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COPYRIGHT © 2020 by Brooke Mars.

É proibida a distribuição de toda ou qualquer parte desta história. Os direitos


da autora foram assegurados. Plágio é crime.
Esta é uma obra de ficção recomendada para maiores de dezoito anos.
Nomes, personagens e acontecimentos descritos aqui são frutos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com acontecimentos reais é mera
coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Capa: Brooke Mars
Diagramação: Brooke Mars
Revisão de texto: Karoline Panato
Arte: Brooke Mars
NOTAS DA AUTORA
Olá,
Seja bem-vindo ao universo mais peculiar que já escrevi na minha vida.
Devil Eyes (tradução literal: olhos do Diabo) é um livro recomendado para
maiores de dezoito anos por conter linguagem imprópria, cenas explícitas de
violência, uso de drogas e álcool, sexo e tortura. Esse livro utiliza de
conceitos como Céu, Inferno, anjos e demônios. Não há qualquer tipo de
romantização de relacionamentos abusivos, comportamentos agressivos e/ou
violentos ou desvios de caráter, apesar de poderem ter sido sim representados
ao longo da obra. Não é permitida qualquer adaptação ou cópia dessa
história.
A playlist para o livro pode ser acessada aqui.
Observação: é fácil de me encontrar em qualquer rede social (@_brookemars
no Instagram e no Twitter). Então se quiser conversar sobre qualquer coisa do
livro, seja para criticar construtivamente ou só bater um papo sobre a obra
mesmo, é só me chamar. Se quiser ler algum dos meus livros que ainda não
estão pela Amazon, basta pesquisar Brooke Mars no wattpad, ok?
Espero que goste da leitura tanto quanto eu gostei de escrever esta obra.

Com amor,
Brooke
DEDICATÓRIA
PARA AQUELES QUE
ACREDITAM NO AMOR
como paraíso ou como inferno,
ou talvez como ambos
PARA OS APAIXONADOS
POR UM BOM CLICHÉ
afinal, ser um pouco piegas não é crime
e ser cliché é ser humano
MAS PRINCIPALMENTE
PARA AQUELES
aqueles que sabem que o amor
pode ser extremamente dócil
ou um grande de um filho da puta,
mas que é tão universal em sua essência
que poderia ser vivido até mesmo pelo diabo
Brooke Mars
EPÍGRAFE
E eu, que me perguntava se o seu veneno
morava no Inferno entre as suas pernas ou no
Céu da sua boca, percebi que o verdadeiro
perigo era o seu coração sombrio e
voluptuoso, o purgatório perfeito para pagar
pelos meus pecados.
Brooke Mars
SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO CATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO EXTRA: À TRÊS
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
CAPÍTULO VINTE E NOVE
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
CAPÍTULO EXTRA: O QUE NAMORADOS FAZEM?
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
CAPÍTULO TRINTA E SETE
CAPÍTULO TRINTA E OITO
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
CAPÍTULO QUARENTA
CAPÍTULO QUARENTA E UM
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS - PARTE UM
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS – PARTE DOIS
CAPÍTULO QUARENTA E SETE – PARTE UM
CAPÍTULO QUARENTA E SETE – PARTE DOIS
CAPÍTULO QUARENTA E OITO
CAPÍTULO QUARENTA E NOVE
CAPÍTULO CINQUENTA
CAPÍTULO CINQUENTA E UM
CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS – PARTE UM
CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS – PARTE DOIS
EPÍLOGO
CAPÍTULO EXTRA: RAINHA
AGRADECIMENTOS
Não sei ao certo o exato momento em que me permiti cair de amores
por você, se quer saber. Quando vi era meio que tarde demais.
Para ser honesta, querido, não posso usar o velho cliché ''eu não era
uma garota de me apaixonar''. Sempre soube que o momento chegaria. E você
não foi o primeiro a se infiltrar no meu coração, muito menos a primeira vez
que senti esse maldito órgão pesar por amor. Não, não... Você foi o segundo.
Cara, você deve odiar isso. Você ama ser o primeiro, não é?
Mas você não foi o primeiro, querido.
Porém tenho a mais absoluta certeza de que será o último.
Depois de você, meu anjo, nada será tão intenso e belo o suficiente
para que eu chame de amor. Pode sorrir, pode abrir seu melhor sorriso...
Aquele carregado de egocentrismo, de orelha a orelha e que grita ''o mundo é
meu e você está apenas vivendo nele''. Pode sorrir, seu convencido. Porque é
a mais pura verdade.
Você fez o primeiro amor parecer nada. Uma memória tão distante
que nem parece ter sido vivida.
Nunca sonhei com um paraíso, amor, de verdade, nunca mesmo.
Sempre achei utópico demais para o meu gosto. É que eu via o paraíso de um
jeito errado antes de você. Hoje eu entendo melhor, amor, realmente entendo.
O paraíso não é perfeito e se fosse seria um terrível pesadelo. Paraíso
não é um lugar. É uma conquista.
Paraíso é um estado de espírito. É a capacidade de sermos livres e de
termos força o suficiente para superarmos todas as porcarias que nos lançam
e atingirmos a mais pura felicidade, de vez em quando. Soa piegas, soa
ridículo. Cacete, soa muito ridículo... Mas, às vezes, querido, a verdade é
ridícula.
E a verdade é: encontrei o meu paraíso no inferno.
Encontrei a calma no caos.
Encontrei amor em um coração que não batia.
Encontrei um anjo em quem se chama de Diabo.
Eu encontrei meu paraíso em você, Noah.
Quão irônico é isso?
1991, HELL'S KITCHEN, NOVA YORK
“O túnel é tão vermelho quanto os meus cabelos”, Matt diz.
Honestamente, ele está tão chapado quanto certo.
O túnel é tão vermelho quanto meus cabelos.
A noite agitada e fria de Nova York se resume em escuridão, em breu.
A Lua ao céu está incompleta. Os poucos e mal iluminados postes não
conseguem iluminar a selva de concreto e o bairro de Hell's Kitchen está
completamente silencioso.
Como nunca ouvi falar deste lugar antes?
Não do bairro, afinal, eu moro aqui. Falo desta rua. E do túnel ao fim
desse beco, destacado por luzes intensas e vermelhas, grafitado com as artes
mais incríveis que já vi na vida. Quase me faz querer marcá-las em minha
pele.
— À noite das nossas vidas! — John abre os braços, bêbado e gira
uma vez, caminhando em direção ao túnel. Parece que ele quer abraçar o
vento ou algo assim. Outro chapado. Seu cabelo loiro curto está bagunçado,
sua jaqueta jeans envelhecida amarrada em sua cintura e os All Stars
"brancos" e surrados tocam o asfalto molhado.
Molly corre com seus cachos esvoaçantes e seu sorriso apaixonado, a
pele negra iluminada pela Lua e os olhos verdes faiscando esperança
pela noite de nossas vidas. Ela pula nas costas do namorado e John agarra
suas pernas, a guiando ao túnel da cor dos meus cabelos, que nesse momento,
estão presos em um rabo de cavalo um pouco alto.
Matt os segue e eu estou logo atrás, abraçando meu corpo, protegido
por um vestido preto de alças finas, botas longas e uma jaqueta jeans folgada
que costumava ser do meu pai. Tem quase o dobro do meu tamanho, mas
combina.
Matt passa pelo letreiro. John e Molly estão quase ao fim do túnel e
eu hesito em passar por ele.
Por um segundo, sinto o tempo parar.
Parece um daqueles momentos, sabe? Um daqueles momentos em que
a sua vida está te dando uma última chance de mudar o rumo de tudo e seguir
outro caminho. Ou tentando te avisar que algo insano está por vir.
Consigo ouvir meu coração bater contra as minhas costelas, consigo
sentir a brisa fria nova iorquina e parece que meu sangue está fervendo sob a
minha pele.
É... Eu também estou fodidamente chapada. Tão nas nuvens que o
Empire State provavelmente me inveja nesse segundo.
— Você vem? — Matt pergunta, me analisando por completo. Sua
pele branca, levemente bronzeada, e seus olhos castanhos claros refletem um
pouco do vermelho. Seu cabelo cacheado e bagunçado recebe a sua mão
antes dele estendê-la a mim em um convite.
Ergo o olhar. O letreiro em frente ao túnel diz Purgatorium, com
letras de LED vermelhas que parecem vivas. As letras são de forma, talvez
não tenha nada demais sobre elas, mas neste momento? Elas parecem o
paraíso de tão convidativas.
Mordo o lábio inferior. Tomo a mão de Matt. E sigo, sob o túnel
escarlate.
E a cada passo, eu sinto. Sinto a música. Mais forte e mais forte. A
música eletrônica me chama. Meu coração já sabe que muito em breve baterá
conforme o ritmo dessa música e eu não posso evitar em sorrir.
— Vou ficar ainda mais louco do que você hoje, Chloe — Matt
promete e eu rolo os olhos. Ele me abraça por trás. Vejo John e Molly
pararem numa porta à esquerda e apresentarem suas carteiras falsas ao
segurança, que lhes permite a entrada.
— Vai sonhando, Letterman — rebato finalmente, rindo ao apresentar
minha identidade falsa ao segurança. O cara pisca para mim e eu pisco de
volta, porque honestamente ele não é nada mal. Nada mal mesmo.
Passo pela entrada, desço longas escadas de metal negro e chego,
enfim, à nossa última parada da noite. E então eu sinto de verdade a música.
É como eu disse: meu coração bate conforme ela toca.
O chão vibra segundo o ritmo eletrônico pulsante e todo o meu
sangue se agita, quente como o inferno. O universo sob a minha pele parece
em festa e em casa, queima como nunca. Meus olhos ardem levemente, me
deixando ainda mais atenta a tudo que estou vendo.
Me sinto observada, mas duvido que alguém esteja me olhando nesse
momento, todo mundo parece bêbado ou chapado ou os dois, enquanto curte
como se fossem morrer no segundo seguinte. Acho que meu sorriso é nítido
como nunca nesse momento. Afinal, o Purgatorium parece um paraíso.
São dois andares.
No subsolo, onde estamos, é onde a pista de dança fica. O piso é preto
e as luzes são vermelhas, apagando e acendendo enquanto o DJ, ao centro do
local, em uma espécie de gaiola, coloca todos para dançar. E são muitas
pessoas.
Ao fundo do subsolo, bem ao fundo, o bar tem cor de vinho. Uma
única bartender atende as pessoas e ela não parece infeliz com a quantidade
absurda de clientes. Ela tem um sorriso carregado de luxúria. E, para mim, a
mulher parece o pecado, com seus olhos azuis e frios, pele branca —
estranhamente bronzeada para uma moradora de Nova York fora do verão —
e seu cabelo liso e preto. Há uma tatuagem em sua bochecha, pouco abaixo
dos olhos, uma palavra, de longe não consigo ver. Adoraria ler de perto. Bem
de perto.
Me viro em busca de Matt quando vejo que John já puxou Molly para
dançar, perto da gaiola negra em que o DJ toca.
— Ei, Letterman, vou buscar uma bebi... — Cacete? Matt já está com
a boca colada contra um cara. Um cara de dois metros está se apropriando da
boca do meu melhor amigo. Não, Chloe, Matt não quer uma bebida agora.
Me viro novamente para o bar e percebo a bartender rindo de algo que
um cara disse. Decido me aproximar e uma mão toca o meu ombro. Olho
para trás. Matt está sorrindo para mim, a mão entrelaçada com a do rapaz,
que balança a cabeça conforme a música manda. É engraçado, não tem como
não rir.
— Chloe, esse é o meu ex, Brandon — Matt diz, competindo contra o
som do DJ. Arregalo os olhos levemente e sorrio para o garoto loiro ao seu
lado, que sorri de volta para mim. Uau que sorriso. Volto o olhar para
Letterman, buscando saber se ele tem certeza do que ele está fazendo. Ele
sorri como se estivesse lendo a minha mente. — Chloe, vá se divertir
enquanto eu brinco com o meu ex num banheiro qualquer, ‘tá legal?
Meu rosto se contorce em desgosto por um segundo. Esse é Matthew
Letterman, pessoal. Direto como uma bala, tão doce quanto um limão, com
sua boca surrealmente suja. Que orgulho.
— Não preciso dos detalhes sórdidos, Matty, Matty — devolvo,
lutando para a voz ecoar contra a batida do lugar. — Bom orgasmo, eu acho?
— Matt gruda a boca em minha minha bochecha num beijo estalado e puxa
Brandon para longe dali.
Só me resta rir. Sério, Letterman nunca muda...
Respiro fundo. Fecho os olhos. E tudo o que eu sinto é meu corpo e
todo o caos que o guia ser conduzido pela música. Um sorriso toma meus
lábios com a sensação de que meu coração está por toda a parte do meu ser,
como se todo pedacinho de Chloe Mitchell pulsasse intensamente, até as
pontas dos dedos.
Abro os olhos.
Tiro minha jaqueta, a amarro na cintura e me direciono para próximo
do DJ, deixando meu corpo se levar pela música, entre todo mundo que está
dançando e curtindo. Aproveito para analisar mais o lugar.
Como disse: dois pisos.
E agora finalmente dou atenção ao piso superior, onde os VIPs devem
ficar. Paredes de tijolos, LED's vermelhas, sofás negros, pessoas se beijando,
garçons servindo bebidas... Esse segundo andar contorna todo o subsolo.
Me sinto observada, de novo. Dessa vez, não acho que seja só uma
sensação porque, honestamente, me sinto como uma presa no caminho de um
predador. E quero saber quem me caça.
Analiso todo as pessoas ao meu redor primeiro e então me viro.
Ergo o olhar ao segundo piso instintivamente. E acabo por achar
justamente o que estava procurando. Definitivamente gosto muito do que
vejo.
Dedos longos e cobertos por anéis seguram a barra de metal que
divide o segundo andar do subsolo. Seus fios negros e ondulados estão
arrumados e jogados para trás. Seu rosto é liso, não tem barba. O maxilar está
trincado, os dedos apertados contra a grade e há algo deliciosamente
selvagem no modo que seus olhos me encaram. Não consigo ter certeza da
cor deles, mas adoraria descobrir.
Apesar do terno preto sobre o seu corpo lhe dar um ar mais adulto,
acho que ele tem a minha idade. Quer dizer... Deve ser mais velho. Não
parece passar dos vinte e quatro, pelo menos.
Há um abismo entre nós dois, sabe? Subsolo, segundo piso. Mas
tenho uma impressão de que abismos são insuficientes para separar um
homem como ele de seus objetivos. Se ele me quer, sinto que vai tentar me
ter. E se ainda não me quer... oh, ele vai querer. Porque eu consigo o que
quero e eu, definitivamente, quero ele por essa noite.
E de repente eu não consigo ver mais ninguém. Só ele.

Cada passo, ele me observava.


Cada suspiro, ele me analisava.
Cada piscar, ele percebia.
Mas eventualmente, a presa percebe que é presa. E se ela for sagaz o
suficiente, ela se torna predadora. Eu? Não gosto de ser presa por muito
tempo.
Seus olhos são pretos, tenho certeza disso agora. Nunca vi olhos tão
escuros, mas gosto disso. Vejo a noite em seu olhar. Mas se toda noite
carrega algum brilho, como a Lua ou alguma estrela, eu não consigo ver nada
assim no breu que carrega em seus olhos.
É paradoxal. Me encara de um modo frio e, ainda assim, sinto o
ambiente tornar-se mais quente, em chamas.
Quero que seja a minha diversão para finalizar a noite. Acho que ele
quer o mesmo. Porque ainda parecemos presas e predadores,
simultaneamente. Os olhares fodidamente conectados, os sorrisos igualmente
sujos.
— Chloe! Vamos buscar bebidas, quer? — Uma mão toca o meu
ombro. Encaro John, dono da voz que me chama. Molly está enganchada em
seu pescoço. Sorrio para o casal e confirmo, um pouco desconcertada após ter
saído daquele transe.
Eles somem, eu suspiro, voltando o olhar para onde o cara deveria
estar. Mas ele não está ali, não mais.
— Certeza que deveria beber mais, meu anjo? — Uma voz ecoa em
meu ouvido e eu me arrepio por um segundo, arregalando os olhos em susto.
Viro para o dono do som rouco e rasgante e me surpreendo. O cara do
segundo piso.
Como?
Ele literalmente estava lá em cima há dois segundos.
Seus dedos delicadamente tocam meu queixo e o empurram para
cima, fechando a minha boca. Uno as sobrancelhas, inevitavelmente.
— Você quis, eu vim. Não pense muito — diz. Seus olhos escuros
esquadrinham meu rosto por um segundo.
Ele tem sardas. São discretas, mas existem. E todos os demais
detalhes do seu rosto parecem perfeitos, inclusive o maxilar aparentemente
esculpido pelos deuses. Não parece humanamente possível ser tão lindo e
ainda assim ele é.
— Como sabe que eu quis? — retruco, arqueando a sobrancelha e
segurando o seu pulso. Tiro a sua mão do seu rosto. Ele desvia o olhar da
minha face para o decote circular do vestido preto de alças finas, descendo
aos meus braços. Seu olhar quase trava em uma tatuagem, mas ele chega a
minha mão.
A minha mão está em torno do pulso dele.
— Primeiro, por que ainda está me segurando, anjo. — Ele arqueia a
sobrancelha de volta, dando um passo à minha frente. — E sei o quanto uma
pessoa quer algo pelo modo como ela agarra seus objetivos.
Largo a sua mão.
— Você é meu objetivo então? — Entro em seu jogo.
— Bom, você é o meu — garante, sorrindo de canto. Uma covinha
leve se forma e eu acabo sorrindo de volta, mais do que deveria.
— E segundo?
— O quê?
— Você disse “Primeiro"... Presumo que haja ao menos um segundo
ponto — explico. Ele ri e se aproxima.
— Ah, sim, anjo. Tem.
Sua mão direita vai à minha cintura e algo nele é tão convidativo, que
dou um passo para frente sem nem pensar. Seu toque é firme, preciso. Engulo
em seco, sentindo que meu coração já não segue o ritmo das músicas e que o
maldito sabe disso, porque ele deve sentir contra seus dedos, mesmo com o
tecido do vestido.
— Há no mínimo dois mil pontos que provam que você me quis —
ele sussurra e eu não sei como consigo ouvir, mas acho que tudo que quero
ouvir pelas próximas horas é a sua voz. — E que ainda me quer...
Então a sua mão esquerda toca o meu rosto. Primeiro meu queixo,
erguendo-o de modo doce, que não combina com seus olhos e as quinhentas
más intenções por trás deles... Depois acariciando a minha bochecha
suavemente, aprisionando o meu olhar ao seu.
— Mas o segundo é que... — Ele morde o lábio inferior antes de
continuar e me sinto hipnotizada pelo vermelho mais intenso que se forma no
rosa de seus lábios.
Então me puxa mais para si. Sua mão direita vai às minhas costas,
com propriedade. Sua boca está perigosamente perto da minha.
— Seus olhos dizem muito mais do que você pensa, meu anjo.
Antes que eu possa retrucar com alguma mentira, ele me cala com um
beijo.
Me entregar parece imperativo.
Meus braços o envolvem pelo pescoço e ele me puxa para perto,
deixando a sua língua quente tocar a minha. Céus, a sua boca e a minha
parecem se conhecer há anos.
Seu beijo é a melhor coisa que já provei em anos. E se ele fosse um
veneno, eu ainda assim beberia cada gota. Até que todo meu sangue tivesse
seu gosto.
Trabalhar no Thurman's é divertido, mas cansativo. Digo, divertido,
nesse caso, significa não tão ruim.
Acho que a boa companhia ajuda. Molly sempre está cantarolando
algo interessante, Matt sempre está sendo engraçadinho e Thurman, graças a
Deus, sempre está dormindo.
O uniforme azul, uma espécie de vestido, sobre meu corpo é old-
fashioned demais para o meu gosto, porém é necessário. O avental é
meramente ilustrativo, porque eu não cozinho, não mesmo. Já os tênis
brancos e surrados não combinam nem um pouco com o traje de garçonete,
mas são os que eu tenho. Queria poder comprar tênis novos, mas não é o
caso, então fico com os velhos. Como de praxe, meus cabelos estão em um
rabo de cavalo. Alguns fios caem sobre o rosto, pois já faz muito tempo que
estou aqui. Minha coluna está me matando, meus pés doem e eu realmente
sinto que preciso de uma aspirina.
Boca seca, dor de cabeça, sede excessiva, lerdeza fora do comum e
cansaço. Tudo que pode ser resumido em: ressaca.
Claro que a jukebox, no canto da lanchonete, está entoando as
melhores canções do início da década retrasada. O meu chefe ficou preso nos
anos 70. Acho que Thurman se recusa a acreditar que logo entraremos num
novo milênio. Talvez o meu chefe infarte quando finalmente compreender
que Ice Ice Baby agrada mais os clientes do que Cindy Lauper. Ok, a música
não é tão ruim assim... Eu estou de mau humor. Ao menos, no momento, está
tocando Beatles e eu gosto deles. E nem está tão alto assim. O que está me
matando é a mistura das vozes dos clientes logo cedo e isso não ajuda nem
um pouco a minha cabeça a parar de latejar.
Não voltarei a beber tão cedo.
— Finalmente alguma calmaria! — Molly agradece, encostando-se no
balcão. Eu já estou escorada nele há uns cinco minutos. Matt já está de volta
ao caixa, então nós duas temos a tarefa de rodar o restaurante e servir
clientes.
— Não comemore — peço, exausta, mexendo o pescoço e me virando
para Matt. — Nunca se sabe quando um tornado vai entrar por aquela porta.
— Minha fala rouba risinhos dos dois. O sino tilinta, mas não damos
importância de imediato.
— Onde foi parar ontem à noite?— a minha melhor amiga questiona.
Meu olhar vai aos seus olhos verdes, mas eu não sei o que ela quer dizer.
— Como assim?
— Eu fui buscar uma bebida para você ontem à noite. John e eu, na
verdade. E você desapareceu com um gato e nunca mais voltou.
— É por isso que estão me olhando estranho o dia todo? — arrisco.
— Sempre voltamos das festas juntos, então ficamos preocupados —
Matt disse. — Mas um cara do bar disse que você tinha sido levada para casa
e nós ligamos de um telefone público para o seu prédio e disseram que você
estava em casa, o que foi super bizarro...
— Daí fomos no seu apartamento... — Anderson continua.
— E você estava dormindo. Como um anjo — Letterman acrescenta.
— O que nos faz pensar: que porra aconteceu? E com quem, como, quando
você saiu do Purgatorium?
— Porque ninguém te viu sair...— Molly termina, me lançando o seu
melhor olhar "me diga o que houve." — E seu porteiro disse que você chegou
sozinha em casa.
Abro e fecho a boca algumas vezes, me sentindo pressionada a dizer
algo. Tudo que me escapa é um suspiro.
— Eu... Sei lá — respondo. Os dois unem as sobrancelhas. — Eu não
lembro de nada de ontem à noite. Absolutamente nada. É como se depois
daquele túnel vermelho, mais nada existisse.
Matt e Molly me olham desconfiados por um segundo. Mas é a mais
pura verdade. Não lembro do tal gato, do que houve no tal Purgatorium ou de
como voltei para casa. Só dou graças à Deus por ter voltado viva e inteira. E
então Matt capta algo atrás de mim, lançando seu olhar confuso por cima do
meu ombro e me forçando a fazer o mesmo.
Tem um cara de cabelos pretos, olhar de mesmo tom e jaqueta de
couro num sofá no canto do Thurman's. Os anéis cobrem seus dedos e ele
tamborila a mesa, brinca com os guardanapos, mas não levanta a mão para
fazer um pedido e nem encara o cardápio.
— Bom, talvez ele possa responder. — Há algo malicioso na fala de
Molly. Eu a encaro.
— Ele é o cara gato? — sussurro, incrédula. Os dois confirmam. Matt
está com as duas sobrancelhas erguidas e Anderson está mordendo o lábio
como se estivesse desejando o cliente. E ela é completamente apaixonada
pelo namorado. Pigarreio, chamando a sua atenção. — Eu fiquei com esse
cara? — Aponto, com o polegar.
— Foi um beijo e tanto. Mas depois vocês sumiram. Evaporaram —
Molly conta. Matt cerra os olhos para o cara e desvia o olhar para mim.
— Ele decidiu o pedido dele — o nosso amigo diz. — Estranho,
porque ele não olhou o cardápio. E ainda assim está olhando pra cá com o
dedinho erguido.
Molly e eu olhamos para trás instantaneamente.
O rapaz está com o olhar focado em mim e não esboça sorriso algum.
Um pingente de asas negras se encontra no meio do seu peito, sustentado por
uma fina corrente de metal.
Sinceramente, há uma coisa pulsando entre as minhas pernas e eu não
a culpo. O cara é sexy para cacete. Se o que meus amigos dizem é verdade,
então sinto orgulho da minha boca por tê-lo beijado. Orgulho da pequena
Chloe por tê-lo sentido. No entanto, sinto raiva do cérebro por não se
lembrar. Mas no geral, parabéns, Chloe Mitchell. Parabéns mesmo. Nada
mal.
— Uma de vocês duas precisam parar de babar e atender o cara —
Matt diz e nós duas o encaramos. — Talvez a Molly consiga arrancar alguma
coisa dele e descobrir se ele, sei lá, arrancou seu rim sem que percebesse ou
algo assim... — ele ri nasalado, mas eu não. — É sério, Chloe, ele pode ter
feito algo, você não deveria ter sumido com um desconhecido desse jeito.
— O quê? Eu não fiz nada demais!
— Ele pode ter feito.
— Qual é, Matt?! O cara não fez nada comigo! — exclamo, alto
demais, me debruçando sobre a bancada e fazendo metade da cafeteria me
encarar. Olho ao redor, desconcertada, fechando os olhos, por fim. Inclino a
cabeça para Matthew Letterman está quase rindo do quanto as minhas
bochechas estão vermelhas. — Não tem graça, ‘tá legal? Não se brinca com
isso. É uma acusação bem grave.
— Mas eu não estou brincando, Chloe. — Matt é firme em sua fala.
— Não estou dizendo que ele abusou de você ou algo assim, mas... Sumir
como você sumiu? É perigoso. Ele poderia ter feito algo.
— Eu saberia se ele tivesse feito algo — retruco. — Mesmo sem me
lembrar de nada, eu sentiria alguma coisa. Vai ver ele só me levou para casa.
Vai ver nós nem transamos.
— Você só vai saber se perguntar, Co — Molly sussurra, sorrindo,
maldosa.
— Por que eu? Atende ele!
— Porque o meu cliente da mesa oito está me chamando, então a
mesa sete é toda sua. — Ela pisca e se retira, me deixando boquiaberta.
Fito Matt e ele dá um risinho.
— Cala a boca — ralho por entre os dentes.
— Eu nem disse nada.
— Mas pensou. — Retiro o bloco de notas da mesa, mal humorada.
— Você lê mentes agora? — Matt pergunta, sarcasmo por toda a sua
voz.
— Sim. E a sua disse "Se fodeu".
— Caramba, você realmente lê mentes! — ele cantarola e me lança
seu melhor sorriso, soprando um beijo logo depois. — Mesa sete, Co. —
Acena, mexendo os dedos.
Suspiro e dou meia volta, caminhando até a mesa sete e abrindo o
bloco, sem encarar o cara a minha frente.
— Bem-vindo ao Thurman's, onde você com certeza ganha uma
refeição e um sorriso. O que vai querer? — pergunto.
— Não estou vendo o sorriso. — A voz rouca ecoa e eu luto para não
fitar seus olhos. Sinto as minhas bochechas esquentarem.
Inferno, agora não.
— Desculpa. — Sorrio, desconcertada, ainda sem encará-lo. — O que
vai querer? — Insisto na pergunta, apertando o botão da caneta.
— Primeiro? Que me olhe nos olhos — pede. — É falta de educação
falar com uma pessoa sem lhe fitar os olhos, Chloe.
Ele sabe o meu nome.
Ergo os olhos a ele. Um discreto sorriso sarcástico brinca em seus
lábios. Os dedos tamborilam a mesa de madeira e seu olhar me percorre do
modo mais sujo que já vi.
Me sinto nua. E quente. Está muito quente.
— O-o que vai querer?
— Bem, quero saber o que você é. — Sua pergunta me deixa confusa.
— Depois, quero que sente e converse comigo.
— Não sei se percebeu, mas estou trabalhando.
— Quem liga?
— Meu chefe liga.
— Não vejo seu chefe por aqui. E você estava batendo papo com o
amiguinho preocupado ali atrás, não? — Fito Matt por cima do meu ombro e
ele desvia o olhar imediatamente, fingindo contar o dinheiro do caixa. Volto
a fitar o homem à minha frente. — O restaurante está mais vazio agora, pode
conversar comigo.
— Sobre o quê?
— Sobre ontem — devolve, rapidamente.
— E o que houve ontem, exatamente? — respondo, tão rápido quanto,
sem hesitar.
Minha pergunta rouba o sorriso sarcástico do seu rosto. A surpresa o
toma e é perceptível. Ahá! Não sei exatamente o que estou comemorando,
mas estou comemorando.
— Você quer dizer que não lembra de ontem?
— Olha, cara, eu não quero te magoar e tal... — Derrubo o bloco e a
caneta na mesa, começando a gesticular. — Mas eu meio que estava muito
louca ontem e sabe? Minha mente... Puff... — Fingi uma explosão com os
dedos. — Apagou. Apagou mesmo. Daí eu não quero te deixar triste, porque
aparentemente rolou algo entre nós e eu tenho certeza de que foi muito bom,
mas eu não lembro e realmente preciso trabalhar...
— Você esqueceu de ontem? — Ele pisca algumas vezes e um riso
debochado lhe escapa, por um fio. Então mexe os ombros e balançando a
cabeça em negação, o indicador mexendo de um lado para o outro, com o
anel negro sobre ele. — Não, não, meu anjo, você não pode ter esquecido.
Franzo o cenho, confusa. Apoio as mãos na mesa.
— Só porque isso fere seu ego?
— Quê? — O homem parece incrédulo. — Não só por isso! D-digo, o
quê? — Ele contorce o seu rosto e eu olho ao redor, percebendo que alguns
curiosos nos encaram. Faz muito tempo que estou de pé, batendo papo com
um cliente. Me sinto incomodada. — Não estou aqui para te foder de novo,
ruivinha. — Arregalo os olhos e me engasgo, de súbito, chamando ainda mais
a atenção. — Apesar de que, para ser sincero, eu quero. — Um sorriso
discreto e extremamente sujo toma seus lábios.
— Olha aqui. — Aponto o dedo em seu rosto, sem saber como
chamá-lo. — Mano... — Uau, Chloe. "Mano", jura? — Esse é meu ambiente
de trabalho e eu estou pouco me importando com que porra você acha que
quer conversar comigo. Ou faz seu pedido ou vaza, tá legal? — Cruzo os
braços. Ele arqueia a sobrancelha e morde o lábio, sorrindo de modo ainda
mais sujo em seguida. Eu nem sabia que isso era possível. — Dá pra parar?
— Com o quê?
— De sorrir assim.
Ele não para.
— Tira esse sorriso debochado do rosto? — peço.
— Você gostava do meu sorriso ontem.
— Ótimo que não lembro mais.
— Wow... Ouch, Chloe. — Ele murcha os lábios dramaticamente.
— Tinha esquecido do quanto a sua língua é afiada. Me fez sentir falta dela
agora. — Abro a boca, incrédula. — Você não pode ter esquecido de mim,
ruivinha, ninguém esquece.
Ruivinha? Quem ele pensa que é?
— Bem, eu esqueci! — garanto. — Por que se importa tanto?
Seu riso nasalado ecoa, brevemente.
— Garota, o que é você?
— Wow, wow, eu fiz uma pergunta primeiro aqui.
— Foda-se, o que...
— Por que se importa tanto? — insisto e ele parece lutar para não
dizer em voz alta, mas lhe escapa:
— Porque você fez me fez sentir algo diferente. Algo que eu nunca
senti antes.
O quê?
Ele está falando sério?
O cara cerra ambos os punhos sobre a mesa e se inclina, buscando por
qualquer reação em meu rosto. Encaro seus olhos, buscando saber se ele está
falando sério. Ele está falando sério.
E então não dá mais. Rir é inevitável.
Me sento à sua frente, para que parem de me olhar de pé. Ele está
falando sério? Algo diferente? Tento não rir novamente, mas é impossível.
— O que está fazendo? Está rindo da minha cara? — ele pergunta e
eu ergo o indicador, pedindo por um tempo para me recompor. Respiro fundo
e as risadas cessam, mas certo humor ainda brinca por meu corpo, enquanto a
barriga dói levemente do tanto que eu ri. — Está achando divertido?
— Bom, é que você disse que não se importava comigo pelo seu ego
ferido. — Me inclino sobre a mesa. — Mas parece exatamente isso. — Então
ele parece irritado com o deboche que dessa vez marca o meu sorriso. — O
que foi? Se apegou? Eu te dei um fora ontem quando você pediu por mais?
Eu te menosprezei? Você não foi tão bom assim? Broxou ou algo do tipo? E
agora quer mais uma chance?
Ele fica em silêncio por um tempo. Me analisa. Me encara,
silenciosamente, cada detalhe do meu rosto. Repito o gesto, analisando todas
as sardas no seu rosto e seu olhar impassível.
Gosto de olhos escuros. E gosto do olhar dele, porque é o mais escuro
que já vi. Me lembra uma noite sem estrelas. Mas seu olhar também é opaco,
vazio, sem um brilho sequer. O que me incomoda um pouco. Todo olhar
brilha, não? Mesmo que um pouco.
— Realmente não se lembra...
— Por que se importa tanto com o que eu lembro ou deixo de
lembrar? — questiono. — Por que liga tanto para quem eu sou ou deixo de
ser? Eu nem te conheço. E uma noite de sexo não nos torna íntimos, nem me
torna um livro aberto para que você leia e saiba tudo sobre mim. Por que se
importa?
Ele não responde. Ao invés disso, vejo a parte da sua pele não coberta
pelas mangas da sua jaqueta de couro se arrepiar e seu cenho se franzir um
pouco. Seu pomo de Adão se mexe conforme ele engole em seco.
Ele desvia o olhar, se encosta na cadeira e cruza os braços, deixando
um riso escapar. O sorriso debochado está de volta. Seu olhar me analisa com
frieza, mas há algo a mais. Algo que desperta a minha curiosidade.
O homem ergue levemente a cabeça e se põe de pé, se inclinando
sobre a mesa quando ao meu lado. Suas mãos estão na mesa e no encosto da
cadeira atrás de mim. Seu nariz se aproxima do meu e eu não ouso desviar o
olhar do seu por um segundo.
Ele quer me desconcertar. Mas não vou lhe dar esse prazer. Não
mesmo.
— Gostei de você, Chloe — sopra.
Seguro a vontade de engolir em seco com a proximidade, tento
ignorar o quanto o seu perfume é, infelizmente, muito gostoso de se sentir ou
como cada traço do seu rosto parece ter sido milimetricamente esculpido. O
cara é dolorosamente bonito.
— Desde o primeiro segundo que coloquei os olhos em você, na
verdade — continua. — E não é porque você é gostosa, se quer saber... Seu
corpo é... Diferente, mas não é exatamente o meu tipo, se quer saber.
Não gosto de como me analisa. Não gosto de como fala como se eu
fosse somente mais uma que ele provou. Uma que, por acaso, tinha algo a
mais, somente por acaso. Um tipo de mulher. A irritação cresce em meu
peito, mas — para a minha infelicidade — a proximidade realmente mexe
comigo. O maldito tem algo magnético. E ele continua:
— Também não são as tatuagens, por mais que eu as ache incríveis.
— Sua fala se perde quando olha os meus braços, sobre a mesa, por um
segundo, mas seu olhar retorna ao meu.
Minhas tatuagens são como rabiscos, sketches feitos com traçados
finos. Significam algo para mim. Ele parece saber disso. Apesar das suas
perguntas, o cara fala como se soubesse tudo sobre mim.
Confesso que seus olhos me prendem mais do que deveriam. Parecem
dispostos a me sugarem sem piedade. Mas não quero fugir. Não tenho medo.
— Há algo diferente sobre você — sussurra, ainda perto demais. —
Algo que me atrai. Atrai para cacete. No primeiro momento eu não sabia, eu
só precisava te ter. Mas agora, Chloe... Agora eu sei que são os seus olhos.
— O que tem eles? — questiono, de imediato.
— Eles são mais escuros que os meus. E eu não sabia que isso era
sequer possível.
E, tão misterioso quanto chegou, vai embora, sem ao menos me dizer
seu nome.
Ele diz algo sobre meu cabelo, puxa o elástico que o prende e deixa os
fios vermelhos alaranjados caírem sobre meus ombros.
Meu coração está mais apressado que a batida do som fora do
banheiro. E o som parece distante e não tão agradável quanto nossas
respirações descompassadas e intensas aqui dentro. Subitamente, seus lábios
estão em meu pescoço. Arranho a sua nuca conforme ele me pressiona contra
a parede do banheiro. Suas mãos vão para minha bunda e em um impulso,
minhas pernas estão ao redor do seu corpo. E fácil assim, meu vestido sobe.
As luzes do banheiro são vermelhas e as paredes, escuras. A pia é de
mármore negro e há um grande espelho atrás do homem que me beija.
É o cara misterioso. Do Purgatorium e da cafeteria. E meus dedos
estão entre seus fios de cabelo, no topo da nuca.
— Gostei de você, meu anjo — ele sussurra, perto do meu ouvido, as
mãos em minhas coxas. Seu nariz roça em minha bochecha e desce até o
maxilar, que ele morde devagar. — Você me parece o pecado perfeito.
— Jura? — sopro, mordendo o lóbulo da sua orelha e buscando pelo
zíper da sua calça. O desço apressadamente. Afinal, sinto falta da sua boca. A
boca vermelha como sangue, macia como nada que já senti, gostosa como
nada que já provei. — Gostei de você também. Me parece o pecado perfeito
para a noite.
— Oh, você não tem ideia.
Não tenho tempo para pensar sobre os arrepios que sua voz rouca e
perigosa me causa, porque a sua boca colide com a minha. E a colisão entre
os nossos universos é perfeita.
Seus polegares deslizam até o meio das minhas pernas, pelas coxas,
lentamente, mas param no meio do caminho. Ele sorri contra a minha boca e
eu não preciso abrir os olhos para sentir toda a sua malícia. E é o que basta
para o tesão fazer meu corpo queimar por inteiro.
Sua mão vai ao bolso da calça e ele retira uma camisinha. Mas antes
de vesti-la, ele para por um segundo e a coloca sobre a bancada. Seu olhar
volta a mim e ele coloca as minhas pernas ao chão.
Suas mãos vão ao redor da minha cabeça, estou prensada entre ele e a
parede, sem escapatória. Todavia, se existisse uma, eu não a escolheria.
Preciso desse cara hoje.
— O que foi? — pergunto. O homem não me responde. Seus olhos
me analisam e ele trinca o maxilar. Então solta o ar pelo nariz e une a boca ao
meu pescoço, mordisca a pele sensível. Ele sente o meu perfume, o inspira
levemente, como se fosse uma droga que precisasse ter dentro de si. Há algo
selvagem nele, acho que já disse isso. E eu gosto.
O cara se afasta e me fita como se meus olhos fossem algum tipo de
enigma impossível de ser resolvido. Depois se ajoelha.
Tira seus anéis um a um e os coloca na bancada ao nosso lado. Alguns
são dourados, outros pretos, mas o som de cada deles contra a bancada é o
mesmo. E prenuncia o que está por vir, como uma contagem regressiva.
Meu coração bate mais forte, em antecipação.
O primeiro beijo é na lateral da coxa, pouco acima do joelho. Ele arfa
contra a minha pele e ergue os olhos negros para mim. Então guia uma trilha
de beijos suaves sobre a pele e deixa um beijo na outra coxa, mais perto da
barra do vestido.
Seus polegares se infiltram sob o tecido e puxam a minha calcinha
sem cerimônia. A lingerie preta desce por minhas pernas, passa por minhas
botas, fica em suas mãos.
Ele sobe o vestido e primeiro arfa contra mim, me deixando sentir seu
hálito quente. E definitivamente eu não estava pronta para isso.
Sua língua é quente e mais habilidosa do que a de qualquer outra
pessoa que já senti entre as minhas pernas. Ela percorre toda a minha
extensão até que ele passa a me chupar com gosto, como se sua vida
dependesse disso. Nesse momento, eu tenho certeza de que esse cara é
incomum. E então seus dedos entram em ação.
O calor é absurdo.
Um gemido me escapa baixinho, ouço de longe o som da festa. Se lá
fora é o purgatório, aqui dentro o clima é bem diferente. Apesar de tudo
parecer tão vermelho, de como nossas almas anseiam por nada angelical, eu
me sinto no paraíso.
É como o caminho para o céu, o caminho para o melhor orgasmo da
minha vida.
O vejo sorrir sob mim e me provar de novo, me chupar com gosto,
como se eu fosse a melhor coisa que já passou por seus lábios. Seu dedo
começa a brincar com o meu clitóris e eu fecho os olhos por um segundo.
— Não, não, anjo. Eu preciso que veja isso, sim? Cada segundo —
ordena e eu obedeço, arqueando a coluna conforme os arrepios e ondas de
prazer chegam. Afundo meus dedos em seus cabelos, atenta aos seus olhos e
ao modo feroz que me encara conforme me prova.
Sua língua brinca com meu clitóris, minha extensão, me penetra...
Seus dedos entram em mim. Ele faz tudo o que eu desejo, parece saber
exatamente o que eu quero e quando quero. Parece me conhecer como a
palma da sua mão.
Enquanto eu não sei sequer o seu nome, ele parece conhecer a minha
alma milimetricamente, cada segredo obscuro que ela guarda.
Céus... Puta que pariu.
Eu posso sentir. O prazer por cada vaso do meu corpo, o sangue
carregado de luxúria, bombeado por um coração acelerado, a pressão se
acumulando entre as minhas pernas...
O prazer cresce, os gemidos se entalam em minha garganta, meus
dedos seguram o seu cabelo com força, consigo ouvir meu coração em meus
ouvidos, estou quase sem conseguir segurar mais e então...
Então eu acordo.
Ofegante e com o coração batendo tão intensamente, como se
estivesse contra a minha pele.
Estou agarrada aos cobertores da cama, suando como nunca, quente
como nunca. Os olhos arregalados demoram para entender que estou no meu
quarto e não no banheiro do Purgatorium, com ele.
Pelas grades da janela do meu apartamento, é claro que a noite ainda
se arrasta e eu acordei pela madrugada. Está chovendo lá fora.
Meu coração se mantém acelerado e eu consigo ouvir, no fundo da
minha mente, as batidas de uma festa. É como se minha alma tivesse ficado
lá.
Eu sei que isso não foi um sonho. Isso foi uma lembrança. E eu tenho
a sensação de que vai me atormentar pelos próximos dias.
Porra... Preciso de um cigarro.

O Shelby é tudo o que eu tenho. Meu pai me deixou quando ele


morreu. Todo mundo da pequena cidade no Tennessee costumava invejar o
carro do xerife. Eu amava. Tanto que o herdei.
Papai o apelidou de Shelly. Então, tecnicamente, o carro é feminino.
Se é que isso faz sentido. A minha mãe achava engraçado, e ao mesmo tempo
reclamava que ele amava mais a Shelly do que a ela. Mas Colin Mitchell
dizia: "Donna, meu amor, o carro é uma extensão de mim. Nós dois te
amamos com tudo que temos. Não precisa ter ciúmes, precisa nos amar de
volta.".
Essa desculpa não colava, entretanto. Ela continuava uma fera. Papai
amava aquele carro mais do que qualquer coisa.
Donna Mitchell ficou ainda mais irritada quando meu pai morreu e eu
me apeguei ao carro. Até porque meu pai morreu nesse carro. E eu estava
nele quando tudo aconteceu. Não conto isso para todo mundo. Quem sabe
disso geralmente diz o mesmo que a minha mãe: "Chloe, isso é macabro.".
Talvez seja.
Como a Shelly é uma extensão do meu pai. Não posso me desfazer de
uma parte dele, já que não o tenho por inteiro. Preciso da Shelly. E a amo
com todo meu ser. Acho que ela me ama também, com seu tom vermelho
vivo e as listras brancas sobre o capô. Ela é linda. Mas não chega aos pés do
papai.
Respiro fundo e é como se o oxigênio fosse saudade. Saudade de
Collin Mitchell e suas piadas, seu sorriso... Eu sinto falta do meu pai todos os
dias.
Coloco o capuz do casaco que visto sob a jaqueta de couro. A mochila
está em minhas costas. Estou no elevador do meu prédio. Sei que é
madrugada, mas um lugar me chama nesse momento. Deito a cabeça na
parede de metal e espero. Então a porta se abre e eu arrasto a grade do
elevador, me colocando para fora. É quase mecânico.
Sei para onde quero ir, então procuro não pensar muito.
Passo pelo portão do prédio, desço a pequena escada e meu Shelby
está logo na frente.
— Oi, Shelly. Sentiu minha falta, garota? — questiono, sorrindo para
um carro.
Entro no veículo e olho para o retrovisor. Uma boneca de pano está ao
fundo do carro. Mamãe fez para mim quando eu era bem, bem pequena. Ela
se parece comigo, os fios de lã vermelhos, botões negros como olhos, um
sorriso doce bordado, um vestido florido... Bem, vestidos floridos não são a
minha praia desde meus seis anos.
Giro a chave, acelero e saio de Hell's Kitchen.
Na medida que as ruas passam por meus olhos, a cidade ganha mais
cor e velocidade. Afinal, Nova York nunca dorme e seu centro é o coração
que pulsa sempre acelerado.
Outdoors, painéis de LED, carros e mais carros, algumas pessoas nas
ruas, lojas e mais lojas. Passo por tudo isso, inclusive pelo outdoor enorme e
brega do segundo filme do Exterminador do Futuro. Essa cidade
realmente nunca dorme.
Eventualmente chego onde quero. A rua está mais silenciosa, o
grande prédio empresarial parece ainda mais sofisticado.
Cruzo os braços no volante por um segundo. O movimento faz o
banco ranger. É como se a minha garota estivesse falando comigo, então a
respondo:
— É, eu sei, Shelly. De novo.
Tiro a chave e saio do veículo, o trancando. A chuva fraca permanece.
Olho ao redor por um segundo, mas a rua está quase vazia. Sigo para o
prédio. Passo pela porta giratória e pelos seguranças. Atravesso todo o tom
bege e dourado do edifício de classe alta.
O elevador sofisticado é bem diferente da lataria velha do meu prédio.
Sinto frio, mas tiro o capuz, apertando o botão do andar que almejo. E então,
o elevador engata, começa a subir comigo. Ele para no doze e eu percorro o
longo corredor, até a última porta. Me agacho no tapete escrito "bem-vindo" e
retiro a chave sob ele. Como de costume, o mesmo chaveiro de plástico com
o mesmo bilhete dentro.
"Brilha estrelinha. E desliga as luzes ao sair. Te amo."
A caligrafia da minha tia é linda. Queria escrever assim.
Ela sabe que às vezes preciso desse lugar. Não lhe peço dinheiro, na
verdade, recuso. Só preciso desse lugar.
Abro a porta do estúdio e observo o ambiente. Ligo as luzes e fecho a
porta atrás de mim. O lustre de cristais torna a sala levemente alaranjada. O
piso de madeira brilha de tão limpo. As longas janelas de vidro expõem um
lado de Manhattan que poucos sabem que eu conheço. Os móveis ficam do
lado direito: uma pequena cozinha americana, alguns puffs e um sofá, além
de uma TV pequena. O lado esquerdo é onde os espelhos e as barras ficam,
bem como um corredor que leva aos banheiros e a uma espécie de quarto, que
serve como vestiário.
Minha tia, Riley Mitchell, é uma bailarina de sucesso. Ela criou esse
pequeno estúdio para treinar garotas de famílias ricas. Ela ganha muito bem.
Parece comigo, inclusive, mas bem mais bonita. É a ruiva mais linda que já
vi. Mas enquanto os meus olhos são escuros como a noite, os seus olhos são
verdes. Bem verdes. Como esmeraldas.
Tiro a jaqueta e ela cai no chão, expondo o top de decote ombro a
ombro, preto. Depois me desfaço dos tênis e das meias com os pés. Não tem
ninguém aqui e nenhuma luz do prédio da frente está acesa. E bem, se
avistarem algo, espero que gostem do show. Já estou com a legging preta,
calço apenas as sapatilhas de ponta.
Fito-me perante o espelho. Deveria me aquecer, mas se eu fizesse
tudo que eu deveria fazer, certamente estaria bem longe de Nova York.
Tenho pressa para dançar.
Não prendo o cabelo, nem tiro a gargantilha em meu pescoço. A
tatuagem em minha cintura está parcialmente exposta. Caminho ao aparelho
de som do lado direito, próximo de um dos puffs. Coloco a música clássica
um pouco baixa. Caminho para o centro do estúdio...
E danço.
Deixo o ballet tomar conta do meu corpo.
Meu pé risca o chão em uma semicircunferência, e então rodopio
levemente conforme a música manda.
Meus braços se encontram em frente ao meu corpo, mas aos poucos o
giro cessa e eles passam a se mover com leveza. Meu coração parece mais
calmo, já meu sangue mais frio, menos fervente.
Sinto a mente leve, o mundo na ponta das minhas sapatilhas. Estou no
topo de um prédio alto, de olhos fechados, dançando, e sinto que Nova York
pertence a mim. Presunçosa, talvez. Mas gosto da sensação. É como poder. É
como estar no topo do mundo. Sinto que sou mais do que realmente sou, do
que dizem que sou. Me sinto importante.
A dança se torna mais agitada, os giros se tornam mais constantes e
eu abro os olhos, atenta conforme realizo cada passo. Dos movimentos dos
braços, ao caminhar elegante, ao corpo que se move segundo notas
musicais... Não busco perfeição. Eu só quero dançar.
E na hora do maior salto, do passo final, corro um pouco até pular, de
pernas abertas e retornar ao chão em um giro suave, deixando o pé voltar a
traçar uma semicircunferência. Sempre que realizo o salto, o grand jeté, é
como se eu pulasse e superasse alguma espécie de abismo. Gosto da
sensação. É uma sensação de liberdade.
Fecho os olhos.
Termino a dança do modo leve que ela começou. A música cessa, tão
tranquila como eu me sinto.
Assim é a vida, não? Começa como uma doce calmaria, se torna um
agressivo tornado, por vezes, e acaba amarga, mas calma. Independentemente
do modo como a vida lhe é tirada, todos dão seu último suspiro com alguma
leveza.
Escuto palmas, lentas. Não usei drogas, isso é... Isso é real.
Uno as sobrancelhas antes de abrir os olhos, de fato, confusa.
Ele está perante meus olhos. Tentei fugir dele em meus sonhos, mas
agora é a mais pura realidade. O cara do Purgatorium, ao vivo e a cores, com
seu olhar negro e a corrente de asas pendurada em seu pescoço.
— O que está fazendo aqui?
O maldito sorri. E seu sorriso é como uma arma, que esconde o
sarcasmo em balas prestes a disparar. E então ele atira:
— Ora, eu poderia te perguntar o mesmo, meu anjo — diz, guardando
as mãos nos bolsos do casaco cinza que veste.
Parece só mais um cara. Um cara de vinte e poucos anos, muito
enxerido por sinal. Ainda assim, meu coração acelera como se eu estivesse
diante de um leão, meus instintos me avisam para correr, não sei porquê.
Contudo, eu vou de encontro a ordem na minha mente que grita para que eu o
tema, fuja. Por gostar da adrenalina, talvez, eu fico. Apenas me recomponho
e jogo o cabelo para trás, cruzando os braços.
— Isso que está fazendo? Invasão de propriedade — aviso.
— Oh, vai me dizer que esse lugar é seu? — Ele abre os braços, me
fazendo encarar o estúdio. — Dança muito bem, devo admitir.
— O que. Está. Fazendo. Aqui? — pergunto, pausadamente.
— Moro nesse prédio, meu anjo. Nesse andar. O apartamento estava
aberto, cheguei tarde do meu trabalho, decidi fechar a porta, mas gostei do
que vi.
— Você não encontrou a porta aberta, porque eu a fechei. E eu não te
ouvi entrar.
— Acho que você está enganada. Estava tão ansiosa para dançar que
se tornou desleixada. — A sua voz rouca carrega uma serenidade invejável.
Ele me seduz a acreditar. Não sei ao certo se acredito.
Então me analisa como se eu fosse o enigma mais desafiador que
passara por seus olhos. Repito o gesto.
Está aí: ele conseguiu a minha curiosidade.
Avanço alguns passos, mordendo o lábio inferior ao analisá-lo de
cima a baixo.
— Mora aqui? — questiono. O homem confirma. — Rico. Claro. Isso
explica muito do seu comportamento.
— Cuidado com o estereótipo, ruivinha...
— Não me chame assim.
— Certo, Red. — Cerro os olhos para ele, prestes a retrucar. — Ou
prefere meu anjo?
— Não sou sua. Muito menos anjo. — Ele me analisa de cima a
baixo. E então ri nasalado, como se discordasse. — Queira se retirar, por
favor? Tenho muito o que treinar no momen...
— Red, seus amigos sabem que por trás de uma garçonetezinha de um
restaurante de fim de mundo, se esconde uma bailarina talentosa, de técnica
tão perfeita que causaria inveja até nos maiores nomes do ballet? — Sinto o
perigo em seu tom de voz. Ele se aproxima, sem sorrir. — O destino cisma
em nos aproximar, não acha? Quarenta e oito horas e já nos encontramos
duas vezes.
— Na primeira vez, você me perseguiu. Estou começando a achar que
agora também.
Ele rola os olhos.
— Vamos recapitular algumas coisas, certo? Sei onde trabalha,
porque seu porteiro me disse. Conheço seu porteiro porque sei onde mora.
Sei onde mora porque te deixei em casa no dia em que nos conhecemos.
Te procurei porque tinha perguntas. Mas você as recusou, eu fui embora. Não
te persegui, te procurei. Agora é diferente. Bem diferente. O destino nos uniu
agora, não? — Arqueia a sobrancelha, se aproximando ainda mais. Não movo
um músculo sequer. — Talvez o destino também queira que você me conheça
melhor.
— Talvez o destino esteja completamente insano. — Sorrio, irônica.
Tudo o que ele faz, é rir nasalado. — Mas você tem sorte...
Como falei, ele conquistou a minha curiosidade.
— Me diga seu nome, talvez eu lhe deixe me chamar para sair e lhe
diga o que quiser — continuo.
— Não tem medo de que eu seja um monstro? Talvez eu seja o Diabo
esperando para te arrastar para um inferno.
— Bom, em todo caso... — Passo reto por ele e pego uma garrafa de
água dentro da minha mochila, no chão. — Correrei este risco. Sempre quis
conhecer o Diabo de perto, se quer saber. — Viro um gole de água e o
encaro. — Nome?
Ele sorri.
— Noah. Noah Hellmeister.
— Então é um encontro — Kold provoca. Seus olhos azuis e frios
faíscam em minha direção. A encaro, mas ela não perde o deboche em seu
sorriso.
Poucas pessoas me desafiam. Kold é uma delas. Seus fios pretos
como a noite mais escura e lisos estão soltos. Sua pele é branca, um piercing
argolado está entre as suas narinas e a palavra HELL, virada ao contrário,
está tatuada em sua bochecha, pouco abaixo do seu olho.
No momento, as luzes acesas do Purgatorium são as brancas. Parece
um bar sofisticado, exceto pela gaiola escura ao centro. Ainda é cedo para as
luzes vermelhas serem acesas.
— Ela é quente, eu entendo porquê um cara sairia com ela — Kold
comenta, me empurrando uma dose de uísque sobre o mármore negro do bar.
Sem gelo. — Mas você não é um cara qualquer, não é mesmo, Hell? Você
não é de encontros, paixões, romances e garotas doces.
— Ela não é doce.
— Mas isso é um encontro.
— Não é um encontro, Koldelium — digo seu nome completo e ela
franze o nariz em desgosto. — Eu só vou sair com a garota para descobrir
mais sobre ela.
— O que é um encontro. — Uma voz grossa ecoa. Olho para o lado,
para a entrada do lugar. A cicatriz cobre a pele negra, passa por seu olho
esquerdo. Esse é cinza pela falta de visão. A cor do outro é castanho. O
homem está todo vestido de preto: calças, camisa, jaqueta e tênis. Há uma
tatuagem evidente em seu pescoço, ela me lembra chamas.
— Sinn — o cumprimento com um aceno e ele se aproxima. Viro um
gole do uísque e ele bebe o resto. — Bom que chegou. Agora você vai aturar
as merdas que Koldelium diz.
— Ela está certa, Noah. Você está indo a um encontro. Há séculos
isso não acontece — Sinn fala, lançando um olhar cúmplice para Kold. Os
dois me encaram em busca de uma explicação. — Você está obcecado pela
garota. Porque ela te fez sentir alguma coisa.
—Vocês sabem bem o que aconteceu — friso. Os dois se entreolham.
— Ou duvidam de mim?
— Há muito tempo você anda desejando isso, Hell — Sinn retruca. —
Talvez tenha sido só uma impressão.
— Não foi — garanto, por entre os dentes. — Ela pode ser a resposta
para uma pergunta que ando me fazendo há milênios, certo? E eu preciso
dessa resposta. Eu quero muito. Vocês sabem como funciona... — Me coloco
de pé, ajeitando o terno que me cobre o corpo. — Quando eu quero algo, eu
conquisto.
— Nem tudo! — Escuto a terceira voz que faltava. E o dono da voz se
senta no bar, ao lado de Sinn. Rolo os olhos ao ver Luke e seu sorriso
debochado. Seus fios loiros e mais longos estão bagunçados. Ele veste uma
camisa branca apertada e como sempre parece um universitário qualquer. —
Ou já teria conseguido essa resposta há séculos.
— Como amigo você é um ótimo demônio — resmungo e ele ri.
— Qual carro você vai escolher hoje? — Kold pergunta, jogando um
pouco de vodca e morangos vermelhos como sangue na coqueteleira,
erguendo os olhos apenas o suficiente para me ver. Luke e Sinn me analisam.
Pondero por um segundo.
Chloe, Chloe... Qual será o carro certo para um par de olhos
sombrios que transbordam luxúria? Precisa ser um que combine com um tom
vermelho alaranjado. E precisa ser tão diferente quanto você.
Acho que tenho o carro certo.
— O Thunderbird.
Seguro com força o volante.
Como combinado, meu carro está em frente à sua casa, estou
esperando. Consigo vê-la, entretanto. Ela mora no sétimo andar do prédio de
tijolos marrons e desgastados. Está contra o parapeito da escada de incêndio,
do lado direito do edifício. Veste um sobretudo escuro, então não sei o que
está por baixo dele.
Seus fios me lembram chamas. Gosto disso.
Ela se acha alguém comum, sinto isso. E talvez muita gente pense o
mesmo. Todavia, desde o primeiro segundo ela me chamou a atenção,
nenhuma qualquer faz isso. Não sei se é um anjo ou um demônio, me
pergunto que porra ela é. Talvez seja os dois.
Buzino, pouco me importando o quão silenciosa Hell's Kitchen está.
Ela me viu. E agora sumiu da escadaria ao entrar pela janela. Só me
resta aguardar.
Tamborilo o volante, meu olhar viajando pela rua. Não gosto de me
sentir ansioso, não mesmo. Desço a janela do carro e ligo o rádio. É a música
nova do Guns N' Roses. Enquanto o vento frio corre Nova York,
prenunciando que o outono tem seus dias contados e em breve estaremos no
inverno, a banda canta para "viver e deixar morrer".
Tento me concentrar na letra. Ela é bem bonita, mas não o suficiente
para me distrair. Minha mente está pensando em algo mais belo.
Merda.
Consigo imaginar Kold, Sinn e Luke rindo da minha cara porque
"estou num encontro". Provavelmente estão se servindo Bloody Mary's,
ponderando sobre quais vítimas levarão para cama. Isso se não forem os três
juntos.
Não precisamos de Inferno se ficarmos juntos. Acho que é o que
chamam de amigos. Eu chamo de irmandade. Crescemos juntos, os quatro.
Brigamos o tempo todo, reclamamos um dos outros, geramos caos, mas
sempre a acabamos juntos. Talvez seja a nossa sina.
Escuto alguém bater na minha janela. Olho para o lado. E aqui está
ela.
Agora consigo ver melhor sua roupa. Chloe está mais simples do que
eu, mas sua beleza ultrapassa todos os limites. Veste uma blusa preta de uma
banda qualquer por dentro de calças pretas. Calça coturnos negros e tem a
mesma gargantilha que vi no Thurman's presa em seu pescoço. O símbolo é
um brasão.
Está segurando alça da bolsa presa em seu ombro, não me parece
muito feliz. Foco em seus olhos, no modo como respira... Consigo sentir
alguma melancolia, na verdade. Algo aconteceu. Tento fingir que não
percebo nada, mexendo em minha corrente, a parte dela que não está sob a
blusa social.
— Oi — ela diz, timidamente.
Faço menção de sair do carro e a ruiva abre a mão, num sinal para que
eu pare.
— Não precisa, só... Fica aí — pede. Só assinto com a cabeça. —
Espera... Você tá de terno??
— Givenchy.
— Isso é um "sim"?
— Você é míope ou algo do tipo? — retruco, impaciente.
Chloe cerra os olhos, como se estivesse prestes a me matar.
— Certo, cavalo. Devo trocar de roupa? — Ela aponta para trás e eu
nego.
Volto a me ajeitar sobre o assento e acompanho conforme dá a volta
pela frente do carro e abre a porta do passageiro. Ela entra no veículo e agora
eu sinto um leve cheiro de baunilha. É suave e doce. O que contrasta bastante
com o que ela veste.
— Uau... Thunderbird — Sua voz me faz arquear uma sobrancelha em
surpresa. Sim, de novo, surpresa. Chloe Mitchell me surpreende mais uma
vez. Outra coisa que poucas pessoas fazem.
Giro a chave do veículo.
— Curte carros antigos? — questiono e ela confirma, acenando com a
cabeça para o Shelby do outro lado.
Sei que é seu carro porque o vi em frente ao prédio da sua tia outro
dia. Onde eu não moro. Como fui parar ali, na noite do ballet, é uma longa
história.
— Belo carro — elogio.
— Não tão belo quanto um Thunderbird preto brilhante, de estofado
de couro. — Chloe deixa um sorriso escapar.
— Ainda assim, belo carro. Gosto dele. — Seguro o volante com uma
mão, o outro braço apoiado na janela aberta. Meu olhar analisa
despreocupadamente o seu rosto. Ela parece confortável ao meu lado, como
se não se importasse em dar uma volta com um cara como eu. Não tem medo
de um estranho como eu e, sinceramente, deveria ter. — Gosto de vermelho.
Ela sorri ainda mais, apoiando o braço na janela do mesmo modo
como eu estou fazendo. Não me fita, mas vejo suas bochechas corarem,
porque ela entendeu o recado.
— É, percebi — responde, me lançando um olhar tão perigoso quanto
todos os que já lancei na vida.
Passo a dirigir.

— Então, para onde vai me levar, Hell-alguma-coisa?


— Hellmeister.
— Como?
Rio nasalado, ainda atento as ruas de Nova York.
— Hellmeister. É Alemão — explico.
— Hellmeister — Chloe repete, como se provasse o meu nome em
sua boca.
As ruas passam perante meus olhos. Luzes e mais luzes dos outdoors,
placas, postes... Essa cidade finge que não é preenchida por escuridão, ela
tenta se encher de luzes para parecer bonita. Ela se mascara de colorida para
esconder a sua alma cinza. Como a maioria das pessoas. É por isso
que elas amam a Big Apple.
Eu a vejo como um grande cárcere disfarçado de liberdade. É por isso
que eu amo a Big Apple.
— Você não é muito fã de sorrisos, não é? — Tem um divertimento
gritante na sua fala. A encaro, mas ela está focada em olhar para frente, para a
rua. Sua cabeça está encostada no assento, Chloe parece completamente
relaxada.
— Como assim? — pergunto, voltando a focar na rua. Por mais que
seja interessante e irritantemente viciante encará-la, não quero causar um
acidente nesse momento.
— Você. Você não é fã de sorrisos.
— Eu sorrio! — protesto, sem de fato sorrir, percebendo então que
estou de cenho franzido, olhar semicerrado e com uma careta que diz "que
absurdo", mas prova justamente o contrário.
Ela ri. De repente, meu rosto relaxa e eu aperto o volante com mais
força, porque a minha vontade é de rir também. Ou sorrir tanto quanto ela
está sorrindo e ela está sorrindo bastante.
Por algum motivo, sinto que se eu sorrir, ela ganha. Se eu não sorrir,
ela ganha também. De qualquer modo, sei que perco. E eu não estou
acostumado a perder.
— Para onde estamos indo, afinal? — a ruiva questiona, claramente
impaciente. — Está misterioso demais para o meu gosto. Devo aproveitar que
a janela está aberta e gritar por socorro?
— E se eu disser que deve? — A observo, ela ri nasalado. — Estamos
indo jantar, meu anjo. Eu quero conversar contigo. Foi nosso acordo, não foi?
Meu nome por uma conversa.
— Certo, Noah. — Dessa vez eu tenho certeza de que ela gosta do
modo como meu nome soa, pois ela me encara e faz questão que eu veja a
sua boca se mexer conforme me chama. Claramente gosta de provocar. —
Pode me chamar de anjo, se quiser. Só não de sua.
— Certo... meu anjo.
Sinto um tapa ardido em meu braço e arregalo os olhos. Ela me
bateu? Quem ela pensa que é?
— Você me bateu.
— É, eu vi. Eu estava na hora — ironiza. Volto a focar na rua,
incrédulo, mas não reclamo.
Estaciono o carro em frente ao restaurante. Ela me encara.
— Disse que eu não precisava trocar de roupa. — Ela aponta para o
estabelecimento de longas janelas iluminadas por luzes douradas e uma
estética tão elegante quanto antiga para um lugar como Nova York.
Subo a janela do meu lado e ela faz o mesmo, mecanicamente, quase
babando ao encarar o lugar.
— Porque não era preciso, ruivinha — saio do carro e dou a volta.
É como se hesitasse em sair, encarando o lugar de dentro do carro.
Contudo, abro a porta e a ofereço a minha mão. Uma vez de pé, quase
tropeça ao subir na calçada de fato e eu rolo os olhos com o cliché, mas a
impeço de cair. Chloe não agradece.
— Senhor, a chave? — o manobrista pede. Jogo a chave para ele.
— Um arranhão e você morre — digo, forçando um sorriso de canto.
O cara acha que eu estou brincando e assente, aos risos, entrando no carro.
Dou o braço a Chloe e ela me encara torto. Rolo os olhos e recolho o
braço, acenando com a cabeça para o lugar.
Ela me segue.
Todavia, quando estamos a quase um passo de entrar, Chloe agarra o
meu pulso, desconfortável ao encarar todo o ambiente, como se quisesse se
proteger de todos os olhares.
— Cacete... — murmura. O lugar é elegante com inúmeros lustres de
ouro, paredes beges, garçons em smokings, música clássica ao piano e tudo
mais.
Suspiro, a encarando. Ela demora em focar em meus olhos, mas eu
espero até que o faça.
— Está comigo hoje. Então não se adapte ao lugar, Chloe. Deixe que
ele se adapte a você.
Ela assente e eu a guio a nossa mesa.

— Então sua tia é a famosa Riley Mitchell? — questiono. Chloe


confirma, voltando a comer a sua lasanha. — Vocês se parecem até.
Ela ri.
— Você conhecer ballet clássico chega a ser cômico.
— Conheço muitas pessoas, muitas coisas, muitos lugares. —
Desconverso, dando atenção ao meu salmão ao molho de ervas finas. Ela
nega quando o garçom lhe oferece mais vinho. — Por que saiu do
Tennessee?
— Eu queria liberdade. Porque sempre amei Nova York, sempre
vinha visitar a minha tia quando menor e... — Ela olha ao redor por um
segundo, mordendo o lábio inferior. — A cidade tem algo a mais, você não
sente? Bom... Talvez seja só eu! Tem algo aqui que sempre me prendeu.
Como se Nova York chamasse por mim e eu ainda não sei o porquê, mas não
saio daqui antes de descobrir.
Seu olhar brilha enquanto ela fala e eu consigo sentir que toda a sua
sinceridade vem do coração. Nunca vi uma garota tão viva e tão apaixonada
por um lugar tão cinza quanto esse. Quando ela fala, juro que parece que as
coisas ganham mais cor.
— É a terra das possibilidades — acrescento. Mitchell concorda. —
Pelo que me diz, soa como uma aventureira. Nova York pode ser a aventura
perfeita para uma garota como você.
— Bom, chamam Nova York de Selva de Concreto, não é? Talvez eu
seja uma espécie de Indiana Jones que precisa encontrar algo precioso nessa
cidade. — Não faço ideia do que ela está falando, mas concordo plenamente.
— Por exemplo? — Arqueio a sobrancelha, provando mais um
pedaço de salmão.
Chloe pondera por um segundo.
— Respostas? — diz, em tom de pergunta.
Deixo os talheres pararem de cortar a comida e a encaro. O peixe
rasga por minha garganta. Engulo em seco. Sua fala me é familiar, porque é
justamente isso que falei para Kold, Sinn e Luke há poucas horas: que
procuro respostas.
Duvido que suas respostas sejam mesmas que as minhas, mas ainda
assim, é interessante a sensação que me toma ao ouvir isso.
— Para quais perguntas?
— Todas que já fiz e todas as que farei — Chloe diz, enigmática
como sempre. Depois ri. E então aponta para o meu rosto. — Você não é de
sorrir. Mantém essa ruga engraçada entre as sobrancelhas. Você me faz sentir
inteligente, porque está atento a cada palavra. Como um aluno.
— Você é inteligente. E talvez você tenha muito a me ensinar,
ruivinha — digo, sem acreditar em minhas palavras. Ela sorri fraco e come
mais um pouco da sua lasanha. — Se tem tantas perguntas, presumo que seja
uma sonhadora. — Minha análise chama a sua atenção, é perceptível. Ela não
entende a minha fala, mas eu falei a verdade, é visível. Seus olhos
transbordam esperança. Pelo quê? É o que quero saber: — Qual o seu sonho,
meu anjo?
Chloe encara meus olhos fixamente.
É como se ninguém nunca tivesse lhe perguntado.
Ela deixa os talheres repousarem lentamente sobre o prato e me
encara como se eu fosse o melhor enigma que já viu. Um suspiro de rendição
lhe escapa.
— Eu queria ser advogada. Mas nunca vai rolar... — Sinto o
desapontamento quando finalmente confessa, desviando o olhar e pegando o
guardanapo sobre as pernas para limpar a boca.
Abro a boca para perguntar o porquê, cada vez mais curioso, mas
sinto algo errado.
É quando escuto uma voz me chamar. E ela está gritando.
Olho ao redor.
Só eu estou ouvindo isso.
— Noah? Tá tudo bem? — Chloe me chama. E eu escuto o grito ficar
mais forte.
Kold.
Sem mais dizer nada, empurro o guardanapo sobre a mesa, jogo
dinheiro suficiente para pagar a refeição ao lado do meu prato e me levanto.
— Merda. Precisamos ir embora.
— O quê?! — Chloe questiona, confusa. — Eu disse algo errado?
— Agora, Chloe! — Luto para não gritar e ela suaviza a feição do seu
rosto por meio segundo, me encarando com desapontamento e raiva logo em
seguida.
Consigo sentir seu coração transbordar em fúria. Mas não importa,
não agora.
Eu a perguntaria se pode ir para casa sozinha, não está tão tarde e eu
preciso correr. Ela é mais rápida em se recusar a entrar no carro comigo para
qualquer lugar que seja.

Quando eu chego ao apartamento, taças estão quebradas no chão,


vinho derramado no carpete branco e há um corpo logo em frente à porta,
sobre o chão de assoalho escuro.
Olho para a cozinha americana e vejo Sinn lutar contra dois caras,
vestindo apenas suas calças. Ele está dando conta dos dois sozinho, com
socos e chutes. Vejo o exato momento em que bate a cabeça de um deles
contra a bancada de mármore.
— NOAH, A KOLD! — Luke grita e eu finalmente o encaro.
Ele está atrás da mesa de centro da sala, lutando contra um cara que
tem nada mais nada menos do que uma espada empunhada. Luke está
segurando a lâmina dessa espada com toda a força e ela está cortando a sua
pele, fazendo sangue cair sobre o tapete. Ele consegue se desvencilhar do
cara e inverter as posições, derrubando a arma ao chão.
Escuto grunhidos e gritos femininos. Eles estão vindo do quarto.
Avanço a sala inteira e chego ao corredor.
Um cara aparece na porta e seus olhos se tornam amarelos. O chuto
sem pensar e ele voa para trás, batendo as costas com força contra a parede.
Um urro bizarro e primitivo lhe escapa. A parede racha. Ele cai desacordado.
Tiro o paletó rapidamente e arregaço as mangas. Um outro me encara,
seus olhos igualmente dourados. Soco algumas vezes esse oponente e o
seguro pela gola da jaqueta escura que ele veste, batendo-o contra a parede.
No momento em que ele tenta me ferir com uma faca, inverto a arma
contra ele mesmo com facilidade. E fácil assim ele esfaqueia seu próprio
corpo, na barriga. Subitamente, a sua pele se torna cinza.
Kold quase nunca grita por socorro. Porque ela sempre se vira
sozinha. Dessa vez, os caras são mais fortes do que o comum.
Dessa vez, é diferente. Kold está pedindo ajuda. Gritando por
socorro.
Corro para o quarto a tempo de vê-la ser enforcada por uma mulher,
contra o chão, ao lado da cama. A cena está de lado para mim. Kold está
tentando alcançar uma adaga a poucos centímetros dos seus dedos, está
ficando vermelha e seus olhos estão mais azuis do que nunca. Suas asas
brancas estão contra o chão e há sangue nelas.
Sem pensar, eu corro e, com os dois pés, chuto o ser que tenta feri-la.
Não caio para trás, porque minhas asas pretas surgem no momento exato, me
deixando sobre o chão.
A mulher é arremessada para longe e eu a observo, lançando-lhe meus
olhos vermelhos, como um aviso para que fique parada. Caso não queira
morrer, claro.
Mas Kold não é tão benevolente.
Ela pega a adaga ao seu lado e a arremessa, fincando a lâmina contra
a garganta da demônia, que começa a ficar cinza.
Koldelium me encara, ofegante. É agora que percebo que ela está só
de lingerie branca. Rio nasalado. Eu disse: ela, Luke e Sinn iriam acabar a
noite transando, nem que fosse entre eles.
Volto ao chão, meus olhos voltando ao breu usual.
Ajudo Koldelium a se levantar. Recolho as asas negras, que entram
por minha pele como se jamais tivessem existido.
— Me deve um Givenchy novo — digo. Kold olha por cima do meu
ombro para o espelho do quarto e sei que ela está vendo os rasgos na camisa
social branca, por conta das asas.
— Foi só a camisa, você compra outra — ela devolve, grunhindo em
seguida. Sua asa esquerda está ferida.
— Só uma camisa? É mais do que seu salário de bartender paga.
— Se eu dependesse do meu salário de bartender, eu não teria esse
apartamento. Como foi o encontro?
— Não foi um encontro, Koldelium — insisto, irritado, fazendo-a se
sentar sobre a cama. Sei que a briga no outro lado do apartamento cessou,
porque tudo está silencioso. — E estava indo maravilhosamente bem, até
você gritar por mim, muito obrigado.
— Está mal-humorado — ela observa. Dou de ombros. — Espera! —
Kold ergue o indicador, rindo. — Gostou dela mesmo! — acusa. Não
respondo e ela ri ainda mais alto. — Meu Deus! Você gostou dela, não é?
Não é só pelo que aconteceu no Purgatorium, você gostou dela.
Fico em silêncio, não sei o que responder. É o momento em que Sinn
chega ao quarto, Luke em seu encalço. Kold ainda me fita cobrando por uma
resposta.
— Meu Deus, será que finalmente o grande Noah Hellmeister vai se
apaixonar por uma garota? — a morena pergunta. Todos estão me olhando.
— Está se apaixonando?
— Claro que não! — respondo de imediato, rindo do seu atrevimento.
Ela arqueia a sobrancelha, duvidando. — Mal a conheço e você bem sabe que
isso não é possível, Koldelium.
— Por quê? Por que você é o Diabo?
É. Exatamente por isso. Porque eu sou literalmente o Diabo.
E o Diabo não se apaixona. Não mais, de qualquer modo.
Consigo escutar o chuveiro ligado, sentir um cheiro doce e suave...
Entretanto, é como se eu não estivesse aqui.
A garota não sai da minha cabeça.
Um grunhido me escapa e eu tiro o travesseiro de trás da minha
cabeça, colocando-o sobre o rosto para abafar o som de pura raiva que sai da
minha garganta.
Ela está chateada comigo, eu sei disso. Principalmente, porque
quando tentei um segundo encontro, indo ao lugar em que ela trabalha, a sua
amiga Molly me atendeu. Chloe guiou seu olhar a mim apenas uma vez,
lançando toda a sua indiferença e se direcionou a outra mesa qualquer. O que
não deveria me irritar. Mal nos conhecemos. Mas me irrita para caralho.
Aquela era a minha chance única de conhecê-la, descobrir que porra essa
garota é. Afinal, não é possível que uma mera humana consiga fazer o Diabo
finalmente sentir seu coração bater.
Confuso, talvez, esse lance do coração, não?
Apesar de não saber se é extremamente necessário, tenho um em
perfeito funcionamento, obrigado. O problema é que a capacidade de senti-lo
bater foi tirada de mim. Me sinto vivo de outras formas: sinto prazer, fúria,
raiva... Eu só sou incapaz de sentir esse órgão se acelerar, ou se acalmar... Ele
funciona, mas é como se não funcionasse.
Por consequência, eu me sinto mais morto do que vivo. É como se
não fosse só o meu trabalho cuidar dos mortos, das sinas, dos pecados, mas
me sentir morto.
Tenho quase tudo, menos a capacidade de sentir o maldito coração. E
eu quero ter tudo.
Me levanto da cama, vestindo um roupão preto e calças jeans.
Meu quarto é amplo e sofisticado. Uma das paredes é revestida de
madeira escura, a que dá para o banheiro, à esquerda da cama. O restante é
num tom anil que beira o preto. Industrial, Kold diz. Só sei que gosto.
Já parede à direita da cama, entretanto, é toda coberta pela vidraçaria
da janela. Me permite uma visão da cidade que é realmente única. Talvez seja
o mais perto do Céu que posso chegar.
Caminho até a mesa na parede em frente a cama, a que contém
também a porta para o restante da cobertura. Retiro um cigarro da caixa e o
acendo contra os lábios, sem precisar do isqueiro da garota dentro do meu
banheiro. Só preciso pensar em fazê-lo queimar e ele queima.
Ainda assim, analiso o isqueiro. Tem uma mulher nua nele, o que me
faz franzir o cenho. Humanos são tão bizarros. Criaturas tão esquisitas que
me fazem agradecer por não os ter criados. Honestamente, eu faria um
trabalho mil vezes melhor. Ou pior. Para mim, dá no mesmo.
Fecho os olhos por um segundo, enquanto a nicotina me preenche.
— Então ele te deixou sozinha? — Consigo ouvir. Consigo escutar a
tal Molly, de longe. Consigo ver a cena sem sair de casa.
Chloe está jogada no sofá do seu apartamento, fitando o teto. Veste
somente um blusão azul. Tem uma garrafa de vodca caída ao chão, vazia. Um
cigarro como o meu está entre seus dedos. Dessa vez não é maconha, mas ela
definitivamente usou mais cedo. Molly está na cozinha, não me importa saber
que diabos está fazendo. Chloe é meu foco. Meus olhos são totalmente dela.
— Sim, Molly. Pela milésima vez: sim — Chloe diz. Há alguma
derrota no ar que expira. Ela fecha os olhos e traga seu cigarro novamente,
soltando a fumaça para o nada.
Consigo ouvir seu coração. Ele pulsa de um modo diferente. Quase
como se alguém estivesse apertando-o levemente, comprimindo-o de algum
modo. Ele está um pouco acelerado e eu sei que é pela ansiedade. Ela está
ansiosa, angustiada. Ela está se questionando. Por minha causa.
Chloe Mitchell pode não querer falar comigo no momento, mas ela
está pensando em mim. Definitivamente. Nem preciso que ela diga seus
pensamentos em voz alta para saber. Sou um monstro por querer sorrir?
Ela fica em silêncio pelo que parece uma eternidade, mas o som do
seu coração é uma melodia deliciosa demais, que por si só me agrada.
— Que seja! — A ruivinha resmunga. Depois se levanta de supetão e
queima o cigarro no cinzeiro da mesa a sua frente, deixando-o pela metade
— Eu disse que você estava errada, o cara não estava interessado em mim,
Molly.
— Você não sabe disso — Molly retruca, de longe.
É, meu anjo, você não sabe mesmo.
— De qualquer modo, Anderson, eu não quero vê-lo novamente — a
ruiva garante. — Ele quem insistiu para me ver e no final me mandou embora
como se eu não fosse nada e está pra nascer um filho da puta que vai me
tratar como se eu fosse menos do que uma humana.
Humana? Vamos, Chloe, confesse. Você é mais do que isso e você
sabe. Tem que saber. Não tem possibilidade de você ser comum. Deve ter
algo diferente por trás de olhos tão escuros. Não é possível que você seja só
mais uma humana, é?
Volto à minha realidade, ao lugar em que estou. Percebo que boa
parte do meu cigarro virou cinza no chão. Fiquei tempo demais concentrado
no que não devia. Outro grunhido me escapa.
Que seja.
Trago e prendo o cigarro entre os dedos, me deitando na poltrona
negra do meu quarto. Aos poucos o cheiro do cigarro vai competindo com o
que vem do banheiro. E em pouco tempo, uma garota de fios loiros e curtos
sai do mesmo, vestindo uma lingerie branca. Ela sorri para mim, sacana.
— Você pegou um dos meus cigarros — Maya observa. Eu dou de
ombros. — O que devo fazer para te punir?
Rio nasalado. Mais cliché que isso impossível, Maya.
— Sou eu quem puno as garotas por aqui, meu... — Anjo? Não, a
palavra não parece certa para Maya. — Doce.
— Mas eu não fui uma garota má. — Ela se aproxima, agachando-se
o suficiente para seu rosto estar próximo do meu. Trago
despreocupadamente. Maya toca meu queixo e me faz fitá-la. — Você foi o
garoto mau.
— Não sou nenhum garoto.
— Mas mau...
O canto da minha boca se curva levemente. Arqueio a sobrancelha.
Meu cigarro acaba e eu o deixo no cinzeiro ao lado da poltrona, um pouco
inconformado.
A loira dá as costas e pega outro cigarro e seu isqueiro, retornando
com um rebolar espetacular. Modelo, ela disse. Sei que não é verdade, mas
poderia ser. Seu corpo parece milimetricamente construído para levar
qualquer homem ao delírio. Não sou qualquer homem, mas ela era bem
gostosa debaixo de mim. Ou ao meu lado. Ou de quatro. Ou...
— Esse quarto está frio demais, não acha? — Maya pergunta.
Não, o quarto não está frio. Ainda que a cidade esteja cinza, a
temperatura levemente gelada, mas o quarto está quente. Ela sabe disso.
Maya coloca o cigarro em minha boca e o acende. Então deposita um beijo
perto do canto dos meus lábios e se levanta. A observo andar, um sorriso
malicioso possuindo os meus lábios. E tão limpa quanto ficou no chuveiro,
decide se despir completamente, ansiosa para cometer o mais sujo dos
pecados comigo.
— Acho que assim está mais quente, não acha? — questiona, fingindo
inocência.
Trago o cigarro, atento a cada movimento. Ela sorri e se senta sobre
mim. Sua boca começa a tocar o meu pescoço, suas mãos contra o meu peito,
seu corpo roçando contra o meu pau. Fecho os olhos por um segundo.
— Vai correr hoje? — É a Molly. Escuto a amiga da Chloe, dessa vez
não sei o motivo, não pedi por isso... Talvez não conscientemente. Que porra
está acontecendo com a minha cabeça?
— Preciso do dinheiro — Chloe. Mas, dessa vez, Maya em meu
pescoço me rouba um pouco da concentração e eu não consigo focar o
suficiente para visualizar a ruiva.
— Co... — O tom da sua amiga é repressivo. — Não finja que faz por
dinheiro. Você gosta de correr.
— Digamos que eu junto o útil ao agradável. Sabe que preciso da
grana, Molly! E que preciso ainda mais de uma boa dose de adrenalina hoje.
— Para esquecer quem não deve?
— Que seja. Se quiser cismar que me importo com o tal Noah e
aquele narizinho empinado insuportável, cisme. Ache o que quiser. Você vem
comigo?
— Com certeza. Se não consigo te convencer a largar essa porcaria,
não vou ficar em casa angustiada e com medo da minha melhor amiga estar
se matando em uma rua qualquer por velocidade. Alguém precisa ligar para
a ambulância e te dar a mãozinha se der merda. — Molly parece irritada.
Escuto Chloe rir. — Vou ligar para o John.
Escuto algo perto do meu ouvido. Unhas arranham o meu peito nu.
— Pare — ordeno, mas Maya continua a roçar contra mim, arranhar
meu peito. — Pare, garota, pare. — Seguro seus pulsos, mas ela ainda tenta
beijar meu pescoço. — PARE!
A ordem ecoa, alta como nunca. Maya me encara, de cenho franzido.
Minhas mãos estão ao redor dos seus pulsos, meu olhar cravado no seu. A
loira parece confusa e incrédula, porque estou a recusando.
— Vista-se e vá para casa.
Ela pisca algumas vezes, sem crer no que estou mandando, mas se
levanta. Me levanto também. O cigarro cai em frente aos meus pés e eu piso
sobre ele. O roupão também está no chão e eu nem lembro de tê-lo tirado.
Calço sapatos, ao me sentar na cama.
— Aonde está indo? — Maya pergunta, como se por tê-la conhecido
há algumas horas e transado algumas vezes, eu tivesse a mínima obrigação de
lhe contar a minha vida.
Pego apenas a minha camiseta preta no chão. A lanço um olhar de
desprezo e ele também é uma ordem: quero que saia da porra do meu
apartamento. Porque tenho a quem ver hoje à noite e eu não quero ver um fio
loiro sequer mais tarde.
Eu quero ver vermelho.

A noite já chegou.
Koldelium está claramente entediada em estar ao meu lado nesse
momento. Apareci no Purgatorium com o Mustang e ela abriu um sorriso
quando me perguntou o que faríamos de tão interessante para que eu a
privasse de uma noite de festa. Eu a respondi com "acho que vamos correr".
Todavia, no momento, ela não parece empolgada.
— Cadê essa garota? — Kold pergunta, incomodada, olhando para a
casa em que Chloe acabou de entrar com Molly.
A rua é escura. Fica nos limites da cidade e foi demorado para cacete
para chegarmos aqui de carro. Tudo grita "ilegal" cada vez mais.
— O que estamos fazendo? — Uma voz surge no banco de trás e o
carro se inclina levemente conforme Luke literalmente brota no carro. Ele
surgiu do nada.
Kold quase grita e eu fecho os olhos em susto. Nós dois o encaramos,
ela pelo espaço entre os bancos e eu pelo retrovisor. Travo o maxilar e ele
abre um sorrisinho, percebendo meu incômodo em vê-lo ali.
— Vamos conhecer a garotinha que está conquistando seu
coraçãozinho? — O loiro questiona, fazendo um bico em seguida.
— Vai se ferrar — peço carinhosamente e Kold bufa, ainda irritada
pelo susto.
— Ela tem que ser muito gostosa para... — Ele para a fala quando eu
me acomodo sobre a cadeira e fito a garota que sai da casa.
A jaqueta de couro lhe cobre o corpo e a blusa branca que veste.
Calças pretas, coturnos e uma gargantilha. Dá para ver o exato momento em
que passa as mãos pelos fios cor de fogo e os joga para trás.
Luke assobia lentamente.
Eu trinco os dentes, o olhando pelo espelho. Meu amigo apenas
estende as mãos em rendição.
Agora Molly, Chloe e um cara loiro estão andando em direção ao
Shelby vermelho estacionado em frente à casa. Elas foram buscar o cara.
Acho que é o tal John que Molly falou. Acho que ele é namorado dela, mas
não gosto da incerteza.
— Hora de correr, baby — Kold diz, adrenalina transbordando por
seus olhos azuis e maldade brincando pelos lábios vermelhos.
Acelero o carro e os sigo.

Saio do veículo. Estamos num bairro deserto aos limites da cidade.


No momento, não vejo uma pessoa sequer nas ruas senão o pessoal que
Chloe foi encontrar, o que me causa estranheza. Estamos falando da cidade
que nunca dorme, afinal.
A música que toca de um dos veículos é horrível. É como uma festa,
entre estabelecimentos abandonados. Tem gente bebendo, se beijando,
fumando maconha e tem uma menina atrás de um Porsche usando cocaína, a
idiota acha que ninguém está vendo.
Carros estão no local. Seis deles. Todos potentes, exceto por uma
caminhonete azul clara e gasta, onde Molly e o tal loiro estão encostados,
conversando com um cara dentro do veículo.
Chloe está escorada em seu Shelby. Suas mãos estão dentro dos
bolsos da jaqueta de couro negra, seu olhar vago.
Kold e Luke saem do carro, ambos param atrás de mim. Encaro a
ruiva, sem saber se devo me aproximar primeiro dela ou de qualquer outra
pessoa. Não sei ao certo o que vim fazer aqui. Só agora parei para pensar em
como isso foi impulsivo, irracional e estúpido. Agi quase como um humano.
Patético.
— E então? — Luke questiona.
— E então o quê? — pergunto.
— Precisa se aproximar, garanhão — Kold provoca e explica ao
mesmo tempo, apoiando o cotovelo em meu ombro. — Ou vai ficar aqui para
sempre? — sussurra, em meu ouvido. — O que foi? Ela morde? — A morena
finge que vai morder a minha orelha e solta um risinho, debochando de mim.
Então Luke faz algo a respeito: ele assobia longamente. Me viro,
xingando o filho da puta, mentalmente. Merda.
— O que você está fazendo aqui? — Chloe pergunta. Seu olhar foca
em mim, suas palavras são altas. — Está me seguindo?
— Não estou — garanto. Kold ri nasalado e eu a encaro, fazendo com
que se cale. Volto a fitar Chloe, me aproximando. — Sou novo na cidade,
meu anjo, preciso procurar por diversão.
— Não sabia que você era novo na cidade, Noah. — Isso soa como
uma acusação. Paro a um passo dela. É como se fosse imune aos meus
charmes, porque sua pose despreocupada não muda. — Parece o tipo de cara
que conhece Nova York na palma da sua mão.
— Vim aqui algumas vezes, sim. Mas comprei o Purgatorium a pouco
tempo e moro aqui há pouco tempo. Até então o que eu conhecia desse lindo
inferno era o mesmo que qualquer outro turista — minto. Conheço Nova
York como a palma da minha mão. Chloe cerra os olhos.
— O Purgatorium é seu? — ela pergunta. Confirmo. Chloe franze o
cenho o máximo possível. — Bem, pelo pouco que te conheço, já não posso
dizer que não é a sua cara ter um lugar como aquele.
— Isso é um "meus parabéns"? — ironizo e ela solta um riso nasalar,
desviando o olhar. — Não vim por você, Chloe. Um cara como eu pode não
conhecer Nova York por completo agora, mas tem os métodos e os contatos
perfeitos para conhecer a cidade como as linhas em suas mãos amanhã. —
Dou-lhe tempo para analisar a minha fala. Ela volta a me encarar. — Me
disseram que eu encontraria adrenalina e velocidade por aqui. E se tem duas
coisas que amo, ruivinha, são adrenalina e velocidade.
— Quem te indicou? O grupo é bem reservado. Digo, não é
impossível ouvirem falar de nós, Noah, mas não é tão fácil também. — Seu
questionamento me pega de surpresa.
Olho por cima do ombro para Luke, como um pedido silencioso por
ajuda. Ele dá de ombros, mostrando que não sabe o que fazer. Kold está
sorrindo, como se a cena fosse divertida.
— Um frequentador do Purgatorium. — respondo, por fim. Há
alguma descrença em seus olhos.
— Ora, ora! Temos alguém novo por aqui? — Um homem se
aproxima, extremamente magro, alto, dentes amarelados, cabelos
bagunçados, em torno de 50 anos. — Prazer, me chamo Grant. — Ele estende
a mão.
— Noah — o cumprimento de volta.
— Veio conhecer como funcionamos?
— Oh, com toda a certeza. — Olho para o homem por meio segundo,
mas Chloe capta toda a minha atenção logo em seguida. — Me falaram daqui
e eu precisava vir, não sou capaz de perder uma boa dose de adrenalina. —
Sorrio de canto. O cara toca o meu ombro, em um gesto íntimo demais para o
meu gosto. Meu olhar cai em Chloe, que não parece gostar nada de me ter por
perto.
— Então vai correr? — Grant questiona, sorridente. A ruivinha me
analisa por um instante, ansiosa por uma resposta.
Consigo ouvir o seu coração, meu anjo. Parte sua quer
desesperadamente que eu corra, por algum motivo. A outra não quer me ver
nem pintado de ouro. Conflituoso. Entendo. Até porque eu gosto das duas
partes, ruivinha: a que me deseja e a que, por ora, me odeia.
— Não seria uma má ideia, seria? — Kold diz, alto, me incentivando.
Nossos olhares vão para seus olhos azuis, maldosos. — Quais seriam os
oponentes da noite?
— Entre algumas pessoas, eu — Chloe responde, séria. Então a
encaro. — Eu sou o desafio por aqui.
— Ninguém nunca conseguiu ganhar da Torn — Grant explica,
cruzando os braços.
Torn? Então é outra faceta dela? A bailarina, a garçonete e a Torn?
Quantas Chloes existem?
— Preciso pagar para correr? — pergunto para Chloe, mas ela se cala.
— Todos pagam, menos a Chloe — Grant responde e eu o encaro,
sem compreender. — Ela costumava pagar, mas percebemos que ela é bem
lucrativa, todo mundo quer correr contra ela. Por isso, deixamos Torn correr
de graça — o velho continua. — Todos apostam alto. Na maioria das vezes,
são homens que não suportam perder para uma mulher e eles sempre, sempre
voltam tentando resgatar o dinheiro e... Bem, perdendo mais. Ninguém nunca
acredita que vai perder para a garota, mas Chloe sempre ganha. Tem um
prêmio para primeiro e segundo lugar. Nós que organizamos as corridas
ficamos com uma boa parte do total arrecadado pelas apostas. Do que sobra,
o segundo lugar fica com vinte por cento. Já o primeiro, ou seja, Chloe, fica
com o restante, oitenta por cento.
— Me ajuda a pagar o aluguel. Não sei se você passa por esse tipo de
dificuldade. — Chloe tenta me atingir. Mas ela está mentindo. Ela ama
correr. Sinto isso. Sei que o brilho nos seus olhos é desejo por velocidade.
Interessante. Interessante demais, infelizmente.
— Eu tenho uma proposta exclusiva para a menina dos olhos de ouro
de vocês — começo, me aproximando mais ainda de Chloe. — Aposto o
dobro do que costumam apostar... Contudo... Se eu ganhar... Ela precisa me
dar uma nova chance.
— Nova chance de quê? — Grant questiona. O ignoramos. Ela sabe
do que estou falando.
Chloe me analisa e seus olhos brilham mais do que nunca. Ganância
perpassa por eles. Ela abre o sorriso mais malvado que consegue e eu me
surpreendo com o quanto ele combina com seu rosto angelical. Mais do que
isso, seu sorriso é como uma obra de arte que escapara das mãos dos museus
mais famosos. Nunca vi nada tão belo quanto impactante.
Espero ansiosamente por uma resposta.
— Boa sorte, Noah Hellmeister. — É tudo o que diz.
— Não existe tal coisa como sorte, meu anjo. — Passo a caminhar
para trás, em direção ao meu carro.
Chloe sorri, dá a volta e abre a porta do seu.
— Não sou seu anjo — Ela soa firme, antes de entrar no seu veículo.
— Sei, meu anjo.
A ruiva respira fundo, tentando se manter calma. Gosto de saber que a
irritei. Chloe rola os olhos e resmunga, finalmente aceitando seu apelido:
— Que seja.
Olho para o lado esquerdo.
Pela janela aberta do meu carro, analiso Noah Hellmeister com a mão
no volante do seu carro e uma morena maravilhosa ao seu lado. Essa olha
para a direita e ri nasalado ao me flagrar os encarando. Mas não, não
desviarei o olhar. Não tem porquê.
Seus olhos são como um céu parcialmente nublado. De um azul que
almeja o cinza. De verdade? Poucas vezes na vida vi uma mulher tão linda.
Ela desvia o olhar para frente e eu tenho a visão do
demônio. Noah vira o rosto em minha direção ao saber que é observado. Tem
um sorriso de canto minúsculo, mas carregado de escárnio em seus
lábios. Petulante.
— Co, tem certeza? — Molly para na janela do meu carro, como de
praxe, com a boca torta como se dissesse ''pelo amor de Deus, Chloe Marie
Mitchell, sai desse carro?''.
— Eu realmente preciso da grana, Molly.
Ela solta o ar pelo nariz, balançando a cabeça em negação.
Molly nunca consegue me convencer do contrário, mas
ela sempre tenta. Uma vez Anderson escondeu a chave do meu carro por uma
semana para que eu não inventasse de correr. Eu fiquei muito brava, então ela
nunca mais fez isso. Mas outra vez Anderson pegou a chave do meu carro,
minutos antes da corrida, e ficou de pé na caçamba da caminhonete de um
amigo nosso... Foi uma cena patética e hilária, parando pra pensar, porém na
hora foi completamente embaraçoso! Molly parou assim que percebeu que eu
não tentaria pegar a chave da mão dela mais porque todo mundo estava
olhando.
E essa é Molly Anderson. Tão doce que pode te deixar diabética só
em estar perto. Tão preocupada com tudo e todos... Completamente
engraçada e desastrada. Ela tem o ar colorido de San Diego e uma fofura que
precisa ser estudada. Mas não é bom irritar Molly Anderson. Sério. Ela vira
uma espécie de leoa surtada... Nada bom.
— Janta a bunda dele, Chloe! – John pede, abraçando a namorada por
trás e a afastando dos carros.
Não consigo rir. Eu só... Respiro fundo. Estou viajando em meus
pensamentos de novo. Não estou concentrada para essa corrida. E ela vale
muito.
Além de Noah e eu, outros dois carros estão competindo. Conheço os
dois outros babacas, não são uma ameaça. Só não sei o quão bom Hellmeister
é. Bem, de qualquer modo, ele não pode ser melhor que eu. Tenho uma
reputação a zelar por aqui. Não perco uma corrida há um ano e meio. Não
quero perder, muito menos para um idiota como Noah. E tem muito dinheiro
em jogo.
Poderia dizer que não estou brava com ele, mas seria patético. Que
tipo de cara interrompe um encontro super do nada como ele fez? Idiota.
Ugh... Por que aceitou sair com um cara como ele, Chloe? Você
merece mais. Você é ainda mais idiota, garota.
Guio meus olhos para o lado. Noah me encara, mas no segundo em
que o olho de volta, ele desvia o olhar para frente. E não há sorriso
debochado dessa vez, não há escárnio. Ele está sério, impassível, com uma
frieza por seu rosto que me contagia em um arrepio fodidamente gélido.
Uma garota caminha entre nossos carros, uma bandeira vermelha em
suas mãos. Todos estão atentos no modo como ela rebola ao andar.
Principalmente eu. Naomi é quente para cacete. E como de praxe, ela pisca
para mim e eu respondo com um sorriso, piscando de volta.
É impossível não lembrar do dia em que o banco de trás da Shelly
recebeu a sua ilustre visita no verão passado, sinceramente. Talvez ela sinta a
sua falta.
Naomi observa Noah, ao meu lado. E infelizmente ele lhe chama tanta
ou mais atenção do que eu, porque ela pisca para ele também, o devorando
com seu olhar lascivo e nada angelical. Ele ri. Filho da puta.
— Com ciúmes, Chloe? — Naomi pergunta, alto.
— De você? Oh não, meu amor... Ninguém é de ninguém por aqui!
— Eu não estava falando de mim — ela explica e eu penso em
retrucar, mas a morena ergue a bandeira perante seus olhos. Seu braço está
esticado e assim que a bandeira for largada, a corrida se inicia. Não tenho
tempo para provocações.
Só ligo o som da Shelly e deixo Another One Bites The Dust ecoar. A
cada batida do Queen, eu me sinto mais viva, como se a cada pulsação da
música, uma onda de eletricidade suave e deliciosa me percorresse. Dez anos
atrás, quando a música foi lançada, meu pai ficou viciado por ela. Ouvíamos
sempre. Por consequência, se tornou um dos meus sons favoritos.
Meu pé está ansioso sobre o acelerador e eu já sinto alguma
adrenalina só em pensar em correr.
Naomi ergue a bandeira.
E ela cai.
Então aceleramos.
Os postes passam rapidamente por meus olhos. Setas coladas em
algumas paredes indicam o caminho da corrida, mas eu sei de cor. Noah está
ao meu lado e eu o encaro antes de mudar a marcha e acelerar ainda mais.
Meu coração é como uma pedra bruta no momento, pesada, batendo contra as
minhas costelas com força a cada batida da música que ecoa dentro da Shelly.
O ar escapa pela minha boca e eu reprimo meus lábios, cerro meus olhos e
seguro a vontade de grunhir com a proximidade de Hellmeister.
Na primeira curva, eu ganho alguma vantagem. Mas é mínima. Ele
ainda está colado com o meu carro, a frente do seu veículo perto da metade
do meu. Ouço o carro dele arrancar e ele reduz um pouco a minha vantagem.
Respiro fundo, apertando o volante. Nunca pisei com tanta força no
acelerador e meu olhar cai sobre o indicador de velocidade, o ponteiro
oscilante.
— Vamos, Shelly, não me decepciona, garota.
Passo a marcha e acelero, mas Noah faz o mesmo, na hora certa, e
subitamente o vejo a minha frente. Agora, de onde estou, consigo ver todo
seu banco de trás ao meu lado. Noah está ganhando.
— Não, não, não... Eu preciso desse dinheiro, eu preciso, Shelly...
Mais uma curva e alguns segundos de corrida e Noah está a uns três
metros do meu carro. Tento ultrapassá-lo e ele tampa o caminho. Solto um
grunhido. Filho da puta! Consigo imaginar o seu sorriso. E agora além de
adrenalina, eu sinto fúria.
Toda a fúria do mundo. Tanta raiva que segurar o volante com a
firmeza que estou segurando provavelmente vai deixar marcas vermelhas na
minha mão. A dor me estimula a acelerar.
— Vamos, garota, acelera — peço, baixinho. E de repente, na curva
seguinte, Noah parece levemente mais devagar. Não sei se há algum
problema com seu carro, mas não me importo, porque trocando a marcha e
acelerando mais uma vez, eu consigo superá-lo. Com um drift, faço mais
uma curva e quando o vejo, ele já está há talvez dez metros de mim. —
ISSO!
De repente, a voz de Freddie Mercury cantando Another One Bites the
Dust fica ainda mais espetacular e a música do Queen nunca fez tanto
sentido.
Eu deixei o maldito comendo poeira.
Se fodeu, Noah Hellmeister.
Essa corrida é minha. Como todas são.
Atravesso a linha de chegada, onde Naomi está com a bandeira em
mãos. E a levanta assim que passo por ela, indicando que ganhei novamente.
Freio o carro, saindo dele. Toco o seu teto e não consigo evitar em sorrir.
Shelly, eu te amo. Sinceramente.
Noah sai do seu carro, sendo cumprimentado por algumas pessoas
pela ótima corrida. Molly e John correm em minha direção, maravilhados
com o que chamam de ''melhor corrida da minha vida''. Mas meu olhar é
completamente dele.
E ele percebe.
Noah me devora com seu olhar sombrio e o maxilar trincado. Sorrio
para ele, respirando fundo e tentando controlar a adrenalina em meu corpo,
que torna meu coração acelerado. É o gosto da vitória. E eu gosto desse
sabor.
Mas então ele sorri. Acho que é a primeira vez que vejo seu
sorriso desse jeito.
Noah sorri, no entanto seu olhar é completamente opaco e incapaz de
ser lido. Ele sorri como se tivesse ganhado. Há tanto sarcasmo em seu sorriso
que não sou nem capaz de descrever. Ele sorri de canto e então mostra os
dentes, sorrindo ainda mais. E ri nasalado.
É quando eu entendo... Ele me deixou ganhar.
E é por isso que o sorriso some do meu rosto.

— Vou devolver o dinheiro — decido assim que estaciono o carro em


frente à hamburgueria. Molly, ao meu lado, une as sobrancelhas e me analisa.
O dinheiro está nas mãos de John, os dois bolos grandes de dólares.
— O quê? Por quê? — questiona. Mexo a cabeça em negação,
— Ele perdeu de propósito. Não quero um dinheiro que ganhei sem
mérito, não acho justo.
— Se isso for verdade... Ele escolheu perder! — John retruca. Pelo
modo como fala, parece me implorar para ficar com o dinheiro. O dinheiro
realmente me ajudaria. — Então ele que lide com as escolhas dele! Ele
escolheu desacelerar. Você escolheu velocidade. Ele perdeu, você ganhou.
Onde há injustiça nisso?
Viro-me para o banco de trás.
— Porque eu acho que se Noah não tivesse desacelerado de propósito,
John, ele teria ganhado. Não quero ganhar porque os outros deixaram. Quero
ganhar porque ninguém foi capaz de me vencer. Isso não me parece uma
vitória. E esse dinheiro? Ele me parece ainda mais sujo.
John olha para a namorada, buscando algum apoio. Fito Molly, que
suspira e me encara. Fico surpresa, porque sei muito bem o que seus olhos
dizem e eu não esperava isso dela. Ela quer que eu fique com o dinheiro.
— Molly...
— Isso te ajudaria com as despesas e você não teria que trabalhar
tanto como trabalha para viver aqui, pelo menos por um tempo. Você ama
essa cidade, mas ela te suga, Co. Ela te tira o descanso. Você... Você trabalha
na lanchonete e em todo e qualquer turno extra possível. Você trabalha como
babá por alguns dias da semana, você nunca nega uma corrida, nunca nega
qualquer trabalho que lhe oferecem. Porque você ama Nova York,
Mitchell... E eu entendo! Mas às vezes a cidade não parece te amar de volta,
porque ela te suga. Você curte tudo o que ela lhe oferece, mas você doa todo
seu suor e esforço para viver aqui.
— E esse dinheiro não vai me impedir de fazer isso.
— Mas vai te dar um descanso por algum tempo. Não vai precisar se
matar de trabalhar no próximo mês. Ou talvez você possa colocar ele naquela
poupança que você criou... — Rio nasalado. Eu criei uma poupança para
tentar juntar dinheiro para um curso no futuro, como Direito, ou talvez para
ajudar ainda mais na criação do meu irmão, mas eu sei que não conseguirei
tantos dólares para isso. Nem sei por que tento.
Saio da Shelly sem dizer mais nada. John coloca o dinheiro numa
mochila no banco de trás, ao lado da boneca de pano. Ele pendura a mochila
em suas costas e sai do carro, assim como a sua namorada.
— Não precisa devolver o dinheiro por orgulho, é só o que estou
dizendo. Você merece todo centavo dessa merda, não ouse dizer que não —
Molly diz conforme eu empurro a porta da hamburgueria. — E não porque
ganhou de um cara que simplesmente não queria ganhar, mas porque esse
dinheiro é finalmente a porra dessa cidade te dando algo em retorno.
Nos sentamos a uma das mesas. John e Molly no sofá de um lado, eu
no outro. O casal me encara, esperando por uma resposta. Olho para o
garçom que chega.
Tudo o que eu faço é pedir um milkshake. O maior. Talvez seja
melhor congelar um pouco o meu cérebro para tentar abafar meus
pensamentos.
É quinta-feira. Hoje a senhora Durden não me pediu para cuidar do
filho dela, o Pietro, então eu tenho a noite livre. Mas deitar as costas na cama
não me traz conforto algum. E eu acho que já me virei sobre ela mil vezes.
Noah não sai da minha mente. Não por gostar dele ou algo
assim, não... Mas ele novamente roubou a minha curiosidade para si. Por que
diabos ele apostaria tão alto e perderia de propósito no segundo seguinte?
Quando vejo, já estou na Shelly. E num piscar de olhos, há um túnel
vermelho perante os meus olhos. A placa diz Purgatorium. As luzes
vermelhas me fazem hesitar em me aproximar. Depois de estacionar o carro
junto com os demais, caminho sob o túnel, a mochila com o dinheiro nas
minhas costas.
Consigo ouvir as batidas da música enquanto ela tenta dominar o
ritmo do meu coração, mas não estou aqui para isso.
Mostro a identidade ao segurança que analisa a minha roupa com
certa confusão. Não estou vestida para uma festa, não. Estou com uma calça
jeans, coturnos negros e um body preto. Esqueci a jaqueta em casa, então
abraço meu corpo. O cara permite a minha passagem e eu sigo Purgatorium
adentro.
Desço uma escadaria e de repente a nostalgia me toma. E as memórias
me atingem com força.
Ao olhar para o andar de cima, é como se eu conseguisse reviver
Noah Hellmeister me lançando seu olhar mais sujo, com suas mãos repleta de
anéis segurando a barra de metal.
Olho para o bar e lá está a bartender morena, a mesma que estava
com Noah na corrida. Ela me nota e fala algo com um cara negro, tatuado e
alto na sua frente. Ele se vira para mim e seu olhar me analisa de um modo
diferente. Ele é muito bonito, apesar da grande cicatriz no seu olho, um olho
cinza. Acho que ele não enxerga com esse.
Uma certa ansiedade me toma e eu desvio o olhar para a frente da
gaiola negra em que o DJ está tocando. Mordo o lábio com certa força,
porque um calor me toma ao lembrar de Noah me puxando para si. A
memória do tal primeiro beijo em si, entretanto, essa não volta.
Respiro fundo, quase me arrependendo de ter ido ali. E então, peço
para subir para a área VIP, quero conversar com o "senhor Noah", mas não
me permitem.
— Ela está comigo. — Uma voz grossa me faz virar. É o cara que
estava no bar. Ele sorri para mim. Sorri muito, com muita doçura. Uau, ele é
muito bonito. — Pode deixar — diz ao segurança, que abre caminho. Então o
rapaz passa e me oferece a sua mão. — Chloe, não é?
Murmuro uma confirmação. Olho ao redor conforme subimos, um
pouco desconfortável. Noah falou de mim para ele?
— Me chamo Sinn.
— Hm... Sinn, tipo... Pecado?
— Exatamente, tipo pecado. — Ele ri, se divertindo com a minha
timidez. Agora estamos no andar superior e ele é maior do que eu imaginava.
Sinn se vira para mim, mas perde a sua fala por um segundo e acaba por
sorrir. — Você realmente parece um anjo.
Me preparo para retrucar, um pouco envergonhada, quando percebo
algo diferente por ali: tudo é muito preto. Os sofás, as mesas, o chão e as
paredes. Exceto por uma grande projeção em uma das paredes. E em frente a
ela, Noah abre os braços, exibindo seu terno escuro e impecável. Atrás dos
seus braços, na projeção, asas vermelhas surgem, como penas de sangue.
Cara... Que filho da puta exibicionista. Vaidoso para cacete,
sinceramente. Não consigo não rolar os olhos.
— Bem-vindo ao Purgatorium! — ele diz, alto, contra o som. —
Onde vocês podem, literalmente, pagar por seus pecados! — Ele brinca e as
pessoas riem. Hellmeister parece estar se divertindo.
— É sempre assim? — pergunto a Sinn.
— Às vezes, ele gosta dessas aberturas extravagantes. Noah é assim.
É quando Noah me nota. Aqui está seu maldito sorriso novamente.
— Hell está sorrindo... — Sinn observa o óbvio e eu engulo a minha
inquietude. Sinto quando seu olhar cai sobre mim. — Noah está
sorrindo para você.
Minhas bochechas queimam.
— É, grande... Grande coisa — desdenho e caminho em direção a
Noah, que pega um copo de uísque servido por um garçom e espera até que
eu fique a poucos passos dele. E isso acontece. — Está sempre de terno?
— Yves Saint Laurent — Hellmeister diz a marca como se isso
justificasse alguma coisa, a pronúncia perfeita do francês fluindo por sua
língua. Nem finjo que me importo.
— Vim devolver o dinheiro.
— Por quê?
— Porque você perdeu de propósito. — Ele perde o sorriso no seu
rosto. — Quero uma revanche um dia, mas não preciso do seu dinheiro.
— Sim, você precisa.
— Eu não...
— Chloe, você precisa — Noah insiste.
E então eu entendo tudo: Noah perdeu porque eu precisava
ganhar. Por mais que Hellmeister claramente quisesse ganhar,
ele não precisava. Eu sim. E agora me sinto em dívida e um pouco ridícula,
envergonhada.
— Eu não posso... Tem que ter algo que eu possa fazer... — insisto.
— Não posso aceitar esse dinheiro assim, Noah.
— Claro que pode. Deve. Considere um presente.
— Presente?! Acha que pode me comprar assim?
— Nem todo o dinheiro do mundo compraria você, Chloe Mitchell.
Sinto meu coração acelerar por um segundo. Ele ainda está me
olhando, seus olhos negros focados em todo detalhe do meu rosto, enquanto
bebe um pouco do seu uísque. Desvio o olhar, nervosa.
— Você ia ganhar...
— Mas não ganhei...
— Certo, me deixe falar. Você ia ganhar. Então nada mais justo que
me leve para sair. Mas sob minhas regras. Eu decido para onde.
O encaro. Ele pisca algumas vezes, surpreso. Respiro fundo,
contrariada.
— Sábado. Me busque no trabalho. Nada de ternos — digo, dando as
costas e caminhando para fora dali.
Sorrio para Sinn ao passar por ele e amaldiçoo a vontade de continuar
sorrindo quando saio dali.
— Yves Saint Laurent — repito, quando dentro do carro. Jogo a
mochila no banco de trás e rio nasalado. — Grande coisa.
Alguns demônios não aceitam que o Diabo, por acaso, saiu um pouco
do Inferno. Eles insistem no meu retorno. Os chamamos de rebeldes. Foram
eles que invadiram o apartamento da Kold no outro dia.
O Inferno em si não está abandonado, se quer saber. Ele está sendo
vistoriado por uma demônio de confiança, o meu irmão, Theo. Ele faz um
trabalho até melhor que eu, se duvidar.
As pessoas têm um julgamento distorcido sobre o Inferno e o Paraíso.
Céu e Inferno não são exatamente inimigos. São como dois lados de uma
mesma moeda. Trabalhamos juntos, é o que quero dizer. São dois Reinos que
atuam sobre a vida.
O Céu acomoda pessoas que estão prontas para nascerem novamente
ou que atingiram o tão sonhado descanso espiritual, certo? Isso a humanidade
acertou. Mas é um reino e como todo reino, ele é administrado pelos
chamados anjos e um anjo superior, Angeline. Ela é a Rainha do céu.
Literalmente, tem um castelo e tudo.
Os anjos em si não são isentos de defeitos. Não existe perfeição em
lugar algum. Eles têm falhas, desejos, problemas, desvios de conduta...
Contudo, no geral, são seres de luz, de bom caráter. No geral. Porque alguns
anjos, inclusive, possuem mais desvios do que deveriam. No entanto, desde
que cumpram com suas funções — e busquem mais a luz do que o caos —,
são perdoados e educados para cuidarem das responsabilidades do Céu.
Responsabilidades essas como: indicar nascimentos, analisar almas,
selecionar pessoas do bem, cuidar do Reino dos Céus e muitas coisas para as
quais, honestamente, pouco me importa, não é assunto meu.
O Inferno é um reino cercado pelo real Purgatório. Purgatório é uma
área reservada com uma infinidade de celas que comportam almas perdidas,
presas em alucinações — que têm um propósito de ensinar através da dor.
Basicamente, essas almas pagam seus pecados em uma espécie de pesadelo
em loop temporal e nele precisam enfrentar suas pendências. No momento
em que as superam, consequentemente superam seus medos, ganhando uma
nova chance. E por nova chance eu quero dizer: limpar suas almas, voltar à
Terra e tentarem ser bonzinhos o suficiente para, quem sabe, ir pro
entediante Reino dos Céus depois.
Eu tenho um castelo também. Muito melhor do que a da Rainha
insuportável lá, sinceramente. O que me torna um Rei.
Antes Céu e Inferno eram duas faces distintas de um só Reino, cada
qual com sua função. Nós, comandantes desse reino, éramos de uma só
família, marcada por uma divindade criadora, a quem chamamos de Deus. A
Rainha do Céu, minha tia, Angeline, ficava responsável por cuidar das
funções angelicais, como já expliquei. O meu pai, Mortheu, ficava com o
meu atual trabalho.
Até que houve uma guerra, uma que levou à morte do meu pai, ao
caos e a muitas e muitas outras mortes. E após muito derramamento de
sangue, surgiu um acordo: uma cisão aconteceria, mas ainda precisaríamos
atuar em conjunto, mesmo que cada Reino possuísse sua autonomia... Bem,
com suas exceções.
Deus é quem mantém a harmonia entre os dois Reinos e define essas
exceções. Ele estipula as funções de cada reino. É como um poder moderador
sobre os reis. O que é justo. Afinal, só existimos dentro do seu Universo.
E eu tenho funções. Funções que posso exercer longe do submundo.
Se o Céu cuida da vida, eu cuido das mortes. De perseguir e capturar almas
que fogem de onde deveriam estar — sejam elas anjos ou demônios, que
desistem de suas funções e voltam para terra sem terem permissão. Ou de
garantir a ordem no Purgatório... E garantir a presença do caos na Terra,
porque a vida precisa dele, no fim das contas. Por mais que a harmonia seja o
sonho de qualquer humano, sem o caos, a vida, de fato, não é vida.
São muitas tarefas, na verdade. E para elas eu conto com os
demônios, que nada mais são do que anjos de asas escuras como a noite.
Além deles, eu tenho Sinn, Kold e Luke.
Sinn é responsável por garantir que os pecados existam, bem como
manter o controle sobre eles e o registro de todos os realizados.
Kold abandonou o Céu na cisão, por isso é a única criatura infernal de
asas brancas. Ela é apaixonada por todo e qualquer tipo de diversão e
confusão. O ex-anjo me ajuda a manter o caos, bem como é o meu braço
direito e a minha defensora. Koldelium é a melhor guerreira entre os Reinos,
sem dúvida.
Luke é responsável por verificar se há algum problema na Terra a ser
resolvido, problema causado por celestiais. Ele também é o que mais viaja ao
Inferno, para verificar se meu irmão está fazendo um bom trabalho. Luke é
um pouco bobo, mas ao mesmo tempo é super inteligente, eu realmente não
entendo esse filho da puta. É como se seu cérebro escolhesse quando ele deve
ser um gênio ou um pateta irritante.
Meu irmão, Theo, cuida do Inferno no momento, por mais que todas
as grandes decisões passem por mim. Theo não quer que eu o castigue, então
não comete nenhuma loucura. Para ser sincero, eu não ligo muito para o
garoto.
No geral, acabo por vistoriar tudo, tomo as decisões importantes e
aproveito para me divertir no processo.
Meu problema maior no momento são os ataques rebeldes. Eles
tinham perdido a frequência, até pouco tempo. Não sei ao certo por que
voltaram, Sinn e Luke estão me ajudando a descobrir. Kold não curte se
envolver muito em mistérios. Ela é mais prática. Não quer saber o motivo da
guerra, ela só quer defender quem ama.
No momento, entretanto, Koldelium tem uma tarefa muito mais difícil
que qualquer guerra: me ajudar a decidir o que vestir para um encontro.
Ugh, odeio essa palavra. Encontro.
Foda-se, que chamem do que quiser. Eu só quero saber que porra essa
tal Chloe é e porque ela mexe comigo. Além de, claro, porque diabos ela não
se lembra de tudo o que aconteceu quando nos conhecemos.
Em tantos e tantos séculos de vida, ninguém nunca me esqueceu. Ela
foi a primeira. Isso me incomoda.
— Tenta essa. — Kold me joga uma camisa e depois se joga na minha
cama, suas mãos sob seu rosto.
A camisa é branca, lisa e de mangas curtas. Bufo, mas a visto. Ela fica
um pouco justa ao meu corpo e expõe as tatuagens em minha pele.
Kold me analisa devagar.
Fico impaciente pelo modo como os olhos azuis de Koldelium
gravam cada detalhe antes de me dar seu parecer.
— Cacete, legal ou não? — pergunto.
— Agora tenta a azul.
— Aquela azul completamente ridícula?
— Não, a azul clara super linda. Da cor do céu. Acho que é bem a sua
cara — ironiza. — Sério, a azul clara. Veste.
Obedeço. Tiro a camisa branca e coloco a azul clara sobre o corpo.
Ao me olhar no espelho do meu quarto, sinto desgosto em ver essa cor em
mim.
— Alguma notícia sobre o ataque dos rebeldes do outro dia? —
questiono, me referindo ao incidente em seu apartamento.
— Não sei, Sinn e Luke não me disseram nada. Luke voltou ao
Inferno para conversar com o seu irmão sobre isso, o que você deveria estar
fazendo.
— Estou aprendendo a delegar, me cansei de tantas e tantas
responsabilidades. Todo mundo tem o direito de viver, não é? Eu também.
Ser o Diabo não deveria me impedir de curtir. — Kold fica em silêncio e eu
me olho no espelho. A azul está horrível.
— A azul também está linda. — Koldelium me contraria. E então
respira fundo, se sentando. Me sinto obrigado a encarar seus olhos azuis. —
Não está delegando demais? Noah, veja bem... Eu adoro sempre que subimos
à Terra para curtir, para nos divertir. E gosto de viver aqui, é muito melhor.
Só que às vezes penso se não estamos fugindo do Inferno, por algum
motivo... Se os rebeldes não estão certos...
Solto o ar pelo nariz, sem ter alguma resposta.
— Há algo que preciso achar por aqui. E estou perto de encontrar as
respostas que procuro, após séculos. Chloe é a prova disso. Estou no lugar
certo. Finalmente no momento certo. Sinto isso, Kold.
— Se é o que diz... — Ela se levanta e me ajuda a tirar a blusa azul do
corpo. Suas mãos pousam em meu peito. Kold sempre foi importante para
mim, mas sabe que tudo que pode fazer é aconselhar. — Consigo sentir,
sabe? — Sua mão está no centro do meu peito. Eu seguro o seu pulso. —
Consigo sentir contra os meus dedos.
— Mas eu não. E é por isso que estou aqui. — Kold me dá um sorriso
triste, mas não diz mais nada — A branca ou a azul?
— A branca.

