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1997

Copyright Juliana Giacobelli

Ilustração da capa por Renata Nolasco

O conteúdo deste livro não pode ser reproduzido sem a permissão da autora.
Para o meu irmão Thiago, que estava comigo quando
eu tive a ideia
2019
Pau que nasce torto nunca se endireita.
I

Eu odeio cadeiras vazias.


Tem alguma coisa no fato delas terem sido feitas para alguém que não está
ali, que talvez nunca esteja ali, que me deixa desconfortável, e é por isso
que eu me levanto e coloco meus tênis sobre a cadeira da minha
escrivaninha antes que a Marcela volte da cozinha. Ela sabe que eu faço
isso, então evito fazer na presença dela.
Mas não é como se ela fosse me ver fazer de novo, porque a situação toda
já foi longe demais e vai acabar bem ali.
Ela volta, trazendo café da manhã na cama para a gente. Olho para a
bandeja (onde ela achou uma bandeja na minha cozinha é um mistério),
ovos mexidos com queijo, suco de laranja. Meu estômago ronca, mesmo
contra minha vontade, e dou um suspiro.
Talvez eu possa esperar mais um pouco, afinal de contas.
Marcela se espreme do meu lado na cama de solteiro, começa a pegar
pedacinhos do ovo mexido com o garfo enquanto eu faço a mesma coisa
com o meu, muito quieto e pensativo, como se eu estivesse considerando as
questões da humanidade e chegando a conclusões perturbadoras.
Às vezes funciona, ficar quieto, parecer concentrado, algumas pessoas
percebem que tem alguma coisa errada.
Ela está me observando de canto de olho, mastigando muito devagar, e
quando o garfo dela bate no prato com um pouco mais de violência, eu sei
que a pergunta vai vir.
— Que foi, Adriano?
Eu odeio essa parte, mas se eu não parar agora vai se transformar em
alguma coisa de verdade e depois vai ser muito pior. Olho para o pôster na
parede do outro lado da cama, um pôster velho e meio caindo aos pedaços
dos Power Rangers que eu devia ter tirado dali há muito tempo, amarelado
por causa do sol, e sinto como se estivesse sendo julgado por todos eles.
Mas é hora de morfar.
— Eu acho — começo, minha vez de remexer os pedaços do ovo mexido
— que a gente devia deixar as coisas por aqui.
Não olho para a Marcela, mas acho que ela está tentando colocar fogo em
mim com a força do pensamento.
— Deixar as coisas por aqui.
— É — insisto. — A gente. Isso.
Aponto para nós dois na cama, caso ela não tenha entendido.
Marcela tira o prato do meu colo e o coloca sobre a mesinha de cabeceira,
derrubando meu celular no chão com o movimento, mas não acho que seja
uma boa ideia mencionar isso para ela nesse momento específico.
— E você vai me dar alguma explicação? Porque me corrija se eu estiver
enganada, Adriano, se eu tiver tido um lapso de memória ou coisa assim,
mas meia hora atrás você tava gemendo em cima de mim.
Acho que estou ficando vermelho, consigo sentir.
— Eu só… não quero mais.
— Não quer mais?
— Eu não tenho que ficar me explicando.
Ela levanta os braços e quase dá para ver a fumaça saindo, o rosto
vermelho, enquanto recolhe as roupas largadas pelo meu quarto. Tento não
olhar, tento ficar encarando meus próprios dedos.
— Você é um babaca, sabia disso? Eu não sei onde tava com a cabeça
quando… ugh.
Marcela tenta enfiar o sapato com pressa e quase cai, mas quando eu me
adianto para tentar ajudar, ela dá um grito que eu aposto que o vizinho
conseguiu ouvir e não ouso me mexer mais.
— Eu sabia que eu não devia ter confiado em alguém que ainda dorme
numa cama de solteiro com a sua idade, pelo amor de Deus.
Eu só nunca precisei de uma cama nova, mas prefiro não fazer essa
observação.
— E mesmo que você tenha que ficar com a sua mãe no hospital — ela
continua, enfiando a camiseta —, você podia pelo menos dar um jeito nesse
quarto, parece que você tem onze anos de idade. Mimimi, não quero mais.
— Ela empurra meus tênis para o chão, bem lentamente, do jeito que gatos
derrubam coisas de bancadas só por diversão. — Cresce, Adriano.
Ela não olha para mim quando sai do quarto e bate a porta com força,
fazendo as coisas da minha prateleira balançarem. Escuto alguma coisa se
quebrar lá na sala e depois a porta da frente abrir e fechar de um jeito
violento. Minha mãe vai me matar se ela quebrou a merda do vaso das
orquídeas.
Espero ouvir o barulho do carro ligando e saindo para me levantar, e
coloco minhas roupas. Ponho os tênis de volta na cadeira, pego o celular
que caiu e olho o relógio. Ainda tenho meia hora antes de precisar sair para
o trabalho, então pego o prato de ovos mexidos e termino de comer,
finalmente sozinho no meu quarto.

II

— Boa tarde, criançada! — digo, forçando um sorriso para o bando de


crianças que estão sentadas no chão, parecendo pouco impressionadas
comigo dentro daquele uniforme de mágico.
Eu odeio meu uniforme de mágico. Tem cartola e tudo, mas é daquele
tecido barato que se desintegra na máquina de lavar, por isso suspeito que
nunca lavaram essa porcaria direito. Pior, tem um alfinete que colocaram
para prender um rasgo que fica cutucando minhas costas.
Possivelmente odeio crianças também, mas o gerente do Balão Mágico
jura que eu sou a única pessoa que consegue fazer os truques com alguma
habilidade, então tenho que ficar aqui, no fundo do buffet, entretendo esses
capetinhas e torcendo para ninguém chorar. Coisas ruins acontecem quando
a gente faz crianças chorarem acidentalmente, principalmente se for o
aniversariante.
E o aniversariante de hoje é um menino de uns sete anos chamado Théo,
que eu tenho certeza de que faz caratê e cursinho de inglês. Dá para saber
só de olhar na cara dele.
Eu faço o truque da argola. Sabe, aquele em que uma argola acaba
enroscada na outra? Então. Os adultos não estão nem aí, é claro, mas
normalmente as crianças ficam pelo menos um pouco impressionadas.
Não o Théo.
Ele está de braços cruzados, a imagem do tédio na Terra, provavelmente
querendo um tablet para assistir seja lá o que as crianças assistem hoje em
dia para deixar os pais em paz.
E eu não gosto dele. Gosto menos ainda quando anuncio meu truque
preferido, o truque que na verdade requer algum grau de habilidade, e ele
não está nem aí.
— Eu vou chamar um de vocês — digo, na minha voz de mágico, que eu
engrosso um pouco para tentar impor o mínimo de respeito — pra me
amarrar com essa corda. Pode me amarrar como quiser…. E eu vou
escapar!
Eles não estão prestando atenção em mim, não só o Théo, mas agora tem
duas meninas enfiando o dedo uma no nariz da outra.
— Que tal o aniversariante vir aqui em cima me amarrar? — pergunto,
tentando soar entusiasmado e ignorar as meninas ao mesmo tempo. —
Hein, Théo?
Ele olha para mim, sentado na fileira da frente, e quando acho que ele vai
se levantar, o moleque simplesmente encolhe os ombros e balança a cabeça.
— Nah.
Dou uma risadinha nervosa.
— Oi?
— Não quero. Pai? — ele olha para o lado, um homem que tem duas
vezes o meu tamanho e está de braços cruzados, claramente decepcionado
com tudo o que está acontecendo. — Vai lá amarrar você.
Fico parado, meio sem entender. O moleque tá mesmo mandando no pai?
O homem se aproxima e puxa a corda das minhas mãos, respondendo
minha pergunta. Ele inclusive tem a coragem de me virar depois, e eu tenho
certeza de que ele vai tentar foder com a minha apresentação.
Eu mantenho os pulsos e cotovelos na posição e na distância certa, porque
eu posso ser a merda de um mágico em uma roupinha de poliéster presa por
alfinetes, mas se tem uma coisa que eu sei fazer na vida, essa coisa é
escapar de nós, ainda mais se eu consigo ficar com os braços do jeito certo.
Começou como um hobby, até o gerente do Balão Mágico descobrir.
O pai do menino aperta o nó, fazendo todo meu corpo chacoalhar, e ele
aperta tão forte que dói.
Ainda assim eu me viro com um sorriso no rosto, e dois outros
funcionários do Balão Mágico levantam o pano preto que me separa da
plateia para que eu possa fazer minha escapada enquanto a música fica mais
alta.
Não é bonito.
Eu me sento no chão e passo por cima dos meus braços porque é mais
fácil se minhas mãos estiverem na frente.
— Aquele cara apertou? — Kaike, um dos assistentes, pergunta baixinho
com a cabeça escondida atrás do pano também. Ele é novinho, deve ter uns
19 anos, e apesar do nome com dois Ks, é uma pessoa sensata.
— Acho que ele quer fazer minha mão cair, não é possível — digo,
mexendo os pulsos para tentar lacear a corda.
— Será que você vai precisar de ajuda?
— Não, eu consigo sozinho.
Demora um pouco mais do que eu gostaria, uma música inteira mais do
que eu gostaria, e aposto que as crianças já se dispersaram, mas eu
finalmente consigo e me levanto. Estou suando, a roupa barata está colada
em mim, possivelmente arranhei todas minhas costas com o alfinete, mas eu
consegui e quero ver a cara daquele homem quando—
O pano se abaixa e ele nem está lá.
Na verdade, as únicas pessoas que ainda estão sentadas são as duas
meninas com o dedo no nariz, olhando para mim como se não fizessem a
menor ideia do que está acontecendo ou de como foram parar ali.
Eu respiro fundo e faço um agradecimento antes de declarar que o show
acabou.
Odeio esse emprego.
Desço do palco para procurar água ou refrigerante, e estou enchendo a
barriga de guaraná quando vejo o senhor cursinho de inglês com o pai dele
comendo salgadinho. E o moleque está segurando o balão do
aniversariante, uma coisa que o Balão Mágico inventou e que consiste em
um balão dourado de hélio com a foto da criança que está fazendo
aniversário. E só o aniversariante ganha um desse.
— O que é que você vai fazer? — Kaike pergunta quando me vê tirando o
alfinete das minhas costas. — Adriano, não…
Me aproximo do menino o mais discretamente que consigo e finjo que
estou me adiantando para pegar um salgadinho também. Com a mão livre,
espeto o alfinete no balão.
Pop.
O Théo abre um berreiro.

III

— Por que você tá tirando o uniforme? — Kaike pergunta no banheiro


quando a gente finalmente sai para comer. O buffet fica dentro do shopping,
então é só questão de subir um lance de escada-rolante.
Não estou mais com a roupa de mágico, mas com a camisa multicolorida
do Balão Mágico.
— Ué, porque é horroroso — digo, enfiando-a na mochila. O uniforme é
amarelo, vermelho e verde por algum motivo, a camisa polo com um balão
branco no peito. Horrível. — Não vou ficar desfilando por aí com ele.
Kaike encolhe os ombros, como se não entendesse, eu coloco uma
camiseta lisa e a gente sai. Passamos na cozinha para pegar nossa bandeja:
um punhado de coxinhas e bolinhas de queijo, uns mini cachorros-quentes e
um copo de coca, cortesia do Balão Mágico. Assim que a gente se senta em
uma mesa na praça de alimentação, eu empurro meu refrigerante para ele e
vou para o restaurante mais próximo comprar um copo de chopp, porque
não sou obrigado.
— Eu já mencionei que você não devia beber durante o expediente?
— Almoço tecnicamente não é expediente — digo, dando o primeiro
gole. Deus, como eu precisava daquilo. — Além disso, já disse, não tô de
uniforme.
Ele dá uma risadinha, depois enfia três coxinhas na boca de uma vez. Eu
pego uma bolinha de queijo e mastigo devagar, olhando para as pessoas na
praça de alimentação indo e vindo. Meus olhos batem no meu pulso, vai
ficar uma marca ali por causa daquele idiota.
— Mas e então, como vai a Marcela?
Quase engasgo com o queijo e tenho que virar mais um gole de chopp.
— Acho que não é da sua conta?
— É claro que é da minha conta, ela é minha irmã.
Bom, é. Tinha esse pequeno detalhe.
Mas eu tinha avisado para o Kaike que não ia dar em nada, que eu não era
bom nesse tipo de coisa, mas ele tinha que insistir, claro que tinha.
— Ahn, a gente terminou hoje de manhã.
Ele para, o mini cachorro-quente a meio caminho de uma mordida.
— Terminaram? Eu achei que vocês estivessem se dando bem!
Era exatamente esse o problema.
— Escuta, é complicado — digo, e não quero mais conversar. — Você
não vai entender.
— Ela dormiu na sua casa, não dormiu? Ela falou que ia ontem. Puta que
pariu, Adriano. Uau.
— Já falei que você não ia entender.
— O que eu entendo é que nesses dois anos que eu te conheço você não
para mais de um mês com a mesma pessoa.
— É uma longa história. Posso pegar esse potinho?
Ele olha para o pote onde estavam seus salgadinhos.
— Tá vazio.
— Eu sei, só preciso colocar aqui do meu lado.
Ele faz uma careta, mas me entrega o potinho de plástico e eu o coloco
sobre o banco do meu lado. Bem melhor.
— Se a Marcela ficar deprimida — ele diz, terminando o primeiro copo
de coca —, vai ser culpa sua.
Kaike termina os salgadinhos e rouba minha última bolinha de queijo
porque ele sabe que eu não vou falar nada, não agora. Ele limpa as mãos na
camisa do uniforme, deixando um rastro escuro de gordura, e puxa o celular
do bolso, o polegar para cima sem parar contra a tela. Acho que é um sinal
de que ele não quer mais conversar e eu pego o meu, mais porque estou
entediado do que por vontade de ver alguma coisa. Eu nem tenho crédito e
o wi-fi do shopping nunca funciona direito.
Abro minhas fotos porque não sei mais o que fazer e começo a descer
pelo rolo de câmera, cada quadradinho um pedaço do passado congelado no
meu celular. É incrível, quando a gente para pra pensar friamente, como é
fácil guardar lembranças hoje em dia, sempre ali no nosso bolso. A maioria
das fotos é de coisas aleatórias, mas ali embaixo tem uma foto que faz a
minha garganta se fechar.
Por um segundo eu não sei o que ela está fazendo ali, e então me lembro
de quando minha mãe achou um álbum de fotos antigo e por algum motivo,
aquela foto estava lá. Uma foto que não devia ter sido revelada, e da qual eu
não devia ter tirado outra foto. Uma memória de uma memória.
Olho para meu próprio rosto, uns vinte anos mais jovem, sem barba, sem
marcas de expressão, o cabelo escuro e meio enrolado curtinho, os olhos
castanhos sorrindo com meus lábios. Olho as luzes coloridas ao fundo e
olho para meus pais, um de cada lado de mim. Minha mãe com os cabelos
claros tingidos e um brilho nos olhos, a bochecha colada contra a minha, e
meu estômago se aperta quando olho para o meu pai. Eu não sei o que eu
sinto, na verdade, e aquilo me assusta. Raiva, saudade. A dúvida de como
as coisas poderiam ter sido. Não sei.
Eu pareço com ele, percebo agora, uma coisa que é meio óbvia, mas que
eu nunca tinha reparado de verdade. Tenho o mesmo nariz comprido e os
mesmos olhos. Nossas sobrancelhas são grossas iguais, nossos cabelos
escuros, embora o dele fosse mais cacheado que o meu. E quando ele sorri,
nós temos o mesmo sorriso.
— Adriano?
Eu levanto o rosto, piscando forte, como se estivesse acordando de um
sonho. De um pesadelo, talvez. Kaike me olha engraçado, as mãos
amassando um guardanapo sujo. Ele não sabe de nada, nunca contei.
— Oi — digo, fechando o álbum de fotos e apagando a tela do celular.
— A gente ainda tem uma meia hora, quer dar uma passada na Blue
Zone?
Blue Zone é o fliperama do shopping, e mais de uma vez eu já me
perguntei como eles ganham dinheiro, porque está sempre meio vazio e
todas aquelas máquinas devem consumir uma energia do caramba.
A imagem da foto ressurge na minha mente, as luzes piscando, o barulho
dos jogos se sobrepondo uns aos outros como uma sinfonia desafinada.
— Pode ser.
Kaike abre um sorriso, e acho que talvez ele já tenha me perdoado pela
Marcela, pelo menos um pouco. Nós nos levantamos e deixamos a bandeja
sobre um dos totens de lixo porque eu nunca sei se papel sujo deve ser
jogado no reciclável ou não, então é melhor que o pessoal da limpeza jogue
por mim.
Sempre sinto um frio na barriga quando passo na frente da Blue Zone, e
nos primeiros meses depois do acidente eu não conseguia nem entrar no
shopping. Foi muito tempo de terapia até eu conseguir ouvir alguém
cantando parabéns sem ter um ataque de pânico, até que o barulho de tiros
vindo da televisão não me fizesse chorar.
Ainda assim, preciso respirar fundo para entrar, tentar controlar a
respiração. Eu sei que não preciso entrar, que posso dar uma desculpa, mas
também não quero ter que me explicar para o Kaike, então é mais fácil ir de
uma vez. Não é exatamente agradável, mas é o tipo de coisa que eu consigo
fazer.
— Odeio como é sempre tão frio aqui — ele diz, esfregando os braços.
— Deve ser por causa das máquinas, pra elas não superaquecerem e
pifarem — digo, sentindo a garganta seca, meus passos abafados no carpete
azul escuro. As paredes são azuis também, diferente de antigamente,
quando eram todas coloridas e o lugar tinha outro nome. O teto é alto,
muito mais alto que o necessário mesmo com um mezanino, e as lâmpadas
lá em cima não são tão fortes, fazendo as máquinas brilharem em luzes
néon coloridas.
Não gosto daqui, não gosto mesmo.
— O que você quer jogar? — Kaike pergunta enquanto andamos pelos
corredores, as musiquinhas dos jogos perfurando meus ouvidos. Minhas
mãos estão suando.
— O que você quiser.
— Que tal aquele?
Kaike não espera eu responder, simplesmente vai até uma máquina que
tem duas pistolas de plástico acopladas ao console e eu nem consigo chegar
perto.
Eu não sei por que estou surtando, mas eu sinto que estou surtando.
Consigo ouvir meu coração batendo forte e tudo parece meio difuso, como
se eu estivesse sonhando.
— Adriano? — Kaike chama, se virando na minha direção. — Você tá
bem? Você tá meio branco.
— Aham — digo, sacudindo a cabeça e dando alguns passos bambos para
trás. Me sinto como se estivesse em um daqueles brinquedos que rodam
sem parar, luzes coloridas e gritos abafando todo meu bom-senso. — Eu…
só vou dar uma volta. Pode jogar, eu já venho.
Não sei se tenho a intenção de voltar, e Kaike ainda me olha meio
preocupado por um segundo antes de eu me virar e sair andando pelo meio
das máquinas, meio atrapalhado. Talvez minha pressão esteja caindo?
Decido que deve ser isso e procuro um lugar para me sentar, um lugar que
não chame a atenção e que não seja suspeito, o que na prática significa que
eu me largo no primeiro banquinho que acho.
Abaixo a cabeça e aperto os olhos com força, concentrado na minha
respiração, porque aparentemente é um jeito de fazer o coração desacelerar,
e ficar de olhos fechados ajuda com as luzes.
Aos poucos minha cabeça para de girar, e quando abro os olhos a minha
visão periférica não está mais embaçada. Não muito, pelo menos. Olho de
um lado para o outro e vejo Kaike no fundo do corredor, ocupado com um
jogo, e começo a dar impulso para me levantar quando percebo onde acabei
me sentando.
É uma máquina que parece muito antiga. Bato os dedos no console só
para ter certeza se é de madeira, porque parece, e pelo som, deve ser. A tela
está na vertical, o que eu nunca vi, e quando me afasto para ver o nome do
jogo, não tem nada escrito no letreiro.
Levanto e procuro pelo fio, porque ela parece desligada, mas acho que ia
ter um aviso se estivesse mesmo ou se não estivesse funcionando. Puxo o
fio com o sapato, um fio preto e grosso que termina em uma tomada com
grandes pinos achatados e que não está conectado a lugar nenhum. Ainda
assim, tem alguma coisa estranha, porque eu posso jurar que estou ouvindo
um zumbido baixo vindo de algum lugar de dentro daquela máquina.
Aperto um botão, outro. Mexo o joystick. Nada.
Não sei o que estou esperando, na verdade, porque eu vi que está tudo
desligado, e eu me levanto para procurar por Kaike, porque de repente ele
sumiu.
Passo pelos corredores e avisto o uniforme pavoroso do Balão Mágico de
longe, perto do balcão onde dá para trocar pontos por brindes, mais
especificamente, e quando chego ao lado de Kaike ele levanta uma caneta
barata de plástico para mim.
— Olha só o que eu ganhei com todo meu esforço e todo aquele dinheiro.
— Ótimo, tô precisando de uma caneta — digo, puxando a caneta da mão
dele.
— Devolve!
— A gente precisa voltar, anda.
Kaike pega a caneta de volta e nós andamos o mais devagar possível,
talvez tentando prolongar o tempo do almoço até ter de voltar para dentro
daquela fatia do inferno.
Antes de sair eu ainda lanço um último olhar à máquina antiga, tão
deslocada no meio de tanto plástico e tantas luzes, e apesar de saber que ela
está desligada, apesar de ter visto o fio solto longe da tomada, eu posso
jurar que, um segundo antes de eu me virar e ir embora, vejo alguma coisa
na tela se acender.

IV

Já são mais de dez horas quando finalmente consigo arrumar as coisas e


sair. Não tem muitos carros no estacionamento, provavelmente só das
pessoas que estão no cinema ou de outros poucos funcionários, e é um
alívio quando me sento. Sempre fico com os pés doendo no fim do dia e
ainda tenho que dirigir até o hospital, o que me dá preguiça só de pensar.
O carro da minha mãe é um Gol prata, quadrado e velho, com a pintura já
desgastada. O plástico do para-choque está esbranquiçado e o escapamento
faz um barulho tão alto que chega a ser constrangedor àquela hora da noite,
principalmente dentro de um estacionamento vazio.
Preciso forçar o vidro para baixo com a mão para ele poder abrir e saio
pela cancela, meus pensamentos longe na Blue Zone e naquela máquina
esquisita. Eu não devia ter ficado tão afetado daquele jeito, não era a
primeira vez que eu entrava lá, e vira e mexe passava em frente. Eu não
gostava de passar em frente, nunca gostei, mas também nunca tive uma
reação tão extrema.
Eu provavelmente preciso dormir. Mais uma cerveja também não ia
machucar, mas com certeza dormir.
Eu bocejo quando penso nisso e balanço a cabeça, tirando os olhos da
pista só por um segundo, mas é o suficiente para eu ter que pisar no freio
apressado porque alguma coisa acabou de passar correndo bem na frente do
carro.
Eu freio com um tranco e os pneus gastos cantam. Sou jogado para frente
quando alguém acerta a minha traseira e em seguida as pessoas começam a
buzinar.
Olho para a calçada, tem uma mulher e uma criança paradas ali, a menina
chorando. Acho que foi ela que passou correndo na minha frente e de
repente eu entendo que podia ter atropelado uma criança.
Minhas pernas ficam meio moles, mas ela não devia ter saído correndo
assim na frente do carro, no meio de uma avenida movimentada.
— Você não presta atenção na sua filha? — grito para a mulher de dentro
do carro. — Ela podia ter morrido! E a culpa ia ser sua!
Não sei por que estou tão bravo, talvez porque as pessoas não parecem
entender que a vida delas pode acabar assim, num piscar de olhos, no para-
choque de um Gol velho, e também porque eu tive um péssimo dia no
trabalho.
Sei que preciso voltar a dirigir porque as pessoas continuam buzinando,
mas ainda estou agitado demais, bambo demais, e quando saio e vou para a
frente do carro, tem um bichinho de pelúcia caído ali. Eu devia deixá-lo no
meio da avenida e passar por cima, mas pego aquela merda e vou até a
calçada devolver para a menina.
— É sério — digo, entregando o bichinho para a mãe —, da próxima vez
vocês podem não ter tanta sorte.
Ela fica me olhando, assustada, e eu dou meia volta, só para ver o carro
que deu um totó atrás do meu desviar e arrancar cantando pneu. Fico o
assistindo se afastar, os outros carros seguindo, e quando tento passar pela
rua para ver o estrago, um cara passa em alta velocidade, o dedo do meio
para fora da janela.
— Vai pra calçada, filho da puta!
Mando ele se foder e olho a traseira do Gol, o farol de trás quebrado,
enquanto ainda estão buzinando para mim. O carro ainda tem a coragem de
morrer na minha cara na primeira vez que tento sair, e quando finalmente
consigo arrancar, aposto que o bairro inteiro ouviu.
Chego no hospital um pouco mais tarde do que eu gostaria, mas pelo
menos consigo ir me acalmando no caminho. Sempre fico com um pouco
de vergonha de deixar o carro na mão do valet porque o Gol está caindo aos
pedaços, mas eu dou um sorrisinho amarelo, pego a mochila que empacotei
para a noite e entrego a chave para ele. Não sei se eu devia dar caixinha,
mas não dou, porque praticamente metade do meu salário vai no convênio
da minha mãe para ela poder ficar nesse hospital, então não vai rolar.
Recebo um adesivo com o meu nome e o número do quarto da minha mãe
na recepção e subo no elevador até o quinto andar. O quarto dela é o
terceiro do corredor, e giro a maçaneta devagar para não acordá-la, mas
assim que a porta começa a se abrir percebo que a luz está acesa e a
televisão ligada.
— Adriano? — ela chama, a voz meio fraca.
Fecho a porta e vou até ela. Também não gosto de hospital. Eu sei que
ninguém gosta, não de verdade, mas acho que a maioria das pessoas não
liga. Eu se pudesse nunca mais pisaria em nenhum, mas aqui estamos nós,
porque aparentemente a vida gosta de rir da minha cara.
— Oi, mãe, boa noite.
Dou um beijo no rosto dela e deixo minhas coisas no banco comprido que
vai fazer as vezes de cama mais tarde. A almofada é tão fininha que aposto
que vou ficar todo dolorido amanhã, mas o problema é que tenho vontade
de espalhar as minhas coisas por ele e preciso me segurar.
— Como você tá? — pergunto. Tem um tubo de oxigênio no nariz dela e
sua pele está muito pálida, parecendo papel fino prestes a rasgar se ela fizer
algum movimento errado. No braço, dá para ver os hematomas onde
tentaram enfiar alguma agulha e a veia estourou. Tento sorrir, fingindo que
não estou vendo nada daquilo. — Me falaram que foi tudo bem na cirurgia.
Ela faz cara de quem não está impressionada.
— Tem uma sonda dentro de mim, como você acha que eu tô? Arde.
Tenho que tomar trocentos antibióticos. — Ela espreme os lábios. — Mas
podia ser pior, eu acho.
— Você devia ter avisado quando começou a sentir dor. A pedra que
tiraram do seu rim tinha o tamanho de um dente.
Ela abana a mão, como se não fosse nada demais.
— Você sabe que eu não gosto de médico.
— Pois é, e olha só onde você tá agora.
— Escuta, seu filho desnaturado, se você veio aqui pra ficar me dando
sermão eu vou chamar a enfermeira pra dormir no seu lugar. Ou o
enfermeiro. Ele é uma gracinha, sabia?
Paro de tirar minha troca de roupa da mochila e olho para ela.
— Se você continuar, eu é que vou embora por livre e espontânea
vontade.
Ela tenta rir, mas acaba tossindo um pouco e eu pego um copo d’água que
está em cima da mesinha de cabeceira.
— Aqui — digo, ajudando-a a beber. Corro a mão por seus cabelos, mais
finos do que eu me lembro e muito mais brancos que a foto que eu achei no
meu celular. A foto é outra coisa em que eu não consigo parar de pensar. —
Pronto, tá bom.
Coloco o copo de volta no lugar e tiro a camiseta para me trocar.
— Como foi seu dia hoje? — ela pergunta, como sempre. — Você parece
cansado.
— Bom, o aniversariante de hoje era um filhinho de papai mimado que
abriu o berreiro porque eu estourei o balão de aniversariante dele, depois na
hora do almoço eu acho que a minha pressão caiu e eu quase desmaiei, e no
caminho pra cá por pouco eu não atropelei uma criança que saiu correndo
na frente do carro. Ah, bateram na minha traseira. De leve. Só quebrou o
farol.
Ela me encara, as sobrancelhas lá em cima.
— Você falou que tava pensando em procurar outro emprego. Talvez seja
a hora, Dri. Quer dizer, não dá pra você ficar fazendo mágica pra sempre.
Sinto que estou ficando vermelho, porque não é a primeira vez que ela
fala aquilo.
— Eu sei — digo, colocando a camiseta limpa. — Já disse que esse
emprego é temporário.
— Temporário por três anos?
Viro para ela desabotoando o cinto.
— Não precisa jogar na minha cara também.
— É pro seu bem.
Claro, sempre é pro meu bem.
— Pelo amor de Deus, Adriano, você podia ir pro banheiro — ela diz
quando eu abaixo as calças para colocar uma outra mais confortável. —
Não quero ser obrigada a ver essas suas pernas peludas.
— Como se você não tivesse limpado a minha bunda.
— Não é exatamente uma lembrança agravável, convenhamos.
Dou uma risada e termino de me trocar, muito melhor agora que estou
usando uma calça que não aperta a minha barriga. Procuro a minha escova
de dente e vou para o banheiro. Saio com a boca cheia de espuma para
guardar a pasta e percebo que minha mãe está me olhando com um
sorrisinho no rosto. Nada de bom vem quando ela está com esse sorrisinho
no rosto.
— Que foi, mulher?
— Quando você vai me apresentar sua namorada?
Engasgo com a escova e acabo engolindo pasta. De onde ela tirou que eu
tenho uma namorada?
— De onde você tirou que eu tenho uma namorada? — grito de dentro do
banheiro, porque precisei cuspir o resto na pia. Ela não responde enquanto
estou lá dentro, porque é claro que ela vai me fazer sair para poder olhar na
minha cara.
Saio tentando manter a dignidade e guardo a escova na mochila.
— Sou eu que lavo o seu lençol, Adriano.
Olho para ela ligeiramente horrorizado.
— Eu não… a gente… não tem namorada nenhuma.
— Aham, sei.
— Por que você quer tanto que eu tenha uma namorada?
— Não sei, você é muito sozinho. E não tô falando só de namorada, às
vezes eu tenho a impressão de que você não tem nem amigo direito.
— Eu não sou sozinho — digo e ela faz cara de tédio, porque na verdade
eu sou. — Eu gosto de ser sozinho. É muito… menos complicado.
— Como não ter amigos é menos complicado?
— Ué, desse jeito ninguém me decepciona. Eu não decepciono ninguém.
Todo mundo feliz, fim.
Ela revira os olhos. A gente sempre chega nessa parte da discussão e ela
sempre faz a mesma coisa.
— Você devia ser a primeira a me apoiar — insisto, empurrando a
mochila para o canto. — Depois que o pai—
— Seu pai não tem nada a ver com isso e você sabe.
Exceto que ele tem.
— Se ele estivesse aqui—
— Mas ele não tá, Adriano, não adianta ficar pensando nessas coisas.
Odeio quando ela me interrompe, odeio quando ela quer conversar, então
vou até o interruptor do lado da porta e apago a luz.
— Boa noite, mãe.
Ajeito as coisas no resto do banco que não estou ocupando, e quase pulo
no lugar quando minha mãe decide voltar a falar.
— Eu vi que você espalhou as coisas.
— Meu Deus, quer me matar de susto?
— Filho, você já parou pra pensar que essa sua coisa de cadeira vazia…
Longe de mim querer me meter na sua vida, mas… talvez pode ser você
que está fazendo as pessoas se levantarem e saírem correndo?
Me encolho mais, meu quadril sentindo a madeira dura debaixo da
almofada fina.
— Boa noite, mãe – insisto.
Ouço-a suspirar e imagino que ela esteja revirando os olhos de novo.

Sou acordado muito mais cedo do que gostaria por quem assumo ser o
enfermeiro gracinha, que vai checar minha mãe enquanto eu vou no
banheiro. Eu preciso de um banho antes de ir para o trabalho e de
potencialmente mais algumas horas de sono, então me despeço da minha
mãe assim que ele fala que está tudo bem, pego o carro e vou para casa.
Acho um pedaço do vaso que a Marcela quebrou e que não tinha visto
ontem (o vaso de orquídeas, claro) e jogo no lixo, depois me jogo uma água
e caio na cama. Fico pensando no que a minha mãe falou e tiro o lençol,
coloco água e sabão em pó em um balde e deixo o lençol lá dentro. Não sei
se é assim que se lava roupa, provavelmente não, mas pelo menos eu tentei.
Deito sem lençol mesmo e antes que perceba, caio no sono. Acordo
depois do que me parecem segundos com o celular apitando, e quando olho
a hora, já é mais de meio-dia. Aquele é o alarme que me avisa que meu
turno vai começar.
Merda. Merda, merda, merda.
Eu me levanto com um pulo e daquela vez vou de uniforme horrível do
Balão Mágico mesmo, porque não vai dar tempo de trocar. Também não vai
dar tempo de fazer a barba e eu tenho certeza de que o meu chefe vai
reclamar, mas é melhor aparecer assim do que me atrasar ainda mais.
Pego minha mochila e saio correndo, o Gol gritando pela cidade inteira.
Ainda por cima é dia de pagamento e o shopping está cheio, o que me faz
ter de dar umas três voltas até eu desistir e parar em uma vaga de deficiente.
Eu sei, péssimo e horrível, mereço ser julgado e mereço uma multa, mas
estou desesperado.
Estaciono o carro e desço, voando pelos corredores, subindo as escadas
dois degraus de cada vez, até chegar ofegante no Balão Mágico. Kaike está
enchendo bexigas no pulmão, e ele me olha como quem diz que caralho
que você tava fazendo, Adriano, o chefe vai te matar.
Passo batido por ele e vou para os fundos, para a salinha dos funcionários,
e estou guardando a mochila no meu armário quando meu gerente se
aproxima de mim, as mãos na cintura.
— Você tem um minuto, Adriano?
A bem verdade é que não, porque afinal de contas eu estou atrasado, mas
faço que sim e o sigo para outra sala nos fundos, a mesma sala em que eu
fiz entrevista para começar a trabalhar ali três anos atrás, como a minha
mãe fez questão de me lembrar. O mesmo cacto miniatura ainda está sobre
a mesa, o telefone e o computador ainda são os que eu me lembro.
Ele se senta e é quando eu percebo que é alguma coisa séria. Eu me sento
do outro lado da mesa e entrelaço meus dedos sobre o tampo, tentando
parecer respeitável nesse uniforme.
— Antes de qualquer coisa, Adriano, preciso dizer que não é nada
pessoal.
Sinto um frio na barriga. Sei exatamente onde aquilo vai parar.
— Renato, eu preciso cuidar da minha mãe.
Ele levanta a mão, me mandando ficar quieto. Ele respira fundo, um leve
vinco se formando entre suas sobrancelhas, e eu tenho a sensação do tempo
ficando suspenso por um instante, aquele momento de calma antes de
alguma coisa terrível acontecer.
— Nós estamos precisando diminuir o número de funcionários — ele
continua, sem nem me olhar direito nos olhos e eu quero bater em alguma
coisa. Na cara dele, talvez. — E considerando o que aconteceu ontem com
o aniversariante…
Claro, claro que tinha que ser com o Théo cursinho de inglês.
— Escuta, foi sem querer. Minha mão escorregou.
Ele faz cara de tédio.
— Você não devia ter estourado o balão dele. E não é só isso. Outros
funcionários viram você bebendo cerveja durante o expediente, mais de
uma vez.
— Eu nunca uso uniforme!
— O Kaike usa e ele almoça com você. As pessoas conseguem somar dois
mais dois. A questão nem é essa. A questão é que você não está respeitando
as regras e eu realmente preciso cortar um funcionário.
— Mas… eu sou o mágico.
Ele puxa uma folha de papel e uma caneta e os coloca à minha frente na
mesa. Tem alguma coisa em saber que aquela folha estava ali o tempo todo
esperando por mim que me deixa inquieto.
— Podia ser justa causa — ele diz. — Seria melhor pro Balão Mágico,
mas eu preferi só rescindir o contrato. Você tem direito ao seguro-
desemprego, à rescisão. Dá pra você ir se virando até achar outra coisa. E
além disso… — assino a merda do papel e o empurro de volta para ele. —
Honestamente, Adriano, o que você ainda tá fazendo aqui? Não me leva a
mal, mas… Sei lá.
— Posso ir? — pergunto. Não quero conversar, não quero que ele fique
com pena de mim, ou que finja que está com pena de mim.
Ele assente e eu me levanto. Saio do Balão Mágico, compro uma camiseta
barata e vou para o banheiro me trocar de novo, porque de jeito nenhum
vou ficar andando por aí com aquele uniforme horrendo, ainda mais depois
do que acabou de acontecer, e de repente não sei o que fazer. Eu podia
voltar para casa, acho, mas seria o ápice da minha inutilidade, então decido
ficar zanzando pelo shopping, pelo menos por enquanto. Não é inteligente
nem produtivo, mas vai me ajudar a me distrair. Acho. Talvez.
E é assim que paro bem de frente para a Blue Zone, o lugar onde tudo deu
errado, e de repente tenho vontade de gastar o que sobrou do meu salário
naquelas máquinas, só de raiva. Só para rir um pouco da piada que o
universo parece estar fazendo com a minha vida, por que não.
Eu entro, mas não vou para o balcão de comprar crédito. Ao invés disso,
passo pelos corredores, observando os brinquedos que àquela hora estão
vazios, e acho que sei para onde estou indo antes mesmo de perceber.
Aquela máquina velha que não devia estar ali, do mesmo jeito que talvez
eu não deveria estar. Ela continua desligada, dá para ver o fio grosso solto,
mas continua sem nenhum sinal de manutenção. Continua com um zunido
baixo. Eu me aproximo de um jeito meio furtivo, como se aquilo de alguma
forma fosse errado, e espio por cima dos ombros para ter certeza de que
ninguém está me vigiando.
Eu vou até a frente da máquina, pensando em ontem. De como a tela se
acendeu, ou de como eu acho que vi a tela se acender. Casualmente, aperto
um dos botões coloridos.
Nada.
Aperto mais um, mais outro. Mexo o joystick.
Nada. É a mesma coisa de ontem, nada quer acontecer e de repente eu fico
com raiva. É estúpido, mas eu fico.
Uma parte de mim sabe que eu não devia, mas eu chuto a máquina, e bato
o punho nos botões, talvez querendo que alguém veja e brigue comigo,
talvez querendo bater em alguém. Eu bato e bato. Meus olhos ardem. O que
eu vou falar para minha mãe? O que eu vou fazer? Não vou ter coragem de
chegar no hospital e olhar nos olhos dela. Primeiro eu não tenho namorada
nem amigos, agora também não tenho emprego. É quase hilário, na
verdade, e não consigo não pensar no que conversamos noite passada.
Porque talvez as coisas pudessem ter sido diferentes, mas agora eu nunca
vou saber.
Enterro os dedos nos cabelos com um grunhido frustrado, meus cotovelos
sobre o painel dos botões, os olhos apertados. E é aí que eu sinto uma luz se
acender por trás das minhas pálpebras.
Eu abro os olhos e, muito lentamente, levanto a cabeça.
Na tela, que antes estava completamente apagada, agora há um número.
1997.
Logo abaixo dele, as palavras pressione start piscam em branco.
Eu me afasto, a visão ainda meio turva por causa das lágrimas de raiva
que queriam cair, e olho para o cabo largado no chão, que ainda não está
plugado em lugar algum. Que porra…?
Cutuco a tomada com o pé como se fosse um bicho morto, mas a tela
continua acesa, aquele número e aquelas palavras. Olho ao meu redor,
porque não é possível que mais ninguém esteja vendo aquilo. A máquina
devia estar desligada. Ela está desligada, para todos os efeitos.
Nada. As poucas pessoas no fliperama continuam a rir e conversar,
alheias.
Encaro a tela mais uma vez. Que porra é essa, de verdade?
Limpo meus olhos na manga da camisa e sinto meu coração acelerar,
antecipando alguma coisa. O ar ao meu redor de repente parece
ligeiramente mais pesado, mais elétrico, como se uma tempestade estivesse
prestes a cair bem na minha cabeça.
Prendo a respiração.
Aperto start.
Por um segundo nada acontece e eu deixo escapar uma risadinha sem
graça de alívio, porque é claro que aquilo deve ser algum tipo de defeito ou
alguma brincadeira de mal gosto.
E é aí que a pressão explode nos meus ouvidos com um zunido
ensurdecedor, os barulhos ao meu redor ficam abafados e tudo escurece de
uma vez só.
1997
Plift, ploft, still, a porta se abriu.
DOMINGO

Eu demoro alguns segundos para abrir os olhos porque não tenho certeza do
que está acontecendo ou de onde estou. Sei que estou deitado em uma cama
que parece meio grande, debaixo de cobertores, e tem música vindo de
algum lugar meio distante.
Uma música que se parece muito com Claudinho e Buchecha e que eu não
ouço há pelo menos uns vinte anos. Sabe, tchurururu.
Eu me sento na cama, esfregando os olhos, e quando minhas mãos
encostam na minha bochecha eu percebo que não tem barba nenhuma ali.
Na verdade, minhas bochechas estão inacreditavelmente lisas e…
gordinhas.
Tem alguma coisa errada e eu saio da cama, só para ficar zonzo assim que
me coloco de pé. Meu quarto (eu sei que é o meu quarto, um deles, pelo
menos) está com as proporções erradas, tudo parece maior. Muito devagar
eu vou até o interruptor de luz que fica ao lado da porta e quase tropeço em
alguma coisa largada no meio do caminho.
Quando acendo a luz, me perguntando por que o interruptor de repente
está mais alto do que eu me lembro, congelo no lugar.
A coisa em que eu quase tropecei é um pogobol verde e roxo, que eu me
lembro de ter tido quando era criança. Um cobertor do Rei Leão está
espalhado pela minha cama, meio caído no chão, e minha mochila da escola
dos Power Rangers está do lado da minha cama.
Não me mexo, não consigo me mexer. Meus olhos varrem as paredes,
cheia de pôsteres antigos que parecem incrivelmente novos. Inclusive
aquele que me julga todos os dias. Em cima da cômoda tem uma televisão
de tubo com a tela minúscula, um Super Nintendo acoplado a ela. Lá fora a
música do Claudinho e Buchecha acaba. Começa a tocar Backstreet Boys.
Olho para as minhas próprias mãos, tão… sem pelos. Dedos tão finos.
Tão pequenos.
O que… que merda é essa?
Tá tudo bem, eu não vou entrar em pânico. Não vou entrar em pânico.
Abro a porta do quarto e a música fica mais alta. Eu sei onde eu estou,
mas ao mesmo tempo não quero pensar naquilo, porque não faz sentido.
Não pode ser. E é quando o telefone toca, um telefone fixo, e alguém o
atende, que eu congelo no lugar. Porque a pessoa atendendo o telefone tem
a voz do meu pai.
Começo a andar pelo corredor, os passos meio trêmulos, o coração na
boca. Eu lembro desse apartamento, lembro das paredes pintadas de verde,
do tapete no corredor que às vezes me fazia tropeçar.
— Ele tá bem, Tábata, ainda tá dormind… eu sei. Eu comprei sucrilhos.
Eu sei. Você acha que eu não conheço meu próprio filho? Pelo amor de
Deus, eu não tô…
Ele está parado de frente para a mesinha onde fica o telefone, uma mão na
cintura, ainda de pijamas. Consigo sentir o cheiro dele do corredor, e é
estranho, porque nunca pensei que ele tivesse um cheiro.
Fico parado, esperando que ele termine de falar com a minha mãe no
telefone. Não sei o que fazer, me sinto estranhamente suspenso no ar, preso
dentro de uma bolha prestes a estourar.
Ele desliga o telefone com um suspiro e quando se vira percebe que eu
estou ali.
— Ah, bom dia — meu pai diz, forçando um sorriso. Pode ser só
impressão, mas ainda é de manhã e ele parece cansado. Eu conheço a
expressão, porque é a mesma que eu vejo todos os dias no espelho quando
acordo. — Você… tá com fome? Tem sucrilhos.
Não estou com fome, na verdade estou até um pouco enjoado, mas eu
faço que sim por segurança. E porque quero que ele saia da minha frente.
É engraçado, isso. Sempre fiquei imaginando como seria se eu pudesse
ver meu pai de novo e a primeira coisa que eu quero agora é que ele saia da
minha frente.
Meu pai parece feliz com a resposta e vai para a cozinha. Assim que ele
desaparece eu me encosto na parede, todo trêmulo. Isso só pode ser um
sonho, um sonho de muito mal gosto, e se eu apertar os olhos com força, se
eu me bater, me beliscar, talvez eu acorde no quarto do hospital com a
minha mãe.
— Já peguei aqui — ele grita da cozinha e eu respiro fundo. Uma, duas,
três vezes. Preciso me acalmar, vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Vou até a cozinha, pés descalços no piso frio, e tem uma tigela sobre o
balcão, uma caixa fechada de Froot Loops e outra de leite do lado.
— Você gosta desse, né?
Não tenho certeza do som que a minha voz vai fazer e não quero arriscar
falar nada. Ele me olha, como se estivesse esperando que eu faça alguma
coisa, e quando não me mexo, ele sai da cozinha. De longe, ouço-o abrir e
fechar o guarda-roupa no quarto e fico olhando para a tigela. Não estou com
fome, eu sei que não, mas também quero saber se vou conseguir sentir o
gosto de alguma coisa, então abro a caixa e o saquinho que tem dentro, e
puxo um dos aneizinhos coloridos.
Mordo devagar, só com a pontinha dos dentes, e o açúcar explode na
minha língua. Faz décadas que eu não como isso. Pego um punhado e
coloco na mão enquanto ando pelo apartamento. Tem uma mesa com
cadeiras demais antes do corredor, e um sofá preto na sala. A televisão que
está no rack é quadrada, de tubo. Desligada. A música está vindo de um
rádio ligado ali do lado.
Uma parte de mim quer ligar a televisão, mas só de pensar no que pode
estar passando minhas mãos começam a suar, então prefiro não. Vou para a
sacada e me arrependo imediatamente, porque está frio e o vento me arrepia
inteiro.
— Dri? — meu pai chama, vindo do corredor. Eu saio da sacada e o
encaro, quieto, enfiando um anelzinho de Froot Loops por vez na boca, o
barulho dos meus dentes abafando um pouco a voz dele. — Eu vou precisar
sair, coisa do trabalho, e não sei quanto tempo vai demorar. Tem
bisnaguinha no armário, requeijão na geladeira. Não precisa atender o
telefone, tá? — ele vem até mim, bagunça meus cabelos e depois vai para a
porta. — Se você for sair pra brincar com o Hiro não esquece de fechar a
porta e deixar a chave no vaso do hall pra não perder.
Continuo mastigando, devagar, devagar.
Ele força um sorriso nervoso e por dentro me pergunto se ele tem alguma
ideia de como eu vou ficar a cara dele quando crescer. O nariz, as
sobrancelhas, o queixo. Acho que não. Ele nunca vai saber, na verdade.
— Bom, tchau — ele diz, mão na maçaneta da porta. — Se comporta.
Ele sai e me deixa plantado no meio da sala.
Acho que não estou mais tremendo tanto agora que comi açúcar. Dá para
ouvir o elevador chegar, ele abrindo a porta, fechando, o elevador descendo.
Eu estou sozinho.
Saio correndo para o banheiro porque preciso de um espelho, e quando
preciso ficar na ponta dos pés para conseguir ver o meu rosto, sei que vou
me arrepender. Viro o rosto de um lado para o outro, estudando meu
reflexo. Aperto minhas bochechas de novo, e eu sei que sou eu, mas…
Quantos anos eu tenho? Onze, doze?
Vou para o meu quarto e me sento na cama. Passo a mão pelo lençol, pela
coberta. Até o cheiro parece de verdade, real demais para ser um sonho ou
uma alucinação. Vou até a sacada de novo e tenho que ficar na ponta dos
pés para conseguir ver lá embaixo. O vento gelado me arrepia mais uma vez
e eu fico olhando alguns poucos carros passarem na rua, acho que estou no
terceiro ou quarto andar. Vejo um carro saindo, um Kadett vinho que eu
lembro que meu pai tinha quando eu era criança e ele dá uma buzinadinha
quando sai, um menino em uma bicicleta vermelha acena para ele. Então o
menino levanta a cabeça e olha para mim.
— Dri? Pode descer?
Fico olhando para o menino, tentando reconhecê-lo, e é quando me
lembro do que meu pai falou que a imagem dele me inunda em uma onda
violenta.
— Hiro?
Minha voz é fina, vergonhosamente fina, mas não estou preocupado com
isso. Ele sorri para mim, aqueles cabelos muito pretos voando com o vento
gelado, os olhos puxados quase fechados quando ele sorri daquele jeito.
Hiroshi. César Hiroshi. Meu melhor amigo de infância e meu vizinho. Não
sei quando perdi contato com ele, mas acho que foi quando ele mudou para
o Japão com os pais e depois… Caramba. Eu tinha me esquecido dele, me
esquecido completamente. Não faço ideia do que ele está fazendo agora, se
ainda está no Japão ou se voltou para o Brasil, se casou, se teve filhos, e
agora eu tenho uma vontade desesperada de saber.
— Pode sair pra brincar? — ele pergunta de novo, a versão criança dele
bem ali na minha frente, as mãos nos freios gastos da bicicleta. Ele fica
meio torto porque é alto, definitivamente grande demais para aquela
bicicleta, as pernas compridas dobradas com os pés firmes no asfalto.
Posso sair? Bom, não é como se o meu pai estivesse em casa para falar
alguma coisa. Além disso, ele não manda em mim. Não quero ficar mais
naquele apartamento.
Eu faço que sim e volto para dentro, procurando alguma roupa na gaveta e
percebo que não tenho uma miserável de uma calça jeans. Só calça de
moletom, aquelas com punho, ainda por cima. Suspiro, pego uma que não
está furada no meio das pernas (quase todas estão), enfio uma camiseta que
fica meio curta em mim e coloco uma blusa. Enfio meia e tênis, e quando
procuro um desodorante, não tem nenhum. Claro que não, eu penso, porque
por algum motivo você é a merda de uma criança, e não acho que vou ficar
fedendo, de qualquer forma. Antes de sair bato a mão no bolso da calça,
procurando pelo meu celular. Engraçado como esse tipo de coisa fica
automático. Mais engraçado como ainda não tem celular nenhum. Eu
poderia morrer de rir, na verdade.

II

Descobri duas coisas assim que montei na minha bicicleta. A primeira é que
você realmente não se esquece como anda, e a segunda é que você pode até
não esquecer, mas depois de passar duas décadas sem montar em uma você
perde pelo menos metade da destreza que tinha quando tenta andar de novo.
— O que você tá fazendo? — Hiro pergunta, quando eu tento tirar uma
mão do guidão e perco o equilíbrio, quase caindo de cara no chão.
— Só testando uma coisa — digo, forçando um sorrisinho, voltando a
manter as duas mãos bem firmes no lugar.
— Quer ir na pracinha?
Dou de ombros, porque tanto faz, ainda estou tentando entender o que está
acontecendo, e Hiro sai pedalando rua acima, pouca bicicleta para tanta
perna. Vou atrás dele, meio cético, porque de jeito nenhum vou conseguir
pedalar uma subida inteira sem morrer, mas me surpreendo com a
habilidade que meu eu criança tem de subir aquela rua. Aposto que se
tentasse fazer isso adulto ia desmaiar no meio do caminho. E não ter a
sensação de que vou ficar sem ar é algo com o qual eu poderia seriamente
me acostumar.
O vento gelado vem forte contra meu rosto, as ruas estão meio vazias.
Hiro vai na frente, e quando chegamos no final da subida ele diminui a
velocidade.
— Que foi? — pergunto, sentindo o sangue nas minhas bochechas. Estou
um pouco ofegante, não vou mentir, mas estou me sentindo tão… vivo.
Ele abre um sorrisinho, o rosto vermelho do esforço.
— Quer descer sem freio?
Olho para a descida. Ele só pode ter ficado maluco.
— Nem fodendo.
Ele arregala os olhos de repente e a cor some de seu rosto. Eu demoro
alguns segundos para entender o que está acontecendo.
— Ah, quer dizer, puxa vida, não quero descer.
Hiro começa a respirar de novo e eu tenho que segurar uma risada, o que
faz todos os músculos da minha cara latejarem.
Eu esqueci. O Hiroshi tem um leve problema com palavrões.
— Não fala de novo — ele diz, estreitando os olhos, o vento gelado
balançando nossos cabelos no topo da subida. — Você sabe que eu não
gosto.
— Eu esqueci.
— Eu acho que você fez de propósito, igual ontem.
Não lembro de ontem, então encolho os ombros e peço desculpas.
— Você tá esquisito hoje — ele diz por fim, como se tivesse constatado
isso depois de longas observações.
Imediatamente sinto meu rosto esquentar, como se tivesse sido pego em
algum tipo de flagra, e tento me lembrar se alguma vez cheguei a descer
aquela descida de bicicleta sem freios enquanto Hiro me estuda como se
estivesse lendo meus pensamentos. Como se ele tivesse sentido alguma
coisa.
— Meu pai vai me matar se eu me ralar — digo, tentando dar uma
desculpa que eu acho que daria se tivesse onze anos.
Hiro não parece muito convencido, mas ele se vira para a descida e volta a
pedalar.
— Sem graça.
Dou um suspiro aliviado, só por não tê-lo mais me encarando daquele
jeito, e nós descemos montados nas bicicletas, devagar, até chegarmos na
pracinha no fim da descida. Hiro larga a bicicleta dele na grama e começa a
trepar em uma árvore cheia de cipós, provavelmente cheia de insetos
também. Não tenho certeza se quero chegar perto daquilo.
Ele é magrelo e comprido, e sobe pelos galhos como se não pesasse nada.
Olho com certa fascinação seus braços e pernas se moverem com tanta
agilidade. Quando está lá em cima ele põe a cabeça entre dois galhos
grossos e olha para mim.
— Não vai subir?
Quero dizer que de jeito nenhum, que nem fodendo, que eu posso cair e
quebrar a porra do pescoço, torcer a merda do tornozelo, e tento pensar em
uma desculpa, mas não consigo. Me xingando mentalmente, porque se fizer
isso em voz alta ele vai ter outro ataque, me aproximo da árvore.
Eu não sei o que fazer e Hiro fica me olhando.
— Que foi? — ele pergunta, as pernas dobradas lá em cima. A calça de
moletom dele também é curta, dá para ver as canelas finas enfiadas em
meias que não combinam.
— Como você conseguiu subir aí?
Ele estreita os olhos de novo.
— O que você bebeu hoje? Roubou uma cerveja do seu pai?
Não, mas essa é uma ótima ideia, na verdade, e eu vou lembrar disso para
mais tarde.
Trinco os dentes e olho para cima, procurando por um galho onde eu
possa me apoiar. Tenho certeza absoluta de que vai dar errado e eu vou cair,
mas meu corpo é mais leve do que eu estou acostumado, e consigo me içar
para cima me segurando em um galho, meus pés se apoiando no tronco
cascudo da árvore. Subo com muito menos dificuldade do que achei que ia
ter e Hiro me ajuda me puxando pela blusa, mas ainda parece um pouco
desconfiado quando paro ao lado dele, tentando forçar um sorriso. Talvez
eu tenha esquecido como crianças sorriem, não sei.
A princípio ele fica quieto, pensativo de um jeito que eu não estou
gostando, até que aos poucos ele parece relaxar e começa a me contar sobre
o Nintendo 64 dele, sobre o volantinho que o tio trouxe do Japão, sobre
como ele conseguiu bater o recorde que ele viu na revista e sei lá mais o
quê. Em determinado momento alguma coisa apita alto e ele puxa um
bichinho virtual verde água de baixo da blusa. Fico olhando-o mexer nos
botões, aquela telinha minúscula. Nunca mais vi um desses.
— Que foi?
— Nada.
Desvio o olhar e respiro o ar gelado com força, observando as coisas ao
meu redor, as cores, os sons, os cheiros.
Há alguma coisa muito familiar naquilo tudo.
Claro, eu conheço os lugares, brinquei nessa pracinha por anos e anos, já
subi nessa mesma árvore inúmeras vezes. Mas quando olho para Hiro mais
uma vez, para como ele está sentado em um dos galhos, na roupa que ele
está usando, nas meias coloridas e no jeito como as nossas bicicletas estão
largadas e naquele bichinho virtual… É quase uma sensação de deja vù.
Nós continuamos conversando, eu mais ouvindo do que falando, até que
ele simplesmente pula do galho e vai até a bicicleta. Ele deve ter falado
alguma coisa comigo e eu não prestei atenção.
— Aonde você tá indo? — pergunto, meio alarmado, enquanto ele monta
na bicicleta vermelha.
— Pra quitanda, não ouviu? Eu tô com fome — ele diz, me olhando
daquele jeito desconfiado. — Você tá muito esquisito. Quer comer alguma
coisa lá?
Não sei se quero, mas acho melhor concordar, e fico olhando para o chão,
pensando que posso torcer o tornozelo de verdade se pular igual ele fez.
Então eu me penduro no galho, tentando chegar o mais próximo do chão
possível, e quando me solto, caio meio me arrastando pelo tronco da árvore.
A casca grossa levanta meu moletom, deixando uma faixa vermelha na
minha barriga que começa a pipocar com pontinhos de sangue.
Fantástico.
Assim que caio no chão, ainda de bunda, a barriga ardendo, é como se o
ar ao meu redor oscilasse do mesmo jeito que a água oscila em círculos
quando alguém joga uma pedra em um lago. É só por um segundo, mas eu
consigo ver.
Eu pisco forte algumas vezes e a sensação desaparece. Fico parado,
olhando perdido de um lado para o outro, e Hiro me encara como se eu
estivesse doente.
— Acho melhor a gente ir pra quitanda — ele diz e eu concordo, me
colocando de pé, o arranhão na minha barriga ardendo conforme raspa
contra a camiseta. Eu monto na minha bicicleta e o sigo até a quitanda, só
mais uma rua para baixo.
A quitanda do seu Suzuki é igualzinha como eu me lembro: as caixas com
frutas empilhadas na calçada, as bancadas do lado de dentro com legumes à
mostra, uma prateleira com salgadinho e chocolate, outra com refrigerante e
um freezer de sorvetes. Ele está vestindo um avental verde quando
chegamos, ajeitando algumas bananas em uma caixa do lado de fora. Hiro
acena um oi que eu imito e vai direto para a prateleira de salgadinhos. Ele
pega um Cheetos, aquele amarelo mais fedido que acho que nem existe
mais, mas antes que consiga abrir o pacote, seu Suzuki puxa a embalagem
da mão dele e coloca uma maçã no lugar.
— Chega de salgadinho — ele diz, e Hiro fica olhando para a própria
mão, como se não tivesse entendido o que acabou de acontecer.
— Eu tô com fome!
— Você pode comer a maçã.
— Maçã não mata fome.
— Mata se você comer.
Hiro faz uma careta, as bochechas vermelhas por causa do esforço das
pedaladas, mas encolhe os ombros e dá uma mordida na maçã, depois pega
uma outra e dá para mim. Eu ainda não estou com fome, devo estar nervoso
demais para sentir fome, mas não quero que ele continue achando que eu
estou esquisito, então aceito. Nós nos sentamos na guia da calçada,
bicicletas largadas, e ficamos comendo a maçã, olhando os carros passarem.
Hiro coloca a maçã meio comida na calçada, o que definitivamente não é
higiênico porque sei que ele vai comer de novo depois, e tira o moletom por
cima da cabeça, uma camisa amarela do Brasil por baixo, daquelas que a
gente compra em camelô quando chega a Copa.
— Hiroshi? — seu Suzuki chama, e nós dois nos viramos. — Preciso
buscar uma coisa em casa, é cinco minutos. Você consegue ficar de olho
aqui?
Hiro abre um sorrisinho e faz que sim.
— Sem pegar salgadinho — seu Suzuki diz, tirando o avental. — Eu sei
quantos tem e vou contar quando voltar.
Seguro uma risada e Hiro dá um chute de leve no meu tênis.
— Não vou pegar salgadinho — ele diz antes de dar mais uma mordida na
maçã, como se quisesse mostrar que está muito feliz com ela. Seu Suzuki
ainda olha para ele por um longo segundo antes de se virar para ir embora.
Eu estou sentado, olhando para minhas próprias mãos, minhas pernas tão
curtas, quando Hiro se levanta e entra na quitanda. Alguns segundos depois
ele volta com duas barras de chocolate e estende uma para mim.
— Achei que seu pai tivesse dito pra não pegar nada — digo, aceitando a
barra de chocolate, e é aquele Surpresa, com a embalagem vermelha, que
vem com uns cards dentro.
— Ele disse salgadinho, não disse chocolate — Hiro responde, abrindo o
dele. Ele puxa o card comprido de trás da barra, um card que mostra alguns
planetas do sistema solar. Ele suspira. — Droga, já tenho esse. O que você
tirou?
Mas eu ainda não sei, porque não abri o meu.
Eu olho para Hiro, que decidiu abandonar a maçã meio comida de vez e
está mordendo o chocolate, e é como se alguma coisa disparasse em meu
cérebro. Como se eu me lembrasse e estivesse vendo as coisas se
desenrolarem ao mesmo tempo.
Não sei como, não tenho certeza do que, mas simplesmente lembro.
Eu sei que vou abrir o chocolate, vou puxar o card e sei que vai ser de
uma paisagem de Marte. Eu sei.
— Dri? — Hiro chama, a boca cheia meio suja de chocolate, e eu pisco de
novo, terminando de abrir a barra com um sorriso forçado.
Eu puxo o card, meu coração martelando quando a imagem começa a se
revelar.
A paisagem de Marte.
Eu prendo a respiração, mas Hiro não parece perceber, ocupado em espiar
o card para ver se é algum que ele ainda não tem. E eu sei o que ele vai
falar.
— Tenho uns três desse — nós dizemos ao mesmo tempo, não porque eu
tenho, mas porque eu sei que é o que ele ia falar. Hiro me olha de novo
como se de repente tivesse notado que uma cabeça extra cresceu em mim, e
eu olho em volta, finalmente entendendo o que tem de errado nisso tudo.
Eu conheço esse dia. Eu sei o que vai acontecer, porque já passei por isso,
por cada segundo desse dia, e tudo está acontecendo como eu me lembro.
Olho para Hiro, para sua camiseta do Brasil, e vejo que só tem quatro
estrelas acima do brasão.
Engulo em seco, sabendo que minha próxima pergunta só vai deixar tudo
ainda mais confuso.
— Que dia é hoje?
Ele me olha, as sobrancelhas franzidas.
— Domingo?
— O dia.
— Dia dez?
— O mês, Hiroshi.
É a vez dele engolir em seco, porque eu nunca o chamo pelo nome inteiro.
— Dri, tem certeza—
— Que dia é hoje? — repito, tremendo ligeiramente, e eu juro que se ele
não me responder eu vou soltar um palavrão. — Dia, mês, ano.
Acho que ele fica assustado, porque se afasta um pouco de mim e olha em
volta, como se procurasse por alguém. Pelo seu Suzuki, provavelmente,
talvez por um exorcista.
— Hiro.
Ele dá uma gaguejada, e finalmente responde, mas quando as palavras
deixam seus lábios eu já sei exatamente o que ele vai dizer.
— Domingo, 17 de agosto de 1997.
Meu pai vai morrer em seis dias, no meu aniversário de 12 anos.
SEGUNDA-FEIRA

Tenho certeza de que tudo isso não passa de um mal-entendido e de que eu


vou acordar no quarto do hospital da minha mãe e tudo vai ser feliz de
novo. Mas assim que acordo sozinho, sem o despertador, em um quarto
gelado demais para ser fevereiro, um frio começa a descer pelo meu
estômago. Toco meu rosto, já sabendo que não vai haver nenhuma barba ali,
mas não posso evitar fechar os olhos, me virar de bruços, enterrar minha
cara no travesseiro e dar um grito.
Que merda, que merda, que merda.
Isso não pode estar acontecendo. Não faz sentido, não…
Eu chuto as cobertas para longe e me sento, as mãos nos cabelos, tentando
entender o que aquilo significa, porque não faz nenhum sentido. Ao menos
que eu ainda esteja sonhando, mas não faz sentido também.
Vou para o banheiro escovar os dentes e levanto a blusa do pijama, o
arranhão de ontem agora meio cicatrizado, cheio de casquinha, e ainda dói
quando encosto. Abaixo as calças para fazer xixi e o tamanho do meu pinto
me deprime, aquele negocinho minúsculo, nem um pelo à vista, porque é
claro que não.
Saio do banheiro, a casa vazia, e vejo que meu pai deixou um bilhete em
cima da mesa com aquela letra horrível dele.
Bom dia, Dri!
Tem pão fresco na cozinha, salgadinho no armário pra você levar de
lanche. Já avisei a perua que você tá comigo essa semana, ela vai
passar um pouco mais cedo, então não esquece de estar pronto meio-
dia. Seu uniforme tá em cima da minha cama.
Também não esquece de tomar banho e pentear o cabelo. E de fazer o
dever de casa, porque eu aposto que você deve ter. Vou te levar pra
jantar no shopping mais tarde.
Até depois!
E ele teve a coragem de fazer uma carinha feliz no final.
Releio o bilhete, parando no último parágrafo. De todas aquelas coisas a
última que eu quero fazer é dever de casa. Será que ele vai saber se eu não
fizer?
Como se estivesse lendo meus pensamentos, o telefone toca.
Não sei se eu devia atender, não tem nada escrito, mas que se dane, eu sou
adulto e posso fazer o que eu quiser. Amasso o bilhete e jogo no lixinho da
cozinha antes de ir até o telefone.
— Alô?
— Ah, que bom que você tá acordado — minha mãe diz do outro lado. —
Porque senão eu ia ficar ligando até você acordar.
Eu não duvido nem por um segundo de que é exatamente o que ela faria.
— Tô acordado.
— Olha, não esquece de tomar banho, lavar a cabeça e fazer dever de
casa. — Ela respira fundo e dá para ouvir um barulho ao fundo. Marteladas.
— Não sei se vou aguentar ficar nessa casa com esses pedreiros. Seu pai
deixou alguma coisa pra você comer?
Lembro do bilhete.
— Pão, sucrilhos. Salgadinho.
Ela suspira, quase consigo vê-la revirando os olhos.
— Ele é um imprestável mesmo, né?
— Eu vou sobreviver — digo, não porque quero defender meu pai, mas
porque ela está subestimando minha capacidade de viver de porcaria.
— É bom que sobreviva mesmo. Ah, esse barulho! — ela resmunga de
novo. — Olha, vou desligar. Adriano, você me faz todas as tarefas ou a
gente se vê quando você voltar, entendeu? Eu vou ligar na escola.
Outra coisa que eu não duvido que ela faça.
— Tá, eu faço. Tchau, mãe.
— E não esquece de pentear o cabelo!
— Tchau.
Eu desligo.
Vou para a cozinha e pego um pacote de salgadinho, porque eu vou comer
o que eu quiser, e vou para o meu quarto ver se eu tenho algum dever de
casa.
Adivinha só? Claro.
Solto um gemido quando vejo que tenho umas dez equações de
matemática para fazer e me lembro que desde o Ensino Médio não resolvo
uma conta. Nada. No Balão Mágico eu não preciso fazer conta, e se
precisasse eu usaria a calculadora da merda do celular que não tenho
agora. Reviro minha mochila em busca de uma calculadora, mas é claro
que não tem nenhuma.
Respiro fundo, tá tudo bem. Não deve ser tão difícil, é equação de sexta
série, pelo amor de Deus.
Puxo o caderno e me sento na minha escrivaninha. Minha letra é
horrorosa igual à do meu pai, e suspiro porque sei que ela não vai melhorar
nos próximos anos. As primeiras equações são fáceis, mas quando chego
em uma que tem potência eu não sei mais o que fazer. Odeio matemática.
Por que caralhos eu tenho que aprender a fazer conta com potência, para
começo de conversa? Ninguém nem usa potência.
Sou obrigado a abrir a apostila e ler o que preciso fazer, e quando
finalmente termino já são mais de onze horas da manhã, eu preciso tomar
banho, me trocar e estar na portaria em mais ou menos uns quarenta
minutos.
Enfio tudo de volta na mochila torcendo para que esteja minimamente
certo (apesar de que foda-se se não estiver, eu tentei) e vou para o banho. O
arranhado na minha barriga arde quando cai água e eu odeio tudo isso.
Passo no quarto do meu pai para colocar o uniforme da escola, um uniforme
que eu nunca imaginei que ia ver de novo. Calça de tactel cor de vinho,
camiseta branca, blusa de zíper da mesma cor da calça com o nome Colégio
São Luiz bordado em branco nas costas.
Eu me troco e penduro a toalha no box do banheiro, porque não sei onde
devia deixar, e depois decido pentear o cabelo, já que aparentemente é uma
coisa que eu esqueço de fazer com certa frequência. De novo tenho o
instinto de procurar um desodorante, mas considerando ontem, acho que
não preciso. Quer dizer, eu nem tenho pelo no saco direito ainda, não devo
ter cecê também.
Vou para a cozinha e pondero minhas opções de almoço, tenho uns vinte
minutos. Abro os armários. Tem macarrão, pão de forma, o Froot Loops,
Passatempo. Pego a bolacha para levar de lanche, mas meu pai está muito
enganado se ele acha que eu vou ficar comendo pão de almoço, porque eu
tenho a minha dignidade.
Pego um miojo.
Queria muito que tivesse um micro-ondas nesse apartamento, mas é claro
que não tem, então preciso fazer o miojo do jeito antigo, que nunca demora
três minutos. Encho um copo de guaraná, porque pelo menos isso ele tem, e
quase me queimo tentando colocar o miojo no prato. Quase me queimo de
novo para comer, porque de acordo com o meu magnífico relógio de pulso
verde gritante, preciso descer em cinco minutos.
Engulo tudo como posso e largo as coisas na pia, depois desço correndo.
O porteiro acena para mim e, juro, cinco segundos depois a perua chega.
Uma kombi. Uma kombi de verdade.
Mal tenho tempo de respirar e já preciso ir para a escola. Faz um dia que
eu tenho onze anos de novo e já cansei.
O porteiro abre o portão para eu sair e a motorista (Tia Simone, agora eu
me lembro) abre a porta para mim e eu entro. Reconheço alguns rostos, bem
de leve, mas passo direto por eles e vou me sentar no fundo. Algumas
crianças se viram para mim, meio curiosas, e eu tenho vontade de mandá-
las cuidarem da própria vida, mas sempre lembro das ameaças da minha
mãe, então prefiro não. Para falar a verdade, parando para pensar, acho que
não sentava no fundo, mas agora eu já estou aqui, e quando finalmente me
ajeito as crianças me deixam em paz e voltam a conversar. Alto. Bem alto.
Suspiro, agarrando a mochila no meu colo.
Odeio ter onze anos.

