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Uma vez que você beber o néctar


dos deuses, não há como voltar atrás.
Leda Pierce está trabalhando como
caçadora de recompensas paranormais na
Fronteira, a linha divisória entre a
civilização humana e as planícies de
monstros. A vida é simples e o salário
modesto, mas ao menos ela tem sua
família. Ou seja, até que uma caçada de
vampiros dá errado e seu irmão
desaparece, capturado pelos Anjos das
Trevas do inferno.
Sem poderes mágicos próprios e sem
meios para encontrá-lo, a única opção de
Leda é ir para Nova York e se juntar à
Legião dos Anjos, uma unidade de elite de
soldados sobrenaturais com poderes dado
a eles pelos próprios deuses. Se ela
conseguir sobreviver o tempo suficiente
para se juntar a eles, ganhará a magia que
precisa para encontrar seu irmão.
Mas Leda logo se vê no lado errado de
uma conspiração que sacudirá o mundo
sobrenatural, e à mercê de um anjo
ferozmente poderoso e tentador.
Ninguém sabia por que os monstros
vieram e ninguém os viu chegando. Em
poucos dias, eles quase invadiram a Terra.
Algumas pessoas disseram que era o
castigo da humanidade por seus pecados.
Outros disseram que foram os demônios
que lançaram as bestas sobre nós. Mas
uma coisa sabemos com certeza: seres
poderosos intervieram. Eles se
autodenominavam deuses e se opunham
aos monstros.
Eles construíram muros entre as
cidades restantes da Terra e as planícies
dos animais. Eles nos deram comida e
armas - mas acima de tudo, nos deram
magia.
Dos sobreviventes da humanidade, eles
construíram seu exército, soldados com a
magia de vampiros, bruxas, shifters, fadas
e todos os tipos de outros seres
sobrenaturais. E os melhores dos
melhores, o topo de sua Legião,
transformaram em anjos. Com este novo
exército, os deuses venceram a guerra
contra os demônios, empurrando-os de
volta ao inferno.
O problema dos monstros, no entanto,
não foi tão facilmente resolvido. Os
animais permaneceram. Duzentos anos
depois, a batalha ainda continua na
Terra, mas peça por peça, vamos retomar
nosso mundo.
Você descobre que sua vida atingiu um
nível mais baixo, quando seu vizinho
embriagado de sessenta anos de idade, lhe
propõe uma “rapidinha” atrás do bar
Witch’s Watering Hole. Eu ainda estava
pensando em uma resposta diplomática,
quando ele deslizou uma jarra de vidro
nublada com álcool para adoçar a
proposta.
— O que você diz, Leda? — Ele mal
articulou, estalando os lábios. Sua
respiração cheirava a acetona.
Que você tem três vezes a minha idade.
Lembrei-me de que ele estava bêbado, e
que não era bom jogar sua bebida na cara
do seu vizinho.
Ele não era o único. O Witch’s
Watering Hole estava lotado hoje à noite,
uma consequência inevitável do dia de
pagamento e da sexta-feira à noite. Todo
mundo no bar estava bêbado, todo mundo,
menos eu. Eu tinha trabalho a fazer e não
havia tempo para moonshine1.
— Dale — eu disse, sorrindo. Sim, ele
estava bêbado, mas isso não era motivo
para esquecer minhas boas maneiras. —
Fico lisonjeada. Realmente estou, mas
acho que Cindy ficaria muito
decepcionada se eu aceitasse sua oferta. —
Acenei para a ruiva peituda do outro lado
da sala.
Dale seguiu meu olhar até Cindy.
Assim que os olhos dele caíram sobre ela,
seus lábios carnudos se abriram em um
sorriso sensual e ela se mexeu no assento,
cruzando uma perna muito longa sobre a
outra com facilidade. Sua minissaia
deslizou alguns centímetros acima da
coxa, o que selou o acordo para Dale. Ele
tropeçou na banqueta e cambaleou em sua
direção, estufando o peito como um pavão.

1
Moonshine é o termo usado para descrever bebidas alcoólicas destiladas de alto teor que
são geralmente produzidas de forma ilícita. Moonshine é tipicamente feito com mosto de
milho como seu principal ingrediente.
Deslizei a jarra de moonshine
abandonada para uma distância segura e
tomei um gole do suco de abacaxi para
limpar meus sentidos. Apesar de seu gosto
questionável pelo álcool, que, para ser
justa, metade da cidade também estava
bebendo, Dale não era realmente um cara
mau. Geralmente era muito quieto e
amigável. Ele provavelmente se
arrependeria de suas palavras obscenas
pela manhã. Supondo que se lembrasse
delas.
A jukebox vermelha brilhante no canto
soou viva, cantando uma música bem-
humorada sobre uma bruxa que se
apaixonara por um vampiro. A jukebox
era uma importação recente da cidade de
Nova York, e Brooke, o proprietário do
Witch”s Watering Hole, estava bastante
orgulhoso disso. Como ele deveria estar.
Este bar era o único na cidade que tinha
uma jukebox.
Aqui na fronteira, na linha divisória
entre civilização e Wasteland, infestada
de monstros, não tínhamos muitas
comodidades. Não era de admirar que os
sobreviventes do flagelo tivessem
renomeado essa cidade para Purgatório.
Além da jukebox, o resto do Witch”s
Watering Hole parecia um antigo salão
ocidental por excelência, que
provavelmente fora a época em que os
móveis haviam saído. Mesas e cadeiras de
madeira feitas à mão, degradadas, mas
limpas, organizadas nas bordas da sala,
deixando uma pequena área de dança ao
lado da jukebox.
No alto, um velho ventilador girava
lentamente, mexendo o ar espesso do
verão. A maioria das coisas aqui eram
alimentadas pela boa e velha água ou
vapor mundano, e o ventilador não era
exceção. A jukebox, no entanto, era de
outra classe. Sua fonte de energia era
vapor encantado, ou Magitech, uma
energia que os deuses haviam presenteado
a humanidade dois séculos antes. Bem,
pelo menos se você tiver a sorte de morar
em uma das cidades de alta tecnologia do
mundo. Para todos os outros, era difícil
conseguir energia encantada — se não
impossível. E sempre foi
escandalosamente caro.
— Você está bonita esta noite, Leda.
Eu me virei para encarar meu próximo
admirador. Esse já era o sexto cara esta
noite. Talvez o top e as calças coladas, não
tenham sido a melhor ideia de guarda-
roupa, afinal. Mas tinha que atrair a
atenção do meu alvo de alguma forma. Se
ele tivesse chegado aqui há uma hora
atrás, como a inteligência de Calli dissera
que chegaria, então eu já estaria longe.
O admirador nº 6 acabou por ser Jak, o
garoto nerd tímido que tinha uma queda
por mim desde a terceira série, e ainda não
falara mais do que três palavras comigo.
Até hoje à noite. Esta noite, as palavras
jorraram.
— Então, você quer... hum, o que eu
quero dizer é... apenas se você quiser...
Sua mão segurou a jarra de moonshine
por sua vida. Então era daí que sua
repentina explosão de coragem veio. Ele
pegara o copo de Dale do balcão. O “achado
não era roubado” era o lema aqui, e a
maioria das pessoas simplesmente o
aceitava. Além disso, Dale estava muito
ocupado se beijando com sua nova amiga
para notar a falta de seu moonshine.
— ... eu estava pensando que seria
bom... você sabe, há quanto tempo nos
conhecemos ...
— Desembucha, Jak — eu disse,
verificando a impaciência na minha voz.
Não era culpa dele que meu alvo estivesse
atrasado ou que cinco outros homens
tivessem me atingido antes que ele
aparecesse.
— Dança Comigo? — Ele deixou
escapar. Apertava o cabo da jarra com
tanta força que toda a cor havia
desaparecido de sua mão.
— Faça uma caminhada, júnior —
alguém disse atrás de Jak, fazendo-o
pular.
Jak deu uma olhada no brilho frio dos
olhos escuros do homem, depois fugiu. O
recém-chegado lançou ao moonshine um
olhar de nojo, depois pediu um uísque.
— Eu sou Mark — disse o homem,
estendendo a mão. Ele cheirava
fortemente a colônia e hortelã-pimenta.
Ele estava tão deslocado nesse bar
quanto a jukebox vermelha brilhante no
canto. Os outros clientes do bar usavam
algodão e jeans desbotados. Tinham rostos
manchados e sujeira sob as unhas. Mark
parecia ter saído de uma passarela da
moda. Usava uma camisa de seda preta,
metade dos botões abertos para expor seu
peito musculoso. Botas com um pequeno
salto e as calças de couro preto justas
completavam seu conjunto. Seu cabelo
estava penteado para trás com gel. Loiro
platinado, era quase tão pálido quanto o
meu. Exceto que seus cabelos estavam
tingidos, claramente um trabalho de cores
caro em um salão de luxo da cidade.
— Leda — respondi, sorrindo
timidamente para meu alvo. Eu
conseguiria pegá-lo mesmo sem ter visto a
fotografia em seu pôster de procurado. Ele
se destacava como um polegar dolorido. E
a ironia do nome do meu alvo sendo Mark
era difícil de ignorar.
— Leda — disse ele, como se estivesse
saboreando cada letra do meu nome. —
Um nome tão bonito. — Ele olhou por
cima do copo, devolvendo o sorriso. — Para
uma mulher tão bonita.
Suave. Realmente suave. Ele falou
com uma graça fácil, como se não se
importasse com o mundo. Como se não
estivesse fugindo da lei.
— Você não é daqui — eu disse,
arrastando meu olhar ao longo dele, como
se estivesse olhando-o. Ele não estava
usando nenhuma arma que eu pudesse
ver.
— Eu sou da cidade. Nova York. — Ele
acrescentou com uma piscadela
conspiradora.
— Oh — ofeguei. — Eu sempre quis ir
lá. — Agitei meus cílios longos para ele.
Ele mordeu a isca. — Talvez eu te leve
algum dia — disse, passando o braço em
volta de mim.
Eu me aproximei, estendendo as mãos
para passar pelas costas dele. Sem armas.
Fui para as pernas dele. Nada. Ou ele era
muito bom em escondê-las ou era um
idiota. Achei que estava inclinado para
idiota. Afinal, havia me dado seu nome
verdadeiro. Ele parecia pensar que estava
seguro aqui fora, na fronteira da
civilização.
— Você realmente me levaria? —
Perguntei.
— Claro, querida.
Mentiroso. Ele estava fugindo das
autoridades de Nova York, acusado de
sequestro e roubo de propriedade da
Legião. A única maneira de voltar para a
cidade era algemado. De preferência a
minha algema.
— Você cheira tão bem — ele
murmurou no meu ouvido. — Alguém já te
disse isso?
Apenas todos os outros caras que
queriam entrar nas minhas calças.
Eu beijei sua mandíbula suave, depois
me afastei para atingi-lo com meu melhor
olhar sensual. Apesar das horas de prática
em frente ao espelho, ainda não tinha os
melhores olhares sensuais, mas Mark não
parecia se importar. Ele me encarou
enquanto eu mexia meu suco de abacaxi
com uma mão. A outra mão estava
ocupada mergulhando discretamente em
minha bolsa pelas as algemas...
— Olá, Leda! — uma voz soou do outro
lado do bar.
Eu conhecia essa voz muito bem. Olhei
para o caçador de recompensas vindo em
minha direção. Ele usava um terno de
motociclista em couro preto e vermelho
cem vezes mais frio do que ele. Jinx. Era
assim que se chamava, e eu não sabia seu
nome verdadeiro. Só que ele era um
necrófago. Uma maldita hiena.
— Ei, docinho. — Jinx parou na minha
frente, sorrindo.
— Você conhece esse sujeito? — Mark
perguntou.
— Infelizmente! — Rosnei.
— Leda e eu voltamos — disse Jinx. —
Nós nos conhecemos durante o trabalho
em Sunset.
Cale-se. Tentei mentalmente enviar
essa mensagem para ele em todas as
frequências, mas não sou telepata, então
minha mensagem caiu em ouvidos surdos.
— Ou foi o caso de Blacktown? Não
consigo lembrar nem pela minha vida. —
Ele riu. — Fizemos tantos trabalhos
juntos.
Não, você me roubou muitos trabalhos,
seu filho da puta ladrão.
— Em que tipo de negócios vocês dois
estão? — Mark perguntou.
— Caça à recompensa — Jinx
respondeu agradavelmente. — Falando
nisso, Leda, você já pegou esse cara de
Nova York?
Os bancos caíam, caindo no chão
enquanto Mark corria para a porta,
correndo para fora do bar como se seu rabo
estivesse pegando fogo. Olhei para Jinx,
mas não havia tempo para denunciá-lo, e
eu não era forte o suficiente para derrotá-
lo em combate corpo a corpo. Mas fui
rápida. Eu o algemei no bar antes que
pudesse se mover, então corri atrás do
meu alvo, o fluxo de maldições enfurecidas
de Jinx saltando nos meus calcanhares.
Agora na rua aberta, bombeei minhas
pernas o mais rápido que pude. Minhas
botas mal tocaram o chão de cascalho. Eu
tinha que chegar até Mark antes que
escapasse, ou pior ainda, Jinx o pegasse.
As algemas não segurariam o outro
caçador de recompensas por muito tempo.
— Leda, nosso alvo acabou de virar na
Third Street. Estou em perseguição —
disse meu irmão Zane através do
comunicador. O pequeno dispositivo
Magitech escondido dentro do meu brinco
nos custou uma pequena fortuna, mas
valeu cada centavo. Isso tornou possível o
trabalho em equipe.
— Mantenha seus olhos abertos em
Jinx — adverti-o.
Eu não deixaria esse músculo
eliminador entrar no nosso show, não
desta vez. Não podíamos perder esse
salário. Nós já gastamos o dinheiro para
pagar a primeira conta da nossa irmã
Bella na Universidade de Bruxaria de
Nova York.
— Merda.
— Zane? — Chamei.
— Mark está indo para o muro.
Se ele conseguisse passar por cima do
muro, perderíamos qualquer chance dessa
recompensa. Ignorei o fogo ardente do
inferno queimando dentro dos meus
músculos e forcei meu corpo protestando a
se mover mais rápido, enquanto corria na
esquina para a Third Street. Agora, eu era
uma corredora rápido. Era uma
habilidade essencial para alguém sempre
perseguindo pessoas. Pratiquei muito
todos os dias e, como resultado, posso
superar quase qualquer um. Mas não
Mark. Ele se movia rápido, especialmente
para alguém vestindo calças de couro
intactas.
O muro era alto e imponente no final
da rua. Além dela, ficava a Terra Deserta,
onde monstros vagavam livremente, sem
controle, sem parar. Aquela muralha era
tudo o que havia entre esta cidade e um
massacre total, aquela muralha e os
soldados paranormais que estavam de
guarda em cima dela. Os soldados viram
Mark correr em direção à parede e nem
sequer ergueram os rifles. O trabalho
deles era manter os monstros afastados.
Se alguém quisesse correr para a Terra
Deserta, não levantariam um dedo para
detê-lo, criminoso ou não. Eles sabiam que
os monstros o pegariam de qualquer
maneira, e seriam pagos de qualquer
maneira.
Nós, por outro lado, só somos pagos se
capturarmos Mark vivo. O que não
aconteceria se ele corresse para a Terra
Deserta. Talvez pudéssemos pegá-lo antes
dos monstros, mas eu não ia arriscar
nossas vidas por ali. Posso ser louca, mas
não tão louca. Não era como alguns outros
caçadores de recompensa.
Mark pulou no ar, atingindo a parede.
Ele ia escalar. A parede tinha mais de dez
metros de altura, e ele pensou que poderia
derrubá-la com apenas as mãos nuas.
Talvez estivesse certo. Ele fazia um
progresso surpreendentemente rápido.
Muito rápido. Nós nunca seríamos
capazes de ultrapassá-lo.
Eu ainda estava muito longe. Então
peguei minha arma e atirei na perna dele.
Mark uivou, seu grito perfurando a
música noturna dos grilos. Quando não
soltou a parede, atirei nele novamente,
desta vez na mão. Seu aperto afrouxou e
ele deslizou pela superfície pedregosa.
Assim que seus pés atingiram o chão, se
virou para encarar Zane, seus olhos
pulsando com um brilho distinto azul
prateado.
— Um vampiro — Zane ofegou dentro
do meu fone de ouvido.
Bem, isso explicava a velocidade dele.
— O arquivo dele dizia que era
humano — eu disse, correndo em direção
a eles.
— Acho que estava errado.
Fantástico. Mark disparou para
frente, empurrando Zane do outro lado da
rua. Meu irmão bateu no chão com força.
Levantei minha arma para atirar no
vampiro novamente, mas ele estava na
minha frente em um instante. Rosnando,
bateu na arma em minha mão, depois me
jogou contra a parede.
Eu o chutei e empurrei seu punho de
ferro, mas ele não cedeu um centímetro. É
por isso que não luto contra as pessoas de
perto, principalmente os vampiros. Graças
ao meu misterioso sangue sobrenatural,
ninguém parecia saber que tipo de
sobrenatural eu deveria ser, sou mais
forte e mais resistente do que um humano.
Caso contrário, já estaria morta. Mas não
era mais forte que um vampiro. Isso era
inegavelmente óbvio quando a mão de
Mark se fechou em volta da minha
garganta, sua mão apertando lentamente,
sufocando o ar dos meus pulmões.
Então ele apenas soltou. Seu corpo
caiu, revelando Zane em pé atrás dele com
uma arma de choque. O vampiro rosnou e
caiu no chão.
Ainda tossindo, respirando com
dificuldade, girei, procurando algo,
qualquer coisa, que pudesse me ajudar
contra um vampiro. Não consegui. Os
soldados paranormais tinham poções e
armas com balas mágicas para ajudá-los a
combater os bandidos sobrenaturais.
Minhas opções eram mais limitadas.
Peguei uma haste de aço na parede,
apoiando minhas pernas para libertá-la.
Quando o vampiro se afastou de Zane para
me encarar, bati com a vara na cabeça
dele. A força do impacto o derrubou no
chão.
Ele pulou furioso, mas eu já estava me
movendo, correndo em direção à minha
arma. Peguei-a do chão e descarreguei
tudo o que tinha nele. Se eu soubesse que
estaria enfrentando um vampiro hoje à
noite, teria trazido algo mais potente do
que esses tranquilizantes fracos. Nem
tinha certeza de que faziam alguma coisa
com os vampiros, bem, exceto irritá-los.
As balas o atrasaram, mas não o
suficiente. Ele correu em minha direção, o
assassinato brilhando em seus olhos.
Evitei o primeiro soco, mas não o segundo.
Eu estava muito devagar. Quando me
virei, seu punho roçou minhas costelas,
roçando-as. Se eu tivesse sido uma fração
de segundo mais lenta, seu golpe as teria
quebrado. Seu próximo soco me acertou
com força na cabeça. Minha cabeça girou,
minha visão nublada, tropecei no chão.
Eu me levantei, mas sua mão se fechou
em volta da minha perna, me segurando.
Arranhando furiosamente o chão, peguei
dois punhados de terra seca e os joguei
naqueles desumanos olhos azuis
prateados. Suas mãos voaram para o
rosto, tentando limpar a poeira. Pulei,
ignorando a nova onda de dor nas costelas.
Haveria tempo para sentir dor mais tarde,
quando um vampiro enfurecido não estava
tentando me matar.
Peguei um suéter velho de um varal de
roupas próximo, enrolando-o na maior
pedra que pude encontrar. Então a acertei
na cabeça do vampiro. Ele rugiu,
recuando. Mas antes que pudesse atingi-
lo novamente, ele pulou, empurrando eu e
minha pedra no chão. Ele chutou uma
nova dose de dor em minhas costelas.
Então olhou para mim, limpando o sangue
da boca.
— Você não deveria ter vindo atrás de
mim — disse ele, colocando a bota sobre a
minha cabeça.
Dor e choque torceram juntos dentro
do meu estômago. Agarrei sua perna,
tentando tirar sua bota do meu rosto.
— É realmente uma pena — disse ele,
sua bota pressionando mais forte,
dominando minhas fracas tentativas de
me libertar. — Você é uma garota tão
bonita. Odeio bater em seu crânio. — Ele
sorriu melancolicamente. — Mas
realmente preciso.
Eu empurrei, chutei e soquei com cada
fragmento de força em mim. E isso não fez
nenhuma diferença. Ele ergueu o pé para
um golpe mortal.
E então simplesmente parou.
Zane apareceu atrás dele, cantando
baixinho. O vampiro cambaleou para trás,
segurando sua cabeça, rugindo em agonia.
— Pare! — Mark rosnou, sua voz
embargada. Ele caiu de joelhos.
Mas Zane não parou. Ele continuou
seu ataque telepático. O vampiro rugiu e
se enfureceu, seus movimentos selvagens
derrubando Zane. A fúria me inundou,
deslocando a dor, me enchendo de força.
Pulei de pé e arranquei uma persiana
velha de um prédio próximo. A adrenalina
subindo, acertei no vampiro, enfiando
direto em seu abdômen. Choque brilhou
em seus olhos, e então desmaiou.
Fui mancando até Zane, minha
adrenalina caindo, deixando a dor voltar.
— Você está bem? — Perguntei, enquanto
ajudava meu irmão a se levantar.
— Bem... — Ele olhou do vampiro para
mim. — Que diabos foi isso, Leda?
— Eu fiquei brava.
Os olhos dele se arregalaram. — Eu
posso ver isso.
— Ok, divertido o suficiente — eu
disse. — Vamos amarrar e levar esse
vampiro antes que ele decida acordar.
— Este é um vampiro. — Falei
enquanto Zane e eu jogávamos o vampiro
adormecido no sofá da sala de recepção do
xerife Wilder. A veneziana da janela
alojada no estômago de Mark se mexeu e
uma nova rajada de sangue espalhou-se
pelo tecido verde desbotado do sofá.
A filha de dezoito anos do xerife já
estava ao telefone, sussurrando na linha
do pai. Ela era a secretária do escritório.
Eu a conheci várias vezes entrando no
escritório do xerife depois de um trabalho.
Ela sempre foi tão radiante, tão vibrante.
Nunca a tinha visto surtar assim. Então,
novamente, eu nunca trouxe um vampiro
sangrando em seu turno. Eles não eram
exatamente os ursinhos de pelúcia do
mundo paranormal, bem, a menos que
você ficasse excitada para ter seu pescoço
mastigado. Honestamente, nunca entendi
o apelo.
— Ele não deveria ser um vampiro. —
Continuei.
Os olhos de Carmen Wilder
dispararam de um lado para o outro do
vampiro babando no sofá até o telefone
piscando. Ela apertou o botão mais
algumas vezes.
— Nada no arquivo dele indicava que
ele era um vampiro. O arquivo que você
me deu disse que era humano. — Terminei
quando o próprio xerife, Leland Wilder,
entrou correndo na sala de recepção.
— Deve ter sido uma novidade. —
Disse ele, com o rosto pálido como as
paredes caiadas de branco.
— Você sabia. — Encarei-o. — Você
sabia e não disse nada.
— Eu não sabia. — Ele insistiu,
inclinando-se para jogar o vampiro por
cima do ombro. Leland Wilder poderia ter
mais de cinquenta anos, mas não era
desleixado. Era construído como um
cavalo de guerra. — Sério, Leda. Eu não
fazia ideia.
Metal gritou quando abriu a porta da
cela. Ele jogou o vampiro para dentro,
depois girou a fechadura. Um brilho
dourado, como um milhão de vaga-lumes
zumbindo, espalhou-se pelas barras. O
escritório do xerife era um dos poucos
lugares da cidade movidos a Magitech. O
gigantesco muro que ficava entre o
Purgatório e a Terra Deserta era outra
coisa notável. Com o apertar de um botão,
os soldados que guardavam a parede
poderiam ligar o gerador mágico, e um
escudo protetor vivo surgiria. Eles não
precisaram que fazer isso ainda, os
monstros mantinham distância da cidade,
mas você nunca sabe quando decidirão
que sua grande fatia do inferno,
simplesmente não é grande o suficiente.
— Trazer esse vampiro quase nos
matou. — Enfatizei.
— Eu sinto muito.
— Não quero desculpas. Quero
respostas.
Ele levantou a mão, acenando para eu
ir ao seu escritório. O segui para dentro,
sem esperar por Zane. Ele estava ocupado
confortando Carmen. Ela já tinha quase
esquecido o vampiro sangrando dormindo
na cela. Meu irmão, o charmoso.
O xerife Wilder fechou a porta atrás de
mim e sentou-se na beira da mesa. — Você
quer chá? Café? — Seu olhar desviou para
minha barriga nua manchada de sangue.
— Uma poção de cura?
Cruzei os braços sobre o peito. —
Apenas respostas. O que está acontecendo
aqui?
— Eu gostaria de saber. — Ele
suspirou. — O distrito policial paranormal
que emitiu a recompensa não me disse que
Mark Silverstream era um vampiro. Eu
apenas liguei para pegar uma picape e os
repreendi sobre esconder isso de mim.
— E o que disseram?
— Aquele Silverstream foi
transformado depois que escapou da
custódia em Nova York. — Respondeu o
xerife. — Ele deve ter pedido um favor,
talvez tenha alguém para expulsá-lo do
sistema.
— E a polícia paranormal não colocou
no cartaz, porque então teriam que pagar
mais pela recompensa.
— Não é só dinheiro, Leda.
Ultimamente, os caçadores de
recompensas têm se preocupado em
rastrear vampiros. Não os culpo,
principalmente depois do que aconteceu
em Brimstone.
Os vampiros tinham uma hierarquia
muito rígida e tomos de regras. Regras
sobre quem deve ser transformado. Sobre
onde poderiam morar. Sobre quem e como
poderiam lutar. Sobre como podem falar e
quem podem comer. Tudo era muito
medieval, mas eram essas regras que
mantinham os vampiros, e seus instintos
sangrentos, sob controle.
Mas há alguns meses atrás, um grupo
de vampiros foi desonesto. Eles
assumiram uma pequena cidade chamada
Brimstone, reivindicando-a como sua.
Quando os caçadores de recompensa
chegaram ao local, os vampiros já haviam
matado metade dos humanos na cidade.
Os caçadores de recompensas logo os
seguiram até seus túmulos.
Os soldados paranormais entraram em
seguida. Eles conseguiram matar alguns
dos vampiros antes de serem descobertos,
mas assim que foram, o jogo acabou. Os
vampiros os massacraram. Nenhum deles
conseguiu sair vivo.
Finalmente, a Legião foi enviada. A
Legião dos Anjos eram os soldados
sobrenaturais de elite, seus poderes,
dados a eles pelos próprios deuses. Eles
foram chamados quando as coisas deram
muito errado, de modo apocalíptico. Eles
sustentavam a ordem dos deuses. Puniam
sem hesitação ou piedade. Se a Legião
enviou seus soldados para matá-lo, você já
estava morto. Eles eram mortalmente
eficientes e mais poderosos do que
qualquer um na Terra.
À frente da Legião estavam os anjos. E
você não queria ficar do lado ruim. Eles
eram tão brutais quanto lindos, todos com
brilhantes auréolas brancas e tudo mais.
A Legião havia declarado o que
aconteceu em Brimstone um “incidente”.
Todo mundo chamou de uma catástrofe
total. É claro que os caçadores de
recompensas se sentiam nervosos hoje em
dia em perseguir vampiros. Eu também
não aceitaria o trabalho se soubesse que o
alvo era um deles.
— A polícia paranormal pode se fazer
de boba quanto quiserem, mas o fato é que
algo assim não cai pelas frestas. — Eu
disse ao xerife. — Eles sabiam. Eles
deveriam saber.
Ele não disse nada. Parecia que ele não
sabia o que dizer. Leland Wilder era um
homem honesto, e a ideia de alguém em
sua hierarquia mentir, simplesmente não
foi processado. Isso sobrecarregava seu
senso de justiça.
Então, talvez eu tivesse que chutá-lo
para a realidade. — Mentir para um
caçador de recompensas sobre o status
sobrenatural de um fugitivo é contra os
regulamentos. — Lembrei-o. —
Estávamos armados para um humano,
não um vampiro. Eu quase morri esta
noite. Meu irmão quase morreu. Não vou
deixar isso passar. Vamos registrar uma
reclamação com o governo.
— Eu gostaria de poder fazer isso
também. — Ele murmurou, tão baixo que
eu não tinha certeza se o ouvira direito.
Não comentei sobre isso de qualquer
maneira. O escritório do xerife desta
cidade estava com escassez de pessoal e
subfinanciamento. O gerador Magitech
que alimentava suas celas era a única
indulgência deles, e havia rumores de que
o governo também o levaria embora.
Magia não era barata. Havia centenas de
cidades da fronteira gritando por
melhorias, e não havia dinheiro suficiente
para circular. Eu nem gostava de pensar o
quanto custava manter o muro. Ele se
estendia por milhares de quilômetros.
Os “senhores” autoproclamados do
distrito aqui no Purgatório e em outras
cidades da fronteira, se ofereceram para
ajudar com o problema de financiamento,
mas isso apenas trocaria um problema por
outro. Os senhores do distrito eram
criminosos. De fato, os senhores do crime
já eram um problema tão grande quanto o
gabinete do xerife. E assim que surgissem
notícias sobre o trabalho hoje à noite, e
caçadores de recompensas descobrissem
que não podiam mais confiar nas
informações dos arquivos de seus alvos, o
problema só pioraria.
— Leda, por favor, não conte aos
outros caçadores de recompensas o que
aconteceu hoje à noite.
— Eles têm o direito de saber, xerife.
Arriscam suas vidas toda vez que
conseguem um trabalho.
— Eu sei. Mas isso é exatamente o que
os senhores do distrito esperam, sua
chance de se mudarem. Se os caçadores de
recompensas pararem de aceitar
trabalhos aqui, terei que pedir a ajuda dos
senhores. Não preciso lhe dizer o que isso
fará com esta cidade.
Talvez os senhores do distrito
estivessem por trás de tudo isso. Talvez,
foram os únicos a garantir que ninguém
descobrisse sobre Mark, até que fosse
tarde demais. Era exatamente o tipo de
jogo que jogavam. E se Zane e eu
tivéssemos morrido, não haveria como
conter esse incidente. Oh, as alegrias de
ser um peão no jogo de poder de outra
pessoa!
— Não depende de mim. — Eu disse a
ele. — Cabe a Calli compartilhar ou não
compartilhar. Mas mesmo que ela decida
não contar às pessoas, isso acabará
vazando, você sabe.
O xerife suspirou. — Eu sei. Vou ter
que pensar em alguma coisa. De qualquer
forma. — Ele esfregou a cabeça como se a
vida doesse. — Seu pagamento está sendo
transferido para a conta usual.
— Obrigado.
Abri a porta e entrei no salão de
recepção. Zane e Carmen estavam
sentados lado a lado na beira da mesa, o
vampiro na cela completamente
esquecido. Era incrível o que um pouco de
flerte poderia curar. Esperei enquanto
Zane levava a mão de Carmen aos lábios e
beijava suavemente as pontas dos dedos.
Ela riu, dando-lhe um pequeno aceno
quando saímos do prédio. Como a maioria
das mulheres jovens, Carmen Wilder não
era imune aos encantos de meu irmão.
— Vamos Casanova. — Falei,
colocando meu braço no dele. — Lutar
contra vampiros me deixa com fome.
Vamos jantar em casa, antes que nossas
queridas irmãs não deixem nada para nós.

Chegamos em casa sem incidentes,


exceto pelos peregrinos que nos
enxamearam na esquina da Castidade
com a Quinta. Nos seguiram por seis
quarteirões, revelando poesia sobre a
mensagem divina dos deuses. Eles
apimentaram a prosa com citações
copiosas do Livro dos Deuses, cantando
histórias de como os deuses haviam
chegado à Terra para limpá-la dos
monstros.
— Se os deuses são tão poderosos e os
monstros foram expurgados, então o que
são aquelas coisas rondando do outro lado
daquele muro de dez metros? — Não pude
deixar de perguntar a eles.
Os peregrinos expressaram sua
indignação com a minha observação
impertinente, depois se afastaram para
encontrar a alma de outra pessoa para
salvar. A essa altura, estávamos quase em
casa, e a cornucópia de deliciosos aromas
flutuando pela janela da cozinha nos
atraiu pelo resto do caminho até lá.
Como a maioria das casas no
Purgatório, nossa casa era um caso
modesto de um andar com quatro quartos
pequenos. Eu compartilhava um quarto
com minha irmã Bella, enquanto minhas
outras irmãs Tessa e Gin compartilharam
o delas. Zane tinha seu próprio quarto, um
benefício de ser o único homem na casa.
Nós o chamamos de “Curinga” da Caixa de
Pandora, o negócio de caça de
recompensas da família. Calli, nossa mãe,
administrava o negócio, e todos nós
ajudamos.
Nenhum de nós era parente de sangue,
apesar de sermos todos de sangue
sobrenatural. Isso não significava que
tínhamos poderes especiais. De fato, além
de Bella e Zane, nenhum de nóinhas t. A
magia se manifestou de maneira diferente
em cada pessoa. Bella era uma bruxa,
Zane um telepata, e o resto de nós era um
pouco mais difícil e um pouco mais rápido
que os humanos normais. Esse era um
grande trunfo em nossa linha de trabalho.
Às vezes, essa vantagem extra significava
a diferença entre capturar seu alvo e vê-lo
deslizar entre seus dedos.
Calli foi quem nos manteve juntos. Ela
havia resgatado nossos “eus” mais jovens,
nos acolhido quando não tínhamos
ninguém. Eu conheci apenas uma mãe
antes dela, e também não era minha
parente de sangue. O nome dela era
Yasmine, e foi morta em um ataque de
monstros quando eu tinha dez anos. Após
a morte dela, morei nas ruas por alguns
anos, até Calli me encontrar e me acolher.
— Quem está escondido no banheiro
desta vez? — Zane perguntou quando
entramos na sala de estar.
Nossa casa tinha seis pessoas, mas
apenas um banheiro. E como se isso não
bastasse, duas dessas pessoas eram
meninas de dezessete anos de idade.
Bella olhou da mesa da sala de jantar
que preparava para o jantar, seus cabelos
loiro-avermelhados caindo sobre os
ombros. — Eu acho que Tessa está lá.
— Ainda? — Perguntei. — Ela estava
lá mais cedo esta noite, exatamente
quando eu precisava me arrumar para o
trabalho. Tive que usar o espelho da
motocicleta de Calli para aplicar minha
maquiagem.
— Que está manchada. — Bella
passou o polegar na minha bochecha. — O
que aconteceu lá fora?
Zane se sentou no sofá. — Nosso alvo
era um vampiro, foi o que aconteceu.
— Oh! — Bella empalideceu. — Zane,
você sabe o que Calli diz sobre colocar
sangue no sofá.
— O que posso dizer? Eu sou um
rebelde. — Ele sorriu para ela.
Além de sua magia telepática, Zane
tinha outros poderes, o maior dos quais
era sua capacidade estranha de encantar
qualquer um. Ele era muito popular entre
as senhoras desta cidade. Jovens ou
velhos, todos o bajulavam. Ele tinha um
rosto angelical, que você achava não ser
capaz de fazer nada de errado, mesmo
quando fazia algo errado bem na sua
frente.
— Regras são regras, seja para
rebeldes ou príncipes. — Bella disse a ele.
Como o resto da família, ela era imune aos
encantos dele.
Zane deu de ombros. — É de couro. O
sangue lava imediatamente. Por isso
compramos este sofá.
— Você não perguntou sobre o
banheiro? — O lembrei. — Acabei de ver
Tessa sair. Você pode se apressar e entrar
antes que ela decida experimentar um
novo batom.
Zane deu um pulo. — Bom argumento.
Eu preciso tomar banho.
— Hoje tem? — Provoquei.
— Por acaso, sim.
— Espere. — Bella disse quando ele se
virou para sair. Ela colocou uma pequena
garrafa de vidro na mão dele. — Beba isso.
Vai curar seus ferimentos.
— Obrigado. — Ele agradeceu,
sorrindo para ela.
Rindo baixinho, ela o enxotou com um
lenço de renda, o complemento perfeito
para o vestido branco rendado que usava
hoje à noite. Então, ela limpou o sofá onde
ele estava sentado.
— Você deveria beber uma também. —
Bella disse, jogando-me uma garrafa de
poção, quando terminou de afofar os
travesseiros. Ela simplesmente não
conseguia se conter. Minha irmã era
completamente louca.
Abri a tampa e a bebi de uma só vez.
Mmm, morangos. Bella fazia as melhores
poções de cura. Os remédios comuns
tinham gosto de cadarços velhos.
— É melhor eu relatar para a chefe. —
Informei-a.
— Boa sorte.
Alisei minha blusa enrugada e entrei
na cozinha. O cheiro era ainda melhor por
dentro, no centro do gênio culinário de
Calli, do que fora. Calli estava de costas
para mim, mexendo e temperando os
vários pratos que cozinhavam no fogão.
Tirei um palito da cesta no balcão.
— Você cheira a sangue. — Falou Calli
sem se virar. Juro, essa mulher deve ter
sido um cão de caça em uma vida anterior.
— É o que acontece quando nosso alvo
acaba sendo um vampiro.
Calli se virou, suas sobrancelhas
escuras se apertando enquanto me olhava
de cima a baixo. — Você deveria ter Bella
olhando suas feridas.
Dei uma mordida no meu palito,
saboreando o gosto da manteiga de alho
derretendo na minha língua. — Já olhou.
Ela me deu uma poção.
Bella era a bruxa do nosso time. Ela
fazia todas as nossas poções de cura e
bombas mágicas, o que era muito mais
barato do que as comprar. Infelizmente, é
exatamente isso que faríamos em breve.
Ela fora aceita na Universidade de
Bruxaria de Nova York e partiria amanhã.
— Você encontrou alguém para
assumir como bruxa do time? — Perguntei
a Calli.
— Não. Nenhuma bruxa que se preze
quer vir aqui para a fronteira, e todos os
que já estão aqui têm um emprego. Os
senhores do distrito contratam as bruxas
mais rápido do que chegam.
O que os senhores do distrito queriam
com tantas bruxas? Não, deixa para lá. Eu
provavelmente não queria saber.
— Coloquei a pilha de candidatos
dentro da gaveta da mesa na sala de estar.
Você pode dar uma olhada depois do
jantar.
— Bom.
Enquanto Calli cozinhava, resumi o
que havia acontecido hoje à noite: o alvo
que acabou sendo um vampiro, Jinx, o
xerife e minhas suspeitas sobre os
senhores do distrito estarem por trás da
informação errada.
— Não me surpreenderia. — Disse
Calli quando terminei. — Mas eu me
preocuparia mais com o caçador de
recompensas Jinx. Ele está obviamente
seguindo você, tentando roubar seu
trabalho. Já conseguiu algumas vezes.
— Não me lembre. — Falei. — Mas
pelo menos temos o dinheiro para a escola
de Bella agora. Vou chamar isso de vitória
e me preocupar com vampiros, senhores
do crime e a competição com o necrófago
mais tarde. — Respirei fundo. — A comida
está com um cheiro deliciosa.
Calli piscou para mim. — Claro que
sim. Fiz almôndegas.
Uau, isso foi um alarde, mas
absolutamente adequado para a nossa
última noite com todos juntos. Espiei Calli
para conferir as outras ofertas. Batata-
doce, cenoura, feijão verde... e esse pudim
de chocolate?
— Eu te amo. — Falei sinceramente a
ela.
— Claro que ama. — Ela sorriu para
mim. — Boa comida é o caminho para o
coração de todas as mulheres. E dos
homens. Se lembre disso, garota.
Eu tinha 22 anos e era muito velha
para ser uma “garota”, mas não discuti
com ela. Ela nos disse uma vez que sempre
seríamos filhos dela, e passei a aceitar
isso, até mesmo valorizar. Era muito
melhor ser filho de alguém do que não ser
filho de ninguém, não importa quantos
anos você tivesse.
Eu bufei. — Claro, vovó
Calli mal tinha quarenta anos, mas
não pude deixar de provocá-la. Aprendi há
muito tempo que a melhor maneira de
mostrar às pessoas que você as ama era
provocando-as.
— Vamos, Bloody Mary, vamos levar
essa comida para a mesa. — Disse ela,
rindo.