— Ora, ora! Onde está seu Yves Saint Laurent? — Chloe está
sorrindo enquanto fala, carregada de sarcasmo, andando em minha direção ao
fim do seu expediente. A ruiva tem um walkman em mãos e usa apenas um
dos fones desse toca-fitas. Consigo ouvir baixinho o que parece ser The
Rolling Stones.
Vejo Molly pelas janelas grandes do restaurante, conversando com
um cara barrigudo. Acho que é seu chefe. O tal Matt não está ali.
— Deixei no armário — respondo, emburrado. Ela me analisa e eu a
analiso de volta.
Chloe está com um par de tênis surrados cinzas, calças pretas até o
meio da cintura, uma blusa branca com um pôster de algum filme que não
conheço e uma jaqueta de couro negra. Ela carrega uma mochila preta
surrada. Está fodidamente linda. Como sempre, a mistura perfeita entre anjo
e demônio: sinto em seu coração algum caos, vejo em seu rosto um anjo. E
novamente me encontro, de algum modo, diante de um enigma.
Chloe olha para o carro atrás de mim, percebendo que deixei o
Thunderbird em casa hoje. Hoje trouxe o Dodge Charger da década de 70. É
um dos meus preferidos. Ela parece gostar também.
— Para onde vamos? — Quebro o silêncio breve e estranho entre nós
dois.
— Para o seu prédio. — Uno as sobrancelhas por um segundo. —
Você quer me conhecer, eu sei o jeito certo. Quero te mostrar algo no
apartamento da minha tia.
Abro a boca levemente, finalmente entendendo. Ela ainda acha que
moro no prédio da tia dela. Acho que seria uma boa hora para inventar que
acabei de me mudar, não?
— Ei, Chloe! — Uma garota de traços asiáticos, baixinha e de cabelos
curtos sai de um carro branco, seguida de dois caras loiros, idênticos. Ela é
quente para cacete. Seus olhos são alongados e expressivos, inclinados para
baixo nas extremidades. Acho que tem descendência chinesa. — Está saindo
mais cedo? O Thurman sabe disso?
— Não, Brianna, você está tendo uma miragem — Chloe cantarola,
desgosto por todo o seu rosto. — Claro que sabe, se está me vendo aqui é
porque ele sabe. — Brianna ri nasalado. — Por que estão vindo mais cedo?
— Porque somos os melhores funcionários — um dos gêmeos diz. —
É assim que conseguimos os aumentos que você nunca consegue. — O idiota
me olha e analisa meu carro. — Vai dar o golpe do baú nesse cara? Ele sabe
que você brinca com ratos para ter o que comer?
— Não tem nenhum rato no restaurante, Kyle. Tirando por você —
Chloe devolve.
Eu poderia me meter nessa briga infantil, mas ela está me divertindo
muito. Por favor, continuem.
— Sério? — Brianna debocha. — Sei lá, acho que te vi brincando
com um rato outro dia. Vocês falam a mesma língua, talvez você seja um.
Chloe respira fundo.
— Só... Vamos cair fora daqui — pede, entredentes, e eu assinto,
parando de rir e abrindo a porta para ela. Chloe entra no meu carro e eu faço
o mesmo em seguida. — Desculpa por isso.
— Tudo bem... Quem são eles?
— Matt e Molly chamam de Trio Radiação. — Rio nasalado,
balançando a cabeça em negação. Chloe está guardando o walkman na
mochila. — Eles trabalham no turno da noite. Só podemos sair quando eles
chegam. Não nos damos bem.
— Visível.
Ficamos em silêncio por um tempo, observando o tal Trio Radiação
entrar no restaurante.
— Eu costumava ter uma queda por ela, sabe? — Chloe me conta e
eu franzo o cenho. — Brianna Yang. Quando cheguei aqui, eu olhava para
ela e pensava: “Cacete, essa garota é linda”. Ouvi dizer que a família da Yang
veio da China há uns dez anos, eles têm um restaurante no Brooklyn ou algo
assim. Enfim, Brianna tinha todo esse jeito emburrado de ser e tudo mais,
pelo menos eu enxergava assim. Gostava disso. Mas a queda durou só uma
semana, porque assim que Yang falou comigo e eu percebi que não era um
jeito de ser. É arrogância. Brianna é arrogante comigo e eu não sei o motivo...
— A ruiva suspira, como se percebesse que está desabafando para um
estranho.
O silêncio me incomoda.
— Gosta de garotas também? — Percebo o seu desconforto e tento
mudar de assunto. Muito mal, por sinal. Chloe morde o canto do lábio,
unindo as sobrancelhas. Há uma pequena ruga entre elas, discreta, mas está
ali.
— Eu sou bi — ela conta, mas seu olhar ainda está preso nas janelas
do restaurante. Me pergunto se, por algum motivo, a ruiva está buscando a tal
Brianna com os olhos e isso me incomoda. Digo, será que ela tem algum tipo
de sentimento pela menina? Talvez não, talvez seja apenas frustração. —
Quer saber, você realmente não tinha que ouvir nada disso, sabe? Não tem
nada a ver a minha briga com Brianna, então desculpa, mas é que Yang me
tira do sério!
Consigo sentir uma tristeza vinda da Chloe, então escuto o seu
coração. Ele bate com algum pesar. A ruiva pode ter respondido aos garotos
como se não se importasse, mas ela transborda melancolia. E ela não está
chorando porque se acostumou com a dor. Me sinto tentado a perguntar sobre
isso, porém me parece invasivo.
— Tudo bem — respondo. Não é como se eu devesse me importar,
de fato, com o que essa garota sente.
A ruiva me encara e seu olhar brilha, mas não é de felicidade. O
sorriso fraco que me lança é completamente forçado. Por que uma garota
como ela se importa tanto com o que os três idiotas pensam?
— Vamos? — pede. Confirmo, a observando colocar o cinto. Faço o
mesmo e acelero.

Chloe disse que me mostraria quem ela é.


Compramos algumas cervejas, há um maço de cigarro no chão
intocado ao lado da mochila preta surrada e eu estou sentado no canto da
grande sala de dança, a observando dançar. Ainda não entendi o que ela quis
dizer. Quero conversar, ela quer dançar. Ainda assim, meus olhos são seus.
A ruivinha tem toda a minha atenção. Cada movimento suave, cada
rodopio... Da ponta da sua sapatilha até os braços delicados. Chloe se mexe
como uma flor frágil que recebe uma brisa leve ao fim da tarde. É perfeita em
todos os sentidos. E faz tudo com leveza. Consigo sentir que toda a tristeza
de mais cedo já se dissipou, seu coração está leve como uma pluma. A
música clássica é calma e parece ter um novo significado só porque a ruiva
está dançando.
Viro um gole da cerveja e me sinto tentado a me aproximar, mas a
dança acaba. Chloe me encara e eu cerro os olhos levemente.
— Então essa é quem você é?
— Parte de quem sou. Mas tudo o que sou pode ser visto desse
apartamento. — Ela acena com a cabeça para as longas janelas do
apartamento, se aproxima de mim e se agacha. Ofereço a minha cerveja e
Chloe dá um gole, me analisando. — Acha que é bobagem o que fiz...
Estúpido, não?
— A dança? Não. Nada estúpida... Só... Diferente — confesso,
apoiando as mãos no chão. — Eu ainda não entendi como isso me mostra
quem você é. — Chloe fica em silêncio, colocando a garrafa de cerveja no
chão. — Esperava que me recebesse de um modo diferente. Com muita raiva.
— Oh... Por causa do jantar?
— Exatamente.
— Ugh, você foi escroto. — A ruiva é honesta, eu rio nasalado. Ela se
senta ao meu lado. — Mas eu... Eu aceitei o dinheiro, porque realmente
preciso, não vou negar. O mínimo que posso fazer é te tratar bem, em
retorno, eu acho...
— Não tem a mínima obrigação de me tratar bem.
— Nem de te tratar mal — dispara em retorno. E eu perco a fala,
porque ela está certa. — Eu estava com raiva, mas percebi que não tem muito
motivo. Claro que você foi um pouco escroto, mas a gente nem se conhece...
Não tem porque eu gastar energia odiando um cara que mal conheço. — Seus
olhos me analisam. — Enfim, de qualquer modo. — Ela suspira, parecendo
cansada. — Pediu para me conhecer melhor e eu vou te mostrar quem sou
hoje à noite.
Mordo o lábio inferior, sentindo alguma ansiedade com a
proximidade. Chloe desvia o olhar para as longas janelas do apartamento. O
céu escuro de Nova York é iluminado por estrelas e centenas de luzes de
prédios e mais prédios que tentam alcançá-lo.
— O lado bailarina é legalzinho — confesso. — Digo, esse seu lado
do ballet é legalzinho.
— Jura? O lado do ballet? Foi só isso que percebeu? É tão mais que
ballet! — Rio nasalado, porque isso visivelmente a incomodou. Acho que
Chloe queria me mostrar algo e falhou, porque sinto sua irritação. É leve, mas
está aí. De súbito, se levanta. — Quer saber? Vem aqui!
Sua mão está estendida em minha direção.
Uno as sobrancelhas. Até parece que o diabo vai dançar ballet.
— Está brincando?
— Não. Noah Hellmeister, se você quer me conhecer, vai dançar
comigo. Esse é o meu mundo e você está vivendo ele por uma noite, então
levanta essa bunda do chão! — Sua mão continua estendida. — Vou precisar
te arrastar?
Ela arqueia a sobrancelha, em ameaça.
Bufo, frustrado para cacete. De algum modo, essa garota tem algum
poder de convencimento sobrenatural. E então aceito a sua mão, me pondo de
pé.
— Então, vai querer que eu faça alongamento nessa coisa? —
pergunto, apontando para a barra e Chloe ri. Sua risada me deixa ansioso.
Infelizmente, gosto disso.
— Por quê? Quer? — a ruiva me provoca, se aproximando. Ela
segura a barra com uma das mãos. — Não estou te ensinando ballet, Noah,
mas se quiser tentar... — Ela se vira para mim, gira os pés, calcanhar contra
calcanhar, as sapatilhas contra o chão. E então se agacha. — Isso é um plié.
Tenta.
Dou uma risada, porque me parece ridículo. Chloe ri junto, mas acabo
tentando. Então ela ri muito alto.
— Ok, você é horrível nisso.
Honestamente? Não entendo onde errei. Mitchell fica atrás de mim e
toca meus ombros. Eles se relaxam ao seu toque, conforme a ruiva os aperta.
— Inspire e expire — ela sussurra e eu obedeço.
Suas mãos deslizam por minhas costas e chegam na minha cintura.
— Ajeite um pouco a postura... — ordena. E então sinto suas palmas
escorregando de volta aos ombros. Fico o mais reto que consigo. — Bom,
muito bom... Agora respire fundo, sem pressa, dobre as pernas e mantenha a
postura. — Sigo seus comandos, mas meio sem equilíbrio. Ela ri. — Ok,
continua sendo muito engraçado, mas melhor.
Afasto-me da barra, virando-me para a ruiva. Chloe está sorrindo.
Acho que estou parecendo um idiota nesse momento. Que ótimo.
— Não curti muito isso de plié — resmungo.
— Gosta de ser bom em tudo sempre, não é?
— Estou acostumado a ser bom em tudo sempre.
— Bom, sempre temos algo para aprender. É impossível ter todo o
conhecimento do mundo. Mas te entendo, gosto de ser boa em tudo também.
— Fiz uma nota mental sobre isso. — Só esquece o plié, não é para você.
Frustração me preenche com a sua fala, mas não quero tentar aquela
merda novamente. É patético. É ridículo. É idiota. E quem é Chloe Mitchell,
afinal, para dizer que o Diabo não é bom em algo? Quer saber? Eu acho que
fui muito bem. Eu fui bem para caralho nessa porra de plié.
— Vem comigo! — Ela me puxa pela mão até o centro da sala.
— Você diz que eu sou ruim e quer continuar?
— Está chateado? Uau, Noah, é só um plié! — Chloe une as
sobrancelhas, rindo em deboche. — Se for tentar um grand jeté, vai morrer
de raiva então.
— Duvido. Aposto que sou muito bom nesse tal jeté. Me mostra. —
A garota ri. Acho que está pensando que estou brincando. Estou
completamente sério.
— Você é até que engraçadinho, Hellmeister. — Ela solta a minha
mão e eu nem percebi que nossos dedos estavam entrelaçados o tempo todo.
Quando se afasta, sinto-me um pouco vazio. Chloe segue até o aparelho de
som do outro lado da sala e troca a fita dele. — É a única coisa não clássica
que a minha tia tem para a gente ouvir hoje.
Chloe dá o play e caminha em minha direção. Ela respira fundo e
mexe o pescoço quando para em frente a mim. A canção é La Vie en Rose, de
Louis Armstrong. Antiga, de uma melodia suave, mesmo com a forte
presença do trompete. Um clássico dos anos setenta e a ruivinha parece
gostar, porque está sorrindo a cada nota.
— O que faço?
— Bom, como sua professora, hoje só peço que sinta.
— Como assim?
— Eu vou dançar. Quando desejar me tocar, me toque. Quando quiser
segurar a minha cintura, segure. Se pretende me fazer girar, faça isso. Se
quiser me prevenir de cair, mantenha suas mãos em mim. Faça o que sentir.
Quando menos perceber, já vai estar dançando.
Sinto-me nervoso e um pouco patético. Então tudo começa.
Ela toca o meu ombro e eu tento tocar a sua cintura, mas Chloe gira,
se afastando. Minha irritação por sua fugacidade some quando paro para
admirar sua dança.
A garota está completamente envolvida com a música.
Ela se movimenta a passos rápidos para longe, mas eu alcanço a sua
mão, a puxando para mim. Um leve choque acontece, mas a ruivinha se vira
contra o meu corpo.
Chloe está com suas costas contra o meu peito e a minha mão acaricia
a sua cintura. Sinto o perfume em seu pescoço tão viciante... Até que ela gira,
mas eu não deixo que fuja. Não permito que se afaste, não quero isso. Colo
seu corpo ao meu, meus dedos em seus quadris, seu rosto perto do meu.
Chloe toca o meu pescoço, sinto que está prestes a me beijar... Porém
ela me empurra. E volta a dançar. Sinto a falta de algo. Sinto muito a falta de
algo. Acho que é dela.
Aproximo-me imediatamente, surpreso com a velocidade com a qual
a faço. As minhas mãos estão em sua cintura e Chloe tenta se afastar, mas eu
não permito. Não de novo. E é quando a letra finalmente se inicia.
Estamos caminhando juntos. Não sei para onde, não me importa. A
ruivinha está me guiando e eu gosto disso. Gosto para caralho.
A trago mais pra perto. Não compreendo como sei o que fazer em
seguida, mas a tiro do chão. Em um pulo, está longe do chão e tudo que a
mantem nos ares são as minhas mãos em sua cintura.
Há um sorriso de divertimento em seus lábios, um brilho intenso em
seus olhos escuros. Por um instante, tenho certeza de que ela é um anjo. Mas
nenhum celestial nunca chegou minimamente perto da sua beleza.
A devolvo ao chão, mas não sei se é onde ela pertence. Chloe merece
o céu e todo tipo de paraíso existente. Seguro a sua cintura com a mão direita,
apenas. Ela toca o meu pescoço delicadamente, estamos girando devagar.
Seus olhos capturam toda a minha atenção.
Solto a sua cintura e minha mão busca por seu rosto, mas Mitchell
gira e cola as suas costas em meu peito. Seguro firme em seus quadris. Minha
boca está tentada em tocar o seu pescoço, eu consigo ouvir sua respiração
levemente ofegante.
Busco por suas mãos, sentindo uma eletricidade estranhamente
viciante percorrer caminhos sob a minha pele.
Mas ela se afasta. E parece mais livre enquanto dança sozinha.
E eu a capturo novamente. Porque sinto que preciso.
Chloe leva as suas mãos aos meus ombros e eu seguro a sua cintura
com firmeza, a puxando para perto. Ela deixa as suas costas caírem, se
movendo de um lado ao outro, mas está em segurança.
Ela está segura, ao alcance das minhas mãos. Está segura, porque está
em minhas mãos.
A ruiva retorna para mim e eu a mantenho o mais perto possível.
Estou ofegante, Chloe também. A sua boca está perigosamente perto da
minha e pela primeira vez, me sinto em apuros, como uma presa.
Ela me guiou, ela me capturou, ela me tem, de algum modo.
Não me importo mais com a música, tudo que consigo ouvir é o seu
coração. Estou preso. E de algum modo, consigo saber quem ela é. Consigo
sentir Chloe Mitchell quando dança. E ela é livre, é arte, como a música que
toca nesse momento. Chloe é como sentir o paraíso contra meus dedos. Tocá-
la é como atingir a liberdade.
Sua boca... Eu preciso dela. Sinto falta do seu beijo. Faz tempo.
Durmo pensando nisso. Às vezes me pergunto se é uma obsessão, porque
ninguém nunca dominou tanto meus pensamentos.
Seus lábios roçam contra os meus numa tortura deliciosa. Seus dedos
delicados estão em meu pescoço. É quando sinto. Sinto tudo aquilo que
venho esperando há séculos. É quando sei que ela faz parte da resposta que
tanto tempo desejo encontrar. Meu coração está batendo, firme, contra
minhas costelas. Como há séculos fiquei sem sentir.
Tudo por causa dela. E preciso do seu gosto...
Mas alguém abre a porta.
Uma mulher ruiva como a Chloe tem seus olhos verdes direcionados a
nós dois, em surpresa. Ela vê a bebida no canto da sala, os cigarros, a
bagunça e volta a nos olhar.
Chloe me afasta e eu me encontro vazio.
— Titia? — Chloe diz, assustada.
E eu nem consigo processar o que está acontecendo ao meu redor.
Meu coração não parece mais bater. Meus dedos estão formigando. A música
acabou. E eu quero voltar a dançar.
Eu quero voltar a dançar com ela

— Então... — a tal Riley diz enquanto Chloe arruma a pequena


bagunça que fizemos. Faço menção de ajudar, mas a ruiva mais nova mostra
que tem tudo sob controle. — Pensei que tinha dado a chave para você
treinar, não beber.
— Desculpa, tia. — Se cumprimentam com beijos na bochecha. —
Os cigarros são para o terraço e eu não achei que ficaria chateada se
bebêssemos aqui e...
— A gente estava dançando. — As interrompo. Riley me fita. —
Chloe... Aceitou sair comigo e achou que dançar era um jeito de me fazer
conhecê-la melhor — explico e vejo a ruivinha enrubescer. Porém pego a
mão da mais velha antes que ela perceba isso e deixo um beijo. A senhora me
encara, surpresa. E as suas bochechas ficam igualmente vermelhas às da
sobrinha. — Noah Hellmeister, ao seu dispor.
— R-Riley Mitchell. O prazer é todo meu. — Riley está sorrindo para
mim. Chloe pigarreia, envergonhada, as mãos atrás do seu corpo. — Oh,
desculpa, meu anjo, não vou roubar seu namorado. Não curto esse lance de
garotos mais jovens.
— Ele não é meu namorado! — Chloe se defende, o rubor permanece
por seu rosto.
— Ainda — Riley retruca, tirando os saltos e caminhando para um
canto do grande estúdio com eles. Os deixa de lado e retorna, tirando os
brincos, sua bolsa ainda em seu braço. Quero rir com o seu jeito agitado de
ser e Chloe bate no meu braço, sussurrando que essa situação não tem graça.
— Então, Noah, o que faz da vida?
Comando o Inferno.
— Tenho um clube em Hell's Kitchen — respondo. — E alguns
investimentos também...
— Oh, então é bem de vida — presume.
— Titia! — Chloe exclama, em repreensão.
— Ela não mentiu — defendo a mais velha, que sorri docemente para
mim. — É, eu tenho uma vida muito boa.
— Ele mora aqui — Chloe conta, desviando o olhar para um canto
qualquer do lugar.
— Jura? Nunca te vi por aqui. Mas também... São tantos
apartamentos! — Riley guarda os brincos na bolsa. — Qual o seu andar?
Chloe e Riley me encaram e a mentira está prestes a deslizar por
minha língua, mas sou salvo por um telefone tocando em um dos quartos.
Riley se xinga e pede um segundo, disparando para o corredor para atendê-lo.
— Desculpa por isso. Pensei que ela estava viajando, acho que voltou
mais cedo. — Chloe se atropela com palavras, uma atrás da outra. — Acho
melhor cairmos fora daqui.
— Ei, tudo bem. — Capturo a sua mão quando ela faz menção de sair.
— A sua tia estar aqui não estraga nada — minto. Riley atrapalhou um beijo
e parte de mim quer que ela exploda. E eu bem que poderia fazer isso
acontecer. — Mas se quiser ir embora... Acho melhor se despedir da sua tia
antes.
Mitchell assente, um pouco ansiosa.
Riley retorna, com um sorriso no rosto.
— Não tinha hora melhor para encontrar vocês dois! Noah, como
investidor, gostaria de saber se não teria interesse de conhecer melhor a alta
sociedade num evento.
— Tia... — Chloe repreende.
— Deixa de ser careta, Chloe. — Riley faz a sobrinha bufar. Ouço
Chloe repetir um ''inacreditável'' algumas vezes. Sua tia volta a me encarar.
— Eu já ia chamar a Chloe para esse evento, porque não queria ir sozinha...
— E eu diria "não" — Chloe cantarola, se aproximando da garrafa de
cerveja aberta ao chão.
— Já eu insistiria até você gritar "chega" — Riley devolve, também
cantarolando. Chloe rola os olhos e dá um gole da bebida, mantendo seus
olhos sobre mim. — Acho que você é a desculpa perfeita para a Chloe ir...
Faz isso por mim, por favor? Precisa do apoio da família se quiser o coração
da nossa bailarina.
Chloe joga a cabeça pra trás, rindo.
— Tia, se chamar Noah para a festa, as chances são de que eu não vá
— a ruiva brinca. Riley me encara, sem entender.
— É complicado — digo por entre os dentes. — A gente não se
conhece direito ainda, é um trabalho em progresso.
— Hm... — Riley murmura, dando de ombros. — De qualquer modo,
está convidado. Os dois estão! Vai ser próximo sábado. É um leilão no
Museu Metropolitano de Arte e a minha companhia de dança vai realizar a
abertura. É para ajudar uma instituição de caridade. Muita gente importante
vai. Pensem nisso.
Chloe abraça a tia pelo pescoço, a garrafa de cerveja ainda em uma
das mãos.
— Eu vou, porque sei como você é insuportável — Chloe provoca e
Riley dá a língua para ela. — Mas Noah não vai, ele tem muito o que fazer,
certo?
— Não — respondo, de imediato. A ruivinha faz uma cara de dor e
solta um grunhido, o que me faz franzir o cenho. — Estarei livre, com toda a
certeza. Pode contar comigo. Foi um prazer conhecer a senhorita. — Beijo a
mão da mais velha novamente.
— Oh, por favor, me chame de "você" ou de Riley. — Ela me puxa
para um abraço e eu fico paralisado, sem entender o que acontece. Chloe leva
a mão a testa, balançando a cabeça em negação. — Cuida bem da minha
estrelinha.
— Titia! — Chloe está vermelha de tanta vergonha.
— Hm... Pode deixar? — respondo, por fim, incerto.

Estou quase chamando o elevador, mas Chloe me puxa para as


escadas. Seguro a sacola com os cigarros e as bebidas em uma mão e a sua
com a outra. Ela me arrasta, animada por algum motivo.
— Por que as escadas?
— Porque sim, preguiçoso. E porque ainda não me conheceu o
suficiente. Preciso que veja o terraço. — Chloe abre a porta ao final e de
repente, estou no topo do prédio.
Ela sorri e me puxa pela mão, me restando deixar a porta bater atrás
de mim. O baque a faz se virar em susto, não consigo não rir da sua cara. Mas
as risadas cessam.
Agora percebo que não há quaisquer proteções contra quedas. E não,
Chloe não se importa com isso quando se senta na ponta do edifício. Como
também não ligo, me sento ao seu lado. É interessante a sensação de ter os
pés no céu de Nova York.
Temos mais duas garrafas, que abrimos e brindamos. Conversamos
um pouco e de repente, estamos bebendo e fumando na ponta do edifício.
— Se sua tia é tão rica, por que você trabalha naquele lugar e aguenta
o Trio Radiação? — pergunto, eventualmente.
— Eu não quero depender da minha tia. E desde que saí do
Tennessee, minha relação com a minha mãe não é muito boa... Acaba que eu
dou dinheiro para ela e não o contrário, não aceito um tostão. Gosto de ser
independente. Tia Riley odeia isso.
— Por quê?
— Ela quer que eu viaje o mundo na companhia de ballet dela.
— E você?
— Eu não quero ser a bailarina sobrinha de Riley Mitchell. Não quero
viver do ballet também. Gosto de dançar como um modo de atingir a
liberdade, a paz de espírito ou sei lá... As meninas que trabalham com a
minha tia usam a dança como uma prisão, uma competição, uma guerra...
Para mim, isso seria doloroso.
— Não aceita dinheiro da sua tia? Sob hipótese alguma?
— Não. Ou isso viraria um hábito. Titia gosta demais de me ajudar,
quer me dar tudo do bom e do melhor. Agradeço muito por isso. Porém me
sentiria em dívida e não é o que eu desejo. Talvez seja orgulho da minha
parte e talvez me arrependa disso, futuramente. Mas quero viver do meu
esforço, para mim essa é aventura que preciso.
— Mas dinheiro é um problema?
— Uma necessidade difícil de suprir. Não um problema.
Uno as sobrancelhas. Acho que Chloe não gosta de admitir que passa
por qualquer dificuldade.
— Soa como o mesmo. Por que não vende seu carro? — questiono.
Chloe teria um bom alívio financeiro com o dinheiro do Shelby.
— Valor emocional.
Fico em silêncio por algum tempo. Meu olhar se perde pela cidade,
seus prédios e mais prédios. Chloe traga seu cigarro e depois dá um gole da
cerveja. O meu trago acaba e eu viro o último gole da minha garrafa.
— E você? — ela lança.
— Eu o quê?
— Vamos, Noah! Já sabe muito sobre mim. Acaba de conhecer um
dos lugares que mais amo. — Ela acena com a cabeça para a paisagem. —
Acho justo te conhecer um pouco. Pode ser que eu esteja confiando em um
psicopata.
Rio com tal pensamento, balançando a cabeça em negação.
— Diga-me, Noah Hellmeister, quem você é?
Sua pergunta reverbera na minha mente por longos segundos.
O problema é que mesmo após tantos séculos e tantas coisas vividas,
ao lado dessa garota ruiva e com Nova York sob meus pés, sob algumas
estrelas... Eu não faço a mínima ideia do que responder. Não sei me definir e
acho que ''diabo'' é um péssimo jeito de começar.
Pergunto-me se sei quem sou.
— Não faço a mínima ideia — confesso, baixinho. A encaro,
esperando um julgamento. Porém, tudo o que recebo é um meio sorriso. —
Por que me chamou para sair?
— Acho que aquela corrida acabou em um empate. Tecnicamente eu
ganhei, mas você também, de algum modo. Sair comigo... Valeu todo aquele
dinheiro?
— Valeu mais. — Esquadrinho o seu rosto, sem pressa. Não gosto de
me sentir assim, como se pudesse observá-la pelo resto da vida, então desvio
o olhar.
O clima se torna estranho. Não sei explicar o motivo. Tudo me parece
muito diferente.
— Por mais que eu até suporte a sua companhia... Acho melhor irmos
embora, querido. — Chloe tenta me provocar e eu rio nasalado, a encarando
de canto de olho.
A ruivinha prende o sorriso em uma mordida no lábio inferior e se
levanta. Faço o mesmo e por um segundo, uma tontura me faz pensar que vou
cair.
Entretanto, Chloe me puxa, gritando por cuidado, e quase caio por
cima dela, no chão. Todavia, quando seguro em sua cintura, tudo fica bem.
Estamos firmes e no topo de Nova York. Parece que somos
inalcançáveis nesse segundo.
Ela está rindo, não sei nem do quê, mas quase me faz rir também.
Uma brisa fria nos toca e seus cabelos voam, por um instante, para o seu
rosto. Guio alguns fios revoltos para atrás da sua orelha, para vê-la melhor.
E sinto. Sinto o meu coração. E tão forte que posso senti-los até na
ponta dos dedos, que tocam a pele dela. Finalmente sinto.
Após esquadrinhar o meu rosto por uma última vez, Chloe choca a
sua boca contra a minha. Ela não se lembra do nosso primeiro beijo, então
essa é a nossa primeira vez para ela. Até o momento é apenas um selinho,
mas... Caralho, eu sinto a minha pulsação por todo o meu corpo.
E no primeiro deslizar de lábios, eu sei: Chloe Mitchell é uma droga.
Uma que me faz sentir tão alto que subitamente sinto que vou cair, pois o céu
não é o lugar para o Diabo. Mas aqui está o problema: por mais que eu goste
de sentir o coração bater tão forte contra as minhas costelas, eu realmente,
definitivamente, com toda a certeza, me recuso a cair.
Então me afasto.
Acordei no meio de duas garotas. Uma delas estava abraçada ao meu
corpo, o que fez o meu rosto contorcer em nojo. No dia anterior eu também
acabei transando com a Kold... Parando para analisar, houve sexo todo dia
desde aquilo lá.
Digo... Faz uma semana desde o beijo. E eu já posso listar centenas de
problemas por causa dessa merda. Mesmo que nem tenha sido um beijo de
verdade, praticamente só um encostar de lábios.
O primeiro problema é que ele não foi o nosso primeiro beijo. Mas
para Chloe, sim. A sensação de que a garota simplesmente não lembra da
verdadeira primeira vez que nos beijamos me deixa irritado. Ninguém
esquece de mim. Isso chega a ser vergonhoso.
O segundo é que acho que ela está pensando que eu corri. Por não
procurá-la depois do "encontro" e por ter quebrado o beijo antes dele de fato
se tornar um beijo. Eu não corri. Só aqueles que têm medo fogem. Eu não sou
assim, é até patético pensar isso.
O terceiro — e nem de longe último problema — é que eu fodi
algumas garotas pela semana e nenhuma delas me impede de ver vermelho
quando fecho os olhos. E às vezes, a vontade de ver a garota é tanta que eu
consigo. Em seu trabalho, em sua casa... Eu consigo. A vejo mais do que
deveria.
O que fez com a minha cabeça, meu anjo?
— Está pensando nela de novo — Sinn observa, beijando a bochecha
de Kold atrás do bar e preparando seu próprio drink. Rum, ele gosta de rum.
É tarde. Alguns funcionários arrumam o Purgatorium, Kold verifica o
estoque de bebidas e Sinn só está procurando o que fazer.
— Não estou não — murmuro, emburrado, virando um gole de
uísque. Brinco com o copo na mesa.
— Quer mentir logo para a gente, Hell? — Kold pergunta, rindo. —
Te conhecemos há séculos. Você pode fugir de qualquer um, mas não de nós.
Ergo os olhos. Kold me analisa.
— Não fugi dela.
— Não foi o que eu disse. — Koldelium une as sobrancelhas,
percebendo a minha raiva — Credo, calma! — Deixo um grunhido escapar e
ela se encosta na bancada colada à parede, não à que estou sentado. — Por
que não vai atrás dela?
— Está brincando certo? — pergunto.
— Não, não estou. A garota mexe contigo. Não é vergonha alguma ir
atrás dela.
— Eu nunca vou atrás de ninguém. Surtou? Ela é só uma humana,
Kold! — A minha amiga arqueia a sobrancelha. — Tá, ela me fez sentir...
Coisas. Mas é só uma humana. Eu realmente não me importo mais com que
porra essa garota é, faz comigo ou sente. Foda-se. Foda-se. É só mais uma
humana.
— Vocês homens falam da gente, mas são tão complicados. —
Koldelium ri, mas há alguma impaciência e sarcasmo por sua fala.
— Oh, eu não, baby, me tire disso! — Sinn pede e pisca para ela. Ele
se apoia na mesma bancada que eu, bebe o seu drink pronto e seus olhos se
voltam para mim. — Vamos, Noah, a garota mexe contigo, confesse.
Rolo os olhos, desviando o olhar.
— Vai dizer que, há alguns dias... — Kold se aproxima, se apoiando
na superfície vinho e deixando o seu nariz a centímetros do meu rosto. —
Não pensou tanto na garota que não só visualizou a ruivinha dançando ballet,
como acabou de frente para ela?
A encaro, surpreso. Sinn une as sobrancelhas, me analisando. Kold
não tinha o direito de dizer isso em voz alta. Era algo nosso.
— Como assim? — Sinn questiona, curioso.
— O Noah. — Kold se afasta ao falar, cruzando os braços. — Mal
tinha conhecido a garota e pensou tanto nela que de algum modo parou no
apartamento da tia dela, vendo-a dançar ballet. O que não foi de todo mal,
certo, porque ela o chamou para sair.
Me sinto furioso. Aperto o copo com toda a força do mundo e
subitamente ele quebra entre meus dedos. Não há corte algum em minha
mão, contudo. Sinn toma um leve susto, mas Kold está sorrindo para mim,
inabalável. Jogo os cacos restantes na minha mão na mesa e em fração de
segundos me materializo do outro lado e estou quase contra Kold.
— Você não me assusta, Noah — Koldelium sopra, forçando um
sorriso.
— Deveria, Kold. Eu amo você, mas posso deixar de amar no
segundo seguinte. E você vai quebrar mais fácil do que aquele copo —
ameaço.
Kold não demonstra medo algum, exceto pelo coração acelerado.
Adrenalina. Ela sabe o quão furioso estou.
Me materializo perto à porta, prestes a ir embora do Purgatorium, mas
escuto a voz da demônio me chamar uma última vez:
— Você fugiu dela, Noah — Koldelium provoca em alto e bom tom,
todos escutam. Até os funcionários que estavam longe e organizavam o lugar
para a festa de mais tarde ouviram e estão nos olhando. — Você fugiu dela
porque tem medo. Você acha que ela vai ser como a Lilith.
Me sinto mais furioso do que nunca, mas prefiro não responder.
Balanço a cabeça em negação e saio do Purgatorium sem nem olhar para trás.

O Inferno é um palácio. Eu sou o Rei. E por algum motivo, encarando


os portões escuros como a noite, sinto hesitação em entrar no lugar que me
pertence. Mas sigo.
Na sala do Trono, o meu irmão está quase deitado na minha cadeira.
Suas pernas estão sobre um braço do móvel e seu tronco no outro, falta pouco
para sua cabeça encostar ao chão. Isso não é modos para um soberano.
— THEO! — Minha voz o faz estremecer e ele imediatamente retorna
à posição em que deveria estar, quase caindo ao chão no processo. — Que
porra acha que está fazendo? — Theo fica de pé imediatamente. — Acha que
isso aqui é brincadeira?
— N-não, s-senhor! — Rolo os olhos.
— Se recomponha. Sente-se como deveria. — É tudo o que digo. E
ele obedece.
Dou as costas e sigo para a minha sala. Alguns súditos se oferecem
para me seguir, mas eu nego. Entro na grande biblioteca antiga e caminho
para a minha mesa de madeira, sentando-me e deixando as pernas sobre ela.
Respiro fundo e fito o teto.
São dois andares para este cômodo. Há estantes por todos os lados.
Porém, obviamente, existem mais lugares como esse. Precisamos manter
registro de muita coisa e existem centenas, talvez milhares, de lugares como
esse no submundo. A minha biblioteca, entretanto, guarda os registros mais
importantes. Chamamos de Livros do Destino. Ainda assim, num estalar de
dedos, posso conseguir qualquer registro, mesmo os que não estão aqui.
Gosto desses livros. As vidas dos seres são registradas, na medida em
que o tempo passa, como se fossem histórias. Eu juro que alguns registros são
tão interessantes que facilmente virariam best-sellers se alguns humanos os
escrevessem.
É bom estar em casa.
Ao mesmo tempo... Inquietante.
Algo em mim me deixa cada vez mais ansioso. Fecho os olhos e
respiro fundo mais uma vez, procurando calma. Aperto as unhas contra as
minhas mãos, tentando não pensar nela.
Não dá certo.
Basta um estalar de dedos e há um livro sobre a minha bancada.
Ajeito a minha postura antes de analisar cada mísero detalhe da obra perante
meus olhos. Ela é enorme e tem um nome gravado na capa em caligrafia
espetacular: Chloe Marie Mitchell. Tudo o que tem aqui diz respeito à sua
vida.
Deve existir algo por essas linhas e entrelinhas que indique que ela
não é comum, não é? Então eu leio. E minha leitura acontece tranquilamente
até que, por algum impulso, eu volto às páginas iniciais e percebo algo muito
estranho.
Logo após a página 3, existe a página 8. Há mínimos resquícios de
folhas arrancadas, quase imperceptíveis, mas existem entre as duas páginas.
Uno as sobrancelhas, sem compreender. Nunca havia visto um desses
com páginas em falta.
Ergo o olhar para a biblioteca. Me levanto da cadeira com o livro em
mãos e caminho para a fileira dos seres que começam com C. Há um espaço
faltando em uma das prateleiras. Olho o livro que seguro em minhas mãos e
me aproximo do tal vazio. O livro é empurrado contra a prateleira e ele
encaixa perfeitamente.
Novamente, ficam aqui apenas os livros mais importantes, sobre os
seres mais importantes. E o de Chloe é um deles.
Sinto um arrepio me percorrer e concluo: alguém não quer que eu
saiba algo sobre ela.

— Então o bom filho à casa torna — Luke ironiza assim que saio da
biblioteca. Sorrio para ele. — Não sabia que viria hoje.
— É, sempre bom ver como as coisas estão. — Olho ao redor por um
instante, mas volto a encará-lo. — Luke, tem um livro da Chloe na minha
biblioteca — digo, sem mais delongas. O loiro parece tão confuso quanto eu
estava há minutos atrás. — Duvido que uma garota comum tenha lugar nas
minhas estantes, ao mesmo tempo... Nada do que li confirma que ela não é
humana. Não tenho muito tempo hoje, tem algo que quero que você faça,
então preciso que me obedeça, sim?
Indico a direção dos portões com a cabeça e nós dois seguimos para
fora do palácio. Tudo por dentro é bege e dourado, as paredes são muito altas,
há elegância por toda a parte.
— Preciso que consiga todas as informações sobre a família da Chloe,
tudo. Quero que resuma para mim o que de mais importante tiver — ordeno.
Luke confirma, ainda sem entender em que parte quero chegar. — Há algo de
diferente sobre a garota. Preciso saber o quê. Vou começar pela árvore
genealógica. — Os portões se abrem e chegamos ao lado externo. Me viro
para o meu amigo. — Vá dos laços consanguíneos mais próximos da ruivinha
aos mais distantes. Me traga um primeiro relatório até o fim da semana.
— Por que se importa tanto com essa garota, Noah? Tem certeza de
que ela fez seu coração bater? — O loiro me analisa. Confirmo, em silêncio.
— Como se sente em relação a isso?
— Um pouco confuso, eu acho — confesso, um pouco tenso. Os
olhos esverdeados do meu amigo percorrem todo o meu rosto.
— Te faz pensar na Lilith?
Nego, de imediato.
— Faz milênios desde a Lilith, Luke. Eu não me importo — garanto.
— Só faz o que te mandei, ok? — Luke confirma e eu não me incomodo em
me despedir, seguindo para longe do Inferno.

Estou com a sensação de que me esqueci de algo. As ruas de Nova


York passam por meus olhos, tamborilando meus dedos contra o volante. Só
quando eu passo em frente ao Museu Metropolitano que eu me lembro.
A festa da tia da Chloe.
Paro o meu Jaguar em uma rua próxima. Eu disse que viria e o Diabo
sempre cumpre suas promessas, certo? Então que seja.
Avalio a roupa que estou vestindo. É um terno, sem a gravata. Rio
nasalado pensando em como a ruiva me julgaria por isso e em questão de
segundos estou fora do carro. Ajeito meu cabelo em frente ao espelho lateral
e volto a fitar os engravatados e socialites que entram no museu.
Existem fotógrafos na entrada, mas eu os ignoro e chego em frente ao
segurança. Meu nome, ele pede. Forneço, acreditando que a tia da Chloe
passou o meu nome para a organização do evento.
— Não está aqui, senhor — o homem diz. — Vou pedir que se reti...
— Você vai me deixar entrar. — O segurança me fita por um
segundo, percebendo o meu olhar se tornar vermelho. — Meu nome está
nessa lista, você não olhou direito.
— Seu nome está nessa lista, não olhei direito.
— Isso. E nem vai. Sabe que estou aí. E vai me deixar entrar.
— Sei que está aqui. — O segurança abre um sorriso ao dizer isso e
eu sorrio de volta. — Pode entrar, senhor Hellmeister.
Humanos são tão patéticos.
Ajeito a minha roupa e procuro ao redor por cabelos ruivos. Bebo um
pouco, passeio pelo lugar e encontro Riley Mitchell em um canto, rindo sobre
algo que um casal diz, em um belo vestido negro e com um colar de
diamantes em seu colo. Há vozes que tentam sobressair o som dos violinos.
Penso em me aproximar da tia da Chloe e percebo que estou perdendo tempo.
Mentalizo por Chloe Mitchell. A vejo andando por um corredor. Está
mais linda do que nunca com dois brincos prateados longos, uma maquiagem
leve — exceto pelo batom vinho — e um belo vestido anil por todo o seu
corpo, de mangas longas e um decote fundo. Está perfeita. Contudo, quando
me materializo no corredor, ela já não está mais aqui.
Caminho por entre portas e mais portas, tentando identificar sons.
Enfim, encontro uma encostada. E pela fresta, consigo ver a ruiva. Tem um
cara lá dentro. Acho que é um garçom. Cerro os olhos para a cena, ainda sem
me aproximar. E antes que fechem a porta, consigo ver o exato momento em
que se beijam.
Inferno.
Me sinto estranho. Muito estranho.
Muito. Muito mesmo.
A porta se fecha. Eles não me perceberam. Eu não consigo sair do
lugar.
Parte de mim sente raiva e a outra sente... Alguma coisa que não sei
descrever. Só sei que não gosto de sentir isso. Então foco na raiva. E sei que
ela é injustificável, Chloe e eu não temos nada e nem pretendo ter algo com
ela, mas não consigo deixar de sentir essa fúria peculiar.
O anjo está com outra pessoa dentro de uma sala e eu consigo
imaginar o que eles vão fazer ali. Não gosto nada disso. Nem quero pensar
nisso. Me sinto idiota por ter vindo.
Então dou as costas e sigo para o Purgatorium. Existem muitas
mulheres nesse mundo. Chloe Mitchell não é a única. Ela é só mais uma. E
alguma pode me fornecer diversão pela noite.
Molly limpa a bancada e eu aproveito o baixo movimento de clientela
para não fazer nada e conversar com a minha amiga. Thurman dorme, como
sempre, ele não tem do que reclamar.
— Então o cara não foi bom?
— Não, ele foi — respondo, sorrindo de canto. — Mas eu senti que
conseguiria alguém melhor.
— Alguém tipo o Noah? — ela provoca e eu rolo os olhos, rindo. —
Uh, acertei! — Anderson cantarola.
— Alguém, Molly! — Fico na ponta dos pés ao me apoiar na bancada.
— O cara da festa tinha pegada e era legalzinho... Mas foi isso. Simples
assim. Não mudou nada na minha vida.
— Era sexo casual, Chloe. Sexo casual nunca muda nada na vida de
ninguém. Você sabe bem disso. Ou agora quer alguém que mude tudo? — ela
pergunta e eu mordo o lábio inferior, pensativa. Acabo por balançar a cabeça
em negação. — Conseguiu esquecer o beijo do Noah, pelo menos?
A minha mente vai à noite do terraço por um segundo. Lembro da
sensação da boca macia de Hellmeister contra a minha. Isso é bizarro. E
honestamente, me incomoda. Sinto que Noah é capaz de me arrastar para
sentimentos e aventuras que não quero viver no momento. Ele me faz sentir
os sintomas de quem está prestes a adoecer por uma paixão. A última vez que
me apaixonei, acabei chorando por semanas.
O problema? É que eu tenho total consciência de que Noah seja uma
armadilha e não sei por que diabos não corro na direção contrária, mas sim ao
encontro do seu sorriso maldoso, os olhos negros e o jeito ''ei, o mundo é
meu, meu anjo''. Apesar de ter certeza de que não quero ser mais uma em sua
coleção de garotas apaixonadas, Noah é magnético, confesso.
— Ugh... Aquilo mal pode ser chamado de beijo — finalmente
respondo. — E ele sumiu depois, então Noah me confunde. Não sei que porra
ele quer de mim e talvez seja mais fácil esquecer aquele narizinho empinado.
— Mais fácil? — Molly caçoa. — Jura? Confesse, Mitchell... Mal
conhece o filho da puta, mas o beijo-que-não-pode-ser-chamado-de-beijo?
Ele não sai da sua cabeça. Foi bom, não foi?
Bufo, afundando o rosto entre os braços cruzados sobre a bancada.
— Foi — admito, querendo morrer por isso.
— Bom. — Uma voz atrás de mim me faz estremecer. — Noah vai
ficar feliz em saber disso. — Me viro, assustada. Meu coração erra algumas
batidas quando o monumento de mulher entra em meu campo de visão. É a
amiga do Noah que estava na corrida. A bartender do Purgatorium. E
olhando de perto... Cara, essa mulher existe?
Seus fios absurdamente escuros estão presos em um rabo de cavalo e
alguns lhe caem sobre o rosto. Ela veste uma jaqueta de couro sobre a camisa
vermelha e calças jeans justas.
— Prazer, Kold. — Ela estende a mão e eu demoro um pouco para
processar que devo cumprimentá-la, mas o faço.
— Kold? — Não consigo disfarçar a estranheza pelo nome
completamente exótico. — Hm, e-eu sou a...
— Chloe Mitchell. É, eu sei. Sei sobre você. — A morena me corta,
sorrindo de canto. — Sou amiga do Noah. Ele me mandou aqui.
— Mandou, é? — Há tanta malicia quanto curiosidade na minha voz,
não posso evitar.
— Sim. Mandou. — Quero sorrir toda vez que seus olhos azuis
pairam sobre mim. Sério, ela é gata desse jeito. — Veja, vamos ter um DJ
novo no Purgatorium na sexta e Noah pensou que talvez você e seus amigos
gostariam de curtir uma boa festa na área VIP da melhor boate desse bairro.
— Abro a boca para responder.
— Com toda certeza! — Molly confirma por mim, jogando o pano
que usava sobre a mesa por cima do seu ombro. — Que horas? — Me viro
para ela, sem acreditar.
— É sexta — recordo.
— E? — Anderson me enfrenta, se divertindo.
— Eu vou cuidar do filho da Senhora Durden.
— Que horas acabaria isso? — Kold me questiona. Volto a encará-la.
— Por volta das onze da noite. A Senhora Durden é enfermeira, ela
tem plantão, mas não vai acabar tão tarde.
— Tudo bem. O Sinn passa para te buscar. — Kold se aproxima e eu
sinto o seu perfume quando ela fica perigosamente perto de mim.
Preciso me lembrar de respirar quando a morena se aproxima ainda
mais e fecho os olhos instintivamente. Kold leva a sua mão a algo ao meu
lado, na bancada. Admiro seu rosto de perto, meu nariz está quase em sua
bochecha. Está escrevendo em meu bloco de notas com a minha caneta.
Deveria ser proibido ser tão linda assim.
— Esse é o número do meu apartamento, caso algum imprevisto
aconteça — Kold explica, enquanto escreve. — Ela rasga o papel e me
entrega ele. — Onde é a casa da Senhora Alguma Coisa?
— Durden. Senhora Durden. Ela é minha vizinha. Mora em frente ao
meu apartamento. Noah sabe onde fica — respondo. Kold me encara.
— Certo, mas onde é? — A pergunta me deixa confusa. Molly é mais
rápida em escrever o endereço e entregar para Kold. Então eu percebo que a
mulher foca em minha amiga mais tempo do que o necessário. Ela abre um
sorriso de canto.
— Bom, espero vocês lá — a bartender diz, mas seus olhos estão
completamente focados na minha colega. E então ela me encara, lançando o
seu melhor sorriso. — Até mais. — A mulher se vira e desfila para a saída.
Eu suspiro.
No mesmo momento em que Kold se retira, John entra no
estabelecimento. Meu encanto some e percebo que estou com fome, me
virando para a minha amiga. Eu daria tudo por um hambúrguer nesse
momento.
Não demora muito para que os pombinhos se beijem. Matt sai da
cozinha, tédio por toda a sua face.
— Adivinha quem conquistou o coração do dono do Purgatorium e
nos conseguiu uma festa VIP? — Molly comemora e John me olha, surpreso.
Vejo Matt rolar os olhos.
— Nunca fiquei tão feliz por você estar saindo com um cara. — John
confessa. Cogito jogar o meu bloco de notas em sua cara, mas desisto.
— É, que seja — Matthew resmunga. — Não gosto desse cara. —
Desde que contei o nome do Noah e falei do nosso primeiro encontro,
Matthew o detesta.
— Mas você gosta de festas! — Molly lembra, apertando as
bochechas do nosso amigo. Nós nos entreolharmos, sorrindo juntos. Todos
aqui amam festas.
— E eu também gosto do fato de que Martha, nossa linda e tão feliz
cozinheira, está gritando por você. — Matthew finalmente devolve a Molly,
sarcástico. Anderson bufa e entra na cozinha. Matt rouba o lugar dela atrás do
caixa.
John se aproxima de nós dois com um sorriso bobo demais em seu
rosto. Levo a mão ao queixo e apoio os braços na bancada, o analisando. Ele
encara Matthew, que devolve o gesto. E de repente, nós dois estamos fitando
um John que parece não se decidir para quem olhar.
— Desembucha — Matt ordena. Johnny olha ao redor e tira algo do
bolso da frente sua calça. É um anel. Ele é bem bonito. Isso é um diamante?
— Você tá brincando...?
É diamante. E ouro. Parece caro. E familiar. Um anel maneiro.
Espera...
— Você vai propor? — sussurro, finalmente acordando para a vida.
John sorri largamente e Matt pensa em pegar a aliança para ver melhor, mas
eu bato em sua mão. Eu sou prioridade aqui. Molly me ama mais. Então eu
analiso o anel primeiro.
É lindo pra cacete, é delicado e muito discreto. Ergo o olhar para
John. Eles são muito novos para isso, mas sei que se amam como nenhum
outro casal, por isso só perguntarei uma vez:
— Tem certeza?
— Absoluta — ele diz. Entretanto, seu sorriso diz muito mais do que
suas palavras. Devolvo o anel e passo pela bancada o abraçando com força.
Tem semanas que não me sinto tão feliz assim.
— Se eu não for a madrinha, eu mato você.
John ri alto.
— Também te amo, Co.

Sinn abre a porta do carro para que eu saia. Consigo ver o túnel
vermelho. Ele me dá a mão e eu aceito a sua ajuda, apesar de saber que não
vou cair em meus coturnos. Seu sorriso encantador se revela quando fecha a
porta para mim.
Tive que me trocar na casa da Senhora Durden, enquanto o pequeno
Pietro dormia. Mal tive tempo de passar alguma maquiagem, devo estar uma
merda. No entanto, Sinn diz o contrário.
— Está linda. — Arqueio a sobrancelha.
— Obrigada, acho.
— Não quis te constranger. — Ele me faz segui-lo ao acenar com a
cabeça o caminho que devemos seguir. — Sei que mal nos conhecemos. Mas
é a verdade. Não só está linda, na verdade. É muito bonita. É visível porquê
Noah gosta tanto de você. — Franzo o cenho, o analisando.
— Só pela beleza? Então tudo o que uma mulher tem a oferecer é a
sua beleza? — A pergunta me escapa, bem mais para mim do que para ele.
Sinn para de andar para me olhar.
— Desculpa, Chloe, não foi o que eu quis dizer. Não me referi apenas
à aparência, senhorita. Há definitivamente algo em você que te torna mil
vezes mais bonita do que você naturalmente é. E hoje está encantadora.
Uau. Meu ego está maior que a cidade no momento. Infelizmente,
Sinn não diz mais nada até estarmos dentro da festa.
Gosto do Purgatorium, porque toda a estética é diferente. A decoração
preta e vermelha e o conceito infernal daqui são interessantes, apesar desse
estabelecimento não parecer um lugar para sofrermos, não mesmo. Tudo aqui
traz uma sensação de que você pode ser ou fazer o que quiser, de que há mais
vida por esses ares.
Vejo Molly e John dançando juntos em um canto da pista de dança.
Sinn coloca a palma em minhas costas como um convite para que eu o siga e
obedeço.
Chegando ao espaço VIP, existem grupos e mais grupos espalhados
por mesas e em uma delas, Matt parece emburrado, brincando com o canudo
da sua bebida azul. Penso em andar em sua direção, mas sou parada de
imediato por uma figura alta e de olhos escuros.
— O que está fazendo aqui? — Noah pergunta. Uni as sobrancelhas,
abrindo a boca algumas vezes sem saber o que dizer. Sinn estava ao meu
lado, ainda com a mão em minhas costas, mas assim que recebeu um olhar de
Hellmeister, tirou a sua mão dali, então me sinto desamparada de algum
modo. — Chloe, o que está fazendo aqui? — Noah eleva a voz contra o som,
achando que não ouvi, provavelmente.
— Como assim? Você me convidou! — respondo, confusa. Noah
franze a testa mais do que eu. Seu cenho está estupidamente franzido e ele
abre a boca, mas nada sai. Então seu olhar recai em Sinn e o meu também.
— Ideia da Kold! — Seu amigo levanta as mãos em rendição.
Continuo sem entender o que está acontecendo e Noah solta um grunhido de
raiva. — Bom, foi um prazer te conhecer e conversar contigo, Chloe. — Sinn
deposita um beijo em minha mão e lança seu melhor sorriso, antes de bater
no ombro de Noah duas vezes e se retirar.
Encaro Noah, esperando que me chame para conversar ou explique
porque seus amigos mentiram para mim. Ou só me chame para dançar e me
diga por que agiu estranho depois do beijo. Tudo o que ele, contudo, faz é
balançar a cabeça em negação e mal olhar na minha cara.
— Espero que curta a festa, Mitchell.
Não há "meu anjo", “ruivinha" ou "red". Não há nada além do seu
sarcasmo seco e fugaz. Hellmeister me deixa sozinha no andar de cima e
segue para uma mesa qualquer, cumprimentando duas garotas.
Que porra acabou de acontecer?

— Chloe Mitchell! — Kold exclama ao me ver, me servindo uma


dose de vodca num copo pequeno assim que me sento ao bar. Deixo a bolsa
no balcão, um tanto quanto frustrada. — O que faz aqui? Não encontrou o
Noah?
— Kold, certo? — digo, apesar de saber que sim, ela se chama assim.
Seus olhos azuis focam nos meus e finalmente analiso a tatuagem em sua
bochecha. Hell. Eles levam o conceito de submundo bem a sério por aqui,
hm? — Por que me convidou sem o Noah saber e mentiu sobre isso?
— Por que aceitou?
— Eu perguntei primeiro.
— Bom, eu não ligo — ela devolve e pisca, soprando um beijo pelos
lábios pintados de vermelho. Kold coloca uma dose de vodca em outro copo.
— Por que veio sem ao menos procurar qualquer confirmação de que Noah
realmente te convidou para a festa?
— Não tive como confirmar. — Me sinto patética em dizer isso.
— Você tem o número dele.
— Eu não tenho o número dele.
— Você tem o número do Purgatorium, Chloe. Noah te deu o número
daqui quando sairiam pela primeira vez, para que você avisasse se houvesse
qualquer imprevisto. Não foi o número do apartamento dele, porque isso não
é do feitio do Hell, mas ele te deu um número. — Kold segura o copinho e
seu indicador bate nele quando o ergue, mas ela não o bebe. — E você não o
ligou em nenhum momento. O que é bem interessante, se quer saber.
Fui pega em uma mentira e paramos por um instante de falar contra o
som para nos analisarmos. Desvio o olhar por um segundo e vejo Noah se
aproximar do outro lado do bar, sendo servido por outro funcionário. Volto a
encarar Kold, sentindo um pouco de calor. E ela sorri.
— Ele mexe contigo, não mexe? E você gosta da ideia de ser desejada
por um homem como Noah. — Kold observa e eu cruzo as pernas, sentindo o
olhar de Hellmeister sobre mim. — Não, não é a ideia de ser desejada por um
homem como o Noah, é a ideia de ser desejada pelo Noah. Isso mexe contigo.
— Noah não para de me olhar. — Ao mesmo tempo, você não gosta dele
ainda, porque não se permite gostar. Qualquer outra garota já estaria morta de
amores pelo meu amigo. Qualquer uma morre de amores por ele após dois
segundos ou após a primeira vez. Menos você. Você luta contra isso.
— Vocês elevam demais o ego do Noah.
— A gente? — Kold ri. — Eu, Luke, Sinn... Nós fazemos justamente
o contrário. É o mundo que insiste em inflar o ego desse idiota. — Kold se
aproxima, sua boca está perto da minha. Fito os seus olhos e ela abre um
sorriso maldoso. — Ele mexe contigo, mas você não é como as outras e não
está apaixonada, não ainda. Porque não se permite. E ficou com outras
pessoas, não ficou?
— O quê? O que isso tem...? Como você sabe? — Me sinto
desconfortável.
— É o seguinte, Chloe Mitchell... Noah foi ao Museu de Nova York e
não foi para ver uma linda apresentação de ballet. E, porque ele assistiu a
uma dança mais bonita: a sua língua com a de outro cara. — Fito Hellmeister,
que subitamente anda em nossa direção, mas é parado por um cara loiro. Viro
o rosto para Kold novamente. — Você não fez nada de errado e ele sabe
disso. Hell não tem do que reclamar, mas ficou sentido. Porque, por mais
bizarro que seja... — Kold está rindo. — Você mexe com ele, mesmo que
mal se conheçam. Noah não seria estúpido de cobrar de ti algo quando vocês
não têm nada. Então, ele se afastou. Só que é transparente, sabe, Hell quer
você. Ele ama jogos, assim como você, se quer saber, mas pela primeira vez,
Chloe? Ele os detesta. Me pergunto o porquê.
Sinto o meu coração acelerar por algum motivo. Kold bate seu copo
contra o meu.
— É algo para se refletir — continua, sorrindo. Ela dá de ombros e
vira a sua bebida, grunhindo brevemente com a ardência da vodca. — De
qualquer modo, acho vocês dois bonitinhos juntos. E não quero perder tempo
com os joguinhos dos dois para ver no que isso vai dar.
— Mal nos conhecemos.
Ela rola os olhos. Kold gosta de me provocar sobre Noah, percebo
isso. Mas não odeio essa situação. Na verdade, eu gosto.
— O tempo é superestimado, Chloe. O coração não obedece a
ponteiros de relógio. — Kold abre um sorriso e sinto tristeza nele. Abro a
boca para retrucar que não sinto nada por Noah, mas ela é mais rápida. —
Você pensa nele tanto quanto ele pensa em você, sei que sim. Tive a
confirmação quando aceitou vir, sem grandes questionamentos. Quer saber
por que te chamei, Chloe? Porque Noah, pela primeira vez, estava fugindo de
alguém. E eu quero muito ver aonde isso vai dar. Além do mais... —
cantarolou, me olhando de cima a baixo. Mordeu o lábio inferior
vagarosamente, sorrindo com malícia em seguida. — Formariam um casal
bonito. E eu adoraria ver um casal desse em ação, se é que me entende...
Meu corpo inteiro é fogo nesse momento. Alguns pensamentos me
invadem e Noah não é o único presente neles. Kold também é exatamente o
meu tipo. Abro a boca para retrucar, mas...
— Posso saber o que conversam? — Noah nos interrompe, ao meu
lado. Meu olhar vai dele para Kold e de volta a ele.
— Estava cantando a sua garotinha — a bartender diz.
— Eu não sou dele — respondo, de imediato. Kold ri.
— Bom saber... — A mulher aproxima a boca da minha. Sinto o
perfume de Noah, ao mesmo tempo em que a boca vermelha da mulher me
chama. — Estou aqui para servir. O que deseja, Chloe?
— O martini é muito bom — Noah diz e Kold ri. Ela está flertando,
ele não parece gostar tanto disso.
— Bem. — Kold analisa o decote do meu vestido e seu olhar demora
em subir aos meus olhos. — Tenho coisas melhores a oferecer. — A mão de
Hellmeister pousa em minhas costas. A bartender abre o sorriso mais
diabólico e quente que já vi. — Me diga, Chloe Mitchell, está apertando uma
coxa na outra desse jeito pelo Noah... por mim... ou pelos dois?
— Koldelium... — Noah a adverte, mas Kold aproxima seus lábios
ainda mais dos meus.
E tudo o que eu consigo dizer é...
— Foda-se. — Minha mão vai à nuca de Kold e em questão de
segundos a sua boca está contra a minha.
Seus lábios são macios e delicados, mas quentes e eu consigo sentir
um pouco da vodca. Por algum motivo, sei que ela está sorrindo. E sua língua
desliza para dentro da minha boca e o seu gosto, misturado ao álcool, é
excruciantemente bom.
Ela rompe o beijo e olha para o lado. Estou me recuperando do que
acabou de acontecer quando faço o mesmo. Noah ainda tem as mãos em
minhas costas e a outra na mesa, me olhando de um jeito que me faz sentir
como uma obra de arte ou seu pior pesadelo. Eu vejo ira nos seus olhos,
como se tivesse sido contrariado, muito, muito contrariado... Como se ele
quisesse ter me beijado no lugar da sua amiga. Não posso negar que isso infla
o meu ego. Estaria ele com ciúmes? Tão cedo?
Sorrio para Kold com toda a maldade que possuo, virando o meu shot
de vodca em seguida. Em um instante, estou me sentindo completamente
vitoriosa por ter deixado Hellmeister em um estado catatônico. No outro, o
escuto grunhir, como se tivesse chegado ao ápice de sua fúria. É quando
Noah me surpreende ao encaixar a sua mão em minha nuca e me beija.
Ele realmente me beija.
Não como o encostar de lábios que aconteceu no terraço, não como o
beijo que me lembro quando transamos pela primeira vez no banheiro desse
lugar... É o beijo.
Um tão fodidamente bom que me viro para ele e afundo meus dedos
em seu cabelo, buscando por mais e mais contato. Seus dedos estão entre o
meu cabelo e em minha cintura, com força. Sua língua explora a minha com
gosto, seu gosto substitui o de Kold e é ainda melhor.
Beijar Noah é intenso. É como pular em um abismo profundo e gostar
da queda, aproveitar a viagem. Ele tem sabor de uísque e problemas.
Problemas porque seu beijo é tão viciante que não quero parar. Toda vez que
seus lábios macios se arrastam sobre os meus vagarosamente é como se a
colisão do século acontecesse. Todo segundo em que exploro a sua boca é
como se eu descobrisse um novo mundo. Minhas unhas arranham a sua nuca,
Noah já me faz inclinar levemente para trás sobre a cadeira, sedento por mim.
Quando ele chupa a minha língua, quase deixo um gemido baixo
escapar. Ele interrompe o beijo e meu corpo protesta, recupero o fôlego
enquanto volto à realidade. Então Noah finaliza com uma mordida no meu
lábio inferior para destruir qualquer resquício de sanidade que possuo no
momento, se afasta e depois passa o polegar pela sua boca, como se a
limpasse.
Como consegue ser tão gostoso? Como consegue ser tão
irritantemente sexy?
No momento, ele passa as mãos por seu cabelo arrumado para trás e
seus dedos, repletos de anéis, afundam pelas mechas escuras. Meus olhos são
completamente seus até Kold aproximar a boca do meu ouvido.
— Quem quer, Chloe, Chloe? — a mulher pergunta. Não consigo
parar de esquadrinhar Noah e seu olhar parece ordenar para ser escolhido.
Meu coração ainda está acelerado, mas aos poucos volto a prestar
atenção na música que está tocando por aqui. Olho ao redor, voltando à
órbita, analisando as pessoas que dançam, os casais que se beijam, os
solitários que bebem... Consigo sentir a minha pulsação por todo o meu
corpo. Estou longe de me acalmar. Acho que não quero me acalmar.
Noah foi como um abismo. E eu ainda estou em queda. Todavia, há
uma pergunta que preciso responder. Fito a bartender e seus olhos faíscam
em minha direção.
Hellmeister foi perfeito. Mas não posso perder a oportunidade de ficar
com a Kold. Cerro os olhos para ele e viro o rosto para Kold.
— Os dois.
Consigo ouvir a festa de longe, mas não me importo.
Kold estava certa. Amo joguinhos.
Poderia mentir e dizer que não sei como cheguei aqui, mas sei. Eu
queria os dois.
Então estamos no que parece ser a sala da gerência do Purgatorium. A
mesa do Noah é de madeira avermelhada, tudo parece muito rústico. Não
tenho muito tempo para pensar, porque a porta se bate atrás de mim. Escuto a
sala ser trancada e me viro.
Vejo o exato momento em que Kold e Noah se beijam.
A cena é prazerosa de se assistir, pois sei o que vamos fazer aqui
dentro. As mãos dele estão na cintura dela, as dela puxam o blazer dele. Me
apoio à mesa, admirando a química entre os dois.
Ao mesmo tempo...
Há um pouco de inveja. Sinto um pouco de inveja. Não é ciúmes, é
só... Vontade de participar, de ser notada. Pelos dois, mas um pouco mais
pelo Noah, não vou mentir. E eles param o beijo quando o casaco de
Hellmeister cai ao chão. Kold passa a desabotoar a blusa social preta dele e
eu não consigo me conter, me aproximo.
A minha boca vai ao pescoço de Noah, que me puxa mais para si pela
cintura. Sua pele é macia, seu cheiro é viciante e no segundo em que minha
língua percorre o seu pescoço e eu mordo o lóbulo da sua orelha, consigo ver
meu efeito sobre Hellmeister: arrepios.
Sorrio, satisfeita. Me viro para Kold, que me beija. Então é a vez de
Noah beijar o meu pescoço. Os arrepios também me chegam quando sinto a
boca de Noah sobre minha pele, eletricidade se espalha por todo o meu corpo.
Por mais que Kold beije muito bem, por mais que eu tenha muita
vontade de foder com ela, honestamente, a presença de Noah tira a minha
concentração. Sua boca em meu pescoço, repetindo exatamente o que fiz com
ele, me causa muito mais prazer. Ele me abraça por trás, suas mãos vão à
barra do meu vestido e se infiltram sob ele.
Kold para o beijo quando arfo contra a sua boca, sentindo a minha
bunda contra Noah. A morena sorri maliciosamente. Seu polegar contorna a
minha boca e a bartender deixa uma leve mordida. Está quase me beijando
novamente quando o som da festa é cortado. Quase não percebo, perdida no
momento, mas Noah firma as unhas em minha cintura com força e murmura
algo.
— O quê? — pergunto, quase que em um sopro, perto da boca da
mulher.
— Algo aconteceu. — Ele se afasta. Kold rola os olhos e passa a
beijar o meu pescoço. Deixo um gemido baixo escapar. — Koldelium!
— Nada aconteceu, Noah, deve ter sido um problema de som.
Podemos transar? —ela diz, entediada. Rio, é inevitável.
Kold volta ao meu pescoço, sua mão em minha bunda. E então ela
para. Porque o som não volta e porque estamos ouvindo... Estamos ouvindo
gritos?
Estamos ouvindo gritos?
Os dois se olham e eu me vejo obrigada a encarar um e depois o
outro. É um daqueles momentos em que meu coração pesa e sinto que algo de
muito, muito ruim vai acontecer.
São gritos.
Em um piscar de olhos estamos recompostos, correndo para fora da
sala.. Pessoas estão agitadas, se movendo de um lado ao outro do
Purgatorium, seguranças estão pedindo por calma e acho que tem gente
ligando para a polícia. Noah puxa Kold pela mão e eles correm para a saída
dos fundos e eu os sigo. A cena que vejo me faz levar a mão à boca numa
tentativa de não vomitar e de não gritar em dor e choque.
Molly está ao chão, em prantos. Em seu colo, John está morto. A
poucos metros, a caixinha de veludo caída e aberta, revelando o anel de um
noivado que nem aconteceu.
John está morto. E o mais brutal é como aconteceu, pois há um
buraco em seu peito, há um buraco entre suas costelas. Ele está sem coração.
Consigo literalmente ver o interior do meu amigo. Por isso, eu me viro, sem
conseguir socorrer a minha amiga e vomito no segundo seguinte.
Quando pequena, antes do meu irmão nascer, eu costumava morrer de
medo de trovoadas. Quando elas aconteciam e meu quarto, completamente
rosa, era consumido pelo breu da noite, eu preferia o breu do que os clarões
repentinos acompanhados daquele som estrondoso. Parecia que o céu estava
caindo, eu dizia.
Mas, quando pequena, eu tinha a solução perfeita. Era só abraçar
minha boneca de pano, enfrentar o chão frio e caminhar pela casa, do meu
quarto ao corredor, até o último cômodo: o quarto dos meus pais.
Eu batia na porta e a minha mãe simplesmente sabia. Não sei como,
mas nas noites de trovoadas, mamãe e papai simplesmente sabiam: "Chloe
vai acordar e vai estar tremendo de medo". E era o que acontecia.
Meu pai costumava me contar uma história para dormir, mamãe me
abraçava por trás e sentindo seu perfume de morango e olhando o sorriso do
grande detetive Mitchell, eventualmente as histórias pareciam distantes e o
sono voltava ao meu corpo. Eu dormia e me sentia segura.
A Chloe de hoje sente falta do colo dos pais numa noite assustadora.
Porque eu não consigo dormir sem imaginar o corpo do John sem o coração.
Eu não consigo. E meu amigo esteve em todos os pesadelos que tive nos
últimos três dias, sempre que eu pegava no sono ou até mesmo quando
sonhava acordada, no meio do trabalho.
Matt me confessou que conseguia ouvir os gritos da Molly de vez em
quando, gritando como quando tentamos afastá-la da cena do crime.
Confesso que eu também. Foi tenso. Foi tenso de um modo que nunca vou
saber descrever. Tanto que não sei nem se adiantaria dormir entre meus pais
para as assombrações irem embora. A imagem não sai da minha cabeça. E
dói bastante. Porque sempre que tento imaginar o sorriso de John e não seu
corpo sem vida, o sorriso que vem a minha mente é o que ele me deu quando
nos mostrou o anel que daria à Molly.
Aliás, Molly está completamente arrasada. Nem precisava dizer isso,
eu sei, eu sei... Molly tinha discutido com ele por alguma bobagem na festa,
John saiu para tomar um ar e acabou morto. Sem nem ter tido a chance de
propor para "a mulher da sua vida", como ele a dizia.
John está morto. Às vezes a ideia de um mundo sem ele para me fazer
rir é patética. John está morto! É surreal, é inacreditável, é rasgante. É
sufocante. De repente, parece que todo o ar se tornou extremamente mais
pesado, todo o mundo perdeu a cor, como um filme noir, completamente
preto e branco.
Eu odeio enterros. O último em que fui foi o do meu pai, gosto de
manter a imagem da pessoa em vida na minha mente. Mas por Molly, eu faria
esse esforço. E ficaria ao seu lado durante todo o sepultamento, seria tudo o
que precisasse. Só que Anderson não quis, porque vai ser longe.
O enterro vai ser hoje, pela tarde, em San Diego. É onde a família do
Johnny mora. Molly disse que preferia ir sozinha, sua mãe vai estar lá por ela
e enfim... Enfim... John estava na Escola de Artes Visuais. Mandou um
portfólio com seus melhores curtas para a universidade e ela aceitou bancar o
filho da puta. Ele era talentoso desse jeito. O seu sonho era ser um cineasta.
Seco minhas lágrimas, deitada no sofá do meu apartamento. Tudo está
escuro e falta muito para o amanhecer. Meus olhos ardem e eu não sei se é
pelo tanto que chorei ultimamente ou se é porque estou mais chapada do que
deveria. Eu deveria me sentir alta, no topo do mundo, mas sinto o inverso.
Sinto que estou despencando nesse sofá. Cada vez mais.
Consigo literalmente me sentir afundar lentamente, como em areia
movediça, mas não quero sair daqui. O tempo parece passar mais devagar e a
dor é absurda. Espero que a minha vizinha não sinta o cheiro de maconha,
mas não sei se me importo. Pelo menos se a polícia bater eu fumei todo o
pouco que eu tinha. Só vai encontrar resquícios de um cigarro muito mal
feito.
— Guardei a pizza na geladeira — Matt diz. Não consigo encará-lo.
O escuto fungar e ele se senta no chão, encosta a cabeça no sofá. — Acha que
a gente deveria ligar para a Molly mais tarde?
Respiro fundo e engulo em seco, torcendo para a minha voz sair
firme, mas não adianta.
— Não, hoje não. Amanhã cedo. — Estou rouca, minha voz mal ecoa.
— Ela precisa de um tempo sozinha. Enterrar alguém que amamos... Isso não
é fácil.
Viro o rosto para ver a reação de Matt e ele só mexe a cabeça em
compreensão.
— O mundo vai ser uma merda sem ele — Matt lamenta.
Não há o que dizer. É a verdade.
Ficamos em silêncio por um tempo, como se esperássemos que o
pesadelo passasse. É quando finalmente escuto um choro baixo. Matt abaixa
a cabeça e leva uma mão ao rosto, tentando parar de chorar.
Me levanto de imediato, ignoro a tontura e me sento no chão, ao seu
lado. Deito a cabeça em seu ombro e ele deixa a sua tocar a minha, ainda
chorando. Ofereço a minha mão e ele a aceita, deixando de esconder a dor. E
não devemos esconder a dor. O John se foi e sentiremos sua falta,
provavelmente por toda a vida. A dor existe porque o amor existiu, a amizade
existiu. A dor existe porque John vai deixar saudades e ele só vai deixar
saudades porque vivemos aventuras juntos. Não devemos esconder a dor.
Porque, nesse caso, ela é uma declaração de amor.
John nos diria isso.

— Estão bem mesmo para trabalhar? — Thurman nos pergunta. Matt


e eu mentimos que sim simultaneamente.
Molly está de licença. Pelo tempo que precisar. Thurman sempre foi
muito exigente — quando acordado, e não babando de tanto dormir em sua
sala —, mas nunca uma má pessoa. E ele é engraçado. Tanto que hoje,
enquanto tentamos trabalhar, Thurman tenta nos animar e não dormir. Isso
consiste em contar histórias sobre a sua filha pequena, reclamar da sua esposa
e dizer que com sua "barriga de grávida, gravata vermelha e andar
desleixado" não há mulher que resista ao seu charme.
O expediente é mais exaustivo que o comum sem a Molly. E ainda
mais sabendo que o John não vai buscar Anderson no fim do dia.
O tempo se arrasta, mas chega a hora de aguardar pelo Trio Radiação.
E eles estão atrasados. Meia hora.
Matt e eu, apesar de sem fardas e vestidos para irmos embora, ainda
ajudamos o Thurman a servir os poucos clientes por aqui. Thurman garante
que vai nos pagar o tempo extra em dobro. Enfim, só agradeço por ter como
ocupar a mente.
Estou entregando um pedido quando Matt toca a minha cintura e
indica algo com a cabeça. No canto do Thurman's, está o amigo do
Noah, Sinn. Quando ele sorri para mim, sinto tristeza em seu olhar. É como
se desejasse seus pêsames. Vejo um rapaz loiro sair do banheiro e caminhar
para a sua mesa, secando as mãos nas calças.
Matt e eu caminhamos para a bancada do estabelecimento, eu com a
bandeja em mãos, ele com um bloquinho de notas.
— Não gosto desse pessoal por aqui — Matt resmunga e eu uno as
sobrancelhas, sem compreender. — Não consigo mais ver a mínima graça em
seja lá o que você tem com o Noah. E os amigos dele? Eles não me cheiram a
coisa boa, Chloe, sinceramente.
— Por quê?
— Porque não! — Matt sorri forçadamente. — E caso não se recorde:
John morreu no Purgatorium.
— E o quê? Eles são os culpados agora? — questiono e Matt ri, mas
não me responde. — Não pode acusar as pessoas assim, Matt. — Letterman
não quer nem olhar na minha cara no momento.
Entendo a sua raiva, também a sinto. E muita porque mataram meu
amigo e quero saber quem foi. Só que isso não nos dá o direito de acusar
quem quer que seja. O problema é que eu conheço essa reação do Matt. Já
passei por ela. Já usei dessa fúria para acusar o mundo inteiro por terem me
tirado alguém importante. Então sei que o melhor a fazer é deixá-lo lidar com
ela e com seu luto.
— Não vou discutir com você. Você não gosta deles, eu vou atendê-
los — digo, beijando a sua bochecha, mesmo que ele esteja irritado. Matt não
esboça reação alguma quando me retiro com o bloquinho e a caneta que
estavam na bancada.
E quando dou as costas, Noah está entrando no estabelecimento. Ele
me encara em silêncio. Eu não esperava vê-lo tão cedo. Parte de mim queria
um tempo a mais longe dele. Não o culpo por nada, na verdade... Me culpo.
Afinal, foi graças a minha queda por Noah Hellmeister que fomos ao
Purgatorium no dia da morte do John. Tem um grande "e se?" na minha
mente.
E se não tivéssemos ido ao Purgatorium naquela noite? E se eu jamais
tivesse ido ao maldito lugar na vida? John provavelmente estaria vivo, não é?
Ugh, talvez me culpar seja só parte do luto.
Talvez fosse melhor desviar o olhar e seguir para a mesa dos seus
amigos, mas há algo nos olhos de Noah que me conforta. Ele abre um sorriso
de canto e não há felicidade ali, é como uma pergunta. Quer saber se estou
bem. Apenas sorrio fraco de volta. De algum modo, acho que ele consegue
entender o que eu sinto, não preciso dizer nada.
Nos aproximamos da mesa ao mesmo tempo. Ele se senta ao lado dos
amigos.
— O que desejam? — questiono, apertando o botão da caneta.
— Um sorriso — Sinn diz e eu o encaro. — Mas sei que não é muito
possível agora, então... Só queríamos saber se está tudo bem. Certo, Noah?
Noah está calado enquanto me encara. Uma mão brinca com o
pingente de asas em sua corrente, a outra está na mesa. Como de praxe, ele
está com seus anéis.
— Acho que não nos apresentamos ainda — o loiro me chama. O vi
na noite da corrida, mas nunca conversamos. — Luke. — Ele estende a sua
mão e eu estendo a minha, mas ao contrário do que eu esperava, o cara beija
o dorso da minha mão.
Quando fito Sinn, vejo que ele está analisando Noah conforme Luke
beija a minha mão. E quando eu vejo Hellmeister, eu o percebo se remexer
em algum desconforto. Desvio o olhar e recolho o meu braço.
— Eu estou bem. Na medida do possível.
— A gente pode conversar depois do seu expediente? — Noah
finalmente diz algo. Olho para trás, vendo Matt servir uma mesa. Volto o
olhar para Noah. Algo em meu rosto o responde. — Hm, entendo...
O sino do restaurante ecoa e eu viro o rosto para ele, na esperança de
ser John, como geralmente é. Mas não. Molly não está aqui. Johnny não está
aqui.
É a Brianna. A primeira integrante do Trio Radiação a chegar. E ela
me lança um sorriso maldoso, caminhando em minha direção como se eu
fosse uma vítima.
— Pensei que uniformes existiam — provoca, baixo.
— Bom, será que você estava errada? — ironizo, de imediato. Me
sinto mal por essa rivalidade que ela criou, mas não consigo levar desaforo
para casa sinceramente. Às vezes parece que Brianna Yang quer me fazer de
saco de pancadas para descontar suas frustrações quando precisa e eu não
posso aceitar isso. — Me deixa em paz, Brianna. Por hoje? Consegue? Estou
servindo uma mesa, consegue ver isso?
— Está? Parece que está batendo papo...
— Ela está servindo a mesa, docinho — Luke diz, piscando. — Te
garanto.
Brianna ri e aproxima a boca do meu ouvido.
— Só lembre que você é paga para servir comida e não outras
coisas... — Me surpreendo com o seu nível de maldade. Às vezes não faz
sentido, não tem um contexto, Brianna só quer ser má. E comigo,
principalmente.
— Você também é paga para servir. — A voz de Noah ecoa e todos
nós o encaramos. Ok, agora estou mais surpresa. — Mas não estou te vendo
servir. Está vendo a garota servir, Chloe? — Noah Hellmeister está me
defendendo? — Chloe?
— N-não. — Estou tão confusa que provavelmente meu rosto grita a
minha lerdeza. Brianna sorri duramente para os clientes à mesa e me encara
em seguida.
— Uau... Agora que o seu time diminuiu, você precisa de novas
pessoas pra te defender, não é Chloe? — ela diz. Me viro para ela, sem
acreditar.
— O que disse? — pergunto.
— Bom, você ouviu. O seu time diminuiu e você arranjou pessoas
novas...
Quando vejo a minha mão está contra o rosto da garota. A minha mão
arde, ela formiga como nunca, vermelha. Vermelha como a marca dos meus
dedos no rosto de Brianna. Estou ofegante e meus olhos estão marejados
porque ela falou do John. Quem ela pensa que é?
Todo o restaurante está nos olhando. E está aí, fúria. Finalmente.
Finalmente sinto fúria. Porque se entendi direito, Brianna ironizou a morte do
meu amigo. E isso eu não consigo tolerar.
Vejo Thurman sair de sua sala, confuso. Matt está me encarando com
as sobrancelhas erguidas.
Todos estão em silêncio. Brianna tem a mão em sua bochecha
estapeada, me observando como se eu fosse um monstro. Abro e fecho a
mão, surpresa com a força que possuo.
Nunca pensei que chegaria a esse ponto.
Nunca briguei com outra pessoa desse jeito. Ainda mais uma garota.
Não sei ao certo se compreendo o que fiz. Eu só... Fiz. Eu bati em
Brianna. Céus, eu estou fodida, não é?
Eu bati na minha colega no fim do meu turno. Eu bati na garota.
Caralho...
— Você não... — ela começa. — Qual o seu problema?
Espera... Ela está falando sério?
— O MEU problema? Ah, não — digo, rindo. Ah, quer saber?
Sinceramente, já estou na merda mesmo. Não sei se me importo em fazer
cena ou não na frente de todo mundo. — Agora você vai me escutar.

Estava tão furiosa com a Brianna que surtei. Todas as lágrimas e


palavras escaparam na frente de todo mundo. E como se ódio fosse um
entorpecente, eu senti prazer no desabafo, muito prazer. Sinto a alma mais
leve, mas disse tanto que não lembro de um quinto do total.
O Thurman acabou nos chamando para a sala, como um diretor
enfurecido de uma escola. Ele não me demitiu pelo tapa na frente dos
clientes, na verdade, ele me defendeu ao brigar com a Brianna. Quando saí da
sala dele, Noah e seus amigos não estavam ali.
Deixei Matt em casa e acabei em frente ao Purgatorium. Minto, na
verdade, atrás dele. Eu desconhecia os fundos do lugar até o assassinato do
John. O acesso para a entrada dos fundos do estabelecimento é um pouco
diferente, bem deserto. É onde estou, ainda.
Estou sentada no capô da Shelly. Não acho que ela se importa. Tem
um flask de vodca na minha mão e eu não sei como vou dirigir de volta para
casa. Só consigo encarar fixamente as fitas amarelas que ainda protegem a
cena do crime, a poucos metros de mim.
Respiro fundo e abro o flask, o levando à boca. O líquido rasga por
minha garganta.
— Sinn me ligou e disse que tinha a visto por aqui. — Reconheço a
voz de Noah, mas não o encaro. — E aqui estou.
— Não estou aqui por você.
— Eu sei. Está aqui pelo seu amigo. — Noah se aproxima. Ele está de
terno. Inacreditável.
— Givenchy? Yves Saint Laurent?
— Armani. — Rio da sua fala, bebendo um pouco mais. — Está
chateada comigo? — Nego.
— Por que o meu amigo morreu no seu estabelecimento? Não. —
Noah abraça o próprio corpo, se sentando sobre a minha garota. A Shelly
também não se importa. — Eu sou o seu álibi, Noah. Estava comigo na festa
quase que o tempo todo. Não matou John. Mas ainda assim, por algum
motivo, te ter por perto é um pouco...
— Difícil? — questiona. Confirmo. — Quer eu saia?
— Infelizmente não. Você me confunde, Hellmeister. Sinto que
deveria te mandar ir embora em toda oportunidade possível. Mas sempre faço
o oposto.
Ficamos em silêncio. Nós dois analisamos a cena do crime. Ofereço o
flask sem fitá-lo, e Noah aceita, o virando em um longo gole.
— Não precisa me olhar, só me ouvir — ele diz. Obedeço,
atentamente. — Não faço ideia de quem está por trás desse... Desse ataque. A
polícia está no caso, espero que ela encontre respostas, mas caso ela não
encontre... Eu te prometo, Chloe, eu vou descobrir quem fez isso com o seu
amigo.
Sinto verdade em suas palavras e finalmente o encaro. Vejo seu perfil,
seu olhar está preso na cena do crime. Ele parece tão furioso quanto eu.
Talvez o elo inexplicável entre nós dois, duas pessoas que mal se conhecem,
seja a raiva. Sinto que, assim como eu, Noah tem muita raiva guardada em
seu peito.
Raiva. Pensar nisso me faz refletir por um segundo. E de repente, todo
o sentimento que lutei para não demonstrar parece crescer infinitamente. A
dor psicológica se torna quase que uma dor física, insuportável. Ela
transborda em lágrimas pelos meus olhos.
Estou tentando prender o choro há tempos. Não acho que consigo
mais. É tanta fúria e dor que preciso chorar.
Sabe a sensação de que não importa para onde seguimos, o caos nos
segue? E sei que a vida é complicada, que sempre existem problemas, não
existe a plena felicidade... Eu sei disso tudo. Sei que dizem que a vida é como
o mar e que problemas vêm em ondas. Mas as minhas ondas parecem
enormes, como se eu fosse sempre o único alvo de um tsunami agressivo.
John está morto.
Deixo um suspiro pesado escapar e Noah me encara, uma ruga de
preocupação entre as suas sobrancelhas. Meu queixo está tremendo, nada sai
por minha boca, meus olhos ardem e tem um maldito nó na minha garganta
que não me deixa em paz. Porra.
Não acho que consigo suportar.
Fácil assim, estou chorando. Na verdade, nesse exato segundo, estou
soluçando em dor. Meu amigo morreu, eu não consigo acreditar, eu não
consigo... Não. Não parece real.
Apoio a cabeça no ombro de Noah, tampando o rosto com as duas
mãos. Sei que não somos tão próximos assim ainda, mas eu preciso me apoiar
em algo nesse segundo, preciso pra cacete. Sei também que Noah não é fã
desse tipo de intimidade.
Não espero que ele me abrace, eu só quero que ele fique ali um
pouco, que qualquer um fique um pouco, só um pouco. Não espero por nada.
E é por isso que me surpreendo no momento que seu braço me envolve pela
cintura.
Pelo menos tenho um lugar para desabar essa noite. Pelo menos por
essa noite.
Deixei Chloe em casa naquela noite. Ela não estava mais chorando,
mas parecia anestesiada. Não gostei disso.
Subi com a ruivinha até o seu apartamento, mas não entrei. Ela estava
bêbada e eu me ofereci para ajudá-la a se deitar, mas Mitchell não quis. Ela
me deu um beijo na bochecha, fechou a porta e assim que a porta se fechou, a
ouvi chorar.
Eu não a chamei de meu anjo uma vez sequer. Não queria piorar as
coisas, Chloe estava mal e odeia isso, certo? Ela não gosta de ser chamada
assim. Não tinha porquê provocar a garota num momento desses.
Caminhei um pouco pelas ruas, coisa que geralmente não faço. Hell's
Kitchen é muito silenciosa pela noite, muito escura. É um lado de Nova York
que poucos conhecem.
Ninguém gosta ou fala do lado mais "feio" da cidade. Nova York é
conhecida por ser o lugar onde os contos de fadas acontecem. Lugares como
Hell's Kitchen destroem o imaginativo da sociedade. Mas sinceramente? Esse
lugar é muito melhor do que o resto da Big Apple. Me faz pensar. Me permite
pensar. Talvez porque o único barulho vem da minha mente.
Hoje, entretanto, estou literalmente no Inferno. As coisas por aqui
estão movimentadas. Acho que é hora de botar ordem na casa ou algo assim.
Kold está conversando com alguns demônios guerreiros. Perguntando
sobre treinamentos e afins. Ela acha que vamos acabar numa guerra contra os
rebeldes. Kold acha que a morte de John foi um prenúncio de confronto.
Sinn está interrogando o meu irmão sobre o trabalho que ele fez em
minha ausência. E o meu irmão, Theo, basicamente não fez porra
nenhuma. Novidade.
Luke está analisando o livro da Chloe que eu pedi. Pedi também que
analisasse os do John. Os livros são como o destino. Tudo acaba sendo
escrito na medida em que vai acontecendo. Cada ser humano é uma história
única, a humanidade é uma série de livros intensa e interessante.
Infelizmente, não tenho muito tempo para ler no momento.
Tudo o que Luke achou no fim da história do John é que... Bem, ele
foi morto por um demônio rebelde. E o nome do maldito. Chace. É tudo o
que temos. Não sabemos quem deu as ordens, não sabemos nada demais...
Não somos tão oniscientes quanto acham que somos. Nossos poderes
são limitados. Nossa imortalidade, por exemplo, ela é limitada. Existem
armas capazes de nos matar, armas que não só estão em nossas mãos, mas em
posse dos rebeldes. Tanto que aconteceu o que aconteceu no apartamento da
Kold e se eu tivesse chegado tarde demais... Bem, Kold estaria morta.
Me matar é um muito mais difícil do que a Kold, o Sinn e o Luke,
anjos e demônios... Rumores são de que há somente uma arma capaz de
realizar tamanha arte.
E os rumores estão certos.
Sempre soube disso. Afinal, a arma está comigo. Mas não gosto de
pensar que alguém pode, um dia, consegui-la e me matar. É uma lança, feita
de um metal avermelhado desconhecido por humanos, chamamos de
Escarlatum, o único material capaz de deter o Diabo. Enfim, a lança está
em minha posse e muito bem escondida. Muito bem escondida.
Não somos totalmente imortais. Mas a crença de que somos é o que
nos torna terrivelmente fortes. É o que faz com que pensem que somos
superiores. Quando acreditam tanto em nosso poder, esse poder se torna
ainda mais real.
De qualquer modo, confio apenas em Kold a informação de onde a
arma está. Sinn é ardiloso. Ele é responsável pelos pecados, afinal. Já Luke
não leva as coisas a sério, gosta de brincar e trapacear, uma informação
dessas nas mãos dele não me parece algo bom.
Koldelium é Koldelium. Confio a minha vida a ela e a ela somente.
— No que está pensando? — Kold se senta ao meu lado, na escadaria
do Inferno. — Deixe-me adivinhar: uma ruiva, não muito alta,
completamente humana...
— Eu estava pensando em você, na verdade — confesso. A morena
franze o cenho. — E que posso morrer com uma certa lança contra o meu
peito. — Kold rola os olhos. — Acha que algum dia os rebeldes vão
encontrar a arma?
— Impossível — ela diz, de imediato. — Eles nem sabem ao certo
que arma é. Estão caçando às cegas. — A encaro. Koldelium me olha de
volta. Eu deixo um sorriso escapar. — Noah Samael Hellmeister está
sorrindo para mim?!
— Cala a boca — digo, rindo.
— A que devo a honra?
— A tudo, Koldelium. Merece muito mais que meu sorriso. Por tudo
— respondo, perdendo o sorriso. E no instante seguinte Kold gargalha alto.
— Qual a piada?
— A humana. Está te transformando em um humano também. —
Rolo os olhos, me levantando. Kold obviamente me segue Inferno adentro,
me abraçando pelo pescoço. — Qual o próximo passo, Noah? Vai arranjar
um emprego? Uhhh... Já sei, vai fazer faculdade...
Mereço.

O maldito demônio ainda está na Terra. Chace estava em um Strip


Club agora há pouco. Patético. Ele entra em seu carro. Kold e eu estamos
atentos a cada movimento, do outro lado da rua.
O cara não precisa dirigir, ele quer. O que eu entendo, gosto de
dirigir. Mas ele parece querer se fingir de humano.
Então Kold e eu entramos no carro. Luke está sentado ao fundo dele,
completamente largado. Sinn está ao seu lado, admirando seu próprio reflexo
na adaga. Dirijo pela cidade, seguindo o filho da puta. Koldelium está
retocando o batom, como se isso fosse necessário.
Paramos quando chegamos ao destino final do desgraçado. Kold se
ajeita sobre o banco, prestes a sair, mas eu seguro o seu pulso. Olho para o
retrovisor para Sinn e ele sabe o porquê. O tal Chace acaba de entrar num
prédio conhecido.
— O que foi? — Luke questiona, parecendo entediado.
— Chloe mora aqui— Sinn diz. Nos encaramos por um instante.
Acho que todos sabem que isso dificilmente é uma coincidência. E acho que
ninguém faz ideia de que porra está acontecendo. — Então, como faremos
isso?
Kold e eu nos entreolhamos e então viramos o rosto para o banco de
trás. Luke não parece ter ideia.
— Gosto da abordagem "xícara de açúcar" — Kold se pronuncia. A
fito em negação e Luke e Sinn se entreolham. Não acredito que faremos isso.
— Vamos, Noah, vai ser divertido...
— Kold, não — resmungo. — De jeito nenh...
Então em questão de segundos, Koldelium some do carro. Me xingo
mentalmente. Ela está em frente ao apartamento do cara. Kold bate na porta e
ele atende.
— Boa noite. — Ela sorri, irônica. Chace a reconhece de imediato,
andando para trás. — Sou a vizinha do 206. — Ela dá um passo a frente. —
Gostaria de saber se você tem uma xícara de açúcar?
— O que...? — Ele anda para trás e bate as suas costas com o Sinn,
que se materializou ali. Chace olha para o sofá e Luke está brincando de jogar
uma xícara para cima.
Eu estou contra a parede da sala, sem acreditar nos idiotas que tenho
como família.
— Isso perdeu um pouco da graça — Sinn observa. Luke
acidentalmente deixa a xícara cair ao chão.
— Ops! — O loiro finge se importar. Kold parece se divertir.
Patéticos.
— Viemos em paz, por ora — começo, explicando ao Chace, o tal
demônio. — A minha ideia era invadir a sua casa e bater o seu pescoço
contra a parede. Mas enfim, Koldelium gosta de piadinhas. — Gesticulo com
as mãos, me aproximando dele. — Fale.
— Falar o quê? — Ele se faz de bobo por um segundo e Kold fecha a
porta atrás de si. — Ah, sim, espera... Quem tirou o coração do amiguinho da
Chloe? Não foi proposital, mas como ele estava do lado de fora do
Purgatorium, perto de mim... Juntei o útil ao agradável...
Kold estala os dedos, um a um. O cara vira a cabeça para ela. Ele
finge que não está com medo, mas eu sinto que está. E é muito
compreensível.
Sinn faz sua adaga girar no ar e a pega de volta. Eu trinco os dentes,
em silêncio.
— Uau... — Luke se levanta, rindo. — Que sombrios somos — ele
ironiza. — Muito assustadores: o senhor faquinha. — O loiro aponta para
Sinn. — A senhora xícara-de-açúcar. — Agora para Kold. — O senhor "eu
sou o Diabo". E no fim eu sou o patético... — Há sarcasmo por toda a sua
fala. — Vamos direto ao ponto, sim? — Luke anda em direção ao demônio,
um sorriso maldoso em seus lábios. — Por que não nos diz porque matou o
garoto?
— Não é o garoto que nos importa — Chace diz. Ele me encara e eu
uno as sobrancelhas, começando a entender o que ele quer dizer.
— É como você o matou — deduzo e o maldito sorri. — É sobre o
coração. Vocês sabem o que eu quero.
— Nós não vamos permitir que possa sentir essa merda que tem em
seu peito — Chace diz.
— Por quê? — Luke questiona, lerdo como sempre. Todos me
analisam, de imediato.
— Porque é a única coisa que o Noah procura — Sinn explica. — É a
única coisa que falta. É a única coisa que o previne de ter tudo e no segundo
em que ele tiver tudo...
— Ele vai ser praticamente invencível — Chace continua. — O que
torna Angeline, a Rainha do Céu, uma criatura superior e mais poderosa que
Noah... — O demônio anda em minha direção. — É a capacidade que ela
possui de sentir seu próprio coração bater. Não sei ao certo o porquê disso,
mas não é só um capricho do Noah. É questão de força. Sentir-se vivo está
ligado ao poder. Estou errado? — Nego, deixando um sorriso escapar. — Faz
alguma ideia do porquê? Por que o coração te forneceria tanto poder?
— Não quero o porquê. Quero o poder — retruco.
— Deveria. Eu procuraria o porquê.
— É por causa do excesso de porquês que limitações e amarras são
criadas e a vida simplesmente não é vivida. Sou prático. Não quero saber o
motivo, eu quero a sentir a porra do coração batendo e a merda do poder
fluindo por todo o meu ser, como eu já senti um dia. — Percebo que o tom da
minha voz está um pouco mais agressivo que o comum e as minhas unhas
estão cravadas contra as palmas das minhas mãos.
— Seus olhos estão vermelhos, Majestade — Chace diz, sorrindo. —
Suas íris são cor de sangue pulsante nesse momento. Conseguimos sentir o
tamanho da sua fúria, da sua ganância... Você é poderoso, Noah. Mas não é
nobre. Não o suficiente para ter tanto poder. Não o suficiente para sentar-se
no trono do Reino do Inferno. Você não é suficiente.
Rio nasalado. Como ousa?
Minhas mãos vão ao seu pescoço e eu pressiono a sua carne com toda
a força, o erguendo do chão.
— Noah, não! — Luke ordena, e não lhe dou ouvidos.
O demônio está rindo conforme meus dedos apertam contra a sua
pele. O ar está lhe faltando, ele está se tornando cinza, mas há um sorriso
doentio nos seus lábios. Ira corre o meu corpo como sangue e eu foco nos
seus olhos. Me enxergo neles, enxergo mesmo.
Gosto de como me sinto. Gosto da sensação de fazê-lo engolir suas
palavras. Sou o suficiente. Tão suficiente que sua vida está em minhas mãos.
— NOAH, CHEGA! — Sinn grita e eu afrouxo a mão ao redor do
pescoço do maldito, que cai ao chão. O encaro em desprezo.
— Você não é esse cara — Kold diz. — Não mais, lembra? É melhor
que isso. — Tento controlar a minha respiração, meu tronco subindo e
descendo conforme ofego. Abro e fecho as mãos vermelhas. — Você me
prometeu. Só mate se necessário. Ele não é uma ameaça. Seja superior.
Então a risada do maldito ecoa. Todos o encaram. O filho da puta tem
as mãos ao redor do seu pescoço, as marcas dos meus dedos em sua pele.
— Ele não merece a posição que ocupa — Chace caçoa e eu sinto a
fúria retornar. Ódio pulsa em cada parte do meu corpo e eu cerro os punhos.
— Ele não valoriza o que já tem. — Seu olhar me atinge. — Você tem poder
para ser um bom governante, mas quer todo o poder possível. E se der um
pouco mais. Quer tudo. E não se importa em como vai conseguir tudo, não é
Noah? Não se importa com os porquês. Só se importa com os fins.
Me aproximo, me agachando o suficiente para que eu possa encarar
seu rosto melhor. Deixo um sorriso escapar.
— E há algo de errado em querer tudo? — pergunto. O demônio sorri
de volta, mas não gosto do modo como o faz. Ele se considera superior. —
Essa conversa já levou tempo demais, Chace. Vocês, rebeldes, quiseram me
dar um recado: que eu nunca vou conseguir o meu poder, vocês acham que
vão me parar. Pode demorar o tempo que for, mas vocês não vão me impedir
de ter o que eu quero. Ninguém vai. — Cerro os olhos, buscando se ele
compreendeu exatamente o que eu quis dizer. Me coloco de pé, por fim,
caminhando pelo apartamento. — Agora nos diga o que a Chloe tem a ver
com tudo isso. Ou vamos forçá-lo a dizer.
— É tão óbvio — Chace diz, aos risos. Então se deita ao chão, fitando
o teto. Percebo quando Kold leva a mão ao cós da calça e tira a sua faca dali.
Sinn aperta contra sua adaga, Luke olha ao redor e eu também sinto que algo
está errado. Escuto corações. Muitos. Não estamos sozinhos, nunca
estivemos. — A humana é a resposta.
E antes que qualquer outra pergunta possa ser feita, a porta do
apartamento é arrombada e uma janela é quebrada atrás de mim. Por cada
uma delas, um demônio surge. E então mais aparecem, saindo dos cômodos
da casa.
Era uma armadilha e estávamos tão cegos pela discussão, que fomos
pateticamente descuidados. Eles nos esperavam aqui. E queriam que eu
recebesse o recado, a provocação, queriam marcar o início da guerra.
— Merda — murmuro.
Luke ergue o dedo, como se pedisse permissão para falar. Sem
resposta, ele diz mesmo assim:
— Temos visitas.

A luta está durando mais tempo do que deveria. Kold e Sinn dividem
um mesmo oponente. Koldelium tenta acertar um chute alto, girando seu
corpo. O cara desvia, mas não consegue fugir da adaga de Sinn. A faca é
cravada no pescoço do demônio, que cai cinza aos pés de Kold. Kold não tem
tempo para processar a morte, porque há um outro oponente atrás dela. Ela
inicia outra batalha. Sinn também encontra um inimigo logo atrás de si.
Luke está expondo suas asas em uma luta acima do chão contra um
demônio. Os dois estão se atracando de um jeito furioso. O meu amigo
domina a luta completamente. Há violência até no ar.
Termino de enfiar a própria faca de um demônio contra ele mesmo,
quando me viro e encontro Chace prestes a tentar acertar um soco na minha
cara, mesmo sem forças. Obviamente, ele não consegue e eu seguro o seu
pescoço com força.
Estou firmando os meus dedos contra o pescoço de Chace. Poderia
fazer isso o dia todo. O demônio luta para sair do meu controle e eu aperto
com força o seu pescoço, demandando que me explique exatamente como
Chloe é a resposta.
— Uma última chance — digo. Afrouxo a mão ao redor do seu
pescoço. — Como Chloe é a resposta?
Ele ri com o pouco de ar que lhe resta.
É quando sinto uma faca ser fincada em minhas costas e grunho de
ódio. Dói, apesar de ser incapaz de me matar. Então outro demônio arrasta a
faca levemente para baixo. Caio ao chão e apoio as mãos no mesmo, fazendo
força para me levantar.
É quando ergo o olhar para a porta. O amigo da Chloe está ali. Não
sei que porra o cara faz aqui, mas Matt assiste a cena de olhos arregalados e
tudo o que eu consigo pensar é: "ótimo, fodeu, um humano está vendo toda
essa merda".
Todavia, Matt surpreende em revelar asas incrivelmente brancas e
voar na direção do demônio que me atingiu.
Todos os demônios estão mortos e espalhados pelo apartamento,
inclusive Chace. A cena é macabra. Sinn disse que vai dar um jeito nos
corpos e eu sinceramente não faço ideia de como isso vai acontecer, e não me
importo.
Luke trancou o apartamento por dentro. Uma vizinha chegou a
perguntar se tudo estava bem e ele lhe deu seu melhor sorriso pela pequena
brecha da porta, dizendo que uma noite divertida estava acontecendo. Acho
que a garota cogitou pedir para entrar, mas ainda bem que ela não o fez.
Estou sentado ao chão, os pensamentos a mil. Kold me fez tirar o
terno e a camisa para encarar a cicatrização do ferimento. Em questão de dois
minutos, três no máximo, o ferimento estava quase fechado. Então a morena
anda até Sinn e Luke e os três iniciam uma conversa.
— Como você está? — Matt me pergunta. Eu o encaro, um tanto
quanto curioso.
— Você é um anjo — digo.
— Obrigado. — Matthew ri e leva a mão ao peito.
— Sem ironias, você realmente é um anjo.
— É, Noah. E você é o Diabo. — Uno as sobrancelhas, confuso. —
Quando o vi no Purgatorium, eu não te reconheci. Porque eu nunca tinha te
visto, só sabia o seu nome. Então a Chloe descobriu como você se
chamava: Noah Hellmeister. E eu ouvi histórias o suficiente para te querer
longe dela.
O analiso atentamente, pensando em qual pergunta fazer primeiro.
Matt se senta num sofá, a dois metros de mim. Tem um corpo perto do seu
pé, mas ele não parece se importar. Koldelium se vira para nós dois, Sinn e
Luke parecem tão atentos quanto ela ao que conversamos.
— Como chegou aqui? — pergunto, me pondo de pé. Pego a minha
camisa social do chão e a visto, passando a fechar os botões de baixo para
cima.
— Estava de olho no prédio. Por medo de algo estranho acontecer
com a Chloe, como aconteceu com o John. Então eu o vi chegar e achei que
vocês fariam alguma merda perto da minha amiga e eu realmente não
toleraria isso. Mas não foi exatamente o que aconteceu. A sua sorte é que a
Chloe mora dois andares para cima. Não deve ter escutado nada. A não ser
que seja super especial.
— E ela é? Super especial?
— Pergunta de uma vez, Noah! Você quer saber se ela é humana —
Matthew devolve de imediato e eu solto o ar pelas narinas, terminando de
fechar a camiseta em meu corpo. Dobro as mangas da camiseta social. — O
que aconteceu com o John?
— Estou investigando. Fiz uma pergunta, você não respondeu.
— Você fez a pergunta errada, quer saber se ela é humana. E olha, eu
posso te responder que porra você quiser, sob duas condições. — Ele ergue o
indicador, ignorando a minha paciência. — A primeira é que seja
completamente honesto comigo quanto a tudo que sabe sobre a morte do
John. E a segunda é que independente do que for dito aqui hoje, Chloe não só
não vai saber de nada, como você nunca, sob hipótese alguma, vai voltar a se
aproximar dela.
— Ele não vai prometer isso — Kold fala por mim, rindo nasalado.
— Não conversei com você, demônio — Matt retruca, sem encará-la.
— Falei com ele. — Então aponta para mim.
— E ele, ainda assim, não vai te prometer isso — Luke reitera.
Eu e Matt nos encaramos o tempo inteiro. O anjo procura qualquer
tipo de vacilo que indique eu aceitaria esse acordo, mas não... Um acordo
com o Diabo não é tão simples. Ele deixa escapar um sorriso, como se
dissesse "é, eu tentei". E se levanta, caminhando em minha direção.
— Então vou reformular a proposta — fala, perto de mim. — Chloe
sob hipótese alguma vai saber do que aconteceu aqui ou sobre mim. E eu sei
que você é capaz de manter esse segredo, porque você quer que isso seja
mantido em segredo. Ou vai chegar nela e dizer "oi, eu sou o Diabo e seu
melhor amigo é um anjo"?
Ele está certo.
— Eu poderia te matar — o lembro.
— Mas então já teria feito. — Matt está sorrindo como nunca. —
Você sabe que pode matar demônios à vontade, mas não quer uma briga com
o Céu por ter matado um anjo, não é? Sabe como nós, do Céu, somos unidos.
Espero que prossiga a sua fala, sorrindo de canto. Mas não porque
estou feliz. Não, não mesmo. Estou sorrindo porque quero matar esse filho da
puta. E ele está certo. De novo.
— O que quer para se afastar dela? — Matt questiona.
— Antes de morrer, esse cara — digo e aponto para Chace, o
demônio morto ao chão —, disse que Chloe era a resposta para uma pergunta
que me faço há séculos. Não vou me afastar dela. Não há nada nesse mundo
que consiga me afastar de Chloe Mitchell nesse momento.
— "Pergunta"... Você está falando do seu coração? — Matthew
arqueia a sobrancelha. Ele sabe de muito mais do que eu imaginava. — A
história é a seguinte, Noah: fui designado para proteger e cuidar da Chloe até
que o momento certo se aproximasse.
— Momento certo do quê? — Luke questiona, se aproximando.
— De ela cumprir seu destino — Matt responde e passa a andar pela
sala. Sinn e Kold se aproximam do sofá, se jogando sobre ele. Kold bate o pé
no corpo a sua frente, achando graça de como ele se mexe. — Eu a
acompanhei de longe por um bom tempo depois que o pai dela morreu. O
problema é que com o passar dos anos, Chloe foi passando por coisas que...
Enfim... Não pude protegê-la de tudo. Ela sofreu bastante, mas é forte pra
cacete, como deve ter percebido. — Matthew chega à janela do apartamento,
fitando os resquícios de vidro por ali e pelo chão. — E eu sabia que
o momento certo estava chegando. Então eu decidi me revelar a ela como um
humano qualquer e tentar criar alguma amizade.
— E você se envolveu — Sinn observa. — Não só com a Chloe, mas
com os amigos dela, com a vida da cidade...
— Gosto de ser humano... E de ser um pouco errado — Matthew
confessa. — E amo a Chloe com todo o meu ser. Como amigo. — Ele me
olha, como se quisesse me deixar claro isso. — Acho que já deve ter
percebido que eu não curto mulheres.
— Certo. Blá, blá, blá, “Eu sou o Matt e brinco de ser humano”...
Ninguém liga para o que gosta de fazer ou quem chupa ao fim do dia, está
bem?.— Kold é direta — Que momento é esse que você tanto fala, garoto?
— Não sei ao certo. — Matthew me encara. — O que me torna pouco
útil. Mas sei boa parte da história da Chloe. Sei o que Chloe é. E se quer
saber, Noah, mesmo se eu soubesse o que a missão da Mitchell tem a ver com
contigo, eu não te diria. — Trinco os dentes, andando em sua direção. — Não
é nada contra você. É a favor dela. Todavia, se quiser saber sobre o quê ela é,
não vejo por quê não dizer...
Por algum motivo, não sinto a mínima vontade de matar Matthew, por
mais que ele me irrite. E se ele não pode me dizer tudo, vou tentar conseguir
o máximo de informações possíveis sobre Chloe Mitchell.
— Comece a falar — ordeno.

