Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nosso grupo traduz voluntariamente livros sem previsão de lançamento no Brasil com o
intuito de levar reconhecimento às obras para que futuramente sejam publicadas. O Tea &
Honey Books não aceita doações de nenhum tipo e proíbe que suas traduções sejam
vendidas. Também deixamos claro que, caso os livros sejam comprados por editoras no
Brasil, retiraremos de todos os nossos canais e proibiremos a circulação através de gds e
grupos, descumprindo, bloquearemos o responsável. Nosso intuito é que os livros sejam
reconhecidos no Brasil e fazer com que leitores que nunca comprariam as obras em inglês
passem a conhecer. Nunca diga que leu o livro em português, alguns autores (e eles estão
certos) não entendem o motivo de fazermos isso e o grupo pode ser prejudicado. Não
distribua os livros em grupos abertos ou blogs. Além disso, nós do grupo sempre
procuramos adquirir as obras dos autores que traduzimos e também reforçamos a
importância de apoiá-los, se você tem condições, por favor adquira as obras também.
Todos os créditos aos autores e editoras.
Aviso de conteúdo
por thb
Mais tarde, depois que Babette foi para a cama e a maioria das
pessoas foi para casa, enquanto eu lavava latas e garrafas para
reciclagem na pia da cozinha, Alice encostou-se no balcão e disse:
— O que está acontecendo, Sam?
A blusa dela hoje dizia: TRAÇAR GRÁFICOS É ONDE EU
DESENHO A LINHA.
Embora Alice fosse um ano mais nova que eu – vinte e sete –
ela também era quinze centímetros mais alta que eu, então ela tinha
uma vibe de irmã mais velha. Ela estava noiva de seu namorado da
faculdade, Marco, que estava na marinha e fazia longas missões.
Eles alugaram um pequeno bangalô dos anos 1920 alguns
quarteirões adiante. Quando ele se foi, eu a vi muito – e quando ele
estava aqui, eu não a via quase nada.
Justo.
Ele havia ido em uma missão uma semana antes da morte de
Max, e embora eu não queira dizer que estou feliz por Alice estar
sozinha esses dias, vamos apenas dizer que estou grata por ter
uma amiga.
Ela me conhecia muito bem. Bem o suficiente para saber que
algo mais estava acontecendo do que eu havia confessado ao
grupo.
— Então — ela disse, como se estivesse esperando a noite toda
que todos os outros idiotas fossem embora. — O que você deixou
de fora?
Encontrei seus olhos e disse:
— Duncan Carpenter é o Cara.
— Que cara?
Apertei os lábios e me inclinei para intensificar meu olhar. Então
eu disse lentamente:
— O cara.
Alice franziu a testa por um segundo, então disse, em
reconhecimento:
— O Cara?
Eu dei um aceno inconfundível, dizendo Bingo.
— O cara? Aquele que te fez sair da Califórnia?
— Perdão. Eu sai sozinha.
— Mas ele é o cara da sua antiga escola? Pelo qual você estava
obcecada?
— Não obcecada.
Alice semicerrou os olhos para mim.
— Bem obcecada.
— Não era uma obsessão. Foi uma paixão americana saudável
e de sangue vermelho.
Agora Alice estava tentando se lembrar. Fazia um tempo – uma
vida inteira, na verdade – desde que conversamos sobre isso.
— Você não bisbilhotou o diário dele?
— Eu não estava bisbilhotando, eu estava alimentando seu gato
enquanto ele estava fora da cidade.
— Mas você leu o diário dele.
— Bem, ele deixou aberto na mesa da cozinha. Você poderia
argumentar que, em algum nível inconsciente, ele queria que eu
lesse.
Alice me deu um segundo para decidir se eu poderia manter
essa afirmação.
— Além disso — continuei —, não era um diário. Era apenas um
caderno.
— Um caderno cheio de pensamentos particulares.
— Todos nós temos pensamentos particulares, Alice — eu disse,
como se isso fosse de alguma forma um bom ponto.
— Você não deveria ter aceitado aquele emprego de babá de
gato em primeiro lugar — disse ela.
— O que eu deveria fazer? Deixar seu gato morrer de fome?
Estava sem garras e faltando um rabo.
— Não era nem o gato dele. Era o gato da namorada.
— Eu não sabia disso na época.
Alice me deu um olhar que era em parte afeição, em parte
repreensão e em parte Me dê um tempo.
De qualquer forma, não havia sentido em continuar negando. Ela
sabia toda a história. Eu tinha lido seu diário naquele dia, tantos
anos atrás, enquanto ele estava de férias na região vinícola prestes
a ficar noivo – ou pelo menos esse era o boato. E eu não tinha
acabado de ler a única página que estava virada para cima na
mesa. Peguei um par de pinças de cozinha na gaveta – como se
não tocar as páginas com meus dedos de alguma forma tornasse
menos terrível – e as usei para virar cada página, procurando por
pistas para sua alma como uma espécie de Sherlock Holmes
apaixonada, e cuidadosa, como uma louca, para não deixar
nenhuma impressão digital.
O que posso dizer? Foi um ponto baixo.
Um ponto muito baixo.
E, na verdade, tornou-se um ponto de viragem.
Antes daquele momento, eu estava apaixonada por Duncan
Carpenter por dois anos inteiros. Grandemente apaixonada.
Incondicionalmente apaixonada. Apaixonada como as adolescentes
se apaixonam por estrelas pop. Se ele tivesse letras das músicas,
eu as teria memorizado; se ele tivesse mercadoria, eu teria
comprado; e se ele tivesse um fã-clube, eu seria a presidente.
Claro, ele não era uma estrela pop.
Mas ele era, você sabe... uma espécie de celebridade. No
mundo do ensino secundário particular. Em nossa pequena porção
de humanidade, ele era um grande negócio. Ele era o ícone pop de
nossos colegas professores, com certeza.
E por um bom motivo.
Ele tinha um sorriso grande e amigável, cheio de dentes grandes
e amigáveis. Ele era bonito sem tentar. Ele tinha uma qualidade
magnética que era quase física. Se ele estivesse em uma sala com
outros humanos por qualquer período de tempo, haveria um grupo
deles reunido ao seu redor no final. Ele emitia algum tipo de luz do
sol que todos queríamos aproveitar.
Eu inclusa.
Eu, especialmente.
Mas eu era terrível perto dele. Eu era a pior versão possível de
mim mesma. Todo o desejo e paixão e eletricidade e alegria que eu
sentia sempre que ele estava em qualquer lugar perto de mim
parecia embaralhar meu sistema. Eu congelaria, ficaria quieta,
tímida e constrangida, e olharia para ele, sem piscar, como uma
esquisita.
Era desconfortável, para dizer o mínimo.
Quando o conheci, ele era solteiro – e assim permaneceu por
um longo, lindo e repleto período de possibilidades, enquanto eu
tentava criar coragem para sentar à sua mesa na hora do almoço.
Um ano que passou rápido e, de repente, antes que eu tivesse feito
qualquer progresso – bum! – uma garota nova e alegre do escritório
de admissões o convidou para sair descaradamente.
Seus lugares de estacionamento atribuídos estavam próximos
um do outro, aparentemente.
Foi notícia de primeira página para os professores, e os
professores da escola primária ficaram ofendidos. Não era um
pouco arrogante simplesmente entrar e começar a namorar quem
ela quisesse?
Aparentemente não.
Logo, eles eram exclusivos, e então eles ficaram sérios, e então,
quase um ano depois que ela o convidou para sair pela primeira
vez, eles estavam indo morar juntos. O boato era que ela tinha sido
a única a perguntar a ele. Um movimento que eu teria admirado por
razões feministas se fosse qualquer outro casal.
O consenso entre as professoras era que ela era muito
convencional, muito mesquinha e muito comum para ser um bom
par para ele – principalmente porque ele era o oposto de todas
essas coisas.
Francamente, eu concordei – mas também sabia que minha
opinião se baseava em grande parte em uma breve interação,
quando, tentando desajeitadamente bater um papo em uma função
da escola, eu disse a ela:
— Admissões! Isso deve ser difícil! Como você toma todas
essas decisões agonizantes?
E ela apenas piscou para mim e disse:
— É só ver quem tem mais dinheiro.
Então, lendo minha expressão chocada, ela começou a rir e
disse:
— Estou brincando.
Mas ela estava?
Ninguém tinha certeza de que ela o merecia.
É claro... não foi o que eu tinha.
Eu não conseguia nem dizer oi para ele no elevador.
De qualquer forma, nem cinco minutos depois que eu ouvi a
notícia da mudança – de um bibliotecário que ouviu de um professor
de matemática que ouviu da enfermeira da escola – que, enquanto
eu estava saindo para tomar um pouco de ar fresco... ele me pediu
para cuidar do gato.
Eu tinha acabado de virar a esquina do corredor, e lá estava ele.
Vestindo uma gravata com cachorros salsicha por toda parte.
— Ei — disse ele.
— Ei — eu disse, entrando em pânico com o jeito que ele...
acabou de se materializar.
Então, de todas as coisas, ele disse:
— Ouvi dizer que você adora gatos.
Eu adoro gatos? Não. Mas, não querendo interromper a
conversa, dei de ombros e disse:
— Na verdade, gosto mais de cachorros.
Ele piscou para mim.
— Quero dizer — continuei, sentindo como se tivesse dito a
coisa errada. — Eu não me oponho a gatos…
— Você não tem um monte deles?
— Hum. Não.
Ele franziu a testa.
— Não tenho gatos — acrescentei, só para deixar claro. — Nem
um.
— Huh. Alguém me disse que você tinha uns três gatos.
Uau. A única coisa que ele sabia sobre mim... e estava errado.
Ou talvez ele pensasse que eu era outra pessoa.
Ele parecia tão desapontado quanto eu.
Eu me lembrei de respirar.
— Eu não odeio de gatos — eu disse então, para animá-lo. —
Eu não desejo mal a eles nem nada. Eu sou apenas... neutra.
Ele assentiu.
— Entendi. — Então ele começou a se virar.
— Espere! — Eu disse. — Por que?
Ele fez uma pausa.
— Estou procurando uma babá de gatos. Para o fim de semana.
Apenas uma noite, na verdade.
E então, sinceramente, sem sequer considerar o quão patético
seria para mim limpar as caixas de areia do meu verdadeiro amor
enquanto ele estava em um fim de semana romântico com sua nova
namorada, eu disse:
— Eu posso fazer isso.
— Mesmo?
— Claro. Não é problema algum.
A próxima coisa que eu sei é que lá estava eu no apartamento
dele, bisbilhotando – e fazendo coisas indescritíveis com suas
pinças de cozinha.
Então, o que eu estava procurando, exatamente, enquanto
folheava aquelas páginas naquele caderno? O que eu poderia estar
esperando encontrar? Alguma nota para si mesmo que ele
realmente não queria estar com a mulher com quem ele tinha
acabado de decidir viver? Algum rabisco de sonho de um rosto que
se parecia muito com o meu? Algum código secreto que só eu
poderia decifrar que soletrava M-E A-J-U-D-E?
Ridículo.
De qualquer forma, não havia nada disso.
Havia listas de compras. Lembretes. Uma carta pela metade
para sua mãe. Um bilhete com um círculo para dar à sobrinha um
presente de aniversário de um ano, com as palavras “jaqueta de
motociclista” riscadas e substituídas por: “Algo legal”. Rabiscos
(principalmente caixas 3-D), listas de tarefas e um monte de marcas
de contagem no papelão da contracapa. Nada de especial, ou
memorável, ou até mesmo privado. Os detritos normais de uma vida
perfeitamente infeliz que não tinha nada a ver comigo.
E foi aí que, virando as páginas de volta ao lugar, uma palavra
muito importante me veio à cabeça:
— Chega.
Eu ouvi quase tão claramente como se tivesse dito em voz alta.
E então eu disse em voz alta.
— Chega.
Então eu balancei minha cabeça. Eu não poderia continuar
vivendo assim – roubando olhares, passando por ele nos
corredores, sentando perto – mas não muito perto – de sua mesa na
hora do almoço, parando para vê-lo conduzindo festas dançantes do
jardim de infância no parquinho. Ansiando.
Chega.
Eu tinha que superá-lo. Ele escolheu outra pessoa. Era hora de
seguir em frente.
E embora eu nem sempre, ou mesmo com frequência, seguisse
o conselho de vida que dei a mim mesma – naquele dia eu o fiz.
Coloquei as pinças de volta na gaveta, saí, tranquei a porta, fui
direto para casa e entrei na internet para começar a procurar um
novo emprego.
