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Sofrer em Silêncio
M Delly
SOFRER EM SILÊ NCIO
Author: Delly
Coverdesign: Lucia Shaw
Traduçã o de HUMBERTO A. SANTOS
EDITORA LIVRARIA PROGREDIOR PORTORESERVADOS TODOS os
DIREITOS DE TRADUÇÃ O E PUBLICAÇÃ O EM LÍMGUA PORTUGUESA
(PORTUGAL E BRASIL)
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Era um jardim dum convento nos arrabaldes de Paris. Alguns ruídos
da grande cidade chegavam por cima dos velhos muros escuros,
cobertos de trepadeiras, mas sem conseguirem perturbar a quietude
do recinto ensombrado e fresco, onde as aves gostavam de
permanecer, seguras de nã o serem incomodadas naquele segundo dia
de férias, em que as ú ltimas alunas das Irmã s Dominicanas se iam
embora.
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Duvidas? Nã o me disseste que o senhor de Armilly te parecia muito
bondoso?
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meu tutor, a senhora Rosemonde de Armilly, e o filho, um rapazito de
doze anos, creio.
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Lauriana correu para um rapaz moreno como ela, e com o qual se
parecia bastante. Huguette encaminhou-se para um canto do
locutó rio, onde estava sentado o senhor de Armilly, seu tutor, e uma
senhora que lhe era desconhecida.
A voz era meiga, bastante cordial, e uma sombra dum sorriso passou-
lhe pelos lá bios pá lidos. Atraiu Huguette para si e deu-lhe um beijo
ligeiro.
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Se o deseja, primo disse timidamente, No entanto, se vou incomodá -
los no que quer que seja, deixem-me aqui, pois nã o serei infeliz,
asseguro-lhes.
Certamente que ainda poderia ficar aqui por mais um ou dois anos,
mas no fim seria sempre necessá rio partir... e conhecer Myols.
Estou, sim, prima. Queria dizer apenas um ú ltimo adeus à s boas Irmã s,
se mo permitirem.
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Julgo que tem cerca de trinta e cinco anos. Mas parece ter na verdade
mais. Creio que sofreu”
E satisfeito por conhecer alguém dessa bela regiã o, com que estou
entusiasmado disse o advogado amavelmente, estendendo a mã o a
Renato, depois de ter cumprimentado  ngela e Huguette.
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A nossa regiã o é admirá vel respondeu friamente Renato. Terá ocasiã o
de dar magníficos passeios, menina.
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Permite-nos entã o que nos vejamos muitas vezes?
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anos, terno, recto e alegre, pronto a dar os tesouros de afeiçã o
dedicada e sincera, e que se recolhia, desde o primeiro instante,
perante a reserva cortês e distante de Renato, melancó lica e altiva por
parte de  ngela.
II
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que jamais conheceria a velha moradia onde nascera e fora educada o
que, e a Saboia, de que gostava por instinto, a bela e altaneira regiã o,
toda embalsamada da recordaçã o do doce S. Francisco de Sales.
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Interrompeu-se um segundo e o rosto contraiu-se-lhe um pouco.
...A solidã o de Myols. Apesar de tudo, mais vale que nã o seja a criança
que sempre encontrei até hoje... É na verdade preferível, Â ngela.
Oh! ela nã o será infeliz... Será como nó s murmurou  ngela num acento
de doloroso sarcasmo.
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finos e regulares, uma notá vel distinçã o de maneiras, mas o rosto, se
bem que um pouco pá lido, era muito mais juvenil e fresco que o de
 ngela, e os olhos eram negros, belos e um pouco altivos.
Boa tarde, Huguette, sinto-me satisfeita por a conhecer. Vai ser como
uma pequena irmã para nó s, pois é a mais nova. Eu tenho vinte e
quatro anos...
17Ao responder à prima com uma das frases graciosas que lhe vinham
do coraçã o e que sabia pronunciar quando nã o estava intimidada,
Huguette constatou que a alegria de Silvina era como a do irmã o e a da
irmã .
17
Devíamos ter mandado fechar a carruagem.
Compreendo-o, mas sabes tã o bem como eu que é inú til. Mais vale
encararmos corajosamente a realidade.
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Saboia, uma antiga praça forte, que conhecera dias gloriosos. Hoje em
dia, o fosso cheio de á gua subsistia ainda, mas a ponte-levadiça
desaparecera, dando lugar a uma larga ponte de pedra escara por
onde passou
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Berta guiava a irmã cega. Se bem que Clotilde fosse um pouco mais
alta que o vulgar, parecia pequena junto da irmã , mais alta do que
Renato, bem feita e um pouco forte. Berta de Armilly tinha uma cabeça
poderosa, traços irregulares e muito acentuados, uma pele amorenada
e uma expressã o pouco afá vel, misto de tristeza e orgulho sombrio,
mas possuía uma magnífica cabeleira negra de reflexos azulados, e
revelava ter um alto conceito pela nobreza de atitudes, a aristocrá tica
distinçã o, apaná gio dos Armiliy.
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Ela encolheu levemente os ombros.
Ele pró prio se sentou a seu lado, e também  ngela, que chegara um
pouco antes, dizendo que Silvina tinha ido procurar a mã e ao jardim.
Nenhum dos viajantes comeu muito. Huguette sentia-se comovida
pela sú bita mudança de existência, e um pouco intimidada pela frieza
polida e a altivez triste dos que a rodeavam.
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À quela impressã o de grave e quase majestosa tristeza era ainda
acentuada naquele compartimento pela meia obscuridade que
criavam as persianas semi-corridas. Renato foi abrir uma das grandes
portas envidraçadas e o sol penetrou em golfadas de luz, iluminando
as paredes onde estavam dependurados, nas suas molduras
trabalhadas, magistrados de togas vermelhas, senhores em fatos de
veludo, damas sorridentes e sumptuosamente vestidas.
A nossa pequena prima! Seja benvinda a Myols, minha filha disse ela,
com tranquila benevolência.
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Felizmente para ela,,, e para nó s murmurou a senhora de Armilly
numa voz alterada”
- Pensei outrora que esta mulher frívola e desrazoá vel seria capaz de
tudo - bom ou mau - para tornar o filho mais feliz.
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 ngela, com um gesto, convidou a prima a segui-la, e as duas, depois
de terem atravessado a sala de jantar, subiram a larga escadaria de
pedra escura. Depois de percorrerem um comprido corredor do
primeiro andar, Angela abriu uma porta e disse:
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Era o quarto do seu pai, e foi aqui que a prima também nasceu disse-
lhe  ngela, colocando no seu lugar uma cadeira que estava no meio do
quarto. Arranjá -lo-á a seu gosto. No só tã o, temos alguns mó veis e
recordaçõ es de família, que o Renato mandou guardar depois da
morte da sua mã e. Dispô -los-á aqui como lhe agradar: preferimos
deixar isso a seu
cuidado, pois nã o conhecíamos o seu gosto.
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e vestidos simples, mas suficientemente ao gosto da época para que a
jovem andasse como toda a gente. Nã o era culpa da boa Irmã Á gata se
aquela pequena pensionista trazia com incompará vel elegâ ncia e um
encanto pró prio os mais modestos vestidos, e até o
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Os lá bios de Silvina estremeceram um pouco ao pronunciar estas
palavras. Mas, abanando com vivacidade a cabeça, agarrou num braço
de Huguette e as duas, atravessando o corredor, desceram a escadaria
imponente de largos degraus, já bastante gastos.
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natural obedecessem a esse homem grave e orgulhoso, em que se
adivinhava, sob a frieza distante, um espírito superior. Por outro lado,
o sofrimento que parecia ter marcado a testa de Renato dava-lhe, se
bem que fosse ainda novo, uma extrema autoridade moral, e Huguette
achou simples continuar a submeter-se à atracçã o dominadora
exercida nela pelo tutor desde o primeiro dia em que lhe apareceu,
investido das suas funçõ es, no locutó rio do convento, ele, um jovem já
sério, mas nã o austero como hoje, ela, uma pequena tímida e receosa,
que ele encorajara com a sua bondade. Mas quando voltara no ano
seguinte, vira-o já mais ou menos como hoje, subitamente
envelhecido, mais grave e mais frio, mas guardando sempre o olhar
recto e altivo que a tinha impressionado mesmo ainda em criança... E
Huguette, já mais crescida, sentia-se invadida em relaçã o ao tutor da
mesma instintiva confiança que se tinha apoderado da pequenita de
outrora.
29 III
Apó s uma fervorosa prece feita junto do crucifixo suspenso por cima
do leito, Huguette foi abrir a janela e aspirou com delícia o ar paro,
vivificante,, saudà velmente perfumado. Estava uma maravilhosa
manhã de verã o, e Huguette, como na véspera, ficaria esquecida a
contemplar as montanhas douradas pelo sol nascente, se o ruído
duma porta, ao abrir-se por baixo da janela, lhe nã o tivesse feito
baixar os olhos.
Uma grade de ferro forjado tinha sido colocada à beira da falésia. Para
o terraço um pouco estreito que assim fora feito, abriam-se todas as
janelas do rés-do-chã o e fora uma delas que Huguette ouvira abrir,
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Uma criada com uma touca de renda apareceu, trazendo alguns
tapetes e panos de seda clara que começou a sacudir com
desembaraço. Mas uma longa campainha soou no interior e, com um
gesto de impaciência, a criada desapareceu.
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31 aquela alegre vivacidade a que se acabava de referir? Nã o se podia
imaginar isso agora.
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Renato, há oito anos para cá , publicou umas pesquizas muito curiosas
sobre a histó ria da Saboia. Tiveram um grande êxito junto dos
eruditos e até entre os simples amadores de estudos histó ricos. Mais
tarde apareceu um segundo volume, também muito bem acolhido, e
agora Renato prepara um outro, que deve terminar este inverno.
Essas obras sã o assinadas com um pseudó nimo, pois o meu irmã o
detesta toda a notoriedade, toda a curiosidade estranha. Mas aquela
modéstia, que nos pareceu bastante exagerada no princípio, foi em
seguida completamente justificada...
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Que lugar delicioso! disse Huguette, encantada. Deve vir aqui muitas
vezes no verã o” Clotilde?
Pois sim, prima Huguette. Estou sempre satisfeita, desde que me sinta
ao lado duma pessoa que ame. E creio que vai pertencer ao nú mero
delas, pois, pela voz e pela descriçã o que me fizeram as minhas irmã s,
creio que deve ser boa e meiga, talvez boa de mais... acrescentou
pensativamente
Entã o seria preferível nã o ter coraçã o, ou, pelo menos, muito pouco?
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Nã o falará sempre assim replicou a menina de Armilly, abanando a
cabeça. Começa agora a conhecer a vida real e julgo que é muito
religiosa...
Desejo que assim seja por si, pois será uma consolaçã o. Mas os
acontecimentos mudam muitas das nossas resoluçõ es e por vezes a
infelicidade transforma e endurece os coraçõ es mais ternos e
fervorosos.
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Huguette, informando-se da maneira como tinha passado a noite.
Depois beijou Clotilde com calma ternura.
O pobre velho está cheio de dores, Como passará o pró ximo inverno?
Enfraquece-se cada vez mais... É absolutamente indispensá vel
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arranjar quem o possa substituir, ou pelo menos ajudá -lo. Nã o sei bem
como o hei-de conseguir.,,
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E uma ternura apaixonada revelava-se naquelas simples palavras.
Nã o pode deixar de ser assim depois dum dia passado num quarto
fechado, ao lado duma pessoa doente e na companhia da Gerardina,
que nã o gosta de crianças disse Renato num tom glacial. Enquanto
submeter o Luís à deplorá vel higiene cujos perigos já lhe mostrei, nã o
deve esperar qualquer melhora no seu estado de saú de, pelo
contrá rio,
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39Rosy? perguntou a senhora de Armilly, num tom conciliador.
Mas ninguém pareceu acompanhá -la, e até Berta disse com frieza:
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o Luís está sempre doente e os médicos asseguram que nã o poderá
sair daqui, nem por pouco tempo. Mas agora tem passado melhor, e
projecto para o ano uma viagem magnífica...
Duvido disse Renato num tom sarcá stico. Levantou-se da mesa, pois a
refeiçã o estava terminada. Junto dele, a cunhada parecia mais
pequena, mais infantil ainda.
Oh! nã o agora, Renato! Prometi-lhe levá -lo de carro à Fonte dos Cisnes
exclamou Rosemonde com vivacidade.
A esta hora?... E com este calor! Em que pensa? Se sair à s quatro horas,
será ainda cedo, e até lá o Luís trabalhará comigo..., nã o é assim, meu
rapaz?
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recebeste os novos livros que querias...
Ele? Diga que sob a pressã o do tio, que soube habilmente subjugar o
seu espírito...
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dois, a fim de cumprir o ú ltimo desejo do Augusto, que muito lhe
recomendou a esposa e o filho. Esperá vamos que depois daquela
desgraça, a Rosy se tornaria mais séria. Na altura em que o Renato fez
a promessa de proteger e ajudar os que ele deixava na terra, nã o
pensá vamos e ele também nã o que isso nos ia custar tantos desgostos
e sacrifícios,
IV
43Sem frases, mais por actos do que por palavras, os parentes tinham-
lhe dado a entender que estava em
sua casa.
