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Sofrer em Silêncio

Sofrer em Silêncio

M Delly
SOFRER EM SILÊ NCIO
Author: Delly
Coverdesign: Lucia Shaw
Traduçã o de HUMBERTO A. SANTOS
EDITORA LIVRARIA PROGREDIOR PORTORESERVADOS TODOS os
DIREITOS DE TRADUÇÃ O E PUBLICAÇÃ O EM LÍMGUA PORTUGUESA
(PORTUGAL E BRASIL)

No original o título desta obra é:


LÊ S SOLITAIRES DE MYOLS
Capítulo 1

5
Era um jardim dum convento nos arrabaldes de Paris. Alguns ruídos
da grande cidade chegavam por cima dos velhos muros escuros,
cobertos de trepadeiras, mas sem conseguirem perturbar a quietude
do recinto ensombrado e fresco, onde as aves gostavam de
permanecer, seguras de nã o serem incomodadas naquele segundo dia
de férias, em que as ú ltimas alunas das Irmã s Dominicanas se iam
embora.

Apesar disso, duas jovens passeavam lentamente numa â lea


protegida. Penetrando a folhagem espessa dos castanheiros, o sol
conseguia fazer atravessar alguns raios dourados, que vinham
encontrar os cabelos alourados e vaporosos duma das alunas, e os
cabelos castanhos, um pouco rebeldes, da outra. Esta ú ltima tinha uma
fisionomia animada e alegre, e conversava com extrema vivacidade. A
companheira respondia-lhe calmamente, com certa melancolia, e no
seu encantador rosto de tons suaves notava-se alguma tristeza ou até
ansiedade.

Sem dú vida que gosto do convento e de todas as nossas boas Irmã s


dizia a morena, mas enfim, é bem natural que me sinta contente por
viver de hoje em diante perto da mã ezinha e do meu irmã o

5 Armando, de ir conhecer a sociedade, como espero fazê-lo no


pró ximo inverno. E tú também, nã o é assim, querida Huguette? Nã o é
uma coisa tã o boa que o meu irmã o tenha sido nomeado precisamente
substituto em Vonsset? O castelo de Myols fica muito pró ximo e ver-
nos-emos muitas vezes, nã o?

Espero que o meu tutor o consinta replicou Huguette em tom


pensativo.

A companheira parou e fitou-a com surpresa.

6
Duvidas? Nã o me disseste que o senhor de Armilly te parecia muito
bondoso?

Com certeza, julgo-o bondoso, leal e um homem honesto,


acrescentarei mesmo que toda a minha vida senti por ele uma
instintiva e inteira confiança, mas no fundo, conheço-o muito pouco,
Lauriana. Em oito anos, só o vi por duas vezes no palrató rio, durante
uma meia hora. Nunca me convidou a ir a Myols, e todas as minhas
férias foram passadas aqui ou em casa da família das minhas amigas.
Acho isto um pouco singular e confesso que sinto certa apreensã o pela
existência que o futuro me reserva. Pensei muitas vezes que seriam a
mã e e as irmã s que impedissem o senhor de Armilly de me receber,
julgando que o iria incomodar. E sendo assim, como me irã o receber
agora, se na realidade a minha presença lhes for imposta pelo meu
tutor? Confesso-te, Lauriana, que estou um pouco inquieta.

Lauriana nã o respondeu. Sentia-se um pouco confusa por estar tã o


satisfeita, por ter à sua espera uma existência feliz, ao passo que à
encantadora Huguette, tã o delicada, a esperava o desconhecido.

As duas jovens caminharam por instantes em

6 silêncio. Lauriana tornara-se pensativa e observava de través a


amiga, cujos belos olhos estavam um pouco velados pela tristeza.
Aqueles olhos, dum azul violeta, aveludados e profundos, revelavam
toda a alma de Huguette de Armilly, séria, terna e forte. Foi Lauriana
quem tornou a falar, pousando afectuosamente a mã o no ombro da
companheira:

Ora vamos, Huguette, para que te atormentares com antecedência?


Podem ser originais os teus parentes, mas no entanto serem bons.
Aliá s, conheces já o teu tutor... Que pessoas moram nesse castelo de
Myols?

A senhora de Armilly, mã e do meu tutor; e as suas quatro irmã s, de


quem conheço apenas os nomes: Berta, Â ngela, Clotilde e Silvina. Sei
apenas que a Clotilde é cega. Há ainda a viú va do irmã o mais velho do

7
meu tutor, a senhora Rosemonde de Armilly, e o filho, um rapazito de
doze anos, creio.

Oh! mas é uma numerosa família! A existência deve ser alegre em


Myols, Huguette!

Nã o sei, mas em todo o caso o meu primo nã o o parece. É até muito


frio e pouco comunicativo. Talvez tenha qualquer secreto desgosto...
Enfim, Deus vela por mim, e confio-me inteiramente a Ele, pois doutro
modo, Lauriana, confesso-te que andaria bem apreensiva ao deixar
esta casa, as Irmã s tã o boas e as amigas de que tu és a mais querida.

Lauriana deu-lhe um abraço com a sua vivacidade costumada.

E eu quero-te tanto! Vamos ser vizinhas, e contar-me-á s as tuas


tristezas, se as tiveres. E depois” casar-te-á s em breve...

7A apariçã o duma Irmã no fim da â lea interrompeu a jovem.

Pedem para a menina Delbeanme ir ao locutó rio dissera numa voz


adocicada. Obrigada, Irmã Rosa. É a ú ltima vez que a faço correr... Até
breve, querida Huguette... Até breve em Vousset, sim?

Tinha-me esquecido! Também esperam a menina de Armilly


interrompeu a Irmã , batendo na testa.

Que sorte! Huguette, vou-te apresentar o meu irmã o! exclamou


Lauriana com satisfaçã o. Verei o teu tutor e dar-te-ei a minha
opiniã o...

Huguette sorriu-se da alegre vivacidade da amiga, e deixou-se arrastar


para o locutó rio. Entraram juntas, e os que as esperavam tiveram um
movimento de surpresa ao ver aparecer aquelas duas jovens,
igualmente graciosas, se bem que pouco parecidas: Lauriana
Delbeaume, forte, esbelta, morena, de olhos negros e vivos; Huguette
de Armilly, pequena, um pouco pá lida, loura e encantadora, duma
distinçã o pouco comum no menor gesto.

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Lauriana correu para um rapaz moreno como ela, e com o qual se
parecia bastante. Huguette encaminhou-se para um canto do
locutó rio, onde estava sentado o senhor de Armilly, seu tutor, e uma
senhora que lhe era desconhecida.

Os dois levantaram-se, e o tutor estendeu-lhe a mã o,

Como tem passado, Huguette, desde a minha ú ltima visita? perguntou


ele numa bela voz grave, que condizia com a alta estatura e aparência
severa”

8Bem, obrigada, primo agradeceu Huguette com a timidez que a


invadia sempre na presença do tutor.

Apresento-lhe a  ngela, minha irmã disse o senhor de Armilly.

Huguette ergueu os olhos para a prima. Observou um belo rosto,


pá lido e fatigado, de cabelos castanhos, olhos muito azuis, com
expressã o altiva, se bem que fatigada. Â ngela, alta e magra, trazia com
distinçã o um vestido excessivamente simples.

Sinto-me contente por a conhecer, prima Huguette disse ao estender-


lhe a mã o.

A voz era meiga, bastante cordial, e uma sombra dum sorriso passou-
lhe pelos lá bios pá lidos. Atraiu Huguette para si e deu-lhe um beijo
ligeiro.

Parece mais nova do que é, Renato acrescentou, voltando-se para o


irmã o,

Um pouco, sim... Entã o, Huguette, vem connosco para Myols?

Pareceu à jovem que certa tristeza vibrava na voz de Renato de


Armilly.

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Se o deseja, primo disse timidamente, No entanto, se vou incomodá -
los no que quer que seja, deixem-me aqui, pois nã o serei infeliz,
asseguro-lhes.

Os olhos negros de Renato, muito penetrantes, fitaram o rosto


delicado da pupila.

Certamente que ainda poderia ficar aqui por mais um ou dois anos,
mas no fim seria sempre necessá rio partir... e conhecer Myols.

Aquelas palavras pareceram atravessar-lhe com dificuldade os lá bios.

Por isso resolvemos levá -la, Huguette

9concluiu resolutamente. Faremos o que estiver nas nossas


possibilidades para a tornar feliz.,., nã o é verdade, Â ngela?

Faremos tudo o que pudermos disse gravemente  ngela, que nã o


tinha largado a mã o da prima. Está pronta, Huguette?

Estou, sim, prima. Queria dizer apenas um ú ltimo adeus à s boas Irmã s,
se mo permitirem.

Temos muito tempo disse Renato. Tudo o que tínhamos a fazer em


Paris está já feito e o comboio parte somente daqui a uma hora.

Huguette dirigiu-se para a porta. Ao ver isto, Lauriana, depois duma


palavra de explicaçã o ao irmã o, correu para a amiga.

Vai dizer adeus à s Irmã s? Eu também. O Armando quer levar-me já .


Vamos passar dois dias a casa duma prima, a Saint-Germain, e depois
partiremos para a Saboia, onde nos espera a minha mã e... O senhor de
Armilly pareceu-me muito bem... Um pouco frio e altivo, mas muito
bem, repito-o. Apenas julgava que era mais novo.

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Julgo que tem cerca de trinta e cinco anos. Mas parece ter na verdade
mais. Creio que sofreu”

Parece... A senhora, é tua prima?

É a  ngela, a do meio. Pareceu-me boa e amá vel, mas triste.

Também o notei, Tem provavelmente fraca saú de. Mas nã o me


pareceram uns monstros, Huguette, e espero que te sintas feliz entre
eles.

Um quarto de hora mais tarde, as duas jovens voltaram. Huguette,


vencendo a timidez, dirigiu-se para os primos levando pela mã o
Lauriana.

10Permitem-me que lhes apresente a minha melhor amiga, Lauriana


Delbeaame. Vai viver para muito perto de Myols, em Vousset,.,

E espero que permitam que a minha querida Huguette me vá ver


muitas vezes Exclamou Lauriana com a sua graça usual, se bem que se
sentisse um pouco constrangida pelo aspecto altivo do tutor de
Huguette.

 ngela fez um brusco movimento e os lá bios tremeram-lhe um pouco.


Uma contracçã o alterou por segundos o rosto de Renato de Armilly, e
os olhos tornaram-se-lhe um pouco sombrios. Mas antes deles
responderem, a viva Lauriana fez um sinal ao irmã o e este dirigiu-se
para o grupo apressadamente.

O meu irmã o, Armando Delbeaume, recentemente nomeado advogado


substituto em Vousset.

E satisfeito por conhecer alguém dessa bela regiã o, com que estou
entusiasmado disse o advogado amavelmente, estendendo a mã o a
Renato, depois de ter cumprimentado  ngela e Huguette.

11
A nossa regiã o é admirá vel respondeu friamente Renato. Terá ocasiã o
de dar magníficos passeios, menina.

Oh! fico satisfeita de antemã o! exclamou a jovem. Organizaremos


excursõ es e levaremos a Huguette. Nã o a impedirá , pois nã o, senhor?

De maneira nenhuma replicou dum modo singular Renato.

E este inverno faremos alguns serõ es. Dizem que a sociedade de


Vousset é amá vel. Â ngela, até entã o calada, replicou num tom seco,
onde perpassava uma indefinível amargura

11 Amá vel, na verdade. Será muito bem acolhida.

Tanto melhor! E promete-me dar a Huguette muitas vezes?

Huguette será completamente livre respondeu o senhor de Armilly


num tom grave e frio.

E acrescentou, dirigindo-se a Armando Delbeanme:

Conhece já Myols, senhor?

Ainda nã o. Fui apenas a Vonsset para arranjar casa, instalei a minha


mã e e regressei a Paris para vir buscar a minha irmã . Mas ficarei
contente por ir fazer um mais amplo conhecimento, logo que a nossa
instalaçã o esteja finda.

De novo os lá bios de  ngela tremeram. O senhor de Armilly disse num


tom firme e glacial:

Myols recebê-lo-á quando quiser. Vamos, Huguette, desta vez é


preciso nã o nos demorarmos”

As duas amigas beijaram-se comovidas. Lauriana, respondendo ao


cumprimento de Renato, repetia ainda:

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Permite-nos entã o que nos vejamos muitas vezes?

Tantas quantas queiram respondeu no mesmo tom enigmá tico.

Uma hora mais tarde, o comboio saía de Paris, levando Huguette de


Armilly, Â ngela e o tutor. A jovem dirigia-se para o desconhecido, pois
da família de Armilly conhecia apenas aqueles dois membros.

E mesmo aqueles, que conhecimento tinha deles? Vira pela primeira


vez naquele dia  ngela, e nã o sabia nada dessa pessoa grave e triste,
que parecia

12 dominada por um misterioso sofrimento, curvada sob o peso dum


fardo moral. Sob a atitude cordial que lhe manifestava, julgava
entrever um certo constrangimento, um esforço para vencer uma
indiferença total.

E Renato? Como dissera a Lauriana, há oito anos que era o mais


correcto dos tutores. Os raros e fá ceis desejos de Huguette tinham
sido sempre prontamente atendidos, e por isso o julgava bondoso, sob
a aparência altiva e concentrada. Em todo o caso, tinha maneiras e
modos de verdadeiro cavalheiro. E era tudo. Na realidade nã o sabia
nada do verdadeiro cará cter daquele homem, de quem dependia
legalmente por mais dois anos ainda.

Dirigiu maquinalmente o olhar para ele. Sentado na sua frente, perto


de  ngela, com a cabeça um pouco voltada para a porta, olhava
vagamente a monó tona paisagem. Ficou impressionada com a
expressã o de dolorosa firmeza do belo rosto, severamente
enquadrada numa barba negra e cabelos sombrios, levemente
encaracolados, Rugas precoces e uns vincos profundos, que nunca lhe
abandonavam a testa, testemunhavam que Renato de Armilly tinha
sofrido.

Mas Huguette nada conhecia das misteriosas provaçõ es do tutor e de


 ngela, ignorava completamente a sua vida passada e presente, e
aquele silêncio pesava demasiado sobre o seu coraçã o de dezanove

13
anos, terno, recto e alegre, pronto a dar os tesouros de afeiçã o
dedicada e sincera, e que se recolhia, desde o primeiro instante,
perante a reserva cortês e distante de Renato, melancó lica e altiva por
parte de  ngela.

Com um ligeiro suspiro que os companheiros de

13 viagem nã o ouviram, Huguette encolheu-se no seu canto, pensando


que ao menos encontraria lá um rosto conhecido e amigo o de
Lauriana, a ardente e impetuosa Lauriana, que a lei dos contrastes
unira intimamente à quela que as religiosas chamavam por vezes,
entre elas, ”a nossa querida Huguette”.

II

Já pró ximo de Vonsset, Huguette distraiu-se com a admirá vel


paisagem da regiã o, a perspectiva afastada dos Alpes Saboianos, a
vista das pequenas cidades e aldeias pitorescamente anichadas nos
vales. Nunca tinha viajado, a nã o ser para ir a Dieppe ou a Granville,
com uma família amiga; nada conhecia ainda dessa Saboia, que era o
seu país natal e o berço da sua família paterna. Tinha saído de lá muito
pequena, pois a mã e instalara-a em Paris, perto da sua ú nica irmã ,
depois da morte do marido, o tenente Hugo de Armilly, morto durante
uma expediçã o no Senegal. A senhora de Armilly, de saú de delicada,
nã o pô de ocupar-se pessoalmente da filha, e, como os seus
rendimentos eram limitados, Huguette entrou para um convento com
a idade de sete anos. Tinha onze anos quando a mã e, que tinha
recebido uma grande herança e preparava tudo para a chamar para o
seu lado, morreu subitamente da doença de que padecia há anos.

Do lado materno, Huguette tinha apenas parentes afastados e


indiferentes. Renato, filho duma prima de Hugo de Armilly, e que
mantivera relaçõ es com,

14 a viú va deste, reclamou a tutela da ó rfã , que mal conhecia. Nesse


ano, recordava-se bem, tinha-lhe prometido que a levaria para Myols a
passar as férias, e recebeu uma carta muito gentil da sua prima
Silvina, que tinha dezasseis anos. Foi a primeira e a ú ltima, e Renato
nã o mais falou no seu projecto. Huguette pensou durante muito tempo

14
que jamais conheceria a velha moradia onde nascera e fora educada o
que, e a Saboia, de que gostava por instinto, a bela e altaneira regiã o,
toda embalsamada da recordaçã o do doce S. Francisco de Sales.

E no entanto, nesse dia, tomava o caminho de Myols. Renato queria


cumprir o seu dever até ao fim, e, nã o podendo deixar
indefinidamente a pupila no convento, pois nã o tinha vocaçã o
religiosa, decidira-se por fim a levá -la para junto dos seus, talvez e
apesar da oposiçã o destes, mas de qualquer modo sem muito
entusiasmo.

Renato, afastando de sú bito os graves pensamentos, viu Huguette


interessada e encantada pelo panorama que desfilava perante os seus
olhos, e pô s-se a falar da Saboia, que conhecia perfeitamente por a ter
percorrido em todos os sentidos. Adivinhava-se nele, sob a sua frieza,
uma alma presa pelos encantos da natureza e profundamente
agarrada à regiã o natal, uma inteligência penetrante e extremamente
cultivada. Huguette era capaz de compreender os sentimentos que ela
pró pria partilhava, e algumas observaçõ es que fizera pareceram
surpreender o senhor de Armilly, pela fineza de observaçã o e o senso
artístico e delicado que revelavam.

Mas parece-me ser uma pequena muito reflectida,

15Huguette, e também bastante instruída disse com uma espécie de


sorriso.

Ela ergueu os olhos para o tutor, em que perpassou um pouco de


malícia.

Julgava-me entã o ainda criança, primo? Desengane-se, sou bastante


séria, apesar de ser pequena de corpo. Quanto a instruçã o, procurei
aproveitar o melhor que pude as liçõ es das Irmã s, mas estou longe de
ser um poço de ciência, e se mo permitir, continuarei a trabalhar em
Myols.

Certamente, e insistiria nisso, se nã o estivesse disposta a fazê-lo. Será


o melhor derivativo para a...

15
Interrompeu-se um segundo e o rosto contraiu-se-lhe um pouco.

...A solidã o de Myols. Apesar de tudo, mais vale que nã o seja a criança
que sempre encontrei até hoje... É na verdade preferível, Â ngela.

Esta teve um encolher de ombros.

Nã o sei porquê, Renato. As crianças sofrem menos profundamente,


parece-me.

Nã o se fica sempre criança, minha pobre  ngela, e chega sempre o


momento para as duras revelaçõ es da vida. Huguette foi até agora
preservada delas, e gostaria de lhas evitar agora, mas tem já dezanove
anos, a sua educaçã o terminou, e é preciso conhecer a existência tal
como é.

Que existência! murmurou  ngela num tom de indefinível amargura.

Huguette fitou-os com um pouco de apreensã o. Que significavam


aquelas fisionomias sombrias, aquelas palavras que pareciam
prometer-lhe um misterioso sofrimento?

16Mas Renato via a ansiedade, subitamente estampada na fisionomia


da pupila. Um clarã o de compaixã o atravessou-lhe os olhos negros, e
disse num tom encorajador:

Vamos, nã o fique apreensiva, Huguette, faremos o que estiver em


nosso alcance para nã o ser infeliz em Myols.

Oh! ela nã o será infeliz... Será como nó s murmurou  ngela num acento
de doloroso sarcasmo.

E Huguette interrogou-se com um pouco de angú stia se seria um dia


presa da indiferença por todas as coisas e da tranquila amargura que
caracterizavam  ngela de Armilly.

À s três horas da tarde, o comboio chegou à estaçã o de Vousset. No


cais, esperava-os uma jovem, um pouco mais baixa do que  ngela, mas
duma extrema magreza. Tinha também os cabelos castanhos, traços

16
finos e regulares, uma notá vel distinçã o de maneiras, mas o rosto, se
bem que um pouco pá lido, era muito mais juvenil e fresco que o de
 ngela, e os olhos eram negros, belos e um pouco altivos.

Silvina, a minha irmã mais nova disse Renato a Huguette.

Silvina beijou cerimoniosamente a prima, sem qualquer entusiasmo,


mas também sem frieza.

Boa tarde, Huguette, sinto-me satisfeita por a conhecer. Vai ser como
uma pequena irmã para nó s, pois é a mais nova. Eu tenho vinte e
quatro anos...

As palavras eram amá veis, mas pronunciadas gravemente e mesmo


com uma espécie de melancolia.

17Ao responder à prima com uma das frases graciosas que lhe vinham
do coraçã o e que sabia pronunciar quando nã o estava intimidada,
Huguette constatou que a alegria de Silvina era como a do irmã o e a da
irmã .

Saíram todos da estaçã o e subiram para um carro que os esperava,


uma carruagem antiga, conduzida por um velho cocheiro de libré
escura. Huguette interrogou-se por que razã o os fitavam tanto, e dum
modo que nã o exprimia precisamente benevolência e consideraçã o.
Ao dirigir o olhar para os primos, notou que  ngela, mais pá lida ainda,
olhava em frente, cerrando os lá bios, e que Silvina de cabeça erguida,
nã o desviava o olhar, onde se lia um desafio altivo. Quanto a Renato,
nada transparecia na sua fisionomia, mas pareceu a Huguette que se
lhe tornara mais vincada.

Se bem que o cocheiro mantivesse um bom andamento dos velhos


cavalos, a jovem pô de ver, ao atravessarem as ruas, alguns olhares
hostis, ouvir duas ou três exclamaçõ es abafadas pelo ruido das rodas
no pavimento. As duas irmã s conservavam o mesmo aspecto e Renato
parecia nada ver ou ouvir. Disse somente a Silvina:

17
Devíamos ter mandado fechar a carruagem.

Um pouco mais tarde...murmurou ela, O senhor de Armilly enrugou as


sobrancelhas,

Nã o sou da tua opiniã o disse com secura. Desejava passar


despercebido,.,

Compreendo-o, mas sabes tã o bem como eu que é inú til. Mais vale
encararmos corajosamente a realidade.

18 Silvina era positiva e as suas maneiras decididas contrastavam com


a atitude lassa e calma desencorajante da irmã . também tinha sofrido
talvez ainda sofresse, notava-se isto na sua seriedade precoce, que nã o
era iluminada por nenhum sorriso, no clarã o doloroso que por vezes
lhe atravessava as pupilas negras, mas parecia suportar aquele
sofrimento com altivo estoicismo, aná logo ao de Renato.

O carro saíra finalmente da vila e entrara numa estrada, donde se


avistava o vale inundado de sol, atravessado por uma ribeira
caudalosa, cujas á guas borbulhantes rebrilhavam em clarõ es
incompará veis. Lá adiante, e por cima dos bosques sombrios,
erguiam-se as montanhas aloiradas pelo distante reflexo da luz.
Renato disse de repente:

Estamos em Myols, Huguette.

O carro desviou-se para um caminho largo e acidentado, ladeado por


sebes floridas. Numa volta apareceu uma construçã o maciça, no cimo
duma colina. Uma segunda curva mostrou-a completamente, até ao
momento em que a carruagem, depois duma subida íngreme, alcançou
uma grade de ferro enferrujado, por trá s da qual se estendia o pá tio
empedrado que precedia o castelo de Myols.

Aquela antiga moradia tinha um certo aspecto, com as paredes


espessas deterioradas pelos séculos e as duas torres quadradas,
viú vas das ameias e muralhas. Era das mais velhas moradias da

18
Saboia, uma antiga praça forte, que conhecera dias gloriosos. Hoje em
dia, o fosso cheio de á gua subsistia ainda, mas a ponte-levadiça
desaparecera, dando lugar a uma larga ponte de pedra escara por
onde passou

19Huguette para entrar na casa patrimonial da família.

O vestíbulo, largo, alto e austero, com as paredes de pedras largas,


pareceu-lhe duma deliciosa frescura, pois vinham da atmosfera
esbraseada do exterior. Ao passar, lançou um olhar curioso para a
decoraçã o cinegética das paredes, para os velhos bancos de carvalho
trabalhado e para o imenso candeeiro de ferro forjado, que condizia
bem com a entrada imponente. Mas Renato e as irmã s nã o lhe
deixaram gozar as belezas do vestíbulo de Myols. Silvina abriu uma
porta e disse:

Entre, Huguette. Vou prevenir a minha mã e da sua chegada.

 ngela afastou-se logo em seguida à irmã , e Huguette entrou com


Renato numa sala de jantar imensa, coberta de tapeçarias desbotadas,
com uma monumental chaminé de pedra e velhos mó veis maciços,
enegrecidos pelo tempo. Sob os raios do sol, os vitrais das altas janelas
rebrilhavam, espalhando pela sala manchas de pú rpura, azul e
amarelo de ouro. À quelas tonalidades variadas coloriam de reflexos
estranhos os vasos de vidro dispostos na mesa, os pratos de
porcelana, os pêssegos aveludados e as ameixas que guarneciam as
fruteiras de velha faiança. Uma pequena mesa estava colocada num
canto, na grande sala deserta, à porta da qual parou Huguette, um
pouco intimidada pelas suas proporçõ es imponentes.

Nesse instante, dum compartimento pegado cuja porta estava aberta,


saíram duas pessoas muito diferentes, que nã o se julgariam pertencer
à mesma família. No entanto Renato disse:

20A Berta e a Clotilde.

E Huguete soube entã o que eram as duas restantes irmã s do senhor


de Armilly.

19
Berta guiava a irmã cega. Se bem que Clotilde fosse um pouco mais
alta que o vulgar, parecia pequena junto da irmã , mais alta do que
Renato, bem feita e um pouco forte. Berta de Armilly tinha uma cabeça
poderosa, traços irregulares e muito acentuados, uma pele amorenada
e uma expressã o pouco afá vel, misto de tristeza e orgulho sombrio,
mas possuía uma magnífica cabeleira negra de reflexos azulados, e
revelava ter um alto conceito pela nobreza de atitudes, a aristocrá tica
distinçã o, apaná gio dos Armiliy.

Estes dotes existiam também na jovem cega, que caminhava ao lado


de Berta, mas ao contrá rio da irmã mais velha, possuía encanto e
graça. Os belos traços de Silvina e de  ngela pareciam bem mais
delicados, a pele tinha um tom nacarado que contrastava com o
sombrio dos cabelos, penteados com simplicidade, de acordo com o
meigo rosto, digno duma Madona de Rafael se os olhos tivessem vida.
Mas mesmo assim, possuía o encanto da amabilidade, um pouco
melancó lica, que atraiu imediatamente Huguette.

Berta, aqui está Huguette de Armilly apresentou Renato, agarrando a


mã o da pupila.

Os olhos negros de Berta olhos profundos, um pouco duros e frios


fitaram por um segundo a jovem. Estendeu a mã o à prima, dirigindo-
lhe num tom indiferente uma frase banal de acolhimento. Mas
Clotilde, deixando o braço da irmã , estendeu as duas mã os para
Huguette.

21 Beije-me, prima Huguette, sinto-me feliz por a conhecer,

E eu também, asseguro-lhe disse com sinceridade Huguette, cujo


coraçã o terno e cheio de compaixã o fora já seduzido por aquela pobre
criatura.

Mas enquanto beijava Clotilde, ouviu Berta murmurar:

Nã o há razã o para nos regozijarmos ao ver começar o martírio de


alguém.

Berta! disse um pouco bruscamente o senhor de Armilly.

20
Ela encolheu levemente os ombros.

Tem de ser assim, Renato... Huguette, quer tomar qualquer coisa? A


Silvina preparou tudo antes de ir à estaçã o, pois nã o é bom contar
comigo para os arranjos caseiros. Â ngela e Silvina aceitaram esse
encargo vulgar, mas é-me impossível imitá -las... absolutamente
impossível! repetiu com energia.

Pareceu a Huguette que um pouco de irritaçã o atravessou os olhos de


Renato. Mas a voz tinha o acento do costume quando a convidou a
tomar lugar à mesa.

Ele pró prio se sentou a seu lado, e também  ngela, que chegara um
pouco antes, dizendo que Silvina tinha ido procurar a mã e ao jardim.
Nenhum dos viajantes comeu muito. Huguette sentia-se comovida
pela sú bita mudança de existência, e um pouco intimidada pela frieza
polida e a altivez triste dos que a rodeavam.

Mal terminaram a ligeira refeiçã o, o senhor de Armiliy levantou-se.

Se quiser, podemos ir junto de minha mã e propô s.

22Entraram no compartimento vizinho, uma grande sala cheia de


retratos antigos e velhos mó veis de nogueira, de aparência mais
robusta do que elegante. Devia ser ali o lugar de reuniã o habitual da
família, pois viam-se caixas de costura, uma secretá ria onde estavam
arrumados livros, uma mesa de jogo e até um vestido em vias de
conclusã o lançado sobre as costas duma cadeira. Mas naquele
compartimento familiar reinava ainda uma simplicidade severa e
total, um pouco austera, que Huguette notara já na fisionomia e no
vestuá rio das primas, como também no vestíbulo e na imponente sala
de jantar, como ainda no aspecto exterior do pró prio castelo.

21
À quela impressã o de grave e quase majestosa tristeza era ainda
acentuada naquele compartimento pela meia obscuridade que
criavam as persianas semi-corridas. Renato foi abrir uma das grandes
portas envidraçadas e o sol penetrou em golfadas de luz, iluminando
as paredes onde estavam dependurados, nas suas molduras
trabalhadas, magistrados de togas vermelhas, senhores em fatos de
veludo, damas sorridentes e sumptuosamente vestidas.

A minha mã e disse o senhor de Armilly.

Huguette aproximou-se da janela. Numa á lea caminhavam apressadas


Silvina e uma senhora alta, duma extrema magreza, que tornava mais
largo o comprido vestido negro sem qualquer ornamento. A medida
que se aproximava, Huguette distinguia-lhe os traços cansados, os
olhos sombreados, a cabeleira branca presa no cimo. Uma expressã o
de tristeza indizível, de lassidã o resignada observava-se naquela
fisionomia alterada, envelhecida pelos desgostos,

23 nos olhos azuis muito doces, parecidos com os de  ngela, que se


fixaram em Huguette.

A nossa pequena prima! Seja benvinda a Myols, minha filha disse ela,
com tranquila benevolência.

Atraiu-a para si e beijou-a. Depois, prendendo” lhe a mã o entre as


suas, observou-a num rá pido olhar.

Nã o tem nada dos Armilly, creio... Parece-se com sua mã e, Huguette.

Mas tem os olhos da Vitó ria disse Berta em voz seca.

Huguette, que olhava por acaso para o tutor, viu-o estremecer,


enquanto os olhos se lhe ensombravam.

Quanto à cor, talvez, mas nã o na expressã o

replicou-lhe num tom calmo e frio,

22
Felizmente para ela,,, e para nó s murmurou a senhora de Armilly
numa voz alterada”

 ngela, leva a tua prima ao quarto... Jantamos à s sete horas, minha


filha.

A Rosemonde nã o foi prevenida da chegada da Huguette? perguntou


Renato.

Está com dores de cabeça e nã o apareceu durante todo o dia. A


Gerardina está com ela.

E o Luís também, nã o é assim? Apesar de tudo o que lhe disse, persiste


em ter o pequeno fechado no quarto cheio de éter! disse Renato com
irritaçã o. Nunca conheci tal obstinaçã o... Huguette, terá que esperar
até amanhã para conhecer a viú va do meu irmã o Augusto, e do Luís, o
meu sobrinho, uma pobre criança muito fraca acrescentou ele com um
franzir de sobrancelhas de enfado.

24 - E que a mã e ama com um afecto desordenado, a ponto de que tem


um desgosto enorme se se separar dele durante uma hora - continuou
Berta.

- Pensei outrora que esta mulher frívola e desrazoá vel seria capaz de
tudo - bom ou mau - para tornar o filho mais feliz.

Nenhum protesto a contradisse. Provavelmente era esta a opiniã o de


todos. O senhor de Armilly voltou-se bruscamente para afastar um
cortinado que lhe batera num ombro, Quando o rosto se voltou de
novo, Huguette observou que estava extremamente pá lido.

- Até já , Huguette - disse com voz calma.

- Amanhã fará mais amplo conhecimento com Myols, a sua casa de


hoje para o futuro.

Berta abanou a cabeça murmurando qualquer coisa em que Huguette


julgou ouvir a palavra ”prisã o”.

23
 ngela, com um gesto, convidou a prima a segui-la, e as duas, depois
de terem atravessado a sala de jantar, subiram a larga escadaria de
pedra escura. Depois de percorrerem um comprido corredor do
primeiro andar, Angela abriu uma porta e disse:

- É este o seu quarto.

Huguette penetrou num amplo compartimento forrado com


reposteiros castanhos, já fanados, onde se viam mó veis Luís XV, cheios
de metais dourados. Pelas duas grandes janelas abertas, o sol poente
entrava, inundando de luz o quarto confortá vel e severo, cujos ú nicos
ornamentos eram um retrato masculino, um monumental reló gio Luís
XV e majestosos candelabros de bronze.

25

Era o quarto do seu pai, e foi aqui que a prima também nasceu disse-
lhe  ngela, colocando no seu lugar uma cadeira que estava no meio do
quarto. Arranjá -lo-á a seu gosto. No só tã o, temos alguns mó veis e
recordaçõ es de família, que o Renato mandou guardar depois da
morte da sua mã e. Dispô -los-á aqui como lhe agradar: preferimos
deixar isso a seu
cuidado, pois nã o conhecíamos o seu gosto.

Mas o quarto está muito bem assim replicou sinceramente Huguette.


Agradeço-lhe o ter-mo dado. Pelo pouco que conheci do meu pai,
guardei dele uma recordaçã o profunda e doce.

Está ali disse  ngela, designando o retrato. Huguette aproximou-se e


fitou com emoçã o o belo rosto um pouco pá lido, os olhos rectos e
ternos, a boca sorridente. Notou imediatamente a semelhança que
havia entre o pai e Renato. Mas no jovem tenente observava-se a
calma felicidade do homem satisfeito, cuja vida conhecera apenas
desgostos ligeiros, ao passo que o sobrinho, pouco mais ou menos da
mesma idade, parecia suportar um fardo de dor. Â ngela afastou-se, e
pouco depois o cocheiro e uma velha criada trouxeram-lhe a mala. A
jovem procedeu ao seu arranjo, tarefa pouco complicada, pois o seu
guarda-roupa nã o era muito vasto. A pedido do senhor de Armilly, a
superiora do convento mandara fazer a Huguette um enxoval modesto

24
e vestidos simples, mas suficientemente ao gosto da época para que a
jovem andasse como toda a gente. Nã o era culpa da boa Irmã Á gata se
aquela pequena pensionista trazia com incompará vel elegâ ncia e um
encanto pró prio os mais modestos vestidos, e até o

26 desgracioso uniforme do colégio que horripilava Lauriana.


Huguette permanecia sempre delicadamente linda.

Uma vez vestida e penteada, a jovem aproximou-se da janela. Deu


conta entã o do ruído surdo e ininterrupto que ouvia desde a sua
entrada naquele quarto. Desse lado, a fachada do castelo elevava-se
sobre uma falésia cortada a pique, no fundo da qual corria uma
torrente. Na frente, erguia-se uma segunda falésia, menos elevada,
com rara vegetaçã o, e por cima estendiam-se pequenos montículos
rochosos incultos, seguidos por soutos soberbos que se prolongavam
até aos primeiros contrafortes das montanhas arborizadas.

No primeiro momento, Huguette sentiu-se constrangida perante


aquela paisagem severa. Mas o sol espalhava estranhos reflexos sobre
as rochas acinzentadas, cobertas com uma espécie de líquenes
vermelhos, inundava de luz os cumes longínquos e os soutos
silenciosos, conseguia mesmo iluminar o estreito fosso onde rugia a
torrente.

A á gua cinzenta e cachoante parecia feita de prata em fusã o, a espuma


era uma neve mó vel e brilhante... E Huguette ficou presa à magia
daquele espectá culo, de tal modo que se sobressaltou quando ouviu
bater à porta do quarto.

Foi Silvina quem entrou, dizendo-lhe que o jantar ia para a mesa.

Gosta da paisagem? disse-lhe, estendendo a mã o para a janela. Talvez


ainda nã o admire-a sua beleza particular, mas se for uma verdadeira
Armilly, ficará em breve presa ao nosso austero

27Myols, como todos nó s, de quem esta velha moradia é o asilo e a


consolaçã o.

25
Os lá bios de Silvina estremeceram um pouco ao pronunciar estas
palavras. Mas, abanando com vivacidade a cabeça, agarrou num braço
de Huguette e as duas, atravessando o corredor, desceram a escadaria
imponente de largos degraus, já bastante gastos.

No momento em que atingiram os ú ltimos degraus, abriu-se uma


porta, dando passagem a uma senhora vestida de claro, cujo rosto
ficou indistinto na semi-escuridã o do vestíbulo. Parou por dois
segundos, provavelmente perturbada pelos dois vultos imprecisos de
Silvina e Huguette. Mas possuía boa vista, ou conhecia perfeitamente a
silhueta da mais nova das Armilly, pois disse sem hesitar:

Boa noite, Silvina.

Boa noite, Gerardina respondeu friamente Silvina.

E a sombra clara afastou-se para a porta de saída pela qual


desapareceu.

Gerardina Daussy é a amiga, a indispensá vel companheira da minha


cunhada explicou Silvina. Foi a amiga de infâ ncia de Renato e de Berta.
É a neta dum antigo feitor do nosso avô , mas recebeu uma educaçã o
muito cuidada e é dotada duma grande facilidade de assimilaçã o. Nã o
gosto dela, nã o sei bem explicar porquê. Quando a conhecer melhor,
dá r-me-á a sua opiniã o sobre ela, prima.

Durante o jantar reinou a mesma gravidade melancó lica que parecia


envolver todos os membros da família Armilly, Renato, sua mã e e
irmã s mostraram para com Huguette uma calma solicitude; 28 sentia-
se objecto duma sincera simpatia, mas singularmente rodeada de
reserva. Aliá s as pró prias relaçõ es dos habitantes de Myols entre si
eram despidas de todo o calor, de toda a vivacidade afectuosa; mas
sentia-se que eram todos unidos e que se compreendiam por meias
palavras. Renato parecia possuir sobre as irmã s, inclusive sobre a
pró pria altiva Berta, uma influência preponderante, e a mã e
testemunhava-lhe uma afectuosa deferência. Exercia aliá s essa
autoridade sem afectaçã o ou excessos, com a calma segurança que o
nã o abandonava nunca e o absoluto domínio de si pró prio revelava
um equilíbrio perfeito das suas faculdades, de tal modo que era muito

26
natural obedecessem a esse homem grave e orgulhoso, em que se
adivinhava, sob a frieza distante, um espírito superior. Por outro lado,
o sofrimento que parecia ter marcado a testa de Renato dava-lhe, se
bem que fosse ainda novo, uma extrema autoridade moral, e Huguette
achou simples continuar a submeter-se à atracçã o dominadora
exercida nela pelo tutor desde o primeiro dia em que lhe apareceu,
investido das suas funçõ es, no locutó rio do convento, ele, um jovem já
sério, mas nã o austero como hoje, ela, uma pequena tímida e receosa,
que ele encorajara com a sua bondade. Mas quando voltara no ano
seguinte, vira-o já mais ou menos como hoje, subitamente
envelhecido, mais grave e mais frio, mas guardando sempre o olhar
recto e altivo que a tinha impressionado mesmo ainda em criança... E
Huguette, já mais crescida, sentia-se invadida em relaçã o ao tutor da
mesma instintiva confiança que se tinha apoderado da pequenita de
outrora.

29 III

Apesar das suas preocupaçõ es e da sú bita mudança de existência,


Huguette dormia um sono tranquilo no leito Luís XV, que de início a
tinha assustado com as suas vastas proporçõ es. Ergueu-se cedo,
segundo o há bito do convento, completamente refeita da fadiga da
viagem e pronta a entrar corajosamente na sua nova vida. Esta
parecia-lhe, apesar de tudo, bastante doce e simples, agora que
conhecia todos os Armilly, que compreendera que a sua reserva nã o
provinha dum sentimento de hostilidade, mas existia mesmo entre
eles e devia ter a sua razã o em qualquer secreto desgosto,

Apó s uma fervorosa prece feita junto do crucifixo suspenso por cima
do leito, Huguette foi abrir a janela e aspirou com delícia o ar paro,
vivificante,, saudà velmente perfumado. Estava uma maravilhosa
manhã de verã o, e Huguette, como na véspera, ficaria esquecida a
contemplar as montanhas douradas pelo sol nascente, se o ruído
duma porta, ao abrir-se por baixo da janela, lhe nã o tivesse feito
baixar os olhos.

Uma grade de ferro forjado tinha sido colocada à beira da falésia. Para
o terraço um pouco estreito que assim fora feito, abriam-se todas as
janelas do rés-do-chã o e fora uma delas que Huguette ouvira abrir,

27
Uma criada com uma touca de renda apareceu, trazendo alguns
tapetes e panos de seda clara que começou a sacudir com
desembaraço. Mas uma longa campainha soou no interior e, com um
gesto de impaciência, a criada desapareceu.

30 Â ngela veio chamar Huguette para a levar à sala de jantar, onde a


esperava o pequeno almoço. Clotilde estava lá , sentada em frente da
chá vena vazia, e esperando a prima, como disse a Huguette logo que
esta se aproximou para lhe dar os bons-dias.

Dormiu bem, prima?

Admiravelmente, Clotilde. Tenho sempre um sono profundo.

É muito feliz! suspirou  ngela, aproximando-lhe o cesto dos pã es.


Desejo-lhe que continue assim... Eu durmo muito pouco, e mal!

Os dedos de Clotilde estenderam-se para agarrar a mã o da irmã .

Atormentas-te muito, minha pobre amiga disse-lhe afectuosamente.


Nisso está a razã o das tuas insó nias. Assim ficará s doente, Â ngela.

Um gesto de indiferença escapou-se de  ngela.

Isso acontecerá provavelmente, com efeito. Nã o posso nada contra


isso, e tu também nã o. Quanto a atormentar-me, julgo que nã o faço
mais do que tu, mas tens um temperamento mais forte, eis tudo!...
Huguette, peço-lhe perdã o de a deixar, mas partilho com a Silvina um
bom nú mero de ocupaçõ es caseiras, e devo ir fazer os meus trabalhos.
Se quer ir ver o jardim, vá com a Clotilde, e passem pela sala dos
antepassados. É o nome com que a Silvina baptizou a sala de estar, no
tempo em que a nossa irmã era alegre como um pintassilgo... e eu,
quase tanto como ela terminou  ngela com um suspiro.

Huguette seguiu com olhar incrédulo a prima que se afastava, um


pouco curvada, num passo lento e fatigado. Seria possível que já
alguma vez tivesse

28
31 aquela alegre vivacidade a que se acabava de referir? Nã o se podia
imaginar isso agora.

 ngela anda doente? perguntou ela, enquanto cortava uma fatia de


pã o.

Clotilde suspirou um pouco,

Ela é a menos forte de todos nó s, e depois, por mais que o diga, o


desgosto mina-a. Ela tem mais uma razã o do que nó s para ser infeliz, e
o seu coraçã o sensível sofreu duras provaçõ es morais.

Huguette nã o ousou interrogar Clotilde sobre a natureza dessas


provaçõ es, e aliá s a prima mudou logo de conversa, como se temesse
ter de responder a qualquer pergunta embaraçosa.

Terminada a pequena refeiçã o, as duas jovens ergueram-se e


Huguette, dando o braço à prima, dirigiu-se para a sala onde entrara
na véspera. Desta vez, todas as persianas estavam abertas e o sol
penetrava liberalmente no grande compartimento cuidadosamente
arranjado. A senhora de Armilly, ocupada a limpar os mó veis, deu um
amá vel bom dia a Huguette e disse-lhe que iria provavelmente
encontrar o tutor. Era a hora do passeio quotidiano que o senhor de
Armilly se obrigava a fazer todas as manhã s, por um princípio
higiénico.

O pobre Renato trabalha tanto! disse Clotilde, deixando-se guiar pela


prima para uma porta envidraçada aberta para o jardim.

Mas em que trabalha, Clotilde? perguntou Huguette, a quem jamais o


tutor dissera qualquer coisa.

Nã o o sabe? É verdade que se tornou muito pouco comunicativo


desde...

32 Mordeu um pouco os lá bios e tornou:

29
Renato, há oito anos para cá , publicou umas pesquizas muito curiosas
sobre a histó ria da Saboia. Tiveram um grande êxito junto dos
eruditos e até entre os simples amadores de estudos histó ricos. Mais
tarde apareceu um segundo volume, também muito bem acolhido, e
agora Renato prepara um outro, que deve terminar este inverno.
Essas obras sã o assinadas com um pseudó nimo, pois o meu irmã o
detesta toda a notoriedade, toda a curiosidade estranha. Mas aquela
modéstia, que nos pareceu bastante exagerada no princípio, foi em
seguida completamente justificada...

Sempre a conversar, as duas primas franquearam a porta e


penetraram no jardim. Este estendia-se, à direita, sobre a falésia
guarnecida duma balaustrada de pedra, e à esquerda era rodeado por
um velho muro, encoberto em parte por uma magnífica sebe de
roseiras e clematites,

O relvado e os renques de flores pareciam mal tratados, a erva invadia


as á leas, e a plataforma ao longo do muro estava cheia duma
vegetaçã o parasita que abafava as plantas ainda existentes. Mas
daquele jardim estendido ao longo da torrente descobria-se um
magnífico panorama de vales, ribeiras caudalosas, bosques e
montanhas. Ao pé duma colina arborizada, uma pequena aldeia erguia
o seu campaná rio agudo e estendia as casas cinzentas, um pouco
maciças, que a bruma matinal velava um pouco. Huguette pensou que
devia ser Vousset, e invadiu-a certa alegria ao pensar que em breve
Lauriana estaria lá , muito perto, e que se poderiam

33 ver muitas vezes. O senhor de Armilly tinha-o permitido, com


pouco entusiasmo é verdade, mas issoparecia ser uma faceta do seu
cará cter.

À s â leas desciam suavemente até um pequeno souto, onde existiam


alguns bancos. Uma erva fina cobria o solo, escondendo os restos dos
trilhos antigos. Ao sair do jardim muito pouco ensombrado, sentia-se
uma impressã o de bem estar, pois o sol já escaldante filtrava os seus
raios pela folhagem docemente agitada pela brisa fresca da montanha,
e a vista cansada pela brilhante claridade encontrava repouso
delicioso naquela sombra picada de pontos luminosos.

30
Que lugar delicioso! disse Huguette, encantada. Deve vir aqui muitas
vezes no verã o” Clotilde?

Oh! muito raramente, A mã e e as minhas irmã s trabalham no salã o.


Renato na biblioteca, e eu ora estou com umas, ora com outro. Nem
pensamos em vir aqui. É verdade que sentiríamos menos calor,., mas
nem pensamos nisso repetiu com um gesto de indiferença.

Se concordar, viremos aqui algumas vezes,. Clotilde!

Pois sim, prima Huguette. Estou sempre satisfeita, desde que me sinta
ao lado duma pessoa que ame. E creio que vai pertencer ao nú mero
delas, pois, pela voz e pela descriçã o que me fizeram as minhas irmã s,
creio que deve ser boa e meiga, talvez boa de mais... acrescentou
pensativamente

Porquê boa de mais? perguntou Huguette, sorrindo-se.

34 Mas Clotilde ficou séria e os lá bios entreabriram-se num sulco de


amargura.

Porque sofrerá mais com os desenganos da vida.

Entã o seria preferível nã o ter coraçã o, ou, pelo menos, muito pouco?

Nã o ouso dizê-lo... Mas realmente evitaríamos muitos desgostos, e


teríamos um pouco mais de felicidade, nã o será assim, Huguette?

