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UMA HISTÓRIA
FORA DE TEMPO
Ficha Técnica
Título: UMA HISTÓRIA FORA DE TEMPO
Título original: SPACE HOPPER
Autora: Helen Fisher
Capa: Patrícia Silva
Imagem da capa: Joanna Czogala / Trevillion Images
Capa: Patrícia Silva
ISBN: 9789892351452
A perda da minha mãe é como um dente que falta: uma ausência que sinto
sempre, mas que consigo esconder desde que mantenha a boca fechada.
Portanto, raramente falo sobre ela.
É um ponto de partida triste para esta história incrível, mas, por favor, não
me interpretem mal, eu adoro a minha vida. Sou uma mulher comum de
trinta e poucos anos, com duas filhas e um marido, o Eddie, que está a
formar-se para entrar no clero. Ele parece pensar que darei uma mulher de
vigário perfeita, mas eu não sei se estou à altura do desafio. Comparada
com o meu marido, sou o que se pode chamar mais racional, um pouco mais
científica. Mas suponho que, depois do que passei, deva ser capaz de
acreditar em qualquer coisa.
O Eddie diz que tenho todas as qualidades necessárias e admito que
acredito ser boa pessoa. Por exemplo, podem contar-me qualquer coisa e eu
não julgarei; e, se não conseguir evitar levantar uma sobrancelha, mantê-lo-
ei cá dentro, para proteger os vossos sentimentos. E nunca minto. Sempre
fui completamente verdadeira com o Eddie, entre nós é assim, nem uma
única mentira. Até agora.
Agora, sou uma mentirosa. Agora, sou uma ladra.
E já não posso sequer jurar que sou normal. Vou deixar-vos decidir.
Mentir ao meu marido faz-me sentir doente e estou desesperada para parar,
mas as mentiras são como dedos dos pés; onde está um, há sempre mais por
perto. A maior confissão que faço é que tenho visitado a minha mãe e
mentido sobre isso, mas além disso tenho sido magoada e marcada e menti
sobre isso também, tantas coisas. Se lhe contasse a verdade, o Eddie tentaria
compreender, porque é um homem bom. Mas, logicamente – em termos
lógicos –, é mais provável que pense que enlouqueci.
Talvez esteja a ser injusta com ele, porque, tanto como amo e preciso do
meu marido, ele ama-me e precisa de mim, e, ao longo dos últimos meses,
fui-me apercebendo de algo importante. Não posso contar ao Eddie o que
está a acontecer, independentemente do quanto queira fazê-lo. Não porque
ele não vá acreditar em mim, mas porque poderá acreditar.
E, se acreditar, tentará impedir-me.
*
Deixem-me explicar as coisas desde o princípio, embora eu própria me
pergunte onde será realmente o princípio. O tempo não é tão fácil de
entender como outrora pensei.
Tudo começou com a fotografia e a caixa, mas, lá estou eu a dizer
começou, e isso é o mesmo que princípio. Vamos combinar uma coisa, eu
poderia tornar-me filosófica sobre «o princípio» e o que de facto significa,
mas não quero falar sobre isso agora e agradeço que não apressem a
situação; assim, adiaremos essa discussão (surgirá outra vez mais tarde,
garanto).
Digamos apenas isto: o ponto de partida sensato para a minha história é a
fotografia.
É o tipo de fotografia que um bilião de pessoas tem na sua posse. Podem
encontrá-la dentro de um livro que não abrem há anos, ou cairá de um
álbum antigo, porque perdeu a cola. Aposto que têm uma algures numa
caixa de sapatos, escondida entre outros destroços da vida: cartas de amor,
postais e retratos de batizados de bebés desconhecidos. A minha caiu de um
livro de receitas. Um livro de receitas sem imagens, mas com salpicos em
várias páginas, a indicar as receitas preferidas; impressões digitais a
chocolate e algumas notas escritas à mão. A minha mãe era a dona deste
livro e era gulosa; a página dos brownies de chocolate está particularmente
manchada, assim como a receita do pudim de tâmara.
A fotografia é um retrato meu. Na parte de trás diz «Faye, Natal de
1977». Virei-a nos dedos, sorrindo-me de um momento há trinta anos, está
o meu eu de seis anos. Bochechas rosadas, olhos castanhos e caracóis
desarranjados. Estou sentada numa caixa, na fotografia, a caixa de uma bola
saltitona, e pareço tanto uma boneca que poderia estar a sair da embalagem
na manhã de Natal. Tenho vestido um roupão rosa de aspeto macio, com
uma pequena gola arredondada, e a árvore de Natal atrás de mim está cheia
de luzes coloridas e enfeites decorativos. Pareço muito feliz.
Claro. Eu era uma criança, era manhã de Natal e a minha mãe estava a
tirar aquela fotografia. Teria sido um dia perfeito e descontraído. A minha
mãe, de quem mal me lembro, teria absorvido o olhar de amor desta
menininha. O meu amor. Olhei com atenção, tentando ver além da
fotografia, tentando ver mais do que ela era capaz de me oferecer.
D urante uns minutos não me mexi. Inspirar e expirar era doloroso. Pensei
que, talvez, se me limitasse a ficar ali deitada, alguma explicação se
desse a conhecer. Já vi muitos filmes em que o aparentemente inexplicável
era explicado no fim. Esperava que isso acontecesse... agora. Mas não
aconteceu.
Olhei para a árvore e o rosto do Pai Natal – em versão enfeite de vidro –
mexeu-se devagar, perto de mim. A barba parecia merengue batido
reluzente, a pequena boca vermelha franzida cintilava através do bigode, e o
gorro escarlate reluzia com as luzes da árvore. O azevinho em volta do
gorro fez-me hesitar. Eu conhecia aquele rosto – ou melhor – conhecia
aquele enfeite; pendurara-o eu mesma nesta árvore, há cerca de trinta anos.
Olhei para o tapete, liso e cinzento, e tão familiar como o enfeite – mais
ainda. Era o tapete que eu havia sentia debaixo dos pés todos os dias, há
muito tempo. Permaneci ali deitada, certa de estar prestes a descobrir que
tinha morrido e ido para o Céu.
Ou algo ainda mais inacreditável para mim do que isso.
*
Passaram uns minutos, imagino, e depois saí da caixa com cuidado.
Quando me levantei, uma dor disparou-me pela anca como uma bala e
pareceu-me ter o pulso partido, embora não tivesse. Olhei em volta da sala,
girando no lugar como uma bailarina avariada num guarda-joias musical
que começa a sua dança quando se levanta a tampa.
Eu conhecia esta sala. Quando olhei para a árvore, vi o que estava na
fotografia, mas foram as coisas para lá das margens da fotografia que me
chocaram. Demasiado familiar. Como a minha própria cama, ou o meu
casaco ou o cheiro do cabelo das minhas filhas; esta sala era praticamente
uma parte de mim. Quando as pessoas dizem que algo é como regressar a
casa, é esse sentido de pertença forte e poderoso; intensamente normal. E
aqui estava eu. Em casa.
As pessoas falam sobre como será o Céu. Alguns acham que há nuvens e
anjos a tocar harpa, outros acham que é uma cidade dourada banhada pela
luz do sol da tarde. Ouvi algumas pessoas dizerem que seria o lugar que
mais amavam na Terra: uma praia; um campo; atirar um disco voador ao
cão e brincar até ficar enlameado, e voltar para uma cozinha quente, de
onde a mãe e o pai os chamavam para jantar: pãezinhos quentes com
manteiga e canja de galinha.
Quando a minha mãe morreu, o Céu era para mim uma mancha, um foco
suave, mas eu acreditava que ela estava lá; e, se tivesse de o descrever, em
criança, teria dito que era mais parecido com a versão das nuvens e dos
anjos. Mais velha, deixei de acreditar em Deus e no Céu, mas, quando as
pessoas morriam, ainda me reconfortava imaginá-las noutro sítio. Assim,
via-as sentadas num longo balcão, de bebida na mão, e depois, quando
morria outra pessoa conhecida, eu imaginava-a a juntar-se às outras no bar,
a dar gargalhadas, a sorrir, a darem as boas-vindas umas às outras com uma
palmada nas costas. Até imaginava uma pequena televisão na parede
daquele bar, com imagens do que estava a acontecer na Terra. Acho que, se
existe um paraíso, não o podemos escolher. Mas eu estaria morta, de
certeza? Nesse caso, o meu paraíso era a minha antiga sala de estar.
Não tinha imaginado que morrer fosse tão difícil. Imaginava talvez um
acesso de desconforto, depois uma luz brilhante, caminhar em direção a ela,
etc., e depois, nada. Mas a minha passagem para o Céu, se é que tinha sido
isso, fora muito mais difícil.
Enquanto rodava na sala de estar da minha infância, tive de ser franca
comigo mesma. Depressa começava a pensar que poderia não ter morrido,
mas voltado para trás no tempo. Eu sabia que não era possível e, por norma,
quando as pessoas viajam no tempo (estou a falar de livros e filmes), não
costumam magoar-se tanto. Não entram simplesmente num armário e saem
do outro lado? A grande diferença era que isto era real. É claro que não ia
ser como nos livros de histórias e filmes; afinal, não são autobiográficos. A
questão é que, na altura, na sala de estar, eu começava a pensar que não
estava morta. Não me sentia morta. Talvez esperassem que eu me
questionasse se estaria a sonhar, mas tive centenas de sonhos e aquilo não
era um sonho. Testei-o de todas as maneiras cliché, até me belisquei.
Sempre foi difícil para mim acreditar em coisas que não podia ver com os
próprios olhos; sempre fui cética quanto a tudo o que lia nos livros. A não
ficção pode ser tão fantasista para mim como a ficção, quando considero
que esses livros foram escritos por pessoas que somente me contavam algo
que tinham lido ou ouvido algures. Suponho que era por isso que achava
difícil acreditar em Deus e partilhar da fé do Eddie. Se não o vejo, tenho um
problema com a sua existência. Quero dizer, acredito em germes, ainda que
não consiga vê-los a olho nu, porque eles estão lá, pelo menos, para serem
vistos ao microscópio.
Se ao menos, se ao menos, pudesse ver-se Deus ao microscópio.
Havia mais coisas abstratas em que eu acreditava, apesar de não as ver ou
compreender, como a eletricidade e a forma como faz as lâmpadas
acenderem-se, ou a aerodinâmica e como essas forças levantam um avião do
chão. Os resultados físicos dessas coisas eram prova suficiente para mim.
Tudo isso num esforço para explicar que eu sempre, sempre, confiei nos
meus sentidos. Enterrei os dedos dos pés no tapete e toquei nas agulhas da
árvore de Natal. Agitei um dos enfeites e ouvi tocar um pequeno sino
dentro. Lambi os lábios e senti o sabor do sal, e um bocado de sangue;
fechei os olhos e respirei fundo, sentindo o cheiro da minha casa da
infância. Uma coisa que não se pode descrever, mas que é tão nítida como o
padrão do papel de parede.
Nunca antes tinha desconfiado dos sentidos perante tão esmagadora
prova. Se conseguia ver, cheirar, ouvir, sentir e saborear, então tinha de ser
real. Mas agora invertia-se o meu sentido de realidade: a confirmação do
meu ambiente físico dava-me prova de algo que eu sabia que simplesmente
não podia ser verdade. Nunca tinha tido uma prova tão sólida e inequívoca
de alguma coisa ser real e, ao mesmo tempo, não acreditar nela. Não sabia
se tinha fé suficiente para acreditar no que todos os sentidos me gritavam:
que a única verdade possível, por mais impossível que fosse de aceitar, era
que eu tinha viajado para trás no tempo. Era a explicação mais razoável que
me ocorria. Para uma rapariga que pensa que Deus é inverosímil, era
realmente impressionante.
*
Considerei a estranheza da minha situação imediata: era de noite e eu
estava em casa de outros, provavelmente eles estavam a dormir e, se me
encontrassem, iria ser complicado. E quando digo «eles», é claro que estou
a falar da minha mãe. Da minha mãe. O coração parou-me por um
momento, falhou um batimento e, quando recomeçou, bateu com força.
Veria novamente a minha mãe? Estaria ela lá em cima?
A questão de regressar a casa, com a qual me refiro a voltar para o Eddie
e as meninas, não me ocorreu até eu me persuadir de que devia estar no
passado. Não me sinto confortável quando as minhas filhas se afastam de
mim. Só me sinto mesmo à vontade quando estou no mesmo edifício do que
elas. A única exceção é quando sei que estão com o Eddie, porque ele é a
única pessoa no mundo que as ama como eu. E essa, suponho, é a maior fé
que tenho no mundo: quando não vejo as minhas filhas, mas sei que estão
com o Eddie, para mim, isso é fé. Uma versão de medo – para a qual não
tenho termo de comparação – ergueu-se e preencheu-me todas as células do
corpo, um medo como nenhum outro, de que poderia nunca mais ver as
minhas filhas. As vezes em que as tinha perdido de vista, quando dobravam
a esquina no fim de um corredor de supermercado, a vez em que a Evie se
perdeu no centro comercial e a segurança trancou as portas todas, e eu gemi:
E se ela já estiver fora das portas? Tudo o que imaginei, diariamente, de
todas as coisas que era possível correrem mal, que poderiam significar que
elas se perderiam de mim para sempre, todas essas fantasias não eram nada
comparadas com isto.
Desta vez era tudo diferente, porque era eu quem estava perdida. Eles não
conseguiriam encontrar-me e eu não conseguia alcançá-los. Se me tornasse
prisioneira do tempo, então as minhas filhas – como a minha mãe – seriam
relegadas apenas para a memória, e eu seria relegada para a delas. Sufocava
de medo, e depois fui obrigada a lançar-me num nível de fé de que nunca
necessitara. As meninas estavam com o Eddie, mas eu não estava num
prédio diferente, nem num país diferente: estava num ano diferente. O facto
de estar trinta anos afastada das minhas filhas tornava tudo cinzento. O ar
zumbia-me nos ouvidos e o meu braço oscilava, em busca de algo a que se
agarrar.
Acocorei-me e pressionei as mãos no chão. Atingiu-me como um martelo
que, se eu não podia voltar para casa, para as minhas filhas, então eu seria
como uma mãe que morreu de repente, deixando os que mais ama ao
cuidado de outros. Assim, rezei para que o Eddie estivesse a salvo, bem e
forte, porque as meninas precisavam dele. Tentei lembrar-me dos últimos
momentos que passei com eles: no escritório, tinha sido bom. Seria uma boa
memória de mim, para eles. Fechei bem os olhos e imaginei a Esther e a
Evie. Vou voltar para vocês, sussurrei.
Levantei-me devagar, com as mãos nas ancas. Oscilei, mas estava bem.
Cheguei até aqui, disse alto, numa voz trémula, posso voltar para casa. Era
a minha própria hospedeira do ar, a única mulher a bordo que podia
garantir-me que, a certa altura, conseguiria voltar ao lugar onde comecei.
Não confiava muito na sua voz instável, mas que escolha tinha eu?
Senti necessidade de proteger a caixa: era o meu transporte para casa, o
bilhete para ver as minhas filhas novamente – ou eu assim esperava –,
portanto, não era de admirar que tivesse a presença de espírito para a
proteger.
*
Embora estivesse escuro, eu conhecia a casa. Virei à direita, para a
cozinha, e destranquei a porta das traseiras. A corrente de ar gelado
alimentou a convicção de que não estava morta, em coma, nem a sonhar de
maneira nenhuma. Em sutiã, calças de ganga e descalça, depois de perder a
camisola do Eddie na queda para cá, coxeei por um pequeno caminho até ao
barracão do jardim, sabendo que a corda de estender a roupa corria paralela
à minha direita. O ferrolho da porta do barracão sempre fora um pouco
perro e eu sabia precisamente como o soltar. Atirei a caixa da bola saltitona
lá para dentro e fechei outra vez a porta antes de voltar para casa. Não
tranquei a porta da cozinha, para o caso de ter de sair depressa. Mentalizei-
me junto ao lava-louça por um momento antes de fazer o que o meu coração
desejava: subi as escadas, para o quarto da minha mãe.
Junto à porta dela, hesitei. O quarto estava escuro, mas a luz que precedia
a aurora banhava o quarto, tornando-o cinzento, em vez de negro. Eu tinha
algum receio de que ela estivesse acordada, mas também de que não fosse a
minha mãe quem estava na cama, portanto era cem por cento medo, de um
tipo ou de outro. Pela respiração, percebi que estava a dormir. Eu tinha
sustido a respiração e esta saiu como um calafrio, a boca seca, as palmas das
mãos húmidas. Estaria prestes a ver a minha mãe pela primeira vez em
trinta anos, uma mãe que eu, durante todo aquele tempo, só conheci como
estando morta? A esperança lançou-se-me pelas minhas veias, enquanto o
resto do meu ser paralisava. Esperei, rezei, pelo impossível.
Ganhei forças e avancei até ao lado dela da cama, abaixando-me.
O rosto adormecido da minha mãe. Inspirei profundamente. Ela tinha os
lábios um pouco abertos e a sua respiração tocou-me, suave e quente, a
própria essência de viver. Esta é a respiração da minha mãe, lembro-me
dela, pensei. O cabelo castanho-claro varria-lhe a testa. Tinha uma franja
bastante longa e ar de ter sonhado que estava na frente de um navio, no mar,
deixando a brisa fazer-lhe o que queria. Olhei para o milagre das suas
pestanas e para os dedos enrolados sob a face. Inclinei-me para mais perto,
para lhe cheirar a pele, e os meus olhos encheram-se de lágrimas: o seu
creme de rosto, um toque de rosas. Eu tinha sentido exatamente o mesmo
cheiro numa senhora no supermercado, uma vez, e seguira-a durante um
bocado.
O meu rosto estava a um centímetro do da minha mãe. Inclinei a cabeça
um pouco para a frente, o nariz quase a tocar-lhe a pele. Senti as lágrimas
que me caíam pelo canto dos olhos a encontrarem-se sob o meu queixo.
Queria acordá-la. Escapou-me um soluço silencioso. Queria abaná-la e
dizer-lhe: Mãe, estou aqui. Murmurei as palavras, precisando de as dizer em
voz alta. Mas era mais velha do que ela, mais de dez anos, e, apesar da
confusão emocional que sentia ao ajoelhar-me junto à cama, sabia que a
assustaria se ela acordasse agora.
Levantei um pouco as cobertas e senti o calor do corpo adormecido. O
desejo de me arrastar para junto dela, como tantas vezes fizera em criança,
era irresistível. Mas eu não era uma criança. E, no entanto... E, no entanto,
era filha dela. E perdera muitos anos de noites a adormecer com a mão dela
sobre a minha cintura, com ela a adormecer a meio de uma frase, enquanto
me contava uma história para afugentar um sonho mau com um bom.
Ela suspirou e eu pus-me em pé em silêncio, por um momento limitando-
me a observá-la. Agora não era hora para um reencontro. Eu teria de pensar
nalguma maneira de o fazer acontecer. Continuava em calças de ganga e
sutiã, por isso tirei uma camisola e umas meias das gavetas dela, vesti-as e
saí do quarto, relutante em perdê-la de vista.
Fui para o meu quarto, para olhar para mim. E lá estava eu, uma criança
linda. Senti-me mais confiante com o meu eu mais novo do que com a
minha mãe. Sentei-me na beira da cama e afundei-a tanto que o meu eu
adormecido se afastou da parede na minha direção. O movimento tirou-lhe
o pequeno polegar da boca e distingui pequenas marcas de mordidelas na
pele. Afastei-lhe os cabelos do rosto, do meu rosto; um caracol tombou
desobedientemente para a frente. Passei o meu polegar sobre a face perfeita
e sussurrei-lhe ao ouvido: És boa, és generosa, és inteligente, és engraçada,
que é o que sussurro ao ouvido das minhas filhas todas as noites, enquanto
dormem. Não sei porque comecei a fazer isto, embora possam já ter
questionado se é porque o fazia a mim mesma quando tinha seis anos.
Estava a ficar mais claro lá fora e os olhos da criança pestanejaram. Disse
Mamã, com uma voz cheia de sono, e eu beijei-a – beijei-me. Detive-me
brevemente à saída e toquei na lombada dos livros da velha estante, A
Magia da Árvore Longínqua – eu adorava-o –, e depois desci as escadas
sem fazer barulho.
Encostei-me ao balcão da cozinha, o coração a bater com força. A minha
mãe estava viva, lá em cima. Viva. Eu era a criança que dormia lá em cima.
E agora? Saltei um pouco na ponta dos pés, dei uns passos em frente, abanei
a cabeça, dei uns passos para trás – literalmente não sabia que direção
tomar. Expirei de forma brusca, uma respiração longa e estabilizadora. Parei
e pus as mãos no ar, como se a acalmar um público excitável. Eu precisava
de me controlar. Apesar de tudo, tinha de ser razoável, e disse Controla-te
em voz alta. Tinha de pôr o cérebro a funcionar antes que o coração me
catapultasse escadas acima, para os braços da minha mãe.
Embora estivesse frio lá fora, não podia ficar em casa. Portanto, abri
silenciosamente uma gaveta que sabia cheia de sacos de plástico
amarfanhados e tirei um. Cortei umas fatias de pão – reparariam se
desaparecesse uma forma inteira. Fiz tudo devagar e o mais silenciosamente
que consegui. Levei uma faca e um frasco de compota. Havia sempre muita
compota no aparador, e lembrei-me de que isso se devia ao facto de Henry
ter um lote de terreno e fazer muita. Não havia garrafas de plástico para
encher de água. Como tinha a boca seca de pó, bebi diretamente da torneira.
Queria levar alguma água comigo, mas não sabia onde a pôr. Lembrei-me
depois de que a minha mãe limpava e guardava os frascos vazios para
devolver ao Henry, portanto enchi dois, enrosquei as tampas, abanei-os para
garantir que não iam vazar e meti-os no saco com o pão.
Eu precisava de sapatos, e havia dois pares de galochas junto à porta das
traseiras: um pequeno par amarelo (meu) e o preto da minha mãe. Com
certeza notariam a falta das botas, mas de momento a minha necessidade era
maior e a minha mãe tinha outros sapatos. Assim, calcei-as e fui até ao
barracão, para comer, esperar e decidir o que fazer a seguir.
4
A sposição
mãos da minha mãe agitavam-se no ar, reviviam a minha posição, a
do carro, analisando todos os e se. A voz falhou-lhe e ela parou,
segurando o rosto da pequena Faye nas mãos. Olhou para mim e nos seus
olhos pairavam todos os poderia-ter-sido.
– Como poderei recompensá-la? – disse ela, quase inaudível.
– Não há necessidade – respondi. Podia ter explicado que o meu ganho
por ter impedido o meu eu mais novo de ser atingido por um automóvel era,
no mínimo, tão grande como o dela. Mas deixei que apenas me titilasse, de
uma forma meio assombrosa.
A minha mãe respirou fundo e sorriu.
– Estamos bem – disse ela, como se estivesse se a garantir a si mesma que
era verdade. Ela tagarelava enquanto caminhávamos e eu escutava, a
absorver-lhe as palavras como um pedaço de pão em molho. O seu tom era
familiar, calmo e excitado ao mesmo tempo, como o de um adulto que conta
a uma criança uma história que promete aventura. Disse-me o que faríamos
quando chegássemos a casa dela: veria os meus ferimentos e faria chá, e
achava que devia preparar-me um banho. – Vai ajudar a fazer sair a areia. –
Olhou de perto para o meu rosto, outra vez, e para o braço, e sorriu. – Verei
isso quando chegarmos a casa. Sou uma boa enfermeira.
– É enfermeira? – perguntei.
– Não de verdade, mas sou uma ótima enfermeira a fingir. Damos uma
vista de olhos a isso e, se for realmente mau, creio que teremos de a levar a
um hospital.
– A mãe não confia em hospitais, diz que nos põem mais doentes. – A
pequena Faye deslizou a mão para a minha e senti algo como um choque
elétrico a atravessar-me. Naquele momento, lembrei-me das histórias em
que não se deve deixar o antigo eu ver o eu atual ou algo acontecerá, algo
mau. Bem, eu teria de descobrir as regras por mim mesma, e esperar não
quebrar nenhuma importante.
– Bem, sim, acho que pode acontecer, ir-se ao hospital com uma coisa e
sair-se com algo ainda pior – disse eu, dirigindo uma expressão assustada e
pateta à pequena Faye. Perguntei-me se as infeções respiratórias da minha
mãe poderiam ter sido tratadas, se ela tivesse ido a um hospital. Ela olhou-
me de lado.
– Isso acontece – disse a Jeanie, em voz baixa, de repente séria.
– O que fazemos? – disse eu, a olhar para a pequena Faye. – Temos o
mesmo nome e vamos ficar baralhadas.
Ela riu-se.
– Posso ser a Faye Um e tu a Faye Dois, já que chegaste depois.
A Jeanie riu-se.
– Bem, tecnicamente, ela chegou primeiro – disse, acenando com a
cabeça na minha direção e piscando-me o olho, como fizera na casa da Em
e do Henry. Eu tinha esquecido as piscadelas da minha mãe, mas eram-me
muito familiares – devo tê-las guardado no frio, na mente. Arquivara
também o hábito que ela tinha de pôr o cabelo para um lado, por cima do
ombro.
– Podemos chamar-te pelo nome do meio – disse a pequena Faye. – Qual
é?
Comecei a dizer «Susannah», sem pensar, mas detive-me mesmo a tempo
e, em vez disso, disse «Sarah». Seria coincidência a mais ter o mesmo nome
do meio.
– Temos as mesmas iniciais! – disse a pequena Faye, num sussurro
respeitoso, como se tivesse encontrado um tesouro.
– Uau! – disse eu, baixando-me em frente à pequena Faye. – Podíamos
ser gémeas!
– Bem, ela é mais parecida consigo do que comigo – disse a Jeanie.
– Queres chamar-me pelo nome do meio, então? – perguntei. – Não me
importo.
– Não, chamo-te Faye, não vamos confundir-nos. E obrigada por me
salvares a vida. Tenho a sensação de que vamos ser amigas. E tu?
– Amigas? Eu e tu? – Fingi estar indecisa por um momento, depois
peguei-lhe na mão outra vez e sorri. – Garanto que sim.