II

Eu percebo que esqueci pelo menos metade dos nomes e rostos das pessoas
com quem estudei quando entro na sala de aula. Também percebo que não
me lembro onde me sentava, não imediatamente, e paro na porta,
observando as fileiras, aquele monte de criança sentada nas carteiras,
conversando alto demais, todas aquelas cadeiras vazias. Dou um passo para
dentro e, conforme passo pela lousa, as imagens do passado e de agora se
sobrepõem e de repente eu sei onde vou me sentar. Onde me sentei.
É estranho e minha cabeça dói um pouco, mas quando me sento na quarta
ou quinta carteira da fileira do canto, do outro lado da porta, um menino
logo atrás de mim sorri, parecendo aliviado, e puxa um caderno da mochila.
— Me diz que você fez o dever de matemática.
— Fiz…? — digo, tirando a mochila das costas para me sentar.
— Deixa eu copiar? Não deu tempo.
O que de tão importante uma criança de onze anos tem para fazer que não
dá tempo de fazer o dever de matemática em um fim de semana inteiro eu
nunca vou saber, mas tiro o caderno da mochila e entrego para ele.
Enquanto o menino copia as equações furiosamente, eu o observo, e sua
imagem lentamente vai se tornando mais nítida nas minhas memórias, como
se pouco a pouco eu conseguisse tirar uma camada grossa de poeira de cima
delas.
Boné cinza, óculos de armação preta, pele morena. O nome dele é Danilo.
Eu não o conheço há tanto tempo quanto o Hiro, mas estudamos na mesma
sala há uns dois anos. Ele percebe que eu estou o observando e levanta a
cabeça.
— Que foi?
— Nada — respondo. — Quer dizer, não sei se meu dever tá certo.
Ele dá de ombros e continua a copiar.
— Não importa, eu só preciso ter alguma coisa feita.
Olho para o relógio digital no meu pulso, aquele verde gritante. Faltam
cinco minutos para o sinal bater e eu me sento na minha cadeira. Coloco a
mão no bolso esperando encontrar meu celular, porque não sei o que fazer,
e me xingo mentalmente quando não acho nenhum.
Decido ficar observando as meninas que estão em um grupinho do outro
lado, vendo se consigo me lembrar de alguém e sem ter sucesso, todas com
o que só pode ser um bichinho virtual nas mãos, rindo. Eu cheguei a ter um
mais ou menos nessa época, todo mundo tinha, mas ele morreu depois de
dois dias e eu desisti.
Suspiro e olho para a porta, bem quando um menino alto, loiro, muito
branco que chega quase a ser rosa e um pouco acima do peso entra na sala.
Ele vem na minha direção e na de Danilo e se senta na fileira ao nosso lado.
Quando ele fala oi eu o reconheço. É o Lucas, e assim que ele começa a
puxar o caderno também, provavelmente querendo copiar meu dever, eu me
lembro dele. Eu, ele e Danilo. Esse é o meu grupinho na escola.
Ele pega meu caderno assim que Danilo acaba e o sinal bate.
É meio estranho, na verdade, porque pensando bem, olhando agora, não
sei se gosto dele. Quer dizer, ele tem cara de ser folgado.
— Que foi? — ele pergunta, a voz mais fina do que eu estava esperando e
tenho vontade de dar uma risadinha, mas me seguro, porque olha o tamanho
dele e olha o meu.
— Nada.
Decido ficar brincando com os nós dos meus tênis, amarrando e
desamarrando, porque não tem mais nada para fazer, quando uma menina
entra rápido na sala. Ela está com a cabeça baixa debaixo do capuz da blusa
do uniforme, e praticamente se joga na mesa colada com a da professora
sem dizer nenhuma palavra.
Meu estômago dá um pulo e minha respiração fica um pouco mais
acelerada.
Daquela vez eu não preciso me lembrar, porque eu nunca me esqueci, mas
ainda assim os detalhes dela vão preenchendo os vãos na minha memória. O
cabelo escuro cortado bem curtinho, os olhos castanhos que pareciam
sempre olhar para baixo, o uniforme grande demais para a figura magricela
dela.
Helena.
Olhando assim ela parece inofensiva. É engraçado, não é, esse tipo de
coisa? Como as aparências enganam tanto.
Ela olha de relance para mim, como se soubesse que eu a estou
observando, e se encolhe. Acho que levo um susto tão grande quando a vejo
que é como se não estivesse enxergando mais nada, e Lucas precisa bater o
caderno na minha cabeça para chamar minha atenção.
— Planeta Terra chamando — ele diz, e eu finalmente pisco, pegando o
caderno. — O que você…? Ah. Ela é esquisitinha, né?
Ele não faz ideia.

III

Quando o sinal toca para a aula de Educação Física todo mundo


praticamente sai correndo das carteiras, uma menina quase tropeça na
própria mochila. Por mais que eu não goste de ficar sentado por horas em
uma cadeira de madeira, também não consigo entender o apelo de ficar
correndo do lado de fora, naquele frio, suando debaixo da blusa.
O céu está meio nublado, mas a professora nos leva para as quadras
abertas mesmo assim. E nós vamos jogar futebol, que é um esporte para o
qual eu não tenho a menor coordenação, ainda mais com pernas mais curtas
do que com as quais eu estou acostumado.
As meninas ficam em uma quadra e os meninos na outra, e enquanto o
professor passa os exercícios meus olhos se fixam em Helena, na outra
quadra. Ela não faz direito as coisas que deve fazer, chuta a bola sem
vontade nenhuma e as outras meninas não chegam nem perto dela.
Aparentemente o Lucas não é único que acha que ela é esquisita, e talvez eu
devesse me sentir mal agora que sou um adulto, pelo menos por dentro, mas
não me sinto, não de verdade. Não sei se algum dia vou me sentir.
— Dri! — Danilo grita de repente e chuta a bola na minha direção antes
que eu esteja preparado. Eu não tenho os reflexos necessários para fazê-la
parar, não chego nem perto disso, e quando ela milagrosamente bate no meu
pé, quica e continua, indo parar do outro lado da quadra das meninas, que
estão ocupadas demais correndo atrás de outra bola para perceber.
Solto um gemido. Além de tudo ainda tenho que buscar a merda da bola.
Tento enrolar, mas a professora aponta para mim e quando eu faço uma
careta ela só me encara com aquele apito estúpido na boca e encolhe os
ombros, como se dissesse, bom, quem mandou ser perna de pau.
Eu saio trotando e tenho certeza de que deve ser ilegal fazer pessoa se
exercitarem nesse frio, ainda mais crianças, porque deve estar uns quinze
graus e o vento que bate no suor da minha testa vai me dar dor de cabeça de
tão gelado.
A bola está parada no vão onde o cimento da quadra termina e a grama
das arquibancadas começa, e eu tenho que esperar as meninas correrem
para o outro lado da quadra para poder passar e não atrapalhar o jogo,
embora dê para ver na cara da maioria delas que preferiam estar fazendo
qualquer outra coisa do que estar ali.
Eu também, mas enfim.
Dou uma corridinha e pego a bola suja, e quando me viro, dou de cara
com Helena, parada no meio da quadra, completamente sozinha. Acho que
ela está roendo as unhas e sendo ignorada pelas outras meninas.
Eu ia passar direto, ia mesmo, mas do outro lado da quadra, no jogo dos
meninos, Lucas olha para mim e finge que está chutando uma bola
invisível. Depois aponta para Helena.
Não sei por que acho que isso é uma boa ideia, mas eu acho. É infantil e é
estúpido, mas assim que coloco a bola no chão, vejo o filme daquela cena
se desenrolando bem na minha frente. O antes e o agora, meus movimentos
de um espelhados no outro.
Me endireito e olho para a frente como se fosse chutá-la para os meninos
do outro lado, e uma parte de mim parece saber que é exatamente isso que
eu devia fazer. Eu tenho trinta e três anos, afinal de contas, pelo menos para
todos os efeitos, e devia ter superado o que aconteceu. Devia ter esquecido,
seguido em frente, mas não dá para deixar a oportunidade passar.
Assim que Helena se vira para o outro lado, eu ajeito meu corpo na
direção dela e chuto. Eu posso ser meio perna de pau, mas ela está perto
demais para eu errar. A bola pega em cheio em sua cabeça, sempre naquele
capuz, e ela dá um tropeço para frente, quase cai, nem uma palavra saindo
de seus lábios.
As crianças riem nas duas quadras, e eu me lembro de outra coisa
também. Lembro que sempre riem dela.
Helena gira no lugar, procurando por alguma coisa, e eu me adianto para a
bola, para poder chutá-la para a outra quadra de uma vez por todas antes
que ela perceba o que aconteceu.
— Desculpa — digo, embora eu não tenha certeza se me sinto mal.
Quando ela levanta o dedo do meio para mim, juro que dá para ver os olhos
escuros faiscando debaixo daquele capuz.

IV

Vou direto para o banho assim que piso em casa porque sinto que estou
grudando. Isso e porque crianças de onze anos podem até não feder cecê
quando transpiram, mas não deixam de ter cheiro de azedo depois de fazer
exercício físico e suar.
Assim que saio do banho, a porta de casa se abre e meu pai entra. Eu o
observo, ainda enrolado na toalha, e ele tenta sorrir para mim, meio
nervoso. É como se desde que se separou da minha mãe ele tivesse
esquecido como agir em volta de mim.
— Que bom que você já tomou banho — ele diz, colocando a pasta dele
sobre a mesa. Ele realmente tem uma pasta, dessas de couro, que ele leva
para trabalhar. — Eu vou me trocar rapidinho e a gente já sai, tá? Aposto
que faz tempo que você não come hambúrguer.
Na verdade não, se eu considerar que trabalho no shopping e que é
impossível almoçar salgadinho todo dia, mas ao invés de responder eu vou
para o meu quarto e fecho a porta.
Eu devia tentar falar com ele, eu acho, agora que tenho a oportunidade.
Agora que eu estou mais velho. Mas cada vez que eu olho para ele tudo o
que eu consigo pensar, tudo o que eu consigo me lembrar, é dele saindo de
casa, da casa da minha mãe, e eu dormindo sozinho naquela noite, chorando
em silêncio no meu quarto, um vácuo entre nós dois que nunca foi embora
de verdade. A gente nunca conversou. Não deu tempo.
Eu queria perguntar por que, mas nunca tive coragem.
Não sei se tenho.
Eu me troco (me lembro de pentear o cabelo) e nós dois saímos. Meu pai
ainda tenta estender a mão para mim, mas eu não pego, e acho que ele fica
meio envergonhado, porque finge que está limpando a mão na calça e dá
um sorrisinho nervoso.
A viagem no Kadett é silenciosa, o rádio preenchendo o espaço que
nenhum de nós dois parece saber preencher de outro jeito, e quando
chegamos em frente ao shopping eu percebo que é o mesmo em que eu
trabalho. Ou trabalhava, estou confuso.
— Tá pensando na morte da bezerra? — meu pai pergunta, talvez
tentando ser engraçado, e eu pisco forte, porque o que eu estou vendo e o
shopping que eu me lembro de 2019 estão se misturando bem na minha
frente, uma dor aguda querendo perfurar meu crânio. — Adriano, tá tudo
bem?
— Só uma dor de cabeça — digo, esfregando o rosto. É mais fácil se eu
não pensar muito.
O shopping ainda não tem o estacionamento coberto, então paramos do
lado de fora, o vento frio castigando minhas bochechas quando saímos, e eu
tenho a impressão de que está bem mais frio do que nos últimos anos (nos
2000, quero dizer).
Nós andamos rápido pelas vagas vazias, meio curvados e encolhidos, e
quando entramos, nós dois soltamos um suspiro de alívio por causa do ar
quentinho. Eu olho ao redor, estudando as lojas que eu sei que não existem
mais, os logotipos que mudaram e se modernizaram ao longo do tempo, e
principalmente as roupas e os penteados das pessoas. Eu até vejo uma
menina com um Walkman colorido na cintura, e isso tudo é tão absurdo que
eu solto uma risada.
Meu pai me olha, confuso, mas não dou explicações porque o sorriso
começa a diminuir conforme a realidade do que está acontecendo vai me
atingindo de verdade. É tudo colorido demais, real demais, complexo
demais para eu estar sonhando, ou ter ficado maluco, ou o que quer que
seja. Não quero pensar nisso, mas começo a considerar que talvez alguma
coisa tenha mesmo acontecido naquele fliperama.
Meu pai me leva para a escada rolante e acho que ainda estou meio em
choque e acabo tropeçando no degrau. Ele me segura e eu não chego a cair,
mas ele me solta assim que olho assustado para ele, não necessariamente
por causa do tropeço.
É estranho, mas ele não fica muito perto de mim quando saímos da
escada, como se ele tivesse medo de que eu vá explodir se encostar em mim
do jeito errado. Encaro o perfil dele, tentando sentir alguma coisa, e uma
pontada de vergonha espeta meu peito quando percebo que o que eu quero é
na verdade gritar na cara dele que a minha vida é uma merda e é tudo culpa
dele. Primeiro porque ele foi embora, depois porque ainda teve a coragem
de morrer no meu aniversário. Sem festas para o Adriano depois disso.
E por falar em morrer, a primeira coisa que eu vejo lá longe é o fliperama.
Meu estômago dá uma pirueta, a dor dispara pela minha cabeça de novo.
Ele está ali, no mesmo lugar, embora tenha um nome e cores diferentes
dessa vez. Playtown. Cores demais.
— Dri, por aqui — meu pai chama e eu paro, meus pés indo na direção do
fliperama, mesmo sem querer. — Isso tudo é ansiedade, é?
Talvez, mas não pelo motivo que ele acha que é.
— Pai? — chamo, a boca meio seca, uma ideia estúpida na cabeça. Ele
murmura um “hum” meio surpreso enquanto continuamos andando. Acho
que é a primeira vez que o chamo desde que acordei ontem. — E se a gente
fizesse meu aniversário em casa mesmo?
Ele para.
— Como é?
— Deve ter sido uma nota — digo, tentando pensar em alguma desculpa,
e assim que eu falo percebo que é ridículo, porque é provavelmente a última
coisa que uma criança ia dizer. Que eu criança ia dizer, porque lembro, com
um latejar da minha cabeça, como fiquei insistindo para ter a festa de
aniversário naquele fliperama. Tive que prometer que não ia pedir nada de
Natal naquele ano. — Se a gente fizer em casa…
— Tem certeza que você tá bem? — ele diz, colocando a mão na minha
testa. Eu me encolho um pouco e ele tira a mão na mesma hora, como se eu
tivesse dado um choque nele. — Porque você só pode estar com febre ou
alguma coisa assim.
Tento dar uma risadinha sem graça e nós voltamos a andar.
— Já tá tudo pago — ele continua, como se tivesse que dar explicações.
— Além disso, a gente já convidou seus avós, seus tios, seus primos…
tarde demais pra mudar de ideia.
Eu sei. O pior é que eu sei de tudo isso.
Fico quieto até entrarmos na praça de alimentação, e meu pai me leva para
um McDonald’s, todas aquelas cadeiras vazias me fazendo suar debaixo do
moletom.
— Que foi? — meu pai pergunta, e parece que ele está começando a suar
também. — Tem certeza que você tá bem mesmo? Quer que eu ligue pra
sua mãe? Tem orelhão ali do lado do banheiro.
— Não precisa, tô bem — resmungo. — Deve ser fome.
Meu pai me coloca em uma mesa ali perto e diz que vai fazer o pedido.
Apesar de ser segunda-feira a fila está meio grande, tem só dois caixas
funcionando, então acho que vai demorar um pouco. Não quero ficar
sentado ali, não com tanta cadeira vazia ao meu redor. Isso e porque não
consigo tirar a Playtown da cabeça.
— Pai? Posso ir lá no fliperama? — pergunto quando vou até ele,
tentando fazer cara de cachorro sem dono. Quando você é criança esse tipo
de coisa costuma funcionar, ainda mais porque ele ainda deve se sentir
culpado por causa do divórcio. Espero que se sinta. — É rapidinho, só
quero ver os brinquedos que tem lá.
Ele olha para mim, depois para o fliperama lá do outro lado da praça de
alimentação. Não é tão longe assim, ele consegue me ver da fila.
— Tudo bem, mas dez minutos. Eu vou ficar te olhando daqui.
Praticamente saio correndo entre as mesas, uma sensação estranha
começando a subir pelo meu estômago. É meio ridículo, e eu sei que é,
porque estou esperando encontrar aquela máquina antiga, mas não me
lembro dela ali em 1997. Não me lembro dela no meu aniversário e eu acho
que teria me lembrado? Não sei.
Entro na Playtown, e se tem alguma coisa que ela tem em comum com a
Blue Zone é o ar-condicionado na temperatura Alasca. Algumas crianças
estão correndo pra lá e pra cá, gritando, outras jogando naqueles
simuladores de corrida, alguns adultos nas máquinas de pinball.
Começo a andar devagar e acho que estou fazendo o caminho mais longo
inconscientemente, meu estômago doendo, como se quisesse arrastar aquele
momento o máximo que eu posso, porque e se ela não estiver ali? E se ela
estiver?
E ela está. No mesmo canto, do mesmo jeito. Até a tomada está largada no
chão, como se a imagem da máquina que eu tenho na minha mente tivesse
simplesmente se materializado ali, sem se importar se faz sentido ou não.
Chego perto e ela parece desligada, sempre desligada, a tela
completamente apagada. Aperto os botões, e tenho que limpar as mãos na
blusa, porque estão suando. Daquela vez, quando o botão faz clique, ela se
acende de primeira.
Um frio se espalha por todo meu corpo e eu fico olhando os pixels se
arranjarem na tela até formarem uma mensagem.

Você tem três vidas. Quer continuar?

Logo abaixo das palavras aparecem três corações e as opções SIM e


NÃO.
Meu próprio coração está batendo tão forte que eu consigo senti-lo
pulsando na minha cabeça.
Eu respiro fundo, movendo o joystick entre o SIM e o NÃO, aqueles três
corações pixelados me encarando.
Talvez se eu escolher NÃO eu acorde na minha cama em 2019? Talvez
volte para o shopping e aí tudo isso não vai passar de um pesadelo
problemático.
Mas o que eu tenho em 2019, de verdade?
De verdade?
Nem a merda do meu emprego no Balão Mágico eu tenho mais.
Não sei o que estou fazendo, e não tenho como saber se vai fazer alguma
diferença, mas se eu tivesse uma chance de reviver essa semana em 1997,
se eu tivesse a chance de fazer alguma coisa…
Engulo o nó na minha garganta, os olhos na tela enquanto minha mão para
de mexer o joystick.
Fecho os olhos e bato no botão.
SIM.
Sim, eu quero continuar.
TERÇA-FEIRA

Hiro não me chama para brincar na terça de manhã, então fico no quarto
jogando videogame. Eu tenho uma fita do Mario que definitivamente não é
original, mas funciona, e começo do zero porque o cartucho já não está
salvando mais. Não que eu me importe, não estou prestando muita atenção
no jogo em si, porque minha cabeça está a mil com o que aconteceu ontem.
O fliperama, a máquina, a pergunta que apareceu na tela.
Eu estou em 1997, definitivamente estou em 1997, e talvez eu possa…
não sei, mudar as coisas? Tentar salvar meu pai? É a única coisa que faz
algum sentido.
Desligo o Super Nintendo depois de morrer ainda no primeiro castelo e
vou para a cozinha procurar alguma coisa para comer. Meu pai deixou outro
bilhete em cima da mesa, me lembrando de tomar banho, pentear o cabelo e
não perder a perua, porque aparentemente eu tenho uma memória de peixe.
E dessa vez ele ainda escreveu, em letras garrafais, que não é para eu ligar o
fogão de jeito nenhum, então é exatamente o que eu vou fazer.
Acho que ele viu a louça do miojo na pia.
Reviro os armários procurando por comida e enfio uma bisnaguinha na
boca, mas o miojo que eu fiz ontem era o último que tinha. Olho na
cantoneira, meu pai sempre deixa umas moedas ali e, como eu suspeitava,
tem duas moedas prateadas de um real. Dá para comprar um saquinho de
miojo com dois reais, não dá? Deve dar.
Saio de casa passando a moeda pelos nós dos dedos, e erro algumas vezes,
porque agora eu obviamente tenho dedos menores. Tranco a porta com a
chave que meu pai deixa no vaso, guardo as moedas no bolso quando entro
no elevador e passo na garagem para pegar minha bicicleta. O porteiro
acena para mim quando saio e eu pedalo em disparada até a quitanda do seu
Suzuki. De novo eu consigo subir a rua sem dificuldade, o que vai continuar
me impressionando. Paro a bicicleta no topo, respirando pesado, meu corpo
começando a esquentar debaixo da blusa por causa do esforço, e olho pra
baixo. É realmente uma descida íngreme, o Hiroshi tem zero noção de
sugerir descer isso sem freios.
Vou para o canto quando um carro dobra a esquina e desço, devagar,
passando pela pracinha que nós paramos no domingo e pedalo até chegar na
quitanda. A kombi do seu Suzuki não está estacionada perto da calçada, e
quando me aproximo, vejo que a é mãe do Hiro que está cuidando de tudo
hoje.
Largo a bicicleta na calçada, a vermelha do Hiro está ali também. Dona
Suzuki acena para mim e eu entro, o cheiro de banana e goiaba pairando no
ar, e estou indo direto para a prateleira de miojos quando ouço barulho de
televisão vindo dos fundos. Eu dou um passo para o lado e Hiro está
sentado em cima de um caixote, meio curvado porque afinal de contas ele é
comprido, enquanto olha fixamente para uma televisão pequena que está em
cima de outro caixote. O Nintendo 64 dele está no chão.
— Hiro? — chamo, e ele praticamente dá um pulo no lugar. — Tá
jogando o que?
— Mario Kart, com o volante que meu tio me deu. Vem cá!
O miojo pode esperar, então passo pelo corredor e vou até ele. Hiro está
com um daqueles controles que é um volante no colo, os pedais de plástico
no chão.
— Não é mais difícil jogar com isso? — pergunto, me sentando no piso
gelado do lado dele.
— É, mas é mais real.
— Eu duvido um pouco disso.
Ele estreita os olhos, apertando o pedal do acelerador. Vrum, vrum.
— Como é que você sabe, você nunca dirigiu.
Bom.
— Vem cá, tenta — ele diz.
Não sei se eu quero tentar, mas ele já está de pé e eu tomo seu lugar,
colocando o volantinho no colo, em uma posição péssima. Além disso, os
pedais são leves e escorregam cada vez que eu tento acelerar ou parar.
Resumindo, eu chego em último lugar.
— Você é ruim, hein.
Devolvo o volante para ele.
— É essa mer… porcaria de volante. Prefiro jogar no controle.
— Desculpinha.
— Hiroshi! — dona Suzuki chama, e Hiro revira os olhos, cara de tédio.
— Que é?
— Você não veio aqui pra ficar jogando videogame, eu preciso da sua
ajuda.
Ele faz uma careta e coloca o volante no caixote.
— Pode ficar aí jogando se quiser.
— Não, eu tenho que comprar um miojo e voltar.
Hiro franze as sobrancelhas.
— Seu pai tá em casa?
— Não, tô sozinho.
— Então você pode ficar. Aí você me ajuda e depois a gente joga mais.
Olho para a dona Suzuki. Ela está tirando tudo de uma das prateleiras,
murmurando alguma coisa em japonês, e tenho certeza de que vai querer
reorganizar os produtos.
— Ahn, não, eu preciso fazer dever.
Hiro estreita os olhos.
— Mentiroso.
— É sério — digo, enfiando a mão no bolso. Coloco os dois reais na mão
dele e pego o primeiro miojo da prateleira. — Tchau pra vocês.
— Até mais tarde no judô, então, seu traidor — ele diz e eu congelo por
um segundo no lugar.
Judô?

II

Eu me esqueci que fazia judô, claro.


E quando chego na escola naquela tarde, também esqueci que tinha prova
de matemática. Sobre aquelas equações maravilhosas que eu tinha
demorado tanto tempo para fazer.
— Merda — xingo, me jogando na minha carteira e pegando meu caderno
para tentar estudar. Danilo, sempre com aquele boné cinza que não deve
nunca ter sido lavado na vida, me ouve e levanta as sobrancelhas. Não
tenho certeza se tenho o costume de xingar assim, não com onze anos, mas
agora é tarde demais.
Olho meu relógio verde gritante, tenho quinze minutos. Estou tentando
memorizar o que eu preciso fazer em cada equação quando Lucas se
aproxima de mim.
— Por que você tá tendo um ataque? — ele pergunta, todo rosa, enquanto
eu continuo a mexer no meu caderno furiosamente. Eu sei quem ele me
lembra. O Duda de Harry Potter, e é uma pena que eu não possa
compartilhar essa descoberta com ninguém, porque ninguém vai saber do
que eu estou falando.
— Porque eu esqueci que tinha prova hoje — digo. Por um segundo
parece ridículo que eu esteja preocupado com uma prova quando tanta coisa
vai acontecer nos próximos dias, mas aqui estamos nós.
— Me dá isso aqui — Lucas diz, e puxa o caderno da minha mão, assim,
sem mais nem menos.
— O quê? Lucas!
Mas ele é maior que eu, como todo mundo parece ser, e antes que eu
consiga segurá-lo, Lucas sai com o meu caderno acima da cabeça e vai para
a primeira mesa, aquela colada com a do professor. A carteira da Helena.
Eu não entendo o que ele está fazendo, não a princípio, mas o Lucas coloca
o caderno debaixo da carteira, só o suficiente para que um pedaço do papel
fique para fora. Ele se vira para mim, levanta as sobrancelhas
sugestivamente e se senta na carteira de trás.
É só quando Helena chega, praticamente junto com a professora, e se
senta com pressa na carteira dela que eu entendo o que ele quis fazer.
Porque ele é alto e consegue ver o caderno. Também consegue ver por cima
do ombro dela se quiser, e acho que ele tem a intenção de me passar as
respostas se eu precisar.
A professora manda a gente se sentar, e aos poucos a sala vai se
acalmando. Minhas mãos estão suando um pouco quando eu pego a prova e
vejo todas aquelas equações. Eu aposto que não é difícil, mas pelo amor de
Deus, faz décadas e eu nem estudei. Eu já falei que odeio ter onze anos?
Porque eu odeio.
Tento me concentrar na minha prova, mas tenho vontade de olhar para o
Lucas e para a Helena. De relance, vejo-o dando toquinhos com o tênis na
cadeira dela, como se pedisse cola. Ou pelo menos pedisse que ela tirasse o
corpo da frente, sei lá, porque a Helena pode ser muitas coisas e pode ser
estranha, mas ela é boa em matemática.
Ela fecha a cara e se debruça mais sobre a prova. Eu não sei o que o Lucas
estava pensando, porque ela jamais nos ajudaria. Talvez se fosse qualquer
outra pessoa (embora eu duvide um pouco), mas definitivamente não a
gente.
Volto minha atenção para a minha prova, mas agora consigo ouvir Lucas
chutando a cadeira dela mais alto e tenho certeza de que a professora vai
ouvir também. Olho de novo na direção deles e Helena está vermelha, o
corpo ossudo todo praticamente sobre a prova. Não sei como ela está
enxergando alguma coisa, talvez nem esteja. Àquela altura acho que ela só
está tentando fazer o Lucas não ver nada.
E a professora, por mais distraída que esteja corrigindo uns trabalhos na
mesa dela, obviamente percebe.
— O que tá acontecendo, Helena? Lucas?
Helena se endireita como se tivesse levado um choque, e todas as cabeças
se viram na direção dela.
— Não é nada — ela diz, tão baixo que precisa repetir porque a
professora, que está bem na frente dela, não consegue ouvir. Mas quando
Lucas se ajeita na cadeira, eu sei que alguma coisa vai acontecer.
— Professora, ela tá colando.
O silêncio é absoluto, Helena congela no lugar. Na sexta série, ser pego
colando é o tipo de coisa que vira fofoca por um mês inteiro.
A professora cruza os braços.
— Helena, é verdade?
Helena não olha para cima, o que na verdade não ajuda e eu fico quieto,
assistindo, enquanto a dor de cabeça começa a se espalhar pelo meu crânio,
passado e presente se misturando.
— N-não.
— É claro que é! — Lucas insiste, antes que a professora possa dizer
qualquer coisa. — É só olhar debaixo da mesa dela.
Agora todo mundo já parou de fazer a prova. As outras crianças estão
dando risadinhas, tentando falar baixo e falhando miseravelmente, enquanto
outras aproveitam para copiar as respostas, já que a professora não está
prestando muita atenção na sala como um todo.
Helena imediatamente coloca a mão debaixo da carteira, o que é estúpido,
e a professora sai de trás da mesa dela para ver o que está acontecendo.
Helena para quando seus dedos encostam no caderno e ela o puxa de lá.
— Isso não é meu — ela diz, olhando para o caderno. Claro que não é, é
meu. E acho que ela sabe disso, porque me olha como se quisesse me matar.
— É do Adriano!
— Você deve ter pegado dele! — Lucas revida, e de repente eu me vejo
no meio de uma briga em que definitivamente não quero estar.
A professora estende a mão e Helena lhe entrega o caderno. Eu engulo em
seco quando ela se vira para mim.
— Adriano — ela chama, e minha respiração fica mais acelerada, minha
cabeça lateja. — Isso é seu?
Bom, é fácil de verificar se é meu se a professora quiser mesmo, é só
comparar a letra ali com a letra nos meus outros cadernos, então eu faço que
sim.
— É.
— Você colocou esse caderno aqui embaixo?
— Não — digo, porque não foi mesmo. Sinto uma dor bem atrás dos
meus olhos e a sala fica escura por um segundo. Quando volto a falar, é
como se eu estivesse recitando a fala de outra pessoa. Da minha lembrança,
talvez. — Ela deve ter pegado na minha mochila porque sabe que eu sou
bom em matemática.
Uau, Adriano, ápice da maturidade.
Esfrego os olhos tentando fazer a dor diminuir um pouco, e consigo ouvir
os cochichos aumentarem de volume. Quem acha que crianças são anjos
puros e inocentes precisa passar um dia dentro de uma sala do Ensino
Fundamental, porque senhor.
— Eu não peguei! — Helena retruca e minha cabeça dói tanto que eu não
consigo fazer mais nada.
— Bom, o caderno tá debaixo da carteira dela — Lucas diz, encolhendo
os ombros, mais rosa que nunca.
A professora parece considerar aquilo por um segundo e por fim pega a
prova da Helena e faz sinal para que ela a siga.
— Diretoria, anda.
Helena olha para o Lucas de um jeito que eu juro que ele vai entrar em
combustão, e depois olha para mim, como se estivesse decepcionada, ou
esperasse que eu tivesse feito alguma coisa ou sei lá o quê.
— Helena — a professora repete. — Diretoria. Agora.
Ela respira fundo e segue a professora, não sem antes se virar ao passar
pela porta e, sem a professora perceber, levantar o dedo do meio para quem
quiser ver. Para todo mundo, eu acho.
A princípio a sala toda fica quieta, meio pega de surpresa, mas alguém
começa a rir como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do mundo, e de
repente a classe inteira está rindo também e eu consigo jurar que a minha
cabeça vai explodir. A professora precisa fechar a porta e gritar para todo
mundo ficar quieto ou ela vai chamar a diretora.
Todo mundo para, mas alguns risinhos ainda persistem enquanto o
barulho de lápis contra a folha da prova começa a se sobressair sobre os
outros.
Não sei, mas acho que se tivesse a oportunidade de estourar o balão de
aniversariante de cada um deles, era exatamente o que eu ia fazer.
III

Não faço ideia do que aconteceu com a Helena, mas ela voltou para a sala
mais tarde e ficaram dando risadinha dela, claro. Ela não olhou mais para
mim, eu não olhei mais para ela, e a aula terminou.
Eu me esqueci completamente do que o Hiro tinha falado sobre o judô até
que meu pai chegou em casa naquela noite com meu judogui nas mãos.
— Esqueci que você tinha aula hoje — ele diz, colocando o judogui sobre
a mesa. — Mas sua mãe me lembrou, então passei lá na casa dela pra pegar.
É seu exame de faixa, não é? É melhor você se trocar, ela vai passar aqui
daqui a pouco.
Um bolo se forma no meu estômago, mas não é só por causa da mudança
de faixa.
— Você não vai?
Não sei por que pergunto, eu sei que não.
— Não posso, Dri, eu ainda tenho que trabalhar hoje à noite. Mas eu vou
ficar torcendo daqui por você.
Claro. Claro que ele não vai.
— Bom, não é a mesma coisa — digo, controlando a voz para não soar
histérico e pego o judogui para me trocar. — Mas obrigado pela
consideração.
Bato a porta do banheiro porque quero que ele ouça e me sento no vaso.
Minha cabeça está latejando e tudo o que eu consigo pensar é na piada que
é a minha vida, porque eu voltei para 1997 só para ficar nesse climão
estranho com o meu pai de novo. Para reviver todos aqueles dias uma
segunda vez, porque é claro que da primeira não foi o suficiente.
Eu me troco, meio trêmulo, e saio.
— Dri, não é que—
— Eu não quero saber — digo, indo direto para a porta. — Não preciso
que você fique dando desculpas.
E bato a porta do apartamento de novo, só para enfatizar.
Eu sei que é infantil e ridículo. Eu sei disso tudo, só não significa que eu
me importo, não nesse dia específico.
Desço pelas escadas, porque não quero que meu pai decida vir atrás de
mim enquanto espero pelo elevador, e quando chego na portaria minha mãe
está conversando com o porteiro.
— Dri? Pedi pra interfonarem agora. — Ela para, me olha de cima a
baixo. — Tá tudo bem?
Eu na verdade estou com dor de cabeça, uma agulha latejando bem no
meio da minha testa, mas faço que sim porque não quero voltar para o
apartamento e ter que lidar com meu pai de novo.
Minha mãe coloca a mão na minha testa, depois no meu pescoço, e
quando parece satisfeita me puxa para o carro. Assim que entro ela dá um
saquinho engordurado para mim.
— Pra você comer no caminho.
É uma coxinha. Não sei se é muito saudável comer uma coxinha antes de
fazer exercício, mas é melhor do que ficar com fome, então eu como, e
quando chegamos na academia minha cabeça parece estar um pouco
melhor.
A academia é do tio do Hiro, o sensei Nakagawa, eu me lembro, e eu acho
que é só por isso que ele faz judô. E na verdade acho que só faço judô por
causa do Hiro, aquela coisa do tipo fui ver como é e acabei ficando.
Minha mãe para o carro e pega alguma coisa no banco do passageiro que
eu não tinha visto antes.
— O que é isso? — pergunto, enquanto ela dá a volta para abrir a porta
para mim. Ainda sinto a gordura da coxinha nos meus lábios.
Ela levanta uma câmera.
— Ué, a gente precisa tirar uma foto sua de faixa nova.
Dou uma risadinha de nervoso.
— Faixa nova?
— Seu exame é hoje, Adriano, você falou a semana passada toda disso.
E como se quisesse enfatizar, ela tira uma faixa amarela do banco do
passageiro também.
Suspiro. Claro, aposto que eu falei.
Quando entro na academia, Hiro está sentado em um dos bancos que
ficam do lado de fora do tatame, já de judogui (um judogui azul, eu sempre
quis um desses), um Game Boy cinza nas mãos. Eu me sento ao lado dele,
tentando ignorar a imensidão de banco vazio que tem do meu outro lado, e
espicho os olhos para aquela telinha que nem iluminação própria tem. É
capaz do menino ficar míope de tanto que espreme os olhos para enxergar
as coisas direito nela.
— Pokémon? — pergunto, porque parece. Está tudo em japonês e faz
décadas que eu não jogo, mas reconheço os pixels.
Hiro se vira para mim com os olhos ligeiramente arregalados.
— Como você sabe? Meu tio que trouxe pra mim. Do Japão.
Ah, merda.
— Ahn, acho que vi um comercial.
— Não tem comercial, nem saiu aqui ainda.
Fico quieto, bem quieto, esperando que Hiro esqueça aquilo enquanto ele
me encara como se estivesse tentando ler meus pensamentos.
—Você tá esquisito — ele diz, salvando o jogo com o barulhinho que eu
ainda lembro, e desliga o Game Boy. — Na verdade eu nem queria ter
vindo hoje, mas aí lembrei que é o dia do seu exame. — Ele sorri, enfiando
o aparelhinho na mochila. — A gente vai ficar na mesma faixa e… oi!
Hiro sorri de novo, ele sorri tão fácil, e acena para alguém que está
entrando. Quando me viro, é claro que é Helena. Porque é claro que ela não
consegue sair da minha vida.
— O que você tá fazendo? — pergunto para ele baixinho, entre os dentes,
e Hiro olha para mim como se fosse óbvio.
— Dando oi, ué. Ela vai mudar de faixa hoje também.
Claro que vai.
Ela entra andando com o sensei Naka, a mão dele nos ombros dela, mas
Helena não parece muito feliz. Parando para pensar agora eu não sei se já a
vi feliz, o que é estranho, se a gente considerar que ela tem doze anos. E
também não sei como ela vem para o judô, não tenho certeza se alguém a
deixou aqui ou se ela vem andando ou o quê. Não é da minha conta, na
verdade. Tento não encará-la por causa do que aconteceu mais cedo, e uma
coisa meio sem precedentes acontece: ela sorri. Não para mim, claro, mas
para o Hiro.
— Desde quando você é amigo dela? — pergunto, quando ela se afasta.
Ele encolhe os ombros.
— Ela vem aqui depois da aula às vezes. A gente treina, conversa. Ela é
legal. Sabia que ela gosta de jogar videogame também?
Não, eu não sabia, mas não tenho tempo de ficar remoendo aquilo porque
o sensei Naka chega e manda a gente ir para o tatame. Nós nos arrumamos
em duas fileiras por ordem de faixa e nos ajoelhamos para fazer o
cumprimento à imagem do inventor do judô, Hiro na minha frente. Depois
começamos o aquecimento, correndo pelo tatame, fazendo polichinelos,
abdominais, esse tipo de coisa. A pessoa que puxa o aquecimento sempre
conta em japonês, e é engraçado como eu não achei que fosse me lembrar
dos números, mas me lembro.
Quando todo mundo já está começando a suar, o sensei Naka nos separa
em duplas para que possamos treinar golpes e imobilizações. Nessa parte
ele normalmente coloca meninos com meninos e meninas com meninas, o
que é um alívio, porque não corro o risco de fazer dupla com a Helena. Ela
provavelmente tentaria quebrar meu pescoço depois de hoje, meu nariz na
melhor das hipóteses.
Hiro é maior que eu, mas acho que o sensei sabe que a gente gosta de
praticar juntos, então nos coloca como dupla. Isso e porque vamos treinar
imobilizações, então acho que não faz muita diferença.
Ele acena para o Hiro, pedindo que ele se aproxime.
— Eu sei que essa é uma das primeiras imobilizações que vocês aprendem
— ele diz, fazendo sinal para o Hiro deitar —, mas também é uma das mais
eficientes e uma das mais difíceis de sair, principalmente se o seu oponente
estiver cansado.
Ele passa o braço pela cabeça de Hiro e segura a manga do judogui com a
outra mão.
— Alguém sabe o nome? Helena?
Ela levanta a cabeça em surpresa, porque acho que as pessoas
normalmente não chamam o nome dela assim, e seu rosto fica
completamente vermelho.
— Kesa gatame — ela diz baixinho e o sensei sorri. Nunca reparei nisso,
mas acho que quando crescer o Hiro vai ficar parecido com ele.
— Isso. E esse mês a gente vai treinar essa imobilização.
Ele solta o Hiro e nós começamos a treinar. Deixo-o começar primeiro
porque minha cabeça ainda está doendo um pouco e deitar ajuda, e vejo o
sensei passar por todas as duplas, corrigindo a pegada das mãos, a posição
das pernas.
— Pega aqui mais em cima — ele diz para mim na minha vez. — E
abaixa a cabeça. Isso. Se você fizer direito é bem difícil de escapar.
Tive que repetir a imobilização umas cinco vezes até o sensei ficar
satisfeito e passar para a dupla seguinte. Nós continuamos, tanto com as
imobilizações quanto com os encaixes de golpe.
Na última parte da aula o sensei finalmente faz o que ele chama de
“campeonatinho”, o que basicamente significa que ele chama duas pessoas
para lutar no meio do tatame enquanto os outros alunos ficam em volta,
assistindo.
E eu odeio campeonatinho. Sempre odiei, ainda mais agora que eu não sei
o que estou fazendo.
Mas eu não posso sair correndo assim no meio da aula, então fico e sou
pareado com o Hiro, que é melhor e mais ágil que eu. Não somos os
primeiros a lutar e eu fico sentado de pernas cruzadas na bordinha do
tatame, meus olhos vagando pelos bancos onde os pais podem se sentar e
esperar. Minha mãe está conversando com uma mulher que eu não sei quem
é, a câmera no colo dela, e não consigo deixar de pensar na outra vez em
que eu mudei de faixa. Da vez em que ela não estava sozinha.
— Hiroshi, Adriano.
Hiro bate no meu braço e se levanta. Eu ajeito meu judogui e o sigo para o
centro do tatame, depois, quando estamos um de frente para o outro,
fazemos o cumprimento.
Quando o sensei grita hajime para a gente começar, nós andamos em
círculos, bem devagar, um sorriso no rosto de Hiro, as mãos em posição
para segurar meu judogui.
É ele quem dá o bote primeiro e, quando faz a pegada, uma mão na minha
gola, outra na minha manga, ele alarga o sorrisinho. Ele me puxa e tenta
passar o braço pelo meu pescoço, mas eu consigo me esquivar e tiro a mão
dele de lá. Tento pegá-lo em um golpe com as pernas em seguida, mas ele
escapa e me puxa em um outro golpe, me fazendo cair de joelhos no chão.
Ouço alguns barulhos de surpresa do pessoal que está sentado em volta do
tatame e me encolho enquanto Hiro tenta me virar para me imobilizar, mas
quando fica claro que aquilo não vai dar certo, o sensei pede para gente
parar.
Nós nos levantamos e eu ajeito o judogui, colocando-o para dentro da
faixa de novo, enquanto Hiro não se preocupa em arrumar o dele. Se ele
não percebeu ou se quer deixar mais difícil para eu segurar, eu não sei, mas
o sensei diz hajime de novo e a gente continua.
Eu limpo o suor da testa no braço e meus olhos mais uma vez param na
minha mãe, sentada no banco, me assistindo com aquela câmera estúpida
pronta para bater uma foto que provavelmente vai sair toda borrada. É só
por alguns segundos, mas Hiro se aproveita da minha distração e me pega
despreparado, encaixando um golpe que ele não teria encaixado se eu
estivesse prestando atenção. Eu caio meio de lado, mas consigo me virar
antes que ele me imobilize e a luta para de novo.
De pé, eu engulo em seco, e quero me bater por não conseguir deixar de
olhar para minha mãe e o lugar vazio ao lado dela. Custava ele ter vindo?
Era só um dia, custava ele ter vindo? Meus olhos ameaçam arder e eu os
esfrego, com raiva. Idiota, Adriano, é isso que você é, um idiota.
— Tá tudo bem aí? — o sensei pergunta, claramente para mim, e eu faço
que sim com a cabeça. — Hajime.
Quando a luta reinicia, daquela vez eu estou preparado para Hiro vir com
tudo de novo, mas ele hesita e uma expressão que eu não consigo
interpretar direito passa por seu rosto. Como se ele tivesse de repente
decidido fazer alguma coisa, exceto que a minha cabeça explode com a dor
e eu estou vendo o passado e o presente ao mesmo tempo conforme tudo se
desenrola bem na minha frente.
Sacudo a cabeça, achando que ele vai avançar contra mim, mas Hiro fica
parado, esperando, e quando a dor de cabeça começa a diminuir, quase
como se quisesse se esconder na base do meu crânio, sou eu quem avança
contra ele. E daquela vez, quando eu encaixo o golpe, Hiro cai, o que não
faz sentido. Ele tem pelo menos a decência de não cair de costas, e eu sou
obrigado a imobilizá-lo, porque é assim que as coisas funcionam, mas
percebo que ele não está se esforçando. O sensei se aproxima e começa a
contar enquanto Hiro tenta escapar (ou finge que tenta, não sei) e quando
chega no dez ele diz matê para a gente parar. Eu o solto e me levanto, ainda
meio perdido com o que acabou de acontecer. E o sensei Naka parece ter
percebido a mesma coisa que eu, porque olha com os olhos estreitos para o
sobrinho dele.
Nós nos cumprimentamos, ele aponta para mim como o vencedor, e nós
dois saímos correndo do tatame para beber água.
— O que foi que aconteceu? — pergunto, ajeitando o judogui, que está
todo para fora.
— O que aconteceu é que eu perdi.
— De propósito?
Hiro se vira para mim, e se não tivesse lutado com ele e sentido que não
estava se esforçando, poderia até acreditar que ele estava falando a verdade.
— Eu não perdi de propósito! Eu me distraí e você me derrubou.
— Não perdeu de propósito meu cu.
Hiro arregala os olhos, o pescoço de repente vermelho, a mancha subindo
rápido para suas bochechas.
— Minha bunda! — tento consertar. — Foi você que ouviu errado, eu não
falei nada demais.
Ele respira muito fundo umas três vezes e acho que da próxima vez vai
pensar duas vezes antes de me deixar ganhar. Quando voltamos para o
tatame, o sensei anuncia que vai começar o exame de faixas e meu
estômago embola todo. Eu não estava muito preocupado até aquele
momento, pelo menos não muito, mas agora eu percebi que provavelmente
vou passar vergonha na frente de todo mundo.
Além de mim, mas quatro alunos vão fazer o exame, incluindo a Helena, e
acho que isso me deixa ainda mais nervoso, porque por algum motivo não
quero passar vergonha especialmente na frente dela.
O sensei chama Helena primeiro e é um alívio, porque com um nome
como Adriano eu sou sempre o primeiro em tudo, o que é péssimo. Ela fica
vermelha e ajeita a franja que está caindo um pouco sobre os olhos, depois
vai até o sensei. O exame dela é igual ao meu, da faixa azul para a amarela,
e eu presto atenção, o bolo da antecipação aumentando no meu estômago.
De repente sinto alguém dar um tapa bem pouco delicado na minha perna.
— Não precisa se preocupar, você consegue — Hiro diz. — Você até
ganhou de mim. O exame vai ser moleza.
Olho para ele e estreito os olhos, porque estou fazendo certas conexões, e
ele dá uma risadinha sem graça, talvez achando que vou começar a profanar
palavrões na presença dele, o que eu devia fazer, só para ele ficar esperto.
Quando volto a olhar para o tatame, Helena já está demonstrando os golpes
no sensei. Ela acerta o primeiro e o segundo, mas no terceiro o sensei Naka
balança a cabeça. E no quarto. Nos últimos dois ela já está nervosa e erra
também, o que só faz minha ansiedade aumentar ainda mais.
— Ah, droga — Hiro diz ao meu lado quando o sensei balança a cabeça e
coloca as mãos nos ombros dela. Há um silêncio tão profundo que parece
impossível, e só os passos dela pelo tatame é que fazem barulho. Helena
coloca os chinelos sem se virar para nós, e não dá para ver, mas quando ela
leva a manga do judogui ao rosto, eu sei que ela está chorando.
Ela sai sem dizer nada e Hiro se levanta para ir atrás dela. Eu tento
segurá-lo, mas ele é mais ágil do que eu, e já está andando com Helena até
o lado de fora. Eu fico sozinho, a boca seca, minha cabeça ameaçando
voltar a latejar.
Fico sentado na beira do tatame, minhas pernas subindo e descendo, e é
claro que sou deixado por último por algum motivo misterioso, mas Hiro
volta bem a tempo de ouvir o sensei me chamar. Ele não está mais com a
Helena, não sei para onde ela foi.
— Adriano?
Eu me levanto e entro no tatame, as mãos suando, querendo muito um
copo d’água. O sensei Naka está ajoelhado na minha frente e eu me ajoelho
na frente dele enquanto ele faz perguntas. Conta até trinta pra mim, como é
mão e pé em japonês. Eu respondo, porque mesmo depois de tantos anos eu
ainda me lembro, mas congelo quando ele me manda levantar para
demonstrar alguns golpes.
Eu fecho os olhos. Talvez se eu conseguir me lembrar, se de alguma
forma eu enxergasse… Minha cabeça explode, escurecendo minha visão.
Tudo dói, mas quando o sensei diz que eu posso começar, meu corpo se
move, imitando os mesmos movimentos que eu fiz da outra vez, uma cópia
perfeita do passado, quase como se eu fosse uma marionete.
O-soto-gari.
O-goshi.
Ko-soto-gari.
Eu executo os golpes, deixando meu corpo seguir o que minha mente diz
que vai acontecer, um replay sendo reproduzido em tempo real. São as
mesmas perguntas, os mesmos golpes, e minha mente é só uma névoa, uma
dor na base do meu crânio, enquanto deixo meu corpo fazer o que tem de
ser feito.
Por fim, eu paro, quase como se tivesse saído de um transe, e talvez eu
tenha mesmo. Acabou. O sensei olha para mim e sorri, depois faz um
cumprimento e pega minha mão.
As outras crianças batem palmas e quando olho para Hiro ele está
sorrindo também, assoviando com os dedos dentro da boca.
Viro para minha mãe sentada no banco ali do lado e ela levanta a máquina
fotográfica, tirando uma foto com um flash ligado que me cega por um
instante, sem nem pedir permissão. Tento sorrir, meu corpo agora mole de
alívio. Mas por mais que eu sorria, por mais que eu esteja aliviado, não
posso deixar de notar o banco vazio ao lado dela e a ausência da pessoa que
eu queria que estivesse ali também.
QUARTA-FEIRA

Acordo na quarta de manhã com o interfone tocando e os cachorros do


apartamento do vizinho latindo. Estico o braço, querendo pegar o celular
para ver que horas são, e aí me lembro que não tem celular nenhum.
Me levanto com sono e vou cambaleando até a cozinha, onde fica o
interfone.
— Alô?
— Bom dia — o porteiro diz do outro lado. — O César tá aqui embaixo
perguntando se você pode descer.
— César?
— É, um menino japonês.
Hiro, claro. Exceto que ninguém chama ele de César na vida.
— Tá, fala pra ele que eu já desço.
Desligo o interfone e me troco, ainda meio bambo de sono, e quando
desço, Hiro está virando o guidão da bicicleta de um lado para o outro como
se tivesse sido injetado com uma dose de açúcar, uma caixinha preta nas
mãos.
— Que horas são? — pergunto com um bocejo. Não é possível que ele
esteja alerta e em cima de uma bicicleta àquela hora da manhã.
— Não importa, o que importa é que o Doom 64 que eu reservei acabou
de chegar na locadora e eu tô indo lá alugar. Quer ir junto?
O meu eu de onze anos com certeza ficaria empolgadíssimo, então dou
mais um bocejo e faço que sim. Subimos a rua de bicicleta, o Hiro na minha
frente, e toda hora ele olha para trás, talvez para ver se eu estou
acompanhando, mas eu não estou nem com a metade da empolgação dele.
— Anda logo, Adriano, seu lerdo! — ele diz impaciente, o corpo todo
levantado da bicicleta.
Sou obrigado a pedalar mais rápido para alcançá-lo enquanto suas pernas
giram os pedais sem parar, uma mão no guidão, a outra segurando a
caixinha da locadora.
Nós subimos a rua e eu ainda não consigo me acostumar com como sou
capaz de pedalar por tanto tempo sem passar mal ou parecer que eu vou
morrer. Quando chegamos no topo da subida, Hiro para. Eu emparelho com
ele e ele se vira para mim com um sorrisinho.
— Descer sem freio?
Qual é a fixação que ele tem com isso?
— Não. E se você insistir mais uma vez eu juro que desço, gritando todos
os palavrões que eu conheço. São muitos.
Ele estreita os olhos e mostra o dedo do meio para mim com a mão livre,
porque aparentemente isso não conta como palavrão, depois desce a rua na
minha frente, definitivamente com freios. Eu o sigo e nós passamos pela
quitanda dos pais dele, continuamos reto por mais três quarteirões até
chegarmos na locadora.
Não consigo reprimir um sorriso ao ver aquele lugar. Eu nem lembrava
que a locadora tinha um nome (Video Star), porque a gente sempre se
referia a ela como a locadora. Não lembro quando foi a última vez que
pisei em uma. E eu reparo, pela primeira vez, que a locadora na verdade não
é uma locadora coisa nenhuma, é só uma casa.
Quer dizer, no que seria a garagem há algumas máquinas de fliperama
com videogames na parte de dentro que a gente pode alugar e jogar ali
mesmo, uma portinha de alumínio na lateral que dá para a sala da casa,
onde ficam as prateleiras com os jogos para alugar.
Hiro larga a bicicleta na entrada e eu faço a mesma coisa, a dona da
locadora ainda passando um pano no chão porque deve ser no máximo
umas nove da manhã. Quando olho para o outro lado da rua vejo que bem
em frente à locadora tem um bar sujo, do tipo que tem aqueles potes de
vidro com balas que devem estar vencidas, uma balança muito velha e
mesas de plástico amarelo. Já tem um cara lá dentro, àquela hora da manhã.
Hiro vai até a moça da locadora e levanta a caixinha preta.
— Vim devolver essa e buscar Doom 64 — ele diz, quase dando pulinhos
no lugar. A moça larga o rodo e entra na portinha, Hiro em seu encalço.
Prateleiras de metal cobrem as paredes com cartuchos de vários consoles.
— Tá no nome de quem? — ela pergunta, puxando um caderno surrado
de capa preta de algum lugar de trás do balcão.
— César Hiroshi — Hiro responde. Ela olha uma lista de nomes no
caderno e risca o que suponho ser o nome do Hiro, depois desaparece por
trás de uma porta. Eu coloco as mãos no bolso e fico olhando em volta, até
que meus olhos param na caixinha de um Street Fighter e o Ryu na capa
chama minha atenção, porque me lembro de uma coisa.
— Hiro — chamo e ele se vira para mim, meio distraído.
— Hum?
— Ontem. No judô, na luta.
Ele me olha, os dedos batendo muito devagar no tempo do balcão.
— O que que tem?
— Você me deixou ganhar.
— Não deixei, não. Eu me distraí e você ganhou.
Eu sei que ele está mentindo.
— Eu nunca ganho de você.
Ele mexe os pés, depois suspira. Hiro é o tipo de pessoa que não sabe
mentir direito sem ficar vermelho, e naquele momento ele está um pimentão
completo.
— Tá, eu deixei — ele diz, meio revirando os olhos. — Mas é porque…
Não sei, você parecia meio nervoso por causa do exame de faixa. E… por
causa do seu pai? Ele não tava lá, e se você perdesse você ia ficar mais
nervoso e podia errar as coisas. E eu não queria que você errasse. — Ele
para e cruza os braços. — Você tá muito esquisito ultimamente. Tipo,
quieto, sério, sei lá.
Não respondo. Por um segundo me pergunto o que ele diria se eu
simplesmente contasse a verdade, sabe, que quem está dentro desse corpo
de onze anos é o Adriano de 33. Aposto que ele ia achar incrível.
Quando a moça da locadora volta com a fita do Doom 64, Hiro
literalmente dá um pulinho no lugar. Acho que ele vai dormir abraçado com
o cartucho.
Suspiro, enquanto o observo todo feliz com a fita.
Pior, aposto que se contasse para ele, Hiro ia me olhar como se eu fosse
um super-herói ou coisa assim, o que é meio deprimente, porque para falar
a verdade, é uma coisa que eu estou bem longe de ser.

II

Meu pai deixou vinte reais em cima da mesa da cozinha e um bilhete que
dizia: Para o passeio! Um passeio do qual eu só me lembrei quando vi o
bilhete em questão, assim que a dor de cabeça pareceu dividir meu crânio
em dois. Aparentemente tenho uma excursão para um planetário.
Quando chego na escola, depois de aguentar aquelas crianças barulhentas
pelo caminho todo, o ônibus em que a gente vai já está estacionado bem na
frente do portão e a professora está andando de um lado para o outro,
batendo com a caneta em uma prancheta.
Assim que me vê ela dá um suspiro de alívio.
— Até que enfim, Adriano — ela diz, riscando alguma coisa numa
prancheta. — Só faltava você.
Meu rosto esquenta, porque é claro que só faltava eu, e ela aponta para a
porta do ônibus. Eu entro, e fico feliz por não estar calor, porque
obviamente é um daqueles ônibus que não tem ar-condicionado. E ele está
lotado de crianças que não calam a boca.
Eu corro os olhos pelos bancos procurando por Lucas ou por Danilo,
porque não quero ficar sozinho. Eles estão sentados no fundo, rindo e
conversando, mas quando vou na direção deles os lugares já estão todos
ocupados. Olho ao meu redor, procurando por um lugar vazio, e só tem
lugar lá na frente, com as crianças que definitivamente não fazem parte do
meu grupo de amizades, mas pelo menos são mais quietas. E é claro que
tem um lugar vago do lado da Helena, ela toda encolhida, com um blusão
largo da escola, mas nem em um milhão de anos eu vou me sentar do lado
dela, porque sou maduro desse jeito.
Fora esse banco, tem um lugar do lado da professora, porque ninguém
nunca se senta do lado da professora numa excursão.
— Adriano, senta e cinto — a professora diz e eu olho para minhas duas
opções. Com um suspiro resignado, decido me sentar do lado da professora,
que me olha como se eu fosse um alienígena. — Você tá bem, menino?
Só balanço a cabeça para fazer que sim e prendo o cinto, ficando bem
quieto, porque se até a professora perguntou é porque a coisa tá feia.
Provavelmente vão me zoar por causa daquilo, e me empenho em observar
a paisagem o caminho todo, até o ônibus finalmente parar e a professora se
levantar para passar por mim.
— Quero todo mundo me seguindo, sem empurra-empurra, sem correria.
É claro que aquilo só fez todo mundo correr e se empurrar para descer do
ônibus primeiro, e estar na primeira fileira pelo menos serviu para que eu
não ficasse embolado em todo mundo e caísse dos degraus do ônibus como
uma menina caiu.
A professora faz todo mundo fazer uma fila e, depois do que parece
demorar para sempre, nós finalmente conseguimos entrar no saguão do
planetário. Uma moça vem até nós, entrega um crachá para cada um onde a
gente tem que escrever nossos nomes, e quando todo mundo está
devidamente etiquetado, somos levados para a primeira sala.
Acho que ninguém quer passar mais do que cinco minutos ali, porque a
primeira sala é uma exposição do sistema solar, com painéis sobre os
planetas, e a moça que nos deu os crachás começa a explicar sobre a
formação do universo e tudo mais.
Até que é interessante, mas não para um bando de crianças da sexta série
que provavelmente estão mais interessadas em ir comer no McDonald’s
depois da excursão sem os pais. Quando a apresentação termina, bem a
tempo de evitar que dois meninos comecem a se bater, a moça faz sinal para
que a gente a siga, passando por um corredor escuro, pintado de preto, onde
tem pequenas luzinhas que imitam as constelações do céu. No final do
corredor há duas portas de correr, uma de cada lado, e a moça nos guia para
a sala da esquerda.
— As salas são iguais? — ouço a professora perguntar, tentando espiar de
um lado e do outro.
— São — a moça responde —, a gente usa se a turma for muito grande.
Basicamente o que passa em uma, passa em outra.
Lucas me dá um empurrão e eu quase tropeço entrando na sala. Ele passa
o braço pelo meu pescoço e eu juro que queria conseguir empurrá-lo para
longe, porque ele está grudando.
— Não quis ficar do ladinho da Helena, não? — ele pergunta, me
apertando. Helena está lá na frente, e graças a Deus ela não ouve. Eu sei
que ele só está querendo tirar sarro da minha cara, mas não gosto. Não
gosto dele, na verdade, acho que decidi.
Eu não respondo e finalmente consigo me livrar dele com um empurrão.
A sala em que nós entramos está escura e tem o teto em forma de domo,
centenas de pontinhos de luz espalhados pela superfície convexa, todos
oscilando de intensidade como luzinhas de natal brancas.
— Todo mundo sentado, todo mundo sentado — a professora diz,
apontando para o chão, e meio tropeçando uns nos outros, nós nos
sentamos.
Quando todo mundo se acalma e está devidamente acomodado, a moça
fecha a porta e as luzinhas se apagam na mais profunda escuridão. Aos
poucos minhas pupilas começam a se acostumar com a falta de luz e, como
quem não quer nada, procuro por Helena. Ela está encolhida num canto,
sozinha, abraçando as próprias pernas, aquele capuz na cabeça.
De repente, uma voz cadenciada e imponente começa a falar, saindo de
algum alto-falante escondido.
— Há 13,8 bilhões de anos atrás, houve uma explosão…
O domo se acende em uma explosão muda que pega todo mundo de
surpresa, e eu preciso fechar os olhos por um segundo por causa da
luminosidade.
— E esse foi o início do universo como nós conhecemos.
A explosão gira no domo e vários pontinhos saem dela. Estrelas, galáxias,
nebulosas. A explicação continua, passando pelo sistema solar, a Terra, até
a apresentação de algumas constelações como vistas do céu terrestre, e para
o tanto de barulho que aquelas crianças estavam fazendo, é impressionante
como elas ficam quietas.
Quando a explicação acaba e as luzes se acendem, todo mundo começa a
piscar forte, como se estivesse acordando de um sonho.
Um segundo depois já estão reclamando de fome, claro.
A moça que nos guiou pelo planetário ajuda a professora a nos organizar
em fila mais uma vez e nós ganhamos um livrinho sobre o universo e o
planeta Terra, onde tem uns adesivos. Assim que os livrinhos vêm para
nossas mãos os meninos começam a tirar os adesivos e a colar no cabelo
das meninas, porque acho que esse é o tipo de coisa que meninos fazem.
Danilo, aquele traidor que não guardou lugar para mim no ônibus depois
de ter copiado todo meu dever de matemática, tira um adesivo de Saturno
da cartelinha e o estende para mim, o adesivo colado em seu indicador.
— Aposto que você tá morrendo de vontade de colar no cabelo dela.
Ele aponta Helena com a cabeça, que está deslocada do resto da turma, lá
na frente de todo mundo ao lado da professora. Ela anda com a cabeça meio
abaixada, as mãos nos bolsos. Pego o adesivo com um suspiro e minha
cabeça explode.
Conforme meus pés vão na direção de Helena, eu vejo tudo se desenrolar,
passado e presente sobrepostos, e enquanto espelho os movimentos que
vejo, uma parte de mim sabe que o que eu estou prestes a fazer é estúpido.
Fecho os olhos com força e paro, e parece que preciso fazer uma força
enorme para não me mexer mais, quase como se uma mão invisível
estivesse tentando me empurrar.
— Que foi? — Danilo pergunta do meu lado, acompanhado por Lucas. —
Vai dar pra trás?
Não respondo, dedos nas têmporas por causa da dor chata que insiste em
aparecer o tempo todo.
— Acho que ele não tá bem — Lucas diz, a única coisa sensata que ele já
disse desde segunda-feira.
— Cagão — Danilo diz, e pega o adesivo do meu dedo. Ele vai até
Helena, devagar para ninguém perceber, e ao invés de simplesmente colocar
o adesivo ele bate na cabeça dela com uma certa força, porque a menina
tropeça para frente e quase cai.
Ao mesmo tempo, é como se uma bolha ao meu redor tivesse estourado,
uma bolha que eu nem tinha percebido, e minha dor de cabeça…
desaparece. Olho de um lado para o outro, de repente vendo tudo, ouvindo
tudo com tanta nitidez que é como se eu tivesse passado aquele tempo todo
debaixo d’água e alguém tivesse finalmente me puxado para a superfície.
Ao meu redor, o ar vibra.
— Danilo! — a professora grita, mas ele já está voltando, rindo como se
fosse a coisa mais engraçada do mundo.
Helena se vira na nossa direção, o rosto vermelho e aqueles olhos fundos.
Ela levanta o polegar e um indicador enquanto anda de costas, imitando o
formato de uma arma, e encosta o dedo na têmpora.
Um frio percorre minha espinha e o sangue sai todo do meu rosto, porque
ela pode até não saber ainda o que está fazendo, mas eu sei.

III

O McDonald’s ficava só a uma quadra do planetário, então nós fomos


andando em fila.
Eu peço um combo do Quarteirão e me sento na mesa com Danilo e
Lucas, mesmo não querendo muito, porque é melhor do que me sentar de
novo com a professora ou com a Helena. Principalmente com a Helena. E
porque na mesa deles eu posso ficar de costas para as cadeiras vazias do
salão sem dar muito na cara.
Os meninos começam a conversar sobre algum anime que eu não estou
interessado e eu me pego olhando para Helena, sozinha em uma mesinha
que tem uma cadeira só, bem do lado do banheiro. Ela pega um embrulho
da mochila, um embolado amassado de papel alumínio, e vai abrindo com
cuidado, como se não quisesse fazer barulho, não quisesse chamar a
atenção. Ela tira um sanduíche de lá de dentro, não dá para ver do que, mas
eu sei que é um sanduíche de pão de forma que está todo amarrotado. E ela
começa a comer, isolada, enquanto todo mundo ri e se entope de
McDonald’s.
De repente eu não estou com tanta fome assim. Para piorar, Lucas
percebeu que ela está comendo um sanduíche de pão de forma e começa a
fazer piadinha.
— Aposto que o pai dela gasta todo o dinheiro bebendo — ele diz,
ketchup manchando as bordas da boca. — E ela só veio por causa da bolsa,
senão não ia ter dinheiro também.
Minha cabeça começa a latejar de novo, aquela pressão nos ouvidos. O
troco do meu lanche parece um tijolo no bolso, e eu sei que seria o
suficiente para comprar alguma coisa para a Helena, se eu quisesse.
Acho que quero dizer alguma coisa, fazer alguma coisa, mas sinto que
estou debaixo d’água de novo, minha cabeça doendo dos olhos até a base
do crânio, e o máximo que eu consigo fazer é ficar quieto e comer meu
lanche em silêncio, evitando olhar para os lados, até eles pararem e a
sensação passar. Parece que demora uma eternidade inteira.
Lucas e Danilo finalmente se levantam para jogar as embalagens fora e eu
consigo respirar fundo, meio zonzo. Quando me coloco de pé também, mais
uma vez, o ar ao meu redor vibra. Olho em volta, fascinado, me sentindo
como se fosse uma pedra atirada no meio de um lago.
QUINTA-FEIRA

— Da onde você conhece a Helena? — pergunto para o Hiro na manhã


seguinte enquanto jogamos Mario Kart no quarto dele. Com aquele
volantinho péssimo.
Imediatamente é como se meus ouvidos se entupissem e o ar vibra.
— Do judô, ué — ele diz, como se fosse óbvio, sem tirar os olhos da tela.
Seus pés se mexem nos pedaizinhos de plástico com uma eficiência
impressionante. — E porque a mãe dela costumava comprar coisas na
quitanda.
— Costumava?
Ele encolhe os ombros.
— Ela sumiu, não sei o que aconteceu.
Hm.
— Ela mora aqui perto?
— Umas ruas pra cima da quitanda. Ah, droga! — ele diz, quando é
acertado por um casco azul que infelizmente não fui eu que soltei. Assim
que ele para de girar na pista e volta a andar em linha reta, o telefone
começa a tocar lá na sala. Hiro resmunga, dá pausa e se levanta para
atender.
— Não sai do lugar até eu voltar — ele diz, apontando para a TV.
Eu coloco o controle sobre o colchão e levanto as mãos. Ele estreita os
olhos como se não acreditasse muito em mim, o telefone toca de novo e ele
sai correndo.
Escuto-o reclamar e concordar com alguma coisa, até que ele volta para o
quarto e coloca as mãos na cintura com um suspiro.
— Era minha mãe. Ela pediu pra eu descer na quitanda e levar a carteira
dela, porque ela esqueceu.
— Pode ir — digo, pegando o controle de volta. — Eu te espero aqui.
Hiro vem até mim e delicadamente puxa o controle da minha mão.
— Ou! — protesto.
— Nem a pau que você vai jogar sem mim — ele diz, me puxando pelo
pulso. — Vem logo.
Vou sendo meio arrastado pelo Hiro até o quintal, onde ele pega a
bicicleta dele e eu pego a minha. Nós subimos a rua do capeta pedalando e
paramos lá em cima. De novo. Queria saber por que caralhos aquele menino
sempre para ali em cima.
Quando Hiro se vira para mim, todo magricela e comprido em cima da
bicicleta, eu já sei o que ele vai falar.
— Descer sem freio?
Eu sei que é estúpido. Eu sei. Mas é aquele tipo de estúpido que depois de
considerar por um tempo passa a ficar mais aceitável, tipo quando você
quer pular de um lugar que parece alto e depois de um tempo não parece
mais tão alto assim.
Tipo aquela decida.
Eu não falo nada. Simplesmente dou impulso no pedal e desço, as mãos
firmes no guidão, os dedos longe dos freios.
— Adriano! — Hiro grita lá de cima, mas o vento começa a bater forte
contra os meus ouvidos, fazendo os outros sons desaparecerem. A pressão
nos meus ouvidos aumenta, aumenta, até que toda minha cabeça dói e
quando acho que não vou conseguir mais, a bolha explode. O ar vibra, com
mais violência daquela vez, e não sei se é a vibração ou a velocidade, mas o
guidão começa a bambear e em algum momento eu perco o equilíbrio.
Eu voo.
Sou arremessado.
A roda da bicicleta vira e ela vai de bico para o chão, meu corpo passando
por cima, rolando, rolando e rolando rua abaixo, até finalmente parar lá
embaixo.
Tudo dói e eu começo a gemer, deitado em posição fetal, até que ouço o
freio alto da bicicleta do Hiro ao meu lado, e depois suas mãos encostam
em mim, como se ele quisesse me ajudar, mas não soubesse muito bem o
que fazer.
— Meu Deus, você levou o maior capote da história.
Eu sei, porque tá tudo doendo.
— Acho que me ralei inteiro — digo, joelhos e cotovelos ardendo, as
mãos e um lado do meu quadril também. Não sei como não quebrei um
dente. Ou pelo menos acho que não quebrei.
— Você precisa sair do meio da rua — ele diz, puxando minha bicicleta
para a calçada. Quando olho, ela está meio torta, o que não é tanta surpresa
assim. — Consegue levantar?
— Se você me ajudar.
Hiro me ajuda e eu consigo me apoiar nele, meio cambaleando, e vou até
a calçada, pulando num pé só, onde ele me larga.
— Eu vou entregar a carteira pra minha mãe e já venho — ele diz. — Vou
ver se trago uns band-aids.
Eu aceno que sim, mas não acho que band-aid vai funcionar. Tem um
rombo no joelho direito da minha calça e uma maçaroca vermelho-escura
onde deveria estar a minha pele. Meu ombro está doendo e provavelmente
arranhado, ralei os dois cotovelos e as palmas das mãos. Meu tornozelo dói.
Quando engulo saliva sinto o gosto de sangue e imediatamente penso em
duas coisas: primeiro, que tomar banho vai ser reviver a dor do capote em
toda sua glória. Segundo, que em 1997 merthiolate ainda existe, é laranja e
arde. Pra caralho.
Suspiro, sofrendo por antecipação.
Fodeu.

II

— Mãe? — Hiro chama quando chegamos na quitanda. Meu pai não está
em casa, porque ele nunca está, e nem fodendo que eu vou ligar para a
minha mãe avisar que eu caí e me ralei todo, porque ela vai dar um piti.
Infelizmente, a reação da dona Suzuki não é muito melhor.
— Meu Deus do céu, Adriano, o que foi que aconteceu? Hiroshi, o que foi
que você fez?
— Não fiz nada!
Não sei se fico ofendido ou lisonjeado por ela achar que o fato de eu estar
todo ensanguentado tem a ver com o filho dela, mas prefiro falar antes que
eles comecem a brigar.
— Eu só caí — digo, como se tivesse só tropeçado na calçada e levado
um sustinho.
— Caiu? Você parece que foi atropelado! Meu Deus, menino, sua mãe vai
me matar. Vem pra cá! — ela se vira para o Hiro, as bochechas vermelhas.
— Como você deixou ele cair assim?
— Mãe, ele saiu pedalando!
Ela o dispensa com um aceno de mãos e puxa um caixote para eu me
sentar.
— Senta, Adriano, vou pegar alguma coisa pra passar nisso.
Eu obedeço e Hiro se senta no chão do meu lado, as pernas inquietas.
— Desculpa.
— Você não fez nada.
— Eu fiquei falando pra gente descer.
— Eu sei, mas eu desci sozinho. Porque eu quis.
A mãe dele volta, com o que só pode ser um pedaço do inferno
engarrafado. Ela se abaixa na minha frente e abre o vidrinho de merthiolate.
Parece que já arde só de olhar. Aquela porcaria de pazinha que vem grudada
na tampa está completamente laranja e eu fecho os olhos quando ela vai
direto para o meu joelho.
Assim que ela encosta eu faço uma careta e mordo minha mão, tentando o
máximo possível manter minha perna no lugar, e acho que nunca quis tanto
xingar a mãe do Hiro na vida.
Quando ela chega no meu quadril eu já estou todo pintado de laranja, e a
dor não diminui cada vez que a pazinha encosta na minha pele.
— Você vai pra casa? — ela pergunta, guardando o merthiolate no bolso
do avental. Limpo uma lágrima que escapou e faço que sim. — Eu te levo,
anda.
Ela enfia a bicicleta na kombi e Hiro me ajuda a subir. Cada vez que
preciso dobrar o joelho ou o braço tenho vontade de gritar.
Quando nós chegamos, o porteiro ajuda a deixar a bicicleta na garagem
enquanto Hiro sobe comigo.
— Desculpa mesmo — ele diz, seus olhos me estudando de cima a baixo.
— Você pode me xingar se quiser.
— Eu não vou te xingar, não seja estúpido.
Ele ergue as sobrancelhas.
— Vou fingir que contou.
Eu me largo no sofá, a perna esticada em cima da almofada. Antes de sair,
ele olha para mim uma última vez.
— Liga o walkie-talkie de noite se você quiser, daí pelo menos a gente
pode conversar, já que… — ele aponta para mim como um todo — pelo
visto você não vai no judô hoje.

III

Não tomo banho antes de ir para a escola e sucumbo à bisnaguinha com


requeijão antes de descer para pegar a perua. Ainda estou meio mancando
porque meu joelho e meu tornozelo doem a cada passo que eu dou e quando
olho para baixo percebo que o merthiolate escorreu e agora minha perna
está manchada de laranja. Não me atrevi a colocar calça, mesmo com o frio,
porque se o machucado grudar no tecido eu nunca mais vou tirar na vida.
Eu sei que estou atrasado porque ouço o sinal quando a perua passa em
frente à escola e tento correr, mas fica difícil com tanto machucado. O
porteiro me olha meio impressionado, talvez por causa de tanto merthiolate,
e eu vou mancando pelo corredor. Quando apareço na porta, a professora já
está dentro da sala, todas as carteiras dispostas em duplas.
Duplas?
Eu entro, meio sem saber o que fazer, e Helena fica olhando para mim,
para os meus machucados, como alguém que observa uma pintura abstrata
em uma exposição e fica tentando encontrar o sentido dela. Começo a andar
até a minha carteira, mas a professora não deixa.
— Adriano, aqui. É prova em dupla.
Como se meu dia não pudesse ficar pior, claro.
Quando me viro e olho para onde a professora está apontando,
obviamente é para a carteira vazia ao lado da Helena.
— Eu… — digo, olhando Helena, que me encara como se quisesse botar
fogo em mim, para variar. Ela está com aquele capuz na cabeça, acho que
ela nunca tinha o capuz da cabeça. — Acho que vou fazer sozinho?
A professora não se abala.
— A prova em dupla chama prova em dupla por um motivo. Com a
Helena, anda. E não quero ouvir nenhum dos dois reclamando.
Algumas crianças dão risadinhas estúpidas e vou até a carteira vazia de
cabeça baixa. Helena quer falar comigo tanto quanto eu quero falar com ela,
e até afasta a carteira uns dois dedos da minha, acho que só o suficiente
para não dar na cara. Infelizmente, como a professora fez questão de
enfatizar, a prova é em dupla, o que significa que a gente precisa conversar,
mesmo que seja o mínimo, porque é uma folha só para nós dois.
— Então… — digo, puxando meu estojo da mochila. Esbarro minha mão
ralada no tecido sem querer e engulo um palavrão. — Eu escrevo ou você
escreve?
Ela encolhe os ombros e não pega na prova, então eu puxo as folhas para
mim e coloco meu nome na primeira linha, depois passo para ela, porque
não sei seu nome completo. Helena dá um suspiro meio impaciente e
escreve o nome, depois me devolve a folha como se quisesse se livrar
daquilo o mais rápido possível.
Assim que olho direito para a prova me lembro que é prova de literatura,
sobre um livro do Pedro Bandeira, e faz claramente décadas desde que li
esse livro, então não sei nada.
— Você leu o livro? — pergunto baixinho, porque apesar de tudo não
quero tirar um zero. Minha mãe vai arrancar meu couro se eu tirar um zero
e o tombo de bicicleta vai se transformar em uma memória feliz. Meu
instinto de sobrevivência ainda é maior que o meu orgulho.
Helena se vira para mim, me olha de cima abaixo, olha para os meus
machucados cobertos de merthiolate e dá de ombros. Ótimo, fantástico.
— Escuta, a gente precisa fazer isso juntos.
Ela não parece impressionada e eu suspiro, correndo os olhos pelas
perguntas sobre personagens que eu sequer sei quem são. Quando olho para
o lado, começando a ficar ansioso, vejo as outras duplas conversando e os
lápis escrevendo furiosamente, o que não ajuda nem um pouco. Enfio as
mãos na cabeça, meu coração martelando, a respiração pesada. Fecho os
olhos com força, tentando lembrar, talvez se a minha cabeça doer… Sinto
uma dorzinha na base do meu crânio e tento abraçá-la, querendo que ela se
espalhe para eu poder lembrar, mas ouço Helena arfar do meu lado. De
repente ela puxa a prova de baixo dos meus braços sem dizer nada e
começa a responder tudo sozinha, nem uma palavra sequer na minha
direção.
Helena termina a prova sozinha, coloca as folhas sobre a mesa da
professora, que fala que a gente pode sair e esperar lá fora até todo mundo
terminar. Ela se levanta, meio estabanada, como se mal pudesse esperar
para ficar longe de mim, e esbarra no próprio caderno debaixo da carteira.
Ele cai, aberto, um desenho em uma das páginas. Minha boca fica seca na
mesma hora.
É um desenho bastante impressionante para uma criança de doze anos,
porque eu consigo claramente saber quem são as três pessoas que ela
desenhou, mesmo com sangue saindo pela boca, com X no lugar dos olhos.
Helena se abaixa e pega o caderno correndo, o rosto vermelho debaixo do
capuz.
— Não é da sua conta — ela diz, como se eu tivesse falado alguma coisa,
enfiando o caderno esgarçado na mochila, e sai para o pátio em disparada.
Exceto que meio que é da minha conta, porque um dos rostos naquele
desenho é o meu. O meu, o do Danilo e o do Lucas.
Saio em seguida, nós dois indo para o pátio, não tenho certeza se sem
querer ou porque eu quero uma explicação.
— Eu não quero falar com você — ela diz, apertando o capuz ao redor do
rosto e posso jurar que consigo ver uma marca arroxeada em seu pescoço.
Uma marca que se parece muito com um hematoma, e que eu não tinha
reparado enquanto estava ao lado dela.
A dor de cabeça que não veio quando eu precisava de repente explode
com força, e vejo a memória de mim respondendo, de nós dois discutindo, e
preciso apertar os olhos com força e me apoiar na parede para conseguir
ficar no lugar e não me meter. Uma parte de mim quer xingá-la, quer brigar,
mas eu sei que não posso, e quando acho que não vou aguentar mais ficar
parado a bolha explode. O ar vibra.
Eu me endireito, zonzo, e Helena está olhando para mim do jeito que
alguém olha para um carro todo amassado depois de um acidente. Ela
finalmente percebe o que está fazendo, balança a cabeça e se afasta.
Eu acalmo minha respiração, um suspiro de alívio saindo do meu peito.
Quando olho para o lado, Lucas e Danilo estão rindo. Rindo.
Eu passo batido por eles, querendo ir para o banheiro jogar uma água no
rosto, e consigo ouvi-los fazendo piadinhas.
— Brigou com a namorada, é?
— Mimimi, vão se encontrar no banheiro?
— Olha lá, acho que eles tavam se beijando.
Idiotas.
— Vão se foder — digo, levantando o dedo do meio, e vou para o
banheiro, aquela merda de machucado no joelho ardendo de novo.
Eles me olham meio assustados, o que é ótimo. Não sei se é pior eu ter
caído ou ter de ficar aguentando aqueles dois na minha cola a manhã toda.

IV
— O que foi que aconteceu com você? — meu pai pergunta quando chega
em casa, mais de oito da noite, e eu estou largado no sofá, todo laranja.
Ainda não tive coragem de tomar banho.
— Caí.
— Caiu? Mas… Você tá todo detonado — ele diz, largando a pasta sobre
a mesa para vir na minha direção. Tenho a impressão de que ele quer
encostar em mim, mas é como se suas mãos não estivessem se decidindo se
devem ou não e finalmente preferem manter distância. Sempre parece que
ele não quer encostar em mim.
— É porque eu caí feio. De bicicleta, eu tava com o Hiro. Não importa, a
mãe dele me ajudou.
— Dri, eu… a sua mãe sabe? Ela vai me matar se—
— Não, ninguém falou nada.
Eu me levanto, ainda mancando, e vou para o quarto.
— Você precisa de alguma coisa? Adriano!
Eu me viro no corredor.
— Agora? Não. Mas eu precisava de você de manhã e você não tava aqui.
Você nunca tá aqui.
Ele para, piscando os olhos, como se tivesse sido pego de surpresa.
— Eu preciso trabalhar.
— Claro que precisa.
Ele respira fundo, os dedos na ponte do nariz, parecendo cansado.
— Você não entende, você é muito pequeno.
Ah, se ele soubesse.
— O que eu entendo é que você me largou com a minha mãe, e a única
semana que eu consigo passar com você, você tem que trabalhar o tempo
inteiro. Inclusive de noite. E aí eu fico sozinho aqui. Como sempre.
Ele abre a boca, olhos meio arregalados, mas eu entro no quarto e fecho a
porta antes que ele tente brigar comigo de novo ou volte a falar. Quando eu
fecho a porta, sei que ele vai ficar na sala, sei que ele vai me deixar em paz
e não vai falar mais nada.
Eu sei, porque é exatamente o mesmo tipo de coisa que eu vou fazer
quando ficar mais velho.

Lembro do walkie-talkie quando estou deitado na cama, entediado. Não


tenho certeza de onde o guardo, então me abaixo em frente à cômoda onde
fica a TV e o videogame e abro o armário que tem ali embaixo.
Tem um monte de gibis amassados e mangás ali dentro, e começo a tirar
tudo, até que meus dedos encostam em uma coisa promissora e eu puxo. É
mesmo um walkie-talkie, preto e amarelo, e acho que é mais uma das coisas
que o sensei Naka trouxe para o Hiro do Japão, porque os botões estão com
legendas em japonês.
Ligo o aparelhinho.
— Hiro? — chamo, dedão no botão, subindo de volta na cama. Duvido
que ele vai estar com o dele ligado, mas vai que.
Para minha surpresa, o chiado do outro lado fica menos alto.
— Por que você demorou tanto? Câmbio. — ele pergunta, e eu olho para
o relógio verde gritante ainda no meu pulso, porque não tomei banho. São
oito e meia. — E você tem que falar câmbio quando termina. Câmbio.
Solto um gemido.
— Eu esqueci.
— Câmbio.
— Quê?
— Você tem que falar câmbio, Adriano. Câmbio.
Deus, dai-me paciência.
— Hiro, deixa eu te perguntar uma coisa. A Helena foi hoje no judô?
Câmbio — acrescento, pra ele ficar feliz.
— Foi. Câmbio.
— Você reparou… se ela tava com alguma marca no pescoço? No rosto,
não sei? Câmbio.
Há um silêncio do outro lado, e sei que ele está com o botão apertado
porque consigo ouvir sua respiração.
— Meu tio falou pra eu não ficar falando disso.
— Então você viu alguma coisa. Porque eu acho que vi alguma coisa na
escola hoje.
Ouço barulho dele se revirando na cama.
— Olha, eu não posso ficar falando, minha mãe não gosta. E você
demorou muito, já tô ouvindo ela no corredor. Deixa o walkie-talkie ligado
à noite que é mais fácil da gente conversar. Câmbio desligo.
A estática some. Desligo o walkie-talkie e o coloco de volta na cômoda,
um bolo começando a se revirar bem na base do meu estômago.
SEXTA-FEIRA

Acordo na sexta-feira todo dolorido porque tive que dormir em uma posição
só graças aos meus machucados, e já estou sofrendo por antecipação por
causa do banho. É inevitável, e por mais que meu suor não seja dos piores,
sinto que estou fedendo.
Mas antes vou fazer o dever de História, porque prioridades e minha mãe,
e estou quase acabando quando o interfone toca.
— O César tá aqui embaixo — o porteiro diz, e dessa vez eu não preciso
parar para pensar que é o Hiro.
— É pra ele subir ou pra eu descer?
Ouço o porteiro perguntar para ele e depois voltar para o interfone.
— Ele quer subir.
— Pode falar pra ele vir.
Fico esperando o barulho do elevador e abro a porta quando ele chega.
Hiro me olha dos pés à cabeça, quase como se tivesse esquecido que eu
estou todo arrebentado, e dá para ver que ele quer disfarçar.
— Minha mãe mandou pra você — ele diz, levantando uma sacolinha
branca. Abro a porta e faço sinal para ele entrar.
— Não precisava — digo, enquanto ele me entrega a sacola e vai direto
para o meu quarto.
— Tem chocolate, salgadinho — ele continua. — Minha mãe queria te dar
frutas, mas eu falei que você não ia gostar.
Dou um sorrisinho e viro a sacola na minha cama enquanto Hiro liga meu
Super Nintendo. Tem umas três barras de chocolate, uma latinha de guaraná
e dois pacotes de Cheetos.
— Não precisava ter trazido tanta coisa — digo, dando uma barra de
chocolate para ele.
— Minha mãe que quis. Ela acha que é culpa minha que você caiu.
— Você não me empurrou ladeira abaixo.
— Eu sei, mas mesmo assim. Fui eu que sugeri descer sem freio.
Desculpa.
Enfio as coisas de volta na sacola e coloco tudo do lado da TV na
cômoda, assistindo Hiro jogar outro jogo de corrida, porque aparentemente
além de obsessão por descidas potencialmente mortais ele também tem tara
por jogo de corrida.
— Empolgado pra festa amanhã? — ele pergunta, depois de ganhar o
campeonato. Meu estômago se revira um pouco. — Não vejo a hora de
poder jogar em todas aquelas máquinas, meus pais nunca me deixam jogar
direito.
Provavelmente porque os preços são um roubo, mas enfim.
— Acho que eu estaria mais empolgado se não estivesse todo estourado.
Hiro olha para os meus machucados e faz uma careta.
— Doeu muito?
— Aposto que o banho vai doer mais.
Ele dá uma risadinha e eu o encaro, pensando no que vai acontecer
amanhã. Eu não sei… não sei se as coisas vão ser diferentes, não sei se
podem ser diferentes, não sei se tem alguma coisa que eu possa fazer. E seja
como for… também não queria que ele estivesse lá.
— Hiro?
— Hum.
— Se eu pedir pra você não ir amanhã… não sei, tô com um mau
pressentimento.
Ele me olha como se eu definitivamente tivesse ficado maluco.
— Mau pressentimento?
— É difícil de explicar.
O jogo volta para a tela de abertura e Hiro suspira antes de largar o
controle sobre a minha cama e abrir o chocolate para dar uma mordida.
— Não vou perder sua festa por nada, larga mão de ser besta.
Eu forço um sorriso, tudo se revirando dentro de mim, porque sei que ele
vai estar lá e, se as coisas acontecerem do mesmo jeito que da primeira vez,
aquele é o último aniversário que eu vou passar com ele.

II

Tomo banho de chuveirinho, mesmo que precise lavar a cabeça, porque


assim pelo menos consigo controlar melhor onde a água cai. Não dá certo
completamente, e solto uns gritos quando o shampoo escorre sem querer
para o meu joelho, mas é o melhor que eu posso fazer naquele momento.
E meu dia só piora dali para frente, porque quando chego na escola tudo o
que o Lucas e o Danilo conseguem falar é sobre o meu aniversário e sobre
como eles mal podem esperar para passar três horas no fliperama, podendo
jogar o que eles quiserem, de graça. E eu não tenho coragem de dizer que
talvez não seja bem assim.
Nós assistimos a primeira parte das aulas e, no intervalo, Danilo tira o
Game Boy dele da mochila. Eu não tenho um, nem o Lucas, então
basicamente nós ficamos o assistindo jogar naquela telinha minúscula e
damos palpites de vez em quando.
Nós nos sentamos nos degraus da arquibancada de concreto no sol, porque
está frio e assim dá para enxergar a tela melhor, o que definitivamente não é
lá essas coisas. E acho que é por isso que me distraio e meus olhos
começam a vagar pelo pátio. Helena está sentada do outro lado das
arquibancadas, sozinha, lendo um livro. Acho que é o livro que a gente
devia ter lido para a prova, mas não tenho certeza.
Danilo solta um resmungo de quem acabou de morrer no jogo e o Lucas
balança a cabeça, depois olha para mim. Ou melhor, olha para onde eu
estou olhando.
Ele abre um sorrisinho.
— Vai me falar que gamou nela.
Faço cara de tédio.
— Vai se foder, vai.
Ele ergue aquelas sobrancelhas loiras, e só agora percebi como são
grossas.
— Desde quando você ficou tão boca suja?
— Por que, virou minha mãe agora? Vai pagar as minhas contas?
Acho que estou nervoso, potencialmente estressado.
Lucas franze as sobrancelhas por um instante, depois bate no braço de
Danilo e aponta para a Helena com a cabeça. Eles não trocam uma palavra,
mas o sorrisinho deles diz tudo.
— Aonde vocês vão? — pergunto, me levantando para ir atrás deles,
enquanto apertam o passo. Mas eu sei exatamente para onde eles estão indo.
— Por que vocês não deixam ela em paz?
— Falei que ele tava apaixonadinho — Lucas diz, e Danilo dá risada.
— Pelo amor de Deus, vocês que são idiotas.
Na verdade, não sei por que estou me dando o trabalho de responder, falar
com esses dois e nada é a mesma coisa.
Assim que nos vê chegando, Helena coloca o capuz na cabeça, o corpo
todo rígido como um animal em modo de defesa. Ela tenta se levantar, mas
Lucas, esse estúpido, corre até ela e a segura.
— Me solta, sua bola — ela diz, a voz baixa, quase um rosnado. Acho que
o Lucas é pego de surpresa, porque ele a solta, mas seu rosto fica
instantaneamente cor de rosa.
— Do que foi que você me chamou?
Mas ele não espera a resposta, simplesmente avança contra ela e a
empurra.
— Não! — grito, a dor de cabeça explodindo como um raio, mas Helena
tropeça, se desequilibra e cai arquibancada abaixo.
Acho que ela bate a cabeça, e corro para descer os degraus antes do
Lucas, o que nem é tão difícil, considerando o tamanho dele. Helena está no
chão, a mão na cabeça, e quando ela olha para os próprios dedos, tem
sangue. Deve ter batido na quina.
A pressão nos meus ouvidos aumenta e eu acho que vou ficar surdo, até
que ela explode e é como se tudo ficasse silencioso por um instante.
— Você tá bem? — pergunto, me abaixando ao lado dela, ainda meio
zonzo. Encosto em seu braço e é quando Helena me empurra com um chute,
seu tênis acertando meu joelho machucado.
— Não encosta em mim!
Solto um grito e uns palavrões enquanto Lucas nos alcança, e quando olho
para eles de novo, ele está em cima da Helena. Ela grita e se debate. É alto
o suficiente para o inspetor, seu Antônio, ouvir e sair correndo na nossa
direção, pobre homem.
— Vocês vão pra diretoria agora! — ela diz, sério, enquanto puxa Helena
para longe do Lucas. Ela ainda está com os olhos injetados, as pernas se
agitando como se quisesse chutar todo mundo. — Vocês também — ele diz
olhando para mim e para o Lucas. — E é melhor vocês virem junto por
livre e espontânea vontade, porque se eu tiver que voltar pra buscar, vai ser
muito pior pra vocês.
Olho para baixo, porque meu joelho ainda está doendo, e é claro que está,
porque ele voltou a sangrar com o chute.
Nós andamos pelo pátio, seu Antônio de olho em nós três, todo mundo
apontando para a gente como se fôssemos criminosos. É engraçado, na
verdade, e eu tenho vontade de rir, mas não vou fazer isso na frente do seu
Antônio, coitado.
Atravessamos o corredor e precisamos subir as escadas até a secretaria, o
que faz meu joelho arder com cada degrau, e seu Antônio abre a porta da
diretoria, mandando a gente entrar. Se eles ligarem para a minha mãe não
quero nem ver o tamanho da bronca que vou levar quando chegar em casa.
— Vocês três vão ficar aí sentados, quietos, até a diretora vir falar com
vocês. Entendido?
Ninguém responde.
— Entendido?
A gente resmunga um sim e ele finalmente vai embora. Eu fico sentado
olhando para o teto, enquanto Helena coloca o capuz de novo e se encolhe
na cadeira, o mais longe possível de nós.
— Você é um babaca — digo para o Lucas, e ele se vira para mim,
ultrajado. Apesar do frio, ele está suando, o cabelo loiro já todo molhado
nas têmporas.
— Eu sou babaca? Ela te chutou, ela me chutou.
— Só porque você começou. Qual é o seu problema?
— O meu problema? Você… o que deu em você, Adriano?
Olho para o meu joelho, a casquinha saiu e agora tem um fio de sangue
escorrendo pela minha perna. Quando olho para o lado, Helena está me
encarando, e assim que nossos olhares se cruzam, ela se encolhe, apertando
mais o capuz ao redor da cabeça.
Limpo o sangue da minha perna, sujando os dedos, e a observo, um banco
todo de distância entre nós. Tem alguma coisa acontecendo com ela, alguma
coisa que eu não entendi e que está bem na frente do meu nariz. Alguma
coisa que, tenho certeza, tem a ver com o dia de amanhã.

III

É minha mãe que vai me buscar na escola, e tremo um pouco na base


quando a vejo.
— E eu só não vou cancelar a sua festa amanhã — ela diz, os dentes
trincados. Acho que se pudesse ela me puxava pela orelha ali mesmo —
porque já tá tudo pago. E é um mês de castigo, Adriano. Sem TV, sem
videogame no quarto. Sem sair pra brincar com o Hiro. É da casa pra
escola, da escola pra casa. A gente vai ter uma conversinha com o seu pai
hoje quando ele chegar.
O porteiro do prédio do meu pai deixa a gente entrar, e minha mãe me faz
tomar banho e começar o dever de casa antes mesmo dele voltar. Ela tirou
tudo do meu quarto, um vazio em todas as superfícies, mas quando abro o
armário da cômoda, encontro o walkie-talkie ali, pelo menos isso. Acho que
ela não sabe direito o que é ou o que faz, porque está no mesmo lugar.
Enquanto estou sentado na escrivaninha fazendo dever, meu pai chega.
— Tábata? — ele diz, uma nota de surpresa na voz. — O que…
Aconteceu alguma coisa com o Adriano?
— Essa é uma ótima pergunta, na verdade — minha mãe diz,
acompanhada do barulho de alguém se levantando do sofá. — Porque seu
filho tá todo estropiado e hoje ele se meteu em uma briga. Em uma semana
que ele tá aqui com você, Giovanni, ele ficou irreconhecível.
Barulho de alguma coisa sendo largada sobre a mesa.
— Quer dizer que agora a culpa é minha?
— Bom, alguma coisa claramente aconteceu essa semana pra ele ficar
assim.
Nunca quis tanto ter um celular, só para poder enfiar os fones nos ouvidos
e não ter que ouvir a discussão deles na sala.
— Amanhã depois do aniversário ele volta pra casa — minha mãe
continua, a porta do apartamento se abre. — A reforma já tá quase pronta.
— Ele pode ficar aqui se quiser.
Minha mãe dá uma risada.
— Aham, como se ele fosse querer. Faz um favor amanhã, Giovanni, pelo
menos finge que se importa com ele.
— O… É claro que eu me importo com ele!
Mas dá para ouvir a porta se fechando.
Meu pai começa a xingar baixinho e depois ouço quando ele se joga no
sofá. Eu continuo muito quieto no meu canto, porque não quero que ele
perceba que eu ouvi tudo. Na verdade, é melhor se ele nem se tocar que eu
estou aqui.
Não sei por quantas horas fico deitado olhando para o nada, o som da TV
lá da sala vindo fraco até o meu quarto, mas em determinado momento meu
pai desliga as coisas, a luz que entra pelo vão da minha porta fica mais
fraca. Ouço os passos dele pelo corredor, e quando me sento na cama, tem
uma sombra do lado de fora da minha porta. Prendo a respiração por um
segundo porque acho que ele vai abrir, e até escuto a mão do meu pai na
maçaneta, mas então é como se ele perdesse a coragem e a sombra no vão
desaparece. Alguns segundos depois eu estou envolto na mais completa
escuridão.

IV
Eu me reviro na cama, mas não consigo pegar no sono. Giro de um lado
para o outro, até que finalmente decido que não vou conseguir dormir, pelo
menos não ainda, e me levanto. Olho para o walkie-talkie, pego o
aparelhinho e saio do quarto. Não são nem onze da noite, não é à toa que eu
não consigo dormir.
Preciso de uma cerveja.
Vou na ponta do pé para a cozinha e abro a porta da geladeira. Tem umas
oito latinhas lá dentro, não acho que meu pai vai perceber se uma
desaparecer.
Levo a cerveja para a lavanderia, sento em cima da máquina de lavar e
aperto o botãozinho do lado do walkie-talkie. Hiro deve estar dormindo,
mas não custa.
— Hiro?
Demora uns segundos, mas ele responde, a voz baixinha de sono vindo do
outro lado.
— Que horas são? Câmbio.
Ele e os malditos câmbios.
— Cedo. Tava dormindo?
— Minha mãe me acorda cedo todo dia. Câmbio.
Aperto o botão para responder e abro a latinha, ela firme entre os meus
joelhos. Tá tão gelada que eu me arrepio.
— Tô de castigo — digo, e dou um gole, fazendo meu corpo ficar todo
mole de prazer.
— O que é que você tá tomando?
— Cerveja.
— Cerveja? Desde quando você pode tomar cerveja?
— Desde que meu pai é um filho da pu—mãe.
Hiro fica quieto enquanto dou mais uns goles na latinha, minhas pernas
balançando no ar. Acho que esse é o pico do meu fracasso, sentado no
escuro em cima da máquina de lavar tomando cerveja escondido enquanto
converso com o Hiro por um walkie-talkie.
— Você tá muito esquisito essa semana — Hiro diz finalmente. — Por
que você tá de castigo?
— Porque aparentemente eu briguei com a Helena. Ou ela brigou
comigo? Sei lá. Ela chutou meu joelho, sangrou tudo de novo.
— Bom, você deve ter feito alguma coisa.
Muito bom saber que ele imediatamente acha que a culpa é minha.
— Eu só tentei ajudar, foi um outro menino da minha sala que empurrou
ela. Ela deu um piti.
Hiro fica quieto por mais alguns segundos.
— Ela apanha do pai, sabe? Eu não devia falar, mas ela apanha.
— Ahn?
— A Helena. Você perguntou se eu sabia alguma coisa da marca, lembra?
Ela nunca me contou, não assim, mas a minha mãe vira e mexe ouve
histórias.
— Histórias? — pergunto, colocando a latinha de cerveja entre as pernas
de novo.
— É, sabe, de como a mãe dela foi embora. De como o pai dela bebe. De
como eles brigam.
Sinto a dor começar a brotar na base do meu crânio, e acho que é cedo
demais para ser ressaca. Conforme Hiro vai falando, quase consigo ver as
ondulações no ar, uma atrás da outra, enchendo a lavanderia.
— Às vezes dá pra ouvir os gritos lá da quitanda — Hiro continua. —
Minha mãe jura que já ouviu até tiro, mas eu não sei. Esses dias ela
comentou que vai mudar de escola no fim do ano, a bolsa dela vai acabar.
Se meu tio não fosse buscar ela todos os dias pro judô, ela teria parado
também.
— O Sensei Naka busca ela todos os dias?
— Você não sabia?
— Não?
Pelo visto eu não sabia de nada.
— Acho que é pra ela passar um tempo longe do pai, não sei. Ela era boa
no judô, lembra? Mas depois que a mãe dela sumiu… Você reparou?
— Não.
Eu também não reparava em nada, aparentemente, e desejei, só um pouco,
que não tivesse bebido, porque minha cabeça queria computar todas aquelas
informações, mas já estava ficando meio leve. Uma latinha pode não ser
muita coisa para um adulto, mas quando não se tem nem um metro e meio e
nunca bebeu na vida?
— Você não percebeu que ela parou de ir por um tempo?
— Não, Hiroshi — respondo, meio irritado, porque pode não parecer para
ele, mas faz décadas. Isso e porque minha cabeça dói.
— Não sei se eu gosto quando você me chama assim.
— Desculpa.
Ficamos nós dois em silêncio e eu tomo o restinho da cerveja que tem na
latinha. Apesar de insistente, Hiro não está completamente errado, porque
como que eu não tinha visto nenhuma dessas coisas? Isso explicava o
hematoma, talvez explicasse porque ela nunca falava com ninguém, porque
não queria que ninguém encostasse nela.
— Dri, eu preciso ir — Hiro diz com um bocejo. — A gente se vê amanhã
na sua festa.
Merda, a festa.
— Tá bom — é tudo que eu consigo dizer.
— Tchau, câmbio desligo. Ah, e você não devia ficar bebendo cerveja, sua
mãe vai te matar se ela souber.
Largo o walkie-talkie no tampo da máquina de lavar e respiro fundo,
porque eu não devia fazer muitas coisas, para falar a verdade. Jogo a latinha
no lixo e volto na ponta dos pés para o quarto. Sei que se o meu pai tivesse
que ter acordado ele já teria, mas é a força do hábito.
Deito na cama e fico olhando para o teto de novo, minha cabeça ainda
latejando.
Tem tanta coisa sobre a Helena que eu não sei, tanta peça que ainda falta
se encaixar. Fico conjurando a imagem dela na minha mente, e mesmo que
eu nunca tivesse esquecido, não exatamente, é como se eu conseguisse
enxergá-la melhor agora. Ela não é o monstro que eu pintei todos esses
anos, que eu culpei todos os dias. Ela tem doze anos, pelo amor de Deus.
Ela… se eu tivesse prestado atenção, se não fosse tão estúpido.
Não sei o que vai acontecer amanhã, talvez ela nem apareça na festa,
mas… Talvez eu pudesse ter feito alguma coisa? Talvez eu devesse ter feito
alguma coisa, afinal de contas eu voltei para a merda de 1997 por algum
motivo.
Fecho os olhos com um suspiro. Só posso estar bêbado.
SÁBADO

Acordo assim que ouço a porta do quarto do meu pai se abrir, mas não saio
imediatamente da cama. A verdade é que não consegui dormir direito e
estou com a cabeça doendo, os olhos ardendo um pouco. Isso e porque acho
que não quero encará-lo ainda.
Quando finalmente decido que é hora de levantar, vou para o banheiro,
tentando enrolar o máximo que consigo até o encontro inevitável com o
meu pai na sala.
— Ah, bom dia, Dri — ele diz, e pode ser impressão, pode ser a luz, mas
os olhos dele parecem meio inchados. Não estou comovido. — Feliz
aniversário, filho.
Tento engolir em seco e minha garganta dói.
— Hum. Obrigado.
Ele devia me abraçar, não devia? Acho que estou esperando que ele se
levante do sofá e me abrace, mas quando fica de pé, meu pai passa direto,
dá um soquinho no meu braço e vai para a cozinha.
Foda-se também.
Espero ele sair para poder entrar e comer alguma coisa. Pego um pouco de
sucrilhos e quando volto para a sala, com planos de tomar café no meu
quarto, ele me interrompe.
— Sua mãe quer que a gente almoce hoje juntos no shopping antes da sua
festa. Só avisando.
— Tá bom.
Volto a andar, mas ele me interrompe de novo. O sucrilhos na minha
tigela vai ficar todo mole se ele continuar me interrompendo desse jeito.
— Dri, sobre ontem. Se você ouviu alguma coisa, se—
— Não é problema meu — digo, olhando para o leite. — As brigas de
vocês, não é problema meu.
— Mas—
— Me deixa sozinho, pai.
— Adriano…
Fecho a porta do quarto e me sento na cama, porque sei que ele não vai
entrar. Ele nunca entra, nunca vem atrás de mim, como se eu fosse morder
se ele tentasse. Acho que queria que ele viesse.
Só saio quando meu pai avisa que a gente vai sair daqui a pouco. Eu me
troco, penteio o cabelo e vou para a sala. Nós descemos como se houvesse
uma parede invisível entre nós dois.
Entro no Kadett e ele liga o carro. Estou esperando-o sair, porque o
barulho do motor fica amplificado dentro da garagem e é irritante,
principalmente para a minha dor de cabeça, mas meu pai escolhe aquele
momento para apoiar o braço no volante e se virar para mim, como se
quisesse conversar.
— Dri, eu não sei o que aconteceu essa semana, e eu sei que foi tudo meio
de última hora, mas se você quiser ficar mais um tempo aqui… Desculpa
não poder passar tanto tempo assim com você, mas… Eu dou um jeito. Eu
gosto de ter você aqui.
Minha garganta dói de novo quando engulo saliva, e não consigo encará-
lo, porque não quero pensar no depois, no que pode acontecer hoje. Eu sei
que vai parecer estranho para ele, que vai parecer que eu estou querendo
mudar de assunto, mas…
— Vai adiantar alguma coisa se eu falar que não quero mais a festa?
Ele franze as sobrancelhas, claramente confuso. Aposto que não era o que
ele esperava que eu fosse falar.
— Como assim não quer mais a festa?
— Sei lá, pai, não quero.
Ele suspira, balançando a cabeça, confuso.
— Foi a sua mãe que falou alguma coisa?
— Quê? Não! Por que sempre tem que ser ela? Eu… — esfrego o rosto,
cansado. — Eu acho que nem queria essa festa, pra começo de conversa.
Meu pai franze as sobrancelhas e finalmente sai com a merda do carro.
— Bom, meio tarde agora, né?
Reviro os olhos e ligo o rádio, porque quero evitar qualquer outra
tentativa de conversa da parte dele.
Quando chegamos no shopping meu pai me leva direto para a praça de
alimentação de novo, e meu estômago começa a embrulhar. Minhas mãos
estão suando.
— Finalmente — minha mãe diz se levantando de uma mesa bem em
frente à lanchonete que eu suponho é onde vamos almoçar. Ela me pega em
um abraço, depois começa a ajeitar meu cabelo e a minha blusa. — Pelo
amor de Deus, Giovanni, nem ajeitar o menino você sabe. Olha essa blusa
amassada.
— Ele já tem doze anos, Tábata.
— Ele é seu filho, será—
— Vocês dois — digo, alto o suficiente para a praça de alimentação inteira
ouvir —, será que dá pra parar? Só hoje? Por favor?
Eles me olham, as sobrancelhas erguidas, e minha mãe troca um olhar
com o meu pai que eu tenho certeza de que significa alguma coisa do tipo tá
vendo, é culpa sua. Mas pelo menos eles ficam quietos.
Nós finalmente nos sentamos em uma mesa redonda e meu pai traz uma
bandeja com lanche, refrigerante e batata frita. Eles ficam muito quietos,
minha mãe do meu lado, meu pai a uma cadeira vazia e incômoda de mim,
e sinceramente seria melhor se essa tentativa de almoço em família não
estivesse acontecendo.
Olho para a cadeira, querendo desesperadamente tirar um tênis e colocar
em cima dela, minha vida cheia de cadeiras vazias ultimamente. Em casa,
na escola, no banco do judô, no apartamento do meu pai. Como se sempre
tivesse alguém faltando, o tempo todo.
Consigo dar umas duas mordidas no lanche e comer um punhado de
batata antes de decidir que meu estômago está embrulhado demais para
aceitar comida. Quando empurro a bandeja minha mãe imediatamente
coloca a mão na minha testa.
— Tá se sentindo bem? Você tá meio pálido.
— Acho que só tô ansioso — digo, olhando em volta. O shopping está
brilhante demais, cheio demais, minha cabeça volta a latejar. — Acho que
vou no banheiro.
Eu sei que não devia ir sozinho, que devia pelo menos pedir permissão
primeiro, mas estou ficando meio zonzo. Passo batido pela praça de
alimentação, desviando das mesas e das pessoas, a dor se espalhando pelo
resto da minha cabeça. Quando chego no banheiro e me olho no espelho,
estou suando, o cabelo na minha testa ensopado, meus braços meio
trêmulos. Eu lavo o rosto na pia e depois me tranco em uma das cabines
porque preciso ficar sozinho, preciso respirar. É pouco, mas o ar ondula, a
cabine meio bruxuleante à minha volta.
Ouço pessoas entrando e saindo, ouço a descarga, e ouço conversas. Eu
fecho os olhos e tento acalmar minha respiração, tento fazer o bolo no meu
estômago dar uma trégua, e quando acho que vou conseguir, a voz do meu
pai explode do lado de fora.
— Adriano! Desculpa, você viu um menino entrando sozinho aqui? Desse
tamanho, cabelo preto, onze anos. Ele tá com um moletom azul.
Acho que a pessoa diz que não, porque ele continua me chamando e eu
considero não responder, porque assim talvez a festa não precise acontecer,
mas alguém diz que viu um menino assim entrar naquela cabine e eu me
encolho contra o vaso, mas não levanto as pernas a tempo. Meu pai bate na
porta.
— Adriano, abre isso agora.
Eu não quero abrir, não quero abrir, mas ele começa a bater mais forte e
eu tenho certeza de que ele é capaz de chamar um segurança ou algo assim,
então desço do vaso e abro a porta, um enjoo preenchendo meu estômago.
Aposto que ele vai brigar comigo, já estou até preparado, mas ele me puxa
e me pega em um abraço e eu não sei como reagir. Eu uso o mesmo
desodorante que ele e nunca soube.
— Eu não sei o que aconteceu com você essa semana — ele diz, ainda
abraçado em mim, como se tivesse medo de me soltar —, mas eu vou tentar
melhorar, tá? — Ele se abaixa, os olhos ficando na mesma altura dos meus,
e parece que eu estou me olhando no espelho. — Você pode conversar
comigo se quiser. Tá bom? Agora a gente precisa ir ou a sua mãe vai ter um
ataque.
Minha mãe está em frente à entrada do banheiro quando meu pai me leva
para fora, e acho que ela puxaria minha orelha se nós não estivéssemos no
meio de tanta gente. Seus lábios estão espremidos em uma linha fina e ela
coloca as mãos na cintura assim que nos aproximamos.
— Vocês conversam em casa, pode ser? — meu pai diz e me solta. —
Sem briga hoje. Lembra?
Ela solta um suspiro bravo, me lançando um olhar que diz que a conversa
definitivamente vai acontecer mais tarde, e coloca a mão na minha nuca,
literalmente me empurrando para dentro do fliperama. Ela deve estar com
medo de que eu saia correndo e me esconda de novo, o que quase chega a
ser engraçado, porque é exatamente o que eu quero fazer.
Ela só parece satisfeita quando subimos para o mezanino da Playtown,
onde ficam as mesas para os convidados, os docinhos e salgadinhos.
Meus pais me mostram as bexigas, a decoração do Mário que eu
aparentemente pedi, toda em isopor. Minha mãe me puxa para uma mesa e
começa a revirar a bolsa. Ela tira a máquina fotográfica de lá e estende para
o funcionário mais próximo.
— Você pode tirar uma foto? Giovanni, vem aqui.
Meu pai vem e eles ficam um de cada lado de mim. Forço um sorriso,
sabendo exatamente que foto vai ser essa, e quando o flash me cega por um
segundo a pressão aumenta nos meus ouvidos.
A gente desce de novo e um homem que eu suponho ser o gerente da
Playtown, diz que eu posso ficar à vontade, posso brincar em qualquer
máquina.
— Afinal de contas, é seu aniversário — ele diz com um sorriso
simpático, como se estivesse me fazendo um favor e meus pais não
tivessem pagado por tudo, mas tudo bem.
Começo a andar de um lado para o outro entre as máquinas porque não
consigo ficar quieto, quero que o Hiro chegue logo porque assim pelo
menos não fico sozinho. Tento me distrair com algum jogo, mas quando
meus parentes começam a chegar fica mais difícil disfarçar. Eles querem
me abraçar, me dar presentes, tirar foto, e eu juro que tem gente ali que eu
nem sei quem é.
Não sei quanto tempo se passa, mas é tempo o suficiente para minha dor
de cabeça dar o ar da graça e o pessoal da escola começa a chegar. Eu não
ligo para nenhum deles, muito menos para o Lucas, que já está todo suado
sem nem ter começado a se mexer direito, e quando Hiro aparece na entrada
do fliperama, todo alto e meio tímido, praticamente corro na direção dele.
— Eu falei pra você não vir! — digo, num sussurro talvez meio alto
demais.
— Até parece que eu não ia vir.
— Mas… — minha cabeça está martelando, e talvez eu não esteja
pensando direito, mas…. O que será que vai acontecer se eu disser a
verdade pra ele? Hora de descobrir. — Hiro, eu preciso te contar um
segredo.
Ele levanta as sobrancelhas, meio surpreso, meio desconfiado.
— Um segredo?
— Escuta, vai parecer maluquice — digo, puxando-o para um canto. —
Mas… vai acontecer uma coisa ruim hoje. Pode acontecer — corrijo,
porque não sei de verdade. — É como… como se eu pudesse ver o futuro.
Espero para ver se ele vai começar a rir ou gritar, talvez se afastar uns
passos de mim.
— Ver o futuro.
— É. Olha, eu sei que parece impossível, mas… pera — eu o puxo para a
entrada do fliperama e fecho os olhos, tentando fazer o filme de 1997 passar
na minha frente, tentando ver o que aconteceu e o que está acontecendo ao
mesmo tempo. Minha cabeça grita, a pressão nos meus ouvidos triplica de
intensidade. Eu me concentro, tentando ignorar a dor, tentando ver quem é o
próximo a chegar, ou o que vai acontecer e… ali. Quase transparente, eu
consigo ver. — Hiro, uma menina vai passar correndo por aqui com um
copo de refrigerante e vai tropeçar. Ela vai derrubar guaraná na roupa e—
— Como você tá fazendo isso?
Abro os olhos. A menina está olhando para a própria blusa, agora
manchada de escuro por causa do guaraná. Hiro está me encarando como se
estivesse vendo um fantasma. Ele vem fazendo muito isso ultimamente.
— É uma longa história, mas você acredita em mim? — ele ainda parece
meio assustado, mas faz que sim. O exorcista que eu brinquei que ele ia
chamar? Agora é que ele vai mesmo. — E se eu te contar que a Helena vai
aparecer aqui? Bom, que pode ser que ela apareça.
— Você convidou ela? Eu achei que vocês não se dessem bem.
— A gente não se dá e eu não convidei.
— Então…—
— Ela vai aparecer mesmo assim, eu acho. E ela vai fazer uma coisa
péssima. Eu sei. Você precisa me ajudar.
— Dri…
Eu o seguro pelos ombros, percebendo pela primeira vez, de verdade,
como eu sou nanico perto dele, pelo menos uma cabeça menor.
— Vai ser na hora do parabéns — digo. — Hiro, ela vai entrar e se tudo
acontecer como eu acho que vai, ela vai machucar o meu pai.
Ele me encara, ainda congelado.
— Mas o que a gente vai fazer?
— Não sei. Será que… será que se a gente tentar desligar tudo, será que a
gente não consegue cancelar a festa, dispersar as pessoas?
— Desligar tudo?
— Deve ter uma caixa de energia aqui — digo, mas ele me olha como se
eu estivesse falando grego. — Olha, se você achar um painel na parede que
tem várias chavinhas, vários botõezinhos que parecem interruptores, você
aperta todos. Eu vou fazer a mesma coisa se achar primeiro.
Ele não parece muito convencido.
— E se a gente fizer alguma besteira? E se explodir tudo?
— Não vai explodir tudo.
— Como você sabe? — ele coloca as mãos na cabeça, o que seria
engraçado se eu não estivesse ligeiramente desesperado. — Bem que eu vi
que você tava estranho essa semana.
— Você precisa confiar em mim. Você confia em mim?
Ele não considera nem por um segundo.
— Não?
Odeio a sinceridade dele. Devia falar um palavrão só para ele ficar
esperto, mas considerando a situação toda, acho melhor não.
— Hiro, por favor. Se alguma coisa acontecer eu falo que fui eu que
mandei, pode ser? Eu assumo a culpa. Você não vai ficar de castigo nem
nada. Seu pai não vai brigar com você.
— Você não tem como saber disso.
Eu enfio as mãos nos cabelos e praticamente rosno.
— Por favor.
Não sei se é a urgência na minha voz ou no jeito como eu estou
claramente meio afetado ou meio estranho desde o começo da semana, mas
Hiro suspira e engole em seco, sua postura finalmente relaxando um pouco.
— Tá bom. Mas se meu pai ficar sabendo…
— Ele não vai. Olha, eu vou pra esse lado, você vai pra aquele.
Hiro ainda estreita os lábios, como se quisesse mostrar que não está nada
feliz com aquilo, mas vai para o lado que eu apontei e eu saio na direção
oposta.
Olho atrás das máquinas, espremendo os olhos para ver através dos fios,
procurando por aquela porcaria. Não acho nada e subo as escadas. Tem
salgadinhos nas mesas e quando eu passo pela dos meus pais, minha mãe
me faz pegar duas coxinhas que eu enfio na boca de uma vez só para ela
não ficar me enchendo o saco. Eu acabei de almoçar, pelo amor de Deus.
— Tá procurando alguma coisa? — ela pergunta, enquanto meus olhos
escaneiam as paredes. Eu me abaixo para olhar por debaixo das mesas só
por precaução, mesmo sabendo que dificilmente uma caixa de energia vai
ficar ali. Assim que me levanto, minha cabeça parece pesar duas toneladas.
— O Hiro perdeu uma coisa — digo, a primeira coisa que consigo pensar.
— Mas ele nem subiu.
— Hum, então acho que não vai tá aqui.
Dou uma última olhada por trás das cabeças das pessoas e passo pela
mesa deles de novo, mas minha mãe me segura forte pelo braço e me faz
sentar na cadeira vazia. É sempre a merda de uma cadeira vazia.
— Senta aqui, Adriano — ela diz, meio entre os dentes, mas eu já estou
obviamente sentado. Ela dá um sorrisinho para o garçom que vem servir
refrigerante e tem uma latinha de cerveja suando em cima da bandeja dele
que me faz engolir em seco. Quando ele vai embora, ela vira a cara de novo
para mim. — Você vai me explicar agora o que você pensa que tá fazendo.
— Eu já falei, tô ajudando o Hiro a procurar—
— O que você tá fazendo de verdade. Porque eu sei que você tá
escondendo alguma coisa de mim e do seu pai e eu juro que se eu descobrir
por outra pessoa—
— Não é nada. É sério, mãe, eu só tô—
Shoosh.
A luz do fliperama inteiro se apaga, algumas crianças dão gritinhos. Um
bebê começa a chorar e meu coração pula uma batida.
— O que aconteceu? — meu pai pergunta alto, ficando de pé. — Vou ver
lá embaixo o que foi, já venho.
Ele desce, exatamente o que eu não queria que ele fizesse, e quando eu
tento me levantar para ir junto minha mãe me segura no lugar.
— Você vai ficar bem aqui enquanto a luz não acender de novo.
Estou abrindo a boca para reclamar quando vejo, lá de cima, alguém se
aproximando da entrada da Playtown. Alguém que faz minha espinha gelar.
— Era pra ser na hora do parabéns — digo em um sussurro, todo o sangue
deixando meu rosto. Consigo sentir meu coração pulsando bem atrás dos
meus olhos.
— O que era pra ser na hora do parabéns?
Helena está conversando com a moça que controla a entrada das pessoas e
eu tenho certeza de que ela não vai deixá-la entrar, porque o nome dela não
está na lista. A moça começa a olhar o papel que ela tem na prancheta, mas
Helena se aproveita para entrar correndo, e quando ela puxa a mochila das
costas eu me levanto em um pulo para me esquivar da minha mãe e desço a
escada correndo.
— Adriano!
Pulo os últimos degraus e aterrisso aos tropeços. Quando ouve meu nome,
Helena vira o rosto para mim, aqueles olhos escuros com a expressão
sombria que eu nunca esqueci. Eu sei exatamente o que ela vai puxar da
mochila, e assim que a pistola fica à vista, alguém grita.
— Não! — eu grito também, mas ela já está apontando na minha direção.
Ela olha de um lado para o outro, como se procurasse por alguém, e eu sei,
porque lembro, que era eu, era em mim que ela devia estar se concentrando,
era—
— Sai da frente, Adriano! — ela diz, mas já tem alguém vindo correndo,
alguém que eu acho que é um segurança, que vai tomar a arma dela porque
eu não lembro dela falando para eu sair da frente da última vez, mas quando
a arma dispara, um estampido que estoura a bolha ao meu redor, eu percebo
que não era.
Era meu pai.
Ele solta um gemido e cai bem do meu lado, o sangue manchando a parte
da frente da camisa dele de vermelho escuro enquanto ele parece tentar
segurar o fluxo com as mãos. Eu olho para Helena, que está com os olhos
arregalados, as mãos agora soltas ao lado do corpo e, quase em câmera
lenta, a pistola cai no chão.
Não.
Não, não, não. Não de novo. Não era, não pode—
Eu me abaixo ao lado dele, tudo agora estranhamente silencioso, mesmo
com as pessoas gritando, e ele segura minhas mãos com as dele, tingindo
meus dedos de vermelho.
— D-dri… — ele sussurra, tem sangue saindo da boca dele. — E-eu…
Minha mãe dá um berro do mezanino e eu não consigo ouvir o que meu
pai ia dizer, porque um zunido explode nos meus ouvidos e eu me encolho
com um grito, apertando minhas mãos contra as orelhas com força, os olhos
apertados.
O zunido aumenta, aumenta, aumenta, e meu corpo desaba no chão, tudo
girando, tudo embaçado, e eu acho que vou vomitar, acho que minha cabeça
vai explodir e, em um segundo, tudo desaparece.
2019
Eu sou o rei do mundo.
I

Quando abro os olhos de novo, não estou mais no chão. Não está mais
escuro e, quando olho para minhas próprias mãos, elas são grandes.
Normais. Mãos de adulto. Sem sangue.
Eu ainda estou no fliperama, mas as paredes em volta de mim são azuis, e
as crianças gritando não são meus colegas de sala. Minha cabeça não está
mais doendo, não como antes, mas estou tremendo. Tem suor escorrendo
pelo meu rosto e tenho a impressão de que vou vomitar.
Eu respiro para tentar me acalmar. Ninguém está olhando para mim, mas é
como se tivesse um holofote sobre a minha cabeça. Não sei o que
aconteceu, não sei como vim parar aqui de novo.
Olho para a tela, a respiração ainda meio trêmula. Ela está escura com
duas palavras pixeladas piscando em branco.

Game Over.

Aperto o botão, muito devagar, e as palavras desaparecem por um


segundo. Em seguida, outra frase aparece:

Você pode tentar novamente em 24h.

— Vinte e quatro horas?


Bato no botão, mas a mesma mensagem continua piscando, e eu insisto,
trocentas vezes, até a tela se apagar de vez como se a máquina tivesse
desligado. Não que ela estivesse ligada na tomada antes, porque quando me
inclino para o lado, o plugue está largado sobre o carpete azul.
Esfrego os olhos com força. Quando coloco a mão no bolso, sinto meu
celular e o puxo dali. Acendo a tela. É o mesmo dia, praticamente o mesmo
horário de quando a máquina me sugou para 1997. Eu… não tenho certeza
do que aconteceu, mas o tempo não parece ter passado aqui? Não sei, nada
está fazendo muito sentido.
Eu me levanto, devagar, as coisas um pouco fora da horizontal conforme
dou alguns passos para testar meu equilíbrio. Um molequinho passa
correndo por mim, me olhando esquisito. Será que ele viu alguma coisa?
O que eu faço agora?
Vou para o banheiro. Não sei se é a melhor ideia, mas na dúvida, o
banheiro.
Prendo a respiração quando me olho no espelho porque por um segundo
penso que estou vendo meu pai. É só quando eu pisco que a ilusão se
desfaz, meu coração vindo parar na boca.
Lavo o rosto, e quando a água escorre pelos meus dedos eu lembro do
sangue, lembro do tiro. Lembro da Helena.
Antes… antes de tudo dar errado ela falou alguma coisa. Alguma coisa
que eu tenho certeza de que ela não tinha dito da outra vez.
Mas talvez eu só esteja confuso.
Saio do banheiro e começo a andar pelo shopping, meio sem rumo, como
se estivesse no meio de um sonho. Atravesso a praça de alimentação toda e
quando passo na frente do Balão Mágico, Kaike me olha como se estivesse
vendo uma aparição. Tem uma criança puxando a camiseta dele, chorando,
toda ranhenta.
— Você tá bem? — ele pergunta quando eu passo, e faço um joinha pra
ele sem parar de andar. — O tio já vem — ele fala para as crianças, e daqui
a pouco aparece trotando do meu lado. — Tem certeza? Porque… sei lá, eu
te vi só faz uns minutos e parece que você acabou de voltar de uma guerra.
Se ele soubesse.
— Tá tudo bem — digo, sem parar de andar. — Você devia voltar, senão
vão te mandar embora também.
Kaike balança a cabeça.
— Eles não deviam ter te mandado embora, você é o melhor mágico!
Agora me falaram que eu vou ter que te substituir. É capaz de eu fazer uma
criança desaparecer sem querer e ela nunca mais voltar.
Tento forçar uma risadinha, mas acho que Kaike percebe que eu não quero
conversar.
— É sério —insisto —, você devia voltar. Eu vou pra casa, qualquer coisa
a gente conversa mais tarde.
Kaike suspira, as mãos na cintura, aquele uniforme horroroso.
— Você me ensina os truques depois? Eles disseram pra eu ver no
YouTube, acredita?
— A gente vê — digo, e ele enfia as mãos nos bolsos, começando a se
afastar. — Ah, Kaike?
— Hum?
— Fala pra sua irmã que eu… pedi desculpas.
Ele para e olha para mim, parecendo confuso.
— Desculpas?
— Ué, por causa de ontem, por causa do que eu… — paro. Ao menos
que… — A sua irmã sabe quem eu sou?
Ele encolhe os ombros.
— Não que eu saiba? Por que ela ia saber?
Um frio se espalha pelo meu estômago e eu seguro uma vontade de rir que
é mais nervoso que qualquer outra coisa.
— Claro — digo, apertando o passo. Preciso sair dali. — Por que ela ia
saber?

II
Quando chego em casa (na casa da minha mãe), vou para o meu quarto e
me deito na cama. É estranho como ela é pequena agora, como os pôsteres
estão desgastados e amarelados por causa do sol. Depois do que aconteceu,
minha mãe tirou tudo do apartamento do meu pai, algumas coisas que eu
tinha no quarto de lá vieram parar aqui. Aposto que meu Super Nintendo
está enfiado em algum armário em algum lugar.
Tiro o celular do bolso e abro minhas mensagens. Não tem nada novo,
mas o que chama minha atenção é que as mensagens da Marcela não estão
mais ali. Procuro nos meus contatos, mas ela não está lá também.
Fecho os olhos. Eu lembro dela, lembro de nós dois nessa cama, lembro
dela saindo brava e do vaso quebrando.
O vaso.
Levanto em um pulo e vou para a sala, meio estabanado. Olho para a
mesinha que fica bem do lado da porta e lá está ele. De pé. Intacto.
Pego o vaso na mão, girando-o de um lado para o outro, procurando por
qualquer sinal de que ele tenha sido jogado no chão, uma rachadura, uma
lasca. Nada.
Ontem, uma semana atrás.
Estou confuso e acho que minha cabeça vai começar a doer.
Sento no sofá e pego o celular de novo. Daquela vez eu abro o navegador
e digito o nome do Hiro. César Hiroshi Suzuki.
Não sei por que resolvo procurá-lo, mas acho que quero saber o que
aconteceu, onde ele está. A primeira página que aparece com o nome dele é
uma rede social profissional, e quando clico no link não tenho dúvida de
que é mesmo ele.
Ele tem a mesma cara, só as bochechas diminuíram e agora ele está
usando óculos. Dá para ver uns fios de cabelo branco nas têmporas e
quando desço para ver o que ele está fazendo da vida, o local de residência
é Tóquio. Pelo visto ele realmente foi para o Japão com os pais e ficou por
lá, e pensar nisso, não sei, faz meu peito doer um pouco. Acho que eu
queria vê-lo. Acho que queria poder conversar com ele.
Solicito amizade com um pouco de vergonha, considerando meu histórico
profissional, mas preciso falar com ele. Estando do outro lado do planeta,
acho que ele só vai ver daqui muitas horas, mas não custa arriscar. Isso se
ele lembrar de mim, se me reconhecer.
Vou para a cozinha e pego um copo d’água. Aos poucos a adrenalina
começa a baixar e o cansaço bate com tudo, meus olhos começam a pesar.
Volto para a sala e me ajeito no sofá, achando que vai ser só um cochilinho,
mas quando acordo já está escuro lá fora e eu preciso sair para ficar com a
minha mãe no hospital.
Abro o armário da cozinha e pego um pacote de salgadinho para ir
comendo no caminho. Ainda não tenho certeza se consigo acreditar que
tudo aquilo aconteceu, e quando chego no carro, dou a volta para olhar o
farol de trás, só por curiosidade. Quebrado.
Pego meu crachá quando chego no hospital e vou para o quarto da minha
mãe. Ela está acordada, vendo TV, e faz uma cara de surpresa quando me
vê.
— Achei que você fosse vir mais tarde hoje. As festas não vão até mais
tarde de sábado?
Debato internamente por um segundo se devia mentir, mas a lembrança
dela querendo arrancar minha orelha ainda está viva demais na minha
mente.
— Me mandaram embora — digo, tentando fazer parecer que não é
grande coisa. — Por causa do menino que chorou ontem. Os pais dele
foram reclamar, fizeram um barraco. Pelo menos agora posso passar mais
tempo com você, olha que maravilha.
Ela faz cara de tédio, mas quando me aproximo para dar um beijo em sua
testa, ela afaga meus cabelos. A pele dela está enrugada e os cabelos bem
brancos, mas os olhos são os mesmos que eu vi há apenas algumas horas.
— Dri, você nem gostava tanto assim de lá, vai. Você nem gosta muito de
criança.
— Eu sei, mas era um emprego.
— Um emprego que, se eu não me engano, era pra ser temporário.
De novo essa história. Reviro os olhos e vou para o banco, ajeitando as
coisas nele.
— Quer parar com isso? — digo. — Eu vou tirar uma moeda da sua
orelha.
— Pelo menos agora você pode procurar outra coisa, ué. Seu pai achava
que você ia acabar mexendo com computador, você e aquele japonesinho.
Lembra dele?
— O Hiro. Hiroshi.
— Isso, isso mesmo. Mas ele mudou depois que seu pai morreu.
Meu estômago queima e olho para minhas mãos.
— Mãe, me tira uma dúvida — digo, procurando nos vincos dos meus
dedos as marcas de sangue. — No dia que o pai morreu… Foi na hora do
parabéns?
Tinha sido. Antes.
— Quê? Não. Você não lembra?
— Bem pouco — minto.
— Foi antes, Adriano. Você desceu correndo feito um doido e aí aquela
menina maluca chegou. Você acredita que ela teve coragem de voltar pra
cá? Parece que tá morando de novo naquela casa lá, perto do apartamento
do seu pai. Faz uns meses. Pelo menos foi o que me falaram.
Sinto um frio na barriga de novo, não sei se pela confirmação da minha
mãe ou pelo fato da Helena estar tão perto.
Sai da frente, Adriano!
— Você tentou conversar com ela alguma vez? — pergunto. — Depois?
— E pra quê? Não vai adiantar nada, vai? Já foi. Por mim, não quero
nunca mais ver a cara dela na minha frente. Aonde você tá indo?
— Tomar um banho.
— Não tem chuveiro em casa, não?
— Tem chuveiro, mas não tem shampoo — digo, puxando minha roupa
da mochila. — Já venho.
Ela ainda resmunga mais um pouco antes de eu fechar a porta e me
trancar dentro do banheiro. Tenho me trancado muito em banheiros
ultimamente.
Evito olhar no espelho de novo e começo a tirar a roupa. É quando
termino de tirar a calça que meus olhos batem nos meus joelhos.
Eu levanto a perna, apoio o pé no vaso sanitário.
Tem uma cicatriz ali, uma cicatriz bem feia que eu definitivamente não
tinha antes, de um machucado que muito provavelmente não cicatrizou
direito. Um frio se revira no meu estômago.
Eu sei exatamente que machucado foi esse.