Onze da noite. Todos foram para casa, menos eu. Matthew percebeu
para onde eu iria quando segui para o elevador.
— Chloe é parte de mim, Noah — o anjo repete em alto e bom som o
que me disse dentro do apartamento daquele demônio. Eu me viro para Matt,
no corredor. — Ela expressa o amor pela vida em seus mínimos
detalhes, é provavelmente a melhor pessoa que conheci. Então, eu não sei se
há alguma bondade nesse seu coração de ferro, mas Chloe já sofreu mais do
que você imagina e se houver a mínima chance de se afastar dela antes que
essa garota se despedace por completo, eu espero que pegue para si.
Sei o que Chloe é. Sei boa parte da sua história. E estou mais confuso
do que nunca. O anjo está me encarando. Penso em respondê-lo, mas não sei
o que dizer. Assim, Matt segue para a janela ao fim do corredor e a abre,
tendo acesso às escadas de incêndio. Ele vai embora.
Fico parado por um tempo.
Até que lembro que sei para onde ir. Para onde quero ir.
Então de repente, estou em frente à porta da casa, da casa dela. Bato
duas vezes. Não sei se ela vai abrir, está tarde... Mas por algum motivo,
depois de ouvir o conto de fadas deturpado que foi a sua origem, preciso vê-
la. A demora para abrirem a porta me incomoda e bato novamente. Espero,
ansioso. Fecho os olhos, tentando vê-la e saber se ela está acordada, então ela
finalmente abre a porta.
— Hm... Noah? — questiona e eu abro os olhos, a encarando. Chloe
veste uma regata branca e calças cinzas quadriculadas e folgadas. Seu cabelo
está preso num coque desleixado. Não há maquiagem alguma em seu rosto,
vejo perfeitamente sardas em suas bochechas. Noto pela primeira vez. Ela
segura a porta em uma brecha mínima, sem me deixar entrar. — O que está
fazendo aqui? E... De olhos fechados...?
— Eu quis te ver.
— A essa hora? — Arqueia a sobrancelha. — Eu te perguntaria como
subiu, mas o porteiro é inútil e possivelmente te deixou passar, então... —
Uau. Ela está falando muito rápido. — Enfim. Descobriu algo sobre a morte
do John, foi isso?
— É. Digo, não. — Fito os seus olhos e acabo por desviar o olhar. Por
que a voz de Matthew dizendo para me afastar parece se repetir em minha
mente? E por que cogito isso? E por que fui impulsivo a ponto de parar em
sua porta? — Não consigo dormir por causa dessa confusão toda — confesso.
Não estou mentindo. Ok, não totalmente. Não me sinto cansado, não preciso
dormir. Não durmo direito há séculos. Não é por causa do John.
Não sei. Eu não sei porque estou aqui. Não faço a mínima ideia.
Chloe une as sobrancelhas por um segundo. Ela opta, por fim, por
abrir a sua casa e me ceder a passagem. Hesitante, entro em seu apartamento
pela primeira vez, mas já o conheço pelas duas ou três vezes que minha
mente me levou à ruivinha. Escuto a porta se fechar e analiso o lugar.
— Sinta-se à vontade — Chloe diz, soa sem jeito.
A cozinha americana pequena é integrada à sala de estar, também
minúscula. A sala é ligada à varanda por uma porta dupla, que dá acesso à
escada de incêndios externa. Tem um corredor pequeno do outro lado da sala,
que garante a passagem para o que eu acredito ser a suíte. E é isso. Seu
apartamento é um pouco maior que o meu quarto. Tem um telefone na
bancada da cozinha, acho que ela acabou de usá-lo. Ele é cinza e grande, sem
fio.
— Como está, meu anjo? — pergunto, realmente interessado. Me
sento ao sofá e Chloe pega o telefone na bancada da cozinha, andando em
minha direção.
— Sem conseguir dormir. Como você — a ruiva confessa. Sorrio
fraco e ela se senta ao meu lado, deixando o telefone na mesa. — Pensei que
chamaria a Kold se precisasse conversar, vocês são muito amigos, não são?
— É... Mas eu só pensei em você — respondo. Chloe me analisa. Me
viro para ela. — O que pensa de mim?
Ela ri.
— Como assim? Do nada isso?
— "Do nada" o quê?
— Do nada essa pergunta.
— Chloe... — Rio nasalado. — O que pensa de mim?
Ela parece pensar por um instante.
— O que quer dizer?
— O que pensa de mim, Chloe? — Insisto na pergunta, ansioso por
uma resposta. Ela ainda parece pensar, mas mantém seu olhar conectado ao
meu.
— Noah, eu não...
— Vamos, seja sincera, meu anjo. Não tenha pena de me machucar.
Você não vai me ferir.
Ela parece refletir sobre as minhas palavras. A ruiva respira fundo,
desviando o olhar por um instante, como se pensasse por onde começar.
— Bom... Acho que... Hm... Penso que é um garoto perdido. Digo...
Quer o mundo, mas não sabe como tê-lo. Bloqueia as suas emoções, se veste
em ternos caros... — Chloe indica a roupa que visto. — Aliás, seu terno... Ele
está... — Ela leva as mãos as suas costas. — Ele está rasgado. — Merda... A
facada. Não sei como explicar a situação. — Você se cortou??
— Ugh, não... — Penso rápido em uma mentira. — O Luke, meu
amigo, se meteu em uma briga no bar. Eu o ajudei a se defender, ele se
cortou. — Percebo que a ruiva ergue as sobrancelhas, preocupada, então logo
me adianto: — Luke passa bem. Nós cuidamos do ferimento, não atingiu
nada grave, foi um corte superficial e ele já está novo em folha. Mas... Hm...
como ele ia para um evento inadiável e especial, nós trocamos de terno e
camiseta. — Me limito em dizer. A ruivinha me analisa. A minha mentira
parece fazê-la refletir por um instante. — A briga não foi tão feia assim. Não
quero falar muito sobre isso, pois foi algo pessoal.
Chloe morde o lábio inferior, voltando ao assunto anterior ao perceber
que eu não me estenderia além daquilo. Não é uma explicação tão boa. Na
verdade, é um tanto quanto péssima. Talvez, pela primeira vez em muito
tempo, eu esteja falhando em mentir.
— Ok... — Ela pisca algumas vezes. — Continuando... Você tem
todo esse ar misterioso... Não sei, Noah, você sustenta o ar bad boy trilionário
que conhece o universo na palma da sua mão e caga para tudo e todos, mas
eu sinto que isso não lhe pertence.
— Resumindo...?
— Penso que é um garoto perdido. — Eu rio nasalado, aceitando a
sua sinceridade. Gosto de quem diz a verdade.
— E percebeu tudo isso de mim em tão pouco tempo?
— Você me conhece mais do que deveria, Noah, e me conhece há
muito pouco tempo. Precisei te estudar de volta para te conhecer melhor, se
quer saber. Preciso prestar atenção em todo mísero detalhe seu, porque sinto
que me conhece melhor do que ninguém, o que é bizarro. E para falar a
verdade, Noah... — Ela ri, sem humor algum. — Acho que quando olho nos
seus olhos, é quase como se eu estivesse olhando um espelho. Sinto que
somos mais parecidos do que imaginamos. Sinto que você é um garoto
perdido e eu sou uma garota perdida.
Esse é o problema, sabe? Ela está fodidamente certa.
Chloe e eu nos conhecemos há pouco tempo e eu sinto que temos um
elo. E ambos estamos perdidos. Bem, no meu caso, estou sempre
perdido, sou perdido. Chloe apenas está. Outro fato um tanto quanto curioso
é que ela nos coloca como iguais, mas nisso eu discordo. Chloe gosta de
adrenalina, ela gosta de loucuras, talvez de praticar o errado... Mas se pinta
como um monstro que ela não é. Enquanto eu... Eu sou um monstro.
Eu sou o Diabo.
Sou tão ruim que sei que Matthew está certo e que posso acabar
partindo o coração dela. Só que não quero me afastar. Principalmente, porque
quero sentir o meu coração bater outra vez. Eu quero o poder. Mas há uma
parte pequena, menor, mas ainda está aqui, que se sente envolvida pelo
enigma Chloe Mitchell e quer desvendá-lo por completo, cada pedacinho. De
qualquer modo, as duas partes comprovam o puta egoísta que sou e sempre
fui.
Não sei qual a missão da Chloe e que porra ela tem a ver comigo, mas
vou ficar por perto até descobrir.
— Noah... E você... O que acha de mim? — Chloe questiona e eu
ergo os olhos para ela. Suas íris negras brilham como se refletissem a Lua.
— Acho que você se subestima, meu anjo. Você está dez mil vezes
acima do que qualquer garota perdida. — Chloe está atenta a cada palavra,
como se sua vida dependesse disso. — Eu acho que você não é uma garota,
mas uma mulher. E não é perdida, não... Pode estar no momento, mas um dia
isso vai passar, sabe? Você sabe exatamente quem você é, só falta admitir
isso para si mesma. Você curte o caos, meu anjo, eu sei disso. Somos iguais
nesse quesito. Procuramos prazer em sexo casual, buscamos o pecado como
se ele fosse uma necessidade, eu sei disso. Todavia, se quer a minha opinião,
e acredito que... — Deixo um riso escapar, desviando o olhar. — Você não
quer a minha opinião, mas vou dá-la do mesmo jeito: não há nada de errado
em se apaixonar um pouco pelo caos.
Um som me chama a atenção. É como uma melodia. Sim. Seu
coração é como música. E é como uma música tão gostosa de se ouvir, tão
perfeita, que eu poderia ouvir por horas e horas, dias e dias... E preciso
descobrir que porra essa garota é e porque ela é tão importante. Preciso
descobrir porque tudo nela me prende.
Enfim. Me atento ao seu coração, já que não posso sentir o meu. E o
dela bate um pouco mais rápido do que deveria.
— Noah... — A encaro, curioso para ouvir o que ela tem a dizer. —
Eu sou perdida. Você sabe disso. Às vezes eu sou a Chloe garçonete, a Torn
que corre nas ruas, a bailarina que dança em segredo... Não sei o que sou, eu
me sinto perdida. Não precisa mentir para me fazer sentir melhor.
— Não estou mentindo, meu anjo. — Brinco com um anel em meu
dedo, mas meu olhar é completamente dela. — Acho que existem partes suas
que você vê como antagônicas, mas na verdade são peças que montam o
universo estranhamente único que você é. Não estou mentindo. Não mesmo.
Na verdade, esse é o maior nível de sinceridade que atinjo há um bom
tempo.
Chloe morde o lábio inferior e seus olhos, de repente, não me cativam
tanto quanto a carne que desliza por entre seus dentes. O Diabo está sendo
hipnotizado por uma mera humana. E ele está gostando disso.
Chloe está vestindo um pijama folgado qualquer, nada sexy, e ainda
assim parece a mulher mais quente que já conheci. E eu que sempre tenho
atitude, me vejo imóvel. Então ela toma o controle da situação quando se
aproxima, cautelosamente.
— Eu teria cuidado com o seu próximo movimento, meu anjo.
— Jura? Por quê?
— Porque pode se arrepender depois de ceder novamente a um cara
como eu.
Chloe esquadrinha todo o meu rosto e ri nasalado. Sua mão toca o
meu queixo, mantendo o meu olhar rente ao seu. E agora é a minha vez de
venerar cada detalhe do seu rosto.
— Deixamos algo pendente no Purgatorium, Noah — ela sopra e eu
fecho os olhos. Respiro fundo uma última vez. E no segundo seguinte, seus
lábios macios estão sobre os meus.
O fio de lucidez que possuo parece se romper com a volúpia que me
toma. E quando vejo, Chloe Mitchell está em meu colo, tirando a sua
camiseta. E a primeira peça de roupa está ao chão.
Por mais que Chloe Mitchell seja o tipo de garota que precisa ser
admirada, não gasto muito tempo venerando o seu corpo quando ela tira a sua
camisa.
Eu a quero. Com alguma urgência.
Faz muito tempo que sinto falta disso. Ela pode não se recordar de
todos os momentos naquele banheiro do Purgatorium, mas eu lembro. Ter
fodido Chloe Mitchell não é algo que eu possa esquecer. Foi um dos motivos
pelos quais pensei que ela não era humana, afinal. Essa mulher soube fazer o
meu corpo pegar mais fogo que o Inferno. E eu estou acostumado com o
fogo, realmente estou. É que Chloe passa de todos os limites possíveis.
No segundo em que minha língua passa por entre seus lábios e seu
gosto encontra o meu, eu sinto que demoramos demais para chegarmos a esse
momento. Há algo tão doce quanto perigosamente viciante em seu sabor. Sua
língua quente se movimenta contra a minha como se quisesse me conduzir ao
paraíso.
Talvez ela consiga.
Cacete...
Chloe está rebolando contra o meu pau enquanto me beija. Suas mãos
postas delicadamente em meu rosto e as minhas firmes em sua bunda.
Admiro, como o meu anjo se move com maldade. Seu toque desce para o
meu peito, onde encontra o colar de asas negras que carrego.
E tudo se resume a calor.
Há calor no beijo, no toque das suas mãos em minha nuca e coxa, nas
minhas no seu rosto. Muito calor. As baixas temperaturas de Nova York não
influenciam esse apartamento, esse sofá. Aqui, Chloe e eu ditamos o clima. É
como se essa sala minúscula fosse o nosso mundo. Nós somos os reis do caos
que criamos. E, no momento, ele parece perfeito.
Entre nós também existe selvageria, apesar na lentidão com que nos
apreciamos. Não é sobre amor, é sobre desejo. E isso nós temos de sobra.
Ela quebra o meu beijo e tira o meu paletó, sem esboçar sorriso
algum, totalmente compenetrada em fitar os meus lábios.
Chloe tem sardas como eu por suas bochechas, geralmente as disfarça
com um pouco de maquiagem. No momento, porém, a sua pele e o seu corpo
estão cada vez mais expostos, e me pergunto se cada detalhe do seu corpo
combina com o meu... Das sardas às tatuagens e aos movimentos lentos,
carregados de intensidade.
Aproximo a boca da sua quando meu terno está fora de cena e uno
nossos lábios brevemente, desabotoando a minha camisa. E, quando ela está
longe, vejo a ruiva falhar em segurar um gemido de apreciação. Chloe está
mordendo o lábio inferior e, ainda assim, um grunhido baixinho escapou.
Porque ela gosta do que vê.
Mitchell analisa o meu corpo como se este fosse uma obra de arte.
Todo mísero segundo em que seus olhos contornam meu peitoral, abdome e
braços tatuados me parece proveitoso. Ela fita as asas em meu peito e as
tatuagens por meus braços.
Após poucos segundos, decido que ela já me apreciou o suficiente.
Não consigo mais permitir que me encare desse modo. Preciso dela.
Beijo a sua pele e a minha língua quente cria um caminho na curva do
seu pescoço, meus dedos deslizam por seus braços. Consigo sentir seu
perfume doce e suave, a maciez da sua pele... Não lembro a última vez que
quis tanto foder uma mulher como nesse momento.
Abro o fecho do seu sutiã com facilidade e ela o tira, o descartando
por algum canto da sala. Apesar de não agirmos com pressa, estou ansioso
para cacete. Para mim, isso é urgente.
Chloe desliza as mãos sobre meus braços, como se quisesse tatear
cada rabisco em minha pele. E agora, sob a luz da sua sala, consigo ver seus
seios, a tatuagem de flores em seu quadril, toda a beleza que lhe é própria.
Podem falar o que for, mas, aos meus olhos, Chloe Mitchell sempre
será como um anjo com o inferno guardado em sua alma. Não sei explicar.
Definitivamente, não sei. O que quero dizer é que ela consegue ser
fodidamente gostosa e quente enquanto seus traços são de uma delicadeza
surreal. Perfeição é uma palavra fraca para definir a ruivinha. As marcas em
seu corpo, os desenhos em sua pele, suas sardas, seu jeito... Todo detalhe não
pode ser resumido apenas em perfeição. Transcende esse conceito.
Aproximo a boca da sua e ela fecha os olhos. Escuto o seu coração
ansiar pelo meu beijo. Me sinto mais excitado a cada segundo, só em saber o
quanto ela me deseja. Chloe me deixa duro só em me querer. É como se sua
vontade me controlasse. No momento, não me importo com isso. Eu gosto.
— Não se preocupe em ser silenciosa, meu anjo — sopro, em sua
direção. — Deixe o seu corpo falar. — Ela assente, ainda de olhos fechados.
— Olhe para mim, ruivinha.
Meu polegar acaricia o seu rosto e ela me obedece.
O coque em sua cabeça se desfaz sozinho, enquanto eu mantenho o
olhar conectado ao seu.
Meus polegares finalmente alisam as tatuagens em seus quadris.
Mordisco o seu queixo e puxo seu lábio entre meus dentes, maldade tomando
o meu sorriso.
— Dessa vez, você não vai esquecer — prometo.
Cuidadosamente, acaricio a sua nuca e beijo a sua boca, deitando-a no
sofá. Seus dedos se afundam em meus cabelos, nossas línguas parecem
íntimas, viciadas uma pela outra. Me posiciono entre as suas pernas, roçando
meu pau contra ela. Peças de roupa estão me incomodando. Bastante.
Seus seios estão quase contra meu peito, os mamilos eriçados roçam a
minha pele. Os fios cor de fogo espalhados no sofá. Beijo o seu pescoço,
ainda roçando contra ela. É quando me afasto e tiro a sua calça, junto com a
calcinha.
Chloe não parece sentir pudor ou timidez alguma. Tampouco se
importa com possíveis falhar por seu corpo. A garota está segura de si e tem
todo o motivo para isso. Porque ela é o anjo mais sexy que já vi em toda a
minha vida — e eu já vivi muito. Chloe parece saber disso. Ela me quer e
sabe que me terá.
Chloe está nua perante meus olhos. Completamente despida. Estou
duro para cacete e prestes a foder com uma obra-prima. Eu poderia dizer que
estou prestes a atingir o céu no momento, mas não sou muito fã desse lugar.
Estou próximo de conhecer o inferno que ela abriga em seu corpo. E tenho
certeza de que ele será o meu paraíso, pois já estive lá antes.
Beijo a sua pele. Começo pelo colo, passando pelos seus seios, até à
sua barriga. Mitchell fita o teto e deixa o ar escapar da sua garganta. Meus
polegares deslizam entre suas coxas. Estou no meio das suas pernas quando
ela as dobra ao redor do meu corpo. Sinto falta da sua boca, então a beijo.
Uma das minhas mãos passeia por sua coxa. Seus mamilos já eriçados
estão contra o meu peitoral, enquanto a outra mão lhe alisa o rosto. Paro o
beijo para morder seu lábio inferior e admirar como ele fica vermelho
conforme se solta dos meus dentes.
Chloe leva a mão à minha nuca e finalmente libera o sorriso
carregado de luxúria que segurava. Ela não quer quebrar o contato, então seus
lábios se colam aos meus logo em seguida.
Franzo o cenho entre o beijo quando sinto seus dedos em meu bolso.
Chloe tira uma camisinha e quebra o contato, me pegando de surpresa quando
me empurra, inverte as posições e me faz sentar ao sofá. Então, ela desce as
minhas calças e se senta sobre mim.
Essa garota...
O sorriso travesso em seu rosto é divertido e me faz sorrir do mesmo
jeito.
— Minha vez de mostrar, querido — sussurra. —, que posso ser mais
perigosa que você.
Meu sorriso é marcado por um misto de desejo e deboche. Trago
maior firmeza aos toques em seus quadris. Gosto quando ela me chama de
querido e de todo seu sarcasmo.
— Prove — ordeno.
Chloe arqueia a sobrancelha e se afasta, somente para tirar a minha
cueca e, por mais que a visão dela ajoelhada perante a mim me agrade
bastante, a ruiva retorna ao meu colo e sorri maliciosamente quando vê o
efeito que causou. Estou completamente duro e seguro meu pau para que ela
coloque a camisinha. Em seguida, Chloe se senta lentamente sobre o meu
membro e eu finalmente me vejo dentro dela.
Seguro um grunhido ao mesmo tempo em que Chloe arfa contra a
minha boca e cola a sua testa na minha. Suas mãos estão em meu peito sobre
as asas desenhadas em minha pele. Minhas unhas estão cravadas em sua
bunda novamente. Ela mordisca o meu queixo e a minha boca.
Fito os seus olhos e me vejo através deles. É bom me enxergar assim
e essa sensação é ainda melhor quando estou dentro dela.
Chloe suspira contra a minha boca, seu tronco sobe e desce conforme
ofega levemente. Dou-lhe o tempo que precisa, infiltrando a minha mão sob
seus fios, em sua nuca, para voltar ao seu pescoço, meu novo vício.
Então ela se movimenta devagar. A sinto molhada contra mim e
contenho um grunhido de aprovação pelo modo como se mexe para frente e
para trás, se afastando para garantir que eu a veja, me provocando pelo modo
como me encara. Chloe é apertada e quente. Estar dentro dela é a melhor
sensação das últimas semanas. É fodidamente prazeroso.
Tento segurar um gemido, mas ele me escapa, baixinho, junto com
um xingamento.
— Deixe seu corpo falar, querido — ironiza. O sorriso em seus lábios
é sujo, sarcástico ao extremo.
Filha da puta...
Não consigo evitar rir nasalado, e ela me acompanha antes de nos
calar com um beijo que faz com que eu sinta que estou conseguindo entrar
um pouco mais em seu universo.
Chloe finca as unhas em meus ombros quando seguro em sua cintura.
Ela está rebolando com mais intensidade e gemendo baixinho em meu
ouvido. Poderia ouvir isso por séculos. Meus dedos estimulam seu clitóris,
porque eu quero ouvi-la ainda mais, muito mais.
Eu poderia foder Chloe Mitchell para sempre. Apenas para ouvir o
tesão escapar seus lábios ou a maneira como ela diz meu nome agora: com o
tom de voz rouco, lento e quente para caralho. Eu faria isso por séculos, só
para escutar o seu corpo falar o quanto me quer. Caralho, eu foderia essa
garota pela eternidade.
Demoramos demais para repetirmos o sexo. Deveria ter acontecido
mais cedo.
Minhas mãos vão aos seus seios, os segurando com firmeza. Prendo
seus mamilos entre os dedos. Há alguns anéis em minhas mãos, então,
quando ela geme, acho que é pela temperatura gélida deles contra a sua pele.
A ruivinha desliza as unhas pelas tatuagens em meus braços e eu
passo a chupar o seu seio esquerdo, a incentivando a me mostrar o quão má e
perigosa ela consegue ser. Estou a desafiando a levar o Diabo ao êxtase.
E ela vai conseguir.
Chloe chama por mim baixinho, conforme seguro seus quadris com
maior força. Sinto que ela está quase lá. Volto ao seu pescoço, mordendo e
chupando a sua pele fodidamente macia. Consigo sentir meu corpo cada vez
mais quente, assim como o seu.
Chloe fita o teto, deixando os cabelos ruivos correrem para trás dos
seus ombros. Ela mantém os braços atrás do meu pescoço. Os sons escapam
por sua garganta, não muito altos. Alguns deles me fogem também, enquanto
ela se move para cima e para baixo. Estou tentando conter o que essa mulher
faz comigo, mas está cada vez mais impossível.
— Noah, eu... — Ela rebola com maior vontade, como se fosse
insaciável, mas não termina a sua fala e isso prova o que eu já sei: ela está
quase chegando lá.
Desço os dedos ao seu clitóris e acaricio a sua coxa com a outra mão.
A masturbo devagar, observando a cena maravilhosa da sua boceta contra
mim. Assisto-me deslizar para dentro dela, e a vejo se mover sobre meu
corpo como se a sua vida dependesse disso.
— Goza para mim, Chloe — exijo, fitando o seu rosto. Ela desce seus
olhos aos meus, parecendo ficar mais sexy a cada segundo.
Há algo fodidamente felino em seus olhos. Eles parecem selvagens
para cacete na maneira como me encaram. Existe beleza em sua boca estar
inchada e avermelhada por minha causa. Não tem um defeito sequer em seu
rosto. É como se ela tivesse sido esculpida para me levar à loucura.
— Goza para mim, meu anjo — peço, novamente. — Me deixe ver o
quão gostosa você é.
Ela tenta segurar por mais algum tempo, deixando seu nariz tocar o
meu. Sua testa está contra a minha e a garota segura em meus ombros com
força, tentando retardar o orgasmo ao mesmo tempo em que o quer a cada
vez mais. Mas ela chega lá.
Chloe goza, mas não para. Continua se mexendo de modo selvagem.
Consigo sentir o prazer crescer em meu corpo enquanto ela sucumbe a este,
fechando os olhos com força enquanto arfa de desejo. Seguro a sua bunda
com vontade, aproveitando cada segundo.
O orgasmo me atinge de modo avassalador, fazendo-me gemer seu
nome. Chloe, entretanto, não para de se mover. A garota não quer parar até
que eu sinta tudo o que eu quero sentir e o que ela quer que eu sinta. E
conseguimos isso. Eu estou sentindo meu maldito coração mais acelerado do
que nunca, e a vida em cada vaso do meu corpo. Cacete, como eu sinto. Há
tanto poder e prazer percorrendo minhas veias que é como se o mundo
estivesse em minhas mãos.
Só me resta aproveitar. Então, fito o teto por poucos segundos antes
de fechar os olhos, fincando as unhas em sua carne e sentindo todo o
delicioso caos que Chloe Mitchell tem a me oferecer.

— Certo! Me dê sua mão — ela pede, repentinamente. Estamos em


seu quarto. Transamos pela segunda vez há alguns minutos, mas não
conseguimos dormir. Então, permanecemos deitados, encarando o teto. Chloe
veste uma camisa sua, folgada. Eu estou nu debaixo dos lençóis. Ela me olha,
esperando que eu obedeça. — A mão, Noah! Por favor?
Faço o que a garota pede, já sem os anéis em meus dedos. Afinal, eu
precisava recompensá-la pelo que fizera comigo mais cedo e não poderia
fazer isso com aqueles pequenos acessórios.
Chloe analisa a palma da minha mão, antes de fitar seu dorso.
Observo-a enquanto faz isso, cada detalhe do seu rosto. Os cílios ruivos, as
sardas, os fios bagunçados e o sorriso quase infantil em seus lábios.
— Posso... Estalar seus dedos? — Uno as sobrancelhas, sem entender.
Penso em recolher a minha mão e ela rola os olhos. — Vamos, Noah! Não
vou quebrar seus ossos, tirá-los de você e comer no jantar. Eu só tenho essa
mania. Posso?
— Estala os dedos de todos os caras com quem dorme?
— Como consegue me fazer soar tão psicopata? — pergunta,
demonstrando desgosto por todo seu rosto. — Não, idiota. Só de algumas
pessoas. Fazia com o Matt o tempo todo, mas ele cansou disso um pouco.
Enfim, posso estalar os seus dedos?
Penso um pouco antes de entregá-la a minha mão. Delicadamente, a
Chloe segura o meu pulso, começando a estalar os nós dos meus dedos. De
início, sinto uma desconfiança ou estranheza, mas então me permito relaxar,
conforme a observo tão atenta ao que está fazendo.
Os estalos ecoam, um por um. E, então, Chloe me olha. Não diz nada,
apenas me encara. Suas mãos envolvem a minha e eu não quebro o contato
visual. Não consigo deixar de olhar em seus olhos enquanto mexo na corrente
ao redor do meu pescoço.
— Eu interrompi algo quando cheguei? — pergunto e ela franze o
cenho. Me pede a outra mão e eu acho graça, me deitando de lado e a
estendendo em sua direção. Chloe estala os dedos e eu já me sinto mais
confortável com isso. — Tinha um telefone na cozinha.
— Eu estava conversando com meu irmão caçula — diz. — O
Benjamin tem... — Ela franze o cenho, como se tentasse lembrar de algo. —
Sete anos.
— Não sabe a idade do seu próprio irmão? — provoco e ela não me
responde, cerrando os olhos em uma falsa reprovação divertida. Deixo um
sorriso escapar. — Ele tem sete anos...? — Tento puxar o assunto de volta.
— Sim, e é o garoto mais adorável que existe.
— Não sente falta dele?
— Todos os dias — Chloe confessa, terminando de estalar meus
dedos. Então, vira o corpo para mim. — Não posso ouvir o sotaque dele que
o meu coração derrete, sabe? — Não sei, então fico calado. — Mas não
pertenço mais ao Tennessee.
— Sente falta da sua mãe?
— Sim. Mas as coisas com ela... As coisas com ela são complicadas.
— Sinto que Chloe não quer falar sobre, então assinto, mostrando que
compreendi. — E você?
— Eu o quê? — devolvo, de imediato.
— Tem família? Sente falta dela?
— Tenho um irmão, mas estaria mentindo se te dissesse que nos
importamos um com o outro. — Um sorriso triste está nos lábios dela. —
Não é algo ruim, meu anjo. Não precisa ficar triste.
— E a sua mãe?
— A minha mãe... Morreu junto com o meu pai. Mas ela sempre foi
um pouco má comigo, então... Não penso muito nela. — Fito o teto. — Os
dois morreram em guerra.
— Seus pais eram do exército? — ela pergunta, desfazendo o clima
tenso num misto de surpresa e curiosidade por sua voz.
— É, algo assim — minto, a encarando.
— Uau... — Chloe diz, virando-se para o teto. — Meu pai era um
detetive — ela conta. Fico em silêncio, porque sei coisas sobre ele que Chloe
nem desconfia — Sinto falta dele.
Chloe está sendo extremamente honesta comigo pela primeira vez.
Sei que não posso ser sincero quanto a tudo com ela. E também não quero.
Não devo nada à garota. Ainda assim, deixo alguma verdade escapar:
— É, sinto falta do meu também.
— Então vocês transaram? — Matt pergunta enquanto esperamos o
Trio Radiação, sentados em uma mesa qualquer. O restaurante está vazio. Do
meu lugar, consigo ver a porta, mas o Matt não, visto que está de costas para
a entrada. Ele me dá a sua mão e eu estalo seus dedos, um por um. — Duas
vezes?
— Três. Foi basicamente uma foda rápida no sofá e duas vezes na
cama. Mas sim.
— Vocês já transaram três vezes? — Matt parece não acreditar.
— Sim — respondo. Ele balança a cabeça em negação. — Foi pouco.
Acredite em mim, Matt, se você fodesse esse cara, você me entenderia. —
Estalo o último dedo. — Ele é gostoso para caramba.
— Oh, imagino. — Letterman diz, e então respira fundo. — Não
apoio muito esse casal, mas sei que você não escuta os meus conselhos.
— Não somos um casal.
— Que seja. Estou tentando ser um bom amigo aqui, então vamos lá!
— Ele junta as duas palmas. — Me diz quando parar. — Franzo o cenho e
Matthew começa a afastar as mãos. — Não entendi. Matthew está quase
abrindo os braços agora. — Vamos, Chloe, ele tem um pau entre as pernas e
não um poste.
— Espera, é isso que você tá fazendo? — Seguro um riso e ele
assente. Belo jeito de se perguntar o tamanho do pau do Noah. — Ok, faz de
novo!
Matt junta as palmas novamente e começa a afastá-las. Contudo, algo
me rouba atenção: o sino do restaurante avisa que alguém chegou, mas não é
Brianna e seus cãezinhos. Molly está na porta.
Cutuco Matt, para que ele veja também. Então, o rapaz para e se vira
completamente em sua cadeira. Os olhos verdes de Molly nos analisam.
Sinto o clima pesar. Não sabemos o que dizer. Essa é a hora em que
John costumava buscá-la aqui. E agora ela está de volta, mas não ele. Sinto
meus olhos arderem e um nó se forma em minha garganta. Letterman está tão
focado na nossa amiga quanto eu.
Molly olha ao redor e nos fita. Espero que diga algo, mas ela somente
sorri.
— E então? Sentiram a minha falta?

— Não acho uma boa ideia — digo, estranhando ser a única sensata
dessa vez.
Dirijo a Shelly enquanto a minha fita favorita toca no som do meu
carro. Molly está no banco ao meu lado e Matt, deitado no banco de trás,
brincando com a minha boneca de pano.
— Vamos, eu só quero curtir um pouco — Molly fala, com um
sorriso largo em seus lábios. Encaro o retrovisor no exato momento em que
Matt faz o mesmo. Ele se senta, colocando o rosto entre os dois bancos da
frente.
—Molly, você está dizendo que quer me ver correr hoje à noite e ficar
chapada numa festa qualquer porque está perfeitamente bem? — pergunto,
cautelosamente. Afinal, o namorado dela morreu há apenas uma semana.
— Não. Estou dizendo que quero estar no banco de carona contigo
numa corrida hoje e fumar com meus dois melhores amigos para ficar bem.
— Maconha não faz ninguém ficar bem — Matt diz o óbvio e Molly
rola os olhos. Então, pego o primeiro retorno possível, desistindo da ideia de
ir para o bairro em que as corridas acontecem.
— Chloe! — Molly protesta.
— Desculpe, amiga, amor da minha vida, dona do meu coração, mas
não vou permitir que você se autodestrua porque está machucada. Não é o
que o John gostaria e, mesmo se fosse, eu jamais permitiria isso — respondo,
fazendo-a bufar.
Em pouco tempo estamos no meu apartamento.
Molly está deitada em meu sofá, Matt abre uma cerveja long neck e
eu decido pintar as unhas do pé, no chão. Só estamos juntos, calados. E não
me sinto bem com isso.
O silêncio está me matando.
— A Chloe está transando com o Noah — Matt diz e Molly me
encara, séria. Arregalo os olhos para ele, sem acreditar.
Molly está com as sobrancelhas erguidas, me observando.
Ok, sinto falta do silêncio.
— Noah, a pessoa responsável pelo lugar em que o John foi
assassinado? — ela pergunta. Abro e fecho a boca algumas vezes, encarando
o filho da puta do Matthew. O rosto do desgraçado nem vacila por ter me
denunciado. — Desculpe... Não estou culpando o cara, é só que...
— Noah não matou o John. Eu estava com ele. O policial responsável
pelo caso está trabalhando nisso, está procurando o...
Não consegui concluir a frase. Todos ficaram em silêncio. Senti um
gosto de bile subir por minha garganta e olhei para Matthew, buscando por
socorro. Aquilo era muito pesado.
A minha melhor amiga suspira.
— O policial está buscando o coração do John, Chloe — Molly diz e
ri brevemente. — Pode falar as palavras. Estão buscando pelo coração do
John... — ela repete. E Anderson parece calma, mas eu a conheço. Cada
palavra carrega dor.
Molly se senta no sofá. Eu paro de pintar o dedão com o esmalte
branco e Matthew oferece a cerveja para Anderson. Ela aceita e vira um
longo gole.
O momento está tenso, e saber que John não está aqui para contar
uma de suas histórias que parecem mentira ou tocar seu violão a noite
inteira... Me machuca saber que isso nunca mais vai acontecer. Essa certeza
fere todos nós.
— Não quero soar insensível — Molly diz, e a encaramos. — Eu só
queria muito me divertir essa noite, queria beber, fumar, qualquer coisa.
Preciso disso. Eu preciso disso, entendem? Me sentir viva, bem. Necessito
saber que posso ser alegre novamente, porque o que há em mim agora é um
vazio. Chorei tanto nos últimos dias que não consigo mais sentir nada. Estou
anestesiada por completo. Então, sim, eu quero fazer tudo aquilo,
experimentar a adrenalina de novo. Eu quero... Qualquer coisa que me faça
sentir bem.
— Molly... — Tento interromper, mas ela continua.
— Eu amava tanto o John que eu sonhava todos os dias com um
futuro ao lado dele. Queríamos um casal de filhos. Nós tínhamos decidido até
os nomes das crianças: June e Brandon. Mas John estava certo de que
teríamos gêmeos. Dois garotos. Porque já rolou duas vezes na família dele.
Fingíamos brigar por isso o tempo todo. Eu o amava e meu futuro tinha John
por todo o lugar. — Sua voz finalmente falha.
Honestamente, meu coração está quebrado em milhares de pedaços.
— E agora a vida me mostrou que nada do que planejei vai acontecer
— a morena continua.
A minha visão está borrada e a vontade de chorar voltou. Matthew
está em silêncio, mas eu sei que ele sente o mesmo. Depois que chorei no
ombro de Noah, bloqueei as sensações que me lembravam John por completo
novamente. E, com Molly de volta, tudo estava ali. Mais forte do que nunca.
É bizarro saber que existe um mundo em que ela está viva e ele não.
— John seria o pai dos meus filhos. Ele dizia que tudo ficaria bem
sempre e que eu sempre teria lugar em seu coração, ele dizia... — Molly
desaba em lágrimas e tampa o rosto com as mãos, seus ombros subindo e
descendo conforme soluça.
Dor. Minha alma está tão machucada que chega a doer fisicamente,
até. Eu não sei o que fazer. O que posso fazer?
Dizer que tudo vai ficar bem soa falso. Falar que John está em um
lugar melhor é um eufemismo cruel. Nada me parece bom para ser dito.
Palavras não podem curar essa ferida. Não sei o que pode.
Quero abraçá-la para sempre, mas sinto que ela precisa dizer tudo o
que quer dizer antes.
— Mas agora o amor da minha vida... Ele está morto. E o seu coração
está desaparecido. O lugar onde ele dizia que eu morava. O coração do meu
Johnny... — Ela para de falar, chorando como nunca vi em toda a vida.
Me levanto do chão e a abraço com força, me sentando em seu colo.
Molly me segura de volta, molhando a minha camisa com suas lágrimas.
Matt deita a cabeça em seu ombro. Nós dois chorávamos em silêncio,
enquanto o sofrimento da nossa pequena preenchia a casa.
John e Molly eram o melhor casal do mundo. Molly é a garota mais
foda que eu conheço. É maravilhosa em todos os sentidos e não merecia isso.
É tão injusto.

Acordei com Molly abraçada ao meu corpo. Matt estava dormindo no


sofá da sala. Bebemos ontem à noite. Havíamos decidido viver o luto
chorando, rindo e bebendo conforme lembrávamos de John. Acho que, de
certo modo, celebramos a vida dele e não a morte.
Ainda assim, me sinto pesada. Olhei o alarme e agradeci por não estar
atrasada para o trabalho. Beijo a testa de Molly e me desvencilho dos seus
braços, caminhando para a sala. Sacudo Matt devagar e ele coça os olhos.
— Bom dia, anjinho da mamãe — ironizo, fazendo bico. — Temos
trabalho hoje. Acorda!
Depois de resmungar, Matt se levanta. Eu tomo banho primeiro,
depois ele e Molly por último. Ele vem tanto aqui em casa que tem roupas
suas em meu armário, então os três patetas têm o que vestir.
O idiota do Letterman ainda tem uma escova de dentes aqui. O cabo
dela é do Mickey Mouse. Tenho uma nunca usada e é essa que Molly usa.
Tentamos escovar os dentes ao mesmo tempo em que dançamos ABBA, que
ecoa no som que liguei no meu quarto. Eu e Matthew forçamos a animação,
tentando tirar o clima pesado que ainda existe no nosso trio, mas Molly
pouco se mexe.
E, em pouco tempo, estamos no Thurman's.
Molly não trabalha ainda, mas é bom que fique com a gente. Somos a
sua família, afinal.
Molly tem uma história um pouco... Pesada. Ela nasceu em San
Diego. A mãe da Molly é branca e de uma família do subúrbio, seu pai era
negro, tinha uma grande loja de materiais de construção e uma boa herança
de seus avós. O Senhor Anderson tinha um bom trabalho, era extremamente
conhecido na cidade, então quando Molly nasceu, eles viviam bem. Mas ele
morreu. Então Molly não o conheceu, na verdade. E então sua mãe se
afundou numa depressão quando se tornou viúva, acabou cedendo a jogos de
azar, caiu em dívidas. Ela manchou o nome da família, se meteu em algumas
encrencas difíceis de explicar. Anderson também não gosta de falar sobre.
Ela é o tipo de pessoa que acredita mais em planejar o futuro e não pensar no
passado, em sua busca incessante por sorrir a cada dia.
Seu passado, contudo, existe. E, às vezes, eu percebo que, quando ele
passa por sua mente, Molly perde um pouco o brilho nos seus olhos, meio
que por meio segundo. Acho que Molly amadureceu cedo demais. E nisso eu
me identifico, de certa forma. Quando meu pai morreu, eu tive que ajudar a
minha mãe a criar o meu irmão, vi as contas se acumularem e chorava
escondida, enquanto insistia em ser uma criança metida a adulta. Nas poucas
vezes que Molly e eu discutimos sobre o passado, percebemos que, de
alguma forma, nossas histórias têm algo em comum. Para ser honesta, tenho
orgulho pra cacete da minha melhor amiga. Ela é forte para caramba.
Enfim, a Senhora Anderson estranhamente foi presente para a sua
filha, sim, apesar da vida complicada que levava. Ela lutou para que Molly
conseguisse uma bolsa em San Diego, então a minha amiga teve um estudo
legal, conseguiu a vaga na Universidade de Columbia para cursar Psicologia.
Anderson sempre foi extremamente inteligente e sensível, acho que consegue
desvendar qualquer pessoa em poucos minutos de conversa. E sei que a
mente humana é uma de duas paixões. Se sua mãe não tivesse perdido tudo,
ela teria um futuro brilhante. Mas assim como eu, Molly não tem muita
grana.
Ela namorava o John desde os quinze. Ele nunca se incomodou com a
história da sogra, na verdade, tinham boa relação. A família dele, a
tradicional e amorosa família americana, demorou para aceitar a Molly, pelo
sobrenome manchado de Anderson, mas acabou por aceitar, sim. Meu ponto
é: os dois lutaram para ficarem juntos, entende? E sonhavam com uma vida
em Nova York, mas só ele conseguiu uma bolsa para o curso que queria. Em
seu caso, cinema.
Molly não queria abandonar o sonho de morar na Big Apple. Então,
decidiu que ficaria aqui com o John e que tentariam crescer na vida, juntos.
Fizeram as malas aos dezoito. Seriam os dois contra o mundo.
Quando conheci Molly no Thurman's, John estava ali. Para mim, os
dois eram como um só. Um era parte do outro, eram sua própria base. E
agora ela estava sem o seu loirinho.
John era família para Molly. Mais do que qualquer outra pessoa.

O dia de trabalho se arrasta. E, no fim dele, estamos bebendo


novamente no sofá do meu apartamento quando a própria Molly tem uma
ideia que, pela primeira vez em algum tempo, nos anima. Não sei se foi o
álcool, mas, quando nos damos conta, estamos os três em um estúdio de
tatuagem.
Molly nunca fez isso, então Matt, o primeiro a ter feito o desenho,
segura a sua mão. Eu já estou mais acostumada, mas o lugar peculiar que
escolho fazer a minha tatuagem me causa dor.
Escolhemos o desenho como modo de lembrarmos que somos uma
família. E também era uma das músicas favoritas de John: Three Little
Birds. Então tatuamos três pássaros, voando juntos. De certo modo, isso
agora nos representa.
A minha é abaixo da orelha, a do Matt é na nuca e a da Molly é no
pulso. E agora temos um ao outro marcado na pele. Na verdade, sempre achei
que tatuar algo sobre alguém fosse um pouco perigoso. Nunca sabemos o que
pode acontecer no dia seguinte, afinal. Dessa vez, porém, não tenho medo.
Por mais que seja brega, tenho a minha família tatuada na pele. E eu
sei que esta é pra sempre.
Noah não me procurou durante os últimos dias. Eu também não o fiz.
Estava mais focada na Molly e no Matt. E depois de uma semana um pouco
conturbada, Matt e eu concordamos com a ideia da Molly de sairmos para
nos distrair.
O problema é que, o que deveria ser apenas uma sessão de cinema, se
transformou numa corrida de alta velocidade. Como de praxe, ganhei o
dinheiro. Matt sempre odeia esses ambientes. Ele diz que não curte a energia
das pessoas desse tipo de lugar, mas aceitou nos acompanhar. Molly e Matt
quiseram estar dentro do carro na hora da corrida e a adrenalina
aparentemente fez bem aos dois. Apesar de que, por vezes, pensei que ele
vomitaria no meu carro.
Agora nós três estamos na varanda do meu apartamento, analisando
estrelas e ponderando qual delas seria o nosso amigo. Estou sentada ao chão,
Molly está de pé contra a grade, tal como Matt.
— Ele viveu tanta coisa em tão pouco tempo. E nem teve a chance de
fazer um filme sobre isso — Molly fala. E é verdade. John criava a maior
parte das aventuras que vivíamos.
— "Essa é a noite das nossas vidas!" — Matt brinca, imitando a voz
de John. Nós três rimos, lágrimas por nossos olhos. — Todas elas eram as
noites das nossas vidas.
— E eram mesmo — concordo.
— Era o super poder dele — Molly observa. — Fazer cada
madrugada parecer a melhor possível. — Então voltamos a analisar as
estrelas. — A gente pode fingir que ele é a mais clara possível, a que mais
brilha.
— Filho da puta exibicionista — acuso, e os dois riem. — Não
poderia ser o contrário. — Respiro fundo, me colocando de pé. Então, me
aproximo dos meus dois amigos. Molly deita a cabeça em meu ombro e eu
abraço Matt pela cintura. — Precisamos criar noites tão boas quanto o John
criava. É o seu legado.
— Me parece impossível — Molly confessa, a voz abafada pela
bochecha contra o meu ombro.
— A gente pode começar pelo passo número um! — Matt diz, e se
afasta, sorrindo. Nós o olhamos, confusas. Ele abre os braços, fita o teto e
grita para o bairro inteiro: — Essa é a melhor noite de nossas vidas!
— AH, VAI SE FODER! — um vizinho devolve.
Nós três gargalhamos alto. Não parece "a melhor noite de nossas
vidas", porque por cada memória que possuo, reina saudade. Mas é um bom
jeito de começar.
Veja, as coisas não vão ficar bem sempre. Éramos quatro e agora um
de nós se foi. Não estamos acostumados a sermos três. Sei que infelizmente
John teve seu coração tirado brutalmente, mas ele sempre vai ter os nossos.
Ele sempre vai ter casa em nossos corações. Então de algum modo, sei que
John permanecerá junto de nós.
Ele sempre vai estar conosco.
Kold está se vestindo para sair. Está usando o meu apartamento
porque decidiu reformar o seu desde que a invasão dos rebeldes aconteceu.
Veste um curto vestido vermelho e pinta os lábios da mesma cor, de frente
para o espelho da sala. E é através dele que ela me manda seu maior sorriso.
— "Está linda Kold". — Ela engrossa a voz. — Obrigada, Noah, eu
sei, eu sei...
— Está linda, Kold — digo o que ela quer ouvir.
A morena se vira com descrença em seu sorriso assim que guarda o
batom em sua bolsa. Passo a mão pela minha barba por fazer, desviando o
olhar.
— Uau! Noah Hellmeister me elogiando. — Ela se aproxima. Suas
mãos pousam em meu peito coberto por uma regata branca. — Chloe
realmente é um tornado em sua vida. — Rolo os olhos, porque não aguento
mais todas as piadas que os três patetas que me seguem fazem a cada cinco
segundos. — Por que não fala com ela?
— Como assim?
— Por que faz uma semana que não corre atrás da garota?
Corre atrás da garota. Estou correndo atrás dela. É inegável. Isso me
incomoda um pouco.
Respiro fundo e Kold me lança um daqueles olhares. Aqueles que
parecem tentar decifrar a minha alma.
— Não sei — confesso.
— E aí? — Luke aparece repentinamente no sofá da sala e nós dois
trememos em susto. Fecho os olhos, prestes a externalizar toda a minha ira.
— Filho... Da... Puta! — Koldelium diz, andando na direção do loiro
sentado e completamente largado ao sofá.
E, quando eu vejo, ela lhe deu um tapa na cara. Luke parece gostar, já
que alisa o rosto e mexe em seus fios loiros, soprando um beijo.
— Essa mania precisa parar, Luke — digo, e ele ri alto. Me viro para
os dois. Kold grunhe de raiva, espalma as mãos e respira fundo, tentando se
acalmar. — Está me irritando já...
— Desculpa, desculpa! — Ele ergue as mãos assim como Kold fez
anteriormente, mas o sorriso em seu rosto diz o contrário. Acabo por rir
quando vejo ela grunhir mais uma vez, pegar seu sobretudo sobre uma
poltrona e marchar em direção à porta sem dizer mais nada.
— Ela vai te matar um dia — cantarolo, me sentando ao seu lado.
Luke dá de ombros. — Alguma notícia do Inferno?
— Algumas. Sobre o que conversava com a Kold? — Ele questiona,
curioso.
Respiro fundo, incomodado em retornar ao assunto.
— Adivinhe.
— Chloe Mitchell? — Luke arrisca e eu confirmo. Ele ri. — Cara,
que bizarro. É só uma garota, como pode estar tão...? — Ele não conclui a
fala e eu o encaro, esperando que termine. — Enfim. É só uma garota. E ela
nem é tão gostosa ou tão gata assim. É bem comum. No máximo uma nota
oito.
— Cala a boca — digo, entredentes, fazendo-o rir. — Dizer que
Chloe Mitchell é um oito é pecado.
— Como bom pecador, repito: Chloe Mitchell é um oito. Sabe quem
considero um dez? Naomi Campbell, Cindy Crawford, Tyra Banks...
— Não faço ideia de quem você está falando — murmuro. E nem
preciso saber.
Luke ri novamente, ri nasalado de modo debochado.
— Está gostando dessa menina, não é? Está gostando de verdade —
fala e eu nego com a cabeça, unindo as sobrancelhas em desgosto. Luke não
parece acreditar. Ele está genuinamente surpreso. — Tem medo de seguir
com o plano do Sinn?
— Não, não estou com medo. Luke, eu não tenho medo. Eu só... Não
sei, preciso pensar em como farei isso — respondo.
Ele parece desistir em argumentar.
Ficamos em silêncio por algum tempo, os dois fitando o teto. Não sei
o que passa pela cabeça do loiro ao meu lado e nem me importo. Já pela
minha há um fluxo gigante de informações, memórias, confusões... Queria
que ela se calasse por um segundo. Às vezes é sufocante.
— Está tudo bem? — Luke me pergunta.
Engulo em seco porque há um gosto amargo em meus lábios, como se
a pergunta me incomodasse. Confirmo com a cabeça.
— Mente agitada. Só isso.
— Por quê?
Não sei o que responder. Por um instante.
No segundo seguinte, uma ruiva está em meus pensamentos.

Estou sentado na mesa da área VIP do Purgatorium. Tem uma garota


ao meu lado, seu dedo passeia pelas tatuagens em meu braço. Estou com uma
blusa de mangas curtas hoje, preta. Sem terno. Os anéis, entretanto,
continuam aqui.
Meu olhar está no copo de uísque à minha frente, quase vazio. A
garota morde o lóbulo da minha orelha, sussurrando o quanto quer meu pau,
o quanto quer me chupar ou algo do tipo. A proposta é interessante, mas não
aceito. Digo que quero ficar mais um pouco aqui.
A música está alta, mas não capta a minha atenção.
A polícia permitiu que voltássemos a funcionar cedo. Eu dei o meu
depoimento três vezes, assim como Kold, Sinn, Luke e muita gente da festa.
Soube que Chloe, Molly e Matt fizeram isso logo depois de mim.
O detetive se chama Joseph Cooper. Ele é bom, a escolha das suas
perguntas foi bem criteriosas. Mas consegui convencê-lo da minha inocência
e até o convidei para o Purgatorium. Não há nada que o Diabo não saiba
contornar. Eu não sou um alvo da polícia, ainda não.
Não que eu tema a polícia ou qualquer outro sistema de segurança
criado pelos humanos. Só quero ficar por aqui sem muitos problemas, acho.
Apesar de que, se algum problema vier a acontecer, com o dinheiro e a
capacidade de convencimento que eu tenho, provavelmente sairei da
confusão em dois segundos.
O detetive era daqueles que puxava altos papos e achava que eu não
tinha mais o que fazer. Descobri que ele tem um filho na Escócia. E pelo seu
inseparável flask, diria que Joseph é alcoólatra. Fato é que eu o vi hoje. No
meu bar. Kold o servia. Ele não parecia nada bem.
Mas não é meu problema.
Vê? É disso que estou falando. A minha mente viaja mais do que
deveria, não consigo evitar. É o carma de ser o Diabo, um fardo que carrego.
Tem muita informação, muitos problemas, muita coisa para se pensar. E, às
vezes, é como se eu fosse um cara com o mundo em sua mente.
E o mundo pesa.
— Noah? — Sinn se aproxima da mesa quando a mão da morena ao
meu lado está na minha coxa, quase entre as minhas pernas, e seus lábios em
meu pescoço. Ergo o olhar para ele. — A amiga da Chloe está aqui. E quer
falar com você.
Molly. Molly Anderson.
Enquanto eu desço as escadarias, encontro Molly na frente dos
seguranças da área VIP. E ela não parece nada bem. Rímel borrado, cara de
choro e aparentemente bêbada.
Honestamente? Sinto pena. Ela exala luto.
Consigo sentir a sua dor apenas em estar perto.
A guio para o meu escritório e ela se senta na cadeira em frente à
minha mesa. Ao invés de sentar em minha poltrona, me apoio no móvel
diante dela e cruzo os braços. Molly tem seus olhos vermelhos focados em
mim. Espero que ela diga algo, mas isso não acontece. Então quebro o
silêncio:
— O que...
— Não o culpo — ela me interrompe. Franzo o cenho, sem entender.
— Não vim aqui para gritar e dizer que você matou o meu namorado. — Sua
voz sai embargada e seus olhos estão marejados. — Só quero saber se você
sabe algo a respeito, Noah, qualquer coisa...
Balanço a cabeça em negação. Sinceramente, mentir me incomoda
nesse segundo, o que é raro de acontecer. Sei que estou sendo um filho da
puta, mas geralmente é quem sou. Não é como se eu pudesse contar para
Molly que anjos e demônios existem e que, em um contexto bizarro, em parte
por minha culpa, seu namorado morreu.
Mentir nesse caso me incomoda, de qualquer modo.
— Os policiais estão fazendo um bom trabalho, com certeza. — Tento
tranquilizá-la; sabendo, porém, que dificilmente policiais encontrarão o
demônio assassino, que já foi morto. Nem descobrirão por que diabos ele
matou um humano. — Em breve terá alguma notícia, algo...
— Eu sempre fui muito forte em intuição, sabe? — Molly fungou, o
rosto ainda molhado. — Sempre acreditei muito em energias, nessas coisas...
E eu sinto que há algo que nunca vai ser compreendido na morte do John. E
sinto que você sabe de algo, Noah, eu sinto... — Ela desaba em lágrimas e eu
não faço ideia do que fazer, não somos íntimos.
Mordo o lábio inferior e respiro fundo, olhando ao redor. O modo
como me encara, como se lesse minha alma? Isso me incomoda.
Peço um minuto, me afastando. Coloco a cabeça para fora da sala,
assobiando para Sinn, que está ao bar. Ele me encara.
— Quero um copo de água e a Chloe. Agora — ordeno.
— Quer a Chloe, huh? — Sinn provoca, aos risos.
— Vai se foder e me obedece, Sinn. Liga para ela. Explica que a
Molly está aqui. Agora! — respondo e fecho a porta, a tempo de ver seu
sorriso crescer. Idiota.
Me viro para Molly e ela ainda está chorando, as mãos estão cobrindo
o seu rosto. Caminho em sua direção, hesitante. Não vou abraçá-la, nem
fodendo. Nem tenho lencinhos de papel aqui, sinceramente. Respiro fundo e
decido me sentar ao chão, as costas contra à mesa.
Preciso fazer alguma coisa ou essa menina vai desidratar, chorar
sangue, morrer sem ar ou algo do tipo. Pensa, Noah, pensa, pensa. A encaro e
suspiro, tocando o seu joelho. Molly ergue os olhos vermelhos para mim e
seca o rosto com as mangas do casaco.
— Ei... Eu mandei chamar a Chloe, está bem? — pergunto. Molly
nega com a cabeça, chorando ainda mais. — Não era pra ter feito isso?
— Eu ‘tô chapada e bêbada e eu... Chloe vai perceber, ela vai se
preocupar...
— Ela é sua amiga, Molly. Diria que até mais do que isso. Parecem
irmãs. Tudo bem se preocupar com alguém e tudo bem ser motivo de
preocupação. Se preocupar com a família é normal.
Não sei como as palavras escapam da minha boca, mas elas
simplesmente saem. Tiro a mão do seu joelho, sem jeito, abraçando os meus.
— Sabe, Noah... Sinto a energia das pessoas. Não sei se acredita
nisso. — Não acredito. Nem um pouco. Não mesmo. — E há muita energia
negativa em você, há uma escuridão em seu coração.
Ok, talvez eu acredite.
A encaro, abrindo um meio sorriso.
— Mas, Noah, não há só breu em seu peito. Também existe uma luz.
Pequena. Porém com uma capacidade... Uma capacidade de se tornar intensa,
Noah. Eu sinto luz em você. Consigo sentir. Mesmo com toda a sua vibe bad
boy malvadão e idiota.
— Uau, obrigado. — Levo a mão ao peito e Molly ri, secando as
lágrimas em seu rosto.
— Chloe enxergou algo em você e eu consigo ver um pouco disso
também — Molly diz, sorrindo, mesmo que a tristeza esteja por todo o seu
rosto. — Ela também sentiu luz. Talvez você não seja tão mau quanto pensa.
Sorrio de canto, sem acreditar muito.
— É, talvez.

A festa ainda está acontecendo, mas quase no fim. Poucas pessoas


estão no Purgatorium.
— É estranho — Sinn confessa a mim, atrás do bar. — Estranho saber
que, apesar de humana, a história por trás dessa garota é... Sobrenatural?
Não sei escolher uma palavra certa. Acho que Chloe nasceu de um
conto de fadas deturpado. Um em que prometeram um final feliz a seus pais,
que nunca chegou. O "felizes para sempre" foi uma mentira.
Chloe é tecnicamente humana. Tecnicamente. E essa pequena palavra
faz toda a diferença.
Acho que nunca ouvi uma história tão fascinante. A origem de Chloe
Mitchell é tão fascinante quanto a própria Chloe. Ela poderia ser um anjo,
poderia ser um demônio... Mas, então, não seria tão extraordinária assim.
Chloe é uma humana. E, ainda assim, conseguiu ser nada comum.
Ela foi fruto de um antigo amor impossível, de um cliché que poderia
facilmente virar um filme meloso e dramático. Mas não há nada entediante
em seu cliché.
— Ela é humana — repito. — É a mais pura verdade, mas dizer isso
em voz alta sempre soa como uma mentira.
— Porque uma humana está mexendo contigo? — Sinn arrisca.
Encaro seus olhos de cores distintas. Poderia negar, mas acho que seria
patético.
— Não só por isso — respondo. — Todo o contexto que a envolve é
bizarro. Digo... É surreal. Chloe é uma humana especial, vamos dizer assim.
Coisa que eu nem sabia que existia. Ela é única. Até a sua existência desafia
as leis da natureza.
Toda vez que penso nas coisas que Matt me disse, a minha cabeça dá
um nó.
— Obrigada, eu acho. — Escuto uma voz ao meu lado. Chloe deixa a
sua bolsa na bancada e sorri convencida para mim e para Sinn. Ele acena com
a cabeça em retorno. Ela claramente não ouviu toda a nossa conversa e o seu
sorriso me deixa nervoso. — Obrigada por me chamar de única, querido. —
Sua mão passa pela minha barba por fazer, quando segura o meu queixo. —
Onde está a Molly?
Passo algum tempo a observando, seus fios ruivos presos em um rabo
de cavalo. Tem algo protegendo a sua nuca, acho que fez uma tatuagem nova.
— Tem um sofá no meu escritório — digo, atento aos seus olhos
negros. — A deixei sentada lá, bebendo água, respirando fundo enquanto te
esperava. Ela pegou no sono.
Chloe suspira e, de repente, parece dez vezes mais preocupada. Fito
Sinn de canto de olho e ele dá um sorriso debochado, que não compreendo de
imediato, ao se dar conta do recado e nos deixar a sós. A ruiva olha ao redor.
— Obrigada, Noah, de verdade, por ter tomado conta da Molly. Você
não faz a mínima ideia do quanto isso significa para mim — Chloe diz e eu
sinto toda a sua verdade enquanto fala. Primeiro porque ela está em seus
olhos e segundo porque a ruivinha exala sinceridade.
— Sempre a seu dispor, meu anjo. — Sorrio.
Chloe se aproxima e me surpreende ao unir a boca à minha num beijo.
Parece automático, feito por alguém que está apressada.
Senti falta disso, confesso. Dentre outras coisas, claro. Mas senti falta
do seu gosto, da sua boca deslizando desse modo contra a minha. Nossos
lábios parecem receosos do distanciamento, como se fossem magnéticos, mas
a sua boca se afasta, brevemente.
Abro os olhos e deixo um sorriso maior escapar, me sentindo bem
com o que acabou de acontecer. Chloe não está sorrindo, mas sei que está tão
satisfeita quanto eu.
— A que devo a honra do seu beijo, oh, meu doce anjo? — ironizo e
ela ri nasalado.
— É o meu modo de agradecer — explica. É como se ninguém mais
estivesse nessa merda de lugar, só nós dois. Mas então lembro o porquê do
agradecimento.
— Ruivinha... Quer que eu acompanhe vocês duas ao seu
apartamento? Precisa de ajuda para colocá-la na cama — recordo. Chloe
confirma com a cabeça. E me surpreendo mais uma vez quando se aproxima,
um pouco devagar e hesitante, e me abraça pelo pescoço.
— Obrigada, Noah, de verdade — ela repete, antes de suspirar. Seu
nariz está próximo da minha pele. Parece tensa.
E, então, a abraço de volta, passando os braços ao redor da sua
cintura. Em poucos segundos, a ruivinha suspira e não parece mais tão tensa.
Estaria mentindo se dissesse que não gosto do seu corpo contra o meu, desse
jeito. Estaria mentindo se afirmasse que não gosto do seu perfume levemente
doce e de como parece se sentir um pouco mais segura em meus braços.
— Não há de quê, meu anjo.

Ajudo a deitar Molly na cama. Tivemos que acordá-la para ela ir do


Purgatorium ao meu carro e deste para a casa da Chloe. Só que, no segundo
em que Molly Anderson se deita na cama de sua amiga, ela apaga novamente
e Chloe a cobre.
A ruiva deixa um beijo na bochecha da garota e saímos do quarto.
Uma brisa fria entra pelas janelas do apartamento. Chloe fecha a porta atrás
de si e se apoia sobre ela. Mitchell está sorrindo. Seus olhos estão brilhando.
— Não está de terno hoje — ela observa e eu rio. — Está muito
bonito.
— E quando não estou? — retruco e ela ri nasalado. Seu riso me faz
sorrir e preenche a sala, mesmo que abafado. — Fez uma tatuagem?
— Sim. Molly e Matt também. Quer ver? — pergunta e eu assinto.
Chloe se vira de costas e ergue seus cabelos. Toco o seu ombro e meu
indicador desliza pelos três pequenos pássaros atrás da sua orelha, próximo à
nuca.
Consigo sentir o quanto meu toque mexe com ela, porque a garota se
arrepia. Consigo ver também, pela regata que ela veste, a tatuagem em seu
ombro. É uma pequena mandala. Chloe me fita por cima do ombro e eu deixo
um sorriso fraco escapar, soltando o ar pelo nariz. A tatuagem nova é mais
um motivo para eu me apaixonar por sua nuca. Mitchell volta a se virar para
mim.
E então voltamos ao silêncio. Aquele em que não tiramos os olhos um
do outro. Que estranhamente poderia durar muito e eu não me importaria.
— Muito obrigada. De novo. De verdade — Chloe repete novamente
o que me disse mais cedo e eu assinto.
Sei que preciso ir embora, mas acho que nenhum dos dois quer isso.
Ela respira fundo e acena com a cabeça para a saída. A sigo e Chloe para em
frente à sua porta, batendo em minha mão quando tento alcançar a maçaneta.
— Preciso abrir a porta para que sempre volte — ela explica,
supersticiosa. — Minha mãe dizia isso para as visitas. Peguei essa mania.
— Quer que eu volte? — questiono, sorrindo com maldade. A ruiva
não fica nem um pouco constrangida. Ela só aproxima a boca da minha e ri
antes de selar nossos lábios novamente.
— Quer voltar? — Apoio as mãos em sua cintura.
Seu perfume é tão bom.
— Quer saber se quero te ver de novo, meu anjo? — Arqueio a
sobrancelha. Chloe espera que eu diga mais alguma coisa.
A beijo em resposta.
Chloe leva as suas mãos aos meus ombros e desliza seus braços por
cima deles. Eu a puxo para perto pelos quadris e encaixo uma mão em sua
nuca, mantendo-a próxima. Diferentemente dos outros, esse beijo demora
mais. É lento e não muito carregado de más intenções, ainda que um pouco
quente. Diria que é um beijo leve. Tão leve quanto essa ruiva dançando ballet
diante da noite.
Quebro o beijo e fito os seus lábios rosados e então os seus olhos
negros. Passo a língua por meu lábio inferior, buscando um pouco mais do
seu gosto.
— Espero que isso responda a sua pergunta — sussurro. Ela sorri e eu
a imito. Seu sorriso se torna mais largo e eu passo pela saída. Me viro e a
ruivinha deixa apenas uma brecha pequena da porta aberta, me olhando por
ela. — Boa noite, meu anjo.
— Boa noite, querido. — Passo a caminhar até o elevador. Me viro
novamente, quando sua porta está prestes a fechar, a tempo de ver o seu
sorriso uma última vez.
— Gosto quando me chama assim — confesso, em alto e bom tom.
Chloe desiste de fechar a porta de imediato e pisca para mim.
— Gosto quando me chama de "meu anjo".
Paro o carro em frente ao Thurman's. Meu Corvette branco está logo
atrás do Shelby vermelho. Não estou vestindo um terno dessa vez, só uma
camiseta e calças pretas. Assim que saio do veículo, vejo uma mulher sair de
um Dodge Charger vermelho. Seus óculos escuros estão sobre seu rosto e seu
sorriso pintado de vinho é lançado para mim.
Mechas extremamente escuras, pele branca bronzeada demais para
uma moradora de Nova York, principalmente fora do verão, e um corpo
espetacular coberto por um vestido preto. Ela apenas ri nasalado e entra na
cafeteria. Meus olhos a seguem, mais especificamente a sua bunda. Gostosa
pra caralho.
Entro no estabelecimento e o sino toca. Chloe está fazendo Molly rir
de algo. Olho ao redor e consigo ver a morena que vi do lado de fora em uma
mesa com dois caras altos e fortes. A ignoro e caminho em direção a uma
mesa qualquer.
Não demora muito para que eu seja atendido.
— Thurman's. O que quer? — A voz grossa é de Matt. Inclino a
cabeça em uma pergunta silenciosa: "é sério?" — Mesas Oito e Nove sob
minha responsabilidade — cantarola. — Yay...
Ele aperta o botão da caneta e me encara em busca do pedido.
— Quero ser atendido pela sua amiga — digo. Matt sorri e pega um
cardápio na mesa mais próxima, o abrindo.
— Hm... "Sanduíches... Entradas simples... Refeições"... não vejo o
prato "quero-ser-atendido-por-sua-amiga". O que deseja, Noah?
— Não vai conseguir me afastar dela. Sabe disso, não é? — questiono
e ele cerra os olhos, como uma ameaça. Estou sorrindo, porque é patético que
um anjo tente destruir o Diabo.
— Ei! — Chloe se aproxima, um sorriso largo em seu rosto. Sorrio
fraco de volta. — O que veio fazer aqui?
— Disse que queria me ver novamente — respondo. — Aqui estou
eu, meu anjo. — O sorriso dela triplica de tamanho. Chloe olha para Matt
quando ele resmunga algo, rola os olhos e se retira. — Qual o problema dele?
Finjo não saber.
— Matt é assim. Temperamental. Enfim... Veio me ver? — Ela cruza
os braços sobre o uniforme azul. — Uaaau.
— Sim, eu vim te ver. — Ignoro a sua ironia. — Como sempre. Você
nunca me procura. Isso está um pouco errado, não?
— Não acho. — Ela se aproxima da mesa, seus dedos sobre a
bancada. — Acho excelente que você esteja correndo atrás de alguém. Talvez
assim você perceba que o mundo não gira em torno do seu pinto.
Chloe não consegue manter a seriedade por muito tempo e acaba
sorrindo. E, fácil assim, um sorriso de canto surge em meu rosto.
— Quem disse que estou correndo atrás de você, ruivinha? —
provoco.
— Você. Não faz nem cinco minutos. Acaba de reclamar que
nunca, atenção, Noah, nunca fui atrás de você. — Ela conquista um sorriso
de canto em meu rosto de novo. — O que vai querer?
— Você não me atendeu assim da última vez — reclamo e Chloe
franze o cenho, sem entender. — Não tem uma frase sobre sorrisos ou algo
do tipo?
— Oh, sim. "Thurman's: onde você com certeza ganha um sorriso e
uma refeição".
— Onde está o sorriso?
— Usa a sua criatividade, amor, com certeza você é capaz de
imaginar um. O que vai querer?
Apesar de não ter usado amor num sentido romântico, mas irônico,
gostei do modo como falou. Chloe está esperando por uma resposta.
— Sair contigo próximo sábado. Ou, se puder, antes — digo. Chloe
morde o lábio inferior para esconder um sorriso. — Te deixo escolher o
lugar.
— Isso seria injusto. Eu escolhi da última vez. — Chloe anota algo na
folha de papel. Estou curioso. — Te mostrei o meu mundo, agora quero ver o
seu. — Me encosto no assento, ansioso para ver seu bloco de notas. Ela ri. —
Estou fingindo que estou trabalhando, Noah, fique tranquilo. Não escrevi
nada demais.
— Então, sim ou não? — questiono, desconversando.
— Sim. Posso sair contigo. — Chloe arranca a folha de papel e olha
ao redor por um segundo, a deixando sobre a mesa e a arrastando em minha
direção. — Estou livre hoje à noite, inclusive. — Pego a folha.
— Perfeito.
Chloe sorri de canto.
— Mais alguma coisa, senhor Hellmeister?
— Hm... Sinceramente? Não reclamaria de comer algumas
panquecas, meu anjo. — Ela assente e anda para trás, antes de girar o corpo e
caminhar até a bancada. Viro o papel, curioso.
"Está desenvolvendo a capacidade de não vestir ternos. 'Tô
orgulhosa. Essa camisa cai bem em você."
Tem uma carinha sorridente ao fim da frase. Rio nasalado e ergo o
olhar para a garota atrás do balcão. Chloe está rindo de algo que Molly diz
quando lança o seu olhar para mim.
Tamborilo a mesa esperando o meu pedido. É quando a morena que
entrou antes de mim passa ao meu lado. Encaro o seu corpo novamente e ela
para de andar, se virando para mim. Me surpreendo quando ela se senta à
minha frente.
Encaro Chloe de soslaio. Mitchell está fitando a cena com o cenho
franzido e não parece prestar atenção no que a sua amiga fala agora.
— Não disfarça seus olhares sobre uma mulher, não é mesmo?
O sotaque italiano me faz voltar a olhar a morena com curiosidade.
Ela tira os óculos escuros, revelando olhos extremamente azuis. Então,
mordisca a haste dos óculos, me observando como um pedaço de carne.
— Não disfarça seus olhares sobre um homem — retruco. Ela sorri de
canto. Então, fita a folha de papel em minha mão e, sem seguida, a mulher
atrás do balcão.
— Sua namorada? — Há curiosidade por toda a sua voz. Encaro
Chloe por um segundo e volto a encarar a italiana à minha frente.
— Não curto namoradas — me limito em dizer. E o sorriso no rosto
da morena cresce.
— Ótimo. — Ela abre sua bolsa, pega uma caneta e vira a folha de
papel em minha mão, rabiscando algo. — Estou aqui de passagem. Negócios.
Mas tenho algum tempo livre nessa cidade. — A garota me parece nova
demais para estar aqui a negócios, mas sei que não mente. Sei exatamente as
suas intenções quando me encara com interesse, seus olhos transbordam
luxúria. Ela não precisa dizer mais nada, mas diz: — Se preferir me olhar
mais de perto...
— Fácil assim? Não vai nem perguntar meu nome?
— "De que importa um nome, se uma rosa sob outra designação teria
semelhante perfume?"
— Shakespeare — identifico e ela assente, sorrindo com alguma
maldade.
— Não preciso do seu nome. Mas... Sei quem você é, Noah. Estou
pensando em expandir meus negócios para Nova York e conhecer clubes,
como o seu, é essencial. Eu só não esperava gostar tanto do que vejo.
Ela se levanta e pisca, caminhando em direção à saída. Fito a folha de
papel. Seu nome, honestamente, não me importa. Seu corpo, contudo, talvez.
Sorrio em direção ao sino que indica a sua saída. Ainda não estou planejando
ligar, mas meu ego agradece.
Chloe me disse para apresentá-la o meu mundo. Não sei direito o que
isso significa.
— O seu mundo é esse lugar — Kold diz. Bufo, fitando o
Purgatorium — digo, um por cento do seu mundo é esse lugar. Que é cem por
cento do que você pode mostrar.
— Ela conhece esse lugar, Koldelium — respondo, impaciente. A
minha amiga olha ao redor. — E duvido que ela queira voltar para cá depois
da morte do John.
— Ok. Tem razão. — Kold respira fundo. — Faça uma pequena festa
na sua casa. Apresente seus amigos.
— Não sei... Ela já conhece vocês. Além do mais, Chloe acha que eu
moro no prédio da tia dela — digo. Kold ri. Alto. — Ugh, eu te odeio.
— Noah, você conhece esse mundo inteiro de ponta a ponta. Conhece
toda a cidade. É só uma garota. Não é tão difícil escolher um local para um
encontro — ela fala.
Mordo o lábio inferior.
Não deveria ser tão difícil.

Bato na porta do seu apartamento. Ninguém abre. Franzo o cenho e bato


novamente. A porta atrás de mim abre. Chloe está vestindo um vestido preto
justo e curto, uma jaqueta jeans ao redor da sua cintura e os coturnos.
Consigo ver as suas tatuagens até a metade dos braços, onde as mangas
começam. Ela segura alguns dólares.
Os fios ruivos estão soltos, não muito arrumados, mas ela está linda.
Chloe abre a boca para dizer algo e um garoto loiro a abraça pela cintura.
Diria que ele tem sete anos.
— Não vá, Co! Você prometeu que a gente ia brincar de cabaninha —
o garoto pede e Chloe sorri para ele.
— Ei! Pietro, a sua mãe já chegou e eu tenho um compromisso. — A
ruiva se vira para o menino, o abraçando pelo pescoço. — Mas logo eu volto
para a gente montar uma cabaninha! Prometo. — Ela cruza os dedos e os
beija. O menino me encara, emburrado. Mitchell coloca as mãos no rosto dele
e as bochechas gordas do garoto ficam ainda maiores. Ela se despede com um
beijo na testa. — Nada de dormir tarde demais, ‘tá?
— Tá. Tchau, tchau, SuperCo.
— Tchau, tchau, SuperPietro. — Ela sai e o menino se afasta,
fechando a porta e me lançando um olhar mortal. Arqueio a sobrancelha, me
divertindo. — É o filho da minha vizinha. Cuido dele de vez em quando —
Chloe explica. Ela guarda o dinheiro na bolsa pequena de alças grandes que
carrega.
— Vocês parecem próximos.
— É... O Pietro me lembra o meu irmão — ela diz. E me surpreendo
quando sua boca se cola a minha num beijo breve e casto. Minhas mãos estão
em sua cintura. — Givenchy? — arrisca, sobre o meu terno.
— Como sabe? — brinco, e ela sorri, vitoriosa. — Não dessa vez,
meu anjo. Armani. — Chloe rola os olhos, desapontada, mas me beija
novamente. Aproveito cada segundo, não minto. É diferente. É diferente estar
assim com ela. — Você não está nada mal...
— É o máximo que consegue fazer para me elogiar? — pergunta, com
a boca quase contra a minha. — Vamos, Noah, sabe fazer melhor que isso...
— Fica muito gostosa nesse vestido. — Tento. A ruiva balança o
rosto em negação e acaba rindo, vermelha.
Então me encara, finalmente, e ergue a sobrancelha ao entrelaçar seus
dedos aos meus.
— Gostou? Macy's — ironiza.

Estamos num bairro que ela conhece bem. Chloe está cantarolando
The Chains baixinho e seus coturnos estão sobre o porta-luvas, mas eu não
me importo. Hoje estamos no Impala azul marinho.
— Uau, te peço para me mostrar o seu mundo e você me leva ao
meu? — Há sarcasmo por toda a sua fala. — Querido, você já foi melhor.
— Vou te mostrar o que meu mundo e o seu mundo tem de comum,
meu anjo. E, talvez, a gente consiga fazer disso um mini universo esta noite
— falo, atento ao meu caminho.
Chloe está me olhando e eu a encaro de volta. Acabamos por rir
nasalado sem nem sabermos por quê.
Não demora muito para estarmos na região das corridas. Carros ao
redor, música alta e algumas pessoas usando drogas. Nada disso realmente
capta a minha atenção. Saio do carro e, quando o contorno, Chloe já está fora
dele.
— Me explique: como me fazer correr contra você vai me fazer te
conhecer melhor? — ela pergunta, impaciente, contra o Impala.
— Parte do seu mundo é adrenalina. Todo o meu mundo é adrenalina.
Pensei em juntar o útil ao agradável e fazer a noite boa para os dois —
explico. — E não vai correr contra mim. Vai correr comigo — digo, a
puxando pela mão. Chloe não parece compreender.
Nos aproximamos do tal Grant, o cara que coordena o lugar. Ele está
fumando, encostado em uma caminhonete com alguns caras ao seu redor.
— Ora, ora! Duas das melhores pessoas que correram por aqui — ele
diz. Chloe sorri. — Estão namorando? — Fico meio desconfortável com a
pergunta e ela também. — Ainda não, huh? Bom, vão competir de novo?
— Eu vou correr. Hoje a Torn vai só observar — provoco Chloe ao
dizer seu apelido com vontade e ela finca as unhas em meu braço.
E, assim que pagamos, aguardamos a corrida no carro. Colocamos os
cintos. A morena com a bandeira se posiciona. Ela olha Chloe com um
sorriso maldoso. A encaro, rindo.
— Então? Ex namoradinha ou algo do tipo? — questiono. Chloe me
fita, sorrindo de canto.
— Nada sério. Naomi gosta de se divertir comigo de vez em quando
— Chloe explica. — Assim como você. — Gosto de como toda fala soa como
uma provocação. — O quê? Por favor, não me diga que está imaginando nós
duas transando.
— Não, não. Que ridículo! Claro que não. — Uno as sobrancelhas,
como se isso fosse um absurdo. — Nós três. — Chloe abre a boca ao máximo
e eu me preparo para ser estapeado, mas somos pegos de surpresa quando
vemos Naomi deixar a bandeira cair.
E eu largo em desvantagem. Tem um carro à nossa frente, outro bem
ao lado e um logo atrás — esse já perdeu, com certeza.
Na primeira curva eu consigo fazer o carro ao lado ficar ainda mais
em desvantagem, mas acabo batendo a traseira nele e a arranhando um
pouco. Chloe se vira para a cena antes de olhar para mim, em repreensão.
Gosto de competir e faço de tudo para ganhar.
As ruas passam com velocidade pelas janelas, tudo está deserto.
Chloe está com a mão no painel e o olhar por cima do ombro, como se
checasse se tudo atrás está ok enquanto eu foco na realidade à minha frente.
A sensação de estar perdendo faz meu sangue ferver. Quero e vou
ganhar. Preciso ganhar.
Agora temos um carro a nossa frente e ele está a dois metros da gente.
Respiro e vivo adrenalina nesse segundo. E sentir que Chloe também sente o
mesmo parece tornar o ambiente ainda mais excitante.
— A marcha, Noah! — Chloe indica, olhando ao redor. Ela fita por
cima do ombro. O carro de trás está se aproximando, mas eu só olho para o
da frente, dirigindo um pouco mais para a esquerda em busca de um espaço.
— Noah!
— Eu sei. Ainda não. — Mais um pouco...
— Noah!
Coloco a mão na marcha e Chloe faz a mesma coisa no exato segundo
que eu. Ela deixa sua mão sobre a minha e nós puxamos a marcha juntos.
Ganhamos mais velocidade pouco tempo depois enquanto o carro da frente
realiza a troca de marcha no tempo errado e perde velocidade na próxima
curva.
E é exatamente na próxima curva que sabemos: temos o primeiro
lugar, é impossível perdemos hoje. Chloe comemora e eu olho pelo
retrovisor, sorrindo para o filho da puta que está a uns dez a quinze metros da
gente.
Chloe aumenta volume do rádio que eu nem lembrava que estava
ligado e Livin On A Prayer passa a tocar no máximo. Ela começa a cantar e
balançar a cabeça, deitando as costas no banco e apoiando os pés no porta-
luvas como se meu carro fosse um reino e ela fosse a rainha.
E mal percebo que, quando passamos pela linha de chegada, estou
cantando baixinho também.

Ligo as luzes.
— Então esse é seu novo apartamento? — Chloe pergunta, na medida
em que o adentra. Confirmo, fechando a porta. — Uau — diz baixinho.
Meu "novo" apartamento. Seguro a vontade de rir.
O primeiro andar da cobertura é enorme. A sala tem janelas de vidro
de uma parede à outra, a vista de Nova York é espetacular. Tudo é meio preto
e cinza por aqui. Sofás de couro, tapete negro, piso de madeira escura e uma
sala de jantar que nunca usei. Ela desce o único degrau que separa a entrada
da sala e olha ao redor.
— Isso é muito maior que o apartamento da minha tia — observa. Me
aproximo. Chloe tem seus olhos atentos a cada pedacinho desse lugar. Passo
as mãos ao redor de sua cintura e a trago para perto.
— E temos a noite toda para que você conheça os dois andares. —
Mordisco o lóbulo da sua orelha. — Todos os cômodos... — Chloe suspira, a
sua mão vai ao meu pescoço. — Cada detalhe. — Beijo o seu ombro.
Ela se vira para mim. Chloe tem um sorriso divertido nos seus lábios
antes de me beijar. E, quando me beija, passamos a caminhar para a mesinha
ao lado do sofá. A ruiva se bate contra o móvel e nós rimos.
— Posso colocar uma música, se quiser — proponho. Ela morde o
lábio inferior, une as sobrancelhas e finge refletir.
— Perfeito. — Ela me dá um selinho.
Caminho até o som e tento sintonizar ele em alguma rádio
interessante. Está tocando o início de Twist and Shout dos Beatles, mas eu
mudo, girando o botão. Chloe se aproxima. Sua mão toca a minha e ela me
faz girar no sentido inverso.
— Não nos imagino transando ao som dessa música, meu anjo —
reclamo.
— Bom, podemos tentar — ela brinca, me puxando pela mão. —
Quero ver se você sabe se divertir, querido. — Faço uma careta e ela cola
meu corpo ao seu. — Well, shake it up, baby, now (bom, agite seu corpo
agora, amor), Twist and shout...
— Não sei dançar isso, Chloe. — Ela está sorrindo como nunca.
— Então aprenda — me provoca. Eu rolo os olhos e ela ergue meu
braço, girando e me trazendo para si. Minhas mãos vão ao seu quadril e ela
passa a rebolar, estou completamente travado. — Pare de ser sem graça!
Vamos! — Bufo e a giro.
Chloe está mexendo os pés contra o chão, os arrastando de um lado ao
outro. A trago mais para perto e ela se afasta, segurando a minha cintura e
tentando mexê-la de um lado para o outro. Começo a rir e tento imitá-la.
A ruiva está gargalhando alto. Estou rindo também quando a trago
para perto novamente. Chloe esconde a cabeça em meu ombro para rir.
— Para de rir da minha cara! — peço, rindo também.
— Desculpa! — ela diz, sem de fato conseguir parar de rir. Chloe
segura a minha mão e me faz girar. Ela segura as minhas duas mãos e
estamos mexendo os pés conforme a música. — Agora sim! Nada mal!
A giro novamente e ela cola as costas em meu peito. Seguro os seus
quadris e beijo o seu pescoço. Chloe ri e se vira para mim. Seus dedos
passeiam pelo meu corpo quando ela finge que vai descer até o chão.
Entretanto, Chloe somente me puxa mais para si, me fazendo dançar com o
corpo colado ao seu. Suas mãos vão ao redor do meu pescoço e as minhas em
sua cintura.
Somos ridículos nesse momento, mas confesso que é divertido.
— You know you twist, little girl (você sabe que se mexe, pequena
garota) — imito o cantor em seu ouvido e ela gargalha alto. Chloe tomba a
cabeça pra trás ao rir. — You know you twist so fine (você sabe que se mexe
tão bem)...
— Twist so fine (se mexe tão bem) — ela imita o backing vocal e eu
não consigo prender o riso. A ruivinha me cala com um beijo e a música
deixa de importar.
Ela pode me fazer dançar o que quiser.
— Come on and twist a little closer now (Venha e se mexa mais
perto). — ela canta, baixinho. E juro que soa como um segredo sujo e só
nosso. — And let me know that you're mine (deixe-me saber que você é
meu).
Estou lutando contra os sons que querem escapar da minha garganta.
É uma batalha árdua. Eu o sinto se mover dentro de mim e firmo as unhas em
seus ombros.
Cacete...
Estamos no meu quarto. As grades da janela permitem que a luz
externa, dos poucos postes da rua, marque a nossa pele de modo gradeado.
Essa luz ilumina a sua pele.
As semanas se passaram, a frequência dos encontros se
intensificaram, e eu acho que já conheço cada uma de suas tatuagens. A
minha preferida é a pequena adaga perto da entrada direita em seu quadril.
Acho sexy como o inferno. Ainda assim, deixo que minhas mãos reconheçam
todo o seu corpo em busca de mais desenhos. Quero sentir toda a sua arte sob
meus dedos.
Noah deixa seu nariz percorrer a curva do meu pescoço. Sinto a sua
respiração quente contra a minha garganta, a pressão crescer entre as minhas
pernas e os arrepios me fazem morder o lábio inferior com força. Tento me
conter quando seus dedos seguram o meu queixo e ele deixa um beijo no meu
maxilar, mas meu corpo responde a ele.
Noah está por cima de mim, nu. Eu estou sob ele, completamente
perdida em meus sentidos, enquanto ele desliza para dentro e para fora de
mim. Meus cabelos estão espalhados no travesseiro e eu tenho vista exclusiva
para um Hellmeister tatuado, que se movimenta como se o tempo estivesse
parado a nosso favor, como se o mundo fosse seu. Assistir Noah me foder é
como apreciar um espetáculo.
É como dança. Seu corpo se choca contra o meu, ele entra e sai de
mim com lentidão. E então acelera um pouco, entrando e saindo com mais de
força. Alguns gemidos baixos escapam da minha garganta, contra a minha
vontade.
— Preciso te ouvir, meu anjo — Noah sussurra, unindo nossas testas.
Seus lábios inchados estão próximos dos meus. Cravo as unhas em sua nuca e
braços, deixando o ar rasgar por minha garganta conforme ele entra e sai de
mim devagar. — Mais alto... — Arqueio o corpo para cima em busca dos
seus lábios, mas Noah me provoca e se afasta. Deixo um gemido baixo
escapar. — Está se contendo...
Não o respondo, mordendo o lábio inferior com força. Noah leva o
dedo ao meu clitóris e sua a testa à minha. O envolvo pelo pescoço,
mantendo o olhar conectado à sua boca.
A cama está rangendo baixinho. Não que eu me importe. Estou me
segurando forte para não chegar lá antes da hora quando ele reduz a
velocidade. Eu deito a cabeça no travesseiro e ele me pede para gemer toda
vez que me masturba e estoca fundo. Noah me pede para mostrar o quanto o
quero, o quanto quero que me foda ainda mais forte, ainda mais rápido, como
nunca.
E eu lhe dou exatamente o que ele quer, contra a sua boca, deixando
gemidos baixos, mas arrastados, implorarem por ele. E toda vez que minha
respiração rasga por minha boca, toda vez que arfo em desejo, ele consegue
me ler com precisão: eu quero mais.
Eu sempre vou querer mais. Principalmente, quando se trata dele.
Porque Noah é como uma dose viciante de uma droga, que uma vez dentro do
meu corpo, do meu sistema, ateia fogo em cada mísera parte do meu universo
e me enche de prazer. Nada me deixa tão entorpecida quanto ele.
Então, eu chamo o seu nome toda vez que ele estoca fundo, minhas
unhas afundam em sua pele sem piedade e eu me aproprio da sua boca
sempre que tenho chance. Noah é a minha droga favorita. E eu não me
importo com uma overdose.
Minha cabeça está em seu peito. Noah traga seu cigarro e eu faço o
mesmo com o meu, fitando o teto. O cinzeiro está sobre a cama. E eu vou ter
que limpar muito bem esse caos depois. Fizemos uma verdadeira bagunça. Os
lençóis amassados tentam nos cobrir do leve frio da noite, estou cansada
demais para fechar as janelas.
— Desde quando fuma? — pergunto, absorvendo a fumaça do meu
cigarro, deixando a nicotina me invadir.
— Desde quando descobri que cigarros existem — Noah responde,
indiferente. — E você?
— Há uns dois anos — respondo. Meu cigarro apaga sozinho e eu
franzo o cenho. Noah aproxima o isqueiro aceso da minha boca. E então o
fogo volta a me fornecer prazer. — Obrigada.
— Sempre ao seu dispor, meu anjo. — Há malícia no tom arrastado e
rouco da sua voz, então eu deixo um riso nasalado escapar assim que solto a
fumaça. Sinto a sua mão em minha cintura e ergo o olhar para ele como
posso, tendo que erguer a minha cabeça ao máximo para isso. Consigo vê-lo
tragar mais uma vez, antes de olhar o relógio sobre a bancada do meu quarto.
— Principalmente se quiser gemer meu nome daquele jeito de novo.
— Que jeito? Não me recordo. — Me faço de desentendida. —
Lembro da sua voz rouca dizendo o quanto poderia me foder a noite toda.
— E posso.
Sinto as minhas bochechas queimarem e meu corpo implorar para que
ele cumpra sua promessa.
Inferno... Controle-se Chloe.
— Duvido. — Traguei o cigarro, fingindo indiferença. — Sou muita
areia pro seu caminhãozinho.
— Convencida — cantarola, ainda que sério.
— Gostosa — provoco, o corrigindo.
— Verdade — ele confessa e eu rio de nervoso.
Meu corpo reage de modo único às suas palavras. E isso devia me
preocupar, mas ainda estou sob efeito de Hellmeister e a racionalidade está
perigosamente desligada. O analiso.
Noah acaricia a minha cintura, sob os lençóis, e me encara de volta.
Tem uma mecha de cabelo escuro caindo sobre a sua testa, a barba levemente
por fazer combina com seu rosto. Gosto dela. Principalmente, quando está
roçando por meu corpo.
— Mas eu realmente te foderia a noite toda. Só não sei se você
aguentaria. — Retoma a conversa, casualmente. Abro a boca, me fingindo de
ofendida.
— Cara, o quê?! Eu aguentaria dois de você, tá legal? — Minha voz
sai esganiçada demais.
— Sou único, meu amor. Edição limitada. Achei que tivesse
entendido isso quando minha boca estava entre as suas pernas. — Senti um
arrepio e desviei o olhar antes que eu ruborizasse. Meu cigarro acabou e eu o
joguei no cinzeiro, deixando-o ao lado da cama. Noah fitou as minhas costas
nuas. — Cacete... Você realmente é muito gostosa. — Mordi o sorriso, sem
encará-lo, jogando os cabelos para trás.
— Jura?
— Juro. — Ele traga o cigarro pela última vez antes de se esticar para
jogá-lo no cinzeiro, do meu lado da cama. E então se deita, de qualquer jeito,
seus olhos negros me encarando. Parece preguiçoso e tão cansado quanto eu.
Ainda assim está lindo, com seu cabelo bagunçado e seu sorriso presunçoso,
completamente perfeito.
— O que te dá mais prazer, Noah? — Viro o rosto para ele, por cima
do ombro. — Eu ou esse cigarro?
— Que pergunta estúpida, meu anjo. Droga alguma é como você. —
Ri nasalado, em descrença. Eu sabia que ele responderia algo assim, apenas
sabia.
— Sempre diz o que eu quero ouvir, huh?
— Sempre ouve o que eu quero dizer — ele retruca, se senta e dá de
ombros, unindo a boca à minha antes de levantar e começar a se vestir. São
3h23. Ele não vai dormir aqui. Obviamente.
Molly está gargalhando ao meu lado quando eu defino Noah e eu
como amigos-que-transam. Matt está sentado no chão, enfiando os palitinhos
no pote de yakisoba. Estou no sofá do meu apartamento, Molly tem os pés no
meu colo enquanto come a comida chinesa.
— Uma amizade colorida — repito, levando uma pequena porção do
yakisoba à boca com os palitos. Está bom pra caralho. Deixo um pequeno
gemido de prazer escapar e volto a encarar Molly. Engulo a comida. — Veja,
Noah e eu não somos um casal. Não temos vocação para isso.
Juro que estou tentando acreditar em minhas próprias palavras.
— Mas o sexo é maravilhoso — Molly acrescenta e eu bem que tento
morder o sorriso pecaminoso em meus lábios, mas é tarde demais.
O sexo com Noah é surreal. O modo como ele me toca, me sente, me
beija... Pensar em Hellmeister faz arrepios tomarem o meu ser e memórias
invadirem cada pedacinho da minha mente. Noah mora em cada trechinho do
meu cérebro, ele está em cada um dos meus desejos no momento, negar seria
ridículo.
Ele me toca como se eu fosse a única mulher na Terra. Seus dedos
traçam caminhos por minha pele, cada falha e curva. Traçam rotas sobre mim
que me fazem viajar.
Noah transforma o meu universo em seu parque de diversões, usando
do meu corpo para se divertir, é fato. Sei que ele me usa por prazer. Eu o uso
de volta. E somos isso. Dois amigos que se usam.
Só que... O desgraçado parece me conhecer tão bem, como se ele
tivesse criado um mapa para o mundo Chloe Mitchell e soubesse os melhores
caminhos, o melhor jeito de me conduzir e se conduzir ao delírio.
Sexo com Noah é extraordinário. E ainda tem as conversas após o
sexo, quando eu estalo os seus dedos e ele prova um cigarro com tanto gosto
quanto me provou. Dividimos o prazer da nicotina como dividimos nossos
desejos. E, no fim, cada um vai para o seu lado.
É como funcionamos.
E é por isso que não temos vocação para sermos um casal, certo?
Certo, Chloe.
Foque nisso, garota.
— Vão se encontrar essa semana de novo? — Matt pergunta e eu
nego.
— Acho que não. Não combinamos nada. Além disso, eu não vou
correr atrás do Noah, que nem eu fiz com a... Dalia. — Franzo o nariz em
desgosto. — Ou viraria um vício. Infelizmente, me conheço. Chloe Mitchell
sempre atraída por problemas com sorrisos maldosos e sarcasmo na ponta da
língua. E se eu corro atrás desses problemas...
O silêncio entre meus amigos não me machuca tanto. Eles não podem
negar que é verdade. Não costumo me apaixonar, não. Não desde Dalia, a
minha ex. Ainda assim, só me relaciono com pessoas erradas. É como se a
minha alma fosse um imã para problemas.
A minha regra, entretanto, é nunca telefonar para o problema. Nunca
correr atrás. Não é difícil admitir o porquê dentro da minha própria mente,
mas se perguntarem, eu não direi em voz alta. E o porquê é que a tão corajosa
e aventureira Chloe Mitchell tem medo de não só se sentir atraída por um
problema, mas se apaixonar por ele.
Eu conheci tão bem o gosto de um coração partido. Consigo senti-lo
em meus lábios só de pensar. É como sangue, mas um pouco amargo. E cria
uma cascata de dor por seu corpo que, sinceramente... Não quero isso para
mim novamente. Foi o que me impeliu a vir para Nova York em primeiro
lugar: um coração partido. Me reconstruir no lugar em que sempre sonhei foi
mais que um desejo, mas uma necessidade.
Não quero ter que me reconstruir de novo. Então, não quero me
apaixonar tão cedo. Principalmente, por um cara como Noah Hellmeister.
Não vou correr atrás dele.
Então, se Noah quiser me ver, ele vai aparecer pela porta do
Thurman's com seu maior sorriso debochado e seu terno bem cortado, com
seus olhos escuros cravados em mim. Eu não vou telefonar. Porque somos
amigos coloridos e eu quero manter assim. Já tenho medo o suficiente por
todas as vezes que ele me faz sorrir sem querer ou toda vez que me arrepia
com seu toque.
Estou evitando ao máximo correr atrás de Noah Hellmeister. Não
posso fazer isso...
O telefone me faz estremecer em susto e eu quase derrubo a comida
chinesa em meu colo. Ele está tocando sobre a mesa em frente ao sofá.
— Dez dólares que é o Noah — Molly diz, um sorriso maldoso em
seus lábios. Mordo o lábio inferior, hesitante em atender. — O telefone não
vai explodir.
— Você não pode garantir isso — Matthew rebate, parecendo
subitamente irritado, carregado de ironia por sua fala cansada e arrastada.
Noah nunca me ligou. Sempre foi o Sinn ou a Kold... Mas nunca
Noah. Apesar de ter meu número há um bom tempo.
Molly tira os pés do meu colo. Coloco a caixa do yakisoba sobre a
mesa e os hashis dentro dela. Respiro fundo e pego o telefone.
Falando no diabo...
— O que está fazendo, meu anjo? — Fecho os olhos, amaldiçoando
os arrepios que se espalham só de ouvir a voz do filho da puta. Escuto Molly
comemorar baixinho.
— Jantando com a galera. — "Galera", Chloe? Jura? Pigarreio,
levando uma mão a nuca, tensa. — E você?
— Estou sozinho no meu apartamento. Pensei em... Sei lá, te
apresentar ele.
— Conheço seu apartamento, Noah...
— Pode sempre conhecer melhor. — Algo entre minhas pernas
concorda plenamente e eu encaro Matt, mordendo o lábio inferior com
alguma força. — Bom, se quiser aparecer aqui depois do jantar, minha casa
está de portas abertas. O meu quarto também.
Me levanto do sofá e sigo até à varanda, um pouco nervosa.
— Não cansa de ser sem vergonha, Noah? — pergunto, deixando um
sorriso escapar, e o escuto rir do outro lado.
— Não precisamos ter vergonha um com o outro, meu anjo. Eu te vi
nua. Você me viu nu. Eu te ouvi gritar o meu nome... — Céus. — Pedir por
mais... Vi todo pedacinho seu. Desculpa, falei algo errado? — Respiro
fundo. — Parece ofegante, ruivinha. Eu disse algo errado?
Não posso correr atrás dele.
Não posso correr atrás dele.
Não posso correr atrás dele.
Não posso correr atrás dele.
— Bom, estou te esperando aqui. É muito triste ficar sozinho no
apartamento com uma garrafa de vinho, entediado...
— Triste? — Tento me recompor. — Vamos, Noah, você tem outras
garotas que...
— Oh, vamos parar aqui, meu anjo: eu tenho outras meninas que
poderiam me satisfazer e você tem outras pessoas que poderiam facilmente
estar na sua cama agora. Mas eu quero você nesse segundo. A pergunta é: o
que você quer? — Não respondo, só respiro fundo, o mais fundo que
consigo. — Bom jantar, ruivinha.
A ligação se encerra. Ele não me dá a chance de procurar por uma
resposta. Me viro e sigo para a sala. Me jogo ao sofá, subitamente sem fome.
— Vamos jantar rápido porque a Chloe vai transar, ok Matt? —
Molly provoca e eu rolo os olhos. — Não vamos empatar foda.
— Não, eu vou jantar bem devagar. Ela mesma disse que não vai atrás
dele mais — Matt responde, de boca cheia.
E eu fico aérea por todo o jantar.
E permaneço distraída quando eles se despendem, e mesmo após
entrar no meu carro e enquanto faço a Shelly se mover por Nova York.
Continuo aérea mesmo quando estou em frente ao seu prédio, elevador e
porta. Parece que só percebo o que estou fazendo quando toco a campainha e
me arrependo.
Me arrependo para cacete.
Porque a porta se abre e o sorriso que me recebe faz meu coração
acelerar mais do que devia. E eu sei que corri atrás. Apenas espero que isso
não se torne um vício.
Mas Noah é uma droga. Uma droga sem camisa e enrolada na toalha,
com pingos de água descendo quente por seu corpo e tatuagens, seu perfume
inconfundível e o maldito deboche apaixonante em seu sorriso.
— Boa noite, meu an...
— Cala a boca — mando, e bato a porta atrás de mim assim que tomo
a sua boca. A sua toalha cai e Noah sorri por entre o beijo, aprovando a
minha urgência.
Eu corri atrás dele.
Eu 'tô fodida.

Como transamos na casa dele, é a minha vez de sair daqui. É como


uma amizade colorida funciona. E é isso o que temos, certo? Exatamente
isso.
O cinzeiro com cigarros está do meu lado, Noah está deitado e parece
sonolento. Nunca o vi dormir. Bem, óbvio que nunca o vi dormir, porque nós
não dormimos juntos no sentido literal da palavra. Suas pálpebras estão
pesadas e ele está de lado, me analisando enquanto eu termino o meu cigarro,
sentada, um lençol cobrindo o meu corpo. Por algum motivo, eu me vejo
torcendo bastante para ele demorar em acabar.
A minha mente é dividida em: "Chloe, corra daí" e "não há nada
demais em ficar".
O tempo se arrasta. Acho que a sua intenção é me torturar e rir da
minha cara. O tempo é um filho da puta.
Respiro fundo, exausta, me forçando a pensar direito, parando de
fumar e queimando o cigarro contra o cinzeiro, na bancada ao meu lado. São
1h34. Preciso dormir em casa, trabalho amanhã cedo. Faço menção de
levantar e recolher a minha roupa do chão. Sinto seu olhar queimar sobre
mim. Respiro fundo, é só uma impressão, ele provavelmente está dormindo.
— Fique. — Sua voz ecoa. Olho para trás. Noah se ajeita sobre a
cama, seus olhos fechados, preguiça se arrasta por toda a sua fala e a
bochecha amassada pelo travesseiro. Visto a camisa, balançando a cabeça em
negação. E se acho que eu entendi errado, ele repete: — Por favor, fique. —
Ele parece estar sonhando, seus olhos estão fechados. Ele provavelmente não
sabe o que está falando.
Respiro fundo e me deito à cama, sob os cobertores, alisando o seu
rosto, apenas para que ele desperte e eu possa dizer que estou indo embora.
Uma mecha do seu cabelo lhe divide a testa, sua bochecha ainda está
amassada pelo travesseiro e cada pequena sarda leve em seu rosto me cativa.
Noah me envolve pela cintura e repete:
— Fique.
E eu fico.
Eu durmo entre seus braços.
Eu durmo entre os braços do problema.
Acordei com Chloe entre meus braços e fiquei um pouco confuso de
início. Porque ela não estava me abraçando, eu estava a abraçando. E Chloe
dormia tranquilamente, serena como nunca.
A surpresa foi que não senti aversão alguma, só uma estranheza. O
que passou rapidamente, porque me vi imerso nos detalhes do seu
rosto. Cada mísero detalhe.
Logo me afastei, achando patética a situação. Fiz isso devagar, para
não acordá-la. Decidi tomar banho no outro quarto exatamente pelo mesmo
motivo. Então fui fazer um café, vestindo apenas as calças de moletom,
deixando a preguiça ir embora.
Eu estava colocando o café pronto em uma caneca quando senti mãos
ao redor do meu corpo. Tomei um susto e franzi o cenho por um segundo.
Me assustei quando dei de cara com a Kold. Ela deu uma gargalhada,
jogando a cabeça para trás.
— Não é a sua ruivinha — ela sussurrou, provocativa. Vestia apenas
uma camiseta longa. — Cheguei ontem à noite, de madrugada. A tempo de
ouvir alguns gemidos. Cara, ela geme gostoso, huh?
— Koldelium! — exclamei, irritado.
— É a verdade. Eu te prometo que um dia ouvirei esses gemidos de
perto, Noah... — Desejo vibra por sua voz, o que me incomoda levemente.
— Se você não parar, eu juro que... — E então vimos, pela grande
porta da cozinha, uma pessoa tentando correr despercebida da escadaria da
cobertura até a saída. Uma pessoa que tinha seus sapatos nas mãos e estava
na ponta dos pés. — Chloe?
E aqui estamos nós. Eu, Chloe e uma Kold que nos encara como se
assistisse a um filme de comédia.
A ruiva para no meio do caminho e eu consigo escutá-la xingando
baixo ao mesmo tempo em que Kold ri. Chloe se vira lentamente e força um
sorriso, perdendo-o ao ver Kold. Não é ciúmes, parece surpresa.
— Eu estou... Revezando entre morar aqui e na casa do Sinn —
Koldelium explica. Chloe me encara, em busca de uma explicação minha. Eu
não tinha dito isso e bem... Eu deveria ter dito. Kold poderia ter entrado e me
encontrado com a cabeça entre as pernas de Chloe Mitchell, quando
transamos pela primeira vez ontem à noite, sofá da sala.
— Ela ‘tá morando aqui às vezes — começo, antes de me dar conta
que estava repetindo exatamente o que Kold disse. Grande Noah! Parabéns.
Chloe cerra os olhos e eu consigo ver um "jura?" silencioso por eles.
— Então... Uau, já estão dormindo juntos? — Koldelium provoca,
mudando de assunto com um sorriso vil no rosto. Ela rouba a minha caneca
de café, dando um longo gole em seguida. — Isso aqui está muito bom. Quer
um pouco, Chloe?
— Eu estou atrasada — Chloe diz, vermelha e envergonhada. Eu não
sei muito bem como reagir. E Kold está me olhando de um jeito que não
ajuda. — E a gente não dorme junto, n-normalmente. O Noah me pediu para
ficar e eu estava cansada, daí...
Kold arregala os olhos azuis em minha direção.
Eu fiz o quê?
— Eu não pedi nada — interrompo a ruivinha.
— Pediu sim — Chloe diz, se aproximando. — Você me pediu pra
ficar, Noah. Com todas as letras possíveis.
— Oh, isso só fica melhor! — Kold abre um sorriso maldoso por trás
da caneca.
Eu estava abraçado Chloe quando acordei. Provavelmente é verdade,
certo?
— Merda — murmuro, e Chloe cerra os olhos. — Pode ser verdade.
— A ruivinha ri nasalado e eu me aproximo.
— Ter vindo ontem... Foi impulsivo da minha parte. E dormir aqui foi
pior ainda. — Chloe fecha os olhos. — Eu não deveria estar me explicando,
não é?
— Não, mas isso está me divertindo — brinco, e Chloe abre os olhos,
me encarando torto. Ela olha para Kold por cima do meu ombro, que desvia o
olhar e se vira de costas. Chloe bufa e eu a encaro. — Eu... Veja... Sobre ter
pedido para você ficar...
— Noah, olha... Eu sei que você não quer passar a impressão errada e
tudo mais e... Sei lá... Vai ver eu escutei errado, ‘tá legal? Enfim, 'tô atrasada.
Falou! — Ela dá de costas, fazendo um sinal de paz. Eu bufo, inconformado.
"Falou"?
— Vamos, Chloe, não está tão atrasada assim. Ainda é muito cedo. —
Ela para no meio do caminho. — E não precisa ficar constrangida por ter
dormido aqui. Isso não muda nada entre nós. — Escuto um riso atrás de mim
e Kold o reprime com a mão. Inconveniente pra caralho. Chloe se vira para
mim e eu abro os braços. — Foi só uma noite.
Então a ruivinha ri nasalado, balança a cabeça em negação e me deixa
sozinho, no meio da sala.
Que porra eu fiz?
— Você não consegue fazer nada direito? — Kold me pergunta e eu
rolo os olhos ao me virar. — Pediu pra ela ficar, huh?
— Tudo parte do plano, Koldelium, tudo parte do meu plano — me
limito em dizer, saindo da sala antes que Kold me pegue em minha mentira.

— Então? Algum avanço com a Chloe? — Sinn me pergunta, sua


sobrancelha arqueada sugestivamente. Confirmo, silenciosamente, enquanto
andamos pelo corredor do Inferno.
O fato é que não estou certo de quantas casas avancei nesse jogo ao
pedi-la para dormir ao meu lado, do mesmo jeito que não sei quantas recuei
ao dizer tudo o que eu disse mais cedo.
As paredes beges do palácio passam por nossos olhos à medida em
que andamos firmemente. E quando chegamos ao fim do corredor, abro as
portas duplas que vejo Theo e Luke conversando. O meu irmão está
ocupando a cadeira da minha biblioteca, jogando uma caneta para cima e para
baixo. Já Luke está entretido em folhear uma página qualquer do livro.
— Estão todos aqui? — Kold questiona, entrando por último e
fechando as portas atrás de nós. O silêncio confirma que sim e ela suspira,
caminhando até a mesa. Kold cruza os braços cobertos pela jaqueta de couro
e me encara. — Houve um ataque rebelde em Nova York e em breve você
deve ser interrogado novamente, Noah. Foi um segurança do Purgatorium. O
sétimo desde John.
Sete vítimas.
Caralho...
— Carter, Brad... Hm... Espera, o Finn? — Luke finalmente acerta e
Kold assente. Ele faz um bico. — Aff, gostava dele. Ele levava chocolates.
— Rolo os olhos com sua insensibilidade e Luke se senta sobre a mesa. —
Isso é complicado. Se esses ataques continuarem fora do controle, o pessoal
do Céu pode pensar em intervir em nossos assuntos e isso vai ser... Eu já
disse complicado?
— Não vai acontecer. Céu é Céu, Inferno é Inferno — garanto e todos
me encaram. Tiro o paletó, o jogando sobre uma cadeira, e ergo as mangas da
camisa social, caminhando para a estante muito bem conhecida. Tiro o livro
que quero e o levo para a mesa. — A verdade é que precisamos descobrir
quem comanda os rebeldes e para isso precisamos descobrir tudo que eles
sabem. Começando por isso aqui. — Deixo o livro sobre a bancada e o
barulho ecoa pela sala. Kold arqueia a sobrancelha para mim. — Eles sabem
que eu quero poder e eles sabem que eu vou conseguir isso através do meu
coração, não é? Quando eu o sentir novamente. E eles sabem também que
isso tem a ver com a Chloe.
— E eles sabem exatamente como — Sinn diz o óbvio. — Já sabemos
disso, Noah, qual o seu ponto?
— O meu ponto é... — Encaro Sinn. — Se eles sabem que "a Chloe é
a resposta", e que ela vai me dar o poder que preciso, então por que eles não
eliminam a fonte dos seus problemas?
O silêncio toma a sala. Por que diabos não mataram a Chloe ainda?
Kold e Sinn se encaram, Luke e Theo também. Eles estão pensando, mas
ninguém sabe a resposta. Nem eu.
— Eles estão mais imprevisíveis do que nunca — Kold reclama.
— Estão mesmo? — questiono, franzindo o cenho. — Eu tenho uma
teoria: Chloe não é só um assunto do Inferno.
— Ela também é um assunto do Céu — Theo deduz, pela primeira
vez sendo inteligente em toda a sua vasta vida. — E se mexerem com o Céu...
— O Céu intervém. Com isso, uma guerra pode se iniciar ou o pode
nos ajudar a acabar com a revolução deles — Kold conclui. — E sabemos por
que a Chloe é um assunto do Céu, certo?
— Exato — digo. — Matar a Chloe é a última opção deles. A última.
E eles sabem que eu estou perto de conseguir o que eu quero, então estão
arranjando novos métodos de chamar a minha atenção. Inicialmente, matando
alguém próximo a ela. Eles querem me impedir de me aproximar ainda mais
da Chloe, querem que eu pense que vão matá-la, talvez, mas eu sei que não.
Em algum momento, vão se cansar de aniquilar humanos quaisquer para
mandarem recados mais sangrentos, específicos, agressivos... O que eu não
sei é: qual o próximo passo deles?
— Eles vão tentar atacar mais alguém próximo a Chloe. De novo.
Alguém ainda mais próximo — Sinn diz. Todos nós o encaramos. — É
óbvio, Noah, eles vão mirar na Molly ou no Matt.
— Não podem atacar o Matt — retruco. — Ele é um anjo.
— Molly — Luke deduz. Todos concordamos silenciosamente. —
Então, o que fazemos?
Pensamos por um segundo.
— Precisamos nos aliar ao Matt — Kold diz, claramente contrariada.
Eu rio nasalado. Me aliar a um anjo? — Ele é amigo da Molly e vai conseguir
protegê-la mais de perto e nós tentamos manter a vigilância com certa
distância. Assim, podemos tentar identificar algum rebelde próximo.
— E esperamos o momento certo para contra-atacar? É uma manobra
arriscada — Sinn responde de imediato. — A garota pode morrer se Matt for
incapaz de lidar com essa situação, porque podemos não chegar a tempo de
ajudar. Estamos falando de demônios rebeldes extremamente bem treinados.
Rebeldes que matariam uma humana num piscar de olhos.
— Sinn está certo — digo, fazendo Sinn sorrir convencido e Kold
rolar os olhos. — Assim como a Kold. — E então o inverso ocorre. —
Precisamos nos aliar ao Matt e de vigilância em torno da Molly, mas isso não
é o suficiente. Também precisamos alcançar eles, antes que cheguem a esse
próximo passo. Temos que encontrá-los.
— E como faremos isso? — Theo pergunta e eu rio.
— Você não vai fazer porra nenhuma, maninho. Tudo o que vai fazer
é verificar se não há algum infiltrado pelo Inferno e no Purgatório, garantir
que não há rebeldes dentro do nosso território. A gente cuida do resto.
— Posso ajudar o Theodor, se ele quiser — Luke propõe. — Não sei
se os rebeldes seriam burros o suficiente para se infiltrarem por aqui, mas
dois conseguem investigar melhor do que um.
Paro para pensar e acabo por assentir. Theo bufa, possivelmente
descontente por eu não confiar uma missão inteiramente a ele. Contudo, eu
apenas o ignoro, voltando a alternar o meu olhar entre Sinn, Kold e Luke. E
então os conto os meus pensamentos:
— Talvez, se descobrirmos exatamente quem roubou as páginas do
livro da Chloe ou conseguirmos identificar como ela vai fazer o meu coração
bater, seja possível entendermos melhor toda essa situação. Quem sabe até
matamos dois coelhos com uma cajadada só: eu consigo o meu poder por
completo e nós compreendemos os planos dos rebeldes, antecipamos os seus
passos. De qualquer forma... Penso que muito do que precisamos saber está
aqui. — Meu indicador toca o Livro do Destino da Chloe.
Kold se aproxima, cautelosa. Ela folheia o livro e para logo nas
primeiras páginas. Seu indicador com a unha pintada em preto traça um
caminho pelas folhas arrancadas e ela me encara, confusa. Então Luke se
intromete:
— Eu estive com o livro nos últimos dias e varri tudo quanto era lugar
por folhas avulsas. E nada. Eu nem sabia que era possível arrancar folhas
desse jeito, sem deixar rastros... Ninguém entra e sai desse lugar
despercebido, certo?
Sua pergunta me faz analisar cada rosto aqui. Fito Theo, que está
analisando as suas unhas, os pés apoiados na minha mesa.
Folgado pra cacete.
Eu sei que ele é tão inútil que provavelmente não vigília essa droga de
biblioteca. Vejo Sinn coçar a cabeça, pensando o mesmo que eu: Theo é
inútil.
— Theo, precisa colocar seguranças em frente à biblioteca — Sinn
diz e Theo ergue a cabeça, quase derrubando tudo na mesa com os pés.
— Ah, s-sim, claro — ele responde.
— Precisamos descobrir com quem está as páginas do livro da Chloe?
Sim. — Retomo. — Mas temos que saber principalmente o conteúdo delas.
Eram folhas iniciais, então falavam do nascimento dela. Sabemos pouco
sobre isso, tudo o que sabemos veio do...
— Matt — Kold conclui. Sorrio em confirmação. — Então
precisamos definitivamente dele conosco.
Confirmo, a contragosto. Afinal, convencer um anjo a se aliar aos
demônios não vai ser fácil. Principalmente Matthew Letterman.