De maneira nenhuma! exclamou a jovem com calor. Sofremos muito


por causa do coraçã o, nã o o nego, mas é por ele que gozamos
deliciosas alegrias, é com ele que amamos, e que nos é permitido
corresponder ao amor infinito de Deus e nos sustem pela vida fora os
afectos dados e recebidos, o encanto das relaçõ es de família e da
amizade, que seriam vazias e sem fundamento sem esse coraçã o que
parece desprezar, o mesmo se passando com a religiã o, desprovida da
atracçã o do amor divino, e que nos deixaria indiferente. Nã o lamento
ter um coraçã o, pode crê-lo.

31
Nã o falará sempre assim replicou a menina de Armilly, abanando a
cabeça. Começa agora a conhecer a vida real e julgo que é muito
religiosa...

E espero continuar a sê-lo! exclamou Huguette.

Desejo que assim seja por si, pois será uma consolaçã o. Mas os
acontecimentos mudam muitas das nossas resoluçõ es e por vezes a
infelicidade transforma e endurece os coraçõ es mais ternos e
fervorosos.

De que infelicidade me fala? exclamou

35 Huguette, fitando os olhos ansiosos no rosto de Clotilde.

Havia no tom e nas palavras de Clotilde uma indiferença e um


sofrimento que tornaram Huguette perplexa e inquieta.

Um pouco de rubor subiu à s faces brancas de Clotilde,

Mas falo da infelicidade em geral, Huguette replicou vivamente. Peço-


lhe perdã o por me ter deixado dominar pelo meu cará cter pessimista.
Veja, prima, cá em casa somos todos mais ou menos misantropos...

Tinham atingido o limite do souto e encontravam-se agora num


pequeno pomar, bem tratado, que se estendia até à margem do
ribeiro. Este, com uma curva muito pronunciada, marcava o limite dos
domínios de Myoles, Para lá , estendia-se outro grande souto cuja
sombra silenciosa era salpicada de luz.

Está ali o seu irmã o, Clotilde disse Huguette. No limite extremo do


pomar, junto duma pequena ponte de madeira que unia as duas
margens, o senhor de Armilly e um velho homem de fato azul, que se
apoiava completamente na sua bengala e escutava o castelã o de
Myols. Renato viu as duas jovens e caminhou para elas, com andar
firme e elá stico. Tirou o chapéu de palha amarela e estendeu a mã o a

32
Huguette, informando-se da maneira como tinha passado a noite.
Depois beijou Clotilde com calma ternura.

Que diz de tudo isto, Huguette? perguntou Renato, designando a


paisagem.

Oh! que vista soberba, primo! Ficaria horas

36 a contemplá -la! exclamou Huguette com entusiasmo.

O penetrante olhar de Renato fitou a fisionomia da jovem, que


exprimia uma admiraçã o sincera, e uma espécie de sorriso entreabriu-
lhe os lá bios.

Terá muito tempo para o fazer. A existência em Myols nã o é muito


variada. Aliá s poderemos fazer algumas excursõ es... um pouco longe.
Mostrar-lhe-ei a Saboia, a nossa querida e linda regiã o.

Um pouco de emoçã o vibrava na sua voz fria.

E permitir-me-á ler os livros que escreveu sobre ela? perguntou


Huguette, erguendo os grandes olhos luminosos para o rosto largo do
tutor.

Com certeza, se isso a interessar. Vamos embora, nã o fiquem aqui.


Sem chapéus, sob este sol ardente, uma paragem prolongada seria
perigosa... Vítor, descanse, nã o trabalhe hoje disse ele, erguendo a voz
e dirigindo-se ao velho, que começara a sachar um rego,
interrompendo-se a todo o momento.

O jardineiro obedeceu e afastou-se a passos incertos para uma casa


baixa, coberta por uma ramada, enquanto o senhor de Armiliy e as
duas senhoras penetravam no souto.

O Vítor está mais fatigado? perguntou Clotilde.

O pobre velho está cheio de dores, Como passará o pró ximo inverno?
Enfraquece-se cada vez mais... É absolutamente indispensá vel

33
arranjar quem o possa substituir, ou pelo menos ajudá -lo. Nã o sei bem
como o hei-de conseguir.,,

E ao dizer isto, o senhor de Armiliy tinha um ar de preocupaçã o que


Huguette nã o compreendeu, pois

37o facto de substituir o jardineiro nã o lhe parecia uma dificuldade


insuperá vel como o dava a entender as palavras e o gesto de Renato. A
pró pria Clotilde tornou-se grave, os lá bios mostraram certa ansiedade
e ficou pensativa e silenciosa até chegarem ao castelo.

Nesse dia, ao almoço, Huguette conheceu a senhora Rosemonde de


Armilly e o filho. Tinha já começado a refeiçã o quando apareceu uma
pequena mulher, pá lida, com um elegante vestido de tecido branco,
cheio de rendas. Na mã o direita trazia um rapazito, cujos traços se
assemelhavam aos de Renato.

Sempre atrasada, Rosemonde! disse o senhor de Armilly num tom


sacudido.

A tola da Melâ nia perdeu a minha pulseira! replicou, abanando a


cabeça com impaciência.

Ao mesmo tempo fitou em Huguette os olhos grandes demais para o


rosto olhos cinzentos, muito brilhantes, que exprimiam grande
curiosidade.

Huguette, a minha cunhada Rosemonde e o meu sobrinho Luís... disse


com secura Renato.

Huguette ergueu-se e a senhora de Armilly estendeu-lhe a mã o,


dizendo uma frase graciosa. Uma singular expressã o de impaciência
irritada atravessou os olhos de Renato, cujos dedos se crisparam
nervosamente no cabo do garfo.

O meu pequeno Luís, prima disse Rosemonde.

34
E uma ternura apaixonada revelava-se naquelas simples palavras.

Huguette apertou a mã ozita delgada que lhe

38 estendeu Luís, cujos olhos sérios a fitaram com extrema atençã o.


Renato atraiu para si o sobrinho e fitou-o com um olhar um pouco
severo.

Nã o vieste trabalhar esta manhã . Por que foi, Luís?

O rapazito voltou a cabeça para a mã e. Foi esta quem respondeu com


alguma vivacidade:

Nã o o deixei.,. Estava cansado, nervoso...

Nã o pode deixar de ser assim depois dum dia passado num quarto
fechado, ao lado duma pessoa doente e na companhia da Gerardina,
que nã o gosta de crianças disse Renato num tom glacial. Enquanto
submeter o Luís à deplorá vel higiene cujos perigos já lhe mostrei, nã o
deve esperar qualquer melhora no seu estado de saú de, pelo
contrá rio,

O tom mate de Rosemonde tornou-se de repente rosado. Seria a có lera


ou a confusã o que transformava a fisionomia da jovem senhora, dando
aos seus olhos, falhos de expressã o, um reflexo ardente e quase
trá gico? Sem dizer nada, sentou-se no seu lugar, ao lado de Renato, e
agarrou tã o bruscamente o guardanapo que o pã o, colocado ao lado,
caiu na cadeira de Renato. Este, muito calmo, colocou-o no seu lugar, e
disse friamente:

Está hoje como o Luís, muito nervosa. Tomou um ar de pessoa


amuada, que nã o ficava mal de todo ao seu aspecto infantil, se bem
que já tivesse ultrapassado a casa dos trinta anos. Sem ser realmente
bonita, possuía um certo encanto, devido, talvez e principalmente, ao
cuidado do penteado a aos menores detalhes do vestuá rio,

A sua dor de cabeça passou completamente,

35
39Rosy? perguntou a senhora de Armilly, num tom conciliador.

Completamente, mã e, a Gerardina tem um excelente remédio... Que


amiga dedicada ela é! disse com entusiasmo.

Mas ninguém pareceu acompanhá -la, e até Berta disse com frieza:

A Gerardina pode fazê-lo, pois a sua família deve-nos muito, e ela, em


particular, nã o teria recebido a educaçã o que teve se o meu avô nã o
tivesse sido tã o liberal com Mateus Daussy. Pode ficar-lhe
reconhecida, Rosy, mas sem exagero,

Oh! sempre a mesma palavra! exclamou, a senhora, levando as mã os à


cabeça. Exagero,., exagero!,,, nã o ouço outra coisa Nã o vã o dar uma
falsa opiniã o a meu respeito a essa criança! disse ela, indicando
Huguette.

Ela saberá formar a sua pró pria opiniã o, nã o se apoquente replicou


Silvina num tom ligeiramente iró nico. Nã o temos a menor pretensã o
de lhe impor as nossas opiniõ es, e terá sempre a liberdade de pensar e
de julgar por si. Nã o é verdade, Renato?

Fez um gesto afirmativo. Desde a entrada da cunhada, parecia mais


frio, mais taciturno, e o olhar mostrava alguma irritaçã o.

Rosemonde mostrou-se muito amá vel para com Huguette, interrogou-


a sobre Paris, que a pequena conhecera menos mal durante as férias
passadas em casa de algumas colegas, pediu-lhe para lhe descrever o
convento e a vida que tinha levado. A jovem viú va parecia interessar-
se por tudo, mas um pouco

40à maneira duma criança, nã o aprofundando nada e procurando as


sensaçõ es das novidades.

O Augusto levou-me algumas vezes a Paris disse com um suspiro de


saudade, que nã o se dirigia talvez ao morto. Gostaria de lá tornar, mas

36
o Luís está sempre doente e os médicos asseguram que nã o poderá
sair daqui, nem por pouco tempo. Mas agora tem passado melhor, e
projecto para o ano uma viagem magnífica...

Lançou a Renato um olhar de desafio, que ele pareceu nã o ter notado.

Levarei a Gerardina... E se quiser, também pode vir, Huguette...

Oh! oh! Rosy, a Huguette já conquistou o seu coraçã o como a


Gerardina? exclamou Silvina com alguma ironia.

A viú va fez um gesto de impaciência um pouco irritada.

Disse isso? Mas desde já simpatizo muito com ela, e entender-nos-


emos bem, creio.

Duvido disse Renato num tom sarcá stico. Levantou-se da mesa, pois a
refeiçã o estava terminada. Junto dele, a cunhada parecia mais
pequena, mais infantil ainda.

Vamos substituir agora a liçã o desta manhã , Luís disse, dirigindo-se ao


pequeno.

Oh! nã o agora, Renato! Prometi-lhe levá -lo de carro à Fonte dos Cisnes
exclamou Rosemonde com vivacidade.

A esta hora?... E com este calor! Em que pensa? Se sair à s quatro horas,
será ainda cedo, e até lá o Luís trabalhará comigo..., nã o é assim, meu
rapaz?

41Ao pronunciar estas palavras, subitamente mais meigas, Renato


passou a mã o pela cabeça de cabelos negros do sobrinho. Os olhos de
Luís, graves e ternos, ergueram-se para ele.

Pois sim, meu tio. Gosto de trabalhar e senti-me um pouco aborrecido


esta manhã .,.

Era o que faltava! exclamou Rosemonde num tom de reprimenda. Fiz


tudo para te distrair,

37
recebeste os novos livros que querias...

Mas justamente a respeito desses livros queria pedir explicaçõ es ao


tio respondeu a criança num tom sério.

Entã o vou-tas dar, e depois começaremos o estudo...

Oh! nã o o latim! gemeu a viú va. Vai fatigá -lo, Renato.

Nem por isso, mã ezinha, aprendo facilmente declarou o rapaz.

Tio e sobrinho afastaram-se, e Rosemonde seguiu-os com um olhar de


rancor. De repente, voltou-se e apertou o braço de Huguette.

Renato é um déspota! Nã o pode deixar em repouso o meu pobre Luís,


em vez de o incitar a trabalhar! exclamou colericamente. Diga,
Huguette, nã o tenho razã o em querer que ele se nã o canse?

Mas a criança parece gostar de estudar disse Huguette um pouco


embaraçada, pois nã o podia concordar com a opiniã o daquela mulher,
que parecia pouco razoá vel.

Um riso iró nico ou viu-se na sala de jantar.

Ele? Diga que sob a pressã o do tio, que soube habilmente subjugar o
seu espírito...

42 Rosy! exclamou severamente a senhora de Armilly.

Calou-se, mas abanando a cabeça com có lera. Clotilde tomou o braço


de Huguette, que se encontrava a seu lado, e as duas dirigiram-se para
a sala de estar. A cega parecia comovida e irritada.

Esta Rosy é insuportá vel! murmurou ela, O Augusto cometeu uma


tolice, amimando-a demais, e nó s nã o conseguimos agora nada, Há
conflitos contínuos entre ela e o meu irmã o, nomeado tutor do
pequeno, juntamente com ela. Sem a paciência e a firmeza um pouco
fria de Renato, sem a afeiçã o que tem pelo pequeno, julgo que já teria
havido uma ruptura de relaçõ es, Mas domina-se, para ter a seu lado os

38
dois, a fim de cumprir o ú ltimo desejo do Augusto, que muito lhe
recomendou a esposa e o filho. Esperá vamos que depois daquela
desgraça, a Rosy se tornaria mais séria. Na altura em que o Renato fez
a promessa de proteger e ajudar os que ele deixava na terra, nã o
pensá vamos e ele também nã o que isso nos ia custar tantos desgostos
e sacrifícios,

IV

Huguette viu-se em breve instalada em Myols como se sempre lá


tivesse vivido. A tranquila cordialidade da tia e das primas tinham-na
singularmente posto à vontade, afastando aquele temor de que seria
recebida forçadamente, o que a atormentava desde o dia em que
Renato lhe tinha dito que abandonaria definitivamente o convento,
nas pró ximas férias.

43Sem frases, mais por actos do que por palavras, os parentes tinham-
lhe dado a entender que estava em
sua casa.

E Huguette achou ló gico, visto que fazia inteiramente parte da família,


oferecer à s primas o partilhar as ocupaçõ es caseiras, proposta aceite
com simplicidade por  ngela e Silvina, que ajudavam as duas criadas,
quase impotentes.

Ao chegar a Myols, a jovem nã o conhecia quase nada da situaçã o


monetá ria dos parentes. Desde que começara a partilhar a sua vida,
compreendeu que pouco mais era do que medíocre, e que todos se
esforçavam por viver simplesmente, mas sem grandes privaçõ es até
mesmo Berta, apesar das declaraçõ es anti-caseiras, pois cosia a maior
parte da roupa da família, com um ar de sombria resignaçã o, que era
um perpétuo protesto.

Huguette foi por isso levada, logo no dia seguinte ao da sua chegada, à
enorme cozinha, duma escrupulosa limpeza, onde a acolheu a
cozinheira, velha mulher muito fatigada, cujo rosto pergaminhado se
iluminou ao ver aparecer a jovem,

Dir-se-ia que... é a menina Vitó ria! murmurou com hesitaçã o.

39
Que ideia, Aglaé! disse um pouco bruscamente Silvina. Ponha os
ó culos, e verá se pode dizer o mesmo... Huguette, se quer, ajudará a
Aglaé a fazer o almoço, enquanto irei com a  ngela arrumar a casa.
Ensinaram-na a cozinhar no convento?

Um pouco. A Aglaé ensinar-me-á a sua maneira de trabalhar e


procurarei ser uma ajudanta séria.

44Nã o peço mais, pois eu e a cozinha nã o nos damos muito bem. As


minhas irmã s poder-lhe-ã o dizer que estranhos pratos lhes servi
quando principiei. Felizmente, aqui somos todos indulgentes, à parte a
Rosy, já se vê. Se pudesse, abandonaria a nossa mesa, muito frugal
para os seus gostos, e seria servida nos seus aposentos por uma
cozinheira experimentada. Mas o Renato nã o o admitiria. Já chega que
leve, a nosso lado, uma existência completamente diferente da nossa.

Na verdade, a viú va nã o convivia, além das refeiçõ es, com o resto da


família. Ficava sempre nos seus aposentos, que davam para o terraço
sobranceiro à torrente. Huguette ainda nã o tinha entrado lá , mas
compreendera por algumas palavras das primas, que Rosemonde se
rodeava de luxo e de bem-estar, servida por uma criada de quarto
apenas destacada para o seu serviço. Ao lado da existência laboriosa
das suas cunhadas, levava uma vida inú til, plena de futilidade e de
sonhos, nos intervalos da sua ternura maternal.

E até nisto se mostrava deplorà velmente vã e sem razã o. As seguras


decisõ es de Renato encontravam nela uma oposiçã o muitas vezes
declarada, a maior parte das vezes no entanto dissimuladas e, por isso
mesmo, mais difícil de vencer. Um antagonismo constante existia
entre Rosemonde e ele. Testemunhava à cunhada uma polidez glacial
e nã o cedia uma polegada de terreno, mas Rosy, obstinada e cheia de
malícia, conseguia muitas vezes ladear a vontade de Renato, a fim de
conduzir à sua vontade a educaçã o do Luís. E com uma paciência onde
parecia entrar uma forte dose de desdém, o senhor de Armilly

45 recomeçava a luta calma, mostrando um querer enérgico, ao qual


muitas vezes Rosemonde nã o ousava resistir. Mas ela contestava o
cunhado e, sem ousar mostrar abertamente, deixava suficientemente

40
perceber os seus sentimentos para que Huguette o tivesse bem
depressa compreendido.

Quanto à senhora de Armilly e suas filhas, testemunhavam à viuva


uma fria delicadeza frieza mais acentuada em Silvina, que parecia ter
pela cunhada uma consideraçã o ainda mais diminuta que o resto da
família. De facto, a natureza franca, séria e enérgica da mais nova das
Armilly devia dificilmente compreender o cará cter de Rosemonde,
ligeiro e obstinado, incapaz de proceder razoavelmente e muito
inclinado à dissimulaçã o.

A jovem senhora continuava a testemunhar a Huguette um interesse


muito vivo. No terceiro dia da sua chegada, apareceu na cozinha, onde
Huguette ajudava a Aglaé a descascar ervilhas para o jantar”

Procurei-a por toda a casa, querida, e nã o me lembraria de a vir


procurar aqui se a minha sogra nã o mo tivesse dito. Entã o já está
dominada, arregimentada no batalhã o dos bichos de cozinha formado
pela  ngela e pela Silvina? Tenha cuidado, Huguette. Nã o pode
imaginar a que ponto a podem levar, de concessã o em concessã o.
Resista desde já , recuse tratar destes assuntos domésticos, senã o
depois será ” muito tarde. Será arrastada pela engrenagem.,.

Ofereci de minha livre vontade os meus préstimos à s primas


interrompeu-a um pouco friamente Huguette-e sinto-me contente por
ser ú til, por poder facilitar um pouco a tarefa da  ngela e da Silvina,

46Rosy soltou uma gargalhada iró nica.

Lamenta-as, talvez? Eu nã o o faço, pois nã o sã o de modo nenhum


obrigadas a levar esta existência medíocre, visto que poderiam, se
quisessem, levar uma vida de princesas. Mas, minha querida Huguette,
há -de vir a saber que existe nesta casa duas terríveis razõ es, pelas
quais se movem o senhor de Armilly e as irmã s: uma é o orgulho,
levado a extremos limites, a outra, uma obstinaçã o invencível por
velhas normas de vida, hoje caducas.

41
Huguette teve um pequeno enrugar de sobrancelhas. Desagradava-lhe
imenso ser a confidente dos desagravos e do rancor daquela mulher
pelos parentes de seu marido, e resolveu cortar cerce os esforços
visivelmente tentados por Rosemonde para a tornar sua aliada.

Nã o sei de que velhas normas de vida me fala disse com secura, mas,
em todo o caso, nã o impedem que o senhor de Armilly seja uma
pessoa honesta e um perfeito cavalheiro e as minhas primas pessoas
boas e distintas, Pode acontecer que essas ideias por si qualificadas de
ridículas, sejam também as minhas.

À mã o de Rosemonde esboçou um gesto de impaciência.

Oh! também o queria acreditar! No convento, deviam-lhe ter ensinado


essas ideias antigas de honra, e aqui encorajá -la-ã o ainda mais,
respondo eu por isso! Mas nã o desespero de a levar a ter uma mais
justa noçã o da vida, É muito nova, Huguette disse com um misto de
inveja e de condescendência protectora.

Fitoa por alguns momentos os dedos finos que

47 abriam rapidamente as vagens inchadas e retiravam os grã os de


ervilhas para uma terrina, onde caíam com um ligeiro ruído,

Agradeço-lhe, prima, mas como vê, tenho bastante trabalho por algum
tempo.

Oh! peço-lhe que nã o me oponha essa razã o detestá vel! exclamou


Rosemonde com alguma có lera.

A Aglaé está aqui para fazer esse serviço, que a Huguette nã o deveria
fazer por razã o nenhuma. É muito linda, muito encantadora para se
ocupar com isso,

Mas Huguette nã o se comoveu com aquelas palavras tendenciosas.

42
A Â glaé nã o faz isto tã o depressa e nã o poderia já fazê-lo a tempo
disse com firmeza, designando o cesto de legumes que tinha na frente,

Lamento desapontá -la, mas é-me verdadeiramente impossível...

Diga-me que nã o quer, que eles já a doutrinaram, a reduziram a


escrava! exclamou a viuva com exaltaçã o. Verá a que ponto a levarã o...
Verá , minha tola pequena! Será como a Berta, como a  ngela e a
Silvina, uma solteirona encerrada nesta masmorra de Myols. Lembrar-
se-á entã o de que tentei salvá -la... Verá , Huguette!

Saiu da cozinha, fechando a porta com violência... A voz trémula de


Aglaé murmurou:

Que infelicidade a do senhor Augusto ao arranjar uma senhora assim!


Dá tantos desgostos aos meus pobres senhores! O filho é bem mais
razoá vel do que ela!

Aglaé tinha inteiramente razã o. Luís nã o tinha

48 nada da mã e, possuía o físico e o cará cter dos Armilly, e apesar de


Rosemonde o reter ciumentamente e o mais que lhe era possível sob a
sua influência, nã o podia impedir que o filho fosse irresistivelmente
atraído para aqueles que compreendiam a sua alma séria e terna, e
dos quais herdara os gostos, as ideias, e até mesmo as atitudes.

Se Huguette tivesse feito no convento projectos de vida mundana,


teria ficado inteiramente desapontada e desencorajada ao entrar na
vida austera dos Armilly. Mas o espírito reflectido, a cultura religiosa
profunda e uma piedade sincera e fervorosa tinham-na preservado
das ilusõ es e desejos frívolos, que tantas das suas colegas
acalentavam. Desejava apenas a protecçã o dum lar calmo e digno,
onde pudesse ser ú til e esperar em paz o futuro que Deus lhe
reservava. Esse futuro poderia ser o casamento, mas pensava pouco
nisso. Se bem que nã o fosse vaidosa, nã o ignorava que era bonita.
Lauriana, um pouco inconsideradamente, mas com a sua franqueza
costumada, tinha-lho dito em todos os tons. Sabia-se possuidora duma
apresentaçã o pouco vulgar e, por isso mesmo, apta a contrair uma

43
uniã o segundo o seu gosto. Mas nã o sentia qualquer pressa e confiava-
se à providência, que lhe devia indicar o rumo da sua vida.

Nestas disposiçõ es, e com o seu gosto simples, sentia-se à vontade


naquela moradia solitá ria, mas admiravelmente situada; podia
esperar uma vida quase feliz no seio daquela família tranquila e grave,
que lhe testemunhava uma simpatia incontestá vel, apesar das
aparências pouco vivas, e à qual nã o se podia até entã o repreender
senã o aquela melancolia

49estranha, cuja origem continuava inexplicada para Huguette.

No entanto, uma questã o preocupava a jovem. Havia já seis dias que


chegara a Myols, era um sá bado e ninguém fizera alusã o ao dever
dominical, nenhuma das meninas de Armilly tinha falado a Huguette
na igreja, coisa natural, no entanto, para com uma jovem que sabiam
ser extremamente piedosa e que nã o lhes tinha escondido a resoluçã o
de o continuar a ser.

Huguette ignorava ainda os sentimentos da sua família sob o ponto de


vista religioso, pois nenhuma palavra, nenhum acto os revelara, Tinha
notado apenas um crucifixo no quarto de  ngela, onde entrara,, e
desde entã o pensara que as primas rodeavam a religiã o da reserva tã o
frequente sobre outros pontos, Mas admirava-se um pouco daquele
persistente silêncio e da pressa com que Clotilde desviara a conversa
quando, uma manhã , ao passear com ela no jardim, a prima lhe
perguntara se a igreja ficava longe de Myols.

Mas quer os parentes fossem ou nã o religiosos, Huguette queria


conservar os seus há bitos de crente, Por isso, na tarde desse sá bado,
enquanto trabalhava junto de Clotilde, na ”sala dos antepassados”,
antes do jantar, perguntou tranquilamente. A que missa poderei ir
amanhã , Clotilde? Sã o talvez muito cedo, na aldeia?

Quer ir à missa?.,. balbuciou Clotilde com um pouco de terror.

44
Mas certamente. O que é que a admira, querida Clotilde?

50 Admirar-me?... De modo nenhum, mas...

Mas entã o porquê? Nã o incomodarei ninguém, a aldeia nã o é longe,


tomando o atalho, disse-mo  ngela, e creio que posso ir e vir sozinha,

Sozinha, nã o! interrompeu a voz decidida de Silvina.

Estava sentada na outra extremidade da sala, entretida a fazer as


contas do dia, mas tinha ouvido as perguntas de Huguette,

Renato nã o o permitirá certamente acrescentou, erguendo-se e


aproximando-se da prima,

É muito nova, Huguette... Olhe, aí vem precisamente o meu irmã o,


Vamos saber a sua opiniã o,

Renato acabava de entrar, vindo da biblioteca, e dirigiu-se para as


jovens.

Renato, a Huguette quer ir amanhã à missa

disse Silvina, pousando a mã o no braço do irmã o.

Apesar da penumbra que invadia a sala, Huguette via estremecer um


pouco o tutor.

Já esperava esse pedidodisse com voz levemente alterada. Certamente


nã o tenho a intençã o de a contrariar nos seus deveres religiosos, mas
poderia esperar ainda...

Esperar o quê? perguntou Huguette surpreendida.

45
Nada, tem razã o, mais vale encarar as coisas como sã o! disse ele
bruscamente como se tomasse uma decisã o, Vá amanhã à igreja,
Huguette, e já que é tã o piedosa, tenha coragem, muita coragem...

Nã o serve de nada recuar mais tempo disse

51 Silvina num tom positivo. Mas nã o pode ir sozinha à aldeia, nã o é


verdade, Renato?

Certamente que nã o! Acompanhá -la-ei, a menos que uma de vó s...

Vou eu! declarou Silvina. A mã e e a Barta nã o querem sair, a  ngela


ficaria doente se saísse agora. Irei eu com a Huguette, Apenas ao fim
de algumas experiências deste género, talvez se decida a fazer como
nó s, a ficar tranquila em Myols,

Mas porquê, Silvina? Que há de tã o extraordiná rio, de tã o aterrador no


facto de ir à missa?

Silvina nã o lhe respondeu, mas ouviu-se a voz grave de Renato:

Da parte de qualquer pessoa, é um acto simples, com efeito, mas duma


Armilly, é um acto de heroísmo.

E Huguette pensou toda a noite naquele enigma, cuja explicaçã o nã o


ousara pedir, ao mesmo tempo que procurava com ansiedade a razã o
por que a tentavam guardar de qualquer contacto com o exterior”

Soavam as cinco e meia da manhã quando as duas primas saíram de


Myols, no dia seguinte, para se dirigirem à igreja. Silvina tinha
prevenido Huguette de que iriam à primeira missa, ”que seria mais
tranquila, pois só assistiam camponeses”, acrescentara.

Tomaram o atalho de que falara  ngela e que passava pelo souto


situado do outro lado da torrente. A aurora nascia, iluminando o
bosque hú mido da geada matutina. O ar estava vivo, muito fresco, e

46
52 Huguette apertou mais estreitamente a capa de lã com que se
agasalhava..

Tem frio, Huguette? É talvez um pouco cedo para si, que nã o está
habituada à s madrugadas e à temperatura baixa daqui,

Nã o. Pelo contrá rio, este ar faz-me bem, asseguro-lho, Silvína. Estou


com pena de a ter incomodado a esta hora.

Silvina fez um gesto de indiferença.

sOh! estou muitas vezes levantada a esta hora, e já entretida a colher


as couves na horta. Nã o deve lamentar-me, Huguette, pois permitiu-
me hoje cumprir o preceito dominical, já abandonado há muitos anos.

Falava num tom meio sério, meio iró nico. Huguette ergueu para ela o
olhar luminoso.

Mas porquê, querida Silvina?

Uma espécie de do lorosa emoçã o perpassou na fisionomia de Silvina.

Porquê? Sabê-lo-á dentro em breve. Nunca fomos crentes fervorosos.


O pai era um indiferente, e a mã e, que gostava da vida de sociedade,
perdeu os há bitos de crente, e a ssim recebemos uma educaçã o
religiosa insuficiente. Na altura do nosso desgosto, enquanto as almas
profundamente piedosas seriam mais fortemente atraídas para a
religiã o, abandoná mo-la por uma espécie de lassidã o, de có lera, que
sei eu! Dou agora conta, de há dois anos para cá , como tal conduta é
iló gica, sofri, e é por isso que nã o senti pena de a acompanhar hoje,
Huguette, e de renovar a cadeia do passado.

Falava com a decisã o tranquila que parecia ser

53o fundo da sua natureza, A tristeza, nela, nã o revestia a forma


sombria e quase rude de Berta, nem era lassa como a da senhora de
Armilly e de  ngela, nem tã o pouco amargamente resignada como a

47
da pobre cega, mas aproximava-se muito da grave reserva de Renato,
sem ter a frieza algo altiva com que ele se defendia. Silvina era uma
jovem recta e enérgica, inteiramente dedicada aos seus, e aceitando
corajosamente o fardo dos deveres cotidianos e das provaçõ es
desconhecidas que pareciam pesar sobre aquela família. Essas
qualidades compensavam amplamente uma certa aspereza que se
notava por vezes no tom e nas palavras da menina de Armilly
aspereza que Huguette suspeitava ser destinada a esconder o
sofrimento dum coraçã o caloroso e sensível.

Tinham atingido o limite do souto e desembocaram na estrada. Na sua


frente erguia-se uma grande casa cinzenta, na fachada da qual se
enroscava uma glicínia enorme, formando um balcã o. Huguette
surpreendeu um olhar melancó lico lançado por Silvina para aquela
moradia.

As duas jovens tomaram à esquerda e, em alguns minutos mais,


alcançaram as primeiras casas da aldeia, A maioria tinha as portas e
janelas abertas, e apercebiam-se no interior os moradores prontos
para partirem para a missa, pois acabava de soar a primeira badalada
do sino. Outros caminhavam já ao longo da ú nica rua da aldeia,
dirigindo-se para o largo onde se erguia a igreja, baixa e mal cuidada,
mas dominada por um pequeno campaná rio.

A apariçã o naquela rua das meninas de Armilly pareceu acordar uma


ardente curiosidade. Cabeças

54 semi-penteadas apareceram à s janelas, mulheres em saiotes e


homens em mangas de camisa enquadraram-se na abertura das
portas, e os camponeses da rua pararam para fitarem as jovens.

E todas aquelas fisionomias Huguette notou-o com estupefacçã o


exprimiam o desprezo e a indignaçã o.

Silvina tomara a atitude que a prima já notara em Vonsset. Caminhava,


muito direita, fitando os olhos desdenhosos nos que a olhavam. Mas
Huguette notou o estremecimento da sua mã o sobre o punho da
sombrinha que levava.

48
Que temos nó s de singular, Silvina? Por que é que estas pessoas nos
fitam com tanta malevolência? perguntou Huguette em voz opressa,

Dir-lhe-ei, Huguette... mas mais tarde murmurou Silvina.

Alcançaram nesse momento o á trio da igreja, ao mesmo tempo que


um grupo de três camponesas. Estas recuaram, fitando-as com
desdém, e uma delas disse alto:

Ora vejam! Vêm aqui como as pessoas honestas!...

Silvina estremeceu e a mã o agarrou fortemente a prima, arrastando-a


para o interior da igreja.

Só havia três ou quatro fiéis ajoelhados na nave. Silvina dirigiu-se para


um banco de carvalho esculpido, colocado na primeira fila e, tendo
deixado entrar Huguette, ajoelhou-se nos estofos dum verde
desbotado.

Durante a celebraçã o do Santo Sacrifício, Huguette, sem se voltar, teve


a consciência de que eram

55 o ponto de convergência dos olhares dos assistentes. Sentiu


dificuldade em se recolher, tã o grande era a angú stia que a tinha
dominado ante aquela manifestaçã o de incontestá vel malquerença. A
seu lado, Silvina continuava de joelhos, com a cabeça erguida, lá bios
fechados, olhos fixos no altar. Estaria a orar? Era impossível adivinhá -
lo, dada a expressã o enigmá tica do seu rosto.

No fim da missa, Huguette tinha conseguido afastar toda a


preocupaçã o, concentrando o seu pensamento em Deus, de modo que
estremeceu um pouco quando Silvina lhe tocou no ombro, dizendo

Está pronta?

Ergueu-se, seguida da prima. Silvina esperara evidentemente que a


maioria dos fiéis tivessem saído, pois nã o estavam na igreja mais do

49
que três ou quatro mulheres, que ergueram a cabeça à passagem das
jovens e fitaram Huguette com uma curiosidade pouco benévola.

Quando atravessaram a porta, cruzaram com um padre de certa idade.


Fez um movimento de surpresa ao vê-las e ergueu o chapéu com
presteza.

É o senhor cura, Silvina? perguntou Huguette, quando estavam no


adro.

Nã o sei. O que conhecíamos, quando frequentá vamos a igreja, morreu


há coisa duns sete anos, creio, e nã o tivemos ocasiã o de conhecer o
sucessor.

Havia agora muita gente na rua que as duas percorriam. A aldeia


estava acordada já . E os mesmos olhares acolheram a passagem das
duas Armilly; exclamaçõ es escapavam-se, sublinhadas por gestos de
desprezo.

56Mas que têm eles? Que lhes fizemos? murmurava a pobre Huguette,
rubra de confusã o.

A prima, nada.,. e eu também nã o, de resto, nem nenhum de nó s


respondeu secamente Silvina, que mantinha a mesma atitude calma e
um pouco altiva.

Huguette soltou um suspiro de alívio ao ultrapassar a ú ltima casa.


Havia ainda lá adiante a moradia cinzenta, mas nã o se via nenhum dos
habitantes e, aliá s, estes podiam ser um pouco mais delicados e menos
malevolentes que os camponeses.

No momento em que a ultrapassavam, a porta abriu-se, deixando


passar uma jovem, pequena e um pouco gorda, tendo um elegante
chapéu, bem posto nos cabelos loiros. Tinha um nariz arrebitado, que
dava à sua fisionomia um ar gaiato. Mas à vista de Silvina e de
Huguette os lá bios tiveram um franzir desdenhoso e, voltando a
cabeça ostensivamente, tomou o caminho da aldeia.

Conhece-a? perguntou Huguette.

50
É É dmée de Avrets respondeu lacò nicamente Silvina.

Penetraram no souto e caminharam por instantes em silêncio.


Huguette parou de repente e apertou a mã o da prima.

Silvina, conte-me tudo... Peço-lhe, Silvina A incerteza é pior do que a


verdade!

É o que eu penso. Sentemo-nos aqui disse resolutamente.

Designava um tronco de pinheiro coberto de musgo seco. Sentaram-se


as duas, tendo sempre Silvina a mã o da prima entre as suas.

57Renato, como chefe da casa e seu tutor, reservara-nos o direito de


lhe contar a causa da malquerença que pesa sobre nó s. Mas sei que lhe
é sempre extremamente penoso falar nisto e pensei que talvez se nã o
importe que eu lho diga... Huguette, a opiniã o pú blica acusa-nos de ter
causado a morte da nossa prima Vitó ria Hardwell, para herdarmos a
sua imensa fortuna.

Oh! Silvina! balbuciou Huguette, aterrada.

É assim mesmo, minha pobre Huguette. Encontraram uma manhã a


Vitó ria estendida, sem vida, na cama, e com o quarto cheio de flores de
perfume intenso, que mandara vir de Cannes, como era seu costume.
A palavra suicídio foi pronunciada. Vitó ria era fantá stica e um pouco
desequilibrada, tinha inexplicá veis acessos de melancolia, seguidos
por uma alegria barulhenta e excessiva, as suas crenças religiosas
eram vagas. Foi nossa opiniã o e ainda éque se matou voluntariamente.
Como amava apaixonadamente as flores e os perfumes, escolheu
aquele género de suicídio pouco banal, mas completamente de acordo
com os seus gostos. Quem se lembrou de pronunciar a palavra
assassínio?... Quem insinuou que a enorme fortuna da Vitó ria
pertenceria aos Armilly e que só estes tinham interesse em a ver
desaparecer?... Circulou o boato de discussõ es violentas entre o
Renato e a Vitó ria. Infelizmente o facto era verdadeiro e atestado por

51
uma criada que as tinha ouvido. Mas essa mulher, afastada do castelo
devido a uma falta grave, nã o mencionou que só a Vitó ria soltara
palavras ameaçadoras e irritadas, enquanto Renato permaneceu
calmo, senhor de si, na

58 frente daquela pequena faria. Além disso, era notó rio que as
dissençõ es eram frequentes entre nó s e Vitó ria, que essa parenta,
primeiro pupila do Augusto e depois do Renato, apó s a morte do
irmã o mais velho, era para nó s um pesado encargo moral. Em breve,
de deduçã o em deduçã o, acusaram-nos da morte da nossa prima. Foi
uma loucura geral na regiã o. Renato foi preso, julgaram-no, mas
faltavam provas formais e os juizes nã o puderam fazer outra coisa que
absolvê-lo. No entanto, no fundo, nã o acreditaram na inocência que
acabavam de proclamar, e ninguém quis acreditar... Fomos todos, até
mesmo Rosy, englobados na reprovaçã o geral de Renato. Como
vivíamos muito retirados desde a morte do pai, acusaram-nos de nos
escondermos por orgulho, por vergonha da malquerença que
substituíra a influência de outrora; pretendiam que sentíamos inveja
do luxo e da fortuna da Vitó ria e que, apesar de parecermos aceitar
corajosa e altivamente a nossa posiçã o medíocre, desejá vamos
apaixonadamente tornar-nos ricos. Alguém declarou que éramos sem
dú vida cú mplices do Renato, pois todos nó s tínhamos um grande
quinhã o a receber da herança de Vitó ria, e eis a razã o por que,
Huguette, nos vê afastados da sociedade, eis por que também o será ,
pobre prima” Chama-se Armilly, e é também herdeira da Vitó ria.

Como?... murmurou Huguette.

A sua mã e era prima do pai dela, como o era o nosso. Renato nã o lhe
disse nada porque nã o gosta de falar na Vitó ria. A pobre criatura
causou-nos muitos aborrecimentos em vida, e vê bem em que situaçã o
nos colocou a sua morte.

59Huguete passou a mã o pela testa perlada de suor. Parecia-lhe ter


tido um sonho desagradá vel. E no entanto nã o podia duvidar das
palavras ditas pela voz firme e resoluta de Silvina.

Talvez vá perguntar a razã o por que ficamos aqui, apesar de toda esta
malquerença, obrigadas a fechar-nos em Myols e ameaçadas de nã o

52
ter em breve nem um criado, pois as pessoas daqui nã o querem servir
em nossa casa e os que tentá mos mandar vir de longe foram bem
depressa convencidos e abando” naram-nos. Mas além de nã o termos
os meios de fortuna suficientes, nã o queremos fugir como criminosos,
pretendemos desprezar a opiniã o pú blica e ficamos em Myols, altivos
da nossa pobreza, pois nã o tocá mos na herança da Vitó ria. Apenas a
Rosy pretende conservá -la para o filho.... mas a Rosy é uma criança
acrescentou Silvina, encolhendo os ombros. Nã o tem senso nem
julgamento. Quando o Luís atingir a maioridade, verá em que
consistirá o seu dever... Aquela fortuna, que nos pertence
legitimamente, tem uma origem pouco recomendá vel, disse-nos o
Renato, declarando que nã o podia explicar mais. Mas acreditá mos e
abandoná mo-la. Pretenderam entã o que tínhamos remorsos e que
temíamos que aquele dinheiro nos trouxesse apenas desgraças...
Como se nos pudesse acontecer coisa pior do que aquela que nos
aconteceu!

Silvina pô s as mã os nos joelhos e o olhar perdeu-se durante alguns


minutos nas profundezas suavemente iluminadas do souto,

Creio que pedimos demasiado à s nossas forças continuou ela


pensativamente. E cada vez

60 mais a situaçã o se torna insustentá vel. Imagine que até os nossos


amigos, que de início refutaram a acusaçã o, acabaram por ser
contagiados pela opiniã o do pú blico. É dmée de Avrets, que viu há
bocadinho, era uma das minhas companheiras de todos os dias. Nã o
temos qualquer futuro, nenhuma de nó s se poderá casar, mesmo em
qualquer outra parte, mesmo no estrangeiro, pois uma família honesta
pedirá informaçõ es da nossa origem, e entã o... Como vê, Huguette,
estamos manietados. Infelizmente, pelos laços de parentesco que nos
unem, qualquer coisa da nossa desgraça se reflecte em si. O nome de
Armilly é asqueroso na regiã o, ninguém se quererá unir a um membro
da nossa família, pois aos olhos de todos somos tã o culpadas, tã o
desonradas como se o jú ri nos tivesse condenado a trabalhos
forçados. Veja, minha pobre Huguette, o que o Renato, tã o bom e tã o
dedicado, nã o lhe queria contar, e foi esta também a razã o por que a
deixou o maior tempo possível no convento, sem nunca a ter trazido a
Myols, Gostaria e nó s também de prolongar para sempre essa

53
ignorâ ncia. Mas era impossível como compreendeu. Interrompeu-se e
ficou por instantes silenciosa, fixando o olhar penetrante no rosto
transtornado da prima.

E agora disse ela num tom grave, é livre de acreditar que somos
culpados, pois na realidade nã o sabe mais do que as pessoas daqui.

Huguette endireitou-se e apertou as mã os da prima.

Nã o, nã o, Silvina, nã o diga tais coisas! exclamou ela num ímpeto. Nem


por um instante a

61 dú vida atravessou o meu espírito. Oh! Silvina, imagina isso? Sã o


vítimas duma extraordiná ria injustiça, e eu sou-o como vó s todos.
Serei solidá ria nas vossas dores, ajudar-vos-ei a suportá -las, se isso
agradar a Deus.

É uma grande alma, minha querida prima disse Silvina com alguma
emoçã o, e sei que pela sinceridade é uma verdadeira Armilly. Mas
talvez um dia venha a duvidar.

Nunca, Silvina! Sofrerei convosco, ajudar-vos-ei na vossa missã o. Mas,


querida Silvina, nã o acha que esta seria mais doce e mais fá cil, mais
meritó ria também, se recorressem À quele que é a nossa força e pode
fazer surgir a verdade quando lhe aprouver? disse meigamente,
erguendo os olhos graves para a prima.

Nã o digo que nã o murmurou Silvina num tom pensativo. Lamentei


muitas vezes ter abandonado os meus deveres religiosos. Mas teve
hoje uma prova do que nos espera fora de Myols acrescentou ela,
indicando com um gesto a aldeia.

Sim, sei que é uma prova penosa disse Huguette, estremecendo ainda
com a recordaçã o dos olhares hostis que as tinham acolhido. Mas
teremos ainda maior mérito. Pelo meu lado, estou resolvida a nã o me
preocupar com isso e a cumprir o meu dever a despeito dessas
pessoas mal informadas.

Silvina fitou um olhar incrédulo no rosto encantador da prima,

54
Veremos se terá coragem de ir até ao fim dessa resoluçã o. Nã o calcula
a soma de energia necessá ria para ouvir contínuos insultos. Renato e

62 eu, por vezes a  ngela, expomo-nos quando a necessidade o pede,


ou entã o para mostrar a essa gente que nã o curvamos a cabeça como
culpados, mas é impossível sustentar por mais tempo a situaçã o. No
entanto, Huguette, enquanto quiser ir à igreja, acompanhá -la-ei
sempre.

Obrigada, Silvina, e creia-me, ao fim de pouco tempo, habituar-se-ã o a


verem-nos e a hostilidade diminuirá , deixando-nos tranquilas. Talvez
tenham cedido cedo de mais ao temor dos insultos.,.

Talvez.,. Parece que somos muito orgulhosos disse Silvina,


levantando-se.

Retomaram o caminho do castelo, silenciosas e pensativas as duas.


Huguette conhecia agora a provaçã o que pesava sobre os moradores
de Myols, e sabia também a parte que lhe estava reservada.

Ao entrar na sala, encontraram Renato e Berta, que folheavam alguns


papéis. O senhor de Armilly voltou para a pupila um rosto preocupado
e disse numa voz um pouco ansiosa:

E entã o, Huguette?... Dirigiu-se-lhe e estendeu-lhe a mã o.

Primo, sei tudo,,, e estou convosco para partilhar a injusta reprovaçã o


com que nos tratam disse com calor.

Ergueu-se e, agarrando a mã o que espontaneamente se lhe tinha


oferecido, fitou o olhar penetrante no rosto comovido, mas cheio de
resoluçã o.

Já sabe, minha pobre filha!... Eis tudo o que lhe posso oferecer em
Myols: um abrigo que nunca deixou de ser honesto na realidade, mas
que nã o o é aos olhos do mundo, humilhaçõ es fora daqui,

55
63 uma vida melancó lica e presa... Há poucas probabilidades que
arranje casamento, Huguette,

Nã o o ignoro. Pois bem, ficarei solteirona e serei talvez bem feliz disse
ela, tomando um ar gaiato, para dissipar a tristeza que notava nas
palavras de Renato.

É isso mesmo disse a voz breve e seca de Berta. Mais do que nunca,
Myols merecerá o apelido que lhe deram na regiã o.... mais do que
nunca será o castelo dos Solitá rios... forçados.

VI

Na tarde desse mesmo domingo, Huguette saía ao castelo para buscar


sob os castanheiros uma temperatura menos abafante que a de casa.
Clotilde, que o calor tornava sonolenta, recusara acompanhá -la,
Silvina escrevia na biblioteca, Â ngela e a mã e tinham-se retirado para
os respectivos quartos. Quanto a Berta, nem por um momento tivera a
ideia de fazer companhia à prima, e esta muito menos de lho pedir,
pois o cará cter melancó lico e orgulhoso da mais velha das Armilly nã o
era daqueles que atraíam espontaneamente a simpatia.

Aliá s Huguette preferia estar só . Sentia necessidade de pensar no que


se tinha passado nessa manhã , de rememorar a estranha e dolorosa
situaçã o daquela família, e por ricochete, também a sua. Num
momento, tudo se tinha esclarecido. Compreendera as razõ es da
conduta de Renato a seu respeito e a existência retirada e melancó lica
de todos os Armilly. Sabia agora a razã o por que  ngela lhe
respondera na véspera,

64quando exprimira o desejo de receber em breve a visita de


Lauriana:

Oh! A menina Delbeaume nã o terá sem dú vida a coragem de subir a


Myols!

O coraçã o de Huguette confrangeu-se um pouco. Lauriana seria bem


depressa informada da acusaçã o que pesava sobre os moradores de

56
Myols. Talvez nã o acreditasse, mas, se ousasse contrariar a opiniã o
pú blica, a família certamente que a impediria de continuar a manter
relaçõ es com a parenta daqueles que tinham sido considerados
criminosos. Por isso Huguette nã o deveria esperar tornar a ver a
amiga.

Estava destinada a envelhecer naquela moradia, como suas primas e


Renato. Tornar-se-ia melancó lica e resignada como eles, seria uma
solteirona limitada ao círculo estreito de Myols.

Mas abanou a cabeça ao chegar a este ponto das suas reflexõ es.