III

— Já vai? — minha mãe pergunta na manhã seguinte, quando começo a


arrumar as coisas para ir embora.
— Eu… tenho uma coisa pra fazer.
— Uma coisa.
— É, mãe, tenho um compromisso.
— Adriano.
Eu paro, mochila nas costas. Ela está me olhando com os olhos meio
estreitos, como se soubesse que estou prestes a aprontar alguma coisa.
— É sério e não é nada demais. Mas eu preciso ir.
Vou até a cama e dou um beijo em sua testa antes de sair. No elevador,
puxo o celular do bolso. Hiro aceitou minha solicitação e eu mando um oi,
assim, como quem não quer nada. Só quero saber se ele lembra de mim, na
verdade.
O valet traz o Gol prata da minha mãe de volta e eu entro. Ainda parece
que tem um bolo dentro de mim, aquela ansiedade de quando você sabe que
alguma coisa terrível vai acontecer a qualquer momento.
É domingo e as ruas estão mais vazias, então atravesso a cidade mais
rápido do que estava preparado. Queria que demorasse, queria que desse
tempo de eu mudar de ideia, mas agora já estou aqui no bairro do meu pai,
da casa e da quitanda dos Suzuki.
Eu passo devagar, a boca seca, as casas antigas ainda no mesmo lugar. Dá
para ver o prédio do meu pai de longe e acho que começo a tremer um
pouco quando passo ali do lado. Quando levanto os olhos para tentar
enxergar a sacada, tem uma cortina escura no apartamento, alguém que não
deve fazer ideia do que aconteceu com o homem que um dia morou ali.
Eu passo reto e subo a rua que dá na descida do capeta. É estranho como
ao mesmo tempo parece que foi ontem e não foi, como quase consigo
conjurar a imagem do Hiro, todo grande naquela bicicletinha, querendo
descer sem freio.
Passo pela pracinha, a árvore continua lá. Tem umas crianças brincando,
colocaram uns balanços agora, fizeram um campinho que está com a grama
meio alta.
Continuo descendo. Eu sei que a quitanda dos Suzuki não vai estar mais
ali, mas o lugar ainda existe. É uma lojinha de bugigangas, parece, mas na
minha cabeça consigo sentir o cheiro das bananas e das goiabas, ver os
caixotes que ficavam empilhados, onde a mãe do Hiro sempre me dava oi.
Avanço mais um pouco até que paro o carro. A partir daqui eu não sei
direito o que fazer, porque não sei exatamente onde a Helena morava, só sei
que, segundo o Hiro “é um pouco depois da quitanda”, o que pode ser
muitas coisas, na verdade. O relógio do meu celular me diz que eu ainda
tenho umas três horas até poder voltar pra Blue Zone, então não custa tentar.
É uma ideia meio idiota, mas quero tentar. Além disso, é domingo de
manhã, se ela não estiver em casa agora, não sei quando vai estar.
Desço do carro, o sol insuportável de fevereiro estalando na minha
cabeça, e começo a andar. As primeiras casas que eu bato pensam que é
entrega, e tenho a impressão de que estrago um pouco o dia das pessoas
quando elas percebem que não é. Eu pergunto pela Helena, pergunto se
sabem de alguém com esse nome por aqui, mas eles me olham esquisito e
dizem que não.
Cubro um quarteirão inteiro assim, casa sim, casa não, e vira e mexe
alguém me olha torto por trás de uma cortina. Uma senhorinha tem a
coragem de sair e ficar me olhando, braços cruzados, como se estivesse me
vigiando para eu não tentar fazer nada suspeito.
É quando eu estou na metade do segundo quarteirão, já todo quente e
suado debaixo do sol, que alguém me dá uma informação útil.
— Tem uma mulher que chama Helena naquela casa ali — o senhor diz,
apontando para o outro lado da rua, quase na esquina. — Não sei se é quem
você tá procurando. Mudou faz pouco tempo, e ela é meio estranha.
Provavelmente a Helena, então.
Desço a rua, mãos no bolso, me perguntando o que ela vai fazer quando
me vir. Será que ela vai me reconhecer? Será que vai querer me chutar de
novo?
A casa é antiga e tem um portãozinho baixo meio enferrujado que parece
já ter sido pintado muitas vezes de cores diferentes. Puxo a travinha e ele
abre.
O quintal está com a grama aparada e a pintura de fora, toda branca, está
um pouco descascada. Assim que me aproximo consigo ouvir barulho vindo
lá de dentro e agora não tenho mais certeza se quero continuar. O que eu
vou falar? E se ela se assustar e chamar a polícia?
Já estou em frente à porta, minha cabeça pulsando com o calor. É melhor
acabar logo com isso.
Respiro fundo e dou três batidinhas.
O barulho para, dá para ouvir uma TV, algum jornal passando. Os passos
vão ficando mais altos e, antes que eu esteja completamente preparado, a
porta se abre.
Acho que o meu queixo cai um pouco.
— Oi…? — Helena diz, e eu sei na hora que é ela. O cabelo escuro, agora
comprido, os olhos da mesma cor, as sobrancelhas fortes, o nariz reto. Mas
onde antes ela era uma criança meio magrela e desengonçada… Bom, agora
ela é uma mulher. E eu sei que parece uma constatação meio óbvia, o tipo
de coisa que eu devia ter considerado com antecedência, mas é um conceito
tão absurdo que não sei direito o que fazer com ele. Helena me mede da
cabeça aos pés, e ela continua mais alta que eu. — Posso ajudar?
Pisco algumas vezes e tento me recompor. Tento parecer uma pessoa
normal.
— Helena?
— É…? — ela responde, meio desconfiada. — E você é…? É entrega?
Seus olhos passam por mim e ela se inclina um pouco para o lado, como
se estivesse procurando o uniforme e a van dos correios, embora os correios
não entreguem de domingo e eu não sei por que estou pensando nisso.
— Não — digo, a boca seca. — Eu sou… — merda, ela vai fechar a porta
na minha cara, eu sei que vai. — Meu nome é Adriano. A gente estudou
junto. Você… meu pai…
A princípio ela não parece entender, as sobrancelhas franzidas em
confusão, e meu rosto esquenta quando seu olhar me varre por completo,
com mais atenção daquela vez, como se ela estivesse tentando me
reconhecer. Ela finalmente me encara, olhos nos olhos, e dá para ver o
momento exato em que ela entende quem eu sou.
E aí é claro que ela tenta fechar a porta.
— Espera! — digo, tentando impedi-la. Por sorte eu sou mais forte, pelo
menos isso, e ela não consegue fechar. — Por favor, Helena, eu só quero
conversar!
— Eu não quero conversar com você! Eu já falei tudo o que eu tinha pra
falar, você não sabe o que a minha vida… eu não sei mais o que vocês
querem!
— Eu só quero conversar, eu juro. Olha, eu vou soltar a porta. Você pode
voltar pra dentro se quiser, e eu não vou mais te atrapalhar — digo, e
levanto as mãos. Ela para também, me encarando, pelo menos uns cinco
centímetros maior que eu. — É só uma conversa.
Helena bate a porta na minha cara, o que eu devia ter imaginado que ia
acontecer.
Eu sou um idiota.
Esfrego o rosto com força e dou meia-volta. É só quando passo pelo
portãozinho que ouço a porta se abrir de novo.
Eu me viro e Helena está na soleira, os braços cruzados, olhando para
mim.
— Acho que tudo bem se você só quiser conversar.

IV

— Você toma café com açúcar ou adoçante? — ela pergunta da cozinha,


enquanto eu estou sentado na sala, sem saber o que fazer.
— Açúcar — respondo, olhando ao redor. Não sei como a casa era antes,
mas agora tem dois sofás e uma televisão pequena na sala, uma mesa
redonda do outro lado. As paredes foram todas pintadas em tons escuros,
quadros com paisagens e pessoas meio distorcidas. Não gosto daqui.
Helena volta, duas xícaras de café na mão. Ela me estende uma e se senta
no outro sofá, o mais longe possível de mim. Dou um gole no café, que está
meio ralo, mas não falo nada.
— O que é que você quer? — ela pergunta, sem tocar no café dela. —
Você é a última pessoa que eu esperava que batesse na minha porta depois
de todo esse tempo.
Aquela é uma excelente pergunta, porque na verdade eu também não sei.
— Eu acho… que eu só queria te ver?
Ela para, o café a meio caminho da boca.
— Me ver.
— Não assim, não… — merda, ela vai achar que eu tenho algum
problema. — Eu fiquei curioso. Eu nunca soube o que aconteceu com você
depois… do acidente.
Dá pra chamar de acidente? Não sei.
— Bom, eu tô viva.
Dou mais um gole de café para me ocupar e ela faz a mesma coisa, até
que tomo coragem para fazer a pergunta que talvez eu tenha vindo fazer.
— Foi um acidente mesmo, não foi? Você ter acertado meu pai.
Ela abaixa a xícara muito devagar, e tenho a impressão de que essa é uma
daquelas histórias que ela já teve que repetir muitas vezes.
— Ele se jogou na sua frente — ela diz, os olhos fixos no café. — Foi
sem querer. Eu já falei isso mil vezes, Adriano, foi sem querer. Eu não sei
nem se… não sei nem se na verdade eu ia apertar aquele gatilho, acho que
só queria assustar vocês com a arma do meu pai por causa de tudo que
vocês tinham feito, mas eu me assustei quando alguém veio correndo na
minha direção, tava tudo escuro, e… não sei, é tudo meio confuso.
Engulo em seco.
— É confuso pra mim também.
— Desculpa — ela diz, e daquela vez seus olhos escuros estão fixos nos
meus. Ela parece sincera. — De verdade. Eu também já disse isso várias
vezes, mas acho que nunca pra você assim. Desculpa mesmo. Eu não… Eu
falei pra você sair da frente, eu lembro que falei. Não era você, eu tava
procurando o Lucas e o Danilo. Lembra deles? Você… não sei, naquela
semana você tava diferente. Não tão babaca, eu acho. Você até me defendeu
uma vez.
Pois é.
Sinto aquele bolo no estômago de novo, o frio na espinha.
— Se valer alguma coisa pra você, eu me arrependo — ela diz. — De ter
pegado aquela arma, de ter ido atrás de você e dos outros meninos. Foi
errado e eu sabia que era errado, mas… Eu não queria… Eu sei que a sua
vida deve ter sido um inferno, a minha também foi.
Termino o café para ser educado e me levanto, meu coração meio
acelerado contra as costelas.
— Obrigado — digo, mostrando a xícara de café e, quando ela se adianta
para pegá-la de mim, seus dedos encostam nos meus. É só por um segundo,
mas quando nos encaramos a expressão dela é um espelho da minha, a
expressão de quem não faz a menor ideia do que fazer com a própria vida.
De quem viu coisas demais. De quem se arrepende de ter ou de não ter feito
alguma coisa.
Helena pisca algumas vezes e se afasta de mim para desaparecer na
cozinha. Não sei se é educado sair, então espero ela voltar e abrir a porta
para mim.
— Adriano? — ela chama quando estou no quintal, já no meio do
caminho. Minhas mãos estão suando e a vejo respirar fundo, aqueles olhos
escuros outra vez nos meus. — Queria que as coisas tivessem sido
diferentes.
Engulo o nó na minha garganta.
— Eu também.

Chego no shopping cedo e ainda tenho que enrolar mais um pouco. Compro
alguma coisa para comer antes de voltar para a Blue Zone, querendo me
ocupar, querendo esperar mais um pouco, só mais um minuto. Olho no
relógio e acho que se a máquina tiver que me deixar voltar de novo, já está
na hora dela deixar. Ainda assim, um frio percorre meu corpo quando entro
no fliperama, e meus passos estão leves daquele jeito meio errático, a
memória do meu aniversário impregnada em cada centímetro desse lugar.
E lá está ela. Velha, largada no canto, definitivamente desligada. Não
gosto de olhar para essa máquina, não gosto mesmo.
Bato no botão quando estou de frente para ela, e pelo menos dessa vez ela
não faz cu doce. Na mesma hora as palavras aparecem em branco na tela.

Bem-vindo de volta.

Mimimi, bem-vindo de volta. Meu ovo.


Aperto o botão mais uma vez e olho ao redor para ter certeza de que
ninguém está vendo. Não sei o que acontece se alguém estiver, mas não
quero traumatizar ninguém pelo resto da vida, caso alguma coisa aconteça.
Caso eu desapareça ou sei lá. As letras somem e aparecem três corações. De
repente o terceiro começa a piscar e desaparece, o que só pode ser um mau
sinal. Acima deles, surge outra frase.
Você tem duas vidas. Deseja continuar?

Como se eu tivesse muitas opções.


Como se eu fosse parar por aqui, agora que eu sei que eu posso fazer
alguma coisa, que eu fiz alguma coisa, mesmo que tenha sido uma tentativa
patética.
Agora que eu sei que as coisas podem ser diferentes, que eu posso mudar
o futuro.
SIM.
A tela se apaga e o zunido começa.
Eu me encolho e coloco as mãos nos ouvidos, sentindo, mais uma vez,
tudo desaparecer ao meu redor.
1997
Não existe colher.
DOMINGO

Eu sei que voltei porque a cama de repente está grande de novo e Claudinho
e Buchecha está tocando na sala. Exatamente como da última vez.
A primeira coisa que eu faço parece estúpida, mas eu preciso saber.
Preciso entender como esse jogo (se é que dá para chamar de jogo)
funciona. Eu me levanto, acendo a luz e abaixo as calças para olhar para os
meus joelhos.
Nada.
Corro os dedos pelas partes mais ossudas, que definitivamente deviam
estar cheias de cicatrizes, mas estão limpas. Perfeitas. A pele sem nenhum
arranhão (e sem nenhum pelo também, o que não me surpreende, mas me
mata um pouco por dentro).
Subo as calças e me sento na cama. Aquilo abre muitas possibilidades,
porque parece que a última vez não aconteceu, então.
Lá fora a música muda, começa a tocar Backstreet Boys.
Eu saio do quarto porque quero testar uma coisa, e dou de cara com meu
pai de pijamas, falando no telefone com a minha mãe. As mesmas palavras,
a mesma conversa. Ele desliga e percebe que eu estou ali.
— Ah, bom dia. Você… tá com fome? Tem sucrilhos.
Replay.
Eu o encaro por um tempo, meus olhos em seu peito, bem no lugar em
que o sangue se espalhou.
— Dri? — ele repete. — Tá com fome?
Pisco forte e faço que sim, observando tudo se desenrolar, esperando para
ver se vai acontecer alguma coisa diferente, mas é o mesmo filme se
repetindo. Ele pega sucrilhos, pergunta se é o que eu gosto, sai da cozinha
para se trocar e avisa que vai ter que trabalhar.
E assim eu fico sozinho, de novo.
Vou para o meu quarto e me troco, enfiando a calça de moletom mesmo,
porque sei que o Hiro vai vir me chamar para brincar, mas dessa vez, como
ele não me vê na sacada, é o interfone que toca.
— O César tá aqui embaixo — o porteiro diz.
— Tô descendo.
Pego a bicicleta na garagem e saio, Hiro daquele jeito largado dele,
comprido, e agora consigo enxergar como ele vai se tornar o homem da foto
que eu vi no celular. É meio perturbador, na verdade.
A gente começa a pedalar, indo na mesma direção que da última vez, e
quando tento andar sem as mãos e não perco o equilíbrio, abro um
sorrisinho meio sem querer. Hiro percebe e me olha daquele jeito
desconfiado.
— Que foi?
— Nada. Só tava testando se eu ainda sei andar sem as mãos.
— Bom, você sabia andar ontem.
Claro que sabia.
— Eu sei, era só pra ver.
Ele não parece muito convencido, mas sei que vai desconversar no fim
das contas e vai perguntar se eu quero ir na pracinha.
— Quer ir na pracinha?
Reprimo o sorriso, porque é como quando você está assistindo um filme e
sabe as falas de cor, exceto que nesse caso eu estou dentro do filme e minha
tentativa de não rir resulta em uma careta. Hiro fica me olhando.
— Você tá esquisito hoje.
Ele não faz ideia.
Dou de ombros e daquela vez sou eu que saio pedalando primeiro, rua
acima, o vento gelado terminando de me acordar enquanto minhas pernas
sobem e descem, sobem e descem. Quando olho para trás, Hiro está
pedalando na minha cola, o corpo inclinado para frente, praticamente de pé
nos pedais. No topo da subida, eu paro, ofegante, e ele para ao meu lado, o
rosto corado do esforço, e eu sei exatamente o que ele vai perguntar.
— Quer descer sem freio?
Minha língua coça para eu soltar um palavrão, mas me seguro.
— De jeito nenhum — digo, ainda possivelmente fazendo careta. É
estranho, tudo aquilo é estranho.
— A gente já desceu de carrinho de rolemã! — ele diz. Hm. Diferente.
— Eu sei, mas com o carrinho de rolemã fica mais perto do chão.
O vento bate mais forte, balançando nossos cabelos, e ele estreita os
olhos.
— Você tá esquisito mesmo.
Decido ignorá-lo um pouco e respiro fundo o ar gelado. Dou impulso com
o pedal, deixando a bicicleta descer no embalo da descida antes de apertar
os freios para ir mais devagar e não me espatifar lá embaixo, porque acho
que uma vez já foi o suficiente. Hiro emparelha comigo, o moletom enorme
colando no peito dele por causa do vento.
— Sem graça.
Ele solta o freio bem no fim, como se fosse muito corajoso, e sobe na
calçada da pracinha, depois larga a bicicleta na grama. Ele sobe na árvore
daquele jeito ágil de quem não pesa quase nada e para do mesmo jeito, a
cabeça entre os galhos.
— Não vai subir?
Daquela vez eu sei como se faz e seguro nos galhos mais grossos,
apoiando meu tênis no tronco cascudo da árvore para me içar para cima.
Quando estou quase alto o suficiente para conseguir me sentar, meu pé
escorrega e eu quase perco o equilíbrio, mas Hiro tem os reflexos rápidos e
segura minha blusa antes que eu escorregue por completo e vá parar no
chão.
Ele me puxa pelo moletom e eu consigo segurar os galhos com firmeza de
novo, finalmente erguendo o meu corpo o suficiente para me sentar ao lado
dele. Minhas mãos estão um pouco arranhadas e meu coração martelando
feito louco, mas estou bem.
— Valeu — digo, ajeitando minha roupa. — Achei que eu fosse cair.
Hiro balança as pernas compridas, depois apoia a cabeça no galho ao seu
lado e pega o bichinho virtual que ele guarda debaixo da blusa.
— Até parece que eu ia te deixar cair.
Engulo em seco, o coração ainda batendo rápido do susto, e quando olho
para ele, é como se estivesse vendo o Hiro adulto, o Hiro que mora em
outro país, que está vivendo a vida dele e que provavelmente se esqueceu
de mim, se esqueceu desse dia, esqueceu da nossa amizade. E… não sei,
acho que não quero que ele me esqueça.
— Você tá esquisito mesmo hoje — ele diz, aquela voz de quem acabou
de fazer uma constatação importante, e eu dou um soquinho no ombro dele.
— Impressão sua.
A pressão aumenta nos meus ouvidos, e uma dorzinha chata se aloja na
base do meu crânio, me obrigando a fechar os olhos com força até ela
passar.
Solto a respiração com um suspiro assim que ela vai embora e, quando
descolo minhas pálpebras, posso jurar que vi o ar vibrar ao nosso redor.
II

Eu ajudo o Hiro na quitanda na hora do almoço, colocando os caixotes para


dentro antes de fechar, porque acho que é o mínimo que eu posso fazer
depois dele me dar chocolate de novo.
— Hiroshi, vai ajudar o menino, ele é tão miúdo — a mãe dele diz
enquanto eu estou tentando pegar o caixote de bananas. — Você é maior,
vai lá.
— Sai, eu consigo sozinho — digo, tentando manter o mínimo da minha
dignidade, mas ele me ignora e me empurra para o lado do caixote.
— Pega de um lado e eu do outro, vai.
Moleque teimoso.
A gente leva o caixote para dentro e quando estou limpando a mão na
calça vejo que tem um pedaço de corda em cima da bancada.
— Da onde é isso? — pergunto, mostrando a corda para o Hiro. Ele
aponta para um outro caixote no canto.
— Estourou daquele ali, a gente usava de alça. Por quê?
Abro um sorrisinho.
— Quer ver uma coisa?
Ele dá de ombros e eu entrego a corda para ele, depois me viro de costas,
as mãos para trás.
— Me amarra.
— O quê, pra quê?
— Só me amarra, Hiroshi.
— Eu não vou te amarrar, minha mãe vai brigar comigo.
— Se você não me amarrar eu vou começar a falar palavrão.
Ele não se mexe. Respiro fundo.
— Porra, caral—
— Tá bom! Tá bom, para!
Abro um sorrisinho que ele não consegue ver enquanto Hiro finalmente
começa a me amarrar com a corda.
— Devia ter te deixado cair da árvore — ele diz, a voz meio emburrada.
— Pronto. Acho. Não sei, é pra eu apertar mais?
Testo o nó. Parece bom.
— Não precisa, tá bom. Olha só. — Eu me viro para ele.
Hiro está de braços cruzados, claramente cético.
— Conta até dez — peço.
— Não vou contar até dez.
Reviro os olhos.
— Filho da p—
— Um, dois, três, às vezes eu odeio você, Adriano, sabia? Quatro,
cinco…
Seguro uma risada, meus dedos e pulsos trabalhando atrás das minhas
costas para afrouxar o nó dele, tentar abrir espaço para puxar a minha mão.
Tem um jeito certo de posicionar os cotovelos, e quando ele chega no dez,
eu puxo as mãos para frente, a corda solta.
— Tadá.
Hiro arregala os olhos.
— Como você fez isso?
Dou uma piscadinha.
— Segredo.
Ele pega a corda das minhas mãos e fica olhando, como se estivesse
procurando por um truque ou algo assim.
— Não tem truque, só anos de treinamento — digo, e ele me olha daquele
jeito desconfiado. — Ah — acrescento, porque me lembrei de uma coisa
—, deixa seu walkie-talkie ligado, tá? Sabe, se a gente precisar conversar.
Ele estreita ainda mais os olhos, dois riscos em seu rosto, e acho que está
prestes a constatar, de novo, que eu estou esquisito, quando seu Suzuki grita
lá de fora.
— Terminaram aí? — ele pergunta, em frente à kombi, e a gente faz que
sim. Hiro larga a corda em cima do balcão de novo e quando estamos
saindo, damos de cara com a Helena.
Por um momento eu fico parado no lugar, tentando juntar a imagem que
eu estou vendo com a Helena que eu encontrei em 2019, e ela fica parada
também, me olhando com aqueles olhos escuros, provavelmente se
perguntando o que é que eu estou fazendo ali. Ela está sem o capuz da
escola, o cabelo curtinho bagunçando com o vento, mas o que mais me
chama a atenção é que ela claramente andou chorando.
Ela dá um passo para trás, como se tivesse sido pega de surpresa.
— Não sabia que vocês já tavam fechando — ela diz baixinho, dando
meia-volta para ir embora.
— Não, a gente espera — Hiro diz. — Mãe, a Helena tá aqui!
Dona Suzuki sai, agora sem avental, e Helena parece meio perdida. Ela
abre a mão, uma nota de um real amassada e algumas moedas.
— Meu pai… mandou eu comprar alguma coisa pra comer.
O sangue acelera nas minhas veias e fecho minhas mãos em punhos,
porque só dela mencionar o pai eu já quero dar um soco em alguém. Nele,
de preferência.
Dona Suzuki pega o dinheiro da mão dela e entra, enquanto Helena fica
parada, olhando para os próprios pés. Fico olhando para ela, porque não
consigo evitar, meio curioso e horrorizado ao mesmo tempo, e acho que ela
só não me xinga porque o Hiro e a família dele estão perto.
Um pouco depois, dona Suzuki volta com uma sacola muito mais cheia do
que o dinheiro que a Helena deu conseguiria comprar, e ela percebe.
— Não precisa, eu—
— Leva — ela diz, praticamente colocando a sacola nas mãos da Helena.
— E qualquer coisa você pode bater lá em casa.
Ela pega a sacola e faz que sim rapidinho antes de sair apressada,
praticamente correndo de volta pela rua, todos os olhos acompanhando-a
pelo caminho.
— Alguém precisa fazer alguma coisa com essa menina — dona Suzuki
diz, os braços cruzados.
Seu Suzuki fecha a porta da kombi.
— Seu irmão falou que ia conversar com o pai dela, não falou? Vamos
ver.
Ela suspira e pega o ferrinho para baixar a porta de metal que está
enrolada no teto.
— É, não sei se só conversar vai ser o suficiente. Adriano? — ela se vira
para mim. — Pode ir, menino, obrigada por ajudar aqui hoje.
— Obrigado pelo chocolate — digo, e dou um soquinho de tchau no braço
do Hiro antes de pegar minha bicicleta para ir embora. Enquanto pedalo, as
palavras da dona Suzuki fazem eco nos meus ouvidos, e eu concordo com
ela em silêncio.
Talvez só conversar não seja o suficiente.
SEGUNDA-FEIRA

Quando chego na escola, Danilo pede meu dever de matemática de novo e,


antes que eu possa dizer que não, ele puxa o caderno da minha mão, porque
é educado assim que ele é. Dessa vez eu consegui resolver as equações mais
rápido, e acho que devia ter errado de propósito só para ele se foder um
pouco, moleque folgado.
Lucas chega depois, aquele imprestável, e aí é a mesma putaria com o
meu caderno. O sinal bate e a Helena entra correndo, do mesmo jeito, mas
daquela vez os olhos dela demoram nos meus, talvez por causa de ontem.
Ela se encolhe, aperta mais o capuz, e me ignora completamente depois
disso.
Dou um suspiro, coisas demais passando pela minha cabeça — 2019, a
Helena e o Hiro adultos, os pais dele falando dela ontem —, e no fim não
consigo me concentrar direito na aula. É só quando o sinal toca e todo
mundo sai correndo que eu lembro que agora é aula de Educação Física.
Vou meio me arrastando, porque não estou com vontade, e porque sei que
vai ser futebol de novo e já disse como não tenho coordenação para jogar.
Nós somos separados em times e as meninas são separadas dos meninos,
cada grupo em uma quadra, tudo de novo. Os exercícios começam e, como
da última vez, Danilo chama o meu nome e chuta a bola na minha direção.
Mesmo (meio) preparado, mesmo sabendo o que ele vai fazer, ainda assim
eu não consigo fazer a bola parar porque sou um eterno perna de pau, e ela
sai quicando, exatamente como da última vez, até o outro lado da quadra
onde as meninas estão jogando. Eu espero que elas passem para não
atrapalhar o jogo e atravesso a quadra, pegando a bola que está parada onde
o concreto termina e a grama começa, no exato mesmo lugar.
Quando me levanto, praticamente todas as meninas estão de um lado do
campo enquanto Helena está sozinha, do outro, como estava na outra
segunda-feira também. Olho para a bola. Olho para a quadra.
Nossos olhares se cruzam.
— O que você tá olhando? — ela pergunta, e eu sinto o ar todo elétrico ao
meu redor, o começo da dor de cabeça, a pressão no ouvido.
Engulo em seco e sacudo a cabeça. Preciso me concentrar, as coisas não
podem se repetir todas como da última vez.
— Nada. Você é amiga do Hiro, né?
Ela franze as sobrancelhas, completamente alheia ao jogo. Deviam ter
colocado um cone no lugar dela, ia ser mais útil.
— Não é da sua conta.
— Bom, ele é meu amigo também.
Ela fica me olhando como se não entendesse onde eu quero chegar, e acho
que nem eu mesmo sei. Acho que só queria falar alguma coisa? Queria
mostrar que a gente tem alguma coisa em comum? Sei lá. Quando mexo a
bola nas minhas mãos, fica uma marca de suor sujo onde eu estava
segurando.
Olho para ela mais uma vez e forço um sorrisinho, mas Helena
simplesmente levanta o dedo do meio para mim. E é aí que eu vejo a bola
das meninas vindo na direção dela. Eu tento avisar, mas não dá tempo,
porque Helena está praticamente de costas para o jogo e a bola a acerta na
cabeça com força.
— Ai! — ela grita, se encolhendo.
Não vi se foi de propósito, não vi se alguém chutou ou jogou com as
mãos, mas eu largo a bola que estou segurando e corro até ela.
— Você se machucou?
Helena se levanta e me empurra, a mão ainda na cabeça. O ar vibra, a
estática se dissipa. A pressão nos meus ouvidos passa.
— O que você pensa que tá fazendo?
— Não sei, te ajudando?
— Eu não preciso da sua ajuda, Adriano.
Ela dá uns passos para trás, as meninas rindo de um lado, os meninos do
outro. Não sei para onde ela está indo, mas Helena sai da quadra correndo e
sobe as escadas da arquibancada, desaparecendo pelo pátio.
— Helena! — a professora grita, mas ela não para. — Helena! Por que
vocês pararam? Podem voltar a jogar, eu vou conversar com ela. E vou
chamar um inspetor!
Observo a professora se afastar por um instante e depois pego minha bola
e volto para a quadra dos meninos. Eles pararam de jogar por causa da bola,
obviamente, então devem ter visto tudo.
— O que foi que aconteceu ali? — Danilo pergunta, enquanto eu largo a
bola no chão. — Por que você tava ajudando a Helena?
— Ué, porque eu achei que ela tivesse se machucado.
— E daí? Você nunca nem chega perto dela.
Bom, quanto mais a gente sabe, né.
Dou de ombros, como se não estivesse nem aí, e saio da quadra para me
sentar na arquibancada. Não ligo se a professora voltar e chamar minha
atenção ou se ela vai chamar o seu Antônio, o inspetor. Posso falar que me
machuquei, sei lá. Fingir que eu caí.
— Dri! — Danilo ainda chama, mas eu não me viro.
— Não vou mais jogar — respondo, me largando nos degraus. Fico ali
sentado, vendo todo mundo jogar, mas meus olhos não conseguem ficar
parados nas quadras. Estou de olho no pátio quando a professora volta com
a Helena e a faz ficar sentada na arquibancada também, de castigo, acho,
mas lá do outro lado do vazio que eu odeio. Eu me viro para olhar para ela,
e quando percebe, Helena cobre mais o rosto com o capuz da blusa do
uniforme e se encolhe.
Suspiro. Vai ser uma longa semana.

II

À noite meu pai me leva para jantar no shopping de novo. Não posso evitar
ficar olhando para o peito dele, para o lugar onde a bala pegou, e depois
para minhas mãos, porque eu ainda consigo ver o sangue nelas, no contorno
dos meus dedos, debaixo das minhas unhas.
— Tá tudo bem aí? — meu pai pergunta quando estamos subindo a escada
rolante para a praça de alimentação. — Aconteceu alguma coisa com a sua
mão?
— Ahn? Não — digo, mas passo as mãos na blusa sem querer, e só
percebo o movimento depois que já fiz. Ele ainda fica me olhando como se
eu estivesse escondendo alguma coisa dele, mas a escada chega no andar de
cima e ele para de me olhar.
Dou uma espiada no fliperama quando chegamos, uma fascinação
mórbida talvez, e é muito pior ver essa versão colorida dele do que a de
2019, porque tudo bate com a lembrança do meu aniversário.
— Ansioso? — meu pai pergunta, de novo, e acho que já estou ficando
meio irritado com essa repetição toda.
— Não sei.
— A gente pode… não sei, quer brincar lá um pouco depois que a gente
comer?
Estreito um pouco os olhos, porque essa conversa não estava no script,
mas agora quero saber onde ela vai parar.
— Pode ser.
Ele dá um soquinho no meu ombro, o que é estranho, porque
normalmente sou eu que dou soquinho no ombro das pessoas. Do Hiro, no
caso.
A gente come em silêncio, e acho que meu pai é o tipo de pessoa que se
tivesse celular nessa época estaria com a cara vidrada nele. Como não tem,
ele fica olhando para as pessoas, os olhos vagando, e tenho a nítida
impressão de que ele está evitando olhar na minha direção.
Eu termino e empurro a bandeja para o meio da mesa. Meu pai dá um
último gole no guaraná dele e se levanta com as duas bandejas na mão,
fazendo sinal para eu levantar também.
— Você não precisa vir comigo se não quiser — digo, enquanto andamos
na direção da Playtown.
— Ué, por que eu não ia querer?
Porque eu tenho a impressão que você nunca quer, eu devia dizer, mas
simplesmente encolho os ombros e deixo ele interpretar como quiser.
— Fica aí, vou comprar ficha — ele diz assim que a gente entra, mas não
obedeço, porque quero ver uma coisa e porque ele não manda em mim.
Passo pelas máquinas nos corredores, por crianças gritando, porque sempre
tem crianças gritando em todo lugar que eu vou, e meu coração pula uma
batida quando chego no fundo e não tem nada lá.
A máquina velha, que eu sei que deveria estar ali, que estava ali da última
vez, sumiu. Não colocaram nada no lugar, tem até uma marca funda no
carpete onde ela ficava, mas é só isso.
O frio sobe pela minha espinha. Não dá para dar para trás agora.
— Dri?
Eu me viro, meu pai está vindo na minha direção com um montinho de
fichas na mão, o rosto meio pálido.
— Quer me matar de susto? — ele diz, alívio escapando de seus lábios. —
Achei que você tivesse sumido.
— Desculpa — digo, e ele fica me olhando por um momento, como se
quisesse fazer ou dizer alguma coisa, mas parece que desiste no último
segundo.
— Vem, eu peguei as fichas. O que você quer jogar?
— Pai, se você tiver fazendo isso pra compensar—
— Eu quero passar um tempo com você — ele me interrompe, chegando
mais perto. — Eu sei que às vezes não consigo passar tempo com você em
casa por causa do trabalho, mas eu não quero que você ache que eu não me
importo.
Engulo em seco. Se ele se importasse tanto, talvez não devesse ter ido
embora, então. Enfim. Sou uma pessoa que guarda ressentimentos, pode me
processar.
— O que você quer jogar? — ele pergunta.
Dou de ombros, porque tanto faz, mas quando ele insiste eu aponto para a
mesa de air hockey, aquela que tem furinhos de onde sai ar e você tem que
marcar gol com um disquinho.
Ele enfia uma ficha no buraquinho e coloca as outras no bolso. As
luzinhas se acendem, dá para ouvir o ar saindo dos furos.
Eu não estou com vontade de jogar, não de verdade, mas se a gente jogar
uma partida e eu ganhar logo, talvez a gente possa abortar essa tentativa de
programa de pai e filho.
Exceto que meu pai é quem começa com o disco e na primeira tacada ele
marca. Levanto os olhos do gol, sem saber direito o que aconteceu, e ele dá
uma piscadinha.
— Achou que eu não sabia jogar, né?
Não, eu tinha certeza que ele não sabia jogar. Desde quando ele sabe
jogar?
Pego o disco de novo e coloco na minha frente. Bato nele, mas meus
braços não são grandes o suficiente para eu conseguir jogar direito, então é
meio patético, e por um milagre consigo defender a tacada seguinte do meu
pai. Tento bater com força no disco, mas não faz nem coceguinha.
— Ihhh, tá fraco, hein — ele diz, e bate de volta. O disco quica nas bordas
duas vezes, me confunde, e entra de novo no meu gol, porque é lógico.
Quer dizer que ele quer jogar sério, então? Então tá bom.
Pego o disquinho mais uma vez e coloco na minha frente na mesa com um
pouco mais de violência que o necessário.
— Vish, agora a coisa ficou séria — meu pai diz quando eu puxo as
mangas do moletom até os cotovelos. Ficou mesmo.
Respiro fundo e bato no disco. Ele voa. Não tanto quanto eu gostaria, mas
definitivamente com mais força do que da outra vez, e meu pai pelo menos
precisa se mexer para conseguir defender. O disco também não vem com
tanta velocidade na minha direção e eu consigo bloqueá-lo, e pela primeira
vez aquilo parece um jogo de verdade e não um massacre completo.
Meu pai rebate e nós ficamos batendo no disco, de um lado para o outro,
até que quando ele vem na minha direção eu o rebato para a parede, fazendo
com que quique e meu pai se perde um pouco na hora de defender. O disco
entra.
Não queria parecer tão satisfeito, mas abro um sorriso para ele.
Infelizmente, para minha decepção, a máquina apita e desliga. Acabou a
partida.
— Quê? — digo. — Quanto tempo passou, dez segundos?
— Três minutos.
— Não quero saber, de novo.
— Tem certeza? Por que eu vou—
— De novo, pai, que merda.
— Adriano.
— Desculpa. Vai, põe outra ficha.
Ele me olha com aquela cara de experimenta repetir o palavrão de novo
pra você ver se eu não lavo sua boca com sabão, mas enfia a ficha no
buraco. A máquina pisca, o ar volta a sair dos buraquinhos.
Acho que faço ele jogar mais umas quatro ou cinco partidas até
finalmente conseguir ganhar, e isso porque ele já está ofegante, todo suado.
— Chega, né — ele diz, mãos na cintura. — Tô ficando velho.
— Sei como é — respondo, largando o disco na mesa. Ele levanta uma
sobrancelha.
— Como é?
— Nada.
Ele vem até mim e acho que vai passar direto, que no máximo vai me dar
o famoso soquinho no braço que corre na família, mas ele passa o braço
pelos meus ombros e me puxa para si.
— Não foi tão ruim assim pra você ficar fazendo bico, vai — ele diz,
apertando meu braço. — Até que foi divertido, você podia pelo menos
fingir que não morreu de tédio. Dar um sorrisinho ao invés de ficar com
essa cara.
Eu não quero sorrir, mas acho que é justamente porque ele fala que eu não
consigo segurar. Olho para cima, meio a contragosto, e meu pai está
sorrindo também. Sorrindo comigo, o mesmo sorriso que eu tenho.
Volto a olhar para baixo, mas ele não me solta até a gente chegar no carro,
braços firmes nos meus ombros, e não me lembro da última vez em que nós
ficamos tão próximos assim. Quando eu entro e ele liga o rádio, encosto a
cabeça contra o banco e tento ficar sério de novo, porque não quero que ele
saiba que talvez tenha razão. Que talvez, se eu parar de ficar com essa cara,
as coisas podem não ser tão ruins assim.
TERÇA-FEIRA

Eu já sei que o Hiro vai estar jogando Mario Kart no volantinho e que a
mãe dele vai precisar de ajuda com as coisas da quitanda, então prefiro ser
um bom menino, ficar em casa e almoçar bisnaguinha com requeijão sem
ligar o fogão, como meu pai pediu no bilhete.
É só quando eu estou tomando banho para ir para a escola que lembro que
vai ter prova de matemática. Que lembro o que aquele palhaço do Lucas vai
fazer.
Vou o caminho inteiro considerando se devia bater naquela cara redonda
dele, se devia tentar trancá-lo no banheiro ou caguetá-lo para a professora, e
ainda não cheguei a uma conclusão definitiva quando a perua para em
frente à escola.
Vou caminhando devagar pelos corredores, tem criança correndo e
falando alto para todos os lados, e quando avisto a porta da minha sala lá na
frente, com mais gente entrando e saindo, eu paro. Eu sei o que vai
acontecer, sei o que o Lucas vai tentar fazer, e não estou no clima. Não
quero. E é claro que eu tenho uma ideia muito madura e adulta para lidar
com aquela situação: e se eu me esconder no banheiro?
Lembro da minha mãe me contando uma vez, quando eu era mais velho,
que ela às vezes matava aula no banheiro e é a única coisa em que eu
consigo pensar assim, de última hora.
Dou meia-volta antes que alguém consiga ver que eu cheguei, seguro as
alças da mochila com força e vou para o banheiro masculino. Tem alguns
meninos lá, mas eles estão ocupados fazendo o que parece ser algum tipo de
competição no mictório, e eu vou direto para a última cabine, onde o
pessoal da limpeza guarda as vassouras e que por isso fica com a porta
normalmente fechada.
Abaixo a tampa do vaso e me sento em cima, a mochila abraçada no meu
colo. Olho no relógio, faltam menos de dez minutos para o sinal bater, e
fico lá sentado, na cabine gelada, esperando. Mais meninos entram e saem,
alguém usa a cabine do meu lado e empesteia o banheiro todo, me
obrigando a subir a blusa até o nariz, talvez o primeiro sinal de como vai ser
o meu dia. A questão é que eu realmente não quero lidar com o que vai
acontecer na sala, se é que vai acontecer. Talvez sem mim o Lucas desista
de colar da Helena, não sei. Talvez seja melhor mesmo se eu não aparecer.
O sinal toca e eu recolho as pernas para cima da tampa do vaso, porque
sei que o inspetor entra para chamar todo mundo para a sala. Minha cabeça
começa a doer de novo, não tão forte dessa vez, e a pressão nos meus
ouvidos aumenta até fazer um pop e o ar vibrar.
Os últimos meninos saem correndo e falando alto, e eu fico encolhido, os
ouvidos atentos. Ouço passos mais pesados só uns dois minutos depois, e
sei que é o inspetor. O seu Antônio, coitado.
— Tem mais alguém aí? — ele pergunta. — Hora de ir pra sala!
Eu obviamente não respondo, e vejo sua sombra se aproximar das cabines
vazias. Meu coração começa a acelerar e eu coloco a mão na boca para que
ele não ouça minha respiração, mesmo que nem esteja tão silêncio assim.
Sua sombra vai de um lado para o outro, até que ele finalmente dá meia-
volta e vai embora. Meu corpo todo relaxa em alívio e eu apoio os pés no
chão de novo.
Eu sei que a prova dura cinquenta minutos, então começo a brincar com o
cadarço do meu tênis de novo, fazendo e desfazendo os nós. Abro a mochila
quando canso, porque não é possível que não tenha nada aqui dentro,
nenhum livro ou gibi para me distrair. E na verdade tem, é o livro que eu
preciso ler para quinta-feira.
Começo a ler por tédio, mas acabo ficando tão distraído com a história
que não presto atenção quando, uma meia hora depois, alguém entra no
banheiro. Só percebo que estou na roça quando tentam abrir a porta e não
conseguem.
Eu pulo do lugar, o livro quase escapando da minha mão.
— Eita — ouço a voz do lado de fora, do seu Antônio, pobre homem, e
tenho certeza de que ele me ouviu. Dá para ver que ele fica parado, talvez
considerando o que pode ter acontecido, até que bate forte contra a porta. —
Tem alguém aí?
Eu não respondo, porque não sou idiota, e de repente uma cabeça aparece
no vão entre a porta e o chão. Eu me encolho meio que em reflexo e os
olhos dele se arregalam em surpresa.
— Adriano! O que você tá fazendo aí dentro? Abre já essa porta!
Eu não quero abrir, mas também não posso ficar ali dentro para sempre,
ainda mais agora que ele já me viu. E estou ligeiramente lisonjeado por ele
saber o meu nome.
Guardo o livro de volta na mochila, querendo desaparecer e, muito
lentamente, me levanto do vaso e abro a porta. O seu Antônio não parece
muito feliz.
— O que é que você tá fazendo trancado dentro desse banheiro, menino?
— Ahn… não estudei pra prova — digo. Não deixa de ser verdade,
tecnicamente falando.
— E você achou que podia ficar aqui escondido lendo… — ele estreita os
olhos. — O que é que você tava lendo?
— Livro pra outra prova.
Ele cruza os braços com cara de quem não está acreditando em mim.
— Sei. Pra fora, anda.
Encolho os ombros, porque não sei o que ele quer que eu diga, sou
praticamente escoltado pelo corredor. Tenho certeza de que estou sendo
mandado para a diretoria. De novo.
Ele abre a porta ao lado da secretaria e me manda ficar na salinha de
espera, igual da outra vez. Para minha surpresa, Helena está sentada lá
também, do outro lado, encolhida contra a parede.
— Ahn… — começo, tentando puxar conversa. — Por que você tá aqui?
Helena olha para mim como se eu tivesse ficado maluco por sequer ousar
abrir a boca na presença dela.
— Não é da sua conta.
— Eu matei aula no banheiro — continuo, não sei o que estou fazendo. —
Prova, no caso.
— Parabéns?
O seu Antônio volta, provavelmente depois de ter contado o que
aconteceu.
— A diretora vai te chamar daqui a pouco — ele diz, com as mãos na
cintura, parecendo extremamente satisfeito consigo mesmo antes de voltar
para a liberdade do corredor.
Ficamos em silêncio, eu balançando as pernas no banco alto demais para
mim, Helena encostada na parede, os pés em cima do banco, o capuz na
cabeça. Ela sempre usa o capuz na cabeça quando pode e eu nunca tinha
percebido.
Estamos naquela situação desconfortável, um silêncio mortal, até que
decido tentar puxar conversa de novo. Em algum momento ela vai ter que
falar comigo.
— Foi o Lucas, não foi? — pergunto, e ela descola a cabeça da parede. —
Falou que você tava colando.
Ela se encolhe mais.
— Quem te contou?
— Mas você não tava — continuo. — Porque você é boa em matemática
e ele é burro.
Acho que vejo suas bochechas ficarem vermelhas, mas não tenho certeza
por causa da sombra que o capuz faz em seu rosto. Quando ela abraça as
pernas, reparo que está de bermuda, mesmo no frio de agosto. Pensando
bem, não consigo me lembrar de tê-la visto de calça da última vez. Suas
pernas são pálidas, o joelho ossudo, e dá para ver algumas feridas que
passariam por machucados de criança se eu não soubesse o que pode estar
acontecendo dentro da casa dela.
— Não sei do que você tá falando — ela diz, ajeitando mais a blusa, como
se não soubesse lidar com o elogio. — E não sei qual é a sua, querendo
falar comigo depois de todo esse tempo. Depois de tudo que você fez. Eu
não preciso que você fale comigo, Adriano. Eu não preciso de ninguém,
muito menos de você.
E ela mostra o dedo do meio, o que eu provavelmente mereço por ter sido
um idiota por tanto tempo. Por ter zombado dela, por ter feito piadinhas.
Por não ter visto o que estava na frente dos meus olhos aquele tempo todo.
Minha cabeça lateja, a pressão nos ouvidos aumenta e eu fecho os olhos.
Devo fazer uma careta, porque quando consigo abri-los de novo, Helena
está me olhando meio preocupada.
— Você tá bem? — ela pergunta. Talvez ela tenha medo de que eu morra
e acabem achando que foi ela.
— Aham — resmungo, meio zonzo. — Escuta… desculpa. — digo, e a
salinha de espera da diretoria vibra diante dos meus olhos, a pressão nos
meus ouvidos se dissipa.
— Desculpa?
— É. Por… tudo.
Ela me olha como se eu finalmente tivesse perdido a cabeça de vez e
mostra o dedo do meio de novo. Talvez essa seja a forma dela de
demonstrar afeto, não sei. A diretora aparece na porta e nos encara com
clara reprovação, mãos na cintura, óculos na base do nariz. Ela chama a
Helena primeiro, que se levanta com um suspiro de quem já fez isso
inúmeras vezes, e ainda me lança um último olhar confuso antes de
desaparecer atrás da porta.

II

Sou obrigado a voltar para a sala depois de receber uma bronca da diretora
e uma advertência, e fico quieto no meu canto, evitando o Danilo e o Lucas,
porque não consigo mais olhar para a cara deles. Lucas ainda teve a
coragem de me contar o que tinha feito, como se tivesse sido a coisa mais
engraçada do mundo e, imitando a demonstração de afeto da Helena,
mostro o dedo do meio para ele e volto a ficar encolhido na minha carteira.
Lucas fica meio de cara fechada pelo resto do dia, sem falar comigo, sem
sequer olhar para mim direito, e é uma bênção, na verdade, porque qualquer
paciência que eu tinha para lidar com ele já não existe mais. E acho que a
diretora deve ter ligado para minha mãe, porque quando boto o pé para fora
do portão, ela está lá. Nada de perua, nada de Tia Simone. Minha mãe, em
carne e osso, e dá para ver o fogo queimando nos olhos dela.
Nós caminhamos em silêncio, os passos pesados a única coisa
denunciando que ela está puta da vida comigo porque dona Tábata não é o
tipo de pessoa que dá escândalo na frente dos outros, não senhor. Mas assim
que eu entro no carro e fecho a porta, ela se vira para mim, vermelha, uma
veia pulsando em sua testa.
— Você vai me explicar por que estava matando aula, Adriano? No
banheiro? Quando você tinha prova? Pra ficar lendo?
O tom da voz dela sobe com cada pergunta.
Quero dizer que não quis matar aula para ficar lendo, especificamente, e
que na verdade de todos os motivos esse nem é tão ruim assim, mas não
acho que vai ajudar, então fico quieto, olhando para a mochila no meu colo.
— Você não vai falar nada? Olha pra mim quando eu estiver falando com
você, menino.
Prendo a respiração e levanto a cabeça. Minha mãe está com o rosto
pegando fogo, o corpo dela treme ligeiramente.
— A gente não paga a sua escola pra você ficar matando aula, Adriano!
— Eu sei — resmungo, querendo me enfiar no porta-luvas.
— O que foi que você falou?
— Desculpa — digo, porque ela odeia que eu responda. — Eu… eu não
estudei e… foi estúpido, desculpa.
Hoje é o dia das desculpas, aparentemente, e acho que a pego de surpresa,
porque minha mãe para, me encarando do mesmo jeito que todo mundo
parece estar me encarando ultimamente, como se eu fosse um quebra-
cabeças de 500 peças montado há muito tempo e só agora perceberam que
tem uma peça no lugar errado.
— Não vou fazer de novo — acrescento, aproveitando o momento.
Ela respira fundo, mas se ajeita no banco e gira a chave na ignição. O
carro acelera e quando paramos no primeiro semáforo, ela volta a falar sem
olhar para mim.
— Você vai ficar de castigo. Sem TV, sem videogame, sem judô. E sem
excursão amanhã.
Cruzo os braços.
— Eu achei que já tava paga.
— Não interessa, você precisa aprender que as coisas que você faz têm
consequências, Adriano. E a gente só não vai cancelar a sua festa porque
agora não dá mais tempo, ouviu? E vai ficar sem ver o Hiro também.
Fantástico.
A viagem continua em silêncio depois daquilo, e assim que chegamos na
casa do meu pai ela me manda ir para o banho. Eu vou, sem reclamar,
principalmente porque daqui a pouco meu pai vai chegar e eles vão brigar.
Eu sei que vão.
— Vai ficar aí no seu quarto — ela diz, quando piso para fora do
banheiro, ainda enrolado na toalha, a água do banho ensopando o piso frio
do corredor. — Vai fazer seu dever e vai ficar estudando, porque eu vou vir
ver.
E eu tenho certeza de que ela vai mesmo.
Minha mãe tirou tudo do meu quarto, exatamente como meu pai fez feito
da última vez, e minha cômoda parece estranhamente vazia a deslocada sem
nada em cima. Vazio, sempre vazio. A casa, as cadeiras, agora minha
cômoda também.
Procuro pelo walkie-talkie dentro do armário, mas àquela hora Hiro deve
estar no judô junto com a Helena. Será que vai ser igual? Será que ela vai
reprovar de novo? Eu devia estar lá, mas não, tive que ter a brilhante ideia
de me trancar no banheiro.
Imbecil.
Guardo o walkie-talkie de volta no armário, bem na hora que a minha mãe
aparece na porta.
— O que você tá fazendo aí? Não te mandei estudar?
Eu me levanto meio me arrastando e vou para a escrivaninha. Puxo a
apostila e abro em qualquer lugar, só para ela parar de me encher o saco.
— Tô estudando — digo, quando ela não sai do lugar. Minha mãe estreita
os olhos para mim, espreme os lábios e sai para o corredor.
Já disse que odeio ter onze anos? Porque eu odeio.
QUARTA-FEIRA

Acordo no dia seguinte com um bilhete do meu pai em cima da mesa, um


bilhete que não estava ali da última vez. Um bilhete que diz, não
exatamente com essas palavras, que ele vai arrancar o meu couro se eu
ousar sair daquele apartamento e que ele vai conversar com o porteiro para
confirmar. Eu não sei qual é o grau de seriedade dele, mas testo a porta da
frente só para ter certeza. Está trancada, o que é meio inesperado. Não achei
que ele fosse levar aquilo a sério.
A questão é que ele não pode me obrigar a ficar em casa.
— Hiro? — chamo no walkie-talkie. Eu sei que ele vai sair para a
locadora daqui a pouco, pelo menos acho que vai, e tenho a esperança de
pegá-lo ainda dentro de casa. Espero que ele tenha lembrado de deixar essa
joça ligada. — Hiro, pega esse walkie-talkie agora.
— Ou você vai fazer o que, começar a xingar? — ele responde do outro
lado.
— Aham, todas as obscenidades da língua portuguesa. Escuta, você tá
indo pra locadora?
Pausa.
— Como você sabe?
— Será que no caminho você pode passar aqui em casa? Fala que tá vindo
estudar.
— Quê? Por quê?
— Porque o adorável do meu pai me deixou de castigo. Mas eu não quero
ficar aqui. Tem uma chave no vaso do lado de fora do apartamento, ele
sempre deixa lá. É só você vir, pegar a chave e abrir a porta pra mim.
Dá para ouvir na voz dele que ele não quer.
— Dri…
— Por favor. Vai, por favor.
— E se o seu pai brigar comigo?
— Eu falo que te usei, prometo. Eu levo a culpa.
Há uma pausa longa demais para o meu gosto, até que a voz dele volta a
sair pelo alto-falante.
— Eu te odeio às vezes, sabia?
Abro um sorriso.
— E eu amo você. Pra sempre. Agora vem, senão eu vou morrer de tédio
aqui.

II

Hiro ainda demora uns vinte minutos pra chegar, e quando o porteiro liga
para avisar que o César chegou pra estudar, eu o mando subir.
Fico parado bem do lado da porta para poder ouvir a hora que o elevador
chega e assim que os passos do Hiro (ou pelo menos eu acho que são os
passos dele) ecoam pelo hall, eu o chamo.
— Você quer me matar de susto? — ele diz do outro lado, e quase consigo
vê-lo com a mão no peito.
— Ele deixa a chave atrás da planta — digo, a cabeça colada na porta. —
Dá pra ver a pontinha.
Alguns segundos depois ele enfia a chave no ferrolho da porta e, assim
que a abro, ele está me encarando com cara de quem poderia me matar.
— Você tá me devendo uma muito grande.
— Eu sei, prometo que você pode me pedir o que quiser.
Ele estreita os olhos.
— Vou pedir mesmo. Agora anda, eu quero pegar logo o cartucho.
Pego umas moedas que meu pai deixou na cantoneira e a gente desce
(tenho o cuidado de trancar a porta e deixar a chave de volta no lugar),
passa na garagem para pegar a minha bicicleta e depois sai. O porteiro nos
olha como se só agora estivesse entendendo que o Hiro não veio estudar
coisa nenhuma. Se meu pai perguntar mesmo alguma coisa para ele, meio
que fodeu.
Mas ele não pode me obrigar a ficar preso dentro daquele apartamento o
dia todo, não se eu puder evitar.
Nós pedalamos até o topo da subida do capeta, e antes que dê tempo do
Hiro parar e perguntar se eu quero descer sem freio, eu falo que nem pensar
e sigo em frente.
— Você disse que ia fazer o que eu quisesse — ele resmunga quando a
gente para em frente à locadora.
— Não descer aquela descida sem freios.
— Como você sabe que é isso que eu ia falar?
— É o que você sempre fala.
Ele franze as sobrancelhas.
— É o que eu…? Você tá meio estranho ultimamente.
Se eu ganhasse um real por cada vez que alguém falasse isso para mim.
— Você vai entrar? — pergunto, quando paramos em frente à locadora,
mas não o deixo responder. — Eu já venho, te encontro aqui.
— Aonde você vai?
— É um minuto.
— Dri!
Faço sinal para ele esperar e saio. Não vou longe, na verdade, só quero
atravessar a rua.
Entro no bar, aquele de frente para a locadora que eu vi da outra vez, e o
mesmo cara continua debruçado sobre a mesa, um copinho vazio na frente
dele. Assim que eu passo ele levanta os olhos para mim, e os pelos do meu
braço se arrepiam. Tem alguma coisa no jeito como ele me encara que é
intimidador, como se ele quisesse me assustar de propósito. Isso e tenho a
impressão de que já o vi em algum lugar.
Passo direto, tentando não dar muita atenção a ele, e vou para a geladeira
no fundo do bar. Pego uma latinha de cerveja e o dono do bar fica me
olhando meio esquisito quando a coloco no balcão sujo.
— É pro meu pai — digo, puxando as moedas do bolso.
Eu posso odiar muitas coisas em 1997, mas a facilidade para comprar
bebida alcoólica em bar de bairro definitivamente não é uma delas.
Quando atravesso a rua de volta para a locadora, Hiro está saindo da
salinha com a caixinha preta do cartucho nas mãos. Ele para e aponta para a
cerveja que eu estou abrindo, ligeiramente alarmado.
— O que você tá fazendo?
— Preciso beber.
— Cerveja? Desde quando você bebe cerveja?
Dou um gole e acho que um gemido escapa da minha boca enquanto a
dorzinha chata se aloja na base do meu crânio.
— Acho que a gente podia sentar aqui na calçada um pouquinho — digo,
porque é mais fácil do que ficar de pé, não sei se corro o risco de ficar
zonzo.
— Você tá ficando bêbado?
Quase engasgo com a cerveja.
— Não é assim que funciona.
— Como você sabe?
Bom.
Olho para o bar do outro lado da rua, o dono está com os cotovelos
apoiados no balcão, me encarando como se eu fosse um bicho exótico no
zoológico. O homem, o que estava largado na mesa, sai e desce a rua.
— Senta aí — digo, e Hiro hesita um pouco, mas quando eu o puxo pelo
moletom ele suspira e sucumbe.
— Eu não acredito que você tá bebendo cerveja. Seu pai sabe disso?
— Ele não pode nem sonhar com isso, pelo amor de Deus. Eu tô de
castigo, lembra?
— Ah, é. Por falar em castigo… A Helena falou de você ontem — ele diz
de repente e eu quase engasgo com a cerveja de novo. — No judô.
— De mim?
— Ela perguntou se você era meu amigo. Por causa do domingo? Ela viu
nós dois na quitanda.
— Hum.
— Ela nunca tinha falado de você antes.
Pois é, eu sei.
Fico quieto, pensando, dando golinhos na cerveja debaixo do olhar
horrorizado do Hiro. Ele balança a cabeça e puxa o bichinho virtual de
dentro da blusa quando ele apita, mexe nos botõezinhos, e ficamos assim
em silêncio por longos minutos. Se eu achar o meu eu podia dar pra Helena,
será que ela ia gostar? Talvez ajudasse a—
Espera.
Espera.
Quase cuspo a cerveja. De novo. Porque agora eu sei onde eu já vi os
olhos do homem no bar.
— Você tá bem? — Hiro pergunta, coitado. — Tem certeza que não tá
ficando bêbado?
Eu poderia abraçá-lo, de verdade, porque ele é tão inocente, mas tenho
certeza de que ele só vai me achar mais esquisito, então prefiro não.
— Você vai fazer alguma coisa agora? — pergunto.
Ele levanta a sacolinha da locadora.
— Jogar?
É, era o que eu imaginava.
— E se a gente der uma passadinha na casa da Helena?
— Quê? Por quê? Achei que vocês não gostassem um do outro.
— É uma longa história — digo, e Hiro não parece empolgado com a
ideia. — Ou eu posso ir sozinho — acrescento, porque não quero forçá-lo
nem nada, não depois de tê-lo feito me resgatar em casa.
Hiro me olha, como se estivesse considerando, mas eu me levanto, porque
quero ir logo. Largo a latinha (agora vazia) num canto da calçada assim que
paro na vertical, e estou um pouco zonzo. Não acho que é por causa da
cerveja, acho que é mais por causa da dor de cabeça, mas Hiro bufa e fica
de pé para pegar a bicicleta dele.
— Eu não vou te deixar andar por aí bêbado.
— Já falei que não tô bêbado.
— Aham, sei. Anda logo — ele monta no selim e fica me observando,
como se estivesse só esperando que eu perca o equilíbrio e caia. — Além
disso, você nem sabe onde ela mora.
Quase falo que na verdade sei, mas no fim fico quieto. Hiro passa a alça
da sacolinha pelo guidão e sai pedalando sem nem me esperar.
— Vem logo — ele resmunga enquanto ainda estou montando na
bicicleta. Eu o sigo por três quarteirões, Hiro dobra a esquina à esquerda
depois da quitanda, e nós subimos uma rua. No final do quarteirão, lá em
cima, ele começa a diminuir a velocidade e dobra à direita. Eu emparelho e
ele para a bicicleta, apontando para a segunda casa do outro lado da rua.
Tem um fusca branco bem velho parado em frente ao portãozinho baixo.
— É ali. Eu vim aqui algumas vezes quando meu tio vem buscar a Helena
pro judô, mas nunca entrei. Não gosto do pai dela.
Eu consigo imaginar por quê.
Desço da bicicleta e a largo na calçada, conforme ando na direção da casa.
É estranho. Eu já estive ali, mas ao mesmo tempo o exterior está tão
diferente, tão… descuidado, que poderia quase passar por uma outra casa
qualquer.
— O que você tá fazendo? Não chega perto! — Hiro diz, largando a
bicicleta dele também. — Dri!
— Shhh. Preciso ver uma coisa.
— Eu não sei se é uma boa ideia, o pai dela é bravo.
— Shhh! — insisto, e ele finalmente fica quieto atrás de mim.
Eu me aproximo com o corpo curvado, os passos do Hiro fazendo barulho
no cascalho logo atrás de mim, e começo a ouvir vozes. Vozes não, gritos.
Hiro me puxa pela blusa.
— Dri…
Me solto dele, porque eu preciso ver.
— Você não serve pra nada! — alguém rosna de dentro da casa, um
homem. Helena dá um grito. — Onde foi que você colocou, Helena?
Tá dando para ouvir da calçada.
— Não coloquei em lugar nenhum! — Helena grita de volta. — Eu não
peguei a merda da sua arma!
Alguma coisa se quebra lá dentro, talvez sendo atirada contra a parede,
contra o chão, um prato, um copo ou algo assim. Helena dá um berro.
— Fala baixo e não mente pra mim! — o homem insiste. — Eu sei que
você pegou!
— Não peguei!
— Você sabe o que vai acontecer se alguém souber, Helena?
— Eu já falei que não peguei! Me solta, me solta, eu te odeio!
Viro a cabeça para o Hiro de novo, seu rosto perdeu completamente a cor.
Ele insiste em fazer que não, e quando dou mais um passo, ele segura
minha manga.
— Dri, não.
— Você vai deixar ele bater nela?
— Ele é adulto! O que você acha que dá pra fazer?
Hiro quase dá um gritinho atrás de mim quando pulo o portãozinho baixo
da casa e aposto que se ele tivesse coragem de me arrastar dali pelo
colarinho, era exatamente o que ele ia fazer.
— Dri!
Eu passo pelo quintal de grama alta abaixado, o mato batendo nos meus
joelhos, e me aproximo da janela que fica na lateral da casa. Devagar,
arrisco levantar a cabeça para ver o que está acontecendo lá dentro.
Não dá para ver muita coisa porque não quero ser visto, mas o pai da
Helena está andando de um lado para o outro, uma camisa gasta meio
aberta, os passos incertos de quem andou bebendo demais.
Tento ir mais para o lado, queria saber onde a Helena está, mas quando
movo o pé de lugar, piso em alguma coisa que faz um barulho agudo.
O homem dentro da casa se vira com tudo na direção da janela e eu me
abaixo, minhas costas coladas contra a parede. Tapo minha boca com a mão
e fecho os olhos com força. É ele, eu sabia que era. É o homem que eu vi no
bar.
Ele resmunga alguma coisa sem sentido, a voz mole. Ele grita de novo,
alguma coisa sobre a Helena e a louça, e eu aproveito para sair correndo, a
adrenalina bombando nas minhas veias.
Quando Hiro me vê pulando o portãozinho ele arregala os olhos, mais
pálido que uma assombração.
— Que foi?
— Vamos sair daqui agora — digo, subindo na minha bicicleta, e ele não
faz mais perguntas. Nossas pernas pedalam com força, com muito mais
velocidade do que eu acho que dá para ter, meu corpo todo levantado do
banco enquanto o asfalto passa rápido debaixo de mim.
Quando finalmente paro, só quando chegamos em frente à quitanda dos
pais do Hiro, nós dois estamos ofegantes, respirar pelo nariz já não é o
suficiente e minha garganta dói. Dona Suzuki nos vê na calçada e cruza os
braços.
— O que foi que vocês aprontaram?
— Nada, mãe — Hiro diz, largando a bicicleta ali mesmo. — A gente tava
apostando corrida. Dri, quer água?
— Aham — digo, mas sei que ele na verdade quer sair da frente da mãe
dele e nós dois sumimos para dentro da quitanda, ele me levando para uma
pequena cozinha nos fundos.
Assim que entramos ele se apoia na pia.
— O que foi que você viu?
Será que eu devia contar? Não quero assustá-lo, não quero colocá-lo no
meio daquela confusão. Eu nem devia ter pedido para ele ir comigo até a
casa da Helena, para começo de conversa, mas eu não tinha como saber.
— Dri.
Levanto a cabeça, piscando forte.
— Não foi nada — minto, e pego um copo que está ao lado da pia.
— Como nada, você voltou parecendo que tinha visto um fantasma!
Encho o copo com água de um filtro de barro que fica ali do lado e tomo
tudo de uma vez. Hiro pega o copo da minha mão e enche de água depois
de mim.
— Não foi nada, Hiro — insisto —, eu me assustei à toa.
Ele toma toda a água me encarando.
— Escuta, eu preciso ir, ainda tô de castigo — digo, praticamente voando
para fora da quitanda.
— Dri! — ele ainda chama, mas eu faço um tchauzinho para ele e saio
pedalando.
Enquanto subo a rua com o resto da força que ainda tenho nas pernas,
olho para trás e vejo Hiro parado na calçada, ficando cada vez menor
conforme eu me distancio. Quanto menos ele se envolver nisso tudo,
melhor, e enquanto vou voando pelas ruas, penso se devia contar a um
adulto. Mas também penso naquela arma e no que o pai da Helena pode ser
capaz de fazer com ela. Penso se vão acreditar em mim. Penso em como eu
vou ter que me explicar.
Não.
Eu sei que tem que ter uma forma de fazer alguma coisa, mas também sei
que tem que ser eu. Se tudo isso começou comigo, é comigo que tem que
terminar também.
QUINTA-FEIRA

Não arrisco sair na quinta de manhã, não depois de ontem, e é claro que a
perua atrasa de novo. Pelo menos dessa vez eu sei que tem prova do livro e
aproveito para ler. Droga da Obediência. É meio irônico, na verdade.
Como chego atrasado, tenho que fazer prova com a Helena de novo, o que
parece ser uma tortura muito maior para ela do que para mim. Não que eu
não mereça, mas quando ela se senta do meu lado, o capuz sobre a cabeça, a
marca roxa na mandíbula que agora eu sei de onde veio, algo se revira no
meu estômago.
Dessa vez eu não pergunto quem vai escrever o que, simplesmente a deixo
colocar o nome no topo da prova, pego a folha e começo a responder
sozinho, exatamente o oposto do que aconteceu antes. Ela fica me olhando
como se eu tivesse ficado maluco, e em algum momento puxa a folha da
minha mesa, meu lápis deixando um rastro nas linhas onde eu estava
escrevendo as respostas.
Eu olho para ela, mas Helena se encolheu, o rosto todo coberto pelo
capuz. Deixo-a escrever por uns cinco minutos, depois puxo a prova de
volta. Aquela mancha fica olhando para mim e a prova que se exploda.
Você tá bem?, escrevo com o lápis bem fraquinho, porque não quero que
fique marca no papel depois, e devolvo a prova para ela. Helena se debruça
de novo, como se fosse voltar a responder as perguntas, mas seu corpo se
afasta quando ela lê o que eu escrevi. Ela me olha, o rosto de repente
ficando vermelho, e eu encolho os ombros.
Ele se debruça de novo e rabisca alguma coisa, depois passa a prova para
mim mais uma vez.
Não é da sua conta.
Eu apago o que ela escreveu e olho em volta. A professora está ocupada
olhando a apostila, e o resto da classe… Meus olhos para em Lucas e ele
manda um beijinho para mim. Muito, muito engraçado. Danilo, do lado
dele, começa a rir baixinho e meu rosto esquenta. Olho para a prova,
tentando me concentrar nas perguntas que ainda faltam responder, mas não
consigo.
Estou olhando para o papel quando a Helena puxa a prova de mim e volta
a rabiscar alguma coisa. Acho que ela está respondendo, mas uns segundos
depois ela passa a folha para mim de novo.
Eles são idiotas.
Olho para ela, mas ela está encolhida de novo.
Eu sei, escrevo. Porque eles são. São idiotas e estúpidos, e agora tem mais
gente dando risadinha.
Você também é, ela escreve em seguida.
Eu sei, repito. Desculpa.
Quando passo a prova para ela daquela vez, Helena me olha. Ela abaixa o
capuz, o hematoma na mandíbula mais visível, e eu engulo em seco. Acho
que mais gente viu, porque as risadinhas de repente param.
— Eu odeio todo mundo dessa escola — ela diz, com a voz baixa, e
começa a apagar as mensagens que a gente trocou na prova. Depois, não diz
mais nada, debruçada sobre a folha até terminar de responder tudo. Ela
entrega a prova para a professora e sai, de um jeito tão abrupto que o
caderno dela cai de novo e o mesmo desenho da outra vez fica me
encarando do chão. Ela abaixa, toda vermelha, guarda o caderno e sai
correndo. Quando me levanto para ir atrás dela, tropeço no pé da minha
carteira e quase caio. Escuto as risadinhas de dentro da sala e a professora
faz um shhhhhhhh, mas eu não estou mais prestando atenção.
Helena sai andando rápido pelo pátio e percebo que ela está indo para as
arquibancadas da quadra. Corro para emparelhar com ela. Acho que ela me
ouve, porque para de repente e se vira.
— O que foi que deu em você, Adriano? Para de me seguir!
Ela não subiu o capuz de volta e ali, no sol, eu vejo como sua pele é
pálida, como há sombras escuras embaixo dos seus olhos, quase como se
ela nunca dormisse direito.
— Eu pedi desculpa — digo, tentando me aproximar dela, mas a cada
passo que eu dou para a frente, ela dá um para trás, como se quisesse fugir
de mim.
— E você quer o que, um abraço? Isso não apaga todas as piadinhas. Não
apaga todas as vezes que você escondeu minhas coisas. Não apaga a vez
que você jogou meu caderno no lixo, Adriano, quando tinha prova no dia
seguinte. Sabe o que aconteceu? — ela aponta para o hematoma no rosto.
— Isso aconteceu. Várias e várias vezes. E agora você vem pedir desculpa
como se não fosse nada demais? Você não sabe de nada, me deixa em paz.
Eu fico parado, o ar entrando e saindo muito rápido dos meus pulmões, e
ela mostra o dedo do meio para mim antes de se virar e continuar andando.
Eu acho que ela vai embora, acho que quero que ela vá embora, mas de
repente Helena se vira, como se tivesse se lembrado de alguma coisa, e vem
andando até mim. É minha vez de dar um passo para trás, porque não sei o
que ela vai fazer.
— O Hiro me falou que era seu amigo, sabia?
Engulo o bolo de saliva na minha garganta, minhas mãos suando, porque
tenho a impressão de que ela quer me empurrar, e nanico do jeito que eu
sou, é capaz de eu cair, bem na frente de todo mundo.
Então ela me olha de cima a baixo, como se estivesse me medindo.
— Você não merece ele.
Helena se afasta, devagar, e sobe o capuz de novo para cobrir a cabeça
enquanto eu fico ali parado, o mundo todo reduzido às palavras dela, e seria
melhor se ela tivesse mesmo me empurrado. Eu vou andando até o primeiro
banco que consigo encontrar e quando me sento percebo que estou
tremendo. O vento está batendo nos arbustos ao redor do banco, tão alto,
tão alto que parece que é diretamente dentro da minha cabeça, e eu esfrego
o rosto com força.
Eu quero gritar e não posso, porque, no fundo, eu sei que a Helena está
certa.
Eu não mereço a amizade do Hiro, não mereço a amizade dela e, se parar
bem para pensar, acho que não mereço nem o meu pai.
Olho em volta, os bancos vazios cheios de folhas secas.
Sempre, sempre vazios.
E eu meio que mereço.

II

Não ligo o walkie-talkie naquela noite porque não quero conversar com o
Hiro, e pelo que me parecem várias horas, fico deitado na cama pensando
no dia seguinte, pensando no que vou fazer.
Não consigo parar de pensar na Helena, no hematoma no rosto dela e no
que ela me disse.
Não sei se é o que eu devo fazer, mas não posso ficar parado. Não dá para
saber se as coisas que eu fiz dessa vez fizeram alguma diferença ou se ainda
vão fazer, mas ainda pode haver uma forma de mudar tudo. De pelo menos
tentar mudar tudo.
Suspiro, e cada vez que fecho os olhos vejo Helena atrás das minhas
pálpebras, as duas versões se misturando na minha cabeça. Vejo Hiro em
cima daquela bicicleta pequena demais para ele, depois na árvore, falando
que não ia me deixar cair. Vejo meu pai rindo enquanto me dá uma surra no
air hockey. É engraçado como nenhum deles está perto de mim em 2019, e
acho que é aí que eu percebo que alguma coisa deu terrivelmente errado
comigo. Talvez bem aqui, nessa semana de 1997.
Eu preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa.
Olho para o teto, largado na cama. É uma ideia imbecil, mas é uma ideia,
e talvez seja a minha melhor chance nesse momento. Esfrego o rosto com
força de novo. Não tenho planos de ir para a escola amanhã.
SEXTA-FEIRA

Hiro não me chama para brincar na sexta de manhã, e acho que é porque ele
sabe que eu estou de castigo. E porque talvez eu o tenha assustado com a
cerveja na quarta.
De qualquer forma, é melhor assim, porque não quero enfiá-lo no meio da
idiotice que estou prestes a fazer.
Meu pai deixou um bilhete sobre a mesa, falando que dessa vez o porteiro
tem ordens expressas de só me deixar sair para pegar a perua, então vou ter
que fazer as coisas do jeito difícil.
Tomo banho e almoço sucrilhos, porque acho que não vou conseguir fazer
nada mais pesado que isso descer, e tenho que me obrigar a ficar parado no
lugar enquanto espero a perua, os olhos do porteiro nas minhas costas o
tempo todo. O peso da calça jeans e do moletom que eu coloquei na
mochila parecem tijolos.
Quando a perua finalmente chega eu vou para o canto da janela, lá no
fundo que normalmente está vazio, e apoio a cabeça no vidro, tentando
ignorar a gritaria das outras crianças, que não calam a boca por um segundo
sequer.
Assim que a perua vira na rua da escola eu sinto o bolo no meu estômago
aumentar e me endireito no banco. Sexta-feira normalmente é um dia um
pouco mais cheio que o normal por algum motivo, e a parte da calçada que
fica bem de frente para a escola está completamente ocupada, então a
perueira é obrigada a parar um pouco depois, o que é exatamente do que eu
preciso.
Somos eu e mais quatro que descemos no São Luiz, e eu sou o menor
deles, então tento me manter próximo até me misturar com as outras
crianças que estão esperando para atravessar a rua. Fico olhando para a
perua, e quando o tio que para o trânsito faz sinal para a gente ir, vou para o
canto e me abaixo, fingindo que preciso amarrar o sapato.
O tio do trânsito faz sinal para os carros continuarem e, um pouco mais à
frente, vejo a perua sair. Aproveito a aglomeração de mais crianças que se
forma daquele lado da calçada para atravessar a rua e vou me esgueirando
entre elas, exceto que estou indo contra o fluxo, para longe da escola.
Cada passo que eu dou faz minha cabeça doer, a pressão nos meus
ouvidos aumentar. É como se cada vez que eu fizesse alguma coisa
diferente, alguma coisa que não estava no script daquela semana
originalmente, o mundo quisesse me fazer parar bem ali. Ou talvez o tempo.
É quase como se as coisas lutassem para não serem mudadas, uma barreira
invisível tentando me segurar. E quando a dor parece insuportável, parece
que a minha cabeça vai ser partida em duas bem ali no meio da rua, é como
se eu passasse dessa barreira, estourando a bolha, e tudo ficasse em silêncio
de novo. Nada de dor, nada de pressão.
O ar vibra ao meu redor, arrepiando minha pele.
Quando percebo, já estou na pracinha no final da rua, o lugar que a minha
mãe jura que é onde os adolescentes do ensino médio ficam fumando, mas
só tem uns três meninos comendo cachorro quente sentados em um dos
bancos. Ali atrás tem uma banca de jornal (engraçado como a gente quase
não vê mais banca de jornal hoje em dia) e vou até lá. Eu sei que tem um
vão entre a banca e o muro, um lugar onde eu posso colocar o moletom e a
calça que eu trouxe por cima do uniforme sem chamar muita atenção.
Eu enfio tudo rápido, o mais rápido que posso, e coloco a blusa do
uniforme de volta na mochila, uma tonelada nas minhas costas. E então eu
começo a andar.
Não sei quanto tempo vai demorar para chegar na casa da Helena a pé,
mas eu tenho a tarde toda e é só fazer o caminho inverso da perua. Mesmo
que demore, não é como se eu tivesse outra coisa para fazer.
Eu vou andando, o sol começando a me esquentar debaixo daquele
moletom, mas não ouso ficar só de camiseta da escola, porque se alguém
me reconhecer de uniforme, estou ferrado. Tem turma no período da manhã,
mas não do ensino fundamental. E com o meu tamanho, ninguém vai achar
que eu estou no ensino médio.
Não sei por quanto tempo ando, mas em algum momento percebo que
preciso de um tênis novo, porque esse está simplesmente esmagando o meu
pé.
Limpo o suor da testa quando avisto a quitanda dos pais do Hiro a mais
um quarteirão de distância e decido virar a esquina para não passar na
frente. Não quero que eles me vejam andando sozinho pela rua, de mochila,
àquela hora.
É um caminho mais comprido e minhas pernas estão queimando, mas
finalmente, finalmente avisto a casa da Helena ali na frente.
Um frio percorre minha espinha conforme me lembro do que eu vi da
última vez que estive aqui e eu paro por um instante, as mãos nos joelhos,
tentando recuperar um pouco o fôlego. Não acho que teria conseguido fazer
todo aquele caminho no meu corpo de adulto sem morrer.
Quando minha respiração está um pouco mais sob controle olho para o
portãozinho enferrujado que separa o quintal da rua. Não parece fechado,
mas mesmo que esteja, é tão baixo que é só apoiar o pé no ferro que corre
na horizontal e pular por cima. Eu me aproximo, puxo a travinha do portão.
Ele abre. Meu coração volta a acelerar conforme passo pelo quintal, e por
um segundo acho que vou bater na porta e é a Helena adulta que vai abrir.
Mas não bato, porque sei que não tem ninguém lá dentro, e eu sei que a
porta vai estar fechada, mas tento abrir mesmo assim, porque vai que. Mas
não, ela não abre. Olho em volta. Parece que tem quinhentos olhos em mim,
mesmo com a rua vazia desse jeito.
Vou então para a janela que vi no outro dia e, embora esteja fechada, é
daquele modelo de madeira que abre para fora se você puxar com força.
Encaixo meus dedos nos vãos da madeira e puxo para fora. Ela range e
mexe um pouco.
Eu enfio meus dedos no vão de novo e puxo mais uma vez. A janela range
e cede mais um pouquinho, e quando olho as pontas dos meus dedos, elas
estão vermelhas. Vou me machucar, tenho certeza, mas continuo puxando e
volto a ficar com calor, o suor se acumulando na minha testa, e eu puxo,
puxo, puxo, até que a janela finalmente cede com tudo e eu caio para trás.
Ofegante, sentado no chão no meio do mato alto, olho para a janela
finalmente aberta. As pontas dos meus dedos estão vermelhas, os
indicadores com um pouco de pele saindo, mas eu consegui abrir. E quando
olho para cima não tem vidro nenhum me impedindo de entrar.
Eu me levanto olhando ao redor, só para ver se ninguém está me
observando depois do barulho que a janela emperrada fez, e quando tenho
certeza de que estou sozinho, pulo para dentro da casa.
O cheiro de louça suja na pia atinge meu nariz com força, e também sinto
o cheiro de cigarro que parece impregnado nas paredes. Eu reconheço a sala
que vi no outro dia, um sofá pequeno em um dos cantos, uma televisão com
as antenas tortas sobre uma mesinha velha. Tem dois retratos tortos na
parede, os dois da Helena, de quando ela era menor. Ao mesmo tempo, é a
casa que eu visitei em 2019 e fico zonzo por um segundo, uma imagem se
sobrepondo à outra.
Eu me viro para o corredor, porque não quero perder mais tempo. Os
números vermelhos do rádio relógio sobre a TV me dizem que já são quase
três horas, e se eu ainda quiser voltar para a escola para pegar a perua de
volta para casa, preciso ser rápido.
Olho o primeiro quarto. A cama de casal desarrumada, junto com o cheiro
quase insuportável de cigarro me diz que aquele é o quarto do pai dela. A
última coisa que eu quero é entrar ali, mas mentiria se dissesse que não
fiquei com vontade de mijar nas coisas dele.
Passo direto e abro a porta do segundo e último quarto da casa.
Eu não sei o que estava esperando, mas definitivamente não eram paredes
cor-de-rosa. Nem bonecas em cima de uma cama com a colcha da Bela e a
Fera. Muito menos dezenas, talvez centenas de desenhos presos nas
paredes com fita adesiva.
Eu me aproximo, e posso não ser especialista em arte, mas é
impressionante para uma criança da idade dela. As pessoas (ela parece ter
uma obsessão por desenhar pessoas) são vivas, mesmo com os traços
infantis, e os olhos… são estranhamente tristes.
Eu me afasto, porque tem alguma coisa extremamente pessoal naquilo
tudo e sinto que estou vendo coisas que eu não devia ver. Em uma das
paredes tem uma prateleira com alguns livros empilhados e alguns mangás,
provavelmente emprestados do Hiro. Não tem uma TV, mas a Helena
também tem um Super Nintendo amarelado e empoeirado, com um controle
só, no chão ao lado da cama. Não está ligado a nada, e o padrão quadrado
da poeira na mesinha de cabeceira me faz pensar que tiraram a TV dali
recentemente.
Depois da surpresa inicial, não sei… tem alguma coisa… errada com
aquele quarto. As paredes são cor-de-rosa, sim, mas quando chego mais
perto, dá para ver que elas estão meio encardidas, e em um lugar perto da
janela a tinta rosa descascou, deixando à mostra uma tinta verde horrorosa
por baixo.
A colcha tem alguns buracos e as bonecas são claramente velhas, mas há
alguma coisa no modo como tudo está arrumado que faz um nó se formar
na minha garganta. Eu vou até a mesa de cabeceira do outro lado da cama,
tem um porta-retratos ali. Acho que sei quem vai estar naquela foto antes
mesmo de conseguir ver, e quando o pego na mão, a família me olhando de
volta parece simplesmente feliz. Normal.
A mulher é a cara da Helena, mas ela tem os olhos claros, e até o homem
abraçado a ela só lembra vagamente o homem que eu vi no bar e dentro
dessa casa na quarta-feira. Ele está com a barba feita, os cabelos penteados,
sorrindo, e a garotinha no colo dele está dando aquele sorriso forçado que
as crianças pequenas dão e que mostra todos os dentinhos. Juro que se não
tivesse encontrado aquela foto naquele quarto, jamais diria que aquela era a
Helena.
Coloco a foto no lugar e vejo que atrás do porta-retrato tem um walkie-
talkie. Só um. É um modelo muito mais antigo que o do Hiro e é vermelho,
meio empoeirado e sujo, mas por algum motivo está ligado e escondido ali
atrás. Não sei por que, mas decido não mexer nele. Tem quase uma
atmosfera… solene naquela mesinha de cabeceira e eu não quero perturbar.
Mas realmente preciso achar aquela arma, porque sei que a Helena deve
ter escondido aqui em algum lugar.
Abro a gaveta da mesinha, mas tudo o que tem lá dentro são uns papéis.
Abro a outra. Tem umas pilhas velhas que rolam quando eu abro a gaveta,
um eco que parece tão alto que eu tenho a certeza de que todos os vizinhos
devem ter ouvido.
Me viro para a cômoda que está encostada na parede. Eu sei que é errado,
sei que não devia mexer nas roupas dela, mas eu não vou sair daquela casa
sem aquela arma. Puxo a primeira gaveta, e é claro que é a gaveta de meias
e calcinhas porque é esse o tipo de sorte que eu tenho, mas começo a revirar
as coisas, tomando cuidado para não bagunçar muito, porque não sei se a
Helena é do tipo que repara em coisas fora do lugar. Estico o braço pelo
fundo da gaveta, procurando por alguma coisa, mas não tem nada ali. Eu
fecho a gaveta e vou para a próxima.
Eu continuo pelas próximas gavetas, tentando não dar muito na cara que
revirei tudo, meu coração acelerando cada vez que não acho nada, e quando
fecho a penúltima gaveta ouço alguma coisa do lado de fora.
Eu gelo por completo.
Não sei que horas são, mas não deve ser muito tarde, com certeza não
depois das cinco, que é a hora que a gente sai.
Fico parado, sem saber para onde ir, porque se eu sair com certeza vão me
ver, e ainda estou pensando no que fazer quando ouço a voz de Helena
vindo lá de fora antes dela bater a porta do carro com força.
Então eu me lembro. A briga. Da última vez Helena brigou comigo, com
o Lucas e o Danilo, e mesmo sem mim a briga deve ter acontecido de
qualquer jeito.
Eu preciso fazer alguma coisa.
A porta da frente se abre e tudo o que dá tempo de fazer é me enfiar no
guarda-roupas dela, meio tropeçando nos sapatos e caixas que estão pelo
chão, e me fecho lá dentro agachado, porque tem uma prateleira bem em
cima da minha cabeça que não me deixa ficar em pé.
Eu sou retardado, só posso ser.
Tapo a boca, porque não quero que a Helena me ouça respirar, e tento
ficar quieto, acalmar minha respiração, enquanto a escuto entrar e bater a
porta do quarto atrás de si. Escuto quando ela se joga na cama e começa a
chorar, escuto mais coisas voando lá na sala. Ou na cozinha, não sei dizer.
Eu me encolho mais, sem saber quando vou poder sair dali de dentro, e é
aí que eu sinto que pisei em alguma coisa dura. Ainda tapando minha boca
eu me viro, tentando enxergar, mas está tudo escuro e respiro fundo
algumas vezes devagar para fazer minha respiração assentar, até que tiro as
mãos da boca e tateio pelo chão até a coisa dura em que eu pisei.
Meus dedos encontram um cilindro gelado e meu estômago dá um
rodopio, meu corpo esquenta uns duzentos graus e começo a suar na mesma
hora.
A arma. Helena escondeu no armário.
No momento em que a pego em minhas mãos, todo trêmulo e ofegante,
sem saber o que fazer, a porta do quarto da Helena se abre com um estrondo
e ela solta um grito.
— Sai daqui! — ela grita, e parece que ela e o pai estão brigando.
Brigando tipo fisicamente.
— Você não aprende nunca! — ele grita. Alguma coisa se rasga, um pano,
uma camiseta, é difícil saber. — Vai ter que apanhar quanto até aprender?
Ouço um tapa e Helena grita de novo. Um gemido.
— Sua filha da puta! É igual a sua mãe!
— Vai embora, me deixa, me deixa!
Eu não posso ficar ali parado. Não posso deixar que ele espanque a
Helena do jeito que parece que ele está fazendo, e agora tudo já deu errado,
mesmo. Pelo menos tomei a decisão certa quando achei melhor deixar o
Hiro de fora disso, porque de jeito nenhum essa sexta-feira vai acabar bem.
Mas ainda assim.
Outro grito.
Não posso, não posso deixar aquilo continuar.
Quando tento engolir em seco, a saliva vira uma bola na minha garganta,
fazendo tudo doer. Foda-se. Foda-se.
Respiro fundo.
Empurro a porta do armário com tudo.
— Solta ela! — grito, arma em punhos apontada para ele. Eu nunca
empunhei uma arma, não faço ideia do que estou fazendo, não sei nem se
ela vai disparar e minhas mãos estão claramente tremendo. Mas o que eu sei
é que consegui a atenção dele, porque o homem olha na minha direção
como se estivesse vendo uma aparição. Talvez eu seja. Talvez naquele
momento eu seja. — Solta a Helena agora!
Olho de relance para Helena, que me encara como se não estivesse
acreditando que eu estou ali também, e o pai dela dá um passo na minha
direção.
— E quem é esse moleque? — ele vira o rosto na direção dela, nada do
homem que estava feliz no porta-retratos. — É seu namorado, sua putinha?
Foi pra ele que você pegou a minha arma? O que vocês acham que vão
conseguir fazer?
— Se você encostar nela — digo, as mãos tremendo. Minha boca está
seca, seca demais —, eu atiro. Se você der um passo na minha direção, eu
atiro.
Ele dá uma risada, uma risada tão vazia que me gela todo por dentro.
— Você não sabe o que tá falando e não faz ideia do que eu vou fazer com
você.
Não sei por que achei que ele ia se intimidar comigo, não sei em que
mundo aquilo ia dar certo, porque o pai da Helena simplesmente vem. Ele
praticamente avança contra mim, como se eu não estivesse empunhando
arma nenhuma, como se ele soubesse que eu não vou ter coragem de atirar.
E é quando um vulto pula nas costas dele.
— Não!
É a Helena. Eu preciso fazer alguma coisa.
Fecho os olhos e meus dedos trêmulos espremem o gatilho.
Há um estampido, mas ainda estou de olhos fechados por causa do
barulho e do coice, há um grito, talvez mais de um, mas eu não consigo
identificar e nem entender o que está acontecendo, porque um zumbido
começa a invadir meus ouvidos, alto, alto demais. Eu levo as mãos à
cabeça, encolhido, até que tudo se embaça mais uma vez e eu apago,
deixando Helena e o pai dela sozinhos naquela sexta-feira de 1997.
2019
A princesa está em outro castelo.
I

Meu corpo todo ainda está tremendo quando abro os olhos, meu coração
parecendo que quer escapar pela minha garganta. Não ouso me levantar,
porque não tenho certeza se as minhas pernas vão aguentar, então apoio a
cabeça no tampo do fliperama e respiro fundo uma, duas, três vezes.
— Moço, você tá bem? — alguém pergunta perto de mim e quando me
viro, é um funcionário do fliperama. Ele parece meio apreensivo e não
quero nem pensar no que ele pode ter visto.
— Aham — resmungo, esfregando o rosto. — Acho que tive uma leve
tontura, só isso.
— O senhor quer uma água?
Estou pronto para dizer que não, mas no fim aceito, porque assim tenho
um pouco de tempo para pensar. Enquanto o homem desaparece para pegar
a água para mim, eu olho para a tela, uma mensagem familiar me encarando
de volta.

Game Over.

Eu sei. Eu sei que dei game over e ver aquelas palavras olhando para mim
me fazem querer gritar, mas eu não grito, quero chutar, mas não chuto,
porque não quero que me achem mais estranho do que provavelmente já
estão achando. Aperto o botão, mas já sei o que a máquina vai falar, e leio
sem vontade o que aparece em seguida.

Você pode tentar novamente em 24h.

Mimimi, vinte e quatro horas.


— Vai se foder — sussurro, cansado. O menino volta com a água, uma
garrafinha inteira, e quando começo a beber, percebo como minha garganta
estava seca. Talvez por eu ter suado e gritado tanto antes de voltar para cá.
— Obrigado — digo, tapando a garrafinha e devolvendo para ele.
— Ah, pode ficar.
Encolho os ombros e suspiro, depois olho para a tela da máquina, que
agora se apagou. Claro que apagou.
— Hm, moço? — o menino chama, meio nervoso, e eu olho para ele. —
Desculpa incomodar, mas essa máquina aí tá em manutenção.
Tenho vontade de rir na cara dele, tenho mesmo.
— Eu sei — digo, me levantando. Dou um tapinha no ombro dele, mostro
a garrafinha de água em agradecimento e saio do fliperama. Da última vez
eu queria voltar rápido para cá, queria tentar uma segunda vez. Agora que
eu sei que só um coraçãozinho vai se acender amanhã, eu não sei se tenho
tanta vontade assim.

II

Quando saio do shopping decido ir para casa descansar. Se da outra vez eu


estava cansado, dessa vez estou completamente exausto e mal posso esperar
para poder deitar na minha cama.
Entro com o carro na rua e estou prestes a parar em frente ao portão, como
sempre, mas já tem um carro parado ali, o que é absolutamente fantástico.
Estaciono um pouco mais para frente e saio do carro, depois paro em
frente ao portãozinho de casa. Um portãozinho muito parecido com o da
casa da Helena, aliás.
Coloco a mão na grade meio enferrujada e empurro, mas o portão não
abre.
Aquilo é estranho.
Quer dizer, eu nunca fecho o portão.
Balanço o ferro, esperando que ele só esteja emperrado, mas ele não cede.
Eu me abaixo para olhar e está realmente fechado. Que porra…?
Pulo o portão, porque agora tem um nó no meu estômago, um nó do qual
eu não estou gostando nem um pouco.
Ouço alguém lá dentro.
Não devia ter ninguém em casa, minha mãe está no hospital. Ao menos
que seja a Marcela, mas por que ela estaria na minha casa? Ou talvez…
Ao menos que eu tenha conseguido mudar alguma coisa, alguma coisa de
verdade, e meus pais…
Não consigo sentir direito o chão sob os meus pés, é como se eu estivesse
meio flutuando, meio sonhando, e quando chego na porta e tento girar a
maçaneta, ela também não abre.
— Mãe? — chamo, minha voz um pouco trêmula. — Pai?
Bato na porta, bato, bato e bato.
— Mãe! — grito de novo, e ouço passos lá dentro. Uma luz se acende do
lado de fora, mas eu sei que não tem uma luz do lado de fora. Não era para
ter luz do lado de fora, eu nunca troquei a merda daquela lâmpada.
Tem gente falando lá dentro e eu sei que não é minha mãe nem meu pai,
eu reconheceria a voz deles em qualquer lugar. Por um segundo, olho para
as casas vizinhas, porque talvez eu possa ter errado a casa, embora pareça
absurdo, e então a janela da sala se abre e uma cabeça aparece.
Uma cabeça que eu definitivamente não conheço.
— É entrega? — a cabeça pergunta, um homem que eu nunca vi na vida.
— N-não — eu respondo, meio pego de surpresa. — O que… Quem é
você?
— Ahn?
— É o correio? — uma outra voz pergunta lá de dentro — Tô esperando
encomenda.
— Não, tem um cara esquisito aqui — ele diz, sem tirar os olhos de mim.
— O que é que você quer? Por que você tá no meu quintal, não viu o
portão?
Eu não sei o que eu quero, não estou entendendo nada.
— Eu… nada.
Dou a volta e saio, pulando o portãozinho, porque a minha mãe
definitivamente não está ali, nem meu pai, e eu não quero pensar no que
isso significa.
Entro no carro e respiro fundo. Talvez minha mãe ainda esteja no hospital.
Talvez a gente só tenha mudado de casa, é perfeitamente normal mudar de
casa, afinal de contas, faz mais de vinte anos. Pessoas mudam de casa o
tempo todo.
Isso, com certeza. A gente só mudou de casa.
Giro a chave na ignição e saio com o carro, porque preciso ir para o
hospital. Preciso ter certeza de que ela está bem, e aí vou dar um jeito de
perguntar sobre a nossa casa. Aposto que é uma casa bonita, uma casa com
piscina. Ela sempre quis ter uma casa com piscina.
Quando chego no hospital, quase esqueço que preciso parar para o valet
estacionar, ele praticamente entra na frente do carro e eu quase o atropelo.
Pelo menos consigo reconhecer que é o mesmo homem que estava aqui
ontem, então é um bom sinal. Tem que ser um bom sinal.
Saio do carro e ele fica me olhando.
— Preciso da chave, senhor.
Olho para minhas mãos. Estou segurando a chave.
Eu a entrego para ele e o homem ainda me olha como se estivesse
ligeiramente com medo de mim antes de entrar no carro e sair com ele.
Entro no hospital, o saguão de entrada mais movimentado do que eu estou
acostumado a ver à noite, e tem uma pequena fila na recepção que parece
demorar uma vida inteira para andar.
Quando finalmente chego na recepção, dou o nome da minha mãe e o
número do quarto. O tempo que a moça leva para digitar tudo no
computador parece infinito, e no momento em que ela olha para mim com
um sorrisinho amarelo e suas sobrancelhas se franzem, meu estômago
embrulha.
— Não tem ninguém com esse nome aqui, senhor. Nós temos uma outra
unidade, tem certeza de que o senhor não se confundiu? Eu posso ligar lá
pra verificar se o senhor quiser.
— Não — digo, me afastando, aquele saguão claro demais, com pessoas
demais.
Quando saio, o homem que acabou de levar meu carro ainda nem voltou e
eu exijo que tragam meu carro imediatamente. Pode ser que eu tenha
gritado, mas não tenho certeza, tudo está meio esquisito e em algum
momento meu carro aparece bem na minha frente, eu entro e vou embora.
Não sei como dirijo, tudo passa ao meu redor como se eu estivesse
bêbado, e quando dou por mim, estou perto de onde ficava a quitanda dos
pais do Hiro. Perto da casa da Helena.
De repente tudo entra em foco, cada rachadura na rua, cada portão, cada
folha seca caída no chão. Diminuo a velocidade.
Ali, lá na frente. A casa dela.
Paro o carro e percebo que estou tremendo. Eu respiro fundo e esfrego o
rosto antes de sair, as imagens do que praticamente acabou de acontecer
nesse lugar ainda vivas demais na minha mente.
Saio do carro e vou em direção à casa. Nem estou tão perto assim e dá
para ver que está abandonada. Janelas quebradas, o portãozinho baixo
pendendo da dobradiça, completamente enferrujado.
O mato do jardim está quase da altura da minha cintura e eu preciso
levantar a perna pra poder andar, sentindo os pedregulhos debaixo do meu
tênis.
Dou a volta. A casa não tem mais cheiro de cigarro nem de coisa suja, só
de terra e mofo, e eu não sei o que é pior. Vou até a janela que abri, agora
fechada por tábuas de madeira, e paro quando percebo que estou pisando
em cacos de vidro. Quando olho para baixo tem uma janelinha bem rente ao
chão, meio coberta pelo mato, também com o vidro quebrado. Não tinha
percebido antes, acho que só percebi agora porque ouvi o barulho do vidro
sendo pisado. Eu me abaixo, mas não consigo enxergar direito porque
precisaria me abaixar muito e não quero cortar as mãos nem os joelhos.
Talvez se eu fosse menor, do tamanho que eu tinha em 1997, eu conseguisse
passar por ali. Agora, nem pensar. Além disso, está escuro lá dentro.
Eu me levanto e volto para a frente. Eu sei que a porta vai estar fechada,
mas eu preciso girar a maçaneta mesmo assim para ter certeza.
Trancada.
O painel de vidro estreito que tinha bem no meio da madeira está
quebrado e eu tiro o celular do bolso para ligar a lanterna e ver se consigo
enxergar alguma coisa lá dentro.
E assim que eu desbloqueio a tela tem uma mensagem ali que faz meu
coração pular uma batida.
Porque é uma mensagem do Hiro.

III

Eu sou um idiota. Por que olhar no celular não foi a primeira coisa que eu
fiz quando voltei?
Atravesso o quintal praticamente correndo e me fecho dentro do carro, a
mensagem dele quase surreal bem ali nas minhas mãos. Um simples oi.
Acho que nunca fiquei tão feliz na vida em ver um oi na minha frente.
Será que ele vai me achar esquisito se eu ligar? Quer dizer, não sei quanto
tempo ele vai levar para ver minha mensagem se eu escrever de novo, deve
ser de madrugada no Japão.
Bom, foda-se. O máximo que vai acontecer é ele não responder, talvez me
odiar momentaneamente por eu ter estragado a noite de sono dele. Eu posso
viver com isso.
Aperto o telefoninho que tem ali do lado, o barulho dos bipes da chamada
querendo me fazer vomitar.
Um… dois… três… Estou contando cada bipe, e estou prestes a desligar e
desistir quando ouço uma voz do outro lado. Uma voz grossa que de jeito
nenhum é a do Hiro, mas que só pode ser.
— Moshi moshi — ele diz, a voz meio mole de sono. Acho que é de sono,
e não tenho certeza do que ele disse, mas deve ser alô.
— Hiro?
Ele para por um segundo, dá pra ouvir que tira o celular da orelha. Ele
deve ter atendido no automático, sem nem parar para ver quem é.
— Nossa, ninguém me chama mais de Hiro — ele diz, daquela vez em
português.
— Desculpa — digo rápido, não quero que ele desligue — Hiroshi. César.
Não sei o que você prefere.
Estou claramente surtando.
— É o Adriano? — ele pergunta do outro lado, a voz meio divertida. Ou
talvez seja só impressão, estou ouvindo o que eu quero ouvir.
— Aham.
— Caramba, Dri. Quanto tempo. Como você tá?
Quase derretendo de alívio seria a resposta correta, mas não falo nada a
princípio. Acho que ouço alguém resmungando ao fundo, uma voz
feminina.
— Indo — digo, meio desconfortável. Devo tê-lo acordado no meio da
noite e ele provavelmente tem mulher agora. Minha cabeça vai explodir. —
Eu tô atrapalhando?
— Bom, são duas da manhã. Você nunca nem me mandou mensagem e…
Aconteceu alguma coisa? Tá tudo bem?
Bom, essa é a pergunta de um milhão de dólares, não é? Porque eu não
faço ideia.
Ouço mais barulhos do lado dele, parece que ele está se levantando da
cama.
— Só tô saindo do quarto pra não acordar minha esposa. Peraí.
Esposa.
Claro que ele deve ter uma esposa, é um cara decente, sempre foi, não sei
por que estou surpreso. Talvez porque eu não tenha? Eu deveria ter? Não sei
se eu quero ter.
Estou surtando de novo.
— Pronto — ele diz. — Vim pra cozinha.
Silêncio. Tenho medo dele desligar então começo a falar de novo.
— Há quanto tempo você tá morando aí no Japão?
Não é o que eu quero saber, não de verdade, mas pelo menos assim eu
ganho tempo e não o assusto com a pergunta que realmente importa. Se o
Hiro desligar na minha cara eu não sei o que eu vou fazer.
— Nossa… uns vinte anos? Foi um pouco depois… — ele para. — Você
sabe.
Não, não sei, esse é o problema.
— Você… pretende voltar? — pergunto. De novo não é o que eu quero
saber, mas que merda. — Pro Brasil?
Ele boceja do outro lado, coitado.
— Engraçado você perguntar, porque talvez. Dri?
É estranho ele me chamar pelo apelido com aquela voz grossa, mas a
entonação é a mesma que eu lembro.
— Hum?
— Por que foi que você me ligou? Sabe, agora? Você nunca… quer dizer,
eu nunca mais ouvi nada de você.
Porque eu sou um babaca imbecil, claro, é o que eu devia responder.
— Eu… preciso te perguntar uma coisa — digo ao invés.
— Uma coisa.
— É. Sobre… bom, aquele dia. O que… o que aconteceu com a Helena?
Há um silêncio absoluto do outro lado da linha, tão alto que consigo ouvir
meu coração batendo nos meus ouvidos.
— Você não lembra?
— Não, eu… por favor.
Dá para ouvi-lo exalando e eu sei, simplesmente sei que seja lá o que ele
for falar, não vai ser coisa boa. Uma moto passa rápido do meu lado na rua,
o escapamento gritando, e eu quase pulo no banco.
— Você não lembra mesmo o que aconteceu com a Helena? Você tá bem,
Dri? Quer dizer, você tá me ligando no meio da noite…—
— É dia aqui — eu o interrompo. — E sim, tô bem. Eu só quero que você
me fale o que aconteceu.
— Você não lembra mesmo?
— Hiro.
Ele bufa do outro lado. Quase consigo vê-lo correndo as mãos pelos
cabelos.
— Você atirou na Helena, Dri.
O quê?
— O quê? Não, eu… foi o pai dela. Tem que ter sido no pai dela.
— Você falou que queria ter acertado o pai dela, mas acertou a Helena. É
só isso que eu sei, você… Bom, a gente não conversou muito mais depois
disso, pra falar a verdade. Você lembra, tem que lembrar.
Eu acertei a Helena? Mas… não, não faz sentido.
— O que aconteceu com ela? — pergunto, um nó na garganta. Porque…
se deu game over…
— Você sabe o que aconteceu.
Estou apertando o celular com tanta força que eu não me surpreenderia se
ele se desfizesse na minha mão.
— Por favor, eu preciso que você me fale.
Ele suspira de novo, claramente desconfortável, claramente querendo
desligar na minha cara.
— Ela morreu, Dri. Tentaram levar a Helena pro hospital, mas ela não
resistiu. Como você pode não lembrar?
Não… não pode ser. Não faz sentido e eu aperto os olhos, querendo
lembrar, querendo preencher o vazio que tem dentro do meu cérebro, mas
não consigo me lembrar de nada. Nada. Não sei o que aconteceu com a
minha vida, com os meus pais, e não acho que o Hiro vai saber, então não
pergunto. Por isso e porque tenho medo da resposta.
— Dri? — ele chama de novo. — Tem certeza que tá tudo bem?
— Aham — minto, sem nem sentir meu corpo direito. — Eu… acho que
vou desligar.
— Onde você tá? — ele pergunta, meio alarmado, como se pudesse
simplesmente pegar o carro e vir me buscar. — Por favor, não faz nenhuma
besteira.
Tenho vontade de rir. De gargalhar, na verdade, porque aparentemente
tudo o que eu consigo fazer é besteira.
— Hiro?
— Tô aqui.
Claro que está, ele sempre está. Estava na árvore para me segurar quando
eu ia cair, agora está aqui para me ouvir quando preciso de alguém para não
ficar completamente maluco.
— Você me desculpa?
— Desculpa?
— Por ter sido um amigo babaca. Por… — tem um nó gigante na minha
garganta, o tipo de nó que, mesmo com toda a minha habilidade, sou
incapaz de desfazer. — Você merecia um amigo melhor.
— Do que é que você tá falando? O que é que você vai fazer?
Olho para o banco do passageiro ao meu lado. Vazio, sempre vazio. Tem
sempre alguém faltando.
Suspiro.
— Prometo que vou tentar ser um amigo melhor.

IV

Eu volto para o shopping, porque não sei mais para onde ir. Eu devo morar
em algum lugar, mas não sei onde, não consigo me lembrar.
Fico zanzando de um lado para o outro, fico na praça de alimentação,
entro no supermercado. Cada vez que alguém de cabelo preto e comprido
passa perto de mim eu me viro, esperando que seja a Helena, mas é claro
que não é. É claro que não vai ser.
Sento na praça de alimentação e espero. A última festa de aniversário
deve acabar às oito hoje, talvez eu consiga falar com o Kaike. Considerando
que ele se lembre de mim, porque a essa altura eu não sei de mais nada.
Tiro o celular do bolso e passo pelos meus contatos. O número dele está
ali, mas… Não tenho o número da minha mãe e eu nunca me dei o trabalho
de decorar. Talvez do meu pai… não. Nada também.
Quando falta uns dez minutos para dar oito horas eu vou até o Balão
Mágico, porque não quero perder o Kaike quando ele sair, e já são mais de
oito e meia quando ele finalmente pisa para fora, parecendo exausto.
— Adriano?
Graças a Deus ele sabe quem eu sou.
— Oi, posso te pedir um favor?
Ele ergue as sobrancelhas. Ainda está com a roupa de mágico que era eu
quem usava. Provavelmente nem lavaram.
— Você tá bem?
Se eu ganhasse um real por cada vez que alguém me fez essa pergunta
hoje.
— Acho que sim.
— Acha que sim?
— Aconteceram umas coisas estranhas hoje. Escuta, será… será que tem
como eu passar essa noite na sua casa?
— Na minha casa?
— Você vai parar de repetir o que eu falo ou o quê? A minha casa tá, ahn,
reformando.
— Reformando?
— Kaike!
— Tá bom, tá bom. Tem como você me dar uma carona, pelo menos?
Assim eu não preciso voltar de ônibus, ônibus de domingo é uma desgraça.
Eu sei que é, então faço sinal para ele me seguir e nós vamos para o
estacionamento.
Kaike passa o caminho todo tagarelando sobre como teve que aprender os
truques de última hora, sobre como não conseguiu nem tirar a moeda da
orelha de uma menina, sobre como o jornal rasgou e basicamente tudo deu
errado.
Eu pego uma moeda que está no vão do lado da caixa de câmbio e
começo a passá-la de um dedo paro outro quando o semáforo fecha.
— Como você faz isso? — ele pergunta, olhando para os meus dedos
como se tivesse algum truque ali.
— Anos de prática — faço a moeda “sumir” entre os meus dedos. —
Agora eu venho aqui… — Levo a mão à orelha dele e tiro a moeda dali. —
Tadá.
Ele pega a moeda da minha mão e o farol abre. Quando viro a cabeça para
ele, Kaike está girando a moeda de um lado para o outro.
— Eles não deviam ter te mandado embora.
— Porque eu sei fazer o truque da moeda?
— Não, porque… sei lá, as crianças te levavam a sério. Na maior parte do
tempo, pelo menos. E o truque com as cordas? Eu nem tentei. Fiquei com
medo de ficar com as mãos presas pra sempre.
Solto uma risada de nervoso e, enquanto dirijo o resto do caminho, Kaike
fica tentando mexer a moeda entre os dedos. Quando nós chegamos, ele
quase consegue passá-la (bem devagar) por todos os dedos, e só deixa cair
quando chega no dedinho.
— Você liga de ficar no sofá? — ele pergunta quando sai do carro. —
Meus pais tão em casa, minha irmã também.
Marcela.
Tinha esquecido da Marcela.
Meu rosto esquenta um pouco quando penso nela, mas eu balanço a
cabeça para falar que não e o Kaike abre o portão, me levando para dentro.
Eles têm um gato cinza que se enrosca na minha perna e parece que me
conhece há anos. Ele é tão chato que Kaike precisa pegá-lo no colo senão
não vou conseguir andar.
Os pais dele estão jantando pizza quando a gente chega, mas eu recuso,
porque já comi no shopping. Isso e porque Marcela está na mesa também, e
não sei se quero ficar perto dela.
— Vem, eu fico com você na sala — Kaike diz, pegando um pedaço de
pizza num guardanapo. O gato cinza nos segue e assim que eu me sento ele
vem para o meu colo. — Ele é meio carente. E tem tara por visitas.
Percebi.
Fico fazendo carinho nele enquanto ele ronrona, porque acho que não
tenho muita escolha, e os pelos já estão se acumulando pela minha calça
toda.
Estou com os olhos na TV, mesmo sem conseguir me concentrar muito, e
para meu desespero, Marcela se junta a nós, no mesmo sofá que eu.
— Não vai apresentar seu amigo? — ela pergunta, e eu meio que quero
largar o gato no colo dela e sair correndo.
Kaike dá uma mordida na pizza antes de responder.
— É o Adriano, ele trabalha comigo.
— No buffet?
— Aham, ele é o mágico.
— É temporário — interrompo, até porque não trabalho mais lá, mesmo.
Kaike olha para mim com a boca cheia.
— Faz o truque da moeda pra ela ver.
Essa é definitivamente uma péssima ideia.
— Não acho que a sua irmã quer ver o truque da moeda.
— Na verdade eu quero — ela diz, se empertigando do outro lado do sofá.
Claro que quer. Claro que quer.
Estreito os olhos para o Kaike, mas acho que ele não fez por mal, ele não
tem como saber. Ele tira a moeda do bolso, minha moeda, e joga para mim.
Coloco o gato no chão, mesmo ele não parecendo gostar muito daquilo, e
escorrego para perto da Marcela no sofá. Espero que ela não perceba que eu
estou desconfortável, porque eu estou.
Passo a moeda pelos dedos, mas ao invés de olhar o que eu estou fazendo,
ela fica olhando para mim, nos meus olhos, e meu rosto esquenta tudo de
novo. Devo ter ficado completamente vermelho, porque ela dá uma
risadinha.
Tento ignorá-la, e faço a moeda “sumir” atrás dos meus dedos. Não sei
por que estou me dando o trabalho, ela parece muito mais interessada na
minha cara do que na minha mão.
Ainda assim, levo minha mão à sua orelha, esbarrando de leve em seus
cabelos, e o braço dela se arrepia.
— Tádá — digo de novo, mostrando a moeda, e volto para o meu canto
do sofá o mais rápido possível.
Ela dá uma risadinha e Kaike parece não fazer ideia do que acabou de
acontecer.
Nós ficamos em silêncio assistindo TV, ou fingindo que estamos
assistindo, não sei, e em determinado momento os pais deles avisam que
estão indo para a cama, mas que eu posso ficar à vontade e tudo mais.
Kaike se levanta e desaparece no corredor. Eu não ouso me mexer, porque
Marcela continua ali, os olhos na TV ou em mim, eu não sei. Kaike
finalmente volta, e aposto que foram só alguns segundos, mas foi tempo
demais.
— Não tem travesseiro, mas trouxe uma cobertinha pra você.
— Tudo bem — digo, pegando a coberta —, eu posso usar uma almofada.
Ele boceja e pega o gato.
— Bom, tô indo deitar. Marcela, sai desse sofá, deixa ele dormir.
Aperto mais a cobertinha contra o peito. Ela está me olhando, talvez
esperando que eu diga que não, que não é incômodo nenhum, que ela pode
ficar. E eu tenho a ligeira impressão de que sei onde as coisas podem parar
se ela ficar, porque elas meio que pararam da última vez que eu estive aqui.
Ela está me olhando, esperando.
— É, tô meio cansado.
Marcela suspira e se levanta para ir atrás do Kaike. Espero as portas dos
quartos se fecharem, as luzes se apagarem, e finalmente me deito, puxando
a coberta para me cobrir.
Teria sido fácil falar que ela podia ficar, teria sido fácil fingir que eu não
estou sozinho dentro daquela casa, mas quando fecho os olhos e as
lembranças dos últimos dias começam a inundar minha memória, são os
rostos da Helena e do Hiro que não saem da minha cabeça.

Quando acordo na segunda-feira, só o Kaike ainda está em casa.


— Todo mundo já foi trabalhar — ele explica, um pedaço de pão enfiado
na boca. — Foi muito ruim dormir no sofá? Eu tive que dormir uma vez,
acordei com as costas tudo doendo. Aqui, pega café.
Eu pego, porque preciso acordar.
— Não foi tão ruim assim — minto. Meu pescoço está latejando.
— Quer fazer alguma coisa hoje? Minha irmã me mandou perguntar se
você quer fazer alguma coisa hoje — ele acrescenta, fazendo cara de tédio.
— Acho que ela gostou de você.
Em qualquer outro momento da minha vida em que eu não estivesse
prestes a ser mandado para o passado por uma máquina de fliperama,
talvez, quem sabe. Hoje? Nem pensar.
— Não posso, tenho compromisso.
Ele para, a boca cheia.
— Você nunca tem compromisso.
— E você não devia falar de boca cheia.
— Tá bom, pai. — Ele engole. — Sério, o que você vai fazer?
— Resolver… uma coisa.
Ele ainda insiste mais umas duas ou três vezes, mas eu não respondo, e
quando terminamos de tomar café eu dobro minha cobertinha e a entrego
para ele.
— Valeu por hoje.
— Você já vai? A gente podia jogar videogame.
A última coisa que eu quero, honestamente, é jogar videogame.
— Não dá, preciso ir. A gente se vê depois.
Kaike não parece muito feliz, me xinga um pouco, mas finalmente
consigo sair da casa dele e vou direto para o shopping.
Quando o fliperama abre e eu já almocei e já dei mais voltas pelos
corredores do que consigo contar, tento entrar como se não fosse nada
demais. A moça que fica na porta me olha meio desconfiada, afinal é o
terceiro dia seguido que eu entro ali exatamente no momento em que o
fliperama abre, então dou tchauzinho pra ela e vou direto para a máquina
esquecida lá no fundo.
Daquela vez eu não tenho nenhuma dúvida de que ela vai estar ali, e
também sei que vai ser a última vez. Talvez ela desapareça depois. Talvez
pare de funcionar, sei lá. Eu me aproximo, o coração batendo nos meus
ouvidos, e quando aperto o botão, a tela se acende.

Bem-vindo de volta.

Aperto o botão de novo para continuar, e os dois corações que eu tinha


agora se transformam em um só. Acima dele, as palavras na tela mudam.

Você tem uma vida. Deseja continuar?

É o correio?
Olho para o SIM e para o NÃO piscando na minha frente.
Não tem ninguém com esse nome aqui, senhor.
Eu tenho mais uma chance, uma última chance de pelo menos tentar fazer
alguma coisa certa, de não estragar tudo nessa semana, de quem sabe…
Ela morreu, Dri.
Aperto o SIM com um murro e o zumbido começa nos meus ouvidos.
Prometo que vou tentar ser um amigo melhor.
1997
Lembre-se de quem você é.
DOMINGO

Eu já sei como as coisas vão acontecer.


Vou acordar ouvindo Claudinho e Buchecha na sala, meu pai vai estar
conversando com a minha mãe no telefone e vai falar que vai trabalhar.
Hiro vai vir e perguntar se eu quero descer.
É estranho fazer tudo de novo, como estar preso em um dejà vu infinito, e
meu cérebro não para de pensar em todas as possibilidades do que vai ou
pode acontecer.
Espero meu pai sair e vou para a sacada, porque sei que o Hiro vai estar
montado na bicicleta vermelha dele e vai me ver.
— Dri? Pode descer?
Posso, claro que posso, e desço correndo para passar na garagem e pegar a
minha bicicleta. Sinto que estou tremendo um pouco, meu coração
começando a acelerar, e acho que Hiro vê que tem alguma coisa diferente
quando passo pela portaria, porque ele me olha de cima a baixo.
— Você tá bem?
— Aham. Escuta — digo, empurrando a bicicleta até a calçada. Não dá
para perder tempo dessa vez —, sabe a Helena do judô?
Ele franze as sobrancelhas, a cabeça um pouco tombada para o lado como
se não estivesse entendendo onde eu quero chegar. Nem eu mesmo sei. A
voz da versão adulta dele ainda está na minha cabeça, e quase espero ouvi-
la sair da boca dele quando ele fala.
— Sei…?
— Você sabe onde ela mora?
— Sei…?
— E se a gente chamasse ela pra fazer alguma coisa?
Hiro muda o peso do corpo de um lado para o outro, a bicicleta se
inclinando junto com ele. Ele deve ser alto em 2019, bem alto.
— Dri, tem certeza que tá tudo bem?
— Aham, tá tudo ótimo.
Ele estreita os olhos, meio desconfiado.
— Você nunca nem falou nada da Helena, por que você quer chamar ela
agora?
— Ué, você não gosta dela?
— Eu acho que a gente nunca nem falou sobre ela.
O que é verdade, claro, e eu esqueci. Eu fico quieto, tentando pensar na
desculpa que posso dar, quando Hiro ajeita o pedal da bicicleta e encolhe os
ombros.
— Mas a Helena é legal. A gente pode chamar ela se você quiser, só não
sei se o pai dela vai deixar ela sair.
Aquela é uma preocupação legítima, mas eu tenho que tentar fazer alguma
coisa. Eu só tenho uma semana. Sei que não vou conseguir mudar tudo,
mas… talvez possa ser um começo.
Minha cabeça começa a doer, a pressão nos meus ouvidos aumenta, e
acho que essa é a maior prova de que estou fazendo alguma coisa certa.
— Vai, eu sigo você.
Hiro dá um sorrisinho e dispara na bicicleta enquanto eu o sigo, o ar todo
vibrando e arrepiando minha pele. Nós subimos a rua e ele para bem no
topo, exatamente como fez das últimas duas vezes.
— Não vou descer sem freios, antes que você tenha ideias — digo, e
quando o olho, ele está com a boca meio aberta.
— Como você sabia que eu ia falar isso?
Encolho os ombros.
— Sabendo. Além disso, eu tenho certeza de que se eu descer, vou levar
um capote e me ralar todo.
Ele abre outro sorrisinho.
— Porque você é lerdo?
— Eu não sou lerdo — retruco, mas Hiro está rindo do meu lado e ele
desce primeiro, o moletom largo tremulando com o vento. Eu vou atrás dele
e, daquela vez, nós passamos direto pela pracinha, nossas pernas à toda pela
rua. Dona Suzuki acena para nós quando passamos pela quitanda e depois
coloca a mão na cintura quando Hiro tira as mãos do guidão em frente a ela
para acenar de volta.
— A casa dela é um pouco mais pra frente — ele diz quando paramos na
esquina, um carro vindo. Eu sei disso, mas deixo ele explicar o caminho. —
O que a gente vai fazer?
Eu não faço ideia, e na verdade acho que só quero tirá-la daquela casa.
Não pensei muito no depois.
— Sei lá, o que ela gosta de fazer?
— Desenhar. Jogar videogame.
— A gente podia ir na sua casa e jogar alguma coisa, então? — sugiro.
Hiro encolhe os ombros e pisa no pedal da bicicleta.
— Pode ser, mas não sei se o pai dela vai deixar ela ficar na minha casa.
Ele não deixa ela ir na casa de ninguém. Muito menos de meninos.
Hum.
— A gente não precisa falar que vai na sua casa.
— E se ele descobrir? Ele é bravo.
Aperto o guidão da bicicleta com força, porque eu sei que ele é. Mas
também sei que ele não pode continuar fazendo seja lá o que ele esteja
fazendo com a Helena.
— Ele não vai descobrir — digo, e dou impulso no pedal enquanto Hiro
acelera para tentar me alcançar.

II

O quintal com a grama alta e o portãozinho baixo enferrujado estão


exatamente do mesmo jeito. Eu e Hiro estamos parados do lado de fora,
olhando para a porta, nenhum dos dois muito a fim de ser a pessoa a entrar
ali e bater primeiro.
— A gente devia ir juntos — ele diz por fim, as bochechas vermelhas por
causa do esforço, os olhos fixos na porta.
Lá dentro da casa alguém grita o nome da Helena com força e nós dois
praticamente pulamos no lugar.
— É, melhor ir juntos, mesmo.
Eu dou o primeiro passo e abro o portãozinho, que range como se
protestasse a nossa entrada. Nós andamos pela grama alta até a porta e é o
Hiro quem bate primeiro.
Não sei se alguém ouviu, mas os barulhos param. Quando olho para o
Hiro, seu corpo está todo tenso e, assim que a porta se abre, ele perde
completamente a cor.
— O que é que vocês querem? — o pai da Helena pergunta, e eu percebo,
pela primeira vez, que nunca o vi de perto, não daquele jeito. Ele é alto, mas
talvez possa ser por causa da minha perspectiva, e está com os olhos meio
caídos de quem andou bebendo demais. É magro, tão magro quanto a
Helena, e não há um centímetro nele que inspire qualquer simpatia. — Eu
não tenho dinheiro.
Dou um passo à frente e coloco o braço no ombro de Hiro, depois sorrio,
o sorriso mais inocente que consigo dar, como se tudo estivesse
perfeitamente bem e eu não soubesse o que acontece dentro daquela casa.
— Bom dia, será que a Helena pode sair pra brincar com a gente?
Ele franze as sobrancelhas e balança a cabeça, mas faz aquilo tão rápido
que perde um pouco o equilíbrio e precisa se apoiar no batente da porta para
não cair. Eu queria muito que ele tivesse caído.
— Sair pra brincar? Helena! — ele chama com um grito, virando o rosto
para dentro da casa. — Vem aqui agora!
Espero que ele não brigue com ela na minha frente, espero mesmo que ele
não brigue nem faça nada com ela na minha frente.
— Que foi?! — Helena reclama vindo lá de dentro, e quando seus olhos
batem na gente, ela meio que se petrifica no lugar. — O que… o que vocês
tão fazendo aqui?
Ela olha pouco para mim, porque nós obviamente não nos damos bem, e é
para o Hiro que ela parece estar fazendo uma pergunta silenciosa.
— Ah, quer dizer que você conhece esses moleques? — o pai dela diz, e é
quase imperceptível, mas ela se encolhe um pouco no lugar. — O que é que
você faz com eles, hein? Posso saber?
— Você quer sair pra brincar? — pergunto, olhando-a diretamente nos
olhos, naqueles olhos escuros, querendo que ela entenda o que eu quero
dizer. Seu olhar fica em mim só por um segundo, e depois se volta para
Hiro. Ele assente lentamente, confirmando o que eu acabei de dizer.
— Brincar? — o pai dela repete, em tom de zombaria. — É esse o nome
que vocês usam hoje em dia? Ela não vai pra lugar nenhum com vocês,
muito menos brincar, e é melhor—
Helena passa correndo pela porta.
— Corre.
Eu e Hiro nos entreolhamos só por um instante e em seguida corremos
pelo quintal e pegamos nossas bicicletas. O pai da Helena tenta vir atrás de
nós, mas ele está bêbado como eu desconfiava, e tropeça no degrauzinho da
porta e quase cai, o que nos dá uma vantagem que nós não desperdiçamos.
Saímos correndo, empurrando as bicicletas rua abaixo.
— Por aqui! — Hiro diz virando em uma esquina, nossos tênis batendo no
asfalto, as pernas correndo e correndo, o ar gelado queimando minha
garganta. Quando finalmente paramos eu preciso me sentar, porque estou
acabado. Hiro se joga na calçada, o corpo largado, o braço sobre a testa
enquanto seu peito sobe e desce com força. Quando olho para Helena ela
está ofegante, os cabelos pretos bagunçados, as mãos nos joelhos ossudos.
— Vocês são retardados — ela diz, se jogando ao lado do Hiro. — Se o
meu pai vir a gente…
— Ele não vai ver — digo, aquela dorzinha chata de quando a gente corre
com a boca aberta começando a pegar na lateral do meu corpo. — Ele não
vai nem conseguir andar direito, mamado do jeito que tá.
Helena levanta a cabeça e olha para mim, uma sobrancelha erguida.
— Sem… ofensa? — acrescento, antes que ela decida sair correndo. Ou
me bater, o que na verdade talvez seja mais provável.
— Bom, você não tá errado — ela diz por fim, e bate a mão no braço de
Hiro. — O que você tá fazendo com esse babaca?
— Eu não sou babaca.
— Eu já te falei que ele é meu vizinho — Hiro diz, sem corrigi-la, e me
sinto ligeiramente traído.
— Sou amigo dele — corrijo, porque por algum motivo quero que aquilo
fique bem claro.
— Não sei como.
— Ei! — Hiro interrompe, se sentando — Não é pra vocês brigarem.
Helena mostra o dedo do meio para mim e eu tenho vontade de revidar,
mas fico quieto porque não quero fazer o Hiro ter um ataque.
— Agora que os príncipes me salvaram da masmorra, pra onde a gente
vai? — ela pergunta, e sobe o capuz para a cabeça.
— Primeiro pra lugar nenhum, porque eu preciso descansar — digo, ainda
ofegante.
— Não perguntei pra você, perguntei pro Hiro.
— Você falou príncipes. No plural.
— A gente vai pra minha casa — Hiro interrompe, alto, antes que a gente
tenha a chance de voltar a brigar. — Se você quiser. A gente pode jogar
videogame. Ou, não sei, acho que tem Ludo lá em casa.
— Ludo?
— Meus pais gostam, ué.
Ele se levanta e limpa a sujeira da calça, depois levanta a bicicleta
também. Helena o imita e eu decido que é melhor fazer a mesma coisa,
mesmo que eu ainda esteja com aquela dor chata do lado do corpo. Hiro
monta na bicicleta dele, eu na minha, e Helena olha para nós.
— Vocês vão de bicicleta?
— É mais rápido — digo, indo para a rua. — Você pode… Não sei, ir
sentada no cano. Do Hiro. — acrescento, porque não quero ela sentada na
minha bicicleta, e seguro uma risada por causa da implicação do que eu
acabei de falar e que eles provavelmente não perceberam, porque afinal de
contas têm doze anos.
— Eu não vou sentar no cano da bicicleta de ninguém.
— Então você vai a pé, pronto.
— Cala a boca, Adriano.
— Meu Deus — Hiro diz, descendo da bicicleta dele e a estendendo para
Helena. — Fica com a minha, eu vou a pé.
— Você não vai a pé — digo, porque é a Helena que está sendo fresca, ela
podia muito bem ir sentada no cano da bicicleta e ficar quieta. Hiro encolhe
os ombros.
— Eu não ligo de ir a pé.
— Hiro, sério. Quer ir sentado no meu cano?
Tento manter a cara séria, porque nenhum dos dois está dando a mínima
para o que eu estou falando, e Hiro suspira.
— Você não vai tombar essa bicicleta?
— Claro que não! — digo, um pouco ultrajado.
Helena, que agora já está montada na bicicleta do Hiro, tem que fazer uma
sugestão estúpida.
— Deixa ele pedalar, Adriano, ele é maior que você.
— Ninguém pediu sua opinião.
Mas, no fundo, ela tem razão. Além disso, acho que o Hiro é mais
habilidoso que eu, e a chance dele deixar a bicicleta tombar é
consideravelmente menor do que se eu pedalar, então desço e estico o
guidão pra ele.
— Sobe você primeiro, eu fico no cano.
Helena dá um sorrisinho, mas eu a ignoro, e Hiro sobe, as pernas
compridas mantendo a bicicleta no lugar.
— Vai, vem.
Ele parece meio cansado e impaciente, então me aproximo e sento de lado
no cano reto da bicicleta, o que é absolutamente desconfortável. Hiro passa
o braço por mim para segurar o guidão e eu tenho certeza de que a gente vai
cair assim que a bicicleta começar a se mexer.
— Cuidado pra não virar o guidão — ele diz, o pé no pedal. — Deixa que
eu viro.
Helena sai na frente e Hiro sai em seguida. Eu levanto os pés do asfalto e
consigo sentir a bicicleta pesada enquanto ele pedala com certa dificuldade,
o guidão meio bambo.
Mas, de alguma forma, funciona.
Depois das primeiras pedaladas a bicicleta está em movimento e fica mais
fácil, e quando olho para Hiro, ele está sorrindo, o cabelo bagunçando com
o vento. Ele faz uma careta engraçadinha pra mim e fico me lembrando da
voz dele naquele telefone, de como… Não sei, senti falta dele esse tempo
todo e nem percebi.
Eu fecho os olhos, suspiro e deixo o vento bater no meu rosto também.
Dessa vez as coisas vão ser diferentes. Têm que ser.
Quando abro os olhos de novo, Hiro está emparelhado com a Helena, as
bicicletas cortando o asfalto, e pode ser só por um segundo, mas tenho a
impressão de ver um sorrisinho brincando nos lábios dela também.

III

— Cansei — digo, depois de perder de novo no Mario Kart graças às


minhas habilidades inexistentes com aquele volantinho estúpido do Hiro.
— O que foi que aconteceu com você? — ele pergunta, quando eu me
jogo na cama dele. — Você era bom, agora só perde.
Pois é.
— Não sei, acho que fiquei burro.
— Você sempre foi burro — Helena diz, meio um sussurro, meio alto o
suficiente para que eu consiga ouvir.
— Cala a boca.
— Só é a verdade.
— Meu Deus, vocês dois! — Hiro diz, escolhendo o personagem, e eu
faço uma careta para Helena porque esse é o tipo de coisa que é aceitável
quando se tem onze anos. Ela pega o volantinho que eu larguei e escolhe o
personagem também, a princesa.
Eles estão prontos para começar quando o telefone toca lá na sala.
— Que horas são? — Hiro pergunta e se levanta em um pulo. — Já é uma
hora?
Olho meu relógio verde gritante.
— Já. Caramba.
— Droga, eu preciso ajudar meus pais a fechar as coisas lá na quitanda. Já
venho, só vou atender o telefone.
Hiro sai e eu fico sozinho no quarto com a Helena, a temperatura
parecendo de repente ter despencado uns dez graus. Me concentro em
observar os pixels da televisão, mas vejo quando ela larga o controle e olha
para mim.
— Não pensa que eu tô te desculpando só porque tô aqui com você.
— Eu não falei nada.
— Mas eu sei que você tá pensando.
— Você não tem como saber o que eu tô pensando.
Ela abre a boca para retrucar, talvez para me xingar, mas a gente ouve os
passos apressados do Hiro no corredor e tudo o que ela faz é estreitar os
olhos para mim.
— Eu preciso ir — ele diz. — Mas vocês podem ficar aí se quiserem.
Helena praticamente pula para ficar de pé.
— Nem em um milhão de anos eu vou ficar aqui com ele.
— Espera — digo, me levantando também, olhando para ela. — O seu pai
ainda tá em casa? Eu não sei… quer dizer, é seguro?
Ela me olha como se eu fosse um doido varrido, e depois olha para Hiro
como se ele fosse a voz da razão entre nós dois.
— Bom, ele tava bravo — ele diz simplesmente, encolhendo os ombros.
— Mas eu preciso mesmo ir.
Helena suspira.
— Se for uma hora ele já saiu.
— Eu te levo pra casa— digo, tentando ser uma pessoa considerada, mas
é claro que a Helena não quer colaborar.
— Não preciso que você me leve pra casa.
— Eu sei que não, que você tem perna e tudo mais, mas tô tentando ser
legal. A gente vai com o Hiro até a quitanda, eu vou com você até a sua
casa depois.
Ela fecha a cara para mim e olha para o Hiro de novo, o que é irritante. Eu
tô bem aqui, bem aqui. Hiro encolhe os ombros, meio impaciente.
— Eu tô indo antes que a minha mãe dê chilique.
E ele simplesmente sai, deixando nós dois plantados no quarto dele.
Helena sai em seguida e eu a acompanho, porque não vou ficar lá dentro
sozinho, e sou obrigado de novo a ir no cano da bicicleta do Hiro só porque
sou o menor de nós três.
A gente volta, e quando chegamos na quitanda, Hiro se despede e se enfia
entre os caixotes, o bichinho virtual dele apitando. Dona Suzuki começa a
falar japonês com ele e eu não entendo uma palavra, mas só pelo tom dá
para saber que é uma bronca. Estou distraído, prestando atenção no que não
devia, só por um segundo, e Helena já começou a andar sozinha pela rua.
— Espera! — digo, empurrando a bicicleta até ela.
— Não vou subir na sua bicicleta.
— A gente pode só ir andando.
Ela não fica feliz, mas fica quieta, o que já é alguma coisa, e é
impressionante como a casa dela fica muito mais longe a pé do que
pedalando. Helena está de novo com o gorro na cabeça e ela anda como se
estivesse se abraçando, como se estivesse congelando.
Eu suspiro e tiro a blusa, mas quando termino e olho para Helena, ela está
horrorizada.
— O que você pensa que tá fazendo?
— Ué, você não tá com frio?
— Não…?
— Você tá toda encolhida!
— Não é frio, seu idiota.
Coloco a blusa de novo, mal-humorado, e continuo a empurrar a bicicleta
sem olhar para ela até nós chegarmos em frente à casa com o mato alto e o
portãozinho meio enferrujado. Tudo estranhamente quieto e vazio.
Ela entra, o portão range, e quando coloca a mão na maçaneta, se vira
para mim. Parece muito o que aconteceu naquela versão de 2019, e sinto
um arrepio.
— Só pra eu entender, por que você decidiu fazer isso?
Ahn?
— Isso o quê?
— Por que você decidiu que vai ser legal? O que você quer provar com
isso?
Que eu não sou um babaca, talvez? Que quem sabe dá pra fazer as coisas
de um jeito diferente? Que eu finalmente estou enxergando o que eu devia
ter visto desde o começo?
— Nada?
Ela suspira e balança a cabeça.
— Eu não sei o que você quer com isso, Adriano, mas eu não sou sua
amiga. Eu não quero ser sua amiga. E também não preciso que você e o
Hiro fiquem me salvando.
Ela abre a porta e eu quero pedir desculpa, quero dizer que não queria ter
feito as coisas que eu fiz, que fui um imbecil, mas que quem sabe ainda dá
tempo de pelo menos começar a consertar as coisas. Mas tudo isso fica
preso na minha garganta e eu não consigo falar nada.
Helena mostra o dedo do meio para mim uma última vez e entra fazendo a
porta bater com força.
SEGUNDA-FEIRA

Àquela altura do campeonato eu já sei fazer as equações de cor e o lápis


praticamente voa na folha enquanto resolvo os exercícios. É reconfortante a
simplicidade daquilo tudo. De só precisar fazer dever de casa e ir para a
escola, e quase consigo esquecer que tenho potencialmente duas vidas para
salvar até o final da semana.
Quando chego na escola e entro na sala, vou direto para minha carteira e
me sento, esperando o Danilo aparecer e pedir o meu caderno de
matemática.
— Não — digo, quando ele pede. O ar vibra, só um pouquinho.
— Quê? Vai, me empresta, eu só quero conferir.
Mentiroso.
— Eu não fiz, esqueci.
Ele me encara, descrença estampada em cada centímetro do seu rosto.
— Você nunca esquece de fazer.
— Pois é, mas eu esqueci hoje.
Ele não parece muito feliz, mas acho que decide que é melhor não perder
muito mais tempo comigo se quiser copiar alguma coisa de alguém antes da
aula começar. Um pouco depois o sinal bate e eu fico olhando para a porta,
porque sei que a Helena vai entrar.
A professora chega primeiro e começa a tirar as coisas da bolsa. Por um
segundo acho que Helena não vai vir, que alguma coisa deu errado, quando
ela de repente entra, passos pesados, mais encolhida que nunca, e desmonta
na primeira carteira sem nem olhar para mim. Sem nem olhar para
ninguém, na verdade.
Eu quero ir até lá, quero perguntar o que aconteceu porque alguma coisa
claramente não está certa, mas a professora começa a falar, mandar a gente
abrir a apostila, mostrar o caderno, e é tanta coisa que eu não consigo.
Fico olhando para ela enquanto a professora se ajeita e coloca a data na
lousa, e assim que ela se vira e bate os olhos em Helena, seus lábios se
comprimem.
— Helena, sem capuz dentro da sala, por favor.
Dá pra ver o corpo dela enrijecer e eu sei que ela não quer. E também sei
o porquê.
— Agora, ou você vai pra diretoria — a professora acrescenta.
Muito lentamente, Helena leva as mãos ao capuz e o abaixa. A professora
é pega de surpresa, só um pouco, e se vira de novo para a lousa, como se
nada tivesse acontecido.
Mas, mesmo a três carteiras de distância, eu consigo ver a mancha
arroxeada que se espalha por toda a mandíbula dela.

II

Quando o sinal para a aula de educação física bate, ao invés de seguir todo
mundo para as quadras, eu vou para o outro lado e paro na secretaria.
Minha cabeça dói, a pressão nos meus ouvidos aumenta, e é só quando seu
Antônio me vê que a pressão diminui. De novo eu sinto o ar vibrar e me
arrepio.
Ele cruza os braços bem na minha frente.
— Aonde você pensa que tá indo, Adriano?
— Preciso falar com alguém na secretaria. A diretora tá aí?
Ele estreita os olhos.
— O que você quer com a diretora? Não tá na hora da sua aula?
— É importante.
— Eu nunca te vi nem perto da secretaria.
— Eu sei. Eu preciso falar com a diretora. Sério.
Acho que o fato de eu nunca, como ele mesmo disse, ter chegado perto da
secretaria é o que o convence de que a coisa deve ser séria, então seu
Antônio praticamente me escolta até lá.
— Senta aí, eu vou avisar — ele diz, me deixando na salinha de espera, a
mesma da última vez. Eu não quero esperar, odeio esperar, e começo a roer
as unhas. Ele avisa que a diretora já vem e me dá um tchauzinho antes de
sair.
Fico lá sentado, as pernas balançando, e roo quase todas as unhas da mão
direita até que ela finalmente me chama.
— Adriano — ela diz com um sorriso. — Você tá bem, tá passando mal?
É claro que aquela é a primeira coisa que ela vai pensar.
— Não. Tô bem. Eu queria… conversar sobre a Helena? A Helena da
minha sala.
Ela respira fundo, talvez meio cansada de ouvir o nome da Helena.
— Entra aqui.
Eu me levanto e entro na sala dela. É uma salinha pequena, uma mesa no
meio com um computador cinza que ocupa espaço demais, prateleiras de
livros pelas paredes. Eu me sento em uma das cadeiras, a outra vazia ao
meu lado.
— Ela fez alguma coisa com você? — a diretora pergunta. É engraçado
que essa seja a primeira coisa que ela pensa, quando normalmente são as
outras crianças que fazem alguma coisa com a Helena.
— Não, mas… eu tô preocupado.
— Preocupado?
Aposto que não é o tipo de coisa que ela ouve dos alunos todos os dias.
— É, com ela. Eu não sei… Hoje ela apareceu com uma marca roxa no
rosto. Bem feia.
— Ela pode ter se metido em uma briga. Ela já se meteu antes.
— Eu sei, mas parece… — não sei se quero fazer acusações, por que e se
ela ficar sabendo dessa conversa? E se o pai dela ficar sabendo? Passo a
língua pelos lábios e engulo em seco. Não dá tempo, eu tenho que fazer
alguma coisa. — É que parece que isso acontece em casa. Ela simplesmente
apareceu assim. A professora de matemática viu, pode perguntar pra ela.
A diretora respira fundo, não parece muito feliz.
— Alguns professores comentaram, e parece que tem ficado pior
ultimamente. Na sexta-feira eu chamei a Helena aqui, mas ela insiste que
não foi nada.
— Mas é o pai dela! — digo, talvez alto demais, me inclinando na
cadeira. — Vocês precisam fazer alguma coisa.
Ela ajeita os óculos, e definitivamente não está feliz.
— Nós estamos tomando as providências necessárias, Adriano — ela diz,
mas eu sei que é exatamente o que as pessoas dizem quando estão
enrolando. Ou quando na verdade não querem fazer alguma coisa. — Você
não precisa se preocupar. Agora acho que é melhor você voltar pra sua aula.
Eu trinco os dentes, não quero sair dali, mas ela me olha com cara de o
que você tá esperando, vai logo, e eu me levanto. Quando saio, seu Antônio
está do lado de fora me esperando.
— Resolveu a emergência?
Fecho a cara.
— Não.
Ele dá risada e me leva até a quadra. Os meninos já estão jogando futebol
e eles acenam para mim quando me veem, menos o Danilo, que parece
meio emburrado por eu não ter deixado ele copiar meu dever. Azar o dele.
Olho para a quadra das meninas e vejo a Helena no canto, capuz na
cabeça, longe de todas as outras. É engraçado que elas continuam jogando
como se ela nem estivesse ali. Não a xingam, não chamam a atenção dela,
nada.
Seu Antônio dá um tapinha nas minhas costas, como se me mandasse ir, e
eu desço os degraus de concreto, mas paro na grade que separa a quadra da
arquibancada, meus dedos no engradado. Helena olha para mim e eu faço
um sinal para ela com a cabeça.
Ela olha para um lado e para o outro, olha para as meninas correndo atrás
da bola, e tira o jaleco vermelho. Eu corro por trás da quadra, e ouço os
passos dela vindo atrás de mim.
— O que foi que deu em você? — ela pergunta quando a gente está do
outro lado das quadras. Com o canto do olho consigo ver os meninos me
observando, mas tento não prestar atenção neles. — Não quero você na
minha cola, Adriano.
— Eu sei — digo, olhando para a professora. Ela ainda não nos viu, mas
pode nos ver a qualquer momento — Quer ir pra quadra coberta?
— Quê? Não.
— A professora vai ver e vai mandar a gente pra diretoria se a gente ficar
aqui parado.
Ela olha para a professora, como se estivesse considerando, e de repente
marcha na direção da quadra coberta.
— Não é porque você tá sugerindo — ela diz, quando eu emparelho. — É
porque senão ela vai ver a gente.
Dou um sorrisinho.
— Aham.
Ela aperta mais o gorro e fica quieta. Tenho que correr de novo para
emparelhar com ela, e quando estamos lado a lado, decido que é hora de
falar.
— Amanhã você vai ter teste pra mudar de faixa no judô, não vai?
— Não é da sua conta.
— Eu também vou.
— Que bom pra você.
— Quer praticar?
Ela se vira de repente e eu quase pulo no lugar de susto.
— Praticar com você?
Giro para um lado e para o outro.
— Não tô vendo mais ninguém aqui que faz judô.
— Engraçadinho.
— É sério. Eu preciso praticar também.
Não acho que ela não tenha passado da outra vez por falta de prática, mas
também não custa. Isso e porque assim pelo menos ela não leva uma bolada
na cabeça. Nem minha nem das meninas.
Helena fica me olhando como se estivesse decidindo se devia ou não até
que finalmente suspira e revira os olhos.
— Eu juro que se alguém vir, Adriano…
— Ninguém vai ver. Me segue.
Passo por ela e a seguro pela manga do moletom. Nós atravessamos a
quadra coberta, que àquela hora está vazia por causa do intervalo, e vamos
para o outro lado, perto dos vestiários.
— Se alguém pegar a gente aqui, aí sim vão pensar que a gente tava
aprontando — ela diz, puxando a manga de volta. — E não me puxa mais
assim.
Levanto as mãos em rendição.
— Vai, vem aqui.
Ela dá um passo hesitante na minha direção, o capuz ainda sobre a cabeça.
Não vai dar para segurar direito com aquele capuz ali.
Muito devagar, levo minhas mãos para as bordas do capuz, quase
encostando em seu rosto. Acho que ela vai dar um passo para trás, que vai
dar um tapa na minha mão ou sei lá, mas ela só fica lá parada, aqueles olhos
escuros me encarando.
— Posso? — pergunto, porque não quero que ela surte.
Helena não responde e eu engulo em seco. Com cuidado, desço o capuz
da cabeça dela, os cabelos curtinhos espetando um pouco com o
movimento.
Ela continua parada, me encarando como se estivesse curiosa e quisesse
colocar fogo em mim ao mesmo tempo. A marca roxa em sua mandíbula
salta na pele pálida e tenho que me esforçar para não ficar encarando.
Filho da puta.
Meus dedos ainda estão em seu capuz, e os subo lentamente para o rosto
dela, quase como se quisesse apagar aquela marca dali, mas antes que eu
faça qualquer movimento mais amplo, Helena segura minha mão com
força.
— Não.
— Eu… desculpa. Foi seu pai, não foi? — pergunto, a mão dela ainda
esmagando a minha. Ela tem a mão gelada e acho que nunca tinha
encostado em mim antes. — Foi por causa de mim e do Hiro?
— Não é da sua conta. — Ela solta minha mão.
— Ele não pode ficar fazendo isso com você.
Ela ri, mas é uma risada vazia, o tipo de risada que normalmente não sai
da boca de crianças.
— Ah, jura?
— É sério, eu… tem alguma coisa que eu posso fazer pra ajudar?
Ela me olha daquele jeito de novo, como se não me reconhecesse.
— Sexta-feira você fica fazendo piadinha na minha cara e agora quer me
ajudar? O que deu em você? — ela começa a se afastar, as mãos no capuz
de novo. — Eu nem devia tá aqui com você, aposto que tem dedo dos seus
amiguinhos.
— Não, Helena!
Mas ela mostra o dedo do meio para mim e sai quadra afora, se
encolhendo de volta para o lado de fora. Vou até a arquibancada e me largo
ali, esfregando o rosto. Vai ser uma longa semana. De novo.

III

Meu pai me leva no shopping à noite, de novo, e nós comemos hambúrguer,


de novo. Ele insiste em ir no fliperama e nós jogamos ice hockey mais uma
vez. Não foi tão vergonhoso quanto antes, porque pelo menos eu sabia o
que devia fazer, mas ainda assim não consegui ganhar dele como eu queria.
Quando voltamos, ele fica assistindo TV na sala e depois que tomo banho
vou para o quarto. A primeira coisa que eu faço é pegar o walkie-talkie.
— Hiro? — chamo. Àquela hora ele deve estar no quarto jogando
videogame ou assistindo alguma coisa. Espero um pouco. — Hiro?
— Oi. Câmbio.
Conto sobre o que aconteceu hoje na escola, sobre o hematoma fresco no
rosto da Helena.
— Você acha que foi por causa da gente? — ele pergunta.
— Só pode ter sido, não tava assim da outra vez.
— Da outra vez?
Ops.
— É uma longa história — respiro fundo. As coisas precisam ser
diferentes. — Acho que a gente precisa conversar.
— A gente tá conversando?
— Não, de verdade. Ao vivo. Escuta, amanhã de manhã eu vou passar na
quitanda pra comprar miojo e você vai estar lá, não vai?
Hiro fica quieto por um segundo, só sua respiração quebrando a estática
do outro lado.
— Como você sabe?
— Como eu disse, é uma longa história. — Fecho os olhos, porque não
tenho certeza se é a coisa certa a se fazer, mas não consigo fazer isso
sozinho. Preciso dele. Agora, depois. Preciso do Hiro. — Hiro, tem uma
coisa que eu preciso te contar.
Ele fica quieto por longos segundos, a estática enchendo meu quarto.
— Aconteceu alguma coisa? — ele finalmente pergunta.
— Não, mas vai acontecer. Amanhã a gente conversa, tá bom? Eu vou
aparecer na quitanda. Câmbio desligo.
Bom, um dos meus problemas está encaminhado. Talvez.
Falta o outro.
Largo o walkie-talkie na cama, e pego o meu relógio verde gritante para
ver a hora. São nove horas, o que nem é tão tarde assim, mas meu pai vai
me mandar dormir daqui a pouco, então é melhor eu ir logo.
Saio do quarto e vou para a sala como quem não quer nada. Meu pai ainda
está com a camisa que ele usou o dia inteiro meio desabotoada, uma latinha
de cerveja na mão que me faz salivar um pouco.
— Olha quem resolveu sair da toca.
— O que você tá assistindo? — pergunto, e vou até o sofá.
— Um filme. Não tem nada de bom passando na TV, só novela. Mas —
ele pega o controle e muda de canal — não acho que é pra você assistir esse
filme, então vamos voltar pra novela.
Era Uma linda mulher, e não sei se tem alguma coisa ali que eu já não
tenha visto na vida, mas prefiro ficar quieto. E também aposto que a novela
não é muito melhor, mas enfim.
Fecho os olhos. Se eu quiser fazer isso, se…
— Foi legal hoje — digo. Ele para, a latinha na boca. — No fliperama.
Ele abaixa a latinha bem devagar, olhando pra mim, talvez querendo
sorrir, mas não sabendo se deve.
— A gente… pode ir lá mais vezes se você quiser — ele diz. — Eu gosto
de passar tempo com você, sabia?
Um nó se forma na minha garganta e é difícil engolir, porque não quero
admitir, mas preciso.
— Eu… também gosto de passar tempo com você.
Ele abre o braço.
— Vem cá.
Eu vou. Escorrego pelo sofá e me encosto nele, seu braço se fechando
firme em volta de mim. Eu quero perguntar, uma parte de mim precisa saber
por que ele foi embora, se ele se arrepende, se ele queria que as coisas
tivessem sido diferentes, se…
— Sua mãe me falou que você vai fazer exame de faixa amanhã — ele
diz, sua voz soando ampliada nos meus ouvidos. — No judô.
— É.
— Faixa amarela?
— É.
— Eu cheguei até a faixa laranja. Já te falei isso?
Não sei, não consigo lembrar.
— Acho que não.
O polegar dele está subindo e descendo pelo meu ombro, e eu subo minha
mão para sua camisa. Para onde a bala o acertou da outra vez, e aperto o
tecido entre os meus dedos. Não dessa vez, não dessa vez.
— Eu cheguei — ele continua. — Eu treinava com o seu sensei, inclusive.
O Naka? Ele continuou e eu não.
Me desencosto dele, porque preciso olhá-lo nos olhos para perguntar.
— Você vai lá amanhã? Pra ver o meu exame?
Eu já sei resposta, sei como foi das outras vezes, mas, quando seus lábios
se espremem em uma linha fina, um pedaço de mim quebra por dentro
mesmo assim.
— Eu tenho uma reunião importante amanhã, não sei…
— Você ia — digo, o nó na garganta voltando a doer. — Antes.
— Antes era diferente, não era—
— Eu sei que era diferente — digo, e me afasto. Não sei por que é tão
difícil falar com ele, por que eu não consigo, por que…
— Dri, filho.
Eu me levanto e vou para o quarto.
— Boa noite, pai.
TERÇA-FEIRA

Depois de duas vezes e de já saber exatamente o que vai cair na prova, eu


não preciso estudar, então pego as moedas que meu pai deixou na
cantoneira e desço para pegar a bicicleta e ir para a quitanda, um bolo no
meu estômago.
Pedalo voando pelas ruas e até desço a descida do apocalipse mais rápido
do que devia, mas pelo menos não caio. Quando chego na quitanda, Hiro
está lá no fundo, sentado em cima do caixote enquanto joga Mario Kart
com o volantinho.
Minha cabeça dói, a pressão nos meus ouvidos começa.
Eu deixo a bicicleta na calçada e entro. Hiro está concentrado de novo, o
corpo comprido meio curvado, os pés nos pedais de plástico. Não falo nada
daquela vez, aceno em silêncio para a dona Suzuki e me sento ao lado dele.
Hiro vira a cabeça só um pouco na minha direção e quase dá um pulo no
lugar.
— Você quer me matar de susto? — ele diz, o kart desgovernado batendo
em tudo na televisão. Então acho que ele se lembra da nossa conversa de
ontem à noite. — Então, o que é que você quer me falar?
Mostro as moedas na minha mão.
— Não aqui dentro, vem comigo.
Hiro olha para a televisão, dá um suspiro e se levanta, deixando o
volantinho em cima do caixote. Passo nas prateleiras, pego um pacote de
miojo e olho para as moedas na minha palma.
É uma ideia estúpida, mas enfim.
— O que é que você tá fazendo? — ele pergunta, quando começo a passar
uma delas de um dedo para o outro. É um pouco mais difícil com a mão
pequena daquele jeito, mas até que faço um trabalho decente o suficiente
para o Hiro parecer impressionado. — Onde você aprendeu a fazer isso?
Coloco a moeda na mão dele.
— É exatamente sobre isso que a gente precisa conversar.
Ele me olha confuso e eu o puxo comigo para fora, o suficiente para a
mãe dele não nos ver e nem ouvir nada.
— Escuta — começo —, se eu te contar uma coisa você vai ter que
prometer que não vai dar chilique.
Não sei se aquela é a melhor estratégia, porque os olhos dele se
arregalam, mas agora já foi e pelo menos eu avisei.
— O que foi que você fez?
— Quê? Nada! Não ainda. Olha… Esse negócio, com a moeda — digo, e
pego a outra moeda de um real do meu bolso. Mostro para ele de novo,
passando-a de um dedo para o outro. — Você já me viu fazer isso antes?
Ele parece completamente perdido.
— Não?
— Exatamente. Eu aprendi isso em 2015.
Ele pisca uma vez, pisca de novo. Olha para a quitanda, como se quisesse
que a dona Suzuki me levasse para o médico mais próximo.
— 2015?
— Eu sei que parece mentira, mas… — encho o pulmão, é agora ou
nunca. — Eu vim de 2019, Hiro. Você pode rir, pode achar que eu tô tirando
com a sua cara, mas é sério. Eu voltei pra essa semana, e sábado eu vou
voltar de novo pra 2019, pro meu corpo adulto, e eu acho que eu tô aqui…
Pra mudar coisas que aconteceram nessa semana.
Hiro fica muito quieto, muito parado, e eu estou preparado para ele rir na
minha cara quando de repente ele estreita os olhos.
— É por isso que você tá estranho?
— Eu não tô estranho.
— Você tá muito estranho. O jeito que você fala, querendo sair com a
Helena… Você nunca falou da Helena pra mim, Dri.
Isso porque ele ainda não me viu bebendo cerveja.
— O problema é justamente a Helena.
Conto para ele o que eu vi nas duas vezes, o que eu fiz das últimas duas
vezes em que estive aqui, esperando que ele revire os olhos e volte para
dentro da quitanda, mas Hiro parece incrivelmente sério e eu me lembro
que ele só tem doze anos, afinal de contas.
— Você não ia inventar isso, ia?
— Você acha que eu ia inventar que o pai da Helena espanca ela?
Ele encolhe os ombros.
— Você já inventou umas coisas antes.
Eu sei, o pior de tudo é que eu sei.
— Porque eu era imbecil, por isso. É sério, eu… eu falei com você em
2019. Por telefone. Você tava morando no Japão, em Tóquio.
Depois de tudo o que eu falei, é isso que o faz arregalar os olhos e perder
um pouco a cor.
— Como você sabe que… meus pais…
— Hiro, se eu não fizer nada essa semana, o meu pai vai morrer, a Helena
vai… não sei, ser mandada pra algum lugar e a gente, eu e você, nunca mais
vamos nos ver na vida. — Coloco a mão nos ombros dele e tenho que olhar
para cima para encará-lo direito. Minha cabeça agora parece que vai
explodir, eu juro que vai explodir. — Eu sei que eu sou um babaca de vez
em quando, eu sei que às vezes eu falo palavrão só pra te irritar, mas foi só
depois de todo esse tempo que eu finalmente percebi como eu sentia sua
falta. Como eu sinto sua falta. Eu não… eu acho que quero você na minha
vida, só isso. Eu te prometi em 2019 que ia ser um amigo melhor, e eu
quero cumprir essa promessa. Você é o meu melhor amigo e eu quero que
continue sendo. Por favor.
Hiro ainda está meio petrificado, os olhos desse tamanho, e parece uma
eternidade inteira até ele finalmente piscar.
— O Adriano que eu conheço nunca ia falar uma coisa dessas — ele diz, e
eu não sei se é um insulto ou um elogio, mas é alguma coisa. Hiro respira
fundo e me encara. — O que é que a gente precisa fazer?

II

Prometo para o Hiro que nós vamos conversar de novo no judô, porque
preciso voltar para a casa, almoçar e me trocar antes de pegar a perua para
ir pra escola.
Quando chego, penso se não devia me esconder no banheiro de novo,
talvez em uma outra cabine daquela vez, mas daí lembro que não posso
ficar de castigo, então não posso me esconder. O que significa que eu
preciso fazer a prova. O que significa que eu preciso dar um jeito do Lucas
não fazer aquela palhaçada com a Helena.
Entro na sala e me sento na minha carteira, no canto, e dessa vez fico bem
quieto. Lucas se aproxima de mim e eu tenho vontade de empurrá-lo para
longe. Da outra vez ele tirou o caderno da minha mão, dessa vez o caderno
está na mochila.
— Que foi? — pergunto, talvez meio ríspido, mas não me importo muito.
— Empresta seu caderno?
— Não…?
— Por favor, eu não estudei.
— Ué, problema seu.
— Por que não? — ele pergunta, e vejo Danilo vindo se juntar a ele
também, o que me faz ter um péssimo pressentimento em relação a isso
tudo.
Eu me levanto, percebendo, de verdade, como Lucas é maior que eu. Quer
dizer, eu sabia, quase todo mundo é maior que eu, mas ele é enorme. E
consideravelmente mais pesado.
— Porque eu sei o que você quer fazer — digo, e agora Danilo está do
lado dele. Não sei por quê, mas tenho a impressão de que eles vão querer
me bater, e se for o caso, não posso revidar porque não quero levar uma
suspensão. Eu não posso levar uma suspensão, não agora. — Eu sei que
você vai querer usar pra colar.
Tudo acontece muito rápido. Eu acho que o Lucas vai me empurrar, mas é
o Danilo quem avança e pega minha mochila, antes que eu possa impedi-lo
e, quando tento fazer alguma coisa, ele já está praticamente do outro lado da
sala, arreganhando minha mochila toda.
Danilo abre o zíper e tudo o que tem lá dentro cai: caderno, apostilas,
estojo, o livro da prova de quinta, uns papéis aleatórios que eu nem sei o
que são.
— Devolve! — grito. Do outro lado da sala, Danilo está rindo, como se
derrubar tudo o que tem dentro da minha mochila fosse de alguma forma
hilário, e é claro que as outras crianças da sala estão rindo junto.
Eu me levanto, pronto para correr até lá e puxar a mochila de volta, mas
Lucas está na minha frente e quando eu tento passar por ele, sou empurrado
de volta para minha carteira.
— O que você tá fazendo? Devolve minha mochila!
— Depois que a gente pegar o seu caderno.
— Qual é o problema de vocês? Por que vocês querem tanto ferrar a
Helena?
Os olhos de Lucas se arregalam e se estreitam em seguida, porque por um
segundo, é como se eu tivesse lido os pensamentos dele.
Pena que é só por um segundo.
— Você tá protegendo ela?
Meu primeiro instinto é falar que não, mas eu mordo a língua, porque eu
meio que estou.
— Deixa ela em paz — é tudo o que eu digo. O sinal bate, e vejo Danilo
enfiar as coisas de volta na minha mochila, tudo de qualquer jeito, menos
meu caderno. Ele joga a mochila na minha direção e eu tenho que desviar a
cabeça para não ser atingido em cheio no rosto.
E ele ri, do outro lado da sala, meu caderno nas mãos. Babaca.
Danilo passa o caderno para o imbecil do Lucas, que o coloca debaixo da
primeira carteira colada na mesa da professora, exatamente como ele tinha
feito da última vez em que eu estive ali. O que será que eles fizeram quando
fiquei no banheiro? Porque a Helena acabou indo para a diretoria do mesmo
jeito.
Tento me levantar para pegar o caderno, mas Lucas me empurra para
minha carteira de novo e a professora chega. Helena vem em seguida, de
novo atrapalhada, e quando me vê sentado na cadeira, minha mochila
largada sobre a carteira, ela parece meio confusa.
Eu vou até ela e a puxo pela mão.
— É melhor você não sentar aí — digo, tentando puxá-la, mas ela puxa a
mão da minha e fica parada no lugar.
— O que você pensa que tá fazendo?
— Vamos lá pro fundo.
— Eu não vou pro fundo com você!
Risadinhas. Porque é claro que eles têm que dar risadinha de tudo, como
se tudo fosse imensamente engraçado.
A professora coloca a mão na cintura e olha para mim e Helena de um
jeito ligeiramente ameaçador.
— Pro lugar, agora. A prova já vai começar.
Olho para Helena, quase implorando que ela vá para o fundo comigo
porque eu sei o que vai acontecer em seguida, mas ela me olha como se
quisesse arrancar minha cabeça com os dentes e se senta naquela primeira
carteira estúpida.
Eu volto para a minha, e Lucas se senta atrás da Helena, exatamente como
eu me lembro, e eu peço silenciosamente para que ele não faça nada. Eu sei
que parece uma coisa insignificante, mas é como uma bolinha de neve que
só aumenta de tamanho com cada coisa que acontece até a Helena ou o pai
dela explodir. Até sábado.
Mas é óbvio que meu pedido silencioso não adianta. Um pouco depois da
professora distribuir as provas, Lucas começa a dar os chutinhos na cadeira
da Helena e ela começa a se incomodar.
Eu sei que ela vai se debruçar mais sobre a prova e sei que a professora
vai perceber. Por mais que eu tente me concentrar, o bolo no meu estômago
e o barulhinho do tênis do Lucas contra a cadeira de Helena não me deixam.
E a professora, que estava corrigindo alguma coisa na carteira dela, levanta
a cabeça.
— O que tá acontecendo, Helena? Lucas?
Helena se endireita de uma vez, como se tivesse levado um choque, e
todos os olhos param nela, tudo de repente tão quieto que consigo ouvir as
batidas do meu coração no meu ouvido.
— Nada — Helena diz, baixinho, e eu sei o que o Lucas vai falar. Fecho
os olhos e suspiro.
Preciso fazer alguma coisa.
— Professora, acho que o Lucas tá tentando colar — digo, antes que ele
possa falar alguma coisa, antes que eu perca a coragem. Bum, a dor de
cabeça explode com tudo no meu crânio e preciso piscar forte para não ficar
zonzo. De repente todos os olhos estão em mim, todos me olhando com
diferentes graus de incredulidade. Lucas, especificamente, me olha como se
tivesse levado um tapa na cara, o que é ótimo, porque é exatamente o que
eu gostaria de ter feito.
A professora olha para ele.
— Lucas?
— Claro que não! — ele diz meio atrapalhado, todo vermelho.
— Ele colocou meu caderno debaixo da carteira dela, professora —
continuo, muito consciente de que posso estar comprando uma briga com
ele, potencialmente com a sala toda, mas a essa altura do campeonato eu
não me importo. A escola termina um dia e eu nunca mais vou ver aquelas
pessoas na minha vida, então que se dane. É incrível como a nossa
perspectiva das coisas muda quando a gente fica mais velho. Ou quando a
gente não tem muito a perder, na verdade. — Pode olhar.
O rosto de Lucas fica ainda mais vermelho, se é que aquilo é possível, e
eu percebo que, aquele tempo todo, Helena não tirou os olhos de mim.
A professora vai até a carteira dela e estende a mão. Helena, meio
distraída, coloca a mão no vão debaixo da carteira e vejo suas sobrancelhas
se erguerem quando ela sente o caderno ali. Ela o puxa e o entrega para a
professora.
— Eu não vi que tava aqui embaixo — ela diz, sem nem conseguir olhar a
professora direto nos olhos. A professora pega o caderno e o mostra para
mim.
— É seu?
Engulo em seco.
— Aham.
— E o que seu caderno tá fazendo debaixo da mesa da Helena?
— O Lucas pegou, sem a minha permissão.
Ela se vira para ele.
— Lucas?
— Não! Foi a Helena, ela—
— Ela chegou depois da professora — digo. Sabe aquela história de
abraçar o capeta? Então. — Não tem como. Foi você e todo mundo viu.
A professora olha para o resto da classe e todo mundo abaixa os olhos,
finge que não é com eles. Mordo a parte de dentro da minha bochecha
quando trinco a mandíbula.
— Lucas, diretoria — ela diz, e o queixo dele cai, como se aquilo fosse de
alguma forma impossível.
— Você vai acreditar nela?
— Não é só nela, é no Adriano também. Anda.
— Não, pergunta pros outros, pergunta…
Mas quando ele olha em volta, as outras crianças estão fingindo que estão
ocupadas com a prova, inclusive Danilo, que foi quem pegou o caderno.
Lucas se levanta, e cada passo dele até a porta parece que faz a classe
tremer. A professora chama o inspetor, o seu Antônio, Deus o abençoe, e
antes de acompanhá-lo pelo corredor ainda vejo Lucas me encarar, a
promessa muda nos olhos dele de que isso não acabou por aqui.
A professora volta e me devolve o caderno, depois vai até a mesa. O ar
todo vibra ao redor de mim, a dor se dissipa.
— Não quero mais um pio — ela diz. — Ou vai ser zero pra todo mundo.
As cabeças se abaixam de novo e um pouco depois o barulho dos lápis
contra o papel volta a encher o ar. Com o canto do olho, vejo Helena
debruçada sobre a prova, mas, como se conseguisse sentir que estou
olhando para ela, ela se vira. É um segundo e um movimento quase
imperceptível, mas vejo sua cabeça assentir na minha direção, talvez um
sinal silencioso de agradecimento.
III

Quando chego no apartamento do meu pai e ele está em casa eu quase acho
que ele decidiu que prefere ver meu exame de faixa do que ir trabalhar até
tarde de novo, mas meu judogui está sobre a mesa e o rosto dele diz tudo.
— Eu vou tentar sair mais cedo — ele diz. — E aí eu passo lá, tá bom?
Acho que consigo pegar seu exame.
Não importa, na verdade, então eu me troco e desço.
Minha mãe me dá a coxinha gordurosa de novo e eu como, porque dessa
vez pelo menos estou com fome. Quando chegamos, ela tira a máquina
fotográfica e a faixa amarela do banco de trás do carro, e ver aquilo me
mata um pouquinho por dentro.
— Você tá bem? — ela pergunta, colocando a mão na minha testa e no
meu pescoço de novo. — Seu pai tá te dando comida? Tô te achando
pálido, Adriano, você perdeu peso?
— Só passaram três dias, mãe.
— Por isso mesmo! Preciso ter uma conversa com o seu pai.
Nós entramos na academia e Hiro está sentado no banco, jogando Game
Boy e, assim que bate o olho em mim, ele desliga o aparelhinho e vem na
minha direção. Ele não espera nem eu chegar perto, e quando passa por
mim me puxa para fora, para o corredor onde ficam os bebedouros.
— Oi…? — digo, sendo arrastado.
— Você vai contar agora?
— Agora não dá porque… — olho para o final do corredor. — Espera, é
seu tio?
Tem alguém de faixa preta agachado, conversando com uma criança que
só pode ser Helena. Não só pelo cabelo, mas porque ela está meio
encurvada, os ombros caídos, como se quisesse que o judogui tivesse bolsos
onde ela pudesse enfiar as mãos.
— Acho que é? — Hiro diz, mas já estou andando na direção deles antes
que ele consiga me puxar de novo. — Dri!
Não dá para ouvir tudo o que eles estão dizendo, mas é o sensei Naka que
está falando, uma mão no ombro da Helena, e quando chego perto o
suficiente, consigo pegar um pedaço da conversa.
—… com ele se você quiser — o sensei diz.
— Não, é melhor não.
— Mas isso não pode continuar acontecendo.
Helena encolhe os ombros, e de novo tenho a impressão de que ela está
desesperadamente procurando por bolsos para colocar as mãos.
— Eu já acostumei.
— Você não devia ter que se acostumar.
Ela vira o rosto na nossa direção e é aí que o sensei Naka percebe que eu e
Hiro estamos no corredor.
— Bisbilhotar é feio — ele diz, ficando de pé. Ele dá um tapinha nas
costas de Helena e vem com ela na nossa direção.
— Eu não tava bisbilhotando — Hiro diz enquanto o sensei o faz dar
meia-volta e, com a mão no ombro dele também, nos leva de volta para o
tatame. Eu caminho ao lado da Helena, e acho que quero dizer alguma
coisa, mas ela não desgruda os olhos dos próprios pés, e o Hiro e o sensei
estão ali do lado, então fico quieto.
O sensei nos solta e vai para a frente do tatame chamar os outros alunos, e
nós nos ajoelhamos em duas fileiras para a saudação. Eu fico atrás do Hiro,
como sempre, e quando olho para o lado, Helena está olhando para mim.
Ela tem olhado bastante para mim ultimamente, como se quisesse ter
certeza de que eu sou eu mesmo, acho.
Encolho os ombros, como se perguntasse o que é que foi, e ela balança a
cabeça. Dá para ver a palavra muda que se forma nos lábios dela. Idiota.
O sensei nos separa em duplas e eu automaticamente vou para perto do
Hiro, mas ele faz que não e aponta pra Helena. O ar vibra.
— Vocês fazem juntos hoje — ele diz. — Quase mesmo tamanho, mesma
faixa. Vai.
Se fosse em qualquer outro momento eu teria ficado ultrajado e talvez
tivesse me recusado a fazer dupla com ela, mas… bom, certas coisas fazem
a gente avaliar nossas prioridades. O que não quer dizer que a Helena vai
aceitar só porque eu aceitei.
— Sensei, não o Adriano — ela resmunga, indo atrás dele, mas o sensei
Naka coloca os dedos nos ouvidos como se não estivesse ouvindo.
— Será que eu ouvi alguém reclamando? — ele diz, formando as outras
duplas. — Nesse tatame? Acho que não.
— Mas eu não gosto dele!
— Ou! — retruco, mas também sou ignorado.
O sensei finalmente se vira, os braços cruzados.
— Se você não gosta dele, é uma ótima chance pra derrubar ele no chão.
— Ou! — repito, mas ele dá risada e me ignora.
Não acho que ele devia ficar incentivando esse tipo de coisa, mas quando
Helena percebe que ele não vai mudar de ideia nem de dupla, ela se vira
para mim.
— Não pensa que só porque você ficou do meu lado hoje na prova que eu
automaticamente gosto de você.
Eu pego no judogui dela, minha mão próxima do hematoma em seu rosto.
— Não é questão de ficar do seu lado — digo, pegando com a outra mão
na manga dela. Ela tem o pulso tão fino. — É questão do que é certo.
Ela estreita os olhos, as mãos firmes no meu judogui também.
— Desde quando você sabe o que é certo?
Abro a boca, mas fecho em seguida, porque ela tem razão, e o sensei se
aproxima de nós.
— O-goshi — ele diz, o golpe que é para a gente treinar.
— Pode ir primeiro — digo, e Helena não perde tempo. No segundo
seguinte ela já está me levantando e me colocando de volta no chão,
encaixando e desencaixando o golpe. — Desculpa — continuo,
aproveitando a oportunidade. — Eu sei que pedir desculpa é meio estúpido,
considerando tudo o que você passou, mas… desculpa. Eu fui um idiota
todo esse tempo, eu sei, mas… Se você quiser… Acho que o que eu quero
dizer é que eu tô do seu lado e… Espera!
Estou no chão, e o barulho que eu fiz quando caí no tatame faz as cabeças
se voltarem na nossa direção, inclusive a do sensei.
— Helena, não precisava ter derrubado ele.
— Você disse que eu podia.
Ele coloca as mãos na cintura, parado, me olhando enquanto eu me
levanto, como se estivesse considerando o que ela disse. Ele finalmente
aponta na nossa direção.
— Vê se não derruba ele de novo.
— Sensei! — protesto, mas ele está rindo, porque aparentemente eu sou
hilário. Talvez ao invés de mágico eu tivesse mais sorte sendo palhaço de
festa infantil.
— Aposto que você mereceu. Mas chega de ficar derrubando. Chega de
conversinha. Vai, sua vez de encaixar os golpes, Adriano.
Ajeito meu judogui e estreito os olhos para a Helena, depois começo a
encaixar os golpes. Ela é leve, bem mais leve que o Hiro.
É quando ela está nas minhas costas, seus pés erguidos do chão, que ouço
sua voz praticamente no meu ouvido.
— Você é um idiota.
Mas ela não fala com raiva, pelo menos parece que não. Eu a coloco no
chão de novo e tento parecer culpado.
— Desculpa. De verdade.
— O que eu falei sobre conversinha? — o sensei Naka fala de novo, e eu
juro que ele deve ter uma audição supersônica. — Vem aqui.
— Ah, não — resmungo, porque sei que ele vai querer me derrubar.
— Regra é regra, vem logo.
Olho para a Helena uma última vez antes de ir até o sensei, e acho que ela
está tentando segurar uma risada. O sensei me pega e encaixa um golpe em
mim, me fazendo praticamente voar de encontro ao tatame.
— Levanta.
Eu levanto. Ele me derruba mais três vezes, e não é como se doesse,
porque cair no tatame não dói de verdade se você souber como cair, mas é
mais uma dor no ego, porque todo mundo fica olhando.
— Agora eu quero mais trabalho e menos conversa.
Volto para Helena e a deixo encaixar o golpe em mim.
— Você mereceu — ela diz, meus pés saindo e voltando para o chão.
— Eu sei. Isso significa que pelo menos eu tô desculpado?
Ela dá uma risadinha.
— Nem em um milhão de anos.

IV

O sensei Naka nos faz treinar imobilizações de novo e eu continuo com


Helena. Ela está claramente desconfortável.
— Quer que eu peço pra mudar de dupla? — pergunto, quando a solto.
Ela fica deitada e eu estou sentado ao seu lado, enrolando para trocar de
lugar com ela.
— O sensei não vai deixar.
— Eu posso insistir.
— Não, tudo bem. Vai, deita logo.
A gente troca, eu deitado e ela sentada.
O sensei se aproxima, com aquela cara de quem está meio impaciente
com a gente.
— Kesa gatame, vai.
Helena encaixa a imobilização em mim e ele ajeita os braços e as pernas
dela do jeito certo.
— Isso, assim ele não vai conseguir escapar.
— Aposto que eu consigo escapar.
— Boa sorte, vai lá.
Eu não consigo escapar. Tento girar de um lado para o outro, tento puxar
meu braço, mas Helena segura com força e sou obrigado a bater no chão
para ela me soltar, porque estou ficando um pouco sem ar.
O sensei abre um sorriso.
— Eu falei.
Quero retrucar, mas se eu fizer isso ele vai me jogar no chão de novo e eu
não estou a fim. Fico deitado meio ofegante e Helena está sentada do meu
lado, parecendo satisfeita consigo mesma. Talvez me torturar desse jeito
seja uma coisa que ela quer fazer há um certo tempo.
Eu me sento, todo suado e ainda ofegante, e ela fica me olhando.
Meus olhos batem naquele hematoma horrível e eu de repente me lembro
de amanhã, de quarta, e do que eu e Hiro vimos da última vez. Ou ouvimos,
na verdade.
Fico meio paralisado, meu coração querendo acelerar. Não posso deixar o
pai da Helena bater nela de novo.
— Ei — Ela bate no meu braço. — Acorda.
Eu pisco forte algumas vezes e tenho uma ideia. Uma ideia meio tonta,
mas ainda assim.
— Quer dormir lá em casa hoje?
Ela me encara do jeito que tem me olhado com bastante frequência
ultimamente: como se eu tivesse ficado completa e irreversivelmente
maluco.
— Não…?
— Eu vou chamar o Hiro também — insisto. Ele ainda não sabe disso,
mas vai saber em breve.
— Não.
— Vai ser divertido! A gente pode ficar jogando videogame e depois a
gente dorme todo mundo na sala — continuo, pensando que meu pai não
faz ideia do convite que eu estou fazendo e que provavelmente vai ter um
ataque quando eu contar. Mas ele meio que me deve uma, não me deve? Por
não parar em casa, por nem vir me ver no judô. Eu posso fazer chantagem
emocional.
— O que foi que deu em você esses dias? Por que você tá tão estranho?
— ela pergunta, e lá na frente do tatame o sensei grita matê pra gente parar.
Ele vem andando bem devagar na nossa direção, braços cruzados.
— Tá bom, chega de conversinha. Acho que é hora de trocar de dupla.
O sensei me coloca com um menino que é claramente mais pesado que eu,
e acho que fez de propósito, enquanto pareia a Helena com o Hiro, o que é
absolutamente injusto. Aposto que ela vai comentar como perdi a cabeça e
o Hiro vai concordar.
— É sério — digo para ela, antes de ser arrastado pela manga pelo sensei
— Eu prometo que vai ser legal.
— Adriano, mais um pio em cima desse tatame e eu vou te derrubar de
novo. O dobro de vezes dessa vez.
É melhor eu calar a boca.

V
O sensei faz o campeonatinho e de novo eu sou colocado para lutar com o
Hiro, exceto que dessa vez ele ganha sem dificuldades, porque eu não estou
exatamente me esforçando, e quando nós vamos para o bebedouro depois
da luta, ele me puxa pela manga do judogui.
— Vai me falar agora?
Eu bebo água e depois limpo a boca na outra manga.
— Eu chamei a Helena para dormir em casa hoje. Quer dormir também?
Na verdade, eu meio que preciso que você durma também, porque de jeito
nenhum ela vai querer ficar sozinha comigo.
Ele parece absolutamente chocado.
— O quê? Por quê?
Olho ao redor, para ter certeza de que não tem ninguém em volta.
— Você sabe que o pai da Helena bate nela — digo, e eu sei que ele sabe.
A verdade é que talvez bater seja a menor das coisas que o pai dela faz. É
um movimento quase imperceptível, mas dá para ver a mandíbula dele se
enrijecer. — Ele vai bater nela amanhã de novo. Eu… eu já passei por isso,
Hiro, e da outra vez a gente foi até a casa dela na quarta-feira. Ele tava
batendo nela. Acontece que ele não vai bater dessa vez porque a gente não
vai deixar.
Hiro muda o peso do corpo de um lado para o outro.
— Dri, ele não vai deixar ela dormir na sua casa. Você ouviu ele domingo.
Se pudesse ele teria batido na gente também.
— Ele vai se os adultos forem até lá. Seu tio, meu pai.
Hiro respira fundo, apreensivo.
— Mas tudo bem se você não puder ir — acrescento rápido. — Eu posso
tentar convencer ela mesmo assim.
— Não — ele diz, respirando fundo. — Tudo bem. Vou falar com o meu
tio.
Eu abro um sorriso, porque juro que ele é uma das pessoas mais corajosas
que eu conheço, sempre fazendo o que é certo mesmo quando está
claramente com medo, e o pego em um abraço meio inesperado. Hiro fica
duro, sem saber o que fazer, e dá tapinhas desajeitados nas minhas costas.
— Não é pra tanto também — ele diz, e eu o solto.
— Eu não consegui das outras vezes — digo. — Porque eu fui idiota,
tentando fazer tudo sozinho. Mas agora eu tenho você pra me ajudar.
Ele dá uma risadinha.
— Não sei se eu sou uma boa ajuda.
Dou um soquinho no ombro dele, só para não perder o hábito.
— Você é um bom amigo. Acho que é o suficiente.

VI

Quando o sensei finalmente chama a Helena para o exame de faixa, eu não


tenho vontade de olhar. Uma parte de mim tem esperança de que ela
consiga, de que alguma coisa, qualquer coisa tenha mudado, mas quando o
sensei pede para ela se levantar, Helena parece extremamente nervosa de pé
ali na frente de todo mundo.
— Ela não era assim antes, né — Hiro diz do meu lado. Ele também está
assistindo como se ver aquilo doesse. — Lembra? Pras outras faixas. Ela
não ficava nervosa assim.
Eu não me lembro, porque acho que nunca reparei, mas acredito nele. É
como se ela quisesse se esconder e eu me pergunto por que então ela vem
para cá. Não parece que ela gosta ou se sente confortável, ainda mais com
todo mundo olhando para ela desse jeito.
O sensei pede para a Helena demonstrar os golpes e ela erra, os mesmos
que da última vez. Talvez se eu devesse ter insistido para a gente praticar
ontem, droga.
É um replay praticamente perfeito e, exatamente como da última vez, o
sensei Naka coloca as mãos no ombro dela e balança a cabeça.
Eu cutuco Hiro do meu lado.
— A Helena vai tentar ir embora, mas você precisa fazer ela ficar.
Ele não questiona, simplesmente se levanta e vai atrás dela quando Helena
sai limpando os olhos na manga do judogui. Em seguida o sensei me
chama.
Eu me levanto e vejo minha mãe fazendo joinha do banco, o que faz
minhas mãos quererem suar um pouco, mas eu as limpo nas calças e olho
pela porta que dá para o corredor. Hiro e Helena estão do lado de fora, os
braços dele ao redor dela enquanto ela chora.
Eu não vou poder abraçá-la, eu sei. Mas talvez tenha outra coisa que eu
possa fazer por ela.
O sensei começa fazendo as perguntas e eu respondo corretamente, mas
quando ele pede para que eu demonstre os golpes, olho para Helena e Hiro
agora sentados na borda do tatame, ela toda encolhida como se quisesse
sumir. Olho para minha mãe, sentada sozinha naquele banco, todo aquele
vazio onde meu pai deveria estar, mas não está.
— Adriano?
Pisco, voltando a encarar o sensei. Ele repete o nome do golpe, eu seguro
o judogui dele e faço errado.
De propósito.
É só por um segundo, mas os olhos dele se estreitam e eu tenho a ligeira
impressão de que ele sabe exatamente o que eu estou fazendo.
Ele pede para eu repetir e eu repito. Errado de novo.
Ele desiste e pede outro golpe, e eu finjo que me confundo, passando a
perna pelo lado errado, colocando minha mão na parte errada das costas
dele. Não olho para a minha mãe, não diretamente, porque ela parece estar
se retorcendo no banco, e é uma eternidade inteira até que o sensei coloca a
mão no meu ombro e balança a cabeça.
É quando minha mãe finalmente entende e fica quieta. Eu vou para o meu
canto, sentado ao lado do Hiro. Helena fica me olhando com o nariz ainda
um pouco vermelho, como se não estivesse entendendo nada, aquele
maldito hematoma manchando o rosto dela.
Eu inclino o corpo por cima do Hiro e mantenho minha voz baixa.
— Então, pensou se quer ir lá em casa?
Ela abre a boca e eu sei que é rápido demais para que ela esteja
concordando, mas Hiro começa a falar antes que ela tenha a chance de me
xingar de idiota.
— Vai, eu vou falar com a minha mãe também. Por favor.
Ela respira fundo e engole em seco, as palavras do Hiro tendo o efeito
nela que as minhas não conseguiram ter. Ela olha para mim e limpa o nariz
na manga.
— Se o Hiro for e sua mãe deixar. Ou seu pai, não sei. Mas não acho que
meu pai vai deixar.
Respiro fundo.
— Seu pai não precisa saber.
— Mas…
— É sério. Do jeito que ele é… até ele perceber…
— Eu não tenho roupa, Adriano.
— Você pode tomar banho em casa, colocar alguma coisa minha. Amanhã
cedo… — Amanhã cedo o pai dela vai estar no bar, pelo menos eu acho que
vai, então é perfeito. — A gente passa na sua casa e pega umas roupas pra
você.
Ela não parece muito convencida.
— Eu não quero colocar roupa sua.
— Bom, do Hiro vai ficar meio grande, não vai?
— Ei, vocês — o sensei chama. — Pelo amor de Deus, venham fazer o
cumprimento pra gente poder terminar a aula, tá bom?
A gente corre e se coloca nas duas filas. Quando o sensei se levanta e
finalmente diz que estamos dispensados, ele me chama.
— Adriano?
Ele faz sinal para que eu me aproxime, no fundo do tatame.
— Hum? — pergunto, e ele se abaixa para ficar da minha altura. Ele
parece mesmo com o Hiro adulto, agora que eu tenho a referência, agora
que ele está tão perto assim. É ligeiramente perturbador.
— No exame mais cedo, por que você errou de propósito?
— Não errei de propósito. Eu só errei, me confundi.
— Adriano.
— É sério.
Ele suspira e pressiona os lábios, claramente não acreditando em mim.
— Eu não queria que a Helena ficasse mal por ser a única a não conseguir
passar no exame — digo por fim, porque não vou conseguir enganá-lo. —
Ela já… passa por coisa demais.
Ele me encara por longos segundos, depois coloca a mão no meu ombro.
— Muito bem, eu vou fazer o seguinte. Semana que vem vocês podem
tentar de novo. Pode ser? E dessa vez eu quero ver vocês dois passando.
Eu faço que sim e ele se levanta, bagunçando meu cabelo.
— Sensei? — chamo. Ele se vira. — Sobre a Helena… Será que você
pode me ajudar a convencer ela a dormir em casa? E convencer os pais do
Hiro a deixarem ele dormir também? Eu… Bom, você viu o pescoço dela.
Tô com medo do que o pai dela pode fazer.
Ele coloca as mãos na cintura sobre a faixa preta e quase dá para ver seu
cérebro tentando decidir o que fazer. Ele finalmente suspira e acena para
mim, e eu o sigo de volta para a porta.
— Esse tempo todo — o sensei diz, a mão no meu ombro de novo —, e
eu nunca imaginei que você se importasse com ela assim.
Sinto minhas bochechas esquentarem, porque é verdade e é péssimo.
— Eu sei — digo. — Mas as coisas mudaram agora.
Minha mãe se levanta parecendo meio perdida com o que aconteceu, não
sei se ela sabe que eu não passei, mas assim que abro a boca para falar que
não foi dessa vez, alguém vem correndo pelo corredor, os passos pesados
apressados, e nós nos viramos para ver quem é.
— Já foi? — meu pai pergunta, parando ofegante bem na nossa frente.
Não acredito que ele veio até aqui.
— Atrasado como sempre — minha mãe diz. — Você leva ele pra casa?
Ele faz que sim, vermelho por ter corrido pela academia inteira. Lá no
tatame, o sensei Naka está conversando com o Hiro e com a Helena.
— Pai — chamo, porque ele ainda não sabe do meu plano brilhante. —
Vem cá.
Eu o pego pelo pulso e o puxo para o lado.
— Dri, desculpa ter chegado atrasado, mas o trânsito—
— Eu preciso de um favor.
Ele parece absolutamente perdido.
— Um favor?
— Pra compensar por você não ter vindo hoje.
— Eu vim hoje.
— Na hora certa — acrescento. — Olha só, eu preciso que você deixe a
Helena e o Hiro dormirem em casa hoje. No apartamento.
Ele franze as sobrancelhas e encolhe os ombros.
— Quem é Helena?
Olho para o tatame, o sensei está conversando com a minha mãe agora, o
Hiro e a Helena ao lado dele.
— Uma amiga — digo.
Ele estreita os olhos, o filho da mãe.
— Uma amiga.
— Pai.
— Só tô perguntando, ué.
— Sério — insisto, porque ele parece estar achando graça nisso. — Você
me deve uma.
Ele me olha de cima abaixo. Estou cansado do jeito que as pessoas olham
para mim.
— Meu Deus, quantos anos você tem, trinta?
Bom.
— Pai.
Ele respira fundo, mas acho que está se sentindo culpado por não ter
vindo, o que é ótimo. Pelo menos isso.
— Tá bom, mas vocês vão ter que acordar cedo amanhã, junto comigo. Os
pais dela sabem?
— Já deixaram — minto. Ele não precisa saber dos detalhes por enquanto,
conto quando a gente estiver em casa. — Será que a gente pode ir agora?
Ele olha uma última vez para a Helena e para o Hiro, lá do outro lado, e
depois suspira.
— Depois dessa é o senhor que vai ficar me devendo uma, ouviu?

VII

Meu pai me chama assim que a Helena fecha a porta do banheiro. A caixa
de esfirras está aberta sobre a mesa, a garrafa de Coca-Cola só com o
fundinho. Dá para ouvir o Hiro jogando no meu quarto, o bichinho virtual
dele apitando.
— Por acaso — meu pai diz, girando o copo vazio. A toalha da mesa
enrola conforme ele faz isso — o fato da Helena estar aqui tem alguma
coisa a ver com aquela marca no rosto dela?
Bom, pelo menos ele tinha tido o bom senso de não falar nada na frente
dela.
Abro a garrafa de Coca-Cola.
— Talvez.
— Os pais dela sabem mesmo que ela tá aqui, Adriano?
Dou um longo gole direto no gargalo.
— Ahn… não. O pai dela não sabe, ela mora com ele.
Acho que ele vai brigar comigo, mas meu pai simplesmente suspira e
esfrega os olhos.
— Tá. E o que é que vocês vão fazer amanhã? Não dá pra ela ficar
escondida aqui pra sempre.
— Eu vou com ela buscar umas roupas, o uniforme. Será que dá pra ela ir
comigo pra escola? Na perua? Só amanhã?
Ele suspira de novo, seus dedos não param de rodar o copo vazio.
— Dri, não é assim que as coisas funcionam. Ela até pode, mas o pai dela
vai acabar indo atrás dela em algum momento, vai na delegacia, sei lá.
Termino de tomar a coca e coloco a garrafa na mesa.
— Ele bate nela, ele não vai na delegacia. Você… você podia denunciar
ele, não sei.
Meu pai respira fundo, esfregando os olhos com mais força.
— A gente vê o que faz amanhã, tá bom? Agora vai lá fazer companhia
pro Hiro.
Eu vou, e quando chego no quarto, Hiro está sentado na minha cama, os
dedos incansáveis nos botões do controle.
— Quer jogar? — ele pergunta, sem tirar os olhos da tela.
Eu me sento ao lado dele.
— Não, pode continuar. Fico te assistindo.
Ele dá de ombros e continua. Um pouco depois Helena sai do banheiro e
aparece no quarto. Ela está usando uma calça de moletom minha que fica
meio curta nas pernas dela e uma camiseta branca que fica meio grande, a
toalha emprestada nas mãos. Ela tenta de todo jeito não fazer contato visual
comigo, as bochechas vermelhas, e quando se senta é na ponta da cama,
bem longe de mim.
— Tá tudo bem? — pergunto, estendendo a mão para a toalha. — Você
precisa de alguma coisa?
Ela me entrega a toalha, ainda sem me encarar.
— Obrigada — ela diz, bem baixinho. — Pela janta e pelo banho e… —
Ela segura a camiseta. — Pela roupa.
Tento dar um sorrisinho.
— Qualquer coisa pra você me odiar menos.
Ela levanta os olhos para mim, só um pouco.
— Eu não sei se… te odeio. Só não gosto de você.
E acho que é a primeira vez que fico feliz por alguém dizer que não gosta
de mim.

VIII

A gente joga meu colchão no meio da sala, porque não cabe todo mundo no
quarto, e ele fica com a Helena, porque é mais confortável que o sofá, e
acho que meu pai está com um pouco de pena dela. Eu e o Hiro, os plebeus,
ficamos com os sofás. Eu no menor, de dois lugares, porque meu pai diz
que eu preciso ser educado, e porque no fim das contas, o Hiro é mais
comprido que eu.
Meu pai apaga as luzes e fecha a cortina da sacada, nos deixando no
escuro. Eu não estou com sono, não de verdade, mas ouço a respiração de
Hiro ir ficando cada vez mais profunda, até que ele adormece, parecendo
uma pedra.
Olho para o colchão no chão, a silhueta de Helena debaixo do cobertor
com as costas viradas para mim, o corpo ainda meio rígido. Ela ainda está
acordada.
— Você tem avós ou algo assim? — pergunto baixinho, mas ela se
encolhe como se tivesse levado um susto antes de se virar. — Você não
devia morar com o seu pai.
— Não é tão simples assim — ela diz, o cobertor puxado até o pescoço.
— Ele bate em você, Helena.
— Não o tempo todo. Às vezes… às vezes ele me segura e me abraça. Ele
me deixou ir na excursão amanhã.
— Não é assim que as coisas funcionam. Esse tipo de coisa… não importa
se é às vezes, não devia ser nunca.
— É só porque ele quer me proteger.
Suspiro, meio impaciente, porque não é possível que ela não enxergue o
que está acontecendo, mas daí eu lembro que ela tem o que? Doze anos? É
claro que ela não vai entender.
— Mesmo assim, se ele bate em você… você devia falar pra alguém. Na
escola, não sei.
Ela dá uma risada sem graça.
— Ninguém precisa ficar sabendo, é problema meu.
— Mas—
— Você não entende, Adriano. Não é ruim o tempo todo, é só às vezes, se
eu faço alguma coisa errada.
— Errada tipo sair com seus amigos? E às vezes já o suficiente.
— Você não é meu amigo, você esquece disso muito rápido.
— Não é essa a questão e você sabe.
Ela bufa e fica quieta. Eu me reviro no sofá.
— O que eu quero dizer — continuo —, é que eu posso te ajudar se você
quiser.
— E o que eu quero dizer é que eu não preciso ficar sendo resgatada.
Muito menos por você. Eu sei… eu sei me virar, me virei esse tempo todo.
Meu Deus, como é teimosa.
— Eu sei — digo, apertando os olhos. — Mas você não precisa ficar
sozinha também.
Ela se vira no colchão, olhando para mim. Diretamente para mim.
— Posso te fazer uma pergunta, Adriano?
— Ahn… pode?
— O que é que tá acontecendo? De verdade? Porque essa historinha de
ser legal não tá colando. O que é que você sabe que eu não sei? O que é que
você quer?
— Helena—
— Se você quer tanto me ajudar, é só falar.
— É que é meio complicado.
— Não perguntei se era complicado, perguntei o que tá acontecendo.
— Você não vai acreditar.
— Tenta.
Respiro fundo, esfregando os olhos. Eu não sei… olho para o teto.
— Se eu disser… que eu sei o que vai acontecer. Que… — ela vai me
xingar, achar que estou zoando dela, certeza. — Que eu… vim de 2019.
Silêncio.
— 2019.
— E eu vi você — acrescento, antes que ela tenha um ataque de fúria. —
Adulta. Você pinta, pelo menos eu acho que pinta, e você continua maior
que eu e… Você tem o cabelo comprido e… — e eu queria poder fazer
alguma coisa, qualquer coisa — e tem alguma coisa nessa semana, Helena,
alguma coisa que… que muda tudo.
Silêncio. Silêncio mortal.
Estou esperando pela risada, estou esperando pelo muito engraçado,
idiota, talvez pelos xingamentos, mas definitivamente não estou esperando
pelo que ela pergunta em seguida.
— Eu tenho cabelo comprido?
Tento não fazer nenhum movimento súbito.
— Hum… aham.
Silêncio de novo.
— Helena? — chamo. — Quer me bater? Pode me bater se você quiser,
mas eu juro que tô falando a verdade e se—
— Não é isso, seu estúpido — ela diz, a voz meio embargada, e dá uma
fungada.
— Meu Deus, você tá chorando?
Eu sou um idiota, um imbecil completo.
Jogo a coberta para longe e saio do sofá para me sentar no colchão ao lado
dela. Ela está cobrindo o rosto com as mãos e eu não sei o que fazer, porque
não sei se devia encostar nela, se devia fazer alguma coisa, se…
— Helena? — chamo, e olho para o outro sofá. Hiro ainda está deitado,
respirando fundo, e acho que fico feliz por ele não estar presenciando esse
momento vergonhoso. — Desculpa, eu não devia ter falado nada.
— E-eu odeio meu cabelo — ela diz, a voz abafada atrás das mãos. —
Odeio que ele é curto.
— É só… você deixar crescer? — arrisco.
Ela balança a cabeça.
— Meu pai não deixa, ele fala que dá muito trabalho e que assim nenhum
menino vai olhar pra mim e eu odeio, odeio, odeio.
E ela volta a chorar.
Merda.
Não sei o que fazer, mas não posso deixá-la chorando aqui porque não
quero que o Hiro acorde, não quero que meu pai acorde. Tento chegar mais
perto, bem devagar, e coloco a mão em seu ombro.
Helena desaba em cima de mim, a cabeça contra o meu peito, seu corpo
magrelo subindo e descendo com o choro. Passo as mãos em volta dos seus
ombros e ela se encolhe mais contra mim, como se tudo o que ela precisasse
esse tempo todo fosse esse abraço.
Ficamos parados daquele jeito por um tempo, até que sua respiração fica
mais controlada e ela se afasta.
— Desculpa — ela diz, limpando o rosto. Está meio escuro e eu não
consigo enxergar os olhos dela direito, mas tiro suas mãos do rosto e a
seguro com as minhas. Ela não tenta as puxar de mim.
— Helena, olha pra mim.
Ela levanta o rosto. Não dá para ver, mas eu sei que aquele hematoma está
ali, me encarando, e tudo o que eu queria era poder fazê-lo desaparecer.
Devagar, levo meus dedos às suas bochechas, limpando as lágrimas que
ainda insistem em cair dos olhos dela.
— Eu prometo que se depender de mim, a partir de hoje você vai poder
fazer o que bem entender com o seu cabelo.
QUARTA-FEIRA

Uma luz forte demais atinge as minhas pálpebras com a delicadeza de um


soco.
— Hora de acordar, molecada.
Quase abro a boca para perguntar em que ano meu pai acha que está para
falar molecada, mas aí lembro que é 97 e que essa provavelmente é uma
expressão perfeitamente aceitável.
Hiro resmunga do outro sofá, e quando se levanta, tem um tufo de cabelo
espetado para cima na cabeça dele.
— Que horas são? — ele pergunta, ainda grogue. Helena puxa a coberta e
se cobre inteira, encolhida no colchão.
— Hora de te levar pra casa, como eu prometi pra sua mãe.
Ele geme, apertando os olhos enquanto olha para a sacada.
— O sol nem nasceu direito.
— Pois é, vai, todo mundo se mexendo.
E ele tem a coragem de começar a bater palmas.
Nós acordamos porque na verdade ninguém tem muita opção, e enquanto
tomamos café (sucrilhos, porque acho que meu pai jura que é só isso que
criança come no café da manhã), Helena não olha para mim. O rosto dela
está meio inchado, mas se mais alguém percebe, ninguém fala nada.
— Helena? — meu pai chama e ela levanta o rosto. O hematoma parece
pior hoje. — Quer que eu te leve pra casa também?
Fico quieto, esperando. Meu pai se senta na mesa, bem na frente dela, e
ela faz que não.
— Eu posso falar com o seu pai se você quiser.
Ela faz que não de novo e ele suspira, então se vira para mim.
— Vou ligar pra perueira do trabalho e avisar que a Helena vai e volta
com você hoje, pode ser?
— Aham. Obrigado.
Ele bagunça o meu cabelo e se levanta.
— Se comportem. Tem dinheiro na cantoneira pra excursão. Pronto aí,
Hiro?
Hiro se levanta com a boca ainda cheia e corre para o quarto se trocar.
Helena fica sentada à mesa, comendo, e quando eles saem ela volta para o
colchão, que ainda está na sala.
— O que você vai fazer? — pergunto, enquanto ela se enrola na coberta.
— Dormir, ainda é cedo.
E ela dorme, por umas duas horas, ou finge que dorme simplesmente
porque não quer ter de lidar comigo. Quando dá umas nove horas eu decido
que preciso acordá-la se a gente quiser ir até a casa dela sem o pai dela
saber.
— Helena? — chamo. Ela se encolhe. — A gente precisa ir buscar as suas
roupas, seu uniforme.
— Meu pai vai me matar.
— Ele não vai estar lá.
— Como é que você sabe?
Engulo em seco. Não tenho certeza, mas pode ser.
— Sabendo, você precisa confiar em mim. Vai, levanta.
Ele levanta, meio mole, e eu vou me trocar. Ela fica com as minhas roupas
e eu empresto um tênis e uma blusa, porque está frio lá fora e ela veio só de
chinelos do judô.
— Você quer ir andando ou quer ir de bicicleta? — pergunto, quando
saímos do elevador. Ela ainda não está olhando para mim.
— Não quero ir na bicicleta com você.
— A gente vai andando, então.
— Mas a bicicleta é mais rápido. Sabe, se a gente precisa sair correndo.
— Você precisa se decidir, então — digo, e ela fecha a cara. — Escuta, se
for por causa de ontem—
— Não quero conversar sobre ontem. Pega a bicicleta, vai.
Bom, que seja.
— Quer pedalar? — pergunto, quando estamos do lado de fora do prédio.
— Não com você no cano.
— Então você vai no cano e eu pedalo.
— Adriano—
— Anda logo.
Ela me olha como se quisesse me fazer entrar em combustão espontânea,
mas monta no cano depois de mim e eu passo os braços em volta dela.
Tenho a impressão de que Helena prende a respiração e eu tento abrir mais
os braços para não encostar nela, mas se fizer isso não vou conseguir guiar
a bicicleta direito.
Dou impulso e ela é mais leve do que eu estava esperando, seus pés quase
esbarrando no chão. Ela segura firme no guidão e é meio difícil de virar de
um lado para o outro.
— Será que você pode só inclinar o corpo um pouco pro lado de lá? Só
pra eu poder enxergar a rua direito.
Ela não parece muito feliz, mas faz o que eu peço, com muito cuidado
para não encostar em mim. Tenho a impressão de que ela não gosta de
encostar em ninguém.
Estou meio sem fôlego quando chegamos no topo da subida do capiroto.
— Essa descida é meio íngreme — ela diz, parecendo segurar o guidão
com mais força. Os dedos dela estão brancos. — Não é melhor eu descer?
— Não, só segura firme e me deixa enxergar. Eu vou devagar.
Helena obedece, o corpo ainda todo rígido, e eu vou controlando os freios
para que a gente não se espatife no chão. Aos poucos, conforme vamos
descendo e acho que ela passa a confiar um pouco mais nas minhas
habilidades, seu corpo relaxa e, quando pego seu rosto de relance, ela está
sorrindo.
— Espera — ela diz de repente, assim que viramos na esquina da casa
dela. — Deixa eu ver se meu pai não tá em casa antes, não quero que ele
veja você.
Eu paro a bicicleta.
— De jeito nenhum eu vou te deixar ir sozinha.
Ela bufa e desce do cano.
— Adriano, você precisa parar de ser teimoso.
— Só sou teimoso quando você faz sugestões estúpidas. — Desço da
bicicleta e a largo na calçada. Começo a andar e Helena me segura. — Quê?
— Meu pai… tem uma arma em casa. Eu não sei… ele pode tentar fazer
alguma coisa com você.
Tento forçar um sorrisinho apesar do bolo no meu estômago, porque eu
sei.
— É impressão minha ou você tá preocupada comigo?
Ela larga meu pulso imediatamente.
— Nem em um milhão de anos. Pode vir se você quiser, se você morrer a
culpa é sua.
Eu vou, porque sei que ele não vai estar lá, e porque no fundo acho que
quero irritá-la um pouco também.
Nós passamos pelo portãozinho enferrujado e atravessamos o quintal de
mato alto. Ela entra sem falar nada e deixa a porta aberta, o que eu
interpreto como um convite, e vou atrás.
É estranho estar ali de novo, pela terceira vez. Eu me lembro da versão
adulta dela sentada no sofá me oferecendo café, e sacudo a cabeça, porque
aquela versão da Helena não existe mais. Pelo menos eu acho que não. Nem
a versão que pulou em cima do pai dela, a versão em que eu… atirei.
Me arrepio todo e pisco forte, indo para o corredor. Tem uma marca
quadrada no chão, igual àquelas entradas que dão para sótãos em filmes,
mas essa provavelmente dá em um porão ou algo assim. Chego perto,
porque quero ver com mais cuidado, mas quando passo pela porta do quarto
da Helena, vejo de novo todos aqueles desenhos nas paredes.
Eu entro sem fazer barulho.
São rostos, vários rostos que eu nunca vi, e o rosto da foto sobre a
mesinha de cabeceira.
Deixo meus olhos correrem com calma pelos traços de cada um deles, e
estou prestes a perguntar se aquela é a mãe dela quando vejo um rosto
familiar.
O meu.
Eu sei por causa do cabelo meio enrolado, das sobrancelhas grossas e por
causa das orelhas que ela definitivamente exagerou um pouco, mas não
tenho dúvida de que sou eu.
Eu me aproximo, meio intrigado, porque esse desenho não estava aqui da
outra vez, eu sei que não estava. Assim que levanto a mão para puxá-lo da
parede, Helena vem correndo e o arranca com um rasgo bem da minha
frente.
— Não era pra você entrar! — ela diz, furiosa. — Fora do meu quarto
agora, Adriano. Agora.
Eu levanto as mãos e saio, mas fico parado no corredor, minhas costas
apoiadas contra a parede. Ela bate a porta e abre um minuto depois.
— Você desenha bem — digo quando a porta se abre, alto pra ela ouvir, e
Helena passa voando por mim, mochila nas costas.
Ela joga minha calça e minha blusa que estava usando em mim com um
pouco de violência demais, talvez desejando que fosse um tijolo ao invés de
tecido.
— Cala a boca e vamos sair logo daqui antes que o meu pai volte.

II

Nós chegamos atrasados de novo por causa do trânsito, e a professora


suspira aliviada quando nos vê. Provavelmente somos os últimos.
— Adriano e Helena — ela diz, como se nós não soubéssemos nossos
próprios nomes, e risca alguma coisa na prancheta. — Finalmente, podem
subir.
Eu deixo a Helena subir primeiro e ela vai, mãos nos bolsos, cabeça baixa.
Como da última vez, ela se senta no primeiro banco, logo atrás do
motorista, e se encolhe ali. Eu olho para o fundo do ônibus, Lucas e Danilo
já de joelho nas poltronas, conversando alto e rindo de coisas que eu não
consigo ouvir, que vou assumir que são estúpidas e seguir com a minha
vida.
Eles me olham e dá para ver que não querem que eu me junte a eles, não
depois do que eu fiz, claro. Mas no fundo percebo, não sem me surpreender
um pouco, que também não quero.
Eu me viro e me sento ao lado da Helena, o que provavelmente vai gerar
conversinhas e fofoca. Mais conversinhas e fofoca. Estou começando a
ficar com pena do meu eu de 1997 depois de sábado, mas ele vai ter que se
virar.
— Você não precisa ficar comigo o tempo todo — ela diz, assim que eu
me ajeito no banco. — Eu consigo me virar daqui pra frente.
— Eu quero ficar aqui.
— Eu duvido muito.
— Bom, se você quiser que eu saia é só falar, eu sento do lado da
professora.
Na verdade, espero muito que ela não me mande sair dali, porque sentar
do lado da professora de novo vai ser péssimo. Helena olha para mim e eu
fico esperando, até que ela finalmente suspira e dá de ombros.
— Tá, tudo bem.
Eu me sento e a professora entra, manda todo mundo se endireitar e
colocar o cinto. Consigo ouvir o pessoal cochichando lá no fundo, dando
risadinha, e eu sei que é de mim. É estúpido, mas fico com vergonha.
Helena me olha de canto de olho, parecendo achar graça naquilo.
— Que foi? — pergunto, tentando manter a voz baixa.
— Não é tão legal assim ficar do outro lado, é?
Cruzo os braços, meio emburrado, o ápice da maturidade. Tudo o que eu
quero é uma cerveja.
— Mimimi.
Helena ri, uma risadinha baixa, mas uma risadinha, e me dá uma
cotovelada que podia ter sido um pouco mais delicada.
— Desculpa. De novo — digo, e ela revira os olhos.
— Você já se desculpou um milhão de vezes.
— Eu sei, mas é porque eu me sinto muito culpado.
Eu estou falando sério, mas acho que sai meio engraçado, porque ela
balança a cabeça e consigo ouvi-la murmurar para o vidro.
— Tonto.
Nós ficamos em silêncio, até que eu coloco a mão no bolso e puxo uma
moeda do dinheiro que meu pai me deu.
— Olha isso aqui — digo, e Helena se vira. Eu começo a passar a moeda
pelos nós dos meus dedos, e ela devia estar impressionada, porque é uma
coisa difícil de fazer, mas ela encolhe os ombros como se não fosse nada
demais.
— Quê?
— Quê? Você tem noção de como é difícil fazer isso?
— Não parece difícil.
— Ah, não? — seguro a moeda pra ela. — Vai lá, então.
Helena pega a moeda como se estivesse extremamente entediada, e assim
que ela tenta passá-la do indicador para o dedo médio, a moeda cai.
Eu abro um sorriso.
— Avisei.
— Cala a boca.
Ela tenta de novo. Dessa vez ela chega no anelar, mas ainda assim, a
moeda cai. Ela tenta mais umas três vezes até ficar frustrada e bater a
moeda na minha perna.
— É estúpido.
Pego a moeda e começo a passá-la pelos meus dedos, só porque eu posso.
— Quer aprender?
— Não.
Levanto a mão até ficar bem na frente do rosto dela.
— Eu sei que você quer.
— Não quero.
— Vai, me dá sua mão.
— Não vou te dar minha mão.
Encolho os ombros.
— Azar o seu, então.
Ela olha para mim e dá um suspiro bem fundo.
— Tá bom. Como faz?
Sorrio de novo e pego sua mão. Ela tem os dedos finos, os nós ossudos
saltados.
— Você segura a moeda com o polegar aqui — digo, colocando a moeda
no lugar — depois abaixa esse dedo e levanta esse. — Mostro o movimento
com a minha própria mão, depois seguro os dedos dela com cuidado e imito
o que acabei de fazer. — Vai lá, faz você.
Ela tenta, e é meio engraçado, porque o movimento é meio
descoordenado, e a moeda cai. Ela olha para mim com os olhos estreitos e
eu tento ficar sério.
— Vai, eu te ajudo de novo.
Coloco a moeda no lugar, entre o polegar dela e o indicador, e vou
fazendo os movimentos, levantando e abaixando os dedos dela até chegar
no mindinho.
— Tadá.
Acho que ela vai zoar de mim ou me xingar do jeito que me xinga, mas
quando levanto o rosto, Helena está olhando para mim com as sobrancelhas
franzidas, como se um problema de matemática tivesse brotado bem no
meio da minha testa.
— O que foi que eu fiz?
Ela pisca uma, duas, três vezes e puxa as mãos das minhas.
— Helena?
Mas ela se vira para a janela e não fala mais comigo pelo resto do
caminho.

III

— Quero todo mundo me seguindo, sem empurra-empurra, sem correria.


O que, de novo, faz com que todo mundo corra e se empurre para descer
do ônibus, e a mesma menina da outra vez tropeça e cai nos degraus porque
alguém a empurrou. Nós fazemos uma fila meio bagunçada e a professora
nos guia para o saguão do planetário, onde recebemos nossos crachás, e
assim que cada um está com seu, a guia gesticula para que nós a sigamos
para a primeira sala.
Eu não estou prestando atenção para onde estou indo, quer dizer, não
estou prestando atenção no chão, e de repente tropeço em alguma coisa e
caio estatelado no chão.
Olho ao meu redor enquanto meu joelho arde, flashbacks do merthiolate
nadando na minha cabeça, e procuro pela coisa na qual eu posso ter
tropeçado, mas não há nada à vista. Claro que não. Lucas e Danilo estão
rindo, lá na frente da fila, olhando para mim.
Babacas.
Eu me sento e vejo uma mão na minha frente.
— Mimimi, vem logo — Helena diz com a mão estendida, muito
claramente zoando de mim.
— Ele colocou o pé pra eu tropeçar! — digo, indignado.
— Eu sei.
— Ele é estúpido!
— E você só descobriu isso agora. Vai, vem.
Eu pego a mão dela e Helena me ajuda a me levantar, o que gera mais
risadinhas, até a professora se virar e olhar para o meu joelho ralado.
— Shhhh! — ela diz, perdendo a paciência. Pobre mulher. — Aconteceu
alguma coisa?
Tenho vontade de dizer que claramente, minha senhora, meu joelho não
ia se ralar sozinho, mas mordo a língua porque não quero uma bronca
naquele momento específico.
— Eu só caí. Tropecei em alguma coisa — digo, não tirando os olhos de
Lucas enquanto falo e ele me mostra o dedo do meio. Eu podia ter mostrado
o dedo do meio também, discretamente, mas prefiro sorrir para ele, porque
sei que vai ser muito mais desconcertante.
— Hum — a professora murmura, depois coloca a mão nas minhas costas,
meio me empurrando para a sala. — Se não foi nada sério é melhor
continuar andando.
Quero culpá-la, mas não posso, porque para falar a verdade eu faria
exatamente a mesma coisa no lugar dela. Continuo andando, torcendo para
aquele arranhão no meu joelho cicatrizar antes que eu chegue em casa e
meu pai decida que usar merthiolate é uma ótima ideia.
A nossa guia apresenta tudo exatamente como da última vez em que eu
estive ali e logo faz sinal para que a gente a siga pelo corredor escuro que
dá nas duas salas de projeção. Eu e Helena já estamos no fim da fila por
causa do meu joelho, e quando todo mundo começa a entrar na sala da
esquerda, eu seguro a blusa dela.
— O que?
— Shhhh, deixa eles entrarem ali.
— É pra gente entrar também.
— Não, vem cá — digo, e quando a fila está praticamente toda dentro de
uma sala, eu a puxo para a outra.
— Adriano!
— Shhhh.
Ela finalmente fica quieta, provavelmente mais porque não quer que
ninguém nos escute do que porque quer fazer o que eu mando, mas já é
alguma coisa e eu consigo puxá-la para a outra sala.
Nós ficamos na escuridão, e assim que a porta da outra sala se fecha, a da
nossa se fecha também.
— O que você tá fazendo? — Helena diz, entre dentes, levemente em
pânico.
— Será que você pode parar de fazer perguntas?
— Não se você não parar de ser idiota.
Engraçadinha.
Eu vou para o meio da sala, o domo escuro acima das nossas cabeças, e
me sento, enquanto Helena me observa meio desconfiada.
— Você vai perder o show — digo.
— Que sh—
As estrelas se acendem na escuridão e dá para ouvir Helena prender a
respiração por um segundo. Os pontinhos acendem e apagam, acendem e
apagam, e sua silhueta vem na minha direção. Sem dizer nada, ela se senta
ao meu lado, os olhos escuros fixos nas luzes, a boca meio aberta.
— Se não fosse as luzes da cidade o céu seria assim o tempo todo — digo,
embora seja uma informação que todo mundo sabe, e que eu nem sei se é
verdade. Acho que Helena vai falar que é lógico e vai me mandar calar a
boca, mas ela fica sentada, olhando para cima.
— É incrível.
Eu me deito, o domo inteiro vazio.
— Há 13,8 bilhões de anos atrás, o universo se formou.
Helena se deita também enquanto a gravação roda, nos explicando sobre o
universo, as estrelas e os planetas, cada luz refletida nos olhos arregalados
dela. Fecho os meus, me lembrando do que aconteceu na outra sala. Não
dessa vez.

IV

Nós ficamos no final da fila de novo quando vamos para o McDonald’s,


primeiro porque eu tive que fingir que nós fomos os últimos a sair da sala
da apresentação, segundo porque eu não queria aguentar as outras crianças
falando alto e dando risadinhas lá na frente.
Nós entramos e os meninos se sentam juntos em uma mesa. Passo por
eles, os olhares dizendo claramente que eu não sou bem-vindo ali.
— Vem — digo para Helena, e nós dois vamos para uma mesa no canto,
aquela em que ela tinha ficado sozinha da última vez, perto do banheiro. A
gente se senta e ela se encolhe um pouco na cadeira, como sempre, seus
olhos inquietos disparando de um lado para o outro, como se estivesse
esperando que alguém nos atacasse a qualquer momento. — Que foi?
— Eu não saio muito — ela diz. — Meu pai…
— Eu sei — digo. Ela não precisa ficar se explicando. — Você quer que
eu compre o lanche pra você? Qual você quer?
Ela encolhe os ombros.
— Não sei.
— Pode ser o mesmo que o meu? Eu vou lá pedir.
Helena acena que sim, ainda meio encolhida, parecendo um animal
encurralado.
Vou até o balcão e peço dois combos do Quarteirão sem cebola, porque
provavelmente é a opção mais segura e vai saber se a Helena gosta de
cebola. Crianças normalmente não gostam de cebola, gostam? Não tenho
certeza.
O lanche demora muito mais que o aceitável para ficar pronto e, o mais
frustrante, é que quando tento reclamar, a professora tem a coragem de me
mandar ficar quieto. Por fim a atendente se desculpa e me deixa escolher
um bichinho do McLanche Feliz completamente grátis, como se aquela
fosse uma compensação fantástica.
— Eles me deram a Birdie! — digo quando volto para a mesa, batendo o
brinquedo sobre o tampo. — Não tiveram nem a coragem de me dar o
Ronald McDonald.
Helena encolhe os ombros enquanto pega uma batata frita.
— Eu gosto da Birdie.
Pego o pacotinho, ainda fechado, e o deslizo pela mesa na direção dela.
— Pode ficar.
Helena pega o pacotinho e o gira entre os dedos, ainda mastigando a
batata.
— Valeu.
Eu me endireito na mesa e mordo o lanche. Tenho certeza de que o
Quarteirão é maior em 1997 do que é em 2019, e não é só porque minhas
mãos estão menores.
Helena guarda a Birdie no bolso da blusa, a etiqueta com seu nome meio
garranchudo descolando, e abre a caixinha do lanche como se não soubesse
muito bem o que está fazendo.
— Faz tempo que eu não como fora — ela diz, estudando o pão. — Nem
lembro o gosto do lanche.
— Seu pai não sai muito com você? — pergunto, embora, na verdade, eu
já saiba a resposta. O pai dela não tem cara de quem gosta de levar a filha
para passear.
— Saía quando a minha mãe tava junto — ela diz, antes de morder, e acho
que é a primeira vez que ela menciona a mãe. Fico quieto, esperando que
ela continue, mas Helena se ocupa em mastigar e tomar refrigerante, como
se não tivesse falado nada demais, até que ela olha para o lanche com uma
certa intensidade. — Isso é bom.
— Isso entope veias.
Helena encolhe os ombros e dá outra mordida
— Eu lembro que minha mãe me trazia no McDonald’s às vezes — ela
continua, olhando uma batata frita como se a estivesse estudando. — Mas
depois que ela foi embora…
Tem um bolo se formando na minha garganta e eu preciso tomar um gole
de refrigerante para fazê-lo descer.
— As coisas mudaram, né?
Helena enfia a batata na boca, mastigando devagar.
— Meu pai mudou. Ele não era assim, mas ele começou a beber. Ficou
meio… você sabe.
Eu duvido um pouco de que o homem não tivesse dado sinais de que não
era exatamente estável, mas por outro lado, não dava para esperar que ela
tivesse percebido. Talvez todo mundo tivesse um interruptor só esperando
para ser ligado ou desligado. Um apertãozinho um pouco forte demais e
click.
Ligado.
Desligado.
— Não tem ninguém com quem você possa morar? Seus avós, não sei —
pergunto, e ela balança a cabeça. Na verdade, estou meio surpreso que ela
esteja respondendo minhas perguntas. Talvez seja a distração da comida.
— Só tenho uma avó, por parte de pai. Eu não sei direito onde ela mora e
meu pai não vai me deixar sair da escola por causa da bolsa. Minha bolsa
termina no fim do ano, então não sei.
Eu não sabia daquilo, claro que não, porque sou um estúpido.
— E pra onde você vai quando sua bolsa acabar?
Ela encolhe os ombros de novo.
— Não sei. Não importa, na verdade. Prefiro não pensar muito nisso.
Ela volta a se ocupar com o lanche, como se já estivesse em paz com
aquilo.
— A gente vai dar um jeito — digo, sem ter muita ideia do que estou
falando, e acho que ela também não acredita muito em mim. Do outro lado
do salão, Lucas se levanta, todo enorme e bamboleante, e eu me pergunto
como seria se ele caísse.
E aí eu percebo que não preciso me contentar só em me perguntar, porque
não é exatamente difícil fazê-lo cair de verdade.
Eu sei, maduro. Mas ele meio que merece.
Espero ele se aproximar, nossa mesa no caminho para o banheiro, e
enquanto ele está ocupado fazendo uma careta estúpida e infantil para nós,
eu discretamente coloco a perna em seu caminho.
É quase câmera lenta.
Ele não cai de uma vez, mas parece que está tentando recobrar o
equilíbrio, o corpo inclinado para frente, até que acho que o corpo desiste e
o peso vence, fazendo com que ele caia de barriga, as mãos estalando no
piso frio.
Há um silêncio, há um gritinho, e depois todo mundo começa a rir até a
professora ajudá-lo a se levantar, porque de jeito nenhum ele consegue ficar
de pé sozinho, não nervoso e afetado assim. Quando ele se levanta, seu
rosto está completamente rosa, os cabelos loiros fazendo um contraste
absurdo com o vermelhão de suas bochechas, e eu espero realmente que ele
fique com alguns hematomas só para parar de ser besta.
Helena olha para mim. Ela sabe que fui eu.
— Eu disse que a gente vai dar um jeito.
Ela sorri, um sorriso mais largo daquela vez, e dou uma mordida satisfeita
no meu lanche. Enquanto isso, Lucas aponta aquele dedo rosa que mais
parece uma salsicha na minha direção.
— Amanhã. No intervalo. Vou tirar esse sorrisinho idiota da sua cara.
Claro, claro que vai.
— Shhhh, vocês dois! — a professora diz, tentando afastá-lo para longe.
— Mais um pio e vão levar advertência.
Lucas odeia advertência, dá para ver na cara dele. Ainda mais depois do
incidente com a cola da prova. Ele se afasta, lívido, e tudo o que eu faço é
dar um sorrisinho e acenar.
Então a gente vai se ver amanhã no intervalo.
Idiota.
V

Eu desço junto com a Helena quando a perua para em frente à casa dela.
— Não precisava — ela diz, mãos enfiadas nos bolsos.
— Eu sei. É só caso ele esteja em casa.
As luzes estão claramente apagadas, mas mesmo assim. Ele pode ter
dormido, pode acordar a hora que ela entrar.
— Bom, você tá entregue — digo. — Se você precisar de alguma coisa…
Não sei, você pode gritar.
Ela ergue as sobrancelhas.
— Por quê, aí você vai vir cavalgando em um cavalo branco pra me
salvar?
— Mais provável em uma bicicleta barulhenta.
— Tonto.
Dou um soquinho no ombro dela igual faço com o Hiro e me afasto.
— Adriano?
Eu me viro, o vento gelado fazendo eu me encolher um pouco.
— Talvez você não seja tão idiota assim.

VI

Espero o apartamento ficar em silêncio à noite para sair da cama. Meu pai
fez o favor de demorar infinito e mais um pouco para ir para o quarto, quase
como se estivesse esperando por alguma coisa. Quando todas as luzes estão
finalmente apagadas e ele já está há algum tempo no quarto dele, eu saio do
meu.
Vou descalço pelo corredor, o chão gelado pra caramba, e entro na
cozinha sem acender a luz. Abro a geladeira. As latinhas de cerveja do meu
pai continuam ali, graças a Deus.
Pego uma e vou para a máquina de lavar, porque acho que desenvolvi um
apego. Eu me sento em cima dela e pego um pano para tentar abafar o som
do anel abrindo. Não dá muito certo, faz barulho e eu fico esperando meu
pai sair do quarto e acender as luzes para ver o que está acontecendo.
Ele não sai, provavelmente dormiu. Não sei o que ia fazer se ele decidisse
sair do quarto, provavelmente ia jogar a latinha no lixo e fingir que vim
beber um copo de leite ou algo assim.
Encosto a cabeça contra o azulejo frio da lavanderia enquanto dou
golinhos na cerveja, no escuro. Não é tão vergonhoso assim depois de um
tempo e o álcool provavelmente vai me dar sono, o que é sempre bom.
Estou na metade da latinha quando a porta do elevador se abre lá no hall.
É estranho, os vizinhos não costumam chegar tarde, mas quem sou eu para
controlar a vida noturna das pessoas, aqui, sentado em cima de uma
máquina de lavar.
O problema é que assim que a porta do elevador fecha, a da minha casa
abre.
Eu congelo no lugar, cerveja ainda dentro da minha boca. Não pode ser
meu pai, ele está dormindo, eu ouvi ele indo pro quarto. Seja quem for, não
quer fazer barulho, e é estranho, porque o porteiro não interfonou.
Continuo quieto, me espremendo contra a parede em cima da máquina
para a pessoa não me ver, e ela fecha a porta do apartamento bem devagar.
Se não estivesse tudo quieto eu provavelmente não teria ouvido os passos
pela sala, depois pelo corredor.
Meu coração está batendo nos meus ouvidos e a pessoa abre a porta do
quarto do meu pai. Eu sei que é do quarto dele porque a porta range um
pouco, e depois se fecha.
Que p…
Assim que tudo fica silencioso de novo eu desço da máquina e jogo a
latinha no lixo, com cerveja e tudo, porque agora não estou mais no clima.
Saio da cozinha e vou bem devagar pelo corredor, tomando cuidado para
não fazer barulho, e quando chego na porta do quarto do meu pai, ouço
vozes do lado de dentro.
Vozes. No plural.
E uma delas é indiscutivelmente uma voz feminina que eu nunca ouvi na
minha vida.
— Ele tá dormindo — meu pai diz baixinho.
— Quando é que você vai me apresentar? — a outra voz pergunta, e
agora meu coração está na minha boca. — Não dá pra gente ficar mantendo
segredo, Giovanni.
Não sei se gosto do jeito como ela fala o nome do meu pai.
— Depois do aniversário dele, tá bom? É melhor, senão é capaz da mãe
dele dar chilique. Agora vem cá.
Eu me afasto da porta, porque tenho a impressão de que sei exatamente o
que vai acontecer dentro daquele quarto, e vou para o meu.
Me jogo na cama, olhando para o teto, e me lembro de terça, quando ele
chegou atrasado no judô, e no domingo, quando ele me deixou em casa e
disse que precisava trabalhar. De domingo. Claro.
QUINTA-FEIRA

Sei que pode parecer estranho considerando a coisa toda, mas eu nunca
briguei na escola. Não de tapa, pelo menos, então não sei como funciona.
— Não acho que os inspetores vão deixar vocês brigarem — Hiro diz no
dia seguinte enquanto estamos nas bicicletas. — Uma vez uma briga
começou na minha escola e eu juro, a tia da cantina saiu correndo e jogou
as meninas que estavam se batendo no ombro. No ombro, Adriano. Como
se ela fosse o Super-Homem ou sei lá.
Bom, duvido que a tia da cantina conseguiria levantar o Lucas, mas
prefiro não mencionar isso. Hiro continua pedalando e para na descida do
capiroto.
— Por que você sempre para aqui em cima? — pergunto, e ele me olha,
confuso por um segundo.
— Eu não paro sempre aqui em cima.
— Das outras vezes que eu voltei você parou. Uma vez eu fui idiota e
desci, me ralei todo. Sua mãe só faltou me dar banho de merthiolate. Sabia
que em 2019 não arde mais? Devia arder, constrói caráter.
Hiro olha para mim, a princípio meio horrorizado, e depois começa a rir,
meio histericamente.
— Quê?
— Quê? — ele diz, até curvado de tanto rir. — Você! Essa versão de você
é mais engraçada.
— A versão tiozona?
— A versão que só fala besteira.
— Merda, você quer dizer. Hiro, merda nem é palavrão de verdade, nem
vem — acrescento, quando ele arregala um pouco os olhos.
— Eu não gosto mesmo assim.
— E eu não gosto de ter onze anos, mas aqui estamos nós.
Ele cruza os braços em cima da bicicleta, uma coisa que ele consegue
fazer por causa das pernas compridas. Se eu tentasse ia deixar a bicicleta
tombar.
— Que foi? — ele pergunta. — O que foi que aconteceu?
— Não aconteceu nada.
— Você tá estranho.
— Você já falou isso umas duzentas vezes, preciso te lembrar que tem
uma pessoa de trinta e três anos presa dentro desse corpo? E que eu
claramente não queria estar aqui?
— Não — ele diz, muito sério. — Não é isso e eu sei. Que que foi?
— Hiro, é coisa de adulto.
— Ah, é? Porque você tá parecendo muito adulto agora.
Quero muito soltar um palavrão, mas fico quieto.
— Problemas com meu pai — admito, meio emburrado.
— Pra variar, né.
Minhas mãos estão suando contra o guidão da bicicleta.
— Deixa pra lá.
— Dri.
Coloco o pé no pedal e dou um impulso de leve com a bicicleta.
— Anda, a gente precisa dar uma passada na casa da Helena.
O Hiro não é burro, ele com certeza sabe que eu estou tentando mudar de
assunto, mas me segue rua abaixo sem dizer nada. A gente passa pela
pracinha, passa pela quitanda, e diminuímos a velocidade quando chegamos
na rua da casa da Helena.
O fusca branco do pai dela está parado em frente ao portão e consigo ver a
janela do quarto dela aberta.
— O que você vai fazer? — Hiro pergunta quando desço da bicicleta e
começo a empurrá-la.
— Ver uma coisa.
— Não acho que é uma boa ideia.
— É rápido.
Deixo a bicicleta na calçada e vou de mansinho até o portão. Não está
fechado, então só o empurro bem devagar e entro. Acho que tem uma
televisão ligada lá dentro.
Atravesso a grama alta e vou para a lateral da casa, onde a janela está
aberta. Eu me aproximo devagar, porque não quero assustar a Helena se ela
estiver lá, e quando consigo olhar para dentro do quarto, ela está deitada
encolhida na cama.
— Helena? — chamo, tentando sussurrar alto o bastante para ela me
ouvir.
Ela se vira com tudo, os olhos arregalados, e joga a coberta para longe.
Ela já está de uniforme, por que ela está de uniforme? Mais que isso,
quando vem na minha direção tem uma marca roxa em seu braço que não
estava ali antes.
Um bolo se forma no meu estômago, eu sabia que não devia ter deixado
ela voltar para casa.
— O que foi que aconteceu?
— Shhhhhh! Você precisa sair daqui.
— Não se você não me contar o que—
— Adriano, é sério — ela diz, os olhos arregalados. — Sai daqui. Não
volta mais na minha casa.
— Eu não vou—
— Helena!
É a voz dele, e Helena fecha os olhos como se o som doesse.
— A gente conversa na escola. Agora vai.
— Não.
Mas ouço passos pesados dentro da casa e ela me empurra com força para
fechar a janela, só uns segundos antes da porta do quarto dela praticamente
ser arrombada.
— Cadê a minh… Com quem você tava falando?
— Com ninguém.
— Eu juro que se forem aqueles moleques de novo, Helena…
— Não era ninguém.
— Porque se for…
Conheço o som que um cinto sendo tirado da calça faz e acho é que
melhor eu ir embora dali. Hiro está me olhando, pálido, do outro lado da
rua.
— Que foi? Ela tá bem? — ele pergunta quando monto na bicicleta e
volto a pedalar. Minhas pernas estão meio trêmulas. — Adriano!
— Não sei, ela disse que a gente ia conversar na escola.
— Eu ouvi o pai dela gritando o nome dela.
— Eu sei.
— Dri?
Resmungo para mostrar que estou ouvindo, mas não paro de pedalar.
— Eu sei que eu não sou adulto nem nada — ele diz, emparelhando
comigo. — E eu também não sei qual é o problema que o seu pai tem,
mas… — Hiro suspira e se vira, os olhos na casa que vai ficando cada vez
menor atrás de nós. — Sei lá, nem todo mundo tem a chance de ter um pai
decente pra conversar.
II

O Hiro não está completamente errado, mas eu também não estou de bom
humor. Além disso, meu pai obviamente não está em casa, porque ele nunca
está, então a nossa potencial conversa vai ter que ficar para mais tarde.
Quando chego na escola e entro na sala, as crianças estão cochichando, e
de repente ficam muito quietas. Claro que ficam, aqueles demônios.
Principalmente o Lucas e o Danilo que, eu tenho certeza, vão direto para o
inferno, lugar de onde eles não deveriam ter saído.
Eles dão risadinha quando eu passo, e só descubro o porquê quando chego
na minha carteira e vejo o que tem desenhado de branquinho na cadeira.
Um pinto.
Porque é claro que tem.
Um pinto anatomicamente errado e meio torto, mas ainda assim.
Agora, esse é o tipo de coisa que eu fazia quando era criança? Talvez.
Eu já dei risada de quando alguém sentou em uma cadeira com um
desenho de pinto na escola? Muito provavelmente.
Mas a questão é que agora tem tanta coisa pior acontecendo na minha
vida que tudo o que eu faço é olhar para aquele desenho malfeito, mostrar o
dedo do meio para Lucas e me sentar com um sorriso no rosto.
Eles param de rir na mesma hora, o que é imensamente satisfatório. Acho
que eles esperavam que eu fosse dar piti ou coisa assim, mas não senhor.
Fico lá sentado, plácido, esperando a professora chegar para eu poder fazer
dupla com a Helena e descobrir que caralhos estava acontecendo mais cedo
na casa dela.
Mas assim que entra na sala, Helena não quer nem olhar na minha cara.
Puxo a carteira para encostar na dela de qualquer jeito.
— Vai me contar o que foi que aconteceu mais cedo? Ele bateu em você
de novo?
Ela afasta a cadeira de mim.
— Eu não posso mais falar com você.
Quê?
— Quê?
— Não posso.
— Como não pode? Ontem—
— Ontem — ela me corta — não vai acontecer de novo. Você tem que
ficar longe de mim. Vai fazer dupla com outra pessoa.
Dou uma risadinha nervosa. Ultimamente nem o mentiroso do meu pai
manda em mim desse jeito.
— Eu não quero fazer dupla com outra pessoa.
— E eu não quero fazer dupla com você.
— Adriano, Helena? — a professora chama, daquele jeito meio
impaciente. — Algum problema?
— Eu não quero fazer a prova com ele — Helena diz, a carteira dela ainda
a um palmo da minha.
— Bom, infelizmente acho que ele é a única pessoa disponível.
Eu poderia beijar a professora.
Helena solta a respiração muito devagar, sem me olhar, e quando a
professora distribui as provas ela pega a nossa e se debruça sobre ela.
— Você precisa de ajuda? — pergunto, e ela não responde. — Vou
assumir que não.
Fico sentado com o queixo nas mãos enquanto ela faz tudo, até que de
repente Helena se levanta, coloca a prova em cima da mesa da professora e
bate a mão na minha carteira. Eu pulo com o susto e quando ela levanta a
mão, é a moeda que dei para ela ontem no ônibus, a que ela ficou tentando
passar pelos dedos.
— Helena?
Ela tropeça na mochila na hora de sair, esbarra no caderno e ele cai, o
desenho que estava ali no meio ficando exposto. O desenho do meu rosto, o
que ela rasgou da parede, mas pelo menos dessa vez pelo menos eu pareço
vivo nele.
Ela para, olha para o desenho, olha para mim e sai.
Sei que é uma ideia estúpida ir atrás dela, principalmente por causa do
Lucas e da coisa toda da briga, mas quando olho para ele, Lucas está
encarando a folha furiosamente como se as respostas pudessem se
materializar ali a qualquer momento.
Não acho que ele vai acabar tão cedo. Pego a moeda e guardo de volta no
estojo dela.
— Helena! — chamo, assim que saio da sala, mas ela já está indo pátio
afora na direção das quadras. — Helena!
Já estou quase nos seus calcanhares quando ela se vira de repente e eu
paro.
Ela vem na minha direção, devagar, os olhos vermelhos.
— Eu não posso ficar andando mais com você — ela diz, a voz meio
rouca. — Nem com você e nem com o Hiro.
— Mas…
Ela sacode a cabeça, as mãos fechadas em punhos.
— Eu… não sei o que deu em você, Adriano, mas… É melhor você ficar
longe de mim. Acho que não quero que você se machuque.
— Eu não vou—
— Você vai se machucar. Eu sei que vai.

III
Depois da prova a professora de português dá aula com a gente ainda em
dupla, o que é um erro, porque nenhuma criança tem a capacidade de ficar
quieta quando está em dupla, e acho que em algum momento vi uma veia
saltar em sua testa.
Bom, todo mundo menos eu. Helena conseguiu puxar a carteira para
longe de mim e agora ela está meio deslocada, no meio do corredor, o
espaço vazio entre a gente me deixando desconfortável.
O sinal para o intervalo bate e eu tomo um susto, do tipo que me faz dar
um pulinho na cadeira. Com o canto do olho, porque não quero que ele
perceba, consigo ver Lucas se levantando e praticamente sair correndo. Ele
para bem do lado da minha carteira.
— É melhor você sair, porque senão você vai se arrepender.
Mimimi.
Ele faz o que deve ser uma careta ameaçadora e sai da sala. Helena se
levanta e dá um suspiro cansado.
— Ele vai quebrar você no meio.
Cruzo os braços e a encaro.
— Acho que eu consigo aguentar.
Ela dá de ombros e sai. Maravilha.
Seu Antônio aparece na porta, sempre o seu Antônio na minha vida, Deus
o abençoe, e bate com os dedos na madeira do batente.
— Pra fora, Adriano, preciso fechar a sala.
Pensando bem, não sei se consigo aguentar.
— Não posso passar o intervalo aqui? Só hoje?
Ele respira fundo e bate os dedos no batente de novo. Pobre homem,
tendo que lidar com crianças histéricas todos os dias, eu teria ficado
maluco.
— Não.
Merda.
Saio e fico parado no corredor enquanto seu Antônio fecha a porta,
olhando em volta, procurando pelo Lucas. Quer dizer, ele não é exatamente
difícil de enxergar, e não consigo vê-lo naquele lado do pátio, então julgo
que é seguro sair.
Não vou para lugar nenhum porque não sou idiota, fico bem quieto no
pátio que fica em frente à sala enquanto a maioria das crianças está
correndo e gritando. Eu encosto na parede e fico ali, determinado a não me
mexer por vinte minutos até o sinal tocar de novo.
Isso é, até o momento que eu percebo que preciso ir no banheiro
desesperadamente e que não vai dar para segurar.
Tenho que desviar de dois meninos correndo e quase tropeço nas pernas
esticadas de um grupinho de meninas que estão sentadas no corredor
estreito, mas finalmente consigo entrar.
E, bom, me arrependo instantaneamente.
— Sabia que você ia vir aqui, seu nanico.
Suspiro e tento voltar para trás bem lentamente, como se com movimentos
sutis ele não fosse conseguir perceber o que eu estou tentando fazer.
— Se eu ganhasse um centavo—
— Cala a boca!
Ele me puxa e me joga com tudo para o lado. Meu corpo vai de encontro
com a pia, uma dor aguda subindo pelas minhas costelas. Provavelmente
vou ficar com um roxo ali.
— Quero ver você me derrubar agora — ele diz, chegando perto de mim.
Lucas me segura pela blusa e me empurra para o outro lado, me batendo
contra a porta fechada de uma das cabines. A porta abre, eu me desequilibro
e caio, e logo depois ele chuta minhas pernas.
— Você não vai falar nada? — ele insiste, mais um chute. Aquele pega
bem no meu joelho e dói, um gemido escapa da minha boca. Lucas parece
gostar daquilo. Eu puxo as pernas para mais junto de mim, minha cabeça
perigosamente perto do vaso sanitário, e ouço vozes entrando no banheiro.
Lucas se vira. — Pra fora, ninguém entra!
As vozes param de repente e eu aproveito para me levantar e sair da
cabine. Eu não quero bater nele, embora ele mereça, porque não quero
problemas. Eu só preciso que alguém apareça e conte para o seu Antônio,
porque tenho certeza de que ele vai adorar puxar alguém pela orelha até a
diretoria
Lucas se volta para mim e parece surpreso por eu estar de pé, gotinhas de
suor já se acumulando nas têmporas vermelhas dele. Ele investe contra mim
de novo, mas não é tão rápido quanto acha que é e eu consigo me esquivar.
Corro para a porta, mas dou de cara com Danilo, que me empurra de volta
para dentro.
— Que porra é essa? — resmungo, mas antes que consiga fazer qualquer
outra coisa, algo bate com força contra minha orelha e mandíbula, algo que
eu tenho certeza ser um murro do Lucas, e tudo sai da horizontal. Eu caio,
desequilibrado, um zumbido no ouvido como se minha cabeça fosse um
sino badalando sem parar, o gosto metálico do sangue enchendo a minha
boca.
Tento me levantar, mas meu equilíbrio está uma merda, e Lucas me chuta
no estômago. Eu me encolho e tento me proteger do chute seguinte que com
certeza vai vir, quando escuto uma correria no corredor.
— O que é que tá acontecendo aqui?
É a voz do seu Antônio, mas poderia ser o canto de um anjo.
Ouso me desencolher e olhar para a porta, seu Antônio, em toda sua
glória, mãos na cintura, e eu nunca fiquei tão feliz em vê-lo na minha vida.
Espero que ele esteja bem em 2019. Talvez eu devesse fazer uma visita.
— Adriano? — ele pergunta e eu dou um gemido de dor meio exagerado,
o que nem é tão difícil assim, porque o chute do Lucas doeu pra caramba.
— Meu Deus, menino, você tá bem? O que foi que ele fez?
Levanto os olhos e vejo alguém tentando espreitar do corredor, alguém de
cabelo preto e capuz na cabeça.
— Ele me bateu — digo, e quando fico de pé tenho vontade de vomitar.
Meu estômago se revira e eu tento segurar, colocar a mão na frente, mas
antes que eu consiga, um jato de vômito escapa da minha boca e acerta as
pernas do Lucas em cheio. Ele dá um gritinho que eu nunca vou esquecer
na vida e seu Antônio o puxa pelo braço.
— Você vem comigo, você — ele aponta para mim — fica quieto aí que
eu já venho.
Me apoio na pia, meio ofegante, a garganta ainda queimando e o cheiro
horrível do vômito fazendo meu nariz arder. Quando olho para a porta,
Helena está espantando as outras crianças que devem estar curiosas para
saber o que aconteceu, e preciso admitir que ela está fazendo um trabalho
admirável.
— Todo mundo deve morrer de medo de você — digo, tentando me
endireitar. Helena grunhe para um menino que deve ter uns oito anos e ele
sai correndo. Depois, se vira na minha direção.
— Eu falei que ele ia te quebrar no meio.
Mostro o dedo do meio para ela e ela retribui o gesto. Ouço os passos do
seu Antônio no corredor de novo e me jogo no chão para um efeito
dramático. Helena o deixa entrar e desaparece no corredor.
— Você consegue levantar? — seu Antônio pergunta.
Consigo, porque afinal de contas eu estava de pé um minuto atrás, mas
quando me levanto, estou meio bambo. Ele me espera passar pelo vômito
para me amparar, mas não posso culpá-lo, porque eu também faria a mesma
coisa.
— Ele te machucou? — ele pergunta, colocando a mão nos meus ombros.
Eu explico o que aconteceu. — Meu Deus, vou te deixar na secretaria.
Acho que podem ligar pros seus pais virem te buscar.
Claro.
— Não vai adiantar, minha mãe trabalha em outra cidade e meu pai não
vai sair do trabalho pra me buscar no meio da tarde.
Seu Antônio me olha com as sobrancelhas erguidas.
— Vou sugerir que liguem pra ele mesmo assim.
É uma caminhada curta, do banheiro até a secretaria, mas zonzo e com o
abdômen todo doendo parece uma maratona inteira.
Sou levado para aquela mesma salinha de espera que vem me vendo
muito nos últimos dias. Dá para ouvir vozes dentro da sala da diretora, e
uns dez minutos depois, Lucas sai de lá de dentro, vermelho e chorando.
Ele passa por mim, mãos fechadas em punhos, e tudo o que eu faço é
acenar com um sorriso no rosto, esperando que meus dentes ainda estejam
manchados de sangue. Duvido que ele vai tentar mexer comigo de novo,
ninguém tenta mexer com a criança psicopata.
A escola não tem enfermaria, então a secretária me mostra o banheirinho
para eu lavar a boca e quando ela pergunta se eu tomo algum remédio, eu
peço uma dipirona. Ela me olha meio estranho, mas volta com um
comprimido que pode muito bem não ser dipirona, mas prefiro confiar nela.
— Posso voltar pra sala? — pergunto, e depois de me fazer conversar com
a diretora, elas decidem que sim. Lucas não está na sala, o que é uma boa
notícia, mas minha barriga dói, a gola da minha camisa está manchada de
sangue e estou tentando ignorar todo mundo por nem sei quanto tempo,
quando seu Antônio bate na porta. Ele fala alguma coisa com a professora e
ela olha para mim.
— Adriano, seu pai veio te buscar.
Fico parado na carteira, porque só pode ter alguma coisa errada. Meu pai
nunca, jamais, em hipótese alguma, sairia do trabalho fora do horário para
me buscar na escola. Ele não tem coragem nem de aparecer na hora certa no
judô, mente na minha cara sobre a suposta namorada que ele tem.
Quando percebe que eu não estou me mexendo, a professora faz sinal para
eu me apressar.
— Anda, vai.
Eu começo a recolher as coisas meio desajeitado e jogo tudo de qualquer
jeito na mochila. Quando me levanto, a sala inteira olha para mim como se
não estivessem entendendo nada, e tudo o que eu consigo fazer é me
encolher e sair, porque eu também não estou.
Ando pelo corredor, não com a mochila nas costas, mas segurando-a
contra o peito, de repente me sentindo como se eu tivesse mesmo onze
anos. Eu viro o corredor que dá para a entrada e meu pai está lá, de pé,
andando de um lado para o outro impaciente, sempre impaciente. Sei que
assim que ele colocar os olhos em mim ele vai brigar comigo, porque como
eu tive coragem de brigar na escola bem na semana que eu estou na casa
dele, e ainda por cima fiz ele sair mais cedo do trabalho e—
— Dri! — ele diz, vindo correndo na minha direção, e eu fecho os olhos
com força como se ele fosse me dar um tapa bem ali. Ele nunca me bateu,
eu não sei por que faço isso, mas quando o tapa não vem eu abro os olhos,
bem devagar. Ele está ali, parado, me olhando como se eu tivesse dado um
tapa na cara dele.
Nós nos encaramos por um segundo e meu pai me pega em um abraço.
Não lembro quando foi a última vez que ele me deu um abraço, não assim
apertado, e acho que é isso que me quebra, como se houvesse uma corda
esticada demais dentro de mim que finalmente se rompe.
Tem muita coisa acontecendo e acho que transbordo.
Eu largo a mochila no chão e começo a chorar, as mãos no rosto, e eu
também não sei quando foi a última vez que eu chorei desse jeito, de soluço
e tudo. Ele de repente me afasta, os olhos, os meus olhos, me examinando
como se estivesse procurando por alguma ferida fatal.
— Dri, você tá bem? Ele te machucou? Da onde é esse sangue?
São perguntas demais e eu não quero responder, nem consigo responder,
então tudo o que eu faço é tentar segurar o choro e falar que tá tudo bem,
que eu quero ir embora.
Ele me pega pela mão, uma coisa com a qual eu devia ficar horrorizado,
mas tudo o que eu faço é apertar sua mão de volta, minha cabeça toda
doendo, a rua toda embaçada.
Só consigo me acalmar quando entro no carro, meu peito subindo e
descendo muito forte, todo trêmulo. Meu pai entra do lado do motorista,
mas não liga o carro.
— O que foi que aconteceu? — ele pergunta, o corpo todo virado para
mim. Nunca vi tanta preocupação no rosto dele.
Respiro fundo uma, duas, três vezes.
Não sei direito o que é, se é a maluquice de voltar para 1997 que
finalmente está me afetando, se foi o fato de tê-lo visto morrer de novo há
tão pouco tempo atrás, de só fazer merda, de nada nunca dar certo, de…
— Meu Deus — ele insiste, quando eu não paro de chorar, a mão no meu
rosto —, o que foi que aconteceu, filho, esse sangue é seu? Tá doendo?
Você não sabe o escândalo que eu dei dentro daquela escola quando—
— Por quê?
— Ahn? Por que eu dei escândalo?
— Não, pai por que você foi embora! — eu grito, a garganta arranhando,
e empurro a mão dele pra longe. Os vidros do carro estão fechados e
começam a embaçar — Por que… Por que você me largou com a mãe?
Quando levanto os olhos para encará-lo ele está de boca aberta, o corpo
inclinado para trás.
— Adriano, eu não larguei você.
— Você foi embora!
— Eu moro a quinze minutos da casa da sua mãe.
— Nossa casa, pai, nossa casa. Pelo menos era nossa casa.
— Dri… — ele estende a mão para mim de novo, mas eu me encolho e
ele se retrai como se tivesse levado um choque.
— O que foi que eu fiz pra você ir embora — digo, baixinho, com medo
de ser uma pergunta. Com medo do que ele vai responder.
Ele ri, uma risada meio vazia de quem não está acreditando no que está
ouvindo.
— Pelo amor de Deus, Adriano, você não fez nada. Tudo isso não tem
nada a ver com você, é entre a sua mãe e eu.
Balanço a cabeça.
— Você tá sempre ocupado, nunca tá em casa. Você nem me leva no judô,
pai, e você fica…. você… é como se eu nem existisse na sua casa, e eu sei
que você tá escondendo uma namorada de mim, você acha que eu sou
imbecil?
— Do que…?
— A mãe sabe? Há quanto tempo você tá com ela? Foi por isso que…?
Ele respira fundo, esfregando os olhos do mesmo jeito que eu faço. Eu sei
que é uma pergunta estúpida, sei que no fundo eu tenho mais de trinta anos
estou agindo como se tivesse mesmo onze, como se não entendesse, mas
acho que só quero ouvir da boca dele, que eu queria ter ouvido quando era
criança de verdade, e só quero que ele fale que a culpa não é minha, que…
que se tudo não tivesse dado errado essa semana as coisas podiam ter sido
diferentes.
— Adriano — ele me segura, segura meus ombros, seu rosto na altura do
meu, e então me puxa para si. Eu não quero, mas ao mesmo tempo acho que
preciso dele, e enquanto minha cabeça descansa em seu peito eu começo a
chorar de novo porque sou idiota e estúpido. — Filho, eu amo você. Eu
juro, eu… olha pra mim.
Não quero, não quero olhar para ele, mas sinto seus dedos no meu queixo
e sou obrigado a encará-lo. Até a falha na barba abaixo do nariz eu tenho e
nem sabia. Não tive tempo de saber.
— Me desculpa. Me desculpa se eu não… fui sincero com você, mas é
porque eu não sabia se era o momento certo, não com o seu aniversário
chegando. Desculpa se eu não tenho passado muito tempo com você, mas
eu sempre achei… você é tão quieto, você fica tão na sua e… A gente pode
passar mais tempo juntos, se você quiser. Eu não sabia… Desculpa?
Eu fungo, meu rosto uma bagunça, mas faço que sim, só um pouco, só o
suficiente para ele ver, para eu saber. Seus olhos escuros ainda estão nos
meus, e parecem meio cheios d’água também.
— Eu nunca vou abandonar, entendeu? Nunca. Você nunca vai estar
sozinho, porque a gente pode não estar na mesma casa, pode não estar no
mesmo lugar, mas isso não significa que eu te amo menos e você precisa
acreditar em mim. E não importa quem entre por aquela porta… Dri, você é
insubstituível. O pior dia da minha vida foi quando eu tive que passar a
primeira noite longe de você, eu mal consegui dormir, chorei a madrugada
inteira me perguntando se tinha feito a coisa certa.
— E-então por que…—
Ele passa o polegar pelas minhas bochechas, tirando mais lágrimas dali.
— Porque as coisas não são tão simples assim. Porque às vezes a gente
não acerta de primeira, nem de segunda, nem de terceira. Às vezes as coisas
não funcionam como a gente espera, Dri, e a gente precisa seguir em frente.
Engulo o nó que está na minha garganta fazendo tudo doer.
Meu pai se aproxima de mim e dá um beijo na minha testa.
— Eu amo você. Ouviu? E nada no mundo vai mudar isso.
Ele me solta devagar, as mãos de volta no volante.
— Vamos pra casa? Eu peço pizza pra gente comer, pode ser? Você ainda
gosta de pizza?
Faço que sim, limpando os olhos na manga. Ele dá a partida, o motor de
repente alto demais nos meus ouvidos.
— Pai? — chamo, e ele se vira para mim, praticamente a imagem do
homem que eu sou daqui a vinte anos. Respiro fundo. Acho que nunca disse
isso em voz alta. — Eu amo você também.

IV

Eu nem gosto de futebol, mas quando meu pai pergunta se eu quero assistir
ao jogo com ele na sala enquanto a gente come pizza, eu falo que sim.
— Pai?
Ele para, a pizza a caminho da boca, a latinha de cerveja na outra mão.
Acho que meu gosto por cerveja veio dele, no fim das contas.
— Você não respondeu a minha pergunta.
— Que pergunta?
— Se foi por causa dessa sua namorada que… você e a mãe…
Ele abaixa a pizza, o queijo meio derretido pendendo para um dos lados.
— Não. Eu respeito a sua mãe, sempre respeitei. — Ele se vira para mim
no sofá. — Eu sei que você quer um motivo, mas às vezes… as coisas
simplesmente não dão certo. Às vezes as pessoas mudam. E às vezes mudar
é bom, se dar um chance pra começar de novo é bom. Uma experiência não
invalida a outra, a gente sempre aprende alguma coisa.
— Mas—
— Nada é perfeito, Dri. Nem ninguém. A gente erra, a gente acerta… E
sabe de uma coisa? Se fosse pra fazer tudo de novo, eu faria, exatamente do
mesmo jeito.
— Exatamente?
Ele para, como se estivesse considerando.
— Bom, talvez não exatamente. Talvez eu mudasse uma coisinha ou
outra. É diferente quando a gente tem a perspectiva do que já aconteceu.
Por exemplo — ele levanta a latinha —, eu devia ter comprado mais um
fardo, porque a cerveja parece que tá desaparecendo da geladeira.
Mordo minha pizza e fico quieto.
SEXTA-FEIRA

Quando acordo e saio do quarto dou de cara com meu pai de pijama na sala.
— O que você tá fazendo aqui? — pergunto, piscando os olhos com força.
Ele está com uma caneca de café na mão, o perfume da fumaça fazendo
meu estômago roncar. É a primeira vez que tem café nessa casa na semana
inteira. Nas três semanas inteiras em que eu estive preso aqui.
— Tirei o dia de folga.
— Tirou o dia de folga?
Ele fica com as bochechas meio vermelhas.
— Eu liguei e falei que não estava me sentindo muito bem — ele diz, a
boca dentro da caneca fazendo a voz dele ficar abafada. — Mas pra falar a
verdade, com o tanto de hora extra que eu faço, eles não podem reclamar.
Hora extra, sei.
— Mas por quê? — pergunto, esfregando os olhos.
— Pra gente poder passar o dia junto, que tal?
Coloco as mãos na cintura, não gostando muito daquilo.
— Eu tenho aula.
— Bom, você pode faltar, não pode? Amanhã é seu aniversário. Vai ter
tanta gente e tanta coisa pra fazer que a gente não vai ter tempo de, sabe,
aproveitar.
Talvez ele só esteja se sentindo culpado por ontem, mas para ser sincero,
se eu tiver que escolher entre passar o dia com o meu pai ou passar o dia
com crianças insuportáveis que adoram rir da minha cara, acho que prefiro
sair com meu pai.
— E o que a gente vai fazer?
— Dar uma volta, talvez ir no cinema. Tá passando Hércules.
Já assisti Hércules, mas encolho os ombros.
— Pode ser.
Meu pai parece feliz e dá mais um gole no café, o que me faz engolir em
seco. Eu vou para a cozinha, pego uma xícara e encho até o talo de café,
depois coloco açúcar.
Quando volto para sala, ele olha para mim, olha para a TV, e depois olha
para mim de novo.
— Desde quando você toma café? Eu achei—
— Que eu gostava de sucrilhos? Acho que não aguento mais ver sucrilhos
na minha frente.

II

É assim que uma e meia da tarde eu estou dentro de uma sala de cinema
sem cadeiras numeradas, almoçando pipoca e guaraná, enquanto assisto
Hércules com meu pai. Tenho que me lembrar de manter a boca fechada,
mesmo sabendo a letra de algumas músicas, e tiro a minha blusa para
colocar na cadeira do meu lado porque ela está me incomodando.
Quando o filme acaba, meu pai me leva no fliperama de novo e daquela
vez a gente joga na máquina de basquete, aquela em que a cesta fica indo
para frente e para trás, porque eu não sou idiota de ficar perdendo no ice
hockey toda vez.
— Gostou do filme? — ele pergunta antes de jogar a bola contra a cesta
que acabou de vir para frente. Ele acerta.
— Aham — digo, pegando uma outra bola. Assim que arremesso, a cesta
decide que é um ótimo momento para se afastar de novo e eu erro. — Acho
que a Helena ia gostar. Ela gosta… — paro um pouco, porque percebo o
que acabei de falar — de coisas da Disney. Acho. Não sei.
Meu pai levanta uma sobrancelha, um sorrisinho idiota nos lábios.
— É impressão minha ou você tem se preocupado muito com ela
ultimamente?
— Bom, é claro que eu tenho — a cesta se aproxima de novo e eu
arremesso outra bola. — Tô preocupado por causa do pai dela.
— Só por isso?
— É claro que é só por isso, pai. Vai, joga essa bola, a gente vai perder se
você ficar parado.
Ele joga, mais um ponto pra gente.
— Você chamou ela pro seu aniversário?
Eu paro. Sou um estúpido, tanta coisa acontecendo essa semana e eu não
lembrei do óbvio.
— Eu esqueci!
Ele ri, a máquina apita e a cesta volta para o lugar, anunciando que nossa
rodada acabou. Os tíquetes começam a sair.
— Bom, você pode ligar pra ela.
— Não tenho o telefone dela — percebo, e esse nem é o pior problema.
— Mas o pai dela não vai deixar. Ele… não gosta que ela fique andando
comigo e com o Hiro.
Meu pai coloca as mãos na cintura, eu destaco os tíquetes da máquina. A
gente definitivamente merecia mais, não deve dar nem para pegar um lápis.
— Você quer que ela venha amanhã?
— Pai, eu já falei que—
— A gente pode ir lá na casa dela. Conversar com o pai dela. Talvez se eu
for, ele mude de ideia.
— Não sei se é uma boa ideia, o pai dela é meio doido. Meio… perigoso.
E não sei se quero meu pai perto daquela arma.
Ele pega os tíquetes da minha mão e enfia no bolso.
— E se a gente falar com o Naka?
— Com o sensei?
— Bom, ele impõe mais respeito que eu com aquela faixa preta na
cintura.
Dou uma risadinha quando imagino a cara do pai da Helena se o sensei
Naka batesse na porta da casa dele de judogui e faixa preta.
— Você acha que pode dar certo?
Meu pai encolhe os ombros.
— Bom, na pior das hipóteses o pai da menina vai ficar sabendo que tem
gente de olho nele. Que se ele não se importa, tem gente que se importa
com a filha dele.

III

Fico um pouco decepcionado quando, mais tarde, o sensei Naka sai de casa
de calça jeans e camiseta ao invés do judogui, mas não se pode ter tudo na
vida. Aliás, acho que é a primeira vez que eu o vejo vestindo alguma coisa
que não seja o judogui.
— Ele achou que ia ser dramático demais — Hiro diz, quando entra no
banco de trás do Kadett comigo. Ele insistiu que queria vir também. — Mas
eu falei que ele devia ter colocado mesmo assim, só pra assustar um pouco
o pai dela.
— E eu falei — o sensei diz do banco da frente — que esse não é o tipo
de coisa que a gente faz, né, Hiroshi?
Hiro cruza os braços e faz cara de tédio do meu lado.
— Meu tio é muito sem graça.
— E também não é surdo — ele diz, enquanto meu pai arranca com o
carro.
— Você acha que o pai dela vai deixar? — Hiro pergunta, as luzes dos
postes de iluminação acendendo e apagando o rosto dele do outro lado do
banco.
— Eu acho que pelo menos ele não vai conseguir falar não na nossa cara.
— E meu tio disse que pode passar aqui pra pegar ela quando a gente for,
então ele nem precisa fazer nada.
— Por falar nisso — meu pai diz no banco da frente, se dirigindo ao
sensei —, já que você vai levar as crianças você podia ficar na festa
amanhã. Faz tempo que a gente não coloca a conversa em dia.
Algo no meu estômago se aperta, porque ele não faz ideia do que pode
acontecer amanhã, mas ao mesmo tempo, quando vejo os dois, penso em
mim e em Hiro em 2019, em como eu também queria poder colocar a
conversa em dia.
Olho para ele sentado no banco do meu lado, seu rosto voltado para o
bichinho virtual que ele parece tentar enxergar com a luz dos postes lá de
fora. No banco da frente, o sensei Naka liga o rádio.
— Vocês vão mudar mesmo? — pergunto baixinho. — Pro Japão?
Dá para ver o corpo do Hiro enrijecer no lugar por um segundo. Ele se
vira devagar para mim.
— Eles querem ir no final do ano. Quando as aulas acabarem.
Engulo o nó na minha garganta.
— Eu não queria que você fosse. Vinte e dois anos é muita coisa.
— Eu também não queria ir, mas… a gente dá um jeito.
— Dá um jeito? Você vai ser um cara bem-sucedido que mora em Tóquio,
casado, potencialmente com filhos e você acha que vai lembrar de mim?
Ele me olha meio assustado.
— Você tá adivinhando ou você sabe que é isso que vai acontecer?
Olho para o retrovisor, com medo de que meu pai esteja prestando atenção
na nossa conversa, mas ele parece entretido, rindo com o sensei, a música
alta.
— Não sei — digo, voltando a encarar Hiro. — Cada vez… Bom, as
coisas mudam um pouco. Mas aposto que independentemente de qualquer
coisa, você vai ser um cara bem-sucedido com uma família feliz. —
Diferentemente de mim, penso. — Ah, e você usa óculos.
Ele parece ligeiramente horrorizado.
— Não quero usar óculos.
— Não acho que esse é o tipo de coisa que dá pra mudar. Ou você pode
usar lente, sei lá.
Ele cruza os braços.
— Você me viu? Como eu tô?
— Vi só uma foto, e pra falar a verdade, você ficou a cara do seu tio.
Hiro se mexe no banco, e acho que está tentando olhar para a cara do
sensei no retrovisor, como se nunca tivesse prestado atenção nele de
verdade.
— E você?
É minha vez de levantar os olhos para o espelho.
— Eu fiquei a cara do meu pai.
Hiro franze as sobrancelhas olhando para mim, talvez tentando ver as
semelhanças, mas eu olho para o banco da frente, onde o sensei está falando
alto rindo com o meu pai, e é quase como ver as nossas versões mais velhas
conversando uma com a outra.
Talvez Hiro tenha razão. Eu quero que ele tenha razão, porque não quero
mais ficar sozinho.
Talvez a gente consiga dar um jeito.

IV

A luz da casa da Helena está acesa quando nós paramos o carro.


— Vocês querem ficar aqui dentro? — meu pai pergunta, mas eu já estou
querendo empurrar o banco dele para frente. Nem em um milhão de anos eu
vou perder a cara do pai dela quando der de cara com nós quatro na porta
dele.
— Pff, não — digo, e Hiro está com as mãos no banco da frente também,
sacudindo o sensei. — É meu aniversário, quero ir junto.
Eles descem do carro e deixam a gente sair também, finalmente. Nós
atravessamos a rua, o vento gelado pinicando nas minhas bochechas, e dá
para ouvir o volume alto da televisão da calçada.
Eu e Hiro trocamos um olhar apreensivo, meu estômago apertando um
pouco, mas meu pai e o sensei simplesmente respiram fundo, abrem o
portãozinho com um rangido e passam pelo mato alto do quintal.
É meu pai quem bate na porta, três vezes.
Ninguém responde da primeira vez, acho que por causa da televisão alta,
mas quando meu pai bate de novo, mais forte daquela vez, vem um grito de
lá de dentro.
— Helena! — o pai dela chama — A porta!
Alguns segundos depois alguém reclama lá de dentro e passos vão se
aproximando da porta. Então Helena aparece, ainda enfiada naquele capuz,
mesmo dentro de casa.
Eu tento sorrir, mas o sorriso morre no meu rosto, porque a boca dela está
cortada, bem no canto, e eu tenho a impressão de que ela não se cortou
sozinha. Os olhos dela, aqueles dois olhos escuros, olham para mim, depois
para o Hiro, e sobem para o meu pai e para o sensei, como se não
conseguisse acreditar no que está vendo.
Ela tenta fechar a porta, exatamente como fez daquela vez em 2019, mas
dessa vez quem não deixa é o meu pai e o sensei, os dois com reflexos
quase idênticos.
— O que vocês tão fazendo aqui? — ela pergunta, sem saber para quem
olhar.
O sensei se abaixa entre mim e o Hiro, meu pai coloca a mão no meu
ombro.
— Seu pai tá em casa? — o sensei Naka pergunta, mesmo que seja óbvio
que ele está, porque foi ele quem gritou.
Helena continua confusa, seus olhos nervosos pipocando entre nós quatro
como se procurasse desesperadamente por alguma explicação.
— Sensei…
— A gente só quer conversar uma coisa, é rapidinho.
Ela engole em seco, abre um pouquinho mais a porta e olha para dentro.
— Que foi? — o pai dela pergunta, a voz daquele jeito mole. — Quem é
que tá aí fora?
Ela lança um olhar nervoso na nossa direção, e quando seus olhos
encontram os meus, eu faço que sim a cabeça. Ela fecha os olhos, como se
estivesse se decidindo, e se vira de novo para dentro.
— Tem gente aqui querendo falar com você.
— Comigo? Eu não quero conversar com ninguém. Não quero comprar
nada.
— Eles não tão vendendo nada, pai — ela diz, a voz meio trêmula. — É…
o pai de um amigo meu. E o sensei. Do judô.
Acho que é a menção do sensei Naka que chama a atenção dele, porque
ouço alguém se levantar do sofá, um joelho estralando e um resmungo. Uns
segundos depois o homem está na nossa frente.
Ele não é tão alto, agora que tenho o sensei como referência, e seus
cabelos ralos estão todos bagunçados. Os olhos estão vermelhos, a blusa
que ele está usando está rasgada, e quando para na porta, o sensei se levanta
devagar. É imensamente satisfatório ver como ele vai acompanhando com
os olhos, talvez não esperando que o sensei fosse tão maior que ele.
Finalmente o pai da Helena olha para nós quatro de cima a baixo, quase
como se estivesse decidindo se somos ou não uma ameaça.
— O que é que vocês querem? — ele pergunta, uma mão indo parar no
ombro da Helena, fazendo com que ela se encolha, uma paródia do meu pai
e de mim. — Isso não é hora de bater na casa de ninguém.
— Eu sei — meu pai diz, e quando olho para cima ele está sorrindo, a
imagem da polidez —, mas amanhã é aniversário do meu filho aqui e a
gente queria saber se a Helena quer ir. Não sei se o senhor sabe, mas eles
são amigos.
Helena está me olhando com os olhos arregalados, imóvel.
O pai dela olha para mim e para o Hiro, realmente olha, e é ali que ele nos
reconhece.
— Ela não vai pra lugar nenhum com vocês d—
— Helena — meu pai o interrompe, e os olhar dela desgruda do meu —,
você quer ir?
Ela abre e fecha a boca, como se não soubesse o que dizer.
— Eu…
— Não vai pra lugar nenhum — o pai dela insiste, e o sensei Naka dá um
passo à frente. Ele é pelo menos uma cabeça maior que o homem, muito
mais encorpado e, bom, faixa preta. Quando ele sorri, é de um jeito
ligeiramente ameaçador.
— Acho que a gente tá perguntando pra ela se ela quer ir, senhor.
— Eu sou o pai dela!
— O que é uma pena, na verdade, porque ela merecia um pai melhor.
— O quê?
— Helena — o sensei se abaixa de novo e coloca a mão no braço dela —,
se você quiser ir eu passo aqui com o Hiro amanhã e pego você. Que tal?
Ela olha para ele, depois para o Hiro e para mim, como se quisesse nos
ler.
— E-eu… não comprei presente.
— Eu não quero presente — digo, tentando forçar um sorriso pra ela. —
Eu quero você lá, só isso. Por favor.
Ela sobe os olhos para o meu pai, depois olha para o Hiro, para mim, e
por último para o sensei. É um aceno tímido, quase imperceptível, mas é
como se eu peso enorme tivesse sido tirado das minhas costas.
— Eu passo aqui amanhã, então, ok? — o sensei diz, voltando a ficar de
pé. — Umas duas horas.
Ela assente de novo, aquele movimento mínimo.
— Eu não deixei ela ir! — o pai dela diz, empurrando Helena para dentro
com um movimento descoordenado. — Ela não vai na festa de nenhum
moleque que—
— Ah, ela vai — meu pai diz, um tom levemente ameaçador na voz dele.
— Se ela quiser, não vai ser você que vai impedir.
— V-vocês… — ele fecha a cara, os olhos, escuros como os da Helena
correndo do meu pai para o sensei e vice-versa. — Vocês tão me
ameaçando?
O sensei Naka sorri e dá mais um passo para frente, seu cotovelo apoiado
de um jeito preguiçoso no batente da porta, quase como se aquela fosse uma
conversa casual.
— Você interpreta como quiser. Eu vou passar aqui amanhã duas horas e
quero essa criança — ela apronta para a Helena — pronta. E se eu souber
que o senhor encostou num fio de cabelo dela — o sensei alarga o sorriso, o
que eu não achei que era possível —, isso aqui não vai mais ter espaço pra
interpretação. Entendido?
O homem pisca uma, duas, três vezes.
— Sai da minha casa — é tudo o que ele diz, mas seu rosto está
completamente sem cor. Ao lado dele, Helena abre um sorrisinho para mim
e o sensei dá uma piscadinha para ela.
— Vejo vocês amanhã — ele diz. — Tenham uma boa noite.

Mais tarde, à noite, meu pai arruma minha cama e, pela primeira vez em
não sei quanto tempo, me dá boa noite e um beijo na testa. Ele apaga a luz e
eu fico lá deitado, uma sensação estranha se revirando dentro de mim.
Estou feliz porque a gente foi na casa da Helena hoje, mas ao mesmo tempo
eu não sei o que vai acontecer amanhã, qualquer coisa pode acontecer
amanhã. Tento me acalmar pensando que eu fiz tudo o que podia, meu pai e
o sensei fizeram tudo o que eles podiam, e não é possível….
Ainda assim, não consigo deixar de pensar na festa, na Helena chegando,
na arma disparando.
Mas dessa vez vai ser diferente. Tem que ser diferente.
Não consigo dormir. Fico me virando e revirando debaixo das cobertas,
mas todas as posições me incomodam e meu pescoço está começando a
doer de tanto ficar apoiado de lado no travesseiro sem pegar no sono.
Suspiro. Isso não vai dar certo.
Saio da cama e vou para a cozinha buscar um copo d’água, tudo escuro.
Com a luz fraca dos postes lá de fora dá pra ver o contorno do sofá na sala,
a pasta do meu pai largada em cima da mesa.
Estou terminando de tomar água quando a luz do corredor se acende e eu
quase dou um pulo no lugar. Um segundo depois meu pai entra na cozinha
de pijama. Ele estaca no lugar quando me vê, o cabelo todo amassado.
— Eita. Também não consegue dormir?
Coloco o copo na pia.
— Acho que tô ansioso — digo, o que não deixa de ser verdade. Ele pega
o mesmo copo, dá uma enxaguada e enche de água também.
— Vai ficar tudo bem amanhã — ele diz, passando a mão no meu cabelo.
— Acho que o Naka assustou um pouco o pai da Helena.
Abro um sorriso enquanto ele toma a água. Ele termina, larga o copo na
pia e se vira para voltar para o quarto.
— Apaga a luz quando sair, tá?
— Pai? — chamo. Ele se vira, um bocejo escapando. — Posso… dormir
com você?
Ele olha para mim como se eu tivesse perguntado o sentido da vida e não
feito uma pergunta simples que um sim ou não resolve, até que coloca as
mãos na cintura com um sorrisinho.
— Contanto que você não me chute. Quando você era menor você era
mais espaçoso que eu e a sua mãe juntos.
É minha vez de colocar a mão na cintura, uma dorzinha quando ele fala da
minha mãe que eu preciso aprender a anestesiar.
— Só vou chutar se você peidar.
— O quê? — ele diz, um tom brincalhão, e me levanta do chão com os
braços prensados, eu batendo as pernas para lá e para cá, enquanto a gente
provavelmente acorda os vizinhos com nossas risadas. Ele me leva até o
quarto e me larga na cama feito um saco de batatas, depois puxa o
travesseiro dele para o lado. — Vai lá buscar suas coisas.
Eu vou. Quando estou pegando meu travesseiro de cima da cama, vejo
meu caderno largado em cima da escrivaninha.
Deixo o travesseiro de volta no lugar, abro uma página em branco e pego
uma caneta do meu estojo. Seja lá o que aconteça nas próximas 24h, meu eu
de onze anos vai ter de lidar com as consequências e, mesmo que eu não
entenda direito como isso funciona, quero que ele se lembre muito bem de
uma coisa.
Com um suspiro, rabisco a folha.
Seja legal com o Hiro.
Seja legal com a Helena.
Seja legal com o seu pai.
E, em letras garrafais, só para enfatizar caso o Adriano de 1997 seja
obtuso:
Não seja um bostinha.
Largo o caderno aberto sobre a escrivaninha e volto para o quarto do meu
pai com meu travesseiro em um braço, a coberta no outro.
Não sei o que ele quis dizer quando disse que eu era espaçoso, porque
assim que subo na cama e me enfio debaixo das cobertas, ele faz sinal para
eu me aproximar. Vou até ele, meus pés gelados do piso frio, e ele me
abraça enquanto eu me aninho em seus braços.
Meu pai dá um beijo nos meus cabelos e sua respiração vai estabilizando,
até ficar longa e pesada, e o calor do corpo dele começa esquentar o meu.
Tudo o que eu consigo pensar é que mesmo que eu não faça ideia do que
vai acontecer amanhã, é exatamente assim que o dia de hoje sempre deveria
ter sido.
SÁBADO

Estou tão ansioso que acho que se eu tentar enfiar qualquer coisa na boca,
vou vomitar.
— Você tá bem? — meu pai pergunta de manhã cedo enquanto a gente
toma café. Café preto de verdade.
— Só ansioso — minto de novo de dentro da caneca.
— Certeza?
Faço que sim, quieto, e tento agir normalmente. Mais de uma vez eu vou
no banheiro, achando que vou vomitar, mas eu sou o tipo de pessoa que
nunca consegue, o que coloca aquele dia da briga com o Lucas em
perspectiva.
Fico no meu quarto, deitado na cama, olhando para o teto, até a hora de ir,
uma bola se revirando no meu estômago o tempo todo. Quando finalmente
me troco e entro no carro, meu pai coloca a mão na minha testa. Não tenho
certeza se ele sabe o que está fazendo, mas é o tipo de coisa instintiva que
acho que pais fazem quando os filhos estão parecendo doente.
— Não vai me falar que você resolveu ficar doente justo hoje. Tá com a
garganta doendo?
— Não — digo, esfregando o rosto. — Minha garganta tá ótima. É melhor
a gente ir logo.
Ele me olha meio de canto e eu vou quieto o caminho inteiro, tudo meio
quente mesmo com a temperatura baixa de agosto, e quase acho que estou
com febre de verdade. Meu pai olha para mim parecendo meio preocupado,
provavelmente imaginando o escândalo que a minha mãe vai dar, e dá
tapinhas na minha perna, como se estivesse me encorajando a alguma coisa.
Quando chegamos, a gente espera em frente à entrada, e nem cinco
minutos depois minha mãe vem andando do outro lado do estacionamento,
toda esbaforida.
— Por que você sempre para daquele lado? — meu pai pergunta, e eles se
cumprimentam com um beijo no rosto. É estranho, ainda é estranho. — É
muito mais longe.
— Mas é muito mais vazio, sempre tem vaga. Adriano, olha esse cabelo!
Eu coloco a mão na cabeça em reflexo enquanto ela puxa, juro, um pente
da bolsa e começa a ajeitar meu cabelo bem ali na porta do shopping.
— Bem melhor — ela diz quando termina, guardando o pente de volta,
depois olha para o meu pai. — Você não consegue nem pentear o cabelo do
menino.
— Eu penteei meu cabelo — digo, levemente indignado. — Só não tá do
jeito que você gosta.
Ela olha para o meu pai de novo.
— Ele tá respondão assim por sua causa?
— Tábata — meu pai diz, apertando a ponte do nariz. — Hoje é
aniversário dele, será que a gente pode ir pro fliperama logo? E sem brigar?
Ela faz um barulhinho e olha para o relógio de pulso.
— É melhor a gente ir, mesmo.
Meu pai imita o movimento dela.
— A gente tá dentro do horário.
— Tsc — ela faz, me puxando para dentro. — A gente precisa monitorar
as coisas, ter certeza que tá tudo certo.
— Tábata…
— Vem logo, Giovanni.
Tenho a impressão de que meu pai não quer muito ir, mas ele vai, e
quando chegamos na PlayTown minha mãe me puxa direto para o
mezanino, onde sou obrigado a ficar pelos quarenta e cinco minutos
seguintes, sentado em uma mesa sem fazer nada, porque minha mãe jura
que se eu descer para jogar eu vou ficar todo suado e fedido.
— E daí? — pergunto, porque jogar talvez me distraísse um pouco do
bolo no meu estômago.
— E daí que você não vai tirar foto fedido.
Não tento entender a lógica, porque não vale a pena, e quase pulo de
alívio quando meus tios chegam com o meu primo. Ele tem cinco anos de
idade, é extremamente irritante e vive com o dedo no nariz, mas agora eu
tenho uma desculpa para descer.
— Eu ajudo ele nos brinquedos — digo, e vejo meu pai lançar um olhar
para mim que claramente diz eu sei exatamente o que você está fazendo, e
quando a minha mãe diz que claro, o Adriano vai descer com ele, eu saio
correndo antes que ela mude de ideia.
Meu primo tem as perninhas curtas e demora umas duas horas para descer
as escadas, e assim que chega no último degrau ele decide que quer ir no
pônei que balança, o que é ótimo, porque é um dos brinquedos que tem
monitor e eu não preciso ficar junto.
Deixo meu primo lá e vou até as máquinas do fundo, porque minha mãe
não vai conseguir me enxergar dali e vai ser mais difícil dela me chamar se
quiser.
Tem mais gente chegando, provavelmente mais tios e avós, e aos poucos o
mezanino vai enchendo de pessoas e de vozes, até que em algum momento
minha mãe grita o meu nome lá de cima.
Finjo que não ouvi porque não quero subir, mas meu pai aparece logo
depois, mãos na cintura, meio irritado e provavelmente mandado pela
minha mãe.
— Tirar foto, vamos.
— Não quero tirar foto.
— Eu sei, mas você sabe como a sua mãe é. Vai, é rapidinho.
Faço uma careta, mas o sigo até o mezanino, e sou atacado pelos meus
tios e meus avós, que querem me abraçar, me dar os parabéns, tirar foto
comigo com câmeras de verdade ao invés de celulares. É extremamente
desconcertante olhar para as mesas e não ver nenhum celular em cima
delas.
— Adriano, aqui — minha mãe diz, me puxando para tirar foto com um
primo mais velho que eu não vejo há séculos e que parece não querer estar
ali. A mãe dele vem até mim e me dá um beijo na bochecha que eu tenho
certeza que deixou uma marca de batom. — Dá um sorriso.
Eu tento. Fico olhando para a câmera, esperando minha mãe bater a foto,
quando avisto alguém chegando lá embaixo, dando o nome para a moça que
controla a entrada e saída de pessoas. E meu coração pula uma batida
quando vejo que é o Hiro.
Sozinho. Quer dizer, ele e o sensei, mas sem a Helena.
Milhares de cenários possíveis começam a pipocar na minha mente. Ela
acordou doente. Ela decidiu não vir. O sensei esqueceu. Eu só não quero
pensar nas piores possibilidades, mas quando Hiro me olha lá de baixo, eu
sei que tem alguma coisa errada.
— Adriano! — minha mãe chama quando eu me desvencilho dos meus
tios e desço os degraus correndo, dois de cada vez, quase tropeçando e
caindo no final.
— Cadê ela? — pergunto, o coração na boca. — Cadê a Helena?
— Ela não tava lá.
— Como assim, ela não tava lá?
— Não tava lá, Dri, tava tudo fechado, tudo apagado, o carro do pai dela
não tava lá na frente.
Meu cérebro está voando, pensando em todas as possibilidades de uma
vez só enquanto me volto para a escada que dá para o mezanino. O mais
provável é que ele tenha levado ela para algum lugar, não é? E se eles não
estão aqui… Nem eu nem meu pai… Quer dizer, é a situação perfeita, na
verdade. Se a Helena não aparecer, não tem problema nenhum. Ninguém
vai ser baleado. É o que eu precisava.
Exceto que não é mais, é?
Fecho os olhos com força, um pé no degrau da escada, a mão no
corrimão, minha mãe gritando meu nome lá de cima. Eu podia deixar isso
para lá, deixar meu eu de onze anos lidar com a Helena na segunda-feira
quando tudo estiver acabado. Mas eu não sei… Não sei como vai ser, e
depois de tanto esforço… Não dá mais para deixar as coisas como estão.
Eu preciso fazer alguma coisa.
— Adriano! — minha mãe grita lá de cima, lívida. Olho para ela, olho
para o Hiro e fecho os olhos de novo, respirando fundo.
— A gente vai até a casa dela.
Hiro me olha como se eu tivesse perdido a cabeça.
— Como? Não dá pra ir até a casa dela! A gente vai demorar umas duas
horas se for andando!
Ele está exagerando, claro, mas mesmo assim não é uma opção.
— A gente não vai andando.
— O… ahn? Dri!
Mas eu já estou subindo as escadas.
— Fica aí, eu já venho.
Minha mãe vem imediatamente na minha direção e me puxa pelo braço.
— Se você não me contar o que tá acontecendo agora, Adriano… Eu
sabia que não devia ter te deixado a semana inteira com o seu pai.
Fico quieto enquanto ela me faz sentar na mesa dela, sua bolsa
repousando inocentemente sobre o tampo. Não vou contar nada, claro que
não, e fico lá sentado, tentando lançar um olhar ao Hiro que significa que é
melhor ele ficar exatamente onde está.
— Você só não vai apanhar aqui na frente de todo mundo — minha mãe
continua, como se eu estivesse prestando atenção —, porque eu não quero
fazer uma cena, mas a hora que a gente chegar em casa… olha.
Continuo quieto e me inclino um pouco para o lado na cadeira. Hiro ainda
está na base da escada, parecendo perdido e meio ansioso. Ele está roendo
as unhas e olhando para mim como se esperasse que eu fizesse alguma
coisa.
— Mas você vai ficar aqui uns dez minutos pra se acalmar, ouviu? —
minha mãe continua o sermão sem fim. Eu continuo sentado, a imagem da
cordialidade, embora meu cérebro esteja a mil por hora.
Olho para a mesa de novo, a bolsa dela largada ali. Ela se vira, acho que
para conversar com meus tios, assegurar todo mundo de que está tudo bem,
que eu só estou um pouco agitado, mas eu aproveito a distração para puxar
a bolsa dela e sair correndo.
— Adriano!
Eu não me viro nem me atrevo a parar. Pulo os últimos degraus da escada,
aquela bolsa muito mais pesada do que parecia, e puxo Hiro comigo,
fazendo-o quase tropeçar conforme disparamos pela praça de alimentação.
— Aonde a gente vai?
— Atrás da Helena.
— Atrás da Helena? Dri, ela mora a quilômetros daqui!
Abro um sorrisinho e levanto a bolsa da minha mãe para ele.
— A gente tem um carro agora.

II
Nunca pensei muito na cobrança de estacionamento em shoppings, é uma
coisa normal em 2019, mas fiquei agradecido por ela não existir em 1997.
Nós passamos batido pelas pessoas e descemos as escadas até o
estacionamento externo.
— E agora? — Hiro pergunta, ofegante, os olhos correndo pelas centenas
de carros estacionados debaixo do sol. — Como a gente vai achar o carro da
sua mãe?
Fecho os olhos, a garganta doendo com cada respiração, e me lembro.
Ela sempre para no mesmo lugar, disse isso hoje mesmo.
— Por aqui! — digo, e nós saímos correndo de novo, por fora, até
chegarmos na seção do estacionamento que provavelmente é longe demais
para a maioria das pessoas comuns, mas não para a minha mãe. Ela
literalmente para na parte de trás do shopping, onde quase ninguém para,
mas pelo menos é mais fácil de achar o carro.
— Você não pode tá falando sério — Hiro diz enquanto eu reviro a bolsa
da minha mãe à procura da chave. É o mesmo Gol quadrado prateado que
eu dirijo em 2019, e pode até não ser um DeLorean, mas me sinto um pouco
em De volta para o futuro quando finalmente encontro a chave e consigo
abrir a porta. — O que você tá esperando, entra logo.
Hiro entra, meio pálido, e é quando eu me sento no banco do motorista
que percebo um pequeno problema.
Eu tenho onze anos — doze, tecnicamente —, mal tenho um metro e
meio, e o Gol quadrado é um carro baixo pra caralho.
— Não vou conseguir dirigir — digo, olhando para Hiro. Ele arregala os
olhos.
— Como assim, não vai conseguir dirigir? Eu achei que você fosse um
adulto!
— Ah, eu sou, mas eu sou um anão de jardim nesse momento!
Dou tapinhas no volante, porque preciso pensar rápido. Eu podia tentar
sentar em cima da bolsa da minha mãe, mas não vou conseguir alcançar o
pedal, e se eu alcançar o pedal, não vou ver a pista direito.
Viro a cabeça na direção do Hiro para pedir alguma ideia quando paro os
olhos nas pernas dele. Compridas, sempre dobradas na bicicleta que ficou
pequena demais, os ombros meio caídos pra frente.
— Quê? — ele pergunta, roendo as unhas de novo.
— Você pode dirigir.
Ele abre um sorriso nervoso, o dedo ainda na boca. Ele para por um
segundo, talvez esperando que eu diga que só estou brincando, que de jeito
nenhum eu ia sugerir que ele dirigisse, mas eu fico quieto, encarando-o, e o
sorriso dele morre.
— Você tá falando sério. Eu não acredito que você tá falando sério.
— Você é grande! Você consegue enxergar!
— Adriano, eu não sei dirigir a porcaria de um carro!
— Escuta — digo, abaixando o tom, porque acho que ele está levemente
entrando em pânico —, é igual no Nintendo 64.
— Não tem nada a ver com o Nintendo 64!
— Hiro, você passou as férias inteira jogando naquele volantinho, é a
mesma coisa.
— Não é a mesma coisa! Eu não sei trocar marcha!
— É igual nas máquinas do fliperama! — digo, agora meio desesperado.
— Olha, eu te ajudo. Pensa só, você vai poder falar pra todo mundo que já
dirigiu um carro.
— Se eu não morrer, você quer dizer.
— Eu não vou te deixar morrer.
Ele me olha com cara de quem duvida muito.
— Seu histórico de não deixar pessoas morrerem é meio problemático.
Respiro fundo, tentando recuperar a paciência.
— Hiro, pensa na Helena. Eu te falei o que aconteceu das outras vezes, a
gente não pode deixar acontecer de novo.
— Você nem sabe se ela tá na casa dela.
— Por isso mesmo, a gente vai descobrir. Mas a gente precisa ir logo,
antes que venham atrás da gente. Hiro, meu pai não pode ir. Da outra vez…
Eu não quero arriscar, por favor. Eu tô aqui com você.
Ele me olha, o relógio ticando na minha cabeça, até que ele finalmente
suspira e abre a porta do passageiro, bufando de um jeito que me faz
desconfiar que ele quer muito me matar.
Uma onda de alívio me cobre por inteiro, e eu passo por cima do câmbio
para trocar de lugar com ele. Hiro limpa as mãos nas pernas e me olha, o
suor começando a correr pelas têmporas dele mesmo com o frio.
— O que é que eu faço?
Aponto para a ignição.
— Vira a chave.
O carro liga, e acho que ele fica ainda mais pálido. Por sorte minha mãe
fez o favor de parar o carro de ré, então a gente só tem que sair de frente e
vai ficar tudo bem.
— Olha só, você aperta a embreagem ali, aquele pedal. E coloca primeira
no câmbio, aqui.
Ele faz o que eu falo, parecendo um robô, e quando falo para ele tirar o pé
da embreagem devagar e acelerar aos poucos, o carro morre.
— Eu odeio você — ele diz.
— Tudo bem, a gente vai de novo.
A gente tem que tentar mais duas vezes antes dele pegar a manha, mas
finalmente conseguimos sair, mesmo que raspando de leve no carro do lado.
— Não tem problema, não foi nada — continuo, tentando apoiá-lo,
porque ele parece a ponto de vomitar e não acho que aguento a viagem em
um carro vomitado.
Ensino-o a trocar de marcha, e Hiro arranha algumas vezes, mas a prática
com o volantinho e os pedais do Nintendo 64 parece fazer alguma
diferença, porque ele pode não ser o Ayrton Senna, pode parecer um vovô
no volante e pode até ter deixado o carro morrer em um farol ou dois, mas
eu tenho vontade de abraçá-lo com como ele aprende rápido.
— As pessoas tão olhando! — ele resmunga, olhos tão abertos que ele
provavelmente vai ficar com dor nas pálpebras quando aquilo tudo acabar.
— Deixa elas olharem, presta atenção na pista.
— E se a polícia parar a gente?
Eu não tinha pensado naquilo.
— Eles não vão, Hiro, isso só acontece em filme. Quantas vezes a polícia
já parou seus pais?
Ele não desgruda os olhos da pista.
— Algumas. E quem é você pra falar de filme, você literalmente veio de
2019! — ele olha pra mim, só por um segundo. — Odeio você, juro por
Deus.
Tenho certeza de que ele vai jogar esse dia na minha cara pelo resto das
nossas vidas, considerando, claro, que eu não estrague tudo hoje.
— Não acredito, não acredito… — ouço Hiro resmungar quando
finalmente entramos no bairro, os dedos dele completamente brancos,
abrindo e fechando no volante.
— É só não parar na subida que vai ficar tudo bem — digo, e ele faz cara
de que quer me incendiar com o olhar. — Você tá indo bem, tá—
— Cala a boca!
Eu calo. Nunca o vi nervoso desse jeito, e quando eu falo que é melhor ele
parar o carro uma rua antes da casa da Helena, Hiro fica tão aliviado que
sobe na calçada e o cinto de segurança quase me enforca com o chacoalhão.
— Puxa o freio de mão — digo, e ele puxa, todo robótico. Quando o carro
finalmente desliga, ele praticamente desmonta no banco, as mãos nos
cabelos.
— Eu não acredito que eu fiz isso, não acredito que eu fiz isso.
— Você foi genial! — digo, e me jogo nele para abraçá-lo. Hiro me
empurra, meio surtado.
— Eu devia te dar um soco.
— Eu juro que depois de tudo você pode me dar um soco.
Ele resmunga alguma coisa e eu tiro o cinto, depois saio do carro. Quando
bato a porta e me viro, percebo que ele saiu também.
— É melhor você ficar, pode ser perigoso — digo.
Ele dá uma risada meio afetada.
— Meu cu, eu vou junto. Depois de quase atravessar a cidade dirigindo a
merda de um carro? Eu vou junto, Adriano, puta que pariu.
Levanto uma sobrancelha, porque não sei se ele percebeu que xingou de
novo, três vezes, e ainda usou meu nome inteiro ao invés do apelido.
Respiro fundo.
— Tá bom, vem logo.
Ele vem do meu lado, passos meios bambos, todo rígido conforme me
segue para o outro lado da rua, e aposto que ele vai ficar morrendo de dor
nas pernas amanhã.
Assim que apontamos na esquina, eu paro e seguro o braço dele.
— Que foi? — ele pergunta, alarmado.
— Tava tudo fechado quando você chegou?
Hiro faz que sim.
— A gente buzinou, bateu palma. Meu tio até bateu na porta.
Aponto para o portãozinho.
— Vocês fecharam o portão?
— Eu… não lembro.
Porque o portãozinho está definitivamente aberto, o que pode significar
muitas coisas. Começo a andar mais rápido, e Hiro precisa dar uma
corridinha para me alcançar.
— O que é que você vai fazer?
— Entrar.
— Você ouviu a parte que eu falei que tá tudo fechado?
— A janela da sala não fecha.
— Quê? Como você sabe?
Aperto o passo.
— Porque eu já entrei aqui antes.
Acho que o Hiro vai me mandar voltar, que vai continuar falando que eu
fiquei maluco, mas ele me segue em silêncio. Quando passamos pelo
portãozinho, ele está do meu lado.
— Escuta — digo, mas ele tapa a minha boca sem delicadeza nenhuma,
claramente me mandando ficar quieto.
— Eu tô aqui, eu vou entrar com você, cala a boca e vamos acabar logo
com isso.
Fico parado por um segundo, até ele me olhar impaciente.
— Anda, Adriano!
Sacudo a cabeça e faço sinal para ele me seguir, quintal adentro. Nós
andamos devagar, com cuidado para não fazer barulho, porque não sei se
tem alguém em casa ou não. Nós passamos para a lateral da casa, e é
quando estamos bem perto da janela da sala que eu acho que ouvi alguma
coisa.
Eu paro, indicador sobre os lábios.
— Que foi? — Hiro pergunta atrás de mim em um sussurro, os olhos
arregalados.
— Você ouviu alguma coisa?
— Ahn…não sei?
— Shhhh.
O vento balança as árvores e a grama alta sob os nossos pés, e daquela vez
eu definitivamente ouvi alguma coisa. Uma voz.
Quando me viro para Hiro, ele está mais pálido que o normal, o que me
faz desconfiar que ele ouviu também.
— Você acha que é a Helena?
— Não sei, eu—
Paro. O som está vindo de algum lugar abaixo dos meus pés.
Eu me abaixo, lembrando de quando estive ali da segunda vez em 2019,
quando a casa estava abandonada, e pisei em cacos de vidro conforme me
aproximava dessa mesma janela.
A grama está alta, cobrindo tudo, e é só quando afasto o mato que eu acho
uma janelinha ali. E tenho bastante certeza que é dali que a voz está vindo.
— Dri?
— Eu acho que a Helena tá aqui dentro. Eu acho… acho que isso é um
porão ou coisa assim.
Não quero gritar, porque não sei se o pai dela está lá, e tento puxar ou
empurrar a janela, mas ela parece uma daquelas janelinhas de banheiro que
só abrem de dentro e não abrem por completo.
— A gente vai ter que entrar — digo, meu coração começando a acelerar.
— E se o pai dela estiver em casa?
Olho em volta.
— Não acho que ele tá, mas a gente vai descobrir agora.
Eu me levanto e enfio os dedos nos vãos da janela, exatamente como fiz
da outra vez em que estive aqui.
— Dri…
— Você não precisa entrar se não quiser.
Puxo a janela, a ponta dos meus dedos ardendo, mas ela não se mexe.
Hiro suspira do meu lado, olha em volta, meio nervoso, e me dá uma
cotovelada de leve.
— Vai mais pra lá pra eu ficar com esse lado.
Nós puxamos. A janela range e se mexe um pouco, mas não cede.
— Mais uma vez, juntos. Um, dois, três.
A janela abre com um rangido e nós quase perdemos o equilíbrio. No
mesmo segundo eu me abaixo e puxo Hiro pela blusa, porque se o pai da
Helena estiver em casa ele ouviu tudo.
Nós esperamos, as batidas do meu coração pulsando nos meus ouvidos
por causa do esforço, meu indicador contra meus lábios quando olho para
Hiro e ele assente. Dá para ver que ele está aterrorizado, mas está ali, do
meu lado, e acho que ele nunca vai ter ideia do quanto estou grato por isso.
Pego a mão dele e aperto, seus dedos compridos estão gelados.
Nós ficamos assim, abaixados e ofegantes por uns dois minutos, o
suficiente para o pai da Helena nos ouvir se ele estivesse em casa, e quando
ele não aparece, decido que a gente pode entrar.
Eu me levanto e Hiro me acompanha. Dessa vez é mais fácil de entrar,
porque ele faz pezinho para mim e depois me segue para dentro da casa.
Tudo vazio, tudo escuro.
Nós continuamos em silêncio, cada passo parecendo uma batida de
tambor na casa vazia, e eu faço sinal para ele me seguir pelo corredor, até o
quarto da Helena.
A porta só está encostada, e paro assim que consigo ver o lado de dentro.
— O que…—
A cama da Helena está revirada, a colcha jogada de um lado, travesseiro
do outro. Até o colchão está torto, e as paredes… Alguém arrancou todos os
desenhos dela da parede.
Dou um passo à frente, devagar, o chão coberto por folhas de papel.
— O que foi que aconteceu aqui? — Hiro pergunta, entrando logo depois
de mim, seus olhos se movendo nervosos de um canto para o outro.
— Não sei, mas tô com um péssimo pressentimento.
Ouço um barulho, como se alguém estivesse tentando gritar e não
conseguisse, um barulho que eriça todos os pelos do meu corpo.
Saio do quarto com pressa e vou até o final do corredor, onde eu tinha
visto um quadrado no chão como se fosse uma pequena porta. Aposto que
agora eu sei exatamente onde essa pequena porta vai dar.
— Hiro, vem cá.
Tem um vão entre um dos lados da porta e o piso, e eu me abaixo, ele do
meu lado. Tem um ferrolho ali e eu tenho a impressão de que vai estar
trancado, mas não custa tentar.
— Me ajuda aqui.
Nós tentamos puxar, mas a porta não abre. A gente tenta uma, duas, três
vezes, mas nada. Lá embaixo, dá para ouvir o grito abafado de novo, como
se alguém estivesse com a boca tapada por alguma coisa, e eu sei que é a
Helena. Cada vez que ela grita o bolo no meu estômago dobra de tamanho.
— O que a gente faz? — Hiro pergunta, tão branco quanto eu
provavelmente estou. Ele é só uma criança e acho que às vezes esqueço
disso por passar tanto tempo com ele. Ele não devia estar aqui.
— Hiro, eu acho melhor você ir embora.
— O quê? Eu não vou—
E é aí que a gente ouve passos atravessando a grama do lado de fora, e se
havia alguma cor no nosso rosto até aquele momento, ela acabou de
desaparecer.
Alguém está enfiando a chave na porta e eu só tenho tempo de puxar Hiro
para o quarto mais próximo antes que o pai da Helena entre e veja nós dois.
Eu não sei se ele está armado, não sei o que ele pode fazer.
Acabamos no quarto da Helena de novo e eu olho para o guarda-roupa. Eu
sei que é grande o bastante para caber nós dois, e caso o pai dela desça e vá
para o porão ou sei lá o que, é nossa chance de escapar sem ele ver.
— Entra aí — sussurro, abrindo a porta com todo o cuidado possível para
não fazer barulho, e Hiro não discute. Ele confia em mim, o que faz meu
peito se apertar um pouco.
Eu fecho a porta, nós dois no escuro tentando controlar a respiração
conforme os passos pesados ecoam pela casa, o único som pelo que
parecem quilômetros e quilômetros. Nenhum carro sequer passa na rua,
nenhuma moto.
Os passos começam a seguir pelo corredor, a voz dele murmurando
alguma coisa que não dá para entender, e ele passa pela porta do quarto… e
para. Fecho os olhos com força, mãos sobre a minha boca para tapar a
respiração, e assim que ouço os passos começarem a se afastar e meu corpo
relaxa, só um pouco, o bichinho virtual do Hiro apita.
Eu me viro para ele, incrédulo. Não é possível que ele tenha trazido
aquela porcaria, e mesmo no escuro dá para ver que ele está a ponto de
chorar.
Os passos param de novo e daquela vez voltam para o quarto e entram. De
novo eu tento tapar a boca, mas o infeliz parece saber exatamente onde a
gente está, e antes que dê para fazer qualquer coisa ele abre a porta do
armário com um estrondo.
Hiro dá um pulo do meu lado, um gritinho escapando da boca dele.
— Quantas vezes vocês acham que eu já puxei aquela putinha daí de
dentro, seus merdinhas?
Hiro fecha os olhos, lágrimas começam a escorrer pelas suas bochechas, e
eu estou prestes a pular no pescoço desse filho da puta, a gritar no ouvido
dele que não é para ele se atrever a falar palavrão na presença do Hiro
quando ele puxa a arma da cintura.
— Agora vocês vão vir comigo, e vão ficar bem quietinhos.

III
A boa notícia é que eu descobri que a Helena realmente está no porão.
A má notícia é que agora eu e o Hiro estamos lá embaixo com ela, fita
cobrindo nossas bocas, e meus pés estão amarrados enquanto o pai da
Helena amarra meus pulsos atrás das minhas costas. Ela e Hiro estão contra
a parede, amarrados também, e eu não tenho a menor ideia do que vai
acontecer. Para falar a verdade, eu acho que o pai dela também não sabe.
— O que é que eu vou fazer com vocês? — ele diz entre os dentes,
apertando o nó nos meus pulsos. Quando termina, ele me empurra e eu bato
a cabeça contra a parede. — O que é que eu vou fazer com vocês, hein, puta
merda!
Ele não está bêbado hoje, pelo menos não muito, o que é uma pena. E ele
fica falando, andando em círculos, como se a gente não estivesse com fita
na boca e fosse capaz de responder. Eu me aproximo de Hiro, que está com
os olhos arregalados, respirando pesado, a marca das lágrimas ainda nas
bochechas dele. Ao seu lado, Helena está encolhida, as pernas puxadas
contra o corpo, os olhos no pai como se ele fosse um predador prestes a
atacar a qualquer momento.
Então o pai dela para, como se tivesse tido uma ideia ou sei lá, e olha para
nós três, a arma ainda em punhos oscilando perigosamente entre mim e
Hiro.
— Se alguém pensar em fazer qualquer coisa, vocês vão ter uma
conversinha com essa menina aqui — ele diz, balançando a arma, e dá
meia-volta para subir as escadas. Quando ele sai, dá para ouvir o barulho da
chave virando no ferrolho, o que significa que nós estamos trancados.
Imediatamente Hiro e Helena se voltam para mim, como se eu tivesse
algum tipo de plano, o que eu obviamente não tenho. Pelo menos não ainda.
Olho em volta, tentando manter a calma. Eu sou a pessoa mais velha aqui,
pelo menos tecnicamente, e tenho a obrigação de tentar dar um jeito.
Bom, nós estamos no porão. Tem um monte de caixas de papelão cheias
de bugigangas espalhadas pelo chão de concreto, um ventilador num canto
sem a grade e com uma pá quebrada que devia estar no lixo, uma
bicicletinha empoeirada com a roda torta que provavelmente era da Helena
quando ela era pequena. Uma máquina de lavar. Uns cestos de roupa suja.
Enquanto observo o porão, minhas mãos já estão se mexendo nas minhas
costas, porque se nem o pai daquela criança do capeta no Balão Mágico
conseguiu fazer um nó que me prendesse, não vai ser o pai da Helena que
vai conseguir.
Trago meus braços para a frente do meu corpo, porque é mais fácil assim,
e os olhos de Helena e Hiro ficam grudados nas minhas mãos enquanto eu
tento afrouxar o nó. Eu puxo a fita da minha boca e posso jurar que a minha
pele vai junto, sinto o gosto de sangue quando passo a língua nos lábios.
— Vai doer um pouco, posso? — pergunto, levantando minhas mãos,
ainda amarradas, na altura do rosto do Hiro. Ele aperta os olhos e faz que
sim.
Hiro geme um pouco quando a fita sai, e depois faço a mesma coisa com a
Helena.
— O que é que tá acontecendo? — pergunto, olhando pra ela. Helena está
pálida, olheiras debaixo de seus olhos. — O que seu pai fez com você?
Ela engole em seco, ainda encolhida.
— Eu não sei, ele me trancou aqui hoje de manhã. Eu acho… que ele quer
me levar pra algum lugar. Não sei — ela olha para mim, depois para o Hiro.
— E vocês não deviam ter vindo! Vocês são idiotas?
— Eu sabia que tinha alguma coisa errada quando você não apareceu hoje
— digo, voltando a me ocupar com o nó nos meus pulsos. Eles estão
olhando, como se não estivessem entendendo o que eu estou fazendo.
Quando finalmente consigo puxar uma mão livre e solto a outra, Hiro está
com a boca meio aberta.
— Como você…?
— Anos de prática — digo, começando a desamarrar meus tornozelos.
— Mas o que a gente vai fazer, meu pai trancou a gente aqui, Adriano.
Olho em volta. Não dá para sair pela porta, mas talvez…
— Eu acho que passo naquela janelinha — digo, olhando para janelinha
que eu e o Hiro vimos do lado de fora mais cedo. Eles olham. — Se a gente
conseguir puxar umas caixas e vocês ajudarem, eu acho que dá pra alcançar.
— Mas e a gente? — Hiro pergunta — Eu não acho que passo ali.
Eu também acho que não, embora ele seja magro, ele tem os ombros mais
largos que o meu e o quadradinho é estreito. Ele corre o risco de ficar preso
ainda por cima. Pela primeira vez o fato de eu ser pequeno pode ser útil
para alguma coisa.
— Eu saio e ligo pra polícia — digo, terminando de soltar meus
tornozelos. Faço Hiro se virar e começo a desatar o nó dos pulsos dele. — E
eu volto. Não vou deixar vocês sozinhos. Você consegue desamarrar a
perna?
Hiro faz que sim, e quando termino com ele vou para Helena. Ela me olha
como se nunca tivesse me visto na vida antes, mas se vira quando eu me
aproximo e eu solto as mãos dela.
— Preciso de ajuda — digo, me levantando para puxar as caixas. Eles me
ajudam a arrastar tudo para debaixo da janela. Eu estou tentando me manter
calmo por causa deles, tentando mostrar que tenho tudo sobre controle
porque nenhum deles pode surtar agora, e acho que é a primeira vez que me
sinto adulto de verdade em todo esse tempo. Não quando eu estava bebendo
cerveja, não quando estava tentando ser engraçadinho. Agora, tentando
fazer esses dois manterem a calma.
Eu escalo as caixas e abro a janelinha. Vai ser apertado, mas acho que eu
consigo. Me viro para eles, Hiro e Helena me encarando como se eu tivesse
todas as respostas, e meu coração afunda. Eu não sei o que vai acontecer e
tudo pode dar errado. Ainda assim, me obrigo a sorrir e parecer confiante.
— Eu já volto.
Dou impulso e passo a cabeça pelo vão. Minha blusa enrosca e minha
cintura fica presa por um segundo de pânico em que eu acho que não vou
conseguir, até que giro o corpo e começo a me puxar para fora, o mato
tapando todo meu campo de visão. Finalmente minha cintura passa.
Eu me afasto da janelinha pela grama alta e ainda olho lá para baixo mais
uma vez antes para assegurá-los de que eu vou voltar e me coloco de pé.
E aí eu corro.
Não tenho certeza de onde o orelhão mais próximo está, mas eu corro e
corro, a adrenalina não me deixando perder o fôlego, e nunca fui tão grato
por ter um corpo que consegue correr por metros e metros sem se cansar. Se
eu estivesse com meu corpo de 33 anos, nunca ia conseguir.
Eu viro a esquina e lá embaixo, avisto um orelhão, laranja em toda sua
glória. Continuo correndo e quando finalmente chego no telefone, minhas
mãos estão tremendo. Disco 190 sem saber direito se vai funcionar, e
quando uma mulher responde do outro lado meu corpo quase derrete de
alívio.
Tento explicar rápido o que está acontecendo, porque preciso voltar — eu
não sei o que o pai da Helena pode fazer se ele de repente entrar no porão e
eu não estiver mais lá — e assim que desligo, saio correndo na direção
oposta.
Pulo o portãozinho quando chego na casa, o fusca branco em nenhum
lugar que eu consigo ver, e me abaixo no mato alto, na janelinha. Hiro e
Helena estão andando de um lado para o outro, impacientes, e dá para ver o
alívio no jeito como o corpo deles relaxa assim que veem a minha cabeça
na janela.
— Conseguiu? — Hiro pergunta, enquanto me espremo para voltar.
— Aham — digo, tentando alcançar as caixas com os pés antes de me
soltar. Minhas costas raspam na moldura da janelinha, um rastro de dor
conforme desço para o chão de novo.
Assim que me endireito, Helena está olhando para mim, balançando a
cabeça.
— Por que foi que você voltou? Se o meu pai voltar—
— É exatamente por isso que eu voltei — interrompo, olhando em volta
de novo. Olhando para aquela escada sem corrimão. — Eu não vou deixar
vocês sozinhos. E acho que eu tenho um plano.

IV

Eu vou ser o primeiro a admitir que meu plano tinha sérias chances de dar
errado, mas ao mesmo tempo, eu não ia sair daquele porão empurrado pelo
pai da Helena, não se eu pudesse evitar.
A primeira coisa era que ele não podia descer as escadas e de repente
perceber que nós três estávamos livres, então eu e Helena voltamos para os
nossos lugares, mãos para trás, pernas encolhidas para ele não ver, pelo
menos não de primeira, que não tinha mais corda nenhuma ali.
Enquanto isso, Hiro está ao lado da escada, abaixado.
Não sei quanto tempo se passa, talvez uns dez ou quinze minutos, até que
o barulho do fusca parando enche o ar, seguido da porta se abrindo e
fechando, e os passos pela casa. Ele está vindo para o porão, e quando Hiro
olha para mim eu faço sinal de afirmativo com a cabeça.
Os segundos se arrastam, dá para ouvi-lo mexendo no ferrolho do
alçapão. Hiro se abaixa, a porta se abre.
— Muito bem, agora a gente—
Hiro puxa a perna dele antes que ele tenha tempo de fazer qualquer coisa.
O homem se desequilibra e cai de costas no chão com um grunhido de dor.
Eu e Helena nos levantamos e avançamos contra ele antes que ele tenha
tempo de puxar a arma da cintura, e quando nós o prendemos no chão eu
lembro do sensei falando sobre a imobilização. Não custa tentar e, pelo
amor de Deus, o judô tem que servir para alguma coisa.
— Me solta, me solta, seus filhos da—
Dou um tapa na cara dele, porque ele não vai falar palavrão na frente do
Hiro, e nós o imobilizamos como dá.
Bom, provavelmente não por muito tempo, mas nós somos três. Ele está
tentando nos chutar, mas Hiro segura as pernas dele enquanto eu tento
segurar os braços e Helena o está encarando com uma expressão
ligeiramente assassina no rosto.
Então ela cospe na cara dele.
— Sua—
É ela quem dá o tapa agora e eu levanto a cabeça, porque ouço alguma
coisa do lado de fora. Um carro.
Vozes.
Não qualquer voz, mas a do meu pai e do sensei, e eles estão chamando os
nossos nomes.
— Aqui! — eu grito, mas não sei se eles vão ouvir e eu me viro para
Helena, que agora está imobilizando o próprio pai com o kesa-gatame, o
braço em volta do pescoço dele, o corpo todo não deixando que ele saia
dali. — Eu vou subir, vocês conseguem ficar segurando? É um segundo.
Hiro e Helena fazem que sim e eu o solto, ficando de pé em um pulo e
correndo para a escada.
Assim que piso no primeiro degrau alguém grita alguma coisa e eu me
viro. Hiro está com as mãos no nariz, os olhos apertados, sangue escorrendo
pelo queixo. O pai da Helena se vira e consegue colocar a mão na cintura.
— Não! — eu grito, porque acho que ele vai mirar no Hiro, vai mirar na
Helena, mas é para mim que ele aponta o cano. Eu fico paralisado no lugar
só por um segundo antes de começar a correr, mas quando estou no meio da
escada há um estampido e eu sinto um calor se espalhar pelas minhas
costas. A dor explode e eu perco o equilíbrio.
Acho que caio, mas não tenho certeza.
Quando olho para cima, meu pai está vindo correndo na minha direção e a
última coisa que eu consigo ouvir é uma sinfonia de vozes diferentes
gritando meu nome enquanto tudo gira, gira, gira, até desaparecer.
2019
A vida é como uma caixa de bombons.
I

Parece que eu estou caindo, caindo e caindo, como quando a gente percebe
que está ficando inconsciente antes de finalmente perder a consciência de
vez.
Exceto que as minhas costas parecem em chamas e eu tenho a sensação de
que vou vomitar.
De repente, meu corpo para com um tranco e quase caio. A escuridão total
em que eu estava não está mais tão escura assim, e escuto barulho.
Muito barulho.
Não quero abrir os olhos, não de cara, porque sei onde eu estou (pelo
menos acho que eu sei), mas não sei se estou preparado para o que vai
acontecer em seguida, para o que eu vou ver quando abrir os olhos. Porque
dessa vez é isso. Sem corações extras. O que aconteceu, aconteceu.
Muito devagar eu decido que é melhor abrir os olhos, que não vai adiantar
nada ficar adiando, e a luz do fliperama vai aos poucos invadindo minhas
pálpebras.
Eu pisco, olhando para a tela.
Preta. Vazia.
Sem nada.
Tento apertar os botões, mas não acontece nada, é como se ela estivesse
desligada, e é meio engraçado pensar naquilo, porque ela obviamente não
está ligada na tomada. Nunca esteve.
Um homem com o uniforme do fliperama, Blue Zone agora, passa por trás
de mim e aponta casualmente para a máquina.
— Tá em manutenção, moço. Faz um tempo que não liga.
Tenho vontade de rir ou gritar na cara dele, não sei direito.
Ainda assim, fico olhando para a tela como se não estivesse entendendo,
porque eu sei que ela liga, ela ligou nos últimos dias. Eu sei que não
imaginei tudo isso. Imaginei?
Olho para as minhas mãos, depois me lembro. O calor. O tiro.
Levanto a camiseta e olho para a lateral do meu corpo, corro as mãos
pelas minhas costas procurando por uma cicatriz e—
— Adriano?
Alguém me chama, mas eu não reconheço a voz, não imediatamente. A
única coisa que passa pela minha cabeça é que se tem alguém me chamando
eu não posso ter ficado maluco. Alguém sabe quem eu sou.
Eu me viro, sem saber quem esperar, e dou de cara com uma mulher
vindo na minha direção. Ela está usando calça jeans, um tênis baixinho e
uma blusinha verde. Tem longos cabelos muito escuros, as feições fortes, e
meu estômago se revira quando a reconheço. Ela vem, sorrindo, e eu não
estou entendendo mais nada.
— Helena?
Minha voz parece estranha saindo da minha boca, grossa demais, e ela
fica me olhando, as sobrancelhas franzidas, como se esperasse que eu
dissesse mais alguma coisa. Uma explicação, talvez.
— Ahn… oi? — arrisco.
— Oi? — ela olha para mim meio incrédula, as mãos na cintura, e eu
sinto que fiz alguma coisa errada, como sempre. — Eu saí do banheiro e
fiquei te esperando, e aí quando você não saiu eu decidi te procurar. Juro
que achei que você tivesse desistido de ver o filme comigo e tinha ido
embora, me dado um bolo, sei lá. Você não olha o celular, não?
Na verdade, nem tinha me ocorrido olhar o celular, porque eu meio que
esqueci que ele existia.
Fico quieto, tentando entender o que está acontecendo, Helena me
encarando, nada daquilo fazendo sentido.
— Tá tudo bem? — ela pergunta, e seus olhos se movem para a tela do
fliperama. — O que você tava jogando? Essa máquina é super velha.
Dou um sorrisinho amarelo, pronto para falar que eu só me sentei ali para
descansar, porque ela deve ter percebido que a máquina não está desligada,
mas, quando me viro, tem uma mensagem na tela.
Uma mensagem que me dá um frio na barriga.

Você venceu.

II

Eu respiro fundo, meio trêmulo, e quando olho para minhas mãos, elas
estão tremendo também. Não consigo me mexer, essas palavras são tudo o
que eu consigo ver na minha frente.
— Dri? — ela chama. Ela nunca me chamou de Dri. — Tá tudo bem
mesmo? Você… você tá chorando?
E eu meio que estou, as mãos no rosto, e Helena vem até mim, seus
braços me envolvendo, dando tapinhas nas minhas costas como se não
soubesse o que fazer direito e—
— Meu Deus, se você não quer ver o filme é só falar.
Dou uma risadinha e ela puxa as mãos do meu rosto, me fazendo encará-
la. Ela está bem ali, abaixada na minha frente, e eu não sei o que está
acontecendo, tenho medo de perguntar. Tenho medo de que eu esteja
imaginando tudo.
— Você… quer conversar?
Faço que não, porque não quero, não agora, não ainda. Ela me olha como
se estivesse me estudando, os olhos meio estreitos, e quase tenho a
impressão de que ela consegue ver, o Adriano de antes e de agora num
corpo só.
Eu não sei o que está acontecendo, não faço ideia do que está
acontecendo, mas seja o que for, acho que o meu eu de onze anos decidiu
não ser um bostinha, no fim das contas.
— A gente precisa correr, então — ela diz —, já deve tá passando os
trailers.
Eu limpo o rosto e me levanto. Nós corremos, um atrás do outro feito dois
idiotas, e eu deixo Helena me guiar pelos corredores até a gente finalmente
chegar na porta do cinema.
Fico um pouco ofegante e sinto uma ligeira saudades da minha forma
física de 1997, e respiro fundo algumas vezes antes de fazer a pergunta
óbvia.
— Que filme a gente vai ver? — pergunto, mesmo sabendo que pode soar
estranho. Eu posso explicar depois, posso fazer o que eu quiser depois.
— Foi você que escolheu! — ela diz, mostrando o ingresso no celular
para a moça do guichê.
— Eu sei, mas… acho que esqueci.
Helena me olha com cara de quem duvida muito e a moça do guichê nos
deixa passar. O corredor encarpetado está vazio, os sons dos outros filmes
vindo de salas diferentes. Ela me puxa para a última sala, XMAX ou coisa
assim, e quando abre a porta, somos engolidos pela escuridão.
Há luzinhas de LED coladas na lateral dos carpetes e ela para, apontando.
— Parece… lembra do planetário?
Lembro. Eu lembro de tudo.
— Como se fosse ontem — digo, e ela cutuca minhas costelas com um
sorrisinho, depois vai cinema adentro.
Nós subimos os degraus até a última fileira e nos sentamos, meu coração
ainda na minha boca. Devagar, as luzes vão diminuindo, conforme o último
trailer acaba.
— Helena? — chamo, e ela se vira para mim. — Sério, que filme a gente
decidiu ver?
— Você decidiu ver, você quer dizer.
— Tá, que filme eu decidi ver?
Alguém começa a falar na tela, mas só consigo prestar atenção em como
seus olhos escuros refletem o filme direto para mim. Isso não pode estar
acontecendo. Ela está aqui. Nós estamos aqui.
— Sei lá, é uma ficção científica sobre viagem no tempo. Você insistiu.
Muito.
Claro, penso comigo mesmo, enquanto Helena dá um sorrisinho, se
virando para o filme que está começando.
Claro que insisti.

III

Nós jantamos depois do filme, dentro do shopping mesmo, e eu pergunto se


ela precisa de uma carona para casa.
— Eu posso chamar um Uber — ela diz, e acho que meu rosto denuncia a
minha decepção, porque Helena tenta abrir um sorrisinho. — Ao menos que
você queria me levar pra casa?
Sinto um frio no estômago. Eu quero? Não sei. Não sei mais de nada.
— Você ainda lembra onde eu moro? — ela pergunta quando entramos no
Gol prata, o mesmo de hoje mais cedo e de vinte e dois anos atrás. Espio o
farol de trás. Não está quebrado dessa vez.
— Se for no mesmo lugar que você morava quando era criança.
Ela faz que sim.
— Depois que a minha avó morreu eu voltei pra cá. A casa era do meu
pai, então acabou passando pra mim. Mas se você quiser… quer dizer, se
você não se sentir bem em ir pra lá, não precisa, Dri, sério, depois do que
aconteceu…
Engulo em seco, a dor do tiro parecendo latejar nas minhas costas.
— Não tem problema — digo. — Faz tempo, eu te deixo lá.
Nós vamos em silêncio. Não sei se é porque não tem nada para nos
distrair, não tem filme, não tem comida, e agora a gente não sabe o que falar
nem como se comportar direito.
De novo tenho a sensação do meu estômago embrulhando quando
entramos no bairro, e eu e Helena trocamos um olhar no mesmo instante
quando passamos em frente à quitanda (bom, do lugar onde era a quitanda)
dos pais do Hiro.
— Lembra do Hiro? — Helena pergunta, seus olhos grudados na porta de
rolar fechada enquanto o carro avança. Está pichada agora. — E do sensei
Naka do judô?
— Aham.
— Eram eles que me levavam pro judô. Eu acho que o sensei sabia — ela
diz, voltando a encarar a rua lá na frente — do meu pai. Do que ele fazia
comigo, porque ele sempre me levava pra academia, como se quisesse me
tirar da minha casa, sabe? Tenho saudades deles. Do Hiro. Ele ainda tá no
Japão, em Tóquio.
Então ele está bem. Graças a Deus ele está bem.
— No Japão?
— É, ele casou. Parece que teve um filhinho. Não que eu esteja
stalkeando ele nem nada, eu só vi meio sem querer. Sei lá, acho que tenho
sentido mais saudades dele ultimamente.
Lembro do jeito como o Hiro ria, tão recente e tão distante ao mesmo
tempo, como odiava quando eu falava palavrão na presença dele. O jeito
que ele surtou com a cerveja todas as vezes que soube que eu estava
bebendo. De alguma forma eu o vi hoje mais cedo, e agora ele está do outro
lado do mundo.
Suspiro.
— Eu também.
Viro na rua da casa dela e paro o carro bem em frente ao portãozinho. O
mesmo. Mas daquela vez não consigo deixar de notar que ele não está
enferrujado, muito pelo contrário. Está pintado de branco, novinho, a luz do
poste refletindo no brilho da tinta.
Olho para a casa em si, e está tudo tão diferente. É estranho, porque é a
mesma casa, eu sei que é, mas não parece. A grama está perfeitamente
aparada, tem até um flamingo rosa de enfeite, uns vasinhos de flores. O tipo
de coisa que eu nunca pensei que a Helena gostasse, mas que talvez, no
fundo, ela só não tenha tido tempo de gostar antes.
Não dá para ter certeza, porque está escuro, mas parece que ela pintou a
parte de fora da casa de lilás. Lilás e branco.
— Tá tudo bem? — ela pergunta, me olhando meio preocupada, e eu faço
que sim. — Quer entrar?
Minha respiração fica um pouco trêmula e ela percebe. Acho que não sei
mais me comportar como uma pessoa adulta.
— Dri, se você não quiser—
— Não, tudo bem. Eu entro.
Helena olha para mim por um longo segundo, depois sai do carro. Eu vou
atrás dela, meus olhos disparando de um lado para o outro, porque é como
se eu tivesse estado aqui apenas umas horas atrás e agora tudo está tão
diferente e—
Ela abre a porta e acende a luz.
E é tudo tão colorido. Nunca pensei na Helena como uma pessoa colorida,
mas quando ela se vira para mim com um sorriso no rosto eu percebo que
isso é exatamente o que ela é.
— Que foi? — ela pergunta quando eu não me mexo, ainda na soleira da
porta.
— Nada. A casa tá… muito bonita.
Ela sorri e faz sinal para eu entrar.
As paredes estão pintadas de cores diferentes, o cheiro de tinta está por
toda parte e tem quadros pela casa toda. Parece que ela se mudou de volta
há pouco tempo.
— Foi você que pintou? — pergunto, andando na direção deles. São todos
retratos, pessoas, cores em todo lugar.
— Eu gosto de pintar.
— É incrível, é… — Olho pra ela. — É lindo.
Continuo andando, indo de um quadro para o outro, até que meus olhos
param em um que eu conheço muito bem e um frio se espalha pelo meu
estômago. Definitivamente não sei mais ser adulto.
— Sou eu?
Eu sei que é, porque é igual ao desenho que eu vi aquele dia no quarto
dela, há tão pouco (e há tanto) tempo atrás.
Exceto que agora eu também sou uma explosão de cores, azul, rosa e
amarelo.
— Eu não tinha uma foto mais recente — ela diz, braços cruzados do meu
lado, seu corpo apoiado na parede casualmente. Ela é maior que eu, só um
pouco, mas ainda é. — Teve uma coisa que eu sempre quis te perguntar.
Respiro fundo, tentando fingir que estou estudando o quadro. Corro os
dedos pelas camadas grossas de tinta, e olho para ela só por um segundo
antes de voltar a me ocupar com a pintura.
— Pode perguntar.
— Você sempre foi um babaca comigo—
— Helena…
Ela coloca a mão no meu braço.
— E de repente as coisas mudaram — ela continua. — Numa semana
você tava rindo de mim e me fazendo tropeçar no corredor, na outra você
tava me defendendo dos seus próprios amigos. Você lembra aquele
domingo? Que você foi com o Hiro lá em casa?
Faço que sim, os dedos dela ainda tocando de leve na minha pele.
— Tinha alguma coisa estranha com você. O jeito como você me olhava,
como se de repente estivesse me enxergando de verdade pela primeira vez.
Suspiro, balançando a cabeça.
— Desculpa. Eu era um imbecil, Helena, eu não sabia… Eu não reparei
nas coisas que tavam acontecendo com você.
— Muita gente não reparou. Ou pelo menos fingiu que não — ela diz,
enfiando a mão no bolso da calça. Ela puxa alguma coisa dali e quando abre
a mão, tem uma moeda em sua palma. Ela coloca a moeda entre o polegar e
o indicador, depois faz com que ela passe por cima do dedo, para o dedo
médio, até chegar com a moeda no mindinho. — Lembra? Eu aprendi.
Ela estende a moeda para mim e eu a pego.
É uma moeda de um real, o ano inscrito é 1996.
— Não acredito que você guardou essa moeda.
— Eu queria aprender. Mas é mais que isso, é… no dia que eu dormi na
sua casa você falou uma coisa. Sobre o meu cabelo. Sobre 2019. Eu não
entendi e não fazia sentido, mas acho que é por isso… não sei, que eu
decidi voltar pra cá, depois de tanto tempo. Acho que eu queria ver você.
Acho que eu precisava ver você pra saber se era verdade.
Ela estreita os olhos e me olha daquele jeito de novo, como se eu fosse
uma das pinturas na parede dela que ela está tentando entender.
— É você, não é? Daquele dia? Daquela semana. Tinha alguma coisa
diferente em você quando eu saí do banheiro e te achei naquele fliperama
hoje.
Minhas bochechas esquentam e eu não sei o que responder, porque eu não
sei o que ela vai achar se eu disser que sim. Nada está fazendo muito
sentido.
— É uma longa história — eu digo, estendendo a mão para devolver a
moeda. Quando nossos dedos se tocam, ela enrosca os dela nos meus,
assentindo.
— Acho que é uma história que eu quero ouvir.
Um frio se aloja no meu estômago e eu engulo o nó na minha garganta.
— Acho que é uma história que eu quero contar.
Seis meses depois

— Mãe — eu digo, pela milésima vez nas últimas duas horas —, não
precisa exagerar, não vai ter ninguém lá.
Minha mãe está na frente do espelho se arrumando e me ignorando
completamente. Já disse que não tem por que exagerar, que vai ser só nós
três, eu, ela e a Helena, mas ela está se arrumando como se estivesse indo
para um casamento.
Saio do quarto revirando os olhos. Ouço barulho na cozinha e vou até lá.
— Que foi? — Helena pergunta, um copo de água nas mãos.
— Minha mãe, se arrumando como se fosse pro casamento da rainha.
Ela sorri e vem na minha direção, me dando um beijo rápido. Certas
coisas aconteceram desde que eu voltei.
— Não é culpa dela se ela tem um filho meio desnaturado.
— Eu não sou desnaturado.
— E você devia ficar feliz — Helena continua, me ignorando
completamente —, deixa ela aproveitar, depois de tudo o que ela passou.
Tiro o copo da mão de Helena e dou um gole também, fazendo uma
careta, embora ela tenha razão. Quase seis meses que a minha mãe não
precisa voltar para o hospital e é um alívio. Algumas coisas mudaram,
outras não. Ela acabou passando o aniversário na cama e acho que agora
quer compensar com o meu.
— Vou lá ver se ela precisa de ajuda — Helena diz, e me deixa sozinho na
cozinha. Puxo o celular do bolso para ver se tem alguma mensagem, e vejo
que tem duas. Uma é do Hiro, a outra (e não consigo deixar de sorrir
quando olho para foto na minha tela) é do meu pai.
Abro a do Hiro primeiro.
Feliz aniversário!, está escrito. Queria poder te dar um abraço, mas
aproveita com a Helena por mim.
Respondo com um obrigado. Também queria que ele pudesse estar aqui.
Suspiro e abro a do meu pai em seguida. Eu meio que esperava que ele
fosse me ligar, mas acho que ninguém mais liga hoje em dia para desejar
feliz aniversário. Ele se mudou para a Bahia e ainda não consegui vê-lo
depois de tudo que aconteceu.
Mas pelo menos ele está bem. É tudo o que importa.
Parabéns, filho — ele escreve e coloca uma carinha feliz — Te amo.
Aparentemente ele continua sem saber o que dizer direito.
É estranho, porque eu tenho lembranças do que aconteceu nesses vinte e
tantos anos que passaram, dessa… versão de mim, eu acho, mas também
tenho lembranças de antes, e às vezes elas se misturam. Veio aos poucos,
quase como um sonho nebuloso, e talvez as memórias antigas um dia se
apaguem. Ou talvez não. Acho que não seria a mesma coisa se elas
desaparecessem.
Eu ainda trabalhava no Balão Mágico quando voltei, mas pedi demissão,
porque acho que já tive minha cota de crianças para o resto da vida.
Comecei um curso de T.I. Eu e a Helena estamos planejando morar juntos
no fim do ano.
Suspiro, esfregando os olhos.
Espero uns dez minutos e começo a achar que minha mãe não vai sair do
quarto nunca.
— Dona Tábata! — chamo com um grito. — Vão passar a nossa mesa pra
outra pessoa, quer se apressar?
Ela não responde, mas dá para ouvir um resmungo. Um pouco depois ela
sai, finalmente, Helena ao seu lado, definitivamente parecendo que vai para
um baile de gala e não para um rodízio italiano. Helena encolhe os ombros
e eu desisto de fazer qualquer comentário. É melhor a gente ir, de qualquer
forma.
O restaurante não fica longe e, milagrosamente, a gente chega só dez
minutos atrasados do horário que eu reservei. A recepcionista nos guia
pelas mesas, todas com toalhas quadriculadas em vermelho e verde, as luzes
quentes pendendo do teto de madeira.
— Podem ficar à vontade, já vão trazer os aperitivos — ela diz, enquanto
eu olho para a mesa.
— Por que tem tanto lugar? — pergunto, quando a moça vai embora.
Odeio todas aquelas cadeiras vazias e a Helena sabe disso. — Eu não
reservei todos esses lugares, reservei três. Especificamente.
Helena encolhe os ombros como quem não sabe o que está acontecendo,
mas que também tanto faz, e se senta. Eu me sento ao lado dela,
ligeiramente perdido e incomodado, e quando tento tocar no assunto de
novo, porque quero cobrir aquelas cadeiras com alguma coisa, talvez tirá-
las dali, ela olha para o relógio e coloca o menu de bebidas na minha mão.
— Vai, escolhe alguma coisa.
Estreito os olhos para ela, porque sei que ela está me ignorando de
propósito, mas começo a olhar as bebidas. Do meu lado, o celular dela toca,
mensagem. Quando estico os olhos para ver quem é, assim, como quem não
quer nada, Helena afasta o braço de mim.
— Larga mão de ser curioso.
— Não sou curioso, você que tá esquisita.
Ela me dá uma cotovelada de leve e eu tento me concentrar no menu de
novo, mas não consigo deixar de reparar que ela está sorrindo para a tela do
celular e não quer me contar o que está acontecendo.
— Já escolheu? — ela pergunta, apagando a tela do celular antes de
deixá-lo em cima da mesa.
Na verdade não, mas eu finjo que sim.
— Pode ser suco de uva.
Nem sei se tem suco de uva no menu, mas é um restaurante italiano, então
deve ter, e enquanto estou esperando a bebida chegar tenho o primeiro sinal
de que tem alguma coisa acontecendo. Quando olho pela janela, posso jurar
que estou vendo o Kaike atravessando a rua e vindo para o restaurante.
Pode ser só uma coincidência, é claro, mas quando ele de repente aparece
na porta e a recepcionista aponta para a nossa mesa, eu sei que não é.
— O que é que tá acontecendo? — pergunto, tentando sussurrar para ele
não ouvir. — Eu não lembro de ter convidado o Kaike.
Helena me olha como se eu tivesse dez anos e estivesse dando trabalho.
— Adriano, ele é seu amigo.
— Eu sei, mas—
— Vai cumprimentar ele.
Eu vou, porque não quero que a situação fique desconfortável, e ele me
abraça para me desejar feliz aniversário e me entregar um presente, o que é
estranho. Depois cumprimenta Helena com um beijo no rosto, o que é mais
estranho ainda.
Ele tenta puxar conversa comigo, eu acho, mas estou ficando ansioso.
Sabe aquela sensação de que alguma coisa está prestes a acontecer, mas
você não tem certeza do que, e seu raciocínio para de funcionar direito?
Pois é.
O garçom vem um pouco depois, deixa um pratinho de bruschetta na
nossa mesa e coloca o suco de uva na minha frente. Pego uma e estou
prestes a dar uma mordida quando a moça da recepção vem na nossa
direção, alguém atrás dela.
Eu o reconheço imediatamente, mesmo com os cabelos meio brancos,
porque o sensei Naka, mesmo de calça jeans e camiseta, anda com os
ombros meio baixos como se estivesse entrando num tatame para derrubar
alguém.
Olho para Helena, que encolhe os ombros com um sorrisinho.
— Foi você que fez isso? — pergunto, mas ela está me empurrando para
eu levantar.
— E não é que você continua baixinho? — o sensei diz me pegando em
um abraço, e eu estou completamente perdido. — Aposto que a Helena
ainda te derruba facinho, facinho.
Ela se levanta para abraçá-lo também.
— Você não faz ideia — ela diz, me fazendo ficar vermelho.
O sensei cumprimenta minha mãe, cumprimenta o Kaike, e depois se
senta.
— Por que você não me avisou que eles iam vir? — pergunto para a
Helena, olho para minha mãe. Nenhuma das duas diz nada e meu estômago
ainda está revirando.
Tento me acalmar, tomo um gole de suco enquanto o sensei conversa com
a Helena, e dou uma mordida na bruschetta antes de quase deixar minha
torrada cair, porque a recepcionista está apontando na nossa direção de
novo e—
Olho para Helena e vejo que ela está rindo. Minha mãe também.
Aquelas filhas da mãe.
Hiro está na porta do restaurante. Eu não consigo acreditar. Não pode ser,
ele devia estar no Japão, ele—
— O que você tá fazendo aqui? — é tudo o que eu consigo perguntar
quando ele se aproxima, mas já estou de pé e quase caio quando tropeço na
cadeira. Hiro me segura, como sempre, como sempre, estando do meu lado
nos momentos certos.
— Feliz aniversário, Dri.
Meus olhos começam a arder e eu o pego em um abraço apertado. Ele
cresceu, continua mais alto que eu porque todo mundo continua, está
mesmo usando os óculos que ele não queria usar e eu não tenho certeza se
aquilo está mesmo acontecendo.
Quando finalmente saio do abraço e limpo os olhos na manga, percebo
que ele não está sozinho. Tem uma mulher com ele, e ela está de mãos
dadas com um menininho que deve ter uns três ou quatro anos.
— Essa é Júlia — ele diz, e eu a cumprimento com um beijo no rosto. Eu
já vi fotos dela com o Hiro, pele morena e os cabelos encaracolados.
— Prazer te conhecer de verdade — digo, e depois olho para o Hiro. —
Quem diria que você ia pro Japão pra casar com uma brasileira.
Eles riem e Hiro coloca as mãos na cintura.
— Meus pais dizem a mesma coisa.
— E quem é esse aqui? — pergunto, me abaixando. Estendo a mão para o
menininho. Ele tem os olhos puxados do Hiro, a pele morena da mãe e os
cabelos dele parecem ter decidido ficar no meio do caminho entre os dois.
Ele olha para o Hiro, como se pedisse permissão ou quisesse ter certeza de
que é seguro interagir comigo. Hiro assente e o menininho bate na minha
mão com um sorriso que, eu juro por Deus, é igualzinho ao dele.
— Esse é o Eiji — Hiro diz, e agora o menino está olhando para mim com
o dedo no nariz.
Eu enfio a mão no bolso e me abaixo.
— Amor, não — Helena diz, me cutucando, mas eu sei que ele vai adorar.
As crianças sempre adoram.
Eu mostro a moeda para ele, faço-a “desaparecer” e depois “aparecer” na
orelha dele.
Eiji imediatamente começa a chorar.
— Desculpa! — digo, me levantando, sem saber se devo pegá-lo no colo
ou o que, mas Júlia é mais rápida e o pega primeiro, balançando-o de um
lado para o outro. Aos poucos ele vai se acalmando e a garçonete traz uma
daquelas cadeirinhas de crianças.
— Ele vai chorar assim se eu ensinar palavrão pra ele?
Hiro arregala os olhos, como eu sabia que ele ia fazer, e a esposa dele ri
enquanto coloca o Eiji na cadeirinha, uma risada gostosa.
— Brincadeira — digo, embora eu não tenha certeza de que é mesmo.
Seria engraçado. Helena se levanta e abraça o Hiro também. — Vai, vamos
sentar. Há quanto tempo vocês voltaram? Por que eu não sabia?
Eles se sentam do outro lado da mesa, ao lado do sensei.
— Faz só uns vinte dias — Hiro diz. — Eu queria te contar, mas a Helena
me falou do seu aniversário e de como ela queria fazer surpresa.
Olho para ela, olhos estreitos. Claro. Agora aquelas cadeiras todas fazem
sentido, exceto que não, porque ainda tem duas vazias e—
— Ah, não.
Eu me viro, porque ouço vozes na recepção de novo, uma voz que eu
reconheço na mesma hora, mesmo que agora ela esteja um pouco mais
rouca do que eu me lembro. Tem um bolo na minha garganta, porque de
jeito nenhum a Helena e a minha mãe fizeram aquilo, de jeito nenhum ela
conseguiu e—
Meu pai vem andando na minha direção.
Prendo a respiração, tudo de repente em câmera lenta. Eu tinha falado
com ele nos últimos meses, a gente tinha trocado mensagens, nenhum de
nós dois gosta muito de falar no telefone, mas… Eu coloco a mão no rosto e
meus olhos ardem de novo. Daquela vez eu não consigo me levantar, as
lembranças de tudo o que aconteceu me inundando, todas aquelas vezes, e é
ele que precisa esfregar meu ombro e me ajudar a levantar.
Ele me pega em um abraço enquanto eu ainda estou com as mãos no
rosto, e então eu o envolvo também, e acho que nunca abracei alguém tão
forte na vida, meus dedos apertando a camisa dele, minha cabeça em seus
ombros.
Nós ficamos daquele jeito abraçados por não sei quanto tempo, e quando
finalmente nos soltamos eu não tenho certeza se alguém nessa mesa sabe o
que isso significa.
— Feliz aniversário, filho — ele diz, limpando meu rosto como se eu
tivesse onze anos de novo, como se eu tivesse e caído e me ralado todo.
Talvez eu tivesse, todo esse tempo. Ralado, cutucando a casquinha sem
parar.
Limpo os olhos e olho para a mulher ao lado dele, as alianças nos dedos
dos dois, e lembro do dia em que ela entrou no apartamento do meu pai
escondida. Eu a abraço também. A gente se senta e eles cumprimentam
minha mãe, um olhar cordial entre eles três.
Tem tanta coisa para falar, tanta conversa para colocar em dia, que quando
o bolo chega (eu nem sabia que ia ter bolo), as velinhas formando o número
34 (eu estou definitivamente velho) e eles cantam parabéns, tudo parece
estar passando rápido demais.
— Vai, faz um discurso.
Olho para a Helena, porque é claro que ela ia dar uma ideia dessas.
— Eu odeio discurso.
— Larga mão de ser chato, Adriano — minha mãe diz, apoiando, aquela
traidora. — Tá todo mundo aqui, vai.
Quero protestar, mas olho para todo mundo sentado ao meu redor. Todo
mundo bem ali, esperando que eu diga alguma coisa.
Tem um nó na minha garganta que eu preciso engolir antes de começar a
falar, sem nem saber muito bem o que dizer.
— Bom, primeiro eu queria dizer que não acredito que todos vocês estão
aqui — começo. — Quer dizer, até algumas horas atrás eu achava que o
Hiro tava no Japão. — Eles riem, meu coração começa a acelerar. — É
engraçado esse tipo de coisa, né? Não dá pra saber pra onde a gente vai ou
qual o caminho que as nossas vidas vão seguir, e acho que várias vezes a
gente se pega perguntando e se? E se… e se eu pudesse fazer as coisas de
um jeito diferente? E se eu pudesse voltar e fazer tudo de novo? — Olho
para todo mundo sentado. A Helena, o Hiro, o sensei, o Kaike, meus pais.
Respiro fundo mais uma vez. — Nem sempre dá tempo de consertar as
coisas e nem sempre a gente acerta de primeira, mas… acho que nada
nunca é perfeito, é? Nada nunca vai ser. — Helena coloca a mão sobre a
minha e tenho que engolir outro nó. — A gente cai, se rala todo, e vão ficar
cicatrizes. Mas elas são importantes, porque no fim das contas acho que são
elas que fazem a gente ser quem a gente é. Definitivamente fazem quem eu
sou agora. Enfim. Eu só acho que… olhando pra vocês aqui agora… que se
eu pudesse voltar no tempo e fazer tudo de novo… — Eu os encaro, um a
um. — Eu acho que faria tudo exatamente do mesmo jeito.
E daquela vez, quando olho para todos aqueles rostos sorrindo de volta
para mim, nenhuma cadeira está vazia.
Sobre a autora

Juliana Giacobelli nasceu em São Paulo em 1989. É formada em Biologia e


Editoração, mas gosta mesmo de contar histórias.
Você pode encontrá-la no Instagram em @jgiacobelliescreve.

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