De qualquer forma, foi assim que acabei no Texas, de todos os
lugares – embora fosse assim que quase todo mundo acabava no
Texas: amor ou dinheiro.
Eu vim para esta ilha por acaso, mas encontrei um verdadeiro lar
aqui, bem no fundo do país nesta cidade histórica castigada pelo
vento. Eu adorava as casas vitorianas pintadas com suas varandas
góticas de carpinteiro. Eu adorava as ruas de paralelepípedos e as
lojas de camisetas turísticas. Eu adorava a areia fofa e lamacenta e
as ondas fáceis do Golfo batendo na costa. Eu adorava como a
cidade era humilde e orgulhosa, maltratada e resiliente, exausta e
cheia de energia, histórica e se reinventando sem parar.
Acima de tudo, eu adorava nossa escola. Meu trabalho. A vida
que eu construí.
Uma vida pós-Duncan Carpenter na qual – de verdade – o
próprio Guy não tinha lugar.
— Quais são as chances? — Eu disse a Alice, ligando a chaleira
para o chá. — Que de todas as pessoas no mundo Kent Buckley
poderia ter contratado... ele o escolheu?
— Você realmente quer que eu calcule as chances? — Alice
perguntou.
— Talvez não — eu disse.
Mas Alice estava em pé e correndo.
— Desafio aceito! Há uma infinidade de variáveis a serem
consideradas aqui. Você tem que tirar a raiz quadrada das escolas
independentes no sudeste e depois incluir aquelas com
administradores que procuram fazer uma mudança repentina logo
antes do início do ano letivo e, em seguida, resolver o eixo XY.
Por meio segundo, pensei que ela estava falando sério.
Ela continuou, com um leve sorriso aparecendo em sua
expressão inexpressiva.
— É basicamente a mesma equação que você usa para
velocidade de escape para o campo gravitacional. Menos alfa e
ômega, é claro. Vezes pi.
— Eu sinto que estou sendo provocada.
— Eu vi aquela foto dele — ela concluiu, agora abertamente
sorrindo. — Depois de fatorar a inclinação da mandíbula, o
coeficiente apenas distorce toda a curva.
Abri minhas narinas para ela.
— Muito obrigada pela sua ajuda.
— Ele tem um bom queixo.
Suspirei.
— Não tem?
A questão era que parecia uma coisa tão superficial para se
preocupar – especialmente à luz do que Babette estava passando.
Então uma velha paixão estava voltando para me assombrar. Um
problema.
— Acho que as probabilidades realmente não importam agora —
eu disse em seguida. — Aconteceu.
— Isso, garota — disse ela.
— Você entende meu ponto, no entanto — eu disse. — Isso me
coloca em uma situação muito estranha.
Alice estudou meu rosto.
— Não sei dizer se você está arrasada ou emocionada.
— Estou noventa e nove por cento arrasada e um por cento
emocionada — eu disse. — Mas parece o contrário. — Você
pensaria que esses dois sentimentos podem se anular, mas eles
apenas pareciam se amplificar.
Alice assentiu.
— Então... você está arrasada porque...?
— Porque! Porque eu tenho uma história com essa pessoa,
mesmo que ela não saiba. Uma história com a qual fiz um trabalho
bastante competente ao lidar e seguir em frente, apenas para
encontrá-lo voltando para mim sem aviso prévio. Ele foi a única
razão pela qual deixei minha antiga escola – era cem por cento para
ficar longe dele – e agora ele está vindo para cá. Aqui. Eu já posso
ver como essa história termina. Ele vai me levar para longe daqui
também. E então terei que conseguir um novo emprego em algum
lugar distante e terei que começar tudo de novo, de novo, mas sei
que nenhuma nova escola poderia ser tão incrível quanto essa,
então isso significa que estou condenado a passar o resto da minha
vida no exílio, ansiando por este lugar, meus amigos, tudo.
— Acho que esse é um cenário possível — disse Alice.
Eu me inclinei e bati minha testa contra a mesa.
— Eu não quero que ele tire minha casa de mim.
Alice franziu a testa.
— Você acha que ele vai te demitir porque você teve uma queda
por ele um milhão de anos atrás?
— Eu não acho que ele vai me demitir — eu disse. — Só acho
que ele vai me deixar tão infeliz que vou ter que desistir.
— Você acha que ele vai ser mau com você?
— Não — eu disse, sentindo meu corpo afundar em derrota. —
Acho que ele vai ser legal comigo.
Alice inclinou a cabeça, dizendo Huh?
— Acho que ele vai ser bem legal — expliquei. — Muito legal.
Totalmente irresistivelmente legal.
Ela ergueu a cabeça, tipo Entendi.
— Você acha que a paixão vai voltar para você.
— Como um tsunami.
— Então você acha que vai ser a mesma situação de antes.
— Mas pior. Porque agora eles vão estar casados e ter uns
quarenta filhos e a vida que eu tanto queria, mas era covarde
demais para tentar, vai desfilar por aí sem parar até me quebrar.
Muito gentilmente, Alice disse:
— Talvez isso aconteça de alguma outra maneira.
Mas eu aceitei meu desespero.
— Não. É isso. Isso é o que vai acontecer.
Mas Alice não estava desistindo.
— E daí se ele está casado agora? E daí se ele tem uma
ninhada inteira de filhos? Isso pode funcionar a seu favor! Você
dificilmente o verá. Ele estará exausto. Ele não vai beber cerveja no
quintal de Babette, com certeza.
— Não importa — eu disse, encolhendo os ombros. — Vou vê-lo
o suficiente. Um pouco ainda é muito.
Uma imagem apareceu na minha cabeça de Duncan no pátio da
nossa escola, vestindo um par de suas calças malucas – talvez as
vermelhas com lagostas – cercado por uma multidão de crianças
torcendo enquanto ele fazia malabarismos com bolas de praia.
— Você parece doente — Alice disse, me observando.
— Estou me sentindo mal — eu disse. E foi aí que percebi que
era verdade. De todas as coisas que abalaram o equilíbrio que
aconteceram ultimamente, essa foi a que mais me desconcertou.
— Talvez não seja tão ruim quanto você pensa — ela disse. —
Talvez ele apareça aqui e você não sinta nada. Paixões
desaparecem o tempo todo. Já se passaram anos. Talvez ele
pareça de meia-idade e desagradável. Talvez ele tenha brotado um
monte de cabelo nas orelhas. Ou talvez, tipo, um de seus dentes
ficou estranhamente marrom. Ou… — ela se animou, como se essa
fosse sua melhor ideia até agora — talvez ele esteja com muito mau
hálito agora!
— Talvez — eu disse, mas apenas para ser educada.
— Só estou dizendo — disse Alice —, aquela foto na reunião
não era exatamente irresistível.
Não consegui explicar a foto.
— Sim — eu disse. — Mas não capturou sua essência.
— Espero que não — disse Alice.
— Você vai amá-lo — eu prometi —, apesar de não querer.
Todos nós vamos. Você não pode não amá-lo. Nos dias quentes, ele
costumava levar pistolas de água para brincar. Ele inventou o Dia do
Chapéu. Ele começou um concurso de comer panquecas. Ele
convenceu as crianças a fazer um terrível flash mob no parquinho.
Uma vez, ele alugou uma máquina de algodão-doce sem avisar
ninguém e colocou no refeitório. No último dia do ano letivo de cada
ano, ele usava um smoking de veludo roxo para a aula e depois
partia para o verão em uma limusine.
— Tudo bem — Alice cedeu. — Tudo bem. Ele tem joie de vivre.
— Ele tem — eu disse — e ele compartilha. Você não pode estar
perto dele sem pegar algo.
— Então isso vai ser... bom para a escola.
— Não apenas bom, ótimo — eu disse. — Vai ser ótimo. Para a
escola.
Alice assentiu e terminou meu pensamento.
— E vai ser meio horrível para você.
— A ironia é — eu disse — que depois que me mudei, me
arrependi. Eu senti tanto a falta dele depois que eu fui embora. Eu
costumava fantasiar todos os tipos de motivos para vê-lo
novamente. Eu costumava desejar um motivo para estar perto dele.
— Exatamente — Alice disse, como se ela realmente
entendesse. — Cuidado com o que você deseja.
Eu balancei a cabeça. Então a cozinha ficou em silêncio e nós
olhamos para nossas xícaras de chá pela metade.
E naquela pequena pausa, percebi outra má notícia para mim.
Eu me senti mal. Doente fisicamente. Ficar sentada na cozinha de
Babette falando sobre Duncan Carpenter estava me deixando
nauseada.
Mas não qualquer tipo de náusea. Um tipo muito particular. O
tipo de náusea que pode significar que algo está acontecendo
neurologicamente. O tipo de enjôo que às vezes sentia... quando
estava prestes a ter uma convulsão.
O que acontecia de vez em quando.
Ocasionalmente. Uma ou duas vezes por ano.
Tudo bem. Vou apenas dizer. Eu tenho epilepsia.
Epilepsia leve.
Um toque de epilepsia.
Apenas o suficiente para saber com certeza, enquanto eu estava
sentada lá e sentindo todas as sensações dentro do meu corpo, que
eu estava tendo uma aura.
O que na verdade é um tipo de convulsão em si – simplesmente
não parece.
Senti a náusea se acumulando em meu estômago como nuvens
de tempestade. Eu sentei um pouco mais reto e afastei minha
cadeira da mesa alguns centímetros.
Alice notou.
— Você está bem?
— Eu só me sinto um pouco... mal — eu disse.
— Você está tendo uma aura?
Alice era uma das poucas pessoas que sabiam.
Fiz um O com os lábios e soltei um suspiro controlado e
frustrado e disse:
— Provavelmente — Tipo, claro. Claro que isso está
acontecendo.
O estresse é um fator de risco. Ironicamente.
Eu tive uma vida ruim quando criança – muito ruim. Já era ruim o
suficiente que minha melhor amiga da terceira série tivesse me
desconvidado de sua festa de aniversário depois de testemunhar
uma particularmente ruim no refeitório. Então ela desapareceu no
ensino médio – e permaneceu por tanto tempo que pensei que
estava curada.
Mas então, não muito tempo depois que me mudei para cá,
voltou.
Apenas um caso leve. Nada mal, realmente, no quadro maior.
Tentei me lembrar disso. Mas apenas... a ideia disso? O
conhecimento de que estava de volta? Que uma convulsão pode
acontecer a qualquer momento? Saber que eu não estava curada?
Que eu ainda era a mesma pessoa que poderia não ser convidada
para uma festa do pijama?
Foi o suficiente para mudar toda a minha concepção de mim
mesma.
Mas isso não era algo sobre o qual eu falava – nunca, se eu
pudesse evitar. Era apenas algo que eu carregava como um
pequeno cubo de gelo de medo em meu peito.
E assim Alice atacou os sintomas sobre a causa.
— Talvez você devesse começar a namorar alguém.
— Namorar alguém? — Perguntei.
— Você sabe. Preventivamente.
— Quem? — Eu exigi. — Raymond, o guarda de segurança?
— E aquele cara da TI com piercing no lóbulo da orelha?
— Os piercings no lóbulo da orelha são um obstáculo para mim.
— E aquele cara, Bruce, que dá aulas particulares?
— Ele é casado com a garota que dirige o café na Post Office
Street.
— O novo professor de ciências da quinta série não acabou de
se divorciar?
— Oh, meu Deus, Alice! — eu gritei. — Ele tem, tipo, quarenta
anos!
Alice não endossou os histéricos.
— Você vai fazer quarenta algum dia.
— Em doze anos.
— A questão é — Alice continuou —, se você pudesse
simplesmente se apaixonar por alguém… qualquer um, bem rápido,
então seu coração ficaria feliz demais para se importar com isso.
— Não sou especialista em amor — eu disse. — Mas eu não
acho que é assim que funciona.
Era absurdo. Eu não tinha saído com ninguém desde que as
convulsões voltaram. Em parte, sim, porque as opções na ilha eram
escassas. Mas também gosto da estabilidade. Mais do que isso, eu
precisava de estabilidade. Especialmente agora. Estabilidade.
Rotina. Mesmo que fosse possível “se apaixonar por alguém
rapidamente”, esse momento particular de caos emocional seria o
pior momento possível para escolher. Além disso – e eu nunca
admiti isso para ninguém, talvez nem para mim mesma – eu já havia
desistido.
Porque havia uma pergunta persistente e sem resposta no
centro da minha vida. Um que voltou à minha cabeça quando as
convulsões voltaram. Uma que eu nem percebi completamente que
continuei perguntando. Uma que eu nem tinha certeza se queria
responder.