Huguette foi por isso levada, logo no dia seguinte ao da sua chegada, à
enorme cozinha, duma escrupulosa limpeza, onde a acolheu a
cozinheira, velha mulher muito fatigada, cujo rosto pergaminhado se
iluminou ao ver aparecer a jovem,
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Que ideia, Aglaé! disse um pouco bruscamente Silvina. Ponha os
ó culos, e verá se pode dizer o mesmo... Huguette, se quer, ajudará a
Aglaé a fazer o almoço, enquanto irei com a  ngela arrumar a casa.
Ensinaram-na a cozinhar no convento?
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perceber os seus sentimentos para que Huguette o tivesse bem
depressa compreendido.
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Huguette teve um pequeno enrugar de sobrancelhas. Desagradava-lhe
imenso ser a confidente dos desagravos e do rancor daquela mulher
pelos parentes de seu marido, e resolveu cortar cerce os esforços
visivelmente tentados por Rosemonde para a tornar sua aliada.
Nã o sei de que velhas normas de vida me fala disse com secura, mas,
em todo o caso, nã o impedem que o senhor de Armilly seja uma
pessoa honesta e um perfeito cavalheiro e as minhas primas pessoas
boas e distintas, Pode acontecer que essas ideias por si qualificadas de
ridículas, sejam também as minhas.
Agradeço-lhe, prima, mas como vê, tenho bastante trabalho por algum
tempo.
A Aglaé está aqui para fazer esse serviço, que a Huguette nã o deveria
fazer por razã o nenhuma. É muito linda, muito encantadora para se
ocupar com isso,
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A Â glaé nã o faz isto tã o depressa e nã o poderia já fazê-lo a tempo
disse com firmeza, designando o cesto de legumes que tinha na frente,
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uniã o segundo o seu gosto. Mas nã o sentia qualquer pressa e confiava-
se à providência, que lhe devia indicar o rumo da sua vida.
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Mas certamente. O que é que a admira, querida Clotilde?
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Nada, tem razã o, mais vale encarar as coisas como sã o! disse ele
bruscamente como se tomasse uma decisã o, Vá amanhã à igreja,
Huguette, e já que é tã o piedosa, tenha coragem, muita coragem...
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52 Huguette apertou mais estreitamente a capa de lã com que se
agasalhava..
Tem frio, Huguette? É talvez um pouco cedo para si, que nã o está
habituada à s madrugadas e à temperatura baixa daqui,
Falava num tom meio sério, meio iró nico. Huguette ergueu para ela o
olhar luminoso.
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da pobre cega, mas aproximava-se muito da grave reserva de Renato,
sem ter a frieza algo altiva com que ele se defendia. Silvina era uma
jovem recta e enérgica, inteiramente dedicada aos seus, e aceitando
corajosamente o fardo dos deveres cotidianos e das provaçõ es
desconhecidas que pareciam pesar sobre aquela família. Essas
qualidades compensavam amplamente uma certa aspereza que se
notava por vezes no tom e nas palavras da menina de Armilly
aspereza que Huguette suspeitava ser destinada a esconder o
sofrimento dum coraçã o caloroso e sensível.
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Que temos nó s de singular, Silvina? Por que é que estas pessoas nos
fitam com tanta malevolência? perguntou Huguette em voz opressa,
Está pronta?
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que três ou quatro mulheres, que ergueram a cabeça à passagem das
jovens e fitaram Huguette com uma curiosidade pouco benévola.
56Mas que têm eles? Que lhes fizemos? murmurava a pobre Huguette,
rubra de confusã o.
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É É dmée de Avrets respondeu lacò nicamente Silvina.
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uma criada que as tinha ouvido. Mas essa mulher, afastada do castelo
devido a uma falta grave, nã o mencionou que só a Vitó ria soltara
palavras ameaçadoras e irritadas, enquanto Renato permaneceu
calmo, senhor de si, na
58 frente daquela pequena faria. Além disso, era notó rio que as
dissençõ es eram frequentes entre nó s e Vitó ria, que essa parenta,
primeiro pupila do Augusto e depois do Renato, apó s a morte do
irmã o mais velho, era para nó s um pesado encargo moral. Em breve,
de deduçã o em deduçã o, acusaram-nos da morte da nossa prima. Foi
uma loucura geral na regiã o. Renato foi preso, julgaram-no, mas
faltavam provas formais e os juizes nã o puderam fazer outra coisa que
absolvê-lo. No entanto, no fundo, nã o acreditaram na inocência que
acabavam de proclamar, e ninguém quis acreditar... Fomos todos, até
mesmo Rosy, englobados na reprovaçã o geral de Renato. Como
vivíamos muito retirados desde a morte do pai, acusaram-nos de nos
escondermos por orgulho, por vergonha da malquerença que
substituíra a influência de outrora; pretendiam que sentíamos inveja
do luxo e da fortuna da Vitó ria e que, apesar de parecermos aceitar
corajosa e altivamente a nossa posiçã o medíocre, desejá vamos
apaixonadamente tornar-nos ricos. Alguém declarou que éramos sem
dú vida cú mplices do Renato, pois todos nó s tínhamos um grande
quinhã o a receber da herança de Vitó ria, e eis a razã o por que,
Huguette, nos vê afastados da sociedade, eis por que também o será ,
pobre prima” Chama-se Armilly, e é também herdeira da Vitó ria.
A sua mã e era prima do pai dela, como o era o nosso. Renato nã o lhe
disse nada porque nã o gosta de falar na Vitó ria. A pobre criatura
causou-nos muitos aborrecimentos em vida, e vê bem em que situaçã o
nos colocou a sua morte.
Talvez vá perguntar a razã o por que ficamos aqui, apesar de toda esta
malquerença, obrigadas a fechar-nos em Myols e ameaçadas de nã o
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ter em breve nem um criado, pois as pessoas daqui nã o querem servir
em nossa casa e os que tentá mos mandar vir de longe foram bem
depressa convencidos e abando” naram-nos. Mas além de nã o termos
os meios de fortuna suficientes, nã o queremos fugir como criminosos,
pretendemos desprezar a opiniã o pú blica e ficamos em Myols, altivos
da nossa pobreza, pois nã o tocá mos na herança da Vitó ria. Apenas a
Rosy pretende conservá -la para o filho.... mas a Rosy é uma criança
acrescentou Silvina, encolhendo os ombros. Nã o tem senso nem
julgamento. Quando o Luís atingir a maioridade, verá em que
consistirá o seu dever... Aquela fortuna, que nos pertence
legitimamente, tem uma origem pouco recomendá vel, disse-nos o
Renato, declarando que nã o podia explicar mais. Mas acreditá mos e
abandoná mo-la. Pretenderam entã o que tínhamos remorsos e que
temíamos que aquele dinheiro nos trouxesse apenas desgraças...
Como se nos pudesse acontecer coisa pior do que aquela que nos
aconteceu!
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ignorâ ncia. Mas era impossível como compreendeu. Interrompeu-se e
ficou por instantes silenciosa, fixando o olhar penetrante no rosto
transtornado da prima.
E agora disse ela num tom grave, é livre de acreditar que somos
culpados, pois na realidade nã o sabe mais do que as pessoas daqui.
É uma grande alma, minha querida prima disse Silvina com alguma
emoçã o, e sei que pela sinceridade é uma verdadeira Armilly. Mas
talvez um dia venha a duvidar.
Sim, sei que é uma prova penosa disse Huguette, estremecendo ainda
com a recordaçã o dos olhares hostis que as tinham acolhido. Mas
teremos ainda maior mérito. Pelo meu lado, estou resolvida a nã o me
preocupar com isso e a cumprir o meu dever a despeito dessas
pessoas mal informadas.
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Veremos se terá coragem de ir até ao fim dessa resoluçã o. Nã o calcula
a soma de energia necessá ria para ouvir contínuos insultos. Renato e
Já sabe, minha pobre filha!... Eis tudo o que lhe posso oferecer em
Myols: um abrigo que nunca deixou de ser honesto na realidade, mas
que nã o o é aos olhos do mundo, humilhaçõ es fora daqui,
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63 uma vida melancó lica e presa... Há poucas probabilidades que
arranje casamento, Huguette,
Nã o o ignoro. Pois bem, ficarei solteirona e serei talvez bem feliz disse
ela, tomando um ar gaiato, para dissipar a tristeza que notava nas
palavras de Renato.
É isso mesmo disse a voz breve e seca de Berta. Mais do que nunca,
Myols merecerá o apelido que lhe deram na regiã o.... mais do que
nunca será o castelo dos Solitá rios... forçados.
VI
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Myols. Talvez nã o acreditasse, mas, se ousasse contrariar a opiniã o
pú blica, a família certamente que a impediria de continuar a manter
relaçõ es com a parenta daqueles que tinham sido considerados
criminosos. Por isso Huguette nã o deveria esperar tornar a ver a
amiga.
Mas abanou a cabeça ao chegar a este ponto das suas reflexõ es.
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No entanto, o souto era habitado. O atalho desembocava numa vasta
clareira, no centro da qual se erguia uma casa de tijolo acastanhado.
As janelas, muito largas, tinham vidraças reluzentes, por trá s das
quais caíam cortinas brancas. Alguns degraus levavam até à porta,
grande e aberta, deixando ver na semi-obscuridade um vestíbulo.
Aquela que falara assim deu alguns passos para a jovem interdita,
Huguette viu fitarem-na uns olhos ardentes, que fulgiam
estranhamente num rosto duma brancura tal, que parecia
abandonado pelo sangue. aquele rosto de má rmore, onde apenas as
pupilas pareciam ter vida, ardentes e sombrias, era coroado por uma
espessa cabeleira acinzentada que acabava de dar à quela fisionomia
uma originalidade incontestá vel,
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admirar a agilidade de movimentos, a graça do corpo, bastante alto, o
gosto perfeito que tinha presidido à escolha do vestuá rio e do
penteado,
disse num tom nntuoso, quase meigo. Conhecil o seu pai, um belo
homem, muito amá vel.... oh! muito amá vel!
Um riso sarcá stico sublinhou aquela frase. Como todos os Armilly, avô
disse Gerardina com certa ironia. Sente-se, menina,,, ali, na frente do
meu avô , para ele ver como se parece com Hugo de Armilly. Gerardina
desejava fazer a mesma observaçã o provavelmente, pois sentou-se
perto do avô , de maneira a ter sob o olhar a jovem, um pouco
perturbada por aquelas pupilas brilhantes que pareciam fixarem-na
bem.
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Conheceu o meu pai? perguntou Huguette ao velho, para dizer alguma
coisa, pois sentia-se singularmente opressa naquele ambiente
desconhecido.
Creio que o conheci muito bem! Era vivo como a pó lvora... Muito,
muito vivo! Hum! o fiel Mateus sabe alguma coisa!
Era a amiga de infâ ncia dos meus primos, disse-me Silvina? perguntou
Huguette, arrastada pelo desejo de conhecer alguma coisa da vida dos
seus parentes no tempo em que eram alegres e felizes.
O meu primo era alegre? repetiu Huguette num tom incrédulo. Julgava
que tinha sido sempre bastante sisudo.
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69 Mas de modo nenhum! Sério, sim, e altivo, muito altivo!,.,, mas
tinha ocasiõ es de verdadeira alegria, nã o é verdade, Gerardina?
70 Foi ele ou uma das suas irmã s quem lho disseram, nã o? Mas nã o
será uma prova...
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A filha interrompeu-o com um gesto imperativo. Há instantes que
permanecia silenciosa, mas no rosto, mais estranho que belo, nas
pupilas sombrias, Huguette vira reflectir-se uma expressã o enigmá tica
e perturbadora.
71 sentido qualquer afecto por Vitó ria, cujo espírito era vivo e
original, e quando o queria, o que acontecia raras vezes, tinha
maneiras muito graciosas. Mas nã o se sabia com o que esperar, em
boa verdade. Foi provavelmente por isso, numa dessas bruscas
mudanças de humor que confundiam os que com ela conviviam, que
rompeu o noivado de que se mostrara muito satisfeita.
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Oh! estaria tanto assim? murmurou o senhor Daussy. Tinha-se
persuadido ou tinham-na persuadido que era a uniã o mais desejá vel
que podia obter, mas talvez tivesse reconhecido que, com a sua
fortuna, podia aspirar a um pretendente melhor, por mais inteligente
e cavalheiro que este fosse, mas extremamente autoritá rio e
exageradamente sério.
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Hugaette nã o pô de recusar, se bem que sentisse uma impressã o
desagradá vel. Gerardina saiu da sala para buscar o chapéu, e o avô
seguiu-a com um olhar orgulhoso.
Ah! sim, o Luís! disse ela com certo desdém. Mas é tã o franzino! E em
todo o caso, será necessá rio que a mã e o leve para o estrangeiro; a
vida nã o lhe será possível aqui, com esse nome maldito.
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Um clarã o perpassou pelos olhos sombrios de Gerardina.
Tem razã o, e é preciso pensar que toda a regiã o está cheia de loucos e
de cegos. Até já , avô . O Gonthier já entrou e julgo que virá fazer-lhe
companhia.
VII
Huguette
saiu, seguida por Gerardina, cuja com prida cabeleira desaparecia sob
um largo chapéu de palha, guarnecido com uma renda. Quando
atravessavam o vestíbulo, abriu-se uma porta, aparecendo um homem
alto e largo, com um casaco de flanela branca, cuja gola aberta
revelava um pescoço forte. Huguette teve apenas o tempo de entrever
um rosto de traços acentuados, com uma barba ruça, olhos claros,
penetrantes e frios, que se fixaram por um segundo na jovem.