O resto da família já esperava, quando


trouxemos a comida para a sala de jantar,
os rostos iluminados em antecipação. E
eles não perderam tempo em atacar.
— Deuses, estou morrendo de fome. —
Disse Tessa, empilhando uma montanha
de purê de batata doce no prato. — Hoje
foi tão cansativo.
— O que você fez? — Perguntei a ela,
apesar de ter certeza da resposta.
— Gina e eu fomos ao bazar.
O Bazar era o maior shopping da
cidade, uma mistura uniforme de
produtos legais e ilegais. Havia roupas,
sapatos e coisas bobas para adolescentes.
Se você soubesse o caminho, poderia
encontrar o caminho para a seção do
mercado negro. Acabei lá algumas vezes
enquanto caçava. Era um ótimo lugar
para se esconder. Tudo parecia tão
estranho e suspeito que era fácil para os
criminosos se misturarem.
— Havia tantas pessoas para
acompanhar, e com a proximidade do
início das aulas novamente e tudo. E
Mindy Simpson fez uma tatuagem! Você
acredita nisso?
Eu não tinha ideia de quem era Mindy
Simpson. Presumivelmente, um dos
duzentos milhões de amigos de Tessa.
Minha irmã era a abelha rainha da Milton
High, a garota mais popular da escola.
— Eu estava pensando em fazer uma
também. — Continuou Tessa. — Só uma,
pequena. Uma rosa. Todo mundo adora
rosa. — Ela lançou um olhar hesitante
para Calli.
— Você não fará uma tatuagem.
— Mas Mindy Simpson tem uma! —
Protestou Tessa.
— E Mindy Simpson entende os riscos
para a saúde de fazer uma tatuagem?
Tessa fez beicinho em sinal de
protesto.
— Calli está certa. — Zane disse a ela.
— Você já viu os lugares de tatuagem por
aqui? São imundos. E reutilizam as
agulhas.
— Nojento. — Gin comentou. Como
Tessa, ela tinha dezessete anos, mas era a
mais sensata, mais reflexiva das duas.
Tessa, por outro lado, era totalmente
impulsiva. E teimosa para começar. —
Bella poderia fazer isso. Ela tem todos
esses suprimentos de bruxa e é uma
grande artista. — Tessa lançou a Bella seu
sorriso vencedor, um sorriso que poderia
dividir nações e destruir um império. — Só
preciso de uma rosa e algumas letras de
texto. Nada demais para uma bruxa
poderosa como você.
— Texto? — Bella perguntou.
— Um nome.
Ah, agora a verdade estava saindo.
— Que nome? — Calli perguntou, sem
mostrar nenhum sinal de emoção.
— Rian. É muito curto, vê?
— Quem é que se chama Rian? —
Perguntei a ela.
— Meu namorado. — Respondeu ela
com orgulho.
— Nunca ouvir falar dele.
— Você não sabe quem é Rian? Como
pode não saber quem é Rian? — Ela
questionou, acumulando o melodrama
junto com as batatas.
— Uh, talvez porque você nunca o
mencionou? — Respondi.
— Ah, já mencionei ele dezenas de
vezes. Você que nunca ouviu.
Certo. Me virei para Bella. — Você já
ouviu falar de Rian?
Bella olhou para Tessa, estremecendo.
— O nome não acende uma campainha.
Mas tenho estado preocupada
ultimamente. — Acrescentou ela
rapidamente. Ela era boa demais para o
seu próprio bem.
— Eu ouvi falar dele. — Disse Gin.
Tessa sorriu para sua fiel
companheira.
— Há quanto tempo você o namora? —
Perguntei a ela.
— Uma semana.
— Uma semana? Você o conhece há
uma semana e quer tatuar
permanentemente o nome dele no seu
corpo? Isso é tão imprudente.
— Leda. — Minha irmã respondeu
severamente. — Eu te amo, então não leve
a mal, mas você realmente deve se deixar
levar e viver um pouco. Às vezes, você
precisa agarrar sua vida pelos chifres e
dizer: “Você é minha. Eu estou no controle
de você.” E se isso significa que tem que
ser impulsivo ou imprudente ou o que for
preciso para fazer você sentir alguma
coisa, que assim seja.
— Sabe, acho que ela pode estar certa.
— Bella me disse.
— Claro que estou. — Tessa sorriu
para nós. — Sou muito sábia.
— Então nos diga, ó sábia, quem é esse
Rian? — Perguntei a ela.
Tessa levantou um dedo. — Primeiro,
ele é minha alma gêmea. — Ela levantou
um segundo dedo. — E segundo, ele é um
soldado paranormal. Sua unidade
trabalha no muro. Eles são todos tão
bonitos, tão corajosos e ousados, sempre
ajudando pessoas em perigo.
— Eles não foram muito corajosos ou
ousados hoje à noite, enquanto se
sentavam e assistiam aquele vampiro nos
espancar. — Falei. — Não posso dizer
nada sobre como são bonitos, no entanto.
Eles estavam muito ocupados escondendo-
se no muro. Talvez eu devesse ter atirado
em um deles para dar uma olhada em seu
belo rosto.
— Você não ousaria! — Tessa
exclamou.
Não, não ousaria, mas ninguém
poderia culpar uma garota por fantasiar
um pouco. Ser atacada por aquele vampiro
havia doído. Por outro lado, se os soldados
tivessem ajudado, talvez não tivéssemos
conseguido os dois mil dólares. Deduzi que
tudo aconteceu por uma razão.
— Então, quando vamos conhecer
Rian? — Perguntei, sorrindo para ela.
— Depende. Você vai tentar matá-lo?
— Só se ele atirar primeiro.
Antes que Tessa pudesse fazer mais do
que parecer completamente horrorizada,
Zane deu um tapinha com guardanapo nos
lábios e disse, suave como seda. — Calli,
se me permite desculpar, tenho um
encontro hoje à noite.
— Claro. Quem é a garota de sorte?
— Carmen Wilder.
A filha do xerife. Uau, ele trabalhou
rápido.
Zane fez uma reverência como um
príncipe e depois saiu do quarto.
— E acho melhor começar com essa
grande pilha de candidatos ao emprego de
bruxa — Falei, imaginando se encontraria
uma bruxa de verdade entre eles. Me virei
para Bella. — Gostaria de me ajudar?
Ela assentiu. — Claro.
— Bom. — Falou Calli, olhando para
Gin e Tessa. — E vocês duas podem lavar
a louça.
— Pratos? — Tessa gemeu. — Mas nós
íamos nos encontrar com Rian e seus
amigos.
— Você pode fazer isso depois de lavar.
— Calli disse a ela.
— Você deixou Zane sair. — Tessa fez
beicinho.
— Zane e Leda pegaram um fugitivo e
ganharam dois mil dólares hoje. —
Respondeu ela calmamente. — Hoje, vocês
duas pintaram as unhas dos pés de rosa e
gastaram cem dólares no Bazar. — Ela as
empurrou para a cozinha. — Todos temos
que nos revezar trabalhando.
— Calli tem um sistema de
recompensa engraçado. — Falei a Bella,
enquanto entrávamos na sala de estar. —
Minha recompensa por pegar aquele
vampiro é passar por isso. — Puxei a pilha
de papéis da gaveta da mesa e a coloquei
na mesa de café.
— Você também pode sair. — Ela
brincou.
— Eu saio o tempo todo.
— Trabalhar. Caçar. Você precisa
viver um pouco.
Eu segurei a pasta do primeiro
candidato. — Não há tempo.
— Você está sempre trabalhando,
Leda. Você nunca conhecerá pessoas.
— Fui a um bar hoje à noite. Havia
muitas pessoas lá.
— Você foi lá para trabalhar. Não para
se divertir.
Talvez ela estivesse certa, mas eu
simplesmente não tinha tempo para me
divertir. Zane e eu trabalhamos no campo,
Bella faz as poções, e Tessa e Gin
ajudavam quando não estavam na escola.
Calli gerenciava os trabalhos e os livros e
ainda fazia mais caçadas do que o resto de
nós juntos. Ela era incrível.
Mas ela teve que ser incrível por tanto
tempo. Ela nos acolheu, nos alimentou,
nos amou e trabalhou duro para garantir
que tivéssemos uma infância tão normal
quanto qualquer pessoa pós-Flagelo
poderia ter. Ela não teve uma pausa em
mais de uma década, e uma já estava bem
atrasada. Era a nossa vez de pegar a folga,
a minha vez, já que eu era a mais velha.
Tive que pegar mais trabalhos, tirar um
pouco da carga dos ombros dela. Era o
mínimo que eu podia fazer, depois de tudo
o que ela me deu.
E isso não aconteceria se eu perdesse
minhas noites na farra. Bella e eu tivemos
essa conversa antes. Eu não cedia, e ela
nunca parava de tentar. Exatamente o
que irmãs faziam.
— Abater esse vampiro foi um bom
momento. — Eu disse a ela. — Fizemos
dois mil dólares.
— Você nunca encontrará ninguém
assim.
— Eu já conheço todo mundo na
cidade. E fui atacada por eles enquanto
estavam bêbados com moonshine. O
destaque desta noite foi Dale.
— Dale? — Ela perguntou. — O da
mercearia ao lado?
— O próprio.
— Pobre homem. Desde que sua
esposa morreu, está tão triste.
— Ele parecia muito feliz colocando os
lábios em Cindy hoje à noite. — Ergui
minhas sobrancelhas para ela.
Ela sorriu. — Bom para ele. Gosto
dele. Ele sempre me deixa pegar tudo o
que preciso da Raiz da Bruxa e do Hálito
da Fada do seu jardim.
Ambas as plantas eram apenas ervas
daninhas para Dale, mas eram
suprimentos úteis de poções mágicas para
uma bruxa como Bella.
— Estou feliz que você esteja saindo
daqui. — Eu disse a Bella, folheando a
primeira aplicação. Eu só tinha que ler
algumas linhas antes que minhas piores
expectativas fossem atendidas. Calli
estava certa. Nenhuma bruxa de verdade
queria vir aqui. — E estou feliz que você
tenha a chance de estudar bruxaria. —
Joguei o primeiro currículo de lado,
suspirando.
— É só por dois anos. — Disse ela,
apertando minha mão. — Então eu
voltarei.
Joguei o próximo currículo na pilha de
rejeitado. O cara pensou que ser um mega
fã da série de quadrinhos Wild, Wild
Witches o qualificava para o trabalho.
— Não, você vai se tornar uma bruxa
famosa. — Eu disse a Bella. — Você
chegará à liderança de um coven em cinco
anos, não há problema.
As risadas de Bella soaram, uma
música de verão e arco-íris, uma promessa
que os desejos realmente se tornavam
realidade. — Você com certeza está
confiante.
— Você é boa. E estou feliz que vá a
algum lugar onde possa melhorar ainda
mais.
— Desejando que você pudesse vir
também?
— Não. — Respondi. — Não tenho
talentos especiais. Sou um fracasso
mágico.
— Não, você não é. Você é forte e
rápida.
— Diga isso ao vampiro. — Estremeci.
— Leda, você é forte por dentro, onde
mais importa. Você não recua. Sempre
avança.
— Em outras palavras, sou teimosa.
— Cem por cento.
Dei de ombros. — Bem, no que diz
respeito às falhas mortais, eu poderia
pensar em algumas piores.
O riso de Bella foi interrompido
quando a porta se abriu e Carmen Wilder
correu para dentro, com os cabelos
desgrenhados, o corpo ensopado de suor,
os olhos arregalados de terror. Um fluxo
de palavras ininteligíveis saiu de sua
boca, pontuadas por respirações
ofegantes.
— Carmen? — Calli perguntou,
correndo para ela. — Você precisa se
acalmar para que possamos entendê-la.
— Eles... levaram Zane.
Eu me levantei. — Quem?
Os olhos de Carmen dispararam
erraticamente ao redor da sala, sua mente
claramente girando dentro de um
pesadelo. — Anjos das Trevas. Os
mensageiros do inferno.
— Aqui, beba isso. — Bella ofereceu
Carmen com um sorriso gentil,
entregando-lhe um copo quente de leite.
As mãos de Carmen tremiam quando
ela pegou o copo da minha irmã e o levou
à boca, mas seu nervosismo se acalmou
lentamente, graças a qualquer poção
calmante que Bella misturou ao leite.
— Você pode nos contar exatamente o
que aconteceu? — Calli perguntou,
colocando a mão no ombro de Carmen.
— Zane e eu acabamos de
compartilhar um sorvete no Sweets and
Treats. Ele estava me levando para casa,
e decidimos atravessar os Jardins de
Verão. Ele pegou minha mão. — Um leve
sorriso curvou os lábios de Carmen.
Tudo parecia tão pacífico, tão inocente.
Andei pela sala, sabendo que não poderia
durar.
— Então os Anjos das Trevas vieram.
— O sorriso de Carmen murchou. —
Quatro deles. Eles voaram em suas asas
tão escuras quanto a meia-noite. Eles
agarraram Zane, e então, antes que eu
pudesse piscar, estavam no ar novamente,
voando com ele. — Suas mãos tremiam,
seu medo substituindo a poção calmante
de Bella. — Você tem que recuperá-lo. —
Ela segurou o braço de Calli como se
estivesse se afogando. — Você só precisa
recuperá-lo.
— Nós vamos. — Calli prometeu,
abraçando a garota.
— Por que eles o levaram? — Soluços
irromperam dos lábios de Carmen. — Por
quê?
— As razões dos Anjos das Trevas são
um mistério.
Foi uma resposta evasiva. Calli sabia
tão bem quanto eu porque os Anjos das
Trevas queriam Zane: por sua magia. Os
anjos o desejariam pela mesma razão, mas
como foi, os Anjos das Trevas descobriram
primeiro.
Uma batida soou na porta e Bella foi
atender. Alguns momentos depois, o xerife
Wilder entrou em nossa sala de estar, suas
botas pesadas batendo contra as tábuas do
assoalho a cada passo. Assim que viu sua
filha soluçando, ele correu para frente e a
laçou em um abraço reconfortante.
— Obrigado por me ligar. — Disse ele
a Calli. — E por cuidar da minha garota.
Prometo que farei tudo ao meu alcance
para encontrar Zane.
Calli inclinou a cabeça. Então o xerife
e sua filha foram embora.
Assim que eles se foram, eu me virei
para Calli. — Ele não será capaz de
encontrar Zane, não se os Anjos das
Trevas o tiverem.
Os anjos estavam no topo da
hierarquia da Legião dos Anjos, e os Anjos
das Trevas eram sua contrapartida no
inferno. Eles serviam aos demônios, assim
como os anjos serviam aos deuses. O Livro
dos Deuses afirmava que os demônios,
desesperados para vencer sua guerra
contra os deuses, libertaram os monstros
na Terra. E a humanidade fora apanhada
no meio. Agora, dois séculos depois, Zane
foi pego no meio do mesmo jogo entre
deuses e demônios.
— Não, o xerife Wilder não será capaz
de encontrá-lo. — Calli concordou. — Zane
está fora de seu alcance.
— E Zane está fora de nosso alcance?
— Perguntei a ela.
O rosto duro de Calli foi resposta
suficiente.
— Tem que haver algo que possamos
fazer. — Falei desesperadamente.
— Qual é a nossa regra número um,
Leda? — Calli perguntou.
— Que nós permanecemos juntos e
sempre cuidamos um do outro.
Bella pegou minha mão.
— E nunca desistimos um do outro. —
Disse Calli. — Vamos encontrar uma
maneira de resgatá-lo.
— Eles o pegaram por causa de sua
magia, não foi? — Bella disse calmamente.
Zane era um “fantasma”, alguém com
magia telepática. Era uma habilidade
realmente rara, que geralmente só os
anjos possuíam. Para um humano nascer
com esse poder, era quase inédito. Era um
em cem milhões. Ou ainda mais raro.
Calli assentiu. — Sim.
— Mas por que levá-lo agora, de
repente? — Bella perguntou. — Zane
sempre conseguiu manter seu poder
escondido antes.
— Ao não usá-lo em público. Isso é
tudo culpa minha — Falei, meus ombros
se curvando sob o peso da minha própria
culpa.
— Leda...
— Não, mãe. É isso. Ele usou seu poder
para enfraquecer esse vampiro hoje à
noite. Para me salvar. Se eu fosse mais
rápida ou mais forte... ele ainda estaria
aqui conosco. Alguém deve ter visto ele
usar sua magia. Os agentes do inferno têm
olhos por toda parte.
— Não se culpe, Leda. — Disse Calli.
— Todos nós fazemos nossas próprias
escolhas, e Zane escolheu usar seu poder
para salvar sua vida. E ele faria isso de
novo, mesmo sabendo que seria
capturado. Você sabe que faria.
Eu ri, impotente. — Sim. Ele é um tolo.
Assim como todos nós. — Me joguei no
sofá.
Bella colocou o braço em volta de mim,
acariciando minhas costas.
— O que faremos? — Gin disse
calmamente. — Como podemos resgatar
Zane?
Calli pegou o telefone, outro luxo da
Magitech, que compramos para os
negócios da família e começou a digitar. —
Precisamos chegar a Nova York hoje à
noite. Precisamos conversar com Rose.
— Rose? — Perguntei.
— Uma velha amiga. Ela é telepata.
— Ela será capaz de rastrear Zane? —
Perguntou Tessa.
— Espero que sim, querida. Realmente
espero. Porque é a única chance que temos
de salvá-lo.

Nós deveríamos ir para Nova York


amanhã de manhã para ver Bella indo
para a escola, mas Calli conseguiu mudar
nossas passagens de trem para hoje à
noite. Então, depois de rapidamente
arrumar as malas de Bella, todos nós
fomos para a estação de trem.
Do lado de fora, o trem esperando para
nos levar a Nova York era elegante, magro
e brilhante, uma obra-prima da
engenharia mágica moderna. Alimentado
pela Magitech, ele poderia fazer a viagem
de oitocentos quilômetros em menos de
uma hora.
O interior do trem era mais nostálgico
do que moderno, um retrocesso a uma era
anterior. Fileiras de bancos grandes,
cobertos com uma luxuosa camada de
veludo vermelho, estavam presos a um
piso de madeira. Nos dois lados da
carruagem, grandes janelas de vidro
emolduradas em madeira,
proporcionavam uma visão das paisagens
que passavam, embora estivesse muito
escuro lá fora, para ver muita coisa
naquele momento. Lanternas de ferro
elegantes pendiam do teto, balançando
suavemente enquanto o trem acelerava
até seu destino.
Calli dividiu um banco com Tessa e
Gin, e Bella e eu sentamos juntas na
próxima fila de frente. Bella tinha trocado
o vestido de verão em favor de um terno
com saia, muito elegante no estilo de
bruxa. A saia lápis que abraçava os
quadris era azul marinho. Assim como a
jaqueta justa que ela usava sobre uma
blusa de cor creme. Um broche com a runa
das bruxas para conhecimento, estava
preso no decote da blusa. Botas pretas de
cadarço até o joelho e luvas brancas, no
topo de seu guarda-roupa, e seus cabelos
loiro-avermelhados estavam presos em
um lindo toque.
— Você está perfeita. — Eu disse a ela.
— Você vai acabar com todos eles.
Bella alisou um vinco na saia e depois
dobrou as mãos no colo. — Eu espero que
você esteja certa.
— Você foi feita para isso, Bella. Cem
por cento.
Bella riu. Foi uma risada muito
educada. As bruxas da Universidade de
Bruxaria de Nova York, elas próprias,
senhoras e senhores, teriam aprovado.
Bruxaria não era apenas misturar poções
para lançar feitiços complexos. Era sobre
fazê-lo em grande estilo. De todos os
ramos da sociedade sobrenatural, as
bruxas eram as mais dignas, as mais
chiques. Bella encarnou esse ideal, até o
espartilho que vestia. Demorou uma boa
meia hora para eu e Bella encontrarmos
esse pedaço de engenharia esmagadora de
ossos e colocá-lo nela. O processo envolveu
bastante empurrar, puxar, contorcer e
xingar. De mim. Bella tinha suportado
tudo com dignidade e graça, mesmo que eu
tivesse certeza de que deveria tê-la
machucado, pelo menos tanto quanto me
machucou.
— Você pode respirar nessa coisa? —
Perguntei a ela.
— Desde que eu me sente direito.
Eu ri.
— Tenho certeza que alguém se
acostuma depois de um tempo. —
Acrescentou ela.
— Ou perder todos os sentidos no
diafragma.
— Tenho certeza que há uma poção
para ajudar com isso.
Nesse momento, o homem com o
carrinho de salgadinhos passou e cada um
de nós pediu um rolo de canela e uma
xícara de café. Nós precisaríamos de uma
abundância de açúcar e cafeína para
sobrevivermos a essa longa noite.
Chegamos à estação de trem de Nova
York às duas horas da manhã. Embora
fosse o meio da noite, a estação estava
cheia de atividade, passageiros correndo
de um lado para o outro, entrando e saindo
de trens. Eu já estive na cidade algumas
vezes antes e todas as vezes eram iguais.
Tão rápido e frenético. Tão esmagadora.
Calli liderou o caminho através da
estação, sem medo como sempre.
— Incrível. — Disse Tessa, olhando
para os tetos altos da estação, lindamente
arqueados e feitos de vidro.
Gin assentiu. Esta era a primeira vez
que elas vinham, e pura maravilha
brilhou em seus olhos. E se eu tirasse um
momento para ignorar as multidões que
dominavam meus sentidos, não poderia
deixar de apreciar a beleza da estação
também. Era tão estiloso quanto o trem, a
mesma mistura de elegância nostálgica e
estilo moderno. Belos pisos de mármore
branco espalhados em todas as direções.
Uma cena pintada da história da Terra
cobria cada parede, a linha do tempo
progredindo à medida que avançávamos
pela estação. Tudo começou com os
monstros invadindo a Terra. Em seguida,
veio uma cena dos deuses descendo para
salvar a humanidade, dando-nos
presentes de magia e tecnologia. O novo
exército de sobrenaturais se seguiu.
Várias muralhas mostravam suas
batalhas contra os monstros, afastando-os
das profundezas das Terras Desertas do
mundo. As pinturas mostravam novas
cidades crescendo e antigas sendo
reconstruídas. Nasceu uma nova
sociedade, uma com sobrenaturais.
O salão final das pinturas era maior e
mais colorido que o resto. No teto, os
deuses estavam sentados em seus tronos
nas nuvens. As paredes mostravam os
anjos em sua terrível e maravilhosa glória.
Nenhum humano poderia ser tão bonito,
ou tão cruel.
A luz brilhava dos deuses no teto,
iluminando os anjos em cintilantes
correntes de brilho e magia. Suas asas
brilhavam como flocos de neve feitos de
diamantes. Brilhavam como arco-íris e
como o oceano. E eles brilhavam como o
fogo. Cada anjo segurava uma espada e
um escudo, que costumavam usar para
combater os monstros e demônios que
cercavam grupos de humanos assustados.
Uma linha de texto repetida abaixo dos
anjos dizia: “O escudo da misericórdia dos
deuses, a espada da justiça dos deuses”.
Era uma propaganda muito bem pintada.
Andamos sob a saída em arco da
estação de trem, passando por bruxas de
meia-calça e saias, botas e chapéus de
penas. Os bruxos usavam coletes ou
casacos longos e uma variedade de outros
acessórios, como bengalas, cartolas, óculos
e relógios de bolso. As bruxas eram os
engenheiros e inventores do mundo,
cientistas e médicos, pilotos e professores,
e todo o pensamento e ajustes que faziam
era em grande estilo.
Eles não eram os únicos andando pelas
ruas hoje à noite. Os vampiros estavam
fora com força total. Como Mark, usavam
seda e couro. O cabelo deles estava
perfeitamente penteado, a pele deles
parecia brilhar ao luar. Eles caminhavam
em grupos, lançando sorrisos
encantadores para quem se interessasse.
— Boa noite, minha querida. — Um
deles me disse. Seus olhos tinham
assumido aquele brilho distinto azul
prateado. Os olhos de seus amigos se
voltaram também, e todos estavam
olhando para o meu cabelo.
Um vampiro me disse uma vez, que
meu cabelo brilhava como ouro branco ao
luar. Ele também mencionou que havia
algo sobre isso que hipnotizava os
vampiros. E ele estava certo. A maioria
dos vampiros que viam isso, eram
atingidos com um desejo irresistível de
tocá-lo, o que inevitavelmente os levaria a
tentar usar meu pescoço como um
brinquedo para mastigar. Acho que tive
sorte de Mark não ter sido tão afetado
quanto esses colegas aqui.
— É melhor você seguir em frente. —
Disse Calli, entrando entre mim e os
vampiros.
Os vampiros piscaram com força
algumas vezes, se livrando de qualquer
transe em que estivessem.
— Nenhuma ofensa pretendida,
senhora. — Disse um dos vampiros a Calli.
Todos se curvaram, depois
continuaram o caminho, cuidadosos para
desviar os olhos de mim. Inteligente. A
Legião dos Anjos não interferia em
assuntos menores do mundo humano, mas
assim que os sobrenaturais paravam de
seguir as regras, eles desciam com um
punho de ferro. Vampiros se alimentando
de pessoas, sem sua permissão eram uma
dessas regras. Felizmente para os
vampiros, havia mais do que pessoas
suficientes que queriam alimentá-los.
Esses seguidores de vampiros não
percebiam que por trás de cada um desses
rostos perfeitos havia um monstro, apenas
esperando para se descontrolar, e uma
fome profunda que nunca poderia ser
saciada. Esse era o lado feio dos belos
vampiros. E era chocante a rapidez com
que as coisas podiam ficar feias.
Meu pulso ainda pulsava por causa da
estreita ligação com os vampiros, endureci
o rosto e segui atrás de Calli. Bella
estendeu a mão e apertou a minha.
— Talvez eu devesse começar a usar
um chapéu. — Sussurrei.
— Eu me pergunto o que tem o seu
cabelo que os atrai. — Ela sussurrou de
volta.
Eu pisquei para ela. — Vampiros
gostam de loiras.
— Não, não é isso. É algo... mágico,
acho.
Talvez ela estivesse certa. Talvez essa
fosse a minha habilidade mágica: ser imã
para vampiros. No que diz respeito às
habilidades mágicas, isso realmente era
uma porcaria. Por que não podia disparar
fogo das minhas mãos? Isso pelo menos
seria útil. Pelo menos seria um presente
de verdade. Ser irresistível para vampiros
sugadores de sangue não era nada além de
uma maldição.
Esperamos, enquanto Calli mandava
as malas de Bella para a universidade. Ela
colocou Gin e Tessa em um táxi ao lado e
as enviou para um velho amigo dos seus
dias de trabalho na Liga, a maior empresa
de caça a recompensas do mundo. As
meninas imploraram e choramingaram,
mas Calli não cedeu. Por uma boa razão
também. Para onde estávamos indo, não
havia lugar para elas.
Então Calli, Bella e eu fomos para
longe da estação de trem. Depois de
alguns quarteirões, as fachadas modernas
e bem iluminadas deram lugar a edifícios
e ruas mais escuras e sujas. Lá, no meio
do distrito da luz vermelha da cidade,
encontramos a loja de Rose.
Um sinal chamativo, um de uma bola
de cristal com fumaça rosa saindo,
anunciava leituras psíquicas. Ele piscou e
zumbiu em um ritmo rápido, quase
vertiginoso, nublando meus sentidos com
tanta força que tive que desviar o olhar.
Me concentrei na porta. Um símbolo
estranho, o de uma flor aberta com
camadas repetidas e intermináveis ,
estava pintado na madeira. Mas não era
para isso que eu olhava.
Eu olhava para a porta em si. Estava
parcialmente aberta. Calli franziu o
cenho, empurrando-a ainda mais. Nós a
seguimos para dentro.
Móveis estavam derrubados por toda a
sala, como se tivesse havido uma briga.
Havia sangue por toda parte, nos tapetes,
nas paredes, ensopando a toalha de cetim
roxa da mesa redonda com a bola de
cristal. E entre todo o caos, uma mulher
jazia em uma poça de seu próprio sangue.
Rose estava viva. Mas apenas por
pouco tempo. Enquanto Bella tentava
reanimá-la com uma tintura2, me virei
para Calli.
— Quem fez isso sabia que você a
conhecia. E sabia que viríamos. —
Afirmei. — O sequestro de Zane e isso
estão ligados.
— Você sabe o que sempre digo sobre
coincidências.
Eu assenti. — Que elas não existem.
Não no nosso mundo. Não depois de tudo
o que vimos. Sempre há alguém puxando
as cordas. Isso não é uma coincidência, é
uma conspiração total.
— Alguém quer Zane. — Declarou
Calli. — E quem quer que seja, não quer
que o encontremos.
2
Extrato de ervas com álcool, geralmente utilizado para reanimar alguém que desmaiou.
— Mas como é que alguém sabe que
conhece Rose?
Calli franziu a testa, xingando algo
sobre Anjos das Trevas. Os mensageiros
do inferno tinham olhos por toda parte.
Orelhas por toda parte.
— Ela está recuperando a consciência.
— Bella nos avisou. — Mas não tem muito
tempo. Seus ferimentos estão além da
medicina ou da magia, pelo menos, os que
temos à nossa disposição.
Calli olhou para baixo. Bella tinha
enrolado um cobertor em torno de Rose, e
ela estava segurando sua mão.
— Podemos levá-la ao hospital de
bruxas? — Calli perguntou.
— Ela não sobreviveria à viagem. —
Respondeu Bella.
Eu me agachei ao lado de Rose. A
telepata estava voltando à consciência
com uma relutância óbvia. Ela parecia
preferir que não a tivéssemos acordado
antes da morte. Uma olhada em seus
ferimentos, era o suficiente para entender
o porquê. Rose não tinha acabado de ser
atacada, fora completamente brutalizada.
Suas costelas estavam quebradas, as
pernas balançando em ângulos não
naturais. Lacerações profundas cobriram
seu peito e barriga, e havia um corte
perceptível em sua cabeça. Quem quer que
tivesse feito isso, não queria que ela
sobrevivesse.
— É incrível que ainda esteja viva
agora. — A voz de Bella falhou.
— O assassino deve ter acabado de
sair. — Disse Calli.
Rose tossiu, uma risada molhada. — O
bastardo não levou em consideração
minha resiliência. Eu sou forte.
— Quem era? — Calli perguntou,
pegando a outra mão.
— Um anjo negro. Não vi muito dele.
Ele estava nas sombras. Mas senti sua
magia. Magia do fim do mundo, que dobra
o inferno.
— O que ele queria?
Rose empalideceu. — Que eu
morresse. Ele sabia que você estava vindo
me ver.
— Ele disse isso? — Calli perguntou.
— Sim. Ele disse que não podia me
deixar ajudá-la a encontrar Zane.
— Eles sabiam que você era a nossa
melhor esperança para recuperar Zane,
para localizá-lo. — Disse Calli.
— Nossa única esperança. —
Acrescentei.
— Não. — Rose tossiu sangue. — Não
é o único caminho.
Ela e Calli trocaram olhares
carregados. Elas permaneceram imóveis
por alguns momentos, sem dizer uma
palavra.
— Não. — Calli disse finalmente. —
Isso não é uma opção.
— Seu garoto está em perigo, Calli.
— Você pode encontrá-lo? — Perguntei
a ela.
Rose balançou a cabeça. — Eu peguei
apenas vislumbres dele sendo levado
embora. Flashes.
— Trouxemos algo dele conosco. —
Enfiei a mão no bolso da calça jeans e
peguei um amuleto. Estendi para ela. —
Isso ajudará você a se conectar a ele,
certo? É assim que esse tipo de magia
funciona, não é?
Rose olhou para o amuleto na minha
mão e balançou a cabeça. — Não, não é
assim tão simples. Não sou uma poderosa
telepata. Para me vincular a alguém,
preciso ter uma conexão com ela. Quanto
mais forte essa conexão, mais vejo. Não o
conheço bem o suficiente. Nunca o conheci.
Minha conexão com ele, é apenas através
de Calli. Não posso te dar mais do que
tenho, mais do que aqueles flashes de
Anjos das Trevas pegando-o.
— Você não pode tentar vislumbrá-lo
novamente? — Perguntei, pegando as
mãos dela em desespero. — Você não pode
nos dar dicas de onde ele está agora?
Talvez seja o suficiente para encontrá-lo.
Rose tossiu mais sangue. — Eu sinto
muito. Talvez se eu não estivesse tão fraca
agora... mas simplesmente não posso.
Calli colocou as mãos nos meus
ombros. — Vamos encontrar um caminho.
— Prometeu.
Olhei para Rose. Ela sabia de algo. Eu
sabia que ela sabia. Mas não podia
pressioná-la por informações agora, não
enquanto Calli estivesse por perto. Eu não
sabia o que Rose achava que poderia nos
ajudar, mas o que quer que fosse, Calli não
permitiria. Talvez fosse algum tipo de
magia negra. Eu tinha que pegar Rose
sozinha, para descobrir o que sabia. Se
isso significasse salvar meu irmão, eu
faria o que fosse necessário.
A chamada de sirenes policiais se
aproximava do lado de fora.
— Fique aqui. — Disse Calli, indo para
a porta.
Rose gemeu de dor.
— O que posso fazer para ajudar? —
Bella perguntou a ela.
— Eu tenho algumas gotas. O frasco
está na parte de trás.
— Claro. Eu volto já.
As cordas de contas penduradas na
porta, que levavam à parte traseira
tilintaram quando Bella as empurrou.
Rose a observou sair, depois virou os olhos
para mim.
— O que você sabe? — Perguntei a ela.
— Como eu salvo Zane?
— Calli não quer que eu diga.
— Mas você quer me dizer.
— Esse garoto significa muito para
Calli, para todos vocês. —Disse ela.
— Sim. E farei o que for preciso para
salvá-lo. — Declarei.
Rose assentiu lentamente. — Vi isso
nos seus olhos. Seu irmão é um fantasma,
um telepata. É por isso que eles o querem.
Existem regras em vigor sobre nós,
fantasmas. Não somos livres para viver
nossas vidas como os outros. Quando
descobertos, devemos ser entregues aos
deuses. Eles acham que fantasmas são a
chave para derrotar os demônios. Se eles
conseguirem o suficiente de nós.
— Os demônios também pensam isso.
— Os deuses, os demônios. Ele vale
muito para muitas pessoas. — Falou Rose.
— Fantasmas, apenas conseguiram ficar
escondidos por muito tempo. Fiquei sob o
radar, vendendo meus poderes com todo o
talento dramático de um charlatão. Às
vezes, o melhor esconderijo está à vista.
— Mas alguém descobriu sobre você.
— Conclui, olhando para seus ferimentos.
— Sim. Como eu disse, truques podem
nos vender por alguns anos, mas eles
sempre descobrem. Não é uma questão de
se. É uma questão de quando. E de quem,
deuses ou demônios.
— Por que eles tentaram te matar? —
Perguntei. — Se você é tão valiosa, por que
os Anjos das Trevas não a levaram com
eles?
— Não sou uma telepata poderosa,
temo. — Ela franziu a testa, como se
estivesse envergonhada. — Eles só vieram
aqui para me impedir de ajudá-los. Eu não
valia o esforço para levar. Os deuses e
demônios estão coletando os telepatas
mais poderosos do mundo. Eu apenas
diluiria a linhagem. E estou velha demais
para procriar por eles.
— Eles estão criando telepatas?
Era terrível, mas de alguma forma eu
não estava surpresa. Nem um pouco. As
pessoas adoravam os deuses, mas mesmo
quando criança, comecei a me perguntar
se a única diferença entre eles e os
demônios era quem vencera a guerra.
Claro, eu nunca disse isso em voz alta. Os
demônios não eram os únicos que tinham
olhos e ouvidos em todos os lugares.
— Sim, eles estão nos criando. — Disse
Rose.
— Mas por que?
Ela balançou a cabeça. — Não faço
ideia. Mas seja o que for, não pode ser
bom.
— Se eu conseguir resgatar Zane,
fugiremos, para algum lugar distante.
Algum lugar onde nem deuses nem
demônios poderão nos encontrar.
Um fantasma de sorriso tocou seus
lábios. — Você é uma boa irmã para ele.
— Eu faria qualquer coisa para salvá-
lo.
— Espero que sim. — Eespondeu ela.
— Porque só há uma maneira de você
encontrá-lo. E você não vai gostar.
— Conte-me. Por favor. — Apertei
suas mãos.
— Você tem que se juntar à Legião dos
Anjos.
Assim que ouvi, percebi que Rose
estava certa. Os deuses conferiram
poderes aos soldados da Legião. Um
desses poderes era o Sussurro do
Fantasma, a capacidade de se conectar
telepaticamente com aqueles que estavam
perto de você, não importando a que
distância estavam. Nenhum outro
fantasma no mundo poderia nos ajudar a
encontrar Zane, porque nenhum outro
fantasma o conhecia. Então, eu apenas
teria que ganhar a capacidade de que
precisava. A solução era tão simples e
ainda assim impossível. Tão perigosa, tão
mortal, tão insana. Talvez funcionasse.
Mas Calli nunca aceitaria isso. Nem
em um milhão de anos. Era por isso que
não contaria a ela.
Bella voltou com um frasco de vidro.
Ela estava agachada para dar a Rose
algumas gotas da garrafa, quando a
telepata começou a ter espasmos. Segurei
suas mãos, tentando segurá-la, mas suas
convulsões eram muito selvagens. Não
consegui segurá-la. As gotas espirraram
em seu rosto, nunca entrando em sua
boca.
Calli entrou correndo na sala com dois
policiais paranormais e um trio de bruxas.
Eles estavam muito atrasados.Calli ficou
parada em silêncio com o rosto
endurecido, enquanto sua amiga soltava
suas últimas respirações, e então ela se
foi.
Ao meu lado, Bella chorava
tristemente. Passei meu braço em volta da
minha irmã, abraçando-a. Ela sempre foi
sensível. Tão doce, tão gentil. Isso a fazia
perfeita para o trabalho de curandeira,
mas não a ajudaria na Legião. De todos
nós, apenas eu poderia participar. Eu era
a única com alguma chance de chegar à
Legião. Calli sempre disse que eu era
teimosa e obstinada. Essa teimosia seria
minha única chance de sobreviver à
Legião. Muitos de seus iniciados nunca
viveram além do primeiro estágio. Não,
melhor não pensar nisso. Eu precisava
usar essa minha vontade forte e teimosa,
para envolvê-la em torno de mim como
uma capa, como um escudo. E nunca
deixar nada perfurar isso.
Ficamos lá por mais algumas horas
enquanto a polícia nos interrogava. Calli
falou. Ela não mencionou nada sobre Zane
ou Anjos das Trevas, só que nós viemos ver
uma velha amiga antes de levar Bella à
escola. Eles não nos questionaram mais.
Eles expressaram suas simpatias, então
as bruxas levaram o corpo de Rose.
O sol estava nascendo em Nova York
quando finalmente saímos novamente.
Fomos até a amiga de Calli, Sam, que
estava cuidando de Tessa e Gin. Sam
morava acima de uma lanchonete que
possuía e, quando chegamos, a ex-
caçadora de recompensas, fritava
panquecas. Juntamo-nos a ela e às
meninas para um solene café da manhã ao
nascer do sol e depois seguimos para a
Universidade de Bruxaria de Nova York.
A principal escola de bruxaria da
cidade era cheia de estilo. O campus era
formado por cinco edifícios situados ao
redor de um jardim de flores, que
cultivavam todos os ingredientes que os
alunos precisavam. Cada edifício parecia
uma mansão muito grande, ou um
pequeno castelo. Pegamos um caminho
ladeado de roseiras e um lago de
esculturas, a caminho do edifício 3. As
esculturas cavavam e mergulhavam,
pegando água e borrifando-a em uma
dança de movimentos mecânicos.
Dentro do prédio 3, que abrigava os
dormitórios, um piso de madeira
impecável, brilhava à luz da manhã que
entrava pelas janelas. Escadarias
grandiosas gêmeas embelezadas com
corredores vermelhos arqueados para o
próximo andar. Um vaso de pé, explodindo
com flores coloridas de verão, ficava em
ambos os lados das escadas, e
balaustradas de ouro curvavam-se
graciosamente ao longo das bordas.
Lustres acesos com chamas encantadas
pingavam do teto alto. Senti como se
estivesse dentro de um conto de fadas.
Exceto que este não era o meu conto de
fadas. Era o de Bella. Meu caminho levava
em uma direção muito diferente.
Trouxemos Bella para o andar de cima,
encontrando rapidamente o quarto dela.
Era modesto em comparação com o grande
hall de entrada no andar de baixo, mas
gostei ainda mais. As peças de mobiliário
eram todas antiguidades. Todos e cada um
deles tinham uma história, se você
pudesse encontrá-la. Havia duas mesas e
uma cama em ambos os lados da sala. Um
pequeno banheiro ficava no meio,
decorado com uma infinidade de aparelhos
de banho complexos.

— Me pergunto quando minha colega


de quarto chegará, — Falou Bella, olhando
em volta com emoção. — E se ela gostará
de mim.
— Todo mundo gosta de você. — Falei
à minha irmã. — Mas tente não roncar.

— Eu não... — Um sorriso curvou seus


lábios. — Você está me provocando de
novo.

