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POR QUE NÃO?

TATIANE RANGEL

POR QUE NÃO?

Dimensões Ficção

EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2014
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

REVISÃO Andressa Gatto


CAPA E DIAGRAMAÇÃO Wallace Escobar

Por que não?


RANGEL, Tatiane

1ª Edição
Novembro de 2014
ISBN: 978-85-8473-106-0

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Ana e Waldir, muito obrigada por ter cultivado em
mim o hábito da leitura com todos os livros que me deram de presente
antes mesmo de eu aprender a ler. Obrigada também pelas historinhas
que liam para mim antes de dormir e pela paciência que tiveram em
repetir exaustivamente algumas delas.
Agradecimento especial à minha amiga Andressa Gatto, que com
muito carinho fez um valiosíssimo trabalho de revisão. Muito obrigada.
Obrigada também aos amigos e leitores do meu blog – onde surgiu
a ideia deste livro – pelo incentivo, pelas opiniões e por todo o apoio e
carinho que me dedicaram até aqui. A torcida de vocês foi fundamental!
Não poderia deixar de mencionar meu escritor preferido, com
quem aprendi a amar a escrita, José Mauro de Vasconcelos. “Meu Pé
de Laranja Lima”, o primeiro livro que li sozinha, foi uma grande ins-
piração, meu primeiro e grande amor literário. Esteja onde estiver, José
Mauro, muito obrigada!
E finalmente, agradeço a Deus por me dar forças para continuar
e nunca me deixar.
Sequer pensar em desistir.
Graças a Ele tudo isto foi possível.
Obrigada a todos os leitores por participar da
realização deste sonho!
Sumário

CAPÍTULO 1
HÁ MALES QUE VÊM PARA BEM 15
CAPÍTULO 2
o espelho quebrado 23
CAPÍTULO 3
eu, tu, ele... nós 31
CAPÍTULO 4
teus olhos e teus olhares 47
CAPÍTULO 5
por que não eu? 59
CAPÍTULO 6
meu universo é você 81
CAPÍTULO 7
emoções conflitantes 89
CAPÍTULO 8
rompendo o silêncio 101
capítulo 9
noites de verão 107
CAPÍTULO 10
não fale 119
CAPÍTULO 11
uma nova chance 125
CAPÍTULO 12
alguém se importa? 131
CAPÍTULO 13
para o seu bebê 145
CAPÍTULO14
escuridão 153
CAPÍTULO15
recomeço 165
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CAPÍTULO 1
HÁ MALES QUE VÊM PARA BEM
I sabel andava pensativa pela rua. Nunca imaginara que aquilo
pudesse acontecer com ela algum dia. Sim, muitos haviam avi-
sado. No ritmo louco que sua vida andava ultimamente, era quase inevi-
tável. No entanto, Isabel deu de ombros. O que aquelas pessoas sabiam?
Nunca havia acontecido nada parecido antes. Não aconteceria agora.
Não mesmo.
Aquele estava, até então, sendo o melhor ano de toda a sua vida.
Isabel estava experimentando uma mudança radical. No ano anterior, as
coisas eram bem diferentes, embora não fizesse tanto tempo. Ela mora-
va em outra cidade, estudava em outra escola, conhecia outras pessoas.
Vivia um tanto isolada e reclusa, num mudinho que cabia dentro de seu
quarto. Nunca tinha sido realmente feliz e nem achava que o seria um
dia.
Um dia, assim, sem mais nem menos, seu pai chegou em casa e
anunciou a mudança. A vida tinha melhorado, os negócios iam bem e
finalmente havia comprado uma casa numa cidade melhor, um tanto
distante daquela. Uma cidade mais bem estruturada, com gente diferen-
te e... escolas melhores! Era a última semana de aula de Isabel, de modo
que seu pai esperou que elas terminassem antes de se mudarem. As fes-
tas de final de ano também fizeram com que a mudança fosse adiada por
mais alguns dias. Assim, na primeira semana de janeiro, se mudaram.
A nova cidade era muito maior que a anterior. Muito comércio,
gente andando na rua o dia todo. Ainda assim, o pai de Isabel conseguiu
encontrar um imóvel numa rua tranquila. Não gostava de apartamento.
Preferia uma casa e a encontrou numa área bastante residencial, que
se estendia para longe do centro comercial, até o limite com o bairro
seguinte.
Em fevereiro, Isabel começou as aulas em uma nova escola. Era
bem diferente das escolas que conhecia. Não era necessário usar unifor-
mes, o que fazia com que os corredores parecessem um grande desfile
de moda. As pessoas eram em sua maioria extrovertidas e comunicati-
vas. Sorriam quase o tempo todo.
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As amizades foram surgindo. Junto com elas, surgiam também as


paqueras, os olhares, os flertes. Do alto de seus dezesseis anos de idade,
Isabel pela primeira vez se deu conta da própria beleza. Sentia que tinha
o mundo aos seus pés e que podia ter quem ou o que quisesse.
Os fins de semana tornaram-se agitados. Quase nunca parava em
casa. Eram festas, reuniões com os amigos e casas noturnas.
Logo, sábados e domingos não eram mais suficientes. As conver-
sas e brincadeiras muitas vezes começavam na porta da escola e termi-
navam num clube, numa praça ou outro lugar qualquer, fazendo com
que chegasse em casa um pouco antes do jantar. Durante as aulas tam-
bém não era diferente. Passavam bilhetes, conversavam, combinavam o
que fariam depois da aula.
Porém, havia duas semanas, Isabel tinha tomado um verdadeiro
“banho de água fria”. Durante a aula de Física, o professor, irritado, pe-
diu que ela ficasse depois da aula. A notícia que lhe foi dada caiu como
uma bomba:
- Isabel, eu sinceramente não sei mais o que fazer com você. Você
fala o tempo inteiro, não presta atenção na aula, não entrega os deveres...
- Desculpe, professor. Não vai mais acontecer.
- Deveria ter parado há muito tempo. Aliás, não devia sequer ter
começado.
- Prometo que vou melhorar. Por favor, não conte aos meus pais.
- Então é bom melhorar MESMO! Isabel, estamos em setembro
e suas notas estão horríveis. Se não tomar uma atitude agora, você vai
repetir o ano.
- Repetir o ano? Não, isso nunca me aconteceu antes. Eu sempre
fui boa aluna, não vai acontecer.
- Não se iluda, Isabel. Se não começar a correr atrás do prejuízo
agora, vai acontecer sim. E até onde eu sei, não é só em Física. Pense
bem.
O professor não contou aos pais de Isabel. A direção da escola é
que contou. Os sermões foram inevitáveis. O castigo também. A mesada
de Isabel foi cortada e ela teria de estar em casa todos os dias pela hora
do almoço. A única exceção aberta foi à biblioteca pública, mas teria que
provar que esteve lá. Para isso, Isabel tirava cópias do livro de registros e
mostrava aos pais. Nos finais de semana podia sair apenas algumas ho-
ras durante o dia. Isso se cumprisse a rotina de estudos imposta durante
a semana.
Deste modo, os amigos foram se afastando. Não porque quises-
sem, mas porque Isabel pouco podia vê-los. Só restaram os intervalos
das aulas.
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Agora ela ia pensativa pela rua, para mais uma tarde na biblioteca.
Não entendia como aquilo havia chegado a tal ponto. Sua vida era agita-
da sim, mas Isabel tinha a cabeça no lugar. Quase não bebia, não fuma-
va, não usava drogas. Nem tinha namorado. Tinha muitas paqueras. Às
vezes “ficava” com alguém, mas não tinha namorado. Ela só gostava de
se divertir, de estar com os amigos. Estava longe de ser uma garota fútil
e metida. Uma vez sua mãe lhe disse: “Tenho certeza disso tudo, Isabel,
mas para tirar boas notas não basta ser uma pessoa legal. Sei que você é
uma menina maravilhosa, mas se não estudar, não vai passar de ano!”.
Isabel entrou na biblioteca. Fez o registro de entrada, deixou a
bolsa no guarda-volumes e foi até o acervo procurar o que queria. Livros
de Matemática, três volumes.
As mesas menores estavam todas ocupadas. Restava a mesa maior,
onde cabiam umas dez pessoas. Isabel não gostava muito dessa. Preferia
estudar sozinha, pois se concentrava com mais facilidade. No entanto,
não havia outra opção. Aquela era a última mesa disponível e só resta-
vam dois lugares, um ao lado do outro.
Isabel sentou-se e procurou se acomodar. A mesa estava terrivel-
mente cheia de livros de modo que foi difícil abrir espaço para suas
coisas. Ficou apertado, mas conseguiu. Abriu os livros e começou a fazer
exercícios de cálculo e resumos teóricos.
Estava muito difícil se mexer com a mesa tão cheia. Isabel acabou
esbarrando em uma pilha de livros muito grossos que estava do seu lado
esquerdo. Os livros vieram abaixo de uma só vez, fazendo um barulho
que fez eco na biblioteca. As pessoas olhavam e pediam silêncio. Algu-
mas riam. A vergonha de Isabel aumentou ainda mais quando ela viu
que boa parte dos pesados livros bateu no rapaz sentado ao lado antes
de cair no chão.
- Desculpe, não vi que tinha alguém aí. O lugar estava vazio quan-
do sentei e esta pilha enorme de livros não deixou que eu te visse. – dis-
se Isabel encabulada, enquanto ajudava o rapaz a recolher os livros do
chão.
- Bem, a culpa é minha. Eu coloquei os livros aí. Quando você se
sentou eu tinha ido buscar outros.
Isabel olhava para baixo e se concentrava em catar os livros, tama-
nha era sua vergonha.
- Veja, não vou mais precisar destes. Vou chamar alguém para re-
colher, assim evitamos mais acidentes. – disse o rapaz sorrindo.
- Tudo bem, deixa que eu vou. É o mínimo que eu posso fazer
depois de quase matar você.
- Não, sente-se. Olhe para mim: está tudo bem, não me machu-
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quei, viu só? – disse o rapaz ajudando Isabel a se sentar enquanto tenta-
va mostrar que saíra ileso da avalanche de livros.
Isabel olhou para ele. O rapaz sorria com simpatia. Uma enorme
descarga elétrica pareceu percorrer o corpo de Isabel. Nunca tinha vis-
to alguém que a atraísse tanto. Era estranho, porque nunca havia visto
aquela pessoa antes, mas mesmo assim, no primeiro olhar, ela sentiu
suas pernas fraquejarem e sua vista escurecer. Isabel piscou algumas ve-
zes e pôs a mão na cabeça, mostrando claramente que estava tonta.
- Está tudo bem? Você está pálida.
- Sim, está tudo bem. Não foi nada.
- Você está gelada, quer que chame alguém? – disse o rapaz segu-
rando a mão de Isabel.
- Não, não é preciso. Já estou melhor, obrigada. Acho que me le-
vantei muito rápido só isso.
- Acho que você teve uma queda de pressão. Fique sentada. Vou
buscar um copo d’água para você.
O rapaz saiu para buscar a água enquanto Isabel se recuperava do
choque.
“Que rapaz bonito!”, pensava Isabel. Se estivesse a sós com ele
naquela biblioteca, poderia jurar que estava em um lugar qualquer da
Dinamarca. Seus olhos eram de um azul muito translúcido; os cabelos
eram loiros, quase brancos e ele deveria ter pelo menos um metro e
oitenta de altura. Mas não era só isso. Ele também esbanjava simpatia
e alto-astral. Tinha uma energia muito agradável e dispensara à Isabel
uma atenção desinteressada, que poucos estranhos naquele lugar dis-
pensariam.
O rapaz voltou com uma garrafa de água mineral e uma moça,
que recolheu os livros; deixando, assim, que os dois pudessem se ver
enquanto estavam sentados. Isabel tomou um gole da água.
- Está melhor?
- Sim, obrigada. Não precisava ter feito isso.
- Imagine, eu quis ajudar.
Ele olhou para Isabel com certa curiosidade. Pensou um instante
e se apresentou:
- Me chamo Daniel. – disse estendendo a mão.
- Isabel. – respondeu, aceitando o cumprimento.
- É um prazer.
Daniel olhou para os livros à frente de Isabel e perguntou:
- Matemática? É difícil ver gente jovem por aqui, ainda mais estu-
dando Matemática.
- História? – perguntou Isabel com ironia, enquanto dava uma
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olhadela nos livros dele – Então é isso que gente jovem deve estudar?
Você não parece tão mais velho que eu.
- Sei disso, tenho dezenove anos. É que, se você olhar em volta, vai
notar que a maior parte das pessoas nesta sala já passou da idade escolar.
- É verdade! – disse Isabel, surpresa – Não tinha percebido.
- Por que Matemática?
- Porque preciso muito recuperar minhas notas. Estou prestes a
repetir o ano.
- Isso é mal.
- É, eu sei. – disse Isabel, encabulada – E por que História?
- Estou fazendo um trabalho.
- Terceiro ano?
- Não, já me formei.
- Faculdade, então?
- É.
Neste momento, as pessoas da sala reclamaram e pediram silên-
cio.
- Melhor ficarmos quietos.
- É, ou então seremos linchados.
Ambos riram e continuaram com seus afazeres.
No final da tarde, quase ao mesmo tempo, Daniel e Isabel arru-
maram suas coisas e se prepararam para ir embora. Já fora da sala de
estudos, onde poderiam falar normalmente, os dois se despediram.
- Foi um prazer conhecer você, Isabel. – disse Daniel, enquanto
tirava da carteira o cartão de empréstimos da biblioteca. – Vou levar
estes. – disse para a balconista.
- O prazer foi todo meu. Mais uma vez, desculpe ter derrubado
todos aqueles livros em cima de você.
- Não tem problema, já disse que foi minha culpa.
- A gente se vê de novo?
- Quem sabe? Não sei se volto aqui nos próximos dias. Estou le-
vando os livros que preciso para terminar minha pesquisa.
- Bem, eu estou sempre aqui.
- Se não voltar a te ver, desejo boa sorte com as provas, desde já.
Espero que você consiga recuperar suas notas.
- Vou conseguir.
A balconista carimbou o cartão e juntamente com os livros, o de-
volveu a Daniel. Isabel assinou sua saída no livro de registros e pediu
uma cópia da folha, como sempre fazia.
- Por que isso? – perguntou Daniel.
- É uma longa história...
20 | POR QUE NÃO?

- Adoraria ouvir, mas preciso ir embora. Tenho um compromisso


e já estou atrasado. – disse Daniel, apressado, enfiando o cartão dentro
de um dos livros e os dois livros dentro da mochila. – Fica para a próxi-
ma. Boa sorte, Isabel.
- Tchau.
Daniel saiu a passos apressados, enquanto consultava o relógio.
Isabel se lamentou por aquela tarde maravilhosa ter acabado e ficou
olhando enquanto ele desaparecia atrás da vidraça.
A balconista voltou com a cópia do livro de registros e apontou
uma coisa em cima do balcão:
- Seu amigo esqueceu a carteira.
- Eu entrego para ele, obrigada. – disse Isabel, guardando as coisas
de modo apressado e desajeitado dentro da bolsa. Pegou a carteira e saiu
correndo para tentar alcançar Daniel. Isso talvez rendesse mais alguns
minutos de boa conversa.
Correu para a rua, gritando o nome de Daniel. Parou na calçada e
olhou em todas as direções, mas era tarde: ele já tinha sumido.
Isabel ficou desapontada e guardou a carteira na bolsa. Foi andan-
do para casa com o pensamento no “rapaz da biblioteca”.
Chegando em casa, Isabel foi até onde sua mãe estava sentada na
sala e lhe entregou a cópia do livro de registros da biblioteca. Subiu para
o quarto e deitou-se na cama. Ficou um momento olhando para a bolsa
que deixara de lado. Não resistiu ao impulso. Abriu a bolsa e retirou a
carteira.
Rolou o objeto na mão algumas vezes antes de decidir abrir. Era
uma carteira marrom de couro sintético. Não tinha nenhuma etiqueta
de grife.
Isabel puxou a aba e desabotoou. Olhou dentro e viu que não ti-
nha muito dinheiro. Olhou os documentos. Identidade, CPF, habilita-
ção. Nome: Daniel Dias Prata. Idade: dezenove anos, quase vinte. Dei-
xou os documentos de lado e olhou o que mais tinha na carteira. Um
santinho, cartão de banco, cartão de crédito. Nenhuma foto de mulher.
Bom sinal, não deveria ter namorada.
Mas como iria encontrá-lo novamente? Não havia nada na car-
teira que tivesse um endereço. Aquelas coisas com certeza iriam fazer
muita falta. Era melhor olhar outra vez. Talvez um número de telefone,
uma conta com o endereço de casa, qualquer coisa. O único lugar onde
não mexera era onde estava o dinheiro. Tirou um maço de notas peque-
nas e deixou de lado. Abriu mais o compartimento, deslizou os dedos
dentro e puxou um pedaço de papel. Era um cartão de loja: Dias Prata
Materiais Esportivos.
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Então ele era dono de uma loja? Isabel puxou pela memória. Sabia
onde ficava. Ela mesma tinha ido àquela loja no começo do ano para
comprar os artigos pedidos na sua lista de materiais de educação física.
Lembrou mais: aquela não era a única loja que conhecia. Tinha outra
no centro da cidade e mais algumas espalhadas pelos bairros adjacentes.
Bem, o dia seguinte seria sábado. Como havia sido disciplinada a sema-
na inteira, ganharia o direito de sair por algumas horas. Era só ir até a
loja mais próxima e perguntar pelo dono. Alguma informação teriam
que dar.

* * *

Isabel colocou a carteira na bolsa e saiu. Eram dez horas da ma-


nhã. O dia estava nublado e ameaçava chover, mas ela não havia notado.
Ia pelo caminho imaginando o que dizer quando reencontrasse Daniel.
Estava eufórica.
Chegando á loja, aproximou-se de um balcão e pediu:
- Por favor, gostaria de falar com o dono da loja.
- Ele não está. – respondeu um rapaz.
- O gerente, então.
- Hoje só vem à tarde.
Isabel respirou fundo e antes que ficasse irritada, explicou a situ-
ação:
- Veja bem, eu encontrei o dono desta loja ontem na biblioteca e...
Isabel foi interrompida:
- Acho difícil. Os donos são muito ocupados para frequentar bi-
bliotecas. Viajam muito. Estão na Europa há uma semana.
Isabel perdeu a calma, tirou a carteira da bolsa, bateu com ela so-
bre o balcão e alterou a voz:
- Se você parar de me interromper, posso acabar de explicar!
- Desculpe.
- Bem, alguém da família Dias Prata esteve comigo ontem na bi-
blioteca e esqueceu isto. Preciso do endereço para ir devolver.
- Posso ver?
- Dê uma olhada.
O rapaz abriu a carteira e reconheceu o nome e a foto da identi-
dade.
- Oh, sim! Já o vi por aqui. Acho que é filho dos donos.
- E então, você vai me dar o endereço?
- Não tenho permissão para isto. Posso telefonar para a casa deles
e talvez alguém fale com você.
22 | POR QUE NÃO?

Isabel já estava impaciente.


- Então telefona!
O rapaz consultou uma agenda e discou o número.
- Residência Dias Prata? Aqui é da loja do shopping do bairro.
Tem uma garota aqui que encontrou os documentos perdidos do senhor
Daniel. Podem falar com ela? Um segundo.
O rapaz passou o telefone para Isabel. Isabel explicou que estava
com a carteira perdida de Daniel e perguntou onde poderia entregá-la.
A voz do outro lado da linha disse que deixasse na loja e depois alguém
iria buscar. Isabel desligou, desolada.
- Olha, eu preciso muito falar com o Daniel! Você não pode mes-
mo me dar o endereço?
- Posso perder o emprego.
- Por favor, ninguém vai saber que foi você. Juro que não sou as-
saltante, nem sequestradora. Sou estudante, olha só a minha carteiri-
nha. Ainda nem fiz dezessete anos. Por favor!
Isabel tanto insistiu que o rapaz acabou dando o endereço.
- Se perguntarem, você não conseguiu este endereço aqui na loja!
- Pode deixar, não conto para ninguém. Muito obrigada!
Isabel saiu correndo com o papel nas mãos. Verificou o endereço
e viu que não era muito longe de sua casa. Apenas algumas quadras. Se
tivesse disposição, poderia ir andando.
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CAPÍTULO 2
o espelho quebrado
A rua era aquela. Faltava encontrar o número. Lado par, lado
ímpar, parecia um jogo. Por causa da dificuldade em con-
seguir o endereço, Isabel esperava encontrar uma casa de muros altos,
segurança particular no portão e cães ferozes. Nada disso. A casa que
encontrou era grande sim, mas nada absurdo. O portão era de grades,
fazendo com que pudesse ver todo o quintal.
A frente da casa tinha um jardim, algumas árvores e uma rampa.
Esta rampa ia para a varanda, onde Isabel viu alguém sentado atrás de
uma mesa, de cabeça baixa, concentrado em alguns livros. Parecia estar
estudando. Chegou mais perto do portão e pôs o rosto entre as grades
para ver melhor. Sim, parecia ser Daniel!
A euforia foi tanta, que Isabel esqueceu as regras de boa educação
que aprendera em casa e, notando que o portão estava destrancado, foi
entrando.
O rapaz que estudava na varanda levantou os olhos para ver quem
chegava. Estava um pouco diferente, usava óculos de grau e um boné
virado para trás, mas Isabel o reconheceu: era Daniel mesmo!
Isabel, sorrindo, aproximou-se e, antes que pudesse dizer qual-
quer coisa, o rapaz falou:
- Quem é você e por que foi entrando assim? Não sabe tocar a
campainha?
- Desculpe, o portão estava aberto. Você não se lembra de mim?
- Estou certo de que nunca a vi antes.
- Como assim? Conversamos ontem na biblioteca, sou eu, Isabel.
Vim devolver suas coisas, você esqueceu sua carteira.
- Biblioteca? Eu não fui à biblioteca.
Isabel chegou mais perto e levou um enorme susto: o rapaz estava
sentado em uma cadeira de rodas.
- Meu Deus! O que aconteceu com você?
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- Não sei se isso é da sua conta. Nem te conheço.


- Daniel, você se machucou? Foram os livros que eu derrubei em
você? – perguntou Isabel sem dar ouvidos ao que o rapaz dizia.
Neste momento, o rapaz pareceu cair em si e deu uma boa risada.
- Qual é a graça? É uma pegadinha por acaso?
- Não, não, me desculpe! Como eu não percebi antes? Não é a mim
quem você procura! Isso não acontece há tantos anos que eu nem notei!
- Não entendi. O que não acontece?
- Alguém nos confundir. Não sou o Daniel. Eu me chamo Cláu-
dio. Nós dois somos gêmeos!
Isabel perdeu a fala e sentiu-se uma verdadeira idiota. Por que não
havia pensado nisto antes? Ficou parada sem saber o que fazer. Queria
desculpar-se, mas não encontrava palavras para tal.
- O Daniel não está em casa, mas não deve demorar. Por que você
não se senta aqui e espera?
Isabel ainda estava sem palavras.
- Por favor. É o mínimo que posso fazer para me desculpar pela
grosseria. – pediu o rapaz sorrindo.
- Está bem.
Isabel sentou-se numa cadeira perto de Cláudio.
- Me desculpe você também. Não tive a intenção.
- Então acho que nós dois estamos desculpados, não é mesmo?
- É, acho que sim. Gêmeos! Ainda não acredito. Então você se
chama Cláudio?
- Bem, sim. Luís Cláudio, na verdade. Mas por favor, não me cha-
me de Luís. Fora da carteira de identidade sou só Cláudio.
- Eu também não sou só Isabel. Maria Isabel, na verdade.
- E aposto que não quer ser chamada de Maria.
- Acertou. Só Isabel, se você não se importa.
- Conhece meu irmão há muito tempo?
- Não. Conheci ontem na biblioteca. Ele esqueceu a carteira no
balcão e achei que iria gostar se eu viesse trazer.
- Com certeza! Ele está louco atrás dos documentos. Como conse-
guiu o endereço? Alguém da loja te deu?
- Não, eu peguei na biblioteca. – inventou Isabel, se perguntan-
do como não havia pensado nisso antes. Com certeza seria mais fácil
conseguir o endereço na biblioteca. Só que era sábado. A biblioteca não
abria aos sábados. Então estava melhor assim, ou teria que esperar até
segunda-feira.
- Boa estratégia! Você deve ser muito inteligente.
- Imagine.
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- Não acho que gente burra frequente bibliotecas.


- Bem, eu sim. Preciso estudar para não repetir o ano, por isso fui
à biblioteca e ainda assim estou com dificuldades.
- Não quer dizer que você seja burra. Se fosse, não procuraria me-
lhorar. Gente burra se acomoda. Você só deve ter um pouco de dificul-
dade. Me diga: em que matéria precisa melhorar?
- Todas as que envolvem cálculo, ou seja: Física, Química e Mate-
mática.
- Que coincidência! Estava justamente estudando Física. Vou
prestar vestibular. Se quiser, posso ajudá-la.
- Sério? Faria isso?
- Claro! Vamos trocar nossos telefones, assim podemos combinar
com calma os dias.
Os dois trocaram telefones, o que deixou Isabel muito satisfeita,
porque o telefone de Cláudio era também o telefone de Daniel. Ele de-
moraria mais para chegar? Precisaria estar em casa antes das três da
tarde e ainda nem tinha almoçado.
Cláudio parecia ser uma pessoa legal. Era muito simpático, sorria
bastante e falava como se já conhecesse Isabel desde a infância. Isabel
estava se perguntando o que teria acontecido para deixar Cláudio numa
cadeira de rodas. Era uma pena um rapaz tão bonito ser paralítico.
A conversa foi se desenrolando e logo os dois falavam de seus gos-
tos, seus filmes e músicas preferidos e um pouco de suas vidas pessoais.
- Vou fazer vestibular para Educação Física. – revelou Cláudio.
Isabel fez cara de surpresa, ao que Cláudio notou e tratou de des-
fazer certos equívocos muito comuns em pessoas que não convivem
com deficientes.
- Não faça essa cara. Sou perfeitamente capaz. Na verdade a mi-
nha condição não me impede de fazer quase nada. Claro que eu nunca
vou andar de patins, nem fazer sapateado, mas a maioria das coisas eu
posso fazer.
- Sabe nadar?
- Sim, sei nadar; jogo basquete; dirijo; faço quase tudo. A maioria
das pessoas pensa que ser portador de necessidades especiais significa
ficar parado, depender dos outros para tudo. Eu não deixo que me ve-
jam assim. Eu aproveito a vida. Se tenho que conviver com isso, que seja
da melhor forma possível. Posso te dizer que levo uma vida normal.
- Isso é muito bom! Você não precisa de nenhum tipo de cuidado
especial?
- Eu não diria desta forma. Não são exatamente cuidados espe-
ciais. Minha rotina é diferente, só isso. Faço fisioterapia para manter as
pernas fortes, sou vaidoso. Também faço análise e ioga para manter a
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cabeça no lugar, mas para isso não é necessário ser deficiente.


- É verdade. – Isabel não resistiu e perguntou: - Você nasceu as-
sim?
A expressão de Cláudio mudou. Não ficou zangado, mas o sorriso
desapareceu.
- Não, foi um acidente.
- Me desculpe. Não precisa falar sobre isso, se não quiser.
- Não, tudo bem. Foi um tombo. Caí de uma árvore quando tinha
sete anos. Meus pais tinham um sítio, onde passávamos as férias. Ti-
nha uma árvore muito alta, onde eu gostava de subir. Um dia, eu estava
sentado num galho, a uns três metros do chão. Eu perdi o equilíbrio,
caí para trás e bati as costas numa pedra que tinha embaixo. Fraturei a
bacia, um par de costelas e a coluna. Fiquei paralítico.
Isabel sentiu-se penalizada. Com os olhos cheios de lágrimas, pe-
gou as mãos de Cláudio e disse:
- Eu sinto muito. Deve ter sido difícil.
Cláudio, percebendo a tristeza de Isabel, levantou seu rosto com
uma das mãos e pediu:
- Não faça isso, não chore. Foi difícil sim, mas já passou. O im-
portante é que eu estou vivo. Sabe, meus pais nunca deixaram que eu
sentisse pena de mim mesmo. Mesmo depois do acidente, eles continu-
aram me tratando como antes e sempre disseram que estar na cadeira
de rodas não era desculpa para deixar de fazer as coisas. Eles estavam
certos. Eles sempre cuidaram para que eu vivesse a vida da forma mais
normal possível e eu sou grato a eles por isso. Hoje eu posso dizer com
toda certeza que sou uma pessoa feliz.
- Então vou ficar feliz por você.
- Isso mesmo.
- Nossa, eu estou espantada! Você e seu irmão se parecem muito.
- É, mas as pessoas não nos confundem mais há muito tempo.
Primeiro, porque eu sou o gêmeo paralítico. É chato, mas é a primeira
diferença que as pessoas notam. Segundo, porque a gente faz o possível
para não ficar igual. Eu uso óculos, ele não. Ele usa o cabelo curto, bem
baixinho e eu deixo meu cabelo crescer.
- Você tem cabelo comprido?
Cláudio tirou o boné e revelou um cabelo levemente ondulado,
preso por um rabo de cavalo. Solto, dava na altura dos ombros.
Isabel deslizou os dedos pelos cabelos de Cláudio, fazendo com
que ele instintivamente fechasse os olhos. Sem-graça, Isabel afastou-se
um pouco e comentou:
- É o cabelo que a maioria das garotas queria ter.
TATIANE RANGEL | 27

- Vou tomar como um elogio.


Os dois riram. Neste momento o portão se abriu e alguém entrou.
- Pronto. Chegou quem você estava esperando.
Era Daniel, que reconheceu Isabel de longe. Ele veio sorrindo com
um misto de alegria e surpresa.
- Isabel! O que a traz aqui?
- Veja só, Daniel. Ela encontrou a sua carteira.
- Minha carteira! Nossa, obrigado Isabel! Estava louco atrás dela!
Como sabia onde eu morava?
- Consegui seu endereço na biblioteca.
- Boa estratégia!
- Foi o que o seu irmão disse.
Daniel juntou-se a eles, sentando-se ao lado de Cláudio. Vendo os
dois lado a lado, Isabel teve uma impressão estranha. Teve a sensação de
estar diante de um espelho quebrado, que distorcia a imagem de Daniel.
Um rapaz belo e saudável, refletido como outro, preso a uma cadeira de
rodas.
A sensação de estar ali era estranha. Os três se olhavam com certa
curiosidade. Para Daniel, era estranho Isabel estar ali, pois ela era só a
garota que conhecera um dia antes numa biblioteca pública; para Cláu-
dio, era estranho o fato de uma garota linda e simpática entrar de re-
pente pelo portão da sua casa e estar naquele momento ali, diante dele;
e para Isabel era estranha a sensação do espelho quebrado... Pessoas tão
parecidas e, ao mesmo tempo, tão diferentes ali, uma ao lado da outra.
O tempo estava feio, ia chover, mas Isabel sentia-se colada à ca-
deira.
- E então? Onde está a minha carteira?
- O quê? Ah! A sua carteira, certo. Bem, eu vou procurar. Sei que
coloquei na bolsa, só um minuto. – disse Isabel, nervosamente.
- Não tenha pressa, procure com calma. – disse Daniel.
Cláudio notava certa agitação em Isabel e olhava para o irmão
com estranheza, como se um grande ponto de interrogação pairasse so-
bre a própria cabeça.
Isabel finalmente achou a carteira e a entregou a Daniel. Suas
mãos estavam trêmulas. Os dois irmãos notaram.
- Está tremendo, Isabel? O que houve? Está passando mal? – per-
guntou Cláudio.
- Não, ela só precisa de um copo d’água, não é mesmo Isabel? –
brincou Daniel.
Isabel não sabia onde enfiava a cara. Não podia acreditar que ia
passar mal na frente de Daniel outra vez. Quis se levantar e ir embora.
28 | POR QUE NÃO?

- Não, não estou passando mal, está tudo bem. Eu preciso ir agora,
já entreguei a carteira. – disse, já se levantando.
- Ei! Espere, Isabel, não vá ainda. – pediu Cláudio.
- É, por que a pressa? Você está prestes a ter outra queda de pres-
são. Fique aqui até melhorar.
- Eu não vou ter uma queda de pressão.
- Pare com isso, Daniel. Está constrangendo a garota. Isabel, des-
culpe o meu irmão. Fique e almoce com a gente.
- É sério, eu tenho que estar em casa às três.
- Ainda vai dar uma hora. Fica mais um pouco. – pediu Cláudio.
- Está bem. – sorriu Isabel.
- Ótimo! Vou pedir para servirem o almoço aqui na varanda mes-
mo. – disse Daniel se levantando e entrando.
Durante o almoço, Isabel notava mais diferenças entres os gêmeos:
Daniel era mais calmo, mais contido; Cláudio era mais brincalhão, mais
sarcástico; Daniel era vegetariano; Cláudio estava devorando o segundo
bife. Isso levava a outra diferença: Daniel comia apenas o suficiente para
matar a fome, enquanto Cláudio era uma verdadeira draga.
Isabel mal tocava na comida. Apenas observava o comportamento
oposto dos dois irmãos.
- Não repare, Isabel. O Daniel parece um coelho, só come mato.
Não deixe que ele te constranja. Coma o que quiser.
- E você é magro de ruim. Não sei para onde vai isso tudo. – reba-
teu Daniel.
- Bem, está vendo esta pancinha aqui? Ops! Não tem pancinha!
Eu faço exercício e, não sendo sedentário como você, não preciso fazer
dieta!
Todos riram.
- Não sou sedentário. Eu até me movimento bastante.
- Sei...
-É sério! Não vou fazer faculdade de educação física, mas eu me
mexo.
- Ajoelhar e rezar deve mesmo queimar muitas calorias.
Isabel ficou surpresa:
- Ajoelhar e rezar?
- Não acredito que ele não te contou!
- Contou o que?
- Ele é seminarista! – disse Cláudio às gargalhadas.
Isabel levou um choque:
- Então quer dizer que...
- É, esse bobão vai ser padre!
TATIANE RANGEL | 29

Naquele momento, um trovão soou alto, assustando Isabel, como


se fosse uma profecia sinistra. Começou a chover forte. Isabel se levan-
tou assustada, como que saindo de um transe.
- Eu tenho que ir embora.
- O que houve, Isabel? Termina de almoçar. – disse Cláudio es-
pantado.
- Não posso. Preciso mesmo ir. Obrigada pelo almoço.
Cláudio fez um sinal para Daniel, que entendeu bem o recado.
- Não vá sozinha nesta chuva, eu te levo em casa. Meu carro está
aqui em frente.
- Eu moro perto.
- Ei, acalme-se está bem? Não importa. Vou devolver o favor que
você me fez. Você trouxe minha carteira, e agora eu te levo em casa.
Daniel catou as chaves do carro no bolso da calça e conduziu Isa-
bel pelo jardim, enquanto Cláudio acenava aturdido, tentando despedir-
-se da menina.
Daniel parou o carro em frente à casa de Isabel e, antes de destra-
var a porta, ele perguntou:
- Você está bem?
- Pare de perguntar se eu estou bem. Chega de passar mal, por
enquanto.
- Me desculpe, eu só fiquei preocupado. Você quis sair de repen-
te... Foi alguma coisa que nós dissemos?
- Não, não foi nada. Olha, eu preciso mesmo ir. Obrigada por me
trazer em casa, você não precisava ter feito isso.
- Foi um prazer. Apareça mais vezes.
Isabel saiu do carro, bateu a porta atrás de si e deu um aceno sem
olhar para trás. Daniel observava, perplexo, enquanto ela entrava em
casa.
Isabel foi direto para o quarto e nem viu a mãe na sala quando
entrou. Trancou a porta, girou a bolsa no ar e bateu na parede por três
vezes. Depois a atirou longe e se jogou de bruços na cama.
Ela não podia acreditar. Padre? Ela raramente se interessava por
alguém e quando finalmente acontece, ele vai ser padre! Isabel chora-
va sem perceber. Chorava de raiva, de vergonha, de tristeza. Ela sabia
que era loucura. Ela o conhecia havia apenas vinte e quatro horas, mas
mesmo assim sentia que estava perdendo algo grande. Ela não sabia ex-
plicar, mas sabia que queria Daniel desde o primeiro instante em que
se viram. Aquele primeiro olhar havia lhe causado um frisson tão forte,
uma sensação tão louca, que ela por pouco não desmaiara. Ela nunca
havia acreditado naquilo em toda a sua vida. Achava que era história de
cinema e agora, estava sentindo na própria pele.
TATIANE RANGEL | 31

CAPÍTULO 3
eu, tu, ele... nós
D aniel acabara de chegar e Cláudio ainda estava na varanda.
Sentou-se ao lado do irmão e os dois se olharam comparti-
lhando a mesma interrogação.
- Quem é essa menina? – perguntou Cláudio.
- Eu sei lá... Ela estava ontem na biblioteca. Ela passou mal e eu
peguei uma garrafa de água mineral para ela.
- Foi só isso?
- Só, por quê?
- O comportamento dela foi estranho. Agiu como uma esposa tra-
ída...
- Como assim?
- Não sei, ela mudou quando eu falei que você ia ser padre. – disse
Cláudio, olhando desconfiado para Daniel.
- Pare de pensar besteiras. Nem a conheço direito.
- Tem certeza de que você não deu nenhuma esperança para ela?
Não fez nada que ela pudesse interpretar de maneira errada?
- Claro que não. Eu tenho convicção da minha vocação. Não saio
por aí paquerando menininhas em bibliotecas públicas.
- Você é um bobão mesmo.
- Por que diz isso?
- Uma deusa daquela te dando maior mole e você ainda insiste
nessa história de ser padre.
- Ela não estava me dando mole.
- Então por que ela fez tanta questão de trazer a tua carteira? Se
ela quisesse só entregar, ela teria deixado com alguém e depois teria ido
embora. E você precisava ver a cara dela quando você chegou. Só faltou
derreter.
- Bem, não importa. Ela já foi e acho que a gente nunca mais vai
se ver.
- Eu não teria tanta certeza.
- Por quê?
- Peguei o telefone dela. – disse Cláudio mostrando um papel e
sorrindo.
32 | POR QUE NÃO?

- Parece que alguém gostou dela! – disse Daniel rindo. De repente


ele ficou sério e advertiu o irmão: - Mas se for investir nela, tenha cuida-
do. Você pode se machucar.
Cláudio não falou nada, mas sabia o que o irmão queria dizer. Ga-
rotas não costumavam se interessar por rapazes inválidos. Ele conhecia
bem essa história.
Cláudio fechou os livros e foi para o quarto. Não queria mais es-
tudar naquele dia. Deitou-se em sua cama e ficou pensando em tudo
o que tinha acontecido. Isabel parecia ter caído direto do céu no colo
dele. Se fosse religioso como Daniel, com certeza pensaria se tratar de
um anjo. Mas ele não acreditava nessas coisas. Cláudio era ateu desde
sempre. Isabel... Isabel... Isabel... Aquele nome ecoava repetidas vezes
em sua mente. Aquele rosto não saía de sua cabeça, parecia uma foto,
uma tatuagem. Como ela era bonita! E que simpatia! Enquanto eles dois
conversavam, Cláudio nem viu a hora passar. “Que se dane, vou ligar
para ela” – pensou.
Daniel se fechou no escritório. Precisava estudar e terminar seu
trabalho de teologia. Sim, era isso mesmo o que ele pesquisava nos li-
vros de história antiga. Abriu os livros que trouxe da biblioteca, tirou
umas anotações de um caderno e começou a escrever. A concentração
estava difícil. A imagem de Isabel claramente frustrada ainda ardia no
pensamento. O que teria feito aquela menina supostamente se interessar
por ele? Seria isso mesmo o que estava acontecendo? Fosse o que fosse
ele não queria mais pensar nisso. Isabel era só uma desconhecida, uma
menina que ele conheceu na biblioteca. Ele estava estudando para ser
padre, ora essa! Não podia se permitir nenhum tipo de envolvimento.
Logo faria seus votos, entre eles, o do celibato.
Isabel era só um sonho distante. O sonho de uma vida que agora
tinha ficado para trás. Ela era um teste para sua fé, uma tentação que
precisava ser vencida.
Eram quase nove da noite quando o telefone tocou na casa de Isa-
bel. Sua mãe bateu na porta do quarto e chamou:
- Isabel, telefone para você.
Ela não queria atender. Depois daquela tarde, não tinha vontade
de falar com ninguém, mas mudou de ideia quando sua mãe disse de
quem se tratava:
- É um tal de Cláudio.
Isabel ficou animada. Talvez ele fosse dizer que tudo não passava
de uma brincadeira de mau gosto. Na pior das hipóteses, poderia ter
notícias de Daniel. E depois, seria bom falar com Cláudio. Tinha gosta-
do dele. Ele havia sido extremamente gentil, era uma pessoa divertida
TATIANE RANGEL | 33

e podia ser que ele dissesse alguma coisa que a fizesse rir nos fim das
contas. Foi atender ao telefone.
- Isabel? Sou eu, o Cláudio. Espero que ainda se lembre de mim.
– brincou.
- Claro que eu me lembro.
- Sua voz está estranha... Andou chorando?
- Não, meu nariz está entupido. – mentiu Isabel.
- Bem, eu liguei porque amanhã é domingo e eu pensei que talvez
você quisesse fazer alguma coisa.
- Estudar?
- Bem, se você quiser... Mas na verdade eu estava pensando em
assistir uns filmes.
- Você quer ir ao cinema?
- Não, eu pensei em passar na locadora. Você pode vir aqui pra
gente assistir.
Isabel pensou em recusar. Não estava com cabeça para ver filmes,
e eles mal se conheciam. No entanto, algo veio à sua cabeça: Daniel po-
deria estar lá. Seria um bom pretexto para encontrar com ele outra vez.
Isabel teve ainda a ideia louca de que se Daniel a conhecesse melhor, ela
poderia fazê-lo se interessar por ela e desistir do seminário.
- E então, você vem?
- Não sei, não posso chegar tarde em casa.
- Não tem problema, eu te levo de carro depois. Eu dirijo, lembra?
- Está bem, eu vou.
- De que tipo de filme você gosta?
- Sei lá, qualquer um. – o tipo não importava. O que Isabel queria
era ver Daniel, mas percebendo que foi grossa, tentou contornar a situa-
ção: - Quer dizer, escolha você que vai estar bem escolhido.
- Tá legal, vou tentar caprichar. Você pode estar aqui às duas ho-
ras?
- Posso.
- Então nos vemos amanhã. Um beijo.
- Tchau.
Isabel quase se arrependeu. Pensou em ligar de volta e cancelar
tudo, mas desistiu. Afinal de contas, não estava fazendo nada de errado,
ia só assistir uns filmes, não era um encontro.
Cláudio colocou o telefone de volta no criado-mudo e sorriu. Sus-
pirou longamente, fechou os olhos. Não conseguia parar de sorrir. Po-
deria passar a noite toda sonhando acordado. Estava feliz... Tinha um
encontro com Isabel.
Daniel saiu do banho, vestiu o pijama, abriu as janelas do quarto,
34 | POR QUE NÃO?

olhou para o céu. “ELE está vendo”, pensou. Estava com o pensamen-
to inquieto desde aquela tarde. O que Cláudio disse seria verdade? Se
fosse, não era nada bom. Uma garota interessada num seminarista... E
o seminarista? Estaria interessado na garota? Não! Não podia! Ele ti-
nha assumido um compromisso com Deus! “ELE está vendo” – pensou
novamente. Sentiu de repente um pânico crescer dentro de si. Aquela
garota não podia chegar assim de mansinho e fazê-lo duvidar de sua fé,
mesmo que por um segundo. Faltava pouco. Em breve ele seria ordena-
do e logo não precisaria mais pensar nisso. O nome de Isabel, no entan-
to, fazia eco em sua cabeça. Aquela cena de Isabel transtornada, o jeito
como ela se despediu quando ele a deixou em casa, tudo aquilo passava
em sua cabeça como um flashback, que se repetia sem parar.
Quase sem perceber o que estava fazendo, ajoelhou-se diante de
um crucifixo que pendia da parede e começou a rezar desesperadamen-
te: “Não me deixe cair em tentação. POR FAVOR! NÃO ME DEIXE
CAIR EM TENTAÇÃO!”.
Isabel acordou com dor de cabeça. Parecia que tinha sido atro-
pelada por um trem. Precisava de um bom café da manhã e uns bons
analgésicos. Não tinha ânimo para nada. Levantou com dificuldade e
decidiu que um banho talvez lhe devolvesse o ânimo. Sentindo-se mais
revigorada, mas ainda com dor de cabeça, Isabel foi comer alguma coisa
para poder tomar um remédio. Depois, se jogaria no sofá da sala e as-
sistiria TV.
Cláudio abriu os olhos, viu que já era dia claro e sorriu. Esticou um
dos braços, puxou para perto sua cadeira de rodas, sentou-se na cama e
se transferiu para a cadeira. Estava feliz. Foi até o banheiro, transferiu-
-se para outra cadeira de rodas onde tomou banho. Depois de limpo e
vestido, escovou os dentes como nunca havia escovado antes. Penteou
os cabelos e conferiu o visual no espelho. Era cedo para se arrumar, mas
não importava. Depois do café da manhã, pegaria o carro e iria até a
locadora escolher os filmes.
Daniel tinha acordado antes de todos na casa. Eram cinco e meia
da manhã. Estava habituado a acordar àquela hora. Tomou um banho,
escovou os dentes e vestiu-se. O café da manhã era modesto. Carpe diem,
dizia a filosofia que seguia no seminário. Comia o suficiente para se sa-
tisfazer. Nem mais nem menos. Às seis e meia, saiu de casa e foi à igreja.
Ainda tinha umas coisas para resolver antes da missa das sete. Ainda
bem que era domingo. Passaria o dia ocupado com suas obrigações reli-
giosas. Assim, não se distrairia pensando no que não devia e nem corria
o risco de encontrar Isabel e Cláudio em sua reunião particular.
TATIANE RANGEL | 35

O telefone tocou umas dez vezes antes que Isabel resolvesse aten-
der. Só cedeu sob os protestos da mãe.
- Isabel?
- Quem é? – perguntou ela com a voz arrastada.
- Cláudio! Já se esqueceu de mim?
- Ah... Desculpa Cláudio. Não reconheci sua voz.
- Quero saber se nosso filme ainda está de pé.
- Filme? – perguntou Isabel um tanto desorientada.
- É, nós combinamos ontem. Você ainda vem, não é?
Isabel acabava de se lembrar que tinha marcado com Cláudio.
Teve vontade de dizer que não ia, mas lembrou-se que podia ver Daniel
e também que não tinha coisa melhor para fazer.
- Vou sim. Que horas a gente marcou mesmo?
- Duas horas!
- Ah, é mesmo! Então duas horas eu chego aí.
Os dois se despediram e Isabel desligou o telefone. Não estava
com muita vontade de ver nenhum filme, mas a ideia de rever Daniel a
animou.
Isabel se olhou no espelho e não gostou nada do que viu. Estava
horrível! Toda descabelada e com olheiras profundas. Era melhor dar
um jeito nisso logo, ou então Daniel se assustaria com sua aparência
deprimente. Um trabalho de maquiagem bem feito ajudaria a disfarçar
tudo aquilo. A roupa certa daria o toque final. Olhou no relógio: tinha
exatamente uma hora antes de sair de casa.
Naquele domingo, Daniel cumpria com suas obrigações de modo
bem mais dedicado que de costume. Não desviava a atenção para nada.
Arrumara a igreja, ajudara na missa, dera aulas de catecismo às crian-
ças e agora fazia horas que rezava em silêncio. Estava ajoelhado diante
da cruz desde as dez da manhã. As pessoas que eram de seu convívio
sabiam que ele era dedicado, mas naquele dia em especial parecia dife-
rente. Ninguém nunca duvidara de seu comprometimento com a igreja
e tudo o que dizia respeito a ela, mas havia em suas orações um fervor
nunca visto antes.
Cláudio não parava de se olhar no espelho e ainda dava retoques
no penteado quando a campainha tocou. Ela tinha chegado! Deu uma
última checada em tudo antes de abrir a porta: a sala estava arrumada, a
música estava suave, ainda dava para sentir o cheiro do aromatizador de
ambientes e a luz estava perfeita. Foi abrir a porta.
- Isabel! Que bom que você veio!
Isabel sorriu.
- Entre! Fique à vontade.
36 | POR QUE NÃO?

Isabel olhou em volta. A casa era bonita, bem arrumada. A sala


era aconchegante. No dia anterior não chegara a entrar, ficara apenas na
varanda. A TV era grande e sobre a mesinha de centro havia uma bela
seleção de filmes.
- Você está melhor?
- Melhor? – estranhou Isabel.
- É, do resfriado.
- Ah! Sim, muito melhor. – respondeu Isabel lembrando-se do te-
lefonema da noite anterior.
- Senta. Vou pedir para a empregada fazer a pipoca. Deixei para
quando você chagasse. Assim a gente come bem quentinha.
Isabel se sentou no sofá e Cláudio veio estacionar sua cadeira
perto dela. Ele parecia incomodado com alguma coisa, mas tentava não
demonstrar.
- Estamos sozinhos em casa? – quis saber Isabel.
- Não, a empregada está aí.
- Eu quero saber se tem alguém da sua família em casa além de
você.
- Meus pais viajam muito. Eu fico aqui sozinho a maior parte do
tempo.
- E o seu irmão?
- Quando está aqui fica fora quase o dia todo.
- E quando não está? Onde ele fica?
- No seminário.
- Ah... – suspirou Isabel.
- Decepcionada?
- Como é que é?
- Pode falar, Isabel. Você gostou dele, não é?
- Deu pra notar? – perguntou Isabel encabulada.
- Você não conseguiu disfarçar ontem e não está conseguindo
agora.
Isabel não sabia o que dizer.
- Deixa eu te dizer uma coisa: esquece enquanto ainda é tempo.
Ele vai se ordenar. Se preparou para isso a vida inteira. Quer ser padre
desde quando era criança. Eu nem sei como começou essa história.
Isabel não escondia a decepção, mas ainda nutria dentro de si a
esperança de conseguir mudar Daniel. Já tinha ouvido histórias sobre
padres que largavam a batina para viver grandes amores. E se ela fosse o
grande amor de Daniel? Era melhor ficar calada. Não queria mais falar
naquele assunto. Não com Cláudio.
Já que Daniel parecia não estar em casa, era melhor tentar apro-
TATIANE RANGEL | 37

veitar o dia e ver o filme. Cláudio era boa companhia, ela gostava de
conversar com ele. Ele era divertido, inteligente, descontraído. Sentia
que no fim das contas o dia ia valer à pena.
- Que filme você pegou? – perguntou Isabel mudando de assunto.
Cláudio sorriu.
- Bem, como eu não sabia do que você gostava, eu peguei um de
terror, um de ficção, um drama, um romance, uma aventura, uma comé-
dia e um desenho animado. O que você prefere?
- Eu acho que hoje... Deixa eu ver... A comédia!
- Boa escolha! Vou colocar no DVD.
Cláudio colocou o filme para rodar e voltou para perto de Isabel.
Com uma ligeireza impressionante, ele saiu da cadeira de rodas e veio
sentar-se no sofá ao lado dela.
Isabel olhou com surpresa e sorriu. Parecia satisfeita de ver tanta
independência. A empregada chegou com a tigela de pipoca e os refri-
gerantes. Cláudio colocou a tigela entre ele e Isabel e cada um segurou
sua latinha.
O filme era uma comédia romântica, estrategicamente escolhida
por Cláudio. Todas as opções que ele havia escolhido tinham um pouco
de romance. Era uma estratégia muito sutil, mas ele achava que seria
interessante.
Os dois riam muito com as situações mostradas no filme e logo os
comentários sobre os protagonistas começaram a surgir:
- Credo, essa garota é cega ou o quê? Maior gato dando mole pra
ela e ela nem percebe!
- Gato? Eu ouvi bem? Esse magrelo? Cara feio, Isabel! Ela sim é a
maior gostosa!
- Tá de sacanagem! Loira aguada! Olha só! Viu quanta celulite?
- Invejosa.
- É você.
Os dois caíram na gargalhada. Um provocava o outro e depois os
dois morriam de rir. No fim das contas já nem prestavam mais atenção
ao filme. Eles se provocavam e riam. Em algum momento um dos dois
começou uma guerra de pipoca.
Quem visse aquela cena enxergava uma intimidade que nenhum
dos dois sequer imaginava. Pareciam velhos amigos e não pessoas que
haviam acabado de se conhecer.
Eles nem viram o filme acabar. Começaram a conversar sobre vá-
rios assuntos e a conversa foi se desenrolando. Cada um falava de si,
contava histórias da própria vida e perguntava sobre a vida do outro.
Foram horas e horas de um bate-papo tão gostoso que o tempo passava
e eles nem notavam.
38 | POR QUE NÃO?

Isabel era a mais curiosa. Perguntava tudo. Era movida principal-


mente pela condição de Cláudio. No fim das contas sempre queria saber
como ele fazia isso ou aquilo. Cláudio não se importava. A curiosidade
de Isabel era natural e a ele muito interessava parecer o mais indepen-
dente possível aos olhos dela. Por isso, respondia tudo com muita natu-
ralidade como se fosse muito óbvio e muito fácil.
- Como você fazia para ir à escola antes de aprender a dirigir?
- Meu pai me levava e me buscava de carro até certa idade. Depois
eu tive que aprender a me virar sozinho.
- Você consegue sair sozinho sem carro?
- Claro.
- E quando você precisa subir escadas?
- Está vendo esta belezinha aqui? – perguntou mostrando a cadei-
ra de rodas – É um modelo importado. Tem um mecanismo que possi-
bilita subir escadas.
- E se você ficar sem combustível?
- É elétrica. Deixo carregando à noite quando vou dormir para
não correr esse risco.
- E se acabar a luz?
- Não se pode ter tudo...
Os dois riram.
- Você é muito curiosa!
- Você também pode perguntar o que quiser.
- Então agora é minha vez.
- Vai em frente.
- Ok. Então vamos lá: se mudou para cá há quanto tempo?
- Oito meses.
- Qual o seu prato preferido?
- Lasanha.
- Uma cor?
- Vermelho.
- Qual a sua idade?
- Vou fazer dezessete.
- Tem namorado?
- Não. E você?
- Solteiríssimo.
- Já namorou alguma vez?
- O que você acha?
- Sei lá, me diz você.
- Você já namorou?
- Eu perguntei primeiro.
TATIANE RANGEL | 39

- Se você não responder eu não conto mais nada.


- Tudo bem, você venceu. Nunca namorei. Pelo menos nada mui-
to sério. Sua vez.
- Eu já tive algumas namoradas.
- Algumas?
- Bem, duas. Mas a última durou mais de um ano.
Isabel parecia surpresa. Não era a resposta que ela esperava ouvir.
- O que foi? Achou que um inválido não pudesse namorar?
Isabel ainda não sabia o que dizer, mas estava claro que agora ela
estava bastante constrangida.
- Tudo bem, Isabel. Não faça essa cara. A maioria das pessoas acha
isso mesmo, mas não é culpa de ninguém. Pelo menos você não pergun-
tou se minhas namoradas eram inválidas também.
- Desculpa, eu não tive a intenção.
- Isabel, eu disse que está tudo bem.
De fato estava. Cláudio não estava chateado. Nem perto disso.
Tudo o que ele queria era deixar bem claro para Isabel que ele também
era capaz de manter um relacionamento amoroso. Não queria que res-
tasse qualquer dúvida quanto a isso.
- Eu só dou furo com você, não é?
- Furo? Claro que não! Você só está mal informada. Me diz: quan-
tos amigos paralíticos você já teve?
- Nenhum.
- Viu só? É natural você se enganar com certos aspectos. A única
coisa que realmente me ofende é quando as pessoas começam a me tra-
tar como se eu fosse feito de vidro. Não quero a piedade de ninguém.
Sou um cara normal, faço tudo o que os outros fazem, então não precisa
me tratar diferente. Me prometa que nunca vai fazer isso, está bem?
- Prometo. – disse Isabel de cabeça baixa.
Cláudio segurou no queixo de Isabel levantando seu rosto.
- Por que você está triste?
- Triste não, envergonhada.
- Eu já não disse que está tudo bem? Melhore essa cara. Você es-
tava sorrindo antes e o seu sorriso é tão bonito! Vamos, dê um sorriso
para mim!
Isabel sorriu, sem graça.
- Assim está bem melhor.
O celular de Isabel tocou. Era sua mãe perguntando onde estava.
Já tinha passado da hora que ela deveria chegar em casa.
- Já estou indo, mãe. Eu sei que já é tarde... Eu sei, mãe, eu sei.
Estou saindo daqui agora. Tchau.
40 | POR QUE NÃO?

Isabel desligou o telefone e olhou para Cláudio.


- Tenho que ir embora. – disse, pegando a bolsa.
- Espera! Eu te levo. Eu prometi que te levava em casa e, além
disso, já escureceu. Pode ser perigoso você ir sozinha. Vou tirar o carro.
Me espera no portão.
Isabel fez uma cara de medo, mas tentou se controlar. Cláudio
percebeu.
- O que foi? Tem medo de andar de carro comigo, não é? Eu dirijo
bem.
- Não, imagine, não é nada disso.
- Eu chamo um taxi se você quiser.
- Nossa, Cláudio! Às vezes parece que você é quem tem pena de si
mesmo, sabia? Como você é complexado! E não falei nada!
- Eu sei que não, mas você fez uma cara estranha. Ah, deixa pra lá.
Vou ligar pro táxi.
- Não, eu quero que você me leve! – disse Isabel, pegando na mão
de Cláudio. Ele estremeceu.
- Tem certeza?
- Tenho!
- Então, vamos. – disse Cláudio sorrindo.
Os dois iam conversando pelo caminho. O assunto agora era o
vestibular que Cláudio ia prestar e as notas que Isabel precisava recupe-
rar para não perder o ano.
- Você ainda quer estudar durante a semana? – perguntou Cláu-
dio.
- Claro que sim! Se eu repetir o ano minha mãe me interna num
convento!
Cláudio deu uma risada gostosa.
- Que horas você prefere?
- Eu estudo de manhã.
- Posso te buscar na escola, então?
- Não precisa. Eu tenho mesmo que passar em casa para almoçar.
- Você pode almoçar comigo.
- É um convite? – perguntou Isabel.
- Com certeza! Onde você estuda e a que horas eu posso te pegar?
Isabel disse o nome da escola e marcou com Cláudio ao meio-dia.
- Então está combinado. Meio-dia eu passo lá e te pego. A gente
vai lá pra minha casa, almoça, faz a digestão e depois estuda.
- Está bem! Ah, aquela é a minha casa! Pode parar ali.
Cláudio parou em frente à casa de Isabel. Ela olhou nos olhos dele
e disse:
TATIANE RANGEL | 41

- Obrigada pelo dia. Eu estava precisando disso.


Hipnotizado pelos grandes olhos negros de Isabel, ele não con-
seguiu dizer nada. Ficou só parado, olhando também nos olhos dela.
Ficaram assim por algum tempo, até que Isabel quebrou o silêncio:
- Eu tenho que ir agora. – disse ela, quase num sussurro.
- Tudo bem. Até amanhã. – respondeu ele no mesmo tom.
- Você quer entrar?
- Não. Outro dia. Hoje eu acho melhor você entrar sozinha. Pare-
ce que sua mãe está meio zangada com você.
- Tudo bem. Até amanhã então.
Isabel saiu do carro e caminhou até a entrada de casa. Cláudio
ficou olhando, esperando até que ela desaparecesse atrás da porta. Antes
de fechar a porta atrás de si, ela se virou e acenou uma última vez.
Ele sorriu e acenou de volta. Ela entrou. Ele deu um suspiro pro-
fundo e seguiu para casa, dirigindo com um sorriso indisfarçável por
todo o caminho de volta.
Isabel entrou em casa se sentindo leve. Aquele pesar que ela havia
sentido na noite anterior e na primeira metade daquele dia tinha sumi-
do. Aquela tarde havia sido surpreendentemente boa. Ela mal ouviu o
sermão que a mãe pregara por ter chegado mais tarde que o permitido.
Nem se deu ao trabalho de tentar explicar a razão. Na verdade não tinha
razão. Ela simplesmente esqueceu-se da hora porque estava em uma
companhia agradabilíssima e não viu o tempo passar.
Se Cláudio pudesse andar, teria entrado em casa pulando. Quan-
do abriu a porta, Daniel estava sentado no sofá da sala, junto dos vestí-
gios de diversão daquela tarde. Parecia pensativo e tinha um olhar triste.
Estava passando uma das mãos sobre a tigela de pipoca vazia, como se
sentisse saudade de alguma coisa. No entanto, Cláudio estava tão feliz
que nem notou. Entrou, sorrindo indisfarçavelmente e, sem sentir, deu
um suspiro tão profundo que retirou Daniel de suas reflexões.
- Que sorriso é esse? De onde você está vindo? – perguntou ele
sem nenhum entusiasmo na voz, como se temesse a resposta.
- Fui deixar a Isabel em casa. – respondeu Cláudio, com um tom
forçosamente casual.
- E eu posso saber a razão de tanta felicidade? – perguntou Daniel,
um tanto irritado.
- O que você tem, cara? Aconteceu alguma coisa? Por que está
irritado?
Daniel, aparentemente constrangido, respondeu mudando com-
pletamente de tom, passando da irritação inicial a um sorriso repentino,
revelando um comportamento quase bipolar:
42 | POR QUE NÃO?

- Irritado, eu? Imagina! Só estou cansado. O dia foi cheio hoje.


Mas, me conta: como foi a tarde? Se divertiram?
Cláudio deu um sorriso largo e não escondeu a felicidade:
- Muito! Vou te contar uma coisa: ainda bem que você é padre!
- Como assim? – perguntou Daniel, intrigado.
- Já que você não se interessa, o caminho fica livre para mim. –
respondeu Cláudio, percebendo que, por pouco, não entregara o jogo
revelando a preferência de Isabel.
- Então, vocês... Bem... – Daniel não conseguia terminar a frase.
- Não! Ainda não... mas quase!
- Quase? Quase o quê?
- Faltou pouco para eu conseguir dar um beijo nela.
- Ah... – disse Daniel, sem saber se ficava aliviado ou desapontado.
- Nossa, Daniel! O que você pensou?
Daniel estava constrangido. Cada vez que abria a boca ele se enro-
lava mais. Era melhor ficar calado, porém ele não resistiu a uma última
pergunta:
- Então você acha que ela também está interessada?
- Talvez... Acho que sim. Agora me parece só uma questão de
tempo. – Aquelas palavras haviam sido escolhidas cuidadosamente por
Cláudio. Não interessava Daniel saber que Isabel estava na verdade inte-
ressada nele. Além disso, sabendo que Daniel ia ser padre, era provável
que agora Isabel mudasse de foco. Não tinha por que alimentar aquela
situação. Ele realmente acreditava que era só uma questão de tempo até
conseguir ter Isabel.
Daniel não sabia o que pensar. Não podia sentir ciúmes, mas es-
tava sentindo. Um conflito enorme crescia dentro dele. Ele ia ser padre,
não faltava tanto tempo para se ordenar e agora, depois de tanto estudo,
depois de estar tão perto de realizar um sonho de infância; pela primeira
vez estava colocando sua vocação em dúvida. Não era certo sentir ciú-
mes, assim como não era certo tentar impedir que o irmão fosse feliz. A
vida de Cláudio já era suficientemente difícil, embora ele não admitisse.
A última coisa de que ele precisava era ter a autoestima abalada. No
entanto, Daniel sabia de antemão que não iria suportar ver Isabel com
outra pessoa e o melhor seria dar um jeito de afastá-la da vida de ambos.
Isso não seria errado. Pelo menos ele queria acreditar que não. Por isso
pensou bem antes de desferir o último golpe contra as esperanças de
Cláudio:
- Cláudio, escuta bem o que eu vou te dizer: cuidado! Você co-
nheceu essa menina ontem, não sabe direito quem ela é. Você mais do
que ninguém sabe o quanto as pessoas costumam ser preconceituosas.
TATIANE RANGEL | 43

Veja bem se você não está confundindo as coisas. Pode ser que ela esteja
querendo ser só sua amiga. Namorar é outra história...
- Agradeço a sua preocupação mano, mas o que aconteceu hoje
deixou bem claro que eu tenho chance e eu vou entrar nessa de cabeça.
- Cláudio, pense bem! Vamos supor que ela queira mesmo ficar
com você: ela é menor de idade! Você vai fazer vinte anos... Olha a con-
fusão que isso pode dar.
- Aonde você quer chegar? – perguntou Cláudio, um tanto inco-
modado.
- Não tem outro jeito de dizer isso, então eu vou ser direto: estou
falando de sexo!
- Você está sendo paranoico.
- Você sabe que não estou.
- Daniel, eu sou paralítico.
- Você tem pinto, não tem? Até onde eu sei o teu pinto não é in-
válido.
- Não se faça de idiota. O que eu quis dizer é que mesmo que eu
quisesse, não poderia forçá-la a nada. Você sabe que para fazer sexo eu
dependeria totalmente da participação dela.
- Eu sei disso tudo, Cláudio. O que eu quero dizer é que nada im-
pede que ela participe e isso pode dar a maior merda!
Cláudio passou do incômodo inicial a uma raiva contida.
- Por que você está fazendo isso? Está interessado nela, por acaso?
Daniel sentiu o chão desaparecer sob seus pés.
- Não... Claro que não estou...
- Então por que você está tentando me convencer a desistir dela?
Olha só o que você está falando, cara! Eu mal cheguei perto de dar um
beijo nela e você já está vendo a gente na cama! Eu nem sei se isso vai
dar em alguma coisa!
- Eu só quero proteger você!
- Me proteger? De quê? De ter uma namorada? Ou será que você
quer proteger a Isabel de mim, da possibilidade de namorar um inváli-
do?
- Cláudio, pare com isso...
- Ou será que você está querendo se proteger?
- O que você está tentando me dizer?
- Que você não pode ser feliz e também não quer que eu seja!
Daniel se levantou e saiu andando.
- Chega. Não vou ficar aqui ouvindo isso.
- Vai sair de fininho agora que o bicho pegou?
Daniel se virou e claramente exaltado disse:
44 | POR QUE NÃO?

- Não vou mais discutir com você. Eu vou pro meu quarto, vou
dormir e sugiro que você faça o mesmo. Mas antes, vê se põe a cabeça
no lugar e pensa bem no que eu te disse.
Daniel se retirou e Cláudio ficou sozinho na sala. Ele tinha ficado
com as ideias confusas depois de tudo o que tinha ouvido do irmão.
Estava chateado por Daniel tê-lo lembrado de sua condição física e tê-la
colocado como empecilho para ficar com Isabel.
Daniel entrou no quarto e trancou a porta. Sentou-se na cama e,
transtornado, pôs as mãos na cabeça. Teria mesmo sido melhor ficar
calado. Na tentativa de disfarçar seu ciúme, acabou fazendo uma cena.
Agora Cláudio estava desconfiado e isso não era nada bom.
Abriu as janelas e ficou parado olhando para o céu. “ELE está ven-
do”, pensou. Rezava em silêncio e tentava de todas as maneiras se des-
culpar pelo que estava sentindo. Pelo ciúme, pela raiva e principalmente
pela dúvida. Como aquilo poderia estar acontecendo? Ele mal conhecia
Isabel! Só a tinha visto duas vezes na vida!
O efeito que ela havia causado nele tinha sido instantâneo. Quan-
do viu aquela menina desajeitada na biblioteca, derrubando aqueles li-
vros em cima dele, ficou desarmado. Nunca tinha visto criatura tão bo-
nita em toda a sua vida. Quando ela passou mal e precisou de sua ajuda,
ele se sentiu como se tivesse um passarinho ferido nas mãos. Ele a viu
ali, desprotegida, quase desmaiando e teve vontade de cuidar dela, de
protegê-la, de aninhá-la nos braços. Depois de tudo, quando conseguiu
conversar com ela, viu que era também a criatura mais simpática que já
conhecera e a cada sorriso que dava, mais Isabel o desarmava, mais ele
se sentia impotente e dominado pela emoção. Até que deu a hora de ir
embora e ele tratou de fazer isso o mais rápido possível. Tão rápido que
esqueceu a carteira. E eis que no dia seguinte, estava Isabel em sua casa.
Agora, o que já era ruim tinha ficado pior: seu irmão estava inte-
ressado em Isabel e ela aparentemente correspondia! Como ele ia convi-
ver com ela todos os dias se eles começassem a namorar? Como ia ver os
dois juntos sem sentir ciúmes, sem poder fazer, nem dizer nada?
É, talvez ele estivesse mesmo sendo paranoico, como Cláudio dis-
sera. Dois dias! Eles só se conheciam havia dois dias! Dois dias e ele já
estava achando que o mundo ia acabar, já estava vendo Isabel e Cláudio
na cama e já achava que estava... apaixonado! Não! Não podia ser assim!
Aquilo não era possível! Dois dias! Dois dias...
Cláudio olhou o relógio. Ainda era cedo para dormir e, mesmo
que fosse tarde, estava tão agitado que não conseguiria. Ligou a televisão
da sala e procurou alguma coisa interessante para assistir. Sua cabeça es-
tava a mil e ele não conseguiu se concentrar. Primeiro aquele clima com
TATIANE RANGEL | 45

Isabel dentro do carro e depois aquela discussão estranha com Daniel,


que nem tão cedo ele ia esquecer. Tudo aquilo gritava ao mesmo tempo
dentro do seu pensamento. Por que Daniel tinha feito aquele escândalo?
Sexo com Isabel? A ideia agradava, mas ele ainda nem tinha pensado
nisso. A única coisa que ele conseguia pensar era que aquilo que Daniel
tinha feito havia sido uma cena de ciúmes bem pior do que a cena de
Isabel no dia anterior. Se ele quisesse mesmo uma chance de provar para
Isabel que ele era tão bom quanto Daniel, não podia por nada deixar que
ela soubesse do suposto interesse de seu irmão e nem que ele soubesse
do real interesse dela. Isso acabaria com tudo.
No fim, decidiu não se preocupar mais com isso e resolveu relaxar
e se acalmar recordando de tudo de bom que tinha acontecido naquele
dia, principalmente da despedida de Isabel no carro. Ela não o olharia
daquela forma se não estivesse pelo menos um pouco interessada nele.
TATIANE RANGEL | 47

CAPÍTULO 4
teus olhos e teus olhares
I sabel olhava o relógio com impaciência. Faltavam quinze minu-
tos para o sinal tocar e anunciar o fim de mais um dia de aula.
O professor falava sem parar, mas Isabel não ouvia. A ansiedade tomava
conta de cada parte do seu pensamento.
Depois de muita espera, finalmente a aula acabou e Isabel, que já
estava com todo o material guardado, foi a primeira a sair da sala, quase
correndo.
Os amigos não reconheciam mais Isabel. Desde algum tempo ela
já não saía nos fins de semana, não ficava com eles para ir ao shopping
depois da aula e mal conversava. Foi por isso que Carlinha, uma das
colegas mais chegadas de Isabel, resolveu ir atrás dela para saber o que
estava acontecendo. Conseguiu alcançar Isabel ainda no corredor, mas
já perto da porta de saída.
- Isabel! – chamou Carlinha.
Isabel virou-se para trás, mas não parou.
- Oi, Carlinha. – respondeu Isabel sem parar de andar.
- Aonde você vai? Por que você não vai à lanchonete com a gente?
- Não posso, Carlinha. Tenho outro compromisso.
- Que compromisso? Você agora fica arrumando um monte de
desculpas para não sair com a gente. O que está acontecendo, Isabel?
Isabel parou. Já tinham chegado ao portão da escola. Olhou em
volta e não viu o carro de Cláudio.
- Isabel? – chamou Carlinha – Acorda!
Isabel respondeu um tanto irritada:
- O que é, Carlinha?
- Vem com a gente hoje!
- Carlinha, eu já disse que não posso.
- Por que não?
- Porque vocês todos vão passar de ano e eu não! Eu preciso estu-
dar, senão vou repetir! Minhas notas estão horríveis!
Naquele momento Isabel ouviu uma buzina. Era Cláudio que aca-
bava de chegar.
48 | POR QUE NÃO?

- Minha carona chegou. Até amanhã. – despediu-se.


Carlinha olhou para o carro com curiosidade e provocou:
- Nossa! Por isso é que você não quer mais sair com a gente! Que
gracinha! Onde você arrumou um namorado tão gato?
- Meu Deus, Carlinha! É só um amigo! Está me ajudando a estu-
dar, só isso!
- Sei... Bem, já que você não quer, podia me apresentar...
- Tchau, Carlinha! – disse Isabel se virando e andando em direção
ao carro.

Isabel entrou no carro e cumprimentou Cláudio como se os dois


se conhecessem a vida inteira. Abraçou o rapaz e deu um beijo em seu
rosto, o que o deixou um tanto ruborizado.
Cláudio olhou para Isabel sem disfarçar o encanto que ela des-
pertava nele.
- Como você está? – perguntou Isabel sorrindo.
- Ótimo! – respondeu Cláudio com um sorriso ainda mais largo.
Ele olhava para Isabel com um indisfarçável brilho no olhar.
Aquela menina era incrivelmente linda. Seus olhos grandes e negros
hipnotizavam.
Cláudio começou a dirigir em direção à sua casa. Ele e Isabel iam
conversando durante todo o tempo. Era incrível como para eles pare-
cia nunca faltar assunto. Ela estava sempre sorrindo, sempre simpática,
sempre... linda!
Isabel pensava no que diria para a mãe. Naquele dia não teria a có-
pia do livro de registros da biblioteca para provar que estava estudando.
Resolveu deixar pra lá. Pensaria nisso mais tarde.
Cláudio abriu a garagem com um controle remoto e estacionou.
Isabel ofereceu-se para ajudá-lo a descer do carro, mas ele recusou. Com
uma destreza inacreditável, ele pegou a cadeira, posicionou do lado de
fora e se transferiu para ela. Isabel sorriu satisfeita.
Os dois entraram em casa e foram sentar-se na sala.
- O almoço vai sair logo. – avisou Cláudio.
- Tudo bem.
Os dois estavam sozinhos na sala e Cláudio olhava deslumbrado
para Isabel. Os dois ficaram calados. Cláudio estava sério e Isabel sorria.
Eles se olhavam nos olhos e, se naquele momento ele pudesse se mover
do modo certo e com a velocidade necessária, não teria se contido. Infe-
lizmente, Isabel estava longe demais para o que ele pretendia.
A empregada veio avisar que o almoço já estava servido e Cláudio
falou sorrindo:
TATIANE RANGEL | 49

- Mandei fazer um prato especial. Espero que você goste.


- Vou gostar.
- Você nem sabe o que é!
- Não importa. Se você mandou fazer especialmente para mim, eu
vou gostar.
Eles se dirigiram à sala de jantar e quando viu o que estava servi-
do, Isabel exclamou, surpresa:
- Lasanha! Não acredito que você lembrou!
- Gostou?
- Eu te falei que eu ia gostar!
- Você sabe mesmo o que quer.
- Claro que sei.
Os dois riram e sentaram-se à mesa.
O almoço foi animado. Isabel contava histórias malucas que ma-
tavam Cláudio de tanto rir. Falava principalmente de como era estaba-
nada e das saias-justas que sua falta de jeito a fazia passar.
- Você acredita que uma vez eu fui convidada para duas festas
diferentes: uma festa à fantasia e um casamento na mesma semana? Pois
é, eu confundi as datas e apareci na recepção do casamento vestida de
diaba!
Cláudio estava quase tendo um ataque de riso. Em meio às risa-
das, Isabel continuava:
- Agora, você pode imaginar? Eu entrando naquele salão - cheio
de gente engravatada - de tridente na mão e chifre na cabeça! Eu não
sabia onde enfiava a cara!
- E o que você fez?
- Cumprimentei os noivos e fui embora.
- Não acredito! Você teve coragem de cumprimentar os noivos?
- Pois é, a gente tem que manter o bom humor.
O almoço correu bem animado. Isabel esperava que Daniel che-
gasse para o almoço como no outro dia, mas ele não apareceu. Pen-
sou em perguntar, mas desistiu. Para quê acabar com uma conversa tão
animada como aquela? Teria oportunidade para isso depois. Além do
mais, ela não tinha ido até lá para isso. Tinha ido estudar, e esperava
que Cláudio pudesse fazê-la entender mais facilmente aquelas matérias.
Tinha feito alguns progressos na biblioteca, mas não era nada fácil es-
tudar sozinha. Muitas vezes tinha dúvidas e ninguém para esclarecê-las.
Quase precisava adivinhar.
O almoço havia terminado. Pratos raspados e estômagos cheios,
os dois se olhavam quase com preguiça.
- E então, vamos começar? – perguntou Isabel.
50 | POR QUE NÃO?

- Calma! A gente acabou de almoçar! Vamos dar um tempo para


fazer a digestão primeiro.
- É que eu não posso demorar hoje. Preciso estar em casa às cinco.
- Fica tranquila. Eu te levo depois.
- É mais complicado que isso...
Isabel contou a história do castigo que estava cumprindo e do fo-
lheto da biblioteca que precisava entregar todos os dias.
- Nem sei o que vou dizer chegando no horário. Ela vai saber que
eu não fui à biblioteca. Se eu chegar depois do horário vai ser pior ainda.
- Não tem problema. Eu falo com ela. Explico que você veio estu-
dar aqui.
- Ela não vai acreditar.
- Vai sim. Deixa comigo.
Isabel, vencida, deu de ombros. Já ia mesmo ter que explicar onde
esteve. O horário seria só outro detalhe.
- Tudo bem, então. A gente faz o quê enquanto isso?
- Vamos lá para os fundos. A gente senta na beira da piscina.
- Você tem piscina?
- Tenho. Eu nado todo dia.
- Vai nadar hoje?
- Já nadei. Sempre nado de manhã. Quer vir aqui um dia desses?
- Pode ser.
- No próximo final de semana então?
- Está combinado.
Isabel sorria sempre. Sua simpatia era contagiante. Cláudio ficava
cada vez mais fascinado com aquele sorriso luminoso e aquele olhar
magnético que ela tinha. Chegando ao quintal dos fundos, Cláudio
apontou para um futon que ficava do outro lado da piscina. Era grande
o suficiente para caberem os dois. Eles se acomodaram um ao lado do
outro e Cláudio começou a falar:
- Você ainda não conhece a casa toda, não é?
- Não. Só tinha ido até a sala.
- Bem, então vou começar a te mostrar daqui mesmo. Aquela ja-
nelinha ali é o escritório do meu pai, mas ele nunca trabalha aqui. O Da-
niel é que acaba usando mais. Eu prefiro estudar na varanda lá da frente,
como você já sabe. Naquele corredorzinho ali ficam a janela da cozinha
e a área de serviço. Mais para frente tem o basculante do lavabo. Aquela
primeira janela ali no segundo andar é o quarto do Daniel. A janela ao
lado é o meu quarto. E se você perceber, tem um varandão lá na fachada
da frente, também no segundo andar. Lá é o quarto dos meus pais. Da-
quele lado ali tem outro banheiro e aquela portinha ali dá na garagem.
TATIANE RANGEL | 51

- Bem, agora eu já conheço todas as janelas da sua casa.


Cláudio deu uma risada.
- É, esse tour à distância não valeu. Depois eu te mostro a casa
toda.
- Por que o seu quarto é no segundo andar?
- Porque não tem nenhum no primeiro.
- Não seria mais fácil para você?
- Seria, mas já acostumei desse jeito. Depois, eu não ia querer ficar
limitado só ao primeiro andar da casa. Ia querer subir de qualquer jeito.
Eu nasci nesta casa. Meu quarto sempre foi esse. Depois do acidente
meu pai chegou a cogitar uma reforma, sabe? Fazer outro quarto aqui
embaixo, mas depois ele achou por bem deixar tudo como estava. Ele
queria esquecer o que tinha acontecido e, pra falar a verdade, eu tam-
bém queria. Então foi melhor assim.
- Antes de ganhar essa cadeira que sobe as escadas, como você
fazia?
- Por um bom tempo eu precisei ser carregado pra cima e pra bai-
xo. Depois meu pai instalou um elevador na escada. Esse eu usei até o
final do ano passado, quando ele trouxe esta cadeira de uma viagem. Aí
eu pedi para ele tirar o elevador. Era feio, sabe?
- Antes do final do ano passado você não podia sair sozinho, en-
tão?
- Claro que podia! Eu já dirigia e tal, mas era um pouco mais difí-
cil, você sabe. A maioria dos lugares não tem a acessibilidade necessária
para os cadeirantes, então quando eu precisava subir uma escada era
um Deus nos acuda! Tinha que pedir ajuda aos outros, era chato. Esta
cadeira me deu muito mais autonomia. Facilitou bastante a minha vida.
- E o que você fez com o elevador?
- Doei para uma pessoa que também precisava. Nem todo mundo
tem acesso a essas coisas. Como eu sei de todas as dificuldades que nós
passamos, sempre que posso eu ajudo.
- Muito legal da sua parte.
- Eu sou o cara mais legal do mundo! – disse Cláudio, debochado,
como que fazendo propaganda de si mesmo.
- E é convencido também! – disse Isabel, rindo.
Os dois riram bastante.
- Onde estão seus pais? Você fala muito deles, mas eu ainda não
os vi.
- Estão viajando. Viajam muito a trabalho. Eu passo a maior parte
do tempo sozinho em casa. Praticamente moro sozinho.
- E o seu irmão? Também viaja muito?
52 | POR QUE NÃO?

- O Daniel não para muito em casa. Depois que ele inventou essa
história de seminário ficou pior ainda. Está sempre na igreja, ou então
fazendo caridade em algum lugar. Quando está em casa, fica a maior
parte do tempo trancado no quarto ou no escritório. Ele estuda muito.
Quer se ordenar o mais rápido possível. Você teve sorte de encontrá-lo
aqui no sábado.
- Por que ele quer ser padre? – perguntou Isabel com um tom que
refletia sua incompreensão e certa intolerância.
- Sei lá! Acho que é porque antes do acidente nós dois estudáva-
mos em um internato católico. Depois daquelas férias, meu pai decidiu
tirar a gente daquela escola e colocar em uma outra mais perto de casa,
mesmo porque eu agora precisava de certos cuidados que ele temia que
o internato não pudesse dar. Então ele disse que a gente ia estudar numa
escola normal dali pra frente, o que eu particularmente adorei! Sempre
detestei o internato. Era obrigado a rezar, frequentar a missa, ficava lon-
ge de casa. Eu nunca acreditei em Deus, nem em nada disso. Pra mim
isso é tudo bobagem. Mas o Daniel não gostou nada da ideia e se recu-
sou a mudar de escola. De uma hora para outra resolveu ficar religioso.
Acho que acabou sendo influenciado pelo ambiente do internato. Co-
meçou a dizer que queria ser padre e meus pais acabaram respeitando o
desejo dele. Desde aquela época a gente não convive muito. Depois que
o colégio acabou ele foi fazer faculdade de teologia. Tem época que ele
fica no mosteiro, tem época que ele vem para casa, mas a gente nunca
se vê muito.
- Nossa! Vendo vocês dois conversarem, parecia que vocês eram
bem unidos.
- E a gente é. Nós sempre nos demos bem, apesar de tantas dife-
renças. A gente se fala bastante. Quando está longe ele sempre telefona,
manda e-mail. Ele sempre foi muito focado na família. Principalmente
depois do acidente. Mesmo longe ele sempre me cercava de cuidados.
Ligava para saber como eu estava, escrevia cartas. Ele sempre foi muito
meu amigo. Sempre que tem chance ele vem para casa, mesmo sabendo
que não vai poder passar muito tempo aqui. Ele gosta de vir, nem que
seja só para dormir. É o que tem acontecido ultimamente.
- Que história! Nunca vi uma criança de sete anos dizer que vai ser
padre e depois levar ao pé da letra.
- O Daniel é assim. Quando cisma com alguma coisa, dificilmente
muda de ideia. Acredita que ele nunca namorou?
- Nunca?
- Nunca! Nem beijo na boca ele deu. Parece que já nasceu celiba-
tário.
TATIANE RANGEL | 53

- Como assim!? Ele nunca ficou com nenhuma garota, nunca se


interessou por ninguém? E quanto aos hormônios? Vocês homens vi-
vem apelando para os hormônios para justificar tudo!
Cláudio deu uma gargalhada.
- Só você mesmo, Isabel! – ele riu mais um pouco e continuou –
Você não está de todo errada. Eu também sempre ouvi essa desculpa,
mas confesso que nesse ponto, para mim, é difícil compreender.
- Como assim?
- Sei lá, acho que para mim é diferente de uma pessoa dita “nor-
mal”. Eu não conheço outra forma de sentir, porque eu estou nesta ca-
deira desde os sete anos. Para eu desejar alguém é preciso mais que a
simples atração, o simplesmente ver e desejar. Me parece que os homens
“normais” podem olhar e desejar simplesmente. Uma coisa hormonal,
como você disse. Para mim as coisas funcionam de outra forma.
- Não sei se eu entendi.
- Bem, eu fico meio sem jeito de falar sobre isso com você.
Isabel corou.
- Você ficou vermelha. Parece que entendeu, afinal. – disse Cláu-
dio, também corando.
- É difícil acreditar. Ele nunca gostou de ninguém?
- Se já gostou eu não sei. Ele não fala sobre isso. Mas acho difícil
nunca ter desejado ninguém. O caso é que o Daniel sempre deve ter lu-
tado contra o próprio desejo. E se for isso mesmo, ele é o único cara que
eu conheço que conseguiu!
Conforme os dois iam conversando, iam chegando mais perto.
- Você fica em casa o dia inteiro? – perguntou Isabel.
- Normalmente não, mas agora eu estou mais focado em estudar
para o vestibular, então tenho sim passado mais tempo em casa.
- Então eu estou te atrapalhando!
- De forma nenhuma! Você veio aqui para estudar. Explicar a ma-
téria para você é uma forma de eu estudar também.
- Nós não estamos estudando agora.
- Se você não estivesse aqui eu provavelmente estaria cochilando
no sofá da sala. Eu sempre dou esse tempinho depois do almoço.
- O que você faz quando não está estudando?
- Eu costumava trabalhar na loja do shopping aqui perto durante
o dia. À noite varia um pouco: tem dia que eu vou fazer análise, tem
minha fisioterapia, meu time de basquete... Bem, o basquete anda meio
esquecido. Como não é uma necessidade, eu parei por um tempo. Assim
tenho mais algumas horas para estudar. Para compensar, eu acordo bem
cedo e venho nadar.
54 | POR QUE NÃO?

- Você tem muita disposição! Nem de longe eu sou assim. Acordo


cedo porque sou obrigada. O que você fazia na loja? Vendia?
- Também. Variava. Ás vezes eu vendia, às vezes ficava no caixa,
cuidava de assuntos administrativos. O importante para mim é não ficar
parado.
Isabel estava extasiada com a história de vida de Cláudio e com a
disposição e a força de vontade que ele tinha. Um rapaz rico que traba-
lhava para se manter ocupado; um paralítico que adorava praticar es-
portes e amava a vida acima de tudo, nunca usando sua condição como
desculpa para deixar de fazer nada! Um garoto que sempre teve de tudo,
mas sempre de uma simpatia e de uma humildade raras. Nunca havia
conhecido ninguém assim. Cláudio era definitivamente um lutador, um
guerreiro!
Os dois iam escorregando pelo futon, e quando se deram conta,
estavam já deitados um ao lado do outro, com as cabeças encostadas
uma na outra. Cláudio virou a cabeça para o lado e sentiu o cheiro dos
cabelos de Isabel. Um perfume de flores inundou o seu nariz e o fez fe-
char os olhos, como que para tentar registrar aquele cheiro na memória.
Quando ele abriu os olhos, Isabel também tinha virado a cabeça para o
lado e o olhava fixamente. Os olhos dela eram negros e profundos. Os
cílios longos e curvos arrematavam toda aquela beleza. Cláudio se sentia
metralhado cada vez que Isabel olhava para ele daquele jeito. Hipnoti-
zado, nunca sabia o que fazer, nem como reagir. Ficava parado, quase
congelado, lutando para resistir ao impulso que sempre lhe assaltava.
E ela sorria! Sempre sorria! Isso o desarmava ainda mais. Perto dela ele
sabia que era só um garoto. Mesmo sendo mais velho, mesmo sabendo
que ela só tinha dezesseis anos, ele não se via perto de uma menina.
Via-se perto de uma mulher, uma linda e pequena mulher, mas uma
mulher. E ele era só um garoto deslumbrado, sem saber o que fazer,
como se estivesse vivendo pela primeira vez a emoção e o desejo de
estar perto de uma garota. Como se nunca tivesse tocado em ninguém
ou nunca tivesse sido tocado. Era indescritível. Ele se sentia pequeno e
inexperiente diante dela.
Aquele olhar durou quase um minuto inteiro. Isabel sorria sem
parar. Parecia se divertir. Cláudio então se sentiu incomodado e desviou
o olhar.
- Isso não se faz, Isabel.
- O que eu fiz? – perguntou ela, ainda sorrindo.
- Você me tortura. Isso é maldade.
- Eu não torturei você! Você se virou e cheirou o meu cabelo! Esta-
va esperando para ver o que você ia fazer! – Isabel continuava sorrindo.
TATIANE RANGEL | 55

- E se eu tivesse feito alguma coisa? Você teria impedido?


- Não sei. O que você poderia ter feito?
- Podia te roubar um beijo.
- Você não faria isso. É um cavalheiro. Eu confio em você. – disse
ela acariciando os cabelos de Cláudio, sem deixar de sorrir.
Cláudio ficou desapontado. Então era essa a imagem que ele pas-
sava? Um cavalheiro incapaz de roubar um beijo? Procurou dissimular
o desapontamento e tentar não se lembrar de que Isabel estava interes-
sada em Daniel e não nele. Ele havia se esquecido disso, e queria não ter
se lembrado. Ele se ajeitou no futon e tentou retomar a conversa, mas já
estava desanimado. Aquela resposta de Isabel tinha sido um banho de
água fria.
- Você ficou quieto de repente. O que aconteceu?
- Nada. É que, de repente, me deu muita dor de cabeça.
- Então tome um remédio. Quer que eu vá buscar um comprimi-
do para você?
- Não, pode deixar.
- Imagine! Espere aqui que eu vou lá dentro pedir um remédio
para a empregada.
Antes que Cláudio pudesse dizer qualquer coisa, Isabel se levan-
tou e correu para dentro da casa. Ele ficou olhando Isabel sumir atrás
da porta e pensando que tanto interesse da parte dela bem que podia ter
outra razão que não fosse gratidão ou amizade. Era triste, mas agora a
ficha dele havia caído. Isabel não estava interessada nele. Ela só se diver-
tia com ele, queria só sua amizade. Isso fazia com que ele se sentisse um
idiota, um verdadeiro palhaço.
Isabel não demorou lá dentro. Em poucos instantes ela voltou
com um comprimido e um copo d’água.
- É sério, Isabel. Não precisa.
- Claro que precisa. Como é que a gente vai estudar se você estiver
com dor de cabeça?
- É só com isso que você está preocupada?
Isabel levou um susto e pareceu um tanto ressentida.
- Eu não acredito que você me perguntou isso. Você acha que eu só
estou aqui porque você prometeu me ajudar? Agora eu fiquei ofendida!
Isabel largou o copo e o comprimido na mão de Cláudio, se virou
e foi andando em direção à porta.
- Espera aí, Isabel! Aonde você vai?
- Pra biblioteca! Eu não devia estar aqui mesmo!
Cláudio puxou a cadeira de rodas, subiu nela e foi atrás de Isabel.
- Espera aí, Isabel! Não vai embora!
56 | POR QUE NÃO?

Isabel, sem se deter, apanhou a mochila, que estava no sofá da


sala, e foi em direção à porta.
- Isabel, não faz isso!
Isabel se virou e olhou para Cláudio por alguns instantes.
- Então me diz: por que eu devo ficar? Depois de você me chamar
de interesseira, por que eu ficaria aqui?
- Olha... Desculpa! Me perdoa, eu sou um idiota! Me dá só mais
dois minutinhos pra eu te explicar o que aconteceu. Se você ainda esti-
ver chateada eu te levo em casa.
Isabel se sentou numa poltrona e esperou.
- Tudo bem, pode falar.
- Tá legal... É embaraçoso, mas eu não vou mentir para você. Eu
fiquei irritado com uma coisa que você falou.
- Que eu falei? O que eu disse para te deixar tão irritado?
- Que eu não seria capaz de roubar um beijo.
Isabel começou a rir com ironia.
- Você ficou irritado porque eu disse que confiava em você e que
você era um cavalheiro? Por quê?
- Porque eu sou homem e você é linda!
Isabel ficou vermelha.
- Feriu meu orgulho masculino, entendeu? Pode parecer boba-
gem, mas é sério! Por que você acha que eu não seria capaz de roubar
um beijo? Só porque eu não posso andar?
- Você está sendo complexado, Cláudio. Eu nem mesmo pensei no
fato de você não poder andar. Parece que é você quem está preocupado
com isso. Eu te fiz um elogio e você me chamou de interesseira!
- Eu sei! É por isso que eu estou te pedindo desculpas. Agora que
eu já pedi, vou entender se você quiser ir embora. O que você me diz?
Isabel virou as costas e foi andando em direção à porta da saí-
da. Cláudio ficou parado, olhando desconsolado quando, já na varanda,
Isabel colocou a mochila em cima da mesa, se virou e perguntou:
- Você não vem?
Cláudio sorriu aliviado e se dirigiu até a varanda, enquanto Isabel,
fingindo que ainda estava brava, brincou:
- Vamos logo ao que interessa.
Cláudio foi até ela e os dois abriram os livros para começar a es-
tudar.
A tarde pareceu passar depressa. Isabel ficara maravilhada com a
clareza com que Cláudio explicava as matérias que ela tinha tanta difi-
culdade. De repente parecia tudo tão óbvio, tão fácil! Parecia não fazer
sentido o fato de ela estar quase repetindo o ano.
TATIANE RANGEL | 57

Quando Isabel olhou o relógio, viu que por pouco não perdia a
noção da hora. Já eram quase cinco da tarde e ela precisava voltar para
casa. Estava preocupada com o que diria para a mãe, já que desta vez ela
não teria a cópia da folha de registros da biblioteca.
- Eu tenho que ir agora, Cláudio. São quase cinco horas. Eu só
queria saber o que eu vou dizer para a minha mãe quando eu chegar em
casa sem a folha de registros da biblioteca...
- Quer que eu fale com ela?
- Não, imagina! Deixa que eu falo. Se ela não acreditar eu peço
socorro pra você.
- Tem certeza? Se você quiser, eu fico esperando do lado de fora,
caso ela não acredite. É só você abrir a porta e me chamar.
- É sério, pode deixar. Se ela brigar comigo eu deixo você falar
com ela amanhã.
- Eu vou tirar o carro. Te levo em casa.
- Não, Claudinho. É sério. Você já fez muito por mim hoje.
Isabel guardou os livros, pegou a mochila, deu um beijo no rosto
de Cláudio e caminhou até o portão. Quando saiu, virou-se para a va-
randa e acenou uma última vez antes de desaparecer pela rua.
Cláudio levou a mão ao rosto. Ainda podia sentir o cheiro do per-
fume que Isabel estava usando. E como ela o havia chamado mesmo?
Claudinho! Um diminutivo de seu nome! Deveria querer dizer alguma
coisa. Apoiou o queixo nas mãos, sorriu e ficou pensando que talvez
ainda houvesse uma chance de ter Isabel.

Isabel entrou em casa e logo encontrou o olhar da mãe fixo na


porta por onde ela entrava. O que diria agora? Não tinha como mentir,
e na situação dela essa era uma péssima ideia. Tudo o que ela não preci-
sava naquele momento era se enrolar com mentiras que acabariam des-
cobertas, complicando ainda mais sua vida. Era melhor dizer a verdade.
- Oi, mãe. – disse Isabel sentando-se no sofá.
- Olá. Como foi a tarde de estudos? Proveitosa?
- Muito! Sinto que agora eu posso começar a ficar mais tranquila.
- Que ótimo! Então vamos ver: onde está a cópia da folha de re-
gistros da biblioteca?
- Eu não trouxe.
- Por que não? Não me diga que esqueceu?
- Não, mãe, eu não esqueci. Eu não trouxe a folha porque eu não
estava na biblioteca.
- Maria Isabel! Onde você estava? Você sabe muito bem que de-
pois da escola você só tem permissão para ir até a biblioteca! Que tarde
58 | POR QUE NÃO?

de estudos proveitosa foi essa se você não foi à biblioteca? Aonde você
foi?
- Calma mãe! Eu vou explicar tudo! Eu estava estudando sim! Só
que eu fui estudar na casa de um amigo.
- Você sabe que não é para ir à casa de nenhum amigo! Por causa
desses teus amigos é que você está nessa situação!
- Calma mãe! Não é nenhum amigo da escola. É outro amigo. Eu
conheci na biblioteca. Bem, na verdade eu conheci o irmão dele na bi-
blioteca e depois é que eu o conheci. A questão é: ele está se preparando
para o vestibular e se ofereceu para estudarmos juntos. Me explicar a
matéria é uma forma dele estudar também, entendeu?
- Não, não entendi nada. Me conta essa história direito! Eu quero
saber que amigo é esse!
Isabel respirou fundo e procurou não perder a paciência. Explicou
para a mãe como havia conhecido os gêmeos e falou sobre como tinha
sido bom estudar com Cláudio, pois pela primeira vez em muito tempo
ela finalmente conseguira entender aquelas matérias.
- Não sei, Isabel. Não conheço essa gente. E depois, quem me ga-
rante que você vai mesmo estudar e não ficar de bobeira na casa dos
outros ou sabe-se lá onde?
- Mãe, por favor! Confia em mim!
- Desculpe, mas não dá, Isabel! Olha só no que deu eu confiar em
você: está quase repetindo o ano.
- Mãe, eu prometo que dessa vez vai ser diferente! Eu aprendi tan-
to hoje!
- Não sei. Eu ainda não sei quem é essa gente.
- Mãe, por favor!
- Tudo bem, mas eu quero conhecer esse seu amigo primeiro.
Quero falar com ele, saber quem ele é, onde mora. Diga para ele vir
até aqui conversar comigo. Se eu achar que não tem perigo, tudo bem.
Senão, nada feito.
Isabel ficou um tanto contrariada, mas aceitou. Que remédio?
Precisava das aulas com Cláudio, e além do mais, gostava da companhia
dele. A mãe estava sendo paranoica. Que perigo poderia ter? De qual-
quer forma, era melhor não contrariar. Pelo menos assim ela ainda tinha
uma chance.
TATIANE RANGEL | 59

CAPÍTULO 5
por que não eu?
Isabel nem acreditava que não precisava mais passar a tarde in-
teira naquela biblioteca. Morrera de vergonha, mas pedira para
Cláudio ir conversar com sua mãe.
A mãe de Isabel na verdade achava que ela estava de namorico
com alguém em vez de estudar, mas quando viu com quem ela estava
estudando, ficou desarmada. O tal amigo que lhe dava aulas era um ra-
paz aleijado. Com certeza não era namorado de Isabel e nem oferecia
qualquer perigo para ela. Ficou tão sossegada que permitiu inclusive
que Isabel fosse estudar na casa dele, como vinha fazendo, em vez de
mandar que eles estudassem na sua própria casa, como pretendia fazer.
A rotina de Isabel ficou então estabelecida dessa forma: todos os
dias depois da aula, Isabel ia para a casa de Cláudio, almoçava e ficava lá
até as cinco ou seis horas. A mãe de vez em quando ligava para saber se
estava tudo bem, mas não incomodava.
Já havia passado três meses desde que Cláudio e Isabel começa-
ram a estudar. Mesmo focada em aprender as matérias necessárias para
não perder o ano, Isabel nunca perdia a esperança de ver Daniel. Naque-
le meio tempo não o tinha visto uma única vez.
Cláudio ficava cada dia mais interessado em Isabel. Contava as
horas para que pudesse vê-la novamente. Não importava se ela só estava
interessada em estudar. Aquela situação não era permanente. Depois,
parecia que a cada dia a amizade entre os dois crescia de forma assusta-
dora. Pareciam velhos amigos de infância, tamanha era a confiança que
haviam adquirido um no outro.
Daniel não aparecia em casa havia algum tempo. Durante aqueles
dias, preferiu a quietude e o retiro do claustro. Assim, poderia pensar na
própria vida e reafirmar sua fé. Queria voltar-se para a sua verdadeira
vocação.
Aquela rotina de seminário que tanto apreciara a vida inteira, de
repente parecia não mais preenchê-lo como antes. Acordava às quatro
da manhã, fazia suas orações, assistia a suas aulas, trabalhava nas obras
60 | POR QUE NÃO?

assistenciais que a igreja promovia. Porém, nada mais era o mesmo. Ele
já não se sentia tão completo. Seus pensamentos pareciam não mais pai-
rar sobre aquele lugar. Estava longe. Pensava em como as coisas estariam
em sua casa, como estaria Cláudio, como estaria Isabel. Ele lutava para
arrancá-la de dentro de si, repetindo o tempo todo para si mesmo que
ela era só uma ilusão, um entrave para os seus planos. Estava ali porque
queria manter-se o mais longe dela possível e sabia que isso talvez não
fosse possível. Não por tanto tempo.
Uma coisa o angustiava terrivelmente: seus pais já deveriam estar
voltando de viagem por aqueles dias. Faltavam poucos dias para que ele
e Cláudio fizessem aniversário e os pais sempre faziam questão de reu-
nir a família nesta ocasião. Ele teria que retornar em breve. Ele sabia que
todo o seu esforço estava sendo inútil. Voltar significava reencontrar
Isabel. As notícias que ele tinha de casa não eram nada animadoras. Ha-
via telefonado algumas vezes e Cláudio havia contado que Isabel passara
a frequentar diariamente a casa deles. Aquilo não era nada bom.
Às vezes ele pensava em se confessar, desabafar com alguém, mas
tinha medo. Tinha medo de ser julgado, de ser expulso do seminário.
Aquilo já o estava sufocando de tal modo, que ele não conseguia mais
dormir. Quando dormia, sonhava com Isabel. Sonhava que pecava, que
amava Isabel ardentemente, e depois se via crucificado, açoitado dian-
te de uma multidão que gritava alucinadamente: “traidor!”, “pecador!”,
“impuro!”.
Cláudio corrigia a última bateria de exercícios que Isabel acabara
de fazer. Satisfeito, viu que estavam todos certos.
- Parabéns, Isabel! Acho que você está pronta! Quando começam
as suas provas?
- Amanhã. Estou tão nervosa!
- Não fique. Você está indo muito bem. Talvez nem precise fazer
recuperação. Pelas minhas contas, é perfeitamente possível que você re-
cupere todas as notas agora nas provas finais.
- Você acha?
- Claro que sim. Você não errou nenhum exercício essa semana
inteira!
- Mas as questões das provas costumam ser bem mais difíceis.
Você é muito bonzinho comigo, só me passa questões fáceis! – disse
Isabel sorrindo.
- Em outros tempos, talvez isso fosse verdade. Eu não posso me
dar ao luxo de ser bonzinho com você numa hora dessas. Se você não
aprender direito a matéria, pode ser que repita o ano, e eu não quero ser
responsável por uma coisa dessas. Nesse caso, sinto te informar que eu
fui muito malvado com você...
TATIANE RANGEL | 61

- Como assim?
- Todos os exercícios que você tem feito foram tirados dos vesti-
bulares dos anos anteriores.
- Mentiroso!
- É sério! Se você estivesse prestando vestibular agora, era bem
possível que passasse.
- Então eu aprendi de verdade?
Isabel deu um grito de satisfação, beijou o rosto de Cláudio e deu
um pulo no sofá, caindo deitada em seu colo. Logo na primeira semana
eles haviam abandonado a mesa da varanda e desde então, estudavam
aninhados no sofá da sala. Cláudio alisou as mechas do cabelo negro
que escapavam do rabo de cavalo de Isabel e sorriu.
- Claro que você aprendeu. É muito inteligente. Eu tenho certeza
de que você vai passar.
Olhos nos olhos, os dois conversavam:
- Você é um professor maravilhoso. Eu não teria conseguido sem
a sua ajuda. Como eu posso agradecer?
- Eu queria dizer que não precisa, mas vou te pedir uma coisa.
- O quê? – perguntou Isabel, surpresa.
- Aparece aqui no próximo fim de semana.
- Mas eu venho aqui todos os dias!
- Mas nessa semana você faz as provas e depois disso não vai mais
ter que estudar.
- A gente nunca estudou no fim de semana!
- É que esse fim de semana é especial...
- É mesmo? E por quê?
- Porque essa semana meus pais chegam de viagem. – Cláudio
continuava alisando os cabelos de Isabel – Sabe como é, eles passam a
maior parte do tempo viajando a negócios, mas fazem questão de estar
presentes no nosso aniversário.
- É verdade! O aniversário de vocês é no sábado que vem! – inter-
rompeu Isabel.
- Pois é. Provavelmente vai haver uma comemoração, nada muito
grande, só família e amigos mais chegados. Queria que você viesse.
- O Daniel vai estar aí?
Pronto! Estava demorando! Cláudio sentiu um ciúme incalculá-
vel, mas se conteve. Não queria parecer inseguro.
- Claro que sim. É aniversário dele também. – dissimulou – E en-
tão? Você vem?
- Venho sim. Vou adorar comemorar o seu aniversário e conhecer
os seus pais.
62 | POR QUE NÃO?

- Ótimo! Traga o seu maiô. Vai ser um churrasco à beira da pis-


cina.
- E eu pensando que você ia me pedir alguma coisa difícil!
- Bem, isso eu deixo para pedir de presente de aniversário.
Isabel deu um tapa de brincadeira em Cláudio e os dois riram.
A semana transcorreu sem novidades. Isabel procurava concen-
trar-se nas provas finais; Cláudio continuava estudando para o vestibu-
lar e Daniel se afundava cada vez mais em orações, penitências e traba-
lhos pesados. Durante aquela semana inteira, um não teve notícias do
outro, estando cada qual ocupado com sua própria vida. No entanto, a
ansiedade tomava conta dos três.
Isabel, por melhor que fizesse as provas, sempre se sentia inse-
gura quanto aos resultados. A pressão da mãe não estava nada fácil de
aguentar. O que consolava Isabel era pensar no próximo final de sema-
na, quando finalmente poderia rever Daniel depois de tanto tempo.
Cláudio continuava a tirar suas horas de estudo durante o dia,
mas só na parte da tarde. Aproveitava a parte da manhã para colocar a
fisioterapia em dia, porque ele havia se descuidado um pouco nas últi-
mas semanas. Aproveitava também para malhar, porque seus exercícios
também andavam muito esquecidos. Á noite, não se continha e sonhava
acordado o tempo todo. Aqueles três meses tinham sido maravilhosos.
A proximidade dele com Isabel era algo que estava simplesmente acon-
tecendo. Ela era linda, inteligente, divertida, carinhosa. Era tudo e mui-
to mais do que ele sonhava.
Quanto mais se aproximavam um do outro, mais Cláudio sonha-
va em ter Isabel. O negro hipnótico dos seus olhos, e textura dos seus
cabelos, o cheiro da sua pele; essas eram sensações que Cláudio já tinha
gravadas em si.
Daniel começava a chamar a atenção de todos no mosteiro, dada a
sua mudança brusca de comportamento. A tranquilidade habitual dava
lugar a uma angústia crescente e mal disfarçada, embora silenciosa. O
afinco com que se dedicava às suas tarefas também não era mais o mes-
mo. A dedicação prazerosa e descompromissada dera lugar a uma dedi-
cação obsessiva e exagerada. Seus olhos não refletiam mais o antigo pra-
zer do cumprimento da rotina. Tinham agora um brilho desesperado e
inquieto. A respiração se tornara pesada e muitas vezes descompassada.
Daniel estava claramente tenso, e esta tensão parecia crescer a cada dia.
Foi observando aquela mudança repentina de comportamento e
ante os comentários dos outros moradores do mosteiro, que um dos pa-
dres, um dos professores e conselheiros de Daniel, acabou por chamá-lo
para uma conversa:
TATIANE RANGEL | 63

- Daniel, não pude deixar de notar que alguma coisa o está inco-
modando. Você não tem ideia de quantas pessoas vieram me perguntar
o que está acontecendo com você.
- Não está acontecendo nada, padre.
- Meu filho, não adianta negar. Você mudou do dia para a noite.
Está inquieto, tenso, está executando suas tarefas de forma obsessiva,
está exagerando no trabalho, nas orações, não interage mais com nin-
guém. O que está acontecendo?
Daniel permanecia calado, mas o medo estava estampado em seus
olhos. Percebendo, o padre continuou:
- Não tenha medo, Daniel. Estou aqui para ajudar. Se quiser, pode
me falar em confissão. Você sabe que o que eu ouvir em confissão per-
manecerá em sigilo, por mais grave que seja.
- Não posso, padre. Não posso dizer o que está acontecendo.
- Já vi isso antes, Daniel. Estou aqui há trinta anos! É comum com
os seminaristas. Você está duvidando da sua vocação.
- Não, padre. Estou duvidando da minha fé. Antes, minha fé me
bastava para manter-me calmo. Assim eu vencia qualquer obstáculo, me
desfazia de qualquer dúvida. Agora, toda a minha fé não está bastan-
do. Por mais que eu reze ou trabalhe, minha angústia não se dissipa.
Não consigo me livrar dos maus pensamentos que atormentam a minha
consciência.
Sorrindo compreensivamente, o padre respondeu:
- Daniel, posso ter uma ideia do que você chama de “maus pen-
samentos”. Desde que você voltou da sua casa, você está diferente. Você
deve se lembrar de que todos nós somos, acima de qualquer coisa, hu-
manos! Seja o que for que esteja atormentando a sua consciência, creio
que aqui talvez não seja o melhor lugar para você pensar a respeito. Isso
aqui, no momento, representa somente uma fuga. Façamos o seguinte:
vá para casa mais cedo. Você já estava com a saída marcada por causa
do seu aniversário, vá mais cedo. Aproveite a sua festa, esteja com os
seus amigos e pense bem no que quer da vida. Volte quando estiver se-
guro. Se decidir não voltar, lembre-se que estar aqui não é a única forma
de servir a Deus. Você pode fazê-lo de outras maneiras: praticando a
caridade, sendo um homem de bem, respeitando valores, amando seu
próximo. Não há motivos para se sentir culpado.
Daniel sentiu um arrepio na espinha. Parecia que o padre adivi-
nhava-lhe os pensamentos.
- Tudo bem, padre. Vou seguir o seu conselho. Vou para casa ama-
nhã, mas volto o mais rápido que puder.
- Não tenha pressa, Daniel. Tenha certeza.
64 | POR QUE NÃO?

Daniel saiu dali um tanto mais aliviado e foi até o dormitório pre-
parar sua mala.
Na manhã seguinte, bem cedo, Daniel já estava em casa. Estacio-
nou o carro na garagem, abriu a porta bem devagar e entrou na ponta
dos pés, com medo de acordar alguém. Subiu as escadas, entrou em seu
quarto, fechou a porta e sentiu-se mais aliviado de poder estar ali, sozi-
nho. Por isso quis chegar tão cedo. Não queria ver ninguém.
Daniel ouviu vozes e sons vindos do lado de fora. Olhou pela jane-
la e viu que Cláudio já estava bem acordado e fazia fisioterapia perto da
piscina. Ia se retirar quando Cláudio olhou para cima e o viu.
- E aí, mano? Veio mais cedo? Desce aqui para a gente conversar!
Daniel não viu alternativa àquele convite. Poderia dizer que estava
cansado, mas sabia que o irmão não iria acreditar. Tinha como hábito
acordar antes das cinco da manhã e naquele momento, passava das oito.
Daniel trocou de roupa e desceu. Sentou-se próximo ao lugar
onde Cláudio estava e esperou.
- Eu já estou terminando. Num minuto a gente conversa. – disse
Cláudio.
Daniel fez um gesto compreensivo e continuou calado. Ficou al-
guns instantes observando o irmão. Esforçado, dedicado. Obedecia a
cada ordem do fisioterapeuta sem reclamar. Cláudio nunca reclamava
de nada. Praticamente não mudara depois que sofreu o acidente que
o levou àquela condição. Nunca lamentava sua deficiência e sempre se
adaptava com facilidade a qualquer situação. Havia conseguido gran-
des progressos com a fisioterapia e cada movimento era comemorado.
Mesmo sabendo que nunca voltaria a andar, Cláudio não desanimava.
Daniel se lembrava bem do dia em que o irmão acordou e percebeu que
podia sentir as pernas. Ele não comemorou pela esperança de voltar
a andar. Comemorou por sentir-se vivo novamente. Daniel nunca iria
esquecer o que o irmão dissera naquela ocasião: que se sentia inteiro
outra vez.
Daniel guardava um sentimento terrível a respeito daquele aci-
dente. Um segredo que sempre permaneceu entre ele e o irmão, que
mesmo aos sete anos de idade, Cláudio nunca ameaçara revelar a nin-
guém.
Em poucos minutos Cláudio terminou os exercícios e despediu-
-se do fisioterapeuta. Veio então até onde o irmão estava e estacionou a
cadeira em frente a ele.
- Chegou um dia antes? Você não vinha amanhã de noite?
- Resolvi chegar mais cedo. Andava estressado e o Padre Mauro
me deu umas férias.
TATIANE RANGEL | 65

- Estressado, você? Tirando férias do seminário? O que aconteceu?


Daniel respirou fundo, procurando dissimular a irritabilidade e
mudou de assunto:
- Não aconteceu nada, só andava cansado. O papai e a mamãe
chegam hoje, não é?
- É. Eu ia pegar os dois no aeroporto, mas já que você está aqui,
acho melhor você ir. Eles vão gostar da surpresa.
- Tudo bem, eu vou então. Por que estava fazendo fisioterapia tão
cedo?
- Eu precisei reorganizar meus horários. Andei ocupado e acabei
deixando algumas coisas de lado.
- Ocupado com o que? Você sabe que não deve deixar de fazer a
fisioterapia.
- Eu não deixei de fazer, mas estava fazendo poucas vezes na se-
mana. Agora estou fazendo duas vezes ao dia para recuperar o tempo
perdido.
- Mas em quê você perdeu tanto tempo?
- Estudando. A Isabel vinha pra cá todo dia e a gente estudava
muito. Acabamos a maratona ontem. Bem, ela acabou a maratona dela.
Eu continuo com a minha até semana que vem, que é quando eu faço as
minhas provas.
- Então ela não vem mais aqui? – perguntou Daniel sentindo-se
precipitadamente aliviado e tentando dissimular o tom da voz.
- Claro que vem! Por que não viria? Ela até vem no sábado pro
nosso aniversário. A gente só não vai mais estudar.
Daniel sentiu certo pavor. Não seria nada fácil se afastar da ima-
gem de Isabel.
- Eu vou subir e tomar um banho. Ainda tenho que começar a
estudar. O voo do papai e da mamãe chega ao meio dia. Vá buscá-los e
depois almoçamos todos juntos.
- Está bem. – concordou Daniel – Te vejo mais tarde.
Depois que Cláudio saiu, Daniel se recolheu na tranquilidade do
escritório. Ele gostava daquela parte da casa e decidiu aproveitar o pou-
co tempo que teria antes dos pais chegarem, pois quando isso aconteces-
se certamente o pai teria muitos afazeres ali.
Do escritório, Daniel podia ver a piscina. Aquela casa era cheia de
recordações dolorosas, mas a piscina trazia algumas boas lembranças.
Gostava de sentar em frente à bancada do escritório como se fosse tra-
balhar e ficava olhando para o lado de fora pela janela. Do lado direito,
na parede, havia um quadro enorme, repleto de fotografias arrumadas
cronologicamente. Começava pelo casamento dos pais, passava ao nas-
66 | POR QUE NÃO?

cimento dos gêmeos, o primeiro ano de vida, o primeiro dia na escola,


férias no sítio da família, os jogos de futebol nos fins de semana; e, de
repente, aquelas fotos ficavam estranhas. Os gêmeos nunca mais apare-
ceram de pé, lado a lado. Quando juntos, era Daniel de pé ao lado da
cama de hospital onde Cláudio estava deitado; depois era Daniel de pé
e Cláudio na cadeira de rodas. Até que chegava um momento em que
as fotos de Daniel ficavam escassas e começava uma série de fotos que
contava toda a história de superação de Cláudio. Era Cláudio tocando
violão, Cláudio jogando basquete, Cláudio nadando, Cláudio dirigindo.
Aquilo doía.
Daniel respirou fundo. Passou as mãos pelo rosto, apoiou a testa
nas mãos e os cotovelos na mesa. Permaneceu assim por muito tempo.
Os olhos começaram a ficar úmidos. A culpa o torturava. Chorou por
algum tempo em silêncio. Será que Deus um dia iria perdoá-lo por tudo
aquilo?
Daniel estava no aeroporto desde as onze da manhã. Agora eram
meio dia e quinze e o voo de seus pais havia acabado de pousar. Ele
ficava na ponta dos pés atrás de uma multidão que aguardava o desem-
barque internacional. Depois de alguns instantes conseguiu identificar
o pai e a mãe no meio da confusão. Daniel correu para abraçá-los e só
então se deu conta do tamanho da saudade que sentia.
- Pai! Mãe! Parece que não vejo vocês há anos! – exclamou abra-
çando os dois ao mesmo tempo.
Demorou algum tempo para que soltasse, e nesse tempo, Daniel
sentiu como se não tivesse mais nada no mundo. Parecia que só tinha a
seus pais e tinha muito medo de perder isso também.
Os pais de Daniel o olhavam com surpresa e espanto. Percebendo
que alguma coisa estava errada - mas felizes de ver o filho de maneira
tão inesperada - os dois sentiam um misto de alegria e preocupação.
- Daniel, meu filho! Que surpresa! Esperávamos o Cláudio aqui.
Pensamos que você só viesse amanhã. – disse Luisa, que era a mãe dos
gêmeos.
- Pois é. Voltei mais cedo. O Cláudio me contou que vocês chega-
riam e então eu vim no lugar dele.
- Aconteceu alguma coisa? – perguntou Carlos, o pai.
- Não, pai. Não aconteceu nada. – respondeu Daniel, já apanhan-
do as malas na esteira e colocando-as no carrinho que iria empurrando
até o estacionamento.
No caminho pra casa, Daniel tentava conversar, lutando para não
embargar a voz. Sua vontade era se atirar nos braços dos pais e chorar
até não poder mais.
TATIANE RANGEL | 67

- E então como foi a viagem?


- Foi boa! Muitas novidades! – respondeu Luisa. Ela e Carlos ti-
nham ido ao exterior para uma feira de materiais esportivos. Através
destas feiras eles tomavam conhecimento de novas tecnologias em equi-
pamentos esportivos e, assim, mantinham a rede de lojas sempre atuali-
zada com as últimas novidades.
- Então fizeram muitas encomendas?
- Sim, muitas. No mês que vem começam a chegar às lojas.
- Vocês foram ver algum médico?
Luisa deu um suspiro.
- Fomos.
Sempre que iam ao exterior Carlos e Luisa visitavam médicos
e universidades, não importava o país. Estavam sempre à procura de
novos tratamentos aos quais Cláudio pudesse se submeter, e também
procuravam ficar a par de todas as pesquisas que estivessem sendo re-
alizadas.
- E então?
- Nada ainda. Nada que valha a pena tentar. Tudo em fase experi-
mental e sem resultados significativos.
Daniel engoliu seco. Não devia ter tocado naquele assunto, mas
no fundo sempre tinha a esperança de ouvir uma resposta positiva.
Os três se calaram e permaneceram assim durante todo o resto
do caminho.

Quando o carro estacionou na calçada, Cláudio estava estudando


na varanda. Vendo os pais, tratou de descer a rampa até o portão para
recebê-los.
Depois de feitos os devidos cumprimentos, todos se dirigiram à
sala de jantar, onde Cláudio já tinha mandado servir o almoço.
Os quatro almoçavam e mantinham uma palestra alegre como
sempre faziam quando Luisa e Carlos voltavam de suas longas viagens.
Luisa estava interessada em saber o que havia acontecido durante
sua ausência.
- Dei um tempo do trabalho na loja. As provas estão se aproxi-
mando e eu quero estudar o máximo que puder.
- Já falamos que você não precisa trabalhar na loja. – falou Carlos
– Queremos que você estude e se forme primeiro. Depois, se for o que
você quer, você toca os negócios da família.
- Não é por isso que eu trabalho, pai. Não tem nada a ver com o
fato de um dia eu herdar as lojas. É claro que isso para mim é importan-
te, mas mais importante ainda é não ficar parado, não ficar ocioso.
68 | POR QUE NÃO?

- Vamos falar do aniversário de vocês dois: já sabem quantas pes-


soas vêm? – perguntou Luisa.
- Eu não convidei ninguém. Deixo isso com você, mãe.
- Eu fico encarregada de convidar a família, Daniel. Seus avós, tios
e primos. Os amigos ficam por conta de vocês.
- Para mim já está de bom tamanho.
- E os amigos do seminário? Não convidou nenhum?
- É um seminário, mãe. Não é mais o colégio.
- E o que tem isso? Padre não se diverte?
- Eu não acho isso conveniente, mãe.
- Tudo bem, então. Você é quem sabe. E você, Cláudio? Convidou
muita gente? Alguém além do habitual?
- É... Eu convidei alguém a quem vocês ainda não conhecem.
- Quem? – quis saber Carlos.
- Uma nova amiga.
- Amiga ou namorada? – perguntou Luisa sorrindo.
- Amiga, por enquanto.
- Então quer dizer que pode virar namorada? – perguntou Carlos.
- Espero que sim!
Carlos e Luisa sorriram satisfeitos.
- E quem é ela? Você a conhece, Daniel?
Daniel estava visivelmente incomodado com o assunto, embora
nenhum dos outros três percebesse.
- Na verdade foi o Daniel quem a conheceu primeiro. Ela se cha-
ma Isabel.
Cláudio contou aos pais como ele e Daniel haviam conhecido Isa-
bel. Contou a história resumidamente, omitindo os detalhes desagradá-
veis, como o ataque de Isabel quando soube que Daniel ia ser padre, sua
fixação por ele e a cena de ciúmes que Daniel fez quando soube do quase
beijo entre ele e Isabel.
No começo, Carlos e Luisa ficavam preocupados quando Cláudio
se apaixonava por alguém ou começava a namorar. Eles tinham medo
de que o filho sofresse algum tipo de rejeição ou preconceito por sua
condição física. Com o tempo, os dois perceberam que Cláudio tinha
carisma e simpatia suficientes para superar qualquer barreira. Embora
Cláudio só tivesse tido duas namoradas sérias, os dois sabiam que tudo
estava dentro da normalidade para a idade dele, pois conheciam jovens
da mesma idade, que não eram deficientes, que nunca tinham namora-
do sério. Mesmo sem ter namorado muito, como todos os jovens da sua
idade, Cláudio saía para se divertir. Frequentava festas e boates e sempre
“ficava” com alguém nestas ocasiões. Sabendo disso, os dois acabaram
relaxando.
TATIANE RANGEL | 69

- Você acha que ela também gosta de você? – perguntou a mãe.


- Acho que sim. Ela já deu alguns sinais positivos.
- E quando você vai se declarar?
- Eu vou tentar ficar com ela na festa. Vamos ver no que vai dar.
Daniel sentiu o chão desaparecer sob seus pés. Pelo que Cláudio já
havia contado, Isabel também estava interessada. Não sabia se suporta-
ria ver os dois juntos. Principalmente no sábado, no dia de seu próprio
aniversário.

* * *

Isabel estava indecisa na frente do espelho. Que roupa usar? Qual


biquíni? Era tão difícil decidir! Ela tinha passado a semana inteira se
preparando para aquela festa. Tinha ido ao shopping e passado horas
para escolher os presentes. Agora estava diante do espelho decidindo
como arrumaria o cabelo, se usava ou não usava maquiagem.
Cláudio tinha acordado feliz. Separou seu melhor par de chinelos,
sua melhor roupa de banho e se preparou para o churrasco. Os convi-
dados começariam a chegar às onze. Ele não se importava. Queria que
Isabel chegasse logo. Estava cheio de esperanças de que as coisas dessem
certo naquele dia.
Daniel estava acordado desde as cinco da manhã. Todos aqueles
anos no colégio de padres e depois no seminário o tinham habituado
a acordar cedo. Abriu as janelas. O dia já estava claro. Era dezembro e,
como as férias e as festas, o verão também estava chegando. Metódico
como sempre, fez suas orações, tomou um banho frio e desceu para to-
mar o café da manhã. Como ainda era muito cedo, a mesa ainda não es-
tava posta. Os empregados acabavam de começar a jornada de trabalho
que seria mais dura naquele dia por causa da festa. Daniel se ofereceu
para ir à padaria. Gostava de caminhar pelo bairro e queria aproveitar
que àquela hora o dia ainda estava fresco. Logo o sol estaria alto e o calor
se tornaria insuportável.
Voltou devagar pela rua, com o pão quente na sacola. Olhava para
o céu, para a copa das árvores, para as janelas das casas da vizinhança
que estavam em sua maioria fechadas àquela hora. Chegou em casa,
colocou o pão na mesa e percebeu que seus pais e seu irmão ainda dor-
miam. Tomou seu café da manhã calmamente e quando terminou, foi
para o quintal dos fundos. Tirou as sandálias e sentou-se à beira da pis-
cina mergulhando os pés na água. Fazia tempo que não sabia o que era
nadar. Nunca tinha tempo para fazer nada para si. Decidiu que merecia
um pouco de diversão. Era seu aniversário e naquele dia, talvez Deus
70 | POR QUE NÃO?

o perdoasse e não ficasse zangado com ele. Logo mais a piscina estaria
cheia de gente, o quintal estaria barulhento e ele não poderia mais des-
frutar daquela paz e daquele silêncio.
Subiu as escadas na ponta dos pés, entrou no quarto e trocou a
formalidade da calça jeans e da camisa de botão pelo conforto de um
calção de banho. Desceu novamente na ponta dos pés e chegando ao
quintal dos fundos, deu um belo mergulho na piscina. Nadou por um
bom tempo, até perceber que as pessoas da casa acordavam. Só então
saiu da piscina e foi se arrumar para receber os convidados.
Isabel saiu de casa perto das onze e meia. Quinze minutos depois
chegava à casa dos gêmeos. Havia um bocado de carros estacionados na
calçada. Boa parte dos convidados já devia ter chegado. Abriu o portão
e subiu a rampa até a varanda, onde parou diante da porta e tocou a
campainha. Foi Cláudio quem atendeu com um sorriso largo.
- Isabel! Que bom que você veio!
Isabel deu os parabéns e os dois se abraçaram apertado.
- Entre! Vou te apresentar a algumas pessoas.
Isabel entrou e viu Daniel que observava tudo do fundo da sala.
Ela se apressou em cumprimentá-lo com seu melhor sorriso. Desejou
feliz aniversário, abraçou-o e deu um beijo de dois segundos em seu
rosto. Daniel estremeceu. Quando se tratava de um beijo de Isabel, dois
segundos pareciam uma eternidade.
Isabel abriu a bolsa e tirou dois embrulhos, entregando um a cada
irmão.
- Passei bastante tempo escolhendo estes presentes. Espero que eu
tenha acertado.
- Obrigado, Isabel! – agradeceu Cláudio.
- Não precisava ter feito isso, mas mesmo assim, obrigado. – disse
Daniel.
Os dois abriram os pacotes. Cláudio abriu o seu primeiro. Era um
livro de Victor Hugo. Um exemplar com o texto integral de “O Corcun-
da de Notre Dame”.
- É em parte para agradecer nossas tardes de estudo. Esse livro não
tem nada a ver com Física, Química e Matemática. É um entretenimen-
to para variar um pouco.
- Acertou em cheio, Isabel. Você sabe que eu gosto de ler. Adorei!
Daniel abriu o seu. Um embrulho pequeno, do tamanho de uma
caixinha de fósforos. De dentro, tirou uma correntinha com uma me-
dalha.
- É para te proteger. Não sei que santa é essa, mas quando vi a
medalha eu tive um pressentimento muito forte de que você ia gostar.
TATIANE RANGEL | 71

Daniel rolou a medalhinha nas mãos. Levantou a cabeça e com os


olhos cheios d’água, falou:
- É Santa Isabel.
Nenhum dos três disse mais nada. Apenas ficaram se olhando por
algum tempo. Daniel apertou a medalha contra o peito e deixou escapar
duas lágrimas. Secou os olhos, pendurou a corrente no pescoço, beijou
a medalhinha e finalmente disse:
- Eu nunca mais vou tirar esta corrente do pescoço. Obrigado Isa-
bel. Você não poderia ter me dado um presente melhor.
Daniel respirou fundo e antes que alguém dissesse mais alguma
coisa, pediu licença e saiu da sala.
Depois de um breve momento de silêncio, Cláudio se sentiu in-
comodado e quis mudar bruscamente a situação. Animadamente ele
olhou para Isabel e propôs:
- E então? Vamos lá para os fundos aproveitar a festa?
- Vamos sim!
- Então vamos, mas antes eu quero te apresentar aos meus pais.
Os pais de Cláudio conversavam com algumas pessoas num can-
to da sala. Cláudio esperou que terminassem e quando as pessoas com
quem conversavam se afastaram, ele e Isabel se aproximaram.
- Pai, mãe, esta é a Isabel. Isabel, estes são meus pais: Luisa e Car-
los.
Isabel sorriu largamente e estendendo a mão disse um “Muito
prazer” cheio de simpatia. Depois de feitos os devidos cumprimentos,
Luisa comentou:
- Nossa, ela é mesmo linda! Seja muito bem-vinda, Isabel!
- Obrigada! – agradeceu Isabel, muito satisfeita.
- O Cláudio me falou muito de você.
- Espero que tenha falado bem.
-Muitíssimo bem! Seja bem-vinda. Fique à vontade e divirta-se.
- Obrigada! – disse Isabel, sorrindo.
- Isabel, você já conhece a casa. Vá se trocar e eu encontro você na
piscina. – disse Cláudio.
- Tudo bem! – concordou Isabel.
Depois que Isabel saiu, Carlos e Luisa abriram um imenso sorriso
de satisfação.
- Ela é mesmo uma graça! Que simpatia de menina! E como ela é
linda!
- Eu disse a vocês. Agora, com licença – brincou Cláudio – que eu
vou atrás da gatinha.
Todos riram e Cláudio foi para a piscina.
Cláudio chegou à piscina e viu que Isabel ainda não estava por lá.
72 | POR QUE NÃO?

Deveria estar no vestiário colocando o maiô. Ele cumprimentou as várias


pessoas que ali estavam. Entre elas muitos primos, amigos e alguns paren-
tes. Ele se sentou em uma das espreguiçadeiras e esperou.
Naquele meio tempo Daniel apareceu vestido um pouco mais à
vontade. Não estava em trajes de banho como a maioria, mas trajava
bermudão de tactel, camisa de malha e chinelos. Veio sentar-se ao lado
do irmão.
- Pensei que você não fosse descer.
- É nosso aniversário. Seria uma desfeita com nossos pais. Eles
tiveram trabalho para organizar a festa.
- Não é isso. Quando você saiu de perto de nós, parecia que estava
chorando.
- Não estava.
- Se você diz...
Cláudio olhou para o pescoço de Daniel e viu a medalha que Isa-
bel havia dado. Não comentou nada.
Depois de alguns minutos, Isabel apareceu. Saiu do vestiário usan-
do um biquíni verde, cabelos presos, canga amarrada na cintura. Chi-
nelos da mesma cor do biquíni. Uma tornozeleira no tornozelo direito.
Estava linda. Mais que linda: estava muito sensual. Daniel e Cláudio
admiravam o seu caminhar na direção deles. Cláudio reparou que todos
a olhavam. Isabel sem saber atraía para si todas as atenções. Isso era
maravilhoso nela. Ela nem percebia. Seu carisma era tão natural quanto
forte. Ela não fazia de propósito. Ela nem mesmo sabia.
Isabel se aproximou dos gêmeos e se sentou em outra espreguiça-
deira perto deles.
- E então? Não vão entrar? – perguntou Isabel referindo-se à pis-
cina.
- Talvez mais tarde. – respondeu Daniel.
- Daqui a pouquinho eu entro. Vou tomar um pouco de sol antes.
– respondeu Cláudio.
Quatro meninas se aproximaram. Eram todas primas dos gêmeos.
A mais alta de todas falou:
- Não apresentam sua amiga para nós? – e olhando em direção à
Isabel, continuou: - Meu nome é Clara. Essas são: Vera, Aninha e Mari-
na. Somos primas deles.
- Meu nome é Isabel. – respondeu ela, com aquele imenso sorriso
de sempre.
- Venha se sentar com a gente! Estamos conversando um pouco e
daqui a pouco vamos jogar vôlei na piscina.
Isabel olhou para os gêmeos e Cláudio fez que sim com a cabe-
TATIANE RANGEL | 73

ça. Ela, então, se levantou e aceitou o convite. Em pouco tempo Isabel


estava conversando animadamente, não só com as meninas, mas com
outras pessoas que também vieram se juntar ao grupo.
- É incrível, não é? – perguntou Daniel.
- O quê?
- O magnetismo dela. Olha só: ela mal chegou e já está cercada.
- Ela é uma pessoa especial. – sorriu Cláudio.
As meninas se levantaram e entraram na piscina. O jogo de vôlei
correu animado. Depois de certo tempo, as pessoas foram saindo da
piscina. A música estava animada e alguns foram dançar. Outros se ser-
viam no bufê. Só Isabel ficou.
Ela nadou até onde Cláudio estava. Daniel já havia saído dali e,
sem que ninguém soubesse, trancou-se no escritório e ficou observando
a festa pela janela.
- E aí? Já pegou o seu sol?
- Já! – respondeu Cláudio dando um súbito impulso com os bra-
ços e jogando-se na água.
Ele e Isabel brincavam de jogar água um no outro, enquanto Da-
niel só observava.
Daniel passou as mãos pelo rosto até chegar à nuca.
- Meu Deus! Tenho que parar com isso! Tenho que esquecer!
Ele olhava Isabel sem se cansar. Podia ficar ali o dia inteiro. Olha-
va cada centímetro, cada movimento, cada sorriso. Os cabelos molha-
dos, os olhos negros refletindo o sol, o corpo perfeito.
Daniel se deu conta de que passara tempo demais ali. Precisava
voltar para aquela maldita festa antes que dessem por sua falta. Ele final-
mente saiu de sua reclusão e foi juntar-se aos outros na mesa do almoço.
À tarde, todos trocaram de roupa para aproveitar a festa de um
jeito diferente. Os pais dos gêmeos tinham contratado uma equipe de
som e iluminação, e em pouco tempo, a área da piscina virou uma pista
de dança.
Isabel, Daniel e Cláudio estavam sentados à mesma mesa. Cláudio
tentava a todo custo chamar a atenção de Isabel, que tentava manter um
diálogo com Daniel. A situação era estranha. Isabel falava e falava. Da-
niel era quase sempre monossilábico. Cláudio tinha a sensação de estar
falando sozinho.
O tempo foi passando e as pessoas indo embora. O som foi desli-
gado, as luzes apagadas e a limpeza começou a ser feita. Só os três per-
maneciam no mesmo lugar.
Depois de vários minutos de silêncio, Daniel se levantou. Disse
que estava cansado.
74 | POR QUE NÃO?

- Obrigado por ter vindo, Isabel.


Deu um beijo em sua testa e saiu.
Isabel ficou calada. Estava com um olhar triste.
- Não tem mais nada para fazer aqui. Vamos entrar. – sugeriu
Cláudio.
Os dois entraram. Isabel ainda tinha um copo de vinho nas mãos.
Ela se jogou no sofá com um sorriso bobo e quase derramou o vinho
nas almofadas.
- Você já bebeu demais. – disse Cláudio, tirando o copo das mãos
dela.
Cláudio ficou olhando para ela ali, largada no sofá, imaginando
onde sua mente estaria. Isabel parecia estar longe.
De repente ela deu uma gargalhada curta, agarrou uma das almo-
fadas e, sem ter noção do que estava fazendo, afundou seu rosto nela
enquanto a abraçava e depois deu um suspiro quase obsceno.
Cláudio estava pasmo com aquela cena. Quase se descontrolou.
Sua vontade era pular para o sofá, tomar Isabel nos braços e estar no
lugar daquela almofada. Quis abrir a boca para dizer o quanto a queria,
mas as palavras simplesmente morriam na garganta. Ele se conteve.
Sentou ao lado de Isabel, tirou-lhe a almofada das mãos e procu-
rou confortá-la.
- Pare com isso, Isabel. Eu não devia ter deixado você beber tanto.
Venha cá.
Ele apertou Isabel contra o peito e alisou os cabelos dela.
- O que eu faço com você, Isabel? Você não pode voltar para casa
neste estado. Ainda bem que meus pais já foram dormir, ou eles surta-
riam. Vamos fazer o seguinte: eu peço alguma coisa para a gente jantar.
A gente come e, depois que você melhorar, eu te levo em casa.
- Eu não quero ir pra casa.
- Você precisa. O que os seus pais vão dizer?
- Eu não te contei? Eles viajaram. Para fora do país. Não tem nin-
guém na minha casa.
- Você está sozinha? Não tem nem uma empregada lá com você?
- Não.
- Bom... Então você pode dormir aqui. Acho que meus pais não
vão se importar.
Isabel levantou a cabeça. Não estava chorando, mas os olhos esta-
vam marejados. Por um momento Cláudio não conseguiu mais racioci-
nar. Aqueles olhos enormes e brilhantes olhando em sua direção, aquele
perfume delicioso. Não aguentou mais: puxou Isabel para si e tentou
beijá-la. Não conseguiu. Isabel foi mais rápida e o empurrou:
- O que é isso? O que você ia fazer?
TATIANE RANGEL | 75

- Desculpa... eu... eu achei que você queria. Você me olhou de um


jeito... eu... – Cláudio estava desconcertado.
- Caramba, Cláudio! Só porque eu olhei para você, você achou
que eu queria te beijar?
- E por que não? O que tem de errado nisso? Eu gosto de você,
você gosta de mim, a gente se dá bem. Eu achei que poderia dar certo.
Isabel pareceu não crer no que estava ouvindo. Ela passou do sus-
to inicial a um misto de incredulidade e pena.
- Cláudio, por favor, vamos devagar. Eu gosto de você como ami-
go. Você é o meu melhor amigo aqui. Eu posso contar tudo para você,
posso confiar em você, mas é só. Eu gosto do Daniel e você sabe disso.
- Isabel, acorda! O Daniel quer ser padre, nunca vai olhar para
você! Abra os olhos! Não vai acontecer!
- Como você pode saber? – perguntou Isabel com uma voz triste
e um tanto desesperada.
- Isabel, ele é meu irmão. Ele fala em ser padre desde os sete anos
de idade. Não vai desistir por sua causa nem por causa de ninguém. Fica
comigo!
- Eu não posso ficar com você gostando dele. É ele quem eu quero!
- Ele rejeita você, Isabel! Ele te rejeitou o dia inteiro! Por que ao
invés de ficar aí sofrendo por alguém que não te quer, você não me dá
uma chance?
- Não. Você não. Desculpa, mas não dá.
- Por que não eu?
Agora era Cláudio quem tinha os olhos marejados.
- É porque eu sou cadeirante? É por isso, Isabel?
- Cláudio, por favor, não surta.
- Então por que não eu, Isabel?
Isabel não deu nenhuma resposta. Apenas baixou a cabeça.
Deixando escapar uma lágrima, Cláudio se despediu:
- Boa noite, Isabel. Eu vou pedir para alguém fazer sua cama no
escritório.
Cláudio voltou para a cadeira de rodas e deu as costas em direção
à escada. Isabel se levantou dizendo que ia para casa.
- Você não pode ir sozinha a esta hora. Eu te levo.
- Não precisa.
Isabel deu meia-volta e antes que Cláudio pudesse argumentar, ela
se apoiou num móvel como se fosse cair.
- O que foi Isabel? – Isabel ficou parada e não respondeu. – Isabel?
Você está se sentindo bem?
Cláudio tocou a cadeira até onde Isabel estava, mas não chegou a
tempo: Isabel desmaiou.
76 | POR QUE NÃO?

- Caramba! Isabel! Isabel! Acorda, por favor!


Cláudio beirou o desespero. Não tinha como erguer Isabel do
chão. Procurou se controlar. Não queria gritar, pois seu irmão e seus
pais já estavam dormindo. Tentando raciocinar, ele foi até a cozinha.
Não encontrou ninguém. Lembrou-se então do pessoal que estava lim-
pando a área da piscina. Foi até lá e pediu ajuda.
Um homem veio em seu socorro. Pegou Isabel no colo e a deitou
no sofá. Logo todos os empregados que estavam na casa se mobilizavam
para ajudar de alguma forma.
- Coloquem-na no meu carro. Vou levá-la ao hospital. Preciso que
um de vocês venha comigo. – pediu Cláudio.
- Esperem, ela está acordando! – falou uma mulher.
Cláudio foi até o sofá.
- Isabel? Fala comigo!
- O que aconteceu? – perguntou ela, já tentando se levantar.
- Não se levante. – pediu Cláudio – Você desmaiou. Vou tirar o
carro e te levar ao hospital.
- Não precisa, eu já estou bem.
- Tem certeza? Acho melhor irmos ao hospital. Não sabemos por
que você desmaiou.
- Não, é sério. Está tudo bem. Já aconteceu antes. Não é nada.
- E você não foi ao médico?
- Não.
- Me prometa que você vai ao médico e vai descobrir por que des-
maia tanto.
- Eu prometo.
Cláudio ainda estava relutante. Queria levar Isabel ao hospital de
qualquer jeito. Ela recusava.
- Quero ir para casa. – pediu Isabel.
- Não. Isso eu não posso deixar. Você passou mal e não tem nin-
guém para cuidar de você. Você fica. Mando fazer sua cama no escritó-
rio. Se passar mal, é só chamar.

* * *

Cláudio acordou no meio da madrugada. Olhou para o lado e viu


uma sombra de pé ao lado da cama. Assustado, acendeu o abajur para
ver do que se tratava. Surpreso, viu que era Isabel. Ela estava parada
olhando para ele. Os olhos cheios d’água.
- Isabel! O que você está fazendo aqui? Como conseguiu entrar?
Eu tranquei a porta antes de dormir.
TATIANE RANGEL | 77

- Eu subi pela varanda. – disse Isabel fungando e enxugando os


olhos.
- Você escalou a varanda?
- Escalei.
Isabel sentou-se na cama.
- Volte a dormir, Isabel. Não tem nada para você fazer aqui.
- Eu só queria conversar.
- Um pouco tarde, você não acha? Ou você pensa que só porque
você desmaiou eu esqueci tudo o que você me disse lá embaixo?
- Eu não conseguia dormir, e acho que se eu não viesse até aqui
pedir desculpas eu não conseguiria dormir nunca mais. – disse Isabel
em prantos.
Cláudio ficou desarmado. Sentou-se na cama e chamou:
- Venha cá. Não chore mais. Me parte o coração ver você assim.
Ele novamente apertou Isabel contra o peito e alisou seus cabelos.
Desta vez não tentou nada. Só ficou abraçado a ela.
- Me perdoa? Eu não quis dizer aquilo. Você entendeu errado. Eu
nunca faria uma coisa dessas. Eu nunca discriminei você.
- Está tudo bem. Vamos esquecer isso. Eu também exagerei. Pro-
meto que não vou mais surtar.
Cláudio deu um beijinho na cabeça de Isabel.
- Agora volte para a cama. Amanhã a gente volta a conversar.
- Não quero ficar sozinha naquele escritório. Me deixa dormir
aqui.
- Não tem cama para você aqui.
- Eu deito aqui do seu lado. Não vou incomodar. Você nem vai
saber que estou aqui. A cama é grande.
- Não acho que seja uma boa ideia.
- Por favor.
- Não. Isso não seria certo. Principalmente porque depois de tudo
o que aconteceu, isso seria estranho. Não quero que você pense que eu
estou me aproveitando de você outra vez.
- Não vou pensar nada. Eu confio em você.
Cláudio respirou fundo. Queria aceitar, mas sabia que não estava
certo. Mesmo que eles só dormissem. Pensou por um tempo e acabou
cedendo. Chegou-se para o lado e chamou Isabel:
- Está bem. Pode se deitar aqui.
Eles se deitaram e Isabel apoiou a cabeça no ombro de Cláudio.
Ela adormeceu logo, mas ele não conseguiria mais dormir. Não com
Isabel ali do seu lado, na sua cama. Ficou acordado alisando os cabelos
dela pelo resto da noite.
78 | POR QUE NÃO?

Quando Isabel acordou, se viu sozinha na cama. Levantou-se,


olhou em volta e viu um bilhete no criado-mudo: “Bom dia. Espero que
tenha dormido bem. Precisei sair. Deixei toalhas limpas para você no
banheiro. Não demoro”.
A cabeça de Isabel doía. Ela se levantou e foi até o banheiro da suí-
te. Era um banheiro bem estranho. Cheio de barras e adaptações. Tinha
uma cadeira de rodas estranha no boxe, com assento de vaso sanitário.
Parecia um banheiro de hospital. Sobre a bancada, estavam toalhas lim-
pas, sabonete e escova de dente ainda na embalagem.
Isabel tomou um banho rápido e desceu para a sala. Ao chegar,
encontrou Cláudio entrando em casa.
- Bom dia. – cumprimentou ela ainda sem graça.
- Bom dia, Isabel. – respondeu ele sem sorrir, mas não demonstra-
va nenhuma mágoa na voz.
A mesa do café da manhã estava posta e antes que Isabel pudesse
falar mais alguma coisa, Cláudio a convidou a sentar-se.
- Vamos tomar nosso café. Eu também não comi nada ainda.
- Obrigada por me deixar ficar.
- Não foi nada. Só não fique falando disso por aí. Ninguém sabe
que você dormiu comigo.
- Você teria vergonha se soubessem?
- Não é isso. É que meus pais não iriam gostar. É melhor evitar.
- Onde estão seus pais?
- Acordaram cedo e saíram. Eles são muito ocupados. Não é nada
fácil administrar uma cadeia de lojas.
- Mas é domingo!
- É final de ano. As lojas abrem aos domingos até o natal.
- Eles não descansam nunca?
- Quase nunca. Tiramos férias uma vez por ano, mas é só. Eles via-
jam muito por causa das outras lojas, precisam ir a convenções procurar
as novidades. Mesmo quando estão por aqui não passam muito tempo
em casa.
- Nossa... Você praticamente mora sozinho.
- Praticamente.
- Meus pais também viajam bastante, mas não com esta frequên-
cia.
- Você sempre fica sozinha quando eles viajam?
- Nem sempre foi assim. Antes de eu me mudar para cá eu ficava
com uma tia. Aqui não tenho ninguém e eles não podem deixar de via-
jar. Fico sozinha desde então.
- Não podiam contratar uma governanta?
TATIANE RANGEL | 79

- Eles não confiam. Também prefiro assim. É melhor ficar sozinha


que ter uma pessoa estranha dentro de casa. Eu sei me cuidar, não é
nada demais.
- Eles deviam se preocupar. Você passou mal ontem. E se estivesse
sozinha dentro de casa? Quem ia te socorrer?
- Eu bebi demais. Por isso desmaiei.
- Você disse que já tinha acontecido antes.
- É, mas não acontece sempre.
- Chega, Isabel! Você vai ao médico amanhã. Isso não é normal e
seus pais deviam saber e se preocupar mais com você.
Isabel baixou a cabeça e não disse mais nada a respeito daquilo.
Ela sabia desde sempre que precisava se virar sozinha. Seus pais nunca
ligaram e não iriam ligar agora. Para eles tanto fazia. Ela não falava so-
bre aquilo com ninguém e não pretendia começar agora.
- Aonde você foi?
- O que?
- Quando acordou, aonde você foi?
- Ah... A lugar nenhum. Só fui dar uma volta. Queria ficar sozi-
nho, pensar um pouco.
- Mas está tudo bem entre a gente, não está?
- Está sim. Vamos só esquecer isso.
Não estava nada bem e Isabel sabia disso. Cláudio parecia triste.
Isabel acabou de tomar seu café da manhã e disse que ia embora.
- Você não precisa ir. Pode ficar o tempo que quiser.
- Eu tenho que ir sim. É lá que eu moro.
- Não tem ninguém para cuidar de você lá, Isabel. Fica aqui en-
quanto seus pais não voltam. Eu tenho certeza que meus pais vão con-
cordar.
- Não me entenda mal, Cláudio. Mas eu não me sentiria bem dor-
mindo no seu escritório. E eu acho que não posso dormir com você
todos os dias.
Isabel beijou o rosto de Cláudio, pegou suas coisas e saiu.
TATIANE RANGEL | 81

CAPÍTULO 6
meu universo é você
N a segunda-feira de manhã, Cláudio buzinava na frente da
casa de Isabel. Ela apareceu na porta ainda com cara de sono.
- O que você está fazendo aqui? São sete horas da manhã!
- Eu avisei que você hoje ia ao médico. Liguei pro médico da mi-
nha família e consegui uma hora pra você. Sua consulta é às nove. Eu
fico aqui esperando você se arrumar.
Isabel achou engraçada a preocupação de Cláudio. Ela então sor-
riu e pediu que ele entrasse.
- Você não vai passar duas horas aí fora, vai? Ponha o carro aqui
na garagem e me espere na sala.
Cláudio concordou.
Duas horas depois estavam no consultório. Cláudio entrou com
Isabel e mal deixou que ela falasse. Ele mesmo explicou o que acontecia.
O médico pediu alguns exames e marcou um retorno. Saindo do con-
sultório, Cláudio perguntou:
- O que você vai fazer agora?
- Hoje saem os resultados das provas. Preciso ir até a escola.
- Eu acompanho você.
Cláudio dirigiu até a escola de Isabel. Chegando lá, fez questão de
entrar com ela. Os dois seguiram por um corredor comprido até chegar
a um mural onde a lista estava pregada. O professor de Matemática de
Isabel estava parado diante do quadro e quando viu que ela se aproxima-
va fixou-lhe o olhar e fez uma cara estranha.
O coração de Isabel quase saía pela boca. Aquela cara não podia
ser nada boa. Cláudio apertava a mão de Isabel.
- Eu estou aqui com você. Seja corajosa.
Isabel andava dura feito um robô. Mal podia se mexer. O olhar do
professor ainda estava fixo nela. Ela parou diante do mural, olhou para
cima, procurou a lista com as notas da sua turma e encontrou seu nome.
O rosto de Isabel se iluminou em um sorriso de alívio e felicidade.
- Aprovada! Sem recuperação!
82 | POR QUE NÃO?

O professor sorriu e disse:


- Parabéns, Isabel! Não pensei que você fosse conseguir. As mé-
dias não ficaram muito altas por causa das notas anteriores que estavam
bem ruins. Mas você tirou notas excelentes nas provas finais, o que foi
suficiente para que você fosse aprovada! Tenha boas férias! Nos vemos
no ano que vem. Veja se dessa vez não vai deixar acontecer de novo.
- Obrigada, professor! Não vai acontecer outra vez.
Isabel deu um grito de felicidade e correu para abraçar Cláudio.
- Eu disse que você ia conseguir. Parabéns.
- Tudo graças a você. Eu não sei se teria conseguido sem a sua
ajuda!
- Claro que teria. Você é inteligente.
De repente, alguém chamou o nome de Isabel. Era Carlinha, sua
colega de classe. Ela também tinha ido ver os resultados.
- Parabéns, amiga! Passou direto!
Carlinha olhou para Cláudio, olhou de volta para Isabel e pergun-
tou:
- Não apresenta?
Isabel respirou fundo e disse:
- Claro que sim. Carlinha, este é o Cláudio. Cláudio, esta é a Car-
linha.
Os dois se cumprimentaram com beijinhos no rosto. Carlinha
ainda ficou certo tempo olhando para Cláudio, e então olhou de volta
para Isabel e disse:
- Agora que todos passamos de ano, você volta a ter tempo para
os amigos, não é? Precisamos comemorar. Vou dar uma festa na minha
casa no próximo sábado. Apareçam por lá. – Carlinha olhou outra vez
para Cláudio e completou – Os dois!
Carlinha virou as costas e foi embora. Isabel ficou um tanto inco-
modada.
- Como ela é metida! – exclamou.
- Eu a achei bem legal.
- Cala a boca! – Isabel virou as costas e se dirigiu à saída.
Cláudio ficou para trás com um sorriso no rosto. Aquilo tinha
sido uma cena de ciúmes? Ele então foi atrás de Isabel e ofereceu-se para
levá-la a algum lugar:
- Isabel! Vamos comemorar!
Isabel voltou-se para trás e disse:
- Estou ouvindo.
- Você esperou muito por este resultado. Vamos fazer alguma coi-
sa para comemorar. Quer ir almoçar? Tomar um sorvete? Ou quem sabe
ir ao cinema?
TATIANE RANGEL | 83

- Um sorvete pode ser. – disse Isabel, já dando um sorriso um


tanto debochado.
Os dois saíram dali e foram até uma sorveteria.
- Amanhã de manhã vou te levar ao laboratório. Vai fazer os seus
exames de sangue.
- Ai, Cláudio! Nem minha mãe pega no meu pé desse jeito, sabia?
- Com todo respeito, Isabel. Acho uma negligência dos seus pais
nunca terem te levado ao médico.
- Eu já disse que não é nada. Não acontece com frequência.
- E você vai esperar desmaiar todos os dias para saber por que
você desmaia?
Entre um sorvete e outro, Cláudio continuava:
- Por favor, Isabel. Fica lá em casa essa semana. Só até sexta-feira,
que é quando você volta ao médico. Não vou ficar tranquilo sabendo
que você está lá sozinha e pode passar mal outra vez.
Isabel relutava. Não queria passar a semana dormindo num es-
critório. Depois, ainda estava chateada com o que havia acontecido no
sábado. Não com a discussão que havia tido com Cláudio, mas com a re-
jeição de Daniel. Ela não compreendia o que se passava na cabeça dele.
Parecia que ela havia conseguido emocioná-lo com o presente. Tanto
que ele o estava usando durante todo o tempo. Mas, mesmo assim, pa-
recia rejeitá-la. Ficou o tempo todo afastado, respondia com evasivas e
monossílabas e mal olhava para ela. Pelo menos até aquela mágoa pas-
sar, não queria encontrar com ele.
Cláudio tanto insistiu que ela acabou concordando, mas não sem
dizer o que a incomodava.
- Eu garanto que você quase não vai vê-lo. Quando o Daniel vem
para cá quase não fica em casa. Ele passa o dia inteiro na igreja, em hos-
pitais, orfanatos, asilos e onde mais ele puder se esconder. O seminário
nem exige que ele faça isso, mas ele faz assim mesmo, sabe? Chega a ser
obsessivo. Eu nunca entendi a razão disso tudo. Meus pais dizem que ele
é uma pessoa bondosa, mas não me parece só bondade. Parece culpa.
- Culpa?
- É... Sabe quando você faz alguma coisa ruim e não tem como
reparar e então fica se castigando? Pois é. Parece que o castigo do meu
irmão é fazer alguma coisa boa para compensar.
- Mas você acha que ele fez alguma coisa tão horrível assim?
Cláudio pareceu um tanto desconcertado. Desviou o olhar para
baixo e respondeu:
- Não. Claro que não.
- Então por que você acha que ele quer se castigar?
84 | POR QUE NÃO?

- Eu não disse que ele quer se castigar. Só que parecia isso.


Os dois ficaram em silêncio durante certo tempo. Cláudio perma-
necia de cabeça baixa e remexia o sorvete já quase líquido com a colher.
De repente ele levantou a cabeça e perguntou quase como se fosse um
disparo:
- O que você viu no Daniel? Por que você gosta dele?
Isabel, pega de surpresa, quase engasgou com o sorvete.
- Por que a pergunta?
- Nada. Eu só queria saber o que ele tem que eu não tenho.
- Cláudio...
- É sério, Isabel. Eu te dou carinho, te cerco de atenção, ouço tudo
o que você tem para falar, a gente ri, se diverte junto, conversa, se dá
bem. Você não tem nada disso com ele. Ele tem a mesma cara que a
minha, então não pode ser só a beleza. A única coisa que ele tem que eu
não tenho são pernas que funcionam.
- Vamos com calma, Cláudio. Você está sendo complexado outra
vez. Eu já te falei que não tem nada a ver com isso.
- Então me diz o que é. Me diz o que é, porque até este momento
eu só consegui pensar nisso.
Isabel procurava as palavras.
- Eu não sei o que é, tá? Eu o conheci antes de você...
- Algumas horas antes – interrompeu Cláudio.
- Cláudio, não dificulta. Quando eu o conheci eu não sabia que
ele ia ser padre. Ele foi tão simpático comigo, tão atencioso. Só ele me
socorreu quando eu passei mal lá na biblioteca. E até o dia seguinte, que
foi quando eu conheci você, ele me tratou muito bem! Depois disso ele
mudou, passou a me evitar, ficou monossilábico. Eu é que queria enten-
der o que houve.
- Eu já te falei o que houve, Isabel. Só que você não escuta. O Da-
niel não quer se aproximar de você porque vai ser padre. Você não con-
segue disfarçar que gosta dele e isso assusta, sabia? Ele não quer correr o
risco de te dar falsas esperanças. Por isso ele se afastou.
- Ele disse isso?
- Não é preciso, Isabel. Já aconteceu antes. O Daniel é assim. Se ele
acha que vai ter algum problema, se afasta.
- Problema?
- É. Ele foi legal com você e você confundiu tudo.
Isabel se sentia derrotada. Cláudio olhou para ela e tentou animá-
-la:
- Não faça esta carinha. Venha. Vamos à sua casa para pegar algu-
mas roupas.
TATIANE RANGEL | 85

Chegando à casa de Cláudio, ele logo providenciou para que Isa-


bel fosse instalada no escritório.
Quando os pais dele souberam que Isabel estava sozinha em casa,
logo concordaram em hospedá-la por alguns dias.
Aos poucos, Isabel começou a se tornar parte do cotidiano da fa-
mília. Parecia que todos a adoravam e isso incluía os empregados da
casa. Apesar disso, Cláudio e Isabel ficavam praticamente sozinhos. Os
pais de Cláudio eram muito ocupados. Saíam de manhã bem cedo e só
voltavam tarde da noite. Daniel se escondia o máximo que podia. Quase
nunca estava em casa e quando estava, evitava sair do quarto para não
encontrar Isabel.
Daniel passava horas olhando para a medalha que Isabel lhe dera
de presente de aniversário. Rolava o pingente nas mãos incansavelmen-
te. Ás vezes seus olhos enchiam-se d’água e ele chorava. Remoía dentro
de si um agravante da culpa que já carregava havia anos. Ser padre e
amar uma mulher... Não podia ser. Não era certo. Ele estava impelido
a fazer uma escolha que lhe parecia óbvia, mas mesmo assim, doloro-
sa. Cumprir a promessa feita treze anos atrás ou, num ato de egoísmo,
pensar em si mesmo e viver aquela paixão doentia que tomava conta de
todo o seu ser? Ele sabia que aquela escolha não envolveria somente Isa-
bel. Também envolveria Cláudio, seu irmão gêmeo e limitado. Ele não
sabia o que seria: sua vez de sofrer para enfim cumprir sua promessa,
ou libertar-se-ia dela para amar Isabel e assim tirar mais uma coisa de
seu irmão e fazê-lo sofrer mais do que já sofria? Daniel sentia-se agora
à beira da loucura.
De uma forma muito confusa, a intimidade entre Isabel e Cláu-
dio crescia. Todas as noites Isabel escapava do escritório, escalava a va-
randa e ia dormir na cama dele. Isabel dormia em seu peito, os dois con-
versavam até a alta madrugada, mas não passava disso. Cláudio sentia-
-se cada vez mais confuso com a atitude ambígua de Isabel, que parecia
não saber o que queria.
Cláudio sabia de cada passo que Isabel dava. Ela fazia questão de
contar-lhe tudo sobre sua vida. Cada lugar onde morou, cada escola
em que estudou, cada paixão antiga e platônica que havia vivido. Isabel
parecia fadada a viver amores irreais. Tudo bem que não haviam sido
tantos, mas até então, todos haviam sido assim. Cláudio achava que Isa-
bel tinha medo de amar de verdade. Que inconscientemente, procurava
paixões que sabia não serem possíveis. Assim, não precisaria vivê-las.
Cláudio também descobriu que, por trás de toda aquela doçura
de Isabel, escondia-se uma enorme carência. Apesar de seus pais serem
exigentes, a educarem com certo rigor e não deixarem que faltasse nada,
86 | POR QUE NÃO?

Isabel nunca havia se sentido amada. Assim como os pais de Cláudio, os


de Isabel estavam constantemente ausentes, mas nem sempre por causa
de trabalho. Eles procuravam em outros lugares um consolo que Isabel
não podia dar: ela havia confessado a Cláudio que era adotada. Seus pais
haviam tido outra filha, mas ela morrera doente aos quatro ou cinco
anos e como não podiam ter mais filhos, adotaram Isabel ainda bebê
dois anos depois e deram-lhe o nome da menina falecida. Por isso Isabel
sentia-se rejeitada. Ela nada mais era que uma substituta, um fantasma
da menina morta – a verdadeira Isabel.
Sobre seus pais biológicos, Isabel pouco sabia. Sabia apenas que
eram muito jovens quando ela nasceu e supostamente por isso havia
sido dada para adoção. Seus pais adotivos nunca esconderam sua condi-
ção e nem a história por trás dela. Quando era pequena, as comparações
eram constantes: a outra Isabel era mais alta; a outra Isabel andou mais
cedo; a outra Isabel falou antes; e assim por diante.
Cláudio sofria junto com Isabel ao ouvir tudo isso. Ria e chorava
com ela e sentia cada vez mais vontade de cuidar dela, de estar com ela,
de dar a ela o amor que ela nunca havia tido. Por isso mesmo ele fingia
que não se importava quando Isabel falava que ele era o melhor amigo
que ela já teve na vida, e até mesmo quando Isabel falava de seu senti-
mento por Daniel. Cláudio sofria calado.

Na sexta-feira, Cláudio tornou a levar Isabel ao médico para saber


o resultado dos exames: hipoglicemia. Não era tão sério, mas Isabel teria
que tomar mais cuidado com a alimentação dali para frente.
- Então é por isso que você desmaia tanto. Menos mal. – disse
Cláudio.
- Eu nunca iria imaginar. Ainda bem que não era nada mais sério.
- É, mas eu vou ficar de olho em você. Tem que cuidar melhor da
alimentação. Já percebi que você não come direito.
Os dois tomavam o caminho de casa quando Cláudio tocou num
assunto:
- A festa da sua amiga Carlinha é amanhã à noite, não é?
- E daí?
- Como assim “e daí”? A gente vai, não vai?
- Não, a gente não vai.
- Por que não? Nós fomos convidados.
- Aquele convite não foi bondade da Carlinha. Ela só queria apa-
recer.
- Aparecer? Não acho. Ela parecia bem legal.
- Ela não é legal. – disse Isabel, já exaltada – A Carlinha é a maior
TATIANE RANGEL | 87

vampira e só convidou porque está doida para se atirar em cima de você.


- Em cima de mim? – Cláudio sorriu.
- É, e você está todo animadinho! – disse Isabel, já mal-humorada.
- E você está morrendo de ciúmes.
- Não estou nada.
- Está sim.
- Já disse que não estou.
- Então por que você está tão zangada?
Isabel não disse nada.
- Se você não está com ciúmes então me prove: vamos à festa ama-
nhã.
- Tudo bem! Então nós vamos à festa amanhã! – Isabel fechou a
cara enquanto Cláudio se segurava para não rir.
TATIANE RANGEL | 89

CAPÍTULO 7
emoções conflitantes
C láudio acabava de se arrumar, quando Isabel bateu à porta de
seu quarto.
- Pode entrar.
Ela estava com o cabelo molhado, cheirava a xampu e perfume e
segurava contra si o decote do vestido tomara-que-caia.
- Fecha pra mim? – pediu ela virando as costas para que Cláudio
pudesse subir o zíper.
Olhando quase com devoção ele admirou as costas perfeitas com
suas linhas sinuosas, a pele lisa e fresca, livre de manchas ou imperfei-
ções. Aproximou a mão espalmada, mas não tocou. Ficou parado, inde-
ciso, sabendo que estava cada vez mais difícil resistir àquela tentação.
- Você vai fechar ou não vai? – cobrou Isabel, despertando-lhe do
devaneio.
Cláudio respirou fundo e subiu o fecho bem devagar, admirando
uma última vez as linhas das costas de Isabel.
- Obrigada. – agradeceu Isabel, sentando-se ao lado de Cláudio.
- Você está linda. – elogiou.
- Obrigada. Ainda preciso secar o cabelo. Não consigo decidir o
que fazer com ele. Prendo ou deixo solto?
- Não sei dizer. Você fica linda de qualquer jeito. – disse Cláudio,
quase num sussurro.
Isabel ficou parada enquanto Cláudio olhava tão fundo em seus
olhos que parecia querer decifrá-la. Ele chegou mais perto e como Isabel
não esboçara reação alguma, aproximou-se mais. Pela primeira vez ela
não sorria nem tinha aquele olhar provocativo de sempre. Ela parecia
corresponder. Ele foi chegando mais e mais perto. Seus narizes já se to-
cavam pelas abas e os olhos iam se fechando bem devagar. Seus lábios
já trocavam um breve ósculo e os olhos de Isabel estavam semicerrados
quando subitamente ela pareceu despertar de seu transe, afastando-se
rápido, como se tivesse tomado um susto e, gaguejando, tentou disfar-
çar:
90 | POR QUE NÃO?

- Meu Deus, Cláudio! Você precisa parar de dizer essas coisas. As-
sim fico convencida! – disse sorrindo nervosamente – Vou terminar de
me arrumar e a gente se encontra lá embaixo.
Deu um beijinho na bochecha de Cláudio e saiu do quarto fechan-
do a porta atrás de si.
Cláudio ficou aturdido e sem fôlego, com o cheiro do perfume de
Isabel ainda invadindo suas narinas, o coração quase saindo pela boca e
a cabeça ainda tentando processar o que havia acontecido.

* * *

Cláudio parou o carro em frente à casa de Carlinha. A festa já


estava a todo vapor e a música tocava alta e animada. Ele e Isabel foram
até a porta de entrada, que estava aberta.
Os dois entraram e Isabel cumprimentou algumas pessoas. Diri-
giram-se a uma mesa onde Isabel se sentou e Cláudio estacionou sua
cadeira.
Depois de alguns minutos, Carlinha apareceu para falar com eles:
- Oi! Que bom que vocês vieram! – cumprimentou, dando dois
beijinhos em cada um – Eu preciso dar atenção aos outros convidados
e volto mais tarde para conversar com vocês, mas fiquem à vontade! O
bufê é ali, as bebidas estão bem ao lado e os banheiros ficam para lá.
Aproveitem!
Carlinha deu as costas e desapareceu na multidão. Isabel mal dis-
farçava a raiva.
Os dois ficaram ali por mais algum tempo. Alguns amigos de Isa-
bel começaram a aparecer e alguém sempre a chamava para dançar, ao
tempo que ela recusava:
- Estou com o meu amigo. – dizia.
Cláudio não queria ser um empecilho para Isabel. Quando outra
pessoa apareceu para chamá-la para dançar, ele acenou positivamente
com a cabeça e disse:
- Tudo bem, pode ir.
- E você? Vai ficar aqui sozinho?
- Eu vou buscar uma bebida. Falo com você depois.
- Tem certeza?
- Claro que sim. Pode ir.
Isabel sorriu e foi dançar. Cláudio foi até o bar, pegou uma bebida
e voltou para a mesa.
Ficou ali por bastante tempo, só observando Isabel dançar. Vários
rapazes se aproximavam dela. Ela já havia dançado com muitos.
TATIANE RANGEL | 91

Algum tempo depois alguém se sentou ao seu lado: era Carlinha


que havia reaparecido do nada.
- Sozinho? Onde está Isabel?
- Oi, Carlinha. Ela está ali dançando. – apontou.
- E por que você não está lá dançando com ela?
Cláudio sorriu. Pela primeira vez na vida alguém não pensava que
sua cadeira o impedia de dançar.
- Vou te contar um segredo: - Cláudio fez um gesto chamando
Carlinha mais para perto e sussurrou em seu ouvido – Não sei dançar!
Carlinha riu.
- Não conta pra ninguém, tá? – brincou Cláudio.
- Não vou contar.
Cláudio e Carlinha ficaram ali conversando por muito tempo, até
que ele percebeu que parte do que Isabel havia dito era verdade: Carli-
nha parecia mesmo interessada nele, mas ela não era metida como Isa-
bel havia dito. Era simpática e inteligente.
O clima começou a ficar tenso entre os dois e Cláudio inicialmen-
te se sentia culpado. Sentia estar traindo seu sentimento por Isabel, mas
no momento seguinte pensou com mais cuidado: Isabel já havia deixa-
do claro que não estava interessada, que gostava de Daniel.
Cláudio decidiu então seguir o próprio conselho e parar de correr
atrás de uma pessoa que não o queria. Estava gostando da companhia de
Carlinha e achou que talvez fosse bom dar uma chance a ela.
Carlinha parecia cada vez mais encantada com Cláudio. Quanto
mais o conhecia, mais se interessava por ele.
As coisas foram acontecendo e, quando viram, já estavam bem
próximos, com Cláudio acariciando o rosto de Carlinha e um beijo já
eminente.
- E a Isabel? – perguntou Carlinha.
- Ela não é minha namorada. – respondeu Cláudio.
- Mas ela gosta de você.
- Não, ela não gosta.
Dito isso, Carlinha sentiu aliviar a consciência e se deixou levar
pelo momento. O beijo aconteceu.
Depois de alguns instantes os dois abriram os olhos e sorriram um
para o outro. Sorriso que se apagou quando olharam para o lado e viram
que Isabel estava parada olhando, com os olhos cheios d’água.
Carlinha empalideceu e Cláudio suspirou fundo pressentindo a
tempestade que estava por vir.
- Isabel... – Cláudio não terminou de falar. Isabel virou as costas
e saiu da festa batendo a porta. O barulho foi tão alto que o DJ parou a
92 | POR QUE NÃO?

música e todos se viraram para olhar. Ficou um silêncio constrangedor


no ambiente.
- Você disse que ela não era sua namorada!
- Ela não é! E também já deixou claro que não quer nada comigo!
- Não é o que parece! Você devia saber disso! A Isabel é minha
amiga e agora vai me odiar!
Cláudio, chateado, não sabia o que fazer.
- Não fica aí parado! Vai atrás dela! – ordenou Carlinha.
Cláudio saiu atrás de Isabel. No fundo da sala algum engraçadi-
nho gritou:
- Carlinha fura-olho!
Quando Cláudio alcançou a rua, olhou para os lados e viu que
Isabel já ia longe. Entrou no carro e foi ao encontro dela.
Isabel havia tirado os sapatos e caminhava descalça à beira da
calçada. Tentava disfarçar ao enxugar os olhos. Cláudio emparelhou-se
com ela e reduziu a velocidade para tentar conversar.
- Isabel...
- Me deixa em paz. – disse, sem olhar para o lado.
- Isabel, entra no carro.
Isabel olhou para o lado e desta vez respondeu com um grito:
- Me deixa em paz! – berrou, atirando contra Cláudio os sapatos
que estavam em suas mãos.
Cláudio pela primeira vez perdeu a calma e respondeu no mesmo
tom:
- Eu não entendo você, Isabel! Que merda!
- Que parte você não entendeu? – os gritos dos dois faziam eco
na rua deserta – Deixa eu explicar pra você: você estava beijando aquela
vagabunda!
- Você sabe que eu preferia ter beijado você! Não se faça de vítima
agora!
- Então por que você fez isso? Ela é uma vadia! Ela deve ter um
caderninho listando quantos caras ela beija por dia! Não pense que ela
gosta de você! Ela não gosta de ninguém! Você é só mais um!
- Isabel, entra no carro. A gente está longe de casa e é perigoso
andar aqui a essa hora.
- Vai pro inferno.
Cláudio se enfureceu:
- Entra logo na droga do carro!
Isabel se assustou por um momento, mas reconhecendo que –
apesar da grosseria – o que Cláudio acabara de dizer era verdade, ainda
que enfurecida, ela deu a volta e entrou no carro fechando a porta com
TATIANE RANGEL | 93

violência. Cláudio continuava a falar:


- Agora se acalma e me explica a razão do seu chilique, porque eu
não estou entendendo nada! Por que você ficou tão brava?
- Porque eu sabia que era isso o que ia acontecer e eu te avisei e
você não acreditou em mim!
- Você é completamente louca, Isabel! Aquela ceninha ridícula
poderia ter sido evitada e você sabe muito bem disso!
- E o que você queria que eu fizesse? – perguntou Isabel, gritando
novamente, sem conseguir controlar as lágrimas.
- Que você não fizesse de mim sempre a sua última opção! – ber-
rou Cláudio de volta.
- Última opção? Você nem mesmo é uma opção!
- Então esta conversa não deveria estar acontecendo e eu não de-
veria ter vindo atrás de você!
- Não! Você deveria estar transando sem camisinha e pegando al-
guma doença daquela vadia!
- Me diz uma coisa, Isabel: o problema é comigo ou é com a Car-
linha?
- Eu já disse que não tem problema! Eu estou me lixando pro que
você faz!
- Se você está mesmo se lixando então me explica esse seu surto!
Me explica, porque eu quero muito entender, Isabel! Você me dá tantos
sinais confusos que eu já não sei mais o que pensar de você!
- Que sinais confusos?
- Você me provoca o tempo todo e depois pula fora! Me abraça e
me toca o tempo inteiro! Aparece no meu quarto pedindo pra fechar
o seu vestido quando poderia ter pedido a alguma empregada! Dorme
toda noite na minha cama, mas se eu tento te beijar, você me empurra!
Se eu digo que te quero, você me rejeita! Se eu peço pra ficar com você,
você me nega! O que está acontecendo, Isabel? O que passa pela sua
cabeça?
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos e Cláudio voltou
a falar. Isabel chorava.
- Para mim esse seu ataque só pode significar uma coisa: você gos-
ta de mim e não quer admitir. Por que você não admite logo que gosta
de mim e fica comigo?
- Eu não posso! – dizia Isabel soluçando – Eu não posso ficar com
você!
- Tudo bem, Isabel. Já entendi tudo.
Cláudio parou o carro.
- É aqui que você fica.
94 | POR QUE NÃO?

Isabel olhou pela janela e reconheceu o local:


- Essa é a minha casa.
- Eu sei. É aqui que você vai dormir hoje.
Isabel olhava incrédula para Cláudio.
- Vou ter que berrar pra você sair do carro também?
Isabel saiu furiosa, ainda sem acreditar no que acabara de ouvir.
Cláudio acelerou com raiva e saiu cantando pneu.
Isabel entrou em casa e foi direto para o quarto. Entrou no ba-
nheiro a fim de tomar um banho. Ela não conseguia parar de chorar.
Enquanto a água do chuveiro descia sobre seu rosto, as lágrimas caí-
am em torrentes. Ela também queria entender o que havia acontecido
aquela noite. Amava Cláudio? Não! Jamais! Nunca se permitiria amar
Cláudio! Amava Daniel... Não era verdade. Amava Cláudio e ela sabia
disso. O que sentia por Daniel tinha virado uma obsessão que ela não
podia controlar.
Amar Cláudio assustava. Cláudio era uma excelente pessoa e esta-
va sempre disponível, mas estava preso àquela cadeira de rodas. Como
faria para namorar alguém assim? O que seus pais diriam? O que seus
amigos diriam? Nunca poderiam andar abraçados ou de mãos dadas.
Teria que se abaixar toda vez que quisessem se beijar. Era melhor in-
vestir em Daniel. Se ele desistisse de ser padre, poderia ter um namora-
do normal e aceitável. E Cláudio... poderia continuar sendo seu melhor
amigo.
Daniel viu quando Cláudio chegou em casa por volta da meia-
-noite. Isabel não estava com ele. Estacionou o carro de qualquer jeito,
quase batendo no portão da garagem. Ele estava claramente transtor-
nado. Daniel decidiu esperar até o dia seguinte para falar com o irmão.
Seria melhor conversar quando ele estivesse calmo. Conhecia o gênio de
Cláudio e sabia que qualquer diálogo seria impossível naquele momen-
to. De uma coisa ele tinha certeza: havia acontecido algum desenten-
dimento entre Cláudio e Isabel, porque a expressão no rosto do irmão
era de pura raiva. E deveria ter sido sério, porque poucas vezes na vida
Daniel viu Cláudio tão exaltado.
Depois do banho, Cláudio foi se deitar. Sentia-se tão cansado que
tinha a impressão de ter sido atropelado por um trem. Ele não consegui-
ria dormir. Sentia falta de Isabel ao seu lado, do peso da cabeça dela em
seu peito, do cheiro de seu cabelo.
Cláudio não conseguia chorar. Sentia uma angústia crescente den-
tro de si que precisava sair de alguma forma, mas ele não sabia como.
Havia entendido bem o recado de Isabel. Ela não podia ficar com ele
porque ele era inválido. Ela sentia vergonha de namorar um cadeirante.
TATIANE RANGEL | 95

Não era a primeira vez que Cláudio passava por isso, mas com Isabel era
diferente. Nunca ele havia tido tanta intimidade com uma garota que o
rejeitasse no fim das contas. Isabel o enlouquecia. Literalmente.
Já passava das dez da manhã e Daniel estranhava a ausência de
Cláudio. Ainda não havia se levantado. O fisioterapeuta havia se cansa-
do de esperar e ido embora. Cláudio nunca perdia a fisioterapia.
Daniel resolveu ir até o quarto. Bateu na porta, mas Cláudio não
respondia. Forçou a maçaneta e a porta abriu. O quarto ainda estava
escuro e Cláudio ainda estava na cama. Daniel abriu as cortinas.
- Hora de levantar. Você perdeu a fisioterapia e não vai deixar de
nadar também.
Cláudio não respondeu. Daniel foi até a cama e sacudiu o irmão.
- Acorda! Está na hora!
Cláudio gemeu e fez uma careta. Daniel viu que algo estava erra-
do. Pôs a mão na testa de Cláudio e viu que ele estava queimando em
febre.
- Cláudio, fala comigo!
- Me deixa em paz.
Daniel respirou aliviado. Cláudio finalmente começou a chorar.
- O que aconteceu? Por que você está assim?
- Eu sou um aleijado! Foi isso o que aconteceu! Se as minhas per-
nas funcionassem ela estaria comigo!
Daniel engoliu seco. Percebeu que Cláudio falava de Isabel e sen-
tiu aquela culpa crescer ainda mais dentro de si. Se Cláudio não estives-
se na cadeira de rodas, Isabel estaria com ele. E se alguém era culpado
pela invalidez de Cláudio, esse alguém era ele. Sentia-se ainda pior pelo
fato de estar quase contente. Contente porque amava Isabel, e Isabel não
amava Cláudio.
- Vou chamar um médico. – disse Daniel saindo de seu devaneio.
Antes de ligar para o médico, ligou para os pais e avisou o que es-
tava acontecendo, sem dar os detalhes. Disse apenas que Cláudio estava
doente. Em uma hora o médico já havia chegado e todos estavam em
casa.
Daniel e seus pais esperavam em um canto do quarto enquanto
o médico examinava Cláudio. Quando terminou, chamou todos para
conversar do lado de fora.
- Aparentemente ele não tem nada que justifique essa febre, mas
tem sintomas de depressão, o que me leva a crer que a febre é emocional.
Vou receitar um antitérmico e observação. Se ele não melhorar, talvez
precise de um psiquiatra.
Os pais de Cláudio estavam perplexos. Depressão? Cláudio sem-
96 | POR QUE NÃO?

pre fora um rapaz alegre e bem-humorado. Indagaram a Daniel e ele


contou o que sabia.
Os dias iam passando e Cláudio não melhorava. Não queria sair
da cama, não comia. Só chorava e dormia. Isabel não entrava em con-
tato. Todos achavam estranho, pois Isabel ultimamente estava pratica-
mente morando lá.
Daniel não aguentava mais ver o irmão naquele estado e, num ato
de desespero, resolveu procurar Isabel. Foi até a casa dela e, quando to-
cou a campainha, a mãe de Isabel atendeu. Seus pais haviam finalmente
voltado da viagem. Talvez por isso ela não tivesse aparecido aquela se-
mana toda. Daniel entrou e esperou na sala enquanto a mãe de Isabel foi
chamá-la. Pouco tempo depois ela desceu dizendo a Daniel que subisse,
pois Isabel estaria esperando por ele no quarto.
Daniel subiu, sentindo-se um tanto desconfortável por entrar no
quarto de Isabel. Quando chegou, viu que a porta estava aberta e Isabel
esperava sentada na cama.
- Pode entrar. – convidou com uma voz triste.
Daniel percebeu que Isabel estava abatida. Ficou de pé olhando
para ela sentindo vontade de confortá-la, mas lembrou-se do que havia
ido fazer ali.
- Senta. – pediu Isabel.
Daniel sentou-se na ponta da cama, um tanto constrangido, mas
procurando focar em seu objetivo.
- Isabel, eu sei que você deve estar achando estranho eu vir até a
sua casa, mas saiba que eu não viria se não fosse importante.
- Aconteceu alguma coisa? – perguntou Isabel apática.
- Eu vim aqui por causa do meu irmão. Eu não sei o que aconteceu
entre vocês, mas ele não reagiu muito bem. Já faz uma semana que ele
caiu numa depressão que a gente nunca tinha visto. O que você disse a
ele?
- Como assim “o que eu disse”?
- Ele só chora e dorme. Quando fala alguma coisa, fica se lamen-
tando por ser inválido, diz que se não fosse deficiente, você estaria com
ele.
- Eu não disse nada.
- Isabel, ele não tirou isso do nada. A vida inteira ele nunca se
queixou disso. Até uma semana atrás isso não era problema para ele e
agora ele está querendo morrer porque não pode andar.
- Nós brigamos no sábado, mas eu nunca toquei nesse assunto.
- Não importa mais. Seja lá o que for que você tenha dito, não foi
legal. Ele deixou muito claro que o problema era com você.
TATIANE RANGEL | 97

- O que ele te contou?


- Não contou nada. Só ficou dizendo que se ele pudesse andar,
você estaria com ele.
Isabel estava indecisa se contava ou não contava o que tinha acon-
tecido. Daniel olhava para ela como se a estivesse julgando. Ela teve
medo que ele imaginasse que ela havia sido cruel com seu irmão. Não
queria que ele a odiasse, então contou a verdade.
- Ele pediu para namorar comigo e eu disse que não podia.
Cláudio fez uma expressão de incredulidade.
- Como você pôde dizer uma coisa dessas? Tem ideia do quanto
você foi cruel com ele? Podia ter dado outra desculpa, mas nunca ter
dito isso!
- Por que vocês sempre acham que eu estou me referindo à defici-
ência dele? – respondeu Isabel, mal segurando as lágrimas.
- Porque ninguém responde que “não pode” namorar! Você pode-
ria simplesmente dizer que não queria, que não gostava dele desse jeito.
Se esse seu “não posso” não se referia à deficiência dele, então se referia
a quê, Isabel?
Isabel ficou calada por um tempo, mas decidiu falar:
- A você.
Daniel ficou surpreso.
- A mim?
- É, Daniel! A você! Eu não posso ficar com o seu irmão porque é
você que eu amo!
Daniel sentiu o chão desaparecer sob seus pés e sua vista ficou
escura por alguns segundos. Quando voltou a enxergar, viu uma Isabel
vermelha, de cabeça baixa, beirando o arrependimento do que havia
acabado de dizer. Ele se sentia tonto. O quarto inteiro parecia rodar.
Não sabia se o que tinha acabado ouvir era seu maior sonho ou seu pior
pesadelo. Isabel também o amava, mas ele sabia que aquilo não poderia
ser bom. Principalmente naquelas circunstâncias.
Daniel levou algum tempo até recuperar o domínio de si. Só con-
seguia tentar pensar em algo para dizer à Isabel, mas não raciocinava
direito. Pensou na situação de Cláudio e, lembrando-se da razão que o
levara até ali, procurou mais uma vez manter o foco.
- Isabel, você não sabe o que está dizendo.
Isabel permanecia calada.
- Olha, eu só vim aqui para te pedir para ir lá em casa e conversar
com ele. Tentar tirar aquelas ideias absurdas da cabeça dele. A situação
é delicada e nós já estamos bastante preocupados. Apesar de tudo ele
gosta muito de você. Você é a melhor amiga que ele já teve na vida.
98 | POR QUE NÃO?

Pense nisso.
Daniel se despediu e foi embora. Isabel chorava, pois Daniel nem
mesmo havia reagido ao saber do que ela sentia.
Daniel entrou em casa ainda atônito. Esse tempo todo era dele
que Isabel gostava? Não podia acreditar naquilo. Depois disso não teve
mais coragem de encarar o irmão. O jeito foi trancar-se em seu próprio
quarto e rezar para que toda aquela situação se resolvesse tanto para ele
quanto para Cláudio. Só que tinha medo do modo como isso poderia
acontecer.
No final da tarde a campainha tocou: era Isabel. Luisa e Carlos, os
pais dos gêmeos, a receberam:
- Isabel! Que bom que você veio! – exclamou Luisa – Por favor, vá
falar com ele! Nunca vi meu filho assim antes.
Isabel subiu até o quarto de Cláudio. A porta estava destrancada e
o quarto estava escuro. Ela entrou e abriu as cortinas. Cláudio fez uma
careta e cobriu os olhos com o antebraço.
- O que está acontecendo? Fecha a cortina!
- Hora de parar com isso! Levanta dessa cama!
- Isabel? O que você está fazendo aqui?
- Fiquei sabendo que você não está bem. Vim conversar com você.
- Não tenho mais nada para falar com você. Vai embora.
- Não vou embora coisa nenhuma, porque eu tenho o que falar
com você.
Isabel puxou uma cadeira e sentou-se em frente à cama.
- Sua família está preocupada com você! Já faz uma semana que
você não sai dessa cama, mal come, não faz mais a fisioterapia. Você
quer enlouquecer todo mundo? Todo mundo está preocupado!
- E você, Isabel? Você está preocupada? – perguntou Cláudio, com
a voz embargada.
Isabel engoliu a seco e respirou fundo. Não suportava ver Cláudio
naquele estado.
- É claro que estou. – respondeu ela, sentando-se ao lado dele na
cama e afagando sua cabeça.
- Não é culpa minha, Isabel.
- O que não é culpa sua?
- Eu não queria te amar tanto assim. – respondeu Cláudio já cho-
rando – Se eu pudesse escolher, eu escolheria não te amar, mas eu não
posso. Eu não posso e não é culpa minha. Não é culpa minha eu te amar
e nem eu ser deficiente.
Isabel abraçou Cláudio e apoiou seu rosto na cabeça do rapaz.
- Eu sei, meu querido. Ser deficiente não é sua culpa. E eu também
TATIANE RANGEL | 99

sei que a gente não escolhe quem ama. – Isabel não se referia a Daniel.
Intimamente ela sabia que amava Cláudio, apesar de não querer.
- Pare com essa mania de achar que tudo é por causa da sua defi-
ciência. Você sabe que eu nunca liguei para isso. Eu sequer toquei neste
assunto com você. – Isabel sabia que contava outra mentira, mas ela ja-
mais admitiria isso para si mesma. – Venha. Eu te ajudo a levantar. Você
vai tomar um banho e comer alguma coisa.
- Antes me responde uma coisa, porque isso já está me enlouque-
cendo: o que aconteceu naquela festa? Por que você ficou tão chateada,
se não queria ficar comigo?
- Não sei. Acho que eu sou louca como você disse. Não suportaria
ver você com alguém como a Carlinha.
- E se fosse outra pessoa? Estaria tudo bem?
- Eu não sei. Me responde você agora: você gostou de ficar com
ela?
- Na hora sim, mas desde aquele dia eu não paro de ter pesadelos
com ela. Às vezes parece que ela ainda está do meu lado.
- Isso é bom ou ruim?
- Não tenho nada contra a Carlinha, mas é de arrepiar os cabelos.
Não sei por quê.
- Venha aqui. – chamou Isabel, abraçando Cláudio com força –
Me perdoa, tá?
- Claro que eu perdoo, Isabel. Eu te amo.
Depois disso, Cláudio finalmente tomou um banho e aceitou o
lanche que Isabel mandou fazer.

- Está ficando tarde. Eu preciso ir embora.


- Você sabe que não precisa. Pode ficar aqui se quiser.
- Não. É melhor eu ir. Eu tenho a minha vida e você tem a sua.
Devia ter sido assim desde o começo.
- Mas você volta amanhã, não volta?
- Claro que sim. Amanhã sai o resultado do seu vestibular. Eu não
perderia isso por nada.
- É mesmo. Eu já tinha esquecido.
- Me promete uma coisa: que você vai voltar a fazer a fisioterapia,
vai sair desta cama e vai continuar sendo o Cláudio alegre e otimista que
eu conheço.
- Eu prometo, se você me prometer que não vai me abandonar.
- Prometo. Sempre vou estar do seu lado.
Cláudio pareceu indeciso por um momento. Mas, decidido, pegou
um livro no criado-mudo e mostrou à Isabel:
1 0 0 | POR QUE NÃO?

- É sobre nós, não é? Por isso você me deu este livro. Eu sou o cor-
cunda, meu irmão é o padre e você é a cigana.
Isabel corou.
- Eu não tinha pensado nisso. Foi por isso que você ficou depri-
mido, não foi?
Cláudio baixou a cabeça. Isabel deu um beijinho em seu rosto e
disse:
- Desculpe. Eu não tive a intenção. Jamais faria da sua condição
uma desculpa para não ficar contigo. Foi uma coincidência infeliz. Só
isso.
Isabel abraçou Cláudio com carinho.
- Eu tenho que ir agora. Amanhã cedo estarei aqui para vermos o
resultado juntos.
- Vou esperar por você. – Cláudio fez uma breve pausa – Sabe Isa-
bel, eu quero muito te ver feliz. Mas se não der certo com o meu irmão,
você pode pensar em me dar uma chance?
Isabel afagou os cabelos de Cláudio.
- Claro que sim. Até amanhã.
Isabel deu um selinho em Cláudio e saiu.
TATIANE RANGEL | 1 0 1

CAPÍTULO 8
rompendo o silêncio
N o dia seguinte, às oito da manhã, Isabel entrava eufórica no
quarto de Cláudio. Ele ainda estava dormindo, porque tinha
passado a noite em claro. O selinho que Isabel havia lhe dado havia sido
mais que um presente. Havia sido o elixir que faltava para que ele vol-
tasse à vida. Por isso não tinha conseguido dormir. Ficara pensando em
Isabel a noite toda. Pensando que ainda restava alguma esperança afinal.
Ficou durante horas se lembrando da textura dos lábios que havia pro-
vado por um momento tão breve quanto inesquecível.
Sem fazer cerimônia, Isabel abriu as cortinas e pulou em cima de
Cláudio fazendo-o acordar de vez.
- Anda, abre os olhos, levanta! Olha só o que eu trouxe! – disse ela
mostrando o jornal do dia – Vamos conferir!
Cláudio acordou um tanto desorientado.
- O que é isso? O que foi? O que está acontecendo?
- O que está acontecendo é que hoje saiu o resultado do seu vesti-
bular e eu trouxe o jornal para a gente conferir! Levanta!
Com algum esforço, Cláudio colocou-se sentado, pegou os óculos
na mesinha de cabeceira, praticamente tomou o jornal das mãos de Isa-
bel e abriu na página onde estavam os resultados. Os dois procuraram
freneticamente até que encontraram o nome de Cláudio: Aprovado!
Os dois gritaram de felicidade e se abraçaram. Daniel estava pas-
sando pela porta e se assustou com os gritos. Quando entrou, viu os dois
abraçados e perguntou:
- O que está acontecendo aqui? Que gritos foram esses?
Os dois se soltaram e Isabel explicou ainda eufórica:
- O Cláudio passou no vestibular! Não é maravilhoso?
Daniel abriu um sorriso e, com uma alegria mais contida, foi abra-
çar o irmão.
1 0 2 | POR QUE NÃO?

- Puxa! Que legal, cara! Legal mesmo! Parabéns! Nossos pais já


sabem?
- Não, ainda não. Nós ficamos sabendo agora!
- Então eu vou ligar para eles. Tudo bem pra você se eu der a no-
tícia?
- Claro, cara! Vai lá, liga para eles!
Daniel saiu do quarto.
Cláudio, ainda sem saber o que fazer com tanto entusiasmo, con-
sultou o relógio.
- Nossa! Já é tarde! Dormi demais! Preciso tomar um banho. Da-
qui a pouco meu fisioterapeuta chega.
- Tudo bem. Vou esperar na sala. – disse Isabel saindo do quarto.
Isabel bateu a porta e caminhou alguns passos pelo corredor até
que encontrou Daniel encostado numa parede. Ela se deteve e ele olhou
para ela. Parecia que estava ali esperando.
- Então... Já telefonou para os seus pais? – perguntou Isabel, um
tanto sem jeito.
- Ainda não. – Daniel fez uma pausa – Na verdade eu te esperei
porque eu preciso muito falar com você.
- Tudo bem. Pode falar. – respondeu Isabel, apreensiva.
- Bom, primeiro eu quero te agradecer por ter vindo aqui ontem
e por ter animado o meu irmão. Nós estávamos realmente preocupados
com ele.
- Eu teria vindo de qualquer jeito. Apesar de tudo, o Cláudio é
meu amigo e eu gosto muito dele. Também fiquei preocupada quando
soube o que estava acontecendo.
- Tem outra coisa...
- Estou ouvindo.
Daniel respirou fundo.
- Isso não vai ser nada fácil. – disse para si mesmo – Isabel, pres-
te atenção: desde que eu te conheci a minha vida virou uma bagunça.
Eu não consigo mais dormir, não consigo mais cumprir com as minhas
obrigações no seminário, não consigo fazer mais nada. Só consigo pen-
sar em você o tempo inteiro. E se eu não disse nada até agora é porque
eu pensei que você e meu irmão tivessem alguma coisa e eu me sentiria
culpado. Quer dizer... Eu já me sinto suficientemente culpado por estar
te dizendo isso agora sabendo o que o meu irmão sente por você, mas
eu não aguento mais, Isabel! Depois do que você me disse ontem eu não
aguento mais!
- Daniel, você está dizendo que... – Isabel estava atônita. Não po-
dia acreditar em seus ouvidos.
TATIANE RANGEL | 1 0 3

- Eu não sei mais o que eu estou dizendo... Desculpe se está meio


confuso... É que... eu não sei como dizer. Eu nunca disse isso a ninguém.
- Daniel, por favor, tente resumir isso tudo em uma única frase,
porque eu não sei se estou entendendo errado. E nem sei se eu estou
entendendo!
- Eu te amei calado esse tempo todo, Isabel! – disparou Daniel, já
quase sem fôlego.
Isabel estava em choque. Olhava fixamente para Daniel sem esbo-
çar qualquer reação e sem saber o que dizer. Daniel foi se aproximando
quase sem sentir o que estava fazendo. Encostando Isabel na parede, se-
gurou o seu rosto com uma das mãos, com a outra fez deslizar os dedos
nos cabelos dela. Chegou seu rosto bem próximo do rosto de Isabel e
disse o que há tanto tempo tinha vontade de dizer:
- Eu te amo, Isabel! Eu te amo!
Os dois fecharam os olhos e o beijo que ambos tanto esperavam
aconteceu ali, no corredor.
Daniel se afastou ofegante. Isabel também ofegava e tinha uma
expressão incrédula.
- Desculpa, Isabel! Desculpa, eu não sei o que deu em mim. – fa-
lou Daniel ainda se sentindo tonto.
Isabel abriu a boca para falar, mas as palavras morriam na gargan-
ta. Obedecendo a um impulso, Isabel agarrou Daniel pela nuca o puxou
para si novamente para um novo beijo. Daniel novamente a encostou na
parede e seus corpos estavam tão colados que Isabel tinha a impressão
que a qualquer momento, tornar-se-iam um só.
Mais alguns beijos breves e as bocas se separaram. Com os corpos
ainda colados os dois se olharam e se abraçaram. Permaneceram assim
ainda por alguns minutos até que ouviram um estalo.
- O aquecedor desligou. – disse Daniel, num sussurro – Ele já ter-
minou o banho. É melhor sairmos daqui. Não quero que ele veja isso.
- Eu sei. Vamos esperar na sala. – concordou Isabel.
Os dois desceram as escadas com um sorriso bobo no rosto. En-
quanto Isabel se acomodava no sofá, Daniel se dirigia ao telefone.
- É melhor eu ligar logo para os meus pais.
Ligação feita, Daniel sentou-se ao lado de Isabel, mas procurou
não ficar muito próximo. Ainda envergonhado, ele disse:
- Isabel, eu queria te dizer que, se você achou que não foi bom...
bem... é porque eu nunca fiz isso antes.
Isabel sorriu.
- Para mim você pareceu um profissional.
Os dois ouviram um barulho e olharam para a escada. Era Cláu-
1 0 4 | POR QUE NÃO?

dio que vinha descendo.


- E então? Ligou para eles?
- Liguei sim. Ficaram histéricos. Estão vindo para casa para almo-
çar com a gente.
- Isso me lembra que eu tenho que ir para casa. – disse Isabel se
levantando.
- Nada disso! Você almoça com a gente hoje, não é, Daniel?
- Claro que sim. – disse Daniel sorrindo – Mais tarde eu te levo
em casa.
Cláudio estranhou o excesso de simpatia do irmão para com Isa-
bel, mas achou melhor não dizer nada, afinal estava tudo dando certo
naqueles dois dias e era melhor não correr o risco de estragar tudo.
Carlos e Luisa chegaram em casa eufóricos.
- Onde está o nosso calouro? – perguntou Luisa.
- Precisamos comemorar! – disse Carlos com uma garrafa de
champanhe nas mãos.
Os dois correram para abraçar Cláudio. Depois cumprimentaram
Daniel e Isabel.
- Vamos ligar para todos os seus amigos e fazer uma festa para
comemorar!
- Não, mãe. Chega de festas por enquanto. – pediu Cláudio – Va-
mos só almoçar, está bem?
- Só almoçar? Precisamos de uma comemoração à altura! É um
acontecimento e tanto!
- Mãe, por favor. Nada de festas, tá?
Daniel olhou para a mãe de modo a fazê-la lembrar que Cláudio
havia ficado deprimido justamente por causa de uma festa. Ela enten-
deu.
- Está bem, então. Nada de festas. Mas você pode ter certeza de
que nós vamos encontrar outro jeito de comemorar.
Naquele momento a campainha tocou.
- É o fisioterapeuta. Tenho que ir. Vejo vocês mais tarde. – disse
Cláudio, dirigindo-se para o quintal dos fundos.
- Se precisarem de mim estarei no escritório. Com licença. – reti-
rou-se Carlos.
- E eu vou cuidar do cardápio para o nosso almoço. Você almoça
com a gente. Não almoça, Isabel?
- Claro que almoça. – respondeu Daniel.
- Bem, ainda é cedo e o Cláudio vai demorar, Isabel. Ele vai fazer
a fisioterapia e depois vai nadar por cerca de uma hora. Por que vocês
dois não vão dar uma volta? – sugeriu Luisa – É claro que se você prefe-
TATIANE RANGEL | 1 0 5

rir pode esperar lá na piscina, mas acho que vai ser meio chato, já que o
Cláudio não vai poder conversar.
- Eu acho uma ótima ideia. – concordou Daniel – Aonde você
quer ir?
- A gente pode ir comprar uma torta para fazer uma surpresa para
o Cláudio.
- Eu conheço uma confeitaria excelente. – disse Daniel.
Os dois saíram e Luisa, satisfeita, dizia a si mesma que Isabel era
“uma menina de ouro”.
TATIANE RANGEL | 1 0 7

capítulo 9
noites de verão
I
sabel e Daniel escolheram a torta e ficaram de buscá-la ao meio-
-dia.
- Ainda são dez horas. O que vamos fazer até lá? – perguntou Isa-
bel entrando no carro.
- Eu conheço um bom lugar para esperarmos. – disse Daniel.
Daniel dirigiu colina acima por um caminho arborizado até che-
gar a um mirante. Tinha uma vista panorâmica do centro da cidade.
Naquela hora o lugar estava deserto, exceto por alguns atletas que pas-
savam correndo por ali.
Os dois sentaram-se um de frente para o outro em um banco de
concreto.
- Eu não conhecia este lugar.
- Você mora aqui há pouco tempo. Eu venho aqui desde pequeno.
Daniel chegou mais perto.
- Não acredito que você está aqui comigo. – disse ele, alisando os
cabelos de Isabel.
- O que vamos fazer agora? – perguntou ela.
- Eu não sei. Vai ser um choque para o Cláudio se ele souber.
- Até onde você pretende ir, Daniel? Se a gente parar agora ele não
precisa saber.
- Eu não sei até onde a gente vai, Isabel. Só sei que eu não quero
parar agora. Deus sabe o quanto eu sofri e ainda sofro para estar com
você. Coloquei a minha fé em xeque por isso. Mas se você me perguntar
se eu me arrependo, eu vou dizer que nem por um segundo. Não neste
momento.
- Em que momento, então? Você acha que vai se arrepender?
- Vou ser sincero com você: talvez eu me arrependa. Eu tenho
medo de magoar o meu irmão, de duvidar da minha fé, de te fazer al-
gum mal, mesmo sem querer. Mas neste momento eu quero viver isso.
Eu quero arriscar. Não quero passar o resto da vida frustrado, pensando
que eu te perdi, imaginando tudo o que eu podia ter feito ao seu lado,
1 0 8 | POR QUE NÃO?

ou mesmo pensando que não teria dado certo sem nem mesmo ter ten-
tado. Não pense que é fácil eu estar aqui, nem que é fácil decidir o que
fazer agora. É muita coisa na minha cabeça, Isabel. Coisas que você nem
imagina. Nada é fácil.
- Então o que estamos fazendo agora? Por que nós estamos aqui?
- Porque eu te amo! Porque eu quero viver este momento com
você e é isso o que estamos fazendo. Vivendo o momento. Por enquanto
vamos deixar como está e ver o que acontece, está bem? Não vamos ter
pressa para eleger um rótulo. Eu quero te amar o máximo que eu puder.
Estar com você o máximo que eu puder. Eu quero viver isso intensa-
mente, me entregar de corpo e alma para você. Depois a gente se preo-
cupa. Depois a gente pensa num jeito de contar para o Cláudio.
- E você acha que isso tudo vale à pena?
- Eu perdi tantas noites de sono pensando nisso, Isabel! Eu não
estaria aqui se não valesse.
Eles se beijaram e assim passaram as duas horas que ainda tinham
no mirante.
Cláudio saiu da piscina estranhando o silêncio dentro da casa.
Quando encontrou a mãe na cozinha perguntou:
- Onde está todo mundo?
- Seu pai está no escritório e seu irmão e a Isabel saíram.
- Juntos? – perguntou Cláudio, surpreso.
- Sim. Algum problema?
- Não, nenhum. – disfarçou – É que eles não são muito chegados
um ao outro. Fiquei imaginando o que eles podem estar fazendo juntos.
- Disseram que iam buscar uma surpresa para você, mas não diga
a eles que eu te contei.
- Pode deixar. Não vou dizer. – disse Cláudio, se preparando para
subir as escadas e sem despertar curiosidade a respeito da surpresa.
Cláudio começava a ficar apreensivo. Não estava gostando nada
daquela história. Podia até ser que os dois tivessem ido somente com-
prar-lhe um presente, mas Daniel e Isabel pareciam íntimos demais de-
pois de tantos meses sem mal falarem um com o outro. De qualquer
maneira, era melhor não pensar nisso agora. Cláudio foi tomar banho.
A mesa já estava posta quando Daniel e Isabel chegaram. Isabel
vinha sorridente com uma caixa nas mãos. Daniel estacionava na gara-
gem.
Cláudio estava na varanda quando os dois chegaram.
- Onde vocês foram? – perguntou, com um tom apático.
- Buscar uma surpresa para você, mas você não vai ver agora. –
disse Isabel, sorrindo misteriosamente enquanto entrava em casa.
TATIANE RANGEL | 1 0 9

Quando Daniel passou, Cláudio o interceptou:


- Onde vocês foram? – perguntou novamente.
- A Isabel não acabou de te dizer?
- Eu quero ouvir de você.
- Fomos comprar um presente para você.
- E por que demoraram tanto?
- Por que precisamos encomendar e tivemos que esperar ficar
pronto.
- O que vocês fizeram enquanto isso?
- O que está acontecendo, Cláudio?
- Nada. Só achei estranho vocês dois saírem juntos. Vocês mal se
falam.
- A gente mal se fala porque a gente mal se vê.
- Não é verdade. Mesmo quando está em casa você é sempre mo-
nossilábico com a Isabel.
- O que você está insinuando, Cláudio? Quer me dizer alguma
coisa?
- Não estou insinuando nada. Deixa pra lá. – encerrou Cláudio,
tocando a cadeira para dentro.
Depois do almoço, Luisa foi buscar a torta.
- Hora da surpresa que seu irmão e Isabel foram buscar.
Era uma torta de chocolate com cobertura de chantilly e a frase
“Parabéns, Cláudio” escrita com calda.
Cláudio sorriu e tentou disfarçar o terrível ciúme que estava sen-
tindo.
No final de uma tarde de comemorações, Isabel quis ir embora.
- Eu te levo. – anunciou Daniel.
- Não precisa. Pode deixar que eu levo. – rebateu Cláudio.
- Não, pode deixar. Eu estou mesmo indo para o centro. Fiquei
de ajudar na missa das sete. A casa dela fica no meu caminho. Quer vir
junto? – convidou Daniel.
- Não, tudo bem.
Cláudio se despediu de Isabel.
Isabel e Daniel iam conversando no caminho.
- Ele ficou desconfiado. Me encheu de perguntas depois que você
entrou em casa.
- Eu percebi. Ele também não gostou nada quando você se ofere-
ceu para me trazer em casa.
- Também percebi isso.
- Por que você o convidou para vir junto? E se ele topasse?
- Eu sabia que não ia topar. Bastou dizer que eu ia passar na igreja.
1 1 0 | POR QUE NÃO?

Se ele viesse junto ia ter que assistir à missa – coisa que ele não suporta
– para poder voltar comigo. Ele é ateu.
- Você vai mesmo ajudar na missa?
- Não. Inventei isso para ele não vir.
- Estou me sentindo mal com isso tudo. Se ele descobrir, vai ficar
magoado. Não é melhor a gente conversar com ele?
- Eu também não estou orgulhoso, mas você viu como ele ficou.
Não é a hora de contar para ele. Acho melhor até a gente evitar se ver lá
em casa.
Daniel parou o carro.
- Pronto. Está entregue. – disse, beijando Isabel em seguida –
Amanhã eu te ligo e a gente combina de se encontrar.
- Tudo bem. Até amanhã.
- Até amanhã.
Beijaram-se mais uma vez e Isabel entrou em casa.
Aquela foi talvez a melhor semana da vida de Isabel. Ela e Daniel
andavam juntos para cima e para baixo. Iam ao mirante, ao shopping,
ao parque da cidade. Andavam abraçados ou de mãos dadas o tempo
todo. Às vezes Daniel parava o carro em alguma rua deserta e os dois
passavam tardes inteiras aos beijos e abraços, que iam ficando cada vez
mais intensos.
Às vezes Daniel sentia-se um tanto constrangido e tentava se con-
trolar, mas muitas vezes as demonstrações de afeto corriam quase sem
pudor, ainda que com certos limites.
Isabel não havia ido nem um dia até a casa dos gêmeos para visitar
Cláudio e fazia tempo que Daniel não passava nem na porta da igreja.
Durante aquele tempo Isabel não pensava em Cláudio. Estava tão
concentrada no que estava acontecendo que não pensava em mais nada.
Sequer se importava quando a mãe reclamava depois que ela passou a
chegar tarde da noite em casa.
Daniel também estava completamente afastado de suas atividades
habituais. Não ia mais à missa, não lia mais a bíblia, não estudava mais
teologia. Sequer rezava antes de dormir.
Na sexta-feira, Isabel recebeu um telefonema de Cláudio pedindo
que ela fosse até sua casa. Isabel foi preocupada, pois nem Daniel soube
dizer do que se tratava. Ela só podia pensar que Cláudio havia descober-
to tudo e que quando chegasse lá, teriam uma briga “daquelas”.
Quando chegou lá, os gêmeos e seus pais estavam reunidos na sala
e pareciam estar somente esperando que ela chegasse. Apreensiva, Isa-
bel entrou, imaginando coisas horríveis. Imaginava que Cláudio havia
descoberto tudo, ele e Daniel haviam brigado e os pais chateados com a
TATIANE RANGEL | 1 1 1

situação a chamaram para resolver o assunto. Achava que ia levar uma


tremenda bronca.
Isabel entrou na sala e, ao cumprimentar Luisa, estava tão nervosa
que começou a sentir-se mal.
- O que aconteceu, Isabel? Por que está pálida?
Isabel apoiou-se na mesa, sentindo-se desfalecer.
- Não é nada. Já vai passar.
Carlos e Daniel correram para colocá-la sentada no sofá e quase
não tiveram tempo de chegar até ela. Desmaiou.
Naquela hora, Cláudio desejou poder levantar da cadeira para
também correr ao socorro de Isabel, como Daniel fez. Naquele momen-
to sentia-se extremamente inferior. Principalmente porque foi Daniel
quem pegou Isabel no colo e a deitou no sofá.
Depois de alguns minutos, Isabel acordou. Quando abriu os olhos,
olhou para Cláudio e perguntou:
- Desmaiei de novo, não foi?
- De novo? – perguntou Daniel, surpreso.
- Como assim “de novo”? – perguntou Luisa – É comum você des-
maiar assim, Isabel?
- Ela tem hipoglicemia e eu aposto que ela não comeu nada.
- Eu acordei muito cedo e não como nada desde o café da manhã.
– confirmou Isabel.
- Você sabe que precisa comer a cada três horas! Aposto que tam-
bém não está tomando os remédios. – repreendeu Cláudio.
- Eu me esqueci de tomar hoje de manhã.
- Eu não acredito nisso, Isabel! Uma semana longe de mim e você
regride! Vai precisar de babá? – ironizou Cláudio.
Daniel e os pais assistiam à cena, boquiabertos.
- Meu Deus! Então ela deve estar sem comer há umas cinco horas!
Vou mandar servir o almoço agora mesmo!
Luisa foi para a cozinha providenciar o almoço. Isabel tentou se
levantar, mas Daniel quis impedir:
- Não, não se levante!
- Tudo bem. Eu já me sinto melhor.
- Fica sentada pelo menos. – pediu ele.
Cláudio, sem perder tempo, transferiu-se da cadeira de rodas para
o sofá, sentando-se ao lado de Isabel e a abraçando de modo a repousar
a cabeça da menina em seu ombro. Ele deu um beijinho na testa dela e
afagou seus cabelos.
- O que eu faço com você, Isabel? – falou em tom de preocupação.
Daniel não conseguiu disfarçar uma careta, o que fez com que
Cláudio se sentisse triunfante. Isabel não percebia nada.
1 1 2 | POR QUE NÃO?

O almoço foi servido e Luisa finalmente revelou a razão da reu-


nião que Isabel tanto temia.
- Agora que está tudo bem, vou dizer por que eu te chamei aqui,
Isabel. Carlos e eu quisemos reunir vocês três porque temos uma pro-
posta a fazer: o Cláudio passou no vestibular e não quis fazer uma festa
para comemorar. Então pensamos em fazer isso de outra maneira: esta-
mos quase no final de dezembro e depois das festas o movimento no co-
mércio cai um pouco, o que vai nos fazer menos ocupados. As aulas de
vocês só começam em fevereiro, que é quando o Daniel tem que voltar
para o seminário. Já que estaremos todos de férias, pensamos em passar
uma semana na nossa casa de praia. Se todos concordarem, Isabel, você
está convidada a ir conosco. O que vocês acham?
- Eu gostei da ideia. – disse Cláudio, sem muito entusiasmo.
- Eu também gostei! – disse Daniel, demonstrando um entusias-
mo inesperado.
- Eu adorei! – disse Isabel, empolgadíssima e aliviada.
- Ótimo! Então iremos logo depois do ano novo. Isabel, é provável
que seus pais queiram nos conhecer antes de deixar você viajar conosco.
Então eu vou ligar para eles e convidá-los para jantar aqui amanhã à
noite.
- Boa ideia. Quando se trata dessas coisas eles não costumam me
dar permissão assim tão fácil.
E assim foi feito. Os pais de Isabel foram jantar com os pais dos
gêmeos, onde todos se conheceram. Carlos e Luisa explicaram aos pais
de Isabel que ela já frequentava a casa deles havia algum tempo – coisa
que eles já sabiam – e pediram permissão para que ela viajasse com eles.
O grande problema é que os pais de Isabel eram muito rígidos e
não costumavam deixá-la viajar com rapazes, mas vendo aqueles dois
– um inválido e um padre – acharam que não teria problema algum e
deram a permissão sem muita resistência.
Naquela semana Isabel viajou com os pais para passar as festas de
fim de ano com o resto da família. Ela fez aniversário no dia 28 de de-
zembro e Cláudio ligou para dar os parabéns e dizer que estava ansioso
pela viagem.
Daniel ligava todos os dias e eles passavam horas e horas ao tele-
fone. Ele ligava inclusive para verificar se ela estava comendo e tomando
os remédios na hora certa. Ficou surpreso ao saber que Isabel era hi-
poglicêmica. Provavelmente era o que tinha acontecido naquele dia na
biblioteca, quando eles se conheceram.
No dia dois de janeiro, Isabel estava de volta à cidade e no dia três,
pela manhã, os gêmeos e seus pais passavam na casa dela para levá-la
para a semana na casa de praia.
TATIANE RANGEL | 1 1 3

Os pais de Isabel a acompanharam até o carro fazendo mil reco-


mendações. Agradeceram aos pais dos gêmeos e despediram-se.
Isabel entrou no carro animadíssima. Cumprimentou a todos e
sorria o tempo todo. Fazia tempo que Cláudio não via Isabel assim. Por
alguma razão aquele brilho natural que ela tinha andava apagado ulti-
mamente.
Eles seguiam viagem no utilitário da família, por isso Cláudio teve
de ser acomodado perto da porta para facilitar o desembarque depois.
Daniel entrou em seguida e por último, Isabel. Isso fez com que ela fi-
casse sentada perto da outra porta e Daniel ficasse no meio. Cláudio
não estava nada satisfeito com a situação, mas eles fizeram uma parada
para comer alguma coisa e na hora de voltar ao carro, Carlos pediu que
Daniel e Isabel trocassem de lugar, pois Daniel era muito alto e estava
atrapalhando a visão do retrovisor. Cláudio entendeu aquilo como mais
uma batalha vencida. Melhor que isso só se ele mesmo pudesse sentar
no meio.
No final da tarde, eles chegaram à casa de praia. A casa era térrea,
mas muito grande e cheia de vidros no lugar da maioria das paredes. As
linhas eram retas, os vãos grandes. Notava-se que havia sido projetada
por algum arquiteto de muito talento.
Enquanto o caseiro ajudava a descarregar o carro, Isabel e os gê-
meos entravam na casa. Isabel olhava tudo em volta com muita admi-
ração.
- Nossa! Esta casa é bem maior que a casa onde vocês moram! De-
viam morar aqui e não lá! Se é uma casa de veraneio que só é usada uma
vez por ano, por que é tão maior e mais bonita que a outra?
- É que a casa onde nós moramos foi uma herança de família. –
explicou Cláudio – Nossa mãe herdou do avô dela. Ele mesmo a man-
dou construir. Quando nossos pais se casaram a casa passou por uma
boa reforma, ganhou alguns acréscimos, mas foi mantida como era an-
tes. Nossa mãe é muito apegada àquele lugar. Ela cresceu naquela casa.
- Entendi. Só não entendi por que construir uma casa tão grande
para usar uma semana por ano!
- Não é usada uma semana por ano. – respondeu Daniel – E a casa
não é só dos nossos pais. Nossos tios concordaram em ajudar na cons-
trução e na compra do terreno. A família inteira usa. Nossos primos
vêm aqui nos feriados e fins de semana, trazem amigos. Por isso a casa
tem quatro quartos para os hóspedes e mais uma suíte adaptada para
o Cláudio. Aliás, você pode escolher o quarto que quiser para colocar
suas coisas. Ou melhor: ou o último quarto dos fundos ou o primeiro
da frente.
1 1 4 | POR QUE NÃO?

- Isso aí. O quarto adaptado é meu. Nossos pais sempre ficam no


segundo da frente e o quarto do meio nos fundos é do Daniel e ninguém
tasca! – brincou Cláudio.
Isabel riu e foi ver os quartos que estavam disponíveis. O da frente
era bonito, mas abria para a lateral do terreno. O dos fundos tinha vista
para o mar e era ao lado dos quartos dos gêmeos. Sentia-se mais à von-
tade assim. Deste modo, o quarto dos fundos foi o escolhido.
Nos fundos da casa havia um grande deque com uma piscina. O
deque terminava em cinco degraus que levavam à areia da praia. Ain-
da no deque havia alguns pilares de madeira em uma área coberta que
abrigava algumas redes. Perto da piscina ficava uma churrasqueira e um
forno de pizza. Esta parte tinha passagem para a cozinha, que era tam-
bém um espaço gourmet.
Os dias eram muito agradáveis naquele lugar. Isabel, Daniel
e Cláudio eram inseparáveis. Os três faziam tudo juntos da hora que
acordavam até a hora de dormir. Depois que todos já estavam dormin-
do, era a vez de Daniel e Isabel fugirem para a praia e lá ficarem até a
madrugada. Sentavam-se sempre na areia, um de frente para o outro,
as pernas entrelaçadas e os corpos colados. Beijavam-se muito e louca-
mente. Apertavam-se como se quisessem ser um só. As mãos de Isabel
passeavam no peito e nas costas de Daniel, sob sua camisa de malha. Ele
mantinha as próprias mãos no rosto, no pescoço, ou ao redor de Isabel,
procurando respeitá-la o máximo possível, mas estava ficando cada vez
mais difícil conter o próprio desejo.
De dia, tudo voltava ao normal. Todos, inclusive Daniel e Isabel,
acordavam cedo. Tomavam juntos o café da manhã. Às vezes, os três
inseparáveis iam juntos até o centro da cidade e compravam o pão. De-
pois do café, todos aproveitavam a praia. Almoçavam, descansavam nas
redes, jogavam baralho, conversavam, ouviam música. De tarde iam à
piscina ou voltavam ao centro para tomar um sorvete. Eram dias muito
alegres, que enchiam de satisfação os pais dos gêmeos.
Daniel sempre passava as férias lá com a família, mas nunca esteve
tão à vontade e participativo como agora. Não que ele não se divertisse,
mas sempre mantinha uma postura um pouco mais séria. Agora esta-
va completamente relaxado e eles atribuíam tudo à Isabel e sua alegria
contagiante.
Era o último dia das tão curtas férias de que os pais dos gêmeos
podiam dispor. Depois de mais um dia agitado, todos arrumavam suas
coisas no final da tarde, pois sairiam bem cedo no dia seguinte.
À noite, fizeram uma fogueira na areia, onde Cláudio tocou violão
e todos cantaram. Depois de certa hora, Luisa e Carlos se retiraram.
TATIANE RANGEL | 1 1 5

- Vamos dormir, pois amanhã pegaremos a estrada bem cedo. Não


se demorem muito por aqui vocês também. – pediu Luisa.
- Daniel, você ajuda o seu irmão a voltar para o deque depois? –
perguntou Carlos referindo-se à cadeira de Cláudio que se encontrava
no deque, já que não podia transitar na areia, para onde Cláudio era
sempre carregado no colo.
- Claro que sim, pai. – respondeu Daniel.
- Não, pai. Eu também vou entrar agora.
- Tem certeza? Não quer ficar mais um pouco com o seu irmão e
a Isabel?
- Não. Minhas costas estão doendo e eu quero deitar.
- Então venha. – disse Carlos, abaixando-se para pegar o filho.
- Pode deixar. – disse Daniel, pegando Cláudio no colo. Ele foi
com o pai até o deque, pôs o irmão sentado na cadeira e entregou a Car-
los, que a empurrou para dentro.
Cláudio entrou em seu quarto e, antes de se trocar para dormir,
afastou de leve a cortina, e viu quando Daniel voltou para perto da fo-
gueira, sentou-se ao lado de Isabel e os dois se beijaram. Agora suas
suspeitas estavam confirmadas. Seu irmão e Isabel estavam juntos desde
o dia em que fora aprovado no vestibular. Talvez até antes. Ele trocou
de roupa, deitou-se e sem desesperar-se, procurando a conformidade,
deixou escapar uma lágrima.
Isabel ficou sozinha na areia por um ou dois minutos. Só o tempo
necessário para que Daniel levasse Cláudio até o deque e o acomodasse
em sua cadeira. Em pouco tempo, Daniel voltou e sentou-se a seu lado.
Eles se olharam e deram um beijo longo e apaixonado.
- Espera um pouco, Daniel. Alguém pode estar olhando. – pediu
Isabel.
- Ninguém está olhando. O quarto dos meus pais é lá na frente e
o Cláudio está com dor nas costas. Com certeza foi se deitar. A luz do
quarto dele nem acendeu.
Daniel deu mais alguns beijos em Isabel e logo, os dois já haviam
assumido a posição de costume: sentados de frente um para o outro,
com os corpos colados e as pernas entrelaçadas. Os beijos não cessavam.
As mãos de Isabel já estavam sob a camiseta de Daniel e acariciavam
toda a extensão de suas costas e peito.
Daniel tirou uma de suas mãos que estava no pescoço de Isabel
e foi descendo lentamente, passando pelo ombro e indo em direção às
costelas, roçando levemente um seio. Isabel gemeu baixinho. Daniel pa-
rou de beijá-la por um minuto e, ofegante, falou:
- Isabel, eu estou tentando te respeitar, mas desse jeito está muito
difícil.
1 1 6 | POR QUE NÃO?

- Você não está me desrespeitando. – respondeu Isabel no mesmo


tom.
- Ainda não. – rebateu Daniel – Mas não sei por quanto tempo.
- Não diga besteiras. Não estamos fazendo nada de errado. A gen-
te se ama.
Os dois voltaram a se beijar e desta vez sem conseguir se conter,
Daniel também pôs sua mão dentro da blusa de Isabel. Os dois gemeram
quando ele tocou seu seio. Isabel retirou as mãos das costas de Daniel
trazendo junto a sua camisa. Tocou seu pescoço com o nariz e sentiu
seu cheiro. Daniel beijou o pescoço de Isabel, foi até o queixo e desceu
até o colo, onde começavam os botões da blusa, que ele desabotoou um
a um, com muita calma. Para cada botão aberto, Daniel beijava a parte
que se fazia nua. Uma vez a blusa aberta, ele se desfez dela enquanto aca-
riciava os ombros de Isabel. Desceu lentamente cada uma das alças do
sutiã, até que Isabel ficou completamente nua da cintura para cima. Os
dois se abraçaram e sentiram pela primeira vez o toque de seus corpos
nus. Mais beijos e Daniel deitou Isabel na canga que estava estendida na
areia.
Daniel admirou o corpo perfeito de Isabel. Beijou seus seios e foi
descendo até o umbigo. Acariciou suas coxas e deslizou a mão por de-
baixo da saia, onde tocou Isabel por cima da roupa íntima. Isabel ofe-
gava e tentava conter os gemidos. Daniel encontrava-se em estado de
completo êxtase. Livrou-se da última peça de roupa de Isabel e deitou-se
sobre ela. Daniel beijava cada parte do rosto da menina e acariciava seus
cabelos, enquanto ela o abraçava com força.
Daniel afastou o rosto por um momento, tirou os cabelos do rosto
de Isabel. E sussurrou:
- Eu te amo!
- Eu também te amo! – correspondeu Isabel.
Daniel então começou a deslizar com cuidado para dentro dela.
Estava tão extasiado que não percebeu quando Isabel fez uma careta de
dor. Começou então a movimentar-se para frente e para trás de maneira
ritmada, enquanto Isabel tentava relaxar, em vão, até que uma lágrima
escorreu de seus olhos e ela apertou com força os braços de Daniel. De-
pois de um tempo, aquela dor imensa diminuiu um pouco e Isabel dei-
xou-se amar por completo. Daniel não raciocinava e apenas deixava-se
levar pelo momento. O vento batia, os dois suavam. Isabel ainda tentava
acostumar-se, quando Daniel chegou ao auge de sua excitação e depois
de um longo gemido, relaxou e deitou-se sobre ela, repousando a cabeça
entre seus seios.
Isabel também relaxou e acariciou os cabelos molhados de Daniel.
TATIANE RANGEL | 1 1 7

Depois de alguns minutos, Daniel se levantou e procurou suas


roupas. Isabel sentou-se e fez o mesmo.
Isabel abotoou a blusa e também se levantou. Ela e Daniel se abra-
çaram. Daniel olhou para baixo e, assustado, afastou Isabel de si.
Daniel pôs uma das mãos na testa e se perguntou, perplexo:
- O que foi que eu fiz?
- Como assim, Daniel? O que aconteceu?
Isabel percebeu que Daniel olhava fixamente para baixo e, acom-
panhando seu olhar, ela pôde finalmente ver o que tanto o assustava: A
canga que estava estendida na areia estava suja de sangue.
- Isso não deveria ter acontecido. Por que você não me disse nada?
- Calma, Daniel. Isso não tem mais importância.
- Como não, Isabel? Você era virgem! E eu não percebi nada, por-
que eu também era! Depois, você estava tão desinibida, que eu não pen-
sei que...
- Eu estava à vontade. Eu confio em você, só isso.
- Isso não está certo. Por favor, Isabel, me desculpe.
- Não há o que desculpar. – falou Isabel abraçando-o – Essa foi a
noite mais linda da minha vida. – concluiu, sorrindo.
Daniel também abraçou Isabel, sentindo-se atordoado. Deu um
beijo no topo da cabeça dela e recomendou:
- É melhor irmos dormir. Sairemos cedo amanhã. Você pode ir na
frente. Eu vou apagar a fogueira.
- Boa noite. – despediu-se Isabel, indo em direção à casa.
Daniel sentou-se novamente na areia, passou as mãos pelo cabelo
e deu um suspiro profundo.
Isabel entrou no quarto de Cláudio e chamou baixinho:
- Cláudio?
- Estou acordado, pode entrar.
Cláudio não estava conseguindo dormir depois do beijo que havia
visto. Estava aquele tempo todo tentando pregar os olhos em vão. Acen-
deu a luz do abajur e sentou-se na cama. Isabel sentou-se ao lado dele.
- Que cara é essa? O que aconteceu? – perguntou ele.
- Eu sei que o que eu vou dizer não vai te agradar, mas você é meu
amigo e eu me sentiria péssima se não te contasse. Aliás, eu já estou me
sentindo péssima de não ter te contado antes.
Cláudio ouvia calado. Isabel continuou:
- É que... o Daniel e eu... Bem... Nós estamos namorando! – disse
Isabel, sorrindo largamente.
- Eu sei. – disparou Cláudio.
- Como você sabe? – perguntou Isabel, espantada.
1 1 8 | POR QUE NÃO?

- Não é preciso ser detetive, Isabel. Você desapareceu da minha


casa por uma semana. Nem telefonou. Coincidentemente o Daniel tam-
bém não parou em casa. Vocês estão muito colados, conversando muito
animadamente. Fora o dia em que a gente se conheceu, ele nunca trocou
mais de duas sílabas com você. Depois, eu vi vocês se beijarem lá na
fogueira.
Isabel empalideceu.
- Você viu o que aconteceu lá na fogueira? – perguntou quase sem
fôlego.
- Vi vocês se beijarem. Depois eu fechei a cortina, porque eu não
sou masoquista.
- Foi só isso que você viu?
- Foi, por quê? Aconteceu mais alguma coisa?
Isabel pareceu aliviada, mas não por muito tempo, pois também
pretendia contar o resto, principalmente agora que ela já tinha pratica-
mente confessado tudo.
- Bem... não vou mentir para você, Cláudio. A gente...
- Então vocês...
- É. – confirmou Isabel, sem graça – a gente transou. Foi minha
primeira vez.
Cláudio parecia não acreditar em seus ouvidos.
- Aquele imbecil! – deixou escapar.
- Tudo bem, não fique bravo com ele. Nós dois quisemos. E eu
estou tão feliz!
- Eu sei, minha linda. Seus olhos estão brilhando.
Isabel já ia se acomodar ao lado de Cláudio, quando ele interrom-
peu.
- Não, Isabel. Isso não está certo. Você não pode mais dormir na
minha cama. Você é mulher dele agora. E eu desejo para vocês toda a
felicidade do mundo. Nem que para isso eu tenha que sofrer. – disse
ele, com os olhos cheios d’água – Agora vá dormir. Acordamos cedo
amanhã.
- Obrigada. Eu sabia que você entenderia.
Isabel beijou a testa de Cláudio e saiu do quarto. Cláudio chora-
va em silêncio, enquanto remoía uma raiva imensa dentro de si. Falso!
Mentiroso! Havia feito todo aquele escândalo sobre Isabel ser menor de
idade e agora tinha transado com ela!. Cláudio se sentia traído, apunha-
lado pelas costas. Não por Isabel, que nunca havia escondido o que sen-
tia ou pretendia, mas por Daniel, seu próprio irmão, que sempre havia
negado qualquer sentimento por Isabel. Ele agora sabia que havia sido
derrotado.
TATIANE RANGEL | 1 1 9

CAPÍTULO 10
não fale
D e manhã cedo todos colocaram suas coisas no carro e pega-
ram a estrada. Ficaram em silêncio praticamente o caminho
inteiro. Cláudio tinha o olhar triste e distante e tentava disfarçar ou-
vindo música com o fone de ouvido. Isabel e Daniel cochilaram prati-
camente o tempo todo. Carlos e Luisa conversavam baixo entre si para
não acordá-los.
Quando chegaram, foram primeiro deixar Isabel em casa. Dentro
do carro mesmo, ela abraçou Cláudio e se despediu. Agradeceu Carlos
e Luisa pelo convite e desceu do carro assim que Daniel – que estava
sentado perto da porta – também desceu para lhe dar passagem.
Ela abraçou Daniel e ele discretamente a afastou de si, enquanto
sussurrava em seu ouvido:
- Depois eu te ligo.
Daniel entrou novamente no carro. Isabel ficou acenando até que
eles desaparecessem na esquina.
Quando chegou em casa, Daniel tomou um banho e sentou-se na
varanda de seu quarto. Ficou pensando em tudo o que acontecera nas
últimas semanas, principalmente no dia anterior. Ele devia estar feliz,
mas não estava. Ficou acordado a noite inteira pensando. O sentimento
que ele antes nutria por Isabel havia desaparecido. Não tinha mais von-
tade de estar com ela como antes. Aquilo não poderia ter sido amor. Até
onde sabia o amor não acabava assim de uma hora para outra. Se, depois
de tudo, tinha simplesmente acabado, não era amor. Era só desejo. E o
pior de tudo era que ele sentia-se extremamente culpado por ter tirado
a virgindade de Isabel. Aquilo não havia sido certo, nem mesmo quando
ele ainda pensava que a amava. Ele agora se sentia sujo, criminoso, here-
ge. Nunca deveria ter se afastado do seminário. Lá era definitivamente o
seu lugar. Nunca deveria ter traído sua vocação e sua fé.
No dia seguinte, depois do almoço, Daniel ligou para Isabel e pe-
diu que ela o esperasse na porta de sua casa, pois ele estaria passando
para buscá-la. Quando chegou, encontrou Isabel sorridente na calçada.
1 2 0 | POR QUE NÃO?

Ela entrou no carro e, enquanto ele dirigia, ela ia falando animada, sobre
como havia gostado da viagem e tudo o mais. Aquilo tornaria as coisas
muito mais difíceis.
Foram até o mirante e sentaram-se no mesmo banco de quando
foram lá pela primeira vez. Isabel virou-se de frente para ele e já ia beijá-
-lo, quando ele a deteve.
- Espere, Isabel. Não faça isso.
- Por que não? – perguntou Isabel, surpresa.
- A gente precisa conversar.
- Conversar sobre o quê?
- Sobre tudo o que aconteceu.
- Você ainda está preocupado com aquilo? Eu disse que não tem
problema. Eu também quis.
- Tem problema sim, Isabel. Eu acho que a gente não devia mais
se ver.
- Como é que é? – Isabel ficou tonta e se não estivesse sentada,
provavelmente cairia – Como assim, Daniel? Por que você não quer
mais me ver?
- Ouça, Isabel, não está sendo fácil para mim também. Eu não
dormi esta noite só pensando nisso.
- Pensando em quê? Em como você ia me dar o fora? – perguntou
Isabel, com os olhos cheios d’água.
- Não, Isabel. Nas razões que eu tenho para fazer isso. Muitas ra-
zões.
Daniel fez uma pausa.
- A primeira delas é o meu irmão. Ele te ama mais que tudo. Eu
nunca o vi amar ninguém assim. Ele já perdeu tanta coisa, já sofreu tan-
to. Eu não quero tirar mais isso dele. Já basta o que aconteceu quando
éramos crianças.
- Do que você está falando? – perguntou Isabel, ainda mais con-
fusa.
- Da paralisia dele. Foi tudo minha culpa.
- Ele caiu da árvore, Daniel! Foi um acidente!
- Ele não caiu da árvore. Essa é a história que ele conta para todo
mundo.
- Do que você está falando, Daniel? O que aconteceu? – perguntou
Isabel já chorando.
- Isabel, eu nunca disse isso em voz alta, por favor, não me faça
dizer agora!
- Eu quero entender, Daniel. Agora você vai me contar!
Daniel respirou fundo. Nunca havia pensado que um dia contaria
aquilo a alguém, mas ele sabia que, no fundo, era o que merecia.
TATIANE RANGEL | 1 2 1

- Ele não caiu, Isabel. Eu o empurrei.


Isabel o olhava de um jeito incrédulo e assustado.
- Eu tinha inveja dele. Ele sempre conseguia o que queria, era mais
inteligente, mais talentoso, o mais elogiado em tudo! Eu o queria fora do
meu caminho, eu queria ter um pouco daquela atenção pra variar! Na-
quele dia estávamos os dois no alto da árvore. Por uma razão qualquer
a gente discutiu e eu o joguei de lá de cima! Mas eu me arrependi e me
arrependo disso até hoje! A árvore tinha raízes grandes para fora do solo
e era muito alta. Ele caiu de costas nas raízes. Na verdade é um milagre
ele ainda estar vivo depois de uma queda daquela. Eu podia ter matado
o meu irmão! Ele nunca contou para ninguém. Me protegeu este tempo
todo, Isabel! Mesmo que você implore, ele nunca vai te contar! Você
entende agora, Isabel? Eu tirei do meu irmão a capacidade de andar! O
direito de ter uma vida normal! Não posso tirar você dele também!
Isabel chorava.
- Por causa disso eu virei seminarista. Por isso eu decidi ser padre.
Para tentar aliviar um pouco da minha culpa. Porque talvez Deus me
perdoe se eu dedicar a minha vida a Ele! E é isso o que eu quero fazer! É
isso o que eu tenho de fazer! Esta é minha outra razão, Isabel!
- Olha, eu já contei tudo para o Cláudio e ele entendeu! A gente
pode superar isso. A gente se ama!
- Meu Deus, Isabel! Você não devia ter contado para o Cláudio!
Tem ideia de como ele deve estar sofrendo agora?
- Eu disse a ele que você me amava. Ele entendeu, quis que nós
fôssemos felizes!
- Eu sei o que eu disse a você, Isabel, e esta é a minha terceira ra-
zão: eu não te amo.
Neste momento, Isabel começou a chorar convulsivamente.
- Desculpa, Isabel, não foi minha intenção te iludir e nem mentir
para você. Eu só descobri isso depois. O que eu sentia por você não era
amor, era só...
- Para! – gritou Isabel – Não fala! Eu não quero ouvir mais nada!
- Isabel, você falou que queria entender, eu só estou tentando ex-
plicar!
- Eu sei o que você vai dizer, então pode parar de se explicar. Não
diz mais nada, porque isso magoa, Daniel. Você me usou! A verdade é
essa!
- Isabel...
- Me leva para casa. – pediu Isabel, entrando no carro.
Sem poder dizer mais nada, Daniel entrou no carro e deu a par-
tida.
1 2 2 | POR QUE NÃO?

Nada foi dito durante todo o trajeto de volta. Quando chegaram,


Isabel saiu do carro e bateu a porta com força, entrando em casa sem
falar com Daniel e nem mesmo olhar para trás.
Isabel entrou em casa e foi direto para o quarto. A mãe estava sen-
tada no sofá da sala, mas não deu atenção. Isabel não saiu mais naquele
dia. Ficou o tempo todo no quarto e chorou a noite toda, só conseguin-
do dormir quando já estava quase amanhecendo.
Poucas horas depois, Isabel acordou com o telefone tocando. Ain-
da era cedo e ela atendeu correndo, pensando que àquela hora só pode-
ria ser Daniel, dizendo que estava arrependido, mas reconheceu outra
voz do outro lado da linha:
- Bom dia, Isabel. Desculpe ligar tão cedo, mas eu sei que aconte-
ceu alguma coisa. Ele terminou com você, não foi? – Era Cláudio, que
estava claramente preocupado.
Isabel não conseguiu responder. Apenas começou a chorar con-
vulsivamente.
- Minha linda... não fica assim! Quer que eu vá até aí para conver-
sar?
Isabel respirou fundo e entre soluços conseguiu responder:
- Não. Minha mãe está em casa e não vai deixar a gente em paz.
- Vem você para cá então. Eu vou aí te buscar.
- Não posso, Cláudio. Não quero encontrar seu irmão.
- Fica tranquila. Ele não está aqui e não vai voltar tão cedo. Passo
aí daqui a pouco. Só o tempo de eu ligar para o meu fisioterapeuta e
desmarcar a sessão.
- Não faça isso. Você precisa da fisioterapia.
- Eu não me importo e não aceito recusas. Passo aí em meia hora.
E esteja com fome: vou te levar para tomar o café da manhã numa pa-
daria excelente.
Cláudio desligou, não dando oportunidade de Isabel responder.
Em meia hora, Cláudio parou o carro na porta da casa de Isabel.
Ela já esperava na calçada.
- Bom dia, minha lindinha. – cumprimentou Cláudio – Eu imagi-
no que estes óculos não tenham nada a ver com o sol, já que o dia está
nublado.
- Meus olhos estão inchados. Chorei a noite inteira. Coloquei os
óculos para a minha mãe não fazer perguntas.
- Eu sei como você está se sentindo. Mas se depender de mim, até
o final do dia você vai voltar a sorrir.
Cláudio deu partida no carro e em poucos minutos os dois se aco-
modavam na mesa de uma padaria no centro.
TATIANE RANGEL | 1 2 3

- Eu realmente não estou com fome. – comentou Isabel.


- Nada disso! Você vai comer sim! Por isso eu te trouxe para cá.
Você não vai resistir a tudo de gostoso que tem aqui, vai comer direi-
tinho e não vai ficar desmaiando mais tarde. Por isso eu não vou nem
perguntar. Vou tomar a liberdade de pedir para você.
Cláudio fez o pedido e depois que a garçonete saiu, ele olhou nos
olhos de Isabel. Aquele olhar brilhante e profundo havia desaparecido e
dado lugar a olheiras e uma tristeza extremamente óbvia.
- O que ele te contou? – quis saber Isabel.
- Não contou nada.
- Então como você ficou sabendo?
- Pelo modo como ele chegou em casa ontem. Eu conheço o meu
irmão, Isabel. E eu sabia que isso ia acontecer, e tentei te dizer milhões
de vezes, mas você quis arriscar. Depois eu parei de dizer, porque eu não
aguentava mais ficar dizendo a mesma coisa o tempo todo.
Ele fez uma pausa.
- Olha, Isabel, ao contrário do que você pode estar pensando: eu
não torci para que isso acontecesse. Se eu pudesse, eu daria uma surra
naquele desgraçado. Eu faria qualquer coisa para ver você feliz outra
vez.
- Talvez você possa falar com ele. Ele estava com medo de magoar
você. Se você disser que tudo bem, talvez ele volte atrás.
- Eu não posso falar com ele, Isabel. Ninguém pode.
- Você pode sim! Ele te ouve! Eu tenho certeza que, se disser que
está tudo bem para você, ele volta!
- Isabel, escuta bem o que eu vou te dizer: ele não terminou com
você por minha causa. É isso o que eu estou tentando te dizer há horas:
ele terminou com você por causa da droga de vocação religiosa dele!
Quando eu digo que não posso falar com ele é porque não posso mes-
mo!
- Eu não estou entendendo nada. – disse Isabel confusa.
- Ele voltou para o seminário, Isabel. Por isso não dá para falar
com ele: ele entrou em clausura. Está incomunicável, nem nossa mãe
pode falar com ele agora. Foi assim que eu soube o que tinha acontecido.
Ontem ele chegou em casa todo transtornado, entrou no quarto feito
um furacão, fez as malas e disse que ia voltar pro mosteiro, que ia entrar
em clausura. Estava muito óbvio o que tinha acontecido. Eu achei muito
estranho quando você me disse que vocês estavam namorando.
Isabel recomeçou a chorar.
- Eu sou uma idiota mesmo.
- Não diga isso. Você é maravilhosa. Tem bom coração e acreditou
quando ele disse que era seu namorado.
1 2 4 | POR QUE NÃO?

- É disso que eu estou falando, Cláudio! Ele nunca disse que era
meu namorado! A gente ficou junto por três semanas e eu achei que... –
Isabel não conseguiu terminar a frase.
- Eu sei, eu sei. – disse Cláudio abraçando Isabel. – Eu também
nunca pensei que ele fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Estou cho-
cado. Mas não chore mais. Enxugue essas lágrimas e vamos apreciar o
nosso café da manhã.
Cláudio secou as lágrimas de Isabel e a convenceu a tomar o café
da manhã que a garçonete acabava de servir.
TATIANE RANGEL | 1 2 5

CAPÍTULO11
uma nova chance
D epois que passou no vestibular, Cláudio retomou a maioria
das suas atividades. Principalmente as que eram realizadas
no centro de reabilitação que frequentava. Precisava aproveitar enquan-
to não começavam as aulas, pois voltaria a não ter tempo hábil para tudo
aquilo.
Apesar de estar com Isabel, decidiu que aquele dia não seria dife-
rente. Terminado o café da manhã, ele convidou:
- O que você acha de participar um pouquinho da minha vida, só
para variar?
- Do que você está falando?
- Estou dizendo que vou te levar para conhecer o centro de reabi-
litação. Vai fazer bem para você. Você vai ver que, por maior que seja o
problema, qualquer que seja, está longe de ser o fim do mundo.
- Como assim?
- Eu sei que você está triste, que parece que você vai morrer, e tal.
Mas o seu problema vai passar e você vai continuar vivendo. As pessoas
que você vai conhecer têm problemas que não são passageiros e elas
escolheram viver mesmo assim! E vivem bem! Com alegria! Vai te fazer
bem. Vamos.
Isabel não teve escolha. Cláudio praticamente a obrigou a ir.
Chegando ao local, Isabel ficou espantada com o tamanho do pré-
dio. Era extremamente grande. Entrando lá, viu que havia muitos espa-
ços e ambientes diferentes, cada um com uma finalidade.
Cláudio pediu que Isabel esperasse enquanto ele se trocava.
Quando ele voltou, estava de uniforme de basquete e em outra cadeira
de rodas. Era manual e tinha as rodas inclinadas para dentro. Isabel se
ofereceu pra empurrar, mas ele recusou. Seguiram por um corredor até
chegar numa quadra, onde vários outros rapazes esperavam. Antes de
entrar, Cláudio falou para Isabel:
- Você está sofrendo, Isabel. Isso é natural. Mas o que eu quero que
você saiba é que todas essas pessoas aqui já sofreram muito um dia, e
1 2 6 | POR QUE NÃO?

mesmo não tendo resolvido o problema, o sofrimento delas passou. Isso


significa que o seu vai passar também.
- Eu entendo o que você quer dizer, mas eu perdi uma coisa que eu
demorei a conseguir e que eu queria muito.
- Eu sei que sim. Mas você perdeu uma coisa que você só teve por
algumas semanas e que nunca foi realmente sua. Eles perderam uma
coisa que sempre tiveram. Ninguém nesta quadra nasceu assim, Isabel.
Está vendo aquele cara ali? Poliomielite. E aquele outro lá? Ferimento à
bala. Aqueles dois ali no canto? Mergulho em água rasa. E o restante?
Acidente de trânsito. Como você pode ver, Isabel, todos nós já soubemos
um dia o que é o prazer de andar, de correr, de jogar futebol. E todos nós
perdemos isso. Para sempre. Mas nós escolhemos viver, escolhemos ser
felizes. Você também tem essa escolha. Vem comigo.
Cláudio e Isabel foram até onde estava o grupo de pessoas. Cláu-
dio cumprimentou a todos com muita alegria e apresentou:
- Gente, essa aqui é minha amiga Isabel. Ela veio assistir ao nosso
jogo.
Todos foram extremamente simpáticos e receberam Isabel muito
bem.
Isabel assistiu ao jogo e ficou impressionada com a destreza que
os rapazes tinham ao manejar a cadeira e a bola ao mesmo tempo. Ela
já tinha ouvido falar naquela modalidade de esporte, mas nunca tinha
visto pessoalmente.
Depois do jogo, Cláudio levou Isabel para conhecer outras alas do
centro de reabilitação. O lugar que mais a impressionou foi a ala infantil.
Isabel ficou comovida ao ver a quantidade de crianças que por algu-
ma razão precisavam de reabilitação e mais ainda com a força que elas
transmitiam. Depois de ver tudo o que acontecia naquele lugar e todos
os problemas reais que aquelas pessoas tinham, Isabel realmente passou
a sentir-se melhor. Não que tudo de repente tivesse ficado bem, mas ela
sabia que os problemas daquelas pessoas eram reais e que pouco podia
ser feito para saná-los.
Quando Cláudio terminou todas as atividades no centro, em tor-
no do meio-dia, os dois saíram para almoçar.
- Falta menos de um mês para o carnaval. Vai viajar? – quis saber
Cláudio.
- Meus pais vão para Nova Orleans. Eu devo ficar por aqui mesmo.
- Vai ficar sozinha outra vez? Por que eles nunca te levam quando
viajam? Você está de férias!
- Sempre foi assim. Até antes de mudar para cá eu ficava na casa da
minha tia, mas aqui eu fico sozinha mesmo. Já estou acostumada.
TATIANE RANGEL | 1 2 7

- Sua tia mora muito longe?


- No sul do estado.
- Nossa... Longe mesmo. Você não tem ninguém aqui por perto?
- Não.
- Eu não me conformo com isso. Seus pais não ficam nem um
pouco preocupados em deixar você aqui sozinha?
- Cláudio, relaxa! Não é nada demais.
- Não acho isso certo. Por que você não fica lá em casa outra vez?
O Daniel não vai mais voltar mesmo. Mando arrumar o quarto dele para
você, assim não vai precisar dormir no escritório.
- Não sei se quero ficar no quarto dele.
- As coisas dele nem estão mais lá! Não tinha quase nada naquele
quarto. Por causa do voto de pobreza que ele ainda nem fez, só tem a
cama, o armário e um criado-mudo. Nem os lençóis estão mais lá!
- Não sei... – hesitou Isabel.
- Ah, qual é, Isabel? Vai ficar fazendo o que sozinha em casa em
pleno carnaval? Fique na minha casa! A gente dá um jeito de se divertir.
Conheço lugares que têm bailes muito bons.
- Não gosto de bailes de carnaval.
- Tudo bem! A gente fica na piscina, assiste a uns filmes, sai du-
rante o dia. Vamos! O que não vai te fazer bem é ficar em casa sozinha
pensando besteira.
- Tudo bem, prometo que vou pensar.
- Ótimo! Pense com muito carinho!

Passaram-se duas semanas. Durante aquele tempo, Cláudio fazia


de tudo para distrair Isabel. Ela ia com ele todos os dias ao centro de
reabilitação e, enquanto estavam lá, passava a maior parte do tempo na
ala infantil contando histórias para as crianças. De tarde, ele a ensinava
a tocar violão, eles tomavam sorvete na praça, ou conversavam até ficar
de noite. A velha amizade e intimidade dos dois haviam voltado maiores
do que nunca.
No entanto, às vezes, Isabel ainda se lembrava do que tinha acon-
tecido e chorava. Como numa tarde, em que os dois conversavam no
quarto de Cláudio. Eles estavam sentados na cama, recostados em gran-
des almofadas e ouviam música. Tocava uma que a fazia lembrar-se dos
últimos acontecimentos.
- Não quero ouvir essa música. – disse Isabel enxugando uma lá-
grima – Ela me faz lembrar tudo o que aconteceu e isso eu quero esque-
cer.
- Não chore mais, Isabel. Ele não está mais aqui e não merece o
seu amor.
1 2 8 | POR QUE NÃO?

- Não é isso, Cláudio. Eu fico tão zangada quando lembro de tudo


o que ele fez comigo, e eu fui tão burra! Ele nunca me prometeu nada e
eu achando que estava ganhando o mundo, enquanto ele estava só me
usando! Como eu fui idiota!
- Você não foi idiota. Ele foi! Ele pode não ter prometido nada,
mas ele disse que te amava e isso é maior do que qualquer promessa! Ele
mentiu para você! – disse Cláudio, deitando a cabeça de Isabel em seu
peito – Eu nunca teria feito isso.
- Eu sei que não.
Isabel ficou pensativa por um minuto, indecisa se perguntava ou
não o que tinha em mente, até que se decidiu:
- Cláudio.
- Hum.
- O que você realmente sente por mim?
Cláudio pôs Isabel de frente para ele, e segurando em seus om-
bros, respondeu:
- Quantas vezes você quer que eu repita, Isabel? Eu te amo! Eu sei
que não deve ser fácil para você ouvir isso agora, depois de tudo o que
você passou, mas eu nunca mentiria para você!
- E como eu vou saber que é verdade?
- Isabel, a gente se conhece só há alguns meses, mas para mim pa-
rece que é a vida inteira! Eu te amei no instante em que eu te vi entrando
no meu quintal sem tocar a campainha!
Os dois riram. Cláudio continuou:
- E esse tempo todo eu me conformei só em ver você feliz, ain-
da que fosse nos braços de outro, e ainda que esse outro fosse o meu
próprio irmão! Eu tentei te dizer que ele estava mentindo, mas nunca
tentei te impedir de fazer nada! Quando você veio me contar o que ti-
nha acontecido entre vocês, os seus olhos brilhavam tanto, você estava
tão feliz, que a minha alegria foi maior que a minha tristeza. Quando
eu falei que desejava felicidades aos dois eu não estava mentindo! Sabe,
Isabel, quando a gente conversa, fala besteira, ri junto, chora junto, o
mundo inteiro para mim passa a fazer sentido. A gente tem tanta coisa
em comum, sabe os segredos um do outro... Eu nem sei mais como te
dizer isso! Tenho até medo! Para mim se isso não for amor, eu não sei
mais o que é! Eu estou sempre dizendo que te amo! Todos os dias! Mas
você não aceita!
Depois de breve momento de silêncio, os dois se olhando nos
olhos, Isabel passou uma de suas pernas por cima das pernas de Cláu-
dio, ficando de frente para ele. Ela deslizou os dedos nos cabelos loiros
e longos dele, acariciou seu rosto, repousou a mão em seu pescoço e foi
TATIANE RANGEL | 1 2 9

se aproximando bem devagar, até os dois fecharem os olhos e finalmente


se consumar o beijo.
Depois da anestesia inicial, Cláudio afastou Isabel de si segurando
em seus ombros e perguntou:
- Isabel, o que você está fazendo?
- O que eu devia ter feito há muito tempo. – respondeu Isabel,
dando mais um beijo em seguida. Cláudio novamente a afastou de si.
- Eu esperei tanto por isso, Isabel! Tanto! Mas agora eu não acho
isso certo. Você não sabe o que está fazendo. Você está fragilizada com
tudo o que aconteceu e vai se arrepender depois. Eu não quero isso.
- Não, Cláudio. Eu sei exatamente o que eu estou fazendo. Acho
que nunca tive tanta certeza na vida. Eu devia ter dado uma chance a
você desde o começo. Esse tempo todo só você esteve realmente ao meu
lado. Só você cuidou de mim. Só você me amou. Eu é que estou te pe-
dindo agora: me aceita! Me dá uma chance!
Cláudio puxou Isabel para si e a abraçou, deitando a cabeça da
menina em seu ombro. Isabel o envolveu em seus braços e sem se soltar,
o beijou novamente, até que Cláudio pôde finalmente sentir a sincerida-
de daquele gesto e corresponder da mesma forma.
Nos beijos de Cláudio havia carinho, calma, sinceridade. Não ha-
via a urgência ou a loucura presentes nos beijos de Daniel. Cada gesto e
cada toque de Cláudio eram suaves, tenros, amorosos.
Os dois se beijaram ainda por bastante tempo, até que Isabel tirou
a blusa.
- Para com isso, Isabel. – pediu Cláudio – Veste a blusa. Eu não
quero que aconteça desse jeito e nem quero que você se sinta forçada a
nada.
- Não estou me sentindo forçada. – e não estava mesmo. As mãos
de Cláudio ainda nem tinham saído de suas costas e pescoço. Ele era um
perfeito cavalheiro.
- Você não entende, Isabel. Pode não ser bom para você. Eu nem
vou poder sair desta posição. Talvez você nem saiba como fazer e nem
sinta nada. – disse Cláudio, preocupado.
- Não tem problema. Você me mostra como se faz e eu tenho cer-
teza de que vai ser maravilhoso.
Havia muita tranquilidade e sinceridade no tom de voz de Isabel.
Ela e Cláudio se beijaram novamente, e ele, desarmado, acabou deixan-
do tudo acontecer.
Cláudio e Isabel relaxavam um nos braços do outro. Havia sido
mágico. Sem dor e sem grandes sustos no final.
Isabel estava deitada sobre o peito de Cláudio, onde podia ouvir
1 3 0 | POR QUE NÃO?

seu coração bater descompassado, enquanto ele a abraçava e alisava seus


cabelos.
- Está tudo bem com você? Foi como você esperava? – quis saber
Cláudio.
- Não estou arrependida, se é o que você quer saber. E foi bem
melhor do que eu imaginava.
- Sabe, Isabel, eu nunca vou querer só isso de você.
- Eu sei que não.
- Eu só quero te fazer feliz. Você vai deixar?
- Vou sim. – respondeu Isabel, sorrindo.
Cláudio levantou o rosto de Isabel de modo a poderem se olhar
nos olhos.
- Então... Você quer namorar comigo? – perguntou Cláudio, fi-
cando vermelho.
- Quero sim. – aceitou Isabel, sem deixar de sorrir.
Os dois se beijaram.
- Estou muito feliz! Muito mesmo! Não vou nem conseguir dor-
mir hoje! – falou Cláudio.
Isabel levantou a cabeça para ver as horas no rádio-relógio.
- Está tarde. Eu tenho que ir agora. Você me leva?
- Claro que sim! Você acha que eu ia perder a chance de levar mi-
nha namorada em casa?
Os dois se arrumaram e Cláudio foi deixar Isabel em casa. Quan-
do parou o carro em frente à porta de Isabel, Cláudio perguntou:
- Quero fazer tudo certo. Quando vou poder falar com os seus
pais?
- Tudo a seu tempo. – respondeu Isabel.
- Não vamos demorar muito, tá? Não quero fazer nada escondido.
- Eu só preciso de um tempo para processar isso tudo na minha
cabeça. Vamos esperar uns dias e ver se vai dar certo.
- No que depender de mim vai dar mais que certo.
- No que depender de mim também. – respondeu Isabel sorrindo.
Cláudio beijou Isabel e os dois se despediram. Quando chegou
na porta, Isabel se virou para trás, acenou e jogou um beijinho. Cláudio
acenou de volta. Ele dirigiu todo o caminho de volta sem conseguir dei-
xar de sorrir. Ele nunca tinha estado tão feliz em toda a sua vida.
TATIANE RANGEL | 1 3 1

CAPÍTULO 12
alguém se importa?
C láudio entrou em casa radiante. Seus pais haviam acabado de
chegar em casa e estavam sentados no sofá da sala.
- Que cara é essa, filho? Está vindo de onde? – perguntou Carlos.
- Fui levar minha namorada em casa. – respondeu ele com um
enorme sorriso.
- Você e a Isabel estão namorando? – perguntou Luisa, com um
misto de surpresa e alegria.
- Estamos sim. – respondeu Cláudio.
- Desde quando? – perguntou Carlos.
- Desde as cinco da tarde. – respondeu Cláudio, todo sorridente.
- Que ótimo, filho! Parabéns! – disse Luisa, abraçando Cláudio –
Eu fico muito feliz e torço para dar certo. Ela é uma menina maravilho-
sa! Seu pai e eu gostamos muito dela!
Depois de todo o interrogatório e comemoração, Cláudio foi para
o quarto. Queria ficar um pouco sozinho, pensar em tudo o que tinha
acontecido naquele dia, ficar a sós com a própria felicidade. Ele não ca-
bia em si de tanta alegria.

Aquelas semanas seriam as últimas antes de começarem as aulas,


tanto para Cláudio quanto para Isabel. Quando isso acontecesse, os dois
se veriam com menos frequência, então era preciso aproveitar todo o
tempo livre que ainda tinham. Eles continuavam com as mesmas ati-
vidades de sempre: centro de reabilitação de manhã, e à tarde aulas de
violão, piscina, sorvete, passeios em vários lugares e o que mais desse
vontade de fazer.
Isabel ainda tentava se acostumar com o que estava acontecendo.
Em seu íntimo ela sabia que amava Cláudio, mas nunca havia admitido
isso para si mesma. Agora ela queria se permitir viver aquele amor por
mais difícil que isso fosse.
Uns dias antes do carnaval os pais de Isabel viajaram e ela foi para
a casa de Cláudio. Os pais dele haviam preparado o antigo quarto de Da-
1 3 2 | POR QUE NÃO?

niel para recebê-la. Nada lá fazia lembrá-lo, como Cláudio havia prome-
tido. Luisa havia feito questão de deixar o cômodo com uma decoração
bastante feminina.
Como já era hábito, depois que todos estavam dormindo, Isabel
ia para o quarto de Cláudio e passava o resto da noite lá, tomando o
cuidado de trancar as portas dos dois quartos e redobrando a atenção
ao sair pela manhã. Se os pais de Cláudio vissem, certamente ficariam
chateados.
Os dias de carnaval chegaram e iam passando tranquilos. Eles não
faziam nada que saísse muito de suas rotinas. Passavam a maior parte
do tempo na piscina e quase todos os dias o pai de Cláudio fazia um
churrasco. À noitinha, faziam a roda de violão com Cláudio cantando,
jogavam baralho ou assistiam a um filme com direito a muita pipoca.
Na quarta-feira de cinzas os pais de Cláudio voltaram ao trabalho
e Isabel e ele voltaram a passar os dias praticamente sozinhos. Os pais
de Isabel só voltariam no domingo, então ela decidiu ficar até o final da
semana.
Isabel gostava dos momentos em família que passava com Cláu-
dio e os pais dele. Não se lembrava de ter feito isso nem uma vez em sua
casa. Com seus pais sempre havia sido diferente. Cada um no seu canto.

Na quinta-feira Isabel enrolou para sair da cama. Estava difícil


acordar.
- Lindinha, acorda. – chamou Cláudio.
Isabel fez um muxoxo e se virou para o outro lado sem abrir os
olhos.
- Eu preciso fazer minha fisioterapia e daqui a pouco a empregada
vai entrar para arrumar o quarto. – explicou Cláudio.
- Só mais quinze minutinhos. – pediu Isabel.
- O que você tem hoje? Está passando mal? – perguntou Cláudio
enquanto alisava os cabelos de Isabel.
- Não. Só estou com sono.
- Você não quis jantar ontem. Sua glicose deve estar baixa outra
vez. Anda, levanta para comer alguma coisa e tomar o seu remédio ou
você vai ficar com sono o dia todo. Pior ainda: vai ficar desmaiando
pelos cantos.
Com alguma dificuldade, Cláudio convenceu Isabel a se levantar.
Os dois tomaram café da manhã e foram para a área da piscina, onde
Cláudio costumava fazer a fisioterapia. Isabel sentou-se numa das espre-
guiçadeiras para esperar e pegou no sono outra vez.
Terminada a fisioterapia, Cláudio foi chamar Isabel.
TATIANE RANGEL | 1 3 3

- Isabel! Acorda!
Isabel abriu os olhos.
- O que você tem hoje? Que sono é esse? Dormiu mal essa noite?
- Pior que não. Dormi feito uma pedra. Eu acho que esse remédio
é que não está mais fazendo efeito.
- Vou marcar o médico para você.
- Não, não precisa. Deve ser só uma indisposição. Amanhã vai
estar tudo normal. Você vai ver.
- Tudo bem, mas se você não melhorar eu vou marcar o médico.
- Você se preocupa demais. – disse Isabel dando um beijo em
Cláudio e se levantando.
Isabel passou o resto do dia com sono. Nos dias seguintes não
foi diferente. Isabel continuava com sono e começou também a ficar
irritada. Cláudio ligou para o consultório do médico para marcar uma
consulta para Isabel, mas a agenda estava lotada e só teria uma vaga dali
a uns dez dias. Ele marcou mesmo assim. Seria preciso esperar mais um
pouco, mas era melhor do que nada. Enquanto isso, Cláudio procurava
fazer com que Isabel tomasse os remédios na hora certa e comesse direi-
to, mas nada parecia adiantar.
No domingo, depois do almoço, Cláudio levou Isabel em casa,
onde ela deixou a mochila de roupas, pois seus pais chegariam à noite e
no dia seguinte teria aula. Depois eles foram dar uma volta no shopping
para aproveitar o último dia de férias. Na praça de alimentação, Isabel
resolveu que queria comer uma fatia de torta de chocolate, mas Cláudio
tentou convencê-la a desistir.
- Lindinha, escolhe outra coisa. Você sabe que não pode se encher
de doce.
- Mas eu não comi nenhum doce hoje. Não vai ter problema.
- Eu sei, mas julgando como você passou os últimos dias eu não
acho uma boa ideia. Sua hipoglicemia é reativa ao açúcar e sua glicose
já anda baixa. Se comer isso, vai baixar mais ainda e você vai passar mal.
Não se esqueça de que nós estamos na rua e eu não tenho como te car-
regar, se você desmaiar.
- Só um pedacinho! Você come junto comigo! Eu estou com tanta
vontade!
- Não, Isabel. Depois que você for ao médico, quando voltar ao
normal, eu prometo que deixo você comer um doce. Antes disso, nada
feito.
Isabel fez beicinho e encheu os olhos d’água.
- Ah, Isabel! Precisa chorar? – repreendeu Cláudio.
Isso fez com que as lágrimas de fato começassem a descer. Cláudio
se sentiu culpado.
1 3 4 | POR QUE NÃO?

- O que é isso, meu amor?


- Você foi grosso comigo! – disse Isabel.
- Eu sei, me desculpe. Eu sou chato mesmo! – disse ele, secando
o rosto de Isabel – Mas me entenda, meu amor. Eu só estou tentando
cuidar de você! Eu quero que você melhore!
Sem saber o que fazer, Cláudio começou a pensar e teve uma ideia:
- Já sei! Vou comprar um chocolate dietético para você! Quer?
Isabel fungou e fez que sim com a cabeça.
Depois de resolvida a crise do doce, os dois foram ao cinema e no
finalzinho da tarde, Cláudio foi deixar Isabel em casa.
- Dorme cedo. Amanhã tem aula. Se eu sair cedo da faculdade,
vou te buscar na escola. Eu ligo para avisar.
Os dois se despediram e Isabel entrou em casa.
No dia seguinte as aulas começaram para ambos. O primeiro dia
de faculdade de Cláudio havia sido só de orientação e é claro, de trotes.
Ele acabou saindo mais cedo do que o previsto, então ligou para o celu-
lar de Isabel e avisou que estava indo buscá-la.
Quando chegou na porta da escola, Isabel já estava esperando na
calçada. Ela entrou no carro e caiu na gargalhada quando viu Cláudio
todo sujo de tinta.
- Pode rir bastante. Ano que vem será a sua vez e eu é que vou rir.
- Desculpa! – disse Isabel, ainda rindo – É que está muito engra-
çado! Seu rosto está todo colorido!
Isabel se aproximou para dar um beijo em Cláudio e fez uma ca-
reta.
- Eca! Que tinta é essa?
- Guache. Por quê?
- Tem um cheiro horrível!
- Jura? Só senti o cheiro na hora que me pintaram. Achei que tinha
desaparecido agora que a tinta secou.
- Não desapareceu. Seu nariz é que deve ter se acostumado.
- Então já vi que vou ter que caprichar no banho.
- Vai mesmo. Esse cheiro me deu dor de cabeça.
Cláudio deu partida no carro.
- Eu só tenho fisioterapia à noite. Quer ir lá para a minha casa?
- Melhor não. Minha mãe ainda está no meu pé por causa das
notas ruins do ano passado. Melhor ficar em casa e estudar para não
acontecer outra vez, ou não vou poder sair nem no fim de semana.
- Está certo. Esse ano é você quem faz vestibular. Já escolheu uma
carreira?
- Ainda não. A escola tem um programa de orientação vocacional
para os alunos do terceiro ano. Quem sabe me ajuda a decidir?
TATIANE RANGEL | 1 3 5

- É uma boa ideia.


Isabel tapou a boca com uma das mãos e fechou os olhos por al-
guns segundos.
- O que foi, Isabel? – perguntou Cláudio preocupado.
- Esse cheiro está me fazendo mal. – respondeu ela ainda tapando
a boca – Por favor, para o carro! – pediu.
- Tudo bem. Acalme-se. – pediu Cláudio.
Quando Cláudio encostou o carro, Isabel abriu a porta, inclinou o
corpo para fora e vomitou na calçada.
- Nossa! – exclamou Cláudio – O que você tem, Isabel?
Isabel voltou para dentro do carro e encostou no banco, jogando a
cabeça para trás e colocando a mão na testa. Ela respirava fundo várias
vezes seguidas.
- Você está pálida e gelada, Isabel!
Isabel novamente inclinou-se para fora e tornou a vomitar.
- Já chega! Vou te levar agora na emergência!
- Não. Não precisa. – disse Isabel voltando a se encostar.
- Como não? Você está pálida, gelada e vomitando!
- Deve ter sido o quindim que eu comi no intervalo.
- Ah, eu sabia! – exclamou Cláudio, descontente – Onde está o seu
juízo, Isabel? Eu te avisei que esses doces iam acabar fazendo mal.
- Eu sei! É que não deu para resistir! Minha boca enche d’água só
de lembrar! – disse Isabel, salivando.
- Está se sentindo melhor? – perguntou Cláudio.
- Estou sim.
- Tem certeza?
- Tenho.
Vendo que Isabel voltava a ficar corada, relaxou.
- Ainda bem que a sua consulta é na semana que vem. Vou te dei-
xar em casa. Almoce assim que chegar e continue comendo a cada três
horas. E nada de doces!
Isabel riu do excesso de zelo de Cláudio e os dois seguiram cami-
nho.
Durante o resto daquela semana Isabel e Cláudio não se viram. Ele
começou a cumprir horários mais rigorosos na faculdade, e por isso não
dava mais tempo de buscar Isabel na escola. De tarde, ela preferia ficar
em casa e estudar para evitar problemas com a mãe. Eles se falavam à
noite pelo telefone.
Na quinta-feira, Isabel estava com um tom de voz estranho.
- Que voz é essa? Aconteceu alguma coisa? – perguntou Cláudio.
- Não. Não aconteceu nada. Só estou cansada, a semana foi puxa-
1 3 6 | POR QUE NÃO?

da. – disfarçou Isabel – A que horas você chega em casa amanhã? – quis
saber.
- Acho que lá para uma hora.
- Vai fazer fisioterapia de tarde?
- Não, só à noite. Por quê?
- Pensei em passar aí depois do colégio.
- Pode vir! Você aproveita e almoça comigo. Só não vai dar tempo
de eu ir te buscar.
- Tudo bem, não precisa. Uma hora então?
- Combinado. Vou te esperar.
Os dois se despediram e desligaram o telefone.
No dia seguinte, depois da aula, Isabel foi para a casa de Cláudio.
Quando ela entrou na sala, já estava com uma expressão estranha e pa-
recia tensa. Cláudio tinha acabado de chegar da faculdade e ainda não
tinha mandado servir o almoço.
- Oi, minha lindinha. – disse Cláudio, beijando Isabel – Você deve
estar com fome. Vou mandar servir o almoço.
Cláudio se preparava para deixar a sala quando Isabel pediu que
ficasse.
- Você pode deixar isso para depois? Eu queria conversar uma
coisa com você primeiro.
- Tudo bem. – estranhou Cláudio – Por que você não se senta?
Isabel sentou no sofá e ficou olhando para Cláudio com uma cara
de medo.
- O que foi, Isabel? – perguntou preocupado – Aconteceu alguma
coisa?
- Aconteceu. – respondeu ela com a voz embargada – Aconteceu
uma coisa horrível!
Isabel desatou a chorar.
- Você vai me odiar. – disse ela entre lágrimas.
- Calma, Isabel. Me conta o que aconteceu. – pediu Cláudio, atô-
nito.
Isabel só chorava.
- Isabel, meu amor... Se você não parar de chorar e me contar o
que está acontecendo eu não vou poder te ajudar.
- Você vai me odiar. – repetiu ela.
- Minha lindinha, por pior que seja eu prometo que vou tentar te
ajudar, mas para isso você precisa me dizer o que aconteceu.
Isabel levantou o rosto e secou as lágrimas tentando se controlar.
Ela olhou nos olhos de Cláudio e o medo ainda era visível em sua ex-
pressão.
TATIANE RANGEL | 1 3 7

- Isabel, não tenha medo. Você pode me dizer qualquer coisa. Va-
mos lá. Respira fundo e me diz o que está acontecendo.
Vendo que não tinha outro jeito, Isabel fez o que Cláudio pediu.
Respirou fundo e disparou:
- Eu estou grávida! – disse, recomeçando a chorar.
Cláudio entrou em choque e não conseguiu esboçar nenhuma re-
ação imediata. Isabel só chorava.
Depois de algum tempo em silêncio, Cláudio procurou cair em si
e viu que precisava amparar Isabel, ou ela teria um treco.
- Calma, Isabel. – pediu – Vamos com calma. Você tem certeza?
- Tenho. Eu fiz um teste de farmácia ontem e deu positivo. – disse
Isabel ainda muito nervosa.
- Procure ficar calma. Se isso for mesmo verdade você precisa se
acalmar ou pode fazer mal ao bebê. Respire fundo.
Depois de conseguir com que Isabel se acalmasse um pouco,
Cláudio tentou raciocinar.
- Você contou isso para mais alguém? Seus pais sabem?
- Não. Quando eles souberem vão me matar! – Isabel ainda cho-
rava.
Cláudio abraçou Isabel e tentou consolá-la.
- Fica calma, meu amor. Eu estou do seu lado, está bem? Nós va-
mos dar um jeito.
- Você vai me odiar. – repetiu Isabel.
- Não, meu amor. Eu não vou te odiar. – disse Cláudio – A culpa
é de nós dois. A gente ainda está estudando e devia ter se cuidado. Eu
não esperava ser pai agora, mas a gente vai dar um jeito. Fica tranquila.
Prometo que vai ficar tudo bem. – disse ele, dando um beijinho na testa
de Isabel.
Ela levantou a cabeça, olhou para ele com mais medo ainda e fa-
lou:
- Não é seu.
- Como é que é? O que você está dizendo, Isabel? – perguntou
Cláudio mal acreditando no que acabara de ouvir.
- O filho não é seu. – disse ela mais controlada – É do seu irmão.
Desta vez Cláudio sentiu que era ele quem ia desmaiar.
- Você não tem como saber. O intervalo de tempo entre eu e ele
foi só de duas semanas e você ainda não foi ao médico, foi? Existe uma
chance de esse filho ser meu. – concluiu ele, quase histérico – Não existe,
Isabel?
- Cláudio, não tem chance de esse filho ser seu. Eu já estava atra-
sada antes de a gente... Bem... você sabe.
1 3 8 | POR QUE NÃO?

- Se você já estava atrasada como não desconfiou disso antes?


- Porque eu já tinha atrasado outras vezes, então não pensei que
fosse nada, mas depois que eu passei mal naquele dia, eu resolvi fazer o
teste.
Cláudio estava passado. Ele olhava para Isabel com uma expressão
indecifrável. Era impossível saber se o que ele estava sentindo era tris-
teza, surpresa ou até mesmo raiva. Isabel já mais conformada, mas sem
parar de chorar, falou:
- Eu sei que você vai querer terminar comigo agora. Eu entendo.
Eu vou para casa. Preciso enfrentar os meus pais.
Isabel pegou a bolsa e já ia se levantar quando Cláudio pareceu
retornar do espaço sideral e pediu:
- Não. Não vá. – disse ele voltando a abraçar Isabel – Eu não vou
terminar com você. Eu te amo demais para isso. Eu disse que ficaria do
seu lado e vou ficar. A gente vai enfrentar isso juntos, está bem?
- O que eu vou fazer? Meus pais vão me matar.
- Não diga nada ainda, está bem? Eu vou pensar em alguma coisa.
Vamos almoçar. Você precisa comer por dois agora. – disse ele secando
o rosto de Isabel.
Cláudio passou aquela noite inteira acordado, pensando no que
fazer. Não queria terminar com Isabel, afinal, não era culpa dela. Eles
ainda não estavam juntos quando aconteceu. No entanto, ele acabou por
tomar uma decisão que sabia poder separá-los.
Quando se levantou de manhã, pegou o carro e tomou o caminho
do mosteiro onde Daniel estava enclausurado. Estava determinado a fa-
lar com ele. Se não deixassem, ele faria um escândalo.
Se Daniel soubesse o que estava acontecendo, talvez quisesse dei-
xar o seminário e se casar com Isabel, segundo os próprios princípios,
já que era tão católico. Ele sabia que, se esta fosse a decisão de Daniel,
ele perderia Isabel. Mas não importava. Tudo o que ele queria era ver
Isabel bem e feliz. Depois, Daniel deveria assumir as consequências dos
próprios atos. Se havia sido homem para fazer, teria que ser homem
também para assumir.
Quando chegou, teve dificuldades para obter permissão para falar
com Daniel, mas Cláudio insistiu que o assunto era sério e muito urgen-
te, e depois de algum tempo, acabaram permitindo que eles se falassem
por alguns minutos.
Daniel chegou na pequena sala vestindo um hábito. Cumprimen-
tou o irmão e, antes que pudesse perguntar o que estava acontecendo,
Cláudio foi logo dizendo por que estava ali.
- Daniel, eu vou ter que ser direto. Eles não vão me deixar ficar por
muito tempo. Eu já sei o que aconteceu entre você e a Isabel.
TATIANE RANGEL | 1 3 9

- Cláudio, eu sinto muitíssimo. Aquilo não devia ter acontecido.


Eu peço perdão a você e a ela, mas eu quero esquecer esse assunto.
- Aí é que está o problema, irmão: agora não dá mais para esque-
cer. A Isabel está grávida.
Daniel pareceu chocado por alguns segundos, mas se recuperou
com uma rapidez e uma frieza impressionantes.
- Olha, Cláudio, eu lamento muitíssimo o que eu vou dizer, mas eu
não vou poder fazer nada a respeito.
- Como não? Ela está esperando um filho seu! É sua responsabi-
lidade apoiá-la! Desista dessa porcaria de seminário e case-se com ela!
Ou pelo menos trabalhe e sustente o seu filho! Você sabe que é a coisa
certa a fazer!
- Cláudio, eu não posso mais desistir. Não posso e nem quero. Eu
me ordenei ontem.
- Como é que é?
- Isso mesmo que você ouviu. Eu sou um padre ordenado agora.
Semana que vem estou partindo em missão para a África e devo ficar lá
por uns dois anos.
- Você se ordenou, vai sair do país e não ia falar nada? – perguntou
Cláudio, revoltado.
- Eu ia ligar para vocês antes de ir, mas agora que você está aqui,
pode dar o recado aos nossos pais.
- Eu não acredito nisso. Você vai embora do país por dois anos e
não vai nem ligar para se despedir dos nossos pais? E pior: vai deixar
um filho para trás?
Daniel respirou fundo.
- Tudo bem, Cláudio. Eu ligo para me despedir dos nossos pais,
mas quanto à Isabel eu realmente não posso fazer muita coisa. Eu vou
ter que contar com você para me ajudar com isso. Nossos pais já sabem?
- Não. Achei que você deveria ser o primeiro a saber.
- Então vou te pedir um favor: não comenta nada com eles até eu
ir embora. Depois que eu for, você explica a situação para eles e pede
para eles deixarem para o filho da Isabel a parte que me cabia no testa-
mento deles. Quanto à Isabel, eu também conto com você para cuidar
dela.
Cláudio, revoltado, falou antes de sair da sala:
- Então você pode ter certeza de que ninguém jamais vai saber dis-
so, assim como ninguém jamais soube como eu vim parar nesta cadeira.
A Isabel e eu estamos namorando e eu vou cuidar desse filho como se
fosse meu. E quando ele crescer, nem mesmo vai saber o seu nome. Você
não passa de um grande canalha! Carregue mais esta culpa pelo resto da
sua vida! Espero que você queime no inferno.
1 4 0 | POR QUE NÃO?

- Você não acredita no inferno.


- Mas você sim. – acrescentou Cláudio, saindo da sala e deixando
Daniel sozinho.
Cláudio sentiu-se mal ao tocar no assunto do acidente. Eles dois
eram apenas crianças e Daniel certamente não teve a intenção de fazer o
que fez, mas na hora da raiva, acabou saindo. Agora não dava mais para
pedir desculpas.
Antes de dar partida no carro, Cláudio ligou para o celular de Isa-
bel e avisou que estava indo buscá-la.
Assim, ele saiu do mosteiro e foi direto para a casa dela. Queria
falar com calma sobre tudo o que estava acontecendo. No dia anterior,
Isabel estava muito nervosa e ele achou por bem não tocar mais no as-
sunto. Passou o resto da tarde tentando fazê-la relaxar, ainda que ele
mesmo não o fizesse.
Cláudio pegou Isabel na porta de casa. Quando ela entrou no car-
ro ele a beijou e foi logo perguntando:
- Como você está? Está mais calma?
Isabel fez que sim com a cabeça.
- Ótimo. Vamos para a minha casa. Preciso conversar um assunto
sério com você. – disse ele num tom sério, mas procurando demonstrar
carinho para não deixar Isabel ainda mais tensa.
Chegando em casa, Cláudio sentou-se no sofá da sala junto com
Isabel.
- Eu fui falar com o Daniel. – disse ele, sem rodeios.
- E o que ele disse? – perguntou Isabel, apreensiva.
- Infelizmente as notícias não são boas. Ele não vai assumir, Isabel.
- Por que não?
- Porque ele deu um jeito de se ordenar e se mandar do país. Ele
está indo passar dois anos na África e se manteve frio quando eu falei
para ele o que estava acontecendo. Ele me pediu para te apoiar e cuidar
de você, mas disse que não pode e nem quer fazer nada a esse respeito.
- O que eu vou fazer agora? – perguntou Isabel, já chorando.
- Calma, meu amor. Procure se acalmar. Para começar, você vai à
sua consulta com o endocrinologista na terça-feira. Sabendo que você
está grávida ele com certeza vai te passar uma nova dieta. Depois vamos
procurar um obstetra para você. Tem que começar logo a fazer o pré-
-natal.
- Eu ainda preciso contar aos meus pais.
- Ok, os seus pais... – Cláudio tinha se esquecido desse detalhe –
Eles estão em casa agora?
- Estão.
TATIANE RANGEL | 1 4 1

- Então é melhor dar logo um jeito nisso. Eu vou até lá com você
e te ajudo a contar, está bem? Vou ficar do seu lado o tempo todo, mas
isso precisa ser feito.
Isabel chorava.
- Não chore. – disse Cláudio, abraçando a menina – Tudo vai dar
certo.
Os dois chegaram à casa de Isabel e encontraram os pais sentados
na sala. Eles estranhavam aquela visita de Cláudio, que não era mui-
to comum. Pela cara dos dois e principalmente pelos olhos inchados
de Isabel, notaram que alguma coisa estava errada. Isabel sentou-se na
poltrona em frente ao sofá onde seus pais estavam e Cláudio parou a
cadeira ao lado dela.
- O que aconteceu, Isabel? – perguntou sua mãe, previamente ir-
ritada.
- Nós temos uma coisa muito séria para contar para vocês. – disse
Cláudio.
- O que você aprontou agora? – perguntou o pai.
O pavor estava estampado no rosto de Isabel. Cláudio sussurrou
para ela:
- Coragem, Isabel. Seja forte. Lembre-se de que eu estou aqui com
você e vou te apoiar em qualquer situação.
- Estamos esperando. – cobrou o pai.
Vendo que Isabel não ia conseguir falar, Cláudio tomou a frente:
- Não é uma coisa muito fácil de dizer, mas não tem outro jeito.
– disse ele, segurando a mão de Isabel o tempo todo – A Isabel e eu esta-
mos namorando e aconteceu um acidente. Ela está grávida.
- Como é que é? – perguntou a mãe de Isabel, claramente transtor-
nada – Você está grávida, Isabel? Então era isso o que você estava fazen-
do quando dizia que estava indo estudar? – perguntou ela já gritando.
- Não, mãe! Eu juro que eu estava estudando! Eu até passei de ano!
- Vadia! Vagabunda! Prostituta! – xingou a mãe, enfurecida – Não
deve nem saber de quem é esse filho!
Cláudio ficou ofendido e interveio:
- Ela não é nada disso o que a senhora falou! E eu já disse aqui que
eu sou o namorado dela e que esse filho é meu! Eu estou tomando uma
atitude de homem vindo aqui falar com vocês e assumindo a minha
responsabilidade! Agora tomem uma atitude de pais e apoiem a filha de
vocês!
- Admiro muito a sua postura, mas não espere que acreditemos
que esse filho é seu! Você é aleijado! Não consegue fazer filho! – rebateu
ela.
1 4 2 | POR QUE NÃO?

- A senhora está muito equivocada!


- Equivocados estão vocês se pensam que nós vamos aceitar um
absurdo desses!
O pai de Isabel permanecia calado diante do escândalo que a espo-
sa fazia, porém com uma cara de dar medo! A mãe de Isabel continuava:
- E você, Isabel, dê graças a Deus que está grávida, porque a minha
vontade é de te dar uma surra! Agora você faça o favor de subir, fazer
suas trouxas e ir atrás do pai do teu filho! Pode dizer para ele desembol-
sar o dinheiro para resolver isso aí!
- Mãe! O que você está me pedindo? – perguntou Isabel, choran-
do.
- Pedindo não! Mandando! Saia agora da minha casa e só volte
aqui quando se livrar disso! – disse, apontando para a barriga de Isabel.
- Pai! – exclamou Isabel na esperança que ele a defendesse.
- Você ouviu a sua mãe. – foi só o que ele disse antes de se levantar
e sair da sala.
Cláudio estava pasmo com tudo o que acabara de presenciar. Ele
não conseguiria ficar calado com tanta coisa que passava pela sua cabe-
ça, mas não queria que Isabel presenciasse outra discussão, então, pediu
que ela saísse.
- Lindinha, pega só as suas roupas, material escolar e objetos pes-
soais. Depois damos um jeito no restante. Você vai para a minha casa.
Isabel não ofereceu resistência. Não queria ficar ali nem mais um
minuto. Depois que ela saiu, Cláudio retomou a discussão com a mãe
dela.
- Com todo o respeito que eu tenho pela senhora pelo simples fato
de ser mais velha que eu: o que a senhora e o seu marido estão fazendo
é ilegal! A Isabel é menor de idade e vocês têm obrigação de cuidar dela.
- Não venha me falar como eu devo tratar a minha filha!
- Sua filha? Vocês negligenciaram a Isabel a vida inteira! Viajando
e a deixando sozinha! Negando amor, proteção e até saúde! A Isabel
vive desmaiando e vocês nunca quiseram saber a razão! Nunca fizeram
questão de levá-la ao médico! Eu é que tive que fazer isso! A Isabel é
hipoglicêmica e aposto que vocês nem sabem! Adotaram a Isabel para
substituir uma criança morta e a trataram como um bichinho de esti-
mação a vida inteira! Alguém alguma vez já se importou com a Isabel?
Alguém se importa?
- Já que você faz tanta questão, assuma você o filho dela! Leva ela
para a sua casa! Ela não é mais problema nosso!
- Nisso a senhora tem razão: a Isabel é problema meu agora, e eu
faço questão de lutar pelos direitos dela! Eu vou ligar para o meu advo-
gado amanhã. A senhora e o seu marido serão processados!
TATIANE RANGEL | 1 4 3

Isabel vinha descendo as escadas.


- Vamos embora, Isabel. Não temos mais nada a fazer aqui. Pen-
dure suas bolsas na cadeira. Você não pode carregar peso.
Isabel obedeceu e os dois foram embora.
TATIANE RANGEL | 1 4 5

CAPÍTULO 13
para o seu bebê
Q uando os dois chegaram em casa, Isabel estava arrasada. Es-
perava qualquer reação exagerada dos pais, menos aquela.
Cláudio ainda custava a crer no que tinha acontecido.
- Caramba! Nós estamos no século 21! Quem ainda expulsa uma
filha de casa porque está grávida? Não se preocupe, Isabel. Nós vamos
dar um jeito nisso.
- Não quero me livrar dele. – respondeu Isabel, chorando – Quero
ficar com o meu bebê.
- Calma, meu amor! Não foi isso o que eu quis dizer! Você e o
bebê estão seguros aqui. Eu prometo que não vou deixar que ninguém
faça mal a vocês dois.
- O que vai ser de mim agora, Cláudio? Eu não tenho mais nin-
guém no mundo.
- Não diga isso. Você tem a mim. Apesar do que aconteceu, sua
vida segue normalmente agora, tá? Eu tenho algumas ideias, mas agora
você está muito nervosa. Conversamos sobre isso depois. Você parece
cansada. Por que você não se deita e dorme um pouquinho?
- Estou mesmo precisando. Não dormi nada esta noite.
- Eu imaginei. Vá para a cama e durma um pouco. Você vai rela-
xar. Vai te fazer bem.
- Não sei se consigo.
- Consegue sim. Quer que eu fique com você até pegar no sono?
Isabel fez que sim com a cabeça e Cláudio foi com ela até o quarto.
Ficou ao lado da cama alisando seus cabelos até que ela dormisse.
Depois que Isabel dormiu, Cláudio pediu aos empregados que fi-
cassem de olho caso ela acordasse e lhe servissem o almoço, pois ele
daria uma saída rápida.
Cláudio demorou umas duas horas, mas ao voltar para casa, Isabel
ainda estava dormindo. Ela dormiu até as três da tarde e quando acor-
dou, Cláudio estava ao seu lado, velando seu sono.
- Oi. – disse Isabel, ao abrir os olhos.
1 4 6 | POR QUE NÃO?

- Oi, meu amor. Dormiu bem?


- Como uma pedra. – disse Isabel, esboçando um sorriso.
- Que bom. Gostei de ver este sorriso, mesmo que seja pequenini-
nho. Tenho certeza que ele vai aumentar daqui para frente.
Isabel notou uma sacola grande sobre o criado-mudo e indagou:
- O que é isso?
- Fiz uma pequena extravagância enquanto você dormia. Fui ao
shopping e comprei umas coisinhas para te alegrar.
- Isso é para mim? – perguntou Isabel, já sorrindo.
- Só para você. – disse Cláudio pegando a sacola – Vou te mos-
trar: isto é para você. – disse Cláudio, retirando da sacola uma caixa de
bombons dietéticos, um estojo de manicure e cremes hidratantes para a
pele – Achei que você ia gostar, além de precisar.
- Eu adorei! Obrigada!
- E isto é para o bebê. – disse ele, retirando de uma caixa um bi-
chinho de pelúcia, um par de sapatinhos e algumas roupinhas de bebê.
- É lindo! – exclamou Isabel, com os olhos cheios d’água, mas sor-
rindo largamente.
- Como ainda não sabemos se é menino ou menina, escolhi cores
neutras.
- Muito obrigada! Você me deixou muito feliz! – disse Isabel, abra-
çando e beijando Cláudio.
- Tem mais uma coisa.
- Mais?
- É, mas antes eu preciso conversar uma coisa com você. Está em
condições de falar sobre isso agora? – perguntou Cláudio preocupado.
- Estou sim. – respondeu Isabel, respirando fundo – Não se preo-
cupe. Se não passei mal até agora, então não vou passar mais. Acho que
o pior já passou, não é mesmo?
- Tenho certeza que sim. – concordou Cláudio dando um beijinho
na testa de Isabel.
- Pode falar. Estou ouvindo.
- Sabe, Isabel, eu pensei muito. Você não ouviu, mas eu ameacei
processar os seus pais antes de sair de lá.
- Por favor, não faça isso. Apesar de tudo eles ainda são meus pais.
- Esta é a questão. Pensei melhor e também acho que não vale à
pena. Tenho uma proposta melhor para te fazer.
- Qual?
- Fica aqui comigo. Você continua indo à escola. Sua matrícula já
está feita mesmo, então não vai mais precisar dos seus pais para nada.
Eu pago as mensalidades. Também pago toda a assistência médica que
você precisar daqui para frente.
TATIANE RANGEL | 1 4 7

- Cláudio, não sei se posso aceitar e nem se seus pais vão aceitar
isso.
- Claro que pode! E meus pais não serão problema. Eles adoram
você! Vão concordar quando souberem o que aconteceu.
- Não sei se quero que eles saibam. Acho que vão ficar bem chate-
ados se souberem o que houve entre mim e o seu irmão.
- Eles não precisam saber! Você ainda não entendeu o que eu es-
tou te propondo?
- Acho que não.
- Isabel, eu digo que esse filho é meu! Assumo você e o bebê, regis-
tro como se fosse meu filho, dou meu nome para ele!
Isabel olhava surpresa para Cláudio.
- Isso me leva ao terceiro presente. – disse Cláudio, tirando uma
caixinha do fundo da sacola – Isabel, quer se casar comigo? – pediu ele,
com a caixinha aberta exibindo uma aliança.
Isabel tapou a boca aberta com uma das mãos. Seus olhos brilha-
vam.
- Cláudio... Eu só tenho dezessete anos! Meus pais nunca vão au-
torizar! Não depois de tudo o que aconteceu!
- Eu já pensei em tudo. No fim do ano você faz dezoito e não vai
mais precisar da assinatura deles. Até lá o bebê já vai ter nascido e a
gente pode se casar no início do ano que vem. Vai dar tempo de planejar
tudo com calma.
Os dois permaneceram em silêncio por alguns segundos. Cláu-
dio, ainda com a aliança na mão, perguntou novamente:
- E então, Isabel? Aceita ser minha esposa?
- Aceito! – respondeu Isabel, empolgada, abraçando Cláudio e, em
seguida, dando-lhe um longo beijo.
Ela chorava de felicidade. Os dois estavam nervosos e foi com as
mãos trêmulas que Cláudio pôs a aliança no dedo de Isabel.
À noite, os pais de Cláudio chegaram e todos se sentaram para
conversar sobre o que estava acontecendo. Cláudio e Isabel explicaram
sobre a gravidez e contaram tudo o que havia acontecido naquele dia.
Cláudio, é claro, disse que o filho era seu, que tinha resolvido assumir de
vez Isabel e o bebê e que agora eles estavam noivos.
Carlos e Luisa ficaram surpresos e até felizes, embora muito pre-
ocupados com a notícia da gravidez de Isabel. Mas ficaram completa-
mente revoltados ao saber da reação e da atitude dos pais dela. Sendo
assim, eles concordaram em acolhê-la em sua casa, mas fizeram questão
de deixar claras as obrigações que cabiam a ela e Cláudio.
- Bem, nós não esperávamos sermos avós agora. Vocês mal come-
1 4 8 | POR QUE NÃO?

çaram a namorar e são muito jovens, especialmente a Isabel. Ainda não


terminaram os estudos e vai ser muito difícil lidar com isso. – ponderou
Luisa – Apesar disso, nós vamos ajudar no que for preciso. É claro que
a Isabel pode ficar, mesmo porque esta casa vai ser sua um dia, Cláudio.
Mas eu acho que nem preciso dizer que vocês dois vão ter que arcar com
todas as responsabilidades de formar uma família.
- Estou com a sua mãe, Cláudio. – continuou Carlos – Já que isso
aconteceu e você tomou a decisão de assumir sua família, o que para
mim é o certo, então nem preciso dizer que vai ter que trabalhar para
sustentá-la. Eu sei que você já trabalhava antes, mas antes você não pre-
cisava. Agora é diferente: você vai ter um filho! Você vai ter uma esposa!
Vai ter que se esforçar para dar a eles tudo o que eles precisam. É claro
que, enquanto estivermos por aqui, vocês sempre terão casa e comida,
mas o resto será por sua conta. – impôs Carlos – Também é óbvio que
se faltar alguma coisa para vocês, o que eu espero que não aconteça, sua
mãe e eu ficaremos felizes em ajudar. Mas eu quero ver você tomar uma
atitude de homem e assumir as consequências dos seus atos e as respon-
sabilidades que eles trazem.
- Eu sei disso tudo, pai. – concordou Cláudio – Já pensei a respeito
e já sei o que fazer. Vou transferir a faculdade para o turno da noite e vou
ajudar a cuidar das lojas durante o dia. Inclusive, se o senhor concordar,
eu gostaria que me deixasse assumir a loja do shopping, por causa do
horário. Já que só abre às dez, posso continuar com a fisioterapia de
manhã cedo.
- Está certo, então. A administração da loja do shopping e todo o
lucro que ela der são de vocês. Você já conhece o trabalho, sabe como
fazer a maior parte do serviço e se precisar de ajuda, se tiver alguma
dúvida, terei prazer em ser útil.
- Mãe, eu sei que as despesas são por minha conta, mas eu queria
te pedir um favor.
- Peça, meu filho. Pode falar.
- A Isabel já tem consulta com o endocrinologista na terça-feira.
O que eu quero pedir é que você a ajude a encontrar um obstetra ou um
ginecologista para começar logo o pré-natal. Eu não entendo nada des-
sas coisas, e a senhora é mulher, deve conhecer algum médico.
- Claro que sim. Vou marcar uma consulta com a minha gineco-
logista para ela.
E assim foi feito. Cláudio transferiu o horário da faculdade para a
noite. Acordava bem cedo, fazia a fisioterapia, nadava, tomava banho e
ia para a loja. Na hora do almoço, buscava Isabel na escola, eles almoça-
vam juntos, ela ficava em casa e ele voltava ao trabalho. Às seis da tarde,
TATIANE RANGEL | 1 4 9

Cláudio saía do trabalho, pois tinha que estar às sete na faculdade e lá fi-
cava até as onze da noite. Chegava em casa perto da meia-noite. Jantava,
tomava banho e ia dormir para no dia seguinte começar tudo outra vez.
Isabel mudou-se de vez para o quarto de Cláudio. Agora não tinha
mais razão para esconder. Continuava indo à escola normalmente, mas
lá, ninguém ainda sabia de nada. Isabel estava praticamente isolada. Às
vezes, sentia que Carlinha tentava se aproximar dela, mas quando isso
acontecia, Isabel saía de perto. Não queria mais ser amiga de Carlinha e
não se falavam desde a festa. As pessoas estranhavam o comportamento
de Isabel, que sempre havia sido tão sociável.
Isabel não era muito chegada a enjoos matinais. Com o acompa-
nhamento do endocrinologista e uma dieta rigorosa, sua glicose estava
sob controle. No entanto, Isabel ficava sonolenta e tinha muitas varia-
ções de humor. Certos cheiros e comidas podiam fazê-la vomitar facil-
mente.
Isabel havia iniciado o pré-natal com a médica que Luisa havia re-
comendado. Como todos eram muito ocupados e com Cláudio se des-
dobrando em três, Isabel precisava ir sozinha às consultas, mas quando
soube que ela ia fazer a primeira ultrassonografia, Cláudio deu um jeito
de deixar a loja para ir junto.
- Estão vendo esta mancha aqui? Este é o bebê de vocês. – disse o
médico, apontando para o monitor – E isto aqui que está pulsando é o
coração. Vou aumentar o som para que vocês possam ouvir.
O médico aumentou o som e o pulsar do coração se fez ouvir alto
e claro. Isabel olhou emocionada para Cláudio, que também tinha os
olhos cheios d’água. O médico imprimiu uma cópia e entregou na mão
de Isabel.
- Aqui está a primeira foto do seu bebê.
O médico disse que o desenvolvimento do bebê estava normal e
parecia estar tudo bem.
Com a jornada pesada de estudo, trabalho e reabilitação de Cláu-
dio, Isabel começou a sentir-se sozinha e preocupada. Muitas vezes
dormia antes de Cláudio chegar em casa, pois acordava cedo para ir à
escola. Quando acordava, ele estava fazendo sua fisioterapia e exercícios
diários. Praticamente só se viam na hora do almoço.
Cláudio tirava folga aos domingos, mas muitas vezes não podia
dar a atenção que queria à Isabel. Tinha que estudar e fazer os trabalhos
da faculdade.
Outra preocupação de Isabel eram os gastos que Cláudio estava
tendo. Pagava sua escola, sua assistência médica, tinha despesas com o
carro – uma necessidade para ele. Além disso, Cláudio havia começado
1 5 0 | POR QUE NÃO?

a comprar algumas peças do enxoval do bebê. As roupinhas e sapati-


nhos ainda eram poucos, pois ele preferia esperar até saberem o sexo
para comprar as cores certas, mas já havia começado a fazer um bom
estoque de fraldas.
Uma noite, Isabel levou tudo isso ao conhecimento de Cláudio.
- Tenha paciência, meu amor. – pediu Cláudio – Estou fazendo
isso por você e pelo bebê. Vai valer à pena.
- Eu sei que vai, mas estou preocupada com você. Você não con-
segue parar nem um minuto. Vai acabar ficando doente desse jeito. Sem
contar a despesa que estamos tendo. Não sabia que seria tão caro ter um
filho. Estou me sentindo mal em não ajudar.
- Não se preocupe. Isso é comigo. Você não pode mesmo fazer
nada.
- Claro que posso! Posso trabalhar na loja na parte da tarde. Se eu
te ajudar, talvez você tenha um pouco mais de tempo para relaxar.
- Não, Isabel. Você não tem como me ajudar. Meu trabalho é ad-
ministrativo e não termina nunca.
- E se eu trabalhar de vendedora? Posso ajudar a aumentar os lu-
cros.
- Meu amor, preocupe-se apenas em estudar e se manter saudável,
está bem? Deixa que eu cuido do resto.
- Estou com medo de faltar dinheiro. Você está gastando tanto!
- Isabel, não vai faltar nada, eu prometo. Mesmo se faltasse: meus
pais já disseram que nos ajudam e, além disso, eu tenho um bom di-
nheiro na poupança. Não se preocupe, porque o dinheiro que a loja está
rendendo está sendo mais que suficiente. Me promete que vai ficar tran-
quila? – pediu Cláudio segurando o rosto de Isabel.
- Prometo.
- Ótimo. – respondeu ele dando-lhe um beijo na testa – Agora
vamos dormir. Já está tarde.
Cláudio acomodou a cabeça de Isabel em seu peito e adormeceu,
acariciando os cabelos dela, como sempre fazia.

* * *

Isabel entrava no terceiro mês e a barriga já começava a ficar visí-


vel. Além disso, ela já tinha ganhado um pouco de peso e já estava com o
rosto bastante redondo. No colégio, as pessoas começaram a reparar. Se
Isabel não tivesse se isolado tanto, talvez isso não fosse problema, mas
ela já não falava com ninguém. Era agora uma menina triste e calada.
Quase um fantasma que se deslocava solitário pelos corredores. Diante
disso, sem saber o que estava realmente acontecendo, as pessoas acaba-
TATIANE RANGEL | 1 5 1

ram por desenvolver certa antipatia por Isabel. Então, quando a gravi-
dez ficou óbvia, começaram as fofocas e comentários maldosos. Isabel
passou a ser perseguida e agredida verbalmente.
As pessoas que estavam na festa de Carlinha e que presenciaram o
que aconteceu lá eram as piores. O principal boato era que Isabel havia
roubado o namorado de Carlinha e engravidado para prendê-lo. Não
havia como escapar deste último comentário, pois todos viam quando
Cláudio buscava Isabel na hora da saída. Por mais que Carlinha des-
mentisse a história, as pessoas tinham prazer em inventar cada vez mais.
Isabel começou a ficar desmotivada. Tão desmotivada que resol-
veu sair do colégio. Quando Cláudio soube, tentou convencê-la do con-
trário.
- Isabel, você não tem que ligar para essas coisas. Sabe o que vai
acontecer se você sair do colégio? Não vai terminar o ensino médio.
Vai ficar atrasada. E no ano que vem todos aqueles babacas vão estar na
faculdade e você não.
- Eu não consigo mais. – respondeu Isabel chorando – Você não
sabe o que é passar o dia inteiro sendo xingada, perseguida e apontada!
Você não sabe o que é entrar no banheiro e ver coisas horríveis sobre
você escritas em todas as portas e paredes.
- Meu amor, eu não posso te forçar a fazer nada que você não
queira, mas tenha em mente que se você sair da escola agora, vai ter que
esperar até o ano que vem para entrar em outra, porque os seus pais
ainda detém a sua guarda e só eles podem te matricular. E como você só
faz dezoito anos em dezembro...
- Não tem problema. O bebê vai nascer em outubro. Eu não ia
conseguir terminar o ano mesmo.
- Isso não seria um problema, Isabel. A lei te garante o direito de
fazer as provas depois.
- Não. Eu não quero mais voltar lá. Prefiro esperar até o ano que
vem e me matricular em outra escola. Eu posso trabalhar de dia e estu-
dar à noite. Assim eu consigo pagar uma creche para o bebê.
- Isabel, você não pode se afastar do bebê o dia inteiro. Ele vai
precisar de você. Você vai ter que amamentá-lo.
- Então eu volto a estudar quando puder! Só não me faça mais
voltar para aquela escola!
- Tudo bem. – concordou Cláudio, contrariado – Talvez possamos
contratar uma babá, ou... Sei lá. Pensamos nisso depois.
Isabel acabou mesmo saindo do colégio. Os pais de Cláudio não
gostaram nada quando souberam, mas acabaram deixando para lá dian-
te de toda a argumentação dela. No entanto, eles a fizeram prometer que
1 5 2 | POR QUE NÃO?

de um jeito ou de outro ela ia retomar os estudos no próximo ano.