Quem poderia me amar agora?
Eu nunca pensei nessas palavras, muito menos disse em voz
alta.
E eu não ia começar hoje.
Não tive uma convulsão naquela noite – nem na noite seguinte, nem
na seguinte.
Às vezes elas ameaçam aparecer, mas nunca aparecem.
Mas com certeza podem aguçar seu foco. Depois disso, apenas
tentei me acalmar, me ajustar e não ter uma convulsão.
Muito mais fácil dizer do que fazer. Principalmente quando você
começa a se estressar pelo fato de não estar conseguindo
desestressar.
A verdade é que eu tinha mais a fazer do que era possível fazer.
Eu não tinha trabalhado na biblioteca durante todo o verão. Não
desde que Max morreu, com certeza – mas mesmo antes disso,
quando eu estava tão feliz planejando sua festa, pensando que faria
meu catálogo mais tarde. Então, depois do funeral, eu me preocupei
com Babette: organizando o serviço, lavando sua roupa, assando
muffins de mirtilo que ela nunca comia, regando seu jardim e
empilhando os cartões de condolências não lidas em ordem
alfabética.
O verão foi a minha época para me organizar: para me atualizar
e planejar com antecedência. Mas neste verão, eu não tinha feito
nenhum dos dois. E agora o verão estava quase no fim.
Então: Chega de bagunça. Era hora de lidar com tudo – o
choque, a dor, o pavor, a antecipação, a ansiedade –à moda antiga:
como uma viciada em trabalho.
Conveniente. Porque eu realmente tinha uma tonelada de
trabalho.
Leva longas horas e madrugadas para se preparar para o início
de um ano letivo, mesmo em um ano normal – catalogando todos os
nossos novos livros, carimbando-os (sou carimbadora de páginas de
rosto e bordas das páginas), codificando-os, embrulhando as capas
em capas plásticas e colocando-os nas prateleiras. Mais:
decoração, organização, planejamento de aulas, dando uma de
Marie Kondo em meus armários, verificando os próximos planos de
aula dos professores e estocando livros para combinar com
unidades de estudo e relatórios de livros. É muito planejamento,
mas também é muito trabalho físico, e só pode ir tão rápido.
Sempre me surpreendo com a quantidade de pessoas que
pensam que eu apenas “passeio” na biblioteca o dia todo. Sem
mencionar o número que pensa que tudo que faço é ler. Além, é
claro, das crianças – que literalmente pensam que eu moro lá.
Tipo, eles acham que é minha casa de verdade.
Eu leio – constantemente –, mas não durante o dia de trabalho.
Durante o dia de trabalho, estou ajudando as crianças a encontrar
os livros de que precisam e, em seguida, ensinando-as a fazer o
autoatendimento. Estou dando aulas sobre como encontrar livros,
como ser bons cidadãos da biblioteca e por que as histórias são
importantes. Estou lendo livros para todas as séries, até mesmo
para as crianças maiores. Estou treinando voluntários para ajudar a
reabastecer as prateleiras, examinando catálogos para encontrar
novos livros para a biblioteca e removendo livros antigos das
estantes. Mais: serviço de almoço, reuniões do corpo docente,
visitas de autores, aulas de planejamento e não vamos esquecer, na
primavera, as incontáveis horas de inventário.
Dá mais trabalho do que as pessoas pensam.
Dá mais trabalho do que eu penso.
Além disso, este ano, eu comprei – com meu próprio dinheiro –
uma escultura suspensa multicolorida feita de peças de bicicleta
recicladas pintadas com cores vivas. Parecia tão reconfortante no
site onde o encontrei, e fiquei hipnotizada por um vídeo dele girando
suavemente... mas quando a caixa chegou e vi os sacos aleatórios
de pelo menos cem peças para montar – fechei novamente
imediatamente.
Não. Deixa para lá.
Levaria um milhão de horas para montar, no mínimo. No que diz
respeito à minha lista de tarefas, montar aquela escultura teria que
ser o último.
Workaholism funcionou e não funcionou ao mesmo tempo.
Em resumo, quando penso em “desestressar”, penso em banhos
de espuma, romances de virar a página e cochilos sob cobertores
felpudos – e a verdade é que eu não tinha tempo para nada disso.
Mas ao fazer todo o meu trabalho acumulado, tive um efeito de
redução do estresse, e não apenas porque me senti um pouco
menos em pânico com cada item de tarefa que realizei: isso me
impediu de olhar para o quadro geral. Isso me impediu de pensar no
passado e de tentar imaginar o futuro, e me permitiu manter o foco
em qualquer pequeno próximo passo que estivesse bem na minha
frente.
Há algo reconfortante em diminuir seu foco dessa maneira. Era
uma espécie de efeito impossível de ver a floresta por causa das
árvores. E em certos momentos de alívio, esquecia-me
completamente da floresta.
Foi assim que, na noite anterior à nossa primeira reunião
agendada com o corpo docente com Duncan, Alice conseguiu me
chocar como ela fez. Eu sabia que era domingo, mas meio que perdi
a noção de qual domingo era.
Eu estava caminhando para o supermercado para fazer o
estoque da semana, quando recebi esta mensagem de texto
bastante padrão de Alice:
— Ótimas notícias!
— O que??? — Eu mandei uma mensagem de volta.
— Pensei no título da minha autobiografia.
— Graças a Deus!
— Eu sei, certo?
— O que é????
— Faça as contas.
— Por favor, nunca me diga para fazer contas.
— Não! Esse é o título!
— ???
— Faça As Contas: A História de Alice Brouillard.
— Ah.
— Perfeito, né? Vou fazer disso minha frase de efeito também.
— Você sempre precisou de uma frase de efeito.
— Concordo. E obrigada antecipadamente.
— Por?
— Ser minha ghostwriter.
Todas as mensagens de texto razoavelmente padrão para Alice
e para mim. Também adicionamos alguns GIFs e, quando pensei
que tínhamos terminado, recebi um último ding e Alice acrescentou:
— Mal posso esperar para conhecer o Cara amanhã!
E foi aí que deixei cair o telefone.
Amanhã. De repente, estava prestes a ser amanhã. Como em
amanhã. Aquele que eu temia tanto que perdi a noção do tempo.
Aquele em que eu veria Duncan Carpenter novamente, para o bem
ou para o mal, conforme eu entrasse – voluntariamente ou não – no
resto da minha vida.
Eu não podia acreditar.
Simplesmente não parecia possível.
Nada disso parecia possível, na verdade.
Desestresse, lembrei a mim mesma. Desestresse.
Mas foi um bom momento. Sempre achei as mercearias
agradavelmente anestesiantes.
Peguei um carrinho e respirei fundo enquanto contornava as
revistas e brochuras do mercado de massa, depois subia e descia
os corredores. Pensei em comprar uma toalha de praia com
unicórnios por toda parte – à venda por U$7,99. Eu precisava de um
liquidificador? Um moedor de café? Uma nova forma de muffin?
Eu só tinha conseguido colocar uma coisa no meu carrinho – o
mais essencial de todos os itens essenciais: café – quando, de
repente, eu o vi.
Duncan Carpenter.
Ele esteve aqui. Bem desse jeito. Na minha mercearia.
Eu tive um vislumbre – um vislumbre – dele passando pelo final
do corredor, e foi o suficiente para me fazer cair de cócoras, me
escondendo atrás do meu carrinho.
Lentamente, com todos os sentidos em alerta máximo, levantei e
empurrei meu carrinho para a beira do corredor onde eu tinha
acabado de vê-lo, e espiei ao virar o corredor.
Lá estava ele, no final do amplo corredor central, com uma
camisa branca e calça cinza, andando a passos largos com seu
carrinho como se não fosse grande coisa. Como se fosse totalmente
normal. Como pessoas chamadas Duncan Carpenter apenas…
vagavam pelas mercearias em Galveston o tempo todo.
Sim. Definitivamente era ele.
Eu não conseguia ver seu rosto, mas reconheceria aquele andar
em qualquer lugar: a maneira como suas pernas balançavam para a
frente e seus pés tocavam o chão. Eu sei que você está pensando:
“Sim. É assim que andar funciona”. Mas a questão é que eu
conhecia sua maneira particular de fazer isso. Os ângulos, o ritmo, o
balanço. Eu reconhecia. Algumas coisas haviam mudado, mas o
essencial era o mesmo. A postura, o andar, a nuca: tudo era
Duncan. Olhei um pouco mais para baixo.
Sim: confirmação na bunda também.
Com isso veio uma onda de pânico.
Eu não estava pronta. Eu não poderia fazer isso.
Eu tinha que sair daqui.
Eu estava trabalhando na biblioteca o dia todo, embrulhando
capas de livros em plástico e catalogando no computador, e então
fui direto para a casa de Babette e fiz uma bagunça espalhada de
macarrão e molho de tomate para o jantar dela – grande parte do
qual estava na minha camisa – e depois fiquei para lavar a louça.
Meus olhos estavam cansados e inchados, e meus ombros estavam
tensos. Eu não tinha tomado banho naquela manhã, disso eu tinha
certeza – e agora eu nem conseguia me lembrar se tinha passado
desodorante. Ou se tinha escovado meu cabelo.
Não. Não era hora de conhecer Duncan Carpenter. De novo.
Eu tinha que sair de lá.
Abaixei-me atrás do meu carrinho e comecei a segui-lo,
imaginando que era melhor mantê-lo sob minha mira enquanto me
movia em direção aos corredores do caixa. Todas as compras sem
sentido foram agora esquecidas. Ele estava aqui! Na ilha! Minha
ilha! Na minha mercearia, dentre todos os lugares!
Eu não posso te dizer o quão chocante foi vê-lo. Olhando para
trás, eu deveria ter abandonado o café e saído noite adentro.
Mas na verdade eu estava sem café. Algo que eu não poderia
encarar o início das aulas sem.
Eu não queria olhar diretamente para ele, com medo de que ele
sentisse e se virasse, então olhei para um ponto a alguns
centímetros à sua direita e mantive meus olhos lá até que ele
virasse à esquerda para os alimentos congelados e eu enganchei à
direita no primeiro corredor de caixa disponível. Então esperei
enquanto o balconista examinava uma pilha do que deviam ser
todos os jantares congelados do lugar para um velho em um
andador.
Eu deveria ter tido compaixão pelo velho? Claro.
Era provável que ele fosse um viúvo, agora cuidando de si
mesmo depois de perder o amor de sua vida – do jeito que Babette
era? Ou possivelmente fazendo uma compra semanal para alguns
amigos que só precisavam de sustento? Ou talvez ele estivesse
doente e as refeições de micro-ondas fossem tudo o que ele
pudesse fazer? Todo mundo tinha uma história. Mas eu não tinha
tempo para simpatia. Eu tinha que sair de lá. Fiquei atrás dele
impaciente – na verdade, literalmente batendo com o dedo do pé –
enquanto as caixas congeladas davam falhas no leitor de código de
barras repetidas vezes, minha ansiedade aumentando.
Posso apenas acrescentar que o balconista era tão afiado
quanto uma bola de gude? Ele não pensou – ou não sabia como –
inserir manualmente os números dos itens e, assim, quando o
scanner não apitava, ele apenas digitalizava de novo, e de novo, e
de novo. Então ele limpava o scanner com a bainha da camisa, ou
soprava nele, ou falava com ele em voz severa.
Sete mil jantares congelados depois, eu queria bater minha
cabeça contra a esteira rolante. Mas eu fiquei parada.
Absolutamente imóvel. Porque foi quando o velho estava finalmente
para pagar e contando seu troco exato – em notas de um e
centavos, pelo amor de Deus – que ouvi um carrinho rolando atrás
de mim. Ouvi e depois senti – porque bateu na minha bunda.
— Ui. Sinto muito — disse o empurrador do carrinho, agora
apenas alguns metros atrás de mim.
Duncan Carpenter.
Eu não ouvia aquela voz há mais de quatro anos, mas reconheci
num instante.
Quando identifiquei sua marcha no corredor, tive 90% de certeza
de que era ele. Quando dei uma olhada em sua bunda, aumentei a
porcentagem para 99. E agora, com a voz, poderíamos chegar a
100. Era ele. Sem dúvida. Sem espaço para questões. Não havia a
menor possibilidade de que aqui, vestida na minha camisa
manchada de molho, eu tivesse acabado de levar uma pancada de
outra pessoa.
Eu só sabia de uma coisa naquele momento.
Eu não estava me virando.
Eu deixaria meu café para trás antes de me virar. Eu empurraria
aquele velho no andador para fora do caminho antes de me virar. Eu
ficaria de quatro e rastejaria até o estacionamento antes de me virar.
Quando eu não respondia a um “sinto muito”, ele tentava
novamente com um “não pisei no freio rápido o suficiente”.
Adivinha o que eu não ia fazer? Inversão de marcha.
Eu apenas levantei minha mão e agitei, como tanto faz.
Então eu fiquei lá. E simplesmente o ignorei.
Quando chegou a hora de pagar minha única lata de café, eu
nem me virei – apenas olhei para a frente, apenas desviando os
olhos para o lado para reconhecer o balconista – e assim que ele
passou para mim, passei o braço em volta do pacote de café, joguei
uma nota de cinco dólares no balconista e saí correndo de lá.
— E quanto ao seu troco? — o balconista me chamou.
— Fique com ele — gritei de volta, sem nem mesmo virar a
cabeça, enquanto passava pelo velhinho.
Do lado de fora, na calçada, encostei-me em um poste por um
segundo, depois continuei cambaleando como uma espécie de
fugitiva – pronta para ir para casa antes que qualquer outra coisa
acontecesse.
Uma coisa ficou clara depois disso: eu estava mais presa aqui do
que nunca.
Quando descobri que Duncan estava chegando, pensei que ele
me deixaria infeliz por ser tão simpático que não teria escolha a não
ser me apaixonar por ele de novo, mas agora parecia que o oposto
seria verdadeiro: ele me deixaria infeliz arruinando minha escola e,
por extensão, minha vida.
Eu não tinha certeza de qual era pior, mas, de qualquer forma,
eu estava infeliz.
Minhas emoções estavam se movendo como números em um
quebra-cabeça, mas eu não estava nem perto de uma solução.
Essa foi a minha lição: de alguma forma, por algum motivo,
Duncan Carpenter ficou completamente perturbado e eu não
poderia ir embora até entender o porquê. Sair para me salvar era
uma coisa. Mas deixar uma escola inteira nas mãos de um louco era
outra bem diferente.
Isso me deixou imaginando se Duncan tinha um gêmeo malvado
ou algo assim. Porque, realmente, as identidades das pessoas não
eram bastante consistentes ao longo do tempo? As pessoas não
acordavam uma manhã com personalidades completamente
diferentes. Algo havia acontecido com ele – mas o quê?
Traumatismo crâniano? Amnésia? Feitiço de bruxa?
Tinha que ser algo épico.
Sério. Ele era um monstro agora.
E foi exatamente isso que eu disse a todos naquela noite na
casa de Babette.
Eu meio que esperava que o choque da reunião matinal pudesse
acordar Babette e colocá-la em ação. Não que houvesse algo de
errado com o luto. Ela tinha permissão para sofrer, é claro. Mas eu
não era realmente um líder, por si só, então não me importaria nem
um pouco se Babette de repente levantasse a cabeça, percebesse o
que estava acontecendo e assumisse seu lugar de direito como
comandante da resistência.
Mas não esta noite.
Ela tinha ido para a cama com dor de cabeça e não desceu
mais.
Em vez disso, acabei me lembrando de não pensar demais
nisso. “Liderar” era apenas falar, planejar e fazer as pessoas
prestarem atenção.
Três coisas em que eu era perfeitamente bom.
Contei ao grupo tudo o que Duncan havia dito em seu escritório
e tudo o que aprendi: que a reunião matinal não foi, de fato, um
acaso. Que esse pateta lendário e caloroso de alguma forma se
transformou em um ditador militarista. Que ele não se importava se
todos os professores desistissem. E que ele estava cancelando o
Jardim Aventura.
Cada notícia provocava gemidos de indignação
progressivamente mais altos, mas a notícia sobre o Jardim Aventura
foi o argumento decisivo.
— Esse era o projeto de Max! — Anton gritou.
— E a casa da árvore? — perguntou Carlos.
— E a horta? — Emily e Alice perguntaram.
Todos queriam saber o que iríamos fazer.
Eu disse a eles que não sabia. Nós apenas teríamos que
descobrir isso enquanto avançávamos. Então eu olhei em volta.
— Sra. Kline?
Ela levantou a mão.
— Presente.
— Você pode, por favor, encontrar uma cópia do contrato dele?
E o estatuto do conselho escolar, já que está nisso? Vamos
descobrir exatamente o quanto estamos presos a esse cara. Além
disso… — Olhei em volta. — Alguém conhece nossa política escolar
sobre cães?
— Tipo, cachorros? — perguntou Rosie Kim.
— Ele tem um cão de segurança — eu disse a eles.
Isso desencadeou uma nova onda de indignação. Que tipo de
cachorro? Era grande? Foi assustador? Foi treinado? O que ele
estava fazendo na escola? E as crianças que têm medo de
cachorros? Quem iria ficar de olho nisso? Que tipo de pessoa trazia
um cachorro para um campus cheio de crianças? E os carrapatos?
E as alergias? Cachorros eram mesmo permitidos? Alguém poderia
descobrir?
Eu não disse a eles que o nome do cachorro era Chuck Norris.
Também não contei a eles que Duncan havia declarado que era
“assustador”.
Finalmente, quando a preocupação chegou ao auge, levantei-
me.
Posso não saber como ser uma líder, mas sei de uma coisa: nós
iríamos proteger nossa escola. Não éramos tão incríveis à toa.
E foi aí que eu fiz minha voz alta e nos deu toda a conversa
estimulante que todos precisavam ouvir – inclusive eu.
— Não sei exatamente o que vamos fazer — eu disse. — Nunca
enfrentei nada nem que seja vagamente parecido com isso. Mas sei
o que não vamos fazer. Não vamos entrar em pânico. Não vamos
deixar que o medo nos faça perder de vista quem somos. Estamos
aqui por uma razão, certo? Para cuidar de todas essas pequenas
almas que nos foram confiadas. Não vamos esquecer isso. Estamos
aqui para eles e uns para os outros. As crianças primeiro, e vamos
nos preocupar com essa situação de Duncan Carpenter mais tarde.
Não quero ninguém fazendo nada estúpido… Anton, estou olhando
para você. Sem graffiti, sem notas ameaçadoras, sem postagens
raivosas nas redes sociais. O trabalho mais importante que temos
nas próximas semanas é ajudar as crianças. Certo? Precisamos
ajudá-los a entender que a morte faz parte da vida, que Max se foi,
mas não foi esquecido, que podemos mantê-lo conosco levando
adiante seu calor e sua bondade. Eles precisam de toda a
estabilidade que podemos dar a eles por enquanto. Então, vamos
nos agachar, fazer nosso trabalho, ajudar as crianças nessa
transição, lembrar para quem estamos aqui... e fazer tudo o que
pudermos para tornar as coisas melhores, não piores.
oito
Arriscar uma ação disciplinar era uma grande coisa para ele.
Recebemos talvez nove desses memorandos antes da hora do
almoço. A maioria dos professores que encontrei naquela manhã
parou de ler depois dos primeiros dois ou três. O que significava que
quando “De: Duncan Carpenter. RE: MEMORANDO – TOUR DO
CAMPUS” surgiu pouco antes da tarde, apenas os membros mais
obedientes do corpo docente ainda estavam prestando atenção. Eu
era um deles, claro. Eu li tudo. Acontece que Duncan precisava de
alguém para acompanhá-lo pela escola, dar-lhe informações
privilegiadas e familiarizá-lo com tudo o que ele precisava saber.
Enquanto eu estava lendo o memorando, eu disse, em voz alta:
— Não é isso.
Mas então cada pessoa que respondeu me indicou.
Unânime.
Essa era outra regra de Max: nunca dê más notícias a ninguém sem
também dar a eles algo para fazer a respeito.
Íamos à praia recolher o lixo todos os anos, sem falta.
Tudo para dizer que, quando Duncan enviou aquele e-mail, os
ônibus já estavam reservados, as equipes de professores já
estavam organizadas, os sacos de lixo, ancinhos e material de
limpeza já estavam montados e os cartazes para registrar e
comemorar quantos quilos de lixo removemos já estavam feitos.
Tudo pronto e esperando.
Eu diria que, em geral, eu era uma pessoa bastante obediente.
Não joguei reciclável no lixo. Votei todos os dias de eleição –
mesmo nas pequenas, a maioria das pessoas pulou. Se uma receita
pedia uma colher de sopa de alguma coisa, eu não apenas olhava,
eu media.
Mas em resposta ao cancelamento da limpeza da praia, tive uma
reação muito pouco obediente. Uma parte ardente e desconhecida
de mim surgiu de algum lugar ardente e desconhecido em minha
alma e criou este pensamento em minha mente: eu te desafio.
Eu te desafio a nos parar.
Duncan Carpenter não tinha o direito de cancelar aquela viagem.
Era uma tradição muito maior que ele. Fizemos uma limpeza de
praia todos os anos. Isso acontecia desde antes de Duncan
Carpenter nascer. Ou perto o suficiente. Tinha sido ideia de Max
muito antes de eu vir para cá, e não iríamos simplesmente deixá-la
morrer agora que ele se foi.
Era esta a colina onde eu queria morrer? Limpeza de lixo na
praia?
Sim. Aparentemente, era.
Aqui está o que estou dizendo: acabamos tirando toda a terceira
série do prédio.
Apenas os enfileiramos para fora do portão sul e caminhamos
com eles os três quarteirões até o quebra-mar. Demos as mãos e
cantamos canções marítimas. Foi fácil. Os professores já haviam
cronometrado o tempo. Carlos foi com as pás e peneiras em sua
caminhonete. Foi bom. Estaríamos de volta na hora do almoço.
Usei um chapéu de palha de abas largas para trabalhar naquele
dia, um sarongue com estampa de conchas e levei minha bolsa de
praia com filtro solar extra, caso alguém precisasse.
A parte inicial do dia foi deliciosa.
Eu tinha o adorável Clay Buckley no meu grupo, e ele era cheio
de curiosidades sobre tudo relacionado ao mar. Ele era um daqueles
garotinhos doces e sérios que mais pareciam um terapeuta de trinta
e cinco anos do que uma criança. Talvez fossem os óculos grandes
demais com armação camuflada azul. Talvez fosse seu jeito gentil,
ou seu vocabulário impressionante, ou o jeito que ele era
praticamente uma enciclopédia… mas ele parecia estar narrando
um documentário sobre a natureza.
Sábio além de sua idade.
A regra para as crianças era que não podiam tocar no lixo com
os dedos. Nós os fizemos usar luvas e distribuímos pás de
brinquedo de praia de plástico barato e peneiras de plástico para
eles recolherem qualquer lixo que vissem, peneirar a areia e depois
despejar o lixo restante nos sacos de lixo. Se uma criança visse algo
pontiagudo – uma garrafa quebrada ou coisa pior – ela teria que
chamar um professor. As crianças se saíram muito bem com isso –
acho que, em parte, porque, a essa altura do ano, eles sabiam tanto
sobre o plástico no oceano que estavam ansiosos para ajudar.
Clay Buckley e eu ficamos lado a lado sobre nossas mãos e
joelhos naquela manhã por mais de uma hora, cavando e
peneirando tampas de garrafas, balões, anéis de seis pacotes,
sacolas plásticas, linha de pesca e um milhão de pequenas peças
coloridas que não conseguimos identificar – e no final disso, eu
estava oficialmente no fã-clube de Clay Buckley.
Independente de sua mãe. Ou seu pai.
No início, Clay me disse:
— É irônico que estejamos limpando o plástico da praia com pás
de plástico.
— É um pouco como canibalismo — brinquei.
Mas Clay pensou nisso.
— Parece-me mais como soldados recolhendo seus mortos de
guerra.
— Entendo — eu disse, e continuei cavando.
Naquela hora, com Clay, aprendi mais sobre o habitat marinho
do Golfo do México do que jamais pensei ser possível. Aqui está
uma amostra do que Clay tinha a dizer:
— Todo mundo já ouviu falar sobre as tartarugas marinhas
Ridley de Kemp, mas você sabia que o Golfo também tem
tartarugas-de-couro, cabeçudas e de pente? — (Eu não sabia.) —
Você sabia que a tartaruga de couro existe basicamente em sua
mesma forma desde a época dos dinossauros? — (De novo, não.)
— Você pode imaginar como seria se sua comida favorita fosse
água-viva? — (Outro não.)
— Apimentado! — foi tudo o que consegui pensar em dizer.