*
– Tenho uma camisola igual a esta! – disse a Jeanie, segurando no ar a
camisola preta rasgada que eu tirara da sua gaveta naquela manhã. – Quer
dizer, suponho que todos tenham. – Estávamos de volta a casa, no quarto da
minha mãe. Eu tinha tirado a roupa e vestido um dos seus roupões. Ela
perguntou-me se eu queria primeiro um chá ou um banho. E eu escolhi o
chá. Mas ela sugeriu que eu tirasse a roupa e vestisse de imediato algo
quente. Eu estava preocupada que ela visse as botas – as botas dela –, por
isso pu-las depressa no fundo do guarda-vestidos; tudo o resto pousei na
cama dela. As minhas calças de ganga estavam rasgadas e completamente
imundas. – Pode vestir alguma roupa minha, depois do banho. Parece-me
que estas estão arruinadas, não acha? – Ela franziu o sobrolho mais uma vez
para a camisola e depois embrulhou-a, pronta para deitar fora.
Acenei com a cabeça e olhei para a minha mãe. Queria lançar-me numa
chuva de questões, perguntar-lhe todas as coisas que gostariam de perguntar
à vossa mãe antes que seja tarde de mais. Mas não queria que ela pensasse
que eu era doida ou intrometida, queria que ela gostasse de mim. E também,
essa normalidade, só estar perto dela, era viciante. Era o luxo de tomar um
privilégio como garantido. Apesar dos acontecimentos que tinham
precedido este momento, eu comprazia-me só por estar perto desta mulher.
Com franqueza, uma mulher que eu não conhecia. Naquele momento, não
parecia importante uma lista de factos sobre ela.
Creio que é assim quando se sai da prisão e se vê um ente querido pela
primeira vez ao fim de vários anos. Sente-se um impulso frenético de
compensar o tempo perdido, o que não é praticável; então, pergunta-se
simplesmente se quer tomar alguma coisa, e como está, como se faria se o
tivéssemos visto no dia anterior. Não se pode permanecer num estado
permanente de excitação, independentemente do quão emocionante ou
profunda é a situação. A certa altura, talvez pouco depois do grandioso
momento, o mundo pode voltar a um estado de razoável normalidade.
Pensei na areia numa garrafa de água transparente, agitada de modo a que
os grãos voem e rodopiem, para depressa se depositarem no fundo, no lugar
onde começaram. Todos voltamos a um equilíbrio, é natural; homeostasia.
Acho que o momento em que deixamos de encontrar um equilíbrio interior
em resposta a acontecimentos extraordinários é o momento em que
enlouquecemos. Mas, por favor, não pensem nem por um instante que a
gravidade, a pura enormidade do que estava a acontecer, me escapou.
E, de qualquer maneira, sabem, eu não desejava necessariamente ver
respondidas todas as grandes questões. Ainda não. Eram as pequenas coisas
que me fascinavam, como quando ela mordiscava o canto do polegar ao
pensar em algo. Como ela gostava de segurar o rosto da Faye quando a Faye
lhe dizia algo. Como por vezes interrompia a Faye enquanto esta falava,
para dizer que a amava. «Mamã», dizia a Faye, «Ouve-me!»
E eu aprendia como a minha mãe tratava um estranho, via-a pelos olhos
de um adulto. E essa experiência era nova para mim.
*
Sentámo-nos à mesa da cozinha. Tracei os contornos de pequenas flores
cor de rosa e rebentos verdes que decoravam a toalha de mesa, com o dedo,
e a minha mãe esfregou-me o rosto com água morna e Dettol numa bola de
algodão. A concentração do seu olhar permitiu-me percorrer-lhe as feições.
Vi as mãos dela a trabalhar e insisti comigo mesma para consagrar tudo à
memória, para poder, de futuro, recordar as meias luas brancas na base das
suas unhas. Observei o seu rosto como se mais tarde me fossem interrogar
sobre ele. A cor dos olhos; o dilatar das narinas quando cheirava; as orelhas
perfeitas, com correntes de prata a balançar; o tom de pêssego da pele; a
sarda, a sudeste do olho esquerdo; os dentes brancos saudáveis e o sorriso
grande e fácil. Ela sorria como se fosse mais fácil sorrir do que ter o rosto
em descanso. Falava enquanto trabalhava, levantando-me a mão para a
examinar mais de perto, o rosto animado. Parecia falar diretamente com a
minha mão, e isso deu-me oportunidade de me limitar a absorvê-la.
Serviu chá.
– Disse que tem filhos?
– Sim. Duas meninas, a Esther e a Evie.
– Meninas boas ou más? – piscou novamente. A minha mãe perguntava
sobre as netas que nunca conheceria.
– A Esther é muito sensata, é como uma professora em casa – disse eu. –
Põe as cadeiras da sala de jantar como se estivéssemos numa pequena sala
de aula; eu e a Evie sentamo-nos nelas e a Esther faz a chamada e faz-nos
perguntas. Até nos vê as unhas, como as professoras antigas, e repreende-
nos. A Evie é muito engraçada. Parece um anjo – continuei. – Mas arrota
como um trabalhador da doca depois de uma cerveja. Gosta de chocar os
idosos, arrotando alto quando eles já disseram que ela é muito querida. É
mais nova do que a Esther, mas esmurra quem ferir os sentimentos da irmã.
A Jeanie mostrou um sorriso aberto.
– Gostava de ter uma irmã – disse ela.
– Tem irmãos? – perguntei, já sabendo a resposta.
– Não – respondeu. – Não tenho ninguém.
– Nenhuma família? Mãe e pai? – Eu sabia que não tinha ninguém, mas
não sabia porquê.
– Ninguém. – Caminhou até ao frigorífico e abriu-o, suspirando como se
o vazio lá de dentro fosse parte do vazio mais amplo da família. Fechou a
porta e encostou-se a ela. A figura esbelta constituía uma imagem
impressionante. A saia fluída e o top folgado nada faziam para lhe esconder
o corpo quase frágil. – Morreram. Há muito tempo.
– Como?
– Eu era muito nova. A minha mãe foi para o hospital com uma doença e
não voltou, morreu. Depois, pelos vistos, o meu pai ficou logo doente e
também morreu.
– Caramba – disse eu.
– Pois. Tenho algumas fotografias antigas, mas com franqueza não
consigo lembrar-me deles. Quando penso nos meus pais, só vejo as
fotografias, não a eles, e quando levei a Faye ao hospital, uma vez, o cheiro.
Oh, Deus, isso lembrou-me deles. E não de uma maneira boa; só me
lembrou perda, confusão.
– Famílias de acolhimento? – perguntei.
– Sim, uma casa atrás da outra. Temos pressa de crescer, quando isso
acontece; temos só de sobreviver tempo suficiente para sair e depois, bem,
sair. Foi isso que fiz. Em todo o caso, Miss Jornalista, e você? Onde estão
os seus pais?
A minha garganta apertou-se para me impedir de dizer algo ridículo.
– Não tenho irmãos nem irmãs. A minha mãe anda por aí. – Lancei-lhe
um olhar significativo. – Não conheço o meu pai.
– Como é a sua mãe?
– Oh, não a conheço muito bem, o que é uma pena. Não a vejo muitas
vezes.
– Bah – exclamou a Jeanie, agitando a mão como que a afastar uma
mosca imaginária e puxando uma cadeira para se sentar à minha frente.
– O que é?
– Não precisa de a conhecer, não se preocupe com isso.
– O que quer dizer? – perguntei.
– As pessoas cometem todas o mesmo erro, e já pensei muito nisto. – Deu
um longo gole no chá e assumiu a postura de uma especialista no banco das
testemunhas, no tribunal. – Não pode conhecer os seus pais – disse. – Por
isso, não deve perder tempo a pensar que é a coisa mais importante. Pode
passar a vida toda a tentar. É uma tremenda perda de tempo! No que diz
respeito aos pais, só três coisas importam. – Ela fez uma pausa dramática e
bebeu mais chá muito devagar.
– Que são...?
Os olhos dela brilharam.
– Ainda bem que pergunta. A primeira coisa mais importante é saber que
os pais nos amam. Alguns pais erram aqui, assumem que os filhos sabem.
Mas temos de ser claros, dizer aos filhos que os amamos, quanto e porquê.
E se fomos a criança e não nos sentirmos amados, podemos esquecer a
maçada de os conhecer. O amor é a base. – Pensei na pequena Faye lá em
cima e os meus olhos dirigiram-se para o teto, onde podíamos ouvi-la a
andar e a brincar no quarto. A Jeanie apontou para cima. – Aquela menina
sabe que a amo; pode não saber mais nada, mas ficará bem comigo.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas num instante e o queixo enrugou-
se-me. Inclinei a cabeça e pus a mão sobre a boca para conter um soluço,
abanando a cabeça para afastar o fluxo de lágrimas, para conter o rio. Mas
tinha-me saltado a rolha do buraco do coração, e com ela veio água salgada
e emoção, como lava quente e a derramar-se pelo rosto, um gemido de dor
como um bramido silencioso que emergia de um lugar profundo, por trás de
uma porta fechada no peito.
– Oh, coitadinha, anda cá – disse a Jeanie, dando a volta à mesa e
abraçando-me. Era um abraço estranho, de lado, e não lhe bastava. Arrastou
a cadeira comigo nela e pôs os braços à minha volta. Afastou-se para me ver
o rosto e secou-me as lágrimas com os polegares. Mas eram demasiadas.
Abraçou-me novamente, e eu deixei-me cair nos seus braços. Encontrei um
ponto em que encaixava perfeitamente, eu no abraço da minha mãe, o meu
rosto húmido na curva do seu pescoço.
– Desculpa – disse eu, com a voz nasalada junto aos cabelos dela, que
estava a molhar.
– Não faz mal – disse ela, e apertou-me com mais força para provar que
não se importava que uma estranha lhe chorasse pelo corpo todo, lhe
enchesse de ranho a camisa de cornucópias. Depois de algum tempo,
afastou-se, mantendo um aperto tranquilizador nos meus ombros. – É por
causa da tua mãe? – disse. Assenti. – Queres parar de falar sobre isso? –
perguntou, quase um sussurro.
– Não – respondi, meio abrutalhada. – Quero saber qual é a segunda coisa
importante com os pais.
A minha mãe voltou ao lugar e deu-me a mão sobre a mesa.
– Depois do amor, a segunda coisa que importa é só estar com eles.
Tempo. Simples. Amor e depois tempo.
– Algumas pessoas não podem fazer isso, não têm oportunidade de passar
tempo com os pais – disse eu, entre fungadelas.
– Eu sei – disse ela. – Eu não tive. E não sei se os meus pais me amavam.
Assumo que sim, mas dói-me não saber ao certo.
– Tempo e amor – disse eu.
– Sim, mas não por essa ordem. Amor primeiro, depois tempo. Não faz
sentido passarem tempo juntos se não estiver lá o amor. Se tens apenas uma
dessas coisas, o amor é o rei. E é isso, é a isso que tudo realmente se
resume, o resto é consequência do amor e tempo, como a proteção,
segurança e todas essas coisas. É tudo importante, mas são derivações.
– Disseste que eram três coisas.
Ela afastou novamente a mosca imaginária.
– Oh, isso – disse. – Bem, a terceira coisa é conhecer os pais enquanto
pessoas.
– Disseste que é uma perda de tempo.
– Eu sei, mas a compulsão para o fazer é tão forte que não se consegue
ignorar.
– Isso é uma questão difícil – disse eu, e rimo-nos.
– Só podes conhecer os teus pais como pais, não podes conhecê-los como
mais nada. Há uma barreira no que toca a conhecer os pais para lá desse
papel.
– E se souberes que são teus pais, mas eles não souberem?
Ela franziu a testa e encheu as bochechas de ar, pareceu pensar e depois
exalou.
– Em que mundo? – perguntou.
– Hipoteticamente, apenas – respondi. – Digamos que conheces a tua mãe
e sabes que é a tua mãe, mas ela não sabe que és a filha dela. Podes então
conhecê-la como pessoa?
– Não – disse a Jeanie sem hesitar.
– Porque...
– Porque a filha saberá que é a filha. Só pode vivenciar a mãe enquanto
mãe, não como outra coisa. A questão maternal é muito forte, é um muro
impenetrável de incognoscibilidade. Podes conhecer algumas coisas, mas
não podes conhecê-las para lá de as conhecer como progenitor, que é um
tipo diferente de conhecimento. Uma espécie de não conhecimento.
Percebes?
– Sim, acho que sim.
– Pesado – disse ela, pondo muita ênfase em todas as sílabas e soando
como uma hippie drogada.
– Sim, mas não faz mal – respondi –, eu aguento o peso.
A Jeanie pegou-me nas mãos e apertou-as.
– Estás bem? – perguntou.
– Sim – disse eu, e naquele momento penso mesmo que estava.
– Olha, nenhuma de nós tem irmãs. Queres adotar?
– Hein? – perguntei.
– Adotarmo-nos uma à outra. – respondeu. – Queres ser a minha amiga-
irmã?
– Bem, sim, mas... Acabámos de nos conhecer – disse eu.
– Já sei coisas sobre ti que poderia levar anos a saber. E sei que tens bom
coração. Além disso, atiraste-te para a frente de um carro pela minha filha.
Senti o rosto a aquecer e o coração acelerado. Pensei na Cassie e na Clem,
em como as considerava irmãs, como era importante esse vínculo, e em
como talvez – para a minha mãe –fosse esse o tipo de aliada de que
necessitava. Na verdade, não importava o que a Cassie e a Clem pensavam,
se bem que eu tinha a certeza de que elas gostariam da minha mãe se nos
vissem juntas agora, e concordariam que ela precisava de uma irmã.
– Irmãs – disse eu. A Jeanie soltou-me as mãos momentaneamente,
cuspiu na palma da mão e depois voltou a agarrar-me a mão, dando um
forte aperto. No andar de cima, ouvi de novo a pequena Faye. – Ela parece
ser uma criança agradável – disse eu, ansiosa por descobrir o que a minha
mãe diria sobre mim em criança. Estava fascinada e procurava elogios, não
o nego.
A Jeanie suspirou e apoiou o queixo nas mãos, olhando melancolicamente
para o vazio.
– Eu não poderia pedir uma filha melhor. Por vezes sinto que sou eu e ela
contra o resto do mundo. E sinto que estamos a ganhar! Amo-a tanto, quero
consumi-la. Quero ser ela, para sentir como é ser tão amada – e segurou os
punhos junto ao coração.
Olhei para a minha mãe, sustive a respiração enquanto ela disse aquelas
palavras, senti uma lágrima a deslizar e descer-me pela face. A Jeanie
pousou a mão sobre a minha.
– Hoje sofreste um grande choque, em parte por causa do carro, e antes
disso também caíste, não foi o que disseste? Depois, eu desenterrei o teu
passado – declarou. Bateu palmas uma vez, mudando o rumo da conversa. –
Bem, se queremos ser irmãs, temos de nos atualizar, porque podemos
descobrir mais uma sobre a outra. Vamos fazer o jogo das perguntas, está
bem?
Limpei o nariz com as costas da mão e assenti. A Jeanie puxou da manga
um lenço limpo e quente e entregou-mo.
A comida preferida da Jeanie é pudim de tâmara; cor preferida: azul;
atividades preferidas: ir à beira-mar, jogar máquinas, remar e comer fish
and chips; romance preferido: Rebecca; se tivesse muito dinheiro, levaria a
Faye a passar férias a Espanha e compraria uma boa televisão; por vezes
sente-se sozinha; sente falta de ter um homem por perto; pior trabalho
doméstico: aspirar; coisas preferidas para fazer com a Faye: bolos e
biscoitos, jogar cartas e hula hoop. A sua matéria preferida na escola era
arte; tem medo de aranhas e alturas; tem uma infeção pulmonar todos os
anos; não tem família, tirando a Faye; gosta de gim, mas não de vodca; sabe
de cor o poema The Owl and the Pussycat; sabe curar soluços; uma vez
roubou um par de sapatos e deixou os velhos na loja; se pudesse passar um
dia com a mãe outra vez, passá-lo-ia a conversar, de mãos dadas; espera que
um dia a filha tenha um casamento feliz e seja abençoada com filhos; a
coisa mais difícil que já fez foi afastar-se do amor da sua vida.
– Espera aí, o quê? – disse eu.
– Por agora, acabaram-se as perguntas. – Abanou o dedo. – É a minha
vez. Fizeste vinte perguntas. Terás de esperar se quiseres saber mais. – A
Jeanie baixou a voz. – Não posso falar sobre isso em frente à Faye, ela não
sabe nada sobre ele.
Naquele momento, a Faye entrou na sala e bateu com um baralho de
cartas na mesa. Reconheci a imagem dos animais à frente: Happy Families.
Adoro esse jogo, as ilustrações das famílias que surgem nas cartas
permanecem nas raízes da minha infância.
– Vamos jogar? – disse ela.
A Jeanie olhou para mim, de sobrancelhas levantadas, e disse:
– Porque não?
Descobrir quais as vinte perguntas que a minha mãe me faria e perguntar-
lhe mais sobre o «amor da sua vida» teria de esperar.
Na verdade, teria de esperar bastante tempo. Jogámos algumas partidas de
Happy Families. Sempre gostei mais da família Coelho e da família
Esquilo; são tão bonitos. A minha mãe, pelos vistos, tinha um fraquinho
pelas famílias Rã e Ouriço-Cacheiro, porque parecia que mais ninguém
gostava delas e, portanto, segundo ela, precisavam de mais amor. Não me
lembro de quem ganhou mais jogos ou de quantas vezes jogámos, mas
ainda vejo o meu rosto jovem a rir e a gritar, o desapontamento fingido e as
acusações de «batota» quando alguém ganhava vezes de mais. Lembro-me
de dar conta da maneira como brincava com o cabelo e pressionava a narina
com o dedo enquanto pensava, da mesma maneira que a pequena Faye.
Lembro-me de me sentir presa a um momento no tempo que existia
independente de qualquer outro, como uma bolha no espaço. Lembro-me de
observar a minha mãe a sorrir, a rir, viva, do amor preso na minha garganta.
O dia escureceu e a Jeanie acendeu a luz da cozinha.
– Tens de ir para casa? – disse ela. – O teu marido vai ficar preocupado?
– Ainda não – respondi. – Mas vai preocupar-se em breve. É melhor
pensar em ir embora. – Eu não sabia o que aconteceria a seguir, ou mesmo
se conseguiria regressar a casa. De repente tinha as mãos húmidas só de
pensar no que poderia ou não acontecer quando voltasse a entrar na caixa da
bola saltitona. E se deixasse a minha mãe agora, vê-la-ia outra vez? E se
fosse a última vez? Outra vez.
Ansiava abraçá-la com o luxo de ter a certeza de que a veria em breve, ou
que falaríamos ao telefone. Ansiava por ter um telefone que atravessasse o
espaço e o tempo entre nós. Em vez disso, abraçá-la-ia agora, sabendo que
poderia ser a minha última oportunidade. Era pior do que não saber e, no
entanto, havia esperança. Afastei-me da mesa; ela também se levantou e
abriu os braços.
– Quem sabe como este dia teria terminado se não fosses tu – disse ela
com ternura enquanto me abraçava. E não me largava. – Sou abençoada por
teres entrado na nossa vida, e tenho um bom pressentimento quanto a ti,
Faye. És uma alma-gémea. – Eu não disse nada, com o rosto no cabelo dela.
– Vens ver-nos em breve?
– Sim. – disse eu, lembrando-me de ter lido algures que uma promessa
que talvez não pudesse cumprir era melhor do que nenhuma promessa.
– Chegas bem a casa?
– Vai correr tudo bem – disse eu. Depois olhei para os meus pés.
– Onde estão os teus sapatos?
– Não sei – disse eu, fingindo olhar em volta à procura deles. A Jeanie
trouxe-me o seu par de botas castanhas pelo meio da perna e eu calcei-as. –
Eu devolvo-as – afirmei.
Dei um abraço à pequena Faye e, depois de agradecer as roupas, a
sanduíche e o chá, saí. A memória de sair daquela casa em criança, de bater
à porta da Em e do Henry e de nunca mais ver a minha mãe, repetia-se na
minha cabeça enquanto dava um passo e depois outro para longe dos seus
braços. Olhei para os pés calçados com as botas dela e senti que seguia com
passos que nenhuma filha deveria ter de dar mais de uma vez na vida.
Deixar para trás uma mãe que amava, talvez para sempre. E as lágrimas
correram-me pelo rosto.
7
F ico feliz que continuem aqui, ainda a ouvir. Foi um alívio conversar com
o Louis, mas vocês são muito importantes para mim. Tudo isto que estou
a contar-vos aconteceu há alguns meses, portanto ainda nos estamos a
atualizar. Eu disse-vos que contar a minha história ao Louis era como uma
droga cujo efeito eu sabia que passaria. Bem, contar-vos tudo está a distrair-
me dos sintomas de abstinência, da dor de não ser sincera com o meu
marido. Ainda tenho de vos pôr ao corrente, mas digo que, neste exato
momento em que conto a minha história, ainda não contei nada ao Eddie
sobre o que está a acontecer. E por isso, preciso – muito – que escutem e
acreditem no que estou a dizer.
*
No dia seguinte às cartas, sábado, levámos as meninas a andar de patins.
Quando eu era pequena, andar de patins era, de longe, a minha coisa
preferida. O meu primeiro par de patins tinha rodas de metal e correias que
se apertavam sobre os sapatos. Usava-os nos passeios e ouviam-me a chegar
a um quilómetro de distância. Depois abriu um campo de patinagem na
cidade onde eu vivia, e era para lá que todos iam ao fim de semana. Nessa
altura, podia-se alugar patins. As crianças com dinheiro tinham patins seus.
Eu não era uma delas e não conhecia ninguém assim. De qualquer forma,
patinar com o Eddie e as meninas é muito divertido. Geralmente ficamos lá
umas horas e depois vamos sempre aos hambúrgueres.
Eu sentia-me mais feliz e via que o Eddie também, embora soubesse que
ele ainda devia pensar no que teria acontecido quando me encontrou no
sótão, há umas semanas. Definitivamente estávamos bem um com o outro;
conversávamos sobre as coisas, lidávamos com as coisas, eu tentava
compreendê-lo e ele escutava-me. Eu pensava muito na minha mãe e no
meu eu mais novo. Sentia a sua força atrativa e o desejo – a que se tornava
cada vez mais difícil resistir – de voltar para elas. Queria muito ver a minha
mãe outra vez. Depois de uma pequena amostra da sua companhia, ela era
quase tudo o que eu queria, mas o pensamento daquilo que teria de passar
para voltar dava-me um nó na garganta e fazia-me transpirar. Era como ter
de andar na montanha russa mais assustadora do mundo, uma que pudesse
matar-me, para chegar ao destino mais doce que se possa imaginar. Eu tinha
de voltar, queria ajudá-las – à minha mãe e a mim – mas não sabia como.
Enquanto pensava em como o fazer, a vida real mantinha-me ocupada.
Como acontece muitas vezes quando vamos os quatro patinar, faço uns
circuitos sozinha, enquanto o Eddie e as meninas adotam uma abordagem
menos graciosa: tropeçam uns nos outros, apanham-se uns aos outros,
batem nas barreiras e lançam-se outra vez. Eles riem-se, divertidos. Eu
também adoro, mas perco-me nos meus pensamentos enquanto circundo o
campo, neste sábado mais do que nunca. Enquanto deslizava, tomei
agudamente consciência da respiração que me saía das narinas e senti-me
ultra consciente do meu lugar imediato no universo: viva e presente. Senti-
me governada por uma sensação de calma e propósito mais profunda do que
alguma vez sentira, deitada na cama à noite, a refletir sobre a loucura e
maravilha da minha viagem no tempo.
Acho que a maioria das pessoas experimenta algo semelhante quando
executa uma atividade física repetitiva na qual é hábil: o corpo está
totalmente empenhado e, se se domina a habilidade, a mente fica totalmente
disponível para a exploração de si mesma. Deslizei pela pista e as outras
pessoas que ali se encontravam eram indistintas e irrelevantes para mim;
simples obstáculos, que facilmente se evitam, como pedras no caminho. Até
a minha própria família. Tinha uma vaga consciência do piso de madeira, da
cor de areia polida, e do barulho das rodas que falavam a linguagem do
movimento fácil: das rodas e peso livres, correndo numa superfície lisa. Nas
paredes em volta da grande pista de patinagem havia cartazes eletrónicos,
ao nível dos olhos, que me davam uma vaga impressão de cores vivas ao
publicitarem viagens a lugares bonitos. Eu mal tinha consciência das
imagens luminosas que mostravam montanhas e rios. Circulava sem parar
em rotações preguiçosas e fáceis.
O meu corpo ocupava-se patinar, os olhos ocupavam-se com belas visões
e, na minha cabeça, eu era livre para vaguear por um labirinto – um
labirinto visual – de pensamentos que chegavam, espontâneos: deslizava
com suavidade entre altos muros verdes de folhagem, e na minha mente vi o
Eddie, cercado por mesas cheias de bolos, mordendo uma fatia de pão de ló
e sorrindo. Tu consegues fazer isto, disse ele, olhando para as marcas de
dentes que deixara no bolo e depois outra vez para mim. Na verdade,
consegues fazer melhor. Ser mulher de um vigário, como acabaria
finalmente por ser, envolveria alguns pormenores concretos: iria a eventos
que por norma evitaria e faria muito mais bolos. Não poderia ignorar os
pedidos para oferecer pães e biscoitos caseiros. Já não iria haver uma
verdadeira vida privada para nós. Iríamos tornar-nos propriedade pública.
Estaríamos de serviço, em exposição. Mas se o Eddie fosse um político, ou
uma celebridade, a vida apresentar-me-ia as mesmas exigências. A religião
preocupava-me, em parte por causa da sua intangibilidade, mas os bolos
eram tangíveis, as angariações de fundos eram tangíveis, a bondade podia
ser tangível. Eu conseguia fazer essa parte, conseguia levá-lo a cabo e fazê-
lo bem.
Continuei a patinar, ainda a deslizar, com a vaga consciência de uma dor
agradável nas coxas e consciente também de estar em controlo do que me
cercava. Encontrei alívio ao sentir-me enraizada aqui na terra, e não a voar
pela atmosfera para outro tempo e lugar. Depressa voltei ao labirinto da
minha mente e ali virei algumas esquinas, observando as mãos à minha
frente a varrer as folhas enquanto passava por entre a tópia trabalhada com
cuidado. Vi a minha mãe e até tropecei um pouco. Vi, por um momento, o
chão a entrar em foco nítido. Num instante, estava outra vez firme e o meu
olho interior observava a minha mãe no labirinto. O seu sorriso era em parte
apologético, mas sobretudo de divertimento. Desculpa, mas só tenho isto
para te dar, disse ela, entregando-me um frasco de vidro e o seu livro de
receitas em couro. Isto deve adoçar a tristeza, disse ela, sonhadora. Olhei
para baixo e vi o livro aberto na página do pudim de tâmara. Anda ver-me,
sou a tua mãe, disse, mas quando olhei ela já se fora. Ouvi o eco da sua voz
dizer: Agora vês-me, agora não!
Pensei ter ouvido o correr de um rio, mas era o zumbido das rodas na
madeira. Sem qualquer esforço, a minha mente examinava pensamentos e
preocupações. Isto é que é a meditação? Porque nunca fiz, nunca fiz sequer
ioga, mas, se tivesse de adivinhar, isto era meditação. Continuei a flutuar
pelo meu labirinto cerebral. Enquanto o corpo permanecia na pista de
patinagem, eu estava numa bolha, sem consciência de nada à minha volta.
Senti umas madeixas do cabelo apanhado atrás a voar na brisa gerada pela
velocidade do movimento.
O verde do labirinto era sedutor. Queria inspirá-lo, mas comecei a
experimentar a mesma sensação de nervosismo que associo a estar perdida.
As visões do Eddie e da minha mãe tinham chegado de forma espontânea;
eles estavam lá com mensagens, não muito ocultas. Debatia-me tanto com a
minha mãe como com o Eddie, e com a minha responsabilidade para com
eles, e o que precisavam ou queriam de mim, o que eu precisava e queria
deles. Mas conseguia lidar com isso. A solidão do labirinto era agora mais
difícil de suportar do que as minhas responsabilidades mais óbvias; uma
solidão que parecia uma fome.
Estava certa de que o labirinto tinha mais para me mostrar, mas antes que
o centro pudesse revelar-se perante mim, bati numa parede, ou algo
parecido com uma parede. Ficara totalmente hipnotizada com as estranhas
visões oníricas e, claro, mais cedo ou mais tarde, algo iria meter-se no
caminho e perturbá-las. Neste caso, foi um homem largo que entrou no
campo e se meteu em dificuldades. Queria algo a que se segurar, para se
estabilizar, mas estava muito longe das extremidades e optou pelo chão.
Rolava lentamente, como que a tentar tocar nos dedos dos pés. Choquei
com ele a grande velocidade e rolei, desastrada, sobre as suas costas
arqueadas, aterrando com força sobre o cóccix. O embate nas minhas costas
foi sério, e o choque de ser arrancada àquela ditosa meditação e voltar ao
mundo real da dor, pessoas e interações verbais era desagradável, para não
dizer pior.
O Eddie estava com as meninas a tomar uma bebida, mas, ao ver-me cair,
veio e pôs-me de pé. Eu estava bem, e naveguei contra a circulação de
patinadores para me juntar à Esther e à Evie, enquanto o Eddie ajudava o
indivíduo sobre quem eu tombara, qual salto ao eixo.
*
– Foi horrível – disse eu, esfregando o traseiro e dando um pequeno gole
na limonada gelada que me aguardava na mesa.
– Ele acabou mesmo com o teu devaneio – disse o Eddie.
– Ele acabou com o meu estilo – disse eu, olhando para as meninas. – O
que é muito mais grave. – Eles riram-se.
– Agora a sério, estiveste a patinar em devaneio durante meia hora.
– A sério? – disse eu. – Meia hora!
– No mínimo – disse ele, olhando para o relógio. – Deves estar exausta.
– Sedenta – disse eu, esvaziando a bebida. Dei umas moedas às meninas e
pedi-lhes que me trouxessem mais uma. Adoravam ir buscar bebidas de
patins: servir à mesa numa situação de perigo.
– Estavas num mundo próprio – disse o Eddie. Ele estava deslumbrante
com uma camisola preta de gola redonda e calças de ganga de cintura baixa.
O cinto que usava comprei-lho eu nas nossas bodas de couro. Não me
lembro de quantos anos são.
– Estava – disse eu. – Estava a sonhar acordada. A meditar, acho.
– Ali? – perguntou o Eddie, um tanto incrédulo. Olhei de volta para a
pista e concordei que daqui parecia tão distante de um local de meditação
quanto era possível.
– Devo ter desligado do mundo. Estava sozinha com os meus
pensamentos.
– E não nos revelas?
– Pensei em ti, em ser mulher de um vigário, no papel que irei assumir
quando um dia fores ordenado, e como lidarei com isso. Pensei na minha
mãe, em como gostaria de poder vê-la.
Ele deu-me a mão.
– E pensaste isso tudo ali? – Ele abanou de novo a cabeça em direção ao
ruído, da música e da barafunda de malta e membros vacilantes.
– Já sentiste estar tão perdido em pensamentos que não deste conta de
nada ao teu redor? – perguntei.
– Já me perdi em pensamentos, mas geralmente em lugares pacíficos.
Olhei para as meninas, que estavam no balcão a pedir a bebida. A Evie
era como um veado bebé no gelo, atrapalhando-se com o dinheiro e
tentando entregá-lo ao homem que as servia. Eu estremeci.
– Elas ficam bem – disse o Eddie. – Não olhes! Estamos demasiado longe
para as apanhar, se caírem. – Verti o gelo do fundo do copo para a boca e
trinquei-o. – Seres capaz de afastar toda esta interferência e concentrares-te
no teu mundo interior é uma habilidade, Faye. Encontrar a paz na
devastação da vida quotidiana é algo a que aspirar.
– É perigoso, isso é que é – disse eu. – Quase matei um homem. – As
meninas voltaram. Engoli metade da bebida e deixei-as dividir o resto entre
elas; as bebidas com gás raramente são permitidas. Depois bati palmas. –
Mais patinagem? – perguntei. – Ou está na hora dos hambúrgueres?
Todos votámos nos hambúrgueres e, durante o resto do dia, permaneci no
mundo real e voltado para o exterior. Foi divinal.
12
A casa do Louis era imaculada. Eu nunca tinha ido a casa dele e não sabia
o que esperar. Creio que pensei que seria suja, porque os invisuais não
conseguem ver o pó e, por conseguinte, não veem a necessidade de limpar e
arrumar. Conduziu-me a uma sala relaxadamente luminosa: sofás cinzento-
claro macios e um tapete creme; um vaso grande com rosas brancas sobre
uma mesa de centro branca envernizada, que ele contornou com
movimentos de dança hábeis: lado, lado, para a frente, e depois sentou-se.
– A tua casa não é o que eu esperava, Louis – disse eu, despindo o casaco
de malha e voltando atrás para o pendurar num cabide na entrada.
– O que esperavas? – perguntou.
– Não sei – disse, deixando-me cair numa poltrona muito bem estofada
com um padrão geométrico cinzento e mostarda. – Pensei que, no caso de
«homem a morar sozinho», seria mais um apartamento de solteiro: um sofá
disforme e latas de cerveja vazias atiradas para o canto, esse tipo de coisas.
– Não posso ter confusão, andaria sempre a tropeçar. A minha irmã é
decoradora de interiores e encomendou os móveis e tudo; planeámos a
disposição juntos. Ela diz que é uma apresentação bastante austera.
– Tem um ar muito limpo, muito sereno. Adoro.
– Olha as flores – disse ele, apontando ligeiramente para a esquerda delas.
– Lindas. De quem são?
– Quando sei que vou receber visitas, chamo a senhora do lado e ela
corta-me umas flores do jardim dela, põe-nas num vaso, traz-mas para cá,
para disfarçar um pouco a austeridade. Ela também me faz as limpezas.
– Bem, faz um ótimo trabalho, garanto-te – disse.
Fomos para a cozinha, também muito branca e reluzente, e o Louis pôs a
chaleira a aquecer.
– A tua chaleira é vermelha – disse.
– Seja lá o que isso for – disse ele.
– É um elemento de cor que fica bem aqui.
Ao servir o chá, ele pôs o dedo sobre o rebordo da chávena, para parar de
encher quando a água lhe tocasse.
– As minhas mãos estão limpas – disse ele, como se eu estivesse
preocupada que ele contaminasse a bebida. – Espero que não te importes, é
só a maneira mais prática de o fazer.
– Claro que não me importo. – Sentámo-nos na mesa da cozinha, que, ao
contrário de tudo o que eu vira na casa até então, era velha e de madeira,
desgastada de ser esfregada todos os dias durante anos e anos. Passei a mão
por cima; era de uma suavidade incrível.
– Esta era da minha mãe – disse ele, em resposta ao som de deslizar que
as minhas mãos fizeram na superfície. Passou também as mãos sobre a
mesa. – Penso nela sempre que me sento aqui. Ela estava sempre na
cozinha, por isso é apropriado.
– Eu voltei de novo – declarei. O Louis parou o que estava a fazer, que
não era muito, mas houve nele uma súbita quietude, como se tivesse
detetado um leve odor no ar.
– Queres dizer, voltar atrás no tempo? – perguntou, e soltou então uma
espécie de gargalhadinha que me surpreendeu.
– Sim, visitei outra vez a minha mãe e o meu eu mais novo.
– Quando?
– Anteontem. Fiquei uns dias. Mas olha só. – Inclinei-me para frente,
cúmplice. – Quando voltei ao presente, tinha passado o mesmo tempo do
que quando voltei ao passado menos de um dia. Apenas três horas.
O Louis empurrou a cadeira para trás e estendeu a mão para pacote de
biscoitos de chocolate. Tateou em busca da pequena tira que os abria numa
extremidade e tirou um, empurrando o pacote na minha direção.
– Está bem – disse ele, hesitando. – Porque é que estamos a fazer isto aqui
e não no trabalho?
A pergunta desconcertou-me, mas só por um segundo.
– Tirei uns dias de folga, porque não sabia quanto tempo estaria ausente
desta vez, mas acabou por não ser quase tempo nenhum. E mal podia
esperar para te ver e contar-te o que aconteceu, por isso é que vim cá. – O
Louis franziu a testa e inclinou a cabeça para o lado. – Além disso –
continuei –, estou muito contente por ter feito isso, porque adoro a tua casa
e agora conseguirei imaginar-te em casa.
– Está bem – disse ele, recostando-se na cadeira com um suspiro. –
Vamos lá ouvir tudo. O que aconteceu?
Lancei-me, ansiosa, no meu relato: ficar pedrada com a minha mãe,
pensar em roubar os patins, mas depois trocá-los pelo anel de noivado; o
pudim de tâmara e a premonição da minha mãe de que morreria jovem; o
seu pedido para que eu tomasse conta da Faye, se isso acontecesse, e a nova
informação sobre o meu pai. O Louis comia os biscoitos com método, com
ar de juiz entediado, enquanto eu falava e, quando parei, ele limpou as
migalhas da boca.
– Então – disse eu –, o que achas?
Ele expirou profundamente.
– Bem, deste-me aqui muita informação, Faye, não sei bem por onde
começar. Estou impressionado com os pormenores.
– O que quer isso dizer? – perguntei. Ele arqueou as sobrancelhas e por
momentos perguntei-me porquê, antes de sentir um grande nó no estômago.
– Não acreditas em mim, pois não? – questionei, a minha voz de repente
débil. Pousei um biscoito meio comido na mesa e as mãos no colo, como
uma criança castigada. Queria chorar.
– Faye – disse ele. – O que se passa aqui? Não esperas que eu acredite
que tudo isso é mesmo verdade.
Olhei para ele com os olhos cheios de lágrimas, mas nele eram
desperdiçadas; tanto quanto ele sabia, o meu rosto estava impassível.
– Achas que estou a mentir-te? Porquê? – perguntei. – Porque faria isso?
Achas que enlouqueci? – As lágrimas eram claramente audíveis na minha
voz.
– Não, eu... – Ele tropeçou nas palavras. Parecia de facto confuso e
estendeu a mão, à procura da minha. Pousei a mão na mesa para que ele a
pudesse encontrar e deixei-o pegar nela. – Tu és minha amiga – disse ele. –
Mas assumi que esta história fosse parte de uma daquelas experiências que
tu fazes.
– O quê? – disse eu, perdida.
– Não sei, foi divertido e interessante quando me contaste pela primeira
vez, e tenho pensado sobre isso desde então, e temos conversado... Quer
dizer, tive de pensar num motivo para me contares algo assim.
– Como poderia ser uma experiência? – disse eu, a voz cortante. – De que
estás a falar?
– Estás sempre a fazer experiências, a comparar pessoas invisuais e com
visão. Tenho tentado entender de que trata tudo isto, e o melhor que
consegui arranjar foi que projetaste um cenário para testar as diferenças nas
competências lógicas e de resolução de problemas entre invisuais e pessoas
com visão. Já fizeste estudos um pouco semelhantes; não tão invulgares
como este, mas mesmo assim. Pensei que estava a sair-me muito bem, tive
boas ideias... tu sabes, acerca das viagens no tempo e assim.
– Sim, tiveste – disse eu com muita calma. – Tiveste umas ideias muito
úteis.
– E, portanto, pergunto-me porque virias cá falar sobre isso no teu tempo
pessoal e não no trabalho, onde nos pagam para ter conversas como esta.
– Pensei que acreditavas em mim, Louis – disse. – Estava mais ou menos
a contar com isso. – Soltei a mão da dele e cerrei os punhos debaixo da
mesa.
– Estás então a dizer-me que tudo isso está mesmo a acontecer-te?
– Bem, ou está, ou então enlouqueci – respondi. Houve um longo
silêncio.
– Pode ser as duas coisas – disse ele. – Pode estar a acontecer e teres
enlouquecido.
– Verdade – disse eu, e funguei.
Soltei um riso abafado, meio a rir, meio a chorar. E ele também se riu
com delicadeza. O seu riso era em parte um pedido de desculpas e em parte
descrença, mas havia ali mais qualquer coisa. Só que isto não era realmente
motivo de riso. Não para mim. Era de vida ou morte. Ou, mais
precisamente, vida e morte. E parecia que acabara de perder a única pessoa
no universo com quem podia falar. O desespero atingiu-me como um murro
no estômago, a solidão era como estar num poço escuro e profundo,
sabendo que ninguém ouviria os meus gritos, e que não veria a Lassie a
espreitar no topo, assegurando-me que vinha ajuda a caminho. Apoderou-se
de mim um pranto. Primitivo. Selvagem. Desesperado. Não gritei nenhuma
palavra, mas o som que se impôs na sala, preenchendo-a, revelava a
verdadeira sensação de saber que não acreditam em nós, que não
pertencemos, que não temos como provar a nossa inocência, a nossa
história, a nossa verdade. Pela única vez na vida, senti-me como uma
espécie de deus que queria reivindicar fé.
– Estou a dizer a verdade – lamentei. O Louis chegou-se para trás na
cadeira, muito tenso, com um ar horrorizado. – É tudo real – disse eu de
novo, mas desta vez a voz saiu-me quebrada e débil.
Olhámos um para o outro no silêncio que se seguiu ao meu acesso. Ao
longe, ouvi um cortador de relva e perguntei-me como seria sentir-me
normal outra vez.
– Ouve – disse o Louis, a voz carregada de sinceridade. E depois não
disse nada, embora a boca se abrisse e fechasse algumas vezes, tentando em
vão, responder.
– O quê? – disse eu, a voz ainda rouca. O grito arranhara-me a garganta.
– Acho que não me mentirias. Então, ou estás a dizer a verdade ou estás
mesmo...
– Louca? – disse eu, terminando a frase dele. – Eu sei.
– Sim. É uma ou outra, definitivamente não as duas. Mas, na verdade,
apesar da loucura de tudo isto, Faye, minha querida amiga, não acredito que
estejas louca. Só que é difícil. Sabes? É difícil para mim acreditar sem
nenhuma prova. Eu sou um cientista. Não sou muito bom a ter fé. Mas vou
tentar, sim? Vou tentar acreditar completamente em ti.
Senti o calor subir-me aos olhos e as lágrimas escorreram-me pelo rosto.
O Louis não sabia, por isso eu disse-lhe.
– Estou a chorar – afirmei.
– Estás bem? – perguntou ele.
– Acho que sim. – Sentia-me emocionalmente exausta e não tinha
percebido o quão sozinha estaria se não tivesse o Louis. – Preciso de ti,
Louis.
– Olha, vamos beber mais chá – disse ele. – Ou que tal uma cerveja? E
também podes ficar para jantar, se o Eddie e as meninas não estiverem.
– Sabes cozinhar? – perguntei, a fungar.
– Nem por isso, mas sou excelente com o micro-ondas – disse ele, com
um gesto cómico na direção do micro-ondas. Percebi que era a única coisa
na cozinha que tinha uma mancha.
– Parece-me bem, cerveja e jantar seria ótimo – disse eu. – Obrigada.
Instalámo-nos na sala, as cervejas abriram com um silvo e quando
falámos parecia que estávamos a começar de novo. O Louis fez-me
perguntas e fomos mais devagar. Ele disse-me que a forma como lhe contei
o que aconteceu foi como o trailer de um filme, todos os pontos altos. Disse
que queria saber tudo.
E aquilo sobre que mais falámos foi de filosofia. Em particular,
perguntávamo-nos se, ao voltar atrás e mudar as coisas, eu teria mudado o
presente? Na verdade, o Louis perguntou-me com cuidado se eu tinha
falado com o Eddie e as meninas depois de ter voltado, e soltou um grande
suspiro de alívio quando eu disse que sim.
– Oh, Deus – disse eu. – Nem pensei nisso. Estavas preocupado que o
Eddie e as meninas pudessem já nem existir?
– Eu não sabia o que esperar. Olha, a primeira vez que lá foste, foi um
acidente; se as coisas tivessem mudado ao regressares, não poderias culpar-
te. Mas, da segunda vez que voltaste, escolheste fazê-lo e fizeste muitas
coisas, falaste com as pessoas sobre o futuro, deste um presente ao teu eu
mais novo. Deste o teu anel, Faye. – Olhei para a mão, para onde o anel
costumava estar. – Não consigo compreender esse anel – continuou ele. –
Se deste o anel de noivado na década de setenta, como é que o Eddie
poderia comprá-lo e dar-to quando te pediu em casamento? Se essa mulher,
a Elizabeth, o teve este tempo todo, como ficaria ele disponível para o
Eddie?
– Não pensei nisso. – Esvaziei a cerveja e o Louis, ao reconhecer o som
de uma garrafa a esvaziar-se, levantou-se.
– Mais uma?
– Por favor – disse. Enquanto ele estava na cozinha, gritei: – Então, achas
que posso ter mudado no presente coisas que ainda não sei?
– Não sei – disse ele, voltando para a sala de estar com as cervejas
geladas. A condensação escorria pelo lado de fora. – Quer dizer, quem sabe
que teorias são verdadeiras? Se alguma o é? Há o efeito borboleta, onde
pequenas mudanças têm grandes consequências, o bater das asas de uma
borboleta pode mudar o curso de um tornado. Esse tipo de coisa.
– Há cerca de um ano, li à Esther um livro em que uma criança volta ao
passado, ao tempo dos dinossauros, e por acidente pisa um inseto. Depois,
quando a criança volta, está tudo diferente, o mundo não é um lugar muito
bom. A criança tem de voltar novamente ao passado e garantir que não pisa
no inseto, para que as coisas no presente possam voltar ao normal.
– Ena, isso é um bocado sinistro para um livro infantil – disse o Louis.
– Os bons são todos sinistros.
– Verdade – disse ele. – Bem, parece que fizeste bem mais do que pisar
um inseto e, na verdade, podes literalmente ter pisado vários, mas até agora
não reparaste em nenhuma mudança?
– Não – disse eu. – O que se passa, na verdade, é que sinto que algumas
das minhas ações eram necessárias para garantir que o presente é aquele que
me é familiar. Como os patins. Acho que não teria tido os patins nem me
teria tornado tão adepta deles em adolescente se não os tivesse recebido em
criança; mas quem me teria dado aquele exato par de patins, senão eu
mesma?
– Sei que há outra teoria sobre as viagens no tempo, pode ser relevante –
disse o Louis, levantando-se e saindo da sala. – Anda – disse ele. Segui-o
escadas acima até um escritório. Esta divisão também era imaculada (o
arquivo era de morrer), mas aqui a decoração era mais escura; as paredes e
o tapete eram cinzento-escuros e havia uma cadeira de escritório em couro
preto, muito confortável, onde o Louis se sentou. – É preciso acender a luz?
Que horas são? – disse ele, mexendo desajeitadamente por baixo do punho,
à procura do relógio. – Nove e meia, ainda há luz?
– Está ótimo – disse eu, puxando uma cadeira do canto para me sentar
junto a ele, em frente do computador. Ele inclinou o ecrã na minha direção;
eram imagens de uma variedade de homens em busca do amor. O Louis
começou a teclar e abriu-se outra janela.
– Eu tenho um leitor de ecrã ligado e é rápido, por isso ignora, se
conseguires. – O Louis, como a maior parte dos funcionários invisuais do
RNIB, também tinha um leitor de ecrã, um programa de computador que lê
o texto do ecrã, em casa. Agora, não vou começar a sugerir que os invisuais
têm uma audição melhor do que os que veem, mas quando se habituam a
estes leitores de ecrã, põem o programa numa velocidade tal que é
praticamente impossível entendê-lo, se não se estiver habituado. Por isso,
quando o Louis abriu uma página da Internet e o leitor de ecrã arrancou,
aquilo soou como uma algaraviada; soou como um ronronar eletrónico
ruidoso, e eu sobressaltei-me. – Espera, vou só baixá-lo um pouco – disse o
Louis. – Estou à procura de uma coisa em particular, algo que estive a ler há
umas semanas, aguenta um bocadinho.
Esperei enquanto o Louis abria as páginas e digitava os termos de
pesquisa. Procurava teorias sobre viagens no tempo, e no ecrã apareciam
imagens do DeLorean do Regresso ao Futuro e da máquina de veludo
vermelho em forma de trenó, com a engenhoca redonda atrás, do filme A
Máquina do Tempo. O Louis fez então uma pausa num ecrã que parecia um
pouco mais científico, puxou para baixo – eu não conseguia entender o
discurso confuso que ia passando – e depois parou.
– É isso – disse, e diminuiu a velocidade do leitor de ecrã. Era um pouco
como ouvir uma palestra do Stephen Hawking, não só por causa da voz,
mas também pelo assunto. No início consegui perceber, mas depois
apareceu um monte de coisas sobre paradoxos e perdi-me no jargão.
Quando o leitor de ecrã terminou, o Louis virou-se para mim. – Acho que
aquela última parte parece a explicação mais razoável – afirmou. –
Especialmente tendo em conta que ainda aqui estás e não parece ter mudado
nada de importante, ou sequer de segunda ordem, em resultado de recuares
e avançares no tempo, ainda que tenhas mexido em muita coisa lá atrás.
– Qual é a conclusão a retirar? – perguntei.
– Conclusão a retirar: não podes mudar o que aconteceu, porque já
aconteceu. Não poderias voltar e matar os teus pais antes de eles te terem,
porque existes. Simples.
– Então o facto de eu ter crescido com aquele par de patins de metal... –
disse eu.
– Aconteceu precisamente porque voltaste atrás no tempo e deste a ti
mesma aqueles patins. É basicamente uma teoria de viagens no tempo que
se cumpre e em que, em última análise, qualquer coisa que faças para tentar
mudar o passado só origina os acontecimentos que acabaram por ocorrer, o
que significa que viajar no tempo nunca pode mudar o futuro nem o
presente.
Vimos uns vídeos online sobre buracos de minhoca e viajar mais rápido
do que a velocidade da luz, e a minha cabeça depressa ficou à roda. Não
aguentava mais e disse-o ao Louis.
– Anda, vou chamar um táxi – disse ele, desligando o computador e
empurrando a cadeira para trás. Saí do escritório, mas esperei por ele lá
fora, para que descesse as escadas à frente; encolhi-me quando bateu com o
dedo do pé na cadeira em que eu estivera sentada. Não a tinha posto na
posição em que estava.
– Merda! – disse ele.
– Desculpa, Louis – disse eu, e estremeci.
– É por isto que a casa é tão arrumada, porra – declarou, reposicionando a
cadeira.
Enquanto descíamos as escadas, lembrei-me de algo.
– Qual é o oposto de incauto, sabes?
– Cauto – disse ele, sem perder o ritmo.
– Como sabes isso? – perguntei, impressionada.
– Scrabble – respondeu. E enquanto eu pensava que, com certeza, lhe
seria impossível jogar, ele resmungou e disse: – Sabes que existe Scrabble
em braille, certo? Trabalhas no raio do RNIB, mulher.
– Tens tabuleiro? – perguntei.
– Sim, queres jogar, um dia destes?
– Sim, mas tu dás-me uma sova – disse.
– Achas? – disse ele, com uma pontinha de sarcasmo que raiava a
insolência.
– O que vais fazer amanhã? – perguntou ele, enquanto estávamos na
entrada. – Amanhã tens o dia de folga, não é?
– Sim – respondi. – Ainda não sei o que vou fazer, talvez não muito,
pensar na minha vida dupla. Talvez deva começar a escrever um diário
sobre isso, garantir que me lembro de todos aqueles pormenores e de tudo o
que a minha mãe me disse. Sim, acho que vou fazer isso.
O Louis ligou para uma empresa de táxis enquanto eu vestia o casaco de
malha e calçava os sapatos.
– Não é isso que vais fazer – disse ele. – Não amanhã.
– Então continua, Einstein, o que vou fazer? Jogar Scrabble?
– Nós – disse ele –, vamos arranjar a prova que eu quero. Não que não
acredite em ti, querida, porque acredito. Vamos ver a Elizabeth Keel e
trazer de volta o teu anel de noivado.
– Engraçado – disse eu. – Vim aqui para te pedir justamente isso.
19
À ida para casa, no táxi, o mundo para lá das janelas que me aparecia
diante dos olhos passava despercebido, enquanto outro mundo se
desenrolava na minha mente. Revivi o tempo com a minha mãe no seu
jardim, e ela a segurar-me o rosto nas mãos; ouvi o arranhar dos patins da
pequena Faye e o som ritmado misturado com o som dos pneus dos carros
na estrada. Devo ter dormitado e acordei quando o táxi parou em frente a
minha casa.
Queria falar com o Eddie e com as meninas. Precisava deles para me ligar
à terra. Sentia um aperto no coração, e não sabia se era por estar longe deles
há mais tempo do que eles de mim, ou por não poderem juntar-se a mim
nesta viagem solitária ao passado que eu estava a fazer, mas precisava tanto
deles que era uma dor quase física. O meu coração sofria.
Há algo na forma como soa o toque quando se liga para outro país que me
faz sentir como se ligasse para outro planeta. Quando o Eddie atendeu o
telefone, foi como se ele tivesse morrido e ido para o Céu, e mesmo assim
eu fosse capaz de falar com ele. Disse-me olá e a minha voz tremeu ao
responder.
– Olá – disse eu.
– O que se passa? – perguntou ele. A única palavra que dissera
denunciara-me.
– Detesto quando estás tão longe de mim – respondi. – Sinto apenas a tua
falta – acrescentei num murmúrio choroso.
– Falámos ontem, parecias bem – disse ele. Havia preocupação na sua
voz.
– Estou bem, apenas queria que estivesses aqui, só isso – disse, limpando
o nariz à manga e fungando de forma pouco atraente.
– Bebeste? – Senti o seu sorriso compreensivo pela linha.
– Sim, detetive, bebi umas cervejas com o Louis – disse eu, conseguindo
também sorrir. – Mas não é isso, só queria ouvir a tua voz. Tenho saudades
tuas.
– Não te preocupes, tu e eu somos como os compassos de John Donne:
quando um de nós tem de sair por um tempo, o outro permanece firme no
lugar, nunca nos largamos de verdade.
– Compassos? – disse (embora saiba o que são).
– Sim. Lembras-te, na escola, aquelas coisas de metal com uma ponta
perigosa num dos braços? Espetas aquela parte na página e depois podes
desenhar um círculo perfeito com o outro braço.
– Eu sei, mas estás a dizer que há um poema sobre isso?
– Sim, de John Donne. Estou neste momento a olhar para a lombada de
um dos seus livros de poesia, numa estante. A minha mãe é fã.
– Lê-me – pedi baixinho.
– Não vais gostar, tem muitos arcaísmos, esse tipo de coisas.
– Lê-me – pedi mais uma vez, ignorando o seu conhecimento sarcástico e
absolutamente preciso sobre os meus gostos e aversões.
– Está bem – disse ele. Ouvi-o deslocar-se e folhear umas páginas
enquanto pegava no livro da estante e encontrava a página certa. – Não vou
ler tudo – disse ele. – Mas cá vai...
Se são duas, duas são então
Como as hirtas gémeas do compasso duas são:
Tua alma, a ponta fixa, não demonstra
Se mover, mas o faz se a outra o fizer.
E conquanto no centro ela assente
Quando a outra ponta sai em caminhada,
Atrás dela se inclina e atenta,
E fica ereta, ao vê-la regressada.
Assim serás tu para mim, que ora preciso,
Como a outra ponta, de través girar;
Tua firmeza torna-me exato o círculo
E faz-me onde começo terminar.
Ele parou e a linha ficou em silêncio. Ouvi a sua respiração.
– Lê outra vez – pedi. – Desta vez, devagar. – Ele fê-lo e, quando
terminou, havia mais silêncio na linha, pleno de amor.
– Estou orgulhoso de ti, Faye – declarou o Eddie, depois de algum tempo.
– Estás? – disse eu.
– Sim, por não te rires das palavras ereta e firmeza. Muito bem.
– Não foi fácil, mas às vezes consigo ser muito madura – disse eu. –
Também havia a palavra hirtas – acrescentei, sorrindo e provando as
minhas próprias lágrimas.
– Gostas do poema?
– Sim – afirmei. Com esta palavra, como um estímulo, surgiu-me na
cabeça o dia do nosso casamento; depois o tempo rebobinou dessa imagem
para outra, e vi o Eddie com um joelho no chão, a pedir-me em casamento.
Baixei o olhar para onde deveria estar o anel em falta e senti um forte
acesso de medo.
– Gosto da ideia de que, quando tenho de te deixar, ficas em casa, uma
presença segura, à espera de que eu volte – disse o Eddie.
– Como uma boa mulher?
– Não, sabes que não é isso que quero dizer.
– O que acontece quando andamos os dois por aí e não está em casa
ninguém para quem se voltar? – perguntei, sentindo-me novamente chorosa.
– De que estás a falar? O que significa isso?
– Nada – respondi.
– O que queres dizer com andamos os dois por aí? – perguntou o Eddie,
parecendo agora um pouco mais sombrio.
– Eu não queria dizer isso, só quis dizer... Não sei o que quis dizer. Só te
quero em casa, sim? – disse eu.
– Está bem. Olha, só estou em França, tu estás em casa, estaremos de
volta em breve. – Ele hesitou. – Ou devemos voltar mais cedo?
– Não – respondi. – Estou bem, a sério, é só a cerveja a falar, e estou a ser
estúpida. Mal posso esperar para vos ver.
– Adoro-te. Vemo-nos em breve. E, Faye, por favor, mantém-te em
segurança. Preciso de ti. Amanhã falamos mais cedo, antes de as meninas
irem para a cama.
*
À noite, acordei de sonhos com a minha mãe; num, eu era criança e
estávamos de mãos dadas, a rodopiar no jardim.
– Somos só nós – disse ela. – Pensa em quem precisa mais de quem.
Acordei de repente, a transpirar. Eu precisava da minha mãe, mas, talvez
mais importante, ela precisava de mim. Eu tinha sido uma criança feliz e ela
fora-me arrancada, o que fora injusto para ambas. Pensei no Eddie, na
Esther e na Evie, e na minha imaginação vi-os vagamente de mãos dadas a
rodopiar, enquanto eu permanecia de fora. Tinham-se uns aos outros,
tinham os pais do Eddie e os nossos amigos. Talvez eu fosse mais útil no
passado, a dar uma ajuda, a fazer os devidos acertos.
A certa altura, adormeci de novo e dormi um sono profundo e sem
sonhos. Na manhã seguinte, surpreendentemente, sentia-me melhor.
*
Apanhei um táxi de volta para casa do Louis nessa manhã, por volta das
oito. Encontrar a Elizabeth Keel significava recuperar o meu anel, e eu não
me sentiria bem até o ter de volta na minha mão. Talvez ainda mais
importante, queria convencer o Louis da minha história, ajudá-lo a
acreditar. Se não conseguíssemos encontrar a Elizabeth, ou se ela tivesse
morrido, então suponho – embora ele pudesse não o dizer – que o facto
reforçaria a ideia de que tudo isto era apenas na minha imaginação. Depois,
havia a preocupação de que ela pudesse negar tudo ou não se lembrar de
mim. Eu não sabia o que esperar.
A cidade onde cresci fica a cerca de uma hora de carro para norte, ao
longo da autoestrada de Londres. Eu não ia lá há alguns anos, mas, à
semelhança de muitas cidades inglesas, esta tinha expandido e melhorado, e
possuía uma infraestrutura que se espalhava para fora de forma contínua e
gradual, como um pedaço de manteiga a derreter ao sol. Eu esperava que a
loja, Serendipity, ainda lá estivesse. A Elizabeth Keel teria agora cinquenta
e poucos anos. Creio que estava a trabalhar na loja quando entrei com as
meninas, da última vez que estivemos de visita. Eu sentia-me cada vez mais
nervosa. E se não conseguisse reaver o anel? Como explicaria isso ao
Eddie?
Estacionámos e encontrámos um sítio para tomar café e o pequeno-
almoço. A empregada de mesa perguntou-me o que queria o Louis, em vez
de lhe perguntar diretamente, e fê-lo repetidas vezes, embora eu continuasse
a atirar a bola para ele. Ele fervia, mas consegui distraí-lo.
– Espero que a loja ainda lá esteja – disse eu.
– Podias ter pesquisado no Google – afirmou ele.
– Não sei se estarão online.
– Tudo está online – disse ele com rispidez. – Há uma porra de um
adoçante nesta mesa? – Ele tateou, à procura. Pus-lhe um na mão. –
Obrigado – disse ele. – Desculpa. A porra da empregada de mesa.
– Eu sei – disse. – Ela pensa que está a ser amável, mas é apenas
condescendente.
– Eu só ia comer uma torrada, mas ela irritou-me tanto que vou pedir um
pequeno-almoço inglês completo – disse ele. – Culpo os benfeitores
condescendentes pela minha cintura.
Na verdade, fiquei contente por passar algum tempo a tomar um bom
pequeno-almoço. Era uma tática de adiamento. Não estava com pressa de ir
à loja. Na verdade, sentia-me um pouco nauseada com a ideia do que
poderia acontecer. Sei que é tudo real, o que está a acontecer-me: a viagem
no tempo, as conversas com a minha mãe, é real. Mas vou dizer-vos como
é: é como sermos acusados de um crime e oferecerem-nos um teste no
detetor de mentiras. Se somos culpados, podemos muito bem aceitar,
porque às vezes vai errar e podemos ter sorte. Mas, se somos inocentes e
não temos sorte, estamos tramados. Depois nunca ninguém vai acreditar em
nós. A Elizabeth Keel era o meu teste no detetor de mentiras. Se não a
conseguissemos encontrar, ou à loja, ou se ela não soubesse de que diabo eu
estava a falar quando lhe pedisse o anel de volta, o que é que isso quereria
dizer?
Eu ainda tinha de aceitar que podia estar louca.
Não era só o Louis que precisava de uma pequena prova. Penso que
também eu precisava de algo concreto que me garantisse: não estás louca.
*
O caminho que percorremos para chegar à Serendipity significou que vi a
loja de frente, porque se situava no lado oposto a uma pequena passagem
que levava à enorme biblioteca nova. A ruela era nova, porque a biblioteca
tinha sido construída depois da última vez em que eu ali estivera, num local
que antes teria sido obscurecido pela fila de pequenos edifícios que ficavam
do outro lado da rua da Serendipity. Por sorte, a minha loja, aquela em que
eu estava interessada, fora construída no lado intocado da rua; de outro
modo, quem sabe o que eu teria feito.
Estaquei quando a vi. No passado, chegara sempre lá vinda de lado, sendo
o conteúdo das montras a primeira coisa a chamar-me a atenção. Mas, deste
ângulo, vi-a de uma nova perspetiva: o local dispunha-se à minha frente
como a imagem de um postal. Fiquei impressionada com o nome da loja,
grande, cursivo e colorido. Havia algo na fachada que me fez pensar em
caravanas ciganas e, por baixo, em letras pintadas, onduladas e mais
pequenas, palavras em que eu nunca reparara.
– Hum...
– O que é? – perguntou o Louis. Ele estava agarrado ao meu cotovelo e
limitou-se a esperar enquanto eu fiquei ali parada.
Puxei o Louis para o lado, de forma a ficarmos à sombra, e não a
transpirar ao sol.
– Diz: «Serendipity, a descoberta de coisas de que não estava à procura».
– Curioso – afirmou o Louis. Perscrutei a sua expressão em busca de
sarcasmo, mas encontrei sinceridade. – Então ainda está aqui. Está aberta?
Nesse momento, vi uma mulher a abrir a porta da loja e a pequena sineta
tocou, como um talismã do passado. Segurou a porta com a mão bem no
alto do caixilho enquanto o filho lhe passava por baixo do braço, a olhar
para o conteúdo do saco que transportava.
– Sim – disse eu, mas não me mexi.
– Vamos entrar e ver o que acontece – disse o Louis, de boa vontade.
Devia saber como eu estava nervosa. – Na verdade, não temos de falar com
ninguém, nem fazer nada. – Enquanto atravessávamos a rua, as minhas
pernas pareciam chumbo, como quando sonho que estou a fugir de algo,
mas não consigo mexer-me bem.
O tilintar da campainha e a frescura do interior da loja eram idênticos aos
de quando ali estivera naquele outro dia, há trinta anos. A disposição estava
diferente e, claro, o conteúdo mais atualizado, embora houvesse algumas
bugigangas muito tradicionais em que era difícil não tocar. O Louis apertou-
me o cotovelo com força e aproximou-se, desejoso de não bater em nada.
– Quantas pessoas estão aqui? – sussurrou ele.
– Hum, nós – disse eu, e inclinei-me para ver o outro corredor. – Está
uma mulher a olhar em volta e alguém a trabalhar na caixa.
– Quem está na caixa? É ela?
– Não, demasiado novo, e é um rapaz – disse eu, justamente quando o
homem olhou para nós e sorriu. – É o filho dela, o Adam – sussurrei ao
Louis.
– Posso ajudá-los? – disse Adam.
– Estamos só a ver, obrigada – disse eu, olhando de forma significativa
para o que estava na prateleira à minha frente.
– Pergunta-lhe se a Elizabeth está cá – sussurrou o Louis, alto de mais.
– Pensei que tinhas dito que podíamos entrar e não fazer nada – respondi
num sussurro, irritada.
– Sim, bem, eu digo muita coisa.
Olhei de novo para o rapaz e sorri. Ele sorriu e franziu a testa para mim.
– De certeza que não posso ajudar? – disse ele, de modo agradável.
Dirigi-me a ele, levando o Louis comigo.
– Bem, na verdade, esperava falar com Mrs. Keel – disse eu.
– Qual Mrs. Keel?
– A Elizabeth? – respondi, como se não soubesse bem se ela realmente
existia.
– Saiu para fazer compras, mas volta. – Ele levantou o telefone enquanto
falava e disse-me: – Vou dizer-lhe que está aqui uma pessoa para a ver.
Quem devo dizer que é?
– Chamo-me Faye, creio que ela pode ter algo meu. – Ele marcou um
número, sorrindo-nos enquanto esperava que ela atendesse o telefone. Nesse
preciso momento a porta abriu-se, a sineta tilintou novamente e a loja foi
invadida pelo som de um telemóvel a tocar. Virei-me e vi a Elizabeth Keel,
com um saco de compras em cada mão, atrapalhando-se a tirar o telefone da
carteira e a tentar não deixar cair nada.
O jovem voltou a pôr o telefone no sítio e saiu de trás do balcão para
pegar nos sacos.
– Era eu a ligar-te – disse ele quando o telefone parou de tocar, e deu-lhe
um beijo na face. – Pensei que ias só comprar umas coisas. Tens aí uma
semana de compras.
– Isto não é uma semana de compras, querido, mas comprei mais do que
pretendia – disse ela, pondo uma madeixa de cabelo para trás da orelha. Ela
sorrira-nos brevemente, mas fora isso ignorou-nos. O homem pegou nas
compras, depositou-as nas traseiras e reapareceu rapidamente.
– Mãe, esta senhora disse que quer falar contigo, disse que tens algo dela.
Ele disse isto a olhar para mim, como se para verificar que tinha
percebido bem, e eu acenei a ambos. O rosto sorridente da Elizabeth Keel
acolheu-me. Pesava talvez mais seis quilos do que quando a vira, há dias, e
estava mais roliça. Tinha rugas em volta dos olhos e a linha do maxilar
parecia um pouco mais flácida. Era claro que envelhecera trinta anos, mas
fora essas pequenas coisas, diria eu, era exatamente a mesma. A maior
diferença era que, embora me tivesse parecido perfeitamente amável quando
a conheci em nova, na altura tinha sem dúvida um toque de cinismo, menos
confiante. Agora, o seu rosto era aberto e franco, era o rosto de quem só
esperava coisas boas.
O Louis deu-me com o cotovelo, de forma suave.
– Olá – disse eu. – Dei-lhe uma coisa, há muito tempo. Disse-me que
tomaria conta dela. Esperava que ainda a tivesse.
Fiz uma careta por ter soado tão enigmática. A Elizabeth franziu a testa e
inclinou a cabeça, ainda a sorrir.
– A sério? – disse ela. – O que foi?
Senti-me com náuseas. Ela não sabia do que eu estava a falar. O Louis
aproximou a cabeça do meu ouvido.
– Acho que tens de ser mais específica – disse ele, em mais um aparte
embaraçoso. Sorri à Elizabeth, como que a pedir desculpa pela indiscrição
do Louis, mas não era um verdadeiro pedido de desculpas.
– O meu anel de noivado, em troca de uns patins – disse eu, sentindo-me
como que a inventar tudo. – Como disse, foi há muito tempo.
A Elizabeth aproximou-se de mim, mais perto do que a etiqueta permitiria
a um estranho. Olhou-me nos olhos e depois recuou um pouco, absorvendo
todo o meu rosto. Tocou-me na raiz dos cabelos.
– O que se passa? – murmurou o Louis.
– Loius, para de sussurrar. Não estamos numa biblioteca e ela consegue
ouvir-te. Está a olhar para mim – disse eu, mantendo o meu olhar fixo no
dela.
– Mãe? – disse o jovem. Deu um passo em volta do balcão, nitidamente
confuso com a reação da mãe à minha pessoa.
– Oh, meu Deus – disse a Elizabeth baixinho para si mesma, ou talvez
mesmo a Deus.
– Quem é, mãe? – perguntou Adam.
– Não sei bem – respondeu a Elizabeth. – Acho que é o meu anjo da
guarda. – Com estas palavras, percebi que ela se lembrava de mim. O meu
queixo vincou-se e os olhos ardiam-me com lágrimas de alívio. Soltei um
arquejo, à beira de um soluço, e ela abraçou-me. – Meus Deus – disse a
Elizabeth, os olhos com lágrimas a refletirem os meus. – Estes anos todos,
tenho estado à espera de alguém mais velho.
20
A Elizabeth pediu ao filho para fechar a loja, ir buscar uns cafés e depois
tirar o resto do dia de folga. Via-se que ele estava relutante em deixá-la,
mas ela disse-lhe que estava tudo bem e que lhe explicaria mais tarde –
embora eu apostasse que não o faria.
Ela levou-nos por uma escada muito estreita até uns aposentos por cima
da loja: uma pequena área de cozinha pintada de azul-claro e uma outra
divisão com uma cama de solteiro e uma cadeira. Em cima da colcha
amarrotada estavam espalhadas uma camisola e umas meias. A Elizabeth
alisou-a um pouco e sentámo-nos as duas na beira da cama. O Louis ficou
com a cadeira.
– O meu filho anda a estudar e ajuda na loja de vez em quando – disse
ela, enrolando as meias e atirando-as para um cesto da roupa suja. – Quando
sai com os amigos na cidade, às vezes fica aqui em vez de ir a conduzir para
casa, e depois abre a loja de manhã. É uma grande ajuda. – Inclinou-se
sobre a cama para abrir a pequena janela, o discurso a explicar os vestígios
de testosterona no ar.
Houve uma pausa depois de ela falar, devido ao facto de nenhum de nós
querer conversar sobre tais trivialidades. Mas uma conversa trivial era
simplesmente um hábito e não havia nada de mal nisso. Afinal, eu tivera
muitas conversas triviais com a minha mãe e estimava cada uma delas.
O Louis estava ditosamente silencioso, mas a sorrir um pouco de mais.
Contou-me uma vez que se diz às crianças que nascem invisuais que devem
sorrir muito, porque, ao que tudo indica, é o que as pessoas amigáveis que
veem fazem sempre. Expliquei-lhe que às vezes parece um tolo, porque
sorri de mais, e às vezes parece que está com um ar demasiado amigável ou
a dizer às pessoas para irem passear, no pub; um extremo ou outro.
Portanto, temos um acordo: se ele está a sorrir sem necessidade em público,
eu tusso e espero que ele entenda a mensagem. Agora tossi e o seu rosto
voltou à normalidade. A Elizabeth pensou que eu estava a preparar-me para
dizer algo e olhou para mim com expectativa, com alívio, creio, por eu
planear começar esta conversa.
– Então lembra-se de mim? – perguntei.
– Se me lembro de si? – disse ela, como se eu estivesse louca. – Viveu
comigo durante anos, aqui. – Ela pôs a mão no peito. – Passei muito, muito
tempo a questionar se era real ou se eu a tinha imaginado. – Ela estendeu a
mão e tocou-me na face, como que para verificar que eu estava mesmo ali. –
Pensei que poderia ter sido um sonho vívido. Mais vívido do que qualquer
sonho que já tive; afinal, tinha o seu anel. E depois comecei a aceitar o facto
de que não importava se eu a tinha inventado ou não, porque a confiança
que tinha em si, real ou imaginária, tornou-me a vida maravilhosa.
– Foi? – disse eu.
– Sim – disse a Elizabeth, como se eu tivesse perdido algo óbvio. – Assim
que conheci o Andrew, reconheci o nome, porque você mo dissera. E eu
sabia que nos casaríamos e que podia confiar nele. Fiquei pasmada quando
ele me disse o nome pela primeira vez. Por um momento perguntei-me se,
de alguma forma, me teriam enganado. Mas o Andrew não é matreiro que
chegue para participar numa fraude, e acabei por aceitar que os adivinhos às
vezes acertam. Amava o Andrew e sabia que ficaríamos juntos, por causa
do que me disse. Então, abri-me a ele como nunca fizera. Tinha uma
confiança que provinha diretamente de si, a confiança para fazer do negócio
um sucesso. Fui feliz porque me disse que eu ficaria sempre bem.
Os olhos da Elizabeth encheram-se de lágrimas e eu não sabia o que
dizer. Talvez seja assim que os médicos se sentem quando salvam uma vida
e a família tenta agradecer-lhes: só fiz o meu trabalho. Ela limpou o nariz e
eu tirei o meu porta-moedas, contando cinco notas de vinte libras.
– Cem libras – disse eu, estendendo-lhas. – Pelos patins, com juros, e por
tomar conta do meu anel.
Ela riu-se, sorriu e abanou a cabeça.
– Não, querida, nada de dinheiro. Levou os meus patins e, em troca, deu-
me uma vida melhor do que eu jamais esperaria ter. – Ela inclinou-se para
mim. – Ofereceu-me a dádiva de uma vida sem medo. – A voz era baixa e
intensa. – Uma vida inteira sem medo – repetiu ela. – Mas a coisa que me
disse que valorizei acima de todas as outras, foi aquela sobre o Adam.
– O seu filho? – perguntou o Louis.
– Sim, aquele que conheceram, o que fica aqui às vezes – disse ela,
direcionando a conversa para o Louis. – Quando a Faye veio até mim, há
anos, e me contou como seria a minha vida, disse-me que o meu filho
desapareceria, mas que ficaria bem. Informou-me que ele seria encontrado
três dias depois e que estaria perfeitamente bem. – Ela hesitou. – Tem
filhos, Louis?
– Não – disse ele.
A Elizabeth olhou para as próprias mãos e sua respiração tornou-se
irregular, como acontecer quando as pessoas revivem momentos difíceis.
– Bem, quando ele tinha nove anos, desapareceu. Saiu para brincar,
entardeceu e ele não voltou para casa. A certa altura, olhei para o Andrew e
simplesmente soube que ele sentia o mesmo que eu. Eu tinha as meninas
comigo e estava a deitá-las, ele vestiu o casaco e disse: Vou procurá-lo, mas
voltou uma hora depois, sozinho, e chamou a polícia.
O Louis inclinou-se para a frente, sobre os joelhos.
– Mas estava bem, por causa do que a Faye lhe tinha dito. Não estava tão
preocupada, certo? – disse ele.
A Elizabeth abanou a cabeça.
– Não era assim tão simples. Todas as outras coisas que a Faye me disse:
com quem eu casaria, quantos filhos teria, o negócio, o assalto; quando se
resumia a isso, essas coisas não importavam. Mas desta vez importava.
Rezei como nunca tinha rezado. – A Elizabeth olhou para mim com os
olhos a brilhar. – Mas não rezei a Deus – disse ela. – Rezei a si. – Ela
deslizou a mão para a frente sobre a colcha amarrotada e tocou-me nas
pontas dos dedos. – Rezei para que fosse real e o que me disse fosse
verdade. Permiti-me ter fé de que tudo correria bem, mas só por três dias,
porque me disse que ele estaria desaparecido durante esse tempo. Quando
eu saía à procura do Adam, andava também à sua procura, mas procurava
uma mulher cerca de quinze anos mais velha do que eu e, no entanto, aqui
está, e é mais nova... – Ela fez uma pausa e olhou para mim com
desorientação, mais uma vez. – Estava à sua procura, porque quando o
Adam se perdeu, falei ao Andrew sobre si e o que me tinha contado. Ele
pensou que eu estava a dizer coisas sem sentido, depois questionou se
porventura estaria relacionada com o desaparecimento dele e começou a
fazer-me duvidar de si. A mente prega-nos partidas, quando estamos
assustados; ficamos desesperados. Pode ser difícil acreditar, mesmo quando
acreditar é tudo o que temos – disse ela, com uma expressão de quem pede
desculpa. – Lembro-me de estar de joelhos, ao lado da cama, a depositar em
si toda a minha fé, toda a minha confiança. No fundo, sabia que se o Adam
não fosse encontrado ao fim de três dias, eu não saberia como lidar com
isso, não saberia inspirar e expirar. Sobrevivi durante três dias porque me
disse que ele voltaria são e salvo. – A cabeça dela estava agora nas mãos, a
tentar livrar-se lentamente da memória de tudo aquilo.
– Mas encontrou-o, como é óbvio – disse o Louis, sem ser indelicado. – O
que lhe aconteceu?
A Elizabeth suspirou.
– Ele andou simplesmente a vaguear, a explorar. Tinha lido As Aventuras
de Huckleberry Finn e pegou num pano da louça, embrulhou nele um pouco
de comida e atou-o a um pau. – Ela sorriu ao pensar naquilo. – Depois foi
para a floresta e andou e andou durante horas. Escorregou por uma colina e
partiu o tornozelo. Estava a quilómetros de distância, porque quando pensou
que estava a vir para casa, continuara a seguir na direção contrária. Depois
disso... – continuou, olhando para mim novamente –, acreditar em si tem
sido o mesmo que acreditar em Deus. É o meu deus, porque a minha fé em
si tornou-me mais forte, uma pessoa melhor e mais realizada. O tipo de
pessoa que todos poderíamos ser se realmente tivéssemos fé de que alguém
toma conta de nós.
– Pare – disse eu, levantando a mão. – Eu não sou Deus, Elizabeth, sou
apenas uma mulher normal. – Vi o Louis a erguer as sobrancelhas.
– Não, para mim não é – disse a Elizabeth. – Para mim, é muito mais do
que uma mulher comum; influenciou a minha vida, tornou-a mais feliz.
– Mas isso não faz de mim um deus – afirmei. – Outras pessoas fazem
coisas assim. Eu era só uma pessoa que precisava de uns patins, e dei-lhe
alguma informação sobre a sua vida que por acaso conhecia. – Vacilei um
pouco na minha explicação.
– Mas como «por acaso conhecia» essa informação? – disse ela. – E
porque não envelheceu? Como pode não ser um tipo de deus ou anjo?
– Para mim, tudo isso aconteceu apenas há uns dias – disse eu. – Sábado,
para ser precisa. Tive a conversa de que fala, consigo, no sábado. Foi por
isso que não envelheci.
– Bem, estás cerca de três dias mais velha – disse o Louis.
– Obrigada, Louis – disse eu, olhando para a Elizabeth como que para
dizer típico.
Há uma qualidade instintiva nas pessoas quando inclinam a cabeça para o
lado – à espera de informação, ou de uma explicação, ou um biscoito para
cães – que é deveras encantadora; a Elizabeth fazia-o agora.
– Para mim é difícil de explicar, porque é absurdo – declarei.
– Está a falar a sério? – disse a Elizabeth. – Veja no que acreditei durante
toda a minha vida. Acha que vou julgar inacreditável algo que tenha para
me contar? Se posso confiar em alguém para me dizer a verdade, por muito
rebuscado que seja, é em si.
– Fé cega – disse o Louis, muito baixo.
– Exatamente – disse a Elizabeth. – Tenho uma fé cega em si.
Senti-me tonta com a responsabilidade que tivera sobre a vida da
Elizabeth. E se eu me tivesse enganado: o número de dias que Adam
desapareceria? E se tivessem sido cinco dias ou uma semana? Não
importava que eu não fosse Deus ou um anjo. Não importava que eu fosse
apenas uma mulher com uma família, um emprego, amigos e dilemas
comuns. Para a Elizabeth, eu era mais importante do que isso, quer
concordasse ou não com ela. E isso dava-me responsabilidade. Contei-lhe
sobre viajar atrás no tempo, como o fiz, os encontros com a minha mãe e o
meu eu mais novo. Contei-lhe o porquê de sentir necessidade de roubar os
patins e porque agora estava feliz por ela me ter apanhado. Falei muito
tempo e ela ouviu sem interromper, cativada.
– É como um conto de fadas – disse ela, num tom brando e reverente.
– E agora que estou de volta, penso no meu regresso, penso no que posso
fazer pela minha mãe, para a ajudar – disse eu.
De repente, a Elizabeth endireitou-se um pouco mais.
– Oh, não deve voltar novamente – disse ela, com a preocupação a
enrugar-lhe o rosto.
– Porque não? – perguntei, olhando para o Louis, a sua expressão
impenetrável.
– Bem, porque pode magoar-se e perturbar as coisas. – A Elizabeth
também olhou para o Louis, em vão. Às vezes, a presença de uma terceira
parte é muito útil pelas suas expressões de reação. Mas o Louis não era a
pessoa certa para esta função. – Voltou ao passado há uns dias e o que
aconteceu entre nós tornou a minha vida maravilhosa, sem sequer ter essa
intenção. – A sua voz era afável e bastante baixa, mas havia nela uma
urgência. – Então, com certeza que lhe seria igualmente fácil voltar e fazer
com que as coisas corressem muito mal, sem nenhuma intenção.
– Não me aproximaria de si, prometo – disse eu, inclinando-me para ela.
– A Faye não pode mudar o que já aconteceu – disse o Louis. – O que
quer que tenha acontecido, já aconteceu, não pode ser corrigido de uma
forma ou de outra.
– Como sabe disso? – perguntou ela.
– Eu, hum, pesquisei no Google – disse ele.
– Pesquisou no Google? – disse ela, a rir-se. – Sabe que isso não faz de si
um especialista, não sabe? – disse ela.
– Sim, eu sei – disse o Louis. – Desculpe.
– Estamos a falar de vidas reais e de mudanças que podem gerar uma
série de consequências diferentes – disse ela. Parecia um tanto apavorada.
– Estamos convencidos de que não consigo mudar nada do que já
aconteceu – disse eu, completamente certa desta convicção, sem nenhuma
prova efetiva, exceto que parecia ser assim.
– Faye, fala como se fosse uma especialista em viagens no tempo, mas
não é. Viajou no tempo, mas isso não significa que compreende como
funciona. Seria como alguém dizer que sabe como funciona uma televisão
só porque está sempre a ver. Pode acontecer que nunca compreenda as
regras do que está a fazer. Não pode brincar com isto, não é um jogo – disse
ela.
– Eu sei disso – respondi. – Não jogaria jogos que quase me mataram sem
pensar muito sobre isso. – Mas questionava o quanto pensara de facto; o
desejo de ver a minha mãe parecia impedir-me de olhar, com toda a atenção
que talvez devesse, para os piores cenários, os possíveis resultados
desagradáveis das viagens de ida e volta.
– Quando há uma grande catástrofe e morrem muitas pessoas inocentes,
as pessoas usam-no como razão para sugerir que Deus não existe. – A voz
da Elizabeth estava agora mais suave e ela segurou-me na mão. – Porque, se
Deus existisse, como poderia deixar aquilo acontecer? Mas a questão é, não
sabemos quais são as regras de Deus, pode haver coisas que estão fora do
Seu controlo. – A voz baixou quase para um sussurro. – Não conhece as
regras, Faye, está a brincar com o fogo. Disse que só passam três horas
quando está fora, mas e se da próxima vez não for esse o caso? E se da
próxima vez passarem cinquenta anos e perder tudo? E se não puder estar
presente para as suas filhas? Não pode viver no passado.
– Não estou a viver no passado – respondi. – Apenas o visito. – Senti os
meus olhos a encherem-se de lágrimas e a voz estremeceu-me com um
soluço velado.
– Visitou o passado, mas e se da próxima vez não for uma visita? E se
ficar lá presa? – Ela olhou para mim como uma mãe faz quando está a dizer
ao filho porque não deve meter os dedos na tomada, mesmo quando ele quer
muito, muito fazê-lo. – Tem de escolher entre o passado e o presente, e na
verdade não há escolha, Faye, a resposta é óbvia. Não pode viver em
ambos, e se não escolher entre o passado e o presente, então um dia essa
escolha pode ser feita por si, e a Faye pode não gostar do rumo que toma. –
As lágrimas rolaram-me silenciosamente pelo rosto e ela limpou-as. –
Esteve lá para me ajudar com alguma informação que, sem dúvida, me deu
uma vida melhor do que eu teria tido de outro modo – disse ela. – Agora,
deixe-me retribuir o favor. O meu conselho é que deixe o passado onde está
e permaneça no presente. Tem as suas memórias; é para isso que elas
servem. Estarão impregnadas de tristeza, faz parte da vida, uma tristeza para
a fazer valorizar as coisas boas que tem. Não perca de vista o seu propósito.
É mãe.
– A minha mãe estará à minha espera – disse eu, saboreando as lágrimas.
– Ela não esperaria que fizesse isso, certo? Arriscar tudo, arriscar-se?
Gostaria que uma das suas filhas arriscasse a vida ou a saúde só para se
sentar consigo no jardim durante uma tarde? – Eu estava a chorar. Ela pôs-
me a mão na face e eu inclinei-me para ela, a mão a receber o peso da
minha cabeça. – Não deixe que as suas filhas a percam. Perdeu a sua mãe, e
sofreu toda a vida por causa disso. Porque arriscaria fazê-lo às suas próprias
filhas?
– Entendo o que me diz – disse eu. – Estou a correr um risco, mas não o
correria também?
– Para ser franca, acho que teria muito medo – disse ela.
– Mas, até agora, não há nada que sugira que algo tenha mudado em
resultado do que eu fiz. Na verdade, muito pelo contrário. Parece que voltar
atrás no tempo fez acontecer muitas coisas boas da forma como deveriam.
Nada mudou. – A Elizabeth levantou-me com delicadeza a mão esquerda.
Passou o polegar sobre a marca do meu quarto dedo e ambas olhámos para a
pele que estava mais branca, onde não via o sol há anos. – O meu anel –
disse eu, limpando o nariz com as costas da outra mão. – Tem-no?
A Elizabeth hesitou.
– Houve algo que mudou – disse ela, e levantou os olhos dos meus dedos
para encontrar o meu olhar com um constrangimento constante. – Já não o
tenho. Já não o tenho há anos. O seu anel foi roubado no assalto.
Olhei para o Louis e num instante a sua expressão, que começara a ser um
pouco sorridente de mais, ficou de súbito alarmada.
*
Ficámos mais um pouco, mas quando já estávamos de regresso à loja,
quase a sair, a Elizabeth pediu-nos que esperássemos um minuto.
Desapareceu, creio que para o armazém, e ao voltar estava a levantar a
tampa de uma caixa e a afastar camadas de papel de seda branco.
– Tenho algo que gostaria de lhe dar, Louis – disse ela, pousando a caixa
no balcão e tirando de dentro um objeto arredondado com um aspeto
pesado.
– O que é? – disse ele.
– Aqui. – Ela pôs-lho nas mãos.
– É um ovo grande, ou em forma de ovo – disse ele.
– Isso mesmo, um ovo esmaltado, e é muito bonito. As cores do exterior
são como joias: azul-safira e verde-esmeralda – disse ela, aproximando-se e
tocando-o enquanto o Louis o girava nas mãos.
– Eu não conheço as cores – disse o Louis.
– São tão frescas como uma bebida gelada num dia de calor – disse-lhe
ela, e ele sorriu. – Sente o gancho? – perguntou. O Louis pousou o ovo
numa mão, enquanto tocava ao de leve a superfície com a outra, até sentir o
minúsculo gancho. Ergueu-o e ajudou a parte superior do ovo a abrir para
trás, devagar, numa forte dobradiça. Por dentro, a metade inferior era uma
superfície branca, lisa e esmaltada, com uma saliência no meio, pintada de
dourado, como uma gema de ovo. Ela descreveu-o e ele explorou com as
mãos. Enquanto ela falava, surgiu no rosto do Louis um sorriso aberto, não
apenas um sorriso educado.
– Isto é desperdiçado comigo, certamente – disse ele.
– Quer consiga vê-lo ou não, é belo, e a beleza não é desperdiçada com
ninguém – disse ela. – Consegue apreciá-lo, não é? E pode expô-lo em sua
casa, para que os outros também o apreciem. – Depois olhou para mim e
disse: – Não precisa de ver uma coisa para saber que ela está lá. Pode
mesmo assim amá-la e desfrutar dela.
– Muito obrigado, Elizabeth – disse o Louis. – Nunca ninguém me
ofereceu um presente só porque era bonito de se ver. Para mim é novidade.
Ela tirou-lhe o ovo, embrulhou-o novamente e meteu-o num saco.
Foi difícil ir embora e dizer adeus. Disse à Elizabeth que gostaria de
voltar, um dia, e ela abraçou-me como se nunca mais me fosse ver. Creio
que é algo que às vezes simplesmente temos de fazer.
21
N ãoCarregámo-las
olhei para o relógio e as meninas foram tarde para a cama.
escadas acima, uma cada um, e elas cheiravam a
sujidade seca e a palha. A Evie adormeceu nos meus braços antes de
chegarmos ao cimo das escadas e a Esther meteu o polegar na boca, o que
só fazia quando estava estafada.
– Não metas os dedos na boca, estão sujos – sussurrou o Eddie,
empurrando-lhe suavemente a testa com a dele.
– Comi uma margarida – respondeu ela, sonolenta, balbuciando em volta
do polegar molhado. Quando ele a deitou na cama, ela enrolou-se numa
bola como um bicho-de-conta e virou-se de costas para nós.
Sentei-me nas camas delas e falei-lhes ao ouvido, as palavras um pouco
húmidas contra os seus cabelos.
– És boa, és generosa, és inteligente, és engraçada. – Senti uma pontada
de tristeza por ter sido eu a dizê-lo a mim mesma há tantos anos, e a minha
mãe nunca ter tido oportunidade de me sussurrar coisas boas além dos oito
anos. E, se eu não tomasse bem conta de mim mesma, se não me mantivesse
a salvo, então também não seria capaz de o fazer às minhas filhas. Quando
desci, o Eddie já tinha servido dois copos de vinho tinto, e eu peguei numa
manta, enrolando-a em volta dos ombros. – Conta-me como correu com a
tua mãe – pedi.
Ele suspirou e depois sorriu; era fácil consegui-lo de volta.
– Foi bom – disse ele. – Estou muito contente por ter ido. Foi boa ideia.
– De nada – disse eu, e ele riu-se.
– Disse-lhe porque decidi visitá-la: para lhe perguntar tudo aquilo que um
dia poderia arrepender-me de não ter perguntado – declarou. –
Conversámos muito e fiz-lhe montes de perguntas. Na maior parte delas, ela
simplesmente presumia que eu já sabia as respostas.
– Como por exemplo?
– Como o que ela sente em relação a certas coisas. Perguntei-lhe o que
pensava de mim em criança, e ela perguntou-me o que eu achava que ela
pensava. Dei um palpite aproximado e acertei. – Ele bebeu um longo gole
de vinho e eu esperei que continuasse. – Ela disse que compreendia a minha
necessidade de esclarecer certas coisas, mas quando se tratou do que sentia
relativamente a mim e às coisas que fiz, disse que se, no futuro, eu quisesse
saber o que ela sentia e fosse tarde de mais para perguntar, eu devia sempre
presumir que os seus sentimentos primordiais eram de orgulho, amor e
alegria. – A voz do Eddie falhou na palavra alegria.
– O que é? – perguntei. – Comoção? – Ele assentiu, beliscando o nariz
entre os olhos para conter as lágrimas. – Oh, Eddie – disse eu, pondo a mão
na dele.
– Mas aquilo fez-me perceber outra coisa – disse ele, fungando, mas
recomposto. – Nunca falámos sobre a tua mãe. Eu sei que para ti é uma
grande tristeza, tê-la perdido tão nova. – Sentei-me mais direita, querendo
contar-lhe, querendo chorar. As minhas narinas dilataram-se e eu inspirei
profundamente, com o oxigénio a comprimir os meus segredos por dentro. –
Porque nunca falas dela? – perguntou ele.
– Não há nada a dizer. Não me lembro o suficiente, só as memórias de
uma criança. Duvidosas.
– As memórias não são todas duvidosas?
– Talvez – disse eu, olhando para o fundo do copo. – Mas sejam elas
duvidosas ou não, não tenho muitas. – Eu quase esquecera o pouco que
sabia antes; a pequena coleção de fragmentos isolados que eu tinha da
minha mãe antes de viajar no tempo. Enquanto mentia ao Eddie, via todas
as novas memórias que tinha recolhido nos últimos dois meses e ansiava por
partilhá-las com ele.
– Bem, de que te lembras? – disse ele, instigando-me.
Só podia contar ao Eddie o que me lembrava da infância, aquelas
memórias que agora haviam sido substituídas pelas mais recentes.
– Olhando para trás, lembro-me de sentir a falta dela quando morreu.
Apanhou uma constipação, uma infeção respiratória; acho que costumava
ter uma todos os invernos. Pelo que me lembro, apanhou uma constipação e
depois, bem, depois... morreu. – Tentei visualizar, e era como uma página
em branco num álbum de fotografias. Não conseguia fazer aparecer as
imagens. Eu lembrava-me dos factos, por mais insubstanciais que fossem,
mas não conseguia vê-los, como às novas imagens.
– Isso é vago – disse o Eddie, não de modo duro.
– Para ser sincera, não consigo lembrar-me com clareza daquela altura.
Fui morar com o Henry e a Em, na mesma rua, e a certa altura eles
adotaram-me. – O Eddie conhecia esta parte. – Eles tinham quase sessenta
anos quando fui para casa deles. Acho que, a princípio, pensei que era
temporário. Acho que também eles pensavam que era temporário, era o que
parecia, mas talvez se tenha tornado permanente quando nos demos todos
bem. Eles eram amorosos. Lembro-me de quando decoraram o meu quarto e
me devolveram algumas das minhas coisas antigas. – Fiz uma pausa, a
imaginar a bola saltitona no canto do meu antigo quarto. – Lembro-me de
lhes perguntar o que tinha acontecido à minha mãe, e eles sentaram-me.
Ficaram a olhar um para o outro como se preferissem que fosse o outro a
explicar. Francamente acho que, se eu nunca tivesse perguntado, teriam
fingido que não acontecera nada e que um dia eu esqueceria tudo sobre ela,
por mim.
– Estavam a tentar ser amáveis – disse o Eddie.
– Eu sei. – Fixei o olhar num ponto distante, vendo a Em e o Henry como
que na gravação de um filme antigo, a preto e branco, a moverem-se em
silêncio, pondo na mesa um assado para o jantar e a sorrir para a lente do
passado; depois, vendo-os já a cores, as memórias mais recentes mais
vibrantes e acessíveis. – Disseram que ela apanhou uma constipação,
adoeceu e morreu. Nunca mais a vi. Acho que eles pensaram que era melhor
para todos os envolvidos, quem quer que fossem. Não me lembro de
levarem o corpo dela lá de casa. Fui protegida de tudo.
– Se dois animais vivem juntos e um deles morre – o Eddie olhou para
mim, vendo se eu estava bem; eu assenti com a cabeça –, é suposto pores o
corpo do morto perto daquele que ainda vive, durante algumas horas, para
que percebam que o companheiro se foi. Se te limitas a remover o corpo, o
outro vai ficar à espera que ele volte para casa. Pode ficar aflito deprimido;
irá sempre questionar onde está o amigo. Penso que com os humanos se
passa o mesmo.
– Achas que estive à espera da minha mãe estes anos todos?
– Não sei, suponho que seja diferente. Não exatamente à espera, mas
talvez a consumires-te. Alguma vez fizeste perguntas sobre ela à Em e ao
Henry, quando cresceste?
– Não – respondi. – Não queria incomodá-los nem estar a pôr tudo em
cheque. Acho que nunca lhes perguntei nada, eles pareciam não gostar que
o fizesse. E que poderia eu perguntar? Achava que a conhecia melhor do
que eles, nem sequer lhes disse o quanto sentia a falta dela. Levaram-me à
sepultura dela quando eu era nova, mas só duas, talvez três vezes. Apanhei
flores do jardim e pu-las lá. Depois tudo isso acabou. Lembro-me de
perguntar se poderíamos ir novamente à sepultura, mas havia sempre algum
motivo para não irmos. Por fim, deixei de perguntar, porque tinha a
sensação de que eles não gostavam. Acho mesmo que pensavam que eu ia
esquecê-la, pelo menos a maior parte.
– Como achas que ela morreu? É estranho, não é, não saberes um pouco
mais do que isso?
– Creio que os adultos apenas protegem as crianças de coisas que acham
que elas não conseguiriam entender na altura. Mas o que eles me deram foi
uma data de incógnitas, e isso é pior. Acho que ela morreu de cancro ou
algo assim. Talvez, não sei. Ela não bebia muito, mas fumava.
– Fumava? – disse o Eddie. – Pergunto-me porque te lembras disso.
Talvez o cheiro.
Claro, eu não sabia nem me lembrava que ela fumava antes das visitas por
meio da caixa da bola saltitona. Isto era informação nova. Eu estava a ser
descuidada.
– Já pensaste em falar com o Henry novamente e perguntar-lhe mais
sobre a tua mãe? – disse o Eddie. – Antes que seja tarde.
A Em tinha morrido há mais de uma década e o Henry, quase com
noventa anos, vivia num lar. Não o visitava muitas vezes, tenho vergonha
de admitir, embora o fizesse de vez em quando.
– Não sei, Eddie.
– É basicamente agora ou nunca, tu sabes disso – disse ele. Observei o
meu marido, o seu desejo de garantir que vivo com o mínimo de
arrependimento possível, agora que ele próprio havia alinhado na ideia. – Se
não falares com o Henry antes de ele morrer, vais lembrar-te de algo que
gostarias de lhe ter perguntado. Talvez ele possa contar-te mais sobre a tua
mãe, agora que cresceste. Se não tentares, não saberás.
– Vou pensar nisso – disse eu. Fomos dando goles nas bebidas no jardim
que escurecia e o Eddie acendeu uma vela com cheiro a limão para afastar
os mosquitos. A chama dançou: baixou-se e elevou-se, à procura de ar e
afastando-se depois dele. Era hipnotizante. Fixei o seu centro azul.
– A minha mãe tinha razão – disse o Eddie ao fim de algum tempo. –
Muitas das perguntas que lhe fiz, já sabia as respostas. E acho que é boa
ideia se adotares esse sentimento em relação à tua própria mãe. – Eu não
disse nada. – O que quero dizer é – continuou ele –, a tua mãe amava-te,
preocupava-se contigo. Ficaria muito orgulhosa de ti e das meninas.
– Eu sei – murmurei.
– Sabes mesmo? – disse ele, decidido a garantir que eu acreditava no que
ele estava a dizer. – Não é preciso lembrares-te da tua mãe nem das coisas
que te disse para saberes que ela tinha por ti um amor tão profundo como
nós temos pelas nossas belas adormecidas.
– Começo a chegar lá, começo a compreender isso – disse eu. Como é
óbvio, não chegara a esse entendimento da forma que o Eddie imaginaria.
Tive uma confirmação verdadeira, uma prova, o que me soube bem. Mas o
Eddie tinha razão. A verdade permanecia e era esta: mesmo que eu não
tivesse voltado ao passado para falar com a minha mãe, poderia ter confiado
no seu amor. Poderia ter acreditado nele.
Durante algum tempo, limitámo-nos a olhar para o jardim. Aquele nosso
mundinho parecia seguro e completo. Era reconfortante – ainda que
enganador – imaginar por um momento que aquilo era tudo o que existia no
universo.
– Poder confiar no amor de alguém é uma coisa maravilhosa – disse ele,
quebrando a paz. – Sempre tentei confiar em ti e no que sentes por mim.
Mas às vezes preocupo-me, Faye. Ultimamente pareces muito distante.
Nunca me senti assim contigo. Estiveste sempre aqui. – Ele levou a palma
da mão ao coração. – Mas nos últimos tempos... não sei... estarei a perder-
te?
Pousei a bebida meio cheia na mesa e levantei-me, para poder
aconchegar-me no colo dele. Enrolei a manta também à volta dele.
– Tenho andado distante – disse eu. – Eu sei disso, mas não estás a
perder-me.
– Não estás a contar-me tudo e eu não consigo perceber porquê. Não
quero perguntar, mas tenho de o fazer. Tens outra pessoa?
Havia outra pessoa. Havia a minha mãe. Mas eu sabia o que o Eddie
queria dizer e beijei-o longa e profundamente, para lhe garantir que não
existia outro homem na minha vida. Ele afastou-se de um modo delicado.
– Estou a pôr-te sob muita pressão, por entrar para o clero? A minha mãe
diz que deve ser muito difícil para ti, e acho que tenho tentado ignorá-lo.
– Estou a conformar-me com isso – disse eu, pressionando os lábios na
sua face e deixando-os demorar. – Acho que Deus é mais do que o grande
indivíduo barbudo que está no Céu. Sei que Deus está na Terra, nas pessoas,
nas boas ações. Deus está nas coisas grandes e nas pequenas. Está sob as
unhas das nossas filhas e em todas as gentilezas que mostramos às pessoas.
Eu sei que aquilo a que as pessoas chamam «obra de Deus» para outro ser
humano pode chamar-se «aliviar o fardo». O meu tipo de deus pode ser um
pouco diferente do teu. Talvez seja só isso.
O Eddie afastou-me, para poder olhar-me nos olhos.
– Tens pensado muito sobre isso – disse ele.
– Tenho, e podes contar comigo.
O Eddie encostou o nariz ao meu pescoço. Quando senti o calor do seu
hálito na minha pele, soube que me levaria para cima e faríamos amor em
silêncio, para não acordar as meninas. Senti – como já sentira muitas vezes
– que tudo de que realmente precisava estava ao alcance físico. O braço dele
envolveu-me a cintura e fechei os olhos, enquanto ele gemia baixinho e eu
entrelaçava os dedos nos dele.
Depois parou. Susteve a respiração e eu também, sabendo naquele
instante o erro que havia cometido. Os dedos nos meus moveram-se quase
impercetivelmente enquanto o resto das nossas funções – até os batimentos
cardíacos, ao que parecia – parava. Ele afastou-se, os lábios ainda
ligeiramente afastados, do nosso beijo, e segurou-me a mão na dele,
olhando-a por um momento antes de me fixar com um olhar confuso.
– Onde está o teu anel de noivado? – perguntou.
Mexi-me no colo dele, desejando estar mais longe, no meu próprio lugar.
Teria preferido dar a explicação a alguma distância. Dizem que é tanto mais
fácil gerir as armas quanto mais afastadas estiverem; quando esta granada
explodisse, ambos rebentaríamos.
– Eu... perdi-o – respondi.
Ele inclinou-se para trás, semicerrando os olhos como que para verificar
se me via com clareza.
– O que queres dizer com «perdi-o»? Onde está?
– Se soubesse, tê-lo-ia – disse eu. Uma resposta lógica, de que ele não
gostou.
– Onde achas que o perdeste? – disse ele, com a irritação a torná-lo mais
específico.
– Acho que em casa. Quando estava a fazer limpezas. – Mas detestei esta
desculpa, porque fazia questão de não tirar os anéis por nada. O Eddie
empurrou-me do colo e levantou-se.
– Perdeste-o? Não acredito!
Olhei para ele, mal me atrevendo a estabelecer contacto visual.
– Queres dizer que não acreditas em mim por não acreditares que eu
pudesse fazer algo tão estúpido?
– Quero dizer – continuou ele – que efetivamente não acredito que o
tenhas perdido a limpar. Quero dizer, acho que estás a mentir. Está claro o
suficiente? – O seu olhar penetrante ter-me-ia fixados a uma cruz como um
prego. – Tens-me mentido sobre muitas coisas, desde há muito tempo –
afirmou. – Tenho sido paciente, mas chega. Quero saber a verdade. Quem é
ele?
Eu compreendia, claro que compreendia, e, no entanto, sentia-me
indignada. Porque é que o meu marido simplesmente não acreditava em
mim? Eu sabia que estava a mentir, mas qual era a sua insinuação? Que eu
tirara os anéis para ir ao encontro de um estranho, para ir para a cama com
ele, e que perdera um deles? Para ele, isto era só a simples preocupação de
eu ter um caso. Bem, não estava. Não era culpa minha não poder contar-lhe
a verdade.
– Acho que eu seria um pouco mais inteligente se andasse a dormir com
outra pessoa, não é?
– Só sei que estás a mentir, e as explicações mais simples são muitas
vezes as certas.
– E, no entanto, não aceitas que eu simplesmente o tenha perdido quando
estava a limpar.
– Quando digo uma explicação «simples», não quero dizer «estúpida».
Não admira que quisesses que fôssemos para França – disse ele. Olhei para
a mesa, com o nosso vinho e as velas, a manta descartada no chão, e vi
como esta noite havia sido estragada. Brotaram-me dos olhos lágrimas de
frustração, e limpei uma com a mão quando ela me caiu pela face.
– O que dirias – perguntei baixinho, sentindo-me corajosa e olhando
diretamente para ele –, se eu te contasse que troquei o anel de noivado por
um punhado de feijões mágicos?
O Eddie deu um passo em direção a mim e inclinou-se, o seu rosto bonito
a centímetros do meu.
– Diria para ires passear – disse ele. Depois virou-se e olhou para o jardim
escuro. Avançou um ou dois passos e apoiou-se na balaustrada do terraço,
com a cabeça para baixo. Abanou-a como um capitão que sabia ter
navegado na direção errada e que olhava para um oceano sem respostas ou,
pelo menos, sem nenhuma que desejasse ouvir.
– Eddie – disse eu, mas ele levantou a mão e eu parei.
– A menos que seja a absoluta verdade, não quero ouvir uma única
palavra – afirmou. Eu respeitava-o o suficiente para não dizer nada.
Depois do que pareceram minutos, mas foram provavelmente segundos,
ele virou-se para olhar para mim por cima do ombro. Os seus olhos
brilhavam. Segurei a manta junto a mim, como uma criança com um escudo
de faz-de-conta, e antecipei o seu perdão por tudo o que ele pensava que eu
tinha feito. Previ a sua confiança, que ele saberia que eu o amava e que
nunca o trairia. Acreditei que ele me conheceria bem o suficiente para
confiar que o que quer que eu escondesse, não era esse tipo sórdido e vulgar
de traição. Olhei-o com todo o amor e lealdade que sentia por ele nas
profundezas do meu ser.
– Eddie – disse eu novamente.
Ele levantou a mão como se fosse fazer um truque de magia e meteu o
dedo anelar na boca; todo lá dentro. Depois fez deslizar o anel de platina
pelo dedo, devagar, parecendo exatamente um ilusionista que queria ter a
certeza de que a minha atenção estava mesmo onde ele queria. Segurou-o
então acima da cabeça e virou-se, atirando-o para o jardim. Soltei um
arquejo. Por um momento imaginei ter visto o luar a brilhar na superfície
prateada, enquanto ele girava pelo ar; depois desapareceu, aterrando em
silêncio na relva escura. O Eddie olhou na direção do seu projétil.
– Se aquilo se transformar num feijoeiro – disse ele –, não tenhas
problemas em desaparecer por ele acima.
Tirou-me então a manta, pegou no copo de vinho meio cheio e dormiu no
sofá.
*
As meninas dormiram até tarde e eu levantei-me antes delas. A cama,
grande de mais sem o Eddie, pareceu expulsar-me e arrastei-me para o
andar de baixo. As portas duplas da cozinha, que davam para a sala de estar,
tinham painéis de vidro na parte de cima e eu espreitei através deles. Mas,
em vez do meu marido a dormir, vi cobertores dobrados com cuidado e
almofadas ordenadas ao longo do sofá, como se ele nunca se tivesse
dormido ali. Fiquei com um nó na garganta perante o pensamento de ele já
ter saído de casa. Tinha medo de que algo lhe acontecesse antes de termos a
oportunidade de resolver as coisas.
Caminhei com calma até à cozinha e liguei a chaleira. Inclinei-me sobre o
balcão, a inspecionar os pedaços brilhantes na superfície do mármore. A
autocomiseração pesava-me tanto nos ombros que era difícil estar em pé, a
direito. Quando arranjei força para levantar os olhos e olhar pela janela, vi-
o. O Eddie estava de gatas, o rosto perto da relva orvalhada. Via que ele
tirara as calças de corrida, que pareciam encharcadas por causa do relvado
molhado; e lá estava ele, de cuecas, como um cão à procura de uma
joaninha. Acocorou-se e pressionou os olhos com as mãos. Quando arrastou
as mãos pelo rosto, os nossos olhos encontraram-se e, embora eu não me
estivesse a mexer antes daquele momento, paralisei. Não respirei nem
pestanejei. Endireitei-me devagar, mas não rompi a linha de visão com ele
nem por um instante.
Ele levantou-se e caminhou de modo fatigado em direção a mim, com a
relva toda colada aos joelhos, que estavam vermelhos e sulcados com linhas
por ter estado tanto tempo ajoelhado. Abri a porta da cozinha e, quando
chegou, ele pôs os braços à minha volta como se estivesse muito, muito
cansado.
– Desculpa – disse eu.
– Eu também – respondeu ele numa voz impaciente, apenas a apertar-me
com força contra o seu corpo, as mãos no meu cabelo.
– Não tenho um caso – disse eu, embora presumisse que ele já acreditava,
tão terno era o seu olhar e movimentos.
– Tenho saudades tuas – disse ele, olhando-me nos olhos com tanta
intensidade que eu sentia o calor do seu olhar a queimar-me.
– Estou aqui – disse eu. – Não vou a lado nenhum.
E naquele momento, juro, era verdade.
23
E urecente
poderia ter mergulhado na minha obsessão pela Jeanie e na minha
viagem para a ver, e no facto de ter conhecido a Elizabeth, mas
tentei voltar ao normal. Afinal, depois de acontecimentos traumáticos –
provações que mudam vidas – as pessoas continuam a beber chá, tomar
banho, ir para a cama, ir trabalhar, comer pedaços de queijo em pé em
frente à porta aberta do frigorífico. Eu fiz essas coisas todas. Era fácil cuidar
da minha família; fazia-o há anos.
Ao fim de cerca de uma semana, conseguia ver um filme inteiro, preparar
e comer toda uma refeição, lavar o cabelo e vestir o pijama sem pensar no
facto de ser uma viajante no tempo. Mas estava lá, logo abaixo da
superfície: eu podia pegar numa moeda e raspar levemente sobre a minha
vida quotidiana, e ali, revelando-se aos poucos, estava o tempo com a minha
querida mãe. Quando me olhava ao espelho via o rosto dela, tão diferente –
e mais jovem – do meu. Quando me deitava na cama e fechava os olhos,
lembrava-me de a observar enquanto ela dormia, absorvendo-a, e a
almofada por vezes molhava-se com lágrimas silenciosas.
Tentava concentrar-me no trabalho: realizava as experiências, escrevia
relatórios, organizava discussões em grupo, participava em reuniões. Era
difícil, porque só queria que chegasse a hora de almoço para me sentar a
conversar com o Louis. Tornámo-nos mais próximos desde a Elizabeth. A
sua genuína crença em mim levou-nos a outro patamar; partilhar um
segredo faz esse tipo de coisa. Creio que, por um tempo, o Louis sentiu
alguns ciúmes da Elizabeth, porque ela já estivera comigo no passado.
Comecei a ter essa sensação depois de lhe ter lido a carta que ela enviara e
descrito o anel de diamante. Não digo que o Louis estivesse cheio de inveja,
só que ele queria ser a parte maior disto. Parecia que eu era o capitão e ele o
primeiro imediato, desconfiado da nova tripulação. Só que, no que me dizia
respeito, ele era o meu braço direito. Eu precisava do Louis e também o
conhecia. Não conhecia a Elizabeth. Só tivera duas conversas com ela em
toda a vida. No entanto, sabia que para a Elizabeth eu era muito mais do que
uma conhecida.
Ciúmes moderados à parte, o Louis era um grande fã da Elizabeth e
falávamos muito dela. Ele adorou que ela lhe tivesse dado o ovo esmaltado;
era uma coisa bela, e ele sabia disso, quer o conseguisse ver ou não. Estava
muito orgulhoso por ter o belo ovo sobre a lareira em casa, para que todos o
vissem.
– Isto apenas mostra o quão longe cheguei – disse ele certa vez ao
almoço, num café.
– O que significa...? – perguntei, trincando a sanduíche.
– Bem, em criança, eu nem sabia a forma de um ovo, e agora tenho um
muito caro, bonito e frágil em casa. É como um «vão passear» aos
retentores de ovos.
– Não sabes se é caro – disse eu, de boca cheia.
– Não estragues tudo. Provavelmente, é. E o teu anel é muito caro.
– E assenta-me na perfeição. Eu disse ao Eddie que era um pedaço de
bijuteria para usar, já que o dedo me parecia despido sem o anel de noivado.
– Talvez tenha valido a pena perder o outro – disse ele, sem falar a sério.
– Céus, não, mas foi um gesto amável e generoso. Ela não precisava de
mo dar. – Fiz uma pausa. – «Retentores de ovos»? – perguntei.
– Tu sabes o que quero dizer. – Sentámo-nos e, durante algum tempo,
comemos num silêncio amigável. O café estava movimentado, com pessoas
a pedir almoços para levar. Uma ou duas delas sorriram-me com admiração,
como se pensassem que eu estava a fazer uma boa ação ao levar um cego a
almoçar. Eu detestava aquilo. Estávamos metidos num canto ao fundo, o
mais longe da entrada e do vento frio que soprava para dentro de cada vez
que alguém entrava. Fora até então um outubro quente, mas agora batia à
porta um outubro mais frio.
– Voltarias outra vez atrás, se fosses tu? – perguntei-lhe. O Louis limpou
a boca com um guardanapo.
– Eu voltaria. Mas não quer dizer que devas fazê-lo – disse ele. – Não
tenho filhos, não tenho marido. Na verdade, não tenho ninguém que
dependa de mim ou que sentisse a minha falta se algo corresse mal.
– Isso não é verdade, Louis, eu sentiria a tua falta – declarei. – Sentiria
mesmo.
– Não é o mesmo – disse ele. – Simplesmente não sou tão importante na
vida das pessoas que conheço. Sou substituível – disse ele.
– Não és substituível – respondi. – Louis, não és substituível.
– Então, se eu tivesse uma caixa e quisesse voltar atrás no tempo para
visitar o meu pai ou algo assim, encorajar-me-ias a fazê-lo?
– Bem, se fosse o que realmente querias fazer, então sim.
– Isso porque se eu me perdesse, ferisse ou morresse, não teria grande
impacto no mundo. Um dia eu entrava na caixa e depois, quando não
voltasse, ao fim de um tempo alguém diria: Ei, onde está aquele tipo cego
que andava sempre a derrubar o meu cesto dos papéis? E depois de mais
um tempo, todos parariam de perguntar onde estava e eu simplesmente
estaria desaparecido. A minha irmã ficaria abalada; é provável que
presumisse que eu me atirara a um lago por estar irritado por ser cego, e
então venderia a casa e seguiria com a sua vida.
– Não é verdade – disse eu, num sussurro acalorado.
– Verdade – disse ele, de forma calma e com autoconfiança.
– Não a minha verdade – refutei. Ele limitou-se a encolher os ombros e
trincou a sanduíche. – Nunca te atires a um maldito lago – disse eu. E
depois, com uma vozinha patética, acrescentei: – Perturbaste-me mesmo,
Louis. És incrivelmente importante para mim. Preciso de ti.
– Também preciso de ti, assim como muitas pessoas, mas continuas a
ameaçar entrar numa caixa e desaparecer para sempre.
– Não costumavas pensar assim, antes da Elizabeth.
– Eu sei – concordou ele. – Mas aquilo que ela disse sobre não se saber
verdadeiramente como funciona esta coisa das viagens no tempo
preocupou-me.
– A mim também – disse eu. – Estou sempre a pensar, se algo sólido
como um anel pode desaparecer, que mais pode correr mal? Talvez algo
catastrófico. É estranho, porque antes dava a sensação de que voltar ao
passado era na verdade fazer do presente aquilo que conhecemos – disse eu.
– Bem, isso não mudou muito – disse o Louis. Deu um gole na bebida.
– O que queres dizer? Pensava que, uma vez que tive sempre o anel de
noivado, o facto de o terem roubado à Elizabeth significava que a
cronologia se alterara.
– Não – ele abanou a cabeça. – Não é esse o caso. A cronologia da tua
vida, e de quando tinhas o anel, não mudou, pois não? Tiveste-o durante
toda a vida de casada, até ao outro dia, e agora não o tens. Estou a pensar
que de facto nada mudou, como resultado da viagem ou do assalto.
– Estou confusa – disse eu. – Queres dizer que continua a não haver nada
que indique que eu mudaria alguma coisa se voltasse novamente ao
passado?
– Não, mas começo a pensar que só voltaste duas vezes, e não podemos
ter a certeza das regras. – Ergueu então o dedo de forma refletida.
– O que é? – perguntei.
– Se voltares outra vez, podes levar dinheiro, pagar os patins à Elizabeth e
trazer o teu anel de volta, antes que seja roubado; pelo menos, dessa forma
tê-lo-ás outra vez e não irritarás muito o Eddie. Quando foi o assalto?
– Anos depois de eu a conhecer – disse eu. – Pode resultar. Mas o meu
dinheiro não serve nos anos setenta.
– Provavelmente consegues comprá-lo no eBay – disse ele.
– Comprar dinheiro dos anos setenta?
– Hum... – disse ele. Depois abanou a cabeça. – Não, não vai resultar.
– Porquê? – perguntei.
– Porque o anel já foi roubado. Não consegues corrigir as coisas, só fazer
com que as coisas sejam como as conhecemos, e não mudar o que já
aconteceu. E, pensando melhor, não deves de forma nenhuma pagar aqueles
patins.
– Porquê?
– Não sei. Porque a Elizabeth disse que nunca o fizeste, portanto isso
seria mudar as coisas.
– Oh, Deus, para – pedi, levando as mãos à cabeça como se o meu
cérebro pudesse cair.
– Não voltes. Não vai ajudar e é demasiado perigoso – disse ele.
– Decide-te. – Pus o guardanapo sobre o prato; tornara-se muito difícil
engolir. – A desvantagem disso é que nunca mais verei a minha mãe. É
tudo. Obrigada. – O raciocínio para voltar ao passado andava em círculos:
eu queria voltar, mas os riscos podiam ser muito altos. Se não fosse pelo
anel, provavelmente não teria pensado duas vezes nisso, apesar do risco
físico e de tudo o que tinha a perder. Era negligente não levar mais a sério
tudo o que tinha a perder, inclusive a minha vida; sabendo disso, tinha de
ocupar a cabeça, acalmar a vontade do meu coração. Tinha de aceitar o
facto de ter perdido outra vez a minha mãe, antes de ter a oportunidade de
lhe dizer tudo o que precisava de lhe dizer. Sentia que a estava a perder pela
segunda vez na vida, ou talvez pela terceira. Cada vez que a deixava, ficava
desolada. Mas não iria isso ser verdade independentemente de quantas
vezes ou do quão brilhantemente eu conseguisse despedir-me? Agora aqui
estava o Louis, explicando mais uma vez que, na verdade, eu não mudara
nada, o anel roubado nada significava, e a vida como eu a conhecia
permaneceria intacta, independentemente do que eu fizera no passado. Eu
considerava-me uma pessoa naturalmente mais prudente; porque arriscava
tudo o que tinha? As expedições ao passado haviam sido sempre
impregnadas pelo medo de não conseguir voltar e, no entanto, o vício de
voltar era quase físico, emocional, ardente. Fui buscar cafés e sentei-me de
novo à mesa, levantando a mão do Louis e tocando a sua chávena com ela.
– Sabias que fui adotada depois de a minha mãe morrer? – perguntei-lhe.
– Imaginei que tivesses sido, ou acolhida. Nunca falámos sobre isso.
– Acolheu-me um casal mais velho, chamava-lhes tia Em e tio Henry.
Eram boas pessoas, como uns avós queridos. Senti-me sempre como se
estivesse apenas de visita, mesmo quando lá vivia permanentemente.
– Como correu? – perguntou o Louis.
– Bem. Eles foram bondosos, eu não lhes arranjei problemas. Eles tinham
a sua vida, jogavam bowling, dardos. Tinham uma rotina agradável e acho
que isso me faz bem. Foi como se um dia a minha mãe estivesse lá e no
seguinte não. A Em e o Henry acolheram-me, e depois simplesmente fiquei.
Lembro-me das noites de domingo: víamos o Bullseye na televisão e
comíamos torradas com patê e bebíamos Cup-a-Soup em verdadeiras
canecas vermelhas e brancas da Batchelors Cup-a-Soup. Depois, era o
Bergerac. E a música do genérico do Bergerac dá-me a sensação de
domingo à noite; significava escola no dia seguinte. A minha mãe era
mesmo uma hippie, suponho, e havia muito amor e carinho, mas acho que
nem sempre muita rotina. A Em e o Henry provavelmente salvaram-me,
impediram-me de enlouquecer depois de ela morrer. Cuidaram mesmo de
mim. Entraram com o pedido de adoção uns anos depois.
– Ainda são vivos?
– O tio Henry tem quase noventa anos. Eles tinham quase sessenta
quando me acolheram, acreditas? A Em morreu há uma década. – Bebi um
gole de café e sorri com ternura, porque o Louis tinha espuma no lábio
superior, parecendo um minúsculo bigode francês. Não me dei ao trabalho
de lhe dizer.
– O Eddie acha que eu deveria visitar o Henry e fazer-lhe mais perguntas
sobre a minha mãe, antes que seja tarde de mais.
– O que poderá ele saber sobre a tua mãe que tu não saibas, já que a
visitaste? –perguntou o Louis.
– Bem, eles nunca me disseram exatamente como ela morreu, por isso a
história que conheço é que ela apanhou uma constipação e pronto. Bem, não
está certo, está? Deve ter sido outra coisa, um ataque cardíaco, cancro,
asma. Não sei. Eles estavam a proteger-me, compreendo isso, e a psicologia
infantil não era o que é hoje. Levaram-me à sepultura dela algumas vezes.
Talvez fosse essa a ideia deles de encerrar o assunto. Mas, com franqueza,
agora não saberia sequer onde fica essa sepultura.
– Então fala com o Henry, pergunta-lhe sobre isso. Que mal pode fazer?
– Não sei, parece uma potencial caixa de Pandora.
– Então visita-o e não lhe perguntes, vê apenas para onde vai a conversa.
– Isso foi o que disseste quando fomos à loja da Elizabeth – afirmei.
– Queres que vá contigo?
– Desta vez, não. Acho que devo ir com o Eddie e as meninas. Mas,
depois ponho-te a par – disse eu, apertando-lhe a mão.
– Isto é bom – disse o Louis, a voz reconfortante, forte. Segurou-me a
mão com força. – Isto é um progresso. Isto é o que as pessoas normais
fazem quando querem descobrir coisas sobre o passado: falam com pessoas
vivas que estiveram mesmo lá, em vez de entrar numa máquina do tempo.
Isto é um passo na direção certa.
24
Henry tem duplo queixo – sempre teve – e lembra-me o Droopy, um
O tio
cão dos desenhos animados americanos. O Droopy tinha de segurar uma
placa a dizer «Estou feliz», porque só a olhar para o rosto dele era
impossível saber. Com o tio Henry acontecia o mesmo, mas ele estava longe
de ser um homem infeliz. Se eu tivesse apenas dois adjetivos para o
descrever, seriam «forte» e «contente»; um homem que nos faz sentir
seguros sem fazer nada senão estar presente. Mesmo agora, o aperto firme
dele na minha mão enquanto eu me empoleirava na beira do sofá, ao lado da
sua cadeira de rodas, era o aperto de um homem que não sabia senão dar
ânimo; tinha coragem na ponta dos dedos.
Quando penso na primeira noite em que fiquei com a Em e o Henry, a
imagem de que me lembro é um prato de biscoitos dispostos num padrão:
wafers de caramelo nos seus invólucros brilhantes, vermelhos e dourados,
espalhados em leque num círculo como raios de sol, os vazios entre eles
preenchidos com bolinhos de chocolate em papel de prata, e depois wafers
cor-de-rosa, despidos em comparação com os outros. Demasiados biscoitos
para comer, mas apenas a quantidade certa para o padrão funcionar. Não era
estranho, era agradável. Trataram-me como a uma convidada muito especial
e foram queridos comigo.
Agora que era muito velho, o Henry estava a ficar com o duplo queixo
ainda mais pronunciado. Era a única coisa nele que havia mudado, não se
passava nada de errado com a sua cabeça. Quando chegámos ao lar, ele
conversou com a Esther e a Evie, perguntou-lhes pela escola e a viagem a
França, e perguntou-lhes qual fora a pior parte de cada uma. Perguntava
sempre o que tinha sido pior no dia, nas férias, no fim de semana porque,
dizia ele, as pessoas perguntavam sempre o que tinha sido melhor e é bom
ser diferente. A Evie subiu-lhe para o colo e ele pôs o braço em volta dela.
Ela pegou com cuidado na pele frouxa da bochecha descaída e levantou-a
um pouco.
– O que está aqui debaixo? – perguntou ela, em tom de conversação.
– Doces! – disse ele, e tirou um saco de um bolso, como um alforge, do
lado da cadeira de rodas. – Tirei uns para ti mais cedo, de debaixo das
bochechas, e empacotei-os.
Esta era uma rotina por que passávamos sempre, quando o visitávamos.
Da primeira vez que a Evie veio comigo ver o Henry, isto é, da primeira vez
em que sabia falar, arrastou-se para cima dele; fiquei mortificada quando ela
lhe levantou a pele e lhe perguntou o que havia por baixo. Mas ele riu-se e
disse-lhe que vivia lá uma família de passarinhos. E, da vez seguinte, disse
que eram doces e estava preparado com algo a sério.
Ele e eu sentávamo-nos agora junto a uma janela panorâmica com vista
para os jardins, e observávamos o Eddie e as meninas a brincar às
escondidas lá fora.
– Tiveste muitas visitas recentemente, tio Henry? – perguntei.
– Quase sempre, amor – disse ele. – Mas quando chegas à minha idade e
as tuas visitas são os membros da equipa de bowling com as mulheres, o
número vai diminuindo – disse ele com naturalidade. – É uma parte terrível
de envelhecer, quando se sobrevive a todos; está-se basicamente condenado
a ver os amigos morrerem.
Apertei-lhe a mão.
– Esperava poder fazer-te algumas perguntas, Henry, sobre a minha mãe.
Coisas que nunca te perguntei.
Ele fechou os olhos.
– Eu sei – disse ele. – Antes que seja tarde de mais.
– Eu não queria dizer isso.
O Henry segurou-me a mão com um pouco mais de força e acariciou-ma
com o polegar.
– Eu e a tia Em adorávamos-te, eu ainda te adoro, é claro. Espero que
saibas que nos trouxeste muita alegria – disse o Henry. – A Em, a minha
querida Em, não podia ter filhos. Era uma grande tristeza na nossa vida, mas
nós amávamo-nos e rodeávamo-nos de amigos e atividades. Naquele tempo
era mais difícil, se não se podia ter filhos. – A voz do Henry tornou-se
irregular e isso fez-me querer pigarrear. – É sempre duro para uma mulher
que não pode ter filhos, se ela os quiser. Mas o que quero dizer é que,
naquela altura, era mais difícil encontrar outro propósito para ocupar o
tempo, distrairmo-nos da tristeza. Quando perdeste a tua mãe e vieste para
nós, já nos tínhamos conformado com o vazio de não ter filhos na nossa
vida. Esse vazio nunca desapareceu, nós só nos habituámos a que estivesse
lá. – Ele olhou para fora da janela, sem pestanejar. –Provavelmente não te
lembras, mas costumavas aparecer com a tua mãe de vez em quando, e a
Em fazia um grande alarido contigo. Ela adorava crianças. Para nós, eras
mais como uma neta, por causa da nossa idade, mas a Em e eu, nós
amávamos-te como se fosses nossa. E tu eras tão boa menina, trouxeste-nos
sem dúvida muita felicidade.
– Foram bons para mim, tio Henry. Estou feliz por ambos me terem
acolhido.
Ficámos em silêncio algum tempo. Eu estava agitada, porque o Henry
devia perceber que eu queria saber mais sobre o que aconteceu à minha mãe
e não estava a oferecer nada. Eu teria de perguntar.
– Quando eu era pequena – comecei –, quando fui morar convosco, não
me lembro do que aconteceu à minha mãe. Disseste que ela adoeceu, teve
uma constipação, certo? E depois morreu? Mas é tudo tão ambíguo, com
certeza sabes mais.
O Henry olhou para mim. Tinha os lábios comprimidos com força, e
preocupou-me que ele não os forçasse a abrir para deixar sair alguma
palavra.
– Tio Henry – disse eu, chegando mais perto e mantendo a voz baixa. –
Eu nunca te censuraria. Sei que tu e a tia Em quiseram proteger-me dos
pormenores da morte da minha mãe. Não queriam que eu sofresse, e
queriam que eu esquecesse, porque eu era uma criança e ninguém deseja ver
uma criança em sofrimento. Eu compreendo. Mas agora, à medida que
envelheço e as minhas ligações ao passado são ameaçadas – fiz um esgar,
um vago pedido de desculpa –, preciso de saber, tio Henry. De outro modo,
ficarei a questionar-me para o resto da vida. Agora, a dor de a perder é
agravada por não saber a verdade. – Implorei ao Henry com o olhar. –
Perdê-la dói, de qualquer maneira – afirmei –, mas quanto a isso não posso
fazer nada. A verdade do porquê de a ter perdido, os pormenores, são algo
que preciso de saber. Isso vai ajudar-me. Por favor.
O Henry acenou com a cabeça e bateu ao de leve no cimo da minha mão
que segurava a dele, como que para me impedir de tentar persuadi-lo.
– Vai buscar-me um copo de água, amor – disse ele.
Bebeu um gole e ambos olhámos pela janela. Deste ângulo, eu via a
Esther a esconder-se atrás de uma árvore com a mão na boca, a tentar não se
rir e denunciar-se, e a Evie a esconder-se num arbusto, claramente visível.
– Não há pormenores – disse o Henry. Eu fechei os olhos. Ele não ia
contar-me nada. – Na verdade, nós contámos-te mais do que sabíamos. –
Virei-me para olhar para ele, que continuou a olhar para fora da janela,
imperturbável, enquanto falava. – Eu nem sabia que ela estava constipada,
foste tu que nos disseste isso. Disseste que a tua mãe tinha constipações e
tosses fortes, e que na altura estava com uma. Mas não sei como ela morreu.
– Foste ao funeral? – perguntei.
– Não houve funeral – disse ele, virando-se para olhar para mim. Pensei
ter visto algo no seu rosto, pensei ter visto um pedido de desculpas. Um
grito agudo fez-me saltar. Olhei para fora da janela e vi que o Eddie se
aproximara furtivamente da Esther por trás e a agarrara. Estavam os dois a
rir-se, agora.
– Porque não houve funeral? O que fizeram ao corpo dela?
O Henry soltou um longo suspiro e senti cheiro a menta no seu hálito.
– Não havia corpo – disse ele. – Ninguém sabe o que aconteceu à tua
mãe; bem, ninguém tem a certeza. Houve especulação e nós protegemos-te
de tudo isso. Mas nunca houve um corpo. Ela estava desaparecida,
presumivelmente morta.
– Presumivelmente? – perguntei. De repente, tornou-se difícil respirar.
– Achamos que ela se suicidou – disse o Henry, tentando aproximar-se de
mim na cadeira, mas sem se mover.
– Não, ela não o faria. Porquê? – A minha voz não era mais que um
murmúrio rouco. – Porque se mataria? Ela era feliz.
– Tu eras uma criança, querida, é difícil saber se os adultos são felizes
quando se é criança. Há sempre muito mais a acontecer na vida do que as
crianças sabem. Agora sabes disso, não sabes? As tuas filhas presumem que
estás feliz, não é? Mesmo quando não estás.
– Mas eu sei que ela era feliz, ela amava-me e não queria deixar-me. Não
teria escolhido deixar-me.
– Ela consumia drogas – disse ele. – Toda a gente sabia. – Ele ergueu as
mãos em sinal de rendição, antes que eu tivesse hipótese de protestar. – Não
estou a julgá-la, estou só a dizer que isso talvez tenha contribuído para o seu
estado de espírito. Algumas pessoas disseram, na altura, que ela estava
perturbada e dizia coisas estranhas.
– Como o quê? – perguntei, totalmente confusa.
Eu conheci a minha mãe já adulta e ela era perfeitamente normal, de um
modo meio boémio, não parecia nada suicida, e não me disse nada assim tão
estranho – e tivemos muitas conversas. Sim, ela era espiritual, sim, ela
fumava droga, mas com certeza... talvez isso fosse estranho para os tipos
mais convencionais dos anos setenta. O que eu sei com certeza é que ela
nunca teria escolhido deixar-me sozinha.
O Henry suspirou profundamente e recostou-se na cadeira, fechando os
olhos.
– Pelos vistos, estava à espera de um «anjo da guarda», ou à procura de
um; algo assim. Alguém disse isso e tornou-se um boato. Eu e a Em
pensámos que talvez ela tivesse ido nalguma viagem, à procura de algo, se
era um anjo da guarda ou não, não sei. Seja como for, não importava, o
facto é que ela tinha desaparecido. Mas presumimos que ela voltaria para te
vir buscar. Por isso, quando vieste para nós, foi como uma visita, e depois
tornou-se óbvio que, se ela pudesse voltar, já o teria feito. Corriam boatos
de que ela se tinha suicidado e não queríamos que soubesses disso.
– E a polícia? Procuraram-na?
– Não sei o que aconteceu à polícia, eles apareceram e fizeram algumas
perguntas, só isso. Mas, como nós, sabiam que era difícil ser mãe solteira; é
difícil agora, ainda mais difícil naquela altura. E, em parte pela dependência
do consumo de drogas, acho que as pessoas simplesmente tiraram as suas
próprias conclusões sobre o que tinha acontecido; o suicídio parecia a
explicação mais provável. – Ele fez uma pausa. – Devo parar?
– Não. – Funguei e vasculhei na carteira, à procura de lenços de papel.
– Acho que os sinais eram de que ela tinha ido embora de livre vontade, e
nunca mais voltou. Algumas pessoas perguntavam-se se, à sua maneira, ela
teria feito o que pensava ser melhor para ti. Não parecia haver nada
suspeito, nem outra pessoa envolvida, e não tinham ideia de para onde ela
fora. Hoje em dia podes seguir o rasto das pessoas com telemóveis e câmara
de vigilância, mas naquele tempo não.
Eu não conseguia interiorizar. A vaga imagem da minha mãe a morrer na
cama no seguimento de uma infeção respiratória, que eu imaginara ou
implantara (ou ambas), foi substituída por uma visão dela a andar descalça
pelo bosque num longo vestido fluído, com flores no cabelo, braços caídos,
balouçando ao lado do corpo, até desaparecer completamente de vista.
– A sepultura! – disse eu, súbita e estupidamente. – Vocês levaram-me à
sepultura dela.
O tio Henry abanou a cabeça.
– Lamento muito por isso, lamento mesmo. Eu e a Em na altura
decidimos que era uma boa ideia, mas não tínhamos a certeza.
– O que era, uma lápide colocada lá para ela, porque ela estava
desaparecida?
– Não era dela, era a lápide de outra pessoa; não tinha nome, dizia apenas
«Amada e saudosa, para reencontrar um dia». Achámos que de certa forma
seria melhor para ti se tivesses visto uma sepultura, algo real, para que
pudesses avançar com a tua vida.
Reprimi um soluço, deixando escapar apenas um pequeno gemido.
– Tudo o que fizemos, fizemos para tentar ajudar-te, para fazer o que
achávamos ser melhor para ti. Sei que errámos nalgumas coisas e lamento
muito, mesmo muito, em relação à sepultura. Agora parece terrível termos-
te levado lá.
Peguei na mão do Henry e repousei o rosto na sua palma. Ele acariciou-
me o cabelo com a outra mão, metendo madeixas perdidas atrás da minha
orelha.
– Eu entendo – disse. – Não te culpo de nada. Tive muita sorte em ter-
vos. E estou perturbada, mas não zangada contigo.
– Obrigado – disse ele, a voz novamente baixa e rouca.
– Porque não me contaste antes? – sussurrei.
– Nunca houve uma boa altura. Pareceste sempre tão feliz, não queríamos
estragar isso. Nós conversávamos, eu e a Em, tínhamos medo de que, se te
contássemos, pudesses abandonar a tua vida feliz e tentar encontrá-la. Há
pessoas que passam a vida inteira à procura de alguém, sabes?
– Eu sei.
– A minha preocupação – continuou ele –, é que vás à procura dela
mesmo agora. Um corpo é muito importante, por mais horrível que isto soe.
Se acontecesse ela estar viva, algures, estaria na casa dos cinquenta. Não
vais procurá-la, pois não?
– Por onde começaria? – perguntei. O Henry segurou-me as mãos nas
suas, afagando-as devagar. – O que achas que lhe aconteceu, tio Henry? De
verdade? Sê sincero.
Ele suspirou mais uma vez; um suspiro pesado com o peso das palavras
não ditas.
– Honestamente – disse ele –, sempre a imaginei a entrar na água.
Imaginei-a a afogar-se.
Recostei-me no sofá e, quando as meninas voltaram para dentro, tentei
que não parecesse que tinha estado a chorar. O Eddie percebeu, mas as
crianças estavam demasiado agitadas para reparar.
– Vamos comer o nosso piquenique! – gritaram. Empurrei a cadeira de
rodas do Henry para o jardim e estendi uma manta no chão.
O Eddie continuava a olhar para mim, a verificar, em silêncio, se eu
estava bem.
Acenei-lhe com a cabeça e consegui fazer circular morangos, bolinhos de
aveia e fatias de tarte de porco. Consegui servir chá de uma garrafa-termo,
em chávenas de porcelana antiquadas que as crianças faziam questão de
levar aos piqueniques, e durante todo o tempo senti o fardo das minhas
ações a pesar-me cada vez mais sobre os ombros.
A minha mãe não tinha morrido, desaparecera e acabara sabe Deus onde,
louca à minha procura. Embarcara numa busca vã, com a convicção de que
eu era um anjo da guarda que poderia ajudá-la com a filha, se algo terrível
lhe acontecesse. E eu causara tudo isso visitando-a, para começar. Eu
compreendia o porquê de ela ter ido à procura, mas porque não voltara?
Teria caído de uma falésia ao mar? Conhecera um grupo de hippies e
perdera-se num mundo arrebatado e semiconsciente? Eu não acreditava
nisso. Se a minha mãe pudesse ter voltado para mim, tê-lo-ia feito. Ela fora
à minha procura – o meu eu adulto que ela conheceu quando a visitei – e,
enquanto estava fora, acontecera-lhe algo que a impedira de regressar a
casa.
A minha viagem no tempo havia resultado na ausência de Jeanie na
minha vida. Mas, de uma forma ou de outra, não havia provas da sua morte.
E assim, apenas um simples pensamento me ocupava a cabeça: a minha mãe
poderia estar viva.
25
O dia seguinte era domingo, último dia das férias de outubro, a meio do
período, e tínhamos feito aquela coisa abençoada: nada de planos. Na
verdade, os nossos dias «sem planos» com as meninas envolviam uma
espécie de plano: pequeno-almoço tardio, ver um filme de pijama, uma
caminhada e comida de fora, como miminho especial antes de regressar à
escola. Pensando bem, os nossos dias «sem planos» eram mais rigorosos no
seu itinerário do que alguns dos dias de saídas organizados. Até a
caminhada que fazíamos em dias como este tendia a envolver um percurso,
que nos levava por uma velha ponte sobre uma autoestrada. O Eddie
ensinou-nos a todas a fazer os camiões buzinarem, pondo o braço para cima,
fechando o punho e puxando os braços para baixo, como se a puxar a corda
de um autocarro à moda antiga. A princípio pensámos que o Eddie estava a
meter-se connosco, mas o primeiro camião que se agigantou na nossa
direção, tocando a buzina, fez-nos saltar de incredulidade e alegria, como se
a nossa equipa tivesse acabado de marcar no Mundial.
Mas eu estava desesperada para falar com o Louis e enviei-lhe uma breve
mensagem furtiva, pedindo-lhe para que me ligasse e dissesse que estava
verdadeiramente aborrecido com alguma coisa e me implorasse para lhe
fazer uma visita, de forma a eu ter uma desculpa convincente. Se me
limitasse a anunciar que ia sair para ver o Louis, ou outra pessoa, o Eddie
suspeitaria. Sentia-me como uma adolescente a mentir aos pais para sair de
casa, mas não podia de modo algum esperar.
– A sério? Hoje? Isso não pode esperar até regressares ao trabalho? –
disse o Eddie enquanto eu vestia o casaco e calçava as botas.
– Ele está mesmo aborrecido, Eddie – disse eu. – E, quando fores vigário,
todos os nossos domingos estarão estragados. Isto é quase um ensaio. – Ele
franziu a testa enquanto lhe dei um beijo na boca, que não retribuiu. – Estou
a brincar – declarei. – Não demorarei muito, umas horas, e nós... – Puxei
uma corrente imaginária no ar enquanto descia de costas a entrada,
sorrindo-lhe.
– Pi, pi – disse ele, sem sorrir de volta.
*
Quando o Louis abriu a porta, passei por ele, pendurei o chapéu na fila de
cabides e descalcei as botas com um grunhido.
– Posso convidar-te a entrar? – disse ele.
– Ontem fui ver o tio Henry – disse eu.
– Chá?
– Por favor.
– O que disse ele? – O Louis dirigiu-se para a cozinha e para a chaleira.
Contei tudo ao Louis e, quando acabei, tive uma sensação frenética, como
se tivesse contado a história num dia ventoso no cimo de uma montanha.
Estava sem fôlego. Invadiu-me o desespero, é verdade; uma espécie de
sensação incómoda de que era tudo culpa minha.
Mas durante a noite estivera cada vez mais imbuída destes poderosos
sentimentos de esperança, que eram como filamentos dourados a brilhar na
minha escuridão. Esperança de que a minha linda mãe estivesse neste
mundo, aqui e agora, comigo. Ao mesmo tempo que eu.
– A tua mãe, se estiver viva, terá cerca de cinquenta e seis anos, certo? –
perguntou o Louis.
– Sim – respondi, ainda sem fôlego.
– Senta-te, por amor de Deus, sinto-te a pairar sobre mim. – Sentei-me,
mas na beira do assento, desesperada por ação, movimento, descoberta.
– Isto é realmente interessante – disse o Louis.
– E o resto não era? És um público difícil, Louis.
– Então, se ela está viva, potencialmente pode ser encontrada – disse ele,
apoiando o queixo num punho. – Mas...
– Mas o quê? – perguntei.
– Ela tinha de saber onde estavas, não te mudaste, apenas vivias mais
acima na rua. Durante anos. Foste localizável durante muito tempo.
Eu sabia aonde o Louis ia com esta lógica, claro; eu mesma pensara nisso,
mas ao ouvi-lo dele, senti-me esvaziar como um velho balão.
– Eu tenho consciência de que ela poderia ter tentado encontrar-me –
disse eu.
– Mão – pediu o Louis, e eu dei-lhe a mão para segurar sobre a mesa. –
Não leves a mal – disse ele –, mas, pelo que me contaste sobre a tua mãe,
não consigo imaginá-la apenas a vaguear e a nunca mais voltar para casa. –
Ele pôs a outra mão no meu rosto; procurou às apalpadelas as lágrimas que
me deslizavam em silêncio pela face. Pôs o polegar no meu queixo
contraído. – Não faz mal chorar – disse.
– Outra vez.
– Quantas vezes for necessário – disse ele com ternura.
Um relógio fez tiquetaque e o som pareceu alto, embora eu ainda não
tivesse reparado.
– Se ela está viva e bem, então de facto não me quer – disse eu.
– Bem, tens razão ao dizer que não podes saber o que lhe aconteceu,
Faye. Talvez esteja viva, agora é uma possibilidade. Mas talvez não esteja
bem. Ou... Deus. Quem sabe o que aconteceu.
Os meus pensamentos atropelavam-se furiosamente. Eu não conseguia
ordenar mentalmente as várias opções do que podia ter acontecido à minha
mãe, não conseguia manter-me a par da minha especulação. Estava a
acontecer-me muita coisa ao mesmo tempo. O Louis ajudou-me a expor as
teorias, como cartas de jogar. Infelizmente, não havia um verdadeiro ás no
baralho. A minha mãe podia estar morta. Suicídio, como pensava o Henry,
ou talvez outro tipo de morte. Ou poderia estar viva e bem, vivendo agora,
no presente; uma mulher mais velha algures, a um telefonema, um voo, uma
viagem de carro de distância, uma mulher que escolhera não voltar para
mim. Podia estar viva no presente, mas não estar bem, ter algo tão mau que
não conseguia encontrar-me nem contactar-me, ou talvez houvesse uma
outra razão para não ter entrado em contacto comigo.
– O que achas, Faye? Qual é o teu instinto? Tu conheceste a mulher.
– A mulher que conheci não deixaria de bom grado a filha para trás –
disse eu.
– Então não achas possível que ela esteja viva e bem? – disse ele.
– Não é provável.
– Achas que é mais provável que esteja viva e totalmente incapaz de te
contactar por um motivo qualquer? Talvez doente, ou perdeu o juízo ou
algo assim. – Ele fez uma pausa. – Desculpa. – Eu abanei a cabeça. – Faye?
– Oh, Louis – disse eu, quase inaudível até para os meus ouvidos. –
Puseste-me a pensar que a melhor conclusão lógica de tudo isto é que a
minha mãe afinal morreu. Eu estava a agarrar-me a um fragmento de
esperança de a conseguir ver outra vez, sem ter de arriscar tudo a voltar ao
passado na caixa.
– Mas ainda há uma hipótese de ela não estar morta e, se podemos
encontrá-la, devemos tentar – disse o Louis. – Vale uma pesquisa no
Google, pelo menos. Vamos. – Ele pôs-me em pé e conduziu-me escadas
acima. Perguntava-me o que deveria desejar quando o ecrã do computador
do Louis tremeluziu e acordou.
– Qual é o apelido dela? – perguntou o Louis, com os dedos a postos
sobre o teclado.
– Greene – respondi. E o Louis virou-se para olhar para mim, como se
conseguisse ver-me. – Oh, querida, esperava algo um pouco menos comum.
– Desculpa.
Vasculhámos a internet. O Louis é um bom investigador, mas não
encontrámos nenhuma pista ou informação. Não tínhamos outros nomes
através dos quais a encontrar de forma mais indireta, e ao fim de algum
tempo desistimos.
– Vou voltar ao passado – disse eu. – Emendar as coisas. Salvá-la.
– Não há razão para isso – disse o Louis. – Não podes mudar nada, Faye,
porque já viveste a vida toda sem a tua mãe. O que quer que lhe tenha
acontecido, já aconteceu, não podes mudar nada. Já discutimos isto.
– Tenho de tentar – disse eu. – Se voltar ao passado e lhe contar quem
realmente sou, se lhe explicar tudo, ela não me vai procurar. Não vai perder-
se e não desaparece.
– Mas ela vai desaparecer, não vai? – perguntou o Louis, como se
frustrado com uma criança inteligente que não conseguia entender uma
equação simples. – Porque já desapareceu.
– Não podemos ter a certeza de que funciona assim. Como disse a
Elizabeth, nós não conhecemos bem as regras.
O Louis inspirou profundamente, encheu as bochechas de ar e soltou-o
devagar.
– Não podes mudar as coisas – disse ele novamente, soando resignado.
– Bem, talvez possa. – Vi o Louis a abanar a cabeça e senti-me irritada. O
que eu de facto queria era só que ele me apoiasse, independentemente do
que eu decidisse fazer. Não precisava que ele me dissesse que era uma má
ideia, só precisava de encorajamento. – A opção fácil não resultou – disse
eu. – Procurámo-la online, no conforto do teu escritório, um espaço
agradável e seguro entre nós e o mundo real, e não ajudou. Portanto, vou ter
de fazer algo, algo... prático. Vou ter de sujar as mãos.
– Eu iria ao passado por ti, se pudesse, se fizesse alguma diferença – disse
ele.
– Tolice – bradei.
– Estou só a tentar ajudar, Faye. Compreendo que estejas frustrada, e que
talvez te sintas culpada pelo que aconteceu à tua mãe, mas não devias. Não
sabias das consequências, a culpa não é tua. Mas acho que tens de parar por
um momento e pensar no que tens a perder. Acho que voltar é muito
arriscado. Creio que sabes disso.
– Sabes o que acho, Louis? Acho que estás com ciúmes, garanto que
estás com ciúmes, e acho que te preocupa, como à Elizabeth, que as minhas
ações estraguem o teu status quo, e, com franqueza, isso surpreende-me um
pouco. – Ele levantou os olhos e conseguiu fitar-me diretamente, daquela
forma desconcertante. Mas eu estava irritada; era essa a verdade dos factos.
Ele não disse nada, não pôs um travão na conversa e é essa a minha
desculpa esfarrapada para o que disse a seguir. – Talvez se eu voltar ao
passado e mudar as coisas, então, quando voltar, talvez já não sejas cego.
– Não me estejas a fazer um favor – disse ele. O silêncio entre nós pesava
uma tonelada. Ele levantou-se e desceu as escadas a grande velocidade. Eu
marchei atrás dele.
– Desculpa, Louis, não tive intenção.
– Não tiveste? – disse ele. – Bem, eu preferiria não ser cego, já que falas
nisso.
– Foi uma coisa estúpida de se dizer. Desculpa – afirmei. – Desculpa.
Sabes, toda a vida assumi que a minha mãe tinha morrido. Mentiram-me e
eu sei porque o fizeram, mas mesmo assim... – As palavras falharam-me. –
Ela foi vítima de uma injustiça e eu fui vítima de uma injustiça. Mas a
conclusão é que a culpa é minha. Então, se posso fazer algo para resolver
isto, tenho de tentar. Consegues perceber isso?
– Sim, percebo isso, mas, por favor, ouve-me por um momento. Por
favor?
– Está bem – disse eu, forçando-me a estar calada.
– Senta-te – disse ele. Ambos ocupámos novamente os nossos lugares na
mesa de madeira. – As pessoas mentem – disse o Louis. Ficou então muito
tempo calado, e eu senti que ele estava a testar-me, para ver se eu resistia a
interrompê-lo. Eu não disse uma palavra e, após um longo momento, ele
voltou a falar. – As pessoas mentem e fazem-no por todo o tipo de razões,
às vezes para nos proteger, outras para se protegerem a si mesmas. Mas as
mentiras são como vespas na relva, à espera que um pé descalço as
encontre. Uma mentira é como uma coisa viva, sobrevivendo até ser
descoberta.
– Salta para o fim – disse eu numa voz monótona.
– Está bem, a minha questão é esta: eu também tive uma visita ontem. –
Ele deteve-se, para dar um efeito dramático.
– Quem?
– A Elizabeth.
– Porquê? – perguntei, sentindo-me perdida.
O Louis levantou-se, abriu uma gaveta baixa da cozinha e tirou um
envelope fino e empolado, que empurrou sobre a mesa em direção a mim.
Abri-o lá e de dentro caiu o meu anel de noivado. Tombou na mesa como
um velho amigo que pensei que nunca mais veria. A sua familiaridade
atordoou-me.
– Como? – disse eu.
– A Elizabeth mentiu sobre o facto de ter sido roubado.
– Ela o quê? Então, o que fez com que te contasse? – perguntei, perplexa.
– Escrevi-lhe, porque imaginei que ela tivesse mentido, e depois falámos
ao telefone e ela trouxe-mo. Ela sente-se mal por isto, sentiu-se sempre mal.
Mas queria dizer algo que te impedisse de voltar ao passado.
Brinquei com o anel, observando-o novamente antes de o voltar a pôr,
trocando o anel de diamante para a outra mão.
– Ela quer que fiques com o anel que te enviou – disse ele, enquanto eu o
deslizava pelo dedo. – Ela lamenta muito, Faye, não sejas muito dura com
ela.
– Como adivinhaste que ela tinha mentido? – perguntei.
– Foi o facto de o anel que ela te enviou assentar na perfeição no teu
quarto dedo. Ou era coincidência, ou ela tirou a medida do anel que já tinha,
para saber o tamanho certo para ti. Entendo que o tamanho do dedo não seja
uma coisa fácil de se adivinhar, por isso concluí que provavelmente não era
coincidência.
– Sherlock, estou impressionada – disse eu. – E contente por ter o meu
anel de volta.
– A Elizabeth não queria que voltasses ao passado, foi por isso que
mentiu. Ela pensou que o facto de o teu anel se ter perdido te faria hesitar o
bastante para parares de voltar atrás no tempo, de pensar que poderias
mudar as coisas, talvez para pior. Ainda que essa lógica não funcione, como
sabemos. Não sabemos bem as regras, Faye, mas tenho a certeza: não
adianta voltares ao passado para mudar o que aconteceu à tua mãe, porque
não podes. E estou morto de medo de que te magoes e nunca mais regresses
a casa.
– Ainda acho que a posso impedir de partir, de desaparecer – disse eu.
– Por amor de Deus, Faye. Não adiante. Não quero soar como um disco
riscado, mas já aconteceu. Na melhor das hipóteses – ele parou.
– Na melhor das hipóteses, o quê? – disse eu.
– Na melhor das hipóteses, acho que, faças tu o que fizeres, ela vai
morrer. Não podes tê-la. Porque nunca a tiveste.
O engraçado é que não me senti nada dissuadida pelas suas palavras.
Talvez só precisasse da mais pequena das desculpas. Talvez a Elizabeth
estivesse absolutamente certa em impedir-me de voltar ao passado. Mas
agora eu tinha tempo para pensar nas coisas, e a hesitação anterior
evaporava-se na certeza de que não magoaria a Esther, a Evie ou o Eddie
por visitar a Jeanie uma última vez. Já tomara a minha decisão.
– Nada me impedirá de a ver mais uma vez – disse eu, empurrando a
cadeira para longe da mesa e dirigindo-me para a porta. – E sei que não
posso mudar nada. Mas talvez o possa expiar.
*
O facto de, nos últimos tempos, a ideia de ser mulher de um vigário me
ter parecido muito difícil de suportar porque não acredito em Deus começou
a parecer trivial. Já não era o terrível dilema que parecera em comparação
com tudo o resto. As palavras do Louis acerca de uma viagem de regresso –
não adianta – repetiam-se na minha cabeça e eu sentia-me indignada, como
se mudar o que havia acontecido à minha mãe, ou avisá-la para não ir à
procura de um anjo da guarda, fossem as únicas coisas pelas quais valia a
pena voltar. Ele não compreendera o principal, que era o facto de eu
conseguir voltar atrás. Ia ver a minha mãe de novo, estava decidido.
Estaria eu zangada com a Elizabeth? Nem por isso. Eu compreendia-a, e a
compreensão retirava a indignação a tudo. Ela tinha claramente começado a
preocupar-se – tal como falámos naquele dia, por cima da loja – que os
meus regressos causassem muitos danos, se não a ela, então, com muita
probabilidade, a mim. Penso que a sua intenção era limitar os danos. De
acordo com o Louis, a Elizabeth nunca tivera a certeza de que iria ficar com
o anel, mas sentia que eu precisava de algo que me impedisse de andar a
correr para o passado e voltar como se isso requeresse tão pouco
pensamento e tivesse tão poucas consequências como uma viagem à beira-
mar. Ela tinha razão. Eu admitia-o, agora.
O meu dilema mudara. Eu já não questionava a prudência de voltar ao
passado. Sabia que havia riscos e estava disposta a corrê-los. O meu dilema
agora era, bem, não era tecnicamente um dilema, mas uma preocupação.
Embora estivesse zangada com o Louis, tinha de reconhecer que ele tinha
razão ao dizer que eu não podia fazer nada para impedir que a minha mãe
desaparecesse, não podia mudar esse facto, mas talvez pudesse mudar o
motivo pelo qual ela desaparecera. Eu ia voltar, não havia qualquer dúvida
na minha mente. Ia contar à Jeanie quem era e depois, quer ela acreditasse
em mim ou não, pelo menos não seria eu o motivo do seu desaparecimento.
Ela não iria procurar-me – o seu anjo da guarda –, já não seria culpa minha.
Mesmo quando eu estava prestes a transpor a porta da frente, o meu
telemóvel soou. Uma mensagem do Louis: «Se fosse eu, também voltaria»,
dizia. Eu sorri, retirei com cuidado o anel de noivado antes de entrar em
casa e, de seguida, escondi-o no quarto para ser «encontrado» um pouco
mais tarde. De outro modo, o que diria o Eddie sobre o facto de eu ter
encontrado milagrosamente o anel depois de uma visita à casa do Louis?
*
Eu não queria deixar passar muito tempo antes de entrar na caixa. Mas
desta vez precisava de estar preparada. É provável que perguntem o porquê
de eu ter tanta certeza de que a minha mãe estaria lá quando eu voltasse.
Não tinha; não podia estar certa de quanto tempo teria passado quando
voltasse, pois não parecia haver nenhuma razão em particular para terem
passado seis meses da última vez que fui. Haviam passado uns meses desde
a minha última visita, e passou-me pela cabeça que talvez eu fosse tarde de
mais. Talvez a minha mãe já tivesse morrido. Só havia uma maneira de
descobrir. Sei que devem pensar que isto era uma coisa estúpida de se fazer,
mas uma vez que um amigo está decidido, é melhor estarem do lado dele,
certo? Não podem abandonar-me agora, só porque acham que sou uma
idiota.
O plano era este: seria melhor num fim de semana, e pensei que seria boa
ideia levar a caixa para casa do Louis e «transportar-me» de lá. Dessa
forma, poderíamos pôr a caixa num colchão e rodeá-la de almofadas, como
da última vez. Obviamente, eu não poderia fazer isso lá em casa com o
Eddie lá. Vestiria novamente o fato de esqui, e as luvas e botas também.
Levaria um pequeno estojo de primeiros socorros, analgésicos e enfiaria um
jornal dentro da roupa; parecia um bom adereço para convencer alguém de
que eu vinha do futuro.