Como ficou sem nada para fazer, Isabel insistiu para que Cláudio
a deixasse ajudar na loja.
- Não! De jeito nenhum. Você é menor de idade, está grávida e não
está estudando. Se bater a fiscalização eu estou seriamente encrencado.
- Por favor! Ninguém vai saber! Eu nem vou vestir o uniforme da
loja. Se aparecer um fiscal eu finjo que sou cliente!
- Se o fiscal aparecer toda semana você vai ser uma cliente muito
assídua.
- Então eu digo que sou sua irmã, sua prima, sua amiga, o que
você quiser que eu seja! Mas por favor, não me deixa em casa sem fazer
nada! Eu faço qualquer serviço! Eu vendo, fico no caixa, fico lá dentro
do escritório com você. Já sei! Eu posso ir ao banco! Estou grávida, en-
tão não pego fila!
- Vamos fazer o seguinte: você vai comigo, fica por lá, e se eu pre-
cisar de alguma coisa eu te peço. Pode ser?
- Pode ser.
Assim fizeram. Isabel ia de manhã com Cláudio e, antes de ir para
a faculdade, ele a deixava em casa. No começo Isabel ficava por perto,
caso Cláudio precisasse de alguma coisa, mas o fato é que isso quase
não acontecia. Então Isabel ia andar pelo shopping e reaparecia na loja
de vez em quando, mas isso não durou muito tempo. Ela logo ficou en-
tediada. Sem que Cláudio percebesse, Isabel começou a fazer pequenas
coisas dentro da loja. Começou a puxar papo com os clientes, e quando
estava certa que eles iam comprar, chamava um dos vendedores. Ficou
perto da moça do caixa até aprender o serviço, tanto que pôde substituí-
-la quando precisou faltar. Às vezes ia até o estoque e arrumava tudo.
Quando Cláudio deu conta, ela já estava fazendo de tudo um pouco,
como ele mesmo fazia no começo.
Satisfeito, ele começou a ensinar o trabalho administrativo para
Isabel e combinou que se o fiscal aparecesse, ela deveria dizer que era
sua noiva e que estava sempre por ali, mas que não trabalhava na loja. E
se perguntassem a sua idade, ela diria que tinha dezoito anos.
Trabalhando na loja, Isabel e Cláudio agora podiam passar mais
tempo juntos, ainda que nem sempre pudessem se divertir. Pelo menos
podiam conversar e ficar perto um do outro. Isso fez com que Isabel
se ocupasse e não se sentisse tão só. Então, ela começou a melhorar o
humor e a ficar cada vez menos triste. Em pouco tempo, ela já estava
praticamente adaptada à sua nova vida.
TATIANE RANGEL | 1 5 3

CAPÍTULO14
escuridão
A os cinco meses de gravidez, Isabel foi fazer outra ultrasso-
nografia. Cláudio deu um jeito de deixar a loja por algumas
horas para poder acompanhá-la. Talvez desta vez desse para ver o sexo
do bebê.
- Isabel, o seu bebê está ótimo! – elogiou o médico – Está crescen-
do normalmente, está com um peso ótimo e os batimentos cardíacos
estão perfeitos.
Cláudio estava dentro do consultório com Isabel. Ele estava para-
do perto da cabeceira da maca e segurava a mão dela.
- Está dando para ver o sexo. Querem saber? – perguntou o mé-
dico.
Os dois, empolgados e emocionados, fizeram que sim com a ca-
beça.
- Vamos ver... – brincou o médico, fazendo suspense – Vocês vão
ter uma menininha!
Isabel desatou a chorar, enquanto Cláudio deixou escapar uma lá-
grima bem discreta, mas não conseguiu disfarçar o sorriso.
O médico imprimiu o laudo e uma cópia extra da imagem para
que os dois pudessem ter mais uma “foto” do bebê.
No carro, Cláudio e Isabel conversavam animados com as novi-
dades.
- Uma menina! Eu sempre quis ter uma menina! Estou tão feliz!
– disse Isabel.
- Quando minha mãe souber, vai fazer um escândalo!
- Vamos ligar para ela!
- Não. Vamos esperar até a noite para dar a notícia pessoalmente.
Quero ver a cara dela quando souber que vai ter uma netinha.
- É! A gente fala e mostra a nova foto do bebê para ela!
- Precisamos parar de chamá-la assim. Agora que sabemos que é
menina, precisamos dar um nome para ela. Você tem alguma ideia?
- Bem, eu sei que não te disse nada, mas eu acho que já escolhi.
1 5 4 | POR QUE NÃO?

- Você escolheu o nome e não me disse nada?


- Me desculpa! É que a gente não teve muita oportunidade de falar
sobre isso. Ultimamente a gente só fala sobre as contas e o trabalho.
- Eu sei. Estava brincando. E então? Que nome você escolheu?
- Eu sempre disse que quando eu tivesse um filho, ele teria o nome
de um anjo. Então se fosse menino, eu chamaria de Gabriel. Mas como
é menina, eu pensei em Gabriela. O que você acha? Você gosta ou tem
alguma outra sugestão?
Cláudio pensou por alguns segundos.
- Não, nenhuma outra sugestão. Você escolheu bem. Eu gosto de
Gabriela. Sabe o que nós podemos fazer? – perguntou Cláudio, mudan-
do de assunto – A gente pode tirar o resto do dia de folga e ir fazer umas
comprinhas para a Gabriela. O que você acha?
- Acho ótimo! Vamos poder escolher roupinhas cor-de-rosa! Mas
e a sua faculdade? Você não está em época de prova?
- Estou, mas hoje eu não tenho nenhuma. Para as matérias de hoje
eu preciso entregar trabalhos e eles já estão quase prontos. Não vejo a
hora de entrar de férias. Assim eu vou poder finalmente passar algum
tempo com você.
Isabel ficou pensativa por um bom tempo, até que Cláudio per-
guntou:
- O que você tem? Ficou calada de repente.
- Só estava pensando. – respondeu Isabel em um tom triste.
- Estava pensando nele, não é? – perguntou Cláudio, também en-
tristecido.
- Estava pensando em tudo, Cláudio. Nele, nos meus pais, em
mim, em você.
- Em mim? Por quê?
- Porque às vezes eu me sinto muito insegura.
- Como assim?
- É que você está assumindo um filho que nem é seu. Eu tenho
medo de um dia você mudar de ideia, se arrepender.
- Não diga isso.
- Estou falando sério, Cláudio. Me responda com sinceridade:
como você se sente em relação a isso? Você realmente consegue amar
este bebê como se fosse seu?
- Isabel, esse bebê não é qualquer bebê. Não é o bebê de um cara
qualquer. É do meu irmão! Você acha que eu não me pego pensando
que era ele quem deveria estar aqui do seu lado, te apoiando e assumin-
do a filha dele? Eu tenho tanta raiva, Isabel! Eu tenho raiva porque ele
não sabe o quanto ele foi sortudo em ter sido amado por você! O quanto
ele é sortudo em ter uma filha com você agora!
TATIANE RANGEL | 1 5 5

- Então você está comigo por caridade? Por pena? Ou só para fa-
zer um favor para o seu irmão?
- Você não entendeu, Isabel. Ele teve de você tudo o que eu sempre
sonhei e jogou fora! Ele não te amou e nem quis o seu bebê! Mas eu te
amei, Isabel! Eu te amei o tempo todo e continuo te amando mais a cada
dia que passa! Eu quero ter uma família com você! E se ele não quer e
você está disposta a me dar tudo isso agora, então não importa de quem
é esse bebê! Não importa, porque vocês são minha família agora! O Da-
niel e eu somos gêmeos idênticos, nós temos o mesmo DNA! Nenhum
teste de paternidade diria de quem é esse filho! Você entende, Isabel? É
como se a Gabi fosse minha filha sim! Mesmo que o meu DNA não fosse
igual ao do meu irmão: ela seria no mínimo a minha sobrinha! Ela tem
o meu sangue!
Cláudio não estava mentindo para Isabel. Ele realmente amava a
criança que estava por vir como se fosse sua, mas sabia que amaria de
outro jeito se ela realmente o fosse. Não amaria mais: apenas diferente.
Sabendo disso, Cláudio não podia deixar de sentir uma ponta de culpa,
mas procurava não pensar nisso. Isabel não tinha culpa do que estava
acontecendo. A bebê também não. E ele amava as duas como jamais
imaginou amar alguém em toda a sua vida. Isso bastava para que ele
se perdoasse e se permitisse viver toda a felicidade daquele momento,
apesar das dificuldades.
Cláudio e Isabel deram uma breve passada na loja para delegar
tarefas e não deixar nada pendente para o dia seguinte. Depois disso,
passaram o resto do dia no shopping, comprando tudo o que ainda fal-
tava para a pequena Gabriela.
Isabel estava radiante. Podia finalmente escolher as roupinhas cor-
-de-rosa que tanto queria e tudo o mais que fosse feminino e delicado.
À noite, os dois haviam preparado uma pequena surpresa para
os pais de Cláudio: fizeram uma cópia da “fotografia” impressa no ul-
trassom e a puseram num porta-retratos. Embrulharam para presente e
anexaram um cartão no qual escreveram: “Para a vovó e o vovô. Muito
prazer: eu sou a Gabriela”. Os dois ficaram extremamente felizes e emo-
cionados. Principalmente Luisa, que não parava de chorar enquanto
abraçava Isabel e beijava sua barriga.
No mês seguinte Cláudio finalmente entrou de férias da faculda-
de. Isso permitiu que ele passasse algum tempo com Isabel fora do horá-
rio de trabalho. Era até bom, porque a barriga de Isabel estava crescendo
cada vez mais e ele temia que em breve talvez não fosse mais possível
que ela o acompanhasse em sua jornada de trabalho. Mesmo assim, ain-
da era possível deixar Isabel sozinha na loja por algumas horas durante
1 5 6 | POR QUE NÃO?

o dia para pôr em prática uma surpresa que ele estava preparando. Ele
dizia que precisava visitar fornecedores e pedia que ela tomasse conta da
loja enquanto ele estivesse fora, embora quase não houvesse o que Isabel
pudesse fazer.
Um dia, ele passou quase o tempo todo ao telefone dando instru-
ções a alguém. Quando Isabel perguntava o que era, ele desconversava.
Até que no final do dia os dois voltaram para casa e ela pôde finalmente
ver do que se tratava tanto mistério.
- Não abra os olhos ainda. – pediu Cláudio, enquanto abria uma
porta e acendia a luz – Pronto! Pode olhar!
Quando viu, Isabel ficou sem palavras. Cláudio havia reformado
o antigo quarto de Daniel. Com a ajuda de uma decoradora, ele havia
sido transformado no futuro quarto de Gabriela. Tinha ficado lindo! O
quarto tinha papel de parede rosa com detalhes em branco na metade
de baixo da parede, que era pintada de branco na metade de cima, sen-
do que um roda meio de madeira em pátina separava as duas metades.
As janelas originalmente brancas foram pintadas de rosa e ganharam
cortinas de renda, enquanto o piso de tábua corrida fora substituído por
vinil branco. Os móveis escolhidos também eram lindos! Um berço, um
trocador, uma cômoda e um guarda-roupa em laca branca acetinada.
Uma poltrona forrada com um tecido branco com estampa bem delica-
da de pequenas flores cor-de-rosa. Lindos acessórios complementavam
tudo: pequenos quadros nas paredes, um móbile de borboletas sobre o
berço, o carrinho de bebê já montado, um abajur e todos os utensílios já
arrumados sobre a bancada do trocador. Sem contar as roupinhas - que
já haviam sido compradas – arrumadas dentro das gavetas e nos cabides
do armário, onde também estavam guardadas lindas roupas de cama.
Para arrematar, uma prateleira cheia de bonecas e bichinhos de pelúcia,
e o nome de Gabriela entalhado em madeira pendurado na porta do
quarto.
- Então era isso o que você estava tramando esse tempo todo?
- Era sim. Por isso eu tinha que sair da loja no meio do dia. Preci-
sava me reunir com a decoradora para escolher tudo e de vez em quan-
do dar um pulo aqui para ver se tudo estava saindo como planejado.
- Está maravilhoso, meu amor! Obrigada! – agradeceu Isabel,
emocionada, abraçando e beijando Cláudio.
Naquele dia, eles acabaram indo dormir bem tarde, porque fica-
ram horas admirando tudo.
Os meses passavam e a barriga de Isabel ia ficando cada vez maior.
Os exames sempre mostravam uma gravidez tranquila e dentro da nor-
malidade.
TATIANE RANGEL | 1 5 7

Conforme ia se aproximando a data do parto, as expectativas au-


mentavam. Cláudio não cabia em si de tanta felicidade. Ele não se can-
sava nunca de admirar Isabel, que ia ficando cada dia mais bonita. Todas
as noites, antes de dormir, ele ficava alisando a barriga e conversando
com o bebê, que sempre reagia ao som da sua voz.
Ela por sua vez detestava se olhar no espelho. Achava que estava
enorme, uma baleia. Não se reconhecia mais.
Isabel queria que o bebê nascesse logo, pois os desconfortos só
aumentavam. Estava difícil subir e descer escadas, sentia-se pesada ao
andar e já não tinha mais posição para dormir. O bebê chutava muito e
empurrava seu diafragma, fazendo com que ela sentisse muita falta de
ar.
No oitavo mês, Isabel deixou de ir trabalhar. Preferia ficar em casa
e colocar os pés para o alto, pois na maior parte do tempo seus tornoze-
los estavam inchados. Sem contar as idas ao banheiro que se tornavam
cada vez mais frequentes, devido à compressão que o bebê fazia em sua
bexiga.
Durante todo aquele tempo os pais de Isabel não tinham ido pro-
curá-la uma única vez. Nem eles e nem ninguém da família. Eles sabiam
exatamente onde Isabel estava, mas parecia que não se importavam em
saber se estava bem. Pouco antes de parar de trabalhar, Isabel chegou a
vê-los no shopping. Eles passaram em frente à loja e fingiram que não
a viram. Aquilo doeu muito em Isabel. Naquele momento ela soube o
quanto estava sozinha no mundo. Nem o tempo e nem o barrigão de
Isabel os havia sensibilizado.
Cláudio continuava com a rotina pesada de trabalho, estudo e
reabilitação. Ele ficava preocupado em ter que deixar Isabel por tanto
tempo sozinha. Naquele ano, Carlos e Luisa procuraram viajar menos,
principalmente nos últimos meses da gravidez de Isabel, pois sabiam
que seria difícil para Cláudio socorrê-la com a rapidez necessária quan-
do chegasse a hora, principalmente se estivesse fora e tivesse que correr
para pegar Isabel em casa.
Daniel não havia mais dado notícias. Desde que havia ido para a
África só telefonara uma vez para falar com os pais e enviara dois car-
tões postais. Já havia passado cinco meses desde o último. Apesar disso,
todos sabiam que ele estava bem, pois se houvesse acontecido alguma
coisa, a igreja já teria avisado. O que ninguém entendia era o descaso
dele para com a família, ou melhor: o que Carlos e Luisa não entendiam.
Cláudio e Isabel sabiam exatamente o que estava acontecendo.
Quando telefonou pela primeira vez, Luisa deu a Daniel a notícia
que ele iria ser tio. Depois disso, ele evitou telefonar. Apenas mandou
1 5 8 | POR QUE NÃO?

os dois postais, mas ambos sem seu endereço ou qualquer contato. De-
pois, desapareceu de vez. Sequer sabia que o bebê era uma menina. A
verdade era que ele não queria saber. Por isso tinha sumido. Para evitar
ter notícias.
No final da segunda semana de outubro, Isabel estava para dar à
luz a qualquer momento. Todo um esquema já havia sido montado caso
ela entrasse em trabalho de parto. Cláudio, seus pais e Isabel tinham
cada um seu rádio. Assim não haveria falhas de comunicação, como ce-
lulares fora de área, por exemplo. A mala pra levar para a maternidade já
estava pronta e a cadeirinha de bebê já instalada no carro de Cláudio. Os
empregados da casa tinham ordens expressas para ficar atentos.
Uma noite, Isabel estava recostada na cama esperando Cláudio
chegar da faculdade. Havia sido difícil encontrar uma posição mais ou
menos confortável, pois ela tinha passado o dia todo com dor nas costas.
O bebê estava se mexendo muito e Isabel estava com falta de ar e uma
cólica insistente que parecia aumentar e de tempo em tempo, ficava cada
vez mais forte.
Isabel começou a ficar assustada, pois ainda não tinha chegado
ninguém em casa. Ela quis se levantar para pegar o rádio, que estava em
cima na cômoda. Ia avisar a Cláudio que não estava se sentindo bem,
mas a dor estava ficando muito forte. Consultou o relógio: era quase
meia-noite. Cláudio já devia estar chegando. Resolveu esperar um pou-
co mais. Se não estivesse mais aguentando, gritaria. Alguém teria que
ouvir. Mas Deus estava do lado de Isabel. Quinze minutos depois, Cláu-
dio estava em casa.
Quando entrou no quarto, encontrou Isabel chorando com a mão
na barriga.
- Meu amor, o que aconteceu? Está na hora?
- Eu não sei. – respondeu ela entre lágrimas e gemidos de dor –
Mas está doendo muito!
- Por que você não me ligou? Por que não chamou alguém?
- Eu não consegui me levantar para pegar o rádio. Eu já ia gritar
para ver se alguma empregada aparecia.
- Sua bolsa estourou? – perguntou Cláudio já parado ao lado da
cama, enquanto segurava a mão de Isabel.
- Não.
- Ótimo, então ainda temos algum tempo. Vou passar um rádio
para os meus pais e ver onde eles estão.
Não precisou. Naquele exato momento os pais de Cláudio entra-
vam em casa. Cláudio foi até o corredor e gritou de lá de cima mesmo.
- Mãe! Sobe aqui e pede para o pai tirar o carro! Rápido!
TATIANE RANGEL | 1 5 9

- A Isabel está passando mal?


- Está! Ela tem que ir para o hospital!
Luisa subiu correndo as escadas enquanto Carlos ia tirar nova-
mente o carro da garagem.
- Calma, meu amor. Minha mãe vai te ajudar a se trocar e eu vou
levar a sua mala para o carro.
Assim foi feito. Luisa ajudou Isabel a se trocar e depois, com a
ajuda de Carlos, eles a ajudaram a descer as escadas e a entrar no carro.
Cláudio ia com ela no banco de trás.
A maternidade já havia sido avisada que Isabel estava a caminho,
por isso quando chegaram, já tinha uma cadeira de rodas esperando por
ela na porta.
Isabel seguia para o pré-parto enquanto Cláudio era preparado
para entrar com ela e seus pais resolviam a parte burocrática na recep-
ção.
Isabel ainda ficou algumas horas em trabalho de parto. Ela sentia
dor e chorava, enquanto Cláudio ficava sempre ao seu lado, segurando
sua mão o tempo todo. Pouco antes das quatro da manhã a bolsa de
Isabel estourou e ela finalmente foi para a sala de parto.
Cláudio ficava o tempo todo perto da cabeceira de Isabel. Ele dava
a mão a ela e ela apertava a cada contração forte ou cada vez que preci-
sava fazer força.
Pouco tempo depois nascia Gabriela. O bebê chorou a plenos pul-
mões. Depois de receber os primeiros cuidados, Gabriela foi entregue a
Isabel, que chorava emocionada.
Igualmente emocionado, Cláudio entregou a máquina a uma en-
fermeira e pediu que ela batesse algumas fotos. Foram três: uma de Isa-
bel e Gabriela, outra de Cláudio e Gabriela e a última: os três juntos.
Gabriela foi levada para fazer as primeiras avaliações e Isabel se-
guiu para o quarto.
Às sete da manhã a enfermeira trouxe Gabriela. As notícias eram
boas: a menina era forte e saudável. Era hora de Gabriela mamar pela
primeira vez. A enfermeira ensinou à Isabel como fazer e Cláudio, que
ainda não tinha arredado o pé da maternidade, fazia novas fotos. Ela era
linda! Tinha olhos enormes e negros iguais aos de Isabel.
Depois disso a enfermeira levou Gabriela de volta ao berçário e
disse que voltaria em duas horas para que pudesse mamar novamente.
Isabel concordou que Cláudio fosse para casa tomar banho e dormir um
pouco. Ele e seus pais voltariam mais tarde para a visita.
Isabel não recebeu muitas visitas além de Cláudio, Carlos e Luisa.
Somente Aninha – uma das primas dos gêmeos – havia ido até a mater-
nidade.
1 6 0 | POR QUE NÃO?

Depois de três dias no hospital, Isabel preparava-se para ir em-


bora. Cláudio, Carlos e Luisa estavam com ela no quarto enquanto es-
peravam que a enfermeira trouxesse Gabriela para que eles finalmente
pudessem levá-la para casa.
Quem entrou no quanto não foi a enfermeira. Foi o pediatra que
acompanhava os recém-nascidos. Estava com um ar preocupado e pa-
recia muito tenso.
- Bom dia. – cumprimentou ele, muito sério.
- Bom dia. – responderam todos.
Isabel estava sentada na cama. O médico puxou uma cadeira e
sentou-se de frente para ela.
- Isabel, eu não tenho boas notícias.
- O que aconteceu? Onde está a minha filha? – perguntou Isabel,
já prevendo o que acontecera.
- Infelizmente... – o médico respirou fundo – Infelizmente o seu
bebê faleceu.
A vista de Isabel escureceu e ela sentiu o quarto girar. Cláudio
ficou sem reação com o choque da notícia e Carlos amparava Luisa que
começou a chorar convulsivamente.
- Não, eu acho que o senhor está enganado. – respondeu Isabel
com a mão na testa por causa da tontura – Minha filha não pode estar
morta. Eu vou levá-la para casa hoje! Ela estava bem duas horas atrás!
Eu dei de mamar para ela e...
- Isabel, preste atenção: nós não pudemos fazer nada. Essas coisas
de vez em quando acontecem e ninguém ainda sabe exatamente por
quê. Sua filha morreu de uma coisa chamada Síndrome da Morte Súbita.
É relativamente comum em recém-nascidos.
- É mentira! Você está mentindo para mim! Cadê a minha filha?
Eu quero a minha filha! Cláudio, fala para ele parar de brincadeira e
trazer a minha filha!
Isabel olhou para Cláudio, que chorava convulsivamente abraça-
do à mãe. Quando finalmente se deu conta do que havia acontecido,
Isabel começou a chorar e a gritar beirando a histeria.
- Não! Eu quero a minha filha! Eu quero a minha filha! – Isabel
repetia a mesma frase sem parar.
Luisa deixou que Carlos amparasse Cláudio e correu para socor-
rer Isabel. As duas se abraçavam e choravam. Luisa queria dizer alguma
coisa para consolar Isabel, mas não sabia o quê. A dor que ela estava
sentindo era imensa, mas Isabel deveria estar sentindo algo indescriti-
velmente pior.
Isabel precisou ser medicada. Cláudio tentava manter-se são, jun-
TATIANE RANGEL | 1 6 1

to com seu pai. Seria difícil, mas agora era preciso providenciar o enter-
ro. Luisa ficou com Isabel enquanto os dois tentavam resolver isso.
De tarde Isabel já estava mais calma e foi liberada para ir para
casa. Ela e Luisa chegaram quase junto com Cláudio e Carlos. Os dois
informaram que o corpo de Gabriela já havia sido liberado e que o veló-
rio seria naquela mesma noite. O enterro seria logo pela manhã.
Eles não se demoraram muito em casa. Só o tempo de tomarem
banho e se arrumarem para enfim seguirem para a capela.
Foi uma noite difícil. Cláudio e Isabel estavam extremamente aba-
tidos. Embora os pais de Cláudio tivessem avisado o que acontecera,
ninguém da família de Isabel compareceu ao enterro.
O enterro foi traumático. Isabel desmaiou e precisou ser socor-
rida, mas se recuperou antes que precisasse ser levada para o hospital.
No final de tudo, só restou voltar para casa e tentar recomeçar a
vida.
Quando chegaram, Isabel quis tomar um banho para tentar des-
cansar um pouco, pois estava exausta. Quando saiu do banheiro, viu que
Cláudio não estava no quarto e preocupada, foi procurar por ele.
Quando saiu no corredor, viu que a porta do quarto de Gabriela
estava aberta. Ninguém ainda tinha tido coragem de entrar lá. Isabel
chegou na porta e viu Cláudio parado em silêncio, olhando para o ber-
ço vazio. Isabel entrou, sentou-se na poltrona e começou a chorar em
silêncio.
Cláudio também chorava. Ele fungou, secou os olhos e falou:
- Eu não consigo entender. Como a gente pode amar tanto alguém
que mal conhecia? Ela só ficou por três dias. Três dias! Nem teve a chan-
ce de entrar neste quarto. Como pode fazer tanta falta? Como pode doer
tanto?
- Eu também não consigo entender. Por que Deus levou minha
menininha?
- Deus não existe, Isabel.
- Não diga isso.
- Como você quer que eu acredite em Deus? Deus me deixou nes-
ta cadeira de rodas? Deus levou a Gabriela? Deus alienou o meu irmão?
Se houvesse mesmo um Deus, não acho que essas coisas aconteceriam.
Depois de um momento de silêncio, Claudio continuou:
- Sabe o que é pior? Aquele desgraçado devia estar aqui, sofrendo
com a gente. Mas ele nem soube que teve uma filha. E até resolver apa-
recer não vai saber que ela morreu.
Isabel respirou fundo. Ela guardava para si uma bomba que ain-
da não havia estourado. Sua vida inteira estava vindo abaixo no último
1 6 2 | POR QUE NÃO?

ano. Não sabia se valia à pena contar aquilo a Cláudio àquela altura
do campeonato, mas diante de todo o peso que ela estava carregando
ultimamente, não conseguiria carregar mais aquele. Já teria que viver
suportando a ausência de Gabriela dali para frente. Não queria suportar
o peso de uma culpa também.
- Cláudio, eu preciso te contar uma coisa. – disse Isabel, chorando
– Eu não aguento mais isso. Se eu não contar vou explodir!
- O que foi? – perguntou Cláudio, já sobressaltado. Não sabia o
que mais poderia suportar depois da morte de Gabriela.
- Eu não sei por que eu fiz isso, mas eu menti para você.
- Você o quê? Do que você está falando, Isabel?
- Eu sei que vai ser difícil, mas eu queria muito que você me per-
doasse.
- O que você fez? Sobre o que você mentiu, Isabel?
- Sobre a Gabriela. Ela não era filha do seu irmão.
- Como é que é? – perguntou Cláudio, atônito.
- Era sua.
- Minha? Me explica isso direito, Isabel! Você disse que já estava
atrasada quando a gente transou pela primeira vez!
- Eu menti. Logo depois que eu transei com o Daniel, minha
menstruação desceu. Quando eu soube que estava grávida pensei mes-
mo que fosse dele. Por isso eu te contei que ela não era sua filha, mas
depois que eu fui ao médico a minha suspeita se confirmou. Eu estava
só de três semanas. Não tinha como ser dele. Não sabia como te dizer
isso, então fiquei quieta.
Isabel chorava e Cláudio estava paralisado. Não sabia como reagir
depois daquilo tudo.
- Me perdoa! Eu não sei por que fiz isso. Não sei por que eu levei
essa história adiante. Eu acho que tive medo de dizer que eu estava en-
ganada. Você teria ficado feliz em saber a verdade. Hoje eu vejo que fui
uma idiota.
Cláudio sentia que ia explodir, mas estava cansado demais para
isso. Ele precisou reunir todas as suas forças para falar.
- Eu não acredito que você fez isso! A gente estava junto, Isabel!
Você aceitou namorar e noivar comigo pensando nele? Eu pensei que
você me amava! Mas não! Você me usou como trampolim para chegar
ao meu irmão! Você tem ideia do que você fez?
- Eu juro que não fiz por mal!
- Uma ova que não! Você deve ter feito tudo de caso pensado!
Engravidou de propósito para tentar segurar meu irmão, mesmo que o
filho não fosse dele! Mas o tiro saiu pela culatra, não foi? Ele não te quis
TATIANE RANGEL | 1 6 3

e seus pais te expulsaram, então só te restou aceitar a vida que eu podia


te dar!
- Não! Eu não planejei nada disso! Nunca seria capaz!
- Como você espera que eu acredite? Desde que eu te conheci mi-
nha vida virou um inferno! Você me desconcentrou, desconcentrou o
Daniel e o fez duvidar da vocação dele! Você me fez brigar com o meu
irmão! Você afastou a gente, Isabel! Eu roguei uma praga no meu irmão
por sua causa e não vou poder falar com ele por um bom tempo! Nem
tenho como me desculpar!
- Cláudio, por favor, me escuta!
- Não, Isabel! Chega! Isso tudo nem chega perto da pior coisa que
você poderia ter feito: você me tirou o direito de segurar a minha filha
no colo! Minha filha! Não a filha do meu irmão, mas a minha filha! Eu
passei nove meses esperando uma filha que eu achava que não era mi-
nha! E agora tudo o que eu vou poder fazer é chorar a morte dela! Você
ultrapassou todos os limites da crueldade, Isabel! Seus pais já deviam
saber o que estavam fazendo quando te puseram para fora! Já sabiam
exatamente quem você era!
- Cláudio...
- Chega, Isabel! Não quero ouvir mais nada. Afinal quem foi o
idiota desta vez? Você nunca disse que me amava, certo? Você tem até
amanhã de manhã para arrumar suas coisas e ir embora.
- Mas eu não tenho para onde ir.
- Não é problema meu.
Isabel saiu dali desesperada. Ela sabia que não tinha desculpa para
o que tinha feito, mas ela não tinha feito por mal. De fato teve medo de
dizer a Cláudio que estava enganada quanto à paternidade de Gabriela.
Não sabia dizer a razão. Cláudio teria ficado feliz se ela tivesse contado.
Mas agora estava tudo acabado.
Isabel sentia o chão desaparecer debaixo de seus pés. Sua filha es-
tava morta e ela estava na rua. Não tinha mais ninguém e nem razão
para continuar vivendo. Quase sem perceber o que estava fazendo, Isa-
bel se trancou no banheiro de Cláudio e ingeriu tudo o que pôde encon-
trar no armário, incluindo remédios e produtos de limpeza. Não queria
mais viver naquele mundo. Iria se juntar à Gabriela.
Cláudio estava extremamente ressentido e mais uma vez teria que
guardar tudo para si. Já tinha dito a todo mundo que Gabriela era sua
filha. Não adiantaria nada tentar explicar tudo àquela altura. Não valia à
pena. Só faria com que todos sofressem ainda mais. Daria qualquer des-
culpa quando perguntassem por que se separou de Isabel. Diria que de-
pois da morte de Gabriela, eles haviam descoberto que não se amavam.
TATIANE RANGEL | 1 6 5

CAPÍTULO15
recomeço
C láudio não aguentava mais chorar e nem se torturar ali na-
quele quarto, olhando as coisas de Gabriela. Ele também esta-
va exausto. Também precisava tomar um banho e dormir, e quem sabe
talvez não precisasse acordar. Saiu dali e fechou aquela porta. Quando
tivesse coragem para tal, mandaria desmontar tudo e o velho quarto
de Daniel voltaria a ser como antes. Ele então se dirigiu ao seu próprio
quarto. Pegou uma roupa confortável na gaveta da cômoda e dirigiu-se
para o banheiro.
Cláudio forçou a porta, mas não conseguiu abrir. Ele bateu e cha-
mou:
- Isabel, é você quem está aí?
Como ninguém respondeu, Cláudio tornou a forçar a porta. Nada.
Estava trancada por dentro. Ele então chamou mais algumas vezes, mas
ninguém respondia.
Preocupado, Cláudio procurou Isabel pela casa, mas não encon-
trou. Ele então percebeu o que podia estar acontecendo e chamou seu
pai.
- Pai, a Isabel se trancou no banheiro e não responde. Estou pre-
ocupado!
Os dois foram até lá e depois de chamarem mais algumas vezes
sem sucesso, resolveram arrombar a porta. Encontraram Isabel caída
no chão, desacordada. Cláudio praticamente se jogou da cadeira para o
chão e se arrastou até onde Isabel estava. Ele deitou a cabeça da menina
em seu colo e tentou acordá-la sem sucesso.
Quando olhou em volta e viu todos os frascos de remédio e pro-
dutos de limpeza vazios ou derramados no chão, Carlos entrou em pâ-
nico e foi chamar uma ambulância. Cláudio dava vários tapinhas no
rosto de Isabel tentando acordá-la, sem sucesso.
A ambulância chegou logo e Isabel recebeu os primeiros socorros
ali mesmo, no quarto. Carlos já a tinha deitado na cama. Os paramé-
dicos constataram que a respiração de Isabel estava ficando cada vez
mais fraca, assim como seu pulso. Ela foi removida dali para o pronto-
-socorro.
1 6 6 | POR QUE NÃO?

Carlos foi com Isabel na ambulância. Cláudio e Luisa os seguiram


de carro. Chegando no hospital, as embalagens de tudo o que Isabel ti-
nha ingerido foram entregues aos médicos.
Como se tratava de um caso de tentativa de suicídio e envolvia
uma menor, a assistente social apareceu para conversar com eles. Cláu-
dio contou tudo o que tinha acontecido com Isabel no último ano, omi-
tindo apenas a última conversa que os dois tiveram e o caso de Isabel
com seu irmão. Sabendo que se tratava também de um caso de abando-
no, o conselho tutelar foi acionado e os pais de Isabel chamados a depor.
Depois de algum tempo, o médico veio dar notícias de Isabel. Eles
tinham feito uma lavagem estomacal e ela já estava fora de perigo, mas
tinha sido avaliada pelo psiquiatra e ele achava que ela ainda represen-
tava risco à própria vida. Por isso, Isabel ia precisar de internação na
ala psiquiátrica. Ela estava sofrendo de uma depressão muito grave e
profunda e precisava de supervisão permanente.
Informados de que não poderiam fazer mais nada ali, Cláudio,
Luisa e Carlos foram embora. Sabendo que a partir dali os pais de Isabel
seriam responsáveis por ela, Cláudio contou aos pais que eles haviam
decidido se separar.

* * *

Cláudio procurou seguir com a vida depois de toda aquela tem-


pestade. Ele planejava retornar à faculdade no início do próximo ano,
pois com tudo o que tinha acontecido, ele não teve condições de termi-
nar o período e acabou trancando a matrícula.
Isabel ficou internada na ala psiquiátrica por três meses, até que
deixou de ser considerada uma ameaça a si mesma e foi liberada. Ela
acabou voltando para a casa dos pais, mas não ficou lá por muito tempo.
No final de janeiro, ela decidiu procurar Cláudio.
Quando abriu a porta e viu que era Isabel quem tocava a campai-
nha, Cláudio levou um susto. Não só pelo fato de ela estar ali depois de
três meses, mas também pela aparência dela. Isabel estava extremamen-
te magra. Se a vida podia mesmo deixar marcas nas pessoas, Isabel era
a prova disso. Ainda continuava bonita, mas nem de longe lembrava a
menina alegre, saudável e de olhos brilhantes que Cláudio conhecera
um dia. As marcas do sofrimento eram visíveis nela.
- Oi, Cláudio. – disse ela, esboçando um sorriso sem graça.
- Oi, Isabel. Como você está? – perguntou ele, sem convidá-la para
entrar.
- Tentando seguir em frente. Saí do hospital há alguns dias. Não
foi fácil vir até aqui.
TATIANE RANGEL | 1 6 7

- E o que você veio fazer aqui? – perguntou Cláudio, com uma voz
passiva.
- Eu não queria ir embora sem me despedir de você.
- Ir embora?
- É. Meus pais tiveram que me aceitar de volta, mas ainda não
me querem por perto. Principalmente agora que eu já não sou mais de
menor. Eles inventaram um intercâmbio. Vou terminar o colégio na In-
glaterra. Meu voo sai daqui a três horas. Meu táxi está me esperando, eu
estou indo para o aeroporto.
- Nossa! – exclamou Cláudio sem saber o que dizer.
- Longe, não é? Bem, na verdade eu não queria ir sem te pedir
perdão por tudo o que eu fiz. Juro pela nossa filha que nunca foi minha
intenção te magoar. Hoje eu sei que eu estava doente. Precisei passar o
natal, o ano novo e o meu aniversário na ala psiquiátrica para perceber
isso. Mas eles disseram que eu vou ficar bem agora. E eu sinceramente
espero que um dia você não me odeie mais e possa me perdoar.
Neste momento, Isabel ouviu uma voz conhecida vinda de dentro
da casa.
- Cláudio, quem está aí?
E então uma figura conhecida apareceu na porta.
- Isabel, você se lembra da Carlinha?
- Claro que sim. Oi, Carlinha. – disse Isabel, desapontada.
- A Carlinha e eu nos encontramos logo depois que... Você sabe.
Nós estamos namorando desde então.
Carlinha sentiu o constrangimento de Isabel e decidiu sair.
- Oi, Isabel. Fico feliz que você tenha melhorado. Vou deixar vocês
dois conversarem, mas antes de ir, queria que você soubesse que eu te
defendi o tempo todo. Nunca concordei com o que fizeram com você
na escola.
- Eu sei, Carlinha. Obrigada. Espero que você possa me perdoar
também.
- Bobagem. Não há nada o que perdoar. Espero que as coisas deem
certo para você daqui para frente.
- Obrigada.
Carlinha se despediu e entrou.
- Nossa! Por essa eu não esperava! – exclamou Isabel num tom
triste.
- E o que você esperava? Que eu quisesse voltar com você?
- Bem, na verdade eu esperava isso sim. Eu te amo, Cláudio. De-
morei a admitir, mas eu te amo. E ficaria se você me pedisse.
- Esperei tanto para ouvir isso, Isabel! Mas agora é tarde. A Carli-
nha é uma pessoa maravilhosa e eu estou feliz com ela.
1 6 8 | POR QUE NÃO?

- Bem, pelo menos diga que não me odeia e que pode até me per-
doar um dia. Sem isso eu nunca vou ter paz.
- Eu não te odeio, Isabel. E não estou dizendo isso só porque você
me pediu. E pode se considerar perdoada. Não ganho nada remoendo
isso.
- Obrigada. Conseguiu falar com o seu irmão?
- Ele ligou ontem à noite, mas eu não disse o que aconteceu. Não
é notícia que se dê pelo telefone. Eu disse a ele que conversamos quando
ele voltar.
- Bem, acho que vou indo então. Desejo do fundo do meu coração
que vocês dois sejam felizes.
- Obrigado.
Isabel deu um breve abraço em Cláudio e virou as costas. Ele ficou
parado, esperando que ela fosse embora. No meio do caminho, ela se
virou e voltou para perto de Cláudio estendendo a mão para dar-lhe
alguma coisa.
- Ah! Eu quase me esqueci! Quero te devolver isso. Estava no meio
das minhas coisas.
O que Isabel devolvia era a máquina fotográfica que Cláudio usa-
ra para tirar as fotos na maternidade. Cláudio havia guardado na bolsa
dela e no meio de toda aquela confusão, acabaram esquecendo.
Entregue a máquina, Isabel entrou no táxi e foi embora.
Cláudio entrou em casa um tanto desconcertado. Ligou a máqui-
na ao computador e então, pôde ver pela primeira vez as fotos deles e de
Gabriela. Os três juntos como a família feliz que nunca chegariam a ser.
Cláudio permaneceu em silêncio olhando para a foto na tela. Car-
linha notou que ele estava chorando.
- Ela era linda.
- Eu sei. – disse Cláudio, fungando.
- Sabe, Cláudio, agora eu percebi que isso foi um erro.
- Eu sei que foi. Não pela Gabi, mas por todo o resto.
- Não, Cláudio. Estou falando de nós dois.
- O que você quer dizer? – perguntou ele, surpreso.
- Que você nunca deixou de amar a Isabel. Nós dois nunca dare-
mos certo.
- Mesmo que isso seja verdade, Carlinha. O que a Isabel fez não
tem justificativa.
- Concordo que foi errado e que não tem justificativa. Mas é com-
preensível, você não acha?
- Compreensível?
- Claro que sim! Pensa comigo: a vida da Isabel nunca foi feliz. Ela
TATIANE RANGEL | 1 6 9

sempre viveu uma mentira, Cláudio. Foi isso o que ensinaram para ela.
Que mentir era normal.
- Como assim?
- Os pais biológicos não a quiseram. Os pais adotivos também
não. Ela era a substituta de uma menina morta! Ela vivia uma farsa,
Cláudio! Ela nunca soube realmente quem ela era! Ela nunca soube o
que era ter uma família! Quando ela fez o que fez, só estava tentando
ter uma família perfeita. Foi isso o que ela buscou no seu irmão, mesmo
sabendo que amava você. O problema é que ninguém nunca disse a ela
que famílias perfeitas não existem. Cláudio, ela nunca tinha sido amada
até conhecer você! Até na escola ela foi rejeitada! Só você foi amigo dela,
só você cuidou dela, só você a amou! Você foi a única pessoa por quem
ela nunca foi negligenciada! Ela nunca disse que te amava porque ela
nunca soube o que era amar de verdade. Ela precisou passar por tudo
isso para descobrir!
Carlinha fez uma pausa. Cláudio ouvia tudo pensativo.
- Desculpe, mas eu não pude deixar de ouvir o que ela te falou
lá fora. E eu acredito que ela esteja dizendo a verdade! Sabe por quê?
Porque depois de perder uma filha e passar três meses internada num
hospital de loucos, ela ainda teve coragem de vir até aqui e te dizer tudo
o que disse! Ela te ama! E eu sei que você a ama também!
- Então você está terminando comigo? – perguntou Cláudio.
- Com certeza. – respondeu Carlinha, sorrindo docemente.
- E o que eu faço agora?
- Bem, a mulher da sua vida vai voar para o outro lado do planeta
daqui a três horas. Eu acho que você sabe exatamente o que fazer.
Carlinha deu um beijinho na testa de Cláudio e foi embora mal
disfarçando uma lágrima. Cláudio desligou o computador e foi tirar o
carro.

Quando chegou ao aeroporto, Cláudio foi direto para o setor de


embarque internacional. Procurou, olhou em volta e viu Isabel de costas
sentada em uma cadeira.
Isabel estava distraída separando os documentos necessários para
fazer o check-in e mal pôde perceber quando um rapaz parou sua cadei-
ra de rodas ao lado da cadeira onde ela estava sentada. Quando olhou
para o lado, ele sorrindo estendeu a mão num cumprimento e disse:
- Oi. Meu nome é Cláudio.
Ela entendeu e sorriu de volta devolvendo o cumprimento:
- Isabel. Muito prazer.
Este livro foi composto em ITC Slimbach pela
Editora Multifoco e impresso em papel offset 75 g/m².

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