Entro no Thurman's ao lado de Sinn e Luke. Kold decidiu se divertir,


brincando um pouco no Inferno. O sino fez Chloe erguer o olhar para mim de
imediato. Ela estava no caixa. Estranhamente, eu não a procurava dessa vez.
Ainda assim, meu olhar foi seu, completamente seu.
Eu sorrio de canto.
Ela dá as costas e deixa o caixa vazio, se fechando na cozinha. Franzo
o cenho sem entender. Mulheres são complicadas para cacete.
— Ali. — Sinn tira a minha atenção ao acenar com a cabeça para
Matthew Letterman. O anjo está voltando para a bancada do caixa com uma
bandeja vazia e perde o sorriso quando me encontra.
— Merda — Leio por entre seus lábios, sorrindo ainda mais.
Caminhamos em sua direção e ele passa a andar rápido para trás do balcão,
mas Sinn disfarçadamente o alcança quando o segura pelo avental. — T-
Thurman's, como posso ajudar?
— Sem gracinhas, Matt Matt. Viemos conversar — digo, encarando
Sinn para que ele solte o garoto.
Algumas pessoas nos assistem, como Molly, que agora sai do
banheiro feminino. Ela cerra os olhos em nossa direção ao passar por nós e
caminhar até cozinha. A garota nos olhou como se fôssemos extraterrestres.
Sinn solta a camisa de Matthew.
— E esse é o nosso assunto — meu amigo explica, acenando para a
garçonete com a cabeça, discretamente. Já o anjo parece demorar um pouco
para compreender.
— A Molly? — Matt pergunta finalmente, se virando para mim.
Confirmo.
Indico uma mesa com a cabeça e ele se aproxima dela, tirando o
bloquinho de notas do bolso do seu avental ao começar a fingir que anotaria
nosso pedido. Nos sentamos.
Meu olhar crava na porta quando Molly sai por ela, mas Chloe não. E
os garotos começam a explicar a situação para Matthew. As vozes parecem
distantes enquanto fito a porta.
Foco em outro som.
— Só quis ouvir a sua voz. — Escuto a Chloe, no outro cômodo.
— Como foi a escola hoje, Ben? — Ela fala com o irmão. — Jura? Aprendeu
a dividir? Caraca, você já é um homem! Sério! Poucos adultos sabem
dividir, eu juro. E como a mamãe está?
Oh, oh... Seu coração bate diferente, meu anjo.
Isso é angústia.
— Oi, mãe. Uhum. Também amo você. — E então seu coração acelera
— Eu juro, mãe. Amo você. Juro. Não... — Eu acho que a mãe dela está
brigando com ela.
Não sei o motivo, mas deve ser isso, porque a garota tinha uma voz
um pouco chorosa. Respiro fundo, um pouco ansioso. Uma fala me traz de
volta à Terra:
— A Molly?! — Matt exclama e eu desvio o olhar rapidamente para
ele. Algumas pessoas do restaurante nos encaram. O anjo pigarreia e reduz o
tom de voz. — A Molly? Ela corre perigo? Por sua causa? — Sinto a
acusação enquanto ele me encara.
— Pode falar baixo? — peço. Ele bufa, contrariado, olhando ao redor.
— Queremos a sua ajuda. — E então ele ri, balançando a cabeça em negação.
— Inacreditável!
— É sério.
— Você quer a minha ajuda.
— Foi o que eu disse.
— Foi o que eu ouvi — responde, irônico.
— Dá para dizer se vai nos escutar e nos ajudar ou não?
— E eu tenho escolha, Noah? Você vem e anuncia que minhas duas
melhores amigas estão no meio da porra de uma confusão que é inteiramente
sua culpa, depois que um dos únicos caras que me tratou bem nessa cidade
morreu e que, aliás, o coração dele está desaparecido por sua causa. Eu tenho
escolha?
— Uau, você me odeia mais do que eu imaginava.
— Não é sobre odiar você, não só isso. É que é injusto pra cacete
saber que as pessoas que aprendi a amar vão sofrer porque o Diabo não sabe
conter sua ganância por poder. Porque o Inferno espalha seu caos pela Terra.
Não é sobre odiar você, Noah, o mundo não gira em torno das suas bolas,
nenhuma delas é a porra do Sol. É sobre estar puto porque tenho medo de
perder quem eu amo. Já passou por isso alguma vez na porra da sua vida?
Cravo as unhas em minha mão e ouço Sinn murmurar por calma e
segurar o meu pulso. Luke está me encarando estranho e percebo que Matt
passou a fazer o mesmo.
Pessoas precisam tomar cuidado quando dizem o que acham que é
verdade. Muito cuidado. Principalmente, se for para mim.
— Noah, seus olhos estão vermelhos — Matt conta, entre os dentes.
Desvio o olhar, ainda com o maxilar trincado. — Certo, passei dos limites.
Por favor não coma as minhas vísceras.
Respiro fundo. O encaro novamente e Matthew parece nervoso
quando coça a nuca, olhando ao redor.
— Vou proteger a Molly do mesmo jeito que protejo a Chloe —
anuncia ele. — A minha vida está abaixo das vidas delas, eu prometo. E não
prometo a vocês, prometo a mim mesmo. Eu não sou nada sem essas garotas.
E não espero que você me entenda, Noah. Mas você tem a sua família, não
tem? — Ele acena com a cabeça para os garotos na mesa. — Não faz ideia do
que seja isso? Do que seja ter uma família de verdade?
Sinto que Matt está dizendo isso para que eu me afaste da Chloe e de
toda a situação, para que eu desista de meus objetivos. Mas é muito difícil
desistir se algo que você quer há tanto, tanto tempo. Eu quero sentir o meu
coração batendo o mais forte possível, porque eu quero poder. E eu vou
conseguir.
Percebo o olhar dos garotos sobre mim, mas não confirmo nem nego a
fala do anjo. Matt suspira, como se desistisse de tirar algum sentimento de
mim. E ele sai da nossa mesa no mesmo instante em que Chloe sai da
cozinha.
O nariz da ruivinha está vermelho, assim como a área dos seus olhos.
Demora segundos para Matthew estar junto dela, como se quisesse pegá-la no
colo para confortá-la ou algo do tipo. É perceptível o quanto o celestial gosta
da ruiva. É perceptível demais.
— O que aconteceu? — Escuto Matt questionar, de longe, segurando
os punhos da menina e a impedindo de esconder seus olhos. Chloe prende um
soluço e balança a cabeça em negação, como se não quisesse falar sobre.
— Noah, Noah, não... — Sinn tenta segurar o meu braço, mas eu
escapo e em questão de segundos estou contra a bancada do caixa.
— Anjo? — A palavra escapa da minha boca.
Chloe me encara e Matt também. Ele franze o cenho para mim ao
máximo, como se não entendesse o que ainda faço aqui, como se eu fosse a
última pessoa na Terra que ela quisesse ver.
Chloe espera que eu diga algo e eu abro e fecho a boca algumas
vezes. Ok, não pensei no que dizer.
— Matt, eu poderia conversar contigo? Tem algo no cardápio que não
estou entendendo. — É a voz de Luke que ecoa ao meu lado. Matt hesita por
alguns segundos, mas surpreendentemente concorda quando Luke pigarreia
com vontade e o segue.
Então eu e a ruiva temos alguma privacidade. Ela passa as mãos no
seu rosto e prende o cabelo em um rabo de cavalo, claramente tentando fingir
que nada está acontecendo.
— O que houve?
— Não é da sua conta, Noah — ela diz, sem me encarar, e caminha
para o caixa. Fico de frente para este. — Não cansa de me perseguir?
— Ouch. Alguém está de mau humor! — provoco, sorrindo. — Não
sei se isso foi para me afastar, ruivinha, mas eu sou louco na sua língua
afiada. — Ela bufa e ergue os olhos vermelhos para mim. — Eu te dei o meu
ombro para chorar uma vez. Somos amigos... Lembra? — Um brilho em seus
olhos some.
— É, somos. Amigos. — Ela desvia o olhar. — Não foi nada. De
verdade. E se quer saber, Noah, não acho legal que venha me ver assim, no
trabalho... — Chloe está me dando um fora? Uno as sobrancelhas, sem
entender. — Não posso parar a minha vida por nada. Muito menos por sua...
Amizade.
Ela está especialmente grossa hoje. Todas as suas barreiras estão
erguidas em uma muralha forte e equipada com suas melhores armas. Eu sou
só um cara na linha de frente. E ela está à procura de qualquer vítima para ser
alvo de disparo.
— Se me atacar é terapêutico, então pode fazer isso o dia todo —
digo, e ela volta a me encarar.
Chloe fica algum tempo me fitando, como se eu fosse um enigma.
— Por que faz isso, Noah?
— Isso o quê?
Ela suspira. Uma mecha lhe cai sobre a testa e ela a coloca atrás da
orelha, suspirando pela segunda vez em menos de um minuto. Bufo e dou a
volta na bancada, sem pensar muito.
— O que está fazendo?! Aqui é só para funcio... — Seguro os seus
pulsos e os coloco em meus ombros. A envolvo e uno meu corpo ao seu em
um abraço.
Chloe perde a sua fala e fica parada por um tempo.
Sinto o seu perfume quando meu nariz quase toca o seu ombro.
Eventualmente ela se amolece em meus braços e afunda a cabeça em meu
ombro, devolvendo o abraço. É bizarro. Mas de um jeito bom. E então ela
ergue o rosto ao meu e eu não resisto em unir meus lábios aos seus. A
ruivinha deixa uma mão em minha nuca e a outra em meu colar, no centro do
meu peito. Consigo ouvir seu coração e ele não bate com tanto pesar, não
mais. Gosto de saber que a ajudei de alguma forma.
— Por que fez isso? — Seus dedos ainda estão em meu pingente.
Minhas mãos estão em seus quadris.
— Uma vez você me abraçou e pareceu mais calma por isso. Quando
a Molly apareceu no Purgatorium, bêbada.
— E...?
— E eu pensei que isso poderia ajudar agora. — Digo. Chloe desvia o
olhar.
— É... Hm... Isso... Isso ajuda — ela confessa, suas bochechas
levemente vermelhas. — Mas eu estou trabalhando. — Ela me empurra para
fora dessa área e eu sorrio com seu jeito mandão. — Vaza.
— Sempre mandona, não é? — Seguro seus pulsos, rindo.
— Cale a boca.
— Noah, vamos? — Sinn me pergunta, ao mesmo tempo em que
lança um olhar para Luke, que ainda conversa com Matthew. Eu mordo o
lábio inferior e fito Chloe.
A ruiva parece melhor, mas ainda mal. Talvez precise de companhia,
não?
— Acho que vou ficar mais um pouco — respondo, sem encará-lo.
Meus olhos são dela.
— Eu realmente preciso trabalhar, Noah... — Chloe me alerta.
— Então você vai ter que me atender, meu anjo.
Seu nariz ainda está vermelho, seus olhos também. Mas Chloe sorri. E
seu sorriso é sincero.
Acho que gerei algum dano pela manhã e comprometi todos os meus
avanços, mas creio que me recuperei um pouco agora. Espero que sim. Eu
realmente espero que sim.
Depois de me acompanhar pelo turno, Noah me chamou para sair e eu
aceitei. Não sabia para onde estávamos indo, até que vi o nome do
Purgatorium em frente ao túnel escuro, ainda sem as luzes acesas. Era o fim
da tarde, o sol ainda estava se pondo e eu não conseguia ver uma só estrela
naquele céu alaranjado.
Seguimos estabelecimento adentro e eu observei os funcionários
limpando o lugar, abrindo caixas de bebidas em frente ao bar, andando de um
lado ao outro. Noah estava para me oferecer um drink quando Sinn apareceu
e o chamou para resolver algum problema de fornecimento de bebidas.
Hellmeister me disse para esperar em sua sala e aqui estou, há cerca de três
minutos.
Caminho pelo lugar, atenta a cada mísero detalhe. Das paredes de
tinta preta, à mesa de madeira, ao sofá ao canto próximo à porta.
Mal escuto a porta se abrir, enquanto folheio um livro sobre a mesa.
Bufo, entediada. Abraço o meu corpo, as mãos sobre a jaqueta jeans folgada
em meu corpo.
— Você aqui comigo ativa um déjà vu. — A voz é feminina. Ergo a
cabeça e deixo um sorriso de canto escapar. — Aquela noite não acabou
muito bem. — E o sorriso some. Kold está falando da morte de John. Me viro
para ela. — Noah já está retornando, ele me pediu para avisar. — Sorrio
fraco.
E então percebo como ela está vestida.
Fisicamente, Kold parece pronta para foder mentes com a sua beleza.
Ultrapassa todos os limites imagináveis. A morena veste uma saia cintura
alta, acima dos seus joelhos, de couro. É justa ao seu corpo. Veste um top
negro, de alças finas. E é só agora que consigo ver a tatuagem em abaixo da
sua costela, levemente coberta pela blusa curta.
Ela recua um passo, prestes a se virar e ir embora, mas para quando
percebe o meu olhar atento ao desenho em sua pele. É uma pequena rosa,
acho.
— Quer ver mais de perto? — questiona. É quando eu noto que estou
mordendo o lábio inferior. Deixo de fazer isso e ergo o olhar para o seu rosto.
Tem más intenções em seus olhos, eu sinto. Abro a boca, mas ela me
interrompe. — Ou tem medo do que o Noah vai achar?
— Não tenho medo do Noah.
— Não acha que ele vai ficar chateado? Não são... — Ela se
aproxima. — Namorados ou algo do tipo?
— Namorados é uma palavra muito forte. Tenho uma flor também,
sabe? — desconverso. Ela está a dois passos de mim quando ergo a sua blusa
um pouco, só para ver por completo a flor em sua pele.
— Rosa, como eu?
— Flor de lótus — conto. Kold arqueia a sobrancelha. — Traçado
fino, ramos de folhas, bem delicado, nada muito extravagante ou grande. —
Meu indicador toca o seu desenho, bem como o polegar, conforme eu analiso
o traçado. Me faz pensar nas artes na minha pele. — Fica perto do quadril.
— Jura? Não consigo imaginar. Gostaria de ver mais de perto também
— ela diz. Ergo os olhos para a morena. Sei o quão perigosa ela é pelo
sorriso em seus lábios. — É aqui? — Ela toca a minha cintura, o lado
esquerdo. Suas mãos descem ao meu quadril.
— Kold...
— Vamos, é só curiosidade. É aqui?
Nego.
— Outro lado — indico. E ela toca no lugar exato. Sorrio de canto,
desviando o olhar. — Agora eu estou tendo um déjà vu com você. — Ela
sorri ainda mais, maldosa.
— Algumas memórias podem ser revividas, Chloe, basta querer —
ela diz, em um sopro. Mordo o lábio inferior, tentada. — Percebo como me
olha sempre que me olha. Principalmente, quando eu estou perto do Noah.
Não é ciúmes, é desejo. Tem um desejo reprimido, uma vontade que quer
matar, mas se segura.
— Bom, você é amiga do Noah. E Noah e eu...
— Espera. — Ela une as sobrancelhas e ergue o indicador, sorrindo.
— Não foi você quem acabou de dizer que não são namorados? — Sua
pergunta faz minha temperatura elevar. Estou me sentindo ansiosa com a sua
proximidade. — Você gosta dele, não é? — Seu polegar e indicador erguem
meu queixo. Seguro o seu punho.
— Gosto — confesso.
— Então por que não aproveita que ainda está livre para matar
algumas vontades? — sussurra, próxima à minha boca. Preciso me lembrar
de respirar quando percebo o seu corpo mais colado ao meu. — Noah não
precisa saber de nada. — Merda, ela é perigosa. — Então... Por que hesita?
— diz, próxima à minha boca, voltando a segurar o meu queixo. Seus orbes
azuis, levemente acinzentados, parecem gravar o contorno da minha boca. —
Eu vou ser sincera, Chloe. Posso? — Não respondo, engolindo em seco. —
Eu acho que deveria pensar menos e agir mais. Faça o que quer fazer. O
problema da humanidade é pensar demais.
Estou prestes a me afastar quando percebo Noah em frente à porta,
levemente boquiaberto. Kold, ainda com a mão em minha cintura, o olha por
cima do ombro.
— Fique tranquilo, Hell. Eu não toquei tanto assim na sua garotinha.
Os olhos de Noah estão cravados em minha direção, com um brilho
que não sei identificar. Raiva talvez. Não sei. Sinceramente? É sexy.
— Eu não sou dele — afirmo, só para ver como Noah reagirá. Kold ri
e me encara.
— Ouvi dizer. Déjà vu, de novo — ela me provoca. Fito o seu rosto
por tempo demais, sentindo alguma pressão entre as minhas pernas. O clima
está tenso, mas não necessariamente de um jeito ruim.
— Você a quer — Noah observa. Eu não o encaro. — Não quer? —
questiona, se aproximando. Kold o olha e é só quando nosso contato visual é
quebrado que eu faço o mesmo. Noah para a uns cinco passos de mim. Ele
tem um olhar felino, parece enraivecido, mas eu simplesmente sinto que não
é isso. Eu sinto que ele gosta do que vê. — Meu anjo, você a quer?
Kold nos assiste. Mantenho-me calada. Noah puxa o ar e solta pelo
nariz, como se o ar fosse muito pesado. Ele analisa o meu silêncio, sei que
sim. Estou tentando forçar a minha respiração a acontecer, porque encarar
Noah, perceber o modo como ele me olha, me tira toda e qualquer linha de
raciocínio.
— Bom, eu vou me retirar...
— Espera! — Noah ordena. Kold para ao seu lado. Noah me
surpreende quando se aproxima de Kold e toca a sua cintura. — Se eu beijar
a Kold aqui, na sua frente... — ele provoca, me encarando. Mordo o lábio
inferior. — Vai sentir ciúmes ou desejo?
Prendo a respiração.
Provavelmente os dois. Mas provavelmente mais desejo. Muito mais
desejo. Estaria mentindo se eu dissesse que não sonhei com a continuação
daquela noite entre nós três algumas vezes, estaria mentindo muito.
— Noah...
— Ciúmes ou desejo? — ele provoca.
— Beije-a e descubra. — As palavras me escapam de uma vez só,
junto com o ar. Me surpreendo com a minha fala.
Então os dois parecem gostar da proposta quando viram um para o
outro, me encarando. Kold o puxa pelo terno, Noah tem as mãos na cintura
dela. Ele toca seu queixo e Kold demora em tirar sua atenção de mim para
encarar Hellmeister e quando acontece, eles se beijam.
E sinto ciúmes, mas eu definitivamente sinto mais desejo que ciúmes.
E sinto calor para caralho.
Os observo, mas eles não param. E pelo modo como os dois sorriem,
sei que estão me provocando. Tiro a jaqueta e a minha movimentação chama
atenção, como planejei. Noah quebra o beijo, me encarando, enquanto Kold
mordisca seu lábio inferior, para provocar. Para me provocar.
Quero mostrar duas coisas. A primeira, para os dois, é que posso
provocar tanto quanto eles. A segunda é que eles provocaram a pessoa errada.
— E então, — Noah diz. — O que sen... — Ando na direção dos dois,
mas ao contrário do que ele espera, eu beijo Kold. Beijo melhor do que ele
beijaria.
Kold sorri assim que minha boca se choca à dela. Sua cabeça se retrai
minimamente, mas ela me puxa para si pelo quadril, mostrando que apesar da
surpresa, ela não quer distância. Não mesmo. A minha língua toma a sua e
minhas mãos em sua cintura a trazem mais para perto. É quando eu ouço uma
movimentação ao meu lado que rompo o beijo.
Noah nos encara quase que com selvageria. Seu terno está no chão. E
é como se essa fosse a largada para tudo o que vai acontecer aqui dentro.
— Se for algo que quer... — Noah sugere e eu concordo, um tanto
quanto sedenta pelo que está por vir.
— Sim, por favor — peço e Kold ri.
A morena passa a beijar o meu pescoço, mas meus olhos ainda estão
fixos em Noah quando eu abro o primeiro botão da saia dela. Sorrio quando
vejo Noah tirar a camisa social e jogar em qualquer lugar, sem se importar se
essa merda é Givenchy, Armani, Yves Saint Laurent ou qualquer porra do
tipo.
Tiro a saia de Kold, deixando a peça ao chão. A mulher leva as mãos
ao zíper da minha calça e eu volto a beijá-la. Quando vejo estou contra a
mesa.
Tudo é tão rápido quanto intenso. Não temos um segundo sequer a
perder. Os três disputam para fornecer e receber prazer, querem mostrar o
quão bom são. E somos bons.
Tiro a minha camisa e só por isso a minha boca desgruda da boca da
morena. Observo Noah de canto de olho. Ele se aproxima, sem camisa.
Poucos caras carregam o caos no sorriso de um modo tão perfeito e
quente quanto Noah Hellmeister. As tatuagens em seu corpo, o modo como
nos olha, desabotoando a calça e a descendo enquanto a língua de Kold toca o
meu pescoço, todo mísero detalhe me faz ofegar. Noah é único, certamente.
Assim como, sinceramente, poucas mulheres exprimem luxúria como
Kold. Ela me deu algum dos melhores beijos da minha vida nessa sala. Seus
toques pouco ficam atrás dos toques de Noah. E por falar dele, já sinto a sua
falta.
Noah e eu sabemos que nossas peles se gostam, as artes sobre elas se
combinam, nós dois nos encaixamos, tortos e errados como somos. Agora
sabemos que Kold nos complementa fodidamente bem.
— Eu sempre quis fazer isso... — Kold sussurra e afasta as coisas da
mesa com a mão, me fazendo rir nasalado. Noah não dá a mínima. Eu me
sento sobre a mesa e Kold tira a sua camisa, desce a minha calça e se encaixa
entre as minhas pernas. Eu e Kold estamos de lingerie, Noah está longe
demais e vestido demais para o meu gosto.
Abro o feche do meu sutiã e o deixo sobre a mesa, o observando.
— Vai ficar só olhando, querido? — provoco.
Noah se aproxima. Kold firma as suas mãos em minhas coxas
conforme desce os beijos por meu colo. Meus olhos encontram os de Noah e
um sorriso sujo toma o meu rosto.
O homem abre o zíper da calça e sua mão se infiltra dentro da sua
cueca. O observo se masturbar enquanto ele assiste Kold fazer seus polegares
subirem por minhas pernas, perto demais de onde quero que ela toque.
Kold tira a minha calcinha, seu olhar maldoso sobre mim. Não sinto
pudor algum, não mesmo.
Ela umedece a sua boca, que envolve o meu mamilo esquerdo.
Contenho um gemido, suspirando, sôfrega. Noah me beija e eu sinto o
polegar da morena sobre meu clitóris. Com seu anelar e dedo médio, Kold me
penetra sem aviso prévio e eu mordo o lábio de Noah sem querer. Fecho os
olhos e deito a cabeça em seu ombro. Os movimentos lentos dos dedos
femininos e delicados aos poucos vão me conduzindo ao prazer.
Noah infiltra a sua mão em minha nuca, agarrando alguns fios de
cabelo meus ao me beijar. Sua língua explora a minha boca, seu gosto se
derrama sobre o meu. Minha mão encontra o colar que tanto gosto de segurar
em seu pescoço e desce por seu peitoral, chegando onde eu quero. Introduzo
a minha mão em sua cueca e sinto o quão duro Noah está. Kold volta a
chupar meu seio, enquanto seus dedos me fodem. Ele suspira contra a minha
boca brevemente, unindo a testa à minha quando começo a masturbá-lo.
O sinto pulsar contra meus dedos, Noah grunhe entre meus lábios e eu
deixo um sorriso escapar. Sinceramente, é sempre muito bom saber meu
efeito sobre ele. Tenho que parar de beijá-lo, todavia, quando sinto o prazer
crescer entre as minhas pernas.
Kold para o que está fazendo quando estou quase lá e prova seus
dedos. Enquanto paro de beijar Noah para me recuperar da quase ida ao
paraíso, Kold transmite o meu gosto para a boca de Noah. Ela morde e puxa o
lábio inferior dele. A cena é tão perfeita de assistir, que uma vez sem os
dedos de Kold em mim, uso os meus. Devagar.
Noah, então, me encara, e Kold arranha o seu abdome. Ele sorri e
observa meus dedos entrarem e saírem de mim. Kold me observa também,
com um sorriso travesso nos lábios. Os dois trocam um olhar e fitam sofá ao
canto da sala. Kold caminha em direção a ele, Noah caminha em minha
direção. E ele me toma para si, fazendo minhas pernas se enlaçarem em seu
corpo, enquanto eu me aproprio da sua boca.
Mal posso acreditar que isso está acontecendo e meu coração está
quase saindo pela boca.
Noah me coloca ao chão, mordendo meu lábio inferior com gosto e
sorrindo com toda a maldade que lhe é própria. E então me vira e eu vejo
uma cena que gosto bastante, confesso.
Kold está sentada ao sofá e eu não sei como ela conseguiu o cigarro
entre seus lábios ou o isqueiro que usa para acendê-lo. Ela se apoia ao sofá,
completamente nua, soltando a fumaça para cima. Sexy como o inferno.
A morena joga seus fios pra trás e me analisa. Sinto Noah se afastar,
não sei porque, e me aproximo de Kold. Sento-me sobre o seu colo e ela
sorri, aprovando o gesto. A beijo, sentindo um pouco do gosto amargo do
cigarro em meus lábios. Não me importo. Sua língua quente toca a minha e
ela firma a sua mão livre em minha cintura.
Ela para o beijo e eu mordo seu lábio inferior, descendo os beijos pelo
seu pescoço. Kold se deita sobre o sofá e eu me deito sobre ela, rebolando
sobre ela. A morena solta um gemido arrastado baixinho.
E então escuto o barulho de algo se rasgando ao nosso lado. Olho por
cima do ombro Noah com a embalagem de camisinha aberta em sua mão.
Acho que perdi a cena dele a abrindo com os dentes. Merda.
— De quatro, meu anjo — ele ordena, sorrindo com maldade. Meu
coração acelera quando o desgraçado une as sobrancelhas e faz um bico. —
Por favor — ironiza.
— Com prazer, querido. — Ele sorri de novo. Aproximo a boca da
orelha de Kold quando ela se senta e leva o cigarro entre seus lábios,
deixando uma pequena ordem. E ela me obedece.
Então quando Kold se afasta minimamente e abre as suas pernas, fico
de quatro entre elas e Noah se ajoelha atrás de mim sobre o sofá. Sem pensar
muito, observando a mulher gostosa como nunca à minha frente tragar o
cigarro e soltar a fumaça pra cima, seus seios expostos e sua ausência de
pudor, aproximo a boca da sua intimidade. Kold arfa quando a abro com dois
dedos e a minha língua passa por sua extensão. Deixo um sorriso maldoso
escapar e passo a chupar o seu clitóris com gosto. Observo toda a sua reação,
quando começo a chupá-la e ela afunda a mão livre em meus fios ruivos,
perdida nas sensações que posso fornecê-la.
Eu preciso parar o que faço por um segundo quando sinto Noah
penetrar fundo a minha intimidade por trás. Deixo um gemido escapar e
aperto a superfície do sofá com força. Noah tem suas mãos em minha bunda e
não espera muito eu me acostumar com seu membro me preenchendo. Ele
começa a me foder lentamente.
Deixo um xingamento escapar e fecho os olhos, voltando a chupar
Kold. Quando a escuto gemer o meu nome, abro os olhos novamente. Vê-la
me chamar enquanto Noah me fode parece o paraíso. Nunca me senti tão bem
quanto agora. Hellmeister entra e sai com estocadas mais fundas, fincando as
unhas em minha bunda. Tentando abafar meus gemidos, me concentro em
chupar Kold com mais vontade, sempre que sinto o prazer crescer.
Kold deixa o cigarro cair ao chão e geme o meu nome, mordendo o
lábio superior com força. Eu sempre soube que era boa no que fazia, mas
saber que eu provoco isso na Kold é completamente diferente. É perfeito.
Noah aumenta a velocidade das estocadas e eu paro de chupar Kold
para fodê-la com meus dedos. A morena passa a rebolar contra meu dedo
anelar e médio, conforme meu polegar estimula seu clitóris. Ela aperta o sofá
com força e eu a chupo novamente, meus dedos ainda entrando e saindo dela.
Noah segura a minha cintura com mais força, chamando por mim.
Quando Noah aumenta a velocidade, beijo Kold e ela passa a se
masturbar sozinha, porque eu não me sinto capaz de me concentrar em mais
nada. Hellmeister está me fodendo por trás com vontade, entrando e saindo
fundo e com força. Toda vez que entra em mim, sinto o meu coração bater
mais forte, descompassado, ansioso por mais e mais prazer.
Eu nem sequer sabia que era possível sentir tanto prazer assim. Parece
que todo o caótico universo sob minha pele é constituído de luxúria. E
quando o orgasmo vem, é como se fosse o primeiro da minha vida, porque
nenhum outro parece tão avassalador e intenso quanto esse. Fecho os olhos,
paro de beijar a Kold e chamo por Noah quando tudo se torna um breu e a
mente vai para outro lugar.
Os espasmos chegam e Noah segura os meus braços, me puxando
para si. Kold se ajoelha e leva seus dedos ao meu clitóris, intensificando todo
o torpor que sinto. Definitivamente, eu não sabia que era possível sentir tanto
prazer assim. Eu consigo sentir todo o meu corpo, cada pedacinho, como se
esses dois fossem duas drogas, unidas para foder com a minha mente
também.
Solto um gemido um pouco mais alto quando chego ao ápice e
minhas pernas amolecem, o prazer passa a se reduzir. Abro os olhos um
pouco, cansada, observando o sorriso da mulher à minha frente. É o sorriso
mais maldoso que já vi. E um dos mais bonitos. Noah sai de dentro de mim e
eu levo algum tempo para voltar à órbita, com Kold segurando a minha
cintura.
— Você é gostosa pra cacete — Kold sussurra e eu deixo um riso
escapar, ainda ofegante. Noah beija a minha nuca. Sinto seus beijos por meu
pescoço.
As mãos do Noah seguem aos meus seios, meus mamilos entre seus
dedos enquanto ainda o sinto contra a minha bunda. Kold suspira e morde o
lábio inferior, me beijando. Parece que os dois disputam por mim nesse
segundo e isso é muito bom.
Contudo, Kold se levanta do sofá e me puxa para si. Sua mão se
encaixa em minha nuca e eu ainda sinto as minhas pernas um tanto quanto
fracas. A outra mão da morena se firma em minha cintura ao mesmo tempo
em que sua língua envolve a minha. Estou completamente em êxtase, mas
sinto a falta de alguém. Olho para trás e vejo Noah sentado sobre o sofá, nos
assistindo com um sorriso maldoso por seus lábios.
Kold se afasta de mim e eu a observo fazê-lo se deitar sobre o sofá.
Ela segura o membro dele e o encara com maldade. E então me lança um
olhar, me convidando à cena.
Hesito, por um segundo.
Ver o seu cara com outra é um pouco bizarro e por um segundo eu
sinto ciúmes. Mas logo penso em algum modo de fazer Noah se concentrar
em mim. Então quando Kold se senta sobre ele e os dois começam a transar
perante os meus olhos, eu me aproximo dos dois.
Primeiro dela, lançando um olhar sujo a Noah antes de beijar a garota.
Ela sorri para mim quando encerro o beijo. E então eu fito Hellmeister, um
pouco enciumada quando o vejo franzir o cenho por prazer. Coloco a minha
ideia em prática ao me sentar, cada perna ao redor do seu rosto, de frente para
a Kold, fazendo com que, por um segundo, Noah deixe de ter a visão da
amiga nua entrando e saindo dele.
Entendendo o recado, Noah desliza a s suas mãos por minhas coxas
enquanto chego mais perto da sua boca. Uma vez sobre onde eu queria, sinto
o hálito quente de Hellmeister sobre minha intimidade. Apoio as mãos em
seu peito, vendo Kold sorrir do modo mais sujo que já vi na vida.
Não sei nem se meu corpo se recuperou por completo do primeiro
orgasmo, mas a minha capacidade de pensar evapora por completo assim que
a língua dele toca o meu clitóris. Deixo um gemido escapar e Kold apoia as
mãos perto das minhas, permitindo a sua boca encostar levemente sobre a
minha. Deixo o ar escapar sôfrego por minha garganta e fecho os olhos.
Kold me beija, sua mão infiltrada em meu cabelo, abaixo da nuca. Ela
me puxa para si com possessividade e eu sinto Noah me chupar com mais
vontade. A boca de Kold se movimenta contra a minha, parte porque ela
ainda está rebolando sobre Noah. A morena suspira contra meus lábios ao
deixar um gemido escapar e eu levo as minhas mãos aos seus seios. Seus
mamilos ficam entre meus dedos conforme a seguro firme.
Kold rebola com mais vontade e me beija com mais agressividade.
Deslizo a mão pelo seu corpo enquanto Noah usa da sua língua para me
foder. Meus quadris se movimentam enquanto eu busco por mais e mais.
Kold geme contra meus lábios e xinga baixinho, se afastando. Levo a mão ao
seu clitóris e o estimulo porque sei que está quase lá. A morena se mexe com
mais intensidade a cada segundo, parece insaciável. Ela parece uma deusa e
vê-la desse jeito é algo que eu não vou esquecer, definitivamente.
Sinto a pressão crescer entre as minhas pernas quando Noah me chupa
com afinco e paro de prestar atenção em Kold para me apoiar no sofá,
fechando os olhos e mordendo o lábio inferior com força. Noah segura a
minha bunda e eu rebolo mais contra a sua boca, tentando me satisfazer o
mais rápido possível, porque não aguento mais. Sinto sua língua entrar e sair
de mim habilidosamente e levo a mão ao meu clitóris, me masturbando para
saciar esse desejo que me inquieta tanto. Observo Kold enquanto isso e ela
chega ao orgasmo. Assistir a isso era tudo o que eu precisava.
Kold se mexe com mais vontade a cada segundo, aproveitando o
momento, enquanto nossos gemidos reverberam pela sala. A sorte é que o
som da festa lá fora é mais alto do que o sexo aqui dentro. Noah segura a
minha bunda com mais vontade e deixa um tapa para me incentivar a rebolar
com mais força. Obedeço. Me mexo contra a sua língua enquanto me toco e
observo Kold fazer o mesmo. Finalmente chego ao meu segundo orgasmo,
quase tão avassalador quanto o primeiro, deixando o prazer fluir por todo o
meu corpo e gemendo o nome de Noah alto demais.
Surreal.
Noah prova o meu gosto e eu aproveito cada sensação. É
definitivamente o melhor sexo da minha vida. De longe.
Arranjo forças para sair de cima a dele e saio do sofá. Noah segura o
meu pulso para que eu não me afaste e passa a língua por sua boca, ainda me
provando. Ele me encara e eu sorrio para ele, porque gosto de como me olha.
Me inclino e alguns fios caem sobre seu peito. Aproximo a boca da sua e
deixo um beijo leve. É o que basta para Noah relaxar e chegar lá. Ele morde
meu lábio com alguma força.
— Merda, desculpa, meu anjo. — Noah une as sobrancelhas ao
máximo, aproveitando o prazer. Me afasto em direção ao maço de cigarros na
mesinha ao lado do sofá, ainda me perguntando como estou tão firme de pé.
Pego três cigarros dessa vez e olho para a dupla sobre o sofá. Depois alcanço
um isqueiro, na mesma cômoda.
Então Kold finalmente se sacia, reduz seus movimentos, ainda em
estado de torpor, fechando os olhos e respirando fundo, tentando parar de
ofegar, ainda preenchida por ele. Ela cessa seus movimentos.
Noah se apoia no sofá com seus cotovelos e Kold sai de cima dele,
ofegando. Eles se sentam, um ao lado do outro, sorrisos preguiçosos e
satisfeitos em seus rostos. Observo os corpos nus e suados, iluminados pela
luz alaranjada do lugar. Os dois são tão bonitos e a cena é tão maravilhosa
que poderia ser pintada. Percebo quando me encaram. Acendo um cigarro
entre os meus lábios e ofereço os outros dois entre os meus dedos.
Geralmente essa é uma coisa que Noah e eu fazemos sozinhos. Hoje
abriremos uma exceção. Mais uma.
Kold coloca a droga entre os lábios levemente inchados. Acendo-a
para ela e deixo Hellmeister por último. Ele parece amar nos analisar
devagar, sem pressa, como se recordasse de tudo o que vivemos. Tragamos
ao mesmo tempo e vejo como os dois praticamente me devoram com o olhar,
famintos. Kold se demora um pouco nos meus seios e o olhar de Noah já está
descendo novamente ao meio entre as minhas pernas.
— Sentiu mais desejo do que ciúmes, certo? — Noah provoca,
sorrindo com maldade. Eu não o respondo, vendo a prepotência tornar seu
sorriso ainda maior. E quando volto o olhar para Kold, ela se levanta,
tragando mais uma vez o seu cigarro antes de tocar a minha cintura e
aproximar os lábios dos meus.
— Me pergunto se vai sentir o mesmo — ela sussurra, quase em um
sopro — quando isso acontecer de verdade...
Franzo o cenho, confusa. E então sinto uma mão firme e forte em
minha cintura, um hálito quente e suave em minha nuca, ouvindo uma voz
me chamar repetidas vezes.
Desperto, assustada, tentando entender o que está acontecendo. Viro a
cabeça, confusa. Não estou com Kold por perto, apenas Noah. Ele está atrás
de mim, nu, entre lençóis da sua cama. Estamos no seu apartamento. Não há
qualquer perfume feminino aqui senão o meu e ele está me olhando com as
sobrancelhas unidas, confuso.
Eu adormeci. Aquilo foi um sonho. E eu não costumo dormir no
apartamento dele. Isso aqui definitivamente não pode ficar se repetindo.
— Estava repetindo o meu nome — ele diz, parecendo preocupado.
Abro e fecho a boca, extremamente nervosa. E então engulo em seco, me
colocando de pé e buscando pelas minhas roupas, ao chão do quarto. —
Chloe? — Já estou de peças íntimas quando ele se senta. Passo as pernas
pelas calças jeans.
— Preciso ir embora. — E visto a minha blusa, buscando pela minha
chave do carro. Noah me chama mais uma vez, mas eu passo pela porta e
ando rapidamente pela sala. Estremeço de susto quando vejo alguém sair da
cozinha, sorrindo e travo.
Kold está vestindo apenas uma grande blusa branca, quando morde
um sorriso maldoso, me olhando de cima à baixo. Se ela soubesse... Se ela
soubesse o que sonhei... Seu sorriso seria pior. Com toda a certeza do mundo.
— Dormiu bem, Mitchell? — ela pergunta. — Jurei que alguém
estava me chamando. — Deixo o queixo cair levemente e a ouço rir, um som
rouco e arrastado. Kold praticamente desfila ao passar por mim. — Sabe,
Chloe... Da próxima vez que vier aqui, pode dormir comigo.
Meu coração acelera e eu engulo em seco. Escuto uma porta se fechar
em algum canto do apartamento. E então me apresso em cair fora, tentando
tirar da minha cabeça uma nova cena, em que estou no lar de Hellmeister,
completamente em chamas, aproveitando uma noite à três.
Depois de dormir abraçada a Noah Hellmeister e ouvir que não tinha
sido nada, foi como um banho de água fria. E eu pensei: “agora vai ser mais
fácil me afastar dele, vou conseguir fugir da bomba Noah-Chloe antes que ela
exploda”. Idiota. Para complicar, isso aconteceu no pior dia possível. Eu
estava um caco. Andava com saudades de casa. Na verdade, eu estava num
daqueles dias em que a primeira coisa que vinha em minha mente era desistir,
arrumar as minhas coisas e voltar pro Tennessee.
Então eu fui trabalhar e Noah apareceu com aquele sorriso.
Aquele maldito sorriso. Aquele inferno de sorriso.
E eu me senti tão nervosa. Se eu já estava uma pilha de nervos, ver
Noah Hellmeister sorrindo daquele jeito só para mim? Intensificou de algum
modo todo o furacão de emoções em minha mente.
Entrei na cozinha, sem saber como lidar seu sorriso. Quando vi meus
dedos tinham envolvido o telefone do Thurman's e eu estava ligando para
casa. Se meu chefe soubesse, duvido que ele gostasse disso. Mas Martha, a
cozinheira, não me dedurou.
Quando Ben atendeu o telefone e disse que me amava, morri um
pouco. Quando ele disse que sentia a minha falta, morri um pouco mais.
Quando ele passou para a mamãe e ela fez sua chantagem emocional para que
eu voltasse para casa, eu morri por completo. Cada pedacinho meu doeu tanto
que eu precisei chorar. Sinto tanta falta do meu irmão e da minha mãe que
não sei como é humanamente possível caber tanta saudade em um só coração.
Depois de Martha me oferecer um copo da água e de algum tempo
colocando a cabeça no lugar, saí da cozinha. E ali estava Noah.
Ele sorriu para mim.
Eu tentei afastá-lo.
Ele sorriu ainda mais.
Hellmeister viu os meus pedaços, ele me viu partida. E me assistiu
tentar afastá-lo, mas no fim do dia, Noah juntou os meus cacos como pôde.
Isso não está certo. Isso fez eu me aproximar da bomba Noah-Chloe e
admirar a contagem regressiva.
O fato é que ele ficou sem carro quando Sinn levou o seu veículo para
algum lugar com Luke. Ele usou isso como desculpa. Noah ficou o meu turno
inteiro ao meu lado e me pediu uma carona para a sua casa e eu sabia, sabia,
sabia mesmo que tinha ao menos duas milhões de más intenções por trás
daquele sorriso. E o levei para sua casa mesmo assim. E o beijei dentro da
Shelly, subi para seu apartamento, terminei na sua cama, reconhecendo suas
tatuagens e pedindo por ele. Terminei sob ele, com seus lábios em minha
pele.
Ainda consigo sentir alguns dos beijos e toques só em fechar os olhos.
O fato é que não foi só a minha racionalidade que deixei na casa de
Noah. Eu esqueci algo mais.
Pensei que tinha esquecido no trabalho, depois procurei em casa,
procurei no elevador... Passei o dia inteiro procurando essa merda. Acho que
minha pulseira caiu na casa do Noah. Mas não consegui falar com ele, ele
não atendeu o telefone. Ela foi um presente da minha tia, portanto, cara. O
tipo de presente que não posso perder. Teria que vender os rins para
conseguir algo assim.
O porteiro não me fez perguntas quando falei que ia ao apartamento
do Noah. Na verdade, ele até me instruiu como chegar lá, como se eu não
soubesse. Não me surpreendi. Certeza que era comum garotas passarem por
aqui o tempo todo.
E aqui estou.
Penso em tocar a campainha, mas a porta abre. Entretanto, não é o
Noah quem sai dela. Uma mulher morena de olhos azuis está ajeitando o
brinco em sua orelha enquanto toca a maçaneta. Eu a encaro, confusa. Não é
a Kold.
É quando eu vejo o Noah de cueca do outro lado, coçando os olhos.
Abro a boca e olho de um para o outro. Sinto um aperto no peito, mas não
consigo me mover.
— Oh, oh... Esse drama não é para mim — a mulher diz, seu sotaque
italiano carregado. Ela passa por mim e eu continuo boquiaberta, sem saber
como reagir. A sigo com os olhos, mas volto a encarar o homem do outro
lado.
Noah me encara, franzindo o cenho ao máximo. Também uno as
sobrancelhas e aponto com o polegar para trás, indicando a mulher que
passou por mim. Noah se aproxima, prestes a se explicar, mas não se explica.
Eu ergo o indicador para falar algo, mas nada sai.
É quando eu percebo: não temos nada. Nunca tivemos.
— Eu posso... Posso voltar o-outra hora — digo. Idiota, Chloe, tão
idiota. — Procura uma pulseira pra mim? Deixei cair aqui. — Começo a
andar para trás. — Fina com uma pedra pequena, rubi, circular.
— Chloe, eu...
— Não, tu-tudo bem, tudo ótimo, tudo perfeito, na verdade. — Estou
gesticulando, nervosa, quando paro e tateio a porta, procurando a maçaneta.
Achei. — Nos vemos por aí! — Fecho a porta e xingo baixinho.
Fico parada por algum tempo, a mão na maçaneta e o olhar travado na
porta. Então corro para o elevador antes que Hellmeister me alcance e
consigo entrar nele, junto com a tal italiana. A porta se fecha, mas eu tenho
tempo de ver Noah de cueca no meio do corredor, chamando o meu nome.
Uma cena fodidamente patética.
Levo as duas mãos ao rosto, tentando esconder a minha vergonha.
É quando escuto a mulher ao meu lado rir. Respiro fundo.
— Desculpa, eu não sabia que ele tinha namorada. Não quero soar
desrespeitosa também, mas o cara de cueca no corredor foi meio engraçado.
— Suspiro, a encarando. Não a respondo. Não tem porquê responder.
A porta se abre e eu sou a primeira a sair.
Após a minha vitória na corrida de hoje, Naomi decidiu me dar os
parabéns de um modo diferente. E eu aceitei, como de praxe. Mas não pelo
motivo de sempre.
Eu aceitei porque eu precisava esquecer a raiva sem sentido em meu
peito. Eu precisava silenciar a voz que repetia "meu anjo" no fundo da minha
mente.
Então ela está sentada sobre mim, no fundo da Shelly. A minha garota
— o carro, no caso — range baixinho conforme Naomi rebola sobre mim,
ainda vestida com um shorts curto e uma camiseta de alças finas qualquer.
Ela beija o meu pescoço. Estamos em um beco qualquer daquele bairro
imundo, chapadas demais para nos importar.
— Pensei que ia me deixar de lado, Co — ela confessa, mordendo o
lóbulo da minha orelha. — Achei que tinha tornado aquele lá algo fixo.
Por que falar do Noah? Por que quebrar o clima desse jeito?
— Desvio de rota, bebê. Acontece com as melhores — garanto.
Mas seus beijos em meu pescoço começam a me irritar. Então fecho
os olhos, contra esse sentimento.
E eu vejo um colar de asas negras no peito tatuado com asas
semelhantes. Eu vejo minhas mãos deslizando sobre braços fortes. Eu vejo
lábios vermelhos roçarem por minha barriga, enquanto Noah mantinha seu
olhar mais sujo, com aquela maldita mecha lhe dividindo a testa e nenhuma
boa intenção por trás da sua mente.
Suspiro. E sinto raiva no dia seguinte. Inverto as posições e deixo
Naomi em meu banco. Sento-me em seu colo e ela sorri maldosa, prestes a
dizer algo. Não permito. Colido a minha boca na sua.
Sinta algo, Chloe. Desejo. Vontade. Chame de que porra quiser. Mas
sinta algo. Sinta qualquer porra. Sinta qualquer coisa, garota.
Apenas sinta.
Mas não por ele. Não sinta por ele.
Não sinta nada por ele.
Sinto mãos em minha bunda, mas são dedos delicados, dedos sem
anéis, dedos finos, mãos suaves. Sinto um perfume doce, porém meu corpo
clama por outra pessoa. Sinto todo o prazer que Naomi tem a me oferecer,
mas ele é insuficiente. Porque eu já provei algo melhor.
Então me afasto. Os olhos da garota gritam confusão. Seus fios negros
estão mais bagunçados do que eu me lembrava, ela tem o cenho franzido e a
boca entreaberta.
— Vou te deixar em casa. — É tudo o que consigo dizer. Naomi une
ao máximo as sobrancelhas, parece ofendida. Passo por entre os bancos da
frente por pura preguiça de sair do carro e contorná-lo. Ela faz o mesmo.
Não demora muito para a garota começar a falar mil vezes sobre
como não acredita que está sendo recusada e sobre como não entende que
porra está acontecendo comigo. Eu paro de prestar atenção na terceira frase.
Ligo a chave da Shelly e ligo o rádio. Twist and Shout toca e eu o
desligo imediatamente, assim que escuto o primeiro "Shake it all baby, now".
Respiro fundo. Bem fundo.
Isso só pode ser perseguição.
Péssima hora para tocar Beatles.
Meu coração está acelerado. Eu consigo me imaginar entre os braços
de Noah enquanto ele ri como poucas vezes o vi rir na vida, leve, conforme
dançamos juntos.
Isso não é bom um sinal.
— Caralho, ele mexe mesmo com você, não mexe? — Naomi
pergunta e eu a encaro, em desgosto, acordando do meu transe. Balanço a
cabeça em negação e passo a dar ré, saindo daquele beco.
Mas sim. Ele mexe.
Ele mexe para caralho.
E não deveria.
— E você meio que broxou com a Naomi? Justo com a Naomi? —
Matthew Letterman nunca soou tão surpreso em sua vida. — Cacete... Você
se envolveu — Matt observa. Eu não o respondo, enquanto limpo uma mesa
do Thurman's. — Nossa, Chloe, não acredito. Tão rápido?
— Não ‘tá ajudando, Matt — Molly diz o óbvio, porque eu estou
esfregando a mesa com muita raiva. Faltam dez minutos para abrirmos o
Thurman's pela manhã e eu estou com ódio dessa marca escura na madeira.
— Chloe, vai perder o seu braço assim.
— A mulher que ele fodeu... Ela era muito gata? — Matthew
pergunta e eu paro para respirar fundo. O encaro.
— Linda. Gata para cacete. A mulher parecia uma deusa... Mas não
importa! Não importa! Eu não ligo gente, de verdade. — Volto a esfregar a
mesa com afinco.
— Noah não é o tipo de cara de se apaixonar e ter relacionamentos,
Chloe. Eu avisei — Matt diz e Molly o cotovela. Ele está certo. — Ai, calma!
Eu tô só querendo ajudar. É meu papel como amigo proteger, aconselhar...
— O seu papel no momento é apoiar, não dizer "eu te avisei". Não ‘tá
fazendo isso — Molly reclama e me encara quando eu desisto de remover a
mancha. Me sento sobre a mesa, fitando o teto. — Também pensei que Noah
estava envolvido. Pelo modo como ele te olhava quando vocês me ajudaram e
eu estava... Bêbada, no Purgatorium. — Fito Molly, atenta. — Não sei, vocês
não definiram exclusividade, Chloe. Você pode transar com quem quiser e
ele também. Agora... Se os dois, acostumados com a solteirice ou sei lá,
preferirem largar essa vida de beijar e foder quem quiserem para ficarem
juntos... Precisam conversar. Ele não ‘tá errado. Assim como você não ‘tá
errada em se sentir mal. Porque vocês não se comunicam, nada foi
estabelecido.
— Mal? Eu não estou mal. Eu ‘tô ótima. — Caminho para a porta e
giro a placa de fechado para aberto, fechando o último botão do meu
uniforme. Meus dois amigos se entreolham. — Namoros não são para
pessoas como eu, gente. Nem sei porque estamos discutindo isso.
Forço um sorriso. Molly e Matt se entreolham, de soslaio, como se
duvidassem.
— Vamos trabalhar, podemos? — peço. E eles se movem, finalmente.

Sirvo o café do rapaz sentado à bancada na minha frente. Ele sorri


para mim. Seus olhos são levemente caídos nas laterais, um pouco alongados,
seus cabelos são lisos e na altura dos ombros, por isso visíveis, apesar do
boné que ele usa virado para trás. Ele tem um sorriso bonito.
— Mais alguma coisa? — pergunto, sorrindo.
— Você é muito bonita — elogia e eu rio nasalado, desconcertada,
colocando o bule de café ao lado da sua xícara. — Desculpa, eu não quis te
deixar envergonhada...
— Não, não, tudo bem. Gostei do elogio — garanto, sorrindo de
volta. Estou me forçando a crer em minhas palavras. — Bom, se não quer
fazer mais nenhum pedido, eu vou atender a mesa oito e volto já, ok?
— Espera — ele pede e eu desisto de sair. — Como se chama? —
pergunta. O filho da puta tem uma covinha. Não vou negar uma resposta ao
Sr. Covinha. Seria imoral.
— Chloe. E você?
— Shawn — responde, sorrindo duas vezes mais. Escuto o sino do
estabelecimento e olho para a porta.
Noah está ali e balança a pulseira em sua mão. Não está de terno, está
com uma blusa preta sob uma jaqueta de couro. Respiro fundo e Shawn o
encara.
— Namorado? — o cliente questiona, interesse demais por cada
sílaba.
— Não. Ele é nada — murmuro. — Volto já, ok? — Me afasto da
bancada e Noah se aproxima de mim, mas passo direto por ele. Tem uma
senhora com a mão erguida esperando por um pedido. — O que deseja?
— Está puta comigo? — Noah para ao meu lado e eu o encaro.
— Noah? Eu tô trabalhando.
— Está puta comigo!
— Eu... — Começo a responder, mas encaro a senhora de soslaio. Ela
tamborila a mesa, ansiosa. — Só um segundo. — Sorrio fraco para a cliente e
empurro Noah pelo peito para longe da mesa.
Noah está me fitando como se eu fosse um alienígena.
— O que foi? — sussurro, esquadrinhando o seu rosto.
— Vim devolver a pulseira. E você está puta comigo — ele diz, como
uma criança. Desvio o olhar, mas Noah se aproxima, segurando a minha
cintura. Cismo em não encará-lo. — Olha para mim, meu anjo — pede,
baixinho. Não obedeço e a minha pele protesta com arrepios. — Chloe?
— Não tô chateada, ‘tá legal? — Encaro os seus olhos, engolindo em
seco. Consigo me ver em seus orbes escuros, é o quão perto está. E ele encara
os meus olhos de mesmo modo. Estabeleço uma distância segura ao colocar a
mão em seu peito e empurrá-lo. — Obrigada por trazer a pulseira, salvou a
minha vida. — Tomo o objeto da sua mão e deixo um beijo na sua bochecha.
O que foi automático e me faz me arrepender no segundo seguinte. — A
gente se vê, ok? ‘Tô trabalhando agora.
— "A gente se vê"? Está chateada comigo — Noah protesta e eu
suspiro, dando as costas e caminhando até a senhora. Ele infelizmente me
segue. — Podemos conversar?
— Depois do meu expediente você passa lá em casa e a gente
conversa — digo, anotando o pedido da mulher que fala e aponta para algo
no cardápio, ignorando o cara insuportável do meu lado.
— Não, Chloe, eu não quero deixar nada mal resolvido. E é capaz de
você não ir para casa e fugir dessa conversa. Ou nem abrir a porta para mim.
— O encaro, prestes a responder. Não consigo. O filho da puta me conhece
há pouco tempo, e me conhece tão bem.
— Não temos nada, Noah. Pode ficar com quem você quiser. Eu
também posso. E ‘tá tudo bem.
Inferno... Eu me apeguei um pouco. Não sei por que e nem como
aconteceu tão rápido. Mas é claro, é pateticamente claro. Talvez ele vá rir da
minha cara quando estiver sozinho, é o quão claro está.
Porra...
Isso não pode estar acontecendo.
Respiro fundo e desvio olhar para a senhora, sentindo vontade de
sumir. Ansiedade. Reconhecer que alguém mexe comigo me deixa ansiosa,
nervosa, irritada. Noah não sai do meu lado. Preciso de espaço.
— Já vou trazer o seu pedido — respondo para a senhora e não encaro
Noah quando dou as costas e caminho ao balcão. Infelizmente ele me segue.
Raiva. Sinto uma raiva absurda. Estou com ciúmes de um cara que
pouco conheço, isso é estúpido, estou sendo estúpida. Estou com raiva de
mim por isso. E raiva dele por estar tão próximo, que seu perfume traz
desordem ao universo sob a minha pele. Passo para trás do balcão e Noah fica
ao lado de Shawn, suas sobrancelhas unidas, seu maxilar travado.
Molly está no caixa e olha Noah em surpresa. Ela murmura um
"coragem" por ele ter aparecido. Ela sabe. Molly sabe. Provavelmente,
percebeu antes de mim que estou fodidamente puta por estar apegada a um
cara idiota e... Ugh! Inferno.
Respira.
Isso era tão previsível, Chloe...
— Está com raiva de mim! — Noah observa, irritado. — Meu anjo,
eu não quis te magoar, de verdade, eu...
— Pela milésima vez, Noah? Está tudo bem — minto. Estou magoada
e não é culpa dele. É minha, certo? Eu sabia onde estava me metendo.
Não temos porra nenhuma. Ainda assim, me sinto trocada. Me sinto
mais uma. Uma das suas. Que ele usa e esquece no segundo seguinte.
Talvez ele dance com todas, transe com todas, durma com todas.
Talvez eu tenha dado importância demais a quem me dá importância de
menos. É, acho que foi isso.
— A mesa cinco pediu um sanduíche Thurman's. E um milkshake.
Morango. — Me limito em dizer para Molly, que entra na cozinha de volta.
Desvio o olhar de Noah, servindo mais café para Shawn sem nem perguntar
se ele quer. Ele abre a boca, um pouco confuso.
Noah grunhe, inconformado. Hellmeister se afasta do balcão e
caminha até uma das mesas, se sentando e cruzando os braços como uma
criança birrenta que avisa: "não vou sair daqui".
Filho da puta. Desgraçado. Infelizmente lindo.
— Namorado? — Shawn pergunta de novo, um sorriso sarcástico por
seus lábios.
— Não. Definitivamente não — garanto. Forço um sorriso, me
aproximando dele. Noah está me encarando com toda a sua intensidade. Meu
coração acelera um pouco. Abro e fecho as mãos antes de grudá-las contra a
bancada.
— Está gostando dele? — Franzo o cenho com a pergunta do cliente.
Talvez eu não devesse ser tão sincera com um desconhecido, mas me sinto
tão na merda que acabo sendo:
— Não muito, mas estava começando a gostar, eu acho — confesso.
O problema não é só eu estar sentindo algo pelo Noah e tão rápido. O
problema é que estou fodida, morrendo de medo. O problema não é o Noah.
Não mesmo. Tenho medo de ver o passado se repetir.
Já faz pelo menos três anos desde meu primeiro e último coração
partido. Faz três anos. Não horas, dias, meses. Anos. E eu superei a Dalia,
juro que superei. Eu só não superei a sensação ruim de ser machucada por
alguém. A sensação ficou tão gravada em meu ser que é só pensar nisso, que
consigo sentir o gostinho do meu coração quebrado. É como sangue. Como
se eu estivesse doente fisicamente e tudo dói.
Gostar minimamente de alguém geralmente é o sinal para que eu fuja.
É o que eu faço. Não fui capaz de fazer isso dessa vez.
Noah mexe comigo. Para cacete. Não a ponto de me fazer chorar no
canto do restaurante, mas ao ponto de me deixar puta por saber que ele fodeu
outra pessoa, enquanto toda vez que tento fazer isso, penso nele.
E ele não tira os olhos de mim! Encará-lo é como ser trancafiada em
um círculo vicioso e intenso. E gostar. É como se o olhar de Noah
sequestrasse a minha atenção e me aprisionasse de certo modo, e eu gostasse.
É como uma Síndrome de Estocolmo. Ele me prende e eu o admiro por isso.
A última vez que me permiti ser aprisionada no olhar de alguém,
acabei submersa num mar de dor. Há algum tempo, venho repetindo isso
mentalmente, sempre que possível. Me apaixonar por Dalia foi ceder ao
oceano dos seus olhos e mergulhar, submergir nesse perigo achando que era
um paraíso, ser arrastada para o fundo até não sobrar oxigênio algum. Até
que meus pulmões estivessem a um segundo de implodir.
E então tem Noah. Noah com o breu que chama de olhos, o modo
obscuro e completamente sexy de simplesmente existir. Noah pode me sugar
para suas órbitas, me provar em sua boca como um de seus cigarros, puxar
meu oxigênio como se fosse uma droga e me fazer pensar em seus toques
apenas em estar por perto.
Nesse sentido, o Noah me lembra a minha ex-namorada. E ele ainda
está me olhando.
Toco a nuca ao sentir calor e algum torpor, desviando o olhar de
imediato.
— Bom, eu tenho uma proposta arriscada. — Shawn capta a minha
atenção e eu o encaro.
— O quê?
— Eu vou te passar o meu número. — Oh, não... Jura? — Você pode
ligar depois ou não, escolha sua. Mas isso vai deixá-lo puto. — O cara pega
um guardanapo e uma caneta ao lado do meu bloquinho de notas sobre a
bancada. Ele escreve seu nome e tem até um carinha com uma língua de fora
do lado. Sorrio para ele. — Funcionou?
Olho por cima do ombro e vejo Noah com o cenho franzido ao
máximo, o maxilar trincado, desviando o olhar. Oh, sim, funcionou. Lavou
um pouco a minha alma.
— Quer saber? Pode ter certeza de que vou ligar — digo um pouco
alto, pegando o guardanapo e sorrindo. Vejo raiva pelos olhos de Hellmeister.
E vê-lo irritado é bom.
Muito bom.
Eu estou fumando no intervalo do almoço contra o Shelly, quando
vejo Sinn andar em minha direção, partindo do outro lado da rua. Ele saiu de
um Corvette branco e eu vi que ele está acompanhado, infelizmente.
— Veio tentar me convencer a ouvi-lo? — Ele já tinha tentado fazer
isso ontem. Sinn é um cara legal. Me pergunto o que ele faz sendo amigo de
um babaca como o Noah.
— Não, ‘tô com fome, pensei nas panquecas daqui — se explica, me
roubando um riso. Está lindo com sua jaqueta de couro, seus óculos escuros.
Trago o cigarro e deixo de prestar atenção à nicotina. Sinn está passando pelo
lado do meu carro agora, fora do meu campo de visão mas, ainda assim,
consigo ouvir a sua voz. — E o Luke está vindo... Acho que ele gosta daquele
seu amigo. — Quase engasgo com a fumaça, surpresa. Me viro a tempo de
ver Sinn girar em seus calcanhares e me lançar seu melhor sorriso. — Pois
é... Luke ‘tá dando em cima do seu amiguinho.
— Mentira! — Sinn ergue as mãos, recuando dois passos antes de
entrar no Thurman's e me deixar boquiaberta. Eu sequer sabia que Luke
curtia garotos também. E muito menos que ele estava dando em cima de
Letterman. Matthew, seu filho da...
— Bom dia, meu anjo. — A voz me faz estremecer e fechar os olhos
com força. Me viro em desgosto e fito o sorriso debochado de Noah
Hellmeister. Luke está ao seu lado, mas mal me olha.
Me limito em tragar meu cigarro novamente. O sorriso de Noah
cresce.
Anjo. Babaca.
— Não me chame de seu anjo.
— Você costumava gostar disso. Faz muito pouco tempo.
— As coisas mudam, Noah. Da água para o vinho e em questão de
segundos. Comecemos por aí — digo, soltando a fumaça para o chão. — E
depois... Sou muito mais inteligente do que você pensa. Não sirvo de troféu,
não sou sua para me colocar numa prateleira junto com todas as suas outras.
Ele engole em seco. Eu fito Luke.
— Matt está servindo a mesa nove — conto. O homem arregala os
olhos. Eu sorrio com uma mistura de aprovação e maldade. — Só vai, cara.
O loirinho se mostra relutante em confessar que está interessado no
meu amigo, mas nos deixa a sós. Então eu fito Noah. E desvio o olhar ao
jogar o cigarro no chão e pisar com meus coturnos.
Subitamente, Noah me prende contra o meu carro com algum
cuidado. Ergo os olhos a ele.
Ele desce seu olhar sujo ao meu uniforme e eu cerro os olhos, o
afastando levemente.
— Precisa me ouvir... Meu anjo — sussurra, para provocar. E sorri.
Sorri porque gosta de me irritar. Sorri ainda mais quando vê que consegue.
— Não precisa se explicar, querido. Você mesmo disse... Não
tínhamos nada sério e...
— Adoro quando me chama de querido. — Sua voz rouca interrompe
a minha e meus lábios pairam abertos por um segundo. Ele sorri de novo.
Filho da puta.
— Vai se foder, Noah. — O empurro e ele segura os meus pulsos,
mas me larga rapidamente.
— Ruivinha, precisa me ouvir...
— Não precisa se explicar.
— Então por que diabos está me tratando assim?
— Porque eu estava caindo em seu papo, Noah — confesso e ele une
as sobrancelhas por um segundo. Rio, me achando patética. Então o empurro
levemente, apenas para conseguir ar, espaço fora dessa zona magnética que
ele possui. — Eu estava começando a confundir as coisas, Noah, não foi
culpa sua. Mas é melhor pararmos por aqui.
Mantenho o olhar conectado ao dele, buscando saber se ele
compreendeu o que eu quis dizer. É nesse exato momento que vejo o garoto
da semana passada sair da Harley-Davidson preta, tirar seu capacete e lançar
suas covinhas pra mim.
Styles. Sean. Shawn. Shawn. Tenho certeza de que é Shawn. Não
tenho?
Noah o acompanha com o olhar e me encara novamente. Eu fito Noah
com atenção. E seus olhos faíscam algo que não consigo compreender, antes
de ficarem ainda mais sombrios, se é que é possível. Shawn entra no
Thurman's logo depois de piscar para mim e eu sorrio em retorno. A porta do
restaurante se bate.
— Eu aposto que nem teve coragem de chamá-lo para sair. — Noah
me provoca e eu o encaro, sem entender qual é o seu ponto. — E aposto que
não saiu com ninguém nos últimos dias...
— Não é da sua conta.
— Sim, é da minha conta. — Ele se aproxima e eu não recuo. —
Porque não pode dizer que é melhor pararmos por aqui quando cada
pedacinho do seu corpo ainda fica mexido com cada pedacinho do meu,
Chloe.
Uno as sobrancelhas.
— Se acha tão irresistível, Noah? — Ele trinca o maxilar, mas não me
responde. — Mas você não é. Me faz o favor de não me perseguir em meu
trabalho novamente. Tem muitos lugares bons para você comer alguma coisa.
Talvez na cama com alguma coitada qualquer. — Minhas palavras estão mais
afiadas do que o comum quando entro no Thurman's, o deixando para trás.
Sabe o que é o pior? Eu sei que cada parte dessa conversa foi patética.
E eu sei que não estou agindo da forma como costumo agir. Mas tenho
desculpas.
O primeiro fator é a TPM. Infelizmente, não tenho como fugir desse
monstro. E ele é tão bom de usar como desculpa.
O segundo é... Sinceramente? Noah me transforma na mesma
adolescente estúpida que se fodeu pela bad girl da escola por longos anos. Ele
me torna a Chloe idiota de alguns tempos atrás. Hellmeister me desafia a ser
tão patética e ruim quanto ele.
Então quando vejo, estou tentando provar a ele, e não a mim mesma,
que consigo seguir em frente ao colocar a mão nas costas do Shawn,
conquistar a sua atenção e realmente chamá-lo para sair. Só para ter o prazer
de ver Noah Hellmeister entrar no meu trabalho e perceber que talvez essa
noite, eu saia sim e foda sim com outro cara. Só para ter o prazer de mostrar
que ele não é isso tudo.
E apesar de gostar de ver Noah me encarar como se fosse me fuzilar
com seus olhos, eu odeio a sensação em meu peito. A sensação de quem sabe
que está tentando provar algo para outra pessoa. Porque provar para mim
mesma que Noah não mexe comigo seria estúpido. Seria controverso e
impossível.
Então Noah caminha em direção à mesa na qual Luke tenta fazer Matt
sorrir enquanto realiza um pedido, à mesa em que Sinn picota guardanapos
com suas mãos grandes. Noah caminha com olhar cravado em mim por
algum tempo. E sorri de canto. O filho da puta está sorrindo. Porque ele
captou o meu joguinho. E de algum modo eu sei... Ele sabe jogar muito
melhor.

— Então? Onde vai me levar? — pergunto para Shawn, enquanto as


ruas de Hell's Kitchen passam por nossos olhos. Ele estava com uma
caminhonete antiga de algum amigo e The Chains estava tocando baixinho.
— Bom, eu conheço um lugar sensacional para jantarmos. E então, se
ainda não tiver enjoado da minha cara, como disse que gosta de dançar, eu
conheço um lugar em especial... Acho que vai gostar.
Forço um sorriso mais natural possível quando o rapaz me lança seu
sorriso mais sincero. A covinha me dá oi e isso é fofura demais para mim,
sinto falta de algo mais maldoso. Algo mais sarcástico. Algo que me
provoque fogo. Ou talvez ira.
Desvio o olhar para as janelas. Merda, Chloe.
O lugar em que comemos é simples e ele ganha alguns pontos comigo
por isso. Uma Jukebox no canto do restaurante entoa músicas calmas,
enquanto mesas pequenas e de madeira abrigam casais, garçons andam com
aventais listrados em vermelho e branco e o cheiro de comida caseira nos
preenche.
O problema é que a comida é boa, o lugar é bom e, ainda assim, eu
mal posso esperar para voltar para casa, para a minha cama. Eu não consigo
nem tentar gostar da companhia de Shawn. É como se a minha mente se
recusasse.
Mordo o lábio pela milésima vez quando ele conta sobre a sua vida.
Shawn estuda Economia na Universidade de Columbia e
aparentemente ama o curso dele. Ele tem três irmãs e uma família amorosa no
Maine. Shawn tem o sobrenome Parker e me contou que seu pai queria
colocar seu nome Peter, por motivos óbvios. Eu ri. Foi a única vez que ri com
sinceridade. A piada com Homem-Aranha me fez pensar no meu irmão.
Me pergunto o que Ben está fazendo agora. Sinto falta de colocá-lo
para dormir com uma história inventada na hora. Sinto falta de suas
bochechas gordas e vermelhas, repletas de sardas. Sinto falta da sua risada,
céus, como sinto. Acho que posso visitá-lo no próximo fim de semana. É,
acho que posso. Thurman's pode me liberar por algum tempo. E eu consigo
aguentar as chantagens da mamãe para voltar pra casa por sete dias. Pelo
Ben.
A noite passa e não demora tanto quanto eu imaginava. O Shawn é
legal e eu gosto de seu sorriso, gosto de como se esforça para me fazer sentir
bem. E quando estamos no carro, eu decido dar uma chance para o segundo
lugar que quer me mostrar.
Hell Kitchen's volta a correr por nossos olhos, dentro da caminhonete.
Eu começo a perceber, entretanto, que reconheço o caminho que estamos
traçando. Franzo o cenho para ele, e ele continua a falar sobre como vou amar
esse lugar.
O carro para. E eu vejo um túnel vermelho e a placa do Purgatorium,
que, neste momento, não poderia brilhar mais forte do que nunca.
Ele só pode estar brincando.

— Não precisa fazer isso... — Shawn diz, conforme o puxo pela mão.
Nem preciso mostrar minha identidade falsa para o segurança, ele me
conhece e me deixa passar. Shawn, todavia mostra.
— Eu não me importo, ok?
— Eu te trouxe no clube daquele cara lá. — Me viro para ele assim
que descemos as escadas e passo meus braços ao redor do seu pescoço.
— Foda-se o Noah, ok? Somos eu e você aqui. E aqui é legal. — Ele
bufa, um pouco tenso, olhando ao redor.
Puxo Shawn pelas mãos, o incentivando a andar. E quando percebo
que ele está mais seguro em fazer isso, me viro e deixo que toque os meus
quadris enquanto caminhamos entre pessoas dançantes e bêbadas. Me sinto
nervosa a cada passo dado e a música alta faz meu coração vibrar com força a
cada batida, o que piora tudo.
Vejo Kold no bar e ela eleva as duas sobrancelhas ao perceber que
estou acompanhada. À sua frente, Sinn está sentado no bar e vira a cabeça
para ver o que ela tanto encara. E, ao me ver, ele arqueia uma sobrancelha.
Me choco em alguém no momento em que os encaro e ergo o olhar,
encontrando os olhos verdes de Luke, que une as sobrancelhas ao ver que um
cara está segurando a minha cintura e ele não é Noah.
E falando em Noah, eu sei que se os três estão aqui...
Ergo o olhar em uma sensação típica de déjà vu. Os dedos carregados
de anéis apoiados na barra que separa o segundo piso do primeiro. Nosso
abismo parece maior. Engulo em seco quando meus olhos seguem por seu
corpo, coberto por uma jaqueta de couro negra e uma camisa preta, além do
seu colar de asas. Noah está de jaqueta de couro. E eu gosto mais do que vejo
do que deveria.
Seus olhos, entretanto, faíscam fúria. As luzes vermelhas do
Purgatorium me fazem jurar que eles expressam uma cor de sangue também.
Noah está com raiva e eu sinto isso de longe, mesmo com um abismo entre
nós. Noah está com ciúmes. E minhas pernas parecem bambas no momento.
Ainda assim, eu forço um sorriso maldoso e respiro fundo. Ele aperta
a barra de metal com mais força. E isso é o que preciso para meu sorriso
crescer.

Shawn está com o corpo colado ao meu e me fazendo rir de alguma


piada enquanto dançamos. Suas covinhas estão perto demais do meu rosto e
eu sinto que ele vai me roubar um beijo a qualquer segundo. Estou tentando
focar nele e não nos olhares que sei que recebo.
— Vou pegar uma bebida, quer? — ele questiona, ao meu ouvido.
— Sim! — digo, contra o som, minhas mãos em seus ombros. — Mas
vou ao banheiro, ok? Nos encontramos no bar? — Ele concorda. Deixo um
beijo em sua bochecha e me retiro.
Sigo ao banheiro feminino e fecho a porta do mesmo. As luzes aqui
dentro também são vermelhas e isso me incomoda. Jogo um pouco de água
em minhas mãos e toco o pescoço, tentando transferir algum frio à pele
quente. Estou queimando por causa dos malditos olhares.
A porta se abre e eu fecho a torneira, respirando fundo. Não encaro a
garota que entrou, até que a porta se tranca. E não é nenhuma garota.
Noah está de braços cruzados contra a porta.
— Não sabia que era mulher — alfineto, pegando duas folhas de
papel para secar as mãos. Observo Noah, que infla as narinas ao soltar o ar.
— Mas sempre bom saber, senhora Hellmeister.
— Eu teria cuidado com seus joguinhos, meu anjo.
— Eu não vim por sua causa. — Ele ri nasalado.
— Sei. — Noah me provoca. Cerro os olhos em sua direção e me
aproximo de toda a sua pose debochada.
— Por que se importa, huh? — Me aproximo ainda mais. Seus olhos
estão a poucos centímetros dos meus. Eu posso ouvir a sua respiração
levemente, mesmo com a música abafada do lado de fora. — Acha que vai
me trancar aqui dentro e me foder como uma de suas garotas, Noah? E que
fácil assim, eu vou mudar de ideia e me jogar em seus braços? — Ele engole
em seco. Dou o último passo que nos separa e toco o seu colar. Minhas unhas
arranham seu peito, meu corpo colado ao seu. — Eu não vim por sua causa,
querido — sussurro.
Consigo sentir o batimento do coração de Noah contra a minha mão.
Noah respira com mais vontade, focando em minha boca. É sexy o modo
como me encara. É até mesmo selvagem. E tentador.
Suas mãos tocam a minha cintura. Uma delas sobe ao meu rosto. Eu
sorrio, maldosa, aproximando a boca da sua. Puxo o seu lábio inferior entre
os dentes e Noah fecha os olhos. Minhas unhas arranham a sua nuca e seu
peito, O perfume dele é bom demais de se sentir e por um segundo, considero
mergulhar em seu universo, começando por seus lábios.
Mas não.
— Eu não vim por sua causa — repito, o empurrando e me
permitindo passar por ele. Destranco a porta sem sequer olhar para trás e saio
do banheiro o mais rápido possível.
Ainda estou confusa e com mais calor do que nunca. O meu coração
está batendo muito mais rápido que a música que está tocando. Respiro fundo
e passo a caminhar rapidamente para longe dali, antes que Noah me siga e
resistir deixe de ser uma opção.

Minha respiração parece não ter um ritmo quando entro no carro de


Shawn. Ele pergunta se está tudo bem e eu respondo com um murmúrio e um
acenar de cabeça. Espero que ele acredite, é tudo o que eu espero. Todavia,
acho difícil. Afinal, eu pedi para ir embora mais cedo.
Shawn começa a traçar o caminho de volta à minha casa. Ainda bem.
Minha respiração não parece se acalmar, porque parece que deixei a
minha alma naquele banheiro. Toda vez que venho ao Purgatorium, é como
se eu me perdesse um pouco. É como se eu deixasse uma parte de Chloe por
lá e todos os sentimentos que tivesse vivido naquele lugar simplesmente
continuassem, firmes e fortes, por longos minutos, horas e possivelmente
dias.
Talvez não seja o Purgatorium. Talvez sejam as pessoas. A pessoa.
Com terno, anéis e sorriso maldoso. Bem, hoje ele não usava um terno.
O que preciso fazer para esse desgraçado sair da minha cabeça? Sério,
eu não aguento mais. Parece que todo neurônio é um súdito de Noah. Parece
que ele está tatuado na minha mente.
— Então, chegamos... — Shawn diz. Eu finalmente acordo dos meus
pensamentos quando o carro freia e eu vejo meu prédio do outro lado.
Respiro fundo. — Você não gostou de hoje, não foi?
— Hm... An... O quê? Não, não, eu gostei! De verdade, eu amei. — O
encaro, sorrindo. Então vejo alguma esperança iluminar os seus olhos e... Oi,
covinhas! — Só não estou num bom dia. — Tento explicar. Tiro o cinto e me
viro para ele. — Foi muito bom, eu juro, ok? Eu amei o jantar e amei dançar
com você. Você não dança nada mal! — Ele ri e desvia o olhar, suas
bochechas vermelhas por sua timidez. Então me encara.
Seus olhos brilham na esperança por um beijo e eu sei que é a hora de
me afastar. Porque Shawn claramente é um cara legal. E eu não quero beijar
um cara legal pensando em outro. Então deixo um beijo na sua bochecha.
Sinto sua decepção, eu realmente sinto, mas é o melhor, por ora.
— Boa noite — digo, meu sorriso largo próximo do seu, frágil.
— Boa noite — ele devolve e eu me preparo para abrir a porta, mas
Shawn segura o meu pulso. O encaro, confusa. — A gente pode sair de novo?
Quando você estiver melhor, sei lá...
Mordo o lábio inferior. Ele parece nervoso.
Vamos, Chloe, uma chance. Dê uma chance ao cara.
Uma chance.
Só uma.
Uma.
— Espere uns três dias... Apareça lá no Thurman's, leve a sua covinha
e me chame para sair. A resposta vai ser sim — respondo e vejo seu sorriso
crescer. Shawn beija a minha bochecha e eu me retiro do carro. Sua
caminhonete só arranca quando eu entro no meu prédio.
Por algum motivo, me sinto vigiada. E não pelo Shawn.
— Eu não vou sair com o Luke! — Matt diz, conforme anda por seu
quarto, no seu apartamento. Molly já está procurando por blusas no armário
dele e eu estou jogada sobre a cama.
As paredes do quarto são azuis e ele é pequeno. No rádio do
quarto Crazy Little Thing Called Love do Queen está tocando. Baixinho.
Tem roupas espalhadas pela cama, o armário está levemente caótico e
pôsteres do George Michael e do Michael Jackson estão por todo o lugar. O
melhor pôster, entretanto, é o de Footloose, na porta.
— Esse cara é idiota — Matt resmunga.
— Ele não tem direito de me trancar num banheiro quando eu ´tô
saindo com outro cara — reclamo, mas não do Luke. Do Noah.
— Eu não confio naquele loiro bizarro, com cara de mulherengo,
estúpido — Matt continua a sua birra, cruzando os braços.
— E ainda foi dizer que eu fui vê-lo naquele clube ridículo! Petulante
do caralho. Como se o centro do universo fosse os testículos dele!
— Não é estranho? O cara nunca falou comigo direito e do nada ele
me chama pra sair. Eu nem sabia que ele gostava de garotos!
— Filho da puta.
— Concordo!
— Vocês sequer estão falando da mesma pessoa — Molly nos
interrompe e eu me sento sobre a cama. Matt e eu a encaramos. Molly está
segurando um cabide com uma blusa branca. Na outra mão tem um casaco
preto. — Casual...
— Eu prefiro aquela jaqueta jeans — opino e Matthew me olha como
se eu fosse uma traidora. — Qual o problema de Luke gostar de garotos?
Você gosta!
— Eu achava que ele era hétero!
— É, eu sabia que não — digo —, quer dizer, pelo pouco que Noah
me disse, tanto Luke quanto Kold gostam de pessoas, independentemente de
gêneros. Mas não sei direito como eles se definem, nunca conversei com eles
sobre isso. Enfim... Luke parece ser legal...
— Seria como dormir com o inimigo.
— E desde quando são inimigos? — Molly questiona, jogando as
roupas por cima de Matthew, num pedido para que ele as teste. Matt dá de
ombros e se levanta, tirando a camisa para vestir a camisa branca e a jaqueta
jeans. — Eu acho o cara bonitinho.
— Bonitinho? Luke é gostoso para caramba — digo — e
engraçadinho. Luke é como aquele cara de Thelma & Louise.
— Brad Pitt — Matt suspira.
— Quem? — pergunto.
— O cara de Thelma & Louise. Brad Pitt! Não viu o filme? Cara, ele
é muito gato.
— Assim como Luke. — Retomo a conversa. Matthew bufa,
revirando os olhos ao máximo. — Luke é lindo pra caramba, admita.
— E ele é forte — Molly adiciona. — Deve ter um tanquinho ali.
— Oh, deve... — Soo maldosa, analisando Matthew, que ajeita a
jaqueta jeans sobre seu corpo pela milésima vez, em dúvida se está legal. —
Se não quer sair com o cara, por que está provando roupas? — Arqueio a
sobrancelha para o meu amigo, que me encara com um sorriso dissimulado
nos lábios.
— Se não liga para Noah, por que está tão puta com ele e não se
planejando para um encontro que você vai ter daqui a algumas horas? —
devolve.
Touché.
Matt vai sair com Luke, mesmo fingindo que o odeia. Eu vou sair
com Shawn, mesmo querendo Noah. E eu realmente não sei quando a mais
normal do trio passou a ser a Molly.

Eu saí do meu prédio. E caminharia até a Shelly, do outro lado da rua,


antes de um encontro meio merda com o Shawn, mas fui parada por uma
visão tão peculiar quanto irritante.
Não era Shawn. E Shawn é legal, mas entediante de algum modo. Não
me fez sentir meu coração acelerar em momento algum.
Já o cara perante os meus olhos? Ele fazia.
— Só pode ser brincadeira — murmurei. Noah estava escorado contra
o poste em frente ao meu prédio, com seu terno, um cigarro entre os dedos
anelados. Seu Corvette branco estava logo atrás dele.
Atravessei a rua. Fingi que Hellmeister não existia e ele não moveu
nem um dedo. Para a minha surpresa, vi uma garota loira sair do meu prédio
e sorrir para ele. Ele deu os braços a ela e piscou para mim. Arregalei os
olhos, incrédula.
— Você só pode estar brincando — eu disse um pouco mais alto e
Noah me encarou por cima do ombro, antes de conduzir a loira ao Corvette.
Ele não sorriu, mas eu sabia que queria. Ele queria muito sorrir.
Porque eu havia iniciado um jogo e ele estava mostrando que sabia jogar. Ele
sabia jogar muito bem.
Ele queria me tirar do sério. Adivinha? Conseguiu. Noah me tirou
completamente do sério.
E eu passei o meu encontro e todo o resto da noite puta, imaginando
que diabos o filho da puta estaria fazendo com essa menina. Talvez ele a
chamasse de meu anjo.
Talvez.
Fumei alguns cigarros, alguns becks, bebi algumas cervejas, acabei na
casa de Molly, enquanto jogávamos damas. Eu passei a madrugada chapada e
jogando damas.
Damas?! Tem algo mais patético que isso??!
Noah, de algum modo, sabia que eu sairia com Shawn exatamente
ontem. E então eu lembrei que Luke havia chamado Matt para sair. Matthew
poderia facilmente ter aberto a boca. Porque Noah fez questão de buscar a
loira no meu prédio pouco antes do horário do meu encontro e eu realmente
não acredito em coincidências.
E aqui estou eu, em um outro dia de trabalho. E Shawn está aqui, na
minha frente, carregando um sorriso esperançoso enquanto eu encho a sua
xícara de café, tentando parecer feliz e saltitante. Não ‘tá funcionando.
Ele não tem a menor chance e isso me irrita.
Para piorar, Noah entra pelo lugar, vestindo uma camiseta branca
levemente justa ao seu corpo, as tatuagens dos braços expostas e um sorriso
de canto. Ele sabe o quanto eu gosto de ver suas tatuagens. Ele sabe.
Para a minha sorte, como planejado, Molly o atende e eu a
acompanho com o olhar. Noah não parece incomodado por eu não atendê-lo,
ele esperava por isso.
Shawn começa a falar comigo sobre o encontro de ontem e eu não
consigo parar de olhar Noah. Ele sorri para Molly e lhe entrega um pequeno
papel, piscando. A minha amiga lê o conteúdo e olha para mim, o olhar numa
afirmação silenciosa: "você tem que ver isso".
Shawn realmente não para de falar e eu realmente já não me importo.
Não que tivesse me importado em algum momento, coitado. Meus olhos são
do papelzinho nas mãos da garçonete do outro lado do lugar.
Peço licença e caminho para a cozinha.
Não demora muito e Molly entra, me entregando o papelzinho.
Desdobro e analiso as letras de forma, sentindo o coração bater com mais
força do que deveria contra as minhas costelas.
"Se quer brincar de tortura, meu anjo...", virei a folha, sentindo o meu
coração acelerar "então será a minha vez de torturar você".
Quando eu saio da cozinha, Noah está sentado. E ele não está sozinho.
A loira de ontem à noite está a sua frente. E a risada dos dois preenche todo o
Thurman's.
Filho da puta.

Noah saiu do Thurman's com a loira em seu carro e eu dei um fora em


Shawn. Dá pra acreditar? Provavelmente, Hellmeister está fodendo nesse
exato momento. E eu, a idiota, estou aqui me importando.
— Me diga algo que me faça acreditar em bom humor — peço, assim
que Matt chega atrasado ao trabalho, na cozinha. Ele me ignora por completo
e isso capta a minha atenção e provoca uma irritação absurda.
Seu cabelo está molhado e Matt parece apressado para colocar o
uniforme. Matthew tira a sua jaqueta jeans e eu lembro que estou esquecendo
de algo.
— Ele ‘tá vestindo a mesma roupa de ontem... — Molly diz ao meu
lado, cruzando os braços. Martha está cozinhando e se divertindo com nossos
olhares. Nós duas estamos lado a lado, braços cruzados, fitando Letterman.
Algo está errado.
Vamos, Chloe, pensa.
Pensa.
Pensa.
Anderson me encara e eu a encaro.
— ...mas ele tomou banho — adiciono. E então encaramos Matthew,
boquiabertas. — Você transou com alguém? Oh, Deus! O Luke! — Deixo o
queixo cair. Matthew se vira, nervoso, abrindo e fechando a boca. Sua falta
de resposta faz o meu queixo cair ainda mais e eu nem preciso olhar para
Molly, ela com certeza está com uma reação similar.
Matt grunhe, levando a sua mochila ao depósito e se trancando lá
dentro. Molly e eu corremos para a porta e batemos contra ela. É claro que
ele transou com Luke!
— Me deixem me vestir em paz! — Letterman finge choramingar.
Molly e eu realmente deveríamos estar voltando ao trabalho, nossos cinco
minutos de pausa — não autorizada — já acabaram.
— Tire a sua bunda feia daí de dentro e nos conte como foi! — Molly
demanda. E Matthew obedeceu, com uma cara de derrota.
— Ei, ei, ei! — o chamei. Uni as mãos. Matthew me observou
enquanto eu afastava as mãos. — Me diga quando parar... — Ele rolou os
olhos e nos deixou ali, sozinhas, aos risos.
Letterman teria que nos contar tudo mais tarde. Mas sim, saber que
ele e Luke transaram não só me surpreende como realmente melhora o meu
dia. Realmente mesmo.

Incrível como estou fumando mais do que deveria nas últimas horas.
É como se estivesse tentando superar um vício com outro.
Estou contra meu carro — adivinha? —, fumando, antes de entrar no
meu prédio. Ficar do lado de fora, sentindo a brisa da noite e me deixando
levar por The Rolling Stones ecoando baixo dentro da Shelly... Isso me deixa
um pouco melhor. Me faz pensar.
Vejo um Thunderbird negro estacionar do outro lado da rua. Noah sai
dele e eu rolo os olhos, prestes a jogar o cigarro no chão e pisar sobre ele,
caminhar prédio adentro.
Estou cansada. Cansada de joguinhos. E eu que comecei o jogo. E faz
tão pouco tempo.
— Me escuta. — Ele espalma as mãos.
— Veio buscar a loirinha? — questiono, desistindo de jogar meu
cigarro fora, tragando novamente.
— Está com ciúmes, Chloe...
— Não, eu não...
— Está. — Ele parou a dois passos de mim. — A boa notícia? — ele
diz, passando as mãos por seu cabelo. E então por seu rosto. Noah parece
nervoso. — A boa notícia, Chloe, é que você ficou enciumada porque eu fodi
outra garota, mas eu fiquei dez mil vezes mais só porque você saiu com
aquele filho da puta. — Senti meu coração acelerar e desviei o olhar. —
Então me escuta.
Engoli em seco, fitando o asfalto sob meus pés.
— Sou toda ouvidos. — Cerro os olhos por um instante, deixando
escapar a irritação por cada sílaba.
— Eu mal toquei na sua vizinha. Porque eu não consegui. Eu
não consegui, ‘tá legal? — Ele parece sincero. Desvio o olhar. — Eu pensei
que estávamos nos divertindo um com o outro, eu e você, só isso. Eu achei
que você estava saindo com outros também. Então eu não vi nada demais em
sair com outras também. Você nunca me disse nada. E eu nunca te disse
nada. A gente nunca nem conversou, ‘tá legal? — Noah parece irritado. Ele
disse "‘tá legal" duas vezes em menos de um minuto.
Sinto o seu perfume quando comete o erro de se aproximar. Seus pés
entram em meu campo de visão e eu ergo os olhos a ele. O ar sai por suas
narinas infladas, ele está muito, muito puto.
— Eu juro para você que nunca faria nada para te magoar. Eu seria
incapaz de te magoar, Chloe Mitchell. Eu seria incapaz. Estou sendo sincero,
meu anjo, então seja sincera comigo, huh? Por favor? Ele te tocou, Chloe?
Ele te beijou? — Noah pergunta. Não respondo e ele toma isso como sim.
Noah ri nasalado. Ele toca a minha cintura, suas mãos firmes em minha pele.
— Ele te tocou assim? — Engulo em seco com quão perto está.
Consigo ver todas as suas leves sardas. Consigo gravar cada detalhe
do seu rosto, do formato dos lábios ao contorno dos olhos.
— Ele fez isso com você? — Me pressionou contra a Shelly e eu pude
encarar seus olhos ainda mais de perto. Eles faiscavam ciúmes. Senti os
arrepios por meu corpo pelo modo como ele me tocava e me encarava. Seu
perfume me invadiu e eu me amaldiçoei por isso. — Ele te deixa tão louca
quanto eu? Ele te beijou como eu? Por favor, me responda...
— Não é da sua conta — digo, por entre os dentes, recobrando a
lucidez. Noah respira fundo, trinca seu maxilar e vejo seu pomo de Adão se
movimentar conforme engole em seco. Não era o que ele queria ouvir. — Por
que se importa?
— Quando não me importo quando o assunto é você, Chloe Mitchell?
— Ele parece irritado. — Quando? Me diz! — Ele solta o meu corpo ao
cruzar os braços.
É bom saber que ele sentiu ciúmes. E não deveria, não deveria ser tão
bom saber que fodi a sua mente tanto quanto ele fodeu a minha nas últimas
semanas.
— Não. — A verdade me escapa e Noah respira fundo.
— "Não" o quê? — Seus olhos esquadrinham meu rosto com a
intensidade que lhe é própria. Ele me encara como se eu estivesse testando os
seus limites. Parece que seu autocontrole está por um fio e eu consigo
visualizar até mesmo o ritmo da sua respiração, enquanto seu peito sobe e
desce devagar. Cada mísero detalhe que vejo me faz queimar mais do que
deveria.
— Não, ele não foi nada como você, Noah.
Ele ri nasalado e encara o céu escuro. E então ri mais uma vez,
murmurando um xingamento. Estou tentada a tocar o seu rosto e fazê-lo me
encarar, quero saber o que ele pensa. Mas me contenho. E então ele pergunta:
— Por que faz isso comigo, meu anjo? — Tenta acariciar o meu rosto.
— Eu que te pergunto, Noah. — O afasto. Jogo o cigarro ao chão e
piso. — Um dia me pede pra ficar, no outro diz que não foi nada, depois me
acalma de uma crise de choro, mas fode uma morena no dia seguinte. Você
me confunde! Por que está fazendo isso comigo?
— A gente não tinha estabelecido exclusividade, meu anjo. Você
nunca tinha dito que me queria para si e eu nunca tinha dito que te queria de
volta.
Abri e fechei a boca algumas vezes. Perdi meus argumentos com a
sua verdade, mas ainda assim estou puta. Pior: eu ´tô mal. Genuinamente na
merda.
Deixo um riso nervoso escapar, prestes a deixá-lo sozinho. A vontade
é de estapear seu rosto fodidamente bonito, mas não posso. Porque ele está
certo. Nunca tínhamos conversado sobre sermos algo a mais. Acho que me
conduzi sozinha a sentimentos que não deveriam existir. Nada que o tempo
não cure, certo?
Talvez Noah seja uma perda de tempo.
Caminho para o meu prédio, a passos firmes, mas paro no meio da rua
ao ouvir a sua voz:
— Mas eu quero.
Minhas pernas travam. É como se cada neurônio meu se recusasse a
se afastar dele.
A bomba Chloe-Noah. Eu consigo ouvi-la. Cada mísero tic-tac. Me
viro e o encaro. Noah está de costas para mim. Ele demora um pouco em se
virar e me encarar.
— O que disse? — pergunto.
— Se para que a gente continue a se ver, precisa me ter por inteiro,
meu anjo, então você me tem. Se quer exclusividade, Chloe, então você vai
ter. Aceito ser exclusivamente seu. Porque eu... — Vejo seu pomo de Adão
se mexer conforme engole em seco. Noah suspira, evidentemente nervoso.
— Você...? — O incentivo.
Ele bufa, contrariado, como se lutasse contra as suas próprias
palavras. Seus dedos se afundam por seu cabelo e eu percebo que Noah
provavelmente nunca passou por isso. Ele provavelmente nunca teve algo
sério com alguém.
— Porque eu só penso em você. Vinte e quatro horas por dia. E isso
é... — Ele deixa um riso nasalar nervoso escapar. — Isso é irritante para
caralho, meu anjo. Pensar em você sem poder te ter por perto, isso me irrita
demais. Dá vontade de explodir, deixar de existir, de mandar todo mundo ir
pra casa do caralho. Porque todo mundo parece muito mais leve e feliz do
que eu. Porque eu só consigo pensar que você está puta comigo, eu só... Só.
Consigo. Pensar. Em. Você. Só você. — Irritado, Noah soa irritado. É como
se eu fosse culpada pelo que sente. É como se ele não soubesse o que fazer
com todos esses sentimentos. É como me olhar no espelho. — Não sou um
príncipe, não sou aquele babaca que te levou para sair. Nem sou o cara que
vai andar de mãos dadas saltitando por Nova York. Não estou te oferecendo
exatamente um namorado. — Noah passa as mãos pelo rosto e pelo cabelo,
respirando fundo. — Na verdade, ruivinha, eu nem sei o que estou te
oferecendo. E eu sei que você tem uma lista de motivos para me deixar
sozinho aqui, porque não somos exclusivos. Mas podemos ser. Podemos ser,
meu anjo. Então se quiser, seremos exclusivos. E por favor, Chloe, queira.
Não o respondo.
Eu só me aproximo de seus olhos negros. Eles brilham como poucas
vezes vi na vida. Consigo ouvir a sua respiração enquanto ele analisa cada
detalhe do meu rosto. Devolvo o gesto, mas não por muito tempo.
Fico na ponta dos pés ao segurar seu rosto com as duas mãos, apenas
para garantir que seus olhos ficarão no mesmo nível que os meus. Mas logo
depois meus pés encostam o chão. E eu uno a minha boca a sua.
Céus, senti tanta falta disso...
De como a sua boca parece complementar a minha. Como elas
parecem feitas para se encaixarem, se tocarem e se venerarem, mesmo em um
simples pressionar de lábios.
Hellmeister me pressiona contra si, suspira contra meus lábios,
unindo-os ainda mais contra os seus. Por suas ações, Noah parece finalmente
se render um pouco. Ele parece mostrar que me quer. Que não estou tão
sozinha nessa quanto eu pensava.
Respiro fundo, unindo a testa a sua e deixando meus dedos tocarem o
fio frio da sua corrente. Mordo o lábio inferior, porque subitamente quero
sorrir. Ergo os olhos para Noah e ele acaricia a minha boca, só para tomá-la
para si novamente.
E com seu gosto se encontrando com o meu, meus dedos afundados
em seu cabelo e suas mãos firmes em meus quadris, a bomba finalmente
explode, dando início a um "nós" que ainda não sei o que significa, mas
quero muito descobrir.
"Eu quero". Foi o que Chloe me disse quando interrompeu o último
beijo que demos naquela rua. E isso reverberou por minha mente a cada
segundo...
Como quando subimos o elevador na tentativa de nos conter enquanto
uma idosa estava entre nós;
Quando nos beijamos assim que a velha parou no segundo andar;
Quando ela demorou oitenta anos para conseguir abrir a porta da sua
casa, já que eu beijava o seu pescoço e, até mesmo, quando finalmente abriu
a sua porta e passamos aos beijos até seu quarto. Beijos que beiravam a
agressividade, como a discussão que terminou em uma rendição patética da
minha parte.
O "eu quero" ainda ecoava na minha mente quando a deitei sobre a
cama. Tirei meus sapatos, meias, paletó e camiseta e a ruiva me encarava da
cama, de modo quase felino, sem dizer uma só palavra.
Mas seus olhos repetiam que ela me queria.
E quando seus olhos encontraram os meus, eu vi que ainda havia raiva
em seu olhar, capaz de se transformar em fogo tanto quanto alegria por ter me
visto pedir para que me quisesse daquela forma.
Ela tirou seus sapatos com os pés e eu me ajoelhei sobre a cama.
Deitei devagar o meu corpo sobre o seu, suas unhas tocaram meu rosto, sua
boca roçou contra a minha.
— Você é sexy com raiva — ela confessou baixinho, de um modo
divertido e eu soltei o ar pelo nariz, achando graça.
— Eu sou sexy de qualquer forma, meu anjo.
Ela riu.
— Noah? Não me broxa. — E eu também não consegui prender a
risada. Toda a raiva do momento se foi. Chloe Mitchell é fora de série,
sinceramente. Ergui os olhos a ela novamente em silêncio, no segundo em
que consegui parar de rir. — O que foi?
— Você também é sexy, meu anjo. A mais sexy, se quer saber. —
Sinto a minha boca seca, meus dedos mais firmes em sua cintura, algum
nervosismo. Costumo pensar menos no que digo ao seu lado. Chloe só sorri.
— "Eu sou sexy de qualquer forma, meu anjo". — Ela engrossa a sua
voz e eu rolo os olhos. A ruivinha me puxa para um beijo.
Não demorou para o restante das roupas caírem ao chão e sons baixos
e arrastados dominarem o quarto. Não demorou para a sua cama virar um
caos e nossos corpos tentarem se fundir com violência, testando nossos
limites em posições, provocações e ironias sujas.
E então voltamos a ser o que éramos, mas ainda assim pareceu
diferente. Melhor, eu diria. Não sei explicar. E parte de mim não quer mais
explicações.
Tenho que admitir: a ruivinha tem, sim, algo a mais. Algo que não
quero perder por enquanto. E se eu não puder ficar com mais ninguém só
para tê-la, então que seja.
Eventualmente, o sexo acabou e voltamos a ser como antes. Agora
vejo Chloe sentada sobre a cama, enrolada em lençóis brancos. A ruivinha
prende um cigarro entre os lábios e eu me aproximo quando ela o oferece
para mim, deixando-a pôr a droga em minha boca. E eu trago, fitando os seus
olhos. Solto a fumaça para cima, me deitando sobre suas pernas.
— Exclusivos, huh? — pergunta.
— Exclusivos. — A palavra se arrasta por meus lábios, ainda
desacostumados com a rendição. Mitchell sorri e aproxima os lábios dos
meus.
— Repete.
— Por quê?
— Porque ainda parece que você vai morrer quando diz isso.
— Você que não me leva a sério quando digo isso — retruco, ao me
sentar.
— Você não se faz levar a sério! — acusa, arqueando as
sobrancelhas, tragando o cigarro novamente. Tento me aproximar, em busca
do que está entre seus dedos. Sua boca está a milímetros da minha. —
Repete.
Engulo em seco.
— Somos exclusivos, meu anjo. — Ela ri. Chloe ri com vontade e
deita a cabeça em meu ombro. — Vê? Você também não quer me levar a
sério. — Ela reprime os lábios na tentativa de não rir e eu tomo o cigarro da
sua mão, o tragando. O silêncio se estende um pouco. Vejo no relógio ao lado
da cama que faltam poucos minutos para meia-noite.
— Parando para pensar... Eu nem sei o que isso significa. — A
ruivinha retoma a conversa.
— Eu também não — confesso. E então Chloe recua sobre a cama e
encosta as costas na cabeceira dela, deixando um pouco do tecido que cobre
seu corpo cair. Está sorrindo de canto e eu faço o mesmo. Sua beleza
impressiona. — Eu só sei que não quero transar com mais ninguém sem ser
você.
— Romântico. — E aqui está o sarcasmo que eu gosto tanto. — Eu
também não. Por ora — diz e eu torço o nariz. Seu sorriso cresce quando
fumo novamente. — Me recuso a te chamar de namorado, Noah.
— Ótimo, porque não somos namorados.
— Não mesmo. — Sorri ainda mais.
— Hum-hum, de jeito algum. — Balanço a cabeça em negação.
— Pareceria piada.
— A maior piada.
— Com certeza. Um absurdo — retruca. E então ela suspira. Fito os
seus olhos, curioso para saber o que pensa. Me aproximo, por cima do seu
corpo, pensando em beijá-la, mas Chloe me surpreende quando seu pé trava
em meu peito. Ela me empurra levemente e eu cerro os olhos ao ser impedido
de me aproximar. Seu olhar me provoca, ela gosta disso. Ela adora toda e
qualquer chance de me irritar. — Mas seria uma boa piada.
Apago o cigarro no cinzeiro sobre a cama, mas nossos olhos não se
desgrudam por um segundo. Tiro seu pé do meu peito, me posiciono entre as
suas pernas e me aproximo da sua boca.
— Me chame do quiser, Chloe. Se quer me rotular como namorado,
vá em frente, eu só não sei se serei o melhor. O tipo de cara que uma garota
apresentaria a alguém como namorado. E eu não sei o que somos. Eu não...
Não sei fazer isso. — Tenho medo de estragar tudo. Mas Chloe só ri nasalado
e aproxima o rosto do meu. A ausência de som me irrita, quando segura o
meu queixo com delicadeza.
Quero saber o que pensa.
— Já esteve em um relacionamento antes? — pergunta. Hesito em
responder, mas acabo por confirmar. Chloe arregala os olhos, surpresa. —
Jura?! — Confirmo silenciosamente. — Como ela se chamava?
Merda.
Não pensei que teria que falar disso tão cedo. Nem é um tópico que
gosto de ter em qualquer conversa. Sinto um peso sobre os meus ombros e,
por um instante, é como se a minha garganta se fechasse. E eu engulo em
seco contra essa sensação. Algum nervosismo me toma quando percebo que
Chloe ainda espera por uma resposta e eu cogito mudar de assunto, mas
acabo por ceder:
— Lilith. — Droga, nem sei porque estou contando isso.
— Que nome brega — desdenha, fazendo uma careta. Rio, um pouco
nervoso, e ela ri junto. — Ela era sua o quê, Noah? — Respiro fundo, tentado
a desviar o olhar. — Tudo bem se não quiser me falar, ok? Um passo de cada
vez...
— Ela era tudo. — A verdade me escapa e eu demoro em encarar os
olhos de Chloe, que brilham num misto de curiosidade e algo a mais. — Ela
era tudo até me deixar sem nada. E então ela virou o meu pior pesadelo e eu
realmente não quero falar sobre isso, meu anjo, desculpa, eu não...
— Ei... — Chloe segura meu rosto com as duas mãos e eu fito seus
olhos. — Tudo bem, ok? Eu estava esperando uma resposta tipo "namorada"
ou sei lá. — Respiro fundo mais uma vez. Chloe morde o lábio inferior. Me
aproximo dela, sobre a cama. Seus joelhos estão dobrados, seu olhar se
desvia do meu. — Eu também tive alguém antes. Dalia. E ela era meu tudo
também.
— E o que houve?
— Um par de chifres. Talvez mais. Ok, muito mais. Não sei como
ainda consigo passar por portas. — Chloe ri, mas sinto que ainda dói. A
envolvo pela cintura. — Dalia era a garota mais linda da escola. Tinha toda
aquela vibe da Sandy de Grease. Não a Sandy do início, a do final.
— Não faço ideia do que está falando. — Ela ri. Eu realmente não
faço ideia.
— Bom, Dalia era a bad girl riquinha, errada e mais desejada do
colegial. Todo mundo conhecia Dalia Davenport, porque ela era a filha do
prefeito, sabe? Linda, carismática, saía pela cidade distribuindo sorrisos e
risadas. Enfim, Dalia resolveu fazer a garota mais tímida e quieta da sua sala
de aula se apaixonar. E ela a fez se sentir como a única mulher do mundo.
— Essa garota era você? Jura?
— Sim. E ela transformou aquela garota no que bem entendia. Com
todo o seu charme, com todos os seus sorrisos, a Dalia me moldou, mas,
ainda assim, não me forçou a nada. Ela me fez querer ser má, me fez querer
deixar de ser certinha, de me importar tanto com notas ou sei lá. Também me
apresentou corridas e aventuras... E a adrenalina pareceu tão atraente quanto
ela.
Me calo por um segundo. Chloe parece hesitar em continuar a
história.
— Me apaixonei aos quinze e ela tinha dezessete. Ela tinha repetido
um ano. No início, a minha mãe via Dalia por aí, percebia o clima entre a
gente, mas não realmente se importava, sabe? Mas quando começamos a
namorar?! Caramba, Donna Mitchell começou a odiar Dalia, odiar mesmo.
Acho que ela pressentiu que algo daria errado. Eu caí pelo cliché, enquanto
minha mãe me avisava que o cliché era fodidamente perigoso e eu sabia que
era. — Chloe respira fundo. — Dalia conseguiu alugar um apartamento
pequeno perto da escola, nós nos encontrávamos ali para fumar e... Transar.
— Ela foi a sua primeira?
— Sim. E única. Por muito tempo. — Chloe desvia o olhar, tocando a
minha mão e estalando meus dedos, na tentativa de se distrair. — Então Dalia
se formou da escola, mas continuou no Tennessee. Continuamos juntas. Nos
encontrávamos no apartamento, planejávamos morar ali depois, só nós duas.
Ela me fez acreditar nisso. Ela me deu a chave do apartamento e num belo
dia, após uma aula do último ano do colegial, eu quis fazer uma surpresa.
Mas Dalia também resolveu me fazer uma surpresa, porque estava fodendo
uma amiga minha, bem ali, na nossa cama.
Ergo os olhos para ela. Chloe segue o meu olhar e sorri fraco. Sei que
ser sincera assim não é fácil.
— E eu a amava.
Amor. Ela a amava. E Dalia não a amou de volta, não a valorizou
como deveria ter feito. A idiota a deixou escapar, apenas porque queria foder
outra garota. Busco por qualquer coisa que eu possa dizer para tirar a tristeza
dos seus olhos. Chloe parece realmente se arrepender de ter conhecido essa
menina. Não gosto de saber que alguém apareceu antes de mim e destruiu seu
coração de alguma forma. Muito menos sei como reagir diante a essa
confissão.
Chloe merecia melhor.
— Eu sinto muito.
— Não precisa sentir, de verdade, são águas passadas. O fato é que
não estou dizendo que te amo, não estou dizendo que um dia vou amar. Eu só
´tô sendo mais sincera do que nunca, Noah, porque eu nunca havia sentido
nada por ninguém desde Dalia. Até você. E eu não sei o que exatamente você
provoca em mim, mas é viciante o suficiente para que eu aceite essa
''exclusividade''. Então vou aproveitar esse surto de sinceridade para deixar
claro que eu também penso em você mais do que eu deveria. E que eu
também tenho medo.
Medo? A palavra me congela por um segundo.
No instante seguinte, uma agonia começa a crescer em meu peito, o
tipo de incômodo que não sei explicar. Oh, por favor, com todos os séculos
de vida que eu tenho, já vi e vivi coisas piores do que... Seja lá o que sinto
pela Chloe. Não tenho porque temer isso. De certo é uma sensação parecida
com a que me perseguia quando Lilith estava por perto. E realmente é
sentimento um tanto quanto desconhecido. É como estar às cegas. Isso me
deixa um pouco desconfortável? Sim. Mas medo? Eu não sinto medo. Não
tenho motivos para sentir medo de nada. Me incomoda que ela tenha pensado
nisso.
— Eu não tenho medo...
— Noah...
— Eu não...
— Uhum, sei.
— Eu ´tô falando sério, ok. Eu não... — Ela me cala com um beijo e
eu solto o ar pelo nariz, contrariado. De repente, estou completamente sem
palavras e frustrado. — Você é chata pra cacete. — Desvio o olhar o máximo
que posso, mas logo encaro os seus olhos. — Veja, Chloe, a Lilith foi tudo.
Mas ela não foi como você. Eu não sei o que "exclusivos" significa, porque
com certeza significa mais do que "eu fodo só você e você só me fode".
— Que fofo! — ironiza.
— Eu não sei o que a gente significa, meu anjo — confesso. Chloe
respira fundo e eu sei o porquê: estamos caminhando às cegas para algo. —
Eu só quero descobrir.
Nos encaramos por um segundo. O que somos? Eu não sei, eu
realmente não sei. E qualquer rótulo me parece errado.
Chloe suspira. Ela se levanta e se veste com a primeira coisa que
encontra, que por acaso é o casaco do meu terno. O paletó grande cai por seu
corpo e cobre seus seios, mas não a sua barriga. Mitchell veste a calcinha e
abre a gaveta da cômoda ao lado da cama, retirando um bloco de notas e uma
caneta. Ela abre e escreve algo.
— O que está fazendo? — pergunto, sem entender nada.
— Não somos namorados. Não somos um casal comum. A gente vai
fingir que é quando nos perguntarem, mas nós vamos saber que não. Porque
casais comuns têm finais comuns, talvez chifres ou talvez seja lá o que você
viveu. — Abro a boca, mas sei que explicar o que Lilith era e como não
éramos comuns não é uma boa ideia, então me calo. — Você claramente tem
tanto medo quanto eu do que pode acontecer.
De novo essa palavra?! Ugh...
— Eu não tenho medo!
— Uhum, senhor "eu não sei o que faz comigo, meu anjo". —
Engrossa a voz e eu fecho a cara. Isso não tem graça e eu não falo assim.
— Não ‘tá parecendo comigo.
— Ah, só um segundo. — Chloe pega os anéis na cômoda ao lado,
onde eu os deixei, e coloca em seus dedos, um por um. Eles ficam enormes
em sua mão. Pigarreia e pega um cigarro no maço sobre o móvel, acendendo
com seu isqueiro branco e deixando-o se consumir. Ela traga e cerra os olhos
para mim, ajeitando a sua postura de um jeito bizarro ao soltar a fumaça. E
então engrossa a voz novamente: — "Por que faz isso comigo, meu anjo?" —
me provoca. Rolo os olhos e ela ri. Me passa o cigarro e eu o coloco em
minha boca, a observando. — Vamos brincar. Não somos namorados, somos
"exclusivos". Vamos definir o que isso é e estabelecer regras. E então serei
sua exclusiva, você será o meu.
Não sei o que responder.
Tem essa coisa sobre Chloe que eu acho simplesmente espetacular.
Todas as ideias malucas e engraçadas parecem inviáveis ou estúpidas até que
sejam ditas em voz alta por ela. Como alguma magia, Chloe consegue me
convencer a entrar em seu mundo. Tanto que, às vezes, parece que o seu
mundo é o meu.
Chloe me faz sentir como mais um humano, como ela. E, que
ninguém saiba disso, às vezes eu gosto. Gosto de fazer parte, mesmo que um
pouco, do seu mundo.
Ela já me fez dançar ballet, competir em uma corrida só para chamá-
la para sair e agora está fazendo um contrato com o Diabo, sem nem saber.
Tudo que é improvável passa a ser certo, quando ela diz que é certo. Então
acho que já não me surpreendo quando entro em sua brincadeira:
— Regra número um: Não chamarei ninguém mais de "meu anjo",
você não chamará mais ninguém de "querido". Só eu.
— Só você?
— Sim. Pode escrever.
Chloe sorri, acena e concorda, escrevendo exatamente o que eu disse,
sem esquecer de repetir palavra por palavra enquanto o faz.
— E se quebrarmos essa regra?
— Punição grave. Com toda a certeza. — Uno as sobrancelhas,
tentando soar o mais sério possível. Ela ainda está sorrindo.
E nós, que aparentemente nos divertimos quebrando regras, agora
estamos construindo-as, uma a uma. E, estranhamente, eu quero seguir cada
uma.

— Ex-clu-si-vos — Kold diz contra o som alto do clube, fazendo um


bico em seguida e serve uma dose de uísque para mim. — Me poupe. Noah
você ‘tá namorando. Noah 'tá namorando!
— Noah ‘tá namorando — Luke concorda e os dois brindam doses de
tequila enquanto o pessoal do Purgatorium se diverte pela noite. — Uau.
— Você foi longe demais — Kold diz, aos risos. Rolo os olhos e viro
um gole do uísque. — E falando na garotinha de ouro. — Olho para trás e
vejo Chloe caminhar em minha direção, um pouco alheia a todo esse pessoal
que dança bêbado ou drogado. Ela acabou de sair do trabalho, aparentemente
alguém do Trio Radiação adoeceu e ela aceitou trabalhar um pouco mais para
receber um extra. Enfim, é por isso que veste calças e uma camiseta simples
qualquer sob uma grande jaqueta jeans, nada arrumada como o pessoal daqui.
— Isso vai ser comum agora? — Luke questiona, batendo o ombro
contra o meu.
— A gente combinou de sair — me explico. — Calem a boca — peço
assim que os encaro e vejo que estão tentando não rir.
— Longe demais, Noah, está indo longe demais. — Luke alerta.
— Ei... — Chloe me cumprimenta, parecendo hesitante. Eu a encaro,
sem saber muito o que fazer ou por que estamos sorrindo.
— Ei, segurem isso. — Luke me oferece uma caneta e eu não a pego,
então ele entrega para Chloe. — Para ficar mais claro que vocês transam,
vocês podem escrever na testa um do outro. E aí, o que acham?
— E eu posso escrever na sua testa também que você fodeu o Matt?
— A fala de Chloe me surpreende. Kold e eu, boquiabertos, passamos a
gargalhar de um Luke que está cada vez mais vermelho. Chloe me encara,
deixando a caneta sobre a bancada. — Então... O que exclusivos fazem
quando se encontram? — Ela tenta quebrar o clima bizarro com uma
brincadeira.
— Sexo? — Brinco e ela rola os olhos. A puxo pela cintura, ainda
sentado, e a beijo. E nem pensei na ação antes de fazê-la, eu só fiz. A música
alta não parece importar.
Então sinto uma mão em meu ombro e sinto vontade de espancar
alguém por interromper o beijo. Sinn está ao meu lado, com uma cara de
poucos amigos, respira ofegante. Fito Chloe, que o encara sem compreender
o que está havendo.
— Preciso que... Que venha comigo. Problema de fornecedor.
Bebidas — mente. Eu sei que mente. Chloe franze o cenho para mim. Me
despeço com um beijo breve.
— Me espera na minha sala, meu anjo? Luke pode te acompanhar se
quiser. — Peço e ela confirma. Fito o loiro que bate continência antes de
guiar Chloe para onde mandei. Lanço um olhar para Kold que grita para o
outro funcionário tomar conta de tudo.
E então saímos do bar, pelos fundos, Kold, Sinn e eu. Tem um dos
nossos demônios segurando uma caixa. Sinn ainda está ofegante e eu espero
que ele me explique o que está acontecendo.
— Eu juro que eu não... Eu não... Cara, chegou na minha casa. Na
minha casa. No meu apartamento. E porra, o porteiro poderia ter visto por
curiosidade depois de ter sentido o cheiro escroto disso. — Sinn está
apontando com muita veemência para a caixa.
Ele nunca perde a paciência. Ele raramente sai do sério. Sinn é o
sensato do grupo. E ele está tremendo. Kold e eu nos encaramos, sem saber o
que está acontecendo.
Sinn começa a explicar a situação tão rápido que eu não consigo
entender uma só palavra. Me aproximo da caixa retiro a tampa. O que vejo
me faz engolir em seco e fitar Kold, completamente surpreso.
Eu não sei como reagir.
— Kold, avisa para a Chloe que eu vou demorar um pouco. — É tudo
o que eu digo.
— O que tem aí?
— Kold, por favor... — peço. Ela bufa, mas obedece, dando as costas.
Eu encaro Sinn, um tanto quanto atônito. Encaro o demônio a minha frente
por um segundo, que não parece se abalar nem um pouco pelo que segura.
Mas eu me abalo. Porque ele está segurando um coração. Fito Sinn,
que engole em seco, pensando, provavelmente, exatamente o mesmo que eu.
Junto com polaroides de um casal que conheço bem e alguns lírios, há
um órgão vermelho.
O coração do John está nessa caixa.
No segundo em que eu deixei Chloe em casa, eu voltei a me encontrar
com o Sinn. E ele tinha feito exatamente o que eu havia pedido: na manhã
seguinte, a polícia encontrou o coração do John embalado dentro de uma
caixa sem quaisquer impressões digitais. Tentaram rastrear quem havia
mandado, não conseguiram. Nem vão conseguir.
Soube que Molly queria saber onde o coração estava e, por
consequência, Chloe também. Bem, elas queriam justiça. E já estavam
vingadas. O demônio que matou o John, Chace, estava morto. Pelas minhas
mãos, infelizmente. Elas só não sabiam disso e provavelmente nem saberão,
muito menos a polícia. Contudo, a ilusão de que a justiça estaria sendo feita
pela lei poderia ser tranquilizante. Então eu decidi fazer isso.
Por essa razão, estou em frente à porta da Chloe. Porque
provavelmente ela soube que o coração de John foi encontrado. E ela pode
precisar de ajuda. Ela pode precisar de alguém, certo?
Toco a campainha.
Talvez eu devesse ter ligado.
Eu deveria ter ligado.
Ela pode estar dormindo... às 9h00. Da noite. Ou não. Ela pode estar...
Chorando? Ou ter ido encontrar Molly, porque Molly com certeza precisa de
apoio.
Eu deveria ter ligado.
Mordo o lábio inferior e olho ao redor. Toco a campainha novamente.
Eu não sei se estou sendo muito invasivo para um "exclusivo". Talvez sim.
Caralho, Noah, o que você está fazendo?
Uma porta se abre atrás de mim.
— Oi. — A voz de criança ecoa. Um garoto loiro e sorridente tem sua
boca completamente suja de chocolate enquanto segura uma barra de doce
com as duas mãos. Chloe aparece atrás dele, os cabelos presos em um coque,
um avental sob sua roupa e o olhar confuso em minha direção.
Hoje é sexta. Hoje ela trabalha o dia todo. Inclusive pela noite, porque
ela toma conta do filho da vizinha. Eu esqueci isso. Eu deveria ter ligado.
— Noah? — Chloe Mitchell segura os ombros do garoto e une ainda
mais as sobrancelhas. — Marcamos algo hoje?
— Não, meu anjo, eu... — Abro a boca e fecho. O garoto está
concentrado em comer o chocolate. Olho o seu rosto. Cara, ele ‘tá muito sujo.
Ele ergue a cabeça ao máximo ao olhar para a Chloe. Só assim volto a fitar a
ruivinha. É quando eu percebo: — Você não soube de nada...
Ela não foi avisada sobre o coração do John.
— Soube do quê, Noah? — me pergunta. Lanço um olhar à criança.
Chloe parece entender o recado quando engole em seco e fita o
garoto: conversa de adulto. — Pietro, esse é o tio Noah. Ele é meu...
— Namorado! — O menino tenta adivinhar e Chloe fica vermelha.
— Amiguinho. — Amiguinho? — Tio Noah ama arte. Por que você
não pega aquele desenho do Mickey pra mostrar pro tio Noah? — a ruiva
pede e o garoto me encara. Eu não tenho a mínima paciência pra fingir que
gosto de desenho de criança, mas ele leva o meu silêncio como um "adoraria"
e corre apartamento à dentro. Chloe segura a minha mão e me puxa para si.
— Ok, o que houve?
— Encontraram...
— Encontraram o quê, Noah?
— O coração. — Chloe arregala os olhos levemente. Há um momento
de silêncio, tenso como nunca. E então ela suspira e xinga baixinho. Chloe
morde o lábio inferior e desvia o olhar, tentando disfarçar a surpresa. —
Chloe...
— Encontraram o coração do John...
— Encontraram o coração do John — confirmo.
— Oh, merda! — Mitchell leva as mãos ao rosto. — A Molly. Eu
preciso falar com a Molly. Ela não sabia de nada no trabalho hoje. Podem ter
contado para ela, eu preciso ver a Molly, Noah! — Chloe soa levemente
desesperada e eu tiro as mãos do seu rosto.
Oh, não. Lágrimas não. Não chora. Não ouse. Não ouse.
Ela está chorando.
Porra.
Chloe tenta se controlar, mas seu rosto já está vermelho. Respiro
fundo e a puxo para perto, segurando o seu rosto com as duas mãos. Ela
cogita me afastar, as mãos em meu peito.
— Ei, ei, ei... — Chamo a sua atenção. Chloe solta um suspiro
sôfrego e demora em me encarar. — Não pode deixar o garoto sozinho. Não
se desespera, ok? — peço e ela confirma, mordendo o lábio com força pra
tentar segurar o choro. A ruivinha aperta os olhos e eu consigo sentir a sua
dor. A puxo para os meus braços e ela deita a sua cabeça em meu peito, me
envolvendo pela cintura. — Vai ficar tudo bem, meu anjo. Eu te prometo. Vai
ficar tudo bem. Se você não soube de nada, a Molly também não deve saber.
— Podem ter ligado para ela agora. Não sei, Noah, a Molly não pode
ficar sozinha... — Ela ergue o olhar para mim e eu a beijo brevemente.
— Ligue pro o Matt, ele pode ficar com ela até você terminar de
cuidar da criança — sugiro e ela balança a cabeça em negação, tentando secar
as lágrimas em seu rosto.
— Eu vou dormir aqui hoje. A Senhora Durden trocou de turno com
uma amiga e vai virar a noite num plantão do hospital. Eu prometi que
dormiria com o Pietro. — Chloe bufa e é o exato momento em que eu vejo,
por cima do ombro dela, o garoto segurando um desenho de um rato
deformado.
Acho que é um rato.
Acho.
— Co, você ‘tá chorando? — ele pergunta e a ruivinha funga e tenta
secar as lágrimas novamente, balançando a cabeça em negação. O menino
corre em nossa direção e me entrega o desenho, abraçando a ruiva com força.
— Não chora, SuperCo. — O pirralho a aperta com força pelos quadris.
Chloe volta a chorar em silêncio, fazendo um cafuné nele.
— Você tem razão, não posso deixá-lo sozinho. — Chloe me diz
baixinho. — É melhor você ir embora. — Sua fala ecoa, mas eu não consigo
sair do lugar. — Eu vou... Ligar pro Matt, pedir para ele ficar com a Molly
e... E vou ficar b-bem. — Seus lábios estão tremendo, Chloe aperta os olhos
com força, de novo.
Encaro o desenho do rato deformado que seguro e percebo o tal Pietro
balançar Chloe levemente de um lado para o outro, tentando acalmá-la. O
olhar dele está direcionado para mim, sua bochecha contra o meu anjo.
Ergo o olhar para a ruiva novamente.
— Eu posso ficar — garanto. Chloe ri e se nega. — Eu posso...
— Não precisa.
— Precisa e eu quero, meu anjo. Me recuso a te deixar sozinha.
Porque você parece sempre uma garota tão forte, Chloe, mas no momento
está tão frágil quanto um castelo de areia e...
— Todo mundo tem seus momentos de fraqueza, Noah.
— Eu sei disso, eu sei, de verdade. Mas todo mundo precisa de
alguém nos momentos de fraqueza, não? ‘Tô me oferecendo para ser o seu
alguém. Por um tempinho. Até você se acalmar.
— Ele pode ajudar a gente a fazer uma cabaninha! — Pietro nos
interrompe e eu arqueio uma sobrancelha para Chloe, aprovando a sugestão,
sem nem saber o que ela significa.
— Ele é um estranho — Chloe diz e eu cruzo os braços. Então ela me
encara. — Não para mim. Para a mãe dele e para ele e...
— Mas mamãe deixou você trazer aquele amigo seu daquela vez. O
Matt! — Pietro contou, mais animado que nós dois ali. — Ela confia em você
e se eu disser que você estava triste, ela vai entender quando ver esse bizarrão
aqui dentro.
Bizarrão?
Chloe respira fundo, altamente incerta. Mas Pietro é mais rápido:
— VOU PEGAR OS LENÇÓIS! VAI SER UMA CABANINHA
MONSTRO! — Ele aceita por ela e Chloe abre a boca para retrucar, mas o
garoto corre casa adentro.
Um pouco confuso, a entrego o desenho do rato estranho.
— Ele acha esse rato normal e me acha bizarrão?? — reclamo. Chloe
sorri, seu rosto ainda vermelho e inchado, mas ela sorri. — Vai ficar tudo
bem, ok? Me deixa ficar contigo?
— Pelo que conheço de você... Pensei que odiasse crianças...
— Odiar é uma palavra forte demais. Não odeio. Só não gosto. —
Chloe sorri novamente quando minhas mãos passam ao redor da sua cintura.
— Mas de você, meu anjo, eu gosto. E isso é tudo que importa, sim? —
Chloe confirma e me beija brevemente. — Me deixa ficar contigo e construir
uma cabaninha monstro com esse projeto de humano "bizarrão"? Não sei o
que é pra fazer, mas se é para você sorrir, eu ‘tô dentro.
Então dessa vez, mesmo que seu coração partido seja evidente, Chloe
sorri. E sorri de verdade. A ruiva sorri largamente, acariciando os fios ao fim
da minha nuca.
— Só um pouco, ok? — pede e eu confirmo, unindo a boca a sua. Ela
ri quando minha mão desce e eu aperto a sua bunda. — Hm... Noah...?
— Desculpa, costume, senti saudade — brinco e ela gargalha, me
puxando para dentro, meu braço passando por sua cintura, a mão ainda onde
não deveria estar. Em tese.
— Babaca — acusa. Contra fatos não há argumentos.
Vejo Pietro bagunçar a sala com lençóis para todos os lados e Chloe
fecha a porta atrás de si. Seu nariz parece a ponto de explodir de tão vermelho
e a garota ainda parece linda.
— Huh... Meu anjo... O que seria essa cabaninha?
Movemos a bagunça para o quarto do garoto. O quarto era pequeno e
azul escuro, uma única luz branca sobre o teto.
Tudo era muito simples: dos móveis de madeira aos poucos
brinquedos no local. A "cabaninha" consistia em improvisar uma cabana com
os lençóis. Por conta de alguns armários no teto, atrás da cama do garoto,
Chloe subiu na mesma e amarrou pontas dos lençóis ali.
Depois Pietro me mandou "deixar de ser folgado" e procurar um outro
lugar para amarrar outra ponta. Um pouco entediado e sem acreditar que eu
teria que lidar com um pirralho insuportável pelo resto da noite, obedeci. E,
não sei como, mas conseguimos reduzir a altura do quarto pela metade com
aquela cabaninha.
Faz uns cinco minutos que estou sentado no chão, tentando entender o
que fizemos e porque. Pietro está desenhando, sentado entre as pernas de
Chloe, do outro lado, com um caderninho sobre suas coxas. A ruiva parece
envolvida no próximo rato deformado que a criança pode estar desenhando.
— Qual o objetivo disso? — pergunto. Pietro me lança um olhar
irritado. Chloe sorri para mim e dá de ombros.
— Eu fazia isso com o meu pai quando eu era menor — ela explica.
— A gente cobria o meu quarto desse jeito, apagava a luz, daí papai usava
uma lanterna e me contava centenas de histórias. Contei isso pro Pietro uma
vez e ele insistiu pra a gente tentar. Agora é algo nosso. — A ruiva dá de
ombros novamente. — Não sei exatamente qual o objetivo disso e por que
não só brincamos num quarto comum. Mas é divertido. E, às vezes, é
divertido não saber os porquês e os objetivos, Noah, deveria tentar. — Sinto a
sua alfinetada e eu cruzo os braços.
"Tente se divertir", leio por seus lábios. E não é que eu tenha me
arrependido de ter ficado aqui, mas não me sinto muito confortável nesse
ambiente infantil. Não sei ao certo o que fazer.
Me sinto tentado a perguntar se ela também brinca assim com o seu
irmão. Contudo, parece que família não é um assunto fácil para a ruiva nos
últimos dias. Ela evita falar disso. Parece que evita até pensar nisso.
— Ei, "bizarrão" — Pietro me chama e eu respiro fundo, muito
fundo, bem fundo. Bizarra é a cara dele, moleque chato do caralho. — Tem
um Game Boy no chão. Bem do seu lado. Se quiser eu posso te ensinar a
jogar... — oferece. Não sei o que é um Game Boy, mas procuro algo
diferente no chão, até encontrar um pequeno brinquedo retangular com dois
botões circulares, uma tela e um botão em formato de "mais", o brinquedo
que sustenta uma espécie de fita em seu topo.
Não sou de brincar. Não gosto de crianças. Penso em negar, mas
Chloe arqueia a sobrancelha para mim. Ela está me desafiando. Me
desafiando a deixar o garoto me ensinar algo.
— Hm, é, ‘tá, que seja — concordo. E a única pessoa capaz de andar
pela cabana sem bater a cabeça em um lençol corre em minha direção. Ele
liga o tal game boy, mas o jogo não funciona. — O que houve? — pergunto,
curioso.
— Não ‘tá ligando. — Pietro se concentra ao desligar o aparelho
estranho e tirar a fita estranha ao fundo do mesmo. Em seguida ele me mostra
a fita. Pietro só falta enfiar essa merda na minha boca. — Sopra.
— Quê?!
— Nossa, você é burro hein?! — O garoto me provoca e Chloe
gargalha alto. A lanço um olhar repressivo, mas a ruiva não parece ser capaz
de parar de rir. — Sopra esse buraquinho aqui, ó! Daí eu vou soprar aqui. —
Ele sopra um orifício do brinquedo. — E a fita vai funcionar!
Chloe ainda está rindo. Bufo, sem acreditar no que estou fazendo.
Sopro a maldita fita, o garoto a devolve ao brinquedo e a fita... De fato
funciona? Isso é bruxaria? Como assim?
— Me deixa ver isso aqui. — Tomo o brinquedo das suas mãos. E
apertando as teclas aleatoriamente, acho que iniciei o jogo sem querer. Pietro
tenta pegar o brinquedo de volta. — Não, sai daqui — ordeno, não vou
devolver enquanto não entender como essa merda funciona. O garoto ri e eu
volto a apertar teclas aleatoriamente.
O brinquedo não é tão ruim assim.
Acordo deitado ao chão, alguns travesseiros e cobertores sobre meu
corpo. Não há mais cabaninha sobre as nossas cabeças. Franzo o cenho com a
luz que chega da janela e vejo Chloe terminar de dobrar lençóis sobre a cama.
Espera... Tem um peso em meu braço.
Espera... Oh, que porra é essa? O garoto está com a cabeça em meu
peito. Arregalo os olhos e torço o nariz em nojo. Alguém precisa tirar esse
projeto de humano de cima de mim.
— Chloe, meu anjo? — a chamo e ela estremece, finalmente
percebendo que estou acordado. — Tira esse ser de cima de mim?
— Esse ser tem nome.
— Legal. Tira ele de mim?
— O nome dele...?
— Pietro?
— Acertou. Agora faz isso você. — Cerra os olhos e eu bufo,
indignado. Movo a criança com cuidado, até deixá-la sobre o chão. Pietro
agarra a minha camisa e grunhe algo que não compreendi.
— O que disse? — pergunto, baixinho, curioso.
— Papai... — ele repete.
— Credo! — Me afasto e removo a sua mão do meu corpo. Escuto
Chloe rir e me levanto com cuidado. Caminho em sua direção. A ruivinha
está com um coque mal feito e seu rosto está inchado. Acho que ela chorou
de novo de manhã. — Como está? — Fico logo atrás dela. Me sinto tentado a
me aproximar cada vez mais.
— Ansiosa. A Senhora Durden chegou e já te viu aqui. Tentei me
explicar, mas nem precisou. Ela nem se importou. A mãe do Pietro é tão para
frente, tranquila, sabe? Disse que confia em mim. E disse até que se lembrava
do Senhor Durden pelo modo carinhoso como viu você e o Pietro enquanto
dormiam. — Torço o nariz, sem acreditar. Crianças são nojentas. Chloe fica
em silêncio por algum tempo. — Enfim, ela entrou no quarto dela e desabou
na cama de tão cansada. Usei o telefone daqui para ligar para o Matt. Molly
já sabe de tudo.
Molly Anderson. Cacete, a garota deve estar um caco.
— E aí? — pergunto, hesitante enquanto vejo Chloe reprimir os
lábios. Ela respira fundo e eu seguro os seus quadris. — O que houve?
— Molly chorou até dormir. Matt esteve com ela o tempo todo.
Thurman decidiu fechar o restaurante hoje, parece que ninguém tem cabeça
para trabalhar. Um coração, Noah! Consegue acreditar? Tiraram um coração
de um cara. Eu nem sei como isso aconteceu, como foi possível e como o
engraçadinho enviou o... Coração... Pra polícia. — Ela parece tão brava
quanto angustiada. A viro para mim. Chloe tem os olhos marejados, mas
claramente não quer chorar. E nem vai. — Isso só pode ser um pesadelo,
Noah. John não merecia isso.
— Shhh... Eu sei, eu sei... — A abraço e Chloe afunda a cabeça em
meu peito, segurando as asas em minha corrente, como sempre. Deixo um
beijo em seu ombro e a sinto tensa contra meus braços. — O que quer fazer?
— Primeiro... Preciso de ajuda para colocar o Pietro na cama. Eu
deveria ter feito isso assim que acordei, na verdade. — Me afasto e Chloe faz
um bico. Uno as sobrancelhas. Espera. — Por favor?
— E-eu?
— Não vai derreter se segurar uma criança, Noah.
— Você não tem certeza disso!
— Não parecia odiar tanto a ideia de ficar perto de uma criança
quando brincou com ele a noite toda e ainda deixou ele dormir em cima de
você — acusa, tentando manter o tom de voz em um sussurro, mas
claramente tentada a brigar.
— Meu anjo, se você jogasse aquele jogo ontem, você entenderia. Era
viciante, ‘tá legal? — Chloe cruza os braços e cerra os olhos. — Ok, vou
colocar o garoto na cama. Porra, você é chata... — reclamo e ela ri. Contudo,
quando faço menção de me afastar, Chloe me puxa pela camisa e une meus
lábios aos seus. Simplesmente sei que ela sorri. Eu não sei como, eu só sei. O
beijo se quebra e eu tenho a confirmação ao fitar seus lábios. — O que foi
isso?
— ''Isso''... Isso foi meu bom dia. E meu agradecimento também. Por
ontem. E em antecipação porque vai carregar o Pi... — A beijo,
interrompendo a sua fala. Chloe ri entre o beijo e me afasta. — Ok, o que foi
isso?
— Eu sou muito educado, meu anjo. Eu respondo quando alguém me
dá bom dia — garanto, tentando fingir uma seriedade que não possuo no
momento. — Isso foi o meu bom dia.
Chloe sorri e prende o sorriso com os dentes. Me sinto tentado a
beijá-la novamente.
— Eca, vocês se beijaram. — Uma voz de criança ecoa e eu rolo os
olhos, olhando por cima do ombro. Pietro está sentado ao chão, coçando os
olhos. — Eca!
Chloe afunda a cabeça em meu peito, rindo.
— Ótimo, você ‘tá acordado — digo. — Pode levantar a bunda do
chão sozinho, deitar-se na cama e voltar a dormir.
— Noah! — Chloe me repreende e eu bufo, impaciente. Pietro,
contudo, me obedece e se guia até a cama, deitando-se sobre ela. Chloe se
aproxima dele e sussurra algo. O garotinho sorri e beija a sua bochecha.
— Bom dia, tio Noah — Pietro diz e a ruivinha me lança um olhar
estranho. Demoro para entender e ela arregala os olhos.
— Ah, sim, hm... Bom dia, Pietro — respondo. O pirralho, entretanto,
já voltou a dormir.