— Tenho que tirar tudo isso do meu


sistema agora. Não vou vê-la por um
tempo. — Se houver alguma vez.
Bella assistiu Calli e nossas irmãs
mais novas pisarem na varanda, então ela
se virou para mim. — Leda, o que há de
errado?
Oh nada. Estou prestes a desistir da
minha vida. Mas tudo o que eu disse foi:
— Estou triste por você sair.
Bella sorriu para mim. — Eu nunca os
deixarei. Sempre serei sua irmã. Nosso
vínculo é mais forte que o sangue, mais
forte que a magia. Se lembre disso.
Então ela me deu um olhar que, pude
jurar que devia ter alguma ideia de que eu
estava prestes a fazer algo louco. Ela
estava certa.
— Ei, Bella, você precisa dar uma
olhada na sua varanda. — Chamou Tessa,
voltando para dentro. — É tão grandioso.
Tão romântico. Você será como uma
princesa em um castelo, olhando para o
seu reino.
— Um reino de Breay Fairy e Dragon”s
Bark. — Disse Calli, sorrindo. — É uma
vista adorável.
— As janelas são resistentes a ataques
mágicos e mundanos. — Gin acrescentou
com um sorriso tímido. — E há uma luneta
que permite que você olhe por todo o
terreno e até mesmo para a cidade.
Gin frequentemente ajudava Calli na
garagem, cuidando de nossos veículos e
armas. Ela tinha um talento especial para
o trabalho.
Eu dei um último abraço em Bella,
depois dei um passo para trás, meus olhos
ardendo com lágrimas não derramadas. —
Você vai se sair bem.
Gin, depois Tessa, e finalmente Calli
também a abraçaram. Depois disso,
deixamos que ela se estabelecesse antes
do início da sessão de orientação da escola.
— Tenho alguns suprimentos para
pegar antes que nosso trem saia. — Falou
Calli quando voltamos para a rua.
Decidimos ir para casa e pensar em um
plano para salvar Zane. Bem, na verdade,
Calli decidiu, e eu simplesmente não tinha
dito nada. Eu já tinha um plano, mas se o
compartilhasse, Calli tentaria me
impedir. Meu plano era o único caminho,
mesmo que isso significasse voltar à
minha promessa de assumir mais negócios
da família. Zane também era da família.
Eu não podia simplesmente deixar os
demônios tê-lo.
— Você vai junto. — Falei a Calli e
minhas irmãs. — Quero verificar o
Arsenal. — Bati na vitrine da loja a minha
frente, uma das muitas de uma rede, que
tinha localizações em todo o mundo. — O
New York Armoury é supostamente o
maior de toda a América do Norte. Eles
devem ter uma ótima seleção. Depois do
meu encontro com o vampiro na noite
passada, quero dar uma olhada nas
últimas novidades em armamento anti-
vampiro.
Pensei que minha mentira era
convincente o suficiente, mas Calli me deu
um olhar engraçado.
— Qual é o meu orçamento? —
Perguntei-lhe apressadamente, esperando
que isso tornasse minha história mais
plausível.
Calli continuou me observando por um
momento antes falar. — Tente ficar abaixo
de quinhentos dólares.
— É o suficiente. — Respondi, depois
me virei para fingir que olhava as armas
apresentadas na vitrine.
Esperei até Calli e as meninas
dobrarem a esquina, depois me apressei
em direção ao passeio. Deuses, me senti
como uma adolescente novamente
brincando com uma decepção.
O Promenade era uma rua cheia de
imponentes prédios com escritórios que
abrigavam filiais de muitas das principais
organizações do mundo. A Liga, a empresa
mundial de caça a recompensas, ocupava
uma lousa, quase preta, próxima ao
arranha-céu de vidro azul que abrigava os
soldados paranormais. E depois disso,
bem no meio do passeio, havia um obelisco
branco brilhante, a sede da costa leste da
Legião dos Anjos.
Respirei fundo e caminhei em direção
à porta da frente com um andar confiante,
como se não estivesse completamente
assustada.
O interior do obelisco não correspondia
à arquitetura agourenta do lado de fora.
Também não era tão escasso quanto os
prédios dos soldados paranormais. O
saguão era opulento, se afogando em tons
celestiais de ouro e branco, com toques
ocasionais de todo o espectro de cores.
Como no longo corredor da estação de
trem, pinturas de deuses grandes e
poderosos cobriam o teto. Anjos pintados
estavam na borda entre o teto e a parede,
guardando a fronteira. Vampiros, shifters,
fadas e muitos outros sobrenaturais
vinham a seguir, enchendo as paredes.
Dois soldados da Legião de calça cáqui
marrom, camiseta regata e botas pesadas
atravessam meu caminho, puxando um
vampiro acorrentado, que lutava e
berrava. As pessoas que trabalhavam
atrás da grande recepção curva nem
sequer olhavam para cima. Devia ser uma
ocorrência regular por aqui. As portas
gêmeas que levavam a uma área dos
fundos se abriram. Os soldados e seu
vampiro passaram e as portas se
fecharam, engolindo os gritos do vampiro.
Dois soldados da Legião, ambos
vestidos em couro preto, caminharam lado
a lado em direção às portas, cada um com
uma espada nas costas, cada um vestindo
uma pequena insígnia metálica de um
símbolo de fogo no peito.
Voltei minha atenção para a recepção.
Lá, outro soldado da Legião estava
pegando um biscoito de chocolate do prato
no balcão, enquanto ela conversava com a
secretária sobre avistamentos de dragões.
Fui até a mesa, meus passos vacilando
enquanto cruzava a extensão de mármore
gelado. Esperei na mesa até a secretária
terminar de conversar com a soldado da
Legião, amante de biscoitos.
— Sim? — A secretária perguntou,
fixando seus olhos severos em mim.
— Eu gostaria de me juntar à Legião.
— Tentei parecer forte quando disse isso,
mas minha voz saiu tão fraca e patética.
A secretária e a soldado dos biscoitos
me examinaram, como se estivessem me
avaliando, depois trocaram olhares
divertidos. Parecia não estar
impressionadas com o que viam.
— Sente-se lá e preencha isso. — A
secretária me passou uma prancheta
sobre a mesa. — Traga de volta quando
terminar. — Então ela se afastou de mim
e iniciou uma conversa com a soldado dos
biscoitos sobre os recentes ataques de
vampiros.
Assim dispensada, fui para a área de
estar. Havia cinco outras pessoas
sentadas aqui, cada uma delas ocupada
preenchendo seus próprios formulários.
Exceto que meus formulários eram
amarelos e os deles verdes. Me fazia
lembrar que o verde era a cor para aqueles
que pediam ajuda à Legião. Amarelo era...
não sei, um aviso. Mas acho que era
melhor que vermelho. Ou com uma
caveira e ossos cruzados na folha de rosto.
As pessoas com os formulários verdes
pareciam ainda mais nervosas do que eu,
se isso fosse possível. A questão era que
alguém poderia pedir ajuda à Legião dos
Anjos, mas muito poucos a recebiam. A
Legião era mais seletiva em relação a
quais petições eles aceitavam do que quais
iniciantes recebiam em suas portas. Eles
sabiam que os iniciados fracos não
sobreviveriam ao primeiro mês.
Pare de pensar assim! Me repreendi,
quando comecei a preencher minha
inscrição.
Dez páginas e cem perguntas depois,
devolvi a prancheta à secretária, depois
voltei a me sentar e esperar na minha
cadeira realmente desconfortável, mas
muito bonita. Apertei minha mão. Estava
dolorido por toda a escrita. Essas não
eram perguntas de múltipla escolha. Cada
um era como um ensaio, uma exposição de
uma parte da minha vida. Eles queriam
saber tudo: saúde, história, educação,
magia. Não sabia por que eles se
incomodavam. A Legião nunca havia
rejeitado qualquer pedido para se juntar
ao seu exército. Mas eles eram uma
agência do governo, e a única coisa em que
as agências do governo se uniam era o
amor à burocracia. Devia fazer com que se
sentissem bem em arquivar outra grande
pilha de papéis.
Os minutos passaram. Um a um, os
peticionários foram chamados pelas
costas. A maioria deles voltou parecendo
perturbado. Suas petições foram
obviamente rejeitadas. Uma pessoa voltou
parecendo feliz, o sortudo do dia.
Finalmente, quando não havia mais
ninguém na área de estar, um homem de
terno acenou para que o seguisse. Eu o
segui pelos fundos e andamos em silêncio,
passando por portas fechadas, até
chegarmos a uma sala aberta no final. Ele
esperou que eu me sentasse em frente à
mesa desocupada, depois sem dizer uma
palavra, se virou e saiu, fechando a porta
atrás de si.
Tentando não me sentir como se
tivesse sido chamado ao escritório do
diretor por mau comportamento, bati
meus calcanhares na cadeira e esperei
novamente. Meu estômago roncou em
protesto. Aquelas panquecas pareceram
eras atrás.
Depois de alguns minutos, peguei uma
caneta de uma jarra de vidro cheia delas.
Não vi nenhum papel para rabiscar, então
comecei a bater na minha cadeira. Algo
me disse que a Legião franzia o cenho
sobre rabiscos na escrivaninha.
Duzentas e dezesseis batidas depois, a
porta se abriu.
— Finalmente. — Falei, suspirando. —
Pensei que você tinha esquecido de mim.
— Não esquecemos nada. — Falou a
voz de um homem, nítida e adequada,
cada palavra pulsando com força bruta.
Me virei e olhei para o rosto de um
anjo. Literalmente.
Não entendi como sabia o que ele era.
Afinal, ele não tinha asas. Mas eu apenas
sabia. A magia escorregou dele como uma
capa, inflamando o ar entre nós. Minha
pele zumbia, arrepiada. Quaisquer que
fossem as vibrações que exibia, meu corpo
estava duzentos por cento sintonizado. Eu
simplesmente não conseguia decidir se
estava intrigada ou assustada com ele.
Ele certamente era bonito. Não, não
apenas bonito, surpreendentemente
bonito. E assustador. Assim como todos os
anjos. Seu cabelo brilhava como caramelo.
Ele caiu parcialmente sobre seus olhos,
apenas o tempo suficiente para ser
encantador sem se tornar desordenado.
Ele usava o uniforme padrão da Legião:
trajes de couro. Tão preto quanto a tinta,
parecia que tinha derretido em seu corpo.
Cada declive, cada curva do músculo, era
visível abaixo dele. Não pude deixar de
lançar um longo olhar apreciativo por todo
o comprimento dele, e por um momento
quase esqueci o quão perigosos os anjos
eram.
Mas então a realidade se estabeleceu.
Alguns homens se exercitavam para
parecerem bons. Este homem trabalhou
para que pudesse matar pessoas. Ele
parecia forte o suficiente para me partir ao
meio por cima da mesa, se assim decidisse,
e não havia nada que eu pudesse fazer
sobre isso. Ele tinha um corpo que
nenhum mortal poderia possuir, e uma
alma tão forte que queimava fria e
inflexível por trás de seus olhos
esmeraldas. Quando seu olhar encontrou
o meu, congelei, hipnotizada.
— Por que você quer se juntar à
Legião? — Ele se sentou na minha frente,
a caneta deslizando dos meus dedos
congelados.
Senti como se estivesse em transe. Era
o que as pessoas diziam sobre os anjos.
Que eles colocam você em transe. Me tirei
disso.
— Escrevi tudo lá. — Respondi a ele,
acenando com a cabeça para o formulário
em suas mãos. Meu formulário passando
por elas.
Suas sobrancelhas perfeitas se uniram
como se ele estivesse surpreso. Talvez as
pessoas nunca tenham falado com ele.
— Você escreveu que deseja manter o
mundo a salvo de sobrenaturais
desonestos. — Disse ele.
Juntei minhas mãos e sorri para ele. —
Essa não é uma boa razão?
— É uma razão. — Respondeu ele. —
De fato, é o motivo pelo qual
aproximadamente setenta por cento dos
candidatos escrevem em seu formulário.
Continuei sorrindo, mesmo quando
meus dentes começaram a doer. — Esta
sou eu. Conformista, obediente, seguindo
a linha reta e estreita.
Parecia que eu tinha cuspido ácido em
seus olhos feitos pelos deuses. — Isso era
para ser engraçado?
Eu lutei para segurar o sorriso. — Não.
— Você trabalha para uma empresa de
caça de recompensas chamada Pandora”s
Box. — Sua sobrancelha se arqueou com o
nome, quase como se ele achasse
engraçado. Ou talvez fosse apenas
alérgico a mim.
— Minha mãe, minhas irmãs e eu
administramos. Alimentada com
estrogênio, você sabe.
As sobrancelhas dele não se ergueram.
Aparentemente, eu não era tão engraçada,
afinal.
— Sua mãe adotiva, Callista Pierce. E
irmãs adotivas, Bellatrix, Tessa e Ginnifer
Pierce.
— Você me pesquisou. Ah, estou
lisonjeada. E eu nem sei seu nome.
— Seu irmão adotivo, Zane Pierce,
também é membro do negócio. —
Continuou ele.
Eu lutei para manter a calma. Falar
sobre Zane seria um problema. Tentei
contornar o problema com um sorriso e
uma piada. — Chamamos Zane de Wild
Card, o único homem do grupo.
O rosto do anjo estava esculpido em
granito, uma estátua de poder esmagador
de ossos. Como as estátuas de anjos nas
prefeituras e nos centros das cidades.
— Por que você quer se juntar à
Legião? — Ele repetiu sua pergunta.
— Eu já te disse.
— Há mais do que isso. — Falou ele. —
Posso sentir isso.
— Bem, seus sentidos de anjo sairão
pela culatra, porque é tudo o que existe.
Você viu meu registro. Ajudo as pessoas,
mesmo quando ganharia mais dinheiro, se
não o fizesse. Eu não consigo me ajudar.
Ele estreitou os olhos para mim. — Seu
registro parece confirmar isso.
— Viu? — Falei, continuando a sorrir.
Cara, eu realmente precisava exercitar
esses músculos faciais. Minha resistência
era uma porcaria. — Como eu disse, sou
leal...
— Você nunca manifestou interesse
em se juntar à Legião antes. — Ele
interrompeu. — Quantos anos você tem?
Meu sorriso tremeu. — Meu
aniversário está listado aí.
— Eu sei. Quero ouvir você dizer isso.
— Vinte e dois.
— E?
— E o que? — Suspirei.
Ele apenas olhou para mim, me
provocando a desafiá-lo.
— Vinte e dois e cinco meses. — Falei.
— Devo rabiscar meu tamanho de sutiã aí
também enquanto estou nisso?
Provando que os anjos não eram
humanos, seus olhos nem mergulharam
no meu peito. — Não há necessidade. Você
será avaliado por nossa equipe para seu
uniforme.
— Então isso significa que eu estou
dentro?
— Ainda não.
Nossa, a Legião não rejeitava
ninguém. Por que esse cara estava me
dando trabalho?
— A Legião aceita iniciados a partir do
primeiro dia em que faz 22 anos. — Disse
ele friamente. — Por que esperar cinco
meses se você está tão ansiosa para servir?
— Desculpe, estou atrasada. Eu queria
ver minha irmã na escola antes de sair. O
que fiz hoje cedo, depois vim direto para
cá.
Ele não parecia estar comprando
minha carga de besteira. Porra, eu já
tinha resolvido tudo. Parecia tão
convincente na minha cabeça.
— Por que você quer se juntar à
Legião?
Eu estava começando a odiar essa
pergunta com a fúria de mil infernos em
chamas. — Ouvi dizer que os anjos são
ótimos na cama. — Respondi a ele,
orgulhosa de mim mesma por manter uma
cara séria enquanto dizia isso.
Minhas palavras o fizeram parar por
alguns segundos enquanto ele me olhava
em silêncio. — Vou descobrir o que você
está escondendo. — Disse ele calmamente,
entrelaçando os dedos. — Pode ter certeza
disso.
— Querido, eu costumo guardar
interrogatórios para o segundo encontro.
Suas narinas dilataram e o ar estalou
com magia. — Se você quiser sobreviver à
Legião, precisará prestar atenção nessa
boca.
— Isso significa que estou dentro?
Ele continuou me encarando por
alguns segundos, depois se levantou da
mesa e abriu a porta. — Siga-me. — Falou
por cima do ombro.
Eu o segui de volta pelo corredor, me
perguntando o que era aquilo. Talvez eu
tenha falado demais dessa vez. — Me
levando para fora, para me matar
enquanto a cidade olha? — Perguntei.
— Não.
Ele me levou pelas portas duplas para
o saguão e depois pela porta da frente.
Andamos por alguns quarteirões, a
multidão se separando diante dele. Ou
eles estavam tão assustados com ele como
eu deveria estar, ou usava sua magia para
influenciá-los.
Ele parou na frente de um clube com
uma placa piscando na frente. O logotipo
deles parecia ser um coração com uma asa
batendo nos dois lados. Qualquer que
fosse esse lugar, era popular. Eram, olhei
para a torre do relógio mais próxima, dez
da manhã e a fila para o clube se estendia
ao redor do quarteirão. Meu companheiro
angelical caminhou direto para a frente. O
segurança olhou-o e depois acenou para
dentro. O segurança parecia conhecê-lo.
Claro que conhecia. Não havia muitos
anjos no mundo. Se esse anjo estava
estacionado aqui, todos na cidade deviam
saber quem era.
Mesmo com a luz do dia cheia lá fora,
dentro do clube, a noite estava em pleno
andamento. As luzes do disco giravam e
brilhavam em todas as direções,
ricocheteando nos corpos giratórios dos
dançarinos na pista de dança. Algumas
mulheres pararam para sorrir e acenar
com a calcinha para o meu anjo. Em que
diabos de lugar ele me trouxe?
— Eu estava brincando sobre o
encontro, você sabe. — Falei, enquanto
nos sentávamos no bar.
Ele me deu um olhar gelado. — Este
não é um encontro.
Algo em seus olhos me fez corar. Eu
não pude explicar. Devia ser mais magia
de anjo em ação.
— Você me trouxe para um clube. —
Apontei. — Isso parece um encontro para
mim. — Simplesmente não pude evitar.
Minha boca estava fora de controle
novamente.
— Esta é a sua entrevista. — Afirmou.
— Aqui? — Olhei em volta do clube
cheio de festeiros que evitavam a luz do
dia.
— Sim aqui. Muitos vampiros
desonestos surgiram na cidade nos
últimos meses. Alguém está criando-os
fora do sistema.
Oh-oh. Os deuses não gostavam disso.
Eles esmagavam todas as operações de
transformação de vampiros fora de seu
controle e puniam a parte responsável.
Sem piedade.
— Acabei de capturar um daqueles
vampiros que escaparam. — Contei ao
anjo.
— Eu sei. É por isso que estou
confiante de que esse teste não deve ser
problema para você.
Quanto ele leu sobre mim? Não
havíamos relatado o desaparecimento de
Zane por razões óbvias, mas e se a Legião
tivesse outras fontes? E se começassem a
perguntar por que os Anjos das Trevas o
levaram. E eu não tinha uma boa resposta
para eles.
Tentei disfarçar meu nervosismo com
um sorriso. — Tão confiante em minhas
habilidades? Se eu não o conhecesse
melhor, diria que você está flertando
comigo.
— Então é bom você conhecer melhor.
Você é obviamente mais esperta do que
parece.
Eu não sabia se devia ou não me
ofender com esse comentário, então não
disse mais nada. Enquanto isso, o anjo
comemorou meu silêncio, apontando para
o barman exausto. O pobre rapaz, parecia
que seu turno havia acabado há muito
tempo, mas a atenção do meu
companheiro o despertou de volta. Ele
rapidamente colocou dois copos de um
líquido prateado na nossa frente. Não
parecia álcool, ou qualquer outra coisa que
eu já vira. Ele ondulou estranhamente,
como se não fosse totalmente líquido.
— Há um vampiro desonesto no
banheiro, bebendo no pescoço do garçom
substituto. — Disse o anjo, girando sua
bebida com uma calma total. — Você o
prenderá. Apreender, não matar. O quero
vivo.
— Eu não tenho o equipamento certo
para enfrentar um vampiro. — Protestei.
— Você tem tudo que precisa.
Ele olhou através do meu corpo.
Poderia achar que estava me examinando,
mas ele já teve bastante tempo para fazer
isso e nem sequer tentara. Além disso, seu
olhar era mais avaliador, calculista. Como
se olhasse para uma arma. Fiz uma pausa
incerta.
Ele empurrou a segunda bebida para
mim. — Beba.
— O que é isso? Algum tipo de bebida
de anjo?
— É vodka. Com um pouco de mágica
adicionada.
Olhei para o copo. Boa o suficiente
para mim. Joguei a cabeça para trás e
esvaziei o copo de vodka mágica na minha
garganta. Queimava ainda mais que a
vodka comum.
— Isso é uma merda desagradável. —
Falei a ele, tossindo.
— Apresse-se. — Respondeu ele. — A
garota não tem muito tempo antes que o
vampiro a mate.
— Então por que você não a ajuda?
Esse é o seu trabalho.
— E este é o seu teste. — Disse ele
friamente.
Amaldiçoando a desumanidade dos
anjos, afastei-me do bar e fui para a porta
que dava para os banheiros. Ele apenas
ficou lá, me olhando. Rosnando baixinho,
abri a porta para um corredor escuro.
Quando entrei no banheiro feminino, ouvi
um barulho molhado. Pude ver pés
arrastando-se em um protesto fraco sob
uma das cabines. Fiz uma pausa na porta,
considerando minhas opções.
Se eu o atacasse, a vítima poderia se
machucar. Tinha que atrair o sugador de
sangue para fora da cabine. E para fazer
isso, precisava apresentar a ele um alvo
mais atraente. Com isso decidido, permiti
que a porta se fechasse, depois atravessei
o banheiro, minhas botas ecoando no chão
de azulejos.
Os goles cessaram. Parei em frente à
pia e liguei a água. Ouvi o farfalhar de
tecido, como se ele estivesse limpando a
boca nas roupas. Ele saiu da cabine e eu
me virei. Ele estava bloqueando minha
visão do interior da cabine. Eu esperava
que a mulher estivesse bem.
O vampiro cambaleou em minha
direção, sorrindo. Ele tinha aquele brilho
que os vampiros tinham depois da
alimentação, como se a pele deles
brilhasse por dentro.
— Ei, querida. — Falou ele, tentando
me deslumbrar com seu sorriso
encantador. Não vi sangue na boca dele,
então devia ter limpado a boca nas roupas
da vítima. Que nojo.
Ele estava se movendo como se
estivesse um pouco bêbado. Devia ser um
novo vampiro. Era preciso mais do que
beber de uma vítima para embebedar um
mais velho. E este estava claramente
bêbado. Boa. Isso o tornava lento e
desleixado. Talvez eu até sobrevivesse a
isso.
— Olá. — Falei, sorrindo de volta. —
Procurando diversão?
Tirei meu cabelo do meu pescoço. Seu
olhar disparou da minha garganta, para o
meu cabelo, depois de volta para a minha
garganta, de novo e de novo, como se não
pudesse decidir qual deles queria mais.
Seus olhos finalmente se concentraram no
meu pulso. O que estava realmente
batendo rápido no momento. Tentei me
acalmar. Ficar nervosa apenas faria meu
sangue bombear mais rápido, o que
apenas excitaria ainda mais o vampiro.
Ele deslizou para frente, diminuindo a
distância entre nós em um instante.
Algumas pessoas ficariam impressionadas
com isso, mas essas pessoas eram cegas
demais para ver os vampiros pelo que
realmente eram: monstros.
O monstro diante de mim estendeu a
mão, passando a mão pelos meus cabelos.
— Tão bonito. Como uma cachoeira de
prata. — Um sorriso torceu seus lábios. —
Pena que terei que sujá-lo.
Ele mergulhou a cabeça no meu
pescoço com lentidão, aparentemente
confiante de que eu seria presa fácil. Eu
adorava provar que as pessoas estavam
erradas. Antes de suas presas descerem,
bati meu joelho com força em sua virilha.
Quando ele se dobrou, me afastei e o
empurrei de cabeça no espelho. Pedaços de
vibro caiu por toda a pia. Atordoado, o
vampiro tropeçou para trás. Peguei um
dos cacos do espelho e esfaqueei-o no
pescoço. Ele uivou de raiva, o sangue
jorrando da ferida. Ele cambaleou para a
frente como um animal, e me abaixei para
evitar os golpes fortes que tentava acertar
em minha cabeça.
— Você vai pagar por isso. — Ele
rosnou, arrancando o vidro do pescoço.
Ele correu para frente, tentando me
agarrar, mas ainda estava muito lento e
bêbado. Embora a raiva queimasse
rapidamente o sangue alto. Não tive muito
tempo. Peguei o extintor na parede e o
pulverizei no rosto. Às vezes, uma força
pode ser uma fraqueza. Os sentidos
aprimorados do vampiro significavam que
ele sentia dor amplificada. Ele uivou em
agonia, cego dos olhos. Girei o extintor de
incêndio, atingindo-o com força na cabeça.
Ele caiu no chão.
Eu estava prestes a verificar a vítima,
quando mais dois vampiros entraram no
banheiro pela outra porta.
— Ei, Derek, você terminou de sugar...
Os recém-chegados congelaram
quando viram o vampiro inconsciente aos
meus pés. Eu tive uma fração de segundo
e aproveitei. Saí pela primeira porta,
correndo pelo corredor, para entrar na
área principal do clube. Os vampiros
estavam nos meus calcanhares,
empurrando dançarinos e bêbados de lado
para me alcançar. A multidão se apressou,
pessoas fugindo para a saída, derrubando
alto-falantes, cadeiras e cada um em sua
corrida louca para ser o primeiro a sair.
Os vampiros foram direto para mim.
Saltei no bar. O barman havia
abandonado o posto quando o caos atingiu
a pista de dança, então o bar estava vazio.
Deslizei por cima e abaixei-me para me
esconder quando o punho de um vampiro
roçou em mim. Quebrei uma garrafa na
mão dele, encharcando-o de licor. Então
peguei os fósforos embaixo do balcão e
atirei fogo naquele sugador de sangue.
Ele tropeçou para trás e correu para a
parede mais próxima, tentando apagar as
chamas batendo contra ela.
Repetidamente. Eu o deixei, e derramei
outra garrafa de álcool sobre um pano de
prato, no qual pus em chamas, enquanto o
jogava sobre a cabeça do outro vampiro.
Ele tentou arrancá-lo, mas as chamas já
haviam se espalhado por seu corpo.
Os dois vampiros correram pelo clube,
agora abandonado, uivando, gritando e
queimando. As chamas não os matariam,
eles eram resistentes demais para isso,
mas os mantinham ocupados. Peguei uma
panela quente na área de cozinhar e bati
na cabeça de um e depois na do outro. Eles
caíram no chão.
Um aplauso lento e constante ecoou na
sala vazia, perfurando o silêncio. Me virei
para ver o anjo caminhando em minha
direção e das duas beldades adormecidas
aos meus pés.
— Obrigado por ajudar. — Falei com
um sorriso falso, jogando a panela de lado.
Ele olhou de mim, para os vampiros
inconscientes, para os restos de vidro e o
fogo por todo o clube. — Que raio foi isso?
Acendi uma chama em um dos
vampiros. — É assim que eu luto.
Ele estava balançando a cabeça como
se nunca tivesse visto algo tão
inapropriado. Tão rude.
— Não temos tempo para discutir
sobre o meu estilo de luta. Precisamos
ajudar a mulher lá atrás.
Corri para o banheiro, surpresa
quando ele me seguiu. Ajoelhei-me na
frente da mulher, sentindo a pulsação. Ela
ainda tinha uma!
— Afaste-se. — O anjo me disse.
Fiz o que pediu e ele se abaixou ao lado
dela. Quando colocou as mãos na barriga
dela, a magia brilhou nelas, banhando seu
corpo inteiro. As feridas da mulher
sararam diante dos meus olhos. Ela piscou
algumas vezes, seus olhos lentamente se
focando.
— Um anjo. — Ela sussurrou, a
adoração banhando seu rosto, enquanto
olhava para o anjo brilhante.
Ela estava positivamente hipnotizada,
tanto que se ele lhe pedisse uma
punhalada no peito, teria feito isso sem
hesitar. Honestamente, não vi o apelo do
homem. Claro, ele era bonito, certo, era o
homem mais lindo que já vi, mas ele
também era um idiota. Eu não disse à
mulher que esse lindo anjo estava
preparado para deixá-la morrer. Ela já
sofrera o suficiente por uma noite. Ela
merecia um momento de felicidade.
O anjo se levantou, me deixando
segurar a mulher. Eu a ajudei a se
levantar.
— Você está bem? — Perguntei a ela,
quando o objeto de sua devoção eterna
saiu do banheiro.
Ela olhou para o vampiro adormecido
no chão e estremeceu. — Bem.
— Você deveria sair daqui — Sugeri a
ela.
Ela assentiu e caminhou em direção à
porta, dando ao vampiro um amplo
espaço. Atirei no sugador de sangue aos
meus pés, um olhar de pura aversão. Ele
tentou tingir meus cabelos de vermelho
com meu próprio sangue, e quase matou
uma mulher hoje à noite. Escória assim
merecia ter a cabeça esmagada com um
extintor de incêndio. Em vez disso, o
arrastei para fora do banheiro. O anjo na
outra sala tinha planos para ele.
Continuei arrastando o vampiro,
caminhando pelo corredor, desejando ser
forte o suficiente para jogá-lo por cima do
ombro. Mas eu não era, então continuei
puxando-o. Finalmente, cheguei à beira da
pista de dança, onde o depositei ao lado de
seus dois amigos.
Minha platéia angelical estava
esperando lá, me assistindo lutar. Na
verdade, ele provavelmente me ouvira
lutar o tempo todo e não levantou um dedo
para ajudar.
— Havia três vampiros. — Apontei. —
Você me disse que havia um.
— Sim eu disse.
— Isso foi um teste? — Rosnei.
— Na Legião, você costuma ser
colocado em situações desconhecidas. Você
terá que se ajustar — Ele respondeu com
uma calma indiferença.
Encarei-o.
— Não há necessidade disso. — Disse
ele. — Você conseguiu adequadamente,
embora seus métodos sejam... não
convencionais.
— Eu te disse que não estava armada
para enfrentar vampiros. Na verdade, não
estou armada. Você deveria estar
satisfeito com o quão bem me adaptei.
— Você é realmente desordeira. — Ele
disse a palavra, como se não soubesse
como se sentia a respeito. — Isso é do seu
tempo como uma vagabunda nas ruas?
Fui até ele e encarei seus olhos. — Isso
tudo é um jogo para você, não é? Humanos
são apenas brinquedos, adereços.
— É nosso trabalho proteger os
humanos.
— Mas você realmente não nos vê da
mesma forma, não é? Eu vi o jeito legal
como olhou para aquela mulher, como se a
estivesse curando porque era o que
deveria fazer. Você não se importa
conosco.
— Se você visse o que vi, aprenderia a
ficar desapegada. — Disse ele. — Muita
morte, muita dor. Se você não desligar,
enlouquece. Você aprenderá isso.
— Nunca. — Rosnei. — Compaixão é o
que separa homens de monstros.
Ele olhou para mim. — Então você
acha que sou um monstro?
— Sim.
— Talvez você esteja certa. — Ele
admitiu. — Talvez você só consiga
sobreviver à Legião se perder um pedaço
de sua humanidade. Mas é para isso que
está se inscrevendo. Tem certeza de que é
isso que você quer?
Vi o rosto de Zane em minha mente,
tão claramente como se ele estivesse bem
na minha frente. Ele precisava de mim.
Ele contava comigo para salvá-lo. Eu era a
única que podia.
— Sim. — Respondi ao anjo. — Tenho
certeza.
Sua voz baixou, e eu senti a mesma
magia girando ao meu redor, tentando
mexer com minha cabeça. — Por que você
está se alistando?
Sacudi sua magia. Doeu quando
quebrou contra a minha pele, mas não o
deixei ver isso.
— Para salvar as pessoas. E farei isso
sem perder quem eu sou, sem perder o que
me torna humana. — Mantive meu rosto
duro, meu tom frio quando respondi.
Ele segurou meu olhar por mais um
momento, depois retirou meu formulário
de inscrição. O colocou no balcão,
assinando antes de devolver o papel para
mim.
— Parabéns, iniciada. Bem-vindo à
Legião dos Anjos.
— Estou dentro?
— Você está dentro. — Confirmou. —
Traga esse formulário com você quando
voltar para sua nova casa em duas horas.
Deixando-me lá no bar, ele voltou para
os vampiros. Os amarrou todos juntos.
Com isso feito, os colocou como um em
cima do balcão, seus músculos inchando
sob o peso combinado de três vampiros.
Puta merda, ele era forte. Comecei a me
afastar, a caminhar em direção à porta,
mas sua mão brilhou, pegando a minha.
— Leda Pierce, eu estarei observando
você. — Ele prometeu, quando seis
soldados da Legião marcharam até o bar
para levar os vampiros.
Duas horas para dizer adeus à minha
antiga vida. Eu quase desejei que o anjo
tivesse me feito ficar no edifício da Legião,
até a tortura coletiva de tirar sangue, ou
qualquer outra coisa que a Legião tivesse
reservado para mim esta tarde. Ficar teria
facilitado muito o que estava por vir.
Mas a vida raramente era fácil e nunca
justa. Isso é algo que aprendi muito antes
de Calli me aceitar. Eu já fazia as escolhas
difíceis há anos, mas ela me ensinou a
fazer as escolhas certas. E isso estava
certo. Salvar o irmão que amava estava
certo. Eu sabia no meu coração que era
verdade.
Estava quase na hora de nosso trem de
retorno ao Purgatório partir. Mandei uma
mensagem para Calli, avisando que a
encontraria com as meninas na estação e
depois fui para lá. O trem estava chegando
quando cheguei à plataforma.
— Foi por pouco, não é, Leda? O que
aconteceu? Você teve um encontro quente
com um homem sexy do Arsenal? — Tessa
sorriu para mim.
Não foi um homem, um anjo. E não
estava no arsenal.
— Algo aconteceu. Apenas olhe para o
rosto dele. — Falou Tessa para Gin. — Só
pode ter sido um cara.
— Nem tudo é sobre garotos, Tessa. —
Respondi.
— Claro que é boba. Você só não
percebeu isso ainda.
Calli pegou minhas mãos, me olhando
bem nos olhos. Seu olhar deslizou sobre
mim como um perímetro de pesquisa, seus
dedos traçando os arranhões no meu rosto,
até onde o vidro quebrado do espelho
havia cortado em minhas mãos. — O que
aconteceu? Você foi atacado na cidade?
— Estou bem. — Assegurei a ela. —
Foram apenas alguns vampiros.
Calli me lançou um olhar duro. — O
que está acontecendo aqui, Leda?
— Não vou com você.
Calli endureceu, seu aperto mais forte.
Não confiei em mim mesma para falar sem
minha voz falhar, então tirei suas mãos
das minhas, em seguida, enfiei a mão no
bolso de trás da minha calça jeans, para
pegar o papel que recebi do anjo, aquele
que me aceitava na Legião dos Anjos.
Os olhos de Calli se arregalaram,
quando leu o texto impresso lá. — Pobre
garota, o que você fez?
— O que tinha que ser feito. Você sabia
o que Rose estava dizendo tão bem quanto
eu. Para salvar Zane, primeiro precisamos
encontrá-lo. Não temos ideia de onde ele
está. Ele provavelmente nem está mais na
Terra. Para encontrá-lo, um de nós deve
ganhar poderes telepáticos. E a única
maneira de fazer isso é subir na Legião e
ganhar essa magia.
A Legião dos Anjos era estruturada em
uma hierarquia rígida. Com cada nível
que você avança, você ganha um novo
poder.
— Você é uma garota doce e tola. —
Calli sibilou. — Essa magia é um feitiço de
nível nove, um feitiço de anjo de segundo
nível. Você não apenas tem que passar
pelas fileiras, mas também precisa se
tornar um anjo. Você sabe quantas
pessoas chegam tão longe?
— Muito poucas. — Respondi. — Mas
nunca acreditei em ser vítima das
probabilidades.
— Não há como voltar agora. — Calli
balançou o formulário. — Eles não vão
deixar você deixar a Legião. Nunca.
— Eu sei e sinto muito. Prometi ajudá-
la com o negócio e agora estou pagando a
fiança. Só tenho que salvar Zane. Não
posso deixá-lo à mercê dos demônios.
— Eu não ligo para essa promessa
boba que eu nunca quis que você fizesse.
Me preocupo com você, Leda. De uma
forma ou de outra, a Legião reivindicará
sua vida. Mesmo que seu corpo sobreviva,
sua alma não sobreviverá. A Legião muda
quem você é por dentro.
— Eu nunca vou mudar. — Prometi a
ela, mesmo sem deixar de pensar nas
palavras do anjo, aquelas que
combinavam com as de Calli. Mas só
porque ele mudou, isso não significava que
eu mudaria. Eu tinha que acreditar nisso.
— É o único jeito, mãe. — Falei,
lágrimas queimando meus olhos,
embaçando minha visão. — A única
maneira de se conectar a Zane. E só eu
posso fazer isso.
— Não! — A voz de Tessa interrompeu,
afiada como um chicote. — Você deveria
ter nos contado. Decidiríamos juntos quem
se alistaria à Legião. — Lágrimas
enormes rolaram por suas bochechas, o
que só me dificultou segurar minhas
próprias lágrimas.
— Você e Gin não podem fazer isso. —
Expliquei a ela. — A Legião só aceita
iniciados depois dos vinte e dois anos.
— Nós poderíamos ter mentido. —
Falou Gin. Ela e Tessa estavam
abraçadas, chorando. — Temos
identificações falsas.
— Isso funciona com barmen,
irmãzinha, não com a Legião.
A boca de Calli se apertou em uma
linha dura. — Leda, qual é a nossa regra
número um?
— Nós sempre ficamos juntos. — Falei
automaticamente, depois suspirei. — Mas
as coisas são diferentes agora. Nós não
estamos todos juntos. Só estaremoss
depois que Zane voltar.
— Nunca mais estaremos juntos,
mesmo que você salve Zane. Porque a
Legião não vai deixar você ir. — Gin
soluçou.
Sorri tristemente para ela. — Um
pequeno preço a pagar para salvar nosso
irmão de ser explorado. Você sabe o que os
demônios farão com ele. Eles vão esmagar
sua mente, fazendo-o espionar seus
inimigos até que se queime, ou
enlouqueça. E, se Rose estiver certa, eles
também tentariam usá-lo para fazer mais
telepatas. Como um animal. — Estremeci
com o pensamento.
— Muitos dos iniciados da Legião não
sobrevivem ao primeiro corte. — Calli me
disse. — A inundação de magia os mata
completamente.
— Eu sou teimosa demais para morrer.
Seus olhos eram tão duros quanto
diamantes, sua posição tão imóvel quanto
uma pedra. Ela já havia usado esse ataque
antes, principalmente quando eu era
adolescente. Recuei mais do que algumas
vezes por causa disso, mas não recuaria
dessa vez.
— Se eu morrer, Zane está perdido
para nós. — Falei. — Isso é o suficiente
para me manter lutando.
Calli me abraçou. — Você é uma
garota tola. — Disse ela contra a minha
bochecha. — Você tem um coração grande,
mas ainda pode aprender uma coisa ou
duas sobre o uso da cabeça. Por que você
não falou conosco primeiro? Sempre
tomamos decisões juntos.
— Não desta vez. — Admiti. — Você
teria tentado me convencer disso. Ou você
teria se inscrito na Legião. Isso teria sido
verdadeiramente tolo.
A Legião tinha idade mínima, mas não
idade máxima. E vi nos olhos de Calli que
ela teria se alistado para me manter fora.
Ela teria assinado sua própria sentença de
morte se alistando. Por melhor que fosse,
não acompanharia os iniciados mais
jovens. E sua magia não era tão maleável.
A infusão de magia a teria matado, não
importa o que pensasse.
— Eu sei que você pensa que sou louca,
mas pensei em tudo, e sou a melhor
chance que temos. — Enfatizei. — Gin e
Tessa são jovens demais, e Bella é gentil
demais para a Legião. Eles a comeriam
viva. Ela não conseguiria passar pela
Legião. E você também não, Calli. Sou a
única de nós que tem chance.
O trem expeliu uma nuvem alta de
vapor.
— Vá. — Falei, empurrando-as em
direção a sua carona para casa. — Vocês
têm que ir.
— Venha conosco. — Gin implorou.
— Ela não pode agora. — Disse Tessa.
— A Legião a pegou. Ela não pode correr.
Eles a perseguiriam.
Eu sorri para todas elas. — Vão.
Ficarei bem. Escreverei para vocês sempre
que puder. E te enviarei guloseimas da
cidade.
— Leda... — Começou Calli, depois
parou.
— Não se preocupe comigo. Eu sou
uma sobrevivente.
— Você sempre foi. — Disse Calli,
descansando a mão na minha bochecha.
O trem apitou novamente e ela se
virou, e correu com minhas irmãs
chorando em direção ao vagão mais
próximo. Elas entraram e, quando o trem
começou a sair da estação, sentaram-se à
janela. Eu fiquei lá e assisti até o trem
desaparecer. Então enxuguei as lágrimas
dos meus olhos e me virei para encarar
minha nova vida.

Voltei ao prédio da Legião. Eu tinha


mais de uma hora antes de precisar voltar
para lá, mas não via motivo para ficar.
Havia uma orientação bimestral para
todos os novos iniciados da Legião, a cada
dois meses, sempre no primeiro dia do
mês. Isso seria hoje. Essa foi uma pequena
fatia de sorte em uma situação miserável.
Quanto mais cedo eu terminasse, mais
cedo estaria no meu caminho para salvar
Zane. Era hora de abraçar o meu destino.
Quando cheguei, um dos soldados da
Legião, uma mulher que parecia apenas
alguns anos mais velha do que eu,
esperava. Ela tinha a insígnia de uma mão
na jaqueta de seu traje feminino. Ela me
deu as costas. Dessa vez, andamos até o
final do corredor de salas fechadas, depois
empurramos outro conjunto de portas
duplas, para entrar em um grande salão
de baile, onde outros vinte iniciados
esperavam. Eu poderia dizer que eles
eram iniciados pela falta de insígnias da
Legião em suas roupas, e pela ansiedade
pairando sobre eles como uma nuvem de
tempestade.
Ainda mais opulento que o hall de
entrada da universidade das bruxas, o
enorme salão de baile era pura decadência
no seu melhor. O chão era de cerejeira e as
paredes eram pintadas na cena mais
elaborada e vibrante dos anjos que eu já
tinha visto. Três longas mesas de buffet
cobertas de arranjos florais
transbordantes, petiscos muito chiques e
pequenos copos de suco de vidro estavam
encostados em uma parede. Parecia que
estávamos aqui para um chique coquetel,
não para um baixo e sujo acampamento
paranormal. Eu não sabia o que estava
esperando, mas com certeza não era isso.
Eu estava realmente mal vestida para
esse evento opulentp. Felizmente, o
mesmo aconteceu com a maioria dos
outros iniciados.
A maioria, mas não todas. As portas se
abriram e oito homens e mulheres
entraram no salão de baile como se o
possuíssem. Como os outros iniciados, eles
também usavam jeans e couro, mas tudo
era feito por designers e muito caro.
Enquanto me aventurava mais perto do
chão que eles reivindicavam em torno do
queijo e do vinho, entendi como cada um
podia comprar uma roupa que levaria um
mês para eu economizar. Todos estavam
trocando histórias sobre os pais.
Aparentemente, cada um deles tinha um
anjo como mãe ou pai.
Enquanto os ouvia gabar-se de todas
as coisas heroicas que seus pais fizeram,
dois iniciados se juntaram a mim ao lado
da fruteira. A mulher tinha a minha
altura e era tão esbelta quanto uma
modelo. Com sua pele perfeita, figura
esbelta e cabelos que corriam como uma
cachoeira carmesim, ela parecia pertencer
a uma pista, não estava pronta para a
queda em se juntar a uma legião militar
de elite que poderia muito bem matá-la. O
homem ao lado dela era uma cabeça mais
alta que nós duas e construído como um
jogador de futebol. Diversão curvou seus
lábios. Ele era claramente o tipo de pessoa
que poderia encontrar o humor a qualquer
momento, não importando o quão terrível.
— Pirralhos da Legião. — A mulher
revirou os olhos para o grupo de filhos de
anjos. — Eles acham que sabem tudo. —
Ela me olhou e declarou: — Você parece
normal.
— Acho que é uma questão de opinião.
— Respondi.
A mulher riu. Foi uma risada amigável
e genuína, e me fez gostar dela
imediatamente. — Não é essa a verdade?
— Ela estendeu a mão para mim. — Eu
sou Ivy.
Apertei a mão dela. — Leda.
— E eu sou Drake. Que prazer
conhecer você, Leda. — O homem pegou
minha mão, beijando o topo dela.
Ivy deu uma cotovelada nas costelas
dele. — Você terá que desculpar Drake.
Ele se imagina um príncipe.
— Ou um anjo? — Perguntei,
arqueando minhas sobrancelhas.
Drake sorriu para mim. — Todos
temos que mirar alto.
— Primeiro, temos que passar pela
cerimônia de iniciação. — Enfatizou Ivy.
Eu abaixei minha voz. — O que você
pode me falar sobre isso?
— Ninguém sabe. — Ivy sorriu para os
pirralhos. — Por todo seu talento e show,
eles não sabem mais do que nós. Mesmo
que finjam saber. A Legião mantém tudo
super secreto. Falar dos rituais é
estritamente proibido. Os pais deles não
contaram. A Legião trata vazamentos de
informações como um vírus. —vEla bateu
o punho contra a palma da mão. — Eles os
aniquilam.
— Por que se alistaram? — Perguntei
pra eles.
— Drake e eu nos conhecemos há uma
eternidade, basicamente.— Começou Ivy.
— Ou pelo menos desde que éramos bebês.
Nossas mães são melhores amigas. Elas
até deram à luz no mesmo dia. Então
Drake e eu crescemos como melhores
amigos. Quase nunca nos separamos. —
Sua fachada alegre escorregou. Ela chorou
ao olhar para o amigo.
— O que foi isso? — Perguntei.
Drake pegou a mão de Ivy. — A mãe de
Ivy está morrendo de câncer. Não há nada
que magia ou remédios possam fazer por
ela.
— Eu sinto muito.
Ivy enxugou as lágrimas dos olhos e
deu um sorriso corajoso. — Não fique.
Logo terminará de qualquer maneira.
— A magia das bruxas não pode ajudá-
la, seus pedidos à Legião para cura não
foram respondidos, mas se ela puder
alcançar o sétimo nível da Legião, poderá
salvar sua mãe com magia de fadas. —
Explicou Drake.
— Só espero sobreviver e conseguir
chegar a esse nível antes que o câncer a
mate.
— Por que sua mãe não pede para ser
transformada em vampira? — Perguntei.
— Isso a curaria.
— Estive lá, fiz isso. — Explicou Ivy.
— Ou tentei de qualquer maneira. A lista
para se tornar um vampiro tem uma
milha de comprimento. A única maneira
de chegar ao topo é conhecer alguém de
dentro. — Ela suspirou. — O que não
conhecemos. Curiosamente, a lista para se
juntar à Legião nunca é longa.
Porque eles continuavam cruzando
nomes fora dessa lista. Quando os
iniciados morriam. Não, eu não podia
pensar assim. Tinha que acreditar que
conseguiria. Era a única esperança de
Zane.
Então, sorri e olhei para Drake. —
Você é um bom amigo para vir com Ivy,
para que ela não precise fazer isso
sozinha.
— Não, já te disse. Quero me tornar
um anjo para pegar as mulheres. — Ele
riu, mas o jeito que ele colocou o braço
sobre os ombros de Ivy falava por si. Ele a
protegeria com tudo o que tinha.
Ivy riu. — Foi isso que você colocou no
seu formulário de inscrição? — Ela
perguntou ao amigo.
— Claro. — Ele bagunçou o cabelo
preto curto com um sorriso. — Não é como
se rejeitassem alguém. Eles imaginam
que você é fraco ou louco, que vai acabar
morto e não será mais problema deles.
— Por que você está aqui? — Ivy me
perguntou.
Gostei de Ivy e Drake, mas não podia
contar a eles. A verdade sobre Zane tinha
que permanecer em segredo. De todos,
amigos ou não.
— Para impedir que os sobrenaturais
enlouquecidos machuquem as pessoas. —
Respondi.
Ivy riu. — Boa e velha número um.
Essa resposta foi escrita tantas vezes em
formulários de inscrição que praticamente
está estampada nas pranchetas. Não
acredito que eles realmente acreditaram
em você.
— Não acreditaram. — Falei a ela. —
O cara que me entrevistou basicamente
me disse que eu estava mentindo.
Drake bufou.
— Sim, eles gostam de cortar as
mentiras por aqui. — Disse Ivy.
Drake assentiu em concordância.
Fiquei agradecida por eles não se
aprofundarem mais nas minhas razões de
estar aqui. Eles pareciam entender que
não queria compartilhá-los.
— Ainda assim, Leda, você deve agir
com cuidado. — Drake me avisou. — A
Legião não gosta de segredos. Eles exigem
nossa total obediência, segredos e tudo. Se
você provocá-los, eles se esforçarão mais.
— Então acho que não foi uma boa
ideia falar com o anjo que me entrevistou?
— Comentei.
Suas bocas caíram.
— O que? Tão ruim? Mordi meu lábio.
— Eu estava nervosa. Quando fico
nervosa, minha boca fica fora de controle.
— Um anjo entrevistou você? — Ivy
perguntou, em óbvio choque.
— Sim.
Drake estava balançando a cabeça em
descrença.
— Isso é ruim?
— Bem, ou é muito bom ou muito ruim.
— Respondeu Drake. — Mas como essa é
a Legião, me saí muito mal.
— Por quê?
— Porque os anjos não entrevistam
iniciados. Como sempre. — Ele me disse.
— Está abaixo deles. Você deve ter feito
algo para chamar a atenção de alguém.
— Eu não fiz nada. Acabei de
preencher o formulário e fui para a sala.
Talvez tenha falado um pouco, mas isso foi
depois que o anjo entrou. Eu era um
exemplo de iniciada antes disso.
Ivy me deu um olhar irônico.
Suspirei. — Ok, talvez apenas noventa
por cento do exemplo de iniciada. Acho que
estamos exagerando. — Eu esperaria. Não
precisava ter a Legião observando todos os
meus movimentos. — O que vocês dois
fizeram na sua entrevista?
Eles pareciam confusos.
— Uh, o quê? — Drake perguntou.
— Que tarefa você teve que fazer na
sua entrevista? — Esclareci.
Ele e Ivy trocaram olhares carregados,
e Ivy finalmente respondeu. — Nós não
fizemos nada. Acabamos de preencher os
formulários e o cara os assinou. Ele era
um cara de baixo nível da Legião. Parecia
entediado, como se só quisesse sair de lá e
voltar para a sala de descanso antes que
todos os donuts sumissem.
— Por que você pergunta? Você teve
que fazer alguma coisa? — Drake me
perguntou.
— O anjo me levou a um bar e me fez
prender três vampiros.
Ivy piscou surpresa. — Uau.
— E você sobreviveu?! — Drake
exclamou, olhando-me como se não
acreditasse que eu estava realmente ali
conversando com eles.
— Os vampiros eram novos, bêbados e
meio estúpidos. Felizmente para mim. O
último vampiro que enfrentei foi pior do
que os três juntos.
Ivy ficou boquiaberta para mim.
Drake riu. — O que você faz para
viver? Antes de você decidir se juntar ao
exército dos deuses, é claro?
— Caçadora de recompensas. —
Respondi.
Ele assobiou baixo e longamente. —
Caçadora de recompensas paranormal.
— Tentei me afastar da maioria dos
trabalhos sobrenaturais. O pagamento
não vale a grande chance de morte. —
Expliquei a ele. — Esse vampiro
escorregou pelas frestas. Quem lançou sua
recompensa deixou de mencionar que ele
não era humano.
— Isso é péssimo. — Disse Drake.
— Conte-me sobre isso. Algum de
vocês já lutou com sobrenaturais?
— Eu não lutei contra nada mais
sensível do que umas bolas de poeira. —
Respondeu Ivy.
— Eu não sei. Alguns dessas bolas
parecem ter uma mente própria. — Drake
olhou com carinho para sua melhor amiga.
— Ivy não luta contra o crime, mas ela era
uma líder de torcida assassina. Aqueles
contra-ataques e chutes laterais foram
bem perversos.
Ivy sorriu de volta para ele. — Não é
tão perverso quanto suas habilidades no
futebol.
— Sim, tenho certeza que a capacidade
de jogar uma bola em torno de um campo,
será útil contra monstros. — Alguém riu
alto.
Oito alguéns na verdade. Os pirralhos
da Legião avançaram, com zombaria
estampada em seus rostos. Isso não ia
acabar bem.
— Como você chamaria isso quando
uma líder de torcida, um atleta e uma
caçadora de recompensas de uma pequena
cidade se juntam à Legião dos Anjos? —
Um deles perguntou aos outros. — Um
triplo suicídio.
Todos caíram na gargalhada. Ivy
cerrou os punhos. Drake colocou a mão no
ombro dela, segurando-a. Os pirralhos da
Legião continuaram rindo.
— Você precisa trabalhar mais em
suas piadas. — Falei a eles, canalizando
serenidade. — Isso nem foi engraçado.
— Na verdade, foi muito engraçado.
— Eu achei engraçado, Dallas. —
Disse-lhe um dos pirralhos da Legião.
— Desista agora, crianças. — Dallas
disse com um sorriso depreciativo. —
Vocês melhores mortos.
— Sim, pelo menos Leda conseguiu
passar por uma entrevista. Aposto que
você não. — Ivy respondeu.
— Claro que não. Nós somos
descendentes de anjos. Temos entrada
garantida. Nós não precisamos de uma
entrevista. Mas estou feliz que a Legião
começou a implementá-las para os
inferiores. Talvez isso mantenha fora toda
a ralé que acredita ser digna de se alistar.
O resto deles riram de acordo. Nunca
suportei valentões no ensino médio, e
minha tolerância para eles não melhorou
desde então. Mas minha resposta foi
interrompida quando a mulher que me
trouxera aqui tocou a campainha no pódio,
no centro do salão de baile.
— Boa tarde, iniciados. — Ela olhou
em volta, para todos no salão de baile.
Desde que cheguei, nossos números
haviam aumentado para cinquenta. —
Sou a capitã Basanti Somerset. Vocês
vieram aqui hoje para se juntar às fileiras
da Legião dos Anjos. Estão prestes a
embarcar em uma jornada que poucas
outras pessoas nesta Terra farão, uma
jornada que exigirá que seja corajoso,
inteligente e empurre seu corpo e mente
além de seus limites. É uma grande
responsabilidade, mas as recompensas são
igualmente boas. Se tem o que é preciso.
Na minha frente, os pirralhos da
Legião estavam sorrindo um para o outro.
— E agora permita-me apresentar seu
comandante para este treinamento. —
Anunciou a capitã Somerset. — Coronel
Nero Windstriker.
Sussurros assustados percorreram a
multidão de iniciados, quando um anjo em
um terno de couro preto atravessou o salão
de baile para se juntar a capitã no pódio.
Prendi a respiração quando reconheci o
anjo que havia me interrogado apenas
algumas horas atrás. Desta vez, ele tinha
suas asas abertas. Uma mistura de penas
azuis, verdes e pretas, elas quase beijaram
o chão enquanto ele caminhava.
Elas eram a coisa mais linda que já vi.
Suas asas brilhavam com uma luz etérea
que deliciava meus sentidos, penetrando
minha alma. Não consegui desviar o olhar,
mesmo quando seus olhos esmeralda
encontraram os meus com um olhar que
não era menos penetrante. Várias das
mulheres engasgaram com o anjo, quando
ele passou. Alguns dos homens também.
Nero parou ao lado do pódio. — Bem-
vindos ao último dia de sua vida. — Ele
pausou por um momento para nos deixar
entender. — Daqui em diante, sua vida
pertence à Legião. Sua mente, sua magia,
seu corpo, sua alma, todos eles pertencem
a nós. Seu olhar deslizou através do grupo
de iniciados, pousando em mim. — Você se
inscreveu para servir a um propósito
maior. Para defender as leis dos deuses,
combater os monstros que destruiriam
este mundo, proteger os inocentes e os
fracos. Para fazer isso, a Legião concederá
poderes a você. Você crescerá mais rápido.
Mais forte. Mais esperto. Terá o poder de
encantar. Curar. Controlar os próprios
elementos. Você virá a possuir magia com
a qual os outros só podem sonhar. Quanto
mais alto você subir na Legião, mais
poderes você ganhará.
— Mas terá um preço. O poder sempre
tem um preço. Muitos de vocês não vão
sobreviver. Aqueles que sobreviverem
perderão sua humanidade
completamente. Você se tornará outra
coisa. Ele levantou as mãos no ar, as asas
se abrindo. — Você está pronto?
Os pirralhos da Legião levantaram as
mãos. Outros na sala o seguiram,
apanhados na magia de seu discurso.
Eu podia sentir o encantamento de
Nero serpenteando pela sala. Ele estava
irritando-os, fazendo-os querer seguir
para onde os levasse. Era assim que os
anjos comandavam exércitos. Ao meu
lado, Ivy e Drake também levantaram as
mãos. As mãos de todos estavam no ar.
Exceto a minha.
Os olhos de Nero se fixaram em mim,
me observando com uma intensidade que
mal pude suportar. Custou cada pingo de
força de vontade, para combater a magia
que ele lançou ao meu redor, para manter
o controle da minha mente. O suor
escorria pelo meu pescoço, mas me
segurei. Dei um pequeno sorriso ao anjo,
simplesmente não pude evitar, mesmo
sabendo que isso me custaria mais tarde,
que ele perceberia que o “canto da sereia”
não funcionava em mim, mas levantei
minha mão também, lentamente e com
meu próprio livre arbítrio.
Nero segurou meu olhar por alguns
momentos, depois se dirigiu à multidão. —
A hora chegou.
Ele indicou a fonte ao lado dele.
Começou a borbulhar e borbulhar um
líquido carmesim. Algum tipo de suco?
Exceto que tinha um brilho antinatural.
Magia. Quanto mais eu olhava para ele,
mais percebia que tinha uma infeliz
semelhança com sangue.
Eu obviamente não era a única a
pensar nisso. Os outros iniciados se
contiveram, claramente não querendo ter
nada a ver com aquela fonte assustadora.
Exceto pelos pirralhos da Legião. Eles
marcharam até a fonte com total
confiança, seu líder Dallas, na frente.
Nero mergulhou um cálice de ouro na poça
de líquido carmesim e entregou a ele.
Dallas bebeu em um único gole, sorrindo
amplamente. A primeira convulsão
arrancou o cálice da mão dele. A segunda
o derrubou no chão, onde ficou deitado,
espasmando e agarrando, enquanto o que
tinha bebido o matava lentamente.
Com um movimento rápido do pulso de
Nero, um dos soldados da Legião em pé ao
redor da sala entrou e levou o iniciado em
convulsão para longe. Os outros pirralhos
da Legião se agruparam, a arrogância
apagada de seus rostos. Eles pareciam ter
percebido que, se o líder poderia cair,
qualquer um deles poderia. A realização
os atingiu com força. Pelo menos metade
deles parecia que ia vomitar.
Nero virou-se para a sala dos iniciados
e disse friamente. — Próximo.
— O que há naquele cálice? — Alguém
perguntou.
— Próximo. — Repetiu Nero.
Os iniciados trocaram olhares
nervosos.
— Ele vai viver? — Perguntou um dos
pirralhos da Legião.
— Por um tempo. — Respondeu Nero.
— O que há nessa fonte irá matá-lo ou
torná-lo mais forte. O resultado final é
inteiramente seu.
Ninguém mexeu um músculo.
— Eu vou. — Declarei, minha voz
ecoando pelo salão de baile.
Parecia tão certa, tão confiante. Tão
completamente diferente de tudo o que eu
sentia agora.
— Você é realmente corajosa. — Ivy
sussurrou para mim.
— Não. — Esclareci a ela. —
Simplesmente não acredito em adiar o
inevitável. — A cada segundo que
passava, meu estômago se revirava em um
nó ainda mais apertado. Se não fizesse
isso agora, nunca conseguiria.
Nero sinalizou para que eu me
aproximasse. Enquanto caminhava em
direção à fonte, todos os olhos estavam
colados em mim. A distância parecia
imensa, e segurei o olhar do anjo o tempo
todo. Sua expressão era ilegível. Como
granito. Não, mármore. Frio, suave, e sem
uma emoção gravada nele.
Nero me entregou o cálice de ouro.
Minha mão tremia quando a mergulhei no
fluido estranho, a firmei com a outra. E
então, respirando fundo, eu bebi.
Não tinha gosto de sangue. Uma
explosão de sabores fez cócegas na minha
língua. Era doce, de longe a coisa mais
doce que já provei, mas havia algo mais.
Meus outros sentidos estavam sendo
bombardeados com um turbilhão de sons,
imagens e cheiros. Superado com
tonturas, tropecei para o lado. As mãos de
Nero brilharam, me pegando. Mas antes
que eu pudesse encontrar seus olhos, ele
me empurrou de lado.
— Vamos lá, iniciados. — Falou, alto e
claro. — Formem uma fila.
Enquanto marchavam até a fonte, fila
única e solene, me encostei na parede.
Tudo estava passando por mim a
quinhentos quilômetros por hora. Meu
corpo balançou e depois tropeçou
novamente, e vomitei tudo do estômago
por todo o chão. Limpando minha boca, me
endireitei e olhei através do salão de baile.
Os outros iniciados estavam tremendo.
Alguns estavam morrendo no chão,
convulsionando ainda mais do que Dallas.
Um homem perto do fim da fila, ficou
boquiaberto com os homens e mulheres no
chão, depois ele se virou e correu.
Ele não chegou longe. Quando fugiu,
um dos soldados da Legião sacou a arma e
atirou na parte de trás da cabeça dele.
Uma mão tocou meu ombro e me virei
para encontrar Nero lá, segurando a taça
para mim.
— Beba. — Ordenou.
— Eu bebi.
— Você vomitou antes que pudesse
entrar na sua corrente sanguínea.
Parecia que estava me castigando.
Como se fosse minha culpa que eu
vomitara.

