quando um grupo continua a usar o
mesmo local e formato de reunião. Por isso é importante que evangelicais preservem
o caráter ‘ritualístico’ de suas reuniões na igreja, para que o evangelho seja
realmente apresentado, simbolicamente, pela maneira como eles se reúnem180.
Acima de qualquer coisa, o senso de temor de Deus deve retornar à igreja, a fim
de que essa “joia perdida” seja reencontrada. Aquele sentimento instantâneo,
quando se entra em uma igreja, de que “Deus está neste lugar”; aquela reverência
estarrecida, a adoração sem fôlego, a fascinação imensa, a admiração elevada por
Deus, e o silêncio da alma ao saber que Ele está próximo181.
Talvez esse senso de temor e respeito à presença de Deus pode ser melhor
representado pela passagem de Isaías capítulo 6. Esse é quase que um modelo oficial
do sentimento de adoração coletiva presente no evangelicalismo. É interessante
como muitos livros sobre o assunto, dentro dessa tradição, abordam o evento do
profeta Isaías.
Para Tozer, a reação de Isaías foi um sentimento de absoluto abandono por estar
na presença de um ser divino tão moralmente puro. Ele destaca que o profeta foi um
jovem digno de elogios, culto, religioso – seria um bom diácono em qualquer de
nossas igrejas. Mas, naquela cena, ele era um homem estarrecido. Ao ser tomado de
espanto, viu seu mundo se dissolver em um brilho divino vasto e eterno182.
Além do aspecto do temor, o ímpeto missionário, a ligação entre culto e missão –
caracterizado pela ênfase no conversionismo, inspirada em ministérios como os de
Billy Graham, mencionado no início deste capítulo, é ressaltado na passagem.
Melanie Ross expõe que Isaías 6 é um padrão que é usado frequentemente para
ajudar a desenvolver esse entendimento litúrgico. No final do culto, Deus pergunta:
“Quem irá por mim? Você ouviu a minha Palavra; agora quem irá contar aos outros
quem eu sou?” Então, somos enviados ao mundo, mas não sem um forte senso de
adoração dentro de nós. A adoração não começa e termina com o culto da manhã de
domingo183.
Marcos Witt, pastor e cantor conhecido mundialmente dentro do
evangelicalismo no mundo de língua hispânica e norte-americano, ressalta nesta
passagem o que talvez seja a principal característica litúrgica do evangelicalismo – o
entendimento de que o culto é o lugar do encontro com Deus. Para ele, o que mais se
destaca nesse encontro que Isaías tem com o Senhor, é que ele é real, em todos os
sentidos.
Isaías estava tendo um verdadeiro e poderoso encontro com Deus, e uma das
maiores provas disso é a transformação que o Senhor opera na vida dele. Segundo
Witt, quando nos atrevemos a entrar na presença de Deus para contemplá-lo e o
vemos em toda a sua glória, magnificência, majestade, beleza, pureza, santidade,
justiça e perfeição, enxergamos a triste realidade de nossa situação: somos
exatamente o contrário de tudo isso!184

O Encontro com Deus


Chegamos, então, ao cerne do entendimento de adoração coletiva do
evangelicalismo: a noção de que naquele momento do culto estamos presenciando e
participando de um verdadeiro encontro com Deus, uma experiência transcendente
de real encontro com o Deus Criador, Salvador e Consolador.
Crer nisso e viver isso de forma intensa produz uma correta postura litúrgica: em
primeiro lugar, produz o temor de Deus – que já mencionamos -, pois encontrar-se
com alguém com tantos predicados, de caráter tão estupendo, gera no coração um
senso de responsabilidade e temor.
Isso também produz gratidão e adoração – as palavras que proferimos no
momento do culto não são meras expressões jogadas ao vento, mas são direcionadas
e bem escolhidas, dignas de um encontro dessa magnitude; por fim, um encontro
transcendente produz transformação – cremos piamente que o encontro com Deus
transforma vidas, muda caminhos e redireciona vidas outrora perdidas.
Dessa forma, o modelo de culto deve ser o mais adequado para conduzir o
adorador a um encontro real com Deus. Admite-se que, segundo a cultura e a
natureza das pessoas, o discernimento individual subjetivo e algumas expressões,
que são recomendáveis para uma igreja ou indivíduo, poderão ser prejudiciais a
outros. Não se trata de modos certos ou errados em si mesmos, mas que todos
busquem descobrir como agradar ao Pai eterno e ainda ouvir a sua voz com espírito
atento185.
Essa ênfase está presente, por exemplo, na hinologia evangelical. Muitas músicas
contemporâneas falam da expectativa de transformação e contemplação do encontro
da igreja com Deus na adoração coletiva. Um hino bem antigo demonstra bem essa
ideia: “Nesta noite feliz, neste santo lugar, eu marquei um encontro com Deus. Seu
amor é real, sua paz gozarei, eu marquei um encontro com Deus”186.
O pastor Adhemar de Campos, uma referência na área da música do
evangelicalismo brasileiro, afirma que o valor do culto se relaciona com o propósito e
a vontade de Deus e esse propósito focaliza comunhão e relacionamento. Deus, como
Pai, procura relacionar-se com os filhos através da adoração. O momento do culto é
o momento da grande celebração ao Senhor. É quando a congregação se reúne para
celebrar o milagre da ressurreição, a nova vida em Cristo, a comunhão no Espírito
Santo e toda sorte de bênçãos espirituais187.
Outro expoente do repertório contemporâneo da igreja em nosso país, o pastor
Asaph Borba, corrobora essa ideia ao afirmar que a adoração é “um convite de Deus
para o eterno”. Segundo ele, cultuamos quando decidimos investir a nossa vida no
eterno. Para tanto, devemos ouvir a voz de Deus, e isso é conquistado em nosso
coração quando nós conhecemos a Deus. É essa visão que sustenta a vida cristã188.
No cenário internacional, talvez poucos tenham influenciado mais a música e a
liturgia evangelical nas últimas décadas que a Hillsong Church, sediada em Sydney,
Austrália. Darlene Zschech, que liderou o ministério de música da igreja por vários
anos, diz a respeito do culto:
Adoração é um tempo para focar em quem Deus é. É um tempo para desfrutar da autoridade e unção
espantosas que Ele coloca em Seu povo que entra em Sua presença com louvor. [...] Se lermos a Palavra e
guardarmos a verdade de Deus em nossos corações, concentraremos nossa atenção na Sua grandeza e no
valor que Ele coloca em nós189.
Nosso papel é declarar e anunciar que Deus está aqui. Se apenas brincamos e levamos a agradar os
ouvidos do homem e satisfazemos nossos próprios desejos de tocar / cantar, e marchar para os cultos sem
uma santa consciência de sua presença e magnificência, então roubamos as pessoas de sua herança
espiritual190.

O encontro com o divino no culto é uma experiência transcendente. Porém, o


Deus cristão não é apenas transcendente, mas imanente. A passagem de Isaías 57.15
esclarece bem essa dualidade, e como Deus manifesta as duas características:
Pois assim diz o Alto e Sublime, que vive para sempre, e cujo nome é santo: “Habito num lugar alto e
santo, mas habito também com o contrito e humilde de espírito, para dar novo ânimo ao espírito do
humilde e novo alento ao coração do contrito”.