Cumprimentou-a e dirigiu-se para o compartimento que as duas
tinham abandonado.
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75 Vou fazer um pouco de companhia a essa pobre Rosy continuou
ela, quando entraram no atalho percorrido há pouco por Huguette.
Leva na verdade uma existência bem triste. Vive sempre só , pois nã o
pode suportar o cará cter um pouco austero e fastidioso das cunhadas,
e muito menos ainda o de Renato. Este tem na verdade muito pouca
indulgência para com uma senhora tã o infeliz, Pelo menos, devia dar-
lhe a liberdade da educaçã o do filho,
O seu afecto por ela torna-a um pouco parcial disse Huguette com
vivacidade. Desde que se admita uma conjura familiar contra a vida de
miss Hardwell, é muito ló gico englobar Rosy, pois a seu favor nã o há
mais provas que a favor dos outros. nã o vejo por que razã o julga os
parentes do seu marido mais capazes do que ela dum tal atentado
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acrescentou ela erguendo o olhar franco, um pouco irritado, para
Gerardina.
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Encontravam-se no jardim. Na sua frente, o castelo erguia as paredes
cinzentas e as velhas torres doiradas pelo sol de Agosto. Gerardina
estendeu a mã o naquela direcçã o.
Mas nunca souberam quem tinha sido o autor dos primeiros boatos?
O primeiro autor? Mas foi toda a gente, como sempre acontece. Uma
palavra deste provoca noutro uma ideia que vivia no seu
subconsciente e que nã o ousava mostrar a si pró prio; outros entã o,
encorajados, revelaram o conjunto das suas desconfianças
subitamente nascidas, a coisa chegou aos ouvidos da justiça,
indicaram-lhes uma via possível.... a deposiçã o duma criada acabou
por dar uma certa consistência à acusaçã o, e julgaram ser necessá rio
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prender um homem que até aí era considerado íntegro. Sã o erros
infelizmente muito frequentes nos anais da justiça... É uma coisa
terrível esta reprovaçã o que lançaram sobre toda a família.
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Agradeço-lhe, Gerardina, mas era inú til incomodar-se. Huguette pode
perfeitamente passear sozinha no souto.
Huguette, quer ir ter com a Silvina ao escritó rio? Creio que a minha
mã e e a Clotilde estã o também lá ,
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O senhor de Armilly penetrou na sala e Huguette
Foi por sua livre vontade a casa da Gerardina ou foi ela quem a
convidou inquiriu.
71
todos, exasperasse a tal ponto Rosy que a levasse a contrariar no que
podia o cunhado detestado!... Faltava de facto indulgência a Renato.
Seguiu-o até ao escritó rio, grande e comprida sala iluminada por cinco
altas janelas, guarnecidas com vidros claros. Toda uma parede era
ocupada por armá rios de carvalho cheios de livros. No extremo
erguia-se uma magnífica chaminé de madeira trabalhada,
72
Magnífico, minha tia, mas nã o muito comprido. Travei conhecimento
com a Casa Vermelha.
Tendo feito a sua escolha, Huguette fechou o armá rio e voltou-se para
se ir sentar junto da senhora de Armilly, mas os olhos caíram-lhe
sobre o quadro colocado por cima da chaminé e encontrou o olhar
imperioso e encantador de dois grandes olhos dum azul violeta.
73
Era sem dú vida Vitó ria Hardwell, a noiva de Renato de Armilly, a
causadora da dura provaçã o que pesava sobre toda a família. Era a
rica e fantá stica Vitó ria, que Renato, segundo Gerardina, se nã o
resignara a casar a nã o ser pela sua fortuna. Trazia orgulhosamente,
sobre o seu magnífico traje, jó ias maravilhosas; a mã o comprida e
branca mergulhava em parte num pequeno cofre cheio de pedrarias e
a cabeça altiva erguia-se sob o chapéu ornado de pérolas enormes.
85
odiosa que lhe parecia imputar a senhora Daussy. Era muito mais
verosímil pensar que uma real afeiçã o o tinha atraído para Vitó ria,
Agora que Huguette tinha observado aquele retrato, julgava isso bem
possível. Talvez tivesse tido o cará cter terrível pintado por Gerardina,
apesar da filha do antigo feitor ser dotada de alguns exageros. Aquele
cará cter tinha provavelmente o seu lado bom, que Renato descobrira,
74
por Renato, como o devia ser a sua afeiçã o por Vitó ria. Aliá s, a
presença daquele retrato no quarto de trabalho do senhor de Armilly
era mais uma prova.
86para reduzir as suas loucuras. O pai, filho mais novo duma velha
família inglesa, realizou na Austrá lia uma imensa fortuna, de que foi a
ú nica herdeira. Da raça paterna, ficou-lhe um pouco do gosto e um
senso prá tico da superioridade dada na sociedade a uma grande
fortuna; da mã e, herdara a graça francesa, uma grande vivacidade e
uma irreflexã o por vezes extrema. Mas que violência, que orgulho! E
apesar disso, era, em certos dias, duma fraqueza infantil, tinha uma
amabilidade encantadora. Mas nã o pode imaginar os caprichos, as
irresoluçõ es singulares que se desenvolviam naquele cérebro de
jovem! Foi para nó s um pesado encargo, pobre criança!... E no entanto,
quando queria mas muito raras vezes, possuía um atractivo a que era
difícil resistir.
Abrindo o livro, Huguette pensou que talvez tivesse sido essa atracçã o
fugitiva que decidira Renato a desprezar a opiniã o do mundo desse
mundo tã o mal informado e malevolente que nã o hesitara em afirmar
que fora a cupidez desse homem sem fortuna que o levara a desposar
a prima imensamente rica. E Gerardina, apesar da sua intimidade com
os Armilly, pensara como toda a gente.
VIII
75
tinham notado Silvina e Renato” jamais se casaria. O nome da sua
família era desprezado em toda a Saboia e qualquer família honesta
hesitaria em passar por cima da reprovaçã o que pesava sobre os
Armilly, Durante estes primeiros, tempos, tinha que continuar a viver
em Myols, sob a protecçã o daquela família desgraçada, de que
apreciava a tranquila bondade, por vezes encoberta sob fria
aparência. Poderia aqui ser ú til, aliviando as primas e tia, e um dia
decidi-los a abandonar Myols, a procurar numa terra estranha a paz e
um pouco da consideraçã o que lhe tinham retirado na sua pró pria
terra. Silvina afirmava que lhes faltavam os meios pecuniá rios. Mas
nã o tinha ela a sua pequena fortuna, que com satisfaçã o empregaria a
ajudar aquele êxodo?
76
que adoça e ilumina todos os sofrimentos, para a religiã o que dá um
bá lsamo para todas as provaçõ es.
Huguette
77
Minha pobre amiga, é indigno! Custou-me acreditar tal coisa de
pessoas que se dizem sensatas, tais como o presidente e o procurador,
que contaram ao Armando essa fantá stica histó ria. O meu irmã o nã o
pô de dominar-se que nã o fizesse ver aos seus chefes que considerava
isso como um monstruoso erro. Mas o procurador, que é um caturra e
que nã o esconde a sua animosidade contra a nobreza, mostrou-lhe tal
cara, que o Armando, para já , teve de
78
e Clotilde, prevenidos por ela daquele acontecimento inaudito que era
uma visita a Myols.
Adivinhou entã o que era uma maneira delicada de lhe dar a entender
que nã o partilhava da opiniã o dos habitantes de Vonsset, e
respondeu-lhe simplesmente, num tom onde se revelava grande
alegria.
79
magistrado que mantivesse relaçõ es com uma família sobre a qual
pesa tal suspeita,
Obrigado, senhor.... mas creio que lhe será bem difícil convencer o
mundo.
93E eu também! disse Clotilde. Nã o a vejo,, mas adivinho que deve ser
muito linda!,., E sei como é boa!
80
O regresso de Huguette fê-los calar. As visitas despediram-se, levando
quase a promessa de Clotilde, de Silvina e de Huguette de irem no
domingo seguinte a Vonsset.
Entã o receberam visitas? disse num tom mordente. A Melâ nia acaba
de nos transmitir essa notícia inacreditá vel. E nã o lhes passou pela
cabeça prevenirem-me desse acontecimento inesperado!
81
Era fá cil discernir no acento contido uma violenta exasperaçã o.
82
A senhora Daussy tinha até entã o ficado imó vel e silenciosa. Os olhos
sombrios fitos ora em Rosy ora em Renato, nã o reflectiam os seus
sentimentos. À interpelaçã o da viú va, deu alguns passos para Renato.
Nã o suporto que fale assim do meu irmã o! Sofreu esta liçã o um pouco
dura para as suas pretensõ es, apresentadas num tom realmente muito
arrogante, e compreendo que o Renato acabasse por se ter
impacientado.,.
Sei muito bem o que ele quer, pois em qualquer circunstâ ncia só
procura ferir-me e humilhar-me! Mas verá ... verá ! disse Rosy com um
acento de rancor, crispando no vestido as mã os guarnecidas de anéis.
83
Querida prima, fique por um momento. Fiz o projecto de a levar ao
meu salã o, para conversar consigo em sossego, como ainda nã o
consegui desde a sua chegada, pois está sempre acompanhada pelas
suas primas.
Minha pobre filha, ainda nã o notou que sou aqui considerada como
uma cabeça sem cérebro e que por consequência todas as minhas
palavras sem falar nos meus actos sã o passadas no crivo duma crítica
parcial? Sim, Huguette, nã o sou livre na presença de qualquer
membro da família de Armilly, e é por isso que a queria ter por
momentos só para mim, pois simpatizo imenso consigo, minha filha!
De boa vontade! Como já disse à menina Huguette, tenho por ela uma
grande amizade, e sentir-me-ia contente se conseguisse amenizar-lhe
a existência um pouco monó tona e austera que leva aqui.
84
Nã o posso, asseguro-lhe, prima. Rosy deixou escapar um gesto
colérico.
Nã o lhe perdoo nada! É muito boa, Gerardina. Mas sei que no fundo,
como eu, acha odioso este despotismo que pretende afastar de mim a
Huguette, como se eu fosse uma pestífera. Tenha cuidado, Huguette! Já
lhe recomendei que se nã o deixe aniquilar, pois em breve será tarde.
Mas tinha muitas vezes que se dominar replicou Rosy em voz trémula.
Bastava-lhe fazer qualquer observaçã o para que ela se revoltasse e o
enfrentasse. Imite-a, minha filha, creia na nossa experiência. É no seu
interesse que lhe damos este conselho...
E sabe por que razã o o seu primo quer evitar todo o contacto entre
nó s?... Simplesmente porque teme que lhe façamos entrever um
Renato muito diferente daquele que conhece.
85
Interrompeu-se ao ouvir passos na escadaria. Era  ngela, cuja
fisionomia exprimiu alguma surpresa ao vê-las paradas a meio do
vestíbulo.
Está -se muito melhor, pois sente-se menos o calor que nos outros
compartimentos respondeu-lhe Gerardina, estendendo-lhe a mã o. Mas
parece extenuada, querida  ngela. É por causa deste calor,
provavelmente, nã o?
86
Talvez disse pensativamente  ngela. Mas pense como ela é irritante! O
Renato nã o era assim para ela antigamente. Compreendeu no entanto,
desde os primeiros dias do casamento do Augusto, como era frívolo
esse cará cter, mas mostrava-se indulgente, e nunca o vi tã o iró nico e
friamente desdenhoso como desde,.,, vejamos.,., desde pouco mais ou
menos a morte da Vitó ria.
87
Huguette, estupefacta, podia entrever naquela fisionomia fatigada um
sofrimento indizível. Até entã o, julgara  ngela calma e resignada. Mas
lembrou-se nesse momento duma frase ouvida no dia seguinte
101ao da sua chegada: ”Tem mais uma razã o do que nó s para ser
desgraçada”.
IX
88
Incomodá mo-la, minha senhora? perguntou a mais velha das visitas,
89
A voz revelava toda a sua sinceridade e constatava-se que ele, tanto
como Lauriana, estava dominado por um desgosto intenso, onde nã o
faltava alguma có lera.
...De volta a Myols, as três jovens entraram no escritó rio, onde sabiam
encontrar a essa hora os restantes membros da família, Gerardina
estava lá , conversando com a senhora Armilly e Berta, enquanto
 ngela, sentada a uma mesa pró xima, desenhava com pouca vontade.
Renato nã o se tinha levantado da escrivaninha, absorvido no seu
trabalho, sem parecer incomodado com a conversa, aliá s mantida em
voz baixa.
90
exclamou Gerardina, estendendo sucessivamente a mã o branca à s
recém-chegadas. Nã o queria acreditar no que ouvia quando, ao chegar
aqui para vos visitar, a senhora de Armilly me disse que tinham ido a
Vousset... É a Huguette quem altera assim os há bitos das suas primas?
acrescentou ela num tom insinuante.
91
afastamento, em diferentes graus, que todos pareciam manifestar
para com a neta de Mateus Daussy.
Oh! tanto melhor, minha querida! Visto que deve continuar a viver
aqui, mais vale que tudo isto lhe agrade. Talvez venha a gostar daqui
até à loucura, como a Vitó ria, que declarava preferir Myols aos
melhores palá cios que a sua fortuna lhe permitia ter.
Que extraordiná ria natureza a dessa jovem! Tinha o seu lado bom,
certamente, mas a maldade arrebatava-a muitas vezes... Tem os seus
olhos, Huguette, mas muito mais meigos, oh! muito mais! Observe
aquele olhar!