Eu olhei para o homem com uma bala


na cabeça. — Você tinha que atirar nele?
— Ele se inscreveu para isso. Escolheu
estar aqui. Depois de ingressar, não há
como sair. Um ou dois sempre tentam
correr quando veem o que está
acontecendo.
Seu tom frio me gelou até os ossos,
mesmo que eu soubesse. Afinal, fui eu
quem lhe disse que perdera parte de sua
humanidade.
Quando Nero colocou o cálice cheio em
minhas mãos, a magia zumbiu de sua pele
sobre a minha. Foi uma sensação
estranhamente agradável, tanto que
quase fiquei tentada a roçar minha mão
contra a dele novamente para repetir a
sensação. Qualquer mágica que tenha
passado entre nós, não tinha sido de um
jeito. Surpresa cruzou o rosto de Nero,
antes que ele rapidamente esfriasse sua
expressão.
Levei o cálice aos meus lábios e bebi.
Desta vez, o líquido desceu mais
facilmente. Minhas mãos tremiam quando
abaixei o cálice da minha boca, mas desta
vez consegui me manter ereta, e não
vomitar em seus sapatos.
— Você é mais forte do que parece.
Permiti que um pequeno sorriso
tocasse meus lábios. — Eu sei que você
não quis dizer isso como um elogio, mas
considerarei com um.
— É um fato. Você parece tão... suave.
— Bem, sou forte.
— Sim. — Ele concordou, pegando o
cálice de volta.
Eu suprimi um arrepio quando sua
mão roçou brevemente a minha,
acendendo minha pele com uma onda de
magia, que parecia melhor do que queria
admitir para mim mesma. Tive a estranha
sensação de que ele fizera isso de
propósito, mas não conseguia entender o
porquê. Talvez estivesse me testando.
Nero pousou o cálice na beira da fonte
e virou-se para se dirigir aos vinte e
quatro de nós que restaram. Vinte e
quatro em cinquenta. Isso era loucura.
Examinei a multidão rapidamente
procurando Ivy e Drake. O alívio me
inundou quando vi que eles estavam entre
os sobreviventes.
— A capitã Somerset mostrará o
quartel. — Declarou Nero. — Troquem-se
e, em seguida, dirijam-se o Hall 3. Têm
quinze minutos.
Os pirralhos da Legião seguiram logo
atrás da capitã Somerset. Seis deles
sobreviveram, de oito. Parecia que ter um
anjo como pai, aumentava
significativamente suas chances de
sobreviver a qualquer magia que estivesse
naquela fonte. Os pirralhos da Legião
conversavam alegremente, como se dois
deles não tivessem caído mortos na frente
deles. Tive a sensação de que era
precisamente essa total falta de
humanidade que a Legião procurava em
seus soldados. Talvez tudo isso tenha sido
um grande erro.
Mas continuei andando, um pé na
frente do outro. Eu havia traçado esse
caminho e ia terminar. Encontraria meu
irmão.
Seguimos a capitã Somerset pelo
corredor brilhante e reluzente. Havia
quatro quartos aqui, cada um com seis
camas. Os pirralhos da Legião
imediatamente reivindicaram um dos
quartos para si. O resto de nós se dividiu
entre os três quartos restantes. A capitã
Somerset nos deixou.
— Não há muito para privacidade, não
é? — Ivy comentou enquanto ela, Drake e
eu reivindicávamos um quarto junto com
outras três mulheres.
Peguei uma pilha de roupas esportivas
cuidadosamente dobradas da cômoda
compartilhada que mal cabia entre as
camas. — Aparentemente não.
Eu trocara de roupa com minhas irmãs
por perto e até meu irmão, mas isso era
diferente. Essas pessoas eram estranhas.
Por outro lado, trocar de roupa em campo
aberto era o menor dos problemas que logo
enfrentaríamos.
— Temos que nos apressar. — Disse
Ivy, tirando a blusa. — Se você se atrasar,
o Coronel “Anjo Sexy” pode marchar e dar-
lhe o olhar fixo.
— Coronel “Anjo Sexy”? — Drake
perguntou, divertido.
Ele teve a decência de não encarar as
mulheres seminuas ao seu redor, mas nem
todas estavam retribuindo o favor. Ele não
parecia se importar, no entanto. Pelo
contrário, claramente aproveitva a
atenção. Ele deu uma piscadela para uma
de nossas novas colegas de quarto, e ela
rapidamente desviou o olhar, rindo.
— Sim, Coronel “Anjo Sexy”. — Disse
Ivy. — Pelo menos a nuvem de destruição
iminente pairando sobre nossas cabeças
será um pouco mais doce com ele por
perto. Hmmmm.
As outras mulheres expressaram seu
acordo entusiasmado.
— Eu não me importaria que ele me
batesse. — Falou uma delas.
Todo mundo assentiu, exceto eu e
Drake. Ele apenas revirou os olhos.
— O que você acha, garota? — Ivy me
perguntou enquanto deslizava em suas
meias esportivas.
— Sobre o que? — Perguntei,
apertando o sutiã esportivo que
acompanha o meu novo conjunto de
roupas da Legião.
— Sobre o Nero Windstriker, é claro.
No salão, ele estava lhe dando um olhar
ardente o tempo todo. — Ivy suspirou.
— Sim, ele acha que estou escondendo
alguma coisa.
Ivy torceu o cabelo em um rabo de
cavalo alto. — Todo mundo está
escondendo alguma coisa.
— Ivy, não é assim que os anjos
pensam. — Drake disse a ela. — Para eles,
segredos devem ser expostos, mentes
quebradas...
— Ossos quebrados. — Conclui
sombriamente.
Mas Drake apenas sorriu. —
Precisamente. Anjos são os cavaleiros da
justiça, a voz dos deuses. Eles sempre
conseguem o que querem.
Ivy jogou para ele sua pilha de roupas
esportivas. — Menos conversa, mais ação.
Não acho que você gostaria tanto quanto
gostaríamos, se o Coronel “Anjo Sexy”
espancasse você.
Todo mundo riu.
— Mas ele está realmente certo. —
Disse uma das nossas colegas de quarto,
olhando para mim. — Se Nero
Windstriker decidiu que descobrirá o que
você está escondendo, ele descobrirá o que
está escondendo. Você pode muito bem ir
até ele agora e confessar seus pecados.
A mulher ao lado dela se inclinou. —
Eles vão nos quebrar.
Tentei não pensar nisso. Tinha que
manter o foco no meu objetivo: superar as
fileiras, ficar forte. E fazê-lo sem deixar
ninguém descobrir sobre os poderes de
Zane.
— Não dê ouvidos a eles. — Ivy
sussurrou para mim.
Eu sorri para ela. — Claro que não.
Vamos fazer um pacto, você e eu. Um
pacto que não vamos quebrar.
— Você conseguiu, irmã.
Mas, apesar do rosto duro que vesti
para o mundo, eu estava com frio por
dentro. As 26 pessoas que morreram hoje
nem tiveram chance. Num momento eles
estavam vivos, e no outro não estavam. E
não seriam os primeiros a morrer. A
cerimônia de seleção estava completa, mas
isso estava longe de terminar.
Estávamos vestidos e prontos para ir
quando a capitã Somerset voltou para nos
mostrar o Hall 3, o que significava que
poderíamos, sem esperança, renunciar a
todas as surras. Mas, como logo
experimentaria em primeira mão, havia
mais de uma maneira de torturar um
iniciado. De fato, havia infinitas
maneiras.
O Hall 3 era uma grande academia
com uma pista de obstáculos de barreiras
e estruturas em seu núcleo. Uma pista de
tamanho grande contornava aquele
núcleo, e além dele, havia paredes de
escalada e outras pistas de obstáculos.
Nero estava com outro membro da Legião,
um homem com cabelos loiros cortados e
um sorriso relaxado e de boa índole. Cada
um deles usava um traje esportivo, que
atraiu mais do que alguns sussurros de
agradecimento de minhas colegas
iniciadas.
— Este é o major Harker Locke. —
Falou Nero, sua voz penetrando a
multidão que sussurrava. — Ele vai me
ajudar com o treinamento.
O major nos deu um aceno amigável
demais para ter vindo de um membro da
Legião.
— Agora vamos ao que interessa. —
Continuou Nero. — Isso começa a
primeira etapa de seu treinamento. Agora,
você deve treinar seus corpos e mentes
para provar que é realmente um de nós.

— Nós já não estamos? — Alguém


perguntou.

— Não. — A palavra apareceu na


multidão reunida diante dele.

— Mas nós fizemos o seu teste e


sobrevivemos.
— Você sobreviveu ao seu primeiro
gole do néctar dos deuses. — Respondeu
Nero. — A bebida que provocou sua magia,
trazendo à superfície o que estava
escondido dentro de você. Mas resta saber
se você tem o que é preciso para se juntar
à Legião dos Anjos. Se o fizer, você beberá
do copo dos deuses mais uma vez para
receber o primeiro dom: O Beijo do
Vampiro. Isso lhe dará força, velocidade,
resistência e auto cura, todos os poderes
de um vampiro. Você ganhará a
capacidade de receber um impulso nesses
poderes, quando consumir a força vital de
outro.
Os iniciados ao meu redor começaram
a zumbir de emoção.
— Mas cuidado. — Advertiu Nero,
suas palavras silenciando a multidão. —
Junto com esses novos poderes, vem
também o outro lado dos vampiros: a fome.
Você deve aprender a controlá-la, não
deixar que a fome o controle. Torne-se um
mestre da fome, da sede de sangue, da
magia. Caso contrário, você se tornará
selvagem, transformando-se em um
monstro. E você será eliminado. — Ele
bateu na arma ao seu lado. — Essa magia
irá matá-lo ou torná-lo mais forte.
Lembre-se disso, iniciados: o que não
mata, apenas o fortalece.
Ou o que não mata, mata você mais
tarde, pensei.
— Se você vive ou morre, depende
inteiramente de você. Vamos trabalhar
sua força, resistência e força de vontade,
para lhe dar uma chance de sobreviver ao
néctar. Começamos agora. — Nero
apontou para a pista. — Dez voltas. Vão.
Depois das dez voltas, Nero nos
mandou fazer flexões até cairmos. Então,
nos fez correr mais dez voltas. Continuar
e repetir até o infinito. Ele nos forçou até
nossos corpos tremerem e explodirem e
cairmos no chão. Então ele nos fez ir
novamente. E a diversão estava apenas
começando.
— Reúnam-se. — Ordenou Nero,
enquanto meu coração fazia um esforço
sólido de explodir em meu peito.
Pela aparência de meus colegas
iniciados espalhados pelo chão ao meu
redor, eles não se saíram melhor nas
últimas horas. Mas erguemos nossos
corpos do chão e fomos até ele.
— Muitos de vocês não sobreviverão ao
primeiro mês. — Declarou Nero, nem
mesmo uma pitada de simpatia
manchando seu rosto perfeito, enquanto
seus olhos passeavam através de nós. O
anjo era tão sem alma quanto era bonito.
— Como eu disse antes, tentaremos
prepará-lo da melhor maneira possível. —
Continuou ele. — Mas no final, se você
sobrevive ou não ao primeiro dom dos
deuses, está inteiramente em suas mãos.
Esta é uma batalha tanto física quanto
mental. E é isso que vamos treinar agora.
— Agora? O que foi tudo isso que
acabamos de fazer? — Alguém perguntou.
— Aquecimento. — Respondeu Nero
friamente.
Nós o seguimos pela academia e
entramos em uma sala menor. No final da
sala, uma porta nos esperava. Salpicos de
vermelho manchavam sua superfície de
aço. Sangue. Era sangue.
— Quem pode me dizer o que é isso? —
Nero nos perguntou, batendo na porta.
Eu não conseguia parar de encarar o
sangue, ou temer o que estava por vir.
— Uma porta de segurança. Ela foi
projetada para resistir à força de uma
explosão. — Respondeu um dos iniciados
imediatamente. Ele tinha um rosto pálido,
quase doentio. Ele era construído como um
trilho, toda a pele e ossos com quase
nenhum músculo. Era uma maravilha que
não tivesse desmaiado durante os
exercícios anteriores. Por outro lado, nem
sempre era possível dizer o quão forte
alguém era por sua aparência externa.
— Sim. — Confirmou Nero, depois se
dirigiu a todos nós. — Isso representa um
oponente formidável. Você não pode
quebrá-lo. Você não pode derrotá-lo.
— É apenas uma porta. — Alguém
sussurrou atrás de mim.
Os olhos de Nero dispararam para o
sussurro. — Isso não é apenas uma porta.
Este é você. Seu maior inimigo. É isso que
está no seu caminho. — Ele chamou o dono
do sussurro para frente.
O homem veio com um meio sorriso no
rosto. As próximas palavras de Nero
murcharam aquele sorriso.
— Soque na porta. — Disse ele ao
iniciado.
— Como se fosse real?
— Você colocará toda a sua força nesse
soco, para bater na porta o mais forte que
puder. — Explicou Nero. — E então,
socará imediatamente novamente.
Um sorriso lento começou a aparecer
nos lábios do cara, mas o olhar frio nos
olhos de Nero o matou. Os olhos do cara
dispararam entre Nero e a porta.
— Agora, iniciado. — Nero disse com
uma voz que lançou arrepios por toda a
minha pele.
O cara engoliu em seco, depois bateu
na porta.
— Eu disse para usar todo o seu poder.
— Enfatizou Nero, com o rosto duro como
granito, os olhos tão frios quanto uma
tempestade no Ártico.
— Mas isso vai quebrar minha mão. —
Protestou o cara.
— Mantenha seu pulso reto.
— Ainda vai doer.
— Essa é a questão. O que você fará na
primeira vez que o inimigo atingir você?
A boca do cara caiu. — Eu... isso é
algum tipo de punição?
— Este é o exercício que ordenei que
você concluísse. — Respondeu Nero.
Ninguém perguntou o que aconteceria
se desobedecêssemos. Não achei que
alguém quisesse saber. O cara olhou para
a porta por um segundo, depois seu corpo
parou, dando um forte soco na porta. Seu
grito de pura agonia lamentou sobre os
ecos de aço. Ele caiu de joelhos, segurando
sua mão quebrada e sangrando. Nero
olhou para ele, seu rosto impassível,
insensível.
— Avisei para você manter o pulso
reto. Harker, dê uma olhada na mão dele.
Enquanto o major curava o cara com
seu toque mágico, Nero examinou os
iniciados em busca de sua próxima vítima.
— Você. — Chamou ele, com os olhos
fixos em Drake. — O jogador de futebol.
Vamos ver se você dá um soco melhor do
que o motorista do caminhão.
Drake se separou de nós e marchou até
a porta e a socou com tanta força que os
ecos quase sacudiram as paredes. Drake
mordeu o lábio, contendo qualquer agonia
fervendo dentro dele.
— Novamente. — Ordenou Nero, a
palavra estalando como um chicote.
Drake olhou para a mão dele. Não
parecia estar quebrada, mas estava
sangrando.
— Novamente.
Drake levantou o punho para o soco,
depois deixou cair a mão.
— Falta sua força de vontade. — Disse
Nero, dispensando Drake com um
movimento rápido do pulso.
O anjo nos chamou um por um para
aquela maldita porta até que, finalmente,
eu era a única que restava. Não pensei que
isso era uma coincidência. Ele me deu um
lugar na primeira fila para a dor de todos
os 23 iniciados que vieram antes de mim,
e agora era a minha vez. Enquanto eu
caminhava em direção a essa porta, seus
olhos me seguiram, perfurando-me como
uma broca que poderia penetrar no meu
corpo, cortando através da minha alma
crua. Desviei o olhar do dele e olhei para
aquela porta. Então, antes que minha
mente pudesse se afastar da realidade do
que estava prestes a fazer, bati o mais
forte que pude.
A agonia explodiu no meu punho,
correndo como um rio em chamas através
dos meus nervos, pelos meus braços.
Surpresa misturada com a dor, surpresa
que eu poderia até bater forte o suficiente
para quase quebrar meu braço. Cerrando
os dentes contra a dor que brotava, bati
meu punho contra a porta uma segunda
vez. Meus dedos sangrando arranharam
contra o aço, encharcando o fogo com um
fluido mais leve. Eu me virei e olhei para
o anjo sádico.
Seu olhar mergulhou brevemente no
sangue pingando das minhas mãos
trêmulas. — Você precisa trabalhar sua
postura. — Disse ele.
Vá se ferrar, atirei mentalmente nele.
Sua boca se apertou, como se ele
tivesse me ouvido. Talvez ouvira. Um anjo
de seu nível tinha poderes telepáticos.
Apenas para o caso de estar sintonizado
com meus pensamentos, atirei uma
imagem minha colocando fogo em suas
asas com um lança-chamas. Se ele leu
meus pensamentos, não traiu nenhum
indício de emoção.
— Você deve entrar em qualquer
batalha esperando se machucar. —
Alertou a todos nós. — E você deve
aprender a atravessar a dor. Se não, vai
morrer. Não há limites de tempo no campo
de batalha, nem da magia que rasga seu
corpo, quando você bebe novamente o
néctar dos deuses. Se sua vontade não for
forte o suficiente, morrerá. Não há
desistentes aqui, apenas soldados da
Legião e os mortos. Lembre-se disso da
próxima vez que achar que pode desistir.
Alguns dos iniciados mudaram de peso
desconfortavelmente.
Nero indicou a porta manchada de
sangue. — Este foi um exercício de força
de vontade, mantendo-se unido apesar da
grande dor. E você falhou
espetacularmente — Ele declarou. —
Exceto um de vocês. — Ele se virou para
me encarar. — Parabéns, Leda Pierce,
você avançou para o próximo nível.
Por que isso parecia mais uma punição
do que uma recompensa?
Nero bateu a mão na porta de
explosão. Ela respondeu à sua magia,
abrindo-se e um cachorro feroz saltou para
fora, arreganhando os dentes infernais.
— E agora você vai lutar. — Disse-me
Nero.
O cachorro disparou para frente,
arreganhando os dentes para mim.
Afastei-me, minha perna mal evitando o
empalamento em sua boca de punhais.
Rápido como um raio, ele se moveu
novamente, e desta vez, não tive tanta
sorte. A dor rompeu minha coxa,
escorrendo pela minha perna como uma
cachoeira sangrenta. Tropecei novamente,
tentando me afastar da fera.
Isso estava me esperando.
Lançou-se sobre as pernas traseiras e
me mordeu no ombro. Seus dentes
pontudos se apertaram com força, me
puxando para o chão. Sua terceira
mordida perfurou minha panturrilha.
— Você deve vencer a dor e lutar
contra ela. — A voz de Nero disse através
da névoa que nublava minha mente.
Pontos negros dançavam nos meus
olhos. Cerrei os dentes e tentei
permanecer consciente. O cachorro era
uma grande mancha embaçada em algum
lugar perto do meu pé. Chutei isso. Devo
ter batido no nariz, porque ele gritou de
dor e recuou um passo. Essa foi a minha
chance. Tentei usar esse momento para
ficar de pé, mas meu corpo se recusou a se
mover. E o momento foi muito breve. O
cachorro me atacou de novo e de novo. A
dor derreteu em um fluxo sólido de agonia.
A dormência se seguiu e depois a
escuridão.
Quando voltei, Harker estava de pé
sobre mim, com a mão na minha perna.
Um brilho dourado pulsou de sua mão,
espalhando-se em ondas suaves e
zumbidos pela minha pele. Minhas feridas
se fecharam e minha cabeça ficou clara o
suficiente para ver Nero parado a alguns
passos de distância, o cachorro sentado ao
seu lado. Os olhos da fera estavam
dançando loucamente, como se quisessem
terminar o que havia começado, mas
qualquer feitiço que Nero lançou sobre ela,
a mantinha no lugar.
— Você está bem? — Harker me
perguntou, com um sorriso encorajador,
enquanto movia a mão da minha perna
para o meu braço.
Forcei um sorriso nos meus lábios
doloridos. Tudo no meu corpo doía, embora
esse sentimento desaparecesse
rapidamente. Em alguns segundos, pude
até me sentir humana de novo, em vez de
um brinquedo para mastigar de um
cachorro.
— Eu estou bem. — Respondi a
Harker, permitindo que ele me ajudasse a
me levantar.
Ele me deu uma piscadela e foi ficar ao
lado de Nero. O cachorro estava voltando
para a porta da explosão. Assim que
estava do outro lado, a porta de aço se
fechou atrás dele.
— Você precisará praticar isso de novo.
— Falou Nero.
— Novamente? — Perguntei
horrorizada. A lembrança dos dentes
daquele animal cortando meu corpo
causou arrepios na espinha. — Tenho que
fazer isso de novo?
Ele deu um passo em minha direção.
— Você terá que fazer isso e muito mais,
todos os dias.
Ele estendeu a mão para mim. Tentei
me afastar, mas ele foi mais rápido. Sua
mão se fechou no meu pulso. Quando a
outra mão roçou minha pele, a dor
borbulhou.
— Você esqueceu um lugar. — Disse
ele a Harker.
Um sorriso tocou os lábios de Harker.
— Então, esqueci.
A ponta do dedo de Nero brilhava,
dourada e ofuscante. Ele tocou no corte do
meu braço. Uma onda de calor percorreu
meu corpo, pulsando ao mesmo tempo que
as batidas do meu coração, em uma bela e
intoxicante melodia de magia. Inspirei
profundamente, aspirando o delicioso
perfume dessa magia em mim.
— Por que você está aqui? — Ele
perguntou, sua voz dançando nas notas da
doce música girando dentro da minha
cabeça.
Abri minha boca para contar tudo a
ele, para derramar todo segredo que eu
tinha. Eles eram dele. Cada um deles.
Parei. O que eu estava dizendo? Não
podia contar nada a ele. Ele era um anjo.
E usava sua magia em mim. Me afastei
dele, e ele não tentou me parar. Apenas
me observou, quando a última melodia
mágica desapareceu da minha cabeça.
Uma sensação de profunda perda cortou
minha alegria anterior, deixando-me
tremendo e triste. Queria sentir sua
magia novamente, mesmo sabendo que
não era real. Nada disso era real. Este era
um jogo que ele estava jogando, um jogo de
anjo. Dei outro passo para longe dele. Não
deixaria que tivesse esse poder sobre mim.
Surpresa brilhou em seus olhos
esmeralda. Talvez ninguém tenha
resistido ao seu “canto de sereia” antes.
Mas esse olhar de surpresa rapidamente
se transformou em granito, quando se
virou para abordar todos os iniciados.
— Você treinará força de vontade aqui.
— Começou ele. — Você deve resistir à
dor, ao medo e a qualquer inimigo que
possa enfrentar em batalha. Mas você
nunca deve resistir àqueles que o
comandam.
Embora seus olhos examinassem a
multidão de iniciados, pude senti-los em
mim.
— A Legião não tem utilidade para
soldados que questionam ordens.
Precisamos saber que em batalha você
ouvirá seus superiores, que fará o que lhe
disseram. Sem medo. Sem hesitação. Sem
questionamentos. Seus olhos caíram em
mim. — Você pode me obedecer por opção,
ou farei você obedecer.
Uma onda de puro poder disparou
dele. Ao meu redor, meus colegas iniciados
começaram a cair de joelhos. A magia de
Nero rasgou-me, desta vez feroz, em vez
de doce. O poder absoluto de sua magia
parecia uma montanha nos meus ombros,
me pressionando centímetro a centímetro.
Doía resistir, doía mais do que bater
naquela porta, mais do que o cachorro me
rasgando, mas todas as fibras do meu ser
se rebelavam contra seu controle.
Você não deve resistir, disse uma voz
dentro da minha cabeça. Não parecia a voz
de Nero. Parecia a minha.
E a voz, essa parte sensível de mim,
estava certa. Eu não deveria resistir.
Tinha que me comportar. Estava aqui
para ganhar o poder necessário para
salvar meu irmão, não para provar que
podia enfrentar um anjo. Então, parei de
lutar. Alívio me inundou imediatamente,
alívio da agonia daquele peso em meus
ombros, alívio de pensar. Era tão fácil
obedecer, deixar alguém tomar as decisões
por mim. Um cobertor quente de magia
envolveu todos nós, protegendo-nos,
levando-nos. Nos unindo.
— Obediência é tudo. — Disse Nero.
Uma auréola brilhando, como um milhão
de diamantes esmagados iluminou seu
corpo. — Você pode me odiar o quanto
quiser, mas seguirá minhas ordens.
Compreendeu?
Todos nós assentimos, incapazes de
falar.
— Ótimo. — Disse ele, libertando-nos
de seu domínio. Enquanto as camadas de
seu feitiço se dissolviam no ar, a satisfação
fácil que senti desapareceu. — Agora
levantem-se, iniciados e façam mais dez
voltas.

As próximas semanas se passaram em


um repetido ciclo de agonia. Nero nos
mandou correr até que não
aguentássemos, fazer flexões até nossos
braços cederem e socar a porta
amaldiçoada várias vezes até que nosso
sangue a manchasse também. Saltamos
de grandes alturas e percorremos
percursos de obstáculos projetados para
quebrar nossos corpos. E fizemos isso
frequentemente depois de apenas duas
horas de sono. A privação do sono era uma
das ferramentas favoritas de Nero.
Tivemos que lutar contra cães, e depois
uns contra os outros com espadas, facas e
todos os tipos de outras armas do arsenal
da Legião. Sangrar não era desculpa para
desistir e nem falta de membros. Nero
enfatizou que poderia curar nossas feridas
após a luta. Se lutássemos bem e não nos
rendêssemos, fazia isso imediatamente.
Se não... bem, demorava mais tempo para
nos curar.
O homem era um animal sádico e
distorcido, e antes do final da primeira
semana, eu queria matá-lo. No final da
segunda semana, decidi que a morte era
boa demais para ele. Eu tinha que fazê-lo
sofrer primeiro.
No final do primeiro mês, estava
exausta demais para fantasiar sobre
matá-lo. A única coisa que me manteve em
movimento foi minha necessidade de
salvar meu irmão.
— Pegue o ritmo, Pandora. — Nero
chamou.
Pandora era o apelido dele para mim.
Aparentemente, nossa primeira conversa
deixou uma impressão, aquela em que eu
falei sobre a caixa de Pandora da minha
família. Então eu era a portadora do mal e
do caos? Bem, era melhor do que ser o
torturador de almas desesperadas.
Esse era o trabalho de Nero. Era quase
o fim do dia e meu corpo tremia. Eu estava
a meio caminho do topo da parede de
escalada e implorava desesperadamente
com meus músculos para não desmaiar. É
claro que Nero havia deixado a parede de
escalada para o final da pista de
obstáculos do inferno, quando todo mundo
estava com vinte tons de exaustão e
fracasso significava cair seis metros. E
não havia sequer uma rede de segurança.
Aparentemente, isso era trapaça porque
não havia redes de segurança na vida.
Acho que deveria ter ficado feliz por o anjo
não ter colocado espinhos no fundo.
Eu murmurei algumas maldições
escolhidas em voz baixa.
— Menos amaldiçoar minha existência
e aqueles que me aborreceram neste
mundo, e mais escalada, iniciada. — Nero
me chamou. — Esta escalada está em um
cronômetro, e se esse tempo acabar,
subirei aí e jogarei sua bunda no chão.
Eu o amaldiçoei um pouco mais, mas
continuei subindo, me esforçando mais.
Não ia dar a ele a satisfação de me ver
cair, nem morta. Cheguei ao topo e apertei
o botão da campainha.
— Faltam trinta e um segundos. —
Disse Nero. — Por pouco, não foi, iniciada?
Lancei um olhar de pura aversão para
ele, mas acho que nem viu. Ele já estava
ocupado perseguindo o próximo iniciado
tentando subir a parede. Desci devagar,
tentando voltar a terra firme sem cair.
Assim que desci, fui direto para o jarro de
água.
— Mais quatro voltas. — Nero me
disse quando a água fria tocou meus
lábios. — E mais quatro por beber sem
permissão.
Meus pés pareciam chumbo, mas
engoli o resto da água do meu copo e saí
correndo pela pista. À minha frente, vi Ivy
tropeçar e cair. Corri até ela, tentando
ajudá-la a se levantar. Mas minha amiga
apenas tremeu e respirou fundo, ofegante.
De repente, Nero estava de pé sobre
nós. — Pandora, Poison Ivy, mexam-se.
Eu olhei para ele. — Ivy está acabada.
Você não pode ver isso? Dê a ela alguns
minutos.
— Não há tempos limite na vida. — Ele
respondeu friamente. — Quando você está
no meio de uma batalha, não pode
demorar alguns minutos.

— Estamos em uma academia, não em


um campo de batalha. — Argumentei,
levantando-me para encará-lo. — Até os
soldados descansam algumas vezes.
— Você pode descansar quando estiver
morta.
Franzi o cenho para ele. — Pare de ser
tão burro.
Ivy passou por muita coisa hoje. Ela
não se saiu bem contra o cachorro, nem
com seu próximo oponente. Ela enfrentou
Mina, uma dos pirralhos da Legião. A mão
de Ivy que Mina cortara ainda estava
tremendo, embora Harker a tivesse
curado de volta.
Harker também estava de pé sobre nós
agora. Porra, esses caras se moviam
rápido. — Nero, eu gosto dela. — Ele disse
com uma risada.
Nero o olhou com raiva, mas salvou
sua palestra apenas para mim. — Eu
avisei que sua boca lhe causaria
problemas. Se você não aprender a mantê-
la fechada, não sobreviverá aqui.
Eu encontrei seu olhar, muito teimosa
para desviar o olhar. Sabia que deveria me
comportar, que deveria ter medo. O poder
do anjo era arrebatador. Mas eu estava
com raiva demais para ser racional ou
mesmo assustada. Atribuí isso ao meu
instinto protetor, à minha necessidade de
ajudar minha amiga. Continuei
encarando-o.
— Cuidado. — Nero advertiu.
— Ou o que? — Exigi.
— Você não pode descansar a pobre
garota, Nero? — Disse Harker.
— Muito bem. — Ele acenou para Ivy
se afastar. — Sente-se ao lado, garota
morta. Amanhã, quando todo mundo
estiver almoçando, você estará correndo.
— Quando Ivy se afastou, parecendo
aliviada e ansiosa, ele voltou seu olhar
para mim novamente. — Agora, Pandora,
você também dará suas voltas.
— Vamos lá, Nero. Dê um tempo a ela.
— Protestou Harker.
— Não há interrupções aqui. —
Declarou o coronel Durão. — Se ela não
quer que sua amiga corra, tem que pegar
a folga.
Harker abriu a boca para dizer algo,
mas fui mais rápida. — Estou bem. Darei
as voltas — Disse a ele. Olhei para Nero,
meu queixo erguido com teimosia e saí
correndo pela pista mais uma vez.
A raiva e a teimosia precisavam
mostrar a Nero que eu não recuaria,
durante a maior parte das voltas, mas no
final minha mente não podia mais ignorar
os sinais que meu corpo gritava. Minhas
pernas dobraram e tropecei no chão.
— É uma lição para ela, por desafiar
um anjo. — Mina riu para seu
companheiro de corrida.
— Isso vai lhe ensinar o lugar dela. —
Ele concordou enquanto passavam por
mim.
Outro par de pirralhos da Legião
passou, empilhando suas próprias
provocações. Lutei para me levantar, mas
meu corpo não ouvia.
— Se você está falando, não está
sofrendo o suficiente. — A voz de Nero
gritou do outro lado da academia. — Mais
seis voltas para vocês quatro.
A alegria borbulhou dentro de mim,
curvando meus lábios em um sorriso.
— Você também, Pandora. — Disse
Nero. Mais seis voltas. Se você pode sorrir,
pode correr.
Ele não devia ser capaz de ver meu
sorriso. O homem tinha olhos de falcão.
— Levante-se, ou eu adicionarei mais
seis. — Advertiu-me.
Maldito seja. Lutei contra minha
própria exaustão, sem efeito.
Harker correu para mim. — Aqui. —
Ele disse com um sorriso. — Pensei que
você precisaria de uma mão.
— Obrigado. — Agradeci, tentando
devolver o sorriso.
Mas eu estava cansada demais para
sorrir. Consegui mover meus lábios, mas
acho que não tirei nada além de uma
expressão de dor. Harker se abaixou,
travando seu braço com o meu para me
colocar de pé. Ele com certeza estava me
ajudando muito. Certo, ajudava a todos.
Mas estava me ajudando ainda mais.
Provavelmente porque Nero tinha feito
isso para mim. Aquele maldito anjo era
um motorista de escravos. Esse cara era o
legal. Pelo que pude ver, eles eram
melhores amigos, o que certamente era
um dos maiores mistérios da Terra. Como
duas pessoas tão diferentes podem ser
amigas?
— Corra, Pandora. — Ordenou Nero.
— Ele quer fazer o melhor. — Harker
me disse. — Só quer pressionar todos,
para que sejam fortes o suficiente para
sobreviver à cerimônia de iniciação.
— Eu acho que ele está atrás para
mim.
— Ele parece mais duro com você. —
Ele concordou. — Ele geralmente não é tão
duro com ninguém. Você deve ser especial.
Revirei os olhos. — Sorte minha.
Ele riu. — Você vai ficar bem.
— Claro que vou. Sou teimosa demais
para morrer — respondi, finalmente
conseguindo sorrir. Então, comecei a
correr novamente.
Uma buzina soou no corredor quando
terminei minha última volta. Minhas
esperanças de nos livrarmos dessa tortura
foram frustradas quando Nero começou a
nos dividir em pares para treinamento em
combate. Pelo menos foi assim que
chamou. Meu companheiro de treino Jace,
o maior e o mais malvado dos pirralhos da
Legião, transformou-o rapidamente em
um treinamento “bater na merdinha da
Leda”. No final de nossa luta, eu tinha um
olho roxo, um lábio inchado e minhas
costelas pareciam queimavam. Mas pelo
menos não estávamos usando espadas
agora.
— Você não esteve em muitas brigas
antes de chegar aqui, esteve? — Harker
me perguntou, enquanto curava minhas
feridas com magia.
— Eu estive em muitas brigas. —
Expliquei a ele. — Mas sou inteligente o
suficiente para lutar à distância quando
meu oponente é muito maior e mais forte
do que eu.
— Evitar não é uma estratégia aqui. —
Disse Nero, aproximando-se de nós. —
Você nem sempre será capaz de fugir.
Precisa aprender a se controlar em todas
as situações. — Ele me jogou um bastão de
madeira. — Ataque-me.
Olhei para Harker, que parecia
divertido com alguma coisa. Não tinha
certeza se ele estava rindo de Nero ou de
mim. Não o culparia se estivesse rindo de
mim. Eu era uma piada. Não conseguia
lutar de jeito nenhum. Nero estava certo
sobre isso. Maldito anjo. Odiava quando
ele estava certo.
Me movi cautelosamente em direção a
Nero, depois girei meu bastão. Ele aparou
meu bastão, depois me bateu nas costas
com o seu bastão.
— Muito devagar, Pandora. — Ele me
repreendeu. — Você está se segurando.
Pare de ficar aí como uma garotinha
assustada e me ataque como você quer
fazer.
Avancei direto para ele. Surpresa
brilhou em seus olhos por um momento,
como se nunca esperasse que eu fizesse
algo assim. Bem, eu era cheia de
surpresas. Sua surpresa custou-lhe uma
valiosa fração de segundo, permitindo-me
dar um golpe sólido em suas costelas.
Girei meu bastão para um segundo golpe,
mas minha sorte acabou. Nero pegou meu
bastão no meio do ataque, arrancando-a
das minhas mãos. Quando minha arma
me abandonou, me joguei contra meu
oponente, derrubando-o no chão.
Pelo menos esse era o plano. Ele rolou
quando caiu no chão, me levando com ele.
Suas mãos apertaram meus braços e me
jogou no chão. Minhas costas atingiram o
chão emborrachado com o estrondoso
baque da derrota. Chutei, tentando me
libertar, mas ele enfiou os joelhos nas
minhas pernas, prendendo-as. Suas mãos
estavam trancadas em volta dos meus
pulsos, segurando-as no chão acima da
minha cabeça.
— Ainda é muito lenta, Pandora. —
Ele disse suavemente. Uma risada rara
zumbiu em seus lábios, mas foi tão rápida
que me perguntei se tinha imaginado isso.
Ele também se foi, de pé acima de
mim, estendendo a mão para mim. A
peguei, e quando nossa pele se tocou, senti
a mesma centelha de magia novamente.
Me desconectei rapidamente. Isso
começava a ficar muito estranho. Que tipo
de mágica ele tentava lançar em mim?
Todo mundo parou de lutar para
assistir Nero chutar minha bunda. Os
pirralhos da Legião estavam rindo, mas os
ignorei. Ivy encontrou meus olhos, um
sorriso lentamente curvando seus lábios.
Ótimo. Agora eu ouviria a noite toda sobre
como “Coronel Anjo Sexy” tinha me jogado
no chão. Meus colegas de quarto queriam
dormir com o anjo quase tanto quanto
queriam matá-lo. Exceto Drake, que só
queria ser ele.
Nero virou-se para encarar os outros
iniciados, e eles se esforçaram para
continuar brigando com o parceiro, antes
que ele desse a alguém mais voltas ao
redor da trilha abandonada pelos deuses.
Jace, meu parceiro amigável, esfregou as
mãos e sorriu para mim, como se gostasse
de me fazer sangrar. Fiz um esforço
planejado para não estremecer. Isso
apenas o irritaria ainda mais. Em vez
disso, fiquei ali, esperando que viesse até
mim.
Ele avançou, atacando minha cabeça
com seu bastão. Me abaixei e corri em
direção a uma cortina de cordas grossas
penduradas no teto. Ele era forte, mas eu
era rápida. Recuei em direção à parede, e
ele me seguiu, a alegria cantando em seus
olhos. Quando ele me atacou de novo,
pulei para a parede de escalada, correndo
por ela. Ele me seguiu, tentando me
agarrar, mas o chutei forte com minha
perna. Meu sapato bateu em seu rosto, e
ele caiu no chão. Peguei uma das cordas
penduradas no teto e pulei. Enquanto ele
piscava repetidamente, tentando focar
seus olhos, amarrei a ponta da corda em
seu tornozelo. Passei a outra extremidade
da corda em torno de uma das barras na
parede e puxei. No teto, a corda deslizou
pela polia, arrancando Jace de seus pés.
Amarrei a ponta da corda em outra das
barras inferiores da parede, depois passei
por baixo do meu oponente. Ele estava
pendurado de cabeça para baixo a quatro
metros, chutando e balançando os braços
enquanto cuspia maldições sobre mim.
Eu apenas ri. E não era a única. A
maioria dos outros iniciados também
riam, todos, na verdade, exceto os
pirralhos da Legião.
— Venha comigo.
Pulei ao som da voz de Nero logo atrás
de mim. Ele realmente precisava parar de
se esgueirar assim.
— Você está com problemas! —
Gritaram os pirralhos da Legião,
enquanto eu seguia Nero para fora da
academia. Eles tinham a maturidade de
crianças de quatro anos.
Uma vez que estávamos sozinhos no
corredor, Nero fechou a porta atrás de nós
e virou seu olhar de mármore para mim.
— O que você pensa que está fazendo?
— Lutando.
— Você deveria derrotar seu oponente
usando seu bastão, não cordas de
ginástica.
Dei de ombros. — Algumas pessoas
chamariam isso de engenhoso.
— Não é assim que fazemos as coisas
aqui.
— Bem, talvez seja hora de alguém
mudar isso.
Nero balançou a cabeça lentamente. —
Eu sabia que você era problema. Este não
é o Ultimate Street Fighter 2020,
Pandora.
— Você poderia ter me enganado. O
que diabos estava acontecendo com aquela
porta de segurança? Ou o cachorro? Essa
é a luta de rua no seu modo mais sujo.
Ele me olhou, seus olhos frios. — Esta
é a Legião dos Anjos. — Continuou ele,
como se eu não tivesse dito nada de
importante. — Na Legião dos Anjos,
usamos armas adequadas em combate,
não cordas e detritos das ruas. Quando
pegarmos isso novamente amanhã, você
usará sua arma designada, e somente sua
arma designada, para combater seu
oponente. E você continuará fazendo isso
até dominar a arte do combate civilizado.
Isso era rico vindo dele. Nada sobre
esse treinamento era civilizado. Mas não
podia dizer isso, então fiz uma piada.
— Minha arma designada? E eu aqui,
esperando por uma daquelas espadas
flamejantes — Zombei.
— A espada de fogo é a arma de um
anjo. Uma arma digna. É difícil de
manejar.
— Bem, tenho que aprender a usá-la
em algum momento. Ou devo esperar para
aprender até que me torne um anjo, para
que inadvertidamente possa queimar
minhas próprias asas. Isso simplesmente
não é digno.
As sobrancelhas dele se ergueram. —
O que a faz pensar que algum dia se
tornará um anjo?
— Achei que não poderia ser tão difícil.
— Sorri agradavelmente para ele. — Você
conseguiu.
— Cuidado. — Ele avisou, sua voz
baixa e sombria.
— Eu sempre tomo.
Isso provocou um bufo. — Você pode
gostar de brincar com fogo, Leda Pierce,
mas não deixarei que chegue perto de uma
espada de fogo, até que aprenda a domar
sua luta selvagem. E essa sua boca
selvagem.
— Talvez eu não possa ser domada. —
Rebati. Simplesmente não pude evitar.
Havia algo seriamente errado comigo.
— Quebrei almas mais selvagens do
que a sua. — Disse ele, suas palavras uma
promessa feroz, que obviamente tinha
toda a intenção de cumprir.
Suspeitei que “quebrar” envolvia
milhares de voltas na pista e flexões.
Muitas e muitas flexões. E talvez me
colocando em uma sala cheia desses cães
infernais.
— Agora mexa-se, iniciada. — Ele
apontou para a porta. — De volta ao
ginásio.
Os pirralhos da Legião sorriram para
mim, quando nos juntamos aos outros na
academia. Eles estavam claramente
felizes com a repreensão que recebi. Jace
estava de volta ao chão e batendo com o
bastão na mão, seus olhos rastreando meu
progresso através da sala. Sim, ele estava
apenas esperando para me pegar nos
corredores, quando ninguém estivesse
olhando. Teria que começar a carregar
aquela mistura especial de spray de
pimenta que Bella fizera para mim. Pode
não ser uma arma aprovada pela Legião,
mas definitivamente aprovava qualquer
coisa que me impediria de ser espancada.
— Seu primeiro mês acabou. —
Declarou Harker à multidão quando Nero
se juntou a ele. — Parabéns por não
morrer.
Alguns dos iniciados riram.
— Hoje à noite, a Legião está dando
uma festa no Club Firefall. — Continuou
ele. — Começa em uma hora. E todos estão
convidados.
Alguém se atreveu a dar um grito de
comemoração.
— Haverá membros da Legião dos
Anjos presentes. — Disse Nero. — Mostre
respeito. Não fale. Eles não perdoam tanto
quanto eu.
Algumas pessoas riram. Nero era tão
perdoador quanto um cacto. E aqueles
olhos frios e implacáveis estavam
treinados em mim, como se achasse que eu
iria caminhar até os soldados da Legião
em Firefall e começar a incentivá-los.
Pisquei para ele, o que só fez seus olhos
arderem mais. Enquanto meu concurso de
encarar o coronel Durão continuava,
lentamente comecei a perceber que os
outros iniciados estavam saindo da
academia.
— Vamos garota. — Ivy disse,
passando o braço em volta de mim. —
Vamos nos limpar, pegar um pouco de
comida e depois festejar!
Olhei para ela. A promessa de uma
festa realmente melhorou seu humor.
Quando olhei para Nero, o anjo se fora,
como se tivesse desaparecido no ar.
Demeter, a cantina da Legião, estava
lotada. Como tudo na Legião, onde
comíamos era organizado em uma estrita
estrutura hierárquica. Iniciados
sentavam nas duas mesas altas ao lado do
ponto de entrega da bandeja. Depois de
nossas mesas, sentava-se o mar de
soldados que realmente haviam entrado
na Legião, ordenados por classificação até
a única mesa principal do outro lado da
sala. Era ali que Nero, Harker e qualquer
outra pessoa de nível seis ou superior
sentavam. Atualmente, havia apenas oito
deles aqui em Nova York, e Nero era o
único anjo do grupo. Os deuses não
concediam asas a qualquer um. Tentei não
me deter na impossibilidade da tarefa à
minha frente. Uma tarefa só era
impossível se você decidisse que era.
Ivy e eu pegamos nossas bandejas e
fomos para os balcões de comida, mas Jace
e seu bando de pirralhos nos barraram.
— Ei, damas. — Ele falou arrastado.
— Parecem muito cansadas. Que tal
ajudá-las a carregar suas bandejas?
Olhei para o teto espelhado para ter
certeza de que ninguém rabiscara “idiota”
na minha testa. Não. Não dessa vez.
Alguns dos pirralhos da Legião fizeram
isso na semana passada, depois que um
deles me nocauteou durante o
treinamento de combate.
— Estamos bem. — Respondi-lhes,
segurando minha bandeja.
A usaria para me defender, se fosse
necessário, não importa o quanto Nero
ensinasse sobre “armas inadequadas”,
mais tarde. Mesmo agora, sentia o olhar
do anjo queimando por toda a extensão,
me perfurando.
— Você não parece bem. — Começou
Mina. Ela era a segunda pessoa mais
próxima de Jace, em termos de
irritabilidade total. Seu olhar cintilou
para Ivy. — Vimos essa pobre garota
desmaiar na pista. Talvez tenha sido
aquela surra que dei nela antes. Como
está sua mão?
Os outros pirralhos bufaram.
Eu me levantei, encarando-os. —
Recuem.
— Você não estava se saindo tão bem,
Pandora? — Jace provocou. Quando Nero
me chamava de Pandora, era pelo menos
dez por cento encantador. Quando esse
idiota fez isso, foi cem por cento irritante.
— Tropeçando em seus próprios pés. —
Ele riu. — Então, isso deve ter sido
embaraçoso.
Realmente fora, especialmente com
Nero parado ali, me dizendo para
levantar. Eu queria provar a ele que era
tão dura quanto o resto deles, mas tudo
que consegui foi demonstrar como estava
fora do meu alcance.
Sempre me considerei apta e uma
corredora melhor do que a maioria. Mas a
ideia de Nero de um bom corredor, variava
enormemente da minha. Ele esperava que
as pessoas corressem um quilômetro e
meio em menos de três minutos. Não
estava interessado em quão impossível
isso era, porque os sobrenaturais viviam
de regras diferentes, falou uma vez. Uma
vez respondeu ao meu comentário
enquanto corria um quilômetro e meio em
dois minutos, sem suar a camisa. Foi
preciso um enorme esforço, para não ceder
ao desejo de lembrar ao anjo que ele
estava correndo com todos os seus pistões
concedidos pelos deuses, enquanto nossos
corpos ainda eram completamente
humanos. Ele apenas chamaria isso de
desculpa.
— Você não parecia tão bem
pendurado pelo tornozelo. — Retruquei
para Jace. — Todos os seus golpes
selvagens fizeram você finalmente cair da
corda, ou tiveram que puxá-lo de volta,
como um peixe fisgado?
Jace se inclinou para frente. — Eles
não te ensinaram a respeitar seus
superiores por lá no fim da civilização? —
Cada palavra pulsava com pura malícia.
— Não, apenas nos ensinaram a
enfrentar as pessoas que pensavam que
ser. — Respondi, agarrando a mão de Ivy
e passando pelos pirralhos.
— Estou ansioso para encontrá-la no
ringue novamente, Pandora. — Jace
gritou atrás de mim.
Apenas continuei andando. Eles não
tentaram nos parar, provavelmente
apenas porque Nero e Harker ainda
assistiam. Resistir a esses valentões
provavelmente me custaria mais tarde,
mas estava brava demais para me
importar com isso agora.
— Eles são tão cheios de si. — Ivy me
disse enquanto pegávamos nossos pratos.
— Não se preocupe com eles. — Falei a
ela. — Eles são maravilhosos. Tão fofos e
bonitos por fora, nenhuma substância por
dentro.
— Sim. Só porque foram treinados
desde o nascimento para se juntar à
Legião, isso não significa que são melhores
do que nós. — Ivy riu tristemente.
— Eles não são.
— Realmente. Sou a favor de
otimismo. Inferno, foi tudo o que me fez
sobreviver nessas últimas semanas. Mas
cada um desses seis tem um anjo parental.
A maioria deles também tem outro pai na
Legião. Como podemos competir com eles?
— Isso não é uma competição contra os
outros. — Expliquei a ela. — Somente
contra você mesma.
— Diga isso a eles quando os
enfrentarmos no ringue de luta. — Ela
resmungou. — Se nos enfraquecerem, não
conseguiremos. E pessoas assim não
querem que mais ninguém o faça. Acham
que não somos bons o suficiente para a
Legião. São parentes da Legião há
gerações. Sempre farão isso no alto das
fileiras. Algumas das magias que os
deuses concedem às pessoas passam para
seus filhos. É mais fácil para eles
desbloquear habilidades mágicas, do que
para qualquer um de nós.
Passei meu braço em volta dela e
animei-a. — Nem pense neles. Somos uma
equipe e conseguiremos. Eles podem estar
repletos de magia, mas temos a
determinação e a nossa vontade de
sobreviver do nosso lado. A teimosia
sempre supera a força bruta.
Ivy bufou.
— Agora vamos lá. Drake está
chamando.
Nós nos juntamos a ele na mesa e
começamos a devorar o nosso jantar.
Gastei milhares de calorias hoje e só tinha
meia hora para reabastecê-las.
— O que está errado? — Drake
perguntou a Ivy, que apenas olhava sua
comida.
Ela não disse nada.
— Os pirralhos tentaram nos irritar.
Mas não deixamos. — Lembrei Ivy.
— Dane-se os pirralhos e suas bonitas
peças de plástico. — Drake colocou seu
braço em volta de Ivy, abraçando-a.
Foi quando vi nos olhos dela. Ela
gostava dele. De uma maneira romântica.
Enquanto tomava meu shake de
chocolate, me perguntei se Drake também
percebera.
Depois do jantar, voltamos correndo
para o nosso quarto para um banho
rápido. Então, pela primeira vez em um
mês, nos vestimos com algo que não saíra
dos armários da Legião. Coloquei meu
jeans favorito e uma blusa com tiras de
renda, que Tessa colocara na mala,
enviada na semana passada por Calli e as
meninas. E, só porque estava me sentindo
aventureira, coloquei um par de botas de
salto alto.
Ivy escolhera calças de couro vermelho
e uma blusa de malha preta transparente,
com arranjos de renda estrategicamente
bordados. Os saltos de suas sandálias
douradas poderiam estacar um vampiro.
Drake vestia um jeans escuros e uma
camiseta colada que dizia “Posso parecer
um anjo, mas danço como um demônio”.
Ivy comprara para ele, antes de se
juntarem à Legião. Talvez eu devesse
comprar uma para mim, apenas para ver
a expressão horrorizada no rosto de Nero
quando a usasse na frente dele. Bufei com
o pensamento.
Um caleidoscópio de luzes brilhava
sobre nós no Club Firefall. Nossas
companheiras iniciadas soltaram os
cabelos esta noite, saboreando sua
liberdade pela primeira vez em um mês.
Com a batida pesada e contagiante da
música, dançamos, bebemos e nos
soltamos como como nenhum de nós fazia
em mais de quatro semanas, ou, no meu
caso, nunca. Havia algo em passar cerca
de um mês sendo submetido a um castigo
após o outro, que fazia você apreciar a vida
de uma maneira totalmente nova. Por
essa noite, eu estava livre.
Quando a música terminou, saí da
pista de dança com meus cinco colegas de
quarto, indo direto para o símbolo da
cornucópia3 pairando sobre o bar. Dois
pirralhos da Legião nos interceptaram.

3
Vaso em forma de chifre, com frutas e flores que dele extravasam profusamente, antigo símbolo
da fertilidade, riqueza, abundância, e que, hoje, simboliza a agricultura e o comércio.
— Ei, Drake. E damas. — Um dos
caras riu.
Seu amigo era igualmente alegre, e
não era apenas pelo rum que exalava de
seu hálito. — Então, estávamos pensando.
— Mais risadinhas. — Você é mesmo um
homem de verdade?
— Do que você está falando? — Drake
perguntou.
— Você está ficando em um quarto de
meninas.
— Exatamente. — Um sorriso se
espalhou por seus lábios. — Estou em um
quarto com cinco mulheres. Reserve um
momento para pensar sobre isso.
Então Drake voltou à pista de dança
com nossas três colegas de quarto, que
dançavam ao redor dele. Os dois pirralhos
o observaram com óbvio aborrecimento,
depois saíram irritados.
— Eles chegaram lá. — Ivy riu, depois
correu para se juntar aos nossos colegas de
quarto.
Mas eu estava com sede. Continuei até
o bar e pedi uma água. Já tinha bebido
muitos desses coquetéis bombásticos e
nem tinha certeza do que havia neles. Algo
que me deixou muito feliz. Ou talvez fosse
apenas a minha liberdade temporária.
— Agindo com cautela? — Harker
disse, olhando para a minha água,
enquanto se sentava na banqueta ao meu
lado. Ele bebia um coquetel bombástico,
edição azul.
— Bem, eu deveria estar me
comportando. — Respondi. — Mostrando
respeito. Não estou falando nada.
— Basicamente, tudo em que você se
destaca.
Eu sorri, levantando meu copo. —
Exatamente.
Tocamos os copos e depois caímos em
silêncio.
— Como você está? — Harker me
perguntou depois de alguns momentos.
— Ótima, agora que eu comi. Levará
mais do que algumas voltas na pista para
me matar.
— Você está indo bem. Não desista.
— Não estava pensando nisso. —
Respondi, depois baixei minha voz. —
Certo, qual é o problema deles?
Ele seguiu meu olhar para o trio de
soldados da Legião no outro lado do bar.
Olhavam para nós desde que Harker se
sentara ao meu lado.
— Oficiais e iniciados da legião não se
dão muito bem. — Respondeu ele.
— Frequentemente?
— Sempre. — Ele sorriu para mim. —
Mas eu gosto de você. É preciso muita
coragem para enfrentar Nero.
— Ele diz que não tenho senso de
autopreservação.
Harker jogou a cabeça para trás e riu.
Foi uma risada perfeita, honesta com a
bondade, sem pretensões ou segundas
intenções. Era bom estar conversando com
alguém que não estava tentando tirar algo
de mim.
— Claro que não. — Falou. — Isso é o
que faz você tão divertida. Ninguém
desafia Nero há muito tempo. É bom para
o ego dele, evita que fique inflado demais.
— Você é amigo dele. — Lembrei a ele.
— Você não deveria querer que eu o
antagonizasse.
— Nero e eu temos um relacionamento
complicado. Somos irmãos em tudo, menos
sangue.
— Também tenho um relacionamento
complicado com minha família. — Contei.
— Metade do tempo queremos matar um
ao outro, mas nunca deixaria ninguém
machucá-los.
— Você é uma alma nobre, Leda
Pierce. — Ele curvou o queixo para mim e
depois se levantou, indo se juntar a Nero,
que acabara de entrar no bar.
Os observei por alguns momentos. O
que quer que estivessem falando, parecia
sério. Talvez debatessem novas maneiras
de nos torturar, iniciados, amanhã de
manhã. Enquanto eu continuava a
observá-los, Ivy e Drake giraram e
giraram da pista de dança, para se juntar
a mim no bar.
— Isso é loucura. — Disse Ivy,
sentando ao meu lado. Ela se serviu da
minha água. — Ambos estão olhando para
você.
Olhei para Nero e Harker. Ela estava
certa. O que quer que os dois estivessem
discutindo em voz baixa, parecia ter algo a
ver comigo. Afastei o pensamento. Nem
tudo era sobre mim.
— Harker parece gostar de você. — Ivy
piscou para mim.
— Tenho certeza de que ele só está
sendo gentil comigo para irritar Nero.
Ivy relanceou sobre meu ombro. —
Eles ainda estão olhando para você, Leda.
— Ivy começou a se abanar.
— Devo pegar mais um pouco de água?
— Perguntei a ela secamente.
Ivy riu. — Não, eu estou bem. Vamos.
Ela pegou minha mão, me levando
para a pista de dança. Ainda podia sentir
Harker e Nero me observando, enquanto
Ivy e eu dançávamos. Fiquei quase
desapontada, quando eles se viraram e se
afastaram, o que definitivamente não era
algo que eu deveria estar sentindo sobre
alguém, muito menos os dois.
Ivy acenou com as mãos na frente do
meu rosto. — Terra para Leda. Você está
ouvindo?
— Desculpa. Estava apenas distraída.
O que você disse?
Ivy riu. — Você está com problemas,
garota.
— O que você quer dizer?
— Eles gostam de você.
— Quem?
— Harker e Nero.
— Não. — Neguei imediatamente.
Ok, talvez muito imediatamente. Um
sorriso lento curvou os lábios de Ivy.
— Harker estava apenas me ajudando.
— Expliquei. — E Nero está determinado
a me matar, uma pista de obstáculos
infernal de cada vez.
— Não, eles gostam de você. — Um
lento sorriso curvou seus lábios. — E eu
ouvi algo sobre Nero.
Esperei que ela continuasse, mas
quando não o fez, questionei: — O que você
ouviu?
— Que ele geralmente não
supervisiona treinamentos de iniciados.
Na verdade, não faz isso há anos. Mas algo
o incentivou a fazer desta vez.
— Sorte a nossa.
Ivy riu, brilhante e diabólica. — Sinto
que sei o que o incentivou a fazer isso. Ou
quem. — Ela balançou as sobrancelhas
para mim.
— Não.
— Você quer apostar?
Não. Não era louca o suficiente para
apostar nas intenções de um anjo. E se ele
se tornara nosso treinador por minha
causa? E se esse fosse o jeito dele de
descobrir meu segredo? Um calafrio
percorreu meu corpo.
— Ambos gostam de você. — Repetiu
Ivy.
Ok, talvez eu notara que Harker
gostasse de mim. Ele admitiu que os
oficiais da Legião não socializavam com os
iniciados, e ainda assim conversou comigo
na frente de todos. Ele também não foi
nada além de muito legal comigo desde
que cheguei à Legião.
Mas Nero? De jeito nenhum. Ele tem
feito a minha vida um inferno no último
mês.
Antes que eu pudesse refletir sobre
isso, no entanto, homens vestidos com
couro preto invadiram o clube, cercando
todos nós.
A luta começou ao meu redor. Os
homens de preto pareciam mercenários.
Não vi nenhuma marca em suas roupas,
indicando que pertenciam a uma
organização maior. E eles eram todos
humanos. Isso, pelo menos, estava a nosso
favor.
O que não estava a nosso favor eram os
números. Os mercenários superaram em
número em dois contra um e estavam
armados com facas suficientes para fazer
um assassino chorar de inveja.
Um dos homens correu para mim.
Escapei, correndo em direção ao bar.
Liguei no máximo a máquina mágica de
fumaça, usada para fazer os coquetéis
bombásticos. Fumaça multicolorida saiu
da máquina Magitech, espalhando-se por
todo o clube. Era quase impossível ver,
mas seria pior para os mercenários. Se
pudéssemos ver os agressores um pouco
melhor do que eles, a vantagem seria
necessária. Além disso, poderíamos
depender de nossos outros sentidos.
Outro mercenário emergiu da fumaça
brilhante. Duas vezes mais alto que eu e
construído para quebrar pedras com seus
bíceps, ele era animal. Atirou uma faca em
mim. Desviei. Ele manejava a coisa com
força suficiente para arrancar meu braço,
e eu estava realmente bastante atenta a
ela. Ele continuou golpeando e girando,
forçando-me a recuar. Minhas costas
estavam contra o bar.
Sua faca bateu com força, perfurando
a bancada de madeira. Eu mal tinha
movido minha mão a tempo. Esse cara não
estava brincando. Talvez Nero estivesse
certo, afinal. Nem sempre poderia fugir.
Meus olhos focaram na faca do mercenário
no balcão. Estava bem enfiada lá dentro.
Isso não parecia incomodá-lo. Ele já
sacara outra.
Saltei no balcão e agarrei o cabo da
faca presa, usando-a para me equilibrar.
Enquanto eu girava, chutei, batendo um
pé com força na cabeça do mercenário. Ele
caiu no chão, nocauteado.
Mal acreditando na minha sorte, pulei
do balcão para procurar os amigos dele.
Encontrei todos no chão, a maioria
inconsciente, mas alguns mortos. Três de
meus colegas iniciados haviam sido
esfaqueados, mas nenhum deles estava
morto. Poderia facilmente ser o contrário.
O que diabos aconteceu aqui? Por que
esses homens nos atacaram?
Então, vi o que o medo e a adrenalina
me impediram de perceber antes. Nós
iniciados não éramos os únicos no clube
hoje à noite, mas os únicos que estavam
aqui agora. Os mercenários vieram direto
para nós. Os soldados da Legião não
tinham levantado um dedo para nos
ajudar. De fato, não estavam à vista.
O vapor colorido evaporou, como se
descartado por mágica, e vi os soldados da
Legião entrarem no clube. Nero estava na
frente, seguido por Harker e capitã
Somerset, e mais alguns soldados da
Legião que eu não conhecia, incluindo
aqueles que observavam eu e Harker.
— Eles nos prepararam. — Falei a Ivy,
mas meus olhos fixaram-se em Nero. —
Este foi mais um de seus testes.
— Sim, foi um teste. — Respondeu
Nero, abordando toda a sala. — Tudo é um
teste. Vocês sabiam disso entrando na
Legião. Só os fortes sobrevivem. — Ele
colocou uma garrafa e um cálice no balcão
do bar. — Beberão mais uma vez do néctar
dos deuses, uma dose mais forte desta vez.
Aqueles que são fortes o suficiente, farão a
transição e ganharão o Beijo do Vampiro,
a primeira habilidade na Legião. Se
tornará um de nós.
Ele não mencionou o que aconteceria
com aqueles que não eram fortes o
suficiente. Isso já era óbvio.
— Formem uma fila. — Ordenou Nero.
E, como bons iniciados, fizemos o que
mandou. Fiquei perto do fim da fila desta
vez. Assisti horrorizada, quando seis de
meus colegas iniciados morreram antes
que chegasse a minha vez.
Peguei de Nero o cálice cheio,
engolindo o líquido carmesim o mais
rápido que pude, rezando para que não
vomitasse novamente. Tirei da cabeça a
possibilidade de minha própria morte.
Não ajudaria.
Não morri nem vomitei. Nem tremi ou
tive espasmo. Não dessa vez. Dessa vez,
quando bebi do néctar dos deuses, queria
mais. O líquido dançou na minha língua,
em uma sinfonia de sensações das quais
não conseguia me cansar. Olhei para o
cálice vazio, lamentando que por ter
bebido tão rápido. Quando Nero alcançou
o cálice, o agarrei, segurando-o com puro
desespero.
— Mais! — Exclamei, minha voz cheia
de necessidade.
Isso provocou uma resposta naquele
rosto de granito. Surpresa brilhou em seus
olhos. Tentei pegar a garrafa que continha
o néctar, mas ele estendeu a mão,
segurando minha mão. Um choque de
eletricidade estática chiou em nossas
mãos.
Ele abriu a boca para falar comigo,
mas depois ponderou a respeito. Sua mão
segurando a minha em um aperto de ferro,
me puxou para longe do bar. — Vamos lá,
iniciados. Mexam-se. — Ele apontou para
Harker. — Assuma o controle.
Harker nos lançou um olhar curioso,
mas fez o que Nero pedira. Ele encheu o
cálice e estava entregando para o próximo
iniciado na fila, quando Nero me puxou
para fora da sala. O corredor em que
entramos estava escuro e vazio. Exceto
por nós dois.
— O que é isso, anjo? — Eu ri. — Me
levando a um canto, para fazer o que
quiser comigo?
Ele olhou para mim, seu rosto ilegível.
— Você está bêbada.
— E daí? — Tentei me soltar de seu
aperto, mas Sr. Mãos de Ferro se recusou
a ceder. Então, passei minha outra mão
levemente entre seus dedos. Ele tinha
uma pele surpreendentemente macia,
para a mão da justiça dos deuses.
Ele observou minha mão, como se não
tivesse certeza do que fazer com o que
fazia. — Você está bêbada com o néctar.
— E?
— Como você está se sentindo?
Eu abri um sorriso. — Preocupado
comigo? — Levei meus lábios nos dedos
dele e os beijei.
Sua mão se abriu, me liberando. —
Isso é sério, Leda.
Cheguei mais perto, colocando meus
braços sobre seus ombros. — Não
“Pandora”, desta vez? Hmm, você
realmente deve gostar de mim.
Uma voz dentro da minha cabeça
gritava para eu parar, questionando o que
diabos eu estava fazendo. Não ouvi. Em
vez disso, me inclinei para ainda mais
perto, pressionando meus seios contra ele.
Passei meu nariz em seu pescoço e
inspirei. Seu cheiro me inundou, aquele
sabor vertiginosamente masculino, de
sexo e anjo.
— Você tem um cheiro bom.
— Você deveria estar doente ou com
dores, não querendo mais. — Falou ele.
— Mas eu quero mais. — Passei o dedo
pelo lábio inferior dele e ele ficou muito
quieto.
— Você não é você mesma. — Magia
queimou atrás de seus olhos, um fogo
esmeralda apenas esperando para ser
libertado.
— Talvez seja quem eu realmente sou.
— Sussurrei contra seu ouvido.
Minhas presas novas queimaram
minhas gengivas, uma necessidade
primordial além da mera fome que se
espalhava por mim. Levei minha boca ao
seu pescoço, e cada batida de seu pulso
contra meus lábios, me encheu com uma
nova onda de desejo excruciante. Tive um
pensamento fugaz de que realmente não
era eu mesma, mas a ninfomaníaca
insensível e ansiosa que se apossara de
mim lançou esse pensamento para longe,
junto com todo bom senso e a razão.
Éramos apenas eu, o lindo anjo à minha
frente, e a distância agonizantemente
grande entre nós.
Estendi a mão e ajeitei a mecha cor
caramelo que caíra sobre sua testa. Tão
suave quanto a seda, brilhando no
dourado das luzes acima da Magitech.
— Você é tão lindo. Como um anjo. —
Ri da minha própria piada. — Aposto que
você tem um gosto tão bom quanto parece.
— Minhas presas acariciaram seu pescoço
em círculos amplos e lentos. Eu podia
sentir seu sangue latejando na superfície
de sua pele, me desafiando a prová-lo.
Aceitei o desafio.
Minhas presas romperam sua pele e
seu sangue inundou minha boca. Mas não
tinha gosto de sangue. Tinha gosto de puro
êxtase. Melhor que o néctar. Melhor do
que qualquer coisa que já provei na minha
vida. Vibrou em meu paladar e deslizou
pela minha garganta, ao mesmo tempo
aliviando e alimentando a necessidade
furiosamente devassa dentro de mim, meu
desejo crescendo cada vez que o atraía
para mim. Seu sangue queimou através do
meu, incendiando-o, desencadeando uma
reação em cadeia de excitação crua, que
me abalou tanto que mal pude suportar.
Eu precisava de mais.
Nero me pegou enquanto eu
cambaleava, as mãos nos meus quadris.
Agarrei-o desesperadamente, puxando-o
para mais perto, enquanto bebia sua
doçura picante. Ele gemeu, me agarrando
bruscamente, me jogando contra a parede.
Ergueu minha cabeça e meus olhos
encontraram os dele. Não estavam mais
com frio. Estavam ardendo como um
vulcão.
— Eu preciso de você. — Gemi,
arqueando minhas costas.
Seu olhar mergulhou nos meus seios,
que incharam contra a minha camisa.
Num piscar de olhos, suas mãos estavam
no meu top, puxando-o sobre a minha
cabeça. Ele jogou no chão. Sua mão traçou
minha pele nua por todo meu peito,
provocando a borda do meu sutiã. Deslizei
minhas mãos até o cinto dele, mexendo na
fivela. Suas mãos deslizaram ao redor da
minha bunda, depois congelaram.
— Harker. — Falou.
Olhei por cima do ombro e vi Harker
em pé na frente da porta, com o rosto
cautelosamente neutro. A sanidade
empinou sua cabeça feia, me arrastando
para chutar e gritar com o desejo sem
fundo que havia ultrapassado meu cérebro
racional. Quando minha cabeça começou a
clarear, o mundo voltou a focar
lentamente. Afastei-me de Nero, pegando
minha camiseta descartada do chão.
— Você é necessário lá dentro. — Disse
Harker a Nero. Seus olhos piscaram para
mim.
Minhas bochechas queimavam,
coloquei a blusa de volta por cima da
minha cabeça. Nero tocou a mão na
garganta, curando a bagunça selvagem
que fiz nela. Então ele passou por Harker
para voltar ao clube. Harker olhou para
mim por um momento, sua expressão
estranhamente retraída, depois o seguiu.
Fui em seguida, meu grande momento
estrondoso. Não podia acreditar no que
tinha feito. Mordi um anjo. Bebi dele. E eu
teria feito sexo ali e naquele momento com
ele, naquele corredor se Harker não
tivesse nos interrompido. O que diabos
havia de errado comigo?
Olhei através da sala dos dezoito
iniciados restantes. Ninguém morreu
enquanto eu estava namorando Nero, mas
alguém poderia ter. O pensamento me
deixou mais séria.
— Bem-vindo à Legião dos Anjos. —
Nero nos falou.
Quando seus olhos varreram a
multidão, desviei o olhar. Eu não
conseguia olhar para ele. Agora não. Não
depois do que aconteceu e quase passou,
entre nós.
— Você recebeu o primeiro dom dos
deuses. — Continuou Nero. — Mas ainda
não sobreviveu. Precisará controlar a fome
que vem com o dom. — Ele olhou para
mim. — Precisará aprender a exercer
força, resistência e velocidade. E aprender
a se curar, aproveitando a força vital dos
outros. Esses são os poderes do beijo do
vampiro.
Passei o dedo pelos lábios. Ainda
sentia seu sabor.
— Tudo o que fez até agora, levou a
esse momento. — Disse Nero. — Tudo o
que você fizer a partir de agora
determinará seu futuro na Legião. E
começa agora com sua primeira missão.
Algumas pessoas gemeram baixinho,
mas ninguém disse nada.
— Vamos dividir você em três equipes.
O major Locke distribuirá suas tarefas
agora. Se receber o um, irá comigo. Dois
irá com ele. E três irá com a capitã
Somerset.
Harker percorreu a sala com uma
tigela de tiras de papel dobradas, e os
iniciados revezaram-se. Quando chegou a
minha vez, peguei o um.
— Parece que você está comigo,
Pandora. — Falou Nero, logo atrás de
mim.
Me virei e dei a ele um olhar cauteloso.
Seu rosto retornara àquela máscara de
mármore, sem expressão, condizente com
um anjo. Ele me dera um olhar muito
diferente naquele corredor.
Pare! Me repreendi. Não havia razão
para pensar sobre isso. Não adiantaria
lembrar daquele momento de insanidade
temporária.
A capitã Somerset liderou seu grupo
para fora do clube primeiro. Harker e seus
novos soldados foram os próximos. O resto
de nós seguiu Nero até a estação de trem.
— Onde estamos indo? — Um dos
meus colegas de equipe perguntou. Ele
ainda parecia alto de Néctar. Se ao menos
minha reação a isso tivesse sido tão
inocente.
— Você descobrirá quando chegarmos
lá. — Respondeu Nero, apontando para o
elegante trem prateado.
O ponto alto da missão foi quando
Lucy, uma das minhas colegas de equipe,
vomitou ao lado dos meus sapatos durante
a viagem de trem. Tudo simplesmente
declinou a partir daí.
Nossa viagem de trem levou apenas
uma hora e fiquei surpresa quando
entramos na estação do Purgatório. Minha
cidade natal não mudara, desde que a vi
pela última vez. E ainda assim... Tudo
parecia diferente. Maior. Era como se um
cobertor tivesse sido arrancado dos meus
sentidos, permitindo que realmente
respirassem pela primeira vez. Meus
novos olhos penetraram nas sombras da
rua mal iluminada. Todos os rostos eram
nítidos, todas as placas de rua
nitidamente em foco. Eu ouvia muito
mais, cada passo, cada sussurro, cada
respiração. Eu poderia ter passado sem o
meu novo olfato. Nunca tinha percebido
antes o quanto Purgatório cheirava a lixo.
Todos nós caminhamos em silêncio
atrás de Nero. Ele não explicou por que
estávamos aqui, de todos os lugares, na
minha cidade natal. E não perguntei.
Nenhum de nós sequer mencionou que era
minha cidade natal. Não importava
mesmo. O que quer que estivéssemos
fazendo aqui, não tinha nada a ver comigo.
Enquanto ele se movia pela cidade,
todos paravam e olharam. Vestimos
nossos novos uniformes durante a viagem
de trem. Certamente éramos uma visão
impressionante de se ver, sete soldados da
Legião dos Anjos, adornados com couro
mais negro que a própria noite. E os
cidadãos de Purgatório ficaram
claramente impressionados. Afinal, não
era todo dia que a Legião chegava à
cidade.
Nero nos levou ao escritório local da
Legião. Ao contrário do impressionante
arranha-céu que abrigava a filial de Nova
York, este era apenas uma sala anexada
ao templo de adoração dos peregrinos. Os
peregrinos nos receberam quando
chegamos. Reconheci alguns deles, de
todas as vezes que me encurralaram nas
ruas para espalhar a mensagem dos
deuses. Eles não pareciam me reconhecer,
no entanto, não viam além do uniforme da
Legião. Para os peregrinos, os soldados da
Legião eram a coisa mais próxima dos
deuses. Especialmente os anjos. A
adoração crua nos olhos deles quando
olharam para Nero, me deixou
completamente desconfortável, mas ele
não parecia se importar. Com eficiência
profissional, nos conduziu até o escritório
da Legião, depois fechou a porta, deixando
os peregrinos sozinhos no corredor, para
terminar outra rodada de reverência e
louvor a sua santidade infalível.
Um sorriso fez cócegas nos meus
lábios, enquanto eu pensava
maliciosamente o que os peregrinos
pensariam sobre o recente lapso da
“santidade infalível” de Nero comigo em
Firefall. Ele não era um santo. Não era
uma máquina. Era um homem.
A realização me intrigou quase tanto
quanto me assustou. Nero era poderoso,
perigoso, e, embora ele tenha
demonstrado que às vezes sucumbe ao
lado sombrio da psique humana, eu não
tinha certeza de que havia espaço
suficiente para quaisquer outros
sentimentos nele. Compaixão
simplesmente não era a sua cor.
Então tirei todos os pensamentos de
sua humanidade da minha mente,
voltando minha atenção para o assunto
em questão, e para a sala muito pequena
e estéril em que estávamos. Uma cela
cobria uma parede da sala. Uma mesa com
uma única cadeira estava na outra. E
ficamos sem jeito no meio, tentando não
bater nos dedos uns dos outros, enquanto
esperávamos que Nero nos dissesse por
que estávamos aqui.
Ele não nos deixou esperando muito
tempo. — Um grupo de vampiros não
registrados recentemente passou por esta
cidade.
“Não registrado” significava que foram
criados fora do sistema, exatamente como
aquele vampiro que capturei aqui
algumas semanas atrás.
— Nos últimos dois dias, os soldados
da Legião descobriram dezenas de
cadáveres em Nova York. — Continuou
Nero. — Vinculamos essas mortes a esse
grupo de vampiros. Eles fugiram para a
fronteira, além do muro. Nós estamos indo
atrás deles. A preferência é capturá-los
vivos, para que possamos interrogá-los.
Mate apenas se necessário.
— Como devemos lutar contra
vampiros? — Lyle perguntou. — Eles são
tão rápidos e fortes.
— Nós também. Rápidos, fortes... —
disse Jace. — Corajosos. — Ele sorriu. —
Pelo menos alguns de nós são.
O néctar dos deuses poderia ser um
grande indicador do potencial mágico de
alguém, mas era um juiz de caráter de
merda. Qualquer um dos seis iniciados
que morreram hoje à noite, eram melhores
do que esse idiota.
— Você é tão rápido e forte como um
vampiro agora. — Disse Nero. — Você tem
o poder. Agora é só uma questão de
esperar e ver se pode explorar isso.
Daí esta pequena missão, sem dúvida.
Pedaço por pedaço, a Legião estava nos
eliminando até restarem apenas os mais
fortes. Era abominável. E, no entanto,
aqui estava eu, jogando lado a lado com
isso. O desespero levava as pessoas a
fazerem coisas insanas.
— Quantos vampiros existem? — Lucy
perguntou calmamente. Ela ainda estava
enjoada.
— Estimamos dez.
— Dez. — Toren ecoou, balançando a
cabeça.
Nero abriu a porta. — Vamos, mexam-
se.
Nós o seguimos até a garagem
subterrânea, onde nosso passeio
aguardava. Grande, resistente e feio, o
veículo “todo-o-terreno” acomodava
confortavelmente nove pessoas. Ao nos
aproximarmos, resisti à vontade de
apontar que sete soldados da Legião e dez
vampiros, eram oito assentos a mais do
que tínhamos. Pelo que eu sabia, Nero
estava planejando amarrar nossos
prisioneiros no telhado.
Jace e Mina sentaram na fila de trás,
e eles não deixaram ninguém mais se
juntar a eles. Aparentemente, essa briga
era apenas para as crianças legais. Lyle,
Lucy e Toren se espremeram na fila do
meio, o que me deixou encarando o assento
entre os dois pirralhos. Jace bateu no
encosto do assento, seus olhos me
desafiando a sentar lá. Sim, isso seria
divertido.
Nero enfiou a cabeça pela janela e
gritou: — Aqui em cima, Pandora. Quero
ficar de olho em você.
Jace e Mina começaram a rir
alegremente, como se o maior presente do
mundo acabasse de cair em seus colos.
Fechei a porta e me sentei ao lado do
professor. Havia uma parede sólida entre
nós e as duas outras fileiras de assentos, o
que pelo menos significava que os outros
não podiam ouvir Nero falar comigo.
— Não fiz nada. — Falei a ele sob o
rugido do motor de partida.
— Ainda. — Disse ele. — Mas você tem
talento para problemas. Preciso que se
concentre nessa missão, e não amarre dois
de seus colegas de equipe com aquele eixo
de cabos guardado no porta-malas.
— Não estava fazendo isso.
— Ainda não. Mas pensou nisso.
— Eles são pirralhos mimados
insuportáveis. — Murmurei. — E só
porque eles têm um anjo como pais, acham
que podem intimidar todos os outros. Isso
não está certo.
— E você tem que consertar isso?
— Sim. — Cruzei os braços sobre o
peito e tentei fazer um buraco no para-
brisa, com a minha mágica inexistente do
raio laser. — Algumas coisas estão apenas
implorando para serem consertadas.
— E algumas coisas se resolverão por
conta própria. — Disse ele quando o
portão se abriu diante de nós.
Além das fronteiras do muro, as
Planícies Negras esperavam. A batalha
final da guerra havia acontecido aqui, há
mais duzentos anos, mas as terras ainda
estavam queimadas, uma marca negra
que se recusava a desaparecer. Talvez isso
nunca desapareça, mesmo se
conseguíssemos expulsar os monstros da
Terra.
No alto, uma tempestade estava se
formando, rodopiando nas nuvens verde-
amarelas. O ar estava pesado e fedia a
monstros. Não os vi em lugar nenhum,
mas sabia que eles não poderiam estar
longe. Eles nunca estavam longe. Havia
uma carga estática no ar, uma faísca
apenas esperando para acender. Esperava
que não estivéssemos aqui quando o
fizesse.
— Quando entrei para a Legião, nós
também tivemos nossa parcela justa de
angústias insuportáveis. — Falou Nero,
incomodado pela tempestade que se
aproximava. Não achei que ele tivesse
medo de nada.
— O que você fez sobre elas? —
Perguntei a ele.
— Eu era uma delas.
Me virei para encará-lo. — Você? —
Verifiquei minha surpresa. — Espere,
não. O que estou dizendo? Claro que você
era um deles. Você passou o último mês
tornando minha vida um inferno.
— Esse é o meu trabalho.
Mas eu ainda não concluíra. — E você
é lindo demais. Perfeito demais.
Seus lábios torceram em um leve
sorriso. — Você parecia gostar disso hoje à
noite.
— Eu... — Minhas bochechas arderam.
— Não sei o que aconteceu comigo. O
Néctar mexeu com minha cabeça. Eu não
deveria... podemos esquecer que todo esse
incidente embaraçoso aconteceu?
— Como quiser.
Se ao menos eu pudesse esquecer. Mas
a lembrança de seu sangue e a magia
percorrendo meu corpo como um rio
ardente, estimulando todos os nervos,
acariciando todas as curvas e picos, me
dominou. Levantei minhas mãos para
cobrir minhas presas descendentes.
— Desculpe. — Falei entre minhas
mãos.
— Você precisa aprender a controlar
isso.
— Eu sei. Sempre critiquei os
vampiros por serem tão fracos, tão fora de
controle. Controlar isso, seja o que for, é
ainda mais difícil do que jamais imaginei.
— Ao contrário dos vampiros,
consumimos a magia diretamente da
fonte, então os desejos nos atingem ainda
mais profundamente. É por isso que tenho
que ser tão duro com todos vocês. Sem
força de vontade, você não tinha chance de
sobreviver ao beijo do vampiro.
— Você não precisa se preocupar
comigo. Tenho teimosia de sobra.
Ele riu baixo e sensualmente. Espere,
não, não sensual. Isso era apenas o Néctar
falando novamente. Não havia
absolutamente nada sensual no anjo
sentado ao meu lado. Não há razão
alguma para atravessar e tocar... puxei
minha mão antes de fazer outra coisa que
me arrependeria.
— A magia te atingiu mais forte do que
qualquer um. — Observou ele. — Isso
acontece às vezes, que alguém tenha uma
baixa tolerância mágica.
— O que posso fazer sobre isso? —
Perguntei esperançosamente.
— Nada. — Respondeu-me, jogando
fora essas esperanças. — É apenas uma
parte de você.
Relaxei. — Uma fraqueza.
— Alguns diriam isso. Meus colegas
pirralhos costumavam me provocar sobre
isso implacavelmente.
— Você? — Arfei. — Mas você é o
maior e mais forte durão do mundo.
— E, no entanto, também sou um peso
leve mágico. Basta um gole de Néctar para
me embebedar.
— Fácil de agradar? — Provoquei.
Ele bufou. — Você descobrirá, Leda,
que todos temos fraquezas, cada um de
nós, não importa quão grandes ou fortes
ou durões formos. Você não pode deixar
que eles a rebaixem, e não pode deixar que
outros a rebaixem por causa delas.
— Uau, essa foi uma conversa
animadora, surpreendentemente boa.
— Não se acostume.
— Não irei. — Prometi. — Sei que
amanhã você voltará a me torturar.
— Receio que você tenha
superestimado minha magnanimidade.
Sua tortura continua esta noite.
— Obrigado.
— De nada.
Eu ri, depois suspirei. — Gostaria de
não ter tantas fraquezas.
As sobrancelhas dele se arquearam. —
Oh?
— Sim, tenho...— Parei, estreitando os
olhos para ele. — Se eu contar minhas
fraquezas, você não usará esse
conhecimento contra mim, para me
torturar com mais eficácia, não é?
— Estou bem ciente de suas fraquezas
e já usei esse conhecimento.
— Sério? — Encarei em minhas mãos.
— Por favor me esclareça.
— Você tem dificuldade em se dobrar à
autoridade e segurar sua língua, mesmo
diante do perigo. O que me faz pensar, em
primeiro lugar, no por que você se
inscreveu para ingressar na Legião.
Sorri para ele. — Ouvi dizer que é onde
todos os caras gostosos vivem.
— Veja, é exatamente isso que quero
dizer. Não há senso de autopreservação.
— Tenho um excelente senso de
autopreservação. Não falo com pessoas
que não posso enfrentar em uma briga.
— E você acha que pode me enfrentar?
— Ele perguntou duvidosamente.
— Tenho uma arma de choque na coxa
e uma garrafa de spray de pimenta no
bolso. — Sorri para ele. — E você está
muito ocupado dirigindo no momento,
para lutar muito.
Ele encontrou meus olhos por um
momento, depois voltou sua atenção para
a estrada. — Como eu estava dizendo, não
há senso de autopreservação. Eu poderia
pegá-la com as minhas duas mãos
amarradas nas costas.
— Prove.
Ele permaneceu perfeitamente imóvel,
tão imóvel que não achei que faria alguma
coisa. Mantive meus olhos nele o tempo
todo de qualquer maneira, então eu
estaria pronta se ele tentasse alguma
coisa. Bem, ele tentou algo, e eu não
estava pronta. Se moveu tão rápido que
nem meus sentidos recém-elevados
acompanharam. Em um momento as duas
mãos dele estavam no volante e no outro
meu pulso era algemado no apoio de braço.
Puxei minhas amarras, e uma onda de
magia elétrica rasgou meu corpo.
— Isso não é justo.
— A vida nunca é. — Ele respondeu. —
Mas as balanças têm um jeito de se
equilibrar no final. O que nos leva a outra
coisa em que você precisa trabalhar.
— Vingança? — Rosnei para ele com os
dentes cerrados. Puxei as algemas
novamente, engolindo um grito quando
isso não funcionou melhor do que da
última vez.
— Não. — Ele me jogou as chaves das
algemas. — Aprendendo a lutar contra
oponentes maiores e mais fortes que você.
Lutar à distância nem sempre é uma
opção.
Sim, eu não conseguia bater a cabeça
dele no volante à distância, por exemplo.
Por outro lado, também não poderia fazê-
lo de perto. Minhas mãos agora livres,
joguei-lhe as chaves e as algemas. Ele as
pegou do ar e depois desapareceram. Eu
realmente tinha que descobrir como ele
fazia isso.
— Seu desempenho no Firefall foi uma
melhoria em relação aos exercícios
anteriores. — Apontou ele.
— Foi esse elogio que ouvi? —
Perguntei com um sorriso, esfregando
meus pulsos doloridos.
— Uma observação. E eu gostaria de
ver mais disso. Chega de brigar com
toalhas de prato em chamas e cacos de
espelho quebrados. Quero ver você
lutando com seu corpo. E armas
adequadas.
— Como uma espada? Uma espada
tem alcance.
— Por exemplo.
— Nossa, professor, eu adoraria, mas
você não vai me deixar chegar perto de
uma espada. — Sorri para ele.
— Eu disse que não deixaria você ter
uma espada de fogo.
— Ah, mas elas são tão bonitas.
A sugestão de um sorriso pairou em
seus lábios. — Na verdade, estou
reconsiderando que você tenha uma
espada de fogo. Sob supervisão adequada,
é claro. — Acrescentou.
— Sua?
— Sim. Harker seria muito fácil com
você, e Basanti não seria fácil com você.
Você não aprende muito se passa toda a
sessão de treinamento inconsciente.
— Vou lembrá-lo disso na próxima vez
que gritar para mim “perda de consciência
não é desculpa para não dar suas voltas,
iniciada!”.
— Você não é mais uma iniciada. Você
é uma soldada da Legião dos Anjos.
— Então acho que você precisará
atualizar suas frases de efeito.
— E você precisa atualizar seu decoro.
— Me advertiu. — Eu sou seu
comandante.
— Isso significa que eu posso chamá-lo
de “senhor”?
— Isso significa que você deve.
Eu ri.
Ele me lançou um olhar duro. — Você
não está levando isso a sério.
— Você esperava algo diferente de
mim? Senhor. — Completei rapidamente,
limpando a garganta para engolir uma
segunda risadinha.
— Não.
— Vou me comportar agora. —
Prometi, cruzando as mãos no colo.
— Algo que duvido seriamente,
Pandora.
Nero estacionou o carro dentro de um
bosque de árvores doentias e depois
desligou o motor. Todos se amontoaram e
o seguiram. Caminhamos por cerca de dez
minutos, depois ele parou no topo de uma
colina.
— Os vampiros estão no fim da colina,
escondidos nas ruínas daqueles prédios
antigos. — Falou, agachando-se. Ele
apontou para a luz do fogo piscando na
colina de árvores abaixo de nós, colocando
sombras em movimento.
— Existem muito mais que dez deles.
Parece ter mais de vinte. — Observei.
— Isso não muda nada. — Ele disse
friamente. — Vamos prendê-los como
planejado.
Então ele instruiu Jace, Mina, Toren e
Lyle a estabelecer uma linha de fogo ao
redor do acampamento. Encantadas com a
magia, chamas disparariam sobre eles
quando ativadas. Era um belo pedaço de
Magitech e devia ter custado uma fortuna.
Enquanto os outros seguiam a linha,
Nero, Lucy e eu ficamos para observaro
acampamento dos vampiros.
— Estas estão cheias de
tranquilizantes para vampiros. — Disse
Nero, entregando uma arma para cada um
de nós. — Isso os derrubará
imediatamente. Mas tenha cuidado. Eles
te derrubarão também.
— Muito melhor do que cacos de vidro.
— Comentei, batendo na arma com
carinho.
— Vidro quebrado? — Lucy me
perguntou.
— Foi assim que peguei meu último
vampiro. — Respondi-lhe.
— Com vidro?
— Bem, tecnicamente bati a cabeça
dele em um espelho, então o bati com um
extintor de incêndio.
Os olhos de Lucy se arregalaram. —
Você é incrível, Leda.
Sorri para ela. — Obrigado.
O resto da nossa equipe tinha acabado
de voltar, então todos descemos a colina.
Os vampiros se levantaram quando nos
viram emergir da floresta, mas a maioria
deles sentaram novamente assim que a
realidade de nossos uniformes da Legião
se estabeleceu.
— Eu sou o coronel Nero Windstriker
da Legião dos Anjos.
Sussurros atravessaram a multidão de
vampiros, quando eles perceberam o que
sua posição significava: nosso líder era um
anjo.
— Vocês foram transformados
ilegalmente. — Continuou Nero. — Sob a
autoridade dos deuses, estou prendendo
todos vocês. Renda-se imediatamente e
ninguém precisa se machucar.
O resto dos vampiros em pé se sentou,
todos, exceto um. Ele devia ser o líder
deles. — Estamos fora do domínio dos
deuses agora. — Declarou.
— Não há nenhum lugar na Terra que
esteja fora do domínio dos deuses, nem
mesmo aqui nas Planícies Negras. —
Disse Nero.
Os lábios do vampiro se abriram em
um sorriso de escárnio. — Veremos.
Sua coragem colocou fogo de volta nos
corações dos vampiros, ou talvez
acabaram de perceber que havia vinte
deles contra apenas sete de nós. Enquanto
avançavam em nossa direção, Nero
acionou a linha de fogo. Uma parede de
chamas disparou por todo o acampamento,
prendendo os vampiros dentro. E nós com
eles. Eu esperava que Nero tivesse
pensado nisso. Nós seis não éramos
soldados veteranos. Éramos novatos com
um mês de treinamento sob nossos cintos.
Fazia apenas algumas horas desde que
adquirimos os poderes físicos dos
vampiros, e a maioria de nós ainda não
dominava essas habilidades em cem por
cento, ou mesmo em dez por cento.
Felizmente, a ardente parede de fogo
ao redor do acampamento parecia ter
distraído os vampiros. Nós atiramos neles.
Graças às minhas novas habilidades, e
minha preferência pela prática de ataques
de longo alcance, eu até consegui atingir
alguns deles. Como Nero havia prometido,
os vampiros caíram instantaneamente.
Essa munição anti-vampiro era incrível.
Os números dos vampiros diminuíram.
Alguns deles estavam olhando para a
parede de fogo, como se pensassem em
escapar, mas as chamas estavam muito
altas. O anel de fogo efetivamente
prendera os vampiros.
Ou assim pensávamos.
O rugido de um motor acelerado
arrancou das ruínas, seguido por um
vampiro pilotando uma moto. Era o líder.
Ele levantou uma pilha de detritos,
usando-a para pular sobre o que restava
do telhado de um dos edifícios. Uma chuva
de telhas quebradas ricocheteou das
rodas, quando ele e sua motocicleta
saltaram sobre o anel de fogo.
— Acorrente esses vampiros e leve-os
de volta à cidade. Você está no comando,
Pandora — Ordenou Nero, jogando-me o
controle das chamas, enquanto corria
atrás da motocicleta.
Suas asas cintilantes se abriram de
suas costas, em uma tapeçaria gloriosa de
azul, verde e preto, e então ele voou no ar
para perseguir o vampiro em fuga. Parei e
olhei para a beleza de suas asas por um
momento, mas um vampiro atacante me
trouxe de volta à luta. Atirei no peito dele,
depois atirei em mais dois vampiros. A
luta acabara.
Quando todos os vampiros estavam
inconscientes no chão, apaguei as chamas.
Então veio a parte divertida. Amarramos
todos os nossos prisioneiros e os levamos
de volta ao nosso caminhão. Nós éramos
muito mais fortes que os humanos agora,
o que estava a nosso favor, mas os
vampiros eram mais pesados que os
humanos também. E a caminhada foi
difícil por todo o caminho. Quando
colocamos todos no caminhão, uma hora
depois, estávamos suados, sujos e
cansados.
E Nero ainda não retornara.
Levamos mais duas horas para
voltarmos para a cidade e colocar todos os
nossos prisioneiros vampiros na cela do
escritório da Legião. Três horas se
passaram desde que Nero voou em busca
do vampiro fugido, e ainda não retornara.
— Isso não é nada de bom. — Falei aos
outros.
— O que nós faremos? — Lyle me
perguntou.
Todos os outros me procuraram por
orientação, até Jace e Mina.
Aparentemente, o fato de Nero ter me
colocado no comando contava alguma
coisa. Ainda não conseguia entender por
que ele fez isso. Jace seria a escolha mais
óbvia. Ele era mais forte e mais bem
treinado do que eu, e apesar de sua
propensão a ser um completo idiota, tinha
o temperamento para liderar os outros.
Até eu, com toda a minha mesquinharia,
podia admitir isso. Mas, quaisquer que
fossem as razões de Nero, me colocou no
comando, e eu faria pleno uso de minha
autoridade.
Na metade do caminho de volta à
cidade, comecei a ter flashes de imagens
quebradas e sangrentas. A princípio, eram
apenas rajadas curtas, desconectadas e
fugazes. Mas a cada momento que
passava, as imagens ficaram mais claras e
as sensações mais dolorosas. Fui
acorrentada, espancada e cortada. Cada
chicotada provocava uma nova onda de
dor, cada golpe da faca cravava agonia em
meu corpo trêmulo. Alguém estava me
torturando. E, no entanto, quando olhei
para baixo, minhas roupas estavam
intactas e minha pele intacta.
Eles não estavam me torturando,
percebi. Torturavam Nero. Quando eu
bebi dele, quando tomei seu sangue, algo
deve ter acontecido entre nós. Nós
estávamos ligados. Ouvi falar sobre isso
em vampiros, mas não tinha percebido que
isso aconteceu com os soldados da Legião
também. Parecia que meu lapso
temporário de sanidade foi bom para
alguma coisa, afinal. Talvez eu pudesse
usar esse vínculo para encontrar Nero.
Mas como? Comecei a andar pelo
escritório da Legião, tentando pensar nas
coisas. De acordo com o que eu li, um
vínculo de sangue entre vampiros
dependia tanto do lugar quanto do tempo.
Em outras palavras, quanto mais
próximos eram o casal de vampiros, mais
fortes eram. E quanto mais tempo passava
da troca de sangue, mais enfraquecia o
vínculo.
Se nossa magia funcionasse da mesma
forma que os vampiros, eu poderia seguir
o “sinal” de Nero. Quanto mais me
aproximasse, mais sentiria o que eles,
quem quer que fossem, faziam com ele.
Após a explosão inicial de sensações, meu
vínculo com ele se acalmou quando nos
aproximamos da cidade. Eu não estava
interessada em seguir o caminho do
aumento da dor, mas não era hora para
apreensão. Nossa conexão acabava a cada
minuto. Se eu não fosse embora agora,
poderia perder completamente a trilha
dele. Não poderia deixá-lo sob essa
tortura.
Com isso decidido, me virei para Jace.
— Ligue para a Legião. Diga a eles o que
aconteceu. — Olhei para os vampiros. Um
se mexeu. Puxei minha arma e atirei nele
com mais tranquilizantes. — Vou atrás de
Nero. Você está no comando agora.
Desta vez, quando Jace olhou para
mim, não havia ódio em seus olhos nem
um sorriso de escárnio em seus lábios.
Olhou-me como se eu tivesse enlouquecido
por querer voltar para lá, mas apenas
assentiu.
— É perigoso nas Planícies Negras. —
Lucy disse.
— É. — Concordei. — Mas já rastreei
por aí antes. — Houve um tempo em que
estávamos desesperados por dinheiro e
aceitávamos qualquer emprego, mesmo
aqueles nas Planícies Negras. — Conheço
a área. Encontrarei Nero. E vou trazê-lo
de volta.
— Nós devemos ir com você. — Falou
Toren.
Balancei minha cabeça. — Não.
Precisam ficar aqui e vigiar os vampiros.
Essa é a missão. Se eles acordarem, essas
barras podem não segurá-los. Há muitas
pessoas vivendo nesta cidade, e o
departamento do xerife local não está
equipado para lidar com dezenove
vampiros selvagens.
— Podemos não ser capazes de lidar
com eles. — Disse Lyle.
— Vou te enviar ajuda. — Prometi,
movendo-me em direção à porta.
Enquanto caminhava em direção à
motocicleta da Legião que vi estacionada
do lado de fora, peguei meu telefone e
liguei para Calli.
— Leda. — Ela atendeu
imediatamente. — Você está bem?
— Estou aqui na cidade.
— Acho que essa não é uma ligação
social.
— Não. — Respondi-lhe, acenando
para um dos peregrinos.
Quando ele veio até mim, sinalizei
minha necessidade pelas chaves da
motocicleta. Ele piscou uma vez, como se
estivesse começando a lembrar do meu
rosto, mas não deixou nenhuma
lembrança atrapalhar seu trabalho. Ele
deixou cair as chaves na minha mão.
— A Legião nos enviou para prender
alguns vampiros que escaparam para as
Planícies Negras. — Expliquei a Calli. —
Dezenove deles estão dormindo em uma
cela no escritório local da Legião,
guardado por cinco soldados da Legião
com um mês de treinamento cada um.
— Isso soa ameaçador.
— Você acha que poderia vir e dar
apoio a eles? — Perguntei a ela. — Sei que
este não é o seu trabalho, mas eu
realmente aprecia...
— Estou indo para lá agora. —
Interrompeu ela.
— Obrigado. Tenho que voltar para as
planícies, mas nos vemos em breve. —
Esperei.
— Por que você está indo lá fora de
novo? — Ela perguntou, uma pitada de
reprovação em sua voz.
— Eu tenho que salvar nosso
comandante.
A reprovação se transformou em
curiosidade. — Isso é tudo o que ele é?
Não mencionei o sangue que bebi. Ou
qualquer outra coisa que eu fiz com Nero.
Era muito embaraçoso.
— Eu não sei, Calli. — Respondi. —
Tenho que ir.
— Tome cuidado, Leda. Anjos são tão
perigosos quanto monstros.
Eu quase não precisava do aviso. Sabia
o quanto os anjos eram perigosos. Ou eu
fiz? Qualquer pessoa em sã consciência
nem sonharia em falar com um anjo,
muito menos em provocar um. Eu tinha
feito os dois, várias vezes. E continuaria
fazendo as duas coisas assim que ele
voltasse. Deuses, Nero estava certo. Eu
realmente não tinha nenhum senso de
autopreservação.
Bem, eu precisaria dessa falta de medo
nas planícies, decidi enquanto pulava na
motocicleta e a dirigia em direção à parede
que separava a civilização do caos.

Segui minha ligação com Nero por


cerca de uma hora, rangendo os dentes
contra as ondas cada vez maiores de
agonia que assolavam meu corpo,
acendendo os receptores de dor que eu
nem sabia que tinha. Quando parei do
lado de fora de um antigo castelo ao lado
de uma cachoeira furiosa, a dor atingira os
níveis de um tsunami.
No lado positivo, não encontrei
nenhum monstro no caminho para cá. E
eu era assustadoramente teimosa. Isso me
ajudava a suportar a dor.
Esgueirei-me por um par de vampiros
guardando uma das entradas. Eles
estavam muito ocupados atirando em
ratos para me notar. Eles não deveriam
acreditar que alguém, a não ser uma
pessoa completamente louca estivesse lá
fora, tentando se infiltrar no castelo em
decomposição. E, você sabe, eles
provavelmente estavam certos.
Andei rápida e silenciosamente pelos
corredores, esquivando-me e correndo,
correndo e me escondendo. Eu tentava
bloquear a agonia de Nero, enquanto
lutava para segui-lo. Não ajudou que
houvesse vampiros por toda parte. Que
diabos estava acontecendo aqui?
Cheguei na sala onde mantinham
Nero. Como todos os outros cômodos deste
castelo, metade das paredes estava
desmoronando. Despiram-no apenas até
as calças de couro de seu uniforme da
Legião e o prenderam a uma das paredes
que ainda estava de pé. Seu tronco, braços
e pés estavam nus. Dezenas de facas se
projetavam de seu peito e costas,
segurando-o contra a parede. O sangue
escorria por seu corpo em correntes
vermelhas, ensopando o chão de cascalho
a seus pés. A cabeça dele caiu, os olhos
selvagens e sem foco atrás de uma cortina
molhada de cabelos manchados de suor.
Ninguém mais estava na sala. Eles
deviam ter parado de torturá-lo. Essa era
a minha chance, e eu a aproveitaria.
Libertaria Nero. E então caçaria os
bastardos que fizeram isso com ele.
— Nero... — Sussurrei, enquanto me
aproximava dele.
Ele piscou com força, tentando se
concentrar. — Leda?
Toquei seu rosto. — Vou tirar você
daqui.
Ele grunhiu quando comecei a puxar
as facas dele. A cabeça dele caiu.
— Ei, nada disso. — Chamei ele,
estalando os dedos na frente dos olhos
dele. — Não desmaie em mim. Você é
muito pesado para eu carregar.
Ele tossiu. — Você é mais forte agora.
Quando puxei a última das facas de
seu corpo, ele tropeçou para frente, quase
me esmagando. — Mas não sou forte o
suficiente para carregar um anjo. — O
encostei na parede. — Sério, você deve ser
feito de barras de ouro ou algo assim.
E músculo, acrescentei mentalmente
enquanto meus olhos traçavam os
contornos de seu corpo. Então, percebendo
o que estava fazendo, desviei o olhar.
Ele riu baixinho. — Está certo. Não
contarei a ninguém.
— Não há nada para contar. — Falei
rapidamente.
— Há muito o que contar. Você pode
começar com o motivo de estar aqui. Você
tinha ordens.
— Ordens acabadas. Alguém tinha que
te salvar. Senhor. — Completei com um
sorriso.
— Isso é insubordinação.
— Me castigue depois. Por enquanto,
tenho que tirar você daqui. — Olhei em
volta. — O que está acontecendo?
Um olhar sombrio caiu sobre seu rosto.
— Os vampiros desonestos estão
construindo um exército. Esta operação é
maior do que pensávamos. Existem mais
de cem vampiros aqui. E, pelo que parece,
muito mais em outros lugares.
— Por quê?
— Eles estão se preparando para a
guerra.
— Um exército de vampiros, você
disse? Fantástico!
Puxei seu braço, convidando-a ficar de
pé sozinho. Ele não se mexeu.
— Mexa-se! — Apressei-o.
Ele revirou os olhos.
— Mexa-se! — Repeti. — Você detalha
a necessidade de força de vontade. Agora
mostre sua força de vontade.
— Como posso argumentar com isso?
— Ele riu.
Ele se empurrou da parede, mas seus
braços tremeram, desmoronando. Tossiu
sangue. Merda. O que fizeram com ele?
Não, deixa para lá. Não queria saber.
— Você precisa se curar. — Lembrei-o.
— Não tenho magia suficiente para
isso.
— Como eles drenaram um anjo de sua
magia? Você basicamente tem um
suprimento ilimitado disso.
— Não é ilimitado. Só é muito. —
Falou. — Mesmo assim, existem meios
para drenar rapidamente um anjo. Eles
parecem conhecê-los.
Eu podia ouvir pessoas vindo pelo
corredor, provavelmente os torturadores
de Nero voltando para terminar o
trabalho. Não tínhamos muito tempo.
— Beba de mim. — Ofereci, fixando
meus olhos aos de Nero.
Seu olhar desceu para minha
garganta, seu lábio inferior tremendo de
fome, quando ele olhou para mim. Se
balançou. — Não.
— Pare de ser tão puritano e apenas
faça. Você não tem a magia para se curar,
então pegue o que precisa de mim. — Abri
minha jaqueta, expondo mais do meu
pescoço.
Ele pegou minha mão, me parando,
mas seus olhos caíram mais uma vez no
meu pescoço pulsante. — Esse não é um
procedimento padrão.
— Olhe em volta, Nero. Estamos
cercados por um exército de vampiros.
Esta não é uma situação padrão.
Ele encontrou meus olhos. — Tudo
bem. Mas não o pescoço. Ele levou meu
pulso à boca, suas presas descendo.
— O pulso é melhor?
— É mais... imparcial. — Disse ele, em
seguida, afundou suas presas em mim.
Um súbito choque de dor me perfurou
quando as penetrou na minha pele,
lentamente substituído por uma pulsação
profunda e dolorida. Inclinei-me para ele,
ofegando, enquanto o rio de fogo que
passava por mim ameaçava me arrastar
para baixo.
A boca de Nero se levantou, olhando
para mim. Seu olhar me penetrou com
tanta certeza quanto suas presas. Ele
passou um dedo pelos meus lábios,
acendendo uma faísca de magia entre nós.
De repente, se afastou, colocando
alguma distância entre nós.
— Nero?
Ele se afastou de mim. — Me dê um
momento.
Observei suas costas subirem e
descerem, enquanto ele respirava fundo
várias vezes. Suas feridas se fecharam
diante dos meus olhos.
— Está bem. — Ele se endireitou e se
virou para sair. — Vamos lá. — Peguei um
flash de magia pulsando em seus olhos
quando passou por mim.
Nós encontramos um trio de vampiros
a caminho da porta. Eles o viram, que
estava livre e ileso, e o medo brilhou nos
olhos deles. Deram um passo para trás.
Não chegaram longe. Em uma onda de
fúria, Nero atacou, rasgando-os antes que
pudessem levantar a mão contra ele.
Quando o último caiu morto no chão, se
virou e foi para a saída.
Mais guardas de vampiros inundaram
o interior, mas a raiva de Nero não tinha
limites. Ele caminhou pelo corredor,
explodindo-os com um furacão de magia.
Ele bateu em seus corpos com a força de
um trem em alta velocidade. Pedra e gesso
explodiram ao nosso redor enquanto
corpos caíam do teto. Corremos até a
motocicleta.
— Não achei que você poderia me
carregar e nos levar de volta? — O
provoquei quando ele montou na
motocicleta.
— Com essa boca, é uma maravilha
que você ainda esteja viva.
Sorri para ele. — Você parecia gostar
muito da minha boca antes.
Ele me lançou um olhar duro. —
Vamos, Pandora. — Agarrou minha mão e
me puxou para o assento ao lado dele. —
E tente não cair.
Ele acelerou através das árvores. O
som do motor da motocicleta zumbia sobre
a corrente de água caindo, mas não era tão
alto quanto os motores rugindo atrás de
nós. Olhei para trás e encontrei três motos
coladas em nossos calcanhares.
Temos companhia. — Avisei Nero,
virando-me para atirar em um deles no
ombro. — Um lobisomem. Ajuda
contratada?
— Apenas atire neles.
Os tranquilizantes eram para
vampiros, mas pegaram aquele shifter
muito bem. A cabeça dele tombou e ele
caiu da motocicleta.
— Quanto dano um lobisomem pode
suportar? — Perguntei ao Nero.
— O homem se transforma em um lobo
de quinhentos quilos. Acho que pode
sobreviver a uma queda de moto. Agora,
pare de se preocupar com as pessoas
tentando nos matar e comece a atirar
nelas.
Atirei duas vezes, derrubando os dois
vampiros de suas motos também. —
Apenas não quero realmente matar
ninguém.
— Então você está na linha de trabalho
errada. — Disse ele severamente. Seu tom
suavizou um pouco quando olhou para a
arma no coldre da minha coxa. — Você
atira bem.
— Tente não parecer tão surpreso.
— Depois de tudo o que aconteceu,
acho que você não poderia mais me
surpreender.
— Oh, tenho certeza que ainda posso.
— Falei com um sorriso, segurando-o com
força enquanto acelerava através das
planícies.

Todo mundo parou e olhou para nós


enquanto nossa motocicleta rugia em
Purgatório. Gostaria de pensar que
olhavam com admiração pelo meu resgate
espetacular, mas eu tinha certeza que
estavam apenas olhando o anjo seminu
comigo.
Acabávamos de estacionar a
motocicleta, quando Harker saiu do
escritório da Legião. Ele caminhou até
Nero e deu uma olhada completa, sua boca
se curvando divertida, com a roupa
perdida de seu amigo.
— Você perdeu alguma coisa. —
Brincou ele.
— Eles perderam mais. — Falou Nero.
— O que você está fazendo aqui?
— Babá de dezenove vampiros. Nossa
garota aqui manteve a equipe ocupada
enquanto corria pelas Planícies Negras
para resgatá-lo em um esplendor de
glória. — Harker piscou para mim. — Sua
equipe ligou para a sede. Desde que minha
equipe terminou sua missão, os trouxe
aqui para ajudá-lo a transportar os
vampiros de volta à cidade.
— Bom. — Disse Nero. — Precisamos
obter respostas desses vampiros
imediatamente.
Harker colocou a mão no meu ombro.
— Você prestou um serviço aos deuses
hoje salvando Nero. A Legião não pode se
dar ao luxo de perder mais anjos.
— Não mais? — Perguntei.
Nero balançou a cabeça para Harker.
— Obrigado mesmo assim. Você fez um
ótimo trabalho hoje à noite. — Falou
Harker, sorrindo para mim. — Você pode
até ganhar uma medalha.
— Ela não irá, não por desobedecer
ordens.
Rindo, Harker deu um tapa nas costas
dele. — Estou feliz que você tenha
conseguido, Nero. A Legião não seria a
mesma sem a sua disposição alegre. —
Declarou ele, enquanto um caminhão com
nossas duas equipes e os vampiros
passavam, presumivelmente no caminho
para a estação de trem.
— Os vampiros estão construindo um
exército. — Disse Nero. — Este pequeno
grupo é apenas a ponta do iceberg.
— Precisamos voltar para o castelo. —
Falei a eles.
— A Legião está enviando uma equipe
veterana para lá. — Informou Harker.
— Esta missão não deveria ser tão
grande. Minha equipe não estava
preparada para lidar com isso.
— Eles se saíram bem. — Harker
disse, olhando para mim.
Diminuí meus passos quando vi Calli
do lado de fora do escritório da Legião, nos
observando. Mas não parei. Eu estava em
uma missão e não deveria parar até
terminar. Até eu sabia disso. Tão perto e
ainda assim poderíamos estar em
extremos opostos da Terra. Era uma
droga, mas era para isso que me
inscrevera.
O olhar de Nero deslizou dela para
mim. — Vá.
— Sério? — Perguntei, minha
expressão se iluminando.
— Cinco minutos.
— Obrigado. — Agradeci, tocando seu
braço brevemente antes de me virar e
correr em direção a Calli.
— Ficando suave, coronel... — Brincou
Harker com uma risada baixa, enquanto
ele e Nero se afastavam.
— Oh, cale a boca!
Continuei correndo para Calli, puxei-a
para um abraço esmagador. Ela riu. Tinha
esquecido o quanto eu amava essa risada.
— Você está bem, Leda. Forte. — Ela
acrescentou, enquanto eu a colocava de
volta no chão.
— Durante muito tempo, pensei que
morreria, mas consegui, Calli. Sou mais
forte Ainda não consigo lutar com uma
arma “apropriada” de acordo com a
Legião, mas estou chegando lá, lenta, mas
seguramente.
— Você sempre foi forte. Sei que você
pode fazer isso.
Sorri para ela. — Obrigado.
— Só queria que você não precisasse.
Os olhos dela desviaram para Nero.
Ele e Harker haviam parado ao lado do
caminhão da Legião, do lado de fora da
estação de trem e estavam descarregando
os vampiros.
— Cuidado com isso, — Ela me avisou.
— Anjos sempre têm um motivo oculto.
— Já sei que ele está tentando me
matar. — Brinquei.
— Não brinque, Leda. Isso é sério. A
Legião muda as pessoas. O poder muda as
pessoas. Já vi isso acontecer.
— De volta à Liga dos Caçadores de
Recompensas?
— Entre outros lugares.
— Terei cuidado. — Prometi. — Agora
tenho que ir. Falo com você mais tarde.
Diga às minhas irmãs que as amo.
Calli colocou as mãos nas minhas
bochechas. — Você é uma boa garota,
Leda. — Ela me beijou na testa, depois se
virou e se afastou.
Corri pela rua, chegando na estação
quando o último dos vampiros foi
carregado para dentro. Segui a procissão
do prisioneiro até o trem. Harker estava
do lado de fora. Ele sorriu para mim
quando me viu.
— Eu quis dizer o que disse. — Ele me
disse, quando entramos no trem juntos. —
Você fez certo em ir atrás de Nero.
— Nero acha que não.
Ele bufou. — Nero pode ser um
defensor das regras, mas não perdeu a
humanidade. Ele não queria morrer nas
mãos dos vampiros.
— Ele é humano? — Há um mês, eu
teria certeza de que não era. Agora, não
tinha mais certeza.
— Sim, até os anjos ainda são
humanos sob todas as penas e
narcisismos. — Respondeu Harker.
Eu ri.
— E ele sabe demais. — Continuou ele.
— Os vampiros não o quebraram, mas se
o tivessem por muito tempo, poderiam
conseguir, não importa o que Nero diga.
Assentindo, sentei-me ao lado de Lucy.
Quando o trem decolou, fiquei pensando
sobre isso. O pensamento da humanidade
de Nero era mais assustador do que sua
desumanidade. Calli estava certa. Eu
tinha que ter cuidado com o anjo.
Já era quase meio-dia quando
voltamos ao edifício da Legião em Nova
York. Ficamos acordados a noite toda,
mas, em vez de nos deixar dormir, Nero
nos mandou todos para a academia. Três
horas depois, tropecei no meu dormitório e
caí na minha cama. Adormeci no momento
em que minha cabeça bateu no
travesseiro.
Quando acordei, o sol estava se pondo.
Mexi os dedos dos pés e me sentei. O
dormitório estava vazio, exceto Ivy, que
estava sentada em sua cama, mastigando
com entusiasmo os biscoitos dentro da lata
presa entre as pernas.
— Bom dia, sol.— Cumprimetou ela,
com um sorriso.
— Está mais para noite. Onde está
todo mundo? — Perguntei, esticando meus
braços.
— Em Demeter, jantando.
Fui até a cama e me sentei ao lado
dela. — E você?
— Prefiro algo mais doce. — Ela
estendeu a lata. — Biscoito?
Escavei e peguei um biscoito red
velvet. — Obrigado. — A primeira
mordida foi uma revelação, a segunda um
vício e, na terceira, me perguntava onde
esse biscoito estivera em toda a minha
vida. — Isso é incrível. Onde você
conseguiu esses biscoitos?
— Minha mãe os fez. — Ivy enxugou
uma lágrima, dando um sorriso corajoso.
— Ela é a melhor padeira de toda a Nova
York. Talvez até do mundo inteiro.
— Ela certamente tem minha
aprovação. — Concordei, colocando meu
braço em volta de Ivy. — Você a salvará.
Ela piscou, mais lágrimas de volta. —
Como você sabe?
— Porque eu tenho fé.
— Não te vejo em algum tipo de
adoração a deuses. — Os lábios dela se
contraíram.
— Na verdade não sou. Não canto
hinos nos templos dos deuses ou me jogo
no chão em frente aos seus santuários.
Mas não era dessa fé que falei. A fé da qual
estou falando é a crença de que existe algo
bom no mundo. O mundo está cheio de
monstros, Ivy. Temos que acreditar que há
esperança para nós, que tudo vai dar certo
no final. Caso contrário, já estamos
perdidos.
— Minha mãe gostaria de você. — Ivy
sorriu para mim. — Na verdade, já gosta.
— É?
— Escrevi para ela sobre você. Sobre
como você está me ajudando. Ela está feliz
por eu ter encontrado uma amiga tão boa.
Algum dia, espero que você possa conhecê-
la.
— Eu gostaria disso. — Falei,
apertando a mão dela. — Vamos fazer um
pacto: você e eu. Qualquer uma de nós, que
chegar ao nível sete primeiro, curará sua
mãe.
Sua expressão se iluminou. — Sério?
Você me ajudaria?
— Sempre te ajudarei, Ivy. E se eu
chegar ao nível sete primeiro, vou curá-la.
— Sim, você conseguirá. Tenho certeza
que você vai. Você é forte.
— Bem, sou teimosa. Não tenho
certeza sobre forte. Sinto que sou uma das
mais fracas aqui.
— Não de acordo com o coronel “Anjo
Sexy”. O ouvi conversando com Harker no
trem, na volta.
— O que eles conversaram? — Tentei
manter meu tom casual, mesmo que
estivesse louca para saber.
— Ele disse a Harker para parar de
ajudá-la tanto porque você é muito forte, e
nunca alcançará seu potencial se ele
segurar sua mão o tempo todo.
Bufei. — Nero só quer me quebrar. É o
novo objetivo pessoal dele.
— Ou talvez ele queira segurar sua
mão. — Ela mexeu as sobrancelhas.
— Não acho que seja o tipo de cara
delicado.
— Leda, todo mundo está falando
sobre o que aconteceu ontem à noite. Como
você atravessou as Planícies Negras para
resgatar Nero de um exército de vampiros.
Metade da Legião pensa que você é
realmente corajosa. A outra metade pensa
que você está maluca.
— E o que você acha? — Perguntei a
ela.
— Que você é um pouco dos dois, é
claro. — Ela fez uma pausa, um sorriso
lento curvando seus lábios. — Harker está
dizendo que você é uma heroína.
— O que isso significa.
Ela encolheu os ombros. —
Aparentemente, você tem o equilíbrio
perfeito de bravura e insanidade.
Eu ri. — Pelo menos alguém está feliz
comigo. Juro que Nero ainda está
pensando em uma maneira de me punir.
— Por salvá-lo?
— Por desobedecer ordens.
— Bem, ele é um anjo. — Disse ela,
como se isso explicasse tudo.
Provavelmente sim.
Explicava? Após nossas discussões na
noite passada, eu começava a perceber que
Nero era mais humano do que pensei.
Gostaria de saber se ele percebeu isso
também. Então, novamente, talvez
estivesse em negação. Provavelmente via
a humanidade como uma fraqueza.
Uma batida soou na porta. Esquisito.
Durante todo o mês em que chamamos
isso de nosso quarto, ninguém bateu à
nossa porta. Não contei com as
gigantescas bolas de cuspe que os
pirralhos haviam lançado do outro lado do
corredor. Honestamente, às vezes eu
sentia que vivia em uma escola
secundária.
Fui até a porta, minha surpresa só
aumentou quando a abri e encontrei
Harker parado do outro lado.
— Eu preciso falar com você. — Ele me
disse. — Sozinho.
— Eu já volto. — Avisei a Ivy, depois o
segui pelo corredor, fechando a porta atrás
de mim.
Ele ficou em frente a mim, os braços
cruzados sobre o peito de uma maneira
que acentuava os músculos de ambos. Mas
eu não estava aqui para admirar seu
físico. Ele obviamente tinha algo a me
dizer. Sua boca estava dura, firme, como
se não soubesse por onde começar. Nunca
o tinha visto tão nervoso antes, se eu
pudesse chamar assim. Harker odiava ser
o cara mau. Ele provavelmente se
preparava para dizer algo que eu não
gostaria. Talvez estivesse aqui para
entregar o castigo de Nero.
— Como está o Nero? — Perguntei,
convidando-o a continuar. Adiar apenas
doeria mais.
— Tudo certo. Melhor do que certo, na
verdade. É sobre isso que estou aqui para
falar com você.
— É?
— Nero está completamente curado de
sua provação ontem à noite. Não é nada
menos que milagroso. De seu relatório,
seus captores o drenaram de magia e
sangue. Ele estava péssimo quando você o
encontrou. Deveria ter levado uma
semana ou pelo menos uma consulta com
um bom curador para voltar ao normal. E,
no entanto, aqui está ele, em perfeito
estado de saúde menos de meio dia depois.
— Ele é um anjo. — Apontei.
— Depois que os vampiros terminaram
com ele, foi muito drenado para se curar.
Dei de ombros. — A magia funciona de
maneiras misteriosas.
Harker me deu uma olhada dura. —
Ele bebeu de você, não foi?
— O que ele disse?
— Estou lhe perguntando.
Mas mantive minha boca fechada. Tive
a sensação de que Nero não deveria ter
feito isso. Ele não protestara, dizendo não
ser um procedimento padrão?
Harker suspirou. — Nero também não
admite. Deve ser a primeira vez que
mentiu para a Legião. Não se preocupe. —
Completou rapidamente — Não contarei.
— Está bebendo de outro soldado da
Legião contra as regras?
— Não exatamente, mas é
desaprovado. Especialmente uma troca de
sangue entre um anjo e um soldado de
primeiro nível. A diferença de poder é
muito grande. Você bebeu dele também.
Antes de partirmos para a missão, depois
que você tomou um gole do Néctar.
Eu não disse nada. Talvez eu
começasse a aprender o valor de manter
minha boca fechada.
— Nero está lutando com sua
escuridão interior. Espero que você saiba
o que está fazendo, Leda.
Calli falara a mesma coisa.
— Nero é seu amigo. — Apontei.
— Sim, ele é. Mas ele também é um
anjo. Quando você obtém suas asas, você
muda. Muito mais do que quando se junta
à Legião.
— Então você não quer ser um anjo? —
Perguntei a ele.
—Ah, quero. Mais do que tudo. — Um
sorriso feliz se espalhou por sua boca. — E
você?
— Não tenho certeza se sou matéria
para anjo.
— Oh, acho que você é. É resiliente.
— Mas tenho problemas para fazer o
que me mandam.
Ele riu. Era um som bonito, tão
encorajador, tão cheio de boas intenções.
Nas últimas duas semanas, eu realmente
apreciei a risada de Harker.
— De fato você tem. — Falou. — Há
uma festa no Heaven hoje à noite.
— Não acho que estou convidada.
— Heaven, o clube da Legião. — Ele
esclareceu, rindo novamente. Eu poderia
ouvir aquela risada a noite toda. — Você
deveria ir e relaxar. Isso é realmente
importante, depois de uma missão como a
da noite passada.
— Vou pensar sobre isso.
— Estou ansioso para vê-la lá. — Ele
pegou minha mão, levando-a aos lábios,
depois piscou, virou-se e caminhou pelo
corredor.
Assim que voltei para o meu
dormitório, Ivy praticamente me atacou.
— E? — Ela perguntou
animadamente. — O que Harker queria?
— Ele me contou sobre uma festa no
Heaven esta noite.
— Harker chamou você para sair? —
Ela praticamente gritou.
— Acho que não. Ele acabou de me
contar sobre a festa.
Mas Ivy não quis saber disso. — O
Heaven é um clube VIP apenas para
membros da Legião, de nível cinco acima.
Eu daria meu braço direito para ir até lá.
— Então você deveria vir comigo. —
Declarei. — Mas não há necessidade de
cortar seu braço.
Ivy sorriu para mim. — Agora vamos
escolher o que você vai usar no seu
encontro.
— Não é um encontro. — Lembrei-a,
quando ela me empurrou em direção ao
armário.
— Querida, quando eu terminar com
você, terá Harker comendo na sua mão.
E nessa nota agourenta, ela começou a
tirar as roupas do armário.

Quando Ivy e eu chegamos ao clube, o


segurança acenou para nós. Ele nem
precisou verificar a lista. Harker deve ter
falado com ele pessoalmente, algo que Ivy
rapidamente apontou. Ela acompanhou
sua declaração com cílios esvoaçantes e
muitos barulhos de beijos altos, mas suas
provocações desapareceram assim que
fomos atingidas com todo o esplendor do
Heaven.
— Isso é incrível. — Ivy ofegou.
Uma barra circular de trezentos e
sessenta graus estava no centro da sala,
iluminada por uma série de luzes mágicas
que mudavam de cor a cada segundo. Por
toda a ilha do bar, a pista de dança de
várias camadas, se estendia até os cantos
mais distantes da sala. Havia pessoas
dançando no chão, nas plataformas e até
nas escadas que levavam ao segundo
andar. Eu sabia que a maioria deles devia
ser membro da Legião, mas ninguém
vestia uniforme hoje. Eles estavam
vestidos como Ivy e eu.
Bem, talvez não inteiramente como
nós. Ivy tinha sentido falta de seu dom
como fashionista. Ela me colocou em um
top verde que fez meu cabelo pálido se
destacar lindamente contra ele. Eu o
estava usando solto esta noite.
Geralmente super retos, Ivy os arrumara
até ficar com ondas soltas. Minha saia era
preta e mini, curta o suficiente para ser
sensual sem parecer obscena. Minhas
botas estavam acima do joelho, elegantes,
sexys e confortáveis o suficiente para
andar ou dançar.
Ivy usava um minivestido preto sem
mangas e um colar de pedras preciosas de
prata. Seus cabelos ruivos, separados de
lado, saltaram com um volume invejável,
enquanto ela caminhava até o bar comigo
em suas sandálias de prata. Tínhamos
acabado de sentar, quando um homem de
jaqueta muito gracioso, apareceu e a
chamou para dançar. Ela me deu um
aceno animado enquanto o seguia para a
pista de dança.
Sorrindo, pedi suco de abacaxi.
Quando me virei para olhar através da
pista de dança, fiquei surpresa ao
encontrar Nero sentado ao meu lado.
— Você precisa parar de fazer isso. —
Falei
— Fazendo o que?
— Pegar as pessoas de surpresa.
— Se você abrisse os sentidos, notaria
melhor o ambiente. — Respondeu ele.
Ai. Uma palestra. Mesmo? Então,
novamente, não fiquei surpresa. Afinal,
era o coronel Durão. Ele era o único em
todo o clube vestindo um uniforme. Ele
provavelmente não acreditava em relaxar.
— Uau, isso é divertido. — Bebi meu
suco de abacaxi, desejando ter pedido algo
mais forte. — Você está aqui para soltar os
cabelos, coronel?
— Não.
OK então. — Harker falou comigo.
— Sobre o sangue. — Completou ele.
— Sim. Ele disse que é um grande
“tabu”, de acordo com a Legião.
— É mal visto
— Mas não proibido.
— Não. — Ele concordou. — A Legião
reconhece que seus membros são humanos
e têm necessidades.
Claro. A habilidade não era chamada
Beijo do Vampiro por nada.
— Eu sabia que você era humano sob
todas aquelas penas. — Brinquei, sorrindo
para ele.
— Sim.
— Harker diz que você está lutando
contra sua escuridão interior.
Ele se inclinou para mais perto, sua
voz baixa. — Todos nós, cada um de nós
tocados pela magia, lutamos contra essa
escuridão. Comigo... é mais forte.
— Porque você é um anjo?
— Por causa de quem eu era antes. —
Respondeu ele. — Meu pai era um anjo.
Um anjo caído. — Ele fez uma pausa para
deixar isso entrar.
Às vezes os anjos iam mal e se
juntavam aos demônios. Às vezes
enlouqueciam e partiam em brigas
assassinas. Me perguntei que tipo era o de
pai de Nero.
— Minha mãe também era um anjo da
Legião.
Uau. Havia algumas pessoas com um
pai ou uma mãe anjos, mas nunca conheci
um com dois. Não era de admirar que Nero
fosse tão poderoso.
— Quando meu pai ficou desonesto,
eles designaram minha mãe para caçá-lo.
— Contou ele.
— Ela caçou o homem que amava? —
Perguntei.
— Ela o caçou porque o amava. E
porque me amava. — Respondeu. — Meu
pai veio me buscar uma noite e tentou me
levar embora. Minha mãe lutou com ele.
Ele a matou bem na frente dos meus olhos.
Coloquei minha mão em seu braço. —
Sinto muito.
— Eu estava com muita raiva e
tristeza. Ataquei o meu pai. Lutei com ele.
E eu o matei.
— Você matou um anjo?
— Ele já estava gravemente
enfraquecido por sua briga com minha
mãe. Caso contrário, nunca conseguiria
fazer isso. Como foi, tive sorte. Eu sabia
até então que se não o matasse, ele me
mataria.
— Quantos anos você tinha?
— Dez.
— Não consigo imaginar como deve ter
sido.
— Aquele dia, aquele momento, me
marcou para a vida toda. Isso me fez quem
eu sou hoje.
Eu não sabia o que dizer.
— O que não mata você, vai torná-lo
mais forte. — Ele me disse, apenas pela
milionésima vez. Era uma de suas frases
favoritas. — Você deve aprender a seguir
em frente, a ter uma força de vontade que
não morre.
— Sou muito teimosa.
— Eu vejo algo em você. — Ele
encontrou meus olhos, e era como se eu
pudesse olhar através de sua alma, ver
sua dor atrás do muro que construíra ao
seu redor. — Não sei o que é isso. Aquela
mesma escuridão que tenho em mim,
talvez. Ser teimosa não é suficiente. Você
também precisa aprender a controlar os
impulsos que nos atormentam.
— Por que você se importa? Pensei que
você queria expor todos os meus segredos.
— Sou um homem paciente. Se você
morrer agora porque não é forte o
suficiente ou sucumbir à sede de sangue,
nunca vou descobrir.
Eu ri, levantando meu copo para ele.
Ficamos em silêncio enquanto eu
observava Ivy. Ela estava dançando com
três caras ao mesmo tempo. Algo em ver
sua felicidade não diluída, me deixou
ousada. Ou talvez fosse o fato de Nero
aberto sua alma para mim.
— Quer dançar? — Perguntei a ele.
Ele olhou para mim por um momento,
claramente tentado. Prudência venceu. —
Eu não acho que isso seria apropriado. —
Ele se levantou. — Preciso ir.
Então, sem outra palavra, atravessou
a sala para se juntar a capitã Somerset. E
eu apenas o observei como uma idiota.
— Eu tenho me perguntado o que há
entre eles. — Falou Harker, enquanto se
sentava ao meu lado. Ele sorriu. —
Nenhum deles admitirá nada.
— É?
Eu estava tentando não deixar isso me
incomodar. De que me importava se Nero
gostasse de outra pessoa? Não é como se
fosse bom para mim. Suprimi um arrepio
quando me lembrei da maneira cruel com
que ele destruíra os vampiros naquele
castelo. Não me apaixonaria pelo cara
mau. Não dessa vez. Isso só terminava em
sofrimento.
— Vamos lá. — Chamou Harker,
pegando minha mão. — Vamos dançar.
Harker claramente não estava
preocupado com o que era “apropriado”, e
não estava tentando me matar
lentamente. Além disso, ele tinha um
corpo de matar, uma alma de pura
bondade, e realmente sabia como se
divertir. Ele não vestiu o uniforme para
vir a um clube. Vestia jeans escuros e uma
camisa preta justa com mangas curtas
pretas e translúcidas. O zíper frontal foi
deslizado apenas o suficiente, uma
sugestão do físico duro como uma rocha
por baixo.
— Estou feliz que você veio. — Falou
ele, enquanto colocava as mãos nos meus
quadris.
— Comecei a pensar que você não
viria.
— Ah, eu não perderia, não se você
estivesse aqui.
Corei. Harker era bonito e tão
humano, tão acessível. E realmente se
importava comigo. Eu poderia ter uma
conversa real com ele, que não se
deterioraria imediatamente em uma luta
verbal.
— Você está linda esta noite, Leda. —
Ele levantou a mão para tirar uma mecha
de cabelo do meu rosto.
— Obrigado. — Corei novamente. —
Você está bonito também.
A mão dele pousou nas minhas costas.
— Vamos. Quero te mostrar algo.
Com o braço em volta de mim, ele me
levou da pista de dança e subiu a escada
em espiral para um salão opulento de
sofás luxuriantes e tapetes antigos. Parei
no topo para olhar do corrimão a cena
piscante e pulsante abaixo.
A mão de Harker deslizou ao redor da
minha. Seu sorriso se alargou, ele nos
levou para um dos sofás. A maioria dos
outros já estava ocupada. Grupos
pequenos e grandes os enchiam,
conversando, rindo e pingando pequenas
gotas brilhantes na boca um do outro.
— O que são essas gotas? — Perguntei
a Harker.
— Apenas uma coisinha mágica para
ajudar as pessoas a relaxar. — Respondeu
ele. — A vida na Legião é dura, cheia de
batalhas difíceis. Nós encaramos a morte
quase todos os dias. Se não relaxarmos de
vez em quando, explodimos.
— Nero já relaxou? — Perguntei. As
palavras já haviam saído.
Me arrependi imediatamente quando
a decepção franziu a testa de Harker. Eu
estava aqui com ele. Não deveria estar
pensando em Nero.
— Nero não relaxa. — Respondeu
Harker, apesar de sua decepção, provando
que ele era uma pessoa melhor do que eu
jamais seria. — Esse é o problema dele. É
por isso que perde o controle às vezes.
Espero que você não cometa o mesmo erro.
— Ele levantou o frasco com o líquido
brilhante para mim.
Olhei de relance para o sofá do outro
lado do corredor. Ivy estava sentada lá
com um dos homens com quem dançara no
andar de baixo. Ela abriu a boca e, quando
ele derramou uma única gota em sua
língua, um olhar de puro êxtase se
espalhou por seu rosto. Ela parecia tão
feliz, tão livre. Eu ansiava por um
momento assim, um momento de pura
felicidade neste mundo sombrio. Me virei
para Harker, abrindo minha boca.
Um sorriso satisfeito estendeu seus
lábios. — Ótimo.
O líquido atingiu minha língua, uma
gota de êxtase explodindo dentro da
minha boca. Tonta com a magia e os fios
que se desenrolavam da minha própria
mente, cambaleei para o lado. As mãos de
Harker pegaram meus braços, me
inclinando contra o sofá.
— Uau, aí... — Falou ele. — Você é
sensível para uma iniciante.
— O efeito é mais intenso com o
tempo?
— À medida que seu nível de magia
aumenta. — Seus lábios estavam a poucos
centímetros dos meus.
— Mais por favor.
Ele riu, baixo e sexy. — Você é
aventureira, não é?
Ele derramou algumas gotas em sua
própria boca, depois me deu mais duas.
Um relâmpago atravessou meu corpo,
líquido e quente. Através da nuvem de
euforia, vi Ivy subir no colo do homem,
gemendo quando ele a mordeu.
Harker passou a mão na minha
bochecha, voltando minha atenção para
ele. — Leda. — Chamou ele, sua voz
grossa, profunda.
— Sim?
— Tenho uma confissão a fazer. — Sua
boca mergulhou no meu pescoço, fazendo
uma trilha de beijos ardentes pela minha
pele.
Minha cabeça estava nadando. — É?
— Não sou o homem que pensa que
sou. — Sua mão deslizou pela minha
perna, pegando a bainha da minha saia.
— Não sou altruísta e gentil.
— Tenho certeza que isso não é
verdade.
— Ah, mas é. Não tenho ajudado você
esse tempo todo porque sou bom. A estava
ajudando por minhas próprias razões
egoístas. Queria que gostasse de mim.
— Eu gosto de você. — Ofeguei,
quando suas presas traçaram meu
pescoço.
— O quanto você gosta de mim? — Ele
perguntou, provocando minha veia
pulsante entre seus dentes.
— Oh, deuses, apenas me morda, ou
morderei você.
Ele olhou para mim, um brilho
prateado deslizando sobre seus olhos
azuis. — Como a dama quiser.
Harker mergulhou a boca novamente,
mas antes que suas presas rompessem
minha pele, um punho brilhou diante dos
meus olhos, tirando-o de mim. Virei minha
cabeça para encontrar Nero parado em
cima de nós.
Harker ficou de pé, os olhos brilhando
de magia. — Você está estragando a
minha diversão, Nero.
— O que diabos você pensa que está
fazendo? — Nero falou, frio e cruel.
— Divertindo a dama. Algo que você
aparentemente não estava disposto a
fazer.
A mandíbula de Nero se apertou, e foi
então, quando pisquei e voltei dos efeitos
das gotas mágicas, que percebi o que
acontecia ao meu redor. Ninguém estava
nos observando, apesar da grande cena
que Nero e Harker faziam. Os ocupantes
dos outros sofás estavam ocupados demais
mordendo um ao outro e se beijando.
Queridos deuses.
Cambaleei, tentando não tropeçar
neles. Minha cabeça estava girando com
mil luzes. — O que há nessas gotas? —
Exigi, olhando para Harker.
— Néctar. Diluído — Acrescentou ele
rapidamente. Culpado?
— Você viu a forte reação dela antes.
Não deveria ter lhe dado mais. — Advertiu
Nero, a raiva zumbindo contra sua
fachada fria.
— A reação dela? Você quer dizer,
quando ela te mordeu e teria conseguido o
que queria com você se eu não tivesse
entrado. — Harker riu sem humor. —
Sim, vi tudo bem. Vi como nem tentou
detê-la. Você a queria. E acha que tem o
direito de me julgar? Pelo menos, dei a ela
a opção de tomar as gotas, em vez de
encher-lhe a garganta.
— Isso faz parte da cerimônia de
iniciação. — Retrucou Nero friamente. —
E se você não estivesse tão empolgado com
o néctar, perceberia isso.
— Você não é um modelo de
sobriedade. — Respondeu Harker.
Olhei para Nero, surpresa me
atingindo quando percebi que Harker
estava certo. As pupilas de Nero estavam
dilatadas. Ele também experimentara o
néctar hoje à noite. O que levou o Sr.
Certinho a fazer uma coisa dessas?
— Eu precisava me acalmar. — Ele me
respondeu.
Oops. Eu tinha me perguntado isso em
voz alta? Eu realmente precisava ficar
longe desse Néctar.
— Por quê? Acalme-se sobre o que? —
Perguntei. Simplesmente não consegui
parar de falar.
Os olhos de Nero cintilaram de Harker
para mim. Ah. Ele não gostou que
estivéssemos saindo. Eu nem tinha
certeza do que pensar sobre isso. Não é
como se Nero quisesse sair comigo. Ele se
afastou de mim.
— Você está bem, Leda? — Nero me
perguntou.
— Estou bem.
— Ótimo.
Ele se virou e deu um soco em Harker.
Eles rolaram, chutaram e se agarraram
como se não houvesse amanhã. A briga
deles finalmente chamou a atenção das
pessoas que bebiam as gotas, sugavam
sangue e se beijavam ao nosso redor.
Nero empurrou Harker contra o
corrimão. Harker o agarrou, puxando e
levantando-o. Os dois homens caíram
sobre a barreira, caindo no clube abaixo.
Corri pelas escadas, mas eles já estavam
em pé e brigando de novo. Seus socos eram
agudos, seus chutes, nítidos. Todo
movimento era pura perfeição. Era como
assistir dois mestres no seu melhor.
Se eles não estivessem tentando se
matar.
Assim que a luta caiu, todo mundo
correu para as bordas da pista de dança.
Eles estavam assistindo Nero e Harker
com uma mistura de medo e reverência.
Nenhum dos dois estava em sã consciência
agora, graças ao Néctar. Alguém tinha que
detê-los antes que um deles matasse o
outro. Procurei por alguém especial, mas
ninguém parecia preparado para entrar
no meio da briga.
Desci as escadas correndo, tentando
acalmar minha mente embaralhada,
enquanto corria em direção a eles. Cortei
o ar de hormônios masculinos furiosos e
insanidade induzida por magia, me
plantando bem entre eles. Por um
momento aterrorizante, temi que eles não
parassem, que passassem através de mim
em sua missão de destruírem um ao outro.
Mas pararam.
— Que diabos estão fazendo?! —
Gritei, minha voz ecoando pela sala
silenciosa. Quase me encolhi com o volume
da minha própria voz, mas não podia me
dar ao luxo de mostrar qualquer fraqueza
agora. Precisava me manter firme.
— Saia da frente, Leda. — Ordenou
Nero, o timbre de sua voz era um aviso a
todos que seria melhor se virarem e
correrem por suas vidas agora.
Uma a uma, as pessoas ao nosso redor
fizeram exatamente isso. O clube
esvaziou. Logo éramos apenas eu e a dupla
furiosa. Se eu soubesse o que era melhor
para mim, teria saído também e apenas os
deixaria lutar até a morte. Mas eu não
faria isso. Eu estava chateada como o
inferno com os dois agora, mas não queria
que nenhum deles morresse.
— Vocês dois precisam esfriar a
cabeça. — Falei a eles, meus olhos
ardendo de raiva. Eles provavelmente
tinham assumido aquele brilho azul-
prateado assustador também. Ótimo. Isso
mostraria a eles que eu estava falando
sério.
Ou talvez não. Eles continuaram se
encarando através de mim. Tive a
sensação de que se eu desse apenas um
passo para trás, começariam a brigar
novamente.
— Vocês são melhores amigos. —
Lembrei-os. — Não querem se matar. E
especialmente não sobre quem me drogou
primeiro ou mais ou o que quer que seja.
Sou uma garota crescida e posso cuidar de
mim mesma. E cuidarei de vocês dois se
não se afastarem neste instante.
Nero bufou. — Ela realmente acredita
que pode com nós dois. — Disse ele a
Harker.
— Claro que ela acredita. — Harker
sorriu. — Ela é otimista.
— Bem louca.
— Isso também.
Eles riram às minhas custas, mas pelo
menos abaixavam os punhos. Os observei
trocar um olhar silencioso, então
caminharam juntos em direção à saída.
— Vocês dois não vão se matar, vão? —
Gritei às costas deles.
— Vá para casa, Pandora. — Nero
gritou de volta, uma pitada de diversão
tocando seu tom. — Amanhã, o
treinamento começa de novo.
Oh, que bom.
Quando acordei na manhã seguinte,
Ivy entrava no dormitório, ainda vestida
com seu minivestido.
— Você ficou acordada a noite toda? —
Perguntei a ela, notando seus olhos
cansados e o estado levemente amassado
de seu vestido.
— Bem, não a noite toda. — Ela jogou
a bolsa na cômoda. — Mas quase isso.
Depois daquele pequeno show no Heaven,
fui com alguns caras para outro clube.
O olhar que me lançou, me convidava
a explicar o incidente com Harker e Nero,
mas eu não estava com disposição hoje.
Ivy suspirou. — Hoje vai ser um
inferno. — Declarou ela, enquanto trocava
as roupas esportivas.
— Como todos os dias aqui.
Vestidas para outro dia de tortura,
fomos até a cantina. Deméter estava
lotada esta manhã e o sol ainda não havia
nascido. Empilhamos carboidratos em
nossas bandejas de comida e depois nos
sentamos.
Nos primeiros cinco minutos, Ivy
assistiu meu show com minha pilha de
panquecas do chefe. Parecia que ela
queria dizer algo, mas sempre parava no
último segundo. Finalmente, ela não
aguentou mais.
— Vi o que aconteceu no Heaven na
noite passada. — Começou ela.
Os olhos dela se voltaram para Nero e
Harker, que estavam sentados à mesa
especial com todos os outros especiais da
Legião. Pelo jeito, como não tentavam se
matar, imaginei que eles estavam de volta
aos termos amigáveis.
Ivy sorriu para mim. — Nero e Harker
brigaram por você.
— Isso não foi o que aconteceu.
Ivy levantou o garfo, apontando para
mim. — Querida, foi exatamente o que
aconteceu.
— Eles estavam drogados.
Ela bufou. — Sr. Regras alto?
— Vi nos olhos dele. E Harker também
estava. — Remexi em minha salada de
frutas para não ter que ver o sorriso dela.
— Você sabe, as drogas apenas trazem
à tona seus instintos mais básicos. — Ivy
me disse. — Harker não está escondendo
suas intenções, mas Nero tenta, embora
qualquer um possa ver que gosta de você.
— Ele me deixou no bar para
conversar com a capitã Somerset.
— Sim, para falar sobre relatórios de
missão, eu ouvi. Que romântico! — Ela
girou o garfo no ar. — Além disso, ela
prefere damas a homens.
— Como você pode saber disso?
— Eu falo com as pessoas. As línguas
das pessoas se soltam sob a influência do
Néctar.
— Quantas línguas você soltou ontem
à noite? — Perguntei a ela.
— Mais do que algumas.
— Você se soltou bastante. —
Provoquei-a.
— Eu precisava relaxar também. —
Disse ela, dando uma piscadela. — Todos
os soldados da Legião bebem Néctar
durante o tempo de folga.
— Entendo. Então a Legião dos Anjos
é uma legião de viciados em drogas.
— Desde que isso não interfira no
trabalho deles, os deuses não se
importam. De fato, encorajam isso. Eles
sabem que seus soldados precisam
relaxar. Alguém precisa contar isso ao seu
garoto Nero. Ele é sempre tão tenso.
Exceto a noite passada. Me pergunto
quantas gotas teve que tomar antes de se
soltar o suficiente para dar um soco em
Harker.
Suspirei.
— Essas gotas são o paraíso. — Disse
Ivy, uma expressão sonhadora banhando
seu rosto.
Não é tão celestial quanto o sangue de
Nero. Não, eu não podia pensar nisso,
naquela experiência de derreter os joelhos
e induzir ao êxtase que era beber seu
sangue. Enterrei minhas unhas nas
palmas das mãos e agarrei-me à negação
pela minha bela vida.
— Então, do qual você gosta? — Ivy me
perguntou.
— Estou tentando não pensar.
Ivy assentiu. — Então siga seu
coração.
Não foi isso que eu quis dizer. Eu só
tentava não pensar em toda a situação.
Não podia estar com nenhum deles, de
qualquer maneira. Eu tinha certeza de
que a Legião tinha regras sobre namorar
seus superiores. Eles tinham regras para
tudo. Além disso, eu tinha coisas maiores
com que me preocupar. Como Zane. Tinha
que me concentrar em Zane. Não em
brincar com o major e o coronel.
Terminamos o café da manhã e depois
fomos para a academia. Quando chegamos
lá, Nero estava com Harker e a capitã
Somerset. Todos os três vestiam seus
trajes de couro. Isso significava
problemas.
— Viagem de campo hoje! — Declarou
Harker alegremente.
Nero estava mais contido. — Estamos
dividindo vocês em três equipes. Cada
equipe irá se infiltrar num esconderijo em
um local diferente, que acreditamos que
vampiros desonestos se escondem. É dia,
então eles devem estar dormindo e mais
fracos. Esta missão não deve ser um
problema para vocês.
O medidor de realidade de Nero estava
fora de controle, se ele pensava que
irromper em uma fortaleza de vampiros
furiosos e cheios de si não era “nenhum
problema”. Eu não disse nada, no entanto.
Tentar argumentar com Nero era como
conversar com uma parede, exceto que a
parede era menos teimosa.
As equipes foram designadas, e acabei
com Ivy e Drake na equipe da capitã
Somerset.
— Você está comigo, Pandora. — Falou
ela enquanto os outros saíam. Ela lançou
um rápido olhar para Nero e Harker. — É
melhor assim. Os meninos precisam de
uma chance para esfriarem. Não
queremos que eles comecem a brigar por
você de novo.
Eu disse a Ivy que eles não brigaram
por mim, mas não pude discutir com a
capitã Somerset sobre isso. Primeiro de
tudo, ela era minha oficial superior, e eu
realmente precisava começar a me
comportar, se quisesse fazer parte da
hierarquia e ganhar a capacidade
necessária para salvar Zane. E segundo,
eu não tinha certeza absoluta de que ela
não estava certa.
— O que sabemos sobre esse
esconderijo? — Perguntei. Esta sou eu.
Negócio puro até o fim. — Esta informação
veio dos prisioneiros vampiros que
capturamos?
A capitã Somerset me deu um olhar
duro e longo. — Nero está certo. Você faz
muitas perguntas.
Eu continuei, indiferente. — Eles não
dão informações tão facilmente.
— Ninguém disse que era fácil, doçura.
— Podemos estar indo direto para uma
armadilha.
— Você pensa demais em sua posição.
Isso vai causar muitos problemas para
você. — Um sorriso torceu seus lábios. —
Mas você tem uma bela bunda. Isso deve
tirar você de muitos problemas. Percebo
por que Nero e Harker querem fazer sexo
com você.
Minha boca caiu em choque com a
franqueza dela.
— Nunca esteve com um soldado da
Legião? — Ela perguntou, ainda sorrindo.
— Não se preocupe. Tenho certeza que
eles vão te arrebentar gentilmente. Mas
você pode garantir que dispensem as
drogas antes. Isso tende a fazer os caras
perderem o controle.
— E as garotas? — Perguntei. Não
acreditei que estava tendo essa conversa.
Era como uma realidade alternativa ou
algo assim.
— Somos mais disciplinadas. — Ela
piscou para mim.
— Não haverá sexo. — Afirmei.
Isso provocou uma risada da capitã. —
Veja, estou na Legião há tempo suficiente
para saber que isso não é verdade. Esta
não é a primeira vez que isso acontece.
— Que eles começaram a brigar por
uma mulher?
— Bem, esta é a primeira vez que isso
acontece. Mas muitas mulheres vieram e
se foram e tiveram seus corações partidos
por um ou pelos dois.
— Parece adorável. — Falei
secamente.
— Disseram que sim. Até o inevitável
desgosto, pelo menos. Antes disso, se
divertiram muito. Nero é um anjo, e os
anjos são grandes amantes. Eu já tive
alguns. — Ela tirou um momento para
saborear alguma lembrança. — E Harker.
Bem, ele é quase um anjo. Há rumores de
que é o próximo na fila para se tornar um,
como sempre quis. Entre os dois, tiveram
algumas centenas de mulheres.
— Agora eu sei que você está gozando
com a minha cara.
Ela encolheu os ombros. — A
imortalidade é muito tempo.
Quando um soldado da Legião
ganhava essa pequena habilidade? Os
vampiros eram imortais, e ganhei seus
poderes. Eu já era, sem saber, imortal
também? Nunca envelheceria? Tentei não
pensar nisso. Imortal ou não, um soldado
da Legião estava destinado a morrer
jovem. Também tentei não pensar nisso.
— Eu os vi com a mesma mulher. —
Continuou a capitã Somerset. — Mas
nunca os vi brigar por uma. — Ela me
olhou. — Você é bonita. Mas me pergunto
o que tem que incita a loucura neles.
— Tenho certeza de que eram as
drogas.
Ela riu. — Você é uma garota doce e
inocente. As drogas simplesmente
trouxeram à tona o que já estava lá. — Os
olhos dela se estreitaram. — Eu realmente
me pergunto. O que você tem?
— Disseram-me que minha teimosia é
muito cativante.
Ela bufou. — Nero disse isso, não
disse? Ele é uma piada. Mas acho que não
é isso. Ele é atraído pela sua escuridão. E
Harker... acho que é atraído pelo
contrário. Por sua inocência. Pela a luz
dentro de você.
— Isso não faz nenhum sentido. Eles
não podem ser atraídos por mim por
razões opostas. Não posso ter escuridão e
luz.
— Quem te disse isso? — Ela
perguntou, divertida.
— Os Peregrinos da minha cidade
eram bastante inflexíveis, dizendo que a
luz só pode existir dentro de você quando
expurga a escuridão.
Ela estalou a língua. — Os peregrinos.
Eles têm boas intenções, mas seu
entendimento é limitado a livros, não a
vida. Todos nós somos uma mistura de
escuridão e luz. Às vezes os pesos se
inclinam para um lado, às vezes para o
outro. Até a alma mais brilhante tem
toques e sinais de sombra. E até a alma
mais sombria vislumbrou a luz. Na
Legião, temos em nós poderes das trevas e
da luz. É como nós os usamos que importa.
É isso que nos torna bons ou maus. E você.
— Ela assentiu. — Sim, vejo agora. Você
já tem escuridão e luz em si, um equilíbrio
perfeito. É meio que lindo. — Ela piscou
para mim. — Se você ficar cansada desses
meninos, venha me fazer uma visita.
Então ela se virou e saiu da sala,
fazendo-me correr para segui-la.

Pegamos o trem para Montreal, uma


hora de viagem, graças à engenharia da
magia de Magitech. De carro, a viagem
levaria horas. Desta vez, ninguém
vomitou no trem. Essa já era uma vitória
por si só.
Além disso, Ivy e Drake estavam no
meu time. Passamos o passeio de trem
jogando cartas, enquanto ríamos de todas
as novas histórias da Legião que Ivy
aprendera durante sua aventura na noite
passada.
O resto da nossa equipe era composta
por três pirralhos da Legião: Mina, Roden
e Kinley. Exceto que não agiam como
pirralhos hoje. De fato, não nos
incomodaram. Talvez não fossem mais
pirralhos.
Quando sussurrei algo nesse sentido
para meus amigos, Drake explicou. — Eles
respeitam você, Leda. E depois que saiu
sozinha, enfrentando as Planícies Negras
para resgatar Nero, como eles não
respeitariam? A história do seu grande
resgate está se espalhando pela Legião.
— O mesmo aconteceu com o Heaven
ontem à noite. — Acrescentou Ivy,
sorrindo por cima de suas cartas.
— Ok, o que aconteceu ontem à noite?
— Drake perguntou. — Ouvi sobre
demônios atacando e Nero e Harker
explodirem um quarteirão inteiro da
cidade, combatendo-os.
— Isso teria sido preferível ao que
realmente aconteceu. — Murmurei.
— Qual é?
Ivy cutucou meu ombro. — Do que você
está falando? O que realmente aconteceu
foi muito melhor do que demônios
atacando Nova York. — Ela olhou para
Drake. — Harker e Nero brigaram por
Leda.
Drake assentiu. — Ah, isso faz muito
mais sentido.
— Nada disso faz sentido. De tudo. —
Declarei.
O trem entrou na estação, então
guardamos nossas cartas. Assim que
paramos, a capitã Somerset abriu a porta
e todos a seguimos. Nossa presença, e os
uniformes da Legião, atraíram tanta
atenção aqui quanto em Purgatório.
Para o deleite de nossa plateia
encantada, descemos a rua até o escritório
da Legião. Aqui era um pouco maior que o
de minha cidade natal, duas celas em vez
de uma, mas também estávamos na
fronteira aqui. Isso significava que os
recursos eram escassos, economizados e
dedicados ao grande muro na periferia da
cidade. Afinal, isso era tudo o que havia
entre a humanidade e os monstros.
Havia dois caminhões da Legião
estacionados na garagem, e a capitã
Somerset escolheu o branco. Então ela
jogou as chaves para Mina.
— Ouvi dizer que você fez um bom
trabalho dirigindo aquela carga de
vampiros de volta das Planícies Negras,
então estou designando você como nosso
motorista. Tente não bater no caminhão.
— Ela sorriu.
Não há muito em que bater, pensei
enquanto saímos da cidade. Além do
muro, a Wilds, ou a Wicked Wilds como
muitas pessoas os chamavam, não
passava de uma extensão de grama
marrom entre algumas montanhas. Não
havia árvores à vista. Eles foram uma
vítima precoce da chegada dos monstros
aqui.
Mas, à medida que avançávamos,
árvores apareceram. Começou com apenas
alguns arbustos esparsos, mas a cada
quilômetro que passava, as árvores
aumentaram, mais altas e mais cheias,
até estarmos dirigindo em uma rua
estreita entre duas imensas florestas. O
céu nublado se abriu e flocos de neve
caíram suavemente como um ganso.
— Neve? No verão? — Ivy perguntou,
olhando maravilhada.
— O clima está todo errado aqui. —
Respondeu a capitã Somerset.
Mais à frente, a floresta se abriu em
uma clareira com três prédios. Há muito,
dois edifícios haviam desmoronado, mas o
terceiro ainda estava de pé. E luzes
brilhavam através das janelas, alguém
estava em casa.
A capitã disse a Mina para parar o
caminhão e desligar o motor. Seguimos em
direção à floresta, continuando pelas
árvores. A neve estava caindo mais forte
agora. Estava ficando difícil ver através
das rajadas de rajadas assobiando pela
terra. Não havia guardas, alarmes ou
armadilhas. Nada.
— Isso parece estranho. — Observei,
quando paramos na beira das árvores.
— Não está desistindo, está? — A
capitã Somerset respondeu.
— Simplesmente não posso deixar de
sentir que fomos atraídos para cá. A
informação sobre esse lugar veio dos
vampiros que capturamos nas Planícies
Negras, não é?
— Sim.
— E as informações sobre as outras
duas fortalezas, que a Legião está
conferindo agora?
— Também.
— E confiamos nisso? — Perguntei.
— Nossos interrogadores são bem
cuidadosos.
Estremeci.
— Eu te disse que você faz muitas
perguntas. Algumas coisas que não deve
saber. Como quantas pessoas esses
sugadores de sangue mataram em Nova
York ou desde que partiram. — Ela me
disse.
— Muito?
— Com certeza não foi pouco. Corpos
empilhados por toda parte, seus pescoços
rasgados, seu sangue drenado.
Engoli em seco.
Seu olhar deslizou para o prédio diante
de nós. — Parece maior do que
esperávamos. Ok, vamos nos mudar, mas
quero que mantenham os olhos abertos.
Mantenham-se nas sombras e tenham
cuidado. Precisamos explorar o local e
descobrir quantos vampiros estão
escondidos lá.
Nós seguimos sua liderança,
rastejando em silêncio. Nenhum vampiro
pulou da neve, que se acumulava
rapidamente no chão. Mesmo quando
entramos no prédio, nada aconteceu. Os
corredores estavam vazios, os aposentos
abandonados. Parecia uma tumba aqui.
Era uma tumba. Nossa tumba.
Quando entramos na grande câmara
central, os vampiros saltaram das tábuas
do chão, totalmente acordados. E não
estavam sozinhos. As portas se abriram e
bruxas e lobisomens saíram de quartos
conectados, ao nosso redor.
Quando confrontado por uma horda de
vampiros, só havia realmente uma coisa
que você poderia fazer. Não, não fugir
gritando como o inferno. A Legião dos
Anjos franzia o cenho diante de
demonstrações de covardia de seus
soldados. Então, levantamos nossas
armas cheias de tranquilizantes mágicos
emitidos pela Legião e atiramos nos
vampiros. Caíram feito moscas.
Os lobisomens não reagiram tão
gentilmente. De fato, os tranquilizantes
não pareciam fazer nada, mas os
deixavam irritados. Continuei atirando
em qualquer coisa que se mexesse, de
qualquer maneira. O que mais eu poderia
fazer? Não estávamos armados para nada
além de vampiros.
Se fossem apenas os vampiros,
estaríamos bem, mesmo com o número
deles. Não tínhamos contado com a equipe
de apoio sobrenatural. O que eles estavam
fazendo, ajudando os vampiros
desonestos?
A capitã Somerset avançou, sacando
sua espada assustadoramente grande. Ela
cortou e deslizou, cortou e deslizou,
rasgando qualquer coisa que passasse da
nossa linha de tiro. Fiquei realmente feliz
por ela estar do nosso lado. Aquela mulher
era assustadoramente feroz. E
mortalmente eficiente.
Mas não foi suficiente.
Os lobisomens estavam invadindo, e
eu não tinha ideia de qual nuvem de
destruição iminente as bruxas fabricavam
na retaguarda. Eu sabia que, se não
cuidássemos disso rapidamente, a nuvem
escalaria além do iminente. Os pirralhos
da Legião já tinham suas facas sacadas e
estavam se segurando contra os shifters.
Drake lutava com um dos lobos, fazendo
bom uso dessas habilidades mágicas de
combate no futebol.
Ivy e eu fomos atrás das bruxas. A
nuvem descia sobre nossos companheiros
de equipe, junto com todos os tipos de
poções que as bruxas jogavam contra nós.
— Temos que acabar com isso. — Falei
a Ivy, quando um raio engarrafado
explodiu ao lado do meu pé.
Nós nos movemos, evitando bombas de
fogo e enxames de insetos e uma estranha
gosma verde. Uma das garrafas de poção
quebrou bem na minha frente, salpicando
minhas pernas com pequenas gotas
vermelhas. Aquelas gotas vermelhas
imediatamente explodiram em chamas
por todo o couro. Dor permeava a
superfície da minha calça, queimando
minha pele. Apaguei as chamas, mas o
estrago estava feito. Agarrei a bruxa e
afundei minhas presas em seu pescoço.
Beber o sangue dela não era a experiência
orgástica de beber o sangue de Nero. Nem
de longe. Mas isso me curou. Eu meio que
amei a ironia de usar o sangue dela para
curar os danos que causara ao meu corpo.
Seus olhos tremiam de medo, como se ela
estivesse com medo que eu a drenasse.
— Você não tem um gosto tão bom. —
Falei a ela, depois atirei um calmante
nela.
Girei, abatendo o resto das bruxas ao
meu redor. Um grito de agonia chamou
minha atenção do outro lado da sala. Um
lobisomem de um metro e oitenta
segurava Ivy em suas garras, os dentes
pingando sangue. Ela tinha uma marca de
mordida do tamanho de um lobisomem no
braço. Quando ele estalou a mandíbula
para dar outra mordida, ela deu um soco
na cara dele. Rugindo, ele a jogou através
da sala. Minha amiga caiu em um monte
mole no chão.
Corri direto para ela, mas um par de
lobisomens saltou no meu caminho. Tentei
contorná-los sem sucesso. Eles eram
grandes e rápidos demais. Me bloquearam
a todo momento.
— Ajude Ivy! — Gritei para Drake.
O lobisomem que a jogou ainda não
havia terminado. Ele mordeu e arranhou-
a. Toda vez que ela tentava se levantar,
ele a derrubava. Ela se enrolou em uma
bola, protegendo o rosto. Drake foi
separado dela por uma parede de quatro
lobisomens. Tinha que ajudá-la.
Enfrentei os dois lobos na minha
frente, puxando minha faca. Cortei o
primeiro lobisomem, mas ela tirou a faca
da minha mão. Então os dois lobos
pularam em cima de mim. Desviei,
sabendo que não era pária para essas
garras. Se eles acertassem o golpe, eu
estaria em uma situação ainda pior do que
Ivy. Os lobisomens eram mais fortes do
que eu, e havia dois deles.
Eu os iludi novamente, mergulhando
para a minha faca caída no chão. Quando
o primeiro lobo atacou, enfiei-a na pata
dela. Ela rugiu, correndo loucamente com
três pernas enquanto embalava sua
ferida. Peguei a arma de Ivy e a minha no
chão e descarreguei tudo o que tinha no
segundo lobo. Isso o nocauteou.
Passei correndo pelo lobo mancando,
que tentava segurar o cabo da faca com a
boca para que pudesse puxá-la. Mas sua
boca era grande demais e não era feita
para trabalhos de precisão. Ela ficaria
ocupada por um tempo. Drake também
havia rompido. Seus quatro lobos estavam
imóveis no chão, mas ele ainda estava
lutando com quem atacou Ivy. O lobo ficou
na frente da nossa amiga, impedindo que
alguém a alcançasse.
Ivy parecia mal. Ela estava
inconsciente com uma enorme contusão na
cabeça. Seu traje de couro estava rasgado,
reduzido a pedaços em seu abdômen. Ela
estava sangrando por todo o chão.
E aquele maldito lobo não estava se
mexendo. Ele recuou para as pernas
traseiras e empurrou Drake para trás,
fora de alcance. Corri para o lobo, pegando
a faca de Ivy do chão, enquanto me movia.
Me lancei sobre ele e esfaqueei o coração.
Ele estremeceu, tentando me derrubar.
Eu segurei, enquanto seu sangue escorria
pelo meu braço, fazendo meu aperto
escorregadio. A fera continuou a girar e a
recuar. E continuei a cravar a faca mais
fundo, tentando rasgar seu coração. Suas
garras cortaram meu rosto, tirando
sangue.
Meus braços tremiam e gritavam sob o
esforço de lutar com um lobisomem de
quinhentos quilos, mas eu não podia
larga-lo. Se eu largasse, não só eu estava
morta, como Ivy. Coloquei minhas pernas
ao redor do lobo, prendendo-as nas costas
dele. Então impulsionava com tudo o que
tinha para atravessar a faca por todo o
coração.
O lobo morreu, caindo em cima de
mim. Não importava o quanto eu tentava
empurrar, mexer e chutar, não conseguia
tirá-lo de mim. Tentei não pensar na
pessoa morta sangrando em cima de mim,
e especialmente no fato de que eu a
matara. Em vez disso, concentrei-me em
respirar. Isso estava começando a ficar
difícil. Entre as manchas de luz amarela e
roxa. Ouvi botas se aproximando, depois
parando ao meu lado. Olhei para o rosto
da capitã Somerset.
— Você fez bem. — Ela me disse,
enquanto eu lutava para respirar.
Ela tirou o animal de cima de mim e o
jogou de lado como se não pesasse nada.
Meu queixo teria caído, se ainda tivesse
forças para fazê-lo. Me virei e me ajoelhei
para checar minha amiga.
— Ela não está respirando! — Falei
desesperadamente.

A capitã Somerset estabilizou Ivy. Ela


ainda não tinha adquirido a magia dos
deuses de cura, mas estava totalmente
abastecida com poções de mega-dose.
Assim que ela deu a Ivy alguns, minha
amiga começou a respirar novamente.
Carregamos o caminhão com os membros
sobreviventes do exército inimigo e depois,
cuidadosamente, depositamos Ivy por
uma das fileiras. Drake e eu cuidamos
dela durante todo o caminho de volta à
cidade.
Uma vez lá, levamos Ivy ao curandeiro
local, que a remendou da melhor maneira
possível, mas ele nos avisou que as feridas
dela estavam além da magia dele.
Tivemos que transferi-la aos curandeiros
do edifício da Legião em Nova York.
Estávamos no trem agora, contando os
minutos até chegarmos à cidade. Drake
estava segurando a mão de Ivy. Mesmo
que ela não estivesse consciente, eu sabia
que ela teria apreciado o gesto de qualquer
maneira. Mina, Roden e Kinley estavam
vigiando nossos prisioneiros, pelo menos
os poucos que conseguimos pegar dessa
vez. Quando estávamos cercados, a
sobrevivência superou a necessidade de
prisioneiros. Eu só esperava que a Legião
visse da mesma maneira. Eles eram
engraçados sobre coisas assim.
— Ok, vejo você em meia hora. — A
capitã Somerset falou em seu telefone e o
enfiou na jaqueta.
Eu estava sentado ao lado dela,
escutando a conversa dela com Nero e
Harker. Ela nem tentou me afastar.
— Você estava certa. — Ela me disse
com um suspiro. — Os vampiros que a
Legião torturou por esses locais, sabiam
que estavam nos enviando para uma
armadilha. O mesmo que aconteceu
conosco aconteceu com os grupos de Nero
e Harker. Isso é maior do que os vampiros
transformados fora do sistema. Todos nós
nos infiltramos em sites que deveriam ser
apenas vampiros, mas cada um de nós
encontrou muito mais.
— Todos estão bem? — Perguntei.
— Não houve vítimas do nosso lado. —
Respondeu ela para meu grande alívio. Já
havia morte suficiente.
— O que está acontecendo? —
Perguntei. — Quem está por trás disso?
— Demônios.
Essa única palavra me surpreendeu e
me silenciou.
— São demônios —, continuou ela. —
E eles não estão apenas transformando
vampiros. Eles também estão
transformando shifters e levando as
bruxas a desertar. Os corpos que
encontramos nos últimos dias, foram as
pessoas que eles foram incapazes de virar
para o lado deles. Eles estão construindo
um exército para desafiar os deuses.
— Por que eles não usam apenas os
monstros? — Questionei. — Eles os
controlam, certo?
O capitão Somerset baixou a voz para
quase um sussurro. — Não.
— Não? — Sussurrei de volta.
Ela se inclinou para mais perto. — O
que vou lhe dizer não sai da Legião.
Ninguém pode saber sobre isso. Nem seus
amigos ou familiares. Ninguém.
Assenti.
— Na guerra entre deuses e demônios,
não foram apenas os demônios que
libertaram os monstros —, contou ela. —
Os deuses e os demônios fizeram. À
medida que a guerra aumentava, eles
criavam monstros mais fortes e
resistentes para combater os monstros do
outro lado. Mas perderam o controle deles.
Os monstros não obedeciam mais aos
comandos de seus senhores. Os monstros
atravessaram a Terra, devastando-a em
vez de atacar o exército do outro lado. No
final, os deuses venceram a guerra. Eles
empurraram os demônios de volta ao seu
reino. Mas era tarde demais. Eles e os
demônios haviam tornado os monstros
muito fortes. Muito resistentes à magia.
— E é por isso que os deuses deram
magia à humanidade —, completei. — É
por isso que eles construíram o muro.
Não tinha sido um ato de misericórdia.
Eles estavam apenas tentando mitigar a
bagunça que eles mesmos fizeram.
— Sim —, ela disse. — Os deuses
precisavam de nós para ajudá-los a
reconstruir a Terra. Duzentos anos depois,
a batalha por esta Terra ainda continua.
O que fazemos aqui na Legião é
importante.
Os deuses nos deram magia e força que
nos capacitaram a matar seus inimigos.
Nós éramos a próxima geração de
monstros. E agora os demônios estavam
tentando construir sua própria geração de
monstros também.
A revelação era preocupante, mas não
surpreendente. Os humanos não eram
nada além de ferramentas para os deuses,
algo a ser usado. Bem, eu iria usá-los
escondido para salvar Zane. Anjos das
Trevas o pegaram, e isso significava
demônios. Então eu estava do lado dos
deuses. Por enquanto. Simplesmente não
diria a eles sobre Zane.
Quando entrei na enfermaria médica
da Legião, esperava encontrar Ivy
sentada, conversando e encantando os
curandeiros. Em vez disso, a encontrei
dormindo e conectada a uma variedade de
máquinas Magitech. Os curandeiros me
garantiram que Ivy estava bem, que eles a
colocaram para dormir, para permitir que
a magia curasse completamente seu corpo,
mas era difícil acreditar neles quando
entrei. Uma caixa rosa de biscoitos da mãe
de Ivy estava em cima da mesa, fechada.
Eu esperava que a Legião estivesse pelo
menos dando à pobre mulher atualizações
regulares sobre o estado de Ivy. Dos
pacotes de cuidados frequentes que
enviara, ficou claro que realmente amava
sua filha.
Saí da sala, sentindo-me inútil e
frustrada. Harker me alcançou no meio do
corredor. Ele encontrou meu olhar e vi
pena em seus olhos.
— Vamos. Vamos andar. — Falou,
pegando minha mão.
Quando saímos, vi Nero do outro lado
do corredor. Ele estava observando todos
os nossos movimentos, mas não deu um
passo em nossa direção.
Harker esperou até passarmos pelos
jardins de nenúfares antes de falar
novamente. — Como você está indo?
— Estou bem. — Esfreguei minhas
mãos contra meus braços, tentando
expulsar o frio que havia se enraizado em
minha alma. — Não sou eu quem está
inconsciente na enfermaria médica. Ou
em um túmulo. — Estremeci.
— Isso não é apenas sobre nossos
corpos, Leda. É muito mais ainda sobre
nossas mentes. Você nunca matou
ninguém antes de hoje. Mas somos
soldados em um exército, travando uma
guerra. E na guerra, há baixas. Pessoas
morrem. É isso que soldados, como nós,
fazem.
— Já lutei com pessoas antes.
— Você os feriu, atirou neles com
tranquilizantes mágicos. Mas isso é
diferente. A Legião retira sua inocência.
— Ele colocou as mãos firmes sobre as
minhas trêmulas. — A adrenalina está
baixando e você está começando a
processar o que fez.
Olhei nos olhos dele, minha voz
tremendo. — Onde você quer chegar?
— Se você precisar de alguém para
conversar, estou aqui. — Então, ele beijou
minha testa e se afastou.
Não sabia se queria me afundar
sozinha ou chorar no ombro de alguém.
Então, fiquei lá, olhando para a bela
piscina de nenúfares brancos e rosas
espalhados diante de mim, e tentei muito
não pensar. Mas, por mais que tentasse,
não consegui bloquear o fluxo de imagens
que passavam pela minha cabeça, as
lembranças do que eu havia feito, e o
sangue nas minhas mãos.
— Leda.
Eu me virei para encontrar Nero
parado atrás de mim.
— Então —, falei, limpando as
lágrimas das minhas bochechas. — Você
também veio ver se estou surtando?
— Não. Sei que você não está surtando.
Você é muito forte.
Soltei uma risada infeliz e dolorosa. —
Não, não sou.
— Esta não é a primeira vez que você
terá que matar — disse ele. — Nem a
primeira vez que você fará coisas que não
gosta em nome do bem maior.
— Obrigado pela animadora conversa.
— Não estou aqui para adoçar nada ou
mentir para você, Leda. É a maneira que
é. Eu avisei sobre isso quando você se
juntou à Legião.
— Então você acha que não pertenço a
este lugar?
— Só você pode saber disso. Todo
mundo que se junta à Legião tem suas
razões. Todo mundo precisa de algo, algo
que eles sentem que está faltando dentro
deles. Alguns desejam poder, outros
precisam servir, outros desejam ajudar
alguém que amam.
— Por que você se alistou? —
Perguntei a ele, minha curiosidade me
superando.
Mas ele não parecia ofendido com a
minha pergunta. — Era esperado de mim.
Eu tinha dois soldados da Legião como
pais, ambos anjos. Quando meu pai se
tornou desonesto e minha mãe foi caçá-lo,
outro anjo, um amigo deles, me acolheu.
Ele me treinou. E continuou a fazê-lo
depois que meus pais morreram. Ele me
moldou no que eu deveria ser: o soldado
perfeito da Legião. Depois que entrei, subi
na hierarquia rapidamente, mais
rapidamente do que alguém jamais havia
feito. Fui criado para nada mais além
disso.
— Isso é meio triste.
— Você sente pena de mim. Não sinta.
Eu estava quebrado depois que meus pais
morreram. Este anjo, a Legião, me deu um
propósito. Essa era a minha necessidade.
Esse é o buraco que a Legião preencheu
dentro de mim.
— Você nunca sentiu que não teve uma
escolha, que sua vida nunca foi sua? —
Perguntei a ele.
— Somos todos peões neste mundo. A
escolha é uma ilusão.
— Não acredito nisso.
— Sério? — Uma única sobrancelha se
arqueou para mim. — O que você fazia
antes de se juntar à Legião?
— Trabalhando como caçadora de
recompensas.
— Para sua mãe adotiva —, completou
ele. — Por que você escolheu esse
trabalho?
— Minha família precisava de mim. E
eu era boa no meu trabalho.
— Porque Callista preparou você
exatamente para esse trabalho. Assim
como eu era preparado para a Legião.
Neguei com a cabeça. — Não é a
mesma coisa.
— E antes disso? — Ele perguntou,
ignorando meu protesto. — Onde você
estava, antes de Callista encontrar você?
— Vivia nas ruas.
— Isso explica a seu estilo de luta
desorganizada. — Diversão torceu o lábio
inferior. — E por que você estava nas
ruas?
— Porque minha mãe adotiva anterior
morreu, morta pela gangue que a roubou.
— E os seus pais?
— Eles morreram quando eu era bebê.
Nunca os conheci.
— Você teve muita perda em sua vida,
muita dor. Isso te fez forte. Isso fez você
resiliente. Isso lhe deu a tenacidade
obstinada que a Legião precisa em seus
soldados. Tudo em sua vida levou ao dia
em que você se juntou à Legião.
— Não — falei, negação brotando em
meus lábios. — Essa foi uma escolha.
Escolhi vir aqui. Escolhi me juntar à
Legião.
— Algo levou você a vir. Não sei o que
é. — Ele olhou nos meus olhos, como se
pudesse ler a história da minha vida neles.
— Compaixão. Você está aqui por alguém.
Você não almeja poder, e tem uma mente
independente demais para se sentir
compelida a servir aos deuses.
Não retruquei, não querendo revelar
nada.
Ele balançou a cabeça. — Mas não é
importante. Algo aconteceu e alguém de
quem gosta precisa de você. Está
ganhando poderes para ajudar essa
pessoa. Não é tão incomum, embora
menos comum que a necessidade de poder
ou afirmação. Posso afirmar que as
pessoas com suas motivações tendem a ir
além das outras.
— Agora isso sim, está mais como uma
conversa animada. — Provoquei-o.
Mas ele não se intimidaria com isso. —
Quem a levou a se juntar à Legião não é
importante. Se não fosse essa pessoa, teria
sido outra. Uma coisa ou outra acabaria
por levá-la até nossas portas.
— Você parece terrivelmente certo de
que estou destinada a estar aqui.
— Sim. É quem você é. — Falou
simplesmente.
— Então por que você não quer que eu
entre? — Perguntei.
— Vi uma inocência em você. — Ele
envolveu meu rosto com suas mãos. —
Uma inocência linda. A Legião retira
nossa inocência. Isso nos torna difíceis.
Isso nos torna menos humanos. Não
queria ver isso acontecer com você.
— E ainda assim você concordou em
me deixar entrar.
Ele se inclinou, sua mão roçando a
minha. — Percebi que era inevitável. Do
jeito que lutou contra aqueles vampiros,
três deles contra apenas você. Vi sua
tenacidade de não desistir, de um jeito ou
de outro, se juntaria à Legião.
— Você gostaria que eu não estivesse
aqui? — Perguntei baixinho.
Ele riu. — Você deve me achar muito
altruísta.
— Isso não é uma resposta.
— Você mudou este lugar, Leda. Sua
paixão, sua teimosia, sua humanidade,
até essa sua atitude.
Ele passou os dedos pelo meus lábios,
despertando lembranças da última vez
que estivemos tão perto, do seu sangue em
mim. E o meu nele. Minha boca latejava e
lutei para segurar minhas presas
emergentes.
— A capitã Somerset diz que você é
atraído pela escuridão dentro de mim. —
Falei.
Nero riu. — Terei que falar com
Basanti sobre sua traição. Sim, sou
atraído pela sua escuridão. É o meu lado
sombrio que busca a escuridão. Mas como
me sinto por você... não é como ela pensa.
— Então, não é meu comportamento
impecável e profundo respeito pela
autoridade?
Sua risada era aguda e sexy. — Receio
que não.
— Ótimo. Porque essas coisas são
realmente chatas.
— Não há nada chato em você, Leda,
nada típico. Você está em perfeito
equilíbrio: luz e escuridão. Você prova que
ambos podem existir em harmonia dentro
de uma pessoa. Um não precisa consumir
o outro. Pessoas de luz geralmente são
arrogantes e hipócritas. Mas você também
não é. Assim como não sente prazer em
perder o controle, em excesso, na dor,
como os governados pelas trevas. Por
tanto tempo, tem sido uma batalha entre
luz e escuridão, entre deuses e demônios.
Somos forçados a escolher um ou outro.
Todos caímos em algum lugar nessa escala
de escuridão e luz, mas nenhum de nós
está equilibrado. Exceto você.
— Você pode ver isso? — Perguntei.
— Posso sentir sim. Os deuses
chamariam isso de blasfêmia, loucura de
demônios, mas acho que seu equilíbrio
perfeito é a coisa mais linda que já vi.
Você, Leda. Me faz sentir como se
houvesse esperança para a humanidade,
para todos nós.
Ele se inclinou e me beijou no rosto,
depois se afastou, deixando-me ainda
girando com o discurso mais romântico
que eu já tinha ouvido. Fiquei ali por um
tempo, minha mente tentando resolver
tudo o que Harker e Nero disseram.
Finalmente desisti de tentar resolver
meus sentimentos conflitantes sobre eles,
e sobre mim. Voltei para o meu dormitório.
Fiquei fora por tanto tempo, que os
curandeiros haviam transferido Ivy para o
nosso quarto. Ela estava acordada, feliz e
curada. Ela e Drake estavam sentados de
pernas cruzadas em sua cama, a caixa de
biscoitos agora aberta entre eles.
— Sinto muito. — Falei com culpa,
sentando-me ao lado deles. — Demorei.
Eu não estava aqui para recebê-la de
volta.
— Você nunca precisa se desculpar
comigo, Leda. — Ela me abraçou. — Você
salvou minha vida.
— Drake pode ter ajudado um pouco —
, falei, apertando meu polegar e indicador.
Ivy e eu rimos.
— Está certo. Ria o quanto quiser —,
ele disse, assentindo. — Mas você não
venha a mim na próxima vez que tiver
lobisomens que precisam ser combatidos.
— Espera-se que isso seja uma
ocorrência regular? — Ivy perguntou.
— Esta é a Legião dos Anjos, não as
Escoteiras. — Drake respondeu-lhe.
— Bem, ainda tenho meus biscoitos. —
Quando ela alcançou a caixa, uma
pulseira de prata, com um pequeno
amuleto deslizou sobre seu pulso.
Eu pisquei, limpando minha visão. Eu
já tinha visto o símbolo desse amuleto
antes.
— Há quanto tempo você tem essa
pulseira? — Perguntei a ela.
— Um tempo. Não costumo usá-la,
mas a uso porque acelera minha cura
limpando minha aura. — Ela encolheu os
ombros. — Pelo menos é o que minha mãe
diz. Ela fez isso para mim alguns anos
atrás.
— Que símbolo é esse?
— Não tenho certeza. É o símbolo da
minha mãe.
— Eu já vi isso antes. — Olhei para o
símbolo de uma flor de camadas
intermináveis, o símbolo que eu tinha
visto pintado na porta da loja da telepata.
— O que há de errado? — Ivy me
perguntou.
Tudo. — Você tem uma foto de sua
mãe?
— Tenho.
Ivy puxou uma no telefone e me
mostrou a tela. O rosto da amiga de Calli,
Rose, olhou para mim.
— Leda?
— Conheço ela. — Engoli em seco. — E
eu a vi morrer.
— Isso é impossível —, protestou Ivy.
— Ela está escrevendo para mim desde
que cheguei aqui. Até falei com ela
algumas vezes.
Fiquei muito fria quando o mundo
entrou em foco, quando percebi o que
estava acontecendo.
— Sua mãe está trabalhando para os
demônios. — falei a minha amiga.
— Isso não tem graça, Leda. — Falou
Ivy, franzindo as sobrancelhas.
Apontei para a foto no telefone dela. —
Vi aquela mulher morrer diante dos meus
olhos.
— Isso é impossível.
— Sua mãe se chama Rose —, falei a
ela. — Ela administra uma loja de leituras
psíquicas brega na cidade, mas o negócio é
de verdade. Ela é uma telepata, uma
fantasma, mas escondia seu dom, porque
se os deuses descobrissem sobre ela, eles a
levariam embora.
A boca de Ivy caiu. — Como você pode
saber sobre isso?
— Sei porque sua mãe é amiga da
minha mãe adotiva Calli. E porque
quando a visitamos em Nova York, a
encontramos morrendo em uma poça de
seu próprio sangue. Ela disse que um Anjo
das Trevas a atacou. — Balancei a cabeça.
— Não, algo mais está acontecendo aqui.
Você pediu à Legião para curar o câncer de
sua mãe, transformando-a em vampira.
Quando sua petição foi rejeitada, ela deve
ter resolvido o problema com suas
próprias mãos. Ela fez um acordo com os
demônios. Em troca de a curarem,
concordou em ajudá-los.
— Ajudá-los a fazer o que? — Drake
perguntou.
— Construir um exército de demônios.
E... Oh, merda! — Pulei da cama, ficando
de pé. — Tenho que ir. Cuide de Ivy. —
Falei para Drake enquanto corria em
direção à porta. — Eu voltarei.
Corri para fora da sala e fui para a
escada. Subi dois degraus de cada vez,
correndo cada vez mais rápido. Os oficiais
mais altos da Legião tinham seus quartos
no nível superior do edifício. O que quer
que estivesse acontecendo nessa guerra
entre deuses e demônios, era profundo.
Rose mudou para o lado deles. E se alguns
da Legião também tivessem? Tinha que
levar isso para o topo, para o Nero. Ele não
poderia ter mudado de lado. O anjo era um
defensor de regulamentos e protocolos.
Para ele, deslealdade era uma palavra de
quatro letras. Com pontos de exclamação.
Ofegante, entrei no corredor no último
andar. Passei por portas bem marcadas
com o nome de cada oficial, agradecendo
silenciosamente à Legião por suas
habilidades de organização
excessivamente desenvolvidas. Perto do
final do corredor, encontrei uma porta que
dizia “Coronel Nero Windstriker”. Bati
duas vezes, agradável e calma. Meio
minuto se passou, e um par de capitães
que me lançaram olhares severos, mas
Nero não respondeu. Levantei meu punho
para bater novamente, quando a porta do
outro lado do corredor se abriu e Harker
saiu.
— Leda? — Ele congelou quando seus
olhos encontraram os meus, vendo minha
aparência irritada. — O que há de errado?
— Preciso falar com Nero. Sobre a
missão. — Acrescentei rapidamente,
quando a decepção brilhou em seus olhos.
— Ele teve que deixar a cidade —,
disse Harker. — Ele está liderando outra
invasão em um potencial de vampiros
desonestos.
Que momento miserável.
— Talvez eu possa ajudá-la —, disse
Harker. — Estou no comando até o Nero
retornar.
Olhei para cima e para baixo no
corredor, meus lábios formando uma linha
fina. Ele pareceu perceber que estava
realmente paranoica com os bisbilhoteiros
no momento, porque abriu a porta e me fez
entrar.
— Por favor, entre. — Convidou.
Aceitei sua oferta, seguindo-o até seu
quarto, sem apartamento, percebi quando
entrei em uma sala que era maior que o
dormitório que eu compartilhava com
outras cinco pessoas. O piso era de
carvalho, com janelas do chão ao teto e os
móveis pareciam pertencer a um castelo.
Havia duas portas ao lado da sala de estar.
Vi uma grande cama de dossel em uma e
uma banheira de hidromassagem na
outra. Subir na Legião certamente tinha
suas vantagens.
Mas não tive tempo de parar e admirar
a opulência. Me virei para Harker, que
olhava para mim como se eu fosse um
enigma.
— Quero ajudá-la, Leda —, começou
ele. — Você está lutando com o que
aconteceu em campo?
— O que? — Perguntei confusa, até
perceber que ele estava falando sobre o
lobisomem que matei. — Não é isso não. É
outra coisa.
Ele esperou que eu falasse, mantendo
distância, como se percebesse que eu
precisava de espaço.
— E se eu dissesse que tinha uma
liderança em uma sede de vampiros
desonestos dentro da cidade, uma que
poderia nos levar de volta aos demônios?
Seu rosto estava cuidadosamente
neutro. — Como você sabe disso?
— É apenas um palpite —, respondi.
— Pode não dar certo. Mas se isso
acontecer...
— Poderíamos acabar com a operação
dos demônios na cidade. — Ele assentiu.
— Não podemos permitir que eles se
estabeleçam em nosso mundo. O que você
sabe?
Hesitei.
— Leda, você é uma soldada da Legião
dos Anjos. Você jurou proteger esta Terra
e seu povo dos demônios e monstros. Posso
ajudá-la, mas você tem que confiar em
mim.
Mordi o lábio, pensando sobre isso. —
Está bem. — Resumi o que sabia sobre
Rose e seu acordo com os demônios,
deixando de fora a parte com meu irmão,
é claro. Minha primeira lealdade ainda
era Zane, Com Legião ou sem.
Harker me ouviu falar, o público
perfeito.
— A mãe de Ivy foi transformada pelos
vampiros, os que trabalham para os
demônios —, conclui. — Se a
encontrarmos, encontraremos os
demônios.
— Ela trabalha para eles. — Falou ele,
franzindo a testa, como se a ideia tivesse
um gosto amargo em sua língua.
—Ela estava morrendo. Na dor.
Sofrendo. — A defendi. — Não é culpa
dela. Temos que salvá-la, não prejudicá-la.
Harker olhou para mim por um
momento, como se estivesse tentando ler
minhas intenções em meus olhos. — Ok —
, falou finalmente. — Vamos fazer isso.
Nós vamos salvá-la.
— Obrigado.
— Aprendemos a aplicar punições
aqui. Mas também aprendemos
misericórdia.
Avancei, diminuindo a distância entre
nós para abraçá-lo. — Não podemos contar
a ninguém da Legião. Eles fariam Rose
sofrer pelo que fez.
Eu esperava que ele discutisse, me
dissesse que estava pedindo o impossível,
mas apenas retrucou. — Isso fica entre
nós dois.
Apertei-o firmemente, feliz por ter
descoberto que restava algo da
humanidade, afinal.
— Como vamos encontrá-la? — Ele me
perguntou depois que o soltei.
— Com isso. — Falei, mostrando a ele
a guia de remessa que eu havia retirado
da caixa de biscoitos de Ivy.

Harker e eu nos preparamos e fomos


visitar a Deliverance, a transportadora
que entregou os biscoitos de Ivy. Quando
eu era caçadora de recompensas,
procurando informações, tive que fazer
coisas assim de maneira indireta. Você
não podia simplesmente entrar no
escritório da maior empresa de entregas
do mundo e exigir ver seus registros de
remessa nos últimos dois dias. Isso era, a
menos que você trabalhasse para a Legião
dos Anjos. Tínhamos a lista em menos de
cinco minutos, junto com uma xícara de
café quente e um brownie. Eu poderia me
acostumar com isso.
Infelizmente para nós, quem enviou
os cookies usou um endereço de retorno
falso. Eu duvidava seriamente que a
Primeira Delegacia de Polícia Paranormal
de Nova York enviara a Ivy uma caixa de
doces. Harker pediu à recepcionista do
Deliverance que chamasse o entregador do
pacote.
E foi assim que acabamos aqui fora da
Sweet Dreams, a mais nova padaria da
cidade. Eles se estabeleceram há apenas
algumas semanas. O entregador não sabia
mais nada sobre os registros de remessa,
que o sistema de computador de
Deliverance, mas reconheceu o cookie que
lhe mostrei. Essa receita tripla de
chocolate com uma pitada de hálito de
fada era exclusiva de uma padaria: Sweet
Dreams.
A escuridão estava caindo sobre a
cidade. Quando chegamos à padaria,
encontramos uma placa “Fechada” por
cima da porta, mas havia luzes acesas lá
dentro. Harker pegou um pedacinho de
metal do tamanho e formato de um
besouro. Assim que ele ligou o Magitech, o
pequeno inseto pulou de sua mão e correu
por baixo da porta da loja.
Observamos seu progresso na tela do
telefone de Harker, o que nos permitiu ver
tudo o que o besouro fazia. A área da
frente era sua típica padaria. Havia
fileiras de doces atrás de balcões de vidro.
Biscoitos, muffins, rolos de canela... um
prato de vidro com doces e chocolates na
bancada ao lado do registro.
Uma mulher vestindo um avental
listrado rosa e branco estava na frente de
um desses balcões. Em frente a ela
estavam dois jovens casais, de mãos dadas
e olhando em volta, como se a qualquer
momento algo pudesse pular de trás de
um dos balcões e matá-los. A senhora do
avental bateu no fone de ouvido, como se
tivesse acabado de receber instruções,
depois abriu a porta na área dos fundos,
acenando para os dois casais.
Quando eles desapareceram nos
fundos, corremos para a porta da frente.
Usando outro pedaço de Magitech, Harker
a abriu em dois segundos. Um aroma de
doces e flores assados fez cócegas no meu
nariz, quando entramos rápido, mas
suavemente pelo piso de vinil
quadriculado e seguimos a procissão mais
fundo no prédio.
À nossa frente, nem a senhora do
avental nem os casais disseram uma
palavra. Os casais ainda olhavam em
volta nervosamente, como se esperassem
que a ira dos deuses os atingisse onde
estavam. Estes deviam ser novos recrutas
para o exército dos demônios. É claro que
estavam nervosos se estavam prestes a
trair os deuses. Os deuses não eram
exatamente conhecidos pelo perdão.
Passamos por fornos e mesas de
preparação, fogões e suprimentos. O lugar
todo era muito estéril, e muito, muito
assustador.
Passamos por outra porta. Esta nos
levou a uma área que parecia mais um
armazém do que uma padaria. As paredes
estavam cobertas de chapas de metal
descolorido, e o chão chiava como o chão de
uma garagem. Havia prateleiras de
armazenamento por toda a sala, e foi atrás
de uma delas que Harker e eu nos
escondemos quando a procissão à nossa
frente parou.
A senhora do avental, que agora eu
podia sentir pelo cheiro que era vampira,
segurava uma prancheta na frente dela.
— Marla e Vincent —, disse ela, olhando
para um dos casais. — Aqui diz que você
está na lista de espera para se
transformar em vampiro por quase um
ano. E Vincent... — Ela olhou para o
homem. — Está terminalmente doente.
— Sim —, disse Marla, sua voz rouca,
dividida entre medo e determinação. —
Ele tem apenas alguns meses. — Ela
apertou a mão do homem. — E não
queremos nos separar.
— Tenho certeza que podemos ajudá-
lo com seu problema —, disse a vampira
de avental, depois se virou para o segundo
casal. — Adara e Jaden. Você vem de
diferentes casas de vampiros, Adara da
House Vermillion e Jaden da House
Snowfire. Seus senhores não permitem
que seus vampiros se relacionem fora de
suas casas.
Amor proibido. Então o que tínhamos
aqui nesses dois casais era um Romeu e
Julieta regular e mais uma vez, algumas
pessoas ficavam do lado errado por causa
de uma longa lista de espera de vampiros.
Os demônios estavam construindo seu
exército a partir de pessoas desesperadas
e descontentes, como Rose e esses casais.
E essa padaria era a fachada da operação
de transformar vampiros.
— Então, como isso funciona
exatamente? — O vampiro Jaden
perguntou nervosamente.
— Meu supervisor chegará em breve
para explicar tudo. — Respondeu a
vampira de avental com um sorriso
coberto de açúcar.
Me perguntei se algum deles sabia no
que estava se metendo. Não era só mais
uma noite de informações sobre o básico
da insurgência, na simpática padaria
local. Se eles não concordassem com o
acordo dos demônios, não sairiam daqui.
Deixar alguém ir inevitavelmente levaria
a Legião à sua porta.
Exceto que saquei a arma. Nós já
estávamos aqui. A questão era o que
faríamos sobre isso. Havia apenas dois de
nós. Harker poderia facilmente lidar com
os cinco se as coisas ficassem feias, mas eu
tinha a sensação de que havia mais
pessoas naquele prédio.
Uma porta se abriu do outro lado do
armazém. Passos agudos e confiantes
ecoaram nas paredes, quando uma nova
chegada atravessou a sala. Quando o
supervisor entrou na luz, percebi que não
era um demônio ou mesmo outro vampiro.
Era Rose.
— Bem-vindos. — Ela declarou com
um sorriso largo, quando uma dúzia de
portas se abriu por todo o armazém, e
vampiros saíram, nos cercando.
Rose estava completamente curada.
Não havia ferida nela. Mas não era só isso.
Rose não estava apenas em perfeita
saúde. Ela estava radiante.
— O que os demônios lhe deram? —
Perguntei a ela.
Um sorriso de pura felicidade se
espalhou por seus lábios. — Imortalidade.
Assim como você na Legião bebe do néctar
dos deuses, também temos um néctar.
Harker xingou baixinho. Imaginei que
ele tivesse ouvido falar desse néctar
demoníaco.
— Este foi o preço da sua vida? —
Questionei Rose, acenando com a mão
para indicar essa operação sombria. — Os
demônios disseram que curariam seu
câncer se você os ajudasse?
Rose riu como se eu tivesse dito a coisa
mais engraçada do mundo. — Não foram
os demônios que vieram até mim. Fui até
eles. Essa foi minha ideia.
Na verdade, ela parecia orgulhosa de
si mesma.
— Eu nunca fui de deixar a morte me
derrubar —, continuou ela. — Nunca
alguém para bancar a vítima, para deixar
as coisas acontecerem comigo. Dessa
forma, somos muito parecidos, Leda. Você
teria feito o mesmo.
— Não. — Falei, a negação imediata.
— Você está matando pessoas.
— Estou libertando-os da tirania e das
regras sem sentido que os quebraram.
Alguns recusaram, cegos por sua devoção
a um sistema quebrado. Eles estavam
poluindo a energia positiva de nossa nova
ordem, por isso tiveram que ser
eliminados. Mas a maioria das pessoas
abraçou a mudança. — Rose indicou os
dois casais. — Olhe para eles.
Desamparados, sofrendo, sem esperança.
Estou dando a eles esperança e nova vida.
Fundei esta casa. No começo, tratava-se
de me curar, mas agora se tornou muito
mais. Nós somos livres aqui.
— Não, você não é — Falei a ela. —
Você acabou de trocar um mestre por
outro. Você não passa de um peão neste
jogo de deuses e demônios. Os demônios
estão usando-a para construir seu
exército. Por que não vê isso?
— Sou livre para escolher. Esse é o
meu plano. Minha ideia.
Balancei minha cabeça. Simplesmente
não havia como chegar até ela. Ela
afundara dentro de uma montanha de
negação tão alta, que não conseguia mais
ver a verdade.
— É um plano tolo —, disse Harker. —
Os deuses sempre descobrem.
— Seu soldado tolo e irracional. — Ela
olhou para ele com mais pena do que
malícia. — Vocês correm impotentes,
confusos. Está tão preso à sua devoção aos
seus deuses que nem sequer percebeu que
alguém se moveria contra eles. E
ignorante, você teria permanecido. — Ela
me lançou um olhar irritado. — Se não
fosse por você, Leda. Como você sabia que
eu ainda estava viva?
— A pulseira de Ivy. O amuleto tem o
mesmo símbolo da porta da sua loja.
Ela suspirou. — Minha querida filha.
Nunca esperei que ela se juntasse à
Legião.
— Ela estava tentando te salvar.
— E teria chegado tarde demais. Eu
não teria sobrevivido ao primeiro mês.
Mas foi um gesto nobre. — Ela me lançou
um sorriso gentil. Ela realmente parecia
gostar de mim. — Nobre como você,
querida. E o que você está fazendo pelo seu
irmão.
Harker olhou para mim.
Um fantasma de um sorriso tocou seus
lábios. — Você não contou a ele? Ou Nero?
Os dois garotos que brigam por você.
Encarei-a. — Você sabe muito sobre o
que está acontecendo na Legião.
— Ivy escreve para mim. Ela me
contou histórias. Sempre fomos próximas.
— Ela ficará com o coração partido
quando perceber que não conhece você.
— Você se importa com ela. Ótimo. Ela
precisará de uma amiga nos dias difíceis
que virão.
Rose acenou para seu exército de
vampiros, e eles atacaram Harker. Cada
passo, cada golpe, o levava mais longe de
mim. Os vampiros estavam nos
separando. Mas eles nem estavam me
atacando. Eles concentraram toda a
atenção nele. Ele estava segurando-os,
mas havia tantos deles. Puxei minha
arma para ajudá-lo.
— Pare. — Advertiu Rose. — Se você
morrer, nunca encontrará seu irmão.
Ninguém irá.
Fiz uma pausa, dividida entre duas
decisões impossíveis. Harker fez a escolha
para mim. Ele ergueu o punho no ar,
lançando uma onda de magia psíquica que
atirou os vampiros para o outro lado da
sala.
— Enviei você para a Legião por uma
razão —, ela me disse. — Não desperdice
sua chance de salvar seu irmão.
— Você estava trabalhando com ela?
— Choque tomou conta do rosto de
Harker, choque e traição.
— Claro que não. Minha mãe a
conhece, — expliquei a ele. — Fomos
procurá-la para... obter alguma ajuda
para encontrar meu irmão. Nós a
encontramos sangrando no chão. Ela
estava morrendo. — Uma percepção me
atingiu, caindo como uma rocha fria e
dura na boca do meu estômago. — Um
Anjo das Trevas não te atacou. — Acusei
Rose.
— Oh, ele me atacou sim. Essas feridas
não eram falsas.
— Mas foi encenado. Então, você...
poderia me fazer entrar para a Legião. —
Fiz uma careta. — Você disse que era a
única maneira de salvar Zane.
— E é.
— Através do sussurro do fantasma —
, murmurou Harker. — É por isso que você
se juntou à Legião.
Não havia por que negar. — Sim.
Ele ficou quieto por um momento,
reflexivo, mesmo quando os vampiros
presos nas paredes lutavam contra seu
aperto psíquico. Ele sacudiu a mão e todos
simultaneamente explodiram em chamas.
Uau, ele realmente era poderoso.
— Você é nobre —, ele finalmente
falou. — Sei que você fará a coisa certa.
Eu nem sabia o que era certo. Eu
estava fazendo a coisa egoísta. Zane era
meu irmão, e eu o amava e queria vê-lo
novamente, então, o salvaria.
— Você me usou. — Olhei para Rose.
— Você queria que eu me juntasse à
Legião, para que eu pudesse levá-la a
Zane. Mas por que? Anjos das Trevas
levaram meu irmão. Os demônios já o têm.
— Não —, negou Rose, essa única
palavra, um raio de esperança no quarto
escuro. — É outra pessoa.
A filha do xerife Wilder só pensara ter
visto Anjos das Trevas naquela noite? O
medo e a escuridão da noite obrigaram sua
mente a preencher as lacunas? Ou alguém
lançou uma ilusão com magia, alguém que
não queria que soubéssemos quem
realmente levou Zane?
— Mas se os demônios não têm Zane,
quem tem? — Murmurei para mim
mesma.
— É algo em que confio que você
descobrirá. — Respondeu Rose.
Uma segunda onda de vampiros
entrou pelas portas abertas, nos cercando.
Harker sacou a espada e atacou-os. Sua
magia enfraquecera para repetir o truque
de combustão espontânea. Ignorando os
avisos de Rose, pulei na briga para ajudá-
lo. Atirei em um deles antes que ele
pudesse atirar em Harker, depois joguei
outro para o lado, para que eu pudesse me
mover de costas com ele.
— Vejo que você tomou sua decisão. —
As palavras de Rose cheias de decepção.
— Sim, acho que sim. — Respondi-lhe.
Harker e eu lutamos contra os
vampiros juntos, nossos movimentos
coordenados, como se tivéssemos
praticado isso um milhão de vezes antes.
Exceto que eu não tinha. Na verdade, eu
nunca havia lutado tão bem antes, mas
podia senti-lo me alimentando com um
pouco de sua magia, de sua experiência,
me dando um empurrãozinho para me
fazer passar pelos movimentos como uma
dançarina liderando seu parceiro. E nós
éramos magníficos.
Até a Legião chegar.
Quando nossos próprios soldados
invadiram as portas, envolvendo o fluxo
interminável dos vampiros de Rose, esse
fio entre mim e Harker se rompeu.
— Isso deveria ser entre nós. Você
prometeu que não contaria à Legião. —
Lembrei-o, a picada de sua traição
queimando minha garganta.
— Você realmente vai ficar com raiva
disso agora? — Ele atirou em outro
vampiro. — Agora, eles estão salvando
nossas vidas. Você pode ficar com raiva de
mim mais tarde.
Ele estava certo, mas eu estava
chateada demais para admitir. E muito
ocupada para discutir com ele. Tinha que
permanecer viva. Rose estava certa sobre
uma coisa: se eu morresse, não poderia
salvar meu irmão.
Então lutei e matei os vampiros.
Vermelho manchou minha visão, uma
combinação de sangue e raiva e aquele
velho medo do inimigo. Não diminuí a
velocidade e não parei para pensar no que
estava fazendo. Se eu parasse, seria
morta. Os vampiros eram muito rápidos.
Pior ainda, a realidade do que eu estava
fazendo, as pessoas que eu matava, me
aleijaria de tal maneira que nem a
velocidade sobrenatural poderia
compensar isso.
Presa neste torpor vermelho, eu estava
vagamente consciente de Harker ao meu
lado, combatendo vampiros à esquerda e à
direita. Seus corpos estavam se
acumulando em todos os lugares, caindo
no meu caminho. A bile subiu na minha
garganta pela escala de morte ao meu
redor.
Harker rompeu a linha de vampiros,
correndo para Rose, enquanto tentava
escapar. Ela não chegou longe. Ele
levantou a espada e, em um golpe rápido,
cortou o pescoço dela. Sua cabeça bateu no
chão, seu corpo caindo um momento
depois. Congelei, paralisada. Rose estava
morta. Ivy ficaria destruída.
Esse momento de distração me custou.
Um vampiro agarrou meu braço, me
puxando em sua direção, enquanto mordia
meu pescoço com força. Dor borbulhou
pela ferida rasgada em minha carne. Eu o
chutei no joelho, depois o atirei na parede.
Procurei meu próximo alvo, mas uma
onda de tontura me fez tropeçar. Algo
quente e úmido jorrava do meu pescoço.
Levei a mão à minha garganta para
encontrá-la rasgada e escorregadia com
meu próprio sangue. O mesmo sangue
escorria de mim, empoçando no chão. Mas
eu não podia desistir agora. Os vampiros
nos superavam em número. De onde todos
eles vieram? Pensei em pegar um rolo de
gaze na minha jaqueta e tentar estancar o
sangramento, mas um baque sólido na
minha cabeça, de um vampiro próximo,
me lembrou que eu não tinha tempo para
essa merda. Eu só teria que lutar sangue.
Minha mente era muito teimosa para
desistir, mas meu corpo estava falhando.
Minha visão turva, meus passos trôpegos.
Mãos me pegaram antes que eu caisse no
chão. Pisquei, olhando para o rosto de
Harker.
— Leda, deuses —, ele engasgou,
arregalando os olhos. — O que aconteceu
com você?
Tentei me equilibrar, me manter em
pé, mas ele me segurou como se eu
estivesse a um passo de me despedaçar.
Eu estava entorpecida demais para saber
se ele estava certo. Eu podia ouvir o
choque de aço e o ruído dos ossos. A luta
ainda estava acontecendo, e eu deveria
estar nela.
— Eu estou bem. — Insisti,
empurrando contra seu aperto teimoso. —
Me deixe ir.
— Você não pode lutar, Leda. Não
neste estado.
Pisquei várias vezes em rápida
sucessão, tentando clarear minha visão.
Mas a escuridão estava chegando, a
consciência escorregando. Senti um pulso
quente de magia me envolver como um
cobertor e depois desmaiei.
Sonhei que estava no campo de
batalha entre dois exércitos em guerra,
cada lado liderado por anjos. Belos e
terríveis, eles entraram em guerra de
magia e força que sacudia o chão e ecoava
pelos céus. Espadas se chocaram. Aço
retiniu. O cheiro de sangue, enxofre e
morte permeava o ar. Penas tremulavam
ao vento. O solo estava encharcado de
sangue que se espalhava no campo de
batalha, escurecendo a Terra. A
tempestade de feitiços continuava.
Uma mulher em um uniforme de couro
preto da Legião se dividiu no campo de
batalha em uma explosão de velocidade
desumana, seus cabelos loiros pálidos
passando pelo rosto enquanto ela cortava
as fileiras inimigas com sua espada de
fogo. Ela lançou um olhar por cima do
ombro, e foi quando eu vi o rosto dela, o
meu rosto, olhando de volta para mim.
Ela pulou no ar e bateu o punho com
força. Jatos de fogo irromperam do chão,
lançando-se em colunas furiosas de
chamas. Ela andou a passos largos pelo
campo de batalha, asas se abrindo de suas
costas, suas penas preto-púrpura escuras,
brilhando como pétalas de veludo luxuoso
à luz do sol poente. Corpos caíam diante
dela. Homens se viravam e fugiam dela. O
chão tremia embaixo dela.
Um choque de dor rompeu minha caixa
torácica. Olhei para baixo e encontrei uma
espada saindo do meu peito. Me virei para
encarar a pessoa que me apunhalara pelas
costas, mas desmaiei antes que pudesse
ver o rosto dela.
Saltei, arrancada daquele pesadelo. Os
sons da batalha ainda ecoavam em meus
ouvidos. Lentamente, eles desapareceram
quando a consciência me encontrou. Olhei
em volta, mas não reconheci onde estava.
Eu estava em uma cama que não era
minha, coberta de cobertores que
cheiravam a margaridas e limonada. Este
não era o meu quarto, e definitivamente
não era o setor médico da Legião.
Toquei meu pescoço. A pele estava lisa,
a ferida completamente curada. Tudo em
mim foi curado. Joguei os cobertores e
levantei, mas uma onda de tontura me
atingiu, empurrando-me de volta para a
cama.
— Relaxe. Acalme-se. — Avisou
Harker. — Seu corpo acabou de curar
alguns ferimentos bem graves.
Olhei através do quarto escuro e o
encontrei sentado na cadeira no canto. —
Você me curou.
— Sim, você estava em má forma. Se
não tivesse provado o primeiro dom dos
deuses, eu não seria capaz de salvá-la.
Essa resiliência é a diferença entre vida e
morte.
Eu estive tão perto de morrer, de
destruir qualquer chance de salvar Zane.
Tão perto. Tinha que ficar mais forte.
— Obrigado. — Agradeci a Harker,
levantando-me mais lentamente desta
vez.
Ele sorriu. — De nada.
— Mas ainda estou brava com você.
O sorriso dele vacilou. — Tive que
dizer à Legião para onde estávamos indo.
É perigoso entrar sozinho em uma
situação como essa sem apoio. Há uma
razão para esse procedimento não ser
padrão, e não é porque a Legião quer
incomodar Leda Pierce. E estou feliz que
eles chegaram e conseguiram lutar contra
dos vampiros. Sem a ajuda deles, nós dois
estaríamos mortos.
— Você matou Rose. — Retruquei. —
O que aconteceu com a misericórdia? Eu
sei que você não tinha que matá-la.
— Isso foi piedade. O castigo é mais
lento. Muito mais lento.
Eu ouvira falar sobre os castigos da
Legião, mas nunca os tinha visto. Eu tinha
certeza que não queria.
Suspirei. Harker era leal à Legião por
completo. Eu deveria saber que não
deveria trazê-lo. E agora, por causa da
minha decisão, Rose estava morta. O que
eu diria a Ivy? Claro, talvez Rose fosse
morta de qualquer maneira. Ela não
estava exatamente brincando com fogo.
Mas se eu não tivesse agido como ela, não
teria morrido por minha causa. Eu não
tinha certeza se Ivy me perdoaria. Como
poderia, quando eu nem me perdoei?
Olhei em volta, percebendo aquele
grande dossel sobre a cama pela primeira
vez. Eu estava no apartamento de Harker.
Na cama dele. E eu vestia bermuda e
camiseta, não meu uniforme.
— Por que estou vestindo essas
roupas? — Perguntei a ele.
— Seu uniforme foi cortado e
encharcado em seu próprio sangue.
Corei.
— Fui um perfeito cavalheiro, garanto.
Pedi a Bianca para trocar sua roupa.
— E por que estou aqui em vez da
enfermaria médica? — Indaguei.
— Depois daquela última batalha, a
ala médica está cheia. Você se curou mais
rápido que os outros. Mais rápido do que
deveria. — Ele me deu um olhar
engraçado, que não conseguia decifrar. Ou
ele estava intrigado ou chocado. Ou ambos
os casos…
— Eu deveria ir. — Anunciei.
Ele pegou minha mão quando passei,
virando-me para encará-lo. — Realmente
gosto de você, Leda. — Sua voz ficou mais
baixa, e um pequeno sorriso torceu seus
lábios. Intrigado, então.
— Está bem…
Essa foi a minha resposta eloquente.
Verdade seja dita, não sabia o que dizer
para ele. Eu também gostava dele, mas ele
era tão... perfeito. Não violava as regras,
nunca. Foi por isso que contou à Legião
sobre nossa pequena missão de
reconhecimento hoje à noite.
Simplesmente não conseguiu se conter.
Era um bom garoto.
Mas eu não era uma boa garota.
Quebrava as regras e muitas delas para
salvar meu irmão dos deuses e demônios e
de quem mais quisesse usá-lo para seu
próprio ganho. Não achei que Harker
ficaria bem com isso. Na verdade, eu sabia
que ele não ficaria bem com isso. Meu total
desrespeito à autoridade ia contra tudo o
que a Legião dos Anjos, mão da vontade
dos deuses, defendia. Tudo o que Harker
Locke representava.
Então, suas próximas palavras quase
me surpreenderam e fiquei muda.
— Você quer salvar seu irmão? — Ele
perguntou.
Eu sabia que ele se lembraria disso. —
Sim. — Respondi cautelosamente.
— Posso te ajudar.
Pisquei de surpresa. — Como?
— Com isso. — Ele puxou um frasco
de vidro da jaqueta, colocando-o nas
minhas mãos. Estava cheio de um fluido
cintilante, branco ofuscante, brilhando
como diamantes líquidos.
— O que é isso? — Perguntei.
— Uma passagem só de ida para o
nível nove.
— O sussurro do fantasma. —
Sussurrei.
— Sim.
— Onde você conseguiu isso?
Ele franziu a testa, confuso. — O que?
— Tenho certeza de que os deuses não
deixam essas coisas por aí.
— Não, é fortemente guardado. Mas
tenho um amigo.
Suspirei. — Por favor, não me diga que
você roubou dos deuses.
— Ok, não te direi isso. — Ele sorriu
para mim. — É para você. Comprei para
você, Leda.
Eu estava tão errada sobre ele. Ele era
tão perverso quanto eu, um problema de
muitas maneiras. Olhei para aquele
pequeno frasco de fluido cintilante.
— O que você está esperando? —
Perguntou. — Não é exatamente isso que
você queria? É assim que salvará seu
irmão.
Ele estava certo, mas parada aqui,
olhando para aquela magia em uma
garrafa, não pude deixar de hesitar. Beber
isso me faria um anjo. Isso me daria
poderes que desejo, mas também me
mudaria. Irrevogavelmente. Eu estava
pronta para isso?
Sim, decidi, pensando em Zane. Eu
mudaria por ele, para salvá-lo. Eu tinha
que mudar para salvá-lo. Com isso
decidido, abri o frasco. Estava prestes a
beber quando uma onda de magia
atravessou a sala, trazendo Nero para
dentro. Sua espada estava
desembainhada e flamejante, suas asas
abertas. Seu olhar se fixou no frasco na
minha mão, antes de encontrar meus
olhos novamente.
— Leda, não posso deixar você beber
isso.
— Nero —, falei, lutando para manter
minhas palavras civilizadas. — Não
preciso de outra palestra sobre
procedimentos adequados.
— Você não pode beber isso. —
Respondeu ele, indiferente ao meu tom
gelado. — Se beber, isso te matará. É o
néctar dos deuses, puro. O material mais
potente que eles têm. É o que os próprios
deuses bebem. Isso não fará de você
apenas um anjo, essencialmente fará de
você uma deusa.
— E?
— E dentro de uma semana, isso te
matará. — Acrescentou ele,
definitivamente.
Olhei para Harker, cuja boca se afinou
em uma linha teimosa. Mas além dessa
teimosia, havia uma dica de outra coisa:
culpa.
— Então é verdade. — Acusei.
— O néctar dos deuses é pura magia —
, respondeu Harker. — O que nós soldados
da Legião bebemos nas cerimônias é
apenas uma versão diluída da coisa real.
A primeira dose tem apenas uma gota do
néctar. Com cada nível sucessivo, a dose é
mais potente. Até você chegar a isso. —
Ele apontou para o frasco.
Nero deu-lhe um olhar duro. —
Somente um anjo do mais alto nível pode
beber isso e sobreviver.
— Por que você me daria isso? —
Perguntei a Harker.
Ele não respondeu.
Nero respondeu por ele. — Porque lhe
ordenaram.
— O que você quer dizer?
— Harker tem recebido ordens de um
deus —, disse Nero. — Hoje cedo, segui
sussurros de uma conspiração para matar
você. Só que não encontrei o que esperava.
Esse deus não quer te matar. Ele quer
usar você para encontrar seu irmão. Um
telepata. — Ele fez uma pausa. — Esse é
o seu segredo.
Agora era eu quem não estava falando.
Os olhos de Nero deslizaram para
Harker, sua voz alcançando níveis
perigosos. — Você gosta dela. Realmente
gosta dela. Sei que gosta. E a está
trocando por suas asas.
Engoli o gosto da traição, que me
queimou a garganta. — Te prometeram
asas? — Perguntei a Harker. Não
consegui nem olhar para ele.
— Sim.
— Há quanto tempo? — Rosnei. — Há
quanto tempo você estava brincando
comigo?
— Não foi assim, Leda. Gosto de você.
Eu não estava interessada em
banalidades, apenas respostas. — Há
quanto tempo?
— Desde que você se alistou.
— É por isso que estava me ajudando
—, conclui, rindo amargamente. — Você
precisava me deixar forte o suficiente.
— Você precisava do primeiro dom dos
deuses, antes de poder aceitar isso sem
morrer instantaneamente. — Seu olhar
cintilou no frasco em minhas mãos. — Mas
acho que você não morreria em uma
semana.
— Um mês então? — Cuspi.
— Não é isso que você estava disposta
a fazer, arriscar sua vida para salvar seu
irmão? — Ele perguntou. — E, para o
registro, beber o néctar não te mataria.
Eu não conseguia adivinhar se ele
realmente acreditava nessas palavras. E
eu não tentaria. Aparentemente, eu tinha
o pior detector de mentiras do planeta.
Mas Nero com certeza não acreditou.
— Esse néctar mata qualquer pessoa
abaixo do nível dez —, Retrucou. — Isso
me mataria.
— Você não viu o quão rápido ela se
curou, Nero. E lembre-se de como ela
tomou a segunda dose de néctar. Há algo
nela. Ela é diferente. Meu deus me contou
isso. Ele me garantiu que não morreria.
— Você me usou. — Lancei as palavras
em seu rosto e torci para que elas o
machucassem mais do que a mim. Eu era
mesquinha assim. — Você fingiu se
importar comigo.
— Não fingi.
— Você me usou para seu próprio
ganho pessoal. Não vou ajudá-lo a
escravizar meu irmão.
Com isso dito, joguei o frasco no chão.
O copo quebrou e o fluido derramou,
perdendo rapidamente o brilho.
— É a vontade dos deuses —, disse-me
Harker. — Não há maneira de contornar
isso.
— Não é a vontade dos deuses. É a
vontade de um deus, uma peça que ele
está criando. — Explicou Nero.
— Você sabe qual deus? — Perguntei a
ele.
— Não. — Isso pareceu irritá-lo. —
Mas vou descobrir e depois reportar isso
ao Conselho dos Deuses.
— Você não tem ideia de com quem
está mexendo. — Harker advertiu.
— Não. Você não sabe com quem está
mexendo. — Soquei na cara dele.
Foi um bom soco, rápido, nítido,
poderoso, mas nunca teria superado as
defesas de Harker, se ele não estivesse
olhando melancolicamente o líquido que
evaporava aos meus pés. Quando Harker
se endireitou para revidar, Nero atirou
nele com um tranquilizante muito maior
do que os que usamos nos vampiros.
Harker deu um único passo cambaleante
para a frente e depois caiu inconsciente no
chão.
— Eu o peguei. — Falei a Nero, quando
ele amarrou as mãos e os pés de Harker.
— Sem ofensa, Pandora, mas um golpe
de sorte não o prepara para enfrentar um
soldado do sétimo nível da Legião.
— Ele ainda está fraco desde a última
luta. — Apontei.
— E você também.
— Não gosto do jeito que você
argumenta.
Ele arqueou uma sobrancelha para
mim. — Com lógica?
— Exatamente.
Ele me deu um olhar engraçado.
— O que?
— Harker estava certo sobre você —,
disse ele. — Você é diferente. Especial. Há
uma energia sobre você. Não consigo
explicar.
Não havia nada para explicar, ou algo
especial sobre mim, apenas minha
obstinada vontade de salvar meu irmão e
proteger aqueles que amava.
— O que vai fazer? — Perguntei
baixinho. — Sobre mim?
— Quer dizer, se vou denunciá-la e
dizer à Legião o que seu irmão é?
Assenti em silêncio.
— Obviamente você não me conhece
muito bem.
Olhei para Harker. — Eu não o
conhecia muito bem.
— Não sou Harker. — Retrucou Nero,
colocando as mãos nos meus ombros. —
Eu disse que todo mundo se junta à Legião
por um motivo. O dele era poder. E a
necessidade de ordem. Ele queria ser um
anjo. E ele não podia dizer não a ordem de
um deus.
— E você?
Nero resmungou. — Já sou um anjo. E
digo não aos comandos com demasiada
frequência para o meu próprio bem. Seu
segredo está seguro comigo.
— Obrigado. — Coloquei minhas mãos
sobre as dele, apertando-as em gratidão.
— Não sei quanto tempo isso vai durar.
Um dos deuses já conhece Zane. Quanto
tempo antes que conte aos outros?
— Ele não contará. Os deuses jogam
seus jogos de poder um com o outro, tanto
quanto os demônios. Eles estão sempre
tentando obter vantagem sobre os outros.
Esse deus, quem quer que seja,
obviamente quer usar seu irmão como
arma, para fortalecer sua posição contra
os outros.
— Como você sabe? — Perguntei.
— Porque se todos os deuses
soubessem, eles já estariam procurando
por seu irmão. E você não estaria aqui de
pé.
— Eu estaria amarrada, sendo
torturada por informações.
— Sim.
Eu ri. Foi uma risada dura, cheia de
tristeza e desespero. Não que eu tenha
sido pega de surpresa por sua franqueza.
Acho que me acostumei. Até comecei a
apreciá-la. Não que eu fosse admitir isso
para Nero. Não havia necessidade de lhe
dar um convite aberto para me torturar.
— Se os deuses não têm Zane, e os
demônios não o têm, então quem tem? —
Perguntei a Nero.
— Eu não sei —, disse ele, franzindo a
testa. — Mas vamos descobrir.
Enquanto Nero levava Harker para
onde quer que os soldados da Legião eram
levados quando se comportavam mal,
voltei ao meu dormitório para verificar
Ivy. Ela estava sentada com Drake em sua
cama, mas ela pulou assim que entrei no
quarto.
— Ouvi dizer que você quase foi morta.
Estou tão feliz que esteja bem. — Ela me
abraçou. — O que aconteceu?
Sentei-me na cama dela, batendo no
colchão para convidá-la a fazer o mesmo.
Então eu contei a ela e Drake sobre o que
havia acontecido com Rose e os vampiros
hoje à noite. Ivy chorou, depois fungou,
depois chorou mais. Finalmente, ela jogou
os braços em volta de mim e me abraçou
como uma irmã.
— Desculpe —, falei, meus olhos
molhados, minha boca seca. — Não
deveria ter levado Harker para lá. Isto é
minha culpa.
— Não culpo você pela morte da minha
mãe. — Os olhos dela se estreitaram. —
Eu o culpo. Sei que isso é estúpido. Ela
estava liderando uma revolução contra os
deuses. Ela fez coisas terríveis. E ainda
assim…
— Você ainda a ama. — Conclui.
— Sim. Amo.— Ela abraçou os joelhos
e se balançou para frente e para trás. —
Isso não é loucura?
— O amor é louco. Não é nada racional.
— Sim. — Ela passou as costas da mão
pelos olhos. — Falando em ser irracional,
onde está o Harker? Sei que ele estava
apenas fazendo seu trabalho, mas
realmente preciso dar um chute no
traseiro dele.
— Ele diz que a matou por
misericórdia. Diz que eles a teriam
torturado.
Ivy fungou.
— E Harker não está aqui. —
Completei calmamente.
Drake encontrou meus olhos. — O que
aconteceu?
— Nero o levou diante dos Altos Anjos.
— Por matar minha mãe? — Ivy
perguntou, piscando em confusão.
— Não, por me dar um frasco de néctar
puro.
— A bebida dos deuses —, Drake
ofegou. — Onde ele conseguiu isso?
— E por que deu a você? — Ivy
perguntou.
— É uma longa história... — Respondi.
Ela pegou minha mão. — Amo longas
histórias.
— Especialmente com finais felizes. —
Acrescentou Drake, pegando minha outra
mão.
— O final ainda está para ser visto...
—, falei, depois olhei em direção à porta.
Um puxão suave nos meus sentidos me
disse que Nero estava parado na nossa
porta aberta, e lá estava ele. Se esse
pequeno truque funcionasse sempre, ele
nunca mais me pegar desprevenida de
novo.
— Leda. — Chamou.
— Isso deve ser sério, se ele não está
me chamando de Pandora. — Comentei
com meus amigos.
A declaração claramente não divertia
Nero tanto quanto deveria. Seu rosto
permaneceu inescrutável. — Eu gostaria
de falar com você.
Olhei para Ivy.
— Vá. — Mandou ela, acenando para
mim.
— Você tem certeza?
Os olhos dela apontaram para Drake,
e eu entendi. Ela queria ficar sozinha com
ele, deixá-lo confortá-la. Então me
levantei e segui Nero até o corredor.
Andamos lado a lado em silêncio, até
chegarmos ao apartamento dele. Ainda
maior que o de Harker, seu piso de
mármore branco brilhava como gelo. Um
grande sofá de couro estava em frente a
uma televisão que cobria a maior parte da
parede. Era tudo muito bonito, até
elegante, mas nada disso parecia ter vida.
Talvez fosse onde dormia, mas não era sua
casa. Me perguntei onde seria esse lugar
especial para ele.
— Então, quando eu for um anjo, vou
conseguir um lugar tão incrível? —
Perguntei.
— Tenho certeza de que será muito
melhor.
Pulei com o toque de suas palavras
contra a minha orelha, tão perto, que cada
sílaba acariciou minha pele. Não o ouvi se
aproximar. Aqueles anjos eram quietos
demais. Nós nos encaramos por alguns
momentos, o anjo e eu. O silêncio era
ensurdecedor. Eu gostaria de saber o que
ele estava pensando.
— Como foi com Harker? — Perguntei
a ele, apenas para quebrar o silêncio.
— Eu o entreguei aos Altos Anjos. O
que farão com ele, ainda será decidido.
O silêncio voltou como uma vingança,
estendendo-se para a eternidade.
— Seu plano é insano. — Falou
finalmente.
— É?
— Sim. O que a fez pensar que poderia
simplesmente se juntar à Legião dos Anjos
e pular para o nono nível assim?
— Determinação e obstinação. —
Respondi-lhe com um sorriso.
O anjo permaneceu impressionado.
— Ok, não pensei que seria assim —,
admiti. — Sabia que seria difícil.
— O que você enfrentou até agora não
é nada comparado ao que está por vir, aos
horrores que irá enfrentar. Você será
testada de maneiras que não pode nem
imaginar.
— Se você está tentando me assustar...
— Estou tentando ajudá-la. — Cortou-
me.
Pensei sobre isso por um momento, e
isso simplesmente não fazia sentido. —
Por quê?
— Porque Harker estava certo sobre
uma coisa. Você é diferente. Há algo sobre
você. — Ele me olhou direto nos olhos e
nem sequer piscou. — Você terá um papel
importante a desempenhar neste mundo,
Leda Pierce. Posso sentir isso.
Dei de ombros. — Sou apenas uma
garota de Purgatório.
— Não mais —, ele me disse, sua mão
roçando meu queixo. — Agora, você é uma
soldada na Legião dos Anjos. E chegará ao
nono nível. Me certificarei disso. Te
prometo.
— Nero... não sei o que dizer.
Obrigado.
— Você pode me agradecer deixando-
me ajudá-la, em vez de ir atrás de
vampiros e deuses, sabe-se lá o que mais e
tentar fazer tudo sozinha, pensando que
protegerá todos os outros. Prometa-me
agora que não fará isso novamente. Você
quase morreu, Leda.
— Não sabia que você se importava. —
Falei com um sorriso tímido.
— Eu vou treiná-la —, falou ele, imune
aos meus encantos. Ou talvez eu não fosse
tão charmosa quanto pensava. — A
ajudarei a superar os níveis.
Ninguém jamais havia passado pelos
níveis da Legião mais rápido que Nero. Eu
não poderia ter pedido um treinador
melhor.
— Serei duro com você. — Ele me
avisou.
— Oh, eu nunca teria imaginado. Você
tem sido tão fácil comigo até agora. —
Sorri para ele.
— Você pode me odiar até o final.
— Posso viver com isso.
Ele bufou. — Há mais uma coisa. Algo
que podemos tentar, se desejar.
Seu olhar pousou nos meus lábios
brevemente, antes de voltar aos meus
olhos. De repente, percebi o quão perto ele
estava de mim. Não respondi, incerta se
essa era a maneira dele de me fazer uma
proposta. E o que eu diria se fosse.
— Posso ajudar você a ver seu irmão.
— Falou ele. Quaisquer que fossem as
próximas palavras que eu esperava, não
foram essas.
— O que?
— Só por um segundo —, ele
esclareceu. — Posso me conectar a ele.
— Mas pensei que, quanto melhor você
conhece alguém, mais facilmente pode se
conectar com ela. Você não conhece meu
irmão.
— Não, mas conheço você. Posso usar
sua conexão com seu irmão para encontrá-
lo. — Ele fez uma pausa. — Se
compartilharmos sangue.
A última vez que bebi seu sangue,
fiquei tão louca de luxúria que quase o
ataquei no corredor do clube. Não consegui
pensar direito. Tudo que eu queria era ele.
As coisas ficaram melhores quando ele
bebeu de mim. O que quer que existisse
entre nós, se eu cedesse, isso me
enlouqueceria. Mas se isso me ajudasse a
descobrir onde estava Zane, valeria a pena
o risco.
— Vamos fazer. — Decidi.
Nero fechou as cortinas e diminuiu as
luzes do apartamento. Então ele tirou
cinquenta velas de uma caixa gigantesca e
as colocou ao redor da sala de estar. Elas
pareciam bonitas e cheiravam como
baunilha, morangos e pêssegos. Nero
acenou com a mão e as chamas brilharam
em todas as velas de uma vez.
Ele estendeu a mão para mim,
chamando-me. Engolindo minha dúvida,
enterrando-a sob uma montanha de
determinação, caminhei até ele e peguei
sua mão. Ele pegou minha outra mão
também, seu aperto firme, mas sem
brutalidade. Lento e suave, se ajoelhou e
eu segui o movimento de seu corpo, me
ajoelhando junto com ele.
Ele encontrou meus olhos. — Você está
pronta?
Assenti.
Ele soltou uma das minhas mãos e
puxou a faca presa à coxa. Espetou o dedo
com a ponta. Quando o sangue escorreu
pela superfície de sua pele, o calor me
inundou, uma onda de fogo me inundou da
cabeça até a ponta dos pés. Minha boca
doía, não, meu corpo inteiro doía. Ansiava
por seu sangue. Por ele. Senti minhas
presas descendo, queimando minhas
gengivas, com uma necessidade selvagem.
— Desculpe — Sibilei, pressionando
meus lábios. Minhas costas arquearam
para frente, empinando meus seios. Meus
quadris balançaram em direção a ele,
abrindo-se. Percebi o que estava fazendo e
me afastei. — Desculpa.
Ele pegou minha mão retirada. — Não
se desculpe.
— Tenho que aprender a controlar
isso.
— Você irá.
— Quando?
Ele riu, e percebi que tinha minha mão
em sua coxa. A tirei apressadamente.
— Alguns meses —, explicou. — Seu
corpo ainda está se acostumando com a
nova magia que o inundou.
Havia algo mais do que magia furiosa
inundando meu corpo. Hormônios.
Hormônios cruéis e selvagens que me
diziam para jogar aquele lindo anjo no
chão e fazer o eu quiser com ele aqui e
agora.
Senti uma brisa fresca no peito e
percebi que tinha tirado minha camisa e
jogado de lado. E mesmo sabendo que
deveria estar envergonhada, tudo em que
conseguia pensar era que eu ainda vestia
roupas demais. E ele também.
— O que há de errado comigo? —
Indaguei-o, cerrando os dentes contra o
desejo furioso dentro de mim.
— Você é apenas mais sensível à
magia do que a maioria das pessoas.
E sensível a ele. Por que ele?
Ele ergueu a ponta da faca, picando
meu dedo também. O sangue subiu à
superfície como um nadador ofegando por
ar. Empurrei minha mão em seu rosto,
exigindo que ele bebesse de mim.
— Calma —, disse ele. — Apenas uma
gota cada. É tudo o que precisamos para
executar o feitiço.
Não me importei com esse maldito
feitiço. E apenas uma gota? Dane-se isso.
Eu queria me banhar no glorioso êxtase de
seu sangue, saborear a euforia de sua
magia derretendo na minha.
Suas mãos apertaram meus pulsos,
segurando minhas mãos que avançavam.
— Leda, você é mais forte que isso.
Não, não era. Não quando se tratava
de seu sangue. Tinha gosto de néctar.
Uma pequena gota do céu. Algo sobre isso
me fazia perder a cabeça.
— Pense no seu irmão. Em Zane.
O som do nome do meu irmão em seus
lábios me tirou da minha loucura. Respirei
fundo, bloqueando o pulso latejante e
dolorido em minhas veias. Limpei a
garganta e olhei para o dedo de Nero,
contando até dez. Então, me inclinei muito
lentamente sobre a mão dele, mostrando-
lhe que eu estava no controle. Minha
língua disparou e lambeu a gota de sangue
de seu dedo.
Fiquei muito quieta, mesmo quando
uma onda de necessidade bateu em mim,
incendiando todas as minhas terminações
nervosas. Ofeguei, tremendo, resistindo.
Nero me observava com intensa
curiosidade, seu olhar perfurando o meu,
enquanto sua língua saía e lambia a gota
de sangue do meu dedo.
Senti uma mudança nele
imediatamente. Ele ficou estranhamente
imóvel, como se estivesse lutando tanto
quanto eu. Seus olhos se iluminaram,
brilhando com magia. Sua boca suavizou,
seus lábios se separaram. Lentamente,
languidamente, sua língua deslizou para
fora para traçar a parte interna do lábio
inferior.
Levou cada pingo de força de vontade
em mim para não atacá-lo. A força de
vontade estava em falta aqui. Eu podia ver
Nero lutando para manter a compostura.
Suas mãos tremiam quando as estendeu
para mim, palmas para cima. Enquanto
eu colocava minhas mãos nas dele, uma
explosão de algo que nunca senti antes me
atravessou. Estava tão frio quanto uma
noite de inverno uivante, e foi esse sopro
de gelo que congelou o desejo dentro de
mim.
Borrões de luz dançavam diante dos
meus olhos. Flocos de neve. Pisquei com
força algumas vezes. Não, não flocos de
neve. Sementes de dente de leão. Milhões
e milhões delas dançando na brisa quente
do verão. Sob o céu-leão, as crianças de
mãos dadas e dançavam em círculos
através de um campo gramado, descalços
e livres. Não havia prédios, paredes,
pradarias negras ou florestas podres,
nada além de natureza intocada à vista
por quilômetros e quilômetros. O riso das
crianças derreteu o gelo da minha pele. As
partículas geladas subiram ao vento como
cacos de vidro quebrado, dissolvendo-se no
céu.
O sol brilhou, e então eu estava em pé
em uma sala iluminada por um teto de
brilhantes lanternas mágicas. E Zane
estava diante de mim, estendendo as mãos
para mim, um sorriso no rosto. Tentei
chamar o nome dele, mas as palavras não
saíram da minha boca. Tudo ao meu redor
começou a se desfazer, as serpentinas de
sua existência deslizando para longe,
quando a magia do feitiço desapareceu,
me tirando dessa visão.
Fiquei de pé no apartamento de Nero,
adrenalina nas veias, desespero
alimentando meus passos. Eu precisava
chegar a Zane, mas não sabia para onde ir,
então canalizei a energia para andar de
um lado para o outro.
— Você viu? — Perguntei a Nero
quando ele se levantou. — Você o viu?
— Sim.
— Aquele lugar. Natureza tão bonita e
pacífica, intocada por monstros. Não há
lugar na Terra como este. Temos apenas
queimadas extensões de nada, e cidades
construídas além dos muros atrás dos
quais nos escondemos. Que lugar é esse
que vimos? Cadê meu irmão?
— Eu não sei. Não é nenhum lugar que
eu conheça.
— Ele parecia feliz —, apontei. — Acho
... bem, só tenho a sensação de que ele está
seguro lá, onde quer que seja. Pelo menos
por enquanto. Mas tenho que descobrir
onde está. Tenho que vê-lo, saber por mim
mesma. Falar com ele.
— Leda...
Continuei andando cada vez mais
rápido. — Tive um sonho antes. Um
campo de batalha repleto de morte. Ou
talvez fosse outra coisa. Não sei. Sinto que
algo está acontecendo aqui. Algo além de
nós. — Eu ri. — Ouça-me, estou falando
sobre sonhos e premonições do dia do juízo
final. Eu estou ficando louca? É assim que
parece a loucura?
Nero agarrou minha mão. — Leda.
Girei para encará-lo. — Eu preciso
encontrar Zane.
— E você vai —, disse ele. — Prometi
ajudá-la, não prometi?
— Sim, mas...
— Sem mas —, me cortou. — Você
precisa se acalmar. No momento, seu
irmão não está em perigo. Precisa se
concentrar no que é importante.
— Em ganhar a magia, para encontrá-
lo. — Conclui.
— Exatamente. Este é o caminho que
você escolheu, o caminho que deveria
seguir —, completou ele. — Seu novo
treinamento começa agora. Você deve se
esforçar mais do que nunca.
Ele tirou duas espadas da parede. —
Não vou ceder. — Ele jogou uma das
espadas para mim. — E você também não
pode.
— Não irei. — Prometi, segurando
minha arma.
— Ótimo. — Ele levantou a espada. —
Então vamos ver o que você tem.

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