Nã o vejo necessidade de viver assim pensou ela. Quando for mais


velha, poderei instalar-me num país qualquer, ocupar-me com obras
de beneficiência, quer dedicando-me a Deus, quer continuando a viver
na sociedade. Mas nã o me fecharei sobre as minhas provaçõ es e
sofrimentos como o fazem as pobres primas, A Â ngela, a Clotilde e a
mã e perdem a saú de, a Berta revolta-se secretamente; só a Silvina
reage, mas sofre certamente mais nesta situaçã o. É verdadeiramente
lamentá vel que nã o tenham ido viver para outro sítio. Creio que no
seu lugar teria preferido ser pobre e empregar-me em Qualquer
ocupaçã o do que ficar aqui. Mas julgo que

65 sã o bastante orgulhosos e gostam apaixonadamente desta casa.

A pensar assim, Huguette, sem o notar, atravessara a ponte e entrara


no souto. Mas nã o voltou para trá s, continuando pelo atalho que mais
adiante se embrenhava no bosque. As primas tinham-lhe dito que
podia passear ali em toda a segurança, pois o souto,, outrora
propriedade dos Armilly, pertencia agora a Mateus Dauasy, antigo
mordomo de Myols. Sentia uma sensaçã o de bem-estar e de
apaziguamento na sombra daquela cobertura verde, pela qual o sol,
descobrindo alguns interstícios, espalhava no solo manchas de luz, O
ruído da torrente chegava ali muito atenuado, perturbando o silêncio
do bosque onde as aves, fatigadas pelo calor, se tinham deixado
adormecer nos seus retiros de folhas.

57
No entanto, o souto era habitado. O atalho desembocava numa vasta
clareira, no centro da qual se erguia uma casa de tijolo acastanhado.
As janelas, muito largas, tinham vidraças reluzentes, por trá s das
quais caíam cortinas brancas. Alguns degraus levavam até à porta,
grande e aberta, deixando ver na semi-obscuridade um vestíbulo.

Huguette permaneceu alguns instantes a observar aquela moradia,


vasta e bela, à volta da qual um estreito passeio de areia impedia a
erva de crescer, como o fazia por todo o terreno do souto. Era esta a
casa dos Daussy.

A jovem fez um movimento para voltar para


trá s. Temia perder-se, continuando o passeio... Mas
uma forma clara desenhou-se de repente na sombra
do vestíbulo, uma forma apareceu na soleira da porta.

66 Menina de Armilly, quer aceitar por alguns instantes a


hospitalidade da nossa casa? disse uma voz, com um timbre sonoro.

Aquela que falara assim deu alguns passos para a jovem interdita,
Huguette viu fitarem-na uns olhos ardentes, que fulgiam
estranhamente num rosto duma brancura tal, que parecia
abandonado pelo sangue. aquele rosto de má rmore, onde apenas as
pupilas pareciam ter vida, ardentes e sombrias, era coroado por uma
espessa cabeleira acinzentada que acabava de dar à quela fisionomia
uma originalidade incontestá vel,

Entre tornou a desconhecida num tom levemente imperioso,


Desejamos muito conhecê-la, eu e o meu avô . Entre, menina Huguette.

É a senhora Daussy? perguntou Huguette, um pouco perplexa,


constatando que aquela mulher tinha um rico vestido, cinzento de
prata, e possuía maneiras extremamente distintas.

É verdade, sou Gerardina Daussy, a amiga da sua família.

Huguette decidiu-se a atravessar a distâ ncia que a separava da neta do


antigo feitor, e esta estendeu-lhe uma bela mã o, onde se podia
observar o desenho das veias. Precedeu-a no interior, e Huguette pô de

58
admirar a agilidade de movimentos, a graça do corpo, bastante alto, o
gosto perfeito que tinha presidido à escolha do vestuá rio e do
penteado,

Gerardina abriu uma porta e disse num tom seco:

Avô , a menina Huguette de Armilly.

Ao mesmo tempo, a sua mã o singularmente

67 firme empurrou Huguette para o interior do salã o elegante. Ao lado


da janela, numa grande poltrona de encosto de veludo carmesim,
estava sentado um velho, envolto num roupã o branco, sobre o qual
sobressaía vigorosamente o rosto avermelhado, muito grande,
enquadrado por cabelos grisalhos um pouco compridos. À entrada de
Huguette deixou cair o jornal que segurava e voltou para a jovem os
olhos penetrantes e curiosos. Encantado pela sua visita, menina de
Armilly!

disse num tom nntuoso, quase meigo. Conhecil o seu pai, um belo
homem, muito amá vel.... oh! muito amá vel!

Um riso sarcá stico sublinhou aquela frase. Como todos os Armilly, avô
disse Gerardina com certa ironia. Sente-se, menina,,, ali, na frente do
meu avô , para ele ver como se parece com Hugo de Armilly. Gerardina
desejava fazer a mesma observaçã o provavelmente, pois sentou-se
perto do avô , de maneira a ter sob o olhar a jovem, um pouco
perturbada por aquelas pupilas brilhantes que pareciam fixarem-na
bem.

Oh! nã o se parece com Hugo! declarou o senhor Daussy. Mas tem um


pouco dos olhos de miss Hardwell, parece-me,

Também o tinha notado disse Gerardina.

E nã o é de admirar, pois a mã e de Vitó ria era prima de Hugo de


Armilly.

59
Conheceu o meu pai? perguntou Huguette ao velho, para dizer alguma
coisa, pois sentia-se singularmente opressa naquele ambiente
desconhecido.

68 Uma espécie de rictos contraía os lá bios de Mateus.

Creio que o conheci muito bem! Era vivo como a pó lvora... Muito,
muito vivo! Hum! o fiel Mateus sabe alguma coisa!

As sobrancelhas muito espessas e loiras, que mal se notavam por cima


dos olhos escuros de Gerardina, enrugaram-se por um instante.

Era o ú nico desse cará cter disse ela, interrompendo rapidamente o


avô , que começou a tossir ruidosamente, O irmã o e a irmã eram
calmos e frios, como a Berta, a  ngela e o Renato.

A ú ltima palavra foi dita num tom seco.

Era a amiga de infâ ncia dos meus primos, disse-me Silvina? perguntou
Huguette, arrastada pelo desejo de conhecer alguma coisa da vida dos
seus parentes no tempo em que eram alegres e felizes.

É ramos insepará veis, na verdade. Este souto pertencia entã o aos


Armilly e foi lugar de alegres brincadeiras. Era sobretudo amiga de
Berta e de Renato, Berta era séria e reservada, em certos momentos
muito violenta; gostava de dominar e tiranizava-me. Renato defendia-
me entã o.,, Tinha instintos cavalheirescos disse ela num tom
mordente.

Era muito alegre nessa época disse o senhor Daussy, esfregando as


mã os num ar de intenso jú bilo. Todos estes sítios ouviram
gargalhadas, asseguro-lhe, sobretudo quando estavam lá Edmée e
Clemente de Avrets.

O meu primo era alegre? repetiu Huguette num tom incrédulo. Julgava
que tinha sido sempre bastante sisudo.

60
69 Mas de modo nenhum! Sério, sim, e altivo, muito altivo!,.,, mas
tinha ocasiõ es de verdadeira alegria, nã o é verdade, Gerardina?

A senhora Daussy inclinou a cabeça em sinal de assentimento. Os


lá bios estavam entreabertos numa espécie de sorriso enigmá tico.

Sofreu contrariedades... Já as conhece, sem dú vida? perguntou o velho,


inclinando-se para interrogar com olhar curioso a fisionomia de
Huguette.

Apó s o sinal afirmativo da jovem, continuou num tom compassivo:

Nã o é nada de admirar que esse pobre rapaz se tenha transformado.


Uma soberba inteligência! Teria uma grande carreira na vida. Mas
essa maldita histó ria!... É inacreditá vel! disse ele, erguendo as mã os e
os olhos ao teto. Esta família era, se nã o amada eram muito altivos
para inspirar esse sentimento, pelo menos muito considerada em toda
a Saboia. Foi um escâ ndalo guando Renato de Armilly apareceu no
banco dos réus. Sem a soberba defesa do seu advogado.... oh! quem
sabe, pobre Renato!

Huguette estremeceu ao ouvir aquela frase de comiseraçã o, que lhe


pareceu injuriosa na boca daquele homem, acompanhada como era
por um olhar iró nico. Replicou num tom seco e resoluto, e olhando
bem de frente Mateus Daussy:

Como o teriam condenado? Nã o havia nenhuma prova contra ele,


dizem...

Um riso sardó nico ressoou pela sala.

Nenhuma prova? Ora! exclamou o ex-mordomo, batendo nos joelhos


com as mã os calosas.

70 Foi ele ou uma das suas irmã s quem lho disseram, nã o? Mas nã o
será uma prova...

61
A filha interrompeu-o com um gesto imperativo. Há instantes que
permanecia silenciosa, mas no rosto, mais estranho que belo, nas
pupilas sombrias, Huguette vira reflectir-se uma expressã o enigmá tica
e perturbadora.

Nã o, avô , a menina Huguette tem razã o, nã o havia provas sériasdisse


num tom calmo. Quando muito, fizeram-se conjecturas sobre certos
acontecimentos.... entre outros, por exemplo, o da zanga verificada
entre Renato e Vitó ria pouco tempo antes, com rompimento do
noivado.

O quê? Renato era noivo de miss Hardwell? exclamou Huguette,


abrindo os olhos,

Nã o lho tinham dito ainda? É verdade que falam o menos possível de


Vitó ria, em Myols... Renato decidira-se a desposar a prima.
Compreende, quinze milhõ es... Valia a pena um certo sacrifício e
aturar um cará cter demoníaco.

Desta vez, Huguette levantou-se, presa da indignaçã o.

Nã o é possível! Jamais o Renato teria feito isso! exclamou ela, toda


trémula. Aliá s, a Silvina nã o me disse nada disso.

Oh! acautelar-se-ia, com certeza! disse tranquilamente Gerardina.


Torno-lhe a dizer que nunca falam em Myols nesse noivado, aliá s
muito curto... Mas sente-se, menina Huguette, Vejo que faz do seu
tutor uma boa opiniã o. E está muito bem, pois merece-a, asseguro-lho.
Nã o é bom levar as coisas ao extremo. Talvez, apesar das aparências,
tenha

71 sentido qualquer afecto por Vitó ria, cujo espírito era vivo e
original, e quando o queria, o que acontecia raras vezes, tinha
maneiras muito graciosas. Mas nã o se sabia com o que esperar, em
boa verdade. Foi provavelmente por isso, numa dessas bruscas
mudanças de humor que confundiam os que com ela conviviam, que
rompeu o noivado de que se mostrara muito satisfeita.

62
Oh! estaria tanto assim? murmurou o senhor Daussy. Tinha-se
persuadido ou tinham-na persuadido que era a uniã o mais desejá vel
que podia obter, mas talvez tivesse reconhecido que, com a sua
fortuna, podia aspirar a um pretendente melhor, por mais inteligente
e cavalheiro que este fosse, mas extremamente autoritá rio e
exageradamente sério.

A Vitó ria nã o era capaz de raciocinar tanto! replicou Gerardina com


um movimento de ombros, Apesar de tudo, nã o sei nada, pois
ninguém conseguiu ir ao fundo daquele cará cter. Enfim, todos
encararam a desavença entre Renato e a prima como uma acusaçã o
formal contra ele. Sabia-se que os Armilly sofriam muito com a
mediocridade a queestavam reduzidos, depois de possuírem um
rendimento enorme. O casamento de Vitó ria com Renato fazia entrar
na família uma fortuna imensa. Aquele casamento, desfeito por um
capricho de Vitó ria, destruiu essa miragem de ouro... Eis sobre o que
se baseou a opiniã o pú blica, ainda existente agora, para afirmar que
certa mã o criminosa espalhou as flores no quarto de Vitó ria, embora,
com toda a verosimilhança, fosse a pobre criatura que se matou
voluntariamente num acesso de loucura.

72Os olhos de Huguette, cheios de angú stia, fitaram o rosto


impenetrá vel de Gerardina,

Pensa realmente assim, minha senhora?

Se algo que Renato e todos os seus nã o estã o inocentes? Oh! nã o


conservaria tal suspeita

disse Gerardina num tom de virtuosa indignaçã o

Só eu nã o abandonei aqueles pobres amigos... Mas sente-se, peço-lhe,

Nã o, obrigada, é tempo que regresse ao castelo. Admirar-se-iam talvez


por me verem chegar tã o tarde,

É verdade, o Renato tem o encargo de a vigiar. Nã o a retenho entã o,


Mas, se me permite acompanhá -la, irei consigo até Myols. Cheguei
ontem de Ghambéry e tenho pressa em tornar a ver a Rosy.

63
Hugaette nã o pô de recusar, se bem que sentisse uma impressã o
desagradá vel. Gerardina saiu da sala para buscar o chapéu, e o avô
seguiu-a com um olhar orgulhoso.

Nã o é soberanamente distinta? disse ele, voltando-se para Huguette, E


inteligente... No entanto am cavalheiro sem um centavo nã o a quis
desposar. Porquê? Por que é a filha dum mordomo, a descendente de
camponeses. É esta a justiça!disse num tom baixo, cheio de ó dio. Mas
hoje, vale cem vezes mais ter o nome de Daussy que o de Armilly,
Cumprimentam a Gerardina, insultam as meninas de Armilly.,, e
nenhuma mulher quereria chamar-se senhora de Armilly.

Nã o, ninguém disse Gerardina, que entrava e tinha ouvido a ú ltima


frase do avô , A raça dos Armilly extinguir-se-á .

73 Há ainda o Luís observou o senhor Daussy.

Ah! sim, o Luís! disse ela com certo desdém. Mas é tã o franzino! E em
todo o caso, será necessá rio que a mã e o leve para o estrangeiro; a
vida nã o lhe será possível aqui, com esse nome maldito.

Huguette, ao ouvir aquela palavra violenta, teve um brusco enrugar de


sobrancelhas. Gerardina continuou com rapidez:

Queria dizer que, mesmo que vivesse na Bretanha ou na Gasconha,


esta desgraçada histó ria poderia ser descoberta um dia ou outro. Terá
grande dificuldade em casar, porque naturalmente também acusam a
Rosy, pois tinha tanto interesse como os outros... Pobre Rosy! disse ela
com certa piedade. À quele cérebro de passarinho devia ser no entanto
considerado incapaz de ir tã o longe, nã o lhe parece?

Confesso que nã o sou capaz de compreender como ousaram acusar


por um minuto sequer o senhor de Armilly e as irmã s declarou
Huguette. Poucos cará cteres devem ser mais nobres e rectos, e a sua
atitude digna, a vida austera e pobre que têm levado desde esse triste
acontecimento só os dignificam.

64
Um clarã o perpassou pelos olhos sombrios de Gerardina.

Tem razã o, e é preciso pensar que toda a regiã o está cheia de loucos e
de cegos. Até já , avô . O Gonthier já entrou e julgo que virá fazer-lhe
companhia.

Ah! tanto melhor, pois sozinho aborreço-me (bastante aqui! Imagine,


menina Huguette, de que

74dedicaçã o é capaz a minha neta! Retem-nos aqui porque nã o se


quer separar da sua querida Rosy! disse num tom sarcá stico. Obrigado
por ter vindo visitar um velho amigo da sua família..., e nã o esqueça o
caminho da Casa Vermelha, menina de Armilly.

Estendeu a mã o muito aberta, na qual Huguette colocou a sua com


certa repugnâ ncia. À quele homem inspirava-lhe uma extrema
antipatia, nã o só pela sua fisionomia cínica como pelos subentendidos
desagradá veis para a família Armilly.

VII

Huguette

saiu, seguida por Gerardina, cuja com prida cabeleira desaparecia sob
um largo chapéu de palha, guarnecido com uma renda. Quando
atravessavam o vestíbulo, abriu-se uma porta, aparecendo um homem
alto e largo, com um casaco de flanela branca, cuja gola aberta
revelava um pescoço forte. Huguette teve apenas o tempo de entrever
um rosto de traços acentuados, com uma barba ruça, olhos claros,
penetrantes e frios, que se fixaram por um segundo na jovem.
Cumprimentou-a e dirigiu-se para o compartimento que as duas
tinham abandonado.

É o meu irmã o Gonthier disse Gerardina, quando saíram de casa. É


director duma fiaçã o perto de Chambéry, mas vem frequentemente
visitar-nos. O meu avô sente por ele um grande orgulho. É um rapaz
muito inteligente, que espero há -de ir longe.

65
75 Vou fazer um pouco de companhia a essa pobre Rosy continuou
ela, quando entraram no atalho percorrido há pouco por Huguette.
Leva na verdade uma existência bem triste. Vive sempre só , pois nã o
pode suportar o cará cter um pouco austero e fastidioso das cunhadas,
e muito menos ainda o de Renato. Este tem na verdade muito pouca
indulgência para com uma senhora tã o infeliz, Pelo menos, devia dar-
lhe a liberdade da educaçã o do filho,

Nã o sou da sua opiniã o declarou Huguette, pois a Rosemonde parece-


me pouco apta a educar uma criança, dado ter um cará cter muito
pouco sério.

É evidente..., se bem que seja mais do que pensam. Ama


apaixonadamente o filho e por essa criança, nã o sei do que seria
capaz. Mas é uma dura provaçã o o ostracismo que pesa sobre a
família. O ano passado, apesar das dificuldades levantadas pelo
cunhado, quis ir a Aix, alegando razõ es de saú de, mas na verdade para
fugir por algum tempo à atmosfera sonolenta de Myols. Mas mal
souberam o seu nome na pensã o onde se tinha hospedado, logo a
trataram com ares superiores e cheios de desprezo, ouvia ditos
iró nicos acerca do seu vestuá rio, pago, diziam, com o dinheiro de
Vitó ria. Apesar da indulgência que geralmente reina nessas estâ ncias
de á guas, a vida tornou-se-lhe tã o intolerá vel que foi obrigada a
regressar a Myols mais cedo do que tinha pensado, Isto nã o é
atrozmente penoso?

Certamente, mas é essa a posiçã o de  ngela, Silvina e de todos os


Armilly.

76É certo, nã o o nego.... mas é absolutamente ridículo englobar na


acusaçã o uma pobre senhora, que estava precisamente no momento
da morte de Vitó ria muito doente. Se se admitir que um tal plano foi
urdido pelos Armilly, é indispensá vel excluir a Rosy,

O seu afecto por ela torna-a um pouco parcial disse Huguette com
vivacidade. Desde que se admita uma conjura familiar contra a vida de
miss Hardwell, é muito ló gico englobar Rosy, pois a seu favor nã o há
mais provas que a favor dos outros. nã o vejo por que razã o julga os
parentes do seu marido mais capazes do que ela dum tal atentado

66
acrescentou ela erguendo o olhar franco, um pouco irritado, para
Gerardina.

As mã os da companheira juntaram-se num gesto de protesto.

Menina Huguette!.,. Mas que está a dizer?

exclamou com contida indignaçã o. Se os julgasse culpados, conservar-


lhes-ia a minha afeiçã o? Fui eu a ú nica que permaneci fiel à amizade
antiga... E se o quiser, serei também sua amiga

disse meigamente, pousando a bela mã o no ombro da jovem.

Agradeço-lhe respondeu friamente Huguette.

Caminharam por alguns instantes em silêncio. Gerardina, pelo canto


dos olhos, observava o delicado rosto da companheira, no qual se
notava uma altiva tristeza, Parecia que a melancolia ambiente de
Myols invadira já aquela jovem criatura.

É preciso nã o se deixar contaminar pelo desencorajamento disse a


senhora Daussy no tom

77 insinuante duma irmã mais velha que aconselha a mais nova.


Certamente que a existência nã o será muito alegre em Myols, mas nã o
ficará lá para sempre. Quando for maior, poderá escolher uma outra
residência, se os Armilly persistirem em viver neste velho ninho,
donde pretendem desafiar a opiniã o pú blica. Rosy já o teria feito, teria
ido para o estrangeiro, sem as dificuldades de todo o género
levantadas por Renato, que pretende manter o sobrinho sob a sua
alçada. No fundo, a Rosy tem o direito pelo seu lado, mas vai
suportando para nã o romper com todos. Dedico-me com todo o meu
fraco poder em a sossegar, em amenizar o procedimento por vezes um
pouco rude do cunhado, em arranjar algumas distracçõ es para aquela
jovem viú va, na realidade digna de compaixã o. É o meu papel junto
dela.

67
Encontravam-se no jardim. Na sua frente, o castelo erguia as paredes
cinzentas e as velhas torres doiradas pelo sol de Agosto. Gerardina
estendeu a mã o naquela direcçã o.

Os velhos senhores de Myols devem estremecer no tú mulo disse num


tom comovido. A raça dos Armilly era orgulhosa do seu passado
intacto e glorioso. Pobre Myols, vai cair em ruínas, pois Renato e as
irmã s nã o querem tocar na fortuna de Vitó ria. No entanto, estou certa
que esta veria com prazer o seu dinheiro empregado na restauraçã o
da velha moradia que amava com paixã o, se bem que aqui só tivesse
passado seis anos da sua vida, pois tinha quinze anos quando a
trouxeram, apó s a morte da mã e, e tinha atingido a maioridade
quando morreu.

Renato era o seu tutor? perguntou Huguette,.

78 que desejava saber alguns pormenores daquela prima tã o pouco


falada em Myols.

Só durante os dois ú ltimos anos. Anteriormente era o Augusto. Fazia-


lhe cenas tremendas e uma vez vi o Augusto erguer a mã o para ela,
num movimento de irritaçã o que nã o conseguiu dominar. Foi um
simples gesto, mas jamais lho perdoou, de modo que depois da sua
morte, foram a Rosy e o Luís o objecto dessa antipatia. Era duma
natureza terrível. Sem as suspeitas que a sua morte levantou, podia-se
felicitar a família Armilly por se ter libertado desse encargo.

Mas nunca souberam quem tinha sido o autor dos primeiros boatos?

Gerardina parou por instantes e fitou Huguette com um olhar


surpreso e interrogador.

O primeiro autor? Mas foi toda a gente, como sempre acontece. Uma
palavra deste provoca noutro uma ideia que vivia no seu
subconsciente e que nã o ousava mostrar a si pró prio; outros entã o,
encorajados, revelaram o conjunto das suas desconfianças
subitamente nascidas, a coisa chegou aos ouvidos da justiça,
indicaram-lhes uma via possível.... a deposiçã o duma criada acabou
por dar uma certa consistência à acusaçã o, e julgaram ser necessá rio

68
prender um homem que até aí era considerado íntegro. Sã o erros
infelizmente muito frequentes nos anais da justiça... É uma coisa
terrível esta reprovaçã o que lançaram sobre toda a família.

O olhar, cheio de comiseraçã o, envolveu a jovem que caminhava a seu


lado, e murmurou:

Sobre si também, minha pobre filha!

79 Aquela piedade desagradou a Huguette, por vir da parte daquela


mulher que lhe inspirava uma invencível antipatia. Fez um gesto de
altiva indiferença, replicando:

Deus me dará forças para suportar esta prova, minha senhora, e


espero que um dia desmascarará a verdade e fará brilhar a inocência
dos meus primos.

Um clarã o iró nico reflectiu-se nos olhos negros de Gerardina.

É muito religiosa, menina Huguette? Tanto melhor para si disse num


tom ligeiramente iró nico. Creio que seria necessá rio, para se alcançar
o resultado que tanto deseja, que a Vitó ria ressuscitasse, para dizer
que se tinha matado voluntá ria mente””

Interrompeu-se ao ver aparecer Renato na soleira da porta da sala de


jantar. Pareceu a Huguette que o rosto do tutor se contraía um pouco
e que os olhos se lhe tornavam mais escuros.

Gerardina deu os poucos passos que a separavam do senhor de


Armilly e estendeu-lhe a mã o, dizendo num tom gracioso:

Trago-lhe a sua pupila, Renato. Conheceu hoje a Casa Vermelha e os


fiéis amigos da sua família.

O rosto de Renato nã o se descontraiu. Replicou friamente;

69
Agradeço-lhe, Gerardina, mas era inú til incomodar-se. Huguette pode
perfeitamente passear sozinha no souto.

Nã o foi um incó modo, foi um prazer rectificou Gerardina com um


sorriso, que lhe iluminou

80 singularmente o rosto marmó reo. Aliá s eu vinha para aqui, para


ver a nossa querida Rosy. Sempre fraca e sofredora, a pobre amiga,
mas por vezes um pouco exigente. É preciso perdoar-lhe muitas coisas
por causa da sua saú de, Renato.

Evidentemente replicou-lhe com secura.

Huguette, quer ir ter com a Silvina ao escritó rio? Creio que a minha
mã e e a Clotilde estã o também lá ,

Ao escritó rio! interrompeu Gerardina num tom de protesto. Mas esta


pequena aborrecer-se-á naquele grave santuá rio! Venha antes comigo
à sala da Rosy, Huguette. Tocarei algumas peças de mú sica e...

Huguette nã o se aborrecerá nada interrompeu o senhor de Armilly.


Sabe, felizmente, interessar-se por coisas sérias... Venha comigo,
Huguette!

Oh! que tutor tã o severo que tem, menina!

exclamou Gerardina. Tem que se submeter, minha filha...

Ao mesmo tempo dirigiu a Huguette um olhar de compaixã o.

Espero que nos voltaremos a ver dentro em breve acrescentou,


estendendo-lhe a mã o. Sinto por si uma grande simpatia.

Huguette repreendeu-se um pouco por ter respondido apenas por


uma palavra bastante fria a tanta amabilidade, mas realmente nã o
correspondia de modo nenhum aos sentimentos expressos por
Gerardina. Esta despediu-se de Renato, que lhe manifestava a mais
estrita delicadeza, e dirigiu-se para o vestíbulo que comunicava com o
salã o de Rosy,

70
O senhor de Armilly penetrou na sala e Huguette

81 seguiu-o. Parou a meio do compartimento e voltou para a prima


um olhar preocupado.

Foi por sua livre vontade a casa da Gerardina ou foi ela quem a
convidou inquiriu.

Contou-lhe entã o o passeio que tinha dado, e a apariçã o da Gerardina


à soleira da porta da Casa Vermelha, bem como a insistência dela para
entrar. Disse-lhe francamente a impressã o desagradá vel que lhe
deixara Mateus Daussy, mas nã o mencionou os pormenores dados
pelo avô e pela neta a respeito dos moradores de Myols. Temia que
Renato ficasse magoado e descontente por saber que tinha ouvido
estranhos contar-lhe coisas que as irmã s e ele pró prio tinham julgado
melhor nã o lhe relatar. Isso está bem uma vez disse o senhor de
Armilly, cujas sobrancelhas estavam ligeiramente enrugadas. Mas
gostaria que visse o menos possível a Gerardina. É um cará cter
singular, muito complicado, e tenho razõ es para julgar que bastante
perigoso. Nã o lucra nada em manter relaçõ es de amizade com ela, do
mesmo modo que com a Bosemonde. Peço-lhe para evitar qualquer
intimidade com a minha cunhada e, tanto quanto possível, para nã o ir
só à sala de estar dela, pois nã o deixará de a atrair para fazer de si
uma distracçã o e uma confidente dos seus rancores. Ora nã o
permitiria isso... Compreende-me, Huguette. A jovem fez um sinal
afirmativo. No fundo, ficara um pouco surpreendida por uma
proibiçã o tã o positiva, que o cará cter de Rosy nã o parecia justificar,
pois, se era na verdade muito fú til e desrazoá vel, nã o o era até ao
ponto de lhe interditarem a sua

82 companhia, Parecia-lhe natural que a jovem senhora, obrigada a


viver fechada em Myols, procurasse um pouco de distracçã o na
companhia da prima...

Seria Renato imparcial a respeito da cunhada? Nã o a veria com olhos


severos de mais? Talvez a sua atitude fria e distante, sublinhada pelo
uso do nome pró prio de Rosemonde e nã o pelo diminutivo usado por

71
todos, exasperasse a tal ponto Rosy que a levasse a contrariar no que
podia o cunhado detestado!... Faltava de facto indulgência a Renato.

Sem dú vida este apercebeu pelo expressivo rosto de Huguette alguma


coisa da sua estupefacçã o, pois continuou:

Reconhecerá em breve por si pró pria a necessidade das precauçõ es


que tomo para a preservar de todo o contacto que possa modificar,
por pouco que seja, a frescura dos seus sentimentos e a forte educaçã o
moral que recebeu. Procedo unicamente para o seu bem, Huguette.

Creio-o bem, primo disse com vivacidade, perturbada pela grave


doçura com que o tutor pronunciara aquelas palavras.

A fisionomia do senhor de Armilly iluminou-se,

Fico satisfeito. Nã o queria que me considerasse um tirano disposto


apenas a contrariar os seus desejos. Quer agora ir ter com a minha
mã e e irmã s?

Seguiu-o até ao escritó rio, grande e comprida sala iluminada por cinco
altas janelas, guarnecidas com vidros claros. Toda uma parede era
ocupada por armá rios de carvalho cheios de livros. No extremo
erguia-se uma magnífica chaminé de madeira trabalhada,

83 encimada por um retrato feminino de grandes dimensõ es.

Silvina e  ngela escreviam à mesma mesa. Mais longe, e pró ximo da


chaminé, a senhora de Armilly lia para Clotilde. Huguette dirigiu-se
para estas ú ltimas,

A senhora de Armilly interrompeu-se e acolheu a jovem com um dos


semi-sorrisos que se permitiam os moradores de Myols em raras
ocasiõ es.

Fez um agradá vel passeio, Huguette?

72
Magnífico, minha tia, mas nã o muito comprido. Travei conhecimento
com a Casa Vermelha.

E também com o Mateus e a neta? A Gerardina é uma singular


criatura, nã o é?

Nã o me agradou muito disse com sinceridade Huguette.

Compreendo-a. Também nã o nos inspira grande simpatia. Por vezes


repreendo-me, pois é a ú nica das nossas antigas relaçõ es que mantém
connosco alguma convivência.

Nã o sei se será muito franca disse Clotilde. Há na sua voz entoaçõ es


estranhas; mas se bem que o meu ouvido seja apurado, posso
enganar-me. Em todo o caso, é muito amiga da Rosy.

A senhora de Armily retomou a leitura depois de ter indicado a


Huguette um armá rio onde podia escolher algum livro. A jovem,
tendo-se dirigido para esse lado, pô s-se a ler os títulos dos livros
arranjados nas prateleiras. Os Armilly deviam ter possuído em todos
os tempos o gosto das belas letras, pois a sua colecçã o literá ria era
notá vel e muito completa. Faltava-lhes apenas as obras
contemporâ neas, que a

84 provaçã o sobrevinda sobre Myols os tinha provavelmente


impedido de comprar.

Tendo feito a sua escolha, Huguette fechou o armá rio e voltou-se para
se ir sentar junto da senhora de Armilly, mas os olhos caíram-lhe
sobre o quadro colocado por cima da chaminé e encontrou o olhar
imperioso e encantador de dois grandes olhos dum azul violeta.

A jovem pintada no quadro trazia um traje Valois, duma escrupulosa


exactidã o histó rica, e cujo corte perfeito deixava apenas entrever uma
leve disformidade num dos ombros. O chapelinho de veludo escuro
ficava a primor naquele rosto fino de loira, um pouco comprido,
desprovido de real beleza, mas no entanto senhor dum encanto
particular, um pouco enigmá tico, devido sem dú vida ao seu belo olhar,
velado por longas pestanas, mais loiras ainda que os cabelos.

73
Era sem dú vida Vitó ria Hardwell, a noiva de Renato de Armilly, a
causadora da dura provaçã o que pesava sobre toda a família. Era a
rica e fantá stica Vitó ria, que Renato, segundo Gerardina, se nã o
resignara a casar a nã o ser pela sua fortuna. Trazia orgulhosamente,
sobre o seu magnífico traje, jó ias maravilhosas; a mã o comprida e
branca mergulhava em parte num pequeno cofre cheio de pedrarias e
a cabeça altiva erguia-se sob o chapéu ornado de pérolas enormes.

Mas Huguette nã o acreditara por um minuto sequer que a cupidez


tivesse arrastado Renato a esse enlace. Suportava dignamente, muito
altivamente a mediocridade actual para ter tido outrora a intençã o

85

odiosa que lhe parecia imputar a senhora Daussy. Era muito mais
verosímil pensar que uma real afeiçã o o tinha atraído para Vitó ria,
Agora que Huguette tinha observado aquele retrato, julgava isso bem
possível. Talvez tivesse tido o cará cter terrível pintado por Gerardina,
apesar da filha do antigo feitor ser dotada de alguns exageros. Aquele
cará cter tinha provavelmente o seu lado bom, que Renato descobrira,

Ficou transformada em está tua, Huguette? perguntou a senhora de


Armilly.

A jovem teve um breve estremecimento e veio sentar-se ao lado da tia.


Com um gesto, indicou o retrato.

Observava aquela parenta desconhecida ainda para mim.... pois creio


que é Vitó ria, nã o é verdade?

A senhora Armilly dirigiu um olhar um pouco ansioso para o filho,


sentado diante duma secretá ria, no grande vã o duma janela,

Nã o gosto de falar nela na sua frente disse-lhe em voz baixa. A sua


recordaçã o provoca-lhe sempre uma comoçã o penosa.

Huguette sentiu uma perturbaçã o. Essa emoçã o nã o podia ser


atribuída senã o a um desgosto profundo, cuidadosamente escondido

74
por Renato, como o devia ser a sua afeiçã o por Vitó ria. Aliá s, a
presença daquele retrato no quarto de trabalho do senhor de Armilly
era mais uma prova.

É na verdade Vitó ria prosseguiu a senhora de Armilly. Nã o parece a


personificaçã o da riqueza, da opulência de que era tã o orgulhosa? Nã o
faz ideia do luxo em que vivia, apesar dos nossos esforços

86para reduzir as suas loucuras. O pai, filho mais novo duma velha
família inglesa, realizou na Austrá lia uma imensa fortuna, de que foi a
ú nica herdeira. Da raça paterna, ficou-lhe um pouco do gosto e um
senso prá tico da superioridade dada na sociedade a uma grande
fortuna; da mã e, herdara a graça francesa, uma grande vivacidade e
uma irreflexã o por vezes extrema. Mas que violência, que orgulho! E
apesar disso, era, em certos dias, duma fraqueza infantil, tinha uma
amabilidade encantadora. Mas nã o pode imaginar os caprichos, as
irresoluçõ es singulares que se desenvolviam naquele cérebro de
jovem! Foi para nó s um pesado encargo, pobre criança!... E no entanto,
quando queria mas muito raras vezes, possuía um atractivo a que era
difícil resistir.

Abrindo o livro, Huguette pensou que talvez tivesse sido essa atracçã o
fugitiva que decidira Renato a desprezar a opiniã o do mundo desse
mundo tã o mal informado e malevolente que nã o hesitara em afirmar
que fora a cupidez desse homem sem fortuna que o levara a desposar
a prima imensamente rica. E Gerardina, apesar da sua intimidade com
os Armilly, pensara como toda a gente.

VIII

A revelaçã o que acabava de ser feita a Huguette nã o alterou a sua vida


exterior.

Mas, no fundo de si pró pria, a jovem sentiu-se transformada, quase


amadurecida por essa prova moral que devia partilhar com as primas
e Renato”

87Desde o primeiro momento que avaliou corajosamente as


consequências da situaçã o existente. Verosimilmente, como lho

75
tinham notado Silvina e Renato” jamais se casaria. O nome da sua
família era desprezado em toda a Saboia e qualquer família honesta
hesitaria em passar por cima da reprovaçã o que pesava sobre os
Armilly, Durante estes primeiros, tempos, tinha que continuar a viver
em Myols, sob a protecçã o daquela família desgraçada, de que
apreciava a tranquila bondade, por vezes encoberta sob fria
aparência. Poderia aqui ser ú til, aliviando as primas e tia, e um dia
decidi-los a abandonar Myols, a procurar numa terra estranha a paz e
um pouco da consideraçã o que lhe tinham retirado na sua pró pria
terra. Silvina afirmava que lhes faltavam os meios pecuniá rios. Mas
nã o tinha ela a sua pequena fortuna, que com satisfaçã o empregaria a
ajudar aquele êxodo?

Coisa necessá ria) parecia-lhe, para conseguir que a senhora de


Armilly e seus filhos se libertassem da melancó lica e apá tica tristeza
em que envelheciam. Â ngela perdia a saú de, e a mã e, de
temperamento delicado, sofria dum desencorajamento total; Berta, de
dia para dia, tornava-se mais severa e sombria; Clotilde, naquela
atmosfera sonolenta, empalidecia e perdia os ú ltimos restos de alegria
que até entã o ainda possuía. Parecia-lhe que aquelas mulheres tinham
chegado ao extremo da coragem, da altivez heró ica que os tinha feito
erguer a cabeça perante a acusaçã o de todos e dizer: ”Estamos
inocentes e nã o recuaremos”.

Apenas Silvina, intrépida, parecia ainda vencer

88 a lassidã o desse combate travado contra a opiniã o pú blica. Seria


uma séria ajuda na obra de reconforto moral que pensava realizar
Huguette. Parecia ter conservado melhor que sua mã e e irmã s a
semente da educaçã o cristã , infelizmente muito diminuta, que lhe
tinham dado; parecia disposta a renovar a prá tica da religiã o, pois a
sua inteligência viva e a sã ló gica que possuía sofriam com a singular
contradiçã o que levara toda a família a abandonar o socorro divino,
precisamente no momento em que mais sentiriam a sua doce
influência. Pelo seu exemplo, conseguiria sem dú vida fazer penetrar
no espírito de sua mã e e das irmã s e talvez também de Renato a
convicçã o da eficá cia da crença religiosa para transformar a mais
desafortunada existência, Com a ajuda de Deus, Huguette e Silvina
encaminhariam aquelas almas fatigadas do seu estoicismo para a fé

76
que adoça e ilumina todos os sofrimentos, para a religiã o que dá um
bá lsamo para todas as provaçõ es.

No segundo domingo, foi ainda Silvina quem acompanhou a prima à


igreja, e as duas suportaram com igual força de â nimo o acolhimento
hostil e de desprezo que de novo lhes fizeram na aldeia.

Na tarde desse mesmo domingo, enquanto Huguette, sentada num


banco do pequeno souto, lia para Clotilde, viu correr para elas Silvina,
um pouco animada, contra o seu costume.

Huguette, a sua amiga Lauriana e o irmã o estã o em nossa casa.

Huguette

ergueu-se com vivacidade, corada pela alegria.

Oh! a minha querida Lauriana! Talvez ainda

89nã o saiba?!.,. perguntou com alguma inquietaçã o.

Seria para admirar. Era necessá rio que se tivesse informado em


Vonsset do caminho para Myols, e entã o ter-lhe-iam falado de nó s... Vá
na frente, que eu acompanho a Clotilde.

Ao entrar no grande salã o, sombrio e majestoso, que há muito nã o via


qualquer visita, Huguette encontrou Lauriana e o irmã o a conversar
com a senhora de Armilly. A menina Delbeaume lançou-se nos braços
da amiga e, na terna compaixã o que vibrava na frase: ”Minha querida
Huguette!” esta compreendeu que Lauriana conhecia a verdade e que
tinha corajosamente repelido a opiniã o pú blica para nã o deixar crer à
amiga que acreditava nela.

O senhor Delbeaume cumprimentou Huguette, trocou algumas


palavras com ela, retomando depois a conversa com a senhora de
Armilly, a fim de deixar as duas jovens trocar as suas confidências e
recordaçõ es. Lauriana contou à amiga que Vonsset lhe tinha agradado,
que a sua sociedade parecia bastante acolhedora, mas que a detestava
por causa das terríveis suspeitas que lançavam sobre os Armilly.

77
Minha pobre amiga, é indigno! Custou-me acreditar tal coisa de
pessoas que se dizem sensatas, tais como o presidente e o procurador,
que contaram ao Armando essa fantá stica histó ria. O meu irmã o nã o
pô de dominar-se que nã o fizesse ver aos seus chefes que considerava
isso como um monstruoso erro. Mas o procurador, que é um caturra e
que nã o esconde a sua animosidade contra a nobreza, mostrou-lhe tal
cara, que o Armando, para já , teve de

90 calar os seus argumentos. Fará já apenas, pois projectamos tomar a


vossa defesa noutra ocasiã o e de fazer compreender a estes ridículos
acusadores a injustiça do seu procedimento.

Obrigada disse Huguette com emoçã o. Mas temo que nã o sejam os


mais fortes nessa luta.

Era o que faltava! E para já , manteremos relaçõ es íntimas! A minha


mã e virá visitar a tua tia, se esta o permitir. E depois virã o a Vonsset, a
nossa casa, e ali só terã o estima e afeiçã o, respondo por isso. Levará s
as tuas primas, pois desejo conhecê-las a todas.,. Sabes que esta é
encantadora? acrescentou, baixando a voz.

Indicava Silvina, que conversava com o senhor Delbeanme. A senhora


Armilly, depressa fatigada de falar, deixara à filha o cuidado de manter
a conversa, e Silvina desempenhava-se com à vontade. Tinha uma
vasta educaçã o, um espírito penetrante e original, e Huguette ficou
admirada da mudança que a animaçã o provocava naquela jovem
geralmente muito séria. Parecia-lhe mais entusiá stica, mostrava-se
mais como era, tal como teria sido numa atmosfera diferente da que
estava condenada a viver. Silvina de Armilly revelava-se na verdade,
sob a reserva um pouco altiva, uma mulher inteligente e amá vel, e era
visível que o substituto sentia prazer em trocar com ela as suas
impressõ es sobre a Saboia.

Apesar dos protestos dos visitantes, levantou-se para ir buscar


refrescos. Reapareceu pouco depois, precedendo por instantes Renato

78
e Clotilde, prevenidos por ela daquele acontecimento inaudito que era
uma visita a Myols.

91O senhor de Armilly testemunhou aos hó spedes uma cortesia


perfeita, sem todavia abandonar a sua habitual reserva, Huguette
verificou com secreta satisfaçã o que o senhor Delbeaume e a irmã
pareciam apreciar a notá vel inteligência que mostrou durante a
conversa, e julgou sincera a frase que Armando pronunciou quando,
ao sair para acompanhar as visitas até ao portã o, se viu a seu lado ao
atravessar a ponte de pedra.

Nã o ficaria admirado se o seu tutor possuísse um espírito superior e


uma grande alma, menina” Em todo o caso, deu-me a impressã o de ser
um dos homens mais leais que encontrei até hoje.

Adivinhou entã o que era uma maneira delicada de lhe dar a entender
que nã o partilhava da opiniã o dos habitantes de Vonsset, e
respondeu-lhe simplesmente, num tom onde se revelava grande
alegria.

Nã o se engana, senhor. Obrigada.

Ao portã o, Lauriana renovou o seu convite a Huguette e à s meninas de


Armilly. Queria, dizia ela, vê-las frequentemente. Armando fez coro
com a irmã , e como se dirigisse em especial a Renato, cuja autoridade
pressentia, o senhor de Armilly respondeu-lhe:

As minhas irmã s e Huguette sã o livres e podem ir a Vousset quando


lhes agradar. Mas nã o ignora, senhor, a posiçã o em que estamos, e
duvido que Huguette e as minhas irmã s se exponham à malquerença
com que as acolhem sempre que saiem de Myols,

Mas estarã o em nossa casa, senhor! exclamou Lauriana. E nã o julga


que era uma boa liçã o que dá vamos a essas pessoas tã o prontas a
julgar e a condenar?

92Uma liçã o que talvez tivesse como resultado estragar a carreira do


seu irmã o, senhora. Nã o sei do que seriam capazes de dizer dum

79
magistrado que mantivesse relaçõ es com uma família sobre a qual
pesa tal suspeita,

Nã o dirã o nada declarou Armando com convicçã o. Nã o poderã o dizer


nada, pois só podem fazer vagas suposiçõ es. E eu serei vosso aliado,
senhor de Armilly, e farei ressaltar aos olhos de todos a sua
integridade perfeita acrescentou, estendendo a mã o a Renato num
gesto espontâ neo.

Um pouco de emoçã o atravessou o olhar grave do castelã o. Apertou


fortemente a mã o que tã o francamente lhe fora estendida, replicando
com alguma tristeza:

Obrigado, senhor.... mas creio que lhe será bem difícil convencer o
mundo.

Difícil, talvez, mas nã o impossível, com a ajuda do céu acrescentou


Lauriana com calor. Tem aqui alguém, senhor, que lhe trará a
felicidade.

E ao pronunciar estas palavras em voz baixa, indicou Huguette, que se


tinha afastado um pouco para colher algumas rosas que a senhora de
Armilly queria oferecer a Lauriana.

É deliciosa de fervor e de dedicaçã o! continuou Lauriana com


entusiasmo. Já se apercebeu disso, com certeza?

Tem razã o. É muito séria e ao mesmo tempo dimana dela um encanto


câ ndido e simples que me atraiu imediatamente disse Silvina com a
sua tranquila franqueza. Creio que a vou amar muito.

93E eu também! disse Clotilde. Nã o a vejo,, mas adivinho que deve ser
muito linda!,., E sei como é boa!

Tem na verdade notá veis qualidades de espírito e de coraçã o disse o


senhor de Armilly num tom sério e um pouco frio. E é também alegre,
coisa desconhecida até agora em Myols. Possa gozar por muito tempo
essa serenidade de alma!

80
O regresso de Huguette fê-los calar. As visitas despediram-se, levando
quase a promessa de Clotilde, de Silvina e de Huguette de irem no
domingo seguinte a Vonsset.

A menina Delbeaume é encantadora, e parece-me que o irmã o é um


homem sério e inteligente disse Silvina, durante o regresso ao castelo,

Parecem ser na verdade boas pessoas. Mas nã o poderã o continuar a


visitar-nos.

Huguette olhou para o primo com tristeza.

Oh! Julga isso?

Temo que sim. Admitindo que a crença geral os nã o convença, serã o


obrigados a renunciar a relaçõ es tã o comprometedoras, dada a
posiçã o do senhor Delbeaume, Lamento-o por si, Huguette. As minhas
irmã s estã o já habituadas à vida calma de Myols, mas a prima, que
saiu do convento, que tinha amigas...

Terei entã o as minhas primas. E amo-as já muito disse amavelmente


Huguette, apertando contra si o braço de Clotilde, que conduzia.

Creio que é muito corajosa, Huguette.,.

O senhor de Arnilly interrompeu-se. Entravam nesse momento no


vestíbulo e, pela porta que abria para os aposentos da viú va, saíam
precisamente Rosy

94e Gerardina. O olhar da primeira testemunhava uma viva irritaçã o.

Entã o receberam visitas? disse num tom mordente. A Melâ nia acaba
de nos transmitir essa notícia inacreditá vel. E nã o lhes passou pela
cabeça prevenirem-me desse acontecimento inesperado!

81
Era fá cil discernir no acento contido uma violenta exasperaçã o.

Confesso, com efeito, nã o me ter lembrado

replicou tranquilamente o senhor de Armilly,

Esta visita era para Huguette, e nã o para si, Rosy.

Esta deixou o braço de Gerardina, em quem se apoiava, e deu alguns


passos para o cunhado.

Julga que nã o teria aproveitado com alegria esta pequena distracçã o,


por mais insignificante que fosse? disse com có lera. Julga que tenho
aqui bastante alegria e felicidade?

Ripostou com frieza:

As minhas irmã s nã o têm mais do que a senhora.

Mas nã o têm o meu cará cter, nã o sentem como eu a necessidade duma


existência alegre e animada, Nã o me compreende, Renato, jamais me
poderá compreender! E é por isso que sairei de Myols, irei para a
Itá lia ou para a Á ustria, ou para outro lugar, procurar uma vida mais
conforme com o meu feitio.

Renato fez um leve movimento de ombros e, desdenhando replicar a


estas palavras pronunciadas em tom de desafio, dirigiu-se para o
escritó rio.

Mas Rosy encaminhou-se para ele.

Nã o suportarei por mais tempo ser tratada

95 como uma criança, a quem nem mesmo se responde, porque só diz


tolices! Nã o sei por que parece afectar manter-me fora do convívio de
todos, como se nã o pertencesse à sua família. Era muito natural
apresentar-me a essas visitas. Mas nã o, deixa-se a pobre Rosy de
lado!... Nã o é uma revoltante injustiça, Gerardina?

82
A senhora Daussy tinha até entã o ficado imó vel e silenciosa. Os olhos
sombrios fitos ora em Rosy ora em Renato, nã o reflectiam os seus
sentimentos. À interpelaçã o da viú va, deu alguns passos para Renato.

Vejamos, nã o exagere, Rosy disse num tom conciliador. É pouco


razoá vel atormentar tanto o pobre Renato por um esquecimento.”

O senhor de Armilly replicou com secura:

Um esquecimento voluntá rio, de qualquer modo. Repito-lhe,


Rosamonde, que nã o tinha nada que ver com esta visita, que nã o lhe
era destinada. Nã o compreendo como me acusa de a manter fora da
família, quando é a senhora que afecta constantemente separar-se de
nó s o mais possível.

Inclinou-se levemente para cumprimentar Gerardina e entrou no


escritó rio.

Selvagem! murmurou Rosy com có lera. Diziam outrora que era um


modelo de cortesia! Hoje é pior que um criado!

Silvina exclamou num tom irritado:

Nã o suporto que fale assim do meu irmã o! Sofreu esta liçã o um pouco
dura para as suas pretensõ es, apresentadas num tom realmente muito
arrogante, e compreendo que o Renato acabasse por se ter
impacientado.,.

96 Oh! querida Silvina, está a caluniar o seu irmã o! Nã o estava


impacientado quando respondia com tanta calma e sangue-frio a Rosy
observou docemente Gerardina.

Sei muito bem o que ele quer, pois em qualquer circunstâ ncia só
procura ferir-me e humilhar-me! Mas verá ... verá ! disse Rosy com um
acento de rancor, crispando no vestido as mã os guarnecidas de anéis.

Silvina nã o pô de dominar um gesto de impaciência. Agarrou no braço


de Clotilde e dirigiu-se para o escritó rio. Huguette quis segui-las, mas
foi agarrada à passagem pelas mã os nervosas de Rosy.

83
Querida prima, fique por um momento. Fiz o projecto de a levar ao
meu salã o, para conversar consigo em sossego, como ainda nã o
consegui desde a sua chegada, pois está sempre acompanhada pelas
suas primas.

Mas nã o vejo em que a sua presença a possa impedir de conversar


comigo replicou Huguette com frieza.

Um risinho iró nico ressoou no vestíbulo.

Minha pobre filha, ainda nã o notou que sou aqui considerada como
uma cabeça sem cérebro e que por consequência todas as minhas
palavras sem falar nos meus actos sã o passadas no crivo duma crítica
parcial? Sim, Huguette, nã o sou livre na presença de qualquer
membro da família de Armilly, e é por isso que a queria ter por
momentos só para mim, pois simpatizo imenso consigo, minha filha!

E deitando-lhe os braços ao pescoço, abraçou-a com ardor. Mas


Huguette nã o lhe correspondeu.

97Fitando por acaso Gerardina, viu entreabrir-se os lá bios da neta do


antigo feitor num sorriso sarcá stico”

Venha, Huguette querida continuou Rosy num tom insinuante. A


Gerardina ia sair, mas em sua honra ficará por mais algum tempo e
tocar-nos-á qualquer coisa... Nã o é assim, Gerardina?

De boa vontade! Como já disse à menina Huguette, tenho por ela uma
grande amizade, e sentir-me-ia contente se conseguisse amenizar-lhe
a existência um pouco monó tona e austera que leva aqui.

Agradeço-lhe replicou a jovem num tom delicado e firme. Prometi a


Clotilde ler-lhe qualquer coisa e nã o posso...

Oh! nã o é uma razã o! À s leitoras nã o lhe faltam. Vamos, nã o se faça


rogada.

84
Nã o posso, asseguro-lhe, prima. Rosy deixou escapar um gesto
colérico.

Nã o pode? Proibiram-na, nã o é verdade? Este Renato, ainda... ainda!


exclamou raivosamente.

Gerardina interveio, designando a porta do escritó rio:

Nã o fale tã o alto, Rosy! Acalme-se, minha querida. É um procedimento


muito duro, na verdade, mas é preciso perdoar muito a Renato, cujo
cará cter azedou devido à infelicidade e à solidã o.

A viú va disse com inimizade:

Nã o lhe perdoo nada! É muito boa, Gerardina. Mas sei que no fundo,
como eu, acha odioso este despotismo que pretende afastar de mim a
Huguette, como se eu fosse uma pestífera. Tenha cuidado, Huguette! Já
lhe recomendei que se nã o deixe aniquilar, pois em breve será tarde.

98 Sim, minha querida, aconselho-a a mostrar um pouco de força de


cará cter disse Gerardina num tom de afectuoso interesse. Nã o que
pretenda ver em Renato um tirano, mas possui um instinto de
dominaçã o contra o qual será bom defender-se. Confesso-lhe que
outrora pensei que as có leras de Vitó ria eram por vezes
compreensíveis, pois o seu primo ultrapassava em certas ocasiõ es os
limites da autoridade dum tutor para com a sua pupila.

Mas tinha muitas vezes que se dominar replicou Rosy em voz trémula.
Bastava-lhe fazer qualquer observaçã o para que ela se revoltasse e o
enfrentasse. Imite-a, minha filha, creia na nossa experiência. É no seu
interesse que lhe damos este conselho...

Inclinou-se um pouco, fitando no rosto da jovem os olhos, onde por


vezes transparecia uma alegria escarninha.

E sabe por que razã o o seu primo quer evitar todo o contacto entre
nó s?... Simplesmente porque teme que lhe façamos entrever um
Renato muito diferente daquele que conhece.

85
Interrompeu-se ao ouvir passos na escadaria. Era  ngela, cuja
fisionomia exprimiu alguma surpresa ao vê-las paradas a meio do
vestíbulo.

Por que ficaram aqui? perguntou.

Está -se muito melhor, pois sente-se menos o calor que nos outros
compartimentos respondeu-lhe Gerardina, estendendo-lhe a mã o. Mas
parece extenuada, querida  ngela. É por causa deste calor,
provavelmente, nã o?

 ngela respondeu-lhe em tom fatigado:

99Talvez, Vai sair, Gerardina?

Vou aproveitar a presença do Gonthier. O meu irmã o queixa-se de que


me vê pouco aos domingos, e por isso tenho que me dividir o melhor
possível entre a Rosy e ele.

A viú va estendeu-lhe as mã os num movimento de entusiasmo.

É uma amiga incompará vel, minha querida! Sem a sua presença, nã o


poderia viver, Gerardina! replicou num acento de ardente
reconhecimento.

É muito amá vel! murmurou  ngela, enquanto Gerardina, tendo-se


despedido das duas irmã s, se afastou acompanhada por Rosy. De
quem é a culpa se a mantemos um pouco afastada de nó s, como
pretende? Apó s a morte do Augusto, começou a desviar-se do nosso
contacto familiar e esta atitude mais se acentuou depois da morte da
Vitó ria e dos tristes acontecimentos que se lhe seguiram.

Huguette fitou a prima com um ar um pouco perplexo,

Minha querida  ngela, nã o quero desculpar a Rosy, cujas culpas sã o


indiscutíveis, mas,,, o Renato nã o é à s vezes um pouco severo, um
pouco desdenhoso a seu respeito?

86
Talvez disse pensativamente  ngela. Mas pense como ela é irritante! O
Renato nã o era assim para ela antigamente. Compreendeu no entanto,
desde os primeiros dias do casamento do Augusto, como era frívolo
esse cará cter, mas mostrava-se indulgente, e nunca o vi tã o iró nico e
friamente desdenhoso como desde,.,, vejamos.,., desde pouco mais ou
menos a morte da Vitó ria.

100 Talvez esse desgosto lhe tenha modificado o feitio objectou


Huguette, pensando que talvez Renato tivesse sofrido bastante com o
fim trá gico daquela que tinha sido a sua noiva.

Em todo o caso, só em relaçã o a Rosy. Para nó s, é sempre o mesmo,


afectuoso e dedicado sem medida. Enfim, se nã o fosse o Luís,
gostá vamos bastante que a Rosy realizasse o seu projecto de ir viver
para o estrangeiro.

Projecto que nã o seria assim tã o desrazoá vel  ngela, se todos o


adoptassem. Só com muito custo mantêm a penosa situaçã o que têm
aqui, enfraquecem-se nesta luta silenciosa contra a opiniã o pú blica, ao
passo que podiam levar uma outra existência, com o repouso moral
que lhes falta nesta regiã o...

Deixar Myols? Oh, só em ú ltima instâ ncia, Huguette, Amamos o nosso


velho ninho, por mais pobre e desprezado que seja. Por outro lado,
nã o teríamos os meios para viver noutro sítio... E ninguém queria... eu
muito menos. Eu nã o! murmurou num tom baixo e doloroso.

Dirigiu-se para o escritó rio, e Huguette seguiu-a. No momento de abrir


a porta, Â ngela disse numa voz entrecortada por triste comoçã o:

E no entanto, mais do que ninguém eu deveria querer partir, fugir


deste país. Mas alguma coisa me retém invencivelmente. Nã o é a
esperança, pois nã o tenho nenhuma... e contudo!...

87
Huguette, estupefacta, podia entrever naquela fisionomia fatigada um
sofrimento indizível. Até entã o, julgara  ngela calma e resignada. Mas
lembrou-se nesse momento duma frase ouvida no dia seguinte

101ao da sua chegada: ”Tem mais uma razã o do que nó s para ser
desgraçada”.

E enquanto seguia a prima para o escritó rio, interrogava-se se deveria


atribuir aquele sofrimento a uma maior sensibilidade de  ngela, ou
melhor se a qualquer desgosto desconhecido, sobrevindo na
existência da segunda menina de Armilly.

IX

Na semana seguinte, o carro, guiado pelo velho Sorlin, que


desempenhava em Myols um sem nú mero de ocupaçõ es, levou Silvina,
Clotilde e Huguette a Vousset. O toldo estava erguido, pois Silvina
afirmara que nã o convinha terem o aspecto de quem se esconde. Por
isso as jovens foram obrigadas a suportar os olhares hostis dos
habitantes da pequena aldeia, até ao momento em que o carro parou
em frente duma casa cinzenta, cercada de verdura, onde viviam os
Delbeaume.

Lauriana acolheu as meninas Armilly com um grito de alegria, ao


passo que a senhora Delbeaume, uma amá vel senhora, morena e viva
como a filha, se mostrou extremamente satisfeita e benevolente.
Naquela atmosfera simpá tica, Clotilde revelou alguma alegria e Silvina
sorriu francamente aos divertidos ditos de Lauriana e à s anedotas de
Armando Delbeaume, que aparecera pouco depois da chegada dos
moradores de Myols.

Quando as jovens aceitaram uma chá vena de chá apó s os instantes


pedidos de Lauriana, a campainha

102 tocou e a criada introduziu duas senhoras bem vestidas, que se


dirigiram de mã os estendidas para a senhora Delbeaume e a filha, nã o
sem deitar um olhar curioso para as meninas de Armilly; Huguette via
Silvina tornar-se muito pá lida e erguer ainda mais a testa altiva.

88
Incomodá mo-la, minha senhora? perguntou a mais velha das visitas,

Mas de maneira nenhuma! Vã o tomar uma chá vena de chá connosco e


com estas meninas, de que uma foi colega da minha filha no
convento... Huguette de Armilly, Clotilde e Silvina de Armilly... A
senhora Volnard e a sua filha.

Imediatamente a amá vel fisionomia das visitantes se transformou.


Encolheram os lá bios e, sem cumprimentar, sentaram-se no lado
oposto da mesa à quele em que estavam as jovens. Os Delbeaume
ficaram perturbados com a surpresa e a có lera. Por fim, a senhora
Delbeaume, com o seu à -vontade de pessoa da sociedade, iniciou uma
conversa com as duas senhoras, enquanto o substituto e a irmã se
aproximavam das Armilly com ostensivo interesse.

Silvina demorou-se o tempo necessá rio para mostrar à s visitas que


nã o fugia como uma culpada. Quando se despediram dos Delbeaume,
as senhoras Volnard nã o fizeram um movimento. Ao ver isto, os
Delbeaume redobraram as manifestaçõ es de simpatia para com as
Armilly.

Armando e Lauriana acompanharam-nas até à porta da casa. No


vestíbulo, Lauriana apertou a mã o de Silvina.

Oh! perdõ e-me! As antipá ticas senhoras! Julgava

103 que nã o ousariam proceder assim em nossa casa, pois é uma


injú ria que nos fazem ao tratarem assim as nossas visitas! Nã o quero
tornar a vê-las, detesto-as!

Infelizmente será s obrigada a isso por minha causa disse Armando,


cuja fisionomia exprimia uma irritaçã o dificilmente contida. Estas
senhoras sã o a mulher e a filha do presidente acrescentou, voltando-
se para Silvina. Mas deploro bem a sua inqualificá vel conduta.

89
A voz revelava toda a sua sinceridade e constatava-se que ele, tanto
como Lauriana, estava dominado por um desgosto intenso, onde nã o
faltava alguma có lera.

Silvina replicou com uma altivez um pouco amarga:

Oh! nã o se atormente, senhor! Estamos já acostumadas a isto...,


quando nã o a coisas piores acrescentou melancolicamente.

É abominá vel! Mas nã o cederemos! exclamou Lauriana com energia.


Iremos a Myols, virã ovisitar-nos, e veremos se estas absurdas
prevençõ es se manterã o com o tempo,

Clotilde abanou a cabeça,

Nã o alcançará o seu fim, menina. Nã o sei na verdade que


acontecimento seria capaz de transformar a opiniã o pú blica a nosso
respeito.

Huguette disse gravemente:

O socorro divino pode vencer onde os meios humanos falham.

Sim, minha amiga, tem razã o! exclamou Lauriana. Oraremos tanto e


com tã o boa vontade

104que Deus nos ajudará e levará um pouco de felicidade a Myols.

...De volta a Myols, as três jovens entraram no escritó rio, onde sabiam
encontrar a essa hora os restantes membros da família, Gerardina
estava lá , conversando com a senhora Armilly e Berta, enquanto
 ngela, sentada a uma mesa pró xima, desenhava com pouca vontade.
Renato nã o se tinha levantado da escrivaninha, absorvido no seu
trabalho, sem parecer incomodado com a conversa, aliá s mantida em
voz baixa.

Que milagre em vê-las a dar um passeio!

90
exclamou Gerardina, estendendo sucessivamente a mã o branca à s
recém-chegadas. Nã o queria acreditar no que ouvia quando, ao chegar
aqui para vos visitar, a senhora de Armilly me disse que tinham ido a
Vousset... É a Huguette quem altera assim os há bitos das suas primas?
acrescentou ela num tom insinuante.

O seu olhar ardente e prescrutador envolvera logo à entrada a jovem,


com um vestido de lã azul-marinho, muito simples, mas que ficava
admiravelmente à sua delicada beleza de loira.

Gostava tanto! disse Huguette com calor.

Se estivesse em meu poder modificar aqui tudo com um toque de


varinha má gica.... de ver Myols transformar-se num asilo de paz e de
felicidade!

Mas nã o é uma fada, minha querida filha

disse a senhora de Armilly com um triste sorriso,

Infelizmente nã o pode fazer nada por nó s!

Berta repetiu num tom rude:

Nada, minha pobre Huguette, continuaremos como até aqui. Tudo se


passou bem em Vousset?

105 A presença de Gerardina Huguette tinha-o já notado parecia


desencorajar considerà velmente Silvina, O mesmo acontecia a Renato,
que exagerava a sua reserva altiva quando estava na presença de
Gerardina. Se Huguette nã o soubesse de boa fonte que tinham sido
amigos de infâ ncia, jamais o acreditaria. Mas a senhora Daussy parecia
nã o notar nada e mostrava-se amá vel e serviçal para com todos os
membros da família Armilly.

Era incontestavelmente amá vel, conversava com agrado, revelando


uma bela inteligência e uma instruçã o brilhante, possuía maneiras
distintas, e Huguette pensava que nada justificava, na aparência, o

91
afastamento, em diferentes graus, que todos pareciam manifestar
para com a neta de Mateus Daussy.

Tendo tirado os chapéus, Huguette e Silvina sentaram-se junto duma


porta envidraçada, aberta para a balaustrada da torrente. O sol
declinava já , e um pouco de frescura subia da garganta estreita onde
refervia a á gua cachoante. Huguette disse pensativamente:

Gosto muito de Myols, Sentimo-nos bem aqui. Respondeu-lhe uma


afectuosa pressã o de dedos.

Gerardina tinha-a também ouvido, pois respondeu-lhe amavelmente;

Oh! tanto melhor, minha querida! Visto que deve continuar a viver
aqui, mais vale que tudo isto lhe agrade. Talvez venha a gostar daqui
até à loucura, como a Vitó ria, que declarava preferir Myols aos
melhores palá cios que a sua fortuna lhe permitia ter.

106A senhora de Armilly e as filhas estremeceram, lançando um olhar


para Renato.

Mas (Jerardina nã o notou nada, sem dú vida, pois continuou em voz


doce, mas nítida, que se devia ouvir distintamente na secretá ria do
senhor de Armilly:

Que extraordiná ria natureza a dessa jovem! Tinha o seu lado bom,
certamente, mas a maldade arrebatava-a muitas vezes... Tem os seus
olhos, Huguette, mas muito mais meigos, oh! muito mais! Observe
aquele olhar!

E indicava-lhe o retrato.

Toda a alma de Vitó ria se reflecte nele: sedutora, fantá stica, orgulhosa
até ao extremo, e capaz de tudo para se vingar duma injú ria.... ou do
que entendia como tal. Teria lamentado profundamente todo aquele
que se tornasse o marido dessa intratá vel herdeira!

92
Ouviu-se o ruído seco duma caneta a riscar o papel. Renato ergueu-se,
afastando bruscamente a cadeira, e aproximou-se do grupo. Huguette
notou que estava mais pá lido do que o costume e que o enrugado da
testa aumentara.

A sua amiga ficou contente por a ver, Huguette? perguntou com calma,
sem desviar o grave e tranquilo olhar do rosto inquiridor de
Gerardina.

Ficou bem contente, primo! E a mã e e o irmã o foram amá veis, nã o é


verdade, Silvina?

Esta respondeu-lhe com um pouco mais de calor que habitualmente:

Muito amá veis, com efeito.

Oh! tanto melhor! Sinto-me satisfeita por terem agora essas relaçõ es.

107 Foi Gerardina quem assim falou, num tom em que a satisfaçã o
verdadeira ou fingida se misturava à compaixã o, numa associaçã o
há bil e irritante, pensou Huguette, desagradà velmente impressionada.

...Naturalmente nã o estava mais ninguém em casa desses novos


conhecimentos?

Silvina replicou-lhe com certa brusquidã o, fixando naquele rosto de


má rmore os seus belos olhos negros, um pouco irritados:

Mas porquê naturalmente? Se os Delbeanme nos recebem, nã o é à s


escondidas, fique a sabê-lo, Gerardina, e fomos lá bem sob as vistas de
toda a gente,

Evidentemente..., mas a delicadeza..., as circunstâ ncias criavam o


dever de lhes evitar qualquer contrariedade em sua casa.

Gerardina falava num tom hesitante, mas Huguette observou um


pequeno clarã o de alegria no fundo das pupilas enigmá ticas.

93
Renato fez um ligeiro movimento de impaciência.

Nã o se inquiete com isso, Gerardina replicou-lhe secamente. É fora de


dú vida que nã o temos nada a ensinar aos Delbeanme quanto a
delicadeza e civilidade.

A entrada do Luís interrompeu o senhor de Armilly. O pequenito


vinha do exterior, para onde comunicavam também os aposentos de
sua mã e. Trazia um rico fato de veludo azul, com uma larga gola e
punhos de rendas, e aquele traje parecia singularmente infantil para
aquele rapazito de doze anos, precocemente senhoril e muito mais
sério que usualmente na sua idade.

108 A tua mã e nã o veio, Luís? perguntou a senhora de Armilly,


agarrando a mã o do pequeno para o atrair a si.

Nã o, avó , a mã e nã o quis. Gerardina murmurou:

Temeu ser importuna. Esta querida Rosy é muitas vezes


inconsequente, mas sabe ter actos de pura delicadeza... e teme sempre
incomodá -lo, Renato.

O senhor de Armilly nã o protestou. A mã o direita atormentava com


impaciência as costas duma cadeira, e Huguette perguntou a si
pró pria se nã o desejaria com ardor que Gerardina se fosse embora.

Mas a senhora Daussy ficou ainda por meia hora, conversando


amavelmente, interrogando o Luís sobre os seus estudos, tentando
manter com Renato uma discussã o sobre os diferentes modos de
educaçã o, dando a Huguette conselhos sobre leituras e revelando à
senhora de Armilíy uma maravilhosa receita contra as insó nias.
Durante esse tempo, Renato, sempre de pé, parecia dizer à visita:
”Suporto-a, mas nã o a aceito”.

Ergueu-se por fim, declarando estar satisfeita com aquela visita, muito
curta para o prazer que tinha sentido.

94
Deixei a Rosy um pouco mais cedo, apesar dos seus protestos, para
poder estar aqui mais tempo. Esta querida amiga, por vezes muito
exigente, priva-me de estar mais frequentemente convosco. No
entanto as horas aqui parecem minutos... Mas agora temo ter sido
indiscreta e tê-los importunado com a minha presença acrescentou
com certo desgosto.

Ao falar, dirigia-se particularmente a Renato.

109 Mas este, precisamente naquele instante, acabava de descobrir


uma pequena nuvem branca correndo com rapidez no céu
admiravelmente puro, e fitava-a com tal atençã o que nã o ouvia a
reflexã o de Gerardina. Foi  ngela quem respondeu calmamente que
aquela visita lhes tinha causado um grande prazer,

Procurarei vir mais vezes, nesse caso, Mas se me fossem levar até à
ponte, minhas queridas? A temperatura está deliciosa.,, Teremos
chuva em breve, Renato? Que lhe diz essa interessante nuvenzita?

Voltou-se e olhou-a com altivez.

Muitas coisas que nã o lhe posso explicar disse num tom ligeiramente
iró nico. Quanto a chuva, nã o tenha receio por enquanto, pelo menos
durante esta semana.

Tanto melhor. Gosto do tempo bom, do sol, dos dias quentes... Gosto
aliá s de tudo quanto é belo e brilhante.

E de facto andava sempre com ricos vestidos, trazia jó ias soberbas,


dum gosto perfeito, e Huguete,, durante a sua breve visita à Casa
Vermelha, pudera constatar que Mateus Daussy e a neta se rodeavam
de luxo e bem estar. Os vestidos demasiado simples das meninas de
Armilly contribuíam ainda para fazer ressaltar mais a elegâ ncia da
descendente dos seus antigos servidores elegâ ncia exagerada para a
solidã o em que vivia e que um sentimento de tacto a devia levar a
atenuar quando das suas visitas aos castelõ es de Myols.

95
Acrescentou alegremente:

Nesse ponto, sou bastante semelhante a Vitó ria,,, Entã o, acompanham-


me?

110 Â ngela ergueu-se.

Irei de boa vontade... Clotilde também, nã o?

E a menina Huguette? perguntou Gerardina, voltando-se para ela.


Venha connosco, está um pouco pá lida hoje e este pequeno passeio
farlhe-á bem.

Instintivamente Huguette ergueu o olhar interrogador para o primo.

Mas pode acompanhar a  ngela e a Clotilde

disse-lhe ele. Nã o que lhe note mau aspecto. Está bastante menos
pá lida que quando saiu do convento.

Oh! nã o o nego! Mas precisa de se fortificar ainda mais, Renato. Para


exercício é excelente o passeio e temos aqui um ar incompará vel... Mas
temo que seja demasiado caseira e privada de distracçõ es

acrescentou Gerardina com solicitude.

O rosto de Renato teve uma ligeira contracçã o.

Nã o sou responsá vel pela situaçã o existente

replicou-lhe num tom glacial. Huguette sabe que farei o que estiver em
meu alcance para lhe adoçar as provaçõ es físicas e morais.

Oh! todos nó s o sabemos, caro Renato! É um admirá vel tutor.,. Venha


entã o, Huguette, peçso-lhe!

96
Esta, temendo ser indelicada, nã o ousou recusar. Deixou o escritó rio
para ir buscar ao quarto de Clotilde o chapéu que a prima lá tinha
deixado. Quando se juntou a Gerardina e à s duas irmã s, à saída do
castelo, Clotilde ia pelo braço de  ngela, e a senhora Daussy
apoderou-se do seu com alegria.

Enfim, minha querida, tenho-a ao meu lado!

disse num tom alegre, Tem um terrível

111 carcereiro, minha pobre filha - acrescentou em voz baixa de modo


a nã o ser ouvida por  ngela. Huguette replicou-lhe com altivez:

- Ainda nã o tinha apercebido que vivia numa prisã o.

- Que está a dizer sobre prisã o ? - perguntou Angela, que ouvira a


ú ltima frase da prima.

Huguette respondeu-lhe lacò nicamente:

- A senhora Daussy parece lamentar-me muito por eu viver em Myols.

- Eu ? Oh ! injuria-me, minha querida - exclamou Gerardina num tom


de protesto indignado.
- Onde estaria melhor que no meio duma família que a ama já
bastante, como eu pró pria pude ver ? Temo apenas que o seu tutor
seja um pouco... autoritá rio, na melhor das intençõ es aliá s, pois é
evidente que lhe deseja evitar o menor aborrecimento.

 ngela replicou:

- Tem razã o, Gerardina, Renato sofre por ver a nossa dura provaçã o
atingir também a Huguette, Mas que poderemos fazer ? Nã o vejo um
meio para saírmos desta situaçã o que nos arranjou a loucura popular.

- Nã o, evidentemente!... Mas é preciso ser um homem de coraçã o


aberto, de alma assaz nobre para desprezar essas miserá veis
suspeitas e oferecer à menina Huguette um nome honrado.

97
â ngela fitou com surpresa a senhora Daussy.

- É inadmissível esperá -lo - disse-lhe num tom amargo. - A menos que


seja pedida por causa da sua fortuna, Huguette nã o deve esperar
arranjar casamento.

As palavras de Gerardina pareceram ter acordado

112

em  ngela algum secreto sofrimento, pois a sua fisionomia pareceu a


Huguette subitamente mais enrugada, e tomou a dianteira com
Clotilde, como se desejasse subtrair-se à conversa, A senhora Daussy
murmurou:

- Pouco encorajadora esta pobre  ngela, nã o é? Mas nã o tema nada,


minha filha, a sua amiga Gerardina conseguirá e há -de-lhe descobrir
esse ser que desdenhe os juízos do mundo... e seja desinteressado,
fique certa disso. É suficientemente encantadora para fazer esquecer
que é uma rica herdeira.

Huguette replicou-lhe friamente:

- A palavra é exagerada. Tenho um dote relativamente modesto para


os tempos que correm.

Um leve sorriso iró nico entreabriu os lá bios de Gerardina.

- Tanto melhor! Tanto melhor! Pelo menos nã o afastará os coraçõ es


delicados que lamentam dever a fortuna à esposa. Sã o infelizmente
pouco numerosos
- acrescentou com um suspiro. - Na juventude, alimentam-se
estranhas ilusõ es... Por isso imaginara outrora que o Renato nã o dava
importâ ncia a determinadas consideraçõ es, e fiquei presa duma
grande estupefacçã o quando soube do noivado com esse lingote de
ouro que se chamava Vitó ria.

Huguette enrugou um pouco as sobrancelhas. Desagradava-lhe ao


ú ltimo ponto ouvir as insinuaçõ es de Gerardina acerca de quem

98
considerava como um modelo de lealdade e desinteresse. Estava
persuadida que ele amara realmente essa fantá stica prima, e só por
isso se resolvera a passar por cima da sua ’fortuna.

113
Gerardina continuou, sem parecer aperceber-se do visível
descontentamento de Huguette.

Muito se falou depois sobre isto. Alguns pretenderam que Renato e


todos os seus influenciaram bastante a vontade de Vitó ria, que apenas
cedera à s suas instâ ncias.... alguém disse mesmo à s suas ameaças.
Outros pretenderam que Renato, por habilidade, com protestos
lisonjeiros, conseguira captar o afecto da prima de tal modo, que ela
lhe concedeu a sua mã o com uma confiança absoluta na sinceridade
que lhe atribuía. Ditos inacreditá veis, que nã o se podem sustentar, a
despeito da fascinante miragem dourada que deveria ser aos olhos de
Renato as notas fechadas nos cofres fortes da sua pupila.

Penetraram no estreito atalho do pequeno souto. Huguette tentou


desembaraçar-se do braço de Gerardina. Mas esta segurava-o
fortemente, de tal modo que a jovem se viu forçada a caminhar ao lado
daquela desagradá vel companhia.

Gerardina continuou;

Evidentemente, ninguém que conhecia intimamente Renato acreditou


nessas odiosas suspeitas. Ficaram apenas admirados....
profundamente admirados. Toda a gente sabia que a Vitó ria lhe era
antipá tica.

Huguette disse-lhe resolutamente, fitando o olhar recto e altivo nas


brilhantes pupilas de Gerardina:

Nã o a acredito! Honro muito o cará cter do meu primo para um só


minuto pensar que procurou casar com essa parenta detestada apenas
para obter a sua fortuna... Nã o o acreditarei nunca!

Oh! como tem razã o! exclamou Gerardina

99
114 com calor. Faça como eu, diga que o Renato escondia de todos nó s
os seus verdadeiros sentimentos, a fim de o nã o acusarem de tentar
conquistar a herdeira, repita que apenas cedeu ao seu afecto
espontâ neo por Vitó ria... É esta a verdade, Huguette, nã o duvide.
Calou-se, pois alcançavam nesse instante  ngela e Clotilde, que
tinham parado à sua espera. Continuaram o caminho em silêncio.
Quando apareceram à vista da Casa Vermelha, Â ngela parou,

Deixá mo-la aqui, Gerardina, Só temos o tempo de regressar a Myols


antes do jantar.

Mas a senhora Daussy nã o abandonou o braço de Huguette. Disse num


tom amá vel:

Entrem só por um momento... Na verdade nã o querem? Entã o deixem-


me apenas apresentar o meu irmã o a Huguette... Gonthier?

Um vulto masculino, que a vista penetrante de Gerardina entrevira na


penumbra do vestíbulo, apareceu na soleira da porta e dirigiu-se
rapidamente para as jovens. Huguette encontrou de novo a dureza
daqueles olhos claros que a tinham fitado quinze dias antes, e lhe
tinham provocado uma desagradá vel impressã o. Instintivamente fez
uma inclinaçã o de cabeça altiva em resposta ao cumprimento do
senhor

Daussy.

Sinto-me verdadeiramente encantado com o prazer de lhe ser


apresentado, minha senhora disse numa voz de timbre metá lico.
Desejava-o muito, a Gerardina pode confirmá -lo.

É verdade! O Gonthier, como o meu pai, como eu pró pria, interessa-se


imenso por tudo o que diz respeito à família Armilly,

115 Apó s uma troca de palavras, muito amá veis de lado dos Daussy,
assaz frias por parte das Armilly, que mantiveram uma reserva um
pouco altiva, o pequeno grupo dividiu-se, e as jovens tomaram o
caminho de Myols.

100
Que lhe parece o Goonthier Daussy, Huguette? perguntou  ngela,
quando se tinham afastado o suficiente.

Agrada-me pouco, Â ngela. Principalmente o olhar, é-me


extraordinariamente antipá tico.

É um homem muito inteligente e muito há bil em negó cios, dizem.


Pretendem que é ambicioso e está disposto a lançar-se na política... Da
sua ambiçã o tivemos uma prova acrescentou  ngela, inclinando a
cabeça.

Alguém vem na nossa frente interrompeu Clotilde, cujo ouvido


desenvolvido era capaz de ouvir sons indistintos para outros ouvidos
humanos.

Na verdade, em breve as jovens viram aparecer no atalho um rapaz


novo e loiro, um pouco forte, mas no entanto dotado dum todo á gil e
elegante, O seu traje cinzento era despretencioso, bem diferente do
corte impecá vel do de Gonthier Daussy, e mais apropriado ao
ambiente rú stico da aldeia,

 ngela parou por momentos. Huguette ergueu os olhos para ela e viu-
a empalidecer, tremerem-lhe os lá bios e o olhar reflectir um atroz
sofrimento. Mas endireitou-se e caminhou num passo firme...

O desconhecido aproximava-se. Huguette distinguiu um rosto claro,


com uma comprida barba loira, olhos azuis, tristes e bons, que se
fixaram em  ngela desde que a entreviram.

116 Tirou o chapéu com um gesto respeitoso e afastou-se para deixar


passar as três jovens. Naquele rosto extremamente simpá tico
revelava-se um profundo sofrimento. Â ngela passou sem o fitar,
respondendo com um pequeno movimento de cabeça ao seu
cumprimento.

Quem era? perguntou Clotilde quando o tinham ultrapassado.

 ngela informou secamente:

101
Clemente de Avrets!

Ah! murmurou Clotilde, com sú bita tristeza.

Ao entrar, Â ngela, que continuara pá lida e silenciosa, afirmou sentir


uma dor de cabeça insuportá vel e subiu para o seu quarto. Mal
desapareceu, Silvina, que as passeantes tinham encontrado no
vestíbulo, disse sem hesitar:

Encontraram o Clemente? A Â ngela fica sempre assim todas as vezes


que o vê.

É verdade respondeu Huguette. Quem é esse nefasto Clemente?

Era o noivo da  ngela, quando da morte da Vitó ria. Conheceram-se


desde crianças e sempre os consideraram como noivos. Inicialmente o
pai de Clemente e Edtnée tomou furiosamente a nossa defesa. É um
homem apaixonado e violento, que se mostra irredutível nas suas
opiniõ es. O vento mudou, começou a acreditar na nossa culpabilidade,
em breve se convenceu, e entã o quebrou sem piedade o laço que unia
 ngela e Clemente. Este acreditava na nossa inocência e creio que
sempre o acreditou. Tentou demover o pai, mas só conseguiu irritá -lo
ainda

117mais. É um bom filho, respeitador, submisso, habituado a uma


disciplina severa. Cedeu, prometendo a  ngela que jamais se
esqueceria e que nã o se casaria. A minha pobre irmã , dotada duma
excessiva sensibilidade, ressentiu-se profundamente desse golpe
terrível, e a sua altivez revoltou-se contra a acusaçã o proferida por um
dos mais velhos amigos da família. Enviou a Clemente o anel do
noivado, dizendo-lhe que o libertava de todas as suas promessas e que
nã o queria manter a menor relaçã o com uma família em que o nome
de seus pais era desprezado e qualificado de desonrado. É por isso
que a  ngela é a mais triste de todas nó s.

O verã o tinha passado, o outono espalhara as pétalas dos crisâ ntemos


e juncara de folhas avermelhadas o solo aos soutos. Começara já o
inverno, com precoces ameaças de neve,

102
Em Myols, a vida prosseguia o seu curso calmo e monó tono nã o tã o
monó tono no entanto, pois Huguette trouxera alguma alegria e a sua
serenidade de cará cter. Sem dú vida, era a esta feliz diversã o dada pela
sua presença que se devia atribuir a atitude menos fatigada e o olhar
um pouco mais vivo da senhora de Armilly, alguns momentos de
alegria de Silvina e Clotilde, uma incontestá vel humanidade na reserva
de que se rodeava o senhor de Armilly. Mas  ngela ficava cada vez
mais melancó lica, o seu rosto envelhecia de dia para dia.

118 Berta afundava-se no seu egoísmo sombrio e intratá vel”

Apesar de tudo, Huguette nã o sofrera ainda a influência da tristeza do


ambiente. Continuava sempre a mesma, pronta à dedicaçã o, piedosa,
já ternamente presa à família, aliviando os penosos deveres da vida
com o encanto dum cará cter agradá vel, meigo e alegre. Reagira desde
o primeiro instante contra a atmosfera um pouco pesada de Myols,
tentara nã o ceder à lassidã o um pouco amarga que dominava os
parentes, e, confiante no socorro divino, conseguira encarar sem
desfalecimentos a situaçã o presente e futura.

Levava em Myols uma vida laboriosa. Renato, por delicadeza, tinha-


lhe inicialmente interdito os trabalhos caseiros, mas nesse ponto
recusara obedecer-lhe, declarando que nã o podia admitir ver
trabalhar tanto as primas sem as ajudar com todas as suas forças.
Tornara-se assim uma ajuda preciosa para  ngela e Silvina,
encarregadas de tudo pela incapacidade quase completa da Aglaé, a
cozinheira septuagená ria, Esta, Sorlin e o Vítor, eram os ú nicos
criados de Myols. Apenas estes, nascidos no domínio dos Armilly,
dedicados sem reserva aos patrõ es, permaneciam fiéis desde o
infortú nio. Mas as suas forças diminuíam, e em breve chegaria o
momento em que essas boas criaturas se tornariam incapazes do
menor trabalho, ou até mesmo necessitariam de cuidados, e entã o
surgia o problema do futuro trabalho em Myols.

Além destas ocupaçõ es caseiras, Huguette continuava os seus estudos


sob a direcçã o do tutor. Um

119 dia em que a viu procurar uns esclarecimentos numa enciclopédia


histó rica, propô s-lhe ajuda-Já com os seus conselhos, e em breve

103
foram verdadeiros cursos que lhe fez, bem como a Silvina, que gostava
de aprender. Era um professor sério e atraente, largamente
documentado e com uma paciência a toda a prova. Nestes frequentes
contactos, Huguette pô de apreciar o valor daquele cará cter, que
escondia sob a gravidade um pouco distante um coraçã o ardente e
delicado, um espírito de vistas largas e duma rectidã o extrema, uma
inteligência vasta e penetrante.

À medida que o conhecia melhor, compreendia o afecto e a absoluta


confiança que lhe testemunhavam a mã e e as irmã s. Ela pró pria se
deixava invadir pelo encanto que emanava desse homem realmente
superior, como tã o bem o tinha pressentido Armando Delbeanme.

Por seu lado, Renato, em relaçã o à pupila, abandonara o tratamento


um pouco cerimonioso dos primeiros meses. Tratava-a com a mesma
delicadeza simples e gravemente afectuosa, com a mesma solicitude
quase paternal que usava para com as irmã s,. e em todas as
circunstâ ncias parecia considerá -la como uma delas.

Conhecendo melhor aquela bela inteligência e grande coraçã o,


Huguette deplorava cada vez mais ver o tutor afastado da religiã o. No
entanto nã o acreditava que aquele afastamento fosse proveniente de
sistemá tica indiferença, mas devia ser principalmente o fruto duma
educaçã o religiosa superficial e dum há bito adquirido na adolescência.
Quem saberia se Renato nã o sofria secretamente com a existência

120vazia criada pela ausência de toda a crença? Quem saberia se nã o


desejava ardentemente a luz e se a nã o procurava sozinho, querendo
esconder de todos a fadiga do seu orgulhoso estoicismo?

E Huguette nã o cessava todos os dias de repetir a Deus:

Senhor, concedei-lhe a vossa luz!

A senhora Delbeanme e Lauriana tinham vindo já duas vezes a Myols,


mas sem a companhia de Armando. Este fora prevenido de que as suas
relaçõ es com pessoas suspeitas dum atentado criminoso eram mal
vistas pelos seus superiores e que tinha de as romper sob pena de ver
o seu futuro comprometido. Huguette e as primas nã o tinham voltado

104
a Vonsset, apesar dos pedidos instantes de Lauriana. Nã o queriam ser
a causa de qualquer aborrecimento para com aquela excelente família,
que até entã o mantinha intrepidamente a sua crença na nã o
culpabilidade dos Armilly.

A mais dura provaçã o de Huguette consistia no trajecto que fazia


todos os domingos para ir à igreja. No entanto, ela e Silvina
continuavam corajosamente e Clotilde juntara-se-lhes. Mais tarde, um
dia, a senhora de Armilly aventurou-se a acompanhá -las. Perante a
simples e heró ica decisã o daquelas mulheres, desafiando todo o
respeito humano, algumas hostilidades cessaram e, sem abdicar
completamente das suas prevençõ es, algumas pessoas insinuaram
que talvez a mã e e as filhas nã o fossem culpadas, ou entã o muito
pouco, e só Renato, de motn-pró prio, tinha combinado e executado o
plano do assassínio de Vitó ria.

121 Mas os solitá rios de Myols nã o conheciam esta ligeira alteraçã o da


opiniã o pú blica. Só recebiam Gerardina, e esta nã o tinha sido sem
dú vida informada pois jamais disse uma palavra nas visitas bastante
frequentes que fazia à s senhoras de Armilly.

Huguette, para sua íntima satisfaçã o, nunca mais se tinha encontrado


só com a senhora Daussy. Por vezes ia ao salã ozinho luxuoso, em que
Rosy passava a sua existência inactiva, mas ia sempre na companhia
de qualquer uma das primas. Tomavam chá , e Gerardina tocava
qualquer coisa. Tinha um real talento, e o seu modo de tocar, como
aliá s a sua pessoa, era á gil e estranho, por vezes cativante, mas
noutros momentos, mais raros, chocando os ouvidos por uma
desagradá vel dureza.

A neta de Mateus Daussy continuava a cercar Huguette com


manifestaçõ es de simpatia, testemunhava-lhe um carinho que só era
ultrapassado pela atracçã o da jovem viú va pela ”sua pequena e
querida prima”.

Mas aquelas manifestaçõ es de afecto deixavam Huguette


excessivamente fria. Rosy parecia-lhe uma criança amimada, cheia de
astú cia e imbuída de prevençõ es injustas. Gerardina continuava a ser-
lhe tã o antipá tica como no primeiro dia. A jovem, em relaçã o à s duas

105
amigas, cumpria o mais estritamente os seus deveres de delicadeza,
mas de modo nenhum replicava no mesmo nível de amabilidade.

Numa tarde dos fins de Novembro, tocaram ao portã o de Myols e


pouco tempo depois, Sorlin, visível mente estupefacto, veio informar a
senhora de Armilly

122 e a Renato de que o cura da aldeia pedia para ser recebido.

Todos manifestaram uma admiraçã o extrema, salvo Huguette, que


sabia a que atribuir o motivo daquela visita. Tendo confiado a esse
excelente padre a direcçã o da sua consciência desde que chegara a
Myols, tinha-lhe naturalmente falado da triste situaçã o em que estava
a sua família e ela pró pria. Uma simpatia sincera e forte correspondeu
à quela confidência. O padre disse-lhe que jamais acreditara na
culpabilidade dos castelõ es de Myols. Infelizmente nã o se encontrava
naquela paró quia no momento da morte de Vitó ria e, tendo chegado
pouco depois, tinha sido arrastado pela prevençã o enraizada no
espírito de todos. Ele pró prio, nã o tendo qualquer prova para
alimentar a sua íntima convicçã o, apenas se contentou em a mostrar
aos seus paroquianos; mas estes atribuiram-lhe uma indulgência
paroquial e ripostaram-lhe que as senhoras de Armilly tinham a
pró pria consciência da sua indignidade, pois tinham abandonado
completamente os seus deveres religiosos.

Mas as ovelhas por momentos trasviadas reapareciam pouco a pouco


e alguma esperança penetrou no coraçã o do abade Noret em
conseguir alterar a opiniã o, pelo menos aos seus melhores
paroquianos.

Huguette aplaudiu aquela ideia, mas nã o disse qualquer palavra aos


parentes, para lhes deixar o prazer da surpresa.

E de facto, quando o padre saiu, a senhora de Armilly e Renato


deixaram ver a satisfaçã o que lhes causara aquela iniciativa
espontâ nea, bem como a franca e discreta simpatia do abade Noret.
Renato

106
123 Calou-se por instantes e continuou, designando Huguette:

Mas agora tem uma pupila dó cil. É verdade que nã o tem a fortuna da
Vitó ria. Os mimos e as adulaçõ es tornam geralmente essas herdeiras
insuportá veis. Mas é preciso deixar passar as coisas e perdoar-lhes
muito, nã o é verdade, Renato?

Nã o lhe respondeu e pô s-se a arranjar lentamente os papéis que tinha


dispersos na sua frente. Mas Silvina nã o pô de evitar um brusco
encolher de ombros.

Se a Vitó ria foi adulada na sua infâ ncia, nã o o foi em nossa casa,
certamente, Teve tempo de se convencer disso, Gerardina.

Acrescentou imediatamente, com a intençã o evidente de desviar a


conversa daquele assunto desagradá vel para o irmã o.

À s suas nevralgias já passaram, Rosy?

A jovem senhora respondeu-lhe num tom lamentoso, apoiando a


cabeça languidamente no encosto da cadeira onde acabava de se
deixar cair:

Mas nã o!... de modo nenhum! Como poderiam desaparecer nesta


regiã o tã o fria, tã o contrá ria ao meu temperamento?

Este clima é extraordinariamente sã o, Rosy, e nã o o creio desfavorá vel


à sua saú de.

É isso mesmo, sabe-o melhor do que eu. A verdade é que me sinto


doente, muito enfraquecida, e que estou resolvida a ir retemperar-me
na Cote d’Azur. O Luís também aproveitará imenso”

Os médicos sempre foram de opiniã o que nada fazia melhor ao Luís do


que este ar que temos aqui.

107
126 Oh! os médicos! disse Rosy com um gesto de desdém. Sei muito
melhor do que eles o que convém ao meu filho.

Vamos, Rosy, nã o diga tolices!

A jovem viuva endireitou-se um pouco, fixando Silvina com um olhar


irritado.

Falo muito seriamente, Silvina... E é muito seriamente também que


formei o projecto de deixar Myols.,., por algum tempo, pelo menos.

Falando assim, dirigiu um olhar de desafio ao cunhado. Mas o senhor


de Armilly nã o pareceu ouvir e continuou a juntar com todo o cuidado
as folhas separadas do manuscrito.

...Partirei em meados do pró ximo mês. Julgo que escolherei Nice, mais
cosmopolita do que qualquer outra cidade do litoral. A querida
Gerardina terá a dedicaçã o de me acompanhar.,.

Nã o conte com isso, minha boa amiga declarou com firmeza a senhora
Daussy.

Rosy voltou para ela um olhar estupefacto.

Mas.,, Nã o me tinha dito que?,.,

Que seria a sua fiel companheira, é verdade. Mas só o posso fazer com
a condiçã o de que o senhor de Armilly dê a sua autorizaçã o. De outro
modo, Rosy, nã o, pois teria o ar de quem a encorajava à rebeliã o.

A viú va replicou colericamente:

Nã o passo duma criança para si, nã o? Mas sou inteiramente livre,


Gerardina, como aliá s mo tem dito inú meras vezes!

Nã o moralmente, Rosy, nã o moralmente! Deve toda a deferência a


Renato, tã o cheio de solicitaçã o

127para o Luís e para consigo. E por outro lado é ainda bastante nova.

108
Tenho trinta e dois anos, como a Gerardina! Mas quer digam ou façam
todos, partirei no pró ximo mês. Nada me poderá impedir.

O senhor de Armilly disse num tom seco:

Julga isso? Veremos entã o. Para já , termine com essas criancices. Que
exemplo dá ao Luís!

acrescentou em voz baixa, designando o pequenito, sentado perto da


avó e olhando a mã e pensativamente.

Rosy pô s-se de pé num movimento de irritaçã o.

Sou melhor juiz do que o senhor neste assunto! disse-lhe com


exasperaçã o, Faz gala em me tratar com todo o desdém de que é
capaz, mas nã o me deixarei dominar por si, senhor de À rmilly!

Voltou-se bruscamente e dirigiu-se para a porta. No momento de sair,


parou de repente e disse em voz seca:

Vem comigo, Luís!

O rapazito hesitou por um segundo. O tio tinha esboçado um gesto


para o reter. Mas vendo Renato continuar silencioso e imó vel,
obedeceu ao chamamento da mã e com um desgosto visível.

Silvina exclamou num tom irritado:

Se a Rosy continua assim, tornar-nos-á a vida intolerá vel! Na verdade,


se nã o fosse de temer da sua parte todas as inconsequências, julgo que
seria preferível deixá -la realizar o seu desejo.

Pode partir quando quiser, mas sem o pequeno

replicou o senhor de À rmilly.

Oh! entã o nã o espere por isso! disse Gerardina, Rosy nã o parte sem o
seu ídolo.

109
128 Também nã o o espero, asseguro-lhe. Mas farei tudo o que estiver
em meu alcance para reter aqui a minha cunhada.

Gerardina continuou num tom compenetrado:

Ajudá -lo-ei, Renato. Infelizmente, a Rosy é obstinada... Mas retiro-me,


pois já interrompi por muito tempo o vosso trabalho, e a Huguette vai
querer-me mal por isso. Estou certa de que é uma aluna modelo!

Nã o tenho de que me queixar, pelo contrá rio, Seria para desejar que
todos os mestres tivessem alunos tã o compreensivos e trabalhadores
respondeu Renato com certo entusiasmo, coisa rara nele, que jamais
entreabrira os lá bios para dirigir um só cumprimento à inteligência e
ao apego ao trabalho da pupila.

Um clarã o atravessou os olhos negros de Gerardina. Deu alguns


passos e pousou a mã o num dos ombros de Huguette, cujas grandes e
penetrantes pupilas nã o abandonavam aquela enigmá tica fisionomia.

E está também contente com o seu professor? É demasiado severo?

De maneira nenhuma! É bom e indulgente. Nã o poderia desejar


melhor.

Um sorriso um pouco grave, mas satisfeito, entreabriu os lá bios de


Renato. Aquele sorriso pareceu surpreender Gerardina, como alguma
coisa desconhecida, ou pelo menos esquecida há muito tempo. Mas
dominou-se imediatamente e disse com alegria:

Entã o está tudo bem e verifico que tutor e pupila se entendem à


maravilha e estã o satisfeitos

129 um e outro. Vejo que Myols ganhou muito com a sua presença,
Huguette... Mas vou-me embora, senã o continuaria a falar
indefinidamente na vossa companhia. Prometo fazer o que puder para

110
reconduzir ao caminho da razã o a Rosy... Mas nã o estou certa de
conseguir qualquer coisa!

Sobretudo se encorajar as suas ideias! murmurou ironicamente


Renato quando a porta se fechou nas costas da senhora Daussy,

Silvina exclamou:

Ah! pensas como eu que a Gerardina desempenha um duplo papel?

Desconfio. Como poderia a Rosemonde, tã o desrazoá vel e tã o fú til,


aceitar uma amiga íntima que a contrariasse, a contradissesse e
tomasse o nosso partido? É preciso, para lhe agradar e viver em paz
na sua companhia, ter as suas ideias, e ao mesmo tempo dominá -la
pelo ascendente da inteligência. Nã o podemos negar que a Gerardina
possui esta inteligência, mas infelizmente mal encaminhada.

Ajuiza assim mal a sua amiga de infâ ncia? perguntou Huguette.

Precisamente por que foi a companheira de Berta e minha durante


muitos anos que conheço um pouco o seu cará ctermas só um pouco,
pois, mesmo em criança, nã o se entregava inteiramente, e nã o sei bem
o que é capaz de fazer. Mas nas brincadeiras notei esta duplicidade
sorridente que revela ainda hoje, e sei desde entã o que esconde, sob
aquele aspecto amá vel e dedicado, um orgulho louco... sim,
absolutamente louco, tenho a prova disso. Aliá s, o avô e o irmã o
igualam-na nesse ponto. Gostaria muito

130 mais que nã o existisse esta intimidade entre ela e a Rosemonde.


Parece-me que nã o pode sair nada de bom desta ligaçã o... Que está a
ver, Huguette?

111
Parece-me que está ali, caída no chã o, a capa que a senhora Daussy
tinha na mã o.

Levantou-se e inclinou-se junto da secretá ria do senhor de Armilly,

É verdade. Vou levá -la, pois se calhar anda à sua procura.

Saiu do escritó rio e alcançou o vestíbulo, onde se encontrava ainda


Gerardina, tendo já vestido o comprido casaco forrado, e muito
afadigada à procura de qualquer coisa. Soltou um pequeno grito de
alegria ao ver aparecer Huguette com a capa de tecido claro.

Ah! obrigada, minha querida! E desculpe este novo incó modo. Em boa
verdade, sou a culpada de nã o poder hoje trabalhar! Vá depressa para
junto do seu tutor. É realmente incompará vel. Aliá s, também o foi para
com a Vitó ria.

Decididamente a senhora Daussy trazia sempre aquele nome para a


conversa. Huguette fez um movimento para se retirar. Mas Gerardina
agarrou-lhe a mã o.

... Foi sempre perfeito para com ela, apesar da antipatia que parecia
inspirar-lhe. Mas creio que se decidiu a casar com ela por pura
dedicaçã o, visto que sabia que nenhum homem teria a paciência de
suportar as irreflexõ es daquela pobre criança, e que esta se arriscava
a ser infeliz com outro casamento. Renato é um modelo de dedicaçã o.
Por isso, minha querida, acho que, se nã o está disposta a ficar solteira,
aceitará de boa vontade ser o seu esposo... por pura

131dedicaçã o, repito-o, Nã o haveria essa infeliz questã o de dinheiro


que tã o desgraçadamente influenciou a opiniã o pú blica. Renato nã o
quer tocar na herança da Vitó ria, A Huguette possivelmente fará da
mesma maneira... Há o seu dote, que por mais pequeno que seja para
estes tempos, nã o ficaria mal a Myols. Minha pobre filha, haveria
mesmo assim pessoas mal intencionadas que pretenderiam que tinha
sido vítima de há beis manobras, que Renato continuava a série das
suas combinaçõ es maquiavélicas, querendo assegurar-se sem riscos

112
da sua pequena fortuna e alcançar o seu quinhã o de três milhõ es da
herança da Vitó ria pois ninguém acredita que os Armilly tenham
abandonado na verdade essa fortuna. Mas sã o terríveis suspeitas
acrescentou a senhora Daussy num tom de virtuosa indignaçã o.
Conhecemos Renato, nã o é verdade, Huguette? Sabemo-lo incapaz de
tais odiosos cá lculos. Infelizmente nã o podemos nada contra esta
lamentá vel opiniã o pú blica e se algum dia o acontecimento a que aludi
se produzisse, se o Renato, celibatá rio inveterado, levasse a dedicaçã o
ao ponto de romper com todas as suas resoluçõ es e lhe oferecesse
uma espécie de reparaçã o pela desgraça,,, involuntá ria de lhe tirar
todas as esperanças de casamento.... se um dia a Huguette se decidisse
a partilhar o triste destino do seu primo, saberia os espantosos ditos
que se ergueriam contra ele.

Huguette ficou por momentos interdita ao ouvir as singulares


palavras de Gerardina, ao sentir aquele olhar perturbador fito nela
com insistência. Mas dominou-se rapidamente e retirou um pouco
bruscamente a mã o da da senhora Da ussy.

132 Na verdade tem bem estranhos pensamentos, minha senhora!


disse num tom glacial. Nã o se aflija, nã o se realizarã o.

Oh! Desejo-o sinceramente..., nã o só por causa do Renato, cujos


aborrecimentos seriam maiores.... mas por sua causa, pois nã o sei se
aquele cará cter tã o sério, tã o... bizarro, tornaria uma mulher feliz...
Mas até já , minha querida, sou imperdoá vel por a reter.

Huguette entrou no escritó rio e sentou-se no seu lugar, em frente de


Silvina. Mas mostrou-se singularmente distraída, e mais duma vez o
olhar investigador de Renato se fixou naquela fisionomia onde se
exprimia uma contrariedade que escurecia os olhos límpidos de
Huguette.

113
As palavras de Gerardina tinham deixado na alma da jovem uma vaga
perturbaçã o, uma inexplicá vel inquietaçã o, e, coisa estranha, pareciam
ter acordado uma inconsciente alegria. Depois de repetir à saciedade
que a senhora Daussy tinha uma imaginaçã o desenfreada e uma subtil
maldade, surpreendeu-se a perguntar o que aquela sua ideia tinha na
verdade de extraordiná rio e que Renato, se um dia tivesse o
pensamento que lhe atribuía Gerardina, desdenharia certamente as
novas acusaçõ es que se levantariam contra ele, como já o tinha feito a
quando do seu noivado com Vitó ria.

Mas nem um minuto Huguette se demorou a analisar a ideia de que


qualquer pensamento interesseiro podia orientar o procedimento do
primo.

133XI

Desde meados de Novembro que a neve caía com uma abundâ ncia tal,
que um bom nú mero de caminhos ficaram impraticá veis e que
Gerardina, apesar da energia que dava provas, teve que interromper
por vezes as suas visitas quotidianas a Rosy. A viú va, indolente e
irritá vel, lamentava-se amargamente daquele estado de coisas,
afirmando que iria certamente morrer de aborrecimento, e pedia a
Huguette que a fosse distrair. A maior parte das vezes Renato
mandava responder que, se nã o queria estar sozinha, que viesse para
a companhia de todos, No entanto consentiu umas quatro ou cinco
vezes que Huguette fosse com Clotilde aos seus aposentos. A jovem
passava ali algum tempo, que lhe parecia demasiado longo, ouvindo
aquela tagarelice fú til e as suas reflexõ es despidas de bom senso.
Regressava com satisfaçã o para a biblioteca, onde a família fazia o seu
ponto de reuniã o, por medida econó mica, para só ter uma lareira
acesa.

Os momentos ali passavam depressa, entretida num trabalho


entrecortado por conversas interessantes. Huguette assumira o novo
encargo de ensinar ao Luís o catecismo e de o preparar para a
primeira comunhã o, que devia fazer no ano seguinte. Rosy,
desinteressada em matéria religiosa como em muitas outras coisas,
nunca se preocupara com isso e fora Silvina que até entã o velara um

114
pouco pela instruçã o religiosa do sobrinho, mas sem grande
continuidade, em virtude das suas ocupaçõ es e dos entraves

134 que levantava sempre a cunhada em tudo o que se referia ao


trabalho da criança.

Huguette propô s encarregar-se daquela tarefa. Ninguém ali era mais


apta para bem o fazer, pois tinha ainda em toda a sua frescura os
ensinamentos recebidos no convento. Começou por isso a ensinar o
Luís, cujo espírito aberto, extremamente reflectido, assimilava
prontamente aquele só lido alimento espiritual, que a jovem sabia
distribuir duma maneira agradá vel tã o agradá vel que as Armilly e
Renato interrompiam por vezes o seu trabalho para a ouvir, quando
as liçõ es tinham lugar no escritó rio, o que era habitual. se Huguette
tivesse observado o primo nesses momentos, teria ficado
surpreendida e encantada ao verificar a atençã o contida, quase
religiosa, com que escutava as claras explicaçõ es dadas pela pupila,

Durante alguns dias, a jovem ficou presa ao leito com uma forte
constipaçã o. Quando retomou o seu lugar no escritó rio e pensou em
recomeçar as liçõ es de Luís, o rapazito disse-lhe num tom alegre:

Veja como aprendi enquanto estava doente! Sei todo o catecismo sem
me enganar e recitei-o já ao tio. Mas nã o mo quis explicar, e disse-me
que a prima o faria quando estivesse boa.

O coraçã o de Huguette sentiu-se amarfanhado ao abrir


maquinalmente o catecismo. Meu Deus! aquele erudito, aquele
homem tã o admiravelmente dotado quanto a inteligência, ignorava a
ú nica ciência necessá ria. A religiã o era-lhe desconhecida, nã o
compreendia as sublimes verdades, nã o se inclinava perante os
mistérios augustos de que falava

135 aquele humilde livro, já sabido pela mais ignorante criança!

115
Quando Luís, terminada a liçã o, saiu do escritó rio, Renato levantou-se
da escrivaninha e dirigiu-se para a pupila, que tinha agarrado num
trabalho de agulha.

Sabe, Huguette, que ao ouvi-la me estou a instruir? disse com um meio


sorriso, mas sem ironia. Sou um pobre cristã o, e tenho tanta
necessidade como o Luís de aprender essas verdades conhecidas
outrora, mas depressa esquecidas.

Ela teve um estremecimento de alegria. Ouvia-a entã o e confessava ele


pró prio de que tinha necessidade daquela luz.
Continuou numa voz um pouco surda:

Há momentos na vida em que a alma se sente desamparada perante o


sofrimento, É entã o que nos apercebemos de todo o vazio desse
espiritualismo orgulhoso que admite a existência dum Ser superior,
mas com a condiçã o de banir todas as relaçõ es de obediência, de
reconhecimento e de amor Crença vaga, que um sopro faz desvanecer.
Mas o que ensina ao Luís, Huguette, contém promessas duma
felicidade divina, e os seus ensinamentos fazem-me lamentar ter
vivido tã o afastado dessa religiã o incompará vel.

Cruzou as mã os sobre os joelhos, um pouco trémulos, e ergueu para o


primo os olhos cheios de grave emoçã o.

Nã o é ainda tarde... Deus espera-o disse-lhe docemente.

Nã o lhe respondeu e, inclinando-se, agarrou numa

136tenaz para deitar na lareira um pedaço de carvã o em brasa que


tinha caído na grelha. Endireitou-se depois. Durante algum tempo
pareceu observar com atençã o o vai-vém da agulha de Huguette, que
continuara o seu trabalho.

Penso ir amanhã , dia de Natal, fazer a minha visita ao pá roco de Sir


disse num tom indiferente. Serei pois, nesse dia, o seu companheiro,

Huguette compreendeu entã o que era sua intençã o assistir à missa do


dia de Natal.

116
Como orou nesse dia, ao vê-lo a seu lado no banco dos castelõ es de
Myols, em pé, muito correcto, com a testa enrugada revelando a
tensã o dos seus pensamentos! Seria apenas devido a uma simples
preocupaçã o humana? Ou recordar-se-ia dos conhecimentos
recebidos outrora nos bancos da catequese? Huguette implorou a
Deus com ardor para que aquela segunda hipó tese fosse a verdadeira
e que a atmosfera santa e apaziguadora do santuá rio agisse sobre
aquele nobre coraçã o, isolado na indiferença.

Ao sair da missa, durante a qual tinham sido, mais do que nunca,


objecto duma curiosidade malevolente, os castelõ es dirigiram-se ao
presbitério, onde o abade Noret os recebeu com sorridente
afabilidade. Retomaram depois o caminho de Myols, de cabeça
levantada, sossegados e altivos na aparência, mas no fundo
profundamente emocionados e entristecidos com aquela persistente
animosidade.

Um vento á spero e frio enregelava os caminhantes, que avançavam a


custo sobre a neve endurecida. Escorregavam frequentes vezes,
principalmente Huguette, que nã o tinha a prá tica das suas

137primas. Mas caminhava intrepidamente, nã o sem lançar alguns


olhares encantados para o interior dos soutos onde se alinhavam os
grandes troncos castanhos e se desenvolviam os atalhos muito
brancos.

Nã o tem receio deste inverno na Maurienne, Huguette? Tem hoje uma


pequena amostra disse Renato, que caminhava a seu lado,
sustentando a mã e.

Oh! de modo nenhum! Este ar é fortificante... Nã o pense que me


aborreço aqui, primo. Agrada-me, pelo contrá rio, imenso.

Voltou para ele o rosto corado pelo frio e emergindo dum xaile de lã
escura que a cobria até ao queixo.

Uma espécie de alegre clarã o iluminou por instantes o olhar de


Renato.

117
Tanto melhor! Nã o desejamos outra coisa que nã o seja tê-la aqui.

É verdade, para sempre, minha pequena Huguette repetiu a senhora


de Armilly, com um sorriso que lhe distendeu a fisionomia fatigada.
Que faríamos agora sem a Huguette?

Respondeu-lhe num tom um pouco trémulo, inclinando-se para beijar


o rosto da parenta:

Entã o ficarei, minha tia.,,, tanto tempo quanto quiser.

Entã o será para sempre replicou Renato, cujo grave rosto parecia
naquele momento o dum homem feliz.

Uma alegria inexplicá vel invadiu a alma de Huguette e fez-lhe parecer


duma facilidade singular
o atalho escorregadio, duma deliciosa frescura a

138 á spera brisa que lhe mordia o rosto, duma beleza incompará vel o
velho castelo solitá rio com os tetos cobertos de neve.

Naquela tarde, Gerardina chegou a Myols num trenó . Quando tirou os


ricos abafos que a envolviam até aos olhos, surgia com um vestido
azul, duma extrema elegâ ncia.

Devo ir depois do jantar a casa dos Avrets e vesti-me antes para


mostrar a Rosy o meu traje explicou ela a Huguette e a Berta, que
encontrara no vestíbulo. A Edmée oferece uma pequena reuniã o
musical à s suas amigas de Vousset, e convidou-me. Aborrece-me, mas
nã o pude recusar. Esta família mostrou-se sempre muito amá vel
connosco... Se o Gonthier quisesse, creio que a Edmée ficaria satisfeita
em ser a senhora Daussy.

Entã o que aproveite! disse Berta com a sua habitual secura.


Dificilmente encontrará outra ocasiã o para se aliar a uma família de
velha nobreza.

118
Um clarã o brilhou nos olhos ardentes de Gerardina, e Huguette viu
contrair-se aquele impassível rosto.

Dificilmente...repetiu ela numa voz sibilante. Domina-nos, Berta. O


Gonthier, com a sua inteligência, posiçã o, a fortuna que nos caberá do
avô , pode pretender a uma uniã o ainda mais elevada. Nã o estamos no
tempo das cruzadas, minha cara amiga, a Revoluçã o nivelou muitas
coisas.,.

Nã o na nossa casa, em todo o caso! interrompeu Berta com rude


altivez.

De novo o clarã o fugitivo atravessou o olhar de Gerardina.

139 Oh! sã o da velha escola! disse ela num tom em que se misturava a
impaciência e a có lera. Os Avrets, mais modernos, abandonaram todas
essas fraquezas. Desde que o nome seja honrado, isento de toda a
má cula e de toda a suspeita, nã o irã o afastar um homem de grande
mérito como o meu irmã o.

Huguette viu empalidecer Berta e julgou por momentos que palavras


violentas iriam sair dos lá bios da prima. Mas Gerardina apressou-se a
acrescentar num tom calmo, um pouco desdenhoso:

O pró prio Gonthier, aliá s, dá pouco interesse a essas distinçõ es e, a


despeito do dote da Edméemuito bom entre nó s, nã o tem a intençã o
de a desposar. É o desinteresse em pessoa e nã o se casará por
dinheiro.

Mal desapareceu no corredor que levava aos aposentos de Rosy, Berta


deixou escapar um risinho sarcá stico.

Isso nã o impede que tivesse desejado os milhõ es da Vitó ria


murmurou ela.

A prima fitou-a com surpresa.

Que quer dizer, Berta?

119
Esse homem teve a pretensã o de casar com a Vitó ria, e teve a audá cia
de pedir a sua mã o. Foi um pouco depois das graves dissençõ es entre
o Renato e a pupila, pouco tempo antes da sua morte. O Gonthier era
aqui recebido como a irmã , igualmente a título de amigo de infâ ncia.
Renato, apesar de sentir por ele uma estima restrita, admitia-o por
delicadeza, nã o tendo nada de concreto para lhe repreender,
Contavam-se a seu respeito algumas histó rias pouco honestas, mas o
meu irmã o nã o conseguira saber mais

140nada. Era um conversador agradá vel, divertindo a Vitó ria com os


seus ditos espirituosos, adulando-a com sabedoria, e procurando dar-
lhe a entender que, em virtude da sua fortuna, se achava muito acima
de nó s. Mas nã o sabia bem como ela era orgulhosa, cheia de
preconceitos aristocrá ticos quase tanto como eu, Huguette.
Respondeu ao pedido dessa fá tua personagem duma maneira que
julguei perfeita, mas que o Renato julgou ser humilhante à força de
iró nico desdém. Desde entã o, nã o tornamos a ver o Gonthier em nossa
casa.

Jamais a taciturna Berta tinha falado tanto. No seu rosto de traços


duros e altivos, Huguette notou um irritado desprezo.

Imagine a sua audá cia, Huguette! Pretender desposar a filha dum


Armilly, a descendente duma nobre família inglesa!.,, ele, o neto duma
criança encontrada pelo nosso bisavô na berma da estrada. Esse
Mateus Daussy nã o é outra coisa, e a sua mulher foi governanta de
Myols. Pretendem que a sua fortuna começou à custa dos seus
patrõ es, e o Augusto, pouco tempo antes da sua morte, falou-nos de
provas que tinha descoberto a esse respeito nas contas do nosso avô .
A Gerardina fala muito no seu nome honrado, mas nã o seria
necessá rio procurar muito no passado da sua família para encontrar
qualquer má cula secreta.

Nã o admitindo as teorias ultra-aristocrá ticas de Berta, Huguette,


desagradavelmente impressionada pelos Daussy, e em particular por

120
Gonthier, compreendeu um pouco o desprezo com que Vitó ria
acolhera a orgulhosa pretensã o deste ú ltimo.

141 Nã o devia ter ficado muito amigo de Vitó ria,, nem de vó s todos,
nã o?

Berta fez um gesto de indiferença.

Oh! nã o sei bem.,. Nunca nos preocupamos em saber se Gonthier


Daussy nos guardava algum rancor, acredite! Se sofreu qualquer
vexame, mereceu-o largamente... Vem ao escritó rio, Huguette?

Nã o. Vou ter com a Clotilde e a  ngela, que devem estar com a Rosy.
Fez-me prometer esta manhã que iria tomar chá com ela, mas estive
até agora ocupada a ajudar a Aglaé, e nã o pode ir mais cedo... Isso
importa-me pouco! acrescentou ela com um gesto de indiferença.

Nã o é muito amiga dessa cabeça sem cérebro que o pobre Augusto nos
trouxe. Isso só honra o seu julgamento declarou Berta num tom de
condescendente aprovaçã o.

Dirigiu-se para o escritó rio e Huguette encaminhou-se para os


aposentos da viú va. Mas ao entrar na antecâ mara que precedia o
pequeno salã o, fez um involuntá rio movimento de recuo. Gerardina
estava ali, entretida a procurar alguns cadernos de mú sica num
pequeno armá rio.

Disse, voltando-se. Ah! é a Huguette! A feroz Berta nã o a


acompanhou?.,. Uma verdadeira Armilly, cheia de arrogâ ncia e de
preconceitos aristocrá ticos. Renato e ela sã o irredutíveis nesse ponto
e obrigam os outros a seguir as suas ideias... Oh! minha querida, nã o
permita que lhe tirem essa encantadora simplicidade, e a sua amá vel
bondade! exclamou num tom de sú plica,

142A jovem fitou-a com surpresa, a que nã o faltava certa altivez.

Mas que a aflige, minha senhora? Nunca notei que me quisessem tirar
alguma coisa!

121
Ainda nã o... Mas um dia, talvez.,. Veja, minha filha, admita que um
homem duma perfeita honestidade, senhor duma bela situaçã o, mas
de nascimento plebeu, lhe pedia para o desposar.,. Pode contar com a
recusa do seu tutor. Pelo menos, tudo o leva a acreditar.

Nã o vejo bem, nas circunstâ ncias presentes, como se daria esse


acontecimento. Em qualquer caso, seria a altura de conhecer a opiniã o
do meu primo.

Mas a Huguette nã o tem esses preconceitos, um pouco ridículos no


tempo que passa? Nã o pretende casar com um nobre?

Huguette respondeu com franqueza:

Nã o seria para mim uma questã o primordial. Nã o conseguiu explicar o


clarã o de satisfaçã o que atravessou as pupilas de Gerardina, nem o
acento de alegria da sua voz quando lhe disse;

Felizmente, Huguette, que é uma pessoa sensata. Nã o é como os


outros... que valem certamente menos,

Huguette foi encontrar no salã o as primas e Rosy. Esta, cedendo


provavelmente à s razõ es apresentadas pela influência de Gerardina,
parecia ter renunciado ao projecto da viagem. Mas para encontrar

143 um derivativo ao seu aborrecimento de pessoa desocupada,


rodeava-se cada vez mais de luxo e amimava em demasia o filho. A
criada de quarto, que conseguia manter ao seu serviço à custa de
ordenados exorbitantes, lamentava-se das suas exigências crescentes
e do nervosismo constante. Com o cunhado, as disputas continuavam,
quase sempre a respeito de Luís, que estiolava com aquela higiene
deplorá vel e a existência vazia que a mã e lhe impunha. A jovem viú va
renovara as suas tentativas para atrair Huguette, na esperança, nã o
correspondida, de fazer dela uma espécie de dama de companhia para
os momentos em que Gerardina nã o estava ao seu lado. Mas tinha
encontrado a inquebrantá vel firmeza de Renato e a decisã o muito
pessoal da jovem, pouco disposta a cumprir aquele papel junto duma
criatura caprichosa e fú til. Compreendera em breve que Rosy, sob
aquela aparência meiga e graciosa, lhe guardava rancor; mas nã o lhe

122
dava importâ ncia e continuava a testemunhar à viú va uma delicadeza
instintivamente fria.

Nesse dia, Rosy estava com boa disposiçã o. Fez a Huguette amá veis
repreensõ es pelo seu atraso, cumprimentou-a pelo seu bom aspecto e
disse-lhe que a amava até à loucura.

Nã o é verdade, querida? acrescentou, dirigindo-se a Gerardina, que


entrava com um caderno sob o braço.

A senhora Daussy replicou-lhe com calor:

Tem um coraçã o admirá vel, Rosy! Gosta de facto desta encantadora


criança, aliá s digna de toda a estima... Mas que tem?

144 A viú va tornara-se subitamente pá lida. No seu rosto lia-se um


terror estranho.

Ali.. ali! disse ela, apontando para o corpete de Huguette.

Essa rosa.,, Huguette..., deite-a fora disse, com voz angustiada, Â ngela.

A jovem baixou os olhos para o lenço negro de renda que lhe caía
sobre a blusa. Pouco tempo antes, tinha preso entre duas pregas uma
das rosas enviadas essa manhã por Lauriana, nessa altura em Nice a
passar alguns dias. Mas num gesto maquinal acabava de afastar o
lenço e, a flor, até entã o um pouco dissimulada, surgiu branca e
assetinada.

Sem compreender, ergueu-se e meteu-a no bolso do casaco de


cambraia. Ao fazer aquele movimento, olhou por acaso para Gerardina
e notou uma ruga profunda na sua testa branca, enquanto certo
desprezo colérico se reflectia no olhar fito em Rosy.

Logo que a rosa desapareceu, a viú va pareceu respirar mais


livremente. Mas um círculo arroxeado continuou a circundar-lhe os
olhos e nã o readquiriu a sua boa disposiçã o.

123
Esta Rosy é extremamente nervosa disse  ngela logo que saiu dos
aposentos da cunhada, na companhia de Clotilde e de Huguette.
Imagine que, desde a morte da Vitó ria, nã o pode ver uma rosa nem
respirar-lhe o perfume sem se perturbar.

É entã o por isso que nunca vai ao jardim durante o verã o?

Mas certamente que é por isso! Já deve ter notado que nunca pomos
flores dentro de casa. Estava ”muito doente na ocasiã o daquele triste
acontecimento

145

e ficou extremamente impressionada. Ainda continua assim um


pouco. Temos que vigiá -la nesta sua fraqueza, pois as emoçõ es se
forem repetidas, poderã o ser perigosas para a sua saú de tã o delicada.

Huguette observou:

A Gerardina parecia descontente ao ver a Rosy assim tã o agitada.

Oh! A Gerardina nã o é uma mulher nervosa, longe disso, e suponho


que nã o compreende a minha cunhada. É extraordiná ria de decisã o e
sangue-frio. É por isso que nã o posso explicar a intimidade que há
entre ela e a Rosy... A menos que encontre prazer particular em
dominar uma cabeça tã o fraca.

Renato, que saía nesse momento do escritó rio, perguntou:

De que estã o a falar?

Da Rosy e da Gerardina. Rosy acaba de se sentir mal ao ver uma rosa


no corpete da Huguette. Temo que aquela deplorá vel cisma nã o
desapareça.

Uma expressã o indefinível perpassou pelo rosto do senhor de Armilly,


enquanto replicava em voz seca, um pouco dura:

É muito de temer, de facto.

124
XII

No princípio da primavera, Huguette viu surgir na sua vida calma e


austera uma distracçã o” inesperada, A senhora Delbeaume passara
todo o inverno adoentada e recompunha-se com dificuldade

146 em Vousset, uma vila hú mida e sombria, e por isso o médico


aconselhara-a a passar algum tempo no campo. Um dia, Lauriana,
radiosa, apareceu em Myols anunciando que Armando acabava de
alugar para a mã e e para ela uma casa, pró ximo do castelo, chamada
Refú gio das Senhoras, pois outrora as nobres freiras dum Capítulo
saboiano vinham ali fazer retiros, em completa solidã o.

As senhoras Delbeaume, uma vez instaladas na pequena habitaçã o


gentilmente mobilada pelos seus cuidados, encetaram relaçõ es quase
diá rias com Myols, sem temer os olhares malévolos que espiavam em
Vousset os passos de uma e outros. Armando ficara na vila, mas vinha
frequentemente ver a mã e e, ele pró prio tomava parte naquelas
reuniõ es muito simples e cordiais, que davam uma nota de vida e de
alegria desacostumada à austera existência dos castelõ es de Myols.

Pouco a pouco, no convívio com Lauriana, a fatigada Berta abria-se


mais, e  ngela esboçava uns pá lidos sorrisos, quase entristecedores
naquela pobre e melancó lica criatura. A senhora de Armilly tomava
gosto pela companhia da senhora Delbeaume, Renato apreciava
visivelmente a franca e séria natureza de Armando e encantava-se em
manter com o jovem magistrado, muito conhecedor, cortezes disputas
literá rias, nas quais por vezes se imiscuíam Huguette e Silvina.
Rapidamente estabelecia-se entre aqueles nobres coraçõ es uma
verdadeira intimidade, que se manifestava por poucas palavras, mas
que por isso nã o seria menos duradoira.

Rosy, apesar do pouco entusiasmo manifestado

147pelo cunhado, nã o podia ser excluída daquelas reuniõ es. Sentia-se


mesmo fortemente atraída por Lauriana, cuja” alegria esfusiante lhe
agradava. Um dia, apresentou aos Delbeaume a inevitá vel Gerardina, e
a partir de entã o, a neta do antigo feitor tomou lugar no pequeno

125
círculo, apesar da pouca simpatia que inspirava a todos, além da sua
amiga. Era boa pianista, falava bem e mostrava-se excessivamente
amá vel; além disso era recebida em casa dos Armilly, razã o de sobra
para ser acolhida pelos moradores do Refú gio das Senhoras.

Durante os meses de inverno, Huguette fortalecera-se, a sua beleza


despojara-se dos seus traços infantis, e, ao contacto daquela família
profundamente experimentada pela vida, o seu espírito amadurecera
sem que tivesse perdido a alegria. A sua influência era poderosa em
Silvina e  ngela. A primeira, sobretudo, perdia pouco a pouco aquela
espécie de frieza que escondia muitas vezes os verdadeiros
sentimentos dum coraçã o sensível e dedicado.

Silvina era na realidade uma mulher encantadora, inteligente e boa.


Huguette repetia-o, numa tarde do fim de Abril, ao vê-la caminhar
junto de Armando Delbeaume. Voltavam ao Refú gio, depois de terem
passado algumas horas em Myols. Lauriana conduzia Clotilde, e
Huguette caminhava junto de Renato, silencioso.

Huguette, muito perspicaz, notara que Armando e Silvina possuíam os


mesmos gostos, que tinham sempre as mesmas preferências e
instintivamente se viam reunidos por mú tua atracçã o. Mas ao notar
estes factos, sentia um cerrar de coraçã o, pois cria que um

148 casamento seria impossível entre os dois, que a prima iria sofrer
talvez como Clotilde, E desejava secretamente encurtar a estada dos
Delbeaume no Refú gio. Mas nã o havia qualquer razã o, e todos
pareciam sentir-se muito bem. Lauriana entretinha-se com a criaçã o
das pombas, e nã o lamentava Vousset, cujos habitantes lhe pareciam
demasiado superficiais e invejosos, como nesse mesmo momento
confiava a Huguette.

Ao menos aqui estamos tranquilas, nã o vemos ninguém disse


designando o pequeno atalho por onde se dirigiam os passeantes para
o Refú gio. Nem curiosos, nem má s línguas.

Falou demasiado cedo, Lauriana. Precisamente vem lá alguém


replicou Renato.

126
É verdade! Mas até hoje nã o vi ninguém neste atalho... Parece a
senhora Daussy... Mas quem vem com ela?

O senhor de Armilly disse secamente:

Deve ser o irmã o.

Era na verdade Gonthier, irrepreensivelmente vestido como de


costume. De longe, Gerardina dirigia alguns gestos de amizade aos
passeantes, e quando se aproximou mais, exclamou alegremente:

Que bom encontro! E o meu irmã o que desejava tanto conhecer o


senhor Delbeanme e a Lauriana! O acaso serviu-nos.

Seria o acaso? murmurou Renato num tom iró nico, mas tã o baixo que
apenas Huguette o ouvia.

O senhor Daussy mostrou-se amá vel e atencioso, sem parecer de


modo nenhum incomodado com a presença dos Armilly, cuja atitude
era distante e

149 glacial. Ao despedir-se, pedia permissã o para ir ao Refú gio


apresentar os seus comprimentos à senhora Delbeaume. Armando
nã o tinha qualquer razã o para o negar, pois Gonthier criara há uns
três ou quatro anos, uma grande reputaçã o. Em contrapartida,
Laoriana fez um pequeno trejeito. O homem desagradara-lhe, como o
contou a Huguette logo que o pequeno grupo continuou a caminhar.

Desde entã o Gonthier apareceu frequentes vezes em casa dos


Delbeaume. O seu modo de conversar, que sabia admiravelmente
adaptar à s circunstâ ncias, agradou à senhora Delbeaume e ao
advogado, e este ridicularizava Lauriana e as suas infundadas
prevençõ es...

Respondia-lhe, tomando um ar contristado:

Que querem, nã o posso dominar-me! Consolo-me pensando que todos


os Armilly à parte a senhora Rosemonde sentem a mesma antipatia
por esse senhor.

127
Quando Renato encontrava Gonthier, os dois homens
cumprimentavam-se com fria delicadeza, trocando no decorrer da
conversa algumas frases breves e insignificantes; mas era fá cil
adivinhar que desde o dia do seu encontro no atalho de Myols, o
senhor de Armilly espaçava as visitas ao Refú gio. Evidentemente a sua
antipatia pelo irmã o de Gerardina era irredutível.

Para com as senhoras de Armilly, Gonthier mostrava-se delicado, sem


parecer notar a sua frieza altiva, mas nã o lhes dedicava grandes
atençõ es. Parecia reservá -las para Huguette, mostrando-lhe um
respeito profundo.

150Nã o duvidava que aquela jovem, que acolhia as suas atençõ es com
uma altivez um pouco desdenhosa, fazia a seu respeito um estudo
profundo, que lhe nã o era muito favorá vel. Muitas vezes, com efeito,
Huguette notara durante a conversa algumas palavras hipó critas e,
por diferentes indícios, compreendera, com a sua viva penetraçã o, que
era um mestre na dissimulaçã o. De dia para dia, crescia nela o
desprezo por aquele homem e agora lamentava nã o poder, por causa
de Lauriana, imitar o senhor de Armilly, espaçando as visitas a casa
dos Delbeaume, tanto lhe era desagradá vel encontrar o senhor Daussy
e ver fito nela o seu olhar agudo.

Numa tarde de Junho, os Daussy estavam reunidos com Silvina,


Clotilde e Huguette no Refú gio, sob os grandes pinheiros que
espalhavam pelas redondezas um penetrante odor a resina. Lauriana,
já uma dona de casa consumada, tinha preparado uma refeiçã o que foi
declarada muito saborosa. Quando os convivas viram desaparecer as
bolachas salgadas, os pastéis amarelados cheirando a baunilha, os
cremes de chocolate e as geleias transparentes, Armando propô s irem
até à torrente que corria um pouco afastada, num lugar extremamente
pitoresco. Todos concordaram com aquele plano, salvo Huguette, que
tinha magoado um pé uns dias antes e evitava ainda caminhar muito.
A senhora Delbeanme afirmou que lhe faria companhia e o grupo dos
novos afastou-se.

128
Mas cinco minutos mais tarde, Huguette, sentada a uma janela do
salã o, viu aparecer Gerardina. Caminhava em passos rá pidos,
deslocando-se com vivacidade.

151 No entanto, quando transpô s a porta, o seu aspecto era muito


fatigado e deixou-se cair numa cadeira com um gesto de imenso
cansaço.

Que tem, minha senhora? perguntou a senhora Delbeanme com


inquietaçã o.

Nada... um incó modo sú bito. Fui obrigada a deixar os passeantes...

A senhora Delbeaume levantou-se com presteza” dizendo: ”Vou-lhe


arranjar um chá ”.

Mal ela saiu, Gerardina passou muitas vezes pela testa o lenço com
uma cercadura de rendas.

Sou ridiculamente fraca! disse em voz sumida. É o calor, talvez... E


tenho tantas preocupaçõ es!

Huguette procurou uma frase simpá tica para lhe responder. Mas nã o
encontrou nada e permaneceu silenciosa,

Quantas preocupaçõ es! continuou Gerardina erguendo os olhos ao


céu. Sei que o meu bom Gonthier acalenta um sonho... eu pró pria o
criei para ele, e no entanto nã o ousa arriscar o passo definitivo que lhe
asseguraria a sua realizaçã o.,. Escute, minha querida filha, já que
estamos sozinhas por acaso, deixe-me dizer-lhe... Oh! Huguette deixe-
me contar-lhe qual é o sonho do meu irmã o!

Enquanto falava num tom ardente, agarrara as duas mã os da jovem.

Huguette fitou-a com estupefacçã o, nã o com” preendendo nada.


Gerardina readquirira subitamente a sua mais sedutora expressã o, e
os olhos brilhantes fitavam a jovem como os duma fera a presa que
deseja fascinar.

129
152Minha pequena Huguette, parece que chegou a duvidar da
probabilidade dum pedido de casamento” E no entanto eis um... Sim,
minha filha, Gonthier nã o tem outro desejo: ser o seu esposo, afastá -la
desse triste Myols e duma tutela um pouco pesada, dar-lhe enfim
aquela felicidade que até hoje ainda nã o encontrou. O que se disser
pouco lhe importa, nunca deu interesse à opiniã o pú blica quando a
razã o e o coraçã o lhe ditam um dever, Deixará esse desgraçado nome
de Armilly, nã o ficará reduzida a esse melancó lico celibato, sujeito a
todas as vilanias, pois a senhora Gonthier Daussy será honrada e
estimada por todos.

Apó s o primeiro momento de estupefacçã o, Huguette readquirira a


presença de espírito. Um desprezo irritado invadiu-a, ao ver
desenrolar-se os planos audaciosos dos dois Daussy. Retirou um
pouco bruscamente as mã os das de Gerardina, que as agarrava com
ardor, e fitou-a altivamente.

Por que nã o dirigiu esse pedido ao meu tutor? Teria sido muito mais
correcto e ele ter-lhe-ia dado a minha resposta.

Gerardina soltou uma pequena gargalhada:

Antes mesmo de conhecer a sua! Sei que fará todos os seus esforços
para a afastar desse casamento, e por isso quis dirigir-me
primeiramente à Huguette, para conhecer a sua decisã o pessoal e nã o
a expressã odos rancores de outrem.

Entã o aqui tem a minha resposta ”pessoal i agradeço-lhe o interesse


que me demonstraram, mas jamais casarei com o senhor Daussy.

Um clarã o perpassou pelos olhos de Gerardina,.

153as mã os esmagaram nervosamente o lenço pousado nos seus


joelhos.

Nã o, nã o é a Huguette quem responde assim! Fala sob o império do


ó dio que os Armilly têm a meu irmã o e que procuraram inocular-lhe.

130
Já se nã o mostrava doente, e Huguette adquiria a certeza de que tudo
aquilo fora um pretexto para lhe falar a só s.

E no entanto, quem os deveria odiar, se nã o o Gonthier?.,. sim, o meu


irmã o que só encontrou o desprezo insultante duma criança cheia de
tolices e de pretensõ es! Mas deseja esquecer os erros da sua família,
suportará heroicamente todas as suas có leras, por si, Huguette, cujo
futuro foi desfeito pela falta dos Armilly...

Huguette interrompeu-a secamente:

Quer dizer pelo triste erro da opiniã o pú blica, que transformou toda a
nossa existência?

O erro... sim, se quiser. Já lhe disse que nã o quero acreditar na


culpabilidade de Renato. Mas enfim, qualquer que seja a opiniã o
adoptada, nã o é por isso menos a vítima duma situaçã o infeliz, Ora
Gonthier, completamente desinteressado, oferece-lhe um meio de se
libertar dessa situaçã o, É a mulher dos seus sonhos, querida Huguette,
será bem feliz a seu lado.

Huguette disse com frieza:

Nã o insista, minha senhora. Lamento contrariá -la, mas a recusa é a


expressã o exacta da minha vontade.

O rosto marmó reo da senhora Daussy teve uma rá pida contracçã o.

154 Diga ao menos porquê! exclamou, contendo a custo a sua


exasperaçã o. Disse-me um dia que aceitaria um homem com um nome
plebeu...

É verdade, se houvesse apenas esse inconveniente, nã o hesitaria em


aceitar o pedido dum homem capaz de me tornar feliz.

131
O Gonthier nã o está nessa categoria? disse Gerardina num tom
agressivo.

Nã o, minha senhora. O senhor Daussy nã o saberia compartilhar os


meus sentimentos, a minha crença, nã o ha nada, na verdade, que nos
aproxime.

Sentia-se um pouco embaraçada com a insistência de Gerardina, pois


nã o queria confessar-lhe que a razã o principal era a sua antipatia
invencível por esse homem.

Gerardina encolheu os ombros.

Ideias de pequena colegial! O Gonthier tem bons sentimentos, e


deixar-lhe-á inteira liberdade quanto aos seus deveres religiosos. Há
com certeza uma outra razã o, Huguette.... e quero que ma diga.

Quer!... Na verdade, tem bem estranhas, pretensõ es, minha senhora!


Com que direito?...

Gerardina ripostou com ironia:

Oh! o direito!.,, sempre o consegui ladear. Nã o será a mais forte, minha


filha, e vou-lhe dizer simplesmente a razã o por que nã o aceita o
pedido inesperado do Gonthier. Um dia, no vestíbulo de Myoles disse-
lhe um pouco imprudentemente, confesso-o, o que pensava. Acabava
de ficar surpreendida com o acordo que parecia existir entre a
Huguette e o Renato, e tive a suspeita de que um dia ele a

155quisesse tornar senhora de Armilly,,, Nã o por amor,, mas


simplesmente para reunir a sua parte da herança ao que já possuía e
conservar para sempre uma amá vel e dedicada companheira. Fixou
aquelas palavras ditas no ar, considerou como uma realidade aquilo
que, repito-o, nã o passava duma simples hipó tese, e como continua a
ver no seu tutor um modelo de todas as virtudes, nã o quis acreditar

132
no seu interesse, e deixou falar o seu coraçã o bom e ingénuo, cheio de
compaixã o pela desgraça que atingiu a alma orgulhosa de Renato,
reduzindo-o a esconder-se como um criminoso. Numa palavra,
tornou-se um ser ideal, e deseja secretamente rodear de um pouco de
felicidade aquela triste existência, de se tornar na companheira
dedicada daquele que nenhuma mulher deseja para marido.

Como era inteligente aquela mulher! À medida que falava, Huguette


via claramente desenvolver-se os seus pensamentos, até entã o
confusos, e que condiziam com as palavras da senhora Daussy! Nã o
notara a mudança que nela se tinha operado insensível”mente, mas de
sú bito, as palavras de Gerardina abriam-lhe horizontes nã o
explorados.

Mas nã o queria dar à quela criatura matreira a alegria de que tinha


adivinhado tudo. Além disso, convinha cortar cerce aquela insistência
deslocada”

Secamente, sem desfitar o olhar do rosto de Gerardina, Huguette


ripostou-lhe:

Nã o tem que procurar outras razõ es além das que lhe dei. No entanto,
se deseja saber a exacta expressã o do meu pensamento, vou-lhe ser
franca, com o risco de ferir o seu afecto fraternal. Mas foi a senhora

156 que o desejou... O senhor Daussy inspira-me uma antipatia que


nã o posso dominar.

Gerardina ergueu-se, fitando em Huguette os olhos negros, cheios de


um contido furor.

Prefiro saber isso. Mas parece-me que foi longe demais. Pela terceira
vez os Armilly recusaram-se a aliar-se à minha família... sim, pela
terceira vez! repetiu ela, ao ver Huguette esboçar um gesto
surpreendido. Continue Armilly, Huguette, é um nome nobre, outrora
muito considerado na Saboia... mas hoje coberto de lama, talvez
merecidamente. E nã o acredite em demasia nas virtudes do seu tutor.

133
Procure saber na verdade se esse homem cavalheiresco detestava ou
nã o a rica Vitó ria, como pretenderam a quando do seu noivado...

Interrompeu-se, pois a senhora Delbeanme entrava, com a chá vena de


chá .

Demorei-me bastante, minha senhora, mas nã o estamos muito bem


fornecidas aqui!

Oh! estou já muito melhor e sinto-me verdadeiramente desolada por


vos ter incomodado! disse graciosamente Gerardina.

Com efeito já nã o tinha a atitude fatigada de há momentos, e a


irritaçã o do minuto precedente deixara apenas um pouco mais
animado o seu rosto branco. Um clarã o singular no entanto
continuava a brilhar nas suas pupilas. Mas nã o pareceu guardar
rancor a Huguette e continuou a conversar sobre assuntos
insignificantes até ao regresso dos passeantes.

157XIII

Lauriana fora acompanhar os seus convidados até Myols. Silvina


mostrava um entusiasmo pouco habitual. Estava particularmente
linda naquele dia,, com o rosto de ordiná rio um pouco pá lido, corado
pelo passeio, e os olhos negros cheios de vida. O chapéu uma grande
capeline em que as suas habilidosas mã os tinham colocado a renda
brancaficava-lhe bem. Gerardina, cujo olhar investigador a tinha
observado demoradamente, teve um sorrisinho de maldosa satisfaçã o.
Com uma há bil manobra, afastou-se do irmã o e foi colocar-se entre
Huguette e Lauriana, que conversavam tranquilamente.

Minha querida Lauriana, sinto-me satisfeita.... sim, positivamente


satisfeita, com o que se prepara disse docemente, passando a mã o sob
o braço da jovem

Lauriana fitou-a com surpresa.

134
A que se quer referir?

Oh! nã o é possível que ainda nã o tenha adivinhado!... Vai ter uma


encantadora cunhada, Lauriana!

Com um gesto discreto, indicou Silvina, que falava com o senhor


Delbeaume e Clotilde, aos quais acabava de se juntar o senhor Daussy.

E convém felicitar o seu irmã o por esta corajosa determinaçã o, pois


será o fim da sua carreira, visto nã o admitirem que case com uma
Armilly. E infelizmente só dirã o que lhe interessou apenas o grande
dote da Silvina, visto persistirem em acreditar que os herdeiros de
Vitó ria conservaram pelo menos uma parte da sua fortuna.

158No primeiro instante, Lauriana ficou estupefacta, Evidentemente


nunca tivera a suspeita do acontecimento que Gerardina lhe mostrava
como uma coisa já realizada, ou pouco menos. Quanto a Huguette,
lutava dificilmente contra a có lera que a invadia perante a hipó crita
intervençã o daquela mulher.