Note como, ao mesmo tempo em que o profeta destaca que Deus é “Alto e
Sublime”, e que Ele “habita num lugar alto e santo” – demonstrando um certo grau
de intangibilidade, de inacessibilidade de Deus por conta de sua grandeza, o texto
também realça que esse Deus grandioso “habita também com o contrito e humilde
de espírito”. A imanência transforma o Deus inacessível em um Deus acessivelmente
admirável – e isso não só por sua grandeza, mas por sua disposição em se relacionar
com o ser humano. A celebração desse fato ocorre no encontro, e esse encontro
ocorre no culto.
Essa aparente tensão entre a transcendência e imanência de Deus é frequente no
coração do cristão que cultua a Deus, uma vez que a adoração verdadeira deve, em
algum nível, permanecer incompreensível. Essa adoração, que nos permite
encontrar o Deus vivo, deve deixar os adoradores um pouco estupefatos. Isso
diminui nossa ânsia por uma adoração “compreensível”, que esconde um desejo
interior de um Deus compreensível, um deus que possamos ter ao controle191.
Na liturgia da adoração coletiva, somos convidados a deixar-nos tocar pela ação
salvífica de Deus, participando, desse modo, na sua própria glória e perfeição
eternas. A liturgia surge, assim, como uma realidade complexa, onde Deus e o
Homem se encontram, dialogam, comunicam, partilham as suas intimidades, se
redescobrem e recriam192.
Matt Redman, outro nome influente da adoração musical dos nossos tempos,
afirma que a característica do culto contemporâneo é essa grande expectativa de um
momento de encontro com Deus através do Espírito Santo193. Tomamos parte das
maravilhas operadas por Deus quando nos é aberta a porta do encontro com Deus, e
isso é possível pela ação do Espírito Santo na igreja, por meio do mistério relacional
de seu culto194.
Esse encontro não é um monólogo. É um relacionamento dialógico. No culto,
Deus fala a nós e nós respondemos a Ele. A diferença é que nesse encontro não
ficamos falando de nós mesmos, ou exaltando nossas próprias habilidades e
conquistas – pelo menos não deveríamos. O enredo do culto é divino. É a história da
salvação. Isso não significa que não se refira a nada relacionado à humanidade;
porém tudo que é dito a nosso respeito no culto deve ser trazido à liturgia por meio
do divino, daquilo que Deus fez por nós.
Melanie Ross esclarece esse aspecto de forma muito competente:
A forma geral do culto é dupla: Deus se apresenta e nós respondemos. Entramos na presença de Deus,
reconhecendo e louvando-o. Vendo que Deus é tão santo, tomamos consciência de nós mesmos e do nosso
pecado diante dele. Então, a seguir, deve haver uma reflexão sobre quem somos como pecadores diante de
um Deus santo. Podemos trazer isso à tona através da música, das Escrituras ou da oração. Então
chegamos à garantia do perdão de Deus - e novamente, a expressão desse perdão pode vir através de
canções, escrituras ou orações. Depois que passamos por nossa tendência ao pecado, nossos ouvidos são
abertos para ouvir a Palavra. Então, aí está o sermão. Depois disso, é hora da oferta - somos tão gratos
pela palavra de Deus para nós que desejamos responder195.

Enquanto pensarmos que o culto se refere principalmente àqueles reunidos, e


não ao Deus que nos reúne, seremos tentados a entreter, em vez de fazer a tarefa
pastoral de criar o espaço para um encontro de aliança entre Deus e o Seu povo. Essa
tentação é tão real para o movimento de adoração moderno quanto para a
congregação de hinos da igreja tradicional e todos os demais196.
A adoração evangelical é um compromisso total. Os evangelicais são aqueles que
praticam a palavra de Deus adorando a esse Deus de maneira sincera e espiritual.
Assim, nosso culto espiritual é apresentar toda a nossa vida a Deus, pois é como
sacrifícios vivos que respondemos à graça de Deus encontrada no evangelho. Assim,
devemos levar uma vida digna do Senhor, procurando descobrir o que o agrada. É a
palavra do evangelho que nos coloca em contato com o divino197. Essa é a essência
do evangelicalismo, e é aqui que ele pode contribuir para a nossa visão de culto
proposta neste livro.
O evangelicalismo é um primeiro aspecto da parte “visceral” porque deseja
ardentemente por esse encontro com Deus no culto. São aqueles que, assim como
Calvino, acreditam que o objetivo da adoração coletiva era “conduzir as pessoas a
Deus face a face”198. O propósito não é que pessoas simplesmente aprendam
informações sobre Deus, mas que realmente ouçam Deus falar e conheçam sua
presença no culto. Assim, o objetivo do culto cristão é tornar Deus “espiritualmente
real” em nossos corações199.

172. ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., ano 2014.
173. BEBBINGTON, David. Evangelicals in Modern Britain: A History from the 1730s to the 1980s. London, UK:
Taylor & Francis Group, ano 2005.
174. WELLMAN JR., James K. apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
175. HUGHES, Graham apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
176. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
177. KAVANAGH, Aidan apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
178. LATHROP, Gordon apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
179. DOUGLASS, Klaus apud KRUGER, Hariet Wondracek. Tradicional x Contemporâneo: a dinâmica que pode
enriquecer a igreja. Revista Batista Pioneira, ano 2017. Disponível em:
<http://revista.batistapioneira.edu.br/index.php/rbp/article/view/206>, acesso em 27 ABR 2020.
180. JENSEN, Philip. Ministry Training Paper: Evangelical Worship. Site Philip Jensen, ano 2010. Disponível
em: <https://phillipjensen.com/resources/evangelical-worship/>, acesso em 24 ABR 2020.
181. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
182. Ibid.
183. ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., ano 2014.
184. WITT, Marcos. Adoremos. Belo Horizonte: Betânia, ano 2001, p. 94, 95, 99.
185. SHEDD, Russel. Adoração Bíblica: os fundamentos da verdadeira adoração. São Paulo: Vida Nova, ano
2007, p. 16.
186. Letra disponível em: https://www.letras.mus.br/corinhos-evangelicos/eu-marquei-um-encontro-com-
deus/, acesso em 28 MAI 2020.
187. CAMPOS, Adhemar de. O poder da música a serviço da adoração: conhecendo os princípios para uma vida
de adoração e serviço. São Paulo: Fôlego, 2007, p. 48.
188. BORBA, Asaph. Fundamentos de Louvor e Adoração: A quem adoramos?. Blog Renato Gonçalves, ano
2008. Disponível em: https://renatospg.wordpress.com/2008/04/22/fundamentos-de-louvor-e-adoracao-a-
quem-adoramos/, acesso em 18 MAI 2020.
189. ZSCHECH, Darlene. Worshipping When Life Hurts. Identity Network, ano 2018. Disponível em:
https://www.identitynetwork.net/Articles-and-Prophetic-Words?articleid=87108&view=post&blogid=2093,
acesso em 18 MAI 2020.
190. ZSCHECH, Darlene. 10 Essential Traits of a Worship Pastor. Churchleaders.com, ano 2020. Disponível em:
https://churchleaders.com/worship/worship-how-tos/161822-
darlene_zschech_10_essential_traits_of_a_worship_pastor.html, acesso em 18 MAI 2020.
191. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster, Massachusetts:
Paraclete Press, ano 2008.
192. ANTUNES, José Paulo Antunes. Arte e liturgia ou arte litúrgica?. Revista da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Portugal, ano 2004. Disponível em: https://www.meloteca.com/wp-
content/uploads/2018/11/arte-e-liturgia-ou-arte-liturgica.pdf, acesso em 16 MAI 2020.
193. REDMAN, Matt apud PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura contemporânea e
analítica do Princípio Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019. Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
194. SANTANA, Luiz Fernando R. A celebração litúrgica como uma mística sacramental. Revista do
Departamento de Teologia da PUC-Rio, ano 2012. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/22290/22290.PDF, acesso em 15 MAI 2020.
195. ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., ano 2014.
196. BORGER, Joyce. The Modern Worship Movement Isn’t the Problem. Reformed Worship.org, ano 2019.
Disponível em: <https://www.reformedworship.org/blog/modern-worship-movement-isnt-problem>, acesso
em 22 ABR 2020.
197. JENSEN, Philip. Ministry Training Paper: Evangelical Worship. Site Philip Jensen, ano 2010. Disponível
em: <https://phillipjensen.com/resources/evangelical-worship/>, acesso em 24 ABR 2020.
198. CALVINO João apud ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor:
análise teológica e prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
199. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
CAPÍTULO 7

O PILAR PENTECOSTAL DO CULTO

Ano: 2008. Ravenhill-Wilkerson. Eis a dobradinha de pentecostais que primeiro


me fez encontrar meu verdadeiro pentecostalismo. Este estava escondido por trás de
alguns anos de experiências espirituais que, por vezes, extrapolavam os limites de
uma ação “saudável” do Espírito. Convivi durante alguns anos em circuitos
evangélicos que prezavam por uma mistura de “profetismo revelatório”, “adoração
extravagante”, práticas judaizantes e ênfases exorcistas.
Tenho muito carinho pelas pessoas e pelo companheirismo que recebi nesses
tempos. Mesmo que de forma turva, tal grupo me mantinha sempre alerta para a
necessidade de se buscar mais a Deus, de cultivar uma vida espiritual, dentre outras
coisas. Certamente uma parte de minha formação cristã é devida a este tempo.
Porém houve excessos. O entendimento do que seria o “movimento do Espírito”
estava enviesado de uma forma que não privilegiava, paradoxalmente, o próprio
Espírito.
Até que algum iluminado por Deus mencionou o nome de David Wilkerson.
Curioso como sempre fui, parti para a Internet para saber mais, e, semanas depois,
já estava com um exemplar de “A cruz e o punhal” em mãos para ler. O testemunho
do frutífero e corajoso ministério do pastor Wilkerson causou um impacto
inimaginável em mim. Era o início de minha redescoberta da essência pentecostal.
Não sei até hoje o porquê, mas em todas as minhas pesquisas sobre Wilkerson,
associavam outro nome: Leonard Ravenhill. Em pouco tempo, já estava iniciando a
leitura de “Por que tarda o pleno avivamento?”. Foi como uma “segunda onda” de
reafirmação do verdadeiro sentido do pentecostalismo. Desde então aprendi que
nunca devemos menosprezar um coração biblicamente em chamas pelo Reino de
Deus.

O Espírito em ação
Você pode nunca ter ido a um culto pentecostal. Mas tenho uma convicção quase
absoluta de que você sabe do que se trata. Mesmo sem nunca ter participado de um
culto assim, você poderia reconhecê-lo. De longe. Até porque o volume das vozes e
das canções permitiria que essa avaliação fosse feita à distância.
O culto pentecostal é uma experiência espiritual muito peculiar. Só que, assim
como todas as outras tradições cúlticas, tem havido excessos, e muito da essência
pentecostal tem se perdido. Porém, como você deve ter percebido, o objetivo deste
livro não tem sido se deter longamente em diagnósticos pessimistas sobre os rumos
das diversas tradições protestantes, mas de propor caminhos, soluções,
convergências. E cremos que o Pentecostalismo tem muito a colaborar com a
discussão a respeito do culto.
Umas das principais características do culto pentecostal é o reconhecimento da
ação ativa e operante do Espírito Santo no meio da congregação durante o tempo de
adoração coletiva. Se a celebração litúrgica não for sinal do Espírito, ela nada será.
Com efeito, a verdadeira essência da ação litúrgica consiste em ser uma epifania,
uma representação do Espírito Santo200.
Mas o que é ser espiritual? Certamente há um “estereótipo” dentro do imaginário
social do pentecostalismo a respeito do que seja uma pessoa “de Deus”, ou seja,
alguém que possui uma espiritualidade desenvolvida. Porém nem sempre essa noção
se alinha com a noção que a Bíblia nos propõe acerca de alguém maduro
espiritualmente. A igreja de Corinto, por exemplo, estava cercada de dons espirituais
mas era imatura espiritualmente. A este respeito, John Piper diz:
A palavra “espiritual”, em 1 Coríntios 2.14 (“se discernem espiritualmente”), não significa “religioso”,
“místico”, ou “transcendental”. Significa “originado pelo Espírito”, “ter a qualidade do Espírito Santo”.
Podemos ver isso em Romanos 8.7-9, que descreve o “homem natural” de 1 Coríntios 2.14 como tendo uma
inclinação para a carne, com o mesmo resultado, ou seja, dureza contra a gloriosa supremacia de Deus e
uma incapacidade para aceitar e agradar a Deus [...] Mas observe que o oposto do “pendor da carne” não
é uma espiritualidade vaga, e sim a presença do Espírito Santo [...] O oposto de uma pessoa natural não é
uma pessoa mística ou religiosa, e sim uma pessoa que é habitada pelo Espírito Santo, que está realizando
o milagre de discernimento espiritual201.

A adoração guiada pelo Espírito, portanto, não é uma reserva especial dos
pentecostais e carismáticos; ao contrário, é a herança de todos os genuínos
adoradores cristãos. Porém devemos admitir que o papel orientador do Espírito na
adoração é aquele que os pentecostais e os carismáticos costumam reconhecer. O
Espírito é o líder da adoração que nos permite ser guiados por Cristo na adoração202.
S. B. Vaughan aponta neste mesmo sentido, ao dizer que para os pentecostais, o
verdadeiro líder da adoração é o Espírito Santo. E essa adoração liderada pelo
Espírito sempre será revigorante, porque Ele está constantemente redefinindo e
expressando de formas diferentes os louvores oferecidos ao Deus vivo203.
O entendimento pentecostal do culto guiado pelo Espírito é que essa reunião
exaltará Jesus e também terá uma abertura apropriada ao novo e não planejado.
Este é o ponto onde a liturgia pode às vezes nos fechar, em vez de nos abrir para a
obra do Espírito204. É frequente a noção de que seguir uma liturgia muito pré-
definida significa, de alguma forma, “limitar” a ação do Espírito, quando, na
verdade, entendemos que Ele age tanto na preparação e na organização prévia,
quanto na ocasião do culto em si.
Uma consequência direta dessa dicotomia é que, como diz o professor Mookgo
Kgatle, um resultado da ênfase pentecostal em experiências espirituais ou
carismáticas, para o povo pentecostal, o momento de adoração ao Espírito é a
ocupação mais sublime da igreja, cumprindo o objetivo final pelo qual o povo de
Deus é redimido205. Adorar o Espírito, pelo Espírito e no Espírito é o cerne do culto
pentecostal.

Liturgia Pentecostal?
Será que essa resistência à formalidade e predefinição de termos e ordens, para
não “abafar” a influência e ação do Espírito no momento do culto, faz com que o
pentecostalismo seja uma vertente antilitúrgica? Para Afred Küen, “uma das
características dos primeiros cultos pentecostais é a reação contra a rigidez dos
cultos protestantes”. Nesse culto, a formalidade tornou-se “anátema” e deve ser
evitada a qualquer preço. “O culto tem de ser informal, espontâneo, de forma que
encoraje a participação e desperte grande intensidade emocional”, conclui Küen206.
Lee Roy Martin reforça essa ideia ao dizer que a ênfase na adoração pentecostal
tem sido espontaneidade e liberdade em vez de liturgia e uniformidade207. Isso não
significa ser antilitúrgico. É mais correto falar de uma liturgia aberta entre os
pentecostais do que de uma “não-liturgia”. O ponto principal é que quem administra
o culto não é necessariamente um programa formal, mas o Espírito Santo208.
Devemos, neste momento, apreciar as lições do professor Wolfgang Vondey a
respeito da inter-relação do pentecostalismo com a liturgia (e com a perspectiva do
“encontro”, vista no capítulo anterior):
No contexto do pentecostalismo, o termo compreende uma forma de espiritualidade e uma forma de
adoração concentrada no encontro com Deus. A ênfase do termo está na resposta livre a esse encontro
com Deus, e não em uma ordem ou estrutura fornecida para a possibilidade desse encontro. O único
caminho para integrar o pentecostalismo na paisagem litúrgica existente e muitas vezes altamente
estruturada é através de um anexo bastante solto do termo “liturgia” às práticas de espiritualidade e
adoração.
Em outras palavras, embora possa haver alguma forma de liturgia em um culto pentecostal, o próprio
culto não é conduzido por tal liturgia, mas conduzido pelo Espírito de Deus. A liturgia surge como uma
maneira de trazer ordem à igreja. Embora a adoração como espiritualidade incorporada possa ser
ritualizada, o processo de formalização e estruturação é lento. Nesse sentido, o termo liturgia sempre
permanece mais próximo da espiritualidade e do culto e resiste à estrutura formal, imposta pela igreja ou
pela cultura.
A realização de uma ‘liturgia’ pentecostal, portanto, refere-se mais amplamente à atualização de uma
reflexão sobre a vida cristã do que à realização ordenada da espiritualidade na adoração209.

O culto pentecostal se baseia em dois princípios muito valorizados no


pentecostalismo: a capacitação de espírito única de cada crente com dons espirituais
e no sacerdócio de todos os crentes, levando à sua participação livre em todas as
estruturas de culto e um resultado de democratização da liturgia e do culto. [...] A
adoração não é, como em algumas outras tradições, a expressão de um líder apoiado
por um grupo de espectadores; para pentecostais, adoração é, como diz Frank
Macchia, “uma orquestra de expressões coloridas diversas” com dons
extraordinários dados a crentes210.
O motor do pentecostalismo é o seu culto211. Esse processo de envolvimento de
cada cristão no processo de adoração foi um dos grandes catalisadores da influência
pentecostal. Sentir-se parte é um fator importante. Já que no culto encontramos
Deus, esse encontro não necessariamente é “mediado” pelo clero, mas diretamente
outorgado a cada um presente no ambiente de culto.
O pentecostalismo revelou, através de seus cultos, interesse especial em
reproduzir em cada reunião o evento original da festa de Pentecostes do início da
igreja cristã no primeiro século de nossa era212. Isso significa que a experiência
religiosa está em destaque aqui, e que o ambiente de culto proporcionará a interação
com o sobrenatural.
A adoração coletiva sob a perspectiva pentecostal, realizada em ritmo festivo e
alegre, é o ponto central da vida espiritual no pentecostalismo. É o momento quando
todos se fazem um, no Espírito Santo, e se preparam para receber os dons
espirituais. O clima emocional e envolvente do culto é criado pelo uso de música
popular, de diversos estilos213.
As reuniões de oração pentecostais são conhecidas pelo fervor, pela pregação
simples e existencial/testemunhal, pela musicalidade, pelas manifestações
espirituais, pelo clima de irmandade, pela alegria. A ideia é alcançar o coração, e
nessa iniciativa, uma coisa é certa: o culto pentecostal vai ao encontro dos profundos
anseios populares214.
Como um encontro vibrante e comovente com o divino, o culto pentecostal é
transformacional e espiritualmente formativo como um evento de aprendizado nos
princípios centrais da fé. Assim, entendemos o culto cheio do Espírito como um
processo de aprendizado didático, e a congregação como uma comunidade de
aprendizado. O culto cristão é fundamentalmente formativo justamente por causa da
ampla gama de expressões corporais tratados quase que como sacramentos215. Nas
palavras de James K. A. Smith:
Embora a adoração pentecostal seja, com frequência, considerada a antítese da liturgia, ela, na verdade,
inclui muitos dos mesmos elementos: a adoração carismática é bastante encarnada (mãos erguidas em
louvor, oração de joelhos diante do altar, imposição de mãos com esperança etc.); ela segue uma rotina
tácita comum (música de “louvor” seguida por música de “adoração” mais calma, seguida pelo sermão e,
com frequência, por um “tempo no altar”). Essas práticas de adoração pentecostal são profundamente
formativas, afetando nossa imaginação de modo que nos relacionamos com o mundo de maneira especial.
Nesse sentido, até mesmo a adoração pentecostal é litúrgica216.

Em outras palavras, podemos afirmar que o culto pentecostal-carismático tem


forte ênfase na imanência. A noção de que Deus está presente naquele lugar de
adoração é viva e real, e esse é um encontro produtor de milagres e alegria,
favorecido pela participação coletiva da igreja217. A noção do encontro no culto é
menos filosófica e mais empírica - a experiência religiosa vivida transborda em
elementos e expressões físicas.

A expressão física pentecostal


Este provavelmente é o distintivo mais visível do culto pentecostal. Esta tradição
tem um gestual, uma postura corporal muito peculiar em seu culto a Deus: o tom e o
volume de voz; as mãos levantadas em louvor ou sendo impostas em oração sobre
outros; olhos fechados somados a testas franzidas, que buscam expressar a realidade
da presença de Deus; posições de rendição como cabeças abaixadas, joelhos
dobrados com “boca no pó”; expressão de dons espirituais como profecia e línguas. A
expressão física faz parte do culto pentecostal.
A adoração pentecostal tem um sentimento emocional. O pentecostalismo
atendeu às necessidades emocionais dos conversos, mostrando-lhes um caminho
para a salvação pela fé e dando-lhes a oportunidade de louvar e bendizer a Deus
cantando e se expressando no espírito. Como bem definiu A. K. Murango: “A
adoração pentecostal é caracterizada por cantar e dançar alegremente, bater palmas,
expressões físicas de louvor acompanhadas por instrumentação alta e poderosa”218.
Mas será que dar espaço para o sentimento e para as emoções no culto é algo
positivo? Muitos ficam receosos com essa postura, a fim de não abrirem precedente
para um culto descontroladamente emocionalista. Nesse ponto, recordo a lição
ensinada pelo Pr. John McAlister: “o abuso e o mau uso de algo não pode justificar o
desuso”. Emoções bem definidas e biblicamente orientadas trarão muito mais
benefício à igreja do que normalmente pensamos.
A. W. Tozer resume essa necessidade com seu costumeiro brilhantismo:
Não sei como você se sente, mas sinto que devo dar a Deus uma resposta de todo o coração. Sou feliz por
ser considerado um adorador. Bem, essa palavra “sentir” foi introduzida aqui, e sei que talvez tenha uma
reação instantânea contra ela. Na verdade, pessoas têm me dito dogmaticamente que nunca permitirão
que “sentimento” tenha qualquer parte em sua vida e experiência espirituais. E respondo: “Que ruim para
você!” Digo isso porque tenho manifestado uma definição muito real do que creio ser a verdadeira
adoração: adoração é sentir no coração!
Na fé cristã, devemos ser capazes de usar a palavra “sentir” com ousadia e sem apologia. O que poderia
ser dito de pior sobre a Igreja cristã, senão que somos um povo sem sentimento? A adoração deve sempre
vir de uma atitude interior. Ela incorpora vários fatores, incluindo-se o mental, o espiritual e o emocional.
[...] A verdadeira adoração é, entre outras coisas, um sentimento sobre o Senhor nosso Deus. Ela está em
nosso coração e devemos estar dispostos a expressá-la de maneira apropriada219.

Um fato desafiador para nós é que não devemos nos esconder nem expressar
nossos sentimentos por trás de um exterior reservado, formal e inexpressivo. Um
sinal de genuinidade é que há uma gama completa de emoções. Não devemos ser
sempre somente felizes ou somente tristes, nem somente intensos ou somente
ternos. A questão é que não há lugar para um culto em que não exista envolvimento,
ou que seja de uma formalidade intelectualizada e fria. Precisamos estar envolvidos.
A menos que nossos sentimentos estejam profundamente envolvidos, como
podemos levar outros a adorar?220
Uma das principais expressões físicas pentecostais no culto são os dons
espirituais. Nesse aspecto, a experiência conduz ao fato de que o dom de línguas seja
o mais recorrente deles dentro do contexto do culto público. Mais uma vez, pelos
abusos e excessos cometidos com relação a esse dom, muitos se revestiram de um
ceticismo a respeito dessa expressão, considerando a totalidade delas como
carnalidade ou mesmo como uma expressão pagã, que seria incompatível com o
culto cristão.
Porém, se fizermos o exercício de tirarmos da frente o “entulho” que nos impede
de ver os dons espirituais como legítima expressão física no culto, veremos como isso
se coaduna com o propósito de adoração e edificação característicos do culto – já
que, de acordo com 1 Coríntios 14 e demais passagens bíblicas, tal dom tem como
objetivo a edificação pessoal e a adoração a Deus. Ainda, a construção da ideia do
falar em línguas é uma construção teológica trinitária, por mais que não nos
atentemos a isso.
Robin Parry esclarece esse polêmico ponto ao afirmar que em línguas, somos
dependentes do Espírito derramado sobre nós por Cristo, enquanto oramos ao Pai.
Os pentecostais e os carismáticos costumam ter muita consciência de que quando
falam em línguas é porque Cristo derramou o Espírito sobre eles e lhes permitiu falar
com Deus. Essa consciência trinitária é parte do entendimento do dom em si221.
O culto pentecostal, portanto, é vivo e recheado de expressões físicas marcantes.
Nas palavras de um antigo cântico famoso no meio pentecostal, é “um povo
barulhento”. Esse “barulho”, embora seja muitas vezes taxado corretamente de
balbúrdia, muitas vezes é uma sinfonia muito bem orquestrada aos olhos de Deus. O
problema de muitas críticas ao “barulho” do culto pentecostal é que ficam restritas a
questões de gosto pessoal, e não entram no mérito da possibilidade ou não de se
expressar daquela maneira.
Um culto direcionado pelo Espírito, mesmo que seja mais “barulhento” do que
outras tradições estão acostumadas, será perfeitamente ordenado com a finalidade
de adoração divina e edificação humana. E aqui reverberamos novamente a visão de
A. W. Tozer:
Talvez seja difícil para alguns admitir, mas quando estamos adorando verdadeiramente ao Deus de toda
graça, de todo amor, de toda misericórdia e de toda a verdade, talvez não fiquemos em silêncio o bastante
para agradar a todos [...] Não creio ser necessariamente verdade que adoramos a Deus quando fazemos
muito barulho. Mas não raro, a adoração é audível. [...] Eu advertiria os que são cultos, silenciosos,
reservados, equilibrados e sofisticados que se ficarem constrangidos na igreja quando alguns cristãos
felizes disserem “Amém!”, talvez estejam necessitados de alguma iluminação espiritual. Os santos
adoradores de Deus no corpo de Cristo têm, com frequência, sido um pouco barulhentos222.

Um pentecostalismo sacramental?
A ideia da Razão Visceral proposta neste livro não é nenhum tipo de pensamento
de ineditismo, de algo nunca visto nas questões e discussões a respeito do culto.
Trata-se tão somente de observação de movimentos já existentes, e avanço em
determinados outros aspectos ainda não explorados. É uma contribuição, uma
adição a algo que já está sendo discutido e trabalhado. E uma dessas frentes é a
união das tradições pentecostal e sacramental.
Talvez a iniciativa mais proeminente dessa movimentação vem do britânico
Andrew Wilson, pastor na King’s Church, em Londres. Ele tem proposto uma visão
“eucarismática” do culto cristão. O neologismo de Wilson diz respeito à união dos
termos “eucarístico” e “carismático”, apontando para a união dessas duas tradições.
Ele nos informa sobre a relevância dessa convergência por meio de um perspicaz
exercício de imaginação:
Convido você a imaginar uma igreja assim encontrando os prazeres da adoração encarnada pela
primeira vez. Imagine-os redescobrindo o poder dos símbolos: água, pão, vinho e óleo. Imagine-os
reinventando sua liturgia para incluir elementos bíblicos que perderam e encontrando profundezas do
evangelho que quase haviam esquecido. Imagine a bola de neve ganhando força enquanto eles usam
monges para ajudá-los a orar e mártires para ajudá-los a cantar. Eles começam a ler livros de pessoas
mortas e descobrem que estão mais vivos do que muitos dos livros de pessoas vivas. Eles catequizam suas
famílias. Eles se regozijam nos sacramentos. Eles fazem coisas que fazem coisas.
Depois imagine-os encharcados no Espírito Santo, propensos a explosões espontâneas de louvor e ao tipo
de alegria que faz as pessoas se alegrarem. Eles começam a curar os doentes. Eles leem o Salmo 150 - e
realmente o fazem. Expulsam os demônios quando necessário. Eles usam dons espirituais nas reuniões -
não apenas os líderes, mas todos [...] esperam que Deus fale com eles em casa ou no escritório. Suas
reuniões parecem mais casamentos africanos do que funerais ingleses.
Agora junte tudo isso. Imagine um serviço que inclua testemunhos de cura e orações de confissão, salmos,
hinos e cânticos espirituais, batismo na água e no Espírito, credos que movem a alma e ritmos que movem
o corpo. Imagine jovens vendo visões, velhos sonhos sonhando, filhos e filhas profetizando, e todos
chegando à mesma mesa e depois se alegrando223.

Não há nenhuma razão, a não ser uma série de obstáculos postos ao longo da
história, pela qual não pode haver igrejas hoje que possam reunir características de
tradições diferentes. Por exemplo, uma igreja em que orações escritas e pré-
definidas sejam seguidas por profecias e línguas espontâneas; ou que o “apelo”
convocando pessoas à frente seja um chamado à mesa da Ceia do Senhor; ou mesmo
que a recitação do Credo fosse seguido de uma explosão de celebração musical
expressiva. A busca dessa convergência tornará nossa adoração mais rica, nossas
igrejas mais profundas e nossa alegria maior224.
Wolfgang Vondey segue nesta linha ao afirmar que a crise do cristianismo global
é uma crise da liturgia. O primeiro passo para enfrentar essa crise já foi dado:
reconhecer a estrutura litúrgica do pentecostalismo, e então contrastá-la com o
ambiente estrutural das tradições estabelecidas225. É basicamente o que Andrew
Wilson faz, e também o que tento realizar com a escrita deste livro.
Uma articulação litúrgica da espiritualidade pentecostal é fundamental para a
reorientação teológica global precisamente por causa das qualidades não
convencionais da liturgia, que apontam, segundo Vondey, “além das noções
estruturais da práxis cristã que resistem à improvisação, imaginação e
criatividade”226. É necessário que as demais tradições superem a desconfiança inicial
no pentecostalismo, antigamente taxado de “anti-intelectual”, e que passem a
considerá-lo no cenário das discussões a respeito do culto cristão.
Repensar o culto, torna-se, então, algo inevitável e urgente. Andrew Wilson nos
lembra oportunamente que igrejas contemporâneas jogaram fora o “bebê”
sacramental junto com a “água da banheira” da formalidade, tornando suas ordens
de culto extremamente previsíveis e sem vida. Outras, desconfiadas de qualquer
coisa antiga e também de qualquer coisa nova, optam por uma adoração que tem
entre 20 e 50 anos de existência, segura, porém igualmente opaca e previsível227.
A importância do que estamos tratando é bem resumida pelo teólogo
assembleiano Gutierres Siqueira:
Portanto, a congregação que souber equilibrar o carisma com rituais, os dons espirituais com lecionários,
o falar em línguas com a leitura do Credo, a profecia com a exposição sólida das Escrituras etc. não só
será um exemplo de equilíbrio, como associará o melhor dos princípios cúlticos do Novo Testamento. A
edificação é a chave. A adoração deve nos alimentar em espírito e verdade, emoção e razão etc. A
adoração combinada entre a tradição e a renovação vai além de uma concha de retalhos, logo porque a
mera junção não é desejável, mas procurar repensar a adoração cristã como a construção de uma
comunidade que é transformada e alimentada por Deus através de cada elemento de culto. O culto é uma
manifestação da graça de Deus228.

200. SILVA, Vanderson de Sousa. Lex orandi – fonte da espiritualidade cristã: aspectos da teologia litúrgico-
espiritual. Revista de Cultura Teológica da PUC-SP, ano 2014. Disponível em:
http://ken.pucsp.br/culturateo/article/view/19227/15083, acesso em 14 MAI 2020.
201. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
202. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
203. VAUGHAN, S. B. apud KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship. Scielo
South Africa, ano 2019. Disponível em: <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2074-
77052019000100006>, acesso em 22 ABR 2020.
204. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
205. KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship. Scielo South Africa, ano
2019. Disponível em: <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2074-
77052019000100006>, acesso em 22 ABR 2020.
206. KÛEN, Afred apud DORNELES, Vanderlei. Liturgia Pentecostal rompe barreiras entre o Religioso e o
Popular. Site Música e Adoração, ano 2019. Disponível em: <https://musicaeadoracao.com.br/20199/liturgia-
pentecostal- rompe-barreiras-entre-o-religioso-e-o-popular/>. Acesso em: 24 ABR 2020.
207. MARTIN, Lee Roy (ed.). Toward a Pentecostal Theology of Worship. Cleveland, Tennessee: CPT Press, ano
2016.
208. KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship. Scielo South Africa, ano
2019. Disponível em: <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2074-
77052019000100006>, acesso em 22 ABR 2020.
209. VONDEY, Wolfgang apud KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship.
Scielo South Africa, ano 2019. Disponível em: <http://www.scielo.org.za/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S2074-77052019000100006>, acesso em 22 ABR 2020.
210. NEL, Marius. Attempting to develop a Pentecostal theology of worship. Verbum et ecclesia, ano 2016.
Disponível em: http://www.scielo.org.za/pdf/vee/v37n1/46.pdf, acesso em 25 MAI 2020.
211. MILLER, Donald; YAMAMORI, Tetsunao apud MARTIN, Lee Roy (ed.). Toward a Pentecostal Theology of
Worship. Cleveland, Tennessee: CPT Press, ano 2016.
212. CAMPOS, Bernardo. Estructura y morfologia del culto pentecostal tradicional. Azusa Revista de Estudos
Pentecostais, ano 2016. Disponível em:
<https://azusa.faculdaderefidim.edu.br/index.php/azusa/article/view/144>, acesso em 27 ABR 2020.
213. DORNELES, Vanderlei. Liturgia Pentecostal rompe barreiras entre o Religioso e o Popular. Site Música e
Adoração, ano 2019. Disponível em: <https://musicaeadoracao.com.br/20199/liturgia-pentecostal-rompe-
barreiras-entre-o-religioso-e-o-popular/>. Acesso em: 24 ABR 2020.
214. SANTOS JUNIOR, ROSA apud SANTOS JUNIOR, Paulo Jonas dos. Histórico da música sacra: do Antigo
Testamento ao culto pentecostal. Azusa Revista de Estudos Pentecostais, ano 2017. Disponível em:
https://azusa.faculdaderefidim.edu.br/index.php/azusa/article/view/159>, acesso em 29 ABR 2020.
215. GRIGGS, Richard I. Musical Worship as a Pentecostal Sacrament: Toward a Soteriological Liturgy. Selected
Honors Theses da Southeastern University, ano 2017. Disponível em:
<https://firescholars.seu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1064&context=honors>, acesso em 28 ABR 2020.
216. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, ano
2018, p. 154.
217. DORNELES, Vanderlei. Liturgia Pentecostal rompe barreiras entre o Religioso e o Popular. Site Música e
Adoração, ano 2019. Disponível em: <https://musicaeadoracao.com.br/20199/liturgia-pentecostal-rompe-
barreiras-entre-o-religioso-e-o-popular/>. Acesso em: 24 ABR 2020.
218. MURANGO, A. K. apud KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship. Scielo
South Africa, ano 2019. Disponível em: <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2074-
77052019000100006>, acesso em 22 ABR 2020.
219. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
220. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
221. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
222. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
223. WILSON, Andrew. Spirit and sacrament: an invitation to eucharismatic worship. Grand Rapids, Michigan:
Zondervan, ano 2018.
224. Ibid.
225. GRIGGS, Richard I. Musical Worship as a Pentecostal Sacrament: Toward a Soteriological Liturgy. Selected
Honors Theses da Southeastern University, ano 2017. Diponível em:
<https://firescholars.seu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1064&context=honors>, acesso em 28 ABR 2020.
226. VONDEY, WOLFGANG apud GRIGGS, Richard I. Musical Worship as a Pentecostal Sacrament: Toward a
Soteriological Liturgy. Selected Honors Theses da Southeastern University, ano 2017. Diponível em:
<https://firescholars.seu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1064&context=honors>, acesso em 28 ABR 2020.
227. WILSON, Andrew. Eucarismático. Lecionário, ano 2019. Disponível em:
<https://lecionario.com/eucarismático-8936895cba31>, acesso em 24 ABR 2020.
228. SIQUEIRA, Gutierres Fernandes. Em defesa do culto litúrgico-carismático. Lecionário, ano 2018.
Disponível em: <https://lecionario.com/em-defesa-do-culto-litúrgico-carismático-4d396c24432a>, acesso em
26 ABR 2020
CONCLUSÃO

RAZÃO VISCERAL COMO ETHOS LITÚRGICO

O recente interesse pelo assunto do culto público demonstra, dentre outras


coisas, que há algo inquietante no seio da igreja, que está movendo gente a repensar,
planejar e, porque não, convergir ideias para avançarmos no pensamento a respeito
da adoração coletiva. Isso é real porque o caráter verdadeiro da Igreja é revelado em
e através do seu culto. Quando a igreja está precisando de reforma, é seu culto que
deve ser reformado229.
Como afirma J. J. von Allmen:
A Igreja de nossos dias não será salva por uma melhor catequese, uma reorganização eclesiástica ou uma
tomada de consciência do grito dos oprimidos e cansados, mas sim por uma reforma de caráter litúrgico,
porque as repercussões desta última é que justificarão a catequese, a reorganização e a diaconia,
impedindo-as de degenerar em intelectualismo biblicista, em formalismo legalista e em ativismo social230.

Tendo visto e destacado os pontos positivos de cada uma das quatro tradições –
reformada, sacramental, evangelical e pentecostal – e entendendo que cada uma
delas tem algo a agregar ao culto cristão, chego à conclusão inevitável que o conceito
de Razão Visceral é uma proposta honesta e coerente para ser entendida como um
ethos litúrgico.
O ethos é entendido como o conjunto dos costumes e práticas característicos de
um povo em determinada época ou região, ou mesmo o conjunto de características
ou valores de determinado grupo ou movimento231. Ou seja, é a “cesta básica”
caracterizadora de certo grupo a respeito de algo. Penso que podemos construir a
Razão Visceral como esse pacote peculiar e equilibrado, que não se originou do
ineditismo, mas que bebeu das melhores fontes já existentes, a fim de formar uma
ideia derivada com o melhor dessas fontes.
Entender o culto como consequência da ação de uma Razão Visceral significa,
dentre outras coisas, equilibrar excelência teológica com fervor da alma; respeito a
tradições sadias com sede da imanência; compromisso de uma pregação bíblica e
consistente com espontaneidade comunitária; lançar mão dos preciosos símbolos e
marcos antigos com a expectativa ardente de um encontro com Deus. É uma
racionalidade vigorosa. É o exercício de uma mente entusiasmada. É intelecto
flamejante. É sabedoria intensa. É razão visceral.
Como isso se observa na prática? O culto cristão que possui o conceito de Razão
Visceral como seu ethos terá como característica um sério e incondicional
compromisso com as Escrituras. O culto deve ser encharcado das Escrituras – seja
em leituras públicas e conjuntas, citações espontâneas e, principalmente, na
exposição da Palavra de Deus. A pregação é o momento central da liturgia. A Bíblia
permeará o culto, do início ao fim. Tudo é feito por intermédio das Escrituras.
Ainda, essa forma de adoração coletiva privilegiará as boas práticas do passado,
no que tange aos simbolismos e práticas litúrgicas. No que for possível, a arquitetura
dos templos buscará transmitir um aspecto espiritual e que inspire temor e
reverência a Deus; reafirmaremos nosso compromisso público de fé ao recitar
coletivamente trechos das Escrituras como a oração do Pai Nosso, ou mesmo
declarações fundamentais da igreja como o Credo Apostólico.
A Razão Visceral envolverá e fará com que as pessoas reconheçam que
necessariamente o culto é um encontro com Deus. Reconhecer essa realidade trará
um santo cuidado com um sério desejo de agradar a Deus na reunião da igreja. Uma
espécie de “reverência alegre” será a marca interna de cada um dos congregantes –
expresso nos cânticos entoados, no teor das orações feitas e na atenção a todos os
momentos da liturgia. Estar na presença do rei exige de nós uma postura. Nos
encontramos com Ele com respeito e regozijo; com sobriedade e satisfação.
Por fim, esse ethos litúrgico contemplará expressões físicas vigorosas – não só a
expressão de dons espirituais no culto, mas mesmo uma efusividade direcionada
pelo Espírito, uma contemplação exultante, o transbordar externo de uma explosão
do divino que ocorre dentro de si. Nesse momento, curas podem acontecer, o
Espírito pode renovar, profecias e línguas podem ocorrer; batemos palmas,
cantamos alto, celebramos com gestos e semblantes, expressamos nossa felicidade
comunitária de estarmos na presença do Senhor; o fervor é marca presente, uma vez
que fomos marcados de forma indelével pelo Espírito Santo. É uma comunidade
pulsante, festiva, comprometida com a alegria sobrenatural do Espírito.
Em relação à música, entendo que é necessária uma conjugação de repertório
clássico (músicas com mais de 100 anos de composição), com músicas do passado
recente da igreja (músicas entre 10 a 100 anos de composição), somado ainda a uma
seleção de músicas recentes (músicas com menos de 10 anos de composição). Isso é
importante para que tenhamos representada na liturgia da igreja as diversas
gerações de cristãos, e sua devida contribuição à hinologia cristã. Não devemos nos
ater a um saudosismo incondicionalmente crítico às novidades na música, mas
entender que cada geração do povo de Deus tem algo a contribuir para aquilo que
cantamos em nossos cultos.
Não devemos reduzir, então, nossa experiência musical aos hinos tradicionais,
embora os valorizemos sobremaneira; da mesma forma, não nos rendemos a um
desejo absoluto de contextualização, limitando o repertório às novidades do mercado
fonográfico. Antes, acima do critério da “idade” da música, identifico como critérios
para a seleção das músicas: o compromisso com o texto das Escrituras; melodia,
harmonia e ritmos condizentes com o canto coletivo e contextualizados com a
comunidade local; a expressão das verdades bíblicas de forma viva e intensa.
No que se refere à expressão dos dons espirituais no culto, creio que Deus ainda
derrama seus “dons de curar”, então devemos incentivar a oração por cura dos
enfermos; crendo na profecia como um dom espiritual de revelação infra-canônica, e
completamente submetido ao juízo da Palavra de Deus, devemos admitir a
possibilidade da expressão desse dom, desde que haja uma maturidade coletiva e
conhecimento consolidado da membresia da igreja local quanto ao correto uso desse
dom - reconheço que apenas algumas poucas congregações preenchem esses
requisitos hoje e estariam preparadas para tal -, não referendando atitudes de
aventureiros que disfarçam sua carnalidade num suposto exercício espiritual
profético.
Devemos reconhecer também a ocorrência do dom de línguas no culto, desde que
respeitados os critérios do Apóstolo Paulo em 1 Coríntios 14. Na prática, isso
significa que o dom não deve ser expresso pelas pessoas que possuem fala oficial no
culto - para que não haja confusão na mensagem transmitida do púlpito; deve ser
restrito a momentos e em intensidades que não atrapalhem o bom andamento do
culto - não deve interromper ou causar interferência na pregação das Escrituras, por
exemplo; deve ser um exercício de devoção pessoal, e não um motivador de uma
catarse emocional – não devemos repreender os que se utilizam das línguas
respeitando os padrões, nem mesmo incentivar que todos falem em línguas ao
mesmo tempo para criar um suposto “ambiente espiritual”.
Sobre a pregação, não preciso me alongar muito pois já definimos o padrão
desejado no capítulo da contribuição reformada ao culto. Em resumo, devemos
incentivar a prática da pregação expositiva, um formato que valoriza o estudo da
estrutura, contextos e linhas melódicas do próprio texto bíblico, buscando extrair do
texto o que ele realmente quer dizer. Devemos pregar o texto, e não definir o assunto
para então buscar na Bíblia um versículo como “desculpa” para aquilo que já
definidos anteriormente. Todo esse processo deve ser apresentado no púlpito por um
coração vigoroso por pregar a Palavra de Deus, alguém completamente impactado
pelas verdades bíblicas, de tal forma a não conseguir se referir ao Evangelho de
forma desapaixonada. A “exultação expositiva” é tanto fervor intelectual quanto
intelecto fervoroso.
O serviço semanal da Ceia do Senhor trará a memória da congregação a
necessidade de lembrar-se frequentemente do sacrifício de Cristo na cruz; a adoção
de certos símbolos e hábitos, como o colarinho clerical e a cruz pendurada na parede,
o ajoelhar-se, o levantar das mãos, a imposição das mãos em oração; por fim, a
observância do ano litúrgico fará com que a igreja caminhe neste mundo em um
ritmo conectado às verdades do Evangelho.
Por mais que seu ceticismo esteja ligado na máxima potência neste instante, é
preciso afirmar que todas essas coisas podem ocorrer no mesmo culto, da mesma
congregação, na mesma ocasião. Podemos ter um mesmo culto com um “espírito
pentecostal” de fervor e celebração, acompanhado de uma pregação expositiva que
aborde fielmente as Escrituras; podemos ter ao mesmo tempo um povo recitando o
Pai Nosso de forma vigorosa, encontrando-se com seu Senhor.
Não precisamos separar o que a Bíblia e Deus nunca separaram. Não precisamos
escolher entre tradição e contemporaneidade, entre razão e emoção. Podemos ter
ambos. Na verdade, precisamos ter ambos. Tim Keller nos esclarece essa
necessidade com sua objetividade brilhante de sempre:
A relutância em consultar a tradição não está de acordo nem com a humildade nem com a comunidade
cristã [...] Finalmente, qualquer culto de adoração coletiva, que seja estritamente contemporâneo, ficará
ultrapassado muito rapidamente. [...] Muito do que é chamado de culto “tradicional” está bastante
enraizado na cultura norte-europeia do século XVI [...] oculta nos argumentos dos defensores do culto
histórico está a suposição de que certas formas históricas são mais puras, bíblicas e não contaminadas por
afirmações culturais. [...] Assim como é falta de humildade desprezar a tradição, é também falta de
humildade elevar qualquer tradição particular ou uma cultura humana como forma de adoração. A
recusa em adaptar uma tradição a novas realidades pode estar sob a condenação de Jesus ao
transformarmos nossa cultura humana favorita em um ídolo, como normatização, em pé de igualdade
com as Escrituras232.
Para Robert Webber, a tentativa de unir a liturgia mais tradicional com a
contemporânea é excelente porque “o que falta em uma é forte na outra e vice-
versa. Na liturgia tradicional, faltava o sentido da experiência real e vital com
Deus. No movimento contemporâneo, faltava substância”233. Esse tipo de
equilíbrio, aliás, era visto mesmo na adoração da igreja primitiva.
Larry Hurtado ilustra isso ao dizer que, para os cristãos daqueles primeiros
tempos, o culto não era simplesmente um exercício religioso de que participavam,
mas uma oportunidade para reafirmar aquilo em que criam e tomar parte de seus
rituais. Era uma ocasião para a manifestação e a experiência dos poderes divinos.
Nesse sentido, parece que as expectativas eram sempre elevadas durante o culto,
porque se esperava que o encontro com Deus fosse exuberante234.
Tenho a consciência de que alguns demorarão até atingir esse grau de
convergência entre as tradições, e poderá haver a sobreposição da característica de
uma em relação às demais por algum tempo. Porém precisamos perseverar em
direção a um equilíbrio mais exato entre elas. Para isso, é útil ter uma reunião para
planejar e revisar os cultos, a fim de aprender com os erros e desenvolver boas
práticas. Isso elevará a qualidade dos cultos – entendendo, claro, que uma
preparação cuidadosa não precisa excluir a espontaneidade235.
“O culto deveria ser interessante”, afirma Michael Horton, “afinal, é um encontro
com Deus!”. Para Horton, isso se dá quando demonstramos inteligência e arte no
desenvolvimento e significado de cada ato do culto. Para ele, “quer seja o culto
contemporâneo quer seja o tradicional, ambos se tornarão rotineiros, maçantes e
sem propósito, se permitirmos que ele se realize sem uma direção intencional em sua
preparação”236. É preciso pensar sobre o culto. É preciso estar preparado para
cultuar. Até porque, segundo J. J. von Allmen:
É no culto que a igreja dá provas de si mesma; é nele que reside o centro da congregação. É a ele que
somos levados quando verdadeiramente procuramos a Igreja, e é a partir dele que esta se encontra com o
mundo, a fim de exercer a sua missão. A Igreja não é fundamentalmente uma instituição ou um
organismo. Ela é fundamentalmente uma assembleia litúrgica, emergindo e vivendo em uma história
contada por meio do culto237.

É na adoração coletiva que o coração da congregação pulsa. É nesse espaço de


liturgias e práticas que temos a fonte que emana as virtudes cristãs, pelas quais os
membros da igreja agirão como representantes do Reino de Deus durante a semana.
O culto é formador, é discipulador. Adorar coletivamente é plenitude na limitação, é
céu na terra, é antecipação da alegria eterna. Não dá mais para desconsiderar a
importância de cultuar. O culto é o ambiente propício para respirar o ar divino, para
tomar fôlego de um “oxigênio” bíblico, centrado na Trindade e relevante para a vida
cristã. O culto é a vida da igreja.

229. RIENSTRA, Ron. O culto como manifestação da igreja. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-manifestação-da-igreja-5eb81f53c55f>, acesso em 26 ABR 2020.
230. VON ALLMEN, J. J. apud RIENSTRA, Ron. O culto como manifestação da igreja. Lecionário, ano 2018.
Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-manifestação-da-igreja-5eb81f53c55f>, acesso em 26 ABR
2020.
231. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/etos, acesso em
31 MAI 2020.
232. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
233. WEBBER, Robert apud PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura
contemporânea e analítica do Princípio Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019.
Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
234. HURTADO, Larry H. apud SIQUEIRA, Gutierres Fernandes. Em defesa do culto litúrgico-carismático.
Lecionário, ano 2018. Disponível em: <https://lecionario.com/em-defesa-do-culto-litúrgico-carismático-
4d396c24432a>, acesso em 26 ABR 2020.
235. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
236. HORTON, Michael apud PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura
contemporânea e analítica do Princípio Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019.
Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
237. VON ALLMEN, J. J. apud RIENSTRA, Ron. O culto como manifestação da igreja. Lecionário, ano 2018.
Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-manifestação-da-igreja-5eb81f53c55f>, acesso em 26 ABR
2020.
APÊNDICE

SUGESTÕES DE ORDENS DE
CULTO
EXEMPLO 1

CULTO COM CEIA DO SENHOR

A) Abertura:
Leitura pública das Escrituras
Oração espontânea

B) Música:
02 músicas
Oração de confissão
Recitação do Pai Nosso
02 músicas

C) Interlúdio:
Anúncios
Ofertório
01 música

D) Pregação:
Exposição Bíblica
Oração espontânea

E) Ceia do Senhor:
Celebração da Ceia
Recitação do Credo Apostólico

F) Finalização:
Oração pelos enfermos
Orações de gratidão
Impetração da Bênção Apostólica
EXEMPLO 2

CULTO DE ENSINO

A) Abertura:
Leitura pública das Escrituras
Oração espontânea

B) Música:
02 músicas
Oração de confissão
Recitação do Pai Nosso ou Credo Apostólico

C) Interlúdio:
Anúncios
Ofertório

D) Pregação e Ensino:
Reflexão bíblica breve
Oração espontânea
Escola Bíblica*

E) Finalização:
Orações de gratidão
Impetração da Bênção Apostólica

* Aulas concernentes aos temas bíblicos e teológicos importantes para a fé cristã, em um ambiente que permita
interação, resolução de dúvidas e troca de experiências. Havendo possibilidade, divisão em classes de acordo com
o interesse, faixa etária e qualquer outro critério determinado pela igreja local.
EXEMPLO 3

CULTO DE ORAÇÃO

A) Abertura:
Leitura pública das Escrituras
Oração espontânea

B) Música:
03 músicas
Recitação do Pai Nosso ou Credo Apostólico

C) Orações:
Oração de confissão;
Oração pelos enfermos;
Intercessões em geral;
Orações de gratidão.

D) Interlúdio:
Anúncios
Ofertório

E) Pregação:
Exposição Bíblica
Oração espontânea

F) Finalização:
Oração pelo país e pelas autoridades
Oração pela Igreja e Missões
Impetração da Bênção Apostólica

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