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Todos os créditos aos autores e editoras.
Aviso de conteúdo
por thb

Este livro contém elementos de tropes como falta de comunicação,


insta love, colegas de trabalho e slow burn. Além disso, apresenta
gatilhos relacionados à menção da morte de um parente, abandono
parental, morte de personagens e luto, bem como a presença de um
personagem principal com epilepsia, menções a cirurgia e cenas do
pós-cirúrgico sob anestesia, e menção a um tiroteio escolar.
Recomendamos que os leitores estejam cientes desses elementos
antes de prosseguir com a leitura, a fim de garantir uma experiência
confortável e segura.
Para a minha editora, Jen Enderlin.
E para a minha agente, Helen Breitwieser.

Obrigada a ambas – muito mais do que alguma vez poderei dizer –


por acreditarem em mim.
um

Era eu que estava dançando com Max quando aconteceu.


Ninguém nunca se lembra quem era agora, mas foi eu.
Na verdade, quase tudo naquela noite foi eu. Max e Babette
tinham feito um cruzeiro de última hora, durando duas semanas e
seria uma segunda lua de mel ao redor da bota da Itália que eles
encontraram por uma pechincha – e a data de retorno acontecia
dois dias antes da festa de sessenta anos de Max – bem no meio do
verão.
Babette ficou preocupada porque ela não poderia reservar uma
viagem com data de término tão próxima da festa, mas eu a
interrompi.
— Eu cuido. Vou preparar tudo.
— Não tenho certeza se você percebe a grande tarefa que é
uma festa como esta — disse Babette. — Temos toda a escola
vindo. Trezentas pessoas, talvez mais. É um trabalho enorme.
— Acho que posso lidar com isso.
— Mas é o seu verão — disse Babette. — Eu quero que você
fique despreocupada.
— E eu quero que você — eu disse, apontando para ela —
tenha uma segunda lua de mel baratinha na Itália.
Eu não tive que pegar nos seus pés. Eles foram.
E fiquei feliz em assumir o comando da festa. Max e Babette não
eram tecnicamente meus pais, mas eram a coisa mais próxima que
eu tinha. Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos, e digamos
que meu pai não era meu parente mais próximo.
Na verdade... tecnicamente ele era meu parente mais próximo.
Mas não éramos próximos.
Além disso, eu não tinha irmãos – apenas alguns primos
espalhados, mas nenhuma família por perto. Deus, agora que estou
colocando as coisas assim, tenho que acrescentar: nenhum
namorado também. Não tenho há um bom tempo. Nem mesmo
animais de estimação.
Eu tinha amigos, no entanto. Para que eu não pareça muito
triste. Especialmente minha amiga Alice. Alice, com um metro e
oitenta de altura, amigável e implacavelmente positiva, que era
especialista em matemática e usava uma camiseta com uma piada
matemática todos os dias para trabalhar.
No primeiro dia em que a conheci, sua camisa dizia:
ESQUADRÃO NERD.
— Bela camiseta — eu disse.
Ela disse:
— Normalmente, eu uso piadas de matemática.
— Existe piada de matemática? — Perguntei.
— Espere e veja.
Resumindo: Sim. Existem mais piadas matemáticas no mundo
do que você pode imaginar. E Alice tinha uma camiseta para todas
elas. A maioria das quais eu não entendia.
Quase não tínhamos os mesmos interesses, Alice e eu, mas
isso não importava. Ela era uma pessoa alta, esportiva e
matemática, e eu era o oposto de todas essas coisas. Eu era uma
pessoa da manhã e ela era uma coruja da noite. Ela usava
exatamente a mesma versão de Levi's e camisetas para trabalhar
todos os dias, e todos os dias eu montava uma mistura totalmente
diferente de roupas. Ela lia romances de espionagem –
exclusivamente – e eu lia qualquer coisa em que pusesse as mãos.
Ela jogava em um time interno de vôlei de praia, pelo amor de Deus.
Mas éramos grandes amigas.
Tive a sorte de ser bibliotecária em uma escola primária muito
especial e lendária na ilha de Galveston, chamada Escola Kempner
– e não apenas adorava meu trabalho, as crianças e os outros
professores, como eu também morava na garagem de Babette e
Max Kempner. No entanto, “apartamento garagem” não o capta
bem. O termo real era “casa carruagem” porque já foi o apartamento
acima dos estábulos.
Na época em que cavalos e charretes eram uma coisa.
Viver com Max e Babette era como viver com o rei e a rainha.
Eles fundaram a Kempner e a administraram juntos todos esses
anos, e eram simplesmente... amados. A mansão histórica deles –
isso mesmo: os imóveis são super baratos em Galveston – também
ficava a apenas alguns quarteirões da escola, então os professores
estavam sempre parando na varanda, ajudando Max em sua
carpintaria. Max e Babette eram exatamente o tipo de pessoa que
as outras pessoas gostariam de ter por perto.
A questão é que fiquei feliz em fazer algo maravilhoso para eles.
Eles faziam coisas maravilhosas para mim o tempo todo.
Na verdade, quanto mais eu pensava nisso, mais parecia uma
rara oportunidade de realmente surpreendê-los com a maior festa
de todos os tempos. Comecei um painel no Pinterest e folheei
revistas em busca de ideias de decoração. Fiquei tão empolgada
que até liguei para a filha deles, Tina, para ver se ela gostaria de
fazer o projeto juntas.
Ironicamente, a filha deles, Tina, era uma das raras pessoas na
cidade que não ficava na casa de Max e Babette o tempo todo.
Então eu não a conhecia muito bem.
Além disso: ela não gostava de mim.
Suspeitei que ela pensava que eu estava tentando tomar o lugar
dela.
Justo. Ela não estava totalmente errada.
— Por que você está decorando a festa do meu pai? — ela
disse, quando eu liguei, sua voz tensa.
— Você sabe — eu disse — foi o... timing — É uma coisa tão
desorientadora quando as pessoas abertamente não gostam de
você. Isso me deixava um pouco sem fala perto dela. — Eles estão
indo naquela viagem…
Esperei por um ruído de reconhecimento.
— Para a Itália…
Nada.
— Então eu apenas me ofereci para fazer a festa para eles.
— Eles deveriam ter me ligado — disse ela.
Eles não ligaram para ela porque sabiam que ela não teria
tempo. Ela tinha um daqueles maridos que a mantinham muito
ocupada.
— Eles queriam — eu menti. — Eu apenas pulei e ofereci tão
rápido… eles nunca tiveram a chance.
— Que incomum — disse ela.
— Mas é por isso que estou ligando. Achei que talvez
pudéssemos fazer isso juntas.
Eu podia senti-la pesando suas opções. Planejar a festa de
aniversário de sessenta anos de seu próprio pai era meio que seu
trabalho por direito... mas agora, se ela dissesse sim, não teria
como me evitar.
— Eu vou passar — disse ela.
E assim o trabalho era meu.
Alice acabou me ajudando, porque Alice era o tipo de pessoa
que sempre ficava mais feliz quando estava ajudando. Babette
estava pensando em serpentinas e bolo, mas eu não podia parar
por aí. Eu queria fazer algo grande. Este era Max! Diretor, fundador,
lenda viva – e humano genuinamente de bom coração. Toda a sua
filosofia era: nunca perca a chance de comemorar. Ele celebrava
todo mundo o tempo todo.
Droga, era hora de celebrar o próprio homem.
Eu queria fazer algo épico. Mágico. Inesquecível.
Mas Babette havia deixado um envelope na mesa da cozinha
com a etiqueta “Para artigos para festas” e, quando o abri, continha
um orçamento de sessenta e sete dólares. Muitos deles eram notas
de um.
Babette era bem mão de vaca.
Foi então que Alice sugeriu que ligássemos para o pessoal da
manutenção para ver se podíamos pegar emprestados os pisca-
piscas da escola no depósito. Quando contei a eles o que
estávamos fazendo, eles disseram:
— Inferno, sim — e se ofereceram para pendurar tudo para mim.
— Você quer as guirlandas de Natal também? — eles perguntaram.
— Apenas as luzes, obrigada.
Viu só? Todo mundo adorava Max.
Quanto mais as pessoas descobriam o que estávamos fazendo,
mais todos queriam ajudar. Parecia que metade dos adultos desta
cidade tinha sido aluno de Max, ou o tinham como treinador de
beisebol, ou se voluntariado com ele para limpezas na praia.
Comecei a receber mensagens no Facebook e mensagens de
quem não reconhecia: a florista da Winnie Street queria doar buquês
para as mesas, a dona da loja de tecidos na Sealy Avenue queria
oferecer alguns pedaços de tule para pendurar na sala, e uma
banda cover local dos anos 1970 queria tocar de graça. Recebi
ofertas de comida de graça, biscoitos de graça, bebidas de graça e
balões de graça. Recebi mensagens de um artista de rua que queria
fazer um show comendo fogo, um escultor de gelo que queria
esculpir um busto de Max para a mesa do bufê e um fotógrafo de
casamento chique que se ofereceu para capturar a noite inteira –
sem custo.
Eu disse sim a todos eles.
E então recebi a melhor mensagem de todas. Um telefonema de
um cara me oferecendo o Garten Verein.
Não estou dizendo que Max e Babette não ficariam felizes com o
refeitório da escola – Max e Babette eram muito bons em serem
felizes em qualquer lugar –, mas o Garten Verein era um dos
prédios mais encantadores da cidade. Um pavilhão de dança
octogonal vitoriano construído em 1880, agora pintado de verde
pálido com pão de mel branco. Hoje em dia era principalmente um
local para casamentos e eventos chiques – um local não barato.
Mas vários ex-alunos de Max eram donos do prédio e o ofereciam
de graça.
— Classe Kempner de 94 pela vitória! — o cara no telefone
disse. Em seguida, acrescentou: — Nunca perca a chance de
comemorar.
— Falou como um verdadeiro fã de Max — eu disse.
— Dê a ele minhas felicitações, sim? — disse o Garten Verein.
Max e Babette estavam muito atrasados quando chegaram em
casa para ir à escola, então a mudança de local os pegou
completamente de surpresa. Naquela noite, eu os encontrei na
varanda da frente – Babette em seus pequenos óculos redondos e
corte pixie grisalho, abrindo mão de seu macacão respingado de
tinta para um vestido de algodão com bordado mexicano e Max
parecendo impossivelmente elegante em um terno listrado e uma
gravata borboleta rosa.
Eles se deram as mãos enquanto caminhávamos e me peguei
pensando: Meta de relacionamentos.
Em vez de caminhar dois quarteirões para o oeste, em direção à
escola, eu os conduzi para o norte.
— Você sabe que estamos indo na direção errada, certo? —
Max sussurrou para mim.
— Você não sabe de tudo? — Eu provoquei, protelando.
— Eu sei onde fica a droga da minha escola — Max disse, mas
seus olhos estavam sorrindo.
— Eu acho — eu disse então — que se você ficar comigo, você
ficará feliz por ter feito isso.
E foi aí que o Garten Verein apareceu.
Um arco de balões balançava sobre o portão de entrada de
ferro. Alice – trompetista amadora e patrocinadora da banda de jazz
da quinta série – já estava lá, dentro do jardim, e assim que ela nos
viu, ela deu a eles o sinal de partida para começar a grasnar uma
versão de “Parabéns Para Você”. As crianças enchiam o parque e
os pais seguravam taças de champanhe e, assim que Max chegou,
todos aplaudiram.
Enquanto Max e Babette observavam, ela se virou para mim.
— O que você fez?
— Não ultrapassamos o orçamento — eu disse. — Muito.
Entramos no jardim e a filha deles, Tina, chegou logo atrás de
nós – parecendo esbelta e arrumada, como sempre, com seu filho
que estava na terceira série, Clay, segurando sua mão. Babette e
Max puxaram os dois para um abraço, e então Max disse:
— Onde está Kent Buckley?
O marido de Tina era o tipo de cara que todo mundo sempre
chamava pelo nome e sobrenome. Ele nunca foi apenas “Kent”. Ele
sempre foi “Kent Buckley”. Como se tudo fosse uma palavra só.
Tina se virou e esticou o pescoço para procurar o marido, e eu
levei um segundo para admirar como seu cabelo escuro ficava
elegante naquele coque baixo. Elegante, mas má. Essa era a Tina.
— Ali — ela disse, apontando. — Chamada de conferência.
Lá estava ele, trinta metros atrás, conduzindo algum tipo de
reunião no alto-falante Bluetooth preso ao ouvido – andando de um
lado para o outro na calçada, gesticulando com os braços e
claramente não muito satisfeito.
Todos nós o observamos por um segundo, e me ocorreu que ele
provavelmente pensou que parecia um figurão. Ele parecia meio
orgulhoso de como estava se comportando, como se estivéssemos
impressionados por ele ter autoridade para gritar com pessoas.
Mesmo assim, na verdade, especialmente com aquele pequeno
alto-falante em seu ouvido, ele parecia estar gritando consigo
mesmo.
Uma nota rápida sobre Kent e Tina Buckley. Você sabe como
sempre há aqueles casais em que ninguém consegue descobrir o
que a esposa está fazendo com o marido?
Eles eram esse casal.
A maior parte da cidade gostava de Tina – ou pelo menos
estendia sua afeição por seus pais a ela – e era bastante comum as
pessoas se perguntarem em voz alta o que uma garota incrível
como aquela estava fazendo com um cara idiota como ele. Eu nem
tenho certeza se era algo específico que as pessoas pudessem
identificar. Ele só tinha um jeito tenso, oleoso e esnobe que as
pessoas na ilha simplesmente não apreciavam.
Claro, Tina nunca foi “uma ótima garota” para mim.
Mesmo agora, contemplando a festa que eu organizei com tanto
amor, ela nem sequer me reconheceu – apenas passou os olhos,
como se eu nem estivesse lá.
— Vamos entrar — ela disse para sua mãe. — Eu preciso de
uma bebida.
— Quanto tempo você pode ficar? — Babette perguntou a ela
em um sussurro, enquanto se dirigiam para o prédio.
Tina enrijeceu, como se sua mãe tivesse acabado de criticá-la.
— Cerca de duas horas. Ele tem uma videoconferência às oito.
— Podemos levá-la para casa, se você quiser ficar até mais
tarde — Max disse então.
Tina parecia querer ficar. Mas então ela olhou na direção de
Kent Buckley e balançou a cabeça.
— Precisamos voltar.
Todo mundo estava definindo suas palavras com cuidado e
monitorando suas vozes para manter tudo hiper agradável, mas
havia algumas minas emocionais nessa conversa, com certeza.
Claro, a maior mina emocional era a própria festa. Quando
entramos e Max e Babette viram as luzes cintilantes, a banda dos
anos 1970 em suas calças boca de sino, as decorações e as
montanhas de comida, Babette se virou para mim com um suspiro
de alegria e disse:
— Sam! É magnífico!
Ao fundo, vi o rosto de Tina escurecer.
— Não fui só eu — eu disse. E então simplesmente saiu: — Tina
ajudou. Fizemos isso juntas.
Eu teria que me desculpar com Alice mais tarde. Eu entrei em
pânico.
Babette e Max se viraram para Tina em busca de confirmação, e
ela deu a eles um sorriso tão rígido quanto o de uma boneca Barbie.
— E, realmente, toda a cidade é responsável — eu continuei,
tentando superar o momento. — Quando se espalhou a notícia de
que estávamos planejando sua festa de aniversário de sessenta
anos, todos quiseram ajudar. Ficamos inundadas, não foi, Tina?
O sorriso de Tina ficou mais rígido quando seus pais se viraram
para ela.
— Fomos inundadas — ela confirmou.
Foi quando Max estendeu seus longos braços e nos puxou para
um abraço de urso.
— Vocês duas são as melhores filhas que um cara poderia ter.
Ele estava brincando, é claro, mas Tina enrijeceu, então rompeu
o abraço.
— Ela não é sua filha.
O sorriso de Max era relaxado.
— Bem, não. Isso é verdade. Mas estamos pensando em adotá-
la. — Ele piscou para mim.
— Ela não precisa ser adotada — disse Tina, toda irritada. — Ela
é uma mulher adulta.
— Ele está brincando — eu disse.
— Não me diga o que ele está fazendo.
Mas nada iria acabar com o bom humor de Max. Ele já estava
girando em direção a Babette, passando o braço em volta da cintura
dela e puxando-a para a pista de dança.
— Sua mãe e eu precisamos mostrar a esses malandros como
se faz — ele respondeu enquanto caminhava. Então ele girou para
apontar para Tina. — Você é a próxima, senhorita! Tenho que te
agarrar antes que vire uma abóbora.
Tina e eu ficamos a uma distância hostil enquanto
observávamos seus pais se lançarem em um conjunto muito
competente de movimentos de dança. Avistei Alice do outro lado do
caminho e desejei que ela viesse ao meu lado para algum apoio
emocional, mas ela foi até a mesa de comida, em vez disso.
A roupa de festa de Alice era jeans e uma camiseta de
matemática?
Era.
A camisa dizia: POR QUE 6 TEM MEDO DE 7? E então, no
verso: PORQUE 7 8 91.
Eu estava prestes a me juntar a ela quando Tina disse:
— Você não precisava mentir para eles.
Dei de ombros.
— Eu estava tentando ser legal.
— Eu não preciso que você seja legal.
Dei de ombros novamente.
— Não posso evitar.
Confissão: eu queria que a Tina gostasse de mim?
Eu absolutamente queria.
Eu adoraria fazer parte da família deles – uma parte real dela?
Eu poderia. Mesmo que o máximo que a Tina pudesse ser fosse
minha irmã mais velha mal-intencionada, eu aceitaria. Minha própria
família era meio... inexistente.
Eu queria tanto pertencer a algum lugar.
Eu não estava tentando roubar a família dela. Mas eu teria dado
qualquer coisa para me juntar a ela.
Mas Tina não gostava muito dessa ideia, o que parecia um
pouco egoísta porque ela nunca estava por perto, de qualquer
maneira. Ela e Kent Buckley estavam sempre fora, dando festas de
caridade e levando uma vida social chique e sofisticada. Você
pensaria que ela poderia compartilhar um pouco.
Mas não.
Ela não os queria, particularmente, mas também não queria que
mais ninguém os tivesse.
Ela se ressentia da minha presença. Ela se ressentia da minha
existência. E ela estava determinada a mantê-la assim. Tudo em
que consegui pensar foi em continuar sendo legal com ela até o dia
em que ela finalmente desistiu, estendeu os braços para um abraço
derrotado e disse:
— Tudo bem. Desisto. Entre aqui.
Isso iria acontecer algum dia. Eu sabia que era. Talvez.
Mas provavelmente não esta noite.
Depois de uma longa pausa, eu disse algo que achei que ela
gostaria.
— Eles te adoram, você sabe. E Clay. Eles falam sobre vocês
dois o tempo todo.
Mas ela apenas se virou para mim com uma expressão que
oscilava entre a ofensa e a indignação.
— Você acabou de tentar me dizer como meus próprios pais se
sentem sobre mim?
— Hum…
— Você honestamente acredita que está qualificada para
comentar sobre meu relacionamento com meus próprios pais, as
pessoas que não apenas me trouxeram a este mundo, mas também
passaram trinta anos me criando?
— Eu…
— Há quanto tempo você os conhece?
— Quatro anos.
— Então você é um bibliotecária que se mudou para a garagem
deles há quatro anos...
— É um antigo estábulo — eu murmurei.
— ... e eu sou a filha biológica deles que os conhece desde
antes de eu nascer. Você está tentando competir comigo? Você
realmente acha que poderia chegar perto de vencer?
— Eu não estou tentando–
— Porque vou lhe dizer outra coisa: minha família não é o seu
lugar, não é da sua conta e não é o onde você pertence e nunca,
nunca será.
Jesus.
Ela sabia como acertar um soco.
Não eram apenas as palavras – era o tom de voz. Tinha uma
força física tão afiada que me senti cortada. Eu me virei quando
minha garganta ficou grossa e meus olhos arderam.
Pisquei e tentei me concentrar na pista de dança.
Um velho de gravata borboleta interrompeu Babette e Max.
Agora Max voltou sua atenção para Tina e balançou um laço
imaginário acima de sua cabeça antes de jogá-lo em direção a ela
para amarrá-la. Quando ele puxou a corda, ela caminhou em sua
direção e sorriu. Um sorriso de verdade. Um sorriso genuíno.
E eu, moradora da garagem da família, fui esquecida.
Adequadamente.
Era bom assim. Eu nunca dancei em público, de qualquer
maneira.
Naquela noite, Max dançou principalmente com Babette. Ficou
claro que os dois dançaram muito em suas quase quatro décadas
juntos. Eles sabiam os movimentos um do outro sem nem pensar.
Eu me senti hipnotizada, observando-os, e aposto que muitas outras
pessoas também.
Eles eram o tipo de casal que fazia você acreditar em casais.
Max laçou muitas pessoas naquela noite, e uma delas,
eventualmente, fui eu. Fiquei surpresa quando aconteceu, quase
como se tivesse esquecido que eu estava lá. Eu estava assistindo
do lado de fora por tanto tempo que comecei a pensar que estava
segura – que poderia apenas apreciar a vista e a música sem ter
que participar.
Errado.
Quando Max me puxou para a pista de dança, eu disse:
— Não danço em público.
Max franziu a testa.
— Por que não?
Eu balancei minha cabeça.
— Muita humilhação quando criança.
E isso era verdade. Eu adorava dançar. E eu era realmente
muito boa, provavelmente. Eu tinha um bom ritmo, pelo menos. Eu
dançava em minha própria casa constantemente – enquanto
limpava, lavava roupa, cozinhava e lavava a louça. Eu aumentaria a
música pop, dançaria e cortaria o trabalho penoso pela metade.
Dançar era alegre e elevava o humor, e absolutamente uma das
minhas coisas favoritas de fazer.
Mas só para mim.
Eu não conseguiria dançar se alguém estivesse olhando.
Quando alguém estava olhando, a agonia da minha autoconsciência
me fazia congelar. Eu não suportava ser olhado – especialmente no
meio da multidão – e então, em qualquer festa em que houvesse
dança, eu simplesmente congelava. Você teria pensado que eu
nunca tinha feito isso antes na minha vida.
E Max sabia o suficiente sobre mim para entender o porquê.
— É justo — ele disse, não pressionando, mas não me
liberando, também. — Você apenas fica aí, e eu farei o resto.
E então eu fiquei lá, rindo, enquanto a banda tocava um cover
dos Bee Gees e Max dançava ao meu redor em um círculo,
selvagem, pateta e bobo – e era perfeito, porque qualquer um que
estivesse olhando estava olhando para ele, e isso significava que
todos nós poderíamos relaxar e nos divertir.
A certa altura, Max fez um movimento de “Rei Tut” que foi tão
engraçado que coloquei minha mão sobre os olhos. Mas quando
tirei minha mão, encontrei Max de repente, inesperadamente, muito
quieto, pressionando os dedos na testa.
— Ei — eu disse, me aproximando. — Você está bem?
Max afastou a mão, como se estivesse prestes a levantar a
cabeça para responder. Mas então, em vez disso, seus joelhos se
dobraram e ele caiu no chão.

A música parou. A multidão engasgou. Ajoelhei-me ao lado de Max,


depois olhei para cima e chamei freneticamente por Babette.
Quando olhei para baixo novamente, os olhos de Max estavam
abertos.
Ele piscou algumas vezes, depois sorriu.
— Não se preocupe, Sam. Estou bem.
Babette chegou do outro lado e se ajoelhou ao lado dele.
— Max! — Babette disse.
— Ei, Babs — disse ele. — Eu já disse como você é linda?
— O que aconteceu? — ela disse.
— Só fiquei um pouco tonto por um segundo.
— Alguém pode pegar um pouco de água para Max? — Eu
gritei, e então me inclinei com Babette para ajudá-lo a se sentar.
O rosto de Babette estava tenso de preocupação.
Max percebeu.
— Estou bem, querida.
Mas Max não era o tipo de cara que desmaiava por aí. Ele era
um daqueles caras fortes como um boi. Tentei me lembrar se já o
tinha visto passar um dia doente.
Agora Max estava esfregando o ombro de Babette.
— Foi apenas o longo voo. Fiquei desidratado.
Assim que ele disse isso, um copo de água gelada chegou.
Max tomou um longo gole.
— Ah — ele disse. — Vê isso? Estou melhor.
Sua cor estava voltando.
Uma multidão se formou ao nosso redor. Alguém entregou a
Max outro copo de água, e eu olhei para cima para perceber que
pelo menos dez pessoas estavam prontas com líquido.
Ele bebeu a próxima xícara.
— Muito melhor — disse ele, sorrindo para nós, parecendo, na
verdade, muito melhor. Então ele ergueu os braços para acenar
para alguns dos homens. — Quem está me ajudando a ficar de pé?
— Talvez você devesse esperar pelos paramédicos, Max — um
dos caras disse.
— Você bateu no chão com muita força, chefe — outro cara
ofereceu, como resposta.
— Ah, inferno. Não preciso de paramédicos.
O corpo de bombeiros ficava a uns quatro quarteirões de
distância – e assim que ele disse isso, dois paramédicos entraram,
mochilas com equipamentos nos ombros.
— Você está festejando demais, Max? — um deles disse com
um grande sorriso quando viu Max sentado no chão.
— Kenny — disse Max, sorrindo de volta. — Você vai dizer a
esse bando de preocupados que estou bem?
Nesse momento, um homem empurrou a multidão.
— Posso ajudar? Eu sou um médico.
Muito gentilmente, Max disse:
— Você é psiquiatra, Phil.
Kenny balançou a cabeça.
— Se ele precisar falar sobre seus sentimentos, nós ligamos
para você.
Em seguida, Babette e eu recuamos, e os paramédicos se
ajoelharam ao redor de Max para fazer uma avaliação – Max
protestando o tempo todo.
— Só fiquei desidratado, só isso. Eu me sinto completamente
bem agora.
Outro médico, verificando seu pulso, olhou para Kenny e disse:
— Ele está taquicárdico. A pressão arterial está alta.
Mas Max apenas deu um tapa na cabeça dele.
— Claro que está, Josh. Eu dancei a noite toda.
Acontece que Max havia ensinado os dois paramédicos que
apareceram naquela noite e, embora fossem excessivamente
minuciosos, todo o resto parecia estar certo com Max. Eles queriam
levá-lo para o pronto-socorro naquele momento, mas Max
conseguiu dissuadi-los.
— Ninguém nunca me deu uma festa de aniversário de sessenta
anos antes — disse ele —, e eu realmente não quero perdê-la.
De alguma forma, depois que o ajudaram a se levantar, ele os
convenceu a fazer alguns lanches, e eles concordaram em dar-lhe
alguns minutos para beber um pouco de água e depois reavaliar.
Eles pegaram alguns biscoitos, mas enquanto comiam, eles o
observavam. Babette e eu também o observávamos.
Mas ele parecia totalmente de volta ao seu antigo eu. Rindo.
Brincando. Quando a banda finalmente recomeçou, era uma das
favoritas de Max: “Dancing Queen” do ABBA.
Assim que ouviu, Max estava procurando por Babette. Quando
ele chamou a atenção dela a cerca de três metros de distância, ele
apontou para ela, depois para si mesmo, depois para a pista de
dança.
— Não — respondeu Babette. — Você precisa descansar e se
hidratar!
— Esposa — Max rosnou. — Eles estão literalmente tocando
nossa música.
Babette se aproximou para repreendê-lo – e talvez flertar um
pouco com ele também.
— Comporte-se — disse ela.
— Estou bem — disse ele.
— Você acabou–
Mas antes que ela pudesse terminar, ele a puxou em seus
braços e pressionou a mão contra a parte inferior de suas costas.
Eu a vi ceder. Eu senti isso.
Eu também cedi. Afinal, não era um mosh pit. Eles estavam
apenas balançando, pelo amor de Deus. Ele já tinha bebido pelo
menos seis copos de água. Ele parecia bem. Deixe o homem ter
sua dança de aniversário. Não era como se estivessem fazendo o
verme.
Max girou Babette para fora, mas com cuidado.
Ele a mergulhou em seguida, mas com cuidado.
Ele estava bem. Ele estava bem. Ele estava absolutamente bem.
Mas então ele começou a tossir.
Tossir muito.
Tossindo tanto que soltou Babette, deu um passo para trás e se
curvou.
Em seguida, ele olhou para cima para encontrar os olhos de
Babette, e foi quando vimos que ele estava tossindo sangue –
vermelho brilhante, e muito – por toda a mão e pelo queixo,
encharcando a gravata borboleta e a camisa.
Ele tossiu de novo e então caiu no chão.
Os paramédicos voltaram para ele em menos de um segundo,
rasgando sua camisa, cortando a gravata-borboleta, entubando-o e
espremendo o ar com uma bolsa, realizando compressões de RCP.
eu realmente não sei o que mais estava acontecendo na sala então.
Mais tarde, ouvi dizer que Alice reuniu todas as crianças e as levou
para o jardim. Ouvi a enfermeira da escola cair de joelhos e
começar a rezar. A Sra. Kline, secretária de Max por trinta anos,
tentou impotente limpar um respingo de sangue com guardanapos
de coquetel.
De minha parte, tudo o que pude fazer foi olhar.
Babette estava de pé ao meu lado e, em algum momento,
nossas mãos se encontraram e acabamos nos apertando com tanta
força que eu ficaria com um hematoma por uma semana.
Os paramédicos trabalharam em Max pelo que pareceram um
milhão de anos, mas talvez apenas cinco minutos: intensamente,
curvados sobre ele, realizando os mesmos movimentos insistentes e
vigorosos sobre seu peito. Quando não conseguiram trazê-lo de
volta, ouvi um deles dizer:
— Precisamos transportá-lo. Isso não está funcionando.
Transportá-lo para o hospital, imaginei.
Eles pararam para verificar o ritmo, mas, quando se afastaram
um pouco, minha respiração ficou presa na garganta e Babette fez
um barulho meio ofegante, meio gritando.
Max, deitado no chão, estava azul.
— Oh, merda — Kenny disse. — É uma EP.
Olhei para Babette. O que era uma EP?
— Ai, meu Deus — disse Josh —, olhe aquela linha de
demarcação.
Com certeza, havia uma linha reta na caixa torácica de Max,
onde a cor de sua pele mudou de saudável e rosa para azul.
— Pegue a maca — Kenny gritou, mas quando ele fez isso sua
voz falhou.
Foi quando vi que havia lágrimas no rosto de Kenny.
Então olhei para Josh: no dele também.
E então eu simplesmente sabia exatamente o que eles sabiam.
Eles limpariam o rosto nas mangas e continuariam fazendo
compressões em Max, continuariam trabalhando nele e o
transportariam para o hospital, mas não adiantaria nada. Mesmo
sendo Max, nosso diretor, nosso herói, nossa lenda viva.
Todo o amor do mundo não seria suficiente para mantê-lo
conosco.
E por mais errado que fosse, eventualmente se tornaria a única
coisa verdadeira que restava: nunca o teríamos de volta.

A EP acabou por ser uma embolia pulmonar. Ele desenvolveu um


coágulo de sangue em algum momento durante o voo da Itália para
casa, aparentemente – e ele foi até seus pulmões e bloqueou uma
artéria. Trombose venosa profunda.
— Ele não andou durante o voo? — perguntei a Babette. —
Todo mundo não sabe que se deve fazer isso?
— Achei que sim — disse Babette, atordoada. — Mas acho que
não.
Não importava o que ele tinha ou não feito, é claro. Não haveria
recomeço. Sem chance de tentar novamente e acertar.
Era apenas o que era.
Mas o que era? Um acidente? Um acaso? Um conjunto ruim de
circunstâncias? Eu me vi pesquisando “trombose venosa profunda”
no Google no meio da noite, rolando e lendo na cama na luz azul do
meu laptop, tentando entender o que havia acontecido. Os sites que
encontrei listavam fatores de risco para adquiri-lo, e havia muitos,
incluindo cirurgia recente, pílulas anticoncepcionais, tabagismo,
câncer, insuficiência cardíaca – nenhum dos quais se aplicava a
Max. E então, o último da lista, em todos os sites que visitei, estava
o mais estranho possível: “ficar sentado por longos períodos de
tempo, como ao dirigir ou voar”. E foi isso. Esse era o fator de risco
de Max. Ele ficou parado por muito tempo. Ele havia se esquecido
de se levantar e andar durante o vôo – e aquela coisa totalmente
inócua o matou.
Eu não conseguia envolver minha cabeça em torno disso.
Uma vida inteira crescendo, aprendendo a engatinhar, depois a
titubear, depois a andar e depois a correr. Anos aprendendo boas
maneiras à mesa, tabuada de multiplicação, como se barbear e
como amarrar uma gravata borboleta. Esforçando-se e indo para a
faculdade e pós-graduação, casando-se com Babette e criando uma
filha – e um filho também, que se juntou aos fuzileiros navais e
depois morreu no Afeganistão – e foi assim que tudo terminou.
Ficar muito tempo sentado em um avião.
Não estava certo. Não era justo. Não era aceitável.
Mas não importava se eu aceitasse ou não.
As pessoas falam sobre choque o tempo todo, mas você não
sabe o quão físico é até entrar nele. Por dias depois que aconteceu,
meu peito parecia apertado, como se meus pulmões tivessem
encolhido e eu não pudesse colocar oxigênio suficiente neles. Eu
me encontrava ofegante, mesmo quando estava fazendo um bule de
café. Eu saía do sono profundo ofegante como se estivesse
sufocando. Isso me deixou em pânico, como se estivesse em
perigo, mesmo que a pessoa que estava em perigo não fosse eu.
Foi físico para Babette também.
Quando nós duas voltamos do hospital, ela se deitou no sofá da
sala e dormiu doze horas. Quando ela estava acordada, ela tinha
enxaquecas e náuseas. Mas ela quase nunca estava acordada.
Fechamos as cortinas da sala. Trouxe cobertores, uma garrafa de
água e uma caixa de lenços para a mesinha de centro. Peguei seu
travesseiro na cama lá em cima, um pijama macio e seu roupão de
chenille.
Ela dormiu lá embaixo naquele sofá por meses.
Ela me mandava buscar qualquer coisa que precisasse no
quarto deles.
Ela tomava banho no antigo banheiro dos filhos no corredor.
Quero dizer, ela era a namorada de Max no colegial. Você pode
imaginar? Eles começaram a namorar na nona série, quando seu
professor de matemática pediu que ela o ensinasse depois da
escola, e Max estava ao seu lado desde então. Ela não ficava sem
ele desde os quatorze anos. Agora ela tinha quase sessenta anos.
Eles cresceram juntos, quase como duas árvores crescendo lado a
lado com seus troncos e galhos emaranhados.
De repente, ele se foi, e ela estava emaranhada em nada além
do ar.
Precisávamos de tempo. Todos nós precisávamos. Mas não
havia nenhum.
O verão terminaria em breve, a escola começaria em breve e a
vida teria que continuar.
Três dias depois, realizamos o serviço fúnebre de Max na praia,
na areia, no início da manhã – antes que o calor do verão do Texas
realmente começasse. O fotógrafo da festa deu a Babette uma
ótima foto de Max para apresentar no programa. Um harpista, que
havia tirado um D em sua aula de educação cívica, mas o amava
mesmo assim, ofereceu-se para tocar no culto.
Não houve balões desta vez, nem comedores de fogo, nem
banda de jazz da quinta série.
Mas estava lotado. As pessoas traziam toalhas de praia para
sentar, eu me lembro disso – e não havia um centímetro aberto de
areia em lugar nenhum.
É incrível como os funerais acontecem.
A festa deu muito trabalho, planejamento e avanço, mas o
funeral simplesmente... aconteceu.
Eu compareci. Li um poema que Babette me deu – um dos
favoritos de Max –, mas não sei dizer qual. Está amassado na
gaveta da minha cômoda agora junto com o programa porque não
suportaria jogar nenhum deles fora.
Lembro-me de que a água do Golfo – que geralmente é meio
marrom em nosso trecho de praia por causa de toda a lama na foz
do Mississippi – estava particularmente azul naquele dia. Lembro-
me de ter visto um bando de golfinhos passar na água, logo após a
linha onde as ondas começaram. Lembro-me de me sentar ao lado
de Alice em sua toalha de praia depois que tentei, e falhei, dar um
abraço em Tina.
— Ela realmente não gosta de você — Alice disse, quase
impressionada.
— Você pensaria que a dor faria todos nós amigos — eu disse,
arrastando meu lenço encharcado em minhas bochechas
novamente.
Após o culto, vimos Tina se afastar, puxando o pequeno Clay
atrás de si em seu terno e gravata, Kent Buckley em lugar nenhum.
Uma vez que estávamos de volta à recepção no pátio da escola,
Alice manteve-se ocupada ajudando os fornecedores. Não tenho
certeza se os fornecedores precisavam de ajuda, mas Alice gostava
de estar ocupada mesmo nos dias bons, então eu simplesmente a
deixava fazer o que ela queria.
Eu era o oposto de Alice naquele dia. Eu não conseguia focar
minha mente o suficiente para fazer qualquer coisa, exceto olhar
para Babette em espanto com a graciosidade com que ela recebia
cada abraço de cada simpatizante que fazia fila para vê-la. Ela
assentiu com a cabeça, sorriu e concordou com todas as coisas
gentis que alguém disse.
Ele tinha sido um homem maravilhoso.
Nós sentiríamos falta dele.
Sua memória definitivamente, sem dúvida, seria uma bênção.
Mas como Babette estava fazendo isso? Ficar de pé? Sorrir?
Enfrentar o resto de sua vida sem ele?
Tina tinha sua própria linha de recepção, tão longa quanto, e
Kent Buckley deveria estar cuidando de Clay... mas Kent Buckley –
juro, isso é verdade – estava usando seu fone de ouvido Bluetooth.
E toda vez que recebia uma ligação, ele atendia.
O pequeno Clay, por sua vez, observava seu pai sair para um
corredor enclausurado e depois ficava parado, piscando para a
multidão, parecendo perdido.
Eu entendia.
Eu não tinha uma linha de recepção, é claro. Eu não era
ninguém em particular. Olhando em volta, todo mundo estava
ocupado confortando todo mundo. O que me libertou, na verdade.
Naquele momento, examinando a multidão, tive um momento de o
que Max faria.
O que Max faria?
Ele tentaria ajudar Clay a se sentir melhor.
Eu caminhei.
— Oi, Clay.
Clay olhou para cima.
— Oi, Sra. Casey. — Todos eles me chamavam de “Sra”.
Ele me conhecia bem da biblioteca. Ele era um dos meus
grandes leitores.
— Dia difícil, hein? — Eu disse.
Clay assentiu.
Olhei para Kent Buckley, perto de um claustro, fazendo o
possível para sussurrar e gritar com seus funcionários.
— Quer dar uma volta? — Eu perguntei a Clay então.
Clay assentiu e, quando começamos a andar, ele colocou sua
mãozinha macia na minha.
Eu o levei para a biblioteca. Onde mais? Minha linda, mágica e
amada biblioteca... lar de um milhão de outras vidas. Casa de
conforto, distração e perda – da melhor maneira.
— Por que você não me mostra seu livro favorito em toda esta
biblioteca — eu disse.
Ele pensou sobre isso por um segundo, e então ele me levou a
um conjunto de baixo prateleiras sob uma janela que dava para o
centro da cidade, depois para o paredão e para o Golfo. Eu podia
ver o trecho de praia onde havíamos acabado de realizar o culto.
Esta era a seção de natureza não ficcional. Livro após livro
sobre animais, vida marinha e plantas. Clay se ajoelhou em frente à
seção sobre a vida oceânica e puxou um livro, colocou-o no chão e
disse:
— É esse — disse ele. — Meu livro favorito.
Sentei-me ao lado dele e recostei-me na estante.
— Legal — eu disse. — Por que este?
Clay assentiu.
— Meu pai vai me levar para mergulhar quando eu crescer.
Minha reação instantânea foi duvidar que isso aconteceria.
Talvez eu tivesse conhecido muitos caras como Kent Buckley. Mas
eu fingi o contrário.
— Que divertido!
— Você já mergulhou?
Eu balancei minha cabeça.
— Eu só li sobre isso.
Clay assentiu.
— Bem — ele disse —, é quase a mesma coisa.
Fale sobre o caminho para o coração de uma bibliotecária.
— Concordo.
Folheamos as páginas por um longo tempo, com Clay narrando
um passeio pelo livro. Ficou claro que ele absorveu a maior parte
das informações nele, então tudo o que ele precisava era de uma
foto para iniciar a conversa. Ele me disse que a maior cordilheira da
Terra está debaixo d'água, que o coral pode produzir seu próprio
filtro solar, que o Oceano Atlântico é mais largo que a lua e que sua
criatura favorita no Golfo do México era a lula vampiro.
Eu estremeci.
— Isso é real?
— É real. Sua parte inferior do corpo se parece com asas de
morcego, e pode se virar do avesso e se esconder nelas. — Então
ele acrescentou: — Mas não é realmente uma lula. É um
cefalópode. 'Lula' é um nome impróprio.'
— Sinto muito — eu disse —, você acabou de dizer 'nome
impróprio'?
Ele piscou e olhou para mim.
— Significa 'nome errado'. Do latim.
Eu pisquei de volta para ele.
— Clay — eu perguntei. — Você é um grande leitor?
— Sim — disse Clay, voltando sua atenção para o livro.
— Acho que nunca conheci um aluno da terceira série que
conhecesse a palavra 'nome impróprio', muito menos qualquer coisa
sobre suas origens latinas.
Clay deu de ombros.
— Eu realmente gosto de palavras.
— Eu posso dizer que sim.
— Além disso, meu pai faz flashcards comigo.
— Ele faz?
— Sim. Meu pai adora flashcards.
Honestamente, nunca me esforcei muito para conhecer Clay. Ele
passava muito tempo na biblioteca – quase sempre que podia –,
mas sabia se virar, não precisava da minha ajuda e, bem... ele
estava lendo. Eu não queria incomodá-lo.
Além disso, sim, também: eu tinha medo da mãe dele.
É verdade que em uma escola mesmo as crianças que precisam
de ajuda nem sempre conseguem – então uma criança que não
precisa de ajuda? Ele vai ficar sozinho.
Pelo menos, até agora. Clay iria precisar de um pouco de amor
este ano, e estaria aqui esperando por ele na biblioteca, se ele
precisasse.
Não sei quanto tempo estávamos fora – uma hora, talvez –
quando Alice entrou correndo na biblioteca, ofegante, com o rosto
preocupado. Ela estava com uma saia preta e uma blusa preta –
uma das únicas vezes que eu a vi sem jeans – e ela quase não
parecia ela mesma.
— Oh, meu Deus — disse ela, quando nos encontrou, curvando-
se para respirar por um segundo antes de agarrar Clay pelos
ombros e guiá-lo para fora. — Eles estão procurando por ele em
todos os lugares! Tina Buckley está enlouquecendo.
Oh. Ops. Acho que tínhamos perdido a noção do tempo.
— Encontrei ele! — Alice gritou enquanto caminhávamos de
volta para o pátio, sacudindo os ombros de Clay como prova. —
Encontrei ele! Ele está bem aqui!
Tina atravessou a multidão para tomá-lo nos braços.
— Sinto muito — eu disse, chamando a atenção de Babette
quando cheguei atrás deles. — Fomos à biblioteca.
Babette me dispensou, mas foi quando Tina se levantou e olhou
para mim.
— Sério? — ela disse, toda amarga.
Eu levantei meus ombros.
— Estávamos apenas folheando o livro favorito de Clay.
— Você não poderia... não sei... mencionar isso a ninguém?
— Todo mundo parecia muito ocupado.
— O pai de Clay estava cuidando dele.
Hum. Desculpe, senhora. Seu pai não cuidando dele. Seu pai
estava recebendo ligações de negócios em seu telefone celular. Em
um funeral.
— Sinto muito — eu disse novamente.
— Pode apostar que você sente.
— Eu só queria... ajudar.
— Bem, você não pode ajudar. Mas aqui está uma coisa que
você pode fazer. Você pode deixar minha família em paz.
Deixá-los em paz?
O que isso significava? Eu morava com Babette. Clay estava
prestes a entrar na minha aula de biblioteca da terceira série.
— Como isso funcionaria, Tina? Eu moro na propriedade de sua
mãe.
— Talvez você devesse encontrar outro lugar para morar.
Mas qualquer que fosse essa estranheza com Tina, já durava
muito.
— Não — eu disse.
Ela franziu a testa.
— Não?
— Não. Isso é ridículo. Eu não estou fazendo isso. Eu amo meu
estábulo–
— Apartamento garagem — ela corrigiu.
— E eu não vou embora. Por que você iria querer que eu fosse?
Você realmente prefere que sua mãe fique sozinha naquela casa
grande do que me ter por perto?
Nós duas olhamos para Babette, que estava de volta à fila de
saudação, agora com o braço em volta de Clay, que nos observava
com seus olhos grandes.
— Ela não estaria sozinha — disse Tina.
— Quem estaria com ela? — Eu exigi. — Você?
Do outro lado do pátio, Kent Buckley estava de volta em outra
ligação.
Eu vi os olhos de Tina passarem de Babette para Kent. Eu a vi
entender o que ele estava fazendo. Eu vi suas narinas se dilatarem
– apenas um pouquinho, o suficiente para ondular em sua
compostura por um segundo. Eu sabia que ela estava reprimindo
alguma raiva. Seu marido estava falando em seu telefone celular
durante a recepção do funeral de seu pai. Não era apenas
inapropriado, era quase patológico.
Em um contexto diferente, eu poderia ter sentido muita pena de
Tina Buckley.
Mas não hoje.
Ela se casou com aquele cara, afinal – e não importa se foi um
erro, ela escolheu ficar com ele. Sim, eu deveria ter sido mais
compassiva. Mas o que posso dizer? Eu também estava de luto – e
ela não fez nada o dia todo além de piorar as coisas.
Quando seus olhos voltaram para mim, levantei meu queixo na
direção de Kent Buckley e disse:
— Você acha que ele vai deixar você cuidar de sua mãe? Ele
nem deixava você sair de casa quando Max estava vivo.
Passei do limite.
Cedo demais.
Tina ficou rígida. Eu vi seus olhos raivosos virarem gelo. E se eu
achava que a voz dela soava cruel antes, agora percebi que não
sabia o significado da palavra. Toda aquela raiva do marido que ela
estava reprimindo? Ela encontrou um lugar para soltá-la.
— Saia — ela disse, como uma cobra. — Saia daqui.
Eu não tinha certeza de como responder.
Ela se aproximou e sua voz era toda sibilante.
— Saia… ou eu vou perder a porra da paciência agora mesmo.
Agora o gelo nos olhos de Tina se transformou em fogo. Fogo
louco. Eu duvidava que ela iria perdê-lo? Eu achava que ela estava
blefando?
Eu não achava.
Olhei para Babette – a adorável e sábia Babette, que estava
usando cada mícron de força que lhe restava para se manter unida.
Na última década, eu sabia, ela havia perdido os pais, um filho e
agora o marido. Eu queria que Tina Buckley piorasse as coisas? Eu
queria reduzir o funeral de Max Kempner – o ponto final de sua
longa e extraordinária vida – a uma única imagem de sua filha
gritando como uma alma penada no pátio?
Não. Em todos os aspectos.
E então eu saí.
E essa é a história de como fui expulsa do funeral do meu
amado senhorio, o melhor chefe de todos os tempos e a coisa mais
próxima que tive em anos de um pai.

1. O trocadilho brinca com a sequência de números e a pronúncia das palavras "eight"


(oito) e "ate" (comeu), criando um sentido humorístico ao dizer que o número 7 comeu o
número 9, o que causa medo ao número 6.
dois

Pouco mais de uma semana após o culto, Kent Buckley convocou


uma reunião com todos os professores para “detalhar nosso plano
escolar para seguir em frente”.
Acho que devo mencionar que, além de marido de Tina, ele
também era o presidente do conselho de administração da escola.
Honestamente, eu quase tinha esquecido, até que ele chamou todos
nós para uma reunião, anunciando que ele iria nomear o substituto
de Max.
O substituto de Max?
Hum. Esse seria Babette.
Quando o rei morre, o poder é transferido para a rainha, certo?
Não entendi por que a reunião era necessária.
Nos reunimos no refeitório na hora marcada. Babette,
normalmente uma senhora da primeira fila, ocupou o último assento
na última fila e sentou-se em uma cadeira, seus olhos parecendo
opacos, como se tudo o que ela pudesse fazer fosse estar lá.
Alice veio na frente e se jogou no assento que eu estava
guardando para Babette. Ela estava usando uma camiseta que
dizia: TENHO 99 PROBLEMAS. COM INVEJA?
Esperamos que a reunião começasse em um silêncio estranho,
vazio e de coração partido.
Kent Buckley acabou chegando quinze minutos atrasado, ainda
falando naquele maldito Bluetooth, e embora tenha dito:
— Tenho que ir… tenho que ir… estou subindo no palco — e
desligou quando se virou para ficar na nossa frente, ele deixou o
Bluetooth no ouvido.
Juro: ele deixou lá o tempo todo.
Então ele começou.
— Todos nós tivemos um choque. A morte repentina de Max foi
uma tragédia. Esta comunidade está de luto — disse Kent Buckley,
soando como se tivesse acabado de procurar todas aquelas
palavras em um dicionário de sinônimos. Ele havia contorcido seu
rosto em um fac-símile tão ruim de simpatia que eu não conseguia
olhar para ele.
Ele fez uma pausa dramática, para que todos nos sentíssemos
comovidos.
— Mas — ele disse então — a vida tem que continuar.
Olhei em volta para encontrar os olhos de Babette, mas seus
olhos estavam fixos em Kent Buckley.
— Temos uma oportunidade aqui de aproveitar ao máximo
essa…
Pude vê-lo procurando mentalmente um sinônimo para
“tragédia”.
— Tragédia — concluiu.
Ah, bem.
— Mas vamos precisar de alguém para nos levar para nossa
próxima fase. Precisamos de alguém que se coloque no lugar de
Max e nos conduza adiante. E tenho orgulho de informar que
encontrei essa pessoa.
Por que toda essa preparação para Babette? Kent Buckley nem
gostava dela.
— Ele tem sido uma estrela em ascensão nos últimos dois anos
em Baltimore.
Espere o que? Ele? Baltimore? Eu me virei para olhar para
Babette. Ela ergueu os olhos para os meus, o rosto totalmente
estóico, e me deu um pequeno aceno de cabeça, como se dissesse
não surte.
E então, antes mesmo de me virar para Kent Buckley, ouvi-o
anunciar na sala o nome do substituto de Max.
— O novo diretor da Kempner School será... uma estrela em
ascensão no mundo da administração independente... um cara que
tivemos uma sorte incrível de conseguir tão tarde em tão pouco
tempo… — Kent Buckley fez uma pausa como se todos
estivéssemos nos divertindo. Como se um rufar de tambores
pudesse surgir magicamente do nada. Então ele disse: — Duncan
Carpenter.
Não sei se Kent Buckley esperava aplausos ou palmas ou o que.
Mas houve apenas silêncio. Esse nome era apenas um nome. Não
significava nada para ninguém.
Qualquer um menos eu.
Eu conhecia esse nome.
Ao som disso, eu me levantei no meio da sala.
Acabou de surgir.
Apenas... explodiu para a superfície, como um reflexo. Como
uma perna no consultório do médico.
Mas então, ao contrário de uma perna, fiquei de pé – meu
cérebro congelou.
Todo mundo olhou para mim. Incluindo Kent Buckley, que não
estava exatamente feliz.
Não havia universo em que Kent Buckley fosse meu fã, já que
eu era a inimiga de sua esposa. Mas ele realmente, especialmente
me detestava desde o momento em que me ouviu chamando-o de
“idiota” em uma atividade da escola.
Em minha defesa, ele era um idiota, e aposto que nove em cada
dez pessoas escolheriam essa palavra exata. Mas garanto que
nenhum deles diria isso na cara dele.
Nem mesmo eu.
Kent Buckley queria que eu voltasse a sentar. Isso estava claro.
Mas eu não podia.
O nome que ele acabou de falar estava me mantendo em estado
de choque.
— Desculpe. — Eu balancei minha cabeça, como se para limpá-
la. — Você acabou de anunciar o substituto de Max... e nos dizer
que seria... que seria...
Fiz uma pausa diante da impossibilidade disso.
Kent Buckley não teve tempo para isso.
— Duncan Carpenter — ele repetiu, como se estivesse falando
com uma criança burra.
Tantas perguntas. Eu não sabia por onde começar.
— Você quer dizer o Duncan Carpenter?
Kent Buckley franziu a testa.
— Existe mais de um?
— É isso que estou te perguntando.
A sala inteira estava assistindo. Essa era uma conversa que
precisava acontecer agora?
Hum, sim.
— Alto e magro? — Eu perguntei a Kent Buckley então,
levantando minha mão bem acima da minha cabeça. — Cabelo cor
de areia? Super pateta?
A voz de Kent Buckley estava fria.
— Não. Não 'super pateta'.
Talvez tivéssemos diferentes definições dessa frase. Tentei
esclarecer.
— Tipo, vestindo calças de golfe malucas? — Eu continuei. —
Ou uma gravata com patinhos de borracha?
Eu estava em tempo emprestado.
— Apenas um terno normal — disse Kent Buckley.
Eu parei. Um terno normal. Huh.
A sala inteira percebeu que eu estava tendo um momento. Não
conheço uma palavra, nem mesmo uma categoria, para o que senti
ao ouvir aquele nome, mas foi mais um coquetel de emoções do
que qualquer substância simples. Horror e êxtase em partes iguais,
com uma pitada de pânico e um pouco de descrença – tudo
derramado sobre o gelo frio da compreensão sobre o que o anúncio
de Kent Buckley significava para meu futuro imediato.
Não foi bom.
O tempo estava passando para a paciência de todos –
principalmente a de Kent Buckley. Antes que eu pudesse fazer outra
pergunta, ele apontou decisivamente para o meu assento, dizendo
“terminamos aqui”.
Eu sentei. Mais por estupefação do que por obediência. Então
fiquei imóvel, tentando expulsar a adrenalina do meu sistema.
Poderia haver mais de um Duncan Carpenter no mundo? Achei
que era possível. O mundo era um lugar grande. Mas… mais de um
Duncan Carpenter no mundo da educação primária independente?
Menos provável.
A realidade das probabilidades me atingiu.
Duncan Carpenter estava vindo para cá. Para minha pacata
cidadezinha na ilha de Galveston. Para substituir meu amado diretor
e administrar minha amada escola.
O Duncan Carpenter.
— Ele é um candidato estelar — Kent Buckley continuou na sala,
finalmente, feliz por ter seu lugar de direito de volta. — Um diretor
assistente que pegou um pesadelo de uma escola e a transformou
no decorrer de um ano. Fizeram várias contrapropostas para mantê-
lo, mas ele precisava de um mudança de local por motivos pessoais,
e ele é nosso agora. Ele vai entrar aqui e agitar as coisas. Dê a este
lugar o chute nas calças necessário por tanto tempo.
Nossa doce pequena utopia de uma escola precisava de um
chute nas calças?
Não. De jeito nenhum.
Claro, precisaríamos de alguém para estar no comando. Mas por
que não era Babette? Garanto que cada professor naquela sala teria
votado em Babette.
Mas este era Kent Buckley. Ele não estava nos pedindo para
votar.
Para ele, seu voto era o único que importava.
Você está se perguntando como é possível que Kent Buckley
fosse o presidente do conselho, embora ninguém gostasse dele?
Porque, sério: ninguém gostava dele. Ninguém gostava de suas
intrigas, ou de seus esforços, ou de suas opiniões mal informadas
sobre “o que vocês precisam”.
Mas quando digo ninguém, quero dizer realmente o corpo
docente e a equipe.
Digamos apenas que não ficamos encantados com sua BMW.
Ele fez uma campanha difícil para ser eleito presidente e,
enquanto Max estava vivo, não era um grande trabalho. De qualquer
forma, Max tomava todas as decisões – e essa escola era tanto um
culto à personalidade quanto qualquer outra coisa.
Max sabia que os valores de Kent Buckley não estavam de
acordo com os da escola. Mas ele simplesmente não estava muito
preocupado com isso.
— Apenas deixe-o ser o presidente. Ele quer tanto.
Então eles o deixaram ser o presidente. E então, menos de um
ano depois, Max morreu. E agora Kent Buckley, de todas as
pessoas – um cara que nunca gostou de Max, ou da escola, e que
só mandou seu filho para cá porque era a única coisa que sua
esposa sempre insistiu em todo o casamento – de repente estava
no comando.
Mas. Que. Diabos.
E sua primeira decisão foi contratar Duncan Carpenter como
nosso novo diretor.
O que foi... inesperado.
Eu esperava que Kent Buckley contratasse alguém mesquinho e
mesquinho como ele. Mas ele contratou Duncan Carpenter. Duncan
Carpenter. Provavelmente a pessoa mais parecida com Max que eu
já conheci... além do próprio Max.
Deve ter sido um erro de alguma forma.

Na sequência de seu anúncio, Kent Buckley conseguiu que alguns


caras da TI projetassem uma foto de Duncan Carpenter em uma tela
para todos nós vermos. A princípio, senti uma pontada de alívio.
Por meio segundo, pensei: não importa.
O Duncan Carpenter que eu conhecia tinha um sorriso torto e
cabelos sempre despenteados e desarrumados – e ele fazia algo
maluco em seu retrato oficial da escola todos os anos: tiara com
antenas, ou um moicano punk-rock falso, ou um bigode gigante. O
Duncan Carpenter que eu conhecia nunca havia tirado uma foto
séria em sua vida. Ele tinha um traço irreprimível de travessura
alegre e antiautoritária que trazia para cada foto.
Não esse cara.
De jeito nenhum esse cara era Duncan Carpenter.
Esse cara tinha o cabelo perfeitamente aparado, penteado na
frente em uma vibe elegante de homem de negócios. E um terno
cinza com gravata azul-marinho. E ele estava apenas... sentado lá.
Ele nem estava sorrindo.
O cara nesta foto era um durão.
Mas uma vez que meus olhos se ajustaram, uma vez que eu dei
conta da falta de cabelo, da gravata com estampa havaiana e do
sorriso travesso, tive que admitir... o rosto era essencialmente muito
parecido com o rosto de Duncan Carpenter. Diferentes, de alguma
forma, mas iguais.
O nariz dele. Os olhos dele. E definitivamente sua boca.
Senti um zumbido elétrico – parte agonia, parte emoção – no
momento do reconhecimento.
Afinal, era ele. Era Duncan.
Achei que nunca mais o veria, nunca mais. Eu tinha planejado
nunca mais vê-lo.
Mas agora lá estava ele.
Mais ou menos. Embora ele parecesse tão errado. Tão diferente
de si mesmo. Ele parecia como se estivesse fantasiado. E essa era
a explicação mais provável, na verdade: que ele poderia realmente
estar fantasiado – que havia tirado uma foto paródia de um
administrador durão, e Kent Buckley, em toda a sua falta de humor,
pensou que era real.
Porque não poderia ser real.
— Conheça seu novo diretor — Kent Buckley disse então para a
sala. — Ele sabe uma ou duas coisas, com certeza. Ele começa na
próxima semana, então vocês terão que estar prontos para começar
a correr quando ele chegar.
Do que esse cara estava falando? Não recebemos ordens dele.
Alice levantou a mão.
— Todos pensávamos que Babette iria assumir o controle.
Os olhos de Kent Buckley se moveram na direção de Babette.
Babette era nossa professora de artes na escola. Ela era a
senhora responsável por todos os azulejos pintados no pátio. E os
trampolins em mosaico. E as lanternas pintadas. E a colcha da
amizade pendurada no escritório. E praticamente cada centímetro
de cor ou capricho no lugar.
Mas ela não era apenas a professora de artes. Max e Babette
formaram uma equipe de pais sábios e gentis desde o início.
— Babette — declarou Kent Buckley — está de luto. Ela não
está em condições de administrar uma escola.
Todos olhamos para Babette.
Ela não discutiu... mas também não concordou.
Nos meses que se seguiram àquele momento, haveria um
intenso debate entre os professores sobre o motivo pelo qual
Babette não havia recebido o cargo. A maioria das pessoas teve a
sensação de que Kent Buckley a esnobou e reteve sua posição de
direito.
A sabedoria convencional seria que Kent Buckley se recusou a
sequer considerar Babette. Que o poder e a devoção dela da
comunidade eram uma ameaça para ele. Que ele usou
tecnicalidades para mantê-la longe de seu lugar de direito.
Mas uma segunda teoria também criaria raízes: que ela havia
rejeitado. Um olhar para ela confirmava que ela não estava bem. Se
ela comeu alguma coisa desde o funeral, não sei dizer o quê. E
suas mãos, notei todos os dias, ainda tremiam. Ela estava apática e
desanimada. Apesar de todos os seus anos de sabedoria e força,
olhando para ela agora, era possível que perder Max fosse mais do
que ela poderia suportar.
Enfim... justo ou não, certo ou não, estava acontecendo.
Sob a liderança de Kent Buckley, de repente estávamos prestes
a trazer um completo estranho para nossa família escolar
atordoada, perdida e enlutada.
Exceto – não um total estranho para mim.
Olhei para a foto enquanto Kent Buckley falava sem parar,
construindo um discurso genuíno sobre como o sistema escolar
americano havia amolecido e como todos nós precisávamos
endurecer e como, se não tomássemos cuidado, essas crianças
seriam uma geração de hippies, nerds e fracos.
Isso para um grupo de professores formado exclusivamente por
hippies, nerds e fracotes.
Mais uma razão pela qual Kent Buckley era desagradável.
Ele não tinha ideia de como ler um ambiente.
Quando ele encerrou seu discurso, e antes que alguém pudesse
responder, ou mesmo fazer uma pergunta, o Bluetooth de Kent
Buckley tocou – e ele decidiu atender a ligação. Ele voltou sua
atenção para o ouvido, anunciou:
— Reunião encerrada — e saiu da sala, repreendendo quem
quer que estivesse do outro lado do fone de ouvido com: — Droga,
não foi isso que dissemos para eles fazerem.
Qual era o trabalho de Kent Buckley, mesmo? Algum tipo de
“negócio”. Achei que talvez ele trabalhasse com imóveis comerciais.
Eu senti como se ele construísse mini-shoppings. Quão importante
essa ligação poderia ter sido?
Mas lá estava. Ele se foi. E ficamos com um novo diretor.
Após aquele momento, ninguém se mexeu.
Todos ficaram parados, olhando em volta, enquanto a sala se
enchia de murmúrios. O que diabos tinha acabado de acontecer?
todo mundo queria saber – e ninguém mais do que eu. Sentei-me
imóvel, piscando para o chão, tentando absorver tudo.
Duncan Carpenter estava vindo para cá.
Meu Duncan Carpinteiro.
E foi, de alguma forma, ao mesmo tempo, a melhor e a pior
notícia que já ouvi.
três

— Quem diabos é Duncan Carpenter? — todos perguntaram mais


tarde naquela noite, muito mais tarde, quando nos reunimos no
quintal de Babette para uma reunião de emergência sob as
lâmpadas.
Era nosso ponto de encontro nas noites de sexta-feira e o ponto
de encontro padrão para emergências e não emergências – havia
anos.
Claro que essa era uma emergência.
Normalmente, Babette não se importava. Era uma situação
TOS2 – e as pessoas entravam e saíam pelo portão lateral. Sem
problemas. Tornou-se uma reunião padrão e quase, para ser
honesto, uma espécie de terapia de grupo semanal. Com álcool.
Mesmo no verão.
Nesse ponto, Babette não poderia ter nos impedido mesmo que
quisesse.
Especialmente esta noite.
Eu não esperava que ela se juntasse a nós. Ela não fazia quase
nada além de dormir desde o funeral.
Entendi que isso fazia parte do processo. Perdi minha mãe
quando tinha dez anos. Eu não era uma estranha para o luto, para a
maneira como ele te afoga, mas não te mata – apenas mantinha
você submersa por tanto tempo que você esqueceu que ar e a luz
do sol até parecia. Eu sabia que a dor estabelecia sua própria linha
do tempo e que a única saída era passar.
Eu entendia.
Mas ela se juntou a nós, no final, e fiquei muito grata por vê-la lá.
Todos nós perdemos Max, mas eu perdi os dois, de certa forma.
Max, Babette e eu sempre fomos os últimos a deixar a mesa de
ferro no quintal às sextas-feiras... conversando, super processando
a política escolar, psicanalisando as crianças e seus pais e cuspindo
ideias para resolver os problemas de todos.
Eles realmente foram meus amigos mais queridos.
Mentores.
Pais substitutos.
A reunião centrou-se, naturalmente, em Duncan Carpenter, e
como ninguém tinha ouvido falar dele, e qual era o problema com
aquela foto excessivamente séria, e não tivemos nenhuma opinião
sobre o processo de contratação, e o que estava acontecendo, e por
que diabos não era Babette assumindo?
— Kent Buckley não está errado — disse Babette. — Não estou
em condições de assumir a escola.
Mas quem era esse cara novo? E por que ninguém foi
consultado? E que tipo de surto psicótico eu experimentei na
reunião de hoje?
Então contei a eles tudo o que pude confessar publicamente.
— Nós costumávamos trabalhar juntos — expliquei —, na
Califórnia, na Andrews Prep, minha última escola antes de vir para
cá. Ele era um professor na época… quarta série e ginásio, e ele
era... uma espécie de lenda. Todo mundo o amava. Estou lhe
dizendo, ele era algo muito, muito especial. Ele era como Max.
Olhei para Babette.
Ela deu um aceno de cabeça, como se estivesse dizendo tudo
bem. Vá em frente.
— Ele apenas tinha um calor sobre ele. Ele era engraçado,
pateta e louco. Ele era brincalhão. Ele era hilário. As crianças o
seguiam. Inferno, adultos o seguiam por aí.
Emily Aguilo, da equipe da segunda série, disse:
— Por que Kent Buckley contrataria um cara assim? Isso não é
coisa de Kent Buckley. Ele acabou de nos dar uma palestra de uma
hora sobre como esta escola precisa se fortalecer.
Dei de ombros.
— Talvez ele não perceba?
Carlos Trenton, nosso professor de ciências hipster com uma
barba longa o suficiente para poder trançá-la, disse:
— De jeito nenhum Kent Buckley está prestando atenção à
filosofia de ensino desse cara.
Todos nós concordamos. Kent Buckley não tinha interesse em
teoria pedagógica. Ele se importava com uma coisa: status. Se
Duncan era uma estrela em ascensão e o havia roubado de outra
escola, então Kent Buckley estava feliz.
Mas foi aí que Donna Raswell, que teve Clay na segunda série
no ano passado, interveio:
— Kent Buckley presta atenção em tudo. Eu nunca conheci um
maníaco por controle exagerado na minha vida. Ele conta os lápis
no estojo do filho.
Eu balancei minha cabeça.
— Ele pode prestar atenção, mas não nas coisas certas.
— Mas por que ele contrataria outro diretor como Max? —
perguntou uma professora de jardim de infância. — Ele está
tentando minar Max desde o minuto em que Clay começou no
jardim de infância.
Carlos realmente bufou.
— Sem sucesso.
Verdade. Max via Kent Buckley como um cachorro chato e
mordedor de tornozelo que ele tinha que sacudir a bainha da calça
de vez em quando.
Mas uma da qual ele não conseguia se livrar totalmente. Por
causa da Tina. E Argila.
Na verdade, todos nós sabíamos que Kent Buckley não teria
nenhum interesse em nossa escola hippie se seu filho não fosse um
estudante. E seu filho nunca teria se tornado um estudante se sua
esposa não quisesse que seu filho frequentasse a escola fundada
por seus pais. E agora Kent Buckley foi forçado a assistir seu filho
frequentar uma escola que, em sua opinião, estava fazendo tudo
errado.
E não era do feitio de Kent Buckley simplesmente deixar as
pessoas discordarem dele.
Então, enquanto a morte de Max foi uma perda esmagadora
para todos os outros, para Kent Buckley foi – como ele meio que
confessou na reunião de hoje... uma oportunidade.
Agora, com todo mundo cambaleando, se Kent Buckley pudesse
manter o foco e empurrar um novo diretor da escola mais do seu
agrado, ele poderia impactar como as coisas seriam feitas por aqui
nos próximos anos.
E então ele se moveu rapidamente e silenciosamente – e ele
trouxe alguém novo antes que pudéssemos nos concentrar o
suficiente para protestar.
Mas a piada estava em Kent Buckley. Ele acidentalmente fez o
oposto do que pretendia: contratou um novo diretor quase
exatamente como o antigo.
Uma parte de mim tinha que estar feliz com isso. Dada a nossa
situação repentina e inacreditável, Duncan Carpenter foi um golpe
de sorte impossível. Trazê-lo aqui seria a melhor coisa possível para
a escola.
Mesmo assim, dada a minha história com ele, pode muito bem
ser a pior coisa possível para mim.

Mais tarde, depois que Babette foi para a cama e a maioria das
pessoas foi para casa, enquanto eu lavava latas e garrafas para
reciclagem na pia da cozinha, Alice encostou-se no balcão e disse:
— O que está acontecendo, Sam?
A blusa dela hoje dizia: TRAÇAR GRÁFICOS É ONDE EU
DESENHO A LINHA.
Embora Alice fosse um ano mais nova que eu – vinte e sete –
ela também era quinze centímetros mais alta que eu, então ela tinha
uma vibe de irmã mais velha. Ela estava noiva de seu namorado da
faculdade, Marco, que estava na marinha e fazia longas missões.
Eles alugaram um pequeno bangalô dos anos 1920 alguns
quarteirões adiante. Quando ele se foi, eu a vi muito – e quando ele
estava aqui, eu não a via quase nada.
Justo.
Ele havia ido em uma missão uma semana antes da morte de
Max, e embora eu não queira dizer que estou feliz por Alice estar
sozinha esses dias, vamos apenas dizer que estou grata por ter
uma amiga.
Ela me conhecia muito bem. Bem o suficiente para saber que
algo mais estava acontecendo do que eu havia confessado ao
grupo.
— Então — ela disse, como se estivesse esperando a noite toda
que todos os outros idiotas fossem embora. — O que você deixou
de fora?
Encontrei seus olhos e disse:
— Duncan Carpenter é o Cara.
— Que cara?
Apertei os lábios e me inclinei para intensificar meu olhar. Então
eu disse lentamente:
— O cara.
Alice franziu a testa por um segundo, então disse, em
reconhecimento:
— O Cara?
Eu dei um aceno inconfundível, dizendo Bingo.
— O cara? Aquele que te fez sair da Califórnia?
— Perdão. Eu sai sozinha.
— Mas ele é o cara da sua antiga escola? Pelo qual você estava
obcecada?
— Não obcecada.
Alice semicerrou os olhos para mim.
— Bem obcecada.
— Não era uma obsessão. Foi uma paixão americana saudável
e de sangue vermelho.
Agora Alice estava tentando se lembrar. Fazia um tempo – uma
vida inteira, na verdade – desde que conversamos sobre isso.
— Você não bisbilhotou o diário dele?
— Eu não estava bisbilhotando, eu estava alimentando seu gato
enquanto ele estava fora da cidade.
— Mas você leu o diário dele.
— Bem, ele deixou aberto na mesa da cozinha. Você poderia
argumentar que, em algum nível inconsciente, ele queria que eu
lesse.
Alice me deu um segundo para decidir se eu poderia manter
essa afirmação.
— Além disso — continuei —, não era um diário. Era apenas um
caderno.
— Um caderno cheio de pensamentos particulares.
— Todos nós temos pensamentos particulares, Alice — eu disse,
como se isso fosse de alguma forma um bom ponto.
— Você não deveria ter aceitado aquele emprego de babá de
gato em primeiro lugar — disse ela.
— O que eu deveria fazer? Deixar seu gato morrer de fome?
Estava sem garras e faltando um rabo.
— Não era nem o gato dele. Era o gato da namorada.
— Eu não sabia disso na época.
Alice me deu um olhar que era em parte afeição, em parte
repreensão e em parte Me dê um tempo.
De qualquer forma, não havia sentido em continuar negando. Ela
sabia toda a história. Eu tinha lido seu diário naquele dia, tantos
anos atrás, enquanto ele estava de férias na região vinícola prestes
a ficar noivo – ou pelo menos esse era o boato. E eu não tinha
acabado de ler a única página que estava virada para cima na
mesa. Peguei um par de pinças de cozinha na gaveta – como se
não tocar as páginas com meus dedos de alguma forma tornasse
menos terrível – e as usei para virar cada página, procurando por
pistas para sua alma como uma espécie de Sherlock Holmes
apaixonada, e cuidadosa, como uma louca, para não deixar
nenhuma impressão digital.
O que posso dizer? Foi um ponto baixo.
Um ponto muito baixo.
E, na verdade, tornou-se um ponto de viragem.
Antes daquele momento, eu estava apaixonada por Duncan
Carpenter por dois anos inteiros. Grandemente apaixonada.
Incondicionalmente apaixonada. Apaixonada como as adolescentes
se apaixonam por estrelas pop. Se ele tivesse letras das músicas,
eu as teria memorizado; se ele tivesse mercadoria, eu teria
comprado; e se ele tivesse um fã-clube, eu seria a presidente.
Claro, ele não era uma estrela pop.
Mas ele era, você sabe... uma espécie de celebridade. No
mundo do ensino secundário particular. Em nossa pequena porção
de humanidade, ele era um grande negócio. Ele era o ícone pop de
nossos colegas professores, com certeza.
E por um bom motivo.
Ele tinha um sorriso grande e amigável, cheio de dentes grandes
e amigáveis. Ele era bonito sem tentar. Ele tinha uma qualidade
magnética que era quase física. Se ele estivesse em uma sala com
outros humanos por qualquer período de tempo, haveria um grupo
deles reunido ao seu redor no final. Ele emitia algum tipo de luz do
sol que todos queríamos aproveitar.
Eu inclusa.
Eu, especialmente.
Mas eu era terrível perto dele. Eu era a pior versão possível de
mim mesma. Todo o desejo e paixão e eletricidade e alegria que eu
sentia sempre que ele estava em qualquer lugar perto de mim
parecia embaralhar meu sistema. Eu congelaria, ficaria quieta,
tímida e constrangida, e olharia para ele, sem piscar, como uma
esquisita.
Era desconfortável, para dizer o mínimo.
Quando o conheci, ele era solteiro – e assim permaneceu por
um longo, lindo e repleto período de possibilidades, enquanto eu
tentava criar coragem para sentar à sua mesa na hora do almoço.
Um ano que passou rápido e, de repente, antes que eu tivesse feito
qualquer progresso – bum! – uma garota nova e alegre do escritório
de admissões o convidou para sair descaradamente.
Seus lugares de estacionamento atribuídos estavam próximos
um do outro, aparentemente.
Foi notícia de primeira página para os professores, e os
professores da escola primária ficaram ofendidos. Não era um
pouco arrogante simplesmente entrar e começar a namorar quem
ela quisesse?
Aparentemente não.
Logo, eles eram exclusivos, e então eles ficaram sérios, e então,
quase um ano depois que ela o convidou para sair pela primeira
vez, eles estavam indo morar juntos. O boato era que ela tinha sido
a única a perguntar a ele. Um movimento que eu teria admirado por
razões feministas se fosse qualquer outro casal.
O consenso entre as professoras era que ela era muito
convencional, muito mesquinha e muito comum para ser um bom
par para ele – principalmente porque ele era o oposto de todas
essas coisas.
Francamente, eu concordei – mas também sabia que minha
opinião se baseava em grande parte em uma breve interação,
quando, tentando desajeitadamente bater um papo em uma função
da escola, eu disse a ela:
— Admissões! Isso deve ser difícil! Como você toma todas
essas decisões agonizantes?
E ela apenas piscou para mim e disse:
— É só ver quem tem mais dinheiro.
Então, lendo minha expressão chocada, ela começou a rir e
disse:
— Estou brincando.
Mas ela estava?
Ninguém tinha certeza de que ela o merecia.
É claro... não foi o que eu tinha.
Eu não conseguia nem dizer oi para ele no elevador.
De qualquer forma, nem cinco minutos depois que eu ouvi a
notícia da mudança – de um bibliotecário que ouviu de um professor
de matemática que ouviu da enfermeira da escola – que, enquanto
eu estava saindo para tomar um pouco de ar fresco... ele me pediu
para cuidar do gato.
Eu tinha acabado de virar a esquina do corredor, e lá estava ele.
Vestindo uma gravata com cachorros salsicha por toda parte.
— Ei — disse ele.
— Ei — eu disse, entrando em pânico com o jeito que ele...
acabou de se materializar.
Então, de todas as coisas, ele disse:
— Ouvi dizer que você adora gatos.
Eu adoro gatos? Não. Mas, não querendo interromper a
conversa, dei de ombros e disse:
— Na verdade, gosto mais de cachorros.
Ele piscou para mim.
— Quero dizer — continuei, sentindo como se tivesse dito a
coisa errada. — Eu não me oponho a gatos…
— Você não tem um monte deles?
— Hum. Não.
Ele franziu a testa.
— Não tenho gatos — acrescentei, só para deixar claro. — Nem
um.
— Huh. Alguém me disse que você tinha uns três gatos.
Uau. A única coisa que ele sabia sobre mim... e estava errado.
Ou talvez ele pensasse que eu era outra pessoa.
Ele parecia tão desapontado quanto eu.
Eu me lembrei de respirar.
— Eu não odeio de gatos — eu disse então, para animá-lo. —
Eu não desejo mal a eles nem nada. Eu sou apenas... neutra.
Ele assentiu.
— Entendi. — Então ele começou a se virar.
— Espere! — Eu disse. — Por que?
Ele fez uma pausa.
— Estou procurando uma babá de gatos. Para o fim de semana.
Apenas uma noite, na verdade.
E então, sinceramente, sem sequer considerar o quão patético
seria para mim limpar as caixas de areia do meu verdadeiro amor
enquanto ele estava em um fim de semana romântico com sua nova
namorada, eu disse:
— Eu posso fazer isso.
— Mesmo?
— Claro. Não é problema algum.
A próxima coisa que eu sei é que lá estava eu no apartamento
dele, bisbilhotando – e fazendo coisas indescritíveis com suas
pinças de cozinha.
Então, o que eu estava procurando, exatamente, enquanto
folheava aquelas páginas naquele caderno? O que eu poderia estar
esperando encontrar? Alguma nota para si mesmo que ele
realmente não queria estar com a mulher com quem ele tinha
acabado de decidir viver? Algum rabisco de sonho de um rosto que
se parecia muito com o meu? Algum código secreto que só eu
poderia decifrar que soletrava M-E A-J-U-D-E?
Ridículo.
De qualquer forma, não havia nada disso.
Havia listas de compras. Lembretes. Uma carta pela metade
para sua mãe. Um bilhete com um círculo para dar à sobrinha um
presente de aniversário de um ano, com as palavras “jaqueta de
motociclista” riscadas e substituídas por: “Algo legal”. Rabiscos
(principalmente caixas 3-D), listas de tarefas e um monte de marcas
de contagem no papelão da contracapa. Nada de especial, ou
memorável, ou até mesmo privado. Os detritos normais de uma vida
perfeitamente infeliz que não tinha nada a ver comigo.
E foi aí que, virando as páginas de volta ao lugar, uma palavra
muito importante me veio à cabeça:
— Chega.
Eu ouvi quase tão claramente como se tivesse dito em voz alta.
E então eu disse em voz alta.
— Chega.
Então eu balancei minha cabeça. Eu não poderia continuar
vivendo assim – roubando olhares, passando por ele nos
corredores, sentando perto – mas não muito perto – de sua mesa na
hora do almoço, parando para vê-lo conduzindo festas dançantes do
jardim de infância no parquinho. Ansiando.
Chega.
Eu tinha que superá-lo. Ele escolheu outra pessoa. Era hora de
seguir em frente.
E embora eu nem sempre, ou mesmo com frequência, seguisse
o conselho de vida que dei a mim mesma – naquele dia eu o fiz.
Coloquei as pinças de volta na gaveta, saí, tranquei a porta, fui
direto para casa e entrei na internet para começar a procurar um
novo emprego.
De qualquer forma, foi assim que acabei no Texas, de todos os
lugares – embora fosse assim que quase todo mundo acabava no
Texas: amor ou dinheiro.
Eu vim para esta ilha por acaso, mas encontrei um verdadeiro lar
aqui, bem no fundo do país nesta cidade histórica castigada pelo
vento. Eu adorava as casas vitorianas pintadas com suas varandas
góticas de carpinteiro. Eu adorava as ruas de paralelepípedos e as
lojas de camisetas turísticas. Eu adorava a areia fofa e lamacenta e
as ondas fáceis do Golfo batendo na costa. Eu adorava como a
cidade era humilde e orgulhosa, maltratada e resiliente, exausta e
cheia de energia, histórica e se reinventando sem parar.
Acima de tudo, eu adorava nossa escola. Meu trabalho. A vida
que eu construí.
Uma vida pós-Duncan Carpenter na qual – de verdade – o
próprio Guy não tinha lugar.
— Quais são as chances? — Eu disse a Alice, ligando a chaleira
para o chá. — Que de todas as pessoas no mundo Kent Buckley
poderia ter contratado... ele o escolheu?
— Você realmente quer que eu calcule as chances? — Alice
perguntou.
— Talvez não — eu disse.
Mas Alice estava em pé e correndo.
— Desafio aceito! Há uma infinidade de variáveis a serem
consideradas aqui. Você tem que tirar a raiz quadrada das escolas
independentes no sudeste e depois incluir aquelas com
administradores que procuram fazer uma mudança repentina logo
antes do início do ano letivo e, em seguida, resolver o eixo XY.
Por meio segundo, pensei que ela estava falando sério.
Ela continuou, com um leve sorriso aparecendo em sua
expressão inexpressiva.
— É basicamente a mesma equação que você usa para
velocidade de escape para o campo gravitacional. Menos alfa e
ômega, é claro. Vezes pi.
— Eu sinto que estou sendo provocada.
— Eu vi aquela foto dele — ela concluiu, agora abertamente
sorrindo. — Depois de fatorar a inclinação da mandíbula, o
coeficiente apenas distorce toda a curva.
Abri minhas narinas para ela.
— Muito obrigada pela sua ajuda.
— Ele tem um bom queixo.
Suspirei.
— Não tem?
A questão era que parecia uma coisa tão superficial para se
preocupar – especialmente à luz do que Babette estava passando.
Então uma velha paixão estava voltando para me assombrar. Um
problema.
— Acho que as probabilidades realmente não importam agora —
eu disse em seguida. — Aconteceu.
— Isso, garota — disse ela.
— Você entende meu ponto, no entanto — eu disse. — Isso me
coloca em uma situação muito estranha.
Alice estudou meu rosto.
— Não sei dizer se você está arrasada ou emocionada.
— Estou noventa e nove por cento arrasada e um por cento
emocionada — eu disse. — Mas parece o contrário. — Você
pensaria que esses dois sentimentos podem se anular, mas eles
apenas pareciam se amplificar.
Alice assentiu.
— Então... você está arrasada porque...?
— Porque! Porque eu tenho uma história com essa pessoa,
mesmo que ela não saiba. Uma história com a qual fiz um trabalho
bastante competente ao lidar e seguir em frente, apenas para
encontrá-lo voltando para mim sem aviso prévio. Ele foi a única
razão pela qual deixei minha antiga escola – era cem por cento para
ficar longe dele – e agora ele está vindo para cá. Aqui. Eu já posso
ver como essa história termina. Ele vai me levar para longe daqui
também. E então terei que conseguir um novo emprego em algum
lugar distante e terei que começar tudo de novo, de novo, mas sei
que nenhuma nova escola poderia ser tão incrível quanto essa,
então isso significa que estou condenado a passar o resto da minha
vida no exílio, ansiando por este lugar, meus amigos, tudo.
— Acho que esse é um cenário possível — disse Alice.
Eu me inclinei e bati minha testa contra a mesa.
— Eu não quero que ele tire minha casa de mim.
Alice franziu a testa.
— Você acha que ele vai te demitir porque você teve uma queda
por ele um milhão de anos atrás?
— Eu não acho que ele vai me demitir — eu disse. — Só acho
que ele vai me deixar tão infeliz que vou ter que desistir.
— Você acha que ele vai ser mau com você?
— Não — eu disse, sentindo meu corpo afundar em derrota. —
Acho que ele vai ser legal comigo.
Alice inclinou a cabeça, dizendo Huh?
— Acho que ele vai ser bem legal — expliquei. — Muito legal.
Totalmente irresistivelmente legal.
Ela ergueu a cabeça, tipo Entendi.
— Você acha que a paixão vai voltar para você.
— Como um tsunami.
— Então você acha que vai ser a mesma situação de antes.
— Mas pior. Porque agora eles vão estar casados e ter uns
quarenta filhos e a vida que eu tanto queria, mas era covarde
demais para tentar, vai desfilar por aí sem parar até me quebrar.
Muito gentilmente, Alice disse:
— Talvez isso aconteça de alguma outra maneira.
Mas eu aceitei meu desespero.
— Não. É isso. Isso é o que vai acontecer.
Mas Alice não estava desistindo.
— E daí se ele está casado agora? E daí se ele tem uma
ninhada inteira de filhos? Isso pode funcionar a seu favor! Você
dificilmente o verá. Ele estará exausto. Ele não vai beber cerveja no
quintal de Babette, com certeza.
— Não importa — eu disse, encolhendo os ombros. — Vou vê-lo
o suficiente. Um pouco ainda é muito.
Uma imagem apareceu na minha cabeça de Duncan no pátio da
nossa escola, vestindo um par de suas calças malucas – talvez as
vermelhas com lagostas – cercado por uma multidão de crianças
torcendo enquanto ele fazia malabarismos com bolas de praia.
— Você parece doente — Alice disse, me observando.
— Estou me sentindo mal — eu disse. E foi aí que percebi que
era verdade. De todas as coisas que abalaram o equilíbrio que
aconteceram ultimamente, essa foi a que mais me desconcertou.
— Talvez não seja tão ruim quanto você pensa — ela disse. —
Talvez ele apareça aqui e você não sinta nada. Paixões
desaparecem o tempo todo. Já se passaram anos. Talvez ele
pareça de meia-idade e desagradável. Talvez ele tenha brotado um
monte de cabelo nas orelhas. Ou talvez, tipo, um de seus dentes
ficou estranhamente marrom. Ou… — ela se animou, como se essa
fosse sua melhor ideia até agora — talvez ele esteja com muito mau
hálito agora!
— Talvez — eu disse, mas apenas para ser educada.
— Só estou dizendo — disse Alice —, aquela foto na reunião
não era exatamente irresistível.
Não consegui explicar a foto.
— Sim — eu disse. — Mas não capturou sua essência.
— Espero que não — disse Alice.
— Você vai amá-lo — eu prometi —, apesar de não querer.
Todos nós vamos. Você não pode não amá-lo. Nos dias quentes, ele
costumava levar pistolas de água para brincar. Ele inventou o Dia do
Chapéu. Ele começou um concurso de comer panquecas. Ele
convenceu as crianças a fazer um terrível flash mob no parquinho.
Uma vez, ele alugou uma máquina de algodão-doce sem avisar
ninguém e colocou no refeitório. No último dia do ano letivo de cada
ano, ele usava um smoking de veludo roxo para a aula e depois
partia para o verão em uma limusine.
— Tudo bem — Alice cedeu. — Tudo bem. Ele tem joie de vivre.
— Ele tem — eu disse — e ele compartilha. Você não pode estar
perto dele sem pegar algo.
— Então isso vai ser... bom para a escola.
— Não apenas bom, ótimo — eu disse. — Vai ser ótimo. Para a
escola.
Alice assentiu e terminou meu pensamento.
— E vai ser meio horrível para você.
— A ironia é — eu disse — que depois que me mudei, me
arrependi. Eu senti tanto a falta dele depois que eu fui embora. Eu
costumava fantasiar todos os tipos de motivos para vê-lo
novamente. Eu costumava desejar um motivo para estar perto dele.
— Exatamente — Alice disse, como se ela realmente
entendesse. — Cuidado com o que você deseja.
Eu balancei a cabeça. Então a cozinha ficou em silêncio e nós
olhamos para nossas xícaras de chá pela metade.
E naquela pequena pausa, percebi outra má notícia para mim.
Eu me senti mal. Doente fisicamente. Ficar sentada na cozinha de
Babette falando sobre Duncan Carpenter estava me deixando
nauseada.
Mas não qualquer tipo de náusea. Um tipo muito particular. O
tipo de náusea que pode significar que algo está acontecendo
neurologicamente. O tipo de enjôo que às vezes sentia... quando
estava prestes a ter uma convulsão.
O que acontecia de vez em quando.
Ocasionalmente. Uma ou duas vezes por ano.
Tudo bem. Vou apenas dizer. Eu tenho epilepsia.
Epilepsia leve.
Um toque de epilepsia.
Apenas o suficiente para saber com certeza, enquanto eu estava
sentada lá e sentindo todas as sensações dentro do meu corpo, que
eu estava tendo uma aura.
O que na verdade é um tipo de convulsão em si – simplesmente
não parece.
Senti a náusea se acumulando em meu estômago como nuvens
de tempestade. Eu sentei um pouco mais reto e afastei minha
cadeira da mesa alguns centímetros.
Alice notou.
— Você está bem?
— Eu só me sinto um pouco... mal — eu disse.
— Você está tendo uma aura?
Alice era uma das poucas pessoas que sabiam.
Fiz um O com os lábios e soltei um suspiro controlado e
frustrado e disse:
— Provavelmente — Tipo, claro. Claro que isso está
acontecendo.
O estresse é um fator de risco. Ironicamente.
Eu tive uma vida ruim quando criança – muito ruim. Já era ruim o
suficiente que minha melhor amiga da terceira série tivesse me
desconvidado de sua festa de aniversário depois de testemunhar
uma particularmente ruim no refeitório. Então ela desapareceu no
ensino médio – e permaneceu por tanto tempo que pensei que
estava curada.
Mas então, não muito tempo depois que me mudei para cá,
voltou.
Apenas um caso leve. Nada mal, realmente, no quadro maior.
Tentei me lembrar disso. Mas apenas... a ideia disso? O
conhecimento de que estava de volta? Que uma convulsão pode
acontecer a qualquer momento? Saber que eu não estava curada?
Que eu ainda era a mesma pessoa que poderia não ser convidada
para uma festa do pijama?
Foi o suficiente para mudar toda a minha concepção de mim
mesma.
Mas isso não era algo sobre o qual eu falava – nunca, se eu
pudesse evitar. Era apenas algo que eu carregava como um
pequeno cubo de gelo de medo em meu peito.
E assim Alice atacou os sintomas sobre a causa.
— Talvez você devesse começar a namorar alguém.
— Namorar alguém? — Perguntei.
— Você sabe. Preventivamente.
— Quem? — Eu exigi. — Raymond, o guarda de segurança?
— E aquele cara da TI com piercing no lóbulo da orelha?
— Os piercings no lóbulo da orelha são um obstáculo para mim.
— E aquele cara, Bruce, que dá aulas particulares?
— Ele é casado com a garota que dirige o café na Post Office
Street.
— O novo professor de ciências da quinta série não acabou de
se divorciar?
— Oh, meu Deus, Alice! — eu gritei. — Ele tem, tipo, quarenta
anos!
Alice não endossou os histéricos.
— Você vai fazer quarenta algum dia.
— Em doze anos.
— A questão é — Alice continuou —, se você pudesse
simplesmente se apaixonar por alguém… qualquer um, bem rápido,
então seu coração ficaria feliz demais para se importar com isso.
— Não sou especialista em amor — eu disse. — Mas eu não
acho que é assim que funciona.
Era absurdo. Eu não tinha saído com ninguém desde que as
convulsões voltaram. Em parte, sim, porque as opções na ilha eram
escassas. Mas também gosto da estabilidade. Mais do que isso, eu
precisava de estabilidade. Especialmente agora. Estabilidade.
Rotina. Mesmo que fosse possível “se apaixonar por alguém
rapidamente”, esse momento particular de caos emocional seria o
pior momento possível para escolher. Além disso – e eu nunca
admiti isso para ninguém, talvez nem para mim mesma – eu já havia
desistido.
Porque havia uma pergunta persistente e sem resposta no
centro da minha vida. Um que voltou à minha cabeça quando as
convulsões voltaram. Uma que eu nem percebi completamente que
continuei perguntando. Uma que eu nem tinha certeza se queria
responder.
Quem poderia me amar agora?
Eu nunca pensei nessas palavras, muito menos disse em voz
alta.
E eu não ia começar hoje.

2. TOS (Traga O Seu): Essa expressão é comumente usada em eventos ou ocasiões


em que os participantes são responsáveis por trazer suas próprias bebidas ou alimentos.
quatro

Não tive uma convulsão naquela noite – nem na noite seguinte, nem
na seguinte.
Às vezes elas ameaçam aparecer, mas nunca aparecem.
Mas com certeza podem aguçar seu foco. Depois disso, apenas
tentei me acalmar, me ajustar e não ter uma convulsão.
Muito mais fácil dizer do que fazer. Principalmente quando você
começa a se estressar pelo fato de não estar conseguindo
desestressar.
A verdade é que eu tinha mais a fazer do que era possível fazer.
Eu não tinha trabalhado na biblioteca durante todo o verão. Não
desde que Max morreu, com certeza – mas mesmo antes disso,
quando eu estava tão feliz planejando sua festa, pensando que faria
meu catálogo mais tarde. Então, depois do funeral, eu me preocupei
com Babette: organizando o serviço, lavando sua roupa, assando
muffins de mirtilo que ela nunca comia, regando seu jardim e
empilhando os cartões de condolências não lidas em ordem
alfabética.
O verão foi a minha época para me organizar: para me atualizar
e planejar com antecedência. Mas neste verão, eu não tinha feito
nenhum dos dois. E agora o verão estava quase no fim.
Então: Chega de bagunça. Era hora de lidar com tudo – o
choque, a dor, o pavor, a antecipação, a ansiedade –à moda antiga:
como uma viciada em trabalho.
Conveniente. Porque eu realmente tinha uma tonelada de
trabalho.
Leva longas horas e madrugadas para se preparar para o início
de um ano letivo, mesmo em um ano normal – catalogando todos os
nossos novos livros, carimbando-os (sou carimbadora de páginas de
rosto e bordas das páginas), codificando-os, embrulhando as capas
em capas plásticas e colocando-os nas prateleiras. Mais:
decoração, organização, planejamento de aulas, dando uma de
Marie Kondo em meus armários, verificando os próximos planos de
aula dos professores e estocando livros para combinar com
unidades de estudo e relatórios de livros. É muito planejamento,
mas também é muito trabalho físico, e só pode ir tão rápido.
Sempre me surpreendo com a quantidade de pessoas que
pensam que eu apenas “passeio” na biblioteca o dia todo. Sem
mencionar o número que pensa que tudo que faço é ler. Além, é
claro, das crianças – que literalmente pensam que eu moro lá.
Tipo, eles acham que é minha casa de verdade.
Eu leio – constantemente –, mas não durante o dia de trabalho.
Durante o dia de trabalho, estou ajudando as crianças a encontrar
os livros de que precisam e, em seguida, ensinando-as a fazer o
autoatendimento. Estou dando aulas sobre como encontrar livros,
como ser bons cidadãos da biblioteca e por que as histórias são
importantes. Estou lendo livros para todas as séries, até mesmo
para as crianças maiores. Estou treinando voluntários para ajudar a
reabastecer as prateleiras, examinando catálogos para encontrar
novos livros para a biblioteca e removendo livros antigos das
estantes. Mais: serviço de almoço, reuniões do corpo docente,
visitas de autores, aulas de planejamento e não vamos esquecer, na
primavera, as incontáveis horas de inventário.
Dá mais trabalho do que as pessoas pensam.
Dá mais trabalho do que eu penso.
Além disso, este ano, eu comprei – com meu próprio dinheiro –
uma escultura suspensa multicolorida feita de peças de bicicleta
recicladas pintadas com cores vivas. Parecia tão reconfortante no
site onde o encontrei, e fiquei hipnotizada por um vídeo dele girando
suavemente... mas quando a caixa chegou e vi os sacos aleatórios
de pelo menos cem peças para montar – fechei novamente
imediatamente.
Não. Deixa para lá.
Levaria um milhão de horas para montar, no mínimo. No que diz
respeito à minha lista de tarefas, montar aquela escultura teria que
ser o último.
Workaholism funcionou e não funcionou ao mesmo tempo.
Em resumo, quando penso em “desestressar”, penso em banhos
de espuma, romances de virar a página e cochilos sob cobertores
felpudos – e a verdade é que eu não tinha tempo para nada disso.
Mas ao fazer todo o meu trabalho acumulado, tive um efeito de
redução do estresse, e não apenas porque me senti um pouco
menos em pânico com cada item de tarefa que realizei: isso me
impediu de olhar para o quadro geral. Isso me impediu de pensar no
passado e de tentar imaginar o futuro, e me permitiu manter o foco
em qualquer pequeno próximo passo que estivesse bem na minha
frente.
Há algo reconfortante em diminuir seu foco dessa maneira. Era
uma espécie de efeito impossível de ver a floresta por causa das
árvores. E em certos momentos de alívio, esquecia-me
completamente da floresta.
Foi assim que, na noite anterior à nossa primeira reunião
agendada com o corpo docente com Duncan, Alice conseguiu me
chocar como ela fez. Eu sabia que era domingo, mas meio que perdi
a noção de qual domingo era.
Eu estava caminhando para o supermercado para fazer o
estoque da semana, quando recebi esta mensagem de texto
bastante padrão de Alice:
— Ótimas notícias!
— O que??? — Eu mandei uma mensagem de volta.
— Pensei no título da minha autobiografia.
— Graças a Deus!
— Eu sei, certo?
— O que é????
— Faça as contas.
— Por favor, nunca me diga para fazer contas.
— Não! Esse é o título!
— ???
— Faça As Contas: A História de Alice Brouillard.
— Ah.
— Perfeito, né? Vou fazer disso minha frase de efeito também.
— Você sempre precisou de uma frase de efeito.
— Concordo. E obrigada antecipadamente.
— Por?
— Ser minha ghostwriter.
Todas as mensagens de texto razoavelmente padrão para Alice
e para mim. Também adicionamos alguns GIFs e, quando pensei
que tínhamos terminado, recebi um último ding e Alice acrescentou:
— Mal posso esperar para conhecer o Cara amanhã!
E foi aí que deixei cair o telefone.
Amanhã. De repente, estava prestes a ser amanhã. Como em
amanhã. Aquele que eu temia tanto que perdi a noção do tempo.
Aquele em que eu veria Duncan Carpenter novamente, para o bem
ou para o mal, conforme eu entrasse – voluntariamente ou não – no
resto da minha vida.
Eu não podia acreditar.
Simplesmente não parecia possível.
Nada disso parecia possível, na verdade.
Desestresse, lembrei a mim mesma. Desestresse.
Mas foi um bom momento. Sempre achei as mercearias
agradavelmente anestesiantes.
Peguei um carrinho e respirei fundo enquanto contornava as
revistas e brochuras do mercado de massa, depois subia e descia
os corredores. Pensei em comprar uma toalha de praia com
unicórnios por toda parte – à venda por U$7,99. Eu precisava de um
liquidificador? Um moedor de café? Uma nova forma de muffin?
Eu só tinha conseguido colocar uma coisa no meu carrinho – o
mais essencial de todos os itens essenciais: café – quando, de
repente, eu o vi.
Duncan Carpenter.
Ele esteve aqui. Bem desse jeito. Na minha mercearia.
Eu tive um vislumbre – um vislumbre – dele passando pelo final
do corredor, e foi o suficiente para me fazer cair de cócoras, me
escondendo atrás do meu carrinho.
Lentamente, com todos os sentidos em alerta máximo, levantei e
empurrei meu carrinho para a beira do corredor onde eu tinha
acabado de vê-lo, e espiei ao virar o corredor.
Lá estava ele, no final do amplo corredor central, com uma
camisa branca e calça cinza, andando a passos largos com seu
carrinho como se não fosse grande coisa. Como se fosse totalmente
normal. Como pessoas chamadas Duncan Carpenter apenas…
vagavam pelas mercearias em Galveston o tempo todo.
Sim. Definitivamente era ele.
Eu não conseguia ver seu rosto, mas reconheceria aquele andar
em qualquer lugar: a maneira como suas pernas balançavam para a
frente e seus pés tocavam o chão. Eu sei que você está pensando:
“Sim. É assim que andar funciona”. Mas a questão é que eu
conhecia sua maneira particular de fazer isso. Os ângulos, o ritmo, o
balanço. Eu reconhecia. Algumas coisas haviam mudado, mas o
essencial era o mesmo. A postura, o andar, a nuca: tudo era
Duncan. Olhei um pouco mais para baixo.
Sim: confirmação na bunda também.
Com isso veio uma onda de pânico.
Eu não estava pronta. Eu não poderia fazer isso.
Eu tinha que sair daqui.
Eu estava trabalhando na biblioteca o dia todo, embrulhando
capas de livros em plástico e catalogando no computador, e então
fui direto para a casa de Babette e fiz uma bagunça espalhada de
macarrão e molho de tomate para o jantar dela – grande parte do
qual estava na minha camisa – e depois fiquei para lavar a louça.
Meus olhos estavam cansados e inchados, e meus ombros estavam
tensos. Eu não tinha tomado banho naquela manhã, disso eu tinha
certeza – e agora eu nem conseguia me lembrar se tinha passado
desodorante. Ou se tinha escovado meu cabelo.
Não. Não era hora de conhecer Duncan Carpenter. De novo.
Eu tinha que sair de lá.
Abaixei-me atrás do meu carrinho e comecei a segui-lo,
imaginando que era melhor mantê-lo sob minha mira enquanto me
movia em direção aos corredores do caixa. Todas as compras sem
sentido foram agora esquecidas. Ele estava aqui! Na ilha! Minha
ilha! Na minha mercearia, dentre todos os lugares!
Eu não posso te dizer o quão chocante foi vê-lo. Olhando para
trás, eu deveria ter abandonado o café e saído noite adentro.
Mas na verdade eu estava sem café. Algo que eu não poderia
encarar o início das aulas sem.
Eu não queria olhar diretamente para ele, com medo de que ele
sentisse e se virasse, então olhei para um ponto a alguns
centímetros à sua direita e mantive meus olhos lá até que ele
virasse à esquerda para os alimentos congelados e eu enganchei à
direita no primeiro corredor de caixa disponível. Então esperei
enquanto o balconista examinava uma pilha do que deviam ser
todos os jantares congelados do lugar para um velho em um
andador.
Eu deveria ter tido compaixão pelo velho? Claro.
Era provável que ele fosse um viúvo, agora cuidando de si
mesmo depois de perder o amor de sua vida – do jeito que Babette
era? Ou possivelmente fazendo uma compra semanal para alguns
amigos que só precisavam de sustento? Ou talvez ele estivesse
doente e as refeições de micro-ondas fossem tudo o que ele
pudesse fazer? Todo mundo tinha uma história. Mas eu não tinha
tempo para simpatia. Eu tinha que sair de lá. Fiquei atrás dele
impaciente – na verdade, literalmente batendo com o dedo do pé –
enquanto as caixas congeladas davam falhas no leitor de código de
barras repetidas vezes, minha ansiedade aumentando.
Posso apenas acrescentar que o balconista era tão afiado
quanto uma bola de gude? Ele não pensou – ou não sabia como –
inserir manualmente os números dos itens e, assim, quando o
scanner não apitava, ele apenas digitalizava de novo, e de novo, e
de novo. Então ele limpava o scanner com a bainha da camisa, ou
soprava nele, ou falava com ele em voz severa.
Sete mil jantares congelados depois, eu queria bater minha
cabeça contra a esteira rolante. Mas eu fiquei parada.
Absolutamente imóvel. Porque foi quando o velho estava finalmente
para pagar e contando seu troco exato – em notas de um e
centavos, pelo amor de Deus – que ouvi um carrinho rolando atrás
de mim. Ouvi e depois senti – porque bateu na minha bunda.
— Ui. Sinto muito — disse o empurrador do carrinho, agora
apenas alguns metros atrás de mim.
Duncan Carpenter.
Eu não ouvia aquela voz há mais de quatro anos, mas reconheci
num instante.
Quando identifiquei sua marcha no corredor, tive 90% de certeza
de que era ele. Quando dei uma olhada em sua bunda, aumentei a
porcentagem para 99. E agora, com a voz, poderíamos chegar a
100. Era ele. Sem dúvida. Sem espaço para questões. Não havia a
menor possibilidade de que aqui, vestida na minha camisa
manchada de molho, eu tivesse acabado de levar uma pancada de
outra pessoa.
Eu só sabia de uma coisa naquele momento.
Eu não estava me virando.
Eu deixaria meu café para trás antes de me virar. Eu empurraria
aquele velho no andador para fora do caminho antes de me virar. Eu
ficaria de quatro e rastejaria até o estacionamento antes de me virar.
Quando eu não respondia a um “sinto muito”, ele tentava
novamente com um “não pisei no freio rápido o suficiente”.
Adivinha o que eu não ia fazer? Inversão de marcha.
Eu apenas levantei minha mão e agitei, como tanto faz.
Então eu fiquei lá. E simplesmente o ignorei.
Quando chegou a hora de pagar minha única lata de café, eu
nem me virei – apenas olhei para a frente, apenas desviando os
olhos para o lado para reconhecer o balconista – e assim que ele
passou para mim, passei o braço em volta do pacote de café, joguei
uma nota de cinco dólares no balconista e saí correndo de lá.
— E quanto ao seu troco? — o balconista me chamou.
— Fique com ele — gritei de volta, sem nem mesmo virar a
cabeça, enquanto passava pelo velhinho.
Do lado de fora, na calçada, encostei-me em um poste por um
segundo, depois continuei cambaleando como uma espécie de
fugitiva – pronta para ir para casa antes que qualquer outra coisa
acontecesse.

A um quarteirão de distância, quando o pânico diminuiu, finalmente


minha ficha caiu.
Isso estava acontecendo. Isso estava realmente acontecendo.
Duncan Carpenter estava se mudando para cá – já havia se
mudado para cá.
Era real. Eu teria que ir trabalhar todos os dias e vê-lo. Eu ia
encontrá-lo na praia, andando pela cidade e, como agora sabíamos
com certeza, na mercearia.
É claro que ele estaria casado agora com aquela moça
enfadonha da Andrews. Claro que ele teria uma família. Quantas
crianças eles já teriam tido em todos esses anos? Três? Quatro?
Um bando, no mínimo. Possivelmente um rebanho. É claro, é claro.
Ele seria um ótimo pai, carregando-os nos ombros e dando-lhes
passeios de avião. E ela organizaria todas as atividades das
crianças em um calendário familiar codificado por cores. Ela seria
uma cozinheira confiável e tomaria exatamente uma taça de vinho
todas as noites no jantar... e tomaria todas as suas bênçãos como
garantidas.
Eu pensei em todas as funções da escola onde eu teria que
olhar para eles, sendo adoráveis. Para ela, tolerando com bom
humor suas travessuras enquanto ele caminhava sobre as mãos, ou
fazia malabarismos com cachorros-quentes, ou ligava uma máquina
de karaokê no piquenique da faculdade de volta às aulas.
Antes que eu percebesse, o que começou como uma tentativa
de se inclinar para o inevitável deu lugar a uma pontada de pavor
tão aguda que me vi andando mais rápido, como se estivesse
tentando fugir de mim mesmo. Apenas a ideia disso... de estar presa
lá com eles, testemunhando infinitamente sua felicidade familiar
enquanto minha vida se tornava tão tragicamente curta em
comparação a cada contagem...
Oh, Deus. Ia ser pior do que eu pensava.
Eu tinha escapado dele antes. Eu havia desistido de tudo, me
mudado e construído uma nova vida. Uma boa vida. E agora,
caminhando – ou talvez mais e mais como batendo o pé – de volta,
eu me ressentia como o inferno de Duncan Carpenter por
simplesmente vir aqui e arruinar tudo. E Kent Buckley, aliás, por
contratá-lo. E Max também, enquanto eu estava nisso – por nos
deixar nessa situação, para começar.
Quando voltei para a cocheira, não havia escapatória.
Esta era a minha vida.
Agora, tudo o que eu podia ver à frente era a miséria, pois
Duncan encantou a todos e ocupou o lugar de Max como nosso
novo cara favorito. Duncan em todos os lugares. Diariamente. Para
sempre. O que isso faria comigo? Eu iria murchar? Eu entraria em
colapso? Eu me tornaria amarga, seca e pequena?
E então parecia claro: algo tinha que acontecer.
Posso não ter tido escolha sobre o que Duncan Carpenter fez,
ou Kent Buckley, ou mesmo Max. Mas isso não significava que eu
não tivesse nenhuma escolha.
Eu não precisava ficar aqui, esperando passivamente até que a
situação se tornasse insuportável demais para suportar. Eu não
precisava ficar parado enquanto minha vida desmoronava ao meu
redor. eu poderia fazer alguma coisa, poderia sair mais cedo em vez
de mais tarde. Pule o pior do pior – e avance para a parte em que
comecei a me sentir melhor.
Parecia uma ótima ideia.
Eu poderia ir embora.
Eu não queria sair da minha vida. Mas eu não queria que isso
fosse tirado de mim ainda mais.
E isso resolvia tudo.
Dadas as minhas escolhas, essa ideia parecia muito boa. Eu me
livraria da minha própria miséria. Eu iria para a escola amanhã,
assistiria à reunião introdutória de Duncan Carpenter e o seguiria de
volta ao seu escritório. E então eu tomaria meu futuro em minhas
próprias mãos... e desistiria.
Foi a boa ideia que mais partiu meu coração.
Mas lá estava: problema resolvido.
cinco

Parecia uma ótima ideia na hora.


Parecia uma ótima ideia na manhã seguinte, mesmo quando
acordei acidentalmente duas horas antes do meu alarme.
Apenas – ding – acordei.
Eu não era impotente. Eu não precisava trabalhar todos os dias
porque a miséria do amor não correspondido embalsamava a
alegria de mim.
Eu simplesmente pediria demissão – como uma pessoa adulta.
As pessoas faziam isso o tempo todo.
Claro, eu nunca abandonaria minhas crianças da biblioteca. Eu
ficaria até que um substituto adequado pudesse ser encontrado. E,
claro, no quadro geral, desistir era o pior cenário, porque significava
desistir de toda a minha vida aqui. Mas eu não estava olhando para
o quadro geral. Eu estava olhando para esta parte: eu queria ser
impotente – ou assumir o controle do meu próprio destino?
Resumindo a essa pergunta, a resposta foi fácil.
E respostas fáceis sempre são boas.
A ideia de escapar abriu meu coração e apenas bombeou alívio
pelo meu corpo. Eu tinha escolhas. Nenhuma delas era uma
escolha particularmente boa... mas isso não vinha ao caso.
Eu recomeçaria. Não é impossível. Eu já tinha feito isso antes e
poderia fazer de novo.
Eu começaria a procurar empregos em bibliotecas escolares em
cidades pequenas e adoráveis. Talvez Babette até viesse comigo.
Ela provavelmente poderia usar uma fuga também. E se Babette
estava indo, Alice poderia vir. Inferno, poderíamos começar uma
utopia totalmente nova em uma vila de pescadores histórica no
Maine ou em uma cidade fantasma esquecida no Colorado.
Não tinha como voltar a dormir agora. Sentei-me na cama e
acendi a luz. Ainda estava escuro como a noite lá fora.
Eu me sinto melhor. E não apenas melhor: revigorada.
Eu estava retomando minha vida.
Agora tudo que eu tinha que fazer era aguentar ver Duncan
novamente por um tempo. Quanto tempo essa reunião poderia
durar? Uma hora? Eu cerrava os dentes por uma hora e depois me
libertava.
Eu tomei minha decisão. A parte difícil acabou.
Embora eu ainda tivesse uma decisão: o que vestir.
É uma grande coisa ver alguém por quem você já se apaixonou
novamente depois de tantos anos – para qualquer um. Mas para
mim seria um grande negócio.
Porque eu tinha mudado muito.
Quando trabalhamos juntos antes, eu era tímida. Por escolha.
Eu estava... me escondendo. Mas eu não estava mais me
escondendo. Agora, na verdade, eu fazia o oposto.
Aquela primeira convulsão que tive depois que minha epilepsia
voltou?
Eu estava dirigindo quando aconteceu.
Eu bati meu carro na lateral de uma 7-Eleven.
Acabei no hospital com um braço quebrado, um olho roxo,
dezesseis pontos no topo da minha cabeça e uma careca onde eles
tiveram que raspar.
Ninguém mais se machucou, graças a Deus... mas eu não tinha
colocado os pés dentro de uma 7-Eleven desde então.
Após o acidente, na manhã em que era hora de voltar para a
escola, eu simplesmente não podia. Vesti-me toda e tentei cobrir
meu olho machucado com maquiagem e coloquei um gorro cinza
para cobrir meu curativo. Então coloquei minha mochila no ombro,
peguei as chaves do carro, vi meu reflexo no espelho... e comecei a
chorar.
Eu ainda estava chorando depois do segundo período quando
Max ligou para saber por que a biblioteca ainda estava escura.
Acabei tirando um dia de folga, mas naquela noite ele apareceu
na cocheira com um presente para mim: um chapéu todo coberto de
flores de papel de seda.
— Isto é certamente... muito brilhante — eu disse.
— É de Babette — disse Max. — Eu perguntei a ela se eu
poderia dar a você.
Deixei Max entrar e nos sentamos no meu sofá. Eu não
conseguia nem imaginar o que faria com um chapéu de flores
technicolor como aquele. Eu não sabia o que dizer.
— Tem mesmo... muitas flores.
— Eu acho que você deveria usá-lo para a escola amanhã —
disse Max.
Olhei para o chapéu, não querendo ser rude.
— É... um pouco mais ousado do que o meu visual normal.
— Sim, é — disse Max. — E é por isso que você vai passar o dia
todo falando sobre as flores, em vez de falar sobre a convulsão.
Eu balancei a cabeça. Eu entendi.
— Ou os pontos.
Ele deu de ombros.
— Ou a 7-Eleven.
Estudei o chapéu um pouco mais.
— Qual é a sua hesitação? — Max perguntou.
— Você já me viu usar algo assim?
— As flores são muito alegres — disse Max.
— Não estou realmente me sentindo alegre.
— Sim — disse Max. — É para isso que servem as flores.
Eu balancei minha cabeça para o chapéu de flor.
— Só não tenho certeza se consigo fazer isso.
— Apenas tente — disse Max, acenando com a cabeça, dizendo
vá em frente.
E assim, delicadamente – tanto pelas flores de papel quanto
pelos pontos – coloquei-o e me virei para o espelho e, de repente,
não parecia uma pessoa triste, assustada, decepcionada e recaída
que quase morreu em um acidente de carro causado por ela
mesma. Parecia que eu estava indo para um desfile.
E então comecei a chorar de novo.
Eu nem poderia ter lhe dito exatamente o porquê.
Por causa de tudo. Porque meus pontos doem. E porque eu
sentia falta da minha mãe. E porque eu não queria voltar para a
escola – nunca. E porque depois de mais de uma década curado, de
repente eu não estava mais curado. Mas também pela beleza
impenitente daquelas flores de papel. E a gentileza de Max. E
aquele chapéu deslumbrante, ridículo e maravilhoso.
Ele colocou o braço em volta de mim e apenas me deixou
chorar. Apenas fiquei ali até minhas lágrimas acabarem. E então,
quando finalmente me acalmei, ele disse:
— Quero lhe contar algo inteligente que descobri sobre a vida.
— Tudo bem — eu disse.
— E eu quero que você faça uma anotação mental, porque esta
é boa.
— Ok.
— Pronta?
Agora eu estava sorrindo.
— Sim!
— Ok. Ouça com atenção. Preste atenção nas coisas que te
conectam com a alegria.
Não era o que eu esperava que ele dissesse. Inclinei-me para
longe e me virei para franzir a testa para ele.
— O que a alegria tem a ver com alguma coisa?
— Alegria é importante.
Era mesmo?
— Não sei. Não ter acidentes de carro é importante. Alegria
parece bastante dispensável.
Mas Max apenas sorriu.
— É um dos segredos da vida que ninguém nunca conta. A
alegria cura tudo.
Alarguei minhas narinas.
— Tudo? — Eu desafiei, apontando para o curativo sobre meus
pontos.
— Tudo emocional — Max esclareceu.
— Eu não acho que você pode curar emoções — eu disse.
Mas Max apenas assentiu.
— A alegria é um antídoto para o medo. Para raiva. Para o tédio.
Para a tristeza.
— Mas você não pode simplesmente decidir se sentir alegre.
— Verdade. Mas você pode decidir fazer algo alegre.
Eu considerei isso.
— Você pode abraçar alguém. Ou ligar o rádio. Ou assistir a um
filme engraçado. Ou fazer cócegas em alguém. Ou sincronize os
lábios com sua música favorita. Ou compre um café para a pessoa
atrás de você no Starbucks. Ou use um chapéu de flores para
trabalhar.
Eu balancei minha cabeça.
— Um chapéu de flor não resolve todos os meus problemas.
— Não, mas com certeza pode ajudar.
Suspirei.
— Não se trata de resolver todos os seus problemas, de
qualquer maneira — disse Max. — Você nunca vai resolver todos os
seus problemas.
— Bem, isso é encorajador.
— O objetivo é ser feliz de qualquer maneira. Sempre que puder.
Deixei escapar um suspiro trêmulo.
— Eu sei que você está com medo — disse Max, apertando
minha mão. — Mas você vai se levantar amanhã e colocar aquele
chapéu maluco e caminhar até a escola... e não importa o que
aconteça, você ficará melhor por isso.
Eu queria acreditar nisso.
— Como você sabe? — Eu sussurrei.
— Porque — disse Max — a coragem torna tudo mais fácil da
próxima vez. E eu não vou deixar você viver sua vida com medo.

No dia seguinte, usei o chapéu para ir à escola.


E – como previsto – tudo o que todos notaram foi o chapéu.
As crianças ficaram fora de si de alegria – e os professores
também. Pude ver em seus rostos quando me viram – a feliz
surpresa disso. As pessoas se iluminavam quando me viam – e
ficavam animadas enquanto se afastavam, levando aquele
sentimento para o que quer que estivessem fazendo a seguir, e para
quem quer que vissem, transmitindo-o.
Ninguém falou sobre o acidente de carro, ou a convulsão, ou o
fato de que minha vida acabou de desabar sobre mim.
Conversamos sobre o chapéu. De onde veio isso? Do que foi feito?
Qual foi a sensação de usá-lo por aí?
— Fabuloso — eu dizia, e falava sério.
O chapéu resolveu tudo? Claro que não.
Mas isso me trouxe lampejos de alegria toda vez que o vi
acender a alegria em alguém. Isso mudou minha proporção de “ok”
para “não ok” apenas o suficiente para que eu pudesse funcionar, ir
trabalhar e fazer meu trabalho.
Não era um bote salva-vidas, exatamente – talvez mais como
um salva-vidas. Apenas o suficiente para segurar.
Mas funcionou.
Essa percepção mudou minha vida. Todo o meu jeito de vestir e
estar no mundo. Meu guarda-roupa silencioso de bege e azul-
marinho desapareceu em um ano – substituído por bolinhas e
listras, miçangas e franjas e rosas, laranjas e azuis brilhantes.
Enquanto esperava que meu cabelo voltasse a crescer, comecei a
usar lenços na cabeça, grandes óculos escuros de bolinhas e
colares de flores havaianos.
Fiquei tão viciada em cor que, quando voltei a ter cabelo, pintei a
franja de rosa-algodão-doce.
Estou lhe dizendo: no ano seguinte àquela primeira convulsão,
tive um renascimento.
Um renascimento da moda.
Principalmente na Target, é claro. (Certo? Eu não estava indo
para Paris com o salário de uma bibliotecária escolar.) Um
renascimento consciente do orçamento, mas um renascimento do
mesmo jeito: lenços, bolsas, colares, meias listradas até o joelho,
sandálias plataforma, saias rodadas, batom. Quanto mais louco e
colorido, melhor. Todas as cores que passei a vida inteira evitando
voltaram à tona – assim como os tecidos, o movimento, as texturas.
Posso ter exagerado um pouco. É possível que eu tenha me
inclinado um pouco mais para “palhaço de circo” do que para
fashionista naquele primeiro ano. Mas isso não importava. A
transformação me salvou. Isso me deu algo para fazer – algo para
esperar e me entusiasmar. Isso me deu uma maneira de chamar a
atenção para mim de forma positiva.
Em uma situação cheia de desvantagens, foi inegavelmente uma
vantagem.
Talvez eu nunca mais dirija, mas caramba, eu tinha um guarda-
roupa divertido.
E, para ser sincera, através de tudo isso, a memória de Duncan
Carpenter foi meio que minha inspiração.
Ele definitivamente não tinha medo da moda.
Pensei muito nele durante aquele ano – sua coleção de calças e
gravatas por si só já era uma ótima fonte de reflexão. Se havia um
par de calças louco no mundo, ele era o dono. Ele tinha calças de
algodão liso em todas as cores de vermelho para verde para roxo,
assim como listras, e toda uma coleção de roupas feitas de retalho
diferentes. Ele usava calças rosa com flamingos, calças azuis com
folhas de palmeira e calças amarelas cobertas de abacaxis.
Honestamente: bandeiras americanas, flores de hibisco,
hambúrgueres, dálmatas.
Sem mencionar sua regra de usar qualquer gravata que
qualquer aluno lhe desse, o que deu origem a toda uma coleção de
doozies: patos de borracha, porcos voadores, casquinhas de
sorvete, Frida Kahlo e até Einstein mostrando a língua. As crianças
ficaram competitivas, tentando encontrar para ele as gravatas mais
loucas e chocantes. De notas de dólar a Homer Simpson e latas de
Spam, ele usava todos eles. Todos os anos, no dia das fotos, ele
usava uma gravata com a foto do corpo docente do ano anterior
impressa para criar um efeito infinito de imagem dentro de uma
imagem.
E nem me fale sobre as meias dele.
Foi mais sobre a surpresa do que qualquer coisa. O capricho, a
maldade e a quebra de regras. Isso teve um efeito sobre outras
pessoas. As crianças caçoavam dele sobre suas escolhas de moda,
assim como os adultos, e ele gostava. Foi algo que ele fez por si
mesmo – mas também algo que fez pelos outros. Era uma maneira
de fazer suas próprias regras –, mas fazê-lo com tanta alegria que
ninguém se importava. Começou conversa após conversa da
maneira mais adorável e autodepreciativa.
Desarmava as pessoas. Isso os relaxava. Isso os deixava de
bom humor.
Quero dizer, esse era um cara cujo crachá permanente do corpo
docente, que deveria ter apenas listado seu nome e departamento,
como “Duncan Carpenter/Jardim de Infância + Atletismo”, todos os
anos, misteriosamente voltava com um “erro de digitação” que dizia:
“Duncan Carpenter/Defesa Contra As Artes Das Trevas”.
Esse era Duncan: um intensificador de humor humano.
Usar o chapéu florido na escola naquele dia fez muitas coisas
boas para mim, mas nunca esperei que isso me desse um gostinho
de como era ser Duncan Carpenter.
Foi muito bom.
Após aquele dia de chapéu de flores, a pergunta número um que
comecei a me fazer ao me vestir de manhã era:
— É divertido?
Mais tarde, eu leria um monte de livros sobre teoria das cores e
a psicologia da alegria que explicariam exatamente como cores
vivas e caprichos criam respostas neurológicas reais de felicidade
nas pessoas. Mas naquela época, eu não conhecia nenhuma
ciência. Eu só sabia que usar um vestido vermelho coberto de flores
para trabalhar com sandália de bolinhas me fazia sentir melhor.
E eu realmente precisava me sentir melhor.
Agora, esta manhã, eu tive muitos, muitos sentimentos
complexos sobre vê-lo novamente –, mas um deles foi
definitivamente empolgação. Eu não pude evitar. Eu queria vê-lo
novamente. E eu queria que ele me visse de novo – ou talvez até
me visse pela primeira vez – tudo novo e melhorado, não mais
tímida, não mais invisível, não mais tentando tanto desaparecer.
O que tornou minha escolha de roupa esta manhã ainda mais
crítica.
Esta foi uma maneira de me defender. Uma forma de dizer que
sempre tive toda essa cor dentro de mim. Ele não tinha me
escolhido naquela época, mas naquela época eu estava me
escondendo.
Eu não estava mais me escondendo.
Eu era uma senhora com um chapéu de flores agora.
Diante da escuridão, escolhi flores. E bolinhas. E luz.
E se alguém na terra apreciaria muito isso, esse alguém seria
Duncan Carpenter.

E então – finalmente, finalmente, e cedo demais – eram oito e


quarenta e cinco. Hora de ir para a reunião das nove horas.
Desde que acordei, troquei de roupa pelo menos sete vezes –
finalmente decidindo por um vestido de camisa vermelho-maçã, um
cachecol de bolinhas azul-claro em volta do pescoço, estilo
aeromoça e sandálias de plataforma abertas que combinavam com
minha pedicure azul. Hoje em dia, meu cabelo está abaixo dos
ombros – principalmente para me divertir em trançá-lo e prendê-lo
em coques selvagens.
Eu mantive a franja rosa, no entanto.
Franja rosa meio que se tornou minha assinatura.
Adicionei brincos de argola e batom vermelho e delineador sutil
que deu uma vibe retrô de Mary Tyler Moore. Alice tinha me dado
um pequeno pacote de tatuagens comestíveis em sabores de
cupcake no meu aniversário com pequenos dizeres fortalecedores,
como: EU REALMENTE NÃO PRECISO DE VOCÊ, PORQUE EU
DISSE ASSIM, e ACORDEI ASSIM. Eu fui em frente e apliquei um –
VOCÊ CONSEGUE – na parte externa do meu bíceps, embora
minha manga o cobrisse. Eu podia sentir seu leve cheiro de
caramelo através do tecido.
Você consegue.
Eu queria ser incrível. Não algo tão comum quanto “gostosa” ou
algo tão comum quanto “bonita”. Eu queria ser surpreendente.
Uma tarefa difícil para uma reunião do corpo docente na
segunda-feira de manhã.
Antes de sair, prendi o cabelo em dois coques altos e prendi
florzinhas de papel neles, estilo Frida Kahlo.
Então puxei minha bicicleta e sua cesta coberta de flores para
fora da garagem e subi.
Foi o trajeto de bicicleta de três quarteirões mais longo da
história.
Eu mal podia esperar para ver Duncan Carpenter novamente
tanto quanto esperava que ele nunca aparecesse. Eu ansiava que o
momento chegasse tão claramente quanto eu temia. E, assim como
eu tinha feito desde o momento em que Kent Buckley disse o nome
de Duncan Carpenter, pensei em sua chegada com tanta frequência
quanto me recusei a pensar nisso.
O que era constantemente.
Como seria vê-lo novamente?
Naquela foto que Kent Buckley nos mostrou, Duncan cortou o
cabelo... então seria estranho. O Duncan que eu conhecia e amava
ostentava a própria definição de cabeceira – uma configuração
diferente a cada dia. Uma bagunça adorável.
Na foto, Duncan parecia inegavelmente diferente: mais adulto,
mais sério, melhor barbeado. Mas eu não conseguia pensar em
Duncan como um cara que usava terno.
Eu sabia quem era Duncan.
Ele era um cara que usava uma camisa havaiana.
A expectativa despertou todos os meus sentidos, aumentou
minha consciência de tudo – a sensação do vento na minha pele, os
sons dos carros passando, a cor do azul no céu, o bando de
pelicanos deslizando por cima. Minhas entranhas formigavam de
nervosismo – de maneiras boas e ruins.
Ele ficaria feliz em me ver? Ele se lembraria de mim
imediatamente ou eu pareceria tão diferente que ele levaria um
segundo? Será que ele gostaria da minha nova vibração? Sempre
havia a possibilidade de que não. Como eu responderia a ele se ele
me dissesse para diminuir o tom? Eu seria o velho eu e acenaria
humildemente, com os olhos baixos – ou eu ficaria atrevido, ergueria
as sobrancelhas e diria algo como:
— Diz o homem que usa calça com flamingos?
Seria alegria ou seria agonia? Não tinha como saber.
Mas meu dinheiro estava definitivamente em ambos.

Cheguei na hora certa, esperando encontrar Duncan distribuindo


rosquinhas, ou fazendo uma queda de braço em alguém, ou
fazendo o robô no palco. Esperando que a diversão já teria
começado.
Mas quando atravessei a porta, Duncan ainda não estava lá.
Da maneira como nosso histórico prédio escolar foi montado, o
refeitório funcionava como um teatro. Uma cozinha em uma
extremidade e um palco na outra. Era por isso que todas as grandes
reuniões da escola aconteciam no refeitório – e nunca podíamos
realizar reuniões na hora do almoço.
Meu nervosismo aumentou quando passei pela porta, mas
depois diminuiu.
As cadeiras estavam cheias de professores.
Mas nada de Duncan.
Fiquei aliviada e decepcionada ao mesmo tempo.
Eu pisquei. Olhei novamente. E então resolvi sair rapidamente
da sala e voltar mais tarde.
Olha, este era Duncan Carpenter.
Eu não poderia ser apenas um ponto na platéia na primeira vez
que o vi novamente. Eu precisava entrar na sala, alta e
resplandecente em minha roupa vermelha como uma deusa
ligeiramente descolada e muito Technicolor, muito obrigada. Esta foi
a maior dor de cabeça da minha vida, e eu tinha muito a provar e
todo um novo paradigma sobre mim mesmo para estabelecer – logo
antes de desistir para sempre.
Isso teve que ser um momento e tanto, e eu não conseguiria
fazer tudo de novo.
Eu precisava fazer uma entrada.
Isso era tão irracional?
Respondendo à minha própria pergunta, eu me joguei ao
contrário – levantando um dedo como se tivesse esquecido alguma
coisa, então recuando e girando, imaginando que daria uma volta
pelos claustros e voltaria em cinco para uma segunda grande
tentativa de entrada.
Mas adivinhe?
O próprio Duncan estava logo atrás de mim, passando pela
porta apenas alguns segundos depois de mim. Então, quando parei,
girei e inverti a direção – tudo no espaço de um segundo – dei de
cara com ele.
Ou talvez ele tenha colidido comigo.
De qualquer maneira, nós colidimos – fortemente – e tenho
certeza de que o esfaqueei no estômago com a caneta que
carregava. Tenho certeza de que meu queixo bateu em algo duro,
provavelmente sua clavícula – e, enquanto reverberamos com o
impacto, Duncan deixou cair seu laptop no chão de ladrilhos
industriais.
Acertou com um estrondo e toda a sala soltou um “Oof!” coletivo.
Então alguém gritou:
— Isso vai deixar uma marca!
Foi tudo tão rápido que me esqueci de mim mesma.
Por um segundo, esqueci completamente onde estávamos e
quem éramos, e tudo em que pensei foi que tinha acabado de
esfaquear alguém – e sem pensar em nada, olhei para baixo, enfiei
minha mão dentro de seu paletó e pressionei-o contra seu
estômago, murmurando algo como:
— Ai meu Deus! Você está bem?
A coisa toda aconteceu em segundos.
O que eu estava fazendo? Verificando se há sangramento?
Certificando-se de que minha caneta não foi empalada em seu
abdômen? Não foi até que minha mão já estava lá, já pressionada
contra ele logo acima do cinto, sentindo sua pele quente através do
algodão frio de sua camisa, que senti os músculos de seu estômago
tensos em algum tipo de situação de tanquinho quando ele recuou
com o toque inesperado.
O choque do que eu fiz me atingiu com a reação dele – eu tinha
acabado de enfiar a mão dentro de seu paletó e pressionado minha
mão em seu estômago – e puxei minha mão de volta. Mas então,
quando levantei meus olhos para o rosto dele, com a intenção de
dizer que sentia muito por tudo isso, notei outra coisa: uma mancha
vermelho-escura – oh, Deus, de batom – em sua camisa branca
desde o momento em que minha boca acabou de colidir com ela. E
ao vê-la, ainda sem pensar – meu cérebro ainda está vários passos
atrás de minhas ações – e talvez apenas querendo fazer algo certo
em toda essa situação desastrosa, me vi estendendo a mão para
esfregar a mancha, como se pudesse limpá-la com as pontas dos
meus dedos, mesmo que não seja assim que o batom funciona.
Isso mesmo. Segui o meu acidente de pressionei-minha-mão-
contra-seu-estômago com um esfreguei-sua-clavícula-com-a-
almofada-dos-dedos-só um pouco menos acidental.
Fazendo as contas, eu diria que o momento totalizou cinco
segundos infelizes.
Por fim, dei um passo para trás, de boca aberta, meu maxilar
ainda ardendo como se tivesse levado um soco, e ele olhou para a
carcaça do laptop.
Quando ele se abaixou para pegá-lo, movendo-se lentamente,
como se ainda houvesse alguma esperança, ele chacoalhou.
— Sinto muito — eu disse, inclinando-me para mais perto para
dar uma olhada no dano.
Ele se levantou e deu um passo para trás, os olhos arregalados
e atônitos, piscando para mim como se eu fosse algum tipo de
diaba. Como se eu pudesse atacar novamente.
E então o tempo pareceu se distorcer e desacelerar quando eu o
vi pela primeira vez desde a mercearia, quando eu estava em
pânico demais para realmente entender.
Lá estava ele.
Depois de todos esses anos.
Ele, mas não ele.
Ele, mas alterado. Musculoso. Arrumando. Cabelos curtos,
penteados para cima e para trás, quase como um cruzamento entre
um coque e um topete. Com gel e sem um fio fora do lugar.
Profissional. Adulto.
Era isso: ele parecia um adulto.
E não vou mentir – definitivamente era um novo tipo de
sensualidade.
Eu esperava que a visão dele não fizesse muito por mim – que
depois de todo esse acúmulo, pavor, preocupação e antecipação, o
momento real em que eu o visse novamente pudesse fracassar.
Que eu o veria novamente depois de todo esse tempo e pensaria:
— Ah. Você. Que seja.
Mas…
Não.
O oposto. O oposto mais elétrico, físico e de tirar o fôlego.
O fato dele – bem ali, tão perto – enviou ondas de consciência
zumbindo e estalando pelo meu corpo. Quase doeu um pouco. Mas
de uma forma boa.
Duncan Carpenter estava a quinze centímetros de mim.
Parecendo muito, muito bonito.
Era como se ele tivesse amplificado todas as partes mais
masculinas de si mesmo.
Até seu maxilar parecia mais quadrado. Como isso foi possível?
Era ele, sem dúvida... mas nada como o cara pateta cuja
memória estava guardada como uma lembrança em meu coração.
Era ele, mas com uma expressão totalmente impassível. Era ele,
mas vestindo – e não estou brincando aqui – um terno de três
peças.
Um terno cinza de três peças.
Com gravata azul marinho.
Eu já tinha visto alguém, alguma vez, em um terno de três
peças? Eles ainda os fabricam? Isso não era apenas para pais em
reprises de seriados antigos? Teria sido tão bizarro para qualquer
pessoa da minha idade usar aquele terno –, mas Duncan Carpenter,
o cara que costumava dar aulas de malabarismo com os pés
descalços porque você tinha que “massagear a terra” para “pegar o
seu ritmo”?
Impossível.
Pisquei algumas vezes, como se isso pudesse ajudar tudo a
fazer sentido.
Eu não conseguia ler sua expressão. Eu esperava muito que,
quando ele inspirasse novamente para dizer algo, fosse:
— Samantha Casey? Da Andrews Prep? — E então, caramba,
enquanto eu estava escrevendo diálogos para ele, ele também
poderia dizer:
— Você está incrível! Eu nunca percebi o quão deslumbrante e
fabulosa você era! — E então talvez... por que não?, ele teria um
grande sorriso relaxado e esticaria os braços para um abraço e
anunciaria para a sala: — Eu me arrependo de todas as minhas
escolhas de vida!
Eu não teria dito não a um momento como aquele.
Em vez disso, ele olhou para mim e – assim como faria com
qualquer outro total estranho na sala que tivesse acabado de bater
nele, quebrar seu laptop, esfregar sua barriga e depois acariciar
estranhamente sua clavícula – ele disse:
— Sente-se, por favor. Já passou da hora de começar.

Quando ele se virou e caminhou em direção ao palco, segurando


seu laptop quebrado, aceitei várias verdades de uma só vez. Um:
Duncan Carpenter estava realmente aqui, na minha escola, prestes
a se tornar o cara no comando. Dois: eu não estava imune a vê-lo
de forma microscópica. E três: ele não tinha ideia de quem eu era.
Essa último doeu, não vou mentir.
Nem mesmo um lampejo de reconhecimento. Nem mesmo uma
pequena carranca de déjà vu. Nada.
Eu sabia que tinha mudado muito. Quase tudo em mim era
diferente agora. A franja, os óculos, o batom – as cores. Eu
esperava que ele não me reconhecesse a princípio.
Mas eu estava tão ansioso pela grande revelação – quando eu
diria:
— É Samantha Casey! Da Andrews! Exceto que agora estou
fabulosa! — e veria todo o reconhecimento se encaixar.
Na verdade, eu nem percebi o quão faminta eu estava para
experimentar aquele momento até que isso não aconteceu. Eu não
tinha sido um patinho feio antes, exatamente... mas talvez mais
como um ratinho. Como teria sido ver a cara dele ao perceber que o
ratinho havia se transformado em uma... uma... uma bibliotecária
estilosa com um cachecol de bolinhas?
Nada melhor do que um antes e depois.
Mas ele não se lembrava do antes. Então isso praticamente
matou o depois.
Foi desanimador, para dizer o mínimo. Foi também um momento
que eu poderia ter processado direto até a hora do jantar com Alice
se houvesse tempo para arrastá-la para o banheiro feminino.
Mas não havia.
Em segundos, Duncan estava no pódio e eu me sentei
humildemente na última cadeira vazia – bem na primeira fila, ao lado
de Alice, que usava uma camiseta azul-marinho que dizia: COMER.
DORMIR. MATEMÁTICA. REPETIR.
Alice era o tipo de pessoa da primeira fila, e eu também.
Embora talvez menos hoje.
Eu dei uma olhada em Duncan, agora olhando para a mancha
vermelha de batom em sua camisa.
Ele se esfregou por um segundo. Então ele desistiu.
Ele se virou para a sala e meus olhos pareciam magnetizados
para ele.
Ele parecia ainda maior no palco, e tão errado naquele terno
cinza sem graça – mas também – tudo bem – inegavelmente bonito.
Para mim, pelo menos.
— Olá — ele disse finalmente, ao microfone, embora houvesse
apenas cerca de quarenta professores e funcionários ali. Ele não
precisava exatamente disso. — Meu nome é Duncan Carpenter,
mas você pode me chamar de–
E aqui, eu antecipei totalmente um de seus antigos apelidos de
Andrews: Duncan Do-Nuts, Grande D, Dunker, Dig-Dug ou
simplesmente D, antes de lembrar que ele estava na administração
agora e revisar minha expectativa para talvez apenas seu antigo
nome.
Foi quando ele terminou com: “Diretor Carpenter”.
Deixei escapar um gritinho engraçado.
Duncan ignorou.
— Sou o novo diretor da escola.
Onde estava a comédia? Onde estava a alegria? Esperei que
algo divertido acontecesse – qualquer coisa. Uma queda de balão,
talvez. Um momento de karaokê. Talvez aquele terno acabasse
sendo um roubo.
Mas nada.
— A Escola Kempner — Duncan continuou, com uma voz séria
e monótona — é um modelo. Sua reputação nacional de estimular a
criatividade e a diversidade é incomparável. Por trinta anos, esta
instituição vem inovando, edificando e liderando com seus modelos
centrados na criança para crescimento e aprendizado. Vocês
inspiraram toda uma geração de educadores e é uma grande honra
para mim estar aqui, pisando humildemente nos oxfords do Diretor
Kempner.
Ok. Tudo bem. Justo. Esta era uma ocasião séria. Eu poderia
dar a ele alguns minutos de seriedade.
Mas suas frases soaram tão formais e tão ensaiadas, mais como
se ele estivesse lendo comentários escritos do que falando conosco.
Mais como um apresentador lendo um teleprompter do que um
colega. Mais parecido com um robô do que com um ser humano.
Ele continuou por muito tempo, fazendo a maioria das coisas
que os administradores fazem no início do ano letivo – percorrendo
a lista de verificação superficial de Tópicos a Cobrir.
Assim que olhei e vi Alice abafando um bocejo, seu tom mudou
e ele parecia começar a construir algo.
— Vocês têm sido líderes por tantos anos em educação,
especialmente em áreas de diversidade e criatividade. Durante
minha gestão, espero tornar Kempner conhecida por liderar em mais
uma área. Um que é tantas vezes tragicamente esquecido. Um onde
eu tenho muita experiência.
De repente, entendi. Todo esse absurdo rígido e burocrático? Foi
tudo uma configuração para uma recompensa incrível.
Eu sabia o que ele ia dizer.
Um sorriso se abriu em meu rosto com dentes e tudo.
Em que área Duncan Carpenter tinha experiência?
Brincar.
Ele era o rei das brincadeiras. De volta a Andrews, ele fundou a
Sociedade Donut, inventou um jogo chamado Bobo-Ball e fundou
um clube chamado Brincadeira e Risadas, que era basicamente um
concurso de risadas com duração de um semestre. Ele havia
começado a competição anual de comedores de tortas dos
professores. Ele se vestia em dias não anunciados com fantasias
como, aleatoriamente, um hamster, um sanduíche e um cacto
saguaro – sem motivo. Ele tinha sido o instigador de incontáveis
filas de conga na hora do almoço, cantorias e lutas de comida.
Se esse cara tinha uma área de “muito conhecimento”, era em
brincar.
Senti uma espécie de brilho no peito com a antecipação. É claro
que essa coisa de cara sério foi uma armação. Claro que ele deve
estar vestindo algum tipo de fantasia de Capitão América por baixo
daquele traje. Claro que uma bola de discoteca estava prestes a cair
do teto.
O verdadeiro Duncan Carpenter tinha que estar lá em algum
lugar.
Algo estava prestes a acontecer. Eu podia sentir isso.
Eu cutuquei Alice, dizendo: Prepare-se.
Então me virei para olhar para Duncan no palco, meus olhos já
brilhando de admiração pelo que quer que ele estivesse prestes a
fazer. Este era o momento em que ele mostraria a todos o que eu
quis dizer quando prometi a eles que ele era incrível.
Ele estava prestes a nos redimir.
Em seguida, ele disse:
— Prepare-se, porque…
Eu levantei minhas mãos, pronta para bater palmas.
E foi aí que ele enfiou a mão no paletó e fez algo que ainda hoje
mal consigo acreditar.
Totalmente inacreditável – mesmo agora.
Duncan Carpenter – um dos humanos mais doces que já
conheci – parou no palco do refeitório de nossa pequena escola na
frente de todos os professores e funcionários, enfiou a mão dentro
do paletó e sacou... uma pistola.
Ele ergueu o braço.
Ele apontou para o teto.
E então – sobre o suspiro sufocado de toda a multidão – ele
disse, como se fosse uma grande peça teatral de Duro de Matar:
— Vamos ser líderes da nação em segurança e proteção no
campus.
seis

Spoiler: era uma pistola de água.


Não que isso o torne melhor.
Duncan havia pintado com spray uma pistola de água de plástico
transparente cinza metálico.
Como um psicopata.
Ele também fez um ótimo trabalho. Parecia malditamente real.
Ele parou por um segundo de terror. Então, antes que as
pessoas começassem a gritar, ou desmaiar, ou morrer de ataques
cardíacos, ele puxou o gatilho e esguichou várias pequenas fontes
inofensivas no teto antes de abaixar a mão para nos encarar.
Houve uma longa pausa antes de ele falar.
Então ele disse:
— Assustados?
A multidão não respondeu.
Ele colocou a pistola de água no pódio.
— Porque vocês deveriam estar.
Ninguém sabia o que fazer. Todos nós apenas sentamos lá,
congelados pelo medo.
Quem era esse cara? Duncan Carpenter tinha um gêmeo
maligno? O Duncan que eu conhecia estaria agora fazendo
malabarismo com galinhas de borracha. Esperei, torcendo para que
a qualquer momento uma banda marcial entrasse no auditório.
Mas, não.
Duncan apenas ergueu a arma novamente.
Mesmo sabendo que era falsa, todos nós estremecemos.
— Apesar de todo o prestígio desta escola — disse Duncan,
olhando genuinamente zangado para nós —, apesar de todas as
suas inovações brilhantes e programas inovadores… ainda há um
longo caminho a percorrer.
Ele abaixou a arma novamente e todos nós suspiramos.
— Eu entrei aqui com isso. Alguém se importa em adivinhar
como eu fiz isso?
Ele piscou para o grupo.
O grupo piscou de volta.
Finalmente, eu não aguentei – por ele, assim como por nós. Eu
levantei minha mão enquanto gritava:
— Porque você é nosso novo diretor e nós confiamos que você
não era um maníaco homicida?
Duncan apontou para mim.
— Esse é exatamente o meu ponto: nunca confie em ninguém.
— Ele examinou todos nós então, agradável e lento, e ele disse isso
de novo. — Nunca. Confie. Em. Ninguém. — Como se fosse o
nosso novo lema escolar.
Alice olhou para mim, algo como você está brincando comigo.
E tudo que pude fazer foi dar a ela o mesmo olhar de volta.
O que estava acontecendo? Duncan estava fazendo bom
policial/mau policial, mas sem o bom policial?
— A segurança nesta escola — Duncan continuou — é terrível.
— Então ele começou a contar os problemas nos dedos. —
Ninguém olhou. Ninguém verificou. O portão para o pátio estava
escancarado. Ninguém me perguntou quem eu era ou exigiu que eu
obtivesse um crachá de segurança. O segurança dormia
profundamente em uma cadeira dobrável com uma revista de pesca
na barriga.
Alice e eu trocamos um olhar – e balançamos a cabeça.
Raymond.
Duncan continuou.
— Acabei de concluir uma avaliação de suas práticas de
segurança. Vocês sabiam que o plano de emergência da escola não
é atualizado há sete anos? Vocês sabiam que metade das
instruções de emergência afixadas nas salas de aula estão faltando
ou obscurecidas? Vocês sabiam que um terço das câmeras de
vigilância não estão funcionando? — Ele ergueu um bloco de notas
amarelo. — Eu poderia continuar por horas. Para uma escola deste
calibre se importar tão pouco com a segurança de seus alunos é
uma vergonha. Esta escola é uma vergonha nacional. É um
pesadelo.
Olhei em volta para nosso refeitório ensolarado. Suas janelas
altas e brilhantes. Seu alegre piso quadriculado amarelo. As
lanternas de papel pintadas com crianças penduradas no teto. Os
quadros de avisos já forrados de laranja, vermelho e amarelo,
apenas esperando por alguns auto-retratos do jardim de infância
para preenchê-los. Sem mencionar o mural de borboletas gigantes
que Babette e eu havíamos pintado com amor alguns anos atrás –
colorido, caprichoso e alegre.
Eu não chamaria isso exatamente de pesadelo.
— O que eu não entendo — Duncan continuou — é como as
coisas podem estar tão ruins? Que escola atual não fecha seus
portões durante o dia escolar? Ou não exija que os visitantes
mostrem a identidade? Ou não tenha seguranças conscientes?
Presumimos que fossem perguntas retóricas, mas então ele
esperou por uma resposta.
Por fim, Carlos deu de ombros e disse:
— Porque nunca tivemos um problema antes?
Duncan assentiu e apontou para ele.
— Exatamente. — Então ele se dirigiu a audiência — Ninguém
nunca tem um problema, até que haja um problema. O estado de
coisas nesta instalação é, francamente, um insulto. Um insulto para
vocês, para mim e para as crianças que vêm aqui todos os dias.
Vocês estão implorando para ser atacados.
Eu não diria implorar.
Duncan tinha razão? Provavelmente.
As práticas de segurança eram um pouco frouxas em nossa
alegre escola na ilha? Talvez.
Mas ele estava alienando todos na sala agora? Pode apostar.
O que ele poderia estar pensando? Este foi o nosso primeiro
encontro. Mesmo as pessoas com habilidades interpessoais
terríveis não tinham habilidades interpessoais tão terríveis. Por que
ele não estava encantando todo mundo e sendo incrível? Não havia
como ele não saber o que tínhamos acabado de passar com Max. O
que exatamente sobre assustar todo mundo com um falso arma e
depois chamar nossa doce e ensolarada escola de “um pesadelo”
parecia uma boa ideia?
Pela aparência de todos os rostos na sala, todos estavam tão
perdidos quanto eu. Sabíamos que o novo cara não seria igual Max
– quem poderia ser? –, mas ninguém esperava... isso.
Se nada mais, Duncan Carpenter tinha habilidades com as
pessoas. Ele era – ou pelo menos tinha sido – um gênio com
crianças. E com adultos. E com animais também, enquanto estamos
nisso. Basicamente, se você fosse uma coisa viva, Duncan sabia o
que dizer a você, como interagir e como encorajá-lo a ser a melhor
versão de si mesmo.
Não mais, aparentemente.
Max ensinou a todos nós a nos importarmos desesperadamente
com a escola. Para estar investido. Participar – ativa e
profundamente. Ninguém aqui estava entrando no barco. A maioria
de nós trabalhava horas extras semanalmente. A maioria de nós
encontrou o emprego dos sonhos aqui – onde nossas opiniões eram
valorizadas e admiradas por todos os presentes que trazíamos para
a mesa, e éramos encorajados a ter uma participação no que o
lugar era e como era administrado.
Isso foi tudo Max. Ele criou uma cultura de admiração e apoio.
E ele estragou a todos nós terrivelmente.
Esta versão de Duncan na Twilight Zone não viu nada disso.
Tudo o que ele viu foi o que estava errado. O que era o oposto
absoluto do Duncan que eu conhecia – que tinha sido a melhor
pessoa que eu já conheci em ver o que era certo.
Duncan se aproximou da borda do palco e ficou mais alto em
algum tipo de postura de poder do He-Man.
— Quero que saibam que entendo que o Diretor Kempner era
praticamente o coração e a alma da escola.
Junto com Babette, quis acrescentar.
— Mas vou lhe dizer uma coisa agora mesmo — ele continuou.
— Se ele não estava cuidando de sua segurança física, então ele
não passava de um tolo.
Senti a sala inteira prender a respiração.
Não. Ele. Não. Fez. Isso.
Lembrete rápido: o homem de quem ele estava falando morreu
bem na nossa frente.
Babette ficou branca, mas não se mexeu.
— Eu quero que vocês saibam — Duncan continuou — que
estou animado por estar aqui. A negligência criminosa do Diretor
Kempner com sua segurança nos deu a chance de fazer algumas
melhorias épicas. Agora é hora de liderar a nação em nossa
próxima fase. A fase que garantirá a segurança de todos os
membros desta comunidade escolar e mostrará a toda a América
como se faz.
Nós o encaramos.
Ele nos encarou de volta.
Finalmente, ele deu um pequeno aceno e disse:
— Muito obrigado.
E ele havia acabado.
Pelo menos, eu acho que ele havia acabado.
Ele não se aproximou de ninguém na sala, nem nos perguntou
nada sobre esse novo lugar do qual ele deveria estar encarregado,
ou interagiu, ou se uniu, ou, você sabe, fez pelo menos uma coisa
que deveria ter feito... mas, não importa, ele estava pegando seu
laptop quebrado e saindo do palco.
Talvez três pessoas bateram palmas por educação.
Então os aplausos pararam e todos ouvimos o barulho dos
saltos de seus sapatos quando ele acabou de atravessar a sala e
finalmente saiu pela porta.
sete

Assim que a porta se fechou, todos enlouqueceram.


— Que raio foi aquilo? — Carlos exigiu, assim como Donna e
Emily disseram, em uníssono: — Esse cara é louco!
Um treinador chamado Gordo se levantou e apontou para o
pódio vazio.
— Aquele cara acabou de subir no auditório de uma escola
primária com uma arma?
— Uma pistola de água — eu me senti compelida a apontar,
quase como se eu tivesse que fazer um pouco de relações públicas
para Duncan... pelos velhos tempos, se nada mais.
— Parecia muito real para mim — disse Anton, o professor de
ciências recém-divorciado.
— Até que esguichou água — eu disse.
Por que eu estava defendendo Duncan? Fiquei tão horrorizada
quanto qualquer outra pessoa.
— Mais importante — Carlos exigiu — ele acabou de insultar
Max?
A sala fez murmúrios de perplexidade tingida de indignação –
com frases como “Que diabos?” e “Quem faz isso?” quebrando a
superfície repetidamente.
— Talvez ele só quisesse chamar nossa atenção — eu disse.
— Com uma arma? — Anton exigiu.
Suspirei. A manhã inteira foi insondável. Eu não poderia explicar
isso, e com certeza não poderia defendê-lo.
Duncan – ou quem quer que tenha sido – estava sozinho.
Mas eu não poderia me negar tão facilmente.
Eu o defendi agora há pouco, mas também o defendi o tempo
todo, prometendo que Kent Buckley havia acidentalmente nos
contratado o melhor diretor que poderíamos esperar. Eu tinha jurado
que Duncan iria explodir suas mentes.
Frase infeliz, em retrospectiva.
De qualquer maneira, eu me estabeleci como a autoridade
residente em Duncan, e agora a sala queria respostas. O pânico se
tornou acusatório.
— Você disse que ele era incrível — disse Emily, virando-se para
mim.
— Ele era incrível — eu insisti. — Eu juro que ele era.
— Isso não foi incrível. Isso foi psicótico — disse Emily.
— Ele pintou uma pistola de água para parecer real! Quem faz
isso? — acrescentou Carlos.
A indignação se transformou em um estrondo.
— Talvez seja o irmão gêmeo do mal — disse a enfermeira da
escola, balançando a cabeça.
Pisquei e balancei a cabeça.
— Talvez ele estivesse tendo um dia ruim?
— Um dia ruim! — Eles ficaram indignados.
— Não sei! — Eu disse. — Estou tão perplexa quanto todo
mundo. O que quer que fosse aquilo, não foi nada parecido com o
cara com quem eu costumava trabalhar. O cara que eu conhecia
deslocou o ombro testando um escorrega de sabão e gelatina para
o carnaval da escola, duas vezes! Ele não era obcecado por
segurança. Ele não se importava nem um pouco com a segurança.
Babette apenas ficou sentada em sua cadeira, nos observando.
Normalmente, ela seria a pessoa que lidaria com as preocupações
de todos. Mas nada mais na vida era normal.
Finalmente, eu intensifiquei.
— Tudo bem — eu disse. — Aquele não foi o momento conheça-
o-novo-diretor que todos esperavam.
— Isso é um eufemismo — gritou o treinador Gordo.
— Mas — eu disse, tentando incutir aquela palavra com um
otimismo que eu não sentia — foi apenas uma reunião. Talvez ele
estivesse nervoso. Talvez ele tenha recebido alguns maus
conselhos. Talvez ele não estivesse se sentindo bem. Nós não
sabemos. Tudo o que podemos fazer agora é voltar para nossas
salas de aula e terminar de nos preparar para o início das aulas.
— Isso não é tudo que podemos fazer — disse Anton.
Suspirei.
— Vou falar com ele e tentar descobrir isso. Vamos nos
encontrar na casa de Babette esta noite e eu volto para relatar.
Um dos professores se ofereceu para obter o estatuto da escola
para descobrir exatamente quanto poder de contratação Kent
Buckley tinha. Ele poderia simplesmente escolher qualquer louco
que quisesse? Parecia improvável, mas, por outro lado, quando Max
e Babette estavam no comando, nada disso importava. Era possível,
pelo menos, que algumas regras estranhas tivessem passado
despercebidas.
Enquanto considerávamos essa possibilidade, fiz uma pequena
jogada de professora.
— Olhos em mim — eu disse. — Não vamos surtar. Vamos
escolher acreditar que está tudo bem até que tenhamos evidências
do contrário.
Foi um dos meus conselhos favoritos de Babette. Ela me dava o
tempo todo.
— Hum — disse a enfermeira. — Acho que conseguimos nossa
evidência do contrário quando ele sacou aquela arma falsa.
— Ok — eu disse, em tom de isso é justo. — Mas este foi o
primeiro dia dele. Podemos dar a ele uma chance de recomeçar.
Poderíamos, e faríamos. Tínhamos trabalho a fazer, salas para
organizar, um ano letivo começando na próxima segunda-feira,
pronto ou não. Não havia tempo para fazer mais nada. Este plano
teria que servir por enquanto. As pessoas começaram a juntar suas
coisas.
Eles não iam entrar em pânico, nem eu.
Não, pelo menos, até que eu descobrisse o que diabos estava
acontecendo.

Caminhando até o escritório de Max, agora de Duncan, lutei para


entender praticamente tudo sobre vê-lo novamente. Havia tanto com
o que discutir – desde a arma falsa, até sua surdez total com o
grupo, até seus comentários rudes sobre Max.
Sem mencionar que ele não tinha me reconhecido.
Agora que a loucura total da reunião estava em pausa por um
minuto, essa foi a parte que voltou correndo.
Ele olhou direto para o meu rosto com reconhecimento zero.
Como isso era possível? Isso era mesmo possível?
Fisiologicamente, quero dizer?
Não era como se tivessem passado vinte anos. Fiz as contas
enquanto caminhava pelo claustro, passando pelo pátio. Eu havia
deixado Andrews para vir para Kempner quatro anos atrás, em
maio, então fazia quatro anos e três meses desde que Duncan
Carpenter vira meu rosto. Você poderia esquecer o rosto de alguém
com quem trabalhou por dois anos inteiros nesse período de tempo?
Alguém com quem você se sentou em reuniões do corpo docente,
cruzou nos corredores, comeu no refeitório?
Eu sei que estava tentando ficar invisível naquela época, mas
vamos lá.
Ninguém é tão invisível.
Ou é?
Ao pensar nisso, percebi que estava sempre perto dele, mas
nunca bem na frente dele. Eu estava sempre ciente dele, mas não
significa que ele também estivesse ciente de mim. Se eu estava
camuflada no fundo, talvez ele não se lembrasse de mim. Talvez eu
tenha sido apenas uma versão genérica de uma garota com quem
ele trabalhou ao lado – com detalhes específicos nunca suficientes
para registrar. Algum tipo de mancha feminina inespecífica azul-
marinho em sua memória.
Havia muitas pessoas no mundo das quais eu não me lembrava.
A maioria delas, na verdade.
Ainda assim, fiquei ofendida.
Claro, eu estava totalmente diferente agora. Minhas roupas e
cabelo, pelo menos. Talvez fosse tudo o que ele pudesse ver.
Ou talvez ele simplesmente não estivesse realmente olhando.
Talvez ele estivesse tão ocupado tentando se ajustar ao seu novo
emprego e se colocar no lugar de Max e assustar todo mundo que
não estava focado em seu ambiente visual. Talvez ele estivesse
cansado de ficar acordado a noite toda com um bebê doente, ou
dois. Ou talvez ele não estivesse usando os óculos.
Ele usava óculos?
Bom. Algo que eu não sabia sobre ele. Uma coisa, pelo menos.
Porque eu realmente sabia demais em geral. Eu sabia o
aniversário dele, por exemplo: 4 de maio – e ele sempre usava uma
fantasia de Luke Skywalker para ir à escola naquele dia com um
botão pregado que dizia QUE A FORÇA ESTEJA COM VOCÊ.
Quão desequilibrado foi isso? Eu sabia o aniversário dele, e como
ele gostava de celebrá-lo, e exatamente como ele estava bonito
naquela fantasia de Luke Skywalker. Eu carreguei um visual
completo dele brandindo um sabre de luz armazenado em minha
memória o tempo todo... e ele nem sabia quem eu era.
Não era justo.
Mas ele certamente não estava carregando um sabre de luz
agora. O que diabos aconteceu com ele? Será que ele se casou
com aquela garota chata da admissão? Ela disse a ele que ele
precisava crescer e parar de ser divertido? Ou talvez fosse se tornar
um pai. Ou talvez algum mentor tenha lhe dado um conselho muito
ruim – e muito errado – de que ele tinha que mudar toda a sua
personalidade para ser bem-sucedido.
Ou talvez ele estivesse apenas tendo um dia de folga. Era
possível.
Mas um dia ruim era tão ruim?
Eu não conseguia entender. E eu não queria.

Quando cheguei à mesa da Sra. Kline, sua pequena área de


recepção estava cheia de caixas até o teto. Ela estava enxugando
os olhos com um lenço.
— São tudo coisas do Max — ela disse, enquanto eu observava.
— Passei o fim de semana encaixotando.
— Oh, Sra. Kline — eu disse, ficando um pouco chorosa. —
Aposto que foi difícil.
— Melhor eu do que Babette — ela disse, e eu tive que
concordar.
Eu balancei a cabeça.
— Eu acho que ele realmente tinha um monte de coisas.
— Trinta anos fazem isso.
— Sim — eu concordei.
— Só vou mandar a manutenção levar para o depósito.
Eu balancei a cabeça. Bom plano.
Então a Sra. Kline respirou fundo e mudou de marcha.
— Você está aqui para… — ela checou sua agenda — sua
reunião das dez e meia?
Olhei para o relógio de parede acima de sua cabeça. Eram nove
e quarenta e sete.
— Sim — eu disse.
— Você se importaria de esperar?
— Na verdade, não — eu disse.
Ela inclinou a cabeça em direção à porta fechada do escritório
de Max.
— O Diretor Carpenter disse que não queria ser incomodado.
— Tudo bem — eu disse.
Eu também não queria ser incomodada. Nenhum de nós queria
ser incomodado.
Olhei para a porta fechada, hesitei por um segundo, e então me
aproximei e bati nela.
Ruidosamente.
Nenhuma resposta.
Bati de novo. Nada.
Mas eu sabia que ele estava lá.
Finalmente, comecei a bater e não parei. Batidas curtos e
insistentes: tap-tap-tap-tap-tap. Como um pica-pau. Um pica-pau
barulhento do tipo é-melhor-você-vir-abrir-esta-porta.
A Sra. Kline apenas observava, com os olhos arregalados de
descrença.
Finalmente, Duncan escancarou a porta, rosnando:
— Sra. Kline, eu disse que eu...
Quando ele me viu, ele parou.
Então ele terminou com:
— Não estava aqui.
Ele parecia um pouco sem fôlego. Quase um pouco suado,
como se estivesse... se exercitando, talvez? Sua jaqueta estava
para fora, assim como o colete. Ele também estava sem gravata e
com o colarinho aberto. O que ele estava fazendo?
— Mas você claramente está aqui — eu disse, determinada a
não ficar perturbada.
A Sra. Kline levantou-se.
— Diretor Carpenter, esta é a nossa bibliotecária, Samantha
Casey. A maioria das pessoas a chama de Sam.
E então não pude evitar.
— A menos que todos nós tenhamos tomado algumas
margaritas — eu disse à Sra. Kline — Então é mais como Saaam,
ou Samster, ou Sammie.
O que eu estava fazendo? Eu nem bebi. Eu não tinha nenhum
apelido além de Sam. Mas Duncan não sabia disso. Porque, como
devo ter mencionado, ele não tinha ideia de quem eu era.
— Eu preciso falar com você — eu disse.
— Estou no meio de algo.
Claramente.
— É urgente.
— Estou indisponível.
— Mas eu tenho um compromisso.
Duncan verificou o relógio de parede da Sra. Kline.
— Em quarenta e um minutos.
Ele não estava errado. Mas não havia como esperar quarenta e
um minutos.
— Realmente não posso esperar — eu disse, passando por ele
e entrando em seu escritório. Um movimento muito corajoso que,
pelo menos por um minuto, me fez sentir bastante eu-sou-mulher-
me-escute-rugir.
Isto é, até que Duncan – menos impressionado do que eu
gostaria – me viu me situar em frente a ele em seu escritório, pronta
para batalha. Então ele pareceu dar um encolher os ombros dizendo
que seja, e então ele se ajoelhou no chão, inclinou-se para a frente
sobre as mãos... e começou a fazer flexões.
Por um segundo, eu apenas o observei. Foi tão inesperado. E
ele era meio hipnotizante também – direto como uma tábua, dos
calcanhares à cabeça, bombeando para cima e para baixo com
absoluto vigor, como se fosse fácil. Ótima forma.
— O que você está fazendo? — Eu finalmente perguntei.
— Eu disse que estava ocupado.
— Não é o tipo de coisa que as pessoas costumam fazer na
academia?
— Algumas pessoas, eu acho. Eu gosto de fazê-los durante o
dia.
Foi tão desanimador. Isso me surpreendeu.
— Devo... esperar você terminar?
— Eu pensei que você disse que não podia esperar.
Justo.
Olhando para trás, o fato de que pensei que estava prestes a
desistir realmente impactou como aquele momento se desenrolou.
Eu não estava pensando em mim como Duncan, ou tentando
manter meu comportamento profissional, ou mesmo preocupada
com meu trabalho. Eu tinha um pé fora da porta, de qualquer
maneira.
Além disso, esse cara tinha acabado de sacar uma arma em
uma escola. Uma falsa, mas ainda assim.
Todas as apostas foram meio que erradas.
Quando este escritório era de Max, estava cheio de lembranças.
Plantas, arte infantil e fotos cobriam todas as prateleiras, paredes e
superfícies – incluindo sua mesa, pelo menos as partes que não
estavam cobertas com pilhas de papéis em constante mudança.
O mesmo escritório – agora pertencente a Duncan – era o
oposto.
Claro, Duncan tinha acabado de se mudar. A maioria de suas
coisas ainda estava nas caixas empilhadas no canto. Mas não era
só que ele não tinha desempacotado. Ele havia mudado tudo.
Quando as instalações foram repintadas – o que o cômodo
precisava – Duncan escolheu um cinza frio para substituir o branco
cremoso e quente de antes. O carpete bege também foi substituído
por cinza. A mobília aconchegante de estilo Stickley de Max havia
sido substituída por – você adivinhou – móveis de escritório baratos
e cinza. Com um pouco de preto para variar.
O cheiro de tinta também não estava ajudando.
Não estou aqui para debater os méritos do carpete bege sobre o
cinza.
Era apenas uma vibe muito diferente.
— Este lugar… — eu disse, olhando ao redor. — É como a
Estrela da Morte.
Se Duncan me ouviu, ele decidiu não se envolver.
Eu o observei, ainda forte – para baixo, depois para cima, depois
para baixo, depois para cima – com as flexões. Sem hesitação, sem
variação. Como um pistão disparando em uma fábrica.
Não é de admirar que seus ombros estivessem tão... ombrudos.
— Então — ele disse, abaixo de mim, no tom mais coloquial,
como se qualquer coisa naquele momento fosse normal. — O que é
que não pode esperar quarenta e um minutos?
Boa pergunta. O que era mesmo?
Eu estava tão desorientada, tanto com o que estava
acontecendo agora quanto com o que havia acontecido na reunião
da manhã, que não sabia nem por onde começar.
Meu objetivo original era me encontrar com Duncan esta manhã,
dizer a ele que foi bom vê-lo novamente, dar-lhe algumas dicas e,
em seguida, despedir-me agradavelmente do meu emprego.
Mas não foi bom vê-lo novamente.
Foram muitas coisas, mas definitivamente não foram legais. Foi
altamente perturbador. E preocupante. E indutor de pânico. E agora
eu estava aqui para... o quê? Dar-lhe uma conversa? Sacudi-lo
pelos ombros? Descobrir por que ele estava agindo de forma tão
estranha?
E como, exatamente, você segue tudo isso dizendo: “Ah, e PS,
eu me demito?”
Mas, é claro, eu não me demitiria agora. Não mais. Eu não
podia. Como eu poderia desistir agora – e deixar todos que eu
amava para trás sem ninguém para protegê-los desse cara?
Meus objetivos de meia hora atrás foram todos anulados, mas
agora eu não tinha certeza de quais eram meus novos.
— Precisamos conversar sobre aquela reunião — eu finalmente
disse.
Duncan endireitou uma dobra em sua manga.
— E daí?
— Foi... muito estranha.
Nenhuma resposta. Duncan apenas continuou bombeando para
cima e para baixo.
— Existe alguma maneira de você interromper sua rotina de
exercícios? Fazer flexões enquanto falo com você é meio rude.
— Entrar aqui sem permissão também é meio rude.
— Então — eu disse —, estamos quites.
Duncan pareceu desacelerar enquanto pensava nisso.
— É justo — ele disse, e então voltou a se levantar, se levantou
e se virou para mim, parecendo... muito alto.
— Tudo bem — disse ele, descansando as mãos no cinto. —
Vamos conversar.
Mas o que eu ia dizer? Por onde começar? Eu queria dizer: “Que
diabos foi isso?” ou, “Quem diabos é você?”, ou talvez até: “Você
comeu o verdadeiro Duncan e assumiu sua identidade?”. Era assim
que as coisas estranhas estavam na minha cabeça.
No final, fui com o velho:
— O que acabou de acontecer?
Mas eu realmente aumentei meu tom de voz para compensar.
Agora que eu finalmente tinha sua atenção – agora que
estávamos sozinhos, e cara a cara – não pude deixar de me
perguntar se, longe da platéia e do palco, ele poderia me
reconhecer então. Eu esperava que ele pudesse dizer algo como:
“Ei, nós nos conhecemos?” ou “Ei, você se parece um pouco
com...?”.
Mas não. Ele apenas disse, como diria a um completo estranho:
— Não sei do que você está falando.
E foi aqui que meu ego atrapalhou meus objetivos. Porque se
ele não me reconheceu, então eu com certeza não iria admitir que o
reconheci. O que eliminou algumas das coisas mais perspicazes
que eu poderia ter dito.
— Estou falando sobre a reunião — eu disse.
— E daí?
— Foi um desastre.
— Discordo.
— Você tem alguma ideia do que esta escola está lidando
agora? Acabamos de perder nosso diretor. Nosso amado diretor… e
fundador. Não no ano passado ou mesmo na primavera passada.
Neste verão. Todos naquela sala estavam de luto, feridos, perdidos
e assustados, incluindo, devo acrescentar, sua esposa, que estava
sentada na última fileira como uma estátua.
— Nada disso tem a ver comigo — disse Duncan. — Eu não
causei nada disso. E também não posso consertar.
— Talvez você não possa consertar. Mas você pode tentar como
o diabo não piorar as coisas.
— Pessoas morrem — Duncan disse então. — Isso acontece o
tempo todo. O melhor que podemos fazer é seguir em frente. É para
isso que estou aqui.
— Ninguém está pronto para seguir em frente.
— Não tenho certeza se isso importa. A escola começa na
segunda-feira.
— Sim. Exatamente. E precisamos de um plano para enfrentar
isso. O que não precisamos é de um cara entrando aqui com uma
pistola de água.
— Fiz o que precisava fazer.
— Mas você não fez o que os outros precisavam que você
fizesse. Você não conheceu ninguém, não falou com ninguém, não
interagiu e nem se relacionou.
— Não estou aqui para criar laços.
— Você certamente está. Você acha que pode administrar esta
escola como um estranho?
— Você acha que pode entrar aqui e me dizer o que fazer?
Ele sabia melhor do que isso.
— Olha — eu disse. — Estou tentando te ajudar.
— Não preciso da sua ajuda.
— Você não conhecia Max. Então deixe-me dizer-lhe que ele
nunca administrou este lugar como uma ditadura. Não é assim que
as coisas funcionam aqui. Sempre foi consenso e discussão. Este é
um grupo de pessoas altamente engajadas e apaixonadas, e parte
do que torna esta escola tão lendária é que todos trabalham juntos.
O que quer que você tenha acabado de fazer naquela reunião não
vai dar certo, não aqui.
— O que o diretor Kempner fez ou deixou de fazer não é mais
relevante — disse Duncan na época.
— Estou tentando te dizer como as coisas funcionam.
— As coisas funcionam do jeito que eu digo que funcionam.
— Se você continuar agindo assim, vai perdê-los.
— O que você está dizendo? Que eles vão se demitir?
— São professores incríveis, os melhores dos melhores. Eles
poderiam estar ensinando em qualquer lugar.
— Isso soa estranhamente como uma ameaça.
— Eu não estou ameaçando você. Eu estou dizendo a você
como é. Eles vieram para cá para fazer parte de uma cultura escolar
muito especial. Uma que tem tudo a ver com criatividade,
encorajamento e tornar o aprendizado prazeroso.
Duncan estava imperturbável.
— Bem, é uma nova cultura agora.
Ele não estava me levando a sério.
— Você não tem ideia do quanto acabou de assustar todo o
corpo docente.
— Acho que tenho uma ideia.
— E nem me fale sobre a arma.
— Lá vem.
— Que raio foi aquilo?
— Uma pistola d'água — disse ele. — E isso chamou a atenção
deles, não foi?
— Não de um jeito bom.
— Não estou aqui para mimá-los.
— Por quê você está aqui?
— Para colocar este lugar nos trilhos.
— Já está no caminho certo. É uma das melhores escolas de
ensino fundamental do país. É famosa por ser incrível.
— Também é uma armadilha mortal. E eu estou aqui para
consertar isso. E se não gostarem, são mais do que bem-vindos a
se demitirem, cada um deles. Incluindo você mesma.
Mas de jeito nenhum eu iria desistir agora.
— Não posso me demitir — eu disse.
— Claro que pode — disse ele, em um tom de eu te desafio.
Então ele encontrou meus olhos e disse: — Não há nada mais
dispensável do que professores.
Rude. E insultante. Max passou décadas enchendo esta escola
com superestrelas – o melhor dos melhores dos melhores. Os
professores eram tudo, menos dispensáveis. Os melhores
professores estimulavam as crianças com empolgação, motivação e
curiosidade – e os piores professores faziam o contrário. E ninguém
na terra deveria saber disso melhor do que Duncan Carpenter.
Olhei para baixo por um segundo para tentar me recômpor. O
que eu estava tentando realizar aqui? Eu queria que ele saísse
dessa. Eu queria que ele voltasse a ser o que era antes. Eu queria
que ele alcançasse seu potencial. Mas eu não tinha nenhuma
influência. Ele estava blefando? Se ele realmente não se importava
se todos desistissem, eu não tinha certeza do que fazer.
E foi quando vi algo saindo de baixo da mesa de Duncan.
Algo peludo.
Algo que parecia uma pata.
Eu me aproximei e me inclinei para ver melhor.
Enrolado sob a mesa estava um cachorro grande, cinza e muito
peludo – dormindo profundamente.

Em todo este escritório elegante, cinza e frio, a última coisa que eu


esperava ver era um cachorro fofo – e, é claro, o pelo cinza contra o
carpete cinza o camuflava.
— Isso é um poodle embaixo da sua mesa? — Perguntei.
— É um labradoodle — Duncan disse, como se fosse óbvio.
Inclinei-me um pouco mais perto.
— É seu?
— É um cão de segurança — disse Duncan, todo profissional. —
Um cão de guarda.
— Não parece muito em guarda agora.
— Até os animais de segurança precisam descansar.
— Justo. Qual o nome dele?
Duncan ergueu-se um pouco mais alto.
— Chuck Norris.
Eu deixei escapar uma risada. Então meu rosto caiu.
— Oh. Você está falando sério.
— Ele está em treinamento — disse Duncan, sem graça.
— Acho que teria esperado um pastor alemão ou algo assim.
Algo assustador.
— Este cachorro é muito assustador — disse Duncan, enquanto
olhávamos para a pilha nada assustadora de cotão cochilando. —
Ou pelo menos, ele estará quando eu terminar com ele.
— Você vai esguichar nele com a pistola de água?
O rosto de Duncan estava mortalmente sério.
— Esse não é o protocolo para treinar animais de trabalho.
— Se você diz — eu disse. Na verdade, gostei da ideia de ter
um cachorro no campus. Eu tinha acabado de ler um artigo sobre
como os cães tinham um impacto reconfortante nos humanos. Eu
podia ouvir minha voz suavizando enquanto eu olhava para Chuck
Norris. — Ele vai nos manter seguros, hein?
— Ele não é a única coisa, mas sim.
Isso chamou minha atenção.
— Ele não é a única coisa?
Duncan ergueu-se um pouco mais reto.
— Estou pensando em adotar muitos novos protocolos de
segurança, desde melhorar questões de visibilidade até treinar
professores e fazer uso de novas tecnologias. Estou de olho em
algumas mudanças de alta tecnologia e de primeira linha. Vai ser
caro, mas vale a pena.
Estou lhe dizendo: esse cara – esse cara – uma vez quebrou o
pulso em Andrews durante uma corrida de skate pelos corredores
da escola.
Mas então uma pergunta me ocorreu.
— De onde vem o dinheiro?
Duncan piscou.
— Há espaço no orçamento.
Eu não sabia muito sobre o orçamento, mas sabia o suficiente.
— Não tenho certeza se há — eu disse.
Duncan desviou o olhar.
— Você sempre pode encontrar espaço em um orçamento, se
for criativo.
Que resposta surpreendente sem resposta. Eu me aproximei
para olhar para ele. Seu rosto era uma mistura de determinação,
desafio e apenas uma pitada de culpa. Pensando nisso, eu
simplesmente sabia.
— Por favor, me diga que não estamos falando sobre o terreno
baldio.
Ele se aproximou de sua mesa e fixou os olhos nela.
— Que terreno baldio?
Mas meu corpo sabia a resposta antes do resto de mim. Sentei-
me mais ereta. Meus músculos se contraíram.
— O lote vazio para o playground.
— Que playground? — Duncan perguntou então.
Seria possível que ele realmente não soubesse? Construir
aquele playground estava pronto para ser a atração principal – a
característica definidora – do próximo ano letivo. Já tínhamos planos
e um empreiteiro alinhado. Estava no cronograma.
Mas ele tinha acabado de chegar aqui. Ultimamente as coisas
tinham sido apressadas, para dizer o mínimo. Talvez ele não tivesse
sido atualizado. Aproximei-me de sua mesa e, sem perdê-lo de
vista, inclinei-me sobre seu telefone, apertei o botão do interfone
como havia feito tantas vezes com Max quando estávamos
brincando e, com uma voz cuidadosa e cautelosa, disse:
— Sra. Kline, você poderia, por favor, trazer os planos para o
playground?
Dois segundos depois, ela apareceu, eficiente como sempre,
com uma pilha de pastas de arquivo – amarradas juntas, cheias e
transbordando de brochuras, esboços, planos, notas, post-its,
rabiscos, ideias e sugestões – e colocou a pilha na mesa de Duncan
com um whomp.
— Conheça o Jardim Aventura — eu disse a Duncan, enquanto
a Sra. Kline voltava para fora. — Há dois anos, compramos o
terreno ao lado da cidade. Há um ano, iniciamos uma campanha de
capital que arrecadou cem mil dólares para construir o playground
mais legal, criativo, alegre, surpreendente e multissensorial da
história do mundo. E, este ano, enfim, diante de tudo, vamos
construí-lo.
Duncan piscou para mim por um segundo, e tive a sensação de
que ele estava avaliando que tipo de adversário eu seria. Então, em
um tom de voz que me deixou saber exatamente o que ele havia
decidido, ele disse:
— Sim. Está tudo cancelado.
Eu senti como se não conseguisse respirar o suficiente para
formar a palavra.
— Cancelado? — Saiu como um suspiro.
— Sim — disse Duncan, todo prático, batendo a mão no topo
dos arquivos. — Vamos precisar desse dinheiro para outras coisas.
Puxei os arquivos para mais perto de mim, protetoramente.
— Outras coisas? Que tipo de outras coisas?
— Bem, não tenho liberdade para entrar em detalhes ainda, mas
há muita coisa acontecendo.
— Você não pode cancelar o Jardim Aventura!
— Por que não?
— Porque foi ideia do Max.
— Mas Max não está aqui, está?
— Mas… — O que estava acontecendo? Eu balancei minha
cabeça. — Você não pode.
— Claro que eu posso — disse Duncan agradavelmente,
caminhando até a porta de seu escritório e colocando a mão na
maçaneta, como se tivéssemos terminado aqui. — Você deveria ler
meu contrato. Eu posso fazer qualquer coisa, praticamente. Eu
poderia servir sundaes com calda quente em todas as refeições. Eu
poderia declarar que o uniforme escolar é uma fantasia de
Halloween. Eu poderia demitir todo o corpo docente e contratar uma
trupe de palhaços de circo.
— O conselho nunca deixaria você fazer essas coisas — eu
disse.
— O tabuleiro é um lugar complicado — disse Duncan.
— O que isso quer dizer?
— Significa que posso reorganizar o orçamento da maneira que
achar necessário para o bem da escola.
O que diabos estava acontecendo? Passamos um ano
planejando este lugar. Tivemos comitês, fizemos pesquisas, lemos
artigos e assistimos a TED Talks.
Tinha sido o bebê de Max. Foi ele quem teve a ideia – e
convenceu o conselho a usar parte da doação para comprá-la.
Quando a venda foi concluída, Max encorajou todos a enviarem
ideias de como dar vida a ela. Então, durante o verão – um verão
que agora parecia ser há mil anos atrás – Max, Babette e eu
revisamos os planos e ideias, selecionando os artigos e conceitos,
consultando, conversando com designers, finalizando o orçamento e
fazendo as coisas rolarem a sério.
Isso era o que costumávamos fazer nos nossos verões, de
qualquer maneira – começando no verão, pintamos o mural de
borboletas em toda a grande parede do refeitório. No ano seguinte,
bombardeamos o playground no pátio com espirais de crochê de
cores vivas, teias e flores. No ano passado, tínhamos enlouquecido
com a pintura: acrescentando listras amarelas, laranja e azul bebê
em todos os armários e corredores, no estilo roller-disco, e nuvens,
flores e arco-íris em todos os tipos de lugares inesperados.
Nem me ocorreu que Duncan poderia não querer manter o
projeto em andamento.
Duncan, afinal de contas, havia pendurado uma bola de
discoteca no refeitório da Andrews Prep. Ele tinha um ouriço como
mascote na classe. Ele uma vez tentou construir uma tirolesa no
telhado do ginásio.
Como Duncan poderia matar os planos para um playground? Ele
era um playground.
O Jardim Aventura era um projeto enorme para toda a escola
que nos entusiasmava unanimemente, e agora precisávamos dele
mais do que nunca. Comecei a tirar elásticos e pastas de arquivos,
procurando freneticamente pelas melhores partes para poder
mostrar a ele o que queria dizer.
— Mas o Jardim Aventura é para o bem da escola! Deixe-me
apenas mostrar-lhe os planos. É épico. É mágico. Você nem vai
acreditar...
— Não preciso ver os planos — disse Duncan.
— Não é como nada que você já viu — eu prometi. — Vai ter
uma casa na árvore, um lago com nenúfares e uma pista de
arvorismo...
Ele então abriu a porta e a manteve aberta, esperando que eu
saísse.
Mas eu hesitei. Então eu tive que perguntar.
— Você está aqui para destruir a escola?
Então, em um tom um pouco mais suave que parecia
reconhecer que ele pelo menos registrou toda a ansiedade
esmagadora e transformadora que se escondia por trás dessa
pergunta para mim, ele disse:
— Não estou aqui para destruir a escola.
Deixei escapar um suspiro profundo.
Em seguida, acrescentou:
— Estou aqui para consertar ela.

Uma coisa ficou clara depois disso: eu estava mais presa aqui do
que nunca.
Quando descobri que Duncan estava chegando, pensei que ele
me deixaria infeliz por ser tão simpático que não teria escolha a não
ser me apaixonar por ele de novo, mas agora parecia que o oposto
seria verdadeiro: ele me deixaria infeliz arruinando minha escola e,
por extensão, minha vida.
Eu não tinha certeza de qual era pior, mas, de qualquer forma,
eu estava infeliz.
Minhas emoções estavam se movendo como números em um
quebra-cabeça, mas eu não estava nem perto de uma solução.
Essa foi a minha lição: de alguma forma, por algum motivo,
Duncan Carpenter ficou completamente perturbado e eu não
poderia ir embora até entender o porquê. Sair para me salvar era
uma coisa. Mas deixar uma escola inteira nas mãos de um louco era
outra bem diferente.
Isso me deixou imaginando se Duncan tinha um gêmeo malvado
ou algo assim. Porque, realmente, as identidades das pessoas não
eram bastante consistentes ao longo do tempo? As pessoas não
acordavam uma manhã com personalidades completamente
diferentes. Algo havia acontecido com ele – mas o quê?
Traumatismo crâniano? Amnésia? Feitiço de bruxa?
Tinha que ser algo épico.
Sério. Ele era um monstro agora.
E foi exatamente isso que eu disse a todos naquela noite na
casa de Babette.
Eu meio que esperava que o choque da reunião matinal pudesse
acordar Babette e colocá-la em ação. Não que houvesse algo de
errado com o luto. Ela tinha permissão para sofrer, é claro. Mas eu
não era realmente um líder, por si só, então não me importaria nem
um pouco se Babette de repente levantasse a cabeça, percebesse o
que estava acontecendo e assumisse seu lugar de direito como
comandante da resistência.
Mas não esta noite.
Ela tinha ido para a cama com dor de cabeça e não desceu
mais.
Em vez disso, acabei me lembrando de não pensar demais
nisso. “Liderar” era apenas falar, planejar e fazer as pessoas
prestarem atenção.
Três coisas em que eu era perfeitamente bom.
Contei ao grupo tudo o que Duncan havia dito em seu escritório
e tudo o que aprendi: que a reunião matinal não foi, de fato, um
acaso. Que esse pateta lendário e caloroso de alguma forma se
transformou em um ditador militarista. Que ele não se importava se
todos os professores desistissem. E que ele estava cancelando o
Jardim Aventura.
Cada notícia provocava gemidos de indignação
progressivamente mais altos, mas a notícia sobre o Jardim Aventura
foi o argumento decisivo.
— Esse era o projeto de Max! — Anton gritou.
— E a casa da árvore? — perguntou Carlos.
— E a horta? — Emily e Alice perguntaram.
Todos queriam saber o que iríamos fazer.
Eu disse a eles que não sabia. Nós apenas teríamos que
descobrir isso enquanto avançávamos. Então eu olhei em volta.
— Sra. Kline?
Ela levantou a mão.
— Presente.
— Você pode, por favor, encontrar uma cópia do contrato dele?
E o estatuto do conselho escolar, já que está nisso? Vamos
descobrir exatamente o quanto estamos presos a esse cara. Além
disso… — Olhei em volta. — Alguém conhece nossa política escolar
sobre cães?
— Tipo, cachorros? — perguntou Rosie Kim.
— Ele tem um cão de segurança — eu disse a eles.
Isso desencadeou uma nova onda de indignação. Que tipo de
cachorro? Era grande? Foi assustador? Foi treinado? O que ele
estava fazendo na escola? E as crianças que têm medo de
cachorros? Quem iria ficar de olho nisso? Que tipo de pessoa trazia
um cachorro para um campus cheio de crianças? E os carrapatos?
E as alergias? Cachorros eram mesmo permitidos? Alguém poderia
descobrir?
Eu não disse a eles que o nome do cachorro era Chuck Norris.
Também não contei a eles que Duncan havia declarado que era
“assustador”.
Finalmente, quando a preocupação chegou ao auge, levantei-
me.
Posso não saber como ser uma líder, mas sei de uma coisa: nós
iríamos proteger nossa escola. Não éramos tão incríveis à toa.
E foi aí que eu fiz minha voz alta e nos deu toda a conversa
estimulante que todos precisavam ouvir – inclusive eu.
— Não sei exatamente o que vamos fazer — eu disse. — Nunca
enfrentei nada nem que seja vagamente parecido com isso. Mas sei
o que não vamos fazer. Não vamos entrar em pânico. Não vamos
deixar que o medo nos faça perder de vista quem somos. Estamos
aqui por uma razão, certo? Para cuidar de todas essas pequenas
almas que nos foram confiadas. Não vamos esquecer isso. Estamos
aqui para eles e uns para os outros. As crianças primeiro, e vamos
nos preocupar com essa situação de Duncan Carpenter mais tarde.
Não quero ninguém fazendo nada estúpido… Anton, estou olhando
para você. Sem graffiti, sem notas ameaçadoras, sem postagens
raivosas nas redes sociais. O trabalho mais importante que temos
nas próximas semanas é ajudar as crianças. Certo? Precisamos
ajudá-los a entender que a morte faz parte da vida, que Max se foi,
mas não foi esquecido, que podemos mantê-lo conosco levando
adiante seu calor e sua bondade. Eles precisam de toda a
estabilidade que podemos dar a eles por enquanto. Então, vamos
nos agachar, fazer nosso trabalho, ajudar as crianças nessa
transição, lembrar para quem estamos aqui... e fazer tudo o que
pudermos para tornar as coisas melhores, não piores.
oito

Chuck Norris, o labradoodle de segurança, não se mostrou


assustador.
Ele, no entanto, acabou por ser uma enorme dor na bunda.
Logo, por mais impossível que fosse, as aulas recomeçaram.
O prédio se inundou com crianças, mochilas e lancheiras. Cada
criança, ao que parecia, queria saber onde Max estava. Até as
crianças que estiveram na festa.
Eu me senti praticamente da mesma maneira.
Onde estava Max?
De minha parte, apenas abaixei a cabeça e tentei me concentrar
no que estava bem na minha frente: crianças, livros, papelada e
planejamento.
Às vezes, em pequenos momentos de silêncio, quando eu
levantava os olhos da minha mesa na biblioteca e via o lugar cheio
de crianças lendo no sofá, nos pufes e em nosso forte de leitura, eu
quase podia fingir que tudo estava como sempre.
Mas o novo cão de segurança não queria isso.
Na verdade, ele acabou por ser um comedor de livros.
Não uma, mas duas vezes no primeiro dia de aula, ele encontrou
seu caminho para a biblioteca e mastigou livros. Primeiro, um box
de Mo Willems. Então, depois do almoço, O Jardim Secreto.
Ambas as vezes, eu o levei de volta para Duncan.
— Sério? — Eu exigi, segurando exemplar de O Jardim Secreto
mutilado, agora faltando um terço inteiro de sua encadernação.
— Eu acho que ele pode estar na fase dentição. Encontrei um
dente no carpete mais cedo.
— Isso não está certo. Dê a ele um brinquedo para mastigar.
Duncan assentiu, como se fosse realmente uma boa ideia.
— Eu vou.
— E não o deixe vagar pela escola.
— Parece que ele pode abrir a porta do meu escritório.
— E as portas da biblioteca — acrescentei.
— Eu pensei que ele estava tirando uma soneca — disse
Duncan.
— Bem, ele não estava — eu disse. — Ele estava vagando
solto.
— Sinto muito pelos livros. Eu pago por eles.
— Ótimo — eu disse, toda impassível. — Vou colocá-los em sua
conta.
Aquele cachorro, de fato, ganhou fama no primeiro dia de aula.
No embalo, ele subiu na mesa da Sra. Kline, comeu uma caixa
inteira de lenços, perseguiu um esquilo pelo pátio, prendeu sua
coleira em um galho de árvore, latiu para o próprio reflexo nas
portas do escritório por cinco minutos inteiros, fez xixi no tapete da
sala de jardim de infância, roeu um buraco na bolsa de ginástica do
Treinador Gordo e roubou um saco inteiro de pãezinhos de
cachorro-quente da cafeteria.
Sem mencionar quando ele tentou dar um pulo nos braços de
Alice durante o recreio e derrubou todos os seus dois metros de
altura no chão.
Alice não se importou. Ela era uma pessoa que gostava de
cachorros. Mas o treinador Gordo não gostou muito da bolsa de
ginástica.
— Que diabos, cara? — ele disse, depois que Duncan lhe
devolveu uma meia decapitada e uma cueca boxer encharcada de
baba.
— Ele ainda está em treinamento — disse Duncan.
De qualquer forma, esse foi o momento que motivou o primeiro
memorando de Duncan para todo o corpo docente do dia.
Memorandos nunca são coisas boas no mundo da educação –
ou talvez em qualquer lugar. Se nada mais, eles geralmente são
monótonos e repetitivos e, como Max sempre dizia, MLPL – Muito
Longo Para Ler. Max havia banido completamente os memorandos
antes mesmo de eu chegar – substituindo-os por AIDR – Ao Invés
de Reuniões. Eram basicamente... memorandos. Mas Max impôs
um comprimento estrito de cem palavras, limitando-os às sextas-
feiras (quando estávamos “quase livres”) e enfatizou que ele estava
enviando apenas para que pudéssemos evitar um RDM – uma
reunião que deveria ter sido um memorando.
Contexto é meio que tudo.
O princípio orientador de Max era respeitar-nos como
professores – nossas ideias, nossa contribuição e, mais importante,
nosso tempo. Memorandos, na visão de Max, eram o pior
desperdício de todas essas coisas.
Mas Duncan, como dizem, não recebeu o memorando sobre
isso.
E se Max sabia o valor de chamar memorandos reais por outros
nomes, Duncan fez o oposto: ligou para um e-mail que nem era um
memorando... um memorando.
Cinco minutos depois do Incidente Meia, lá estava ele, em todas
as nossas caixas de entrada. E lia-se:

De: Duncan Carpenter


RE: MEMORANDO – CÃO DE SEGURANÇA
Muitos de vocês tiveram a chance de “conhecer” o novo cão
de segurança da Escola Kempner, Chuck Norris, quando ele
roubou uma caixa de donuts da sala dos professores e fez
uma tentativa épica de fuga – que foi frustrada pelo
segurança Raymond quando ele se enroscou na coleira.
Felizmente, ninguém ficou ferido, embora lamento informar
que nenhum dos donuts sobreviveu.
No futuro, todos os membros da comunidade escolar
devem estar cientes de que Chuck Norris ainda está em
treinamento e precisará de nossa ajuda para ter sucesso.
Por favor, não acaricie, brinque, arranhe, fale, arrulhe ou de
qualquer forma agite Chuck Norris enquanto ele estiver no
campus da escola. Todas as formas de afeto humano são
uma distração de seus deveres enquanto ele aprende a
cuidar de nosso campus e nos manter seguros. Para seu
benefício, assim como de todos, toda interação com Chuck
Norris é expressamente proibida.

Dois minutos depois de receber aquele e-mail, pela janela da


biblioteca que dava para os claustros, vi Chuck Norris roubar a
lancheira de uma criança e ser perseguido pelo pátio por uma turma
inteira de alunos da segunda série, seu pelo ondulante e seu rosto
fofo e olhos negros brilhantes amando cada minuto de tudo.
Então observei Duncan sair, repreender o cachorro, devolver a
lancheira ao dono e apontar severamente as crianças para o
refeitório. Deixe que esta nova versão de Duncan traga um cachorro
adorável para o campus e depois proíba todas as formas de afeto.
De qualquer forma, o homem e o cachorro não eram a
combinação perfeita.
Depois que as crianças foram embora, observei Duncan
praticando comandos de obediência com Chuck Norris por cerca de
cinco minutos antes de Chuck Norris perder a paciência e se
levantar nas patas traseiras para lamber Duncan em todo o rosto.
Estávamos preocupados com as crianças agitando Chuck Norris
– ou o contrário?
De qualquer forma, esse não foi o último memorando que
recebemos de Duncan naquele dia – apenas o primeiro de um
dilúvio:

De: Duncan Carpenter


RE: MEMORANDO – CRACHÁS DE IDENTIFICAÇÃO
Por favor, observe que todos os professores devem se
apresentar ao departamento de segurança hoje para se
registrar para novos crachás de identificação de segurança
digitalizados. Os crachás serão entregues na próxima
semana. O corpo docente deve usar seus crachás o tempo
todo ou corre o risco de ação disciplinar.
De: Duncan Carpenter
RE: MEMORANDO – VAGAS DE ESTACIONAMENTO
Por favor, observe que todos os professores devem se
apresentar ao departamento de segurança hoje para se
registrar em uma nova vaga de estacionamento numerada.
Depois que os números são atribuídos, eles não podem ser
alterados ou negociados. O corpo docente deve estacionar
em seus espaços designados o tempo todo ou corre o risco
de ação disciplinar.
De: Duncan Carpenter
RE: MEMORANDO – QUESTIONÁRIO DE SEGURANÇA
Por favor, observe que todos os professores devem fazer
check-in on-line hoje para preencher um novo questionário
de segurança padronizado e triagem. Todas as pesquisas
devem ser concluídas até sexta-feira – sem exceções. O
corpo docente que não concluir suas pesquisas antes do
prazo corre o risco de ação disciplinar.

Arriscar uma ação disciplinar era uma grande coisa para ele.
Recebemos talvez nove desses memorandos antes da hora do
almoço. A maioria dos professores que encontrei naquela manhã
parou de ler depois dos primeiros dois ou três. O que significava que
quando “De: Duncan Carpenter. RE: MEMORANDO – TOUR DO
CAMPUS” surgiu pouco antes da tarde, apenas os membros mais
obedientes do corpo docente ainda estavam prestando atenção. Eu
era um deles, claro. Eu li tudo. Acontece que Duncan precisava de
alguém para acompanhá-lo pela escola, dar-lhe informações
privilegiadas e familiarizá-lo com tudo o que ele precisava saber.
Enquanto eu estava lendo o memorando, eu disse, em voz alta:
— Não é isso.
Mas então cada pessoa que respondeu me indicou.
Unânime.

Justo. Depois da tarde, fui ao escritório de Duncan, uma vez que a


escola estava vazia.
Ele estava em outro terno cinza hoje. Um exatamente – até a
textura do tecido – como o que ele usava antes.
As mesmas calças. O mesmo colete. Camisa branca. Gravata
azul marinho. E – embora fosse agosto no Texas, o que significava
que faria no mínimo 30 graus lá fora – um paletó. Abotoado.
Havia uma pequena parte de mim que esperava que ele
aparecesse no primeiro dia de aula com calças xadrez e uma
gravata do Bob Esponja?
Absolutamente.
Mas apenas uma parte muito pequena.
Para contrastar, vou mencionar que eu estava usando uma blusa
azul marinho de bolinhas, uma saia lápis laranja e sandálias abertas
rosa-choque. Eu também usava um longo colar com pesadas contas
brancas e tinha uma flor de hibisco rosa pálido atrás da orelha que
combinava exatamente com minha franja rosa.
Eu tinha trabalhado muito duro nessa roupa naquela manhã.
Para torná-lo, digamos, memorável.
— Nós combinamos — eu disse, quando apareci.
Nada sobre nós combinava.
— Azul-marinho — expliquei, tocando a parte azul-marinho da
minha blusa — e azul-marinho — Apontei para a gravata dele.
Ele sabia que eu estava brincando, mas não sorriu. Apenas me
olhou, prestando atenção especial na flor sobre minha orelha.
Então eu o examinei de volta, prestando atenção especial ao
fato de que ninguém da nossa geração usa ternos de três peças.
Mas não posso negar que ele ficava bem aquele terno.
Ele só... não era Duncan.
Eu esperava que Chuck Norris estivesse com ele, pelo menos
para alívio cômico. Mas acho que ele estava exausto porque,
quando cheguei, ele estava exausto, de barriga para cima, no novo
sofá cinza do escritório de Duncan.
Duncan suspirou.
— Vamos fazer isso.
Eu suspirei de volta.
— Tudo bem.
Eu tinha um objetivo quando começamos o passeio – não
mostrar a biblioteca a ele.
Porque eu já sabia como ia ser tudo isso. Eu iria mostrar a ele
todos os recantos surpreendentes de nosso amado campus,
voltando amorosamente sua atenção para as bandeiras coloridas e
esvoaçantes que havíamos amarrado acima do pátio, as casas de
fadas que os alunos da primeira série estavam fazendo para o
jardim, a coleção de esculturas de madeira flutuante que Babette
havia reunido na sala de arte, o mural que as meninas da quinta
série pintaram no ano passado em uma parede em branco em frente
ao banheiro que dizia: SEJA SEU PRÓPRIO TIPO DE BONITO, e
em e assim por diante... e ele ficaria desinteressado, desatento e
indiferente.
Ou pior.
Quer dizer, eu esperava que ele provasse que eu estava errado.
Mas eu também sabia que ele não o faria.
A biblioteca era especial. A biblioteca era minha. E eu não tinha
interesse em vê-lo subestimar, insultar ou dizer algo como:
— Esses livros são um risco de incêndio! Livrar-se deles.
Não estava fora do leque de possibilidades.
Então decidi levá-lo à biblioteca por último, manter o ritmo do
passeio agradável e glacial e esperar que o tempo acabasse para
chegar lá.
Começamos no pátio.
— É um prédio histórico — eu disse, enquanto o alcançava. —
Construído como um convento na década de 1870, e as freiras
viveram aqui por cem anos antes de seu número diminuir tanto que
a igreja vendeu a propriedade para a cidade. Ela ficou vazia por
mais vinte anos antes de Max e Babette… — eu sempre me
certifiquei de dar a ela o mesmo crédito pelos princípios feministas
— fundarem a Escola Kempner e renová-la. Curiosidade: você sabia
que nossa escola tem o nome de Babette?
Duncan olhou para mim como se aquilo não fizesse sentido.
— Babette Kempner — eu disse.
— Mas o nome de Max também não era Kempner?
— Claro — eu disse. — Mas ele estava pensando em Babette
quando deu o nome.
Continuamos andando.
— O refeitório costumava ser a capela — continuei.
— Eu li isso no manual.
— Temos uma reunião uma vez por semana com as crianças,
onde trazemos palestrantes e programas de todas as diferentes
religiões e filosofias, além de apresentações. Cantores, bateristas,
dançarinas do ventre, comedores de fogo.
— Comedores de fogo?
— É uma situação em que vale tudo.
Eu quase podia ouvi-lo digitando mentalmente: MEMORANDO –
RE: COMEDORES DE FOGO.
Apontei para um dos quartos do segundo andar.
— É onde mora o fantasma.
Duncan olhou de soslaio para mim, embora nunca tenha
encontrado meus olhos.
— O fantasma?
Esta era uma boa história.
— Uma das freiras se apaixonou por um capitão do mar cujo
barco afundou durante uma tempestade no Golfo. Ela não podia
acreditar que ele estava morto, porém, e ela se trancou neste
quarto, observando o oceano, recusando-se a sair até que ele
voltasse para ela... mas ele nunca voltou, e ela morreu de desgosto.
Dizem que ela ainda está aqui, esperando. Às vezes as pessoas a
veem, ainda esperando na janela, esperando por ele, nunca
perdendo a esperança.
Duncan franziu a testa novamente.
— As crianças conhecem essa história?
— Claro.
— Isso os assusta?
— Bem, sim. Mas de uma forma boa.
Duncan olhou de volta para a sala. Por um segundo, pensei que
ele estava pensando no fantasma, mas então ele disse:
— O telhado precisa ser substituído. E a pintura da janela está
descascando demais.
Eu sabia que ele iria olhar para o lugar assim. Mas ainda me
incomodava. Eu queria que ele ficasse impressionado. Eu queria
que ele se apaixonasse.
— Este edifício sobreviveu à Grande Tempestade de 1900 — eu
disse então. — Você sabe sobre aquela tempestade?
— Um pouco.
— É o pior desastre natural da história dos Estados Unidos — eu
disse — até hoje. Dez mil pessoas morreram em uma noite. Os
ventos eram de mais de cento e oitenta quilômetros por hora. As
roupas das pessoas foram arrancadas de seus corpos, espartilhos e
tudo, de tão forte que os ventos eram. Mas este edifício permaneceu
firme. Todas as freiras sobreviveram, assim como uma centena de
pessoas que chegaram até aqui e se abrigaram durante a noite. Há
um museu inteiro sobre a tempestade. E um documentário.
Duncan assentiu.
— A calçada precisa ser consertada — disse ele então,
apontando para um local irregular. — Isso é um risco de tropeçar.
O velho Duncan teria pegado minha mão e me arrastado escada
acima para procurar o fantasma. O velho Duncan teria saído da
escola para comprar ingressos para o documentário. O velho
Duncan teria se apaixonado por este impressionante, imponente e
notável edifício de pedra e tudo o que sobreviveu.
Mas o novo Duncan apenas disse:
— O seguro neste lugar deve ser um pesadelo.
Pesadelos também eram uma grande coisa para ele,
aparentemente.
Enquanto continuávamos a turnê, eu ficava cada vez mais
desanimada. Mostrei a ele nosso jardim de borboletas, mas ele
disse que tinha muitas abelhas – uma desvantagem. Mostrei a ele a
sala de arte de Babette, mas ele disse que estava abarrotada de
suprimentos – um risco de incêndio. Os corredores pintados de
cores vivas eram um “caos visual”. O padrão de amarelinha que
havíamos desenhado no chão do corredor era um “risco para
tropeçar”. As lâmpadas da sala dos professores estavam “uma
bagunça”.
Tudo o que era incrível em nossa escola – tudo que a tornava
especial, única e alegre – era problemático para Duncan. Era como
se ele se recusasse a ver qualquer coisa boa. Ele estava decidido a
apenas procurar problemas.
E seu comportamento.
Bom Deus, ele era como um carcereiro.
O que teria sido alarmante de se testemunhar em qualquer novo
diretor de escola, mas dado que este era o Duncan Carpenter, era
totalmente desestabilizador. Não houve piadas. Não houve riso. Eu
nem vi um sorriso.
Se eu tivesse qualquer indicação – em absoluto – de que ele se
lembrasse vagamente de mim, eu poderia ter perguntado a ele
sobre isso. Parte de mim se perguntou se ele iria me reconhecer
eventualmente, se algo poderia ativar sua memória. E parte de mim
pensou que eu deveria ir em frente e dizer alguma coisa.
Mas eu não consegui dizer isso.
Francamente, foi um insulto. Se ele tinha me esquecido tão
completamente, era patético para mim lembrar dele. Fingir não
conhecê-lo também tornou-se uma forma de salvar a face, mesmo
que apenas para mim. Ele não se lembra de mim? Tudo bem. Eu
também não me lembrava dele.
Era pior do que se eu não o conhecesse.
Vou lhe dizer uma coisa: eu sempre soube que a vinda de
Duncan para cá partiria meu coração. Mas isso era pior do que eu
havia me preparado. Não era apenas a agonia de querer alguém
que eu não poderia ter. Era como se o cara que eu tanto amei por
tanto tempo não existisse mais, mesmo que ele estivesse bem ao
meu lado.
Era mais como tristeza do que desgosto.
Houve uma vantagem, no entanto. O velho Duncan tinha sido
assustadoramente incrível.
Isso não era mais um problema.
O passeio levou duas horas – horas em que eu deveria estar
preparando o jantar para Babette, ou organizando as prateleiras da
biblioteca, ou montando aquela escultura idiota que encomendei.
Repetidamente, tentei contar a Duncan sobre a história do
prédio – como um famoso ladrão de banco tentou se esconder aqui
na década de 1890 antes de ser preso, e como ele havia sido usado
como hospital militar durante a Segunda Guerra Mundial, e que
havia sido cenário de um filme com Elizabeth Taylor na década de
1950. E repetidamente, ele rebateu essas histórias incríveis com
perguntas como:
— Por que nenhuma das portas da sala de aula tem fechadura?
Eu me dou crédito por fazer um trabalho épico de protelação,
parando para chamar sua atenção para coisas grandes e minúcias –
de nosso jardim de pedras pintadas a nossos barris de coleta de
chuva. Mostrei a ele a escada dos fundos onde havíamos pintado
um número em cada degrau que subíamos e depois acrescentei a
palavra em inglês para esse número, a palavra em espanhol para
ele e o número em pontos braille. Mostrei a ele como o “piso” de
borracha do parquinho era modelado em espirais de Fibonacci.
Mostrei a ele a sala de ciências da quinta série que tinha uma tabela
periódica pintada no teto. Levei-o até o quarto de Alice, onde ela
havia desenhado um semicírculo de ângulos no chão sob o ponto
onde a porta da sala de aula se abria.
Fiquei pensando, à medida que o passeio prosseguia, que ele
finalmente me diria que precisava voltar para o escritório. Mas ele
não o fez. Finalmente, quando não havia mais lugar além da
biblioteca, fiz uma tentativa de passar por ali.
— Espere — disse ele, apontando para as portas da biblioteca.
— Ah — eu disse, como se tivesse esquecido o lugar que eu
comandava. — Claro.
Duncan abriu a porta para mim, parecendo impaciente.
Quando Max e Babette reformaram o prédio trinta anos antes,
eles estavam totalmente divididos sobre colocar a biblioteca no
andar de baixo, perto da entrada, de modo que as crianças tivessem
que passar por ela para entrar e sair do prédio – ou no andar de
cima, para que tivesse vista para o oceano e parecesse uma casa
na árvore. No final, eles se comprometeram e fizeram... ambos. A
entrada principal da biblioteca era baixa, fora do pátio, mas eles
abriram um buraco no teto e construíram uma escada para o
cômodo diretamente acima dele, deixando-o com dois andares de
altura.
Quando cheguei, Babette me ajudou a pintar os degraus da
escada como uma pilha de livros gigantes, e era a primeira coisa
que você via quando entrava.
Era exatamente o que uma biblioteca deveria ser, a meu ver.
Caprichosa. Convidativa. Infundida com possibilidades. Sem falar
que é ensolarada, confortável e aconchegante. Eu queria que as
crianças entrassem e saíssem o tempo todo. Eu queria que as
portas estivessem abertas desde o momento em que o primeiro
aluno chegasse ao campus pela manhã até o último sair.
Eu mantinha uma coleção de canetas malucas em um copo na
minha mesa para atrair as crianças a virem me ver: canetas com
cabelo de troll, olhos arregalados e pompons. Uma caneta tinha
uma ampulheta embutida, uma parecia uma seringa cheia de líquido
azul e a outra tinha a forma de um osso muito realista. Eu tinha
canetas em forma de penas, canetas com caudas de sereia e
canetas que diziam a sorte como uma bola 8 mágica. Eu tinha
canetas de bicho preguiça, canetas de unicórnio e canetas com
pompons.
Eu também tinha outros brinquedos em minha mesa – um
caleidoscópio sofisticado, um berço de Newton, um conjunto de
bolas de escultura magnética e uma coleção de piões. Eu também
tinha um cubo de Rubik, embora não funcionasse tão bem quanto
antes, pois um dos alunos da primeira série decidiu resolvê-lo
descascando e reorganizando os adesivos.
Tudo para tornar a mesa de circulação divertida.
Tudo para que as crianças soubessem que estavam seguras
comigo.
Eu queria ter certeza de que, se as crianças sentissem um
impulso a qualquer momento de aparecer na biblioteca, não haveria
nada para detê-las. Era a melhor maneira que eu conhecia de
transformá-los em leitores: pegar aquelas pequenas faíscas quando
elas aconteciam e transformá-las em chamas.
Eu amava meu trabalho, é o que estou dizendo.
O segundo andar era como uma terra mágica. Mantivemos livros
de referência, instruções e não-ficção no andar de baixo – mas no
andar de cima era tudo ficção. De livros ilustrados a livros de
capítulos, aquele andar era sobre se perder em mundos
imaginários. Tínhamos recantos de leitura em cada esquina, pufes
por toda parte e até um grande “ninho” de leitura que as crianças
podiam subir como passarinhos, feitos de madeira e papel machê.
Tínhamos um túnel feito de livros. Tínhamos um loft perto da janela
onde as crianças podiam subir e ler ao lado de uma vista do Golfo.
Era brilhante. Era caprichosa. Era especial. E era minha.
Eu não queria que Duncan me dissesse que havia risco de
incêndio.
Mas eu fui com ele de qualquer maneira. Que escolha eu tinha?
A primeira coisa que ele viu quando entramos foram as escadas
de lombada.
— Escadas legais — disse ele, parecendo esquecer sua política
de não elogiar.
Foi a primeira coisa legal que ele disse em toda a tarde.
— Obrigada — eu disse. — Babette e eu as pintamos.
Isso chamou a atenção dele. Ele encontrou meus olhos pela
primeira vez em todo o dia.
— Você as pintou?
— Babette fez as partes difíceis. Eu apenas preenchi as cores.
— Elas realmente se parecem com lombadas de livros — ele
disse então, estudando-os, a admiração em sua voz suavizando-a e
fazendo-o soar um pouquinho como o velho Duncan.
— Ela descobriu o sombreamento para fazê-los parecer
tridimensionais.
Duncan leu as lombadas em voz alta.
— Teia de Charlotte. James e o Pêssego Gigante. Como Treinar
o Seu Dragão. Harriet, a espiã. Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Ele iria ler todos eles?
— Deixamos as crianças votarem em seus favoritos.
— Claro.
Foi o primeiro – o único – momento durante todo o dia que
pareceu algo normal, uma conversa agradável e confirmou o que eu
sempre acreditei sobre extravagância – que encontrou uma maneira
de ultrapassar as defesas das pessoas.
No topo da escada, encontramos Clay Buckley deitado no tapete
do círculo de leitura cercado por pilhas de gibis de Archie.
— Ei, Clay — eu disse.
Ele girou, o queixo apoiado na mão.
— Ei.
— Lendo um pouco?
— Não tenho permissão para ler isso em casa.
— Entendi — eu disse com uma piscadela, assim como Duncan
disse: — Você não deveria estar nos cuidados posteriores?
— Estou esperando meu pai — disse Clay.
Mas Duncan não parecia entender quem era seu pai.
— Mesmo assim. Você não deveria apenas vagar pelo campus
como um...
— Como um labradoodle? — Eu ofereci.
— Minha avó me deixa ir à biblioteca — disse Clay, como se isso
resolvesse o problema.
Duncan olhou para mim, como Quem é a avó dele?
— A avó dele é Babette — eu disse. Então acrescentei: —
Kempner.
— Então — disse Duncan, juntando as peças. — Se Babette é
sua avó, então isso deve torná-lo…
— O filho de Kent Buckley — eu disse com um aceno de
cabeça.
E isso pareceu resolver tudo. Esse garoto podia ler todos os
quadrinhos de Archie de que gostaria.
O passeio estava quase no fim. Eu estava pronto para ser feito.
O estresse de estar perto de alguém que se parecia com Duncan
Carpenter, mas agia como o oposto dele, estava me esgotando.
Enquanto eu o conduzia em direção à saída, passando pelo
balcão de circulação, ele notou o móbile desmontado espalhado por
toda parte.
— O que é isso? — ele perguntou.
— É uma escultura de borboleta pendurada feita de peças
velhas de bicicleta que ganhei neste verão. Achei que ficaria ótimo
ali mesmo. — Apontei para um ponto no teto. — Mas quando abri e
vi todas as peças, entrei em pânico.
Com isso, Duncan realmente sorriu – não para mim, mas para
todas as peças. Eu vi sua bochecha se mover e o lado de seu olho
enrugar... mas então, ele o deixou cair, quase como se sorrir por
acidente o tivesse assustado, e quando ele olhou para cima
novamente, seu rosto voltou ao branco.
— Você não vai juntar tudo? — ele perguntou.
Eu dei um pequeno aceno de cabeça.
— Hoje não.
— Então quando?
Encomendei aquela coisa no verão – uma vida inteira atrás.
— Eu não sei — eu disse. Então dei de ombros. — Que tal
nunca?
nove

Aquele primeiro mês de escola foi tão violento que quase me


esqueci de Duncan Carpenter. Todos os meus leitores vorazes
estavam em cima de mim – querendo saber o que havia de novo,
querendo verificar dez livros cada, ou os maiores livros que
pudessem encontrar, ou procurando o livro três em qualquer série
em que estivessem viciados. Parecia um circo lá dentro.
Um circo de livros.
Fiquei feliz por isso. Fico feliz por ter escapado daquelas
estranhas e dolorosas últimas semanas de verão. Fico feliz que o
ritmo do ano letivo me puxe. Fico feliz pela biblioteca cheia de
leitores.
Adorava a energia de seus corpinhos e o som de suas vozes,
mesmo quando ficaram muito altas. Eu não era uma bibliotecária
que andava por aí mandando as crianças calarem a boca – mas eu
tentava ajudá-las a lembrar que a biblioteca deveria ser um espaço
relaxante, um espaço especial, que deixasse espaço para a
imaginação.
Duncan fez mudanças, sim, mas de forma incremental o
suficiente para que, uma a uma, elas não provocassem rebelião.
Ele instituiu assentos designados para as crianças na hora do
almoço, por exemplo. O que acabou por ter algumas vantagens.
As crianças odiavam, mas tudo bem. As crianças odiavam
muitas coisas.
Duncan também começou a exigir que os professores
participassem de todas as aulas – não apenas na primeira hora da
manhã. Seu raciocínio era que precisávamos monitorar onde as
crianças estavam durante o dia escolar. E se um deles
desaparecesse? Como saberíamos?
Esta mudança teve menos vantagens. Os professores odiavam
esta.
Hum. Como saberíamos? Nós apenas – você sabe – notamos
que alguém está faltando. A implicação de que comparecer era a
única maneira de impedir que nossos filhos desaparecessem sem
licença foi, francamente, bastante insultante. Mas Duncan queria um
registro – uma contabilidade de onde cada criança estava durante o
dia escolar. E não foi a maior imposição do mundo. Sério, uma vez
que o vimos segurar aquela arma, algo como marcar presença na
aula parecia uma batata pequena.
Em teoria, pelo menos.
Na prática? Assistir é a maneira mais chata possível de começar
uma aula.
Outras pequenas mudanças que Duncan introduziu no
cronograma pouco a pouco sem nunca causar tumulto: encurtar o
almoço em dez minutos. Encurtando o recesso, também.
Decretando que o corpo docente não poderia cobrir as aulas uns
dos outros. Decretar que o corpo docente não poderia deixar o
campus durante o dia escolar.
Sem mencionar a adição de fechaduras e interfones a todos os
portões que permitem que você entre ou saia do terreno da escola –
exceto a entrada da frente, que era guardada pela segurança o
tempo todo.
Os interfones em si não eram tão onerosos, mas o que se
tornava um problema sério era que eles mudavam os códigos de
segurança a cada duas semanas.
Talvez isso não fosse tão ruim, se você não tivesse mais nada
em que pensar.
Mas os professores sempre têm tudo em que pensar.
Era o pior para quem dirigia – todos menos eu – porque o
estacionamento ficava do outro lado da entrada da escola. Se você
esqueceu o código, você teria que andar todo o caminho para a
frente. De certa forma, fiquei feliz por não dirigir mais – não desde
que as convulsões voltaram. Em parte porque não queria tomar
remédios, o que era necessário para ter uma licença. Mas também,
para ser sincera, depois daquela primeira e espetacular reintrodução
à minha epilepsia adulta, não estava muito ansiosa para voltar ao
volante.
Foi bom. Houve vantagens.
Era um ritmo de vida mais lento.
Na maioria das manhãs, eu apenas andava em minha bicicleta
amarela – com meus suprimentos enfiados na cesta do guidão que
Babette e eu colamos flores falsas por toda parte – e Chuck Norris
vinha saltando pelos portões e lambia meus tornozelos enquanto eu
a trancava na frente.
Lembra como Duncan nos disse para não acariciá-lo?
Sim... eu acariciava muito aquele cachorro.
Foi bom para nós dois.
Na verdade, fiz o possível para ignorar a maioria das mudanças
de Duncan.
Mas o que mais me atingiu foi o dever de carona.
Ele revisou completamente a reserva de carros na terceira
semana de aula – decidindo que não era seguro para as crianças
sentar do lado de fora do prédio enquanto esperavam para ir para
casa.
— Eles são literalmente alvos fáceis — ele disse a Alice.
— Bem — ela havia dito a famosa frase —, não literalmente.
Por decreto real, as crianças agora tinham que sentar no pátio
para pegar a carona. Demorou o dobro do tempo e exigiu um
sistema de revezamento.
Também exigia o dobro de professores.
Fui recrutada para isso – contra a minha vontade. Todo mundo
foi. Então, uma vez por semana, no final de um longo e exaustivo
dia de trabalho, eu ficava de pé no calor de trinta graus por mais de
uma hora, respirando monóxido de carbono e enfrentando pais
furiosos que abaixavam as janelas do carro e gritavam:
— Estou nesta fila há mais de uma hora!
— Pelo menos você tem ar-condicionado — eu dizia, tomando
um gole da minha garrafa de água.
Ficou tão ruim que Alice sugeriu que colocássemos cubos de
gelo em nossos sutiãs – o que eu não aceitei, embora fosse
tentador. Em vez disso, encontrei um rosa gigante guarda-sol em
uma das lojas de praia e usei-a para criar meu próprio pedaço de
sombra.
O que ajudou um pouco. Mas não o suficiente.