Então Clay disse algo que realmente me chocou:
— Max e eu costumávamos caçar tartarugas durante a época de
nidificação.
— Espere, você e Max caçavam tartarugas?
Clay olhou para mim.
— Não caça, tipo bang-bang — disse ele. — Caçar tipo clique-
clique — Ele clicou no obturador imaginário de uma câmera.
— Bem, isso é um alívio. — Eu dei-lhe uma piscadela.
Eu tinha visto mais do que algumas fotos de seus passeios, na
verdade. Você tinha que tomar cuidado, ou Max faria você ficar lá
enquanto ele folheava todas as fotos em seu telefone.
— Também há baleias lá fora — disse Clay, parando para olhar
o Golfo.
Isso não parecia certo. Minha imagem das baleias estava no
fundo do oceano, não no raso Golfo. Desta vez, eu quis dizer isso:
— Sério?
— Vinte e cinco espécies diferentes, na verdade. Jubartes,
azuis, assassinos e um monte de outros. Um disse que uma baleia
de Bryde acabou de ser listada como ameaçada de extinção. Ah,
mais cachalotes.
Eu fiz uma careta, como se dissesse de jeito nenhum.
— Cachalotes? Mesmo?
— Mesmo.
— Nunca vi um cachalote perto de Galveston.
— Bem, claro que não — Clay disse gentilmente. — Elas estão
debaixo d'água.
— Justo.
— Além disso — ele acrescentou —, elas estão longe, nas
partes profundas. Mas os navios costumavam vir de todas as partes
para as zonas baleeiras. — Então ele se virou para mim e assentiu.
— E nós temos os naufrágios para provar isso. Quatro mil deles,
para ser exato.
— Existem quatro mil naufrágios por aí? — Eu disse, parando
para olhar para fora, como se eu pudesse encontrar um.
— Sim.
— Como você sabe tudo isso? — Perguntei.
Clay olhou para baixo.
— Max.
Oh. Max.
— Além disso — Clay acrescentou então —, quero ser um
arqueólogo marítimo quando crescer. E há muito o que aprender.
Então eu tenho que me manter muito ocupado.
— Eu poderia vê-lo totalmente como um arqueólogo marítimo —
eu disse. Eu não tinha 100% de certeza do que era, mas podia ver
Clay como qualquer coisa que ele quisesse ser.
— Obrigado — disse Clay, fazendo uma pequena reverência.
Ele voltou a peneirar. — Você sabe sobre o naufrágio La Belle?
Eu balancei minha cabeça.
— Ele afundou em 1600 na Baía de Matagorda, e os
arqueólogos o encontraram não muito tempo atrás e o escavaram.
Eles construíram uma parede para conter a água. Encontraram o
brasão de um almirante francês. Encontraram o punho de uma
espada. Eles encontraram ossos humanos.
— Uau — eu disse.
— Max ia me levar durante a noite para o museu em Port
Lavaca… — Clay parou de peneirar por um segundo. — Mas agora
meu pai vai me levar em seu lugar.
Tentei imaginar Kent Buckley em um museu com seu filho
introvertido, estudioso e pensativo. Clay estaria lendo cada sinal
para cada artefato duas vezes, e Kent Buckley estaria conduzindo
alguma reunião idiota em seu telefone celular, falando muito alto e
apressando Clay junto.
Ocorreu-me então que, de todos nós, Clay poderia ser a pessoa
que mais precisava de Max.
— O museu parece incrível — eu disse, tentando dizer algo
verdadeiro.
Clay encontrou meus olhos.
— Você pode vir conosco se quiser. — Ele deu de ombros. —
Vou dormir no chão.
Por alguma razão, a maneira como ele disse isso fez meus olhos
arderem com lágrimas. Eu pisquei para afastá-los.
— Preste bastante atenção — eu disse — e depois volte e me
conte tudo.
— Entendido — disse Clay.
— Ei, Brainerd — um garoto gritou para Clay um minuto depois
—, encontrei um dente de tubarão!
Ele ergueu um pedaço triangular de plástico.
— Incrível — disse Clay, recusando-se a morder a isca.
O nome daquele garoto era Matthew, mas ele apenas começou
a dizer às pessoas para chamá-lo de “Cachorro Louco”. Alguns
segundos depois, inclinei-me em silêncio e disse:
— Do que Cachorro Louco acabou de chamá-lo?
Clay continuou peneirando.
— Brainerd — disse ele. — É um apelido.
Eu tentei proceder com cuidado.
— Como você conseguiu esse apelido?
Clay fez uma pausa.
— Isso deveria ser um insulto. Você sabe: ‘cérebro’ mais ‘nerd’?
Mas o Dr. Alfred Brainerd é um dos meus cientistas favoritos do
rock, então a piada é em Matthew.
— Você não quer dizer Cachorro Louco?
Clay torceu o nariz.
— Vou ficar com Matthew.
Eu não poderia dizer o quanto o apelido incomodava Clay.
— Você quer que eu diga a Matthew para parar de chamá-lo de
Brainerd?
Ele encontrou meus olhos e balançou a cabeça.
— Não — ele disse. — Eu tomo isso como um elogio.
Eu balancei a cabeça, tipo entendi.
Se ele fazia isso ou não, este não era o momento de tomar um
profundo mergulho nele. Ele parecia bem – melhor do que bem, na
verdade, quando voltou a conversar sobre a vida marinha e a
história geral do Golfo do México: o golfinho encalhado alguns
verões atrás, os detalhes de um livro que lera sobre a tempestade
de 1900, as escapadas de vários piratas.
— Há ouro pirata enterrado por toda parte — Clay prometeu. —
Max e eu costumávamos procurá-lo com seu detector de metais.
Max adorava aquele detector de metais.
— Ele deixou para mim — disse Clay então. — No testamento
dele.
Lá estavam aquelas lágrimas novamente. Engoli.
— Você vai me levar para olhar algum dia?
— Com certeza — disse Clay, e despejou uma pilha peneirada
de tampinhas de garrafa no saco de lixo.
Um minuto depois, Cachorro Louco gritou:
— Brainerd! O que é isso?
Ele puxou uma rede de pesca de nylon de baixo de uma fina
camada de areia. Alguns professores vieram ajudar. No momento
em que a coisa toda foi descoberta, era tão grande quanto um
cobertor.
— É uma rede fantasma — disse Clay.
As crianças se animaram com a palavra “fantasma”.
— Esse é o nome das redes que foram abandonadas e
acabaram flutuando livremente na água — explicou Clay. — Eles
são feitas de nylon, então não se desintegram e matam a vida
selvagem o tempo todo. Peixes, tartarugas marinhas, pelicanos e
golfinhos – todos ficam presos neles e sufocam. Ou passam fome.
— Bem, não esta rede — disse uma garotinha chamada Angel,
marchando até Cachorro Louco com um saco de lixo. Cachorro
Louco entendeu o que ela queria dizer e começou a enfiar a rede na
sacola. Logo foi descartado.
— Obrigado, Brainerd — Cachorro Louco disse, e então um
monte de outras crianças entrou na conversa, cumprimentando-o e
comemorando o fim da rede fantasma.
Um momento tão difícil de ler: o apelido parecia maldoso, mas o
agradecimento parecia genuíno. Decidi seguir o exemplo de Clay –
e ele parecia feliz, então concluí que era uma vitória.
E bem naquele momento, quando eu estava me sentindo feliz
por estarmos lá, e orgulhosa por termos levado as crianças para a
limpeza da praia por direito, e feliz por ter aprendido tantas
curiosidades sobre a praia com meu amiguinho inteligente, e talvez
apenas um pouco triunfante sobre o descarte da rede fantasma,
olhei para cima e vi uma figura de pé no paredão, olhando para nós.
Uma figura masculina, iluminada por trás pelo céu sem nuvens.
Duncan.
Ele desceu a metade dos degraus de concreto e examinou todos
nós – crianças e professores – como se fôssemos o bando mais
vergonhoso de quebradores de regras sem coração.
— O que está acontecendo aqui? — ele disse finalmente, em
voz baixa, não muito satisfeita.
Todos os professores se entreolharam. Alice pareceu se curvar
um pouco mais.
Finalmente, dei um passo à frente.
— Apenas limpando o lixo da praia. — Então apontei para o
saco de lixo cheio de rede e disse, como se isso fizesse algum
sentido: — Apenas sendo heróis e salvando o oceano.
As crianças comemoraram e Duncan se virou para encará-los.
Então ele olhou para mim como se eu fosse muito travessa.
— Você não recebeu meu memorando?
Eu balancei a cabeça.
— Você leu?
— Eu li. Todas as nove páginas em espaço simples.
— Então você sabe que todas as viagens de campo foram
suspensas.
— Eu sei.
— Você não está aqui por engano, é o que eu quero dizer —
como se ele estivesse me oferecendo uma saída.
Acho que poderia ter pegado. Mas não o fiz.
— Não estamos aqui por engano.
— Você sabia que esta viagem de campo foi cancelada, mas
você veio aqui mesmo assim?
— Correto.
Duncan me examinou.
— Você achou que eu simplesmente não notaria que toda a
terceira série estava faltando?
— Eu esperava que você não o fizesse — eu disse, com um
encolher de ombros. — Se você não estivesse ocupado.
Duncan voltou-se para os professores.
— Comecem a guardar as coisas. Nós vamos voltar.
Mas fiz sinal para Duncan descer o resto do caminho.
— Posso falar com você, por favor?
Quando Duncan pisou na areia, depois de levar um segundo
para se ajustar à dissonância cognitiva de um homem de terno
cinza, em oxfords pretos recém-engraxados, parado na praia,
acrescentei:
— Em particular?
Comecei a marchar para longe de onde as crianças estavam, e
Duncan, para meu alívio, me seguiu.
Quando estávamos fora do alcance da voz, eu disse:
— Não faça isso. Vamos terminar o que estamos fazendo.
Ele encolheu os ombros.
— Você quebrou as regras.
— Bem, são regras ruins.
— Discordo.
— Estamos bem — eu disse, gesticulando para as crianças. —
Tem sido um dia adorável. As crianças aprenderam coisas e
torceram umas pelas outras. Estamos construindo esse dia há
semanas, o momento em que as crianças podem fazer algo para
ajudar o oceano. Tem sido muito inspirador para eles.
— Irrelevante — disse Duncan. — Eles não podem estar aqui.
— Por que não?
— Porque as viagens de campo foram canceladas.
— Então descancele.
— Não é assim que funciona.
— Você pode cancelá-los, mas não pode descancelá-los?
— Não quando as pessoas quebram as regras.
Apontei para as crianças.
— Olha como eles estão felizes. Por que simplesmente não
deixá-los ficar?
— Não posso protegê-los aqui.
— Você não é o Serviço Secreto. Eles são apenas crianças em
uma viagem de campo.
— Não mais.
Ele deu um passo como se estivesse prestes a voltar e reuni-los.
— Espere! — Eu disse, colocando minha mão em seu braço
para detê-lo.
Ele olhou para a minha mão.
— Ouça o que você está fazendo — eu disse, contando com
meus dedos. — Você está colocando portões em tudo e grades nas
janelas. Você está pintando tudo de cinza. Você está colocando as
crianças… e os professores, a propósito, em uniformes cinza. Você
está contratando um novo bando de guardas de segurança. E você
demitiu o pobre Raymond...
— Ele estava dormindo o tempo todo!
— Ele tem apneia do sono!
Nós nos encaramos por um segundo.
Então eu disse:
— Você não pode ver o que está fazendo?
Ele piscou para mim.
— Barras? Paredes cinza? Portões? Guardas? Você está
transformando nossa escola em uma prisão. Uma prisão real e
literal.
Foi a minha frase de efeito. Destinada a obter algum tipo de
reação – induzir até mesmo uma pequena consciência nova. Talvez
até desencadear uma epifania e fazê-lo perceber o quão
surpreendentemente errado ele esteve o tempo todo. Isso não teria
sido legal?
Mas qual é o oposto de uma epifania? Um encolher de ombros?
Duncan disse:
— É necessário.
— Quem disse?
— Consultei extensivamente especialistas em segurança.
— Como você sabe que eles sabem do que estão falando?
— Hm. Porque eles são especialistas.
— E? Os especialistas estão errados o tempo todo.
— Isso é bom. Mas é meu trabalho manter essas crianças, e o
corpo docente, aliás, seguro.
— Esse não é o seu único trabalho.
— Esse é o meu trabalho número um.
— Eles não podem aprender se forem miseráveis!
— Eles não podem aprender se estiverem mortos!