Tem na verdade uma espantosa imaginaçã o, minha senhora! disse-lhe


num tom irritado. Descobre muitas coisas que jamais se realizarã o”

Mas por que nã o, Huguette? A Silvina é encantadora!

Huguette respondeu-lhe com tristeza:

A senhora Daussy acaba de dar a resposta. Lauriana fez um gesto


desdenhoso.

Ora vamos! Julga que esta ridícula prevençã o durará sempre?

Há já oito anos que existe disse Gerardina e nã o vejo razõ es para que
nã o continue. Seria necessá rio que os Armilly pudessem desfazer
completamente a acusaçã o, o que me parece impossível.

Como o sabe, minha senhora?

135
Seria indispensá vel, como já o disse a Huguette, que a Vitó ria surgisse
para afirmar que se tinha suicidado... Nã o vejo outro meio acrescentou
Gerardina com ironia.

E se esse acontecimento se produzisse, se miss Hardwell voltasse para


dizer que nã o se tinha suicidado, concluiria por um crime... executado
pelos Armilly?

Gerardina murmurou num tom de profunda tristeza:

Meu Deus! seria bem assim!

159 Lauriana exclamou com vivacidade:

Mas podiam ter sido outras pessoas! Por que razã o acusarem pessoas
que até entã o foram honestas e estimadas?

Os lá bios de Gerardina entreabriram-se num sorriso sarcá stico,


sublinhado por um clarã o iró nico dos olhos.

Minha querida, na sua qualidade de filha e irmã dum magistrado,


ignora o adá gio: ”Procura a quem o crime interessa”? Procuraram e...
souberam assim que apenas a família Armilly tinha interesse na
desapariçã o da Vitó ria. É uma coisa estú pida, concedo, mas foram
estas as conclusõ es de toda a gente.

Lauriana exclamou com có lera:

Sã o absolutamente injustas e ridículas! Visto que a Vitó ria tinha um


detestá vel cará cter, podia ter provocado ó dios em pessoas fora da
família. Acho indigna essa suspeita sem haver provas seguras!

Oh! sou inteiramente da sua opiniã o, Lauriana! Mas nem eu, nem a
Lauriana podemos fazer nada! O senhor Delbeaume, tornando-se o
marido duma Armilly sobretudo duma Armilly muito rica será
marcado e obrigado a renunciar à sua carreira. Esta é a verdade,
Lauriana.

136
A jovem ficou silenciosa, com as sobrancelhas crispadas. Huguette
pensava com angú stia na desilusã o que esperava a sua prima. A
razoá vel e prudente Silvina deixava-se arrastar pelo seu sonho. Talvez
fosse um dever acordá -la, mostrar-lhe a realidade penosa. Mas para
que se imiscuía esta Gerardina, com as suas pérfidas insinuaçõ es?

Aproveitando um momento em que Lauriana se

160 afastara para ir ter com o irmã o, Huguette murmurou com ironia:

Nã o temia há pouco conseguir que o seu irmã o Gomthier casasse com


uma das Armilly muito ricas, apesar do risco de o ver afastado da
sociedade?

Gerardina respondeu friamente:

Primeiro nã o era assim tã o rica, visto que desejava renunciar à


herança. Segundo, já lho afirmei, o Gonthier tem uma alma
desinteressada e pronta a sacrificar-se pela sua felicidade. Bem
poucos homens seriam capazes desse desinteresse cavalheiresco... Oh!
reconheça-o, Huguette,

Certamente! Mas imagine que apesar dos meus esforços nã o posso


deixar de pensar que esse desinteresse é apenas aparente e que uma
vez senhor da herdeira, o senhor Daussy saberia, com persuasã o ou
pela força, apoderar-se da herança,

Huguette pronunciou aquelas palavras com ironia, olhando bem de


frente os olhos sombrios de Gerardina. Viu perpassar neles um furor
indizível. Durante alguns segundos a senhora Daussy permaneceu
silenciosa. Depois, de repente, colocou uma das mã os sobre o braço de
Huguette, os seus olhos ardentes mergulharam nos da jovem.

Transforma-se, Huguette, e torna-se arguta. Tenha cautela, é perigoso


ser-se muito perspicaz em Myols,

137
Afastou-se para se juntar aos outros passeantes. Huguette soltou um
suspiro de alívio. As palavras daquela mulher pareciam-lhe flechas
envenenadas

161

que a atingiam na alma e lhe causavam grande sofrimento.

Ao chegar a Myols, Huguette foi mudar de vestido e desceu em


seguida ao escritó rio. Queria contar a Renato o pedido que acabavam
de fazer-lhe como convinha a uma pupila para com o tutor.

O senhor de Armilly estava só , entretido a arrumar os livros nas


estantes. Voltou-se um pouco ao ouvir entrar a jovem e disse-lhe:

Passou uma tarde agradá vel, Huguette? Nã o, primo, foi até muito
desagradá vel para mim,

Desta vez, voltou-se completamente e fitou-a com olhar penetrante.

Mas porquê? Que lhe aconteceu? interrogou com inquietaçã o,

A senhora Daussy fez-me um pedido de casamento... para o irmã o.

Uma exclamaçã o de có lera interrompeu-a. Viu de sú bito revelar-se


uma intensa irritaçã o nos olhos de Renato.

Ousou! A Huguette, mulher desse impostor exclamou irritado


Huguette respondeu-lhe como merecia, dizendo-lhe que o
desprezava?

Ela fitou-o, surpreendida pela veemência desacostumada. As unhas de


Renato mergulhavam profundamente na brochura do livro que tinha
nas mã os.

Nã o empreguei bem esse termo, mas disse-lhe coisa equivalente. A


senhora Daussy obrigou-me a isso pela sua insistência.

A fisionomia irritada de Renato serenou um pouco.

138
162 Nã o tendo podido conseguir a fortuna toda, contentava-se com
uma pequena parte disse ironicamente. Temos de convir que esses
Daussy sã o desprovidos de toda a dignidade para mais uma vez
fazerem tal tentativa, depois de terem fracassado completamente.
Possuem todos uma ambiçã o desmedida. Nã o hesitou nem por um
momento, Huguette?

Oh! com certeza! Em vã o a senhora Daussy me mostrou a sorte


inesperada daquela proposta de casamento, para mim uma Armilly;
em vã o protestou que o irmã o era completamente desinteressado...

O senhor de Armilly disse num tom jocoso:

Oh! o desinteresse do Gonthier! Conhecemo-lo bem! Enfim, a questã o


está arrumada.,. Mas vê, Huguette, como eu tinha razã o em preveni-la
contra a Gerardina? Já conheço as suas manobras e sei como é há bil.
Desconfie das suas palavras pérfidas, rodeadas de doçura, e que só
deixam atrá s de si uma impressã o amarga.

Aquelas palavras de Renato recordaram subitamente a Huguette a


frase dita por Gerardina no fim da sua conversa. Era verdade que
daquela insinuaçã o ficara no fundo do coraçã o da jovem uma
inquietaçã o inconfessada..., nã o uma dú vida acerca da lealdade e do
desinteresse de Renato oh! de modo nenhum, pois era um
pensamento insustentá vel!, mas apenas a impressã o de que uma
ligeira ansiedade a tinha invadido.

E de repente sentiu-se dominada por um imperioso desejo de saber....


de conhecer, dos pró prios lá bios de Renato, a verdade sobre os seus
sentimentos para com Vitó ria. Estava certa de que a Gerardina

163 tinha mentido, mas queria ouvi-lo dizer: ”Sim a Vitó ria era capaz
de inspirar uma afeiçã o”.

Disse num tom que tentou tornar indiferente:

139
Penso, com efeito, que nã o devemos acreditar nos ditos da senhora
Daussy. Assim, segundo ela, a pobre Vitó ria seria dotada dum cará cter
insuportá vel, a tal ponto que era impossível ter por ela qualquer
afecto.

O rosto de Renato endureceu um pouco.

Há exagero nisso disse com frieza. Mas nã o se pode negar que a


Vitó ria tinha uma natureza singular, pouco susceptível de atrair
simpatias.

A dos estranhos, talvez,., Mas os seus parentes, que a conheciam bem,


o pró prio primo, deviam amá -la apesar de tudo.

Falava com uma calma que lhe custava um grande esforço, pois o
coraçã o estava cerrado por uma grande angú stia.

Renato disse em voz um pouco trémula;

Se tivesse conhecido aquela de quem fala, Huguette, nã o perguntaria


isso. Precisamente porque pudemos apreciar o orgulho
incomensurá vel, a mistura de fraqueza e violência, os caprichos sem
nome e as faltas de delicadeza, escapamos à fascinaçã o que a Vitó ria
exercia por vezes nos estranhos. Conhecíamo-la muito bem e pelo
meu lado...

A jovem, sem ter consciência, fitava nele as pupilas azuis dilatadas


pela ansiedade. Esperava, sem soltar um sopro, a palavra que ia sair
dos lá bios de Renato.

Que teria lido ele nesses olhos em que sabia ver tã o bem a alma pura e
recta de Huguette? Talvez

164 angú stia, dú vida, esperança que dividiam o coraçã o da jovem... De


qualquer modo o seu rosto empalideceu um pouco e, durante um
segundo, o olhar exprimiu uma surpresa dolorosa. Depois,

140
instantaneamente, tornou-se frio, quase duro, enquanto se endireitava
num movimento altivo, continuando com voz nítida e incisiva:

Pelo meu lado, nã o senti pela minha prima senã o uma antipatia
profunda.

Huguette empalideceu um pouco. Silenciosamente dirigiu-se para a


mesa de trabalho, enquanto o senhor de Armilly, fechando
bruscamente o armá rio, retomou o seu lugar na escrivaninha.

Durante uma meia hora, Huguette permaneceu com a caneta no ar, em


frente duma carta começada para a superiora do convento. Estava
absolutamente incapaz de escrever uma linha, de tal modo no seu
espírito excitado se amontoavam pensamentos confusos, dolorosos e
desolados.

Gerardina teria entã o dito a verdade? Entã o... ele, o leal Renato,
desejara casar unicamente por causa da sua fortuna com uma mulher
por quem acabava ele pró prio de o confessar nã o podia sentir nem
uma banal afeiçã o?

A alma delicada de Huguette debatia-se sob a garra duma dilacerante


angú stia, Nã o passaria dum hipó crita aquele homem a quem ela se
confiava sem reserva, que estimava acima de todos pela elevaçã o dos
seus sentimentos e absoluta rectidã o?

Como tantos outros, ter-se-ia vergonhosamente sacrificado ao velo de


oiro? Entã o poder-se-ia acreditar nos seus indícios de retorno à
religiã o? Agora

165 acompanhava regularmente a mã e e as irmã s ao domingo, e


Huguette tinha notado, alguns dias antes, na sua secretá ria, um
volume das obras de Santo Agostinho. Se Gerardina tivesse dito a
verdade ao pretender que desejava apenas conseguir a parte da
herança da pupila? Entã o procuraria naturalmente a sua simpatia,
apresentando as mesmas ideias... E nã o teria ficado satisfeito com a
morte da Vitó ria? Nã o teria...

141
Era, no cérebro de Huguette um caos de obscuros pensamentos,
apenas esboçados, logo afastados com horror. Mantinha a fronte
apoiada nas duas mã os e as têmporas batiam-lhe com violência sob o
império da terrível emoçã o que a dominava.

Meu Deus, meu Deus, nã o é possível! dizia ela para consigo. Nã o


poderia enganar até esse ponto... Nã o, nã o acredito, nã o acreditarei
jamais...

E pouco a pouco a calma renascia nela com a estranha certeza de que


Renato nã o a tinha desmerecido. Devia ter tido uma razã o... mas qual?
Nã o a podia adivinhar mas, certamente aquele homem, que suportava
tã o pacientemente uma existência medíocre e triste como era a sua,
jamais teria tido a ideia de cometer o acto que lhe atribuía Gerardina.

E, de resto, aquela histó ria do noivado seria verdadeira? Os Daussy


mal lhe tinham falado nisso, e havia muitas razõ es para desconfiar das
suas asserçõ es. Era singular que a senhora de Armilly e suas filhas
jamais tivessem feito qualquer alusã o a esse acontecimento, nas
ocasiõ es, assaz raras, é verdade, em que tinham sido levadas a falar de
Vitó ria. Devia ser uma nova fantasia da maldosa imaginaçã o da

166senhora Da ussy, e conviria informar-se junto de Silvina ou de


Clotilde, as mais faladoras das quatro irmã s. Mas fosse como fosse,
Huguette repetia a si pró pria que conservaria por Renato toda a sua
estima pois nada a poderia persuadir de que tivesse sido indigno.

Dirigia o olhar na sua direcçã o. Apoiava a mã o direita na testa de


perfil severo e os olhos fitavam o livro aberto na sua frente. A fronte
parecia profundamente crispada. Huguette pensou que teria sentido
um alívio imenso se se fosse lançar de joelhos na sua frente, confessar-
lhe as suas suspeitas do minuto precedente e gritar-lhe que
continuava a ser a seus olhos um modelo de honra e delicadeza. Mas a
timidez reteve-a e também um temor vago de lhe dar a conhecer que
tinha duvidado, mesmo por um momento.

142
Decididamente, era-lhe impossível continuar naquele dia a carta. A
jovem pousou a caneta e ergueu-se. Renato nã o fez qualquer
movimento, nem pareceu aperceber-se de que ela passava na sua
frente para sair do escritó rio. Sem dú vida, o seu trabalho absorvia-o
profundamente.

Huguette entrou na sala dos antepassados. Silvina estava ali, de pé,


com a fronte apoiada no vidro. Pareceu singular à prima ver assim
inactiva e sonhadora a corajosa jovem, que nã o se permitia de
ordiná rio um instante de meditaçã o.

Voltou-se um pouco ao ouvir entrar Huguette e mostrou um rosto


pá lido, com os olhos cheios duma misteriosa tristeza.

Que horas sã o, Huguette? perguntou numa voz um pouco fatigada.

167Cerca de seis, creio... Está cansada, Silvina?

Sim, um pouco.... moralmente, sobretudo. Acabo de sustentar uma luta


bastante rude, mas enfim, tudo acabou. Era arrastada por um sonho...
Mas tudo acabou! repetiu ela num tom de alívio,, onde vibrava um
surdo sofrimento.

Num gesto espontâ neo, Huguette agarrou-lhe as mã os.

Minha pobre Silvina! murmurou ternamente.

Uma emoçã o dolorosa alterou a bela fisionomia de Silvina. Disse num


tom baixo, alquebrado:

Sim, pobre Silvina, que tinha esquecido que com o nome que tem, nã o
pode aspirar à felicidade!

Huguette disse gravemente, indicando o céu:

Nã o, Silvina, nã o à felicidade terrena, mas a uma outra...

143
A essa até uma Armilly pode aspirar. E é imorredoira, Trabalharei
para a conquistar, Huguette. Mas felizmente acordei a tempo,.,

A prima nã o estava tã o segura disso, Havia nesse momento no olhar


de Silvina alguma coisa da melancolia desencorajante que permanecia
no de  ngela, O sonho, sem o saber, nã o teria já tomado tal império
que nã o poderia ser abandonado sem que deixasse no seu coraçã o
uma ferida incurá vel?

Durante alguns momentos fez-se silêncio entre as duas primas


igualmente presas de obsediantes pensamentos. Por fim, Huguette,
erguendo a cabeça, perguntou numa voz um pouco trémula:

Silvina, a senhora Da ussy disse-me a verdade”

168ao contar-me que o Renato tinha estado noivo da Vitó ria?

Silvina franzia um pouco as sobrancelhas.

Essa GErardina é uma insuportá vel faladora! É a verdade, sim. Jamais


falamos nisso porque o noivado foi muito curto apenas alguns dias e
constituiu para todos, mas principalmente para o Renato, uma prova
muito penosa.

Huguette perguntou, esforçando-se por falar tranquilamente:

Mas nada o forçou a esse noivado?

Tinha que ser.... a menos que a Vitó ria recusasse. Sã o penosas


recordaçõ es, Huguette, e o meu pobre irmã o conheceu duros
momentos.

Parecia desejosa de nã o continuar a falar sobre esse assunto. Mas


Huguette sabia agora que aquele projecto de casamento tinha na
realidade existido, e que Renato tinha sido levado a ele por qualquer
misteriosa obrigaçã o. No entanto, mais do que nunca, a sua confiança

144
nele arreigava-se, e a dú vida atroz era afastada para longe, sem deixar
traços no coraçã o de Huguette.

XIV

Foi para Huguette uma indizível e dolorosa surpresa ver a mudança


repentina do primo a seu respeito. Desde essa mesma tarde,
encontrou-se na frente dum tutor correcto e frio, tal como jamais o
tinha conhecido. Sem dú vida tinha ficado ferido com a interrogaçã o da
pupila... Ou entã o tivera qualquer intuiçã o da suspeita que aflorara
por um instante o espírito de Huguette e ficara melindrado..

169 Aquele pensamento angustiava o coraçã o da jovem, Teria


preferido que o primo lhe fizesse amargas reprimendas a fim de lhe
poder pedir o seu perdã o e gritarlhe toda a sua estima, toda a sua fé
na sua absoluta lealdade.

Mas Renato nada lhe dissera. Continuava a dirigir os estudos de


Huguette, a testemunhar-lhe uma grave solicitude, mas as suas
relaçõ es tornaram-se distantes, perderam aquela cordialidade e
afectuosa intimidade que tinham até entã o aumentado todos os dias.
Um muro de frieza parecia ter-se erguido entre os dois, e Huguette,
acabrunhada pela fria reserva do senhor de Armilly, nada ousava
tentar para vencer essa misteriosa barreira.

Pensava com estranha amargura que nã o lhe perdoaria nunca aquela


ferida, infligida, bem involuntariamente, à sua altivez de homem, que
o seu afecto por ele era bem fraco, pois bastara tã o pouco para
transformar o parente atento e amá vel numa pessoa duma glacial
cortesia. Por que nã o lhe pedia qualquer explicaçã o? Por que nã o lhas
daria ele pró prio? Apesar de tudo, as aparências eram contra ele e era
precisa a grande confiança que tinha nele para, a despeito de tudo, lhe
prestar justiça perante as insinuaçõ es de Gerardina,

Teve de orar muito e violentar-se até para conservar a sua alegria, que
muitas vezes era aparente. No fundo, sofria singularmente com aquela
separaçã o moral que pouco se apercebia, e Myols parecia-lhe ter
perdido o encanto da grave tranquilidade que a tinha rodeado desde
os primeiros dias da sua vida ali.

145
170 Continuava a ir frequentes vezes ao Refú gio, tanto mais que
Gonthier nã o aparecia e a pró pria Gerardina só lá ia raras vezes.
Silvina acompanhava apenas de longe em longe a prima. Nã o lhe
faltavam bons pretextos a apresentar quando Lauriana lhe fazia
amigá veis repreensõ es, e estava sempre muito ocupada quando das
visitas dos Delbeanme, principalmente quando o advogado
acompanhava a mã e e a irmã . Mas nã o imitava  ngela, pois reagia
corajosamente e trabalhava sem descanso a fim de vencer o seu
sofrimento.

E na verdade as ocupaçõ es nã o faltavam em Myols, pois a Aglaé estava


agora impossibilitada de trabalhar, e o Vítor pouco mais valia, pois
deixava o jardim ao abandono. Apó s difíceis investigaçõ es, o Sorlin
tinha conseguido arranjar aos seus patrõ es um rapaz, originá rio da
Suíça, para ajudante de jardineiro. Mas no interior da vasta moradia,
todo o trabalho recaía sobre as jovens, e até Berta se via obrigada a
fazê-lo.

Em meados de Julho, as senhoras Delbeanme executaram um projecto


meditado há muitos meses já . Tratava-se duma peregrinaçã o a Myans,
à célebre Virgem negra, adorada por todos os saboianos. Huguette, a
seu insistente pedido, decidiu-se a acompanhá -los e no ú ltimo
momento Rosy afirmou que as acompanharia também.

Evidentemente a viú va, indiferente em matéria religiosa, fora apenas


levada pelo desejo duma distracçã o.

171 Renato nã o tinha nada a objectar, visto tratar-se da companhia


das senhoras Delbeaume e de Huguette. No entanto, a sua fisionomia
ficou preocupada e descontente quando a prima, Rosy e o Luís se
despediram dos habitantes de Myols para subir para o carro onde as
esperavam as suas companheiras.

A viagem foi encantadora. Huguette orou com fervor por todos os


parentes, mas mais frequentemente que qualquer outro, um nome lhe
vinha ao pensa”mento e suplicou à Virgem de Myans que fizesse
cessar a estranha desinteligéncia que parecia ter-se levantado entre
ela e o primo.

146
Rosy, apó s as primeiras impressõ es, transbordante de alegria, tornou-
se em breve aborrecida. Declarou Myans muito feia, as peregrinaçõ es
uma coisa fastidiosa e só readquiriu a sua alegria quando chegaram a
Annecy, onde os viajantes deviam passar dois dias. Enquanto as
senhoras Delbeaume foram fazer uma visita a uma família conhecida,
arrastou Huguette para um armazém de novidades onde adquiria
grande profusã o de tecidos, que fizeram um grande volume.

Veja, Huguette, amei sempre tanto o luxo e o vestuá rio, sob todas as
formas Antes do meu casamento, era quase pobre. Quando casei com
Augusto, os Armilly tinham ainda alguns bens, mas em breve
perderam quase tudo... E vivia lá em casa essa Vitó ria, que fazia gala
em mostrar a sua riqueza, na intençã o, penso eu, de nos humilhar a
todos, pois detestava-nos. Creio que só amava o Renato... e mesmo
esse, duvidei-o muitas vezes ao

172 vê-la tã o insubmissa, tã o orgulhosa a seu respeito. Oh! como ela


me fez sofrer! murmurou a viuva com um rancor surdo. Dominava-me
com o seu luxo, zombava de mim, dava-me a esmola dos vestidos
pouco usados de que se cansava. Nã o viu os seus aposentos, em
Myols?

Huguette fez um gesto negativo. Sentia-se um pouco perturbada


perante a revelaçã o dum rancor insuspeitado até entã o naquela
mulher frívola.

Sã o uma maravilha! disse Rosy num tom invejoso. Teve a esse


respeito uma demorada disputa com o Renato, que queria obrigá -la a
uma maior simplicidade. Mas que fazer contra uma tal fú ria? Ah!
asseguro-lhe que a minha sogra, Renato e as irmã s suportaram muito!
Sem a sua enorme fortuna, nã o teriam admitido nem um quarto das
indelicadezas que lhes fazia. Aliá s, vê como sã o severos comigo!
acrescentou num tom de lamentaçã o. Nã o me deixam fazer a menor
fantasia, querem sobretudo afastar-me do meu Luís... Mas é meu filho,
e nã o o poderã o fazer! Nã o sabe até que ponto gosto dele, Huguette!
Nã o calcula o que já fiz por ele!

147
Interrompeu-se, muito trémula, e o rosto alterou-se-lhe de repente. O
olhar fixou-se sobre o pequeno que caminhava na frente das duas,
num passo fatigado, e lançando olhares discretos para as lojas.
Murmurou ardentemente:

Meu pequeno Luís, quero que sejas muito feliz, Um dia, agradecerá s à
tua mã e... Huguette, formei o plano de o subtrair inteiramente à
influência dos Armilly. Sã o muito rígidos, nã o compreendem. A
Gerardina aprova-me... isto é, creio-o, pois

173 em certas ocasiõ es parece mudar de opiniã o. Mas pouco me


importa! Levarei o Luís, irei para o estrangeiro, onde o seu nome é
desconhecido e poderá ser considerado honrado. E será rico... Depois,
o tio e as tias, segundo tudo leva a crer, nã o se casarã o, e toda a
fortuna da Vitó ria será para ele. Nã o posso acreditar, na verdade, que
o Renato e as irmã s tenham abandonado, distribuído por obras de
caridade uma tal fortuna.

Huguette fitou-a com estupefacçã o. As faces daquela mulher,


habitualmente pá lidas, cobriam-se de rubor, os olhos brilhavam numa
espécie de febre, e falava com uma animaçã o extrema. O seu insensato
amor maternal, o seu rancor para com a família do marido, uma
ardente cobiça ao mencionar a fortuna que devia ser de Luís, tais eram
os sentimentos que vibravam nesse momento na voz de Rosemonde e
transformavam a sua fisionomia.

Vejamos, Rosy, nã o seja injusta! disse Huguette num tom de


reprimenda. O Renato e as minhas primas amam muito o Luís, sabe-o
bem...

Rosy exclamou em ar de triunfo:

Mas nã o tanto como eu!.... oh! nã o tanto como eu! Nã o teriam feito o
que eu fiz por ele!

148
Chegavam à porta do hotel e Rosy, muito excitada, entrou no quarto
com Luís, enquanto Huguette foi encontrar-se com as senhoras
Delbeaume para visitar a pitoresca cidade de Annecy e orar na capela
da Visitaçã o, diante dos restos mortais de S. Francisco de Sales e de
Sã o Chantal,

A alegria febril da jovem senhora de Armilly nã o tinha diminuído


quando regressaram a Myols.

174Ao vê-la entrar no escritó rio, Silvina nã o pô de deixar de dizer:

Tem um ar bem alegre, Rosy! A peregrinaçã o agradou-lhe? Muito,


muito... isto é, a viagem, Silvina, nã o confundamos. Fiz as minhas
compras em Annecy. Veja, tudo isto!

E como para espicaçar o cunhado, que a ouvia impassível, desfez os


embrulhos desdobrou os tecidos caros e declarou que tinha
encomendado em Annecy muitos vestidos.

Silvina encolheu os ombros.

Que fará de tudo isso, minha querida? Para a sociedade que tem aqui!

Rosy endireitou-se, com um sorriso de desafio a deixar entrever os


dentes afilados.

Mas nã o ficarei aqui eternamente, em Myols, pode estar certa disso!


Realmente nã o se vive aqui Há muito tempo que digo que vou partir e
retardei sempre com a esperança de obter o vosso consentimento,
mas enfim, a paciência tem limites, e vou...

O senhor de Armilly interrompeu-a friamente;

Vai agora para os seus aposentos, Rosemonde. Vejo que sente


necessidade de repouso. Esta viagem parece tê-la excitado bastante.

149
A viú va exclamou com febril animaçã o: Sim, diz bem! Animou-me a
romper com uma vida estú pida, insuportá vel, e procurar noutro sítio
um pouco daquela felicidade que nã o tenho aqui. Há muito que devia
ter abandonado esta moradia em que a minha saú de se arruina,

Renato disse lentamente, fitando-a bem nos olhos:

175 Tornou-se lívida, os lá bios tremeram-lhe, os olhos dilatados


exprimiram um terror indizível. Vacilou e caiu, desmaiada.

Berta e Silvina, que estavam atrá s dela, receberam-na nos braços. Mas
Renato levantou-a e levou-a até ao quarto, onde Silvina, ajudada por
Huguette, lhe prestou os seus cuidados.

Está muito fatigada disse Silvina, esfregando as têmporas da cunhada.


Parecia muito enervado ao chegar. Decididamente o seu feitio torna-
se cada vez mais quesilento e creio que este pobre Renato dificilmente
conseguirá dominá -la.

Julga que executará o seu projecto de partida, Silvina?

Duvido... Toma muitas resoluçõ es, mas é incapaz de as realizar. É uma


pobre cabeça...

Interrompeu-se, pois a criada de quarto, prevenida por Berta, acabava


de entrar. Rosy voltou a si! mas à medida que lhe vinham as ideias, um
terror cada vez maior revelava-se na sua fisionomia alterada.

Gerardina!.,. digam à Gerardina para cá vir! disse ela por fim numa voz
lamurienta e imperiosa.

Silvina enrugou as sobrancelhas.

Mas, minha querida, julga que a Gerardina é indispensá vel? Parece


que somos capazes de a tratar...

Rosy interrompeu-a com có lera:

150
Nã o, quero a Gerardina! Nã o pode substituir a Gerardina, a minha
ú nica amiga.,, devo-lhe tanto!

176E agitava-se muito, de modo que para a apaziguar, Silvina deu


ordem a Melâ nia para ir à Casa Vermelha. Depois afastou-se para ir
preparar um calmante, e Huguette ficou sozinha a seu lado.

Rosy fechou os olhos, para logo os abrir, e a mã o gelada que Huguette


tinha entre as suas contraiu-se febrilmente.

Nã o gostam da Gerardina.,. Notou que me queriam impedir de a ver!


disse com irritaçã o. Pobre amiga, sofreu no entanto muito por causa
deles! Desejava tanto ser a esposa do Renato!

Huguette exclamou:

Ela!

É verdade. E por que nã o? É notá vel sob todos os aspectos. Tinha vinte
anos, e o Renato vinte e três, quando Mateus Daussy, que acabava de
enriquecer nã o sei em que negó cio, insinuou ao meu cunhado que a
filha estava disposta a tornar-se senhora de Armilly. Mas o orgulhoso
Renato mostrou uma surpresa desdenhosa e embora com toda a
delicadeza, deu uma recusa humilhante ao senhor Daussy... E admira a
dignidade da Gerardina! Depois dum tal insulto, continuou a
frequentar a casa dos Armilly, cheios de preconceitos, nã o os
abandonou nas horas da desgraça e ela, que tinha tantas razõ es para
se alegrar com as suas humilhaçõ es, mostrou-se sempre para com eles
um modelo de delicadeza e respeito, sem jamais lhes fazer sentir a
superioridade que lhe dava o seu nome plebeu, mas honesto.,,

Está enganada, Rosy, atribui a Gerardina sentimentos mais delicados


do que os que tem na realidade.

177

151
A senhora Dausy pareceu-me, pelo contrá rio, regosijar-se com as
infelicidades dos Armilly, e duvido muito que lhes tenha perdoado. No
entanto, segundo diz, ela pró pria procurou essa mortificaçã o de amor-
pró prio... À menos que o Renato nã o lhe desse ocasiã o para pensar
que a desejava.,.

Oh, de modo nenhum! Testemunhava entã o pela sua companheira de


infâ ncia uma certa consideraçã o, pois era inteligente e distinta, mas
mostrou-se sempre para com ela bastante frio e reservado como
agora. Ela, no entanto, nã o tinha outro desejo que nã o fosse o tornar-
se sua mulher, e tentou... Mas nã o conhecia o orgulho de Renato. Casar
com a neta do seu antigo feitor!... Pobre Gerardina!

Falava febrilmente e o seu rosto pá lido enrubescia.

Fique sossegada, Rosy, peço-lhe!

Nã o, faz-me bem falar. Gosto de estar com a Gerardina, tã o dedicada.


Só ela me compreende, pois Nã o tem os escrú pulos mesquinhos dos
Armilly; a sua inteligência é grande e o seu coraçã o afectuoso... Mas
ela nã o vem! acrescentou numa lamú ria.

Melâ nia deve ter agora chegado à Casa Vermelha.

As mã os pequenas da viú va comprimiam um lenço.

Queria vê-la! Tenho medo! murmurou toda trémula.

Silvina entrou, trazendo um chá de tília, e Huguette afastou-se. Foi


tirar a roupa de viagem e desceu à sala dos antepassados, para se
juntar à senhora de Armilly, a Clotilde e a  ngela.

178Nã o sei o que teve a Rosy disse a senhora de Armilly. Tem andado
tã o nervosa como quando da morte da Vitó ria, e como entã o, só a
presença da Gerardina a pode satisfazer e acalmar.

152
Ela está bastante doente neste momento, Â ngela. Na verdade, a
Gerardina mostrou-se dedicada para com ela, nã o a abandonando nem
de dia nem de noite e sem qualquer enfermeira, pois a Rosy nã o a
queria.

Huguette aproximou-se duma janela e ergueu a cortina. Lá adiante


apareceram Gerardina e Melâ nia. A senhora Daussy caminhava
apressadamente, com um comprido casaco de tecido cor de marfim.
Tinha incontestavelmente um aspecto distinto, e Huguette pensou que
Renato e ela poderiam fazer um par soberbo.

Mas o senhor de Armilly tinha recusado aquela aliança que lhe fora
oferecida pelo antigo servidor da sua família. E Huguette nã o pensava
que naquela nã o devia ter sido levado pelo orgulho. Compreendera
depressa que ele nunca sentira por Gerardina mais que um instintivo
afastamento, que tinha aumentado no decorrer dos anos e, tal como o
conhecia a prima, parecia fora de dú vida que nada o podia atrair para
essa mulher artificial e descrente.

Muitos factos se esclareceram nessa altura para a jovem.


Compreendeu a animosidade contida nas palavras agri-doces de
Mateus Daussy, o rancor, as maldosas insinuaçõ es encobertas na
amabilidade da neta. Sabia agora a razã o por que odiava as Armilly,
pois, há muito tempo, nã o duvidava que esse sentimento dominava a
alma malévola da senhora

179Daussy, e também que as ”provaçõ es dos seus amigos” lhe davam


um delicioso prazer.

XV

Rosy recompô s-se rapidamente) mas obstinou-se em nã o sair do


quarto. Por uma palavra que lhe escapou, Huguette compreendeu que
nã o queria estar mais na presença de Renato. Provavelmente era mais
uma ideia que dominava a jovem senhora, como o era a inquietaçã o
bizarra que o seu olhar revelava por vezes, principalmente quando
Gerardina se afastava.

153
Renato aceitou com tranquilo desdém mais aquele capricho da sua
cunhada, mas exigiu formalmente que o Luís continuasse a vir receber
as suas liçõ es, a aparecer à s refeiçõ es e a dar todos os dias um passeio
pelo jardim.

Foi uma coisa difícil de obter, e Rosy teve nessa altura um acesso de
có lera, seguido duma longa crise de nervos. Gerardina interpô s-se e,
apó s ter estado fechada uma hora com a Rosy, veio declarar ao senhor
de Armilly que Rosy se submetia.

Mas a partir dessa ocasiã o quando vinha com uma das primas passar
todos os dias um momento com a viú va, notou que esta parecia cada
vez sentir mais animosidade contra o cunhado, de que nã o podia
sequer pronunciar o nome sem que o seu rosto se contraísse. Existia
nela agora, quase constantemente, uma espécie de ansiedade, os olhos
exprimiam um desejo latente, mas apaixonado, os gestos traíam uma
pressa febril.

Aqueles sintomas inquietavam e surpreendiam

180 as meninas de Armilly, que temiam ver invadido pela loucura


aquele fraco cérebro.

Os Delbeanme tinham já regressado a Vousset, Myols nã o via agora a


sua austeridade calma perturbada pelas gargalhadas de Lauriana e a
alegria comunicativa do seu irmã o. Huguette entregava-se febrilmente
ao trabalho, para nele encontrar um derivativo à tristeza secreta que
lhe inspirava a mudança de atitude do primo a seu respeito. Na
companhia de Clotilde e de Silvina ia frequentemente à igreja e
entregava-se a ardentes oraçõ es. Pedia para Renato a prá tica da fé
renovadora, solicitava a transformaçã o daquele cará cter um pouco
orgulhoso, oferecendo o seu sofrimento para obter aquela graça sem
preço, e suportar sempre, se fosse necessá rio, o pesado fardo da frieza
de Renato

Pelo fim de Setembro, o senhor de Armilly anunciou a sua intençã o de


ir por dois ou três dias a Paris, a fim de conversar com o editor sobre a

154
publicaçã o da obra que acabava de terminar. Gerardina, vinda dos
aposentos de Rosy, encontrava-se no escritó rio no momento em que
falou desse projecto a sua mã e. Interrompendo a conversa que
mantinha com  ngela e Clotilde, a senhora Daussy disse num tom
aprovativo:

Isso distraí-lo-á um pouco, Renato. No seu lugar, passaria o inverno


em Paris.

O ar de Myols é mais sã o para a alma e para o corpo. Aliá s a minha


mã e e irmã s nã o querem deixar a nossa velha casa...

Foi interrompido por Berta, que trazia o correio”. Estendeu a


Huguette um pequeno envelope cor-de-rosa, no qual se via a letra de
Lauriana.

181 A jovem abriu-o e soltou uma exclamaçã o de surpresa desolada à s


primeiras linhas. Silvina perguntou com interesse:

Que é?

A Lauriana informa-me de que o irmã o acaba de ser nomeado para


uma pequena vila de Leste, um buraco bom para se morrer de tristeza.
Está desolada, a pobre amiga!

Compreendo! murmurou Silvina, que empalidecera.

Gerardina disse, batendo na testa:

Ah! É verdade, já me tinha esquecido de lhes dar a notícia! Soube-a


ontem... É de se ficar contrariado, na verdade... Dizem que o senhor
Delbeaume apenas conseguira maus resultados, e que a sua atitude
desgostou bastante os superiores.

155
Por nos terem visitado frequentemente, nã o é assim? interrompeu
Renato em tom seco,

Gerardina disse, perturbada:

Nã o posso dizer o contrá rio! Souberam que se visitaram durante todo


este verã o...

Inclinou-se um pouco, estendendo-lhe as mã os. Mas Huguette pareceu


nã o ver aquele movimento. A piedade daquela mulher sabia-o bem era
falsa. Notava uma maldosa satisfaçã o no seu tom amá vel e meigo.

A senhora Daussy ergueu-se e perguntou, envolvendo-se na capa de


renda que pusera para ir para essa:

Entã o, Renato, parte dentro de três ou quatro dias?

Provavelmente.

182 Encontrará , talvez, o Gonthier na cidade. Propuseram-lhe um


negó cio que promete soberbos lucros e sem que a honestidade seja
atingida. Está quase tudo decidido, falta apenas o contrato, O meu
irmã o está a caminho da fortuna. Agora vai pensar sériamente em
casar-se... Decididamente, a  dmée de Avrets nã o lhe convirá
acrescentou com desdém. Encontrará muito melhor.

Renato ripostou num tom mordente:

Oh! nã o tenha dú vida! Passa-se por cima de tanta coisa por um pouco
de dinheiro!

Um clarã o de maldade iluminou os olhos de Gerardina, que disse


numa voz escarninha:

Nã o se pode negar, meu Deus essa triste paixã o pelo dinheiro, custe o
que custar, e por todos os meios. Sã o raros aqueles que, como o
Gonthier, edificaram o seu futuro nas bases do pró prio trabalho e

156
numa existência séria e digna. Agora o meu irmã o, cuja delicadeza
parece até excessiva, pode casar com uma mulher rica sem que se
arrisque a ouvir dizer que se casa por dinheiro... o que jamais teria
feito, na realidade!

Oh! acredita! disse o senhor de Armilly, que continuava impassível,


brincando negligentemente com a caneta. Pareceu-me no entanto
ouvir dizer e até constatei por mim pró prio que o senhor Daussy nã o
desdenhava a classe das herdeiras.

Durante uns segundos, os lá bios de Gerardina crisparam-se. Mas


ripostou num tom indignado:

Jamais, Renato, jamais! Que pensamento insultante para o meu nobre


Gonthier! Pô de talvez desejar a herdeira e, para obedecer ao
imperativo do

183 seu coraçã o, passar por cima das murmuraçõ es. Mas a herança,
nunca!

Renato disse com ironia:

Mas teria conseguido isso.

Com efeito nã o a teria lançado fora. Mas. esteja certa de que o


Gonthier nã o cometeria a indignidade de casar pelo dinheiro com uma
mulher que nã o poderia amar.

Um desafio vibrava nas palavras de Gerardina, e os seus olhos


sombrios desafiavam o senhor de Armilly, de que nem um só mú sculo
do rosto se contraiu. Em contrapartida a senhora de Armilly e as filhas
pareciam perturbadas por consternada estupefacçã o.

Renato, impassível, colocou a caneta sobre a secretá ria e voltou-se na


cadeira para ficar bem de frente para a Gerardina.

157
Tem razã o, é uma indignidade disse num tom incisivo e nítido. Repita-
o bem a seu irmã of Gerardina, a fim de que, se encontrar no seu
caminho uma Vitó ria Hardwell, nã o ouse outra vez pedir-lhe a mã o.

Desta vez, Gerardina, apesar da sua presença de espírito, ficou sem


palavras. Renato, considerando certamente o incidente encerrado,
voltou-se e atraiu a si o livro que se pô s a folhear tranquilamente.
Silvina, dotada dum notá vel domínio, apressou-se a desviar a
conversa, dirigindo uma pergunta à mã e. Gerardina cuja testa ficara
sulcada por uma ruga profunda, retirou-se pouco depois para se
dirigir aos aposentos de Rosy, e a calma fez-se de novo no escritó rio
em que Renato e as jovens reiniciaram o trabalho.

184 Mas a calma foi bem depressa interrompida pela entrada de


Sorlin, um pouco aturdido, que balbuciou:

Senhor, é a senhora baronesa de Lérens que deseja ver o senhor, ou a


senhora, ou uma das meninas.,, ou até toda a família, como me disse.

A senhora de Armilly exclamou:

Leontina!... É extraordiná rio! Está na sala, Sorlin?

Está sim, minha senhora,

Podemos recebê-la aqui, minha mã e propô s Renato. A sala, que é


raramente aberta, é muito hú mida.

Silvina ergueu-se para ir ao encontro da visita e, durante esse tempo,


Berta explicou brevemente a Huguette que a senhora Lérens era sua
prima por casamento, viuva do barã o Amadeu de Lérens, ú ltimo
descendente do ramo mais novo dos Armilly. Aquela senhora, amiga
de infâ ncia da senhora de Armilly, mantivera relaçõ es outrora com os
seus parentes de Myols, bastante cordiais. No momento da acusaçã o
de Renato, escreveu ao seu jovem primo afirmando que nã o
acreditava na sua culpabilidade e multiplicou os seus protestos de
amizade perpétua. Mas pouco a pouco as relaçõ es espaçaram-se, para

158
cessarem completamente ao fim dum ano. Nã o tinha havido qualquer
zanga ou ruptura violenta, mas simplesmente uma separaçã o que
podia permitir todos os eventuais encontros.

Silvina entrou, precedendo uma forte e bem constituída mulher, muito


elegante, cujo rosto largo e corado, o andar, os movimentos
exprimiam uma exuberâ ncia extrema. Num passo apressado,
atravessou

185 o escritó rio e veio estender à senhora de Armilly as duas mã os


enluvadas de branco.

Maria Tereza, sou eu! disse numa voz sonora. Vês-me positivamente
encantada nesta ocasiã o... apesar de, pelo que se passou, nã o ser
muito alegre...

Sem acabar a frase, voltou-se com singular vivacidade e encontrou-se


na frente de Renato, que a.cumprimentou.

Renato, és tu?.,. É s sempre o mesmo... um pouco envelhecido, meu


filho. Que queres, é a vida! Eu nã o envelheço, sinto-me tã o nova como
se tivesse vinte anos... Mas estes ú ltimos acontecimentos vã o dar-me
um golpe fatal.

Tiveste aborrecimentos, Leontina? perguntou a senhora de Armilly,


conseguindo intercalar algumas palavras naquele fluxo de frases.

A senhora de Lérens abafou um gemido, levando as mã os ao rosto.

Aborrecimentos! Maria Teresa, só tive estes na minha vida! Mas


hoje!... Sucumbirei, digo-te eu... Mas nã o reconheço todas as suas
filhas. Há quantos anos?... Sete? Oito?... Ah! esta é a Berta.,. e esta
certamente a  ngela... E esse casamento, minha filha?

Os lá bios de  ngela tremeram um pouco e o olhar velou-se-lhe, mas


sem esperar pela resposta, a loquaz baroneza continuou:

159
Esta é a Clotilde, nã o tenho que me enganar. Mas estã o aqui mais duas.
Qual é a Silvina? Mas nã o tinha cinco filhas, Maria Teresa?

Nã o, esta é Huguette, a filha do Hugo.

186Ah! muito bem, muito bem! Encantadora criança, na verdade!...


Satisfeita por a conhecer, minha prima. Gostava muito do Hugo,
infelizmente conheci-o muito pouco... Um belo homem! Renato é
muito parecido com ele.

Apó s este comprimento, pronunciado num tom perentó rio, a senhora


de Lérens deixou-se cair na cadeira que lhe chegara Renato.

Nã o, obrigada, nada de chá s respondeu ela a um convite da senhora de


Armilly.

Sou inimiga irredutível dessa bebida ridícula, Um grande copo de á gua


fresca, simplesmente. Põ e-lhe uma grande lá grima de rum, algumas
gotas de aguardente, cinco ou seis pedaços de açú car, quatro tiras de
limã o... sim, tudo muito simples. É uma bebida econó mica e
extremamente higiénica. Maria Teresa, recomendo-ta, A minha filha
fá -la na perfeiçã o... Ah! a minha filha.

Lançada por aquela voz sonora, a exclamaçã o patética fez estremecer


todos os Armilly, A baronesa ergueu as mã os num gesto de desespero
e os pequenos olhos negros começaram a rolar nas ó rbitas.

A minha Adélia! gemeu ela. Maria Teresa, Renato, é por vossa causa
que vim ter convosco,

Exclamaram simultaneamente:

Por nossa causa!... Mas que podemos fazer?

160
Tudo... ou talvez nada. Eis o facto. Adélia, que é uma pequena
maravilha de graça e de beleza, foi pedida em casamento pelo conde
de Morisy, um rico proprietá rio da Vandeia, um rapaz encantador, a
todos os títulos. Eu tinha dito que sim imediatamente, a Adélia ainda
mais depressa. Pedro de

187 Morisy ia-lhe dar o anel de noivado, quando soube, nã o sei como,
a triste histó ria que se passou aqui. Acaba de me encontrar,
confessou-me que aquela notícia o tinha desencorajado bastante, que
nã o tem qualquer prazer em se associar a uma família sobre a qual
pesa uma tal suspeita. É muito correcto em matéria de honra e
reputaçã o, aquele rapaz. Em vã o objectei que o nosso parentesco era
afastado, pois notei que estava disposto a romper com o noivado
iniciado... E a minha filha vai perder esse casamento, inesperado para
ela, pois só lhe posso dar um dote modesto! Ainda nã o disse nada à
pobre criança, pois temo desesperá -la, e quis falar convosco antes.
Renato perguntou friamente:

Mas que podemos nó s fazer por si, prima? A senhora de Lérens


ergueu-se bruscamente

e veio colocar a mã o no ombro do senhor de Armilly,

Mas pode esclarecer aquele assunto, Renato É impossível que nã o


existam indícios...

Indícios de quê? perguntou secamente Silvina. Sabe bem que a Vitó ria
se suicidou voluntariamente, nã o sabe?

Mas provem-no! É isso que lhes peço. Façam luz nisso, procurem,
apresentem a sua defesa... Mas, em nome do céu, nã o fiquem inactivos,
curvados ao peso da reprovaçã o pú blica! Pensem que a minha Adélia
perde, por vossa culpa, um soberbo casamento...

Por nossa culpa! replicou a senhora de Armilly num tom amargo.


Acredita pois, Leontina, que se nos fosse possível, por qualquer preço”
eliminar a acusaçã o odiosa que ergueram contra nó s”

161
188nã o o teríamos feito, nó s que sentimos a todos os momentos o seu
peso doloroso? Tem aqui o Renato, as minhas filhas, a pró pria
Huguette que tem de abandonar toda a esperança de futuro. Crê que
deploro o que acontece à Â délia, mas sabes que nã o é nossa a culpa,
Leontina.

Pois sei... Sei perfeitamente que estã o inocentes, sempre o acreditei,


pois de contrá rio estaria eu aqui? Mas enfim, culpados ou nã o, o
resultado é o mesmo para mim. A Â délia nã o se tornará condessa de
Morisy, e ser-lhe-á necessá rio satisfazer-se com qualquer plebeu que
consinta em passar por cima desse vã o escrú pulo para se aliar a uma
menina duma casa nobre. No entanto, nã o usamos o mesmo nome,
cessei todas as relaçõ es convosco, apesar do desgosto que isso me
custou. Nã o queria comprometer-me, para nã o prejudicar o futuro da
minha filha.,. E eis que tudo foi inú til! Vêem-me completamente
abatida.

E deixou cair os braços ao longo do corpo, num gesto de


desfalecimento.

Renato disse gravemente:

Compreendemos que a situaçã o é penosa, prima. No entanto, repito-


lho, nã o podemos fazer nada.

Nã o o posso acreditar! Renato, é impossível! Deve-se provar que a


Vitó ria era uma desequilibrada, capaz, num momento de loucura, de
se matar. Tinha talvez qualquer desgosto... vejamos, a ruptura do seu
noivado.

No rosto de Renato passou uma ligeira contracçã o,

189Nã o era caso para tal resoluçã o disse-lhe num tom glacial. É uma
conjectura romanesca, mas pouco verosímil para um cará cter tã o
indiferente como o de Vitó ria.

Silvina exclamou:

162
Com certeza que nã o nos podemos agarrar a essa ideia. Mas a
natureza da Vitó ria era bastante estranha, e as suas crenças religiosas
tã o vagas, que autorizam a hipó tese dum suicídio.

Mas nã o notaram nada de particular nela há algum tempo?... E na


véspera nã o estava agitada, bizarra?

Muito menos que de costume... Tudo isso foi focado na audiência,


prima disse Renato com impaciência.

A sua fisionomia denotava irritaçã o contida, e os dedos tinham


movimentos maquinais que podiam bem exprimir o desejo de pô r na
rua a visita.

Sim, sim, mas nã o seria mau ver e tornar a ver, explorar as pequenas
coisas, Seja dito, sem ofensa para esses senhores da justiça, as
mulheres têm uma inimitá vel delicadeza para essa espécie de
assuntos. Há em mim o estofo dum juiz de Direito, Renato, nã o
duvide... Entã o, nem a menor prova? Nem uma ligeira esperança para
a minha querida filha?.,, Que vai ser de mim? Oh! este nome de
Armilíy! Nã o me queiram mal, primas, mas aborreço-o!

Afastou num gesto trá gico o copo que lhe apresentava  ngela,

Nã o, nã o posso, minha filha... Sinto a garganta contraída com o


desgosto. Tinha esperança”

190muita esperança ao vir aqui. Repetia a mim pró pria que tínheis
tido qualquer negligência na conduçã o do processo, que eu devia
vencer a vossa apatia e trazer enfim alguma luz a esta obscura
histó ria, E agora nada! Minha prima, que me fita com os seus grandes
olhos azuis, também é uma vítima desta infeliz Vitó ria, pois no fim de
contas é ela a culpada de tudo... Pobre pequena, para ti também o
futuro nã o existe!

Tirou do bolso um pequeno lenço e passeou-o por momentos pelos


olhos.

163
É lamentá vel! Renato, toda a tua família está condenada ao celibato... E
tu pró prio, meu pobre amigo! exclamou ela com ruidosa compaixã o.

Mas instantaneamente bateu na testa, soltando uma exclamaçã o


alegre.

Mas nã o, Renato, nada se opõ e ao vosso casamento! Seria, pelo


contrá rio, encantador e com o mesmo golpe, reparava uma triste
injustiça da sorte. Pois nã o é entristecedor pensar que está pobre
criança, tã o bela, está destinada a envelhecer solitá ria, a tornar-se
numa solteirona como a Berta e a  ngela?... Enquanto que é tã o
simples desposá -la, Renato! Usam o mesmo nome, nã o têm nada que
repreender um ao outro... E o parentesco é tã o afastado que nem
mesmo têm necessidade de dispensa... Estou certa que ainda nã o
tinham tido esta ideia exclamou ela num tom de triunfante jú bilo.

Tem muita imaginaçã o, prima. Agradeço-lhe a sua solicitude, mas


estamos todos resignados ao celibato, e Myols verá envelhecermos,
nã o solitá rios, mas sempre unidos na infelicidade por um fraternal
afecto.

191 A senhora de Lérens teve um gesto de impaciência.

Sempre obstinado, Renato! Conhecia bem já o pequeno de outrora.


Enfim, meu filho, falava para o vosso bem, fazei o que quiserdes...
Minha querida  ngela, chegue-me agora o copo. Pensando melhor,
sinto a garganta extraordinariamente seca.

Bebeu a pequenos golos, continuando a falar, sem ver o cansaço que


os parentes nã o conseguiam dissimular completamente.

Pronto, está tudo feito exclamou, passando o lenço pelos lá bios. Agora,
volto para o meu automó vel... Pois vim de automó vel de Chambéry, e
deixei-o um pouco afastado, na estrada, para que ninguém saiba que
vim aqui. Estou já muito comprometida pelo simples facto de
pertencer à vossa família, meus pobres amigos... Vamos, adeus. Se

164
souberem qualquer novidade, nã o se esqueçam de ma contar...
Morreria de alegria!

Beijou calorosamente a senhora de Armilly, em seguida, todas as


jovens, e apertou fortemente as duas mã os de Renato,

Vou acompanhá -la até ao carro, se o permitir, prima disse Renato.

Nã o, nã o, meu filho! exclamou ela com um gesto de terror. Imagina


que alguém nos via... Até ao gradeamento, se o quiser, meu caro.

Saiu com um ranger de sedas. No momento em que Renato fechava a


porta, Huguette ouvia ainda a voz sonora da visita que dizia:

Nã o tem qualquer desculpa, Renato! Ela é encantadora!

192 Um unâ nime suspiro de alívio saudou a partida da baronesa. A


senhora de Armilly segurou com as duas mã os a cabeça fatigada,
murmurando:

Esta Leontina é uma mulher terrível. Outrora nã o era tã o fatigante...

Silvina exclamou com có lera:

Nã o tem tacto nenhum, nem a mais elementar delicadeza.

Sempre foi um pouco assim.,. Nã o é má , no fundo, mas falta-lhe o bom


senso, e falando sempre sem cessar, aturde-se a si pró pria e de tal
modo que nã o nota aquilo que diz. Sã o por vezes palavras duras de se
ouvir acrescentou com tristeza.

Renato voltou.

No entanto, nã o se ofereceu como de costume a Huguette e a Silvina


para lhes falar de literatura. Mas Huguette tinha dores de cabeça, e
retirou-se dizendo que ia tomar ar para o souto.

165
Quando voltou, a sua fisionomia tinha retomado a habitual expressã o
de serenidade e declarou que a brisa fresca da montanha lhe tinha
dissipado aquele doloroso peso da cabeça. Na realidade, depois de ter
chorado docemente, Huguette tinha orado e estava nisso o segredo
que a fortalecia contra o passageiro desfalecimento.

XVI

Renato partiu três dias depois para Paris. No vestíbulo, apertou a mã o


a Huguette, recomendando-lhe que descansasse, pois parecia muito
fatigada ultimamente.

193

Oh! nã o é nada, o inverno fortificar-me-á disse ela num gesto de


indiferença.

Também o espero, mas em todo o caso desejo que abandone por


algum tempo uma parte dos seus trabalhos. Silvina, nomeio-te
executora das minhas recomendaçõ es a esta jovem rebelde.

Falava num tom sério, com aquela frieza distante que nã o usava para
com Huguette. Cumpria nesse momento com correcçã o o seu dever de
tutor, ocupando-se da saú de da pupila, mas a jovem pensou com
amargura que no fundo se incomodava pouco”

Subiu para o quarto e foi encostar-se à janela. Era uma manhã de


outono, chuvosa e tristonha. Os tons avermelhados da folhagem dos
castanheiros harmonizavam-se bem com o céu pardacento, com os
montículos acastanhados e a á gua cinzenta da torrente, e aqueles
elementos reunidos formavam um conjunto particularmente
melancó lico, cuja influência Huguette nã o estava naquele dia com
disposiçã o para suportar.

Por baixo da janela, ouvia-se um ruído de vozes vindo dos aposentos


de Rosy. A Melâ nia apareceu e sacudiu um vestido de viagem. Parecia
muito alegre,. contra o seu há bito. Voltou-se de repente, perguntando
Entã o o senhor leva tudo? Ela ouvia a resposta e replicou:

166
Evidentemente, a senhora tem o direito... Foi uma ideia bem feliz da
senhora, guardar as malas num canto do quarto, sem o quê nã o sei
como conseguiríamos.

Huguette ouvia, um pouco perplexa. Que significariam

194 aquelas palavras? Rosy, aproveitando a ausência do cunhado, iria


executar o seu projecto de partir?

A jovem ficou perturbada e resolveu ir nessa tarde aos aposentos de


Rosy, para ver se algum indício lhe revelava um projecto desse género.
Nã o pô de realizar essa ideia senã o um pouco tarde, no regresso da
igreja onde tinha ido com Clotilde à festa do Rosá rio. Clotilde
transformara-se, tornando-se muito piedosa, e o seu encantador
cará cter, um pouco transtornado pela provaçã o, revelava-se agora
completamente. Tornara-se a companheira insepará vel de Huguette e,
nesse dia, aceitara de boa mente entrar com ela no quarto da cunhada.

Gerardina estava lá . As duas amigas conversavam com certa


animaçã o, segurando-se pelas mã os.

Interromperam-se bruscamente, ao ver aparecer Huguette com


Clotilde.

Ah! assustaram-me! disse Rosy, com voz trémula.

Lamento-o prima. Mas, tendo encontrado a porta aberta, julgá mos


poder entrar sem nos anunciarmos.

Mais uma negligência desta Melâ nia! exclamou a viú va com uma
irritaçã o que a circunstâ ncia nã o explicava. Enfim, seja bem vinda,
Huguette. É gentil em ter vindo ver-me,

Mas nã o se notava naquele acolhimento a satisfaçã o exuberante que


manifestava habitualmente. Parecia na verdade perturbada, se bem
que alegre, e deixou à Gerardina o cuidado de manter a conversa.

Mas nada indicava preparativos de partida, Nã o

167
195 faltava um só objecto no lindo salã o de Rosy, a viú va estava
vestida como de costume, e Melâ nia, que acabava de trazer o chá ,
tinha pouca aparência de pessoa encarregada de fazer as malas. O Luís
parecia muito calmo. Evidentemente, nã o tinha visto nada nem
ouvido, e Huguette pensou que compreendera mal o sentido das
palavras da criada de quarto.

No entanto, notou que Rosy pareceu sentir uma espécie de alívio ao


ver que Clotilde e ela se erguiam para se retirarem. Mas talvez se
sentisse mais fatigada naquele dia e, de qualquer modo, parecia muito
nervosa,

Gerardina, acompanhando as duas jovens até à porta, perguntou em


voz baixa:

Notaram como a Rosy parece hoje fatigada? Nã o sei bem o que tem.
Meu Deus! temo que os seus nervos estejam esgotados!

Aquelas palavras de Gerardina serenaram um pouco Huguette. Se


Rosy quisesse partir, teria primeiro prevenido a sua confidente. Ora
esta parecia ignorar sinceramente a causa da mudança da viú va. Como
dizia a senhora Daussy, aquela transformaçã o devia ser atribuída a
um estado nervoso deplorá vel.

Huguette nã o pensou mais na suspeita que a tinha invadido nessa


manhã pelo menos até à noite, quando, tendo-se retirado para o
quarto e permanecendo acordada até tarde, ouviu no andar de baixo
idas e vindas desacostumadas. Abriu de vagar a janela e viu que os
aposentos de Rosy estavam ainda iluminados. Talvez Rosy estivesse
adoentada, ou entã o o Luís?

A despeito da fria humidade dessa noite de Outubro,

168
196 Huguette ficou por algum tempo à janela, esperando a todo o
momento ver apagar-se aquela luz. Mas por fim ao sentir que
arrefecia, retirou-se e fechou a janela.

No entanto nã o se deitou. Uma vaga ansiedade obrigava-a a escutar,


perto da porta entreaberta. Repreendia-se por nã o ter dado parte dos
seus temores à s primas. Agora nã o ousava acordá -las por uma ideia
talvez falsa. No entanto nã o seria mais razoá vel?... Se por acaso tivesse
adivinhado a verdade?...

Estremeceu, de repente. Em baixo, ouvia-se o ligeiro ruído da porta a


abrir-se, seguido do ranger de passos lentos nas lajes do vestíbulo.
Nã o tinha mais que duvidar...

Sem reflectir mais, Huguette dirigiu-se para a escada. Estava muito


escuro, mas em baixo a Melâ nia tinha um candeeiro aceso, à claridade
do qual Huguette viu dois vultos sombrios e um terceiro mais
pequeno o Luís provavelmente que atravessavam a soleira da porta, e
um homem que se dirigia para os aposentos de Rosy, sem dú vida para
ir buscar as malas.

À vista de Huguette, Melâ nia soltou um pequeno grito de terror. As


duas mulheres voltaram-se, mas sem perda de tempo saíram.

A criada de quarto agarrou o braço da Huguette e tentou segurá -la.


Mas a jovem repeliu-a e correu para o exterior. No meio do pá tio,
alcançou os dois vultos que se apressavam a empurrar a criança.

Rosy, é odioso! disse ela, colocando a mã o num dos ombros duma


delas, a mais pequena.

197 Oh! diga o que quiser, pouco me importa! replicou ela, num tom
baixo e triunfante. Quero partir, nã o posso viver aqui.,. Aliá s, odeio o
Renato, quero subtrair-lhe o meu filho e tenho esse direito. É meu,
apenas meu...

Nesse caso, para que foge de noite, como uma criminosa?

Ela balbuciou em voz trémula;

169
Criminosa? Nã o, nã o... Mas impedir-me-iam.,. Teriam conseguido
reter-me... E eu quero partir! Venha comigo, emancipar-se-á , adquirirá
a sua liberdade e seremos felizes!... ricas, honradas... Venha, Huguette,
deixe este triste Myoles e Renato, que é um abominá vel tirano.,.

Está a dizer disparates, Rosy. Estou certa de que a sua amiga


Gerardina, se soubesse, a teria desaconselhado desse acto de loucura.

Rosy soltou um riso abafado.

Gerardina!

Mas interrompeu-se e continuou, depois duma breve pausa:

Está decidido, parto, e nada me poderá deter. Vem, Huguette?


Aproveite a ocasiã o para sacudir esse jugo.

A jovem ripostou friamente;

Se é um jugo, acho-o muito leve.

Sentiu de repente uma mã osita que agarrava a sua e uma voz


angustiada a voz de Luís murmurando. Prima Huguette, é verdade que
vamos ter com o tio Renato?

Meu Luisinho!

198 Rosy, cortando a palavra a Huguette, disse com impaciência:

Mas já to repeti vá rias vezes! Vem depressa meu querido, vais ter frio
aqui.

Ao mesmo tempo, agarrou-lhe um braço e quis levá -lo. Mas resistiu,


apertando sempre a mã o de Huguette.

Nã o, já nã o o acredito! disse em tom resoluto. Nã o teríamos partido


sem dizer adeus à avó e à s tias... Nã o acredito nele, mã ezinha.

170
Rosy inclinou-se para a companheira, uma mulher bastante alta, que
continuava silenciosa, bem envolvida num grande capuz. Trocaram
breves palavras, depois do que Rosy agarrou o filho e com uma força
que nã o lhe atribuiriam, libertou-o da mã o de Huguette e levou-o até à
grade, onde se viam os faró is dum automó vel.

Rosy, nã o faça isso! exclamou Huguette. Mas uma mã o forte tapou-lhe


a boca, braços vigorosos lançaram-na por terra e ficou assim quase
dez minutos, meio abafada, cega pelas dobras dum pano que lhe
tinham posto pela cabeça. Era sem dú vida o homem que transportava
as bagagens da fugitiva.

Huguette ouviu por fim fechar o portã o e afastar-se o carro. Sentiu


entã o que a deixavam. Ficou perturbada ainda por algum tempo e
quando conseguiu levantar-se, ouviu um ruído de passos que se
afastavam através do jardim.

Ergueu-se, correu ao castelo e acordou as tias e.as primas. Meu Deus!


era demasiado tarde! Huguette lamentou-se amargamente de ter
guardado para si as

199 suas suspeitas. Mas Silvina afirmou-lhe que nã o teriam


acreditado. Nã o acreditaria nunca que Rosy fosse capaz de tã o
maquiavélicas combinaçõ es, jamais a teria julgado capaz de tentar
sozinha aquela fuga. A senhora de Armilly perguntou:

Mas aquela mulher que a acompanhava?,.,

Era a Gerardina respondeu, sem hesitar,, Huguette, Senti o perfume de


junquilhos que impregna todo o seu vestuá rio.

Berta declarou:

Só pode ser a Gerardina, na verdade, e isto dá -nos a chave de muitas


coisas.

Foi ela quem combinou a partida da Rosy, que a ajudou e encorajou


até ao ú ltimo momento.

171
A senhora de Armilly objectou:

No entanto sempre pareceu desaprovar aquela ideia,,,

Na nossa frente, mã e... Ainda alimenta muitas ilusõ es a seu respeito.


As minhas eram já muito diminutas e sempre suspeitei que essa
mulher nos odiava.

Oh! minha filha!

A Berta tem razã o disse Silvina. A Gerardina nunca nos perdoou a


humilhaçã o infligida ao irmã o e a si pró pria, por sua culpa. Creio que
indispunha a Rosy contra nó s e no entanto nã o tinha necessidade
disso!... Mas está transtornada, minha querida Huguette, sinto-a
gelada! Vá meter-se na cama, que lhe levarei qualquer coisa quente,

Huguette disse com angú stia:

Mas que poderemos fazer? O pobre Luís nã o queria partir...

200Pobre pequeno! murmurou, chorando, Â ngela, que tinha afeiçã o


particular pelo sobrinho.

Para já , nã o podemos fazer nada disse a senhora de Armilly. Amanhã


cedo, enviaremos um telegrama a Renato. Só ele pode agir. Mas para
que lado devemos dirigir as nossas buscas?

Silvina propô s:

Precisamos de ver os seus aposentos para tentar descobrir qualquer


indício. Depois, se tomou o comboio em Vonsset, será talvez possível
conseguir ali alguma indicaçã o precisa,

Mas nã o descobriram nada no quarto abandonado, onde reinava a


desordem duma partida precipitada. A viú va tinha esvaziado os

172
armá rios, nã o deixara sequer as bugigangas nem os elegantes vestidos
que faziam a sua alegria; apenas pedaços de tule, restos de sedas,
objectos partidos ou estragados ficaram espalhados no soalho, nos
mó veis, ou permaneciam nas gavetas vazias e nas prateleiras.

Huguette esmagou com os pés a locomotiva dum pequeno caminho de


ferro. As lá grimas vieram-lhe aos olhos ao pensar na débil criança que
a mã e tivera de levar à força do lugar onde tinha nascido, daquele
Myols de que tanto gostava.

E Renato que tanto queria ao sobrinho, que velava por ele com
tamanha solicitude, para o subtrair tanto quanto possível à influência
nefasta da mã e! Aquele pensamento do desgosto do tutor pareceu a
Huguette demasiado penoso e sugeriu-lhe a resoluçã o que pô s em
prá tica no dia seguinte.

À s nove horas saiu de Myols e dirigiu-se ao souto. Queria ver


Gerardina, forçá -la a descobrir-se,.

201tentar arrancar-lhe o segredo da obstinaçã o da jovem viú va. Mas


talvez a senhora Daussy tivesse ido ter com a amiga. Era uma coisa
plausível e, ao bater à porta da Casa Vermelha, Huguette esperava
ouvir a resposta: ”A senhora está ausente”.

Mas nã o, Gerardina estava lá , e a criada introduziu Huguette na linda


sala de jantar em que o senhor Daussy e a neta tomavam o almoço.
Huguette dirigiu-se a Gerardina, e disse em voz opressa:

Minha senhora, onde está a Rosy?

Ao ver aparecer a jovem, Mateus Daussy nã o pô de esconder um gesto


de surpresa. Mas Gerardina nã o fez um movimento. Ergueu para
Huguette os olhos espantados.

O quê? Que quer dizer, querida Huguette? Rosy está em Myols...

173
Huguette exclamou com indignaçã o É inú til fingir! Foi a senhora quem
tudo dirigiu, estava a seu lado quando da sua partida...

Gerardina soltou uma exclamaçã o:

Rosy partiu!

O seu aspecto estupefacto teria enganado uma pessoa menos segura


do que se passara do que Huguette.

Que cabeça desequilibrada! E julgava eu tê-la dissuadido desse


projecto!... Mas nã o compreendo nada do que disse!

Oh! compreende-me, sim! Esta noite, a senhora impediu-me de gritar,


de chamar para dar a Rosy o tempo necessá rio para partir...

Mas, minha pobre filha, o que está a dizer? Avô , ouviu-a? Pretende que
esta noite fui a Myols!

202 Uma gargalhada sacudiu Mateus Daussy.

Ah, é uma boa histó ria! Minha querida menina, Gerardina esteve
comigo até perto das onze horas, depois subiu ao seu quarto, sem ter
sequer a veleidade de pô r o nariz fora da porta, com aquela humidade
glacial que tivemos a noite passada. Está a sonhar, menina, ou entã o...
hum! há talvez qualquer coisa nisto...

Bateu na testa, rindo sarcà sticamente:

À força de se viver com as corujas de Myols, deve-se perder a cabeça.

Senhor, nã o suportarei mais que insultem a minha família! exclamou


Huguette com indignaçã o.

Encolheu os ombros.

Oh! vê nisto um insulto! É muito susceptível, menina de Armilly. Se a


minha neta fosse assim, há muito que nã o poria os pés em Myols. E
teria feito muito bem, por tudo!.,, Minha senhora, obstina-se em negar

174
a sua participaçã o na partida de Rosy? Nã o me quer dizer onde ela se
encontra?

Gerardina endireitou-se na cadeira e apoiou os dois braços na toalha


bordada. Os olhos brilhantes, um pouco iró nicos, fitaram o rosto
alterado de Huguette.

Minha querida filha, atendendo à perturbaçã o que deve sentir com


aquela inverosímil partida, perdoo-lhe o seu procedimento um tanto,.,
estranho. Estou desolada com este acto insensato da Rosy e pronta a
ajudar-vos com todo o meu poder...

É uma miserá vel hipó crita! exclamou Huguette, nã o se contendo mais


e compreendendo que

203 nã o seria a mais forte. Seja, guarde o seu segredo! Renato saberá
encontrar a Rosy e descobrirá um meio de a obrigar a falar...

Talvez me mova alguma questã o? disse Gerardina num tom sarcá stico.
Tem grande confiança na capacidade do seu tutor e aprovo-a, pois é
muito inteligente. Mas neste caso, nã o conseguirá mais do que a
Huguette.

É pela boa razã o de que duma pipa vazia nã o se pode extrair


vinhoacrescentou o senhor Da ussy.

Apó s aquela elegante comparaçã o, encheu um grande copo de vinho


branco e atraiu a si uma travessa cheia de apetitosas carnes frias.

Gerardina continuou, com voz melíflua:

Sinto-me desgostosa por nã o poder satisfazê-la. Esta Rosy é na


verdade indomá vel... Só o tempo de acabar a chá vena de chocolate e
sigo-a já , querida filha.

Huguette disse secamente, dando um passo para a porta:

175
É inú til) nã o precisamos de si,., E aliá s duvido que a recebam em
Myols,

Via um clarã o brilhar nos olhos ardentes que a nã o desfitavam.


Gerardina inclinou-se um pouco.

Diz que nã o me receberã o? disse numa voz sibilante. E porquê?

Porque a minha tia e prima estã o persuadidas, como eu, de que é


cú mplice da fuga da Rosy.

Gerardina levantou-se bruscamente.

Ainda! Mas faz-me perder a paciência! A pró pria Huguette pô de


verificar ontem, à s cinco horas, no salã ozinho da Rosy, que nada
indicava preparativos

204
de partida. A pequena hipó crita deu o seu golpe depois”” que me
importa a sua acusaçã o! acrescentou com altivo desdém. Acredite no
que quiser, feche-me a porta de Myols. Julga que nã o tinha de fazer um
esforço para franquear a soleira daquela casa maldita, para apertar a
mã o daqueles que a opiniã o de todos acusa dum abominá vel crime?

Huguette ripostou:

Já que os sabia inocentes, pelo contrá rio, devia ser um prazer muito
grande.

Os lá bios de Gerardina tiveram uma contracçã o de maldade.

Queria dizer que tentava persuadir-me de que estavam inocentes? Oh!


fiz todos os meus esforços, pode estar certa disso! Nã o é minha culpa
de que agora esteja menos certa disso!

Huguette tornou-se rubra de indignaçã o.

Mas porquê, menos agora? tem provas recentes?

176
Nenhuma! As antigas bastam amplamente, minha pobre pequena,
para quem quiser seriamente reflectir. Na verdade, nã o consigo
explicar a razã o do noivado de Renato... Francamente, aqui para nó s,
acredita na inocência do senhor de Armilly?

Inclinou-se um pouco, mergulhando os olhos brilhantes nos de


Huguette, como se quisesse penetrar até ao fundo do seu pensamento.
Mas o olhar da jovem exprimiu apenas uma irritaçã o generosa.

Acredito sinceramente... creio-o de toda a minha alma! exclamou


Huguette com calor. A despeito das suas insinuaçõ es, persisto em
considerar

205

Renato como o tipo do homem íntegro, incapaz do menor


compromisso de consciência.

E levada por um impulso irresistível, acrescentou:

Como nã o creio que tivesse casado com a Vitó ria apenas por causa do
seu dinheiro.

As sobrancelhas de Gerardina enrugaram-se violentamente, enquanto


soltava uma gargalhada sarcá stica.

Quer dizer-me porquê? Realmente, Huguette, a sua afeiçã o pelo seu


tutor domina-a duma maneira estranha!

Porque há uma razã o... Só o acreditaria se ele pró prio mo confessasse.

Gerardina riu-se de novo, e o pai acompanhou-a.

Criança ingénua! Mas, minha pobre pequena nã o compreende que fez


todo o possível para a impedir de conhecer a verdade? Por que a
impediu de visitar a Rosy, senã o porque conhecíamos demasiados
factos contra a sua honra, ou que os tínhamos adivinhado? Minha

177
querida filha, fique convencida de que jamais conhecerá a verdade,
pois o Renato soube com certeza compreender o seu cará cter pleno de
delicadeza e lealdade, e sabe bem que, confessando-lhe o verdadeiro
motivo desse projecto de casamento, perderia toda a esperança de
casar consigo.

Desta vez, um riso bastante amargo saiu dos lá bios de Huguette.

Onde foi descobrir essa singular ideia, minha senhora? Posso garantir-
lhe que nã o existe tal ideia na cabeça do senhor de Armilly... Mas
estamos muito longe da questã o que me trouxe aqui e, já que persiste
em negar, nã o tenho senã o que me retirar”

206Gerardina agarrou-a por um braço,

Nã o quer acreditar-me, pequena? Renato é há bil, saberá atraí-la, como


o fez a Vitó ria...

Huguette soltou-se bruscamente da prisã o de Gerardina e saiu


apressadamente da Casa Vermelha? As têmporas batiam-lhe com
força. Renato tinha tido razã o prevenindo-a contra aquela mulher.
Todas as vezes que estava com ela, a só s, trazia uma nova ferida.

Limpou uma lá grima que lhe corria pelo rosto,, dizendo com um
pouco de impaciência que se tornava nervosa e impressioná vel em
excesso. Era talvez do exemplo da Rosy,.,

E aquele nome recordou-lhe o insucesso da sua tentativa. Tinha sido


tola em ir desafiar aquela mulher superiormente há bil, dotada dum
inacreditá vel poder de dissimulaçã o. Gerardina era demasiado forte
para ela.

XVII

178
Renato chegou no dia seguinte. Tinha pedido algumas informaçõ es na
estaçã o de Vonsset, mas nã o pô de recolher qualquer indicaçã o.
Presumivelmente, Rosy tinha tomado o comboio noutra estaçã o, para
melhor despistar todas as procuras.

Talvez em Chambéry disse o senhor de Armilly. Tenho a impressã o de


que se dirigiu para a Suíça ou para a Itá lia. Felizmente, é morosa, anda
sempre atrasada e se consigo descobrir o seu destino, devo conseguir
atingi-la.

- A Huguette tentou em vã o fazer falar a Gerardina disse Silvina.

207 Uma espécie de sorriso desenhou-se nos lá bios de Renato.

Oh! minha pobre Huguette, desafiou a Gerardina! Estava vencida de


antemã o! Aquela mulher é duma habilidade infernal e deve ter
combinado a fuga da Rosy de maneira a encontrar-se completamente
de fora e impedir as nossas buscas. Enfim, farei o que puder para
encontrar o nosso Luís e trazê-lo de novo.

Partiu no primeiro comboio. Ao despedir-se de Huguette, murmurou:

Reza pelo êxito desta tentativa, sim?

O olhar da pupila respondeu-lhe de modo mais eloquente que por


palavras. Na certeza de que nã o abandonava Renato, ela adivinhava
bem o sofrimento que tinha ao pensar no sobrinho querido que lhe
tinham roubado.

No dia seguinte chegou uma carta do viajante. Ainda nada descobrira,


mas continuava as suas investigaçõ es. Um telegrama chegou pouco
depois, anunciando que o senhor de Armilly tinha descoberto uma
pista que lhe parecia segura. Foi um vivo clarã o de esperança para a
senhora de Armilly e as jovens, que mal conseguiam afastar a sua
ansiedade para se dedicarem aos trabalhos de casa.

179
Nã o tinham ainda visto Gerardina. Aquele afastamento admirava um
pouco Huguette, que a tinha visto pouco disposta a acreditar que a
nã o recebesse em Myols.

Dois dias depois da sua partida, um novo telegrama dele foi entregue à
senhora de Armilly. Estava datado de Lansane continha estas
palavras:

208Encontrados. Partimos hoje. Luís doente.

Previna o médico.

Chegaram no dia seguinte de manhã , trazendo o Luís, que atravessou


o pá tio seguido de Rosy, que mal se podia manter em pé, O rosto da
viú va tinha os traços duma grande fadiga e duma extrema angú stia.
Mas todos os olhares se dirigiram para a criança, tã o fraca que deixava
cair a cabeça no ombro do tio.

Parecia muito doente, o pobre Luisinho, e o médico abanou a cabeça,


declarando que a sua fraqueza era um obstá culo grave à cura. Havia
muitos anos que a viú va, apesar dos esforços de Renato, persistia em
tratar o filho à sua maneira, e a débil constituiçã o do rapazito nã o se
conseguiu fortificar com tais desmandos. Tinha sofrido um violento
abalo com essa partida no meio da noite e com o desgosto
experimentado ao sentir-se separado dos que amava, o que
determinou, naquela criança extremamente nervosa, uma crise
perigosa que imobilizou Rosy em Lausanne.

O senhor de Armilly, enquanto tomava uma ligeira refeiçã o, contou:

Foi graças a Clemente de Avrets que os pude encontrar disse.


Encontrei-o em Chambéry e disse-me que tinha visto Rosy na estaçã o,
que ouvira pedir a Melâ nia bilhetes para Lausanne. Mostrou-se muito
serviçal, o pobre rapaz.

Silvina perguntou:

180
Mas, Renato, nã o pensaste que talvez tivesse sido melhor nã o obrigar
o Luís a fazer a viagem de regresso, no estado de esgotamento em que
se encontrava?

209

Talvez, noutras circunstâ ncias. Mas um médico de Lausanne, que a


Rosy mandou chamar, declarou que ele devia ser trazido o mais
depressa possível para Myols, para o lar natal, para junto da família,
Só nesse caso é que havia esperança de cura.

A senhora de Armilly murmurou em voz sumida:

Um pouco de esperança! Pobrezinho!... A mã e vai enlouquecer,

Berta disse, com dureza:

Nã o poderá queixar-se senã o dela pró pria. Oh! Berta! protestou


Huguette, Nã o nego que a culpa é toda da Rosy; mas é uma cabeça de
criança, que merece um pouco de indulgência,

Berta encolheu os ombros.

Nã o tã o inconsequente como isso, parece-me,,? Enfim, se quiser,


atribuamos tudo a Gerardina.

Oh! mas muito mais, Esta sabia perfeitamente o que fazia ao excitar a
Rosy,.,

E sabia o desgosto que nos causava a partida do Luís acrescentou


Renato. Era uma vingança refinada, preparada de longa data, suspensa
há muito tempo sobre as nossas cabeças, à quela mulher é um
demó nio. Daqui por diante, nã o deve pô r mais os pés em nossa casa. Já
devia ter tomado esta decisã o há mais tempo... Teria evitado muitas
desgraças! concluiu com ar sombrio.

Huguette

181
foi para junto do pequeno. Rosy estava ajoelhada junto do leito da
criança. Tinha ainda o vestido de viagem. O seu olhar desvairado, sem
lá grimas, nã o abandonava o pequeno rosto da cor do” círios. As
pá lpebras de Luís estavam fechadas, dormia talvez aquele sono
provocado pela sua fraqueza

210 extrema, sono mais inquietador do que a pró pria agitaçã o.

Rosy voltou para Huguette os olhos macerados, e pareceu à jovem que


tinha envelhecido alguns anos.

Ali está o meu Luís! Mas curar-se-á ... Quero que se cure! Oh! se a
tivesse escutado, Huguette!

A voz embargou-se-lhe num soluço. Escondeu o rosto entre as mã os e


ficou algum tempo imó vel. Ergueu depois bruscamente a cabeça e
fitou em Huguette os seus olhos febris.

À quela Gerardina é a causa disto tudo! Oh! como ela soube enganar-
me, Huguette, nã o quero tornar a vê-la!.,. Ouviu? Se ela vier, nã o a
deixe entrar, porque se a vir, eu...

Caiu sobre a beira da cama e Huguette julgou que tivesse perdido os


sentidos. Mas ela ainda murmurou:

Creio que para vingar o meu Luís, doente por sua causa, seria capaz
dum outro crime.

O cérebro da pobre senhora estaria transtornado, como parecia temer


a senhora de Armilly? Era admissível, numa natureza como a de Rosy.

Algumas melhoras se manifestaram à noite no estado de Luís, e a


esperança penetrou no coraçã o de todos. A viú va saiu do seu
abatimento, consentiu em beber um caldo que lhe trouxe Huguette e

182
estendeu-se por algum tempo na cama, enquanto  ngela se instalava à
cabeceira do doente.

Quando Huguette saía do quarto de Rosy, viu abrir-se a porta do


vestíbulo e aparecer o vulto bem conhecido de Gerardina, vestida de
seda, a cabeça

211envolta numa mantilha de renda. Apesar de tudo o que lhe tinha


dito Huguette, pretendia ainda penetrar naquela moradia que a morte
ameaçava, em grande parte por sua culpa. Ia certamente querer entrar
no quarto de Rosy... Ora, para a jovem senhora, já exasperada, a sua
visita podia ser perigosa. Aliá s Renato tinha formalmente declarado
aquela manhã que nã o mais seria recebida em Myols a senhora Da
ussy.

Aquelas reflexõ es atravessaram por momentos o espírito de Huguette,


Pousou num dos bancos do vestíbulo a chá vena que levava e avançou
para a recém-chegada,

Ah! a Huguette disse Gerardina num tom gracioso e desenvolto.


Imagine que soube agora mesmo do retorno da fugitiva e da doença
do Luís. Acorri imediatamente para consolar e encorajar a minha
pobre Rosy, mais infeliz que culpada, acredite-me.

Fez um movimento para se dirigir para o quarto da viú va. Mas


Huguette colocou-se na sua frente.

A Rosy repousa, minha senhora, e nã o pode recebê-la disse em tom


firme.

Está bem, esperarei e velarei a criança. Quando a Rosy acordar,


encontrar-me-á pronta a tratá -la. Sabe que sou quase indispensá vel.

Nã o agora, minha senhora. Para falar francamente e sem ambiguidade,


devo dizer-lhe que a pró pria Rosy me disse que nã o a queria tornar a
receber.

O vestíbulo escuro era mal iluminado pela ú nica lâ mpada, No entanto,


Huguette viu contrair-se o rosto branco de Gerardina.

183
212 Que ideia a levou a dizer isso? Eis o que nã o me dirá , Huguette!
ripostou a senhora Daussy num tom de sarcá stica có lera, Em qualquer
caso, desejo ouvir isso mesmo da sua boca.

E estendeu a mã o para afastar Huguette. Mas esta disse


resolutamente:

Pode dominar-me se o quiser, como na outra noite, mas enquanto


puder, impedi-la-ei de ir perturbar aquela pobre mulher que apenas
seguiu os seus nefastos conselhos. Aliá s o senhor de Armilly nã o
deseja mais recebê-la aqui!

Um riso iró nico ressoou no vestíbulo.

Ah! eis a verdadeira razã o! Esse bondoso Renato agradece-me à sua


maneira uma dedicaçã o tã o grande... Mas pouco me importa a sua
proibiçã o. Vou a casa da Rosy e nã o a casa dele...

O que é a mesma coisa disse uma voz breve.

A porta da sala de jantar tinha sido aberta lentamente há um


momento, e Renato mostrava-se, severo e frio.

...Nã o ignora que Myols me pertence e que a Rosy está em minha casa.
Tenho o direito de lhe interditar o acesso a esta moradia, e só lamento
tê-lo feito agora.

Os olhos de Gerardina tiveram um brilho de furor. Deu alguns passos


para ele, dizendo com odiosa irritaçã o:

Seja, sairei daqui para nunca mais voltar a esta casa onde só recebi a
frieza e o insulto, em troca duma amizade constante, duma infatigá vel
dedicaçã o por aqueles que todos abandonaram, e que eu, amiga

213 de infâ ncia, nã o queria crer que fossem culpados, em paga dos
cuidados dispensados a essa caprichosa e ingénua Rosy...

184
Interrompeu-a com tranquila ironia.

Nã o, nã o é bem o que está a dizer. Se continuou a frequentar Myols foi


porque sentiu um prazer enorme ao saber das nossas provaçõ es. Se se
dedicou a Rosemonde, foi por querer exercer sobre essa fraca
natureza uma influência total e ao mesmo tempo atiçar a sua
animosidade contra nó s, a fim de nos criar ainda mais desgostos e
sofrimentos.

Uma alegria diabó lica brilhou nas pupilas de Gerardina.

Pois seja, tem razã o! exclamou num tom triunfante. É verdade, odeio-
vos a todos, e a si, principalmente, Renato. E sabe porquê? Gerardina
nã o esquece nada... Sim, deliciei-me ao ver as humilhaçõ es abaterem-
se sobre todos vó s, tã o orgulhosos. Tive momentos felizes, Renato, e
encontrei a vingança doce... Saiba que neste momento poderia pô r
cobro à vossa desgraça, dar-lhe a conhecer a causa verdadeira da
morte da Vitó ria e reabilitar-vos perante os olhos de todos.

O senhor de Armilly interrompeu-a com glacial tranquilidade:

Seria inú til, pela simples razã o de que conheço tã o bem como a
senhora a verdade dessa morte.

Desta vez, Gerardina pareceu perder a presença de espírito, Ficou por


momentos sem palavras, fitando com os olhos dilatados o rosto
impassível de Renato.

Sabe?... Sabe? balbuciou.

Sei-o há já muito tempo mesmo... E posso

214dizer-lhe que jamais dirá nada a outra pessoa, pois as revelaçõ es


indiscretas poderiam comprometer alguém que lhe é muito querido,
Gerardina Daussy. Por um momento, Gerardina pareceu transtornada.
Mas dominou-se em breve, olhando-o com ó dio e furor.

185
É uma infâ mia!... Mas tornar-nos-emos a encontrar, senhor de Armilly!
À s suas relaçõ es com Gerardina Daussy nã o terminaram Temo isso,
mas lutaremos. Deus nã o permitirá que triunfe por muito tempo.

Soltou um riso sardó nico.

Oh! oh! está agora muito piedoso! É a obra desta pequena santa que
aqui está ? Pergunte-lhe o que ela pensa do seu casamento com a
Vitó ria. Seria muito

interessante!

Riu-se ainda e afastou-se num passo rá pido. Mal ela desapareceu,


Huguette ousou fitar o tutor. Ela tinha nos lá bios um ardente protesto
contra as ú ltimas palavras de Gerardina, mas as palavras evolaram-se
antes mesmo de as pronunciar, Renato, muito pá lido, tinha uma
fisionomia rígida e dura que nã o lhe conhecia, e o seu olhar sombrio
desviou-se dela. Vá rias vezes passou a mã o pela testa, num
movimento cansado.

Esta mulher vai-nos atacar ainda mais disse numa voz alterada. Tinha
um meio de a reduzir ao silêncio, mas nã o posso empregá -lo sem
prejudicar outra pessoa e faltar a uma promessa... Ah, as promessas!
disse numa voz surda, cheia de amargura. Ninguém como eu sabe
como podem custar A sustentar!

215 Afastou-se bruscamente na direcçã o da escada, A jovem ficou por


alguns minutos imó vel, um pouco trémula e emocionada. Que teria ele
contra si? Por que nã o se explicava? Teria preferido cem vezes uma
cena violenta à quela atitude glacial) que mantinha sempre a seu
respeito.

Abanou a cabeça com impaciência e dirigiu-se para a cozinha. Mas


enquanto preparava uma galinha para o jantar, passou em revista a
cena com Gerardina e tornou a ver o rosto glacial de Renato,

Mas Huguette, em que pensa? Vai meter a galinha no forno sem


manteiga? exclamou  ngela, que fitava com alguma surpresa o seu
rosto perturbado.

186
Huguette corou um pouco e apressou-se a reparar aquela tolice. Mas
durante toda a noite, teve de fazer um esforço violento para conservar
a sua presença de espírito e evitar numerosas distracçõ es,

XVIII

No dia seguinte, manhã cedo, Renato dirigiu-se apressadamente à vila.


Ia procurar o padre para dar ao Luís a primeira comunhã o. A criança
estava muito mal, e daquela vez toda a esperança desaparecera.

Quando a senhora de Armilly e ele falaram a Rosy para mandarem vir


um padre, a viú va teve uma violenta crise nervosa, tendo depois
gritado que queriam amedrontar a criança, matá -la seguramente” Mas
Renato respondeu-lhe num tom firme:

Os socorros da religiã o nunca matam, e dã o

216por vezes a cara. Aliá s, antes de tudo, é preciso salvar a alma do


seu filho, Rosemonde.

Huguette, a despeito da tristeza do momento, sentiu uma piedosa


alegria invadi-la. Aquele que sabia tã o bem compreender a prioridade
da alma sobre o corpo, estava muito pró ximo de se tornar um sincero
e ardente cristã o,

Rosy, um pouco serenada, deixou fazer. Recebera uma educaçã o


cristã , afastada mais tarde pela sua frivolidade e talvez alguma
centelha brilhasse ainda perante o leito de sofrimento do filho,

Silvina e Huguette prepararam o altar. Quando terminavam, Renato


chegou, acompanhado pelo abade Noret. Este ficou só por algum
tempo com a criança, depois abriu a porta e todos rodearam o
pequeno leito, enquanto o padre depunha nos lá bios de Luís o Deus
que aquela pequenina alma branca ia em breve contemplar.

Um pouco depois, o rapazito sentiu-se melhor. Rosy, que se recusara a


acreditar na iminência dum desenlace fatal, murmurou ao ouvido da
sogra:

187
Vai curar-se! Oh! sabia bem que exageravam! Sabia que nã o estava tã o
perigosamente doente! Mas nã o foi mais do que um reflexo
antecipado do eterno repouso. Luís morreu duas horas depois,
docemente, de olhos fitos num crucifixo que  ngela segurava. As suas
ú ltimas palavras, pronunciadas em voz extremamente fraca, foram
apenas ouvidas pela mã e, por Huguette e por Renato.

Mã ezinha, pense no bom Jesus.,, pense no céu, Esperá -la-ei,

217

Os olhos de Rosy, cheios duma dor feroz, fixaram-se longamente na


criança inanimada. Tocou-lhe a testa, as mã os, murmurando com um
ar desvairado:

Mas nã o, ele vive... Eu sei que vive, o meu Luís!

Depois caiu sem sentidos. Levaram-na para o quarto, onde Huguette


se ocupou a tratá -la, com a ajuda de Melâ nia.

Ao voltar a si, a jovem viú va nã o reconheceu ninguém. Falava com


grandes gestos, os olhos dilatados exprimiam um terror enorme. E
pronunciava sempre uma palavra que parecia ser um intolerá vel
castigo. Flores! oh! aquele perfume! Levem-nas, abafo... Flores! Como
sã o!... Flores! flores! Fazem-me doer a cabeça...

E as mã os ardentes de febre agarravam a cabeça.

Ela amava-as... e foram elas que a mataram. Nã o poderia nunca... Mas a


Gerardina disse... Odeio-a... É muito rica... e o meu Luís é pobre. Recaiu
nos travesseiros, presa duma crise terrível.

O médico, chamado imediatamente, declarou que o seu estado era


extremamente grave em virtude da grande depressã o dos seus
nervos, Segundo a sua opiniã o, nã o resistiria ao desgosto produzido
pela morte do filho. Tudo o que poderia tentar era diminuir a agitaçã o
desordenada de que estava possuída.

188
Huguette, é muito para que possa voltar a si e pô r em ordem a sua
consciência disse muito baixo Renato a Huguette.

A jovem, que ficara muito perturbada desde que

218ouvira as estranhas divagaçõ es de Rosy, ergueu para o tutor um


olhar penetrante. Notou que estava grave, muito triste, e
compreendeu que realmente, como o tinha dito a Gerardina, conhecia
toda a verdade.

Rosy acalmou-se por fim. Estava enfraquecida como uma criança, mas
recobrara o livre exercício das suas faculdades mentais. O olhar
exprimia um terror extremo, e quando ouviu perto da porta os passos
de Renato, murmurou com terror:

Nã o, ele... Tenho medo.

Entã o Huguette tentou docemente levá -la a receber o padre. À s


primeiras palavras, a viú va manifestou um medo intenso.

Oh! nã o, nã o! Pensa que era necessá rio dizer-lhe... Oh! é impossível!...


E matou o meuLuisinho!

Mas nã o, Rosy, lembre-se pelo contrá rio como ele tinha o ar feliz
depois de ter recebido Nosso Senhor. O querido pequeno, tã o sofredor
sempre na terra, está agora todo feliz junto de Deus, no céu onde disse
que a esperava. Quer ficar separada dele

por toda a eternidade?

Nã o, nã o! Vê bem que quero morrer, que nã o posso viver sem ele...


Entã o que faria se nã o o tornasse a encontrar?

Mas para isso é necessá rio preparar-se para aparecer diante de Deus,
purificando a sua consciência...

O rosto pá lido de Rosy contraiu-se.

189
A minha consciência! Oh! ela tem um peso muito pesado! Nã o o senti
tanto como hoje! Quando me achava um pouco atormentada, dizia-o a
Gerardina

219 que me afirmava ser imaginaçã o. Mas creio agora que me


enganava.

As piedosas exortaçõ es de Huguette conseguiram enfim convencê-la.


O pá roco esperava no escritó rio que fosse levado à presença da jovem
viú va. A conversa foi demorada e, quando o padre apareceu à porta do
quarto onde estava reunida a família, parecia profundamente
emocionado.

A senhora de Armilly pede para virem todos. Tem uma comunicaçã o a


fazer-lhes anunciou.

Entraram e agruparam-se em volta do leito de Rosy. A jovem parecia


sentir uma angú stia extrema, mas o olhar tinha uma expressã o
resoluta que jamais lhe tinham visto.

Quero reparar, antes de morrer disse ela em voz fraca. Sou uma
grande culpada e além disso fui a causadora da vossa infelicidade. Fui
eu que espalhei as flores pelo quarto da Vitó ria.

Exclamaçõ es abafadas acolheram aquela declaraçã o. Apenas Renato


ficou impassível. A moribunda voltou os olhos para ele,
profundamente encovados”

Já o sabia, Renato? Compreendi no dia em que me fitou... Lembra-se?

Ele respondeu gravemente:

Já o sabia desde quase o primeiro momento. Nã o possuía qualquer


prova e no entanto tinha a intuiçã o de que só a senhora podia ter
cometido aquele crime. Mas agora estã o quase certos e esta
circunstâ ncia pode ser para si uma desculpa de que agiu sob a
instigaçã o duma outra pessoa.

190
A moribunda teve um estremecimento.

Oh! A Gerardina! disse em voz rouca.

220 O senhor cura disse-me que lhe devia perdoar, mas custa-me
tanto... Oh! se soubesse como era há bil para me arrastar para a frente,
para me traçar planos deixando-me acreditar que só eu os tinha
idealizado. Fez de mim o instrumento da sua vingança contra a
Vitó ria, visto que tinha repelido desdenhosamente o irmã o e, com o
mesmo golpe, feriu toda a família que detestava e a si sobretudo,
Renato. Espicaçava-me contra si, descobria tudo o que o poderia fazer
sofrer mais. Fez o que podia para atrair a Huguette, para a afastar de
si, visto que sabia que assim lhe causaria um grande sofrimento... Oh!
como nos fez mal a todos! A seu lado, vivia numa atmosfera deletéria,
nã o tinha consciência do horror dos meus actos! Sabia bem como
excitar o que de mau existia em mim! E como afastava depressa as
veleidades de remorso que por vezes me invadiam! Velava por mim,
para me ter sempre sob a sua influência... Mas confesso tudo hoje.
Cometi esse crime um pouco por ó dio para com a Vitó ria, que me
humilhava com a sua riqueza, mas principalmente para arranjar uma
fortuna para o Luís... No entanto, tem razã o, Renato, nã o teria tido
sozinha essa terrível coragem, pois sou fraca e pusilâ nime. Era a
Gerardina quem, sem o parecer, excitava a minha animosidade, me
atiçava com palavras pérfidas e me insinuava lentamente a ideia do
crime e a maneira de o realizar. Um dia, sem parecer dar-lhe maior
importâ ncia, falou da grande encomenda de flores que a Vitó ria
acabava de receber, contou diversas histó rias de que as heroínas
morriam asfixiadas pelo perfume violento que as flores espalhavam
no seu quarto. Ora

221a Vitó ria tinha-me infligido nessa manhã uma dolorosa ferida de
amor pró prio. Estava exasperada, meia louca de raiva... E levei a cabo
aquele acto odioso...

Cobrindo o rosto com as mã os trémulas, murmurando:

Oh! é medonho!

191
Ouviam-na, retendo a respiraçã o. O horror disputava neles a piedade
para com essa mulher, que uma aberraçã o tremenda tinha levado ao
crime. No entanto, alguém surgia mais culpado que Bosemonde de
Armilly. Esta tinha sido o joguete duma há bil criatura que se tinha
servido da vaidade, da falta de princípios e da fraqueza moral da viú va
para satisfazer o seu miserá vel rancor.

E quando penso que os deixei acusar a todos murmurou Rosy com


desespero. Via-os sofrer e, como uma miserá vel que era, nã o dizia
nada... Algumas vezes tive momentos penosos, por exemplo no dia em
que soube que o casamento da  ngela se tinha rompido. Mas nã o
podia sair daquela situaçã o, acusando-me.,. E deixei seguir as coisas o
seu rumo” Aliá s, alguém tomava a seu cargo o endurecer-me, manter a
minha hostilidade contra vó s todos, mostrar-me o Luís rico e feliz. Nã o
tive nunca a consciência nítida da minha falta. Era preciso estar
prestes a morrer para ver um pouco claro.,.

Ergueu para os que a escutavam um olhar cheio de vergonha e


sofrimento, pedindo:

Mas poderã o algum dia perdoar-me?

Um sim unâ nime respondeu-lhe. A rancorosa Berta pronunciou-o


perante aquele leito de morte,.

222 Desde que resolveu reparar a sua falta, perdoo-lho, Rosy disse o
senhor de Armilly, empregando pela primeira vez o diminnitivo que
nã o dava à cunhada.

Agarrou numa das mã os da viú va, enquanto a mã e agarrava a outra.


Um clarã o de alegria atravessou os olhos fatigados de Rosy.

Obrigado, sã o todos muito bons... Muito bons, Renato, se o sabia, por


que nã o disse nada?

Uma sombra cobriu o rosto grave do senhor de Armilly.

192
Nã o se recorda, Rosy, da promessa que fiz ao Augusto no seu leito de
morte? Suplicou-me que velasse por si e pelo Luís, que afastasse tanto
quanto pudesse os aborrecimentos e os desgostos pesados, Para o
tranquilizar, para o ver morrer em paz, prometi pela minha honra o
que me pedia... Quando, de deduçã o em deduçã o, cheguei à conclusã o
da sua culpabilidade, senti-me ligado nã o só por essa promessa como
pela afeiçã o pelo Luís, de quem nã o podia acusar a mã e. Era por isso,
mais do que a minha mã e e irmã s, que nã o via qualquer saída para a
nossa triste situaçã o.

Entã o está hoje aqui uma, Renato, pois o senhor padre escreveu a
minha confissã o, assiná -la-ei e dará a conhecer toda a verdade... Exijo-
o, Renato, é a minha ú ltima vontade acrescentou ela, ao ver o gesto de
protesto esboçado pelo cunhado.

Rosy viveu ainda vinte e quatro horas, num estado de fraqueza


extrema. Repetia sem cessar:

Vou encontrar o meu Luisinho... Meu Deus, como és bom. Quis torná -lo
rico à custa dum crime,

223 mas tiraste-mo, Senhor, deste-lhe a verdadeira felicidade. Senhor,


amaste-o mais do que eu.

Morreu certa noite, ao ruído duma furiosa tempestade que sacudia a


velha moradia. Partiu alegre e perdoada, depois de ter recebido o
beijo de paz de todos os que tinham sofrido com a sua falta. Uma das
suas ú ltimas frases foi:

Digam à Gerardina que lhe perdoo. Huguette e  ngela cobriram o leito


com flores

da estaçã o, daquelas flores que repelira em vida como uma


recordaçã o do seu crime. No meio dos crisâ ntemos rubros e amarelos,
o pá lido rosto de Rosy aparecia calmo, cheio duma serenidade que
nã o conhecera antes.

É uma outra Rosy murmurou Lauriana Delbeaume, ajoelhada aos pés


da cama.

193
A jovem, prevenida por uma palavra de Huguette, tinha acorrido
imediatamente, a despeito dos embaraços duma mudança iniciada.
Nã o sentira por Rosy senã o uma ligeira simpatia, mas a morte de Luís
e a narrativa dos ú ltimos momentos da viú va inspiraram-lhe viva
compaixã o e, como todos os Armilly, bendisse a Deus o ter chamado a
si a pobre criatura fraca demais para suportar a infelicidade que a iria
acabrunhar.

Mas nã o sabia ainda até que ponto Renato e as irmã s deviam


agradecer à Providência, pois ignorava as graças subitamente
espalhadas pela jovem moribunda e a reparaçã o que iria tirar o
opró brio da família de Armilly.

224XIX

Foi uma reabilitaçã o tranquila. Os jornais da regiã o registaram a


confissã o da senhora Bosemonde de Armilly e falaram com epítetos
sonantes da grandeza de alma de Renato. A Saboia soube assim que
tinha lançado e mantido erradamente aquela acusaçã o que tã o
profundamente acabrunhara uma das suas velhas famílias, e
reconheceu a injustiça da prevençã o bastante estranha que devia ter a
sua origem em boatos misteriosos, prevençã o mantida também duma
maneira nã o menos estranha, pois o modo de viver dos Armilly, a sua
atitude perfeita e nobre dignidade deveriam ao menos diminui-la
fortemente.

Essa atitude, tranquila e altiva sob o insulto, continuou a ser a mesma


desde que a reparaçã o pô s fim ao ostracismo de que era objecto. Os
Armilly nã o tinham baixado a cabeça, nã o tinham por isso que a
erguer quando os cumprimentos respeitosos os acolheram em Siry e
nas ruas de Vousset. Admirava-se agora o estoicismo de Renato, a sua
fidelidade heró ica à palavra dada, aduziam-se consideraçõ es
simpá ticas sobre as suas irmã s, principalmente sobre  ngela, que fora
obrigada a quebrar o seu noivado. Indignavam-se contra Rosy, mas
conservando certa indulgência para com essa mulher desequilibrada,
que diziam nã o ter tido todas as culpas no que acontecera.

194
E pouco a pouco, começaram a falar de Geraldina. Rosy nada tinha
dito na sua confissã o, e os Armilly, nã o querendo vingar-se, nã o
pronunciaram sequer o seu nome. Mas a Melâ nia nã o foi assim
discreta.

225

Contou as longas visitas que a senhora Daussy fazia à sua senhora,


narrou trechos de conversas ouvidas, falou do pedido de casamento
de Gonthier a miss Hardwell e da tentativa iniciada por Mateus
Daussy para unir a neta ao senhor de Armilly todas estas
circunstâ ncias ignoradas fora de Myols e que um dia Rosy tinha
inconsideradamente revelado à criada. Melâ nia conhecia bem as
coisas, e deixou-se arrastar pelo prazer de acusar Gerardina, de quem
nã o gostava tanto e tã o bem que em breve circulou o boato da
cumplicidade moral da senhora Daussy no crime cometido por Rosy.

Era dia de Natal. Havia um ano que Renato fizera a sua reapariçã o na
igreja, e naquele dia ajoelhara à Mesa Sagrada, entre Huguette e
 ngela esta também entregue já à prá tica da religiã o, num sentimento
de arrependimento e de acçã o de graças. Apenas Berta faltava. Berta
era orgulhosa na alegria como o tinha sido na desgraça, e recusava-se
a reconhecer os seus erros perante Deus.

Uma piedosa alegria fazia estremecer o coraçã o de Huguette. Tinha


adivinhado o lento trabalho que se operava na alma do primo,
compreendera, sobretudo, nestes ú ltimos meses, que a graça agia
poderosamente naquela alma recta, enérgica, e a levava
insensivelmente ao caminho de Deus, até entã o muito pouco
conhecido.

À quela alegria santa misturava-se no entanto a

226 secreta amargura da irredutível frieza de Renato. Mesmo nesse


dia especial, em que se ajoelharam lado a lado para receberem Deus,
nã o existia entre eles qualquer intimidade, pareciam quase uns
estranhos. Quando passavam em frente da casa dos Avrets, a porta
abriu-se, um homem corpulento, de rosto enquadrado por largas
suíças brancas, desceu os degraus tã o depressa quanto lhe permitiam

195
as pernas visivelmente fracas, e avançou para a família de Armilly.
Estendeu as mã os a Renato, dizendo:

Venho apresentar-lhe a minha reparaçã o, Conduzi-me como um tolo e


um rú stico, tornei o meu filho infeliz, fiz chorar a  ngela...

Renato interrompeu-o, apertando vigorosamente as mã os do velho:

Senhor de Avrets, aquele que repara os seus erros, cumpre uma nobre
acçã o. A Â ngela sofreu muito, mas estou certo que lhe perdoou.

Por resposta, Â ngela estendeu a mã o ao senhor de Avrets, e os olhos


diziam eloquentemente que nã o queria lembrar-se de mais nada. O
velho fitou por alguns segundos com ternura o rosto fatigado e pá lido
da menina de Armilly.

Minha pobre filha, queria fazer desaparecer os anos que passaram! Foi
o bom padre que primeiro me fez reflectir, ha já alguns meses, na
minha odiosa conduta. Depois surgiu essa revelaçã o inesperada...
Sinto-me contente por que a verdade se tivesse esclarecido bem.

Pois bem, senhor, queira completar a alegria que nos dá , renovando as


relaçõ es entre a sua casa e Myols disse cordialmente Renato.

227 Separaram-se, e os Armilly penetraram no souto. Como no ano


precedente, nesse mesmo dia, o terreno estava coberto por uma
espessa camada de neve endurecida, mas o á spero frio de Maurienne
era compensado hoje por um pá lido sol, e o céu aparecia tingido de
azul através dos ramos despojados dos castanheiros.

Silvina caminhava na frente, amparando a mã e. Â ngela vinha atrá s, de


olhar vago e feliz, e como que rejuvenescida de sú bito, Renato
conduzia Clotilde, e Huguette avançava ao seu lado, pensando na
outra manhã de Natal em que tivera uma sensaçã o de grande
felicidade, desaparecida já a doce ilusã o que por alguns dias tinha
iluminado a sua existência! Agora que todos se sentiam contentes, só
ela experimentava uma invencível melancolia, No entanto, como os

196
parentes, regozijava-se com aquela reparaçã o, com o reconhecimento
do erro que por tanto tempo pesara sobre os Armilly. Mas que lhe
importava! Envelheceria na mesma solteira, pois sentia agora pelo
casamento um estranho afastamento. Sobre a imensa família de
desgraçados, espalharia o excedente da sua pequena fortuna e a
afeiçã o do seu jovem coraçã o á vido de dedicaçã o.

De repente, na volta do atalho, quase se chocaram com Gerardina,


Apoiada ao tronco dum castanheiro, bem envolta numa grande manta
forrada, esperava-os, com certeza. Passaram todos sem a
cumprimentar, sem a fitar sequer. Mas disse num tom breve e duro:

Já que a ocasiã o se apresenta, deixe-me dizer-lhe duas palavras,


senhor de Armilly,

228A senhora de Armilly, sentindo frio, continuou com  ngela e


Silvina. Renato, Clotilde e Huguette ficaram só s na presença de
Gerardina,

O rosto da senhora Daussy sobressaía, mais branco e pá lido que


nunca, do forro amarelado que guarnecia a manta e, naquele rosto de
má rmore, os olhos pareciam hoje mais negros, mais ardentes.

Que deseja? perguntou secamente Renato que mal conseguia dominar


um movimento de repulsa.

Ela exclamou em tom arrogante:

Quero que me explique os boatos infames que fez propalar a meu


respeito! A que propó sito falam na minha cumplicidade com Rosy,
essa louca, essa...

O senhor de Armilly interrompeu-a imperiosamente:

Nã o lhe permito que fale assim dessa pobre mulher! É inú til tentar
ainda dissimular junto de nó s, previno-a minha senhora, pois a
conhecemos bem. Quanto ao que se diz dos conselhos e da direcçã o
que imprimiu à minha cunhada, nã o somos responsá veis, visto que o
seu nome nem sequer foi pronunciado.

197
Ripostou com insolência:

Nã o sou obrigada a acreditá -lo. Em todo o caso, a ruptura repentina


das nossas relaçõ es deu certamente que pensar, e deduziram... a
verdade. Afastá mo-la de Myols como um elemento perigoso, um
veneno moral que procurava corromper-nos ou dar-nos a morte
lentamente. Nega a Providência, e no entanto pode ver nisto tudo a
sua mã o. Tenha cuidado, minha senhora, nã o se acumulam
impunemente as faltas.

229Soltou um riso estranho que fez estremecer Huguette.

Transformou-se num crente, Renato! Admiro essa conversã o, mas nã o


sinto desejo algum de o irritar. Nã o lamento nada do que fiz... Nada,
ouviu? E estou pronta a recomeçar... E as nossas relaçõ es nã o
terminaram, já lho disse, Gerardina Daussy nã o esquece nunca um
insulto.

O senhor de Armilly disse num tom glacial:

É preciso bem que o esqueça, desta vez. Imagine que, nestes ú ltimos
tempos, ao folhear alguns documentos existentes na biblioteca,
encontrei certa folha, anotada pela mã o do meu avô , que provava que
a fortuna de Mateus Daussy nã o tem uma origem confessá vel e
bastava, creio eu, para lançar a desonra sobre o nome de que parece
tã o orgulhosa.

Uma expressã o de terrível có lera apareceu no rosto de Gerardina.

Nã o o acredito! disse ela, com os dentes cerrados. Quer vingar-se, mas


serei mais forte...

Experimente ripostou ele tranquilamente. Já nos fez tanto mal que nã o


sei o que poderá inventar agora.

Uma alegria infernal brilhou nos olhos sombrios de Gerardina.

Oh! é verdade, pus tudo na minha obra, preparei até o futuro...

198
O futuro nã o nos pertence... Adeus, Espero um dia ter a alma
suficientemente cristã para lhe perdoar.

Voltou-se e agarrou no braço de Clotilde, que por um instante


abandonara. Huguette encontroo o

230 olhar maldoso de Gerardina, que murmurou num tom de triunfo:

Mesmo assim, estou vingada!

Afastou-se por um atalho transversal. Renato e as duas jovens


regressaram em silêncio ao castelo. O olhar de Huguette passeava
maquinalmente pelas montanhas longínquas, cheias de enormes
blocos de neve e iluminadas pela branca claridade dum sol invernal.
Aproximando-se de Myols, o olhar fixou-se sobre a velha e macia
moradia, recoberta pela neve dum opulento manto de arminho. Agora
já nã o era a moradia apontada por todos os da regiã o como o
esconderijo duma família de criminosos. Os Armilly estavam
reabilitados e podiam aspirar a viver uma vida normal.

 ngela e Silvina casar-se-iam, Berta também talvez, mas Clotilde, a


meiga cega, ficaria junto da mã e e do irmã o...

Renato Mas sem dú vida também se casaria! Aquela suposiçã o era


muito plausível! Apesar da sua pequena fortuna, possuía o talento de
escritor, que lhe daria grande notoriedade, e tinha o seu belo nome.
Que mulher nã o ficaria contente por ser a esposa desse homem de tã o
grande coraçã o e duma tã o vasta inteligência?

E seria finalmente feliz. Merecia bem, apó s ter sofrido tanto e de


sempre ser dedicado aos seus. Sim, seria feliz, e Huguette nã o pedia
outra coisa.

Mas por que razã o o seu coraçã o andava tã o entristecido? Porquê as


montanhas brilhantes de alvura lhe pareciam ter escurecido de sú bito
e Myols velar-se duma espécie de melancó lica cerraçã o

199
231 Parece fatigada, Huguette, caminha vagarosamente disse a voz
grave do senhor de Armilly.

Estremeceu um pouco e respondeu sem o fitar, pois temia que ele


visse uma lá grima nos cantos dos seus olhos:

Nã o, nã o me sinto fatigada, mas, como sempre, os encontros com a


senhora Daussy me impressionam desagradà velmente.

Eu também! exclamou Clotilde. Sempre me repreendi pelo instintivo


afastamento que me inspirava, mas agora explico tudo.

Renato disse num tom pensativo:

Creio que as almas rectas adivinham a duplicidade sob aspectos


enganadores que ela se esconde.. Em qualquer caso, nã o estejam
impressionadas, Huguette e Clotilde. Esta pobre criatura foi um flagelo
para nó s, e talvez ainda nã o conheçamos todo o mal que nos fez.

XX

No mês de Abril, depois da Pá scoa, Â ngela tornou-se senhora de


Avrets. A felicidade rejuvenescera-a singularmente, era agora cheia de
vida e alegria. Clemente e ela construiriam um casal feliz e tranquilo,
apreciando tanto mais a satisfaçã o dos seus desejos quanto tinham
sofrido antes de o conseguir.

Apesar da distâ ncia, todos os Delbeanme vieram assistir ao casamento


e ficaram oito dias em Myols, pois o advogado tinha conseguido alguns
dias de descanso. Foi ele quem acompanhou Silvina no dia da
cerimó nia, foi ele quem se encontrou a seu lado

232 durante a refeiçã o do dia de nú pcias, e a senhora de Lérens,


convidada com uma filha, que há um mês já era condessa de Morysi,
declarou pessoalmente que pareciam entender-se muito bem e que
formavam um par magnífico, mas que era na verdade pena que esse
jovem fosse plebeu.

200
Esta ú ltima consideraçã o nã o pesou nada na decisã o de Silvina e dos
seus, quando a senhora Delbeaume, antes da sua partida, fez em nome
do filho o pedido de casamento. Com um assentimento rá pido lhe
responderam. A senhora de Armilly objectou apenas que Silvina teria
um dote insignificante, visto que quando atingira a maioridade tinha,
como suas irmã s, renunciado à parte da sua herança de Vitó ria.

Pouco importa, o Armando tem rendimentos bastantes para os dois


replicou a senhora Delbeaume. Os seus gostos sã o simples, os da sua
filha também. Serã o mais felizes do que se possuíssem milhõ es.

Este segundo casamento realizou-se em fins de Setembro e precedeu


de pouco o de Berta. A senhora de Lérens, faná tica casamenteira, tinha
descoberto para esta parente, bastante difícil de contentar, um rico
grande senhor, cinquentená rio, viú vo de há pouco tempo, que se
aborrecia bastante na solidã o dourada do seu castelo da Touraine. A
aristocrá tica distinçã o de Berta agradou-lhe; por seu lado, Berta,
lisonjeada no seu orgulho, soube mostrar-se suficientemente amá vel,
e um dia os habitantes de Vousset viram passar através das ruas da
vila um soberbo carro que conduzia à estaçã o o marquês e a marquesa

233 de Vauthars, casados nessa mesma manhã na pequena igreja de


Siry, magnificamente decorada.

No fim de todo aquele movimento, Huguette achou-se singularmente


desorientada na moradia silenciosa, onde já nã o tinha o trabalho de
outrora, pois novos criados substituíram os antigos, que assim
ganharam uma aposentaçã o bem remunerada. Renato nã o tinha
recomeçado as suas liçõ es interrompidas desde a morte de Rosy.
Trabalhava numa grande obra histó rica, entretanto os afazeres nã o
lhe faltavam naquela solidã o, raramente perturbada por algum
visitante, e Huguette perguntava tristemente por que razã o o seu
tutor persistia em lhe manifestar aquela indiferença polida, tã o
distante das relaçõ es cordiais de outrora.

Encontrava um feliz derivativo na sua convivência com  ngela. A


jovem ficara a viver em casa do sogro. O senhor de Avrets afeiçoara-
se-lhe muito, encantado por reencontrar nela uma filha, depois de ter
perdido Edmée, casada um pouco depois de Clemente. Â ngela

201
testemunhava a Huguette uma ternura pouco demonstrativa, mas
sincera, e inquietava-se bastante ao vê-la empalidecer e tornar-se
mais magra.

Disse-lhe um dia, sorrindo:

Veja, Huguette, se tivesse a crendice dos nossos camponeses, diria que


a Gerardina lhe lançou um mau olhado.

Huguette teve um melancó lico sorriso. Era bem verdade, que por
culpa dessa mulher a dú vida penetrara por um momento na sua alma
e ainda hoje sentia a sua influência nefasta entre Renato e ela.

234 No entanto, os Daussy tinham deixado a regiã o. Sem dú vida, no


velho Mateus, informado pela neta, temia revelaçõ es
comprometedoras. Aliá s a vida ser-lhe-ia intolerá vel, pois todos
tinham chegado à conclusã o que Gerardina, Gonthier e o ex-feitor
eram os autores dos primeiros boatos de acusaçã o contra os Armilly.
Tinham agido com tal habilidade que aqueles a quem tinham
insinuado essas suspeitas, pensaram tê-las de motu-pró prio. Além
disso soubera-se entã o que Gonthier Daussy tinha informado a
alguém de alta posiçã o das relaçõ es frequentes entre Armando
Delbeaume e os Armilly.

O souto tinha sido adquirido pelo senhor de Avrets, bem como a Casa
Vermelha, aquela moradia em que Gerardina combinava os seus
planos de vingança e preparava a há bil teia que devia prender Rosy
numa trama cerrada. Mas continuavam ainda em Myols a existir
traços do veneno distilado pela neta de Mateus Daussy, e Huguette
sentia bem a sua amargura.

Num dia de inverno, depois do pequeno almoço, Renato disse a sua


prima:

202
Queria falar-lhe, Huguette. Quer vir por algum tempo ao escritó rio?
Fez um gesto de concordâ ncia e seguiu-o até ao vasto compartimento,
muito confortá vel com o tapete espesso, soberbo presente do senhor
de Vauthars, Renato aproximou-se da chaminé e sentou-se de costas
para a janela, depois de ter arranjado uma cadeira para Huguette.

Vou direito ao fim, sem qualquer preâ mbulo disse tranquilamente.


Huguette, recebi dois pedidos de casamento para si.

235 Fez um gesto de surpresa e corou um pouco.

Dois? Oh! primo! Quem teve essa ideia? exclamou ela com admiraçã o
sincera, mas sem qualquer alegria.

Acho muito natural. Por ocasiã o dos três casamentos que se


realizaram aqui, recebemos alguns estranhos e nã o é de admirar que
de entre eles alguém tenha reparado em si. Trata-se de Laurent de
Avrets, o jovem oficial parente de Clemente, e do conde de Laurisan-
Sauvard, sobrinho dum amigo íntimo do senhor de Vauthars. O
primeiro é novo, inteligente, amá vel e suficientemente rico; o segundo
deve ter cerca de quarenta anos, é menos brilhante que Laurent, mas
duma inteligência notá vel, dizem que muito bondoso, aliado à s
principais famílias de França e possuidor duma soberba fortuna, que
mais aumentará depois da morte do tio, de quem é o ú nico herdeiro.
Sã o estes os seus pretendentes, Huguette. Decida.

Falava com grande tranquilidade, como o faria o mais correcto e


indiferente dos tutores, Huguette sentiu-se angustiada, e os dedos,
sem que o notasse, amarfanharam o tecido da saia,

Responderá a esses senhores que lhes agradeço o pedido, mas que


nã o penso ainda em me casar replicou ela, tentando dominar a voz
trémula.

Renato teve um imperceptível estremecimento”

203
Convém reflectir antes de tomar qualquer resoluçã o. Dê-me a sua
resposta somente amanhã ”

Mas ela abanou vivamente a cabeça.

É inú til, seria a mesma. Estou decidida.

236Renato observou-lhe com esforço:

No entanto, na solidã o em que vivemos e da qual parece nã o querer


sair, terá poucas ocasiõ es de reencontrar semelhantes partidos. O
senhor de Laurisan é um perfeito cavalheiro.

É muito rico! interrompeu-o com vivacidade.

É uma razã o pouco banal! Entã o o senhor de Avreta é muito menos,


tem bom cará cter...

É demasiado novo murmurou Huguette, que nã o encontrava qualquer


razã o séria para objectar contra esses dois pretendentes, cujo pedido
devia satisfazer a mais exigente. Mas já lhe dei a principal razã o: nã o
penso ainda em me casar.

Ergueu-se para acabar aquela entrevista, que julgava supérflua e


singularmente penosa.

Uma brasa que se desfez na lareira espalhou um clarã o de faulhas. O


rosto de Renato ficou subitamente iluminado e pareceu a Huguette
um pouco alterado.

O senhor de Armilly disse claramente:

Talvez venha a lamentar esta decisã o tã o rá pida. Em qualquer caso, só


responderei daqui a dois dias. Se mudar de opiniã o, bastará dizer-mo.

Mas Huguette continuou firme na sua resoluçã o pois as duas cartas


que partiram dias depois dirigidas ao tenente de  vrets e ao senhor
de Laurisan continham recusas.

204
No mês de Maio seguinte, Huguette atingiu a maioridade. À quele
acontecimento, que correspondia ao baptizado do primeiro filho de
 ngela, deu ocasiã o a um grande jantar, que reuniu em Myols, além
do”

237seus habitantes usuais, os Avrets, o cura de Siry, Silvina e o


marido, em goso de licença,

Huguette mostrou-se alegre e faladora, pareceu encantada com os


presentes que recebeu pelo seu aniversá rio, e entre os quais se via um
colar de finas pérolas, presente principesco da senhora de Vauthars
Mas sob aquelas aparências de boa disposiçã o, a jovem alimentava
uma secreta dor... Enquanto todos tinham pensado nela, quando
mesmo os criados se tinham cotizado para lhe oferecer um lindo ramo
de flores, o senhor de Armilly, só , parecia tê-la esquecido. Tinha-lhe na
verdade apresentado nessa manhã as suas felicitaçõ es, mas talvez nã o
julgasse a propó sito imitar os outros oferecendo uma lembrança à sua
insignificante prima.

Insignificante e quem sabe se nã o incó moda? Nã o sabendo como


explicar a mudança de atitude de Renato, era obrigada a julgar que era
para ele um encargo, um pesado incó modo e que aspirava a ver-se
livre dessa tutela. Nesse caso, apressar-se-ia a deixar Myols logo que
atingisse a maioridade.

Era essa perspectiva que nessa tarde, em certos momentos, velavam


de certa sombra os grandes olhos violetas de Huguette. A velha
moradia tinha-lhe prendido já o coraçã o e principalmente os seus
moradores ocupavam nele um grande lugar. Todos, mesmo Renato,
apesar da sua glacial reserva. Huguette pensava com dolorosa alegria
que o seu afecto era assaz forte para lhe dar a coragem de se
sacrificar, se fosse necessá rio, para ele ser feliz.

À noite, enquanto os convidados estavam reunidos

238 no salã o, Silvina aproximou-se da prima e disse-lhe a meia voz:

Venha comigo um instante, querida Huguette. Huguette seguiu-a até à


sala dos antepassados.

205
Renato estava ali, tendo entre as mã os um grande escrínio, que
examinava atentamente. Avançando para a prima, disse;

Estou muito atrasado para lhe dar o meu presente, Huguette. A pessoa
a quem tinha encarregado de mo expedir, faltou ao combinado, e só
agora um mensageiro mo trouxe.

Enquanto falara, entregou o escrínio de couro castanho, com as


iniciais de Huguette. A jovem abriu-o com mã os trémulas e viu um
grande volume, encadernado em couro verde, com uma cercadura de
flores. Num â ngulo, entrelaçavam-se um H e um A. Abrindo o livro,
Huguette viu esta dedicató ria: À minha prima Huguette de Armilly.

Voltando a folha, leu o título: Pá ginas de Saboia, por Renato Luís.,. Era
uma obra do senhor de Armilly, recentemente editada, e de que tinha
feito a leitura em família no ano anterior, antes de a entregar à
impressã o. Huguette apreciara no seu justo valor aquela obra, nã o só
delicada como profunda, tinha-lhe expresso a sua opiniã o com
simplicidade e isto era, provavelmente, um agradecimento delicado de
Renato.

Disse com alegre surpresa:

Oh! agradeço-lhe! mas dedicar uma obra tã o erudita a uma pobre


ignorante como eu!,.,

Está a diminuir-se, Huguette. É pelo contrá rio muito instruída e capaz


de compreender obras

239 mais profundas do que esta. Sinto-me contente por lhe poder
exprimir assim o meu reconhecimento pelo bom moral que trouxe a
minhas irmã s... e a mim pró prio, com a sua alegria, a sua fé viva e a sua
dedicaçã o silenciosa.

Falava gravemente; discernia-se nas suas palavras uma completa


sinceridade e uma espécie de emoçã o contida; mas a fisionomia
continuava impenetrá vel e, ao falar, fitava, por cima da cabeça de

206
Huguette, o retrato dum coronel de Armilly, que outrora comandara
um regimento na Saboia.

Huguette respondeu com meiguice:

Fiz pouca coisa, nã o passei dum instrumento da Providência. Obrigado


mais uma vez, primo.

Estendeu-lhe a mã o. O tutor curvou a cabeça e beijou-lha levemente.

Se os meus votos têm qualquer valor para a sua felicidade, receba-os,


Huguette disse em voz um pouco mudada.

Afastou-se e entrou no grande salã o. Huguette ficou no mesmo lugar,


folheando maquinalmente o soberbo volume. Silvina, cuja fisionomia
exprimia certa perplexidade, pousou a mã o no ombro da prima.

Minha pequena Huguette, que há entre ti e o Renato? perguntou ela de


repente.

Huguette corou, balbuciando:

O que há ?... Mas nã o sei nada... ou melhor, nã o há nada. Que quer que
haja, Silvina?

Se lho pergunto, prima! Nã o sã o os mesmos um para o outro; Renato é


cerimonioso como nunca foi, mesmo até nos primeiros tempos. É um
modelo

240 de perfeito tutor, mas para um primo, enfim... E eu tinha


pensado...

Huguette nã o soube nessa noite o que Silvina tinha pensado, pois


 ngela apareceu, dizendo que o cura queria retirar-se e desejava
despedir-se das duas.

207
Huguette levou nessa noite para o quarto todas as suas prendas de
aniversá rio. Arranjou cuidadosamente as pérolas de Berta numa
gaveta, com algumas outras jó ias que lhe tinham oferecido e que
julgava inú teis na sua existência retirada, dispô s pelo quarto as lindas
bugigangas, presentes de Lauriana e Silvina, dispô s sobre o parapeito
da janela os vasos cheios de flores e na mesa de trabalho o livro de
Renato, pensando que lhe devia esta reparaçã o, por o ter acusado,
durante o dia, de esquecimento.

Nã o, nã o a tinha esquecido, era demasiado cortês, demasiado correcto


para nã o cumprir aquele dever de delicadeza a respeito da sua pupila
da véspera... Um dever e nada mais. E precisava de concordar que o
tinha cumprido com requintes.

E Huguette, que tinha aberto o livro, fechou-o com rapidez, para nã o


mais ver aquela inscriçã o que lhe causava uma singular e inexplicá vel
irritaçã o À minha prima Huguette de Armilly.

XXI

No dia seguinte de manhã , o senhor de Armilly informou a sua ex-


pupila de que desejava prestar-lhe as contas da sua tutela. Huguette
entrou com ele no escritó rio e sentou-se perto do primo, que se tinha

241

sentado à secretá ria. Ouviu distraidamente o relato da fortuna que lhe


advinha dos pais, mas estremeceu ao ouvir Renato pronunciar numa
voz mudada;

Eis agora o que herdou de Vitó ria. Com os juros acumulados, isso
perfaz.,.

Mas interrompeu-o com um gesto

Nã o aceitarei mais que o Renato! Para ter recusado essa herança, que
parece no entanto pertencer-lhe legitimamente, deve ter uma razã o
séria que também existe para mim,

208
Há na verdade uma razã o replicou ele firmemente. Ser-lhe-ia
impossível na realidade conservar esta fortuna. Como já lhe disse,
creio que tem um fundo desonesto...

As têmporas de Huguette começaram a bater violentamente, Levada


por um irresistível impulso, exclamou com voz opressa:

Renato, por que razã o quis casar com Vitó ria? O rosto de Renato
alterou-se sob a violência da emoçã o de que nã o foi senhor.

Por que razã o?... Há muito que formou uma opiniã o sobre isso! disse
num tom duro, erguendo a cabeça com altivez. Que lhe importa o que
eu disser? Está persuadida como toda a gente de que atraí Vitó ria por
causa do seu dinheiro.

A jovem juntou as mã os num gesto de protesto.

Nã o é verdade... Oh! pensei nisso um instante.,, um instante apenas, e


sofri tanto... Mas depressa compreendi que essa hipó tese era
inadmissível, que devia ter imperiosas razõ es para proceder desse
modo. Renato, perdoe-me ter por um instante duvidado de si, sob a
instigaçã o duma pérfida criatura!

242É para mim um modelo de lealdade e honra.,, Oh! acredita-me?


disse ela com angú stia. Ripostou-lhe num tom glacial:

Nã o tenho qualquer razã o para duvidar de si,

Mas entã o, por quê?... Interrompeu-se, nã o ousando continuar... Mas

precisava de saber, de pô r fim de qualquer maneira à estranha


desinteligência que existia entre eles.

Perguntou em voz trémula, sem fitar aquela fisionomia que a esfriava:

Por que razã o mudou de atitude para comigo? Por que me trata como
a uma estranha?

209
Ele ergueu-se com brusquidã o e a mã o apoiou-se-lhe fortemente na
secretá ria.

Porque me causou um dos maiores sofrimentos da minha vida,


Huguette disse em voz rouca. Naquele dia em que me interrogou aqui
mesmo... em que eu vi nos seus olhos que duvidava de mim, pareceu-
me que uma barreira se ergueu entre nó s. Nã o pude suportar o odioso
pensamento que tivesse acolhido as insinuaçõ es da Gerardina, que me
cria um miserá vel caçador de dotes... Nã o, de si, nã o pude suportar
isto, e pensei que a nossa recíproca confiança estava morta, que
jamais ressuscitaria.

Huguette tinha-se erguido e agora os seus olhares cruzavam-se,


igualmente altivos e resolutos.

Feri o seu orgulho, senhor de Armilly, e é essa a razã o por que me tem
rancor. Só tenho que me repreender duma dú vida involuntá ria e
muito curta, de que aliá s pedi perdã o. Dentro de dias o tempo apenas
de procurar um abrigo e terei deixado esta casa, onde me suporta
apenas por dever, onde

243nã o sou mais do que objecto de antipatia e transtorno.

Fez um movimento para se retirar. Mas ele estendeu-lhe as mã os.

Huguette, que está a dizer? Nã o sabe que sem a sua presença isto seria
um tú mulo? Nã o sabe?... Mas tem razã o, sou um louco, um orgulhoso.
Nã o podia pensar sem um estremecimento de horror que lutava talvez
contra o desprezo, e o meu amor pró prio abafava-me a voz do
coraçã o, que me pedia que lhe falasse, que lhe dissesse tudo,,, tudo o
que sonhava... Huguette, bem no fundo de si pró pria, nã o subsiste
qualquer dú vida a meu respeito?

Inclinara-se um pouco, e o rosto testemunhava a angú stia, que


provocou um estremecimento na jovem.

Nada, posso afirmar-lho disse gravemente. Teve sempre, e continuará


a ter a minha inteira estima, Renato.

210
E o tom, mais ainda do que as palavras, exprimia a sinceridade da
jovem e a comoçã o profunda que a dominava.

A fisionomia preocupada de Renato iluminou-se de sú bito. Agarrou


entre as suas a mã o um pouco trémula de Huguette.

Obrigado disse-lhe meigamente. Acaba de fazer desaparecer anos de


sofrimento,., E eu, que a fiz sofrer tanto e por tanto tempo, minha
pobre criança! Pedia-me perdã o ainda ha pouco. Eu é que devo
solicitar o esquecimento da minha frieza, da minha orgulhosa reserva.
Huguette, quer perdoar-me?

244 Teve um rá pido sorriso comovido, um pouco trémulo.

Ainda o pode dizer? Tudo está esquecido, e tornamo-nos os bons


primos de outrora, mais do que nunca confiantes.

Tinha ainda entre as suas a mã o de Huguette, fitando o olhar


emocionado na sua fisionomia pá lida e emagrecida.

Huguette, e se ousasse pedir uma prova dessa confiança? Se lhe


pedisse que fosse minha mulher, que diria?

A cor delicada de Huguette enrubesceu, sob o império de deliciosa


emoçã o.

Oh! diria que sim!

Estendeu-lhe as duas mã os, erguendo para ele o rosto de alegria


radiosa.

Nã o me acha demasiado velho, Huguette?.,. E nã o seria apenas por


dedicaçã o, por compaixã o? perguntou ele com alguma angú stia.

A jovem riu alegremente.

E queria convencer-me a casar com o senhor de Lanrisan! E no


entanto ainda nã o tem a sua idade. Quanto à segunda pergunta, saiba

211
que a ninguém mais me confiaria com tanto abandono, tanta
segurança.,. e felicidade.

Jamais vira, nos olhos de Renato, uma tal expressã o de alegria, Disse
num tom de vibrante comoçã o:

Creio-a, Huguette, os seus olhos nã o sabem enganar... Minha querida


noiva, farei o que puder para lhe dar um pouco daquela felicidade que
ainda nã o teve até agora.

245 Ainda teve menos do que eu, Renato! Quanto sofreu com aquela
infeliz acusaçã o.

Uma sombra velou o olhar do senhor de Armilly.

É verdade... e anteriormente! Huguette, vou contar-lhe tudo, nã o para


lhe explicar a minha conduta anterior, pois estou certo da sua
confiança em mim, mas para que nã o exista nenhum segredo entre
nó s.

A jovem sentou-se e ele retomou o seu lugar à secretá ria.

Vou-lhe relatar o que se passou no momento da morte de lady


Hardwell, nossa prima e mã e da Vitó ria: Augusto, chamado por um
telegrama, estava doente nessa altura, e foi eu, ainda adolescente, que
me dirigi a Inglaterra, ao condado de Durham, onde se tinha instalado
a minha tia depois da morte do marido. Encontrei-a em estado
desesperado, mas na posse de todas as suas faculdades. Falou-me
longamente da sua filha, que ia deixar só , pois todos os parentes do
lado paterno tinham desaparecido, e suplicou-me que tomasse o
encargo, em nome da minha família, de a proteger e levar a viver
connosco. Prometi,., Mas foi apenas o primeiro anel da cadeia que iria
manietar-me. Em algumas palavras entrecortadas por dolorosos
soluços, contou-me que tinha há pouco tempo descoberto que a
fortuna do marido tinha sido edificada com uma soma considerá vel,
subtraída ao seu legítimo proprietá rio por meios que nã o estã o na
alçada da lei, mas que os homens honestos nã o acham menos odioso.
Desde o momento em que fizera aquela descoberta, parecia à pobre
senhora que a fortuna a queimava, e que o

212
246facto a abafava. Mas nã o podia fazer nada, pois tudo pertencia à
filha.

”Conto consigo, primo, para cumprir essa tarefa de reparaçã o


declarou-me,

”Exclamei:

”Comigo? E que posso fazer?

”Muito, talvez.,, Renato, a Vitó ria amou apaixonadamente o pai, que


sempre considerou um modelo de honestidade, e eu queria que ela
nunca soubesse desse desfalque.

”Pobre mulher, designava com aquela palavra indulgente a falta


imperdoá vel desse homem, que conservou sem escrú pulos, durante
toda a sua vida, o dinheiro de outro, mesmo quando os seus ganhos
anorínes lhe permitiriam tã o facilmente reparar tudo!

”Lady Hardwel continuou:

Ao vê-lo, Renato, pensei que aceitaria fazer isto por Vitó ria. Casaria
com ela e, sem ela o duvidar, ser-lhe-ia fá cil restituir, se nã o fosse
possível tudo duma só vez, pelo menos pouco a pouco, o dinheiro
subtraído por sir Hardweel, com todos os juros,

no primeiro instante, recusei- A pretensã o parecia-me demasiado


forte. O quê? alienar de antemã o a minha liberdade, assumir a
obrigaçã o de reparar uma falta cometida por um quase estranho?.,.
Mas a tia Duplicou-me, tornou-se patética, e senti-me quebrado

213
Muitas vezes, outrora, me chamaram dom

Quichote, e creio que tinham alguma razã o.,, E depois, a Vitó ria era
nessa altura uma linda menina, um pouco presumida, é verdade, mas
que parecia meiga e bondosa, que a mã e amava ardentemente e que
me aparecera, no dia da minha chegada

247irresistivelmente tocante com os cabelos dourados soltos e os


grandes olhos cheios de lá grimas. Se tivesse podido prever a natureza
que se escondia sob aquela aparência graciosa, jamais teria
pronunciado aquela promessa de casar com Vitó ria se ela quisesse
aceitar o meu pedido quando atingisse a maioridade. Caso contrá rio,
repetir-lhe-ia a revelaçã o que a mã e acabava de me fazer... mas só em
ú ltimo extremo, repetira-me a pobre senhora com angú stia. ”Oh! o que
foram para mim os anos que se passaram depois!... Ao fim dum ano, a
Vitó ria tinha-se já transformado, moral e fisicamente, e o afecto que
em princípio lhe tinha dedicado mudou-se gradualmente numa
antipatia que a custo conseguia dissimular. No entanto, se ela
quisesse, seria a minha mulher. As consequências que o meu cérebro
inexperiente nã o puderam prever apresentaram-se-me entã o, mais
distintas à medida que se aproximava a data fatal. Evidentemente,
acusar-me-iam de ter seduzido a rica herdeira... E depois, Huguette,
que martírio viver ao lado duma criatura fantá stica, tã o
desconcertante com a sua astú cia de mulher e as infantilidades por
vezes cruéis, vaidosa a um ponto que nã o sei exprimir, e
ridiculamente convencida da importâ ncia que lhe dava a fortuna!

”No entanto, era preciso cumprir a minha promessa. A minha mã e, a


quem revelara o segredo de lady Hardwell, encarregou-se de
apresentar o meu pedido a Vitó ria. Esperei... aqui mesmo, trémulo de
ansiedade, e tendo ainda uma grande fé na sua resposta negativa, pois
a Vitó ria manifestava apenas a meu respeito uma simpatia igual à que
dedicara ao”

248 resto da família. Temia-me apenas um pouco mais. Vi a porta


abrir-se, entrar a minha mã e, trazendo Vitó ria pela mã o. Pobre mã e,
estava muito pá lida, e a voz tremeu-lhe ao dizer:

214
”Tens aqui a tua noiva, meu filho.

”Pareceu-me que o coraçã o deixava de bater de repente. Mas constatei


com estupefacçã o que a Vitó ria parecia radiosa. Estendeu-me a mã o
com entusiasmo e, durante toda a noite, mostrou-se extremamente
amá vel connosco. Isto durou dois dias. Já afirmava a mim pró prio que,
à força de paciência, conseguiria mudar aquele singular cará cter. Mas
os caprichos voltaram, e Vitó ria começou a tentar submeter-me a
todas as suas vontades. Encontrando-me resistente, revoltou-se, tanto
e tã o bem que uma tarde, e em seguida a uma violenta cena de
repreensõ es ridículas, declarou-me que o nosso noivado estava
desfeito.

Oh! que alívio! Recordar-me-ei sempre da deliciosa alegria que senti


quando, depois da Vitó ria ter saído, gritei:

”Livre! Estou livre!

”E minha mã e e irmã s, que tinham conhecido o meu sofrimento,


associaram-se à minha alegria. É esta a histó ria do meu curto
noivado”.

A jovem disse com entusiasmo:

Agiu nobre e lealmente, cumpriu a sua palavra até ao sacrifício,


Renato. Mais do que nunca me sinto feliz por me confiar a si... E é esta
a razã o por que nã o podemos guardar a herança da Vitó ria!

Como vê, esta fortuna teve um começo desonesto. Teria sido, se


tivesse casado com a Vitó ria,

249 uma das mais penosas provas parecer aproveitar-me dela e


esconder-me para fazer a restituiçã o. Nã o compreendi todas as
consequências da minha promessa, junto do leito de morte da minha
tia... Enfim, a pessoa lesada por sir Hardwell foi largamente
recompensada; o resto da fortuna que nos foi tristemente legada foi
distribuída por obras de caridade. Apenas a Rosy guardou a parte do

215
filho, mas mesmo essa parte nos voltou à s mã os e teve o mesmo
destino que as outras. Apenas resta a sua, Huguette. A jovem disse
alegremente:

Vai fazer muitas pessoas felizes. Será necessá rio dar parte ao nosso
bom pá roco, para a sua igreja e os seus pobres... E tenho uma ideia,
Renato! Se construíssemos num sítio bem arejado e pitoresco uma
espécie de sanató rio para as crianças pobres e doentes É uma boa
ideia e digna do seu excelente coraçã o. Estudá -la-emos seriamente.

A porta abriu-se, deixando passar a senhora de Armilly e Clotilde.


Renato e Huguette dirigiram-se para elas.

Minha mã e, eis a minha noiva disse Renato com emoçã o.

A senhora de Armilly exclamou alegremente, abrindo os braços a


Huguette:

Enfim!... enfim, meu filho, será s feliz! Clotilde, radiante, beijou com
ternura o irmã o e a prima.

E temos Myols, este ninho de celibatá rios, absolutamente


transformado disse ela, rindo-se. Apenas ficarei eu..., mas nã o serei
menos feliz

250por isso acrescentou ela sem melancolia, pois tinha aceite com
serena resignaçã o a dor da sua penosa enfermidade.

...Na noite desse mesmo dia, que devia deixar na alma de Huguette
uma inapagá vel e deliciosa recordaçã o, o senhor de Armilly, ao
regressar do jardim com a noiva, parou junto duma mesa do escritó rio
e abrindo um volume brochado que ali se encontrava, colocou o dedo
na primeira pá gina.

216
Numa segunda ediçã o, é preciso pô r aqui: A minha mulher disse ele
com um sorriso de contentamento.

E Huguette pensou que gostava muito mais daquela segunda


dedicató ria.

FIM

251 Acabou de se imprimir aos 37 de Junho de 1955,

na Tipografia da Livraria Progredior Avenida de

Rodrigues de Freitas, 383 Porto

Digitalizado e revisto no mês de Novembro de 2005 por:

Fá tima Tomá s

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