Era perto do Dia de Ação de Graças quando Duncan explodiu em


nós.
Não tenho certeza se ele estava tentando nos induzir a uma
falsa sensação de segurança, ou se apenas demorou tanto para se
organizar, mas quando isso aconteceu, tínhamos nos acomodado
em um confortável estado de desconforto.
Eu, por exemplo, encontrei uma paz muito inesperada com ele.
Tão profundamente quanto sua personalidade revisada me
desapontou, na maior parte, também me curou de minha paixão
épica. Quase pensei neles como duas pessoas diferentes agora. O
velho Duncan, por quem eu ainda ansiava, e o novo Duncan, por
quem eu definitivamente não ansiava.
O velho Duncan ainda era meu padrão-ouro insubstituível para
tudo que é adorável.
Novo Duncan? Era apenas uma espécie de chefe idiota.
E caras assim custavam dez centavos.
Eu não poderia estar apaixonada por ele agora. Não havia nada
agradável ali para amar.
O novo Duncan era extremamente reservado – nunca falava
sobre si mesmo, sua vida familiar ou seu passado. Nós não
tínhamos sequer visto a esposa – ou as crianças. Ele manteve sua
vida doméstica e sua vida profissional completamente separadas
em todos os sentidos. Acho que ele realmente não nos queria em
seus negócios. Tudo bem por mim. Melhor, na verdade. Ele nem
mesmo tinha fotos em seu escritório – nenhuma coisa pessoal.
Apenas livros de pedagogia.
Enfadonho como giz e meio divertido.
Foi um alívio. Meu coração estava seguro. Agora, se ele
simplesmente parasse de se intrometer na minha escola, eu dizia a
mim mesma, as coisas poderiam voltar ao normal. Mais ou menos.
Embora, é claro, eu soubesse que nunca conseguiriam.
E então, em uma tarde normal de sexta-feira, recebemos um
apito de um memorando – como ninguém nesta escola já tinha visto
antes. “De: Duncan Carpenter. RE: MEMORANDO – SEGURANÇA
E PROTEÇÃO –Efetivo imediato.
Tinha nove páginas em espaço simples e li cada palavra.
Todos nós lemos.
Pode ser o único memorando de nove páginas em toda a escola
na história do tempo que foi lido até a conclusão por todos os seus
destinatários.
Mas não de um jeito bom.
Enquanto meus olhos captavam frase após frase com horror,
senti uma crescente sensação de pânico.
Todas aquelas coisas que eu estava tão aliviada que Duncan
não tinha feito?
Ele estava fazendo isso agora.
Ele organizou seu memorando em duas seções: Melhorias Na
Segurança No Campus e Melhorias Na Segurança Fora Do
Campus.
Para a segurança no campus, as seguintes mudanças entrariam
em vigor imediatamente: nosso adorável arco aberto na entrada da
escola teria um portão de ferro instalado sobre ele e os visitantes
seriam informados por um guarda – um dos três novos que
estaríamos contratando. Uma vez lá dentro, todos passariam pelos
detectores de metal e passariam suas malas por máquinas de raio-x
estilo aeroporto: alunos, professores, administradores e visitantes.
Bolsas e mochilas também seriam revistadas manualmente.
Ah, e PS – Duncan tinha acabado de demitir nosso segurança,
Raymond, por “falta de alerta”.
Sobre a segurança da sala de aula: todos os quartos no andar
térreo seriam obrigados a manter suas persianas fechadas e suas
janelas fechadas e trancadas o tempo todo. Em algum momento no
futuro, as janelas seriam substituídas por vidros à prova de balas
e/ou barras de metal seriam instaladas. Todas as portas históricas
de madeira das salas de aula seriam substituídas por portas de
metal – feitas por uma empresa que também fabricava tanques
blindados – o mais rápido possível. As travessas nas portas – que
ainda usamos em dias bonitos para brisas – seriam fechadas com
tábuas.
Para “reduzir o caos visual” e “ajudar a visibilidade” no campus,
ao longo do ano, a escola repintaria os corredores e salas de aula
quartos de uma cor que Duncan descreveu como um “cinza
calmante”. Ele também estava instituindo um uniforme para as
crianças usarem – também cinza – a partir de janeiro e pediu
respeitosamente que os professores tentassem se vestir com cores
sólidas, de preferência cinzas suaves, marrons e bege. Tudo isso a
serviço do “aumento da visibilidade”.
Antes que eu pudesse reagir a qualquer uma dessas coisas,
meus olhos se moveram para a seção intitulada Segurança Fora do
Campus, que argumentava, em essência, que tal coisa não existia.
Como seria impossível garantir a segurança dos alunos fora do
campus, não estaríamos mais fazendo excursões à praia, ao
aquário ou ao parque de diversões construído sobre o oceano.
Basicamente: nenhuma viagem de campo. Nunca. Com efeito
imediato.
Rolei de volta para o topo do e-mail e o li novamente.
Então eu li de novo.
Especialmente a parte “sem viagens de campo”. Porque
tínhamos uma viagem de campo planejada para a próxima semana:
nossa limpeza anual de praia para os alunos da terceira série, onde
a turma vasculhava uma seção da praia para coletar o máximo de
lixo plástico possível. Eles usavam luvas, usavam ancinhos e pás,
enchiam sacos de lixo e geralmente sentiam que estavam causando
um grande impacto. Dava para ver a diferença na extensão da praia
– e ao longo dos anos, enchemos um corredor inteiro com fotos de
antes e depois.
Na opinião de Max, não se pode ensinar às crianças algo
profundamente deprimente – como o estado dos nossos oceanos –
sem também dar-lhes esperança e um plano de ação. Nesta
semana, conforme programado, todas as crianças assistiram a
documentários sobre um fenômeno conhecido como Grande
Mancha de Lixo do Pacífico – uma coleção flutuante de plástico,
lixo, lixo e detritos que foram carregados por correntes de todo o
mundo para se acumular em uma sopa gigante e pegajosa de
sujeira que era duas vezes maior que o estado do Texas.
O Texas é grande, pessoal.
Tem quase 11 mil quilômetros de largura e quase 13 mil
quilômetros de comprimento.
Leva de quatorze a dezesseis horas para atravessá-lo.
Então esse é um grande pedaço de lixo flutuante.
Éramos ilhéus em Galveston. Tínhamos o Golfo de um lado e a
baía do outro. Isso não era teórico para nós. As pessoas aqui
viviam, de uma forma ou de outra, da água. E então construímos o
currículo de outono em torno disso. Se o adesivo do seu carro dizia
NNI (Nascido Na Ilha) ou MPE (Morador Por Escolha), estávamos
todos juntos nesta ilha. O oceano e tudo o que ele significava,
simbolizava ou impactava era tecido a cada minuto de nossos dias.
Isso não era teórico para nós.
Isso foi pessoal.
Max sempre sentiu que aprender tinha que importar. Que
tínhamos que construir nossas aulas em torno de coisas com as
quais as crianças se importavam e garantir que elas soubessem o
que estava em jogo. E assim construir o currículo da terceira série
em torno do oceano deu um tema para o ano todo.
Eu até tinha uma exibição inteira na biblioteca e estava lendo
uma releitura de A Pequena Sereia que era um pouco mais positiva
para Ariel do que a versão animada que todos conheciam.
Comparávamos versões diferentes, geralmente terminando em uma
discussão animada sobre política de gênero no reino das sereias e
como desistir de toda a sua identidade por amor geralmente era
uma má ideia.
— Nunca abra mão de sua voz por ninguém — eu dizia às
crianças todos os anos.
— Ou sua cauda! — os alunos do jardim de infância geralmente
gritavam.
— Especialmente a sua cauda — eu concordei, e então eu os fiz
passar o resto do período no espaço do artista, desenhando para
mim imagens de seus rabos tritões.
Na minha versão favorita da história, a sereia encontra uma
concha mágica que a permite fazer as duas coisas – ter pernas
humanas ou cauda de sereia, dependendo de seu humor.
Quão realista era esse final? Eu realmente não me importo.
Se as sereias não pudessem ter tudo, caramba, quem poderia?
Mas estou fugindo do assunto.
Naquela noite, depois que todos recebemos o épico memorando
de Duncan, quando nos reunimos na casa de Babette, o clima entre
os professores era muito... aldeãos com forcados.
Eu acho que você poderia dizer que o corpo docente e a equipe
não estavam felizes.
Você também pode dizer que eles pensavam que Duncan era o
diabo.
Quando cheguei, a mesa do jardim estava cheia de caixas de
pizza e pelo menos trinta professores estavam comendo
estressados. E bebendo sob estresse. E alguém tinha invadido a
mercearia e esvaziado a padaria – rolinhos de canela, rosquinhas,
éclairs. Até mesmo um bolo de aniversário que dizia “Feliz
Aniversário, Stanley” que estava com preço super especial por US$
1,99 porque ninguém nunca o havia comprado.
As pessoas nem estavam usando pratos com aquele bolo de
aniversário. Apenas cavando com seus garfos como guaxinins
desesperados.
A Sra. Kline estava tentando manter a ordem, mas estar no
comando não era coisa dela. Ela tinha um bloco de notas amarelo e
estava fazendo anotações enquanto a multidão ficava mais
barulhenta, bêbada e mais açucarada.
Digamos apenas que o cancelamento de todas as viagens de
campo, todas as cores, toda a individualidade, toda a criatividade e
toda a diversão não foi muito bem. Pode ter sido o momento
definitivo em que Duncan os perdeu completamente.
Perdeu todos nós.
— Ele quer pintar a escola toda de cinza — Alice ficava
repetindo.
— Ele quer colocar barreiras em tudo — acrescentou Sadie Lee,
da primeira série.
— Ele está fazendo as crianças usarem uniformes — disse
Carlos.
— Ele está nos fazendo usar uniformes! — Anton, o professor de
ciências, gritou.
— Onde ele está conseguindo dinheiro para tudo isso? —
acrescentou a Sra. Kline.
— Como isso está acontecendo? — perguntou Donna.
— Como ele conseguiu aprovação? — a enfermeira da escola
quis saber.
Enquanto observava os professores em pânico, cheguei a uma
conclusão. Quem Duncan costumava ser não poderia superar quem
ele havia se tornado.
Eu não podia – e absolutamente não iria – deixá-lo transformar
nossa escola em uma prisão.
Ele tinha que ir.
Tínhamos que encontrar uma maneira de nos livrarmos dele.
Peguei o bloco amarelo da Sra. Kline e sua caneta. Então me
levantei nos degraus dos fundos e chamei todos à ordem gritando:
— Um! Dois!
— Olhos em você! — todos eles gritaram de volta.
Tão fácil com os professores.
No silêncio que se seguiu, eu disse:
— Aquele memorando de hoje deixou claro: ninguém está vindo
para nos salvar. Nós vamos ter que nos salvar. E salvar a escola. —
Olhei em volta para todos os professores. Havia pelo menos trinta
de nós lá. Então eu disse: — Temos que nos livrar desse cara.
Uma alegria movida a vinho e bolo aumentou.
Claro, ninguém realmente sabia como fazer isso – mas era nisso
que essa reunião iria se transformar. Uma sessão em pânico de
brainstorming e sem idéias seria muita burrice.
A primeira ideia era fazer uma petição.
A segunda ideia era escrever uma carta em grupo para o
conselho, assinada pelo maior número de professores que
conseguíssemos – o que seria todo mundo.
A terceira ideia era refutar cada uma das ideias ruins de Duncan,
uma por uma, designando cada uma a um membro do corpo
docente disposto a escrever sobre por que não funcionaria. Eu
concordei em ficar com as paredes cinzas; O treinador Gordo
concordou em ficar com as barras de ferro; Carlos ficou com os
seguranças; e Alice assumiu o cancelamento de viagens de campo.
Depois que todas as principais afrontas foram atribuídas, passamos
pelas mudanças menores, desde a alteração dos códigos do teclado
até a recente troca de todas as lâmpadas do campus por
fluorescentes azuis, que eram mais baratas, sim, mas que emitiam
uma vibração de necrotério que incomodava todo mundo. Por
unanimidade.
Eu tinha certeza que iria funcionar? Não.
Mas era um início.
Nós daríamos um jeito. Nós trabalharíamos juntos. Eu não tinha
certeza de como e não tinha certeza de quando, mas sabia que
conseguiríamos. Não estávamos desistindo. Não estávamos
acovardados. E com certeza não estávamos cancelando nossa
excursão à praia.
dez

Essa era outra regra de Max: nunca dê más notícias a ninguém sem
também dar a eles algo para fazer a respeito.
Íamos à praia recolher o lixo todos os anos, sem falta.
Tudo para dizer que, quando Duncan enviou aquele e-mail, os
ônibus já estavam reservados, as equipes de professores já
estavam organizadas, os sacos de lixo, ancinhos e material de
limpeza já estavam montados e os cartazes para registrar e
comemorar quantos quilos de lixo removemos já estavam feitos.
Tudo pronto e esperando.
Eu diria que, em geral, eu era uma pessoa bastante obediente.
Não joguei reciclável no lixo. Votei todos os dias de eleição –
mesmo nas pequenas, a maioria das pessoas pulou. Se uma receita
pedia uma colher de sopa de alguma coisa, eu não apenas olhava,
eu media.
Mas em resposta ao cancelamento da limpeza da praia, tive uma
reação muito pouco obediente. Uma parte ardente e desconhecida
de mim surgiu de algum lugar ardente e desconhecido em minha
alma e criou este pensamento em minha mente: eu te desafio.
Eu te desafio a nos parar.
Duncan Carpenter não tinha o direito de cancelar aquela viagem.
Era uma tradição muito maior que ele. Fizemos uma limpeza de
praia todos os anos. Isso acontecia desde antes de Duncan
Carpenter nascer. Ou perto o suficiente. Tinha sido ideia de Max
muito antes de eu vir para cá, e não iríamos simplesmente deixá-la
morrer agora que ele se foi.
Era esta a colina onde eu queria morrer? Limpeza de lixo na
praia?
Sim. Aparentemente, era.
Aqui está o que estou dizendo: acabamos tirando toda a terceira
série do prédio.
Apenas os enfileiramos para fora do portão sul e caminhamos
com eles os três quarteirões até o quebra-mar. Demos as mãos e
cantamos canções marítimas. Foi fácil. Os professores já haviam
cronometrado o tempo. Carlos foi com as pás e peneiras em sua
caminhonete. Foi bom. Estaríamos de volta na hora do almoço.
Usei um chapéu de palha de abas largas para trabalhar naquele
dia, um sarongue com estampa de conchas e levei minha bolsa de
praia com filtro solar extra, caso alguém precisasse.
A parte inicial do dia foi deliciosa.
Eu tinha o adorável Clay Buckley no meu grupo, e ele era cheio
de curiosidades sobre tudo relacionado ao mar. Ele era um daqueles
garotinhos doces e sérios que mais pareciam um terapeuta de trinta
e cinco anos do que uma criança. Talvez fossem os óculos grandes
demais com armação camuflada azul. Talvez fosse seu jeito gentil,
ou seu vocabulário impressionante, ou o jeito que ele era
praticamente uma enciclopédia… mas ele parecia estar narrando
um documentário sobre a natureza.
Sábio além de sua idade.
A regra para as crianças era que não podiam tocar no lixo com
os dedos. Nós os fizemos usar luvas e distribuímos pás de
brinquedo de praia de plástico barato e peneiras de plástico para
eles recolherem qualquer lixo que vissem, peneirar a areia e depois
despejar o lixo restante nos sacos de lixo. Se uma criança visse algo
pontiagudo – uma garrafa quebrada ou coisa pior – ela teria que
chamar um professor. As crianças se saíram muito bem com isso –
acho que, em parte, porque, a essa altura do ano, eles sabiam tanto
sobre o plástico no oceano que estavam ansiosos para ajudar.
Clay Buckley e eu ficamos lado a lado sobre nossas mãos e
joelhos naquela manhã por mais de uma hora, cavando e
peneirando tampas de garrafas, balões, anéis de seis pacotes,
sacolas plásticas, linha de pesca e um milhão de pequenas peças
coloridas que não conseguimos identificar – e no final disso, eu
estava oficialmente no fã-clube de Clay Buckley.
Independente de sua mãe. Ou seu pai.
No início, Clay me disse:
— É irônico que estejamos limpando o plástico da praia com pás
de plástico.
— É um pouco como canibalismo — brinquei.
Mas Clay pensou nisso.
— Parece-me mais como soldados recolhendo seus mortos de
guerra.
— Entendo — eu disse, e continuei cavando.
Naquela hora, com Clay, aprendi mais sobre o habitat marinho
do Golfo do México do que jamais pensei ser possível. Aqui está
uma amostra do que Clay tinha a dizer:
— Todo mundo já ouviu falar sobre as tartarugas marinhas
Ridley de Kemp, mas você sabia que o Golfo também tem
tartarugas-de-couro, cabeçudas e de pente? — (Eu não sabia.) —
Você sabia que a tartaruga de couro existe basicamente em sua
mesma forma desde a época dos dinossauros? — (De novo, não.)
— Você pode imaginar como seria se sua comida favorita fosse
água-viva? — (Outro não.)
— Apimentado! — foi tudo o que consegui pensar em dizer.
Então Clay disse algo que realmente me chocou:
— Max e eu costumávamos caçar tartarugas durante a época de
nidificação.
— Espere, você e Max caçavam tartarugas?
Clay olhou para mim.
— Não caça, tipo bang-bang — disse ele. — Caçar tipo clique-
clique — Ele clicou no obturador imaginário de uma câmera.
— Bem, isso é um alívio. — Eu dei-lhe uma piscadela.
Eu tinha visto mais do que algumas fotos de seus passeios, na
verdade. Você tinha que tomar cuidado, ou Max faria você ficar lá
enquanto ele folheava todas as fotos em seu telefone.
— Também há baleias lá fora — disse Clay, parando para olhar
o Golfo.
Isso não parecia certo. Minha imagem das baleias estava no
fundo do oceano, não no raso Golfo. Desta vez, eu quis dizer isso:
— Sério?
— Vinte e cinco espécies diferentes, na verdade. Jubartes,
azuis, assassinos e um monte de outros. Um disse que uma baleia
de Bryde acabou de ser listada como ameaçada de extinção. Ah,
mais cachalotes.
Eu fiz uma careta, como se dissesse de jeito nenhum.
— Cachalotes? Mesmo?
— Mesmo.
— Nunca vi um cachalote perto de Galveston.
— Bem, claro que não — Clay disse gentilmente. — Elas estão
debaixo d'água.
— Justo.
— Além disso — ele acrescentou —, elas estão longe, nas
partes profundas. Mas os navios costumavam vir de todas as partes
para as zonas baleeiras. — Então ele se virou para mim e assentiu.
— E nós temos os naufrágios para provar isso. Quatro mil deles,
para ser exato.
— Existem quatro mil naufrágios por aí? — Eu disse, parando
para olhar para fora, como se eu pudesse encontrar um.
— Sim.
— Como você sabe tudo isso? — Perguntei.
Clay olhou para baixo.
— Max.
Oh. Max.
— Além disso — Clay acrescentou então —, quero ser um
arqueólogo marítimo quando crescer. E há muito o que aprender.
Então eu tenho que me manter muito ocupado.
— Eu poderia vê-lo totalmente como um arqueólogo marítimo —
eu disse. Eu não tinha 100% de certeza do que era, mas podia ver
Clay como qualquer coisa que ele quisesse ser.
— Obrigado — disse Clay, fazendo uma pequena reverência.
Ele voltou a peneirar. — Você sabe sobre o naufrágio La Belle?
Eu balancei minha cabeça.
— Ele afundou em 1600 na Baía de Matagorda, e os
arqueólogos o encontraram não muito tempo atrás e o escavaram.
Eles construíram uma parede para conter a água. Encontraram o
brasão de um almirante francês. Encontraram o punho de uma
espada. Eles encontraram ossos humanos.
— Uau — eu disse.
— Max ia me levar durante a noite para o museu em Port
Lavaca… — Clay parou de peneirar por um segundo. — Mas agora
meu pai vai me levar em seu lugar.
Tentei imaginar Kent Buckley em um museu com seu filho
introvertido, estudioso e pensativo. Clay estaria lendo cada sinal
para cada artefato duas vezes, e Kent Buckley estaria conduzindo
alguma reunião idiota em seu telefone celular, falando muito alto e
apressando Clay junto.
Ocorreu-me então que, de todos nós, Clay poderia ser a pessoa
que mais precisava de Max.
— O museu parece incrível — eu disse, tentando dizer algo
verdadeiro.
Clay encontrou meus olhos.
— Você pode vir conosco se quiser. — Ele deu de ombros. —
Vou dormir no chão.
Por alguma razão, a maneira como ele disse isso fez meus olhos
arderem com lágrimas. Eu pisquei para afastá-los.
— Preste bastante atenção — eu disse — e depois volte e me
conte tudo.
— Entendido — disse Clay.
— Ei, Brainerd — um garoto gritou para Clay um minuto depois
—, encontrei um dente de tubarão!
Ele ergueu um pedaço triangular de plástico.
— Incrível — disse Clay, recusando-se a morder a isca.
O nome daquele garoto era Matthew, mas ele apenas começou
a dizer às pessoas para chamá-lo de “Cachorro Louco”. Alguns
segundos depois, inclinei-me em silêncio e disse:
— Do que Cachorro Louco acabou de chamá-lo?
Clay continuou peneirando.
— Brainerd — disse ele. — É um apelido.
Eu tentei proceder com cuidado.
— Como você conseguiu esse apelido?
Clay fez uma pausa.
— Isso deveria ser um insulto. Você sabe: ‘cérebro’ mais ‘nerd’?
Mas o Dr. Alfred Brainerd é um dos meus cientistas favoritos do
rock, então a piada é em Matthew.
— Você não quer dizer Cachorro Louco?
Clay torceu o nariz.
— Vou ficar com Matthew.
Eu não poderia dizer o quanto o apelido incomodava Clay.
— Você quer que eu diga a Matthew para parar de chamá-lo de
Brainerd?
Ele encontrou meus olhos e balançou a cabeça.
— Não — ele disse. — Eu tomo isso como um elogio.
Eu balancei a cabeça, tipo entendi.
Se ele fazia isso ou não, este não era o momento de tomar um
profundo mergulho nele. Ele parecia bem – melhor do que bem, na
verdade, quando voltou a conversar sobre a vida marinha e a
história geral do Golfo do México: o golfinho encalhado alguns
verões atrás, os detalhes de um livro que lera sobre a tempestade
de 1900, as escapadas de vários piratas.
— Há ouro pirata enterrado por toda parte — Clay prometeu. —
Max e eu costumávamos procurá-lo com seu detector de metais.
Max adorava aquele detector de metais.
— Ele deixou para mim — disse Clay então. — No testamento
dele.
Lá estavam aquelas lágrimas novamente. Engoli.
— Você vai me levar para olhar algum dia?
— Com certeza — disse Clay, e despejou uma pilha peneirada
de tampinhas de garrafa no saco de lixo.
Um minuto depois, Cachorro Louco gritou:
— Brainerd! O que é isso?
Ele puxou uma rede de pesca de nylon de baixo de uma fina
camada de areia. Alguns professores vieram ajudar. No momento
em que a coisa toda foi descoberta, era tão grande quanto um
cobertor.
— É uma rede fantasma — disse Clay.
As crianças se animaram com a palavra “fantasma”.
— Esse é o nome das redes que foram abandonadas e
acabaram flutuando livremente na água — explicou Clay. — Eles
são feitas de nylon, então não se desintegram e matam a vida
selvagem o tempo todo. Peixes, tartarugas marinhas, pelicanos e
golfinhos – todos ficam presos neles e sufocam. Ou passam fome.
— Bem, não esta rede — disse uma garotinha chamada Angel,
marchando até Cachorro Louco com um saco de lixo. Cachorro
Louco entendeu o que ela queria dizer e começou a enfiar a rede na
sacola. Logo foi descartado.
— Obrigado, Brainerd — Cachorro Louco disse, e então um
monte de outras crianças entrou na conversa, cumprimentando-o e
comemorando o fim da rede fantasma.
Um momento tão difícil de ler: o apelido parecia maldoso, mas o
agradecimento parecia genuíno. Decidi seguir o exemplo de Clay –
e ele parecia feliz, então concluí que era uma vitória.
E bem naquele momento, quando eu estava me sentindo feliz
por estarmos lá, e orgulhosa por termos levado as crianças para a
limpeza da praia por direito, e feliz por ter aprendido tantas
curiosidades sobre a praia com meu amiguinho inteligente, e talvez
apenas um pouco triunfante sobre o descarte da rede fantasma,
olhei para cima e vi uma figura de pé no paredão, olhando para nós.
Uma figura masculina, iluminada por trás pelo céu sem nuvens.
Duncan.
Ele desceu a metade dos degraus de concreto e examinou todos
nós – crianças e professores – como se fôssemos o bando mais
vergonhoso de quebradores de regras sem coração.
— O que está acontecendo aqui? — ele disse finalmente, em
voz baixa, não muito satisfeita.
Todos os professores se entreolharam. Alice pareceu se curvar
um pouco mais.
Finalmente, dei um passo à frente.
— Apenas limpando o lixo da praia. — Então apontei para o
saco de lixo cheio de rede e disse, como se isso fizesse algum
sentido: — Apenas sendo heróis e salvando o oceano.
As crianças comemoraram e Duncan se virou para encará-los.
Então ele olhou para mim como se eu fosse muito travessa.
— Você não recebeu meu memorando?
Eu balancei a cabeça.
— Você leu?
— Eu li. Todas as nove páginas em espaço simples.
— Então você sabe que todas as viagens de campo foram
suspensas.
— Eu sei.
— Você não está aqui por engano, é o que eu quero dizer —
como se ele estivesse me oferecendo uma saída.
Acho que poderia ter pegado. Mas não o fiz.
— Não estamos aqui por engano.
— Você sabia que esta viagem de campo foi cancelada, mas
você veio aqui mesmo assim?
— Correto.
Duncan me examinou.
— Você achou que eu simplesmente não notaria que toda a
terceira série estava faltando?
— Eu esperava que você não o fizesse — eu disse, com um
encolher de ombros. — Se você não estivesse ocupado.
Duncan voltou-se para os professores.
— Comecem a guardar as coisas. Nós vamos voltar.
Mas fiz sinal para Duncan descer o resto do caminho.
— Posso falar com você, por favor?
Quando Duncan pisou na areia, depois de levar um segundo
para se ajustar à dissonância cognitiva de um homem de terno
cinza, em oxfords pretos recém-engraxados, parado na praia,
acrescentei:
— Em particular?
Comecei a marchar para longe de onde as crianças estavam, e
Duncan, para meu alívio, me seguiu.
Quando estávamos fora do alcance da voz, eu disse:
— Não faça isso. Vamos terminar o que estamos fazendo.
Ele encolheu os ombros.
— Você quebrou as regras.
— Bem, são regras ruins.
— Discordo.
— Estamos bem — eu disse, gesticulando para as crianças. —
Tem sido um dia adorável. As crianças aprenderam coisas e
torceram umas pelas outras. Estamos construindo esse dia há
semanas, o momento em que as crianças podem fazer algo para
ajudar o oceano. Tem sido muito inspirador para eles.
— Irrelevante — disse Duncan. — Eles não podem estar aqui.
— Por que não?
— Porque as viagens de campo foram canceladas.
— Então descancele.
— Não é assim que funciona.
— Você pode cancelá-los, mas não pode descancelá-los?
— Não quando as pessoas quebram as regras.
Apontei para as crianças.
— Olha como eles estão felizes. Por que simplesmente não
deixá-los ficar?
— Não posso protegê-los aqui.
— Você não é o Serviço Secreto. Eles são apenas crianças em
uma viagem de campo.
— Não mais.
Ele deu um passo como se estivesse prestes a voltar e reuni-los.
— Espere! — Eu disse, colocando minha mão em seu braço
para detê-lo.
Ele olhou para a minha mão.
— Ouça o que você está fazendo — eu disse, contando com
meus dedos. — Você está colocando portões em tudo e grades nas
janelas. Você está pintando tudo de cinza. Você está colocando as
crianças… e os professores, a propósito, em uniformes cinza. Você
está contratando um novo bando de guardas de segurança. E você
demitiu o pobre Raymond...
— Ele estava dormindo o tempo todo!
— Ele tem apneia do sono!
Nós nos encaramos por um segundo.
Então eu disse:
— Você não pode ver o que está fazendo?
Ele piscou para mim.
— Barras? Paredes cinza? Portões? Guardas? Você está
transformando nossa escola em uma prisão. Uma prisão real e
literal.
Foi a minha frase de efeito. Destinada a obter algum tipo de
reação – induzir até mesmo uma pequena consciência nova. Talvez
até desencadear uma epifania e fazê-lo perceber o quão
surpreendentemente errado ele esteve o tempo todo. Isso não teria
sido legal?
Mas qual é o oposto de uma epifania? Um encolher de ombros?
Duncan disse:
— É necessário.
— Quem disse?
— Consultei extensivamente especialistas em segurança.
— Como você sabe que eles sabem do que estão falando?
— Hm. Porque eles são especialistas.
— E? Os especialistas estão errados o tempo todo.
— Isso é bom. Mas é meu trabalho manter essas crianças, e o
corpo docente, aliás, seguro.
— Esse não é o seu único trabalho.
— Esse é o meu trabalho número um.
— Eles não podem aprender se forem miseráveis!
— Eles não podem aprender se estiverem mortos!
Com isso, nós dois ficamos em silêncio.
O vento soprava em seu cabelo, e seus oxfords agora estavam
cobertos de areia, mas apesar de quão ridiculamente deslocado ele
parecia nesta praia naquele terno, ele ainda conseguia exalar
autoridade. Duncan Carpenter, de todas as pessoas, esbanjando
autoridade. Ele deveria estar empinando uma pipa! Ele deveria estar
fazendo parada de mãos em shorts de estampa havaiana. Ele
deveria estar ajudando.
O erro de toda a situação ajudou a alimentar uma coragem
indignada em mim. Eu, de chapéu de palha, óculos de sol em
formato de coração, e uma camiseta com o desenho de um polvo
com os braços bem abertos que dizia ABRAÇOS GRÁTIS.
Eu me recusei a recuar.
E esse foi o momento – bem ali – quando minha necessidade de
entender o que diabos aconteceu finalmente superou minha
necessidade de me proteger. Antes que ele pudesse se virar e
caminhar de volta para o grupo e reunir todos antes mesmo de
terminarem, me vi fazendo a pergunta que vinha me seguindo como
uma rede fantasma desde que ele chegou.
— Como é possível que você não se lembre de mim? — Eu
disse então, dando um passo mais perto.
Duncan apenas olhou para mim.
— Eu costumava trabalhar na Andrews Prep, na Califórnia.
Nós… — fiz um gesto entre nós dois, sentindo um lampejo de
irritação por ter que explicar isso — trabalhamos juntos por dois
anos. Eu era mais quieta na época, e muito menos... colorida.
Talvez você não tenha me notado. Mas eu notei você. Todo mundo
notou. Você era… — Eu balancei minha cabeça. — Você era tudo
que eu queria ser. Você foi o melhor tipo de professor que eu
poderia imaginar. E quando soube que você estava vindo para cá
para ser o diretor da Kempner, pensei que você seria a melhor coisa
que poderia nos acontecer após a perda de Max, e isso quer dizer
muito. Mas... o que aconteceu com você? Cadê sua calça flamingo?
Onde está sua gravata de pipoca? O Duncan Carpenter que eu
conhecia não cancelaria as viagens de campo! Ele estaria
planejando novas. — De repente, a raiva meio que se dissipou e
minha voz ficou um pouco trêmula. — Eu me lembro de quem você
costumava ser. Eu estava tão animada para ver aquele cara de
novo. Mas é como se ele tivesse ido embora. Eu não sei onde ele
está. E eu não tenho a menor ideia de quem você é. Mas eu daria
qualquer coisa para ver aquele cara de novo.
Duncan manteve-se imóvel o tempo todo enquanto eu falava –
sem se mover, sua expressão totalmente estóica.
Eu não sei o que eu estava esperando. Algum tipo de
explicação, talvez, como “minha esposa chata me disse que era
hora de crescer e parar de brincar”. Ou talvez: “eu pensei que os
diretores tinham que ser durões. Você está dizendo que este lugar
prefere um pateta de bom coração?
Acho que em alguma versão fantasiosa desse momento, eu
seria capaz de mostrar a ele o erro de seus caminhos. Eu seria
capaz de lhe dar permissão para ser quem ele realmente era. É
aquela fantasia que todos abrigamos quando alguém está
completamente errado, e esperamos que, se explicarmos isso a
eles, eles nos ouvirão e dirão: — Oh, Deus. Você tem razão. Eu sou
o pior. Obrigado por me ajudar a ser uma pessoa melhor.
Como se isso já tivesse funcionado.
Enfim: não funcionou.
Em resposta a tudo isso – minha confissão de que o conhecia,
minha admissão de quanto o admirava, minha confissão acidental,
totalmente vulnerável e grand finale de quanto eu realmente
desejava ver o antigo Duncan novamente – Duncan foi com:
— Estamos saindo do assunto, aqui.
Mas não. Estávamos apenas – finalmente – entrando no
assunto.
Eu não recuei.
— Eu me lembro de você — eu disse, dando um passo mais
perto, olhando em seu rosto.
Duncan olhou para o Golfo.
— O que aconteceu? — Eu disse. — O que te deixou assim?
Por que você mudou? — E então, pensando que talvez eu estivesse
fazendo a pergunta que acertaria na mosca e o faria finalmente
admitir a verdade, eu disse, mais baixo, quase num sussurro. — Era
sua esposa?
Duncan franziu a testa e olhou para mim.
— Minha esposa?
— Ela não aprova brincadeiras, não é? Ela quer que você seja
sério o tempo todo. Ela quer que você seja como todos os outros
adultos. — Eu balancei minha cabeça. — Ela nunca teve senso de
humor. Por que os caras sempre, sempre vão atrás das garotas
bonitas, não importa o quão chatas elas sejam?
Mas Duncan estava olhando para mim.
Oh, Deus. Eu o insultei. Você não pode sair por aí chamando as
esposas das pessoas de chatas! Eu tentei voltar atrás.
— Não sua esposa, é claro... quero dizer... ela é bonita e
também... não... chata. Eu estava mentindo descaradamente.
Mas foi quando Duncan disse:
— Quem?
— Sua esposa. Desculpe. Tenho certeza que ela tem muitas,
muitas grandes qualidades.
Mas ele estava carrancudo.
— Eu não tenho esposa.
Eu congelo.
— Claro que você tem. — E então, como se estivesse tentando
lembrá-lo de algo que ele já deveria saber, continuei: — Aquela
moça das admissões? De Andrews?
— Chelsey?
— É isso — eu disse. — Aquela que convidou você para sair no
estacionamento.
— Uau — disse Duncan. — Ok. Nós namoramos, mas…
Isso não computou.
— Você não... se casou com ela?
— Casar com ela! — ele explodiu com a coisa mais próxima que
eu vi de uma risada dele desde que ele chegou.
— Vocês não foram morar juntos? Não foi realmente... sério?
Ele balançou a cabeça lentamente, como se não pudesse
imaginar por que eu estava perguntando isso.
— Não.
— Houve um boato — eu disse, agora todo acusador — que
você estava pensando em ficar noivo.
Ele olhou para mim como se isso fosse irrelevante.
— Ainda assim, não.
— Um boato sólido — eu disse. — Um boato convincente.
Mas Duncan apenas balançou a cabeça.
E apesar do fato de estarmos brigando por causa da viagem de
campo, apesar do fato de ele ter acabado de declarar o fim de toda
a diversão para sempre, e apesar do fato de eu nem gostar mais
dele, meu coração, muito lentamente, começou a bater suas asas.
— Então... você não é... casado? — Eu precisava reconfirmar.
De novo.
— Não! — ele disse, como se nunca tivesse ouvido nada tão
maluco.
— Você não tem, tipo, um bando inteiro de crianças?
Embaraçoso, mas é verdade: eu não conseguia disfarçar a
bizarra sensação de alegria que acabara de surgir dentro do meu
corpo – como um milhão de minúsculas bolhas gaseificadas. Eu me
senti positivamente efervescente.
Duncan olhou para mim, lendo meu rosto.
Eu sorri. Eu não pude evitar. Então coloquei minha mão sobre
minha boca.
Ele balançou a cabeça para mim, como se não pudesse
entender tudo.
— Sempre foi casual. Às vezes acho que estávamos apenas
namorando porque ela queria tanto. Era mais fácil dizer sim do que
não. De qualquer forma, deixei Andrews no ano seguinte, recebi
uma oferta de emprego em Baltimore e ela não queria deixar a
Califórnia, e foi isso.
Eu não sabia mais o que fazer a não ser começar a rir.
— Só para confirmar mais uma vez: não é casado?
— Nem um pouco.
Eu balancei minha cabeça.
— Eu pensei que você fosse para casa todas as noites para a
esposa e filhos.
— Deus, não. Eu vou para casa todas as noites com Chuck
Norris, que se tornou totalmente o alfa, a propósito, e então ele me
manda dar a ele metade do meu jantar e depois dorme na minha
cabeça.
— Tudo bem — eu disse. — Tão... parecido.
— Mas não sou contra o casamento — disse Duncan. Então ele
acrescentou: — Mais ou menos como você se sente em relação aos
gatos.
Ai meu Deus.
Espere... o quê?
Minha boca se abriu.
— Você sabe disso?
— Que você é neutra em relação a gatos? Que é mais uma
pessoa que gosta de cachorro?
Eu senti como se todo o ar tivesse sido sugado do céu.
— Espere. Você se lembra de mim?
— Claro. Trabalhamos juntos na Andrews.
— Mas... você sempre se lembrou de mim, ou só desde que
comecei a gritar com você?
Sua voz soou um pouco áspera.
— Eu sempre me lembrei de você.
— Mas por que você não disse nada?
— O que havia para dizer?
— Não sei. Que tal 'Olá. Bom ver você de novo. Como você
esteve?'
Os olhos de Duncan pareciam mais suaves, de alguma forma.
— Olá — disse ele. — Bom ver você de novo. Como você
esteve?
Felizmente, lembrei-me dos alunos da terceira série por perto.
Condensei minha voz em um sussurro-grito.
— Eu estive uma merda, obrigada! — Eu disse.
— Não totalmente, porém — Duncan disse de volta, e eu estava
muito brava para perceber que ele soava quase humano. — Você
ama isso aqui — Então ele acrescentou: — E parece amar você.
Íamos falar sobre algo real agora? Foi completamente
desarmante. Eu me senti atordoada.
— Eu amo isso aqui. Eu amo este trabalho, esta cidade e esta
escola. Eu cresci e, você sabe… — Eu queria dizer “desabrochei”,
mas parecia uma coisa estranha de se dizer sobre mim.
— Floresceu — Duncan forneceu, quando eu vacilei.
Eu pisquei para ele.
— Mas então — continuei — perdemos Max. Meu herói… o
herói de todos, e a coisa mais próxima de um pai, um mentor e um
maldito Papai Noel que já conheci. Ele morreu bem na minha frente.
Tão perto quanto você está agora. E então, bum!... Você apareceu...
e eu estava tão esperançosa de vê-lo novamente, e pensei que
talvez você pudesse curar... — quase disse a mim, mas depois
mudei para — todos nós. Mas você está totalmente diferente. Nada
como o cara que eu conhecia. Nada como Max também. Nada como
esta escola ou seus valores. E agora não sei o que fazer porque
agora tudo o que importava para mim está desmoronando, e não é
tudo por sua causa, mas você certamente não está ajudando, e é
muito pior agora porque eu costumava ser tão totalmente...
Eu me impedi de dizer apaixonada por você.
Eu tentei novamente.
— Você era tão…
Eu me impedi de dizer adorável.
Por fim, eu disse:
— É pior do que se você fosse apenas um administrador
aleatório, comum, que empurra lápis e adora formulários. É pior do
que se você fosse apenas um babaca comum. Porque eu sei quem
você costumava ser. E ele era muito melhor do que o cara que você
se tornou.
No processo de, você sabe, falar a minha verdade, eu me
aproximei cada vez mais dele e, quando terminei, estava a apenas
alguns centímetros de distância e ele estava olhando para mim.
O vento puxou meu chapéu de palha, então coloquei a mão em
cima para segurá-lo no lugar.
Por um segundo, senti como se tivesse feito um bom argumento.
E então percebi que tinha acabado de chamar meu chefe de
babaca.
Ele percebeu isso também.
No silêncio que se seguiu, foi como se ele se fechasse
novamente. Ele deu um passo para trás. Ele deu um único aceno.
Então ele disse:
— Anotado.
Nós nos esquecemos por um segundo ali. Sua total surpresa por
eu ter pensado que ele havia se casado com a há muito esquecida
Chelsey e gerado uma ninhada de filhos o desarmou. Por alguns
minutos, ele relaxou em seu eu natural. Nós não estávamos
brigando, discordando ou brigando. Estávamos apenas
conversando. Como as pessoas fazem. Não escalado para os
papéis de bibliotecário arrogante e administrador durão – apenas
duas pessoas recuperando os velhos tempos.
Mas eu estava com tanto medo de dizer algo tolo que, em vez
disso, fiz algo tolo. Eu tentei argumentar com ele para ficar assim.
Surpresa! Não funcionou.
Ele deu mais um passo para trás na areia, se recompondo.
Então, ele se virou para o grupo – todos estavam olhando para nós,
a propósito. E, enquanto ele voltava para eles, não tive escolha a
não ser segui-lo.
Os olhos dos professores se moveram entre nós dois enquanto
esperavam por um veredicto.
Ao chegar ao grupo, soltou um longo suspiro.
Então, em um tom de voz como se ele tivesse sido derrotado,
ele finalmente disse:
— Todo mundo de volta à escola. Agora mesmo. Ou todas as
crianças têm detenções e todos os professores têm que
supervisioná-los.
Os professores hesitaram por um segundo.
Mas então, quando Duncan acrescentou:
— Não me obrigue a tirar a Keurig da sala dos professores —
eles entraram em ação.
onze

Aquele momento na praia me deixou em uma gangorra emocional


sobre Duncan.
Ele ainda estava agindo como um diretor e destruindo
sistematicamente tudo o que eu amava na minha escola e, por
extensão, meu trabalho e, por extensão, minha vida.
Mas aquele pequeno momento humano que compartilhamos
juntos na praia não me deixou desistir dele completamente. Pior:
abriu um pequeno vazamento de saudade na represa do meu
coração. E eu podia sentir a rachadura crescendo um pouco a cada
dia.
Em resposta, principalmente, eu o evitava. As coisas tinham sido
mais fáceis quando eu podia vê-lo como nada além de um idiota.
Não era divertido vê-lo daquele jeito, mas era mais fácil.
Aquele gosto de mel acabou sendo pior do que nada.
Assim como a música diz.
Agora, eu estava tendo que dominar a arte de olhar para ele,
mas não olhar. Porque agora, eu queria olhar tanto quanto não
queria olhar, e aquele estado de tensão estava impregnado de
agonia. Então eu olhava as coisas perto dele. Eu encontraria uma
razão para olhar em sua direção sem realmente focar nele. Eu
tentava ceder apenas o suficiente para satisfazer o desejo sem
realmente fazê-lo. Como morder a ponta de uma barra de chocolate.
Isso só piorou as coisas. Você poderia ter me dito isso.
Este era o ponto crucial: sim, ele era o inimigo e sim, ele estava
arruinando minha vida e, sim, eu estava tentando fazer com que ele
fosse demitido... mas também era muito divertido conversar com
ele.
Irresistivelmente divertido de conversar.
Você conhece essas pessoas? Aquelas pessoas muito raras e
muito especiais que apenas tocam uma espécie de contratempo
para o seu? Era como se a maneira como conversávamos tivesse
um ritmo, como se ele fosse o bumbo e eu a caixa. Ele estava
fazendo a coisa dele e eu estava fazendo a minha, mas nós dois
juntos éramos super dançantes.
E quanto mais conversávamos, mais rápido caíamos naquele
ritmo, e mais eu só queria ficar ali.
Mas claro, tudo era proibido. Eu não deveria brincar com ele, ou
zoar com ele, ou mesmo falar com ele, a menos que tivesse um
bom motivo. Eu com certeza não deveria andar pelos corredores
com ele.
Os outros professores não aprovariam. Caramba, nem eu
aprovaria.
Então, por algumas semanas lá, eu me vi procurando por razões
“legítimas” para aparecer em seu escritório, ou pedir sua ajuda, ou
ficar até tarde depois da escola, caso ele pudesse estar saindo na
mesma hora que eu estava saindo e poderíamos caminhar juntos e
rir um do outro sem, você sabe, ter problemas comigo mesma.
Chuck Norris acabou sendo um ótimo recurso para isso, porque
ele sempre vinha à biblioteca e roía os livros quando deveria estar
em patrulha. Ele realmente adorava comer livros. Então, eu o
acompanhava, entregava o livro a Duncan para adicionar à pilha
crescente e, quando me virava para sair, Duncan dizia:
— Ótima roupa hoje, a propósito.
Eu olhava para minha saia rodada verde Kelly e minhas meias
listradas multicoloridas abaixo do joelho.
— Obrigada — eu dizia. — Estas são meias de palhaço, na
verdade. Comprei na loja de festas na lixeira por um dólar.
— Uau. Meias de palhaço.
— Sim. Mas... legais.
— Elas são menos legais agora que sei que são meias de
palhaço. Meias de palhaço da queima de estoque.
— Falso. Agora elas são mais legais. Porque agora elas têm o
meu selo de aprovação.
— Sim, mas você é uma pessoa que usa meias de palhaço.
Então você não está qualificada para julgar.
E antes que eu percebesse, passei vinte minutos tentando me
afastar.
Não consigo explicar, mas conversar com ele – sobre qualquer
coisa – era bom. A maneira como cantar é bom. Ou rir. Ou receber
uma massagem.
Nunca fui viciada em nada, mas suspeito que possa parecer um
pouco assim: você sabe que não deveria, mas só quer tanto. Essa
foi a conversa com Duncan: ilícita, indefensável e errada, errada,
errada – mas também alegremente, irremediavelmente impossível
de resistir.
E então pensei que teríamos um daqueles momentos no último
dia de aula antes das férias de inverno, quando me apresentei para
o almoço. Tipo, eu andei pelo claustro e o vi segurando a porta para
as pessoas, e meu coração deu um salto ilegal no peito. Quase me
senti nervosa quando me aproximei – um sentimento em mim que
não endossei – e então, quando foi minha vez de passar pela porta,
olhei para ele por baixo dos cílios para dizer obrigado e, assim que o
fiz, Chuck Norris veio saltando em nossa direção por trás de mim e
me jogou direto nos braços de Duncan.
Totalmente legítimo.
Eu bati contra o peito de Duncan com um oof, e a próxima coisa
que eu sabia, ele tinha me pegado.
Foi a primeira vez que nos tocamos desde que agarrei seu braço
na praia – e agora aqui estava eu, em seus braços. O momento
pareceu mudar para câmera lenta e todos os meus sentidos
pareciam aumentar: ouvi o farfalhar do tecido, senti o estrondo de
sua voz, a tensão em seus músculos quando seus braços se
apertaram para me segurar.
Ele me levantou de volta para os meus pés, e não foi até que eu
estivesse de pé sozinha que o tempo alcançou. Olhei em volta e vi a
sala olhando para nós.
— Chuck Norris! — Eu disse, toda rabugento, para provar a
todos que eu nunca iria colidir voluntariamente com o peito de
Duncan assim. Mas Chuck Norris havia se afastado para tentar
beber água de um dos aspersores no pátio.
Então continuei me movendo, entrando no refeitório, todo o meu
corpo emitindo faíscas invisíveis com o impacto.
Foi um momento que me deixou tonta, feminina e estúpida, e
quem sabe que tipo de risada eu poderia ter dado depois se as
circunstâncias fossem diferentes. Mas do jeito que estava, quando
cheguei ao refeitório, olhei para cima e vi algo que apagou a
memória do peito de Duncan da minha mente.
O mural de borboletas na parede do refeitório – o mural do chão
ao teto, em tamanho real, lindo, épico e lendário que Babette e eu
passamos o verão inteiro pintando – havia sumido.
Em seu lugar havia uma parede cinza.
Fiquei boquiaberta.
Então me virei para olhar ao redor da sala como se talvez ela
tivesse... movido, de alguma forma?
Mas todas as paredes eram cinza.
Tudo era cinza.
Até o chão, que não havia mudado e ainda era um tabuleiro de
xadrez amarelo e branco de lisos quadrados industriais, parecia
cinza. Como se todo o cinza ao redor tivesse encharcado. A sala –
sempre tão ensolarada e clara – de repente parecia sombria, suja e
triste. Assim como uma prisão. Assim como eu o avisei.
Procurei por Duncan.
Ele entrou atrás de mim.
Ele sempre rondava o perímetro do refeitório durante o horário
de almoço, parado em posição militar e vigiando todas as entradas e
saídas. Na verdade, ele nunca comeu durante o almoço. Eu não
tinha certeza se já o tinha visto comer alguma coisa. Ele comia?
Talvez ele apenas se reabastecia à noite como um Tesla.
Eu o localizei, rígido como um soldado, em guarda.
Eu nem me lembro de fechar o espaço entre nós dois. Só me
lembro de ter aparecido.
— Onde está o… — comecei a perguntar, mas não consegui
dizer. Comecei de novo e forcei as palavras. — Duncan... o que
aconteceu com o mural?
Talvez eu não tenha descrito corretamente como esse mural era
incrível. Babette o projetou para que as borboletas fossem do
mesmo tamanho que as crianças. Para que, quando você entrasse
e visse, sentisse como se estivesse entre as borboletas. As plantas
eram superdimensionadas e as borboletas eram hiper-realistas.
Todas as plantas nativas também, e borboletas nativas, e nós as
rotulamos – em letras bem cursivas – para que as crianças as
conhecessem – para que, quando as vissem no mundo real, pela
cidade ou flutuando sobre as dunas, pudessem dizer:
— Olha! Uma fritillary do Golfo!
Babette desenhou tudo. Eu apenas ajudei a preencher as cores,
como pintar por número. Levou dias inteiros de trabalho, durante
todo o verão. Mas colocamos música e Max trouxe tacos para o
almoço. E não estou exagerando quando digo que foi uma obra-
prima. De tirar o fôlego, colorido e vivo de alguma forma – cheio de
sol.
E nunca apreciei isso mais do que quando de repente ficou...
cinza.
Eu sabia que Duncan estava planejando pintar sobre as listras e
os padrões de amarelinha e as paredes de destaque. Mas nunca me
ocorreu que o mural estava em perigo.
Achei que era bonito demais para destruir.
Incorretamente. Aparentemente.
Eu estava sem fôlego agora – me sentindo urgente e em pânico
– como se houvesse uma emergência. Mas não havia mais
emergência. Tudo já foi feito. Eu estava apenas testemunhando as
consequências.
Duncan não tinha respondido.
— Você pintou o mural? — Eu perguntei, agora apenas olhando
abertamente para a parede cinza.
— Eu não — disse Duncan, como se isso fosse algum tipo de
argumento válido. — Os pintores.
— Como você pode?
— Em minha defesa, pensei que começariam pelos corredores.
— Você não tem defesa. Não há defesa.
— Você recebeu o memorando. É para…
— Visibilidade — eu terminei com uma voz oca.
— Veja como podemos ver melhor agora.
Agora eu me virei para encará-lo.
— Isso é uma piada? Você realmente acha que isso é melhor?
— De todas as mudanças que ele nos forçou desde que chegou,
esta… esta, partiu meu coração.
— Eu entendo — disse Duncan, soando como um robô.
— Não. Você não entende.
— O mural era lindo, mas...
— O mural — eu interrompi, minha voz tremendo enquanto eu
trabalhava para segurá-lo —, não era apenas lindo. Era mágico. Era
insubstituível. Deixava você maravilhado. Isso fez você se sentir
parte de algo maior do que você mesmo. E era de Babette. E de
Max. E meu. E de todas as crianças neste refeitório. E não era seu
para destruir.
Eu vi seus ombros afundarem um pouco com isso. Como ele
ousa parecer desapontado? Como ele ousa ter algum sentimento
sobre qualquer coisa?
— Olha… — ele começou, mas meus olhos se voltaram para os
dele, e o que quer que ele tenha visto em meu rosto o deixou
paralisado.
Eu podia sentir as lágrimas em meus olhos quando me
aproximei dele.
— Você. Está. Matando. Esse. Lugar.
— Não — ele disse categoricamente. — Estou protegendo.
— Eu estava torcendo por você — eu disse. — Eu estava
esperando que você viesse. Mas tudo isso acaba agora. Eu
oficialmente perdi as esperanças. E eu vou lutar contra você como
uma louca.
Comecei a me afastar.
— Ei — Duncan chamou atrás de mim.
Eu me virei. O que ele poderia ter a dizer?
— Você ainda tem serviço de almoço.
Eu caminhei de volta para ele, meu rosto brilhando com lágrimas
e meus olhos brilhando – e eu o puxei pelo ombro para que eu
pudesse colocar minha boca bem perto de sua orelha. Então, como
estávamos em uma sala cheia de crianças, coloquei minha mão em
concha para conter o som e, bem ao lado dele, sussurrei:
— Foda-se o serviço de almoço.
doze

E então chegaram as férias de inverno – e cara, oh, cara, eu


precisava disso.
Este foi o primeiro ano de Babette – seu primeiro Dia de Ação de
Graças sem Max, seu primeiro Natal. Tínhamos decidido passar
todas as estreias que podíamos em outro lugar. Tínhamos dirigido
para San Antonio no Dia de Ação de Graças e agora, para o Natal,
tínhamos feito reservas em um resort perto de Austin.
Babette e Max sempre ofereciam um grande banquete no Natal
para “qualquer um que não tivesse um lugar para estar”, e Babette
temia que todas as pessoas que contavam com ela se sentissem à
deriva sem ela. Mas ela precisava fugir. E eu também.
— É sobre Duncan Carpenter? — Babette perguntou.
— Não diga esse nome nesta casa — eu disse.
Babette sorriu. Era a casa dela.
Mas isso não era uma questão sorridente.
Eu contei a ela sobre as borboletas, e ela deu de ombros e
disse:
— Nada dura para sempre — Mas ela não voltou para o
refeitório depois disso. Ela comia todos os almoços sozinha na sala
de arte.
— É justo — disse Babette. E então ela gentilmente, e sem
ironia, ouviu-me reclamar por um bom tempo sobre como a última
coisa que eu queria pensar, focar ou falar, nunca mais, era Duncan
Carpenter.
Viu o que eu fiz lá?
E então, quando pensei que tinha realmente terminado com ele,
quando pensei que finalmente encerraria tudo... no dia seguinte,
encontrei-o na praia.
Estava claro, ensolarado, cinquenta graus lá fora, e eu decidi dar
um passeio longo e relaxante à beira-mar, livre de Duncan
Carpenter. A praia de inverno estava praticamente vazia, e meu
plano era me perder no som das ondas e no vento. Um corredor
passou, depois uma senhora passeando com seu buldogue, e então
um casal apareceu no meu horizonte: um homem e uma mulher
passeando na beira das ondas, e quando eles chegaram perto o
suficiente para eu ver quem eram, acabou sendo Duncan, com...
uma mulher.
E assim: eu não tinha mais terminado com ele.
Uma mulher muito bonita, devo mencionar. Não que eu
estivesse estranhando isso. Mas era uma coisa difícil de não notar.
Qualquer um teria notado.
Certo, tudo bem. Isso me incomodava.
Um gás nocivo de ciúme se infiltrou em meus pulmões quando
eles se aproximaram.
A mulher usava um elegante casaco de inverno preto com um
lenço cor de rubi. E Duncan... bem, o cabelo de Duncan estava
bagunçado, estilo velho Duncan, e ele estava de jeans e um alegre
suéter norueguês vermelho... e veja só: ele estava sorrindo.
Ele deixou cair o sorriso assim que me viu, no entanto.
Abandonei o meu também, por princípio.
Foi quando Chuck Norris saltou das dunas e passou por nós,
rápido como um galgo, deslizando sobre a areia molhada à beira
d'água.
— Olá — eu disse.
— Olá — a mulher disse de volta – e então Duncan, ficando
atrás, disse: — Olá.
Uma pausa.
Finalmente, a mulher disse:
— Vocês dois devem... se conhecer?
— Do trabalho — Duncan confirmou.
— Eu sou Sam — eu disse, estendendo minha mão para
cumprimentá-lo. — A bibliotecária de Kempner.
Seus olhos se arregalaram e ficaram encantados com isso – e
talvez um pouco... provocativos?
— Sam! — ela exclamou. — A bibliotecária! De Kempner! —
Então ela se virou de forma exagerada para Duncan, que parecia,
por sua vez, derrotado.
— Sam — Duncan me disse — Esta é Helen. Minha irmã. Que
me odeia.
Irmã dele.
Soltei um suspiro.
O que há em um homem com um suéter norueguês?
Helen virou-se para mim e me olhou de cima a baixo – para meu
cachecol pompom e meu gorro de tricô com protetores de orelha e
laços trançados pendurados. Então ela me deu um abraço bem
rápido, disse:
— Você é adorável! — e se virou para começar a arrastar nós
dois de volta pelo caminho que eles tinham vindo. — Vamos levá-la
para conhecer todo mundo! — ela disse, enquanto caminhávamos e
Chuck Norris liderava o caminho.
Eu não conseguia pensar em uma maneira educada de dizer a
ela que seu irmão era um assassino de murais e que eu tinha
acabado de decidir que ele era meu inimigo mortal para sempre. Ela
era tão... alegre. Não consegui encontrar uma maneira de trabalhar
isso.
— E o que você vai fazer no Natal? — ela me perguntou.
— Eu estou indo para Austin. Com uma amiga. Cujo marido
morreu no verão passado. — Olhei para Duncan como se isso fosse
de alguma forma culpa dele.
Mas esta moça Helen não estava captando meu tom amargo.
— Isso parece divertido. — Ela saiu correndo em direção a
Chuck Norris, que havia encontrado uma bola de tênis. Ela o pegou
e jogou mais adiante, em direção a um grupo de pessoas na praia.
— Essa é sua irmã — eu disse, enquanto a víamos sair
correndo.
— Sim.
— Eu pensei que ela era sua namorada.
Duncan explodiu em uma gargalhada.
— Não. Sem namorada. Não desde... muito tempo.
Dei de ombros.
— Isso parece uma pena.
Isso saiu errado. Duncan ficou quieto por um segundo. Então ele
disse:
— Ei, que bom que encontramos você.
— Sim?
— Eu quero te contar uma coisa. Sobre o mural.
— Não — eu disse. — Não estou falando sobre isso.
— Sim — disse Duncan. — É importante.
— Estou tentando ser agradável agora, mas juro que se você
começar, posso te afogar de verdade no oceano.
— Apenas me dê um segundo para explicar...
Mas eu estava balançando a cabeça, me virando.
— Ouça! — ele gritou.
Isso chamou minha atenção. Eu me virei.
Ele empurrou um suspiro duro.
— O mural não se foi.
— Não sei o que isso significa.
— Significa... eles pintaram por cima, sim. Mas a tinta que eles
usaram… ela sai com a lavagem. É à base de água. Sai com uma
esponja.
Minha boca se abriu – e então eu apenas fiquei lá, piscando.
— Ainda está lá. Não se foi. Eu só quero que você saiba disso.
Eu balancei minha cabeça um pouco antes que eu pudesse me
recompor.
— Por que você não me contou?
— Uh. Porque você é assustadora quando está tão brava. Não
estou nem brincando.
E então eu simplesmente... comecei a rir. O alívio daquela
notícia foi físico. Foi como se todo o meu coração tivesse se aberto.
— Acho que as cores neutras são melhores para a segurança.
Mas aquele mural era tudo o que você disse. Era sol. Era mágico.
Então pesquisei tintas até encontrar algo temporário. Eles deveriam
pintar durante o intervalo, e eu ia avisá-la e explicar tudo antes que
você visse. Mas eles colocaram as coisas fora de ordem. Desculpe.
Eu apenas olhei para ele.
— Quando o mundo for um lugar mais seguro, nós o traremos
de volta.
E então, eu não pude evitar. Eu o abracei.
— Obrigada — eu disse. Então eu tomei o que parecia ser a
respiração mais profunda da minha vida. — Eu estava com tanta
raiva de você, foi fisicamente doloroso.
Duncan assentiu.
— Você está menos brava agora?
Eu pensei sobre isso. O alívio me deixou quase formigando.
— Estou menos brava.
Nesse momento, na praia, Helen começou a pular, agitar os
braços e chamar por Duncan, então começamos a caminhar em sua
direção.
— Então — Duncan disse, enquanto caminhávamos. —
Enquanto você está menos brava, eu tenho um tipo de favor
estranho para pedir. Eu estava querendo ligar para você sobre isso.
— Ok.
Ele respirou fundo.
— Eu sei que nem sempre concordamos em questões
relacionadas a Kempner.
Deixei escapar um amargo:
— Ha!
— Mas... acontece que, hoje em dia, você é a única pessoa
nesta cidade de quem sou mais próximo.
— Isso é muito triste — eu disse — já que somos inimigos
mortais.
— E — ele continuou — acontece que, na semana antes do Ano
Novo, eu tenho que fazer uma cirurgia rápida.
— Uma cirurgia rápida?
— É ambulatorial. Nada demais. Mas eles vão me sedar, espero
que muito, e então vou precisar de uma carona para casa. Marquei
para quando Helen estaria aqui, mas acontece que eles têm que
voltar mais cedo.
Eu balancei a cabeça.
— Então... você precisa de uma carona para casa?
— Eu disse que poderia pegar um Uber, mas eles querem me
liberar para uma pessoa conhecida.
— Hm. Eu não dirijo.
— Você não dirige?
— Não.
— Por que não?
De jeito nenhum eu iria dizer a ele o verdadeiro motivo.
— Apenas excêntrico, eu acho.
— Você pode usar meu carro.
— Não, eu não dirijo nada. Tipo, nunca.
— Oh. — Ele parecia desapontado.
— Mas eu poderia ligar para um serviço de carro, se isso
funcionar.
Ele assentiu.
— Isso seria... muito útil.
— Para que serve a cirurgia? — Eu perguntei então.
Ele balançou sua cabeça.
— Apenas... quebrando um antigo tecido cicatrizado. Chama-se
criocirurgia, na verdade. Eles congelam você com nitrogênio líquido.
— Legal — eu disse.
Ele suspirou como se “legal” fosse a última palavra que ele teria
usado. Então ele disse:
— Na verdade, não.
Quando alcançamos Helen, ela estava com o braço em volta da
cintura de um cara alto e legal, vestindo um casaco de lã e óculos
de aviador – e eles tinham duas garotinhas correndo em círculos ao
redor deles, agora jogando a bola de tênis para Chuck Norris.
— Sam — disse Duncan. — Este é o meu melhor amigo barra
cunhado, J-Train. J-Train, conheça minha... funcionária. Sam Casey.
J-Train estendeu a mão em minha direção.
— Prazer em conhecê-la, Sam.
Peguei sua mão e a apertei.
— Prazer em conhecê-lo, também… — e quando eu estava
tentando decidir se deveria realmente dizer J-Train, Duncan deu um
tapa no ombro de J-Train e disse: — Ele também atende por J-
Money, J-Town, J-Dog e JJ McJayJaykins.
— Entre outros — J-Train concordou, agarrando Duncan pelo
pescoço e puxando-o para um noogie. — Mas Jake também serve.
— Jake. Entendi — eu disse, mas as palavras foram perdidas
quando Duncan o abordou, e eles caíram na areia e começaram a
lutar.
— Jake! — Helen gritou. — Óculos!
Os dois garotos ficaram parados por um segundo enquanto Jake
tirava seus óculos aviador e os entregava a Helen.
— Cuidado com o lado esquerdo — Duncan disse a Jake
durante a pausa.
— Cuidado com os olhos — Jake disse a Duncan.
Então eles voltaram a lutar.
Helen se aproximou de mim e nós os observamos por um
minuto.
— Eles são basicamente apenas filhotes humanos — disse
Helen.
— Huh — eu disse.
Helen e eu nos voltamos para as meninas, agora um pouco mais
abaixo na praia, dando cambalhotas enquanto Chuck Norris latia
para as gaivotas. Helen apontou.
— Essa é Virgínia. Ela tem seis anos. E essa é Addie. Ela tem
quatro anos.
Demos alguns passos em direção a eles.
— Então — Helen perguntou então —, como está Duncan?
— Eu posso ouvir você! — Duncan chamou atrás de nós, onde
Jake o tinha em uma luta livre. — Não pergunte a ela como estou.
— Os adultos estão conversando — Helen respondeu com um
aceno de desdém. Então, de volta para mim: — Como ele está?
— Hum… — Eu não tinha certeza do que dizer. — Bem? Eu
acho? Eu realmente não o conheço muito bem.
Helen olhou para os meninos.
— Você não?
— Quero dizer... nós somos...
— Helen! — Duncan gritou, Jake agora sentado de costas. —
Somos apenas colegas de trabalho.
Como eu havia dito, “colegas de trabalho”.
— Ah — disse Helen. — Isso é tudo?
Dei de ombros. Eu poderia ter acrescentado “inimigos mortais”,
suponho. Mas não parecia combinar com a energia de luta livre na
areia do momento.
— Huh — disse Helen. — Eu tenho uma vibração diferente.
— Helen! — Duncan gritou, agora ultrapassando Jake. — Cale a
boca!
Helen se virou e olhou para Duncan.
— Quanto ela sabe sobre você?
— Nada! — Duncan gritou. — Que continue assim!
— Eu não diria nada — eu disse. — Mas ele guarda para si
mesmo. — Além disso, não acrescentei, ainda estava tentando fazer
com que ele fosse demitido, tinta lavável ou não.
— Sim — disse Helen. — Temos estado preocupados com isso.
Talvez você e eu devêssemos ir tomar um café.
— Não! Nada de tomar café! — Duncan gritou, libertando-se
finalmente de Jake e lançando-se em uma corrida em direção a
Helen, parecendo determinado a enfrentá-la. Ela ficou imóvel
quando ele veio até ela e então, no último segundo, ela disparou
para longe como um toureiro.
Então Duncan acabou me atacando, em vez disso.
Ele estava coberto de areia e, quando pousamos, havia ainda
mais. Apertei meus olhos fechados e, ao fundo, ouvi Jake dizer:
— Duncan acabou de atacar alguém?
— Sim — respondeu Helen. — Sua colega de trabalho.
Então Jake disse:
— Isso é um processo judicial esperando para acontecer.
Abri os olhos e lá estava Duncan, iluminado pelo céu, olhando
diretamente para mim.
— Você está bem? — ele perguntou.
— Tudo bem — eu disse.
Nós hesitamos por um segundo, o vento balançando o cabelo
sobre sua testa, e de repente eu me senti tão eufórica que não
precisava mais ficar brava com ele. Ou, pelo menos, não tão brava.
— Feche os olhos — disse Duncan então.
— Por que? — Eu disse, mas eu os fechei. Por um segundo
louco, pensei que ele poderia estar prestes a me beijar – ali na
frente de sua família, de Deus e de todo o Golfo do México.
Mas a próxima coisa que senti não foi sua boca na minha –
foram as pontas de seus dedos, tirando a areia da minha bochecha.
— Mantenha-os apertados — disse ele.
Eu os apertei com mais força.
— Não tão apertado.
Eu tentei relaxar.
— Cara, você tem areia por todo lado.
— Hum — eu disse, os olhos ainda fechados. — Você tem areia
por todo lado.
— É verdade. — Então ele ficou quieto enquanto escovava meu
couro cabeludo, minha testa, meu queixo e minhas orelhas. A
suavidade disso foi um contraste gritante de ser abordado, vou dizer
isso. A certa altura, Chuck Norris tentou se aproximar e nos lamber,
mas Helen puxou sua coleira bem rápido e o levou até Jake para
segurá-lo.
Então, Duncan fez uma pausa. Depois de não ter sentido seu
toque por alguns segundos, abri meus olhos.
Ele estava olhando para mim, como se houvesse algo que ele
quisesse dizer.
Finalmente, seus olhos se enrugaram de maneira irônica e ele
disse, em uma falsa repreensão:
— Tenha mais cuidado da próxima vez.
— Tenha mais cuidado.
Foi quando Duncan olhou para cima e viu sua irmã e cunhado
observando-nos atentamente.
— Desculpe por isso — ele disse então. — Eu estava mirando
na minha irmã. — E ao ouvir a palavra “irmã”, ele se lançou e foi
persegui-la pela praia.
Sentei-me. Eu estava bem? Fiz um inventário.
Bom o suficiente, eu decidi.
Levantei-me para me limpar e notei que Jake tinha colocado
seus aviadores de volta e estava fazendo o mesmo. Aproximei-me
um pouco mais dele.
— Eles têm uma coisa de amor e ódio — disse Jake, ainda
escovando os dentes. — No bom sentido. A maior parte do tempo.
As meninas saíram correndo atrás da mãe e do tio, e então
Chuck Norris, arrancando a coleira da mão de Jake, saiu correndo
atrás delas como um borrão.
— Ele está perseguindo eles? — Jake perguntou.
— Você quer que eu vá atrás dele? — Perguntei.
— Não.
Eu o observei correr, seu pêlo cinza ondulando a cada salto.
— Chuck Norris é o pior cão de segurança do mundo.
— Isso faz sentido — disse Jake. — Ele foi reprovado na escola
de treinamento por 'excesso de exuberância'.
— Isso parece certo.
— Duncan tinha certeza de que poderia consertá-lo — disse
Jake.
— Ele ainda não conseguiu — eu disse.
Jake continuou, curvando-se para sacudir a areia do cabelo.
— É bom para ele, no entanto. Tentamos fazer com que ele se
mudasse para casa em Evanston depois de tudo, mas ele queria vir
para cá.
Mas eu parei de ouvir o que ele estava dizendo – distraída pelo
jeito que ele estava dizendo. Eu me virei para olhar para Jake.
— Você pode dizer alguma outra coisa?
— Como o que?
— Qualquer coisa. Juramento de fidelidade? Recitar um poema?
— Hum. Claro?
— Porque — eu disse — sua voz soa tão familiar para mim. —
Então eu disse: — Quanto mais você fala, mais eu fico pensando
que reconheço.
— Oh —, disse Jake, batendo a areia de seus sapatos agora.
— Então você provavelmente quer que eu diga algo como “Ei,
amigos e vizinhos… e bem-vindos a mais uma hora do podcast
Tudo É Invisível”.
Ai meu Deus.
Senti uma emoção de reconhecimento como uma vibração. Eu
reconheci aquela voz.
Eu me virei e olhei para ele.
— Cale a boca! — Eu gritei, e assim que Duncan, Helen e as
meninas voltaram correndo, agora muito mais devagar, eu disse: —
Você é Jake Archer?
Jake apenas sorriu, então me virei para Duncan, que havia caído
de joelhos na areia próxima, e apontei para Jake.
— Esse é o Jake Archer de Tudo É Invisível?
Duncan franziu a testa para mim como se eu fosse engraçada.
— Sim — disse ele.
— Espere, você é amigo de Jake Archer?
Duncan deu a Helen um pequeno sorriso.
— Eu mal posso acreditar nisso.
— Dificilmente amigos — disse Jake. — Ele é mais como um fã
obsessivo e problemático.
Duncan manteve os olhos em mim, mas chamou Jake.
— Não me faça te machucar. — Então, para mim, ele disse: —
Dei o nome a esse podcast, na verdade.
— Você quem deu o nome a ele?
Duncan assentiu.
— Jake queria chamá-lo de 'O que é essencial é invisível aos
olhos', você sabe, aquela frase de O Pequeno Príncipe sobre como
'é apenas com o coração que se pode ver corretamente'. Mas isso
foi muito longo. Então eu encurtei.
Eu me virei para Jake. Eu estava enlouquecendo. Eu estava
pirando.
— Eu sabia que conhecia essa voz! Eu ouvi cada episódio,
várias vezes. Estou na biblioteca o tempo todo, carimbando livros,
catalogando, reabastecendo e fazendo inventário. Eu ouço uma
tonelada de podcasts e audiolivros, e o seu está entre os três
primeiros. Na verdade, é o meu favorito. Às vezes eu chego ao fim
de um show, e apenas volto e começo de novo. Mas não vou dizer
isso em voz alta por medo de soar como uma…
— Uma fã obsessiva e problemática? — Duncan sugeriu.
Dei de ombros.
— Tarde demais?
— Vamos tratar isso como uma pergunta retórica — disse Jake,
mas agora ele também estava me provocando.
Eu me virei para Duncan e disse, quase como se estivesse
dando a ele uma ótima notícia:
— Seu cunhado é Jake Archer!
— Isso faz você gostar mais de mim?
— Isso não me faz gostar menos de você, com certeza.
— É por isso que você me paga muito dinheiro — disse Jake a
Duncan.
Então voltei para Jake e, ao fazê-lo, lembrei-me de um artigo na
Variety, ou Vanity Fair, ou Vogue – algo com V – sobre o novo
apresentador de podcast favorito da América, e como ele sempre
insistia que era tão bom em entrevistar pessoas, em ler suas vozes
e fazer as perguntas perfeitas, porque ele era cego.
Duncan me viu olhando para Jake e pareceu saber o que eu
estava pensando. Ele deu alguns passos para perto de Jake e o
envolveu em um abraço de urso.
— Te amo, amigo — ouvi Duncan dizer, assim como Helen, que
estava tirando a areia de Jake o tempo todo, disse aos caras: —
Estou pedindo uma moratória na luta livre.
Então ela se virou para as meninas.
— Acho que está na hora do chocolate quente.
As garotas comemoraram e pularam, mas Duncan avançou na
direção delas.
— Eca! Chocolate quente é o pior! — Ele desceu, pegou-as e
girou, uma em cada braço, até que a força centrífuga puxou seus
pés para o lado.
Eu nunca – nem uma vez, em todos os dias desde que ele veio
para Kempner – o vi brincando com crianças assim. Na verdade, ele
ignorava todas as crianças. Mas aqui estava ele, brincando. Lá
estava ele, parecendo e agindo tanto como o velho Duncan que me
deixou triste. Senti meu sorriso desaparecer, mesmo quando as
meninas continuaram gritando e rindo de alegria palpável.

Depois que eles foram embora, me arrependi de não ter conseguido


o autógrafo de Jake. Talvez eu devesse ter conseguido os
autógrafos de todos eles, para garantir.
Eu não conseguia parar de pensar neles enquanto caminhava
de volta para a praia. Pensando em como Duncan era radicalmente
diferente na presença deles. Ele estava fingindo? Ou eles abriram
alguma parte de sua psique que ele normalmente mantinha
fechada?
Foi tão emocionante – e doloroso – ver Duncan feliz, dado o
quão raramente isso acontecia. Foi como um vislumbre de um
universo paralelo onde ele estava bem. Talvez não exatamente tão
exuberante quanto havia sido anos atrás em Andrews... mas quase.
Onde estava aquele Duncan quando estávamos na escola?
Quando eles saíram em busca de chocolate quente, eu queria
tanto ir com eles – e eles tentaram me convencer a ir. Não sei por
que disse não. Talvez eu não quisesse interromper o tempo da
família juntos. Talvez sua camaradagem fácil fosse intimidante de
certa forma.
Mas enquanto caminhava para casa, tive que admitir: quanto
mais vislumbres do velho Duncan eu tinha, mais eu queria. Eu não
tinha ido com eles, em parte, porque queria tanto ir com eles. A
versão dele na praia hoje era tão próxima da versão que eu sempre
achei tão irresistível – a versão travessa e brincalhona. Vê-lo me fez
desejar mais intensamente, era físico, como uma dor.
Eu não queria desejá-lo. Ou querer ele. Ou ansiar.
Desde que minha epilepsia voltou, tentei muito não querer
coisas que não poderia ter.
E eu temia agora que Duncan se encaixasse facilmente nessa
categoria – em parte por causa de como ele mudou e em parte por
causa de como eu mudei.
No fundo eu sabia que mesmo que o velho Duncan
ressuscitasse amanhã, eu não deveria me permitir querer estar com
ele. Porque eu não era a mesma pessoa agora. Eu estava melhor
em muitos aspectos – mas também estava pior.
Eu passei um semestre inteiro sem ter uma convulsão – sem
desmaiar na biblioteca na frente das crianças, ou na fila do
refeitório, ou no parquinho no recreio. Eu estava passando por uma
pessoa que estava perfeitamente bem.
Mas eu não estava bem. Eu tinha essa... condição. Um que eu
não poderia esconder para sempre. Não era a pior coisa do mundo,
mas repetidamente na minha vida, as pessoas de quem eu gostava
agiam como se fosse. Quanto mais tempo eu passava com Duncan,
mais desesperadamente eu o queria – e mais eu queria que ele me
quisesse de volta.
E também: mais eu temia que ele não iria – não poderia – uma
vez que soubesse a verdade sobre mim. Ou, mais especificamente:
uma vez que ele viu.
Esse era o ponto crucial, assim como eu temia o tempo todo. Ele
estava me fazendo querer algo que eu não poderia ter. Ele.
Melhor ficar longe. Melhor não ir a um restaurante aconchegante
e passar uma tarde inteira rindo e brincando com eles em uma
grande mesa semicircular com minha coxa roçando a de Duncan.
Melhor não alimentar o vício.
Melhor desligar tudo, e rápido – antes que piorasse.
treze

Não acabei indo passar o Natal com Babette em Austin.


Na verdade, acabei passando o Natal sozinha. Principalmente
porque, quando estávamos arrumando a caminhonete de Babette,
Tina apareceu – com Clay. E duas malas.
Tina estacionou bem atrás de mim enquanto eu colocava minha
bolsa no porta-malas.
Por um minuto, pensei que talvez Tina tivesse deixado Kent
Buckley.
O rosto de Tina ficou azedo quando ela me viu, mas Clay largou
a mala e me abraçou pela cintura.
Trabalhei muito para tornar minha voz agradável.
— Ei, amigo. Você está aqui para o Natal?
— Sim — Tina respondeu por ele, e então ela se virou para Clay.
— Vá encontrar Baba e diga a ela que vamos passar a noite.
Depois que ele saiu correndo, virei-me para Tina, olhei para as
malas mais uma vez e disse:
— Você o deixou?
Tina franziu a testa.
— Deixei quem?
— Kent Buckley — eu disse, em tom de Quem mais?
Ela parecia afrontada.
— Claro que não. Ele fez uma viagem de trabalho de última hora
para o Japão.
Oh. Ops.
— Japão — eu disse, balançando a cabeça. — Uau.
Nesse momento, Babette e Clay desceram os degraus da
varanda e saíram para o carro, empurrando a mala de Babette atrás
deles.
— Você está vindo para o Natal! — Babette comemorou quando
alcançou Tina, estendendo os braços e puxando-a para um grande
abraço. Foi a Babette mais feliz que vi desde o verão.
— Estamos vindo para o Natal! — Clay ecoou, e eles o puxaram
também.
Era assim que devia ser pertencer. Você poderia ignorar
completamente as pessoas, não estar presente para elas,
decepcioná-las e esquecê-las – mas então, quando você finalmente
aparecia, elas ficavam felizes.
Eu não tive ninguém na minha vida assim.
E se tinha, pensei, não abusaria do privilégio. Se eu tivesse
alguém em algum lugar que me amasse assim, eu ficaria grata
todos os dias. Eu receberia todo aquele amor com a mesma quantia
em troca. Isso me fez desejar não ter que me esforçar tanto com
todo mundo o tempo todo. Isso me fez sentir falta da minha mãe –
de novo, como sempre. Isso me fez desejar ter alguém – qualquer
pessoa – em minha vida que me amasse, não importa o quê.
Isso significava que nosso fim de semana em Austin foi para o
ralo?
Fiquei parada sem jeito, observando como Babette ficava feliz
demais ao ver Tina. E então me dei conta: Tina aparecendo aqui
significava que minha viagem para Austin estava cancelada.
Eu me virei e puxei minha mala de volta para fora do carro.
Babette notou.
— O que você está fazendo?
Joguei a mala de Clay no fundo.
— Esses dois devem ir com você — eu disse.
— Não! — Babette disse. — Vamos todos ficar aqui.
Mas balancei a cabeça para Babette.
— Você precisa sair um pouco — Então eu gesticulei para todos
os três. — E todos vocês precisam de algum tempo juntos.
— Nós vamos pegar um quarto só nosso — Tina disse, sem
querer.
Mas balancei a cabeça.
— Está lotado — eu disse. Eu não tinha ideia se estava lotado
ou não. Mas aqui está o que eu sabia: nada poderia ser melhor para
Babette do que um pouco de tempo com sua verdadeira família.
Nada poderia ser melhor para todos eles do que fazer bom uso de
Kent Buckley estando do outro lado do mundo. E nada poderia ser
pior para mim do que um fim de semana inteiro com Tina.
Prefiro passar meu Natal sozinha assistindo a filmes da
Hallmark.
E foi exatamente isso que acabei fazendo.

Alguns dias depois, peguei um serviço de carro para pegar Duncan


da cirurgia.
Como prometido.
Não era um hospital, era um prédio de escritórios – com a
Criocirurgia Associados ocupando todo o terceiro andar.
Eu nem tinha certeza do que era criocirurgia.
Eles estavam tirando Duncan da recuperação em uma cadeira
de rodas assim que cheguei.
Você está se perguntando se ele usou terno e gravata para fazer
a cirurgia?
Porque isso é um sim. Embora o paletó e o colete já estivessem
retirados e caídos em seu colo, a camisa estava aberta no colarinho
e para fora da calça, e ele estava usando a gravata por fora do
colarinho, solta – como se tivesse acabado de colocá-la de volta na
cabeça como um colar de flores. Lá estava. Ele parecia bem
arrumado e limpo, mas também parecia bem despenteado.
Ele apertou os olhos quando me viu.
— Você é quem eu penso que é?
— Quem você acha que eu sou?
— A bibliotecária com as meias de palhaço.
— Essa sou eu. Você me pediu para buscá-lo.
— Eu pedi? — Ele se virou para a enfermeira atrás dele para
confirmação. Ela assentiu. — Isso foi inteligente da minha parte —
disse ele.
Uau. O que eles aplicaram nele?
A enfermeira me deu uma pilha de instruções de alta e um
pequeno lote de analgésicos “intensos”, dizendo que ele poderia
mudar para Tylenol amanhã, mas para definitivamente ficar com as
coisas pesadas durante a noite.
— Meu nome é Lisa — disse a enfermeira em seguida,
circulando seu nome nas instruções de alta — e você pode me ligar
se tiver alguma dúvida.
— Ok — eu disse, balançando a cabeça. — Eu sou Sam.
— Oh — ela disse então, virando-se para me olhar. — Você é a
Sam! — Então ela apenas sorriu.
— O que? — Perguntei.
— Ele estava nos contando tudo sobre você.
Eu fiz uma careta.
Ela sorriu novamente e assentiu.
— Não se preocupe — ela disse. — Coisas boas.
— Como? — Eu perguntei.
— Oh... eu sinto que você já deve saber.
— Eu definitivamente não sei.
— E se você não sabe — continuou ela —, então é ele quem
deve lhe contar, não eu.
Bem, isso foi insatisfatório.
Lisa me ajudou a levar Duncan até o estacionamento, onde o
motorista estava esperando.
— Ele também cantou sobre você — disse ela enquanto
caminhávamos. — Na recuperação.
— Ele cantou sobre mim?
— Você sabe — disse ela. — A música ‘Oh! Susanna’, mas
ajustada para 'Samantha'.
— Muitas pessoas cantam na recuperação? — Perguntei.
Ela balançou a cabeça.
— Nunca. Ninguém. Ele é adorável. Há quanto tempo vocês dois
estão… — ela gesticulou entre nós com a mão — sabe?
— Oh! — Eu disse. — Não. Não somos... somos apenas colegas
de trabalho.
Ela riu como se eu estivesse brincando. Então ela parou de
andar quando percebeu que eu não estava.
— Espere… vocês nem estão namorando?
Eu balancei minha cabeça.
— Nem perto disso.
Ela arregalou os olhos, como Whoa.
— Ele tem uma queda por você, moça.
Eu balancei minha cabeça.
— Ele nem gosta de mim. Tipo, de jeito nenhum.
— Estou lhe dizendo — disse ela —, ele tem. — Então ela
acrescentou: — Os opiáceos nunca mentem.
Na porta do carro, Lisa ergueu os apoios para os pés da cadeira
para que Duncan pudesse colocar os pés na calçada. Antes de
erguê-lo, ela disse para tomar cuidado com o lado esquerdo – do
quadril às costelas. Ele foi mais difícil de levantar do que eu
esperava – muito peso morto. Eu me encaixei sob sua axila e prendi
seu braço sobre mim enquanto o girava.
Ele era maior do que eu tinha percebido.
Eu o manobrei para o banco de trás com um plop, e ele estava
tão fora de si que tive que levantar seus pés para ele e me inclinar
sobre ele para prendê-lo. Ele manteve os olhos abertos o tempo
todo, me observando sem ajudar – como se seu cérebro estivesse
em câmera lenta e não pudesse acompanhar.
— Você cheira a madressilva — disse ele, enquanto eu apertava
a fivela.
— Esse é o meu xampu — eu disse, e assim que me afastei, ele
se inclinou para dar uma fungada mais profunda, e seu rosto colidiu
com a parte de trás da minha cabeça.
— Oh, Deus — eu disse, inclinando-me para ver se ele estava
ferido. — Desculpe! Você está bem?
Ele apenas sorriu para mim.
— Estou bem.
Você sabe qual é a expressão de apaixonado? É tão difícil de
descrever – algo sobre os olhos, apenas abertos e com admiração e
talvez até um pouco cheios de carinho, como se estivessem
bebendo sua visão. Essa é a única palavra que consigo pensar para
sua expressão.
É seguro dizer que não era um olhar que eu recebia com muita
frequência – especialmente dele.
Ele olhou para a minha blusa.
— Eu sabia que você estaria usando bolinhas.
Lisa me observou enquanto eu fechava a porta do carro.
— Ele vai dormir muito hoje, mas deve estar bem normal
amanhã — disse ela. — E os analgésicos dão enjôo na maioria das
pessoas, então ele não vai querer comer, mas precisa comer
mesmo assim. Especialmente antes da próxima rodada de
comprimidos.
— Entendi — eu disse.
— Ele deve dormir com uma camiseta larga esta noite ou sem
camisa se a pele estiver irritada — disse ela. — Está tudo nas
instruções. E você pode querer colocá-lo em uma calça de moletom
quando chegar em casa — disse a enfermeira. — Ele deveria
chegar com algo confortável, mas apareceu de terno.
— Ele realmente adora ternos — eu disse.
— Eles realmente amam ele — disse ela, dando-me uma
piscadela.
— Anotado — eu disse, com um aceno de cabeça.
Ela deu uma última olhada nele pela janela do carro e balançou
a cabeça.
— Adorável.

No caminho de volta para casa – juro, isso é verdade – quando


sentei ao lado dele no banco de trás do carro, Duncan segurou sua
mão vazia como se houvesse um telefone nela, olhando para ela e
dizendo:
— Sinto muito. Acho que estamos perdidos. Meu telefone não
está funcionando.
Eu nem sabia como começar a corrigi-lo, então apenas disse:
— Não se preocupe. Eu conheço o caminho.
Ele balançou sua cabeça.
— Mas você nunca esteve na minha casa.
— Mas nosso motorista tem o endereço.
Duncan franziu a testa e piscou.
— Temos motorista?
Apontei para o cara no banco da frente. Então eu disse:
— Eles realmente te doparam, hein?
— Sim — disse Duncan. — Foi legal da parte deles. Eles sabem
que eu não gosto de... cirurgias.
— Alguém gosta de cirurgias? — Perguntei.
— Provavelmente não — disse Duncan. — Mas eu não gosto
muito deles.
Ele tentou verificar seu telefone novamente.
Ele não parecia bêbado, exatamente. Ele não estava enrolando
suas palavras. Ele parecia muito, muito relaxado. E, também, como
o mundo que ele via através de seus olhos e o mundo real não eram
exatamente a mesma coisa.
Em seguida, em parte para distraí-lo, mas principalmente porque
Lisa havia me deixado curiosa, eu disse:
— A enfermeira disse que você estava falando de mim.
Ele deu um grande aceno de cabeça.
— Sim. Sim, eu estava. Contei a eles sobre o dia em que nos
conhecemos.
Oh.
— Aquele — eu disse — não foi meu melhor dia.
— Você está brincando comigo? — Duncan disse, olhando para
mim para ver se eu estava falando sério. — Eu pensei que você era
a garota mais bonita que eu já tinha visto. Tipo, na minha vida.
— Oh — eu disse, franzindo a testa. — Mesmo? Porque–
— Oh, sim. Eu estou falando, na minha vida. E isso realmente
diz muito porque… eu não sei se você notou, mas todo este planeta
está cheio de garotas.
Dei de ombros.
— Bem, nós somos cinquenta e um por cento do...
— Elas estão por toda parte! Você não pode nem comprar um
donut sem encontrar pelo menos uma! Às vezes cinco ou dez. É
isso que eu estou dizendo. Em toda a minha vida sendo
constantemente bombardeado por garotas... você… — ele apontou
para mim — é a mais bonita que já vi.
Isso tinha que ser as drogas falando. Eu não tinha
absolutamente nada de especial. Não faço cabeças virarem ou o
trânsito parar. Apenas um ser humano perfeitamente comum.
Mas o que mais havia para fazer além de entrar na brincadeira?
— Tudo bem — eu disse. — Eu não entendi essa vibe.
Duncan assentiu.
— Sim. Bem, você tem que esconder isso, certo? Você não pode
simplesmente babar nas pessoas. Eu me lembro exatamente. Era
seu primeiro dia.
— Foi o seu primeiro dia — eu corrigi.
— Não. Você estava vestindo... não sei. Tudo cinza. E seu
cabelo era diferente naquela época. — Ele olhou para minha franja
rosa. Então ele estendeu a mão e deu um tapinha neles. — Sem
rosa.
Espere... o quê?
— E lembro que tínhamos aqueles armários na sala dos
professores, mas o seu estava lotado… e eu entrei para encontrar
você simplesmente batendo nele. — Havia admiração em sua voz.
— E então eu entrei e mostrei a você o lugar exato para bater, e ela
se abriu como Fonzie.
Ele estava falando sobre Andrews. Ele estava falando sobre
quatro anos atrás. Ele estava falando sobre a velha eu. A eu tímida.
A eu esquecível.
E então de repente me senti... nervosa. Ou talvez mais como...
alerta. Como se cada nervo do meu corpo tivesse sido chamado à
atenção.
Duncan não estava nervoso nem alerta. Ele inclinou a cabeça
para trás, saboreando a memória.
— Foi um momento calmo para mim. Eu não era durona naquele
momento?
— Você era — eu disse, ainda assimilando.
— Esse pode ter sido o pico da minha vida — disse ele,
piscando. — Pode ter ido tudo ladeira abaixo desde aquele dia.
— Eu pensei que você estava falando sobre quando nos
conhecemos aqui. Em Kempner.
— Oh. Não. Mas eu agi calmo, também.
— Sim — eu disse —, algo como ‘frio como gelo’.
Ele acenou com a cabeça, dizendo Sim.
— Eu nunca fui bom em avaliar essas coisas. E agora sou um
cara durão o tempo todo, então é ainda mais difícil.
Um momento de silêncio, então ele acrescentou:
— Mas, sim. Seria seguro dizer que eu tinha uma queda por
você. Eu tenho uma queda por você.
Parte disso tinha que ser real, pelo menos, certo? As drogas não
conseguiam fazê-lo lembrar de algo que não lembrava.
— Em Andrews? — Eu tive que perguntar. — Você tinha uma
queda por mim?
— Oh, sim. Das grandes. Mas você realmente não me
suportava, então... eu desisti. Eventualmente.
— Eu suportava você — eu disse, como se ele fosse louco. E
então, querendo enfatizar, mas muito atrapalhada para fazê-lo
adequadamente, eu disse: — Eu suportava muito você.
Duncan franziu a testa.
— Eu não odiei você, é o que estou dizendo.
— Ah — disse Duncan. — Isso é surpreendente. Mas você com
certeza me odeia agora.
Eu não o odiava agora, mas não estava confessando isso.
— Você está muito diferente agora — eu disse.
Duncan riu.
— Não me diga.
Depois recostou-se no apoio de cabeça e observou as casas de
praia passarem – todas rosas, verdes e amarelas.
— Cara, eu tinha uma queda tão grande por você — disse ele,
pensando nisso como se estivéssemos relembrando. — Mas é claro
— disse ele, apontando para mim — que nunca vou te dizer isso.
— Você está me dizendo isso agora.
— Sim, mas você vai esquecer tudo pela manhã.
— Não, você é quem vai esquecer pela manhã.
— Huh — ele disse, franzindo a testa com a notícia. — Acho que
é o remédio falando.
— É justo — eu disse. — Nós provavelmente deveríamos
abandonar o assunto.
— Boa ideia — Duncan concordou. — Porque eu não quero que
você saiba como estou a fim de você.
— Bom plano.
Um minuto depois, ele recomeçou.
— É difícil segurar, porque quando algo assim acontece com
você… como quando você apenas vê alguém e uma parte do seu
coração simplesmente se encaixa como uma pequena peça de
quebra-cabeça que você nem sabia que estava faltando… e você
nem pensa em palavras, mas algo em você simplesmente sabe, tipo
essa é a minha pessoa, de alguma forma. Ou, pelo menos, essa
pessoa poderia ser minha pessoa. Você sabe, se eles gostaram da
ideia também. Se eles olhassem para você e por algum milagre
louco pensassem a mesma coisa de volta. — Ele olhou. — Por
acaso você pensou a mesma coisa?
— Mesmo se eu soubesse, eu não diria a você.
— Boa ideia, boa ideia. Mantenha uma cara de pôquer. Não me
diga.
Ele tentou verificar seu telefone novamente. Então ele disse:
— Além disso, eu não gostaria que você saísse com um cara
como eu.
— Por que não?
— Não diga a minha irmã — disse ele. — Mas estou
praticamente arruinado.

A escola havia alugado uma casa de praia à beira-mar para Duncan


em um bairro chique de West Beach.
Nada mal.
Paguei o motorista, abri a porta de Duncan, desafivelei o cinto e
coloquei seu braço direito sobre meu ombro novamente, com
cuidado para não tocar em seu lado esquerdo, onde haviam feito a
criocirurgia. Seu corpo estava mais pesado desta vez e, mesmo
naquela curta caminhada desde o carro, ele perdeu o equilíbrio mais
de uma vez.
As casas de West Beach eram todas sobre palafitas, então
tínhamos um lance inteiro de escadas para subir. Quando chegamos
à base deles, Duncan parou no primeiro, a cabeça abaixada
enquanto olhava para ele, e deu várias patadas com o pé antes de
atingir o alvo.
Desnecessário dizer que fomos devagar.
No meio do caminho, ele se virou para mim como se tivesse
uma ótima ideia e disse:
— Ei! Já sei! Vamos nos casar!
— Brilhante — eu disse. — Estou dentro.
Eu esqueceria tudo até amanhã, de qualquer maneira.
Chuck Norris praticamente nos derrubou quando finalmente
consegui abrir a porta.
Então ele correu em círculos pela sala de estar, envolvido em
prazer, por pelo menos dez minutos antes de finalmente se
acostumar com a ideia de que Duncan havia voltado para casa.
— Aquele cachorro está muito feliz em ver você — eu disse,
enquanto atravessávamos a sala e Chuck Norris corria ao nosso
redor.
Duncan assentiu.
— Não diga a ele que eu disse isso — disse ele —, mas ele é
um péssimo cão de guarda.
— Concordo — eu disse.
Por dentro, as coisas eram... ascéticas. Era um aluguel
mobiliado – piso de madeira simples, móveis mínimos, nada muito
selvagem ou maluco. Não havia quase nada de pessoal nisso.
Algumas maçãs em uma tigela na área da cozinha. Um notebook na
mesinha de centro, um par de tênis na porta da frente e um
exemplar amassado de Lonesome Dove no sofá. Fora isso, não
poderia haver ninguém morando aqui.
— Onde estão todas as suas coisas? — Perguntei.
— Quarto dos fundos — disse ele, acenando. — Em caixas.
Em seguida, Chuck Norris tentou pular em cima de Duncan, mas
eu o bloqueei.
— Eu só tenho que me obrigar a ignorá-lo — disse Duncan,
enquanto continuávamos a embaralhar. — Nenhuma afeição
humana — ele disse, como se estivesse lembrando a si mesmo.
Eu sabia que Duncan não estava negando afeição humana para
aquele cachorro. Eu o via jogando brinquedos para ele no pátio o
tempo todo. Não que eu estivesse assistindo.
— Mas ele é tão fofo e carinhoso — eu protestei.
— Exatamente — disse Duncan. — Ele controla sua mente com
sua fofura. Ele olha para você com aqueles grandes olhos de
cachorrinho até que você cumpra a ordem dele.
Tínhamos feito nosso caminho de volta para seu quarto.
Encostei Duncan na cama e ele ficou ali sentado por um minuto.
Quando Chuck Norris viu Duncan sentar, ele se acomodou no canto,
nos observando, olhos brilhantes, patas dianteiras cruzadas.
— Vê isso? — Duncan sussurrou. — Ele está fazendo isso
agora.
— Eu cuido de Chuck Norris hoje à noite — eu disse. — Você se
encarrega de descansar.
Mais tarde, eu levaria Chuck Norris para a praia e jogaria seu
brinquedo para ele, pegaria água fresca e encheria sua tigela de
comida. Mas agora, eu precisava instalar Duncan.
— Tudo bem — eu disse, olhando em volta. — A enfermeira
quer que você tire esse traje. O que você estava fazendo vestindo
um terno para a cirurgia, afinal?
Duncan deu de ombros.
— Respeito pela ocasião.
— Espere aqui.
Localizei sua cômoda, procurando calças de moletom macias.
Encontrei uma gaveta de camisetas. Eu poderia ter esperado todos
os uniformes bem dobrados, idênticos, cinza-claro – para combinar
com seus ternos – mas, em vez disso, encontrei cores e piadas:
uma camiseta verde com um ouriço que dizia: OUVIÇO OU
PORCO? VOCÊ DECIDE. Uma camisa azul com um logotipo que
dizia: CLUBE DE TAUTOLOGIA: É O QUE É. Uma camisa com uma
foto do rosto de Bill Murray que dizia: NÃO MEXA COMIGO,
COSTELA DE PORCO.
Camisas pertencentes – claramente – ao ex-Duncan.
Peguei uma vermelha extramacia com a imagem de um martelo
que dizia: ISSO NÃO É UMA BROCA. Então continuei procurando
as calças de moletom.
Duncan esperou obedientemente, pernas dobradas, olhos
fechados.
Coloquei as roupas dobradas em seu colo.
— Você pode fazer isso sozinho, amigo? — Perguntei.
— Oh, sim. Claro — ele disse. Ele me deu um sinal de positivo.
— Eu consigo.
Mas quando ele se levantou e se curvou para tirar um sapato,
perdeu o equilíbrio, caiu – do lado direito, felizmente – e bateu no
chão com um baque.
— Uau! — Eu disse, agachando-me atrás dele, assim como
Chuck Norris decidiu vir para ver o que era o tumulto.
— Uau, está certo — ele disse, enquanto eu me inclinei para
enganchá-lo em meus braços e levantá-lo de volta.
Ele não era leve.
— Levante com as pernas — ele gritou.
— Você poderia ajudar — eu disse.
Com isso, Duncan pôs os pés sob ele e nos empurrou para cima
com uma explosão que nos fez cambalear de lado contra a cama
até cairmos sobre ela.
Ele pousou em cima de mim.
De novo. Assim como na praia.
Mas sem areia desta vez.
Nós congelamos lá – eu olhando para cima, ele olhando para
baixo, seu peito pressionado contra o meu e suas mãos em cada
lado da minha cabeça enquanto ele se apoiava contra o colchão.
— Acho que estamos machucando você — eu disse então.
— Eu não acho.
O tempo desacelerou. Tudo ficou quieto, exceto os sons de
nossa respiração. Tudo saiu de foco, exceto seus olhos, que
pareciam clarear e escurecer ao mesmo tempo.
Seu peito contra o meu. Sua respiração em meu pescoço.
Eu não desviei o olhar, e ele também não... até que ele baixou o
olhar para a minha boca. E então, eu simplesmente sabia que ele
queria me beijar. Eu podia ler em sua expressão tão claramente
como se ele tivesse dito em voz alta.
Era uma boa ideia? Era a coisa certa a fazer? Era adequado?
Era prudente? Era mesmo... medicamente aconselhável?
Eu não fazia ideia.
Mas eu podia sentir que ia acontecer antes que acontecesse. Eu
podia sentir suas intenções. E eu poderia ter feito algo para
desencorajá-lo ou distraí-lo. Eu poderia ter me virado, ou começado
a subir, ou empurrado contra seu peito para fazê-lo se mover na
outra direção.
Mas eu simplesmente não o fiz.
Em vez disso, observei-o erguer o olhar da minha boca e,
quando nossos olhos se encontraram, segurei os meus ali, aberta,
disposta e vulnerável.
E então ele baixou a cabeça – como nós dois queríamos que ele
fizesse – e colocou sua boca na minha. E eu pressionei a minha
contra o dele, de volta.
E aquela saudade que eu sempre sentia quando estava perto
dele?
No momento em que sua boca tocou a minha, ela derreteu.
O beijo de Duncan foi todo calor – firme, suave e urgente, tudo
ao mesmo tempo, e aposto qualquer coisa que o meu tinha todas
essas coisas de volta, mas o que mais me lembro foi dessa
combinação impossível de opostos: parecia perigoso e seguro ao
mesmo tempo. Chocante e reconfortante. Eletrizante e relaxante.
Impossível e inevitável.
Como se tivéssemos deixado o mundo comum e aterrissado em
um lugar onde tudo pode acontecer.
E eu simplesmente cedi – e me permiti ser tudo: alerta e
relaxada, acordada e sonhando, perdida e encontrada.
Ele se apoiou em um cotovelo para liberar uma mão para
percorrer meu cabelo, meu pescoço, meu ombro enquanto ele
pressionava, puxava, tocava e – não sei – explorava, escavava e
incendiava, e eu permiti. Eu queria ficar bêbada nele.
Até que…
Duncan mudou de posição e então prendeu a respiração e se
afastou.
Eu abri meus olhos.
Ele estava estremecendo.
— Ai meu Deus — eu disse, imediatamente puxada de volta à
realidade. — Você está machucado?
— Eu só... mudei para o lado errado.
Com cuidado, ele transferiu seu peso de volta para uma posição
melhor e seu rosto relaxou um pouco.
Eu saí de debaixo dele.
— Ai meu Deus! — Eu disse. — O que estamos fazendo? Não
podemos fazer isso!
— Apenas uma cãibra. Praticamente já não sinto mais —
Duncan disse, mas seu rosto ainda estava tenso. — Estou bem.
— Você não está bem — eu disse. — Você acabou de passar
por uma cirurgia...
Ele bufou.
— Criocirurgia.
— Nada disso está bem!
— Discordo totalmente.
Ele se empurrou para uma posição sentada na beira da cama
novamente, como antes – claramente derrotado por qualquer dor
que acabasse de sentir – e pressionou a mão ao lado do corpo.
Desci da cama e dei a volta para encará-lo.
— Acabamos de machucar você? — Perguntei. — Devo...
chamar a enfermeira?
— Só uma cãibra — disse ele, balançando a cabeça. — Estou
bem.
Então, como que para provar isso, ele abriu os olhos e sorriu
para mim. Seu cabelo estava todo bagunçado, caindo sobre a testa.
Velho Duncan. Bem ali.
Eu poderia ter desmaiado um pouco antes de cair em mim
mesma.
— Ai meu Deus! Eu me aproveitei de você! Você está drogado!
— Eu deveria estar cuidando dele, não… o que quer que fosse.
Isso o fez explodir em gargalhadas.
— Você não poderia tirar vantagem de mim nem se tentasse.
— Sinto muito — eu disse.
— Ei — disse ele. — Nada disso é sua culpa. Eu sou
simplesmente irresistível.
Abri minhas narinas para ele.
E então ele parecia melhor, e então ele me deu um sorriso
encantado.
— Você acabou de me beijar!
— Hm. Você me beijou, amigo.
Sua carranca deu lugar a um sorriso.
— Sim, mas você me beijou de volta.
— Só porque você caiu em cima de mim.
— Eu deveria cair em cima de você com mais frequência.
Mas ele estava balançando a cabeça, como se não pudesse
acreditar.
— Não fique muito animado — eu disse. — Você vai esquecer,
de qualquer maneira.
— Não vou esquecer — disse ele. — Mesmo que eu não me
lembre, eu vou me lembrar.
Mas então balancei a cabeça para clareá-la.
— Só precisamos manter o foco — eu disse. E então isso saiu
espetacularmente errado: — Só precisamos tirar suas roupas e
levá-lo para a cama.
Ele me deu um sorriso irônico.
— Vendido.
Deixei escapar um suspiro rosnado.
— Você sabe o que eu quero dizer.
É seguro dizer que nunca estive em uma situação nem
remotamente parecida com esta.
Ainda precisávamos tirá-lo daquele traje.
— Você pode... trocar de roupa? — Eu perguntei, esperando que
sua resposta fosse “sem problemas”.
Duncan deu um grande aceno de cabeça.
— Sem problemas — disse ele.
Mas então ele não se mexeu. Apenas olhou para a calça de
moletom como se não tivesse certeza do que fazer com ela.
— Ou talvez eu precise de uma ajudinha.
Suspirei.
Nada demais. Esta era uma situação médica. Eu já havia tirado
roupas masculinas antes. Não era ciência de foguetes. Eu fiz uma
careta para entrar em uma mentalidade de negócios, então disse:
— Fique quieto. Eu vou te ajudar.
Ele ainda estava sentado na beirada da cama. Balançando um
pouco.
Eu desamarrei sua gravata, meus dedos cutucando o nó de
seda até que ele se soltou, incapaz de não notar o quão sexy até
mesmo a ação mais mundana parecia após aquele beijo. Então eu
deslizei em torno de seu pescoço com um zíper e joguei em uma
cadeira próxima.
Sexy.
— Você cheira bem — ele disse então. — Mas eu já sabia disso.
— Apenas... concentre-se.
Em seguida, mudei para aqueles Oxfords de couro duro dele,
jogando um e depois o outro com um baque pelo quarto. Então tirei
suas meias pretas e ele mexeu os dedos dos pés para mim, como
se dissesse olá. Então, eu me levantei. Franzindo ainda mais a
testa, rezei rapidamente para que ele usasse cueca e me aproximei
para desabotoar seu cinto, desabotoar a calça no cós e abrir o zíper,
tudo em rápida sucessão. Então ele teve que se levantar um pouco
para que eu pudesse colocar sua calça por cima de sua – graças a
Deus – cueca boxer, e então eu o ajudei a vestir a calça de
moletom.
Tudo isso: inescapavelmente sexy.
Depois que tudo isso foi feito, percebi que tínhamos passado
pela parte difícil.
— Ok, amigo. Você consegue tirar a camisa sozinho?
Depois das calças, a camisa realmente deveria ter sido uma
brisa.
Duncan assentiu, mas então seus dedos estavam muito moles
para apertar os botões. Eu observei até perceber que a tentativa
estava condenada, e então intervim para ajudar. A certa altura, ele
colocou as mãos sobre as minhas, olhou nos meus olhos e disse:
— Obrigado.
— Claro — eu disse.
— Eu nunca sou bem cuidado — ele disse, como se fosse um
fato fascinante que ele tivesse acabado de notar. — É legal.
— Nem eu — eu disse.
Ele tirou a camisa e senti o cheiro de seu desodorante, que me
lembrou uma vela perfumada que eu costumava chamar de Winter
Beach. Hora da camiseta. Eu abaixei e puxei a bainha enquanto ele
erguia os braços obedientemente. Eu levantei sua camiseta e foi
quando eu vi seu torso.
Foi quando eu vi o que ele quis dizer com “arruinado”.
Porque todo o lado esquerdo de seu corpo, da axila ao quadril,
estava coberto de cicatrizes.
quatorze

Engoli em seco e me empurrei um pouco para trás, o choque da


visão reverberando através de mim.
Eu não queria, mas eu fiz.
Ele parecia ter sido cortado com uma faca de açougueiro e
depois grampeado de volta.
Com a minha reação, ele se lembrou.
— Não olhe! — ele disse, tonto o suficiente para colocar a
própria mão sobre os próprios olhos. — Finja que não viu.
Eu esperava algo, é claro. Eu sabia que ele tinha acabado de
fazer uma cirurgia desse lado para reduzir algumas cicatrizes. Eu
dei uma olhada nas instruções pós-operatórias na viagem até aqui.
Eu estava esperando... uma compressa de gaze estéril, talvez?
Não sei. Algo... menor. Não... isso.
Ele tinha uma cicatriz de incisão grossa de quinze polegadas ao
longo do contorno de suas costelas, logo abaixo da axila até o fundo
da caixa torácica. Não era uma linha limpa – era vermelho escura e
irregular, inchada e pontilhada, raivosa e caótica. Ele tinha marcas
vermelhas em ambos os lados onde o grampearam. Abaixo disso,
mais perto de seu quadril, havia outra, uma incisão mais curta com
cicatrizes redondas por baixo. E na frente, no peito, logo abaixo do
mamilo, havia dois discos redondos de tecido cicatricial que
pensei... assim que os vi... deviam ser...
— Duncan, o que aconteceu?
— Você não sabe? — Ele piscou para mim.
Eu estava segurando-o pelos ombros agora.
— Não sei de nada. Diga-me.
— Sim. Eu levei um tiro.
— Quando? Como? Quem atirou em você?
— Na minha última escola. Não foi só eu, no entanto. Teve...
mais pessoas.
— Duncan… — Eu balancei minha cabeça. — O que?
— Sim. Eu não queria que eles contassem a você. Eu tentei
manter tudo quieto. Esperando por um novo começo, eu acho.
Estava tudo se encaixando.
— Um tiroteio na escola?
Duncan assentiu.
— A Escola Webster. Um morto, dois feridos.
— Eu acho que ouvi sobre isso.
Duncan pareceu ficar tenso.
— Sim. Bem. É difícil acompanhá-los todos esses dias.
— Eu só não sabia que você estava ensinando lá.
— Nós realmente perdemos contato, hein? — Duncan disse,
mais para si mesmo do que para mim.
— Isso dói? — Eu perguntei a ele.
— Sim e não — disse Duncan. — Na maioria das vezes, é só
que o tecido cicatricial interno meio que endureceu, e isso era
desconfortável... então é para isso que serve esta cirurgia. Eles
tiveram que fazer lap… — Ele fez uma pausa, como se não pudesse
fazer sua boca dizer a palavra. — Lap…
— Laparoscopicamente?
Ele deu um aceno de aprovação.
— Você é boa nisso.
— Então, sem pontos.
— A enfermeira disse que vai parecer um hematoma. Uma
contusão muito grande e feia.
— Posso dar outra olhada? — Perguntei.
— Se você aguentar.
Duncan ergueu o braço sobre a cabeça. Inclinei-me para seguir
a visão da cicatriz em torno de suas costelas e nas costas. Era difícil
olhar – ver a evidência de quão gravemente ele havia sido ferido – e
isso definitivamente manteve meu foco no momento, mas eu não
pude deixar de estar ciente de outras coisas também, bem ali: o
quão perto eu estava de seu ombro nu, o calor de seu corpo
subindo em minha direção; o som de sua respiração enquanto
esperava que eu terminasse de olhar; seus músculos e sua pele
macia e sua presença viva ali, tão perto, toda aquela energia e
movimento contidos tão silenciosamente a apenas alguns
centímetros de distância.
Como não suspeitei de algo assim? Claro que ele tinha um
passado que eu desconhecia. Claro que ele estava cheio de
contradições. Claro que sua vida continha camadas e mais camadas
de história. Isso não era verdade para todos?
— Eu deveria ter morrido — disse Duncan, quando me levantei.
— Isso é o que todo mundo disse. Todos pensaram que eu iria. Até
pensei que tinha morrido um pouco ali.
Levantei-me para poder encontrar seus olhos.
— Estou feliz que você não morreu — eu disse.
— Eu também — disse ele. — A maior parte do tempo.
— O que aconteceu?
Mas Duncan balançou a cabeça.
— Eu nunca falo sobre isso.
— Nunca? Para ninguém?
— Não. Não posso. Nem mesmo com todas essas drogas que
causam afrodisia.
— Amnésia?
— Sim. Isso soa mais como isso.
Ele ainda estava sentado ao lado da cama, com os pés
afastados, e eu estava entre eles. Ele ainda estava sem camisa, e
agora, eu realmente notei isso pela primeira vez.
Lá estava ele. Sem camisa.
Eu o observei – começando no alto, na depressão acima de
suas clavículas e no volume quadrado de seus ombros, e depois
descendo e para o lado, onde tudo se desintegrou no caos.
Eu encontrei seus olhos novamente. O que eu poderia dizer? O
que havia para dizer? Minha voz, quando saiu, estava saturada de
emoção.
— Eu gostaria de poder fazer você se sentir melhor — eu disse,
finalmente.
Os olhos de Duncan estavam firmes e fixos em mim. E então,
deliberadamente, sem quebrar o olhar, ele colocou uma mão em
cada um dos meus quadris e me puxou para ele.
Dei um passo entre seus joelhos para me aproximar. Ele apertou
os braços em volta de mim e se inclinou para descansar a cabeça
contra mim enquanto me segurava. Eu esfreguei seu ombro com
uma mão e deixei a outra mão acariciar seu cabelo. O corte na parte
de trás de sua cabeça parecia aveludado na pele das minhas mãos.
Por que não? Nós esqueceríamos tudo pela manhã, de qualquer
maneira.
Depois de alguns minutos, ele disse:
— Achei que isso iria melhorar, mas acho que talvez só esteja
piorando.
— Você está bem, você sabe — eu disse.
— Eu estou? — ele disse, soando como se seus olhos
estivessem fechados. — Não tenho certeza se isso está certo.
— Você precisa se deitar e descansar.
— É justo — ele disse, mas não soltou.
Eu também não soltei.
O peso de seus braços parecia firme e reconfortante, e eu me
permiti apenas ficar lá e aproveitar.
Este momento mudaria tudo.
Eu não sabia exatamente como, mas sabia que aconteceria.
Quando sua respiração começou a ficar estável, como se ele
estivesse cochilando contra mim, eu o deitei na cama e puxei um
cobertor sobre ele. Seus olhos estavam fechados enquanto ele
relaxava no travesseiro. Não pude evitar: fiquei ali mais um minuto e
acariciei seus cabelos.
Mas estava tudo bem. Ele já estava dormindo.

Eu quase fechei a porta do quarto dele e depois fui vasculhar a


cozinha para ter certeza de que ele teria um pouco de comida
quando chegasse a hora da próxima rodada de analgésicos.
Verifiquei a hora e reli as instruções da alta. Eu teria que acordá-lo
mais tarde para tomar um comprimido para evitar a dor, e ele
precisaria comer antes de tomá-lo.
Encontrei uma lata de sopa na despensa, coloquei-a perto do
fogão e depois meio bisbilhotando seu apartamento, tanto me
repreendendo quanto justificando meu comportamento ao mesmo
tempo.
As cicatrizes me derrubaram, isso era certo.
O tamanho delas. A cor imaculada e saturada delas. A raiva.
Andei pelo apartamento dele, tentando assimilar tudo.
Era por isso que ele era tão obcecado por segurança. Era assim
que ele poderia chamar nossa doce e ensolarada escola de
pesadelo. Ele tinha visto o pior cenário possível.
Ele viveu isso.
Havia uma coleção de pequenas suculentas no peitoril da janela
da cozinha que pareciam estar morrendo, e me perguntei como era
possível matar suculentas.
Só então, seu telefone tocou.
Eu não ia atender, mas então continuou tocando. Encontrei-o na
mesa de cabeceira e, enquanto apertava os botões para silenciar o
toque, vi que era Helen.
Então eu respondi.
— Ei! — ela disse. — Como ele está?
— Bem, eu acho. Ele está dormindo.
— Você vai ficar aí esta noite?
— Acabei de ler as instruções pós-operatórias e parece que
devo ficar. Apenas por precaução.
— Você é a melhor.
— Está tudo bem. Vou dormir no sofá.
— Ele tem tanta sorte de ter você aí. Eu deveria fazer isso, mas
nossa avó de noventa anos ficou doente.
— Oh. Sinto muito.
— Só um início de pneumonia — disse Helen. — Ela é dura
como uma pedra.
— Ei… — eu disse. — Eu vi as cicatrizes.
— Ah — disse Helen. — Bem, estou contente. Nunca pensei que
ele deveria ter trabalhado tanto para esconder isso de você em
primeiro lugar.
— Bem, ele não está escondendo nada agora. Eles o doparam
como loucos.
— Eu aposto.
— Então… — eu disse, querendo o quadro completo, mas sem
saber que perguntas fazer. — Parece que foi muito ruim.
— Foi muito ruim — confirmou Helen. — Ele foi baleado três
vezes. Uma apenas o arranhou, mas outra perfurou seu abdômen e
outra perfurou seu pulmão. Teria sido ruim com balas comuns, mas
essas eram militares e, portanto, foram projetadas para causar o
máximo de dano possível.
— As cicatrizes são… — Fiz uma pausa para procurar a palavra
certa, mas não consegui encontrar. — As cicatrizes são horríveis.
— Elas são das feridas de saída — disse Helen. — O tiro no
abdômen destruiu parte do intestino. Ele acabou pegando uma
infecção no sangue que quase o matou. O tiro no peito perfurou seu
pulmão, mas essa nem é a maneira certa de descrever. Entrando,
perfurou, mas saindo, pulverizou. Eles tiveram que cortar uma seção
quadrada de suas costelas com uma serra para chegar lá e tirar
todo o osso e tecido, depois reparar o que sobrou.
— Estou surpresa que ele não tenha morrido.
A voz de Helen estava trêmula.
— Ele sobreviveu, sim.
— Mas ele está diferente agora — eu terminei por ela.
— Ele não pode falar sobre isso. Ele não vai voltar para casa.
Ele não quer ajuda.
— Ele definitivamente não quer.
— Quero acreditar que ele está melhorando. Mas eu me
preocupo que ele possa estar piorando.
— Vou ficar de olho nele — eu disse. — Farei o que puder.
— Obrigada por estar aí — disse Helen. E então ela
acrescentou: — Ei, como estão as suculentas?
Eu fiz uma careta.
— Você quer dizer... as do parapeito da janela?
— Sim.
Fui até a janela da cozinha e avaliei as plantas no parapeito. Até
eu poderia dizer que elas estavam quase mortas.
— Elas não são exatamente longas para este mundo — eu
disse.
— Totalmente mortas ou apenas quase?
— Eu diria que noventa e nove por cento estão mortas — eu
disse. — Como você mata uma suculenta? Elas nem precisam de
água.
— Exatamente — disse Helen. — Ele continua regando elas.
— Ele não sabe que você não deve regá-las? Uma vez por mês,
no máximo.
— Esse é exatamente o problema.
— Ele está regando demais! — Eu disse, entendendo agora. —
Ele não consegue parar de regar. Ele não as está negligenciando.
Ele está afogando elas!
— Pobre Duncan — disse Helen. — Não posso escapar disso.
Ele é um educador.
Eu considerei isso por um segundo.
— Eu realmente sinto falta do cara que ele costumava ser — eu
disse.
— Oh, Deus, eu também — disse Helen. — E sabe de uma
coisa? Acho que ele também.

Quando chegou a hora, trouxe para Duncan uma caneca de sopa e


um analgésico forte.
Ele estava todo enrolado em seus cobertores, sem camisa,
enrolado de lado.
— Ei — eu disse, gentilmente, tocando-o no ombro. — Hora de
comer um pouco de sopa e tomar seu remédio.
Ele se sentou, lentamente. Tentei entregar a caneca a ele, mas
em vez disso ele saiu arrastando os pés para fazer xixi e depois
passou algum tempo escovando os dentes. A porta não estava
totalmente fechada. Pela fresta, pude ver seu cotovelo se movendo.
— Por que você tem um parapeito de janela cheio de suculentas
mortas? — Perguntei.
Eu o vi inclinar-se e cuspir.
— Elas não estão mortas. Ainda. Não exatamente.
— Quero dizer, como você mata uma suculenta? Tudo o que
você precisa fazer é não regá-las.
— Você faz isso parecer fácil.
— Isso é fácil.
— Não para mim — disse Duncan, inclinando a cabeça para trás
para gargarejar.
— Aqui está o meu conselho — eu disse. — Toda vez que você
sentir vontade de regá-las… não regue.
Ele cuspiu na pia, enxaguou a boca, lavou o rosto e arrastou os
pés de volta para o quarto. Ele ainda estava sem camisa, e vê-lo
empoleirado na beira da cama, iluminado de lado pela luz do
corredor, era tão dissonante: seus ombros e braços apenas cobertos
de músculos, e seu lado coberto de cicatrizes. Uma imagem de
saúde – e destruição.
— Obrigado por estar aqui — disse ele.
Entreguei-lhe a caneca de sopa.
— Beba o máximo que puder.
Duncan pegou. Então ele disse:
— Minha irmã continua me mandando as suculentas. Eu sei que
não devo regá-las. Mas eu continuo fazendo isso de qualquer
maneira.
— Regando-as até a morte.
— Basicamente.
— E se você as mudasse para outra parte da casa?
Ele tomou um gole de sopa.
— Tentei. Não funcionou.
— Talvez você devesse pegar algumas plantas diferentes.
Aquelas que gostam de ser regadas.
— Tarde demais.
Ele engoliu o resto da sopa e então eu entreguei a ele seu
analgésico. Ele tomou com o último gole.
Então eu o ajudei a entrar debaixo das cobertas, e o
aconcheguei como se fosse uma criança.
Ele deu um tapinha na cama ao lado dele e disse:
— Sente-se por um segundo.
Ele estaria exausto novamente em breve.
— Só por um segundo — eu disse, sentando-me para encará-lo.
Ele segurou meu olhar por um segundo. Então ele disse:
— Eu odeio a noite agora. Eu nunca mais consigo dormir. Cada
barulhinho me faz pular.
Inclinei-me para pegar o telefone dele na mesa de cabeceira.
Achei que ele tinha fechado os olhos de novo, mas quando olhei
para cima, ele estava me observando.
— Vou baixar este aplicativo de ruído branco que adoro para
você.
Duncan continuou me observando.
Toquei alguns sons para ele.
— O que você quer? — Eu perguntei, tentando ficar todo
profissional. — Oceano? Cachoeira? Torneira?
— Você escolhe.
Mas eu continuei.
— Motor de carro? Lava-louças? Fogueira? Você também pode
combiná-los.
— Eu confio em você.
No final, coloquei o que eu usava: tempestade, caminhões da
cidade e ronronar de gato.
— Isso vai mudar sua vida — eu disse, aumentando um pouco o
tom.
— Perfeito — disse ele, com os olhos ainda fechados. — Eu
sempre soube que você faria isso.
— Você deveria dormir um pouco agora — eu disse, colocando
seu telefone na mesa de cabeceira.
— Sam? — ele perguntou.
— Sim?
— Sinto muito por suas borboletas.
Oh.
— Eu também sinto — eu disse.
Ele deixou os olhos se fecharem novamente.
— Eu só tenho que manter todos seguros.
Eu não pude evitar. Estendi a mão e acariciei seu cabelo.
— Ninguém pode manter todos seguros.
Ele estava meio adormecido.
— Eu tenho que tentar.
Eu o observei por um minuto, até que pensei que ele estava
fora, mas quando me mexi para ficar de pé, ele pegou minha mão e
me puxou para a cama.
— Fique aqui comigo — disse ele.
— Não posso. Estarei bem perto.
— Fique aqui — disse ele. Ele fechou os olhos. — Nós nunca
vamos nos lembrar disso, de qualquer maneira.
— Você nunca vai se lembrar disso — eu disse.
— Oh. Sim.
Fiquei por perto até que ele estivesse realmente dormindo. E eu
poderia ter voltado para a sala e me enrolado no sofá lá. Ele nunca
saberia a diferença.
Mas não fiz isso.
Dei a volta para o outro lado da cama, tirei os sapatos e me
deixei aconchegar ao lado dele. E quando Chuck Norris pulou na
cama para dormir aos nossos pés, decidi apenas adicioná-lo à longa
lista de coisas que Duncan estaria esquecendo... e deixei.
quinze

Na manhã seguinte, quando acordei às seis, coloquei meus sapatos


de volta, carreguei todas as suculentas de Duncan em uma sacola
de supermercado para uma operação de resgate e me esgueirei de
volta para baixo da casa para chamar um carro, eu tinha muito para
processar.
Fato: eu tinha dormido com Duncan Carpenter.
Em uma maneira de falar.
Não foi tão bom quanto parecia, mas ainda assim foi muito bom.
Culpei a falta de camisa. E todas as suas confissões. E o jeito
que ele ficava me olhando como se estivesse apaixonado.
Ah, e aquele beijo épico, transformador e metamórfico.
Jesus. Eu sou só uma mera humana.
Na volta para casa, mandei uma mensagem de alerta para
Babette e Alice para me encontrar na cozinha de Babette.
Alice apareceu primeiro, o que pareceu contra-intuitivo. Mas
Babette não era uma pessoa matutina.
— E aí? — Alice disse, quando eu a deixei entrar pela porta dos
fundos.
— Reviravolta chocante na história! — eu anunciei. — Duncan
Carpenter me beijou.
Alice não ficou chocada.
— Você não viu isso chegando?
— Não! Você viu?
— Estamos fazendo apostas na sala dos professores há
semanas.
— Alice! Você não pode contar a ninguém.
— Não se preocupe, bolinhas. Eu sou um túmulo — Depois,
balançando a cabeça: — Não acredito que demorou tanto.
— Alice! — Eu repreendi novamente. — Ele é meu chefe.
— Max era o chefe de Babette.
— Sem comparação! — Eu disse.
— Estou apenas dizendo. Circunstâncias extenuantes.
— Alice! Ele é o inimigo! Ele passou tinta em cima das
borboletas.
— Com tinta removível.
— Pelo que ele diz.
Alice olhou para mim.
— Você está tentando dizer que foi um beijo ruim?
Eu balancei minha cabeça.
— Foi um beijo incrível.
Ela sorriu, como se dissesse posso apostar que sim.
— Quem beijou quem?
— Ele me beijou. Mas ele caiu em cima de mim primeiro.
— Caso em questão. Vocês dois tiveram uma faísca desde o
primeiro dia.
Eu balancei minha cabeça.
— É um desastre.
— Incorreto — declarou Alice. — Matematicamente, era quase
inevitável.
— Alice — eu disse — não havia matemática envolvida. Confie
em mim. Isso vem de uma senhora que nunca terminou de aprender
a tabuada.
Mas Alice começou a contar pontos para apoiar sua teoria:
— Vocês dois são adoráveis. Vocês dois são solteiros. Vocês
dois são solitários. Vocês são atraídos um pelo outro como ímãs. E
você é exatamente o oposto da miséria dele. Então você estava
cem por cento garantido para emparelhar o vínculo? Não–
— Emparelhar o vínculo? — Eu interrompi, fazendo cara de
sério?
— Mas olhando estatisticamente, sim. Matematicamente,
funciona.
— Nada disso é matemática.
Alice me deu um olhar como se eu fosse lamentavelmente
ingênua.
— Tudo é matemática.
Suspirei.
— Só estou dizendo — disse Alice, reprimindo um pequeno
sorriso —, se eu plotasse suas inclinações em um gráfico, elas se
cruzariam.
Eu apontei para ela.
— Não.
Mas ela estava se divertindo.
— Se vocês fossem geometria, teriam se provado semanas
atrás.
— Alice!
Mas ela não resistiu a mais uma.
— Se você fosse álgebra, ambos estariam resolvendo o X, se é
que me entende.
— Pare com isso!
Ela se endireitou, ouvindo algo real na minha voz.
— Desculpe.
— É ruim — eu disse.
Ela mudou de marcha.
— De novo, porque é ruim?
Mas eu não sabia como responder a essa pergunta.
Porque era bom demais. Porque isso me fez desejá-lo ainda
mais, e não tinha como desejar que terminasse bem quando eu o
desejava. Porque ele nunca se lembraria daquele beijo, e eu nunca
iria esquecê-lo.
— É ruim — eu finalmente disse — porque foi muito bom.
— Ah, Sam — disse Alice.
Ela entendia? Ela poderia? Eu nem tinha certeza se eu entendia.
Tudo que eu sabia era esse sentimento que eu tinha – como se eu
carregasse um segredo terrível sobre mim mesmo... um segredo
que sempre arruinaria tudo.
— Se você nunca se permite querer nada — eu disse, tentando
explicar sem dizer —, então você nunca fica desapontada. Mas se
você quer algo... alguém...
Alice se inclinou, seus olhos suaves com simpatia agora.
— Você tem medo que ele não queira você de volta? Porque, eu
garanto, ele quer.
— Não é isso — eu disse.
Eu não sabia como explicar. Mas foi por isso que eu nem tentei
namorar ninguém desde que minha epilepsia voltou. Eu disse que
precisava de estabilidade, e isso era verdade – mas era mais
profundo do que isso.
A verdade é que havia algo errado comigo. Algo que não
consegui consertar.
Algo desqualificante.
Na noite em que meu pai deixou minha mãe, quando eu tinha
oito anos, eu os ouvi discutindo. Eu tive uma convulsão tão ruim
naquela noite – eu as tinha constantemente naquela época – e esta
foi particularmente ruim, me fazendo perder todo o controle da
bexiga e do intestino em uma festa de clube de campo para alguns
dos clientes de meu pai. Em casa, depois que minha mãe me limpou
e me colocou na cama com minha camisola de flanela favorita, eu
dormi – você sempre dorme depois de uma convulsão –, mas o som
deles discutindo me acordou algumas horas depois.
Escutei um pouco, mas quando não parou, rastejei até a beira
da escada, onde pude espiar a entrada.
Eles estavam fora de vista, parados perto da porta da frente. Eu
só podia ver suas sombras, mas podia ouvir as vozes altas e claras.
— Eu não me inscrevi para isso — meu pai estava dizendo.
— Nenhum de nós se inscreveu — disse minha mãe.
— Ela não está melhorando, ela está piorando.
— Estamos fazendo tudo o que–
— Eu não pude acreditar em meus olhos esta noite. Nunca fui
tão humilhado. Você não pode levá-la a lugar nenhum.
A voz da minha mãe falhou.
— Steven–
— É demais para mim — disse ele, com a voz tensa. E então
ouvi o clique da maçaneta da porta da frente.
— Não se atreva a sair por aquela porta — minha mãe disse,
sua voz baixa e ameaçadora.
— Não aguento mais — disse meu pai. — Eu nunca quis isso.
— Você queria isso! Quando decidimos começar uma família.
— Foi você quem quis começar uma família. Você pressionou e
pressionou para termos um bebê. E olha o que temos. Eu nunca
deveria ter concordado.
— Como você pode dizer isso? Ela é nossa filha!
— Ela também é a coisa que arruinou nosso casamento.
Houve uma longa pausa e, quando meu pai voltou a falar, sua
voz soou como se fosse de madeira.
— Eu simplesmente não posso mais viver assim.
Em seguida, ouvi a porta fechar atrás dele.
Então, ficou silêncio por um longo tempo. Comecei a me
perguntar se talvez ela também tivesse ido. Se talvez ambos
tivessem. Desci mais alguns degraus e, desse ângulo, pude ver
minha mãe. Ela estava pressionada contra a porta, totalmente
imóvel, quase como se nem estivesse respirando.
Mamãe, murmurei – mas sem som.
E então um som profundo e sobrenatural começou a encher a
sala, enquanto ela afundava lentamente no chão, e eu percebi que
ela estava chorando – uma espécie de som longo, desesperado de
agonia, como nada que eu já tivesse ouvido. Quando ela alcançou o
chão, ela bateu contra ele com a palma da mão aberta até que ela
começou a chorar de verdade – soluços escuros, irregulares e
destruidores do corpo como eu nem sabia que existiam.
Hesitei por um segundo, sem saber se deveria ir até ela, se me
ver a faria se sentir melhor ou pior. Mas então eu não aguentei.
Desci os degraus descalça, atravessei o tapete persa e me joguei
ao lado dela.
Ela olhou para cima, surpresa.
— Sinto muito, mamãe — eu disse.
E ela soube naquele instante, como as mães sempre sabem,
que eu tinha ouvido tudo. Ela me puxou com força contra o peito e
passou os braços em volta de mim.
— Não é você, querida — ela disse, sua voz ainda rouca. — Não
é você.
Mas, claro... ela estava mentindo.
Era eu.
Ela sabia disso, e agora eu também.
Eu nunca pensava sobre aquela noite agora. Eu não tinha
esquecido, exatamente, mas guardei em algum lugar nas bordas
distantes da minha memória. Qual era o sentido de reproduzi-la?
Nada poderia mudar. Nada poderia funcionar de forma diferente.
Meu pai iria embora e eu não o veria novamente até o funeral de
minha mãe, dois anos depois – e mesmo assim ele me olhava com
amargura.
Ele não me acolheu depois disso. Eu fui morar com a irmã de
minha mãe, e meu pai e eu passaríamos o resto de nossas vidas
ignorando a existência um do outro.
Tudo por causa de uma coisa que estava errada comigo e que
nunca seria consertável.
De qualquer forma, como alguém como Alice – a Alice alegre,
lógica e bebedora de chá – poderia entender algo assim?
Eu mesmo não conseguia entender.
Ela queria saber por que me apaixonar por Duncan era ruim e,
por um segundo, pensei em tentar explicar isso a ela.
Mas as palavras me falharam.
No mundo de Alice, o amor era matemático. Todo problema tinha
uma solução.
Mas no meu mundo, as soluções sempre foram muito menos
fáceis de encontrar.
dezesseis

Quando Babette apareceu na cozinha, ainda de roupão, ela deu


uma olhada em nós duas e disse:
— O que eu perdi?
— Sam beijou Duncan — disse Alice.
— Finalmente! — Babette disse. — Talvez isso o conserte.
— Um beijo não pode consertar uma pessoa.
— Talvez isso o inspire a tentar se consertar.
Eu pretendia expor tudo para elas com muito cuidado, mas, em
vez disso, eis o que saiu:
— Ele estava tão dopado depois da cirurgia que era como um
soro da verdade, e acabou confessando que tinha uma queda por
mim desde a Califórnia, e então eu tive que tirar a roupa dele e ele
caiu em cima de mim, e então ele olhou nos meus olhos até que
estávamos nos beijando, e então ele me disse que estava sozinho e
me pediu para ficar com ele, e agora eu tenho medo de não ter
escolha a não ser cair de volta amor com ele.
Babette absorveu isso.
— Uau — disse Alice.
Eu balancei a cabeça. Mas eu estava cansada de pensar sobre
o que tudo isso significava para mim. Agora que Babette estava
aqui, acrescentei:
— E tem mais uma coisa. Ele foi baleado. Em um tiroteio
escolar.
Babette e Alice largaram suas xícaras de café, inclinaram-se e
disseram:
— O quê?
Talvez eu não devesse ter contado a elas. Talvez fosse uma
informação privada que ele só revelou sob a influência de drogas.
Mas eu confiava nelas.
E eu realmente precisava de conselhos.
Eu balancei a cabeça para confirmar.
— Ele quase morreu. As cicatrizes são... enormes. Chocante. E
eu quero dizer isso. Desfigurantes.
Babette suspirou.
— Isso explica muita coisa.
— E então agora estou muito em conflito — eu disse.
— Posso ver por quê — disse Alice.
— Porque eu já tinha desistido dele. E traçamos um plano para
demiti-lo. E não há dúvida de que, pelo bem da escola, ele precisa
ir. Mas…
— Você quer que ele fique — disse Babette, com um sorrisinho.
— Mas, agora, depois de ver as cicatrizes… posso ver por que
ele está agindo assim.
— Ele está com medo. — Babette assentiu.
— Sim, e eu não acho que ele tenha lidado com nada disso, o
que quer que isso signifique. Quero dizer, como uma pessoa faria
isso? Como você começaria?
— Você sente que há esperança para ele? — Alice perguntou.
Eu balancei a cabeça.
— Eu tenho tentado todo esse tempo descobrir o que mudou. E
agora que sei, sinto que talvez, em vez de tentar demiti-lo,
devêssemos tentar ajudá-lo.
Babette e Alice pensaram nisso.
Eu olhei para frente e para trás entre elas.
— O que vocês acham?
E foi então que Babette me deu um grande sorriso – o primeiro
sorriso verdadeiro que eu via dela em meses. Então ela disse:
— Acho que é a melhor ideia que já ouvi em anos.

Babette nunca gostou muito da ideia de fazer Duncan ser demitido.


Mas a ideia de ajudá-lo?
Isso realmente acendeu o fogo dela.
Nesse momento, começamos a pensar em um dos blocos
amarelos de Babette. Intitulamos a lista de O Projeto Duncan, e
Alice preparou o chá enquanto gritávamos ideias e eu as anotava.
Nosso lema era “Nenhuma ideia é idiota demais”, que decidimos
que queríamos em camisetas, e listamos todas as coisas malucas
que pudemos pensar que poderiam ajudar Duncan a se lembrar de
quem ele era antes, se reconectar à alegria e “lidar com isso”, o que
quer que isso signifique.
Colocamos tudo, desde “jogar laranjas nele para ver se ele
acidentalmente começa a fazer malabarismo com elas”, até “fazer
um falso sorteio de professores onde ele ganha sessões gratuitas
com um terapeuta” e “trazer palestrantes convidados sobre TEPT”.
— Ele está fazendo terapia? — Babette perguntou.
— Eu acho que não.
— Ele precisa fazer.
— Boa sorte com isso.
No final, acabamos classificando as ideias em várias categorias:

Ajudá-lo a se lembrar de seu antigo eu


Ajudá-lo a fazer conexões com humanos
Lembrá-lo de como era ser feliz
Expô-lo a riscos
Suavizar sua casca externa de durão
Alimentá-lo fisicamente
Ajudá-lo a construir uma estrutura mental para pensar
sobre resiliência
Terapia
Em cada categoria, listamos tudo o que pudemos pensar para
ajudar a realizar isso. Em “Ajudá-lo a se lembrar de seu antigo eu”,
listamos coisas como: induzi-lo a usar uma camisa havaiana; fazer
com que ele se vista com uma fantasia; fazê-lo dar uma aula de ioiô;
e desafiá-lo a andar sobre as mãos. Em “Ajudá-lo a fazer conexões
com humanos”, listamos: noite de jogos na casa de Babette; ir
pescar com os caras; barraca do beijo; e massagem. E quanto a
“Ajudá-lo a construir uma estrutura mental para pensar sobre
resiliência”, listamos: manter um diário; ver o documentário sobre a
tempestade de 1900; falar sobre o budismo; estudar o crescimento
pós-traumático; e fazê-lo falar.
Um amontoado de afazeres para acontecer.
Nós realmente não sabíamos o que estávamos fazendo.
Mas compensamos isso com ideias. Páginas e páginas de
ideias.
Babette me perguntou como eu tinha lidado quando minha
epilepsia voltou.
— Você estava deprimida? — ela perguntou.
— Muito — eu disse. — Parecia uma sentença de prisão. Como
se eu fosse passar o resto da minha vida sozinha, sem nunca saber
quando o desastre aconteceria.
— Mais ou menos como Duncan.
Eu pensei sobre isso.
— Bom ponto.
— Então, como você lidou?
Eu pensei sobre isso.
— Max me ajudou — eu disse. — Ele me disse para prestar
atenção às coisas que me faziam sentir melhor, e depois fazer mais
delas.
— Sensato — disse Alice.
— Caminhar na praia me fazia sentir melhor, então caminhei na
praia. Beber xícaras de chá quente me fazia sentir melhor, então
bebi. Banhos de espuma me faziam sentir melhor. Andar de
bicicleta. Pipas voadoras. Ouvir audiolivros. Leitura. Cozinhar. Velas.
Usar o chapéu de flor.
— E então eu lhe dei aquele livro sobre teoria das cores — disse
Babette.
— E comecei a encher meu mundo de cor. Porque Max me
prometeu que a alegria era a cura para tudo. E quanto mais
aprendia sobre como funcionava, mais sentia que a alegria era
cumulativa. Que não se tratava de encontrar uma coisa grande, mas
de coletar o máximo de pedaços minúsculos que você pudesse.
Alice apontou para mim.
— Viu o que estou dizendo? Matemática.
— Funcionou para você? — Babette queria confirmar.
— A vida ainda é vida. Mas definitivamente ajudou a empilhar o
baralho a meu favor.
Talvez fosse por isso que o ataque de Duncan à escola parecia
tão pessoal. Foi mais do que ruim para o corpo docente e ruim para
as crianças – foi especificamente ruim para mim.
Minha epilepsia havia desaparecido quando eu tinha doze anos.
Simplesmente... se resolveu. Durante todo o ensino médio, as
convulsões foram cada vez menos frequentes e, então, seis meses
se passaram e depois um ano. E o alívio que senti durante anos
após o fim das convulsões foi profundo. Era como se eu tivesse
quebrado toda a minha vida e agora estivesse consertado.
Esforcei-me muito para fingir que a epilepsia nunca havia
acontecido – e fiz um trabalho de esquecimento muito completo.
Então, quando voltou – do nada, em meus vinte e poucos anos –
tive alguns sentimentos sobre isso. Sentimentos sombrios.
Sentimentos sem esperança. Sentimentos de auto-ódio. Muitos
desses.
Essa primeira convulsão trouxe todos os sentimentos de volta –
e talvez até mais. Talvez pior. Quase como se ignorar tudo isso por
tanto tempo tivesse permitido que todas aquelas emoções e
suposições apodrecessem, mudassem e crescessem.
Mas eu tinha lidado.
Eu encontrei uma maneira de me arrastar de um lugar muito
escuro de volta para a luz. Trabalhei para encher meu mundo de
flores, luz do sol e cores. Não foi teórico para mim – foi muito
prático. Se Duncan apagou essas coisas da escola, ele as apagou
da minha vida.
E se a escuridão voltasse?
Eu não podia deixar isso acontecer.
Não era apenas a escola que estava em perigo. Era eu.
Mas não íamos pensar nisso agora. Íamos descobrir uma
maneira de trazer esse cara de volta à vida. Para o bem dele, assim
como para o meu – e para o de todos os outros.
— Isso vai funcionar — disse Alice.
— Acho que ele precisa se divertir à moda antiga — disse
Babette.
Eu fiz uma careta.
— Se divertir?
— Você deveria levá-lo para dançar… e aquele bar dançante
perto de San Luis Pass? Ou aquela discoteca secreta na Post Office
Street? Ou mesmo apenas para o Pleasure Pier. Você poderia andar
de carrossel, bater nos carrinhos bate-bate... Ou, não pense demais,
simplesmente nadar no oceano. Vá andando pela Seawall
Boulevard.
Alice estava concordando.
— Temos que começar a confrontá-lo com alegria.
— Você pode confrontar alguém com alegria? — Perguntei.
— Você sabe… — Alice disse, tentando reformular. — Enchê-lo
com alegria. Atacá-lo com ela. Bombardeá-lo com alegria.
— Bombardeá-lo com alegria?
— Sim — disse Alice, tipo dã.
— E colocá-lo em uma terapia — Babette acrescentou. Então
ela me fez circular “terapia” na lista duas vezes e colocar estrelas
em volta dela.
Ela não estava errada. Não éramos profissionais. Parecia
bastante claro que ele estava lidando com algum transtorno de
estresse pós-traumático grave, e nenhum de nós estava realmente
qualificado para curar isso. Portanto, a terapia seria a pedra angular
desse plano.
— Boa sorte com isso — disse Alice, e quando imaginei o rosto
impassível de Duncan, ele também não me pareceu um candidato
disposto à terapia.
Mas Babette não estava preocupada.
— Confie em mim — disse ela. — Eu tenho um amigo.
Foi tão divertido ver Babette assumindo um projeto. A névoa ao
seu redor pareceu se dissipar com a perspectiva de ajudar alguém.
E claro, ajudar Duncan significava ajudar a todos nós. E a escola
também. E potencialmente colocando tudo – bem, quase tudo – de
volta do jeito que deveria ser.

Quando o fluxo de ideias finalmente começou a diminuir, percebi


que não tinha ideia de como faríamos com que ele fizesse todas
essas coisas.
— Babette — eu disse então, me sentindo repentinamente
preocupada. — Como exatamente vamos fazer com que ele
coopere?
— Oh, isso vai ser fácil — Babette disse, com uma pequena
piscadela.
— Nada é fácil com Duncan — eu disse.
— Agora é hora de compartilhar um pequeno segredo — disse
Babette.
— Tudo bem — Alice e eu dissemos, nos inclinando.
— Depois que Max morreu — disse Babette —, o conselho me
pediu para assumir.
Alice e eu nos entreolhamos.
Babette continuou:
— Mas eu recusei.
— Eu sabia — eu sussurrei.
— Na verdade — disse Babette. — Eles não apenas pediram.
'Imploraram' seria uma palavra melhor.
— Mas você estava muito dominada pela dor para assumir isso?
— Alice perguntou.
Babette assentiu.
— Então você os deixou contratar Duncan — eu disse,
balançando a cabeça.
— Honestamente, naquele momento, eu estava muito insensível
para me importar com quem eles contratariam.
— Eu entendo — eu disse.
Babette puxou os óculos de leitura para baixo do nariz.
— Mas isso não muda quem eu sou. Max e eu construímos esta
escola. E nada acontece aqui sem minha autorização.
— Você está dizendo que as coisas não são tão sombrias
quanto parecem?
Babette me deu um sorriso.
— Você está dizendo que Kent Buckley não tem a palavra final
em tudo?
Seu sorriso ficou maior.
Eu bati minha mão na mesa.
— Eu sabia que Max não teria nos deixado com aquele cara no
comando — eu disse.
— Eis o que preciso que você saiba — disse Babette. — Eu
poderia despedir os dois amanhã.
— Você poderia? — Alice perguntou.
— Mas eu não vou.
— Você não vai? — Perguntei.
Babette balançou a cabeça.
— Por que não? — Alice perguntou.
Babette olhou para o céu.
— Porque Kent Buckley é casado com minha filha, e isso pode
tornar as coisas estranhas. E porque você gosta de Duncan. E eu
gosto de Duncan, na verdade. E acho que ele tem potencial. E ele
precisa da nossa ajuda.
— Então, se há uma maneira de resolver as coisas
amigavelmente, é isso que você prefere? — Alice perguntou.
— Exatamente — disse Babette.
Eu balancei a cabeça. Eu entendia.
— E francamente — Babette acrescentou —, eu não me
importaria com um projeto. Algo para redimir este ano indesculpável.
— É justo — eu disse.
— Então é assim que vai funcionar — disse Babette. — Você vai
dizer a ele que ele tem que fazer uma coisa que eu peço a ele todos
os dias, talvez uma coisa pequena, talvez uma coisa maior, e que se
ele concordar com todas as minhas exigências, não vou demiti-lo
imediatamente. — Ela sorriu. — Mas ainda me reservo o direito de
demiti-lo mais tarde.
Alice olhou para Babette com admiração.
— Então estamos chantageando ele.
Ela deu de ombros.
— No bom sentido.
— E se ele disser não? — Perguntei.
Ela deu de ombros novamente.
— Então ele está fora.
— Babette — eu disse, em um estado de admiração
enlouquecida —, você é uma gênia completa.
dezessete

Aqui está o problema: quando eles chamaram as drogas que deram


a Duncan de “indutores de amnésia”, eles não estavam brincando.
Ele não se lembrava de nada.
Não tive mais notícias dele depois daquela noite que passamos
juntos, embora eu tivesse anotado meu número nas instruções pós-
cirúrgicas e escrito “Me ligue se precisar de alguma coisa” – com
“alguma coisa” sublinhado duas vezes.
Eu meio que esperava ter notícias dele de novo, para ser
honesta.
Tirando toda a cirurgia, foi um período muito agradável.
Eu me peguei pensando nele. Querendo saber como ele estava.
Pegando meu telefone para ligar, mas decidindo contra isso.
Pensando no momento em que ele disse:
— Mesmo que eu não me lembre, vou me lembrar.
Do que ele se lembraria, se não se lembrasse?
Era a sensação que você tinha depois de um ótimo encontro.
Uma espécie de sentimento crescente e animado de antecipação...
como se, mesmo que o momento em si tivesse acabado, a conexão
ainda persistisse.
Uma parte de tentar controlar a epilepsia para mim era tentar
manter minhas emoções sob controle. Tipo, tentei evitar os
extremos quando pude. Essa é uma das muitas razões pelas quais
eu não passava muito tempo na pista de encontros. Namorar era
difícil. Namorar era tenso. Apesar de toda a felicidade que as
pessoas sentiam em relação ao amor e ao romance, também era
estressante. E potencialmente desestabilizador.
Eu não queria ser desestabilizada. Mais do que eu já tinha sido.
Eu queria o oposto, na verdade.
Então, enquanto caminhava para a escola naquela primeira
manhã após o intervalo, tive uma sensação selvagem de incerteza.
Como seria ver Duncan novamente depois de tudo isso? Ele seria
amigável comigo? Provocante? E se ele se sentisse atraído por mim
como eu me sentia por ele, o que aconteceria? O que diabos iria
acontecer a seguir?
Eu não fazia ideia.
Mas senti quase fome de vê-lo. Meus dois últimos encontros
com ele foram tão típicos do Velho Duncan que quase esqueci como
era o Novo Duncan.
Até que eu o vi lá.
Ele estava no pátio, quando as crianças chegaram, em posição
de sentido naquele terno cinza, como se nada tivesse acontecido.
Cabelo para cima e alisado para trás. Gravata azul marinho bem
amarrada.
Novo Duncan, com certeza. Lá estava ele.
Porque quando me aproximei dele com um sorriso um tanto
bobo, do jeito que você faz com pessoas de quem se sente próximo,
pessoas que você beijou, por exemplo, ou pessoas cujas calças
você tirou, pelo amor de Deus – ele piscou para mim como se eu
fosse uma completa estranha.
— Ei — eu disse, me acomodando bem perto dele.
Posso estar errado, mas pensei tê-lo sentido se afastar.
— Olá.
Apenas alguns dias antes, eu tinha minhas mãos em seu torso
sem camisa. Eu acariciei minhas palmas para cima e para baixo
sobre a maciez de seu cabelo. Eu me deixara derreter sob o peso
daqueles braços. Eu dormi ao lado dele em sua cama.
Sem falar: o beijo.
Hoje, esse traje poderia muito bem ser feito de metal.
Ele não encontrou meus olhos.
— Obrigado pela carona para casa no outro dia.
— Oh! — Eu disse. — De nada! Por um segundo, pensei que
você não lembrasse.
— Eu não me lembro — ele disse, uma vibe só-falando-os-fatos-
senhora. — Mas eu sei que você concordou em ir. E eu acordei na
minha casa. Então, acho que você deve ter me levado até lá de
alguma forma.
— Ah — eu disse, murcha. — Você não se lembra de nada?
Ele balançou sua cabeça.
— Lembro que pedi para você me levar para casa. E que você
concordou em fazer isso. Mas não me lembro disso ter acontecido.
Oh.
Isso me deu uma sensação de árvore caindo na floresta. Se um
cara te beija com analgésicos e no dia seguinte não lembra, isso
realmente aconteceu? Ou, tão importante quanto: se um cara
confessa ter uma queda por você, mas então, na próxima vez que
você o vê, ele olha para todo o mundo como se não se importasse…
como você pode saber em que acreditar?
Honestamente, com base em sua expressão, eu teria jurado que
ele era totalmente indiferente a mim.
Indiferente – talvez com um toque de náusea.
Do que ele se lembraria se não se lembrasse?
Nada. Nada mesmo.
— Como vai você? — Eu perguntei então. — Algum problema
com o...? — Eu toquei minha palma ao meu lado.
— Não. Tudo bem. Apenas alguns hematomas. — Ele poderia
estar conversando com seu médico.
— Você caiu algumas vezes — eu disse, observando para ver se
havia alguma faísca. — Uma vez, quando você estava tentando se
despir.
Duncan franziu a testa.
— Então, sem complicações? Você está bem?
— Sim. — Ele balançou a cabeça, sem encontrar meus olhos.
— Alguma dor?
— Um pouco.
— E você se lembrou de mandar uma mensagem para sua
irmã?
Agora ele olhou para mim.
— Minha irmã?
Duas palavras. Um avanço.
— Sim. Ela ligou várias vezes. Você me disse para dizer a ela
que você mandaria uma mensagem para ela mais tarde.
Ele franziu a testa.
— Como isso aconteceu?
— Quando seu telefone tocou, eu atendi.
— Você falou com ela?
— Sim, eu conversei com ela. Por um tempo.
— O que ela disse?
Agora estava ficando divertido. Ela disse muitas coisas, na
verdade.
— Ela me contou sobre aquela vez no ensino médio em que
você e Jake acidentalmente enlouqueceram seu professor de
matemática e foram suspensos.
Duncan fechou os olhos por um segundo, e não vou mentir: foi
bom conseguir uma reação dele – qualquer reação.
Mas não bom o suficiente.
Estar perto de uma versão acolhedora e dopada de Duncan
tinha sido bom – e eu nem mesmo registrei o quão bom até aquele
cara ir embora. Estar perto do robótico Duncan só me fez querer a
versão humana de volta ainda mais. Eu não conseguia parar de
pensar nele, sentindo um brilho de afeto que permaneceu durante
toda a semana. Até agora.
Senti falta do outro Duncan.
Isso criou um aperto de frustração em meu corpo.
E então resolvi mexer um pouco com ele.
— Obrigada por todos os abraços, a propósito.
Duncan ficou muito quieto com essa ideia.
— E obrigada — continuei — por ser tão aberto e honesto sobre
seus sentimentos.
Eu dei a ele um segundo para ponderar quais sentimentos,
exatamente, eu poderia estar me referindo.
— E obrigada por me dar sua coleção de suculentas.
Isso chamou a atenção dele. Ele olhou para mim.
— Foi isso…? Você as pegou?
— Por segurança. Você ficará satisfeito em saber que não as
reguei a semana toda.
Duncan assentiu, como se não tivesse certeza se estava
satisfeito ou não.
— Além disso — acrescentei então —, eu vi suas cicatrizes.
Duncan ficou muito quieto.
— Mas você realmente não falou sobre o que aconteceu.
Duncan assentiu.
— Eu nunca falo sobre isso.
— Você não acha que talvez devesse?
— Não. — Então ele se virou para mim e disse: — Eu nunca vou
falar sobre isso. Ok?
— Não comigo — eu disse. — Mas talvez com um profissional.
Ele deu um breve aceno de cabeça.
— Não. Não é meu estilo.
Tentei fazer com que minha voz soasse agradável e informativa.
— Entendo. Mas eu preciso te dizer uma coisa. Babette quer
que você faça terapia.
— Babete?
— Ela quer — eu disse. — E ela é muito... todo-poderosa. Ela
não dá muita importância a isso, mas ela é basicamente Deus por
aqui. Ela é a dona desta escola. E ela é a dona do conselho de
administração.
Duncan esperou.
— Todo mundo acha que o conselho a ignorou por você. Mas
não foi isso que aconteceu. Eles imploraram que ela viesse
administrar o lugar. Ela simplesmente recusou.
— Compreensível — Duncan disse, pensando.
— Exato. Certo? Mau momento.
Duncan assentiu.
— Muito.
— Mas ela me explicou algo na outra noite que eu não sabia.
Eles queriam que ela administrasse a escola na época e ainda
querem que ela administre a escola agora. E tudo o que ela precisa
fazer é dizer a palavra e você está fora.
Duncan se virou para olhar diretamente para mim.
— E quanto a Kent Buckley?
— Kent Buckley só pensa que está no comando. O conselho é
leal a Babette. Eles farão qualquer coisa que ela disser.
— Então o que você está dizendo?
E foi aqui que tive que me esforçar muito para ser convincente:
— Estou dizendo que seu emprego está em jogo. E ela está
muito tentada a despedi-lo. Mas ela não vai... se você concordar
com alguns termos simples.
— Que termos?
— Bem, um: ela quer que você faça terapia. — Entreguei o
cartão de visita do cara de Babette.
Duncan pegou. Olhou para baixo. E leu.
Uau. A vida com certeza era fácil quando você tinha Babette ao
seu lado.
Eu balancei a cabeça.
— Dois, ela quer que você pare com as mudanças na escola,
por enquanto. Basta colocar tudo isso em segundo plano. Chega de
pintar as coisas de cinza.
Duncan me estudou por um segundo, então soltou um suspiro e
disse:
— Tudo bem.
Olhando para trás, talvez tenha sido um pouco fácil demais
colocá-lo a bordo.
Mas, na época, pensei: tudo na vida deveria ser tranquilo.
— E três — eu disse —, ela quer que você prometa que todos os
dias você fará uma coisa que ela pedir.
— Como o que?
— Provavelmente algo pequeno, como comer uma tigela de
sorvete.
— Babette quer que eu coma uma tigela de sorvete?
— Ou fazer outras coisas. Talvez algo maior.
— Maior, como o quê?
Dei de ombros.
— Não sei. Nadar no oceano, talvez? Ir pescar? Jogar
minigolfe?
Duncan franziu a testa.
— Nada terrível. Ela não vai pedir para você matar ninguém ou
nada.
Duncan pensou nisso.
— Sem querer ser insistente, mas não tenho certeza se você
tem muita escolha aqui.
— Porque se eu não concordar com os termos dela, ela vai me
demitir?
Eu enruguei meu nariz em solidariedade.
— Algo assim.
Duncan fechou os olhos e olhou para mim.
— Isso é pra valer?
Suponho que, se você não estivesse na sessão de
brainstorming, isso poderia parecer um pouco aleatório. Dei de
ombros.
— Não é para sempre. Apenas o semestre da primavera.
— O que acontece depois disso?
— Boa pergunta. Ela se reserva o direito de demiti-lo de
qualquer maneira. Mas talvez ela não vá. Ela definitivamente vai
demiti-lo agora se você não concordar com isso. Então: vale a pena
pegar o negócio.
— Como isso é chamado? Isso é extorsão? — Ele pensou sobre
isso. — Suborno? Chantagem?
— Acho que chamam isso de 'bondade de estranhos'.
— Não parece tão gentil assim.
— Babette queria que eu mencionasse que ela é uma
governante benevolente.
— Ótimo — disse Duncan, dando-me um olhar.
— Então? — Eu disse. — Você está dentro?
— Bem — disse Duncan —, já que não tenho escolha... acho
que sim.
dezoito

E assim começou a Operação Duncan.


Tivemos a chance de resgatá-lo – e possivelmente a nós
mesmos também.
E oh, cara, foi divertido.
Dissemos a Duncan para comer um creme congelado? Ele
comeu um creme congelado. Dissemos a ele para fazer uma parada
de mão no pátio? Ele fez uma parada de mão no pátio. Dissemos a
ele para contar piadas matemáticas dignas de vergonha pelo
interfone da escola (aquela era Alice)? Ele contava piadas de
matemática pelo interfone.
Era verdade que o tínhamos na palma da mão – fortemente.
Mas ele com certeza não lutou muito. Pelo que sei, ele nunca
pensou em tentar nos expor a Kent Buckley ou a qualquer outra
pessoa. Em algum nível, eu acho, ele estava feliz em concordar com
isso.
Talvez até aliviado.
De nossa parte, Babette e eu elaboramos muitas estratégias
sobre como estruturar sua jornada. Queríamos pressioná-lo a se
abrir, tentar coisas esquecidas, relaxar, sentir alguns sentimentos e
um milhão de outras coisas – mas não queríamos pressioná-lo tanto
que ele se assustasse.
Começamos com coisas pequenas – coisas fáceis.
Todas as manhãs, eu aparecia em seu escritório com sua “coisa”
do dia. Naquela primeira semana, foi: comer um sundae com calda
quente (para ajudá-lo a se lembrar do prazer), pular em um pula-
pula (para ajudá-lo a se lembrar de quem ele costumava ser), tomar
um banho quente (para ajudá-lo a relaxar), assistir a um filme de Bill
Murray de sua escolha (para fazê-lo rir) e, na sexta-feira, fazer
malabarismos com alguma coisa – qualquer coisa – para as
crianças na hora do almoço (porque malabarismo costumava ser
sua atividade favorita). A casa alugada de Duncan não tinha
banheira, então Babette o fez ir à casa dela depois da escola
naquela noite e, enquanto ele estava lá, ela insistiu que ele ficasse
para jantar (conexão humana). Da mesma forma para o filme de Bill
Murray (Duncan escolheu Almôndegas). Babette exigiu que ele
assistisse na casa dela para que pudéssemos confirmar que a tarefa
estava concluída. E como ele estava lá, de qualquer maneira, nós o
alimentamos com o jantar e depois nos juntamos a ele no sofá
(amizade).
Alice também veio.
Babette e eu levamos esse projeto muito a sério. Fizemos um
gráfico com código de cores para todas as suas tarefas exigidas –
nem estou brincando. Diversão era amarelo, relaxamento era rosa,
seu antigo eu era azul. Tínhamos quatro meses, aproximadamente,
sem contar as férias de primavera, e queríamos aproveitá-los ao
máximo. Além disso, lemos livros de autoajuda sobre como superar
traumas, sobre TEPT, sobre como encontrar maneiras de seguir em
frente na vida. Lemos, destacamos, tomamos notas e discutimos.
Em nenhum momento nos ocorreu que poderíamos estar
fazendo isso por nós mesmas.
Mas é claro que também nos ajudou.
Todas nós precisávamos seguir em frente. Todas nós
precisávamos superar o trauma. Todas nós precisávamos de
banhos quentes e boas risadas. Certo, eu não sabia fazer
malabarismos, mas assistir Duncan finalmente fazer isso naquela
sexta-feira na hora do almoço na frente de todas as crianças – foi
tão bom quanto, senão melhor.
— É dia de malabarismo — eu disse a ele agradavelmente,
durante o horário de almoço.
Ele não lutou comigo.
— Crianças! — ele gritou, levantando-se para chamar a atenção
deles. — Quem quer me ver fazendo malabarismos?
Um grande aplauso subiu no refeitório.
Duncan andou pelo recinto, serpenteando entre as mesas,
pegando itens das bandejas de almoço das crianças. Ele pegou
uma maçã vermelha de um aluno da quinta série e começou a jogá-
la para cima e para baixo enquanto caminhava, procurando outras
coisas para jogar.
— Com o que devo fazer malabarismos? — ele perguntou várias
vezes à sala, enquanto as crianças o observavam e gritavam
sugestões: Um saleiro! Um copo de leite! Um cupcake!
— Estou escolhendo coisas redondas — ele gritou para a sala
— porque são mais fáceis. E faz muito, muito, muito, muito tempo…
— Ele fez uma pausa para olhar ao redor da sala e continuou: —
muito, muito, muito tempo desde que fiz malabarismos com
qualquer coisa.
As crianças ficaram fascinadas, observando-o.
Eu também.
— Nem mesmo com um espaguete! — ele gritou. — Nem
mesmo com gelatina! — Ele ainda estava jogando aquela maçã
para cima e para baixo, mal olhando para ela. — Nem mesmo —
disse finalmente, baixando a voz — um pedaço de fiapo de umbigo.
Uma onda de risadas das crianças.
— Alguns de vocês — Duncan continuou, virando-se ao redor da
sala, apontando para as crianças — mal haviam nascido da última
vez que fiz malabarismos.
As crianças comemoraram.
— Portanto, estou optando pelo fácil — disse ele então,
levantando a maçã e dizendo: — Como este donut!
— Isso não é um donut! — as crianças gritaram.
Duncan estava parado perto de Clay e, com isso, ele se inclinou
e pegou uma laranja de sua bandeja. Ele o segurou para as
crianças.
— Você pode pensar que esta melancia é muito pesada — disse
ele em seguida, enquanto as crianças começavam a rir e protestar
—, mas estou lhe dizendo, desde que seja redonda, eu tenho isso.
— Isso não é uma melancia! — as crianças gritaram.
— Agora, só preciso de mais uma coisa redonda — disse
Duncan, e as crianças se acalmaram para ver o que ele escolheria.
— O que deveria ser? Uma romã? Um tomate? Um cacto?
— Um cacto não é redondo!
Ele se esgueirou em direção às mesas dos professores agora.
— Vai ser difícil superar a melancia, mas vou tentar.
Foi quando Duncan notou um kiwi com casca na mesa do
almoço na minha frente. Ele encontrou meus olhos e começou a
caminhar em minha direção.
Então, baixinho, só para mim, no meio do barulho, ele disse:
— Quem coloca um kiwi com casca no almoço?
— Fiquei sem tempo — eu disse, batendo na faca que eu
também trouxe.
Então Duncan piscou para mim e voltou para o quarto.
— Eu consegui! — ele gritou. E as crianças se aquietaram para
ver o que seria.
Ele se aproximou de mim, inclinou-se, pegou o kiwi, ergueu-o e
gritou:
— Um abacate!
As crianças ficaram loucas.
Duncan fez o caminho de volta para o palco na outra
extremidade – nunca quebrando o ritmo com a maçã e a laranja.
Subiu os degraus do palco sem parar.
Ele tinha a atenção deles agora. Para nossa sorte, ele não havia
esquecido como fazer malabarismo.
E uma vez que ele começou, foi como se nunca tivesse parado.
No começo, era apenas um círculo simples, mas depois ele
começou a adicionar pops e surpresas, sincronizando o ritmo.
Deixei minha mesa e me aproximei do palco, hipnotizado pela visão,
perdido no ritmo fácil. Ele jogou a laranja para o alto e a pegou. Ele
fez embaixadinha com o kiwi na ponta de seu sapato. Ele jogou a
maçã entre as pernas e atrás das costas.
Ele criou um pequeno momento maravilhoso e transcendente de
magia.
E então, quando tudo acabou, ele voltou para o canto da sala,
reassumiu sua postura militar e reaplicou sua cara de pôquer como
se nunca tivesse acontecido.
Mas aconteceu.
E eu vou te dizer uma coisa. Mesmo enquanto eu o observava
pelo resto do almoço, parecendo sério de novo, e chato de novo
naquele mesmo velho terno cinza idêntico com aquela gravata azul-
marinho idêntica... Eu sabia que algo estava diferente.
Porque quando ele pegou aquele kiwi no sapato alguns minutos
antes, a perna da calça tinha virado para cima, e eu tinha visto algo
escondido embaixo dela. Algo que eu não podia deixar de ver.
As meias que ele estava usando hoje? Elas tinham bolinhas.

Na noite seguinte, nossa atividade era caminhar até o centro da


cidade até o cinema que exibia o documentário sobre a Grande
Tempestade de 1900.
— É muito trágico — Babette me alertou, e recebi instruções
explícitas para enfatizar temas de resiliência nas conversas
posteriores.
Na caminhada até lá, não pude deixar de falar do malabarismo.
— Você é simplesmente... tão bom — eu dizia.
— Eu costumava me apresentar nas esquinas. Foi assim que
ganhei dinheiro na faculdade.
— Malabarismo?
Ele encolheu os ombros.
— Outras coisas também.
— Como o que?
Ele suspirou, como se dissesse foram tantos.
— Posso andar sobre palafitas. Eu posso fazer truques de
mágica. Consigo resolver um cubo mágico em menos de cinco
minutos. Eu posso explodir uma bolha dentro de uma bolha. Eu
posso arrotar o alfabeto. Ah, e eu sou um campeão de ioiô.
— Você é um campeão de ioiô?
— Bem — ele corrigiu, meio que besteira —, campeão estadual.
— Isso é uma coisa?
Ele me deu uma olhada.
— Confie em mim. Eu poderia te hipnotizar.
Abri minhas narinas para ele.
— Eu não sou hipnotizada facilmente.
— Você só pensa isso porque nunca me viu girar um ioiô.
Caminhamos por um segundo. Então eu disse:
— Como você aprendeu a fazer todas essas coisas?
Ele pensou por um segundo.
— Você se lembra de quando estava na escola e chegava em
casa todas as noites para fazer o dever de casa?
— Sim…
— Bem, eu nunca fiz o dever de casa.
Eu sorri. Claro que não.
— Ao invés disso, eu me ensinei a atirar facas. Eu lia histórias
em quadrinhos. Eu aprendi sozinho o código Morse. E arremesso de
facas. E a estalar um chicote. Memorizei o nome de todos os
bombardeiros que voaram na Segunda Guerra Mundial. Eu construí
um rádio funcional do zero. Basicamente, eu estava extremamente
entusiasmado para aprender tudo o que eles não ensinam na
escola.
— E agora você é diretor de uma escola.
— Eles não me contrataram pelo meu cérebro.
Nossa ideia era atraí-lo gentilmente com coisas fáceis, fisgá-lo e
depois construir a partir daí. Com o passar das semanas, mudamos
lentamente: fazendo-o ler alguma edição de Garfield que Clay
escolhesse, fazendo-o usar uma camisa havaiana e chinelos na
sexta-feira casual, fazendo-o fazer uma serenata para a Sra. Kline
no pátio no aniversário dela, fazendo-o comer um quarto de fudge
na loja de doces La King, fazendo-o brincar de charadas, e fazendo-
o ler um livro de psicologia sobre crescimento pós-traumático.
Ah, e não vamos esquecer a terapia. O amigo de Babette
confirmou que Duncan tinha, de fato, começado a frequentar as
sessões duas vezes por semana.
Tinha sido quase fácil demais.
Talvez ele soubesse que estava lutando. Talvez ele quisesse
alguma ajuda.
Talvez, em algum nível, ele estivesse grato por Babette e eu
estarmos mandando nele.
Isso era possível?
Eu era, é claro, a pessoa designada como acompanhante em
todos esses passeios. Babette sempre planejava seus maiores
eventos para as noites de sexta-feira e depois dava a ele o resto do
fim de semana de folga. Não eram encontros, é claro, mas como
fazíamos juntos, só nós dois, eles definitivamente se pareciam com
encontros. Babette nos mandava ao cinema, ao aquário, ao boliche
e a jantar fora.
Foi confuso, para dizer o mínimo.
Para mim, de qualquer maneira.
Quanto mais tempo eu passava com ele, mais tempo eu queria
passar com ele. E quanto mais eu pensava nele quando ele não
estava por perto. E quanto mais eu o procurava nos corredores.
Não foi... não foi agonizante. Eu vou dizer isso.
Eu definitivamente senti que estávamos ajudando Duncan. E as
crianças. E a escola.
Eu só não tinha tanta certeza do que estávamos fazendo
comigo.
dezenove

Numa sexta-feira, a tarefa de Babette para nós era ir a um parque


de diversões construído em um píer sobre o Golfo. Ficava a apenas
alguns quarteirões da escola, e Duncan deixou Chuck Norris
cochilando em uma cama de cachorro em seu escritório e veio me
encontrar perto do pôr do sol.
Antes de chegarmos ao píer, o sol já havia se posto e as luzes
começaram a brilhar – neon nos brinquedos e lâmpadas em forma
de vieiras graciosas por todo o píer. Compramos nossos ingressos e
passeamos.
Incapaz de resistir a um momento de aprendizado, eu disse:
— Este lugar não seria tão triste se alguém o tivesse pintado de
cinza?
Na verdade, Babette tinha um passeio específico que designou
para nós, e era uma montanha-russa chamada Tubarão de Ferro.
Nota importante: montanhas-russas não são exatamente
seguras para pessoas com epilepsia. Algumas pessoas se davam
bem com elas e outras não – e eu não tinha certeza de em qual
categoria eu me encaixava.
Duncan era claramente um fã de montanhas-russas.
— Ouvi dizer que tem uma queda vertical de dez andares
voltada para baixo — disse Duncan, como se isso fosse uma coisa
boa. Ele tinha feito muitas coisas por ordem de Babette até agora,
com vários graus crescentes de relutância, mas ele realmente
parecia animado com este.
Ele estava tão animado quanto eu estava nervosa.
O que diabos eu estava fazendo?
Para ser honesto, eu só queria sair com Duncan. Eu não queria
pular uma de nossas tarefas. Eu queria manter as coisas
funcionando e não perder o ímpeto. Não pude resistir à chance de
passar um tempo com ele.
Você conhece aquela sensação de clicar com alguém – quando
algo sobre essa pessoa simplesmente ilumina você? É tão raro.
Quando isso acontece, parece um pequeno milagre – e tudo o que
você quer é mais daquela pessoa. Eu queria mais de Duncan. Este
Duncan.
E se eu tivesse que andar de montanha-russa para conseguir,
tudo bem.
Tirei da cabeça o que estávamos fazendo – e apenas cedi a
estar ali.
Antes que eu percebesse, estávamos sentados lado a lado no
primeiro vagão e comecei a questionar minhas escolhas de vida. Eu
empurrei a restrição para baixo e cliquei no lugar na minha cintura.
— Espere… — eu disse, virando-me para Duncan. — Não há
arnês de ombro? Onde está a contenção de ombro? — Estendi a
mão atrás da minha cabeça e imitei puxando uma contenção de
ombro imaginária sobre mim.
— Não há restrição de ombro — disse Duncan.
Senti um aperto de alarme.
— Só na... cintura? Uma 'contenção de cintura'? Isso não é uma
coisa.
— Funciona — disse ele. — Está tudo bem.
Mas balancei a cabeça.
— Então a metade superior do seu corpo está apenas solta?
— Bem, sim. Isso faz parte da diversão.
— Ai meu Deus — eu disse. — Nós vamos morrer. — Ao dizer
essas palavras, olhei bem à minha frente e vi, realmente vi, pela
primeira vez, a parede vertical de trilhos à frente.
Um buraco negro de medo se abriu em meu estômago. Isso
estava acontecendo.
— Você está bem? — Duncan perguntou.
Eu tinha uma visão clara dos trilhos: eles se afastavam cerca de
dez metros da doca de carga e depois faziam uma curva em ângulo
reto para cima. Para cima. Para cima.
— Isso talvez não tenha sido uma boa ideia — eu disse.
— Ah, sim — disse Duncan. — É uma ideia terrível. — Ele disse
isso com prazer, como se o fato de ser uma má ideia a tornasse
incrível.
— Acho que preciso descer — eu disse, puxando a correia da
cintura… que, claro, não se mexeu, assim como outro vagão passou
por cima de nossas cabeças e abafou minhas palavras.
Virei-me para procurar alguém para sinalizar na plataforma…
Mas foi aí que começamos a nos mexer.
— Não há como voltar atrás agora — disse Duncan.
Ele não estava errado. Estávamos em movimento. Isso estava
acontecendo. Quanto tempo dura esse passeio, de novo? Três
minutos? Quatro? Senti meus dedos ficarem frios e então um
formigamento de medo se espalhou pelo meu corpo.
Como eu me deixei acabar aqui? Minha frequência cardíaca
dobrou – ou possivelmente triplicou – como se não estivesse
apenas batendo, mas mais como uma convulsão no meu peito.
Eu apertei meus olhos fechados, mas isso foi pior. Abri-os
novamente assim que nos inclinamos para trás e para trás nos
trilhos até que estivéssemos totalmente de lado, e a gravidade
puxou cada parte solta de mim de volta contra o assento. Parecia
tão vertical que parecia que estávamos inclinando para trás, e decidi
discutir com o medo. Tudo o que você precisa fazer, disse a mim
mesma, é esperar que acabe. Apenas sente-se e espere, e não
morra de ataque cardíaco.
Vou dizer o seguinte: eles realmente criam uma expectativa
durante a subida de dez andares.
— Você está bem? — Duncan perguntou.
Mas eu não pude responder.
A expectativa era a pior parte, eu disse a mim mesma.
Mas, na verdade, não era.
A pior parte ainda estava por vir.
Porque assim que atingimos o topo do andaime de dez andares,
mal estávamos começando a tombar para iniciar o retorno que nos
faria mergulhar de volta para a terra... o carro da montanha-russa
parou.
Tipo, parou de se mover completamente.
Simplesmente morreu.
Depois de um segundo, eu disse:
— Isso faz parte do passeio? — Talvez estivessem tentando
intensificar a expectativa.
— Não — disse Duncan.
Não o que eu queria que ele dissesse.
— O que está acontecendo? — Eu disse, minha voz soando
como se fosse de outra pessoa.
Mas, em seguida, uma voz soou por um alto-falante entre
nossos assentos.
— Nada para se preocupar, pessoal — disse a voz
agradavelmente.
— O que diabos está acontecendo! — Eu gritei para o alto-
falante, como se ele pudesse me ouvir.
— Estamos passando por uma pausa normal do sistema. O
sistema não está quebrado e não há motivo para alarme. Nossos
sensores de computador são altamente calibrados para detectar a
presença de objetos estranhos nas pistas. Se os sensores detectam
um impedimento, eles param imediatamente todos os passeios até
que nossos técnicos possam resolver o problema.
Eu encontrei os olhos de Duncan.
— Que tipo de objetos estranhos?
O alto-falante continuou.
— Objetos estranhos incluem, mas não estão limitados a,
jornais, pipas, latas de cerveja e pelicanos.
Duncan deu de ombros para mim.
— Por favor, sente-se e aprecie a vista até que a situação seja
resolvida.
O alto-falante desligou e, por um segundo, só houve vento.
Vento e nada. Porque não havia nada ao nosso redor.
Estávamos no topo, empoleirados em um leve ângulo como um
chapéu vistoso, com nada além do céu em todas as direções.
Foi quando o pânico realmente atingiu.
— Duncan? — eu disse então.
— Sim?
— Estou enlouquecendo.
Duncan inclinou a cabeça para poder me encarar.
— Você parece bem. Ótima, na verdade.
— Eu não estou bem. Ou ótima.
Então, forçando uma risada, ele disse:
— Por quê? Porque tem um pelicano nos trilhos?
Mas foi aí que comecei a hiperventilar.
— Ei — disse ele, inclinando-se mais perto. — O que está
acontecendo?
— Eu quero descer — eu disse a ele, e dizer as palavras tornou
tudo pior.
— Ei. Esta é uma montanha-russa moderna, não é como se
houvesse um velhote com um chapéu de motorista de trem puxando
uma alavanca velha e frágil.
— Isso não está ajudando.
— Estou bem aqui — ele disse, sua voz agora toda profissional.
— Estou bem aqui com você, e estamos seguros. Estamos presos
com segurança em um passeio pelo qual centenas de pessoas
viajam todos os dias, você sabe… para se divertir. Tenho certeza
que essa coisa do pelicano acontece o tempo todo. Nada demais.
Vamos apenas esperar que eles o enxotem e, então, faremos isso.
— Mas é esse o problema — eu disse, ofegante agora. — Não
quero terminar. Eu quero sair.
— Não podemos sair — disse ele. — Mas a boa notícia é que
esta montanha-russa assustadora parece só metade de uma
montanhas-russa assustadora.
— Isso não é reconfortante.
— Só estou dizendo, quando começarmos, não vai ser tão ruim.
— Eu não ando em montanhas-russas assustadoras, ok?
— O que? Nunca?
— Praticamente nunca.
— Então porque você está aqui?
— Isso meio que aconteceu, ok? Eu estava me divertindo. Eu
não estava prestando atenção.
Silêncio ao meu lado. Depois:
— Você só está aqui por minha causa?
— Sim — eu disse, em uma voz que era meio suspiro frustrado,
meio revirar os olhos. E então minha explicação saiu rapidamente:
— Babette nos disse para fazer isso e você parecia animado com
isso, fui pega no momento e não estava realmente pensando.
— Essa pode ser a coisa mais legal que alguém já me disse.
— Ok. Mas acho que estou tendo um ataque de pânico.
— O que te faz pensar isso?
Isso saiu sarcástico:
— Hm. Pode ser todo o pânico que estou sentindo.
— Justo.
— Ei — eu disse então. — Preciso te avisar sobre uma coisa.
— Ok.
Respirei fundo e disse:
— É possível que em algum momento eu acabe tendo... uma
convulsão.
— Uma convulsão?
— Sim.
— Quando?
— A qualquer hora, na verdade. — Então corrigi: —
Provavelmente não agora. Mas possivelmente. Quem sabe?
Ele disse:
— Você poderia detalhar, por favor?
Olhei para o céu enquanto dizia as palavras. Eu observei as
estrelas, e elas me observaram de volta.
— Então… — eu disse então, mantendo meu rosto virado para
cima —, eu tenho epilepsia.
— Ok.
Eu acelerei um pouco, para acabar com isso.
— Eu tive isso, na maior parte, na escola primária. Foi muito
ruim na época, eu tive muitas convulsões, pelo menos uma por mês
e às vezes aconteciam na escola, e se você está se perguntando se
as crianças acham que a epilepsia é legal... elas não acham.
— Você foi provocada.
— Provocada. Ostraçada. Evitada. Tudo isso. Tudo. A pior parte
foi… com uma convulsão de Grande Mal, primeiro você fica
completamente rígida, como se tudo em seu corpo ficasse o mais
rígido possível, e então você fica completamente flácida, como uma
boneca de pano. E quando eu era pequena, embora isso não
aconteça mais comigo, eu costumava perder todo o controle das
minhas funções corporais.
— Ai.
— Sim. Não é ótimo em uma situação escolar. Eu basicamente
não tinha amigos. De forma alguma.
— Desculpe.
— Mas quando fiquei mais velha, as convulsões passaram.
Encontramos um remédio que funcionou, e então lentamente parei
de tomar, e eu estava bem. Ensino médio… menos frequente;
ensino médio, faculdade… nada. Totalmente normal. Achei que
estava curada. Mas então voltou logo depois que me mudei para cá.
— Por que voltou?
— Ninguém sabe. Apenas acontece às vezes. E é muito mais
ameno agora, acontece uma ou duas vezes por ano. Eu nem tomo
remédio para isso, porque o remédio tem muitos efeitos colaterais.
— Eu olhei. — É por isso que eu não dirijo.
Duncan assentiu.
— Eu apenas tento controlar isso dormindo o suficiente,
comendo direito e… você sabe… fazendo boas escolhas.
— Essas coisas são suficientes para controlar?
— Não. Sim. Mais ou menos.
Duncan assentiu.
— Não comer nenhum carboidrato ajuda algumas pessoas,
então eu como dessa forma. E eu não bebo. E durmo o suficiente,
bebo bastante água e basicamente tento manter minha vida
agradável e sem drama. Porque um dos maiores gatilhos para
convulsões?
— Montanhas-russas? — Duncan ofereceu.
— Estresse — eu disse.
Duncan balançou a cabeça.
— O que diabos você está fazendo nessa coisa?
— Não é a minha melhor decisão de sempre.
Duncan assentiu, como se realmente estivesse entendendo tudo
agora.
— Porque se você avaliasse o nível indutor de estresse do
Tubarão de Ferro em uma escala de, digamos, um a dez...
— Vinte.
— Entendi.
— Então. Se acontecer, não se desespere.
— Vou tentar não fazer isso.
— Não vou embolar minha língua nem nada… isso não é real.
Depois que acaba, tem uma fase em que fico mole. Por favor,
certifique-se de que estou bem para respirar. E quando tudo isso
acaba, eu fico muito cansada, apenas sonolenta e exausta
inacreditavelmente. Se você pudesse me ajudar em casa, isso seria
incrível.
— Eu não deveria levá-la para o hospital?
— Não.
— Mas você teve uma convulsão.
— Se você tivesse uma convulsão, nós iríamos para o hospital.
Mas é normal para mim. O mesmo de antes. Sem novidades. Nada
demais.
Duncan franziu a testa para mim.
— Ok. Vou te ajudar a não se estressar. Vou distraí-la.
— Como?
— Você sabia que eu inventei uma dança?
Inclinei a cabeça para trás e olhei para o céu. Respirações
profundas. Eu poderia trabalhar com isso.
— Você inventou uma dança?
— Sim. Uma dança chamada Tesoura. Olhe. — Ele juntou os
cotovelos. Então ele moveu as mãos para cima e para baixo, como
se seus antebraços fossem lâminas de tesoura.
Eu o observei por um segundo, então voltei meus olhos para as
estrelas.
— Não tenho certeza se isso é uma dança.
— É totalmente uma dança.
— É uma dança que outras pessoas conhecem? — Perguntei.
— Ou só você?
Ele me deu uma olhada.
— É uma dança que outras pessoas conhecem. Está tudo no
YouTube.
Olhei para ele, depois para as estrelas, ainda respirando.
— Como você inventou uma dança?
— Eu costumava trabalhar como motivador de festas. Trabalhei
no circuito do bar mitzvah.
— Não consigo imaginar você nesse emprego — eu disse. —
Posso imaginar você como um sargento, talvez. Ou talvez, tipo, um
guarda de museu. Ou um daqueles caras do Palácio de Kensington
com um daqueles chapéus malucos.
— Um guarda Yeomen Warders3 — Duncan forneceu.
— Algo estóico. Algo solene. Eu absolutamente não posso, em
nenhuma vida, vê-lo como um instrutor de dança.
— Bem, essa é a sua perda — disse Duncan. — Porque eu sou
um dançarino lendário.
Isso realmente me fez rir alto.
— Vou levá-la para dançar uma noite e você verá.
— Ah — eu disse. — Não sou uma pessoa que gosta muito de
dançar em público.
— Você não dança?
— Em público — eu especifiquei. — Eu danço, mas só na minha
casa sem ninguém por perto.
— Isso parece muito triste.
Dei de ombros.
— Eu só tenho um medo mortal de humilhação.
— O truque da dança é que é uma humilhação voluntária. Você
tem que se apoiar nisso.
— Não, obrigada — eu disse.
Mas agora eu estava sorrindo. A ideia de Duncan como instrutor
de dança era muito engraçada para não ser.
— Você não acredita em mim — disse ele, balançando a
cabeça.
— Eu acredito que você já teve esse trabalho. Não acredito que
você fosse bom nisso.
— Eu era uma lenda. Na comunidade de bar mitzvah da área de
Chicago, eu era um deus. Um deus da dança. É isso que eu estou
dizendo. Já se passaram quase dez anos e as crianças ainda fazem
essa dança. Está em toda parte. Está surgindo na Califórnia, na
Flórida e em Nova York. As crianças estão fazendo isso em clubes.
— Por que você inventaria uma dança chamada ‘Tesouras’?
— Eu inventei centenas de danças. Era só para manter o ritmo
funcionando. Sério, qualquer coisa que surgisse na minha cabeça. A
Palmeira. O Liquidificador. A Gangorra. O Venha Aqui. O Não Olhe
Para Mim. O Ursinho De Goma. A Ponta Do Dedo Do Pé. O Mestre
Das Coxas.
Agora eu estava sorrindo.
— Essas não podem ser reais.
— Eu estou dizendo a você, elas são.
— Por que você simplesmente não dança regularmente?
— Eu não conhecia nenhuma dança popular. Eu caí naquele
trabalho por acidente.
— E agora você será para sempre conhecido como o inventor da
Tesoura.
De repente: uma voz veio pelo alto-falante.
— Ótimas notícias, pessoal. Os trilhos estão limpos e seu
passeio recomeçará assim que reiniciarmos o sistema. Por favor,
seja paciente por mais alguns minutos.
— Oh, merda — eu disse, o pânico voltando à minha voz. —
Não quero que o passeio recomece.
Comecei a sentir frio e calor ao mesmo tempo, e um som veloz
brotou em meus ouvidos, e então por um segundo pensei que o
brinquedo estava tremendo, mas então percebi que era só eu,
inspirando e expirando em rajadas staccato – muito, muito rápido.
Duncan estava olhando para mim.
— Você parece muito verde.
— Talvez eu esteja prestes a desmaiar.
Ele agarrou minhas mãos e as envolveu nas dele. Eles pareciam
grandes, quentes, fortes e secos – não pegajosos, úmidos e
patéticos como os meus.
— Ei — disse ele —, olhe para mim.
Eu me virei e olhei para ele, para aqueles olhos fixos nos meus
de uma forma intensa que eu nunca tinha visto em ninguém antes.
— Vou te ajudar a respirar.
— Eu sei como respirar — eu disse, ofegante.
— Não no momento.
Em seguida, ele colocou a mão no meu rosto para manter meu
olhar diretamente nele.
— Vamos respirar juntos e você vai começar a se sentir melhor.
Ele me fez olhar diretamente para ele – em seus olhos – e
inspirar por cinco vezes e depois voltar por quatro. Então de novo, e
de novo. Inspiramos e expiramos juntos, em sincronia, enquanto ele
contava em voz baixa. Observei sua boca se movendo. Eu ouvi sua
respiração sussurrando no ar. Eu deixei minhas mãos ficarem
enroladas dentro das dele.
O que havia no contato visual que era tão intenso? Ou era
apenas aquele rosto dele? Algo sobre o formato de seu nariz, talvez,
ou a linha de sua mandíbula, ou o volume de seu lábio inferior. Eu
não sabia. Talvez eu nunca descubra.
— Apenas mantenha seus olhos em mim — disse Duncan.
Sem problemas.
Eu gostava de estar tão perto dele. Eu gostava de ter toda a sua
atenção. Gostei da curva de seu pescoço e da maneira como aquele
longo tendão vertical pressionava e se curvava para baixo e ao
redor enquanto ele mantinha a cabeça voltada para mim, cara a
cara, focado de uma forma que as pessoas nunca, nunca são – a
menos que tenham uma razão para ser.
Eu estava um pouquinho feliz por ter um motivo para estar.
Tudo tinha seu lado positivo.
E foi aí que o Tubarão de Ferro voltou a acelerar e começamos a
nos mover.
Então nós nos inclinamos para cima, e depois para a frente, e
então fomos com o estômago revirado, o coração torcido,
encarando a morte por cima… e então, em câmera lenta impossível
e impotente, nós mergulhamos de cara de volta para a terra.

3. Os Yeomen Warders são uma unidade especial de guarda cerimonial da Torre de


Londres, na Inglaterra. Eles são popularmente conhecidos como "Beefeaters", e são
responsáveis por proteger e cuidar das joias da coroa britânica, além de atuarem como
guias turísticos para os visitantes da Torre. Seus uniformes distintivos e trajes cerimoniais
os tornam uma atração turística icônica em Londres.
vinte

De volta ao calçadão, tive que sentar e colocar a cabeça entre os


joelhos.
Duncan, claramente perdido, esfregou minhas costas como um
treinador de boxe, o que não foi tão reconfortante quanto eu acho
que ele pretendia. Ele ficava dizendo:
— Posso pegar alguma coisa para você? — e — Você está bem,
certo? Você precisa de um bolo de funil4?
Quando finalmente consegui me sentar, a primeira sugestão de
Duncan foi chocolate, mas eu estava enjoada demais para isso. Em
seguida, ele sugeriu que “dançássemos” no palco onde uma banda
country estava tocando, mas isso também era um não. Sua ideia
final foi uma espécie de abordagem de cabelo de cachorro,
sugerindo que nos aventurássemos no Tubarão de Ferro
novamente.
O que não me deixou escolha a não ser correr em direção à
saída, deixando-o para trás no banco.
Eu não o estava deixando para trás de propósito. Eu só tinha
que sair de lá.
Duncan me seguiu.
— Ei! — ele disse. — Ei, espere!
— Acho que só preciso andar — respondi, sem diminuir o passo.
Ele me alcançou bem rápido e saímos. A música e as luzes, as
pessoas e a correria cíclica dos brinquedos que passavam, que a
princípio pareciam tão deliciosos e objetivamente divertidos, de
repente agora pareciam enlouquecedores.
Na saída, sem nunca concordar, começamos a caminhar ao
longo do paredão, deixando o caos para trás.
O quebra-mar tem dezessete pés de altura – construído após a
Grande Tempestade de 1900 para proteger a cidade das
tempestades. Ao longo dela corre um boulevard que – e isso
sempre me pareceu uma escolha ousada – não tem grade de
proteção. Então, enquanto caminhávamos, à nossa direita os carros
passavam zunindo – pessoas em jipes com capota alta tocando
música alta, motoqueiros com motos Harley e o ocasional trenzinho
vermelho bonito –, mas à nossa esquerda havia uma queda de
dezessete pés até a praia.
Percebi Duncan se reposicionando entre mim e a beirada da
calçada, como se eu pudesse simplesmente desviar para fora da
beirada.
Cavalheiro da parte dele.
Quase em resposta, segurei seu braço enquanto
caminhávamos. E então o lastro de seu peso parecia tão firme e
reconfortante que não o soltei.
— Obrigada — eu disse enquanto me segurava.
Duncan assentiu.
— Meu braço é o seu braço.
— Não tenho certeza se isso funciona — eu disse —, nem
mesmo metaforicamente. — Mas me permiti segurá-lo por mais
alguns minutos antes de me obrigar a soltá-lo.
Ficou muito mais silencioso depois que saímos do píer, e não foi
até que chegamos a alguma distância, quando havia apenas lojas
de pipas, pizzarias e estúdios de tatuagem à direita, e o oceano
calmo, constante e eterno à esquerda, que comecei a me recuperar.
A lua também apareceu.
Duncan continuou me observando de perto.
— Você está arrependida de ter me contado?
— Claro. É embaraçoso.
Duncan assentiu.
— E se eu te contar algo embaraçoso sobre mim? Então
estaremos quites.
— Isso funciona.
Depois de uma pausa, ele disse:
— São tantos para escolher.
— Eu não sou exigente — eu disse.
— Ok, já sei — ele disse então. — Aqui está uma: eu planejo
meu funeral.
— Você o quê?
— Sim. Eu mantenho anotações em um documento no meu
computador.
Eu fiz uma careta.
— Isso é realmente um pouco perturbador.
Ele se virou para mim então, como se eu pudesse ter uma ideia
errada.
— Eu não sou suicida, entenda. Eu não quero morrer. Só estou
ciente de que poderia morrer. A qualquer momento. E, se eu fizer...
quero um funeral incrível.
Claro, agora que eu sabia que ele quase havia morrido, tudo
fazia sentido. Eu podia ver por que ele poderia ter começado a
pensar nisso, de qualquer maneira. Por que ele continuava
pensando nisso era outra questão.
— O que é um funeral incrível, exatamente? — Perguntei. —
Estamos falando algo como um desfile de bandas de jazz de New
Orleans? Ou, tipo, paraquedistas? Fogos de artifício?
— Todas essas são ótimas ideias. — Ele me deu um pequeno
sorriso de lado.
— O que, então?
— Apenas um funeral normal… mas legal. Não gosto de música
de órgão, por exemplo. Então fiz uma playlist. Você sabe, de
favoritos.
— Tipo?
— Ah, você sabe. Talvez um pouco de Talking Heads. Um pouco
de Curtis Mayfield. Um pouco de Johnny Cash. Uma pitadinha de
James Brown. E, claro: Queen.
— Claro — eu disse — Queen nem é preciso dizer. Em um
funeral.
Duncan me deu uma olhada.
— Eu acho que 'Another One Bites the Dust' é muito no nariz.
Duncan apontou para mim.
— Ótima linha de guitarra rítmica, no entanto.
— Seu funeral é uma cantoria? — Perguntei. — Espere, é
karaokê?
— Não, mas não é uma má ideia. Também tenho alguns poemas
reservados. Um que encontrei sobre a colheita de pêssegos e, você
sabe, o ciclo da vida, e outra sobre a morte da aranha em Teia de
Charlotte.
— Você realmente pensou sobre isso.
— Ninguém quer um funeral de merda.
Pensei no funeral de Max.
— Em última análise, eles não são todos meio ruins?
Ele balançou sua cabeça.
— Nós colocamos a barra muito baixa. Podemos fazer melhor.
Eu levantei minhas mãos em sinal de rendição.
— Justo.
Ele assentiu.
— E, então, você sabe... eu digitei algumas palavras.
— Você escreveu seu próprio obituário?
— Eulogia.
— O que ele diz?
— Ele enfatiza o quão bonito e heróico eu sou–
— Naturalmente — eu disse.
— E menciona meu Prêmio Nobel e meu Pulitzer.
— Justo.
— E então, no final, há uma festa dançante.
— Na Igreja?
Ele franziu a testa para mim como se eu não tivesse prestado
atenção.
— Nada disso está acontecendo em uma igreja. Este é um
funeral na praia.
— Oh — eu disse, sentindo uma pequena pontada no coração
quando este cenário teórico de repente mudou para parecer muito
real. Mais baixinho, eu disse: — Max teve um funeral na praia.
— Ele teve?
— Estava lotado. Você não pensaria que poderia encher uma
praia, mas ele conseguiu.
Duncan reconheceu minha mudança de perspectiva.
— Eu não estava aqui ainda. Para ele.
Deixei escapar um longo suspiro.
— Você teria amado muito Max. — Olhei e acrescentei: — Ele
também teria amado você.
De repente, não pude deixar de pensar em como essa conversa
foi triste. Não apenas lembrando de Max e do dia inacreditável em
que todos nos despedimos dele, mas da ideia de Duncan
planejando seu próprio funeral. Por mais engraçado que ele
estivesse falando sobre isso, dizia muito sobre o que a vida o levou
a esperar.
Ficamos um pouco calados. O vento do Golfo – aquela corrente
constante que nos banhava – estava me relaxando. Era quase como
uma micro-massagem. O estresse estava se esvaindo, mas em seu
lugar havia algo como tristeza. Mas não só tristeza.
Companheirismo também. Soltei seu braço e entrei no ritmo
reconfortante de apenas caminhar lado a lado com alguém.
Tínhamos sobrevivido ao Tubarão de Ferro. E tantas outras
coisas também.
Isso realmente deveria ter sido o suficiente.
Mas é claro que eu queria mais dele. Não pude deixar de notar
como nossas mãos se esbarravam acidentalmente enquanto
caminhávamos. Cada vez que isso acontecia, eu sentia um pequeno
choque. Teria sido tão fácil chegar um pouco mais perto e apenas
dar permissão ao meu para encontrar um caminho para o dele.
Mas e se ele dissesse não? Ou – pior – e se ele dissesse sim?
Eu estava em uma situação impossível. Um que eu não tinha
ideia de como sair. Principalmente porque eu queria tanto estar lá.
Depois de um tempo, Duncan disse:
— Obrigado por me contar sobre sua epilepsia.
Eu apontei para ele.
— Essa é uma informação necessária, a propósito. Não use isso
contra mim.
— Eu não vou — disse ele. — Eu não faria isso.
Ele parecia sério.
— Sim, bem — eu disse, caminhando —, eu vou acreditar em
você quando eu acreditar em você.
— Você passou por algumas coisas difíceis — disse ele.
— Claro. Quem nunca?
— É só que você meio que parece alguém que não tem nenhum
problema.
— Existe alguém no mundo que não tenha problemas?
— O que quero dizer é que você parece uma pessoa com quem
a vida tem sido gentil.
Eu fiz uma careta.
— Por que?
— Não sei. Você usa todas aquelas bolinhas loucas, listras e
pompons. Você usou suspensórios de arco-íris outro dia. — Ele
olhou para baixo. — Você está literalmente usando meias de
palhaço agora. Você está tão... estranhamente feliz.
— Você acha que estou feliz porque não conheço nada melhor?
— Não sei.
— Cara, não estou feliz porque é fácil para mim. Eu mordo,
arranho e rasgo meu caminho em direção à felicidade todos os dias.
Duncan semicerrou os olhos para mim, como se isso quase
fizesse sentido.
— É uma escolha — continuei, sentindo que precisava fazê-lo
ver. — Uma escolha para valorizar as coisas boas que importam.
Uma escolha para subir acima tudo que pode te derrubar. A escolha
de olhar a miséria bem nos olhos... e depois mostrar o dedo do
meio.
— Ou seja, é um tipo hostil de alegria.
Ele estava zombando de mim.
— Às vezes — eu disse desafiadoramente.
— Mas isso é real?
— É um tipo de alegria deliberada. É um tipo consciente de
alegria. É alegria de propósito.
Duncan apertou os olhos como se realmente não tivesse sido
vendido.
— Com meias de palhaço e um tutu.
— Estou dizendo a você. Eu sei tudo sobre a escuridão. É por
isso que estou tão empenhada, todos os dias, em procurar a luz.

4. O bolo de funil é um doce regional popular na América do Norte, encontrado


principalmente em carnavais e parques de diversões. É feito por massa frita.
vinte e um

Aquela noite mudou tudo.


Nada como uma experiência de quase morte, uma caminhada
no Seawall Boulevard e um pouco de compartilhamento inspirado na
adrenalina para promover a união entre escritórios.
Quando cheguei ao trabalho na segunda-feira, Duncan foi
amigável.
Amigável.
Cumprimentou-me com simpatia, como as pessoas simpáticas
se cumprimentam, e depois caminhou comigo até ao pátio. E foi aí
que as coisas ficaram realmente loucas.
O pátio…
Estava cheio de crianças…
Soprando bolhas.
Eu congelei. Eu fiz uma careta para Duncan.
— O que está acontecendo aqui?
Duncan apenas sorriu.
Estendi a mão e cutuquei seu ombro com o dedo, como se para
verificar que ele não era um holograma.
Confirmado: carne e sangue.
Eu tinha acordado naquela manhã com uma terrível ressaca de
compartilhamento excessivo, horrorizada com a quantidade de
conversa que tivemos, as coisas que eu confessei. Eu não saio por
aí conversando sobre minha epilepsia. Não era algo que eu
compartilhava com as pessoas, especialmente com pessoas que
eram... complicadas.
Eu me perguntei como seria vê-lo novamente.
Duncan era realmente impressionante em compartimentalizar.
Não importa o quanto nos divertíamos fazendo as atividades
obrigatórias de Babette fora da escola, ele permanecia totalmente
impassível e impessoalmente profissional na escola. Às vezes,
depois de nos divertirmos muito, ele ficava mais frio no dia seguinte,
como se quisesse nos levar de volta ao ponto morto.
Justo. Contanto que ele não pintasse mais nada de cinza, eu
não iria reclamar.
Ao me vestir naquela manhã, fiquei extremamente alegre, como
se para confirmar visualmente que ele não conseguia me derrubar:
um conjunto de suéter rosa e vermelho e uma saia jeans azul – e
meias vermelhas até os joelhos com pequenos pompons.
Eu passei a manhã inteira segurando meus ombros para trás e
fechando minhas escotilhas emocionais para me preparar para
qualquer expressão glacial, estóica e profissional que eu estava
prestes a encontrar no rosto de Duncan.
Ele não ia me decepcionar, caramba. Eu não me decepcionaria.
Mas agora aqui estava ele, sorrindo. E esperando que eu
sorrisse de volta.
De pé em um pátio cheio de bolhas.
Cada criança tinha uma garrafa colorida – vermelha, azul,
laranja – e uma pequena varinha. Algumas sopravam e outras
corriam, tentando controlar o vento. Os professores também
estavam lá.
E, claro, Chuck Norris estava correndo como um lunático,
tentando pegar as bolhas com a boca.
— O que está acontecendo aqui? — Perguntei.
Duncan deu de ombros, reprimindo um sorriso, e disse:
— Estamos soprando bolhas — quase como “ o que você não
entende sobre bolhas?”
— Ainda estou dormindo? — perguntei a Duncan.
Ele sorriu.
— Se você está, então eu também estou.
— Por que isso está acontecendo?
Duncan disse:
— Os professores perguntaram se poderíamos fazer uma festa
de bolhas durante a aula.
— E você disse sim?
— Eu disse sim.
— Você nunca diz sim.
— Desta vez, eu disse.
— Mas… por que?
Duncan desviou o olhar e examinou as crianças. Então ele deu
de ombros.
— Não sei. Você me convenceu.
— O que... no outro dia? — Perguntei. — Como exatamente?
Tudo o que fizemos foi quase morrer!
Ele encolheu os ombros.
— Eu acho que você me lembrou de algo. Alguma coisa
importante. E isso foi o suficiente.
— O que eu te lembrei?
Duncan levantou uma varinha de bolhas em direção aos lábios e
soprou um fluxo constante de bolhas em minha direção. Então,
quando a varinha estava vazia, ele a abaixou, mudou seu olhar para
os meus olhos e disse:
— Você me lembrou como é ser feliz.
E isso, bem ali, foi o ponto de inflexão.
O resto do semestre da primavera apenas flutuou em uma
nuvem de prazer.
Babette e eu sentimos que talvez tivéssemos feito isso. Talvez
nós o tivéssemos consertado. Ou, mais especificamente, talvez nós
e seis semanas de terapia duas vezes por semana o tivéssemos
consertado. Poderia ter sido tão fácil? Isso é divertido? Ele
realmente parecia muito melhor.
Ele não voltou a ser o Velho Duncan, exatamente. Ele ainda
usava seu terno, ainda penteava o cabelo, ainda ficava sério a maior
parte do tempo.
Mas havia algo caloroso nele agora. Ele se deixou ceder a
brincadeiras. Ele cedeu às meias malucas. Ele aceitou que Chuck
Norris nunca foi feito para ser um cão de guarda e começou a deixar
as crianças acariciá-lo.
Ele se deixou relaxar. Um pouco.
Não havia esperança de resistir a ele depois disso, e deixei que
ele tomasse meu coração como refém. Eu me acomodei em uma
vida confortável e desconfortável de saudade. Eu nunca tive
coragem de perguntar a ele se as coisas que ele disse sobre drogas
eram verdade, e ele, é claro, nunca tocou no assunto. Ele continuou
fazendo as tarefas diárias de Babette, e eu me juntava a ele se ele
precisava de um parceiro, e ele parecia gostar muito da minha
companhia... mas ele nunca mais tentou me beijar ou levar qualquer
coisa para outro nível.
Disse a mim mesmo que estava tudo bem. Tentei me concentrar
nas vantagens.
Babette estava se saindo melhor – e fazendo tentativas (quase
sempre sem sucesso) de aprender a cozinhar. Alice – seu noivo
ainda estava em missão até meados do verão – se juntou a nós
muitas noites. Jogamos jogos de tabuleiro na mesa da cozinha de
Babette, fofocamos sobre nossos colegas de trabalho e analisamos
o progresso de Duncan.
Foi bom estabelecer um pequeno padrão de espera, concluí.
Isso me deu algum tempo para praticar o autocuidado. Aquela
convulsão que vinha ameaçando nunca veio, e eu queria mantê-la
assim. Meditei, fiz caminhadas à beira d'água e dormi bastante.
Começou a parecer que talvez as coisas pudessem encontrar uma
maneira de ficar bem.
Até que um dia Tina Buckley apareceu na biblioteca. Minha
biblioteca.
— Preciso falar com você — disse ela. — É sobre Clay.
Eu parei.
— Ele está tendo problemas com a leitura.
Isso chamou minha atenção. Doce Clay, com seus grandes
óculos de coruja, era um dos meus leitores mais vorazes e
entusiasmados. Eu não conseguia imaginá-lo tendo problemas com
a leitura. Com Clay, na verdade, o desafio era encontrar livros
suficientes para mantê-lo ocupado.
— O que está acontecendo? — Perguntei.
— Ele está com um livro na mesa de cabeceira há uma semana
e quase não leu nada.
Isso definitivamente não soava como Clay.
— Qual é o livro? — Perguntei.
Tina olhou diretamente para mim e disse:
— O Som e a Fúria.
Eu tossi.
— Desculpa, o que?
Ela assentiu.
— Sim. Ele se saiu bem com Ratos e Homens, mas está
vacilando com este.
— Clay leu Ratos e Homens? — Perguntei.
Observação: estávamos falando de um aluno da terceira série.
— Sim — Tina diz — e ele acertou no teste de compreensão de
leitura. Mas agora é como se ele estivesse retrocedendo.
Eu tive que recuar.
— Por que — perguntei então — seu filho da terceira série está
lendo Steinbeck?
Tina me deu uma olhada.
— Você o viu. Você sabe o que ele gosta de ler. O pai dele e eu
achamos que ele precisa ser desafiado.
— Desafiado... por Steinbeck?
— O pai dele e eu queremos que ele leia os clássicos.
— Na terceira série?
— Ele pode lidar com isso.
— Talvez ele possa. Mas ele deveria?
Não foi chocante falar com um pai que estava forçando uma
leitura difícil para seu filho. Os pais desta escola faziam isso o
tempo todo. Não importa de que cultura ou grupo socioeconômico
eles vieram – e nós tínhamos uma grande variedade aqui – todos
eram, uniformemente, pessoas que valorizavam a educação. Eles
eram pessoas trabalhadoras, motivadas e orientadas para objetivos,
e descobri que a maioria dos pais tem algum nível de ansiedade
sobre o relacionamento de seus filhos com a leitura. É muito comum
os pais igualarem leitura com sucesso – e leitura difícil com mais
sucesso.
Passei muito tempo tentando convencer pais ansiosos demais
de que difícil nem sempre significava melhor. Portanto, uma
conversa como essa não era tão surpreendente.
O que foi surpreendente, porém, foi que esta era (A) a filha de
Max e Babette (que deveria saber melhor), falando sobre seu (B)
aluno da terceira série e seu interesse – ou falta dele – em (C) ler
Steinbeck.
Steinbeck.
— Também temos outro problema — disse Tina, baixando a voz
para um sussurro. — Ontem à noite, encontrei alguns materiais
perturbadores em sua mochila.
Eu fiz uma careta. Sobre o que estamos falando? Ele era um
pouco jovem para ter uma Playboy.
— Perturbador como? — Perguntei.
— Eu os encontrei, mas os escondi na despensa atrás das
caixas de cereal antes que seu pai pudesse ver.
— Escondeu o quê? — Eu perguntei.
Tina respirou fundo e soltou o ar. Ela se inclinou um pouco mais
perto. Então ela sussurrou:
— Garfield’s
Eu fiz uma careta. Garfield’s?
— Eu não entendo — eu disse.
Ela assentiu, como se estivéssemos na mesma página.
— Quatro edições. As grandes e volumosas.
Eu sabia sobre aqueles Garfield's. Ele tinha retirado ontem. Eu o
deixaria ir um livro além do limite, até.
— O que há de errado com Garfield?
Ela olhou para mim como se eu fosse louca.
— São desenhos animados.
— Mas não são desenhos animados. Não são Looney Tunes.
— Perto o suficiente. O pai dele e eu queremos que ele leia
livros de verdade.
Para mim, qualquer livro era um livro de verdade.
— Então... sem quadrinhos? Sem histórias em quadrinhos?
Nada de Archie?
Ela fez uma cara de nojo.
— Bom Deus, não. O pai dele não quer que ele leia coisas
infantis.
— Você sabe que Clay é uma criança?
Tina olhou para mim.
— Olhe, meu marido foi para Princeton, e seu pai também, e seu
avô também. Kent está muito preocupado em garantir que Clay
também vá para Princeton. E de todos os estudos que ele viu, a
leitura pode realmente dar uma vantagem competitiva a uma
criança. — Então ela acrescentou: — Leitura real, queremos dizer.
Garfield's não vão funcionar.
Ok. Entendi. Acrescentei mentalmente à minha lista de afazeres:
Encontrar para Clay um cubículo secreto onde ele possa guardar
suas edições de Garfield's.
Olhei para o relógio de parede.
Então Tina Buckley disse o seguinte:
— Você deve ter notado que Clay é… uma criança não atlética.
Esperei para ver para onde ela estava indo.
— Meu marido era um atleta da primeira divisão, então você
pode imaginar como ele está desapontado com isso.
Na verdade, não. Eu não poderia imaginar ninguém na terra se
decepcionando com Clay.
— Se Clay não pode ser um atleta — continuou Tina —, então
seus estudos terão que ser muito fortes.
— Eles já não são? — Perguntei.
— Kent não quer correr nenhum risco.
Eu queria interrompê-la ali mesmo e implorar-lhe que não
destruísse o amor de seu filho pelo aprendizado – mas senti que ela
estava prestes a fazer uma pergunta, então esperei.
— Então, eu estava me perguntando — Tina continuou, os
músculos em seu rosto tensos, como se ela estivesse
profundamente desconfortável — se eu poderia ser voluntária na
biblioteca. Para que eu possa estar perto dele. E dar uma olhada
nele. E ajudá-lo a fazer escolhas melhores.
A resposta fácil para isso não era apenas não, mas inferno, não.
A última coisa que uma criança com pais assim precisava era de
sua mãe pairando sobre ele aqui, julgando-o e envergonhando-o
sobre coisas totalmente normais de criança. Esta biblioteca deveria
ser um lugar seguro onde as crianças pudessem seguir seus
próprios compassos de leitura – sem que os adultos os
observassem, microgerenciassem e os julgassem.
Sério. Mostre-me uma criança que odeia ler e eu lhe mostrarei
uma criança que foi envergonhada por causa disso, de uma forma
ou de outra.
Eu estava aqui para proteger as crianças desse tipo de loucura.
Mas, eu simplesmente não consegui dizer não a ela naquele
momento. Ela deve ter desejado muito fazer a pergunta em primeiro
lugar. Eu era a última pessoa na terra a quem ela iria querer
recorrer.
Claro, ela era a última pessoa no mundo que eu gostaria de ter
na minha biblioteca.
Ela não me suportava, isso sempre ficou claro. E qualquer
esperança que eu tinha de que teríamos cerrado fileiras em torno de
Babette depois que Max morreu e encontrar maneiras de costurar o
buraco vazio que ele deixou em cada uma de nossas vidas se foi há
muito tempo. Mas também ficou claro que, por algum motivo, talvez
um que eu ainda nem entendia, Tina realmente queria que eu
dissesse sim.
Então eu disse sim. Claro.
Para Max e Babette – e Clay, se não para a própria Tina.
— Claro que pode — eu disse, oferecendo a ela um sorriso que
era mais como um tique nervoso. — Você pode se inscrever para
turnos no site.
Havia uma boa chance de que eu a deixasse entrar na biblioteca
e ela encontrasse uma maneira de incendiar o lugar.
Metaforicamente. Ou talvez até literalmente. Eu não colocaria isso
totalmente fora da capacidade dela.
Mas também havia uma chance de que nossa pequena e
ensolarada biblioteca fizesse por ela o que sempre fez por mim:
fazê-la se sentir melhor. Seja aquela pequena fonte de alegria que
ela tão claramente precisava. E isso pode ter algum tipo de efeito
borboleta nas pessoas ao seu redor. E pelo bem deles –
especialmente porque eu era um deles – eu simplesmente senti que
tinha que aceitar.
Mesmo assim, lembre-se: essa mulher me expulsou do funeral
de Max.
Ela olhou para baixo, como se de repente se lembrasse também.
— Obrigada — ela disse.
Eu não tinha ideia de como isso iria acontecer. Mas aqui está o
que eu sabia com certeza:
Afinal, eu não daria a Clay um armário secreto do Garfield’s na
escola.
Eu daria a ele um armário supersecreto do Garfield’s.