Com isso, nós dois ficamos em silêncio.
O vento soprava em seu cabelo, e seus oxfords agora estavam
cobertos de areia, mas apesar de quão ridiculamente deslocado ele
parecia nesta praia naquele terno, ele ainda conseguia exalar
autoridade. Duncan Carpenter, de todas as pessoas, esbanjando
autoridade. Ele deveria estar empinando uma pipa! Ele deveria estar
fazendo parada de mãos em shorts de estampa havaiana. Ele
deveria estar ajudando.
O erro de toda a situação ajudou a alimentar uma coragem
indignada em mim. Eu, de chapéu de palha, óculos de sol em
formato de coração, e uma camiseta com o desenho de um polvo
com os braços bem abertos que dizia ABRAÇOS GRÁTIS.
Eu me recusei a recuar.
E esse foi o momento – bem ali – quando minha necessidade de
entender o que diabos aconteceu finalmente superou minha
necessidade de me proteger. Antes que ele pudesse se virar e
caminhar de volta para o grupo e reunir todos antes mesmo de
terminarem, me vi fazendo a pergunta que vinha me seguindo como
uma rede fantasma desde que ele chegou.
— Como é possível que você não se lembre de mim? — Eu
disse então, dando um passo mais perto.
Duncan apenas olhou para mim.
— Eu costumava trabalhar na Andrews Prep, na Califórnia.
Nós… — fiz um gesto entre nós dois, sentindo um lampejo de
irritação por ter que explicar isso — trabalhamos juntos por dois
anos. Eu era mais quieta na época, e muito menos... colorida.
Talvez você não tenha me notado. Mas eu notei você. Todo mundo
notou. Você era… — Eu balancei minha cabeça. — Você era tudo
que eu queria ser. Você foi o melhor tipo de professor que eu
poderia imaginar. E quando soube que você estava vindo para cá
para ser o diretor da Kempner, pensei que você seria a melhor coisa
que poderia nos acontecer após a perda de Max, e isso quer dizer
muito. Mas... o que aconteceu com você? Cadê sua calça flamingo?
Onde está sua gravata de pipoca? O Duncan Carpenter que eu
conhecia não cancelaria as viagens de campo! Ele estaria
planejando novas. — De repente, a raiva meio que se dissipou e
minha voz ficou um pouco trêmula. — Eu me lembro de quem você
costumava ser. Eu estava tão animada para ver aquele cara de
novo. Mas é como se ele tivesse ido embora. Eu não sei onde ele
está. E eu não tenho a menor ideia de quem você é. Mas eu daria
qualquer coisa para ver aquele cara de novo.
Duncan manteve-se imóvel o tempo todo enquanto eu falava –
sem se mover, sua expressão totalmente estóica.
Eu não sei o que eu estava esperando. Algum tipo de
explicação, talvez, como “minha esposa chata me disse que era
hora de crescer e parar de brincar”. Ou talvez: “eu pensei que os
diretores tinham que ser durões. Você está dizendo que este lugar
prefere um pateta de bom coração?
Acho que em alguma versão fantasiosa desse momento, eu
seria capaz de mostrar a ele o erro de seus caminhos. Eu seria
capaz de lhe dar permissão para ser quem ele realmente era. É
aquela fantasia que todos abrigamos quando alguém está
completamente errado, e esperamos que, se explicarmos isso a
eles, eles nos ouvirão e dirão: — Oh, Deus. Você tem razão. Eu sou
o pior. Obrigado por me ajudar a ser uma pessoa melhor.
Como se isso já tivesse funcionado.
Enfim: não funcionou.
Em resposta a tudo isso – minha confissão de que o conhecia,
minha admissão de quanto o admirava, minha confissão acidental,
totalmente vulnerável e grand finale de quanto eu realmente
desejava ver o antigo Duncan novamente – Duncan foi com:
— Estamos saindo do assunto, aqui.
Mas não. Estávamos apenas – finalmente – entrando no
assunto.
Eu não recuei.
— Eu me lembro de você — eu disse, dando um passo mais
perto, olhando em seu rosto.
Duncan olhou para o Golfo.
— O que aconteceu? — Eu disse. — O que te deixou assim?
Por que você mudou? — E então, pensando que talvez eu estivesse
fazendo a pergunta que acertaria na mosca e o faria finalmente
admitir a verdade, eu disse, mais baixo, quase num sussurro. — Era
sua esposa?
Duncan franziu a testa e olhou para mim.
— Minha esposa?
— Ela não aprova brincadeiras, não é? Ela quer que você seja
sério o tempo todo. Ela quer que você seja como todos os outros
adultos. — Eu balancei minha cabeça. — Ela nunca teve senso de
humor. Por que os caras sempre, sempre vão atrás das garotas
bonitas, não importa o quão chatas elas sejam?
Mas Duncan estava olhando para mim.
Oh, Deus. Eu o insultei. Você não pode sair por aí chamando as
esposas das pessoas de chatas! Eu tentei voltar atrás.
— Não sua esposa, é claro... quero dizer... ela é bonita e
também... não... chata. Eu estava mentindo descaradamente.
Mas foi quando Duncan disse:
— Quem?
— Sua esposa. Desculpe. Tenho certeza que ela tem muitas,
muitas grandes qualidades.
Mas ele estava carrancudo.
— Eu não tenho esposa.
Eu congelo.
— Claro que você tem. — E então, como se estivesse tentando
lembrá-lo de algo que ele já deveria saber, continuei: — Aquela
moça das admissões? De Andrews?
— Chelsey?
— É isso — eu disse. — Aquela que convidou você para sair no
estacionamento.
— Uau — disse Duncan. — Ok. Nós namoramos, mas…
Isso não computou.
— Você não... se casou com ela?
— Casar com ela! — ele explodiu com a coisa mais próxima que
eu vi de uma risada dele desde que ele chegou.
— Vocês não foram morar juntos? Não foi realmente... sério?
Ele balançou a cabeça lentamente, como se não pudesse
imaginar por que eu estava perguntando isso.
— Não.
— Houve um boato — eu disse, agora todo acusador — que
você estava pensando em ficar noivo.
Ele olhou para mim como se isso fosse irrelevante.
— Ainda assim, não.
— Um boato sólido — eu disse. — Um boato convincente.
Mas Duncan apenas balançou a cabeça.
E apesar do fato de estarmos brigando por causa da viagem de
campo, apesar do fato de ele ter acabado de declarar o fim de toda
a diversão para sempre, e apesar do fato de eu nem gostar mais
dele, meu coração, muito lentamente, começou a bater suas asas.
— Então... você não é... casado? — Eu precisava reconfirmar.
De novo.
— Não! — ele disse, como se nunca tivesse ouvido nada tão
maluco.
— Você não tem, tipo, um bando inteiro de crianças?
Embaraçoso, mas é verdade: eu não conseguia disfarçar a
bizarra sensação de alegria que acabara de surgir dentro do meu
corpo – como um milhão de minúsculas bolhas gaseificadas. Eu me
senti positivamente efervescente.
Duncan olhou para mim, lendo meu rosto.
Eu sorri. Eu não pude evitar. Então coloquei minha mão sobre
minha boca.
Ele balançou a cabeça para mim, como se não pudesse
entender tudo.
— Sempre foi casual. Às vezes acho que estávamos apenas
namorando porque ela queria tanto. Era mais fácil dizer sim do que
não. De qualquer forma, deixei Andrews no ano seguinte, recebi
uma oferta de emprego em Baltimore e ela não queria deixar a
Califórnia, e foi isso.
Eu não sabia mais o que fazer a não ser começar a rir.
— Só para confirmar mais uma vez: não é casado?
— Nem um pouco.
Eu balancei minha cabeça.
— Eu pensei que você fosse para casa todas as noites para a
esposa e filhos.
— Deus, não. Eu vou para casa todas as noites com Chuck
Norris, que se tornou totalmente o alfa, a propósito, e então ele me
manda dar a ele metade do meu jantar e depois dorme na minha
cabeça.
— Tudo bem — eu disse. — Tão... parecido.
— Mas não sou contra o casamento — disse Duncan. Então ele
acrescentou: — Mais ou menos como você se sente em relação aos
gatos.
Ai meu Deus.
Espere... o quê?
Minha boca se abriu.
— Você sabe disso?
— Que você é neutra em relação a gatos? Que é mais uma
pessoa que gosta de cachorro?
Eu senti como se todo o ar tivesse sido sugado do céu.
— Espere. Você se lembra de mim?
— Claro. Trabalhamos juntos na Andrews.
— Mas... você sempre se lembrou de mim, ou só desde que
comecei a gritar com você?
Sua voz soou um pouco áspera.
— Eu sempre me lembrei de você.
— Mas por que você não disse nada?
— O que havia para dizer?
— Não sei. Que tal 'Olá. Bom ver você de novo. Como você
esteve?'
Os olhos de Duncan pareciam mais suaves, de alguma forma.
— Olá — disse ele. — Bom ver você de novo. Como você
esteve?
Felizmente, lembrei-me dos alunos da terceira série por perto.
Condensei minha voz em um sussurro-grito.
— Eu estive uma merda, obrigada! — Eu disse.
— Não totalmente, porém — Duncan disse de volta, e eu estava
muito brava para perceber que ele soava quase humano. — Você
ama isso aqui — Então ele acrescentou: — E parece amar você.
Íamos falar sobre algo real agora? Foi completamente
desarmante. Eu me senti atordoada.
— Eu amo isso aqui. Eu amo este trabalho, esta cidade e esta
escola. Eu cresci e, você sabe… — Eu queria dizer “desabrochei”,
mas parecia uma coisa estranha de se dizer sobre mim.
— Floresceu — Duncan forneceu, quando eu vacilei.
Eu pisquei para ele.
— Mas então — continuei — perdemos Max. Meu herói… o
herói de todos, e a coisa mais próxima de um pai, um mentor e um
maldito Papai Noel que já conheci. Ele morreu bem na minha frente.
Tão perto quanto você está agora. E então, bum!... Você apareceu...
e eu estava tão esperançosa de vê-lo novamente, e pensei que
talvez você pudesse curar... — quase disse a mim, mas depois
mudei para — todos nós. Mas você está totalmente diferente. Nada
como o cara que eu conhecia. Nada como Max também. Nada como
esta escola ou seus valores. E agora não sei o que fazer porque
agora tudo o que importava para mim está desmoronando, e não é
tudo por sua causa, mas você certamente não está ajudando, e é
muito pior agora porque eu costumava ser tão totalmente...
Eu me impedi de dizer apaixonada por você.
Eu tentei novamente.
— Você era tão…
Eu me impedi de dizer adorável.
Por fim, eu disse:
— É pior do que se você fosse apenas um administrador
aleatório, comum, que empurra lápis e adora formulários. É pior do
que se você fosse apenas um babaca comum. Porque eu sei quem
você costumava ser. E ele era muito melhor do que o cara que você
se tornou.
No processo de, você sabe, falar a minha verdade, eu me
aproximei cada vez mais dele e, quando terminei, estava a apenas
alguns centímetros de distância e ele estava olhando para mim.
O vento puxou meu chapéu de palha, então coloquei a mão em
cima para segurá-lo no lugar.
Por um segundo, senti como se tivesse feito um bom argumento.
E então percebi que tinha acabado de chamar meu chefe de
babaca.
Ele percebeu isso também.
No silêncio que se seguiu, foi como se ele se fechasse
novamente. Ele deu um passo para trás. Ele deu um único aceno.
Então ele disse:
— Anotado.
Nós nos esquecemos por um segundo ali. Sua total surpresa por
eu ter pensado que ele havia se casado com a há muito esquecida
Chelsey e gerado uma ninhada de filhos o desarmou. Por alguns
minutos, ele relaxou em seu eu natural. Nós não estávamos
brigando, discordando ou brigando. Estávamos apenas
conversando. Como as pessoas fazem. Não escalado para os
papéis de bibliotecário arrogante e administrador durão – apenas
duas pessoas recuperando os velhos tempos.
Mas eu estava com tanto medo de dizer algo tolo que, em vez
disso, fiz algo tolo. Eu tentei argumentar com ele para ficar assim.
Surpresa! Não funcionou.
Ele deu mais um passo para trás na areia, se recompondo.
Então, ele se virou para o grupo – todos estavam olhando para nós,
a propósito. E, enquanto ele voltava para eles, não tive escolha a
não ser segui-lo.
Os olhos dos professores se moveram entre nós dois enquanto
esperavam por um veredicto.
Ao chegar ao grupo, soltou um longo suspiro.
Então, em um tom de voz como se ele tivesse sido derrotado,
ele finalmente disse:
— Todo mundo de volta à escola. Agora mesmo. Ou todas as
crianças têm detenções e todos os professores têm que
supervisioná-los.
Os professores hesitaram por um segundo.
Mas então, quando Duncan acrescentou:
— Não me obrigue a tirar a Keurig da sala dos professores —
eles entraram em ação.
onze
Eu me arrependi instantaneamente.
No exato segundo em que passei pela grade, no segundo em
que não havia como voltar atrás, eu não queria nada mais em toda a
minha vida do que voltar.
Minha vida que pode não durar muito.
A queda durou uma eternidade e me deu tempo de sobra para
rever minha idiotice. Pode haver estacas lá embaixo, ou pedras do
cais, ou um barco naufragado. Pode haver uma mancha de óleo, ou
um cardume inteiro de águas-vivas, ou mesmo uma mancha de
bactéria carnívora. Tudo era possível.
Não importa o que, esta foi a coisa mais idiota que eu já fiz.
A propósito, meus braços giraram involuntariamente, como se
pudessem encontrar algo para se agarrar no ar vazio. E minhas
pernas continuaram bombeando, também, como se seus esforços
pudessem inspirar algum terreno sólido a aparecer debaixo delas.
E vou te contar uma coisa: eu soube de uma verdade repentina
naqueles segundos de silêncio mortal antes de encontrar qualquer
morte sangrenta que me esperasse lá embaixo.
Eu definitivamente não queria morrer.
Eu sabia disso de uma maneira casual antes. Mas agora eu
sabia de uma centena de novas maneiras.
Então foi isso. Você não pode saber o que não sabe.
No meio do mergulho em qualquer escuridão que me esperasse
abaixo, senti muitas das coisas que você esperaria que uma pessoa
sentisse naquela situação. Mas senti uma coisa que realmente me
surpreendeu: empatia por Duncan. Eu tinha sido tão criteriosa com
ele. Revirei os olhos para seus ternos, seus esquemas de cores e
suas regras. Mas eu daria cada um desses momentos de volta por
uma chance de me encontrar em segurança no píer com ele?
Claro que sim.
Esta era a sensação de estar verdadeiramente assustado. Era
assim que parecia que você poderia realmente, verdadeiramente
morrer.
Duncan conhecia esse sentimento, lembrava-se dele e o
carregava consigo todos os dias.
Eu me arrependi de tudo – tudo sobre este momento tolo,
insensível e auto-satisfeito – com veemência absoluta.
E então eu bati na água.
Ou mais como ela me bateu.
Eu me inclinei um pouco no caminho para baixo – e então bati
na superfície com bastante força do meu lado. Parecia uma
estranha combinação de mergulhar na água e ser atingida por uma
tábua de madeira.
Eu poderia ter antecipado isso, se tivesse pensado em antecipar
alguma coisa.
Atingi a superfície, depois mergulhei abaixo dela e continuei
descendo cada vez mais, sabendo, com muita clareza, em meu
cérebro bem desperto, que precisava parar aquele ímpeto
descendente e começar a chutar as pernas e bombear os braços
para abrir caminho de volta à superfície.
Mas eu não podia.
Eu não conseguia me mover.
Não fazia sentido. Eu sabia que tinha que chutar. Eu sabia que
tinha que nadar em direção à superfície, onde todo aquele ar me
esperava. Mas por mais tempo do que eu poderia acreditar, deixei-
me afundar cada vez mais fundo no oceano negro.
Quanto tempo você consegue ficar sem respirar? Um minuto?
Cinco? Eu não fazia ideia. Eu ainda estava congelado, ainda
afundando, quando meus pulmões começaram a gritar para eu
respirar.
Embaixo da água.
E foi o ato desesperado de pará-los – de ordenar que meu
diafragma parasse – que me colocou de volta em movimento. Seus
pulmões são balões, lembro-me de ter pensado. E os balões
flutuam.
Era uma noção descontroladamente não científica. Mas acabou
sendo exatamente o encorajamento de que eu precisava. Meus
belos pulmões cheios de ar iriam me fazer flutuar de volta à
superfície. Tudo o que meus braços e pernas precisavam fazer era
ajudar.
Chutei, puxei e lutei em direção à superfície enquanto meu
diafragma doía e doía. Tudo doía, na verdade – como se a privação
de oxigênio estivesse machucando individualmente cada célula do
meu corpo.
Eu não tinha ideia de quão longe estava da superfície. Não era
como se eu pudesse ver uma linha de chegada. Pode ser um metro
e meio ou meio quilômetro. Eu não tinha ideia, e estava apenas
começando a pensar que era impossível, que eu estava muito fundo
para chegar lá, que iria me afogar antes de chegar à superfície,
quando atravessei.
Bater no ar foi tão surpreendente para mim quanto bater na
água.
Mas desta vez meu corpo sabia o que fazer. No segundo em que
toquei o ar, meus pulmões o absorveram, ofegando e tossindo em
ânsias desesperadas.
Antes de me orientar, ouvi a voz de Duncan em algum lugar
próximo à superfície da água.
— Eu te peguei — disse ele.
Senti seu braço envolver minha caixa torácica.
Duncan disse:
— Deite-se. Fique quieta. Continue respirando.
Ele nos inclinou para trás, então estávamos flutuando com o
rosto para cima. Então ele começou a nos chutar de volta para a
praia.
Tudo o que pude fazer foi olhar para as estrelas e respirar como
um louco até que ele nos trouxesse de volta para a praia.
Eu tinha água salgada nos olhos – na boca – ardendo na parte
de trás do nariz.
Na parte rasa, ele me deixou ajoelhada, respirando com
dificuldade, em parte só porque eu podia, joelhos cavando na areia
molhada e ondas rolando sobre minhas coxas, enquanto ele se
levantava da água e se afastava. Quando minha respiração voltou
ao normal, olhei para cima e o observei.
É difícil descrever o que vi, mas digamos que a versão de
Duncan, que me encontrou na água e nos chutou de volta à costa,
foi paciente e calmo. Quase pacífico, de certa forma.
Mas a versão de Duncan agora andando pela costa enquanto as
ondas batiam contra suas panturrilhas?
Aquele cara estava chateado.
— Você está sangrando? — ele gritou comigo a três metros de
distância.
Parecia mais um insulto do que uma pergunta, mas mesmo
assim respondi.
— Não.
— Você está ferido de alguma forma?
Havia muitas maneiras de responder a essa pergunta, mas eu
fui com:
— Não.
Então, como uma espécie de grand finale de seu
questionamento:
— Você está brincando comigo?
Com isso, eu me levantei. Minhas pernas tremiam – assim como
quase todo o resto –, mas consegui mesmo assim. Nós nos
encaramos na beira. Duncan estava curvado, como se estivesse
contraindo todos os músculos abdominais. Suas mãos pareciam
cerradas, assim como seus braços e ombros. Ele não estava
olhando diretamente para mim, apenas perto de mim, como se
estivesse tão bravo que nem pudesse ver.
— Que — ele perguntou, sua voz firme com raiva — diabos você
estava pensando?
Não parecia uma pergunta que precisava de uma resposta.
— Que diabos — ele disse novamente, desta vez mais alto —
você poderia estar pensando?
— Não foi minha melhor decisão — eu disse.
Mas Duncan agora estava contando a si mesmo a história do
que acabara de acontecer, cada palavra incrédula, como se cada
momento do que eu acabara de fazer fosse impossível.
— Você saiu correndo pelo píer e então se jogou no final dele.
— Eu me arrependo dessa última parte — eu disse.
Ele não estava ouvindo.
— Foi idiotice? Foi uma tentativa de suicídio? Você está usando
algum tipo de droga que eu não conheço?
Todas essas eram perguntas retóricas.
— Eu não posso nem acreditar no que acabou de acontecer. Eu
não posso nem acreditar em você acabou de fazer isso. Isso é um
pesadelo? Estou preso em um pesadelo agora? Isso foi, sem
dúvida, com apenas uma exceção horrível, a coisa mais estúpida
que já vi alguém fazer.
Eu não discuti.
— Você poderia ter morrido. Você deveria ter morrido! Você tem
alguma ideia de quantas estacas estão afundadas naquela água?
Quantos destroços flutuam sob esses pilares? Toras e tábuas de
construção e porcaria de plataformas offshore? Podia ter arame
farpado! Poderia ter havido esgrima! Pessoas morrem pulando
deste píer!
— Pessoas pulam desse píer o tempo todo!
— Pessoas loucas! E mesmo que não tenha morrido com o
impacto, tem ideia de como estamos perto do porto? Há correntes o
tempo todo aqui!
Levantei um pouco a mão.
— Eu não estava pensando em correntezas… ok? Eu não
estava pensando em nada.
— Você com certeza não estava! — ele gritou. — Você poderia
ter sido arrastada para o mar em minutos, à noite, até agora eu
nunca seria capaz de encontrá-la!
Admito que ele estava certo sobre a maior parte dessas coisas –
e talvez isso seja apenas uma peculiaridade da minha
personalidade –, mas só consigo ouvir gritos por um certo tempo,
mesmo por alguém que está certo, antes de começar a gritar de
volta.
— Eu não estava pensando, ok? — Eu gritei de volta. — Eu
estava tentando ser corajosa. Eu estava tentando ajudar!
Eu me aproximei dele na água. Agora ele estava me observando
– a primeira vez que vi seus olhos desde que chegamos à praia.
— Não ajude! — ele gritou. — Eu não quero que você ajude!
Mas eu corri atrás dele.
— Alguém tem que fazer isso!
Eu tinha esquecido como era bom gritar de verdade. Quão
satisfatório poderia ser deixar-se queimar de raiva como uma
chama. Duncan se virou, mas eu fui atrás dele e dei a volta para
ficar na cara dele.
— Você está vivendo uma espécie de meia-vida e está
arrastando uma escola inteira cheia de crianças aterrorizadas com
você. Você disse que eu não sabia o que era medo, e pensei que
talvez você estivesse certo, mas vou lhe dizer uma coisa! Quase me
matei naquele momento, mas ainda acho que estava certo o tempo
todo. Você precisa acordar e viver.
Ele estava respirando com dificuldade.
— Toda manhã eu me levanto e vou para a escola. Eu tomo
banho e coloco vitamina E nas minhas cicatrizes e faço a barba e
me visto e engraxo meus malditos sapatos e entro naquele lugar e
passo o dia todo todos os dias cuidando daquelas crianças e
mantendo-as seguras e não se enrolando em posição fetal no chão
do banheiro masculino. Eu mantenho sob controle! Cumpro todas as
minhas responsabilidades! Como diabos isso não é suficiente?
Ele se virou, como se fosse algum tipo de pergunta retórica
vencedora de argumentos.
Mas não era retórica. Eu corri atrás dele.
— Porque não é! — Ótimo ponto. — Eu quero que você esteja
vivo. Eu quero que você sinta alguma coisa!
— Eu sinto algo! — ele gritou. — Eu sinto tudo!
Mas então, foi como se na sequência dessa declaração, ele de
repente pudesse ver claramente. Foi como se, pela primeira vez
desde que batemos na água, ele realmente me visse ali, a apenas
alguns metros dele, encharcada, tremendo e desafiadora na água,
meu cabelo em mechas molhadas contra meu pescoço.
Eu ainda estava olhando para ele com olhos ardentes e
hipócritas.
Mas o que quer que ele tenha visto naquele momento pareceu
quebrar sua raiva. Ele suspirou – quase murcho – e sua postura
mudou, e então ele começou a chapinhar de volta para mim através
das ondas.
— Eu sinto coisas — ele disse, sua voz rouca e mais baixa
agora, um pouco ofegante de tanto gritar, seu olhar inabalável no
meu.
Ele continuou empurrando em minha direção. Seu ritmo não
diminuiu – apenas passo após passo na água em suas roupas
encharcadas como se ele não parasse.
Eu mantive minha posição.
A antecipação era tão física como se fosse uma rajada de vento
– impossivelmente rápida, mas em câmera lenta ao mesmo tempo,
e eu fiquei absolutamente imóvel – meu olhar fixo no dele, todo o
meu corpo alerta e cantarolando, vendo-o claramente agora,
também, pelo que parecia ser a primeira vez.
Ele sentia coisas.
Ele tinha acabado de gritar isso para mim, mas eu podia sentir
agora.
Ele estava com raiva, dolorido, perdido e solitário. Exatamente
como o resto de nós.
Além disso, ele estava totalmente rasgado, com seu oxford
branco encharcado agarrando-se ao seu torso.
Então foi isso.
Eu nunca senti uma antecipação tão intensa, querendo que ele
se apresse e chegue até mim, esperando como o inferno que eu o
estivesse lendo direito, desejando tanto estar mais perto dele.
Sentindo que finalmente o entendi.
Duncan chegou onde eu estava e então parou.
Olhamos um para o outro, molhados e sem fôlego, até que eu só
consegui pensar em uma coisa a fazer.
Eu dei os passos finais que nos separavam, e estendi a mão,
juntei minhas duas mãos atrás do pescoço dele, e então trouxe sua
boca para a minha. Nesse mesmo movimento suave, quando
nossos corpos colidiram, ele apertou os braços em volta da minha
cintura e me puxou para perto.
Eu poderia escrever um livro sobre aquele momento da minha
vida: a pressão e o atrito das roupas molhadas contra a pele. A falta
de ar do esforço e da surpresa. O puxão das ondas em minhas
panturrilhas. A sensação de seu peito contra o meu – frio com água
salgada e quente com o calor do corpo ao mesmo tempo. A
sensação de segurança que senti dentro de seus braços. A
voracidade de suas mãos enquanto ele as percorria para cima e
para baixo, quase como se nunca fossem encontrar uma maneira de
me tocar que fosse suficiente.
O alívio de finalmente estar conectado.
Os únicos sons eram o barulho das ondas, da respiração e do
ar. Apenas movimento, toque e proximidade.
Nós nos beijamos na água por um longo tempo.
Embora eu não tenha certeza se “beijamos” é a palavra certa.
“Devoramos” pode funcionar melhor.
Ou “consumimos”.
Ou talvez precisemos inventar uma nova palavra.
Estendi a mão, me aproximei mais e o beijei com mais força. O
que quer que ele estivesse morrendo de fome, eu queria que ele
tivesse. Porque eu também estava morrendo de fome.
Eu rocei minha língua contra a dele. Tracei meus dedos no
veludo da parte de trás de seu cabelo. Eu o respirei. Eu me
pressionei o mais perto dele que pude. Eu podia sentir seu coração
batendo em suas costelas, e me perguntei se ele podia sentir o meu
também.
Eu estava com frio, mas não me importava. Eu estava pegajoso
com água do mar, mas estava bem. Alguém assobiou para nós lá de
cima no quebra-mar, mas nós ignoramos.
O que quer que ele estivesse fazendo, eu fazia de volta. Eu o
agarrei tão forte quanto ele estava me segurando. Estávamos com
frio e ainda pingando água, mas sua boca estava quente, e seu
peito e o aperto do jeito que ele estava me segurando pareciam
estabilizar meu tremor. Ele era como a única coisa sólida no mundo.
Eu queria me fundir a ele.
Eu queria nunca, nunca parar.
E assim que tive essa sensação, ele parou – e se afastou.
— A primeira vez que te vi, sabia que você seria um problema
para mim.
— Você soube?
— Sim. Eu vi você batendo naquele armário quebrado e pensei:
'Oh, merda. Essa garota vai arruinar minha vida.'
Eu o puxei para mais perto.
— As primeiras palavras que você pensou quando me viu foram:
'Oh, merda'?
— Sim.
— O que você pensa quando me vê agora?
— Exatamente a mesma coisa.
Eu dei a ele um pequeno sorriso.
— Nunca mais faça isso de novo, ok? — ele disse.
— Eu não vou. Juro.
— Você me assustou para caralho.
— Desculpe.
— Eu sinto coisas, ok? Você tem que acreditar em mim.
— Ok.
— Eu sinto tudo.
— Eu acredito em você.
E eu tive um último pensamento antes de ele me beijar
novamente. O mundo continua agarrado a essa ideia de que o amor
é para os crédulos. Mas nada poderia estar mais errado. O amor é
só para os corajosos.
Tina levou Clay para casa depois disso, com planos de dormir por
uma semana.
A polícia partiu também – exceto por um carro, esperando que
Duncan voltasse e embrulhasse a papelada.
Antes de sair, ele veio me encontrar.
Eu estava parada sob o píer, parando para olhar a água,
esperando que meu cérebro registrasse tudo o que havia
acontecido.
Ele caminhou até mim com as mãos nos bolsos.
Ele engoliu em seco quando me viu.
— Você deveria ir para casa, Duncan. Ir para a cama.
— Sim — ele concordou. — Noite louca.
— Sim.
— Eu só... tinha uma pergunta.
— O que?
— O que está acontecendo?
— Eu não sei — eu disse. — O de sempre. Encontramos uma
criança desaparecida. Mandamos o presidente do conselho para a
cadeia. Resgatamos uma baleia. Noite bastante comum.
— Mas você está... com raiva de mim?
— Não! — Eu disse. — Não. — Então acrescentei: — Está tudo
bem. Entendo. Eu realmente entendo.
Não fazia sentido falar sobre isso agora. Era o que era.
— O que está bem?
Eu tentei manter minha voz leve, como se tudo fosse vagamente
divertido.
— Você. Você sabe. Saindo. Mais cedo. Entendo. Quer dizer, eu
te avisei. Não pode dizer que não avisei. Mas você estava tão
ocupado discutindo comigo que meio que perdeu a chance de
escapar. Isso é com você.
Mas Duncan estava realmente carrancudo agora.
— Do que você está falando?
— Mais cedo — eu disse, gesticulando de volta para a cidade
—, eu tive uma convulsão, e você finalmente viu sobre o que eu
estava te alertando, você surtou e saiu correndo. E está tudo bem.
Já disse.
Duncan balançou a cabeça.
— É isso que você acha que aconteceu?
Dei de ombros.
— Bem, eu acordei sozinha na minha cama no breu em um lugar
vazio, então... sim.
— Como você acha que chegou à sua cama?
Então ele me arrastou até lá antes de sair.
— Obrigada.
Eu realmente estava muito cansada para isso. Meu corpo inteiro
estava trêmulo. Senti um aperto na garganta como se estivesse
prestes a chorar e estragar meu disfarce.
— Sam — disse Duncan. — Eu não fui embora. Eu fiquei.
— A parte de eu acordar sozinha contradiz você.
Ele balançou a cabeça frustrado e disse:
— Você teve uma convulsão, e foi um pouco assustador
testemunhar apenas porque era algo novo, e não parece a coisa
mais relaxante que uma pessoa poderia fazer, e é difícil assistir
alguém que você ama passar por algo que parece uma agonia. Mas
eu não surtei e não te deixei. Que tipo de idiota você pensa que eu
sou? Eu fiquei, claro que fiquei. Eu cuidei de você e fiz tudo o que
você disse para fazer. E quando você acordou depois, eu a ajudei a
ir para a cama, e a aconcheguei, e me aconcheguei ao seu lado na
cama. E eu ainda estaria lá agora se não tivesse recebido uma
ligação à meia-noite informando que Clay havia desaparecido.
— Você só saiu por causa de Clay?
— Só saí por causa do Clay.
Eu tentei assimilar isso.
— Eu disse a você que estava saindo — Duncan continuou. —
Mas você estava tão fora disso. E você disse que as convulsões
dificultam a lembrança das coisas. Então é por isso que pedi à Alice,
Babette mandou uma mensagem para ela porque eu estava em
uma reunião com a polícia.
Deixei todas essas peças se encaixarem na minha cabeça.
— Você não... foi embora?
Ele se aproximou um pouco mais.
— Você ficou? — Perguntei. — Voluntariamente?
Ele assentiu e se aproximou.
— E agora estou de volta. Tentando continuar sem ir embora.
Eu não conseguia olhar para ele.
De alguma forma, saber que ele não tinha ido embora parecia
doer mais do que pensar que sim.
Parece loucura, eu sei.
Mas era como se eu tivesse passado o dia inteiro apenas
tentando manter meu coração unido e não suportava a ideia de abri-
lo novamente.
— Eu não sou um cara que foge — disse Duncan. — Eu sou um
homem melhor do que isso.
Ele era. Ele era, com certeza. E de repente meus olhos tinham
lágrimas neles.
— Você é um homem melhor do que isso — eu disse.
Ele se inclinou mais perto, como se fosse me beijar, mas eu
recuei.
Eu balancei minha cabeça.
Duncan franziu a testa.
— Eu não posso — eu disse. — Eu não posso te pedir para
fazer isso. Não é justo com você. Você já tem o suficiente para lidar
com isso. Não posso pedir que você seja meu enfermeiro.
— Ei. — Ele estendeu a mão para tentar pegar minha mão. —
Sam–
Mas eu me afastei.
— Não — eu disse.
Era demais. O que eu sentia por ele era demais. Eu tinha medo
de me importar tanto com alguém. Eu sabia agora, depois de
acordar sozinha, como eu era vulnerável. E eu simplesmente não
aguentei.
Afastei-me dele e comecei a correr pela areia até os degraus do
quebra-mar.
Subi sem olhar para trás.
Mas eu não precisava.
Desta vez, ele não me perseguiu.
Eu saí correndo.
Eu voltei para onde tínhamos começado em segundos, parecia.
Ainda havia alguns carros de polícia estacionados no bulevar.
Talvez nem todos tivessem ido.
Cheguei à beirada e olhei para os degraus em direção à praia,
respirando com dificuldade, na esperança de encontrá-lo.
Mas a praia estava vazia, como se nenhum de nós jamais
tivesse estado lá.
Eu me virei, ainda respirando. Onde ele estava? De volta à
estação? De volta à escola? Eu não fazia ideia. Eu me virei em uma
espécie de varredura panorâmica, esperando localizá-lo em algum
lugar.
Mas foi quando a porta do passageiro de um dos carros-patrulha
se abriu e Duncan saiu.
Corri até ele e parei antes de me jogar em seus braços.
— Desculpe! — Eu disse.
Duncan apenas olhou, como se estivesse tentando me entender.
— Você ficou — eu disse — e isso realmente importa. Você
ficou, e eu sou muito grata a você.
Ele balançou sua cabeça.
— Claro que fiquei.
Então, sem saber se era uma afirmação ou uma pergunta, eu
disse:
— A convulsão não... mudou o que você sentia por mim.
Ele balançou a cabeça ainda mais.
— Claro que não.
Desta vez, as palavras – o fato delas e o que elas significavam –
me atingiram de maneira diferente. Desta vez, não as desviei. Desta
vez, eu as deixei entrar.
Elas giravam em meu peito de uma forma que quase me deixava
tonta.
Fechei os olhos.
Duncan deu um passo mais perto.
— Na verdade, para ser sincero, mudou o que sinto por você.
Abri os olhos para encontrar os dele.
E então ele disse isso quase com tristeza.
— Eu acho que isso me fez te amar mais.
— Você me ama — eu disse.
Ele assentiu.
— Espero que esteja tudo bem.
E então estendi a mão em volta de seu pescoço, puxei-o para
mim e o beijei.
Os policiais, ainda esperando para levar Duncan de volta aonde
quer que estivessem indo, todos buzinaram.
Quando Duncan se afastou, ele olhou intensamente nos meus
olhos.
— Então está tudo bem?
E então, porque a alegria foge, e nada dura, e mesmo o que se
ganha não se consegue guardar, não perdi mais tempo.
— Eu te amo, Duncan — eu disse. — Eu te amo há muito, muito
tempo. — Eu disse isso para ser corajosa. Eu disse para ser melhor.
Mas, mais do que tudo, eu disse isso porque era verdade.
E então Duncan se inclinou novamente, e eu me espreguicei, e
mesmo que os policiais estivessem esperando, nos permitimos um
beijo simples, fácil e perfeito.
Mas com certeza merecemos.
No meio do caminho, Duncan se separou, estendeu um dedo
para mim tipo, por um segundo, e então trotou para bater na janela
do passageiro do carro de polícia mais próximo. A janela baixou e
Duncan enfiou a cabeça para dentro.
Quando ele recuou, todos os carros da polícia se afastaram.
— O que você disse? — Perguntei.
Ele encolheu os ombros.
— Só perguntei se poderíamos terminar a papelada mais tarde.
E então ele me acompanhou de volta para minha casa e
dormimos juntos.
Na verdade, eu dormi.
Porque cara, oh, cara, estávamos cansados. E cara, oh, cara,
que inferno de dia-noite. Mas estava tudo bem. Melhor do que bem,
mesmo.
Foi, de fato, o melhor que qualquer um de nós esteve em muito
tempo.
epílogo
Página de título
Dedicatória
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Vinte e quatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora