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O RITUAL DO FAZEDOR DE CABEÇAS1

Nasci no final dos anos 90 numa família com diferentes graus de educação formal.
Uma de minhas avós, nascida numa família de nove filhos que perderam a mãe muito cedo no
norte de Minas Gerais, foi à escola apenas durante o ensino primário – assim como o resto de
seus irmãos. Nunca falou a norma culta do português, mas era falante como nenhuma outra
pessoa naquela casa. Não conseguia anular as marcas de sua própria história ao se comunicar
com os outros, sentia vergonha das trocas de fonemas nos encontros consonantais. Ela me
apresentou as prantinhas que tanto amava, e eu fui percebendo com o tempo que aquela
variação da língua fazia a mesma mágica que todas as outras: diminuía a dor de viver com as
outras pessoas, abria as feridas mais uma vez2.
Minha tia-avó, que vivia conosco e que também me criou, era a única pessoa ali que
tinha passado pelo ensino superior. Era formada em Direito. Lia todos os dias o jornal, lia os
mais variados romances durante as tardes e depois da novela das 19h. Tinha uma outra relação
com a língua, falava como os livros diziam que deveria ser e como os jornalistas repetiam na
tevê. Ela vinha de uma outra configuração familiar, era a filha mais velha de uma família de
filhos de imigrantes libaneses que viviam em Juiz de Fora. Formou-se no ensino secundário
como seus outros dois irmãos, meu avô Paulo e meu tio Fernando, também o fizeram. Eram
duas línguas muito diferentes, que conversavam entre si, mas não pareciam agir da mesma
forma. A forma do pensamento se criar, as expressões e até mesmo o chamego, o carinho,
eram diferentes.
Era minha tia Marisa que pagava minha escola, a mesma escolinha do bairro que o
afilhado dela tinha estudado e que minha prima mais velha frequentava. Com dois anos eu
comecei a ser levado para lá e pelo que me contam, não sofria muito em deixar o seio familiar
para cumprir minhas obrigações divertidas no Jardim de Infância. Não guardo tantas
recordações desse período, mas sei que de repente todas as pessoas tinham o meu tamanho e
preocupações parecidas com as minhas, ainda que eu não tivesse aprendido muito bem ainda

1 Título em alusão a música The Headmaster Ritual da banda britânica The Smiths, que fala sobre o processo
de escolarização na perspectiva de um aluno angustiado e deslocado. Uma tradução mais fiel seria “O ritual
do diretor”, mas aqui transgrido e apelo para uma tradução literal que quebra os elementos justapostos que
compõem a palavra headmaster (head-master), opto por “fazedor de cabeças” e não diretor. Numa
associação com a mitologia iorubá e a influência das religiões afro-brasileiras que consideram o Orí (cabeça)
como a divindade que representa a singularidade de cada sujeito e Oxalá, uma das divindades do candomblé
de influência iorubá, considerado o Babá Ajalá (fazedor de cabeças), aquele que abençoa o orí. A Escola,
nesse sentido, é considerada um fazedor de cabeças num sentido oposto ao de Oxalá, aquele que abençoa a
singularidade. Uma instituição secularizada que toma forma pelo corpo de um deus aniquilador da diferença.
2 Parafraseando Anne Carson, ensaísta e poetisa canadense em seu livro Plainwater (1995): “Language is
what eases the pain of living with other people, language is what makes the wounds come open again.”
como conviver com elas. Disputas ocorriam, grandes batalhas por brinquedos que eram
levados a sério. Tapas, arranhões e buá-buá entre as sonecas e a séria brincadeira. Tudo isso
vigiado por uma “Tia”. Acho que ela se chamava Tia Luciana e que cuidava de mim e de
todas aquelas crianças, com quem eu confesso não querer na época dividi-la.
Foi dentro de casa, sentado na sala olhando e tentando imitar as coisas que minha tia-
avó fazia, que eu aprendi a ler. Eu ficava sentado no chão da sala vendo ela cochilar, assistir
novela e todos aqueles programas chatíssimos da tevê ou vigiando ela com todos aqueles
livros que ela não parava de encarar. Na escola já falavam sobre isso, ensinavam a contar,
falavam de números, de letras… Mas obrigação séria foi querer saber o que tanto ela via de
bom naquele tal de livro. Ela disse que iria me ensinar e juntando sons e letras aqui e ali, com
quatro anos eu aprendi a ler. Um pouco antes da escola me exigir, das Tias da vez falarem em
leitura. Na maior parte do tempo o que a gente fazia com o papel era desenhar e colorir só,
mas com o tempo desenhar e colorir foi ficando cada vez mais chato. Meu patinho não pode
ser rosa ou todo colorido, ele tem que ser amarelo. Por quê? “É assim que os patos são!”.
Desisti de colorir. Melhor mesmo eu ver qual é a diversão dessas letras e sons. Dá pra ler em
todos os lugares, aqui e ali tem uma placa, na televisão aparece uns escritos, o meu nome
também pode estar no papel.
Com o passar dos anos, a Escola foi se fazendo cada vez mais presente, ficando cada
vez mais “séria”. Era isso que me diziam dentro de casa no começo de todo ano, pelo menos.
“Esse ano não tem mais brincadeira, tem que levar os estudos a sério! Agora tudo aperta, não
tem mais moleza, menino!”. O que era a Escola, assim, em letras garrafais? Eu conhecia a Tia
Lu, a Tia Rita, as brincadeiras, a soneca, os colegas que iam naquele lugar. Não queria ser
apertado, não queria dureza, queria soneca e lanche da tarde. Minha avó me dizia: “Estuda,
meu filho. Eu não estudei, falo errado, não me levam a sério. Tem gente que sente vergonha
de mim, mas eu não vou ter mais vergonha de falar do meu jeito. Se eu pudesse, tinha
estudado.”. Meus professores diziam que ir para a escola era “garantir um futuro”, “ser
alguém”. Quem não ia para escola “catava latinha”, “carregava a caroça” – essas eram
reservadas para quando alguém fazia bagunça na sala. Que terror! O lanche, o parquinho, tudo
diminuía cada vez mais para dar lugar às obrigações.
Quando, por uma decisão judicial, eu fui fazer o exame de DNA e conhecer meu pai, minha
avó disse: “mostra para ele que você sabe contar os números em inglês, que é estudioso e
inteligente!”. Um estranho, que eu nunca tinha visto na vida e que deveria me amar por ir à
escola e ter aprendido a contar os números e falar das cores em inglês. Acho que foi ali que eu
percebi a seriedade que essa necessidade apontava. Ser escolarizado, estudado para ser
merecedor do amor dos outros. Era uma grande responsabilidade.
Foi depois de acrescentar mais um sobrenome e retificar minha certidão de nascimento
que eu comecei a me dedicar mais a prestar atenção no que era a Escola. Coincidiu com a
saída do jardim de infância e não precisava mais ficar nas salinhas do térreo, podia subir a
rampa que dava para as salas onde as aulas realmente aconteciam. Minha professora era
carinhosa, a mais bonita que eu já tinha visto desde que comecei a reparar nas outras pessoas
e tinha toda a paciência do mundo em me ensinar a amarrar os sapatos depois que a aula
terminava, situação que estressava qualquer um dentro de casa pela minha falta de habilidade.
Eu queria ser o “melhor aluno” na classificação informal que faziam para garantir o afeto
dela. Até que o ano se passou mais uma vez e eu tive que me contentar com outra professora,
que não era ruim, mas não era aquela Tia de antes e por quem eu tinha me esforçado tanto
para ter a atenção. Não me interessava muito mais garantir a atenção do meu pai e a situação
em casa era cada vez mais confusa, cheia de conflitos.
“Esse ano não tem mais brincadeira, tem que levar os estudos a sério! Agora tudo
aperta, não tem mais moleza, menino!”. Tudo de novo. Esse ano o aviso parecia ser sério,
agora nós teríamos provas e elas valeriam ponto, coisa de gente grande mesmo. Ali é que a
gente demonstra todo o nosso valor. E se eu não tivesse valor?! Tia Andréia olha os cadernos,
dá visto, corrige as letras. Falaram que meninos têm a letra feia e meninas são caprichosas. Se
eu era um menino, tinha que ter a letra cada vez mais feia? É assim que a gente demonstra ser
quem a gente é? Eu ficava feliz, me satisfazia mesmo lá no fundo, diante das constantes
reclamações que a minha letra exigia. Contar era um sufoco, os números nunca faziam sentido
como as letras faziam. O recreio era um momento de alívio no meio de toda essa formalidade
e foi aproximadamente nessa época que eu passei a querer saber quem eram aquelas pessoas
do meu tamanho que iam todos os dias passar pelo mesmo sufoco que o meu com os gritos da
Tia Andréia.

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