Depois o Louis brilhou. Apareceu no departamento de investigação do
trabalho, na terça-feira, e deu-me um abraço no corredor. Não nos
abraçamos muito, mas aquele foi um bom abraço. Abandonei a secretária
sem me preocupar em dizer à minha chefe, e o Louis e eu sentámo-nos na
cantina dos funcionários (mais uma coisa que raramente fazíamos); estava
vazia, porque era muito cedo, e preparei chá para nós. Ele gostou das
minhas ideias e disse que ajudaria, com certeza. Eu não duvidara por um
segundo, ainda que anteriormente tivesse havido tensão entre nós.
O fim de semana a seguir era o mais próximo do dia 5 de novembro e eu e
o Eddie íamos receber amigos, com hambúrgueres, bebidas e fogo de
artifício no jardim das traseiras. Perguntei ao Louis se viria, seria bom tê-lo
lá, de qualquer maneira, mas quando ele apanhasse um táxi para casa,
levaria a caixa com ele (eu dobrá-la-ia, para ser mais fácil de transportar),
para sua casa. Ele prometeu-me guardá-la com a própria vida. Literalmente,
se necessário, disse ele. Eu tinha total confiança nele, mas não queria a
caixa fora da minha vista até ao último minuto. O Louis disse que também
se manteria sóbrio, só porque parecia uma boa ideia.
Decidi também não beber muito.
– Embebedamo-nos noutro dia – disse eu.
Na sexta à noite, haveria a festa com fogo de artifício, depois eu iria a
casa dele no sábado, daria uma desculpa, não importava o quê. Ele ficaria
então em casa, com a caixa no seu ambiente acolchoado, e esperaria que eu
regressasse. Três horas. Se eu voltasse ferida, ele estaria lá para me ajudar.
Estávamos a tentar ser sensatos e organizados, mas havia muito
entusiasmo entre nós, como crianças a planearem um banquete noturno.
– Ontem à noite encomendei-te algo, online – disse ele. – Para levares
para a tua mãe. Vai demorar alguns dias a chegar, mas deve vir a tempo.
– O que é? – perguntei, intrigada.
– Dinheiro antigo – disse ele, com um sorriso presunçoso.
– Dinheiro antigo? – Deixei que as implicações fizessem sentido. – Oh,
meu Deus, que boa ideia. Quanto?
– Tenho cerca de quinhentas libras, foi tudo o que consegui. Achei que
poderia fazer uma grande diferença à tua mãe, e a ti em criança – disse ele.
– Quinhentas libras equivaleria a quanto? – perguntei.
– Cerca de quatro mil – disse ele.
– Isso faria uma grande diferença para nós, Louis.
– Bem, como eu disse, sinceramente, não creio que vá fazer alguma
diferença, porque nunca pareces ter tido esse dinheiro. Mas, no espírito de
não saber que diabo fará mesmo a diferença, pensei que dinheiro seria uma
coisa boa para levar.
– Um pensamento brilhante – disse eu, abanando a cabeça com
admiração. Era bom ser amiga de um fanático dos computadores, eles têm
ótimas ideias. Mas vi-o fazer um esgar.
– O que é? – perguntei.
– Tenho uma ressalvar relativamente a este dinheiro – disse ele. – Um
pedido.
– Continua.
– No caso de conseguires mudar as coisas, Faye, no caso de isto fazer
alguma diferença no resultado, por favor, não te tentes a visitar a Elizabeth
quando voltares, desta vez. Por favor, não vás vê-la, não pagues os patins. –
Ele fez uma pausa. – Sei que pensaste nos riscos, nas consequências, e sei
que pesaste tudo e mesmo assim decidiste ir, dê por onde der. Mas penso
que acharás difícil viver com a culpa se as tuas ações tiverem um efeito
prejudicial na vida da Elizabeth. – Ele suspirou. – Penso que também
acharia difícil viver com isso.
– Prometo, dou-te a garantia absoluta, de que vou manter-me afastada da
Elizabeth. Como sabemos, ela nunca precisou do dinheiro para estar bem.
De nada adiantaria interferir com ela – disse eu.
– Outra coisa – acrescentou, com uma tristeza no rosto que falava de uma
dor ainda por experimentar. – Acho que deves escrever uma carta ao Eddie.
Eu guardo-a e, se for preciso – vi a sua maçã de Adão subir, quando engoliu
em seco –, entrego-lha.
26
N ãosuponho
era um bilhete de suicídio, porque eu não planeava matar-me, mas
que estou a esmiuçar. A carta afetou-me de três formas. A
primeira foi o puro alívio de escrever tudo ao Eddie, por muito louco que
parecesse; fez-me compreender, com uma clareza marcante, como estava
ansiosa para que ele soubesse a verdade sobre a minha vida extraordinária.
Em segundo lugar, era uma oportunidade para lhe dizer tudo o que gostaria
que ele soubesse, caso nunca mais o visse. Na verdade, acabei por perceber
que esta era uma carta que eu já lhe deveria ter escrito, de uma forma ou de
outra: uma carta para um ente querido descobrir em caso de morte, ou
qualquer outro tipo de perda, como uma doença mental; para trazer
conforto, aceitação e uma resposta a todas as perguntas que não sabíamos
ter de fazer. E a terceira era que, ao escrever este bilhete de potencial
despedida, eu estava vivamente ciente do que deixava para trás se o meu
destino fosse nunca mais voltar. Enquanto ponderava sobre o que escrever,
levei o anel de noivado aos lábios, e visualizei o alívio e surpresa no rosto
do Eddie ao relembrar o momento em que lhe disse que o tinha encontrado.
E uma ou duas vezes, enquanto escrevia, caiu uma lágrima na página; olhei
para aquelas saliências salgadas, para ver se ampliavam as palavras por
baixo delas.
Ainda que uma semana parecesse demasiado para ver a minha mãe
novamente, precisava dela para escrever aquela carta. Escrevi sobre quando
eu e o Eddie nos conhecemos, e como as minhas esperanças haviam
crescido, rápidas e fortes como hortelã, e depois da primeira vez que me deu
um beijo. Lembrei-lhe conversas que tivemos e algumas palavras que me
disse de passagem – coisas que ele provavelmente teria esquecido –, mas
que para mim significavam tanto que pensava nelas quase todos os dias.
Contei-lhe os meus desejos para o futuro e o quanto queria trabalhar com
ele para que seguisse o seu chamamento, o impacto que sentia que ele teria
na vida das pessoas, e como eu queria ter o meu papel nisso.
E, depois, a tarefa a que eu estava a fugir: escrevi uma carta para as
minhas filhas.
Queridas Esther e Evie,
Nunca pensei que pudesse amar alguém neste mundo tanto como amo
o vosso pai, até vocês aparecerem. Imaginem só! Eu não sabia sequer
ser capaz de tanto amor. Vocês trouxeram-me alegria a cada momento.
São o melhor da minha vida, de longe. Amo-vos às duas do fundo do
coração ou, como o pai disse uma vez, «O meu amor por vocês é maior
do que o meu coração, é maior até do que o meu rabo, que é maior do
que o meu coração.»
Embora eu não esteja convosco, quero ser parte da vossa vida; e,
porque não posso partilhar os meus conselhos ou sabedoria
pessoalmente convosco, quando precisarem, há algumas coisas que vos
quero dizer, pois acho que são importantes e podem ajudar.
Sejam sempre vocês mesmas, porque são perfeitas, mesmo quando
não são.
À medida que forem envelhecendo, farão coisas maravilhosas e as
pessoas dirão: «A vossa mãe teria ficado orgulhosa.» E eu quero que
entendam como isso é verdade. Estou orgulhosa de vocês, e não apenas
quando fazem coisas maravilhosas, mas quando fazem coisas boas, do
dia a dia, e mesmo quando não fazem absolutamente nada. Mas,
algumas vezes, cometerão erros e farão coisas de que não se vão
orgulhar. Quando o fizerem, façam por melhorar, e eu ficarei orgulhosa
quando fizerem o que podem para emendar as coisas.
Esther e Evie, sejam amáveis. Sei que são ambas naturalmente muito
bondosas, mas lembrem-se de ter consciência da vossa bondade. Com
isto quero dizer que, por vezes, não se devem poupar a esforços para
serem bondosas, por pouco que seja. Em adulta, encontrei um homem
que conheci na escola, em menino. Todos costumavam fazer pouco dele
e chamar-lhe nomes. E, quando eu era mais velha, disse-lhe que
lamentava muito por isso. Ele respondeu-me que eu não devia
preocupar-me, porque era uma das boas; disse que eu apenas o
ignorara. Isso perturba-me muito. Eu gostaria de ter feito mais, gostaria
de ter sorrido, pelo menos. Aprendi com ele e agora sorrio mais às
pessoas, porque nunca se sabe, pode ser a coisa mais amável que lhes
aconteceu nesse dia. Mas sejam sensatas. Seja educadas com os
estranhos, mas lembrem-se de se manterem seguras.
Há muitas árvores por aí, garantam que sobem a algumas delas.
Subam a todas as árvores que quiserem. Podem partir um ou dois ossos,
mas às vezes é melhor partir um osso do que deixar de subir a uma
árvore.
Façam experiências com o cabelo. Se não gostarem, ele voltará a
crescer.
Leiam muito e desfrutem. Ler é muito bom, por muitos motivos.
Tragam sempre convosco um livro, porque assim nunca ficarão
entediadas. E, embora devam casar com quem quiserem, desde que eles
vos amem e vocês a eles, eu de facto preferiria que se apaixonassem por
alguém que leia.
Acho que para mim basta, embora ao ler isto me pergunte se se
preocuparão que eu vos ame mais a vocês do que ao vosso pai. Mas não
devem preocupar-se. Desde que apareceram na minha vida, amo-o mais
ainda, em parte porque ele vos tornou possíveis, mas também porque ele
vos ama e mantém seguras, o que o torna mais precioso do que alguma
vez foi.
Sei que será difícil para vocês lerem esta carta e que ela vos trará
tanta tristeza como felicidade, porque sei o que é perder uma mãe. Eu
também perdi a minha. Portanto, o meu último conselho é este: não
vivam muito no passado. A vida está à vossa frente e, se olharem para
trás, não serão capazes de ver para onde estão a ir.
Saibam que vos amo sempre e que estou nos vossos corações para
sempre.
Mãe
Não foi uma carta fácil de escrever e fez-me hesitar, admito, em especial
a última parte. Saber que ignorava o conselho que dera às minhas filhas – e
provavelmente o conselho que a minha mãe me daria a mim – fez-me
pensar, ainda que não me fizesse mudar de ideias. Nunca ignorem os
conselhos que dão aos outros. Sobretudo se sabem que têm razão.
*
E agora somos só nós, eu e vocês; estamos quase a par de tudo e, caso não
saibam mais nada de mim, aqui estão umas algumas palavras que preciso de
vos dizer, meus amigos:
Na vossa vida são um deus, e vou tentar explicar como o Eddie o fez, uma
vez. Quando estão a dormir e a sonhar, vocês são um deus, porque são tudo
e todos. Se sonham que são um dos passageiros de um avião que se
despenha, lembrem-se de que são também o piloto, e não são um, mas todos
os passageiros. Até são o avião, porque esse sonho está na vossa cabeça, e
vocês fazem com que tudo aconteça. Nos sonhos, vocês são como um deus.
Na vida real não é bem assim, mas pode haver toques de Deus em tudo o
que fazem – aquilo de que cuidam, o que dizem e fazem – que influencie os
outros. Deus está no sorriso de um bebé, mas continua a ser apenas o sorriso
de um bebé e podem chamar-lhe o que quiserem. Chamem a Deus o que
quiserem e a fé seguir-se-á.
Sei que estou aqui e vocês aí, não há grande distância entre nós, apenas a
distância entre as minhas palavras nesta página e os vossos olhos; uns trinta
centímetros. Mas essa distância pode ser recalculada, dependendo do vosso
ponto de vista. Podemos estar em planetas diferentes e podemos existir em
tempos diferentes, não importa, continuam a ser apenas vocês e eu. E quero
que percebam que acredito em vocês com todo o coração. Nunca duvidem
disso. E quando estiverem prontos, quando chegar o momento certo,
acreditarão em mim.
*
Então aqui estamos, cartas escritas e, no vosso caso, lidas. Planos feitos,
fato de esqui e outras roupas prontas na casa do Louis, com o jornal e o
estojo de primeiros socorros; dinheiro antigo a caminho. Ah, é claro, pensei
um pouco no que gostaria de dizer à minha mãe quando lá chegar. Entre
vocês e eu, é um adeus engraçado, porque poderão ver se vem algo depois
desta página... mas, no momento em que escrevo, não faço ideia se as
páginas que se seguem estão em branco ou não. Se estiverem, podem
assumir que nunca consegui voltar.
27
O que antes parecia um suave crepitar, era agora um carro a ser esmagado.
Ultrapassei esse som com um grito que surgiu de algures, lá de dentro.
Um rugido de leão, ou aquele grito primitivo no parto que diz que uma nova
vida está a caminho. Ou a morte. Ou o medo de nunca mais ver alguém que
se ama.
Soltei o braço do Louis e corri para o fogo, baloiçando na extremidade,
com os pés a tocar nas brasas e as pontas dos sapatos a fumegar. O terror
dominou-me por completo quando os meus olhos, sem pestanejar, se
fixaram na caixa no cimo do fogo. Na minha cabeça, claro, podia muito
bem estar ali a minha mãe, as chamas debaixo dela, a sustentá-la e a tentar
puxá-la, como os braços ardentes dos condenados a roçar nas chaves do
carcereiro através das grades das celas. Gritei pelo Eddie como se uma das
nossas filhas estivesse naquele fogo. E ele veio a correr.
Mas, antes de ele chegar até mim, tentei aproximar-me da caixa; inclinei-
me para a frente e apoiei as mãos na madeira exterior da fogueira. A
estrutura aguentou o meu peso, embora eu tivesse perturbado um frenesim
de faúlhas: uma tempestade elétrica de neve laranja. Milhares, milhões de
pequenos fragmentos em chamas voaram para cima, prometendo algo
doloroso. Mas, por ora, nenhuma chama conseguiria tocar-me.
Havia uma beleza extraordinária em estar demasiado perto do fogo. Era
hipnotizante de uma forma que só as coisas proibidas sabem ser, como
examinar a boca do dragão.
Enquanto me agarrava à madeira, espreitei para baixo e foi como olhar
para o inferno através de uma fenda no soalho. O calor no meu rosto era
como se se abrisse a porta de um forno. Olhei para cima, para a caixa, via-a
enegrecer à luz das chamas crescentes, carbonizando em alguns pontos; vi a
superfície mais próxima do fogo a borbulhar devagar e enchi-me de medo.
É bizarro aquilo de que me lembrei no momento seguinte: uma cena de
um filme, em que o bom e o mau avistam o objeto do seu desejo ao mesmo
tempo: pode ser uma chave – provavelmente uma arma – e depois um olhar
furtivo um para o outro. Correm os dois ao mesmo tempo, cada um
esperando chegar lá antes do outro. Foi assim comigo e as chamas. O meu
eu físico recuou perante e ideia de apoiar o peso na estrutura por baixo de
mim. Poderia estar no gelo, na parte mais fina de um lago gelado, poderia
estar no torrão menos firme de terra, na extremidade de uma falésia em
derrocada, e teria sentido o mesmo. A pressão necessária para correr era a
pressão exata que iria levar à minha perdição, e era agora ou nunca. Eu
sentia as chamas a lamber-me as mãos, queimando através das luvas.
É provável que tudo isto tenha levado quase dez segundos, de modo que,
antes de eu me lançar para o cimo da fogueira, antes de forçar o pé direito
para baixo, para dar impulso suficiente para me atirar para a superfície
instável, antes de eu conseguir matar-me ou marcar-me com cicatrizes para
o resto da vida, o Eddie chegou lá.
Ele voou para a fogueira atrás de mim, agarrando-me pela cintura e
arremessando-nos outra vez para o chão. Eu estava sem fôlego, mas segura
no seu abraço apertado, embora só conseguisse pensar na caixa em chamas
no cimo da fogueira. Lutei contra o seu aperto, desesperada para me
libertar, mas ele agarrou-me com tanta força que eu mal conseguia mexer-
me.
– Larga-me – disse eu. As minhas palavras eram como vespas, mordazes
e insistentes. Mas ele não o faria, claro. Mordi-lhe o ombro e gritei: – Tira a
caixa da fogueira. Preciso dela!
– De que diabo falas? – exclamou o Eddie, a gritar comigo e sem afrouxar
nem um pouco o aperto. Rolámos para a relva húmida, à medida que eu
envolvia todo o meu peso numa tentativa de me afastar.
– Vai buscar aquela caixa, imploro-te.
– Deves estar a brincar comigo – disse o Eddie.
– Tira-a antes que não seja nada senão cinzas – disse eu, com uma
premência serena. – Aquela caixa é a minha vida, a minha infância, a minha
mãe. Se realmente me amas, faz isso.
Ele empurrou-me, bradando:
– Não te mexas – A voz estava tão zangada que eu não saberia que era
ele, se não o tivesse visto. Deitei-me na relva, a tentar desesperadamente
conservar a caixa em segurança, mantendo-a na minha linha de visão, e vi o
Eddie a pegar num pedaço de madeira comprido da estrutura do tipi e tentar
dar uma pancada na caixa, mal lhe tocando. Tentou novamente e, ainda sem
atingir o alvo, lançou o pau como um dardo, falhando o valioso objeto do
meu desejo. Por fim, arrancou do chão a estaca da corda da roupa e tirou
por completo a caixa do fogo; ela voou um pouco pelo ar, rolou
letargicamente ao longo da relva, e depois deteve-se, pelo que eu conseguia
ver, mais ou menos intacta e sem arder. O Eddie aproximou-se então de
mim como um homem de Neandertal, arrebatou-me qual bombeiro e
caminhou com firmeza pelo jardim em direção a casa, praguejando com
fúria a cada passo. Eu saltitava penosamente no ombro dele, como uma
criança mal comportada, e observava os convidados a observarem-nos,
como se fôssemos desconhecidos num documentário bizarro qualquer do
Canal 4. Mas eu não me importava. Nada importava, de todo, nada senão a
caixa.
– Vai buscar a caixa, Louis – disse eu. – Guarda-a em segurança.
*
O Eddie subiu com passos pesados para a casa de banho e largou-me sem
cerimónias. Puxou a tampo do ralo de tal forma que quase partiu a corrente,
e encheu o lavatório de água fria; depois, puxou-me pelo cotovelo e meteu-
me as mãos na água, com luvas e tudo. Cada movimento seu era tão
agressivo que ameaçava causar danos. Eu não tinha medo do Eddie, tinha
mais medo do que eu própria havia feito para ele ficar assim.
As mãos tremiam-lhe ao remover-me as luvas com cuidado, temendo que
parte da minha pele pudesse ter-se queimado e colado ao tecido. Por fim, a
Cassie espreitou pela porta da casa de banho e observou com prudência o
tratamento zangado e silencioso que ali tinha lugar.
– Vai toda a gente embora – disse ela, direcionando a conversa para o
Eddie, agora que provavelmente me consideravam fora de mim. – A Clem
vai levar o Louis a casa.
– Ele tem a caixa? – perguntei, soando, até a mim, cada vez mais como a
louca que parecia ser.
O Eddie tirou então a luva, como se fosse um penso; a sua forma de
atacar os meus despropósitos. Felizmente, a pele por baixo não estava muito
mal. Ferida nalguns sítios, sensível.
– Sim, ele tem uma caixa com ele. – Ela lançou-me um olhar,
desconcertada, mas depois olhou de modo mais significativo para o Eddie, a
comunicar o quê? Que eu agora habitava um mundo diferente para eles,
porque de repente existia fora do reino de compreensão deles.
– Haverá um motivo para isto – disse a Cassie ao Eddie, pondo a mão no
antebraço dele.
Eu era invisível.
– Que razão pode haver para ela quase se matar... por nada? – disse o
Eddie.
– Eu tenho um motivo – disse eu, como que a propósito.
– Então qual é? – disse ele. Cuspiu as palavras, a virar-se com fúria e a
fazer a água transbordar pela borda do lavatório. Trespassava-me com um
olhar cheio de aversão, como se eu fosse uma desconhecida que quase lhe
matou a mulher.
Vi que residia ali o poder do amor dele. A fúria a erguer-se do medo de
ficar sem mim. A medida do amor era a perda; ele vislumbrara essa perda e
atacara-a. E a minha desculpa para me magoar? Uma caixa de cartão.
Quando eu lhe contasse a verdade, como sabia que tinha de fazer...
Apercebi-me de que, quer ele acreditasse em mim ou não, poderia pelo
menos sentir-se reconfortado pelo facto de eu não o ter feito, como ele
disse, por nada.
– Vou contar-te tudo – disse eu. Os meus joelhos cederam e o cansaço
pesou-me como mantos espessos a cair de cima.
– Toma conta dela – disse a Cassie. – Queres que fique com as meninas
durante uns dias?
Ouvi o Eddie dizer que sim e tentar organizar pijamas e coisas para passar
a noite, mas a Cassie disse que já tinha tudo sob controlo. Entreguei o corpo
ao meu marido, que me transportou para o quarto e me despiu – como fazia
quando eu estava embriagada de mais para o fazer sozinha. Senti as mãos
doloridas a serem cobertas por ligaduras macias. Encostei o imaculado
tecido medicinal aos lábios e tentei olhar o Eddie nos olhos, mas ele não me
retribuiu o olhar. Levantou um copo na minha direção e pôs-me uns
comprimidos na boca – analgésicos, suponho –, e caí num sono irregular.
A certa altura, acordei e vi o Eddie sentado na beira da cama, com a
cabeça entre as mãos, a chorar. Toquei-lhe nas costas, mas ele não se mexeu
nem parou de soluçar, e eu caí de novo no esquecimento.
Lembro-me de ter sido despertada com água levada aos lábios e a ouvir o
murmúrio de algo como uma oração, ou talvez uma simples palavra de
amor ou consolo. Era tudo igual, percebi.
Não sabia quanto tempo tinha dormido quando recuperei a consciência. A
luz do dia manchava o quarto com um brilho calmo e doíam-me os
músculos, por estar na mesma posição há demasiado tempo. Desidratada,
peguei num copo da mesa de cabeceira, segurando-o de forma desastrada
entre as duas mãos ligadas, e depois voltei a pousá-lo com cuidado. A
garganta doía-me e apetecia-me um pouco de leite; o estômago meu
roncava como um berlinde dentro de uma lata vazia, mas eu não me
imaginava a engolir comida. Revirei-me, recuperando o fôlego de repente,
ao ver o Eddie a dormir num dos colchões das meninas. Ele arrastara-o e
pousara-o em frente à porta do nosso quarto. Para me impedir de escapar.
O meu querido marido tinha medo do que eu poderia fazer.
– Eddie – murmurei, numa voz rouca. Estava danificada pela falta de uso,
ou talvez pelo fumo. Ele mexeu-se e abriu os olhos, olhando para mim
como um animal ferido. – Desculpa – murmurei novamente, e tentei
pigarrear.
*
De calções e T-shirt, com o cabelo em desalinho e olhos inchados, o
Eddie sentou-se na beira da cama, as mãos no colo.
– Quero saber tudo – disse ele, a voz como o som de um avião distante
num dia de verão. – Mas o tipo de «tudo» que eu quero é este – continuou
ele. – Eu quero a verdade, Faye. – O seu olhar fixava o meu e havia nele
bondade, incerteza e amor. O Eddie abanou a cabeça com tristeza. – Sempre
dissemos que não mentiríamos um ao outro e eu nunca quebrei essa
promessa. Mas, por algum motivo, tu fizeste-o. – Abri a boca para falar,
mas ele levantou um dedo para me impedir. – Ouve-me – disse ele. – Talvez
tenha sido mais fácil para mim do que para ti. Nunca te quis mentir, nunca
precisei. Por isso não o fiz. Mas não mereço uma medalha por não mentir, é
assim que deve ser, não se deve esperar nada menos que isso. Tu, no
entanto, andas a mentir-me há muito tempo e acho que tenho sido bastante
paciente. Tentei confiar em ti, e rezei para que as tuas mentiras fossem por
amor, e não por andares a enganar-me. Mas chegou a hora de me contares o
que está a acontecer. – Ele tocou-me no rosto, onde os arranhões
cicatrizavam, e passou delicadamente os dedos pelos hematomas dos
braços, em vários tons de amarelo, azul e castanho. – Quero saber como
arranjaste isto, quero saber porque te atiraste para a fogueira. Quero saber
porque é que aquela maldita caixa significa tanto para ti. Quero saber tudo.
– E eu vou contar-te tudo – disse eu, a voz rouca e baixa.
– Fico feliz por saber disso.
– Mas vai ser difícil de ouvir – disse eu.
– Quão mau pode ser? – Ele mostrou um sorrido débil, como se já
soubesse que seria algo terrível.
– Podes pensar que estou louca – disse eu, com as lágrimas salgadas já a
ameaçar brotar.
– Tarde de mais, querida, já cheguei aí – disse ele, beijando-me os dedos.
– Falaste com o Louis? – perguntei.
– Sim. Ele tem a tua caixa – disse o Eddie com um suspiro, como se a
caixa fosse um antigo namorado cujo nome estava cansado de ouvir. – Ele
diz que a guarda com todo o cuidado e que não está muito danificada.
Também disse que tinhas algo dele, que puseste num lugar seguro.
Perguntou se poderia reavê-lo, mas eu não sei onde está.
Ele falava da caixa de dinheiro antigo.
– No fundo do armário, uma caixa de cartão castanha.
– Espero que expliques tudo isto – disse o Eddie.
Eu assenti.
– Podes dizer ao Louis para me vir ver amanhã?
– Está bem – disse ele. – E quando conversarmos?
Afastei-lhe do rosto uma madeixa de cabelo castanho e invadiu-me logo
uma enorme sensação de alívio.
Pensei em como a crença do Eddie em Deus se resumia a fé e confiança,
uma certeza de algo que era invisível e, apesar de tudo, inabalável. Pensei
no que me fez acreditar no facto de eu ter viajado no tempo para ver a
minha mãe, e em como só acreditei na verdade dessa experiência pelos
sinais dos sentidos: as visões, os sons e os cheiros. O sabor de uma torrada
nos anos setenta, a familiaridade inegável de pele com pele quando a mãe
me segurou a mão para me ajudar a subir à árvore. Eu precisava disso. Mas
o Eddie não. O Eddie não era pateta e não iria acreditar numa história
qualquer. Mas eu sabia que ele confiava em mim e reconheceria o som da
verdade quando a ouvisse, tal como reconhecera as mentiras. O que ele faria
com a verdade e o que pensaria de mim depois, tinha de deixar nas mãos
dele. Eu tinha fé nele e não queria esperar mais, nem fazê-lo esperar, por
isso disse que lhe contaria tudo.
– Agora.
29