E indicava-lhe o retrato.
Toda a alma de Vitó ria se reflecte nele: sedutora, fantá stica, orgulhosa
até ao extremo, e capaz de tudo para se vingar duma injú ria.... ou do
que entendia como tal. Teria lamentado profundamente todo aquele
que se tornasse o marido dessa intratá vel herdeira!
92
Ouviu-se o ruído seco duma caneta a riscar o papel. Renato ergueu-se,
afastando bruscamente a cadeira, e aproximou-se do grupo. Huguette
notou que estava mais pá lido do que o costume e que o enrugado da
testa aumentara.
A sua amiga ficou contente por a ver, Huguette? perguntou com calma,
sem desviar o grave e tranquilo olhar do rosto inquiridor de
Gerardina.
Oh! tanto melhor! Sinto-me satisfeita por terem agora essas relaçõ es.
107 Foi Gerardina quem assim falou, num tom em que a satisfaçã o
verdadeira ou fingida se misturava à compaixã o, numa associaçã o
há bil e irritante, pensou Huguette, desagradà velmente impressionada.
93
Renato fez um ligeiro movimento de impaciência.
Ergueu-se por fim, declarando estar satisfeita com aquela visita, muito
curta para o prazer que tinha sentido.
94
Deixei a Rosy um pouco mais cedo, apesar dos seus protestos, para
poder estar aqui mais tempo. Esta querida amiga, por vezes muito
exigente, priva-me de estar mais frequentemente convosco. No
entanto as horas aqui parecem minutos... Mas agora temo ter sido
indiscreta e tê-los importunado com a minha presença acrescentou
com certo desgosto.
Procurarei vir mais vezes, nesse caso, Mas se me fossem levar até à
ponte, minhas queridas? A temperatura está deliciosa.,, Teremos
chuva em breve, Renato? Que lhe diz essa interessante nuvenzita?
Muitas coisas que nã o lhe posso explicar disse num tom ligeiramente
iró nico. Quanto a chuva, nã o tenha receio por enquanto, pelo menos
durante esta semana.
Tanto melhor. Gosto do tempo bom, do sol, dos dias quentes... Gosto
aliá s de tudo quanto é belo e brilhante.
95
Acrescentou alegremente:
disse-lhe ele. Nã o que lhe note mau aspecto. Está bastante menos
pá lida que quando saiu do convento.
replicou-lhe num tom glacial. Huguette sabe que farei o que estiver em
meu alcance para lhe adoçar as provaçõ es físicas e morais.
96
Esta, temendo ser indelicada, nã o ousou recusar. Deixou o escritó rio
para ir buscar ao quarto de Clotilde o chapéu que a prima lá tinha
deixado. Quando se juntou a Gerardina e à s duas irmã s, à saída do
castelo, Clotilde ia pelo braço de  ngela, e a senhora Daussy
apoderou-se do seu com alegria.
 ngela replicou:
- Tem razã o, Gerardina, Renato sofre por ver a nossa dura provaçã o
atingir também a Huguette, Mas que poderemos fazer ? Nã o vejo um
meio para saírmos desta situaçã o que nos arranjou a loucura popular.
97
â ngela fitou com surpresa a senhora Daussy.
112
98
considerava como um modelo de lealdade e desinteresse. Estava
persuadida que ele amara realmente essa fantá stica prima, e só por
isso se resolvera a passar por cima da sua ’fortuna.
113
Gerardina continuou, sem parecer aperceber-se do visível
descontentamento de Huguette.
Gerardina continuou;
99
114 com calor. Faça como eu, diga que o Renato escondia de todos nó s
os seus verdadeiros sentimentos, a fim de o nã o acusarem de tentar
conquistar a herdeira, repita que apenas cedeu ao seu afecto
espontâ neo por Vitó ria... É esta a verdade, Huguette, nã o duvide.
Calou-se, pois alcançavam nesse instante  ngela e Clotilde, que
tinham parado à sua espera. Continuaram o caminho em silêncio.
Quando apareceram à vista da Casa Vermelha, Â ngela parou,
Daussy.
115 Apó s uma troca de palavras, muito amá veis de lado dos Daussy,
assaz frias por parte das Armilly, que mantiveram uma reserva um
pouco altiva, o pequeno grupo dividiu-se, e as jovens tomaram o
caminho de Myols.
100
Que lhe parece o Goonthier Daussy, Huguette? perguntou  ngela,
quando se tinham afastado o suficiente.
 ngela parou por momentos. Huguette ergueu os olhos para ela e viu-
a empalidecer, tremerem-lhe os lá bios e o olhar reflectir um atroz
sofrimento. Mas endireitou-se e caminhou num passo firme...
101
Clemente de Avrets!
102
Em Myols, a vida prosseguia o seu curso calmo e monó tono nã o tã o
monó tono no entanto, pois Huguette trouxera alguma alegria e a sua
serenidade de cará cter. Sem dú vida, era a esta feliz diversã o dada pela
sua presença que se devia atribuir a atitude menos fatigada e o olhar
um pouco mais vivo da senhora de Armilly, alguns momentos de
alegria de Silvina e Clotilde, uma incontestá vel humanidade na reserva
de que se rodeava o senhor de Armilly. Mas  ngela ficava cada vez
mais melancó lica, o seu rosto envelhecia de dia para dia.
103
foram verdadeiros cursos que lhe fez, bem como a Silvina, que gostava
de aprender. Era um professor sério e atraente, largamente
documentado e com uma paciência a toda a prova. Nestes frequentes
contactos, Huguette pô de apreciar o valor daquele cará cter, que
escondia sob a gravidade um pouco distante um coraçã o ardente e
delicado, um espírito de vistas largas e duma rectidã o extrema, uma
inteligência vasta e penetrante.
104
a Vonsset, apesar dos pedidos instantes de Lauriana. Nã o queriam ser
a causa de qualquer aborrecimento para com aquela excelente família,
que até entã o mantinha intrepidamente a sua crença na nã o
culpabilidade dos Armilly.
105
amigas, cumpria o mais estritamente os seus deveres de delicadeza,
mas de modo nenhum replicava no mesmo nível de amabilidade.
106
123 Calou-se por instantes e continuou, designando Huguette:
Mas agora tem uma pupila dó cil. É verdade que nã o tem a fortuna da
Vitó ria. Os mimos e as adulaçõ es tornam geralmente essas herdeiras
insuportá veis. Mas é preciso deixar passar as coisas e perdoar-lhes
muito, nã o é verdade, Renato?
Se a Vitó ria foi adulada na sua infâ ncia, nã o o foi em nossa casa,
certamente, Teve tempo de se convencer disso, Gerardina.
107
126 Oh! os médicos! disse Rosy com um gesto de desdém. Sei muito
melhor do que eles o que convém ao meu filho.
...Partirei em meados do pró ximo mês. Julgo que escolherei Nice, mais
cosmopolita do que qualquer outra cidade do litoral. A querida
Gerardina terá a dedicaçã o de me acompanhar.,.
Nã o conte com isso, minha boa amiga declarou com firmeza a senhora
Daussy.
Que seria a sua fiel companheira, é verdade. Mas só o posso fazer com
a condiçã o de que o senhor de Armilly dê a sua autorizaçã o. De outro
modo, Rosy, nã o, pois teria o ar de quem a encorajava à rebeliã o.
127para o Luís e para consigo. E por outro lado é ainda bastante nova.
108
Tenho trinta e dois anos, como a Gerardina! Mas quer digam ou façam
todos, partirei no pró ximo mês. Nada me poderá impedir.
Julga isso? Veremos entã o. Para já , termine com essas criancices. Que
exemplo dá ao Luís!
Oh! entã o nã o espere por isso! disse Gerardina, Rosy nã o parte sem o
seu ídolo.
109
128 Também nã o o espero, asseguro-lhe. Mas farei tudo o que estiver
em meu alcance para reter aqui a minha cunhada.
Nã o tenho de que me queixar, pelo contrá rio, Seria para desejar que
todos os mestres tivessem alunos tã o compreensivos e trabalhadores
respondeu Renato com certo entusiasmo, coisa rara nele, que jamais
entreabrira os lá bios para dirigir um só cumprimento à inteligência e
ao apego ao trabalho da pupila.
129 um e outro. Vejo que Myols ganhou muito com a sua presença,
Huguette... Mas vou-me embora, senã o continuaria a falar
indefinidamente na vossa companhia. Prometo fazer o que puder para
110
reconduzir ao caminho da razã o a Rosy... Mas nã o estou certa de
conseguir qualquer coisa!
Silvina exclamou:
111
Parece-me que está ali, caída no chã o, a capa que a senhora Daussy
tinha na mã o.
Ah! obrigada, minha querida! E desculpe este novo incó modo. Em boa
verdade, sou a culpada de nã o poder hoje trabalhar! Vá depressa para
junto do seu tutor. É realmente incompará vel. Aliá s, também o foi para
com a Vitó ria.
... Foi sempre perfeito para com ela, apesar da antipatia que parecia
inspirar-lhe. Mas creio que se decidiu a casar com ela por pura
dedicaçã o, visto que sabia que nenhum homem teria a paciência de
suportar as irreflexõ es daquela pobre criança, e que esta se arriscava
a ser infeliz com outro casamento. Renato é um modelo de dedicaçã o.
Por isso, minha querida, acho que, se nã o está disposta a ficar solteira,
aceitará de boa vontade ser o seu esposo... por pura
112
da sua pequena fortuna e alcançar o seu quinhã o de três milhõ es da
herança da Vitó ria pois ninguém acredita que os Armilly tenham
abandonado na verdade essa fortuna. Mas sã o terríveis suspeitas
acrescentou a senhora Daussy num tom de virtuosa indignaçã o.
Conhecemos Renato, nã o é verdade, Huguette? Sabemo-lo incapaz de
tais odiosos cá lculos. Infelizmente nã o podemos nada contra esta
lamentá vel opiniã o pú blica e se algum dia o acontecimento a que aludi
se produzisse, se o Renato, celibatá rio inveterado, levasse a dedicaçã o
ao ponto de romper com todas as suas resoluçõ es e lhe oferecesse
uma espécie de reparaçã o pela desgraça,,, involuntá ria de lhe tirar
todas as esperanças de casamento.... se um dia a Huguette se decidisse
a partilhar o triste destino do seu primo, saberia os espantosos ditos
que se ergueriam contra ele.
113
As palavras de Gerardina tinham deixado na alma da jovem uma vaga
perturbaçã o, uma inexplicá vel inquietaçã o, e, coisa estranha, pareciam
ter acordado uma inconsciente alegria. Depois de repetir à saciedade
que a senhora Daussy tinha uma imaginaçã o desenfreada e uma subtil
maldade, surpreendeu-se a perguntar o que aquela sua ideia tinha na
verdade de extraordiná rio e que Renato, se um dia tivesse o
pensamento que lhe atribuía Gerardina, desdenharia certamente as
novas acusaçõ es que se levantariam contra ele, como já o tinha feito a
quando do seu noivado com Vitó ria.
133XI
Desde meados de Novembro que a neve caía com uma abundâ ncia tal,
que um bom nú mero de caminhos ficaram impraticá veis e que
Gerardina, apesar da energia que dava provas, teve que interromper
por vezes as suas visitas quotidianas a Rosy. A viú va, indolente e
irritá vel, lamentava-se amargamente daquele estado de coisas,
afirmando que iria certamente morrer de aborrecimento, e pedia a
Huguette que a fosse distrair. A maior parte das vezes Renato
mandava responder que, se nã o queria estar sozinha, que viesse para
a companhia de todos, No entanto consentiu umas quatro ou cinco
vezes que Huguette fosse com Clotilde aos seus aposentos. A jovem
passava ali algum tempo, que lhe parecia demasiado longo, ouvindo
aquela tagarelice fú til e as suas reflexõ es despidas de bom senso.
Regressava com satisfaçã o para a biblioteca, onde a família fazia o seu
ponto de reuniã o, por medida econó mica, para só ter uma lareira
acesa.
114
pouco pela instruçã o religiosa do sobrinho, mas sem grande
continuidade, em virtude das suas ocupaçõ es e dos entraves
Durante alguns dias, a jovem ficou presa ao leito com uma forte
constipaçã o. Quando retomou o seu lugar no escritó rio e pensou em
recomeçar as liçõ es de Luís, o rapazito disse-lhe num tom alegre:
Veja como aprendi enquanto estava doente! Sei todo o catecismo sem
me enganar e recitei-o já ao tio. Mas nã o mo quis explicar, e disse-me
que a prima o faria quando estivesse boa.
115
Quando Luís, terminada a liçã o, saiu do escritó rio, Renato levantou-se
da escrivaninha e dirigiu-se para a pupila, que tinha agarrado num
trabalho de agulha.
116
Como orou nesse dia, ao vê-lo a seu lado no banco dos castelõ es de
Myols, em pé, muito correcto, com a testa enrugada revelando a
tensã o dos seus pensamentos! Seria apenas devido a uma simples
preocupaçã o humana? Ou recordar-se-ia dos conhecimentos
recebidos outrora nos bancos da catequese? Huguette implorou a
Deus com ardor para que aquela segunda hipó tese fosse a verdadeira
e que a atmosfera santa e apaziguadora do santuá rio agisse sobre
aquele nobre coraçã o, isolado na indiferença.
Voltou para ele o rosto corado pelo frio e emergindo dum xaile de lã
escura que a cobria até ao queixo.
117
Tanto melhor! Nã o desejamos outra coisa que nã o seja tê-la aqui.
Entã o será para sempre replicou Renato, cujo grave rosto parecia
naquele momento o dum homem feliz.
138 á spera brisa que lhe mordia o rosto, duma beleza incompará vel o
velho castelo solitá rio com os tetos cobertos de neve.
118
Um clarã o brilhou nos olhos ardentes de Gerardina, e Huguette viu
contrair-se aquele impassível rosto.
139 Oh! sã o da velha escola! disse ela num tom em que se misturava a
impaciência e a có lera. Os Avrets, mais modernos, abandonaram todas
essas fraquezas. Desde que o nome seja honrado, isento de toda a
má cula e de toda a suspeita, nã o irã o afastar um homem de grande
mérito como o meu irmã o.
119
Esse homem teve a pretensã o de casar com a Vitó ria, e teve a audá cia
de pedir a sua mã o. Foi um pouco depois das graves dissençõ es entre
o Renato e a pupila, pouco tempo antes da sua morte. O Gonthier era
aqui recebido como a irmã , igualmente a título de amigo de infâ ncia.
Renato, apesar de sentir por ele uma estima restrita, admitia-o por
delicadeza, nã o tendo nada de concreto para lhe repreender,
Contavam-se a seu respeito algumas histó rias pouco honestas, mas o
meu irmã o nã o conseguira saber mais
120
Gonthier, compreendeu um pouco o desprezo com que Vitó ria
acolhera a orgulhosa pretensã o deste ú ltimo.
141 Nã o devia ter ficado muito amigo de Vitó ria,, nem de vó s todos,
nã o?
Nã o. Vou ter com a Clotilde e a  ngela, que devem estar com a Rosy.
Fez-me prometer esta manhã que iria tomar chá com ela, mas estive
até agora ocupada a ajudar a Aglaé, e nã o pode ir mais cedo... Isso
importa-me pouco! acrescentou ela com um gesto de indiferença.
Nã o é muito amiga dessa cabeça sem cérebro que o pobre Augusto nos
trouxe. Isso só honra o seu julgamento declarou Berta num tom de
condescendente aprovaçã o.
Mas que a aflige, minha senhora? Nunca notei que me quisessem tirar
alguma coisa!
121
Ainda nã o... Mas um dia, talvez.,. Veja, minha filha, admita que um
homem duma perfeita honestidade, senhor duma bela situaçã o, mas
de nascimento plebeu, lhe pedia para o desposar.,. Pode contar com a
recusa do seu tutor. Pelo menos, tudo o leva a acreditar.
122
dava importâ ncia e continuava a testemunhar à viú va uma delicadeza
instintivamente fria.
Nesse dia, Rosy estava com boa disposiçã o. Fez a Huguette amá veis
repreensõ es pelo seu atraso, cumprimentou-a pelo seu bom aspecto e
disse-lhe que a amava até à loucura.
Essa rosa.,, Huguette..., deite-a fora disse, com voz angustiada, Â ngela.
A jovem baixou os olhos para o lenço negro de renda que lhe caía
sobre a blusa. Pouco tempo antes, tinha preso entre duas pregas uma
das rosas enviadas essa manhã por Lauriana, nessa altura em Nice a
passar alguns dias. Mas num gesto maquinal acabava de afastar o
lenço e, a flor, até entã o um pouco dissimulada, surgiu branca e
assetinada.
123
Esta Rosy é extremamente nervosa disse  ngela logo que saiu dos
aposentos da cunhada, na companhia de Clotilde e de Huguette.
Imagine que, desde a morte da Vitó ria, nã o pode ver uma rosa nem
respirar-lhe o perfume sem se perturbar.
Mas certamente que é por isso! Já deve ter notado que nunca pomos
flores dentro de casa. Estava ”muito doente na ocasiã o daquele triste
acontecimento
145
Huguette observou:
124
XII
125
círculo, apesar da pouca simpatia que inspirava a todos, além da sua
amiga. Era boa pianista, falava bem e mostrava-se excessivamente
amá vel; além disso era recebida em casa dos Armilly, razã o de sobra
para ser acolhida pelos moradores do Refú gio das Senhoras.
148 casamento seria impossível entre os dois, que a prima iria sofrer
talvez como Clotilde, E desejava secretamente encurtar a estada dos
Delbeaume no Refú gio. Mas nã o havia qualquer razã o, e todos
pareciam sentir-se muito bem. Lauriana entretinha-se com a criaçã o
das pombas, e nã o lamentava Vousset, cujos habitantes lhe pareciam
demasiado superficiais e invejosos, como nesse mesmo momento
confiava a Huguette.
126
É verdade! Mas até hoje nã o vi ninguém neste atalho... Parece a
senhora Daussy... Mas quem vem com ela?
Seria o acaso? murmurou Renato num tom iró nico, mas tã o baixo que
apenas Huguette o ouvia.
127
Quando Renato encontrava Gonthier, os dois homens
cumprimentavam-se com fria delicadeza, trocando no decorrer da
conversa algumas frases breves e insignificantes; mas era fá cil
adivinhar que desde o dia do seu encontro no atalho de Myols, o
senhor de Armilly espaçava as visitas ao Refú gio. Evidentemente a sua
antipatia pelo irmã o de Gerardina era irredutível.
150Nã o duvidava que aquela jovem, que acolhia as suas atençõ es com
uma altivez um pouco desdenhosa, fazia a seu respeito um estudo
profundo, que lhe nã o era muito favorá vel. Muitas vezes, com efeito,
Huguette notara durante a conversa algumas palavras hipó critas e,
por diferentes indícios, compreendera, com a sua viva penetraçã o, que
era um mestre na dissimulaçã o. De dia para dia, crescia nela o
desprezo por aquele homem e agora lamentava nã o poder, por causa
de Lauriana, imitar o senhor de Armilly, espaçando as visitas a casa
dos Delbeaume, tanto lhe era desagradá vel encontrar o senhor Daussy
e ver fito nela o seu olhar agudo.
128
Mas cinco minutos mais tarde, Huguette, sentada a uma janela do
salã o, viu aparecer Gerardina. Caminhava em passos rá pidos,
deslocando-se com vivacidade.
Mal ela saiu, Gerardina passou muitas vezes pela testa o lenço com
uma cercadura de rendas.
Huguette procurou uma frase simpá tica para lhe responder. Mas nã o
encontrou nada e permaneceu silenciosa,
129
152Minha pequena Huguette, parece que chegou a duvidar da
probabilidade dum pedido de casamento” E no entanto eis um... Sim,
minha filha, Gonthier nã o tem outro desejo: ser o seu esposo, afastá -la
desse triste Myols e duma tutela um pouco pesada, dar-lhe enfim
aquela felicidade que até hoje ainda nã o encontrou. O que se disser
pouco lhe importa, nunca deu interesse à opiniã o pú blica quando a
razã o e o coraçã o lhe ditam um dever, Deixará esse desgraçado nome
de Armilly, nã o ficará reduzida a esse melancó lico celibato, sujeito a
todas as vilanias, pois a senhora Gonthier Daussy será honrada e
estimada por todos.
Por que nã o dirigiu esse pedido ao meu tutor? Teria sido muito mais
correcto e ele ter-lhe-ia dado a minha resposta.
Antes mesmo de conhecer a sua! Sei que fará todos os seus esforços
para a afastar desse casamento, e por isso quis dirigir-me
primeiramente à Huguette, para conhecer a sua decisã o pessoal e nã o
a expressã odos rancores de outrem.
130
Já se nã o mostrava doente, e Huguette adquiria a certeza de que tudo
aquilo fora um pretexto para lhe falar a só s.
Quer dizer pelo triste erro da opiniã o pú blica, que transformou toda a
nossa existência?
131
O Gonthier nã o está nessa categoria? disse Gerardina num tom
agressivo.
132
no seu interesse, e deixou falar o seu coraçã o bom e ingénuo, cheio de
compaixã o pela desgraça que atingiu a alma orgulhosa de Renato,
reduzindo-o a esconder-se como um criminoso. Numa palavra,
tornou-se um ser ideal, e deseja secretamente rodear de um pouco de
felicidade aquela triste existência, de se tornar na companheira
dedicada daquele que nenhuma mulher deseja para marido.
Nã o tem que procurar outras razõ es além das que lhe dei. No entanto,
se deseja saber a exacta expressã o do meu pensamento, vou-lhe ser
franca, com o risco de ferir o seu afecto fraternal. Mas foi a senhora
Prefiro saber isso. Mas parece-me que foi longe demais. Pela terceira
vez os Armilly recusaram-se a aliar-se à minha família... sim, pela
terceira vez! repetiu ela, ao ver Huguette esboçar um gesto
surpreendido. Continue Armilly, Huguette, é um nome nobre, outrora
muito considerado na Saboia... mas hoje coberto de lama, talvez
merecidamente. E nã o acredite em demasia nas virtudes do seu tutor.
133
Procure saber na verdade se esse homem cavalheiresco detestava ou
nã o a rica Vitó ria, como pretenderam a quando do seu noivado...
157XIII
134
A que se quer referir?
Há já oito anos que existe disse Gerardina e nã o vejo razõ es para que
nã o continue. Seria necessá rio que os Armilly pudessem desfazer
completamente a acusaçã o, o que me parece impossível.
135
Seria indispensá vel, como já o disse a Huguette, que a Vitó ria surgisse
para afirmar que se tinha suicidado... Nã o vejo outro meio acrescentou
Gerardina com ironia.
Mas podiam ter sido outras pessoas! Por que razã o acusarem pessoas
que até entã o foram honestas e estimadas?
Oh! sou inteiramente da sua opiniã o, Lauriana! Mas nem eu, nem a
Lauriana podemos fazer nada! O senhor Delbeaume, tornando-se o
marido duma Armilly sobretudo duma Armilly muito rica será
marcado e obrigado a renunciar à sua carreira. Esta é a verdade,
Lauriana.
136
A jovem ficou silenciosa, com as sobrancelhas crispadas. Huguette
pensava com angú stia na desilusã o que esperava a sua prima. A
razoá vel e prudente Silvina deixava-se arrastar pelo seu sonho. Talvez
fosse um dever acordá -la, mostrar-lhe a realidade penosa. Mas para
que se imiscuía esta Gerardina, com as suas pérfidas insinuaçõ es?
160 afastara para ir ter com o irmã o, Huguette murmurou com ironia:
137
Afastou-se para se juntar aos outros passeantes. Huguette soltou um
suspiro de alívio. As palavras daquela mulher pareciam-lhe flechas
envenenadas
161
Passou uma tarde agradá vel, Huguette? Nã o, primo, foi até muito
desagradá vel para mim,
138
162 Nã o tendo podido conseguir a fortuna toda, contentava-se com
uma pequena parte disse ironicamente. Temos de convir que esses
Daussy sã o desprovidos de toda a dignidade para mais uma vez
fazerem tal tentativa, depois de terem fracassado completamente.
Possuem todos uma ambiçã o desmedida. Nã o hesitou nem por um
momento, Huguette?
163 tinha mentido, mas queria ouvi-lo dizer: ”Sim a Vitó ria era capaz
de inspirar uma afeiçã o”.
139
Penso, com efeito, que nã o devemos acreditar nos ditos da senhora
Daussy. Assim, segundo ela, a pobre Vitó ria seria dotada dum cará cter
insuportá vel, a tal ponto que era impossível ter por ela qualquer
afecto.
Falava com uma calma que lhe custava um grande esforço, pois o
coraçã o estava cerrado por uma grande angú stia.
Que teria lido ele nesses olhos em que sabia ver tã o bem a alma pura e
recta de Huguette? Talvez
140
instantaneamente, tornou-se frio, quase duro, enquanto se endireitava
num movimento altivo, continuando com voz nítida e incisiva:
Pelo meu lado, nã o senti pela minha prima senã o uma antipatia
profunda.
Gerardina teria entã o dito a verdade? Entã o... ele, o leal Renato,
desejara casar unicamente por causa da sua fortuna com uma mulher
por quem acabava ele pró prio de o confessar nã o podia sentir nem
uma banal afeiçã o?
141
Era, no cérebro de Huguette um caos de obscuros pensamentos,
apenas esboçados, logo afastados com horror. Mantinha a fronte
apoiada nas duas mã os e as têmporas batiam-lhe com violência sob o
império da terrível emoçã o que a dominava.
142
Decididamente, era-lhe impossível continuar naquele dia a carta. A
jovem pousou a caneta e ergueu-se. Renato nã o fez qualquer
movimento, nem pareceu aperceber-se de que ela passava na sua
frente para sair do escritó rio. Sem dú vida, o seu trabalho absorvia-o
profundamente.
Sim, pobre Silvina, que tinha esquecido que com o nome que tem, nã o
pode aspirar à felicidade!
143
A essa até uma Armilly pode aspirar. E é imorredoira, Trabalharei
para a conquistar, Huguette. Mas felizmente acordei a tempo,.,
144
nele arreigava-se, e a dú vida atroz era afastada para longe, sem deixar
traços no coraçã o de Huguette.
XIV
Teve de orar muito e violentar-se até para conservar a sua alegria, que
muitas vezes era aparente. No fundo, sofria singularmente com aquela
separaçã o moral que pouco se apercebia, e Myols parecia-lhe ter
perdido o encanto da grave tranquilidade que a tinha rodeado desde
os primeiros dias da sua vida ali.
145
170 Continuava a ir frequentes vezes ao Refú gio, tanto mais que
Gonthier nã o aparecia e a pró pria Gerardina só lá ia raras vezes.
Silvina acompanhava apenas de longe em longe a prima. Nã o lhe
faltavam bons pretextos a apresentar quando Lauriana lhe fazia
amigá veis repreensõ es, e estava sempre muito ocupada quando das
visitas dos Delbeanme, principalmente quando o advogado
acompanhava a mã e e a irmã . Mas nã o imitava  ngela, pois reagia
corajosamente e trabalhava sem descanso a fim de vencer o seu
sofrimento.
146
Rosy, apó s as primeiras impressõ es, transbordante de alegria, tornou-
se em breve aborrecida. Declarou Myans muito feia, as peregrinaçõ es
uma coisa fastidiosa e só readquiriu a sua alegria quando chegaram a
Annecy, onde os viajantes deviam passar dois dias. Enquanto as
senhoras Delbeaume foram fazer uma visita a uma família conhecida,
arrastou Huguette para um armazém de novidades onde adquiria
grande profusã o de tecidos, que fizeram um grande volume.
Veja, Huguette, amei sempre tanto o luxo e o vestuá rio, sob todas as
formas Antes do meu casamento, era quase pobre. Quando casei com
Augusto, os Armilly tinham ainda alguns bens, mas em breve
perderam quase tudo... E vivia lá em casa essa Vitó ria, que fazia gala
em mostrar a sua riqueza, na intençã o, penso eu, de nos humilhar a
todos, pois detestava-nos. Creio que só amava o Renato... e mesmo
esse, duvidei-o muitas vezes ao
147
Interrompeu-se, muito trémula, e o rosto alterou-se-lhe de repente. O
olhar fixou-se sobre o pequeno que caminhava na frente das duas,
num passo fatigado, e lançando olhares discretos para as lojas.
Murmurou ardentemente:
Meu pequeno Luís, quero que sejas muito feliz, Um dia, agradecerá s à
tua mã e... Huguette, formei o plano de o subtrair inteiramente à
influência dos Armilly. Sã o muito rígidos, nã o compreendem. A
Gerardina aprova-me... isto é, creio-o, pois
Mas nã o tanto como eu!.... oh! nã o tanto como eu! Nã o teriam feito o
que eu fiz por ele!
148
Chegavam à porta do hotel e Rosy, muito excitada, entrou no quarto
com Luís, enquanto Huguette foi encontrar-se com as senhoras
Delbeaume para visitar a pitoresca cidade de Annecy e orar na capela
da Visitaçã o, diante dos restos mortais de S. Francisco de Sales e de
Sã o Chantal,
Que fará de tudo isso, minha querida? Para a sociedade que tem aqui!
149
A viú va exclamou com febril animaçã o: Sim, diz bem! Animou-me a
romper com uma vida estú pida, insuportá vel, e procurar noutro sítio
um pouco daquela felicidade que nã o tenho aqui. Há muito que devia
ter abandonado esta moradia em que a minha saú de se arruina,
Berta e Silvina, que estavam atrá s dela, receberam-na nos braços. Mas
Renato levantou-a e levou-a até ao quarto, onde Silvina, ajudada por
Huguette, lhe prestou os seus cuidados.
Gerardina!.,. digam à Gerardina para cá vir! disse ela por fim numa voz
lamurienta e imperiosa.
150
Nã o, quero a Gerardina! Nã o pode substituir a Gerardina, a minha
ú nica amiga.,, devo-lhe tanto!
Huguette exclamou:
Ela!
É verdade. E por que nã o? É notá vel sob todos os aspectos. Tinha vinte
anos, e o Renato vinte e três, quando Mateus Daussy, que acabava de
enriquecer nã o sei em que negó cio, insinuou ao meu cunhado que a
filha estava disposta a tornar-se senhora de Armilly. Mas o orgulhoso
Renato mostrou uma surpresa desdenhosa e embora com toda a
delicadeza, deu uma recusa humilhante ao senhor Daussy... E admira a
dignidade da Gerardina! Depois dum tal insulto, continuou a
frequentar a casa dos Armilly, cheios de preconceitos, nã o os
abandonou nas horas da desgraça e ela, que tinha tantas razõ es para
se alegrar com as suas humilhaçõ es, mostrou-se sempre para com eles
um modelo de delicadeza e respeito, sem jamais lhes fazer sentir a
superioridade que lhe dava o seu nome plebeu, mas honesto.,,
177
151
A senhora Dausy pareceu-me, pelo contrá rio, regosijar-se com as
infelicidades dos Armilly, e duvido muito que lhes tenha perdoado. No
entanto, segundo diz, ela pró pria procurou essa mortificaçã o de amor-
pró prio... À menos que o Renato nã o lhe desse ocasiã o para pensar
que a desejava.,.
178Nã o sei o que teve a Rosy disse a senhora de Armilly. Tem andado
tã o nervosa como quando da morte da Vitó ria, e como entã o, só a
presença da Gerardina a pode satisfazer e acalmar.
152
Ela está bastante doente neste momento, Â ngela. Na verdade, a
Gerardina mostrou-se dedicada para com ela, nã o a abandonando nem
de dia nem de noite e sem qualquer enfermeira, pois a Rosy nã o a
queria.
Mas o senhor de Armilly tinha recusado aquela aliança que lhe fora
oferecida pelo antigo servidor da sua família. E Huguette nã o pensava
que naquela nã o devia ter sido levado pelo orgulho. Compreendera
depressa que ele nunca sentira por Gerardina mais que um instintivo
afastamento, que tinha aumentado no decorrer dos anos e, tal como o
conhecia a prima, parecia fora de dú vida que nada o podia atrair para
essa mulher artificial e descrente.
XV
153
Renato aceitou com tranquilo desdém mais aquele capricho da sua
cunhada, mas exigiu formalmente que o Luís continuasse a vir receber
as suas liçõ es, a aparecer à s refeiçõ es e a dar todos os dias um passeio
pelo jardim.
Foi uma coisa difícil de obter, e Rosy teve nessa altura um acesso de
có lera, seguido duma longa crise de nervos. Gerardina interpô s-se e,
apó s ter estado fechada uma hora com a Rosy, veio declarar ao senhor
de Armilly que Rosy se submetia.
Mas a partir dessa ocasiã o quando vinha com uma das primas passar
todos os dias um momento com a viú va, notou que esta parecia cada
vez sentir mais animosidade contra o cunhado, de que nã o podia
sequer pronunciar o nome sem que o seu rosto se contraísse. Existia
nela agora, quase constantemente, uma espécie de ansiedade, os olhos
exprimiam um desejo latente, mas apaixonado, os gestos traíam uma
pressa febril.
154
publicaçã o da obra que acabava de terminar. Gerardina, vinda dos
aposentos de Rosy, encontrava-se no escritó rio no momento em que
falou desse projecto a sua mã e. Interrompendo a conversa que
mantinha com  ngela e Clotilde, a senhora Daussy disse num tom
aprovativo:
Que é?
155
Por nos terem visitado frequentemente, nã o é assim? interrompeu
Renato em tom seco,
Provavelmente.
Oh! nã o tenha dú vida! Passa-se por cima de tanta coisa por um pouco
de dinheiro!
Nã o se pode negar, meu Deus essa triste paixã o pelo dinheiro, custe o
que custar, e por todos os meios. Sã o raros aqueles que, como o
Gonthier, edificaram o seu futuro nas bases do pró prio trabalho e
156
numa existência séria e digna. Agora o meu irmã o, cuja delicadeza
parece até excessiva, pode casar com uma mulher rica sem que se
arrisque a ouvir dizer que se casa por dinheiro... o que jamais teria
feito, na realidade!
183 seu coraçã o, passar por cima das murmuraçõ es. Mas a herança,
nunca!
157
Tem razã o, é uma indignidade disse num tom incisivo e nítido. Repita-
o bem a seu irmã of Gerardina, a fim de que, se encontrar no seu
caminho uma Vitó ria Hardwell, nã o ouse outra vez pedir-lhe a mã o.
158
cessarem completamente ao fim dum ano. Nã o tinha havido qualquer
zanga ou ruptura violenta, mas simplesmente uma separaçã o que
podia permitir todos os eventuais encontros.
Maria Tereza, sou eu! disse numa voz sonora. Vês-me positivamente
encantada nesta ocasiã o... apesar de, pelo que se passou, nã o ser
muito alegre...
159
Esta é a Clotilde, nã o tenho que me enganar. Mas estã o aqui mais duas.
Qual é a Silvina? Mas nã o tinha cinco filhas, Maria Teresa?
A minha Adélia! gemeu ela. Maria Teresa, Renato, é por vossa causa
que vim ter convosco,
Exclamaram simultaneamente:
160
Tudo... ou talvez nada. Eis o facto. Adélia, que é uma pequena
maravilha de graça e de beleza, foi pedida em casamento pelo conde
de Morisy, um rico proprietá rio da Vandeia, um rapaz encantador, a
todos os títulos. Eu tinha dito que sim imediatamente, a Adélia ainda
mais depressa. Pedro de
187 Morisy ia-lhe dar o anel de noivado, quando soube, nã o sei como,
a triste histó ria que se passou aqui. Acaba de me encontrar,
confessou-me que aquela notícia o tinha desencorajado bastante, que
nã o tem qualquer prazer em se associar a uma família sobre a qual
pesa uma tal suspeita. É muito correcto em matéria de honra e
reputaçã o, aquele rapaz. Em vã o objectei que o nosso parentesco era
afastado, pois notei que estava disposto a romper com o noivado
iniciado... E a minha filha vai perder esse casamento, inesperado para
ela, pois só lhe posso dar um dote modesto! Ainda nã o disse nada à
pobre criança, pois temo desesperá -la, e quis falar convosco antes.
Renato perguntou friamente:
Indícios de quê? perguntou secamente Silvina. Sabe bem que a Vitó ria
se suicidou voluntariamente, nã o sabe?
Mas provem-no! É isso que lhes peço. Façam luz nisso, procurem,
apresentem a sua defesa... Mas, em nome do céu, nã o fiquem inactivos,
curvados ao peso da reprovaçã o pú blica! Pensem que a minha Adélia
perde, por vossa culpa, um soberbo casamento...
161
188nã o o teríamos feito, nó s que sentimos a todos os momentos o seu
peso doloroso? Tem aqui o Renato, as minhas filhas, a pró pria
Huguette que tem de abandonar toda a esperança de futuro. Crê que
deploro o que acontece à Â délia, mas sabes que nã o é nossa a culpa,
Leontina.
189Nã o era caso para tal resoluçã o disse-lhe num tom glacial. É uma
conjectura romanesca, mas pouco verosímil para um cará cter tã o
indiferente como o de Vitó ria.
Silvina exclamou:
162
Com certeza que nã o nos podemos agarrar a essa ideia. Mas a
natureza da Vitó ria era bastante estranha, e as suas crenças religiosas
tã o vagas, que autorizam a hipó tese dum suicídio.
Sim, sim, mas nã o seria mau ver e tornar a ver, explorar as pequenas
coisas, Seja dito, sem ofensa para esses senhores da justiça, as
mulheres têm uma inimitá vel delicadeza para essa espécie de
assuntos. Há em mim o estofo dum juiz de Direito, Renato, nã o
duvide... Entã o, nem a menor prova? Nem uma ligeira esperança para
a minha querida filha?.,, Que vai ser de mim? Oh! este nome de
Armilíy! Nã o me queiram mal, primas, mas aborreço-o!
Afastou num gesto trá gico o copo que lhe apresentava  ngela,
190muita esperança ao vir aqui. Repetia a mim pró pria que tínheis
tido qualquer negligência na conduçã o do processo, que eu devia
vencer a vossa apatia e trazer enfim alguma luz a esta obscura
histó ria, E agora nada! Minha prima, que me fita com os seus grandes
olhos azuis, também é uma vítima desta infeliz Vitó ria, pois no fim de
contas é ela a culpada de tudo... Pobre pequena, para ti também o
futuro nã o existe!
163
É lamentá vel! Renato, toda a tua família está condenada ao celibato... E
tu pró prio, meu pobre amigo! exclamou ela com ruidosa compaixã o.
Pronto, está tudo feito exclamou, passando o lenço pelos lá bios. Agora,
volto para o meu automó vel... Pois vim de automó vel de Chambéry, e
deixei-o um pouco afastado, na estrada, para que ninguém saiba que
vim aqui. Estou já muito comprometida pelo simples facto de
pertencer à vossa família, meus pobres amigos... Vamos, adeus. Se
164
souberem qualquer novidade, nã o se esqueçam de ma contar...
Morreria de alegria!
Renato voltou.
165
Quando voltou, a sua fisionomia tinha retomado a habitual expressã o
de serenidade e declarou que a brisa fresca da montanha lhe tinha
dissipado aquele doloroso peso da cabeça. Na realidade, depois de ter
chorado docemente, Huguette tinha orado e estava nisso o segredo
que a fortalecia contra o passageiro desfalecimento.
XVI
193
Falava num tom sério, com aquela frieza distante que nã o usava para
com Huguette. Cumpria nesse momento com correcçã o o seu dever de
tutor, ocupando-se da saú de da pupila, mas a jovem pensou com
amargura que no fundo se incomodava pouco”
166
Evidentemente, a senhora tem o direito... Foi uma ideia bem feliz da
senhora, guardar as malas num canto do quarto, sem o quê nã o sei
como conseguiríamos.
Mais uma negligência desta Melâ nia! exclamou a viú va com uma
irritaçã o que a circunstâ ncia nã o explicava. Enfim, seja bem vinda,
Huguette. É gentil em ter vindo ver-me,
167
195 faltava um só objecto no lindo salã o de Rosy, a viú va estava
vestida como de costume, e Melâ nia, que acabava de trazer o chá ,
tinha pouca aparência de pessoa encarregada de fazer as malas. O Luís
parecia muito calmo. Evidentemente, nã o tinha visto nada nem
ouvido, e Huguette pensou que compreendera mal o sentido das
palavras da criada de quarto.
Notaram como a Rosy parece hoje fatigada? Nã o sei bem o que tem.
Meu Deus! temo que os seus nervos estejam esgotados!
168
196 Huguette ficou por algum tempo à janela, esperando a todo o
momento ver apagar-se aquela luz. Mas por fim ao sentir que
arrefecia, retirou-se e fechou a janela.
197 Oh! diga o que quiser, pouco me importa! replicou ela, num tom
baixo e triunfante. Quero partir, nã o posso viver aqui.,. Aliá s, odeio o
Renato, quero subtrair-lhe o meu filho e tenho esse direito. É meu,
apenas meu...
169
Criminosa? Nã o, nã o... Mas impedir-me-iam.,. Teriam conseguido
reter-me... E eu quero partir! Venha comigo, emancipar-se-á , adquirirá
a sua liberdade e seremos felizes!... ricas, honradas... Venha, Huguette,
deixe este triste Myoles e Renato, que é um abominá vel tirano.,.
Gerardina!
Meu Luisinho!
Mas já to repeti vá rias vezes! Vem depressa meu querido, vais ter frio
aqui.
170
Rosy inclinou-se para a companheira, uma mulher bastante alta, que
continuava silenciosa, bem envolvida num grande capuz. Trocaram
breves palavras, depois do que Rosy agarrou o filho e com uma força
que nã o lhe atribuiriam, libertou-o da mã o de Huguette e levou-o até à
grade, onde se viam os faró is dum automó vel.
Berta declarou:
171
A senhora de Armilly objectou:
Silvina propô s:
172
armá rios, nã o deixara sequer as bugigangas nem os elegantes vestidos
que faziam a sua alegria; apenas pedaços de tule, restos de sedas,
objectos partidos ou estragados ficaram espalhados no soalho, nos
mó veis, ou permaneciam nas gavetas vazias e nas prateleiras.
E Renato que tanto queria ao sobrinho, que velava por ele com
tamanha solicitude, para o subtrair tanto quanto possível à influência
nefasta da mã e! Aquele pensamento do desgosto do tutor pareceu a
Huguette demasiado penoso e sugeriu-lhe a resoluçã o que pô s em
prá tica no dia seguinte.
173
Huguette exclamou com indignaçã o É inú til fingir! Foi a senhora quem
tudo dirigiu, estava a seu lado quando da sua partida...
Rosy partiu!
Mas, minha pobre filha, o que está a dizer? Avô , ouviu-a? Pretende que
esta noite fui a Myols!
Ah, é uma boa histó ria! Minha querida menina, Gerardina esteve
comigo até perto das onze horas, depois subiu ao seu quarto, sem ter
sequer a veleidade de pô r o nariz fora da porta, com aquela humidade
glacial que tivemos a noite passada. Está a sonhar, menina, ou entã o...
hum! há talvez qualquer coisa nisto...
Encolheu os ombros.
174
a sua participaçã o na partida de Rosy? Nã o me quer dizer onde ela se
encontra?
203 nã o seria a mais forte. Seja, guarde o seu segredo! Renato saberá
encontrar a Rosy e descobrirá um meio de a obrigar a falar...
Talvez me mova alguma questã o? disse Gerardina num tom sarcá stico.
Tem grande confiança na capacidade do seu tutor e aprovo-a, pois é
muito inteligente. Mas neste caso, nã o conseguirá mais do que a
Huguette.
175
É inú til) nã o precisamos de si,., E aliá s duvido que a recebam em
Myols,
204
de partida. A pequena hipó crita deu o seu golpe depois”” que me
importa a sua acusaçã o! acrescentou com altivo desdém. Acredite no
que quiser, feche-me a porta de Myols. Julga que nã o tinha de fazer um
esforço para franquear a soleira daquela casa maldita, para apertar a
mã o daqueles que a opiniã o de todos acusa dum abominá vel crime?
Huguette ripostou:
Já que os sabia inocentes, pelo contrá rio, devia ser um prazer muito
grande.
176
Nenhuma! As antigas bastam amplamente, minha pobre pequena,
para quem quiser seriamente reflectir. Na verdade, nã o consigo
explicar a razã o do noivado de Renato... Francamente, aqui para nó s,
acredita na inocência do senhor de Armilly?
205
Como nã o creio que tivesse casado com a Vitó ria apenas por causa do
seu dinheiro.
177
querida filha, fique convencida de que jamais conhecerá a verdade,
pois o Renato soube com certeza compreender o seu cará cter pleno de
delicadeza e lealdade, e sabe bem que, confessando-lhe o verdadeiro
motivo desse projecto de casamento, perderia toda a esperança de
casar consigo.
Onde foi descobrir essa singular ideia, minha senhora? Posso garantir-
lhe que nã o existe tal ideia na cabeça do senhor de Armilly... Mas
estamos muito longe da questã o que me trouxe aqui e, já que persiste
em negar, nã o tenho senã o que me retirar”
Limpou uma lá grima que lhe corria pelo rosto,, dizendo com um
pouco de impaciência que se tornava nervosa e impressioná vel em
excesso. Era talvez do exemplo da Rosy,.,
XVII
178
Renato chegou no dia seguinte. Tinha pedido algumas informaçõ es na
estaçã o de Vonsset, mas nã o pô de recolher qualquer indicaçã o.
Presumivelmente, Rosy tinha tomado o comboio noutra estaçã o, para
melhor despistar todas as procuras.
179
Nã o tinham ainda visto Gerardina. Aquele afastamento admirava um
pouco Huguette, que a tinha visto pouco disposta a acreditar que a
nã o recebesse em Myols.
Dois dias depois da sua partida, um novo telegrama dele foi entregue à
senhora de Armilly. Estava datado de Lansane continha estas
palavras:
Previna o médico.
Silvina perguntou:
180
Mas, Renato, nã o pensaste que talvez tivesse sido melhor nã o obrigar
o Luís a fazer a viagem de regresso, no estado de esgotamento em que
se encontrava?
209
Oh! mas muito mais, Esta sabia perfeitamente o que fazia ao excitar a
Rosy,.,
Huguette
181
foi para junto do pequeno. Rosy estava ajoelhada junto do leito da
criança. Tinha ainda o vestido de viagem. O seu olhar desvairado, sem
lá grimas, nã o abandonava o pequeno rosto da cor do” círios. As
pá lpebras de Luís estavam fechadas, dormia talvez aquele sono
provocado pela sua fraqueza
Ali está o meu Luís! Mas curar-se-á ... Quero que se cure! Oh! se a
tivesse escutado, Huguette!
À quela Gerardina é a causa disto tudo! Oh! como ela soube enganar-
me, Huguette, nã o quero tornar a vê-la!.,. Ouviu? Se ela vier, nã o a
deixe entrar, porque se a vir, eu...
Creio que para vingar o meu Luís, doente por sua causa, seria capaz
dum outro crime.
182
estendeu-se por algum tempo na cama, enquanto  ngela se instalava à
cabeceira do doente.
183
212 Que ideia a levou a dizer isso? Eis o que nã o me dirá , Huguette!
ripostou a senhora Daussy num tom de sarcá stica có lera, Em qualquer
caso, desejo ouvir isso mesmo da sua boca.
...Nã o ignora que Myols me pertence e que a Rosy está em minha casa.
Tenho o direito de lhe interditar o acesso a esta moradia, e só lamento
tê-lo feito agora.
Seja, sairei daqui para nunca mais voltar a esta casa onde só recebi a
frieza e o insulto, em troca duma amizade constante, duma infatigá vel
dedicaçã o por aqueles que todos abandonaram, e que eu, amiga
213 de infâ ncia, nã o queria crer que fossem culpados, em paga dos
cuidados dispensados a essa caprichosa e ingénua Rosy...
184
Interrompeu-a com tranquila ironia.
Pois seja, tem razã o! exclamou num tom triunfante. É verdade, odeio-
vos a todos, e a si, principalmente, Renato. E sabe porquê? Gerardina
nã o esquece nada... Sim, deliciei-me ao ver as humilhaçõ es abaterem-
se sobre todos vó s, tã o orgulhosos. Tive momentos felizes, Renato, e
encontrei a vingança doce... Saiba que neste momento poderia pô r
cobro à vossa desgraça, dar-lhe a conhecer a causa verdadeira da
morte da Vitó ria e reabilitar-vos perante os olhos de todos.
Seria inú til, pela simples razã o de que conheço tã o bem como a
senhora a verdade dessa morte.
185
É uma infâ mia!... Mas tornar-nos-emos a encontrar, senhor de Armilly!
À s suas relaçõ es com Gerardina Daussy nã o terminaram Temo isso,
mas lutaremos. Deus nã o permitirá que triunfe por muito tempo.
Oh! oh! está agora muito piedoso! É a obra desta pequena santa que
aqui está ? Pergunte-lhe o que ela pensa do seu casamento com a
Vitó ria. Seria muito
interessante!
Esta mulher vai-nos atacar ainda mais disse numa voz alterada. Tinha
um meio de a reduzir ao silêncio, mas nã o posso empregá -lo sem
prejudicar outra pessoa e faltar a uma promessa... Ah, as promessas!
disse numa voz surda, cheia de amargura. Ninguém como eu sabe
como podem custar A sustentar!
186
Huguette corou um pouco e apressou-se a reparar aquela tolice. Mas
durante toda a noite, teve de fazer um esforço violento para conservar
a sua presença de espírito e evitar numerosas distracçõ es,
XVIII
187
Vai curar-se! Oh! sabia bem que exageravam! Sabia que nã o estava tã o
perigosamente doente! Mas nã o foi mais do que um reflexo
antecipado do eterno repouso. Luís morreu duas horas depois,
docemente, de olhos fitos num crucifixo que  ngela segurava. As suas
ú ltimas palavras, pronunciadas em voz extremamente fraca, foram
apenas ouvidas pela mã e, por Huguette e por Renato.
217
188
Huguette, é muito para que possa voltar a si e pô r em ordem a sua
consciência disse muito baixo Renato a Huguette.
Rosy acalmou-se por fim. Estava enfraquecida como uma criança, mas
recobrara o livre exercício das suas faculdades mentais. O olhar
exprimia um terror extremo, e quando ouviu perto da porta os passos
de Renato, murmurou com terror:
Mas nã o, Rosy, lembre-se pelo contrá rio como ele tinha o ar feliz
depois de ter recebido Nosso Senhor. O querido pequeno, tã o sofredor
sempre na terra, está agora todo feliz junto de Deus, no céu onde disse
que a esperava. Quer ficar separada dele
Mas para isso é necessá rio preparar-se para aparecer diante de Deus,
purificando a sua consciência...
189
A minha consciência! Oh! ela tem um peso muito pesado! Nã o o senti
tanto como hoje! Quando me achava um pouco atormentada, dizia-o a
Gerardina
Quero reparar, antes de morrer disse ela em voz fraca. Sou uma
grande culpada e além disso fui a causadora da vossa infelicidade. Fui
eu que espalhei as flores pelo quarto da Vitó ria.
190
A moribunda teve um estremecimento.
220 O senhor cura disse-me que lhe devia perdoar, mas custa-me
tanto... Oh! se soubesse como era há bil para me arrastar para a frente,
para me traçar planos deixando-me acreditar que só eu os tinha
idealizado. Fez de mim o instrumento da sua vingança contra a
Vitó ria, visto que tinha repelido desdenhosamente o irmã o e, com o
mesmo golpe, feriu toda a família que detestava e a si sobretudo,
Renato. Espicaçava-me contra si, descobria tudo o que o poderia fazer
sofrer mais. Fez o que podia para atrair a Huguette, para a afastar de
si, visto que sabia que assim lhe causaria um grande sofrimento... Oh!
como nos fez mal a todos! A seu lado, vivia numa atmosfera deletéria,
nã o tinha consciência do horror dos meus actos! Sabia bem como
excitar o que de mau existia em mim! E como afastava depressa as
veleidades de remorso que por vezes me invadiam! Velava por mim,
para me ter sempre sob a sua influência... Mas confesso tudo hoje.
Cometi esse crime um pouco por ó dio para com a Vitó ria, que me
humilhava com a sua riqueza, mas principalmente para arranjar uma
fortuna para o Luís... No entanto, tem razã o, Renato, nã o teria tido
sozinha essa terrível coragem, pois sou fraca e pusilâ nime. Era a
Gerardina quem, sem o parecer, excitava a minha animosidade, me
atiçava com palavras pérfidas e me insinuava lentamente a ideia do
crime e a maneira de o realizar. Um dia, sem parecer dar-lhe maior
importâ ncia, falou da grande encomenda de flores que a Vitó ria
acabava de receber, contou diversas histó rias de que as heroínas
morriam asfixiadas pelo perfume violento que as flores espalhavam
no seu quarto. Ora
221a Vitó ria tinha-me infligido nessa manhã uma dolorosa ferida de
amor pró prio. Estava exasperada, meia louca de raiva... E levei a cabo
aquele acto odioso...
Oh! é medonho!
191
Ouviam-na, retendo a respiraçã o. O horror disputava neles a piedade
para com essa mulher, que uma aberraçã o tremenda tinha levado ao
crime. No entanto, alguém surgia mais culpado que Bosemonde de
Armilly. Esta tinha sido o joguete duma há bil criatura que se tinha
servido da vaidade, da falta de princípios e da fraqueza moral da viú va
para satisfazer o seu miserá vel rancor.
222 Desde que resolveu reparar a sua falta, perdoo-lho, Rosy disse o
senhor de Armilly, empregando pela primeira vez o diminnitivo que
nã o dava à cunhada.
192
Nã o se recorda, Rosy, da promessa que fiz ao Augusto no seu leito de
morte? Suplicou-me que velasse por si e pelo Luís, que afastasse tanto
quanto pudesse os aborrecimentos e os desgostos pesados, Para o
tranquilizar, para o ver morrer em paz, prometi pela minha honra o
que me pedia... Quando, de deduçã o em deduçã o, cheguei à conclusã o
da sua culpabilidade, senti-me ligado nã o só por essa promessa como
pela afeiçã o pelo Luís, de quem nã o podia acusar a mã e. Era por isso,
mais do que a minha mã e e irmã s, que nã o via qualquer saída para a
nossa triste situaçã o.
Entã o está hoje aqui uma, Renato, pois o senhor padre escreveu a
minha confissã o, assiná -la-ei e dará a conhecer toda a verdade... Exijo-
o, Renato, é a minha ú ltima vontade acrescentou ela, ao ver o gesto de
protesto esboçado pelo cunhado.
Vou encontrar o meu Luisinho... Meu Deus, como és bom. Quis torná -lo
rico à custa dum crime,
193
A jovem, prevenida por uma palavra de Huguette, tinha acorrido
imediatamente, a despeito dos embaraços duma mudança iniciada.
Nã o sentira por Rosy senã o uma ligeira simpatia, mas a morte de Luís
e a narrativa dos ú ltimos momentos da viú va inspiraram-lhe viva
compaixã o e, como todos os Armilly, bendisse a Deus o ter chamado a
si a pobre criatura fraca demais para suportar a infelicidade que a iria
acabrunhar.
224XIX
194
E pouco a pouco, começaram a falar de Geraldina. Rosy nada tinha
dito na sua confissã o, e os Armilly, nã o querendo vingar-se, nã o
pronunciaram sequer o seu nome. Mas a Melâ nia nã o foi assim
discreta.
225
Era dia de Natal. Havia um ano que Renato fizera a sua reapariçã o na
igreja, e naquele dia ajoelhara à Mesa Sagrada, entre Huguette e
 ngela esta também entregue já à prá tica da religiã o, num sentimento
de arrependimento e de acçã o de graças. Apenas Berta faltava. Berta
era orgulhosa na alegria como o tinha sido na desgraça, e recusava-se
a reconhecer os seus erros perante Deus.
195
as pernas visivelmente fracas, e avançou para a família de Armilly.
Estendeu as mã os a Renato, dizendo:
Senhor de Avrets, aquele que repara os seus erros, cumpre uma nobre
acçã o. A Â ngela sofreu muito, mas estou certo que lhe perdoou.
Minha pobre filha, queria fazer desaparecer os anos que passaram! Foi
o bom padre que primeiro me fez reflectir, ha já alguns meses, na
minha odiosa conduta. Depois surgiu essa revelaçã o inesperada...
Sinto-me contente por que a verdade se tivesse esclarecido bem.
196
parentes, regozijava-se com aquela reparaçã o, com o reconhecimento
do erro que por tanto tempo pesara sobre os Armilly. Mas que lhe
importava! Envelheceria na mesma solteira, pois sentia agora pelo
casamento um estranho afastamento. Sobre a imensa família de
desgraçados, espalharia o excedente da sua pequena fortuna e a
afeiçã o do seu jovem coraçã o á vido de dedicaçã o.
Nã o lhe permito que fale assim dessa pobre mulher! É inú til tentar
ainda dissimular junto de nó s, previno-a minha senhora, pois a
conhecemos bem. Quanto ao que se diz dos conselhos e da direcçã o
que imprimiu à minha cunhada, nã o somos responsá veis, visto que o
seu nome nem sequer foi pronunciado.
197
Ripostou com insolência:
É preciso bem que o esqueça, desta vez. Imagine que, nestes ú ltimos
tempos, ao folhear alguns documentos existentes na biblioteca,
encontrei certa folha, anotada pela mã o do meu avô , que provava que
a fortuna de Mateus Daussy nã o tem uma origem confessá vel e
bastava, creio eu, para lançar a desonra sobre o nome de que parece
tã o orgulhosa.
198
O futuro nã o nos pertence... Adeus, Espero um dia ter a alma
suficientemente cristã para lhe perdoar.
199
231 Parece fatigada, Huguette, caminha vagarosamente disse a voz
grave do senhor de Armilly.
XX
200
Esta ú ltima consideraçã o nã o pesou nada na decisã o de Silvina e dos
seus, quando a senhora Delbeaume, antes da sua partida, fez em nome
do filho o pedido de casamento. Com um assentimento rá pido lhe
responderam. A senhora de Armilly objectou apenas que Silvina teria
um dote insignificante, visto que quando atingira a maioridade tinha,
como suas irmã s, renunciado à parte da sua herança de Vitó ria.
201
testemunhava a Huguette uma ternura pouco demonstrativa, mas
sincera, e inquietava-se bastante ao vê-la empalidecer e tornar-se
mais magra.
Huguette teve um melancó lico sorriso. Era bem verdade, que por
culpa dessa mulher a dú vida penetrara por um momento na sua alma
e ainda hoje sentia a sua influência nefasta entre Renato e ela.
O souto tinha sido adquirido pelo senhor de Avrets, bem como a Casa
Vermelha, aquela moradia em que Gerardina combinava os seus
planos de vingança e preparava a há bil teia que devia prender Rosy
numa trama cerrada. Mas continuavam ainda em Myols a existir
traços do veneno distilado pela neta de Mateus Daussy, e Huguette
sentia bem a sua amargura.
202
Queria falar-lhe, Huguette. Quer vir por algum tempo ao escritó rio?
Fez um gesto de concordâ ncia e seguiu-o até ao vasto compartimento,
muito confortá vel com o tapete espesso, soberbo presente do senhor
de Vauthars, Renato aproximou-se da chaminé e sentou-se de costas
para a janela, depois de ter arranjado uma cadeira para Huguette.
Dois? Oh! primo! Quem teve essa ideia? exclamou ela com admiraçã o
sincera, mas sem qualquer alegria.
203
Convém reflectir antes de tomar qualquer resoluçã o. Dê-me a sua
resposta somente amanhã ”
204
No mês de Maio seguinte, Huguette atingiu a maioridade. À quele
acontecimento, que correspondia ao baptizado do primeiro filho de
 ngela, deu ocasiã o a um grande jantar, que reuniu em Myols, além
do”
205
Renato estava ali, tendo entre as mã os um grande escrínio, que
examinava atentamente. Avançando para a prima, disse;
Estou muito atrasado para lhe dar o meu presente, Huguette. A pessoa
a quem tinha encarregado de mo expedir, faltou ao combinado, e só
agora um mensageiro mo trouxe.
Voltando a folha, leu o título: Pá ginas de Saboia, por Renato Luís.,. Era
uma obra do senhor de Armilly, recentemente editada, e de que tinha
feito a leitura em família no ano anterior, antes de a entregar à
impressã o. Huguette apreciara no seu justo valor aquela obra, nã o só
delicada como profunda, tinha-lhe expresso a sua opiniã o com
simplicidade e isto era, provavelmente, um agradecimento delicado de
Renato.
239 mais profundas do que esta. Sinto-me contente por lhe poder
exprimir assim o meu reconhecimento pelo bom moral que trouxe a
minhas irmã s... e a mim pró prio, com a sua alegria, a sua fé viva e a sua
dedicaçã o silenciosa.
206
Huguette, o retrato dum coronel de Armilly, que outrora comandara
um regimento na Saboia.
O que há ?... Mas nã o sei nada... ou melhor, nã o há nada. Que quer que
haja, Silvina?
207
Huguette levou nessa noite para o quarto todas as suas prendas de
aniversá rio. Arranjou cuidadosamente as pérolas de Berta numa
gaveta, com algumas outras jó ias que lhe tinham oferecido e que
julgava inú teis na sua existência retirada, dispô s pelo quarto as lindas
bugigangas, presentes de Lauriana e Silvina, dispô s sobre o parapeito
da janela os vasos cheios de flores e na mesa de trabalho o livro de
Renato, pensando que lhe devia esta reparaçã o, por o ter acusado,
durante o dia, de esquecimento.
XXI
241
Eis agora o que herdou de Vitó ria. Com os juros acumulados, isso
perfaz.,.
Nã o aceitarei mais que o Renato! Para ter recusado essa herança, que
parece no entanto pertencer-lhe legitimamente, deve ter uma razã o
séria que também existe para mim,
208
Há na verdade uma razã o replicou ele firmemente. Ser-lhe-ia
impossível na realidade conservar esta fortuna. Como já lhe disse,
creio que tem um fundo desonesto...
Renato, por que razã o quis casar com Vitó ria? O rosto de Renato
alterou-se sob a violência da emoçã o de que nã o foi senhor.
Por que razã o?... Há muito que formou uma opiniã o sobre isso! disse
num tom duro, erguendo a cabeça com altivez. Que lhe importa o que
eu disser? Está persuadida como toda a gente de que atraí Vitó ria por
causa do seu dinheiro.
Por que razã o mudou de atitude para comigo? Por que me trata como
a uma estranha?
209
Ele ergueu-se com brusquidã o e a mã o apoiou-se-lhe fortemente na
secretá ria.
Feri o seu orgulho, senhor de Armilly, e é essa a razã o por que me tem
rancor. Só tenho que me repreender duma dú vida involuntá ria e
muito curta, de que aliá s pedi perdã o. Dentro de dias o tempo apenas
de procurar um abrigo e terei deixado esta casa, onde me suporta
apenas por dever, onde
Huguette, que está a dizer? Nã o sabe que sem a sua presença isto seria
um tú mulo? Nã o sabe?... Mas tem razã o, sou um louco, um orgulhoso.
Nã o podia pensar sem um estremecimento de horror que lutava talvez
contra o desprezo, e o meu amor pró prio abafava-me a voz do
coraçã o, que me pedia que lhe falasse, que lhe dissesse tudo,,, tudo o
que sonhava... Huguette, bem no fundo de si pró pria, nã o subsiste
qualquer dú vida a meu respeito?
210
E o tom, mais ainda do que as palavras, exprimia a sinceridade da
jovem e a comoçã o profunda que a dominava.
211
que a ninguém mais me confiaria com tanto abandono, tanta
segurança.,. e felicidade.
Jamais vira, nos olhos de Renato, uma tal expressã o de alegria, Disse
num tom de vibrante comoçã o:
245 Ainda teve menos do que eu, Renato! Quanto sofreu com aquela
infeliz acusaçã o.
212
246facto a abafava. Mas nã o podia fazer nada, pois tudo pertencia à
filha.
”Exclamei:
Ao vê-lo, Renato, pensei que aceitaria fazer isto por Vitó ria. Casaria
com ela e, sem ela o duvidar, ser-lhe-ia fá cil restituir, se nã o fosse
possível tudo duma só vez, pelo menos pouco a pouco, o dinheiro
subtraído por sir Hardweel, com todos os juros,
213
Muitas vezes, outrora, me chamaram dom
Quichote, e creio que tinham alguma razã o.,, E depois, a Vitó ria era
nessa altura uma linda menina, um pouco presumida, é verdade, mas
que parecia meiga e bondosa, que a mã e amava ardentemente e que
me aparecera, no dia da minha chegada
214
”Tens aqui a tua noiva, meu filho.
215
filho, mas mesmo essa parte nos voltou à s mã os e teve o mesmo
destino que as outras. Apenas resta a sua, Huguette. A jovem disse
alegremente:
Vai fazer muitas pessoas felizes. Será necessá rio dar parte ao nosso
bom pá roco, para a sua igreja e os seus pobres... E tenho uma ideia,
Renato! Se construíssemos num sítio bem arejado e pitoresco uma
espécie de sanató rio para as crianças pobres e doentes É uma boa
ideia e digna do seu excelente coraçã o. Estudá -la-emos seriamente.
Enfim!... enfim, meu filho, será s feliz! Clotilde, radiante, beijou com
ternura o irmã o e a prima.
250por isso acrescentou ela sem melancolia, pois tinha aceite com
serena resignaçã o a dor da sua penosa enfermidade.
...Na noite desse mesmo dia, que devia deixar na alma de Huguette
uma inapagá vel e deliciosa recordaçã o, o senhor de Armilly, ao
regressar do jardim com a noiva, parou junto duma mesa do escritó rio
e abrindo um volume brochado que ali se encontrava, colocou o dedo
na primeira pá gina.
216
Numa segunda ediçã o, é preciso pô r aqui: A minha mulher disse ele
com um sorriso de contentamento.
FIM
Fá tima Tomá s
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