Então, no final de abril, na sexta-feira da festa de final de ano do


corpo docente, Duncan fechou o refeitório naquele dia e patrocinou
um piquenique no pátio para as crianças.
A Sra. Kline havia colado grandes cartazes nas portas do
refeitório que diziam FECHADO PARA DECORAÇÃO.
Parecia muita decoração.
Mas quando apareci na festa naquela noite, descobri o porquê.
Duncan trouxe de volta o mural de borboletas.
Antes que eu percebesse a sala enfeitada com lâmpadas e
lanternas, e as mesas redondas cobertas com panos festivos e
velas, a primeira coisa que vi – a única coisa que vi, por um tempo
ali – foram as borboletas. Elas eram ainda mais bonitas do que eu
me lembrava.
Olhei para eles por um tempo antes de procurar por Duncan.
Ele estava do outro lado da sala, conversando com a Sra. Kline,
mas assim que Eu o vi, ele parecia sentir meus olhos nele. Ele olhou
e me observou caminhar em sua direção.
— As borboletas estão de volta — eu disse, incapaz de disfarçar
a ternura em minha voz.
— Sim.
— A tinta realmente era removível — eu disse, balançando a
cabeça. — Você a removeu.
— Você não acreditou que a tinta iria sair?
— Eu acreditei que você acreditou.
Nós dois nos viramos para o mural.
Meus olhos arderam um pouco.
— Mas, para ser sincera, realmente não esperava vê-lo
novamente.
Duncan me deu um pequeno sorriso.
— Surpresa.
— Obrigada — eu disse, minha voz como um sussurro.
Duncan assentiu.
— Isso significa que você acha que o mundo é um lugar melhor
agora?
Duncan me deu um pequeno sorriso de lado.
— Eu acho que meu mundo é melhor quando você não está com
raiva de mim.
— É justo — eu disse. Embora eu não estivesse com raiva dele
há um bom tempo.
Havia luzes cintilantes penduradas no teto, música baixa no
sistema de alto-falantes e bebidas e comida por toda parte. A sra.
Kline trouxera um bolo de limão e o treinador Gordo trouxera cerveja
artesanal. Os professores estavam aparecendo e enchendo a sala –
prontos para encerrar um longo ano letivo.
Por um segundo, me peguei pensando em como não ia a uma
festa desde o aniversário de Max, e me perguntei se seria difícil
para Babette estar aqui. E foi aí que me lembrei que tinha uma
mensagem para Duncan.
— A propósito — eu disse —, Babette disse que você também
terminou suas tarefas para ela. Então você é um homem livre.
Agora. Majoritariamente. Contanto que você não... tenha uma
recaída.
Duncan ficou muito quieto, e eu não poderia dizer se ele estava
desapontado ou apenas estóico.
— As tarefas acabaram?
Dei de ombros, dizendo sim.
— Na verdade, ela me instruiu a dizer que está muito satisfeita
com o seu trabalho.
— Huh — ele disse, balançando a cabeça, como se estivesse
demorando um minuto para assimilar.
— Ela só tem mais uma tarefa para você. Um gran finale.
— Eu sabia que haveria uma pegadinha.
— Babette não é nada além de surpreendente.
— O que é?
E então dei de ombros, porque eu realmente não sabia. Eu
alcancei minha bolsa e tirei um envelope que ela me deu para dar a
Duncan. Um envelope lacrado. Ela até colocou um adesivo dourado
atrás, como no Oscar.
Eu entreguei.
— O que ele vai dizer? — Duncan perguntou, balançando a
cabeça.
— Vamos descobrir.
Duncan abriu o envelope e olhou para o cartão por um minuto.
Então ele piscou e olhou para cima.
— Ela quer que você dance comigo.
Senti um aperto familiar no peito.
— Quando? Agora?
— Agora mesmo — disse Duncan. — Bem aqui.
— Eu não posso fazer isso — eu disse.
— Nem eu posso.
— Então nem pense em… — eu comecei, mas então parei. —
Espere. Você não pode fazer isso?
Ele balançou sua cabeça.
Isso não estava certo. Em Andrews, ele dançava o tempo todo.
Ele dançava na fila do almoço, na carona e enquanto ensinava.
Você quase não conseguia pará-lo.
— Mas você é um instrutor de dança — eu disse. Ele tinha
danças no YouTube.
Duncan balançou a cabeça.
— Não mais.
Toda uma montagem de Duncan fazendo intermináveis danças
patetas passou pela minha cabeça. Eu me recusando a dançar?
Isso foi bom. Isso era razoável. Mas Duncan se recusando a
dançar? Era um ultraje.
— Duncan — eu disse —, você não pode não dançar.
— Claro que eu posso.
— Não. — Eu balancei minha cabeça. — Você tem que fazer
isso. — E enquanto eu falava as palavras, algo mudou em mim.
Fiquei mais interessada em fazer Duncan dançar do que em evitar
dançar.
Um mundo onde Duncan Carpenter se recusava a dançar
simplesmente não fazia sentido para mim.
Babette queria que Duncan dançasse? Eu encontraria uma
maneira de fazer isso acontecer.
— Nós estamos fazendo isso — eu disse. Eu estendi minha
mão.
Mas Duncan balançou a cabeça.
— Eu não posso — disse ele.
— Você pode — eu disse. Então acrescentei: — Ordens de
Babette.
Eu ainda estava estendendo minha mão, mas ele não estava
pegando.
Ele balançou sua cabeça.
— Eu realmente não posso.
Todos os professores estavam olhando para mim agora – para
nós.
Deixei minha mão cair ao meu lado. Isso estava ficando
embaraçoso.
— Qual é o problema? — Eu perguntei, dando um passo um
pouco mais perto.
— Faz muito tempo que não danço — disse Duncan.
— Eu nunca dancei — eu disse —, exceto na minha sala de
estar. Mas isso não está me impedindo. — Na verdade, isso pode
me impedir. Eu não tinha certeza do que faria se ele não assumisse
o comando.
Duncan balançou a cabeça, como se não fizesse isso.
Devo fazer isso?
Peguei o cartão de sua mão e o li. “Tarefa final”, dizia. “Dance
com Sam. Agora mesmo. A Sra. Kline tem uma música na fila para
você”.
Eu olhei em volta. A Sra. Kline estava nos observando, de
prontidão. Todos também nos observavam, tentando descobrir o que
estava acontecendo. Duncan estava me observando, imaginando o
que eu faria a seguir.
O que eu faria a seguir?
Eu hesitei.
E então me lembrei de algo que Max costumava dizer. Faça algo
alegre.
E então eu simplesmente sabia. Estávamos fazendo isso. Ele
não queria, e eu com certeza não queria, mas nós estávamos
fazendo isso de qualquer maneira.
Olhei para a Sra. Kline e dei-lhe um pequeno aceno de cabeça.
Então eu disse:
— Bem, se realmente faz muito tempo, aposto que você sente
falta.
Duncan piscou.
— Eu não posso fazer você dançar comigo — eu disse. — Mas
eu estou meio que esperando que eu possa tentá-lo.
Duncan balançou a cabeça.
— Aposto que você não consegue resistir a qualquer coisa que
Babette tenha colocado na fila.
Duncan balançou a cabeça.
— Posso resistir a qualquer coisa. Eu resisto às coisas todos os
dias. Sou um campeão mundial de resistência.
Eu levantei minhas sobrancelhas, como se dissesse Touché.
— Portanto, esta é uma proposta de risco muito baixo para você.
Eu podia sentir seu espírito competitivo crescendo.
— Não é um risco baixo,é um não risco.
— Você ainda não sabe qual é a música. Talvez seja irresistível.
— Eu também não sabia, mas ele não sabia disso.
— Não se preocupe comigo.
— Eu não vou.
— Preocupe-se consigo mesmo.
Na verdade, eu deveria estar me preocupando comigo mesma.
Porque acabei de escolher um caminho do qual não teria escolha a
não ser sair dançando.
Não era bom. De forma alguma.
Mas isso estava acontecendo.
— Ei! — Gritei então para o recinto, antes que Duncan pudesse
me impedir. Os poucos professores na sala que ainda não estavam
nos observando olharam. — O diretor Carpenter acha que pode
resistir a uma música irresistível! — Apontei para ele
exageradamente. — E então eu o desafio a não dançar!
A sala me animou.
Olhei para Duncan. Ele estava odiando isso? Ou meio que
gostando?
Um pouco dos dois, talvez.
Mais ou menos como eu.
Seu rosto era severo, mas seus olhos tinham um olhar de
desafio aceito.
— Prepare-se para a decepção — disse ele.
— Prepare-se para dançar — eu disse de volta.
— Sra. Kline — eu disse — você poderia, por favor, fazer as
honras?
A Sra. Kline deu um aceno de cabeça eficiente e apertou o play.
A princípio só percussão, uma espécie de som furtivo,
sincopado, quase tropical. O tipo de ritmo que apenas toma conta
de seus quadris e começa a balançá-los para você.
Duncan inclinou a cabeça.
— Isso é George Michael?
Eu apontei para ele.
— Bom ouvido.
Então vieram acordes de piano profundos e grossos por baixo.
Grande. Alto. Enchendo a sala. O sistema de som definitivamente
funcionou.
Duncan olhou em volta procurando por Babette e a encontrou
observando por cima das borboletas.
— Você poderia escolher qualquer música do mundo e escolheu
'Freedom! '90'?
— Alice escolheu, na verdade — ela disse, apontando para
Alice, que acenou. — Ela leu um artigo que dizia que é a melhor
música dance do mundo. Matematicamente.
Duncan bufou.
— De acordo com Alice, é neurologicamente irresistível.
Duncan olhou para mim, como se dissesse sua atrevida. Então
ele abriu os pés na largura dos ombros e fechou os olhos.
Ele pensou que poderia resistir à música fechando os olhos?
Oh, eu tinha essa coisa no bolso.
Os professores estavam todos olhando para ver o que ia
acontecer.
Era hora de fazer isso funcionar.
A melhor coisa que eu poderia fazer para conseguir que Duncan
dançasse era eu mesma. A dança era contagiante. Mas aquele
embaraço familiar com o pensamento – aquela compulsão do cervo
nos faróis de ficar muito quieto – me deixou paralisada.
Eu precisava dar uma conversinha comigo mesma, decidi. Uma
boa.
Não que eu não soubesse dançar, lembrei a mim mesma. Eu
adorava dançar. Eu simplesmente não gostava que as pessoas me
observassem.
Mas essa é a coisa sobre a alegria. Você não precisa esperar
que isso aconteça. Você pode fazer isso acontecer.
E fazer isso por Duncan? Fazer com que ele se divirta? Lembrá-
lo dessa parte essencial e esquecida de si mesmo? Valeria a pena.
Enquanto Duncan estava lá, rígido como uma tábua com as
mãos e os olhos bem fechados, forcei-me a ceder ao puxão da
música. Eu tive que me enganar nisso. Barganhei comigo mesmo: é
só fazer os braços. Não é realmente dançar até que o bumbum se
envolva.
Então eu levantei meus braços e comecei a movê-los no ritmo.
Eu parecia ridícula?
Com certeza.
Mas quando Duncan apertou os olhos com mais força, o desejo
de vencer lutou contra o desejo de se esconder – e começou a levar
vantagem.
Uma vez que os braços estavam indo, os pés queriam seguir.
Tudo o que eu tinha que fazer era deixá-los.
Bem, isso – e me forçar a ignorar a parte do meu cérebro que
realmente, desesperadamente não queria parecer ridícula. Na
verdade, eu tive que me inclinar para parecer ridícula. Duncan disse
isso, ele mesmo: isso é parte da alegria.
Então fechei os olhos também – e tentei fingir que estava em
casa na minha sala de estar.
O que ajudou muito.
Depois que comecei, fiz a parte mais difícil.
Agora tudo que eu tinha que fazer era continuar.
A música ajudou. Era irresistível.
Isso estava funcionando. Eu estava conseguindo. O sucesso
deu lugar a mais sucesso. Sacudi um pouco a bunda. Então eu me
virei. Então eu estiquei meus braços. Bravamente.
Desafiadoramente. Mesmo que Duncan não pudesse me ver, eu
sabia que ele podia me sentir.
Então eu apenas fiz isso. Qualquer coisa que surgisse na minha
cabeça, eu me obrigava a fazer.
Quanto mais fácil ficava, mais fácil ficava – e antes que eu
percebesse, abri meus olhos.
No começo foi um acidente. Eu só tinha esquecido de mantê-los
fechados. Mas quando vi todos os rostos na sala, percebi que não
precisava mantê-los fechados. A multidão não estava se encolhendo
ou olhando horrorizada – que era a vibração usual quando uma
multidão estava olhando para mim. Eles estavam sorrindo. Eles
estavam torcendo por mim. Eles também estavam sacudindo suas
próprias botas.
Quando a letra começou, eu cantei junto – embora não
soubesse todas as palavras.
Comecei a fazer uma espécie de Charleston, avançando,
recuando e avançando novamente – perto o suficiente de Duncan
para que ele pudesse sentir minha presença.
A certa altura, cheguei tão perto que Duncan não resistiu em
abrir os olhos para olhar.
No segundo que ele fez, eu torci meu dedo para ele, algo como
venha para a pista de dança.
— O que você está fazendo? — ele perguntou.
— Estou dançando.
— Você disse que nunca dança!
— É um momento de crescimento pessoal.
Ele apertou os olhos e balançou a cabeça, mas continuou me
observando.
Uma vez que ele estava assistindo, eu ficava mais boba. Eu
coloquei um grande sorriso teatral no meu rosto, tipo Viu, amigo?
Isso não parece divertido? Eu adicionei algumas mãos de jazz.
Então mudei para o robô. Então eu fiz alguns movimentos do “Rei
Tut”. Antes que eu percebesse, eu estava batendo meus cotovelos
como asas de frango.
Foi quando Duncan quebrou um pouco.
— Oh, Deus. Diga-me que não é a Dança da Galinha Louca.
— Bem — eu disse, balançando minhas asas para ele. — É uma
galinha. E é claramente louca. Então acho que todos nós sabemos o
que está acontecendo aqui.
— Pare de bater palmas.
— Me obrigue.
Ele franziu a testa e voltou a se comprometer a ficar parado.
— Resistir é inútil — eu disse. — Eles fizeram todo um estudo
sobre isso. A ciência não mente. Apenas se renda.
Mudei para uma espécie de salsa, onde também estava girando
um laço imaginário acima da minha cabeça.
— Por que ser miserável? — Eu persuadi. — Você tem a noite
toda para ser miserável. Dê a si mesmo cinco minutos para se sentir
bem.
— Essa música tem, na verdade, seis minutos e trinta e quatro
segundos.
Eu fiz uma careta para ele, mas continuei dançando.
— Isso é muito específico.
— Eu costumava ser um DJ. Então... Eu sei algumas coisas.
Fiz uma espécie de macaco saltitante.
— Então isso é muito torturante para você, porque, como você
afirmou, você realmente sabe dançar.
Duncan confirmou:
— Na verdade, eu realmente sei dançar.
— O que realmente levanta a questão de por que um cara que
realmente sabe dançar escolheria não fazê-lo.
Duncan abriu as narinas.
— E não dá vontade de dançar quando eu faço isso? — Fingi
me espancar.
— Hum. Este é um evento livre para adultos.
— Ou esse Moonwalk ruim para trás? — Eu deslizei meus pés
para trás no pior Moonwalk já realizado.
— Na verdade, o Moonwalk anda para trás. Então,
tecnicamente, isso é um Moonwalk ruim para frente que você está
fazendo.
Eu me virei para a multidão, apontando para Duncan
repetidamente no ritmo.
— Ele costumava ser um instrutor de dança! — Mudei para uma
versão terrível do Running Man. — Então, me ver fazer isso
provavelmente é quase fisicamente doloroso para ele.
Duncan queria ceder.
Eu podia sentir isso.
Antes da música começar, ele nem queria ouvi-la, mas aquela
batida irresistível mudou seu humor. A parte mais difícil já foi feita.
Agora a única coisa que o segurava era a ideia de perder a aposta.
Ou, mais especificamente: a ideia de eu ganhar.
Então eu continuei. Eu podia sentir a expressão em meu rosto:
uma parte de triunfo, uma parte de regozijo e uma parte de minha
própria alegria genuína. Eu me agachei em uma pequena posição
de West Side Story e dancei em direção a Duncan, agarrando. Era
tão pateta que ele não conseguia não sorrir.
Ele encolheu o queixo para tentar escondê-lo.
— Desista, Duncan — eu disse. — Você já perdeu. Pode muito
bem aproveitar.
Duncan balançou a cabeça.
— Essa música é uma traição. Eles roubaram aquela batida de
James Brown. E eles definitivamente pegaram o refrão de Aretha
Franklin.
— Então você não está lutando apenas contra um titã musical,
você está lutando contra três! — Eu me virei. — Você está
condenado.
Duncan abriu as narinas e soltou um suspiro como se estivesse
soprando fumaça.
— Isto é tão errado.
— Como pode ser errado — eu disse — quando parece tão
certo? — E com isso, girei e me lancei no Hustle. Passo, passo,
passo, palmas, para fora e depois para trás. Então eu fiz um
Batedor de Ovos Em seguida, alguns John Travolta.
— Por favor, me diga que você não está fazendo o Hustle —
disse Duncan.
— Eu certamente estou.
— Você está fazendo isso errado.
Gira, gira, gira, bate palmas.
— Se é tão errado, então venha aqui e faça direito.
Ele balançou sua cabeça.
— Você percebe que está balançando a cabeça com a batida. —
Apontei para a cabeça dele e me virei para o grupo, balançando a
cabeça. — Isso é dança, pessoal? — Eu exigi.
A sala comemorou.
Duncan congelou.
Eu dancei até chegar na cara dele.
— Algumas pessoas diriam que você já perdeu.
— Não. — Ele apertou os olhos fechados novamente.
— Ei — eu disse, tentando fazê-lo espiar. — Estou fazendo a
Tesoura.
Ele espiou.
Movi meus braços para cima e para baixo – totalmente errado.
— Isso está totalmente errado — disse Duncan.
— Então você diz — eu disse, mudando para outra dança. —
Mas quem pode dizer? O que mais você inventou? O liquidificador?
Vou adivinhar que se parece com isso. — Eu me virei.
— Errada!
— O que mais? — Eu disse, ainda dançando. — O Vem Com
Tudo! — e eu dancei em direção a ele, gesticulando com meus
braços para um abraço. — Inventar danças é divertido!
Duncan balançou a cabeça.
— Não invente danças.
Mas eu apenas disse:
— Aqui está uma: a Matrix — Eu me inclinei como se fosse hora
da bala.
— Você é Keanu Reeves agora?
— Ou que tal os Termos de Ternura? — Eu balancei minhas
mãos em um movimento de vaia na frente do meu rosto.
— Nada disso funciona.
— Que tal agora? — Apontei para ele e comecei a bater os
braços. — A Gaivota Jonathan Livingston.
— Você é a pior, de verdade. — Duncan apertou os olhos
fechados. De novo. Mas eu podia ver aquele sorriso tentando
explodir.
— Ele está batendo o dedo do pé! — Alice gritou de alegria.
— Ele está balançando a cabeça! — Carlos gritou.
E então Babette fez um anúncio triunfante:
— Ele está sacudindo o bumbum!
O bumbum oficializou: a vitória. Coloquei minhas mãos nos
quadris em estado de choque simulado e disse:
— Diretor Carpenter, você está sacudindo seu bumbum?
E então, finalmente, quatro minutos depois de uma música de
mais de seis minutos, ele suspirou, balançou a cabeça como se eu
fosse uma praga para a humanidade e então ergueu os braços para
me acenar para mais perto.
Eu levantei meus braços em vitória quando me aproximei, e eu
estava prestes a dizer “Eu disse a você”, quando Duncan agarrou
minha mão e me puxou para uma dança de dupla, uma espécie de
híbrido Swing-Hustle. Antes que eu percebesse, ele estava me
empurrando para fora e me puxando de volta como um ioiô.
— Isso — disse Duncan — é como você faz o Hustle.
Eu não vou mentir.
Foi um movimento muito sexy.
A sala inteira aplaudiu e eu olhei em volta para perceber que
todos estavam dançando agora – com níveis de habilidade
extremamente variados. Mas ninguém se importava. Até a Sra. Kline
estava batendo palmas junto. Era como uma produção da faculdade
de Soul Train naquela sala.
E agora Duncan estava me ensinando, fechando os braços com
a mão na parte inferior das minhas costas.
— Apenas para frente, depois para trás e depois balance para
trás. — Observei seus pés e os espelhei, e repetimos por alguns
compassos antes que ele me girasse novamente. A próxima coisa
que eu sei é que ele estava me guiando, e assim que percebeu que
todos estavam nos observando, assim como George Michael estava
morrendo, ele se virou para a Sra. Kline e disse: — Sra. Kline, sua
linda traidora... você estaria disposta a colocar 'The Hustle'?
A Sra. Kline assentiu e, enquanto ela se afastava, Alice gritou
atrás dela:
— Está na mesma lista de reprodução!
Duncan e eu nos viramos para Alice.
— Você tem 'The Hustle' em uma lista de reprodução?
Ela assentiu com a cabeça, tipo Claro.
— As 100 canções mais matematicamente balançadoras de
bumbum de todos os tempos.
Nós dois piscamos para ela por um segundo, e então ela deu de
ombros.
— Eu disse a você — disse ela. — Tudo é matemática.
E assim, Duncan nos ensinou o Hustle. Sua versão foi
definitivamente melhor. Fazíamos isso principalmente como uma
dança de linha, mas de vez em quando ele me puxava para seus
braços e me mergulhava, o que fazia todo mundo, até eu, vibrar.
E então, mais tarde, quando Duncan viu Babette nos
observando de lado e ele se aproximou para pegá-la pela mão e
puxá-la para o grupo, ela deixou. E quando Duncan a puxou em
seus braços e a girou de volta, eu me vi caindo imóvel na pista de
dança, apenas observando-os. Era a primeira dança de Babette
com alguém desde a noite em que Max morrera e, por um segundo,
não tive certeza de como seria.
Mas eu subestimei Duncan.
O rosto de Babette se abriu em um sorriso.
Mais tarde, ela poderia ir para casa e sentir falta de Max ainda
mais, lembrando-se de tudo o que havia perdido. Mas eu suspeitava
que Babette sabia que não devia deixar que um pouco de dor a
impedisse. Ela sabia que a alegria e a tristeza caminhavam lado a
lado. Ela sabia que estar vivo significava arriscar um pelo outro. E
ela também sabia, como eu estava começando a entender de uma
maneira totalmente nova, que era sempre melhor dançar do que
recusar.
vinte e dois

Aquela noite dançando no refeitório foi sem dúvida a melhor, mais


deliciosa e mais alegre noite de todo o meu ano letivo. E foi seguido,
poucos dias depois, por uma tarde naquele mesmo espaço que
rapidamente se tornou a pior.
Porque, na última reunião do corpo docente do ano, Kent
Buckley fez um anúncio para nós.
Ele chegou à reunião vinte minutos atrasado. Falando naquele
idiota do Bluetooth.
Duncan apareceu tarde também, logo atrás dele.
— Ok, pessoal! Ouçam! — Kent Buckley disse enquanto
entrava, alienando todos na sala.
Nós o observamos enquanto ele subia ao palco e ligava o
microfone no pódio.
— Ótimas notícias de fim de ano — disse ele, enquanto o
microfone dava um grito de reverberação.
Kent Buckley tentou novamente, com mais cuidado.
— Duncan Carpenter… onde você está, amigo?
Duncan hesitou, mas quando começou a parecer que Kent
Buckley poderia literalmente esperar o dia todo por ele, ele foi em
frente e subiu no palco.
Por fim, Kent Buckley continuou.
— Meu bom amigo Diretor Carpenter e eu trabalhamos duro em
um projeto supersecreto durante todo o ano que tenho o prazer de
revelar a vocês hoje. Temos todas as peças no lugar para começar
a avançar no início do verão. Foi um ano difícil para a escola, mas,
como vocês sabem, nunca vejo dificuldades. Só vejo oportunidades.
A essa altura, estávamos todos olhando uns para os outros, tipo
o quê?
Duncan estava trabalhando em um projeto supersecreto com
Kent Buckley?
Kent Buckley apertou o botão na tela do projetor, e ela deslizou
atrás dele.
— Apresento a vocês... Escola Kempner 2.0!
Apareceu a imagem de um edifício elegante, preto, de vidro e
cromo.
Todo mundo olhou para ele.
Todos, exceto Duncan, que olhava apenas para o chão.
Quando Kent Buckley não obteve a resposta que desejava, ele
entrou no modo vendedor.
— Conheçam sua nova escola! Foi-se o triste prédio antigo com
a pintura descascada e as janelas enferrujadas. Se vão os degraus
flácidos e persianas caídas e faltando telhas e paredes rachadas.
Estamos atualizando! Bem-vindos à mais nova, sofisticada e
moderna instalação educacional da América. Vamos fazer história
com esse prédio, pessoal. Vigilância remota por vídeo, travamento
automático de portas e botões de pânico, portas e janelas à prova
de balas. Tudo de alta tecnologia.
Nesse ponto, as pessoas começaram a olhar em volta. De que
diabos Kent Buckley estava falando?
— Isso é… o que? — Alice perguntou.
— O novo prédio da escola — disse Kent Buckley, como tente
acompanhar!
— De quem é o novo prédio da escola? — Carlos perguntou.
— Kempner — disse Kent Buckley, já impaciente.
Isso não podia ser real, mas também não podia ser uma piada.
Kent Buckley não sabia brincar.
Além disso, uma olhada no rosto ferido de Duncan deixou claro:
isso era real.
— Estamos reformando a escola? — perguntou a Sra. Kline.
— Não — disse Kent Buckley. — Estamos construindo uma
nova.
Murmúrios por toda parte – e não felizes – enquanto as pessoas
tentavam descobrir o que diabos estava acontecendo. Kent Buckley,
que nunca foi o cara mais perspicaz, continuou falando como se
estivéssemos nos preparando para fazer uma parada para ele.
— Genial, não é? Tenho que dar muito crédito a esse cara… —
ele apontou para Duncan com os polegares — porque quando eu o
questionei no outono passado sobre melhorar nosso programa de
segurança, ele fez uma avaliação bastante completa e finalmente
voltou e disse: 'Seria melhor construir uma escola totalmente nova.'
Então eu disse: ‘Segure minha cerveja', e a próxima coisa que
sabíamos era que tínhamos um comprador em potencial para este
velho lugar quebrado e um terreno muito promissor em um parque
de escritórios em West Beach.
Quando Kent Buckley parou de falar, tudo ficou quieto.
— Você quer vender este lugar — disse Carlos então — e
construir... a Estrela da Morte?
Kent Buckley riu e disse:
— Sabe, é engraçado, é exatamente assim que a chamamos.
— Não tem nenhuma janela — Emily gritou. — Apenas
pequenas fendas.
— Não tem nenhuma planta — disse Anton.
— Fica em um parque industrial — disse Carlos.
— Muito observador — disse Kent Buckley, fazendo sinal de
positivo. — Isso é tudo para visibilidade.
— Não há espaço ao ar livre — disse o treinador Gordo.
— Verdade — disse Kent Buckley. — Não é um problema se
você tem um filho covarde como eu. Mas estou trabalhando para
arranjar instalações esportivas fora do local para as quais possamos
transportar os atletas depois da escola.
Minha cabeça estava nadando. O que estava acontecendo?
— Você já tem planos traçados? — Lena perguntou.
— Ainda não — disse Kent Buckley. — Essa imagem é do site
da empresa que vamos contratar. Eles costumavam ser empreiteiros
de defesa, mas agora constroem escolas. E ótimas notícias: sou um
investidor, então posso contratá-los por um preço baixo.
— Isso... foi aprovado pelo conselho? — Carlos perguntou.
Mas Kent Buckley balançou a cabeça.
— A diretoria está empolgada. Tenho toda a aprovação do
conselho de que preciso. Nós teremos sinal verde.
Foi quando me levantei.
Apenas... fiquei de pé.
Kent Buckley virou-se em minha direção.
— Bibliotecária — disse ele, apontando para mim. — Pergunte.
Mas minha pergunta não era para Kent Buckley. Eu me virei e
procurei por Babette.
Ela estava no fundo da sala.
— Babette — eu disse. — Você pode me fazer um favor e calar
a boca desse cara?
Houve suspiros ao redor da sala.
Babette encontrou meus olhos, mas ela não se mexeu.
Dei alguns passos mais perto.
— Quero dizer, você não acha que todos nós já tivemos que
aturar besteiras demais este ano? — Olhei ao redor da sala. —
Existe alguém nesta sala que quer ouvir esse cara desperdiçar mais
do nosso tempo? Quero dizer, não há como fazermos isso. Não
estamos vendendo nosso lindo prédio histórico para que possamos
nos mudar para uma câmara de privação sensorial — Eu olhei em
volta. — Nada disso está acontecendo. Por que deixá-lo continuar
falando?
A Sra. Kline estava olhando para mim como se eu tivesse
enlouquecido – e estivesse prestes a perder meu emprego também.
Parei ao lado de Babette.
— É hora de acabar com isso, você não acha?
Mas Babette olhou para mim através dos óculos e então – por
pouco – balançou a cabeça.
Mas eu não entendi. Inclinei-me para mais perto.
— O que você está esperando? — Eu sussurrei. — Demita ele.
Mas Babette apenas balançou a cabeça de novo, de forma
imperceptível, e então, pela expressão dela, eu soube.
Peguei a mão dela, agachei-me ao lado dela e disse baixinho:
— Você não pode realmente demiti-lo, pode?
Seus olhos tinham lágrimas neles agora. Apenas brevemente,
ela balançou a cabeça.
— Mas você me disse que poderia porque...?
— Porque eu sabia que Duncan só acreditaria se você
acreditasse. E você é um péssima mentirosa.
Eu balancei a cabeça. Eu a beijei na bochecha. Dei-lhe um
pequeno abraço. E então eu me virei e marchei para fora da sala.

Eu nem sabia para onde estava indo. Atravessei o pátio e empurrei


os portões da escola. Eu nem tinha minha bolsa comigo. Eu estava
com tanta raiva, era como combustível de foguete. Eu precisava me
mover ou isso me queimaria.
Eu nem tinha terminado de ouvir o plano de Kent Buckley. Eu
nem sabia se havia uma maneira de lutar contra isso. Eu não sabia
se isso era um acordo fechado ou uma conclusão precipitada ou o
quê.
Mas esse não era o ponto.
O ponto era Duncan.
A questão é que ele estivera em algum tipo de conluio com Kent
Buckley o tempo todo. Ele estava saindo comigo – agindo como um
amigo – quando o tempo todo ele estava trabalhando com o inimigo.
Ele estava ajudando Kent Buckley a vender a escola? De todos os
cenários de pior caso que imaginei, este nem estava na corrida.
Pensei que o havíamos curado. Achei que tínhamos resolvido. Achei
que a ameaça tinha acabado.
Aparentemente não.
Eu estava a dois quarteirões do quebra-mar quando ouvi passos
correndo atrás de mim.
— Sam! Espere! — Era Duncan.
Eu não esperei.
O sol havia se posto. Estava escuro. Eu continuei me movendo.
— Sam!
Eu sabia que as pernas de Duncan eram mais longas que as
minhas, e eu sabia que ele eventualmente me alcançaria, mas eu
com certeza não iria facilitar para ele.
Eu nem sabia para onde estava indo. Eu estava apenas... indo.
Quando Duncan finalmente me alcançou, não diminuí a
velocidade e não olhava para ele, e eu não enxugava as lágrimas do
meu rosto. O que eu fazia era gritar:
— Você está brincando comigo agora? Você esteve em conluio
com Kent Buckley esse tempo todo? Você tem comido a comida de
Babette, andado comigo e se relacionando com os professores,
deixando todos nós gostar de você, torcer por você e ajudá-lo, e
você tem sido uma espécie de espião inimigo o tempo todo… para
Kent Buckley? De todos os idiotas da história dos idiotas, aquele
cara? Sério?
Essas nem eram perguntas que precisavam de respostas. Eu
estava apenas conversando. Só fazendo barulho. Apenas anexando
palavras ao grito primal.
Mas Duncan tentou responder.
— Não! Não. Eu nem sabia disso até hoje.
Continuei avançando, sem olhar para ele.
— Ok, tecnicamente, eu sabia no outono passado. Eu sabia
quando comecei que Kent Buckley queria transformar o lugar em
uma fortaleza. E na época eu era totalmente a favor, honestamente.
Quando cheguei aqui, concordei totalmente com ele sobre a Estrela
da Morte. Eu não podia acreditar que vocês estavam ensinando
crianças naquele velho prédio em ruínas com nada além de
Raymond como segurança. Isso me ofendeu, honestamente. Fiquei
com raiva por você ser tão deliberadamente ignorante sobre o
mundo em que estamos vivendo agora.
Quando batemos no quebra-mar, nem diminuí o passo, apenas
me virei e continuei, cruzando os braços contra a brisa do mar. Mas
meu ritmo estava diminuindo um pouco. No começo, eu só queria
gritar, mas agora não pude deixar de ouvir também.
— Então, sim — Duncan continuou —, eu o ajudei. Isso é o que
ele me disse que o trabalho era… isso é o que ele disse que a
escola queria, uma reformulação total da segurança. Foi por isso
que entrei com aquela pistola de água no outono passado. Kent
Buckley me disse que esse grupo era super pró-armas.
— Uma olhada em nós deveria ter esclarecido isso.
— Sim. Mas aqui é o Texas.
— Literalmente ninguém queria armas em lugar nenhum, exceto
Kent Buckley.
— Mas eu não sabia disso. E foi só quando passei mais tempo
com ele que comecei a perceber que ele estava... meio... desligado.
— Duh — eu disse, ainda atacando.
— Isso… e uma vez que ele teve a ideia para o novo prédio, a
maneira como ele ficou obcecado por isso, parecia meio pessoal.
— Max não gostava de Kent Buckley.
— Tive essa impressão. E então, quando ele teve essa ideia
para a nova escola, percebeu que poderia ganhar dinheiro com isso.
— Por que?
— Porque ele é co-proprietário da empresa que constrói a
Estrela da Morte. Além disso, ele é dono do local de descanso em
West Beach. Então, se a escola compra, eles compram dele.
— Ele disse isso a você?
— Ele disse. Nas férias de inverno. Ele me ligou e me disse para
colocar tudo isso em espera, que poderíamos estar vendendo este
prédio, e ele queria economizar esse dinheiro para a nova escola.
Meu ritmo diminuiu agora, enquanto eu pensava sobre isso.
— Então... você não parou de pintar tudo de cinza por causa de
Babette?
Duncan balançou a cabeça.
— Então você estava apenas... brincando?
— Inicialmente. Sim.
— E quando Babette disse para você fazer terapia?
— Eu estava planejando fazer isso de qualquer maneira, então
Babette apenas facilitou. Minha irmã ficou muito feliz.
— E eu? Todas as coisas que fizemos juntos? O que foi aquilo?
Uma pausa.
— Eu sabia que Babette estava blefando.
— Como?
— Eu li tudo. Eu li meu contrato. Eu tinha lido o estatuto, as
diretrizes e as regras do conselho. Babette não estava em lugar
nenhum, pelo menos não na papelada.
— Isso não pode estar certo. Max não deixaria Babette de fora.
— Talvez ele não tenha pensado nisso. Talvez ele pensasse que
viveria para sempre. Talvez ele não fosse um cara que cuidava da
papelada.
— Ele definitivamente não era um cara que cuidava da
papelada.
— Talvez ele estivesse muito ocupado sonhando com
playgrounds para entrar no âmago da questão da estrutura de poder
do conselho.
Isso parecia certo. Isso soava como Max.
— Mas Kent Buckley? — Duncan continuou. — Ele tem tudo a
ver com a estrutura de poder do conselho. E depois que Max
morreu, durante todo o choque e caos, ele estava trabalhando para
trazer seus amigos para o conselho, ele estava reescrevendo os
estatutos e forçando-os quando ninguém estava se concentrando…
e logo, ele executou uma boa e velha tomada de poder.
— Você sabia disso?
— Um pouco. Ele me levava para sair às vezes, lá no começo, e
bebia bastante e me contava demais.
— Então você sabia o que ele estava fazendo.
— Sim, mas em sua versão da realidade, ele é o herói e todos o
amam. Então demorei um pouco para resolver isso.
Eu continuei andando.
— No começo — disse Duncan —, eu estava apenas fazendo as
tarefas diárias para não parecer que sabia do blefe de Babette. Eu
não queria que ela soubesse que eu estava atrás dela. Mas então a
coisa mais estranha aconteceu…
Esperei, mas ele não continuou. Finalmente, eu disse:
— O quê? O que aconteceu?
Duncan respirou fundo.
— Comecei a gostar deles.
Pela primeira vez, olhei.
— Quero dizer, comecei a gostar muito deles. Comecei a ansiar
por eles, imaginando o que viria a seguir. Eu esperava
ansiosamente pelo momento da manhã em que você passaria no
meu escritório e me daria alguma tarefa maluca, como 'comer uma
tigela de macarrão udon', e eu esperava realmente fazer isso. Acima
de tudo, eu apenas esperava por você.
Suspirei.
— Eu também esperava por você.
— E quanto mais tempo eu passava com você, mais eu
começava a ver o mundo com outros olhos.
— Estávamos tentando acordá-lo. Chamamos de Operação
Duncan.
— Bem, funcionou.
— Não bem o suficiente.
Pensei no prédio da nossa escola. Seu jardim de borboletas, seu
pátio e seus claustros, e a maneira como parecia outro lugar e
tempo. Eu pensei em minha biblioteca e sua escada de livros e
nossa cafeteria ensolarada e nosso mural de borboletas.
Então eu disse:
— Existe alguma coisa que você possa fazer para detê-lo?
Duncan não respondeu imediatamente. Eu olhei e vi uma
expressão engraçada em seu rosto.
— Ai meu Deus — eu disse. — Você não quer pará-lo.
— Eu não disse–
Comecei a andar mais rápido.
— Ai meu Deus, aqui estava eu pensando que éramos amigos.
— Nós somos amigos.
— Você não pode ser amigo de uma pessoa que quer te colocar
na prisão.
— Vamos lá. Não é uma prisão!
Tínhamos acabado de chegar a um píer de pesca que se
projetava sobre o Golfo. Eu me virei e comecei a marchar ao longo
dela, sobre a água.
— Está bem perto — eu disse. — Você não pode viver toda a
sua vida com medo. Você não pode se isolar de tudo. As crianças
se machucam o tempo todo, mas não as obrigamos a usar
capacetes de bicicleta em todos os lugares. Você toma precauções
razoáveis e então espera o melhor. Isso é tudo que você pode fazer.
— Isso é maior do que um galo na cabeça — disse Duncan.
Mas eu não perdi o passo.
— E mesmo que você faça todos nós nos mudarmos para
aquele prédio trágico da Estrela da Morte, se você realmente fizer
as crianças desistirem da luz natural, da natureza, das brincadeiras,
das cores e da alegria, e esperar trancá-las o dia todo em algum
ambiente hermeticamente fechado e sobrenatural por toda a
vida,mesmo assim… eles ainda podem sair e levar um tiro. Eles
poderiam ir ao cinema e levar um tiro. Eles poderiam ir à praia e
levar um tiro. Eles podem ir a um show e levar um tiro.
— Mas não seria… — Ele se interrompeu.
— Não seria o quê? — Parei de andar para encontrar seus
olhos. Estávamos sobre a água agora, as ondas abaixo de nós. —
Não seria sob sua supervisão?
Duncan desviou o olhar.
— Isso é tudo sobre você, amigo. Isso não é sobre eles.
— Não é só sobre mim! — Duncan disse, sua voz alta. — É
sobre você. É sobre todos vocês. Foi difícil para mim ver você em
perigo quando cheguei aqui, mas é ainda mais difícil para mim
agora! Porque agora eu conheço você, e as crianças e os
professores… e agora passei um tempo com você e agora me
preocupo com você! Antes era teórico. Agora é real.
Ele tinha acabado de me dizer que se importava conosco,
comigo, mas eu não conseguia nem ouvir.
— Não estamos em perigo! — Eu gritei. — Não mais do que
qualquer outra pessoa está em qualquer outro minuto do dia. A vida
é cheia de perigo. Coisas terríveis acontecem o tempo todo. Isso
não significa que você viva sua vida com medo.
Olhando para trás, quero agarrar aquela versão de mim mesma
pelo colarinho e gritar para ela calar a boca. Quem era ela para dar
um sermão em Duncan? Quem era ela para falar de medo? Quem
era ela para dar conselhos de vida?
Algo mudou nos olhos de Duncan então. Ele se levantou um
pouco mais reto também. Então ele disse:
— Pergunte-me por que eu não queria dançar com você.
— O que?
— Na outra noite. Na festa. Eu não queria dançar. Eu disse que
não faço mais isso. Pergunte-me por que não.
Hesitei e senti minha irritação se esvair. De repente, eu sabia
que ele teria uma resposta incrível para essa pergunta. Quando fiz
isso, minha voz estava muito mais baixa.
— Tudo bem, Duncan — eu disse. — Por que você não dança
mais?
Ele acenou com a cabeça, tipo certo. Aqui vamos nós.
— Porque quando levei um tiro, estávamos no meio de uma
festa dançante na sala de aula.
Eu coloquei minha mão sobre minha boca.
Ele respirou fundo para continuar. Então, sem parar, ele me
disse.
— Estivemos revisando para os exames finais a semana toda.
Era sexta-feira, que sempre era o Dia do Chapéu… então todas as
crianças usavam cartolas, chapéus de caubói e chapéus que
pareciam tubarões, cones de trânsito e frango assado. Estávamos
esgotados e só precisávamos rir como loucos e pular.
— Ouvimos os tiros no corredor acima da música, muito mais
alto do que a música, e a tolice mudou para um terror ardente em
um segundo. Quero dizer, esse som é inconfundível. Mesmo que
você nunca tenha ouvido isso na vida real, mesmo que só tenha
visto em filmes. Todos nós soubemos em um instante o que estava
acontecendo.
— Minha sala de aula era um quadrado, não havia lugar para se
esconder. Eu até tinha uma janela na porta da minha sala de aula,
mas tranquei mesmo assim e coloquei meus filhos atrás da minha
mesa, e então empurrei a estante na frente dela. Alguns dos
meninos pularam para ajudar, e estou lhe dizendo, era como uma
zona de guerra, podíamos ouvir os tiros e os gritos, e você acha que
já ouviu gritos antes, mas nunca ouviu nada parecido. Rasgou
minha alma ao meio. Nunca esquecerei aquele som até o dia em
que morrer.
— De qualquer forma, eu ainda estava empilhando coisas, um
carrinho de computador, um monte de carteiras de alunos, na frente
das crianças, quando um garoto chamado Jackson apareceu na
janela da minha porta e começou a tentar entrar. “Ele está vindo!” e
foi aí que uma garota que estava atrás da barricada, seu sobrenome
era Stevenson, então todos a chamávamos de Stevie, ela disparou
em direção à porta, destrancou-a, deixou o garoto entrar e a fechou
novamente. Ela conseguiu trancá-la a tempo, e o garoto fugiu para a
barricada, mas antes que Stevie tivesse a chance de fugir da porta,
o atirador simplesmente... a pegou. Apenas disparou através da
própria porta como se ela nem estivesse lá. Apenas a crivou de
balas, e a força do impacto realmente a jogou para trás, e quando
ela caiu no chão, ela simplesmente... ficou vermelha, como se
tivesse uma centena de vazamentos.
Duncan estava tremendo agora – sua voz, suas mãos, sua
respiração.
Ele balançou sua cabeça.
— Stevie, sabe? Stevie. Ela fazia borboletas de origami o tempo
todo e as dava para as pessoas, com embalagens de chiclete e
papel de caderno decorado com marcadores. Ela estava usando
uma coroa para o Dia do Chapéu e havia se esquecido de tirá-la,
mas ela voou com o impacto e arrastou uma mancha de sangue no
chão. Comecei a ir até ela, mas foi quando ele atirou pela janela e
me pegou. Eu estava a meio caminho dela quando senti como se
queimasse ácido por todo o meu corpo. E então simplesmente
desabei, de cara no chão da sala de aula. Assistindo meu próprio
sangue escorrer e se acumular ao meu redor, o som da minha
própria respiração me engolindo. E essa é a última coisa de que me
lembro antes de tudo escurecer.
Oh, Deus.
— Stevie sobreviveu? — Eu finalmente sussurrei.
Ele balançou sua cabeça.
— E a… — eu comecei, mas minha voz falhou. — E a criança
que ela salvou?
— Ele foi atingido também, quando mergulhou para a barricada.
Mas ele sobreviveu.
— Isso é bom — eu disse, embora “bom” parecesse a palavra
errada em referência a qualquer coisa sobre isso.
— Ele conseguiu... mas não sei se ele conseguirá no final.
Eu balancei minha cabeça.
— O que você quer dizer?
— Ele tentou se matar duas vezes desde que isso aconteceu.
Eu coloquei minha mão sobre minha boca.
— Eles eram alunos da oitava série — disse Duncan na época.
— Eles eram crianças. Mas Stevie... era a namorada dele. — Ele
apertou os olhos com força, depois esfregou-os. — Primeira
namorada. Primeiro amor. Eles estavam sempre passando bilhetes.
Metade dos professores achava que acabariam se casando.
Eu não sabia o que dizer. Estendi a mão e peguei as mãos de
Duncan.
— Você disse uma vez que sente falta do cara que eu
costumava ser. Mas eu não sou mais aquele cara. Eu não posso ser
ele. Não posso saber o que sei agora e ser quem eu era antes. Eu
não posso voltar. Às vezes eu realmente odeio aquele cara… como
ele era ingênuo. Como ele estava feliz. Como ele estava enchendo
piscinas infantis com gelatina quando deveria estar trabalhando
mais para cuidar do mundo. — Ele respirou fundo. — Nunca mais
serei aquele cara, e se você estiver esperando por isso, vai se
decepcionar.
Tudo o que pude fazer foi acenar com a cabeça.
Duncan ficou em silêncio por um segundo. Então ele disse:
— Você vive me dizendo para não viver minha vida com medo.
Mas preciso que você entenda que não sabe o que é medo.
E você sabe o que? Ele estava certo.
Nem tenho certeza se consigo identificar todas as emoções que
me submergiram naquele momento. Senti-me arrependida, errada,
envergonhada e intimidada por ter sido tão crítica. Fiquei com raiva
de mim mesma e com raiva do mundo – e com raiva de Duncan
também.
Eram mais sentimentos ao mesmo tempo – todos na intensidade
máxima – do que eu sabia como lidar. E não tenho como explicar,
ou justificar, ou mesmo entendendo o que fiz a seguir – além de
apenas confessar que no momento depois de perceber o quão
estúpido eu tinha sido, como eu nem o entendi o tempo todo ou o
que ele passou, senti esse sentimento avassalador e
verdadeiramente sufocante como se eu apenas precisasse fazer
algo.
Mas eu não tinha a menor ideia do que fazer. não havia nada
para fazer. Então, em uma decisão de milissegundos que nunca fui
capaz de explicar, entender ou retirar – simplesmente me virei, ali
mesmo no píer, e saí correndo.
Não de volta para o paredão, no entanto. Longe disso.
Eu conhecia este cais. Eu sabia que havia uma quebra na outra
extremidade com uma escada para a água. Eu sabia que havia
Clubes de Ursos Polares que saltavam da ponta a cada Ano-Novo,
e Clubes de Sereias que mergulhavam usando caudas de fantasias
brilhantes. Como todas as más decisões, não parecia tão ruim na
época. Quem era eu para dizer a Duncan para ser corajoso? Quem
era eu para julgar alguém? Eu não era uma pessoa que corria
riscos! Eu era uma bibliotecária. A coisa mais assustadora que fiz
em anos foi o Hustle. Mas eu poderia mudar isso. Eu poderia mudar
isso agora.
Esta pode ser a pior decisão que já tomei, mas foi minha
decisão.
Eu corri mais rápido.
Ouvi Duncan atrás de mim.
— Sam! Sam! Ei! O que você está fazendo?
É possível que, se ele não tivesse ido atrás de mim, eu tivesse
parado na beirada. Há uma chance muito boa de eu ter caído em si
e me acovardado com razão.
Mas ele saiu atrás de mim.
Ouvi seus pés atrás de mim no calçadão. Eu o senti ganhando
em mim. E despertou aquela sensação que me lembro das
brincadeiras da infância – o que deve ser um antigo instinto humano
– de perceber que você está sendo perseguido... e correr mais
rápido. Você conhece esse sentimento. É como uma sensação de
formigamento na nuca. Você não pode deixá-los pegar você.
Alguma parte profunda do seu cérebro de lagarto apaga todos os
pensamentos, exceto: não seja pega.
Eu nem pensei nas palavras. Eu apenas as senti.
Eu não sou uma tomadora de risco ou uma caçadora de
emoções. Eu sou o oposto dessas coisas. Aquele momento no
Tubarão de Ferrp foi medo suficiente para me durar para sempre.
Eu culpo a adrenalina. Eu culpo minha frustração com Duncan. Eu
culpo o fato de que todas as coisas que tentei fazer ultimamente
falharam.
Eu apenas corri.
E quando Duncan me perseguiu, eu corri mais rápido.
E quando cheguei ao final do píer, corri direto pela abertura no
corrimão, lancei-me do final e mergulhei em direção à água.
vinte e três

Eu me arrependi instantaneamente.
No exato segundo em que passei pela grade, no segundo em
que não havia como voltar atrás, eu não queria nada mais em toda a
minha vida do que voltar.
Minha vida que pode não durar muito.
A queda durou uma eternidade e me deu tempo de sobra para
rever minha idiotice. Pode haver estacas lá embaixo, ou pedras do
cais, ou um barco naufragado. Pode haver uma mancha de óleo, ou
um cardume inteiro de águas-vivas, ou mesmo uma mancha de
bactéria carnívora. Tudo era possível.
Não importa o que, esta foi a coisa mais idiota que eu já fiz.
A propósito, meus braços giraram involuntariamente, como se
pudessem encontrar algo para se agarrar no ar vazio. E minhas
pernas continuaram bombeando, também, como se seus esforços
pudessem inspirar algum terreno sólido a aparecer debaixo delas.
E vou te contar uma coisa: eu soube de uma verdade repentina
naqueles segundos de silêncio mortal antes de encontrar qualquer
morte sangrenta que me esperasse lá embaixo.
Eu definitivamente não queria morrer.
Eu sabia disso de uma maneira casual antes. Mas agora eu
sabia de uma centena de novas maneiras.
Então foi isso. Você não pode saber o que não sabe.
No meio do mergulho em qualquer escuridão que me esperasse
abaixo, senti muitas das coisas que você esperaria que uma pessoa
sentisse naquela situação. Mas senti uma coisa que realmente me
surpreendeu: empatia por Duncan. Eu tinha sido tão criteriosa com
ele. Revirei os olhos para seus ternos, seus esquemas de cores e
suas regras. Mas eu daria cada um desses momentos de volta por
uma chance de me encontrar em segurança no píer com ele?
Claro que sim.
Esta era a sensação de estar verdadeiramente assustado. Era
assim que parecia que você poderia realmente, verdadeiramente
morrer.
Duncan conhecia esse sentimento, lembrava-se dele e o
carregava consigo todos os dias.
Eu me arrependi de tudo – tudo sobre este momento tolo,
insensível e auto-satisfeito – com veemência absoluta.
E então eu bati na água.
Ou mais como ela me bateu.
Eu me inclinei um pouco no caminho para baixo – e então bati
na superfície com bastante força do meu lado. Parecia uma
estranha combinação de mergulhar na água e ser atingida por uma
tábua de madeira.
Eu poderia ter antecipado isso, se tivesse pensado em antecipar
alguma coisa.
Atingi a superfície, depois mergulhei abaixo dela e continuei
descendo cada vez mais, sabendo, com muita clareza, em meu
cérebro bem desperto, que precisava parar aquele ímpeto
descendente e começar a chutar as pernas e bombear os braços
para abrir caminho de volta à superfície.
Mas eu não podia.
Eu não conseguia me mover.
Não fazia sentido. Eu sabia que tinha que chutar. Eu sabia que
tinha que nadar em direção à superfície, onde todo aquele ar me
esperava. Mas por mais tempo do que eu poderia acreditar, deixei-
me afundar cada vez mais fundo no oceano negro.
Quanto tempo você consegue ficar sem respirar? Um minuto?
Cinco? Eu não fazia ideia. Eu ainda estava congelado, ainda
afundando, quando meus pulmões começaram a gritar para eu
respirar.
Embaixo da água.
E foi o ato desesperado de pará-los – de ordenar que meu
diafragma parasse – que me colocou de volta em movimento. Seus
pulmões são balões, lembro-me de ter pensado. E os balões
flutuam.
Era uma noção descontroladamente não científica. Mas acabou
sendo exatamente o encorajamento de que eu precisava. Meus
belos pulmões cheios de ar iriam me fazer flutuar de volta à
superfície. Tudo o que meus braços e pernas precisavam fazer era
ajudar.
Chutei, puxei e lutei em direção à superfície enquanto meu
diafragma doía e doía. Tudo doía, na verdade – como se a privação
de oxigênio estivesse machucando individualmente cada célula do
meu corpo.
Eu não tinha ideia de quão longe estava da superfície. Não era
como se eu pudesse ver uma linha de chegada. Pode ser um metro
e meio ou meio quilômetro. Eu não tinha ideia, e estava apenas
começando a pensar que era impossível, que eu estava muito fundo
para chegar lá, que iria me afogar antes de chegar à superfície,
quando atravessei.
Bater no ar foi tão surpreendente para mim quanto bater na
água.
Mas desta vez meu corpo sabia o que fazer. No segundo em que
toquei o ar, meus pulmões o absorveram, ofegando e tossindo em
ânsias desesperadas.
Antes de me orientar, ouvi a voz de Duncan em algum lugar
próximo à superfície da água.
— Eu te peguei — disse ele.
Senti seu braço envolver minha caixa torácica.
Duncan disse:
— Deite-se. Fique quieta. Continue respirando.
Ele nos inclinou para trás, então estávamos flutuando com o
rosto para cima. Então ele começou a nos chutar de volta para a
praia.
Tudo o que pude fazer foi olhar para as estrelas e respirar como
um louco até que ele nos trouxesse de volta para a praia.
Eu tinha água salgada nos olhos – na boca – ardendo na parte
de trás do nariz.
Na parte rasa, ele me deixou ajoelhada, respirando com
dificuldade, em parte só porque eu podia, joelhos cavando na areia
molhada e ondas rolando sobre minhas coxas, enquanto ele se
levantava da água e se afastava. Quando minha respiração voltou
ao normal, olhei para cima e o observei.
É difícil descrever o que vi, mas digamos que a versão de
Duncan, que me encontrou na água e nos chutou de volta à costa,
foi paciente e calmo. Quase pacífico, de certa forma.
Mas a versão de Duncan agora andando pela costa enquanto as
ondas batiam contra suas panturrilhas?
Aquele cara estava chateado.
— Você está sangrando? — ele gritou comigo a três metros de
distância.
Parecia mais um insulto do que uma pergunta, mas mesmo
assim respondi.
— Não.
— Você está ferido de alguma forma?
Havia muitas maneiras de responder a essa pergunta, mas eu
fui com:
— Não.
Então, como uma espécie de grand finale de seu
questionamento:
— Você está brincando comigo?
Com isso, eu me levantei. Minhas pernas tremiam – assim como
quase todo o resto –, mas consegui mesmo assim. Nós nos
encaramos na beira. Duncan estava curvado, como se estivesse
contraindo todos os músculos abdominais. Suas mãos pareciam
cerradas, assim como seus braços e ombros. Ele não estava
olhando diretamente para mim, apenas perto de mim, como se
estivesse tão bravo que nem pudesse ver.
— Que — ele perguntou, sua voz firme com raiva — diabos você
estava pensando?
Não parecia uma pergunta que precisava de uma resposta.
— Que diabos — ele disse novamente, desta vez mais alto —
você poderia estar pensando?
— Não foi minha melhor decisão — eu disse.
Mas Duncan agora estava contando a si mesmo a história do
que acabara de acontecer, cada palavra incrédula, como se cada
momento do que eu acabara de fazer fosse impossível.
— Você saiu correndo pelo píer e então se jogou no final dele.
— Eu me arrependo dessa última parte — eu disse.
Ele não estava ouvindo.
— Foi idiotice? Foi uma tentativa de suicídio? Você está usando
algum tipo de droga que eu não conheço?
Todas essas eram perguntas retóricas.
— Eu não posso nem acreditar no que acabou de acontecer. Eu
não posso nem acreditar em você acabou de fazer isso. Isso é um
pesadelo? Estou preso em um pesadelo agora? Isso foi, sem
dúvida, com apenas uma exceção horrível, a coisa mais estúpida
que já vi alguém fazer.
Eu não discuti.
— Você poderia ter morrido. Você deveria ter morrido! Você tem
alguma ideia de quantas estacas estão afundadas naquela água?
Quantos destroços flutuam sob esses pilares? Toras e tábuas de
construção e porcaria de plataformas offshore? Podia ter arame
farpado! Poderia ter havido esgrima! Pessoas morrem pulando
deste píer!
— Pessoas pulam desse píer o tempo todo!
— Pessoas loucas! E mesmo que não tenha morrido com o
impacto, tem ideia de como estamos perto do porto? Há correntes o
tempo todo aqui!
Levantei um pouco a mão.
— Eu não estava pensando em correntezas… ok? Eu não
estava pensando em nada.
— Você com certeza não estava! — ele gritou. — Você poderia
ter sido arrastada para o mar em minutos, à noite, até agora eu
nunca seria capaz de encontrá-la!
Admito que ele estava certo sobre a maior parte dessas coisas –
e talvez isso seja apenas uma peculiaridade da minha
personalidade –, mas só consigo ouvir gritos por um certo tempo,
mesmo por alguém que está certo, antes de começar a gritar de
volta.
— Eu não estava pensando, ok? — Eu gritei de volta. — Eu
estava tentando ser corajosa. Eu estava tentando ajudar!
Eu me aproximei dele na água. Agora ele estava me observando
– a primeira vez que vi seus olhos desde que chegamos à praia.
— Não ajude! — ele gritou. — Eu não quero que você ajude!
Mas eu corri atrás dele.
— Alguém tem que fazer isso!
Eu tinha esquecido como era bom gritar de verdade. Quão
satisfatório poderia ser deixar-se queimar de raiva como uma
chama. Duncan se virou, mas eu fui atrás dele e dei a volta para
ficar na cara dele.
— Você está vivendo uma espécie de meia-vida e está
arrastando uma escola inteira cheia de crianças aterrorizadas com
você. Você disse que eu não sabia o que era medo, e pensei que
talvez você estivesse certo, mas vou lhe dizer uma coisa! Quase me
matei naquele momento, mas ainda acho que estava certo o tempo
todo. Você precisa acordar e viver.
Ele estava respirando com dificuldade.
— Toda manhã eu me levanto e vou para a escola. Eu tomo
banho e coloco vitamina E nas minhas cicatrizes e faço a barba e
me visto e engraxo meus malditos sapatos e entro naquele lugar e
passo o dia todo todos os dias cuidando daquelas crianças e
mantendo-as seguras e não se enrolando em posição fetal no chão
do banheiro masculino. Eu mantenho sob controle! Cumpro todas as
minhas responsabilidades! Como diabos isso não é suficiente?
Ele se virou, como se fosse algum tipo de pergunta retórica
vencedora de argumentos.
Mas não era retórica. Eu corri atrás dele.
— Porque não é! — Ótimo ponto. — Eu quero que você esteja
vivo. Eu quero que você sinta alguma coisa!
— Eu sinto algo! — ele gritou. — Eu sinto tudo!
Mas então, foi como se na sequência dessa declaração, ele de
repente pudesse ver claramente. Foi como se, pela primeira vez
desde que batemos na água, ele realmente me visse ali, a apenas
alguns metros dele, encharcada, tremendo e desafiadora na água,
meu cabelo em mechas molhadas contra meu pescoço.
Eu ainda estava olhando para ele com olhos ardentes e
hipócritas.
Mas o que quer que ele tenha visto naquele momento pareceu
quebrar sua raiva. Ele suspirou – quase murcho – e sua postura
mudou, e então ele começou a chapinhar de volta para mim através
das ondas.
— Eu sinto coisas — ele disse, sua voz rouca e mais baixa
agora, um pouco ofegante de tanto gritar, seu olhar inabalável no
meu.
Ele continuou empurrando em minha direção. Seu ritmo não
diminuiu – apenas passo após passo na água em suas roupas
encharcadas como se ele não parasse.
Eu mantive minha posição.
A antecipação era tão física como se fosse uma rajada de vento
– impossivelmente rápida, mas em câmera lenta ao mesmo tempo,
e eu fiquei absolutamente imóvel – meu olhar fixo no dele, todo o
meu corpo alerta e cantarolando, vendo-o claramente agora,
também, pelo que parecia ser a primeira vez.
Ele sentia coisas.
Ele tinha acabado de gritar isso para mim, mas eu podia sentir
agora.
Ele estava com raiva, dolorido, perdido e solitário. Exatamente
como o resto de nós.
Além disso, ele estava totalmente rasgado, com seu oxford
branco encharcado agarrando-se ao seu torso.
Então foi isso.
Eu nunca senti uma antecipação tão intensa, querendo que ele
se apresse e chegue até mim, esperando como o inferno que eu o
estivesse lendo direito, desejando tanto estar mais perto dele.
Sentindo que finalmente o entendi.
Duncan chegou onde eu estava e então parou.
Olhamos um para o outro, molhados e sem fôlego, até que eu só
consegui pensar em uma coisa a fazer.
Eu dei os passos finais que nos separavam, e estendi a mão,
juntei minhas duas mãos atrás do pescoço dele, e então trouxe sua
boca para a minha. Nesse mesmo movimento suave, quando
nossos corpos colidiram, ele apertou os braços em volta da minha
cintura e me puxou para perto.
Eu poderia escrever um livro sobre aquele momento da minha
vida: a pressão e o atrito das roupas molhadas contra a pele. A falta
de ar do esforço e da surpresa. O puxão das ondas em minhas
panturrilhas. A sensação de seu peito contra o meu – frio com água
salgada e quente com o calor do corpo ao mesmo tempo. A
sensação de segurança que senti dentro de seus braços. A
voracidade de suas mãos enquanto ele as percorria para cima e
para baixo, quase como se nunca fossem encontrar uma maneira de
me tocar que fosse suficiente.
O alívio de finalmente estar conectado.
Os únicos sons eram o barulho das ondas, da respiração e do
ar. Apenas movimento, toque e proximidade.
Nós nos beijamos na água por um longo tempo.
Embora eu não tenha certeza se “beijamos” é a palavra certa.
“Devoramos” pode funcionar melhor.
Ou “consumimos”.
Ou talvez precisemos inventar uma nova palavra.
Estendi a mão, me aproximei mais e o beijei com mais força. O
que quer que ele estivesse morrendo de fome, eu queria que ele
tivesse. Porque eu também estava morrendo de fome.
Eu rocei minha língua contra a dele. Tracei meus dedos no
veludo da parte de trás de seu cabelo. Eu o respirei. Eu me
pressionei o mais perto dele que pude. Eu podia sentir seu coração
batendo em suas costelas, e me perguntei se ele podia sentir o meu
também.
Eu estava com frio, mas não me importava. Eu estava pegajoso
com água do mar, mas estava bem. Alguém assobiou para nós lá de
cima no quebra-mar, mas nós ignoramos.
O que quer que ele estivesse fazendo, eu fazia de volta. Eu o
agarrei tão forte quanto ele estava me segurando. Estávamos com
frio e ainda pingando água, mas sua boca estava quente, e seu
peito e o aperto do jeito que ele estava me segurando pareciam
estabilizar meu tremor. Ele era como a única coisa sólida no mundo.
Eu queria me fundir a ele.
Eu queria nunca, nunca parar.
E assim que tive essa sensação, ele parou – e se afastou.
— A primeira vez que te vi, sabia que você seria um problema
para mim.
— Você soube?
— Sim. Eu vi você batendo naquele armário quebrado e pensei:
'Oh, merda. Essa garota vai arruinar minha vida.'
Eu o puxei para mais perto.
— As primeiras palavras que você pensou quando me viu foram:
'Oh, merda'?
— Sim.
— O que você pensa quando me vê agora?
— Exatamente a mesma coisa.
Eu dei a ele um pequeno sorriso.
— Nunca mais faça isso de novo, ok? — ele disse.
— Eu não vou. Juro.
— Você me assustou para caralho.
— Desculpe.
— Eu sinto coisas, ok? Você tem que acreditar em mim.
— Ok.
— Eu sinto tudo.
— Eu acredito em você.
E eu tive um último pensamento antes de ele me beijar
novamente. O mundo continua agarrado a essa ideia de que o amor
é para os crédulos. Mas nada poderia estar mais errado. O amor é
só para os corajosos.

Depois disso, nos beijamos no caminho de volta para minha casa.


Eu nem tenho certeza de como voltamos. Mas havia beijos
envolvidos.
Nos beijamos enquanto caminhávamos.
Nos beijamos nas faixas de pedestres enquanto esperávamos
que o sinal abrisse.
Nos beijamos pressionados contra os lados dos edifícios antes
de se lembrar de continuar.
Nos beijamos de volta no meu apartamento, depois que abrimos
a fechadura com a chave, ainda nos beijando, e entramos
cambaleando. Nos beijamos quando caímos de costas na minha
cama e tentamos tirar as roupas pegajosas, salgadas e com água
do mar um do outro.
Beijos bons. Beijos que mudam a vida. Beijos tão intensos que
todo o meu corpo formigava.
Beijos tão intensos que vi flashes de luz.
Beijos tão intensos que eu podia sentir o cheiro de madressilva e
rosas.
E foi aí que percebi: não era só o beijo.
Eu estava tendo uma aura.
vinte e quatro

Sim. Eu estava prestes a ter uma convulsão.


Por um minuto, me perguntei se talvez eu tivesse engolido muita
água do mar antes, quando quase me afoguei. Mas não era isso.
Você fica muito boa em detectar.
No momento ideal.
Mas não tão surpreendente. Não costuma ser no meio do
estresse que surgem as convulsões. Geralmente é logo depois.
Apenas quando você começa a relaxar.
Eu me afastei de Duncan.
— Você está bem?
Eu balancei a cabeça, mas então eu balancei minha cabeça.
— Acho que estou prestes a ter uma convulsão.
Ele franziu a testa.
— Oh.
— E eu prefiro não fazer isso com você aqui. Tipo, eu realmente
prefiro que não visse.
— Você precisa que eu vá?
— Sim — eu disse.
— Na verdade, eu meio que gostaria de ficar.
Eu balancei minha cabeça.
— Não pode acontecer.
— Eu realmente gostaria de estar aqui para você — disse
Duncan.
— Isso é um não.
— Por que não?
Eu não sabia o que dizer.
— É privado.
— Ter uma convulsão é privado?
— Sim.
— Se você não controla quando elas acontecem, como pode ser
privado?
— É privado, se possível.
Duncan franziu a testa.
— Eu só vou me deitar depois que você for — eu disse. — Ficar
na cama. Nada demais.
Ficou claro que ele pensou que era um grande negócio.
— Eu sinto que você não deveria estar sozinha.
— Estou sempre sozinha — eu disse, antes de perceber o quão
triste isso soava.
Eu não sabia como explicar por que o estava expulsando.
— A questão é que — eu disse, respirando fundo — não é
bonito quando essas convulsões acontecem. Sou eu no meu pior
absoluto. E eu simplesmente não suporto a ideia de você ver isso.
Duncan assentiu.
Então ele fez algo que eu não esperava. Ele levantou a camisa
para me mostrar as cicatrizes em seu lado – rosa e roxo e
manchadas como sempre, e muito mais dolorosas agora que eu
sabia como elas aconteceram.
— Você viu isso antes, certo? — ele perguntou.
Eu balancei a cabeça.
— Este sou eu no meu pior absoluto. E eu gostaria que você
nunca tivesse visto. Mas você viu. Em uma noite em que você
cuidou de mim. E Chuck Norris. E aparentemente resgatou minhas
suculentas moribundas.
Eu dei um pequeno sorriso.
— Você estava lá para mim, é o que estou dizendo. Eu quero
estar aqui para você.
— Isso é doce, mas não.
Eu precisava tirá-lo de lá.
— Você acha que eu não posso lidar com isso? — ele
perguntou.
Bem, sim. Mais ou menos.
— Você não deveria ter que fazer isso.
— E se eu quiser?
— Ninguém quer.
— Eu teria dito a você que ninguém poderia ver minhas
cicatrizes sem fugir do país, mas aqui está você.
— Não é o mesmo.
— Por que não?
Eu tentei pensar.
— Você levou um tiro de outra pessoa. Não foi sua culpa. Mas
minhas convulsões… elas são minhas. Não estou fazendo de
propósito, mas estou fazendo. Minha própria neurologia defeituosa.
Eu sou o problema. Isso é diferente. Além disso, elas nunca
acabam. Elas não desaparecem.
— O que você acha que isso significa?
O que isso significa? Isso significava que eu não poderia
prometer a ele que não iria piorar – ou começar a acontecer o tempo
todo. Significava que minha vida não estava sob meu controle. Isso
significava que não tínhamos um futuro juntos. Isso significava que
se ele me visse assim, ele ficaria enojado.
E talvez tenha sido a primeira vez que coloquei isso em
palavras.
Ele estava esperando por uma resposta. Então eu me sentei e
fui para o lado da cama. Então eu me virei para ele e disse:
— Você conhece todos aqueles especiais depois da escola em
que as crianças pensam erroneamente que seus pais se separaram
por causa deles, mas depois aprendem a lição de cura de que,
afinal, não tem nada a ver com eles?
— Tudo bem — disse Duncan, sem saber para onde eu estava
indo.
— Eu fui a razão pela qual meus pais se separaram quando eu
tinha oito anos. Meu pai foi embora por minha causa. Eu o ouvi
realmente dizendo isso naquela noite. Então, quando eu tinha dez
anos, minha mãe morreu. E ele não me levaria. Em vez disso, fui
morar com minha tia. Quando me formei no colegial, ela me deu um
baú com as velhas coisas de minha mãe, incluindo alguns diários, e
eles confirmaram tudo o que eu já sabia, em detalhes complexos.
Ele odiava minhas convulsões. Ele foi humilhado por elas. Eu o
afastei. Eu era a razão pela qual a vida da minha mãe desmoronou.
Porque ela teve que trabalhar em dois empregos. Porque ela morreu
sozinha. E essa não é uma conclusão falsa. Essa é a pura verdade.
Duncan assentiu, mas breve. Então ele disse:
— Você acha que seu pai foi embora porque você era demais.
Mas e se seu pai fosse muito pequeno?
— O que você quer dizer?
— Quero dizer... um homem melhor nunca teria deixado você.
Um homem melhor teria ficado.
Eu inclinei minha cabeça.
— Talvez você nunca tenha visto uma das minhas convulsões.
Duncan suspirou.
Sentar ajudou um pouco. Eu me senti um pouco melhor.
Encorajada.
— E não era só ele, a propósito — acrescentei então. — Eu não
era apenas provocada na escola, eu era um pária. Eu era o alvo de
todas as piadas. Totalmente expulsa da sociedade da escola
primária.
Duncan balançou a cabeça.
Eu continuei.
— Precisamos falar sobre a hora em que acordei e encontrei as
crianças jogando as ervilhas derramadas da minha bandeja de
almoço em mim? Temos que falar sobre a sacola de roupas que a
enfermeira da escola guardava no armário de suprimentos para os
momentos inevitáveis em que eu precisaria trocar de calça? Temos
que cobrir todos os anos em que almocei sozinha, sentada em
frente a Richard Leffitz enquanto ele comia sua própria meleca?
— É justo — disse Duncan. — Mas eram crianças. E, com todo
o respeito, as crianças são idiotas.
— Falou como um cara à beira das férias de verão — eu disse.
Mas era verdade: depois do ensino fundamental, culpei a
epilepsia por tudo e nunca mais olhei para trás. O que foi bom. Até
que a epilepsia voltou. E então descobri que eu tinha um monte de
suposições inquestionáveis sobre meu valor como ser humano.
Suposições que, talvez, eu não tenha examinado muito.
E não estaria examinando esta noite.
Estar perto de Duncan... não havia dúvida de que era glorioso,
poderoso e hipnótico. A porção de beijos nas ondas da noite não me
deixou dúvidas disso. Não havia dúvida de que ele era uma coisa
boa. Bom demais.
Porque: e se?
E se eu tivesse uma convulsão e ele ficasse horrorizado? Com
nojo? Assustado?
Ele sentia coisas. Ele disse isso. Ele me beijou como se
quisesse – de novo e de novo.
Mas e se eu tivesse uma convulsão – e isso acabasse com ele?
Eu nunca namorei uma pessoa que me viu passar por algo
assim. Além de minha mãe, e mais tarde minha tia, e alguns
profissionais de saúde, todos que já haviam testemunhado uma
convulsão decidiram irrevogavelmente me evitar.
Estou falando principalmente de alunos do ensino fundamental
aqui, mas o ponto ainda permanece. Como Duncan poderia ser
diferente?
Mas Duncan ainda estava focado.
— Eu gostaria que você me desse uma chance de provar que
você está errada.
— Mas e se você não provar que estou errada? E se você
confirmar meus piores temores... de novo?
— Isso não vai acontecer.
— Você não sabe disso.
— Mas você não acabou de gritar comigo no oceano e me dizer
para não viver minha vida com medo? Você não literalmente se
jogou em um oceano negro?
— Isso é diferente.
— Como?
A aura estava se intensificando. A náusea estava voltando mais
forte.
— Porque — eu disse, levantando-me para movê-lo em direção
à porta — isso é mais assustador do que aquilo.
— Não precisa ser.
Eu balancei minha cabeça.
— Eu não posso ser corajosa sobre isso.
— Sim, você pode.
A náusea estava se intensificando. Eu estava ficando sem
tempo. Levantei-me e o conduzi até a porta.
— Qualquer coisa no mundo, exceto isso.
— Sam–
— Você precisa ir agora — eu disse.
— Deixe-me ficar — disse ele. — Você não precisa ficar sozinha.
Eu teria gostado de deixá-lo ficar?
Eu gostaria que ele cuidasse de mim?
Claro.
Mas prefiro ficar sozinha para sempre do que deixá-lo me ver
desse jeito. Eu poderia suportar a solidão. Eu poderia suportar a
decepção. Mas a única coisa que eu absolutamente não podia
suportar era Duncan mudar de ideia.
Eu odiava que ele estivesse discutindo comigo. Eu odiava que
ele ainda estivesse aqui.
Eu odiava que ele estivesse certo.
Eu o empurrei em direção à porta com uma sensação crescente
de que não tinha muito tempo.
Ele tinha que sair. Ele tinha que ir.
Mas então, antes que ele pudesse, o mundo desapareceu.
vinte e cinco

Acordei sozinha, horas depois, na minha cama, no escuro.


Eu verifiquei o relógio no criado-mudo. Duas da manhã.
O que tinha acontecido?
Eu sabia que tinha tido uma convulsão, mas apenas por
dedução. Não pela memória. As convulsões sempre envolvem
amnésia. Seu cérebro não pode exatamente criar novas memórias
quando está em curto-circuito.
Eu tinha certeza de que não o havia feito sair a tempo. Eu tinha
certeza que ele estava lá. E eu tinha certeza agora que estava
completamente sozinha.
Sentei-me. Ouvi sons de vida em meu apartamento. Se Duncan
ainda estivesse aqui, mas não dormindo, o que estaria fazendo?
Atividades insones, imaginei. Fazendo chá? Lendo uma revista? Ou
talvez ele tenha saído para dormir na sala de estar.
Mas não havia barulho de chaleira fervendo, nem farfalhar de
páginas de revista virando. Nenhum cochilo rítmico de um homem
desmaiado no meu sofá.
Estava tão quieto que o silêncio estava praticamente tocando.
— Duncan? — Eu liguei, apenas no caso. — Ei, Duncan?
Nada.
Acendi a luz do quarto e fui até a sala. Ninguém. Vazio.
Eu tinha tanta certeza de que ele iria embora, mas também
queria tanto estar errada.
Agora eu tinha minha resposta.
Ele não estava aqui. Ele foi embora. Ele me viu no meu pior – e
foi embora. Eu tinha passado a noite para ele, mas ele não tinha
feito o mesmo por mim.
Eu me senti oca.
Eu estava certa o tempo todo.
Entrei no banheiro para escovar os dentes e me lavar, e então
fiquei lá, me olhando no espelho. Meu cabelo estava solto, minha
franja estava bagunçada, meus olhos estavam inchados. Lavei meu
rosto novamente. Usei fio dental por um tempo.
Você vê? Foi exatamente por isso que tentei mandá-lo embora.
Foi exatamente por isso que eu discuti com ele sobre ficar. Para
evitar exatamente este momento – exatamente esta verdade
inegável sobre o mundo e meu lugar nele. Se Duncan partisse –
apesar de toda a sua persuasão e banalidades – para quem mais
haveria esperança?
Pelo menos, antes, eu era capaz de manter a esperança de que
estava errado.
Eu deveria voltar a dormir, eu suponho.
Mas eu estava bem acordado agora.
Então eu andei um pouco pela minha casa – procurando por um
bilhete, talvez, que dissesse “Já volto!” ou qualquer pista em
qualquer lugar que pudesse provar que eu estava errada.
Eu andei por aí, procurando por muito tempo.
Não havia nota. Nenhum sinal de que ele esteve aqui.
Absolutamente nada para me afastar da única conclusão que
pude ver. Havia uma questão no centro da minha vida desde que
minhas convulsões voltaram – e agora, praticamente contra a minha
vontade, Duncan me deu a resposta para essa pergunta.
Uma resposta que eu preferiria ter evitado pelo resto da minha
vida.

Nada de voltar a dormir depois disso.


Apenas andando. Murmurando para mim mesma. Espasmos de
humilhação.
Apenas uma espiral de miséria alimentada pela vergonha que
poderia facilmente ter durado até o amanhecer – mas, na verdade,
durou apenas cerca de meia hora.
Até que ouvi uma chave na minha porta.
Duncan. Certo? Tinha que ser. Quem mais?
Por instinto, afofei meu cabelo. Como uma idiota.
A porta se abriu, mas não era Duncan. Era Alice.
— Ei! — ela disse. — Você está acordada! — Ela estava
vestindo uma camiseta que dizia MATLÉTICA.
— Não consegui dormir — eu disse, balançando a cabeça como
se fosse apenas uma insônia comum.
Ela veio e se sentou ao lado da minha cama.
— Babette me mandou uma mensagem para vir ver como você
está. Eu só ia espiar e depois dormir no sofá.
— Babette mandou uma mensagem para você?
— Ela disse que você teve uma convulsão.
Huh. Talvez Duncan tivesse contado a ela?
Agora eu estava irritada. Nós realmente temos que acordar as
pessoas sobre isso? Estávamos colocando um aviso no jornal – ou
dirigindo pelas ruas com um megafone?
— Estou bem — eu disse. — Eu não preciso ser checada. Isso
não é um grande negócio. Esta é apenas a minha vida.
Minha vida trágica, sem esperança e profundamente
decepcionante.
Eu podia sentir a atração do pensamento sem esperança.
Exercia sobre mim uma força semelhante à da gravidade – aquela
tentação de chegar a conclusões simples e muito sombrias: era
inútil. Eu estava desesperada. Eu estaria sempre sozinha.
Mas “sombria” não era coisa de Alice.
— Está bem, então. — Ela deu de ombros. — Vou fazer um café
para nós.
— São duas e meia da manhã. Não precisamos de café.
— Descafeinado — ela corrigiu, no tom de dã. Ela caminhou até
a cozinha.
— Estou bem — eu disse, não seguindo. — Você pode ir para
casa.
Ela se virou para olhar para mim e deu de ombros.
— Estou acordada agora — disse ela. — E você também,
aparentemente.
— Não porque eu quero estar.
Alice estava lendo minha voz. Ela era super equilibrada, e tudo
quase nada a perturbava, mas ela também era perspicaz.
— Você quer falar sobre isso? — ela perguntou.
— O que? — Eu estava parando.
— O que quer que você esteja sentindo tão... frágil.
— Não — eu disse. Então: — Eu não sei. Talvez. Na verdade,
deixa para lá.
— Legal — disse Alice. E ela foi em frente e se ocupou com a
cafeteira.
Correção: a descafeteira.
Em seguida, enquanto fervia, ela se virou para olhar para mim
com um rosto tão simpático que eu quebrei completamente.
Eu podia sentir meu corpo afundando, cedendo ao peso da
verdade. Eu disse:
— Duncan estava aqui quando aconteceu a convulsão.
— Oh.
— E então ele... foi embora.
Alice assentiu, absorvendo.
— Tipo, foi embora total. Desapareceu. Sumiu.
Alice me estudou como se eu fosse um sudoku. Então ela disse:
— Meio como seu pai.
— Sim — eu disse, sentindo uma pontada de raiva pela
conexão. — E eu tentei avisá-lo, mas ele não quis ouvir, e agora
aconteceu exatamente o que eu previ que aconteceria, exceto que
parece muito pior do que eu imaginava. Talvez se ele tivesse
apenas me ouvido, não estaríamos nessa confusão. Exceto que não
há 'nós' nessa bagunça. Há apenas eu. Sozinha. Como,
aparentemente, sempre serei.
— Hum. Você dificilmente está sozinha. Você está conversando
com sua melhor amiga.
— Quero dizer, romanticamente sozinha.
A voz de Alice ficou alta e esganiçada com esperança fabricada.
— Talvez haja alguma outra explicação?
— Sim, não consigo pensar em uma.
Mas Alice sempre encontrava o lado bom das coisas.
— Bem — disse ela. — Se você estiver certa… e não estou
convencida de que esteja, mas apenas para fins de argumentação:
provavelmente é melhor saber agora. Certo?
— Certo — eu respondi, derrotada.
— Quero dizer, em algum momento, ele seria obrigado a
testemunhar você… — e aqui, ela procurou por um eufemismo, que
me pareceu muito bondoso, dado o meu estado frágil — não no seu
momento mais gracioso.
Verdade.
— Melhor ele desaparecer agora do que depois que você teve,
tipo, dez filhos.
— Dez filhos?
Ela assentiu, toda impassível.
— Dois pares de gêmeos e dois pares de trigêmeos.
— São muitas crianças — eu disse.
— Vê isso? Você evitou o desastre. Como você poderia atingir
seu potencial com todas aquelas crianças? Ele te fez um favor,
sério. E as crianças também.
— Parece que sim — eu disse, dando a ela um sorriso de
agradecimento por tentar.
Ela me deu o sorriso exato de volta. Obrigada por me deixar.
Então ela balançou a cabeça, como se para esclarecer todo o
assunto, voltou sua atenção para o descafeinado agora animado e
disse:
— Devemos fazer uma aula de dança.
E assim que ela disse isso, como se fosse para pontuar, nossos
celulares tocaram exatamente ao mesmo tempo.
Meu telefone estava no meu quarto, mas o dela estava no bolso.
Ela puxou para fora, verificou e então olhou para cima.
— É da escola. Uma criança desapareceu. Eles estão nos
chamando para uma equipe de busca.
vinte e seis

Era Clay Buckley.


Quando chegamos lá, encontramos Tina em lágrimas, Babette
exausta e ansiosa e Kent Buckley rondando como um animal
raivoso, rosnando para as pessoas.
A escola estava inundada de policiais e detetives. Eles estavam
montando um quartel-general improvisado para a busca no
refeitório. A Sra. Kline já estava lá, em uma mesa dobrável,
organizando pacotes de busca e trabalhando em uma prancheta.
Alice e eu perguntamos a ela o que aconteceu.
— Era o aniversário de Clay — disse a sra. Kline. — Seu pai
deveria buscá-lo depois da escola e levá-lo a algum museu de
navios piratas em direção à baía de Matagorda. Mas seu pai nunca
apareceu. Pelas fitas de segurança, parece que Clay foi visitar
Babette, e ela confirma que ele disse que estava indo para a
biblioteca para ler, mas, em vez disso, às quatro e trinta e sete, ele
saiu pelo portão dos fundos.
— Mas esses portões estão trancados! — Eu disse.
— Ele tinha o código — disse a Sra. Kline. — Ou ele descobriu.
O vídeo mostra ele pressionando o teclado e, em seguida, abrindo-
o.
— Para que lado ele foi? — Perguntei.
Mas a Sra. Kline balançou a cabeça.
— Não mostra. Você pode apenas vê-lo saindo.
— Então... ele está desaparecido desde esta tarde? — Alice
perguntou.
— Ele está desaparecido desde às quatro e meia — disse a sra.
Kline —, mas só descobriram que ele estava desaparecido às onze
e meia. À noite.
— Puta merda — disse Alice.
— Linguagem, por favor — disse a sra. Kline. Então ela
acrescentou: — Sua mãe pensou que ele estava com seu pai, que
ele o pegou na carona e os dois saíram em sua aventura. Mas,
aparentemente… — Sra. Kline olhou em volta e baixou a voz: —
Kent Buckley esqueceu disso. Completamente. E assim ele ficou no
trabalho até tarde e depois saiu para beber com alguns clientes, e
só chegou em casa depois das onze. Quando ele chegou em casa e
não tinha Clay com ele... foi quando chamaram a polícia.
— Ela não estava esperando eles em casa até às onze?
— Ela não estava esperando eles em casa. Era para ser uma
viagem noturna.
Alice estava concordando.
— Então isso explica por que Kent Buckley está com o rosto tão
vermelho e zangado.
A Sra. Kline franziu a testa e acenou com a cabeça, como ah,
sim.
— Tina está com raiva também. Ela está absolutamente à beira
de perder a cabeça.
— Compreensível — disse Alice.
— Eles já tiveram várias brigas de gritos desde que cheguei
aqui.
— Há quanto tempo você está aqui? — Perguntei.
— Desde as duas. A polícia vasculhou os lugares prováveis que
ele estaria primeiro como a escola e a casa de Babette antes de
decidir chamar todo mundo. Eles chamaram de volta todos os seus
policiais e mandamos mensagens de texto para todos em nosso
sistema de notificação. À medida que as pessoas chegam, nós as
enviamos em equipes, dando a todos uma seção da cidade para
pesquisar.
Esta foi a Sra. Kline em sua melhor multitarefa. Ela nos deu uma
tarefa: caminhar pelo paredão em direção ao leste por dez
quarteirões. Se nada aparecesse, deveríamos relatar a ela por
mensagem de texto, ela nos enviaria uma nova seção. Antes de
sairmos, ela nos disse para verificar com o policial na porta, que
estava dando instruções a cada equipe.
Alice e eu fomos naquela direção. Algumas outras pessoas já
estavam esperando. Emily e Donna já tinham seu pacote e
pareciam impacientes para ir. Carlos estava emparelhado com o
treinador Gordo, que usava seu colete refletivo de segurança. Todo
mundo tinha aquele olhar – de ser acordado de um sono mortal e
lançado direto para um estado de adrenalina máxima.
Assim que Alice e eu chegamos para receber instruções,
Duncan dobrou uma esquina e me viu. Ele estava andando com um
dos policiais e, ao me ver, diminuiu a velocidade até parar e olhou
por apenas um segundo.
Não há palavras para descrever a pontada de humilhação que
senti ao vê-lo – e, especificamente, ao vê-lo me ver. Ele sequestrou
todo o meu corpo com tanta força que me senti como um grande
cavalo charley. Foi físico. Foi uma agonia.
E então acabou.
Havia coisas maiores acontecendo. Outro oficial se aproximou
de Duncan com uma nova notícia urgente, e ele se virou e foi
embora.
Justo. Nós tivemos uma situação.
Enquanto o observava se afastar, tive que me lembrar
mentalmente de respirar e relaxar.
Ele ainda estava com o terno de ontem, o terno que ele usava
quando mergulhou no oceano atrás de mim, provavelmente ainda
úmido. Sua camisa Oxford estava seca, mas pontilhada do jeito que
as camisas ficam quando não foram passadas. Sua gravata azul
marinho não estava à vista. Sua camisa estava aberta no colarinho.
Não consegui ler inteiramente sua reação ao me ver – em parte,
tenho certeza, porque minha reação ao vê-lo foi muito intensa. O
momento acabou quase assim que começou, mas os efeitos
posteriores permaneceram, doendo por um longo tempo depois.
Eu sabia que ele estaria lá, é claro. Ele era o diretor. Ele estava
no comando – no final da escola, de qualquer maneira. Mas eu não
tive tempo para planejar. No mínimo, eu esperava evitar contato
visual. Eu imaginei que ele estaria em algum canto distante
trabalhando em algum tipo de quartel-general improvisado, não
apenas vagando solto assim fazendo contato visual aleatório com o
apaixonado.
O que foi aquele contato visual, afinal? O que eu tinha visto em
seus olhos? Surpresa, talvez? Ou talvez medo? Deus, eu era tão
assustadora?
Eu tinha acabado de reorientar minha atenção para o momento
em questão, quando o vi caminhando de volta para mim. Ele estava
levantando a mão, como já volto, para o grupo de oficiais que ele
havia deixado para trás.
Ele veio ao lado de Alice e de mim. Ela olhou para ele, depois
para mim, como “O que está acontecendo aqui?” mas, para seu
crédito, ela não disse nada.
Duncan deu um aceno de cabeça para Alice, e então ele se
virou para mim.
— Ei. Você está aqui.
A dor da humilhação voltou e me dominou. Eu quase não
conseguia olhar para ele. Fiquei totalmente imóvel.
— Assim como você.
— Eu só... não tinha certeza se você aceitaria.
— Não há nada que poderia ter me feito não vir. Clay é meu
aluno favorito no planeta.
— Para onde eles estão te mandando?
— Seawall.
— Tudo bem — disse ele, como se estivesse fazendo uma
anotação. — Tome cuidado.
E foi aí que seu tom mudou um pouco, e ao invés de ser só
negócios, ele se aproximou um pouco mais, como se fosse dizer
algo mais pessoal.
— Você está… — ele começou.
Mas foi aí que o oficial que deu instruções às equipes de busca
gritou:
— Ok, pessoal, ouçam.
Duncan deu um aceno rápido e recuou.
O oficial continuou.
— Cubra sua área e apenas sua área. Envie uma mensagem de
texto ou ligue para qualquer um dos números em sua folha se vir
alguma coisa. Principalmente, você estará andando, usando suas
lanternas para verificar se há algo fora do comum. A criança trajava
calça de uniforme cinza e camisa branca. Ele tinha tênis preto. Ele
tinha uma mochila azul com itens escolares, e também vários gibis e
algum tipo de livro de referência sobre a vida marinha. Você não
está apenas procurando pelo próprio garoto. Se você vê um sapato,
se vê uma mochila, se vê um livro caído na rua. Não toque. Tire uma
foto. Anote sua localização. Ligue para nós e enviaremos oficiais
para determinar o próximo passo.
— Estamos preocupados que ele tenha sido sequestrado? —
Carlos perguntou.
— No momento, ele está desaparecido — disse o oficial. — Ele
saiu por vontade própria. Mas ele é um menino de nove anos nas
ruas à noite. Qualquer coisa poderia ter acontecido desde então.
Temos que considerar todas as possibilidades e precisamos agir
rápido, então seja meticuloso, mas mantenha o foco. — Seu tom
mudou e ele acrescentou: — Coisas ruins acontecem com as
crianças à noite.
Todo o briefing levou dois minutos e, em algum momento,
Duncan saiu, mas eu mal percebi. Quando o oficial terminou de nos
informar, eu estava evitando o pânico e, assim que recebemos o
sinal verde, estávamos em movimento. A escola tinha um estoque
de lanternas pesadas que havíamos usado para acampar e que eles
distribuíam na porta. Cada um de nós pegou uma e, assim que
saímos dos portões, começamos a correr em direção ao quebra-
mar.

A maioria das grades de busca eram quarteirões quadrados da


cidade, mas a nossa era apenas aquela faixa estreita de praia. Alice
e eu decidimos nos separar. Ela subiu alto – no topo da parede – e
eu desci os degraus até o nível da praia, trabalhando ao longo da
beira da água. Mantive minha lanterna apontada para as ondas,
procurando por Clay nelas.
Ou uma mochila. Ou um livro. Ou – Deus me livre – um sapato.
Alice iluminou com sua lanterna e examinou tudo na praia e
perto da parede – arbustos e plantas, toras de madeira flutuante,
lixo – procurando as mesmas coisas.
Chamamos por ele também.
— Clay! — gritamos sem parar. — Estamos aqui!
A esperança, é claro, era encontrá-lo são e salvo – talvez
sentado agradavelmente em um banco, lendo um livro e comendo
um saco de batatas fritas. Carlos e o treinador Gordo foram
designados para um píer de pesca. Talvez ele tenha escapado para
um e ficado preso atrás do portão quando eles não o notaram na
hora de fechar. Era possível, eu dizia a mim mesmo, que houvesse
alguma explicação razoável, nem um pouco trágica, para o que
estava acontecendo.
Ele ficaria bem, eu disse a mim mesma. Ele ficaria bem. Ele
ficaria absolutamente bem.
Mas quanto mais caminhávamos sem sinal de nada, mais difícil
parecia acreditar nisso. As palavras do policial, coisas ruins
acontecem com crianças à noite, ficavam ecoando na minha cabeça
e, de vez em quando, eu sentia uma onda de lágrimas de pânico
apertando minha garganta, ameaçando subir e tomar conta.
Mas eu me livraria disso. Eu não poderia – não iria –
desmoronar.
Clay contava conosco para encontrá-lo e ajudá-lo. Ele sempre
pareceu um pouco adulto, mas, claro... ele era uma criança. Apesar
de seu vocabulário, sua vibe séria e seu conhecimento
enciclopédico de praticamente tudo, ele tinha tanto direito de
cometer erros malucos quanto qualquer outra criança no mundo. E
com o mesmo direito de ser totalmente oprimido por suas
consequências.
Tentei não pensar em como ele devia estar apavorado agora,
onde quer que estivesse.
Ele era um garoto. Ele era um garoto que havia perdido o avô –
provavelmente a melhor pessoa de sua vida – poucas semanas
antes da viagem que planejaram juntos, uma que ele esperava,
ansiava, lendo e planejando por meses. Ele tinha lido todos os livros
sobre naufrágios na biblioteca. Ele estava anotando em um
Moleskine perguntas importantes para fazer à equipe do museu.
Não sei quem pressionou Kent Buckley a concordar em levar
Clay naquela viagem, mas juro que até um observador casual
poderia ter avisado que não terminaria bem.
Dito isto, ninguém poderia imaginar isso.
A polícia não tinha certeza se ele havia fugido ou se havia sido
sequestrado.
Meu palpite era que ele havia fugido. Meu palpite era que ele
finalmente se cansara daquele pai dele. Um pai que havia
esquecido tudo sobre ele – em seu aniversário. Qualquer criança
poderia tomar algumas decisões ruins após um momento como
esse.
A maré estava alta agora e estava escuro perto da água.
— Clay! — Eu continuei gritando. — Clay! — Mas o rugido das
ondas parecia engolir o som.
Deveríamos dar meia-volta em Murdochs – uma loja de
presentes construída sobre palafitas sobre a água. Esse foi o fim de
nosso alcance de dez quarteirões e nosso plano era trocar de
posição na caminhada de volta.
Mas quando alcancei as estacas embaixo de Murdochs e
comecei a varrer a área com minha lanterna, vi algo estranho.
Parecia um barco a motor virado que apareceu perto da costa. Oh,
Deus. Clay tentou tirar um barco de alguma forma? Ele tentou ir
para o mar? Onde ele teria encontrado um barco? A maioria dos
barcos estava no lado da baía ou no canal do navio. O lado do Golfo
da ilha era muito raso para passeios de barco.
Chamei Alice para descer e me aproximei – para as ondas. Olhei
com mais atenção.
E então percebi que não era um barco.
Era liso e cinza.
E era... algum tipo de peixe.
Um peixe muito, muito grande. Um peixe do tamanho de um
sedã.
E foi então que vi, parado ao lado do peixe, até sua caixa
torácica nas ondas: Clay Buckley.
Era uma visão e tanto.
Por meio segundo, não consegui falar, nem me mover, nem
responder de forma alguma. Tudo o que pude fazer foi assimilar –
até que Alice chegou atrás de mim.
— Clay! — Eu gritei, enquanto Alice enganchou seu braço em
volta de mim e me impulsionou para frente.
— Puta merda — Alice disse, enquanto nos aproximávamos. —
Aquele é…?
Parecia muito louco para dizer em voz alta. Mas nós dois
pudemos ver o que vimos.
— É uma baleia, certo? — Eu disse.
— Claro que parece um.
— Um bebê, talvez.
Eu estou balançando minha cabeça em descrença mesmo agora
com a memória disso.
Era impossível.
Mas também era inconfundível. Realmente não poderia ser outra
coisa.
Não apenas uma baleia foi lançada sob as estacas da loja de
presentes de Murdoch, mas parecia que Clay – nosso Clay de nove
anos – estava falando com ela.
Nós nos aproximamos e então paramos por um segundo,
apenas... pasmas com a visão – e então eu direcionei minha
lanterna para Clay. Ele olhou para cima e apertou os olhos para ele,
claramente ciente de que ele era o objeto de atenção de alguém.
escrutínio, e então, eu juro, ele levantou um dedo na frente de sua
boca, e ele me silenciou.
Então ele voltou sua atenção para a enorme criatura ao lado
dele na água.
Alice recuou para ligar e relatar que o havíamos encontrado,
enquanto eu continuava me aproximando de Clay na água.
Ao diminuir a distância, pude ver o que estava acontecendo –
embora mal pudesse acreditar em meus olhos. O enorme animal ao
lado de Clay, que estava meio submerso nas ondas, estava preso
em uma rede de pesca. E Clay estava parado bem ao lado dela com
o canivete aberto, serrando a corda da rede.
— Clay, você precisa se afastar! — Eu disse, embora ele
claramente estivesse lá por um bom tempo, e a ideia de que ele iria
se afastar agora só porque algum adulto apareceu e disse a ele que
era bastante risível.
Quero dizer, este mamífero era mais alto do que ele. E lá estava
o magrelo Clay, bem ali, nas ondas, arriscando ser esmagado a
cada mudança da maré – e ele absolutamente não se importava.
Além disso, ele parecia estar cantando.
— Você está cantarolando uma canção de Natal?
Clay não desviou o olhar da rede, mas assentiu.
— 'Noite Feliz'. É a música mais suave que conheço — disse
Clay.
E foi aí que eu soube. Clay não estava com medo e não estava
traumatizado. Ele estava ajudando. Esse garoto sabia exatamente o
que estava fazendo agora no meio dessa situação maluca. Ele
estava tentando como o inferno para tornar as coisas melhores.
O que Max faria?
— Você tem uma faca? — Clay gritou. — Você tem alguma coisa
afiada? Ou tesoura?
Mas tudo que eu queria era tirar Clay de lá.
Comecei a caminhar em direção a ele, pensando que iria
resgatá-lo de alguma forma – puxá-lo de volta para a areia onde era
seguro.
— Clay, não é seguro para você ficar aqui.
Clay nem ergueu os olhos.
— Não temos muito tempo — disse ele. — A maré o trouxe até
aqui, mas está voltando agora. Terá desaparecido pela manhã.
Eu apontei minha lanterna para Alice e ela me deu um sinal de
positivo.
— A polícia está a caminho agora — eu disse. — Eles estão
trazendo sua mãe, e Babette...
Mas Clay estava de repente olhando diretamente para mim,
parecendo aflito.
— Diga a eles para desligarem as sirenes! — ele disse. Foi a
primeira vez que o vi parar de serrar na rede.
Dei de ombros.
— Não tenho certeza se podemos–
— Por favor! — Clay gritou. — Não deixe que acionem suas
sirenes. — Ele olhou para Alice.
Alice piscou para ele.
— Toda a cabeça dele — Clay explicou com urgência — é um
aparelho auditivo supersônico. Ele já está em perigo. Um som como
esse poderia matá-lo.
Alice assentiu e voltou ao telefone.
Clay voltou ao trabalho.
Pela primeira vez, eu realmente vi o animal. Sua pele cinza
sobrenatural, seus olhos negros e profundos. A forma de blocos de
sua cabeça.
— Espere, Clay, isso é uma cachalote?
— Acho que sim — disse Clay.
— Existem cachalotes no Golfo do México?
Clay suspirou.
— Já passamos por isso.
— É... um bebê?
— Pode ser um bebê. Ou pode ser um cachalote pigmeu.
Uau.
— Não se preocupe — eu disse. — A polícia vai ajudá-lo.
— Eles precisam trazer facas para cortar esta rede — disse
Clay. — E eles têm que se apressar.
— Provavelmente mais fácil de trabalhar à luz do dia — eu disse
gentilmente, tentando preparar o terreno para o momento inevitável
quando os policiais arrastaram Clay para fora do oceano e de volta
para a segurança da praia.
— Mal podemos esperar pela luz do dia. Se a maré baixar, ele
morrerá. Animais marinhos deste tamanho não aguentam o peso da
gravidade fora da água. Seus ossos e órgãos entrarão em colapso.
— Mas as pessoas salvam baleias o tempo todo.
— Não — disse Clay, rompendo uma seção da rede e agarrando
outra. — Não esse tipo de baleia. Eles nunca conseguem. Todos
eles morrem.
— Todos eles?
Clay assentiu, ainda serrando a rede.
— Mas — Clay disse — isso pode não ser um encalhe normal.
Se for apenas a rede, se ele não estiver doente, ele pode ficar bem.
Se o trouxermos de volta rápido o suficiente. Mas se a maré baixar,
não teremos como colocá-lo de volta na água até que a maré volte,
horas e horas. A essa altura, ele estará em falência de órgãos.
— Tenho certeza de que poderíamos descobrir uma maneira de
colocá-lo de volta na água.
— Sim? — Clay desafiou, ainda serrando como um louco na
rede. — Ele provavelmente pesa quinhentos quilos. Cite uma
maneira de arrastá-lo de volta ao oceano que não o mataria.
— Buldôzer? — Eu ofereci.
— Agora você está apenas sendo insultante.
Meu Deus, senti como se estivesse falando com Jacques
Cousteau.
— Se não o libertarmos antes que a maré baixe, ele está
perdido.
Dei uma olhada na net. Clay ainda tinha um longo caminho a
percorrer.
— Há quanto tempo você está aqui? — Perguntei.
— Muito tempo — disse Clay.
Foi quando notei as bolhas em suas mãos. Ele estava molhado
e tremendo – mais de exaustão do que hipotermia, eu suspeitava, já
que a água do Golfo é quente nesta época do ano no Texas. De
qualquer maneira, ele estava aqui há muito tempo.
— Deixe-me tentar — eu disse, me aproximando e estendendo
minha mão para a faca.
Clay se virou para ler meu rosto, decidindo se podia confiar em
mim ou não.
Ele podia confiar em mim. Eu esperava que ele soubesse disso.
Então ele acenou com a cabeça, tão solene, e me entregou sua
faca.
— Você tem que cantar para ele — disse ele, antes de se
afastar. — Ele está com medo.
— Como você sabe?
Mas Clay apenas encontrou meus olhos.
— Você nunca sentiu medo?
Suspirei.
— Vá explicar tudo isso para Alice — eu disse — para que ela
avise os policiais.
E aí comecei a serrar a rede com tudo que eu tinha.

Por algum milagre, a polícia recebeu o memorando e não ligou as


sirenes.
De qualquer forma, todos eles tinham facas utilitárias e, assim
que chegaram, cerca de dez caras diferentes entraram direto na
água para começar a trabalhar na rede.
Clay não protestou, nem eu. O canivete de Clay era bastante
cego. Eu estava serrando para caramba e só consegui cortar dois
fios.
Além disso, para ser sincera, foi um pouco assustador estar tão
perto dessa fera gigante sozinha na água negra. Eu podia sentir a
gentileza essencial da baleia. Seu sobrenatural sábio e real era
palpável. Senti-me humilhada em sua presença.
Mas também sabia que estava a uma grande onda de ser
esmagada.
E algo, também, sobre estar tão perto do espiráculo, ser capaz
de sentir sua respiração lenta e antiga, sobre de repente ter um
acesso tão íntimo a uma das criaturas mais inacessíveis da terra...
foi intenso.
Quando a mãe de Clay apareceu, ela estava quase
hiperventilando com os soluços. Ela caiu de joelhos na areia
enquanto agarrava Clay. Ele a abraçou também, mas manteve os
olhos em sua investida na água. E quando os paramédicos – Kenny
e Josh, os mesmos paramédicos que tentaram salvar Max –
quiseram avaliar Clay e verificar se havia hipotermia, ele permitiu.
Eles limparam e enfaixaram suas mãos e trocaram a camisa
molhada por uma camiseta grande demais do Corpo de Bombeiros
de Galveston que haviam escondido em algum lugar do caminhão.
Um dos caras colocou o casaco nele.
— Isso vai mantê-lo aquecido — disse ele, bagunçando o cabelo
de Clay.
Clay continuou me dando instruções para transmitir à equipe – e
eles as seguiram. Uma massa de homens gigantes, trabalhando
freneticamente e recebendo instruções de uma criança de nove
anos: Certificar-se de não deixar a água entrar no respiradouro.
Sem gritos ou movimentos assustadores. Manter suas vozes suaves
e calmas. Não se esquecer de cantar.
Quando Clay falou, eles ouviram, e foi assim que, à medida que
o resgate avançava, toda uma multidão de adultos, com o peito na
água, amontoados em torno de uma criatura enorme e lutando como
o diabo para vencer a maré – seguindo as instruções de Clay, lenta
e gentilmente – acabaram cantando “Noite Feliz” para uma baleia.
Alguns deles até harmonizando.
Jamais esquecerei a visão disso – de tantas pessoas tentando
tanto ajudar. Para se elevar acima de si mesmos e fazer a coisa
certa. Viu isso? Eu disse a Duncan na minha cabeça. Isso é o que
significa estar plenamente vivo. Sentir tudo – a alegria e a tristeza, a
esperança e o medo. É isso que a vida exige de nós. Você apenas
tem que ficar, tentar e deixar a vida quebrar seu coração.

A Sra. Kline notificou as equipes de busca que Clay havia sido


encontrado, e eles seguiram para a praia em pares enquanto todos
ouviam a notícia e se reuniam na praia para assistir ao resgate.
Carlos e o treinador Gordo voltaram à escola para recolher baldes, e
o grupo formou uma brigada de baldes, jogando água salgada sobre
a pele exposta da baleia enquanto a equipe de resgate trabalhava.
Uma vez que ele acreditou que estávamos seguindo suas
instruções, Clay permitiu que os adultos assumissem o controle. Ele
estava claramente exausto e, afinal, era uma criança.
Quando a Rede de Encalhamento de Mamíferos Marinhos
chegou, eles concordaram com a avaliação de Clay, sua estratégia
de resgate e as ligações que ele fizera – especialmente a urgência
da situação da baleia: Sim, provavelmente era um cachalote
pigmeu. Sim, pode haver esperança para este. Sim, o tempo estava
se esgotando. Tínhamos mais uma ou duas horas, no máximo,
antes que a maré baixasse demais.
A esperança tornou-se que, se conseguíssemos libertar a baleia
da rede, ela poderia usar sua cauda para sair da arrebentação. E
embora meio submerso na água não fosse o ideal, certamente era
melhor do que totalmente encalhado.
A cena foi inegavelmente inspiradora: policiais e bombeiros
trabalhando juntos para cortar a rede – e recebendo instruções
faladas suavemente de uma senhora bióloga marinha, nada menos:
o membro do ranking da Rede de Encalhamento de Mamíferos
Marinhos. Professores trabalhando fielmente para molhar a baleia
com baldes de água. O exausto Clay embrulhado em segurança nos
braços de sua mãe. E todos nós agora cantarolando suavemente
“Noite Feliz”.
Todos nós da mesma equipe, nos unindo desesperadamente
para trabalhar em prol da mesma coisa significativa e importante, de
uma forma que os seres humanos quase nunca fazem.
Quero dizer a você que tudo isso foi o suficiente para prender
completamente minha atenção – que eu estava 100% dedicado ao
Time Baleia.
E eu estava.
Mas confesso que parte do meu cérebro também estava se
perguntando sobre Duncan. Onde ele estava? Ele não deveria estar
aqui agora? Eu continuei verificando a multidão. Eu não estava
preocupado com ele. Eu apenas senti que ele deveria estar aqui.
Que ele gostaria de estar aqui. Que esse momento marcante de
alguma forma não estava completo sem ele.
Mesmo que o pensamento de vê-lo novamente não fosse
atraente.
Mesmo que a humilhação disso parecesse uma agonia líquida.
Eu ainda não queria que ele perdesse. Ainda não pude deixar de
pensar em como seria bom para Duncan ver a humanidade fazendo
algo de bom para variar.
Como foi bom para mim ver isso também.
O quanto eu queria compartilhar isso.
As equipes de reportagem apareceram, mas os bombeiros não
permitiram que acendessem os holofotes. Turistas que moravam em
condomínios próximos e pessoas que moravam nas proximidades
apareceram com refrigeradores de água e caixas de biscoitos para
ajudar a fortalecer os socorristas. À medida que a multidão crescia,
os recém-chegados acrescentavam suas vozes ao zumbido ou
apenas ficavam olhando para a cena – todos pareciam sentir
instintivamente como era importante ficar quieto.
Isto é, até Kent Buckley aparecer.
— O que diabos está acontecendo? — ele gritou do topo do
quebra-mar. — Ninguém me mandou mensagem! — Ele desceu os
degraus de concreto até a areia e então abriu caminho pela
multidão, com o rosto vermelho e afobado.
A essa altura, os bombeiros trouxeram algumas cadeiras de
praia para Babette e Tina, e Clay se enrolou no colo da mãe –
totalmente relutante em deixar a praia, mas lutando para ficar alerta.
Quando Tina viu Kent Buckley, ela desafiadoramente permaneceu
sentada, apertando um pouco os braços em torno de Clay.
— Você deveria me avisar quando ele fosse encontrado — disse
Kent. — Eu tive que ouvir toda a história no noticiário!
— Shh — disse Tina.
Os espectadores cantarolaram um pouco mais alto, como se
pudessem abafá-lo.
— Você não poderia me enviar uma mensagem? — Kent
Buckley exigiu.
— Eu estava ocupada — disse Tina.
— Ele é meu filho — disse Kent Buckley, soando notavelmente
petulante. — Tenho estado tão preocupado quanto você.
— Não — disse Tina. — Porque você é a razão pela qual ele
fugiu em primeiro lugar.
— Eu já te disse, minha secretária não me lembrou!
— Ela não deveria ter que lembrá-lo.
— Tente você! — disse Kent Buckley. — Tente trabalhar tanto
quanto eu e veja se consegue se lembrar de cada pedacinho de
minúcia!
Mas Tina estava balançando a cabeça.
— Isso não era minúcia — disse ela. — Este era o aniversário
do seu filho. Foi uma viagem que você remarcou outras três vezes.
Ele nunca reclamou. Toda vez que algo acontecia, ele te perdoava.
Mas desta vez… — Ela balançou a cabeça como se estivesse muito
brava para continuar falando. — Não mais.
Mas Kent Buckley não era realmente alguém que aceitava
críticas. Certo? Ele não iria apenas se inscrever para o crescimento
pessoal. Ele não ia ter uma epifania aqui nesta praia que ele ignorou
todas as verdadeiras fontes de nutrição em sua vida na busca
implacável de status.
Não. Ele ia atacar de volta.
— E que tipo de mãe você é? — Ele demandou. — Esta criança
esteve literalmente fora a noite toda. Ele está molhado, meio
inconsciente. Ele deveria estar em casa em sua cama, dormindo
profundamente. E, no entanto, aqui está você sentada, em uma
cadeira de praia, como se fosse algum tipo de festa a noite toda.
Então Kent, que, notei de repente, não havia se desculpado com
Clay por tê-lo esquecido, estendeu a mão para Clay e disse:
— Vamos, filho. Hora de ir.
Mas Clay apenas piscou para ele por um segundo. Então ele
balançou a cabeça e disse:
— Não. Eu preciso ficar.
Amigável não funcionou, então Kent Buckley mudou para dizer:
— Venha aqui. Agora mesmo.
Mas Clay balançou a cabeça. Então ele saiu do colo de Tina e
ficou de frente para seu pai, parecendo tão jovem e tão pequeno.
— Não — disse Clay.
E então todos nós assistimos enquanto Kent Buckley se
inclinava sobre seu filho de nove anos e sibilava:
— Venha comigo. Ou farei com que você se arrependa.
Mas Clay, firme e calmo, disse:
— Eles precisam de mim e eu vou ficar.
Foi um momento infernal de Davi e Golias. Acho que depois de
fazer amizade com uma baleia, os humanos não parecem mais tão
assustadores.
E foi então que Tina se levantou e deu um passo à frente.
— Ele quer estar aqui. Ele não quer ir com você. E eu não vou
obrigá-lo.
— Você o fará, se souber o que é bom para você.
— E adivinha o que mais eu não vou fazer? — Tina disse,
levantando-se e movendo-se em direção a ele. — Não vou deixar
você vender a escola dos meus pais.
— Você não pode 'me deixar' fazer nada.
— Você realmente vai lutar comigo? — Tina disse, se
aproximando. — Porque eu acho que você está esquecendo alguma
coisa.
O rosto de Kent Buckley dizia: Ah, sim?
— O que seria isso?
Muito deliberadamente, como se ela estivesse dizendo muito
mais do que estava dizendo, Tina disse:
— Eu conheço todos os seus segredos.
O rosto de Kent Buckley congelou.
Tina continuou.
— Eu deixei muitas coisas passarem. Olhei para o outro lado,
atendi às suas exigências e fiquei calada. Principalmente, eu fiz isso
por Clay. Fiz isso porque pensei que ele precisava de um pai. Mas
você sabe do que? Ele não precisa de qualquer pai. Ele precisa de
um bom pai. E eu tentei tanto por tanto tempo não acreditar nisso,
mas você não é um bom pai. — Ela balançou a cabeça e disse de
novo, como se o ato de dizer isso fosse fortalecedor. — Você é um
pai terrível. E você é um péssimo marido. E você é uma pessoa
terrível. Meu pai era o tipo de pessoa que tornava tudo melhor...
mas você torna tudo pior. Eu não queria saber disso sobre você. Eu
não queria que fosse verdade. Mas a verdade é que Clay estaria
cem vezes melhor sem você. E eu também. Agora que vejo isso...
não consigo deixar de ver. É isso. Eu recuei de você mil vezes, mas
isso não vai acontecer hoje.
O tom de Kent Buckley mudou então, quando ele percebeu que
precisava administrá-la de uma maneira diferente.
— Olha, foi um longo dia. Vamos para casa, ter uma boa noite
de sono e conversar sobre tudo pela manhã.
De repente, ele parecia tão razoável. Tive um lampejo de
preocupação de que Tina pudesse desistir.
Mas então ela disse:
— Não — E então ela balançou sua cabeça. Tina disse: — Eu
quero o divórcio.
Digamos que essa era uma declaração que não seria fácil para
Kent Buckley. Ele se endireitou. Ele deu um passo mais perto. E
então ele gritou:
— Sua vadia!
Um suspiro da crescente multidão de professores na praia.
— Pai! — Clay disse. — Você vai assustar a baleia.
Kent Buckley olhou para Clay antes de se voltar para Tina com
um tom mais baixo e ainda mais ameaçador.
— Você não pode se divorciar de mim.
Foi quando Babette se aproximou de Tina.
— Claro que ela pode.
E então eu me aproximei também.
— Ela absolutamente pode.
Alice também veio depois disso, e depois o treinador Gordo, e
então, um por um, o resto dos professores. Um exército silencioso
de apoio.
E a última pessoa a aparecer – e não era típico dele aparecer
assim que parei de olhar – foi Duncan.
Foi quando Kent Buckley decidiu que estava em menor número
e se aproximou para agarrar a mão de Tina e puxá-la para longe do
grupo. Em resposta, Clay correu para se livrar de seu aperto e
empurrá-lo para trás, embora Clay dificilmente fosse forte o
suficiente para fazer isso.
Kent Buckley empurrou o filho para fora do caminho e Clay caiu
na areia.
Num piscar de olhos, Duncan estava entre eles.
— Ei — ele disse para Kent Buckley. — Vá com calma.
— Afaste-se, amigo — disse Kent Buckley. — Isso não é sobre
você.
— Por que você não dá uma caminhada, e tire alguns minutos
para se acalmar?
— Eu não preciso me acalmar! — Kent Buckley gritou.
Ele definitivamente estava perturbando a baleia. A multidão
cantarolou um pouco mais alto.
— Kent! — disse Tina. — Apenas vá para casa.
— Não me diga o que fazer! — Kent gritou.
— Ok, amigo — disse Duncan, aproximando-se. — Já chega. —
E Duncan estava colocando o braço em volta dele, presumivelmente
para conduzi-lo até os degraus do paredão por uma pequena
distância, quando Kent Buckley se virou e o acertou bem no
estômago.
Eu estava a alguns metros de distância quando aconteceu,
apenas mais um na multidão ainda zumbindo que havia desviado
sua atenção da baleia para o divórcio em tempo real acontecendo
diante de nossos olhos.
Assim que o punho de Kent Buckley o acertou, Duncan se
dobrou e caiu na areia.
Todas as perguntas – se Duncan tinha surtado com minhas
convulsões, ou se ele me decepcionou, ou se ainda éramos amigos
ou não – desapareceram. Corri para ele sem pensar, sem decidir, no
momento em que dois policiais da seção de harmonia agarraram
Kent Buckley e o algemaram.
Algo que Kent Buckley não gostou muito.
— O que você está fazendo? — ele berrou.
— Isso é agressão, amigo — disse um dos policiais. — Estamos
levando você para a cadeia.
E com notável eficiência, eles manobraram Kent Buckley até os
degraus do quebra-mar e subiram até a viatura. Tina observou-os
partir, sem protestar, enquanto eles o empurravam para o banco de
trás e depois iam embora – sem sirene.
Não quero dizer que não foi uma grande novidade para a filha de
Max exigir o divórcio do presidente do conselho da escola e, por
isso, presidente para dar um soco no diretor antes de ser levado
para a cadeia. Em qualquer outro dia, teria sido a maior notícia que
poderíamos imaginar.
Mas hoje, mal registrou. Antes mesmo de ele sair da praia,
voltamos nossa atenção para a majestosa criatura em perigo diante
de nossos olhos. Tínhamos trabalho a fazer. Uma tentativa de
resgate para completar. E não vamos esquecer as canções de natal
para cantar. Todos se voltaram para a baleia – todos menos eu e
Chuck Norris, que agora estava do outro lado de Duncan,
lambendo-o.
Duncan ainda estava ofegante e tossindo.
— Ele pegou seu tecido cicatricial? — Perguntei.
Duncan deu um aceno de cabeça irônico.
— Dói bastante... mas estou bem. Ele é mais forte do que
parece, no entanto.
— Você acha que pode se levantar?
— Só se for preciso.
Eu o ajudei a se levantar e ele tentou me olhar nos olhos, mas
eu me virei. Aproximei-me da água, como se dissesse que a baleia
precisava de toda a minha atenção. O que parecia, na verdade,
meio que verdade.
A equipe de resgate ainda estava na água, ainda trabalhando na
última seção da rede.
Os níveis de água foram mais baixos com cada rolo de ondas.
O sol estava nascendo e estávamos ficando sem tempo.
Observei Duncan passar por todos nós, indo em direção aos
socorristas, e sacar seu próprio canivete para começar a trabalhar,
ajudando.
Eu disse a mim mesma para manter o foco. Que meu desgosto
pessoal poderia esperar.
Não parecia bom para a baleia. E eu nem percebi que estava
chorando até Alice aparecer ao meu lado e colocar o braço em volta
do meu ombro.
Não havia mais nada que eu pudesse pensar em fazer, então
orei.
Eu nem sou uma pessoa que reza, mas rezei pela baleia. Fiquei
bem ali, com as ondas até os tornozelos, e apenas rezei como o
inferno para que algo de bom saísse deste dia. Para que toda essa
bondade humana chegue a alguma coisa. Para alguém nesta praia
ter um final feliz.
Mesmo que fosse um peixe.
Mais tarde, Clay me corrigiria revirando os olhos e explicando,
novamente, que não se pode chamar um mamífero marinho de
peixe.
— É um insulto.
Mas nomenclatura à parte, minhas orações funcionaram.
Tudo bem. Talvez eu devesse dar um pouco de crédito aos
socorristas que realmente cortaram a rede. Ou a Rede de
Encalhamento de Mamíferos Marinhos. Ou o menino de nove anos
que começou tudo.
Quando eu estava começando a perder as esperanças, o último
pedaço de rede se soltou.
Não havia tempo a perder. A equipe de resgate empurrou um
pouco a cauda da baleia para virá-la e colocá-la de costas para o
mar, e então se juntaram atrás dela e, contando até três, deram um
empurrão por trás.
Eles podem não ter sido capazes de fazer isso sozinhos, mas –
no três, assim que eles empurraram, como se também estivesse
seguindo a contagem – a baleia ergueu suas barbatanas, bombeou-
as para baixo e lançou-se em direção ao mar aberto e desapareceu
sob a superfície.
Todos nós paramos de cantar.
Todos nós ficamos maravilhados – sozinhos agora, apenas com
o barulho das ondas.
Um policial e um bombeiro foram derrubados, mas voltaram a se
levantar, rindo.
E então, sem mais nada para fazer, toda a praia irrompeu em
aplausos. Babette e eu nos abraçamos. Clay e eu nos abraçamos.
Até Tina e eu nos abraçamos. Os professores todos se abraçaram.
Todos os oficiais se abraçaram – e então eles vieram para agarrar
Clay e colocá-lo em seus ombros.
Todo o barulho que estávamos segurando o tempo todo veio à
tona, e nós comemoramos, pulamos e balançamos os braços –
completamente exaustos e absolutamente conectados ao mesmo
tempo.
E então, quando estávamos terminando, Clay gritou:
— Olhe! — e vimos um conjunto de baleias erguer-se da água,
perto do horizonte cada vez mais claro.
E então vimos outro conjunto de baleias.
E depois mais dois.
— É um grupo deles — disse Babette.
— Eles estavam esperando por ele — disse Tina.
— Eles estão acenando para nós — Alice disse então, acenando
de volta. Então todos nós acenamos também.
— Você acha que eles estão agradecendo? — Perguntei.
Mas Clay balançou a cabeça, ainda sobre os ombros de um dos
médicos.
— Não — ele disse. — Acho que eles estão se despedindo.
vinte e sete

Tina levou Clay para casa depois disso, com planos de dormir por
uma semana.
A polícia partiu também – exceto por um carro, esperando que
Duncan voltasse e embrulhasse a papelada.
Antes de sair, ele veio me encontrar.
Eu estava parada sob o píer, parando para olhar a água,
esperando que meu cérebro registrasse tudo o que havia
acontecido.
Ele caminhou até mim com as mãos nos bolsos.
Ele engoliu em seco quando me viu.
— Você deveria ir para casa, Duncan. Ir para a cama.
— Sim — ele concordou. — Noite louca.
— Sim.
— Eu só... tinha uma pergunta.
— O que?
— O que está acontecendo?
— Eu não sei — eu disse. — O de sempre. Encontramos uma
criança desaparecida. Mandamos o presidente do conselho para a
cadeia. Resgatamos uma baleia. Noite bastante comum.
— Mas você está... com raiva de mim?
— Não! — Eu disse. — Não. — Então acrescentei: — Está tudo
bem. Entendo. Eu realmente entendo.
Não fazia sentido falar sobre isso agora. Era o que era.
— O que está bem?
Eu tentei manter minha voz leve, como se tudo fosse vagamente
divertido.
— Você. Você sabe. Saindo. Mais cedo. Entendo. Quer dizer, eu
te avisei. Não pode dizer que não avisei. Mas você estava tão
ocupado discutindo comigo que meio que perdeu a chance de
escapar. Isso é com você.
Mas Duncan estava realmente carrancudo agora.
— Do que você está falando?
— Mais cedo — eu disse, gesticulando de volta para a cidade
—, eu tive uma convulsão, e você finalmente viu sobre o que eu
estava te alertando, você surtou e saiu correndo. E está tudo bem.
Já disse.
Duncan balançou a cabeça.
— É isso que você acha que aconteceu?
Dei de ombros.
— Bem, eu acordei sozinha na minha cama no breu em um lugar
vazio, então... sim.
— Como você acha que chegou à sua cama?
Então ele me arrastou até lá antes de sair.
— Obrigada.
Eu realmente estava muito cansada para isso. Meu corpo inteiro
estava trêmulo. Senti um aperto na garganta como se estivesse
prestes a chorar e estragar meu disfarce.
— Sam — disse Duncan. — Eu não fui embora. Eu fiquei.
— A parte de eu acordar sozinha contradiz você.
Ele balançou a cabeça frustrado e disse:
— Você teve uma convulsão, e foi um pouco assustador
testemunhar apenas porque era algo novo, e não parece a coisa
mais relaxante que uma pessoa poderia fazer, e é difícil assistir
alguém que você ama passar por algo que parece uma agonia. Mas
eu não surtei e não te deixei. Que tipo de idiota você pensa que eu
sou? Eu fiquei, claro que fiquei. Eu cuidei de você e fiz tudo o que
você disse para fazer. E quando você acordou depois, eu a ajudei a
ir para a cama, e a aconcheguei, e me aconcheguei ao seu lado na
cama. E eu ainda estaria lá agora se não tivesse recebido uma
ligação à meia-noite informando que Clay havia desaparecido.
— Você só saiu por causa de Clay?
— Só saí por causa do Clay.
Eu tentei assimilar isso.
— Eu disse a você que estava saindo — Duncan continuou. —
Mas você estava tão fora disso. E você disse que as convulsões
dificultam a lembrança das coisas. Então é por isso que pedi à Alice,
Babette mandou uma mensagem para ela porque eu estava em
uma reunião com a polícia.
Deixei todas essas peças se encaixarem na minha cabeça.
— Você não... foi embora?
Ele se aproximou um pouco mais.
— Você ficou? — Perguntei. — Voluntariamente?
Ele assentiu e se aproximou.
— E agora estou de volta. Tentando continuar sem ir embora.
Eu não conseguia olhar para ele.
De alguma forma, saber que ele não tinha ido embora parecia
doer mais do que pensar que sim.
Parece loucura, eu sei.
Mas era como se eu tivesse passado o dia inteiro apenas
tentando manter meu coração unido e não suportava a ideia de abri-
lo novamente.
— Eu não sou um cara que foge — disse Duncan. — Eu sou um
homem melhor do que isso.
Ele era. Ele era, com certeza. E de repente meus olhos tinham
lágrimas neles.
— Você é um homem melhor do que isso — eu disse.
Ele se inclinou mais perto, como se fosse me beijar, mas eu
recuei.
Eu balancei minha cabeça.
Duncan franziu a testa.
— Eu não posso — eu disse. — Eu não posso te pedir para
fazer isso. Não é justo com você. Você já tem o suficiente para lidar
com isso. Não posso pedir que você seja meu enfermeiro.
— Ei. — Ele estendeu a mão para tentar pegar minha mão. —
Sam–
Mas eu me afastei.
— Não — eu disse.
Era demais. O que eu sentia por ele era demais. Eu tinha medo
de me importar tanto com alguém. Eu sabia agora, depois de
acordar sozinha, como eu era vulnerável. E eu simplesmente não
aguentei.
Afastei-me dele e comecei a correr pela areia até os degraus do
quebra-mar.
Subi sem olhar para trás.
Mas eu não precisava.
Desta vez, ele não me perseguiu.

Acontece que Alice e Babette estavam esperando por mim no topo


da escada.
Elas vieram até mim como se eu fosse um animal selvagem que
eles precisavam prender.
— O que você está fazendo? — Babette perguntou, parecendo
quase zangada.
Mas balancei a cabeça.
— Não posso.
— Você não o ouviu? — Alice exigiu enquanto os dois seguiam
atrás de mim. — Ele não te deixou. Ele ficou.
— O que... você estava escutando?
— Estávamos apenas esperando por você! — Babette disse.
— Então você ouviu tudo isso?
— Sim, e você é uma idiota — Alice disse.
— Tudo bem — eu disse, virando-me para marchar ao longo do
quebra-mar. — Nós realmente não temos que xingar umas às
outras.
Mas Alice não ia me deixar distraí-la. Ela seguiu.
— Você se acovardou!
— Eu não me acovardei! Foi autopreservação!
— A coisa que você quer, a pessoa que você quer, estava ali
para ser tomada, e você simplesmente foi embora.
Agora eu podia sentir minha garganta engrossando. Meu rosto
ficou molhado com lágrimas que eu não tolerava. Eles só me
deixaram com mais raiva.
— É demais, ok? Nunca nada foi demais para você?
— Sim! — Alice agarrou meu braço para me parar e me virar. —
Cada missão que Marco faz é demais para mim. Cada vez que me
despeço sabendo que talvez nunca mais o veja é demais para mim.
Mas adivinhe? Eu faço isso de qualquer maneira.
Ela me teve lá. Eu desviei o olhar.
Alice continuou.
— Faço assim mesmo porque vale a pena! Porque me recuso a
deixar o medo me tornar pequeno. Porque ser corajosa é bom para
você.
— Ótimo — eu disse, virando-me para continuar andando. —
Incrível.
Alice e Babette me seguiram. Alice continuou:
— Você tem dito a Duncan desde que ele chegou aqui que ele
não pode deixar o medo controlar cada movimento seu. Que ele não
pode viver em uma prisão para se manter seguro. Mas foi
exatamente isso que você acabou de fazer. Você se coloca em uma
prisão. Como você vai enfrentá-lo dia após dia assim? Como você
vai trabalhar com ele sabendo que ele ficou, que ele fez tudo o que
você pediu, e você ainda não teve coragem de dizer sim?
— Eu não estou — eu disse então, diminuindo a velocidade para
me virar e encará-los. — Eu não vou trabalhar com ele. Eu me
demito.
Alice e Babette ficaram em silêncio.
— Eu sempre soube que isso ia acontecer — eu disse. —
Sempre soube que a vinda dele para cá me tiraria da cidade. Tudo
bem! Eu sou uma hipócrita! Quem tem medo sou eu. Eu sou a
pessoa que viveu toda a sua vida com medo. Sou eu quem fala
sobre ser corajoso sem ter a menor ideia do que isso significa.
Então, sim, vou me acovardar. E dê o fora daqui. E desista.
— Não — Babette disse então.
— Não? 'Não o quê?
— Não, você não vai embora. E não, você não está se
demitindo. E não, você não está desistindo de Duncan. Ou em si
mesma. Ou do amor.
Quando ela digitou a palavra “amor”, sua voz falhou. Mas, com
seu jeito digno, ela se endireitou e deu um passo mais perto.
— A vida nunca te dá o que você quer do jeito que você quer. A
vida nunca torna as coisas fáceis. Como você ousa exigir que a
felicidade seja sua sem nenhum sacrifício, sem nenhuma coragem?
Que ideia incrivelmente estragada, de que qualquer coisa deve vir
fácil? O amor te faz melhor porque é difícil. Correr riscos torna você
melhor porque é aterrorizante. É assim que funciona. Você nunca
conseguirá nada que importe sem merecê-lo. E mesmo o que você
ganha… — ela ergueu o queixo em desafio — você não conseguirá
manter. A alegria é passageira. Nada dura. Coragem é exatamente
isso. Sabendo de tudo isso entrando, e entrando de qualquer
maneira.
Havia lágrimas em seu rosto agora, mas ela sustentou meu
olhar. Pensei em tudo que ela havia perdido. Eu pensei sobre o tipo
de coragem que deve ter levado agora para ela procurar uma cidade
escura por seu neto desaparecido – saber que qualquer coisa
poderia ter acontecido, enfrentar o terror de tudo isso, mas aparecer,
de qualquer maneira. Procurar e continuar procurando – durante
toda a noite e madrugada adentro.
Como ela deve estar exausta.
E, no entanto, aqui estava ela. De pé no quebra-mar em seu
roupão, os olhos vermelhos de exaustão – e teimosamente,
insistentemente, preocupando-se comigo e com todas as minhas
escolhas estúpidas.
Isso era o que significava estar vivo. Isso era o que significava
deixar a beleza de tudo partir seu coração. Eu entendi de uma nova
maneira, olhando para ela naquele momento. E eu tenho outra
coisa, também. Isso é o que significava fazer parte de uma família.
Eu não ia desistir. Para o bem ou para o mal, eu pertencia aqui –
nesta ilha nesta velha cidade devastada pelo mar. Essas eram as
pessoas que escolhi amar – que também escolheram me amar. Eu
não viraria as costas para eles. E eles não estavam prestes a me
deixar virar as costas para mim mesmo.
— Você está certa — eu disse então, balançando a cabeça.
Aproximei-me e apertei a mão de Babette. Então eu me virei para
Alice. — Você está certa, também.
— Eu estou sempre certa.
Então olhei para o caminho por onde tínhamos vindo, em
direção ao píer em Murdochs. Duncan ainda estaria lá?
Então olhei para Babette e Alice, e ambas já sabiam o que eu
estava pensando. Então Babette estendeu a mão e deu um
pequeno empurrão no meu ombro no momento em que Alice gritou:
— Vá! — E isso era tudo que eu precisava.

Eu saí correndo.
Eu voltei para onde tínhamos começado em segundos, parecia.
Ainda havia alguns carros de polícia estacionados no bulevar.
Talvez nem todos tivessem ido.
Cheguei à beirada e olhei para os degraus em direção à praia,
respirando com dificuldade, na esperança de encontrá-lo.
Mas a praia estava vazia, como se nenhum de nós jamais
tivesse estado lá.
Eu me virei, ainda respirando. Onde ele estava? De volta à
estação? De volta à escola? Eu não fazia ideia. Eu me virei em uma
espécie de varredura panorâmica, esperando localizá-lo em algum
lugar.
Mas foi quando a porta do passageiro de um dos carros-patrulha
se abriu e Duncan saiu.
Corri até ele e parei antes de me jogar em seus braços.
— Desculpe! — Eu disse.
Duncan apenas olhou, como se estivesse tentando me entender.
— Você ficou — eu disse — e isso realmente importa. Você
ficou, e eu sou muito grata a você.
Ele balançou sua cabeça.
— Claro que fiquei.
Então, sem saber se era uma afirmação ou uma pergunta, eu
disse:
— A convulsão não... mudou o que você sentia por mim.
Ele balançou a cabeça ainda mais.
— Claro que não.
Desta vez, as palavras – o fato delas e o que elas significavam –
me atingiram de maneira diferente. Desta vez, não as desviei. Desta
vez, eu as deixei entrar.
Elas giravam em meu peito de uma forma que quase me deixava
tonta.
Fechei os olhos.
Duncan deu um passo mais perto.
— Na verdade, para ser sincero, mudou o que sinto por você.
Abri os olhos para encontrar os dele.
E então ele disse isso quase com tristeza.
— Eu acho que isso me fez te amar mais.
— Você me ama — eu disse.
Ele assentiu.
— Espero que esteja tudo bem.
E então estendi a mão em volta de seu pescoço, puxei-o para
mim e o beijei.
Os policiais, ainda esperando para levar Duncan de volta aonde
quer que estivessem indo, todos buzinaram.
Quando Duncan se afastou, ele olhou intensamente nos meus
olhos.
— Então está tudo bem?
E então, porque a alegria foge, e nada dura, e mesmo o que se
ganha não se consegue guardar, não perdi mais tempo.
— Eu te amo, Duncan — eu disse. — Eu te amo há muito, muito
tempo. — Eu disse isso para ser corajosa. Eu disse para ser melhor.
Mas, mais do que tudo, eu disse isso porque era verdade.
E então Duncan se inclinou novamente, e eu me espreguicei, e
mesmo que os policiais estivessem esperando, nos permitimos um
beijo simples, fácil e perfeito.
Mas com certeza merecemos.
No meio do caminho, Duncan se separou, estendeu um dedo
para mim tipo, por um segundo, e então trotou para bater na janela
do passageiro do carro de polícia mais próximo. A janela baixou e
Duncan enfiou a cabeça para dentro.
Quando ele recuou, todos os carros da polícia se afastaram.
— O que você disse? — Perguntei.
Ele encolheu os ombros.
— Só perguntei se poderíamos terminar a papelada mais tarde.
E então ele me acompanhou de volta para minha casa e
dormimos juntos.
Na verdade, eu dormi.
Porque cara, oh, cara, estávamos cansados. E cara, oh, cara,
que inferno de dia-noite. Mas estava tudo bem. Melhor do que bem,
mesmo.
Foi, de fato, o melhor que qualquer um de nós esteve em muito
tempo.
epílogo

Tina realmente fez o que disse. Ela se divorciou de Kent Buckley.


Todos nós tínhamos medo de que o ímpeto de sua antiga vida
pudesse fazê-la se acovardar, mas ela o fez. E embora, em teoria, o
divórcio seja uma coisa triste – a coisa realmente triste foi o
casamento que veio antes dele. O próprio divórcio acabou sendo
uma solução feliz.
O que quero dizer é que as coisas melhoraram muito para Tina
Buckley quando ela se livrou de Kent e de todas as suas exigências.
Tina e Clay acabaram indo morar com Babette por um tempo, o que
agradou muito a Babette, enquanto Tina voltou para a faculdade
para terminar seu curso.
Acontece que um dos deveres de esposa de Tina Buckley era
preparar refeições gourmet para Kent na maioria das noites, então
Babette comeu muito bem depois que Tina voltou para casa e
começou a ensinar-lhe algumas habilidades na cozinha.
E eu também. Porque Tina – de todas as pessoas – me
convidou para me juntar a eles.
Acontece que é uma coisa engraçada sobre as mães: uma vez
que você ajuda seus filhos a resgatar baleias no meio da noite, elas
param de odiá-la tanto. Ou, talvez, uma vez que elas se livrem dos
maridos que deveriam odiar o tempo todo, eles podem te dar um
tempo.
De qualquer maneira, nós fizemos as pazes.
Ela acabou se revelando uma pessoa muito mais legal do que
eu pensava.
Tina impediu Kent de vender nossa escola. Ela deve ter tido
alguma sujeira realmente grande sobre ele. Ele nem mesmo brigou.
Seu comportamento na praia – especificamente, agredir o diretor da
escola – também motivou sua destituição do conselho.
Adivinha quem ocupou o lugar dele?
A bela Babete.
Kent Buckley mudou-se para Nova Jersey depois disso, e
acabou se tornando o tipo de pai divorciado que não fazia um
grande esforço – ou, francamente, nenhum esforço – para ver o
filho.
E embora todos concordemos que é bom para os meninos – em
teoria – ter um pai por perto, também concordamos que isso
realmente depende bastante do pai.
O que foi bom. Clay acabou com uma família melhor, de
qualquer maneira. Entre Tina, Babette e eu, ele tinha adultos
amorosos mais do que suficientes cuidando dele. Eu até dei a ele
sua própria prateleira RECOMENDAÇÕES DE CLAY na biblioteca.
Sem mencionar a Rede de Encalhamento de Mamíferos Marinhos,
que lhe deu uma medalha e o homenageou em seu jantar anual de
arrecadação de fundos (ele usou um pequeno smoking), além de
fazê-lo se voluntariar com eles quase todo fim de semana.
Depois que Babette assumiu seu lugar de direito no conselho,
Kent Buckley foi rapidamente esquecido. Finalmente avançamos
com o Jardim Aventura e construímos a mais incrível casa na árvore
em forma de navio pirata. Babette continuou a mandar em Duncan –
em parte porque agora ela realmente poderia fazer com que ele
fosse demitido –, mas principalmente porque era divertido.
Ele gostou mais do que admitiu, eu acho.
Acabamos fazendo mudanças de segurança na escola. O
objetivo passou a ser fazer o suficiente sem fazer demais. Duncan
nos trouxe para a triste era moderna em que as escolas precisam
pensar sobre essas coisas, mas acabou confiando nos instintos da
sabedoria coletiva do corpo docente quando se tratava de descobrir
onde traçar a linha. Ele mudou um pouco a escola, mas também
trabalhou para mudar um pouco o mundo, também, se voluntariando
para um grupo de detecção de armas e tentando tornar o mundo
mais seguro.
E enquanto isso, apesar de todas as preocupações, tragédias e
injustiças do mundo, lembrávamos de nos divertir quando podíamos.
Nós nos lembramos de ter festas dançantes, concursos de
construção de castelos de areia e competições de decoração de
biscoitos. Nós nos lembramos de fazer karaokê, ter noites de
cinema no pátio da escola e fazer longas caminhadas na praia.
Deixamos as crianças escreverem histórias sobre o fantasma da
escola no Halloween, matamos aula na escola em belos dias de
primavera e trouxemos de volta o Dia do Chapéu.
Fizemos a escolha de fazer alegria de propósito. Não apesar das
tristezas da vida. Mas por causa deles.
E realmente ajudou.
Não que nossas vidas tenham sido consertadas magicamente.
Babette ainda sentia falta de Max, e lamentava por ele, e sentiria
pelo resto de sua vida. Tina ainda – inexplicavelmente – sentia falta
de Kent Buckley, ou, pelo menos, da ideia dele. Alice ainda tinha
que viver grande parte de sua vida com Marco implantado a meio
mundo de distância. Clay ainda tinha filhos na escola chamando-o
de Brainerd.
E mesmo depois que Duncan e Chuck Norris se mudaram para
minha casinha comigo, Duncan ainda tinha pesadelos e eu ainda
tinha convulsões.
Não consertamos tudo um para o outro – mas não
precisávamos.
Acabamos de escolher estar lá.
O que contou muito.
Max sempre brincou que se alguém fizesse uma estátua dele,
ele iria querer que fosse uma fonte – dele fazendo xixi. Mas o
conselho, mesmo com Babette no comando, simplesmente não
conseguia aceitar essa ideia.
Nós nos apegamos à sua memória de outras maneiras.
Decidimos fazer uma festa dançante anual com tema de discoteca
em sua homenagem. Penduramos um quadro que Babette fizera
dele no escritório. E Babette pintou um mural colorido na cerca do
parquinho com o marxismo favorito de todos: “Nunca perca a
chance de comemorar”.
Perdemos chances de comemorar depois disso? Ficamos
presos em nossas preocupações e nossas discussões mesquinhas
e em nós mesmos?
Claro. Nós éramos apenas humanos.
Mas tentamos o nosso melhor – de novo e de novo e de novo –
para escolher a alegria de propósito. Assim como Max teria
desejado.
E, claro, não larguei meu emprego, nem deixei minha ilha, nem
perdi a coragem. Eu fiquei e escolhi as pessoas que eu amava
repetidamente. Para melhor e para pior.
Mas principalmente para melhor.
agradecimentos

Preciso agradecer a muitas pessoas que generosamente me


ajudaram a criar esta história.
Muita gratidão a todos os bibliotecários do mundo por fazerem o
trabalho da alma de que o mundo tanto precisa – bem como aos
professores e bibliotecários específicos com quem consultei: minha
mãe (que diria que ela apenas “quase” trabalhou como bibliotecária
antes de ter filhos e depois assumiu a empresa de seu pai depois
que ele morreu – mas ela tem um diploma MLS e me deu um amor
pelos livros desde o início, então ela conta!); minha irmã, professora
Shelley Stein; a bibliotecária Mary Lasley; e a bibliotecária (e ex-
amiga de infância escritora de fanfiction do Duran Duran) Julie
Alonso. Devo também mencionar que meu marido, Gordon, um
professor de história da sétima série, foi basicamente o modelo de
Duncan neste livro. A calça maluca? Os laços? O crachá de “Defesa
Contra as Artes das Trevas”? As suculentas afogadas? Isso é tudo
dele. Ele é realmente uma lenda do ensino – e estou muito
orgulhosa de sua bondade, sabedoria e a maneira como ele sempre
torna tudo melhor.
Também sou profundamente grata a minha amiga Dale Andrews
e sua filha Izzy por ser um recurso tão fenomenal e por falar comigo
de forma tão aberta e honesta sobre os desafios de viver com
epilepsia.
Muito obrigada também a Veronique Vaillaincourt, LCMSW, e
Gerard Choucroun, MSW, por sua ajuda enquanto eu pesquisava
PTSD e seu tratamento. Também quero agradecer o trabalho da
Dra. Patricia Resnick sobre Terapia de Processamento Cognitivo.
Agradeço também a Norri Leder, ex-chefe de divisão da Moms
Demand Action for Gun Sense in America, por conversar comigo
com tanta atenção sobre os efeitos da violência armada em nossas
escolas e comunidades.
Também sou muito grata a Wayne Braun, Corey Lipscomb (Olá,
Heather!) e Philip Alter por me ajudarem a pesquisar questões de
projeto de construção – e devo muito ao fascinante livro Joyful: The
Surprising Power of Ordinary Things to Create Extraordinary
Happiness, de Ingrid Fetell Lee, por sua visão sobre como o projeto
pode impactar nossa experiência do mundo.
OBS: Os poemas que Duncan gostaria de ter lido em seu funeral
são dois dos meus favoritos: “From Blossoms” de Li-Young Lee e
“Wondrous” (um poema sobre a teia de Charlotte) de Sarah Freligh.
Procure-os! E também, antes que me esqueça, preciso agradecer a
Makenzie Minshew, uma garota que conheci enquanto fazia uma
“pesquisa” sobre o tubarão de ferro do mundo real, que descreveu
nosso medo coletivo perfeitamente quando disse: “É como se seu
estômago estivesse do avesso”. Agradeço de coração, também, a
Lizzie Kempner McFarland e Babette Hale por me deixarem usar
seus nomes.
E posso apenas reservar um momento para agradecer a todos
os Bookstagrammers, blogueiros, revisores on-line e… apenas…
leitores por aí que se arriscaram em meus livros, os amaram e
ajudaram a espalhar a palavra de uma forma ou de outra?! Livros
vivem ou morrem no boca a boca. Se você já fez alguma coisa para
encorajar alguém a ler algo que escrevi, obrigada. Isso importa.
Ainda estou aqui por sua causa.
Preciso enviar os mais sinceros agradecimentos à minha amada
professora de redação do Vassar College, Beverly Coyle. Jamais
esquecerei – e sempre apreciarei – o momento em que ela me
disse: “Posso contar nos dedos os alunos que ensinei que escrevem
como você”. Encorajamento é tão vital e tão precioso, e essa
pequena frase me ajudou a passar por alguns longos vales de
dúvidas.
Sou grata além da descrição humana à minha amada editora, St.
Martin's Press, por todas as maneiras pelas quais eles acreditaram
em mim e me apoiaram e se tornaram o lar mais maravilhoso. Estou
muito agradecida por estar lá, e muito sortuda por trabalhar com as
pessoas mais incríveis do planeta: Jen Enderlin, Sally Richardson,
Lisa Senz, Olga Grlic, Jessica Preeg e Katie Bassel, Brant Janeway,
Erica Martirano, Tom Thompson, Sallie Lotz, Natalie Tsay, Elizabeth
Catalano, Anne Marie Tallberg, Lauren Germano… e muitos mais,
incluindo, de certa forma, meus queridos amigos Katherine e
Andrew Weber! Eu também – sempre – quero agradecer à minha
agente, Helen Breitwieser, por todo o seu apoio inabalável ao longo
de tantos anos.
Acima de tudo, preciso agradecer à minha família divertida,
amorosa e surpreendentemente solidária – principalmente, meu
marido hilário, Gordon, meus filhos encantadores, Anna e Thomas,
e minha mãe fenomenalmente incrível, Deborah Detering – por
todas as maneiras pelas quais eles continuam me encorajando a
chegar lá e tentar como diabos alcançar meu potencial. Não há
como eu agradecer o suficiente... mas sempre vou continuar
tentando.
Sobre a autora

KATHERINE CENTER é autora best-seller do New York Times de


oito romances, incluindo Things You Save in a Fire e How to Walk
Away. Katherine foi comparada a Nora Ephron e Jane Austen. O
Dallas Morning News chama suas histórias de “satisfatórias da
maneira mais nutritiva”. Katherine recentemente deu uma palestra
no TEDx sobre como as histórias ensinam empatia. Seu trabalho
apareceu no USA Today, InStyle, Redbook, People, The Atlantic,
Real Simple e outras publicações. Ela mora em Houston com seu
marido divertido e dois filhos queridos.
Conteúdo

Página de título
Dedicatória
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Vinte e quatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Epílogo

Agradecimentos
Sobre a autora

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