Estamos em frente a um prédio a dois quarteirões do apartamento da


ruivinha. Ela me pediu para deixá-la aqui. Chloe hesitou em me deixar sair do
carro com ela e disse que estou sendo superprotetor. É que eu tenho medo de
que algum rebelde esteja por perto. Eu não posso permitir que nada de ruim
aconteça a ela. Eu não vou permitir. Não mesmo.
Ela passa meu braço ao redor do seu pescoço e caminhamos prédio
adentro, o porteiro aparentemente a conhece.
Quinto andar, apartamento 506, Matt abre a porta. Ele sorri para
Chloe, e perde o sorriso quando me vê.
— Entrem — pede, com desgosto por cada sílaba. Matt abraça Chloe
com força quando ela passa por ele e se afasta de mim, como se eu carregasse
o vírus da varíola. Rio nasalado e ele fecha a porta atrás de mim.
O apartamento de Molly Anderson é mais colorido que o da Chloe e
mais confortável. A sala é um pouco maior, com um sofá bege e almofadas
coloridas. A parede é amarela e clara. Bom, a cozinha está com a porta aberta
e pelo pouco que consigo ver, ela é bem simples por dentro. Há um pequeno
corredor ligado à sala aparentemente. Chloe diz que já volta e se despede de
mim com um selinho, seguindo por esse corredor. Escutamos uma porta
bater.
Me jogo ao sofá como se a casa fosse minha e percebo o olhar irritado
de Matthew. Sorrio por isso. Ele se joga ao meu lado.
— Então... Passou a noite com ela? — Letterman questiona.
— Assim como você passou a noite com a Molly — devolvo. Mas
sabemos que não é a mesma coisa.
Matthew respira fundo e eu o encaro.
— O que está fazendo, Noah? Por que não só nos deixa em paz? Por
que não some? Talvez, se você sumir, proteger Chloe seja mais fácil. Poder é
tão importante para você assim? Se acha tão superior que pode arriscar outras
vidas só para sentir essa merda que você diz ter em seu peito?
— Matthew...
— Cara, eu me preocupo com essas meninas, entende? Elas são a
minha vida, Noah. Tudo o que eu tenho.
— Matthew, eu não acho que consigo mais me afastar. — As palavras
escapam da minha boca. Eu não o encaro, mas sinto seu olhar sobre mim. —
Não é sobre poder somente. Não mais. Não vou ser hipócrita, nem mentiroso,
cara, eu quero poder. Eu sempre quis. Me tiraram algo, Matthew, quando eu
estava na pior. Eu virei o monstro de todas as histórias já contadas nesse
planeta. Ninguém nunca parou para me enxergar ou saber como eu me sentia.
E me tiraram algo. Me tiraram poder. E eu quero de volta. Mas eu...
— Você está apaixonado pela Chloe? Vai mesmo dizer isso para
mim, Noah? Vai mentir dessa forma? — Eu o encaro. Suas sobrancelhas
estão unidas e há incredulidade em cada traço do seu rosto.
— Não sei o que sinto. Eu não sei. Mas não é só poder que quero.
Inicialmente era. No começo eu estava cego. Eu não me sinto mais capaz de
me afastar da Chloe. Agora ela é tudo o que eu vejo. — Seus olhos parecem
almejar ver a minha alma. O anjo absorve cada palavra que eu digo. — Mas
não sei o que eu sinto. E sei que estou sendo egoísta pra caralho. Pelo menos
nisso a humanidade acertou. O Diabo é um egoísta filho da puta. Mas eu me
importo com essa garota. E não consigo me afastar. — Desvio o olhar e volto
a apoiar a cabeça no sofá, respirando fundo. — Então, por favor, não me peça
isso.
Um silêncio se estende por alguns segundos.
Vemos Chloe sair pela porta do corredor, seus olhos marejados. Meu
olhar é todo seu e eu me levanto sem nem pensar, andando em sua direção.
Ela soluça, sem nos dizer o que houve, mas seus braços parecem feitos para
envolverem meu pescoço no momento em que ela o faz.
Provavelmente, ela só viu Molly dormir, mas sabe que a amiga não
está bem. E Chloe se preocupa. Ela se preocupa com todo mundo. Por isso,
não tem modo melhor para chamá-la do que anjo.
Seu corpo amolece entre meus braços e Chloe se permite partir um
pouco, porque sabe que eu vou ajudá-la a juntar as peças depois. Porque eu
estou aqui por ela.
E quero estar.
De verdade.
Demoramos algum tempo assim, seu soluço preenchendo a sala
enquanto Matthew segue para a cozinha para buscar um copo de água. Ele
retorna e eu quebro o abraço, a observando segurar o copo com seus dedos
trêmulos. Vê-la tão frágil me incomoda. Fito Matthew, sem saber o que dizer
ou fazer.
Ele sorri fraco para mim, forçosamente. Mas pelos seus olhos, pela
primeira vez, sinto sinceridade, quando leio, por entre seus lábios, um
sussurro:
— Estou acreditando em você, Noah.
E eu sei que de fato, nesse segundo, ele está aprendendo a confiar no
Diabo. Mas ele não deveria. Ninguém deveria.
Molly está de licença por algumas semanas. Matthew e eu voltamos a
trabalhar na segunda. Infelizmente, Brianna e Tyler, dois integrantes do Trio
Radiação, foram requisitados pelo Thurman para nos ajudar. Ele não queria
nos sobrecarregar. Agora, infelizmente, Matt e eu precisamos aguentar esses
dois. Pelo menos Kyle, o terceiro radioativo, não está aqui. Tyler, seu irmão
gêmeo, é um pouco melhor que Kyle.
Brianna está anotando um pedido num canto do restaurante, com seus
fios negros e médios presos em um coque e seus olhos alongados ainda
menores pelo tanto que sorri. Nossa, ela realmente quer aquela gorjeta.
Matthew está tentando anotar o pedido de uma senhora que está
insistindo em cantá-lo. A coitada acredita veementemente que Letterman é
hétero e interessado em mulheres maiores de setenta anos.
Tyler está no caixa e eu realmente não sei se isso é o melhor. Kyle e
Tyler são gêmeos e eu tenho certeza de que, no parto, a inteligência toda
ficou com Kyle. Fito o loiro por um segundo e ele coça a cabeça ao fornecer
o troco para uma garota.
Respiro fundo.
Volto a anotar o que o adolescente emburrado da minha frente quer
para comer e sigo para a cozinha, para avisar a cozinheira o novo pedido.
Assim que passo pela porta, porém, Brianna passa atrás de mim como um
furacão e se tranca no banheiro dos funcionários. A porta se bate com força e
eu estremeço.
Eu e Martha, a cozinheira, nos encaramos sem compreender. Acho
que estou ouvindo alguém vomitar. Eca. E a sinfonia nojenta continua por
muito tempo. E então, a privada é acionada, mas ninguém sai do banheiro.
Passo meu pedido para a cozinheira e me preparo para sair dali, mas
infelizmente, infelizmente mesmo, eu me preocupo com pessoas.
Respiro fundo e caminho ao banheiro, batendo duas vezes na porta.
— Brianna? — Escuto murmúrios e abro a porta. A garota está
sentada ao chão, o nariz vermelho e a palidez dez mil vezes mais intensa que
o comum. — Uau, você está mal... — Torço o nariz em desgosto.
— É, estou. Cai fora — manda e eu não obedeço. Ela ergue os olhos
para mim. — Te diverte me ver assim?
— Acredite, não. Eu adoraria dizer que sim, pegar a câmera que o
Thurman's tem na sala dele e só distribuir polaroides pela parede desse lugar,
todas com o seu rostinho desse jeito. Todavia, contudo, porém, infelizmente,
não tenho esse veneno. Ainda. — Forço um sorriso. — Quer um copo de
água?
— Não. Mas a mesa sete sim. E uma porção de batatas fritas.
— Quem pede só batatas e água?
— A mesa sete pede. — Ela dá de ombros e ri nasalado. Rio junto.
Suspiro e entro de vez no banheiro, fechando a porta ao me aproximar da
garota sentada em frente à privada. Me ajoelho e toco a sua testa. — O que
está fazendo?
— Você está gelada... — observo. — Tem certeza de que não quer
uma água? A sua pressão pode ter caído, posso buscar sal se quiser.
— Você deu um tapa na minha cara outro dia! — Rolo os olhos e o
dorso da minha mão vai ao seu pescoço, para checar a sua temperatura
novamente.
— Você mereceu, mas agora está claramente passando mal e... —
Vejo manchas arroxeadas em seu pescoço, marcas de dedos. Uno as
sobrancelhas ao tentar ver melhor e toco a sua pele. Maquiagem. Brianna
tentou esconder os hematomas com maquiagem. Ela engole em seco e desvia
a minha mão. — Brianna, eu...
— Me deixa sozinha. — É tudo o que ela pede. Por preocupação,
inicialmente, não atendo. — Vai! — ordena, mandona e irritante como
sempre.
Bufo, irritada e me retiro.
Assim que volto ao trabalho, encontro Tyler derrubando as moedas
atrás do balcão e lanço um olhar de desespero para Matthew. Conversamos
por olhares: Tyler é muito lerdo e a manhã vai ser muito longa.
Sigo para um cliente que está com a mão erguida. Mas só consigo
pensar em Brianna Yang.

No intervalo do almoço, acho que ouvi Tyler e Brianna discutirem na


cozinha. Mas Matt e eu decidimos nos afastar da radiação. Ficamos em uma
das mesas do Thurman's. Terminei o meu almoço antes e estalei os dedos de
Matthew enquanto ele bebia um milkshake (pois é, no almoço). E então
voltamos a trabalhar.
O problema é que Brianna pouco saía da cozinha para cuidar dos
clientes e eu e Matthew estávamos sobrecarregados, porque Tyler ainda
estava cuidando do caixa. Quando ela entrou na cozinha pela décima vez, eu
esperei que ela retornasse. Mas Brianna não o fez.
Então aqui estou, indo atrás dela.
Brianna Yang ajuda Martha a cortar tomates. O nariz de Brianna está
vermelho, ela não parece nada bem.
Me aproximo das duas, incerta. Lanço um olhar para Martha, que
desvia de imediato. Ela sabe o que está acontecendo aparentemente. Só não
me dirá.
Volto a encarar Brianna, seus traços delicados, seu semblante tão
dolorosamente vazio. Estou esperando que a garota de descendência chinesa
faça algum tipo de piada indelicada, mas nada acontece. Abro a boca algumas
vezes, pensando em como perguntar se ela poderia me ajudar a servir os
clientes. Os olhos alongados de Brianna Yang continuam focados na
atividade que ela realiza.
— Vai ficar parada aí para sempre, Mitchell? — questiona,
impaciente. E aqui está a mesma Brianna irritante de sempre. Me preparo
para responder, quando vejo a marca em seu pescoço novamente. A
maquiagem que usou para escondê-la não foi suficiente. Brianna se
desconcentra e acaba por cortar a mão levemente. — Ouch! Inferno... —
Martha arregala os olhos e toma a mão da menina, a observando.
Instintivamente, me aproximo da morena e pego dois guardanapos na
bancada, colocando-os em sua mão. Brianna os pressiona contra a palma
ferida e rapidamente o vermelho se espalha pelo papel branco, apesar do
corte não ter sido muito grave. A ouço xingar novamente.
— Tem uma caixa de primeiros socorros na sala do Sr. Thurman. Vou
buscar! — Martha avisa, nervosa e apressada, nos deixando sozinhas. Respiro
fundo quando tento tirar os guardanapos para ver o machucado e Brianna
cogitou afastar a mão.
— Garota, para de ser insuportável por um segundo? — A grosseria
me escapa e Brianna murmura algo que não compreendi. Tiro os guardanapos
da sua mão e vejo o corte de cerca de quatro centímetros de extensão voltar a
liberar uma pequena quantidade de sangue. Coloco os guardanapos de volta.
— Você deveria lavar a mão, eu acho.
— Vai arder.
— Ainda assim, acho melhor lavar a mão. — Mordo o lábio inferior
como se conseguisse sentir a sua dor e ela deixa um suspiro sôfrego escapar,
mas assente. A guio até o banheiro e à pia, a observando lavar as mãos
apenas com água inicialmente. Sangue e água se misturam na pia.
Observo seu reflexo pelo espelho. Brianna não parece nada bem. Ela
fecha os olhos e seus lábios tremem.
E ela joga a bomba:
— O pai é o Kyle. — Sua fala me faz estremecer. Arregalo os olhos.
— Caso esteja se perguntando.
— E-eu... Eu nem sabia que você estava...
— Vamos, Mitchell! Você não é burra. Você deve ter desconfiado. —
A ideia passou pela minha cabeça quando Brianna me expulsou daquele jeito
mais cedo. É que eu decidi não tomar conclusões precipitadas. Só a tinha
visto assim apenas uma vez. Brianna respirou fundo e eu não soube o que
dizer.
— Ele sabe sobre o bebê?
— Oh, sabe. Acredite, ele sabe. — Havia rancor em sua voz. — Faz
um mês que sabemos.
Caralho...
— Ele te machucou? — pergunto. Brianna ainda não me encara, nem
pelo espelho. O silêncio me confirma. — Brianna, a marca no seu pescoço...
— Não é da sua conta.
— Ele está te machucando?
— Foda-se, Mitchell, não é da sua conta. E eu te proíbo de se meter
nisso. A porra da vida é minha, não é? — Ela acaba de confirmar o que eu
disse. Ela está sendo machucada. Pelo Kyle. E eu nunca gostei de Brianna
Yang, mas não é por isso que vou deixá-la sozinha e completamente
quebrada no banheiro dos funcionários. Sua risada nasalada ecoa. — Eu nem
sei porque eu te disse isso...
— Porque está sozinha. E não precisa estar, ok? Eu...
— Você me odeia.
— Eu não...
— Você me odeia.
— Não, você me odeia. — corrijo. — E você faz questão, Brianna,
questão de deixar isso claro em toda ocasião possível, sendo que eu nunca fiz
nada para você. Eu odeio brigar contigo, mas você insiste nisso. Eu chorei
por aquele tapa que te dei, naquele dia, assim que cheguei em casa. Porque
essa rivalidade não me faz bem, Brianna, mas você a criou e você falou do
John como se ele fosse nada. Como se ele fosse um boneco que, por acaso,
foi destruído e perdido e eu pudesse simplesmente comprar outro! — Minha
voz estremeceu por um segundo. — E você não tinha esse direito. Eu jamais
permitiria isso. Aquilo não foi justo.
— Olha que surpresa, Chloe. — Brianna ri e ergue seus olhos para
mim, através do espelho, fechando o registro da pia. — A vida não é justa! —
A garçonete soa rancorosa. Ela se vira para mim, secando a mão com a toalha
na parede. Antes que ela tire a toalha da mão, entretanto, me aproximo e
seguro o tecido contra o seu ferimento. Melhor ela usar a toalha limpa para
estancar o machucado do que um guardanapo de papel.
— Isso não justifica o modo como você me trata — retruco
finalmente. A morena abre e fecha a boca algumas vezes, me analisando. E ri
em seguida. Provavelmente, porque soo como uma diretora da escola ou
como uma princesa da Disney e suas lições de moral. E, pela primeira vez, eu
não sinto raiva, eu só... Só sinto pena.
Eu sinto muita pena.
Porque Brianna está tão machucada que acha que sua cura consiste
em tentar transferir a dor para outra pessoa. Isso não é saudável. Nem para ela
e nem para as suas vítimas. Acho que ela sabe disso, porque desvia o olhar,
como se me encarar dessa vez fosse pesado.
— Pode denunciar ele...
— Chloe, a vida é minha. Me prometa que não vai falar nada pra
ninguém. — Seus olhos cravam nos meus e eu me sinto num ambiente muito
menor que esse banheiro. — Por favor — pede, por entre os dentes.
Chloe, pensa... Pensa... Pensa...
— Ok! Não vou contar sobre a gravidez para ninguém e sei que
conversar contigo sem ser atacada ou te atacar não nos faz amigas, mas vou
guardar esse segredo — cedo, contrariada. — Ademais... Sobre o Kyle...
Acho que você carrega mais dores do que eu imaginava e eu sinto muito por
isso, sinto mesmo. Só que a partir de hoje, Brianna, você está brigando
sozinha, porque eu me recuso a sustentar essa rixa idiota só para te dar o
prazer de ter um saco de pancadas. Você está sozinha se quiser brigar. — Ela
fita seus pés. — Mas só se quiser brigar.
Brianna ergue os olhos para mim novamente, como se perguntasse o
que quero dizer.
— Não estou te oferecendo uma amizade. Acho que precisaríamos de
um longo caminho para isso, Brianna, sinceramente, amizades não surgem de
um dia para o outro. Mas você não precisa ficar sozinha. E você não precisa
ser ferida e maltratada, nem sofrer com esse bebê sozinha, se resolver levar a
gravidez adiante. Se quiser um ombro para chorar, eu estou aqui. Se quiser
alguém para te ajudar a denunciar aquele babaca, me chama. Porque garotas
devem apoiar garotas, Yang, esse mundo já é escroto o suficiente com a gente
só porque somos o que somos. E se eu souber que ele tocou em você
novamente, eu vou matar esse desgraçado. Mas pensa, ok? Pensa se não quer
a minha ajuda. Porque eu juro que posso te ajudar. Só pensa nisso?
Brianna sorri fraco para mim e, pela primeira vez na vida, não tem
ironias ali, é só um sorriso puro e sincero. Ela assente com a cabeça. Brianna
está sorrindo de verdade para mim, repito, Brianna está sorrindo de verdade
para mim e isso não é uma simulação.
— Trouxe os curativos! — Escutamos Martha chamar, da cozinha.
Aceno com a cabeça para trás e recuo.
— Preciso trabalhar — digo. — Espero que fique bem. — E com
alguns segundos de silêncio e sorrisos frágeis, nos despedimos.
Eu sigo para o expediente, Brianna vai cuidar de seu machucado. O
machucado que cobre a palma da sua mão, quero dizer. O que rasga a sua
alma me parece longe de ser tratado.

Vi Kyle chegar para seu turno. Matt e eu iríamos embora, Brianna e


Tyler ficariam no Thurman's com o garoto loiro que acabava de entrar. Kyle
parecia emburrado e mal olhou para Brianna enquanto caminhava para a
cozinha.
Matthew me chamou pela terceira vez para irmos embora e eu
permaneci imóvel, com a jaqueta de couro sobre meu corpo e o olhar cravado
em Kyle por cada segundo de seu trajeto. Agora que ele entrou na cozinha,
meu olhar é de Brianna. Ela encara o bloco de nota e suas mãos tremem.
Levemente, mas tremem.
— Matthew... — As palavras escapam da minha boca e eu lembro que
prometi manter segredo. Brianna toca o pescoço, exatamente onde o
machucado está. E me encara.
Céus...
— Vou ficar bem — ela sussurra, de longe. — Obrigada.
Eu continuo parada por alguns segundos, porque meu coração é como
uma âncora no momento e ele me finca contra o chão. Olho para Tyler, que
está no caixa. Por fora, ele é idêntico ao seu irmão, mas quando analiso o seu
olhar, vejo que ele sente alguma compaixão pela cunhada ou seja lá o que
Brianna é para ele. Talvez ele tivesse brigado com Brianna para que ela
denunciasse Kyle.
Não sei. Não sei o que pensar. A minha mente é uma confusão nesse
momento. E, por mais que Brianna tenha me machucado algumas vezes, eu
queria guardá-la num potinho, num cofre, longe das garras de Kyle.
— Matthew, que horas termina o expediente da Brianna? — pergunto,
meu olhar resiste em sair de Tyler e ir para o meu amigo. Letterman franze o
cenho.
— Pelo que eu saiba, por volta das 23h00. — Sua fala sai por entre
um bico, como se por cada sílaba questionasse por que estou perguntando.
— O que vai fazer mais tarde? — Ando para fora do Thurman's e ele
me segue. Me sinto angustiada. Para cacete.
— Como assim? Não íamos ficar com a Molly hoje? — Oh,
verdade... Mordo o lábio inferior, suprimindo um xingamento. Encaro Matt
antes de entrarmos na Shelly e ele cruza os braços para mim. — O que está
havendo?
Suspiro com tanta vontade que sinto meus pulmões fraquejarem por
um instante. Olho para o Thurman's novamente e pelas janelas de vidro vejo
Kyle caminhar com seu uniforme para atender uma mesa qualquer. E quando
ele passa por Brianna Yang, a garota encolhe. Nunca vi Brianna se encolher.
Eu não sabia que eles tinham um caso e não sei como esse caso
começou. O que eu sei, só de olhar, é que esse caso foi um erro. É como se
ela tivesse permitido que ele a transformasse numa pequena formiga, fácil de
ser pisada, enquanto Brianna sempre fora gigante, impossível de não ser
notada. Quando as coisas caminharam para esse ponto? Como ninguém
notou?
As marcas não devem ter surgido há pouco tempo. Não mesmo.
— Eu não vou poder dormir com vocês hoje, Matthew. Eu vou
resolver uma coisa aqui no Thurman's mais tarde, certo? — Entro no meu
carro e ele faz o mesmo. Estou colocando o cinto e ligando o rádio, tentando
segurar a adrenalina de quem sente que está fazendo errado em não ficar. Mas
Molly também precisa de mim, certo? Brianna disse que está bem...
— Chloe, o que está havendo? — Matt segura a minha mão antes que
eu gire a chave de ignição. O encaro e engulo em seco, porque as palavras
estão em minha garganta: "Brianna precisa de ajuda".
Mas eu fiz aquela porra de promessa. De que não denunciaria Kyle
ainda. Então eu arranco com o carro e deixo Matt sem uma resposta.

— Você está estranha. — Molly reclama, porque estamos assistindo


meu filme de romance favorito e eu não estou prestando atenção. Estamos no
sofá da sua casa. Sua cabeça está em meu colo, eu afago os seus fios
enquanto ela se cobre num cobertor grosso. O problema é que a cada dez
minutos eu pergunto para Matt que horas são, o fazendo parar de prestar
atenção em Richard Gere e Julia Roberts para me informar. Ele é o único que
tem relógio. Matt está sentado no chão, com um balde de pipocas.
Filmes e comidas nada saudáveis. Tem chocolates, outros doces e
pipoca. Somos crianças nesse momento. É como estamos tentando suprir a
saudade de John dessa vez.
— Impressão sua — respondo Molly, finalmente. Acaricio o seu rosto
e ela se ajeita sobre as minhas pernas. Anderson volta a fitar a televisão.
Matthew me olha por cima do ombro e eu aponto para o meu pulso. Ele
entende o recado.
— 22h45 — Matt sussurra.
— Preciso ir — devolvo, em mesmo tom.
— Por quê? — Infelizmente Molly escuta e é ela quem pergunta.
Anderson me encara com seu cenho franzido. Ela se senta e eu me viro para
ela.
— Confia em mim? — pergunto e ela assente. — Não posso te dizer.
— E então a vejo rolar os olhos. — Gente, eu volto, eu só quero garantir que
uma pessoa está segura, ok? — Me levanto e calço os coturnos na velocidade
da luz, apoiada contra uma parede. Matthew me acompanha com o olhar.
— Que pessoa? — a morena questiona, confusa.
— Quer que a gente vá contigo? — Matt soa preocupado.
— Não. — Os coturnos estão no meu pé. Pego a chave da Shelly. —
Tchau, tchau. — Sopro dois beijos e ando para fora dali. Meu coração está
contra a minha garganta.
Eu não devia ter saído do Thurman's. Eu não consegui deixar de
pensar em Brianna por um segundo sequer. Minha intuição não costuma
falhar.
Levo dez minutos para chegar ao meu trabalho. Desligo os faróis.
Vejo Brianna sair com Tyler ao seu lado e ele parece tentar convencê-la de
algo, gesticulando como nunca. Contudo, Kyle sai logo em seguida e se
aproxima dos dois. Analiso a cena de longe, apertando o volante com força.
— O que eu faço, Shelly? — pergunto ao carro, como se ele fosse me
responder. Respiro fundo, ansiosa.
A rua está vazia. O Thurman's perde seu movimento às 22h00. Acho
ridículo que Thurman insista em turnos até às 23h00.
E então, Kyle parece ficar agressivo com o seu irmão. Consigo ouvir
Brianna pedir para que se acalmem. Ela tenta se colocar entre os dois. Tyler
tira a mão de Brianna do seu peito, prestes a avançar contra o irmão. E,
quando eu vejo, Kyle desferiu um golpe contra o irmão. Sua mão alcança o
braço de Brianna. Saio do carro e bato a porta com força.
— KYLE! — Ele me encara assim que o chamo. Atravesso a rua, à
passos firmes. — Solta. Ela.
O cara mantém seus olhos verdes em minha direção. Seus fios loiros e
bagunçados recebem a visita da sua mão e eu sei que ele está puto. Tyler o
encara e eu vejo Brianna estremecer.
— Cai fora, Mitchell — ela pede.
— Não — a respondo e volto a encarar Kyle. Sua mão aperta mais a
garota e eu consigo ver pelo olhar de Brianna que está doendo. — Solta. Ela.
Agora. — Fito o agressor. Eu estou a um segundo de avançar nesse filho da
puta e não acho que isso vai acabar bem. Olho de soslaio para Tyler, que se
levanta do chão. Sua boca está sangrando.
— Você a ouviu, Mitchell. Esse não é um problema seu — Kyle
rosna.
— Talvez seja um problema da polícia. — A frase me escapa e ele ri.
Então antes que eu diga qualquer coisa, Tyler avança contra o irmão, que
solta Brianna. Eu preciso segurá-la para que ela não caia.
Os dois estão brigando como monstros no momento. Nunca vi tanta
agressividade. Seguro o rosto de Brianna. Ela está chorando. Pergunto se está
bem, mas ela vira o rosto e grita por Kyle e Tyler. Thurman's sai do
estabelecimento, unindo as sobrancelhas para a cena. Tyler está no chão
enquanto Kyle o soca com tanta vontade que eu consigo ver respingos de
sangue no chão.
Corro em direção aos dois e tento empurrar Kyle de cima do irmão. É
quando ele me empurra. Tyler deixa de ser seu foco. Estou contra o asfalto,
recuando para trás. O olhar de Kyle é felino e perverso. Engulo em seco. Por
um segundo, vejo uma luz iluminar o rosto desse filho da puta. Nós dois
olhamos para o lado à ponto de enxergarmos um Thunderbird negro mirar
seus faróis em nossa direção. A porta do carro se abre.
E a próxima coisa que eu vejo é Kyle ser empurrado por um homem
de terno, que desfere golpes e mancha seus anéis com sangue e mais sangue.
Noah.
Demoro algum tempo para retomar a consciência enquanto observo
Noah espancar Kyle contra o chão. Hellmeister parece furioso. Brianna está
ajoelhada ao lado de Tyler, tentando fazê-lo respondê-la. Acho que Thurman
gritou que vai chamar a polícia. Minha cabeça está doendo.
Noah desfere socos tão fortes que eu tenho medo que Kyle não
resista. O loiro já está desacordado. Então corro em direção aos dois e seguro
os ombros de Noah, que não para.
— NOAH, CHEGA! — Ele não consegue me ouvir. Seus socos
continuam a ecoar e ferir o rosto de Kyle, sangue está sendo respingado ao
chão. — NOAH! — grito uma última vez e sua mão paira no ar.
Noah abre e fecha seus dedos. Consigo ouvir sua respiração ofegante,
ao mesmo tempo em que a minha e o meu coração soam igualmente altos.
Sinto adrenalina ao extremo.
Hellmeister se levanta, cambaleando. Ele se vira para mim e eu não
sei como reagir. Não sei mesmo. Por um segundo, juro que seus olhos estão
vermelhos, mas quando ele pisca, a impressão some.
Só posso estar louca.
Seguro as suas mãos e as encaro. Elas estão feridas, mas a maior parte
do sangue é de Kyle. Ele me encara, seus olhos perdem a fúria e aos poucos
assumem confusão.
— Você está bem? — ele pergunta, como se não tivesse feito nada e
como se tudo o que lhe importasse fosse eu. E "bem" é a última coisa que
estou nesse momento.

Thurman levou Brianna, Kyle e Tyler ao hospital mais próximo. Eu


fiquei no estabelecimento com Noah em busca do kit de primeiros socorros
que Martha havia indicado mais cedo. Noah tem suas mãos enroladas numa
toalha que encontrei em um dos armários e está sentado em uma das cadeiras,
enquanto eu reviro os armários da sala do meu chefe.
Hellmeister já disse que não precisa de ajuda dez mil vezes e eu já
gritei para que ele calasse a boca pelo menos um milhão de vezes. Estou
nervosa. Nunca vi tanta agressividade de uma vez só. Espero que Brianna
esteja bem. Espero que tudo fique bem.
Volto para a mesa em que ele está assim que eu encontro a maleta de
primeiros socorros. Noah está com as mãos cobertas pela toalha debaixo da
mesa. Me aproximo e peço que ele coloque as mãos sobre a mesa.
— Anjo, não precisa.
— Eu vou te fazer engolir todas as gazes dessa merda de maleta, se
você não colocar as mãos na mesa agora mesmo, Hellmeister. — Me
surpreendo com a minha firmeza. Ele me obedece. Retiro a toalha das suas
mãos.
A toalha que era branca, está vermelha. Mas as mãos de Noah? Elas
estão intactas. Uno as sobrancelhas e o encaro. Noah engole em seco e abre a
boca, prestes a se explicar. Mas a porta do Thurman's se abre, revelando um
Matt e uma Molly preocupados.
— Eu o chamei porque sabia que você faria alguma merda. Só não
sabia o quê. O que houve? — Matt diz tudo de uma vez só, se aproximando.
— A Brianna estava sendo machucada? Como assim? O Kyle era um
filho da puta, eu sempre soube! Eu não disse? Chloe... — Molly não para de
falar, nenhum dos dois.
Olho para a mesa. Noah não está ali. Vejo a porta do Thurman's se
bater e escuto um carro arrancar para longe dali.
Ele foi embora. E eu tenho muitas perguntas.
O tempo nos molda. Principalmente quando crescemos convivendo
com a dor, porque nada, absolutamente nada é tão fodidamente transformador
quanto ela. É impressionante. Somos a sua matéria-prima e ela nos torna o
que bem entender. Nos faz crescer e nos lapida. Às vezes, mudamos
completamente em questão de segundos.
A última vez que eu havia entrado tão desesperada num
hospital... Céus...
Eu tinha catorze anos.
Mentiria se eu dissesse que não lembro todo dia do meu pai sendo
morto à minha frente.
Eu estava na Shelly, ao seu lado. Papai conhecia cada pedacinho da
música do Queen que tocava no rádio. Um amigo do meu pai estava ao fundo
do carro. Era o único que eu não conhecia, mas Collin Mitchell disse que o
conhecia de longa data, que estava passando um tempo no Tennessee e se
chamava Adam. Só o ignorei, para ser sincera. Costumava ser tão tímida que
o máximo que eu fazia em situações como aquela era sorrir fraco e tentar
ficar quieta. Dá vontade de rir quando eu lembro o quanto eu era diferente.
Enfim, ali estava eu, entediada, voltando da escola, observando cada
pequena casa, estabelecimento ou pessoa que passava pelas ruas. O detetive,
ao meu lado, tinha o distintivo colado em sua camisa e um sorriso largo,
tentando me animar. O cara ao fundo do carro olhava pelas janelas, parecia
inquieto.
Mas eu estava cansada. Minhas pálpebras pesavam e eu estava quase
dormindo. A minha boneca, de quando eu era ainda menor, continuava ao
fundo do carro. O detetive cismava em deixá-la ali, como se quisesse que eu
voltasse a ser sua criancinha.
Fechei os olhos por um segundo. No outro, o carro freava com tanta
força que eu só não me machuquei por conta do cinto.
Foi tudo tão rápido...
O outro carro havia nos bloqueado a três quarteirões da nossa rua. Era
um Cadillac. Vermelho, vermelho sangue. Um carro antigo e clássico. Caro
demais para um assaltante. O homem encapuzado saiu do veículo da frente, a
arma mirada em nossa direção. Ao seu lado, outro cara também estava
encapuzado. Assistir àquele revólver claro reluzir contra a luz do início da
tarde me fez perder a capacidade de respirar.
Ao invés de ceder ao assalto, meu pai tirou o cinto, recuou o carro e
tentou dar a volta.
O disparo foi dado de imediato.
Vidro estilhaçado, som de derrapagem, impacto... E a bala traçava seu
caminho mortífero, sem piedade.
E ela me atingiria, talvez. Mas acabou por atingir o detetive ao meu
lado. Sem controle, o carro bateu levemente contra um poste, na traseira.
Outro tiro ecoou, atingindo o homem no banco traseiro do veículo. Eu fui
para frente com o impacto. Mas não aconteceu absolutamente nada comigo,
senão um leve corte na cabeça.
Vi o meu pai com a mão em seu peito e o rosto contra o volante, a
mão tentando conter o sangramento. Sem nem pensar direito, tirei meu cinto.
Minha cabeça doía e eu era nova demais pra saber o que fazer. Meu sangue
era desespero e adrenalina, cada célula era dor e eu gritava pelo meu pai, eu
tentava estancar o sangue com as minhas mãos tão pequenas.
Tão pequenas. Eu era pequena demais para isso.
Usei seu rádio de comunicação para pedir ajuda e ela demorou demais
a chegar. Papai foi levado para cirurgia, mas eu sabia que era tarde demais.
Eu senti isso. Quando eu saí da ambulância, o acompanhando e me indicaram
um assento no corredor frio do hospital, observei a maca dele ser arrastada e
eu simplesmente soube: não havia mais alma naquele corpo. E a doutora que
tentava estancar o sangue enquanto outro médico tentava, desesperadamente,
realizar uma reanimação com as suas mãos... Ela não conseguiria impedir sua
morte. Eles não conseguiriam.
Então uma Chloe Mitchell de 14 anos, com as mãos vermelhas de
sangue, era puxada por médicos para ser avaliada enquanto tentava se
desvencilhar e gritava por seu pai. A cena mais tensa que já vivi. Terminei
por cair de joelhos ao chão enquanto tentavam me acalmar. Me disseram que
ele ficaria bem e eu sabia que não.
No fim, tudo o que recebi foi a receita de analgésicos e um band-aid
colorido na testa.
A minha mãe apareceu no hospital, seus olhos vermelhos, seu nariz
vermelho, sardas por todo o seu rosto. Donna Mary Mitchell correu em
minha direção, com as suas mãos em meu rosto, me enchendo de perguntas.
Palpou meus braços, buscou por qualquer sinal de machucados. Meus lábios
tremeram e eu passei a chorar. Porque eu sabia que ela adiava em me dizer o
óbvio.
Papai havia morrido. Seu amigo também.
Ela sabia.
E meu irmão pequeno, Benjamin, de alguns meses, que estava com a
tia Riley, não chegaria a conhecer o melhor cara que já conheci em toda a
minha vida.
E agora, Chloe Marie Mitchell, em seus vinte anos, está correndo por
um corredor branco, acompanhada de Molly e Matthew, o coração em sua
garganta, por alguém que não era nada como o meu pai. Na verdade, alguém
que me desprezou sempre que pôde. Mas há semanas não me sentia tão
aliviada quanto agora assim que vejo Brianna sentada sobre uma cadeira,
Thurman ao seu lado, a confortando.
Ela está bem. E me surpreendo quando guia seus olhos puxados para
mim e corre em minha direção, me abraçando. Fico imóvel, sem saber como
reagir. Então escuto que seu bebê está ok, Tyler está bem e Kyle está sendo
interrogado. Brianna, acostumada com uma realidade diferente da minha, está
esperançosa de que Kyle vá ser preso. Mas eu troco um olhar com Thurman e
ele sorri com pesar. Porque nós dois sabemos que Kyle só trabalhava no
Thurman's para financiar suas festinhas. Ele tem dinheiro o suficiente para se
safar disso.
O filho da puta vai se safar com seu sorriso impecável e apenas alguns
machucados em seu rosto. No máximo, Kyle vai perder seu emprego, um
emprego que ele nem precisa. E vai sair do hospital sorrindo e aproveitando a
sua liberdade. O que meu pai não pôde fazer. Porque ele encontrou a morte.

Estou dirigindo o carro em silêncio. Matt no banco do carona parece


puto da vida, não sei o motivo. Olho pelo retrovisor e vejo Molly manter seu
olhar vago na rua. Brianna faz o mesmo, do outro lado.
Tem duas meninas quebradas no banco de trás do meu carro, bem
como muitas coisas não ditas. Ligo o rádio, deixando a música baixa. Molly
se mexe sobre o banco, entediada.
— Para a direita — Brianna indica o caminho da sua casa e eu a
obedeço. Estamos na saída de Hell's Kitchen. As casas por aqui são até
legais. — Se precisar virar alguma rua eu aviso novamente. — Assinto.
Continuamos em silêncio mais um pouco e eu sinto o olhar de
Letterman sobre mim. Ele respira fundo e eu o encaro por um segundo.
— Eu juro que não ‘tô mentindo — sussurro, para que apenas Matt
escute.
— Você ‘tá me dizendo que os olhos do seu namorado ficaram
vermelhos e que a mão dele se curou magicamente. É, com certeza eu
acredito, Chloe... — ironiza, sorrindo forçosamente. Engulo a vontade de
explodir dentro do carro. — Não ‘tô me sentindo bem e a minha casa é aqui
perto.
— E...? Qual o seu ponto?
— Pare aqui.
— O quê?
— Pare aqui, Chloe — diz, por entre os dentes. Franzo o cenho, sem
compreender, parando o carro no acostamento. — Nos vemos amanhã,
Mitchell. — É tudo o que ele diz. E bate a porta, caminhando pela rua. Bufo e
deito a cabeça no banco, sem entender seu drama.
Eu sei o que eu vi.
Bem, os olhos do Noah podem não ter mudado de cor, mas suas mãos
se curaram numa velocidade humanamente impossível. Ela deveria estar
ferida até agora. Não deveria estar em perfeito estado.
— Então os olhos do seu namorado ficaram vermelhos e a mão dele
se curou? — Brianna enfia seu rosto entre os assentos e eu rolo os olhos, a
encarando pelo retrovisor. A impaciência sai dos meus lábios por um suspiro
e eu capto o olhar de Molly pelo espelho dentro do carro.
— Chloe... — A minha melhor amiga duvida de mim.
— Eu sei como isso soa, Anderson. Mas eu sei o que eu vi, eu juro
que sei — garanto, angustiada. Volto a observar Brianna, sem me sentir
confortável em ter essa conversa ao seu lado. — Vou conversar com o Noah
ainda hoje.
— Como assim? Matthew já me abandonou, agora você vai foder a
nossa noite também? — Molly me faz rir nasalado. A noite já está fodida. —
Você precisa descansar e eu quero aproveitar a noite com a minha melhor
amiga, porque as minhas últimas semanas estão o inferno na Terra, Mitchell
— ela suspira. — Não estou pedindo só por mim. Co... Por favor, pensa um
pouco, ok? Você está exausta...
— Então por que estou exausta eu não sei o que vi? — retruco.
— Exatamente. Quando foi que teve uma boa noite de sono pela
última vez, Chloe?
— Molly...
— Quando? — Fico em silêncio. Há algum tempo ando tendo
pesadelos, me revirando na cama mais do que deveria. — Foi o que eu
pensei. É normal acharmos que vimos algo quando estamos tão cansadas.
— Eu não estou mentindo, Molly.
— Eu sei que não.
— Você está falando como se eu fosse louca.
— Não, Chloe, eu não estou.
— Você sabe que está! — Me viro, por entre os bancos. Vejo Brianna
morder o lábio inferior e Molly bufar. Estamos brigando na frente de uma
pessoa que não tem nada a ver com isso. Mas há um nó na minha garganta
que precisa ser liberado, então ignoro Brianna Yang. — Eu vi um rasgo na
camisa do Noah uma vez e ele não tinha um ferimento sequer, Molly, mas
sua camisa tinha um pouco de sangue. — Foi na primeira vez que transamos.
— Eu jurei ter visto seus olhos vermelhos antes, quando ele estava com
ciúmes, puto da vida. Mas eu achei que eu estava louca. Porque parecia
surreal, Molly! E se eu não estiver louca, Anderson? O que eu sei sobre
Noah? Eu estou fodendo com um cara que diz sentir não sei o quê por mim,
eu estou me rendendo a um cara que não conheço, Anderson, eu estou me
apaixo... — Paro a fala na metade.
Molly arqueia as duas sobrancelhas e eu tomo consciência do que iria
falar.
Não, não, não...
Brianna está me encarando com seus olhos arregalados e eu sinto meu
coração bater com força contra as minhas costelas. Me recuso a acreditar no
que eu diria. Eu realmente só posso estar ficando louca. Levo as duas mãos
ao rosto e respiro fundo.
— Você está se apaixonando por ele. Diga, Chloe — Molly ordena.
Me viro para o painel do carro novamente e afundo o rosto no volante.
Merda.
Sinto angústia. Sinto muita angústia. Sinto meu coração bater como se
fosse estrangulado. E só consigo lembrar de Noah com suas mãos e seus
anéis contra Kyle.
— Ugh, eu estou enjoada. — A garota de olhos puxados nos
interrompe.
Eu a lanço um olhar preocupado. Por ela e pela Shelly, que realmente
não quer ser vomitada agora. Brianna está fitando o teto e inspirando fundo
enquanto se abana. Então ela para, umedece seus lábios brancos e secos com
a língua e deita a cabeça no banco.
— Eu não quero ir pra casa sozinha agora — Brianna diz. — Faz dois
dias que tudo está jogado no chão, porque Kyle... — A fala dela paira no ar e
eu me recomponho, a encarando pelo espelho. — Enfim, Chloe... Eu sei que
vocês me odeiam...
— Eu não te odeio — garanto, pela milésima vez.
— Eu te odeio — Molly diz, fitando Brianna. E diz com vontade.
Yang suspira e eu rolo os olhos.
— Ok, obrigada pela sinceridade. Continuando... — Yang cantarola.
— Eu sei que me odeiam. Sei de verdade. Mas, por favor, não me deixem
voltar para casa. Não hoje. E se querem saber minha opinião...
— Não queremos — Molly resmunga.
— Eu acho que a Chloe precisa sim conversar com o carinha lá. E se
quiser fazer isso hoje... Por que não? — Troco um sorriso com Brianna. Ela
está tentando não ser tão irritante comigo e eu não sei quanto tempo isso vai
durar, mas estou feliz por isso.
Molly e eu nos entreolhamos por segundos que parecem uma
eternidade. Tudo o que eu preciso é que ela me apoie. E ela me apoia:
— Então converse com ele. Mas se for fazer isso, eu vou contigo. E se
o encosto aqui do meu lado quiser, então foda-se, ela vai junto. E vamos
agora — Molly decide. — Porque eu não quero ficar sozinha também.
Deixo um sorriso escapar e respiro fundo, tentando espantar a tensão.
Firmo as mãos no volante e volto a arrancar com a Shelly. Nós quatro —
Shelly inclusa —seguimos para onde eu acho que o Noah pode estar.

— Acho melhor vocês ficarem aqui — digo, antes de abrir a porta do


carro. Contudo Brianna se infiltra entre os bancos e segura o meu braço.
— Deixar duas mulheres sozinhas num carro é perigoso e eu não vou
ficar nesse lugar abafado, correndo o risco de morrer pelas mãos da sua
amiguinha.
Fito Molly, que sorri maldosa.
— Eu curtiria umas duas bebidas — Anderson ironiza. Rolo os olhos.
Acabo por sair do carro e acenar com a cabeça para que me acompanhem.
Passamos sob o túnel escarlate e paramos em frente à entrada do
Purgatorium.
Uso a identidade falsa com o segurança. Em pouco tempo completarei
vinte e um anos e essa belezinha cairá em desuso. Molly usa a sua identidade
falsa e Brianna usa a sua verdadeira. Escuto Anderson alertar a garota que ela
não pode beber e Brianna dizer um "relaxa" tão alto quanto a música
eletrônica alta que está tocando.
Não vejo Kold no bar, vejo apenas Sinn se beijando com uma mulher
em frente ao mesmo. Sigo por todas as pessoas que dançam na pista.
Algumas parecem drogadas. Respiro fundo e me viro para Molly e Brianna,
indecisa. Não sei para qual lugar ir primeiro. Está calor demais e eu me
preocupo com Yang.
Isso foi uma péssima ideia. A última coisa que eu quero é uma mulher
grávida desmaiando e parando a festa no Purgatorium. Então vejo alguém
interromper o beijo de Sinn. O cara parece ofegante. Sinn une as
sobrancelhas para o rapaz na medida em que ele lhe sussurra algo no ouvido.
Os dois caminham em direção à porta aos fundos.
— Ok, me sigam — peço, contra a música. As duas confirmam e eu
seguro a mão de Brianna, que por sua vez segura a de Molly. Caminhamos ao
fundo do lugar.
O que eu vejo, contudo me faz puxá-las de volta para dentro.
— O que foi? — Brianna sussurra.
— Matt está aqui — digo, sem acreditar. Eu o deixei perto da sua
casa. Como ele chegou aqui antes de mim? Nada faz sentido.
— O quê? — Molly soa surpresa e eu levo a mão à sua boca.
O som do Purgatorium ainda ecoa, afastado.
— É CLARO QUE EU ESTOU PUTO, NOAH! — Esse é o Matt. —
VOCÊ MOSTROU A SUA MÃO SE CURANDO MAGICAMENTE PARA
UMA HUMANA E AINDA EXPÔS SUAS ENCANTADORAS ÍRIS
VERMELHAS. IRRESPONSÁVEL PARA CACETE! — Franzo o cenho,
fitando Molly, que faz o mesmo.
Eu estava certa? E Matt sabia?
— Não ouse gritar para mim, anjo. — Noah. Noah está falando. —
Ela não vai desconfiar de nada, eu só preciso de um tempo para bolar alguma
coisa.
— CHLOE NÃO É BURRA, NOAH!
— Eu nunca disse que era! — ele se defende, soando tão puto quanto
Matthew, mas não tão alto. — Agora pare de gritar e de dar chilique em
frente à festa. Porque se algum filho da puta resolver fumar aqui fora ou
tomar um ar ou foder alguma garota atrás de um carro, ele pode ouvir seus
gritos e, talvez, ver a minha mão socando a porra da tua cara!
Molly murmura algo contra a minha mão.
— Shhh... — imploro para que ela se cale. Então ela lança um olhar
para Brianna. E eu entendo tudo. A garota está colada contra a parede,
hiperventilando, parecendo pior do que nunca.
Céus, não vomite agora. Por favor.
— O que fazemos? — Matt questiona, aparentemente mais calmo.
— Precisamos pensar numa desculpa. — Kold. Essa é a Kold.
— Que desculpa, gênia? — Sinn, claramente puto.
— Eu disse que essa garota era problema. — Acho que é o Luke. —
Seu pior erro foi você ter se aproximado dela, Hell. Ela não é isso tudo e tira
toda a sua racionalidade. Pode colocar tudo a perder. No seu lugar eu voltaria
para o Inferno e cagaria para essa ruivinha.
— Cala a boca, Luke! — Noah responde. Engulo em seco. Escuto
Brianna murmurar algo, cada vez mais pálida, se é que é possível.
— Ei! Vocês! — A voz é desconhecida. Um homem. — Sabem me
dizer se podemos entrar por aqui?
— A entrada é pelo outro lado — Sinn informa.
— Jura? — O cara parece surpreso. — Merda, não tem mesmo como
entrarmos por aqui? — Tiro a mão da boca de Molly. — Cara, que bizarro...
Um amigo meu disse que poderia. Ele era loiro, estatura mediana, sem
coração. — Isso soa como uma ironia.
Isso é uma ironia.
O silêncio nos toma. Seguro Molly de imediato quando vejo seus
olhos se arregalarem. Volto a tapar a sua boca e ela murmura contra a minha
mão, tentando tirá-la da sua boca. Bato em sua mão e sussurro para que fique
calada. Ela precisa ficar calada.
Meu coração está batendo muito rápido. Merda, merda...
— É o seguinte, Noah Hellmeister. — O cara estranho está dizendo.
Infiltro a cabeça na porta por um segundo. Kold me vê e eu retorno a me
esconder. O cara não está sozinho. Tem ao menos sete pessoas com ele. —
Nós soubemos de uma aproximação de um anjo com o Diabo. E não
aprovamos. Então viemos pacificamente destruir o anjo e corrigir as coisas.
Depois podemos... Hm, talvez enviar o coração do celestial para uma ruiva.
Não sei se a conhece.
— Kold me viu — sussurro para Molly. Ela tira a minha mão da boca.
— Eles falaram do John, Co! Você ouviu, eles falaram do John...
— Eu vou vomitar — Brianna diz, levando a mão à boca.
— Não, não, não... — Molly e eu pedimos em uníssono.
Mas Brianna vomita. Molly segura seus cabelos e tenta ajudá-la de
imediato, ajoelhando ao seu lado. Faço o mesmo, preocupada enquanto Yang
coloca para fora todo o conteúdo do seu dia.
E eu ficaria ao seu lado, mas a minha mente para por um segundo.
Não estou mais ouvindo conversas distantes. Só o que eu escuto é uma
movimentação, bem como som de socos.
Então me levanto e saio do Purgatorium por curiosidade. Saio a
tempo de ver uma cena de luta peculiar. Uma em que uma bartender segura
uma adaga, meu melhor amigo soca um cara e meu namorado se defende de
outro.
E os três possuem asas.
Estava caminhando de um lado ao outro da minha sala, as mãos em
minha cabeça, nervoso como nunca. Chloe ter visto as minhas mãos daquele
jeito... Puta que pariu. Puta que pariu!
— Matt está aqui, Noah — Luke disse, assim que entrou na sala. —
Eu avisei tantas vezes que não era para você se envolver com uma humana.
Eu tinha o contado tudo no segundo em que havia chegado ao
Purgatorium.
— Agora não, Luke. — Me virei para ele. Eu sentia o meu corpo
arder em angústia por dentro.
— Espero que agora você tome jeito e desista da garota. Porque eu
avisei, Noah. E provavelmente, existe algum outro modo de você conseguir a
porra do seu coração em perfeito estado novamente...
— Não tem. E se tiver, Luke, eu não me importo. Eu quero o modo
que envolva ela — disse e bati meu ombro ao seu sem querer ao sairmos.
Senti que ele me acompanhava.
Passamos por todo mundo no Purgatorium. Luke me informou que
Matt estava do lado de fora, porque meu amigo achou melhor não levar a
confusão para dentro da festa. A minha cabeça estava um caos e eu desviava
de pessoas bêbadas e dançantes. Cheguei, enfim, ao lado externo.
Kold fumava um cigarro e Matthew tinha as mãos no bolso da sua
jaqueta, caminhando de um lado ao outro. Seus olhos gritaram ira quando
identificaram os meus.
— VOCÊ É UM PUTA IRRESPONSÁVEL! — Seu indicador foi
mirado em minha direção.
— Não tem porque gritar. Está tudo sob controle. — Me aproximei,
me controlando para não quebrar cada um dos seus dentes. Quem ele pensa
que é?
— NÃO TEM PORQUE GRITAR? — Matthew riu nasalado. Seus
olhos estavam vermelhos, duas lágrimas rolaram por seu rosto e ele as secou.
— Chloe e Molly são tudo que tenho e eu te disse isso tantas vezes. E agora
elas estão a um passo de descobrir tudo.
— Elas estão seguras, Matthew. — Sinn passa por mim,
acompanhado de um dos nossos.
— Até quando? — A resposta do anjo me tira o chão. Sinto meu
corpo pesar e tento esboçar alguma resposta, mas não consigo. — Até quando
elas vão estar seguras, Noah? Se você existe! Se você se meteu no caminho
delas, principalmente no caminho da Chloe. Como pode me garantir que elas
vão estar seguras? Até quando? Até quando elas vão estar bem, Noah?
Não o respondo. Trinco o maxilar e solto o ar pelo nariz, olhando ao
redor. Do céu negro, às pessoas que me cercam. Me sentia no meio de uma
audiência esperando por uma resposta. E eu não tinha o que dizer.
Matthew estava certo. Mas eu não queria me afastar da ruivinha.
— Não precisa ficar puto, a gente ainda pode dar um jeito...
— É CLARO QUE EU ESTOU PUTO, NOAH! — Matthew se
aproxima, gesticulando como nunca, as veias em seu pescoço sobressaltadas.
— VOCÊ MOSTROU AS SUAS MÃOS SE CURANDO MAGICAMENTE
PARA UMA HUMANA E AINDA EXPÔS SUAS ENCANTADORAS ÍRIS
VERMELHAS. IRRESPONSÁVEL PARA CACETE!
E agora todos ali sabiam o que havia de fato acontecido. Ouvi Sinn e
Kold xingarem.
Não poderia permitir que ele seja maior do que eu nessa discussão.
Todos assistiam. Senti raiva e a fúria foi suficiente para me dar energia e
fazer meu sangue correr com velocidade. Quem ele pensava que é?
— Não ouse gritar para mim, anjo — ordenei. — Ela não vai
desconfiar de nada, eu só preciso de um tempo para bolar alguma coisa.
— CHLOE NÃO É BURRA, NOAH!
— Eu nunca disse que era! — me defendi, aumentando o tom de voz
e soando firme. Matthew perdeu a sua capacidade de fala por um segundo e
eu me aproximei de sua figura. — Agora pare de gritar e de dar chilique em
frente à festa. Porque se algum filho da puta resolver fumar aqui fora ou
tomar um ar ou foder alguma garota atrás de um carro, ele pode ouvir seus
gritos e, talvez, ver a minha mão socando a porra da tua cara!
Jurei ter escutado algo estranho vindo da saída do Purgatorium, mas
quando olhei para trás, não vi nada.
— O que faremos? — Matt questionou, aparentemente mais calmo.
— Precisamos pensar numa desculpa — Kold se intrometeu, fazendo
com que nós a encarássemos. Ela descartou seu cigarro apagado na grande
lixeira ali perto.
— Que desculpa, gênia? — Sinn perguntou, claramente irritado.
— Eu disse que essa garota era problema. — Luke me fez respirar
fundo. — Seu pior erro foi você ter se aproximado dela, Hell. Ela não é isso
tudo e tira toda a sua racionalidade. Pode colocar tudo a perder. No seu lugar,
eu voltaria para o Inferno e cagaria para essa ruivinha.
— Cala a boca, Luke! — ordenei, prestes a fazê-lo se arrepender de
suas palavras. Estava no meu limite.
— Ei! Vocês! — A voz desconhecida fez todos olharem pra a saída
daquele beco. Um homem alto e forte, acompanhado de alguns amigos,
estava ali. Ele vestia uma jaqueta de couro e tinha um cigarro aceso entre
seus dedos. — Sabem me dizer se podemos entrar por aqui?
— A entrada é pelo outro lado — Sinn informou.
— Jura? — O cara pareceu surpreso. — Merda, não tem mesmo como
entrarmos por aqui? Cara, que bizarro... Um amigo meu disse que poderia.
Ele era loiro, estatura mediana, sem coração.
Travei o maxilar instantaneamente. Olhei de soslaio e vi o exato
momento em que Matthew imitou o meu cerrar de punhos, mudando a sua
postura e se virando para aquele grupo. Demônios.
O silêncio nos tomou. E então eu franzi o cenho. Reconheci um
coração batendo forte há alguns metros da gente por algum motivo. Olhei ao
redor mais uma vez, buscando quem era essa pessoa e porque estava tão
nervosa. O coração batia como se estivesse estrangulado.
— É o seguinte, Noah Hellmeister — o demônio me chamou. Voltei a
fitá-lo. — Nós soubemos de uma aproximação de um anjo com o Diabo. E
não aprovamos. Então viemos pacificamente destruir o anjo e corrigir as
coisas. Depois podemos... Hum, talvez enviar o coração do celestial para uma
ruiva. Não sei se a conhece.
Eu tentaria manter a situação sob controle, mas Matthew estava fora
de si. Suas asas rasgaram a sua jaqueta e ele voou para cima do rapaz,
desferindo socos fortes. Esse foi o sinal para a guerra começar. Dois
demônios voaram em minha direção e eu desviei os socos de ambos, mas
Kold liberou as suas asas e tirou a adaga escondida em sua bota, se
aproximando para me ajudar.
Sinn e Luke correram em direção a dois caras, socando-os.
Um dos demônios que avançaram sobre mim tentou me acertar com
uma faca e eu recuei, segurando o seu punho. Kold chutou a cabeça do outro
ao girar o seu corpo e ele cambaleou pra trás. Não sei se pela adrenalina do
momento, mas nem percebi o momento em que as asas saíram do meu corpo.
— NOAH! — Kold tentou me avisar de algo, mas eu estava
concentrado em apertar o punho do filho da puta a minha frente. Ele caiu
perante meus pés e derrubou a faca no chão. A pisei, torcendo seu braço.
Ouvi algo fraturar e continuei a segurar com firmeza. Levei o pé em
seu peito e o empurrei. O cara caiu no chão. Me agachei e peguei a faca.
— NOAH, A CHLOE! — O grito de Koldelium me fez franzir o
cenho. Então eu olhei para o lado.
E é esse o momento em que me encontro: com o meu coração
esmagado pela sensação de que Chloe está vendo quem sou. Tudo o que eu
não queria que acontecesse. A minha ruivinha está paralisada, seus olhos
arregalados sobre mim. Vejo medo em seus olhos.
— Chloe! — a chamo e ela anda para trás, finalmente voltando aos
seus sentidos. Molly para logo atrás dela e arregala os olhos para a cena. Matt
interrompe a sua luta para encará-las e recebe uma facada na costela, caindo
ao chão. Não tenho tempo de correr atrás dela, porque voo em direção ao cara
que machucou o anjo e cravo a faca que tenho em mãos em seu pescoço.
Me ajoelho perante o anjo e seguro a região ferida. Quando olho para
trás, Molly Anderson e Chloe Mitchell desapareceram.
— Eu vou ficar bem, corre atrás delas! — Matt ordena. Me nego a
deixá-lo sangrando ao chão. — VAI, NOAH!
Olho ao redor. Sinn e Luke deixaram dois caras caídos ao chão
desacordados, porém lutam contra três demônios no momento. Kold elimina
um cara, fazendo sua adaga lhe atravessar o abdome.
— Eu cuido dele — Kold me assegura e eu hesito. — VAI, NOAH!
— ela grita a ordem e eu me levanto de imediato assim que a morena se
ajoelha perante Matthew e o ajuda a se levantar. Ando para trás, incerto.
Se algo acontecer com o filho da puta desse anjo, Chloe nunca vai me
perdoar. Mas eu preciso ver se ela está bem, então corro para dentro do
Purgatorium. Vejo uma poça de vômito, ignoro e sigo para dentro da festa.
Tem muitos corações agitados aqui e eu não consigo reconhecer o
dela. A batida alta da música eletrônica também me atrapalha. Me sinto
nervoso, tentando me espremer e chegar o mais rápido possível ao outro lado.
Quando consigo, corro como nunca.
— CHLOE! — grito assim que a vejo entrar no carro com duas
garotas. Seus olhos ainda cravam em mim quando tento correr em sua
direção, mas ela arranca para fora dali o mais rápido possível.
Então eu fecho os olhos e tento pensar em como ela está. Consigo vê-
la gritar e berrar dentro do carro com as duas meninas, que soam
desesperadas. A garota de traços asiáticos está passando mal enquanto Molly
e Chloe gritam sobre o que viram.
— QUE PORRA FOI AQUELA?! — Molly grita.
— EU NÃO SEI! — Chloe segura o volante, completamente
aterrorizada, acelerando o carro como nunca.
— CHLOE!
— EU NÃO SEI, CACETE!
— Eu quero vomitar — a tal Yang resmunga. E as outras duas voltam
a gritar em desespero uma com a outra.
Respiro fundo e penso no que fazer, olhando ao redor. Sei exatamente
onde quero estar, então me materializo nesse lugar. Quando vejo estou de
frente para o prédio de Chloe Mitchell. Mas ela ainda não chegou.
Opto por ficar do outro lado da rua, esperando seu carro chegar. E ele
chega, alguns minutos depois. Pateticamente, me escondo atrás de um carro.
A primeira a sair do carro é Molly, que ajuda a garota que não sei o nome a
sair do banco de trás. E a garota vomita ao chão. Chloe está dentro do carro,
as mãos sobre o volante, a cabeça entre os braços.
Me sinto tentado a me aproximar. As três estão do outro lado e não
me notam.
E então, Chloe abre seu porta-luvas, retira um maço de cigarros e seu
isqueiro, sai do carro e fecha a porta. Mitchell escolhe uma das drogas e a faz
queimar entre seus lábios e eu consigo ver a sua mão trêmula quando ela
retira o cigarro da boca e solta a fumaça para cima.
As três nem olham para trás conforme caminham apressadamente
para dentro do prédio.
São raros os momentos em que me faltam coragem. No momento, eu
procuro o que dizer. Eu não sei o que dizer. Eu quero saber se ela está bem.
Sua mente deve estar um caos agora. Quero saber se ela está bem.
Preciso que ela esteja bem.
Ela precisa estar bem.
Caralho, Noah...
Me materializo em frente à porta do seu apartamento. Consigo ouvir
tudo o que acontece do outro lado, mas não consigo tomar coragem para
bater na porta.
— ELE TINHA ASAS! — Molly grita. — A-S-A-S.
— EU DISSE QUE OS OLHOS VERMELHOS ERAM VERDADE!
— Chloe soa apavorada.
— FODA-SE NOAH, CHLOE, ESTOU FALANDO DO MATT.
NOSSO MELHOR AMIGO TINHA ASAS! CARALHO!
— Vocês têm certeza mesmo do que viram? — A terceira voz ecoa,
trêmula.
— BRIANNA, MEU AMOR! — Molly ri, fora de si. — ERAM
UMAS DEZ PESSOAS COM ASAS SE BATENDO COMO SE
ESTIVESSEM NUM RINGUE. EU NUNCA FALEI TÃO SÉRIO NA
PORRA DA MINHA VIDA!
— E TINHA UM CARA CINZA NO CHÃO! — Chloe explica, aos
gritos. Ela provavelmente viu um demônio morto. Fecho os olhos, recuando.
Chloe está apavorada. A ruivinha está apavorada. A culpa é minha.
Não consigo me conter e bato na porta.
E então, todo o barulho lá de dentro cessa por alguns segundos. Ouço
sussurros. Elas estão perguntando quem vai abrir a porta. As três soam
assustadas.
— Se a gente se fingir de morta, a pessoa vai embora. — Escuto
Molly, baixinho.
— E se for um daqueles seres com suas asas enormes, que vai socar a
porta até que ela abra? — Dessa vez é a Chloe.
— Shhh... — Brianna, acho.
Merda.
— Chloe — digo, hesitante, em alto e bom tom. Os murmúrios do
outro lado cessam. — Sei que está aí. Eu sei, meu anjo. Não vou te machucar.
— Cerro o punho contra a porta. — Abra a porta.
Silêncio. Não escuto nada do outro lado. Respiro fundo, inquieto.
Bato na porta mais duas vezes, impaciente.
— Chloe — chamo. — Por favor, ruivinha, eu posso explicar.
— Sai daqui, Noah — ela devolve. Recuo um passo, bagunçando o
cabelo. — Sai daqui. A gente conversa outro dia. — Sua voz está trêmula.
Ela não quer conversar outro dia.
— Não pode fugir de mim para sempre, ruivinha, abre a porta...
— Não abra a porta, Chloe — Molly pede.
— Gente, o cara quer conversar. Vai ver vocês entenderam tudo
errado... — Brianna não acredita no que as duas viram e, por um segundo,
quero que as duas duvidem do que viram também. Preciso que abram a porta.
— Eu sei o que eu vi. Eu... Eu sei o que eu vi... — Chloe não parece
nada bem.
— Não abra essa porta — Molly ordena. Escuto alguém bufar, acho
que é a Chloe.
Não lembro a última vez que me senti tão ansioso.
Eu não consigo mais esperar. Me materializo perante seus olhos. Ao
seu lado, Molly arregala os olhos. Chloe trava por completo. E alguém atrás
de mim grita. Me viro para a tal Brianna, que tem as mãos na boca e o pavor
no olhar.
Ok, acho que fiz besteira. Acho não, tenho certeza. Me viro para
Chloe, que está com as duas sobrancelhas erguidas, estática. Molly, ao seu
lado, está boquiaberta e com os olhos arregalados.
— Chloe, eu...
— Agora quem ‘tá passando mal sou eu — Molly me interrompe e se
abana, andando de um lado para o outro.
Me viro para Chloe. Eu só preciso que ela diga algo, qualquer coisa.
A ruiva suspira. Dou um passo em sua direção e ela recua um passo.
— Meu anjo...
— Não chega perto — ela pede, seu olhar firme ao meu. — Por favor.
Sinto meu corpo pesar.
— Está com medo de mim? — questiono. E seu silêncio me confirma.
Olho ao redor, um tanto quanto sem saber o que dizer ou fazer. — Não era
para você ter visto aquilo, não era...
— Mas eu vi, Noah! Eu vi. E eu não consigo acreditar no que eu vi.
— Me aproximo um passo. — NÃO CHEGA PERTO! Não. Chega. Perto —
ela ordena, seu dedo apontado contra mim. — Que porra você é? — Engulo
em seco e esse simples ato dói. Os olhos da ruivinha estão vermelhos e ela
espalma as suas mãos no ar quando me aproximo. — Nem. Mais. Um. Passo.
— Seu tom é afiado, cortante. Paro de andar. — Que porra você é, Noah?
Fico em silêncio. Molly leva as mãos ao rosto, andando de um lado ao
outro. Brianna, atrás de mim, recebe minha atenção quando a sinto inquieta.
E ela tem um telefone grande em mãos, o segurando como se ele fosse uma
arma fatal.
Molly e Brianna têm medo de mim. Mas Chloe... Chloe está me
encarando como se eu fosse uma aberração. E há muito tempo eu não me
sinto tão mal quanto agora.
— Se eu disser, Chloe... Se eu disser. — Rio, nervoso. — Se eu
simplesmente disser, meu anjo, você não vai acreditar. — Me aproximo
novamente e ela fecha os olhos, recuando. Duas lágrimas grossas escapam
por seus olhos, suas mãos ainda a sua frente, num sinal para que eu pare.
Oh, anjo, não... Não chore. Não tem porque me temer. Eu sou o
mesmo de ontem. O mesmo Noah.
— O que você é, Noah? — Chloe não consegue prender a dor em sua
fala. Muitas perguntas existem no momento e precisam ser respondidas,
muita coisa importa. Mas não agora. No momento, para ser sincero, é como
se só eu e Chloe Mitchell existíssemos.
É como se o mundo fosse nosso palco e a apresentação mais trágica já
feita estivesse acontecendo. Ao final, não receberíamos um aplauso sequer.
Talvez, todo o teatro caísse em ruínas junto com as minhas máscaras, as
minhas mentiras.
— Eu sou...
Engulo em seco. Parece que sou mortal nesse momento, que estou
sem ar, que estou ardendo por dentro. É como se eu fosse um mero humano
na beira de precipício, prestes a pular. E perder tudo.
— Eu sou o Diabo, meu anjo.
Por um momento, é como se o tempo parasse. E meus olhos queimam
enquanto espero por uma reação da ruivinha, que parece analisar cada detalhe
do meu rosto. Consigo sentir algo quebrar em mim a cada segundo sem
resposta. Contar que sou quem sou é algo que pensei que diria para qualquer
ser humano, muito menos para a Chloe e suas duas amigas aqui dentro.
O silêncio é excruciante.
Eu não sei ao certo o que esperar da Chloe e o desespero está
formando um nó doloroso na minha garganta. Me sinto prestes a desabar a
qualquer momento. Principalmente, porque os olhos escuros de Chloe
Mitchell parecem duas armas impiedosamente apontadas contra mim. E elas
são capazes de me ferir como raras coisas na vida.
O silêncio é quebrado quando Brianna ri, atrás de mim, como se fosse
uma grande piada. Eu queria que fosse.
Eu queria muito que fosse.
Então o riso cessa. E eu simplesmente sinto que as garotas ali, elas
começam a perceber que eu disse a verdade.
Molly está em choque, parece que vai desmaiar a qualquer segundo.
Está paralisada.
Chloe não esboça reação alguma.
— Chloe, eu... — Tento me aproximar.
— Não me toque — ela pede, mas não se move. E eu não paro, estou
a três, e então dois e agora um passo dela. — Não ouse me tocar! — Sua voz
está trêmula como nunca, ela tem ódio por cada sílaba dita. — Saia daqui.
— Eu sei que é difícil de acreditar, Chloe, eu sei que...
— Não é difícil, Noah! — ela diz, me fazendo paralisar por completo.
E por algum motivo, sua fala é como uma acusação. — Eu vi o meu
namorado com asas, batendo em um bando de gente bizarra. Não é nenhum
pouco difícil de crer em qualquer porra nesse momento! — Chloe parece a
ponto de gritar. — Saia daqui.
— Chloe, eu... — Me aproximo mais um passo e ela fecha os olhos,
levando as mãos ao meu peito. — Me escuta, eu não sou o que você pensa...
— SAI DAQUI, NOAH! — Ela me empurra e eu seguro os seus
pulsos, sem querer deixá-la. — SAIA DAQUI! — Chloe soa desesperada,
tentando afastar o meu toque. — Eu não posso acreditar que eu dormi com
você. — Cada palavra parece calculada para me ferir. E ela me empurra. E eu
não reajo, não mais. Porque eu mereço. — Eu não posso acreditar que você
me tocou. Eu me sinto suja. PATÉTICA, NOAH! — Ela me empurra e eu
cambaleio para trás, sentindo meus olhos arderem.
— Você não é patética, meu anjo. Você é tudo, menos patética —
garanto.
— JURA?! VAI DIZER O QUÊ AGORA, HUM? — Ela ri de mim,
de modo debochado. — QUE ESTAVA APAIXONADO? Você? O QUE EU
ERA PARA VOCÊ, NOAH? — Ela me olha como se eu fosse sujo. Chloe
me olha como se eu fosse desprezível. — Um brinquedinho, huh? Um
fantoche. Eu era a porra do seu brinquedinho sexual?
— Não, não. — Me aproximo e toco a sua cintura, mas ela segura os
meus punhos e me afasta, de olhos fechados e com uma feição... É como se
ela tivesse nojo de mim, pavor. Ela afasta as minhas mãos do seu corpo.
— Eu disse para não me tocar, Noah. Nunca mais.
Ela deixa as minhas mãos no ar. E cacete, como dói. Dói para um
inferno. Eu quero ser capaz de morrer nesse segundo. Eu trocaria a eternidade
para tirar esse peso do meu peito. Porque Chloe é tudo de bom que eu possuo.
Era.
— Por favor, ruivinha...
— Você é um monstro, Noah. — Sua voz se arrasta em uma acusação
dolorosa. — Você é o Diabo. E eu acredito nisso, Noah. Eu acredito. E eu
acredito tanto que te quero longe, porque não quero estar apaixonada por um
monstro. Porque eu estou claramente doente, louca, por ter caído por você.
Então por favor, VAI EMBORA!
— Chloe...
— Eu tenho NOJO de você, PAVOR de você, eu não quero te ver na
minha frente nem mais um segundo, SAI DAQUI! — ela grita, com toda a
força em seus pulmões. E eu recuo.
Brianna estremece porque me aproximo dela e Molly toca o ombro de
Chloe, buscando de algum modo lhe oferecer conforto. Eu recuo mais um
passo, dois passos, observando a única coisa boa que me surgiu em milênios.
E ela cai perante os meus pés, se permitindo desabar, enquanto Molly
a abraça e a protege de um monstro. Um monstro fodidamente seu, mas ainda
assim, um monstro.
Acho que agora eu entendo que na história de Chloe Mitchell, ela é a
mocinha quebrada e eu sou o vilão. Não sei como permiti que chegássemos a
esse ponto, quando nunca houve a menor chance de darmos certo.
Caralho, ela merece alguém muito melhor.
Então eu me retiro. E o som do seu choro me persegue até mesmo
quando saio dali.
Kold termina de enfaixar o meu abdome e prende uma terceira faixa
ao redor do meu corpo com esparadrapos. Estou num sofá na sala do Noah e
tenho certeza disso quando ele entra pela porta, com cara de poucos amigos.
Ele caminha para uma bancada atrás da sua mesa, onde uma bandeja com
algumas bebidas reside.
Kold troca um olhar comigo, como se me confirmasse o óbvio: Noah
não está nada bem.
Hellmeister coloca uísque em um copo e vira um gole, sem nos
encarar.
— O que ela disse, Noah? — pergunto, sentindo dor ao me mexer em
busca da minha camisa, do outro lado do sofá. Kold se levanta, mas não sai
da sala. Noah se vira para mim e eu vejo a vermelhidão em seu olhar.
— Ela disse que está apaixonada por mim. — Noah sorriu, mas não
havia felicidade alguma em seu rosto. — Enquanto gritava que eu era
um monstro e que ela tinha medo e nojo de mim. Ela foi um doce, Matthew.
— Sua ironia faz o clima pesar.
Visto a minha camisa e coloco a minha jaqueta — ou o que sobraram
delas —, sentindo um pouco de dor por cada movimento. Noah se senta em
sua cadeira e coloca as pernas sobre a mesa, bebendo lentamente o drink que
segura, como se ele fosse a última coisa no mundo que poderia apreciar.
E tudo o que eu consigo pensar é: se Chloe odeia Noah, ela deve me
odiar tanto quanto. Afinal, fui seu amigo pelos últimos três anos, mas fingia
ser só mais um humano. Como ela.
— Ela pode voltar atrás... — Tento me convencer disso mais do que a
Noah. Acho difícil. Noah parece não se importar. Me levanto, ansioso,
caminhando até a sua mesa. — Não vai fazer nada?
Ele ergue o seu olhar para mim e eu me arrependo de ter perguntado.
— Ela tem nojo de mim. — Sua fala soa tão arrastada quanto
perigosa. — Eu vou mandar que alguém proteja a sua amiguinha, Matt, não
se preocupe. E vou tentar conseguir o que eu quero de outro jeito.
— Por favor. — Rio nasalado. — Você gosta dela, Noah, você
mesmo me disse isso. Vai mesmo agir como um garoto idiota e deixá-la ir?
— Primeiro, anjo. — Ele começa, seus olhos sobre mim. — Chloe é
uma humana. Igual a ela temos milhares. Posso conseguir outra Chloe
Mitchell em qualquer esquina. E vou dar meu jeito de conseguir o que quero
sem ela, seja lá como isso for. — Ergue seu dedo que antes estava colado ao
copo, antes que eu o interrompa. — Segundo. — Noah ri nasalado. — Para
de fingir que se importa com a minha relação com Chloe, porque nós dois
sabemos que você não a aprova. Tudo o que quer é que qualquer pessoa
amoleça o coração dela para que você possa voltar a ser amiguinho da
ruivinha e sair saltitante por Nova York.
Me calo. Me calo porque ele não está de todo modo errado. Bem,
Chloe é sim bem diferente e especial. Só que, por um segundo, eu realmente
considerei que Noah Hellmeister se importasse com ela. Que ele realmente
pudesse consertar a merda que fez e talvez o relacionamento dos dois fizesse
bem a ambos.
Foi o que eu pensei quando o vi a abraçando no apartamento da
Molly. Pensei que talvez Noah se importasse com Chloe pelo modo como ele
a tratou.
Acho que me enganei.
Não insisto em dizer mais nada, girando em meus calcanhares e
lançando um olhar à Kold antes de passar por ela e bater a porta. Sigo para a
saída do Purgatorium. Como a festa foi interrompida mais cedo, ele está bem
mais vazio. Eu sigo para fora como se o lugar fosse tóxico, porque eu preciso
de ar e lá o ar parece pesado demais.
E quando eu saio dessa merda, o ar entra em meus pulmões com
força. Tudo dói. Então eu choro. Choro na tentativa de lavar a minha alma de
todo o caos que permiti me invadir.
Me envolvi demais com a porra de uma missão. Eu só deveria
proteger a garota. Agora ela era a minha melhor amiga. Ela e a Molly.
Apoio as mãos nas paredes pichadas e iluminadas de vermelho desse
túnel. Fecho os olhos, tentando conter as lágrimas. Preciso ser racional no
momento, não sentimental. Preciso pensar em uma solução.
Eu não poderei ter paz enquanto souber que toda vez que eu olhar
para Molly, ela não vai sorrir para mim do jeito que só ela consegue. Ou que
Chloe não vai estalar cada um dos meus dedos por tédio ao fim do
expediente.
— Ei... — A voz atrás de mim me faz secar as lágrimas e me virar.
Luke tem as mãos nos bolsos das calças e um meio sorriso. Tento ignorá-lo e
caminhar ao fim do túnel. — Espera, Matthew, eu não fiz nada... — Ele se
materializa na minha frente e eu paro de andar. — Cara, eu não fiz nada!
— Só quero ficar sozinho, Luke. Só isso... — Tento passar por ele e
ele anda para trás, segurando o meu braço.
— Qual foi? Por que está...
— Olha só, Luke — o interrompo, olhando ao redor, impaciente. —
Não sei se é uma coisa de vocês do Inferno tentar trazer ele para a vida das
pessoas. E eu sei que, talvez por Chloe ter caído nas garras do filho da puta
do seu amigo, possa parecer a você que eu sou igualmente fácil de se iludir.
Mas eu não sou, e eu não tenho o menor interesse em me foder por um de
vocês. Eu aceitei a porra de uma aliança para proteger as minhas amigas e
não foi exatamente isso que eu consegui, foi? Huh? — Puxo o meu braço e
ele fecha os olhos por um segundo. — Vocês são problema. E eu não quero
me envolver com vocês nunca mais. Quanto mais foder com um de novo.
Ando pela rua, sem olhar para trás. As ruas passam pelos meus olhos
por alguns segundos e então eu paro. Me viro e Luke está no mesmo lugar, e
eu permaneço parado. Seus fios loiros estão levemente avermelhados, como a
sua pele, por causa da luz escarlate do túnel.
O observo, enquanto ele encara seus pés. Fecho os olhos e xingo
baixinho, passando as mãos pelos meus cabelos. Acabei de descontar a raiva
nele. E ele não tem culpa de nada.
— Cansou de descontar a sua raiva em mim? — questiona. Continuo
em silêncio. Luke anda em minha direção. Seus olhos verdes me analisam
sem pena e isso é reconfortante, de alguma forma. — Entendo o ódio dos
anjos por nós, demônios. E entendo que erramos mais do que acertamos. E eu
sei que Noah sabe ser um filho da puta de vez em quando... Mas tudo o que
ele disse lá dentro, seja lá o que foi, ele disse de boca para fora. Noah estava
puto. Dois segundos depois que você saiu, ele me chamou e me pediu para te
levar para casa. E mesmo se não pedisse, Matt, eu iria atrás de você. Porque
podemos não ter porra nenhuma, mas assim como nem todo anjo é
perfeitamente bom, nem todo demônio é terrivelmente mal.
Respiro fundo.
— Posso ir para casa sozinho — garanto.
— Sei que pode. Mas não precisa.
Fito os seus olhos. E me sinto um pouco patético quando aceno com a
cabeça e permito que me siga.

— Por que mora quase fora de Hell's Kitchen? — Luke me questiona


enquanto dividimos uma pizza ao chão da sala, lado a lado, contra o meu
sofá. A caixa da pizza está entre nós dois. — Não tem que proteger a Chloe?
— Aluguel barato — comento. Ele ri. Mas não estou brincando. Volto
a comer a pizza, um pouco emburrado. Chloe não sai da minha mente. — E
eu também pouco fico aqui, então... — Dou de ombros, de boca cheia.
Um silêncio nos segue. Fitamos a televisão apagada enquanto
comemos. A minha vontade é de sair daqui e correr atrás da Chloe e da
Molly, mas duvido que seja uma boa ideia. Elas precisam pensar. Elas
precisam digerir muita coisa.
— Noah não é um monstro, sabe? — Luke tenta quebrar o gelo da
pior forma possível. Rio nasalado. A existência de Hellmeister me irrita no
momento. — Para ser sincero, Matthew, ele é o melhor de nós quatro.
Franzo o cenho, o encarando em surpresa e incompreensão.
— Como assim?
— Noah não é mau, Matt. Digo... Ser o Diabo não deve ser fácil e
isso deve mexer com a mente dele. Ele já precisou que matar e machucar
pessoas. E por "precisou" eu quero dizer precisou mesmo. Eventualmente,
eliminar todo o tipo de mal pela raiz pareceu o caminho mais fácil. Mas Kold
fez um acordo com o Noah e ele prometeu que tentaria não se deixar perder,
não mataria por matar, ele só faria o necessário. Então ponto um: Noah não é
um psicopata frio, nem assassino em massa. — Respiro fundo e Luke se
inclina sobre mim para pegar os guardanapos do outro lado. Ele limpa seus
dedos. — Onde posso lavar as mãos?
Me levanto e indico o caminho com a cabeça. Ele me segue pelo
apartamento até a minha cozinha apertada, que mais parece um mini
corredor. Luke abre a torneira e lava as mãos.
— Ponto dois... — continua, sem me encarar enquanto a água jorra
sobre seus dedos. — Todo aquele lance "não tenho sentimentos" é mais
mentira do que verdade. Afinal, eu, ele, Kold e Sinn somos uma família. E
Noah já deixou escapar que ama a Kold algumas poucas vezes. E nós
sabemos que ele nos ama também, Sinn e eu. Bem, provavelmente ele ama
mais a mim. Porque eu sou charmoso e o Sinn... Enfim, o Sinn é outra
história.
Me sinto curioso e prestes a perguntar sobre Sinn, mas Luke fecha o
registro da torneira e se vira para mim.
— Ponto três: sei que não justifica, mas tudo o que ouviu sobre ele?
Foi contado de um ponto de vista diferente. Nunca deixaram o Diabo falar. E
acredite, Letterman, Noah sofreu. Pra cacete. — Uma mecha de seu cabelo
lhe caí na testa, mas Luke não parece se importar.
— Existe um ponto quatro?
— Sim. Ele é o melhor dos quatro. Todos nós temos segredos
obscuros. Não só a gente... Muitas das criaturas que cercaram ou cercam
Noah são muito piores do que ele, Matt. — Ele se aproxima. — Kold gasta as
suas ironias, mas se usasse toda a sua capacidade para apenas ser má,
Koldelium mereceria mais o título de Diabo. Ela largou o Céu pelo Inferno,
Matthew. Porque ela gosta de ser má. Isso lhe dá prazer. O irmão do Noah,
Theo, se finge de bobão, mas, honestamente, não me convence, não mesmo.
O garoto sempre revira os olhos quando Noah fala, já aprontou muito. Uma
vez ele e Noah saíram no soco, porque Theo confessou que Noah não
prestava para ser o Diabo. — Se aproxima ainda mais. — O Sinn já fez muita
merda com o Noah e talvez por isso ele seja esse cara sério e educado que é
hoje, para tentar consertar seus trocentos erros. Eu nem sei como Noah foi
capaz de lhe dar uma segunda chance, para ser sincero. Sinn é o falso bom
moço. E eu...
— Você...? — o incentivo a falar. Engulo em seco com o quanto a sua
boca está perto da minha e ele me prensa contra a bancada.
— Eu não levo nada a sério; faço de tudo para continuar a causar o
caos pelo mundo; se a vida é um jogo, eu trapaceio a cada segundo possível...
Então eu, Matt, eu não valho nada... — Sua boca está quase tocando a minha.
— Anjos, humanos, demônios... Sabemos, Matthew, que ninguém é
confiável. Ninguém é totalmente confiável. Mas de nós quatro, do nosso
grupo? Noah é o menos pior.
Ele está me informando que ninguém é confiável. Luke está me
dizendo muito mais do que eu esperava, mas, por algum motivo, o meu
coração está fazendo mais barulho do que a minha mente no momento. Luke
realmente é perigoso para mim. E eu gosto.
— Você está me dizendo que não confia nos seus próprios amigos?
— questiono para ter certeza. Luke franze o cenho. Acho que ele percebeu
que falou demais. Porra, Matthew...
— Não... Digo... Já tive as minhas dúvidas. Aposto que eles já
duvidaram de mim em algum ponto.
— Duvidou deles quanto, Luke? — o pressiono. Luke morde o lábio
inferior. — Acha que eles teriam algo a ver com os rebeldes, por exemplo?
— Não! Digo, não. Quer dizer... — Luke se afasta minimamente. —
Olha, Letterman, eu quis dizer que não somos completamente confiáveis, que
não somos doces, não somos seres de luz, entende? Mas nos aliar com
rebeldes? Ninguém seria louco, Matthew. Noah nos mataria. E demônios e
anjos não tem segundas chances, se eles morrem... Eles simplesmente...
— Desaparecem — concluo. Eu sei disso. Sinto meus ombros tensos
com a possibilidade que passa na minha mente, mas insisto em perguntar: —
Já chegou a investigar algum deles em algum momento? Dos seus amigos,
digo... — Luke une as sobrancelhas.
Acho que peguei meio pesado e fui direto demais, porque ele perdeu a
sua fala e parece a um segundo de fugir. Luke me parece bom. Sinceramente,
ele não vale nada como um namorado, como galinha que ele é. Mas como
amigo? Eu sinto que Luke é genuinamente bom. Eu sinto que ele se importa
com Noah. Mas eu sinto que ele tem, sim, dúvidas quanto aos outros. E eu
raramente me engano com as pessoas. Gosto de pensar que é meu super
poder.
Quando percebo que ele está quase recuando um passo, seguro a sua
cintura e o trago para perto. A proximidade o faz me encarar de cima, como
se estivesse se perdendo por meus olhos. Bom, estou me perdendo nos seus.
São claros demais para quem afirma ter uma alma escura.
Luke não parece um monstro. Infelizmente.
— Você não vale nada? — questiono, tentando recobrar a lucidez. O
loiro sorri, maldoso, gostando de como me afeta.
E então ele estala a língua algumas vezes, balançando a cabeça em
negação.
— Nadinha. — Suas mãos estão em meus quadris e sua boca toca a
minha, mas interrompemos nossos planos assim que escutamos a campainha
tocar.
Estremeço, como nunca. Os arrepios sobem pelo meu corpo e eu não
sei se foi pelo susto ou pelo sorriso debochado de Luke ao se afastar.
Ele é bonito demais para a minha sanidade.
Me afasto e caminho até a porta do meu apartamento. E me deparo
com algo que me faz recuar, por um instante. Eu nem fazia ideia que ele sabia
onde moro, mas Noah está parado a minha frente, seus olhos mais vermelhos
do que nunca, tanto as íris quanto as órbitas.
Ele está ofegante e percebe Luke atrás de mim.
Noah não parece nada bem.
— Eu menti — ele confessa, em um só sopro.
— Como conseguiu meu endereço?
— Eu sei de mais do que imagina, Matthew, eu menti. — Ele volta ao
que havia dito inicialmente e eu uno as sobrancelhas, ainda segurando a
porta. — Eu menti.
— Mentiu sobre o quê?
— Chloe não é mais uma, Matthew. — Ele engole em seco e eu não
consigo ver através da sua pele, mas é como se a dor rasgando pela sua
garganta fosse visível. — Chloe é única. Ela é a única coisa boa que eu tenho.
E ela não sai da minha mente. Ela não vai sair. E eu não vou conseguir fazer
porra nenhuma nos próximos dias se ela não estiver em meus braços.
Sinto o mundo parar por um segundo e o universo fazer sentido.
Então, eu finalmente entendo o que eu estava fazendo de errado o tempo
inteiro. Chloe é a resposta. Ela é a única resposta que Noah precisa. E não há
nada que eu possa fazer contra isso, porque essa não é a minha missão. A
minha missão é justamente o inverso: devo proteger a humana que vai
restabelecer a união entre o Céu e o Inferno e acabar com a rixa maldita que
nos atrapalha há milênios.
E assim como Chloe é o caminho para Noah conseguir o poder, Noah
é o caminho para Chloe concluir a sua tarefa na Terra. O único caminho. Meu
papel não é compreender isso ou como; não é lutar contra, mas a favor.
Não sei quais são os planos dos seres superiores a mim, mas sei que
Noah Hellmeister não é um perigo para Chloe Mitchell. Ele é tudo o que ela
precisa no momento. E ela é tudo o que ele precisa também.
E olhando para Noah nesse exato segundo, eu consigo ver o que ele
provavelmente luta para não dizer em voz alta:
Ele está apaixonado por ela.
Noah precisa da minha ajuda. E eu não acredito que vou ajudar.
— Entra, Noah.
Como consequência da imortalidade, a reprodução entre anjos e
demônios é extremamente difícil. Nem sei como meus pais foram capazes de
gerarem o imbecil do Theo depois de mim. E por incrível que pareça, em
meio à essa dificuldade reprodutiva, certa vez dois seres foram concebidos
em épocas parecidas e nasceram num mesmo dia, com segundos de diferença.
Céu e Inferno eram lugares diferentes de um só Reino. A minha mãe
estava no palácio do Inferno, dando à luz a mim enquanto tudo parecia cinza
fora daquele quarto. Demônios andavam de um lado ao outro, propagando a
notícia de que o próximo na linha de sucessão do Inferno estava nascendo. O
meu pai apertava a mão da minha mãe e a incentivava a empurrar e resistir,
seus urros preenchiam o seu quarto. Era o que ele costumava me contar.
Já para a outra criança, não sei ao certo como foi, mas aposto que o
Céu deveria ter sucumbido ao breu naquele dia. Porque Lilith nasceu no lugar
errado. Com certeza.
Os pais dela eram anjos, guerreiros do mais alto nível. Seu pai,
Dimitri, estava presente em quase todas as reuniões do Céu e do Inferno, ao
lado da Rainha do primeiro Reino, Angeline, minha tia. Meus pais, como
representantes da parte caótica do Universo, não faltavam um encontro
sequer. Sem a presente rixa entre o Céu e o Inferno, com o trânsito livre entre
ambos os lugares, Lilith e eu nos víamos com frequência. Crescemos juntos.
Parte de mim acredita que a amei desde o primeiro segundo, porque
nem lembro a primeira vez em que meu coração acelerou ao vê-la. Eu ficava
ansioso sempre que ia ao Céu, pois lá estaria ela ao fundo do palácio, com
suas asas brancas se arrastando por entre os lírios do jardim, a sua beleza
surreal superando toda e qualquer natureza.
Lírios eram as suas flores favoritas. E se tornaram as minhas. Tanto
que pedi ao meu pai, Mortheu, para encher o Inferno com elas e ele
concedeu. Hoje todas as flores estão mortas.
A minha mãe, Amália, nunca havia gostado da menina. Para ela,
como um dos seres mais importantes, um futuro soberano, eu deveria me
casar com alguém que entendesse o poder de um Rei. A minha mãe havia me
criado para ser um sucessor, um guerreiro. Ela queria uma companheira à
altura de um herdeiro do trono. E para Amália, Lilith não era uma boa
escolha.
— Qual é o lugar mais belo para você? O Inferno? O Céu? — Lilith
questionou enquanto eu a seguia pelo Palácio dos Céus. Fitei o teto, como
sempre gostava de fazer, apaixonado pelos detalhes em ouro e os desenhos de
anjos pintados sobre nossas cabeças. Tudo parecia perfeito, delicado em seus
mínimos detalhes. Mas nada comparado a ela. E quando Lilith se virou para
mim, simplesmente conquistou toda a minha atenção.
Seus fios loiros e longos estavam soltos. Tranças finas seguiam das
laterais da sua cabeça e se reuniam ao centro em uma espécie de coroa. Seus
olhos eram claros, de um azul intenso e vivo. O seu sorriso era o mais doce
que já havia encontrado. Lilith vestia um vestido bege e longo, de alças
levemente bufantes, que deixavam os seus ombros livres. Entre seus dedos, o
lírio que eu havia colhido no Inferno, uma parte do meu lar que me lembrava
dela.
— O lugar mais lindo é aquele em que você está, Lily. — A puxei
pela cintura, a impedindo de continuar andando para longe. Seu sorriso se
aproximou tanto do meu que o meu coração acelerou em antecipação.
— Noah, Noah... Sempre tão bom com as palavras — provocou, me
envolvendo pelo pescoço.
— Preciso estar à altura de você, amor. — Ela riu, jogando a cabeça
para trás. E sua risada era tão gostosa que eu não me importaria de ouvi-la
pela eternidade. Esse era o nosso plano. Nos casarmos, nos tornarmos
um. Para sempre.
Para um anjo, Lilith carregava fogo demais em si. Eram os boatos
pelos corredores daquele lugar. Curiosa demais, impulsiva
demais, intensa demais. E eu era capaz de ver em seus olhos que isso tudo era
verdade, mas era o que me fazia ser completamente apaixonado por ela. Lilith
tinha o fogo em seus olhos azuis.
Poucas pessoas sabem, na verdade, mas a chama azul é mais intensa
que a vermelha. Por algum motivo, as pessoas associam ao contrário. Antes
eu pensava que o olhar da loira em meus braços eram, como eu já disse,
como um céu límpido e vivo. Hoje, penso que talvez fossem o resultado da
chama mais ardente aprisionada em seu ser.
Ouvimos vozes vindo de encontro ao corredor. Soava como o seu pai
e o meu. Lilith deveria estar num treinamento com as guerreiras, eu deveria
estar em qualquer lugar menos ali. Não poderíamos estar juntos naquele
segundo. A loira olhou ao redor por aquele corredor e mordeu um sorriso
travesso, percebendo o meu nervosismo. Eu nem tive tempo para questionar
que ideia insana passava por sua mente, quando ela entrelaçou nossos dedos e
me puxou para longe dali.
Os passos ecoavam constantemente contra o corredor, até que ela
abriu uma porta qualquer, fechando-a atrás de si. Lilith colou o ouvido à
porta, interessada no que se passava do outro lado. E eu aproximei o meu
corpo do seu, colando meu peito em suas costas ao imitar o seu gesto e tentar
escutar o que estava acontecendo.
A vida na Terra, como conhecíamos, havia acabado de começar. Dois
seres haviam sido inventados do nada e inseridos em um mundo farto e
colorido. Contudo, como nada nunca poderia ser perfeito, aos poucos, o
Inferno introduziria o caos ao que estava puro. Testaríamos esse novo mundo
até encontrarmos equilíbrio. Meu pai e o pai de Lilith pareciam empolgados
na discussão de ideias para apresentarem na reunião daquele dia. Por um
segundo, me imaginei em uma dessas reuniões. Não senti peso, eu me
senti bem. Sempre fui ambicioso. Eu também tinha ideias, eu queria ser
escutado.
Perdi completamente a concentração no que diziam, porque o
perfume da loira à minha frente era embriagante. Meu nariz se aproximou do
seu ouvido, desceu levemente por seu pescoço, em busca por mais.
Lilith se virou para mim e seu sorriso foi a primeira coisa que eu vi. O
lírio em sua mão estava um pouco amassado, mas eu o tirei de entre seus
dedos e depositei um beijo, colocando-o atrás da sua orelha. Ela mordeu a
curva em seus lábios e suas mãos tocaram os meus ombros. Me aproximei
ainda mais dela.
— O que está pensando, amor? — questionei e ela ergueu os orbes
azuis para mim. Suas mãos subiram dos meus ombros à minha nuca e, então,
ao meu cabelo. Seu toque era tão delicado, mas tão fodidamente intenso que
parecia queimar. E eu gostava disso. Eu gostava do calor. Principalmente,
porque o calor vinha dela.
— Estou pensando em como, entre trilhares de possibilidades, eu e
você acontecemos — disse, provocando o meu sorriso. — Estou pensando
nas outras trilhares de possibilidades de caminhos que poderemos trilhar,
Noah. Eu e você.
Nada me fazia mais feliz que ela. Ela olhou para algo por cima do
meu ombro e eu fiz o mesmo. Estávamos em um quarto amplo, de tons
claros. Havia uma cama larga no centro do cômodo extenso e bem decorado,
esperando por nós dois.
Percebi quando Lilith tateou algo atrás de si. E então eu ouvi a porta
se trancar.
Eu sabia o que viria a seguir e também sabia que ela não tinha medo
algum de fazer o que faríamos sob aquele teto, com nossos pais a poucos
metros dali, consciente de que alguém poderia tentar abrir aquela porta e
descobrir que dois adolescentes estavam aprontando algo entre quatro
paredes. Ela não tinha medo.
Não. Lilith não tinha medo algum.
Meu coração batia tão rápido que eu poderia escutá-lo e ele era tudo o
que eu conseguia ouvir. Eu o sentia na palma da mão e na ponta dos meus
dedos, que receberam a sua mão. Eu o sentia por todo o lugar. Porque ela
pertencia a mim. E eu era totalmente seu.
Lilith guiou as minhas mãos a sua cintura e ficou na ponta dos pés ao
unir a boca à minha, seus dedos delicados contra o meu rosto. E tão
envolvido em sua boca, mal percebi quando a loira havia feito as alças do seu
vestido caírem por seus ombros. Quando me afastei, a peça de roupa caiu.
Lilith estava quase nua perante os meus olhos.
A luz que entrava pela janela do quarto iluminava o seu corpo. E se
aquele quarto era nosso universo, Lilith era o Sol, o centro de tudo. Seu corpo
era a coisa mais linda que eu já tinha avistado e cada curva da sua pele
parecia milimetricamente calculada para me conduzir ao paraíso. Ou à
loucura.
Então ela derramou o seu gosto sobre mim. Ela me conduziu à cama e
eu perdi toda a lucidez, fazendo amor e provando do seu sabor como se ele
fosse a poção que me conduziria ao êxtase.
O que eu não sabia, era que Lilith se tornaria um veneno cujo maior
efeito seria manchar a minha alma com o breu mais inimaginável de todos os
tempos. Ela me tornaria obscuro aos poucos, me mataria aos poucos. Me
eliminaria de um modo tão lento e torturante que eu desejaria pela dose letal e
então pelo fim dos tempos, porque viver se tornaria um pesadelo e a morte se
tornaria o mais belo dos anseios.
Ela era tudo. Porque a permiti ser tudo. E esse foi o meu maior erro.

— Você só pode estar louco. — É o que Kold diz para Matthew,


dentro do meu apartamento. O meu pé bate insistentemente contra o chão do
lugar, meus dedos entrelaçados uns aos outros, estou sentado no meu sofá...
Se eu pudesse infartar, eu infartaria agora.
— Não. Eu realmente acho que adiantaria. Noah precisa fechar essa
ferida em aberto... — Matt retruca. Eles estão falando de mim como se eu não
estivesse aqui. Ambos de pé a minha frente.
— E você acha que essa ideia vai dar certo? — Sinn debocha, perto
das grandes janelas da cobertura. — Essa é a coisa mais estúpida que eu já
ouvi.
— Luke? Me ajuda? — Matt pede e eu ergo o olhar para Luke. O
loiro abre e fecha a boca algumas vezes, na poltrona ao meu lado. E eu me
surpreendo com o quão rendido está pelo anjo:
— É. Talvez dê certo — o loiro responde e Kold ri alto, sem acreditar.
Sinn bufa, exasperado, caminhando de um lado ao outro.
E toda uma discussão se inicia.
A minha mente está um caos. Desabafar tanta coisa para o anjo foi a
condição para que ele me ajudasse a reconquistar a Chloe e retomasse a
aliança contra os rebeldes. Então desabafei. Eu contei a minha versão dos
fatos sobre a Lilith, a versão que quase ninguém pede para ouvir, porque
ninguém acredita no Diabo. E agora me sinto ansioso, como nunca.
Sinto angústia, como se o ar queimasse dentro de mim e
eu pudesse morrer. Verdades foram arrancadas de mim rápido demais. E
coisas que eu não queria dizer em voz alta há séculos foram ditas.
A ideia do anjo era que isso fosse retirar um peso dos meus ombros.
Eu acreditei nisso. Imaginei que falar sobre isso seria fácil. O efeito foi o
contrário: me sinto pior do que nunca. Respiro fundo algumas vezes e fecho
os olhos, na tentativa de calar o caos em minha mente.
Então a vejo. E isso piora tudo, porque são 8h00 da noite e Chloe está
sentada em sua cama, um baseado entre seus lábios e uma garrafa de vodca
quase vazia ao seu lado da cama. Ela não está nada bem.
A culpa é minha, não é? Acho que sim.
Ela precisa de mim. E eu preciso dela nesse momento. Como uma
humana foi capaz de prender a alma do Diabo dessa forma?
Chloe aprisionou parte de mim em si. E talvez esse seja o meu
Purgatório, a minha punição: ter parte de mim com ela, enquanto não posso
ter uma mísera parte dela em retorno, um mísero pedaço sequer.
— Diga em voz alta, Noah. — A voz de Matthew me tira dos meus
devaneios. — Diga o que disse para mim, diga...
Todos os olhares estão sobre mim. Meus lábios tremem e eu respiro
fundo, tentando reconquistar a calma.
— Dizer o quê? — A pergunta quase não me escapa.
— Lilith foi...?
— A única mulher por quem me apaixonei — repito em voz alta.
Sinto o clima se tornar cada vez mais tenso e por um segundo é como se o
lugar estivesse mil vezes mais quente e mais apertado. — E eu sei que não
estou apaixonado pela Chloe por isso.
— Por quê...?
— Porque eu sei como se apaixonar é. — Ergo o olhar para Matthew,
que engole em seco. — E machuca, fere e dói. E não é nada como a ruivinha
me faz sentir. Eu não estou apaixonado pela Chloe. Não, não estou...
Minha boca se torna ainda mais seca e eu sinto um nervosismo
peculiar e intenso. Percebo um olhar estranho. Fito Kold e ela está com o
cenho franzido ao máximo. Koldelium se aproxima de mim e se agacha à
minha frente. Suas mãos tocam as minhas, trêmulas. Parece preocupada.
— Saiam daqui — ela diz, por entre os dentes.
— O quê? — Matt pergunta.
— Saiam daqui! — Kold repete, firmando seus olhos nele. Matthew e
Sinn se entreolham. E então, Sinn toca o ombro do anjo e o empurra para o
caminho da escada, para o segundo piso da cobertura. Luke os segue.
Fico em silêncio e tento me concentrar em como as minhas mãos
tremem, numa tentativa de fazer isso parar. É quando sinto as mãos de Kold
apertarem as minhas.
— Noah, olhe para mim — ela pede e eu hesito, numa espécie de
transe. Eu obedeço. — Noah... Preciso que respire, porque parece que está
perto de um ataque de ansiedade ou um surto e eu preciso que respire, mas ao
mesmo tempo eu preciso que me escute, Noah, por favor... Você sabe que
está mentindo para si mesmo...
— Kold...
— Você sabe que se apaixonar não é só sobre a parte ruim. A parte da
vulnerabilidade, das brigas e da dor... Essa parte não é o todo. E você sabe
que a Chloe não é a Lilith. Nem todo amor termina em dor. — Me sinto ainda
mais ansioso. Desvio o olhar. — Olhe para mim! — Sua mão toca o meu
queixo e ela me faz encará-la. — Soa infantil, Noah. E você sabe disso. Você
sabe que amor não é só dor e você se recusa a admitir isso, como se isso fosse
evitar o que já claramente aconteceu: Chloe te tem nas mãos.
— Eu não estou apaixonado, Kold. — Ela abre um sorriso triste. É
como se ela tivesse pena de mim. Eu pareço só um garoto assustado e
quebrado no momento. Um garoto perdido como Chloe me chamou certa vez.
Eu sou um garoto perdido. E pela primeira vez, por algum motivo, me
importo com isso. Me importo demais. Tanto que me machuca como
centenas de cacos de vidro perfurando a minha alma lentamente, a fazendo
sangrar.
Então Kold se levanta e se senta no meu colo, me abraçando pelo
pescoço. Estranho a princípio mas gradualmente a envolvo pela cintura e me
permito buscar calma nos braços da minha melhor amiga. Deito a cabeça em
seu ombro e sinto um peso triplicar em meu peito.
Eu venho bloqueando sentimentos há séculos, fingindo que não me
importo com nada. Eu sei disso. Não choro há tanto tempo que nem me
lembro da última vez em que isso aconteceu. E sinceramente, eu
tenho medo. Não sei o que pode acontecer se eu deixar todos os sentimentos
me dominarem por um segundo. Tenho medo porque sei que vai doer.
— Pode chorar, sabe?
— Eu não choro — garanto e ela suspira, parecendo ainda mais tensa.
Ela quebra o abraço e alisa o meu rosto. — Matthew está certo. Eu preciso
reconquistar a Chloe e preciso parar com toda a rebelião que está
acontecendo, ao mesmo tempo. — Kold desvia o olhar. — E você sabe,
Koldelium. Sabe que esse pode ser meu jeito de "fechar essa ferida", como
Matt disse. E de tirar uma dúvida que não sai da minha cabeça.
Kold se levanta e eu a sigo com o olhar. Subitamente, ela parece mais
nervosa que eu. Temos consciência de que o que eu farei é muito arriscado.
— Junto com o coração de John, naquela caixa, havia fotos dele com
a Molly e lírios.
— Isso não quer dizer nada, Noah.
— Sabe que quer — retruco e Kold bufa, levando as mãos ao rosto.
— Talvez ela tenha algo a ver com isso tudo, o que não faz o menor sentido,
porque ela está tecnicamente inalcançável no momento. E se ela tiver algo a
ver com isso tudo, Kold, a certeza da minha vida é que alguém do Inferno
está conseguindo acesso a quem não devia.
— Noah...
— Talvez isso seja só o modo dos rebeldes de expressarem que
querem alguém mais firme no comando do Inferno, alguém pior, alguém
como ela. Eu não sei que porra isso significa, Koldelium. Mas eu preciso dar
um fim à minha história com ela ao mesmo tempo em que tento entender
onde diabos ela se encaixa nisso tudo. Antes mesmo de Matt sugerir essa
insanidade, eu já queria fazer isso. E vocês sabem disso. O único motivo pelo
qual ainda não fiz, foi porque você, Luke e Sinn me pediram pelo contrário.
— Ela mexe com a sua mente, Hell! — Kold tenta argumentar e eu
me levanto, passando as mãos pelo cabelo numa tentativa de conter meu
nervosismo. — Ela mexe com a cabeça de qualquer um. Você sabe disso. É
por isso que ninguém pode chegar perto. Você deveria tê-la matado quando
teve a chance. Eu apenas te apoio, caso a sua decisão seja matá-la.
— Sabe que não posso matá-la. Seria ainda pior.
— E você não tem coragem, Noah. Porque ela mexe contigo. Então
não vá. Não siga a ideia de Matthew, Noah.
Agora é a minha vez de sorrir triste. Pois estou decidido.
E antes que Kold diga mais qualquer coisa, me materializo em frente
à grande masmorra isolada no centro do Inferno, deixando a minha amiga
para trás.
Consigo ver meu palácio de longe, bem como um vasto caminho de
árvores com galhos secos, lápides e celas e mais celas gradeadas em que
almas se encontram pagando por seus pecados, o real Purgatório. Há séculos
não venho aqui.
Sinto arrepios profundos por todo o meu corpo e engulo em seco, ao
erguer o meu olhar e ver a torre enorme. Então me materializo dentro da
masmorra, em frente à sua cela.
A garota loira está deitada em sua cama, uma perna dobrada sobre a
mesma, mexendo em seu cabelo, entediada. Seu dedo se enrola em uma de
suas mechas loiras, ela parece entretida nisso.
Essa é a sua punição. Passar a eternidade sem seus poderes,
encarcerada como uma qualquer no Purgatório. Como uma humana. Por isso,
não a matei. Lilith merece sofrer. Ela merece sofrer muito mais do que me fez
sofrer. Ela tem que se sentir entediada e inerte, para sempre.
Normalmente, alguém preso no Purgatório costuma submeter-se a
pesadelos infinitos até superar seus pecados. Mas Lilith parece ser livre de
qualquer consciência pesada. Ela é insana desse jeito. Ou talvez seu pesadelo
infinito seja a realidade.
Eu sei que tê-la viva é um risco. Mas matá-la seria desperdiçar sua
punição. Meu orgulho falou mais alto e ele não cedeu em momento algum. A
verdade, entretanto, é que eu não consigo. Não consigo nem me imaginar
matando essa loira.
Acho que eu não tenho essa coragem. É o quão fodido Lilith me
deixou. Completamente irado, mas completamente confuso, perdido e ferrado
mentalmente, tão ferrado que não consigo dar um fim a ela.
Lilith foi meu tudo. E há uma parte de mim que acredita que talvez
ainda seja. Acho que ela compõe um pouco do Noah que sou. Se eu a
matasse, estaria dando um fim a um pouco de mim.
Não sei me explicar. Eu simplesmente não consigo.
Estalo os dedos e em questão de segundos um lírio está entre eles. E,
mesmo de longe, vejo um sorriso surgir nos lábios da mulher. Ela não me
encara, mas sei que sabe que estou aqui.
— Noah... — Sua voz é melodiosa e ela ri nasalado. O som de ironia
carregado nesse riso me faz engolir em seco. Me aproximo da cela e ela se
levanta. Seus olhos são opacos e seus fios são mais curtos do que eu me
lembrava, pouco abaixo dos ombros.
Suas lindas e brancas asas não existem mais, não enquanto estiver
presa. Seu rosto é pálido, levemente cinza e sem vida. O seu sorriso é repleto
de sarcasmo e maldade. As suas vestes não são nem vestidos delicados, nem
uma armadura de guerra, mas somente uma camiseta e calças pretas e largas,
como um uniforme de uma prisioneira.
Ainda assim, Lilith é uma das coisas mais lindas que já vi na vida.
Ela se levanta da cama e se aproxima de mim, seu andar
despreocupado e seu sorriso como uma arma apontada contra a minha
cabeça.
Suas mãos seguram a grade com delicadeza e lentidão. Seu rosto está
mais próximo quando ela ergue o queixo, forçando uma pose de soberania
que não se encaixa com a sua condição. Seu olhar me analisa de cima a
baixo, lentamente. Então foca em meu rosto, mordendo um sorriso. E eu sei,
eu sei que entre todos seus poderes, o único que Lilith seria incapaz de perder
era seu poder de convencimento. Porque isso era parte de sua essência. Ser
ardilosa estava em sua composição.
Eu realmente espero estar preparado para isso.
— Sabe, Noah — ela começa, unindo as sobrancelhas ao fingir uma
dúvida —, estava pensando em como, entre trilhares de
possibilidades, eu e você acontecemos.
E então Lilith abre o sorriso que, para qualquer um, pareceria o mais
doce do universo. Já eu sei que é o mais perigoso e perverso que já existiu.
Não, eu não estou preparado para isso.

A entrego o lírio pela grade e ela o cheira, rindo nasalado. Fito o


cadeado que a prende ali, feito com o mais resistente dos materiais. Assim
como as grades e as correntes que a encarceram. É impossível que qualquer
força tire Lilith desse local. Só uma chave pode fazer isso. E a chave está em
minha posse. Volto a encarar a loira.
— Noah, Noah... Sempre cumprindo as suas promessas — ironiza,
analisando a flor.
— Promessa é promessa. Toda vez que eu te procurasse, eu lhe daria
um lírio. — Me surpreendo com a firmeza que forço em minhas palavras.
Guardo as mãos em meus bolsos. — Você tem algo a ver com os ataques
rebeldes ultimamente?
— Eu? — Lilith diz, levando a mão ao colo e ri, voltando à cama e
deixando a flor sobre ela. A loira se senta. Me aproximo da grade e a seguro a
com as duas mãos. — Oh, vamos, amor, estou presa há o quê? Milênios?
Como eu planejaria algo assim? — Sinto alguma ironia por sua fala. — Mas
quer dizer, talvez eu saiba de uma coisa ou outra...
— Lilith...
— Oh, amor, onde estão seus modos? — Sua voz é fodidamente
melodiosa, como o canto perigoso de uma sereia, ansiosa para fisgar um
pobre rapaz e fazê-lo afundar em caos. Lilith se levanta e praticamente desfila
até o limite da cela. Ela segura as grades próximas a mim e aproxima o rosto
do meu. Perco o controle da minha respiração e é patético que após tanto
tempo eu ainda seja vulnerável perante seus olhos. — A casa é minha e você
só é bem-vindo se respeitar as minhas regras.
— Que seriam?
— Me tirar daqui. — Meu riso nasalado a responde: não, nem pensar.
Lilith faz um bico. — Então eu não sei de nada.
— Eu não vou te tirar daqui tendo a certeza de que você tem algo a
ver com tudo o que está acontecendo. E você não tem opção senão me contar
que porra está acontecendo.
— Eu tenho a opção do silêncio.
— Eu tenho a opção de te matar.
— Oh, amor, nós dois sabemos que você é covarde demais para isso e
que isso seria muita burrice da sua parte. — Seu cenho se franze. — Céus,
Noah... Vê? Já estamos discutindo, amor! Precisamos cuidar disso. Como nos
perdemos desse jeito? — Respiro fundo. — Ok, ok, não quero brigar. —
Espalma as mãos em rendição e se afasta, sorrindo. — Não acho que
devamos perder ainda mais tempo discutindo. Tanta coisa errada aconteceu,
amor. Fui má com você e você foi mau comigo, mas podemos superar isso
juntos.
— Mau contigo? — As palavras se arrastam por meus lábios em tom
de incredulidade e o sabor delas é fodidamente amargo. — Você fodeu a
minha vida, Lilith!
— Oh, soa muito amargurado, Noah! Não é para tanto!
— Não é para tanto?! — Minha voz sai esganiçada e eu me vejo
furioso, a observando enquanto ela checa as suas unhas,
despreocupadamente. — Vamos lá: graças à sua ganância, Lilith, à sua fodida
curiosidade, uma guerra foi criada, os meus pais morreram e eu fui
condenado a ser a porra do Diabo. Ah, claro, eu perdi um pouco de poder,
maravilhoso, huh? — Ela rola os olhos.
— Por que você tem essa mania insuportável de jogar a culpa em
mim, Noah? Digo, homens têm essa mania de jogar a culpa sobre as
mulheres. Você fez tanta merda quanto eu e acabou sendo coroado Rei do
Inferno e eu fui condenada à masmorra. — Agarra as grades, finalmente
expondo o seu rancor. Sua persuasão é tanta que ela poderia facilmente
convencer qualquer um de que ela é a vítima da história, mas ela não é.
— Ser Rei de um Reino desvalorizado e caótico, ser visto como a
porra de um vilão em todas as oportunidades possíveis, perder os meus pais,
ser iludido por uma vadia sem coração, sofrer ataques rebeldes
constantemente e ainda ser condenado a me sentir morto e machucado por
toda a vida... Oh, sim, Lilith, eu ganhei tantas coisas boas — ironizo, puto da
vida. — E nós dois sabemos, Lilith, que eu não era mau. Eu não era ruim.
Você fez isso comigo.
— Oh, é tão fácil jogar a culpa da sua falta de caráter nos outros, não
é, Noah?
— NÃO, LILITH, NÃO ESTOU JOGANDO A CULPA NOS
OUTROS, PORQUE VOCÊ ME TORNOU MAU, E EU GOSTEI DISSO
POR MUITO TEMPO. MAS SER MAU É A PORRA DE UM VÍCIO E EU
NÃO O SUPORTO MAIS. — As palavras escapam em fúria da minha
garganta, enquanto eu grito com a mulher, firmo as mãos com força contra as
grades e tento atingi-la de qualquer modo possível. — E ser mau começou
com você. — A minha fala soa trêmula de tão rancoroso e irritado que estou.
Lilith abre um sorriso triste.
— Vê como você não tem controle, Noah? Vê como você
simplesmente é louco? O que aconteceu não foi culpa minha, Noah, foi sua...
— Não, não...
Odeio a força que suas palavras ainda têm contra mim e eu me forço a
lutar contra cada uma delas. Não posso deixar Lilith entrar na minha cabeça
desse jeito, não mais. Ainda assim... Não consigo deixar de pensar que ela
está certa. Há muito tempo carrego o peso dos meus erros. Arrependimento
ainda machuca cada pedacinho meu. E agora, frente a frente a essa loira, cada
ferida em minha alma parece voltar a sangrar. Muito.
— Foi sim, amor, foi culpa sua. Ela é completamente sua. — Fito os
seus olhos azuis, que agora estão tomados de uma cor vermelha de quem está
prestes a chorar. Ela aponta o seu dedo para mim. — Você aceitou cada ideia
que eu lhe propus, você liberou o mal para o mundo, você fodeu tudo e todos,
você, Noah... Você matou o seu pai, o meu pai, a sua mãe e provocou um
genocídio de anjos e demônios. Foi você, Noah. Você é culpado pela rixa
céu-inferno. Você merece todo o tipo de sofrimento e você quem deveria
estar em cárcere, não eu. — Sua fala é calma, apesar das lágrimas que rolam
por seu rosto angelical.
Lilith está chorando. A dor em seu rosto é nítida e inúmeros pintores
dariam a vida para pintar o anjo mais belo que já existiu exprimindo dor. As
lágrimas rolam por sua face, pingam no chão. Suas mãos voltam à grade. E
eu me sinto mal. Eu me sinto muito mal. Fecho os olhos para não ter que
encará-la, mas sua voz me corta do mesmo jeito.
Tudo foi culpa sua, Hell.
Sinto um nó se formar em minha garganta. As memórias me invadem
com força. O modo como me assustei ao ver a guerra instaurada no Céu e no
Inferno. Meus pais lutando, os pais dela lutando, anjos e demônios em
guerra... E eu como único lúcido frente a tudo isso, observando um mar de
sangue ser formado, vidas serem perdidas. A culpa foi minha.
— Você se deixou levar pela ganância, Noah. Você se permitiu ser
conduzido pelo poder, pela ideia de ser soberano. Você queria o caos. Você
conseguiu o caos. Conquistou o grande título de chefe do Inferno, amor, mas
isso não é motivo só para dor, Noah, não... As perdas justificam os ganhos
nesse caso. Olhe para você, amor! — Abro os olhos e encontro os seus. Lilith
está sorrindo de modo doce. — Um homem. Um homem forte e capaz de
comandar o Inferno. Um homem melhor, vejo agora. Um homem capaz de
aprender com os seus erros e mais, Noah, um homem tão poderoso... Lembra
dos nossos planos, amor? Você lembra! Sei que sim... Poderíamos ter um
jardim repleto de lírios e comandar o Inferno juntos, Noah. Poderíamos ser
tão fortes e invencíveis se unidos... Não quer isso de volta?
Sua proposta é tão convidativa. Lilith soa certa. Ela soa tão certa. E eu
sinto falta do seu sorriso, dos nossos beijos, da sua pele e das nossas noites.
Sinto falta de como ela me fazia crer que eu poderia ter tudo e muito mais ao
alcance dos dedos. Eu sinto falta de me sentir poderoso.
Simplesmente sinto falta.
Seus olhos azuis parecem suplicar por uma chance, suplicar para que
eu reflita bem. E a sensação que toma o meu peito é que eu possivelmente
estou sendo injusto. Eu deveria ser mais punido do que ela? Ela está certa?
Eu fui mais errado que ela? A culpa foi minha, não foi?
A culpa foi minha. Sim, sim... foi.
Eu perdi tudo. Por minha culpa.
— Se me tirar daqui, amor, poderemos consertar tudo juntos.
Podemos reinar juntos, amor, como sonhávamos — Lilith pede.
Ela é perigosa e tem muito poder sobre mim, sempre vai ter. Ainda
não consigo matá-la, não tenho coragem. Porque está certa: sou covarde. Não
consigo tirar a sua vida. Apesar de tudo, ela vai ser sempre importante demais
para mim. Sempre. E por um segundo eu acredito em tudo que está me
dizendo.
— Podemos ter tudo o que quisermos, Hell. Basta que permita que eu
seja o seu anjo novamente.
"Seu anjo".
Meu... Meu anjo.
Ela não é o meu anjo.
Rio nasalado, sentindo seu controle sobre mim se esvair. Porque ela
não é digna de ser chamada desse jeito e nunca vai ser. E agora eu percebo
que os olhos azuis que me encaram são fracos demais comparados aos olhos
escuros como a noite que aprendi a venerar. E isso é o suficiente para me
resgatar para a lucidez.
Lilith tem muito poder sobre mim. Só não tanto quanto a Chloe.
E eu não preciso da Lilith, eu preciso da minha ruivinha e preciso
combater os rebeldes para que eu possa ter o meu anjo nos meus braços. Eu
não preciso desse poder que Lilith me oferece, eu não preciso dela, não
preciso do caos de um anjo quebrado. Eu preciso de Chloe Mitchell.
Então me afasto da grade. Lilith franze o cenho e seu olhar claramente
exprime surpresa. Sinto fúria por ter me permitido cair em suas palavras.
Isso nunca mais vai acontecer.
— Você sabe o que está acontecendo, Lilith — acuso. A princípio ela
prende um grunhido, revoltada por sua tentativa de fuga falhar. Depois, ela
deixa um suspiro escapar dos seus lábios e segura as grades, cerrando os
olhos em minha direção. — Fale. Conte tudo o que sabe.
— Não vou falar nada se não me tirar daqui, Noah. Eu não vou falar
porra nenhuma.
— Cadê toda a sua doçura, meu amor? — ironizo e ela grunhe,
apertando as barras com mais força. — Fale, Lilith.
— O que quer que eu diga, meu anjo?
Sinto o tempo parar por um segundo. E então Lilith gargalha alto e
com maldade, permitindo seu sorriso irônico se estender largamente.
— Oh, sim, Noah... Eu sei sobre ela. Chocante, huh? Talvez você
devesse ter mais cuidado, amor. Você e seus demônios decidiram que cercar
a masmorra a distância era mais seguro que manter um segurança aqui. Vocês
temem que eu use da proximidade para seduzir ou convencer alguém a tentar
me tirar daqui, huh? Como se não soubessem que é questão de tempo para
que eu escape.
— Você está aí há milênios e nunca conseguiu, Lilith.
— Verdade. Porque antes eu estava sozinha, amor. Mas agora não
estou mais. E não, os rebeldes não conseguiram romper o cadeado, quebrar as
grades, nem destruir essa merda de lugar, amor, eles não conseguiram. Mas
de vez em quando, um ou outro tenta. E bem de vez em quando, o cabeça por
trás deles é capaz de me trazer informações. Porque eles me querem, amor.
Eles perceberam que eu sou muito melhor que você. Porque a culpa daquele
desastre todo, amor, ela foi sua. — Cada palavra carregava uma doçura
extremamente perigosa, até esse ponto. Agora o ódio passa a tomar a sua fala:
— E eles precisam de uma Rainha à altura de todo o caos existente do
universo, amor. Eles não merecem que um Rei inútil, covarde e fraco
conquiste ainda mais poder, eles não merecem você. E mesmo se me matar
agora, o que eu duvido, porque isso lhe traria maior problemas, você é um
puta covarde. Os rebeldes ainda vão conseguir te destruir, Noah. Porque você
é pateticamente fraco. Eles vão destruir você, amor. Você e a sua ruivinha.
Sinto fúria. Mais do que nunca. Sinto vontade de apertar as minhas
mãos em torno do seu pescoço. Sinto vontade de exterminar a sua vida.
— Como ela se chama mesmo? Chloe? Ela sabe, Noah? Sobre você?
Sobre a origem dela? Sobre o pai dela? Me pergunto o que ela faria se
descobrisse...
— Não ouse falar sobre ela, Lilith. Não ouse nem tocar no nome dela.
Você não é digna disso. Eu vou derrotar os rebeldes, Lilith. E você vai saber
de tudo, de cada detalhe dessa vitória. Eu vou garantir que você viva para
sofrer pelo resto da eternidade, meu amor, porque isso ainda é pouco para um
monstro como você.
Ela sorri de canto, debochada.
— Não tem como você ganhar, Noah. Não importa quão longa seja a
guerra ou quão intensa, será impossível que você saia vencedor. Você não
sabe um quinto do que deveria saber, amor. — Suas mãos se atêm à grade
com delicadeza e ela aproxima o seu sorriso do meu. — Você está fodido,
Noah. Eu posso nunca sair daqui, mas o maior prazer eu já tenho, meu
amor: saber que você estará em ruínas.
Lilith sorri. E eu estalo os dedos, fazendo a flor que estava sobre a
cama voltar à minha mão. Eu a faço queimar.
Molly está deitada na cama ao meu lado, e eu acho que ela está
fingindo dormir. Eu estou no meu segundo beck da madrugada, os joelhos
dobrados, enquanto fito um ponto qualquer do meu quarto.
"Eu sou o Diabo".
Sinto mais uma lágrima idiota descer pelo meu rosto e a ignoro,
tragando a droga mais uma vez.
Bem, eu sabia que ele era problema. Só não tanto.
Nunca me senti tão suja. Se Dalia algum dia quebrou o meu coração,
Noah terminou de fazer todo o estrago. E pior, ele me deixou a um passo de
pedir por uma camisa de forças. Porque eu me apaixonei pelo Diabo. E isso
não me parece racional, não me parece algo que uma pessoa sã faria.
Eu só posso estar louca.
Me inclino sobre a cama, apenas o suficiente para pegar a bebida ao
lado dela e virar uma longa dose da vodca. Ela rasga por minha garganta,
arde como nunca. Sinto o meu corpo queimar e fecho os olhos, aproveitando
como as duas drogas se complementam.
E ainda assim, nenhuma é como ele.
Louca, Mitchell. Você está surtada.
Prendo o cigarro entre meus lábios e me levanto, me surpreendendo
em como faço isso sem derrubar nada. Me sinto tonta por um segundo e
mantenho a droga entre meus dedos, soltando a fumaça conforme caminho
para a sala.
Brianna está dormindo ao sofá, porque pelas últimas quarenta e oito
horas ela teme por tudo e todos e pela criança que carrega em seu ventre. Ela
tem medo de Kyle e outros demônios. Se me dissessem que Brianna Yang
dormiria na minha casa dois dias atrás, eu riria alto.
Muito alto.
Mas, aparentemente, a minha vida virou uma montanha-russa.
Subidas e descidas inesperadas, cada vez mais agitada e nauseante. Caminho
para a varanda e fito o céu, buscando a estrela mais brilhante. E ela parece me
encarar. Oh, oi!
— À noite da minha vida, Johnny. — Ofereço um beck à estrela e rio
do quão patética sou. — Eu me apaixonei por um monstro. Quão nojenta eu
sou, John?
Idiota. A mais idiota. Eu consegui superar todas as merdas que já fiz
na vida ao dar uma chance a Noah. Ele me enganou direitinho. Ele me deitou,
me beijou, me usou... Noah me fodeu como mais uma das trocentas meninas
que ele já deve ter fodido pela eternidade.
É muita coisa para absorver. E eu não sei se consigo. A minha mente
é uma confusão sem tamanho e a droga entre meus dedos só piora tudo.
Deixo um suspiro pesado escapar.
Noah foi um pesadelo. E eu não entendo por que eu não queria
acordar.

Estaciono em frente ao Thurman's com uma dor de cabeça


excruciante. Os óculos de lentes vermelhas escondem o meu estado de
ressaca absurda. Molly não deveria estar ao fundo do carro, ela está de
licença, só que Anderson se recusa a me deixar sozinha.
— Ah, não... — Molly resmunga e eu entendo o motivo quando olho
para as janelas do Thurman's: Matt está trabalhando como se nada tivesse
acontecido. Sinto vontade de afundar em meu banco. Queria que a Shelly
fosse capaz de me engolir.
— Vamos, gente! — Brianna diz baixinho. — Ele não vai ser idiota
de mexer com vocês hoje. — Ela abre a porta do carro e Anderson e eu
saímos em seguida.
O sino do restaurante denuncia a nossa entrada e Matthew me encara
de imediato. Brianna e Molly passam direto para a cozinha. Eu continuo
parada, analisando o cara do outro lado. Não sei se ele é um anjo, um
demônio ou qualquer ser do tipo. Não sei se quero saber. Nem o meu melhor
amigo eu conhecia.
Thurman sai da sua sala e eu agradeço por isso, caminhando até ele.
Seu sorriso vai sumindo à medida que eu peço por duas semanas de
afastamento, garantindo que ele pode descontar do meu pagamento. O
homem barrigudo me analisa por alguns segundos e acho que ele sente o meu
cansaço. Compreensivo, Thurman concorda. E pergunta se quero começar a
pausa a partir de hoje, afirmando que nem vai descontar nada. Tudo o que eu
peço é que ele fique de olho em Brianna nos dias em que eu estiver fora e ele
garante que nada de mal acontecerá com a "chinesinha". Empolgada até
demais, eu o agradeço com um abraço.
Meu chefe não é nada mal, eu sei. Por algum motivo, contudo,
desconfio até da minha própria sombra, então me afasto de Thurman logo.
Molly volta para mim e me assegura de que Brianna está e vai ficar
bem e qualquer coisa ela vai ligar para o meu apartamento. Caminhamos em
direção à saída. Porém, Matthew nos intercepta.
Seus olhos estão vermelhos quando ele toca em meu braço e para a
nossa frente. E eu não consigo sentir comoção alguma. Honestamente, não
sinto nada.
— Chloe...
— O que é você, huh? Um demônio do Noah? Outro pesadelo na
minha vida? — questiono, um tanto quanto anestesiada, sem realmente me
importar com a força das minhas palavras. Matt abre e fecha a boca. Termina,
por fim, em fitar Molly em busca de uma chance para se explicar. Contudo,
quando encaro a minha melhor amiga de soslaio, ela toca o meu braço e me
arrasta para fora.
Travo, porém, ao ver Sinn de frente para o meu carro com seus braços
cruzados sob uma jaqueta de couro. Seus olhos cinza e negro, de cores
distintas, cravam em mim. Fito o olho cinza, imaginando como essa cicatriz
teria sido feita. Mas também não sinto nada ao vê-lo.
— Sai da frente do meu carro, Sinn — peço. — Está bloqueando a
passagem para a Molly. — Indico o banco do carona com a cabeça, enquanto
nos aproximamos.
Sinn não se move, ele só sorri de canto. Não há felicidade alguma na
curva dos seus lábios, entretanto.
— Matt fez algo estúpido — Sinn se pronuncia e eu uno as
sobrancelhas, sem entender. — Matt deu uma dica a Noah do que ele deveria
fazer para... Enfim, não vem ao caso. Kold, Luke e eu não conseguimos
impedir Noah de cometer uma burrada. E ele sumiu, Chloe.
Engulo em seco, tentando soar indiferente:
— O que tenho a ver com isso?
— Mais do que imagina. E se parasse para pensar, talvez descobrisse
que quer saber e ouvir muito mais do que pensa — acusa. Cruzo os braços.
— Belos óculos. Não muito eficientes em esconder a dor, entretanto.
— Sai da frente, Sinn. — Me aproximo dele, impaciente.
— Ele não te procurou?
— Não. Sai.
— Ele precisa de você, Chloe.
Rio nasalado. Parece uma piada o Diabo precisar de uma humana.
Parece uma piada isso tudo ser real. E eu não quero isso para mim. Não quero
saber o que Noah já fez ou deixa de fazer da vida, que bichos seus amigos são
e o que Matt é ou deixa de ser. Não quero fazer parte disso.
O cara à minha frente percebe, porque desiste, se afasta e dá
passagem para Molly entrar no carro. E, assim que a minha amiga o faz, eu
entro na Shelly e saio dali o mais rápido possível.
É patético que Sinn tenha me procurado. É patético que ele tenha ido
ao meu trabalho tentar me convencer de que Noah precisa de mim. É patético
que Sinn tenha pensado que me importo. É patético que essa última parte seja
verdade.

Decidi apresentar a Molly o que eu deveria ter apresentado desde


cedo. E ela não ficou chateada, para a minha surpresa. "Todos temos nossos
segredos", ela disse. Talvez após tantas loucuras, ter uma amiga que dança
ballet seja o segredo mais leve de ser descoberto.
Primeiro ela achou que eu estava zoando, porque até onde ela sabia
apenas a minha tia dançava ballet e a minha mãe, que ensina a criancinhas no
Tennessee. Mas depois eu me mantive séria por tempo o suficiente, ela
entendeu que eu realmente danço.
Acho que é uma parte de mim muito pessoal. Quando olho para trás,
me pergunto o porquê de ter mostrado essa parte para o Noah tão cedo.
Talvez porque ele quem a descobriu, sem que eu precisasse contar. Talvez
isso tenha me incentivado a lhe mostrar esse lado do meu universo de uma
vez só. Ou talvez exista alguma razão incompreensível por trás disso.
Eu não sei. Honestamente. Me entender ultimamente virou algo bem
complicado. O ápice disso foi eu ter me apaixonado pelo Diabo, e isso já
demonstra o quão confusa e bizarra eu sou.
Espera, Chloe: não. Você não se apaixonou pelo Diabo.
— O que está repetindo baixinho? — Molly questiona enquanto
passamos pelo corredor desse grande edifício do centro. A cada passo, a
música clássica fica mais alta. Eu paro de repetir o meu mantra sobre não ter
me apaixonado por todos-sabemos-quem e a ignoro. Então abro a porta, que,
geralmente, a essa hora do dia está destrancada.
E Molly deixa um xingamento escapar com o tamanho do
apartamento de Riley Mitchell. Eu rio nasalado, já acostumada. O estúdio de
dança tem a tia Riley ao centro, com uma xícara de café, enquanto seu olhar
duro e crítico analisa as duas garotas de cerca de catorze anos e uma de nove,
que realizam movimentos com precisão. E não, a última não recebe qualquer
alívio de julgamento por ter nove anos.
Um sorriso surge nos lábios da minha tia quando ela me vê. Um
sorriso doce como sempre.
— Pausa! — ela ordena. E o corpo das garotas murcham, seus
murmúrios revelam agradecimento. Aposto que estavam bem cansadas. Tia
Riley se aproxima de mim com um sorriso largo — Céus! O que está fazendo
aqui?
— Tia Riley, essa é a Molly. Molly, Riley Mitchell.
— Eu vi a sua tia num jornal! — Molly diz por um sussurro, como se
tia Riley não estivesse aqui. A ruiva a minha frente esconde o sorriso
(resultado de um ego inflado) atrás da caneca. Tento prender o riso quando a
minha melhor amiga percebe que está passando vergonha. — Oi, Sra.
Mitchell.
— Me chame de Riley ou Tia Riley — titia pede. E seu sorriso faz
Molly sorrir também. Olho para Molly, subitamente mais feliz. Eu sei, a
minha tia é maravilhosa. — Eu pensei que estivesse no Tennessee, estrelinha!
— Estrelinha? — Molly pergunta, claramente tentando não rir. Prefiro
ignorar.
— É... Sobre isso. — Começo, o olhar focado em Riley. — Algumas
coisas aconteceram nas últimas semanas e eu já havia avisado a mamãe que
eu não poderia ir ao Tennessee esse ano. Mas eu queria muito ir, tia. Então...
— Chloe Marie Mitchell, o aniversário do seu irmão é em pouco mais
de vinte e quatro horas! — E eu me sinto mais culpada do que nunca. Tia
Riley percebe o peso da sua bronca quando meus ombros murcham, de tão
pesados.
Benjamin vai me odiar para sempre. Nunca passamos um aniversário
dele separados.
— Eu sei... — Sorrio triste. — E é por isso que eu estou aqui, titia. Eu
quero ir e ainda dá tempo, mas eu não tenho dinheiro para uma passagem de
avião, nem sei se tem voos para lá no momento e se tiver vai ser uma
fortuna... E eu queria levar a Molly comigo porque...
— A Molly é sua namorada?! — Ela soa surpresa e abre um sorriso
maior ainda para Anderson, que ri alto enquanto eu franzo o cenho ao
máximo. — Pensei que você estivesse com aquele gostosão misterioso...
— Titia! — exclamo alto em repreensão, enquanto Molly literalmente
chora de rir. — Lembra que eu te contei que perdi um amigo esses dias? —
Tia Riley confirma, perdendo seu sorriso.
— Meu noivo — Molly diz, secando as lágrimas de riso quando não
faz mais sentido rir. — Bem, ele não chegou a fazer a pergunta, mas a
resposta seria sim. — O sorriso forçado e carregado de tristeza nos lábios da
minha tia faz um igual surgir na minha melhor amiga. — De qualquer forma,
Chloe estava abdicando da viagem para ver a família por minha causa e por
uma centena de coisas mais. — Sua fala basta para que titia me lance um
olhar curioso e repressivo por eu ter lhe escondido muita coisa. — Mas eu
não permito isso. Não vou permitir, quero dizer.
— Eu enviei quase todo o meu dinheiro para o Tennessee, junto com
um presente pro Ben, que eu nem sei se chegou. Foi meu modo torto de
ajudar e de pedir desculpas ao mesmo tempo — explico. — E como Molly
precisa de mim e eu dela, eu queria muito que nós duas fôssemos juntas ao
Tennessee. Assim, ela não fica sozinha e eu não deixo de ver o Ben. Então se
puder me emprestar uma grana, tia, eu juro que pago cada centavo de volta...
Eu só preciso de gasolina e...
— Me pagar de volta? Quando vai parar de ser orgulhosa, estrelinha?
— Sua fala me faz sorrir, mas ela sabe que eu não aceitarei outra forma.
Então ela olha ao redor e morde um sorriso. — Ok, veja bem... Vou te dar o
dinheiro, mas você não precisa me pagar de volta, porque vai estar fazendo
algo por mim também. O que acha de ganhar mais uma integrante na sua
viagem de garotas?! — Eu e Molly nos entreolhamos, dando de ombros,
entre sorrisos.
— Acho que vamos ao Tennessee.

Partimos uma hora depois do encontro do estúdio de dança.


Vamos passar somente dois dias em Maryville, a minha natal cidade
no Tennessee. Ainda assim, tia Riley fez Molly e eu nos esforçamos para
tentar encaixar as suas DUAS malas gigantes no meu porta-malas minúsculo.
Eu realmente espero que a Shelly não tenha sentido dor enquanto tentávamos,
a todo custo, fechá-la com o que claramente não cabia ali.
Por fim, quando titia hesitou em entrar na minha linda garota porque
papai morreu ali, eu abri a porta e a empurrei delicadamente. A minha melhor
amiga deixou sua pequena mochila no banco traseiro e eu fiz o mesmo. E
uma vez que todas estavam no carro, o rádio foi ligado, tia Riley pagou pelo
nosso tanque cheio e começamos a viagem de catorze horas para Maryville.
A viagem foi melhor que eu esperava. Primeiro porque a trilha sonora
foi nada mais nada menos do que ABBA. Segundo porque foi engraçada.
No início, Molly deixou escapar que eu dei um nome ao meu carro e
minha tia comentou que isso não parecia muito saudável. Dois minutos
depois, Riley Mitchell estava falando do meu carro como se ele fosse gente.
Digo, loucura vem de família, claramente.
Nós fizemos duas paradas, uma para almoçar e outra para um lanche
rápido. E tanto almoço quanto lanche foram em duas lanchonetes quaisquer
do meio do caminho, que nos forneceram hambúrgueres e milk shakes.
Somos muito saudáveis.
E depois, titia começou a nos contar sobre seus affairs, seus dramas e
suas viagens à Paris, Madrid, Brasil, Austrália... Enquanto eu já estava
acostumada com as loucuras de Riley Mitchell, Molly parecia rir a ponto de
sua barriga explodir. O clima dentro da Shelly nunca fora tão leve.
Acho que, por isso, catorze horas nunca passaram tão rápido. Então
agora que ABBA entoa Dancing Queen e a placa de Maryville passa por
nossos olhos, me vejo sorridente para passar dois dias ao lado dessas duas
loucas, da mamãe e do Ben.
O carro é estacionado e tia Riley tira as suas malas, quando Molly
abre os fundos do carro. Percebo a loucura que fiz quando fito as estrelas no
céu escuro. Provavelmente, já passou das dez horas da noite. Depois observo
a minha casa por um segundo. Ela é azul clara, seu telhado é branco e o estilo
suburbano é igual a todas as outras da rua. A caixa de correios de madeira
com orelhas de coelho, contudo, me fazem sorrir. Obra do meu pai.
Assim que pego a minha mochila no banco do carro, vejo a porta de
casa se abrir. Mamãe se agasalha com um casaco fino, abraçando o próprio
corpo, surpresa em nos ver. Já uma criança ruiva e de olhos extremamente
verdes sorri em minha direção, correndo como nunca. Definitivamente, meu
irmão não deveria estar acordado, mas fico feliz por isso.
— ESTRELINHA! — ele grita, quando o pego em meus braços. Suas
pernas envolvem a minha cintura e eu realmente não sei como consigo
carregar essa criança, ela está enorme.
— Pirralho! — Ele me abraça com força pelo pescoço e eu me sinto
completa. Faço um cafuné no seu cabelo e meu olhar encontra de novo, por
cima do ombro, a minha mãe. Tia Riley está caminhando escada acima e as
duas se abraçam. Molly sorri para mim e Ben. — Eu senti tanta saudade,
Benny...
— Eu também!! Eu achei que você não viria, Co. — Sinto meu
coração ser esmagado. Afasto meu rosto do seu e vejo as lindas sardas de
suas bochechas gordas e vermelhas. — Ah, antes que eu me esqueça:
obrigado pelo presente!
— Gostou do carrinho? Não é muito, mas...
— Carrinho?! — Franze seu cenho numa cara confusa,
completamente adorável. O coloco no chão porque estou velha demais para
carregar um ser de quase oito anos. — Eu 'tô falando do Game Boy.
Uno as sobrancelhas ao máximo, erguendo o olhar para a minha mãe.
Ela está sorrindo para mim e eu finalmente vejo o brinquedo em suas mãos.
Um brinquedo como Pietro tinha. Um brinquedo que eu não tenho a mínima
condição de comprar. Um que aparentemente tia Riley não comprou, porque
ela fez questão de repetir mil vezes que compraria algo por aqui.
E por algum motivo eu simplesmente sei quem comprou esse
presente.

— Então você acha que Matt falou do aniversário do seu irmão para o
Noah e o Noah... — Molly dizia, enquanto andava pelo meu quarto
irritantemente rosa em busca de onde tinha deixado os seus brincos. Me
encarei pela milésima vez em frente ao espelho, analisando meu vestido
branco de mangas compridas e os pés ainda descalços.
— Comprou cerca de vinte fitas de jogos para um Game Boy. Além
do Game Boy, claro. A minha mãe não faz noção do quanto isso custa, então
ela nem ligou, só achou graça do meu presente. Eu liguei para a Senhora
Durden de manhã e ela disse que conversou com o próprio Noah e que o
próprio Noah quis saber mais sobre o passado do Pietro, o pai dele e tudo
mais... E que o próprio Noah entregou mais vinte fichas do brinquedo para o
SuperPi. Você consegue acreditar?! — Me viro para ela que está finalmente
colocando os brincos prateados para complementar o seu vestido preto.
— Bom, pelo tanto de vezes que você repetiu "o próprio Noah"
enquanto está puta, sim, consigo. — Rolo os olhos. — Talvez o Diabo não
seja tão ruim quanto pensávamos.
— Oh, sim, Molly! O Diabo deu presentes para uma criancinha e
agora ele é automaticamente um príncipe da Disney que realiza caridade aos
domingos. Talvez ele cante no coral da Igreja também...
— Meninas, estão prontas?! — Escuto a minha mãe perguntar. Ela
abre a porta. Mal nos falamos o dia todo e eu sei que ela provavelmente está
chateada comigo por algum motivo. Seu rosto delicado, seus olhos verdes e
seu sorriso terno me trazem a sensação de calma de qualquer jeito.
Então meu olhar desce ao mini homem à sua frente. Benjamin veste
uma camisa social branca um pouco grande pro seu corpo e calças jeans
azuis, bem como um tênis qualquer. Seus olhos estão focados no maldito
Game Boy e seus dedos são bem ágeis. Benny faz uma careta diferente a cada
segundo, acho que está tentando matar algum monstro.
— Chloe, ainda está crua! — mamãe diz e seu comentário faz Molly
rir. — Está linda, Molly! — Elas se conhecem das poucas vezes que minha
família visitou a cidade, o que eu não gosto muito que aconteça.
— Não mais que você, Senhora Mitchell — Molly retruca para a
felicidade de Donna Mitchell, que fica vermelha e abre ainda mais o seu
sorriso.
Anderson não mente. Mamãe está linda com seu vestido florido e seus
fios ruivos soltos. Eu suspiro, em busca de um sapato qualquer.
— Vou descendo — Molly diz. — Ei, Ben! Me deixa ver o que está
jogando? — E então a minha amiga acompanha o meu irmãozinho para o
andar debaixo.
Mamãe fecha a porta atrás de si quando eu finalmente acho o que
estava procurando.
— Por céus, Chloe, coturnos não — ela diz e rola os olhos.
O que há de errado com coturnos?
Donna Mitchell abre o meu antigo armário e retira dali um par de
saltos que eu nem sabia que existia. Ela vê pelo meu olhar que não há a
menor possibilidade de isso acontecer.
— Céus, garota... — Seu resmungo me faz rir e ela procura por
qualquer outra coisa ali dentro. — Ainda calça o mesmo do que quando saiu
daqui?
— Não cresci nenhum centímetro e meu pé também não.
— Ótimo. — Ela abre uma gaveta e retira duas meias limpas, me
jogando as mesmas. Depois coloca dois All Stars que deveriam ser brancos
na minha frente. Eles estão velhos e surrados, mas ainda lindos. Donna se
senta na minha cama. — O que te fez mudar de ideia?
— Nova York estava me enlouquecendo — confesso, me sentando ao
seu lado e calçando as meias apressadamente.
— Como a Molly está depois da morte do John? — Mamãe sabe de
tudo. Eu sempre ligo para contar as coisas mais importantes. Quando tenho
paciência para lidar com nossas brigas. E claro, meu namorado infernal não
entra em "coisas mais importantes". — Ela está tão magra.
— Ela está mal. Estamos mal. Estamos destruídas. Completamente
quebradas. Por isso eu queria ficar em Nova York mais algum tempo. Por
isso, eu não sabia se viria.
— Desde o início eu disse para você trazer a Molly e não faltar o
aniversário do seu irmão...
Estava demorando.
— Eu não tinha dinheiro para isso.
— Mas acabou dando um jeito, não foi? E esse jeito foi justamente o
que eu sugeri. — Ela me cala e eu começo a calçar os tênis em silêncio.
Donna suspira. — Desculpa, eu não quero brigar, mas me preocupa e me
irrita o quanto nunca me escuta, Chloe, eu...
— Eu descobri um jeito de chegar a tempo, mãe. Eu dei o meu jeito.
Eu sempre tento dar o meu jeito. Só que, naquele momento, eu não tinha a
menor visão de uma saída, porque eu estava um caos e quebrada, afinal um
dos meus melhores amigos tinha morrido. — As palavras escapam sem
piedade e eu a encaro, irritada, esquecendo da necessidade de calçar os
sapatos por um segundo. — E eu te liguei para dizer que estava te mandando
o dinheiro do mês, que eu não sabia ainda como viria para cá, que eu
precisava cuidar da minha amiga que havia visto o noivo dela morto... E eu
só esperava por um pouco de apoio. Mas você ficou chateada e sugeriu mil
coisas, entre elas, que eu viesse com a Molly. Mas você não me deixou
desabafar e respirar, nem por um segundo. E eu te desculpei por isso. Mas
você não me desculpou por eu dizer que não saberia se viria.
Paro de falar quando sinto o ar insuportavelmente pesado. Donna
desvia o olhar e engole em seco. Respiro fundo e balanço a cabeça em
negação a tudo de ruim que passa por ela, é muita coisa. Só volto a calçar os
tênis.
— O seu problema, Chloe, é que você só enxerga o seu mundo. —
Sua fala faz meus ombros tensionarem. Eu ergo o olhar para ela quando ela
se levanta. Donna Mitchell me fita com seus olhos vermelhos. — O seu
irmão sente a sua falta todos os dias...
— Eu também sinto a falta dele...
— Me deixe falar! — Me corta e eu sinto meus ombros murcharem.
Subitamente sou uma criança recebendo um sermão. — Eu sinto a sua falta!
— Sua fala me faz perceber que ela está prestes a chorar. — Quantas vezes
por dia pensa na gente, meu bem? Porque a gente pensa em você a cada
segundo. Então me perdoe se soa egoísta as quinhentas vezes que te pedimos
para voltar para casa. Receber seu dinheiro todo mês não basta, Chloe. Eu
trabalho e eu sei me virar, pode ser que não nos sobrasse dinheiro no fim do
mês, mas eu posso garantir que não iria nos faltar nada se você voltasse. E eu
entendo que queira sua liberdade e eu sei como Nova York parece grande e
uma aventura, mas eu me preocupo! Eu me preocupo porque eu sei que você
nos envia boa parte do que possui, mas me pergunto o que faz com o resto.
Porque já me manda dinheiro demais para uma garçonete, Chloe. Está
correndo de novo?
Tento esconder o espanto por ela saber disso. Eu me envolvi em
alguns problemas por corrida no meu último ano em Maryville, mas eu não
tinha noção de que a minha mãe sabia que esse vício persistia em Nova York.
Então me calo, voltando a calçar o segundo tênis.
— OLHE PARA MIM! — Eu estremeço, erguendo o olhar para a
ruiva. Seu rosto está vermelho. — Molly perdeu o John e eu sinto muito.
Você perdeu o John e eu sinto muito. O vi o quê? Duas vezes?! Mas ele era
um bom rapaz, eu senti isso. Só que a Molly perdeu o John, Chloe. — Vejo
as primeiras lágrimas rolarem por seu rosto. Ela as limpa com o dorso da
mão. — E nós perdemos você.
Ela percebe a minha ausência de resposta. E sem dizer mais nada, me
deixa sozinha no meu quarto antigo, rosa demais para o meu gosto, sendo
encarada por porta-retratos e memórias de uma família que hoje pouco me
conhece.

Saímos da pizzaria que fica a cerca de três quarteirões da minha casa.


Ben está agarrado à minha mão enquanto me conta sobre a sua escola e eu
estou mais aérea do que nunca. A minha mãe mal olha na minha cara,
enquanto conversa animadamente com Molly e a minha tia. Meu carro está
do outro lado.
São oito da noite. Acho. Eu não sei. Não estou me ligando muito no
tempo ultimamente.
— Ei, Co! — Ben me faz parar de andar quando finca seus pés contra
o chão. — Por que a gente não faz que nem antigamente?
Ergo o olhar para a minha mãe. Ela fita a Shelly do outro lado da rua
com desgosto. Eu sei que ela não gostou de entrar ali para chegarmos à
pizzaria e sei que ela não gosta da ideia que lhe passo por meus olhos. Mas
ela abre as mãos em concha e eu jogo a minha chave. Porque hoje é o dia do
Benny.
Então mamãe vai dirigir o meu carro e levar Molly e Tia Riley para
casa. Eu vou dar uma volta com Benny até a nossa casa. E eu realmente não
queria andar muito, mas o garoto grita energia.
Vejo o carro arrancar pela cidade e aperto a mão do meu irmão com
vontade, atenta a tudo ao meu redor. Não há perigo por essa área, mas me
preocupo. E enquanto andamos lhe conto sobre Nova York e ele me fala
sobre a garota bonitinha da sua sala.
— Então... Por que está tristinha? — Sua pergunta me pega de
surpresa, conforme tentamos não pisar nas linhas de uma calçada. Benny
resmunga quando pisa onde não deveria sem querer e eu finjo fazer o mesmo
para que ele não fique muito mal.
— Corações partidos e outros problemas do mundo adulto, Benny. —
O som bizarro num beco atrás de mim me faz travar. É como se alguém
tivesse caído de muito alto.
— O que foi isso?
— Não é da nossa conta, Ben. Vamos andando. — Estou tremendo no
momento. A rua está deserta e eu xingo alto demais quando Benjamin solta a
minha mão e corre em direção ao beco. O sigo com a mesma velocidade.
E travo quando vejo Sinn ajoelhado com a mão contra o pescoço de
um cara qualquer, deitado no chão, ambos com asas. Eu penso em tampar a
visão de Ben, mas ele já está sorrindo bobo e com seus olhos arregalados e
curiosos, então tampo os ouvidos dele.
— Que porra é essa, Sinn?

— E VOCÊ É UM ANJO. — Benjamin grita, abrindo os braços e


mexendo-os animadamente pelo beco, como se um cara não estivesse
desacordado entre nós. — Que voa! Um anjo que voa! — Duvido que Sinn
seja um anjo.
— É, algo assim, senhorzinho — Sinn diz, sorridente. E guia seu
sorriso para mim, que estou de braços cruzados e torcendo para que ele
mantenha uma distância de nós dois.
— Que porra está fazendo a catorze horas de Nova York?
— Bem, senhorita, eu posso viajar de Nova York para Maryville em
menos de dois segundos — me responde. Benjamin abre a boca e deixa um
"uau" quase infinito escapar. O abraço pelo pescoço para que ele fique bem
perto de mim. — Estou te protegendo.
— Por quê?
— Ordens superiores.
Noah.
— Me deixem em paz...
— Ah, sim. Vamos deixar um demônio perseguir a sua família,
senhorita. — Ben se vira para mim, boquiaberto. E agora eu tenho muita
coisa para explicar para uma criança tagarela de oito anos. Direciono toda a
minha raiva para Sinn, pelo olhar. — Noah se preocupa, Chloe. Matt
também. Pode dar meia volta agora e voltar para casa, fingir que não se
importa com ele. Pode fazer o que quiser e estará em segurança, bem como
toda a sua família e todos que você ama. Porque Noah se importa.
Eu puxo a mão de Benjamin e faço exatamente o que Sinn disse: vou
para casa. E me sinto perseguida durante todo o trajeto, enquanto repito para
o meu irmão que ele não viu nada e que ele não pode dizer nada para
ninguém. Nunca.
Coloco Ben em sua cama com meu coração ainda acelerado por tudo
que aconteceu mais cedo. Benjamin não disse nada para a mamãe quando
chegamos em casa e eu prometi que lhe ajudaria a tomar banho e se vestir e
assim o fiz, enquanto ele surtava com as coisas que eu lhe dizia.
Contei por alto algumas das coisas que aconteceram como: eu ter me
envolvido com um cara que tinha asas, meu melhor amigo ter asas e anjos e
demônios existirem. Ben ouviu tudo isso como se não fosse perigoso, mas
uma grande história antes de dormir. Até que eu contei que um amigo meu
foi pro céu por causa dessa confusão e ele percebeu que isso era algo sério.
O cubro com seu cobertor grosso, sob a luz apenas do abajur ao seu
lado.
— Então seu namorado tinha asas? — ele pergunta e eu confirmo. —
Se seu namorado tinha asas, então ele era um anjo?
Reprimo um sorriso em meus lábios. Benjamin acha que Noah é um
anjo e eu não quero destruir a sua imaginação fértil.
— Boa noite, Benny. E parabéns, meu amor. — Beijo a sua testa e ele
cruza os braços em protesto por ir dormir com curiosidade. — E lembre-se
que me prometeu de dedinho que não diria nada pra ninguém. É nosso super
segredo! — peço, o rosto próximo ao seu. Ele segura as minhas bochechas
com as duas mãos e beija a minha testa.
Saio dali e sigo para o meu quarto.
Molly e eu dividiremos a minha cama pequena, ela está sentada à
minha espera. Sigo para o banheiro, tomo o meu banho, me visto, volto ao
quarto e lhe conto tudo. Inclusive a parte que Ben chama Noah de anjo.
Molly acha graça. E passamos cerca de duas horas conversando sobre como
tudo está cada vez mais caótico e confuso, até meu relacionamento com Noah
voltar a ser o tópico principal:
— Eu acho que ele gostou de você de verdade. Noah, eu digo. —
Molly me surpreende. E eu não consigo respondê-la. — No seu lugar, eu
conversaria com ele para descobrir — Anderson sugere.
— Ele é o Diabo, Molly.
— Oh, sim. Eu entendi essa parte. E entendi também que anjos e
demônios realmente existem, mas de uma maneira que ainda não
compreendemos. Não compreendemos muita coisa, Co. Muita coisa que
achamos saber pode ser mentira. Além do mais, eu nunca li em lugar nenhum
que o Diabo não poderia se apaixonar.
Bufo, soltando o ar junto com a inquietação. Molly se infiltra debaixo
do cobertor e eu faço o mesmo. Mas não consigo dormir.
Só consigo pensar no que Benjamin disse.

— Cinco, seis, sete e oito. — A minha mãe coordena as crianças da


sua aulinha de ballet. E sim, a família Mitchell aparentemente tem a dança
nas veias. A vovó, inclusive, também dançava ballet.
Estou sentada em um dos cantos, no chão, Benjamin dormindo no
meu colo. É manhã e ele faltou aula pra ficar comigo, a minha mãe deixou.
Molly está jogando no Game Boy dele, uma traíra. Tia Riley está ao meu
lado, sorrindo, porque percebe como as muitas alunas da minha mãe
são muito boas.
Tia Riley sempre quis que a minha mãe trabalhasse com ela. Mamãe
nunca quis sair do Tennessee. Ela diz que somos duas teimosas quando se
trata das propostas dela. E é verdade. Mamãe ganharia muito mais em Nova
York do que trabalhando para a pequena escolinha de ballet daquele bairro de
classe média de Maryville. Muito mais. E trabalharia menos.
Mas Donna Mitchell não quer depender da minha tia.
— Então? Onde está o... Noah? Era esse o nome dele? — A pergunta
da minha tia me deixa desconfortável. — Uhhh, peguei na ferida.
— Noah e eu não somos nada, tia. Fomos um erro.
— Um erro com tanta química... — A encaro. — Vamos, quando
flagrei os dois no estúdio, eu quase quis morrer por ter interrompido um
beijo. A sala estava quente como o inferno. Mas melhor eu ter interrompido
um beijo do que um sexo selvagem...
— Tia! — a repreendo e ela ri, assim como Molly, que tem seus olhos
vidrados no Game Boy. — Vocês são insuportáveis — resmungo, voltando a
fitar a minha mãe. Ela para a contagem para demonstrar o plié na barra para
uma das garotinhas, se movendo com uma delicadeza invejável.
Donna Mary Mitchell é perfeita. Eu juro. Tudo o que eu amaria ser.
Ben se remexe em meus braços, em algum pesadelo. Sussurro que
está tudo bem em seu ouvido e o abraço um pouco mais forte. Ele sorri e
volta a dormir com tranquilidade. Tia Riley lhe acaricia a perna, sorrindo para
nós dois. Então seus olhos cravam em mim.
— Deixe-me te contar uma história, meu bem — Riley começa. — A
sua mãe conheceu o seu pai num verão e eles se apaixonaram perdidamente.
A sua mãe tinha o quê? Vinte anos. Tão nova... Céus... — Ela morde o lábio
inferior para prender um sorriso com a lembrança. — E ela repetia para mim
que era proibido, que nunca daria certo e eu não sabia o porquê. Até hoje não
sei. Acho que a sua mãe queria se casar com um cara perfeito, não
compreendia que isso não existe.
Rio do seu deboche, interessada em sua história. Nunca me cansaria
de ouvir sobre a minha mãe e o meu pai.
— Então o seu pai não desistiu. Ele lutou bravamente pela sua mãe.
Esperto, ele conquistou os nossos pais e continuou a insistir para a sua mãe
que ele era um cara imperfeito, mas o cara certo. Nunca vi um homem tão
apaixonado na vida quanto Collin. E desse casal, surgiu uma vida que não
vingou. A minha mãe ficou puta da vida quando descobriu a gravidez. E ela
só descobriu isso porque Donna sofreu o aborto espontâneo e quase morreu.
Mas seu pai não saiu do lado dela um segundo sequer. Ele fez o mínimo. E
com isso, ganhou o respeito do meu pai. E como se desastres atraíssem
desastres por magnetismo ou sei lá, meu pai acabou por morrer no mês
seguinte, no trabalho.
— Vovô era policial.
— Assim como o seu pai decidiu ser. E ele decidiu ser policial em
homenagem ao seu avô Mike, mas isso foi bem depois. Enfim, depois da
morte do nosso pai, a mamãe entrou em depressão profunda, eu e Donna
cuidávamos dela, mas a sua mãe estava tão quebrada por causa da perda do
bebê e do seu vovô e tudo mais... Nossa, Donna é uma guerreira, Chloe. Tem
sorte de ter puxado essa garra dela. — Nós duas encaramos a bailarina que
conta os passos das garotinhas no momento. A minha mãe visivelmente ama
o que faz. — Seu pai precisou se ausentar por uns problemas de família e
Donna estava quase em depressão também. Eles eram conectados de um
modo absurdo e quando tudo estava desmoronando, o seu pai nos ajudava.
Entenda, seu pai nos foi uma base por um tempo e sem ele estávamos um
tanto quanto perdidas. Mas ele voltou como havia prometido. Ele voltou por
inteiro. Collin se tornou um Mitchell. Ele ofereceu a alma e o corpo em um
pedido de casamento lindo, pedindo a mão da sua mãe a mim. Eu chorei que
nem um bebê.
— E depois?
— Então ele conseguiu, sabe lá como, entrar para o treinamento
policial enquanto trabalhava para tentar nos sustentar. Eu consegui uma bolsa
na escola de dança de Nova York e trabalhava num restaurante, como você,
tentando ganhar um extra para ajudar a mamãe. A Donna ensinava ballet
desde cedo por aqui e trabalhava em tudo o que conseguia para ajudar a
mamãe. Mas a mamãe se foi uns dois anos depois que parti para Nova York,
infelizmente, por uma pneumonia. — Vejo o momento em que engole a dor,
mas Tia Riley não se abala. — Achei justo que Donna herdasse a casa,
porque ela formaria uma família e eu só queria viajar o mundo. E assim foi.
Seus pais se casaram dois anos depois, assim que Collin entrou para a polícia.
E ao contrário do usual, sabe lá como, Collin conseguiu o nosso sobrenome,
sendo como o filho que sua avó dizia que ele tinha se tornado. Soa meio
incestuosa essa última parte, mas você entendeu. — Rio, balançando a cabeça
em negação. — Imagina se a sua mãe tivesse continuado a acreditar que ela e
seu pai eram um erro?
Mordo o lábio inferior, entendendo o que ela quer dizer. Tia Riley
contou toda a história para que eu pensasse em Noah e eu. O que ela não sabe
é quanto as coisas são mais complicadas do que ela pensa.
— Não haveria Chloe e não haveria Ben — ela conclui. E eu encaro o
garoto que dorme tranquilamente em meus braços.
Benjamin amaria conhecer o nosso pai. Eles se dariam tão bem. Eles
se parecem tanto. Suspiro e volto a fitar a minha mãe. Mas de algum modo,
meu pensamento volta para Noah.

Tia Riley está se despedindo do Ben, enquanto Molly está no carro,


procurando algo pelo rádio. A minha mãe está me enchendo de pedidos por
cuidado e atenção na estrada, enquanto eu fecho o porta-malas.
— Mãe! — Seguro o seu rosto com as duas mãos ao me virar para
ela. — Eu vou ficar bem. — Tento tranquilizá-la e seus ombros murcham.
Seu suspiro entrega a sua preocupação. Donna está prestes a me implorar
para largar tudo e ficar, como sempre quando venho aqui, então seguro as
suas mãos e lhe impeço de fazer isso: — Eu te amo. Muito.
Donna respira fundo.
— Mãe, eu ‘tô falando sério — digo e ela respira fundo de novo. Me
aproximo ainda mais. — Me desculpa. Por não ter sido muito presente nos
últimos meses, eu juro que vou tentar mudar isso. Eu vou tentar ser uma filha
melhor, eu vou tentar, eu juro. De verdade, mãe. Eu te amo mesmo.
— Oh, meu amor, eu nunca duvidei disso. — Ela alisa meu rosto e
beija a minha testa. Então me puxa para um dos seus abraços apertados e eu o
devolvo na mesma intensidade, aproveitando cada segundo. — E eu sinto sua
tristeza, sei que seu coração está machucadinho e não quer me dizer o porquê,
mas quando estiver pronta para conversar, meu bem, eu estarei aqui, ok?
Sempre. — Ela afasta o rosto do meu para sorrir e eu ‘tô me concentrando
muito para não chorar, porque estou sentindo saudade em antecipação. — Até
porque, cá entre nós, eu te amo mais.
— Impossível! — acuso, rindo. A puxo para outro abraço forte e beijo
a sua bochecha com força. — Desculpa, mesmo. — Quebro o abraço.
— Tudo bem, amor. Eu errei contigo também. Fui pouco
compreensiva. Mas todo relacionamento é assim, Co: erros, acertos,
tentativas, surtos, brigas, choros... — Sorrio. Estou torcendo muito para ter
herdado dez porcento da sua beleza no momento, porque ela é linda. E
soando tão sábia, fica ainda mais linda. — Boa viagem, ok? Dirija com
segurança.
— Pode deixar. Te amo — repito pela milésima vez.
— Então fique.
— Mãe!
— Ok, desculpa. — Ela se afasta assim que Ben corre em minha
direção. Me agacho e o encho de beijos e ele sussurra mil coisas sobre anjos
no meu ouvido. Depois volta a me encher de beijos e eu repito mil vezes que
o amo para que ele entenda. Porque eu o amo para cacete. E então ele se
afasta e eu me ponho de pé. Fito a minha mãe, que sorri ternamente. — Dirija
com segurança.
— Sim, senhora. — Bato continência e pisco, sentindo dor em me
afastar. Giro em meus calcanhares para entrar no carro, quando vejo que titia
também já está dentro dele há algum tempo. E alguém bate na minha bunda.
Olho por cima do ombro.
— Desculpa, não pude evitar. — Mamãe me faz rir e eu ando para o
carro. — CUIDADO! DIRIJA COM SEGURANÇA! NÃO TE DEI OS
MEUS MELHORES GENES PARA VOCÊ JOGAR FORA!
— MÃE! — a repreendo, entrando no carro.
— SE TEM AMOR POR ESSA BUNDA, CHLOE MITCHELL.... —
Rolo os olhos e ligo o som no máximo, ouvindo Molly gargalhar e Tia Riley
esconder o riso atrás das mãos. Ben está arrastando a mamãe para casa e a
louca não para de gritar.
E eu começo a dirigir grata por ter vindo ao Tennessee. Eu
definitivamente precisava disso.
Acendo o cigarro por entre meus lábios e tia Riley não reclama
enquanto bebe a sua taça de vinho, analisando alguns papéis ao canto do
estúdio. Deixo a droga em minha boca e amarro o cabelo com um elástico
qualquer. E então trago o cigarro, deixando-o entre os dedos, me
aproximando da janela ampla do apartamento dela.
Uma chuva leve faz a cidade parecer mais melancólica do que ela
realmente é.
Ou talvez não seja a chuva. Talvez sejam os meus olhos.
Nova York sob as minhas sapatilhas. Rio com esse pensamento. Se a
minha mãe conhecesse essa sensação, ela largaria o Tennessee. É uma
sensação melhor que a nicotina que se apropria do meu corpo nesse segundo.
— Você realmente tem a bunda das Mitchells. — O comentário da
minha tia me faz rir. Eu olho para a direita e vejo, pelo espelho, que ela
realmente está certa. — Foi uma das coisas que me atrapalhou na carreira. O
corpo levemente fora do padrão. Mas mandei todo mundo tomar no cu e
aguentar minha linda bundinha, porque eu sou a melhor.
Riley Mitchell senhoras e senhores: o vinho entra, as verdades saem.
Fumo novamente e me viro para ela, caminhando em sua direção. Tia
Riley usa óculos super quadrado e grande em seu rosto, alguns fios caídos
por seu rosto e a taça ao seu lado.
— O que tanto vê?
— Estou pensando em abrir um novo negócio. Talvez uma escola de
ballet maior... Sua mãe me inspirou. Estou vendo propriedades. — Sorrio
fraco. Ela me oferece a taça de vinho e eu dou um breve gole, a devolvendo.
Nada mal. E então trago o cigarro de novo, enquanto a minha tia me observa
de um jeito diferente. — Nunca mais te assisti dançar.
— Não gosto de dançar na sua frente.
— Como assim?
— Você é a melhor bailarina de Nova York. Quem sou eu perto de
você? Sinto uma pressão enorme quando você me observa dançar.
— Mas que absurdo, Chloe! — Soa indignada, dando o último gole
da bebida e se pondo de pé, deixando a taça ao chão. — Dança melhor que
eu. — Toma o cigarro da minha mão e o leva por entre seus lábios,
caminhando até o som e o ligando em um desafio para que eu dance.
Ela arqueia uma sobrancelha tragando o cigarro, me convidando a
dançar de uma vez, para que ela possa me avaliar. Contudo, assim que
reconheço a música, eu me vejo travada ao centro do estúdio de dança. Meus
ossos, músculos e células parecem incapazes de realizar qualquer movimento.
É a mesma fita que coloquei quando Noah e eu dançamos pela primeira vez.
Acho que meu coração está batendo mais alto que a música. Porque é
como se eu quase conseguisse visualizar Noah segurando a minha cintura,
nossos corpos unidos, o modo como me tocava... O modo como nos
guiávamos, como parecíamos combinar como nenhuma outra dupla... E
parece absurdo, é errado demais pensar nele. E, ao mesmo, tempo parece tão
certo.
Não sei como esse paradoxo é possível. Mas a sensação é que não
existe nada impossível desde que Noah entrou na minha vida. E ora eu o
odeio por isso, ora, infelizmente, sinto o extremo oposto do ódio.
Tento fingir que não estou pensando nisso e recuo um passo, prestes a
dançar, mas só então percebo que muitos segundos já se passaram e a música
já está em seu refrão. A minha tia, então, desliga o som. Ela se aproxima com
uma feição preocupada, tragando o cigarro. E eu sinto meus joelhos mais
frágeis, meu corpo mais vazio, meu coração mais pesado. Meus olhos se
tornam marejados assim que os sinto queimar, porque eu percebo o que
provavelmente já está óbvio:
Eu o amo. Até mesmo quando o odeio.
E isso é absurdo, não?
Ele é o Diabo, isso deveria importar, eu deveria querer me afastar, eu
deveria odiá-lo por mais tempo, eu deveria querer me afastar..., Mas eu
também nunca fui muito conhecida por fazer o que deveria.
— Chloe? — A minha tia se aproxima e eu quase deixo um soluço
escapar, mas o aprisiono em minha garganta. Fecho os olhos com força,
porque ela deve me encarar com dó. Me sinto patética no momento. —
Estrelinha? — Ela me abraça e eu afundo a cabeça em seu ombro.
Céus, dói. E eu nem sei compreender o motivo. Eu não sei se é porque
eu sinto que ele mentiu, me enganou, me usou de algum modo... Ou se é
porque eu o quero e minha razão diz que isso é doentio. Eu o quero demais.
Quase como se ele fosse uma necessidade.
Não sei se é algum dos poderes dele, não sei, mas ele me fez
apaixonada por cada mísero detalhe dele. Agora, todo mísero detalhe do
mundo me lembra ele. E isso dói, porque não aguento mais sentir isso. A
angústia de sentir que amo alguém que eu não deveria amar. E eu
simplesmente amo.
Não sei se tenho coragem de dizer isso em voz alta para alguém,
porque é a primeira vez que admito esse sentimento para mim mesma.
E se Noah é o inferno, eu quero entender por que ele parecia o
paraíso. Se Noah é um monstro, eu quero entender por que eu me sentia mais
segura em seus braços, como se ele fosse o meu anjo, como Benjamin disse.
— Estrelinha, precisa dizer o que está acontecendo? — A minha tia
me faz sentar no meio do estúdio e, como se não se importasse com seu
assoalho caro, queima o cigarro no chão. Eu respiro fundo e fito o teto, na
tentativa de fazer as lágrimas cessarem. — Chloe...
— O Noah, tia.
— O que tem ele? — pergunta, visivelmente preocupada. Abaixo o
olhar para encarar o verde que me observa com pesar. — Oh... Oh, meu
amor...— Ela se aproxima e segura o meu rosto com as duas mãos. — Se o
ama, por que não corre atrás dele?
— Ele me odeia, provavelmente. Talvez eu não seja nada para ele.
Talvez eu... Talvez eu seja nada para ele. E eu quero odiá-lo, eu odeio amar
esse filho da puta com cada pedacinho do meu ser, mas...
— Mas você o ama. — Há pena em sua voz, porque é visível o quão
quebrada estou. — Chloe, você nunca vai saber o que ele sente, se não lhe
der a chance de falar. Se não disser exatamente isso que me disse agora, se
não confessar a ele o que sente e não ouvir dele o que ele sente,
você nunca vai saber o que significa para ele.
A sua fala realmente me atinge. Eu fico alguns segundos tentando
absorver o que ela disse, me vendo por suas íris.
— Bom, provavelmente significo nada.
— Ou significa absolutamente tudo.
Seu sorriso me deixa insegura, ela parece realmente acreditar no que
diz. E só consigo pensar que se ela soubesse quem ele é, talvez me mandasse
correr para longe dele e não na direção dele.
— Não sei se consigo. — Fungo, tentando me acalmar. — Digo, não
sei se consigo dizer para ele que... — As palavras se entalam em minha
garganta.
Riley morde o lábio inferior e olha ao redor. Não sei o que está por
trás da sua mente louca e bêbada, mas ela caminha para a sua bolsa ao lado
da taça de vinho e retira um bloco de notas e uma caneta. Ela se aproxima e
eu não entendo o que quer, até que diz:
— Então escreva.

Enquanto dirijo, me sinto numa cena patética de um filme de comédia


romântica muito mal escrito e mal dirigido. As ruas de Nova York passam
pelos meus olhos e eu não sei por que motivo estou correndo contra o tempo:
nada faz sentido.
E eu nem quero que faça.
A fita do ABBA ainda está tocando no meu carro e I Have a Dream
está lutando contra os meus pensamentos para decidir quem está mais alto. A
água molha o para-brisa e eu já nem estou tão focada no movimento que o
limpador faz para que eu veja a cidade, eu estou agindo mecanicamente.
Estou sendo guiada por sabe lá o quê, para fazer algo que eu não sei
onde vai dar e torcendo para não sair do meu destino mais quebrada do que já
estou. Talvez eu tenha acabado de resumir a minha vida nesse exato segundo.
E então, finalmente paro o carro, quando o engarrafamento na minha
frente mata qualquer resquício de paciência que eu posso. Eu estaciono no
primeiro espaço vazio que encontro. As nuvens parecem reprovar a minha
atitude quando choram com mais intensidade. Um estrondo indica que
trovoadas e raios condenarão Nova York ao clima melancólico pela noite
toda.
Mas eu não me importo, pegando a minha mochila no banco do
carona, a colocando em meu ombro e abrindo a porta para correr toda a
extensa rua, até parar em frente ao meu destino. O porteiro me encara com
estranheza conforme eu passo pela última pessoa que saiu do prédio, sem
nem me identificar. Ele nem me para.
Eu subo o elevador e quando eu vejo, estou completamente
encharcada em frente ao apartamento dele.
E, assim que eu escuto o ranger da porta, eu começo:
— Eu acho que estou doente. — As palavras fogem da minha boca,
no segundo em que Noah abre a porta do seu apartamento.
Ele abre a boca para dizer algo, olhando uma Chloe Mitchell
ensopada, de cima abaixo. O meu coração deve pesar oitocentos quilos, é
quão pesada eu o sinto. E eu preciso falar.
— Por favor, Noah... Me deixe falar...
Hellmeister une as sobrancelhas. Levo meu olhar por cada detalhe do
seu rosto: as sardas leves em suas bochechas, a barba por fazer que agora lhe
toma o rosto, leves olheiras abaixo dos olhos, os cabelos bagunçados, a regata
branca e justa ao corpo, as calças de moletom quadriculadas e levemente
caídas.
Noah desiste da tentativa de me interromper e eu sinto as palavras
brigarem para sair de mim, queimarem para escapar.
— Eu acho que estou fodidamente doente. É a única explicação —
continuo. — Eu não sei se é uma doença mental ou física. Não sei se você
implantou um tumor no meu cérebro ou se você deixou algum veneno em
minha boca enquanto me beijava, alguma droga, alguma coisa do tipo...
Porque você, Noah... Você...
Seus olhos fitam cada pedacinho do meu rosto e eu o assisto engolir
em seco. Faço o mesmo, tomando coragem para continuar.
— Você está em mim. É como uma doença. Estou com a síndrome de
Noah Hellmeister ou algo do tipo. E os sintomas, Noah, eles são intensos e
variados. A minha noção de sinestesia por exemplo, Noah, ela está
bagunçada. Por exemplo, eu sinto o seu perfume sem te ter por perto. Eu
lembro do seu toque sem sentir seu toque. Eu consigo lembrar da sensação de
ter em mim de todas as maneiras possíveis, eu consigo lembrar do contato
dos meus dedos contra seus desenhos. Eu te vejo em todo pequeno detalhe do
meu dia, é absurdo. Se fecho meus olhos, consigo te ouvir me chamando de
"meu anjo". E seu gosto não sai da minha cabeça, seus beijos... Céus.
Um riso me escapa só de pensar no que o homem à minha frente pode
causar em cada pedacinho do meu corpo. Porque não acho que eu seja, nem
de longe, capaz de listar todos os seus efeitos sobre mim.
— O meu coração acelera do nada, Noah. Só de pensar em você. Eu
estou fodida. E a culpa é sua. Eu estou doente, querido. Fodidamente doente.
E você é essa doença. E eu gosto disso, Noah, eu gosto de estar doente. E
talvez eu precise de ajuda, talvez eu precise da porra de uma camisa de força,
mas tudo o que eu consigo pensar é que eu preciso de você.
Respiro fundo. E dói respirar fundo. Porque ele está tão próximo.
Noah desvia o olhar. Eu quero muito me aproximar. Muito. Mas eu
não sei se devo.
— Eu escrevi uma carta. — Abro a mochila em meu ombro. — Céus,
espero que ela não tenha molhado. — Encontro a carta, seca, ainda bem. A
abro, nervosa. — Eu escrevi uma carta, porque... Eu não sabia se conseguiria
te dizer tudo.
Devo parecer louca no exato segundo. Eu me acharia surtada.
— "Não sei ao certo o exato momento em que me permiti cair de
amores por você, se quer saber. Quando vi era meio que tarde demais."
Ergo o olhar para Noah. Ele volta a me encarar de imediato e seus
olhos brilham em minha direção. Sua postura muda, seu corpo se aproxima
mais da porta. Sinto seu perfume um pouco mais e meu corpo se agita. Parece
que eu estava em abstinência a ele.
— "Para ser honesta, querido, não posso usar o velho cliché: "Eu não
era uma garota de me apaixonar". Sempre soube que o momento chegaria. E
você não foi o primeiro a se infiltrar no meu coração, muito menos a primeira
vez que senti esse maldito órgão pesar por amor. Não, não... Você foi
o segundo. Cara, você deve odiar isso. Você ama ser o primeiro, não é?"
Checo a sua reação. Noah morde o lábio e eu não sei se é para prender
um sorriso ou para prender a vontade de me mandar embora.
— "Mas você não foi o primeiro, querido. Porém tenho a mais
absoluta certeza de que será o último. Depois de você, meu anjo, nada será
tão intenso e belo o suficiente para que eu chame de amor."
Tento rir, mas não saber o que ele pensa está me matando.
— "Pode sorrir, pode abrir seu melhor sorriso... Aquele carregado de
egocentrismo, de orelha a orelha e que grita: o mundo é meu e você está
apenas vivendo nele. Pode sorrir, seu convencido. Porque é a mais pura
verdade."
Respiro fundo. Aproximo um passo e balanço a cabeça em negação,
deixando algumas lágrimas escaparem.
— Eu não sei escrever, Noah! Tudo isso parece cliché e chato. —
Hellmeister suspira e eu volto a encarar o papel, na esperança de dizer
qualquer coisa que lhe faça entender o meu ponto. — "Eu encontrei o meu
paraíso no inferno. Encontrei a calma no caos. Encontrei amor em um
coração que não batia. Encontrei um anjo em quem se chama de Diabo. Eu
encontrei meu paraíso em você, Noah." — Meus lábios tremem e eu me
permito chorar. — "Quão irônico é isso?"
Um silêncio nos envolve.
Meu queixo está tremendo e não é pelo frio, é porque eu não consigo
me conter perto dele. Eu quero gritar qualquer coisa que o faça sair da sua
pose ridícula. Amasso o papel e o jogo ao chão, porque ele não importa.
Mando a razão para a merda.
Me aproximo e Noah não recua quando eu toco o seu rosto. Porém,
suas mãos seguram os meus punhos. Não quero que me recuse, não quero que
me afaste.
— Meu ponto é que eu não consigo mais ver você como um monstro,
pois em todo pensamento, Noah, eu te vejo como o meu anjo. E, às vezes, é
como se eu estivesse infectada por você, querido. Como se eu estivesse
doente...
— Chloe...
— Eu estou apaixonada por você — digo, de uma vez. Seus olhos
encontram os meus. — E para ser sincera, parte de mim duvida que o Diabo
esteja apaixonado por mim de volta, não sei se isso é sequer possível. Mas eu
preciso dizer. Eu preciso dizer para você. Por mais patético que seja, por mais
patético que soe, amor, às vezes a verdade é patética. E a verdade, Noah
Hellmeister, é que não me importa se você é o inferno em pessoa, porque
para mim, você é o paraíso. Porque eu te amo, Noah. Eu simplesmente te
amo.
Seus olhos me analisam de um modo que não compreendo. Sinto seus
braços me envolverem pela cintura, numa possível tentativa de me manter
calma.
Eu preciso que ele diga algo. Porque não consigo mais sentir que isso
é errado, mas eu deveria, eu deveria sentir. Nada parece mais certo. Meu
coração precisa estar perto do seu. Parece que os dois são ligados. É
inexplicável.
E é a maior verdade. Eu o amo. Com todo pedacinho de Chloe que
existe. Faz muito tempo que o amo. Não sei exatamente quando isso
começou, mas estou condenada a esse sentimento. E se isso for pecado, tudo
bem. Talvez eu vá para o inferno. Pelo menos é perto dele.
— Diga alguma coisa, Noah, eu te imploro. — Minhas mãos firmam
em sua corrente. Sinto o calor do seu corpo me aquecer e sua testa se une à
minha.
— Você não está sozinha, meu anjo. — Sua voz rouca soa como um
sussurro. Meu coração acelera tanto que não sei como ainda estou viva.
Arregalo os olhos em sua direção. Noah acaricia o meu rosto. — Demorei
uma eternidade para te encontrar, ruivinha... E viveria tudo novamente. Tudo.
Só para te ter na minha porta, dizendo que me ama, que me quer. Porque eu
não quero nada, Chloe, nada além de você. Eu te juro. E pode demorar o
tempo que for, meu anjo, prometo que vou te fazer acreditar nisso.
Não sei o que estou sentindo. Acho que é muita coisa ao mesmo
tempo. Estou entregando a minha alma para o ser menos confiável que existe,
segundo a humanidade.
Todavia, contudo, entretanto... Para mim, no exato segundo, é só o
cara que amo. Para mim, é só o Noah. E ele me basta.
Seus lábios se aproximam dos meus no que parece durar uma
eternidade. E quando eles finalmente se encostam, eu sinto como se o tempo
parasse para nos contemplar. Os arrepios percorrem todo meu ser e eu o puxo
mais para perto, buscando mais e mais contato.
Saudade. Eu senti saudade dele. Mais do que eu imaginava. Mais do
que eu pensava sentir. E eu pensava sentir muita saudade.
Sua língua e a minha se tocam, tão sincronizadas quanto a vez que eu
e Noah dançamos pela primeira vez. Seu gosto e o meu se complementam
como nunca. A minha racionalidade já foi para a puta que pariu, e eu não dou
a mínima. Eu estou leve.
Estou leve porque fui sincera:
Eu, inegavelmente, amo Noah Hellmeister.
Chloe disse que me ama. E por mais que isso reverbere em minha
mente a todo instante, eu já sinto falta de ouvir de novo.
Ela me ama.
Tento não sorrir com esse pensamento e trazê-la mais para perto, pela
cintura enquanto sua boca macia desliza sobre a minha e puta que pariu: ela é
realmente tudo o que preciso no momento.
Minhas mãos estão por todo lugar, mas as suas, mais contidas, tocam
a corrente de asas em meu peito. Ela deixa um riso escapar, quebrando o
beijo.
— O que foi?
— Você tem asas, querido. Esse colar é irônico. — Seu sorriso cresce
assim que ela passa seus braços ao redor do seu pescoço. — Quero que não
esconda nada de mim, Noah. Me mostre quem você é de verdade. Cada parte
de si. Me mostre que você não é um monstro. Me mostre que você é o meu
Noah. Só assim daremos certo. — Ansioso para cumprir seu pedido, passo as
mãos por baixo da sua blusa molhada, batendo a porta atrás de nós dois.
Estou ansioso para o que está por vir. Pra caralho.
Mordo seu lábio inferior e a seguro pela cintura com maior firmeza,
deixando que as minhas unhas curtas arranhem a sua pele. Ela tenta reprimir
um gemido e ver meus pequenos efeitos sobre seu corpo parece elevar a
temperatura do apartamento a mil.
Subitamente meus olhos cravam em sua boca.
Tudo ainda parece surreal.
Chloe em meu apartamento.
Chloe com uma carta.
Chloe em meus braços.
Chloe dizendo que me ama.
— O que fez comigo, meu anjo? — pergunto, sorrindo, em algum tom
de brincadeira. Ela morde o sorriso e fica na ponta dos pés ao aproximar sua
boca da minha.
— Bom... Talvez eu seja o seu carma, Noah. — Seu tom irônico e
cômico me faz rir e ela acaba por rir junto. Contudo, os risos cessam quando
seu olhar se conecta ao meu de um modo absurdo e seus dedos finos e
delicados acariciam o meu rosto, a minha barba por fazer, como se ela me
apreciasse. — Me mostre quem você é. — E isso talvez soasse super
impactante, se ela não fosse Chloe Mitchell e não adicionasse: — Se você
tem chifres ou algo assim, esse é o momento.
Eu uno as sobrancelhas, sem conseguir segurar o riso.
— Como é que é?
— Chifres, uma cara vermelha, um rabo pontudo, rosto em carne
viva... Me mostra quem você é. — Rio ainda mais, balançando a cabeça em
negação. Meus olhos se tornam marejados de tanto que estou rindo. — Não
estou brincando.
— Eu sei que não, meu anjo. É por isso que eu sou louco por você.
Chloe fica adorável para caralho com suas bochechas vermelhas,
mordendo o seu sorriso.
— Sem chifres, meu anjo, isso é invenção da humanidade. Tenho
asas. Olhos vermelhos, de vez em quando. — Franzo o nariz e faço um bico,
tentando pensar em mais algo. — Não sei...
— Me mostra.
— O quê?
— Você. Tudo isso. — E me sinto vazio quando ela põe as mãos em
meu peito e me afasta. — Vai logo. Me mostra. Rápido. ‘Tô com frio. E
preciso me esquentar, sabe? — Arqueia a sobrancelha sugestivamente. Rolo
os olhos, mas deixo um sorriso de canto escapar.
Eu tiro a camisa para não a perder e Chloe morde o lábio inferior,
como se agradecesse por isso.
— Talvez por isso o inferno seja tão quente — comenta. Eu rio
nasalado.
Então a vejo recuar em susto quando libero as minhas asas negras.
Chloe deixa um grito pequeno de surpresa escapar e eu não consigo evitar em
rir pela milésima vez nos últimos minutos.
Elas são grandes. Elas são bem grandes. Mas, por sorte, a ruivinha
não se assusta.
Por isso, relaxo um pouco mais quando eu vejo o seu olhar e pela
primeira vez desde que descobriu a verdade sobre mim, identifico adoração e
não medo. E fácil assim, volto a sentir o meu coração contra as minhas
costelas. E não só ele, eu sinto toda mísera molécula do meu corpo. Por culpa
dos seus olhos.
Lentamente, Chloe se aproxima e toca o meu peito. E então suas mãos
seguem para os meus ombros. Minha boca está seca e a proximidade ainda
me parece pouca.
— Elas são lindas — comenta. — Combinam com você, sabe?
Obscuras, surreais... — Finge uma voz diferente e mais séria. Consigo ver
seu esforço para me compreender, para me redescobrir. Me sinto feliz com
isso, de verdade. E não recuo quando ela fica na ponta dos pés e uma de suas
mãos desliza delicadamente em busca das minhas costas, mas encontra as
asas. Chloe as arranha lentamente. — E é meio sexy pra ser sincera.
Sua boca está próxima do meu ouvido. Sua provocação tem o efeito
esperado, eu realmente preciso ter essa mulher neste exato segundo. Sua pele
me chama e eu roço o nariz na curva do seu pescoço quando ela retorna as
mãos aos seus ombros.
— É... Talvez você seja o meu anjo, Noah — sussurra e me olha de
soslaio, buscando por minha reação. E eu não faço ideia de há quanto tempo
estou sorrindo.
Então, sem mais delongas, ela acaricia o meu rosto e me beija,
deixando claro que quer ser minha tanto quanto sou dela.
Recolho as asas e me agacho levemente, levando as minhas mãos para
trás das suas coxas. Chloe entende o recado e se impulsiona para cima,
prendendo as pernas ao redor do meu corpo, firmando as mãos em meus
ombros. Me ver em seus olhos é tudo o que eu precisava.
Sua mão segura o meu rosto e a outra acaricia os fios que se encerram
em minha nuca, mas não nos contemplamos por muito tempo porque sua
boca cola à minha.
Tem um quarto de hóspedes aqui no andar debaixo da cobertura, o
quarto que a Kold usa. Ela não está em casa e eu realmente espero que não
volte tão cedo, porque eu estou guiando Chloe para lá.
E eu realmente não consigo raciocinar direito porque ela me beija
desse jeito, como se soubesse o quanto sou pateticamente seu. Então eu
lembro: Chloe Mitchell disse que me ama. E assim que chego ao quarto de
hóspedes e seus pés voltam ao chão, eu fecho a porta atrás de mim e a tranco,
voltando o meu sorriso idiota para ela. Porque ultimamente ela é a causa de
todos os meus sorrisos.
É como a nossa primeira vez, de certa forma. A primeira vez em que
vamos unir nossos corpos conscientes de que nos pertencemos e de quem
somos.
Então a admiro por um segundo. Seus fios ruivos e molhados pela
chuva não estão nada arrumados. Sua boca está inchada, suas bochechas e
nariz vermelhos e seu corpo está longe demais. Chloe retira os sapatos e as
meias com os pés, de um jeito desajeitado que, sinceramente, só ela tem.
— Você é perfeita, meu anjo.
Ela sorri.
— Você também não é nada mal.
Suas mãos vão ao cós da minha calça e Chloe me puxa para si com
vontade, ao me beijar.
A guio até a cama e sinto quando suas pernas se chocam contra a
mesma. Então a deito devagar, observando os fios ruivos se espalharem sobre
os lençóis. Chloe se ajeita mais ao centro do colchão e eu abro as suas pernas,
me ajoelhando entre elas. Consigo ver como ofega, ansiosa. Ansiosa por
mim.
E eu ainda sinto o meu coração bater como nunca.
Minhas mãos vão à barra da sua camisa e ela me ajuda a tirá-la ao
erguer os braços. Volto a boca à sua brevemente e desço os beijos por seu
maxilar, pescoço e colo. Suas unhas arranham a minha nuca e descem em um
caminho torturante pelas tatuagens em meus braços.
Sua pele está fria por conta da chuva, mas acho que isso não vai durar
muito tempo.
Meus lábios tocam o seu colo, descem pelo vale entre seus seios e eu
traço um caminho por sua barriga, enquanto ela se apoia em seus cotovelos e
seu olhar crava no meu a cada segundo que passa. E então abro o zíper da sua
calça e a deslizo por suas coxas admirando suas pernas, sob suas íris escuras
e atentas.
Sem esperar que eu o faça, Chloe tira o seu sutiã e o deixa por
qualquer canto da cama. Mordo o lábio inferior enquanto analiso o contorno
do seu corpo, cada mísera curva, cada detalhe...
Acho que eu já disse isso, mas Chloe Mitchell é como uma obra de
arte. Das falhas às perfeições. Dos traços angelicais ao sorriso carregado de
maldade, da delicadeza dos seus movimentos que se mesclam com a
selvageria do seu olhar... essa mulher é uma puta obra de arte. Uma que eu
preciso tocar. Preciso reconhecer sob meus dedos, ver por inteiro. Por isso,
meus polegares traçam um caminho entre suas pernas até a sua calcinha. E eu
a tiro, observando a ruiva completamente nua perante os meus olhos com
devoção.
Eu realmente tenho muita sorte.
Qualquer distância entre nós é um erro, então seguro as suas pernas e
a trago mais para mim, deixando que seus seios toquem o meu peito. A
minha pele aquece a sua. As nossas peles funcionam bem melhor juntas.
Chloe mordisca o meu lábio inferior antes de deixar um beijo casto
pelos meus lábios. Eu desço a boca pela curva do seu pescoço, os meus lábios
e língua acariciam a sua pele exposta e eu deixo um leve chupão por ali, a
ouvindo conter um gemido. Sorrio contra a sua pele, aprovando o som
contido.
Então desço os beijos para entre seus seios. Suas mãos se infiltram
nas minhas calças de moletom e suas mãos seguram a minha bunda. Vejo um
sorriso malicioso em seus lábios, mas ela o desvia quando fita o teto, porque
a minha boca envolve o seu mamilo esquerdo já eriçado. Suas unhas sobem
por meu corpo, arranhando as minhas costas, quando a minha língua rodeia o
seu mamilo.
Ela fecha os seus olhos enquanto a seguro pela cintura com firmeza e
deixo a minha boca envolver o seu seio. Mordisco o seu outro mamilo e
repito tudo o que fiz no outro. Meus dedos deslizam por sua cintura, quadril,
até chegar exatamente onde eu queria.
Retiro os anéis que me impedem de fazer o que planejo, enquanto
vejo que ela ofega um pouco por antecipação. A sinto levemente molhada
contra os meus dedos e Chloe deixa um suspiro escapar quando meus dedos
deslizam por sua extensão. Os provo sob seu olhar. Seus seios e tronco sobem
e descem lentamente, numa imagem que deveria ser eternizada.
Chloe é quente em níveis inimagináveis. E eu senti falta disso.
O meu polegar estimula o seu clitóris. Quero que sua voz ecoe por
essas quatro paredes, o mais alto possível. Preciso mostrar o quanto
realmente a quero. Mais que tudo, preciso que acredite nisso. Preciso que
acredite que todo o meu coração é seu, honestamente. Que ele está
condicionado a pulsar somente na sua presença. Como se ela fosse o seu
único combustível.
Volto a atenção ao seu pescoço, enquanto a ruivinha ainda segura
gemidos. Sussurro para que não se contenha, que amo a sua voz, e mordo o
lóbulo da sua orelha, observando os arrepios por sua pele. Suas mãos
deslizam por meus braços e ombros, arranham o meu peito... A sensação que
tenho é que ela quer se segurar em qualquer lugar possível, porque ela sabe
do que eu sou capaz.
Infiltro dois dedos em sua boceta e Chloe deixa um gemido
escapar. Finalmente.
Meu polegar continua a estimular o seu clitóris e eu a beijo, porque
sinto falta da sua boca. Meus dedos dentro seu corpo quente, quase infernal,
entram e saem, deslizando lentamente.
Seu corpo todo é maravilhoso. Ele meio que me guia. Eu toco em
lugares que sinto falta de tocar e eu sinto prazer em estudar cada centímetro
da sua pele, porque nada soa tão bom quanto a sua voz chamando por mim e
pedindo por mais. Mais velocidade, ou mais toques, mais força... Céus, Chloe
geme deliciosamente o meu nome e eu poderia ouvir isso para sempre. Sua
voz rouca e baixa, clamando por mim.
Para a minha surpresa, Chloe infiltra a sua mão em minha calça,
deixando seus dedos delicados envolverem o meu pau. Eu não contenho um
grunhido de aprovação. Meu olhar segue a sua mão e os seus dedos. A
masturbo lentamente e ela usa da mesma velocidade que eu para me conduzir
ao prazer.
Ela também sabe o que eu gosto, ela me entende. Como nenhuma
outra. É como se o universo sob minha pele tivesse sido criado por ela e ela
sabe cada maldita rota para me levar à loucura.
Levo a boca ao seu seio novamente, aumentando a velocidade dos
meus dedos. Chloe chama por mim e morde o lábio inferior, seus dedos ainda
aplicando uma leve pressão em meu pau, sua mão em um vai e vem lento. E
intensidade nos rege de um modo que eu não seria capaz de explicar.
Talvez todos os casais do mundo nos invejassem se descobrissem o
como somos fodidamente feitos um para o outro.
Porque meus sons complementam os dela e o meu prazer e o seu
juntos são insuperáveis. Chloe e Noah é possivelmente a combinação mais
inesperada, absurda, intensa e perfeita que já existiu.
Retomo os beijos ao seu pescoço e aumento a intensidade dos
movimentos de vai e vem para dentro e fora dela, mal esperando para fodê-la
de outro jeito. Chloe responde aumentando a velocidade em meu pau
também, enquanto geme o meu nome e luta para não se mexer demais sobre a
cama. Suas pernas ameaçam se fechar, seu corpo se agita, seus dedos me
soltam e ela crava as unhas em minha nuca, afundando a cabeça em meu
ombro.
— Céus, Noah... — Escuto, rindo baixinho. "Céus" e "Noah" numa
mesma sentença, ainda mais sob essas condições? Não poderia ser mais
irônico.
Ela arranha a minha nuca e segura o meu braço com força, rebola
contra meus dedos como se fosse viciada por cada movimento meu.
E quando eu sinto que ela está quase lá, quando vejo que não
consegue mais conter seus sons e seu corpo, entorpecida apenas por meus
dedos, eu cesso todo e qualquer movimento. Seu olhar protesta e eu sorrio,
sujo.
— Ainda não. — É tudo o que eu digo. Chloe respira fundo e se apoia
em seus cotovelos, respirando ofegante enquanto me observa, curiosa para
ver o que eu farei.
Provo os meus dedos de novo, apreciando o seu gosto.
E abro as suas pernas.
Chloe me observa com um sorriso maldoso.
Eu devolvo a maldade com veemência.
Ela ainda sorri conforme meus lábios descem por seu corpo e deixo
um beijo sobre seu clitóris. Mas ela não consegue mais me encarar quando eu
começo a prová-la. Abro mais as suas pernas e com dois dedos, a exponho
ainda mais. A minha língua percorre a sua boceta e Chloe me xinga. Um
"filho da puta" ecoa pelo quarto e eu tenho certeza de que essa é a mulher da
minha vida. Preciso rir.
— Olhe para mim, ruivinha. O tempo todo — ordeno. E ela obedece:
Chloe se apoia em seus cotovelos, ofegante.
Analiso o seu rosto, o nariz e as bochechas levemente cobertos por
sardas e coradas em vermelho. Chloe Mitchell carrega um sorriso
fodidamente pecaminoso.
E, somente assim, volto a chupá-la, com devoção, mantendo o meu
olhar ligado ao seu. Ela morde o lábio inferior e eu consigo ver o quanto está
gostando através do seu olhar. É como conversamos nesse momento. E, para
piorar o quão duro estou, a ruivinha ainda toca os próprios seios. Aumento a
velocidade dos meus dedos que entram e saem dela na medida em que a
chupo e a provo e Chloe começa a rebolar contra meu indicador e meu dedo
médio. E eu não consigo parar de imaginar a ruivinha rebolando sobre mim,
em meu pau. Eu quero muito isso.
Deixo um gemido escapar em resposta por vê-la sentir prazer. Nunca
quis tanto foder uma mulher na minha vida. Mas me controlo. Porque eu
tenho outros planos.
Eu continuo a provar o seu gosto, enquanto seus dedos afundam em
meu cabelo e seus quadris se movem lentamente em busca de mais e mais
prazer. Chloe fita o teto e chama o meu nome, segurando os lençóis da cama
com força. Sorrio contra sua boceta e continuo a chupá-la com vontade. Meu
nome passa a ecoar um pouco mais alto, suas unhas se ficam em meus
ombros e eu não paro, eu mostro quanto senti falta de conduzi-la a loucura.
Até que seus espasmos chegam, seus gemidos ressoam e toda a
intensidade do seu prazer torna o quarto mil vezes mais quente, porque ela
chegou lá.
Ela chegou lá.
Pela primeira vez.
Hoje.
Provo todo o seu gosto, por cada segundo do seu êxtase e do seu
relaxamento, venerando o seu corpo. E aqui está a coisa: se quiser, Chloe
Mitchell tem o Diabo aos seus pés. Só para poder assisti-la desse jeitinho por
mim todos os dias possíveis.
Me levanto, limpando o último resquício do seu gosto de meus lábios
com a língua. O calor absurdo me faz jogar os fios para trás e respirar fundo.
Parece que o quarto arde em fogo nesse momento.
Retiro a calça e a cueca. Chloe ainda está completamente ofegante,
fitando o teto. Seu olhar se guia a mim, quando aproximo o rosto do seu.
— Tudo bem?
Chloe ri.
— Melhor impossível — garante. E então suspira, fechando os olhos.
— Filho da puta — repete. Rio e ela também, ainda tentando se recuperar.
Numa tentativa de ajudá-la a se acalmar, a beijo e transfiro um pouco
do seu gosto para os seus lábios. Respondendo ao toque calmo de nossos
lábios e línguas, Chloe respira fundo e solta o ar pelo nariz, as duas mãos
sobre o meu rosto. Logo elas se movem por meus ombros, por minhas costas,
seus dedos me moldam. Sua boca se desgruda da minha com pesar, inchada e
vermelha. E eu a delimito com o polegar, achando lindo o desenho dos seus
lábios.
E seu maldito sorriso me faz ter certeza de que isso, nós, nosso caos, é
a coisa mais certa já criada no universo.
— No que está pensando?
— Que todo aquele meu discurso foi ridículo, Noah, você não é a
minha doença — diz e eu franzo o cenho, sem entender. — Você é a minha
cura. Você me ajuda a consertar tudo que está quebrado... Merda... — Ela
morde o lábio. — Eu estou soando patética, huh?
— Não...
— Estou sim.
— Meu anjo, você é tudo, menos patética. Você é tudo. Pelo menos
para mim. — Acaricio o seu rosto, para que entenda. Seus dedos acariciam a
minha mão. — Você é tudo, Chloe Mitchell.
E ela sorri, se levantando minimamente para unir a boca a minha.
Seus dedos se afundam no meu cabelo. A outra mão agarra as asas da minha
corrente como eu amo que faça. Estou no lugar certo.
— Eu realmente te amo, Noah — sussurra, contra os meus lábios. E
agora que os sons cessaram, percebo que meu coração continua a ecoar, forte
como nunca. Eu acho que, de algum modo, ela o sente.
E eu interpreto isso como um sinal para que eu consuma o que
sentimos do mesmo modo em que o fogo consome tudo o que vê. E eu entro
em seu universo, eu uno os nossos corpos, eu entro nela. E nossos infernos se
complementam, nossas dores se acalmam, nossos sorrisos se colam e nossos
movimentos se combinam.
Um suspiro rasga por sua garganta e eu beijo o seu pescoço.
Suas unhas arranham as minhas costas, meu corpo se choca com o seu
com lentidão. Eu não sei ao certo o que estamos fazendo aqui, mas é
diferente, é mais intenso e é a coisa mais perfeita que já senti na vida. Se eu
pudesse, eternizaria cada momento dessa noite. Eu me sinto mais vivo do que
nunca, enquanto Chloe repete que me ama. E ela prova que me ama,
enquanto eu lhe entrego cada pedacinho da minha alma suja e obscura.
Seu corpo se choca contra o meu, suas mãos navegam pelo meu corpo
e as minhas pelo seu. E nada fora deste quarto me importa.
E eu sinto o meu coração o tempo inteiro, por cada segundo, por todo
meu corpo. E ele não para mais.
Porque eu a tenho. E ela é tudo que preciso.

Meus dedos percorrem as suas costas nuas em um carinho lento,


enquanto os seus brincam de delimitar o traçado da tatuagem em meu peito.
Deixo um beijo sobre a sua testa enquanto a observo. Chloe respira
lentamente, quase cedendo ao sono.
— Você tem uma fixação por asas, huh? — Sua voz sonolenta e
preguiçosa ecoa, me surpreendendo. Sua bochecha está amassada contra o
meu peito e eu acho isso engraçado. — Colar de asas, tatuagem de asas e
asas.
— É. Eu gosto de asas — confesso. E ela volta ao silêncio. Fito o teto
enquanto lhe acaricio os fios ruivos e isso que estamos fazendo é bom, mas
inquietante. Porque sei que precisamos conversar. — Alguma pergunta? —
Tento puxar o assunto.
— Como suas tatuagens são possíveis?
— Se eu te mostrar, você não vai acreditar.
— Por quê?
— Porque precisa não crer para crer, entende?
— Não — confessa e eu rio.
— Precisa aceitar e não pensar muito, precisa só crer no que vê, ok?
Sem perguntas? Pensa em qualquer coisa. Qualquer coisa possível de ser
desenhada. E me diz.
Ela pensa. Chloe pensa bastante, usa bem os segundos. E eu espero,
me divertindo pelas suas sobrancelhas unidas e pelo bico adorável em seus
lábios.
— Hm... — Então seu sorriso cresce. — Um Game Boy. Igual o que
você deu para o meu irmão — acusa.
— Não sei do que está falando — minto e ela dá um tapa ardido no
meu peito. — Caralho?! Você me bateu!
— Eu vi, eu estava lá.
— Nossa, que mão pesada pra cacete... — Finjo dor e ela rola os
olhos.
— Talvez assim você aprenda a não gastar todo o seu dinheiro com
coisas assim.
— Por quê? Ele não gostou?
— Não, ele amou. Mais do que meu carrinho de vinte dólares quando
chegou, creio eu — ela resmunga e eu rio. — Ele sabe sobre você, aliás.
Digo, ele sabe que você tem asas. Ele acha que você é um anjo. — Arqueio a
sobrancelha, um pouco preocupado apesar de achar a ideia um tanto quanto
cômica. — Ele não está tão errado. Depois eu te explico. Não muda de
assunto: como que suas tatuagens são possíveis?
— Escolhe outra coisa sem ser um Game Boy, meu anjo, muito
broxante. Escolhe outra coisa e eu te mostro. — Ela cerra os olhos, irritada.
— A Estátua da Liberdade? — Arrisca e eu sinto falta do Game Boy,
mas bufo ao ceder. Coloco seu indicador perto da minha cintura.
— Mova o dedo em qualquer direção que quiser — digo. Chloe me
encara como se eu fosse louco. Mas obedece. E move o dedo para si.
E à medida que seu dedo se move, a pequena Estátua da Liberdade
em tinta preta se forma em minha pele. Chloe franze o cenho sem acreditar e
se prepara para me encher de perguntas.
— Eu avisei, amor: sem perguntas — a interrompo e ela grunhe,
inconformada, voltando a deitar a cabeça em meu peito, dessa vez com uma
carranca em seus lábios. Sorrio porque ela parece com uma criança birrenta e
mimada no momento, mas linda.
E então respiro fundo, observando a sua feição irritada desaparecer
com o tempo. De algum modo, sei que não se sente completamente segura
comigo. E isso se confirma quando Chloe suspira. Suspira longamente.
De algum modo, imagino o que pensa.
— Quero que saiba que me importo com você e que sou todo seu,
ruivinha. — Seus dedos estão brincando com o colar em meu pescoço. Ela
fica em silêncio por algum tempo, ainda sem me encarar. — De verdade.
— Mas você não me ama. — A ruivinha deixa escapar e parece se
arrepender no segundo seguinte. Chloe suspira e eu também, pela ausência de
resposta. Ela faz menção de se levantar, mas eu a seguro. — Tá tudo bem,
Noah.
— Não, não ‘tá...
— Noah... — Me sento e ela faz o mesmo. Ela engole em seco e
desvia um olhar machucado. — Não importa...
— Chloe Mitchell, cala a boca por um segundo e me deixa falar? —
peço. Ela bufa e obedece, relutando em me olhar. Guio a sua mão contra o
meu peito.
— Eu sou completamente seu. Eu não conseguia sentir isso aqui, o
meu coração, Chloe. — A ruiva me encara com uma feição impassível. Eu
preciso que ela acredite em mim. — E eu o sinto, ruivinha, eu o sinto, eu me
sinto vivo por sua causa. Porque você acha que eu sou a minha cura, meu
anjo, mas você que é a minha. Imagina viver a porra da eternidade, Chloe? É
cansativo sempre, às vezes entediante. É um porre. Não é tão legal quanto
aparenta, Chloe. Porque o que dá sentido à vida é o fim. O que faz vocês
humanos viverem intensamente é a noção de que precisam aproveitar cada
instante enquanto podem. O que dá sentido à vida é saber aproveitar cada
segundo. E quando você sabe que não há um fim, quando você apenas assiste
o tempo passar, a vida acaba perdendo o sentido. A eternidade é um fardo,
meu anjo. E viver estava sem graça, até eu conhecer você. Você é o sentido
que eu nem sabia que procurava. Você é o meu sentido, Chloe, você.
Seus olhos gravam todo detalhe do meu rosto.
— Então para você, a vida faz sentido porque tem um início, meio e
fim... E eu sou o seu sentido...
— Chloe... — Tento interrompê-la, porque acho que sei o que vai
dizer.
— Porque eu também tenho um início, meio e fim Noah. Porque um
dia eu vou acabar — Sua fala me impacta.
Todo o ar do quarto parece mais tenso.
Chloe engole a dor e eu faço o mesmo porque eu sei que é verdade.
Eu finalmente me sinto vivo por causa dela, porque quero aproveitar cada
momento sendo seu ao seu lado. Enquanto posso.
Eu estou fadado à eternidade. Ela não. Ela faz menção de se afastar,
mas essa é a última coisa que quero.
— Vem cá. — A puxo para os meus braços e faço Chloe se sentar em
meu colo. A abraço pela cintura e ela me envolve pelo pescoço. E dói. Dói,
pois eu sei que ela está cheia de incertezas e que ainda não se sente
completamente segura em meus braços. Porque tudo parece contra a gente o
tempo todo, sempre que paro para pensar. — Faça o que faz de melhor, anjo,
viva o presente.
— Difícil quando não sabemos para onde estamos indo, Noah.
— Nunca sabemos. — Afasto o rosto do seu, encaixando a minha
mão em sua nuca. Tem lágrimas por seu rosto e seu nariz está vermelho. —
Não chore, por favor? Por mim? — Seco as suas lágrimas com o polegar. —
Eu não sei o que será de nós dois, mas vamos durar enquanto pudermos.
— E o que isso significa, Noah?
— Que se eu precisar lutar por você, meu anjo, eu vou lutar.
A ruivinha solta um suspiro sôfrego e eu a abraço novamente, porque
minhas palavras ainda não bastam. A ruiva afunda seu rosto em meu ombro e
eu deixo que ela more em meus braços enquanto quiser, enquanto precisar.
Sou sua fortaleza quando sentir necessidade. Ou finjo ser. Porque por dentro,
eu também estou morrendo de medo.
Porque no fundo eu sei que somos finitos.
Acordei sentindo um peso em minha cintura. Uma respiração pesada
em meu ombro me fez sorrir. Noah estava me abraçando enquanto dormia.
Mas esse não foi, nem de longe, o mais estranho.
Não mesmo.
Senti frio durante a noite e esse frio cessou magicamente. E agora eu
entendo o porquê, pois me encontro com uma asa negra sobre meu corpo. Ela
não é pesada, mas é uma sensação estranha. Não é exatamente um cobertor. E
eu não sei como sair debaixo disso.
— Noah? — chamo baixinho. Olho por cima do ombro e Noah está
deitado de bruços, com o braço me trazendo mais para perto. Sua outra asa
está a um segundo de derrubar o abajur e para mim é quase que um milagre
isso não ter acontecido. — Querido? — Ele grunhe, resmunga algo por eu
interromper o seu sono.
Sem jeito, me viro para ele sob sua asa. Noah está dormindo com um
vinco entre suas sobrancelhas. Acaricio o seu rosto, a sua barba por fazer.
— Noah... — sussurro. Ele demora um pouco em abrir os olhos. E
então o faz.
Seus olhos negros refletem o meu sorriso. Ajeito uma mecha que lhe
cai na testa e Noah une as sobrancelhas. O quarto está escuro. As cortinas
estão fechadas. Ainda assim, consigo ver seu rosto. Seu cabelo bagunçado, as
sardas, os traços fortes... É a visão perfeita para a manhã.
— Bom dia, flor do dia — ironizo. — Tira as asinhas de mim,
Blackbird. — Noah demora um pouco para processar e tirar seu foco do meu
rosto e então arregala levemente os olhos para as asas. Ele as recolhe de um
modo rápido e quase leva a fina coberta sobre mim junto. Reprimo um
suspiro carregado de susto.
— Desculpa, anjo.
— Tudo bem.
— Que bizarro, isso nunca aconteceu antes...
— Amor, tudo bem — digo, entre risos. Então uno a boca à sua.
Minha perna desliza entre as suas e ele me puxa mais para si pela cintura.
Confesso: a combinação de preguiça e um Noah de cabelo bagunçado,
completamente nu, me prende totalmente à cama. Parece que esse colchão é
nosso mundo e que sair dele seria loucura. Deixo um sorriso escapar por
entre o beijo, pensando nisso.
— Me chamou de amor? — pergunta, seus lábios descendo em beijos
rápidos por meu pescoço. Sinto cócegas, mas tento não me mexer.
— É o que você é para mim, querido — digo e ele volta o olhar para
mim. Passo as mãos por sua testa e cabelo, tentando irritá-lo por bagunçar
ainda mais os seus fios. Mas isso não adianta, Noah só sorri. — Por quê? Não
gostou?
— Ruivinha, pode me chamar do que quiser. Tudo na sua voz soa
perfeito. E extremamente sexy. — A voz rouca mexe comigo. Os arrepios são
imediatos e eu sinto as minhas bochechas queimarem. — Bom dia, meu anjo.
Como é acordar ao meu lado?
— Horrível. Preferia acordar ao lado do Diabo... Não, espera! —
brinco e ele ri nasalado, rolando os olhos em seguida. Noah me beija
novamente e quando vejo seu corpo está sobre o meu. Deixo um riso maldoso
escapar, porque ele é extremamente rápido em dobrar as minhas coxas e se
posicionar entre elas, mesmo com os lençóis entre nós. Seus lábios vão ao
meu pescoço. — Rapidinho, você, huh?
Ele se desfaz dos cobertores e contempla meu corpo nu, mordendo
um sorriso malicioso. Olho para baixo. Apesar de lembrar das aulas de
biologia na escola e saber exatamente o que significa o não-tão-mini Noah
tão feliz me encarando em plena manhã, eu não posso segurar a piada:
— Alguém acordou animado.
Hellmeister sorri.
— É tudo culpa sua, anjo.
E então seus lábios alcançam os meus. Estranhamente, não há
maldade, ainda, só um beijo lento e calmo. Estar em seus braços parece tão
perfeito que a preguiça de sair dessa cama triplica. Eu o abraço pelo pescoço
e Noah crava as unhas em minhas coxas. Paro o beijo e deixo um suspiro
escapar quando beija o meu pescoço. Noah só para de beijar a minha pele
quando eu o puxo para fora da cama e o guio a nossa bagunça ao chuveiro.
Porque eu sei que se ficássemos na cama mais um pouco, provavelmente,
jamais sairíamos dela.

Por algum motivo, Noah achou mais válido que conversássemos na


minha casa. Então ele entrou no meu carro. Era a segunda vez dele ali e eu
quase ri quando ele se achou à vontade o suficiente para ligar o som e abrir o
porta-luvas em busca da uma fita que não fosse ABBA. Até agora ele está
procurando.
Folgado.
Coloco o cinto. Pensei em pedir para ele colocar o cinto, mas sei que
se um acidente acontecer, Noah e seu lindo poder da imortalidade ficarão
muito bem. Incomodada, afasto esse pensamento.
— Dentro da Shelly, amor, só eu mando.
— Shelly? — murmura, confuso, enquanto olha o nome das fitas. São
cinco e não deveria ser tão difícil escolher. Dou partida no carro e olho para o
lado no momento em que Noah muda a fita no rádio.
— Espera, Noah... Já me conhece há algum tempo e agora vem me
dizer que não sabe quem é Shelly? — Soo um pouco chateada. Noah me
encara e há uma ruga entre suas sobrancelhas.
— Espera, Shelly é o carro?! Você deu um nome ao seu carro?
— Você só descobriu isso agora?
— Você deu nome ao seu carro? — ele repete a pergunta. E
''discutimos'' o caminho todo para a minha casa.
Subimos juntos o elevador e Noah ainda tenta se justificar por não
saber que a minha garota se chama Shelly. Eu tento não rir e me fingir de
brava só para ver o Diabo tentando se explicar por algo tão bobo. Abro a
porta do apartamento e lhe dou passagem e quando ele tenta se explicar pela
milésima vez, o calo com um beijo.
Ainda me surpreende como é tão natural ter a sua boca contra a
minha.
Todas as minhas inseguranças parecem se dissipar e eu consigo
apreciar cada pequeno segundo quando nos beijamos. Cada mísera sensação
que ele me causa parece crescer absurdamente. Por exemplo, a aspereza da
sua língua e o modo como ela habilmente e lentamente me entrega o seu
gosto, tão viciante, dolorosamente bom. E toda vez que o provo, é como se eu
tivesse um pouquinho mais do Noah em minha alma e eu não consigo pensar
em mais nada, senão em como quero mais e mais...
E, minha nossa, eu amo o seu toque e como ele é extremamente
perigoso. Firme na medida exata, sempre me mantendo por perto. No
momento, por exemplo, Noah tem a mão no meu pescoço e seu polegar
alisando o meu rosto de um modo tão doce quanto nada angelical. Em cada
gesto lento, há voracidade. E eu o respondo com igual intensidade sempre.
Combinamos mais do que qualquer coisa que já vi.
E é por isso que é tão difícil romper o beijo, quando sua mão segura a
minha cintura com firmeza e seus lábios devoram os meus tão bem. Eu sei
que tem persuasão para me levar para cama pela milésima vez nas últimas
horas, mas realmente precisamos conversar.
— Ainda acho que não matamos a saudade o suficiente... — ele
resmunga e eu rolo os olhos.
— Você está evitando a hora da verdade. — O guio para o sofá e o
empurro para que se sente. Me sento ao seu lado e cruzo as pernas sobre o
móvel. — Eu quero saber de tudo. Tudo o que preciso saber, Noah, sobre
você e sobre toda essa situação.
Ele pisca algumas vezes, desviando o olhar. Lhe dou tempo, mesmo
que ansiosa.
— Eu nem sei por onde começar.
Compreensível.
— Podemos começar com: por que quer conversar aqui e não no seu
apartamento? — arrisco. Noah morde o lábio inferior.
— Kold ainda dorme lá às vezes. Inclusive, transamos no quarto dela.
— Ergo as sobrancelhas. — Eu precisava te foder logo, ruivinha. Eu não teria
paciência de subir a cobertura e ir para o meu quarto. O de hóspedes estava
mais próximo.
— E Kold não pode saber de nós dois?
— Por ora, prefiro que não. Tivemos sorte de que ela não dormiu em
casa dessa vez. Provavelmente estava por aí, bebendo, transando, provocando
brigas e sendo Kold.
E um silêncio nos toma. Engulo em seco, sentindo o clima um pouco
mais tenso.
— Então... Podemos começar por algo que me disse uma vez... —
sugiro. Ele volta a me encarar. — Você me disse que já havia se apaixonado
antes. Depois me disse que o nome dela era Lilith. E agora, esse nome não
me é estranho.
— Não?
— Meu pai costumava me contar histórias. Histórias que a minha mãe
detestava. Histórias sobre uma mulher que teria criado o caos no mundo,
muito antes de Eva. Inclusive ela teria se transformado na serpente que fez
Eva dar a maçã a Adão. — Me sinto estranha em dizer isso. O que para mim
sempre fora uma história, agora pode ser real.
— Seu pai te contou um conto, amor. Uma metáfora ao que de fato
aconteceu. Lilith gerou o caos. Não diretamente contra humanos.
— Mas essa Lilith...
— Era a minha Lilith, sim. A mesma — conclui. E eu consigo sentir
seu nervosismo. Noah está mexendo a perna demais. Parece um garoto
hiperativo.
— Me dê a sua mão — ordeno.
— O quê?
— A mão, querido — repito. Noah obedece. Eu retiro seus anéis um a
um e os deixo sobre o sofá. E então estalo seu polegar. Noah sorri. — Vai
falando. — Estou tentando o tirar um pouco do foco, tentando deixá-lo mais
leve. Não deve ser algo simples de contar.
Ele hesita, mas começa:
— Lilith e eu... Parecíamos certo. E eu a amava. — Preciso engolir o
desgosto enquanto estalo o segundo dedo. Amava. — A humanidade como
conhece foi criada à imagem e semelhança dos seres superiores, como
provavelmente você já deve ter ouvido dizer. Ou não, não sei. Não sei se
segue alguma religião.
Nego. Contudo, me questiono agora se deveria. Afinal, anjos existem.
E eu durmo com o Diabo.
— Cada humano é criado com uma mistura de características de anjos
e demônios — continua. — Pecados, desejos, qualidades, bondade,
maldade... Tudo isso, nós, superiores, possuímos. A humanidade é um teste
falho feito da união entre o Céu e o Inferno, mas apesar disso, apesar de ser
falha, nenhum dos dois quer desistir dela. Porque a humanidade, anjo, apesar
de falha, é cativante.
''Toda religião, meu anjo, toda religião acertou um pouco. Todo povo
acertou um pouco. Desde a antiguidade até hoje. Judeus, muçulmanos,
nórdicos, gregos, cristãos, bem como religiões mais antigas e hoje em
desuso... Todas elas acertaram um pouco sobre o que realmente acontece
entre celestiais. O que seu pai te contou sobre a Lilith foi uma metáfora, uma
versão pequena e deturpada do que realmente aconteceu.''
''De fato, Adão e Eva existiram. Contudo, o crescimento absurdo do
pecado, Chloe, ele não se deu por uma maçã. O pecado não cresceu porque
Adão comeu uma maçã, nem existia uma maçã na equação. O pecado cresceu
porque um casal se viu apaixonado pelo poder, pelo proibido, e isso gerou
destruição em larga escala. E eu não estou falando de Adão e Eva.''
— Você e Lilith — arrisco. Noah concorda. Me aproximo mais dele,
interessada. Já não estou estalando seus dedos, eles estão entrelaçados aos
meus. Desconfio de que Noah nem percebeu. E ele parece muito mais à
vontade enquanto meu polegar alisa o dorso da sua mão. — O que
aconteceu?
— Como eu disse, Chloe, cada povo, cada religião acertou algo. Não
havia uma maçã, um fruto proibido que gerasse o pecado. Havia uma caixa,
pequena, sob vistoria do Inferno, em meu palácio. Ou melhor, no palácio do
meu pai. Em sua sala, trancafiada em uma espécie de cofre, ao qual apenas
ele tinha a senha. A caixa era o que a mitologia grega mais tarde chamaria de
"Caixa de Pandora". Pandora, nada mais foi que a idealizadora dessa caixa.
Uma caixa que continha todos os tipos de males possíveis.
''Depois que a humanidade foi criada e um pequeno grupo de
humanos começou a povoar a Terra, Céu e Inferno se juntaram para um
próximo passo, sob supervisão daquele que vocês humanos chamam de Deus.
Para toda forma de vida ser justa e eficiente, temos que ter bondade, maldade,
benefícios e males em igual quantidade. Paz e caos, amor e ódio, tristeza e
felicidade... Tudo isso precisa existir.''
''O Céu cuida, em sua maioria, das partes boas. O Inferno, das partes
ruins. No final, anjo, é um trabalho, entende? Um demônio que atua
fornecendo caos ao mundo está fazendo aquilo que deve fazer, assim como
um anjo que fornece luz está fazendo o que foi criado para realizar. Eles
podem, porventura, tentar escapar de suas funções e dos Reinos, mas essas
são suas funções.''
''Agora pense em um humano, com suas qualidades e defeitos. Ele
tem uma profissão ou emprego, um propósito, independentemente de quão
bom ou quão ruim ele é, certo? Assim são anjos e demônios, de alguma
forma. Um anjo pode ter mais defeitos que qualidades, mas seu trabalho é de
dar luz ao mundo de qualquer forma. Um demônio pode ter mais qualidades
que imperfeições, mas precisa gerar caos, é seu trabalho. A noção de extrema
bondade e absurda vilania entre esses seres foi criada pelos humanos. No
fundo, nosso ditado é que nenhum anjo é totalmente bom e nenhum demônio
é totalmente mal. E nisso, Céu e Inferno concordam. Principalmente, depois
da Lilith."
— Espera. Está dizendo que Lilith era má, porém anjos podem ser
maus. Então...
— Exatamente o que está pensando, Chloe: Lilith nunca foi um
demônio. Lilith era um anjo. Mas um anjo que viria, eventualmente, a
sucumbir ao mau, a ter um breu dentro de si inimaginável. Lilith era um anjo,
Chloe, mas ela era um anjo mau. Lilith era má. Ela é má na verdade. É a pior
coisa que você pode imaginar.
— É? Ela está viva?
— Sim. Mas isso eu já te explico, amor. — Noah me puxou e me fez
sentar sobre ele. Ele deixou sua mão entrelaçar à minha. — A sua mão, é o
céu, Chloe. Munido de luz. A minha é o Inferno. E nós nos uníamos em um
só Reino. — Sentia a ligação entre nossos dedos. Noah sorriu para mim e eu
senti minhas bochechas arderem.
''O Céu tinha suas maneiras de fornecer luz à Terra, à humanidade em
formação. Para ser sincero, odeio quebrar seu encanto, mas o Diabo não sabe
de tudo, amor. E eu não sei o que eles faziam para gerar luz à humanidade.
Mas eu sei que nós, do Inferno, usávamos da Caixa de Pandora para fornecer
caos. Só o Diabo em si, ou seja, o comandante do Inferno, era capaz de abrir
a caixa sem se ferir ou sem absorver todo o mal que ali está. E era o meu pai,
naquela época, que descia à Terra, abria a caixa e lhe fornecia caos na
quantidade exata que ela precisava.''
"Quando fiz 21 anos, há muito tempo como pode imaginar, meu pai
decidiu que eu, como sucessor, precisava saber de algo. Mortheu me
apresentou à caixa e ao código do seu cofre, sem me permitir tocá-la. Um dia,
eu seria o próximo a cuidar da caixa. Quando ele partisse."
— Seu pai era imortal, não? Como você?
— A imortalidade tem suas falhas. Havia uma arma capaz de matá-lo.
Assim como matou o meu avô. Uma arma que fica sempre em nossa posse.
— Como que a arma matou o seu avô, se ela estava na posse de
vocês?
Noah me deu um sorriso triste e forçado.
— Ser o Diabo, como nos chamam, é um trabalho intransferível. A
não ser que você morra, Chloe. Então a arma foi criada como um modo de
aliviar a dor extrema desse cargo através da morte.
"Aliviar a dor extrema.". Demoro um tempo para processar, sentindo
um peso absurdo em meu peito. Isso foi eufemismo?
— Espera... Seu avô se suicidou?
— Infelizmente, sim. Assim como a minha avó, antes mesmo de eu
nascer. Eles não resistiram à responsabilidade, Chloe. O meu pai, contudo,
seria capaz de fazer isso por toda a vida. Porque ele, Mortheu, amava o que
fazia. E ele transferiu um pouco disso para mim, até.
Eu não sei muito o que dizer. Porque eu tenho medo de que Noah
deixe de existir. Eu temo que ele também não resista à toda essa pressão.
Tudo soa muito mais pesado e sombrio agora. E eu me vejo angustiada.
— Essa arma ainda existe?
— Sim. Só eu e a Kold sabemos onde ela está. E caso alguém toque
nessa arma, nós dois somos avisados. Está bem escondida, anjo. Eu precisei
contar para Kold onde ela estava, porque uma vez... Uma vez eu quase pensei
em desistir. E eu precisava de alguém para me manter consciente de que
desistir não deveria ser uma opção. A morte não deveria ser uma opção, não
desse modo. E Kold, Kold foi a minha escolha. Se eu me aproximava da
arma, Kold me dava motivos para ficar longe da arma.
— Noah, você já tentou...?
— Até os monstros sofrem, amor. — Sua voz vacila, mas ele
pigarreia, desviando o olhar do meu.
Suas palavras pesam demais.
Sinto um nó se formar em minha garganta, em preocupação. Tudo o
que eu quero é manter Noah longe desse peso. E eu não posso. Digo, eu
provavelmente daria meu corpo e alma para que ele ficasse bem, se me fosse
pedido. E se meu amor fosse suficiente para mantê-lo longe das dores, ele
não mais sentiria sofrimento algum. Mas a vida não é um conto de fadas e a
realidade é dura, brutal. Porque eu não tenho poder algum, certo? Diante de
anjos e demônios, eu sou apenas uma garota do Tennessee. Afinal, o que uma
mera humana conseguiria fazer para manter o Diabo a salvo?
Sinceramente, temo por ele. Temo que um dia, como virá a acontecer,
eu não mais exista. E talvez um dia Kold não seja suficiente para lhe dar
motivos para continuar a viver. Eu preciso que Noah ame a vida e perceba
que há motivos para continuar firme nesse mundo. E novamente a impotência
me sufoca, porque... O que eu posso fazer?
Eu sou efêmera. Haverá o momento em que não serei nada mais do
que cinzas. E quando essa hora chegar, não quero que Noah abra mão da sua
eternidade porque não mais existo. Nem quero que ele se machuque.
Talvez essa seja a parte mais angustiante de ser completamente
apaixonada por alguém, não? A consciência de que somos incapazes de
silenciarmos por completo todas as dores de quem amamos. E, droga, como
eu o amo.
Meus dedos acariciam os seus e eu aproveito esse contato mínimo.
Porque, de repente, cada pequeno segundo parece valer ainda mais.
— Enfim, o fato é que eu descobri a senha de acesso ao cofre. Ao
cofre da Caixa de Pandora. E Lilith soube que eu tive acesso a essa senha.
Porque ela era tudo, Chloe, Lilith era a minha confidente. Nos conhecemos
desde pequenos. Assim como eu conheci Kold, ela é um pouco mais velha
que eu, acredite se quiser. Kold e Lilith eram anjos e guerreiras, treinavam
juntas. Eu era bem próximo de Koldelium, mas muito mais próximo de Lilith,
anjo. Tanto que nos apaixonamos.
Meu coração queima ao ouvir isso, em angústia. Não só porque sinto
que essa mulher o machucou mais do que ele vai conseguir colocar em
palavras, mas porque me pergunto se, mesmo após tanto tempo, Noah ainda
sente algo por Lilith. Algo senão rancor ou ódio. E não é o tipo de
insegurança que gosto de sentir. Observo cada detalhe dele, buscando por
qualquer reação, mesmo que sútil, que me indique o que ele sente ao dizer o
nome dela.
— E um dia, eu lhe mostrei o cofre, mesmo sem lhe contar o segredo.
Seus olhos brilharam e eu acho que foi naquele momento em que a perdi. Foi
naquele momento em que Lilith perdeu a sua capacidade de amar e se viu
cega por poder.
''Seus beijos continuavam doces, seus toques continuavam macios... O
que eu não percebia, anjo, era como Lilith passou a me manipular. Porque ela
parecia tão amável, Chloe, mas se tornou puro ódio. Lilith me manipulava
para suprir a sua ganância. E o que ela queria, mais do que a mim, era ter
poder. Mais poder do que ela tinha, como a filha de um general do reino do
Céu, como um anjo e uma guerreira. Lilith queria todo o poder. E eu não via
isso.''
''No início, ela dizia coisas óbvias, como o fato de poder não ser
necessariamente ruim. Ela insinuava que "querer mais não nos torna ruins,
querer mais nos torna conscientes de que merecemos mais". E usava frases
que me induziam a crer que eu também merecia mais poder. E talvez, Chloe,
eu merecesse, antes. Assim, Lilith me guiava lentamente ao breu.''
''No início, ela me enchia de carinhos, beijos e sorrisos, como uma
predadora à espera do momento exato para abater a sua presa. Lilith me
mostrava uma falsa doçura para esconder o quão fodidamente amarga ela
poderia ser.''
''Caso eu me negasse a uma de suas ideias absurdas, ela me fazia crer
que eu era o pior ser do universo.''
''Se eu deixava de lhe fornecer tudo de mim, ela me entregava nada e
me fazia crer que nada era muito para mim.''
Finco os dentes no lábio inferior com alguma força, sentindo um
arrepio me percorrer. E meu coração dói. Noah está finalmente me tornando
sua confidente e minha alma sangra em saber que ele passou por um
relacionamento tão destrutivo.
— Eventualmente, eu deixei de ser Noah. Eu me tornei uma
marionete nas mãos dela. Suas palavras se tornaram capazes de seduzir
qualquer um, principalmente a mim. Ela começou a me convencer de que a
humanidade precisava experimentar uma dose a mais de caos. De que meu
pai estava dominado demais pela influência do Céu, que ele não estava
impondo os desejos do Inferno o suficiente. Ele estava deixando o equilíbrio
ceder e a humanidade tender demais à luz. Lilith me fez crer que talvez eu
pudesse corrigir isso.
''E eu lutei contra essa ideia por anos, mas Lilith não desistia nunca. E
seus beijos se tornavam mais doces, seus toques mais viciantes e toda vez que
ela dizia que eu não a amava o suficiente, eu tentava lhe mostrar que sim. Me
sentia cada vez mais preso, cada vez mais esgotado e cada vez mais viciado
na sensação angustiante de ser uma presa, de ser dela, porque ela me fazia
crer que ser uma marionete era o certo, desde que ela me controlasse.''
''Então quando eu vi, eu, sem saber ao certo como mexer na Caixa de
Pandora, havia guiado Lilith a ela. Eu abri o cofre. E os olhos azuis da loira
brilharam pela caixa. Segurei-a em minhas mãos, mas lutei contra a vontade
de abri-la, porque eu sabia que era perigoso. Mesmo que a vontade fosse
absurda, mesmo que a caixa me trouxesse a sensação crescente de que
precisava ser aberta. Enquanto eu lutava contra esse desejo, Lilith
simplesmente colou os lábios aos meus me roubando um único beijo antes de
destruir a minha vida.''
''Eu esqueci da caixa, porque eu estava completamente apaixonado e
refém do gosto dos seus lábios. Mas Lilith a tinha em mãos. E ela a abriu.''
Noah encara os meus dedos, brincando involuntariamente com eles.
Seu nervosismo voltou. Sinto que não quer mais falar sobre isso. Eu respeito
o seu limite, por ora, para que se acalme. E acaricio o seu rosto, fazendo com
que me encare. Vejo o seu olhar marejado. Céus, como dói ver a pessoa que
amamos tão frágil e vulnerável perante nossos olhos, por uma dor causada
por outra pessoa, por outra. E não podermos fazer absolutamente nada.
Seus olhos estão vermelhos. Noah luta contra a vontade de chorar e
isso é claro. Me pergunto há quanto tempo ele reprime isso.
Uno a boca à sua e ele firma as mãos com força em minha cintura.
Deixo apenas que os lábios se toquem, uma leve pressão, e isso é o que basta
para que um suspiro sôfrego lhe escape dos lábios. Noah não desaba, mas eu
sei que ele sente que pode fazer isso comigo, simplesmente sei. Não me
importo de secar as suas lágrimas.
Estou prestes a lhe dizer que ele não precisa me contar tudo de uma só
vez, mas ele continua:
— A Caixa... — ele começa, passando as mãos pelos olhos na
tentativa de impedir as lágrimas de transbordarem. Noah funga e pigarreia,
tentando manter a voz firme. — Eu a fechei rapidamente antes que os danos
fossem irreversíveis e a tranquei no cofre. Mas era tarde demais. Lilith não
morreu, ela resistiu. Ela não se feriu como o previsto. O que eu não sabia
sobre a caixa era que, caso o ser sobrevivesse e saísse ileso após o contato
com ela, ele absorveria a maior parte do caos liberado. Foi então que Lilith
aprisionou escuridão em si, Chloe. Muita.
''Lilith e eu começamos a discutir, alto, porque eu estava puto. Puto
porque ela tinha aberto a porra da caixa. Foi quando meu pai nos flagrou ali.
E ele entendeu tudo, absolutamente tudo. Ele perguntou quem havia aberto a
caixa e eu olhei para Lilith com a verdadeira sensação de que havia sido
traído. Porque eu havia. Meu pai tentou avançar em Lilith para ordenar a sua
prisão, mas eu, idiota, não permiti.''
''Porque eu não sabia que ela tinha toda aquela escuridão em si. Para
mim era só a minha Lilith, Chloe, eu juro. Eu juro.''
''Eu me pus entre eles e tentei afastar o meu pai dela. Eu literalmente
lutei contra o meu pai enquanto Lilith fugia. Eu consegui deixar meu pai no
chão após a luta e me pus de pé, pedindo para que ele me ouvisse e deixasse
Lilith ser absolvida por aquele erro. Foi quando ele me disse que isso não era
possível, ela tinha a escuridão em si. Ele explicou sobre as consequências da
abertura da caixa. Que Lilith precisava ser impedida. Eu vi a decepção nos
olhos do meu pai, Chloe. Porque a minha mãe sempre havia sido dura
comigo, mas meu pai não. O meu pai foi o melhor pai do mundo. E eu o
decepcionei pela Lilith."
''Deixei meu pai sozinho e procurei por ela. Eu percebi o motivo pelo
qual meu pai soube que alguém havia mexido na Caixa de Pandora, pelo qual
ele nos flagrou: todos no Inferno já começavam a discutir, a brigar. Mas eu
saí dali. Eu saí o mais rápido possível. E eu encontrei Lilith no Céu,
completamente fora de si enquanto, ao redor dela, uma guerra acontecia."
"Anjos se matavam, Chloe. E ela coordenava tudo. Eu gritava para
que ela parasse, mas ela movimentava as mãos como uma louca, como um
maestro regendo uma sinfonia da morte. Ela controlava o caos. Todos os
anjos tinham os seus olhos vermelhos, como sangue. Era surreal. Eles se
matavam em lutas intensas, eles lutavam por caos, se degradavam. E Lilith
assistia a tudo com um sorriso doentio nos lábios.''
"Eu gritava para que ela parasse e ela me perguntava se eu não via o
quanto aquilo era lindo."
''Enfim, fugi do Céu com medo da guerra e também para pedir ajuda
ao Inferno para conter o meu erro, o que eu havia causado. E quando voltei
ao Inferno, uma guerra também acontecia ali. Eu encontrei a minha mãe
fatalmente ferida em seus últimos segundos de vida e ela me contou que Theo
estava escondido em um dos armários do palácio, ainda pequeno, tremendo
de medo.''
''A minha mãe morreu em meus braços. E eu não entendi o porquê,
Chloe, não entendi por que ela morria. Quem estava com a arma capaz de
matar a minha mãe? Eu não sabia... Até que eu olhei para o meu pai e vi seus
olhos vermelhos, em posse da lança de Escarlatum, capaz de matar a todos
nós enquanto derrotava os demônios que ele mesmo tinha como aliados.
Todos estavam fora de si. Meu pai inclusive.''
''Os anjos invadiram o Inferno, a guerra se tornou ainda maior e eu só
tentava me defender, eu não queria matar ninguém. Até que vi o meu pai
matar um general, o pai da Lilith. A lança lhe atravessou o corpo."
"E se eu pensei que Lilith sofreria ao ver a cena, a vi chegar ao
Inferno e admirar a morte do seu pai sorrindo enquanto uma lágrima escorria
por seu rosto."
"Eu deixei a minha mãe no chão quando percebi que meu pai mataria
ainda mais pessoas, se...''
Noah finalmente desaba e chora.
E com seu lamento ecoando pela sala, eu finalmente entendo como
Noah havia parado o pai dele.
Noah tomou a tal arma para si.
E matou seu próprio pai.
Com isso, Hellmeister se condenou ao trabalho que tinha que exercer.
Noah se tornou o Diabo ao matar seu próprio pai.
Noah afunda a cabeça em meu ombro, soluçando. A dor se espalha
por toda a minha sala e parece absurda.
Eu consigo sentir essa dor em mim, ela me invade. É intensa. E
combina com a chuva que começa a cair do lado de fora do apartamento,
banhando Hell's Kitchen em melancolia.
Noah chora em meus braços. Na verdade, eu estou em seus braços,
em seu colo, mas parece o inverso. O abraço pelo pescoço e tento fazer um
cafuné, o acalmar. Mas Hellmeister não consegue parar de chorar.
Meu coração quebra quando o ouço murmurar que doí, que está
doendo, que sentir dói. Parece que revive tudo novamente.
— Calma... Eu tô aqui, querido. Eu não vou sair daqui. — O abraço
pelo pescoço. Noah me envolve pela cintura e literalmente treme por
sofrimento.
— Angeline, a minha tia, e chefe do Céu, assim como poucos anjos e
demônios, imunes ao poder de Lilith, e Deus se guiaram ao Inferno para
colocar ordem em tudo. Parar a fonte de caos. Eu tinha meu pai sangrando
em meus braços por minha causa e me perguntava o que tinha feito, Chloe. E
Lilith estava caminhando entre corpos, como se estivesse perdida. Até hoje
eu não sei explicar o que foi feito, mas vi o exato segundo em que Lilith
deixou de se mover e o tempo se congelou por completo. Apenas os dois
soberanos e Deus não estavam parados. Foi quando eu percebi, amor, percebi
que eu havia tomado o lugar do meu pai. Eu era o Diabo."
"E ali estava: Angeline, Deus e eu, parados no Inferno, assistindo todo
o caos como a cena paralisada de um filme."
''Consegui ver Kold, ainda como anjo, em guerra contra outro. Ela era
uma das maiores guerreiras do Céu, ao lado de Lilith. Kold e Lilith eram
amigas. Foi como nos conhecemos. Sinn lutava contra Luke. E eu não sei
como eles não se mataram até hoje. Meu pai, morto em meus braços e minha
mãe morta a alguns metros. E sangue. Muito sangue. Todo o chão ao redor do
palácio estava pintado em vermelho, com corpos e mais corpos de seres
alados caídos no chão, uma imagem que qualquer pintor renascentista amaria
retratar.''
''Com o tempo parado, Deus conseguiu fazer Lilith desmaiar e todo o
caos cessar. Logo que todos os sobreviventes voltaram a si e perceberam o
que haviam feito, todos passaram a surtar, chorar, gritar. E eu pensava que
tudo era minha culpa. Porque foi minha culpa.''
''Aprisionamos Lilith e Deus lhe tirou asas e a maior parte do breu que
conseguiu. No fim, o máximo que ele conseguiu foi garantir que ela seja
incapaz de usar seu poder. Contudo, Lilith ainda armazena uma boa parcela
de caos, meu anjo. E ela não pode ser morta. Porque eu não sei o que faria se
alguma parte desse caos fosse libertado de novo."
"A arma de Escarlatum ficou em minha posse, como eu disse. Fui
condenado a deixar de sentir meu coração, pois ele afetava o meu julgamento.
Eu não sabia discernir o que era o amor, Deus disse. E junto, parte do meu
poder se foi. Assim, me tornei sedento pela vontade de senti-lo novamente.
Pelo poder e pela ânsia de me sentir vivo.''
Noah respira fundo, seu rosto completamente molhado por lágrimas.
Tento secar algumas com o polegar, acariciando o seu rosto em seguida.
— Os rebeldes surgiram como uma consequência daqueles que não
consegui reconquistar, daqueles cuja confiança eu não consegui recuperar.
Eles acreditavam que deveria existir um chefe mais sábio do que o garoto que
fodeu com tudo. Contudo, eles precisavam me matar para me tirar do poder.
Isso eles nunca conseguiram.
"A rixa entre Céu e Inferno então se instaurou, porque demônios
mataram famílias de anjos, bem como anjos aniquilaram famílias de
demônios. E, por mais que tudo isso tivesse acontecido por um erro meu, eles
se culpavam."
"Kold não suportou ficar no Céu e me pediu abrigo e uma função. Já
éramos amigos há algum tempo, porque conversávamos constantemente
quando eu ia ao Céu. Kold era um anjo e uma guerreira como Lilith. E, de
algum modo, sempre soube também que ela era apaixonada pelo Inferno,
Koldelium preferia trabalhar por caos. Então ela pediu para ficar ao meu
lado... Eu aceitei."
"Sinn e Luke também ficaram ao meu lado. Eu não consegui contar
pro Theo o que havia acontecido, Luke fez isso por mim. Me senti incapaz.
Me distanciei do meu irmão o máximo que pude. E tentei lutar com a dor por
todos esses anos..."
"Não sei mais o que dizer. Essa é a verdade, meu anjo. Toda a
verdade."
Noah respira fundo mais uma vez, secando as lágrimas por seu rosto.
— Você se apaixonou por um monstro, Chloe. — Noah parece sentir
dor e vergonha de suas palavras. E ele volta a chorar.
— Você é tudo menos um monstro, querido.
Eu só sei abraçá-lo e estar aqui por ele. Porque não há mais nada que
eu possa dizer.
Noah é mais que um garoto perdido. Ele está machucado. Mais do
que qualquer ser que já conheci. Mas eu o amo. Provavelmente, vou demorar
anos para compreender toda essa expansão de universo e absorver tudo o que
ele me disse. Mas vou ficar aqui por ele.
Porque ele precisa saber que pode contar com alguém. Comigo. Ele
precisa saber que não é um monstro. E com meus braços ao redor do seu
corpo e seu rosto em meu ombro, eu o abraço enquanto chora. Eu o deito
sobre o sofá e me deito ao seu lado. O envolvo no espaço apertado que temos
e Noah chora em silêncio até pegar no sono, enquanto eu tento lhe dar algum
tipo de conforto.
Ele apaga em meus braços. E se ele me protegia quando eu acordei,
agora sou eu quem o protejo.
Noah está sem camisa sobre a minha cama, agarrado a um cobertor,
como se ele fosse uma pessoa. Está dormindo.
Cruzo os braços contra a porta do cômodo, prendendo o lábio inferior
entre os dentes enquanto o analiso.
Ele demorou muito tempo chorando. E depois que sugeri migrarmos
do sofá para a cama, Noah pareceu tão anestesiado que me obedeceu
mecanicamente.
Ele está cansado e isso é visível.
Me aproximo, sentindo a angústia amarrar as minhas cordas vocais
em um nó sufocante. Engulo em seco ao pensar em como ele não merecia
carregar todas essas dores em seu peito. Noah é muito melhor do que pensam
ser. Consigo ver isso melhor agora.
Sorrio quando vejo que a pequena Estátua da Liberdade continua em
sua pele.
E então me afasto, rumo à cozinha. Não quero deixar Noah aqui
sozinho, acho que vou ter que esperar que ele acorde. Ele não ‘tá bem. Mas
estou ansiosa para sair de casa. Estou com a cabeça a mil. Principalmente,
depois de tudo que me foi revelado.
Pego uma maçã na geladeira e abro o registro da pia, mas a merda da
torneira se revela quebrada e joga a água em cima de mim. Suprimo um grito
para não acordar Noah, fechando essa bosta rapidamente. Inferno. Inferno.
Mais um gasto, mais um conserto para pagar.
Depois de alguns minutos secando tudo que a água possa ter molhado,
aproveito que não há ninguém em casa, exceto por Noah, e tiro a blusa. Ao
menos a temperatura do ambiente está agradável. Não está frio.
Desisto da maçã e abro a geladeira em busca de algo para beber. E o
resto do suco de laranja que comprei não demora muito para descer pela
minha garganta.
— Uau, bom dia. — Quase engasgo e deixo o suco na mesa, me
virando para um Noah com olheiras um pouco fundas e um sorriso... Um
sorriso malicioso para cacete. — Muito bom dia.
Sorrio envergonhada pelo modo sujo como meu corpo é analisado.
— Bom dia, querido. Dormiu bem? — Prendo os fios num coque de
qualquer jeito. Noah se inclina sobre a bancada, sem me responder. Seus
olhos estão focados no vale entre meus seios. — Bom saber que meus olhos
ficam nos meus peitos, Noah...
— É que esse sutiã deixa seus peitos maiores, amor, não posso evitar.
— Sua voz rouca pela manhã me faz sorrir. E então o provoco:
— Não seja por isso. — Passo as mãos pelas costas e tiro o sutiã, o
entregando. Noah une as sobrancelhas e faz um bico, como se estivesse sendo
torturado, como se pedisse por misericórdia. Me viro, não deixando que ele
veja o que tanto quer ver. — Estava esperando você acordar, tem algo que
preciso que me ajude a fazer.
— Jura? — Em questão de segundos ele está atrás de mim, suas mãos
em meus quadris. Noah beija a curva em meu pescoço e seus dentes raspam
pela minha pele. O beijo em meu ombro quase mata meu último resquício de
sanidade. — O que não me pede sorrindo, que não faço chorando, amor? —
Ele aperta a minha cintura.
— Noah... — Fecho os olhos. Ele sente o meu perfume e acaricia a
minha cintura. — Isso é tortura...
— Tortura por quê, meu anjo? Me explica...
— Porque não podemos transar. — Me viro para ele e ele está de
cenho franzido. E ele odeia ainda mais quando meus seios tocam o seu peito.
— Estou naqueles dias — explico, frustrada.
— Naqueles dias?
— Amor... Menstruada, entendeu? Chegou hoje cedo. — Noah
deixou a boca se abrir e então tentou disfarçar o desgosto muito mal. Parecia
uma criança cujo doce havia sido roubado. Havia um vinco entre as suas
sobrancelhas e um bico ameaçava se formar em seus lábios. — Inclusive,
preciso passar na farmácia e comprar um remédio para a dor antes de irmos
pra onde vamos hoje.
— E onde seria isso? — Ainda há tristeza no seu rosto. Tadinho.
Realmente queria transar. Eu queria ainda mais. Infelizmente.
— Apartamento da Molly. — Noah não entende. — Eu preciso contar
sobre nós dois. — Hellmeister desvia o olhar, um pouco desconfortável. —
Podemos confiar nela, Noah. Eu juro. Pela minha vida. Podemos confiar na
Molly.
— Podemos confiar no Matt também. — Sua fala me pega de
surpresa. Eu mordo o lábio inferior, tentada a desviar o olhar. — Ruivinha...
— Eu sei... Mas, assim como ainda estou meio chateada por você ter
me mantido às sombras, em me esconder a verdade... — confesso. — Saber
que meu melhor amigo, há três anos, me escondeu que era um anjo. Isso... É
bizarro.
— Ainda está chateada comigo? — Suas íris escuras cravam nas
minhas.
— Não posso evitar. ‘Tô tentando mudar isso. Porque eu te entendo
agora. Sei porque me escondeu quem você é. Principalmente, porque sinto
vergonha pelo modo como te tratei quando descobri tudo. Sinto vergonha
agora que sei a verdade. Mas por algum motivo, Noah... Eu não sei. Não sei
me explicar. Acho que é muito sentimento para pouca Chloe. E não tive
tempo suficiente para me adaptar. A TPM também não ajudou.
Ele suspira. Engancho os dedos no cós da sua calça e o trago para
perto.
— Vem cá... — peço. Ele parece chateado. — Eu só ‘tô dizendo que
ainda ‘tô confusa. Talvez eu não esteja chateada com você ou com o Matt. Só
com toda essa situação. Não fica triste comigo. — Noah demora milênios
para me olhar nos olhos. — Eu te amo — lembro, fazendo um bico com os
meus lábios. Estou buscando por um sorriso.
— Isso é covardia, meu anjo.
— Pena — ironizo, rindo, e ele rola os olhos. Colo meu sorriso ao
seu. — Posso preparar algo com meus dotes culinários limitados para a gente
comer, enquanto você se arruma. Eu só preciso colocar uma blusa.
— Ou... Eu posso mostrar que você não só namora o Diabo, mas um
cozinheiro insuperável. — A palavra me faz sorrir. Noah não se dá conta do
que disse. E subitamente o amo mais. — O que foi?
— O que somos? — pergunto. E mordo o sorriso que está cismando
em aparecer.
— Amor, você já disse isso algumas vezes. — Ele tenta fugir e eu o
prendo ao puxá-lo pelo cós da calça. — Chloe...
— O que somos, Noah?
Ele suspira, derrotado. Seu olhar mira o meu e ele inclina a cabeça,
sem acreditar no que está confessando.
— Namorados — diz e eu rio, me sentindo vitoriosa. — Merda,
garota... O que fez comigo, meu anjo?
— Não sei. Mas você vai me fazer ovos com bacon enquanto eu
decido qual blusa vestir. — Beijei os seus lábios brevemente e o afastei. —
Tudo que precisar ‘tá na geladeira. Capricha no meu café da vitória, ok,
anjinho?
— Odeio você! — ele grita quando já estou no quarto. E agora eu
simplesmente sei que ele ‘tá mentindo.

— Ele está vindo. — Molly desliga o telefone em sua mão, encarando


Noah jogado no seu sofá. Eu estou entre as pernas dele. — Como isso
aconteceu?
— Chuva — digo.
— Carta — Noah complementa.
— Choro.
— Beijo.
— Hum... — penso. — Surtos.
— Sexo — ele completa e eu sinto as minhas bochechas queimarem.
Molly está nos encarando como se fôssemos alienígenas.
— Não acredito que estão me fazendo amar um casal que é composto
pela minha melhor amiga e pelo Diabo. — Seu protesto me faz rir. Deito a
cabeça no ombro de Noah. — Como posso confiar em você, Satanás? —
Noah não consegue prender o riso. — Quais são as suas intenções com a
minha filha? — Nunca senti tanta vergonha na vida.
— As melhores possíveis. — Hellmeister entra na brincadeira.
— Não, mas sério... Como posso confiar que você não vai machucar o
coração da minha amiga, Noah? — O clima se torna mais tenso e eu me
preparo para repreender Molly. Ela me fita. — Vamos, Chloe, eu preciso
perguntar. — E então volta o olhar para Noah. — No momento, essa peste
nos seus braços é tudo o que eu tenho, Satanás. Como posso confiar em você
para cuidar de tudo o que tenho?
Noah sorri.
— Porque eu sinto que... Molly, ela é tudo o que eu tenho também —
Noah garante, me fazendo amaldiçoar os arrepios que me percorrem. O
semblante da minha melhor amiga relaxa e eu me sinto em paz, de certa
forma, nos braços de Hellmeister. — Ela é tudo que tenho.
— Eu tô aqui — reclamei, antes que explodisse de tão vermelha. E a
campainha do apartamento tocou.
Molly abriu a porta e Matt estava ali. Senti meu coração pesar e ele
ergueu ambas as sobrancelhas em surpresa, quando seu olhar cruzou o
apartamento e ele me viu nos braços de Noah. Abri um sorriso tímido.
— Oi, Matt. — Ele sorriu, porque de certo modo ele já sabia que eu o
estava dando uma chance. — Sentiu a minha falta?
— Eu te amo demais, garota — ele disse de uma só vez e eu ri, me
levantando e o abraçando com toda a força do mundo. — Me desculpa, me
desculpa...
— Me desculpa também, Matt. — Me mantive entre seus braços,
percebendo o quanto ele me fazia bem. — Então. — Me afastei, antes que
meus hormônios me fizessem chorar. — Fiquei sabendo que você é o meu
anjo da guarda ou algo assim.
— É. Você é o meu também. — Me sentei perto de Noah novamente.
E Matt sorriu para nós dois. Dentro daquele apartamento, tudo pareceu fazer
sentido.

— Então você matou o cara? — Molly perguntou, surpresa, para


Noah. Ela virava um gole da cerveja enquanto Matt, ao chão, comia mais um
pedaço de pizza. — Um demônio matou o meu noivo e você matou o cara?
A ideia de pizza e cerveja foi minha. Estamos almoçando pizza e
cerveja. Saudáveis.
O que pensei foi que precisávamos ter uma conversa tensa e talvez
isso ajudasse a quebrar o gelo. Estávamos todos ao chão. Eu estava entre as
pernas de Noah, Molly e Matt do outro lado da caixa de pizza.
Noah contou sobre a morte de John. Ele contou brevemente sobre a
história da Lilith. E sobre os rebeldes estarem perseguindo-o na tentativa de
impedi-lo de adquirir poder, de ter seu coração batendo. Eu ainda não sei
como me encaixo nessa história. Digo, aparentemente, fiz o coração dele
bater algumas vezes e isso me torna um alvo em potencial.
— Eu matei o cara que matou John — Noah diz,
desconfortavelmente, analisando a minha reação. E eu estou lutando bastante
para manter a naturalidade. Ele está confessando um assassinato. E bem, era
contra um demônio que havia matado o meu amigo. Mas era um assassinato.
— Desculpa, anjo — ele sussurrou no meu ouvido.
— Tudo bem — murmurei, virando um gole da cerveja long neck.
— Obrigada — Molly confessou. Noah não sorriu, mas acenou com a
cabeça. — Espero que ele tenha sofrido bastante.
E o silêncio foi extenso.
— A polícia está até agora tentando descobrir como isso aconteceu —
Molly continua. — Acho que os pais dele nunca vão saber a verdade.
— O caso vai ser arquivado — Matt disse. — Ouvi dizer. Eles não
sabem como um humano pode ter tirado o coração de John daquele jeito. —
Sinto meu estômago embrulhar. Noah percebe o meu nervosismo e acaricia a
minha perna. — Os pais dele mereciam uma resposta. Um ponto final.
— Agora que verdades foram jogadas à mesa... — digo. Todos os
olhares se voltam a mim. — Agora que Molly tem uma noção básica do que
houve e está havendo, agora que Matt está com a gente... Eu preciso
perguntar. Há algo a mais que vocês dois não nos disseram e que precisamos
saber? — Meu olhar vai de Noah para Matt.
Eles se entreolham por longos segundos. E eu entendo que sim. Noah
desvia o olhar primeiro e Matt suspira.
— Noah não confia em todos os amigos dele — Matt diz e Noah se
remexe, desconfortável. — Estou mentindo?
— Não — Noah confessa, entredentes. O encaro por cima do ombro.
— Visitei Lilith nos últimos dias.
— Você o quê?! — A incredulidade me escapa e Noah engole em
seco. — Onde ela está?
— Não importa. — Odeio ser deixada às cegas. — Ela me deixou
escapar que posso estar sendo traído por alguém que está ao meu lado. E eu
desconfio de algumas pessoas.
— Como Sinn, Luke e Kold? — Molly arrisca.
— E como o meu irmão — Noah fala, baixinho. Dou um longo gole
da cerveja em minha mão. — Theo sempre teve ressentimento por eu ter me
afastado. Só que sempre foi mimado demais, atrapalhado demais... Eu nunca
pensei que pudesse ter algo a ver com essa situação dos rebeldes, por não
representar uma forte liderança. Mas posso ter me enganado.
— E quanto aos outros? — A pergunta me escapa, mas eu não o
encaro. Lembro de Sinn protegendo o meu irmão, a minha família e a mim.
Se aquilo foi uma encenação, então na verdade eles corriam riscos.
— Confiava em Kold com a minha vida, mas... Agora eu estou
incerto quanto a isso. O que é um perigo. Porque ela pode me destruir. — Ele
limpa a garganta. — Me pergunto quão confiável Luke pode ser, porque ele
sempre esteve do meu lado, mas..., Mas eu não sei. Não sei se deveria estar.
Não depois das dúvidas que Lilith colocou em minha cabeça.
— Luke é confiável, Noah — Matt garante. E eu o encaro, analisando
a sua feição. Acho que ele está deixando sentimentos atrapalharem seu
julgamento e eu sou a última pessoa no mundo que pode julgá-lo. Eu só
espero que o que ele sinta esteja certo. De qualquer modo, acho que Noah
não tem certeza disso. E que vai investigar o amigo.
— E temos Sinn — Noah continua. — Sinn... — Noah riu. — Sinn já
fodeu a minha confiança antes. Ele está na sua segunda chance.
— O que houve? — Molly pergunta. Matt fita Noah. Eu acho que
meu melhor amigo sabe de algo e isso me incomoda.
— Não quero falar sobre — Noah murmura. E eu me sinto inquieta.
Pela sua fala e pelo fato de que meu útero parece estar numa batalha nesse
momento. A cólica está voltando a ficar insuportável.
— Noah — começo e viro meu corpo para ele —, Noah, Sinn estava
seguindo a minha família.
— Sob minhas ordens.
— E ele continua protegendo a minha família, certo? Você não tirou
as ordens. E se na verdade ele for o traidor? E se ele estiver esperando a hora
certa para foder com tudo? Ele está perto da minha família, Noah...
— Eu não sei quem colocar no lugar dele. Preciso proteger a sua
família de alguma forma.
Me viro para Matt.
— Proteja Ben e a minha mãe, Matt.
— Isso está fora de cogitação — Matthew garante, rindo de nervoso.
— Por quê?
— Porque meu dever é proteger você.
— Por quê? O que eu tenho de tão importante?
— Não sei, Chloe. — Não sei se Matthew está sendo sincero e isso
me estressa. — Mas eu estou nessa para proteger você.
— Eu não quero proteção.
— Chloe... — Noah me repreende.
— Não, vocês não entendem. A minha família precisa de proteção.
Tia Riley, mamãe, Benjamin... Eles precisam ser prioridade e não eu. Eu não
posso viver na dúvida se eles estão sendo protegidos, Noah. — Me levanto,
um pouco nervosa. — Benjamin tem todo um futuro pela frente. Tia Riley só
merece luz. E a mamãe já sofreu o suficiente. Eu não quero que eles sofram,
não quero que eles morram, não quero que eles morram como...
— John — Molly conclui. E todos a encaram. — Eu entendo. Eu
entendo a Chloe. Estamos todos em risco, aparentemente, porque temos
ligação com essa história. Eu sou amiga da Chloe. Noah é o Diabo e ‘tá
comendo um lanchinho na minha casa. Brianna está grávida e trabalha com a
Chloe. Thurman's. Todo mundo que tem contato com Chloe parece um alvo
em potencial. A prova disso é que Johnny morreu. Qualquer um próximo, por
pouco que seja, corre risco. Porque querem chamar a atenção, certo? Os tais
rebeldes querem chamar atenção. A família dela, principalmente, seria o jeito
perfeito de atrair a atenção. Eu entendo a Chloe.
O silêncio nos consome pela milésima vez.
— Eu não posso deixar você em risco — Matt diz. — Nenhuma das
duas.
— Então não nos deixe em risco — respondo de imediato. Sinto dor.
A cólica está forte, o remédio não fez muito efeito. — Mas proteja a minha
família.
— E te deixar de lado? Deixar a Molly de lado? Como isso é uma boa
ideia, Mitchell?!
— Não estou te dizendo para nos deixar de lado, Matthew!
— E quem protegeria vocês duas?
— Ele! — Aponto para Noah, que engole em seco. E então Matt
franze o cenho. — Sabe quem aposto que é melhor do que um anjo para
proteger duas garotas? O próprio Diabo.
— Isso é loucura...
— Na verdade, faz muito sentido. — Noah se intromete. Matt o
encara em descrença. — Vamos, Matthew, sei que é difícil para você
acreditar em mim. Ainda é. Mas você sabe que eu sou louco na sua amiga.
Você me ajudou. Você me ajudou com a ideia do Game Boy, por exemplo.
— O.k., me sinto traída. Game Boy ainda é um assunto delicado. Ben nem
deu bola para o meu carrinho. — Porque você sabe, Letterman, sabe que
Chloe e eu somos inevitáveis e que me importo com ela. Eu não confio mais
tanto assim nos meus amigos. Mas eu confio em você para cuidar da família
dela. E você pode confiar em mim para cuidar da sua.
Matthew ri nasalado. Molly e eu o encaramos. Passo a roer o canto do
polegar, ansiosa por uma solução. Há muito o que ser discutido ainda. Eu sei
disso. Mas a segurança da minha família foi uma das primeiras coisas que
pensei acima de tudo.
— Ok. — Matthew se rende. — Eu teria que me afastar daqui, no
entanto. Eu não tenho o poder de migrar de um lugar para o outro com a
mesma velocidade que Noah. Eu teria que ir para Maryville — diz, com
pesar. E eu não o quero longe.
— Há alguma chance da sua mãe e do seu irmão virem para cá, meu
anjo? — Noah me pergunta, ao perceber que nem eu, nem Molly e nem Matt
estamos felizes com a ideia de um afastamento. Mas eu nego.
— A minha mãe é mais teimosa do que eu — respondo, cruzando os
braços. Então Matt suspira.
— Então eu vou ter que me mudar — Matt diz. E eu me sinto
culpada.
— Espera. Deixa quieto isso. A gente pode pensar em outra coisa... —
Me arrependo para cacete.
— Não. Vocês têm razão. Isso faz sentido. — Matthew dá de ombros,
dando um gole da sua cerveja. Molly e eu nos entreolhamos, nervosas,
angustiadas.
— Eu prometo que vou investigar quem está por trás disso
rapidamente — Noah garante. — E se eu conseguir retirar um dos meus
amigos como possíveis ameaças, eu coloco essa pessoa para proteger a sua
família, Chloe. E Matt vai estar de volta em breve.
Cruzo os braços e fito Matthew, me sentindo mal. Molly se aproxima
dele e o beija na bochecha, sussurrando que o ama. Matt ergue os olhos para
mim. E meus olhos ardem.
— É como uma pequena viagem, Chloe — Matt diz e sorri para mim.
— Volto logo.
E é melhor que ele volte mesmo.

Me joguei na cama assim que cheguei em casa ao início da noite, um


pouco desolada. Noah veio comigo. Ele me deu o telefone assim que pedi. E
eu coloquei o aparelho no ouvido, depois de discar alguns números.
— Donna Mitchell, com quem eu falo? — O sorriso cresceu em meu
rosto. Mas eu senti vontade de chorar. De saudade.
— Olha para o céu e me diga, mamãe. — Ouvi um suspiro. E soube
que ela sorria, simplesmente soube.
— Estrelinha. Meu amor, como está? Está bem?
— Sim, sim... Ei, um amigo meu vai morar em Maryville, acredita?
— Jura?
— Sim. Ele se chama Matthew. Posso passar seu número pra ele?
Você se importaria? Ele precisa de alguém para o apresentar a cidade e tal. —
Mordo o lábio, me virando para o outro lado da cama. Noah se senta e eu
acho que ele está esperando a ligação acabar para se despedir e ir embora.
— Claro! Vai ser um prazer, Estrelinha.
— A Estrelinha ‘tá no telefone? — Escuto Ben do outro lado. E a
saudade me transborda pelos olhos. As lágrimas molham o meu rosto. É
inevitável. — Me deixa falar com ela, mamãe! Deixa!
Eu amo Matt. Eu amo muito mesmo. Mas se ele é capaz de proteger a
minha família como me protegeu desde sempre, então prefiro que assim seja.
E, por mais que eu ainda esteja aprendendo a confiar em Noah e no que
sentimos, eu acho que vou ficar bem.
— Oi, Estrelinha — Ben diz e eu sorrio, tentando controlar as
lágrimas. Noah se aproxima, com um vinco de preocupação entre as
sobrancelhas. Ele acaricia o meu rosto.
— Oi, amor... — E a ligação se estende por alguns minutos.
Assim que desligo o telefone, eu me viro para o outro lado da cama,
para que Noah não me veja chorar. E pra piorar tudo, uma onda de dor se
propaga pelo meu ventre. Eu só queria que meu útero explodisse.
— Ruivinha? ‘Tá tudo bem? — Escuto Hellmeister, baixinho.
— Eu odeio cólica.
— É só isso mesmo?
Não. Mas não quero parecer fraca.
— Sim. Cólica é um inferno. Certeza que foi inventada pelo Inferno.
— Bom, não tenho certeza disso, mas posso conferir — Noah brinca e
ri. E então sinto a cama afundar quando ele se deita do meu lado. — Onde
está o remédio que compramos?
— Já tomei. Não está fazendo efeito. — Me acomodo, na tentativa de
fazer a dor passar. Noah afasta o cabelo do meu pescoço e deixa um beijo.
— Por favor, não faz isso... — Soo manhosa, quase prestes a chorar.
— Por quê?
— Porque me faz querer tirar a roupa e ficar de quatro pra você agora
mesmo, e eu não posso — reclamo, irritada. Mas Noah só ri. E então eu sinto
sua mão passar sob meu braço e Noah cola seu corpo no meu. — O que está
fazendo? — Seco as lágrimas em meu rosto com o dorso. Noah beija o meu
ombro.
— Estou te abraçando até a dor passar, meu anjo — ele sussurra. E eu
tenho dois sentimentos fortes no momento: "céus, que fofo." e o "merda, eu
realmente queria transar". Ambos os sentimentos em igual nível de
intensidade. Volto a chorar. E a dor piora, então o choro piora e eu tenho
certeza de que estou na merda. — Sua família vai ficar bem.
— Eu sei. ‘Tô chorando pela cólica. — Minto, de novo. Noah ri
nasalado e me abraça um pouco mais, me deixando mais confortável e
aquecida. Ele deita a cabeça na minha e eu acaricio o seu braço.
— Ok. De qualquer forma eu vou ficar aqui, o.k.? Até a dor passar.
E ele cumpre sua promessa.
Chloe dorme como um anjo, serena. Ela está me abraçando como se
eu fosse um travesseiro. Sua perna está sobre mim e seu braço repousa em
meu peito, sua bochecha esmagada em meu ombro e seus cílios ruivos
imóveis e fechados.
Estamos no seu quarto e apesar das luzes apagadas e das cortinas
fechadas, eu consigo vê-la.
Linda para caralho.
Me pergunto como é possível. Como é possível uma mulher como
Chloe Mitchell ter se apaixonado por mim. Ou simplesmente como é possível
essa ruiva ser tão, tão linda desse jeito.
Suas sardas combinam com as minhas e parece que todo o calor que
meu corpo usa vem dela. Acaricio as suas costas, cobertas pela minha
camiseta social. Quando faço um cafuné, entretanto, a ruivinha se aninha em
mim e se vira de bruços sobre o meu braço, ajeitando a cabeça em meu peito.
Eu serviria de travesseiro para ela por toda eternidade. Eu não me
importo.
Eu realmente não me importo. Na verdade, eu descobri que gosto
disso.
— Está me admirando, querido? — Sua voz me pega de surpresa,
abafada e manhosa. Meu indicador passeia pelas suas costas e ela sorri.
— A culpa é sua de ser tão linda, meu anjo. — Chloe sorri largamente
e ergue seus olhos para mim. — Não mais que eu, mas... — Então rola os
olhos e beija o canto da minha boca.
— Bom dia — deseja, baixinho.
— Bom dia — devolvo em mesmo tom.
Ela se senta após algum tempo lidando com a preguiça evidente e a
minha camiseta social está desabotoada cerca de três botões em seu corpo.
Merda, fica muito melhor nela. Sexy demais.
Faz seis dias desde que confessei que não somos apenas exclusivos,
mas namorados. E eu me arrependo de não ter feito isso antes. É diferente.
Agora eu sei que nenhum outro, no momento, vai ter o coração dela como eu
tenho. Porque somos o que somos.
— Vou tomar banho, ok? Já volto — anuncia. E a casa é sua, então eu
assinto. Ela se espreguiça demoradamente. E se põe de pé. E a visão da sua
calcinha branca sobre a sua bunda me faz morder o lábio inferior com força.
Que bunda...
A dona da bunda me encara por cima do ombro e ergue a sobrancelha.
A camiseta desliza por seu ombro e me recordo de que ela só veste essa
calcinha por baixo.
Meu pau protesta em minha cueca, ele pulsa.
— Quer vir comigo? — Os arrepios são imediatos. Ela não espera
uma resposta enquanto, ainda de costas, desabotoa a camiseta. Botão por
botão. Mordo o lábio inferior com mais força e seus fios ruivos deslizam por
suas costas, sua pela branca e desenhada exposta à medida que o tecido
branco desliza por ela.
A peça cai ao chão.
A sua cintura, bunda e pernas me convidam e eu me levanto de
imediato. A silhueta de Chloe Mitchell é linda. E eu a quero por perto.
Chloe desfila lentamente até o banheiro e eu tiro a minha cueca, a
seguindo. E quando eu entro ao banheiro, Chloe já está ali, dentro do
box. Nua. A água está se aquecendo numa tentativa inútil de ser mais quente
que a ruivinha. Impossível.
— Quer me deixar louco, meu anjo. — Minha voz quase sai em um
rosnar, entredentes, de tão vidrado que estou. Chloe se infiltra debaixo do jato
d'água e me encara em falsa inocência.
— Qual seria a graça se eu não quisesse?
E em um piscar de olhos eu estou em sua frente. E depois sob ela,
depois dentro dela e depois o box se torna embaçado, uma mistura de vapor
quente com o nosso caos ali dentro. Seu pequeno banheiro permite que seus
gemidos reverberem enquanto ela me arranha, me toca e me tem.
Ela me tem.
Pela primeira vez, Chloe se ajoelha aos meus pés. E eu esperei por
isso muito tempo. Mas ela não está realmente sob meu domínio, apesar da
minha mão em seus cabelos e dos meus gemidos ecoando dentro do box,
não... Enquanto a sua boca envolve o meu pau e meus grunhidos escapam,
Chloe tem todo o controle.
O modo como ela me toca e como me chupa é, honestamente,
enlouquecedor. Há mais malícia no seu olhar do que nunca e ela sabe
exatamente do que está fazendo enquanto faz questão me ver fechar os olhos
por prazer. Eu começo a mexer lentamente para dentro e fora da sua boca,
querendo mais e mais... Porra, isso é perfeito.
Ela é perfeita.
Chloe me masturba, seu olhar predador atento ao meu, mostrando que
ela me tem — bem, nesse momento, literalmente — nas mãos, tanto quanto
eu a tenho.
E é isso que eu mais amo sobre nós dois. Nós dividimos poder. No
sexo e no relacionamento. Porque eu aprendi a ceder quando se trata da
ruivinha e ela está aprendendo a confiar e me ouvir mais. Chloe e eu não
tentamos ser melhor que o outro, tentamos ser melhores juntos. Coisa que
Lilith nunca fez. Chloe é, definitivamente, superior.
Não demora muito para ela estar em meus braços e eu dentro dela
novamente, a preenchendo em estocadas frequentes.
Mas, quando o sexo acaba e sua cabeça pende pra trás contra a
parede, seu sorriso maravilhoso e sujo se revela e seus olhos continuam
fechados, eu sei que essa é a melhor parte: saber o que a faço sentir.
O prazer ainda percorre as minhas veias. O sinto pulsando por todo o
meu corpo.
Chloe está sorrindo, as pálpebras pesadas demais aparentemente. A
água quente cobre mais o meu corpo do que o seu, escorrendo por meus
ombros largos. E Mitchell abre seus olhos escuros.
Eu simplesmente consigo sentir o quanto está entregue a mim, entre
meus braços.
— Merda... Eu amo você — diz. Suas unhas arranham a minha barba
por fazer. E eu sorrio, encarando seus fios vermelhos encharcados e as gotas
de água por seu corpo. — Céus, Noah... — Eu rio pela ironia da sentença e
ela faz o mesmo em seguida, unindo a sua boca na minha.
Seus braços me enlaçam pelo pescoço e os meus a abraçam pela
cintura. E então sua boca inchada se afasta da minha. Sua pele está vermelha
pela água que cai. Suas bochechas principalmente. Admiro cada pequena
sarda em seu rosto. São como constelações. As mais lindas que já vi. E é
assim que percebo, mais uma vez, estou entregue em suas mãos. Como sou
pateticamente dela. E como estranhamente amo isso.
— Acho melhor tomarmos banho de verdade antes que o planeta
Terra morra, meu anjo — ironizo. Chloe ri nasalado.
— O planeta e a minha conta bancária. A conta de água vai me foder.
— É a minha vez de rir.
E o resto do banho se segue numa inocência que me surpreende.
Tento lhe roubar alguns beijos, tento repetir o que fizemos há alguns minutos,
mas ela não deixa. Chloe luta para não ceder. Morde o lábio sempre que toco
a sua cintura e beijo o seu pescoço ou mordisco o lóbulo da sua orelha.
Fechamos o registro. E então ela usa do shampoo para criar um topete
em meu cabelo, mas eu interrompo a brincadeira ao ligar o chuveiro. E o
resto do banho realmente segue a sua inocência, como disse.
Infelizmente, como combinado, eu a deixo sozinha na sua casa pela
manhã. Ela quer passar o dia com a Molly e o Matt, afinal, o anjo vai embora
em breve. Mas Chloe casualmente me chama para jantar hoje à noite e eu
tenho muito medo quando ela diz que ela vai cozinhar, porque outro dia ela
contou sobre seus dotes culinários limitadíssimos. Mas eu aceito. Eu,
obviamente, aceito.
— Vamos, a coisa que você mais gosta sobre mim? — ela pergunta,
enquanto entra no meu carro. Eu ligo o rádio baixinho e permito que a minha
mente passeie por lembranças maliciosas.
— Fácil. A sua bunda.
— Jura?
— Sim. A sua bunda é espetacular, amor. — Ela coloca o cinto e me
encara, arqueando a sobrancelha. E então prendo um sorriso maldoso entre os
dentes ao analisar seu vestido preto curto de cima a baixo. — E toda minha.
— Finjo que estou apalpando o ar e ela me estapeia, rindo.
— Não lembro de ter colocado uma etiqueta com o seu nome, idiota.
— Eu arranco com o carro. — Apesar de que eu também gosto de pensar que
a sua bunda também é minha.
— Jura? Gosta da minha bunda?
— Como não gostar? — Sua voz é tranquila, mas perigosa. Rio
nasalado, balançando a cabeça em negação. E avanço com o carro. — Mas a
melhor parte em você é o seu sorriso. — E de repente, me vejo lutando para
não sorrir demais. É o que ela quer.
— Gosto do seu sorriso também, ruivinha. — Me limito em dizer.
O jantar hoje foi pizza... Porque Chloe queimou a lasanha. Mas não
vamos mais tocar nesse assunto. Nem na fumaça que invadiu sua cozinha.
Hoje temos um lugar para ir e fingirmos que somos apenas mais um
casal comum, em um encontro comum. Hoje tiramos o dia para sermos só
Chloe e Noah, sem buscarmos respostas ou fazermos questionamentos. Por
hoje, o mundo é completamente nosso. Completamente. E se ele não sabe
ainda, ele vai descobrir.
— Então... — A minha voz se arrasta em tom de questionamento,
ainda que eu não realmente tenha feito a pergunta. — O que namorados
fazem?
Chloe tira os olhos da janela e me encara.
— O que já estamos fazendo. — Sua resposta me faz arquear uma
sobrancelha e voltar o olhar para o caminho que já trilhamos. — Estava
esperando por um manual de namoro?
— Não seria uma péssima ideia.
— Noah!
— Eu ‘tô brincando, meu anjo! — rio e ela também, mas nossos risos
cessam rapidamente. Chloe acaricia a minha nuca e eu gosto da sensação. —
Eu gosto disso — confesso.
— É. Eu também. — Ao fundo de Crazy Little Thing Called Love do
Queen. Nosso silêncio se estende. O que não é ruim. Na verdade, os
sentimentos se manifestam por nós dois com clareza. O não dito tem muito
significado.
Eu amo esse silêncio.

O carro para num lugar em que conhecemos bem e Chloe tira o cinto
primeiro, aproximando a boca da minha, ansiosa.
— Aqui estamos — digo, olhando para o bairro abandonado, repleto
apenas dos competidores do racha.
— Ainda me deve uma corrida, querido — sussurra.
— Não devo não. Você ganhou.
— Porque você deixou — acusa e eu rolo os olhos, impaciente, mas
Chloe segura o meu queixo e me impede de desviar o olhar. — Hoje não
competiremos um contra o outro. Mas vamos correr um dia. E eu vou te
destruir na pista, meu anjo. — Seu sarcasmo me faz sorrir.
E ela sai do carro. Eu a acompanho.
Nós dois conversamos com Grant, o responsável pela corrida. Ele
pergunta se namoramos e, dessa vez, Chloe me lança um olhar na esperança
que eu responda. E eu confirmo, a amaldiçoando pelo sorriso vitorioso nos
seus lábios.
Vejo a tal Naomi ao lado de Grant murchar um pouco. Talvez ela
gostasse um pouco mais da Chloe do que eu imaginava. Seguro a cintura da
minha ruivinha com um pouco mais de firmeza, sorrindo de canto para a
morena a nossa frente. É como se eu dissesse “minha namorada”. Naomi
percebe o gesto e eu poderia dizer que sinto muito pela garota, mas não é
verdade. Peninha.
Chloe me puxa para si conforme me guia para o carro. Ela me beija,
apenas para roubar a chave do carro em minha mão. Eu não protesto. Ela me
puxa pela mão ao romper o beijo e abre a porta do carona.
— Primeiro as damas — ironiza e eu fecho a cara, mas obedeço.
Entro no carro e ela o contorna, fazendo o mesmo. Ela coloca o cinto e
prende os fios ruivos de qualquer jeito num coque. É a primeira vez que
vamos participar de uma corrida dentro de um mesmo carro, não como
oponentes e com ela dirigindo. Sinto o meu sangue ferver ao pensar em
velocidade e adrenalina, mas, principalmente, que Chloe estará no controle.
Ver de perto a ruivinha no volante, transformando os adversários em
poeira? Isso vai ser divertido.
— O objetivo dessa noite é...?
— Não sei. Senti falta de correr. Seu carro parece potente. Lide com
isso. — Ergo as duas sobrancelhas, surpreso com sua resposta. Ela ri e me
encara. — Eu quero te provar quão boa sou nisso.
— Eu sei quão boa é nisso.
— Vai saber de novo então. E da próxima vez, querido, será eu contra
você. E você vai perder, Noah.
— Vou? — Ergo uma sobrancelha.
— Com certeza. — Ela desvia o olhar e seu sorriso, esticando o braço
que segura o volante. Seus olhos negros e ansiosos estão focados na tal
Naomi, do outro lado, que segura uma bandeira.
E então, a bandeira cai e o carro acelera, junto com outros três. E
estamos na frente.
A velocidade me faz sorrir. Eu gosto disso. Eu gosto dessa sensação
de estar contra regras, de ver a iluminação fraca dos postes passar como
borrão por meus olhos.
Chloe puxa e solta o ar de tal modo que eu sinto o quanto leva essas
corridas a sério, o quanto sente prazer nelas. Seu olhar está completamente
focado na disputa e ele só desvia para buscar o retrovisor. Quando percebe
um carro próximo, ela o bloqueia. E então me encara, quando eu olho para
trás.
O carro está bem perto. Mas Chloe ri, muda de marcha enquanto o
bloqueia. O carro responde ganhando uma velocidade absurda, disparando e
aumentando a sua liderança. E o veículo de trás fica cada vez menor.
Rio nasalado, a encarando. Ela é incrível.
Alguns fios do coque mal feito lhe caem pelo rosto e eu desço meu
olhar por seu pescoço nu, as tatuagens de pássaros, seu colo e seios.
Chloe parece dez mil vezes mais gostosa sob efeito do perigo. E ela já
é muito gostosa.
Mordo o lábio inferior com alguma força enquanto lembro de nós dois
pela manhã. A malícia me escapa:
— Vou foder você dentro desse carro depois da corrida — declaro e
Chloe franze o cenho, deixando um riso escapar ao trocar de marcha e
acelerar ainda mais.
— Você é muito aleatório.
— Se tivesse a vista que estou tendo agora, amor, você entenderia —
garanto.
— Por quê? Estou te excitando? — pergunta, sem me encarar,
concentrada no retrovisor.
— Pra caralho. — Chloe ri nasalado. E após realizar mais uma curva,
sinto que ela vai buscar pela marcha, mas sua mão toca o meu pau, coberto
pela calça. Um grunhido quase me escapa e ela ri.
— Desculpa, me confundi — brinca e volta a mão para a marcha.
Meu pau já está pulsando sob a minha cueca.
— Cuidado com as suas brincadeiras, meu anjo.
— Por quê? Te deixo nervoso? — me provoca, deixando um sorriso
pecaminoso tomar os seus lábios. — Imagina se eu te chupasse durante a
corrida, Noah? — Sinto o meu pau protestar a favor, mas sei que ela está só
zoando com a minha cara. Isso é tortura. — Imagina você dirigindo, as ruas
passando rápido ao nosso redor e a minha boquinha entre as suas pernas,
hum?
— Eu vou te foder nesse carro. — É tudo o que eu sou capaz de
responder.
— E aí você segurando o meu cabelo, como fizemos mais cedo
enquanto eu te mostro do que sou capaz. Já pensou, amor? — Ela me ignora,
troca de marcha e me encara.
Chloe deixa um riso escapar quando eu afrouxo a camisa social em
meu pescoço, sentindo o interior do veículo subitamente mais quente.
— Eu vou te foder nesse carro — repito.
Ela dá uma gargalhada alta e volta a se concentrar na corrida. E eu sei
que eu e Chloe somos feitos de adrenalina, talvez por isso tenhamos
combinado tanto. Porque eu sinto a adrenalina acelerar o meu coração tanto
pela presença dela quanto por culpa da corrida.
Somos movidos por essa energia. Por onde passamos deixamos
intensidade e velocidade. Somos feitos disso. E somos a dose de adrenalina
que o outro precisa. É por isso que damos certo. Porque parecemos mais
vivos juntos.

Eu realmente a fodi no meu carro.


E a cena de Chloe Mitchell de quatro no banco de trás enquanto eu a
fodia fundo não vai sair da minha mente tão cedo.
Mas se éramos fogo há poucos minutos, agora somos calmaria.
Estamos na minha cobertura e Chloe quis saber que porta era aquela
ao fim do corredor no segundo andar. Brinquei que era uma sala de jogos
sexuais, mas ela não acreditou. Então a abri e estávamos no terraço.
E pelo modo como seus olhos brilharam quando ela avistou Nova
York de cima, me arrependi de não tê-la mostrado isso antes. Mas, em minha
defesa, esse lugar não parecia tão bonito sem ela.
Como a ruivinha parece sentir um pouco de frio do topo da cidade, eu
lhe entrego meu paletó e a envolvo. Chloe agradece e olha ao redor. Tem uma
piscina aqui, bem como um pequeno espaço coberto com uma mesa pequena
de jantar e quatro cadeiras.
— Nenhuma chance de a Kold dormir aqui hoje? — ela pergunta,
preocupada.
— Não. Kold está na casa do Sinn. Eu pedi espaço. Ela acha que eu
ainda estou mal pela Lilith, por você e por tudo. Ela respeitou. — Chloe
assente. E então seu olhar vaga pelo céu escuro. — Sabe o que combinaria
perfeitamente nesse segundo? — Pergunto e ela nega, com os olhos em
direção ao Empire State. Sumo ao seu lado e retorno em um piscar de olhos,
com uma garrafa de vinho na mão e o abridor.
— Isso pareceu propaganda de bebida alcoólica — brincou e eu ri.
Nos guiei para a mesa. Abri a garrafa e percebi que tinha esquecido
das taças, mas Chloe o pegou da minha mão e o levou a boca, virando um
gole. Ela me entregou a garrafa depois e eu fiz o mesmo.
— Tem razão, combinou perfeitamente — concorda e sorri para mim.
Eu deixo a garrafa sobre a mesa quando ela me abraça pela cintura. — Ok,
como está a experiência de ter uma namorada após tanto tempo?
— Péssima — brinco. — Não poderia ser melhor. — E seu sorriso
largo mexe comigo. — Nossa, muito bom ter uma namorada que geme tão
gostoso no fundo do seu carro.
— Consegue ser romântico por dois segundos?
Eu ri.
— Não estou mentindo. — A envolvi mais em meus braços. — Você
geme muito gostoso. E é uma boa namorada.
— Boa? Só isso?
— Bom, estamos juntos como namorados há pouco tempo.
— Noah?! Éramos exclusivos, lembra?
— Era diferente.
— Não era não. Você que fingia que era — acusa e eu levo a mão ao
peito, fingindo ter sido atingido. Ela rola os olhos e eu a puxo mais para
perto. Seus dedos acariciam os fios que se encerram ao fim da minha nuca.
Seus olhos esquadrinham o meu rosto e eu imito o seu gesto. — Sem
brincadeiras, ok? Me preocupo contigo. Estou sendo boa com você?
E eu sei o que ela quer dizer. Meu último namoro acabou em morte e
destruição. Mas esse aqui eu não quero que acabe.
— Não. Você não está sendo boa, Chloe Mitchell. Você está sendo
incrível. Você é incrível. — Tento roubar um beijo, mas ela se afasta e segura
as minhas bochechas com uma só mão.
— Está me deixando mal acostumada com tantos elogios. — Seus
braços envolvem o meu pescoço, seu pé desgruda do chão.
— Você merece.
Lembro de quando Chloe roubou totalmente a minha atenção.
Primeiro transamos num banheiro do Purgatorium. Meu coração
acelerou e eu me vi completamente hipnotizado e confuso. Depois a procurei
apenas para ouvi-la me perguntar se eu tinha cismado em encontrá-la porque
"havia broxado e queria outra chance". Inesquecível.
A sua recusa em me dar uma resposta sobre o que ela era, me fez
pensar na ruiva por horas e horas do meu dia. Tanto que a busquei com
tamanha vontade, que a minha mente me fez enxergá-la dançando no prédio
da sua tia. E depois, a vontade de me aproximar foi tão intensa, que nem
percebi quando fui parar diante seus olhos, apreciando o seu espetáculo. E só
me restou aplaudir.
Olhando-me por seus olhos, consigo lembrar de tudo que já vivemos
até aqui.
Sinceramente? Eu não fazia ideia de que seria seu. Eu só queria
entender por que ela me parecia um enigma tão delicioso de tentar desvendar.
Mas agora ela me tem.
— Eu amo você — ela sussurra.
E então, sinto falta de algo. Sinto falta do seu corpo, contra o meu,
enquanto a música nos guia.
— Dança comigo? — pergunto, baixinho. Chloe demora em
compreender, com uma ruga adorável de confusão entre suas sobrancelhas.
— Eu sinto falta de dançar com você, amor. Eu amo dançar com você.
— Com que música? — pergunta, em meio a um riso.
— Eu canto baixinho, você me acompanha e a gente imagina que tem
toda uma orquestra se apresentando pra nós dois. — Seguro a sua cintura e a
guio ao meio do terraço.
A giro pela mão, enquanto cantarolo uma das músicas que mais gosto.
E ela não fazia muito sentido. Até agora.
— It's a little bit funny this feeling inside (É um pouco engraçado esse
sentimento aqui dentro)... I'm not one of those who can easily hide (Não sou
desses que pode se esconder facilmente).
— Eu amo essa música — Chloe me interrompe quando volta aos
meus braços e eu continuo a nos guiar de um lado ao outro, segurando sua
mão e sua cintura. É Elton John, a música se chama Your Song. E eu sei que
gosta dela, porque já a ouvi cantarolar algumas vezes, baixinho.
Eu só consigo sorrir. Então Chloe canta por mim e eu aproximo o
rosto do seu, apenas para ficar mais perto da sua voz. Porque eu amo a sua
voz. Nossas vozes se combinam, baixinhas, enquanto estamos no topo da
cidade.
A giro novamente, mas colo as suas costas em meu peito, analisando
Nova York por cima do seu ombro. Meu nariz percorre a curva no pescoço da
ruivinha, que deixa um suspiro escapar. Chloe relaxa seus ombros, entregue.
E eu amo seu cheiro e como mexo com ela. Amo o seu corpo colado
ao meu e como cada pequeno detalhe seu me torna ainda mais seu. Escuto-a
cantar, tão perto dos meus ouvidos:
— I know it's not much, but it's the best I can do (Sei que não é muito,
mas é o melhor que posso fazer). My gift is my song and this one's for you
(Meu presente é essa música e essa é pra você) — cantarolo, baixinho.
A ruivinha se vira para mim, focada em meus olhos. Ela acaricia a
minha nuca e a corrente em meu peito, enquanto eu agarro a sua cintura e
continuo a nos guiar lentamente, em uma noite que parece ter sido feita para
nós dois.
Passo seus dois braços ao redor do meu pescoço, a puxo mais para
perto pelos quadris, mantendo meu olhar rente ao seu conforme dançamos
devagar, apenas as estrelas e as luzes da cidade que nunca dorme a nos
iluminar. Suas bochechas se coram e ela fita os meus lábios, compenetrada
neles, como se eles fossem a oitava maravilha do mundo.
Roço meu nariz contra o seu, fechando os olhos. Porra, eu amo nós
dois. E amo tê-la em meus braços. Eu nunca imaginaria que o Diabo gostaria
de dançar, mas depois de Chloe Mitchell, muito do que eu acreditava se
queimou e se tornou cinza. Uma parte ruim se foi e renasceu melhor. Por
causa dela.
— And you can tell everybody this is your song — canto, a
mantendo perto. — It may be quite simple, but now that it's done (E você
pode dizer a todos que essa é a sua música. Pode ser bem simples, mas agora
está feita).
Em uma prova de confiança, ela me permite fazer suas costas se
arquearem, porque eu jamais a permitiria cair. E como sinto sua falta demais,
ela retorna aos meus braços rapidamente. Seu corpo se choca ao meu, seus
olhos estão atentos aos meus.
Chloe leva as suas mãos ao meu rosto e o toque faz com que eu feche
os olhos. Como em nosso primeiro beijo, no terraço do prédio da sua tia,
Mitchell colide a sua boca na minha com delicadeza e doçura.
— I hope you don't mind, I hope you don't mind that I put down in
words (Espero que não se importe, espero que não se importe que eu coloque
em palavras) — A música escapa pelos meus lábios, como um sopro, um
segredo só nosso.
E quando abro os olhos e encontro os seus, tão perto dos meus, eu
tenho certeza de que demorei o tempo certo para encontrar a pessoa certa.
A faço rir quando me afasto repentinamente, segurando a sua mão e a
faço girar. Chloe se distancia e fica na ponta dos pés ao dar um giro,
gargalhando quando a busco de volta. E eu volto a unir seu sorriso ao meu,
cessando seu riso.
O Diabo, o seu anjo e um mundo particular, só para os dois. Isso é
tudo o que preciso. É tudo o que quero.
“How wonderful life is while you're in the world”
Quão maravilhosa a vida é, agora que está nesse mundo.
Quando abro os olhos, não estou na minha cama.
Estou no centro de um corredor largo, paredes beges e claras
decoradas com rodapés de ouro e as mais belas gravuras de anjos decorando
o teto, em mosaicos impecáveis.
Estou no Palácio dos Céus.
Fito o chão. Há lírios brancos por todo o piso, sob meus pés inclusive.
É como uma trilha para algum lugar, um lugar que clama por mim. Talvez a
porta-dupla branca ao fim do corredor.
E consigo ouvir a sua voz. Consigo ouvir o seu riso e a sua voz me
chamando, então me sinto tentado a caminhar. "Me pergunto como entre
tantas possibilidades, eu e você acontecemos", a voz soa sedutora.
Então eu começo a caminhar.
Sigo pelos lírios e sob os olhares atentos dos anjos, escutando a voz
calma e tranquila me chamar. Quando olho por cima do ombro, vejo que atrás
de mim há um breu absurdo e as flores desapareceram.
Só há flores a frente de mim.
Consigo ouvir a minha respiração pelo lugar.
— Vamos brincar, Noah? — A voz é infantil. É um menino. Theo.
— Agora não, Theo. — É a minha voz. — Mas quando eu voltar, eu
brinco, o.k.?
— Promete?
— Uhum, claro.
Nós não voltamos a brincar. Nossos pais morreram. Theo e eu nos
tornamos desconhecidos. Tudo tão errado.
Continuo a caminhar e meus olhos se tornam marejados. Meu coração
pesa e eu sinto o ar começar a me faltar. Minha boca está seca, minhas mãos
estão trêmulas e eu foco na porta a minha frente.
— Eu amo você. — É a minha voz. — Nada é como você, Lilith. Você
é perfeita. Eu amo você.
— Então prove.
— O que quer que eu faça? — As lágrimas rolam livres pela minha
face ao lembrar. O sangue arde em minhas veias e eu deixo o choro escapar
com pesar, com o meu peito dolorido. — Como posso provar isso? Por que
não pode só acreditar no que eu sinto?
— Porque palavras não me bastam, Noah. Eu sinto que estou
perdendo você. Sinto que não confia em mim o suficiente. Sinto que me
esconde coisas demais. — Estou há poucos passos da porta agora. — Preciso
de algo maior que palavras. Mais forte que palavras.
— Como por exemplo?
— A caixa.
Fui tão burro. Tão estúpido! Claro que Lilith não me amava. Como
amaria?
Ela queria o poder. Eu fui útil para ela. Eu fui uma peça em seu jogo,
o que ela precisava para fazer o xeque-mate e derrubar reis e rainhas, ganhar
poder. Toda a culpa foi minha, ela está completamente certa. Se eu fosse mais
inteligente, se eu tivesse me afastado, se eu tivesse percebido... São tantos
"se", tantas merdas que fiz, tantos erros.
Tantos erros.
— Então para você, a vida faz sentido porque tem um início, meio e
fim... E eu sou o seu sentido... — É a Chloe. Acelero os passos porque isso é
torturante.
— Chloe...
Finalmente toco as maçanetas da porta.
— Porque eu também tenho um início, meio e fim, Noah. Porque um
dia eu vou acabar. — Ouvir isso de novo faz um nó se formar em minha
garganta. E eu abro a porta.
Lilith está sentada num trono. Um manto lhe cobre os ombros, um
vestido escuro como a noite com detalhes em ouro lhe cobre o corpo. Uma
coroa lhe pesa na cabeça, grande e levemente folgada, levemente caída, mas
Lilith a sustenta de queixo erguido, segurando um longo cajado de ouro.
Luke, Theo, Sinn e Kold estão ao seu redor, seus olhos enevoados,
como se estivessem sob seu controle.
Mas minha atenção é para a pessoa a sua frente. Chloe está ajoelhada
ao chão. Ela está chorando e seus olhos estão cravados em minha direção. Há
uma coroa de espinhos em sua cabeça e algemas em seus pulsos. Em seus
tornozelos, correntes que a prendem a um peso no chão. É como se ela fosse
a prisioneira da loira no assento elevado.
— Bem vindo, Noah — Lilith diz, com uma voz melódica, felicidade e
sarcasmo lhe transbordando a cada sílaba. — Me pergunto como entre tantas
possibilidades, amor, eu e você acontecemos.
— Lilith... — imploro por piedade. Escuto Chloe chorar baixinho e
faço menção de me aproximar, mas um simples erguer de sobrancelha do
anjo no trono me faz parar.
Lilith ri nasalado.
— Sabe, Noah... Você queimou o meu lírio, você me queimou, você
queimou o Reino dos seus pais... — Lilith contabilizou, sorrindo. — Me
parece que tudo o que você ama... — Ela se levanta, com o manto vermelho
se arrastando pelo chão, conforme desfila em minha direção, passando direto
por uma Chloe em sofrimento. — Queima.
Ela estala os dedos, sorrindo. E de repente Chloe grita, em desespero,
quando fogo começa a consumir as suas roupas. Ela grita por mim, ela clama
por mim e pede socorro. E eu tento correr em sua direção, mas me sinto
arremessado para longe. Caio ao chão, tentando me arrastar em direção à
ruivinha, vendo seus olhos negros brilharem de medo enquanto ela queima e
grita...
Então eu acordo.
Respiro fundo, sentindo o meu corpo estremecer. Meu nariz está
próximo do pescoço de Chloe e minhas mãos estão suando ao redor do corpo
dela. Mitchell dorme com tranquilidade, e meu coração bate acelerado perto
dela. Sinto uma lágrima deslizar por meu rosto e a observo descansar.
Há um vinco entre suas sobrancelhas, como se estivesse em um
pesadelo. Deixo um beijo em seu ombro, a abraçando um pouco mais forte.
Seu perfume me atinge e eu sinto o meu corpo relaxar minimamente.
Ela está bem.
Ela está viva.
Ela está comigo.
E quando volto a olhar o seu rosto, ele está sereno, completamente
relaxado. Mas eu não. Eu estou tendo dificuldade para respirar, porque estou
com medo. Estou com medo por ela. Estou com medo. Muito medo.
Não quero que ela acorde e perceba o meu estado, então me
desvencilho com cuidado e saio do meu quarto, caminhando até o meu
banheiro. Tomo um banho, saio de lá com cuidado, percebendo quão cansada
Chloe parece estar, ainda dormindo.
Abro o armário e troco de roupa, tentando ser o mais silencioso
possível. Alcanço uma agenda pequena sobre a minha mesa e escrevo um
recado, arrancando a folha e a deixando na mesa ao lado da ruivinha. Espero
que ela veja. Não me sinto confortável em deixá-la sozinha, mas não quero
que me veja mal.
Tudo o que o papel diz é para que ela se sinta em casa e que eu tive
que sair para resolver algumas coisas. E em um piscar de olhos, estou na rua,
dentro do meu carro. Longe da presença dela, meus lábios tremem, eu suspiro
e deixo a tensão escapar com o ar, deitando a cabeça sobre o volante.
Eu preciso fazer algo logo. Eu preciso descobrir quem está me
traindo. E destruir qualquer chance de a Lilith escapar. Por mim. Mas
principalmente pela Chloe. Principalmente, por ela. Ou eu nunca poderei
ficar ao seu lado.
Procurei, no fundo da minha mente, por Kold e ela estava no bar.
Luke estava saindo de casa. Matt estava num apartamento novo em
Maryville, perto o suficiente da família da Chloe. Chloe ainda dormia. Molly
estava tomando café com Brianna no Thurman's.
E Sinn estava no alto de um prédio de Nova York, sentado, na beira
do mesmo, com o olhar vago sobre o abismo perante seus pés.
Surgi logo atrás dele e ele simplesmente sentiu a minha presença,
porque riu nasalado. A garrafa de whiskey ao seu lado reluzia contra os
primeiros raios de sol da manhã.
— Me liga e me diz que não preciso mais proteger a família da Chloe
— ele começa. — Então pergunto o que devo fazer para te ajudar e você
diz... — Sinn ri. — Nada. — Continuo parado, o analisando, ainda que de
costas para mim. — Eu tentei fazer com que ela te perdoasse, Noah. Eu tentei
uma conversa. Eu juro que estou tentando te ajudar e que quero te ajudar.
Mas é difícil ajudar o meu melhor amigo quando ele não quer que eu o ajude,
quando ele não confia em mim.
— Quem disse que eu não confio?
— Você não confia, Hell. — E eu fico sem palavras, porque é
verdade. — Digo, eu sempre soube... No momento em que algo saísse do
lugar, eu seria a primeira pessoa que você olharia estranho. No momento em
que precisasse desconfiar de alguém, Noah, eu seria esse alguém.
— Teria os meus motivos de desconfiar, não? — Me aproximo dele e
me sento ao seu lado. Sinn só ri nasalado e vira a garrafa contra a sua
garganta. — Eu não te culpo pelo que aconteceu contigo, porque eu sei bem o
poder que aquele monstro tem sobre corações vazios. E é exatamente por isso
que eu teria os meus motivos para voltar a desconfiar de você.
— Você nunca esqueceu o passado.
— Não. Esquecer o passado é um erro. É apagar a nossa história.
Você quer saber se eu te perdoei.
— E me perdoou?
— Não. — Sou sincero e Sinn me encara. Forço meus olhos pela luz
do sol, analisando Nova York de cima. — Mas eu tento. Só que é como você
disse, Sinn... É complicado confiar em você sob essas circunstâncias. Não
impossível, mas difícil. E ainda assim, eu vim aqui, porque eu preciso que
venha comigo. Há algo que preciso fazer e...
— Não. — Ele se nega e eu me surpreendo, o encarando. — Do que
adianta eu estar do seu lado se não confia em mim, Hell? — Ele ri, sarcástico.
— Está praticamente confessando que não confia em mim, na Kold, no
Luke... Isso é um absurdo. Somos sua família desde sempre. E você está
duvidando da sua família.
— Lilith era a minha família também, Sinn. E deu no que deu. Você
sabe bem disso, não é? — Ele se cala e eu me levanto, recuando alguns
passos. — Aproveite a vista da cidade, pense direito e, se quiser, procure por
mim.
— Por que está pedindo por minha ajuda se não confia em mim? —
repete a sua pergunta.
Mantenha seus amigos perto. E seus inimigos mais perto ainda. Não
sei definir quem é amigo, quem é inimigo..., Mas estarei de perto, estarei de
olho. Contudo, quando Sinn olha para trás, demandando por uma resposta, eu
desapareço.
Surjo em outro lugar.
— ORA, ORA! — Kold me faz rir assim que piso no Purgatorium
vazio. Meu riso, entretanto, é forçado. — Quem é vivo sempre aparece! —
Caminho em direção ao bar. Koldelium está sentada num dos bancos do bar,
a pose interrogativa com um copo de uísque em sua mão. São oito da manhã.
E ela está bebendo. — Posso saber onde estava esse tempo todo?
— Não. Não pode. — Minha fala a contraria e eu deixo um sorriso de
canto escapar. — Sinn não quis vir. Sabe por quê?
— Bom, depois de visitar a Lilith, você sumiu e só lembrou que a
gente existia com uma ligação para que Sinn parasse de vigiar a família da
sua ruivinha... Sinn ficou um pouco puto. — Franzo o cenho. — Ele disse
que não sabe o que você quer da vida, dele e de tudo mais... Ele acha que
você esconde algo. Ele quer saber o que você conversou com a Lilith..., Mas
sabemos que você, provavelmente, não vai nos dizer tão cedo.
— E ele ficou puto por isso?
— Bom, somos sua família, não? Não gostamos de ficar às cegas. E,
ultimamente, Noah, suas decisões nos deixam cada vez mais confusos. Suas
ações nos confundem. Uma hora você diz "foda-se, Chloe Mitchell", na outra
você bate na casa de um anjo pedindo por ajuda para reconquistá-la. Numa
hora você quer resolver tudo de uma vez e descobrir quem está por trás de
tudo, e na outra você desaparece e não fala porra nenhuma.
— Uau... Você realmente ‘tá chateada comigo, huh?
— Sim. Acho que todos estamos chateados. E preocupados. Eu
realmente sinto falta de, sei lá, entender você. Ou achar que entendo. — Rio
nasalado. — Eu não ‘tô brincando, Noah. — Ela cerra seus olhos azuis e eu
mordo o lábio inferior.
Então rio novamente, um pouco incomodado.
— Pensa comigo, Kold... Bem conveniente Sinn querer saber tanto o
que eu conversei com a Lilith, não é? Ele está sentindo saudades dela? —
ironizo, percebendo que irritei Koldelium mais ainda.
— Está desconfiando dele? — Não respondo, acenando para um
funcionário que está ajeitando o bar e pedindo por um drink. — Espera,
Noah... Está desconfiando da gente?
— Eu não disse isso — digo, simplesmente. Mas também não neguei
nada. Kold faz o copo se chocar com a bancada do bar e aproxima o rosto do
meu.
— Sim ou não, Hell?
— Eu estou desconfiando dele, Kold. Pode ter certeza disso —
garanto, sem dizer se também desconfio dela. E sim, eu desconfio. — Mas ‘tô
desconfiando de outra pessoa também. Mais do que de todo mundo.
Os lábios de Kold se tornam uma linha reta, suas sobrancelhas se
unem e ela parece aguardar por um nome, por mais alguma informação.
Talvez Koldelium esteja ponderando se estou falando dela. Sempre gostei de
pensar que conseguia interpretar Kold como ninguém e ela conseguia fazer o
mesmo comigo. Contudo, agora, olhando nos seus olhos, não sei definir o
que significa esse brilho neles. Medo? Tristeza? Curiosidade?
Respiro fundo, ainda buscando por qualquer coisa em seu rosto que
me diga se ela poderia, algum dia, me trair. E então acrescento:
— Você tem cinco minutos para fazer decidir se vai me seguir, Kold.
Luke está nos esperando no Inferno.
Dou as costas, caminhando até a minha sala. Fecho assim que passo
por ela, ainda sentindo a ansiedade absurda que me persegue desde que
acordei.
Pego um maço na mesa e retirei um cigarro, o colocando entre meus
lábios e fazendo o cigarro acender sem nem precisar de um isqueiro. O trago,
sentindo meus ombros tensos relaxarem minimamente, mas meus dedos
ainda estão trêmulos contra a droga.
É bizarro olhar nos olhos da Kold e duvidar dela. É bizarro duvidar
até da minha própria sombra.
Koldelium me conhece há muito tempo e me ajudou a me manter
firme quando eu cogitava sucumbir, acabar com a minha vida de uma vez,
desistir de comandar o Inferno. Kold me manteve firme. E mesmo assim,
desconfio dela.
— Estou pronta. — A porta se abre e eu me viro, dando de cara com
uma Kold extremamente séria. Levo o cigarro por entre os lábios novamente
e desvio o olhar.
Em um piscar de olhos estamos no Inferno. A porta do palácio está
perante nossos olhos e eu entro no lugar sem nem olhar para a morena ao
meu lado. Kold só me acompanha.
Theo está sentado sobre a escada, conversando com Luke. Eu aceno
com a cabeça para que me sigam e eles me obedecem. Então caminhamos
para a biblioteca, enquanto o meu irmão mais novo pergunta a cada dois
segundos o que vamos fazer. Trago meu cigarro em silêncio.
Abro a porta, deixo todos passarem, mas quando Theo passa por mim,
eu levo o cigarro entre meus dedos à boca com uma mão e puxo o meu irmão
com a outra. Minha mão vai em seu pescoço e eu o pressiono contra a porta
com força.
— NOAH! — Kold exclama, assustada. Sinto meus olhos queimarem
e os vejo vermelhos pelos olhos escuros do meu irmão. E os olhos de Theo
ameaçam se tornarem vermelhos também, conforme ele fica cada vez mais
roxo.
Theo não vai morrer pelo que estou fazendo, mas ele está sofrendo.
— Que porra você ‘tá fazendo, Noah?! — Luke faz menção de andar
até mim, mas eu ergo a mão em sua direção, para que pare. — Está louco? É
o seu irmão, Noah. Você ‘tá machucando ele.
Retiro o cigarro da minha boca com a mão livre e a fumaça sai pelas
minhas narinas.
— Confesse — sussurro, o rosto próximo ao do garoto contra a
parede. — Confesse que ao menos sabe quem entrou na biblioteca e roubou
as páginas da Chloe, confesse.
Ele abre as suas asas e tenta aplicar força para se afastar da porta, para
reagir. Isso me deixa furioso e piora a sua situação, porque eu o prendo ainda
mais.
— De que porra está falando, cara? — A voz do meu irmão sai por
um fio, ele está mais vermelho do que nunca e seus olhos lacrimejam. —
Para, por favor!
— Hell! — Kold me chama e eu aperto mais a mão ao redor do
pescoço de Theo. — PARA COM ISSO, NOAH! — Ela se aproxima e
segura o meu braço com força, me empurrando para longe do meu irmão. O
garoto cai ao chão, com as mãos contra as marcas deixadas em seu pescoço.
— Enlouqueceu? — Koldelium se ajoelha ao lado dele, segurando seus
ombros, os acariciando numa tentativa de confortá-lo.
— Vou te dar uma chance, Theo! — Elevo a voz, caminhando para a
minha mesa e retirando dali o livro com o nome de Chloe Mitchell. Faço o
livro cair perante seus olhos, pesado. Theo ergue o olhar carregado de cólera
para mim, ofegando como nunca. — Como essas páginas sumiram daqui?
— Eu não sei! Já conversamos sobre isso antes, eu não sei! — Theo
responde e eu trago o meu cigarro novamente. Rio nasalado, umedecendo o
lábio inferior em seguida. E depois me ajoelho perante os seus olhos.
— Sabe qual a porra do problema, Theodor? — Seguro o seu queixo
com firmeza, enquanto ele me encara com medo. — Você deveria saber. O
Inferno era responsabilidade sua.
— Porque você gasta seu tempo brincando de ser humano. — Ele ousa
me desafiar. E isso é o que basta para a minha paciência se esgotar. Esmago o
cigarro contra o chão e cerro os olhos em sua direção, apertando meus dedos
ao redor do seu rosto com apenas uma mão.
— Eu não quero te matar, Theo. Mas se me responder assim
novamente, eu vou querer muito te fazer sofrer — garanto. Vejo um lampejo
de medo por seus olhos. — Deixe-me tornar tudo ainda mais claro: foda-se se
eu estava na Terra ou não. Se estou longe daqui, é seu papel cuidar do
Inferno. Essa biblioteca faz parte deste Reino. E algo sumiu dela. Não foi sob
minha vistoria, eu tenho certeza, porque isso jamais aconteceria sob o meu
nariz. E, ultimamente, venho me perguntando se eu confio em você, Theodor.
— Tenho certeza de que estou sendo o mais claro possível. — Estou te dando
a chance de confessar tudo e sair livre, agora mesmo. Contudo... Se você
escolher o silêncio e eu descobrir que você é um traidor, Theo, que você
roubou as páginas da Chloe, eu mesmo vou te punir na frente de todos os
meus demônios. E depois, Theo, eu vou te matar. Porque é a conduta padrão
com traidores e eu não vou abrir uma exceção para você, maninho.
— Noah... — Kold pede por misericórdia e eu não a encaro. Ela se
levanta e caminha até Luke, murmurando para ele fazer algo, porque eu estou
"assustando o garoto". A piedade de Koldelium com Theo sempre me
pareceu um porre.
— Se eu descobrir que você fez isso, Theo — continuo. O garoto
engole em seco. — Ou que ajudou alguém a fazer isso... A sua cabeça vai
cair. Eu ‘tô sendo claro? — pergunto. Theo não responde. — Eu ‘tô sendo
claro? — repito, lentamente, muito impaciente.
— Sim, Noah — ele me responde baixinho, desviando o olhar
marejado para Luke e Kold, atrás de mim.
— Ótimo. Teve algo a ver com isso? — Meu indicador toca o livro no
chão. Theo engole em seco, direcionando o olhar para os meus amigos
novamente. Ele demora longos segundos e eu analiso o seu rosto, buscando
qualquer coisa que me seja uma pista. — Teve?
— Não. Não tive. — Theo volta o olhar para mim. Um olhar
carregado de raiva.
Solto o ar pelo nariz, sem ter certeza se acredito. De qualquer modo, a
minha promessa está feita. E se eu descobrir que ele mentiu para mim, ele
está fodido. Me levanto, pegando o livro de volta. Estendo a mão para Theo,
que ainda puto, hesita em aceitá-la. Mas aceita e eu o ajudo a ficar de pé.
Dou um passo a frente, ficando próximo dele.
— Você vai dar atenção triplicada a todos os cantos desse lugar —
ordeno, entredentes. — Se você tiver a menor dúvida de traição, vai me
comunicar. Me comunicar. Eu, Noah. Mais ninguém. Estou sendo claro? —
Theo confirma. — Bom. Se eu confirmar a traição, você vai avisar a todos
que a porra da guilhotina está de volta. Outra coisa... — Continuo a fitar os
seus olhos. — Eu não sei como vai fazer isso, mas não quero ninguém perto
da masmorra da Lilith e se eu souber que alguém violou essa ordem, você
sabe o que fazer. E se eu descobrir que esse alguém foi você... — Deixo a
ameaça pairar no ar e Theo engole em seco.
Dou as costas e caminho para a minha mesa, devolvendo o livro para
onde ele estava. Kold me encara furiosa e Luke está sério enquanto caminha
para Theo, perguntando se ele está bem.
Estou farto de jogos. Sinto que tem alguém me apunhalando pelas
costas. E não há princípios que me impeça de descobrir quem está colocando
a vida da Chloe e de quem ela ama em risco. Tem alguém ameaçando o que
eu tenho no momento, querendo me destruir.
Talvez seja Theo. Talvez Sinn. Talvez Luke. Ou até mesmo Kold, que
mantém o seu olhar conectado ao meu nesse segundo.
Eu não vou me permitir ser destruído. Eu vou descobrir quem está
ferrando a minha vida no momento. E não sei se me importo em testar
diferentes planos para isso. Principalmente em testar os piores possíveis.

— O que houve? — É o que Chloe pergunta assim que eu abro a porta


para ela. Ela passa por mim apressadamente e joga a sua mochila no sofá, se
virando em minha direção. Seus olhos estão atentos aos meus. — Matt disse
algo? O que aconteceu? Tá tudo bem contigo?
Eu liguei para a casa dela dizendo que precisava dela aqui. Depois de
eu ter perdido o controle com Theo, Kold disse que vai ficar na casa do Sinn
até a reforma no apartamento ficar pronta. Luke comentou algo sobre visitar
o Matt e eu não sei se aprovo esse relacionamento, mas não é algo em que
possa me meter. Meu medo é que Luke afete a razão de Matthew.
Eu me vi sozinho. E não tenho muito em quem confiar. Por isso, eu
passei o dia inteiro nervoso, querendo alguém que simplesmente me escute.
Porque eu não confio quase ninguém. No momento, na verdade, eu só confio
na Chloe.
E eu ainda escondo coisas demais dela — tenho meus motivos para
tal —, mas eu sinto que posso confiar nela. Totalmente. O que, às vezes,
meio que me assusta também, pois eu sentia o mesmo sobre a Lilith. E eu
evito comparar as duas, mas isso acontece. As duas foram as únicas que me
fizeram sentir trilhões de coisas diferentes e numa intensidade absurda.
— Noah, o que houve? — Ela demanda por uma resposta e eu fecho a
porta atrás de mim.
— Contei para Sinn que não confio nele. Para o Theo também. Eu
fodi tudo. Kold e Luke provavelmente já sabem que eu desconfio deles
também. — Chloe engole em seco, porque eu realmente fiz merda. E então
meus olhos ardem. — Eu sonhei com a sua morte.
Um arrepio percorre a minha espinha e eu projeto o meu queixo para
frente, tentando não chorar. Não sei o que Chloe fez comigo, mas ela fez esse
meu lado vulnerável querer se expor cada vez mais. Eu não costumava
demonstrar tanto os meus sentimentos. Eu os empurrava para um canto na
minha mente. No momento, para ser honesto, sinto falta disso.
— Eu sonhei com a sua morte — repito e Chloe descruza os braços,
escondendo as mãos nos bolsos. — E eu surtei. Eu ‘tô surtando, Chloe. Eu te
vi queimar até a morte.
Ela nem se move. Chloe desvia o olhar, desconfortável com a imagem
que provavelmente se forma na sua mente. Ela abraça o próprio corpo.
— Não sei o que fazer. Eu não sei nem por onde começar. —
Caminho em sua direção e me sento no sofá a sua frente. — Eu não sei como
descobrir quem ‘tá fodendo tudo. Eu não sei.
— Noah...
— E eu não quero perder você. — Chloe ergue as duas sobrancelhas e
eu me aproximo, um pouco nervoso. — Eu odeio isso! Eu odeio te colocar
em perigo. Eu me sinto egoísta pra caralho, Chloe.
— Ok... — Ela espalma as mãos, se aproximando e segurando os
meus ombros. — Calma.
— Eu sou louco por você, meu anjo. Você foi a melhor coisa que me
aconteceu, mas você merece mais do que amar o Diabo e ficar com ele,
envolvida nisso tudo. Por que raios você? Por que você?
— Do que está falando, Noah?
— Por que com tantas pessoas ruins no mundo, justo a melhor pessoa
foi se apaixonar por mim? A melhor está sofrendo e vai sofrer por mim? Por
quê? Por que você? — Chloe me cala com um beijo. Eu a afasto. — Meu
anjo, eu...
— Não vai terminar comigo! Eu sei a loucura em que estou metida.
— E voltou a pressionar os lábios contra os meus. Mas ela não entende. Ela
não imagina a dimensão de tudo. E meus ombros relaxam, mas meu coração
pesa. Chloe se afasta, alisando o meu rosto. — Respira e me diz o que você
fez.
— Eu acho que saí do controle — confesso. — E acho que posso
piorar. Eu acho que posso ser mau, Chloe. Eu não sei como descobrir quem
‘tá me traindo, o que fazer... Eu ‘tô com medo de te perder e de me perder no
processo, eu... Eu enforquei o meu irmão. — Chloe se afasta levemente e
disfarça muito mal a surpresa em seus olhos. — E briguei com a Kold. —
Rio, sem humor. — Eu enforquei o meu irmão — repito, percebendo o quão
grave isso soa. — Porque eu achava que ele estava me traindo e...
— Certo. A gente pode criar algumas regras então: "nada de
machucar ninguém sem ter certeza do que aconteceu".
— Isso possivelmente vai acontecer, Chloe. Alguém vai se ferir nessa
situação. — E ela se afasta. — A cada segundo em que o tempo passa,
alguém corre mais risco se ser vítima. E não sabemos que porra fazer! —
Elevo o tom de voz. — Não sabemos que plano começar, como e que pessoa
investigar primeiro. Não sabemos porra NENHUMA! É possível que eu
tenha que manchar as minhas mãos de sangue. Na verdade, é mais do que
certo. É como uma guerra, Chloe. Uma guerra em que não conhecemos todos
os inimigos, mas uma guerra. E entre batalhas, há morte. E, provavelmente,
mortes injustas.
— Então o quê, Noah? Vai matar e sair socando todo mundo, sem
saber quem é o culpado? — ela me pergunta e eu rio. — A gente precisa ter
calma!
— O TEMPO ESTÁ PASSANDO, CHLOE. — Sinto raiva por estar
gritando com ela. A ruivinha não tem culpa disso. Mas eu sinto tanto ódio por
essa situação que me transborda e eu preciso colocar para fora.
— Eu sei, Noah. E eu corro mais riscos que você.
E então o silêncio nos toma.
Sinto meus olhos arderem e grunho, bagunçando o cabelo. Chloe, por
sua vez, engole em seco, com seus olhos vermelhos. E eu sinto que a
machuquei de algum modo.
— Ok, me desculpa... — Enquanto tento me aproximar, ela não se
mexe. Seguro a sua cintura e a ruivinha me analisa.
— Quando eu disse que eu amo você, Noah, eu quis dizer isso.
Porque eu realmente sinto isso. Se você precisa gritar, vá em frente. — Chloe
se senta no sofá, passando reto por mim. — Grite e destrua a sua casa inteira.
Surte. Surte o quanto puder. Vou estar aqui, assistindo você simplesmente
agir como um humano. E ok, você não é um, mas eu acho normal para o
Diabo ter sentimentos. Eu acho normal que sentimentos nos extrapolem.
Então, surte. Grite. Quebre cada um dos móveis. E eu vou estar aqui.
Esperando que... — Ela ri, sem humor. — Finalmente, consiga se sentir leve
o suficiente para pensar e me ouvir. — Quando a sua voz falha, o meu
coração parte. Chloe está sofrendo em me ver assim. E eu a machuquei.
— Para que me deixe ajudar.
— Ajudar? — pergunto. Chloe assente, vagarosamente. Ela quer
investigar a situação comigo. — De jeito nenhum.
— Noah...
— Não, Chloe.
— Se eu ‘tô nessa guerra, eu preciso lutar.
— NÃO, CHLOE! — Decido por nós dois. E a ruiva ri. Ela respira
fundo para manter a calma e eu mordo o lábio inferior com força, irado com a
possibilidade de vê-la em perigo. — Não.
Chloe se levanta.
— Então eu aceito e espero o pior acontecer, porque o meu namorado
não quer a minha ajuda? — O modo como ela me olha dói.
— Chloe...
— Eu não quero brigar, Noah. Mas essa guerra não é só sua há algum
tempo. John morreu, eu corro risco, minha família corre riscos... Meus
amigos. Não é só sobre você.
— Mas eu preciso resolver isso.
— Só você? O mundo não gira em torno de você, Noah. Não é
responsável por tudo, não precisa consertar tudo. Precisa ter algo que eu
possa fazer. — Vejo frustração correr por seus olhos. De algum modo, é
como se eles silenciosamente me implorassem para que eu concorde com ela.
Mas eu não consigo. E acho que ela percebe isso, quando suspira, parecendo
exausta. Seus ombros descem, seu olhar se torna mais perdido. — Eu posso e
quero, mais do que tudo, ficar aqui e te ouvir surtar, gritar, desabafar... Quero
ficar do seu lado, Noah. Até que consigamos pensar em algo juntos,
discutirmos tudo isso como o casal que somos. Mas precisa me deixar te
ajudar, amor. E negar isso é a mesma coisa que me mandar ir embora.
Seus olhos me analisam e eu sei que ela espera por uma resposta. Eu
não quero que corra perigo, não ainda mais. Só queria conversar, tê-la por
perto. A última coisa que preciso é que ela banque a detetive e seja lá quem
tiver como alvo coloque suas mãos nela. Então tudo que lhe dou é silêncio. E
isso parece ser uma resposta suficiente, porque ela gira em seus calcanhares
com pesar e alcança a sua mochila, sobre o sofá.
— Então é isso, vou para casa. — Chloe evita fitar os meus olhos.
— Não. Meu anjo... — Toco a sua cintura e ela toca os meus pulsos.
— Eu vou para casa e se você perceber que precisa de mim de
verdade, tanto quanto eu preciso de você, você sabe onde me encontrar. —
Lágrimas escapam por seus olhos e ela suspira, revelando o quão cansada
está. — E eu volto para você no mesmo segundo, porque eu ‘tô contigo
nessa. Mas eu não vou brigar com você, Noah. Eu não estou pedindo sua
permissão para entrar numa guerra na qual já estou inserida. Eu ‘tô tão
perdida quanto você. — Merda, Chloe está chorando. — Mas eu vou fazer
algo sobre isso, você queira ou não. Estou tão disposta a lutar por você
quanto está disposto a lutar por mim. O meu ponto é: poderíamos fazer isso
juntos.
Abro a boca para explicar que isso não daria certo, que eu não quero
colocá-la em risco. Mas Chloe sabe disso tudo. Mitchell espera que eu ceda e
aceite sua proposta. Mas, logo depois, percebe que não vou voltar atrás. Ela
só beija o canto dos meus lábios, seca as lágrimas com o dorso da mão e vai
embora.
Eu observo a única pessoa em que confio no momento sair da minha
casa e a porta se bate.
E eu me sinto sozinho. Vazio.
Eu me sinto perdido.
É a quinta ou sexta vez que ligo para a casa do Noah e ele não me
atende. Eu não posso ligar para o Purgatorium, uma vez que ninguém lá pode
saber da gente. E eu me sinto angustiada.
Acho que eu fiz besteira.
Eu sinto uma tensão em meus ombros, medo. Desconfio que estou
sendo deixada por fora de algo. Eu estou no meio de uma guerra sem saber
como lutar, quais armas escolher. E para piorar a situação, eu tô apaixonada.
O que faz a minha razão perder as forças.
E também sinto que Noah ainda me esconde algo. O que me deixa
angustiada. Tento me convencer que é coisa da minha cabeça e que confiar
nele vai ser um processo. "Vamos, Chloe, não é todo dia que você descobre
que o seu namorado é o Diabo!", eu penso. Ou "todo relacionamento é feito
de confiança e construído aos poucos".
Eu não sei definir o que eu sinto. É como se todas as angústias que
sinto fossem fios, embolados, presos uns nos outros, formando um nó na
minha garganta.
Às vezes eu quero gritar.
Às vezes que quero chorar.
E, às vezes, eu sinto que Noah se envolveu com a pessoa errada e não
o contrário. Ele deveria ter se apaixonado por um anjo ou um demônio,
alguém capaz se envolver nas suas lutas e de estar do seu lado sem
desmoronar.
Porque quando eu o vi naquele dia, no seu apartamento, eu senti que
estava desmoronando mais do que ele. Eu senti que era demais para mim. Vê-
lo mal me fez querer sumir ou morrer ou sei lá, virar pó, qualquer coisa.
É bizarro.
Eu o amo tanto que nem consigo compreender. É assustador. E eu não
sei como agir. Principalmente, quando amar alguém torna todo o meu mundo
um perigo constante. Eu me sinto como uma presa amarrada contra uma
árvore, exposta a predadores, sem ter como se defender ou saber quem o
caça.
E para piorar tudo... Falta uma semana para o meu aniversário.
Significa a última semana de vida da minha identidade falsa, bem como uma
semana para uma nova visita ao Tennessee.
Além de lidar com um namorado demoníaco, preciso visitar a minha
família e manter as aparências.
E minha mãe só fala disso.
Tia Riley só fala disso.
Ben só fala disso.
Por consequência, no meio de todo o caos, eu só penso nisso.
Vinte e um anos de Chloe Mitchell. Yay!
Hora de reunir a minha família. E como Matt viajou para Maryville,
eu poderia comemorar meu aniversário com a minha família, com Matthew e
levar a Molly também. O que também nos leva à pergunta:
— Vai levar Noah contigo? — Molly questiona, baixinho, na cozinha,
enquanto Brianna devora um balde de frango frito no sofá da minha sala e eu
insisto em ligar para Noah pela milésima vez.
— Acho que ele me odeia no momento — digo, rindo, sem humor. —
E não sei ainda se deveria apresentar meu namorado infernal para a minha
adorável mamãe — ironizo, provocando a sua risada e abro a geladeira. Mas
eu realmente não sei se deveria levar Noah para Maryville. — Noah quer
manter nós dois em segredo por um tempo. Apresentá-lo para a minha mãe
seria contra isso, não?
— Ele quer manter isso em segredo aos amigos dele — Molly diz, se
apoiando na bancada. — Se os amigos dele não descobrirem, não há
problema. Além do mais, eu daria tudo para ver Noah com o seu irmão.
Deixo uma risada escapar.
— Noah odeia crianças — conto, tirando uma garrafa de Coca-Cola
da geladeira e a fechando em seguida. — Talvez tentasse matar o Ben no
meio da noite.
— Eu duvido! — Brianna diz, da sala. Molly e eu arregalamos os
olhos e caminhamos para a cozinha. Brianna tem a boca cheia de frango frito.
Céus, ela parece um animal. Ela engole tudo de uma vez, enquanto Molly a
encara com uma feição de desespero. — O Diabo ‘tá tão de quatro para você
que ele deixaria seu irmão montar nas costas dele e brincar de cavalinho. —
Brianna ri. — Desculpa, vocês falam muito alto.
— Não falamos não! — Molly se defende, falando alto. E então
Brianna ergue sua sobrancelha perfeitamente desenhada, fazendo Anderson
bufar. — Por que temos que aguentar Brianna Yang? — me pergunta, como
se a garota não estivesse ali. E como se eu não soubesse que ela estava
começando a gostar de Brianna por perto.
— Porque ninguém merece ficar sozinha — recordo e Molly rola os
olhos, se jogando ao sofá, ao lado de Brianna. — A gente fala alto mesmo?
— Um pouco — Brianna me responde. — E o sorriso no seu rosto
prova que você está dando com alguma frequência. — Deixei o queixo cair.
— Quão bem o Diabo transa? De zero a dez?
Minhas bochechas ardem como nunca, queimam. Eu abro e fecho a
boca algumas vezes, vendo Molly rir. É o tipo de assunto que nunca dei
intimidade para Brianna perguntar.
— Brianna?!
— Dez? — Sua sobrancelha continua erguida, na espera de uma
resposta. Respiro fundo e lhe entrego sua garrafa de Coca-Cola que eu tinha
buscado. — Quantos centímetros ele tem?
— Oh, por Deus, Brianna! — Perco a paciência.
— "Por Deus", não! Por Satanás! — me corrige e Molly ri alto. Pego
uma almofada no sofá e jogo em sua cara, fazendo a minha melhor amiga
parar de rir.
— Ok, nesse momento eu amo Brianna Yang. — Molly conta,
secando as lágrimas com o dorso das mãos. — Você realmente nunca me
disse o tamanho do pau do Noah.
Capturei as mãos de Molly e as uni. Ela não entendeu. As afastei
lentamente até uma boa distância. Ela ergueu as duas sobrancelhas e Brianna
também.
— Em estado normal ou estado de graça? — Yang pergunta, com a
voz por um fio em surpresa. E Molly e eu explodimos em risada, enquanto
Brianna volta a comer frango. — Graaaande Noah! — arrasta a sua voz e
Molly se engasga de tanto rir.
Tento parar, com a visão embaçada de chorar de rir pela conversa
idiota que estamos tendo. Demoro alguns segundos para me recompor,
respirando fundo e secando as lágrimas nos meus olhos. E então me jogo
entre as duas.
— Sem brincadeiras agora — Brianna começou. — Como é namorar
o Diabo?
Parei para pensar. Difícil.
— Tento pensar que é só o Noah. Sei lá... Quer dizer... Minto.
Procuro não pensar muito e focar no fato de ele é o mesmo Noah que me
conquistou, antes de eu descobrir tudo. Porque é, não é? É o mesmo Noah —
digo, o olhar vagando na televisão velha do outro lado. Estou tentando me
convencer do que disse, enquanto sinto saudades. Noah me faz tanta falta e
estamos há dois ou três dias sem nos falar, somente. Demoro algum tempo
para perceber que as meninas estão me olhando e meu olhar alterna entre as
duas. — O que foi?!
— Seus olhos... Você ‘tá muito, muito apaixonada — Brianna
explica, com um sorriso bobo.
— Meus pêsames — Molly me provoca e eu rolo os olhos. — Ainda
está com aquela ideia absurda?
— Que ideia absurda? — Brianna pergunta para mim, curiosa. Eu
encaro Molly feio. Anderson nem se abala.
— Matt viajou para Maryville para cuidar da minha família, enquanto
Noah cuida de nós por aqui. Porque a gente não confia nos amigos do Noah
para essa tarefa — explico. — Mas eu quero Matt conosco...
— Então, ela quer investigar os amigos do Noah para quem sabe
achar confiança em algum deles e trocá-lo pelo Matt, em Maryville — Molly
diz. — O que é arriscado, perigoso, ilógico e errado.
— Eu me arrependi de ter feito Matt ir para o outro lado dos Estados
Unidos, ok?
— Mas ele foi de bom grado, de coração aberto. A gente deveria
deixar Noah cuidar da situação e descobrir o traidor sozinho. Sua ideia não
faz o menor sentido, Mitchell. — Molly me faz bufar.
— Por que não?
— O próprio Noah quer encontrar o traidor, ele está investigando o
irmão e os amigos em busca do traidor. E você quer encontrar algum inocente
entre eles. Vai que você considera um deles inocente e, na verdade, é um
traidor pronto pra ferrar você? Como você vai ter certeza de que a pessoa é
inocente? — Minha melhor amiga soa tão brava quanto preocupada. — Estou
falando outra língua por aqui? Isso enfia algum juízo na sua cabeça ou
preciso repetir? Soei confusa?
— Pior que não. — Brianna se intromete. Suspiro. — Mas você
resumiria todo o discurso com "é perigoso, Chloe". — Rio baixinho. — E eu
concordo plenamente que isso soa perigoso. Você é só uma humana e ‘tá
pensando em investigar esses seres bizarros. Mas, ao mesmo tempo, eu
entendo. Deve ser difícil pra caramba ter seu melhor amigo do outro lado do
país e namora o Diabo, que está sendo traído por alguém que pode destruir
você e a todos que você ama. Eu entendo que a Chloe queira ajudar, de algum
modo, descobrir qualquer coisa que ajude Noah a controlar essa situação. Eu
compreendo, de verdade. E eu sei que ela tem coragem para isso.
— Coragem?! — Molly soa indignada. E então ri. — Eu chamo de
loucura, Brianna. Ela nem sabe por onde começar.
— Na verdade, eu meio que sei. — A interrompo e as duas garotas
me encaram. — E estava pensando em fazer isso essa semana.
— Isso o quê?! — Brianna se ajeitou ao sofá, curiosa, se desfazendo
do balde de frango ao colocá-lo na mesa de centro.
— Eu pensei em seguir um dos amigos do Noah. Começando pela
Kold.
— Sozinha?! — Molly perguntou. E eu dei de ombros, sabendo que a
ideia não era muito boa. — Está louca?! Quanto quer para esquecer dessa
ideia, Chloe? O que quer? — Olhei para Molly e a ruga de preocupação entre
suas sobrancelhas. — Há algo que eu possa fazer?
— Acho que não. Eu vou fazer isso de qualquer jeito. — Analisei a
sua reação e ela desviou um olhar carregado de raiva.
— Sozinha você não vai.
— Molly...
— Eu vou com você. — Deixei o queixo cair. E então, Brianna deitou
a cabeça no meu ombro e eu a encarei. Eu não quero deixar que Molly se
arrisque por mim, mas a sua expressão de mau humor indica que se eu quiser
seguir o meu plano, ela virá comigo. Isso parece inegociável.
— Podemos fazer isso hoje? — Yang perguntou. — ‘Tô entediada.
— Você está grávida, Yang — digo. — Uma aventura com demônios
não me parece saudável para uma grávida.
— Balde de frango também não e vocês me deixaram comer. Vamos!
— Brianna faz um bico, implorando.
Respiro fundo quando percebo que Molly não vai me deixar sozinha e
que Brianna vai com a gente nem que tenha que roubar a chave do meu carro.
— A Kold deve sair do trabalho de madrugada, se ela estiver no
Purgatorium — digo. — Então, podemos ver um filme, talvez, dormir um
pouco, e sair daqui mais tarde. Combinado?
As duas sorriem para mim e repetem:
— Combinado.

Brianna está roncando tão alto no banco de trás da Shelly que eu me


pergunto se ela é um ser humano ou um trator. Molly está cantarolando
ABBA e meus olhos estão focados na entrada do Purgatorium. Estamos
longe, no estacionamento.
E eu não vejo Kold sair, apenas Sinn. Me ajeito no banco, cerrando os
olhos ao percebê-lo ao lado de um garoto que lembra muito o Noah.
Theo. Noah me disse sobre o irmão dele. E nossa, beleza realmente é
de família. Parabéns, genes do Inferno.
Umedeço o lábio inferior quando o sinto seco e Molly finalmente
percebe o mesmo que eu. Um ronco de Brianna me faz
estremecer. Caralho?!
— Se Brianna roncar um pouco mais alto que isso, eles vão ouvir —
Molly brinca e eu rio, concordando. — E agora, o que fazemos? — Anderson
mantém os olhos sobre mim e eu não sei. — Mitchell, qual é o plano?
— Que plano?
— Mitchell... — Molly me repreende e depois arregala os olhos. —
Chloe?! — Me sinto pressionada enquanto assisto Kold sair do
estabelecimento e entrar num carro com Sinn, mas o garoto ficar ali, na frente
do Purgatorium, com um cigarro entre os lábios. — E agora? Eles estão indo.
Eu ligo a Shelly.
— Agora a gente segue eles.

Estamos seguindo os dois tem dez minutos. Eles estão lentos demais e
as ruas estão vazias, meu coração está acelerado e entre roncos e mais roncos
de Brianna Yang, Molly repete que isso vai dar merda.
E eu sinto o mesmo, mas finjo que não.
A minha mente trava em Noah por um segundo. Eu queria que ele
estivesse comigo. Queria que isso fosse o tipo de coisa que fizéssemos juntos.
Não queria sentir que escondia algo dele ou que, possivelmente, ele agia sem
mim, contra toda essa situação.
Por que ele precisa ser tão cabeça-dura?
— Chloe...? — Molly me chama e eu franzo o cenho para ela. — O
carro... Ele está desacelerando? — Eu fito o carro da frente, pela rua reta. O
carro está perdendo velocidade cada vez mais. Então aperto os olhos.
Não há ninguém no carro da frente.
— Boa noite, garotas! — Kold surge no banco de trás, ao lado de
Brianna. Eu reprimo um grito e vejo Sinn surgir atrás de Molly, que...
— JESUS CRISTO! — grita. E, por consequência, Brianna acorda em
desespero, arregalando os olhos.
— O QUE FOI?! — ela pergunta e então olha para o lado, engolindo
em seco ao ver um cara alto, negro e com uma extensa cicatriz em um dos
olhos, sorrir para ela. — Chloe... Eles estão...
— Aqui? — Sinn completa. Eu engulo em seco e sinto o rosto de
Kold se apoiar do lado do encosto do meu banco, perto do meu rosto.
— Então, adorável Chloe... — a morena sussurra, me fazendo gelar e
apertar as mãos contra volante. — Me diga por que está nos seguindo.

Estaciono o carro onde Sinn sinaliza. Brianna e Molly ficam dentro


do veículo quando nós três saímos do carro. Foi o que eu combinei: elas
ficariam ali dentro.
Estamos numa rua deserta. Prédios sujos e sombrios de Hell's Kitchen
nos cercam, rodeados por postes de iluminação precárias. Meu coração está
acelerado quando ergo o olhar e me deparo com a expressão gélida da Kold.
— Fale. — ela ordena.
— O que querem que eu diga?! — Rio nasalado, olhando ao redor. —
Vocês sabem a porra toda da minha vida. Eu peguei vocês e Noah brincando
de luta livre com demônios. E o meu melhor amigo é um anjo. Acharam que
eu ia ficar quieta por quanto tempo, huh? É óbvio que eu ia investigar vocês!
Claro que eu ia procurar entender isso tudo, claro que...
— Vocês voltaram? — Kold me corta e eu engulo em seco. Ela
arqueia a sobrancelha, andando pela rua. — Vamos, a pergunta é simples,
amor: sim ou não?
— Não — digo, firme, estranhando a segurança em minha voz. —
Noah e eu não voltamos.
Sinn se aproxima, estalando o pescoço. Então para e me analisa com
cuidado, eu sinto medo ao fitar seus olhos, brilhantes. Sinn sorri de canto.
— Repita, por favor? — pede, a voz grossa soando extremamente
perigosa.
— Não. Não voltamos.
Sinn sorri ainda mais. É como se ele estivesse tentando escutar algo.
É como se ele estivesse tentando me ler.
— Ela está mentindo — Sinn decreta e Kold se vira para ele, rindo.
— Parabéns, gênio. Quer um biscoito? — ela ironiza e ele rola os
olhos. — Vamos, Chloe... Já sabemos, mas não custa nada perguntar: Noah
desconfia da gente?
Eu engulo em seco. Os dois me parecem assustadores no momento e
eu tenho muito, muito medo. Assim que a saliva rasga por minha garganta,
ela se torna seca novamente. As minhas mãos suam e o meu coração bate
estrangulado contra o meu peito.
— Noah e eu não voltamos — repito e eles riem.
— Ele disse da Lilith, não foi? — Sinn questiona e Kold lhe lança um
olhar mortal. Então eu sinto a adrenalina crescer em meu peito e, de alguma
forma, eu tomo a sua fala como a oportunidade perfeita para blefar:
— Ok, sim! — Finjo uma confissão, suspirando com pesar. — Noah e
eu voltamos e sim ele me contou sobre a Lilith. — Meu coração está mais
acelerado do que nunca no momento, mas Sinn não me analisa, ele só
suspira, nervoso, recuando alguns passos. Ergo as mãos levemente, pensando
no que mais contar. — Noah me contou tudo. Tudo mesmo.
— Tudo o quê, garota? — Kold parece ser mais difícil de enganar, se
aproximando de mim com uma feição impassível.
— Lilith, a caixa, a guerra. — E com essas três palavras eu faço os
dois paralisarem e se encararem. Estou arriscando tudo no momento, mas o
que Kold diz me faz perder o ar por um segundo:
— Ele falou sobre você e Lilith — Kold fala para Sinn. O vejo engolir
em seco nitidamente, como se o mundo lhe rasgasse pela garganta. Sinn, de
repente, guia olhos avermelhados em minha direção. É dor o que sinto
quando o vejo. Melancolia. — Caralho, Noah! — Kold briga com o nada,
grunhindo em seguida. — Filho da puta!
Eu deixo o queixo cair levemente, mas trato de me recompor em
seguida. Sinn e Lilith. Sinn e Lilith. Sinn e Lilith. As ideias que passam na
minha cabeça não são nada boas, quando eu arrisco:
— Me pergunto o porquê de Noah não ter lhe matado — digo para
Sinn e ele volta o olhar em minha direção, parecendo ainda mais nervoso. —
Você fodia a mulher que ele amava. — Sou a mais direta possível.
Kold e Sinn trocam um olhar. Sinn bufa e leva as mãos à cabeça,
parecendo desesperado. É como se eu tivesse controle sobre a situação nesse
exato segundo. Espera, eu tenho.
Sinn e Lilith.
Puta.
Que.
Pariu.
Puta que pariu.
Puta.
Que.
PARIU.
Putaquepariu.
Mantenha a calma, Chloe.
— Como quer que, depois de ter se envolvido com a Lilith, depois de
descobrir que possivelmente há um traidor entre nós, Noah consiga confiar
em você? — pergunto para Sinn.
O silêncio pesa e eu cruzo os braços, para que não vejam as minhas
mãos trêmulas.
— Porque não foi Sinn que se apaixonou pela Lilith — Kold diz e
Sinn a encara, atônito.
— Que porra acha que está fazendo?! — Sinn pergunta, avançando na
direção de Kold.
— Fui eu.

Deixo Molly e Brianna na casa de Anderson contra a vontade das


duas. Sinn e Kold estão no banco de trás da Shelly e eu estou há minutos em
completo silêncio, tentando absorver o que ouvi.
— É o tipo de conversa que vai levar tempo. Então agora que as
minhas amigas estão em casa, eu quero saber tudo — digo, sem mover o
carro da rua da casa de Molly.
— Primeiro tem que manter sua palavra e garantir que não contará
nada pro Noah — Kold pede.
— Eu não posso fazer isso.
— Ele pode me matar, Chloe.
— Ainda não posso garantir isso. — A frase saiu cortante por minha
garganta, porque a ideia de Hellmeister matando alguém não me agrada, mas
mentir sobre algo tão grave para o Noah, não me parece plausível. — Falem.
E o silêncio toma o carro.
Me sinto nervosa e meu coração está a mil. A minha mente não para
de criar teorias e eu preciso ouvir alguma coisa ou eu vou surtar. E eu preciso
me lembrar que há chão sob meu carro, carro sob meus pés, ar em meus
pulmões, vida em meu corpo. Eu preciso me lembrar de respirar para não
surtar.
Eu consegui uma confissão pesada da Kold com um blefe. Se eu
soubesse que era tão boa em blefar, eu apostaria mais alto no pôquer.
— Noah não sabe disso. Eu ‘tô confiando em você, Mitchell — Kold
diz, enquanto Sinn abre a boca prestes a dizer alguma coisa. Contudo, a
morena ergue a mão em pedido por silêncio e ele obedece. — Por
favor. Preciso que guarde esse segredo.
— Não vou prometer nada, Kold. — Me viro para trás, a encarando
pelo espaço entre os bancos. — Não pode me pedir que eu minta para ele
assim, sem que eu saiba se seria justo, se seria o certo, se teria lógica. Mentir
sobre esse assunto para ele me soa muito errado. Só me conte o que houve e
eu vejo o que eu faço.
Kold suspira, desistindo do pedido. Seus olhos azuis me fitam com
pesar.
— Há milênios e milênios, Noah se apaixonou por Lilith. E eu, sem
saber, me apaixonei também.
Kold deixou a sua voz embargar. A morena perdeu toda a sua
firmeza, agora ela parece frágil. Eu só não sei se confio no que vejo.
— Nós nos tornamos amigos, Noah e eu. Ele me apresentou ao Sinn e
ao Luke, a gente se uniu. E eu gostava da namorada do meu amigo e ela me
seduzia. Lilith jogava dos dois lados e eu não sabia disso... Ela me pedia para
ficarmos juntas em segredo, eu não sabia o motivo, mas respeitava... Até que
eu os vi juntos pela primeira vez. Eu fiquei uma fera, mas ela soube como
contornar a situação quando eu a confrontei: ela me seduziu de novo. — Kold
ri, carregando cólera por cada frase dita. Kold ofega, tomada por ansiedade.
— Lilith era persuasiva num nível jamais visto, Mitchell, e ela me sugou para
si. Eu traía Noah, mas eu não desconfiava dos planos da Lilith, eu juro.
Kold ri de novo, me encarando em seguida.
As semelhanças entre o seu relato e o de Noah me fazem refletir.
Lilith se torna um monstro pior na minha mente a cada segundo.
— Sabe o que era mais patético? Eu desabafava com Hell sobre a
minha garota misteriosa antes de descobrir tudo. Só que eu não consegui mais
olhar nos olhos do meu amigo e desabafar sobre como também estava
apaixonada por alguém. Então, eu comecei a desabafar com Sinn sobre a
garota misteriosa e nós dois nos aproximamos. Sem hesitar, eu inventei para
Noah que tinha terminado o relacionamento com a minha garota e Sinn
passou a guardar esse segredo. Quando a Guerra explodiu, milhares de
celestiais morreram, Lilith foi controlada...
Kold trava e respira fundo. Ela puxa o ar e eu vejo lágrimas por seu
rosto. Um arrepio profundo me percorre, mas eu luto contra o impulso de
acreditar no que ela diz, enquanto a observo secar as lágrimas com o dorso da
mão.
— Lilith foi presa. Noah a visitou e ela fez questão de dizer que o
traía com alguém próximo — Kold continua. — Ela só não disse com quem,
exatamente para que Noah desconfiasse de todo mundo. Para desestabilizar o
cara. Noah ficou fora do controle e me enfrentou, enfrentou a Sinn, que já era
seu amigo e a Luke, que também lhe era próximo.
— Com medo de morrer por traição. — Sinn ecoou, respirando com
pesar —, Kold me pediu ajuda e confessou tudo pra mim. Ela confessou a
identidade da mulher misteriosa. Tamanha era a fúria de Noah, que ela queria
fugir. Mas fugir do Diabo não é fácil.
Caralho, eu preciso de um calmante. Ou uma vodca. O que for mais
forte.
— Meus pais haviam morrido na Guerra — Sinn começou. — E eu
sempre achei que devia muito a Kold por sempre ouvir os desabafos mais
profundos sobre o meu relacionamento conturbado com os meus pais, como
eu odiava a rotina de treinos para as guerras que eu não sabia se chegariam...
Eu sempre me senti muito agradecido à Koldelium. E meus pais, tudo o que
eu tinha, morreram na Guerra. Só me sobraram os meus amigos... Noah,
Luke, Kold. E ela era e é minha confidente. Então morrer para salvar uma
amiga claramente arrependida por seus erros, me parecia nobre. Porque, sim,
eu confio na Kold. De verdade. Confio que ela foi tão enganada pela Lilith
quanto o Noah. Então, antes que Kold contasse tudo para o Hell, eu assumi a
culpa. Só que Noah foi verdadeiramente bom...
— Ele não conseguiu punir o Sinn — Kold contou. — Quer dizer...
Ele afastou Sinn de funções importantes por um bom tempo, o deixou de
escanteio e lidando com treinos pesados, mas ele não conseguiu matar o Sinn
— a morena continua. — Ainda assim, Sinn não me deixou assumir a culpa.
Nunca. E passou milênios tentando reconquistar a confiança do Noah. Agora
que Sinn estava quase conseguindo a amizade de Noah por completo, Lilith
insinua que Noah está sendo traído por alguém, o que afeta Hell, fazendo ele
duvidar da gente e principalmente do Sinn.... Quando Noah, na verdade,
deveria duvidar de mim.
Os olhos de Kold estão marejados quando ela funga e engole em seco,
desviando o olhar para os pés. Estou tentada a acreditar em tudo isso.
Estou muito tentada a acreditar nos dois.
Muito.
Primeiro, eu nunca pensei que veria Kold nem perto de
chorar. Nunca.
Ao mesmo tempo, se Kold caiu por Lilith uma vez, ela poderia cair de
novo. E Sinn pode estar ao lado da amiga, inventando mentiras ou planejando
algo por trás da Kold. Isso não anula a possibilidade de traição por parte de
nenhum dos dois. E agora, com o peso de uma história — que não sei julgar
como verídica — sobre as minhas costas, eu entendo Noah melhor:
Não dá para confiar. Nem quando desejamos confiar nos dois. Porque
a situação não permite. E se Noah realmente gosta desses dois como acredito
que gosta, isso deve doer para cacete.
E se Kold e Sinn estiverem dizendo a verdade? E se Noah puder matar
Kold por isso? E se eu lhe contar a verdade e ele cometer uma loucura?
Que porra eu faço?!
— Por favor, não conte para ele. Nos ajude a reconquistar a confiança
dele. Eu juro que estou sendo sincera, Chloe. E no fundo você sabe que sim
— Kold pede. Pede não, implora. Seu nariz está vermelho e seus lábios
trêmulos, bem como as suas mãos. — Eu errei feio com ele, mas ele é o cara
mais importante na minha vida. Ele é o meu melhor amigo.
— E você o traiu. Você traiu o seu melhor amigo — acuso. Kold
deixa um suspiro escapar, levando as mãos ao rosto, desesperada. — Como
posso ter certeza de que não vai traí-lo de novo, Kold? Como? — Uno as
sobrancelhas, num misto de compaixão pela dor que enxergo na minha frente
e receio de acreditar na pessoa errada. — Me diga qualquer coisa que me faça
confiar em você, minimamente. Qualquer coisa. E eu posso lhe dar um tempo
antes de contar tudo para ele. Mas você precisa contar, Kold. Se quer tanto
reconquistar a confiança do Noah, é pela verdade que você vai começar. —
Fito Sinn. — E isso vale para os dois.
— Sabe que eu tenho o conhecimento de coisas que foderiam o Noah
de maneiras inimagináveis — Kold diz. — Se eu fosse a vilã da história, ele
já não estaria aqui.
Me dou conta de que ela sabe onde está a arma que mataria o Noah.
Engulo em seco, um pouco nervosa.
— Será mesmo? — pergunto. — Eu não sei o que se passa na mente
de um traidor. Isso não me basta.
— Nada que eu diga vai bastar. — Kold ainda parece implorar.
Respiro fundo, me xingando mentalmente. — Pensa no que você sente,
Chloe. Sente que eu sou culpada?
— Eu não sei.
— Sente que eu mataria o Noah?
— Eu. Não. Sei — digo, entredentes.
— Então não conte nada para ele. Não ainda. Eu tenho certeza de que
ninguém próximo a ele é o traidor, Chloe. Eu confio na minha família e eu
juro que sou inocente. Que nós somos inocentes. Me dê um tempo. Me dê um
tempo para provar isso. Um tempo, por favor! — Kold une as mãos.
Eu me viro para frente e fito Sinn pelo retrovisor. Seu olhar está vago
na rua.
Eu não sei o que fazer com toda essa informação. Eu não quero
mentir para o Noah. Ao mesmo tempo, tenho medo do que ele faria. Ele
tentou asfixiar próprio o irmão e só de pensar nisso... Já me dá calafrios.
Noah está perdido. De fato, nós dois estamos. E pessoas tomam medidas
drásticas para se encontrarem no mundo. Saímos dos limites quando não nos
compreendemos, quando estamos perdidos. Nos tornamos crianças assustadas
e impulsivas.
— Eu estaria arriscando muito com o meu silêncio, Kold.
— Por favor... — A encaro pelo retrovisor.
Seguro o volante da Shelly e destranco as portas do carro, mordendo o
lábio inferior com força e deitando a cabeça no encosto do banco.
— Uma semana — defino. — Você tem uma semana.
Eu só espero estar fazendo a coisa certa.
O collant preto lhe cobre o corpo, seus fios ruivos estão presos em um
coque.
Chloe está nas pontas dos pés, em suas sapatilhas, enquanto realiza
mais um giro. A música clássica é rápida e intensa e seu giro de torna outro e
outro e outro, com a sua perna dobrada em frente ao seu corpo.
Eventualmente, ela para de girar, seu pé risca o chão em uma
semicircunferência e ela realiza alguns passos na ponta dos pés.
Ela não me nota. Se me nota, está fingindo muito bem que não.
Coloco um cigarro entre os lábios e o acendo sem isqueiros,
só penso e ele queima.
Chloe gira mais uma vez e alguns passos depois realiza um de seus
saltos, voltando ao chão com delicadeza. Aquela música agitada pra caralho
me deixa angustiado. Contudo, a minha ruivinha sabe ser conduzida por ela.
Um passo, um giro, um passo... É como se ela estivesse em busca de algo,
algo urgente. Mas o som vai se acalmando e se acalmando e os seus
movimentos vão se tornando lentos, seu pé risca o chão algumas vezes e ela,
de olhos fechados, gira uma última vez.
Até que ela para.
Chloe está ofegante, virada para as janelas longas do estúdio de Riley
Mitchell... Vejo seus ombros subirem e descerem conforme respira.
Trago o cigarro mais uma vez e a observo desfazer o coque, deixando
que as ondas cor de fogo lhe caiam pelas costas.
— O que faz aqui, Noah? — Sua voz é baixa, ela soa cansada. Por um
segundo, parece que se recusa a me olhar.
— Soube que, em alguns dias, é aniversário de uma ruivinha. — Me
aproximo. — Pensei em trazer um presente. — Paro logo atrás dela e lhe toco
a cintura. — Mas o presente foi meu... Te ver dançar é tão bom. — Me sinto
melhor quando a envolvo pela cintura com uma mão e Chloe deita a cabeça
em meu peito. Deixo um beijo no seu ombro. — Por que não me disse sobre
seu aniversário?
— Como soube?
— Matt. — Ela sorri para a janela, enquanto eu trago o cigarro.
— Meu aniversário não é nada demais para mim. — Chloe suspira,
descendo seus dedos até os meus e brincando com os anéis. — Basicamente
passo o dia em família, comendo, rindo e dormindo. Nada demais.
— Isso é um absurdo! — reclamo e ela se vira para mim. Seus olhos
brilham menos do que eu me lembrava. Há sinais de olheiras que mostram
que ela não está dormindo tão bem assim. — Como pode ser "nada demais"
comemorar o dia em que a mulher mais linda nasceu, meu anjo?
Ela sorri fraco. A ofereço o cigarro e Mitchell aceita, tragando
lentamente e soltando a fumaça na direção das janelas.
— Como soube que eu estava aqui? — pergunta.
— Pensei em você. E a minha mente te encontrou, eu só queria muito
ver você. — Chloe franze o cenho. — Hum... É que eu posso... Ver pessoas...
Seguir pessoas... — Tento explicar. — Eu trouxe um presente... —
Desconverso e procuro por algo no bolso interno do meu terno.
Chloe traga mais uma vez o cigarro. Sinto que ela está tensa e não sei
o porquê, mas talvez eu possa...
— A gente precisa conversar, Noah — ela diz, apressadamente.
E eu paro o que estou fazendo. Chloe morde o lábio e desvia o olhar
por um segundo, e eu solto a sua cintura. Mitchell parece evasiva. Pouco me
olha, sua mente parece em outro lugar...
— Eu fiz uma merda bem grande — ela começa. — E eu sei que vai
gritar comigo. Espero que grite. Estaria certo em gritar. — Uno as
sobrancelhas. — Eu segui a Kold e o Sinn...
— Chloe... — A repreendo, um pouco irritado.
— E agora eles sabem da gente. — Rio, sem acreditar. E então
percebo que ela está falando sério. Me afasto um passo, mas ela me puxa pelo
cós da calça. — Noah...
— O que eles sabem?
— Que a gente voltou.
— Porra, Chloe! — Levo as mãos ao rosto e a ruiva se aproxima,
focando nos meus olhos. A escuto sussurrar um pedido de desculpa. — Isso
não é o tipo de coisa que você pode fazer sem me consultar.
— Noah, amor, me escuta...
— Você queria me ajudar? Ok! Eu vim aqui te dizer que eu pensei
naquela porra de briga e você estava certa, deveríamos lutar juntos. Mas você
vai lá e se expõe para dois possíveis traidores! Parabéns, Mitchell! — Meu
tom de voz sai mais alto do que eu posso controlar e eu a vejo engolir em
seco. — Por que não me ouve quando eu falo?
— Você me ouviu?! — Chloe deixa a sua voz se arrastar de modo
cortante. — Você me ouviu quando eu estava tentando te ajudar? Quando eu
pedi para te ajudar? — Seus olhos estão vermelhos. — Eu implorei para que
me deixasse te ajudar! Sabe... Eu te escuto falar sobre o quanto você ‘tá
mal. Você. — Ela ri nasalado. — E eu repito mil vezes que eu te amo e que
me preocupo. Eu estou tentando me doar do jeito que eu posso, mas eu não
sei o que fazer para te ajudar. Toda vez que você diz que está quebrado,
Noah, eu me parto junto. Sabe o quanto eu ‘tô fodida, Noah? Sabe o quanto
eu tenho medo?
— Isso não justifica...
— Não?! — ela ri de novo, tragando o cigarro e balançando a cabeça
em negação. — Eu tenho medo de estar viva, Noah. Porque eu não sei que
porra eu significo dentro desse monte de merda que está acontecendo. E eu
tenho medo! — Sua voz se torna embargada. — Medo da minha mãe ser
puxada para isso, do meu irmão, dos meus amigos... Mas principalmente,
Noah... Medo de você se tornar tão quebrado e tão quebrado... Que você
desista como seu avô desistiu. — Minha boca se entreabre levemente e eu a
vejo chorar. — Eu tenho medo de perder você. Eu tenho medo de você
desistir de tudo e eu tenho medo de que alguém encontre aquela porra de
arma e me tire a única coisa que me faz sentido. E eu tô cada vez mais
confusa. — Ela me devolve o cigarro. — Eu não sei pensar. Me sinto
impulsiva, irracional e fodidamente apaixonada por um cara que não me
deixa ajudar. Eu... — Chloe respira fundo. — E eu fiz merda, eu sei disso. Eu
fodi tudo. E eu sei disso. Tudo que eu toco, Noah, tudo o que eu toco parece
apodrecer, parece me ferir, parece...
Ela respira fundo e seus lábios tremem enquanto ela segura a vontade
absurda de desabar. Deixo o cigarro cair ao chão e o piso, a abraçando de
imediato. Chloe deita a cabeça em meu peito.
— E eu só queria que fossemos sinceros um com o outro — ela
sussurra. Por um segundo, cogito que esteja me escondendo algo, então lhe
fito os olhos. E Chloe desvia o olhar, de novo.
— O que quer dizer? — Seguro o seu queixo com delicadeza, a
forçando a me olhar. — Kold e Sinn te disseram algo? — Chloe morde o
lábio e abre e fecha a boca algumas vezes. Seu coração está acelerado. Eu
consigo ouvir. — Chloe...
— Não. — Sinto que está mentindo.
— Chloe...
— Por quê? Você me esconde algo? — Ela devolve a pergunta.
E eu me calo. Porque eu também queria que fôssemos sinceros um
com o outro, eu queria lhe contar tantas coisas, mas não posso. Matt me pediu
para ainda não contar à ela sobre o seu pai e eu dei a minha palavra. Ela
merece muito saber. Eu sei disso. Talvez seja o tipo de coisa que a deixe puta
comigo e sem falar comigo por dias. Talvez meses. Talvez para sempre.
— Por que estamos assim, meu anjo? — pergunto. Chloe não me
responde. — Não somos assim distantes, ruivinha, não somos assim... Somos
melhores juntos, não? Somos exclusivos, somos Noah e Chloe. — Ela
demora alguns segundos em me encarar. — Por que não podemos ser apenas
Noah e Chloe?
Mitchell morde o lábio com força e eu seguro a sua cintura. Ela pensa
em se afastar, mas eu não deixo, eu uno a testa a sua.
— Ok, veja... — digo, baixinho. Chloe fita os meus lábios e relaxa um
pouco o corpo. Eu tomo isso como incentivo para abraçá-la pela cintura. —
Nesse exato segundo, eu estou disposto a colocar qualquer briga e
desconfiança para trás, porque eu quero a minha ruivinha de volta. Porque eu
gosto de você. Gosto de verdade. Gosto tanto que, caralho, Chloe, dói.
— Sorrio e ela segura o colar em meu pescoço. — Então, você está certa
sobre sermos eu e você contra uma guerra. E eu quero que me ajude, quero
que me ajude a ser um cara melhor, a ser o namorado que precisa e a ser forte
o suficiente para passar por isso tudo, com você ao meu lado. Não sei o que
vai ser de nós dois em meio a tantas batalhas, mas eu vou te proteger por cada
segundo. E prometo que vamos vencer isso juntos, se assim quiser. Eu estou
cedendo aqui, Chloe, estou permitindo que me ajude. Então, você pode deixar
essa briga para trás também, amor? Por favor?
Meu polegar acaricia a sua bochecha e ela demora em erguer suas íris,
escuras e brilhantes como a noite, ao encontro das minhas. Mas logo Chloe
assente. E eu a beijo.
Eu a beijo e sinto falta de algo a princípio, mas depois... Depois sua
boca toma a minha com delicadeza e eu sinto seus braços lentamente me
envolverem pelo pescoço. A trago para perto pela cintura e a abraço com
força, tentando senti-la mais e mais. Chloe acaricia a minha nuca e o colar em
meu peito. E eu me sinto melhor.
Ainda não estamos completamente bem, mas ficaremos. Eu acho que
sim. Eu espero que sim.
Interrompo o beijo e seco as suas lágrimas, sorrindo. Ela sorri fraco e
eu me afasto minimamente.
— Veja, eu trouxe um presente. — Tiro a gargantilha de dentro do
bolso interno do meu terno. Chloe ergue as sobrancelhas, em surpresa. —
Considere uma prévia do seu presente de aniversário, porque você com
certeza vai ganhar algo de mim no seu grande dia. — A ruivinha admira o
que tenho em mãos e em deixo o pingente da gargantilha perante seus olhos.
A corrente da gargantilha é preta e o pingente representa duas asas
pequenas de brilhantes.
— Eu não posso...
— Não só pode, como deve aceitar — decido e ela inclina a cabeça
para o lado, como se me repreendesse. — Amor, eu estou te dando um
presente, de verdade, e presente não se recusa. — Chloe bufa e desvia o
olhar, me fazendo sorrir. — Vamos, me deixe colocar em você.
— Noah...
— Por favor? — Forço um biquinho e ela rola os olhos, mas desiste e
se vira para as janelas de Nova York. Chloe ergue seus fios ruivos, expondo a
nuca. Porra, eu amo tanto a sua nuca. Passo a gargantilha por sua pele e a
vejo levar uma das mãos ao pingente, o admirando. E então, fecho a
gargantilha, a observando soltar seus fios ruivos, que cobrem as suas costas.
A abraço por trás, aproximando a boca do seu ouvido. — Isso é um pedido de
desculpas e um muito obrigado por existir. E agora você vai lembrar de mim
sempre que usar esse presente. Vai lembrar que vai ser sempre o meu anjo.
Chloe alisa o pingente e se vira para mim.
— Me desculpa também. — Vejo dor em seus olhos enquanto me
encara. Sei que ela se sente, talvez, culpada por ter me deixado no
apartamento naquele dia. Sei que pede desculpas por ter seguido Sinn e Kold.
Contudo, olhando os seus olhos, prefiro acreditar que é só por isso que me
pede desculpas.
Então eu a beijo. Eu beijo o meu anjo com a noite de Nova York
como pano de fundo, a cidade que nunca dorme como testemunha de que não
há nada no mundo que eu quero que dê mais certo do que nós dois juntos.

Meu corpo suado cai ao lado dela, na sua cama. Chloe está ofegante,
enquanto fita o teto. A abraço, de lado, escutando a sua respiração. Me viro
para ela e desço o olhar por todo o seu corpo nu. A única peça presente é a
gargantilha em seu pescoço, bem como o colar em meu peito.
Chloe se aproxima de mim e busca pela minha boca, me beijando com
gosto e me trazendo mais para perto. Nossas pernas se entrelaçam e eu sinto
calor quando suas unhas arranham a minha nuca. Todo o meu corpo está em
chamas e eu deixo um sorriso escapar porque eu senti falta disso. Esse fogo
que criamos é intenso pra caralho. Tudo parece fazer sentido quando estamos
juntos.
Mitchell rompe o beijo, alisando o meu rosto enquanto seus olhos
esquadrinham cada detalhe meu.
— Por favor, nunca duvide do quanto eu amo você — Chloe pede.
— Nunca duvide, Noah. — Franzo o cenho, incomodado. — Eu... Eu acho
que... Preciso te dizer...
— Meu anjo. — Uno minha boca a sua, a fazendo se deitar sobre
mim. Seus seios tocam o meu peito, seu corpo cobre o meu. Eu tenho a
mulher mais linda do mundo me olhando nesse exato segundo. — Eu nunca
vou duvidar de nós dois. — Acaricio a sua bochecha. — Agora chega de
falar! Chega de nos desculparmos e desse clima estranho. Eu só quero você.
Eu senti sua falta.
— Noah... — Ela ainda insiste em querer me dizer algo, mas eu
arrasto meus lábios por seu pescoço e deixo um leve chupão em sua pele.
— Noah... — E eu sorrio, porque dessa vez me chama do jeito certo. —
Inferno...
— Me chamou? — brinco e ela ri.
Chloe morde um sorriso e me beija novamente, dessa vez, com mais
calma e delicadeza. Deixo um sorriso escapar quando a sinto suspirar contra a
minha boca e arrasto sua língua com os meus dentes.
— Ei... Eu vou viajar semana que vem — ela anuncia.
Uno as sobrancelhas.
— Como assim?
— Vou visitar a minha família. Molly vai comigo. É meu aniversário
e tal. Matt pode me proteger.
— Ele não é o suficiente. Para você, Molly e toda a sua família. Ele
não é suficiente.
— Jura?! Acha perig...
— E eu também quero ir — confesso. Chloe une as sobrancelhas ao
máximo. E então ri, como se eu estivesse brincando. — É sério!
— Tá dizendo que quer conhecer a minha família?
— ‘Tô dizendo que quero ficar perto de você no seu aniversário.
Conhecer a sua família ainda pode ser um passo um pouco... grande demais
para você. — Minhas palavras a fazem sorrir. — E não sei se vai se sentir
confortável em me apresentar para a sua família, escondendo quem eu sou.
Enfim... — Ela sorri largamente. — O que foi?
— Gosto de ver que se preocupa comigo — ela sussurra, apertando as
minhas bochechas com uma só mão. Um bico se forma em meus lábios e
Chloe o mordisca. — É fofo.
Inverto as posições e me ponho sobre ela.
— Vou viajar contigo para a sua cidade — digo e Chloe arqueia a
sobrancelha. — Posso? — Ela ri e confirma. — Posso alugar uma casa ou um
apartamento, não sei... Então eu te protejo e no fim da noite, do seu grande
dia, você me encontra lá e eu te darei o meu presente. O que acha?
Chloe alisa o meu rosto. Por um segundo, voltamos a ser Noah e
Chloe, sem quaisquer desavenças entre nós.
— Acho perfeito, amor.

Estaciono o Thunderbird em frente da casa alugada em Maryville.


Ela é branca, grande e simplória. Está a dois blocos de distância da
casa da família da Chloe. O Matt alugou para mim.
Hoje, nesse exato momento, é dia 13 de outubro de 1991. Amanhã, 14
de outubro, o mundo terá 21 anos de existência de Chloe Marie Mitchell. Por
isso, ela provavelmente está agora com a sua família e amigos "comendo
torta até explodir". Palavras dela.
O proprietário me entrega a chave na frente da casa e se retira, me
desejando uma boa estadia. Ao entrar no lugar, me surpreendo ao ver o
quanto ele é bem arrumado.
Giro a chave da casa no ar e a pego de volta.
O tempo passa devagar e, depois de alguns cigarros e copos de
uísque, a campainha toca. Eu abro a porta, dando de cara com uma Chloe
Mitchell diferente.
Ela está usando um vestido florido e azul sob um sobretudo cinza. Eu
só acredito que é a minha ruivinha por causa dos coturnos pretos. Para ser
sincero, eu nem preciso que diga nada: sua mãe provavelmente a fez usar
esse vestido, visto a carranca em seu rosto. Tudo o que eu consigo pensar é
em como ela está gostosa pra caralho com essa roupa. Mas ela parece sentir
frio.
Ela está usando a gargantilha que lhe comprei. Porra, que mulher
linda...
— Nunca quis tanto sair da minha própria casa, mas o Ben estava
cismando que eu brincasse com ele no Game Boy, amor, desculpa — ela diz
apressadamente, unindo as mãos ao meu rosto e deixando um beijo casto. —
Eu inventei para a minha mãe que apresentaria a cidade para Matt e Molly
pela noite... — Chloe passa por mim e eu fecho a porta. A envolvo pela
cintura. — Uau, que casa...
— Quanto tempo você tem? — sussurro no ouvido dela e ela se vira
pra mim.
— Muito. A minha mãe provavelmente espera que eu volte para casa
na madrugada.
— Então podemos fingir que seu aniversário é hoje e comemorar
juntos. — Sorrio e Chloe passa os braços ao redor do meu pescoço.
— Comemorar antes dá azar.
— Não existe tal coisa como azar ou sorte, amor, só destino. E eu e
você. — Aliso o seu rosto. Chloe morde o lábio inferior ao fitar a minha boca
e eu pressiono a sua cintura. — Venha comigo, eu tenho um presente.
Dou-lhe a minha mão e a puxo escada acima. Chloe estala os meus
dedos no meio do caminho e eu já não me importo. Eu amo quando faz isso,
me faz sentir bem. Abro a porta do quarto e uma ruiva curiosa analisa cada
detalhe dele, mas se vira para mim. Pego a caixa sobre a cama, lhe
entregando.
Chloe arqueia a sobrancelha, tomando a caixa com as duas mãos. Ela
remove o laço e a abre, mordendo um sorriso. Eu não seguro o meu.
Mitchell franze o cenho e segura a câmera Polaroid com as duas
mãos, rindo.
— Eu vi um casal outro dia, na rua. Eles pareciam apaixonados e
tiravam fotos e fotos na frente do Empire State — contei. — Acho que eram
turistas. Enfim, de qualquer modo, eu percebi que o tempo vai passar e eles
estavam numa tentativa absurda de congelar suas memórias felizes juntos. E
eu me perguntei o porquê. — Me aproximo da ruiva que fita a câmera,
colocando uma mecha que lhe cai sobre o rosto atrás da sua orelha. Ela me
encara e eu suspiro. Porra, como é linda. — Então, eu percebi que se eu
tivesse qualquer modo de eternizar você e eternizar nós dois, Chloe Mitchell,
eu não hesitaria em fazê-lo. E acho que essa câmera é um começo. Ela pode
eternizar momentos nossos. E como toda fotografia aparentemente é arte, a
gente pode... — Peguei a câmera da sua mão e direcionei para ela, que levou
uma mão para frente da lente, tímida, pedindo para eu parar. — A gente pode
tirar fotos nossas e fingir que somos artistas em nosso próprio museu de
memórias.
E, quando ela se distrai, eu tiro uma foto. O papel escorre pela
Polaroid e eu a balanço, mas Chloe segura o meu pulso imediatamente.
— Como pode o Diabo saber tanto e não saber que é um erro sacudir
uma foto Polaroid? — ela sussurra e eu franzo o cenho. — Não seca mais
rápido e pode reduzir a qualidade da imagem, amor — Chloe me explica e
me beija. Deixo a câmera na cama e a puxo, a fazendo se sentar sobre o meu
colo. Algum tempo depois a foto está ali. — Céus, eu ‘tô horrível.
— Impossível.
— Só diz isso porque gosta de mim, Noah.
— Eu digo porque sou sincero. E você é linda demais para ficar um
dia sequer sendo horrível, ruivinha. — Ela ergue os olhos para mim.
— Se me fizer me apaixonar por você todos os dias da minha vida,
Noah, vai ficar realmente complicado pra mim.
— Então eu sinto muito. Forças, Chloe. Uma pena — brinco e ela rola
os olhos, me fazendo rir antes de afundar a cabeça em seu pescoço, deixando
um rastro de beijos rápidos pela sua pele. — Parabéns, Chloe. E obrigado.
— Por...?
— Por ser o meu presente, amor. Por ter me salvado de mim mesmo.
— Encaro seus olhos e ela morde o canto da boca. Sinto um arrepio por
minha coluna e as três palavrinhas se entalam em minha garganta.
— Eu amo você, Noah. Amo demais. Sabe disso, não sabe? —
pergunta e eu confirmo. — Eu amo você.
Eu me amaldiçoo por não conseguir dizer de volta.
— Acho que é noite de lua cheia — Chloe comenta. Ela se levanta em
direção à janela do quarto. — Não ‘tô conseguindo ver.
— Vem. — A puxo pela mão.
Descemos as escadas e andamos para os fundos da casa. Há uma
piscina perante nossos olhos, mas erguemos o olhar para cima, para a Lua.
Chloe passa seus braços ao redor da minha cintura e apoia seu queixo em
meu ombro.
— Todos os desenhos no meu corpo foram criados pelo meu pai —
Chloe conta. — Havia um único desenho no qual ele tentava, tentava e
tentava, mas nunca ficava satisfeito. Sabe qual era? A Lua. Eu o entendo...
Não há nada tão belo quanto ela. E eu nunca vou ter uma Lua desenhada por
ele na minha pele.
— Nada é tão belo quanto a Lua? Quando se olhar no espelho e
perceber a mentira que está dizendo, por favor, me avise. — Me viro a para
Chloe. Ela me envolve pela cintura.
— Ok... Estou mentindo... — Chloe se aproxima um passo e eu recuo
quando seu corpo fica perto demais do meu. — Seus olhos são mais bonitos
do que a lua, Noah.
Eu sorrio.
E Chloe me empurra na piscina.
Afundo. Escuto seu riso abafado pelas águas e volto pra superfície.
— Filha da...! — Mitchell gargalha mais alto e eu me aproximo da
beira da piscina. — Meu Givenchy...
— Sinto muito pelo seu terno. — Ela se agacha na frente da piscina. E
então morde a boca. — Mas você fica sexy assim, sabe? Cabelo molhado,
terno molhado... Ok, nem tanto. — Está rindo de mim de novo. Tiro o paletó
e a camisa, as jogando pra fora da piscina. — Ok, agora sim... Sexy como o
Inferno — ironiza, sorrindo com malícia.
— Não me acho sexy, sabe? — minto, aproximando a boca da sua.
Chloe ergue as sobrancelhas, surpresa. Seguro a sua cintura, feliz em como
está tão desatenta. — Falta algo para que eu seja tão sexy assim...
— Jura? O quê?
— Você. — Faço menção de puxá-la, mas ela é mais esperta e me
empurra, conseguindo se safar. — Oh, vamos... Estou com frio sem você,
amor.
Chloe se põe de pé.
— Não posso molhar a minha roupa. — E então entendo o seu ponto.
E cada segundo se passa excruciantemente devagar. Ela tira seu sobretudo e o
atira ao chão, depois o seu vestido. A lingerie branca sobre o seu corpo me
faz pensar em como seria tirar ela com os dentes, deixá-la nua. Chloe se senta
na beira da piscina e eu seguro a sua cintura, a ajudando a entrar. — Ugh,
gelada...
— Não tem problema, meu anjo. Eu te esquento. — Uno a boca a sua.
Chloe geme baixinho em surpresa. Mas ela quem me surpreende ao colocar
as mãos sobre a minha cabeça e me fazer afundar.
A vejo mergulhar e finjo estar bravo pela sua audácia, mas Chloe cola
a boca à minha debaixo da água. É realmente o aniversário dela, mas, de
algum modo, eu sinto que eu tenho muito mais a comemorar.

— Se eu subir muito rápido para o meu quarto, a minha mãe não vai
perceber que estou sem calcinha e sutiã — Chloe diz, sobre o sofá, nua. Seus
cabelos estão bem mais secos, mas com uma aparência diferente do comum.
Contudo, quando faz um coque desajeitado em sua cabeça, mal posso
perceber.
— Estão molhadas ainda?
— Creio que sim. — Ela cola a boca na minha. — Mas eu preciso ir...
— Mitchell soa triste. Vou acompanhá-la em meus pensamentos, cada
segundo até que chegue em casa, mas já estou sentindo saudades em
antecipação. — Ei... Olha... Tia Riley sabe que está aqui.
— Jura?
— Juro. E ela não caiu na desculpa que eu inventei para você não
passar o dia conosco amanhã. A minha mãe pode não saber quem você é,
nem o meu irmão ou a tia Riley... Mas não há nada no mundo que eu queria
mais do que o Diabo do meu lado. Então... Se quiser, vai ser meu convidado
de honra, amor.
Penso por um segundo.
— Sua mãe sabe que está namorando?
— Não. Ela vai ficar uma fera. Mas vai ser engraçado irritar Donna
Mitchell. Então... O que me diz? — Sua mão se apoia em meu peito. — Uma
hora eles vão ter que saber de você e... Se não achar um passo grande dem...
— Estarei lá, amor — a interrompo.
— Tem certeza?
— Absoluta — respondo sem titubear. E Chloe sorri como nunca,
enchendo o meu rosto de beijos.

Paro em frente à casa da Chloe e ajeito o meu Givenchy. Obviamente


não o que usei ontem, já que Chloe o mergulhou em água e cloro. E então
penso que talvez o traje completo seja formal demais e deixo o paletó dentro
do carro, ficando apenas de camisa social, calças e sapatos. Desabotoo mais
um botão da camisa e me sinto nervoso, considerando se isso é mesmo uma
boa ideia.
Mas a porta se abre e Riley está ali.
— Pensei ter escutado alguém chegando! Entre, entre... Donna está
ansiosa para te conhecer! — ela pede e eu obedeço, ainda hesitante.
Olho ao redor, analisando a casa um tanto quanto acolhedora. Riley
me guia até sala e sai. Molly sorri para mim, com um garoto em seu colo. O
garoto me encara e eu sorrio para ele, que deixa seu queixo cair.
Há alguns dias, eu estive em Maryville. Só para checar se tudo estava
bem. Acho que o irmão da Chloe me viu. E agora eu só espero que ele não
diga nada.
— DONNA! CHLOE! TEMOS VISITA! — Riley grita, de algum
canto da casa.
Escutamos passos na escada e eu me viro, dando de cara primeiro
com uma Chloe com os fios ruivos soltos e lindos como nunca, bem como
uma camisa preta ombro a ombro justa, calças até o meio da cintura e seus
coturnos. Meu presente está em seu pescoço e acho que é a primeira vez que
a vejo usar brincos. Linda. Não que surpreenda alguém.
Atrás dela, uma mulher ruiva sorri para mim e se aproxima.
— Então você é o segredinho da minha filha?! — Ela sorri, ao se
aproximar. Me sinto nervoso, mas confirmo. Vejo Chloe sorrir por cima do
ombro da mãe. Estendo a mão para a minha... sogra? Ela a segura e eu deixo
um beijo no dorso. — Uau... que cavalheiro! Como se chama?
— Noah. — E por um segundo, eu sinto que seu sorriso vacila. Isso
me diz que algo está errado e eu sinto o sorriso da mulher à minha frente se
tornar extremamente falso.
— Noah...?
— Noah Hellmeister.
E então eu tenho plena certeza. A mãe da Chloe sabe quem eu sou.
— Então, amor, essa é Donna Mitchell! — Chloe diz, sorridente,
passando o braço ao redor da minha cintura. Eu fito Donna com uma vontade
absurda de engolir em seco. — Mãe, esse é o meu "escondi-porque-não-
éramos-nada-ainda-mas-é-meu-namorado", Noah.
— Que nome grande! — Donna ri nasalado. — Ben! Venha falar com
nosso convidado! — a mulher pede, esboçando um sorriso fechado. Ben
corre até ficar ao seu lado e abraça a perna da mãe. — Esse é o namorado da
sua irmã.
— Vou colocar a mesa do jantar. Riley, me ajuda? — Donna pede e as
duas se retiram.
— Eu já vi ele antes... — Ben diz e eu abraço Chloe pela cintura,
apertando-a levemente, na tentativa de fazê-la entender que algo está errado.
Chloe me encara e franze o cenho levemente.
— Acho que é impressão sua, Benjamin. — Molly nos salva. — Noah
mora em Nova York. — A garota devolve o Game Boy para o menino,
que ainda bem, cala a boca.
— O que foi? — Chloe pergunta para mim, de imediato. Eu a envolvo
pela cintura e a ruivinha aperta o meu queixo. — Noah?
— Ela sabe.
— Sabe o quê?
— Quem eu sou.
— Impossível, amor. — Chloe ri. — Como saberia? É coisa da sua
cabeça. — Não adianta insistir com Chloe Mitchell, porque ela não sabe do
que eu sei. Para ela, a sua mãe não nunca poderia imaginar a existência de
anjos e demônios, mas eu sei que não é verdade. — Ei, Ben... — Chloe se
aproxima do irmão e o pega no colo com muita dificuldade. — Caraca! Está
grande demais!
— ‘Tô nada — ele reclama, sem tirar os olhos do GameBoy. O garoto
recebe um beijo estalado da irmã na bochecha. Consigo ver, ainda mais, o
quanto a Chloe se importa com ele. Ela o olha como se ele fosse o ser mais
importante na sua vida.
— Ben, esse é o Noah — ela diz. E o garoto me encara. Seus olhos
são verdes e sua bochecha tem muitas e muitas sardas. No geral, Chloe e
Benjamin se parecem. Bastante até.
— Oi, tudo bom? — pergunto, um pouco tenso e um pouco
desconfortável por não gostar tanto de crianças.
— Quer fazer pipi? — ele me pergunta e eu arqueio a sobrancelha,
vendo Chloe rir. — É que você ‘tá nervoso, parece que quer fazer pipi. —
Então eu rio nasalado com a petulância do pequeno humano. — Sabe o que é
isso? — ele mostra o vídeo game.
— Sei. Eu tenho um — respondo, de imediato. E então Chloe une as
sobrancelhas para mim. Me aproximo do garoto, sussurrando: — Tenho um
escondido na minha gaveta, mas não conta pra sua irmã.
Benjamin ri. E Chloe ri também. Se ela riu, então falar com a criança
valeu a pena.
Eu penso em esboçar um sorriso, um pouco menos nervoso. Contudo,
um som de carro do lado de fora me faz fitar a janela. E eu xingo baixinho
quando vejo quem está do lado de fora.
— Meu anjo, por favor, me diz que avisou ao Matt que eu estaria
aqui.
— Não tive tempo. Quando eu voltei para casa, Molly e eu nos
encontramos aqui, chegamos ao mesmo tempo. Ele mora aqui na rua. Mas eu
não achei que seria um problema, sabe? Avisar ou não, não me pareceu um
problema... Estão brigados ou algo do tipo?
— Chloe... — digo, baixinho. Ela olha para trás, para a janela. E
então Mitchell vê que Luke está deixando Matt aqui.
— Mas que... — Chloe solta Benjamin no chão e eu a seguro pela
cintura com firmeza. Luke sai do carro e se despede de Matt com um beijo, e
assim que Letterman passa a caminhar para a casa, os olhos de Luke
encontram os meus.
Porra.

— Eu não sabia — Chloe sussurra, quando fecha a porta do seu


quarto. Luke se convidou para o aniversário quando me viu e Matt tentou
recusar, mas Riley Mitchell o colocou para dentro. E quando nos vimos, Matt
quis morrer. Vi pelos seus olhos.
Isso é um pesadelo.
— Eu juro, Noah, eu nem sabia que Luke estava em Maryville ou que
ele e Matt estavam tão próximos assim, a ponto de ele vir aqui para encontrar
Letterman. Eu não imaginava.
— Que porra Luke está fazendo em Maryville? — pergunto, tentando
manter a calma.
— Matt me disse que iria sair antes do meu aniversário, mas que
chegaria a tempo. Eu não imaginei que ele sairia com o Luke. Eu não sabia
que ele estava visitando o Matt aqui. Você não sabia?
— Que eles estavam se pegando às vezes? Sim. Mas eu pensei que
isso tinha parado quando Matt se mudou para cá. Chloe... — Respiro fundo.
— Agora todo mundo sabe que a gente voltou. Como somos tão idiotas a
ponto de não conseguir esconder isso de todo mundo?
— Ok, calma. — Chloe se aproxima e coloca as mãos nos meus
ombros. — A gente vai descer as escadas e agir normalmente. A minha mãe
não sabe de nada e o Luke não vai fazer nada de errado. Só respira, ok? —
ela pergunta e eu não a respondo. Chloe me abraça pela cintura. — Respira...
— ela pede e cola a boca na minha. Eu deixo o ar sair pelo nariz e ela suspira,
me beijando de novo. — Isso, respira... — Eu a envolvo com os meus braços
quando seu rosto se cola no meu e ela me envolve pelo pescoço.
— Primeira vez que conheço a sua família e parece que vou morrer —
comento e ela ri baixinho.
— Mas você é imortal, então ‘tá tranquilo — ela brinca e deixa um
beijo estalado na minha bochecha, antes de colar a boca na minha por longos
segundos. — Eu já não sei como a gente vai resolver isso tudo, mas vai dar
tudo certo, ‘tá? Desde que a gente fique junto.
— Desde que a gente fique junto — repito, tentando manter a calma.

— Eu não acredito nisso, Noah — Luke murmura para mim, enquanto


estamos sentados no sofá. Houve algum imprevisto com o jantar e agora
estamos esperando na sala.
Chloe foi ajudar a mãe e a tia, enquanto Molly brinca ao chão com
Benjamin e me lança olhares preocupados de vez em quando. Matt, ao lado
de Luke, parece querer morrer.
— Como você pode deixar Luke te trazer aqui, Matthew? Comeu
merda? — pergunto, sussurrando.
— Eu não sabia que você viria para o aniversário. Eu e Luke
almoçamos juntos e ele me ofereceu uma carona — Matt responde.
Continuamos a conversa em baixo tom:
— Você contou para ele que já estava bem com a Chloe? —
Desgrudo o corpo do sofá e fito Matthew. Ele ri nasalado, nervoso. — Que
tipo de anta você é?
— Luke é confiável.
— Sei.
— Ele é.
— Eu ‘tô bem aqui — Luke recorda, entredentes. — Vocês realmente
foram muito, muito burros. Mas por que diabos esconder que Noah e Chloe
voltaram? — O loiro me encara. — Desconfia tanto de mim assim? — Ele ri.
— Bom, já que ‘tá todo mundo reunido, vou ligar para os meus comparsas
pra atearem fogo em todo mundo. Alguém sabe se posso usar o telefone da
casa? — Luke ironiza.
— Não tem graça — resmungo.
— Bom, isso eu concordo. Sua desconfiança é mais trágica do que
cômica, Noah. — Luke soa magoado. Eu respiro fundo e desvio o olhar. — E
sua coragem de vir aqui é impressionante! A mãe da Chloe...
— Nada vai acontecer.
— Ela se apaixonou por um anjo, acha mesmo que ela nunca escutou
sobre você? Sobre a guerra no passado? — Luke me devolve. Me remexo,
desconfortável no sofá. Meus ombros se tornam rígidos, tenho medo de que
alguém nos ouça cochichando. Ainda assim, Matt continua:
— O pai da Chloe estava na guerra causada pela Lilith. Ele
provavelmente contou tudo para Donna. E pelo jeito que ela te olhou... Eu
acho que ela sabe. Seu nome é inesquecível, Noah — Letterman continua,
baixinho.
— Ela sabe. Eu sei que sabe — concordo.
— Então essa seria a hora perfeita para nós dois contarmos para a
Chloe sobre tudo? — Matt pergunta. — Acho que demoramos tempo demais.
Erro meu. Ela merece saber tudo.
— Nisso concordamos — respondo. — Não aguento mais mentir.
— Então seria uma boa hora para dizer que descobri quem matou o
pai dela? — Luke arrisca. O anjo e eu o encaramos.
O quê?
— Caralho... Isso é um jantar ou um teste para cardíaco? — Matt leva
a mão ao peito, respirando fundo.
— Os dois — Luke e eu respondemos ao mesmo tempo.
— Quem matou o pai dela, Luke? — pergunto baixinho. Ele não me
responde.
— O jantar ‘tá na mesa — Riley diz, ao chegar na sala. E Benjamin
corre, empolgado, bem como Molly, que o segue rindo. E nós três nos
levantamos em silêncio para o jantar mais bizarro de nossas vidas.
Chloe e eu estamos de mãos dadas debaixo da mesa e seu polegar me
acaricia numa tentativa de me tranquilizar, porque nunca estive tão nervoso.
Nem sei como ela aguenta segurar a minha mão, estou suando frio.
— Então, Noah... — Donna diz, tomando um gole na taça de vinho.
Ela está em sua primeira enquanto Riley parece estar na terceira. — Com o
que trabalha mesmo?
— Eu tenho um estabelecimento — digo, um pouco ansioso.
— Um clube noturno — Chloe complementa, virando um gole do seu
vinho.
E agora ela pode beber. Legalmente falando. Sua mãe fez questão que
ela bebesse ao seu lado pela "primeira vez". Tenho certeza de que Donna
sabe que não é a primeira vez. Na verdade, Donna me encara de um modo
que acusa que ela sabe demais.
— Onde fica esse clube? — Todas as perguntas da mãe da Chloe se
voltam para mim.
— Hell's Kitchen — Molly responde. Ela e Matt trocam um olhar
estranho quando o anjo pigarreia.
A minha mente viaja um pouco, tamanho é o meu nervosismo.
Milhares de perguntas e dúvidas se passam numa velocidade absurda.
Benjamin está devorando a comida sozinho agora, alheio a tensão da
mesa. Luke elogia a comida pela milésima vez e Donna sorri. Chloe vira o
meu rosto para si e deixa um selinho fazendo Riley sorrir para nós dois, como
se fôssemos a coisa mais linda do mundo. Já Donna, desvia o olhar estranho
para Molly, o desfazendo e perguntando como ela está. Matt e eu trocamos
um olhar tenso.
Parece que o ar é rarefeito agora.
— Noah, você parece a um segundo de um infarto. Esboce um sorriso
pelo menos — Chloe sussurra e eu engulo em seco. — O que houve? — Ela
toca o meu queixo e me faz fitá-la. Seus olhos parecem cobrar demais de
mim e isso me deixa nervoso. — Ei... — Ela me beija brevemente. — Se
quiser... — Sua boca se aproxima do meu ouvido — A gente pode subir e eu
posso tentar te fazer relaxar...
— Chloe... — Donna diz, a fazendo se afastar de imediato. A mãe da
ruivinha sorri, com seus olhos verdes cravados na filha. — Ajuda a sua tia a
pegar a sobremesa?
— Eu também ajudo! — Benjamin se levanta em um pulo. — Vem,
Molly! — Ele puxa a amiga de Chloe, que ri e diz que volta já, seguindo o
garoto.
Os escuto competirem uma corrida até a cozinha enquanto Riley grita
que Chloe já é uma adulta. Eu rio nasalado com a fala. Até que o olhar de
Donna crava em mim.
— Eu reconheço um anjo quando vejo um — Donna diz para Matt. E
eu travo. — É algo sobre os olhares de vocês, anjos. Tem algo diferente. Um
brilho diferente. — E então ela me encara. — Deve saber, você está com
alguém que herdou esse brilho. Certo?
— Donna... — peço baixinho por calma.
— Ela sabe?
— Olha...
— Ela. Sabe?
— Ela sabe sobre mim.
— E ela sabe sobre o pai dela? — Donna refaz a pergunta. Eu nego.
— Ótimo. E se você tiver alguma decência, vai sair da minha casa agora
mesmo, sem contar nada. — Ela arrasta a sua cadeira. — Nunca mais toque
na minha filha.
— Ela sabe o que eu sou. Ela sabe com quem está metida.
— Ela não sabe. E eu não me importo — a ruiva devolve, se
levantando. — Nunca mais toque na minha filha — repete.
— Ela me ama, sabe? — pergunto, alto. E Donna se senta. — Ela me
ama. Nós estamos juntos e isso não vai mudar porque você não aprova.
— Claro que ela te ama. Você é o Diabo, com todo o seu charme e
persuasão, sua beleza estonteante e seu jeito de fazer uma garota se sentir
única. Quantas não te amam? — Ela ri. — Mas a questão é, Noah, você é
incapaz de amar.
— Não sou não.
— Donna... — Matt nos interrompe. — Eu sei que é difícil de
acreditar, mas Noah não é um monstro, ele...
— Ele matou o meu marido — Donna diz. E eu franzo o cenho ao
máximo, sem compreender. Fito Luke. — Meu marido morreu protegendo
um amigo. Ele protegia um anjo que tinha escapado do Céu, porque, como o
meu Colin, tinha se apaixonado por uma humana. E o Diabo julgou que uma
criatura celestial não poderia escapar de suas funções sem ser punida. E, na
tentativa de matar o amigo dele, você matou o Colin.
— Eu não matei ninguém — respondo, firme. — Eu não matei o pai
da Chloe. — Encaro Luke, pedindo por ajuda. — Luke...
— É a nossa função devolver ao trabalho aqueles que escapam do
Céu ou do Inferno... O amigo do Colin escapou do Céu. Ele estava numa lista
há alguns anos para ser capturado vivo ou morto. Sinn e eu fomos capturar
pessoalmente. Sinn costumava preferir matar do que trazer em vida... Então,
Sinn o matou. E sem querer...
Sinto fúria. Arregalo os olhos brevemente, sem acreditar, e então fito
Donna, que ri nasalado. Seus olhos estão marejados e eu consigo ver o exato
momento em que ela engole a dor.
— Saia da minha casa — diz, entredentes, furiosa.
— Eu não sabia.
— Não me importa. — Ela eleva levemente seu tom de voz. — Sabe
como foi difícil para mim? Sequer já sentiu a dor de perder alguém que você
ama? — Suas frases têm um tom acusação. — Collin era um anjo e ele
implorou para abandonar a sua vida e as suas asas, todo o seu universo,
porque ele me amava. E eu o amava de volta. Eu o amava. — Ela está
chorando. Donna está tentando controlar a voz embargada, enquanto chora e
ela me lembra a Chloe. — Ele se tornou humano por mim e nós construímos
uma família. Uma que você destruiu.
Engulo em seco. E quando eu vejo, Chloe está atrás da parede da sala,
escondida, a fim de ouvir mais. Sinto o meu coração pesar e fito Donna,
prestes a pedir para que pare de falar. Mas ela não para:
— O meu Collin era um anjo e ele acreditava fielmente em como
você fodeu tudo por causa da sua ganância. Ele teve seus pais mortos
por sua causa e eu ouvi as histórias sobre você, Noah. Eu ouvi. O cara que se
juntou com uma mulher, um anjo maldoso, e gerou o caos, que eliminou
vidas e fez tudo ferver em ódio. Eu ouvi sobre você. — Sua voz se torna cada
vez mais áspera, mais cortante. — O Collin acreditava no Céu. E eu também
acredito. E acredito que você é um monstro. E, por mais que Collin tenha
desistido de suas asas e de sua força para ser só mais um homem entre vários,
só mais um humano, só para ser meu... Por mais que eu saiba que Chloe foi
gerada quando Collin já não mais era um anjo... Por mais que eu saiba que a
minha filha não carrega o sangue de um anjo, ela é o meu anjo. Um anjo
como a Chloe já carrega demônios o suficiente para ainda receber o fardo de
se apaixonar por um monstro como você. Você matou o meu marido. Então
saia logo da porra da minha casa.
Respiro fundo, um tanto quanto furioso.
— Todos vocês — ela ordena. E quando faz menção de encarar Luke
e Matt, seu olhar encontra a Chloe. — Filha...
A ruivinha tem seus olhos marejados, se aproximando da sala de
jantar com uma feição de dor, pura dor.
Ela acaba de ouvir que eu matei o seu pai, o que é mentira.
Ela acaba de ouvir que seu pai já fora um anjo, o que é verdade.
Ela acaba de ouvir demais. E eu consigo ver o quão fodidamente
confusa ela está.
Riley e Molly aparecem logo atrás dela, sorrindo enquanto carregam
pratos e o pequeno Benjamin se esforça para segurar a torta. Mas meu olhar é
todo da Chloe. Ela deixa algumas lágrimas se escaparem e Matt se levanta,
aproximando-se dela, contudo ela desvia e pega a chave do seu carro sobre
um móvel da sala.
Ela está tremendo.
— Chloe, sente-se um pouco. Escute... — Matt pede.
— Não ouse chegar perto. — ela diz, baixinho, se afastando. Chloe
busca o olhar da sua mãe, a encarando em um misto de fúria e de rancor.
Porque mentiram para ela a vida toda. Nunca lhe contaram a sua história,
nunca lhe contaram sobre o seu pai.
Me levanto de imediato, bem como Donna, que segura o meu pulso,
me impedindo de me aproximar. Eu me solto, andando até Chloe.
— Meu anjo... — chamo, tentando me aproximar.
Tudo o que Chloe faz é andar a passos firmes para fora de casa. Lanço
um olhar furioso para Donna, que não hesita em me seguir quando corro atrás
da Chloe.
— CHLOE! — chamo e vejo a ruiva entrar em seu carro e bater a
porta. Me aproximo da janela e bato nela algumas vezes, mas ela finge não
me ouvir. — CHLOE! ME ESCUTA! NÃO É VERDADE, MEU ANJO! ME
ESCUTA...
Ela dá a ré em seu carro, arrancando-o para fora dali. E eu penso em
segui-la, mas Matt segura o meu braço e diz para deixá-la ir. Por enquanto.
E eu percebo que no dia do seu aniversário, tudo o que dei para Chloe
Mitchell foi um coração partido por mentiras que eu não precisava ter
contado.
Eu sabia que não era a única a mentir nessa história, mas ainda assim,
dói para cacete. Dói principalmente porque não consigo entender metade do
que ouvi.
Meu pai era um anjo.
Noah matou o meu pai.
Como? Como assim?
Parte de mim se arrepende de ter fugido sem ter dado a ninguém uma
chance de se explicar, a outra não quer voltar àquela casa ou olhar para
aquelas pessoas. Eu só quero sumir, eu só quero... Sumir.
A letra de Bohemian Rhapsody nunca fez tanto sentido pra mim como
nesse exato segundo: "eu não quero morrer, às vezes desejo nunca ter
nascido". Porque dói. Caralho, dói. Dói saber que seus pais mentiram pra
você a vida toda. Dói não saber o que isso te torna. Dói saber que você se
apaixonou por um cara que a sua mãe aparentemente odeia e que ela o acusa
de ter matado o seu pai.
É muita coisa pra mim. E eu sabia, eu sairia machucada. Só não tanto.
Estou sufocada, respirar dói, viver parece um fardo e a minha mente parece
ferida, por todas as tentativas de tentar entender esse cenário, de montar esse
quebra-cabeça confuso da realidade que estou vivendo.
Dói.
Eu sei que ele pode saber onde estou. Eu não quero que ele me siga,
mas acho que minha opinião, direitos e desejos nunca foram levados em
conta por ninguém nessa porra. Então que seja.
Eu estaciono a Shelly numa rua de Maryville na qual conheço muito
bem. Tiro os brincos idiotas que a minha mãe me fez usar e os jogo no espaço
entre os bancos, respirando fundo para não chorar.
Eu saio do carro, em direção ao bar nos limites da cidade. Meus
passos me aproximam de uma bartender que conheço mais do que eu
gostaria. Olho ao redor, percebendo que algumas caras conhecidas me
reconhecem. A bartender com suas muitas tatuagens e seu cabelo
extremamente curto e escuro finalmente me encara.
Eu sei que ela perdeu seu dinheiro com drogas. Eu sei que se fodeu
depois de mim. Eu sei que ela vive de bebidas e corridas. Sei mais da sua
vida do que eu gostaria. Foi ela que me apresentou à adrenalina, afinal. Se
sou boa em competir, devo isso a ela.
— Chloe.
— Dalia — respondo, em mesmo tom, sentindo como se estivesse
engolindo um caco de vidro apenas em falar com a minha ex. — Tem
corridas hoje?
— Você está bem?
— Você se importa? — devolvo. Deixo uma nota sobre a mesa e
roubo a cerveja que ela serviria para outra pessoa. — Tem corrida hoje? —
repito a pergunta e viro um longo gole da bebida. Dalia cerra os olhos em
minha direção. — Sim ou não? Não é uma pergunta difícil. — Tomo outro
gole.
— Tem. Daqui a dez minutos. Você está bem?
— Perfeito. Dez minutos. — Ignoro a sua pergunta. Sinto medo o
tempo todo de ser perseguida, de Noah invadir o bar.
Mas não é isso o que acontece. Os dez minutos se passam lentamente
e algum tempo depois, boa parte do bar está no estacionamento, formando
um semicírculo. Perguntam quem vai competir e eu ergo a mão. Algumas
pessoas me reconhecem e outras me julgam uma idiota por tentar correr. De
qualquer forma, eu estou dentro.
Nossos carros se posicionam lado a lado no estacionamento e me
repassam o trajeto cinco vezes. Mas eu recordo muito bem. Muita gente se
aproxima, as apostas são feitas e eu sinto os minutos passarem enquanto
enrolam para dar a largada dessa merda de corrida.
E eu tenho medo de ser interrompida.
Nesse meio tempo, me oferecem cigarro e eu aceito, me oferecem
vodca e eu aceito e quando a garota ao meu lado flerta comigo e me oferece
maconha, eu dispenso o flerte, mas aceito o baseado. Qualquer coisa que
possa amortecer a dor me parece bem-vinda. O que acontece na minha mente,
contudo, é a transformação da nuvem de sentimentos em algo ainda mais
confuso, mais bagunçado e intenso. A mistura das drogas potencializou tudo
o que sinto e eu me vejo na merda.
Porra, eu me sinto no fundo do poço.
Entro no carro quando vejo uma garota com uma bandeira,
posicionada na frente dos veículos. Coloco o cinto. Ligo o som da Shelly e
guio meu olhar marejado para a frente, tentando me concentrar. E então, um
Thunderbird para do outro lado da rua, fora do estacionamento. Vejo Matt
sair dele, bem como Molly, Luke e ele.
Noah.
Faço o motor do carro roncar, espantando o olhar de Hellmeister e
focando na corrida. Consigo ouvir Molly me gritar para sair do carro e em um
piscar de olhos, Noah me faz estremecer ao colocar as mãos no meu capô.
— SAI DA FRENTE, NOAH! — grito pela janela.
— VOCÊ NÃO VAI CORRER!
O som do motor ecoa novamente e eu aperto o volante, irritada. Vê-lo
ali me deixa puta, fora de mim. Noah tem suas íris vermelhas e voltadas para
mim. Muitos nos encaram no momento.
— Mitchell! Precisamos correr! — Dalia diz no carro ao lado.
— SE QUISER CORRER, CHLOE — Noah grita, com a voz
embargada —, VAI TER QUE PASSAR SOBRE MIM! — ele me desafia.
Engulo em seco contra o nó em minha garganta. Seguro a vontade de
chorar. Saber que ele não morreria não muda o fato de que, mesmo assim, eu
não conseguiria fazer isso. Jamais conseguiria passar por cima dele. Eu não
machucaria ele intencionalmente sob qualquer hipótese. Ferir Noah e me ferir
são sinônimos.
— SAIA DA FRENTE, NOAH! — grito, sentindo o sangue ferver em
dor e ódio e meus olhos queimarem, forçando as lágrimas a saírem. Meu
carro está rangendo, mas Noah não tem medo.
— NÃO ATÉ VOCÊ SAIR DO CARRO E CONVERSAR
COMIGO! — Ele bate uma das mãos na Shelly e eu me sinto furiosa. —
PORRA, CHLOE, SAI DA PORRA DO CARRO! NÃO VÊ QUE NÃO
ESTÁ EM CONDIÇÕES DE CORRER?! — Eu não o respondo. —
MITCHELL, PORRA!
Respiro fundo, deixando o ar quente sair por narinas infladas e se
transformar em vapor contra a temperatura fria.
Noah e eu nos encaramos. Ele suplicando com o olhar para que eu me
permita parar e ouvi-lo. Eu ordenando com os meus meros olhos castanhos
que ele me deixe em paz esta noite, que me deixe correr, que me deixe
extravasar todo tipo de fúria que eu sinto. Porque eu não estou suportando
mais.
E a bandeira cai.
Os carros ao meu redor arrancam.
E Noah e eu ainda nos encaramos.
Tudo o que eu faço é recuar o carro com velocidade e contornar
Noah, que abre os braços e grita por mim com toda a força em seus pulmões
conforme eu — figurativamente falando — passo por cima dele e busco pela
corrida.
Porque eu preciso de adrenalina. Preciso de qualquer coisa que me
ajude.
Estou em último lugar e segurando o volante com ódio, enquanto
tento ultrapassar o carro à frente, que por acaso é o de Dalia. Mas a garota me
fecha e eu grito um xingamento, puta como nunca.
E então eu sinto o carro afundar. Noah está do meu lado.
— Desliga o carro.
— Sai daqui — peço. Noah desliga o som e eu encaro de soslaio os
seus olhos vermelhos. — SAI DAQUI, NOAH! — Volto a fitar a pista.
— Desliga a porra do carro, Chloe, por favor — ele pede, colocando
uma mão sobre o volante. Eu me nego. — Mitchell, me escuta! Eu não matei
o seu pai, percebe o quanto isso é absurdo?!?!
— Me deixe sozinha.
— CHLOE! — Em um momento de falta de atenção, Noah puxa o
freio de mão. Meu carro realiza um drift na rua vazia e para por completo.
Pisco algumas vezes para ele, sem acreditar. — Você me fez fazer isso.
Eu trinco os dentes e grunho, sem crer.
— FILHO... DA... PUTA! — acuso, saindo do carro e batendo a porta
com força. Fito a rua atrás da gente completamente vazia e escuto, de longe,
o som dos carros se distanciando. Depois olho para o fim da rua e levo as
mãos à cabeça, bufando em ódio. E escuto a porta do meu carro se abrir e se
fechar. — POR QUE NÃO CONSEGUE ME DEIXAR EM PAZ POR UMA
NOITE, NOAH?! — Me viro para ele, que se aproxima, parecendo alheio a
tudo que eu digo. Noah parece tentar checar se eu me feri, mas eu o empurro.
— POR QUÊ? POR QUE EU? POR QUE ESSE INFERNO TEM QUE SER
COMIGO? — Quando eu o empurro de novo, deixando as lágrimas
escaparem, ele segura os meus pulsos, enquanto as minhas unhas cravam em
sua camisa. Noah afasta as minhas mãos do seu corpo. — Por quê? — As
lágrimas escapam com tanta intensidade que eu sinto os meus pulmões
arderem.
— Do que está falando, Chloe?
— Por que eu? O que eu tenho de especial? Por que eu? Por que
infernos eu sou a filha de um anjo, por que infernos o Diabo me escolheu
para... Para... — Eu não sei o que porra dizer. Eu não sei que porra dizer. Eu
não sei o que eu estou sentindo.
A minha única certeza é de que não sou o suficiente para isso. Eu não
sou forte como ele. Não sou um anjo ou um demônio. Eu sou só uma garota
frágil do Tennessee, que foi se fingir de forte em Nova York, uma garota em
busca de qualquer aventura que lhe fizesse sentido, eu não sou forte. Eu não
sou capaz de ser dele quando não consigo pertencer nem a mim mesma,
quando não consigo me compreender.
Eu não sirvo para isso.
Eu não sou forte para lidar com isso tudo.
Eu não estou suportando.
— Acha que eu sei?! — Noah une as sobrancelhas e tensiona a
mandíbula. — Acha que eu sei?! Acha que eu gosto dessa merda que eu
sinto? Acha que eu gosto da sensação de só me sentir forte e de só sentir a
porra do coração bater em meu peito se eu estiver perto de você? — A mão
dele colide no peito dele com força. Noah avança um passo. — Acha que eu
gosto de ter a PORRA da minha mente FODIDA por estar aos seus pés?
Acha que eu, a porra do Diabo, gosta de estar sofrendo por estar
completamente rendido a uma humana?! VOCÊ ACHA? Acha mesmo? —
Ele ofega, se aproximando de mim. — Acha?!
— Fique longe de mim. — Recuo.
— É sempre assim, não é, Chloe?! Sempre foge quando as situações
complicam.
— PORQUE EU NÃO AGUENTO MAIS, NOAH — devolvo, me
aproximando dele. Eu me segurei por muito tempo para não explodir, e, de
repente, esse é o momento. Minha respiração e a dele se misturam, pesadas.
Consigo ouvi-lo ofegar, furioso e tão perto, enquanto meus olhos focam nos
seus, e os seus esquadrinham todo o meu rosto. — Seja lá por que eu fui
parar no seu caminho, Noah, escolheram a garota errada. Eu. Não. Aguento.
Mais. Não aguento mais me sentir às cegas e mais mentiras entre nós dois,
desconfiar de todo mundo e estar apaixonada por alguém que claramente não
posso amar, eu não posso amar você.
— Por que não?
— Porque você é a porra do Diabo e parece que a cada segundo o
universo me dá um jeito de me lembrar que sou apenas uma humana patética,
apenas mais uma garota fodida por olhos carregados de maldade e um sorriso
bonito.
Surge um silêncio cortante entre nós dois.
Em silêncio, fitamos um ao outro, mergulhamos no olhar um do
outro, tentando absorver e compreender a intensidade das nossas palavras. A
minha mente, contudo, não está nada silenciosa. Acho que a dele também
não.
— Acha que o destino tenta nos afastar? — Noah se aproxima, rindo
em deboche. Suas mãos firmam em minha cintura. Eu recuo um passo, mas
ele me traz para si. E a proximidade me faz engolir em seco com força. —
Acha que o destino tenta nos romper? Meu anjo, foi ele que te colocou no
meu caminho. E o Diabo achava que estava imune às brincadeiras do destino,
e percebeu que não, porque você existe. Amor, você... Você existe. —
Preciso me lembrar de respirar, quando ele coloca a minha mão espalmada
contra o seu peito. — É você quem faz isso bater forte. — Eu o sinto contra
os meus dedos e fecho os olhos quando Noah me traz mais para si. Seu
perfume me embriaga. — Você me deixa forte. Eu só me sinto vivo ao seu
lado, amor. Eu sou fodidamente seu. Se acha só mais uma humana? Então me
explica como uma garota do Tennessee faz o Diabo se sentir capaz de
volatilizar a qualquer segundo? Como uma garota do Tennessee tomou o
Diabo para si.
— Noah... — Eu tento afastá-lo, mas fico fraca demais perto do seu
perfume, do seu corpo.
— Acha que eu gosto de ser o Diabo? — A sua voz se arrasta com
raiva e eu sinto o meu rosto se aproximar do seu. — Eu odeio. Eu me sinto
sozinho, perdido. Na realidade, me sentia perdido, amor. Porque a eternidade
costumava doer antes de você. Viver doía antes de você. E agora, ser o
"Diabo" é exatamente aquilo que te faz se afastar de mim, então me diga:
acha que eu gosto disso? — Sua voz se eleva e ele ri. Fito os seus olhos.
Noah está puto. — Eu odeio ser o vilão de todas as histórias existentes e de
ver você hesitar em se entregar a mim. Eu odeio que a sua mãe me acuse de
mentiras e me lance um olhar carregado de ódio, pela filha dela ser
apaixonada por mim. Eu odeio... — Ele trava o maxilar e engole em seco. —
Eu odeio todo pedacinho dessa situação, porque eu sinto o quanto isso te
machuca e ele não te merece, Chloe. Porque você é bem mais que só uma
garota. Você me tem. Você fez o Diabo se apaixonar.
E o peso das suas palavras me atinge. Abro os olhos com vontade e
ergo as sobrancelhas, fitando um Noah, que nem percebe o que ele disse.
— Se quiser conversar quando estiver mais calma ou... — Ele recua
um passo e eu o seguro pelos ombros, tocando o seu rosto e o virando para
mim. — O que...? — Fico na ponta dos pés e uno com calma a minha boca na
sua.
Os lábios se grudam devagar e se arrastam uns sobre os outros. Noah
geme em surpresa e afaga as minhas costas, murmurando algo entre o beijo.
— Você disse — sussurro.
— O quê? — Ele une as sobrancelhas, confuso. Meu coração está
mais acelerado do que nunca no momento. Eu não sei se quero bater a cara
dele no meu carro, se quero gritar por ainda estar brava com tudo ou se quero
beijar o homem à minha frente até cansar. Eu simplesmente não me entendo,
e nem sei se quero entender. — Eu disse que estou fodidamente apaixonado
por você?! Precisava me ouvir dizer isso? — Ele ri, soando puto. — Eu
precisava dizer?! Jura?! — Noah soa bravo. — Isso não já era óbvio pra
caralho, Chloe Mitchell?
— Querido... — Uno as sobrancelhas.
Noah segura a minha cintura e em questão de segundos, meu corpo se
choca contra o carro. Então eu percebo o quão bravo ele ainda está. Noah me
faz sentar em cima do carro, guiando um olhar furioso ao meu.
— Eu não deixei claro em cada toque?! — Soa perigoso. Meu corpo
estremece por um segundo e as minhas pernas o envolvem antes que eu
sequer processe o que estou fazendo. — Eu não deixei claro quando te toquei
assim? — Suas mãos e seus polegares traçam um caminho pelas minhas
coxas, cobertas pela calça, até se aproximar do meio entre as minhas pernas.
Noah me puxa mais para si e eu sinto um vento frio se chocar em meu corpo,
fazendo meus fios vermelhos se movimentarem. A sua boca se aproxima da
minha. — Eu não deixei claro que sou fodidamente apaixonado por você
quando a minha boca tocou a sua pele assim desde a primeira vez? — Sua
voz rouca se aproxima do meu colo, até que seus lábios quentes tocam a
minha pele. O beijo me fez fechar os olhos. E então seus lábios se umedecem,
sobem e descem pelo meu pescoço, onde deixam um leve chupão. Depois
Noah guia beijos lentos e cálidos até a minha clavícula. Deixo escapar um
gemido baixo, contido. — Eu não deixei claro que sou seu quando te disse
que queria ser só seu, Chloe? — Sua voz se torna extremamente penetrante
quando próxima da minha boca.
— Noah... — Me sinto mole quando seu corpo se encaixa ainda mais
entre o meu. Fecho os olhos e minhas mãos tocam os seus braços, subindo
por sua camisa. Ele morde e puxa meu lábio inferior.
— Olhe para mim, Chloe. Veja o quão furioso você me deixou. —
Abro os olhos e encaro íris vermelhas, que não me dão medo. Eu me sinto
mais quente e tão furiosa quanto ele, subitamente não me sinto nada fraca. —
Você realmente precisava me ouvir dizer o óbvio?
Sim. Eu precisava.
Mas como não consigo responder nada, só colido a minha boca na
sua, arranhando a sua nuca e o surpreendendo por um milésimo de segundo.
No instante seguinte, Noah já encaixou a sua mão em meu pescoço e apertou
a minha coxa, deixando nossos narizes se roçarem, enquanto devora a minha
boca e deixa as nossas línguas transformarem o ódio em calor, que se dissipa
pelo ar a nossa volta. Quando Noah chupa a minha língua, eu não consigo
conter um gemido e minhas pernas o prendem ainda mais contra mim.
Se a noite é fria, nós dois a tornamos em um cenário tomado por
chamas.
Os carros da corrida passam ao nosso redor nos contornando e
buzinando ao realizarem mais uma volta, mas nós não nos importamos. Noah
faz a minha coluna arquear de encontro com o capô, ansioso pelos meus
lábios. Minhas mãos o arranham do abdome à sua nuca e ele arfa contra a
minha boca quando mordo a sua com força demais.
— Que porra fez comigo, meu anjo? — Seu tom de voz é rasgante,
carregado de raiva.
— Me mostre você — o desafio, baixinho. — Mas aqui não. — O
afasto.
— Entra no carro — ele ordena de volta. Noah não esboça sorriso
algum, mas eu sim. Saio de cima do veículo. E Noah entra nele
imediatamente.
Eu só movo o carro o suficiente para que entremos no primeiro beco
possível. Nem desligo o veículo, deixo que os faróis mirem contra a parede
do beco vazio e subo em cima do cara no banco do passageiro.
Noah grunhe quando eu apressadamente abro os botões da sua calça e
desabotoo a sua camisa apressadamente. Ele sobe a minha camisa e deixa
outro grunhido escapar ao ver o sutiã sem alças que uso. Em questão de
segundos a peça rendada está em algum canto do chão do carro.
Sua língua rodeia um dos meus mamilos e ele o chupa com vontade,
enquanto suas unhas curtas se firmam em minha cintura. Mordo o lábio com
força ao sentir seus dedos cobertos por anéis gelados envolverem o outro
mamilo e ele apalpar o meu outro seio e o apertar levemente. E então, a sua
boca dá atenção ao meu outro seio. Noah deixa um grunhido escapar contra a
minha pele quando eu, instintivamente, rebolo sobre seu membro, arranhando
a sua nuca e afundando meus dedos em seu cabelo.
Cada toque parece muito mais intenso que o comum. E já éramos
intensos demais.
Temos muita, muita raiva. Precisamos transformá-la em fogo e
mandá-la ao Inferno. É o que nós fazemos de melhor.
— Vou te mostrar o que aparentemente falhei em mostrar, Chloe. —
Sua voz é rouca e carregada de fúria, perigosa de um jeito que me excita, me
excita demais. — Vou te fazer gemer tão alto que vai ser impossível esquecer
o quanto sou apaixonado por você. — Ele aproxima o corpo do meu e abaixa
o banco em que está sentado. — Vai pro fundo do carro, agora, meu anjo. —
Eu obedeço, migrando para o banco de trás pelo espaço entre os assentos. E
em um piscar de olhos, Noah está saindo do carro e abrindo a porta dos
fundos. — Deite-se.
E eu me deito, virada para a porta em que ele entra. A minha boneca
da infância está aqui e eu a jogo para longe, porque ela não combina com o
que está rolando aqui. Eu tento não rir com esse pensamento.
Meu estômago se revira em ansiedade e toda a adrenalina que busquei
esta noite vem dele, de Noah, assim que meus olhos focam nos dele. Noah
parece a resposta para os meus problemas e uma resposta quente, quente
demais, enquanto uma mecha lhe cai pela testa e ele abre os botões da minha
calça, a tirando de cena.
— Diga que me quer — ele pede, brincando ao passar os polegares
pelas laterais da minha calcinha. — Sabe o que dizer... Diga — ordena, com
os olhos vermelhos em minha direção.
— Eu quero você. — E a calcinha desce pelas minhas pernas. Minha
intimidade é exposta perante seus olhos e Noah umedece o lábio inferior,
transparecendo toda a sua malícia ao ver o meu corpo nu.
— Quero que chame o meu nome sem medo. Quero que peça por
mim, meu anjo! Está ouvindo? — ele pergunta e eu confirmo, engolindo em
seco. — Porque você foi um anjo mau, amor, você duvidou do que eu sinto
por você e agora vai ter que pagar por seus pecados. Me entende, não é? —
ele me provoca. Noah quer me deixar tão puta quando ele está, ele quer me
torturar. E ele consegue isso quando beija a lateral da minha coxa. Quando
seus beijos sobem numa lentidão irritante até que eu o sinta suspirar contra a
minha boceta. — Peça, meu anjo.
— Noah... — Ele leva a sua língua ao meu clitóris, em um movimento
circular. E então o chupa. — Noah... — sussurro. Mordo o lábio inferior com
força, mas acabo por arfar quando o sinto me chupar com maior vontade,
apertando as minhas coxas.
Sinto a temperatura do carro subir e fecho os olhos, enquanto a boca
dele me toma para si. Noah me abre com dois dedos e lambe toda a minha
extensão, até que volta a chupar o meu clitóris. Eu contenho os gemidos e ele
continua a me torturar com lentidão.
O vejo tirar seus anéis e jogar sobre o banco, um a um, enquanto eu
afundo meus dedos em seu cabelo e rebolo contra a sua boca.
É diferente e estranhamente sexy como ele parece gostar ainda mais
de me provar com raiva. E eu sinto mais prazer por isso, por sentir seu olhar
me queimar a cada segundo que passa.
Os meus gemidos escapam quando Noah infiltra dois dedos em mim,
os deslizando lentamente para dentro e para fora da minha boceta, deixando
um gemido de aprovação escapar de sua boca pelo modo como — sem
conseguir me controlar — eu rebolo contra os seus dedos. E então, a agonia
de querer mais e mais prazer cresce excruciantemente quando sua língua
acompanha os seus dedos, quando sua língua de movimenta em vai e vem
sobre meu clitóris.
Ele sabe exatamente o que fazer para me levar a loucura. Meus
quadris se mexem e me guiam contra a sua boca, enquanto Noah abre a
minha boceta com dois dedos de uma mão, me fode com dois dedos da outra
e me chupa com vontade. Sua língua passa a entrar e sair de mim e eu o
chamo cada vez mais.
Seu nome reverbera pelo carro, entre respirações entrecortadas e
gemidos quase contidos. Seus braços passam por baixo das minhas pernas e
suas mãos se entrelaçam com as minhas quando apenas a sua língua me toma
para si, quando eu sinto o prazer crescer e a pressão entre as minhas pernas
aumentar. A agonia é insuportável e eu preciso chegar lá. E pela primeira vez,
meu corpo relaxa, a pressão se reduz e eu gozo contra a sua boca, o
observando chupar e provar cada gota do meu gosto.
O que acabou de acontecer?
Fito o teto do carro, ofegante para cacete.
Minhas pálpebras estão pesadas quando Noah fica entre as minhas
pernas e se aproxima da minha boca. Ele lambe seu lábio inferior, chupa o
meu lentamente e depois transfere meu gosto para a minha boca ao me beijar.
E tudo muda.
Toda a raiva vai embora. Eu deixo um gemido escapar e ser
suprimido por seus lábios, porque me rendo completamente a ele. E toda
nossa briga perde o sentido e todas as dúvidas morrem, porque eu sinto que
ainda que ele não diga, ele me ama.
Eu apoio a mão no seu peito, toco o colar de asas que ele carrega e
meus dedos sentem, através da sua pele, um coração acelerado apenas em me
ter. E, por mais que tenhamos feito desse carro um lugar para nos aliviarmos
de nossa fúria e frustrações do modo mais sujo possível, um universo para
pecarmos como apenas nós dois sabemos... Seu beijo parece puro e carregado
de sentimento. Eu sinto o que ele tenta me passar. Eu simplesmente sinto.
E eu sinto que somos um. Como se... Se o meu coração batesse
conforme o ritmo do seu, as mesmas batidas, como uma só música. Como se
a sua pele fosse uma extensão da minha, como se seus lábios e os meus
fossem feitos para aproveitarem esse magnetismo entre eles... Porque nos
pertencemos. Eu sei que "pertencer" soa possessivo, forte demais... Mas é
como eu me sinto.
Ele é meu e eu sou dele e não há nada mais certo no mundo do que
nós dois. Talvez seja egocêntrico pensar assim, mas o seu universo e o meu
se fundiram num só e todos os planetas e estrelas parecem girar em torno do
nosso caos.
Noah me basta. E me assusta, pois ele é o Diabo, eu sou uma humana
e, mesmo assim, parecemos uma história fodidamente cliché de amor
impossível. Mas eu não ligo. Podemos durar a eternidade ou apenas dois
segundos, mas eu terei a sensação de que estou aproveitando cada fração de
segundo com o homem que eu amo. E que ele também, mesmo que ele não
consiga dizer.
Eu sinto.
E eu entendo o que ele quis dizer agora...
Por que nós cismamos em querer tanto ouvir três palavrinhas, se, por
vezes, elas são ditas em vão? Eu o sinto. E isso é tudo que eu preciso. Eu
sinto o amor quando ele me toca, quando me olha, quando me beija e quando
eu o toco, o olho, o beijo, como faço agora.
O nosso beijo é doce demais para tudo o que fizemos agora. É um
contraste incrível.
— Eu ainda não acabei — Noah diz, ofegante, contra a minha boca.
Ele se senta e leva a mão ao bolso da calça, retirando uma camisinha.
Eu arqueio a sobrancelha.
— Jura?
— Desde que começamos a namorar, amor, eu estou sempre
preparado.
Levei uma mão ao colo.
— Fico grata e lisonjeada.
Ele ri e puxa as minhas pernas para si. Noah abre a camisinha com os
dentes e eu aprecio cada segundo dessa cena. Ele finalmente tira a sua camisa
por completo, expondo a tatuagem de asas no seu peito, a que eu amo tanto.
Mordo o lábio ao descer o olhar pelo corpo que conheço bem e ele desce a
sua calça e a cueca o suficiente para o ato, colocando a camisinha.
Me acomodo sobre o banco, espalhando ainda mais os fios ruivos por
ele. Seguro os quadris dele enquanto ele se aproxima e seus olhos focam nos
meus na medida em que guia o seu membro para dentro de mim.
— Você nunca mais vai duvidar do que eu sinto — Noah promete,
contra a minha boca —, nunca.
— Eu não duvido — prometo de volta. Ele não esboça qualquer
sorriso, ele só se empurra suavemente para dentro de mim. E eu deixo um
suspiro rasgante escapar, firmando as unhas em seus quadris. — Oh, merda...
— "Deixe seu corpo falar, amor." — Ele faz menção ao que me disse
na nossa primeira vez e eu rio, sentindo a sua boca se chocar com a minha.
Lentamente, Noah começa se movimentar. Ele afasta a boca da minha
quando deixo um gemido escapar e as minhas mãos seguram os seus ombros.
Noah morde o lóbulo da minha orelha, deixando a sua respiração ecoar no
meu ouvido.
Os arrepios se estendem por minha coluna enquanto eu o ouço grunhir
baixinho, conter gemidos e ofegar. Sinto o suor por nossos corpos, meus
seios contra seu corpo. A minha mão sobe para a sua nuca, a arranhando, a
outra crava em sua cintura.
É lento e intenso o que fazemos aqui. É como se o mundo girasse
mais devagar para nos apreciar. Não é só sexo, é amor. Talvez um dia Noah
perceba isso.
Nossas respirações e gemidos ecoam dentro do carro, as janelas estão
cada vez mais embaçadas e Noah espalha seus beijos por meu pescoço,
chegando a um dos meus seios. Sua língua rodeia o meu mamilo e ele o
chupa, lentamente, enquanto entra e sai de mim com lentidão. Meus dedos se
afundam em seu cabelo e eu arqueio a coluna em sua direção, buscando por
mais toques e mais calor.
Sua mão desliza por minha coxa e ele volta os beijos por meu colo,
pescoço, maxilar e boca. Noah me beija enquanto entra e sai de mim. Seu
nariz se roça ao meu e eu o empurro vagarosamente, o fazendo se sentar
contra a janela do carro.
Monto sobre seu pau, suas mãos vão para a minha bunda e suas unhas
cravam em minha pele quando eu começo a rebolar contra ele, nossos narizes
quase colados e nossos olhares completamente interligados.
Tudo é tão bom quanto intenso e devagar. Apoio as mãos na janela,
conforme meu corpo sobe e desce sobre Hellmeister.
Noah abre a boca e fecha os olhos levemente, enquanto puxo seu
lábio inferior entre os dentes.
— Eu amo você — sussurro.
Noah não me responde, ele só sorri. E nem precisa. Isso me basta. Eu
sei que ele me ama de volta.
Chloe cessa seus movimentos em cima de mim, segurando o meu
rosto com as duas mãos ao me beijar. Meu cenho está franzido e minhas
mãos apertam com firmeza a sua bunda e eu acho que jamais tenha sentido o
meu coração bater tão fodidamente forte quanto agora.
Tudo nela é intensidade. E, ainda assim, eu me impressiono.
Nossos lábios demoram um pouco em se afastarem, apaixonados. Seu
gosto é viciante. Toda vez que se derrama pela minha boca, eu sinto que
nunca vou me saciar. Mas o beijo é rompido.
A visão de Chloe Mitchell nua em cima de mim no banco de trás do
seu carro é linda, mas eu só consigo focar nos seus olhos.
— Seria estranho se eu dissesse que não quero sair daqui? — ela
sussurra e eu nego.
— O mundo parece melhor quando fingimos que só existe nós dois —
respondo em concordância e ela assente. Seus lábios se pressionam contra os
meus em delicadeza e eu respiro fundo. — Mas não, o mundo não é só eu e
você. Precisamos conversar.
Chloe suspira, resignada. Ela fita o teto e eu lhe deixo um beijo no
meio do seu pescoço, antes de deitá-la no banco ao meu lado e começar a me
vestir.
Fazemos isso em silêncio. É meio angustiante, na verdade, agora que
o sexo acabou. Porque sabemos que nem tudo se resolve com gemidos e
beijos. Precisamos conversar. Há muito tempo, na verdade.
Volto pro banco da frente, me sentando no carona. Vejo pelo
retrovisor o momento em que Chloe veste seu sutiã e ajeita o cabelo antes de
vestir a sua camisa e fechar os botões da calça. Não demora muito para a
ruivinha estar no banco de motorista.
Mas ela para e engole em seco. Por um segundo, é como se estivesse
passando mal.
— O que foi? — pergunto, preocupado.
— Eu bebi demais — ela responde e meu cenho se franze.
— Você bebeu?!
— Você não sabia? — Estou me segurando para não explodir de
novo. — Eu bebi e fumei um pouco. Nada demais.
— Você ia competir bêbada, Chloe Mitchell?! — A irritação deixa a
minha voz esganiçada e Chloe suspende os fios ruivos em um coque,
expondo um pescoço com manchas vermelhas causadas pela minha boca. —
Caralho, você vai me deixar louco. — Chloe respira fundo. — Transou
comigo bêbada.
— Calma aí, Noah. Bêbada? Sim. Chapada? — Arregalo os olhos.
— Levemente. Mas eu sabia o que queria, sabia muito bem o que eu estava
fazendo. Desde a sua boca entre as minhas pernas até o último beijo no banco
de trás, eu sabia o que estava fazendo.
— Eu só não mato você, porque eu... Ugh. — A ameaça é vazia, mas
a irritação é muito verdadeira. Saio do carro e abro a porta do motorista.
Chloe ainda está de olhos fechados, tentando respirar. E então eu me
preocupo mais do que me sinto bravo. — Ok, amor, está bem?
— Eu bebi demais — ela repete. Tiro o seu cinto e a ajudo a se virar
na direção da porta, deixando que sinta mais o ar do lado de fora. —
Obrigada.
— De nada — digo, um pouco emburrado. Chloe ri e beija a minha
testa.
Ela me envolve pelo pescoço quando eu me agacho, ficando ali pelo
tempo que ela precisar. Se ela quiser vomitar, eu seguro o seu cabelo. Se ela
quiser dar uma volta para respirar, tudo bem também. Uma humana nunca me
deu tanto trabalho. Mas de algum modo... ‘Tá tudo bem. Eu não me importo.
— Demoraram demais! — É o que Matt diz quando paro a Shelly no
estacionamento do bar em que estávamos antes. Molly está do seu lado e
parece aliviada ao nos ver. — Estavam transando? Sério?! — Ele aponta para
as marcas no pescoço da Chloe, que abraça o próprio corpo ao caminhar. —
Uau, ela ‘tá...
— Pálida. Mais pálida do que já é — Molly diz. — ‘Tá mais branca
do que a lua. — A garota segura o rosto da ruivinha, checando se ‘tá tudo
bem.
— Eu ‘tô melhor. Pronta para ouvir o que vocês têm a dizer — Chloe
garante. Matt me encara, um pouco hesitante. — Não fujam disso. Não mais.
Eu tô bem. — A garota morde o lábio com força. — Podemos conversar lá
dentro?
Matt assente e Molly faz o mesmo. Chloe anda para dentro do bar e
nós os seguimos. No segundo em que Chloe passa por uma garota alta e
tatuada, de cabelos negros e curtos, elas trocam um olhar estranho.
— Essa é a ex dela: Dalia — Matt sussurra para mim. E,
instantaneamente, eu me comparo com a garota ridícula que se move para
trás do bar.
Eu sou muito melhor.
Chloe e Molly se sentam numa das mesas, lado a lado em um sofá e
eu e Matt nos entreolhamos por um segundo. Isso vai ser difícil. Ele se senta
primeiro e eu me sento ao seu lado.
Chloe Mitchell tamborila os dedos sobre a mesa e eu vejo que o calor
do lugar pode estar lhe ajudando a se sentir melhor, ela está recobrando a cor
dos seus lábios e rosto. Isso me deixa aliviado. Ela está bem, por ora.
— Então... Como começamos? — Molly quebra o silêncio quando
Chloe e eu nos encaramos por tempo demais.
— Meu pai era um anjo? — Mitchell lança a pergunta e Matt e eu nos
entreolhamos. — Céus, gente. Falem de uma vez.
— Seu pai foi um anjo por muito tempo — Matt diz. — Porra... —
Matthew coça a nuca, pensando em como dizer. — Seu pai foi um anjo
enviado para a Terra com uma missão há muitos anos. Anjos de vez em
quando são enviados para verificar cidades, famílias... Para verificar se havia
equilíbrio entre a luz e o breu em um lugar. Seu pai acabou em Maryville. E
ele acabou por conhecer a sua mãe.
Chloe se ajeita sobre o sofá, inquieta. Eu engulo em seco e cravo as
unhas em minha mão, porque eu sei que não vai ser fácil quando Chloe ouvir
que mentiram tanto pra ela.
— Eles se apaixonaram — Matt continua —, e assim como você
descobriu a verdade sobre o Noah, a sua mãe descobriu sobre o Collin. Mas
foi o seu pai quem contou tudo. Porque ele não queria esconder.
Chloe está atenta a cada palavra dita, eu sei disso. Apesar de, nesse
momento, ela fitar seus dedos sobre a mesa e morder o lábio inferior com
alguma força. Um suspiro lhe escapa e eu coloco a mão sobre a sua, em
apoio. Isso faz com que Matthew nos encare, numa pergunta silenciosa se
tudo está bem.
Mitchell me lança um olhar marejado e eu viro a palma da sua mão
para mim. Eu estalo um dedo e ela suspira, deixando um riso nasalado
escapar. Ela não se afasta, Chloe não se afasta. Ela só permite.
— Estamos bem, continue — incentivo Matthew.
— Donna achava que era impossível ficar junto do Collin. Ela não
estava errada, sabe? — Matthew diz. — Era um amor impossível e seria uma
questão de tempo para que descobrissem o romance proibido e Collin fosse
punido ou afastado da Terra por tempo indeterminado. E Donna tinha medo
de todo o universo recém descoberto.. — Chloe observa enquanto eu dobro
dedo por dedo devagar e os estalo. A vejo respirar fundo. — Assim como
você se assustou com o Noah, Chloe.
Eu ergo os olhos para ela e que faz o mesmo, sorrindo de canto. Chloe
Mitchell tem o pouco brilho desse bar refletido nos seus olhos. Sua beleza
nunca para de me impressionar.
— Donna dizia que era um amor proibido, que a história deles era um
desejo impossível... Mas ela não conseguia se afastar. Eles não conseguiam
se afastar. Até porque Collin lutava pela sua mãe de um jeito que... Porra,
Chloe, era impressionante.
— Como sabe disso? — Chloe encara Matt ao perguntar.
— Seu pai era melhor amigo do meu irmão. Por consequência, Collin
era meu amigo também. Muito meu amigo. Nós escutávamos muito uns aos
outros.
— Você era amigo do meu pai?
— Sim, por isso eu quis ser o seu protetor — Matt diz, engolindo em
seco. — Eu nunca permitiria que outra pessoa protegesse você. — Chloe
desvia o olhar. Matt suspira. — Continuando... Donna e Collin simplesmente
decidiram viver o que tinham enquanto tinham o que viver. Ele se apresentou
para os seus avós como se fosse um humano e eles viveram algo lindo, lindo
de verdade. E isso resultou em uma gravidez...
— Uma gravidez que não vingou — Chloe conclui e Matt assente.
Vejo lágrimas se formando nos olhos da ruivinha. — Isso sempre mexeu com
a minha mãe. — Mitchell ri, mas sei que não há humor. — Enfim...
— A gravidez foi interrompida — Matt diz —, porque não é
permitido que um anjo tenha um filho com um humano. — Os olhos de
Chloe se voltam para Matthew. Eu aperto a sua mão quando sinto que ela vai
se afastar.
— Espera... Você ‘tá dizendo que eu ia ter um irmão ou uma irmã,
mas que minha mãe foi impedida de gerar essa criança por causa de uma
regra estúpida?
— Chloe... — Matthew soa triste, as palavras da ruivinha parecem
acertá-lo como um soco no estômago. Chloe ri nasalado. — É uma medida
necessária. Eu juro. Humanos são humanos, celestiais são celestiais. Se
permitirmos essa miscigenação, tudo sairá do controle. Permitir que humanos
gerem filhos dotados de poder celestial...
— Então a minha mãe perdeu um filho... — Chloe retoma a história,
sem querer se prolongar naquela discussão.
— Quando Donna começou a sangrar e sentir as dores absurdas do
aborto, ela gritou por socorro. Seus avós a ajudaram e a levaram para o
hospital. E foi assim que os seus avós descobriram a gravidez: quando ela
chegou ao fim. E eles ficaram putos. — Matthew suspirou. — Seu pai não
demorou em aparecer no hospital, ao lado da sua mãe. Ele não demorou a
tomar a toda responsabilidade para si. Não fez mais que a obrigação dele, eu
sei, mas isso fez seus avós perceberem que Collin era um homem muito
íntegro.
Chloe deixa um sorriso triste escapar e eu passo a estalar os dedos da
outra mão, percebendo como a saudade que sentia do seu pai a feria. Eu a
entendo. Eu sinto falta do meu.
— O fruto da união de um anjo com uma humana foi interrompida
porque fora descoberta. O Céu sabia. Angeline, a Rainha do Céu, sabia. Deus
sabia. O romance de Collin e Donna não era mais segredo. Mas Collin
sempre foi um dos melhores anjos, um dos confidentes da Rainha, um dos
mais confiáveis e leais. E compreensão lampejou pelos olhos de Angeline.
Ao invés de puni-lo, ela lhe deu duas opções: esquecer Donna e seguir a vida
com as funções de um celestial, o que ele amava, acredite... Ou deixar os
anjos de lado para se tornar um humano e poder ter uma vida ao lado de
Donna. E ele optou pela segunda opção. E assim foi.
Vi Chloe desviar o olhar carregado de lágrimas para um canto
qualquer do bar e suspirar, com seus lábios trêmulos.
— Seu pai se tornou humano, Chloe. Pela sua mãe — Matt diz. — Ele
se transformou em um humano porque ele amava a sua mãe do modo mais
puro possível. E como humano, Collin começou a ajudar a sua família, a
treinar para ser policial, tal como seu avô. Collin conseguiu forjar
documentos e se apresentar à sociedade como um Mitchell. Não havia outro
sobrenome que ele queria. Seus avós ficaram surpresos quando descobriram
que Collin se chamava Collin Mitchell... — Matt ri. — Eles nunca
desconfiaram que Collin foi um anjo. Eles nunca desconfiariam de Collin,
porque Collin carregava luz em seus olhos e tanta doçura que parecia
impossível de carregar qualquer mentira consigo. Collin era verdadeiramente
bom. Como você.
Chloe afasta a mão da minha para secar as lágrimas em seu rosto.
Mitchell está vermelha quando Molly a abraça de lado e lhe afaga os fios
ruivos. Matt para um pouco de falar, porque Chloe desaba em lágrimas.
Lágrimas silenciosas, mas muitas e muitas delas.
É de partir o coração, honestamente.
Chloe transborda em saudade e isso parte meu coração, porque
saudade não é uma dor que possa ser curada. Ela precisa ser sentida. Chloe
respira fundo, enquanto Anderson lhe sussurra que ‘tá tudo bem, mas eu sei
que não está. No fundo, Molly também sabe que não, ela perdeu John. Perdas
como essa não são muito superáveis.
— Meu anjo... — sussurro por ela e Chloe me encara. — Eu sinto
tanto... — Chloe volta a se ajeitar no sofá, levando as mãos ao rosto ao
respirar fundo e tentar cessar as lágrimas. Me inclino sobre a mesa e tomo
uma de suas mãos, beijando os seus dedos.
— Como ele morreu? — Chloe pergunta, ainda sem conseguir nos
encarar. Seu corpo sobe e desce conforme ela libera o choro.
Matt me encara e eu sinto medo de perder Chloe Mitchell nesse
segundo.
— Collin não foi o único a se apaixonar por uma humana — Matthew
conta. — O meu irmão, Adam, também se apaixonou por uma humana. Ele
veio visitar Collin como sempre fazia, em segredo. E ele se apaixonou por
uma barista nos limites da cidade. Mas o meu irmão não conseguiu os
mesmos privilégios que Collin. Então ele fugiu. Collin lhe deu abrigo, porque
acreditava que qualquer um deveria ser livre para amar quem bem
entendesse...
— Contudo, fugas não são toleradas por celestiais — eu digo,
atraindo o olhar de Chloe. Porra, isso dói. Eu sei que vou decepcionar a
ruivinha e isso dói.— E o Inferno é responsável por devolver essas criaturas
que fugiram das suas funções. Eu distribuo a lista de fugitivos aos
demônios... Eles precisam ser capturados. Vivos ou mortos.
— O que houve, Noah? — ela suplica pela verdade e eu umedeço
meus lábios secos, buscando a coragem para revelar.
— Antes... Durante meu processo de instrução, eu fui aconselhado
pelo meu pai a fazer isso sozinho. E antes do meu pai morrer, ele me delegou
essa função. E eu raramente matava os fugitivos, por piores que fossem.
Precisei matar um ou outro quando eu sentia que eles ameaçavam outras
vidas... — Estou adiando o inadiável e isso é patético.
— Noah, o que houve?
— Bem... Após a morte do meu pai, eu deleguei essa função a
terceiros. Eu ordenei a Sinn, Luke e Kold que cuidassem disso. Sinn e Luke
saíram numa missão para capturar o Adam, irmão do Matt... O Adam que
estava apaixonado por uma humana. O Adam que era o melhor amigo do seu
pai...
— Então era o Adam que estava no carro comigo e o meu pai, na
noite em que meu pai morreu. O amigo era ele. — Chloe entende tudo e leva
as mãos ao rosto. — Oh, céus!
— Eu pedia que tudo isso acontecesse com discrição. As mortes ou
capturas precisavam ser discretas. Então aparentemente Sinn e Luke forjaram
um assalto em Maryville... Armas comuns, mas balas especiais... Capuzes,
roupas escuras... Tudo forjado. Sinn tentou, aparentemente, matar o Adam
nesse teatro idiota, e acabou por atirar no seu pai no processo. Seu pai,
naquele carro, como um mortal, morreu rapidamente. E Adam, o verdadeiro
alvo, também foi assassinado. Você, uma criança, foi poupada.
Chloe pragueja, baixinho, voltando a chorar.
— Por favor, meu anjo, me perdoa...
— A culpa não foi sua, Noah — ela diz, entre soluços. — Porra,
como isso dói... — Chloe se despedaça perante os nossos olhos e ninguém
sabe exatamente o que fazer.
Chloe sempre deixou bem claro o quanto era ligada à toda sua família,
principalmente ao seu pai. Ela tem os desenhos dele tatuados na pele, herdou
o carro dele e faz questão de manter toda e qualquer lembrança dele viva em
sua mente. Agora ela sabe que ele lhe escondia muito. Ela sabe o que ele
renunciou para que pudesse amar a mãe dela, para que ele pudesse lhe dar a
vida.
Agora Chloe sabe que sua mãe sempre a quis por perto porque tem
medo de perdê-la também. Agora ela sabe que seu pai foi um anjo com um
histórico exemplar e um humano realmente bom. Bom como ela. E agora, ela
não pode lhe dizer que tudo bem dele ter optado por esconder isso... A
ruivinha não tem a oportunidade de lhe dizer que sente muito por ele ter
sofrido. Porque ela não o tem por perto, não mais.
Além disso, esse provavelmente é o momento em que a cena da morte
do seu pai passa por sua mente sem parar. Eu entendo isso. Passo por isso.
E a morte do pai dela possui todo um novo sentido, um jeito novo de
ser interpretado. Collin foi, acidentalmente, assassinado por um demônio. Um
demônio que Chloe conhece. E porra, eu quero matar o Sinn nesse momento.
Talvez eu faça isso. Porque eu estou vendo a minha ruivinha reviver um luto
profundo, chorar a morte do seu pai novamente.
Ninguém sabe o que fazer.
Porque a verdade dói. Ela pode ser necessária, mas, ainda assim,
dói. Fere. Sangra. Muito.
Molly, Matt e eu só ficamos em silêncio. Todas as cartas estão na
mesa e, finalmente, não existem mais mentiras entre nós quatro. Mas, cada
um de nós perdeu algo e tem o seu próprio mar de dor.
Chloe chora, ela derrama sofrimento. E cada um de nós afunda nesse
momento.

Donna abre a porta de casa. Seus olhos estão vermelhos e ela avista
Chloe, à minha frente, bem como Molly e Matt atrás de mim.
— Eu estou disposta a ouvir algumas coisas de você, mãe — Chloe
diz, com esforço. Donna lança um olhar para mim e Matt. — Mas você
precisa deixar meus amigos entrarem.
— Chloe...
— Isso não é negociável, mãe.
Donna fecha os olhos e respira fundo. Ela hesita enquanto segura a
porta. Chloe se vira, desistindo, segurando a minha mão e nos guiando em
direção ao seu carro.
— Ok, espera! — Donna ordena. Chloe para de andar e eu faço o
mesmo. Mitchell se vira primeiro para mim e depois para a mãe, mas seus
dedos não soltam os meus. — Entrem.
E de repente, estamos todos de volta à sala de estar. Eu, Matt e Molly
pelo sofá. Chloe está em pé, esperando a mãe, que está sentada em uma
poltrona, começar a falar.
Luke saiu dali há muito tempo, quando nós saímos em busca de Chloe
naquele bar.
Escutamos passos rápidos escada abaixo e Benjamin grita por Chloe,
correndo até a irmã e se jogando no colo dela. Chloe fecha os olhos,
abraçando o irmão com força. Riley está na base da escada, nos encarando
em silêncio.
O clima está pesado.
— Ei, Benny... — ela diz baixinho.
— Você me preocupou — o garoto responde, com a bochecha colada
contra o corpo da irmã.
— Desculpa. — Ela lhe afaga os fios ruivos. — Eu juro que ‘tô bem
agora. Por que não sobe com a tia Riley enquanto eu converso com a mamãe?
Já, já eu subo pra te ver.
— Promete? — Ele ergue a cabeça a fim de confirmar a fala da
garota.
— Prometo.
Benjamin bufa e se afasta, desanimado.
— Odeio conversa de adultos — ele resmunga e sai pisando firme,
seguindo Riley escada acima. A tia de Chloe nos lança um olhar estranho
antes de subir.
O silêncio volta a tornar a atmosfera da casa pesada.
Chloe está de pé, com os braços cruzados. Donna mantém os olhos
fixos na filha. Matt, eu e Molly estamos no sofá, sem saber muito bem como
reagir.
— Podem me deixar a sós com a minha filha? — Donna pergunta,
mais para mim do que para Matthew e Molly.
— Eles podem ficar aqui — Chloe define.
— Filha... — Donna tenta repreender a ruivinha, mas percebe que a
sua cria já está maior que a criadora. Chloe é teimosa demais para mudar de
ideia. A sua mãe suspira, cansada. — Bom, creio que agora já saiba de uma
coisa ou outra — Donna diz.
Chloe ri nasalado. A ruivinha cruza os braços e eu sinto que está
prestes a explodir, mas isso não acontece:
— Por que mentiu pra mim? — ela pergunta. E eu não sei pra quem
olhar no momento.
— Eu e seu pai achávamos que manter isso em segredo era um jeito
vivermos seguros. Digo, nossa história e tudo mais... Eu não sei. Seu pai
sempre achou que guardar esse segredo era o certo a fazer, que a cidade não
aprovaria um casal com uma história tão incomum quanto a nossa morando
aqui. E que essa história se espalharia... Enfim, ele... Ele sempre quis
esconder isso.
— Até de mim?
— Até de você. A sua tia, por exemplo, nunca soube. Você nunca
saberia. Seria algo meu e dele. Até porque... — A voz de Donna falha e a
frase fica pela metade.
— Até porque...? — Chloe a incentiva, com os olhos vermelhos e os
braços cruzados. Donna respira fundo, bem fundo. — Mãe...
— O seu pai e eu brigamos um tempo depois do seu nascimento —
Donna confessa. — Você tinha uns seis, sete meses... Collin estava agindo
estranho. Porque ele foi egoísta quanto a algo. Muito egoísta. O que eu nunca
esperava dele. — Chloe franze o cenho ao máximo. — Collin foi um anjo.
Ele trocou isso por humanidade, por minha causa. Para viver comigo. Mas foi
como um contrato, um acordo. E todo contrato tem cláusulas. E havia
um detalhe pequeno naquele acordo.
Mordo o lábio, inquieto. Chloe me fita de soslaio e depois desvia o
olhar para a mãe.
— Ok...? — Chloe uniu as sobrancelhas, cada vez mais confusa. —
Que tipo de detalhe?
— Collin e eu teríamos direito à nossa vida juntos. Teríamos a família
que sempre queríamos. Mas com uma condição: o nosso primeiro "fruto"
uniria o Céu e o Inferno.
Quase dou um pulo do sofá. Fito Matt, ao meu lado. Ele olha as suas
mãos, então ele sabia disso o tempo inteiro. Molly está boquiaberta e Chloe
estampa a mesma feição de confusão. Donna morde o lábio inferior, focando
seus olhos vermelhos e marejados na sua filha.
— O que isso quer dizer? — Chloe pergunta.
— É esse o problema, filha... Eu não faço a menor ideia.
Chloe me encara. No momento, a minha mente ferve, meu corpo está
completamente arrepiado. Eu abro e fecho a boca algumas vezes, mas olho
para Matthew.
— Eu pedi para ser designado para proteger a Chloe quando Adam e
Collin morreram — Letterman diz. — Esse era o papel do Adam antes.
Proteger a família toda, mas, principalmente, a menina que traria a união que
um dia foi rompida, a filha do melhor amigo dele. Eu só não sei exatamente
como isso vai acontecer, acho que ninguém sabe. É uma profecia e, portanto,
vai acontecer. Mas não me perguntem como. — Matt respira fundo.
— Porém... Antes eu achava que afastar Chloe do Noah era a melhor forma
de mantê-la em segurança. Hoje eu acho que os dois são a resposta. O
vínculo entre a filha de um ex-anjo e o Rei do Inferno...
— Isso só pode ser loucura — Donna diz, rindo ao se levantar. —
Então manter a minha filha perto de um assassino é o jeito certo de resolver
uma rixa de milhares e milhares de anos? Uma menina que nunca pediu para
estar no meio de uma guerra?
— Mas eu estou — Chloe rebate. — E manter a sua filha perto de um
cara que você chama de assassino só porque é teimosa o suficiente para não
ouvir o lado dele, é mais do que a porra de um destino, é o que a sua filha
quer. — E Donna está calada. Eu respiro fundo e Donna me encara. Seus
olhos verdes são impossíveis de serem lidos. — Esse é o cara que eu amo,
mãe. Você queira ou não. E ele não matou o papai, ele não é o monstro que
você pensa que ele é.
— Você só pode estar louca! — Donna acusa.
— Do mesmo jeito que você estava quando se apaixonou por um
anjo? — A voz escapa da minha garganta e eu me surpreendo por isso. Todos
me encaram.
— É diferente. — A ruiva mais velha se defende. — Você é o Diabo.
— Nem todo anjo é bom e nem todo demônio é mau.
— Você não é só a porra de um demônio, você é o Diabo. Um cara
que provocou a guerra que matou famílias e famílias.
— Você não sabe o que aconteceu — digo, entredentes. Matt segura o
meu braço e eu vejo Donna cerrar os olhos.
— Ele é o cara que eu amo, mamãe. — A voz da Chloe irrompe a
sala, mas Donna e eu ainda estamos nos encarando. — Você não sabe o que
aconteceu de verdade com ele e... Honestamente? O Diabo mentiu menos pra
mim do que a minha mãe a minha vida inteira. — E agora a encaramos.
Chloe ri, mas seu rosto está vermelho de novo. — E agora tudo faz sentido!
O modo como você me protegia... Ou como nunca quis que eu saísse de
Maryville...
— Chloe... — Donna a chama, baixinho.
— Enquanto eu era mais nova, tudo bem mentir... Mas deveriam ter
me contado tudo. — Chloe está enfurecida e isso é claro pelo modo como a
sua voz vibra de um modo diferente. — O papai morreu na minha frente e eu
achei, a vida toda, que fora por conta de um assalto. — Seu tom é de
acusação e eu ergo os olhos para Donna, sentindo pena do seu olhar
marejado. — Você é tão... — A ruivinha grunhe. — Inacreditável! Você
mentiu porque quis, mamãe, você se acomodou com a mentira. Você poderia
ter me contado! Você não pode esconder as minhas origens de mim mesma.
Não era a porra do seu direito! — Chloe ergue o tom de voz e eu sinto um
arrepio profundo ao identificar ira por cada frase dita. — E você é tão
egoísta...
— Chloe! — Molly a repreende, se levantando.
— Você me fez crer tantas vezes que eu era egoísta em ir para Nova
York, em buscar algo diferente da vida que levamos. Você me fez sentir
culpada quando me disse que eu trocava você por Nova York. E agora você
me diz que se apaixonou por um anjo e que isso é lindo, maravilhoso... Mas
que eu não posso viver um amor como você viveu, porque na porra da sua
concepção, mamãe, a sua história é um conto de fadas e a minha é um filme
de terror.
E o silêncio na sala é cortante.
— O Diabo me machucou menos do que você, mãe. Portanto, tentar
me proibir de viver algo que eu quero é inútil e, adivinha? É egoísta da sua
parte. — Chloe joga as palavras em uma Donna cada vez mais silente. Ela só
engole em seco. — Eu entendo que talvez você tivesse receio de me contar,
de como eu reagiria... Mas era a verdade. Eu merecia saber. Além do mais...
— Chega — peço. Donna tem seus olhos verdes marejados e eu sinto
pena. — Chega, Chloe. — Me levanto. Donna seca as lágrimas pelo seu
rosto.
— Aqui está a coisa, senhora Mitchell, eu sinto muito pelo seu marido
e eu amaria poder voltar no tempo e resolver as coisas, mas eu, acredite, não
tenho esse poder. Eu não posso trazer ninguém de volta, não posso fazer os
ponteiros do relógio girarem ao meu favor. Mas eu sinto muito. E eu sinto
ainda mais que você seja incapaz de acreditar nisso. — Os olhos de Donna
encontram os meus. — Você se apaixonou por um anjo. E eu não tenho o
coração doce que o Collin parecia ter, eu não sou esse tipo de cara. Mas eu
tento ser. A sua filha me faz querer ser. Você se apaixonou por um anjo,
Donna, e eu também. A Chloe é o meu anjo. E eu sinto, de verdade, pelo
Collin. Mas eu não vou abrir a mão de Chloe Mitchell. Por nada.
Donna esquadrinha todo o meu rosto em silêncio. Encaro Chloe por
cima do ombro e a ruivinha só seca as suas lágrimas e respira fundo.
— Vou subir para falar com o Ben — ela diz, sem olhar nos olhos da
sua mãe. — Depois acho melhor a gente cair fora.

Me sento na escadaria em frente à casa dos Mitchell. Acendo um


cigarro contra meus lábios e sopro a fumaça para a Lua, sentindo a nicotina
tentar destruir a tensão em meus ombros.
Certo, a mãe da Chloe me odeia. A família dela, provavelmente, não
me aceitará tão cedo. Provavelmente nunca. E eu sou o Diabo. Ela é uma
humana.
Chloe parece tão certa agora... O destino nos uniu, mas
constantemente prega peças que nos testam e nos fazem pensar que não
nascemos um para o outro. Somos feitos de matérias distintas. Ela é luz, eu
sou escuridão. Me pergunto se não estou sendo tolo em desafiar todas as
probabilidades por ela.
Digo, Chloe definitivamente vale a pena. Se eu pudesse, morreria por
ela. Sem nem pensar duas vezes. Eu lutaria por ela. Estou lutando. Eu quero
muito que a gente dê certo. Mas me pergunto se estou sendo burro em fazer
isso.
A última coisa que eu quero é Chloe Mitchell destroçada por minha
causa.
Ela é linda demais para uma alma feia como a minha.
Trago o cigarro amargo, sentindo a droga se espalhar por meu sangue.
Depois escuto a porta se abrir. Mas eu não me viro.
— Não precisa me expulsar. Só ‘tô esperando a sua filha sair.
— Eu não vou te expulsar — Donna responde. E me surpreende ao se
sentar ao meu lado. Respiro fundo e me surpreendo quando ela pega o cigarro
da minha mão e o traga. — Não conte para a Chloe. — Ela traga. Franzo o
cenho, confuso para cacete. Donna me devolve a droga logo em seguida. —
A minha filha fuma, Noah. Vícios podem ser hereditários. Mas para todos os
efeitos, eu parei. Tem doze anos.
— Realmente parou? — ironizo, fitando a rua.
— Sim. Mas essa noite foi fodida para cacete. — Ela sopra a fumaça.
— Conversei com a Molly e com o anjo lá dentro. Eles me contaram algumas
coisas. E... Céus... Riley está cheia de baboseiras falando que o amor é lindo
e foda-se tudo, mas é porque ela não tem uma filha, eu tenho, e sobre pais e
filhos eu entendo. No fim, Chloe é meu mundo. E você é o Diabo.
— Pode parar de repetir isso. É de conhecimento geral.
— Você é o Diabo. — Ela me ignora. — Veja, quando a cidade soube
que Chloe tinha sido flagrada aos beijos com a filha do prefeito numa festa
qualquer, a minha filha ficou tão mal falada... Mas eu nunca liguei. Nunca
compreendi porque as pessoas se importam tanto com quem alguém beija ou
fode, sinceramente. Amor é amor, desejo é desejo, eu pensava, ela pode amar
e desejar quem quiser. Eu até adorava uma garota que a Chloe me apresentou
uma vez, acho que se chamava Olivia ou algo assim. Se Chloe não tivesse ido
para Nova York, eu acho que elas teriam um relacionamento lindo, um
relacionamento de verdade. Mas, infelizmente, a minha menina não se
apaixonou. Não se apaixonou por aquela outra lá, a traidora. E para ser
honesta... — Donna ri. — Ugh... Eu ainda espero que Dalia exploda.
— Eu também.
— Ótimo. — Engulo em seco. — Eu esperava que um demônio fosse
aparecer no caminho da minha filha. Ou um anjo. Ou qualquer ser celestial,
mau, prestes a ferrar com a minha menina. Mas eu nunca pensei que ela se
apaixonaria logo pelo Diabo. — A encaro. Os olhos verdes de Donna
Mitchell estão focados na rua e brilham como nunca. Ela parece querer
chorar. Seu nariz ainda está vermelho, consigo ver cada ruga do seu rosto. —
Mas Collin dizia: "almas são feitas para amar, Donna. Não são máquinas.
Não são programadas!". — Donna franze o cenho e ri. Por um segundo,
consigo até imaginar a entonação que o cara usava. — "Elas não escolhem
quem amar, elas só amam. E somos prova disso."
— Eu realmente sinto muito.
— E eu preciso de tempo para crer nisso. — Donna direciona seus
orbes verdes para mim. — Você é o Diabo e a minha filha é o meu mundo.
Não é algo fácil de absorver. Mas ela te ama e te quer, e eu não quero perder
a minha filha. Eu não sei se um dia vou aprovar isso, mas eu a quero por
perto. E eu quero entender vocês dois. Eu devo isso à Chloe. Principalmente
ao Collin e a tudo que vivemos um dia.
— O que quer dizer...?
— Primeiro, que eu não vou gostar de você da noite pro dia e eu ainda
te acho muito bizarro — Donna diz. Rio, surpreso. — E em segundo lugar,
que eu não me importo se você é o Diabo, Jesus Cristo ou o Michael Jackson,
Noah, se machucar a minha menina, eu vou dar um jeito de te fazer sofrer. —
Assinto, sabendo que ela fala muito sério. Sei da força das Mitchell. — E por
último, quero você aqui amanhã cedo, sozinho, para tomar um chá.
— Um chá? — Rio, em deboche.
— Sim. A porra de um chá. Se não toma chá, vai beber café. E se não
beber café, vai beber uma água. Mas você vai vir. Porque eu ouvi de Molly e
Matt algumas coisas, mas eu quero saber de você a sua versão das coisas. O
lado que a Chloe conhece, já que ela me garantiu lá dentro, de pés juntos, que
vale a pena te ter por perto. Eu quero ter certeza de que todas aquelas estrelas
e constelações que vi no seu olhar ao falar da minha filha, são, realmente, a
prova de que a ama. Então, sim, você vai vir pra minha casa e vai tomar a
porra de um chá comigo, considerando o esforço absurdo que estou fazendo
pra engolir a sua existência. — Donna se levanta, mais sincera do que nunca.
— E se você contar sobre o cigarro, eu vou te matar.
— Eu sou imortal.
— Você entendeu. — Ela caminhou para a porta.
— Donna? — chamo e a ouço parar em frente à porta. — Obrigado.
— Traguei novamente. A ouvi rir nasalado e a porta se bater em seguida.
Minutos depois a porta se abre e eu sinto mãos pequenas em meu
ombro. Chloe está na porta, seguida de Matt e Molly, com uma mala em
mãos. A mão no meu ombro é de Benjamin.
— Eu sei que você é um anjinho — ele sussurrou, em segredo. —
Cuida bem do meu.
E eu sorrio fraco. Eu não gosto muito de crianças, mas decidi nesse
momento que dele eu gosto.
Deitar-me na mesma cama que Noah em Maryville sabendo que a
minha mãe estava a poucas casas de distância e que nossa relação está
rompida, de certa forma? Isso dói um pouco.
O combinado foi: descansar pela noite, decidir um plano pela manhã.
Eu não estou conseguindo dormir facilmente. Meus olhos ardem e eu reprimo
a vontade insuportável de desabar, pela milésima vez, nas últimas semanas.
Quando me tornei tão sensível?
Sinto os braços de Noah me trazerem mais para perto e seu beijo ser
depositado em meu pescoço. Seu calor torna as coisas mais suportáveis nesse
momento.
— Por que não consegue dormir? — questiona, acomodando o seu
peito em minhas costas.
— Por que você não consegue dormir? — devolvo.
Noah me abraçar um pouco mais e sua perna desliza entre as minhas.
Sinto a sua respiração contra o meu cabelo.
— Senti falta do meu travesseiro humano. — Ele mente mal, mas eu
deixo um sorriso escapar mesmo assim. Um sorriso contido e sincero, apesar
do quão quebrada estou. — Estou com medo, meu anjo.
— Por quê?
— Porque antes eu acreditava que não mexeriam com você tão cedo.
Mas agora que estou perto de descobrir quem me trai... Eu creio que muita
gente sabe que você me faz mais forte... — Me viro para o teto, mas meu
rosto está em sua direção. — Tenho medo de que te machuquem. Para me
atingirem também. Esse é o meu maior pesadelo.
Absorvo suas palavras em silêncio, sentindo um arrepio gélido me
atravessar.
Também tenho medo.
— Me explica esse lance do coração direito? — peço. Noah ri.
— Me tiram o direito de sentir o coração bater há muito tempo. Eu só
teria todo o meu poder se o sentisse de volta. E agora eu o sinto... Se eu
estiver perto de você.
— Então quando está perto de mim...?
— Sou mais forte. Me sinto mais forte.
Ele se acomoda sobre seu travesseiro, alisando a minha cintura por
cima da camiseta larga que eu visto. Mordo o lábio inferior com a dúvida que
me surge. Eu sei que a ausência de som é como um pedido do meu namorado
para que a gente durma, mas...
— Noah...
— Sim?
— Foi por isso que se aproximou de mim, não foi? — A minha voz
soa ainda mais forte entre essas quatro paredes. Eu simplesmente sinto Noah
se tornar mais tenso quando ele suspira. — Eu não vou brigar com você, só
seja sincero.
Um silêncio antecedeu a sua fala. O tipo de silêncio que te angustia,
me causando uma ansiedade lenta e cortante.
— Esse foi o meu plano — começa, cauteloso. — O que Sinn sugeriu:
se você fazia meu coração bater, então eu me aproximaria até descobrir o
motivo e tomar o poder para mim. — Uau... Ouvir isso machuca. Desvio o
olhar para o teto. — Eu me aproximei por poder... Mas eu consegui você. Eu
consegui nós. Chloe, olhe pra mim. — Obedeço.
Seus olhos escuros e profundos me puxam para si, me deixam em
algum transe. Antes eu não via brilho algum no olhar de Hellmeister. Isso me
assustava, me arrepiava, me intrigava. Como poderia um olhar ser tão opaco?
Tão sem vida?
Hoje é possível ver um universo através dele. Todas as constelações
mais lindas, vívidas, brilhantes. Muitos mundos dariam tudo para pertencer
em seus olhos. Eu me sinto feliz em me ver por eles.
Noah parece mais vivo.
Gosto de pensar que eu posso ter contribuído para isso. Às vezes, esse
pensamento me faz sentir muito metida ou algo assim, e eu me sinto meio
mal. Mas é que a ideia de tê-lo ajudado minimamente me deixa feliz. Me traz
algo de bom. É uma sensação melhor do que cigarros e bebidas me oferecem.
Dura mais e me entorpece com mais intensidade.
Amar Noah foi um ponto de virada na minha vida. A virou do avesso.
Mas eu não trocaria o meu mundo de incertezas de agora pelo meu mundo de
falsas certezas do passado.
Porra, eu o amo.
Chega a doer.
Porque eu sinto que há um "fim" nos aguardando no final do nosso
filme romântico deturpado. E esse é um daqueles filmes que eu queria que
durasse para sempre.
— Eu me aproximei de você por poder, Chloe — Noah diz. — Porque
eu era idiota. Ainda sou. — