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HELEN FISHER

UMA HISTÓRIA
FORA DE TEMPO
Ficha Técnica
Título: UMA HISTÓRIA FORA DE TEMPO
Título original: SPACE HOPPER
Autora: Helen Fisher
Capa: Patrícia Silva
Imagem da capa: Joanna Czogala / Trevillion Images
Capa: Patrícia Silva
ISBN: 9789892351452

Edições ASA II, S.A.


uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

O direito de Helen Fisher de ser identificada como autora da obra foi


estabelecido por ela em conformidade com o Copyright, Designs and
Patents Act 1988.

© 2021, Spacehopper Limited


Publicado originalmente na Grã-Bretanha por Simon & Schuster UK Ltd,
2021
© 2021, Edições ASA II, S.A.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990
www.leya.pt
Índice
Capa
Ficha Técnica
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EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
Esta história é para os meus filhos, Cleo e Dylan,
que são bondosos, amáveis, inteligentes e divertidos.
Com todo o meu amor.
1

A perda da minha mãe é como um dente que falta: uma ausência que sinto
sempre, mas que consigo esconder desde que mantenha a boca fechada.
Portanto, raramente falo sobre ela.
É um ponto de partida triste para esta história incrível, mas, por favor, não
me interpretem mal, eu adoro a minha vida. Sou uma mulher comum de
trinta e poucos anos, com duas filhas e um marido, o Eddie, que está a
formar-se para entrar no clero. Ele parece pensar que darei uma mulher de
vigário perfeita, mas eu não sei se estou à altura do desafio. Comparada
com o meu marido, sou o que se pode chamar mais racional, um pouco mais
científica. Mas suponho que, depois do que passei, deva ser capaz de
acreditar em qualquer coisa.
O Eddie diz que tenho todas as qualidades necessárias e admito que
acredito ser boa pessoa. Por exemplo, podem contar-me qualquer coisa e eu
não julgarei; e, se não conseguir evitar levantar uma sobrancelha, mantê-lo-
ei cá dentro, para proteger os vossos sentimentos. E nunca minto. Sempre
fui completamente verdadeira com o Eddie, entre nós é assim, nem uma
única mentira. Até agora.
Agora, sou uma mentirosa. Agora, sou uma ladra.
E já não posso sequer jurar que sou normal. Vou deixar-vos decidir.
Mentir ao meu marido faz-me sentir doente e estou desesperada para parar,
mas as mentiras são como dedos dos pés; onde está um, há sempre mais por
perto. A maior confissão que faço é que tenho visitado a minha mãe e
mentido sobre isso, mas além disso tenho sido magoada e marcada e menti
sobre isso também, tantas coisas. Se lhe contasse a verdade, o Eddie tentaria
compreender, porque é um homem bom. Mas, logicamente – em termos
lógicos –, é mais provável que pense que enlouqueci.
Talvez esteja a ser injusta com ele, porque, tanto como amo e preciso do
meu marido, ele ama-me e precisa de mim, e, ao longo dos últimos meses,
fui-me apercebendo de algo importante. Não posso contar ao Eddie o que
está a acontecer, independentemente do quanto queira fazê-lo. Não porque
ele não vá acreditar em mim, mas porque poderá acreditar.
E, se acreditar, tentará impedir-me.
*
Deixem-me explicar as coisas desde o princípio, embora eu própria me
pergunte onde será realmente o princípio. O tempo não é tão fácil de
entender como outrora pensei.
Tudo começou com a fotografia e a caixa, mas, lá estou eu a dizer
começou, e isso é o mesmo que princípio. Vamos combinar uma coisa, eu
poderia tornar-me filosófica sobre «o princípio» e o que de facto significa,
mas não quero falar sobre isso agora e agradeço que não apressem a
situação; assim, adiaremos essa discussão (surgirá outra vez mais tarde,
garanto).
Digamos apenas isto: o ponto de partida sensato para a minha história é a
fotografia.
É o tipo de fotografia que um bilião de pessoas tem na sua posse. Podem
encontrá-la dentro de um livro que não abrem há anos, ou cairá de um
álbum antigo, porque perdeu a cola. Aposto que têm uma algures numa
caixa de sapatos, escondida entre outros destroços da vida: cartas de amor,
postais e retratos de batizados de bebés desconhecidos. A minha caiu de um
livro de receitas. Um livro de receitas sem imagens, mas com salpicos em
várias páginas, a indicar as receitas preferidas; impressões digitais a
chocolate e algumas notas escritas à mão. A minha mãe era a dona deste
livro e era gulosa; a página dos brownies de chocolate está particularmente
manchada, assim como a receita do pudim de tâmara.
A fotografia é um retrato meu. Na parte de trás diz «Faye, Natal de
1977». Virei-a nos dedos, sorrindo-me de um momento há trinta anos, está
o meu eu de seis anos. Bochechas rosadas, olhos castanhos e caracóis
desarranjados. Estou sentada numa caixa, na fotografia, a caixa de uma bola
saltitona, e pareço tanto uma boneca que poderia estar a sair da embalagem
na manhã de Natal. Tenho vestido um roupão rosa de aspeto macio, com
uma pequena gola arredondada, e a árvore de Natal atrás de mim está cheia
de luzes coloridas e enfeites decorativos. Pareço muito feliz.
Claro. Eu era uma criança, era manhã de Natal e a minha mãe estava a
tirar aquela fotografia. Teria sido um dia perfeito e descontraído. A minha
mãe, de quem mal me lembro, teria absorvido o olhar de amor desta
menininha. O meu amor. Olhei com atenção, tentando ver além da
fotografia, tentando ver mais do que ela era capaz de me oferecer.

Trabalho na RNIB (pessoas invisuais, não barcos salva-vidas)1, a


conceber produtos para pessoas com visão parcial ou invisuais e, há um ano,
fazia pesquisa de máquinas fotográficas, todas de alta tecnologia. O invisual
com quem trabalho – o meu amigo Louis –, participava nas discussões
sobre as máquinas do futuro e o que estas poderiam fazer. O que ele queria
mesmo era pegar numa fotografia e sentir tudo o que existe nela, não apenas
o que se consegue ver, mas também por detrás. Disse que gostaria de poder
pôr o braço em volta dos ombros das pessoas na fotografia, e tinha a certeza
de que um dia seria possível. Sempre foi invisual e julgo que pensa que as
pessoas com visão retiram mais das fotografias do que de facto é possível.
Contudo, compreendo o que ele quer dizer, porque quando olho para a
minha fotografia na caixa debaixo da árvore, quero meter lá a mão e tocar
no rosto da minha mãe. Ela não está presente na fotografia e, no entanto,
está lá. Estou desesperada para a ver e lhe tocar. Quero muito entrar e passar
uns minutos debaixo daquela árvore de Natal com ela.
Portanto, sabem que perdi a minha mãe há muito tempo e disse-vos que a
tenho visitado, e que, se o Eddie soubesse disto, tentaria impedir-me. Mas
imagino que também saibam que, se eu fosse visitá-la ao cemitério, o Eddie
não veria problemas nisso. Por favor, não desistam de mim quando vos
contar o que tenho feito. Ponham-se no meu lugar e imaginem-se a contar
ao vosso companheiro, ou chefe, ou melhor amiga. Creio que também
mentiriam, porque se insistissem que era verdade, acabariam num hospital
psiquiátrico.
Hesito, no caso de fazerem pouco ou sorrirem afetuosamente, ou de se
afastarem, recuando em busca da maçaneta da porta. Não quero mesmo que
o façam. Quero que mantenham uma cara séria, me olhem nos olhos e
digam «Continua.» Quando o fizerem, contarei o resto da minha história.
Tenho visitado a minha mãe, que morreu quando eu tinha oito anos, e não
estou a falar do cemitério, estou a falar de visitas com carne e osso, com chá
e biscoitos na mesa.
Portanto, aí têm, já disse. Se quiserem sair, eu compreendo.
*
As pessoas com quem mais me preocupo no mundo são a Esther e a Evie.
O Eddie a seguir, mas não é assim tão simples, porque há a Cassie e a Clem,
as minhas melhores amigas, que são como irmãs para mim; as irmãs que
nunca tive, mas, se pudesse tê-las escolhido – ou criado –, sê-lo-iam. Numa
conversa que tivemos uma vez, que provavelmente aconteceu depois das
duas da manhã, perguntávamo-nos a quem atiraríamos a última boia de
salvamento, se estivéssemos num navio a afundar-se e todas nós, incluindo
os nossos filhos, estivéssemos na água. A minha hesitação em responder
valeu-me muitas injúrias, incluindo atirarem-me uma almofada com alguma
força. A reação natural é atirar a boia de salvamento a uma das crianças,
mas o meu pensamento foi salvar a vida dos que salvarão aqueles que
amas. Eu atirei-a ao Eddie.
– E nós? – lamentou-se a Clem. Depois perguntou a quem eu atiraria a
boia de salvamento se só ela e a Cassie estivessem na água, e,
honestamente, essa foi a pergunta mais difícil. Quando se é uma
adolescente sem uma família de verdade e se conhece raparigas como a
Cassie e a Clem na faculdade, então, de repente, tem-se família.
A minha vida costumava ser assim: as minhas filhas, o Eddie, os nossos
amigos, trabalho e as ocupações domésticas. Era isso, e tudo funcionava
muito bem. Mas depois aconteceu isto e afetou tudo. O meu centro mudou;
a vida já não era simples.
Desde que encontrei a fotografia, levo-a comigo para todo o lado, como
um amuleto da sorte, uma polaroide metida com cuidado na carteira.
Preocupa-me perdê-la, mas prefiro tê-la comigo do que não a ter de todo.
Mais do que nunca na vida, tenho pensando na minha mãe e no que perdi.
E, à medida que as minhas filhas crescem, penso também no que ela perdeu;
quando eu tinha a idade delas, ela desapareceu.
Éramos só as duas, quando eu era pequena. Nenhum pai nem família, que
eu soubesse. Tenho na cabeça algumas imagens fugazes da minha mãe, mas
são como borboletas: frágeis, a flutuar-me para a visão e novamente para
fora dela, antes de eu conseguir ver bem. E quando ela morreu... bem, não
tenho nenhuma imagem nítida disso: um sentimento de perda, mas também
anseio e descrença. Pensei que ela voltaria, acreditava mesmo que a veria
outra vez. Ela estava doente, eu sabia disso; uma tosse congestionada e
nenhuma energia, embora me sorrisse sempre. Podia contar com abraços e
beijos a qualquer altura: porta aberta, pés a andar no tapete, subir para a
cama dela, braços abertos, calor. Tudo um pouco vago, mas um sentimento
bom. Depois, uma manhã, acordei e ela não estava. Fui a uma casa que
conhecia ao fundo da rua e bati à porta – um casal idoso –, e disse-lhes que
a minha mãe estava doente e eu não sabia o que fazer. Fiquei com eles nessa
noite, com a Em e o Henry. Fiquei com eles na noite a seguir também.
Fizeram telefonemas, houve conversas silenciadas e um polícia, e disseram-
me que a minha mãe tinha morrido, mas eu ficaria bem. Acabei por ficar
com a Em e o Henry para sempre, ou melhor, até à faculdade. Nunca me
deram pormenores sobre essa altura, e não me parecia que pudesse
perguntar. Fomos a um cemitério uns domingos pôr flores na sepultura,
mas, fora isso, ela basicamente tinha desaparecido da minha vida.
Eu tinha perguntas que provavelmente nunca teriam resposta e preenchi
as lacunas com suposições. Acho que o cancro a matou, mas na verdade não
sei; porque não tinha havido médicos, e porque não apareceu morta na
cama? Talvez fosse por isto que, como o Louis, eu queria que a fotografia
me desse mais informação do que podia e, quanto mais olhava para ela,
mais me concentrava na caixa da bola saltitona e tentava lembrar-me de
onde a tinha visto pela última vez.
Pouco tempo depois de perder a minha mãe e ter ido viver com a Em e o
Henry, entrei no meu novo quarto, antiquado, mas confortável, com muitos
folhos cor de rosa, e no meio do chão estava a caixa em que viera a minha
bola saltitona. Parecia desgastada, mas os lados tinham sido presos com fita
adesiva castanha, para a reforçar. Abri a tampa e vi as minhas coisas. A Em
e o Henry deviam ter decidido finalmente que a minha estadia com eles
seria de longa duração e foram a casa da minha mãe buscar alguns
brinquedos.
Alinhei ordenadamente os Estrumpfes no tapete – cerca de cinco, que
caíram na pilha de peluches – e depois a mola gigante. Veio um telefone
branco em plástico, com rodas e olhos que rolavam quando o
empurrávamos, muito infantil para mim na altura. Veio a calculadora Little
Professor e o órgão Major Morgan; pu-los um ao lado do outro, como um
par de velhos amigos eletrónicos, e os seus rostos felizes fizeram-me sentir
triste. Liguei a calculadora e apareceu no ecrã uma pergunta matemática.
Era demasiado fácil para mim, mas dei a resposta errada de propósito.
Depois de três tentativas, ele mostrou-me silenciosamente a resposta certa;
embora uma parte de mim quisesse desfazê-lo contra a parede, pu-lo com
cuidado outra vez junto do Major. Na caixa estavam um baralho de cartas
Happy Family e os meus livros, basicamente Enid Blyton, A Magia da
Árvore Longínqua e A Cadeira dos Desejos, e escondido entre eles, como
um clandestino, o livro de receitas da minha mãe, o único que a vi usar;
pequeno e bem manuseado, com uma capa preta macia e maleável, como
uma Bíblia à moda antiga. Abri-o numa página coberta de manchas e passei
os dedos sobre o que imaginei serem as impressões digitais dela. Segui a
pista de algumas das minúsculas letras à margem, e do minúsculo visto que
ela colocara ao lado de uma das suas receitas preferidas. Dei-lhe um beijo e,
com cuidado, guardei-o com os meus outros livros.
No fundo da caixa estava um par de patins e segurei-os junto aos lábios.
O metal das rodas era frio e áspero, incrustado com pequenas pedras do
caminho exterior. Os patins eram ajustáveis e o Henry ajudar-me-ia a
alargá-los, para que servissem. Vinham outras coisas na caixa e esvaziei
tudo para cima do tapete rosa. A bola saltitona estava no canto do quarto. O
seu sorriso sinistro perturbou-me; parecia saber algo que eu não sabia,
portanto virei-a para a parede. Esvaziada a caixa, espalmei-a e arrumei-a no
armário. E quando me mudei, anos mais tarde, tenho uma vaga memória
daquela caixa. Reforcei os lados com mais fita adesiva, e deve ter-me
acompanhado em todas as mudanças de casa.
*
A vez seguinte em que vi aquela caixa, depois de ter encontrado a
fotografia, foi o dia em que preparei uma chávena de chá para o Eddie e lhe
bati à porta do escritório. Ele virou-se na cadeira giratória e tirou os
auscultadores, pondo em pausa o vídeo que estava a ver no computador.
Esticou as longas pernas e fletiu os dedos, como faz sempre que esteve a
trabalhar.
– O que estás a fazer? – perguntei, pousando o chá na secretária e
passando-lhe a mão pelo cabelo castanho emaranhado. Será errado pensar
que o Eddie é demasiado bonito para ser vigário?
– A aprender sobre o Livro do Apocalipse e como se relaciona com certas
cerimónias. – Puxou-me para o colo dele e eu sentei-me a cavalo. Aninhei a
cabeça na curva do seu pescoço. – Cheiras bem – disse, e pôs os braços à
minha volta. Ele é tão alto e eu sou tão pequena que, acho, poderia abraçar-
me duas vezes. O polegar dele encontrou a base do meu pescoço e afagou-a.
Inclinei-me para trás para olhar para os seus olhos castanhos afáveis e ele
beijou-me. O melhor de sempre a beijar. Pensei isso da primeira vez, ainda
penso. E sentia-o a agitar-se.
– O Apocalipse excita-te? – disse eu, sorrindo-lhe junto à boca.
– Olha que são coisas bem esquisitas. – Ele beijou-me outra vez.
– Queres fazer umas malandrices mais logo?
– Deixa-me pensar nisso – disse ele, e eu belisquei-lhe o braço, na
brincadeira. Ao pousar o queixo no ombro dele, reparei numa caixa
desgastada no canto do espaço.
Como num velho soldado, os sinais exteriores de uso sugeriam que tinha
uma história para contar. A caixa mostrava a imagem desbotada de uma
menina, vestida com meias altas brancas, sapatos pretos e um vestido
amarelo incrivelmente curto – anos setenta –, que saltava para nós na bola
saltitona. Parte do texto era difícil de ler, porque estava escondido por fita
adesiva castanha, ou rasgara-se um pouco da caixa ao remover ou substituir
a fita.
– Onde arranjaste aquela caixa? – perguntei, sentando-me um pouco mais
direita no colo dele.
– No sótão. Estava à procura de uns manuais antigos meus e trouxe-os
dentro dela. Parece antiga, não é?
– É a da minha fotografia – disse eu, e inclinei-me para trás para poder
olhá-lo nos olhos.
– Que fotografia?
– A fotografia, minha e da minha mãe, fora o facto, bem, que a minha
mãe não aparece. Aquela por baixo da árvore de Natal. – Levantei-me e fui
buscá-la à mala, trazendo-a como uma parte do tesouro de uma criança:
uma coisa que parece um tesouro ao proprietário, mas não necessariamente
a outra pessoa.
O Eddie tirou-ma e, com o dedo, tocou o meu rosto na fotografia.
– Olha para ti. – Ele sorriu, primeiro para a fotografia e depois para mim.
– Saíste-te melhor do que a caixa – disse. – Continuas perfeita, mas aquela
caixa parece ter passado por muito. Provavelmente devíamos deitá-la fora.
– O quê? – disse eu, levantando-me bruscamente do colo dele e dirigindo-
me a ela. Tirei uns livros de dentro e levantei-a, segurando-a de uma forma
protetora.
– Como serias capaz? Aparece na minha fotografia. Parte da prova de que
estive lá.
– Só quis dizer que, dado que se está a desfazer, se lá puseres algo
pesado, o fundo pode cair.
– Bem, então não a uses. Mas não te atrevas a deitá-la fora.
O Eddie levantou as mãos como se estivéssemos a brincar aos polícias e
ladrões.
– Não deito, prometo. Desculpa! – Sorriu-me como se eu fosse uma doida
de quem ele gostava muito; fiz-lhe uma careta para mostrar que podia ser
mesmo louca, se realmente quisesse, e abracei a caixa com um pouco mais
de força.
Ouviu-se uma batida suave na porta. Virei-me e vi a Esther ali parada, as
mãos unidas numa pequena oração.
– Olá, querida – disse eu. Pousei a caixa quando ela veio abraçar-me as
pernas, enterrando o rosto quente na minha barriga. Acariciei os cabelos
castanhos brilhantes, meti-lhos atrás das orelhas e apertei-lhe delicadamente
o lóbulo. Apetecia-me sempre meter um daqueles lóbulos na boca, como a
uma goma. Ela afastou-se de mim e balançou-se na frente da caixa.
– Gosto disto – disse ela, usando o dedo para contornar a imagem da
menininha, que parecia ter a mesma idade do que ela. Apercebi-me de que a
menina da caixa estaria hoje em dia na casa dos quarenta, pelo menos, e, no
entanto, aqui estava ela, como uma viajante do tempo, que saltara dos anos
setenta do século passado para o nosso sótão, e agora para o escritório do
Eddie. Quem sabia onde acabaria a seguir?
– Posso ficar com isto? – perguntou a Esther.
– Não – respondi, um pouco depressa. A Esther disse apenas que estava
bem. – Para que a queres? – disse, sentindo-me mal, tal como sempre que
tinha de dizer não às meninas.
– Ia recortá-la ou assim. Ela é tão querida, não é? – perguntou a Esther,
ainda a olhar para a menina do passado.
– Sim, é – disse eu, baixando-me para junto da minha doce filha, que
adorava recortar todas as coisas bonitas que encontrava em revistas e
postais. Encontrei-a uma vez, aos seis anos, língua entre os dentes, com uma
pequena tesoura e uma agenda preta fina desatualizada, que comprou por
dez pence numa venda de garagem e na qual nunca escreveu. Todas as
páginas da agenda eram contornadas a dourado brilhante e ela estava a
tentar cortá-lo. Quando lhe perguntei o que fazia, respondeu que o dourado
era o melhor e queria separá-lo do resto da agenda.
– Quem come a carne tem de roer os ossos – disse-lhe eu na altura.
– Não percebo isso – respondeu ela, ainda concentrada a cortar.
– Quer dizer que, às vezes, as partes melhores estão ligadas às partes não
tão boas, e nós simplesmente temos de o aceitar.
– Eu sei o que significa, só não percebo porque não podemos ter só partes
boas. Somos todos partes boas: tu e o pai, e eu e a Evie, e a nossa casa. Não
há partes más.
– E quando eu te ralho? – perguntei. Ela parou de cortar e olhou para
mim, pensativa.
– Mesmo quando me ralhas, é uma parte boa, porque sei que me amas. Se
fosse outra mãe a ralhar-me, então seria mau.
– Realmente seria – disse eu.
Mesmo assim, lembro-me de que a Esther recortou aquele dourado todo e
a agenda ficou pior do que antes. O pequeno maço de tiras brilhantes
também não tinha bom aspeto. Ela chorou e abraçámo-nos. Pensei na minha
mãe e em como a Esther tinha razão: como eu adoraria que ela estivesse
aqui, ainda que só para me ralhar por algum motivo.
– Esta caixa é importante para a mãe – disse eu à Esther. Nesse preciso
momento, a Evie entrou no escritório, de polegar na boca, já todo enrugado.
O cabelo desordenado fazia com que parecesse ter acabado de se levantar de
uma sesta, quando na verdade tinha sempre aquele ar: sonhadora e afetuosa.
Sentei-me no chão e a Evie subiu para o meu colo, cabeça inclinada, e
estendeu a mão para também tocar na caixa. Por um momento, pareceu que
estávamos todos ligados à caixa: a Esther e a Evie a tocar-lhe, eu a tocá-la
por intermédio da Evie, e até o Eddie, ali sentado, de braços cruzados, a
observar-nos como se fôssemos um grupo de gatinhos, se ligava a ela pelo
tapete em que estava pousada, irradiando-lhe pelos pés.
– Porque é que é importante, mãe? – perguntou a Esther. O Eddie
inclinou-se para lhe passar a fotografia.
– Quem achas que é? – disse ele, e a Evie arrastou-se para a frente no meu
colo, o polegar a soltar-se, mas ainda entalado atrás dos dentes. As meninas
olharam-na.
– Sou eu? – perguntou a Evie, de polegar na boca.
A Esther olhou da fotografia para a irmã.
– Parece-se um pouco com a Evie, mas não é o roupão dela. – E era
verdade, a Evie tinha a mesma idade do que eu na fotografia e, tirando o
corte de cabelo diferente, éramos parecidas.
– Sou eu – respondi, inclinando-me para a frente e pegando nela com
cuidado, a pensar que poderiam puxá-la ou sujá-la com saliva. – Consegues
ver onde estou sentada? – disse.
– A caixa! – disse a Esther.
A Evie olhou para a caixa desgastada e cheia de fita.
– É velha – afirmou.
– Ai! Tem a mesma idade que eu, mais ou menos – disse eu, apertando-a
e fingindo-me ofendida.
– Mas é só uma caixa velha sem importância – disse a Evie –, e tu és a
nossa mãe fofa. – Ela aconchegou-se na minha axila e senti uma onda de
alegria pelo calor que me chegava de todas as direções: da Esther e da Evie,
e do Eddie a olhar por nós. Como sempre naqueles momentos, senti um
vazio. Como se existisse dentro de mim um corredor com uma porta numa
ponta; e, quando o resto de mim pensasse que era tudo maravilhoso e
perfeito, a porta abria-se e o ar frio entrava, apressado. Eu lembrar-me-ia
então do que me faltava sempre: a minha querida mãe. Os meus olhos
encheram-se de lágrimas e olhei para o Eddie, que assentia e sorria como se
soubesse o que eu estava a pensar. Mas não sabia, não de tudo.
– Então posso ficar com esta caixa? – perguntou a Esther.
– Não – respondi baixinho. – Preciso disto e nem sei porquê.
A Evie – aproveitando o facto de saber que eu detestava dizer que não –
escolheu o momento certo para pedir algo.
– Mãe, podemos comer pipocas e ver um filme?
– Agora isso é um sim – respondi, e as meninas alegraram-se.
O Eddie voltou a pôr os auscultadores e virou-se para o computador. Fiz
as pipocas e as meninas aconchegaram-se no sofá a ver Mary Poppins. Mais
uma vez.
1
Iniciais de Royal National Institute of Blind People, associação de
caridade britânica de apoio aos invisuais, que poderia confundir-se com a
sigla RNLI, também uma associação de caridade responsável por
salvamento no mar. (N. da T.)
2

E nquanto a família estava ocupada, decidi voltar a guardar a caixa no


sótão, onde estaria a salvo de tesouras e caixotes do lixo. Pus-me em
cima de uma cadeira e abri o alçapão no teto. Este deu um estalido e soltou
um escadote pesado que voou para baixo, como se preocupado que eu
mudasse de ideia, o metal a raspar em metal ao descer, tentando levar-me os
dedos. Subi, com a caixa a baloiçar levemente na mão, enquanto usava a
outra para agarrar os degraus frios. No topo, tateei em busca do cordel e
puxei-o. A lâmpada única emitiu um brilho ténue, iluminando primeiro um
lado do espaço e depois o outro à medida que girava. Perto do tampo do
alçapão havia uma lanterna amarela e grossa. Acendi-a e entrei a rastejar,
arrastando a caixa comigo.
*
O sótão estava quente – o sol do verão batia no telhado – e tinha um
cheiro reconfortante, como uma oficina mecânica; um cheiro que adoro,
fresco e ao mesmo tempo antigo, que me lembrou que o sótão não é uma
parte da vida quotidiana real, mas um lugar para guardar o passado. Coisas
das quais não nos desfazemos, mas que não conservamos na superfície da
vida. Ah, e as decorações de Natal.
Sentei-me de pernas cruzadas, com a caixa à frente, com uma velha
camisola fina e larga – uma das do Eddie – e calças de ganga. A camisola
era enorme, mas eu adorava-a. Estava descalça, mas feliz por ter os braços e
pernas cobertos, caso algo roçasse contra mim. Apanhei o cabelo rebelde
num rabo de cavalo mal-arranjado e apontei o feixe luminoso da lanterna
em volta do espaço escuro. O sótão não era um sítio aonde eu fosse muitas
vezes. Como os lugares escondidos da minha mente, o sótão era uma parte
da casa que tinha relutância em visitar, não fosse dar-se o caso de os
vestígios do passado abrirem dentro de mim algo que teria ficado melhor
fechado. Para mim, o sótão era um desafio, e normalmente deixaria de bom
grado que fosse o Eddie a lidar com ele. Mas não queria confiar a caixa a
mais ninguém, por isso levei-a eu até lá para garantir que ficava em
segurança. E, já que estava lá em cima, também podia olhar em volta. Ao
primeiro sinal de uma aranha, prometi a mim mesma, sairia de lá.
O sótão tornava-se numa série de instantâneos à medida que eu usava a
lanterna para destacar sucessivamente os objetos. Havia montes de caixas
de plástico, com camadas de livros e papéis dentro. E caixas de cartão
castanhas com escritos como «cozinha.» Um par de pequenas caixas de
cartão, atadas com cordão, que diziam «Importante, não deitar fora.»
Havia um recipiente de plástico do McDonald’s, que parecia uma casa,
mas do tamanho de uma bola de futebol. Quando lhe abri o telhado, estava
cheio de berlindes, todos de cores diferentes. Porque guardamos estas
coisas?, pensei. Mas, admito, não queria levá-lo para baixo e deitá-lo fora.
Havia ali uma memória, demasiado difícil de descartar, demasiado fácil de
guardar.
Quando vamos à praia, a Evie e a Esther apanham pedras e entregam-nas
a mim e ao Eddie. Encontrar a pedra mais lisa, perfeitamente redonda, ou
uma parecida com um rosto, um cão ou em forma de coração, tudo isso
transmite a esses pequenos objetos vulgares o estatuto de tesouro. A partir
do momento em que as apanham e admiram, e quanto mais tempo a elas se
apegam, mais difícil é para as meninas deitarem-nas fora. As pedras acabam
nos meus bolsos e nos bolsos do Eddie, e dar-lhe uma mão e esfregar as
pedras entre os dedos da outra é para mim a sensação da praia. Quando
chegamos a casa, os bolsos do casaco de malha estão deformados pelo peso
das pedras. Não sei o que fazer com elas. Não posso deitá-las fora. O Eddie
fica feliz por as pôr no jardim, mas eu sinto que isso também é abandono.
Comecei então a ter jarros de pedras pela casa. Até comprei uns vasos para
as expor. Não consegui deixá-las no sótão, pois seria um insulto às meninas
e aos nossos dias na praia. Mas temos muitas pedras. Acho que um dia
teremos de nos desfazer delas.
Guardamos coisas para nos agarrarmos ao que é importante, mas é uma
ilusão. A minha dor perante a ideia de deitar fora as pedras é a minha dor
por perder aqueles dias com as minhas filhas. A dor de saber que um dia
olharei para trás e elas estarão tão longe, no passado, que me sentirei como
um balão que silenciosamente se desenredou da mão que o segura e se
deixou ir para o céu. Enquanto tiver as pedras, posso convencer-me de que
ainda tenho aqueles dias. O que não posso admitir é que aqueles dias já se
foram. Com pedras ou sem pedras, o passado está igualmente longe de nós,
quer falemos de há dez minutos ou dez anos. Estes objetos não são pontes
para o passado, são pontes para memórias do passado. Mas não são o
passado.
Era isto que sentia antes de ir ao sótão.
Quando saí, tinha mudado de opinião.
A lanterna criou um túnel de luz de mim para o outro lado do sótão e,
mesmo aí, foi como chegar a um lugar e tempo diferentes. Vi a mala
castanha que tinha levado para a Grécia em adolescente. Dentro estavam as
roupas de bebé das meninas, com demasiado valor sentimental para dar.
Mas agora a ideia de conservar roupa parecia coisa de Miss Havisham; teria
sido melhor tê-las dado. A mala tinha um autocolante desgastado do Shaggy
com a T-shirt verde e as calças castanhas, que dizia «Scooby-Doo, onde
estás tu?» O meu namorado, quando fui para a Grécia, era um bocado
hippie. Usava a mesma T-shirt verde e o mesmo corte de cabelo que o
Shaggy, e alisou o autocolante na minha mala, dizendo: «Manda-me
postais. O autocolante serve para te lembrares de que estarei sempre a
imaginar onde estás e o que estás a fazer.» Eu tinha-me esquecido daquilo e
provavelmente teria passado a vida toda sem nunca me lembrar, se não
tivesse voltado a ver a mala.
O túnel de luz incidiu sobre outras coisas que me fizeram sorrir: um
telefone de disco antigo, cor creme e com um auscultador pesado; uma
raquete de ténis com moldura de madeira – devia ser do Eddie; uma bola de
basquetebol que parecia um pouco cinzenta, mas que com uma limpeza
talvez ficasse de novo laranja. Decidi levá-la para o andar de baixo. O Eddie
poderia pôr um cesto nas traseiras. Eu tenho bastante boa pontaria e as
meninas adorariam.
Tenho tão pouco da minha mãe, perdi tanto. Não culpo a Em e o Henry,
mas acho que poderiam ter-me contado mais, deveriam ter falado comigo
sobre ela. Quando me acolheram, já eram velhos e não tinham filhos. Eles
eram bondosos, e tive sorte por poder contar com eles, e mais tarde
adotaram-me. Era como viver com uns avós meigos. A vida às vezes podia
parecer muito apagada, mas eles tratavam-me bem. O que fizeram, suponho,
foi tentar suavizar a dor da morte da minha mãe, nunca a mencionando.
Disseram-me que ela ficou doente – o que eu sabia – e depois morreu, mas
eu não sabia que se podia morrer de tosse e constipação. Hoje em dia,
quando me constipo, preocupo-me tanto que fico mais doente, a perguntar-
me se as minhas filhas crescerão sem mãe, quando só tenho dor de garganta
e febre.
Percebo agora que deve ter sido algo mais sério, mas na altura permiti-me
acreditar que era tão simples quanto isso e não questionei. Talvez tivesse
mais memórias dela, naquele tempo, mas para mim a mãe era como um
conto de fadas; quando cresci, suponho que ela se tenha tornado o que os
contos de fadas se tornam para todos os adultos: uma ilusão, uma história
mágica que parecia dizer uma coisa, mas significava outra. Havia muito
poucas pontes para a minha mãe. Imagino que fosse essa a razão pela qual a
fotografia era tão importante para mim, ainda que ela não aparecesse.
Suspirei. Eu sabia que vir ao sótão me faria pensar, me faria recordar.
Querendo e não querendo lembrar-me ao mesmo tempo. De repente, desejei
estar lá em baixo, de volta ao mundo real, ao presente, ao lugar que eu
compreendia, com as minhas filhas, cujas gargalhadas ouvia vagamente, e o
Eddie, que eu queria beijar outra vez.
Levantei-me e agarrei a caixa, a pensar qual seria o melhor sítio para a
guardar e se a dobraria ou a deixaria como estava. Sendo baixa, poderia ter-
me mantido em pé, mas à medida que avançava curvei-me, por instinto,
pousando com cuidado os pés descalços. Pintaria as unhas dos pés mais
tarde, pensei. Ao abrandar, bati com a cabeça na lâmpada. Houve uma
escuridão instantânea, excetuando a luz da lanterna, e um tinido quando o
vidro caiu à minha volta. Fechei automaticamente os olhos e, quando os
abri, tateei o rosto. Eu estava bem. Apontei a lanterna para o chão. Os
pequenos fragmentos de vidro estavam espalhados por todo o lado, sobre as
ripas de madeira e o isolamento amarelo, em volta dos meus pés. Parecia
certamente mais vidro do que o necessário para uma única lâmpada. Sabia
que, se me mexesse, o pisaria por certo, e imaginei cortes na pele. Pousei a
caixa com cuidado e enfiei-me lá dentro: uma zona segura, uma área sem
vidro.
Abri a boca para gritar pelo Eddie, na esperança de que ele me
conseguisse ouvir mesmo com os auscultadores postos. Mas depois fechei-a
novamente, antes de emitir qualquer som. Estar na caixa deu-me a mais
extraordinária sensação de nostalgia. A fotografia ainda estava no escritório
do Eddie, mas eu conseguia visualizá-la na perfeição: eu em criança, a sorrir
sobre a extremidade da caixa. E, tal como a menina à frente da caixa que
saltava para mim do passado, ali estava eu, a menina do futuro, de volta à
caixa da fotografia. A criancinha que eu fora nunca imaginaria que, um dia,
estaria naquela mesma caixa, já grande de mais para se sentar dentro dela,
depois de crescer sem a mãe amorosa que tanto amara.
E depois senti-me descair um pouco para a direita. A sensação era
desconcertante, como quando nos sentamos numa cadeira e uma perna é um
bocado mais curta do que as outras, e por instantes sentimos o mundo
completamente desfasado. Mas eu estava de pé na caixa e não havia pernas
mais curtas do que outras. Foi então que aconteceu mais uma vez; desta vez,
o lado esquerdo pareceu mover-se um pouco para baixo. Percebi que a caixa
devia estar numa parte pouco resistente do chão do sótão, e eu prestes a cair.
Estaquei, sustive a respiração, fechei os olhos, mas nada disto me poderia
tornar mais leve ou fazer-me levitar. E então, como o Eddie tinha previsto,
pareceu que o fundo da caixa desabara por completo.
Caí rápido. Fiquei de tal modo sem fôlego que não tive hipótese de gritar.
Disparei para baixo como um lenço de seda a ser arrancado de um cabide de
parede. Estava escuro como breu.
Eu sabia que não tinha caído pelo teto; se tivesse, já teria caído ao chão.
As minhas pernas agitavam-se, instintivamente, à procura de algo com que
se ligar. A simples velocidade significava que eu não conseguia manter os
braços junto ao corpo. Estes estavam bem acima da minha cabeça, e a
corrente de ar puxava-me a camisola para cima, por cima do peito. Ficou
presa no queixo, e depois o vento arrancou-a pela cabeça e levou-a.
O ar a correr para cima invadiu-me o nariz e a boca. Era como tentar
inspirar pelo nariz com a cabeça de fora da janela do carro (o que, a
propósito, não recomendo). O estrondo nos ouvidos lembrou-me uma vez
em que estive atrás de uma cascata, intenso, poderoso. Sei que é difícil
acreditar, mas o que é facto é que num momento eu estava dentro de uma
caixa no sótão, e no outro caía a grande velocidade, no escuro, sem mostrar
qualquer sinal de chegar ao chão.
Senti um abrandamento. O ar parecia mais denso e consegui respirar pela
boca. Enquanto a velocidade diminuía, as minhas pernas adquiriram um
movimento de nadador mais gracioso. Eu estava a fazer um crawl frontal,
mas na vertical. Surgiu por baixo de mim um vislumbre de luz.
Lembram-se, na versão da Disney de Alice no País das Maravilhas,
quando a Alice cai pela toca do coelho num ritmo tão descontraído que tem
tempo de olhar para todas as outras coisas na toca? Acho que eram
candeeiros, relógios e cartas de jogar. Eu agora caía assim, devagar, mas
não havia nada para ver. Como um animal numa caverna, senti os olhos
arregalarem-se para fazerem durar qualquer réstia de luz disponível. Por
baixo de mim – muito longe –, um sem-número de luzes coloridas girava
como um caleidoscópio letárgico. Observei as cores enquanto se juntavam,
pareciam mais próximas e mais concentradas, e os pés continuavam a bater.
Por um momento, concluí que devia ter caído pelo chão do sótão, batido
com a cabeça e desmaiado. O Eddie ia encontrar-me e reanimar-me.
Mas, assim que comecei a sentir-me convencida da ideia de que devia
estar inconsciente no mundo real – certamente a única explicação possível
–, dei por mim a debater-me para respirar, como se tivesse vestido um
espartilho que cada vez apertava mais. Tateei o corpo, tentando pôr os
dedos entre a pele e aquilo que me sufocava, mas era impossível, porque
não estava lá nada. Eu não conseguia inspirar nem expirar. «Eddie,
encontra-me depressa, ou vou morrer.» O som de água a jorrar desapareceu
e um outro som, suave e ameaçador, rompeu o silêncio: um baque rítmico,
como cavalos selvagens a correr numa praia. Ou o batimento cardíaco de
um gigante, quando acabou de vos engolir inteiros.
Naquela descida sufocante, enrolei-me em posição fetal, com os pulmões
prestes a explodir. Acelerei novamente – queda livre –, cabelos a voar para
cima. O medo de não respirar substituiu o medo de tudo o resto. Se eu não
respirasse depressa, morreria. Observei as luzes coloridas em baixo
enquanto girava: elas avançavam em direção a mim, e eu fechei outra vez os
olhos, preparando-me para o impacto.
Bati no chão com tanta força que me senti como se parte de mim o tivesse
atravessado. A força da aterragem rasgou-me o espartilho invisível e
respirei de forma ruidosa e desesperada. Continuava em posição fetal. Os
músculos e ossos do lado da mão direita ressentiram-se e engoli sôfrega o
oxigénio.
Consegui virar a cabeça e levantar os olhos do chão. Era de noite, eu tinha
aterrado na caixa de uma bola saltitona – embora esta parecesse mais nova
–, que quase esmaguei, e, a brilhar festivamente por cima da minha cabeça,
estavam as luzes de uma árvore de Natal.
3

D urante uns minutos não me mexi. Inspirar e expirar era doloroso. Pensei
que, talvez, se me limitasse a ficar ali deitada, alguma explicação se
desse a conhecer. Já vi muitos filmes em que o aparentemente inexplicável
era explicado no fim. Esperava que isso acontecesse... agora. Mas não
aconteceu.
Olhei para a árvore e o rosto do Pai Natal – em versão enfeite de vidro –
mexeu-se devagar, perto de mim. A barba parecia merengue batido
reluzente, a pequena boca vermelha franzida cintilava através do bigode, e o
gorro escarlate reluzia com as luzes da árvore. O azevinho em volta do
gorro fez-me hesitar. Eu conhecia aquele rosto – ou melhor – conhecia
aquele enfeite; pendurara-o eu mesma nesta árvore, há cerca de trinta anos.
Olhei para o tapete, liso e cinzento, e tão familiar como o enfeite – mais
ainda. Era o tapete que eu havia sentia debaixo dos pés todos os dias, há
muito tempo. Permaneci ali deitada, certa de estar prestes a descobrir que
tinha morrido e ido para o Céu.
Ou algo ainda mais inacreditável para mim do que isso.
*
Passaram uns minutos, imagino, e depois saí da caixa com cuidado.
Quando me levantei, uma dor disparou-me pela anca como uma bala e
pareceu-me ter o pulso partido, embora não tivesse. Olhei em volta da sala,
girando no lugar como uma bailarina avariada num guarda-joias musical
que começa a sua dança quando se levanta a tampa.
Eu conhecia esta sala. Quando olhei para a árvore, vi o que estava na
fotografia, mas foram as coisas para lá das margens da fotografia que me
chocaram. Demasiado familiar. Como a minha própria cama, ou o meu
casaco ou o cheiro do cabelo das minhas filhas; esta sala era praticamente
uma parte de mim. Quando as pessoas dizem que algo é como regressar a
casa, é esse sentido de pertença forte e poderoso; intensamente normal. E
aqui estava eu. Em casa.
As pessoas falam sobre como será o Céu. Alguns acham que há nuvens e
anjos a tocar harpa, outros acham que é uma cidade dourada banhada pela
luz do sol da tarde. Ouvi algumas pessoas dizerem que seria o lugar que
mais amavam na Terra: uma praia; um campo; atirar um disco voador ao
cão e brincar até ficar enlameado, e voltar para uma cozinha quente, de
onde a mãe e o pai os chamavam para jantar: pãezinhos quentes com
manteiga e canja de galinha.
Quando a minha mãe morreu, o Céu era para mim uma mancha, um foco
suave, mas eu acreditava que ela estava lá; e, se tivesse de o descrever, em
criança, teria dito que era mais parecido com a versão das nuvens e dos
anjos. Mais velha, deixei de acreditar em Deus e no Céu, mas, quando as
pessoas morriam, ainda me reconfortava imaginá-las noutro sítio. Assim,
via-as sentadas num longo balcão, de bebida na mão, e depois, quando
morria outra pessoa conhecida, eu imaginava-a a juntar-se às outras no bar,
a dar gargalhadas, a sorrir, a darem as boas-vindas umas às outras com uma
palmada nas costas. Até imaginava uma pequena televisão na parede
daquele bar, com imagens do que estava a acontecer na Terra. Acho que, se
existe um paraíso, não o podemos escolher. Mas eu estaria morta, de
certeza? Nesse caso, o meu paraíso era a minha antiga sala de estar.
Não tinha imaginado que morrer fosse tão difícil. Imaginava talvez um
acesso de desconforto, depois uma luz brilhante, caminhar em direção a ela,
etc., e depois, nada. Mas a minha passagem para o Céu, se é que tinha sido
isso, fora muito mais difícil.
Enquanto rodava na sala de estar da minha infância, tive de ser franca
comigo mesma. Depressa começava a pensar que poderia não ter morrido,
mas voltado para trás no tempo. Eu sabia que não era possível e, por norma,
quando as pessoas viajam no tempo (estou a falar de livros e filmes), não
costumam magoar-se tanto. Não entram simplesmente num armário e saem
do outro lado? A grande diferença era que isto era real. É claro que não ia
ser como nos livros de histórias e filmes; afinal, não são autobiográficos. A
questão é que, na altura, na sala de estar, eu começava a pensar que não
estava morta. Não me sentia morta. Talvez esperassem que eu me
questionasse se estaria a sonhar, mas tive centenas de sonhos e aquilo não
era um sonho. Testei-o de todas as maneiras cliché, até me belisquei.
Sempre foi difícil para mim acreditar em coisas que não podia ver com os
próprios olhos; sempre fui cética quanto a tudo o que lia nos livros. A não
ficção pode ser tão fantasista para mim como a ficção, quando considero
que esses livros foram escritos por pessoas que somente me contavam algo
que tinham lido ou ouvido algures. Suponho que era por isso que achava
difícil acreditar em Deus e partilhar da fé do Eddie. Se não o vejo, tenho um
problema com a sua existência. Quero dizer, acredito em germes, ainda que
não consiga vê-los a olho nu, porque eles estão lá, pelo menos, para serem
vistos ao microscópio.
Se ao menos, se ao menos, pudesse ver-se Deus ao microscópio.
Havia mais coisas abstratas em que eu acreditava, apesar de não as ver ou
compreender, como a eletricidade e a forma como faz as lâmpadas
acenderem-se, ou a aerodinâmica e como essas forças levantam um avião do
chão. Os resultados físicos dessas coisas eram prova suficiente para mim.
Tudo isso num esforço para explicar que eu sempre, sempre, confiei nos
meus sentidos. Enterrei os dedos dos pés no tapete e toquei nas agulhas da
árvore de Natal. Agitei um dos enfeites e ouvi tocar um pequeno sino
dentro. Lambi os lábios e senti o sabor do sal, e um bocado de sangue;
fechei os olhos e respirei fundo, sentindo o cheiro da minha casa da
infância. Uma coisa que não se pode descrever, mas que é tão nítida como o
padrão do papel de parede.
Nunca antes tinha desconfiado dos sentidos perante tão esmagadora
prova. Se conseguia ver, cheirar, ouvir, sentir e saborear, então tinha de ser
real. Mas agora invertia-se o meu sentido de realidade: a confirmação do
meu ambiente físico dava-me prova de algo que eu sabia que simplesmente
não podia ser verdade. Nunca tinha tido uma prova tão sólida e inequívoca
de alguma coisa ser real e, ao mesmo tempo, não acreditar nela. Não sabia
se tinha fé suficiente para acreditar no que todos os sentidos me gritavam:
que a única verdade possível, por mais impossível que fosse de aceitar, era
que eu tinha viajado para trás no tempo. Era a explicação mais razoável que
me ocorria. Para uma rapariga que pensa que Deus é inverosímil, era
realmente impressionante.
*
Considerei a estranheza da minha situação imediata: era de noite e eu
estava em casa de outros, provavelmente eles estavam a dormir e, se me
encontrassem, iria ser complicado. E quando digo «eles», é claro que estou
a falar da minha mãe. Da minha mãe. O coração parou-me por um
momento, falhou um batimento e, quando recomeçou, bateu com força.
Veria novamente a minha mãe? Estaria ela lá em cima?
A questão de regressar a casa, com a qual me refiro a voltar para o Eddie
e as meninas, não me ocorreu até eu me persuadir de que devia estar no
passado. Não me sinto confortável quando as minhas filhas se afastam de
mim. Só me sinto mesmo à vontade quando estou no mesmo edifício do que
elas. A única exceção é quando sei que estão com o Eddie, porque ele é a
única pessoa no mundo que as ama como eu. E essa, suponho, é a maior fé
que tenho no mundo: quando não vejo as minhas filhas, mas sei que estão
com o Eddie, para mim, isso é fé. Uma versão de medo – para a qual não
tenho termo de comparação – ergueu-se e preencheu-me todas as células do
corpo, um medo como nenhum outro, de que poderia nunca mais ver as
minhas filhas. As vezes em que as tinha perdido de vista, quando dobravam
a esquina no fim de um corredor de supermercado, a vez em que a Evie se
perdeu no centro comercial e a segurança trancou as portas todas, e eu gemi:
E se ela já estiver fora das portas? Tudo o que imaginei, diariamente, de
todas as coisas que era possível correrem mal, que poderiam significar que
elas se perderiam de mim para sempre, todas essas fantasias não eram nada
comparadas com isto.
Desta vez era tudo diferente, porque era eu quem estava perdida. Eles não
conseguiriam encontrar-me e eu não conseguia alcançá-los. Se me tornasse
prisioneira do tempo, então as minhas filhas – como a minha mãe – seriam
relegadas apenas para a memória, e eu seria relegada para a delas. Sufocava
de medo, e depois fui obrigada a lançar-me num nível de fé de que nunca
necessitara. As meninas estavam com o Eddie, mas eu não estava num
prédio diferente, nem num país diferente: estava num ano diferente. O facto
de estar trinta anos afastada das minhas filhas tornava tudo cinzento. O ar
zumbia-me nos ouvidos e o meu braço oscilava, em busca de algo a que se
agarrar.
Acocorei-me e pressionei as mãos no chão. Atingiu-me como um martelo
que, se eu não podia voltar para casa, para as minhas filhas, então eu seria
como uma mãe que morreu de repente, deixando os que mais ama ao
cuidado de outros. Assim, rezei para que o Eddie estivesse a salvo, bem e
forte, porque as meninas precisavam dele. Tentei lembrar-me dos últimos
momentos que passei com eles: no escritório, tinha sido bom. Seria uma boa
memória de mim, para eles. Fechei bem os olhos e imaginei a Esther e a
Evie. Vou voltar para vocês, sussurrei.
Levantei-me devagar, com as mãos nas ancas. Oscilei, mas estava bem.
Cheguei até aqui, disse alto, numa voz trémula, posso voltar para casa. Era
a minha própria hospedeira do ar, a única mulher a bordo que podia
garantir-me que, a certa altura, conseguiria voltar ao lugar onde comecei.
Não confiava muito na sua voz instável, mas que escolha tinha eu?
Senti necessidade de proteger a caixa: era o meu transporte para casa, o
bilhete para ver as minhas filhas novamente – ou eu assim esperava –,
portanto, não era de admirar que tivesse a presença de espírito para a
proteger.
*
Embora estivesse escuro, eu conhecia a casa. Virei à direita, para a
cozinha, e destranquei a porta das traseiras. A corrente de ar gelado
alimentou a convicção de que não estava morta, em coma, nem a sonhar de
maneira nenhuma. Em sutiã, calças de ganga e descalça, depois de perder a
camisola do Eddie na queda para cá, coxeei por um pequeno caminho até ao
barracão do jardim, sabendo que a corda de estender a roupa corria paralela
à minha direita. O ferrolho da porta do barracão sempre fora um pouco
perro e eu sabia precisamente como o soltar. Atirei a caixa da bola saltitona
lá para dentro e fechei outra vez a porta antes de voltar para casa. Não
tranquei a porta da cozinha, para o caso de ter de sair depressa. Mentalizei-
me junto ao lava-louça por um momento antes de fazer o que o meu coração
desejava: subi as escadas, para o quarto da minha mãe.
Junto à porta dela, hesitei. O quarto estava escuro, mas a luz que precedia
a aurora banhava o quarto, tornando-o cinzento, em vez de negro. Eu tinha
algum receio de que ela estivesse acordada, mas também de que não fosse a
minha mãe quem estava na cama, portanto era cem por cento medo, de um
tipo ou de outro. Pela respiração, percebi que estava a dormir. Eu tinha
sustido a respiração e esta saiu como um calafrio, a boca seca, as palmas das
mãos húmidas. Estaria prestes a ver a minha mãe pela primeira vez em
trinta anos, uma mãe que eu, durante todo aquele tempo, só conheci como
estando morta? A esperança lançou-se-me pelas minhas veias, enquanto o
resto do meu ser paralisava. Esperei, rezei, pelo impossível.
Ganhei forças e avancei até ao lado dela da cama, abaixando-me.
O rosto adormecido da minha mãe. Inspirei profundamente. Ela tinha os
lábios um pouco abertos e a sua respiração tocou-me, suave e quente, a
própria essência de viver. Esta é a respiração da minha mãe, lembro-me
dela, pensei. O cabelo castanho-claro varria-lhe a testa. Tinha uma franja
bastante longa e ar de ter sonhado que estava na frente de um navio, no mar,
deixando a brisa fazer-lhe o que queria. Olhei para o milagre das suas
pestanas e para os dedos enrolados sob a face. Inclinei-me para mais perto,
para lhe cheirar a pele, e os meus olhos encheram-se de lágrimas: o seu
creme de rosto, um toque de rosas. Eu tinha sentido exatamente o mesmo
cheiro numa senhora no supermercado, uma vez, e seguira-a durante um
bocado.
O meu rosto estava a um centímetro do da minha mãe. Inclinei a cabeça
um pouco para a frente, o nariz quase a tocar-lhe a pele. Senti as lágrimas
que me caíam pelo canto dos olhos a encontrarem-se sob o meu queixo.
Queria acordá-la. Escapou-me um soluço silencioso. Queria abaná-la e
dizer-lhe: Mãe, estou aqui. Murmurei as palavras, precisando de as dizer em
voz alta. Mas era mais velha do que ela, mais de dez anos, e, apesar da
confusão emocional que sentia ao ajoelhar-me junto à cama, sabia que a
assustaria se ela acordasse agora.
Levantei um pouco as cobertas e senti o calor do corpo adormecido. O
desejo de me arrastar para junto dela, como tantas vezes fizera em criança,
era irresistível. Mas eu não era uma criança. E, no entanto... E, no entanto,
era filha dela. E perdera muitos anos de noites a adormecer com a mão dela
sobre a minha cintura, com ela a adormecer a meio de uma frase, enquanto
me contava uma história para afugentar um sonho mau com um bom.
Ela suspirou e eu pus-me em pé em silêncio, por um momento limitando-
me a observá-la. Agora não era hora para um reencontro. Eu teria de pensar
nalguma maneira de o fazer acontecer. Continuava em calças de ganga e
sutiã, por isso tirei uma camisola e umas meias das gavetas dela, vesti-as e
saí do quarto, relutante em perdê-la de vista.
Fui para o meu quarto, para olhar para mim. E lá estava eu, uma criança
linda. Senti-me mais confiante com o meu eu mais novo do que com a
minha mãe. Sentei-me na beira da cama e afundei-a tanto que o meu eu
adormecido se afastou da parede na minha direção. O movimento tirou-lhe
o pequeno polegar da boca e distingui pequenas marcas de mordidelas na
pele. Afastei-lhe os cabelos do rosto, do meu rosto; um caracol tombou
desobedientemente para a frente. Passei o meu polegar sobre a face perfeita
e sussurrei-lhe ao ouvido: És boa, és generosa, és inteligente, és engraçada,
que é o que sussurro ao ouvido das minhas filhas todas as noites, enquanto
dormem. Não sei porque comecei a fazer isto, embora possam já ter
questionado se é porque o fazia a mim mesma quando tinha seis anos.
Estava a ficar mais claro lá fora e os olhos da criança pestanejaram. Disse
Mamã, com uma voz cheia de sono, e eu beijei-a – beijei-me. Detive-me
brevemente à saída e toquei na lombada dos livros da velha estante, A
Magia da Árvore Longínqua – eu adorava-o –, e depois desci as escadas
sem fazer barulho.
Encostei-me ao balcão da cozinha, o coração a bater com força. A minha
mãe estava viva, lá em cima. Viva. Eu era a criança que dormia lá em cima.
E agora? Saltei um pouco na ponta dos pés, dei uns passos em frente, abanei
a cabeça, dei uns passos para trás – literalmente não sabia que direção
tomar. Expirei de forma brusca, uma respiração longa e estabilizadora. Parei
e pus as mãos no ar, como se a acalmar um público excitável. Eu precisava
de me controlar. Apesar de tudo, tinha de ser razoável, e disse Controla-te
em voz alta. Tinha de pôr o cérebro a funcionar antes que o coração me
catapultasse escadas acima, para os braços da minha mãe.
Embora estivesse frio lá fora, não podia ficar em casa. Portanto, abri
silenciosamente uma gaveta que sabia cheia de sacos de plástico
amarfanhados e tirei um. Cortei umas fatias de pão – reparariam se
desaparecesse uma forma inteira. Fiz tudo devagar e o mais silenciosamente
que consegui. Levei uma faca e um frasco de compota. Havia sempre muita
compota no aparador, e lembrei-me de que isso se devia ao facto de Henry
ter um lote de terreno e fazer muita. Não havia garrafas de plástico para
encher de água. Como tinha a boca seca de pó, bebi diretamente da torneira.
Queria levar alguma água comigo, mas não sabia onde a pôr. Lembrei-me
depois de que a minha mãe limpava e guardava os frascos vazios para
devolver ao Henry, portanto enchi dois, enrosquei as tampas, abanei-os para
garantir que não iam vazar e meti-os no saco com o pão.
Eu precisava de sapatos, e havia dois pares de galochas junto à porta das
traseiras: um pequeno par amarelo (meu) e o preto da minha mãe. Com
certeza notariam a falta das botas, mas de momento a minha necessidade era
maior e a minha mãe tinha outros sapatos. Assim, calcei-as e fui até ao
barracão, para comer, esperar e decidir o que fazer a seguir.
4

E stremeci ao entrar no barracão, e procurei conforto na madeira áspera


sob os dedos, toquei no cartão da caixa danificada e pensei fugidiamente
em como a madeira e o cartão nunca ficam mesmo frios, como o vidro e o
metal. Os barracões não são propriamente confortáveis, mas encontrei uma
almofada onde me sentar. Possuía um cheiro estranhamente reconfortante,
como o sótão. As dores começam a intensificar, mas só me doía da cintura
para cima.
Parti de modo desajeitado um bocado de pão e mergulhei-o na compota.
Tinha o sabor dos velhos tempos, só que na altura eu não gostava dos
pedaços e agora sim. Encostei-me à parede atrás de mim. Tinha a cabeça
num turbilhão: um pensamento perseguia outro, como um gato animado
imbecil a tentar apanhar um bando de ratos inteligentes e muito rápidos.
Tentei compreender onde estava; como e porquê. Desesperada para
organizar os pensamentos, reuni mentalmente o que podia da minha
situação, pondo-o em ordem como a um bolo em camadas. Como uma
versão da hierarquia de necessidades de Maslow. Mas não parecia haver
qualquer lógica, pelo que eu sentia que apenas alcançava o básico da minha
difícil situação. Respirava e mastigava. Estava em segurança, tinha abrigo e
não corria nenhum perigo imediato – pelo menos, que soubesse. Mais do
que isso, não sabia: estava no passado, mas e se estivesse aqui presa?
Queria ver a minha mãe, queria revelar-me a ela e fazê-la perceber quem eu
era. Mas então e o Eddie e as meninas? Eu devia entrar de imediato na caixa
e voltar para casa, mas agora estava aqui e talvez esta fosse a única
oportunidade que eu teria de estar com a minha mãe: a única coisa que
poderia preencher o buraco em forma de mãe no meu coração. Estendi as
mãos à frente, observei-as a tremer, estranhamente ávida para ver prova
física do meu turbilhão interior. Belisquei-me e ri-me; mais um desdenhar
cruel da minha própria previsibilidade. Que cliché. Se tivesse bebido uma
garrafa de álcool, tê-la-ia olhado de maneira acusadora.
Esbofeteei o meu rosto com tanta força que me vieram as lágrimas aos
olhos, e esbofeteei-me mais uma vez, com tanta força quanto pude, fazendo
arder a pele. Nada mudou, continuava no barracão. A minha mãe ao meu
alcance, mas inacessível. Nenhum amigo, nem o Eddie. Ninguém. Estava
completamente sozinha, ainda que a minha querida mãe estivesse naquela
casa. Imaginei-me a correr para dentro, a gritar: Sou eu, sou eu!
Aos poucos, uma luz branca e fria penetrou através das fendas das
paredes do barracão, e com ela chegaram os sons diminutos de vozes
distantes. Olhei para a casa através de uma fenda na porta. Não conseguia
ver muito, mas, depois de vasculhar num balde de ferramentas, encontrei
um raspador, que usei para alargar a fenda. O raspador era uma daquelas
coisas achatadas de metal; lembrei-me da minha mãe a usá-lo para tirar a
tinta velha da mesa da cozinha. Agora via-a pela janela da cozinha com o
roupão azul, o cabelo solto em volta dos ombros, o rádio ligado. Era isso o
que eu ouvia.
Aconcheguei-me na camisola. Era comprida, preta e folgada, uma ajuda
naquela manhã gelada. Mas o verdadeiro calor vinha da janela da cozinha e
da visão da minha mãe. Ela era tão adorável. Tinha o poder de tornar tudo
doce, até este preciso momento. Apoiou-se nos cotovelos, olhou para os
pássaros no jardim e virou-se depois brevemente, pegando no pão. Depois
foi até à porta das traseiras e atirou para fora um punhado de migalhas.
De repente, virou-se por completo e desapareceu de vista, reaparecendo
com a mesma rapidez com a pequena eu nos braços. Eu ria-me, atirava a
cabeça para trás daquela forma um tanto preocupante que parece ter ido
longe de mais. Tinha os olhos fechados e nessa altura abri-os. Usei as duas
mãos para agarrar o rosto da minha mãe e apertar-lhe as bochechas,
beijando-lhe os lábios. Rimo-nos então ambas – a mãe e eu em criança.
Observei do abrigo, desejando ser o meu eu mais novo, sentindo-me
deixada de fora.
Passou-se cerca de uma hora, durante a qual não vi mais nada de mim e
da minha mãe, a não ser a imagem gravada de mim em criança nos seus
braços, que eu passara repetidamente na mente como uma cena de um filme.
Escutei mais sons matinais antiquados, característicos sobretudo pela
ausência de trânsito. Vivíamos numa estrada, uma das principais, creio, mas
calma o suficiente para brincar, em criança, a apanhar a bola ou encostar as
bicicletas à berma, de vez em quando, para esperar, sempre que passava um
carro. E ouvia-se o canto dos pássaros, em abundância, uma tosse distante e
um cão a ladrar. Perguntei-me como poderia aproximar-me da minha mãe,
falar com ela. Não havia uma maneira fácil de me apresentar e passar tempo
com ela. Pensei fingir vender seguros, ou talvez dizer-lhe que ganhara um
prémio, mas essas ideias não eram perfeitas. Eu só tinha uma oportunidade,
porque não podia bater à porta, errar e mais tarde tentar de novo.
Olhei em volta, à procura de algo que pudesse ajudar-me. Vi as coisas
habituais num barracão: um balde de ferramentas, fita adesiva e um martelo;
muitos pregos, parafusos e pedaços de metal não identificáveis, uns frascos
de vidro que costumavam conter compota e alguns lençóis dobrados
salpicados de tinta.
Fiquei muito tempo a olhar para a caixa da bola saltitona. Tinha um
pequeno estrago e pensei em pôr-lhe fita adesiva, para a tornar mais robusta.
E eu sabia que o faria, pois no meu sótão a caixa da bola saltitona tinha um
monte de fita a revesti-la. Só nunca me apercebera do facto de ter sido eu a
pô-la.
De repente, lembrei-me de algo e olhei para o relógio de pulso – mais
uma forma de procurar uma prova da minha realidade. Antes de as crianças
nascerem, durante seis meses passei por um período de insónias e foi uma
tortura: acordada a noite inteira, com um sono irregular entre as cinco e as
seis da manhã, repleto de sonhos estranhos. Um dia, discutia as insónias
com uns colegas de trabalho. Forma geral, eram solidários, depois um deles
disse:
– Provavelmente andas a dormir mais do que pensas.
– Estou acordada a noite toda – respondi.
– Não sabes – disse ele. – Provavelmente é o que parece. Mas aqueles
longos períodos da noite em que pensas estar acordada, é provável que
estejas a dormitar.
Senti-me furiosa com o sabichão livre de insónias.
– Estás a dormir neste momento? – perguntei-lhe. A minha hostilidade era
silenciosa, mas cortante.
– Neste momento? Não, claro que não – respondeu.
– Como é que sabes? – perguntei. – Se eu posso enganar-me quanto ao
facto estar ou não acordada durante a noite, então com certeza que tu podes
enganar-te quanto ao facto de estares acordado agora.
Ele agarrou na sua papelada e foi-se embora, escolhendo sabiamente não
se meter comigo. Afinal, eu não dormia há muito tempo e era provável que
estivesse com um ar perigoso. Mais interessante foi outra colega de
trabalho, que me disse que existia uma maneira infalível de verificar se se
está a sonhar ou não. Contou-me que os números não funcionam nos
sonhos, ficam confusos; então, o que temos de fazer é usar sempre relógio e
olhar para ele uma quantidade ridícula de vezes, quando estamos acordados.
Sempre que olhamos para o relógio, devemos perguntar-nos
conscientemente: os números estão no sítio certo? Depois devemos
responder com clareza sim ou não. Quando se faz isto bastante tempo,
torna-se um hábito que passa para os sonhos. Um dia, olhamos para o
relógio enquanto sonhamos e questionamos se os números estão no sítio
certo; a resposta será não, porque quando se está a dormir nunca estão – e é
aí que sabemos estar a sonhar. É aí que podemos fazer o que quisermos no
sonho. Chama-se sonho lúcido e é muito divertido, já experimentei.
Experimentem, funciona. Garanto.
Quero com isto dizer duas coisas. Um: no barracão, eu sabia que estava
acordada, da mesma maneira que podem ter a certeza de que estão
acordados neste preciso momento. Em segundo lugar, quando olhei para o
relógio, os números estavam todos no sítio certo, embora estivesse parado e
o vidro da frente partido. Portanto, definitivamente, tratava-se de viagens no
tempo ou insanidade. Não havia outra opção.
Mais uma vez, o som de um cão a ladrar a pouca distância fez-me
caminhar mentalmente em direção ao som que produzia. Eu imaginava os
pequenos quadrados de relvado deste jardim, o da minha mãe, até ao da
porta ao lado, e para lá desse todas as cercas pelo meio, baixas o suficiente
para espreitar, se se for um adulto nas pontas dos pés.
Agora a mente levava-me por todos os jardins até à casa de Em e de
Henry, todo o caminho até à outra ponta da rua. O Henry com o rosto como
um cãozinho triste e a querida Em. O casal que me acolheu quando a minha
mãe morreu. No mundo tranquilo que eu habitara com a minha mãe em
criança, poucas pessoas me impressionaram verdadeiramente. Mas a Em e o
Henry sim, tinham-se chegado à frente e cuidado de mim. Claro que agora
devia ir a casa deles, seria capaz de atravessar aquela porta com mais
facilidade do que a da minha mãe. Depois disso, não sabia, mas era um
ponto de partida. Antes de fazer o que quer que fosse, precisava de mais um
vislumbre da mãe. Eu estava com uma sede emocional e ela era o copo de
água. Depois, tinha de sair dali sem ser vista.
*
A porta da cozinha abriu e fechou com estrondo, assustando-me. Arrastei-
me para a frente e comprimi o rosto contra a porta de madeira áspera. A
mãe minha estava a pôr um saco do lixo num caixote de aço reluzente com
uma tampa. Gritou: «Faye, calça os sapatos, vamos sair», e depois parou,
com as mãos nas ancas, a olhar diretamente para o jardim pequeno e
estreito, diretamente para mim, na verdade, e inspirou com profundidade o
ar frio. Fechou os olhos e sorriu. Parecia muito satisfeita, e eu apercebi-me
de que não sabia nada sobre esta mulher, embora a amasse com todo o
coração. Não era parecida comigo, com cabelo castanho liso e olhos
cinzentos. Tinha um ar natural, era esguia e usava um cinto que apertava a
cintura de uma camisola comprida, por cima de uma longa saia que a fazia
parecer ainda mais esguia, e botas de couro castanhas. Vi a pequena eu
aparecer na porta das traseiras, abri-la um pouco e dizer algo à mãe, que se
curvou pela cintura e segurou nas mãos o rosto da Faye. «Claro que podes»,
disse a mãe em resposta à pergunta que não consegui ouvir. Entraram e a
chave girou na fechadura.
Eu sabia que elas iam sair pela porta da frente, por isso desenrosquei-me.
Estava como um dos sacos de plástico amarfanhados do aparador da minha
mãe e era difícil endireitar. Corri com cuidado pelo lado da casa e espreitei
na esquina. Elas estavam mesmo a sair, a minha mãe com um grande saco
castanho por cima do ombro e a pequena eu vestida com um casaco às
riscas azul-claro e verde (como eu amava aquele casaco), e uma camisola
grossa por baixo, a transportar uma raquete de pingue-pongue, na qual fazia
saltar uma bola de borracha vermelha – pequenos saltos, contando-os. A
pequena eu conseguiu uma série de saltos, antes de falhar um. A bola saltou
no chão e lançou-se alto no ar. A mãe apanhou-a e vi o meu eu criança olhar
para ela com alegria, gritando: «Cinco!»
Caminharam alegremente pela rua, a saia longa da mãe a prender-lhe as
pernas e a pequena eu a avançar a diferentes velocidades, às vezes a ficar
para trás, outras a trotar, dependendo do que era preciso para manter a bola
no ar. A minha mãe falava e havia um curioso intervalo de gargalhadas. Eu
tinha-me esquecido de que ela era engraçada. Não me lembrava das nossas
conversas, mas creio que para muitas pessoas é assim. Os meus amigos
lembram-se de algumas frases que os pais lhes disseram quando eram mais
novos, a casual pepita de ouro, e muitas pepitas de críticas, mas nada além
de uma pequena coleção de anedotas já gastas.
Eu seguia-as a uma curta distância. Não creio que fosse óbvio que as
estava a seguir ou algo assim; caminhávamos em direção à cidade, e não
havia nada de suspeito noutra pessoa a caminhar para a cidade. O sol
brilhava e estava frio, mas mais ameno do que se esperaria, uma vez que as
pessoas tinham as árvores de Natal montadas.
Quando me aproximei da casa da Em e do Henry, diminuí a velocidade e
vi a minha mãe e a pequena Faye seguirem em frente. Ardiam-me os olhos
e experimentava aquela sensação de perda que anda a par com os momentos
bonitos – com saber que algo acabou ainda antes de começar. Saber que um
dia todas as coisas boas serão recordadas como fotografias empoeiradas,
velhos filmes aos estalidos e pedras em frascos. Como poderiam estar agora
juntas, quando para mim já tinha acabado, já se fora? Como poderia ficar
aqui a vê-las afastarem-se de mim? Pensei em como a Esther se sentiria
sozinha se me visse a afastar-me dela, quando nem sabia que ela lá estava.
E, a bem da superstição, olhei por cima do ombro para confirmar que ela
não estava lá.
5

E nquanto me concentrava na reluzente porta vermelha de Em e Henry,


fiquei sem fôlego, e com vontade de chorar de alívio perante a ideia de
os ver, pois sabia como estas pessoas tratavam estranhos – e era bem.
Bati e ouvi os sons abafados das vozes, a perguntar um ao outro quem
poderia estar a bater de manhã tão cedo. Depois a corrente e o trinco, uma
diligência de segurança atrás de uma porta que eu poderia ter derrubado
com um forte pontapé.
– Sim? – perguntou a Em. Vi o Henry no corredor atrás dela com um
pedaço de torrada na mão. O conforto dos cheiros da cozinha envolvia-me,
e eu só queria beijar a face macia e empoeirada da Em e entrar, como fizera
um milhão de vezes na vida. Mas, desta vez, ela bloqueava-me e o seu rosto
amigável, apesar de bondoso, mostrava-se prudente.
– Desculpem aparecer tão cedo, mas venho do... hum... Sporting Gazette.
Sei que jogam bowling e estou a escrever um artigo sobre... hum...
divertimentos para adultos na zona. – A Em e o Henry pareciam confusos e
fiquei preocupada por talvez ainda não terem entrado para o bowling. Sei
que jogavam quando fui viver com eles, mas isto seria cerca de dois anos
antes. – Jogam bowling, não jogam? – Desejava ter um bloco de notas que
me ajudasse a representar o meu papel, e fingir verificar pormenores que me
haviam passado. Mas não tinha nada. Como poderia ser convincente sem
papel e caneta?
– Sim, jogamos – disse o Henry. – Em, deixa-a entrar. Que fazes,
deixando-a na entrada? – O Henry limpou as migalhas da boca com as
costas da mão.
– Claro, entre – disse a Em, abrindo bem a porta e pressionando as mãos
contra si, como que para as secar.
A entrada era acolhedora, com um espesso tapete sob os pés. O papel de
parede era muito familiar: listas rosa claro e creme, mas, mais particular, as
paredes estavam despidas. Sempre conheci as paredes cobertas de
fotografias minhas emolduradas, à medida que crescia. Não tinha percebido
que, antes de mim, não havia lá nada.
Sempre pensei neles como velhos. Mas, apesar de estarem na casa dos
cinquenta, pelo menos, agora não me pareciam velhos. Teria pensado neles
como velhos quando me acolheram. Eu teria acabado de fazer oito anos e,
na altura, qualquer pessoa com mais de trinta me parecia velha. Recordava o
rosto da Em como uma maçã enrugada, as faces flácidas do Henry como
almofadas familiares, velhas e desgastadas. Mas, neste momento, os seus
rostos estavam bastante lisos e o Henry tinha muito cabelo. Agora
pareciam-me novos, porque os tinha visto ficar muito, muito idosos. A
única coisa que me parecia antiga neles eram as roupas: o Henry com o
casaco de malha largo com botões e chinelos de couro, a Em com a bata
acolchoada.
Por norma, seria meu hábito simplesmente lançar-me nos braços do
Henry e receber um abraço grande e apertado, pressionar a bochecha contra
o peito dele e respirar o aroma a Brut e outra coisa qualquer, vagamente
fumada. Mas só consegui ficar ali de pé, a sentir-me fraudulenta e perdida.
Em passou ao modo anfitriã e levou-me até à sala de estar, onde a falta de
fotografias me chamou novamente a atenção. Sempre pensei que tinham
muitas, mas claramente não, até eu aparecer. Colados às costas das
poltronas reclináveis estavam naperons de croché, e a familiaridade atraiu-
me para eles. Toquei num ao de leve.
– Chá? – perguntou Em.
– Por favor – respondi, desejando, mais do que alguma vez na minha
vida, uma chávena de chá.
– Sente-se – disse o Henry, e eu assim fiz. Olhando para baixo, junto à
cadeira, vi uma pequena pilha de anuários da Beano, de capa dura, e sorri.
Eram o prazer secreto do Henry, e eu também adorava. Baixei-me e peguei
num.
– A minha favorita é a Minnie, the Minx – disse, abrindo-a.
– Adoro os Bash Street Kids – disse ele, e ambos nos rimos. – Como
arranjou os nossos nomes? Falou com a Susan do centro de bowling?
– Hum, não – disse eu, pensando depressa que, se falassem com Susan,
ficariam a pensar quem diabo seria eu realmente. – Entrei em contacto com
o clube e arranjei alguns nomes e moradas de jogadores. – A Em voltou a
entrar, atarefada, com um jarro de leite e um bule de chá, e deixou-se cair
numa cadeira. Senti-me de facto terrivelmente ciente de não ter nada onde
escrever, nem algo com que o fazer. – Tenho umas perguntas, mas parece-
me que deixei a carteira algures. Talvez no escritório. Não trouxe as minhas
coisas.
– Quer voltar mais tarde? – perguntou Em. – Estamos aqui o dia todo.
– Preciso só do bloco de notas, mas se tiverem papel... Desculpem, não é
nada profissional da minha parte.
– Não se preocupe – disse o Henry, e abriu uma gaveta, entregando-me
algo onde escrever e um lápis. – Pode apoiar-se naquilo – disse ele,
apontando para a Beano.
– Está bem, querida? Parece um pouco agitada e tem uns arranhões. – A
Em olhou para minha testa e tocou na dela, para mostrar onde. Tateei acima
da sobrancelha direita e senti escoriações. Não havia como escondê-las.
Virei a mão e estavam a formar-se nódoas negras no pulso.
– Hoje de manhã dei uma espécie de queda, falhei um passo, caí sobre a
mão e... Não percebi que tinha arranhado tanto a cabeça. – A Em olhou para
o Henry com preocupação no olhar, mas se a preocupação era pela minha
queda ou por me terem deixado entrar em casa, eu não tinha maneira de
saber. Doía-me, mas o principal era manter a estranheza fora da situação.
Queria que a Em e o Henry me mantivessem aqui, queria estar segura no
seu mundo acolhedor que transcendia o tempo e espaço, e até as viagens no
tempo. Eles eram um porto numa tempestade, uma vela na noite quando
todas as outras se apagavam. E aqui estavam eles, sem me conhecer; eu
baloiçava no limite do seu bom acolhimento, precisava que me puxassem
para mais perto.
Com o papel e o lápis para me ancorarem e ocuparem as mãos, decidi
continuar a entrevista, na esperança de os deixar à vontade. Fiz-lhes
perguntas, tirei notas e, de certo modo, fiz tudo isso enquanto observava os
rostos de duas pessoas queridas, mais novas do que eu me conseguia
lembrar. Todos os velhos hábitos e subtilezas eram como pontos que
mantinham a essência deles unida, e era cómico, como se estivesse a ver
alguém fazer uma imitação muito boa de uma pessoa que eu conhecia bem.
E Em, a querida Em, que morrera há dez anos. A maneira como se
preocupava com o Henry, como lhe tocava na mão e terminava cada frase
com um «não foi, Henry?» ou «não é, Henry?», como se ele fosse parte
integrante da verdade dela. As coisas não existiam realmente, a menos que
confirmadas pelo Henry. Eu sabia como ela se sentia, eu mesma ainda me
sentia assim, às vezes; a presença dele era um conforto muito forte e
tranquilizador, tanto agora como naqueles tempos.
O meu pedaço de papel estava cheio de citações e informações sobre
bowling, que eu mal me lembrava de escrever. A Em foi fazer mais chá e eu
perguntei se podia usar a casa de banho. Subi as escadas com pernas de
chumbo, passando a mão sobre o papel de parede despido que só teria de
esperar dois anos para se tornar numa galeria de lembranças minhas, um
mapa do meu desenvolvimento a partir dos oito anos. Apertei o velho trinco
macho e fêmea da porta da casa de banho e sentei-me na tampa fechada da
sanita. A boneca que cobria os rolos de papel higiénico fez-me sorrir e
abanar a cabeça: basicamente a parte de cima do corpo de uma Barbie e um
grande vestido de malha que mantinha o rolo de papel higiénico livre de pó.
Pu-la no meu colo e tentei absorver os factos. O sótão, a caixa, o passado, a
minha mãe, eu e agora a Em e o Henry, beber o chá deles, usar a casa de
banho deles. Estava apenas a fazer coisas normais. Mas não pertencia ali.
Era uma visita a um sítio fechado a visitas. Tinha passado pela porta apenas
para funcionários, não entrar, só passagem. E não fazia parte do pessoal. A
dada altura, alguém me encontraria e... o que faria? Dar-me-ia um chuto
para fora dos anos setenta? Mais uma vez tentei conter os pensamentos,
como um saco cheio de gatinhos. Os pensamentos que sussurravam com
urgência: tens a certeza de que a caixa pode levar-te de volta ao Eddie e às
meninas? Apertei com força o cimo do saco e instiguei os gatinhos a
ficarem quietos.
Fiz chichi, puxei o autoclismo e lavei as mãos – o cheiro do sabão
Imperial Leather fez-me recuar trinta anos, tanto como a caixa da bola
saltitona. Ao abrir a porta da casa de banho, ouvi bater no andar de baixo e
mais uma vez vozes que não conseguia distinguir bem, mas cujos sons eram
de surpresa satisfeita e «entra, entra.»
Desci as escadas devagar e espreitei sobre o corrimão. Arquejei ao ver a
parte de trás do meu casaco, o pequeno, azul e verde, eu em criança e a
parte de trás da cabeça da minha mãe, o cabelo castanho brilhante.
Parei onde estava. A Em animara-se a tagarelar e eu ouvia-a insistir para
que a minha mãe e a pequena Faye comessem e bebessem qualquer coisa.
Quando os segui até à sala de estar, estavam todos confortavelmente
sentados e eu era uma intrusa, uma pessoa a mais naquela sala. Sorri, mas
senti que já não o sabia fazer. Quando olhei para a minha mãe, tive de
desviar o olhar, porque ou era um olhar rápido ou eu seria um veado
apanhado pelos seus faróis.
– Vou andando – disse eu, tentando manter o discurso descontraído.
– Ah, sim, a nossa repórter – disse Em, pondo o peito para fora.
– Fique – disse o Henry, apesar de a Em se eriçar um pouco. Olhei-o nos
olhos e, se viu ou não dor e desespero ali, nunca vou saber. Mas declarou
novamente: – Fique. Teve um dia difícil. – Tocou-me na cabeça com
suavidade, segurando-me depois os braços. – Beba outra chávena de chá.
Pode conhecer as nossas vizinhas encantadoras. – Fez-me sinal para sentar e
depois saiu da sala.
– Como se chama? – perguntou a pequena Faye, sentada de olhos
arregalados, direita e atrevida como uma espécie de Shirley Temple hippie.
– Faye – respondi, a palavra como cola na minha boca, porque percebi
que devia ter pensado em mudá-lo quando estava a meio caminho da minha
sílaba única. Poderia ter sido uma Dorothy.
– Eu também! É esse o meu nome – disse a Faye Júnior a saltar para cima
e para baixo.
Em pegou na pequena Faye pela mão – possessivamente, pensei.
– Queres um destes? – disse Em, indo até à pequena árvore de Natal
prateada, onde estavam pendurados sinos de chocolate embrulhados em
papel de alumínio. A pequena Faye deu um salto, e ela e a Em ficaram
ocupadas por algum tempo.
A minha mãe estendeu a mão na minha direção e as pulseiras
escorregaram-lhe pelo braço, a tilintar.
– Sou a Jeanie – disse ela.
Abri a boca para falar, mas não tinha uma gota de humidade a lubrificar-
me as palavras.
– Faye – disse eu mais uma vez, a palavra ainda tão pegajosa que mal me
saía dos lábios. Vi a minha mão aproximar-se da minha mãe com a mesma
consciência que teria ao estender a mão para tocar numa cerca elétrica. Mas
ela não pareceu reparar.
– Ótimo nome – disse ela, sorrindo e acenando com a cabeça à pequena
eu, no canto, junto à árvore de Natal. – Em que jornal trabalha?
– Oh, no Gazette, é uma espécie de suplemento no jornal grátis –
respondi. A Jeanie franziu um pouco a testa, e felizmente perdeu o interesse
de imediato.
– Só leio romances, poesia e livros de receitas – disse ela com um sorriso
fácil e indiferente. – Nunca jornais.
Em levantou a pequena Faye para a anca e sentou-se numa cadeira,
segurando a criança no colo. Vi-me em criança a inclinar-me para o
conforto do abraço de Em, com uma mão a lamber chocolate dos dedos, a
outra a esfregar distraidamente o tecido da bata da Em entre os dedos
minúsculos. Não me lembro de isto acontecer, e por isso olhei para a
interação entre elas como se fosse uma prova em vídeo num julgamento das
minhas memórias. Sei que não devia esperar lembrar-me de tudo, sei que
não me lembro, e, no entanto, como podia não ter ideia disto, especialmente
quando via o quanto a proximidade significava para Em. Ela amava-me,
mesmo nesta altura, e, dado que não podia ter filhos, eu conseguia perceber
a dádiva que tinha sido para ela.
O Henry distraiu-me do devaneio, regressando com um saco de algodão
que tilintava. Entregou-o à Jeanie.
– Compota – disse ele, quando ela abriu as alças e espreitou para dentro –,
um bocado de pão caseiro, e também tens aí uns scones da Em.
– O que é isto? – perguntou a Jeanie, retirando do saco uma garrafa.
– Creme de menta – disse a Em. – Não precisamos disso, nem sei porque
o temos. Pensei que podias gostar.
– A Em e o Henry dão-nos sempre muitos mimos – disse-me a Jeanie,
levantando uma sobrancelha.
– Nós preocupamo-nos com vocês, querida, só isso – afirmou Em.
– Ficamos muito agradecidas – disse a Jeanie. – Mas não sei como vou
aguentar este creme de menta sozinha.
– Talvez possas usá-lo numa receita, doces de menta ou algo assim.
– Vou fazer bom uso dele, não se preocupe – disse a Jeanie, piscando o
olho na minha direção. Notava-se que sentia uma ligação comigo,
simplesmente porque éramos o par mais próximo – em termos de idade – na
sala. Eu via que ela achava o Henry e a Em velhos, e queria distanciar-se
deles, juntar-se a mim.
– A Faye entrevistou-nos sobre o bowling. Perguntava-nos o que há por
aqui para as pessoas fazerem – disse o Henry.
– Nada é a resposta fácil – disse a Jeanie, olhando para mim de modo
penetrante. – Só podemos ir ao parque ou brincar no jardim. Tem filhos?
– Sim – assenti. As tuas netas, pensei.
– Então sabe que não há nada para fazer. A menos que seja como a Em e
o Henry, mais velhos e sem filhos, caso em que tem o bowling e, que mais,
Henry? Dardos, certo? Se for rica, tem o golfe.
– Jardinagem – disse o Henry.
– Palavras cruzadas – acrescentou a Em.
– Oh, por favor! – exclamou a Jeanie, rindo-se para eles com bonomia. E
eles não levaram a mal.
– Um dia, quando fores da nossa idade, vais gostar destas coisas – disse o
Henry, e sorriu-lhe com indulgência.
– Nunca! – disse ela, esvaziando a chávena. – Desculpem, mas não
podemos mesmo ficar. Só queríamos devolver os frascos – disse a Jeanie,
levantando-se.
A Em parecia desapontada. Mas o Henry pôs-lhe a mão no ombro e foi
dar um abraço à Jeanie.
– Eu também tenho mesmo de ir – disse eu, decidida a permanecer com a
minha mãe. – Obrigada por tudo. – Apertei a mão ao Henry e à Em. –
Avisarei quando sair no jornal – disse, a segurar as anotações no ar.
– Para que lado vai? – perguntou a Jeanie, quando nos aproximávamos do
fim do caminho que saía da porta deles.
Esperei até virarmos todas à esquerda e disse:
– Para o mesmo que vocês.
*
A manhã já ia a meio e o sol estava fraco. Caminhávamos devagar em
direção à casa da Jeanie. A pequena Faye pegara novamente na raquete e na
bola e caminhava, tranquila e sonhadora, uns passos atrás de nós, a tentar
fazer uma série de saltos consecutivos. Conseguia ouvi-la contar, mas
estava com atenção às palavras da minha mãe sobre a Em e o Henry. A
Jeanie balançava languidamente o saco e o peso conferia-lhe um arco longo
e satisfatório enquanto ela caminhava. Quase me perguntei se ela o largaria.
Ouvi um ruído de trânsito à distância e comecei a sentir-me desconfortável
por não ver sempre a pequena Faye. Se fossem as minhas filhas, eu estaria a
segurar-lhes as mãos ou, pelo menos, mantê-las-ia a uma distância que me
permitisse agarrá-las. Assim, dei por mim a virar-me para o meu eu mais
novo muitas vezes, sempre que ouvia um carro.
Quando dobrámos uma esquina, virei-me e recuei, com os olhos fixos na
confusão de caracóis ondulantes do meu eu mais jovem. A pequena bola
vermelha batia na raquete e disparava para cima; os seus olhos estavam nela
e os meus também. Ela falhou e a bola atingiu o passeio e o canto de uma
pequena pedra, o que a fez saltar numa direção inesperada. Era como um
minúsculo meteoro a voar serenamente no espaço, a colidir com outro
meteoro, num estrondo silencioso, e voar em paz numa direção que nunca
considerara. A pequena Faye estendeu-se para a bola, mas esta apenas fez
ricochete na sua mão, lançando-se em mais uma curiosa trajetória, à mercê
do universo. Em direção à estrada.
A menininha – eu pequena – desceu para a rua, descontraída, para seguir
a bola. Mas, naquele momento, ouvi o rugido repentino de um motor e
apareceu na curva um carro, agigantando-se atrás da criança e indo direito a
ela. Soltei um arquejo quando o tempo passou de uma câmara lenta pacífica
para uma velocidade total incrivelmente rápida, ao premir de um interruptor
qualquer. Lancei-me para a frente na direção da criança e atirei-me a ela. O
carro, eu, a criança, por essa ordem, colidimos no cosmos, mas o meu maior
impacto não foi com o carro, que apenas me bateu na anca, mas com a
estrada. Com a criança nos braços, só ouvia os sons do breve chiar dos
travões e os gritos de uma mulher.
Mas, na verdade, eram os gritos de duas mulheres, e uma delas era eu. A
estrada trespassara, com dentes esfomeados, a minha camisola e a carne,
deixando-me uma profunda arranhadela que subia o braço esquerdo, e areia
incrustada no rosto, onde a minha cabeça abrandara a minha derrapagem ao
longo da estrada abrasiva. Além disso, apertava instintiva e poderosamente
a criança de seis anos, um aperto que fazia com um pulso que ainda me doía
muito.
– Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Obrigada, obrigada! – dizia a minha
mãe, enquanto se precipitava para nós e me abria os braços para ver a filha,
fechada no casulo e segura lá dentro, de olhos arregalados, como um
pequeno animal.
– Estás bem, querida? – perguntou a minha mãe.
– Acho que sim – respondi, assumindo que ela estava a falar comigo.
– Ela cheira como tu – disse o meu eu mais novo. Eu sabia que era a
camisola que tinha vestido, que cheirava ao perfume da mãe.
Junto a nós estava um homem, o condutor. A sua sombra moveu-se um
pouco em volta; houve desculpas e cheiro a fumo, e o torcer dum pé a
apagar um cigarro na estrada; à parte isso, não estava particularmente
consciente dele. Não o via, só tinha olhos para a minha mãe. Ele foi-se
embora.
– Salvou-lhe a vida – disse a minha mãe, as palavras como uma rajada de
vento. – E está ferida. – Olhou-me profundamente nos olhos com gratidão e
preocupação. Os dedos varreram-me com delicadeza a testa e a face; eu mal
sentia a dor, quando comparada com a maravilha do seu toque. Quase me
esqueci de como respirar. Ela estendeu a mão para me ajudar a levantar e –
atordoada – deixei-a puxar-me para cima. – Acho melhor vir connosco, a
minha casa deve ser mais perto do que a sua. Não está bem – disse ela,
olhando-me para o rosto, como se tivesse percebido que perdera ali algo que
tentava encontrar.
E enquanto caminhávamos em direção à sua casa, eu sabia que toda a dor
valia a pena; até mais, se necessário. Além disso, posso até ter salvo a
minha própria vida. Não podia ter sido mais fortuito.
6

A sposição
mãos da minha mãe agitavam-se no ar, reviviam a minha posição, a
do carro, analisando todos os e se. A voz falhou-lhe e ela parou,
segurando o rosto da pequena Faye nas mãos. Olhou para mim e nos seus
olhos pairavam todos os poderia-ter-sido.
– Como poderei recompensá-la? – disse ela, quase inaudível.
– Não há necessidade – respondi. Podia ter explicado que o meu ganho
por ter impedido o meu eu mais novo de ser atingido por um automóvel era,
no mínimo, tão grande como o dela. Mas deixei que apenas me titilasse, de
uma forma meio assombrosa.
A minha mãe respirou fundo e sorriu.
– Estamos bem – disse ela, como se estivesse se a garantir a si mesma que
era verdade. Ela tagarelava enquanto caminhávamos e eu escutava, a
absorver-lhe as palavras como um pedaço de pão em molho. O seu tom era
familiar, calmo e excitado ao mesmo tempo, como o de um adulto que conta
a uma criança uma história que promete aventura. Disse-me o que faríamos
quando chegássemos a casa dela: veria os meus ferimentos e faria chá, e
achava que devia preparar-me um banho. – Vai ajudar a fazer sair a areia. –
Olhou de perto para o meu rosto, outra vez, e para o braço, e sorriu. – Verei
isso quando chegarmos a casa. Sou uma boa enfermeira.
– É enfermeira? – perguntei.
– Não de verdade, mas sou uma ótima enfermeira a fingir. Damos uma
vista de olhos a isso e, se for realmente mau, creio que teremos de a levar a
um hospital.
– A mãe não confia em hospitais, diz que nos põem mais doentes. – A
pequena Faye deslizou a mão para a minha e senti algo como um choque
elétrico a atravessar-me. Naquele momento, lembrei-me das histórias em
que não se deve deixar o antigo eu ver o eu atual ou algo acontecerá, algo
mau. Bem, eu teria de descobrir as regras por mim mesma, e esperar não
quebrar nenhuma importante.
– Bem, sim, acho que pode acontecer, ir-se ao hospital com uma coisa e
sair-se com algo ainda pior – disse eu, dirigindo uma expressão assustada e
pateta à pequena Faye. Perguntei-me se as infeções respiratórias da minha
mãe poderiam ter sido tratadas, se ela tivesse ido a um hospital. Ela olhou-
me de lado.
– Isso acontece – disse a Jeanie, em voz baixa, de repente séria.
– O que fazemos? – disse eu, a olhar para a pequena Faye. – Temos o
mesmo nome e vamos ficar baralhadas.
Ela riu-se.
– Posso ser a Faye Um e tu a Faye Dois, já que chegaste depois.
A Jeanie riu-se.
– Bem, tecnicamente, ela chegou primeiro – disse, acenando com a
cabeça na minha direção e piscando-me o olho, como fizera na casa da Em
e do Henry. Eu tinha esquecido as piscadelas da minha mãe, mas eram-me
muito familiares – devo tê-las guardado no frio, na mente. Arquivara
também o hábito que ela tinha de pôr o cabelo para um lado, por cima do
ombro.
– Podemos chamar-te pelo nome do meio – disse a pequena Faye. – Qual
é?
Comecei a dizer «Susannah», sem pensar, mas detive-me mesmo a tempo
e, em vez disso, disse «Sarah». Seria coincidência a mais ter o mesmo nome
do meio.
– Temos as mesmas iniciais! – disse a pequena Faye, num sussurro
respeitoso, como se tivesse encontrado um tesouro.
– Uau! – disse eu, baixando-me em frente à pequena Faye. – Podíamos
ser gémeas!
– Bem, ela é mais parecida consigo do que comigo – disse a Jeanie.
– Queres chamar-me pelo nome do meio, então? – perguntei. – Não me
importo.
– Não, chamo-te Faye, não vamos confundir-nos. E obrigada por me
salvares a vida. Tenho a sensação de que vamos ser amigas. E tu?
– Amigas? Eu e tu? – Fingi estar indecisa por um momento, depois
peguei-lhe na mão outra vez e sorri. – Garanto que sim.
*
– Tenho uma camisola igual a esta! – disse a Jeanie, segurando no ar a
camisola preta rasgada que eu tirara da sua gaveta naquela manhã. – Quer
dizer, suponho que todos tenham. – Estávamos de volta a casa, no quarto da
minha mãe. Eu tinha tirado a roupa e vestido um dos seus roupões. Ela
perguntou-me se eu queria primeiro um chá ou um banho. E eu escolhi o
chá. Mas ela sugeriu que eu tirasse a roupa e vestisse de imediato algo
quente. Eu estava preocupada que ela visse as botas – as botas dela –, por
isso pu-las depressa no fundo do guarda-vestidos; tudo o resto pousei na
cama dela. As minhas calças de ganga estavam rasgadas e completamente
imundas. – Pode vestir alguma roupa minha, depois do banho. Parece-me
que estas estão arruinadas, não acha? – Ela franziu o sobrolho mais uma vez
para a camisola e depois embrulhou-a, pronta para deitar fora.
Acenei com a cabeça e olhei para a minha mãe. Queria lançar-me numa
chuva de questões, perguntar-lhe todas as coisas que gostariam de perguntar
à vossa mãe antes que seja tarde de mais. Mas não queria que ela pensasse
que eu era doida ou intrometida, queria que ela gostasse de mim. E também,
essa normalidade, só estar perto dela, era viciante. Era o luxo de tomar um
privilégio como garantido. Apesar dos acontecimentos que tinham
precedido este momento, eu comprazia-me só por estar perto desta mulher.
Com franqueza, uma mulher que eu não conhecia. Naquele momento, não
parecia importante uma lista de factos sobre ela.
Creio que é assim quando se sai da prisão e se vê um ente querido pela
primeira vez ao fim de vários anos. Sente-se um impulso frenético de
compensar o tempo perdido, o que não é praticável; então, pergunta-se
simplesmente se quer tomar alguma coisa, e como está, como se faria se o
tivéssemos visto no dia anterior. Não se pode permanecer num estado
permanente de excitação, independentemente do quão emocionante ou
profunda é a situação. A certa altura, talvez pouco depois do grandioso
momento, o mundo pode voltar a um estado de razoável normalidade.
Pensei na areia numa garrafa de água transparente, agitada de modo a que
os grãos voem e rodopiem, para depressa se depositarem no fundo, no lugar
onde começaram. Todos voltamos a um equilíbrio, é natural; homeostasia.
Acho que o momento em que deixamos de encontrar um equilíbrio interior
em resposta a acontecimentos extraordinários é o momento em que
enlouquecemos. Mas, por favor, não pensem nem por um instante que a
gravidade, a pura enormidade do que estava a acontecer, me escapou.
E, de qualquer maneira, sabem, eu não desejava necessariamente ver
respondidas todas as grandes questões. Ainda não. Eram as pequenas coisas
que me fascinavam, como quando ela mordiscava o canto do polegar ao
pensar em algo. Como ela gostava de segurar o rosto da Faye quando a Faye
lhe dizia algo. Como por vezes interrompia a Faye enquanto esta falava,
para dizer que a amava. «Mamã», dizia a Faye, «Ouve-me!»
E eu aprendia como a minha mãe tratava um estranho, via-a pelos olhos
de um adulto. E essa experiência era nova para mim.
*
Sentámo-nos à mesa da cozinha. Tracei os contornos de pequenas flores
cor de rosa e rebentos verdes que decoravam a toalha de mesa, com o dedo,
e a minha mãe esfregou-me o rosto com água morna e Dettol numa bola de
algodão. A concentração do seu olhar permitiu-me percorrer-lhe as feições.
Vi as mãos dela a trabalhar e insisti comigo mesma para consagrar tudo à
memória, para poder, de futuro, recordar as meias luas brancas na base das
suas unhas. Observei o seu rosto como se mais tarde me fossem interrogar
sobre ele. A cor dos olhos; o dilatar das narinas quando cheirava; as orelhas
perfeitas, com correntes de prata a balançar; o tom de pêssego da pele; a
sarda, a sudeste do olho esquerdo; os dentes brancos saudáveis e o sorriso
grande e fácil. Ela sorria como se fosse mais fácil sorrir do que ter o rosto
em descanso. Falava enquanto trabalhava, levantando-me a mão para a
examinar mais de perto, o rosto animado. Parecia falar diretamente com a
minha mão, e isso deu-me oportunidade de me limitar a absorvê-la.
Serviu chá.
– Disse que tem filhos?
– Sim. Duas meninas, a Esther e a Evie.
– Meninas boas ou más? – piscou novamente. A minha mãe perguntava
sobre as netas que nunca conheceria.
– A Esther é muito sensata, é como uma professora em casa – disse eu. –
Põe as cadeiras da sala de jantar como se estivéssemos numa pequena sala
de aula; eu e a Evie sentamo-nos nelas e a Esther faz a chamada e faz-nos
perguntas. Até nos vê as unhas, como as professoras antigas, e repreende-
nos. A Evie é muito engraçada. Parece um anjo – continuei. – Mas arrota
como um trabalhador da doca depois de uma cerveja. Gosta de chocar os
idosos, arrotando alto quando eles já disseram que ela é muito querida. É
mais nova do que a Esther, mas esmurra quem ferir os sentimentos da irmã.
A Jeanie mostrou um sorriso aberto.
– Gostava de ter uma irmã – disse ela.
– Tem irmãos? – perguntei, já sabendo a resposta.
– Não – respondeu. – Não tenho ninguém.
– Nenhuma família? Mãe e pai? – Eu sabia que não tinha ninguém, mas
não sabia porquê.
– Ninguém. – Caminhou até ao frigorífico e abriu-o, suspirando como se
o vazio lá de dentro fosse parte do vazio mais amplo da família. Fechou a
porta e encostou-se a ela. A figura esbelta constituía uma imagem
impressionante. A saia fluída e o top folgado nada faziam para lhe esconder
o corpo quase frágil. – Morreram. Há muito tempo.
– Como?
– Eu era muito nova. A minha mãe foi para o hospital com uma doença e
não voltou, morreu. Depois, pelos vistos, o meu pai ficou logo doente e
também morreu.
– Caramba – disse eu.
– Pois. Tenho algumas fotografias antigas, mas com franqueza não
consigo lembrar-me deles. Quando penso nos meus pais, só vejo as
fotografias, não a eles, e quando levei a Faye ao hospital, uma vez, o cheiro.
Oh, Deus, isso lembrou-me deles. E não de uma maneira boa; só me
lembrou perda, confusão.
– Famílias de acolhimento? – perguntei.
– Sim, uma casa atrás da outra. Temos pressa de crescer, quando isso
acontece; temos só de sobreviver tempo suficiente para sair e depois, bem,
sair. Foi isso que fiz. Em todo o caso, Miss Jornalista, e você? Onde estão
os seus pais?
A minha garganta apertou-se para me impedir de dizer algo ridículo.
– Não tenho irmãos nem irmãs. A minha mãe anda por aí. – Lancei-lhe
um olhar significativo. – Não conheço o meu pai.
– Como é a sua mãe?
– Oh, não a conheço muito bem, o que é uma pena. Não a vejo muitas
vezes.
– Bah – exclamou a Jeanie, agitando a mão como que a afastar uma
mosca imaginária e puxando uma cadeira para se sentar à minha frente.
– O que é?
– Não precisa de a conhecer, não se preocupe com isso.
– O que quer dizer? – perguntei.
– As pessoas cometem todas o mesmo erro, e já pensei muito nisto. – Deu
um longo gole no chá e assumiu a postura de uma especialista no banco das
testemunhas, no tribunal. – Não pode conhecer os seus pais – disse. – Por
isso, não deve perder tempo a pensar que é a coisa mais importante. Pode
passar a vida toda a tentar. É uma tremenda perda de tempo! No que diz
respeito aos pais, só três coisas importam. – Ela fez uma pausa dramática e
bebeu mais chá muito devagar.
– Que são...?
Os olhos dela brilharam.
– Ainda bem que pergunta. A primeira coisa mais importante é saber que
os pais nos amam. Alguns pais erram aqui, assumem que os filhos sabem.
Mas temos de ser claros, dizer aos filhos que os amamos, quanto e porquê.
E se fomos a criança e não nos sentirmos amados, podemos esquecer a
maçada de os conhecer. O amor é a base. – Pensei na pequena Faye lá em
cima e os meus olhos dirigiram-se para o teto, onde podíamos ouvi-la a
andar e a brincar no quarto. A Jeanie apontou para cima. – Aquela menina
sabe que a amo; pode não saber mais nada, mas ficará bem comigo.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas num instante e o queixo enrugou-
se-me. Inclinei a cabeça e pus a mão sobre a boca para conter um soluço,
abanando a cabeça para afastar o fluxo de lágrimas, para conter o rio. Mas
tinha-me saltado a rolha do buraco do coração, e com ela veio água salgada
e emoção, como lava quente e a derramar-se pelo rosto, um gemido de dor
como um bramido silencioso que emergia de um lugar profundo, por trás de
uma porta fechada no peito.
– Oh, coitadinha, anda cá – disse a Jeanie, dando a volta à mesa e
abraçando-me. Era um abraço estranho, de lado, e não lhe bastava. Arrastou
a cadeira comigo nela e pôs os braços à minha volta. Afastou-se para me ver
o rosto e secou-me as lágrimas com os polegares. Mas eram demasiadas.
Abraçou-me novamente, e eu deixei-me cair nos seus braços. Encontrei um
ponto em que encaixava perfeitamente, eu no abraço da minha mãe, o meu
rosto húmido na curva do seu pescoço.
– Desculpa – disse eu, com a voz nasalada junto aos cabelos dela, que
estava a molhar.
– Não faz mal – disse ela, e apertou-me com mais força para provar que
não se importava que uma estranha lhe chorasse pelo corpo todo, lhe
enchesse de ranho a camisa de cornucópias. Depois de algum tempo,
afastou-se, mantendo um aperto tranquilizador nos meus ombros. – É por
causa da tua mãe? – disse. Assenti. – Queres parar de falar sobre isso? –
perguntou, quase um sussurro.
– Não – respondi, meio abrutalhada. – Quero saber qual é a segunda coisa
importante com os pais.
A minha mãe voltou ao lugar e deu-me a mão sobre a mesa.
– Depois do amor, a segunda coisa que importa é só estar com eles.
Tempo. Simples. Amor e depois tempo.
– Algumas pessoas não podem fazer isso, não têm oportunidade de passar
tempo com os pais – disse eu, entre fungadelas.
– Eu sei – disse ela. – Eu não tive. E não sei se os meus pais me amavam.
Assumo que sim, mas dói-me não saber ao certo.
– Tempo e amor – disse eu.
– Sim, mas não por essa ordem. Amor primeiro, depois tempo. Não faz
sentido passarem tempo juntos se não estiver lá o amor. Se tens apenas uma
dessas coisas, o amor é o rei. E é isso, é a isso que tudo realmente se
resume, o resto é consequência do amor e tempo, como a proteção,
segurança e todas essas coisas. É tudo importante, mas são derivações.
– Disseste que eram três coisas.
Ela afastou novamente a mosca imaginária.
– Oh, isso – disse. – Bem, a terceira coisa é conhecer os pais enquanto
pessoas.
– Disseste que é uma perda de tempo.
– Eu sei, mas a compulsão para o fazer é tão forte que não se consegue
ignorar.
– Isso é uma questão difícil – disse eu, e rimo-nos.
– Só podes conhecer os teus pais como pais, não podes conhecê-los como
mais nada. Há uma barreira no que toca a conhecer os pais para lá desse
papel.
– E se souberes que são teus pais, mas eles não souberem?
Ela franziu a testa e encheu as bochechas de ar, pareceu pensar e depois
exalou.
– Em que mundo? – perguntou.
– Hipoteticamente, apenas – respondi. – Digamos que conheces a tua mãe
e sabes que é a tua mãe, mas ela não sabe que és a filha dela. Podes então
conhecê-la como pessoa?
– Não – disse a Jeanie sem hesitar.
– Porque...
– Porque a filha saberá que é a filha. Só pode vivenciar a mãe enquanto
mãe, não como outra coisa. A questão maternal é muito forte, é um muro
impenetrável de incognoscibilidade. Podes conhecer algumas coisas, mas
não podes conhecê-las para lá de as conhecer como progenitor, que é um
tipo diferente de conhecimento. Uma espécie de não conhecimento.
Percebes?
– Sim, acho que sim.
– Pesado – disse ela, pondo muita ênfase em todas as sílabas e soando
como uma hippie drogada.
– Sim, mas não faz mal – respondi –, eu aguento o peso.
A Jeanie pegou-me nas mãos e apertou-as.
– Estás bem? – perguntou.
– Sim – disse eu, e naquele momento penso mesmo que estava.
– Olha, nenhuma de nós tem irmãs. Queres adotar?
– Hein? – perguntei.
– Adotarmo-nos uma à outra. – respondeu. – Queres ser a minha amiga-
irmã?
– Bem, sim, mas... Acabámos de nos conhecer – disse eu.
– Já sei coisas sobre ti que poderia levar anos a saber. E sei que tens bom
coração. Além disso, atiraste-te para a frente de um carro pela minha filha.
Senti o rosto a aquecer e o coração acelerado. Pensei na Cassie e na Clem,
em como as considerava irmãs, como era importante esse vínculo, e em
como talvez – para a minha mãe –fosse esse o tipo de aliada de que
necessitava. Na verdade, não importava o que a Cassie e a Clem pensavam,
se bem que eu tinha a certeza de que elas gostariam da minha mãe se nos
vissem juntas agora, e concordariam que ela precisava de uma irmã.
– Irmãs – disse eu. A Jeanie soltou-me as mãos momentaneamente,
cuspiu na palma da mão e depois voltou a agarrar-me a mão, dando um
forte aperto. No andar de cima, ouvi de novo a pequena Faye. – Ela parece
ser uma criança agradável – disse eu, ansiosa por descobrir o que a minha
mãe diria sobre mim em criança. Estava fascinada e procurava elogios, não
o nego.
A Jeanie suspirou e apoiou o queixo nas mãos, olhando melancolicamente
para o vazio.
– Eu não poderia pedir uma filha melhor. Por vezes sinto que sou eu e ela
contra o resto do mundo. E sinto que estamos a ganhar! Amo-a tanto, quero
consumi-la. Quero ser ela, para sentir como é ser tão amada – e segurou os
punhos junto ao coração.
Olhei para a minha mãe, sustive a respiração enquanto ela disse aquelas
palavras, senti uma lágrima a deslizar e descer-me pela face. A Jeanie
pousou a mão sobre a minha.
– Hoje sofreste um grande choque, em parte por causa do carro, e antes
disso também caíste, não foi o que disseste? Depois, eu desenterrei o teu
passado – declarou. Bateu palmas uma vez, mudando o rumo da conversa. –
Bem, se queremos ser irmãs, temos de nos atualizar, porque podemos
descobrir mais uma sobre a outra. Vamos fazer o jogo das perguntas, está
bem?
Limpei o nariz com as costas da mão e assenti. A Jeanie puxou da manga
um lenço limpo e quente e entregou-mo.
A comida preferida da Jeanie é pudim de tâmara; cor preferida: azul;
atividades preferidas: ir à beira-mar, jogar máquinas, remar e comer fish
and chips; romance preferido: Rebecca; se tivesse muito dinheiro, levaria a
Faye a passar férias a Espanha e compraria uma boa televisão; por vezes
sente-se sozinha; sente falta de ter um homem por perto; pior trabalho
doméstico: aspirar; coisas preferidas para fazer com a Faye: bolos e
biscoitos, jogar cartas e hula hoop. A sua matéria preferida na escola era
arte; tem medo de aranhas e alturas; tem uma infeção pulmonar todos os
anos; não tem família, tirando a Faye; gosta de gim, mas não de vodca; sabe
de cor o poema The Owl and the Pussycat; sabe curar soluços; uma vez
roubou um par de sapatos e deixou os velhos na loja; se pudesse passar um
dia com a mãe outra vez, passá-lo-ia a conversar, de mãos dadas; espera que
um dia a filha tenha um casamento feliz e seja abençoada com filhos; a
coisa mais difícil que já fez foi afastar-se do amor da sua vida.
– Espera aí, o quê? – disse eu.
– Por agora, acabaram-se as perguntas. – Abanou o dedo. – É a minha
vez. Fizeste vinte perguntas. Terás de esperar se quiseres saber mais. – A
Jeanie baixou a voz. – Não posso falar sobre isso em frente à Faye, ela não
sabe nada sobre ele.
Naquele momento, a Faye entrou na sala e bateu com um baralho de
cartas na mesa. Reconheci a imagem dos animais à frente: Happy Families.
Adoro esse jogo, as ilustrações das famílias que surgem nas cartas
permanecem nas raízes da minha infância.
– Vamos jogar? – disse ela.
A Jeanie olhou para mim, de sobrancelhas levantadas, e disse:
– Porque não?
Descobrir quais as vinte perguntas que a minha mãe me faria e perguntar-
lhe mais sobre o «amor da sua vida» teria de esperar.
Na verdade, teria de esperar bastante tempo. Jogámos algumas partidas de
Happy Families. Sempre gostei mais da família Coelho e da família
Esquilo; são tão bonitos. A minha mãe, pelos vistos, tinha um fraquinho
pelas famílias Rã e Ouriço-Cacheiro, porque parecia que mais ninguém
gostava delas e, portanto, segundo ela, precisavam de mais amor. Não me
lembro de quem ganhou mais jogos ou de quantas vezes jogámos, mas
ainda vejo o meu rosto jovem a rir e a gritar, o desapontamento fingido e as
acusações de «batota» quando alguém ganhava vezes de mais. Lembro-me
de dar conta da maneira como brincava com o cabelo e pressionava a narina
com o dedo enquanto pensava, da mesma maneira que a pequena Faye.
Lembro-me de me sentir presa a um momento no tempo que existia
independente de qualquer outro, como uma bolha no espaço. Lembro-me de
observar a minha mãe a sorrir, a rir, viva, do amor preso na minha garganta.
O dia escureceu e a Jeanie acendeu a luz da cozinha.
– Tens de ir para casa? – disse ela. – O teu marido vai ficar preocupado?
– Ainda não – respondi. – Mas vai preocupar-se em breve. É melhor
pensar em ir embora. – Eu não sabia o que aconteceria a seguir, ou mesmo
se conseguiria regressar a casa. De repente tinha as mãos húmidas só de
pensar no que poderia ou não acontecer quando voltasse a entrar na caixa da
bola saltitona. E se deixasse a minha mãe agora, vê-la-ia outra vez? E se
fosse a última vez? Outra vez.
Ansiava abraçá-la com o luxo de ter a certeza de que a veria em breve, ou
que falaríamos ao telefone. Ansiava por ter um telefone que atravessasse o
espaço e o tempo entre nós. Em vez disso, abraçá-la-ia agora, sabendo que
poderia ser a minha última oportunidade. Era pior do que não saber e, no
entanto, havia esperança. Afastei-me da mesa; ela também se levantou e
abriu os braços.
– Quem sabe como este dia teria terminado se não fosses tu – disse ela
com ternura enquanto me abraçava. E não me largava. – Sou abençoada por
teres entrado na nossa vida, e tenho um bom pressentimento quanto a ti,
Faye. És uma alma-gémea. – Eu não disse nada, com o rosto no cabelo dela.
– Vens ver-nos em breve?
– Sim. – disse eu, lembrando-me de ter lido algures que uma promessa
que talvez não pudesse cumprir era melhor do que nenhuma promessa.
– Chegas bem a casa?
– Vai correr tudo bem – disse eu. Depois olhei para os meus pés.
– Onde estão os teus sapatos?
– Não sei – disse eu, fingindo olhar em volta à procura deles. A Jeanie
trouxe-me o seu par de botas castanhas pelo meio da perna e eu calcei-as. –
Eu devolvo-as – afirmei.
Dei um abraço à pequena Faye e, depois de agradecer as roupas, a
sanduíche e o chá, saí. A memória de sair daquela casa em criança, de bater
à porta da Em e do Henry e de nunca mais ver a minha mãe, repetia-se na
minha cabeça enquanto dava um passo e depois outro para longe dos seus
braços. Olhei para os pés calçados com as botas dela e senti que seguia com
passos que nenhuma filha deveria ter de dar mais de uma vez na vida.
Deixar para trás uma mãe que amava, talvez para sempre. E as lágrimas
correram-me pelo rosto.
7

S entia-me angustiada por entrar outra vez na caixa. E se não conseguisse


chegar a casa? Precisava desesperadamente de ver as meninas. Estaria o
Eddie a pensar onde eu andaria? Eu perguntava-me se teria desaparecido do
dia presente enquanto ali estava ou se estaria deitada no sótão, inconsciente.
Mas isso significaria que eu estava em coma. Questionei quanto tempo teria
passado, se seria o mesmo ou uma quantidade diferente. Se fosse o mesmo,
então não sabia como ia explicar a minha ausência. O Eddie já teria
chamado a polícia, por esta altura. Quando as crianças de O Leão, a Bruxa e
o Guarda-Roupa desaparecem, vivem a vida toda em Nárnia e depois
regressam a casa, em Inglaterra, como se o tempo não tivesse passado.
Comecei a considerar todo o tipo de possibilidades terríveis, tal como
chegar a casa e encontrar o Eddie idoso, contando-me sobre as nossas filhas
adultas e as vidas que eu perdera.
Pensei em tudo isto, sentada num muro baixo por trás de uma sebe, à
espera da proteção da escuridão total. Mas a pergunta vital imediata era
apenas esta: a caixa da bola saltitona levar-me-ia para casa? Eu só
conseguia lidar com um enigma filosófico colossal de cada vez e, naquele
momento, apesar da agitação no estômago provocada por deixar para trás a
minha mãe, fiquei ainda mais agoniada só de pensar que poderia não
regressar a casa. O que faria eu se me metesse naquela caixa e não
acontecesse nada? Talvez ela me levasse a um lugar completamente
diferente, a um mundo algures entre os dois únicos mundos que eu
conhecia.
Perguntei-me quanto iria doer.
*
Quando na rua todos fecharam as cortinas, desloquei-me de volta ao
barracão da minha mãe. Tateei em busca da porta e destranquei-a, mas não
via o que estava a fazer e derrubei com um pontapé o balde de ferramentas e
pregos no escuro, antes de procurar às apalpadelas, com cuidado, as paredes
da caixa. Não a queria pisar e danificá-la mais.
Meti-me na caixa. Esperei. Não aconteceu nada.
– Por favor, meu Deus, faz com que isto funcione. Por favor, leva-me
para casa, por favor, por favor, por favor, leva-me para casa – sussurrei.
Não sei se as palavras tiveram algum efeito, mas, ao dizer casa, pareceu
que alguém me agarrou o pé esquerdo e me puxou para baixo. O fundo da
caixa – o chão –, bem, foi como se não existisse. Depois daquele primeiro
puxão desconfortável, o resto de mim infiltrou-se sem problemas.
Ao passar pela caixa, senti pressão no tornozelo, como se estivesse a ser
agarrado e eu rodopiasse muitas vezes no que parecia um plano horizontal.
Como uma volta na feira popular, a princípio consegui lidar com a
sensação (se não com o medo real), mas tornava-se cada vez mais intenso,
mais rápido. Creio que gritei: Para!, mas não tenho a certeza. Não me
parece que os meus lábios conseguissem mexer-se. Mas estava sem dúvida
a pensar Para! Só sei que a volta continuou por mais tempo do que eu
desejaria. Eu queria sair.
E de repente tudo parou, mas não houve um abrandar gradual, nada de
regressar devagar ao ambiente a que estava habituada. Não. O que quer –
quem quer – que estivesse a agarrar-me o tornozelo, soltou-o e comecei a
girar no espaço. Estava escuro, o ar, frio, e continuei a girar enquanto me
movia através do nada. Acabara de me questionar se seria isto – se a minha
vida seria passada a girar no espaço, entre o passado e o presente – quando
«aterrei». Não um aterrar elegante; não o que se desejaria se se estivesse a
fazer ginástica. O movimento giratório foi interrompido quando o meu
corpo encontrou a parede do sótão.
Eu estava mais ou menos na caixa, embora a tivesse esmagado e partido
outra vez um lado. E encontrava-me num monte confuso, comprimida
contra o limite do sótão, com dores, como se tivesse sido atirada contra uma
parede.
Fui invadida por uma sensação de alívio quando ouvi a voz do Eddie
vinda de baixo. Detetei preocupação quando disse «Está aí alguém?» pelo
alçapão. Na altura, não sabia qual era a preocupação dele, porque não sabia
quanto tempo se passara no seu mundo durante a minha visita à minha mãe.
Se não tivesse passado tempo nenhum, imagino que o Eddie teria ouvido
um ruído alto, retirado os auscultadores, reparado que o escadote do sótão
estava para baixo e questionado o que eu estaria a fazer lá em cima.
Mas, ao que parecia, o tempo passara e ele estava preocupado com o meu
paradeiro. Eu passara cerca de onze horas com a minha mãe no passado.
Mas a hora de chegada a casa, de volta ao Eddie, ao que parecia, ocorreu
três horas depois de eu ter partido. Tempo suficiente para o intrigar, disse-
me ele, mas não o suficiente para chamar a polícia. Pelos vistos, o Eddie
ficara no computador mais duas horas, mas quando o Mary Poppins acabou,
as meninas vieram ter com ele, subindo-lhe para o colo e cantando «Let’s
Go Fly a Kite». Ele decidiu parar de estudar e só então percebeu que eu não
estava lá. Embora o Eddie fosse capaz de fazer o jantar, normalmente sou
eu a fazê-lo, e a hora da refeição aproximava-se e eu não dissera nada sobre
sair. Ele procurou um bilhete no frigorífico, disse-me, depois ligou-me para
o telemóvel (que vibrou no balcão da cozinha) e, de seguida, pôs uns
douradinhos de peixe no forno e jogou às escondidas, um jogo rápido, com
as meninas.
Contou-me que depois parou com surpresa e alívio no patamar, onde viu a
escada do sótão descida e subiu para ver o que eu estava a fazer lá em cima;
mas estava vazio, e então ficou confuso, disse, dececionado por eu não estar
lá, mas não demasiado preocupado. O que o confundiu ainda mais foi
avistar os meus chinelos junto à porta da frente, que eu calço quase sempre
se for sair por pouco tempo.
Portanto, o Eddie não estava muito ansioso, mas dera a si mesmo um
prazo para a preocupação, e planeara começar a ligar aos meus amigos se às
sete da tarde eu ainda não tivesse voltado. Quando o Eddie ouviu a pancada
no sótão, estava tenso, porque já lá espreitara e sabia que estava vazio.
Assim, a preocupação na voz resultava de um ligeiro receio do
desconhecido.
– Está aí alguém? – chamou ele. A sua voz entrou no sótão como um eco
do passado.
– Eddie, sou eu. – A voz estava seca, mas o meu alívio igualava a dor.
Estava em casa. Casa-casa. De facto, esqueçam o que acabei de dizer, o
alívio superava em muito a dor física. Ia voltar a ver as minhas filhas.
O Eddie subiu o escadote e vi aparecer a cabeça. Via claramente a sua
expressão cerrada, mas os olhos dele não se haviam adaptado ao escuro e
franziu-os na minha direção.
– Faye, és tu?
– Claro.
– O que estás a fazer aqui em cima? Onde estiveste? Desce.
– Não me consigo mexer. – A minha voz soava como lixa, a garganta
arranhada de gritar enquanto girava pelo espaço. Sentia-me completamente
exausta e não queria mexer-me. Teria dormido mesmo ali. – Podes pôr as
meninas na cama e depois vir-me buscar? Eu espero aqui.
– Não. O que está a acontecer? Desce.
Tentei mover-me, mas estava incrivelmente lenta. Pensei que tinha farpas
na testa, onde derrapara na parede do sótão. A minha cabeça parecia ter
levado uma sova. Demorei tanto tempo a mexer-me que o Eddie veio
buscar-me.
– Partiste alguma coisa? – disse, acocorando-se à minha frente, usando a
luz do telemóvel para me iluminar.
– A lâmpada – respondi.
– Não, estou a perguntar se te magoaste.
– Algumas pisaduras, uns arranhões. Acho que estou bem.
– Como vamos fazer isto? – disse ele, debatendo-se para pôr os braços em
volta da minha cintura no espaço apertado. Pegou em mim, de modo que
fiquei sentada na beira do alçapão, e depois encorajou-me a descer um
pouco o escadote antes de me transportar como a um bebé para o quarto.
– Que diabo fizeste? – perguntou.
*
Quando me deitei na cama, o dia presente pareceu-me mais brilhante e
colorido do que o passado, e mais fresco, menos desordenado. Mas,
pensando bem, os anos setenta sempre haviam estado um pouco
desalinhados na minha memória. Ainda havia luz lá fora. Aqui estávamos
no fim de julho e as noites eram longas. Ouvia as meninas a rirem-se e o
Eddie olhou pela janela.
– Elas estão no jardim de pijama – disse ele.
– Adoro isso.
– Eu também.
– Não quero que elas me vejam – disse eu, tocando na testa. Sangrava.
– Parece que foste arrastada por um espinheiro – disse ele. – Não entendo,
procurei no sótão e não estavas lá, não estavas em casa. Depois ouve-se um
estrondo enorme e lá estás tu no sótão.
Não falei, porque não podia dizer nada que fizesse sentido. Viajei para
trás no tempo e a viagem foi turbulenta. Poderia ter dito isto?
– Onde estiveste? Saíste, magoaste-te e meteste-te no sótão? Quer dizer,
como é que entraste no sótão, se mal conseguiste sair? Essas botas são tuas?
Encontraste-as lá? – Abri a boca para falar e fechei-a novamente. – O que se
passa? – Percebia a irritação na voz dele. – Diz-me.
As lágrimas escaparam-se-me dos olhos e virei a cabeça, para que a
almofada as absorvesse. Olhei para o Eddie, que se ajoelhou junto à cama.
– Não fiz nada de mal – disse eu. O que era a verdade. Então menti. –
Subi para pôr a caixa num lugar seguro, bati com a cabeça e devo ter caído,
ficado inconsciente.
O Eddie pôs-se a olhar para mim.
– E o que foi aquele barulho todo que ouvi? – Encolhi os ombros. –
Fizeste mais do que bater com a cabeça. Estás um desastre. – Ele olhou para
mim da mesma forma que olha para as meninas quando elas dizem que não
beberam leite com chocolate, mas têm uma linha acastanhada no lábio
superior. Puxou-me para os braços. – Tu contas-me sempre tudo – disse,
junto ao meu cabelo.
*
Fazem uma coisa por mim? Da próxima vez que estiverem a sós com uma
pessoa cuja opinião respeitam, ou alguém que amam e com quem se
preocupam, quero que lhe digam que viajaram no tempo, ao passado, que se
encontraram com um ente querido falecido daquela altura, e conheceram o
vosso eu mais novo.
Quero que lhe contem que, enquanto lá estavam, foram atropelados por
um carro, jogaram cartas, comeram sanduíches, beberam chá e depois
voltaram para casa por meio de uma caixa. Façam isto por mim e não
gozem; digam-lhe que estão a falar a sério. Estarão em vantagem, porque
não vos aconteceu realmente e não precisarão que acreditem em vocês; não
ficarão desesperados por partilhar a vossa realidade inacreditável, porque
não será verdade. Mas, se fosse verdade, pensem em como eles reagiriam.
Imagino que, na melhor das hipóteses, eles se ririam. E na pior?
Como seria, na pior das hipóteses, se vocês continuassem a insistir que
era verdade? Em breve, creio, veriam menos vezes essa pessoa, ela olhar-
vos-ia de lado, sussurraria sobre vocês a outros e evitar-vos-ia.
Como podia eu dizer ao Eddie? Se lhe contasse o que realmente
acontecera, ele pensaria que eu estava a inventar uma história disparatada
para não revelar uma verdade horrível qualquer. Ou pensaria que perdi o
juízo.
E depois havia a possibilidade de ele poder acreditar em mim, apenas uma
possibilidade. Afinal, ele acredita em Deus, e isso requer fé. Ele podia ter fé
em mim. E, se acreditasse em mim, quereria proteger-me; não quereria que
eu me ferisse, acabando perdida sabe-se lá onde nos espaços escuros entre
cá e lá. Penso que ele destruiria a caixa, para minha própria segurança, e
não posso deixar que isso aconteça. Porque, estando de novo segura em
casa, só conseguia pensar na minha viagem de regresso para ver a minha
mãe.
Por isso, a verdade não era uma boa opção.
Quem queria eu enganar? Ele nunca acreditaria em mim.
*
O Eddie estava zangado comigo. Leu para as crianças e aconchegou-as na
cama. Entretanto, eu mantinha uma distância segura, evitando as perguntas
e olhares desconfiados. Meti-me na cama e fiquei lá deitada, a olhar para as
botas da minha mãe, pousadas junto à parede, e deixei-me adormecer com
os sons da família a descontrair antes da hora de dormir.
Pareceu-me terem passado apenas alguns segundos quando acordei com o
Eddie a afastar-me uma madeixa de cabelo do rosto. Lá fora estava escuro.
Havia um candeeiro aceso e ele olhava-me.
– A minha fotografia ainda está no teu escritório? – perguntei, sentindo-
me desconfortável por ela não estar na minha carteira, mas exposta e livre
para pegarem nela e mudarem-na de sítio.
– Acho que sim – disse ele, sem se mexer.
– Podes ir buscá-la? – perguntei. Mas ele limitou-se a olhar para mim. –
Por favor. – Ele suspirou ao levantar-se e, quando regressou, quase lha
arranquei das mãos e pus-me a olhar para ela. Tinha a árvore, a caixa nas
melhores condições em que alguma vez estaria. Eu estivera ali, na
fotografia, ainda agora. Abanei a cabeça, com os pensamentos a girar lá
dentro como um saco de berlindes que haviam caído e faziam ricochete uns
nos outros, a rolar numa direção, batendo depois em algo e disparando
noutra. Quando olhamos para uma fotografia que recordamos ter sido tirada,
lembramos os momentos em volta dela, a discussão que rompeu assim que
foi possível abandonar os sorrisos; a dispersão das pessoas do grupo para o
bar, o jardim ou o quarto; ou o momento logo a seguir à fotografia ser tirada
– aquele momento em que todos relaxam, se riem de verdade e surgem no
seu melhor, mas a câmara já clicou e capturou o momento menor: o
anterior. Mas a imagem de uma criança verdadeiramente feliz é diferente.
Bati ao de leve na fotografia, não como se o meu rosto genuíno e sorridente
estivesse aprisionado no tempo e no papel, mas como se o meu eu mais
novo estivesse do outro lado de uma vidraça, acessível e tangível. O Eddie
tirou-me a fotografia devagar e colocou-a na mesa de cabeceira, para onde
os meus olhos a seguiram.
O Eddie tocou-me na face para virar o rosto para ele.
– Preparei-te um banho – disse ele. Ia levantar-me, mas senti os membros
rígidos quando tentei movê-los. – Deixa-me – disse ele. Puxou o edredão
para trás, endireitou-me devagar e despiu-me as roupas com cuidado. – Não
reconheço este top – disse. – Fiquei sem fala. Ele suspirou. Resignado. –
Está bem.
Quando estava despida, o Eddie pegou em mim como fizera antes, levou-
me para a casa de banho e baixou o meu corpo até à banheira, para o
segundo banho do dia. A água quente era celestial. O Eddie arrastou o
pequeno banco de madeira para junto da banheira e sentou-se nele;
comprámo-lo há anos para poupar as costas ao dar banho às crianças.
Encostou os cotovelos no rebordo da banheira e olhou para mim. Continuei
a fechar os olhos, incapaz de manter contacto visual com ele. Ele não falou,
mas pegou numa esponja e em gel de banho e lavou-me, levantando-me as
pernas da água e limpando-me com a esponja os pés e os joelhos. Era mais
cuidadoso à medida que subia e friccionou-me delicadamente o rosto, que
doía.
– Como fizeste isto? – perguntou. Creio que dificilmente esperaria uma
resposta, por esta altura. – Consegues falar? – disse.
– Sim.
– Devo chamar a polícia?
– Não! – O meu corpo sacudiu-se na água quando tentei sentar-me.
– Está bem, está bem – disse ele.
– Não quero falar sobre isso – declarei. – Não aconteceu nada.
– Bem, se não aconteceu nada, não há nada para conversar. – O Eddie
exalou devagar e fixou o olhar num ponto distante antes de voltar a
concentrar-se em mim. – Estou a pensar que, seja o que for, achas que vai
magoar-me. E recusas-te a mentir-me, por isso não consegues sequer
inventar uma boa história. Se sentes que não podes contar-me a verdade,
não me contas nada.
– Está bem assim? – perguntei. – Podemos ficar por aqui?
– Não, não está bem. Eu amo-te, quero saber o que está a acontecer. Nós
falamos sempre. – Esfregou um pouco de terra da minha face com o
polegar. Os seus olhos castanhos mostravam-se enrugados e atentos. – Mas
estás aqui, e estás segura, e o que quer que tenha acontecido não te matou,
embora pareça que por pouco.
– Não estou a ter um caso, não ando com ninguém – disse. Por que
motivo o disse, não sei. Acho que esperava, pelo menos, garantir-lhe que
não havia nada óbvio com que se preocupar. – Ninguém tentou magoar-me,
foi um acidente. – Ele franziu o sobrolho e eu desejei poder calar-me. Não
estava a fazer sentido, nem aos meus próprios ouvidos. – Precisarias de ter
muita fé para acreditar no que me aconteceu hoje – declarei, prometendo a
mim mesma que pararia de falar.
– Sou muito bom no que toca a fé – disse ele.
– Eu não – respondi. – Gostaria de acreditar em Deus, mas não acredito.
Ele olhou para mim como que à procura de palavras numa sopa de letras,
a tentar fazer sentido entre a mistura de letras. Por vezes, um pensamento é
tão forte que parece que as pessoas conseguem lê-lo acima da nossa cabeça
num balão de diálogo, ou em legendas, mas ainda bem que não o podem
fazer.
– Fazes muitas coisas de que Deus gostaria – disse ele.
– Mas eu não acredito nele – respondi.
O Eddie fechou os olhos. Vi então o mais dócil dos sorrisos iluminar-lhe
o rosto, e soube que lhe passara por trás das pálpebras uma boa memória.
Ele abriu os olhos e olhou para mim.
– No dia em que a Esther nasceu, lembro-me que a seguraste nos braços e
disseste: «Ela nem sequer nos conhece, e mesmo assim amamo-la mais do
que tudo.» Lembras-te? – Assenti. O momento estava tão fresco para mim
como se tivesse acontecido no dia anterior. Estávamos no hospital, ela nos
meus braços, embrulhada numa mantinha branca, o rosto minúsculo
contraído como se o mundo cheirasse mal, e o Eddie envolvia-nos. No
universo sem limites, éramos um ponto muito pequeno, e muito importante.
– Não importa se não acreditas em Deus – disse o Eddie, puxando-me os
dedos para os seus lábios e beijando-os. – Porque Ele acredita em ti. –
Beijou-me os dedos novamente. – Quando precisar que acredites n’Ele, dar-
te-á um sinal.
Senti uma onda de amor arrebatadora pelo meu marido. O peito apertava-
se-me com um grito de emoção que eu queria deixar escapar, algo gutural
que tinha tudo a ver com ele, e as crianças, a minha mãe e eu. Eu em
criança, a pessoa que tinha visto e tocado, e salvado. O eu de que tanto me
apiedava, porque ia perder a mãe em breve. A minha mãe, por quem o meu
coração doía com a dor do que ela estava prestes a perder, a dor de a perder
pela primeira vez, a dor de a deixar hoje. Poderia Deus estar envolvido em
algo do que estava a acontecer-me hoje? Se Ele ia dar-me um sinal, então
era isto, certamente.
E, no entanto, eu lutava contra qualquer argumento que dissesse que Deus
estava a olhar por mim. Era mais fácil pensar na minha viagem como uma
fenda no tecido do tempo, ou mais como uma passagem através do tempo,
da qual eu encontrara acidentalmente uma entrada. Aceitar que Deus me
informaria quando precisasse que eu acreditasse n’Ele seria como dizer que
acredito em Deus, mas não neste momento, e desculpem-me mas não
consegui. Queria, mas não fui capaz. Toquei na face do Eddie.
– Eddie, acho disparatado que acredites em Deus.
– Diz-me porquê.
– Porque não há provas; não o vês. E os coelhos. Era Uma Vez em
Watership Down – disse eu, sentindo-me pesada de sonolência. Estava
transida com os acontecimentos do dia e queria dormir, desejava o
esquecimento. O que queria mesmo era contar ao Eddie que andara para trás
no tempo; na verdade, caíra pelo tempo e aterrara com força, e era esse o
motivo pelo qual estava ferida; e que encontrara a minha mãe e o meu eu
mais novo, e queria perguntar-lhe o que significava tudo aquilo e o que
devia fazer. O Eddie sabia sempre o que fazer.
– Bem, eu acredito em muitas coisas que não vejo. No Genghis Khan, por
exemplo – disse o Eddie, e eu franzi a testa. Os cortes no rosto ardiam-me. –
Acredito que Jesus ressuscitou dos mortos, porque era filho de Deus. As
pessoas que lá estavam, naquele tempo, viram-no, e eu confio no que
escreveram sobre isso. – Eu queria sair do banho e, quando me levantei, o
Eddie pegou num toalhão e secou-me com cuidado, batendo-me levemente
no ombro e rosto arranhados, e brincando com as manchas púrpura que me
apareciam em volta das costelas e braços. – Em todo o caso, o que é isso do
Era Uma Vez em Watership Down? – Ele passou a toalha e os braços à
minha volta e eu encostei-me ao seu peito. O calor da casa de banho cheia
de vapor e a força do meu marido sob a minha face eram reconfortantes.
– Quando eu era pequena – disse, com a voz um pouco abafada pela
toalha –, acreditava em Deus e, quando a minha mãe morreu, assumi que
tivesse ido para o Céu. Acho que tinha cerca de dezoito anos quando li o
Era Uma Vez em Watership Down, e aqueles coelhos acreditavam num
Deus deles. Eu sabia que não havia nenhum Deus para coelhos; era um
pensamento adorável, mas ridículo. E percebi que, se um ser superior me
menosprezasse, e visse que também eu acreditava em Deus e no Céu,
pensaria em mim da mesma maneira que eu pensava naqueles coelhos. Que
estava iludida.
– Tirando o facto de o ser superior ser provavelmente como Deus – disse
o Eddie.
– Só se pensares nos humanos como deuses, em comparação com os
coelhos.
– Ah, sim – disse, pondo um braço debaixo dos meus joelhos e
levantando-me novamente. – Não és a primeira pessoa a questionar estas
coisas dessa maneira. Já se investiu muito tempo e esforço no estudo e
debate dessa mesma questão. E muitos escreveram coisas sobre animais que
acreditam no seu próprio tipo de deus. – Isto era uma fuga tão agradável ao
tema que esperei que o Eddie fizesse o que costumava fazer e me levasse
numa linha de pensamento que me afastaria do meu tumulto interno durante
um bom período de contemplação. Ele faria belíssimos sermões.
Levou-me de volta para a cama, vestiu-me uma T-shirt pela cabeça, com
cuidado, e cobriu-me com um lençol.
– Espera aqui – disse ele, e quando voltou trazia um volume fino,
cinzento-claro, com um círculo de espinhos na capa. Empoleirou-se na beira
da cama. – Agora, fecha os olhos e ouve – disse. E leu-me um poema sobre
a forma como os peixes pensam no Céu:
Os peixes (saciados de moscas, nas profundezas de junho,
Demorando-se em seu húmido meio-dia)
Consideram profunda sabedoria, límpida ou sombria,
Toda a esperança ou medo, incertos secretos.
Dizem os peixes que possuem seu Ribeiro e Lago;
Mas existirá algo do Outro Lado?
Esta vida não pode ser Tudo, juram
Que aborrecido, se assim fosse!
Não se pode duvidar que, de certo modo, o Bem
Virá da Água e da Lama
E, com certeza, o olho reverente deve ver
Na Liquidez determinado Fim.
Obscuramente sabemos, por Fé exclamamos
O futuro não é por inteiro Seco.
Lama para lama! – A morte redemoinha por perto –
Não reside aqui o nosso Fim, não aqui!
Mas algures, para lá do Espaço e do Tempo.
Existe água mais húmida, lodo mais lodoso!
E lá (acreditam), lá nadará Alguém
Que nadou onde todos os rios se iniciaram,
Imenso, um peixe de forma e mente,
Escamoso, bom e omnipotente;
E sob a Todo-poderosa Barbatana
Poderá o mais pequeno dos peixes abrigar-se.
Oh! nunca a mosca esconde um anzol
Dizem os peixes, no Ribeiro Eterno
Pois existem lá mais que mundanas ervas,
E lama, celestialmente clara;
Por ali vagueiam lagartas corpulentas,
E encontram-se larvas Paradisíacas;
Mariposas imperecíveis, moscas imortais,
E o verme que não morre jamais.
E nesse Céu de tudo o que almejam,
Não haverá mais terra, peixes solfejam.
Eu estava quase a dormir, e na mente vi trutas das cores do arco-íris e
vairões reluzentes a deslizar em águas pouco profundas, tão transparentes
que via além os seixos no leito do rio, e via dedos de crianças que pegavam
nesses seixos, passando-mos. Tentei pensar que os peixes eram patetas por
pensar num Céu deles. Depois tentei visualizar o meu Céu ideal – uma
criação minha – e o que existiria nele, e soube que teria rios e peixes. E,
enquanto flutuava rumo ao esquecimento, percebi que os peixes não
precisam de um Céu próprio porque, se o meu Céu existisse, eu levá-los-ia
comigo. E a todos os coelhos também.
8

N osquedias seguintes, apanhava o Eddie a olhar para mim, da mesma forma


às vezes olhava para a fenda no estuque que corria desde o canto da
lareira até ao canto do teto. Tirando que quando olhava para mim – de
sobrolho franzido, por cima da chávena – não dizia: «Tenho mesmo de te
arranjar.» Mas eu sei que o pensava, ou algo parecido.
Sentia-me cansada, como nos sentimos depois de fazer exercício, quando
já não fazemos há muito tempo; os músculos protestavam, cada osso
implorava-me que me deitasse, e como tal foi o que fiz.
– A Cassie e a Clem vêm cá hoje? – perguntou o Eddie, enquanto eu
enfiava as lancheiras nas mochilas e desencantava os sapatos da escola das
meninas. Todas as segundas-feiras, depois da escola, nós, as senhoras,
tomávamos café juntas; eu sabia que ele esperava que eu falasse com elas,
lhes contasse o que me tinha acontecido e, se fosse algo sério, elas fariam
com que eu contasse ao Eddie, ou contar-lhe-iam elas mesmas. Suponho
que a maioria dos casais tem aqueles amigos a que chamam seus, aqueles
que levariam com eles em caso de divórcio. Mas a Cassie e a Clem –
embora minhas – eram leais ao Eddie, sempre tinham sido. Se eu e ele
algum dia nos separássemos, teríamos de manter a guarda partilhada,
porque acho que elas não o abandonariam.
Todos nos conhecíamos desde os tempos de faculdade: elas andavam no
mesmo curso que ele – algo ligado a finanças – e, quando eu e o Eddie
começámos a namorar, elas intervieram como duas tias protetoras. Antes de
se tornarem como irmãs para mim, eu pensava nelas como as Tias Sponge e
Spiker, do James e o Pêssego Gigante, embora fossem infinitamente mais
bonitas e simpáticas do que no livro. A Clem era grande e bonita, como
tudo na sua vida: marido, casa e bebé; enquanto a Cassie era alta e esbelta,
com um olhar etéreo que, todos concordávamos, significava que ela podia
descender de extraterrestres. Já a tinham parado na rua para lhe oferecerem
trabalhos de modelo, mas ela dissera que preferia contabilidade.
Ora, pela minha experiência, as raparigas podem estabelecer laços por
muitas coisas, mas o período, as dietas e as críticas aos namorados eram
assuntos comuns na companhia feminina mais íntima. Naqueles dias,
contudo, eu estava em desvantagem, pois quando dizia algo prejudicial
acerca do Eddie, a Cassie e a Clem começavam a arrulhar, agitadas, como
duas pombas, e enxotavam qualquer opinião de que ele pudesse fazer
alguma coisa errada.
Éramos muito mais velhas agora, todas com filhos, e a ideia de o Eddie
como ser perfeito suavizara e alterara-se. Tinham visto o temperamento dele
inflamar-se em ocasiões raras, o invulgar acesso de ciúmes e uns palavrões
cuidadosamente escolhidos quando todos bebíamos de mais; o suficiente
para perceberem que, afinal, ele era um homem de carne e osso. Mesmo
assim, elas consideravam-no melhor do que a maioria. Até que ele anunciou
que queria ser vigário. Elas não gostaram disso.
Assim, estava o Eddie a trabalhar e eu a voltar de deixar as meninas na
escola, a Cassie e a Clem bateram à porta e me entraram pela casa adentro.
Deram-me um beijo na face e prosseguiram pelo corredor, continuando a
conversa, enquanto a Clem – de bebé na anca – testava o peso da minha
chaleira e a ligava.
– Não concordas, Faye? – disse a Cassie, cruzando os braços esbeltos, em
busca da minha aprovação numa discussão sobre a qual eu não sabia nada;
uma posição em que me encontrara tantas vezes, que desenvolvera um
conjunto de respostas padrão.
– Não, desculpa, desta vez tenho de concordar com a Clem – disse eu, a
pestanejar e estender os braços para o bebé. A Clem elevou-o para mim de
forma tão despreocupada como se ele fosse um saco de batatas, e eu
encostei o nariz à penugem macia da sua cabeça.
– É claro que ela concorda comigo – disse Clem, olhando-me com
seriedade. – A propósito, estás com péssimo aspeto.
– Obrigada – murmurei, junto à cabeça do bebé.
– Estamos a falar do Eddie – disse a Cassie. – A Clem acha que esta
história toda de se tornar vigário é praticamente motivo de divórcio.
– É uma questão fundamental – acrescentou a Clem. – Se o Dave fizesse
isso, eu matava-o. – E meteu mãos à obra, tirando com eficiência chávenas,
saquetas de chá e leite. – Ele não está só a mudar a vida dele – virou-se para
a Cassie, gesticulando com as mãos como uma mãe italiana. – Está a impôr
uma completa mudança de estilo de vida à Faye e às meninas. E sem lhes
dar verdadeira escolha na matéria.
Isto tornara-se um assunto habitual, mais acentuado e intenso à medida
que se tornava claro que o Eddie pretendia seriamente formar-se para entrar
no clero.
– Sim, mas não é motivo para divórcio – disse a Cassie. – Pois não? – Ela
olhou para mim, com os enormes olhos amendoados cheios de confiança.
– É uma coisa muito importante – disse eu. – Não me inscrevi para ser
mulher de um vigário. Para começar, não sei se sou sensata que chegue.
– Vês? – A Clem lançou as saquetas de chá para as chávenas com prazer.
– Não foi isso que eu disse, Cassie? Ela é demasiado infantil para este
papel. Sem ofensa.
– Infantil! – disse eu. – É suposto ser um elogio?
– Oh, tu sabes o que quero dizer – disse Clem. – Terás de te portar sempre
muito bem. Para sempre. É pedir muito. O Eddie está a ser egoísta.
– Ele está a seguir um chamamento, dificilmente será egoísta – disse a
Cassie.
– É um pouco egoísta – afirmei. Por fim, pararam ambas de falar e de se
mexer e olharam para mim. – Eu não sonharia em envolver o Eddie no meu
trabalho, mas não me sinto à altura de ser mulher de um vigário. Além
disso, não sei que relevância terá a parte de Deus.
– O Eddie sabe que não acreditas em Deus? – perguntou a Clem.
– Eu disse-lhe, ele sabe, já conversámos. Mas é incrível como começamos
a parecer religiosos quando dizemos que acreditamos em compaixão, na paz
e em ajudar os outros. Acho que ele pensa que vou aprender a acreditar n’
Ele.
Senti-me cansada outra vez e devolvi o bebé à Clem. Elas seguiram com
o chá e os biscoitos enquanto eu saía da cozinha para a sala de estar. A
Cassie e a Clem partilharam um pequeno sofá com o bebé e eu deitei-me no
maior, em frente a elas.
– Só quero saber, Faye, diz-me a verdade: vai dar cabo de ti, esta história
do clero?
– Não te preocupes. Não vou deixar o Eddie, nem que ele faça carreira a
recolher vomitado na feira popular. – Todas nos rimos, porque na faculdade
costumávamos brincar com os piores empregos do mundo e este era um
deles. Para mudar de assunto, mostrei-lhes a minha fotografia na caixa da
bola saltitona.
– Tão querida! – disse a Cassie. A Clem pegou na fotografia, segurando-a
fora do alcance de mãozinhas pegajosas.
– Onde foi tirada? – perguntou a Clem.
– Na casa da minha mãe, no Natal, como é óbvio. Foi tirada pela minha
mãe. Eu teria seis anos.
– Quantos anos tinhas quando ela morreu? – perguntou a Clem. – Não foi
pouco depois disto?
– Oito.
– É por isso que ficaste meio presa, um bocado imatura, em algumas
coisas.
– Cala-te, Clem – disse a Cassie.
– Parte de ti ficou presa quando a tua mãe morreu. Acontece, é assim. A
Evie fará oito anos em breve e, depois disso, deixarás de ter um modelo
para a maternidade. A Esther é definitivamente mais sensata do que tu.
– Caramba, não te consegues calar? – disse a Cassie, dando uma
cotovelada na Clem e olhando para mim como quem pede desculpa. – A
Esther é mais sensata do que qualquer um de nós.
Eu limitei-me a concordar com a cabeça e fechei os olhos. Não queria
abri-los. As vozes das minhas amigas passaram a ser ruído de fundo. Eu
queria ficar sozinha, porque mesmo na companhia delas – neste momento –
sentia-me completamente isolada e, de qualquer modo, o silêncio que
pairava sob o ruído que faziam aguardava-me. Mais valia encará-lo.
Ocorreu-me de repente que este cansaço que sentia poderia ser uma
espécie de luto; um tipo de luto de que eu não fora até agora capaz. A Em e
o Henry não tinham sabido o que dizer ou fazer comigo quando se tratava
de me ajudar na perda e sofrimento. Nos anos setenta, pensava-se que
quanto menos se dissesse, melhor. Era compreensível que quisessem
proteger-me de mais dor, mas, segundo a psicologia atual, era
contraproducente.
Não me lembrava de fazer muitas perguntas à Em e ao Henry sobre a
minha mãe. O que recordava era que achava que não devia perguntar.
Vasculhei a memória, como se fosse uma gaveta desarrumada, tentando
encontrar uma imagem, alguma gravação mental de uma conversa, algo que
explicasse exatamente porque me sentira tão sozinha ao lidar com a perda
da minha mãe, tendo a Em e o Henry sido tão compreensivos, tão
carinhosos, de todas as outras formas. Via o rosto do Henry numa memória
tão coberta de pó que mal conseguia descrevê-lo. Era o rosto dele com um
olhar preocupado; olhava para a Em quando eu lhe fazia uma pergunta ou
dizia algo sobre a minha mãe. O que teria sido? «Tenho saudades da minha
mãe. Quero ver a minha mãe outra vez. Achas que a minha mãe era feliz?»
Eu vira aqueles olhares dele e arquivara-os. Não tinha pensado nisso, mas
percebi o que eram: ele não queria que eu perturbasse a sua mulher. A Em
era uma senhora adorável, e gostava de mim como se eu fosse filha dela. Eu
confiava plenamente nela, mas talvez quando apareci – embora ela nunca
tivesse desejado que eu perdesse a minha mãe – a tenha contentado, um
sonho tornado realidade. Pensei que ela parecia muito possessiva quando
brincava comigo em pequena, na sua casa, com os chocolates na árvore de
Natal, como se eu fosse uma boneca que ela desejava. A perda da minha
mãe foi um ganho para a Em; deverá ter sido mais fácil para ela fingir que
eu era só dela, e pôr a minha mãe para trás das costas, para trás de mim. Não
lhe guardo rancor, a Em foi boa comigo. Foi egoísta no amor pela filha que
sempre desejou, apenas isso.
Mas, como resultado, tive em criança uma carência, um vazio, um
silêncio triste. Naquela altura, quando eu chorava, era por minha conta e
dentro de um buraco negro, um abismo, o desconhecido. Mas agora acabara
de perder a minha mãe outra vez. Estarei eu a fazer o luto outra vez? Um
tipo de luto mais normal? Ou antes, um sofrimento com que era mais fácil
lidar, porque desta vez me despedira, abraçara-a, e tinha alguma esperança
de a ver novamente, como se de facto tivesse fé.
A Cassie e a Clem continuavam a conversar, ignorando-me. Eu
permanecia há muito tempo em silêncio e sabia que a Cassie estaria
desejosa de se afastar das tolices emocionais. Agora discutiam alegremente
sobre outra coisa.
Pensei no que a Clem tinha dito, sobre eu ter encravado por volta da idade
em que a mãe morreu. Algo naquilo parecia verdade, embora, depois de ter
estado com a minha mãe, uns dias antes, me sentisse mais velha do que ela,
talvez só porque parecia muito mais velha e porque sabia mais sobre a
situação.
Ergui as pernas pesadas do sofá e sentei-me.
– O que acham das viagens no tempo? – perguntei, quando as minhas
amigas fizeram uma pausa na conversa.
– O quê? – perguntou a Cassie, dando uma trinca num biscoito.
A Clem olhou para mim sem expressão, por um momento.
– Impossível, como é óbvio. OVNIs, questionáveis; homenzinhos verdes,
improváveis; Deus... – suspirou. – Duvidoso. Viagens no tempo, bem, só
para loucos, romances e filmes. – Os seus olhos voltaram-se para a Cassie e
virou-se de forma distraída, retomando a conversa anterior, quase não sem
perder o ritmo.
Eu não insisti, nem defendi o tema. Só queria experimentar as palavras na
boca. No instante antes de fazer a pergunta, imaginei que seria capaz de
aprofundar um pouco mais o assunto, embora tivesse consciência de que
tudo o que eu dissesse poderia chegar aos ouvidos do Eddie. Mas a Clem,
com o seu brutal sentido de irracionalidade, e a Cassie, com o seu silêncio
entediado, foram tão definitivas como uma porta a fechar-se na minha cara.
Eu era o vendedor incómodo, e não me parecia que pudesse bater outra vez.
9

E uMascontemplava viajar novamente, não conseguia pensar em mais nada.


desta vez estaria preparada. A minha mãe deixar-me-ia entrar,
conhecendo-me como a adulta que salvara a vida da filha. Eu teria
perguntas prontas para ela; todas as coisas que se desejava perguntar antes
de ser tarde de mais. Aproveitaria ao máximo. Absorta a pensar nela,
apanhava por vezes o Eddie a fitar-me com o olhar cheio de perguntas a
que, sabia, eu não responderia. As fantasias de a ver novamente eram como
pacotes de papel de embrulho atados com fita brilhante; poderia ter passado
os dias a planear e a pensar, mas precisava de voltar ao trabalho.
Faço experiências no RNIB para testar o design de produtos em pessoas
invisuais, com dificuldades de visão e com visão normal. Depois elaboro
relatórios sobre se o que está a ser projetado é tão fácil de usar pelos
invisuais como o fabricante diz que é.
Esta experiência que estou a realizar envolve participantes com luvas de
borracha, a sentir a cabeça de gesso de Mozart e Bach. Os participantes que
veem colocam vendas, e todos têm de descrever o que sentem. Estou a
tentar descobrir se extraem informação suficiente do que tocam para
fornecer uma descrição significativa do objeto.
Podia contar-vos o porquê de fazer esta experiência, mas não faz parte
desta história.
Tinha trinta participantes: dez invisuais, dez com visão parcial e dez com
visão normal, e o meu amigo Louis era um deles – era ele que queria sentir
as fotografias. Sempre que faço uma experiência ou trabalho com um grupo,
o Louis participa; fomo-nos conhecendo ao longo dos anos e vamos
almoçar quase todas as semanas.
Penso no Louis como um homossexual peludo, porque é homossexual,
grande e adorável. Veste-se bem, sempre com camisas de aspeto caro, e usa
uma barba bem aparada. E cheira muito bem. É invisual desde que nasceu e
diz que o que mais lhe custa é, nos encontros, não poder tomar conta do
rapaz da maneira que os amigos com visão o fazem. Gostaria de ser capaz
de sair com uma pessoa e garantir que ela chega a casa sã e salva, levando-a
de carro ou acompanhando-a a casa, mas diz que para os invisuais não é
assim. A sua veia protetora é forçosamente suprimida pela falta de visão.
É um amor, mas a frustração torna-o conflituoso após umas cervejas. Um
dia, depois do trabalho, estávamos no pub em frente ao RNIB e ele foi ao
bar – insistiu – buscar-nos as cervejas. No caminho de volta para a mesa,
um indivíduo vinha a andar para trás, a terminar uma conversa com os
amigos, foi contra o braço do Louis e apanhou com cerveja na frente.
Concentrado na T-shirt cheia de cerveja e sem olhar para o Louis, começou
com o previsível «Ó, olha por onde andas! És cego ou quê? Deste-me cabo
da camisola!» Quando viu que o Louis era de facto invisual, começou a
desculpar-se intensamente. Bem, o Louis nem quis saber.
– Então anda lá – disse o Louis, saboreando a novidade de levar a melhor.
– O que queres fazer? Ir lá para fora?
– Não, pá, não faz mal – disse o indivíduo, recuando como uma lesma a
tocar em sal.
– Não faz mal? Não me parece! – disse o meu amigalhaço gay. – A tua
camisola está estragada e eu fiquei sem meia cerveja. A questão é, de quem
é a culpa? – E ergueu o braço, a segurar a cerveja ofensiva, entornando mais
em cima do homem feito buldogue encolhido. E, para que conste,
inicialmente ele derramara apenas uma pequena parte da cerveja.
– Está bem, eu pago-te outra, pago-te uma rodada inteira. Qual estás a
beber? – Com esta, nem o Louis podia discutir.
O Louis sentou-se ao meu lado. Quando o indivíduo apareceu com mais
umas cervejas, pousou-as à nossa frente, a dizer: «Desculpa, desculpa,
desculpa.»
– Foi simpático – disse eu ao Louis, depois de o indivíduo ter ido embora.
– Ele pedir tanta desculpa por teres derramado cerveja em cima dele.
– Não teve nada a ver com a cerveja. Ele desculpou-se porque sou cego e
ele não é, portanto, qualquer que seja a luta em que entremos, ele já é o
vencedor.
Apertei-lhe a mão, porque para ele, levar a melhor, como qualquer sonho,
não passa de uma ilusão. Apertei-lhe a mão porque ele tinha toda a razão.
*
Quando o Louis chegou à experiência das luvas de borracha, eu não o vira
toda a semana. Ele estava a sentir a cabeça de Mozart e havia algo de
surreal e relaxante em ver o meu amigo afagar com cuidado os contornos do
génio musical. O seu rosto sem visão inclinava-se para o teto e os dedos
caminhavam e deslizavam sobre os contornos artificiais de cabelo e feições
faciais.
– Nunca o vi na minha vida!
– Louis, é suposto descreveres. – Parei a gravação e rebobinei. –
Preparado?
– Está bem – disse ele. Liguei novamente a máquina. Houve uma longa
pausa e depois ele disse: – A cabeça que estou a sentir não tem sentido
nenhum para mim. Não faço ideia se é homem ou mulher. Percebo que tem
muito cabelo, mas não se parece nada com cabelo verdadeiro. Parecem-me
ondas esculpidas em pedra, o mais longe possível de cabelo. – O Louis
parou.
– Mais nada? – perguntei, e ele assentiu. Parei a gravação. – Não é bem o
que eu esperava – acrescentei. – Mas é tudo válido, muito interessante, na
verdade.
– O que disseram as outras pessoas?
– Sobretudo um relato das características do rosto, tu sabes, a forma do
nariz, se é maior do que a média. Esse tipo de coisas.
O Louis resmungou.
– Esta coisa não é uma cabeça – disse ele.
– Não é?
– É um molde compacto em forma de cabeça. Qual é o sentido de eu
sentir isto? Imagino que seja suposto mostrar-me mais ou menos como é
uma cabeça. Bem, eu consigo sentir a minha própria cabeça. Ou a tua, se me
deixares. Ninguém sente uma cabeça de pedra para saber como é uma
cabeça. Isto é para os olhos, não para as mãos – disse ele, dando-lhe leves
pancadinhas.
– Deixa-me pôr a gravar outra vez, diz isso na gravação – pedi.
– Estou farto de as pessoas com visão fazerem isto – disse ele. – Quando
era pequeno, teria uns seis anos, um especialista fez-me um teste. – O Louis
usou dedos sarcásticos como aspas em volta de «especialista». – Não sei o
que ele estava a tentar descobrir, mas deu-me umas imagens em braile,
esboços elevados. Uma delas era de um gato, descobri depois. Mas se só
sentiste um gato verdadeiro, desenhá-lo-ias da maneira que uma pessoa com
visão desenha? Um gato no meu mundo é diferente de um gato no teu
mundo; nada nele é anguloso, tirando as garras, porque um gato é
predominantemente uma bola de pelo. Mas esse esboço que o homem me
deu era anguloso: triângulos de pontas duras, orelhas, ao que parece, e um
corpo redondo macio como a base de uma ampulheta. Percebi mal. Não sei
o que disse, mas não foi «gato». O homem pensou que eu era um idiota.
Depois pediu-me para desenhar um ovo, e eu não sabia. Ele disse: «Basta só
a forma simples.» Mas eu nunca pegara num ovo. A minha mãe alimentava-
me à colher, para evitar confusão. Então, desenhei uma bolha, porque a
minha experiência com ovo era apenas uma bolha macia na boca. Depois
pediu-me para desenhar um autocarro e, quando terminei, ele disse: «O que
é isso, rapaz?» e eu respondi: «É um autocarro, como pediu.» E ele
acrescentou: «Isso são só umas linhas aleatórias.» Eu tinha desenhado uma
linha vertical longa e, à esquerda dessa linha, três linhas horizontais curtas.
– Espera – disse eu. – Deixa-me tentar perceber isto. – Desenhei as linhas
como ele tinha descrito, a lápis, na parte de trás de um envelope. Autocarro.
Linha vertical. Horizontais. Fechei os olhos e imaginei entrar num
autocarro. – Já percebi – disse. – Desenhaste o puxador a que te agarras
quando entras no autocarro, é a linha vertical, e três linhas horizontais, que
são os degraus que levam ao condutor. Um autocarro! Correção: o teu
autocarro.
– Eu sabia que ias compreender. Num sentido prático, o meu mundo
estende-se tão longe quanto os meus braços conseguem chegar. O teu, tão
longe quanto os teus olhos veem. Mas ambos sabemos, no fundo do
coração, que os nossos mundos são na verdade muito maiores do que isso.
Sabes disso, não sabes, Faye?
Eu sabia.
Peguei nas chaves da sala e empurrei a cadeira para trás.
– Vamos embora daqui – disse eu. – Pago-te um café.
*
Estava um dia bonito. O sol brilhava e eu e o Louis sentámo-nos do lado
de fora do café turco, um pouco abaixo da entrada do RNIB. Pousei uma
pasta na mesa de piquenique de madeira entre nós. Se passasse algum dos
nossos colegas, pareceria mais trabalho do que tagarelice.
– O que se passa contigo? – perguntou o Louis.
– O que queres dizer?
– Sinto que não te vejo há séculos e a tua voz parece mais grave.
– Mudei de sexo.
– Não tão grave! – disse ele. Esperou. – Vês? Normalmente rir-te-ias
disso.
– Não sei – encolhi os ombros. – Acho que me sinto em baixo, sozinha.
– Tu? A sério? Bem, junta-te ao clube – disse ele. – Mas tu tens o Eddie e
as meninas.
– Eu sei, mas... estão a acontecer coisas. Segredos que não posso contar –
disse eu, a fingir ser misteriosa, desvalorizando o assunto.
– Oh, sim, tenho essa no papo. Senti-me assim durante anos, até me ter
assumido à minha irmã. – Ele parou e eu não disse nada. – És homossexual?
É disso que se trata?
– Não – disse eu. – Tu sabes que não sou.
– É por causa do Eddie, e de passares a fazer parte do mundo das
mulheres de vigário?
– Se o meu único problema fosse esse – disse eu.
– Desembucha. Para de ser tão misteriosa.
– Não posso. Não vais compreender.
– Oh, lá vamos nós, o invisual solitário de meia-idade, com excesso de
peso, não consegue compreender a menina branca com visão, solitária, de
classe média.
– Tu também és branco – respondi.
– Sou?! – disse ele, tateando o rosto.
O pequeno estalido de saliva que às vezes acompanha um sorriso
denunciou-me e ele disse:
– Assim é que é.
– E eu não diria que és de meia-idade – acrescentei.
– Mas com excesso de peso?
– Bom para agarrar – disse eu, e belisquei-lhe com delicadeza a face. – És
perfeito. – Olhei para o meu amigo. – Deve ser especialmente difícil ser
homossexual quando se é cego – disse eu.
– Tudo é mais difícil quando se é cego.
– Eu sei. Mas sobretudo namorar, imagino.
– Sim – disse ele. – Primeiro, encontrar alguém que não se importe de sair
com um cego; depois, tem de se excluir aqueles que querem um encontro de
caridade.
– A comiseração não é muito excitante – disse eu.
– Para mim não, nem para ti. Mas acho que muitas pessoas começam por
aí. Gostava de conhecer alguém que às vezes se esqueça de que sou cego.
– Isso já aconteceu?
– Saí algumas vezes com um rapaz com quem me dei muito bem. Ríamo-
nos muito. No fim da noite doía-me a barriga.
– O que lhe aconteceu?
– Ele disse que desejava que eu o visse. Disse que, às vezes, quando
saíamos, as pessoas olhavam para nós com ar de entendidos, um olhar que
dizia que, se eu o visse, não sairia com ele. Ficou inseguro e acabou por
dizer que eu devia encontrar alguém mais como eu.
– Mais cego ou bem-parecido? – perguntei.
– Não sei. – O Louis ergueu as pontas dos dedos. – Então, o que se passa
contigo? Percebo na tua voz, aconteceu alguma coisa. Conta-me. Anda lá.
Os invisuais não possuem mais superpoderes do que todos nós. Mas o
Louis conhecia-me bem e orgulhava-se do seu poder de observação; ele
sabia que se passava algo, e eu sabia que ele era como um cão com um osso.
Não desistiria até eu lhe dar alguma coisa. Delineei o contorno de uma das
marcas pegajosas no tampo da mesa.
– Visitei a minha mãe – disse.
– Continua – disse ele, após uma breve hesitação. – Foi dececionante?
– Hum, não. Definitivamente não foi dececionante, mas inesperado.
– Demasiado vago – disse ele, agitando uma mão no ar.
Passei um dedo pelas fendas da madeira da mesa de piquenique e olhei
para os dedos do Louis. Eram lindos, bem tratados. Ele era cuidadoso com
os dedos, depois de anos a magoá-los por não ser capaz de ver onde os
metia.
– Está bem – disse eu. – Bom, não a via há muito tempo. E sabia que ela
não me reconheceria. Portanto, foi difícil. Apareci sem avisar, mas, por
acaso, dadas as circunstâncias, tivemos uma conversa maravilhosa e foi uma
boa visita. – O Louis não disse nada. Ficou à espera, uma tática que usava
para obter mais informação das pessoas. Apesar de eu saber o que ele estava
a fazer, não resisti e dei-lhe um pouco mais. – Enquanto estava com a minha
mãe, fui atropelada por um carro.
– Caramba – disse ele, enquanto a empregada pousava os cafés na mesa.
O Louis levantou a mão e baixou-a devagar, localizando com cuidado a
chávena, antes de pegar nela com a outra mão. – Instalou-se entre nós um
silêncio confortável, e eu brinquei com a espuma por cima do café,
enquanto esperava que o Louis perguntasse mais sobre o acidente de carro.
– Mas a tua mãe está morta, certo? – perguntou o Louis. Eu contemplei os
seus olhos turvos e vazios, que se dirigiam a mim.
– Sim – respondi. E ficámos sentados em silêncio. Era o fim da manhã e o
sol queimava-me as pernas. As pessoas passavam, um desfile de roupas e
mais do que a média nacional de cães-guia e bengalas brancas. Um pequeno
pardal castanho pousou na mesa e bicou umas migalhas que não tinham sido
varridas.
Observei os movimentos laterais bruscos da sua cabeça e os minúsculos e
brilhantes olhos pretos; creio que nos observava. Não disse ao Louis que o
pássaro estava ali, mas normalmente tê-lo-ia dito.
– Então visitaste a tua mãe morta e foste atropelada por um carro –
declarou-o como um facto.
– Sim – disse eu mais uma vez.
– Mais alguma coisa?
– Sim, salvei o meu eu aos seis anos. Lancei-me entre ela e o carro.
– Excelente! – disse ele, rindo-se entre dentes para si mesmo. – Estás a
inventar?
– Não – respondi.
– Está bem. Conta-me mais. Como chegaste lá?
– Acreditas em mim? – perguntei.
Ele pegou no café e levou-o com cuidado aos lábios.
– A vida pode ser muito monótona, Faye – disse ele. – Ainda mais
monótona quando se é cego. Não deixes que os ceguinhos te digam o
contrário, ou as almas caridosas, que pensam que podemos viver uma vida
tão preenchida e emocionante como as pessoas que veem. Se há alguma cor
na minha vida, é por causa de pessoas como tu. Portanto, se acredito em ti?
Bem, não sei. Tem importância? Conta-me o que aconteceu e, se houver
partes obscenas, não hesites.
– Não há partes obscenas – disse eu, com um sorriso na voz.
– Oh, isso sim, é dececionante – disse ele. – De qualquer maneira, conta-
me.
E foi assim que contei tudo ao Louis.
10

P odem imaginar o alívio que senti por simplesmente contar a alguém a


verdade sobre o que tinha acontecido. A ânsia de contar ao Eddie
acalmou. Tinha descarregado uma grande parte do fardo só por dizer as
palavras em voz alta a outro ser humano.
Contar ao Louis foi como uma droga que mascarou a dor. Contudo, eu
sabia que era apenas uma questão de tempo até que passasse o efeito,
porque dizer ao Louis não seria suficiente. Eu precisava do Eddie. Sabia
que, se não confiasse nele, o sofrimento se infiltraria na minha vida como
água em barro, tornando-a pesada e disforme. E, no entanto, não podia
contar ao Eddie, ainda que sentisse que a salvação dependia dele. Todavia,
como uma viciada, no dia em que falei com o Louis, nada disso importava,
eu estava eufórica. Já não me sentia sozinha, e naquele momento isso era
suficiente. Fui para casa como uma mulher que finalmente pousou uma
carga que mal tinha forças para carregar. Sentia-me fisicamente mais leve.
E também sabia disto: tinha de voltar novamente. Tinha de voltar para a
minha mãe, e depressa.
A conversa com o Louis levantara uma série de questões práticas e
emocionais que eu tinha de enfrentar. Achei-o surpreendentemente lógico e,
bem, útil relativamente a tudo aquilo. Ele ouviu e ajudou, sem fazer
nenhuma das perguntas previsíveis sobre a minha sanidade. Sugeriu que eu
tirasse a caixa da bola saltitona do sótão e a pusesse num sítio que me
causasse menos danos ao voltar para casa – um sítio que proporcionasse
uma aterragem mais suave – e também um sítio onde não fizesse tanto
barulho. Ele achava que a minha viagem de regresso deveria ser feita à
noite, depois de o Eddie ter ido dormir. Disse que eu devia vestir roupas que
se adequassem a onde ia, tanto em termos de clima como de década, e
proteger as partes que seria mais provável partir: tornozelos, braços,
pescoço. Questionava se eu deveria usar um capacete, mas eu não tinha
certeza.
Sabem que mais? Ficámos horas no café turco. Almoçámos, mais café,
depois mudámo-nos para o pub e bebemos uma cerveja fresca. Ninguém do
trabalho telefonou a perguntar onde diabo andávamos, e perguntámo-nos
quantas horas ou dias se passariam até alguém dar pela nossa falta. Apareci
no escritório cerca de uma hora antes do horário de saída e a minha chefe
sorriu-me, bem-disposta e sem maldade.
– Como correu? – perguntou. Estava bronzeada e magra de mais e eu
queria levá-la para casa e dar-lhe de comer.
– Como correu o quê? – perguntei. Pousei o saco em cima da mesa e
procurei as pastilhas elásticas, não fosse o cheiro a cerveja chegar até ela.
– As experiências – disse. – As luvas de borracha.
– Oh, sim. – Tinha-me esquecido delas. – Bem, mas demoraram mais do
que pensei. Vou precisar de mais um dia ou dois. – Mentir tornava-se mais
fácil. Nem sequer me sentia mal por isso, desde que não fosse ao Eddie.
– Não tem problema – disse ela. – Porque não sais mais cedo? Tens
trabalhado tanto.
Eu sorri para mim mesma: chegar tarde, sair cedo e um almoço longo. Às
vezes, só precisamos de um dia assim para entrar nos eixos, e era um ótimo
começo para o fim de semana.
*
Quando o Eddie chegou a casa, naquela noite, as meninas estavam na
cama. Eu tinha feito jantar para nós e abrira uma garrafa de vinho, para
respirar. Tirei as cartas e os ovos, como faço sempre que jogamos. Tenho
uma taça de madeira, lisa, rasa, bela pela sua simplicidade. O Eddie
comprou-ma no nosso quinto aniversário de casamento. Na taça, guardo dez
ovos que comprei numa venda de garagem: uns de madeira, uns de
mármore, todos mais ou menos do tamanho de um ovo de galinha real.
Quem ganha um jogo de cartas tira um ovo da taça, até não sobrar nenhum.
Quem tiver mais ovos é o vencedor absoluto. Isto impede-nos de ver
televisão em excesso.
Quando viu a taça, Eddie desapertou a gravata.
– Estás confiante, esta noite? – disse.
Pus os braços em volta dele e dei-lhe um beijo longo e profundo.
– Eu já ganhei – afirmei, olhando para o seu rosto bonito e bondoso. Ele
puxou-me para um abraço mais forte. Enterrou o rosto no meu pescoço;
éramos dois animais a reencontrar-se, animais que não tinham palavras para
expressarem quão felizes se sentiam por se verem novamente. O toque dele
dizia-me que ele sentia a minha falta, porque eu andava distante.
Enquanto ele foi ver as nossas filhas a dormir, pus uma taça de chili na
mesa, salsa mexicana e tortilhas de milho caseiras para mergulhar.
Pulverizei uns wraps com óleo e salpiquei-os com sal marinho, depois
cortei-os em triângulos com um cortador de pizza e meti-os no forno por
uns minutos. Que maravilha. A iguaria preferida do Eddie.
Ele vestira uma sweatshirt e umas calças de fato de treino e bebeu um
grande gole de vinho enquanto se sentava, grunhindo com alegria enquanto
punha chili numa tortilha de milho.
– Correu bem o dia?
O Eddie assentiu e continuou a fazê-lo até engolir.
– Tive umas entrevistas individuais – disse ele. – Acho que gostam de
mim, mas é difícil perceber.
– Como podiam não gostar de ti? – perguntei.
– És suspeita, mas obrigado. Eles têm um trabalho importante, não se
trata apenas de gostarem de mim; têm de decidir se sou adequado para este
tipo de trabalho. A função do sacerdócio é servir os outros bem, não apenas
eu pensar que seria bom nisso e, por conseguinte, ser-me permitido
preparar-me e depois simplesmente fazê-lo. O meu chamamento não é o
trabalho. O trabalho é um instrumento para me ajudar a realizar o meu
chamamento. Mas parece que eles gostam de mim, o que me faz sentir
melhor.
O Eddie querer preparar-se para vigário não era como candidatar-se a
nenhum outro tipo de trabalho. Pelos vistos, Deus chama a pessoa (penso
que não literalmente), e ela sente isso, e então, se abordar a Igreja, eles têm
o trabalho inicial de discernir se esse chamamento é ou não algo que possa
ser trabalhado num cargo na Igreja.
O Eddie teve o seu «chamamento» há alguns anos, mas não fez nada.
Pelos vistos, a coisa intensificou-se a ponto de ele ter de agir. Suponho que
deve ser exatamente como ser «chamado», porque todos usam essa
expressão, não é? Nunca perguntei ao Eddie como foi. Teria sido literal?
Terá ouvido Deus de modo tão claro como a um pai que chama os filhos
para jantar, ou foi apenas uma sensação, emotiva e forte, como descobrir
que se ganhou um prémio? Ou algo físico, intenso, como precisar muito de
fazer chichi?
– Como foi quando recebeste o chamamento? – perguntei.
Ele bebeu mais um gole de vinho e deu as cartas. Sete a cada. Rummy.
– Foi uma voz na minha cabeça – respondeu, olhando para as cartas e
voltando a arranjá-las na mão. Olhou para mim. Acho que o meu rosto tinha
o tipo de expressão que dá vontade de reformular a última frase. – Foi a
minha voz, a minha voz interior, e quando eu estava em silêncio, sozinho, a
rezar. Especialmente na igreja. Quando estou lá, sinto-me... bem, um
sentimento de satisfação, contentamento. Foi natural. Bom. A voz que ouvi
foi um pouco como quando estás a subir e queres desistir; quando a tua voz
interior diz: Tu consegues, só um pouco mais. – Peguei numa carta, joguei e
peguei numa tortilha de milho. – Mas um dia, na igreja – disse ele –, tinha
estado a rezar em silêncio; estava tudo à luz das velas, o coro acabara de
cantar Allegri Miserere; deu-me a sensação de que alguém me pusera a mão
no ombro, de um modo breve e suave, mas muito definitivo, e ouvi uma voz
mais calma. Não tinha consciência de ter sido eu a produzir a voz interior,
por isso daquela vez foi mais como a voz de outra pessoa. Disse: O teu
propósito. E foi isso.
– Foi esse o teu chamamento?
– Acho que foi uma parte do chamamento. Tem sido gradual, levado
anos. E acho que sempre soube, sempre o senti em mim, mas não lhe tinha
dado um nome. Mas naquele momento, quando senti a mão no ombro,
tornou-se mais real. Senti que Deus me incentivava, dando-me um sinal
mais claro. Já não podia ignorá-lo ou mantê-lo numa caixinha à parte. – Foi
buscar, sorriu, jogou; andava atrás das copas. – Vou ficar com o primeiro
ovo – disse ele.
– Garanto-o – disse eu, olhando para as minhas cartas –, tenho uma mão
mais que parece um pé. – Tinha um par de três na mão, mas mais nada que
combinasse. Hesitei, deixei a mão pairar sobre a carta que ele acabara de
jogar, perguntando-me se deveria apanhá-la e fazer algo com ela. Mudei de
ideias e fui ao baralho.
– Porque é que nunca me falaste desse chamamento, se começou há anos?
– perguntei, trincando outra tortilha.
– Não sei. Não foi um caso de o esconder de ti, nem de ninguém.
Suponho que não disse nada porque pensei: Isto é ridículo. Quem sou eu
para ser chamado por Deus?
– Imagino sempre a voz de Deus um pouco trovejante – disse eu,
pensando na voz clara e calma que o Eddie descrevera.
– Bem, na Bíblia é muitas vezes citada como sendo uma voz imensa.
Mas, na igreja, Deus estava só a falar comigo, não precisava de gritar. – O
Eddie olhou para mim. – Vês, faz-me parecer pretensioso e ridículo.
– Não, não faz – disse eu, pousando a mão na dele. – Lamento apenas não
te ter perguntado antes.
– Este foi desde sempre o momento certo de termos esta conversa. As
coisas que precisamos de saber revelar-se-ão quando chegar a hora.
Ele estava a falar sobre as coisas que eu ainda não lhe tinha dito. Estava a
dizer-me que esperaria até eu estar preparada, mesmo que fosse difícil para
ele.
– O que é que os teus pais pensam disto? – perguntei. – Quero dizer, a tua
mãe? – Os pais do Eddie moram em França há cerca de quinze anos, e o pai,
um homem sempre calado e encantador, sofre de demência. A mãe do Eddie
cuida dele em casa. Diz que ele é como um animal de estimação adorável;
alimenta-o, trata da higiene dele e, nos dias quentes, senta-o no jardim com
uma manta, enquanto ela trata das flores, legumes e alimentadores de
pássaros. Nos dias mais frios, acende a fogueira e ele faz o mesmo, mas
dentro de casa. Ela lê para ele, embora a audição dele não seja muito boa.
Todos os dias vão passear, todas as quintas de manhã vão às compras, e
todos os domingos vão à igreja. Ela tem certeza de que a vida simples,
regular e salutar que levam mantém o marido contente, ajudando-o a
aproveitar a vida o mais que pode. É uma boa mulher.
– A minha mãe não ficou surpreendida, o que não me surpreende. Sempre
fomos uma família que acredita silenciosamente em Deus, na Sua presença.
Ele sempre fez parte das nossas vidas – disse Eddie, pousando as cartas
viradas para cima e tirando um ovo.
– Sorte de principiante – disse eu, e comecei a empilhar as cartas para as
baralhar.
O Eddie observou-me a dar as cartas. Parecia pensativo.
– É engraçado – disse. – Se for sincero, até queria que a minha mãe
ficasse um pouco surpreendida, ou pelo menos parecesse realmente
contente. Eu devia sentir-me feliz por ela não ser uma daquelas mães que
pensariam que estou a cometer um erro terrível e a desperdiçar a vida. Ela
aceitou, e isso é ótimo. Mas aceitou-o como se aceita o troco depois de
pagar umas compras. Foi só mais uma coisa que encarou com calma. Um
pouco esperado de mais. Suponho que o fez parecer normal, quando a mim
me pareceu mais importante do que isso.
– Querias chocá-la! – disse eu. – Como alguém que se assume
homossexual perante os pais. Estão todos preparados para o drama do
momento, mas em vez disso dizem só: «Oh, sim, sempre soubemos.»
– Algo assim – disse ele.
– Devias ter vergonha. Poderia ter sido muito pior.
– Tens razão. Ela aceitou como se nada fosse. O que isto tem de bom
supera o que tem de mau.
– Ela é demasiado cordial para ficar chocada. Eu fiquei chocada –
afirmei. – Ainda estou. Espero que te sirva de consolo.
Ele riu-se e pôs-me mais vinho no copo. Abri uma gaveta na mesa, tirei
uma vela e acendi-a.
– Acho que a maior parte das pessoas tem de se conformar em equilibrar
o que sempre esperou dos pais com o que de facto recebe – disse ele. –
Tenho tido mais sorte do que a maioria. Conheço muitas pessoas bastante
dececionadas com os pais. Muitos não recebem da mãe e do pai as respostas
com que sonham, quando finalmente lhes fazem perguntas.
– E quais serão as perguntas certas? – perguntei.
– Exatamente – respondeu ele (esperava uma resposta mais literal à minha
pergunta). – Alguns de nós nem sequer têm oportunidade de perguntar. –
Ele olhou para mim e fixou o olhar. Nunca falámos sobre a minha mãe,
apesar de o Eddie tentar encorajar-me, de vez em quando.
– Não seria incrível poder voltar atrás no tempo e fazer as perguntas que
nunca pensámos ter oportunidade de fazer às pessoas mais importantes para
nós? – perguntei, pousando o baralho virado para baixo e esquecendo-me
dele.
– Sim – disse o Eddie, abanando a cabeça com tristeza. – Sei que deves
sentir-te assim em relação à tua mãe, mas eu também sinto isso em relação
ao meu pai. É tarde de mais e, no entanto... – ele hesitou.
– E «no entanto» o quê? – perguntei.
– E, no entanto, mesmo sabendo que um dia, talvez muito em breve,
poderá ser tarde de mais para perguntar à minha mãe todas as coisas que só
ela me pode dizer, continuo a não lhe fazer essas perguntas. Porquê?
– O que lhe perguntarias?
– Nem sei. Muita coisa.
– Faz uma lista – disse eu.
– Vou fazer. – Ele assentiu com firmeza. Eu sabia que ele o faria.
– E depois vai a França, o mais rápido possível, e faz essas perguntas
antes que seja tarde de mais – disse eu. De repente, senti-me igualmente
insistente e veemente de que ele o fizesse. As minhas palavras eram uma
ordem determinada e proferida com suavidade. O Eddie precisava dela,
talvez todos precisássemos: um lembrete para minimizar o arrependimento
enquanto ainda podemos.
– Está bem – disse o Eddie. Mais uma vez, eu sabia que ele iria.
O chili estava quase a acabar e só fora reclamado um ovo.
– Já mal consigo ver as minhas cartas – disse eu, segurando-as mais perto
da vela.
– Eu também. Acendo a luz?
– Vamos para a cama – disse eu. Ele soprou a chama, pegou-me na mão e
levou-me pelas escadas. No escuro, não precisávamos de nada além do
nosso pequeno mundo, insignificante e, todavia, tão importante; a nossa
ligação, tão vital para nós. Naquele momento eu só precisava dele, e de
saber que as minhas filhas estavam a salvo na cama, por perto. Não
precisava de ver, só precisava de o abraçar no escuro, ser abraçada e saber
que ele me amava.
Mas sabia que, em breve, este mundo por si só não seria suficiente. Eu já
ansiava por outro.
11

F ico feliz que continuem aqui, ainda a ouvir. Foi um alívio conversar com
o Louis, mas vocês são muito importantes para mim. Tudo isto que estou
a contar-vos aconteceu há alguns meses, portanto ainda nos estamos a
atualizar. Eu disse-vos que contar a minha história ao Louis era como uma
droga cujo efeito eu sabia que passaria. Bem, contar-vos tudo está a distrair-
me dos sintomas de abstinência, da dor de não ser sincera com o meu
marido. Ainda tenho de vos pôr ao corrente, mas digo que, neste exato
momento em que conto a minha história, ainda não contei nada ao Eddie
sobre o que está a acontecer. E por isso, preciso – muito – que escutem e
acreditem no que estou a dizer.
*
No dia seguinte às cartas, sábado, levámos as meninas a andar de patins.
Quando eu era pequena, andar de patins era, de longe, a minha coisa
preferida. O meu primeiro par de patins tinha rodas de metal e correias que
se apertavam sobre os sapatos. Usava-os nos passeios e ouviam-me a chegar
a um quilómetro de distância. Depois abriu um campo de patinagem na
cidade onde eu vivia, e era para lá que todos iam ao fim de semana. Nessa
altura, podia-se alugar patins. As crianças com dinheiro tinham patins seus.
Eu não era uma delas e não conhecia ninguém assim. De qualquer forma,
patinar com o Eddie e as meninas é muito divertido. Geralmente ficamos lá
umas horas e depois vamos sempre aos hambúrgueres.
Eu sentia-me mais feliz e via que o Eddie também, embora soubesse que
ele ainda devia pensar no que teria acontecido quando me encontrou no
sótão, há umas semanas. Definitivamente estávamos bem um com o outro;
conversávamos sobre as coisas, lidávamos com as coisas, eu tentava
compreendê-lo e ele escutava-me. Eu pensava muito na minha mãe e no
meu eu mais novo. Sentia a sua força atrativa e o desejo – a que se tornava
cada vez mais difícil resistir – de voltar para elas. Queria muito ver a minha
mãe outra vez. Depois de uma pequena amostra da sua companhia, ela era
quase tudo o que eu queria, mas o pensamento daquilo que teria de passar
para voltar dava-me um nó na garganta e fazia-me transpirar. Era como ter
de andar na montanha russa mais assustadora do mundo, uma que pudesse
matar-me, para chegar ao destino mais doce que se possa imaginar. Eu tinha
de voltar, queria ajudá-las – à minha mãe e a mim – mas não sabia como.
Enquanto pensava em como o fazer, a vida real mantinha-me ocupada.
Como acontece muitas vezes quando vamos os quatro patinar, faço uns
circuitos sozinha, enquanto o Eddie e as meninas adotam uma abordagem
menos graciosa: tropeçam uns nos outros, apanham-se uns aos outros,
batem nas barreiras e lançam-se outra vez. Eles riem-se, divertidos. Eu
também adoro, mas perco-me nos meus pensamentos enquanto circundo o
campo, neste sábado mais do que nunca. Enquanto deslizava, tomei
agudamente consciência da respiração que me saía das narinas e senti-me
ultra consciente do meu lugar imediato no universo: viva e presente. Senti-
me governada por uma sensação de calma e propósito mais profunda do que
alguma vez sentira, deitada na cama à noite, a refletir sobre a loucura e
maravilha da minha viagem no tempo.
Acho que a maioria das pessoas experimenta algo semelhante quando
executa uma atividade física repetitiva na qual é hábil: o corpo está
totalmente empenhado e, se se domina a habilidade, a mente fica totalmente
disponível para a exploração de si mesma. Deslizei pela pista e as outras
pessoas que ali se encontravam eram indistintas e irrelevantes para mim;
simples obstáculos, que facilmente se evitam, como pedras no caminho. Até
a minha própria família. Tinha uma vaga consciência do piso de madeira, da
cor de areia polida, e do barulho das rodas que falavam a linguagem do
movimento fácil: das rodas e peso livres, correndo numa superfície lisa. Nas
paredes em volta da grande pista de patinagem havia cartazes eletrónicos,
ao nível dos olhos, que me davam uma vaga impressão de cores vivas ao
publicitarem viagens a lugares bonitos. Eu mal tinha consciência das
imagens luminosas que mostravam montanhas e rios. Circulava sem parar
em rotações preguiçosas e fáceis.
O meu corpo ocupava-se patinar, os olhos ocupavam-se com belas visões
e, na minha cabeça, eu era livre para vaguear por um labirinto – um
labirinto visual – de pensamentos que chegavam, espontâneos: deslizava
com suavidade entre altos muros verdes de folhagem, e na minha mente vi o
Eddie, cercado por mesas cheias de bolos, mordendo uma fatia de pão de ló
e sorrindo. Tu consegues fazer isto, disse ele, olhando para as marcas de
dentes que deixara no bolo e depois outra vez para mim. Na verdade,
consegues fazer melhor. Ser mulher de um vigário, como acabaria
finalmente por ser, envolveria alguns pormenores concretos: iria a eventos
que por norma evitaria e faria muito mais bolos. Não poderia ignorar os
pedidos para oferecer pães e biscoitos caseiros. Já não iria haver uma
verdadeira vida privada para nós. Iríamos tornar-nos propriedade pública.
Estaríamos de serviço, em exposição. Mas se o Eddie fosse um político, ou
uma celebridade, a vida apresentar-me-ia as mesmas exigências. A religião
preocupava-me, em parte por causa da sua intangibilidade, mas os bolos
eram tangíveis, as angariações de fundos eram tangíveis, a bondade podia
ser tangível. Eu conseguia fazer essa parte, conseguia levá-lo a cabo e fazê-
lo bem.
Continuei a patinar, ainda a deslizar, com a vaga consciência de uma dor
agradável nas coxas e consciente também de estar em controlo do que me
cercava. Encontrei alívio ao sentir-me enraizada aqui na terra, e não a voar
pela atmosfera para outro tempo e lugar. Depressa voltei ao labirinto da
minha mente e ali virei algumas esquinas, observando as mãos à minha
frente a varrer as folhas enquanto passava por entre a tópia trabalhada com
cuidado. Vi a minha mãe e até tropecei um pouco. Vi, por um momento, o
chão a entrar em foco nítido. Num instante, estava outra vez firme e o meu
olho interior observava a minha mãe no labirinto. O seu sorriso era em parte
apologético, mas sobretudo de divertimento. Desculpa, mas só tenho isto
para te dar, disse ela, entregando-me um frasco de vidro e o seu livro de
receitas em couro. Isto deve adoçar a tristeza, disse ela, sonhadora. Olhei
para baixo e vi o livro aberto na página do pudim de tâmara. Anda ver-me,
sou a tua mãe, disse, mas quando olhei ela já se fora. Ouvi o eco da sua voz
dizer: Agora vês-me, agora não!
Pensei ter ouvido o correr de um rio, mas era o zumbido das rodas na
madeira. Sem qualquer esforço, a minha mente examinava pensamentos e
preocupações. Isto é que é a meditação? Porque nunca fiz, nunca fiz sequer
ioga, mas, se tivesse de adivinhar, isto era meditação. Continuei a flutuar
pelo meu labirinto cerebral. Enquanto o corpo permanecia na pista de
patinagem, eu estava numa bolha, sem consciência de nada à minha volta.
Senti umas madeixas do cabelo apanhado atrás a voar na brisa gerada pela
velocidade do movimento.
O verde do labirinto era sedutor. Queria inspirá-lo, mas comecei a
experimentar a mesma sensação de nervosismo que associo a estar perdida.
As visões do Eddie e da minha mãe tinham chegado de forma espontânea;
eles estavam lá com mensagens, não muito ocultas. Debatia-me tanto com a
minha mãe como com o Eddie, e com a minha responsabilidade para com
eles, e o que precisavam ou queriam de mim, o que eu precisava e queria
deles. Mas conseguia lidar com isso. A solidão do labirinto era agora mais
difícil de suportar do que as minhas responsabilidades mais óbvias; uma
solidão que parecia uma fome.
Estava certa de que o labirinto tinha mais para me mostrar, mas antes que
o centro pudesse revelar-se perante mim, bati numa parede, ou algo
parecido com uma parede. Ficara totalmente hipnotizada com as estranhas
visões oníricas e, claro, mais cedo ou mais tarde, algo iria meter-se no
caminho e perturbá-las. Neste caso, foi um homem largo que entrou no
campo e se meteu em dificuldades. Queria algo a que se segurar, para se
estabilizar, mas estava muito longe das extremidades e optou pelo chão.
Rolava lentamente, como que a tentar tocar nos dedos dos pés. Choquei
com ele a grande velocidade e rolei, desastrada, sobre as suas costas
arqueadas, aterrando com força sobre o cóccix. O embate nas minhas costas
foi sério, e o choque de ser arrancada àquela ditosa meditação e voltar ao
mundo real da dor, pessoas e interações verbais era desagradável, para não
dizer pior.
O Eddie estava com as meninas a tomar uma bebida, mas, ao ver-me cair,
veio e pôs-me de pé. Eu estava bem, e naveguei contra a circulação de
patinadores para me juntar à Esther e à Evie, enquanto o Eddie ajudava o
indivíduo sobre quem eu tombara, qual salto ao eixo.
*
– Foi horrível – disse eu, esfregando o traseiro e dando um pequeno gole
na limonada gelada que me aguardava na mesa.
– Ele acabou mesmo com o teu devaneio – disse o Eddie.
– Ele acabou com o meu estilo – disse eu, olhando para as meninas. – O
que é muito mais grave. – Eles riram-se.
– Agora a sério, estiveste a patinar em devaneio durante meia hora.
– A sério? – disse eu. – Meia hora!
– No mínimo – disse ele, olhando para o relógio. – Deves estar exausta.
– Sedenta – disse eu, esvaziando a bebida. Dei umas moedas às meninas e
pedi-lhes que me trouxessem mais uma. Adoravam ir buscar bebidas de
patins: servir à mesa numa situação de perigo.
– Estavas num mundo próprio – disse o Eddie. Ele estava deslumbrante
com uma camisola preta de gola redonda e calças de ganga de cintura baixa.
O cinto que usava comprei-lho eu nas nossas bodas de couro. Não me
lembro de quantos anos são.
– Estava – disse eu. – Estava a sonhar acordada. A meditar, acho.
– Ali? – perguntou o Eddie, um tanto incrédulo. Olhei de volta para a
pista e concordei que daqui parecia tão distante de um local de meditação
quanto era possível.
– Devo ter desligado do mundo. Estava sozinha com os meus
pensamentos.
– E não nos revelas?
– Pensei em ti, em ser mulher de um vigário, no papel que irei assumir
quando um dia fores ordenado, e como lidarei com isso. Pensei na minha
mãe, em como gostaria de poder vê-la.
Ele deu-me a mão.
– E pensaste isso tudo ali? – Ele abanou de novo a cabeça em direção ao
ruído, da música e da barafunda de malta e membros vacilantes.
– Já sentiste estar tão perdido em pensamentos que não deste conta de
nada ao teu redor? – perguntei.
– Já me perdi em pensamentos, mas geralmente em lugares pacíficos.
Olhei para as meninas, que estavam no balcão a pedir a bebida. A Evie
era como um veado bebé no gelo, atrapalhando-se com o dinheiro e
tentando entregá-lo ao homem que as servia. Eu estremeci.
– Elas ficam bem – disse o Eddie. – Não olhes! Estamos demasiado longe
para as apanhar, se caírem. – Verti o gelo do fundo do copo para a boca e
trinquei-o. – Seres capaz de afastar toda esta interferência e concentrares-te
no teu mundo interior é uma habilidade, Faye. Encontrar a paz na
devastação da vida quotidiana é algo a que aspirar.
– É perigoso, isso é que é – disse eu. – Quase matei um homem. – As
meninas voltaram. Engoli metade da bebida e deixei-as dividir o resto entre
elas; as bebidas com gás raramente são permitidas. Depois bati palmas. –
Mais patinagem? – perguntei. – Ou está na hora dos hambúrgueres?
Todos votámos nos hambúrgueres e, durante o resto do dia, permaneci no
mundo real e voltado para o exterior. Foi divinal.
12

D epois meteu-se França ao barulho, o que significava que não precisava


de mentir ao Eddie nem de fugir à socapa a meio da noite para regressar
aos anos setenta. Ele decidiu arranjar espaço para uma viagem antes do fim
das férias de verão e levar as meninas. A princípio, assumiu que eu iria com
ele, o que foi um pouco constrangedor, mas eu disse-lhe que seria bom ter
algum tempo só para mim. Adoraria ter tempo a sós, disse eu. Ele olhou
para mim como se a tentar ler-me a mente, mas depois disse apenas que
compreendia. Quero dizer, todos precisamos de tempo para nós mesmos;
tenho a certeza de que vocês já sentiram essa necessidade. Ter filhos
pequenos torna-nos ávidos da oportunidade de não estar constante e
intensamente alerta, faz a boca salivar perante a ideia de não olhar para o
relógio ou saber sequer a hora. Portanto, não era um pedido despropositado.
E eu imaginava o Eddie e a mãe a conversar noite dentro, à sua maneira
particular, depois de as meninas adormecerem, sem eu estar lá para dar cabo
da oportunidade de serem completamente francos um com o outro. Acho
que as pessoas subestimam o quanto a sua presença interfere com a forma
como as coisas seriam se não estivessem lá, e eu sabia que a visita do Eddie
à mãe, desta vez, seria melhor para ele se eu não fosse.
E é claro que eu queria ficar sozinha para visitar a minha mãe. É muito
mais fácil ser egoísta quando nos convencemos de que é melhor para os
outros.
Sempre que eu entrava no trabalho, depois das revelações ao Louis, ele
contactava-me, querendo falar sobre aquilo. Eu também queria, mas para
mim parecia mais sério. O Louis deliciava-se um pouco de mais com tudo
aquilo, como se fosse um jogo, um enigma trivial e desafiante, por oposição
a uma viagem extremamente perigosa ao desconhecido. Mas não o posso
criticar, porque o adoro. É que ele levou a sério a logística, mas não o lado
emocional. Eu sabia como voltar para a minha mãe, o meu corpo
aguentava, pensei. Mas e o meu coração?
Quando o Eddie partiu para França, fiquei muito aliviada. Ter uma boa
oportunidade de visitar a minha mãe fora a minha prioridade e, agora que
isso estava resolvido, os perigos todos começavam a afligir-me; passavam-
me pela cabeça outras coisas bastante assustadoras. Assustadoras de uma
maneira diferente da ideia de nunca voltar para junto dela, quero dizer.
Porque isso era uma preocupação: nunca mais voltar para junto dela. Mas
na realidade, quem perdeu a mãe tem de lidar com isso.
O risco de lesões estava no topo da minha lista de preocupações.
Primeiro, tirei a caixa do sótão e pousei-a na cama. Olhei para ela, cocei o
queixo, depois arrastei o colchão para o chão e rodeei-o de almofadas;
aterrar ali seria muito mais fácil do que aterrar no sótão. Sem farpas, para
começar. Depois retirei do armário braçadas de roupa nos cabides –
precisava de algo que pudesse ser bom para viajar no tempo – e amontoei-as
na estrutura da cama. O Louis sugerira agasalhar-me bem, o que era uma
ótima ideia, mas a minha camada inferior de roupas teria de ser aceitável
para os anos setenta. Tinha uma saia às flores e uma blusa, mas uma saia
não parecia um bom traje de viagem no tempo – sem grande consistência –,
por isso vesti um par de calças de ganga azul-claro à boca de sino e as
sapatilhas de lona brancas. Tinha uma sweatshirt de mangas verdes e o resto
em branco, que me dava um ar suficientemente retro, mas era demasiado
fina para me proteger na viagem. Eu precisava de algo esponjoso e grosso,
portanto comecei a apertar camisolas entre os dedos. Quando me lembrei do
fato de esqui do Eddie, sorri. Ficar-me-ia enorme, o que era um bónus, além
de ter capuz.
E foi assim que dei por mim no quarto, de pé, numa luminosa tarde de
agosto, por volta das oito e meia. Tinha comido e bebido muita água,
porque parece sempre prudente hidratar bem. Vestia roupa de todos os dias
ao estilo anos setenta, com um casaco por cima, porque achava que no
passado seria janeiro ou fevereiro. E depois tinha o grande fato de esqui
vermelho. Enfiei uma balaclava, depois pus para cima o capuz do fato de
esqui e puxei as cavilhas para o apertar bem. O Louis sugerira luvas, e eu
calcei umas luvas de esqui que apertavam nos pulsos com velcro e eram
feitas de algo sintético e duro. Virei-me para o espelho de corpo inteiro e
cumprimentei-me. Parecia um astronauta com um uniforme desesperado,
feito de artigos de lojas de caridade, ou um ladrão vistoso e sem estilo. Um
fio de suor descia-me pelas costas enquanto eu caminhava devagar em
direção à caixa: um astronauta do faz-de-conta pronto para a descolagem.
Quando entrei na caixa, tentei não pensar no que poderia estar prestes a
acontecer. E pensar que costumava ter medo de voar num avião confortável
e seguro. Pensar que tinha medo de aranhas, por amor de Deus, quando
havia tanto de que ter medo. Quando entrei na caixa de cartão tinha a boca
seca, apesar dos esforços de hidratação. O colchão era uma plataforma
incómoda e preocupava-me poder rasgar o fundo da caixa.
Esperei ali, a transpirar: com algum calor e muito medo. Imaginei, como
já fizera, o Eddie a encontrar-me desmaiada enquanto eu sonhava que
estava de volta ao passado, com a minha mãe. Como seria para ele
encontrar-me aqui, assim, quando regressasse, dentro de uma semana?
Como um enigma: uma mulher é encontrada vestida com um fato de esqui
desproporcionado, a meio do verão, numa caixa de cartão pousada num
colchão no chão do quarto. O que aconteceu?
Ele debater-se-ia para encontrar uma solução lógica.
Enfim, isso não aconteceria. Eu não estava a sonhar, isto era real. Mas
não me parecia que fosse a algum lado. Estava na caixa talvez há um
minuto (o tempo é relativo e parecia-me mais) e comecei a entrar em
pânico. O atraso dava-me demasiado tempo para reconsiderar. Fui inundada
por ondas de calor e frio e pensei num polvo que vi num programa da
natureza, cujas cores ondulavam e mudavam. Tentei decidir se tinha ou não
tempo de sair da caixa antes que ela me arrancasse à minha família e à
minha casa. De repente, percebi que devia ter deixado um bilhete ao Eddie,
não fosse dar-se o caso de nunca voltar. Independentemente de as minhas
palavras parecerem as divagações de uma louca. Tinha de lhe deixar algo,
senão era muito cruel. Ele estaria em França toda a semana; eu tinha tempo,
e decidi que devia escrever uma carta. Mas, quando me preparava para sair
da caixa, o mundo abriu-se sob os meus pés e caí, como pela porta de um
alçapão.
A velocidade com que caí está para lá de uma descrição adequada. Vocês
provavelmente caíram, a certa altura, ou falharam um degrau ao descer as
escadas, ou tombaram do passeio quando se aproximaram demasiado da
berma. Aquele desamparo nauseante, a vaga de adrenalina, os nervos em
franja. Mas esses momentos duram apenas uma fração de tempo. Menos de
um segundo. Quando a queda continua sem parar, é isso que não consigo
descrever. Eu pensara nisso e esperava que, se caísse por tempo suficiente,
talvez me habituasse e seria mais como cair de paraquedas. Mas cair a pique
pelo nada era implacável. Eu sentia-me como uma bola de críquete lançada
de um avião.
O mínimo que podia fazer era tentar respirar. Isso eu tinha praticado. O
afluxo do ar tornara-o quase impossível da primeira vez, mas o capuz de
esqui, mole e apertado em volta do rosto, ajudou. Ofeguei, respirando
rápida e superficialmente. A respiração era quente, e lembrou-me de estar
numa cama fria no inverno, da cabeça por baixo das cobertas, a tentar
produzir calor. Lembrei-me de a parteira dizer «Respira» enquanto eu dava
à luz e, à medida que me lançava entre um espaço e outro, pensei: Isto é
mais como dar à luz ou como nascer?
Envolvi o corpo com os braços. Da primeira vez que caí pela caixa, os
braços dispararam-na acima da cabeça e a força impediu-me de os baixar.
Desta vez, agarrei-me e disparei pelo ar como um membro da tripulação de
um trenó com o ar fresco como pista, ou uma louca de camisa de forças.
Assim, continuei a respirar e segurei-me firme. O facto de saber o que
estava a acontecer ajudava; saber que veria a minha mãe novamente fazia
com que tudo valesse a pena. Como antes, comecei a abrandar. Deixei-me
cair para a frente e comecei a descer, a cabeça primeiro. Da última vez, vira
luzinhas de Natal a acelerar na minha direção, mas desta vez houve um
desanuviamento na obscuridade, mas nenhum caleidoscópio de cores.
Imaginei que era assim porque desta vez me dirigia para o barracão e não
para a árvore de Natal na sala de estar. Foi impossível manter os braços à
minha volta quando caí de cabeça e eles dispararam, como se estivesse a
mergulhar: a natureza insiste em sacrificar os braços pelo cérebro. Senti o
aperto ao redor do peito e tentei manter-me calma quando não consegui
respirar; sabia que ia parar, mas, mais uma vez, a natureza programa-nos
para nos alarmarmos quando a respiração é ameaçada. Estendi os braços,
desesperada para chegar ao destino, sabendo que significava ar para
respirar, tranquilidade e a minha mãe.
Depois entrei no mundo de braços estendidos. A caixa partiu-se de um
lado – um painel a separar-se habilmente do resto à medida que eu
derrapava para a frente pelo fundo do barracão a alta velocidade. Uma das
minhas mangas ficou presa a algo e subiu enquanto eu disparava pelo
espaço curto, expondo-me o braço e deixando entrar as farpas. Depois,
muito depressa, a minha cabeça encontrou a porta do barracão com um
baque. Apercebi-me de um zunido abafado nos ouvidos, e deixei-me estar
quieta por uns longos segundos, a tentar avaliar os danos antes de me
atrever a mexer-me. Acho que parecia um velho fantoche que fora atirado
contra uma parede, mas estava ofegante e consciente e, ao que parecia, não
partira nenhum osso, e isso já era bom. Endireitei-me com cuidado até ficar
sentada na escuridão, de pernas estendidas, com as costas contra a porta.
Pus os dedos dentro do buraco franzido do capuz e abri-o, enchendo com
felicidade os pulmões de ar, por mais viciado que fosse. Soube-me a sangue
e tirei as luvas para tocar o lábio, que mordera. Tateei pelo corpo sentindo
apenas algumas pisaduras. Pus-me de pé com cuidado, agradecida por não
ter ferimentos, mas ainda com dores do impacto e a sentir-me desorientada.
No espaço apertado, abri o fecho do fato de esqui e puxei-o para baixo,
esforçando-me para o fazer passar nos pés. Pôr-me num pé não foi
necessariamente o movimento mais prudente, pois o sapato prendeu-se na
dobra elástica no tornozelo e eu tombei para a frente, como uma bêbada aos
tropeções. Na fração de segundo que demorou a chegar ao ponto de inflexão
e saber que ia cair, detestei-me. O meu rosto bateu na porta do barracão com
um baque e senti a pele a raspar, como em lixa, antes de eu aterrar num
monte, no mesmo sítio onde havia chegado. Deitei-me, por momentos
imóvel, antes de arrancar o fato com irritação e o atirar para longe.
13

H esitante, abri a porta do barracão e vi que o meu jardim do passado


estava sereno no ar quente da noite. Eu esperava o inverno, mas,
imaginei que fosse o fim da primavera, talvez até do verão, o que significa
que haviam passado pelo menos seis meses desde a minha última visita. Só
esperava que ainda fosse 1977 e a minha mãe ainda estivesse viva.
Fui direta pela lateral da casa à porta da frente, bati e esperei. Sustive a
respiração ao ver uma luz calorosa mover-se atrás do painel de vidro fosco
da porta, e depois movimento. O barulho de uma corrente e a porta a abrir.
Fui atingida por duas coisas: os olhos bonitos, sonolentos e sorridentes da
minha mãe e o cheiro verde terroso a haxixe. Por momentos, a sua
expressão ficou como um ponto de interrogação, depois como um ponto de
exclamação. Soltou um arquejo e inclinou-se para frente, com as pulseiras a
balançar nos braços, estendendo-se e apertando-me o rosto nas palmas das
mãos com delicadeza.
– Meu anjo da guarda – disse ela. A voz era indolente como mel. – Minha
amiga-irmã. Estava a pensar quando te veria novamente.
Senti um nó na garganta e estendi a mão para tocar na da minha mãe,
pousada na minha face. Os seus dedos pareciam muito quentes e
sedutoramente reais. Fechei os olhos, agarrando-me ao momento.
Ela deu-me a mão e levou-me para dentro de casa. Senti-me como uma
criança, segura por saber que a mãe ia indicar o caminho, garantir que eu
estava no sítio certo e que nada de mal me aconteceria. Como tinha
desejado que a minha mãe cuidasse assim de mim, e como encarnei
facilmente esse papel vulnerável. Talvez por tê-lo desejado, sabia como ser
filha dela. Não o teria previsto; teria previsto achar difícil regressar à
menininha que deixei de ser quando perdi a minha mãe. Mas parecia que a
criança que havia em mim estava apenas atrás de uma porta fechada, não
trancada.
A luz das velas iluminava a sala de estar. Uma linha fina de fumo branco
levantava-se de um charro equilibrado num cinzeiro grande e grosso, na
ampla mesa de centro de madeira em que eu batera muitas vezes com os
dedos dos pés em criança.
– Senta-te – disse ela, estendendo a mão na direção do sofá. Sentou-se
numa grande almofada no chão, cruzou as pernas e depois inclinou-se,
pegou no charro e passou-mo. Não me mexi para pegar nele e ela fez um
gesto como que a dizer Anda lá. Talvez soe ingénuo, mas eu não sabia que a
minha mãe fumava. Quer dizer, nem sequer um cigarro, e aqui estava ela a
fumar droga. Surpreendeu-me o quanto fiquei chocada naquele momento.
Não sou puritana, tenho amigos que fumam charros esporadicamente e já
sabia que a minha mãe era um tanto hippie, mas por algum motivo
magoava-me perceber que ela fumava, e também que fumava sozinha. Eu
só o fizera na faculdade, com amigas. Não saberia sequer como enrolar um.
Ao olhar para ela, perceber que era uma fumadora experiente, compreendi
que era refém das mesmas ilusões que as minhas filhas tinham em relação a
mim, nomeadamente que assumia que a mãe nunca fizera nada censurável
e, com certeza, nada ilegal.
Ela aproximou-se um pouco mais, para me instigar a pegar nele, o que fiz.
Dei uma passa.
– Isto não te faz bem – disse-lhe.
A minha mãe sorriu e assentiu.
– Há muito que não o faço. É só um pequeno prazer de vez em quando. –
A Jeanie sentou-se no tapete, empoleirada numas almofadas, com as pernas
abertas e os pés descalços de plantas unidas. A saia comprida reunia-se no
espaço criado no seu colo, como uma grande taça pintada. Ela olhava-me,
com um pequeno sorriso a pairar-lhe nos lábios. – Sempre que te vejo, estás
toda arranhada – disse. – Parece que andaste à luta com um gato. – Sorriu. –
E que o gato ganhou.
Dei mais uma passa no charro, senti o fumo chegar-me aos dedos dos pés
por dentro, e não ficou preso na garganta nem nada. Era bom. Senti-me
calma.
– Eu venceria um gato numa luta – disse eu.
– Vencerias um cão? – perguntou ela.
– Talvez, se fosse pequeno – disse eu, a sorrir.
– Oh, não sei, acho que um pequeno seria todo agressivo e difícil de
segurar. – Pegou numa almofada e fingiu lutar com ela. – Eu sair-me-ia
melhor contra um cão grande. – Inclinou-se para a frente para me tirar o
charro e recostou-se. Atirou um braço para trás da cabeça de modo
extravagante, fechou os olhos ao inspirar profundamente e soprou sem
pressa uma fina corrente de fumo.
Depois de um silêncio longo e pacífico na luz ténue da sala, quase me
esqueci do que falávamos. Estava distraída com a natureza real da minha
mãe, a autenticidade de ela estar aqui, na mesma sala que eu. A sua pura
existência e tangibilidade. Deixei que as sensações me inundassem, sabia
bem estar em casa.
A Jeanie emitiu um som cantarolado. Estava muito pedrada.
– Eu não teria de lutar com um urso – disse ela, com os olhos ainda
fechados. – Poderia encantá-lo até me obedecer.
– Um urso rasgar-te-ia em pedaços – disse eu.
– Não – disse ela, acenando de modo indolente com a mão e continuando
a fumar. – Já conheci ursos e encantei-os a todos. Ursos humanos. – As suas
pálpebras abriram-se um pouco e vi o esforço que fez para se concentrar em
mim. Apontou para mim com o charro fino. – Os ursos humanos são
peludos por dentro, portanto tem cuidado! – Eu ri-me e ela também e,
depois de algum tempo, ela levantou-se com um esforço vacilante,
estendendo as duas mãos para eu me pôr de pé. Ligou o braço ao meu e
encostámo-nos uma à outra como duas velhinhas a ajudarem-se a atravessar
a rua. – Sabes, nunca faria mal a um animal – disse ela. – Sou vegetariana.
– Mas encantarias um urso? – perguntei.
– Ah, sim – respondeu, endireitando-se e rodando o ombro de maneira
sedutora. – Faz parte da minha natureza.
*
Eu estava demasiado faminta para fumar, perto de desmaiar, e fiquei com
água na boca quando a minha mãe me empurrou para a cozinha e cortou
uma fatia de pão. Eu sentia-lhe o cheiro e, quando ela espalhou a manteiga
numa camada espessa, quase saboreei a sua frescura suave. A luz do
frigorífico iluminou-lhe o rosto de uma maneira angelical e ela ergueu um
frasco de compota como se fosse o Santo Graal.
– Queres disto? – disse.
– Foi o Henry que fez? – perguntei a sorrir.
– A melhor compota da cidade – respondeu.
– Dá-ma. Espessa!
Nunca me soube tão bem pão com manteiga e compota de ameixa como
quando ali estive sentada a comer com a minha mãe, o nosso gozo
intensificado pelo fumo nos pulmões. Só acenávamos com a cabeça e
gemíamos de gratidão. A Jeanie atirou a cabeça para trás e suspirou alto,
lambendo a compota dos lábios e depois o prato.
– Gulosa – disse eu, e ela deu uma gargalhada.
– Onde tens andado? – perguntou, quando restavam apenas migalhas à
nossa frente. – Sempre quis descobrir onde moras, para poder aparecer e
ver-te. Mas, quando foste embora, percebi tarde de mais, foi como fumo no
ar. Desapareceste. – A mão dela gesticulou no ar enquanto dizia isto,
imitando o fumo a subir do cinzeiro.
– Não pretendia ficar ausente tanto tempo – disse eu. – Mas vocês têm as
vossas vidas, tu e a Faye. Eu não queria interferir e ser um incómodo.
– Pateta – disse a minha mãe. Levantou-se da mesa da cozinha e dirigiu-
se outra vez para a sala. A sua saia era longa, arrastava pelo chão, e ela
parecia planar de uma divisão para a outra. – Quase me feriste os
sentimentos – disse ela por cima do ombro. Vi que falava a sério, embora
fingisse que não.
Deixando-se cair de novo nas almofadas, enrolou mais um charro e eu
observei-a, no nosso silêncio confortável. Inspirou, descontraída, e fumar
pareceu ótimo. A minha mãe sabia mesmo como o fazer.
– Eu e a Faye estamos sozinhas, não recebemos muitas visitas e tu és
especial. Primeiro: salvaste a vida da Faye, e segundo, nós temos uma
ligação. – Apontou para mim e para si mesma. – Não fui a única a senti-lo.
Certo, irmã? És o meu anjo da guarda, portanto, não podes ser um
incómodo.
O seu sorriso aberto e fácil exibia a confiança que tinha em saber que não
estava sozinha no que sentia. Eu concordei.
– Temos definitivamente uma ligação. Mas tem-me sido difícil voltar cá.
– Eu compreendo – disse ela. Embora não pudesse compreender.
*
Devo ter adormecido porque, quando abri os olhos, tremeluziam muito
mais velas e a minha mãe segurava um copo de água junto aos meus lábios.
Dei um pequeno gole e senti cada molécula do líquido frio a fluir para os
recantos mais remotos do meu ser, encontrando os floreados rebuscados dos
pulmões secos. Tirei-lhe o copo e esvaziei-o.
– Quando foi a última vez que bebeste? – perguntou a Jeanie.
– Nem me lembro – respondi.
– Tu és estranha, Faye. Estavas a falar enquanto dormias. – Afastou-me
uma madeixa de cabelo do rosto. – «Mãe, tenho sede», dizias. Pensei: bem,
quem está com sede em sonhos provavelmente tem sede na vida real. E
pareces tão cansada. Queres passar cá a noite?
Assenti. Ela pegou no copo, virando-se para o pousar na mesa de madeira
baixa atrás dela, onde se encontrava uma taça com água turva. Como fizera
durante a minha última visita, a Jeanie tratou com Dettol os arranhões que
eu tinha na cabeça. E não fora só da última vez que cá estivera que o fizera:
este era o cheiro dos joelhos a formar crosta, o cheiro de uma infância
passada a brincar ao ar livre, com uma mãe em casa, à espera para fazer
com que ficasse bem de novo.
A minha mãe ajoelhou-se no chão à minha frente. O seu cabelo, que
estivera a ondular-se-lhe em volta dos ombros, estava agora amontoado em
desalinho no cimo da cabeça.
– Faye. – A sua voz era suave e parecia vir de muito longe. Os meus
olhos fugiram para ela. Sentia-me com muito sono por causa da droga e,
creio, da viagem difícil, mas vi que o seu rosto estava sério. – Faye – disse
ela de novo, segurando a minha mão na dela –, acho que me foste enviada,
acho que és o meu sinal.
– Um sinal de quê? – perguntei.
– Um sinal de que estás destinada a fazer parte da vida da Faye, e da
minha. Uma vidente disse-me que entraria na nossa vida uma mulher que
cuidaria de nós.
– Uma vidente? – disse eu, um pouco a rir.
– Não te atrevas a rir-te de mim – disse ela, e eu parei. – Sim, uma
vidente. Ela disse que eu deveria cuidar dessa mulher, porque ela seria
importante na nossa vida. Disse que a minha filha iria crescer sem mãe e
que eu precisaria da ajuda dela. – A voz e os olhos mostravam-se graves.
– Ela não devia ter dito coisas dessas – afirmei, espantada com a exatidão
da vidente.
– Mas disse – insistiu a Jeanie. – E não me importa se acreditas nesta
merda ou não, porque eu sinto-o – pressionou a mão com força no coração –
aqui. Pode não ser um facto científico, mas eu acredito, é a minha verdade,
o meu sinal. Por isso, vou precisar da tua ajuda, está bem?
– Está bem – respondi, esboçando um sorriso ténue. Ela pegou-me no
rosto com as duas mãos e beijou-me, afastando-se para me olhar com um
ardor tão intenso e completo que transformou o meu sorriso fraco num
hercúleo.
– O que disse quando te deixei entrar era a sério. – Pensei nas primeiras
palavras que ela me disse, mas não consegui lembrar-me. Abanei a cabeça
delicadamente. – Tu és o nosso anjo da guarda.
A Jeanie fez chá e pôs-me nas mãos a minha caneca favorita do Mickey
Mouse.
– Adoro a luz das velas – disse eu, desfrutando do aconchego e
proximidade do tremeluzir nas paredes.
– Houve um corte de eletricidade. Há sempre um corte de eletricidade. –
A Jeanie sentou-se na almofada com as pernas cruzadas por baixo. Eu já
não conseguia sentar-me assim, doeria demasiado quando me levantasse.
Ela bebeu um gole de chá numa enorme chávena fumegante, depois pousou-
a de forma decidida e levantou-se. – Segue-me – disse. Assim fiz.
Conduziu-me pela cozinha e saiu pela porta das traseiras, onde me disse
para esperar.
A Jeanie deu a volta pelo lado da casa e voltou com um escadote, que
manobrou desastradamente, como se se tratasse de um manequim enorme.
Na altura em que fui ajudá-la, ela tinha-o inclinado sobre a vedação e contra
uma árvore no jardim do vizinho, e começara a subir.
– Meu Deus, o que estás a fazer? – disse eu.
– Não blasfemes. Estou a subir um escadote. – Ela deslocou-se para a
curva do cimo do tronco, com o pé a elevá-la do degrau mais alto. Vi-a
esticar-se e içar-se mais alto e para o lado, até ficar empoleirada num ramo
que não parecia muito largo. Pensei vê-la sorrir, mas a escuridão e as
sombras da árvore não me permitiam ver muito. Só via com nitidez os seus
pés a balançar e a afastados, como a Mary Poppins quando desce, a segurar
o guarda-chuva.
– Toca a subir – chamou-me.
– Não! – respondi.
– Anda lá – disse ela.
– É muito alto – murmurei em voz alta. – E a árvore não é tua. – Ela não
respondeu. Eu, irritada, pus um pé no escadote e apoiei o meu peso nele,
para ver se escorregaria. Ajustei-o um pouco para que a base ficasse fixa
com mais firmeza no relvado e fosse menos provável escorregar. Quando
cheguei ao topo sentia-me ofegante, sem saber o que fazer a seguir. Já via o
rosto da Jeanie e os seus dentes, pois ela sorria-me. Parecia relaxada.
Poderia estar numa cama de rede.
– Medo das alturas? – perguntou.
– Medo de cair – respondi, soando mais adulta do que gostaria.
– Só devias ter medo de aterrar – disse ela, com um tom de riso na voz. –
Aterra bem, é esse o meu conselho. Não te preocupes com as alturas nem
com as quedas; simplesmente aterra sempre como um gato.
– Não precisas de aterrar bem se não subires às árvores, para começar –
disse eu, pensando na caixa e em como por vezes a queda valia a pena. Mas
isto não valia.
Tentei içar-me, mas não conseguia segurar-me bem. Todos os ramos
pareciam flexíveis. A Jeanie agarrou-me o pulso e puxou. Ofegante,
esforcei-me por conseguir uma posição sentada. A Jeanie era como um
pardal que parece confortável sentado num cabo telefónico, tão à-vontade
que estava. Eu sentia-me como um pombo desajeitado, tentando continuar
equilibrada.
– E se eu cair? – perguntei.
– Não cais.
– E se cair? – disse, insistente.
– Já te disse: aterra bem. – Olhou para mim e soltou um riso abafado. –
Anda lá, aposto que já fizeste coisas mais arriscadas do que isto – disse. –
Venho muitas vezes para aqui, ver as estrelas.
A Jeanie meteu a mão no bolso e tirou outro charro. Protegeu com as
mãos um fósforo, que flamejou e morreu, a lutar contra o que parecera ser
uma brisa muito ligeira até termos subido para aqui, onde o ar era mais
vivo. Depois de três tentativas, acendeu-se e ela pareceu recostar-se, de
alguma forma. Devia haver por trás dela um ramo que eu não conseguia ver.
Deu uma grande passa e exalou. Vimos a pequena nuvem de fumo sair pela
noite.
– Tenta relaxar – disse ela, passando-me o charro como se fosse médica e
aquele o medicamento. Agarrei-me a um ramo como que aos destroços de
um naufrágio que me salvariam a vida e inclinei-me para pegar no cigarro.
Como ela, dei uma longa passa, mas não lho devolvi logo. Encontrei um
bom apoio num ramo e, na respiração seguinte, enchi os pulmões. O céu
girou ligeiramente, mas desta vez não me importei muito.
– És uma incauta – disse eu, conseguindo sorrir enquanto lhe devolvia o
charro.
– É só uma árvore – disse ela.
– Somos mulheres adultas – respondi.
– Suponho que sim – disse a Jeanie. – Só tenho vinte e cinco anos.
Sempre me senti adulta, mas talvez tenha sido sempre só uma criança.
Ela inspirou fundo e fez anéis de fumo que começaram bem, depois
cresceram e ondearam à medida que subiam para as folhas por cima de nós,
tornando-se menos definidos e desaparecendo na folhagem escura. Ficámos
sentadas em silêncio algum tempo, não falámos, mas o som das folhas lá em
cima era mais alto do que eu imaginava; sussurravam e silvavam como uma
vassoura seca em chão duro. As estrelas brilhantes iam cintilando, enquanto
os ramos mais finos balançavam e as folhas ora revelavam, ora
obscureciam, o céu em cima. Estava sereno e fresco e havia uma qualidade
onírica intensificada pelo sabor a erva do fumo, pela passagem cadenciada
do cigarro para a frente e para trás, e pelo ondular suave do nosso poiso.
– Tenho de ser mais cauta – disse a Jeanie. A voz soava lenta e indistinta.
– O que é cauta? – perguntei. Também a minha voz se entaramelava.
Tinha a boca seca, sentia a saliva espessa ao falar.
– Não sei – disse a Jeanie. – Pergunto-me se será o oposto de incauta.
– Oh, certo. Sim, se alguém pode ser incauta, então também pode ser
cauta? – disse eu, ponderando sobre aquela palavra que era nova para mim
e, tanto quanto eu sabia, não existia. – De qualquer forma, Jeanie, tens de
ter mais cuidado. Tens de tomar conta de ti mesma, tens responsabilidades.
Não devias andar a subir às árvores.
A Jeanie resmungou e, durante bastante tempo, nenhuma de nós falou.
– Quero que a Faye suba às árvores – disse. E eu sentia o mesmo em
relação às minhas filhas, mas o medo de estar ali em cima, de me magoar,
de não ser capaz de voltar para casa porque caíra do raio de uma árvore ou
algo do género distorcia-me os pensamentos.
– O oposto de implacável é placável, sabias disso? – disse ela.
– Nunca tinha pensado nisso – disse eu.
Ficámos ali, quase sempre em silêncio. De vez em quando, uma de nós
dizia cauta, enfatizando o final satisfatório da palavra.
Depois do que pareceu muito tempo, durante o qual de certa forma me
instalei confortavelmente na árvore, virei-me para a Jeanie.
– O que é que aquela cartomante disse que te fez pensar que eu sou um
sinal?
– Que uma mulher irromperia pelas nossas vidas – disse ela, e sorriu,
virando-se para mim. – E foi isso que fizeste quando chegaste às nossas
vidas pela primeira vez. Impediste a Faye de ser atropelada por aquele
carro.
Pensei vagarosamente em como tinha sido arremessada pela atmosfera,
uma volta de montanha-russa a alta velocidade, sem cinto (e sem montanha-
russa), e como tinha irrompido por baixo da árvore de Natal, e irrompido
pelo barracão um pouco mais cedo, naquela noite.
Não disse nada durante bastante tempo, depois continuei:
– Não achas que sou apenas uma pessoa que calhou estar no lugar certo, à
hora certa?
– Não – disse ela, enfatizando o som do n no início da palavra. – Sei que
achas que isto da vidente é uma estupidez, mas sempre tive a sensação de
que não vou chegar a velha, Faye. Sabes o que quero dizer com isto?
A minha boca estava mais seca do que nunca e eu tinha dificuldade em
engolir, como se o corpo houvesse esquecido o que fazer. Olhei para a
minha doce mãe por um instante, e depois para o céu, sabendo com total
certeza que ela tinha apenas cerca de um ano de vida. Em resposta à sua
pergunta, abanei a cabeça. Senti um ardor nos olhos e deixei rolar uma
lágrima, despercebida. Se uma amiga me dissesse que achava que morreria
nova, eu tentaria convencê-la do contrário. Mas sabia que a minha mãe
estava certa.
Ela fez uma pausa e acendeu outro fósforo. A chama ganhou vida, como
que com medo de nunca ter a oportunidade de ser uma luz no mundo, tanto
que quase se apagou instantaneamente. A minha mãe protegeu-a com as
mãos e permitiu-lhe brilhar, levando aos lábio a ponta atarracada do
pequeno charro e inspirando, para o trazer de volta à vida.
– Porque achas que não vais chegar a velha? – perguntei, pensando na
premonição que eu sabia estar correta.
– Não sei, sinto apenas que não me vou demorar neste mundo. Os meus
pais morreram novos e acho que sinto fazer parte desse padrão. Não consigo
imaginar ser mais velha. Quer dizer, não consigo mesmo, mesmo visualizá-
lo, é como se não estivesse lá para mim. Não estivesse escrito. E todos os
anos fico com umas tosses terríveis, tenho a certeza de que um dia vão
matar-me.
– Vai ao médico, vê o que é, para de fumar – afirmei com insistência.
Ela abanou a cabeça.
– Nada de médicos. Na minha experiência, os médicos matam-te mais
depressa, e eu não faço isto muitas vezes – disse ela, segurando no ar o
toquinho de charro. – No que estou realmente interessada é em procurar
algo que me faça sentir que a Faye ficará bem, independentemente do que
me acontecer. Quero saber que ela será amada, será feliz, viverá bem sem
mim. Sempre achei que seria boa ideia rodear-me de pessoas boas que
poderiam ajudar, ser uma rede de segurança para ela. Mas, seja como for,
isso não aconteceu. As pessoas na vida em quem confiei são boas, mas não
sensatas, não do tipo que seria bom para tomar conta de uma criança. A
Faye nunca foi batizada, mas eu gostaria que tivesse sido, porque deveria ter
padrinhos. Falhei aí. Tu és o tipo de pessoa que eu teria escolhido, o tipo de
pessoa que poderia preencher o que eu não serei capaz de prover à minha
filha. És como alguém que já conheço bem.
– Só nos encontrámos duas vezes – disse eu, sem querer, e falei tão baixo
que mal conseguia escutar a minha voz, mas a Jeanie ouviu.
– Não importa – disse ela. – Há pessoas que conheceste a vida toda e não
as conheces, não consegues ligar-te, é tudo superficial. E depois há pessoas
como eu e tu. Ligação instantânea. O tempo e a frequência não são
relevantes quando se trata de assuntos como este.
– Como ficaste tão sábia? – perguntei.
Quase a ouvi sorrir.
– Pensei que tivesses dito que sou incauta. – Eu não disse nada. Ela fez
uma pausa, enquanto pensava naquilo. – Autopreservação, acho eu, muita
leitura, o tipo de conselho e ensinamento que encontras em festivais.
Nessa altura, a brisa retomou. Os meus braços e pernas cobriram-se de
arrepios e eu quis descer.
– Tenho pensado em ti desde a primeira vez que apareceste na minha vida
– disse a Jeanie. – Há algo em ti, algo tão forte e tão familiar que não
consigo ignorar. Só sei que seremos amigas, e que poderás sentir-te
desconfortável porque estamos a apenas dois encontros de sermos perfeitas
desconhecidas. Mas tenho morrido de vontade de te pedir, e prometi a mim
mesma que o faria da próxima vez que aparecesses na minha vida. E depois
preocupou-me que pudesses pensar que era um pouco cedo, mas, mesmo
assim, prometi a mim mesma que te pediria ajuda, aconteça o que
acontecer.
– O que é? – disse eu.
– Se me acontecer alguma coisa, quero que tomes conta da Faye, que
sejas madrinha dela.
– O quê? – disse. – Jeanie, tu mal me conheces, deves escolher alguém
que conheces há mais tempo.
– Mas nós não temos ninguém, eu e ela, nenhuma família, nenhum amigo
em quem confiar. Sei que tu és o tipo de pessoa certo. Repara em como foi
ao vires para aqui: o tipo de pessoa que olha antes de saltar, mas depois
sobe na mesma. Eu... Eu sou diferente, mas acho que vimos do mesmo
ponto de base. Tu tens filhos, deves ser capaz de compreender o que sinto.
E vamos conhecer-nos melhor com o tempo, por isso agora estou só a deitar
isto cá para fora, sabendo que estou certa quanto a ti. Então, se eu morrer,
ficas com ela?
Senti-me tonta e nauseada.
– Podemos descer daqui? – perguntei. – Estou com frio.
Ela aproximou-se e pousou a mão na minha.
– Aposto que és melhor mãe do que eu – afirmou. Eu soltei um arquejo,
sentindo a aflição que me invadia, mais alta e mais intensa, como o som
daquelas folhas à medida que se subia na árvore.
– Só estou a pedir-te que sejas madrinha – continuou. – A maior parte das
pessoas a quem eu poderia pedir, e não são muitas, diria sim sem pensar.
Tu, por outro lado, estás mesmo a levar isto a sério. É só mais uma coisa
que me faz pensar que és tu a tal. És muito... – fez uma pausa e um sorriso
aberto. – Cauta.
*
Enquanto descíamos o escadote, os meus pensamentos entregaram-se a
um redemoinho lento. Eu era a prova viva de que a filha da Jeanie ficaria
bem. Estava dentro do meu poder dar-lhe algo melhor do que uma
promessa: a prova de que a Faye ficaria bem. Se pudesse ao menos dizer-lhe
quem era. Mas, ao fazê-lo, confirmaria o que a minha mãe já temia ser
verdade: que ela morreria, não viveria para me ver crescer. Eu sabia que
contar-lhe a história incrível de nos encontrarmos novamente tantos anos à
frente, através de uma caixa de viagens no tempo, não compensaria o facto
de vir a saber que tinha apenas mais um ano de vida, isto se acreditasse de
todo em mim.
Uma parte de mim inquietava-se por a Jeanie delegar com tanta facilidade
a filha – eu – a uma desconhecida, mas não podia deixar de me sentir
lisonjeada por ela me ter escolhido, e não podia deixar de pensar que a
Jeanie tinha razão: eu era a pessoa perfeita para cuidar da pequena Faye, eu
era totalmente digna de confiança, eu era eu. O instinto da Jeanie era ótimo.
Mas não me agradava que, embora eu soubesse disso, ela não sabia.
A sua ingenuidade desanimava-me. Depois pensei que ela tinha passado
de um lar de acolhimento para outro, uma criança entregue por um
desconhecido a outro enquanto crescia e, insinuara-o ela, não fora uma
experiência muito agradável. Talvez estivesse bem posicionada para
identificar o cuidador mais indicado, baseada nos seus instintos. Talvez
fosse como uma criança numa gelataria que diz «quero aquele» à primeira
coisa de cujo aspeto gosta.
E, no final de contas, o que importa verdadeiramente? Apesar do facto de
a minha mãe ter morrido, apesar de tudo, eu estava bem, era feliz e amada.
Não podia prometer-lhe o que queria de mim. Mas talvez pudesse dizer-lhe
algo para a tranquilizar.
Esta conversa teria de ficar para o dia seguinte. Sentia-me assoberbada.
Há um limite para as coisas que o corpo e a mente conseguem suportar, e eu
atingira o meu. Enquanto me deixava levar do jardim frio para a cozinha,
tive uma sensação de turbilhão na cabeça e a divisão começou também a
girar. Balancei para o lado. A vontade de dormir era tão intensa que quase a
saboreava. A minha mãe pegou-me na mão e não me lembro de subir as
escadas, mas foi para onde ela me levou. Tenho uma vaga memória de me
sentar na beira da cama da pequena Faye. A Jeanie pegou na pequena Faye
e levou-a – ainda a dormir – para o próprio quarto, para que eu pudesse ficar
com a cama da pequena Faye. Tenho uma lembrança esbatida de me deitar e
pensar que a cama ainda estava quente onde o meu eu mais novo tinha
estado até há momentos; o meu corpo cobria esse espaço, criando um
espaço maior de calor. Acho que a minha mãe voltou até mim – tendo
depositado a pequena Faye na sua cama, maior – para me tapar com o
edredão aos quadrados. E lembro-me de pensar que a minha mãe estava a
deitar-me duas vezes: o meu eu de seis anos e meu eu de trinta e seis. Não
me lembro de adormecer, porque não procurei o sono. O sono estava lá, à
minha espera, com as suas doces mandíbulas bem abertas. Elas fecharam-se
em silêncio e engoliram-me inteira.
14

A pequena Faye estava sentada como uma fada, de pernas cruzadas, na


beira da cama, a cabeça inclinada para o lado com um sorriso torto.
Vestia o uniforme da escola; meias brancas estampadas até aos joelhos, o
cabelo castanho e revolto puxado para trás numa trança, madeixas perdidas
a encaracolar-se em volta do rosto. Sentei-me e estremeci. Tudo me doía.
– Obrigada pela tua cama – disse.
– Mi casa es su casa – disse ela, sorrindo-me.
– A minha casa é a tua casa? – perguntei, e ela assentiu. – Bem, é muito
simpático da tua parte. – E extremamente preciso, pensei. A casa dela era de
facto a minha casa.
– Vais para a escola? – disse eu.
– Sim.
Comuniquei com a pequena Faye servindo-me do tipo de conversa banal
que costumava usar com todas as crianças. Não sei se deveria ter
conversado de forma diferente, respeitando o facto de estar a falar comigo
mesma. Fosse ou não eu, só consegui fazer o que faço sempre que converso
com crianças: deixá-la à vontade na minha companhia. Eu não queria
interrogar o meu eu em criança porque, apesar das circunstâncias, não
passava de uma criança.
– Lembras-te de mim? – perguntei.
– Claro! – respondeu. – Agarraste-me quando aquele carro quase me
bateu.
– Isso mesmo. Já estás completamente bem?
– Já estava completamente bem na altura. Foste tu que te magoaste. Tu
estás completamente bem?
– Na verdade, magoei-me outra vez. – Apontei para os arranhões.
– Parece que dói muito – disse ela.
– Não dói.
– Vais ficar com cicatrizes?
– Acho que não – disse eu.
– Tens alguma cicatriz?
– Tenho uma marca muito pequenina na anca, da varicela – disse eu.
– Eu também! – Ela puxou a saia um pouco para baixo, para me mostrar.
– Oh, tens mesmo – disse. – Sim, a minha é mais ou menos assim. E
tenho uma cicatriz no joelho, da patinagem – afirmei.
– Mostra-me – disse a Faye.
Afastei a coberta e mostrei-lhe a linha quase impercetível por baixo do
joelho e as pequenas marcas redondas que fiz ao cair nas pedras quando
tinha cerca de doze anos.
– Não é fácil de ver – declarei, olhando de perto.
– Ainda estarás aqui quando eu voltar da escola?
– Não sei bem... – comecei a dizer. Foi então que apareceu a minha mãe à
porta com uma chávena de chá.
– Estás à vontade para ficar, como sabes – disse ela, aproximando-se e
pousando a caneca na mesinha de cabeceira. – Mas a tua família não sentirá
a tua falta?
– Eles ausentaram-se por uns dias, para ir visitar os pais do meu marido –
disse eu.
– Nesse caso, calhou bem, isto é, se quiseres ficar.
Olhei para a Faye e encolhi os ombros.
– Então parece que estarei de certeza aqui, depois da escola.
Ela bateu palmas e saltou da cama, a gritar:
– Até logo! – mal olhando para mim.
A Jeanie tocou-me no ombro.
– Vou levar a Faye à escola. Faço-te o pequeno-almoço quando voltar –
disse ela, e piscou-me o olho.
Como gostaria de poder levar para casa aquelas piscadelas de olho.
*
Enquanto estavam fora de casa, fui ao barracão. Sabia que a minha mãe
demoraria cerca de vinte minutos a voltar e queria verificar a caixa e ver se
precisava de fazer algum arranjo. Era melhor fazê-lo agora, não fosse dar-se
o caso de já estar outra vez escuro quando partisse. Tinha de garantir que
conseguia regressar a casa e precaver-me contra qualquer dano quando
voltasse da vez seguinte.
Da vez seguinte: anos setenta, o meu destino habitual. E quanto ao vosso
passado? Com que frequência viajariam até lá, se tivessem a oportunidade?
Muitas vezes? Nunca? E quando chegassem lá, pensariam em ficar para
sempre?
Dei uma boa olhadela à caixa. Estava a ficar desgastada, mas também o
único contacto que eu precisava de fazer era entrar nela. Não me parecia
que a caixa em si tivesse de se manter firme para a viagem, não precisava de
me preocupar que o fundo caísse enquanto eu estava entre o passado e o
presente. Era mais como um portal. Uma porta. E não importava se a porta
estava pendurada pela dobradiças, desde que se pudesse passar por ela,
certo? Além disso, ao inspecionar a caixa, percebi que devia ser um portal
nas duas extremidades. Já tinha reparado que a caixa no passado era mais
nova do que a que encontrei no sótão e não tinha dúvida de que neste
momento se encontrava uma versão mais envelhecida desta caixa no meu
colchão, em casa, o que significava que as coisas podiam existir em dois
lugares diferentes no tempo. Mais, eu sabia que duas coisas iguais poderiam
existir ao mesmo tempo, como eu e a pequena eu. Foi até onde o meu
cérebro lógico chegou antes de desistir. Parei de pensar em como tudo
funcionava; no fim de contas, não precisava de saber como funciona um
computador para o usar.
Mas, o que aconteceria se alguém deitasse fora a caixa ou a destruísse? O
que me aconteceria se a caixa dos anos setenta fosse destruída, mas mesmo
assim eu entrasse na outra extremidade? Não gosto de pensar onde poderia
acabar ou o que poderia acontecer-me. Afastei estes pensamentos, antes que
estragassem tudo.
Embora tenha percebido que aquilo de facto não importava, sentir-me-ia
mais feliz se pusesse fita adesiva no lado que se tinha rasgado, para o caso
de a caixa funcionar melhor intacta, e também porque era um objeto
precioso que merecia algum respeito. Não consegui encontrar nada no
barracão para fazer o trabalho, mas imaginei que seria capaz de encontrar
algo ao fim do dia. Ou quando partisse. Não havia muito que eu pudesse
fazer até mais tarde, portanto voltei para a casa para me lavar.
*
A casa de banho era dolorosamente familiar. As pequenas coisas de que
eu nunca me teria lembrado eram as que mais sobressaíam. A bancada junto
ao lavatório tinha uma fenda, onde uma vez eu tinha deixado cair um pisa-
papéis, e no espelho havia um autocolante do Barbapapa, que eu devo ter
posto lá. Depois de me lavar rapidamente no lavatório, usei o creme de
rosto (com cheiro a rosas) e o rímel da minha mãe. Eu sentia-me um pouco
nervosa quanto à conversa tomas-conta-da-Faye-se-algo-me-acontecer, que
sabia que a minha mãe abordaria outra vez. Não lhe queria mentir. Poderia
só dizer que sim, sabendo que acabaria com a Em e o Henry e que tudo
correria bem. Mas, mais uma vez, parecia uma coisa demasiado importante
sobre a qual mentir. E ela era minha mãe, afinal. Talvez pudesse
simplesmente prometer que garantiria, de uma forma ou de outra, que a
pequena Faye ficaria bem. Que não a perderia de vista. Em rigor, era essa a
verdade, por questões de autopreservação e tudo mais. Mas, de certa forma,
não me parecia que isso satisfizesse a minha mãe. Ela queria uma promessa
séria, sem truques, sem depender de jogos de palavras; não mentir
tecnicamente não contaria. E, de qualquer maneira, porquê acrescentar
ainda mais mentiras ao que já estava a acontecer?
Eu ainda ponderava a ideia de confessar tudo à minha mãe, de lhe dizer
quem eu era. Havia a possibilidade de ela, de todas as pessoas, acreditar em
mim, em virtude da sua personalidade. Mas e se não acreditasse? Era muito
bom pensar que, por ela ser uma pessoa espiritual e um tanto hippie, com
propensão para sinais e uma ligação comigo para a qual não tinha
verdadeiramente explicação, simplesmente levaria à letra a futura filha
adulta que viaja no tempo. Mas não me parecia. Se acreditasse em mim,
então eu estaria a dizer-lhe que não teria muito tempo de vida, e eu não
queria fazê-lo. E mais, quando se falara de tudo isto na noite anterior,
estávamos ambas pedradas, em especial ela. Talvez quando ela voltasse
para casa, as coisas sobre as quais havíamos conversado na noite anterior
estivessem esquecidas e pudéssemos ter um dia agradável e descomplicado
juntas.
*
Parecia loucura, estar sentada à espera dela na cozinha. Este momento
tranquilo, o tiquetaque do relógio, o sol a lançar um raio luminoso no chão;
este momento no qual eu não fazia nada senão esperar parecia o mais louco.
Tive de repetir a mim mesma um mantra, sim, estás mesmo aqui, caso
contrário, poderia ter começado a tentar convencer-me de que me
encontrava numa enfermaria algures, em coma, a ter um sonho vívido.
Estava consciente do bater do coração, da necessidade casual de coçar a
perna. Toquei no braço suavemente, senti de forma vívida o tecido sob as
pontas dos dedos. Este tempo no passado era tão real como o resto da minha
vida. E se não tivesse sido? Se não fosse real, o que faria eu de diferente,
então? Nada. Era como a preocupação; realmente não fazia diferença
nenhuma para o resultado.
Ouvi a porta da frente a abrir e respirei fundo. Preparei-me, para não
parecer demasiado ansiosa de ver a minha mãe entrar.
Ela dirigiu-se a mim com aquele sorriso aberto e fácil e sentou-se à minha
frente.
– É boa menina – disse eu.
– É um sonho – disse ela. – Só quero protegê-la. – Ela olhou-me nos
olhos e percebi que a conversa da noite anterior apenas ficara em pausa. –
Como é o teu marido? – perguntou. Levantou-se de imediato e deitou leite
numa pequena panela no fogão.
– O Eddie? É um bom homem. Tem uns olhos bondosos, sabes o que
quero dizer? – A minha mãe assentiu, mexendo a panela distraidamente,
com a concentração voltada para mim. – Ele é bom com números, sempre
trabalhou em finanças. – O rosto da minha mãe mostrou um pequeno esgar.
– Eu sei – disse eu. – Parece aborrecido. Mas ele não é aborrecido, é lindo,
engraçado e um ótimo pai.
– Bom na cama? – perguntou ela, tirando um saco de aveia de um
aparador.
– Sim – respondi, e senti-me corar. Não sei se pareci tímida, mas senti-me
inibida com o caráter direto da pergunta e com o facto de nunca ter tido com
ninguém uma conversa sobre sexo do tipo mãe-filha, muito menos com a
minha mãe verdadeira. – Ele tem cabelo castanho, deixa-o crescer de mais,
e eu estou sempre a lembrar-lhe que tem de o cortar. É alto. Consigo perder-
me nos braços dele.
A minha mãe deixou a colher de pau na panela e encostou-se ao balcão,
cruzando os braços.
– Ele agora começa a soar bem – afirmou.
– Está a formar-se para ser vigário – disse eu, pondo fim ao devaneio da
minha mãe sobre o meu marido. Ela franziu um pouco a testa.
– A sério? – disse, voltando à colher.
– Sim.
– Parece muito diferente das finanças.
– É, mas trata-se do mesmo homem. Não sei se tanto as finanças como a
religião lhe assentam verdadeiramente. Mas está a fazer o que precisa de
fazer, aquilo para que foi feito.
– O amor da minha vida não era o meu tipo habitual – disse ela. – O pai
da Faye era agente de autoridade. – Ela disse-o como se fosse um palavrão,
mas qualquer choque que eu possa ter sentido não teve nada que ver com a
descrição da sua profissão.
– Não sabia que ela tinha pai – disse eu. – Quer dizer... tu sabes o que
quero dizer.
– Ele era um homem encantador, mas era complicado. Nós amávamo-nos,
mas... – Olhou pela janela e depois ocupou-se a preparar papas de aveia e
chá. Observei-a e esperei. Premi gravar no meu botão de memória para
garantir que guardava esta imagem dela a mover-se com graça pela cozinha,
a mexer, servir, esticar-se para pegar num pacote de açúcar e depois pôr
tudo na mesa. Perfeição doméstica. Pousou um frasco de compota na mesa.
– Gastamos muito disto, bom Henry – disse ela, deitando uma colherada
no meio da sua taça.
– Estavas a falar-me do pai da Faye – disse eu, com um lampejo de algo a
agitar-se no fundo do meu ser. Eu não sabia nada sobre o meu pai. Sabia
que devia ter um, biologicamente, mas mal pensava nele, nunca havia
chorado a sua perda. Suponho que porque não se pode perder algo que
nunca se sentiu que se possuía, nunca se conheceu. Vagamente, de vez em
quando, em criança e adolescente, tinha imaginado um pai a vir-me buscar a
casa da Em e do Henry. Mas, se levasse a fantasia muito longe, percebia
que não queria que acontecesse. Queria a minha mãe, sempre, mas nunca
um estranho. Sentia-me segura com a Em e o Henry. E o Henry era tudo o
que eu precisava num pai: confiável, prático, bondoso.
O facto de não ter nenhuma imagem mental do meu pai dizia-me que fora
uma conversa que nunca tivera com a minha mãe em criança, porque se
tivéssemos conversado sobre o assunto, eu não me teria esquecido. À
medida que fui crescendo, sem pensar demasiado no assunto, julgo que
assumi que eu era o produto de uma noite de diversão. Não de amor.
– Disseste que ele era o amor da tua vida, mas...? – perguntei.
– Mas ele é casado, tem mais filhos e uma posição elevada. O tipo de
trabalho que um escândalo arruinaria.
– Mas se vocês se amavam, porque não te ajuda?
– Eu mudei-me para o proteger, para impedir que tivesse de fazer
escolhas que poderiam arruinar-lhe tudo.
– Mas ele não quis ver-me? – perguntei. Ela pareceu confusa. A princípio
não reparei no erro e depois senti o pronome me na boca, tão inconveniente
como um berlinde. Tentei ignorá-lo.
– O que queres dizer? – questionou ela.
– Tu sabes, a filha dele. Não quis conhecê-la?
– Bem, eu mudei-me quando estava grávida. Ele não soube. Isto foi há
muitos anos, obviamente. Eu estava na Irlanda. Ele teria sido atirado aos
lobos, se fosse apanhado. Tinha mais filhos e uma boa mulher. Fazia coisas
boas na sua comunidade, fazia mudanças, fazia a diferença. Eu amava-o,
mas não lhe podia fazer isso.
– Deves ter-lhe partido o coração – afirmei.
– Nunca saberei – disse ela.
– Mas sabes, não sabes? Ele amava-te e tu também o amavas. Talvez
devesses tê-lo deixado escolher. – Não que me sentisse indignada por ela ter
deixado alguém que poderia ter-me amado, mas antes que parecia uma
grande pena não deixar alguém saber que tinha uma filha no mundo. E,
além disso, queria que a minha mãe se sentisse amada, tanto amor quanto
possível. Ela merecia-o e virara-lhe costas.
As minhas papas de aveia permaneciam pousadas na mesa, intocadas. A
Jeanie mexia as dela devagar e a compota formou uma espiral cor de rosa.
– Talvez devesse tê-lo deixado escolher, mas não o fiz. Escolhi eu, e
agora está no passado. E é aí que deve ficar. – Ela perscrutou o meu rosto,
os olhos a trespassar os meus. – No amor não é só agarrar o que queres,
sabes? O amor pode fazer-te sentir que tens razão em agarrar o que queres,
com certeza, podes deixar que te leve a fazer coisas ou podes fazer escolhas
sensatas que às vezes te afastam do amor. Mas escuta-me. – Estendeu a mão
e pousou-a sobre a minha. – Ouve, há sempre muito amor para se encontrar.
Perdi algumas coisas, mas ganhei outras. Minimizei a dor de cabeça dos
outros e encontrei um tipo de amor especial ao criar a Faye sozinha. É
precioso.
– Vais contar-lhe sobre ele? – perguntei, sabendo que não o faria.
– Somos só as duas, e por agora é o suficiente. Um dia, se ela quiser saber
mais, contar-lhe-ei. Acho que se lhe contar de mais, só lhe vou criar um
desejo desnecessário. Uma ânsia que não se pode acalmar. Uma ânsia que
ela não precisa de ter.
A minha mãe já não estava por perto quando cheguei à idade em que
poderia ter começado a fazer perguntas. E tinha razão, nunca tive muita
vontade de conhecer o meu pai. Esse desejo sempre foi suplantado –
completamente ofuscado – pelo meu desejo por ela.
– Olha, Jeanie, ontem à noite dizias que não chegarias a velha. Estavas
preocupada com o que aconteceria à Faye se não estivesses por perto.
– Sim, quero que tomes conta dela.
– Como uma madrinha? – perguntei.
– Só uma promessa – disse ela, agitando os dedos como se uma promessa
fosse algo fácil de se fazer.
– Bem, talvez o pai queira ficar com ela – disse eu.
– Não, não pode fazer isso – disse ela de modo sereno.
– Porque não? Morreu?
– Não sei. Não sei sequer se ainda está onde o conheci. Mas toda a
perturbação que tentei evitar ao partir, em primeiro lugar, voltaria ao de
cima. Porquê salvá-lo de se afogar antes, se era para o afogar agora?
– Ele é boa pessoa? – perguntei.
– Sim, e não tenho dúvida de que ele a amaria, mas pedir-lhe que tome
conta dela? Isso significaria que a mulher e a família teriam de a acolher.
Seria como entregar uma galinha a uma raposa. Não. O sítio para onde a
Faye vai, no caso de eu morrer, tem de ser um sítio onde ela, pelo menos,
comece em igualdade de circunstâncias. Melhor ainda, um sítio que comece
com amor e braços abertos, não braços cruzados e acusações.
Senti uma pontada de curiosidade. Perguntei-me se a minha mãe estaria
errada, e se morar com o meu pai – se ela o tivesse encontrado – poderia ter
sido uma coisa boa. E então, como no trailer de um filme, vi à minha frente
uma vida imaginária que se desenrolava como um rolo de tapete: uma vida
sem a Em e o Henry, uma vida que me levava por um caminho divergente,
onde talvez não encontrasse o Eddie e onde teria filhos, mas não seriam a
Esther e a Evie. A minha boca secou de repente. Queria parar de falar sobre
coisas que poderiam mudar o meu futuro; um futuro com o qual eu era feliz,
tirando o facto de a minha mãe não estar lá.
– Não quero mais falar dele – disse ela, e eu fiquei contente.
Pus uma colher cheia de papas de aveia doces na boca. Uma delícia.
– Bem, e a Em e o Henry? – disse eu, plantando a semente do que estava
para vir.
– O quê? Padrinhos? Não! São muito velhos – disse ela.
– São seguros, estáveis e moram perto. Fariam um bom trabalho – disse
eu, sabendo que o estava a recomendar para uma tarefa que já haviam
realizado e na qual haviam sido bem-sucedidos.
– Oh, mas seriam entediantes – disse a Jeanie, fazendo beicinho.
– Seriam perfeitos. – Senti-me esmagada, querendo defender as pessoas
doces e bondosas que me haviam acolhido e amado, mantendo-me a salvo.
A Jeanie limitou-se a encolher os ombros.
– Eles são simpáticos – disse ela, e não era um elogio. Eu queria castigá-
la como a uma criança que não agradeceu a alguém um presente.
– Jeanie, eles preocupam-se com vocês, com as duas, vi-o quando te
encontrei na casa deles. Não sejas má, por favor. Tu sabes que fariam
qualquer coisa por vocês. – Ela encolheu novamente os ombros e eu
abandonei o assunto.
– De qualquer forma, quanto a ti, isso de não chegares a velha. Pode
nunca acontecer – disse eu. Senti-me uma fraude, sabendo que ela morreria
muito em breve. De repente, pareceu-me difícil engolir e deixei a colher
pousada na taça.
– Vai acontecer – disse ela.
Cobri o rosto com as mãos e suspirei. A respiração ressaltou-me das
palmas, quente e húmida.
Ela concentrou-se então na comida e no chá, e sorriu como que para fazer
desaparecer o desagradável tema da conversa.
– Depois disto, vamos até à cidade, está bem?
– Parece-me bem – disse eu. Sabia que não devia ficar tão perturbada,
pois não era como se não soubesse o que ia acontecer à minha mãe. Ali não
havia surpresas.
*
Fomos até à cidade; caminhámos e conversámos. Foi um dos momentos
mais agradáveis da minha vida, mas nem sei contar-vos o que se disse. Não
é engraçado que eu tenha planeado guardar tudo na memória durante estas
visitas ao passado e, no entanto, não o consiga fazer? Talvez só importe que
foi um momento adorável, partilhado com alguém muito especial.
Acho que uma vez que não estávamos a debater assuntos com
consequências graves, não senti necessidade de o recordar. A maior parte da
vida é assim, acho eu.
Divertiste-te?
Sim.
O que aconteceu?
Não sei!
Voltei a ficar muito atenta enquanto passávamos pelas lojas que levavam
à cidade. O conteúdo das montras chamava-me a atenção, fazia-me sorrir e
abanar a cabeça. Torradeiras dos anos setenta, batedeiras manuais,
aspiradores com o saco comprido atrás, muito pouco cromado e montes de
verde-abacate, amarelo-limão e azul-bebé. As mulheres usavam calças
compridas e largas, cor de creme e com pregas acentuadas à frente, ou saias
de corte em A; quase todas pareciam ter uma permanente, exceto a Jeanie.
Estava num museu vivo da minha própria infância; todas as coisas que vira
nas montras ao crescer, todas as coisas em que reparara dia após dia, todas
as coisas que ninguém parecia comprar, que ficavam na montra durante
anos. Manequins que sempre pareceram um tanto desalinhados, com
cabeleiras que não serviam, em poses estranhas, mãos de plástico sobre as
ancas anoréticas. Vi também as coisas que sempre quis, sempre desejei,
noutras lojas. Nunca tivemos dinheiro e nunca pedi nada, nem à minha mãe,
nem à Em e ao Henry. Mas alguns objetos em que os olhos pousam não nos
deixam a linha de visão até que os pés nos levem para muito longe, e depois
a imagem viaja connosco em pensamento e para a cama à noite, para ficar lá
connosco, desaparecendo gradualmente enquanto se dorme até já não estar
lá de manhã. Sem reaparecer até que se passa de novo pela montra.
Patins. Reluzentes, metálicos, com tiras vermelhas que cobrem os sapatos.
Vi-os e lembrei-me de que, em criança, os queria muito e jurei que, se um
dia ficasse rica, os compraria com o meu dinheiro.
Parei e olhei para os patins. A minha mãe deu alguns passos antes de
reparar que eu tinha ficado para trás. Quando parou e se virou, ouvi-a a rir.
– Não acredito! – disse ela. – A Faye para sempre a olhar para esses
patins; vocês realmente são mesmo iguais. – Ela voltou para trás e pôs-se ao
meu lado na montra.
Aqueles eram os meus patins. Não semelhantes, mas de verdade. Tinham-
me dado aquele par de patins aos seis ou sete anos, e o que acontece é que
percebi algo importante naquele momento, enquanto olhava para eles
através do vidro.
Percebi que não conseguia lembrar-me de como os recebera.
15

O frio da montra de vidro fazia-se sentir na minha testa quente enquanto


eu olhava para os patins.
– Jeanie – disse, olhando para dentro da loja –, a Faye sabe patinar?
– Não – respondeu, e eu virei-me para olhar para ela. – Adorava saber,
mas os patins são demasiado caros para o meu bolso. – Ela encolheu os
ombros. – Mas é excelente no Hula Hoop.
Ela tinha razão, era. Ainda sou.
A minha mãe caminhava e falava-me sobre como ela aprendera a usar o
arco. Eu flutuava ao lado dela, a ouvir, absorvê-la, a juntar todas as peças do
puzzle da sua vida que ela me dava. Cada peça era uma pista; uma parte
importante do todo. Eu andava devagar, com o rosto levantado para o sol, e
às vezes parecia que os meus pés não tocavam no chão. A voz da minha
mãe tornou-se um pano de fundo para a minha própria mente curiosa. A
pergunta que eu não podia lançar era sobre os patins. Como teriam chegado
até mim quando eu era pequena? A Em e o Henry não os teriam comprado,
não me parece, e de qualquer maneira, eu tinha-os antes de morar com eles.
A minha mãe não tinha dinheiro para os comprar e não tínhamos
familiares. A questão andava de cá para lá na minha mente, desviando-se
aqui e ali. Eu nunca os teria roubado em criança, não era uma ladra, mas
mais uma vez... as pessoas mudam.
Tive uma epifania e precisava de estar sozinha.
– Importas-te – disse eu, interrompendo a minha mãe a meio da frase. –
Desculpa, importas-te se nos separarmos um pouco? Tenho de tratar de
umas coisas.
– Claro. – Ela tocou-me na face. Eu adorava a forma como o fazia. E ela
sorriu como se eu fosse a única pessoa no mundo inteiro que importava para
ela, o que, ironicamente, era.
De qualquer forma, ela disse-me que ia comprar algo para o jantar e
perguntou se eu ficava. Pensei na diferença de tempo entre aqui e a minha
casa. Sabia que, anteriormente, doze horas nos anos setenta haviam
igualado apenas três no meu presente, portanto dois dias aqui deviam
significar meio dia lá. A esse ritmo, com o Eddie fora uma semana, a minha
ausência não seria notada. Tinha tido a clarividência de tirar uns dias de
férias do trabalho, por via das dúvidas. Aceitei o convite e esperei passar a
noite. A excitação transbordava de dentro de mim, como se de repente
tivesse ouvido que o Natal passara para esse dia. Combinámos encontrar-
nos dentro de meia hora e, quando ela desapareceu na esquina, regressei à
pequena loja que vendia os patins.
*
Uma das coisas que precisam de saber sobre esta loja, cujo nome era
Serendipity, é que é uma loja familiar. Quer dizer, na altura todas as lojas
pareciam ser assim, mas eu sabia que esta continuava aberta, trinta anos
depois. A proprietária ainda era a mesma da altura e, tanto quanto eu sabia,
continuava a trabalhar lá alguns dias por semana. Quando vamos àquela
zona, as minhas filhas adoram visitá-la porque vende todo o tipo de
bugigangas, tesouros que as meninas e os meninos guardam para sempre.
Coisas pequenas que se pode esconder na palma da mão. Minúsculos
animaizinhos que uma criança conhece ao pormenor, porque só se veem os
seus detalhes quando os seguram muito, muito perto dos olhos.
Assim, quando abri a porta da loja e a pequena sineta tocou, pareceu-me
tão familiar como abrir a minha própria porta da frente. Lá dentro, a
frescura era como uma bebida fria num dia quente, e havia estantes e pilhas
adornadas com objetos coloridos e grandes antologias ilustradas de poesia e
contos infantis. A sineta trouxe passos das traseiras da loja, e uma jovem
dos seus vinte anos apareceu no balcão, qual sol, com uma blusa amarela
esvoaçante de colarinho enorme, uma saia castanha e sandálias vermelhas.
Estava a atar um avental na cintura e eu sorri-lhe como se ela fosse uma
velha amiga. Ela franziu a testa por uma fração de segundo antes de me
devolver o sorriso; no que toca aos sorrisos, as pessoas ficam
desconcertadas quando alguém que não conhecem lhes sorri como se se
conhecessem há anos. Esta era a senhora que eu conhecia, a dona da loja,
mas mais nova do que algum dia a vira. O que me surpreendeu foi o quão
pouco se muda. Desde que se consiga colocá-la no contexto, uma pessoa é
completamente reconhecível, tenha ela sete ou setenta anos. As pessoas que
gerem lojas pequenas em cidades pequenas são quase celebridades, por isso
eu sabia muito sobre ela: o homem com quem casara, os filhos que haviam
tido, quando a loja fora assaltada e quando eles angariavam dinheiro para a
caridade. Tudo isso e muito mais, sem nunca a conhecer verdadeiramente, e
sem ela me conhecer de todo.
– Precisa de ajuda? – perguntou ela alegremente.
– Estou só a ver – respondi. Dirigi-me para um pequeno corredor e deixei
os dedos tocarem nos artigos ao de leve, como se os estivesse a contar. É
impossível não tocar nas coisas, naquela loja.
– Avise-me se não encontrar o que procura – gritou.
– Avisarei – gritei em resposta, e ouvi os passos a recuar.
A questão era que eu queria comprar os patins para a pequena Faye. Se
não lhos comprasse, quem o faria? Poderia deixar ao acaso, mas não fazia
sentido. Eu estava ali agora e pensava em comprar os patins. Então, ipso
facto, tinha de os comprar. De outro modo, quem o faria? Ninguém.
Talvez todo o meu propósito – se fosse necessário um propósito – de
voltar ao passado fosse comprar uns patins para o meu eu mais novo. Sorri
para mim mesma do ridículo daquilo, e sorri porque pensei na expressão
«ipso facto», que é uma expressão de que gosto tanto que a uso sempre que
surge uma oportunidade. O mesmo acontece com «vitória de Pirro», embora
essa oportunidade surja menos vezes.
De qualquer forma, aqui estava eu, uma mulher a necessitar de uns patins,
numa loja que os vendia. Sem dinheiro nem nada de valor para negociar. Eu
teria de furtar aqueles patins e, devo dizer-vos, não me sentia bem com isso.
Além do facto de ser moralmente incorreto, em especial numa loja
pequena como esta, eu não queria ser apanhada pela polícia. E se fosse para
a prisão? O importante, que me esclareceu tudo, foi saber que aquela loja
prosperava até hoje, ou seja, trinta anos depois. A perda de um par de patins
não ia arruinar estas pessoas. Mais, eu tinha a certeza de que poderia
escapar sem ser apanhada. Olhei, mas não vi nenhum espelho nem,
definitivamente, nenhuma câmara.
Tinha um plano. Chamaria a mulher ao balcão e pedir-lhe-ia algo que ela
tivesse de ir buscar aos fundos. Nessa altura, eu simplesmente seguiria,
veloz, até à montra, pegaria neles e ir-me-ia embora. Se fizesse isto
suficientemente rápido, conseguiria escapar.
Voltei para o balcão e gritei um alegre:
– Se faz favor?
A senhora reapareceu, a limpar as mãos ao avental e a sorrir.
– Sim?
– Estava a pensar se tem uma daquelas bonecas russas numa cor diferente.
– Poderei ter, lá atrás. Vou ver. – Ela sorriu novamente e desapareceu.
Foi bastante fácil. Fui direta à montra e levantei os patins pelas tiras. Fui
cuidadosa, mas ao retirar os patins da prateleira, derrubei um polícia de
brincar de madeira brilhante. Estava pintado com um apito a postos nos
lábios e a base arredondada fazia-o balançar de forma acusadora. Senti que
ele queria apitar de verdade e alertar a comerciante. Bem, deixem-me dizer,
poderia muito bem tê-lo feito, porque quando pus a mão na maçaneta da
porta, ouvi a voz dela.
– Quer comprá-los? – perguntou, não de forma indelicada, mas também
não na ignorância.
Fui invadida pelo desânimo. A respiração que eu prendia saiu longa e
apressada. Voltei cheia de culpa ao balcão e pousei nele os patins.
– Quero. Mais do que tudo, quero – disse eu.
– Gostaria de pagar? – perguntou.
– Quero pagar, se acreditar nisso. Eu tenho dinheiro, mas não aqui, e
preciso destes patins antes de poder dar-lhe o dinheiro por eles.
Ela franziu a testa.
– Não me parece a ladra típica – disse ela.
– Não sou. Não sou ladra.
– Mas ia roubar isso. – Ela apontou para os patins sem tirar os olhos dos
meus.
– Sim, ia – afirmei. – Se tivesse algo para lhe dar por eles, daria. Se
tivesse algo pelo qual pudesse trocá-los, então trocaria, mas não tenho.
– De qualquer forma, temo que aqui não se aceite esse tipo de pagamento.
Percebi então que tinha algo para esta senhora – cujo nome eu sabia ser
Elizabeth –, algo que podia ser mais valioso para ela do que qualquer coisa
física que eu pudesse dar-lhe: eu tinha informação. Sabia coisas sobre ela.
De repente, senti-me eufórica e um tanto sem fôlego.
– Acredita em videntes? – perguntei-lhe.
Os olhos enrugaram-se-lhe e ela riu-se.
– O quê, aquelas velhinhas com bolas de cristal à beira-mar? Claro que
não.
– Está bem, eu também não – declarei. – Mas se eu pudesse falar-lhe
sobre a sua vida, o seu futuro, e gostasse do que ouvisse, deixava-me ficar
com estes patins?
Ela estava curiosa, eu via que sim, mas não se deixou enganar por um
segundo. Pensava que eu era uma oportunista, e ela não era pateta, mas
havia algo no seu olhar e hesitação suficiente para que eu tivesse alguma
esperança. Passou por mim e virou o sinal da porta de «Aberto» para
«Fechado».
– Venha pelos fundos – disse ela. Depois, virando-se para me lançar um
olhar cínico por cima do ombro, declarou: – Só faço isto porque está a
tornar uma manhã de terça muito tranquila mais interessante do que o
normal. – Conduziu-me às traseiras da loja, apontou para um banco e
sentou-se também ela num. – Tem cinco minutos – afirmou.
E então contei-lhe.
Disse-lhe o nome do homem com quem ela casaria e os nomes dos filhos
que teriam. Contei-lhe que a loja teria sucesso e seria amada por muitos,
durante mais de trinta anos. Contei-lhe que ela ia ganhar algum dinheiro
quando fosse mais velha, a família ia passar duas semanas de férias ao
estrangeiro e, enquanto estivessem fora, a loja seria assaltada, mas para não
se preocupar, pois tudo ficaria bem, de qualquer maneira. E depois contei-
lhe aquilo que pensei que faria toda a diferença. Um dia, revelei, o seu filho
vai desaparecer, e estará desaparecido durante três dias. Mas será
encontrado são e salvo, portanto, quando isso acontecer, não deve
preocupar-se muito, deve saber que vai ficar tudo bem.
O seu rosto cínico não mudou durante tudo isto. Parecia divertida, nada
espantada. Depois de cerca de um minuto, parei de falar e recostei-me.
– Então, o que acha? – perguntei.
– Acho que é a coisa mais louca que já ouvi.
– Oh – disse eu, desalentada. Sabia que era tudo verdade e, embora
soubesse que ela não tinha motivo para acreditar em mim, a sua descrença
era dececionante.
– Andrew Keel? – perguntou.
– Sim, vai casar com ele e ser muito feliz. Ele é um homem encantador.
– Não conheço ninguém chamado Andrew Keel – disse. Fez uma pausa e
olhou para mim com franco desânimo, como se eu fosse uma ilusionista que
não fez um truque lá muito bom.
– Ainda não o conheceu, mas vai conhecer.
– Elizabeth Keel – disse ela baixinho, sussurrando o seu futuro nome de
casada, apesar de não acreditar que viesse a ser verdade.
– Elizabeth e Andrew Keel, e os filhos, Adam, Connie e Zara.
– Eu gosto desses nomes – disse ela com ar grave, mas a desconfiança no
seu olhar apenas aumentou.
– É natural – disse eu. – Vai escolhê-los para os seus filhos.
– Bem, talvez não vá, agora que me disse que vou – disse ela. – E diz que
o meu filho Adam vai desaparecer? – Ela inclinou-se para a frente, com os
cotovelos sobre os joelhos.
– Sim – afirmei, com mais intensidade que nunca, porque ela
demonstrava interesse. – Não me lembro das circunstâncias exatas, mas ele
aparece, são e salvo.
– O que quer dizer com «não me lembro»? Pensei que fossem coisas do
futuro.
– Bem, da forma como faço, é como lembrar – disse eu. – Mas, como
mãe, sei que me destruiria se uma das minhas filhas desaparecesse. Quero
poupá-la a futuras angústias. O Adam ficará bem, por isso tente não se
preocupar. Elizabeth, vai ter uma vida longa e maravilhosa, com um bom
marido, três filhos felizes e bem-sucedidos e um negócio próspero.
A Elizabeth apoiou-se nos joelhos e levantou-se.
– Bem, foi divertido, mas os seus cinco minutos acabaram – disse ela,
com a voz tão radiante como as roupas. – Hora de reabrir a loja e hora de se
ir embora.
– Posso ficar com os patins? – perguntei com reserva.
– Não – disse ela, guiando-me para fora do armazém.
– Preciso mesmo deles – afirmei.
– Gosto da sua capacidade de invenção – disse ela. – Gosto da bonita
história que contou. Imagine se fosse verdade – disse ela, com um vago
desejo. – Imagine se eu pudesse de facto acreditar nisso. – Ela riu-se,
soando como a sineta quando a porta da loja se abria.
– Pode viver a sua vida sem qualquer medo. Elizabeth – disse-lhe,
virando-me para ela, a implorar. – Não precisa de se preocupar com a sua
saúde ou a dos seus filhos. É livre para desfrutar a vida, sabendo que vai
correr tudo bem. Garanto-lho.
– Tudo isso por um par de patins – disse ela. – Ouça, gosto de si. Não
consigo evitar. Mas é louca. De uma forma... boa e invulgar. – Estávamos
novamente na frente da loja e ela acompanhava-me à saída. – Mas não lhe
vou dar os patins em troca de uma fantasia de feira popular. – Comecei a
protestar, mas ela mostrou-me a palma da mão, que a parar o trânsito,
portanto calei-me. – Contudo, reparei que traz anéis – disse ela. Ofereci-lhe
a mão a ela aceitou-a, passando com delicadeza o polegar pelo meu anel de
noivado e pela aliança. – Se está desesperada, dê-me um dos anéis e pode
levar os patins hoje. Quando voltar com o dinheiro, devolvo-lho.
Olhei para ela. Parecia tão jovem, era tão jovem, bonita e prática, fazia
isto por amabilidade e essa amabilidade equilibrava-se perfeitamente com
um sentido de negócios astuto. Não admirava que se tivesse saído tão bem.
– Tenho de ser franca consigo – disse eu. – Pode passar-se muito tempo
até eu vir buscá-lo.
– Bem, de acordo com o que me disse, daqui a muito tempo ainda estarei
cá, por isso está tudo bem, não é?
– Tem de me prometer que o vai guardar em segurança – disse eu,
sentindo-me agoniada só de girar o anel de noivado no dedo.
– Engraçado, não é? – disse ela, aceitando o anel na palma da mão e
segurando-o com força. Olhou-me com uma expressão muito serena e
divertida. – Tentou roubar os meus patins e agora pede-me que faça
promessas.
– Por favor – pedi.
– Prometo – respondeu, fechando os olhos e acenando com a cabeça uma
vez.
16

E stou habituada a levar um presente, uma garrafa de vinho ou algo assim


sempre que faço uma visita. Mas não podia comprar nada para a minha
mãe, como é óbvio. Mesmo que tivesse trazido algum, o meu dinheiro não
valia de nada aqui; quando se tratava de moeda, o futuro era tão estranho
como Marte e eu não queria mais nada com roubos. De qualquer forma, a
minha mãe não pareceu importar-se. Adorava ter-me por perto, o que era
uma sensação maravilhosa.
Passámos o dia por casa e no jardim. Depois de voltarmos da cidade, levei
o saco de papel castanho, com os patins dentro, ao quarto da pequena Faye e
meti-o debaixo da cama. Quando desci, a minha mãe estava na cozinha a
folhear o livro de receitas. Levantou os olhos e atirou-me um avental.
– Veste isto, vamos fazer pudim de tâmara – disse ela. – Não sei porque
estou a olhar para isto – disse ela, segurando o pequeno livro ao alto. – Já
devia saber a receita de cor. Afinal, ajudei a minha mãe a fazer a mesma
coisa, assim como tu estás a ajudar-me agora. Agrada-me saber que
continuo a usar algo que ela usou. – Fez uma pausa e por um instante
pareceu melancólica. Depois, pousou o livro virado para baixo na mesa da
cozinha. Peguei nele e virei-o, sorrindo a este pequeno livro em que
encontrara a minha fotografia debaixo da árvore de Natal; um livro que me
ligava à minha mãe, e a ela à mãe dela, algo só nosso, como uma piada
privada. – Anda lá, pousa-o. Pode estar cheio de magia, mas eu consigo
fazê-lo sem olhar. O açúcar mascavado está no aparador. Consegues
encontrá-lo?
Claro que consegui. Trabalhámos juntas, a rir e a pesar os ingredientes,
espalhando farinha por todos os lados. Eu cortei as tâmaras e, quando uma
delas disparou pelo balcão e caiu ao chão como uma barata em fuga, rimo-
nos como bêbadas. Enquanto o pudim estava no forno, sentámo-nos no
jardim das traseiras com uma limonada fresca, o gelo a tilintar nos copos.
– Está muito calor para pudim de tâmara – disse ela, encostando-se para
trás, com os olhos fechados ao sol. – Se bem que tenho um gelado para
acompanhar.
– Pudim de tâmara é perfeito, independentemente do tempo – disse eu,
copiando a minha mãe e fechando os olhos.
– É o preferido da Faye – disse ela.
– O meu também – disse.
– Não duvido – murmurou ela.
Parei de respirar por um momento. Não disse nada e o silêncio não era
desconfortável, mas para mim estava cheio do eco das suas palavras. Porque
é que ela dissera aquilo? Que queria ela dizer com não duvido? Virei a
cabeça para o lado e abri um olho para a fitar. Os seus olhos continuavam
fechados, as pálpebras a absorver o sol.
Acho que a melhor maneira de descrever a sensação é esta: sabem quando
gostam de um rapaz ou de uma rapariga, e sabem que eles gostam de vocês
e querem convidá-los para sair, passar à etapa seguinte? A questão é, sabem
que se lerem mal os sinais e os convidarem para sair, vão estragar tudo. Eles
podem até não querer continuar vossos amigos. Então, a amizade
permanece no limbo durante meses, talvez anos, talvez para sempre, porque
o risco de os perder, ao admitir o que sentem, é muito elevado. Era assim
que eu me sentia. Para mim era suficiente estar com a minha mãe, amá-la e
passar tempo com ela. E aprender sobre ela: não apenas os factos, mas
como ela era como pessoa, a sua bondade e as suas falhas, os valores, as
perspetivas, o amor pela Faye, por mim. Para mim era suficiente beneficiar
deste tempo que eu nunca deveria ter tido, que mais ninguém que perde um
ente querido tem. Era o melhor presente de Natal que eu poderia receber:
estar com a mãe que perdi em criança.
Querer mais seria ambicioso.
Mais significaria contar-lhe quem realmente sou, correndo o risco de ela
me pôr na rua.
A questão é que não me parecia que fosse eu quem andava à procura de
mais. Não era eu quem tentava dar pequenas pistas para indicar que havia
algo de transcendental no que se passava ali. Parecia que era a minha mãe a
fazê-lo. Era ela que andava à procura. Era ela que queria dizer: Eu sei que
isto é uma loucura, mas és a minha futura filha, que voltou atrás no tempo
para me conhecer?
Pelo menos, era o que parecia.
Posso estar a projetar, mas ela tinha feito todas as perguntas que eu
esperava que fizesse se soubesse quem eu era, sobre como era a vida para
mim, sobre as minhas filhas e o meu marido, os meus amigos, as minhas
esperanças e ambições. Perguntou como tinha sido a minha vida ao crescer
e fiz o melhor que pude para não me denunciar, sem mentir muito.
E depois ela disse:
– Toda a gente adora pudim de tâmara, só os apaixonados o comem no
verão.
O cheiro do forno flutuou até ao jardim e ela deixou-me por uns minutos
enquanto tirava o pudim, o empratava e cobria para proteger das moscas. Eu
cheirava o seu calor doce e denso e fez-me crescer água na boca, mas
esperaríamos que a pequena Faye chegasse a casa para o comer.
Quando voltou, trazia um tabuleiro de queijo e bolachas de água e sal.
Comemos e bebemos Panda Pops gelados. Eu tinha consciência do tempo a
bater como um pé impaciente algures, distante, no fundo da minha mente e,
todavia, descobri que ao mesmo tempo desfrutava dele com indulgência,
como mel a gotejar pela borda de uma colher.
Quando a minha mãe saiu para ir buscar a Faye à escola, refleti sobre a
dualidade da velocidade do tempo: os anos que por vezes parecem estender-
se infinitos à nossa frente, em especial quando somos novos. Quando somos
crianças, o momento de aprender a conduzir, arranjar um emprego, casar e
ter filhos parece encontrar-se a uma distância imensa. E, no entanto, é
inevitável a chegada do momento em que dizemos que bem poderíamos ter
estalado os dedos, porque aconteceu tudo tão depressa. A sensação que eu
não conseguia afastar, e nunca fora capaz de o fazer, era a de que as coisas
acabam quando ainda nem sequer começaram.
E pensei no seguinte: se o tempo no passado com a minha mãe era quase
quatro vezes o do presente, então era possível ficar uns anos e só me
ausentar de casa cerca de seis meses.
Significava que eu podia acompanhar a minha mãe durante a sua doença,
mas teria de sacrificar esse tempo com as minhas filhas. E se algo lhes
acontecesse por eu não estar lá? Não havia como explicar ao Eddie uma
ausência de seis meses (sem contacto, sem telefone). Pus a ideia de lado
quando ouvi as vozes felizes da Jeanie e da Faye a regressar a casa. A
menina largou a mochila da escola na relva e continuou a andar na minha
direção, caindo aos meus pés como uma marioneta cujos fios acabam de ser
cortados. Tinha no rosto o maior sorriso e eu espelhei-o.
– O dia foi bom? – perguntei.
– A escola não é fantástica, espero que o dia melhore – disse ela,
arrancando uma margarida do chão.
– Garanto que sim – disse eu.
– Também o garanto – respondeu, imitando-me.
– Não, eu garanto mesmo – declarei. – Vai ver debaixo da tua cama e traz
o saco que está lá. Mas não espreites, traz só para aqui. – Ela deu um salto e
correu em direção à casa. – Promete que não espreitas – gritei.
– Prometo – gritou ela de volta, sem se virar para olhar para mim.
*
Eu e a minha mãe sentámo-nos nas cadeiras de jardim e a pequena Faye
estava de novo no relvado, à nossa frente, com o grande saco castanho no
colo.
– O que é? – perguntou a Faye.
– Abre – disse eu. Ela desenrolou com cuidado a parte de cima do saco,
que estava amarfanhada. Olhou lá para dentro e soltou um arquejo, fitando-
me em estado de choque e olhando em seguida para a nossa mãe. A Jeanie
observou-me com uma pequena ruga expectante entre as sobrancelhas.
– O que é, querida? Mostra-me – pediu a Jeanie, inclinando-se para a
frente.
A Faye tirou os patins do saco como se fossem frágeis. A Jeanie gritou de
surpresa e bateu palmas.
– Olha só que sorte! – disse ela, ajoelhando-se na relva ao lado da Faye e
abraçando-a. – Deixa-me ajudar-te a calçá-los. – A Faye estava
deslumbrada e a princípio não se mexeu. Por isso, a Jeanie puxou as pernas
dela e começou a alinhar os patins com os sapatos da Faye, pondo com
cuidado as tiras por cima deles, garantindo que não deslizavam e fixando-os
no sítio. Levantou os olhos para mim enquanto trabalhava e fixou o olhar no
meu. – Sabes mesmo fazer alguém feliz, não sabes? – disse ela, inclinando a
cabeça para a Faye, que tocava nos patins e girava as rodas.
– Bem, disseste que ela sempre os admirou na montra. E tens sido tão
amável, é só a minha maneira de dizer obrigada.
A Jeanie levantou-se e estendeu as mãos para ajudar a Faye a pôr-se em
pé. Ela não conseguia patinar na relva e a Jeanie ajudou-a a caminhar
desajeitadamente, até chegar ao caminho de cimento que corria ao longo do
lado da casa. Ela cambaleava como só as pessoas de patins ou no gelo
cambaleiam, como uma marioneta mal coordenada, endireitando-se com os
braços e agarrando-se a tudo o que tinha ao seu alcance: a parede, a
vedação, o ramo fino de uma árvore que se curvava com o seu peso e a fazia
dobrar-se. Mas, aos poucos, começou a apanhar o jeito. Eu e a minha mãe
conversámos enquanto o som das rodas de metal no cimento ora se
aproximava, ora se afastava, à medida que a pequena Faye patinava pelo
caminho e ao longo do passeio em frente à casa e voltava para trás, durante
o que pareceram horas, e parando apenas – com relutância – para jantar. Ela
disse que preferia patinar do que comer uma segunda fatia de pudim de
tâmara, perante o que nós, adultas, simulámos choque e fingimos ter ataques
cardíacos. A mãe trouxe uma garrafa de creme de menta e dois copos
pequenos.
– Lembras-te disto? – perguntou.
O som das rodas manteve-nos seguras do paradeiro da Faye, enquanto a
Jeanie e eu conversávamos no jardim, fazendo caretas sempre que bebíamos
um gole daquela mistura mentolada. E passámos assim o tempo, as três, até
ao sol se pôr.
*
Tinha sido um dia quente, o que apenas fez com que a noite parecesse
mais fria. Quando a Jeanie levou a Faye para dentro e subiu com ela para
tomar banho, reuni todas as coisas do exterior e fechei o jardim para a noite.
Acendi velas na sala de estar, ainda que não tivesse havido um corte de
eletricidade, enrolei-me num cobertor e aconcheguei-me no sofá.
– A Faye agradece outra vez os patins – disse a minha mãe, entrando na
sala, cansada.
– Já agradeceu uma centena de vezes – disse eu.
– Bem, agradeceu mais uma vez. Foi simpático da tua parte. Queres um
destes? – A Jeanie tinha duas pequenas garrafas de Babycham fresca e dois
copos. – Cortesia da Em e do Henry. Compraram-me uma embalagem de
seis no Natal e eu ainda não bebi nenhuma!
– Por favor – disse eu. – É melhor do que aquela mistela verde!
A Jeanie deixou-se cair na outra extremidade do sofá e levou os joelhos
ao peito. Passei-lhe um cobertor dobrado e ela cobriu-se até ao queixo.
– Quanto tempo podes ficar? – perguntou.
– É melhor ir amanhã – respondi. – Não quero abusar da tua
generosidade.
– Não conseguirias fazê-lo – disse ela. – Tens um convite aberto. Gostaria
que ficasses mais tempo, se puderes.
– Adoraria, mas é melhor voltar – disse eu. Desejava poder ficar, mas
sentia realmente a força de atração da minha outra vida, o medo de jamais
conseguir regressar, o desejo gritante no meu ADN de estar mais perto das
minhas filhas, que até agora eu abafara, mas que começava a intensificar-se.
– Eu compreendo – disse ela. – Voltaremos a ver-te?
– Sim – afirmei.
– Prometes?
– Sim. Prometo – respondi-lhe.
– Quando?
– Em breve – disse.
A Jeanie inclinou-se de forma desastrada para abrir uma gaveta ao lado
do sofá e tirou um charro já enrolado e fósforos.
– Fumamos? – perguntou. Eu encolhi os ombros. Ela acendeu a ponta,
que crepitou. Semicerrou um olho, porque o fumo se precipitou para lá, e
depois soprou uma torrente longa e reta de fumo. – Acreditas em Deus? –
perguntou. – Imagino que sim, se o teu marido vai ser vigário.
– Debato-me com a ideia – confessei.
– Eu rezo – disse ela, e inalou profundamente antes de me passar o
charro. – Tu rezas? – Abanei a cabeça e respondi que as minhas orações
eram indiscriminadas, dirigidas a algo ou alguém que me ajudasse quando
me sentia desesperada. – Eu rezo em momentos de silêncio – disse ela.
– É... – Hesitei. – Rezas porque te preocupa morrer? – perguntei.
Ela abanou a cabeça e retirou um bocadinho de tabaco do lábio.
– Não me preocupa morrer, sei que vou morrer. Preocupa-me a Faye não
aproveitar, não saber o que lhe vai acontecer sem mim. Mais do que tudo,
rezei com todo o coração para, quando esta vida acabar para mim, poder vê-
la novamente. E acredito que isso vá acontecer.
Senti-me tonta. Não estava habituada a fumar erva e, tirando a noite
anterior, era a primeira vez que o fazia desde há anos. Mas o que realmente
me deixou tonta foi a oração que a minha mãe oferecera a Deus. Ele
atendera-a? Seria eu era a resposta Dele ao seu pedido sentido? Mas como
podia ser? A minha mãe não estava a ver-me depois de morrer, eu estava a
vê-la a ela depois de ela morrer. Seria a mesma coisa? Talvez não
importasse se ela já morrera no seu tempo; a essência da sua oração passava
por saber que a filha ficaria bem sem ela. Fora a isso que Deus respondera,
com certeza. Os meus pensamentos acotovelavam-se para chegar à
superfície.
– Estás a falar do Céu?
– Não sei do que estou a falar – disse ela. – Mas algo me tem devorado os
pensamentos. Se eu vir a minha filha depois de morrer, ela irá reconhecer-
me?
– Como poderia não reconhecer? – disse eu, a pensar na Elizabeth Keel
na sua lojinha, e em como ela parecia a mesma aos vinte e cinco e aos
cinquenta e cinco anos, mais ou menos. – As pessoas não mudam a ponto de
não as conseguires reconhecer, a não ser, tu sabes, em circunstâncias
excecionais.
– Talvez não me reconhecesse porque é só uma criança, e se não me visse
há anos... ao ver-me, se nos encontrássemos, eu seria um fantasma?
Assustá-la-ia? Ela pensaria que enlouqueceu? – O seus olhos buscavam o
meu rosto como se eu fosse uma especialista.
Hesitei. A mãe minha parecia triste, desamparada, e eu queria libertá-la
disso.
– Não creio que fosses como um fantasma – disse eu. – Mas, mesmo que
fosses, penso que não a assustarias. Acho que serias mais como um anjo da
guarda. Uma pessoa que apareceria na vida dela e, de alguma forma, no
fundo, ela saberia. Ela saberia que eras tu.
– Não te debates para acreditar em anjos da guarda, então – disse ela.
– Não tanto como me debato com Deus.
Desviei o olhar. A minha mãe inclinou-se para a frente, aproximando-se
de mim de joelhos, e segurou-me o rosto com as duas mãos. Os seus olhos
lançaram-se sobre o meu rosto como se estivesse à procura de um diamante
microscópico. Olhei para ela e desejei que ela me conhecesse.
– És tão parecida com ela – disse.
17

D urante uma fração de segundo depois de ela dizer aquelas palavras,


imaginei-nos a ambas a rir, a bater nas coxas teatralmente pelo facto de
eu ser a filha dela, visitando-a do futuro para lhe dizer que estava tudo bem,
que a filha sobreviveria e, melhor ainda, seria feliz. Visualizava-nos a olhar
uma para a outra com uma reverência apaixonada, a dizer coisas como:
Quando percebeste que era eu?
Mas, por mais que eu quisesse e por mais que vocês queiram ouvi-lo, não
foi o que aconteceu. A minha mãe afundou-se de novo no canto do sofá,
parecendo um gnomo bonito e encantadoramente despenteado: o cabelo
desgrenhado a cair em volta do rosto.
– Não sei o que se passa comigo – disse ela, com uma voz
agradavelmente petulante. – Muito disto – disse ela, reacendendo o charro e
dando uma longa e terapêutica passa.
– O que queres dizer? Pareço quem? – Tive de perguntar.
A Jeanie suspirou.
– Bem, não tenho a certeza, porque a fotografia que eu tinha não era
muito nítida. – Soprou um anel de fumo e ambas o vimos subir até ao teto,
desvanecendo, até não ser nada. – Mas o que acontece é que és parecida
com a minha mãe.
As minhas expectativas esbarraram nas suas palavras inesperadas. Eu
assumira que a Jeanie veria em mim a pequena Faye, mas fazia mais sentido
que notasse pontos de semelhança com uma versão mais velha de mim
mesma, e não com uma mais nova. Eu nunca soubera, nunca pensara sequer
sobre isso, mas devo ser parecida com a minha avó. E isso explica muito.
Talvez fosse essa a razão pela qual a Jeanie se afeiçoara a mim com tanta
prontidão, porque parecia idealisticamente entusiasmada em estabelecer
uma ligação, talvez até porque me vira como uma boa escolha para tomar
conta da Faye, no caso de algo lhe acontecer. A Jeanie pôs os braços em
volta das pernas.
– Eu era muito nova quando perdi os meus pais. As memórias que tenho
deles são muito vagas. Não consigo lembrar-me de como era o meu pai, e só
tenho a imagem dele numa fotografia, embora me lembre de ele pegar em
mim. A minha mãe, não sei se consigo recordar-me dela para além da
fotografia, mas fazes-me lembrar dela. És igual à imagem que tenho,
embora ela fosse mais nova do que tu és agora, quando morreu. – A Jeanie
fitou o vazio, como que a tentar ver algo que não estava lá. – Há uma
semelhança física, acho eu. – A Jeanie tocou no cabelo e no nariz, enquanto
olhava para os meus. – Mas há também algo de familiar em ti que não sei
explicar. Quando estou contigo, às vezes finjo que estou com ela. – Ela
apagou o charro fumegante, como se fosse ele o culpado pela sua
melancolia. – Desculpa, de facto não consigo lembrar-me de nada sobre ela.
Estou a ser pateta. Deves pensar que sou doida.
Peguei-lhe na mão.
– Não és nada. – Depois: – Posso ver a fotografia?
– Não sei onde está, meti-a dentro de um dos meus livros e não sei qual.
Já a procurei algumas vezes, mas... Vou procurá-la para ti. – Ela bateu com
as mãos nas pernas e sorriu. – Não sei como entraste nas nossas vidas nem
porquê, mas estou feliz por ter acontecido. Gosto de te ter por perto – disse
ela. Observou-me a observá-la. Eu estava pedrada, feliz e invadia-me uma
sensação de pertença ao pensar que era parecida com a mãe da minha mãe.
– Não sabes mesmo mais nada sobre os teus pais?
Ela abanou a cabeça durante um longo momento.
– Não. Nada. Sou só eu e a Faye. Acho que é por isso que me preocupo
tanto com ela. Preocupo-me com o que seria dela, se algo me acontecesse.
Não temos mais ninguém.
– Porque tens tanta certeza de que vais morrer nova, além da vidente?
– Sinto-o – disse ela, pondo a mão sobre o coração. – E acredito no que
aquela mulher me disse na feira; estava a dizer-me a verdade.
– Com certeza sabes que são todas uma fraude – disse eu, sentindo-me
também como uma, depois da manobra com a Elizabeth.
– Sim, bem, vi-lhe no rosto que algo não estava bem. Ela tentou disfarçar,
mas leu-o nas cartas. Obriguei-a a dizer-me o que via, ela não se limitou a
contar-me alegremente que eu ia morrer. – Acenei com a cabeça, enchendo
os copos de Babycham. – Acho que me deixou um pouco desesperada –
disse ela, dando um gole. – Por esperança.
– Sentir-te-ias melhor se eu própria fizesse um pouco de adivinhação? –
disse eu.
Ela parou a meio do gole.
– Não podes fazer isso, és uma descrente! – exclamou, sorrindo-me. – E
não tens habilitações.
– Não preciso do raio das habilitações – disse eu. – Não se estuda na
universidade.
– Mas tens de saber como o fazer, precisas de perceber dessas coisas –
disse ela a rir.
– Sou completamente qualificada – afirmei, com um aceno confiante. –
Sou um às quando se trata dessas coisas. Sei que me ri de ti e é tudo uma
patetice, da maneira mais agradável possível. Mas, apesar disso, consigo
mesmo ler-te a palma da mão.
– Então gostaria muito. – Ela serpenteou para a extremidade do sofá,
como uma criança a preparar-se para ouvir a sua história preferida. – Mas,
por favor – estendeu a mão –, só a verdade. O bom e o mau.
– Garanto – declarei solenemente. – Preparada? – perguntei, e ela
assentiu.
– Muito bem, aqui vai. Jeanie, acho que tens razão – disse, olhando bem
de perto para a palma e traçando as linhas que a percorriam. – Acho que és
uma alma preciosa, que não estará nesta terra tanto tempo quanto deveria.
Mas a tua luz nunca se apagará, porque perdurará na tua filha. Se morreres...
– engoli, e era difícil. Não queria chorar, mas aquelas palavras eram como
uma válvula numa torneira. A minha voz tremeu. – Se morreres, a tua filha
nunca te esquecerá. Vai sentir a tua falta e vai sentir que algo lhe falta,
porque ninguém a amará tanto como tu. E tu vais perder a oportunidade de a
ver crescer. Mas compreende isto, porque é importante, é o que queres
saber: a tua filha vai crescer e ser feliz, vai ter bons amigos e casar com um
bom marido, e terá filhos que serão saudáveis, felizes e bons no hula hoop,
só porque tu és. – A voz falhou-me e parei de falar por um momento,
porque não podia confiar que as minhas palavras se mantivessem estáveis. –
A tua filha vai passar-lhes isso. Vai passar-lhes muitas coisas boas que vêm
diretamente de ti. – Respirei de forma profunda. Sentia-me como se tivesse
sustido a respiração.
– Ela vai acreditar no Céu? – A voz da minha mãe saiu débil.
Eu hesitei.
– Sim. É provável.
– E se ela não acreditar no Céu, então, para ela, eu simplesmente terei
desaparecido. É isso?
– Não, não terás desaparecido. Viverás nela e através dela, e os teus genes
passarão para os filhos dela – disse eu.
– Mas, se ela acreditasse no Céu, saberia que eu olhava por ela, que nunca
a irei deixar. E ela podia acreditar que um dia, daqui a muito, muito tempo,
me veria outra vez.
– Se acreditas no Céu, Jeanie, então sabes que a verás de novo. Portanto,
porque precisas que ela também acredite nisso?
– Porque a confortaria – disse ela.
– Ouve-me, Jeanie, tu verás novamente a tua filha. Tu sabes isso. E eu sei
isso. Entretanto, há vislumbres do Céu na Terra.
As lágrimas corriam pelo rosto da minha mãe e pelo meu também.
– Podes dar-lhe apoio? – perguntou, de forma quase inaudível.
– Estarei sempre por perto e ela ficará bem. Prometo. Garanto-to com
certeza – disse.
Ela inclinou-se para a frente e beijou-me a face.
– És boa na adivinhação. Devias pensar em desistir do jornalismo. – Ela
levantou-se e reuniu devagar toda a parafernália de fumar, guardando-a para
que a pequena Faye não a visse de manhã. – Vou para a cama, tu vens?
– Sim – disse, erguendo-me. – Anda cá. – Estendi os braços e a minha
mãe pousou na mesa as coisas que tinha nas mãos. Abraçámo-nos e a sua
face húmida encostou-se à minha. Pensei que ela estaria a imaginar que eu
era a sua mãe, o que para mim foi o suficiente, naquele momento. Ela
embalou-me um pouco e, ali mesmo, balançámos no nosso abraço, que eu
não queria soltar jamais. Mas todos os abraços têm um fim, e ficámos então
sozinhas mais uma vez. Subimos as escadas, a Jeanie deitou-se na sua cama
com o meu eu mais novo e eu voltei para o meu antigo quarto.
Enquanto me despia no quarto da pequena Faye, vi uma fotografia na
estante: a minha, na caixa da bola saltitona. Peguei nela e desci as escadas,
metendo-a dentro do pequeno livro de culinária que ainda estava no balcão
da cozinha, porque não me pareceu que outra pessoa fosse fazê-lo.
E, de uma forma engraçada, acho que foi esse o princípio.
*
Quando disse «adeus» queria dizer «até breve». Tencionava voltar, mas
não sabia precisar, porque poderiam ser apenas umas semanas para mim,
mas meses e meses para elas. Eu sabia que a Jeanie esperaria ver-me dentro
de dias e é claro que era o que eu queria, mas não podia prometer-lho. Sabia
até que era possível que, da vez seguinte que voltasse, a minha mãe já
tivesse morrido.
Portanto, quando nos abraçámos e demos um beijo de despedida, para
mim foi como perder outra vez a minha mãe. O adeus potencialmente final.
A pequena Faye deu-me um abraço forte, agradeceu-me mais uma vez os
patins, e fez-me prometer que voltaria em breve. Eu assenti.
– Prometes? – perguntou ela, sorrindo como uma cria de lobo.
– Prometo – respondi, porque naquele momento me parecia verdade que
uma promessa quebrada a mim mesma era melhor do que nenhuma
promessa.
Elas saíram para a escola e eu para o barracão. Entrar na caixa apavorava-
me. Estava cansada de me magoar. Olhei em volta do pequeno espaço e
ponderei ficar. O meu coração estava irremediavelmente destroçado. Mas,
por muito que eu não quisesse partir, tinha de ir para casa. Não estaria no
mesmo país que as minhas filhas, mas estaria no mesmo tempo, e agora o
desejo de estar mais perto delas superava o impulso de ficar no passado.
De volta ao barracão, certifiquei-me de que a área onde estava a caixa se
encontrava desimpedida e não muito perto da porta. Da vez seguinte
quereria mais espaço de derrapagem, e verifiquei duas vezes se a porta do
barracão estava bem fechada; parecia um pouco solta porque levara uma
grande pancada. Esperava não sair por ela com estrondo, a qualquer
momento. Não queria aparecer a voar dali para fora por entre uma nuvem de
madeira lascada.
No dia anterior, tinha pedido emprestadas as roupas da minha mãe, mas
agora estava de volta às roupas com que chegara. Vesti o fato de esqui,
puxando bem os cordões do capuz, como antes. Apertei o velcro das luvas
e, ao entrar na caixa, tentei visualizar-me além da viagem, no meu destino.
Aterraria num colchão e ficaria bem. Respirei fundo, preparei-me e percebi,
numa ligeira epifania, embora nítida, que todas as viagens são um processo
– muitas vezes doloroso, com decisões difíceis – no qual existe sempre um
princípio, um meio e um fim. Mesmo que o princípio não seja o princípio
em todos os sentidos da palavra. Mesmo que o fim não seja o fim como o
conhecemos.
*
Como já esperava, a viagem foi como um passeio na montanha russa do
qual eu queria muito sair. Só tive de me fortalecer contra o medo, o enjoo, a
incapacidade de respirar, o terror de talvez nunca regressar a casa. Perdida
no espaço, desorientada e a acelerar num vazio a uma velocidade
certamente superior a cento e sessenta quilómetros por hora, sem nenhuma
certeza de que a viagem me deixaria no mesmo lugar em que entrara, sem
nenhuma garantia de que iria sequer parar.
E depois parou. Senti-me como se me tivesse lançado para uma porta para
a abrir com o ombro, mas não era uma porta: era a parede do meu quarto e
de facto causei impressão – literalmente –, uma racha no estuque.
Experimentei uma avassaladora sensação de exaustão. Ajustei-me no
colchão para não parecer tanto uma boneca de abandonada, deitei-me de
costas e fechei os olhos. Queria dormir – viajar no tempo esgotava-me –,
mas ao passo que os olhos insistiam em fechar-se, a mente não me deixava
sucumbir. Havia algo que eu tinha de fazer, só não me lembrava do que era.
*
Abri os olhos devagar. Um ficou fechado mais um instante do que o
outro, como uma boneca estragada. O que me teria esquecido de fazer?
Estava escuro, portanto era de certeza mais tarde do que quando partira.
Mas precisava de saber que horas eram, e se era ou não o mesmo dia.
Precisava de ver a data e a hora. Era importante calcular o padrão de tempo
entre o passado e o presente. Virei-me, sentindo-me gorda e desajeitada no
fato de esqui. Era como um bêbado que tinha caído no passeio e decidido
dormir ali, sendo depois mandado embora. Pus-me de gatas e levantei-me.
Arrastei-me até ao outro lado da cama, onde estava um relógio de cabeceira
ligeiramente torto. Eram onze e meia, mas forcei-me a descer e a ligar a
televisão para saber o dia.
Fiquei surpreendida. Não sei o que esperava, mas não era isto. Não sabia
bem o que fazer com aquela informação: tinham passado três horas. Nem
mais, nem menos, não um dia inteiro, só o mesmo tempo que passara da
primeira vez que visitara a minha mãe, embora desta vez tenha ficado muito
mais tempo. Tinha muito tempo até ao Eddie e as meninas voltarem.
Desliguei a televisão e sentei-me no escuro. O esforço de subir outra vez as
escadas parecia de mais.
Ouvia os sons distantes dos vizinhos que tinham jantado e tomavam uma
bebida nos jardins, os sons ténues do riso e o tilintar dos copos – adoro as
noites de verão –, e desejei ser um deles, com uma vida mais simples e
dilemas mais simples. Obriguei-me a subir as escadas, abrindo o fecho do
fato de esqui enquanto subia. Despi-o quando cheguei junto ao colchão e
deixei-me cair de barriga para baixo. Não me passou nada pela cabeça.
Dormi profundamente.
*
Ao acordar, um raio de luz por entre as cortinas feriu-me os olhos. Era
quase meio-dia, portanto, enquanto eu dormia, passara quase três vezes
mais tempo do que quando estava nos anos setenta com a minha mãe.
Este facto teceu devagar a teia de uma ideia tão bela como a criação de
uma aranha num relvado coberta de orvalho. Se três horas era o tempo que
passava aqui no presente, independentemente de quanto tempo eu ficava no
passado, então o que me impedia de permanecer lá muito mais tempo?
Quer dizer, muito mais tempo. Como Lucy e os outros em Nárnia, poderia
eu viver uma vida inteira duas vezes? Mesmo no meu estado atordoado, não
parecia boa ideia. Mas, se fosse possível, então eu teria de fazer uma lista de
prós e contras. O potencial da ideia fortificou-me. Antes de ir em busca das
minhas opções, tinha de fazer o essencial: ligar ao Eddie, tomar banho,
vestir-me e comer. Depois faria a cama, e depois... depois resolver-me-ia a
tratar de tudo o que precisava de fazer, e tudo o que poderia fazer. Mas
antes sequer de começar a escrever, soube que a tarefa no topo da minha
lista era reaver o anel de noivado, o mais rápido possível.
Mas não iria sozinha. Queria que o Louis fosse comigo à loja da
Elizabeth.
18

A casa do Louis era imaculada. Eu nunca tinha ido a casa dele e não sabia
o que esperar. Creio que pensei que seria suja, porque os invisuais não
conseguem ver o pó e, por conseguinte, não veem a necessidade de limpar e
arrumar. Conduziu-me a uma sala relaxadamente luminosa: sofás cinzento-
claro macios e um tapete creme; um vaso grande com rosas brancas sobre
uma mesa de centro branca envernizada, que ele contornou com
movimentos de dança hábeis: lado, lado, para a frente, e depois sentou-se.
– A tua casa não é o que eu esperava, Louis – disse eu, despindo o casaco
de malha e voltando atrás para o pendurar num cabide na entrada.
– O que esperavas? – perguntou.
– Não sei – disse, deixando-me cair numa poltrona muito bem estofada
com um padrão geométrico cinzento e mostarda. – Pensei que, no caso de
«homem a morar sozinho», seria mais um apartamento de solteiro: um sofá
disforme e latas de cerveja vazias atiradas para o canto, esse tipo de coisas.
– Não posso ter confusão, andaria sempre a tropeçar. A minha irmã é
decoradora de interiores e encomendou os móveis e tudo; planeámos a
disposição juntos. Ela diz que é uma apresentação bastante austera.
– Tem um ar muito limpo, muito sereno. Adoro.
– Olha as flores – disse ele, apontando ligeiramente para a esquerda delas.
– Lindas. De quem são?
– Quando sei que vou receber visitas, chamo a senhora do lado e ela
corta-me umas flores do jardim dela, põe-nas num vaso, traz-mas para cá,
para disfarçar um pouco a austeridade. Ela também me faz as limpezas.
– Bem, faz um ótimo trabalho, garanto-te – disse.
Fomos para a cozinha, também muito branca e reluzente, e o Louis pôs a
chaleira a aquecer.
– A tua chaleira é vermelha – disse.
– Seja lá o que isso for – disse ele.
– É um elemento de cor que fica bem aqui.
Ao servir o chá, ele pôs o dedo sobre o rebordo da chávena, para parar de
encher quando a água lhe tocasse.
– As minhas mãos estão limpas – disse ele, como se eu estivesse
preocupada que ele contaminasse a bebida. – Espero que não te importes, é
só a maneira mais prática de o fazer.
– Claro que não me importo. – Sentámo-nos na mesa da cozinha, que, ao
contrário de tudo o que eu vira na casa até então, era velha e de madeira,
desgastada de ser esfregada todos os dias durante anos e anos. Passei a mão
por cima; era de uma suavidade incrível.
– Esta era da minha mãe – disse ele, em resposta ao som de deslizar que
as minhas mãos fizeram na superfície. Passou também as mãos sobre a
mesa. – Penso nela sempre que me sento aqui. Ela estava sempre na
cozinha, por isso é apropriado.
– Eu voltei de novo – declarei. O Louis parou o que estava a fazer, que
não era muito, mas houve nele uma súbita quietude, como se tivesse
detetado um leve odor no ar.
– Queres dizer, voltar atrás no tempo? – perguntou, e soltou então uma
espécie de gargalhadinha que me surpreendeu.
– Sim, visitei outra vez a minha mãe e o meu eu mais novo.
– Quando?
– Anteontem. Fiquei uns dias. Mas olha só. – Inclinei-me para frente,
cúmplice. – Quando voltei ao presente, tinha passado o mesmo tempo do
que quando voltei ao passado menos de um dia. Apenas três horas.
O Louis empurrou a cadeira para trás e estendeu a mão para pacote de
biscoitos de chocolate. Tateou em busca da pequena tira que os abria numa
extremidade e tirou um, empurrando o pacote na minha direção.
– Está bem – disse ele, hesitando. – Porque é que estamos a fazer isto aqui
e não no trabalho?
A pergunta desconcertou-me, mas só por um segundo.
– Tirei uns dias de folga, porque não sabia quanto tempo estaria ausente
desta vez, mas acabou por não ser quase tempo nenhum. E mal podia
esperar para te ver e contar-te o que aconteceu, por isso é que vim cá. – O
Louis franziu a testa e inclinou a cabeça para o lado. – Além disso –
continuei –, estou muito contente por ter feito isso, porque adoro a tua casa
e agora conseguirei imaginar-te em casa.
– Está bem – disse ele, recostando-se na cadeira com um suspiro. –
Vamos lá ouvir tudo. O que aconteceu?
Lancei-me, ansiosa, no meu relato: ficar pedrada com a minha mãe,
pensar em roubar os patins, mas depois trocá-los pelo anel de noivado; o
pudim de tâmara e a premonição da minha mãe de que morreria jovem; o
seu pedido para que eu tomasse conta da Faye, se isso acontecesse, e a nova
informação sobre o meu pai. O Louis comia os biscoitos com método, com
ar de juiz entediado, enquanto eu falava e, quando parei, ele limpou as
migalhas da boca.
– Então – disse eu –, o que achas?
Ele expirou profundamente.
– Bem, deste-me aqui muita informação, Faye, não sei bem por onde
começar. Estou impressionado com os pormenores.
– O que quer isso dizer? – perguntei. Ele arqueou as sobrancelhas e por
momentos perguntei-me porquê, antes de sentir um grande nó no estômago.
– Não acreditas em mim, pois não? – questionei, a minha voz de repente
débil. Pousei um biscoito meio comido na mesa e as mãos no colo, como
uma criança castigada. Queria chorar.
– Faye – disse ele. – O que se passa aqui? Não esperas que eu acredite
que tudo isso é mesmo verdade.
Olhei para ele com os olhos cheios de lágrimas, mas nele eram
desperdiçadas; tanto quanto ele sabia, o meu rosto estava impassível.
– Achas que estou a mentir-te? Porquê? – perguntei. – Porque faria isso?
Achas que enlouqueci? – As lágrimas eram claramente audíveis na minha
voz.
– Não, eu... – Ele tropeçou nas palavras. Parecia de facto confuso e
estendeu a mão, à procura da minha. Pousei a mão na mesa para que ele a
pudesse encontrar e deixei-o pegar nela. – Tu és minha amiga – disse ele. –
Mas assumi que esta história fosse parte de uma daquelas experiências que
tu fazes.
– O quê? – disse eu, perdida.
– Não sei, foi divertido e interessante quando me contaste pela primeira
vez, e tenho pensado sobre isso desde então, e temos conversado... Quer
dizer, tive de pensar num motivo para me contares algo assim.
– Como poderia ser uma experiência? – disse eu, a voz cortante. – De que
estás a falar?
– Estás sempre a fazer experiências, a comparar pessoas invisuais e com
visão. Tenho tentado entender de que trata tudo isto, e o melhor que
consegui arranjar foi que projetaste um cenário para testar as diferenças nas
competências lógicas e de resolução de problemas entre invisuais e pessoas
com visão. Já fizeste estudos um pouco semelhantes; não tão invulgares
como este, mas mesmo assim. Pensei que estava a sair-me muito bem, tive
boas ideias... tu sabes, acerca das viagens no tempo e assim.
– Sim, tiveste – disse eu com muita calma. – Tiveste umas ideias muito
úteis.
– E, portanto, pergunto-me porque virias cá falar sobre isso no teu tempo
pessoal e não no trabalho, onde nos pagam para ter conversas como esta.
– Pensei que acreditavas em mim, Louis – disse. – Estava mais ou menos
a contar com isso. – Soltei a mão da dele e cerrei os punhos debaixo da
mesa.
– Estás então a dizer-me que tudo isso está mesmo a acontecer-te?
– Bem, ou está, ou então enlouqueci – respondi. Houve um longo
silêncio.
– Pode ser as duas coisas – disse ele. – Pode estar a acontecer e teres
enlouquecido.
– Verdade – disse eu, e funguei.
Soltei um riso abafado, meio a rir, meio a chorar. E ele também se riu
com delicadeza. O seu riso era em parte um pedido de desculpas e em parte
descrença, mas havia ali mais qualquer coisa. Só que isto não era realmente
motivo de riso. Não para mim. Era de vida ou morte. Ou, mais
precisamente, vida e morte. E parecia que acabara de perder a única pessoa
no universo com quem podia falar. O desespero atingiu-me como um murro
no estômago, a solidão era como estar num poço escuro e profundo,
sabendo que ninguém ouviria os meus gritos, e que não veria a Lassie a
espreitar no topo, assegurando-me que vinha ajuda a caminho. Apoderou-se
de mim um pranto. Primitivo. Selvagem. Desesperado. Não gritei nenhuma
palavra, mas o som que se impôs na sala, preenchendo-a, revelava a
verdadeira sensação de saber que não acreditam em nós, que não
pertencemos, que não temos como provar a nossa inocência, a nossa
história, a nossa verdade. Pela única vez na vida, senti-me como uma
espécie de deus que queria reivindicar fé.
– Estou a dizer a verdade – lamentei. O Louis chegou-se para trás na
cadeira, muito tenso, com um ar horrorizado. – É tudo real – disse eu de
novo, mas desta vez a voz saiu-me quebrada e débil.
Olhámos um para o outro no silêncio que se seguiu ao meu acesso. Ao
longe, ouvi um cortador de relva e perguntei-me como seria sentir-me
normal outra vez.
– Ouve – disse o Louis, a voz carregada de sinceridade. E depois não
disse nada, embora a boca se abrisse e fechasse algumas vezes, tentando em
vão, responder.
– O quê? – disse eu, a voz ainda rouca. O grito arranhara-me a garganta.
– Acho que não me mentirias. Então, ou estás a dizer a verdade ou estás
mesmo...
– Louca? – disse eu, terminando a frase dele. – Eu sei.
– Sim. É uma ou outra, definitivamente não as duas. Mas, na verdade,
apesar da loucura de tudo isto, Faye, minha querida amiga, não acredito que
estejas louca. Só que é difícil. Sabes? É difícil para mim acreditar sem
nenhuma prova. Eu sou um cientista. Não sou muito bom a ter fé. Mas vou
tentar, sim? Vou tentar acreditar completamente em ti.
Senti o calor subir-me aos olhos e as lágrimas escorreram-me pelo rosto.
O Louis não sabia, por isso eu disse-lhe.
– Estou a chorar – afirmei.
– Estás bem? – perguntou ele.
– Acho que sim. – Sentia-me emocionalmente exausta e não tinha
percebido o quão sozinha estaria se não tivesse o Louis. – Preciso de ti,
Louis.
– Olha, vamos beber mais chá – disse ele. – Ou que tal uma cerveja? E
também podes ficar para jantar, se o Eddie e as meninas não estiverem.
– Sabes cozinhar? – perguntei, a fungar.
– Nem por isso, mas sou excelente com o micro-ondas – disse ele, com
um gesto cómico na direção do micro-ondas. Percebi que era a única coisa
na cozinha que tinha uma mancha.
– Parece-me bem, cerveja e jantar seria ótimo – disse eu. – Obrigada.
Instalámo-nos na sala, as cervejas abriram com um silvo e quando
falámos parecia que estávamos a começar de novo. O Louis fez-me
perguntas e fomos mais devagar. Ele disse-me que a forma como lhe contei
o que aconteceu foi como o trailer de um filme, todos os pontos altos. Disse
que queria saber tudo.
E aquilo sobre que mais falámos foi de filosofia. Em particular,
perguntávamo-nos se, ao voltar atrás e mudar as coisas, eu teria mudado o
presente? Na verdade, o Louis perguntou-me com cuidado se eu tinha
falado com o Eddie e as meninas depois de ter voltado, e soltou um grande
suspiro de alívio quando eu disse que sim.
– Oh, Deus – disse eu. – Nem pensei nisso. Estavas preocupado que o
Eddie e as meninas pudessem já nem existir?
– Eu não sabia o que esperar. Olha, a primeira vez que lá foste, foi um
acidente; se as coisas tivessem mudado ao regressares, não poderias culpar-
te. Mas, da segunda vez que voltaste, escolheste fazê-lo e fizeste muitas
coisas, falaste com as pessoas sobre o futuro, deste um presente ao teu eu
mais novo. Deste o teu anel, Faye. – Olhei para a mão, para onde o anel
costumava estar. – Não consigo compreender esse anel – continuou ele. –
Se deste o anel de noivado na década de setenta, como é que o Eddie
poderia comprá-lo e dar-to quando te pediu em casamento? Se essa mulher,
a Elizabeth, o teve este tempo todo, como ficaria ele disponível para o
Eddie?
– Não pensei nisso. – Esvaziei a cerveja e o Louis, ao reconhecer o som
de uma garrafa a esvaziar-se, levantou-se.
– Mais uma?
– Por favor – disse. Enquanto ele estava na cozinha, gritei: – Então, achas
que posso ter mudado no presente coisas que ainda não sei?
– Não sei – disse ele, voltando para a sala de estar com as cervejas
geladas. A condensação escorria pelo lado de fora. – Quer dizer, quem sabe
que teorias são verdadeiras? Se alguma o é? Há o efeito borboleta, onde
pequenas mudanças têm grandes consequências, o bater das asas de uma
borboleta pode mudar o curso de um tornado. Esse tipo de coisa.
– Há cerca de um ano, li à Esther um livro em que uma criança volta ao
passado, ao tempo dos dinossauros, e por acidente pisa um inseto. Depois,
quando a criança volta, está tudo diferente, o mundo não é um lugar muito
bom. A criança tem de voltar novamente ao passado e garantir que não pisa
no inseto, para que as coisas no presente possam voltar ao normal.
– Ena, isso é um bocado sinistro para um livro infantil – disse o Louis.
– Os bons são todos sinistros.
– Verdade – disse ele. – Bem, parece que fizeste bem mais do que pisar
um inseto e, na verdade, podes literalmente ter pisado vários, mas até agora
não reparaste em nenhuma mudança?
– Não – disse eu. – O que se passa, na verdade, é que sinto que algumas
das minhas ações eram necessárias para garantir que o presente é aquele que
me é familiar. Como os patins. Acho que não teria tido os patins nem me
teria tornado tão adepta deles em adolescente se não os tivesse recebido em
criança; mas quem me teria dado aquele exato par de patins, senão eu
mesma?
– Sei que há outra teoria sobre as viagens no tempo, pode ser relevante –
disse o Louis, levantando-se e saindo da sala. – Anda – disse ele. Segui-o
escadas acima até um escritório. Esta divisão também era imaculada (o
arquivo era de morrer), mas aqui a decoração era mais escura; as paredes e
o tapete eram cinzento-escuros e havia uma cadeira de escritório em couro
preto, muito confortável, onde o Louis se sentou. – É preciso acender a luz?
Que horas são? – disse ele, mexendo desajeitadamente por baixo do punho,
à procura do relógio. – Nove e meia, ainda há luz?
– Está ótimo – disse eu, puxando uma cadeira do canto para me sentar
junto a ele, em frente do computador. Ele inclinou o ecrã na minha direção;
eram imagens de uma variedade de homens em busca do amor. O Louis
começou a teclar e abriu-se outra janela.
– Eu tenho um leitor de ecrã ligado e é rápido, por isso ignora, se
conseguires. – O Louis, como a maior parte dos funcionários invisuais do
RNIB, também tinha um leitor de ecrã, um programa de computador que lê
o texto do ecrã, em casa. Agora, não vou começar a sugerir que os invisuais
têm uma audição melhor do que os que veem, mas quando se habituam a
estes leitores de ecrã, põem o programa numa velocidade tal que é
praticamente impossível entendê-lo, se não se estiver habituado. Por isso,
quando o Louis abriu uma página da Internet e o leitor de ecrã arrancou,
aquilo soou como uma algaraviada; soou como um ronronar eletrónico
ruidoso, e eu sobressaltei-me. – Espera, vou só baixá-lo um pouco – disse o
Louis. – Estou à procura de uma coisa em particular, algo que estive a ler há
umas semanas, aguenta um bocadinho.
Esperei enquanto o Louis abria as páginas e digitava os termos de
pesquisa. Procurava teorias sobre viagens no tempo, e no ecrã apareciam
imagens do DeLorean do Regresso ao Futuro e da máquina de veludo
vermelho em forma de trenó, com a engenhoca redonda atrás, do filme A
Máquina do Tempo. O Louis fez então uma pausa num ecrã que parecia um
pouco mais científico, puxou para baixo – eu não conseguia entender o
discurso confuso que ia passando – e depois parou.
– É isso – disse, e diminuiu a velocidade do leitor de ecrã. Era um pouco
como ouvir uma palestra do Stephen Hawking, não só por causa da voz,
mas também pelo assunto. No início consegui perceber, mas depois
apareceu um monte de coisas sobre paradoxos e perdi-me no jargão.
Quando o leitor de ecrã terminou, o Louis virou-se para mim. – Acho que
aquela última parte parece a explicação mais razoável – afirmou. –
Especialmente tendo em conta que ainda aqui estás e não parece ter mudado
nada de importante, ou sequer de segunda ordem, em resultado de recuares
e avançares no tempo, ainda que tenhas mexido em muita coisa lá atrás.
– Qual é a conclusão a retirar? – perguntei.
– Conclusão a retirar: não podes mudar o que aconteceu, porque já
aconteceu. Não poderias voltar e matar os teus pais antes de eles te terem,
porque existes. Simples.
– Então o facto de eu ter crescido com aquele par de patins de metal... –
disse eu.
– Aconteceu precisamente porque voltaste atrás no tempo e deste a ti
mesma aqueles patins. É basicamente uma teoria de viagens no tempo que
se cumpre e em que, em última análise, qualquer coisa que faças para tentar
mudar o passado só origina os acontecimentos que acabaram por ocorrer, o
que significa que viajar no tempo nunca pode mudar o futuro nem o
presente.
Vimos uns vídeos online sobre buracos de minhoca e viajar mais rápido
do que a velocidade da luz, e a minha cabeça depressa ficou à roda. Não
aguentava mais e disse-o ao Louis.
– Anda, vou chamar um táxi – disse ele, desligando o computador e
empurrando a cadeira para trás. Saí do escritório, mas esperei por ele lá
fora, para que descesse as escadas à frente; encolhi-me quando bateu com o
dedo do pé na cadeira em que eu estivera sentada. Não a tinha posto na
posição em que estava.
– Merda! – disse ele.
– Desculpa, Louis – disse eu, e estremeci.
– É por isto que a casa é tão arrumada, porra – declarou, reposicionando a
cadeira.
Enquanto descíamos as escadas, lembrei-me de algo.
– Qual é o oposto de incauto, sabes?
– Cauto – disse ele, sem perder o ritmo.
– Como sabes isso? – perguntei, impressionada.
– Scrabble – respondeu. E enquanto eu pensava que, com certeza, lhe
seria impossível jogar, ele resmungou e disse: – Sabes que existe Scrabble
em braille, certo? Trabalhas no raio do RNIB, mulher.
– Tens tabuleiro? – perguntei.
– Sim, queres jogar, um dia destes?
– Sim, mas tu dás-me uma sova – disse.
– Achas? – disse ele, com uma pontinha de sarcasmo que raiava a
insolência.
– O que vais fazer amanhã? – perguntou ele, enquanto estávamos na
entrada. – Amanhã tens o dia de folga, não é?
– Sim – respondi. – Ainda não sei o que vou fazer, talvez não muito,
pensar na minha vida dupla. Talvez deva começar a escrever um diário
sobre isso, garantir que me lembro de todos aqueles pormenores e de tudo o
que a minha mãe me disse. Sim, acho que vou fazer isso.
O Louis ligou para uma empresa de táxis enquanto eu vestia o casaco de
malha e calçava os sapatos.
– Não é isso que vais fazer – disse ele. – Não amanhã.
– Então continua, Einstein, o que vou fazer? Jogar Scrabble?
– Nós – disse ele –, vamos arranjar a prova que eu quero. Não que não
acredite em ti, querida, porque acredito. Vamos ver a Elizabeth Keel e
trazer de volta o teu anel de noivado.
– Engraçado – disse eu. – Vim aqui para te pedir justamente isso.
19

À ida para casa, no táxi, o mundo para lá das janelas que me aparecia
diante dos olhos passava despercebido, enquanto outro mundo se
desenrolava na minha mente. Revivi o tempo com a minha mãe no seu
jardim, e ela a segurar-me o rosto nas mãos; ouvi o arranhar dos patins da
pequena Faye e o som ritmado misturado com o som dos pneus dos carros
na estrada. Devo ter dormitado e acordei quando o táxi parou em frente a
minha casa.
Queria falar com o Eddie e com as meninas. Precisava deles para me ligar
à terra. Sentia um aperto no coração, e não sabia se era por estar longe deles
há mais tempo do que eles de mim, ou por não poderem juntar-se a mim
nesta viagem solitária ao passado que eu estava a fazer, mas precisava tanto
deles que era uma dor quase física. O meu coração sofria.
Há algo na forma como soa o toque quando se liga para outro país que me
faz sentir como se ligasse para outro planeta. Quando o Eddie atendeu o
telefone, foi como se ele tivesse morrido e ido para o Céu, e mesmo assim
eu fosse capaz de falar com ele. Disse-me olá e a minha voz tremeu ao
responder.
– Olá – disse eu.
– O que se passa? – perguntou ele. A única palavra que dissera
denunciara-me.
– Detesto quando estás tão longe de mim – respondi. – Sinto apenas a tua
falta – acrescentei num murmúrio choroso.
– Falámos ontem, parecias bem – disse ele. Havia preocupação na sua
voz.
– Estou bem, apenas queria que estivesses aqui, só isso – disse, limpando
o nariz à manga e fungando de forma pouco atraente.
– Bebeste? – Senti o seu sorriso compreensivo pela linha.
– Sim, detetive, bebi umas cervejas com o Louis – disse eu, conseguindo
também sorrir. – Mas não é isso, só queria ouvir a tua voz. Tenho saudades
tuas.
– Não te preocupes, tu e eu somos como os compassos de John Donne:
quando um de nós tem de sair por um tempo, o outro permanece firme no
lugar, nunca nos largamos de verdade.
– Compassos? – disse (embora saiba o que são).
– Sim. Lembras-te, na escola, aquelas coisas de metal com uma ponta
perigosa num dos braços? Espetas aquela parte na página e depois podes
desenhar um círculo perfeito com o outro braço.
– Eu sei, mas estás a dizer que há um poema sobre isso?
– Sim, de John Donne. Estou neste momento a olhar para a lombada de
um dos seus livros de poesia, numa estante. A minha mãe é fã.
– Lê-me – pedi baixinho.
– Não vais gostar, tem muitos arcaísmos, esse tipo de coisas.
– Lê-me – pedi mais uma vez, ignorando o seu conhecimento sarcástico e
absolutamente preciso sobre os meus gostos e aversões.
– Está bem – disse ele. Ouvi-o deslocar-se e folhear umas páginas
enquanto pegava no livro da estante e encontrava a página certa. – Não vou
ler tudo – disse ele. – Mas cá vai...
Se são duas, duas são então
Como as hirtas gémeas do compasso duas são:
Tua alma, a ponta fixa, não demonstra
Se mover, mas o faz se a outra o fizer.
E conquanto no centro ela assente
Quando a outra ponta sai em caminhada,
Atrás dela se inclina e atenta,
E fica ereta, ao vê-la regressada.
Assim serás tu para mim, que ora preciso,
Como a outra ponta, de través girar;
Tua firmeza torna-me exato o círculo
E faz-me onde começo terminar.
Ele parou e a linha ficou em silêncio. Ouvi a sua respiração.
– Lê outra vez – pedi. – Desta vez, devagar. – Ele fê-lo e, quando
terminou, havia mais silêncio na linha, pleno de amor.
– Estou orgulhoso de ti, Faye – declarou o Eddie, depois de algum tempo.
– Estás? – disse eu.
– Sim, por não te rires das palavras ereta e firmeza. Muito bem.
– Não foi fácil, mas às vezes consigo ser muito madura – disse eu. –
Também havia a palavra hirtas – acrescentei, sorrindo e provando as
minhas próprias lágrimas.
– Gostas do poema?
– Sim – afirmei. Com esta palavra, como um estímulo, surgiu-me na
cabeça o dia do nosso casamento; depois o tempo rebobinou dessa imagem
para outra, e vi o Eddie com um joelho no chão, a pedir-me em casamento.
Baixei o olhar para onde deveria estar o anel em falta e senti um forte
acesso de medo.
– Gosto da ideia de que, quando tenho de te deixar, ficas em casa, uma
presença segura, à espera de que eu volte – disse o Eddie.
– Como uma boa mulher?
– Não, sabes que não é isso que quero dizer.
– O que acontece quando andamos os dois por aí e não está em casa
ninguém para quem se voltar? – perguntei, sentindo-me novamente chorosa.
– De que estás a falar? O que significa isso?
– Nada – respondi.
– O que queres dizer com andamos os dois por aí? – perguntou o Eddie,
parecendo agora um pouco mais sombrio.
– Eu não queria dizer isso, só quis dizer... Não sei o que quis dizer. Só te
quero em casa, sim? – disse eu.
– Está bem. Olha, só estou em França, tu estás em casa, estaremos de
volta em breve. – Ele hesitou. – Ou devemos voltar mais cedo?
– Não – respondi. – Estou bem, a sério, é só a cerveja a falar, e estou a ser
estúpida. Mal posso esperar para vos ver.
– Adoro-te. Vemo-nos em breve. E, Faye, por favor, mantém-te em
segurança. Preciso de ti. Amanhã falamos mais cedo, antes de as meninas
irem para a cama.
*
À noite, acordei de sonhos com a minha mãe; num, eu era criança e
estávamos de mãos dadas, a rodopiar no jardim.
– Somos só nós – disse ela. – Pensa em quem precisa mais de quem.
Acordei de repente, a transpirar. Eu precisava da minha mãe, mas, talvez
mais importante, ela precisava de mim. Eu tinha sido uma criança feliz e ela
fora-me arrancada, o que fora injusto para ambas. Pensei no Eddie, na
Esther e na Evie, e na minha imaginação vi-os vagamente de mãos dadas a
rodopiar, enquanto eu permanecia de fora. Tinham-se uns aos outros,
tinham os pais do Eddie e os nossos amigos. Talvez eu fosse mais útil no
passado, a dar uma ajuda, a fazer os devidos acertos.
A certa altura, adormeci de novo e dormi um sono profundo e sem
sonhos. Na manhã seguinte, surpreendentemente, sentia-me melhor.
*
Apanhei um táxi de volta para casa do Louis nessa manhã, por volta das
oito. Encontrar a Elizabeth Keel significava recuperar o meu anel, e eu não
me sentiria bem até o ter de volta na minha mão. Talvez ainda mais
importante, queria convencer o Louis da minha história, ajudá-lo a
acreditar. Se não conseguíssemos encontrar a Elizabeth, ou se ela tivesse
morrido, então suponho – embora ele pudesse não o dizer – que o facto
reforçaria a ideia de que tudo isto era apenas na minha imaginação. Depois,
havia a preocupação de que ela pudesse negar tudo ou não se lembrar de
mim. Eu não sabia o que esperar.
A cidade onde cresci fica a cerca de uma hora de carro para norte, ao
longo da autoestrada de Londres. Eu não ia lá há alguns anos, mas, à
semelhança de muitas cidades inglesas, esta tinha expandido e melhorado, e
possuía uma infraestrutura que se espalhava para fora de forma contínua e
gradual, como um pedaço de manteiga a derreter ao sol. Eu esperava que a
loja, Serendipity, ainda lá estivesse. A Elizabeth Keel teria agora cinquenta
e poucos anos. Creio que estava a trabalhar na loja quando entrei com as
meninas, da última vez que estivemos de visita. Eu sentia-me cada vez mais
nervosa. E se não conseguisse reaver o anel? Como explicaria isso ao
Eddie?
Estacionámos e encontrámos um sítio para tomar café e o pequeno-
almoço. A empregada de mesa perguntou-me o que queria o Louis, em vez
de lhe perguntar diretamente, e fê-lo repetidas vezes, embora eu continuasse
a atirar a bola para ele. Ele fervia, mas consegui distraí-lo.
– Espero que a loja ainda lá esteja – disse eu.
– Podias ter pesquisado no Google – afirmou ele.
– Não sei se estarão online.
– Tudo está online – disse ele com rispidez. – Há uma porra de um
adoçante nesta mesa? – Ele tateou, à procura. Pus-lhe um na mão. –
Obrigado – disse ele. – Desculpa. A porra da empregada de mesa.
– Eu sei – disse. – Ela pensa que está a ser amável, mas é apenas
condescendente.
– Eu só ia comer uma torrada, mas ela irritou-me tanto que vou pedir um
pequeno-almoço inglês completo – disse ele. – Culpo os benfeitores
condescendentes pela minha cintura.
Na verdade, fiquei contente por passar algum tempo a tomar um bom
pequeno-almoço. Era uma tática de adiamento. Não estava com pressa de ir
à loja. Na verdade, sentia-me um pouco nauseada com a ideia do que
poderia acontecer. Sei que é tudo real, o que está a acontecer-me: a viagem
no tempo, as conversas com a minha mãe, é real. Mas vou dizer-vos como
é: é como sermos acusados de um crime e oferecerem-nos um teste no
detetor de mentiras. Se somos culpados, podemos muito bem aceitar,
porque às vezes vai errar e podemos ter sorte. Mas, se somos inocentes e
não temos sorte, estamos tramados. Depois nunca ninguém vai acreditar em
nós. A Elizabeth Keel era o meu teste no detetor de mentiras. Se não a
conseguissemos encontrar, ou à loja, ou se ela não soubesse de que diabo eu
estava a falar quando lhe pedisse o anel de volta, o que é que isso quereria
dizer?
Eu ainda tinha de aceitar que podia estar louca.
Não era só o Louis que precisava de uma pequena prova. Penso que
também eu precisava de algo concreto que me garantisse: não estás louca.
*
O caminho que percorremos para chegar à Serendipity significou que vi a
loja de frente, porque se situava no lado oposto a uma pequena passagem
que levava à enorme biblioteca nova. A ruela era nova, porque a biblioteca
tinha sido construída depois da última vez em que eu ali estivera, num local
que antes teria sido obscurecido pela fila de pequenos edifícios que ficavam
do outro lado da rua da Serendipity. Por sorte, a minha loja, aquela em que
eu estava interessada, fora construída no lado intocado da rua; de outro
modo, quem sabe o que eu teria feito.
Estaquei quando a vi. No passado, chegara sempre lá vinda de lado, sendo
o conteúdo das montras a primeira coisa a chamar-me a atenção. Mas, deste
ângulo, vi-a de uma nova perspetiva: o local dispunha-se à minha frente
como a imagem de um postal. Fiquei impressionada com o nome da loja,
grande, cursivo e colorido. Havia algo na fachada que me fez pensar em
caravanas ciganas e, por baixo, em letras pintadas, onduladas e mais
pequenas, palavras em que eu nunca reparara.
– Hum...
– O que é? – perguntou o Louis. Ele estava agarrado ao meu cotovelo e
limitou-se a esperar enquanto eu fiquei ali parada.
Puxei o Louis para o lado, de forma a ficarmos à sombra, e não a
transpirar ao sol.
– Diz: «Serendipity, a descoberta de coisas de que não estava à procura».
– Curioso – afirmou o Louis. Perscrutei a sua expressão em busca de
sarcasmo, mas encontrei sinceridade. – Então ainda está aqui. Está aberta?
Nesse momento, vi uma mulher a abrir a porta da loja e a pequena sineta
tocou, como um talismã do passado. Segurou a porta com a mão bem no
alto do caixilho enquanto o filho lhe passava por baixo do braço, a olhar
para o conteúdo do saco que transportava.
– Sim – disse eu, mas não me mexi.
– Vamos entrar e ver o que acontece – disse o Louis, de boa vontade.
Devia saber como eu estava nervosa. – Na verdade, não temos de falar com
ninguém, nem fazer nada. – Enquanto atravessávamos a rua, as minhas
pernas pareciam chumbo, como quando sonho que estou a fugir de algo,
mas não consigo mexer-me bem.
O tilintar da campainha e a frescura do interior da loja eram idênticos aos
de quando ali estivera naquele outro dia, há trinta anos. A disposição estava
diferente e, claro, o conteúdo mais atualizado, embora houvesse algumas
bugigangas muito tradicionais em que era difícil não tocar. O Louis apertou-
me o cotovelo com força e aproximou-se, desejoso de não bater em nada.
– Quantas pessoas estão aqui? – sussurrou ele.
– Hum, nós – disse eu, e inclinei-me para ver o outro corredor. – Está
uma mulher a olhar em volta e alguém a trabalhar na caixa.
– Quem está na caixa? É ela?
– Não, demasiado novo, e é um rapaz – disse eu, justamente quando o
homem olhou para nós e sorriu. – É o filho dela, o Adam – sussurrei ao
Louis.
– Posso ajudá-los? – disse Adam.
– Estamos só a ver, obrigada – disse eu, olhando de forma significativa
para o que estava na prateleira à minha frente.
– Pergunta-lhe se a Elizabeth está cá – sussurrou o Louis, alto de mais.
– Pensei que tinhas dito que podíamos entrar e não fazer nada – respondi
num sussurro, irritada.
– Sim, bem, eu digo muita coisa.
Olhei de novo para o rapaz e sorri. Ele sorriu e franziu a testa para mim.
– De certeza que não posso ajudar? – disse ele, de modo agradável.
Dirigi-me a ele, levando o Louis comigo.
– Bem, na verdade, esperava falar com Mrs. Keel – disse eu.
– Qual Mrs. Keel?
– A Elizabeth? – respondi, como se não soubesse bem se ela realmente
existia.
– Saiu para fazer compras, mas volta. – Ele levantou o telefone enquanto
falava e disse-me: – Vou dizer-lhe que está aqui uma pessoa para a ver.
Quem devo dizer que é?
– Chamo-me Faye, creio que ela pode ter algo meu. – Ele marcou um
número, sorrindo-nos enquanto esperava que ela atendesse o telefone. Nesse
preciso momento a porta abriu-se, a sineta tilintou novamente e a loja foi
invadida pelo som de um telemóvel a tocar. Virei-me e vi a Elizabeth Keel,
com um saco de compras em cada mão, atrapalhando-se a tirar o telefone da
carteira e a tentar não deixar cair nada.
O jovem voltou a pôr o telefone no sítio e saiu de trás do balcão para
pegar nos sacos.
– Era eu a ligar-te – disse ele quando o telefone parou de tocar, e deu-lhe
um beijo na face. – Pensei que ias só comprar umas coisas. Tens aí uma
semana de compras.
– Isto não é uma semana de compras, querido, mas comprei mais do que
pretendia – disse ela, pondo uma madeixa de cabelo para trás da orelha. Ela
sorrira-nos brevemente, mas fora isso ignorou-nos. O homem pegou nas
compras, depositou-as nas traseiras e reapareceu rapidamente.
– Mãe, esta senhora disse que quer falar contigo, disse que tens algo dela.
Ele disse isto a olhar para mim, como se para verificar que tinha
percebido bem, e eu acenei a ambos. O rosto sorridente da Elizabeth Keel
acolheu-me. Pesava talvez mais seis quilos do que quando a vira, há dias, e
estava mais roliça. Tinha rugas em volta dos olhos e a linha do maxilar
parecia um pouco mais flácida. Era claro que envelhecera trinta anos, mas
fora essas pequenas coisas, diria eu, era exatamente a mesma. A maior
diferença era que, embora me tivesse parecido perfeitamente amável quando
a conheci em nova, na altura tinha sem dúvida um toque de cinismo, menos
confiante. Agora, o seu rosto era aberto e franco, era o rosto de quem só
esperava coisas boas.
O Louis deu-me com o cotovelo, de forma suave.
– Olá – disse eu. – Dei-lhe uma coisa, há muito tempo. Disse-me que
tomaria conta dela. Esperava que ainda a tivesse.
Fiz uma careta por ter soado tão enigmática. A Elizabeth franziu a testa e
inclinou a cabeça, ainda a sorrir.
– A sério? – disse ela. – O que foi?
Senti-me com náuseas. Ela não sabia do que eu estava a falar. O Louis
aproximou a cabeça do meu ouvido.
– Acho que tens de ser mais específica – disse ele, em mais um aparte
embaraçoso. Sorri à Elizabeth, como que a pedir desculpa pela indiscrição
do Louis, mas não era um verdadeiro pedido de desculpas.
– O meu anel de noivado, em troca de uns patins – disse eu, sentindo-me
como que a inventar tudo. – Como disse, foi há muito tempo.
A Elizabeth aproximou-se de mim, mais perto do que a etiqueta permitiria
a um estranho. Olhou-me nos olhos e depois recuou um pouco, absorvendo
todo o meu rosto. Tocou-me na raiz dos cabelos.
– O que se passa? – murmurou o Louis.
– Loius, para de sussurrar. Não estamos numa biblioteca e ela consegue
ouvir-te. Está a olhar para mim – disse eu, mantendo o meu olhar fixo no
dela.
– Mãe? – disse o jovem. Deu um passo em volta do balcão, nitidamente
confuso com a reação da mãe à minha pessoa.
– Oh, meu Deus – disse a Elizabeth baixinho para si mesma, ou talvez
mesmo a Deus.
– Quem é, mãe? – perguntou Adam.
– Não sei bem – respondeu a Elizabeth. – Acho que é o meu anjo da
guarda. – Com estas palavras, percebi que ela se lembrava de mim. O meu
queixo vincou-se e os olhos ardiam-me com lágrimas de alívio. Soltei um
arquejo, à beira de um soluço, e ela abraçou-me. – Meus Deus – disse a
Elizabeth, os olhos com lágrimas a refletirem os meus. – Estes anos todos,
tenho estado à espera de alguém mais velho.
20

A Elizabeth pediu ao filho para fechar a loja, ir buscar uns cafés e depois
tirar o resto do dia de folga. Via-se que ele estava relutante em deixá-la,
mas ela disse-lhe que estava tudo bem e que lhe explicaria mais tarde –
embora eu apostasse que não o faria.
Ela levou-nos por uma escada muito estreita até uns aposentos por cima
da loja: uma pequena área de cozinha pintada de azul-claro e uma outra
divisão com uma cama de solteiro e uma cadeira. Em cima da colcha
amarrotada estavam espalhadas uma camisola e umas meias. A Elizabeth
alisou-a um pouco e sentámo-nos as duas na beira da cama. O Louis ficou
com a cadeira.
– O meu filho anda a estudar e ajuda na loja de vez em quando – disse
ela, enrolando as meias e atirando-as para um cesto da roupa suja. – Quando
sai com os amigos na cidade, às vezes fica aqui em vez de ir a conduzir para
casa, e depois abre a loja de manhã. É uma grande ajuda. – Inclinou-se
sobre a cama para abrir a pequena janela, o discurso a explicar os vestígios
de testosterona no ar.
Houve uma pausa depois de ela falar, devido ao facto de nenhum de nós
querer conversar sobre tais trivialidades. Mas uma conversa trivial era
simplesmente um hábito e não havia nada de mal nisso. Afinal, eu tivera
muitas conversas triviais com a minha mãe e estimava cada uma delas.
O Louis estava ditosamente silencioso, mas a sorrir um pouco de mais.
Contou-me uma vez que se diz às crianças que nascem invisuais que devem
sorrir muito, porque, ao que tudo indica, é o que as pessoas amigáveis que
veem fazem sempre. Expliquei-lhe que às vezes parece um tolo, porque
sorri de mais, e às vezes parece que está com um ar demasiado amigável ou
a dizer às pessoas para irem passear, no pub; um extremo ou outro.
Portanto, temos um acordo: se ele está a sorrir sem necessidade em público,
eu tusso e espero que ele entenda a mensagem. Agora tossi e o seu rosto
voltou à normalidade. A Elizabeth pensou que eu estava a preparar-me para
dizer algo e olhou para mim com expectativa, com alívio, creio, por eu
planear começar esta conversa.
– Então lembra-se de mim? – perguntei.
– Se me lembro de si? – disse ela, como se eu estivesse louca. – Viveu
comigo durante anos, aqui. – Ela pôs a mão no peito. – Passei muito, muito
tempo a questionar se era real ou se eu a tinha imaginado. – Ela estendeu a
mão e tocou-me na face, como que para verificar que eu estava mesmo ali. –
Pensei que poderia ter sido um sonho vívido. Mais vívido do que qualquer
sonho que já tive; afinal, tinha o seu anel. E depois comecei a aceitar o facto
de que não importava se eu a tinha inventado ou não, porque a confiança
que tinha em si, real ou imaginária, tornou-me a vida maravilhosa.
– Foi? – disse eu.
– Sim – disse a Elizabeth, como se eu tivesse perdido algo óbvio. – Assim
que conheci o Andrew, reconheci o nome, porque você mo dissera. E eu
sabia que nos casaríamos e que podia confiar nele. Fiquei pasmada quando
ele me disse o nome pela primeira vez. Por um momento perguntei-me se,
de alguma forma, me teriam enganado. Mas o Andrew não é matreiro que
chegue para participar numa fraude, e acabei por aceitar que os adivinhos às
vezes acertam. Amava o Andrew e sabia que ficaríamos juntos, por causa
do que me disse. Então, abri-me a ele como nunca fizera. Tinha uma
confiança que provinha diretamente de si, a confiança para fazer do negócio
um sucesso. Fui feliz porque me disse que eu ficaria sempre bem.
Os olhos da Elizabeth encheram-se de lágrimas e eu não sabia o que
dizer. Talvez seja assim que os médicos se sentem quando salvam uma vida
e a família tenta agradecer-lhes: só fiz o meu trabalho. Ela limpou o nariz e
eu tirei o meu porta-moedas, contando cinco notas de vinte libras.
– Cem libras – disse eu, estendendo-lhas. – Pelos patins, com juros, e por
tomar conta do meu anel.
Ela riu-se, sorriu e abanou a cabeça.
– Não, querida, nada de dinheiro. Levou os meus patins e, em troca, deu-
me uma vida melhor do que eu jamais esperaria ter. – Ela inclinou-se para
mim. – Ofereceu-me a dádiva de uma vida sem medo. – A voz era baixa e
intensa. – Uma vida inteira sem medo – repetiu ela. – Mas a coisa que me
disse que valorizei acima de todas as outras, foi aquela sobre o Adam.
– O seu filho? – perguntou o Louis.
– Sim, aquele que conheceram, o que fica aqui às vezes – disse ela,
direcionando a conversa para o Louis. – Quando a Faye veio até mim, há
anos, e me contou como seria a minha vida, disse-me que o meu filho
desapareceria, mas que ficaria bem. Informou-me que ele seria encontrado
três dias depois e que estaria perfeitamente bem. – Ela hesitou. – Tem
filhos, Louis?
– Não – disse ele.
A Elizabeth olhou para as próprias mãos e sua respiração tornou-se
irregular, como acontecer quando as pessoas revivem momentos difíceis.
– Bem, quando ele tinha nove anos, desapareceu. Saiu para brincar,
entardeceu e ele não voltou para casa. A certa altura, olhei para o Andrew e
simplesmente soube que ele sentia o mesmo que eu. Eu tinha as meninas
comigo e estava a deitá-las, ele vestiu o casaco e disse: Vou procurá-lo, mas
voltou uma hora depois, sozinho, e chamou a polícia.
O Louis inclinou-se para a frente, sobre os joelhos.
– Mas estava bem, por causa do que a Faye lhe tinha dito. Não estava tão
preocupada, certo? – disse ele.
A Elizabeth abanou a cabeça.
– Não era assim tão simples. Todas as outras coisas que a Faye me disse:
com quem eu casaria, quantos filhos teria, o negócio, o assalto; quando se
resumia a isso, essas coisas não importavam. Mas desta vez importava.
Rezei como nunca tinha rezado. – A Elizabeth olhou para mim com os
olhos a brilhar. – Mas não rezei a Deus – disse ela. – Rezei a si. – Ela
deslizou a mão para a frente sobre a colcha amarrotada e tocou-me nas
pontas dos dedos. – Rezei para que fosse real e o que me disse fosse
verdade. Permiti-me ter fé de que tudo correria bem, mas só por três dias,
porque me disse que ele estaria desaparecido durante esse tempo. Quando
eu saía à procura do Adam, andava também à sua procura, mas procurava
uma mulher cerca de quinze anos mais velha do que eu e, no entanto, aqui
está, e é mais nova... – Ela fez uma pausa e olhou para mim com
desorientação, mais uma vez. – Estava à sua procura, porque quando o
Adam se perdeu, falei ao Andrew sobre si e o que me tinha contado. Ele
pensou que eu estava a dizer coisas sem sentido, depois questionou se
porventura estaria relacionada com o desaparecimento dele e começou a
fazer-me duvidar de si. A mente prega-nos partidas, quando estamos
assustados; ficamos desesperados. Pode ser difícil acreditar, mesmo quando
acreditar é tudo o que temos – disse ela, com uma expressão de quem pede
desculpa. – Lembro-me de estar de joelhos, ao lado da cama, a depositar em
si toda a minha fé, toda a minha confiança. No fundo, sabia que se o Adam
não fosse encontrado ao fim de três dias, eu não saberia como lidar com
isso, não saberia inspirar e expirar. Sobrevivi durante três dias porque me
disse que ele voltaria são e salvo. – A cabeça dela estava agora nas mãos, a
tentar livrar-se lentamente da memória de tudo aquilo.
– Mas encontrou-o, como é óbvio – disse o Louis, sem ser indelicado. – O
que lhe aconteceu?
A Elizabeth suspirou.
– Ele andou simplesmente a vaguear, a explorar. Tinha lido As Aventuras
de Huckleberry Finn e pegou num pano da louça, embrulhou nele um pouco
de comida e atou-o a um pau. – Ela sorriu ao pensar naquilo. – Depois foi
para a floresta e andou e andou durante horas. Escorregou por uma colina e
partiu o tornozelo. Estava a quilómetros de distância, porque quando pensou
que estava a vir para casa, continuara a seguir na direção contrária. Depois
disso... – continuou, olhando para mim novamente –, acreditar em si tem
sido o mesmo que acreditar em Deus. É o meu deus, porque a minha fé em
si tornou-me mais forte, uma pessoa melhor e mais realizada. O tipo de
pessoa que todos poderíamos ser se realmente tivéssemos fé de que alguém
toma conta de nós.
– Pare – disse eu, levantando a mão. – Eu não sou Deus, Elizabeth, sou
apenas uma mulher normal. – Vi o Louis a erguer as sobrancelhas.
– Não, para mim não é – disse a Elizabeth. – Para mim, é muito mais do
que uma mulher comum; influenciou a minha vida, tornou-a mais feliz.
– Mas isso não faz de mim um deus – afirmei. – Outras pessoas fazem
coisas assim. Eu era só uma pessoa que precisava de uns patins, e dei-lhe
alguma informação sobre a sua vida que por acaso conhecia. – Vacilei um
pouco na minha explicação.
– Mas como «por acaso conhecia» essa informação? – disse ela. – E
porque não envelheceu? Como pode não ser um tipo de deus ou anjo?
– Para mim, tudo isso aconteceu apenas há uns dias – disse eu. – Sábado,
para ser precisa. Tive a conversa de que fala, consigo, no sábado. Foi por
isso que não envelheci.
– Bem, estás cerca de três dias mais velha – disse o Louis.
– Obrigada, Louis – disse eu, olhando para a Elizabeth como que para
dizer típico.
Há uma qualidade instintiva nas pessoas quando inclinam a cabeça para o
lado – à espera de informação, ou de uma explicação, ou um biscoito para
cães – que é deveras encantadora; a Elizabeth fazia-o agora.
– Para mim é difícil de explicar, porque é absurdo – declarei.
– Está a falar a sério? – disse a Elizabeth. – Veja no que acreditei durante
toda a minha vida. Acha que vou julgar inacreditável algo que tenha para
me contar? Se posso confiar em alguém para me dizer a verdade, por muito
rebuscado que seja, é em si.
– Fé cega – disse o Louis, muito baixo.
– Exatamente – disse a Elizabeth. – Tenho uma fé cega em si.
Senti-me tonta com a responsabilidade que tivera sobre a vida da
Elizabeth. E se eu me tivesse enganado: o número de dias que Adam
desapareceria? E se tivessem sido cinco dias ou uma semana? Não
importava que eu não fosse Deus ou um anjo. Não importava que eu fosse
apenas uma mulher com uma família, um emprego, amigos e dilemas
comuns. Para a Elizabeth, eu era mais importante do que isso, quer
concordasse ou não com ela. E isso dava-me responsabilidade. Contei-lhe
sobre viajar atrás no tempo, como o fiz, os encontros com a minha mãe e o
meu eu mais novo. Contei-lhe o porquê de sentir necessidade de roubar os
patins e porque agora estava feliz por ela me ter apanhado. Falei muito
tempo e ela ouviu sem interromper, cativada.
– É como um conto de fadas – disse ela, num tom brando e reverente.
– E agora que estou de volta, penso no meu regresso, penso no que posso
fazer pela minha mãe, para a ajudar – disse eu.
De repente, a Elizabeth endireitou-se um pouco mais.
– Oh, não deve voltar novamente – disse ela, com a preocupação a
enrugar-lhe o rosto.
– Porque não? – perguntei, olhando para o Louis, a sua expressão
impenetrável.
– Bem, porque pode magoar-se e perturbar as coisas. – A Elizabeth
também olhou para o Louis, em vão. Às vezes, a presença de uma terceira
parte é muito útil pelas suas expressões de reação. Mas o Louis não era a
pessoa certa para esta função. – Voltou ao passado há uns dias e o que
aconteceu entre nós tornou a minha vida maravilhosa, sem sequer ter essa
intenção. – A sua voz era afável e bastante baixa, mas havia nela uma
urgência. – Então, com certeza que lhe seria igualmente fácil voltar e fazer
com que as coisas corressem muito mal, sem nenhuma intenção.
– Não me aproximaria de si, prometo – disse eu, inclinando-me para ela.
– A Faye não pode mudar o que já aconteceu – disse o Louis. – O que
quer que tenha acontecido, já aconteceu, não pode ser corrigido de uma
forma ou de outra.
– Como sabe disso? – perguntou ela.
– Eu, hum, pesquisei no Google – disse ele.
– Pesquisou no Google? – disse ela, a rir-se. – Sabe que isso não faz de si
um especialista, não sabe? – disse ela.
– Sim, eu sei – disse o Louis. – Desculpe.
– Estamos a falar de vidas reais e de mudanças que podem gerar uma
série de consequências diferentes – disse ela. Parecia um tanto apavorada.
– Estamos convencidos de que não consigo mudar nada do que já
aconteceu – disse eu, completamente certa desta convicção, sem nenhuma
prova efetiva, exceto que parecia ser assim.
– Faye, fala como se fosse uma especialista em viagens no tempo, mas
não é. Viajou no tempo, mas isso não significa que compreende como
funciona. Seria como alguém dizer que sabe como funciona uma televisão
só porque está sempre a ver. Pode acontecer que nunca compreenda as
regras do que está a fazer. Não pode brincar com isto, não é um jogo – disse
ela.
– Eu sei disso – respondi. – Não jogaria jogos que quase me mataram sem
pensar muito sobre isso. – Mas questionava o quanto pensara de facto; o
desejo de ver a minha mãe parecia impedir-me de olhar, com toda a atenção
que talvez devesse, para os piores cenários, os possíveis resultados
desagradáveis das viagens de ida e volta.
– Quando há uma grande catástrofe e morrem muitas pessoas inocentes,
as pessoas usam-no como razão para sugerir que Deus não existe. – A voz
da Elizabeth estava agora mais suave e ela segurou-me na mão. – Porque, se
Deus existisse, como poderia deixar aquilo acontecer? Mas a questão é, não
sabemos quais são as regras de Deus, pode haver coisas que estão fora do
Seu controlo. – A voz baixou quase para um sussurro. – Não conhece as
regras, Faye, está a brincar com o fogo. Disse que só passam três horas
quando está fora, mas e se da próxima vez não for esse o caso? E se da
próxima vez passarem cinquenta anos e perder tudo? E se não puder estar
presente para as suas filhas? Não pode viver no passado.
– Não estou a viver no passado – respondi. – Apenas o visito. – Senti os
meus olhos a encherem-se de lágrimas e a voz estremeceu-me com um
soluço velado.
– Visitou o passado, mas e se da próxima vez não for uma visita? E se
ficar lá presa? – Ela olhou para mim como uma mãe faz quando está a dizer
ao filho porque não deve meter os dedos na tomada, mesmo quando ele quer
muito, muito fazê-lo. – Tem de escolher entre o passado e o presente, e na
verdade não há escolha, Faye, a resposta é óbvia. Não pode viver em
ambos, e se não escolher entre o passado e o presente, então um dia essa
escolha pode ser feita por si, e a Faye pode não gostar do rumo que toma. –
As lágrimas rolaram-me silenciosamente pelo rosto e ela limpou-as. –
Esteve lá para me ajudar com alguma informação que, sem dúvida, me deu
uma vida melhor do que eu teria tido de outro modo – disse ela. – Agora,
deixe-me retribuir o favor. O meu conselho é que deixe o passado onde está
e permaneça no presente. Tem as suas memórias; é para isso que elas
servem. Estarão impregnadas de tristeza, faz parte da vida, uma tristeza para
a fazer valorizar as coisas boas que tem. Não perca de vista o seu propósito.
É mãe.
– A minha mãe estará à minha espera – disse eu, saboreando as lágrimas.
– Ela não esperaria que fizesse isso, certo? Arriscar tudo, arriscar-se?
Gostaria que uma das suas filhas arriscasse a vida ou a saúde só para se
sentar consigo no jardim durante uma tarde? – Eu estava a chorar. Ela pôs-
me a mão na face e eu inclinei-me para ela, a mão a receber o peso da
minha cabeça. – Não deixe que as suas filhas a percam. Perdeu a sua mãe, e
sofreu toda a vida por causa disso. Porque arriscaria fazê-lo às suas próprias
filhas?
– Entendo o que me diz – disse eu. – Estou a correr um risco, mas não o
correria também?
– Para ser franca, acho que teria muito medo – disse ela.
– Mas, até agora, não há nada que sugira que algo tenha mudado em
resultado do que eu fiz. Na verdade, muito pelo contrário. Parece que voltar
atrás no tempo fez acontecer muitas coisas boas da forma como deveriam.
Nada mudou. – A Elizabeth levantou-me com delicadeza a mão esquerda.
Passou o polegar sobre a marca do meu quarto dedo e ambas olhámos para a
pele que estava mais branca, onde não via o sol há anos. – O meu anel –
disse eu, limpando o nariz com as costas da outra mão. – Tem-no?
A Elizabeth hesitou.
– Houve algo que mudou – disse ela, e levantou os olhos dos meus dedos
para encontrar o meu olhar com um constrangimento constante. – Já não o
tenho. Já não o tenho há anos. O seu anel foi roubado no assalto.
Olhei para o Louis e num instante a sua expressão, que começara a ser um
pouco sorridente de mais, ficou de súbito alarmada.
*
Ficámos mais um pouco, mas quando já estávamos de regresso à loja,
quase a sair, a Elizabeth pediu-nos que esperássemos um minuto.
Desapareceu, creio que para o armazém, e ao voltar estava a levantar a
tampa de uma caixa e a afastar camadas de papel de seda branco.
– Tenho algo que gostaria de lhe dar, Louis – disse ela, pousando a caixa
no balcão e tirando de dentro um objeto arredondado com um aspeto
pesado.
– O que é? – disse ele.
– Aqui. – Ela pôs-lho nas mãos.
– É um ovo grande, ou em forma de ovo – disse ele.
– Isso mesmo, um ovo esmaltado, e é muito bonito. As cores do exterior
são como joias: azul-safira e verde-esmeralda – disse ela, aproximando-se e
tocando-o enquanto o Louis o girava nas mãos.
– Eu não conheço as cores – disse o Louis.
– São tão frescas como uma bebida gelada num dia de calor – disse-lhe
ela, e ele sorriu. – Sente o gancho? – perguntou. O Louis pousou o ovo
numa mão, enquanto tocava ao de leve a superfície com a outra, até sentir o
minúsculo gancho. Ergueu-o e ajudou a parte superior do ovo a abrir para
trás, devagar, numa forte dobradiça. Por dentro, a metade inferior era uma
superfície branca, lisa e esmaltada, com uma saliência no meio, pintada de
dourado, como uma gema de ovo. Ela descreveu-o e ele explorou com as
mãos. Enquanto ela falava, surgiu no rosto do Louis um sorriso aberto, não
apenas um sorriso educado.
– Isto é desperdiçado comigo, certamente – disse ele.
– Quer consiga vê-lo ou não, é belo, e a beleza não é desperdiçada com
ninguém – disse ela. – Consegue apreciá-lo, não é? E pode expô-lo em sua
casa, para que os outros também o apreciem. – Depois olhou para mim e
disse: – Não precisa de ver uma coisa para saber que ela está lá. Pode
mesmo assim amá-la e desfrutar dela.
– Muito obrigado, Elizabeth – disse o Louis. – Nunca ninguém me
ofereceu um presente só porque era bonito de se ver. Para mim é novidade.
Ela tirou-lhe o ovo, embrulhou-o novamente e meteu-o num saco.
Foi difícil ir embora e dizer adeus. Disse à Elizabeth que gostaria de
voltar, um dia, e ela abraçou-me como se nunca mais me fosse ver. Creio
que é algo que às vezes simplesmente temos de fazer.
21

D epois da viagem para ver a Elizabeth, senti-me estranhamente desolada.


Antes de lá ter ido, pensava com ânsia em mais uma visita à Jeanie
enquanto o Eddie estava fora, porque me convencera de que nunca estaria
fora mais de três horas. Sabia que seria capaz de ir e ficar pelo menos uns
dias. Mas a Elizabeth fazia-me hesitar, duvidar de mim mesma; ela tinha
razão, admiti, até certo ponto – eu precisava de pensar melhor sobre as
viagens no tempo e as possíveis consequências.
Enquanto pensava melhor no assunto, fui limpando a casa, e foi assim que
percebi que o meu medo de aranhas diminuíra ou mudara. Temos uma boa
casa, mas é uma casa de família, vivida. Só me sinto mesmo à vontade
quando a casa está arrumada, mas, para ser sincera, não tem de estar
impecavelmente limpa para eu ter paz de espírito. O que quer dizer que
passo muito tempo a apanhar meias e coisas, a pôr livros de volta nas
estantes, a arquivar papéis e deitar folhetos fora, e menos tempo a aspirar e
polir.
Era quarta quando comecei as limpezas de primavera (tecnicamente, era
quase fim do verão). Vesti uma T-shirt velha e uns calções curtos e calcei
umas luvas amarelas. Fui trabalhando numa divisão de cada vez: pus todos
os bibelôs, molduras, taças e tudo numa superfície que pudesse mover, num
grande recipiente de plástico, depois empurrei a mobília para o meio da
divisão e aspirei por baixo. As aranhas que encontrei fizeram-me saltar, mas
mesmo assim incentivei-as a subir para um pano do pó, que segurei à
distância de um braço e, depois, bati contra o parapeito da janela até que
caíssem lá fora. Limpei as janelas, a mobília e as cortinas, e todos os
ornamentos ficaram a brilhar antes de eu voltar a pô-los no lugar. Qualquer
coisa de que pudesse livrar-me, livrava-me. Depois abria as janelas para
deixar entrar o ar e passava para a divisão seguinte. Deixei a cozinha para o
fim, porque era um trabalho maior. Esvaziei o frigorífico e os armários e
limpei-os, antes de voltar a meter todas as latas e caixas, com os rótulos
virados para a frente, como quem sofre de transtorno obsessivo-compulsivo.
Demorei o dia inteiro de quarta e quinta. Doíam-me as costas e os ombros,
mas era uma dor boa, de trabalho árduo. Toda a casa cheirava a limão, o que
me fez pensar em gin tónico. Assim, tomei um longo banho, servi um
grande e sentei-me no jardim.
Ouvia os pássaros ainda a cantar às nove da noite e mal me mexi
enquanto eles se iam silenciando e o crepúsculo perfeito, dava lugar à noite.
Vi um morcego voar pelo jardim e por cima do barracão, e poderá ter
havido outro, ou pode ter sido o mesmo pequeno morcego. Quando digo
que o vi, quero dizer mal; na verdade, parecia um pequeno envelope preto a
mover-se depressa pelo ar. Imaginei que ele estava a divertir-se,
precipitando-se a alta velocidade pelo nosso comprido jardim das traseiras,
até o seu sonar apanhar o barracão ao fundo, a cerca de vinte metros de
distância. Fechei os olhos e lembrei-me de uma época na escola em que as
pessoas costumavam dizer que as bichas-cadelas nos põem ovos nos
ouvidos quando dormimos, à noite, e os morcegos se emaranham no cabelo,
se se aproximarem de mais. Mas agora sei que os morcegos só se mantêm à
distância.
A paz no jardim parecia quase espiritual, como na igreja, quando todos
rezam. Pensei na minha mãe. As minhas memórias dela costumavam ser
vagas; não estava certa delas, porque eram as memórias de uma criança de
oito anos, ensombradas pela morte, como se a morte fosse um muro de
tijolo alto que mergulhava na escuridão tudo o que lhe era próximo. Mas
agora tenho estas memórias dela, maravilhosas e nítidas, mil ou mais
fotografias mentais tiradas nas duas visitas recentes que lhe fiz. Via-lhe os
olhos sorridentes, cheirava-lhe o cabelo, quando ela me abraçava, ouvia a
sua voz, a sua escolha de palavras e as gargalhadas. Passou por mim uma
brisa fresca e tive a certeza de que senti o cheiro a pudim de tâmara; vi a
minha mãe saltar para o tirar do forno. Sentia-me feliz por possuir estas
novas imagens dela, mas tinha muitas saudades. Entrei para me servir de
outra bebida, mas a casa estava tão agradável que subi as escadas,
enrosquei-me na cama e adormeci completamente vestida.
*
Era suposto voltar ao trabalho na sexta, mas liguei a dizer que estava
doente. Queria ficar por casa. O Eddie e as meninas voltariam de tarde e eu
ansiava vê-los assim que chegassem a casa. Apesar da impressão que posso
ter dado, normalmente não tiro muito tempo do trabalho e a minha chefe
não se importou.
Preparei ovos estrelados com torradas e um bule de café, e tomei o
pequeno-almoço no jardim, de roupão, por volta das dez da manhã. Por
sorte, ouvi baterem à porta da frente e recebi uma pequena encomenda,
endereçada a mim, que tive de assinar. Enquanto caminhava pela casa de
volta ao jardim, tentei pensar no que poderia ser. Não me lembrava de ter
encomendado nada e preparei-me para algo sem interesse. A excitação de
uma entrega inesperada é diretamente proporcional ao quanto ela se revela
desinteressante, posso por norma garantir. Mas esta estava longe de ser
desinteressante.
A encomenda vinha num envelope castanho inchado, fechado com fita
adesiva castanha, como que feito para nunca ser aberto. Tentei abri-lo, mas
depressa desisti e peguei na tesoura. No interior tinha plástico de bolhas,
com algo pequeno e duro dentro, e uma carta. Abri com a tesoura o plástico
de bolhas envolto em fita adesiva e tirei um anel; um anel com cerca de
cinco milímetros de largura, com o que pareciam ser diamantes a toda a
volta. Não pensei que fossem verdadeiros – os diamantes –, embora
brilhassem com cores minúsculas, o que, alguém me dissera uma vez, era
um sinal de serem genuínos. Pus o anel, porque tive medo de o deixar cair, e
ele encaixou perfeitamente no meu quarto dedo. Levantei a mão para o céu
e virei-o de um lado para outro, para o ver apanhar a luz. Era uma peça bela.
Tirei a carta. Papel azul, duas folhas, escrita de ambos os lados numa
caligrafia cursiva antiquada que eu não reconhecia. Cheirei o papel, não me
perguntem porquê, mas não cheirava a nada. Virei as páginas até ao fim e vi
que era da Elizabeth, e dizia o seguinte:
*
Querida Faye,
Mal consigo exprimir por palavras aquilo que sinto por finalmente a
ver de novo, depois de todos estes anos. Para mim, foi um anjo com que
pensei ter sonhado. Vê-la em carne e osso, tão real, tão adorável, foi um
choque. Mas um choque muito bem-vindo. Há anos que espero por si,
para ter a oportunidade de lhe agradecer pelo tipo de vida que me
proporcionou. Em muitos aspetos, levei uma vida normal, mas vivi-a
com paz de espírito e contentamento, e atribuo-o muito ao nosso
encontro de há trinta anos (ou de «apenas há uns dias», como disse).
Tornou mais leve o meu fardo.
Ter alguém que lhe diz que vai correr tudo bem, não apenas porque
espera que corra, ou porque é uma garantia fácil – ainda que infundada
– é uma coisa. Bem diferente é alguém dizer-lhe que vai correr tudo
bem e saber que é a verdade.
Não me escapou o facto de não poder ter a certeza de que a minha
vida daqui para a frente correrá bem. Provavelmente, a Faye só tinha
conhecimento da minha vida até este momento, no máximo. E pode estar
qualquer coisa à minha espera depois da próxima curva. Mas estou tão
acostumada a viver com fé no futuro que para mim é um hábito. Não
estou assustada. Vai correr tudo bem.
Espero que também consiga viver a sua vida dessa forma, porque, no
fim de contas, nenhum de nós sabe o que o espera. Pare de se preocupar
com o futuro e deixe o passado para trás; viva o agora, desfrute do que
tem. Tente não ansiar por coisas que estão além do seu alcance.
Tenho refletido sobre a nossa conversa recente e temo ter parecido
egoísta, preocupada com a minha vida, não querendo que a Faye faça
nada que a possa perturbar. Só posso pedir desculpa e dizer que
suponho que seja egoísmo. Adoro a minha família e o que tenho, e não
suporto a ideia de alguém mo retirar. Pergunto-me se teria sequer esta
vida se não fosse a Faye. Se me foi dado, então talvez possa ser-me
tirado. Sei que entende como isso seria terrível. A Faye também parece
ter uma vida ótima e temo que também a ponha em risco.
Deu-me paz de espírito e espero de igual modo tê-la ajudado de
alguma forma, porque respondo por si: testemunho a sua extraordinária
viagem e quero que saiba sempre que, se alguma vez duvidar de si
mesma ou do que lhe aconteceu, não está sozinha. Eu estive lá consigo.
Uma última coisa. Anexei um presente. Dei um presente ao Louis e
queria dar-lhe também algo. Só precisava de um pouco de tempo para
encontrar a coisa certa. Sinto-me mal pelo seu anel, por isso pareceu
apropriado enviar algo para o substituir. E um anel de diamantes
parecia apropriado.
Ao seu dispor com a maior das gratidões. Para sempre, Elizabeth
Keel.
Reli-a algumas vezes. As palavras não está sozinha deixaram-me de
coração cheio.
Deitei-me no sofá e vi um filme, fechando as cortinas e puxando uma
manta sobre mim. De vez em quando, perdia-me no filme; de vez em
quando olhava para o anel novo, girando-o no dedo e esfregando a parte de
trás com o polegar. A Elizabeth dera-me muito em que pensar. Ela tinha
razão, eu estava a arriscar tudo para visitar a minha mãe. Se tivesse de
escolher entre a minha vida com o Eddie e as meninas ou viver no passado,
é claro que escolheria o Eddie e as minhas filhas. Mas teria mesmo de
escolher? Era esse o meu dilema. Até há pouco tempo, não pensava no
passado como estando fora de alcance, como disse a Elizabeth; pensava que
podia ter ambos.
Antes de me encontrar com a Elizabeth, pensava que podia visitar a
minha mãe quantas vezes quisesse até ela morrer, para não a deixar sozinha.
Queria fazer isso por ela, por mim. O facto de só passarem umas horas
enquanto eu estava ausente inspirava-me a pensar que era praticável. Isso, e
o facto de parecer que as expedições ao passado não tinham nenhum
impacto real na minha vida presente. Desde que a Elizabeth me dissera que
o anel fora levado no assalto, não pensava o mesmo. Se isso podia mudar,
então ela tinha razão, não tinha? Tudo podia acontecer. E tinha razão, com
certeza, quando argumentava que eu não conhecia as regras das viagens no
tempo e as suas consequências. Eu ainda era uma principiante.
Os danos físicos que causava a mim mesma, bem... conseguia lidar com
eles, mas o Eddie não seria capaz. Uma vez que eu continuava a magoar-
me, sabia que não poderia falar com o Eddie sobre as minhas viagens no
tempo. Mesmo que acreditasse em mim, ele tentaria impedir-me,
definitivamente, quanto mais não fosse pela minha própria segurança. No
que me dizia respeito, um pouco de dor era um preço baixo a pagar e, se
vestisse as roupas certas e não aterrasse de forma muito desastrada,
conseguia minimizar os danos. Certamente não era muito diferente do
perigo em que se colocaria alguém com um passatempo perigoso.
Despertaram dúvidas em mim. Mas eu não dispunha de muito tempo para
decidir o que fazer. Da última vez, deixara apenas umas semanas entre as
visitas e mesmo assim haviam passado seis meses quando voltei a ver a
minha mãe. Se demorasse muito, poderia ser tarde de mais. E havia aquele
desejo incómodo de querer sempre um pouco mais. Voltara ao passado duas
vezes e fora bonito, importante, comovente. Mas, se da última vez tivesse
sabido que seria a última vez que veria a mãe, talvez tivesse feito as coisas
de forma diferente.
Suspirei. Independentemente do que façamos, parecemos deixar as
conversas que deveríamos ter tido para tarde de mais. Aposto que o Eddie,
quando voltar, dirá o mesmo: que mesmo tendo passado a semana com a
própria mãe, com a intenção de evitar aquele erro, algumas coisas ainda
terão ficado por dizer, desconhecidas. Garanto-o. Talvez seja inevitável que
na vida haja algumas portas fechadas, talvez haja perguntas que todos
temos, que nunca terão resposta e isso é algo que simplesmente temos de
aceitar. Fechei os olhos e encostei a cabeça para trás. As vozes na televisão
diziam palavras importantes o suficiente para estarem no guião, mas eu não
escutava. A escuridão aveludada por trás das minhas pálpebras era muito
convidativa. Eu dormia muito, nos últimos tempos. A minha voz interior
sussurrava-me: Mais uma visita, mais uma vez; mais uma oportunidade de
fazer isto bem. Vou dizer à minha mãe quem realmente sou. E adormeci
com o barulho do diálogo na televisão.
*
O som das minhas filhas e do Eddie a orientá-las, resmungando enquanto
carregava as malas do carro para casa, acordou-me. Os sons familiares são
tão reconfortantes como um par de sapatos que serve na perfeição. Apoiei-
me num cotovelo, lembrando-me de tirar o anel e de o meter no bolso.
– Estás em casa! – disse o Eddie com o rosto adorável a sorrir-me. –
Pensei que ainda não tivesses voltado do trabalho. – Hesitou. – Estás
doente? – perguntou ele, olhando para a manta que eu tinha acabado de
empurrar para o lado. – Estiveste a dormir?
– Tirei o dia de folga. Queria estar cá para ajudar quando chegassem a
casa. – Ainda me sentia sonolenta quando me levantei e pus os braços em
volta da sua cintura. Inspirei o cheiro dele, que tinha várias camadas, como
uma boneca russa aromática. Por fora, cheirava a fogueira, depois a
detergente em pó, vagamente, e ao seu desodorizante; ao aninhar a cabeça
na axila dele, senti o cheiro mais humano: suor. O meu corpo respondeu de
imediato, positivamente. – Senti tanto a tua falta – disse eu, ainda com o
nariz metido debaixo do braço dele.
– Deves amar-me muito, para querer cheirar aí em baixo – disse ele. –
Estou a conduzir há horas, cheio de pó no cabelo e na cara por fazer o
caminho com as janelas todas abertas. – Ele esfregou o rosto com força com
a base das mãos.
– Toma um banho e eu preparo-te uma bebida. Podemos sentar-nos lá
fora.
– A casa está agradável – disse ele, afastando-se de mim e dirigindo-se
para as escadas.
– Bem, tinha de me manter ocupada de alguma forma enquanto vocês
estavam fora – disse. As meninas correram para mim, e eu não me cansava
dos seus pequenos corpos, os braços e pernas magras, a penugem mais fina
a aparecer-lhes, o cheiro dos seus cabelos. – Deixem-me olhar para vocês –
disse eu, e perscrutei-as. Conhecia e adorava cada pedacinho: o dente torto,
o caracol de cabelo, a sarda a nordeste de uma sobrancelha, as pestanas
escuras, as claras, os dedos perfeitos e sujos. Deixámo-nos cair de volta no
sofá como uma grande massa, a abraçar e a fazer cócegas; e, em vozes
sobrepostas, a romper em risadas e sinceridade pueril, contaram-me sobre
ninhos de formigas, sobre nadarem e serem picadas por uma abelha, um
fantasma que ouviam em casa da avó, o queijo fedorento que não queriam
comer e a avó a embriagar-se, uma noite, e uma centena de outras histórias
mal contadas, confusas, desarticuladas e ainda mais bonitas por causa disso.
Para mim, tudo voltava a fazer sentido. O corpo e a mente estavam
preparados para isto, e voltei a deslizar com facilidade para o molde da vida
com as minhas filhas. Tinha uma sensação de pertença que não conseguiria
em mais nenhum lugar.
No jardim das traseiras, as meninas correram descalças pela relva e eu
segui-as. Colhemos ranúnculos amarelos e elas ensinaram-me uma música
de palmas francesa de que eu nunca me lembraria, mas não fazia mal.
E quando vi o Eddie a dirigir-se ao jardim, vindo da cozinha, fiquei sem
fôlego. Mal podia esperar para o abraçar e voltar a ser abraçada. Ele
também estava descalço e vestia apenas umas calças de corrida.
– Em casa da minha mãe, não usávamos muita roupa nem calçado – disse
ele, em jeito de explicação. – As meninas ficaram um pouco selvagens, na
verdade; a certa altura, começaram a fazer chichi nos arbustos.
Eu ri-me.
– Só lhes faz bem – disse eu, entregando-lhe uma cerveja fresca, a garrafa
de vidro coberta de gotas de condensação. Ele deu um gole e suspirou. –
Tiveram uma boa semana? – perguntei.
– Tivemos, foi fantástico. Foste a única coisa que faltou. Devias ter vindo.
– Bem, eu fiz algumas coisas e descansei muito – declarei.
– Não aconteceu nada interessante? – perguntou ele.
– Não – respondi. Mas a mentira saiu uma oitava acima da minha voz
normal e soltei uma pequena risada contida, a sabotar-me a mim própria. O
Eddie olhou para mim em silêncio. Na sua expressão havia amor. E
desconfiança.
– Quem quer um gelado? – gritei para o jardim.
– Eu! – gritaram as meninas. Havia uma desculpa para me lançar na
azáfama da normalidade.
22

N ãoCarregámo-las
olhei para o relógio e as meninas foram tarde para a cama.
escadas acima, uma cada um, e elas cheiravam a
sujidade seca e a palha. A Evie adormeceu nos meus braços antes de
chegarmos ao cimo das escadas e a Esther meteu o polegar na boca, o que
só fazia quando estava estafada.
– Não metas os dedos na boca, estão sujos – sussurrou o Eddie,
empurrando-lhe suavemente a testa com a dele.
– Comi uma margarida – respondeu ela, sonolenta, balbuciando em volta
do polegar molhado. Quando ele a deitou na cama, ela enrolou-se numa
bola como um bicho-de-conta e virou-se de costas para nós.
Sentei-me nas camas delas e falei-lhes ao ouvido, as palavras um pouco
húmidas contra os seus cabelos.
– És boa, és generosa, és inteligente, és engraçada. – Senti uma pontada
de tristeza por ter sido eu a dizê-lo a mim mesma há tantos anos, e a minha
mãe nunca ter tido oportunidade de me sussurrar coisas boas além dos oito
anos. E, se eu não tomasse bem conta de mim mesma, se não me mantivesse
a salvo, então também não seria capaz de o fazer às minhas filhas. Quando
desci, o Eddie já tinha servido dois copos de vinho tinto, e eu peguei numa
manta, enrolando-a em volta dos ombros. – Conta-me como correu com a
tua mãe – pedi.
Ele suspirou e depois sorriu; era fácil consegui-lo de volta.
– Foi bom – disse ele. – Estou muito contente por ter ido. Foi boa ideia.
– De nada – disse eu, e ele riu-se.
– Disse-lhe porque decidi visitá-la: para lhe perguntar tudo aquilo que um
dia poderia arrepender-me de não ter perguntado – declarou. –
Conversámos muito e fiz-lhe montes de perguntas. Na maior parte delas, ela
simplesmente presumia que eu já sabia as respostas.
– Como por exemplo?
– Como o que ela sente em relação a certas coisas. Perguntei-lhe o que
pensava de mim em criança, e ela perguntou-me o que eu achava que ela
pensava. Dei um palpite aproximado e acertei. – Ele bebeu um longo gole
de vinho e eu esperei que continuasse. – Ela disse que compreendia a minha
necessidade de esclarecer certas coisas, mas quando se tratou do que sentia
relativamente a mim e às coisas que fiz, disse que se, no futuro, eu quisesse
saber o que ela sentia e fosse tarde de mais para perguntar, eu devia sempre
presumir que os seus sentimentos primordiais eram de orgulho, amor e
alegria. – A voz do Eddie falhou na palavra alegria.
– O que é? – perguntei. – Comoção? – Ele assentiu, beliscando o nariz
entre os olhos para conter as lágrimas. – Oh, Eddie – disse eu, pondo a mão
na dele.
– Mas aquilo fez-me perceber outra coisa – disse ele, fungando, mas
recomposto. – Nunca falámos sobre a tua mãe. Eu sei que para ti é uma
grande tristeza, tê-la perdido tão nova. – Sentei-me mais direita, querendo
contar-lhe, querendo chorar. As minhas narinas dilataram-se e eu inspirei
profundamente, com o oxigénio a comprimir os meus segredos por dentro. –
Porque nunca falas dela? – perguntou ele.
– Não há nada a dizer. Não me lembro o suficiente, só as memórias de
uma criança. Duvidosas.
– As memórias não são todas duvidosas?
– Talvez – disse eu, olhando para o fundo do copo. – Mas sejam elas
duvidosas ou não, não tenho muitas. – Eu quase esquecera o pouco que
sabia antes; a pequena coleção de fragmentos isolados que eu tinha da
minha mãe antes de viajar no tempo. Enquanto mentia ao Eddie, via todas
as novas memórias que tinha recolhido nos últimos dois meses e ansiava por
partilhá-las com ele.
– Bem, de que te lembras? – disse ele, instigando-me.
Só podia contar ao Eddie o que me lembrava da infância, aquelas
memórias que agora haviam sido substituídas pelas mais recentes.
– Olhando para trás, lembro-me de sentir a falta dela quando morreu.
Apanhou uma constipação, uma infeção respiratória; acho que costumava
ter uma todos os invernos. Pelo que me lembro, apanhou uma constipação e
depois, bem, depois... morreu. – Tentei visualizar, e era como uma página
em branco num álbum de fotografias. Não conseguia fazer aparecer as
imagens. Eu lembrava-me dos factos, por mais insubstanciais que fossem,
mas não conseguia vê-los, como às novas imagens.
– Isso é vago – disse o Eddie, não de modo duro.
– Para ser sincera, não consigo lembrar-me com clareza daquela altura.
Fui morar com o Henry e a Em, na mesma rua, e a certa altura eles
adotaram-me. – O Eddie conhecia esta parte. – Eles tinham quase sessenta
anos quando fui para casa deles. Acho que, a princípio, pensei que era
temporário. Acho que também eles pensavam que era temporário, era o que
parecia, mas talvez se tenha tornado permanente quando nos demos todos
bem. Eles eram amorosos. Lembro-me de quando decoraram o meu quarto e
me devolveram algumas das minhas coisas antigas. – Fiz uma pausa, a
imaginar a bola saltitona no canto do meu antigo quarto. – Lembro-me de
lhes perguntar o que tinha acontecido à minha mãe, e eles sentaram-me.
Ficaram a olhar um para o outro como se preferissem que fosse o outro a
explicar. Francamente acho que, se eu nunca tivesse perguntado, teriam
fingido que não acontecera nada e que um dia eu esqueceria tudo sobre ela,
por mim.
– Estavam a tentar ser amáveis – disse o Eddie.
– Eu sei. – Fixei o olhar num ponto distante, vendo a Em e o Henry como
que na gravação de um filme antigo, a preto e branco, a moverem-se em
silêncio, pondo na mesa um assado para o jantar e a sorrir para a lente do
passado; depois, vendo-os já a cores, as memórias mais recentes mais
vibrantes e acessíveis. – Disseram que ela apanhou uma constipação,
adoeceu e morreu. Nunca mais a vi. Acho que eles pensaram que era melhor
para todos os envolvidos, quem quer que fossem. Não me lembro de
levarem o corpo dela lá de casa. Fui protegida de tudo.
– Se dois animais vivem juntos e um deles morre – o Eddie olhou para
mim, vendo se eu estava bem; eu assenti com a cabeça –, é suposto pores o
corpo do morto perto daquele que ainda vive, durante algumas horas, para
que percebam que o companheiro se foi. Se te limitas a remover o corpo, o
outro vai ficar à espera que ele volte para casa. Pode ficar aflito deprimido;
irá sempre questionar onde está o amigo. Penso que com os humanos se
passa o mesmo.
– Achas que estive à espera da minha mãe estes anos todos?
– Não sei, suponho que seja diferente. Não exatamente à espera, mas
talvez a consumires-te. Alguma vez fizeste perguntas sobre ela à Em e ao
Henry, quando cresceste?
– Não – respondi. – Não queria incomodá-los nem estar a pôr tudo em
cheque. Acho que nunca lhes perguntei nada, eles pareciam não gostar que
o fizesse. E que poderia eu perguntar? Achava que a conhecia melhor do
que eles, nem sequer lhes disse o quanto sentia a falta dela. Levaram-me à
sepultura dela quando eu era nova, mas só duas, talvez três vezes. Apanhei
flores do jardim e pu-las lá. Depois tudo isso acabou. Lembro-me de
perguntar se poderíamos ir novamente à sepultura, mas havia sempre algum
motivo para não irmos. Por fim, deixei de perguntar, porque tinha a
sensação de que eles não gostavam. Acho mesmo que pensavam que eu ia
esquecê-la, pelo menos a maior parte.
– Como achas que ela morreu? É estranho, não é, não saberes um pouco
mais do que isso?
– Creio que os adultos apenas protegem as crianças de coisas que acham
que elas não conseguiriam entender na altura. Mas o que eles me deram foi
uma data de incógnitas, e isso é pior. Acho que ela morreu de cancro ou
algo assim. Talvez, não sei. Ela não bebia muito, mas fumava.
– Fumava? – disse o Eddie. – Pergunto-me porque te lembras disso.
Talvez o cheiro.
Claro, eu não sabia nem me lembrava que ela fumava antes das visitas por
meio da caixa da bola saltitona. Isto era informação nova. Eu estava a ser
descuidada.
– Já pensaste em falar com o Henry novamente e perguntar-lhe mais
sobre a tua mãe? – disse o Eddie. – Antes que seja tarde.
A Em tinha morrido há mais de uma década e o Henry, quase com
noventa anos, vivia num lar. Não o visitava muitas vezes, tenho vergonha
de admitir, embora o fizesse de vez em quando.
– Não sei, Eddie.
– É basicamente agora ou nunca, tu sabes disso – disse ele. Observei o
meu marido, o seu desejo de garantir que vivo com o mínimo de
arrependimento possível, agora que ele próprio havia alinhado na ideia. – Se
não falares com o Henry antes de ele morrer, vais lembrar-te de algo que
gostarias de lhe ter perguntado. Talvez ele possa contar-te mais sobre a tua
mãe, agora que cresceste. Se não tentares, não saberás.
– Vou pensar nisso – disse eu. Fomos dando goles nas bebidas no jardim
que escurecia e o Eddie acendeu uma vela com cheiro a limão para afastar
os mosquitos. A chama dançou: baixou-se e elevou-se, à procura de ar e
afastando-se depois dele. Era hipnotizante. Fixei o seu centro azul.
– A minha mãe tinha razão – disse o Eddie ao fim de algum tempo. –
Muitas das perguntas que lhe fiz, já sabia as respostas. E acho que é boa
ideia se adotares esse sentimento em relação à tua própria mãe. – Eu não
disse nada. – O que quero dizer é – continuou ele –, a tua mãe amava-te,
preocupava-se contigo. Ficaria muito orgulhosa de ti e das meninas.
– Eu sei – murmurei.
– Sabes mesmo? – disse ele, decidido a garantir que eu acreditava no que
ele estava a dizer. – Não é preciso lembrares-te da tua mãe nem das coisas
que te disse para saberes que ela tinha por ti um amor tão profundo como
nós temos pelas nossas belas adormecidas.
– Começo a chegar lá, começo a compreender isso – disse eu. Como é
óbvio, não chegara a esse entendimento da forma que o Eddie imaginaria.
Tive uma confirmação verdadeira, uma prova, o que me soube bem. Mas o
Eddie tinha razão. A verdade permanecia e era esta: mesmo que eu não
tivesse voltado ao passado para falar com a minha mãe, poderia ter confiado
no seu amor. Poderia ter acreditado nele.
Durante algum tempo, limitámo-nos a olhar para o jardim. Aquele nosso
mundinho parecia seguro e completo. Era reconfortante – ainda que
enganador – imaginar por um momento que aquilo era tudo o que existia no
universo.
– Poder confiar no amor de alguém é uma coisa maravilhosa – disse ele,
quebrando a paz. – Sempre tentei confiar em ti e no que sentes por mim.
Mas às vezes preocupo-me, Faye. Ultimamente pareces muito distante.
Nunca me senti assim contigo. Estiveste sempre aqui. – Ele levou a palma
da mão ao coração. – Mas nos últimos tempos... não sei... estarei a perder-
te?
Pousei a bebida meio cheia na mesa e levantei-me, para poder
aconchegar-me no colo dele. Enrolei a manta também à volta dele.
– Tenho andado distante – disse eu. – Eu sei disso, mas não estás a
perder-me.
– Não estás a contar-me tudo e eu não consigo perceber porquê. Não
quero perguntar, mas tenho de o fazer. Tens outra pessoa?
Havia outra pessoa. Havia a minha mãe. Mas eu sabia o que o Eddie
queria dizer e beijei-o longa e profundamente, para lhe garantir que não
existia outro homem na minha vida. Ele afastou-se de um modo delicado.
– Estou a pôr-te sob muita pressão, por entrar para o clero? A minha mãe
diz que deve ser muito difícil para ti, e acho que tenho tentado ignorá-lo.
– Estou a conformar-me com isso – disse eu, pressionando os lábios na
sua face e deixando-os demorar. – Acho que Deus é mais do que o grande
indivíduo barbudo que está no Céu. Sei que Deus está na Terra, nas pessoas,
nas boas ações. Deus está nas coisas grandes e nas pequenas. Está sob as
unhas das nossas filhas e em todas as gentilezas que mostramos às pessoas.
Eu sei que aquilo a que as pessoas chamam «obra de Deus» para outro ser
humano pode chamar-se «aliviar o fardo». O meu tipo de deus pode ser um
pouco diferente do teu. Talvez seja só isso.
O Eddie afastou-me, para poder olhar-me nos olhos.
– Tens pensado muito sobre isso – disse ele.
– Tenho, e podes contar comigo.
O Eddie encostou o nariz ao meu pescoço. Quando senti o calor do seu
hálito na minha pele, soube que me levaria para cima e faríamos amor em
silêncio, para não acordar as meninas. Senti – como já sentira muitas vezes
– que tudo de que realmente precisava estava ao alcance físico. O braço dele
envolveu-me a cintura e fechei os olhos, enquanto ele gemia baixinho e eu
entrelaçava os dedos nos dele.
Depois parou. Susteve a respiração e eu também, sabendo naquele
instante o erro que havia cometido. Os dedos nos meus moveram-se quase
impercetivelmente enquanto o resto das nossas funções – até os batimentos
cardíacos, ao que parecia – parava. Ele afastou-se, os lábios ainda
ligeiramente afastados, do nosso beijo, e segurou-me a mão na dele,
olhando-a por um momento antes de me fixar com um olhar confuso.
– Onde está o teu anel de noivado? – perguntou.
Mexi-me no colo dele, desejando estar mais longe, no meu próprio lugar.
Teria preferido dar a explicação a alguma distância. Dizem que é tanto mais
fácil gerir as armas quanto mais afastadas estiverem; quando esta granada
explodisse, ambos rebentaríamos.
– Eu... perdi-o – respondi.
Ele inclinou-se para trás, semicerrando os olhos como que para verificar
se me via com clareza.
– O que queres dizer com «perdi-o»? Onde está?
– Se soubesse, tê-lo-ia – disse eu. Uma resposta lógica, de que ele não
gostou.
– Onde achas que o perdeste? – disse ele, com a irritação a torná-lo mais
específico.
– Acho que em casa. Quando estava a fazer limpezas. – Mas detestei esta
desculpa, porque fazia questão de não tirar os anéis por nada. O Eddie
empurrou-me do colo e levantou-se.
– Perdeste-o? Não acredito!
Olhei para ele, mal me atrevendo a estabelecer contacto visual.
– Queres dizer que não acreditas em mim por não acreditares que eu
pudesse fazer algo tão estúpido?
– Quero dizer – continuou ele – que efetivamente não acredito que o
tenhas perdido a limpar. Quero dizer, acho que estás a mentir. Está claro o
suficiente? – O seu olhar penetrante ter-me-ia fixados a uma cruz como um
prego. – Tens-me mentido sobre muitas coisas, desde há muito tempo –
afirmou. – Tenho sido paciente, mas chega. Quero saber a verdade. Quem é
ele?
Eu compreendia, claro que compreendia, e, no entanto, sentia-me
indignada. Porque é que o meu marido simplesmente não acreditava em
mim? Eu sabia que estava a mentir, mas qual era a sua insinuação? Que eu
tirara os anéis para ir ao encontro de um estranho, para ir para a cama com
ele, e que perdera um deles? Para ele, isto era só a simples preocupação de
eu ter um caso. Bem, não estava. Não era culpa minha não poder contar-lhe
a verdade.
– Acho que eu seria um pouco mais inteligente se andasse a dormir com
outra pessoa, não é?
– Só sei que estás a mentir, e as explicações mais simples são muitas
vezes as certas.
– E, no entanto, não aceitas que eu simplesmente o tenha perdido quando
estava a limpar.
– Quando digo uma explicação «simples», não quero dizer «estúpida».
Não admira que quisesses que fôssemos para França – disse ele. Olhei para
a mesa, com o nosso vinho e as velas, a manta descartada no chão, e vi
como esta noite havia sido estragada. Brotaram-me dos olhos lágrimas de
frustração, e limpei uma com a mão quando ela me caiu pela face.
– O que dirias – perguntei baixinho, sentindo-me corajosa e olhando
diretamente para ele –, se eu te contasse que troquei o anel de noivado por
um punhado de feijões mágicos?
O Eddie deu um passo em direção a mim e inclinou-se, o seu rosto bonito
a centímetros do meu.
– Diria para ires passear – disse ele. Depois virou-se e olhou para o jardim
escuro. Avançou um ou dois passos e apoiou-se na balaustrada do terraço,
com a cabeça para baixo. Abanou-a como um capitão que sabia ter
navegado na direção errada e que olhava para um oceano sem respostas ou,
pelo menos, sem nenhuma que desejasse ouvir.
– Eddie – disse eu, mas ele levantou a mão e eu parei.
– A menos que seja a absoluta verdade, não quero ouvir uma única
palavra – afirmou. Eu respeitava-o o suficiente para não dizer nada.
Depois do que pareceram minutos, mas foram provavelmente segundos,
ele virou-se para olhar para mim por cima do ombro. Os seus olhos
brilhavam. Segurei a manta junto a mim, como uma criança com um escudo
de faz-de-conta, e antecipei o seu perdão por tudo o que ele pensava que eu
tinha feito. Previ a sua confiança, que ele saberia que eu o amava e que
nunca o trairia. Acreditei que ele me conheceria bem o suficiente para
confiar que o que quer que eu escondesse, não era esse tipo sórdido e vulgar
de traição. Olhei-o com todo o amor e lealdade que sentia por ele nas
profundezas do meu ser.
– Eddie – disse eu novamente.
Ele levantou a mão como se fosse fazer um truque de magia e meteu o
dedo anelar na boca; todo lá dentro. Depois fez deslizar o anel de platina
pelo dedo, devagar, parecendo exatamente um ilusionista que queria ter a
certeza de que a minha atenção estava mesmo onde ele queria. Segurou-o
então acima da cabeça e virou-se, atirando-o para o jardim. Soltei um
arquejo. Por um momento imaginei ter visto o luar a brilhar na superfície
prateada, enquanto ele girava pelo ar; depois desapareceu, aterrando em
silêncio na relva escura. O Eddie olhou na direção do seu projétil.
– Se aquilo se transformar num feijoeiro – disse ele –, não tenhas
problemas em desaparecer por ele acima.
Tirou-me então a manta, pegou no copo de vinho meio cheio e dormiu no
sofá.
*
As meninas dormiram até tarde e eu levantei-me antes delas. A cama,
grande de mais sem o Eddie, pareceu expulsar-me e arrastei-me para o
andar de baixo. As portas duplas da cozinha, que davam para a sala de estar,
tinham painéis de vidro na parte de cima e eu espreitei através deles. Mas,
em vez do meu marido a dormir, vi cobertores dobrados com cuidado e
almofadas ordenadas ao longo do sofá, como se ele nunca se tivesse
dormido ali. Fiquei com um nó na garganta perante o pensamento de ele já
ter saído de casa. Tinha medo de que algo lhe acontecesse antes de termos a
oportunidade de resolver as coisas.
Caminhei com calma até à cozinha e liguei a chaleira. Inclinei-me sobre o
balcão, a inspecionar os pedaços brilhantes na superfície do mármore. A
autocomiseração pesava-me tanto nos ombros que era difícil estar em pé, a
direito. Quando arranjei força para levantar os olhos e olhar pela janela, vi-
o. O Eddie estava de gatas, o rosto perto da relva orvalhada. Via que ele
tirara as calças de corrida, que pareciam encharcadas por causa do relvado
molhado; e lá estava ele, de cuecas, como um cão à procura de uma
joaninha. Acocorou-se e pressionou os olhos com as mãos. Quando arrastou
as mãos pelo rosto, os nossos olhos encontraram-se e, embora eu não me
estivesse a mexer antes daquele momento, paralisei. Não respirei nem
pestanejei. Endireitei-me devagar, mas não rompi a linha de visão com ele
nem por um instante.
Ele levantou-se e caminhou de modo fatigado em direção a mim, com a
relva toda colada aos joelhos, que estavam vermelhos e sulcados com linhas
por ter estado tanto tempo ajoelhado. Abri a porta da cozinha e, quando
chegou, ele pôs os braços à minha volta como se estivesse muito, muito
cansado.
– Desculpa – disse eu.
– Eu também – respondeu ele numa voz impaciente, apenas a apertar-me
com força contra o seu corpo, as mãos no meu cabelo.
– Não tenho um caso – disse eu, embora presumisse que ele já acreditava,
tão terno era o seu olhar e movimentos.
– Tenho saudades tuas – disse ele, olhando-me nos olhos com tanta
intensidade que eu sentia o calor do seu olhar a queimar-me.
– Estou aqui – disse eu. – Não vou a lado nenhum.
E naquele momento, juro, era verdade.
23

E urecente
poderia ter mergulhado na minha obsessão pela Jeanie e na minha
viagem para a ver, e no facto de ter conhecido a Elizabeth, mas
tentei voltar ao normal. Afinal, depois de acontecimentos traumáticos –
provações que mudam vidas – as pessoas continuam a beber chá, tomar
banho, ir para a cama, ir trabalhar, comer pedaços de queijo em pé em
frente à porta aberta do frigorífico. Eu fiz essas coisas todas. Era fácil cuidar
da minha família; fazia-o há anos.
Ao fim de cerca de uma semana, conseguia ver um filme inteiro, preparar
e comer toda uma refeição, lavar o cabelo e vestir o pijama sem pensar no
facto de ser uma viajante no tempo. Mas estava lá, logo abaixo da
superfície: eu podia pegar numa moeda e raspar levemente sobre a minha
vida quotidiana, e ali, revelando-se aos poucos, estava o tempo com a minha
querida mãe. Quando me olhava ao espelho via o rosto dela, tão diferente –
e mais jovem – do meu. Quando me deitava na cama e fechava os olhos,
lembrava-me de a observar enquanto ela dormia, absorvendo-a, e a
almofada por vezes molhava-se com lágrimas silenciosas.
Tentava concentrar-me no trabalho: realizava as experiências, escrevia
relatórios, organizava discussões em grupo, participava em reuniões. Era
difícil, porque só queria que chegasse a hora de almoço para me sentar a
conversar com o Louis. Tornámo-nos mais próximos desde a Elizabeth. A
sua genuína crença em mim levou-nos a outro patamar; partilhar um
segredo faz esse tipo de coisa. Creio que, por um tempo, o Louis sentiu
alguns ciúmes da Elizabeth, porque ela já estivera comigo no passado.
Comecei a ter essa sensação depois de lhe ter lido a carta que ela enviara e
descrito o anel de diamante. Não digo que o Louis estivesse cheio de inveja,
só que ele queria ser a parte maior disto. Parecia que eu era o capitão e ele o
primeiro imediato, desconfiado da nova tripulação. Só que, no que me dizia
respeito, ele era o meu braço direito. Eu precisava do Louis e também o
conhecia. Não conhecia a Elizabeth. Só tivera duas conversas com ela em
toda a vida. No entanto, sabia que para a Elizabeth eu era muito mais do que
uma conhecida.
Ciúmes moderados à parte, o Louis era um grande fã da Elizabeth e
falávamos muito dela. Ele adorou que ela lhe tivesse dado o ovo esmaltado;
era uma coisa bela, e ele sabia disso, quer o conseguisse ver ou não. Estava
muito orgulhoso por ter o belo ovo sobre a lareira em casa, para que todos o
vissem.
– Isto apenas mostra o quão longe cheguei – disse ele certa vez ao
almoço, num café.
– O que significa...? – perguntei, trincando a sanduíche.
– Bem, em criança, eu nem sabia a forma de um ovo, e agora tenho um
muito caro, bonito e frágil em casa. É como um «vão passear» aos
retentores de ovos.
– Não sabes se é caro – disse eu, de boca cheia.
– Não estragues tudo. Provavelmente, é. E o teu anel é muito caro.
– E assenta-me na perfeição. Eu disse ao Eddie que era um pedaço de
bijuteria para usar, já que o dedo me parecia despido sem o anel de noivado.
– Talvez tenha valido a pena perder o outro – disse ele, sem falar a sério.
– Céus, não, mas foi um gesto amável e generoso. Ela não precisava de
mo dar. – Fiz uma pausa. – «Retentores de ovos»? – perguntei.
– Tu sabes o que quero dizer. – Sentámo-nos e, durante algum tempo,
comemos num silêncio amigável. O café estava movimentado, com pessoas
a pedir almoços para levar. Uma ou duas delas sorriram-me com admiração,
como se pensassem que eu estava a fazer uma boa ação ao levar um cego a
almoçar. Eu detestava aquilo. Estávamos metidos num canto ao fundo, o
mais longe da entrada e do vento frio que soprava para dentro de cada vez
que alguém entrava. Fora até então um outubro quente, mas agora batia à
porta um outubro mais frio.
– Voltarias outra vez atrás, se fosses tu? – perguntei-lhe. O Louis limpou
a boca com um guardanapo.
– Eu voltaria. Mas não quer dizer que devas fazê-lo – disse ele. – Não
tenho filhos, não tenho marido. Na verdade, não tenho ninguém que
dependa de mim ou que sentisse a minha falta se algo corresse mal.
– Isso não é verdade, Louis, eu sentiria a tua falta – declarei. – Sentiria
mesmo.
– Não é o mesmo – disse ele. – Simplesmente não sou tão importante na
vida das pessoas que conheço. Sou substituível – disse ele.
– Não és substituível – respondi. – Louis, não és substituível.
– Então, se eu tivesse uma caixa e quisesse voltar atrás no tempo para
visitar o meu pai ou algo assim, encorajar-me-ias a fazê-lo?
– Bem, se fosse o que realmente querias fazer, então sim.
– Isso porque se eu me perdesse, ferisse ou morresse, não teria grande
impacto no mundo. Um dia eu entrava na caixa e depois, quando não
voltasse, ao fim de um tempo alguém diria: Ei, onde está aquele tipo cego
que andava sempre a derrubar o meu cesto dos papéis? E depois de mais
um tempo, todos parariam de perguntar onde estava e eu simplesmente
estaria desaparecido. A minha irmã ficaria abalada; é provável que
presumisse que eu me atirara a um lago por estar irritado por ser cego, e
então venderia a casa e seguiria com a sua vida.
– Não é verdade – disse eu, num sussurro acalorado.
– Verdade – disse ele, de forma calma e com autoconfiança.
– Não a minha verdade – refutei. Ele limitou-se a encolher os ombros e
trincou a sanduíche. – Nunca te atires a um maldito lago – disse eu. E
depois, com uma vozinha patética, acrescentei: – Perturbaste-me mesmo,
Louis. És incrivelmente importante para mim. Preciso de ti.
– Também preciso de ti, assim como muitas pessoas, mas continuas a
ameaçar entrar numa caixa e desaparecer para sempre.
– Não costumavas pensar assim, antes da Elizabeth.
– Eu sei – concordou ele. – Mas aquilo que ela disse sobre não se saber
verdadeiramente como funciona esta coisa das viagens no tempo
preocupou-me.
– A mim também – disse eu. – Estou sempre a pensar, se algo sólido
como um anel pode desaparecer, que mais pode correr mal? Talvez algo
catastrófico. É estranho, porque antes dava a sensação de que voltar ao
passado era na verdade fazer do presente aquilo que conhecemos – disse eu.
– Bem, isso não mudou muito – disse o Louis. Deu um gole na bebida.
– O que queres dizer? Pensava que, uma vez que tive sempre o anel de
noivado, o facto de o terem roubado à Elizabeth significava que a
cronologia se alterara.
– Não – ele abanou a cabeça. – Não é esse o caso. A cronologia da tua
vida, e de quando tinhas o anel, não mudou, pois não? Tiveste-o durante
toda a vida de casada, até ao outro dia, e agora não o tens. Estou a pensar
que de facto nada mudou, como resultado da viagem ou do assalto.
– Estou confusa – disse eu. – Queres dizer que continua a não haver nada
que indique que eu mudaria alguma coisa se voltasse novamente ao
passado?
– Não, mas começo a pensar que só voltaste duas vezes, e não podemos
ter a certeza das regras. – Ergueu então o dedo de forma refletida.
– O que é? – perguntei.
– Se voltares outra vez, podes levar dinheiro, pagar os patins à Elizabeth e
trazer o teu anel de volta, antes que seja roubado; pelo menos, dessa forma
tê-lo-ás outra vez e não irritarás muito o Eddie. Quando foi o assalto?
– Anos depois de eu a conhecer – disse eu. – Pode resultar. Mas o meu
dinheiro não serve nos anos setenta.
– Provavelmente consegues comprá-lo no eBay – disse ele.
– Comprar dinheiro dos anos setenta?
– Hum... – disse ele. Depois abanou a cabeça. – Não, não vai resultar.
– Porquê? – perguntei.
– Porque o anel já foi roubado. Não consegues corrigir as coisas, só fazer
com que as coisas sejam como as conhecemos, e não mudar o que já
aconteceu. E, pensando melhor, não deves de forma nenhuma pagar aqueles
patins.
– Porquê?
– Não sei. Porque a Elizabeth disse que nunca o fizeste, portanto isso
seria mudar as coisas.
– Oh, Deus, para – pedi, levando as mãos à cabeça como se o meu
cérebro pudesse cair.
– Não voltes. Não vai ajudar e é demasiado perigoso – disse ele.
– Decide-te. – Pus o guardanapo sobre o prato; tornara-se muito difícil
engolir. – A desvantagem disso é que nunca mais verei a minha mãe. É
tudo. Obrigada. – O raciocínio para voltar ao passado andava em círculos:
eu queria voltar, mas os riscos podiam ser muito altos. Se não fosse pelo
anel, provavelmente não teria pensado duas vezes nisso, apesar do risco
físico e de tudo o que tinha a perder. Era negligente não levar mais a sério
tudo o que tinha a perder, inclusive a minha vida; sabendo disso, tinha de
ocupar a cabeça, acalmar a vontade do meu coração. Tinha de aceitar o
facto de ter perdido outra vez a minha mãe, antes de ter a oportunidade de
lhe dizer tudo o que precisava de lhe dizer. Sentia que a estava a perder pela
segunda vez na vida, ou talvez pela terceira. Cada vez que a deixava, ficava
desolada. Mas não iria isso ser verdade independentemente de quantas
vezes ou do quão brilhantemente eu conseguisse despedir-me? Agora aqui
estava o Louis, explicando mais uma vez que, na verdade, eu não mudara
nada, o anel roubado nada significava, e a vida como eu a conhecia
permaneceria intacta, independentemente do que eu fizera no passado. Eu
considerava-me uma pessoa naturalmente mais prudente; porque arriscava
tudo o que tinha? As expedições ao passado haviam sido sempre
impregnadas pelo medo de não conseguir voltar e, no entanto, o vício de
voltar era quase físico, emocional, ardente. Fui buscar cafés e sentei-me de
novo à mesa, levantando a mão do Louis e tocando a sua chávena com ela.
– Sabias que fui adotada depois de a minha mãe morrer? – perguntei-lhe.
– Imaginei que tivesses sido, ou acolhida. Nunca falámos sobre isso.
– Acolheu-me um casal mais velho, chamava-lhes tia Em e tio Henry.
Eram boas pessoas, como uns avós queridos. Senti-me sempre como se
estivesse apenas de visita, mesmo quando lá vivia permanentemente.
– Como correu? – perguntou o Louis.
– Bem. Eles foram bondosos, eu não lhes arranjei problemas. Eles tinham
a sua vida, jogavam bowling, dardos. Tinham uma rotina agradável e acho
que isso me faz bem. Foi como se um dia a minha mãe estivesse lá e no
seguinte não. A Em e o Henry acolheram-me, e depois simplesmente fiquei.
Lembro-me das noites de domingo: víamos o Bullseye na televisão e
comíamos torradas com patê e bebíamos Cup-a-Soup em verdadeiras
canecas vermelhas e brancas da Batchelors Cup-a-Soup. Depois, era o
Bergerac. E a música do genérico do Bergerac dá-me a sensação de
domingo à noite; significava escola no dia seguinte. A minha mãe era
mesmo uma hippie, suponho, e havia muito amor e carinho, mas acho que
nem sempre muita rotina. A Em e o Henry provavelmente salvaram-me,
impediram-me de enlouquecer depois de ela morrer. Cuidaram mesmo de
mim. Entraram com o pedido de adoção uns anos depois.
– Ainda são vivos?
– O tio Henry tem quase noventa anos. Eles tinham quase sessenta
quando me acolheram, acreditas? A Em morreu há uma década. – Bebi um
gole de café e sorri com ternura, porque o Louis tinha espuma no lábio
superior, parecendo um minúsculo bigode francês. Não me dei ao trabalho
de lhe dizer.
– O Eddie acha que eu deveria visitar o Henry e fazer-lhe mais perguntas
sobre a minha mãe, antes que seja tarde de mais.
– O que poderá ele saber sobre a tua mãe que tu não saibas, já que a
visitaste? –perguntou o Louis.
– Bem, eles nunca me disseram exatamente como ela morreu, por isso a
história que conheço é que ela apanhou uma constipação e pronto. Bem, não
está certo, está? Deve ter sido outra coisa, um ataque cardíaco, cancro,
asma. Não sei. Eles estavam a proteger-me, compreendo isso, e a psicologia
infantil não era o que é hoje. Levaram-me à sepultura dela algumas vezes.
Talvez fosse essa a ideia deles de encerrar o assunto. Mas, com franqueza,
agora não saberia sequer onde fica essa sepultura.
– Então fala com o Henry, pergunta-lhe sobre isso. Que mal pode fazer?
– Não sei, parece uma potencial caixa de Pandora.
– Então visita-o e não lhe perguntes, vê apenas para onde vai a conversa.
– Isso foi o que disseste quando fomos à loja da Elizabeth – afirmei.
– Queres que vá contigo?
– Desta vez, não. Acho que devo ir com o Eddie e as meninas. Mas,
depois ponho-te a par – disse eu, apertando-lhe a mão.
– Isto é bom – disse o Louis, a voz reconfortante, forte. Segurou-me a
mão com força. – Isto é um progresso. Isto é o que as pessoas normais
fazem quando querem descobrir coisas sobre o passado: falam com pessoas
vivas que estiveram mesmo lá, em vez de entrar numa máquina do tempo.
Isto é um passo na direção certa.
24
Henry tem duplo queixo – sempre teve – e lembra-me o Droopy, um
O tio
cão dos desenhos animados americanos. O Droopy tinha de segurar uma
placa a dizer «Estou feliz», porque só a olhar para o rosto dele era
impossível saber. Com o tio Henry acontecia o mesmo, mas ele estava longe
de ser um homem infeliz. Se eu tivesse apenas dois adjetivos para o
descrever, seriam «forte» e «contente»; um homem que nos faz sentir
seguros sem fazer nada senão estar presente. Mesmo agora, o aperto firme
dele na minha mão enquanto eu me empoleirava na beira do sofá, ao lado da
sua cadeira de rodas, era o aperto de um homem que não sabia senão dar
ânimo; tinha coragem na ponta dos dedos.
Quando penso na primeira noite em que fiquei com a Em e o Henry, a
imagem de que me lembro é um prato de biscoitos dispostos num padrão:
wafers de caramelo nos seus invólucros brilhantes, vermelhos e dourados,
espalhados em leque num círculo como raios de sol, os vazios entre eles
preenchidos com bolinhos de chocolate em papel de prata, e depois wafers
cor-de-rosa, despidos em comparação com os outros. Demasiados biscoitos
para comer, mas apenas a quantidade certa para o padrão funcionar. Não era
estranho, era agradável. Trataram-me como a uma convidada muito especial
e foram queridos comigo.
Agora que era muito velho, o Henry estava a ficar com o duplo queixo
ainda mais pronunciado. Era a única coisa nele que havia mudado, não se
passava nada de errado com a sua cabeça. Quando chegámos ao lar, ele
conversou com a Esther e a Evie, perguntou-lhes pela escola e a viagem a
França, e perguntou-lhes qual fora a pior parte de cada uma. Perguntava
sempre o que tinha sido pior no dia, nas férias, no fim de semana porque,
dizia ele, as pessoas perguntavam sempre o que tinha sido melhor e é bom
ser diferente. A Evie subiu-lhe para o colo e ele pôs o braço em volta dela.
Ela pegou com cuidado na pele frouxa da bochecha descaída e levantou-a
um pouco.
– O que está aqui debaixo? – perguntou ela, em tom de conversação.
– Doces! – disse ele, e tirou um saco de um bolso, como um alforge, do
lado da cadeira de rodas. – Tirei uns para ti mais cedo, de debaixo das
bochechas, e empacotei-os.
Esta era uma rotina por que passávamos sempre, quando o visitávamos.
Da primeira vez que a Evie veio comigo ver o Henry, isto é, da primeira vez
em que sabia falar, arrastou-se para cima dele; fiquei mortificada quando ela
lhe levantou a pele e lhe perguntou o que havia por baixo. Mas ele riu-se e
disse-lhe que vivia lá uma família de passarinhos. E, da vez seguinte, disse
que eram doces e estava preparado com algo a sério.
Ele e eu sentávamo-nos agora junto a uma janela panorâmica com vista
para os jardins, e observávamos o Eddie e as meninas a brincar às
escondidas lá fora.
– Tiveste muitas visitas recentemente, tio Henry? – perguntei.
– Quase sempre, amor – disse ele. – Mas quando chegas à minha idade e
as tuas visitas são os membros da equipa de bowling com as mulheres, o
número vai diminuindo – disse ele com naturalidade. – É uma parte terrível
de envelhecer, quando se sobrevive a todos; está-se basicamente condenado
a ver os amigos morrerem.
Apertei-lhe a mão.
– Esperava poder fazer-te algumas perguntas, Henry, sobre a minha mãe.
Coisas que nunca te perguntei.
Ele fechou os olhos.
– Eu sei – disse ele. – Antes que seja tarde de mais.
– Eu não queria dizer isso.
O Henry segurou-me a mão com um pouco mais de força e acariciou-ma
com o polegar.
– Eu e a tia Em adorávamos-te, eu ainda te adoro, é claro. Espero que
saibas que nos trouxeste muita alegria – disse o Henry. – A Em, a minha
querida Em, não podia ter filhos. Era uma grande tristeza na nossa vida, mas
nós amávamo-nos e rodeávamo-nos de amigos e atividades. Naquele tempo
era mais difícil, se não se podia ter filhos. – A voz do Henry tornou-se
irregular e isso fez-me querer pigarrear. – É sempre duro para uma mulher
que não pode ter filhos, se ela os quiser. Mas o que quero dizer é que,
naquela altura, era mais difícil encontrar outro propósito para ocupar o
tempo, distrairmo-nos da tristeza. Quando perdeste a tua mãe e vieste para
nós, já nos tínhamos conformado com o vazio de não ter filhos na nossa
vida. Esse vazio nunca desapareceu, nós só nos habituámos a que estivesse
lá. – Ele olhou para fora da janela, sem pestanejar. –Provavelmente não te
lembras, mas costumavas aparecer com a tua mãe de vez em quando, e a
Em fazia um grande alarido contigo. Ela adorava crianças. Para nós, eras
mais como uma neta, por causa da nossa idade, mas a Em e eu, nós
amávamos-te como se fosses nossa. E tu eras tão boa menina, trouxeste-nos
sem dúvida muita felicidade.
– Foram bons para mim, tio Henry. Estou feliz por ambos me terem
acolhido.
Ficámos em silêncio algum tempo. Eu estava agitada, porque o Henry
devia perceber que eu queria saber mais sobre o que aconteceu à minha mãe
e não estava a oferecer nada. Eu teria de perguntar.
– Quando eu era pequena – comecei –, quando fui morar convosco, não
me lembro do que aconteceu à minha mãe. Disseste que ela adoeceu, teve
uma constipação, certo? E depois morreu? Mas é tudo tão ambíguo, com
certeza sabes mais.
O Henry olhou para mim. Tinha os lábios comprimidos com força, e
preocupou-me que ele não os forçasse a abrir para deixar sair alguma
palavra.
– Tio Henry – disse eu, chegando mais perto e mantendo a voz baixa. –
Eu nunca te censuraria. Sei que tu e a tia Em quiseram proteger-me dos
pormenores da morte da minha mãe. Não queriam que eu sofresse, e
queriam que eu esquecesse, porque eu era uma criança e ninguém deseja ver
uma criança em sofrimento. Eu compreendo. Mas agora, à medida que
envelheço e as minhas ligações ao passado são ameaçadas – fiz um esgar,
um vago pedido de desculpa –, preciso de saber, tio Henry. De outro modo,
ficarei a questionar-me para o resto da vida. Agora, a dor de a perder é
agravada por não saber a verdade. – Implorei ao Henry com o olhar. –
Perdê-la dói, de qualquer maneira – afirmei –, mas quanto a isso não posso
fazer nada. A verdade do porquê de a ter perdido, os pormenores, são algo
que preciso de saber. Isso vai ajudar-me. Por favor.
O Henry acenou com a cabeça e bateu ao de leve no cimo da minha mão
que segurava a dele, como que para me impedir de tentar persuadi-lo.
– Vai buscar-me um copo de água, amor – disse ele.
Bebeu um gole e ambos olhámos pela janela. Deste ângulo, eu via a
Esther a esconder-se atrás de uma árvore com a mão na boca, a tentar não se
rir e denunciar-se, e a Evie a esconder-se num arbusto, claramente visível.
– Não há pormenores – disse o Henry. Eu fechei os olhos. Ele não ia
contar-me nada. – Na verdade, nós contámos-te mais do que sabíamos. –
Virei-me para olhar para ele, que continuou a olhar para fora da janela,
imperturbável, enquanto falava. – Eu nem sabia que ela estava constipada,
foste tu que nos disseste isso. Disseste que a tua mãe tinha constipações e
tosses fortes, e que na altura estava com uma. Mas não sei como ela morreu.
– Foste ao funeral? – perguntei.
– Não houve funeral – disse ele, virando-se para olhar para mim. Pensei
ter visto algo no seu rosto, pensei ter visto um pedido de desculpas. Um
grito agudo fez-me saltar. Olhei para fora da janela e vi que o Eddie se
aproximara furtivamente da Esther por trás e a agarrara. Estavam os dois a
rir-se, agora.
– Porque não houve funeral? O que fizeram ao corpo dela?
O Henry soltou um longo suspiro e senti cheiro a menta no seu hálito.
– Não havia corpo – disse ele. – Ninguém sabe o que aconteceu à tua
mãe; bem, ninguém tem a certeza. Houve especulação e nós protegemos-te
de tudo isso. Mas nunca houve um corpo. Ela estava desaparecida,
presumivelmente morta.
– Presumivelmente? – perguntei. De repente, tornou-se difícil respirar.
– Achamos que ela se suicidou – disse o Henry, tentando aproximar-se de
mim na cadeira, mas sem se mover.
– Não, ela não o faria. Porquê? – A minha voz não era mais que um
murmúrio rouco. – Porque se mataria? Ela era feliz.
– Tu eras uma criança, querida, é difícil saber se os adultos são felizes
quando se é criança. Há sempre muito mais a acontecer na vida do que as
crianças sabem. Agora sabes disso, não sabes? As tuas filhas presumem que
estás feliz, não é? Mesmo quando não estás.
– Mas eu sei que ela era feliz, ela amava-me e não queria deixar-me. Não
teria escolhido deixar-me.
– Ela consumia drogas – disse ele. – Toda a gente sabia. – Ele ergueu as
mãos em sinal de rendição, antes que eu tivesse hipótese de protestar. – Não
estou a julgá-la, estou só a dizer que isso talvez tenha contribuído para o seu
estado de espírito. Algumas pessoas disseram, na altura, que ela estava
perturbada e dizia coisas estranhas.
– Como o quê? – perguntei, totalmente confusa.
Eu conheci a minha mãe já adulta e ela era perfeitamente normal, de um
modo meio boémio, não parecia nada suicida, e não me disse nada assim tão
estranho – e tivemos muitas conversas. Sim, ela era espiritual, sim, ela
fumava droga, mas com certeza... talvez isso fosse estranho para os tipos
mais convencionais dos anos setenta. O que eu sei com certeza é que ela
nunca teria escolhido deixar-me sozinha.
O Henry suspirou profundamente e recostou-se na cadeira, fechando os
olhos.
– Pelos vistos, estava à espera de um «anjo da guarda», ou à procura de
um; algo assim. Alguém disse isso e tornou-se um boato. Eu e a Em
pensámos que talvez ela tivesse ido nalguma viagem, à procura de algo, se
era um anjo da guarda ou não, não sei. Seja como for, não importava, o
facto é que ela tinha desaparecido. Mas presumimos que ela voltaria para te
vir buscar. Por isso, quando vieste para nós, foi como uma visita, e depois
tornou-se óbvio que, se ela pudesse voltar, já o teria feito. Corriam boatos
de que ela se tinha suicidado e não queríamos que soubesses disso.
– E a polícia? Procuraram-na?
– Não sei o que aconteceu à polícia, eles apareceram e fizeram algumas
perguntas, só isso. Mas, como nós, sabiam que era difícil ser mãe solteira; é
difícil agora, ainda mais difícil naquela altura. E, em parte pela dependência
do consumo de drogas, acho que as pessoas simplesmente tiraram as suas
próprias conclusões sobre o que tinha acontecido; o suicídio parecia a
explicação mais provável. – Ele fez uma pausa. – Devo parar?
– Não. – Funguei e vasculhei na carteira, à procura de lenços de papel.
– Acho que os sinais eram de que ela tinha ido embora de livre vontade, e
nunca mais voltou. Algumas pessoas perguntavam-se se, à sua maneira, ela
teria feito o que pensava ser melhor para ti. Não parecia haver nada
suspeito, nem outra pessoa envolvida, e não tinham ideia de para onde ela
fora. Hoje em dia podes seguir o rasto das pessoas com telemóveis e câmara
de vigilância, mas naquele tempo não.
Eu não conseguia interiorizar. A vaga imagem da minha mãe a morrer na
cama no seguimento de uma infeção respiratória, que eu imaginara ou
implantara (ou ambas), foi substituída por uma visão dela a andar descalça
pelo bosque num longo vestido fluído, com flores no cabelo, braços caídos,
balouçando ao lado do corpo, até desaparecer completamente de vista.
– A sepultura! – disse eu, súbita e estupidamente. – Vocês levaram-me à
sepultura dela.
O tio Henry abanou a cabeça.
– Lamento muito por isso, lamento mesmo. Eu e a Em na altura
decidimos que era uma boa ideia, mas não tínhamos a certeza.
– O que era, uma lápide colocada lá para ela, porque ela estava
desaparecida?
– Não era dela, era a lápide de outra pessoa; não tinha nome, dizia apenas
«Amada e saudosa, para reencontrar um dia». Achámos que de certa forma
seria melhor para ti se tivesses visto uma sepultura, algo real, para que
pudesses avançar com a tua vida.
Reprimi um soluço, deixando escapar apenas um pequeno gemido.
– Tudo o que fizemos, fizemos para tentar ajudar-te, para fazer o que
achávamos ser melhor para ti. Sei que errámos nalgumas coisas e lamento
muito, mesmo muito, em relação à sepultura. Agora parece terrível termos-
te levado lá.
Peguei na mão do Henry e repousei o rosto na sua palma. Ele acariciou-
me o cabelo com a outra mão, metendo madeixas perdidas atrás da minha
orelha.
– Eu entendo – disse. – Não te culpo de nada. Tive muita sorte em ter-
vos. E estou perturbada, mas não zangada contigo.
– Obrigado – disse ele, a voz novamente baixa e rouca.
– Porque não me contaste antes? – sussurrei.
– Nunca houve uma boa altura. Pareceste sempre tão feliz, não queríamos
estragar isso. Nós conversávamos, eu e a Em, tínhamos medo de que, se te
contássemos, pudesses abandonar a tua vida feliz e tentar encontrá-la. Há
pessoas que passam a vida inteira à procura de alguém, sabes?
– Eu sei.
– A minha preocupação – continuou ele –, é que vás à procura dela
mesmo agora. Um corpo é muito importante, por mais horrível que isto soe.
Se acontecesse ela estar viva, algures, estaria na casa dos cinquenta. Não
vais procurá-la, pois não?
– Por onde começaria? – perguntei. O Henry segurou-me as mãos nas
suas, afagando-as devagar. – O que achas que lhe aconteceu, tio Henry? De
verdade? Sê sincero.
Ele suspirou mais uma vez; um suspiro pesado com o peso das palavras
não ditas.
– Honestamente – disse ele –, sempre a imaginei a entrar na água.
Imaginei-a a afogar-se.
Recostei-me no sofá e, quando as meninas voltaram para dentro, tentei
que não parecesse que tinha estado a chorar. O Eddie percebeu, mas as
crianças estavam demasiado agitadas para reparar.
– Vamos comer o nosso piquenique! – gritaram. Empurrei a cadeira de
rodas do Henry para o jardim e estendi uma manta no chão.
O Eddie continuava a olhar para mim, a verificar, em silêncio, se eu
estava bem.
Acenei-lhe com a cabeça e consegui fazer circular morangos, bolinhos de
aveia e fatias de tarte de porco. Consegui servir chá de uma garrafa-termo,
em chávenas de porcelana antiquadas que as crianças faziam questão de
levar aos piqueniques, e durante todo o tempo senti o fardo das minhas
ações a pesar-me cada vez mais sobre os ombros.
A minha mãe não tinha morrido, desaparecera e acabara sabe Deus onde,
louca à minha procura. Embarcara numa busca vã, com a convicção de que
eu era um anjo da guarda que poderia ajudá-la com a filha, se algo terrível
lhe acontecesse. E eu causara tudo isso visitando-a, para começar. Eu
compreendia o porquê de ela ter ido à procura, mas porque não voltara?
Teria caído de uma falésia ao mar? Conhecera um grupo de hippies e
perdera-se num mundo arrebatado e semiconsciente? Eu não acreditava
nisso. Se a minha mãe pudesse ter voltado para mim, tê-lo-ia feito. Ela fora
à minha procura – o meu eu adulto que ela conheceu quando a visitei – e,
enquanto estava fora, acontecera-lhe algo que a impedira de regressar a
casa.
A minha viagem no tempo havia resultado na ausência de Jeanie na
minha vida. Mas, de uma forma ou de outra, não havia provas da sua morte.
E assim, apenas um simples pensamento me ocupava a cabeça: a minha mãe
poderia estar viva.
25

O dia seguinte era domingo, último dia das férias de outubro, a meio do
período, e tínhamos feito aquela coisa abençoada: nada de planos. Na
verdade, os nossos dias «sem planos» com as meninas envolviam uma
espécie de plano: pequeno-almoço tardio, ver um filme de pijama, uma
caminhada e comida de fora, como miminho especial antes de regressar à
escola. Pensando bem, os nossos dias «sem planos» eram mais rigorosos no
seu itinerário do que alguns dos dias de saídas organizados. Até a
caminhada que fazíamos em dias como este tendia a envolver um percurso,
que nos levava por uma velha ponte sobre uma autoestrada. O Eddie
ensinou-nos a todas a fazer os camiões buzinarem, pondo o braço para cima,
fechando o punho e puxando os braços para baixo, como se a puxar a corda
de um autocarro à moda antiga. A princípio pensámos que o Eddie estava a
meter-se connosco, mas o primeiro camião que se agigantou na nossa
direção, tocando a buzina, fez-nos saltar de incredulidade e alegria, como se
a nossa equipa tivesse acabado de marcar no Mundial.
Mas eu estava desesperada para falar com o Louis e enviei-lhe uma breve
mensagem furtiva, pedindo-lhe para que me ligasse e dissesse que estava
verdadeiramente aborrecido com alguma coisa e me implorasse para lhe
fazer uma visita, de forma a eu ter uma desculpa convincente. Se me
limitasse a anunciar que ia sair para ver o Louis, ou outra pessoa, o Eddie
suspeitaria. Sentia-me como uma adolescente a mentir aos pais para sair de
casa, mas não podia de modo algum esperar.
– A sério? Hoje? Isso não pode esperar até regressares ao trabalho? –
disse o Eddie enquanto eu vestia o casaco e calçava as botas.
– Ele está mesmo aborrecido, Eddie – disse eu. – E, quando fores vigário,
todos os nossos domingos estarão estragados. Isto é quase um ensaio. – Ele
franziu a testa enquanto lhe dei um beijo na boca, que não retribuiu. – Estou
a brincar – declarei. – Não demorarei muito, umas horas, e nós... – Puxei
uma corrente imaginária no ar enquanto descia de costas a entrada,
sorrindo-lhe.
– Pi, pi – disse ele, sem sorrir de volta.
*
Quando o Louis abriu a porta, passei por ele, pendurei o chapéu na fila de
cabides e descalcei as botas com um grunhido.
– Posso convidar-te a entrar? – disse ele.
– Ontem fui ver o tio Henry – disse eu.
– Chá?
– Por favor.
– O que disse ele? – O Louis dirigiu-se para a cozinha e para a chaleira.
Contei tudo ao Louis e, quando acabei, tive uma sensação frenética, como
se tivesse contado a história num dia ventoso no cimo de uma montanha.
Estava sem fôlego. Invadiu-me o desespero, é verdade; uma espécie de
sensação incómoda de que era tudo culpa minha.
Mas durante a noite estivera cada vez mais imbuída destes poderosos
sentimentos de esperança, que eram como filamentos dourados a brilhar na
minha escuridão. Esperança de que a minha linda mãe estivesse neste
mundo, aqui e agora, comigo. Ao mesmo tempo que eu.
– A tua mãe, se estiver viva, terá cerca de cinquenta e seis anos, certo? –
perguntou o Louis.
– Sim – respondi, ainda sem fôlego.
– Senta-te, por amor de Deus, sinto-te a pairar sobre mim. – Sentei-me,
mas na beira do assento, desesperada por ação, movimento, descoberta.
– Isto é realmente interessante – disse o Louis.
– E o resto não era? És um público difícil, Louis.
– Então, se ela está viva, potencialmente pode ser encontrada – disse ele,
apoiando o queixo num punho. – Mas...
– Mas o quê? – perguntei.
– Ela tinha de saber onde estavas, não te mudaste, apenas vivias mais
acima na rua. Durante anos. Foste localizável durante muito tempo.
Eu sabia aonde o Louis ia com esta lógica, claro; eu mesma pensara nisso,
mas ao ouvi-lo dele, senti-me esvaziar como um velho balão.
– Eu tenho consciência de que ela poderia ter tentado encontrar-me –
disse eu.
– Mão – pediu o Louis, e eu dei-lhe a mão para segurar sobre a mesa. –
Não leves a mal – disse ele –, mas, pelo que me contaste sobre a tua mãe,
não consigo imaginá-la apenas a vaguear e a nunca mais voltar para casa. –
Ele pôs a outra mão no meu rosto; procurou às apalpadelas as lágrimas que
me deslizavam em silêncio pela face. Pôs o polegar no meu queixo
contraído. – Não faz mal chorar – disse.
– Outra vez.
– Quantas vezes for necessário – disse ele com ternura.
Um relógio fez tiquetaque e o som pareceu alto, embora eu ainda não
tivesse reparado.
– Se ela está viva e bem, então de facto não me quer – disse eu.
– Bem, tens razão ao dizer que não podes saber o que lhe aconteceu,
Faye. Talvez esteja viva, agora é uma possibilidade. Mas talvez não esteja
bem. Ou... Deus. Quem sabe o que aconteceu.
Os meus pensamentos atropelavam-se furiosamente. Eu não conseguia
ordenar mentalmente as várias opções do que podia ter acontecido à minha
mãe, não conseguia manter-me a par da minha especulação. Estava a
acontecer-me muita coisa ao mesmo tempo. O Louis ajudou-me a expor as
teorias, como cartas de jogar. Infelizmente, não havia um verdadeiro ás no
baralho. A minha mãe podia estar morta. Suicídio, como pensava o Henry,
ou talvez outro tipo de morte. Ou poderia estar viva e bem, vivendo agora,
no presente; uma mulher mais velha algures, a um telefonema, um voo, uma
viagem de carro de distância, uma mulher que escolhera não voltar para
mim. Podia estar viva no presente, mas não estar bem, ter algo tão mau que
não conseguia encontrar-me nem contactar-me, ou talvez houvesse uma
outra razão para não ter entrado em contacto comigo.
– O que achas, Faye? Qual é o teu instinto? Tu conheceste a mulher.
– A mulher que conheci não deixaria de bom grado a filha para trás –
disse eu.
– Então não achas possível que ela esteja viva e bem? – disse ele.
– Não é provável.
– Achas que é mais provável que esteja viva e totalmente incapaz de te
contactar por um motivo qualquer? Talvez doente, ou perdeu o juízo ou
algo assim. – Ele fez uma pausa. – Desculpa. – Eu abanei a cabeça. – Faye?
– Oh, Louis – disse eu, quase inaudível até para os meus ouvidos. –
Puseste-me a pensar que a melhor conclusão lógica de tudo isto é que a
minha mãe afinal morreu. Eu estava a agarrar-me a um fragmento de
esperança de a conseguir ver outra vez, sem ter de arriscar tudo a voltar ao
passado na caixa.
– Mas ainda há uma hipótese de ela não estar morta e, se podemos
encontrá-la, devemos tentar – disse o Louis. – Vale uma pesquisa no
Google, pelo menos. Vamos. – Ele pôs-me em pé e conduziu-me escadas
acima. Perguntava-me o que deveria desejar quando o ecrã do computador
do Louis tremeluziu e acordou.
– Qual é o apelido dela? – perguntou o Louis, com os dedos a postos
sobre o teclado.
– Greene – respondi. E o Louis virou-se para olhar para mim, como se
conseguisse ver-me. – Oh, querida, esperava algo um pouco menos comum.
– Desculpa.
Vasculhámos a internet. O Louis é um bom investigador, mas não
encontrámos nenhuma pista ou informação. Não tínhamos outros nomes
através dos quais a encontrar de forma mais indireta, e ao fim de algum
tempo desistimos.
– Vou voltar ao passado – disse eu. – Emendar as coisas. Salvá-la.
– Não há razão para isso – disse o Louis. – Não podes mudar nada, Faye,
porque já viveste a vida toda sem a tua mãe. O que quer que lhe tenha
acontecido, já aconteceu, não podes mudar nada. Já discutimos isto.
– Tenho de tentar – disse eu. – Se voltar ao passado e lhe contar quem
realmente sou, se lhe explicar tudo, ela não me vai procurar. Não vai perder-
se e não desaparece.
– Mas ela vai desaparecer, não vai? – perguntou o Louis, como se
frustrado com uma criança inteligente que não conseguia entender uma
equação simples. – Porque já desapareceu.
– Não podemos ter a certeza de que funciona assim. Como disse a
Elizabeth, nós não conhecemos bem as regras.
O Louis inspirou profundamente, encheu as bochechas de ar e soltou-o
devagar.
– Não podes mudar as coisas – disse ele novamente, soando resignado.
– Bem, talvez possa. – Vi o Louis a abanar a cabeça e senti-me irritada. O
que eu de facto queria era só que ele me apoiasse, independentemente do
que eu decidisse fazer. Não precisava que ele me dissesse que era uma má
ideia, só precisava de encorajamento. – A opção fácil não resultou – disse
eu. – Procurámo-la online, no conforto do teu escritório, um espaço
agradável e seguro entre nós e o mundo real, e não ajudou. Portanto, vou ter
de fazer algo, algo... prático. Vou ter de sujar as mãos.
– Eu iria ao passado por ti, se pudesse, se fizesse alguma diferença – disse
ele.
– Tolice – bradei.
– Estou só a tentar ajudar, Faye. Compreendo que estejas frustrada, e que
talvez te sintas culpada pelo que aconteceu à tua mãe, mas não devias. Não
sabias das consequências, a culpa não é tua. Mas acho que tens de parar por
um momento e pensar no que tens a perder. Acho que voltar é muito
arriscado. Creio que sabes disso.
– Sabes o que acho, Louis? Acho que estás com ciúmes, garanto que
estás com ciúmes, e acho que te preocupa, como à Elizabeth, que as minhas
ações estraguem o teu status quo, e, com franqueza, isso surpreende-me um
pouco. – Ele levantou os olhos e conseguiu fitar-me diretamente, daquela
forma desconcertante. Mas eu estava irritada; era essa a verdade dos factos.
Ele não disse nada, não pôs um travão na conversa e é essa a minha
desculpa esfarrapada para o que disse a seguir. – Talvez se eu voltar ao
passado e mudar as coisas, então, quando voltar, talvez já não sejas cego.
– Não me estejas a fazer um favor – disse ele. O silêncio entre nós pesava
uma tonelada. Ele levantou-se e desceu as escadas a grande velocidade. Eu
marchei atrás dele.
– Desculpa, Louis, não tive intenção.
– Não tiveste? – disse ele. – Bem, eu preferiria não ser cego, já que falas
nisso.
– Foi uma coisa estúpida de se dizer. Desculpa – afirmei. – Desculpa.
Sabes, toda a vida assumi que a minha mãe tinha morrido. Mentiram-me e
eu sei porque o fizeram, mas mesmo assim... – As palavras falharam-me. –
Ela foi vítima de uma injustiça e eu fui vítima de uma injustiça. Mas a
conclusão é que a culpa é minha. Então, se posso fazer algo para resolver
isto, tenho de tentar. Consegues perceber isso?
– Sim, percebo isso, mas, por favor, ouve-me por um momento. Por
favor?
– Está bem – disse eu, forçando-me a estar calada.
– Senta-te – disse ele. Ambos ocupámos novamente os nossos lugares na
mesa de madeira. – As pessoas mentem – disse o Louis. Ficou então muito
tempo calado, e eu senti que ele estava a testar-me, para ver se eu resistia a
interrompê-lo. Eu não disse uma palavra e, após um longo momento, ele
voltou a falar. – As pessoas mentem e fazem-no por todo o tipo de razões,
às vezes para nos proteger, outras para se protegerem a si mesmas. Mas as
mentiras são como vespas na relva, à espera que um pé descalço as
encontre. Uma mentira é como uma coisa viva, sobrevivendo até ser
descoberta.
– Salta para o fim – disse eu numa voz monótona.
– Está bem, a minha questão é esta: eu também tive uma visita ontem. –
Ele deteve-se, para dar um efeito dramático.
– Quem?
– A Elizabeth.
– Porquê? – perguntei, sentindo-me perdida.
O Louis levantou-se, abriu uma gaveta baixa da cozinha e tirou um
envelope fino e empolado, que empurrou sobre a mesa em direção a mim.
Abri-o lá e de dentro caiu o meu anel de noivado. Tombou na mesa como
um velho amigo que pensei que nunca mais veria. A sua familiaridade
atordoou-me.
– Como? – disse eu.
– A Elizabeth mentiu sobre o facto de ter sido roubado.
– Ela o quê? Então, o que fez com que te contasse? – perguntei, perplexa.
– Escrevi-lhe, porque imaginei que ela tivesse mentido, e depois falámos
ao telefone e ela trouxe-mo. Ela sente-se mal por isto, sentiu-se sempre mal.
Mas queria dizer algo que te impedisse de voltar ao passado.
Brinquei com o anel, observando-o novamente antes de o voltar a pôr,
trocando o anel de diamante para a outra mão.
– Ela quer que fiques com o anel que te enviou – disse ele, enquanto eu o
deslizava pelo dedo. – Ela lamenta muito, Faye, não sejas muito dura com
ela.
– Como adivinhaste que ela tinha mentido? – perguntei.
– Foi o facto de o anel que ela te enviou assentar na perfeição no teu
quarto dedo. Ou era coincidência, ou ela tirou a medida do anel que já tinha,
para saber o tamanho certo para ti. Entendo que o tamanho do dedo não seja
uma coisa fácil de se adivinhar, por isso concluí que provavelmente não era
coincidência.
– Sherlock, estou impressionada – disse eu. – E contente por ter o meu
anel de volta.
– A Elizabeth não queria que voltasses ao passado, foi por isso que
mentiu. Ela pensou que o facto de o teu anel se ter perdido te faria hesitar o
bastante para parares de voltar atrás no tempo, de pensar que poderias
mudar as coisas, talvez para pior. Ainda que essa lógica não funcione, como
sabemos. Não sabemos bem as regras, Faye, mas tenho a certeza: não
adianta voltares ao passado para mudar o que aconteceu à tua mãe, porque
não podes. E estou morto de medo de que te magoes e nunca mais regresses
a casa.
– Ainda acho que a posso impedir de partir, de desaparecer – disse eu.
– Por amor de Deus, Faye. Não adiante. Não quero soar como um disco
riscado, mas já aconteceu. Na melhor das hipóteses – ele parou.
– Na melhor das hipóteses, o quê? – disse eu.
– Na melhor das hipóteses, acho que, faças tu o que fizeres, ela vai
morrer. Não podes tê-la. Porque nunca a tiveste.
O engraçado é que não me senti nada dissuadida pelas suas palavras.
Talvez só precisasse da mais pequena das desculpas. Talvez a Elizabeth
estivesse absolutamente certa em impedir-me de voltar ao passado. Mas
agora eu tinha tempo para pensar nas coisas, e a hesitação anterior
evaporava-se na certeza de que não magoaria a Esther, a Evie ou o Eddie
por visitar a Jeanie uma última vez. Já tomara a minha decisão.
– Nada me impedirá de a ver mais uma vez – disse eu, empurrando a
cadeira para longe da mesa e dirigindo-me para a porta. – E sei que não
posso mudar nada. Mas talvez o possa expiar.
*
O facto de, nos últimos tempos, a ideia de ser mulher de um vigário me
ter parecido muito difícil de suportar porque não acredito em Deus começou
a parecer trivial. Já não era o terrível dilema que parecera em comparação
com tudo o resto. As palavras do Louis acerca de uma viagem de regresso –
não adianta – repetiam-se na minha cabeça e eu sentia-me indignada, como
se mudar o que havia acontecido à minha mãe, ou avisá-la para não ir à
procura de um anjo da guarda, fossem as únicas coisas pelas quais valia a
pena voltar. Ele não compreendera o principal, que era o facto de eu
conseguir voltar atrás. Ia ver a minha mãe de novo, estava decidido.
Estaria eu zangada com a Elizabeth? Nem por isso. Eu compreendia-a, e a
compreensão retirava a indignação a tudo. Ela tinha claramente começado a
preocupar-se – tal como falámos naquele dia, por cima da loja – que os
meus regressos causassem muitos danos, se não a ela, então, com muita
probabilidade, a mim. Penso que a sua intenção era limitar os danos. De
acordo com o Louis, a Elizabeth nunca tivera a certeza de que iria ficar com
o anel, mas sentia que eu precisava de algo que me impedisse de andar a
correr para o passado e voltar como se isso requeresse tão pouco
pensamento e tivesse tão poucas consequências como uma viagem à beira-
mar. Ela tinha razão. Eu admitia-o, agora.
O meu dilema mudara. Eu já não questionava a prudência de voltar ao
passado. Sabia que havia riscos e estava disposta a corrê-los. O meu dilema
agora era, bem, não era tecnicamente um dilema, mas uma preocupação.
Embora estivesse zangada com o Louis, tinha de reconhecer que ele tinha
razão ao dizer que eu não podia fazer nada para impedir que a minha mãe
desaparecesse, não podia mudar esse facto, mas talvez pudesse mudar o
motivo pelo qual ela desaparecera. Eu ia voltar, não havia qualquer dúvida
na minha mente. Ia contar à Jeanie quem era e depois, quer ela acreditasse
em mim ou não, pelo menos não seria eu o motivo do seu desaparecimento.
Ela não iria procurar-me – o seu anjo da guarda –, já não seria culpa minha.
Mesmo quando eu estava prestes a transpor a porta da frente, o meu
telemóvel soou. Uma mensagem do Louis: «Se fosse eu, também voltaria»,
dizia. Eu sorri, retirei com cuidado o anel de noivado antes de entrar em
casa e, de seguida, escondi-o no quarto para ser «encontrado» um pouco
mais tarde. De outro modo, o que diria o Eddie sobre o facto de eu ter
encontrado milagrosamente o anel depois de uma visita à casa do Louis?
*
Eu não queria deixar passar muito tempo antes de entrar na caixa. Mas
desta vez precisava de estar preparada. É provável que perguntem o porquê
de eu ter tanta certeza de que a minha mãe estaria lá quando eu voltasse.
Não tinha; não podia estar certa de quanto tempo teria passado quando
voltasse, pois não parecia haver nenhuma razão em particular para terem
passado seis meses da última vez que fui. Haviam passado uns meses desde
a minha última visita, e passou-me pela cabeça que talvez eu fosse tarde de
mais. Talvez a minha mãe já tivesse morrido. Só havia uma maneira de
descobrir. Sei que devem pensar que isto era uma coisa estúpida de se fazer,
mas uma vez que um amigo está decidido, é melhor estarem do lado dele,
certo? Não podem abandonar-me agora, só porque acham que sou uma
idiota.
O plano era este: seria melhor num fim de semana, e pensei que seria boa
ideia levar a caixa para casa do Louis e «transportar-me» de lá. Dessa
forma, poderíamos pôr a caixa num colchão e rodeá-la de almofadas, como
da última vez. Obviamente, eu não poderia fazer isso lá em casa com o
Eddie lá. Vestiria novamente o fato de esqui, e as luvas e botas também.
Levaria um pequeno estojo de primeiros socorros, analgésicos e enfiaria um
jornal dentro da roupa; parecia um bom adereço para convencer alguém de
que eu vinha do futuro.
Depois o Louis brilhou. Apareceu no departamento de investigação do
trabalho, na terça-feira, e deu-me um abraço no corredor. Não nos
abraçamos muito, mas aquele foi um bom abraço. Abandonei a secretária
sem me preocupar em dizer à minha chefe, e o Louis e eu sentámo-nos na
cantina dos funcionários (mais uma coisa que raramente fazíamos); estava
vazia, porque era muito cedo, e preparei chá para nós. Ele gostou das
minhas ideias e disse que ajudaria, com certeza. Eu não duvidara por um
segundo, ainda que anteriormente tivesse havido tensão entre nós.
O fim de semana a seguir era o mais próximo do dia 5 de novembro e eu e
o Eddie íamos receber amigos, com hambúrgueres, bebidas e fogo de
artifício no jardim das traseiras. Perguntei ao Louis se viria, seria bom tê-lo
lá, de qualquer maneira, mas quando ele apanhasse um táxi para casa,
levaria a caixa com ele (eu dobrá-la-ia, para ser mais fácil de transportar),
para sua casa. Ele prometeu-me guardá-la com a própria vida. Literalmente,
se necessário, disse ele. Eu tinha total confiança nele, mas não queria a
caixa fora da minha vista até ao último minuto. O Louis disse que também
se manteria sóbrio, só porque parecia uma boa ideia.
Decidi também não beber muito.
– Embebedamo-nos noutro dia – disse eu.
Na sexta à noite, haveria a festa com fogo de artifício, depois eu iria a
casa dele no sábado, daria uma desculpa, não importava o quê. Ele ficaria
então em casa, com a caixa no seu ambiente acolchoado, e esperaria que eu
regressasse. Três horas. Se eu voltasse ferida, ele estaria lá para me ajudar.
Estávamos a tentar ser sensatos e organizados, mas havia muito
entusiasmo entre nós, como crianças a planearem um banquete noturno.
– Ontem à noite encomendei-te algo, online – disse ele. – Para levares
para a tua mãe. Vai demorar alguns dias a chegar, mas deve vir a tempo.
– O que é? – perguntei, intrigada.
– Dinheiro antigo – disse ele, com um sorriso presunçoso.
– Dinheiro antigo? – Deixei que as implicações fizessem sentido. – Oh,
meu Deus, que boa ideia. Quanto?
– Tenho cerca de quinhentas libras, foi tudo o que consegui. Achei que
poderia fazer uma grande diferença à tua mãe, e a ti em criança – disse ele.
– Quinhentas libras equivaleria a quanto? – perguntei.
– Cerca de quatro mil – disse ele.
– Isso faria uma grande diferença para nós, Louis.
– Bem, como eu disse, sinceramente, não creio que vá fazer alguma
diferença, porque nunca pareces ter tido esse dinheiro. Mas, no espírito de
não saber que diabo fará mesmo a diferença, pensei que dinheiro seria uma
coisa boa para levar.
– Um pensamento brilhante – disse eu, abanando a cabeça com
admiração. Era bom ser amiga de um fanático dos computadores, eles têm
ótimas ideias. Mas vi-o fazer um esgar.
– O que é? – perguntei.
– Tenho uma ressalvar relativamente a este dinheiro – disse ele. – Um
pedido.
– Continua.
– No caso de conseguires mudar as coisas, Faye, no caso de isto fazer
alguma diferença no resultado, por favor, não te tentes a visitar a Elizabeth
quando voltares, desta vez. Por favor, não vás vê-la, não pagues os patins. –
Ele fez uma pausa. – Sei que pensaste nos riscos, nas consequências, e sei
que pesaste tudo e mesmo assim decidiste ir, dê por onde der. Mas penso
que acharás difícil viver com a culpa se as tuas ações tiverem um efeito
prejudicial na vida da Elizabeth. – Ele suspirou. – Penso que também
acharia difícil viver com isso.
– Prometo, dou-te a garantia absoluta, de que vou manter-me afastada da
Elizabeth. Como sabemos, ela nunca precisou do dinheiro para estar bem.
De nada adiantaria interferir com ela – disse eu.
– Outra coisa – acrescentou, com uma tristeza no rosto que falava de uma
dor ainda por experimentar. – Acho que deves escrever uma carta ao Eddie.
Eu guardo-a e, se for preciso – vi a sua maçã de Adão subir, quando engoliu
em seco –, entrego-lha.
26

N ãosuponho
era um bilhete de suicídio, porque eu não planeava matar-me, mas
que estou a esmiuçar. A carta afetou-me de três formas. A
primeira foi o puro alívio de escrever tudo ao Eddie, por muito louco que
parecesse; fez-me compreender, com uma clareza marcante, como estava
ansiosa para que ele soubesse a verdade sobre a minha vida extraordinária.
Em segundo lugar, era uma oportunidade para lhe dizer tudo o que gostaria
que ele soubesse, caso nunca mais o visse. Na verdade, acabei por perceber
que esta era uma carta que eu já lhe deveria ter escrito, de uma forma ou de
outra: uma carta para um ente querido descobrir em caso de morte, ou
qualquer outro tipo de perda, como uma doença mental; para trazer
conforto, aceitação e uma resposta a todas as perguntas que não sabíamos
ter de fazer. E a terceira era que, ao escrever este bilhete de potencial
despedida, eu estava vivamente ciente do que deixava para trás se o meu
destino fosse nunca mais voltar. Enquanto ponderava sobre o que escrever,
levei o anel de noivado aos lábios, e visualizei o alívio e surpresa no rosto
do Eddie ao relembrar o momento em que lhe disse que o tinha encontrado.
E uma ou duas vezes, enquanto escrevia, caiu uma lágrima na página; olhei
para aquelas saliências salgadas, para ver se ampliavam as palavras por
baixo delas.
Ainda que uma semana parecesse demasiado para ver a minha mãe
novamente, precisava dela para escrever aquela carta. Escrevi sobre quando
eu e o Eddie nos conhecemos, e como as minhas esperanças haviam
crescido, rápidas e fortes como hortelã, e depois da primeira vez que me deu
um beijo. Lembrei-lhe conversas que tivemos e algumas palavras que me
disse de passagem – coisas que ele provavelmente teria esquecido –, mas
que para mim significavam tanto que pensava nelas quase todos os dias.
Contei-lhe os meus desejos para o futuro e o quanto queria trabalhar com
ele para que seguisse o seu chamamento, o impacto que sentia que ele teria
na vida das pessoas, e como eu queria ter o meu papel nisso.
E, depois, a tarefa a que eu estava a fugir: escrevi uma carta para as
minhas filhas.
Queridas Esther e Evie,
Nunca pensei que pudesse amar alguém neste mundo tanto como amo
o vosso pai, até vocês aparecerem. Imaginem só! Eu não sabia sequer
ser capaz de tanto amor. Vocês trouxeram-me alegria a cada momento.
São o melhor da minha vida, de longe. Amo-vos às duas do fundo do
coração ou, como o pai disse uma vez, «O meu amor por vocês é maior
do que o meu coração, é maior até do que o meu rabo, que é maior do
que o meu coração.»
Embora eu não esteja convosco, quero ser parte da vossa vida; e,
porque não posso partilhar os meus conselhos ou sabedoria
pessoalmente convosco, quando precisarem, há algumas coisas que vos
quero dizer, pois acho que são importantes e podem ajudar.
Sejam sempre vocês mesmas, porque são perfeitas, mesmo quando
não são.
À medida que forem envelhecendo, farão coisas maravilhosas e as
pessoas dirão: «A vossa mãe teria ficado orgulhosa.» E eu quero que
entendam como isso é verdade. Estou orgulhosa de vocês, e não apenas
quando fazem coisas maravilhosas, mas quando fazem coisas boas, do
dia a dia, e mesmo quando não fazem absolutamente nada. Mas,
algumas vezes, cometerão erros e farão coisas de que não se vão
orgulhar. Quando o fizerem, façam por melhorar, e eu ficarei orgulhosa
quando fizerem o que podem para emendar as coisas.
Esther e Evie, sejam amáveis. Sei que são ambas naturalmente muito
bondosas, mas lembrem-se de ter consciência da vossa bondade. Com
isto quero dizer que, por vezes, não se devem poupar a esforços para
serem bondosas, por pouco que seja. Em adulta, encontrei um homem
que conheci na escola, em menino. Todos costumavam fazer pouco dele
e chamar-lhe nomes. E, quando eu era mais velha, disse-lhe que
lamentava muito por isso. Ele respondeu-me que eu não devia
preocupar-me, porque era uma das boas; disse que eu apenas o
ignorara. Isso perturba-me muito. Eu gostaria de ter feito mais, gostaria
de ter sorrido, pelo menos. Aprendi com ele e agora sorrio mais às
pessoas, porque nunca se sabe, pode ser a coisa mais amável que lhes
aconteceu nesse dia. Mas sejam sensatas. Seja educadas com os
estranhos, mas lembrem-se de se manterem seguras.
Há muitas árvores por aí, garantam que sobem a algumas delas.
Subam a todas as árvores que quiserem. Podem partir um ou dois ossos,
mas às vezes é melhor partir um osso do que deixar de subir a uma
árvore.
Façam experiências com o cabelo. Se não gostarem, ele voltará a
crescer.
Leiam muito e desfrutem. Ler é muito bom, por muitos motivos.
Tragam sempre convosco um livro, porque assim nunca ficarão
entediadas. E, embora devam casar com quem quiserem, desde que eles
vos amem e vocês a eles, eu de facto preferiria que se apaixonassem por
alguém que leia.
Acho que para mim basta, embora ao ler isto me pergunte se se
preocuparão que eu vos ame mais a vocês do que ao vosso pai. Mas não
devem preocupar-se. Desde que apareceram na minha vida, amo-o mais
ainda, em parte porque ele vos tornou possíveis, mas também porque ele
vos ama e mantém seguras, o que o torna mais precioso do que alguma
vez foi.
Sei que será difícil para vocês lerem esta carta e que ela vos trará
tanta tristeza como felicidade, porque sei o que é perder uma mãe. Eu
também perdi a minha. Portanto, o meu último conselho é este: não
vivam muito no passado. A vida está à vossa frente e, se olharem para
trás, não serão capazes de ver para onde estão a ir.
Saibam que vos amo sempre e que estou nos vossos corações para
sempre.
Mãe
Não foi uma carta fácil de escrever e fez-me hesitar, admito, em especial
a última parte. Saber que ignorava o conselho que dera às minhas filhas – e
provavelmente o conselho que a minha mãe me daria a mim – fez-me
pensar, ainda que não me fizesse mudar de ideias. Nunca ignorem os
conselhos que dão aos outros. Sobretudo se sabem que têm razão.
*
E agora somos só nós, eu e vocês; estamos quase a par de tudo e, caso não
saibam mais nada de mim, aqui estão umas algumas palavras que preciso de
vos dizer, meus amigos:
Na vossa vida são um deus, e vou tentar explicar como o Eddie o fez, uma
vez. Quando estão a dormir e a sonhar, vocês são um deus, porque são tudo
e todos. Se sonham que são um dos passageiros de um avião que se
despenha, lembrem-se de que são também o piloto, e não são um, mas todos
os passageiros. Até são o avião, porque esse sonho está na vossa cabeça, e
vocês fazem com que tudo aconteça. Nos sonhos, vocês são como um deus.
Na vida real não é bem assim, mas pode haver toques de Deus em tudo o
que fazem – aquilo de que cuidam, o que dizem e fazem – que influencie os
outros. Deus está no sorriso de um bebé, mas continua a ser apenas o sorriso
de um bebé e podem chamar-lhe o que quiserem. Chamem a Deus o que
quiserem e a fé seguir-se-á.
Sei que estou aqui e vocês aí, não há grande distância entre nós, apenas a
distância entre as minhas palavras nesta página e os vossos olhos; uns trinta
centímetros. Mas essa distância pode ser recalculada, dependendo do vosso
ponto de vista. Podemos estar em planetas diferentes e podemos existir em
tempos diferentes, não importa, continuam a ser apenas vocês e eu. E quero
que percebam que acredito em vocês com todo o coração. Nunca duvidem
disso. E quando estiverem prontos, quando chegar o momento certo,
acreditarão em mim.
*
Então aqui estamos, cartas escritas e, no vosso caso, lidas. Planos feitos,
fato de esqui e outras roupas prontas na casa do Louis, com o jornal e o
estojo de primeiros socorros; dinheiro antigo a caminho. Ah, é claro, pensei
um pouco no que gostaria de dizer à minha mãe quando lá chegar. Entre
vocês e eu, é um adeus engraçado, porque poderão ver se vem algo depois
desta página... mas, no momento em que escrevo, não faço ideia se as
páginas que se seguem estão em branco ou não. Se estiverem, podem
assumir que nunca consegui voltar.
27

B em, ao que parece ainda cá


surpreendidos. Mas ainda vos
estou e suponho que não fiquem
posso surpreender. Quase o posso
garantir.
A última vez que vos pus a par de tudo foi na semana em que escrevi a
carta de despedida ao Eddie. Como é inevitável, fiquei a pensar que não
tinha dito o suficiente, mas esperava de todo o coração que ele não
precisasse de a ler ou, pelo menos, não por muito tempo. E era melhor do
que nada. Muito melhor.
Tínhamos planeado receber uns amigos na sexta para os festejos do 5 de
novembro e, na noite de quinta, foi divertido porque fomos os quatro ao
supermercado comprar toda a comida e as bebidas. Comprámos
hambúrgueres, cachorros-quentes e batatas para assar, e eu trouxe feijão,
ananás aos pedaços e molho de churrasco, para fazer o meu famoso feijão
de churrasco doce. Se vos parece repugnante, estão enganados. Comprei
curgetes e beringelas para fazer um chili vegetariano, e grandes embalagens
de natas azedas e pimentos jalapenõs; abacates, maionese e limões, para
fazer guacamole. O Eddie trouxe as cervejas e o vinho, gim e tónica, e as
meninas perguntaram se podiam encarregar-se de uma mesa de doces, como
uma que tinham visto num copo d’água no ano anterior. Para surpresa delas,
eu e o Eddie dissemos que sim e elas perderam a cabeça no corredor dos
doces.
Lembrei-me de uma vez em que passámos o dia num parque temático e
não me recordava de estarmos mais felizes ou de nos divertimos tanto como
naquela noite no supermercado, enquanto nos preparávamos para a nossa
festa do fogo de artifício. Ou talvez esteja a ver aquela noite com óculos
cor-de-rosa, à luz do que aconteceu pouco depois. Eu e o Eddie tínhamos de
trabalhar no dia seguinte e as meninas tinham escola, portanto na quinta
ficámos acordados até tarde a fazer a maior parte dos preparativos; o Eddie
e eu bebemos vinho e rimo-nos, e também fizemos amor naquela noite.
Lembro-me do desejo que senti, e da sensação de total desânimo só de
imaginar que podia ser última vez. Fui dormir com a cabeça a oscilar entre a
esperança e o medo.
Já tínhamos o fogo de artifício. O Eddie comprara-o na semana anterior e
guardara-o em segurança no nosso barracão. Os caixotes do lixo e o fogo de
artifício são domínio do Eddie. Quer dizer, ele faz outras coisas, mas essas
duas tarefas são definitivamente da responsabilidade dele. O Eddie levava o
ritual do fogo de artifício muito a sério e falara num tom sério em voltar
para casa um pouco mais cedo na sexta-feira, para fixar a roda de Catarina
de forma segura na cerca, e preparar baldes de areia onde meter os foguetes,
enquanto ainda tinha luz suficiente para o fazer. O marido da Clem, o Dave,
também vinha mais cedo «para ajudar», o que também significava «para
beber.» Adorávamos a Noite da Fogueira do 5 de novembro, e adorávamos
o Halloween e a Páscoa, porque eram divertidos, mas envolviam muito
pouca pressão e preparativos, em comparação com o Natal.
A Páscoa iria tornar-se uma experiência muito diferente quando o Eddie
fosse vigário. Mas isso já não me preocupava. Eu planeava desfrutar de
tudo, mas a Igreja nunca interferiria com a nossa noite da fogueira.
O Eddie ficou surpreendido, mas contente, creio, ao saber que eu
convidara o Louis. Os convidados habituais eram a Clem e a Cassie, os
maridos e filhos. Geralmente vinham alguns colegas do Eddie da empresa
do ramo financeiro, as mulheres e filhos e, desta vez, o Eddie também havia
convidado um homem que conhecera na formação, que estava um pouco
mais avançado e fora ordenado como diácono, e a mulher. Eu e o Louis
decidimos apanhar um táxi para minha casa depois do trabalho, em vez do
metro, e nos dias que antecederam a festa não conseguíamos parar de falar
no que iria acontecer quando eu fosse a casa dele e voltasse atrás no tempo.
– É mais fácil para mim – disse ele. – Porque quando tu entrares na caixa,
só tenho de esperar três horas para descobrir como correu. Mas, para ti,
dependendo de quanto tempo ficares lá, podem passar-se dias até voltares e
me contares o que aconteceu. Pode demorar semanas.
– Mas eu vou saber o que está a acontecer antes de ti, porque estarei lá,
tontinho – disse eu, dando-lhe uma cotovelada amigável.
– Sim, mas não vais saber o que aconteceu no teu segundo dia lá, por
exemplo, até teres estado lá vinte e quatro horas. Enquanto que eu saberei a
história toda em menos de quatro.
– Sim – disse eu –, tens razão.
Tivemos de ficar até tarde no trabalho, o que na verdade não queríamos
fazer, porque o dinheiro antigo que o Louis encomendara estava a caminho.
No início, esperava-se que chegasse quinta, depois sexta de manhã. Agora,
prometiam que estaria na receção do RNIB às seis. Sentámo-nos então na
portaria, eu a sorrir como quem pede desculpa à rececionista, que queria sair
e fechar, e o Louis constantemente a tatear o relógio para ver as horas e a
manifestar impaciência.
A área da receção no RNIB é garrida: amarelos brilhantes e roxos
carregados, divididos por linhas pronunciadas que se justapõem num padrão
geométrico aparentemente aleatório. Não há nada de aleatório naquilo, de
todo, é em proveito de pessoas com visão parcial e ajuda-as a percorrer o
edifício de forma independente.
A rececionista emitiu um estalido, como que para perguntar quanto tempo
faltava, e felizmente, nesse preciso instante, um mensageiro vestido de
cabedal, com um capacete de mota, entrou com uma caixa. Eu fiz um esgar,
perguntando-me como iria transportar algo tão grande para o passado.
Assinámos, saímos e apanhamos um táxi de imediato; havia sempre muitos
por ali, a apanhar executivos à sexta à noite, cegos e embriagados.
– Como diabo vou levar isto para casa da minha mãe? – perguntei ao
Louis na parte de trás do táxi. – Não consigo transportar uma caixa, de
forma nenhuma, e não posso enfiá-lo no fato de esqui.
– Depois de vestires o fato, enfiamos o máximo de notas soltas que
conseguirmos nas pernas e nos braços e à volta da cintura. Quando o tirares,
vai cair o dinheiro todo, mas como, de qualquer forma, tencionas explicar
tudo à tua mãe, acho que a estranheza não vai importar. Além disso, para ti
é um acolchoamento extra.
– Está bem – disse eu. – E talvez haja aqui muito acondicionamento. –
Girei a caixa nas mãos. – Vamos deixá-la selada; podes levá-la para casa
com a caixa da bola saltitona, logo à noite.
– Não vou ficar até tarde – disse o Louis. – Estou ansioso por levar a
caixa e o dinheiro para casa em segurança. Também me agrada a festa, mas
neste momento não é a prioridade.
– Percebo o que queres dizer, mas é estranho – disse eu –, porque para
mim esta festa é do mais prioritário. – Pus a mão na dele e apertei-a. – Sei
que vou voltar, mas tenho de ser realista. Talvez não volte. Esta pode ser a
última vez que vejo os meus amigos e família.
– A última ceia – disse o Louis.
– Oh, céus, não digas isso – disse eu, beliscando-lhe o braço, algo que ele
detesta (toda a gente detesta, aliás). – Eu sei que és um Tomé cético, ou pelo
menos eras. Não és o Judas, pois não? Estão aqui trinta moedas de prata? –
perguntei, agitando a caixa, que não fez barulho nenhum, e rindo.
– Nem brinques. Nem quero pensar na ideia de não voltares. Quero que
saibas uma coisa, Faye: és a minha melhor amiga. Mesmo que eu não seja o
teu, e nem por um momento penso que sou. Mas tu és a minha, e não
suporto a ideia de te perder.
Deitei a minha cabeça no ombro dele e fechei os olhos.
– Tu também és o meu melhor amigo – disse eu. – Sabes tanto sobre mim.
Quem mais me ajudaria com tudo isto? Qualquer outra pessoa teria
chamado os homens da bata branca.
Ficámos em silêncio o resto da viagem, eu com a cabeça ainda no ombro
dele, e senti uma lágrima, uma lágrima do Louis, a cair no cimo da minha
cabeça.
*
Assim que chegámos à minha porta da frente, sussurrei «Espera aqui» ao
Louis e deixei-o na entrada bem iluminada, enquanto subi ao andar de cima
para esconder a caixa do dinheiro.
Quando lhe dei o braço e o levei para as traseiras da casa, ouvimos vozes
vindas da cozinha e também de mais além. As pessoas conviviam no jardim.
Estava frio, e deixámo-nos ficar de casaco, chapéu e luvas, prevendo estar
lá fora.
A Cassie e a Clem estavam na cozinha, os copos de vinho já cheios.
– Hoje é o Andy que conduz – disse a Cassie, erguendo o copo com
alegria. – Vou embebedar-me tanto!
– E nós vamos apanhar um táxi, por isso também me vou embebedar –
disse a Clem. – Quem é o teu amigo?
– É o Louis, trabalhamos juntos – disse eu. O Louis estendeu a mão com
firmeza. Elas avançaram para a apertar.
– Prazer em conhecer-te – disseram todos, e senti-me um pouco mal pelo
Louis. É difícil ir a uma festa quando só se conhece o anfitrião. Perguntei-
me se, por ser invisual, seria melhor ou pior. Talvez fosse mais fácil; como
uma criança que tapa os olhos, ele podia fingir que não estava ali ninguém.
– Onde estão todos? – perguntei. Ouvi o som de gargalhadas e vozes
graves de homem, e o ocasional guincho do riso das crianças.
– Os homens estão no jardim, a bater no peito e a debater coisas de
homens, como fogueiras e carne. As crianças estão a empanturrar-se na
mesa de doces na sala de estar, portanto oscilam entre vomitar e andar a
correr como diabos da Tasmânia.
– Boa – disse eu, servindo um gim tónico, mais tónico do que gim. – Não
estão cá um diácono e a mulher? – acrescentei.
– Também estão no jardim, com o Eddie – disse a Cassie.
– Ele é como um cão peludo e a mulher parece um ratinho – disse a Clem.
– É amoroso, é como se vocês tivessem convidado animais de estimação
para a festa.
– Vou levar o Louis a conhecer o Eddie e arranjar-lhe uma cerveja – disse
eu, oferecendo o cotovelo ao Louis e conduzindo-o para fora das portas de
vidro que separam o cozinha do terraço. Nas festas, guardávamos sempre as
cervejas num grande balde de água gelada e, quando o Eddie me viu, veio
logo, inclinando-se para baixo a meio do caminho para tirar uma cerveja do
balde.
– Deves ser o Louis – disse ele, tomando-lhe a mão e apertando-a
brevemente. – Cerveja?
– Seria ótimo – disse o Louis. Houve um silvo quando o Eddie a abriu e
pôs a garrafa gelada na mão do Louis. – Então, o que se passa aqui? –
perguntou o Louis, e, sem hesitação, o Eddie descreveu com eficiência o
nosso jardim das traseiras.
– Estamos no terraço de madeira e é só descer uns passos para a relva. O
jardim tem cerca de trinta passos largos daqui até à outra ponta. Temos
algumas luzes de exterior e, a cerca de dez passos, montámos uma fogueira.
– Não sabia que ias montar uma fogueira – disse eu. – Essa é novidade. É
enorme!
– O Dave já aqui estava quando cheguei a casa hoje, tinha todas estas
acendalhas e a madeira preparadas. Disse que tinha lido sobre como fazer a
fogueira perfeita.
– Chegou cá antes de ti? – disse eu.
– Está entediado no trabalho, muita burocracia – disse o Eddie, com
discrição. – Acho que queria sujar as mãos.
A fogueira ainda não estava acesa, mas estava tudo bem preparado.
Parecia que tinham sido usados pedaços mais pequenos de acendalhas para
fazer uma estrutura central, e depois pedaços mais longos de madeira,
usados para fazer uma espécie de tipi sobre ela. Este padrão repetia-se, e o
tipi exterior parecia ter sido feito com ramos secos com dois metros de
comprimento. Entre as várias camadas estava algo que parecia papel
amassado. Era de facto uma estrutura impressionante, e mais alta do que
qualquer fogueira de jardim comum que eu já vira.
– Onde é que ele arranjou aquela madeira toda? – perguntei.
– Pelos vistos, com construtores – disse o Eddie, olhando para a fogueira
e dando um gole na cerveja.
– Ele tem muito tempo livre, realmente – disse eu, a rir. – Pobre Dave.
O Eddie pediu licença e eu e o Louis seguimo-lo até onde estava o grupo.
Fui apresentada ao diácono e à mulher, e o Andy deu-me um abraço seguido
por uma expressão teatral e triste, enquanto segurava uma lata de Coca-
Cola.
– Oh, lamento muito que tenhas de conduzir – disse eu.
– E aquela – disse ele, apontando na direção geral da casa e, portanto, da
Cassie –, não é uma visão bonita quando está de ressaca.
Reinava a boa disposição e eu estava a divertir-me. Permaneci com o
Louis sempre apoiado no meu braço. O resto do nosso pequeno grupo
conversava e brincava como se a vida fosse naquele momento a mesma que
no dia anterior, e a mesma que seria no dia seguinte, mas entre mim e o
Louis existia um segredo, e eu sentia a pele quase a vibrar. Nós sabíamos
que não era assim.
Fechei os olhos e respirei o ar frio, apreciando-o. Senti o cheiro acolhedor
a queimado e abri os olhos.
– Já a acendeste? – disse eu na direção do Dave, o rei da fogueira,
perguntando-me se o cheiro vinha do nosso jardim ou de outro sítio.
– Sim – disse o Dave. – Já está a arder.
Eu e o Louis aproximámo-nos da fogueira, parando a alguns metros de
distância. Olhei para o centro e vi as chamas irregulares a lamber a lenha,
como uma gata a lamber a cabeça do seu gatinho. Ouvi pequenos estalidos,
o crepitar enquanto ela ia ganhando vida gradualmente, de dentro para fora.
– Já consegues sentir algum calor dali? – perguntei ao Louis.
– Um pouco, nas pernas – disse ele. Virou a cabeça para o lado, de forma
a que o ouvido se voltasse para a fogueira. – Parece que está ali alguém a
amarrotar papel de celofane.
Ouviu-se um estouro alto, ou estalido, e fiquei tensa. Estava nervosa com
aquele material incandescente que o fogo cuspia. Semicerrei os olhos,
prevendo que algo me fosse atingir no olho. Faço o mesmo quando frito
bacon.
– Estás bem? – perguntou o Louis, em resposta ao meu aperto cada vez
mais forte.
– Sim – respondi.
– Que aspeto tem? – perguntou ele.
Parei e aclarei a garganta. O Louis não me pedia muitas vezes para o
fazer, pois é muito difícil. Era inútil usar cores para descrever o que quer
que fosse, porque para ele não significam nada, mas as cores são muito
importantes para descrever o fogo. Eu queria dizer âmbar, laranja, vermelho
e dourado, mas afastei esses adjetivos, como se fossem objetos ao longo da
prateleira da lareira, e tentei substituí-los por algo relevante que se pudesse
saborear, tocar ou cheirar.
– Imagina um dragão, por fora pele fria e dura, parece morto, mas o
coração está quente. Um tipo de calor vivo, um calor que sentirias se te
atirassem para um arbusto com espinhos. Tão quente que, de fora,
consegues vê-lo bem dentro do dragão. Este fogo é um animal que
lentamente regressa à vida a partir de dentro. É a coisa mais viva que podes
imaginar. E o calor do seu âmago é tão poderoso que fará com que toda a
criatura se mova; ouvi-la-ás rugir e ela tornar-se-á furiosa, e desejará tanto
poder vaguear e dominar o mundo, que se consumirá a si mesma, de
frustração. E mais tarde, esta noite, ficará plana e sem inspiração, mas o
calor no seu centro será a última coisa a morrer; o seu coração continuará a
bater e, no fundo, terá memórias de um tempo em que conseguiria destruir-
te. Se nessa altura lhe tocares, ele ainda ferirá.
Parei, bastante impressionada comigo mesma. Mas depois senti o Louis a
tremer e incomodou-me que pudesse tê-lo perturbado, ter-lhe recordado o
que ele estava a perder, ao descrever uma coisa de tão violenta beleza.
Quando olhei melhor, contudo, percebi que ele estava a tentar conter o riso.
– Safado – disse eu, e dei-lhe um murro no braço, altura em que ele teve
um ataque de riso.
Deixei o olhar pairar sobre a fogueira e não pude deixar de ficar
impressionada com a obra. Era uma pena deixá-la arder, mas as labaredas já
estavam agarradas e a queimar o que era feito para isso. Ao nível dos olhos,
reparei nos pormenores de um recorte de jornal, algo sobre alguém a
angariar fundos para um hospital pediátrico, e um anúncio a um centro de
jardinagem local, que parecia familiar. A nossa reciclagem devia ter sido
assaltada para construir esta torre. O meu olhar pousou por momentos na
extremidade de um velho bloco de notas, que eu enchera com listas de
compras e outros lembretes para mim mesma, e senti uma pontada de
tristeza ao saber que ele ia arder. Sempre fui um pouco sentimental quanto a
tudo o que escrevo, até listas de compras.
O meu olhar vagueou para cima, até ao ponto máximo da fogueira, onde
estava mais escuro, não iluminado pelas luzes da casa, emoldurado pelo céu
sombrio e ainda por se render ao brilho do ardente coração do fogo. Tentei
perceber o porquê de o topo não estar em ponta, mas em vez disso parecer
quadrado. Vi que algo se empoleirava ali, num ângulo torto, algo que
coroava a estrutura como um chapéu mal ajustado. De repente, lembrei-me
de um dia de calor do último verão, em que o Eddie pediu emprestado um
dos bonés de basebol das meninas para pôr enquanto cortava a relva, que
lhe ficava ridiculamente pequeno na cabeça. Fosse o que fosse ali em cima,
não lhe invejava o destino; como o Guy Fawkes, estava apenas à espera de
arder.
Entrevia algumas letras, de pernas para o ar, e dei por mim a lê-las, uma
de cada vez, a tentar perceber que palavra estava escrita no topo da pilha. O
brilho bruxuleante por baixo iluminou por momentos as letras, e depois
lançou-as novamente para a escuridão. Foi então que percebi, como uma
faca no estômago.
No topo, como uma coroa na fogueira, estava a caixa da bola saltitona.
28

O que antes parecia um suave crepitar, era agora um carro a ser esmagado.
Ultrapassei esse som com um grito que surgiu de algures, lá de dentro.
Um rugido de leão, ou aquele grito primitivo no parto que diz que uma nova
vida está a caminho. Ou a morte. Ou o medo de nunca mais ver alguém que
se ama.
Soltei o braço do Louis e corri para o fogo, baloiçando na extremidade,
com os pés a tocar nas brasas e as pontas dos sapatos a fumegar. O terror
dominou-me por completo quando os meus olhos, sem pestanejar, se
fixaram na caixa no cimo do fogo. Na minha cabeça, claro, podia muito
bem estar ali a minha mãe, as chamas debaixo dela, a sustentá-la e a tentar
puxá-la, como os braços ardentes dos condenados a roçar nas chaves do
carcereiro através das grades das celas. Gritei pelo Eddie como se uma das
nossas filhas estivesse naquele fogo. E ele veio a correr.
Mas, antes de ele chegar até mim, tentei aproximar-me da caixa; inclinei-
me para a frente e apoiei as mãos na madeira exterior da fogueira. A
estrutura aguentou o meu peso, embora eu tivesse perturbado um frenesim
de faúlhas: uma tempestade elétrica de neve laranja. Milhares, milhões de
pequenos fragmentos em chamas voaram para cima, prometendo algo
doloroso. Mas, por ora, nenhuma chama conseguiria tocar-me.
Havia uma beleza extraordinária em estar demasiado perto do fogo. Era
hipnotizante de uma forma que só as coisas proibidas sabem ser, como
examinar a boca do dragão.
Enquanto me agarrava à madeira, espreitei para baixo e foi como olhar
para o inferno através de uma fenda no soalho. O calor no meu rosto era
como se se abrisse a porta de um forno. Olhei para cima, para a caixa, via-a
enegrecer à luz das chamas crescentes, carbonizando em alguns pontos; vi a
superfície mais próxima do fogo a borbulhar devagar e enchi-me de medo.
É bizarro aquilo de que me lembrei no momento seguinte: uma cena de
um filme, em que o bom e o mau avistam o objeto do seu desejo ao mesmo
tempo: pode ser uma chave – provavelmente uma arma – e depois um olhar
furtivo um para o outro. Correm os dois ao mesmo tempo, cada um
esperando chegar lá antes do outro. Foi assim comigo e as chamas. O meu
eu físico recuou perante e ideia de apoiar o peso na estrutura por baixo de
mim. Poderia estar no gelo, na parte mais fina de um lago gelado, poderia
estar no torrão menos firme de terra, na extremidade de uma falésia em
derrocada, e teria sentido o mesmo. A pressão necessária para correr era a
pressão exata que iria levar à minha perdição, e era agora ou nunca. Eu
sentia as chamas a lamber-me as mãos, queimando através das luvas.
É provável que tudo isto tenha levado quase dez segundos, de modo que,
antes de eu me lançar para o cimo da fogueira, antes de forçar o pé direito
para baixo, para dar impulso suficiente para me atirar para a superfície
instável, antes de eu conseguir matar-me ou marcar-me com cicatrizes para
o resto da vida, o Eddie chegou lá.
Ele voou para a fogueira atrás de mim, agarrando-me pela cintura e
arremessando-nos outra vez para o chão. Eu estava sem fôlego, mas segura
no seu abraço apertado, embora só conseguisse pensar na caixa em chamas
no cimo da fogueira. Lutei contra o seu aperto, desesperada para me
libertar, mas ele agarrou-me com tanta força que eu mal conseguia mexer-
me.
– Larga-me – disse eu. As minhas palavras eram como vespas, mordazes
e insistentes. Mas ele não o faria, claro. Mordi-lhe o ombro e gritei: – Tira a
caixa da fogueira. Preciso dela!
– De que diabo falas? – exclamou o Eddie, a gritar comigo e sem afrouxar
nem um pouco o aperto. Rolámos para a relva húmida, à medida que eu
envolvia todo o meu peso numa tentativa de me afastar.
– Vai buscar aquela caixa, imploro-te.
– Deves estar a brincar comigo – disse o Eddie.
– Tira-a antes que não seja nada senão cinzas – disse eu, com uma
premência serena. – Aquela caixa é a minha vida, a minha infância, a minha
mãe. Se realmente me amas, faz isso.
Ele empurrou-me, bradando:
– Não te mexas – A voz estava tão zangada que eu não saberia que era
ele, se não o tivesse visto. Deitei-me na relva, a tentar desesperadamente
conservar a caixa em segurança, mantendo-a na minha linha de visão, e vi o
Eddie a pegar num pedaço de madeira comprido da estrutura do tipi e tentar
dar uma pancada na caixa, mal lhe tocando. Tentou novamente e, ainda sem
atingir o alvo, lançou o pau como um dardo, falhando o valioso objeto do
meu desejo. Por fim, arrancou do chão a estaca da corda da roupa e tirou
por completo a caixa do fogo; ela voou um pouco pelo ar, rolou
letargicamente ao longo da relva, e depois deteve-se, pelo que eu conseguia
ver, mais ou menos intacta e sem arder. O Eddie aproximou-se então de
mim como um homem de Neandertal, arrebatou-me qual bombeiro e
caminhou com firmeza pelo jardim em direção a casa, praguejando com
fúria a cada passo. Eu saltitava penosamente no ombro dele, como uma
criança mal comportada, e observava os convidados a observarem-nos,
como se fôssemos desconhecidos num documentário bizarro qualquer do
Canal 4. Mas eu não me importava. Nada importava, de todo, nada senão a
caixa.
– Vai buscar a caixa, Louis – disse eu. – Guarda-a em segurança.
*
O Eddie subiu com passos pesados para a casa de banho e largou-me sem
cerimónias. Puxou a tampo do ralo de tal forma que quase partiu a corrente,
e encheu o lavatório de água fria; depois, puxou-me pelo cotovelo e meteu-
me as mãos na água, com luvas e tudo. Cada movimento seu era tão
agressivo que ameaçava causar danos. Eu não tinha medo do Eddie, tinha
mais medo do que eu própria havia feito para ele ficar assim.
As mãos tremiam-lhe ao remover-me as luvas com cuidado, temendo que
parte da minha pele pudesse ter-se queimado e colado ao tecido. Por fim, a
Cassie espreitou pela porta da casa de banho e observou com prudência o
tratamento zangado e silencioso que ali tinha lugar.
– Vai toda a gente embora – disse ela, direcionando a conversa para o
Eddie, agora que provavelmente me consideravam fora de mim. – A Clem
vai levar o Louis a casa.
– Ele tem a caixa? – perguntei, soando, até a mim, cada vez mais como a
louca que parecia ser.
O Eddie tirou então a luva, como se fosse um penso; a sua forma de
atacar os meus despropósitos. Felizmente, a pele por baixo não estava muito
mal. Ferida nalguns sítios, sensível.
– Sim, ele tem uma caixa com ele. – Ela lançou-me um olhar,
desconcertada, mas depois olhou de modo mais significativo para o Eddie, a
comunicar o quê? Que eu agora habitava um mundo diferente para eles,
porque de repente existia fora do reino de compreensão deles.
– Haverá um motivo para isto – disse a Cassie ao Eddie, pondo a mão no
antebraço dele.
Eu era invisível.
– Que razão pode haver para ela quase se matar... por nada? – disse o
Eddie.
– Eu tenho um motivo – disse eu, como que a propósito.
– Então qual é? – disse ele. Cuspiu as palavras, a virar-se com fúria e a
fazer a água transbordar pela borda do lavatório. Trespassava-me com um
olhar cheio de aversão, como se eu fosse uma desconhecida que quase lhe
matou a mulher.
Vi que residia ali o poder do amor dele. A fúria a erguer-se do medo de
ficar sem mim. A medida do amor era a perda; ele vislumbrara essa perda e
atacara-a. E a minha desculpa para me magoar? Uma caixa de cartão.
Quando eu lhe contasse a verdade, como sabia que tinha de fazer...
Apercebi-me de que, quer ele acreditasse em mim ou não, poderia pelo
menos sentir-se reconfortado pelo facto de eu não o ter feito, como ele
disse, por nada.
– Vou contar-te tudo – disse eu. Os meus joelhos cederam e o cansaço
pesou-me como mantos espessos a cair de cima.
– Toma conta dela – disse a Cassie. – Queres que fique com as meninas
durante uns dias?
Ouvi o Eddie dizer que sim e tentar organizar pijamas e coisas para passar
a noite, mas a Cassie disse que já tinha tudo sob controlo. Entreguei o corpo
ao meu marido, que me transportou para o quarto e me despiu – como fazia
quando eu estava embriagada de mais para o fazer sozinha. Senti as mãos
doloridas a serem cobertas por ligaduras macias. Encostei o imaculado
tecido medicinal aos lábios e tentei olhar o Eddie nos olhos, mas ele não me
retribuiu o olhar. Levantou um copo na minha direção e pôs-me uns
comprimidos na boca – analgésicos, suponho –, e caí num sono irregular.
A certa altura, acordei e vi o Eddie sentado na beira da cama, com a
cabeça entre as mãos, a chorar. Toquei-lhe nas costas, mas ele não se mexeu
nem parou de soluçar, e eu caí de novo no esquecimento.
Lembro-me de ter sido despertada com água levada aos lábios e a ouvir o
murmúrio de algo como uma oração, ou talvez uma simples palavra de
amor ou consolo. Era tudo igual, percebi.
Não sabia quanto tempo tinha dormido quando recuperei a consciência. A
luz do dia manchava o quarto com um brilho calmo e doíam-me os
músculos, por estar na mesma posição há demasiado tempo. Desidratada,
peguei num copo da mesa de cabeceira, segurando-o de forma desastrada
entre as duas mãos ligadas, e depois voltei a pousá-lo com cuidado. A
garganta doía-me e apetecia-me um pouco de leite; o estômago meu
roncava como um berlinde dentro de uma lata vazia, mas eu não me
imaginava a engolir comida. Revirei-me, recuperando o fôlego de repente,
ao ver o Eddie a dormir num dos colchões das meninas. Ele arrastara-o e
pousara-o em frente à porta do nosso quarto. Para me impedir de escapar.
O meu querido marido tinha medo do que eu poderia fazer.
– Eddie – murmurei, numa voz rouca. Estava danificada pela falta de uso,
ou talvez pelo fumo. Ele mexeu-se e abriu os olhos, olhando para mim
como um animal ferido. – Desculpa – murmurei novamente, e tentei
pigarrear.
*
De calções e T-shirt, com o cabelo em desalinho e olhos inchados, o
Eddie sentou-se na beira da cama, as mãos no colo.
– Quero saber tudo – disse ele, a voz como o som de um avião distante
num dia de verão. – Mas o tipo de «tudo» que eu quero é este – continuou
ele. – Eu quero a verdade, Faye. – O seu olhar fixava o meu e havia nele
bondade, incerteza e amor. O Eddie abanou a cabeça com tristeza. – Sempre
dissemos que não mentiríamos um ao outro e eu nunca quebrei essa
promessa. Mas, por algum motivo, tu fizeste-o. – Abri a boca para falar,
mas ele levantou um dedo para me impedir. – Ouve-me – disse ele. – Talvez
tenha sido mais fácil para mim do que para ti. Nunca te quis mentir, nunca
precisei. Por isso não o fiz. Mas não mereço uma medalha por não mentir, é
assim que deve ser, não se deve esperar nada menos que isso. Tu, no
entanto, andas a mentir-me há muito tempo e acho que tenho sido bastante
paciente. Tentei confiar em ti, e rezei para que as tuas mentiras fossem por
amor, e não por andares a enganar-me. Mas chegou a hora de me contares o
que está a acontecer. – Ele tocou-me no rosto, onde os arranhões
cicatrizavam, e passou delicadamente os dedos pelos hematomas dos
braços, em vários tons de amarelo, azul e castanho. – Quero saber como
arranjaste isto, quero saber porque te atiraste para a fogueira. Quero saber
porque é que aquela maldita caixa significa tanto para ti. Quero saber tudo.
– E eu vou contar-te tudo – disse eu, a voz rouca e baixa.
– Fico feliz por saber disso.
– Mas vai ser difícil de ouvir – disse eu.
– Quão mau pode ser? – Ele mostrou um sorrido débil, como se já
soubesse que seria algo terrível.
– Podes pensar que estou louca – disse eu, com as lágrimas salgadas já a
ameaçar brotar.
– Tarde de mais, querida, já cheguei aí – disse ele, beijando-me os dedos.
– Falaste com o Louis? – perguntei.
– Sim. Ele tem a tua caixa – disse o Eddie com um suspiro, como se a
caixa fosse um antigo namorado cujo nome estava cansado de ouvir. – Ele
diz que a guarda com todo o cuidado e que não está muito danificada.
Também disse que tinhas algo dele, que puseste num lugar seguro.
Perguntou se poderia reavê-lo, mas eu não sei onde está.
Ele falava da caixa de dinheiro antigo.
– No fundo do armário, uma caixa de cartão castanha.
– Espero que expliques tudo isto – disse o Eddie.
Eu assenti.
– Podes dizer ao Louis para me vir ver amanhã?
– Está bem – disse ele. – E quando conversarmos?
Afastei-lhe do rosto uma madeixa de cabelo castanho e invadiu-me logo
uma enorme sensação de alívio.
Pensei em como a crença do Eddie em Deus se resumia a fé e confiança,
uma certeza de algo que era invisível e, apesar de tudo, inabalável. Pensei
no que me fez acreditar no facto de eu ter viajado no tempo para ver a
minha mãe, e em como só acreditei na verdade dessa experiência pelos
sinais dos sentidos: as visões, os sons e os cheiros. O sabor de uma torrada
nos anos setenta, a familiaridade inegável de pele com pele quando a mãe
me segurou a mão para me ajudar a subir à árvore. Eu precisava disso. Mas
o Eddie não. O Eddie não era pateta e não iria acreditar numa história
qualquer. Mas eu sabia que ele confiava em mim e reconheceria o som da
verdade quando a ouvisse, tal como reconhecera as mentiras. O que ele faria
com a verdade e o que pensaria de mim depois, tinha de deixar nas mãos
dele. Eu tinha fé nele e não queria esperar mais, nem fazê-lo esperar, por
isso disse que lhe contaria tudo.
– Agora.
29

O Eddie ouviu. Eu falei. Comecei com a fotografia e contei-lhe como


encontrara a caixa no sótão, e tudo o que acontecera naquele dia, na
primeira vez que viajara ao passado. Lembrei-lhe os meus ferimentos
daquela vez e como a verdade, independentemente do quão inacreditável
soava, dava de facto sentido a tudo. Encaixava com o facto de ele ter
procurado no sótão, quando o escadote estava para baixo, e tê-lo encontrado
vazio, mas ter ouvido um estrondo e encontrar-me lá em cima depois.
Contei-lhe que quis falar com ele, mas que sabia que ele pensaria que eu
estava louca. Expliquei como acabei por contar a história ao Louis, como
pensei que ele acreditara em mim, mas que ele só mais tarde se convenceu.
Contei ao Eddie que havia regressado ao passado uma segunda vez,
enquanto ele estava em França, e que dessa vez ficara mais tempo com a
minha mãe. Contei-lhe o encontro com a Elizabeth e o que acontecera com
os patins e o anel de noivado. Contei-lhe que eu e o Louis visitáramos a
Elizabeth, que ela mentira sobre o facto de o anel ter sido roubado e que a
culpa a inspirara a enviar-me um anel.
Expliquei ao Eddie o dilema de voltar ao passado, que o anel
desaparecido a princípio me fizera considerar as consequências com mais
seriedade, e que andava a tentar seguir em frente com a vida, como uma
pessoa normal. Contei-lhe os meus planos recentes, desde a descoberta,
através do Henry, que a minha mãe não tinha morrido, não de certeza, mas
desaparecido, e que a culpa era minha, porque ela começara a pensar em
mim como um anjo da guarda e fora à minha procura.
Disse-lhe que precisava de voltar ao passado uma última vez, corrigir os
erros, contar a verdade à Jeanie, e que depois disso não voltaria mais.
Contei-lhe do dinheiro antigo, do fato de esqui e do colchão em casa do
Louis. Contei-lhe que tinha visto a caixa no cimo da fogueira e que não
tivera escolha senão resgatá-la.
E a última coisa que disse ao meu marido, na rouquidão áspera da minha
voz, ao homem em quem confiava mais do que em qualquer outra pessoa no
mundo, foi que a caixa da bola saltitona devia ser guardada em segurança,
porque era uma tábua de salvação. A vida da minha mãe dependia dela e,
embora ele pudesse pensar que eu já perdera a cabeça, se a caixa se
perdesse, eu perdê-la-ia de verdade.
E depois voltei a dormir.
*
Quando acordei, o Eddie estava sentado na beira da cama. Encarámo-nos,
inabaláveis no olhar. Eu tinha a boca seca e, quando os meus olhos se
precipitaram para a mesa de cabeceira, ele estendeu a mão para o copo e
segurou-o enquanto eu manobrava para me sentar. Bebi com vontade e
devolvi-lhe o copo. Ele pousou-o de novo na mesa, em silêncio, e
retomámos o contacto visual silencioso.
– Como é ter uma mulher louca? – disse eu por fim.
O Eddie segurou-me delicadamente o queixo entre o polegar e o
indicador, para que eu não desviasse o olhar, e olhou-me com uma
seriedade que se assemelhava a uma nota do baixo numa música; o tipo que
sentimos a vibrar no coração, mais do que escutamos com os ouvidos.
– É uma sensação maravilhosa – disse ele, inclinando-se e beijando-me
com intensidade na testa.
– A sério? – disse eu numa voz débil.
– A sério – disse ele. – Não és diferente da mulher que eras quando te
conheci, não és diferente da mulher que eras ontem. Amei-te na altura e
amo-te agora. Só que agora partilho do que estás a passar.
– Mas é doido – afirmei.
– Sim, é um bocado doido. – Ele sorriu. – Mas acredito em ti, Faye. E,
seja o que for, é maluco, mas maravilhoso. Tu és maravilhosa. Não te
preocupes, vai ficar tudo bem. Vamos avançar um passo de cada vez.
Eu concordei.
– A caixa está em segurança? – perguntei.
– Sim – disse ele. Depois deu uma palmada nas pernas, como que para
expressar uma mudança de direção. – Então, tens fome?
Eu assenti novamente com a cabeça e o Eddie fez-me ovos mexidos. Ao
que parecia, há dois dias que eu ia adormecendo e acordando. Tomei banho
e o Eddie voltou a fazer o penso. Embora as mãos me doessem, não tinham
verdadeiros danos. Parecia que eu tinha engomado um pouco as palmas das
mãos no programa do algodão, e tinha umas bolhas, mas não muitas. Tinha
tido sorte.
Assim que comi senti-me revitalizada, e o Eddie perguntou-me se eu
queria ir ver o Louis.
– O teu «parceiro no crime» – disse ele, de bom humor. Levou-me então a
casa dele, dizendo que me faria bem sair um pouco, e prometeu vir buscar-
me dentro de uma hora. Depois disso, iríamos buscar as crianças a casa da
Cassie.
O Louis abraçou-me. Eu e o meu companheiro não perdemos tempo com
banalidades.
– O Eddie disse que a caixa está segura – declarei, enquanto ele me
conduzia até à sala.
– Sim, pelos vistos ele tirou-a da fogueira e ela aterrou na relva. Os teus
amigos devem ter pensado que eu era louco, por querer trazê-la comigo para
casa. Agora tem um buraco de lado e, ao que parece, está preta e a descolar
nalguns pontos. Não sei que diferença fará o dano – disse ele.
– Ainda vai funcionar – disse eu.
– Então ainda não desististe de voltar ao passado? – perguntou ele.
– Se eu não o fizer, então todo este drama terá sido em vão, não é? – disse
eu.
– Às vezes precisamos de parar. Às vezes as coisas vão longe de mais.
Tens sorte em estar viva, pelo que ouvi.
– Não estou sequer muito ferida, só queimei um pouco as mãos, e isso
não tem nada a ver com viagens no tempo.
– Teria tido, se a caixa estivesse na fogueira enquanto regressavas do
passado – disse ele. Fiz um esgar perante a ideia. O Louis fez uma pausa, a
postura preparada para uma revelação, e eu esperei. – Tenho uma pequena
confissão – disse ele.
– Continua.
– Eu também tentei.
– Tentaste o quê? – disse eu, sentando-me mais direita. – Entraste na
caixa?
– Vesti o fato de esqui e tudo.
– Louis! – exclamei. Não sabia o que sentir. Possessiva, foi a reação
instantânea. Eu queria gritar: A minha caixa! Estava um tanto indignada,
mas entusiasmada. – O que aconteceu? – perguntei.
– Bem, vesti o fato, era um pouco apertado, e pus-me dentro da caixa.
Fiquei ali, esperei um bocado, porque me disseste que às vezes demora até
acontecer algo.
– E então? – disse eu.
– Então, cerca de dez minutos depois, saí da caixa a sentir-me um perfeito
idiota, despi o fato e comi um Mars. Dois, na verdade.
– Achas que ainda funciona? – perguntei.
– Sim, acho que a caixa está bem. O instinto diz-me que é a tua ligação
com a tua mãe que a faz funcionar; não tem nada que ver comigo. Parece-
me que a caixa não é um bilhete para os anos setenta para qualquer um.
– Tenho de voltar – disse eu. – Quando as minhas mãos melhorarem. Em
breve. Não posso esperar muito mais tempo.
– Achas que o Eddie te vai deixar? – perguntou o Louis.
– Não falei com ele sobre isso, mas contei-lhe tudo – respondi. – E correu
melhor do que eu pensava.
– Eu sei, ele veio ver-me ontem à noite. Disse que lhe contaste a história
toda e trouxe o dinheiro antigo que eu encomendei. E levou a caixa.
– Ele levou o quê? – perguntei, meio em pé. – Pensei que estivesse aqui.
Claro que não estava. De repente, senti-me tonta pela traição, ao perceber
que o Eddie jamais me teria deixado aqui em casa do Louis se a caixa
também cá estivesse.
– Ele disse que querias a caixa a salvo, e foi isso que ele disse que faria.
Disse que não havia motivo para a guardar em minha casa, agora que ele
sabia o que estava a acontecer.
– Achas que ele acreditou mesmo em mim? – disse eu, tentando acalmar e
voltando a sentar-me, devagar.
– Ele é teu marido, o que achas?
– Quando estávamos juntos, pensei que sim, mas agora que ele não está
aqui, não sei – disse eu.
– Quando esteve cá, disse que era uma história espantosa e eu concordei,
disse que era difícil de acreditar, e ele acrescentou: «Mas acreditas nela,
Louis», e eu respondi-lhe que sim, porque na verdade não acontecera nada
que me fizesse pensar que seria outra coisa senão a verdade. E tinha
conhecido a Elizabeth, também.
– Mais alguma coisa?
– Ele disse que acreditava que estivesses a dizer a verdade.
– Por outras palavras, acha que não estou a mentir, mas que sou louca.
– Isso não sei, mas não vai ser fácil para ele, não é, Faye? Só sabe que
quase te mataste a tentar salvar o raio de uma caixa de cartão. Dá um
desconto ao homem.
Rimo-nos, mas o meu era um riso cauteloso.
– Oh, merda – disse eu, a voz a chiar, a constatação a alcançar-me. –
Merda.
– O que foi? – perguntou o Louis.
– O Eddie vai livrar-se da caixa.
– O quê? Porquê?
– Não é óbvio? Se houvesse uma arma em casa, livrar-se-ia dela. Mas ele
pensa que é a caixa que me vai matar. Oh, Louis, e se for tarde de mais?
Achas que ele já a deitou fora?
– Bem, só há duas maneiras de pensar nisto, por isso para e acalma-te.
Talvez seja tarde de mais e, nesse caso, não há nada que possas fazer.
– Mas a minha mãe – lamentei-me, a garganta a doer. – Preciso dela,
tenho de impedir que ela me deixe. Se eu nunca tivesse voltado ao passado,
ela poderia nunca ter desaparecido.
O Louis inclinou-se para mim.
– Mas voltaste, não foi? – disse ele num tom intenso e abafado, punindo-
me. – E tornaste algumas vidas melhores. Trouxeste paz à Elizabeth.
Trouxeste alegria ao Henry e à Em. Quem sabe quanta paz e alegria eles,
por sua vez, não terão espalhado por tua causa. Tu perdeste algo, eles
ganharam. Não podes ter tudo, Faye. Tens de abdicar de algumas coisas.
– Não posso! – Limpei as lágrimas do rosto com as costas das mãos. – Se
eu regressar ao passado mais uma vez – continuei, a examinar mais uma vez
a lógica da coisa –, então é porque estou destinada a regressar mais uma
vez, não é assim que funciona?
– Já não sei – disse o Louis. – Mas, para ser sincero, estou feliz que o
Eddie tenha aquela caixa, porque acho que estás a perder o rumo. Sentir-
me-ia mal se te deixasse entrar.
*
O Eddie estacionou lá fora e eu peguei no casaco à pressa. Ele ficou onde
estava, a falar ao telefone, e eu perguntei-me o que ele pensaria quando me
visse com os olhos vermelhos. Talvez não reparasse, mas, mais uma vez, os
olhos são as janelas da alma, portanto talvez fossem a única coisa em que o
meu marido repararia, já que se interessava tanto por almas.
Ele curvou-se para abrir a porta do passageiro por dentro e a sua voz foi
transportada pelo caminho. Percebi que conversava com uma mulher. Pela
primeira vez na vida, senti uma pontada de aversão por ele, pequena e
cortante como uma urtiga. Ele era demasiado bonito para ser vigário;
mulheres com problemas, viúvas, pasteleiras excelentes atirar-se-iam a ele.
O meu marido: o Destruidor de Caixas.
Quando me sentei no carro, de braços cruzados, ele acabou a chamada e
olhou para mim. Eu afastei-me.
– Tudo bem? – perguntou.
– O que fizeste à minha caixa? – perguntei. Não conseguia olhar para ele
enquanto ele confessava.
Ele hesitou. Claro que sim.
– Está no sótão, em casa. Pode ser?
A minha cabeça virou-se num movimento rápido para olhar para ele.
Doeu-me muito, mas não me importei.
– Está mesmo? – perguntei, de repente a chorar outra vez, sem acreditar.
– Sim. Achei que era o lugar mais seguro. Sei que o Louis tomaria conta
dela, mas achei que devia estar em nossa casa.
As minhas pálpebras fecharam-se sobre os olhos cheios de lágrimas,
fazendo-os transbordar.
– O que se passa? – perguntou o Eddie.
– Quando o Louis disse que tinhas levado a caixa, pensei que poderias
ter-te livrado dela. – A voz tremia-me como uma ponte prestes a
desmoronar-se, e parecia também prestes a quebrar.
O Eddie pegou-me na mão e alisou-me o cabelo.
– Ontem contaste-me tudo. Achas que não percebo o quanto esta caixa é
importante para ti?
– Mas é tão perigosa, e eu magoei-me mesmo a tentar tirá-la do fogo.
Pensei que talvez tivesses decidido pôr-lhe um fim, de uma vez por todas. –
Funguei, e ele deu-me um lenço de papel. Esforcei-me para o desdobrar,
com as mãos tão bem ligadas. – Desculpa – disse eu, levantando-as,
exasperada. – Olha o que te fiz passar.
– Tu própria já passaste por muita coisa, e tudo sem mim. Só gostava que
me tivesses contado antes, para eu ter podido dar-te apoio.
– Pensei que te ias rir – disse eu. Mas não era verdade, nunca pensei que o
Eddie se fosse rir. Achei que pensaria que eu era louca. Achei que ele
pensaria em mim de forma diferente, que me desprezaria. Eu não seria a
mulher que ele amava. – Pensei que te ias rir – repeti – e que tentarias
convencer-me de que não era verdade.
– Não te riste quando eu disse que Deus me bateu no ombro e falou
comigo na igreja. Não tentaste convencer-me de que não era verdade.
– Isso não é um bocadinho diferente? – disse eu. – Menos radical. Não é
um nadinha menos estranho?
– Mas tu não acreditas em Deus como eu. Na verdade, disseste muito
simplesmente que não acreditas.
Assenti.
– Estou a tentar – disse.
– Mas não é essa a questão, é? A questão é, eu acredito que Deus me
tocou, fisicamente, e falou comigo, com uma voz. Foi suave, não uma
viagem numa montanha-russa pelo espaço, com uma aterragem implacável
num lugar que se encontra a três décadas daqui, mas real. Para mim. E isto
quer acredites ou não.
– Então, acreditas em mim.
– Acredito em ti da mesma maneira que tu acreditas em mim – disse ele,
de modo um pouco enigmático.
– Isso significa que achas que perdi a cabeça?
O Eddie riu-se e foi um bonito som.
– Só se achares que eu perdi a cabeça. – Ele sorriu. – Achas que perdi a
cabeça?
Abanei a cabeça e agora não havia lágrimas. Olhei para o Eddie e abri um
pouco mais os olhos, para o convidar a ver a minha alma.
– Deus – disse ele, num sussurro –, falou comigo! – Ele abanou
suavemente a cabeça. – Não vês que a minha história é tão incrível como a
tua, talvez até mais? Estou a falar de Deus, e tu da tua mãe.
– Então porque é que a minha história parece tão incrível, comparada com
a tua?
– Não sei, talvez por ser mais dramática: caixas, sótãos, adivinhação,
anéis roubados, salvares-te em criança, conheceres a tua mãe, que não vias
desde pequena. Todos querem saber disso. Mas, com certeza, nem todos
querem saber do meu «chamamento» e, mesmo assim, para mim, tem sido
uma viagem extraordinária.
– Porque é que és tão bom? – perguntei. Ele abanou a cabeça, modesto. –
Não, a sério, porquê? – disse eu.
– Quando escuto as outras pessoas e dou por mim a começar a fazer
julgamentos, pergunto-me: Quem sou eu? Ouvi uma viúva contar-me que o
marido se põe ao lado da lareira a sorrir-lhe, e ela insistiu em que realmente
o tinha visto. Não é um fenómeno isolado, muitas pessoas disseram coisas
do género. E todas elas assumem que eu não acredito nelas. Mas quem sou
eu, Faye, para dizer que não é verdade?
– Então, acreditas em mim?
– Quem sou eu para não acreditar?
– E achas que temos algo em comum, visto que o que tens com Deus e o
que tenho com a minha mãe são a mesma coisa? – perguntei.
– «Mãe é o nome de Deus nos lábios e nos corações das crianças.»
– E das mulheres adultas também?
– Provavelmente – disse ele.
– Então a caixa está a salvo?
– Por enquanto – respondeu, pondo o carro a trabalhar e baixando o
travão de mão.
– Calminha, vigário – disse eu, pondo a mão na dele. – O que queres dizer
com estar a salvo «por enquanto»?
Ele desligou o motor, que estremeceu ao silenciar-se. Virou-se no assento
e olhou para mim.
– Ouve-me, querida. Amo-te mais do que a qualquer outra pessoa no
mundo, juntamente com as meninas, oh, e Deus. – Ele deu-me um beijo tão
suave nos lábios que foi como uma lufada de ar.
– Mais alguém? – Sorri.
– E acredito em ti. Acredito que a caixa é uma ponte para a tua mãe, um
caminho de volta para ela. E não é minha função remover essa ponte para o
passado. Há algumas coisas de que precisamos para nos ajudar a processar e
a manter connosco o passado: recordações, fotografias, postais, cartas.
Algumas ligações ao passado são boas, agarramo-nos a elas. Outras ligações
não são tão boas: são as que se agarram a nós. Por vezes, precisamos
mesmo de deixar ir o passado. Sei que é um cliché, mas de que outra forma
posso dizê-lo? – O rosto bonito do Eddie aproximou-se e ele pousou a ponta
do nariz na ponta do meu. Inspirei o aroma silvestre da sua face acabada de
barbear. – Não podemos deixar ir o passado de outra pessoa por ela – disse
ele. – Não podemos desatar o nó por outra pessoa. Se o fizéssemos, então,
de alguma forma, o nó dessa ligação só se tornaria mais firme. Se eu me
livrasse da tua ligação com a tua mãe, tu nunca a esquecerias, nunca te
conformarias com a perda. – Pus a mão no rosto do Eddie e fechei os olhos.
– Não é minha função livrar-me da caixa – disse ele. – É tua.
30

C erca de dois meses depois, no início de janeiro, pensámos que terça à


tarde seria uma altura sossegada para ir à costa. O Eddie organizara de
forma a que a Cassie fosse buscar as meninas à escola e elas passassem a
noite com a família dela. Provavelmente voltaríamos a tempo de as meter na
cama, mas nenhum de nós queria olhar para o relógio, não naquele dia.
Seria emotivo. Precisávamos de estar sozinhos, juntos.
Vesti-me bem, esforcei-me como se faria para um funeral, mas não me
vesti de preto. Pus um lenço de seda azul elétrico em volta do pescoço,
naquele dia. O Eddie vestiu as suas melhores calças de ganga e uma camisa
cinzenta, com uma camisola preta por cima. Parecíamos pessoas que se
vestiam bem para o aeroporto, o que não somos.
Olhando para o mapa, recentemente, tinhamos procurado uma enseada
isolada, onde não fosse quase ninguém, para não sermos incomodados, e
encontrámos uma, num lugar qualquer onde estivéramos anos antes.
Estava um céu azul de inverno e abri a janela. O ar frio e limpo era
tonificante e agradável, mas depressa a fechei, temendo de repente que a
preciosa carga do banco de trás pudesse voar para fora como um balão à
procura de saída, logo que a abertura fosse grande o suficiente. Mas era
parvo: uma caixa de cartão nunca iria simplesmente voar pela janela.
Virei-me para olhar para ela, ver se estava bem, como um bebé ou um
cachorrinho a ir para casa pela primeira vez no carro. Estendi-me pela
abertura entre os assentos e toquei-lhe. Se ia despedir-me, não me daria ao
trabalho de me sentir envergonhada por tratar uma caixa de cartão como
uma coisa viva.
Tivéramos muitas conversas, eu e o Eddie, sobre a caixa e eu precisar de
abrir mão dela. Resisti, claro que resisti. Era a decisão mais difícil que
alguma vez tomara na vida. Mas o Eddie salientou duas coisas que, no fim,
me convenceram: uma em que eu ainda não havia pensado, e a outra em que
provavelmente pensara, mas optara por ignorar. A primeira era que, um dia,
uma das nossas filhas poderia encontrar a caixa e entrar nela. A magia
também funcionaria com elas? Se o palpite do Louis estava certo e era a
ligação com a minha mãe que me permitia viajar para trás no tempo, então a
ligação sanguínea que tinham com ela não tornaria possível que a caixa as
levasse também ao passado? Se isso acontecesse, sobreviveriam à viagem?
Ficariam em apuros, sem mim para as ajudar? Conseguiriam encontrar o
caminho de volta?
Em segundo lugar, mantínhamos a caixa a salvo, porque conhecíamos o
seu poder, e guardávamo-la fechada no sótão para a proteger e proteger as
pessoas dela. Mas quem tomava conta da caixa no passado? E se, enquanto
eu estivesse lá, por algum motivo ela desaparecesse? E se fosse destruída do
lado de lá, depois de eu ter entrado na caixa do lado de cá? Onde iria eu
parar?
Além disso, o Eddie convenceu-me de que eu já conseguira mais do que
qualquer outra pessoa depois da morte de um ente querido. E ele estava
certo. Eu tinha tudo a perder, se começasse a querer cada vez mais.
Parámos num pub tradicional, quase vazio. Depressa arranjei um lugar à
janela, enquanto o Eddie foi buscar um café para ele e um pequeno copo de
vinho para mim. Eu precisava de conseguir ver sempre o carro, só para o
caso... Só para o caso de quê? Sim, para o caso de um ladrão com uma
trouxa e máscara preta calhar deparar com o parque de estacionamento de
um bar remoto no interior, e arrombar o carro trancado para roubar do
banco de trás uma caixa de cartão enegrecida.
O Eddie tinha razão. Eu tinha de abrir mão dela.
Ele foi paciente enquanto eu terminava o vinho, mas ambos sabíamos que
tínhamos de chegar à praia antes de escurecer.
*
Seguimos em frente mais um pouco e, por um breve período, perguntei-
me se não estaríamos perdidos; talvez não encontrássemos o sítio. Alegrar-
me-ia um adiamento de última hora, uma prorrogação? Talvez fosse melhor
acabar logo com aquilo; não era boa ideia agarrar-me à caixa por mais um
ou dois dias. Tinha de o fazer agora, para poder começar a fazer o luto.
O Eddie parou, desligou o motor e virou-se para mim.
– Pronta?
– Sim – respondi.
Como não fiz menção de sair do carro, ele deu a volta para abrir a porta e
estendeu-me a mão. Depois, abriu a porta de trás e chegou-se para o lado,
deixando-me inclinar para pegar na caixa. Insisti em transportá-la e o Eddie
não teve problemas com isso.
Ele indicou o caminho. Segui-o nas partes estreitas e, quando
conseguíamos caminhar lado a lado, ele abrandava o passo para seguir ao
meu ritmo, a mão a tocar-me no fundo das costas de vez em quando.
Espero que não pareça ridículo, mas esta caixa era agora o que me fazia
sentir mais próxima da minha mãe e, antes de a largar, eu tinha de a abraçar.
Não pensem que não me passou pela cabeça pousar a caixa no chão e saltar
antes que o Eddie conseguisse impedir-me. Visualizei-me a saltar lá para
dentro e a desaparecer, como se existisse um buraco infinito por baixo da
caixa.
*
Tínhamos estacionado numa pequena ruela e passámos por um campo
cheio de porcos e dos seus abrigos metálicos em arco, depois por um
bosque, onde as árvores formavam uma abóboda sobre as nossas cabeças.
Passar por ali era como casar, quando todos os convidados dão as mãos e
dão vivas e nos comprimimos pelo túnel, desde a festa até ao carro que nos
levará à lua de mel. Hoje não ia ser assim. Era uma partida da qual eu tinha
relutância em fazer parte e, no entanto, concordava com o Eddie, era a coisa
certa a fazer. O arco levar-nos-ia a um caminho íngreme até à praia, onde a
falésia estaria alta, amarela e a esboroar-se atrás de nós.
*
Quando chegámos ao caminho que descia até à praia, o terreno por baixo
dos nossos pés tornou-se de repente ocre e pedregoso. Dali conseguia-se ver
o mar a erguer-se em vagas e senti-me agoniada. Estava mais vento, que nos
deixou os cabelos revoltos; a ponta do lenço bateu-me na cara. Agarrei-me
com força à caixa. Nada iria afastá-la de mim até eu deixar. Seria uma
escolha minha, e a meu tempo.
*
Caminhámos em direção à beira-mar e olhámos para o oceano. O céu
ainda estava azul, mas escurecia, a água parecia cinzenta e ameaçadora,
com uma miríade de cristas brancas nas ondas. Picada.
– Queres dizer algumas palavras? – perguntou o Eddie.
– Um funeral? – disse eu.
– De certo modo – respondeu. – Apenas uma outra maneira de dizer
adeus.
– Poderias dizer algo? – perguntei-lhe. – Não treinaste já para isso?
Ele deu uma risada humilde.
– Direi alguma coisa, se quiseres.
– Está bem, eu faço-o – disse eu. E pensei um pouco antes de decidir que
de facto não importava o que eu dissesse, mas tinha de dizer algo, e disse o
seguinte: – Nunca mais te vou ver nem tocar, mas viverás para sempre
dentro de mim. Estarás sempre no meu coração e eu nunca, nunca, me
esquecerei de ti. Pois cada concha desta praia que em tempos já conteve
uma vida, cada uma delas deixou para trás algo belo, tal como tu. Por isso,
digo adeus à minha maravilhosa mãe e rezo a Deus – olhei para o Eddie e
sorri com tristeza – para que, seja o que for que tenhas ido procurar naquele
dia, de alguma forma o encontres, e encontres paz, onde quer que estejas.
– Ámen – disse o Eddie. Ele olhou para mim e estendeu os braços.
Entreguei-lhe a caixa e descalcei os sapatos, enrolando as calças até aos
joelhos. Ele devolveu-me a caixa e fez o mesmo aos seus sapatos e calças
de ganga. Deixámos as coisas na areia e caminhámos em direção à água.
Esta tocou-me nos dedos dos pés; estava tão fria que quase parecia escaldar.
Baixei-me e segurei a caixa sobre uma onda que batia na costa. Deixei-a
então ir.
A água levou a caixa e eu observei-a a afastar-se um ou dois metros, e a
voltar depois um pouco em direção à praia, como que sem saber se partia ou
não. O laranja da caixa, antes muito vivo, desaparecera sobretudo devido
aos danos do fogo e a ter sido tão maltratada quando aterrara em cima dela.
Mas à frente via o rosto da menina a andar na bola saltitona e, por uns
momentos, concentrei-me no seu sorriso. De repente, a caixa estava muito
mais longe, para lá do alcance do braço. O oceano fizera-me pensar que
seria dócil e levaria o seu tempo, mas apoderou-se da caixa e arrastou-a para
longe. Observei enquanto começava a afundar e gritei, virando a cabeça
para o peito do Eddie e segurando-me à sua camisola com as duas mãos.
Não conseguia olhar mais. Senti calor e proteção instantâneos com o Eddie
parado como um para-vento entre mim e o ambiente, abafando os sons, o
barulho do vento e das ondas.
Agarrei-me a ele até sentir o seu corpo a retesar-se inesperadamente e a
separar-se de mim. Ouvi-o arquejar e virei-me para olhar para o mar mais
uma vez. A caixa continuava visível, mal, mas a água em volta parecia
agitar-se, como que atingida por uma bomba. Havia magia na caixa, eu
sabia disso, e talvez ela resistisse a ser destruída.
Antes que eu o conseguisse impedir, o Eddie correu para o mar, como um
galgo a disparar numa corrida.
– Para! – gritei. – Deixa-a. – Mas ele continuou a correr, os joelhos bem
levantados para combater as ondas que queriam atrasá-lo.
A água à volta da caixa ainda espumava e o Eddie deve ter percebido que
havia nela algo de encantado, porque agora estava tão desesperado para a
resgatar da água como eu estivera para a resgatar do fogo. O seu corpo
escondia-a da minha vista; ele lançou-se para a frente e, mesmo antes de
chegar à caixa, mergulhou para se aproximar mais dela. Eu gritei «Não!».
Ele era bom nadador, mas as ondas pareciam implacáveis. E se eu o
perdesse agora? E se ele se afogasse? Seria tudo por minha culpa: primeiro
a minha mãe e agora o Eddie. Corri um pouco para dentro do mar, até me
ficar acima dos joelhos, a força da água puxando-me as pernas, fazendo-me
enterrar os pés na areia molhada para continuar de pé.
O Eddie não estava a ir mais longe. Parecia debater-se com a caixa, como
se fosse um grande peixe a contorcer-se. Vi-o de braços bem abertos e
depois submergiu novamente, mas por fim virou-se, colidindo com as ondas
que o tentavam puxar para baixo.
Por fim, encontrou pé e conseguiu forçar-se a estar direito, elevando-se
com o peso nos braços. E lá, meio afogada, mas viva, com o cabelo
ensopado e os braços em volta do pescoço do Eddie enquanto ele a trazia na
minha direção, estava a minha mãe.
*
O Eddie cambaleou de volta para a praia, a lutar com as ondas para
conseguir um equilíbrio mais estável e a tentar não a deixar escorregar dos
braços. Corri para a água, sentindo-me meio como num sonho, enquanto a
água gelada me prendia à realidade. A minha mãe olhou para mim, chocada,
justamente quando uma onda lhe bateu no rosto; fechou os olhos perante o
sal pungente e ergueu-se, para se agarrar melhor ao ombro do Eddie.
Quando cheguei junto deles, o Eddie dava passos largos e eu toquei no
braço da minha mãe, mas não podia ajudá-lo a carregá-la; se eu tentasse
levar algum do peso dela, dificultar-lhe-ia o progresso. Assim, caminhei
depressa ao lado deles, o melhor que pude. Durante todo esse tempo, tentei
o contacto, tocando nalguma parte dela com os dedos dormentes estendidos.
As pernas do Eddie cederam não muito longe de onde as ondas
encontravam a areia. Ele deitou a Jeanie e depois deitou-se junto a ela. Os
lábios dele tocaram o chão e, quando olhou para mim, a areia cobria-lhe um
lado do rosto. Tinha o cabelo molhado colado ao rosto e o branco dos olhos
estava cor-de-rosa. Estava com os dentes a bater.
Os dentes da minha mãe também batiam e ela tinha uma linha azul-clara
em volta dos lábios. Os seus olhos arregalados fitavam-me, espantados.
Ajoelhei-me junto a ela e despi o casaco para lho pôr por cima, embora
estivesse encharcado.
– Estou no paraíso? – perguntou ela. Os tremores involuntários
entrecortavam as suas palavras. Todo o corpo lhe tremia.
– Não – respondi. – Não estás no paraíso. – Olhei os seus olhos castanhos.
Tal como ao Eddie, o mar tornara-lhe o branco dos olhos rosado. As
pestanas amontoavam-se, escuras e bonitas.
– Meu anjo da guarda! Onde estou?
– Conheces esta mulher? – perguntou o Eddie.
Se a conhecia? Não o suficiente. Toda a vida perdera o rosto dela, a
presença, a sabedoria, o calor. E, no entanto, aqui estava ela, pouco mais
velha do que na última vez que a vira; ainda pelo menos dez anos mais nova
do que eu. E, portanto, no fim de contas, dava-se o caso de eu não ter de
facto perdido nada da vida da minha mãe, enquanto ela perdera trinta anos
da minha.
Peguei na mão da Jeanie e beijei-lhe as faces. Deixei o rosto repousar no
dela e então, quando me senti pronta, levantei a cabeça e olhei para o Eddie.
– Sim, conheço – disse. Ele esperou. A ruga única e simples entre as suas
sobrancelhas era um pequeno sinal de profunda confusão. Baixei o olhar
para a minha mãe e ela sorriu, com aquele sorriso tão caloroso e fácil como
o sol a despontar por entre as nuvens. – É a minha mãe.
*
Por breves momentos, olhei de novo para o mar e vi uns pedaços de
cartão a afastarem-se, alguns tão distantes que se perdiam de vista. Soube
que não havia como voltar atrás.
Depois, ainda sem saber as perguntas certas a fazer, e sem ter também a
certeza de todas as respostas, levantámo-nos da areia. Nós os três, como
despojos humanos de um naufrágio, subimos a falésia. A minha mãe
agarrava-se a mim, incrédula. A dor de saber que nunca mais veria a sua
filhinha trespassava-a. A dádiva sem igual de me conhecer agora era um
compromisso que ainda não aceitara. O Eddie caminhava atrás de nós, uma
mão nos nossos ombros, como se fôssemos cair para trás. Subimos, dando
os primeiros passos para uma nova vida juntos. O passado deixado para trás.
Uma vida a ser vivida apenas em direção ao futuro.
EPÍLOGO
Verão de 1979

U ma infeção pulmonar já não era só uma ocorrência de inverno. Jeanie


sentia que se aproximava uma. Os primeiros sintomas tão nítidos como
a diferença entre o mar e o céu, o seu avanço, uma história tão previsível
como outra qualquer; o início: uma subtil aspereza entre a garganta e os
pulmões, que todos os dias ia descendo; o meio: uma crescente falta de ar,
dor ao inspirar e falta de energia; o fim: uma tosse sobre a qual não
conseguia ter vantagem, até conseguir por fim limpá-la, escarrando pedaços
de muco sólidos como lesmas. Esse era o fim a que estava habituada, mas
tinha a certeza de que, um dia, aquilo a mataria.
Haviam passado dezoito meses desde que Jeanie vira o seu anjo da
guarda: a mulher parecida com a sua mãe, uma mãe de que mal se
lembrava, que tinha o mesmo nome e os mesmos maneirismos que a sua
filha. Por vezes, Jeanie sentia um desespero avassalador por encontrar
aquele anjo da guarda; dissera-o aos amigos: pessoas do tipo boémio, que
pensavam como ela, e que por aqueles dias pouco via. Encontrara uma
ligação com a Faye, formara um laço com a mulher mais velha; era
magneticamente atraída para ela.
Como a Faye não voltou e os meses foram passando, a Jeanie continuou
com a sua vida, mas nunca deixou de procurar. Acelerava o passo se visse
por trás alguém parecido, só para ficar desapontada quando alcançava a
pessoa e se virava para ver um rosto desconhecido. Sabia que era
disparatado sentir a falta – chorar – uma amiga que mal conhecia. A Faye
quase tinha idade para ser sua mãe, mas talvez por isso, talvez ela fosse a
figura materna que Jeanie perdera. Talvez por isso doesse tanto. E a fantasia
de que aquela mulher podia tomar conta da sua filha, se algo de mau lhe
acontecesse, nunca seria uma realidade. Teria de aceitar que não havia rede
de segurança.
Estava na hora de a Jeanie libertar a ideia da Faye – fora feliz antes, seria
feliz outra vez – e concentrar-se na filha; tinha de se pôr boa, ou o seu medo
de morrer nova tornar-se-ia realidade – e, acima de tudo, não queria deixar a
filha sem mãe. Nunca a deixaria por vontade própria. Jamais. Deus teria de
a levar.
Olhou para a forma adormecida da pequena Faye, o peito a subir e descer
suavemente debaixo dos lençóis, e beijou-lhe a testa.
Jeanie desceu as escadas e ligou a chaleira, desesperada por água quente
para acalmar a garganta e o peito arranhados, na esperança de que
aquecesse e dissipasse a infeção que se agarrava, que esta se dissolvesse e
abandonasse o seu corpo. Apoiou-se no balcão da cozinha e, distraidamente,
foi buscar dois frascos de vidro de compota junto à janela, prendendo-os
entre o polegar e o indicador. Levou-os até ao barracão. O ar já estava
quente, embora ainda fosse cedo. Ia pôr-se um dia bonito.
Jeanie abriu a porta do barracão e, por momentos, debateu-se com ela.
Estes frascos serviriam para guardar coisas que não pertenciam a mais lado
nenhum, coisas que simplesmente não sabemos quando chegará a hora de
precisarmos delas. Já não ia ao barracão há muito tempo, talvez uns dois
anos; tinha muitas teias de aranha e pouco mais. Jeanie pensou em esvaziá-
lo por completo, limpá-lo, pintá-lo e fazer uma casa de brincar para ela e
para a Faye, um lugar para se esconderem, conversarem e brincarem.
Estava uma caixa no chão. Poderia ser útil, embora estivesse um pouco
danificada. Para lá dela, no fundo do barracão, encontrava apenas uma
confusão de ferramentas e outras tralhas. Ao inclinar-se para a frente para
pousar os frascos numa prateleira ao fundo do barracão, entrou na caixa no
chão e, ao fazê-lo, o fundo abriu-se e engoliu-a.
Os dois frascos de vidro caíram no chão do barracão, rolaram por
momentos, tilintando quando chocaram, e depois pararam.
Jeanie precipitou-se pela escuridão como uma bala, até que conseguiu ver
algo: água? Água cinzenta. Não conseguia respirar e, ao bater como um
torpedo no oceano, lançou a cabeça acima das ondas e respirou tão fundo
quanto os pulmões lhe permitiam.
AGRADECIMENTOS
É difícil saber qual foi de facto o princípio, mas, dentro do possível,
gostaria de fazer isto por ordem cronológica. Gostaria de agradecer aos
meus pais, Patricia Steele e Norman Graupp, por darem início a tudo.
Obrigada à Sarah Geileskey pela nossa maravilhosa conversa na fase
inicial, que me ajudou a criar a personagem do Eddie. A seguir vêm quatro
amigos que leram a história enquanto eu a escrevia – alguns capítulos de
cada vez –, e me disseram que gostaram. Pelo apoio, pelas opiniões e pela
paciência, o meu profundo agradecimento a Patrick Doyle, Jo Eccles, Adam
Schiller e Amy Schiller. Obrigada à Sharon Zink pela sua opinião
profissional.
Quando me cansei das rejeições, pousei o manuscrito numa gaveta e
chorei até adormecer, até aceitar que nunca seria publicado. Recebi uma
mensagem de uma amiga que me encorajou a enviá-lo a mais um agente.
Sem esse incentivo, podia tê-lo deixado fechado, portanto, obrigada, Sarah
Whyand. Aquela «mais um agente» foi a Judith Murray, que é a
personagem de que todos gostam num romance, a fada madrinha na história
da minha própria vida: obrigada teres conseguido que eu fosse ao baile.
Obrigada à Jo Dickinson e à Jackie Cantor, da Simon & Schuster, pela
resposta comovente e emotiva ao meu romance. Obrigada à Kate Rizzo por
todo o trabalho na venda dos direitos no estrangeiro, e à Alisa Ahmed por
toda a ajuda.
Agradeço aos meus filhos por acreditarem que o meu livro seria
publicado, só porque sou mãe deles, e que rezaram ao universo – e a tudo o
que nele existe – quando prometi comprar-lhes um gatinho se conseguisse
um editor.
E, por fim, obrigada a si por escolher este livro. Espero que sinta que a
leitura é tempo bem passado.

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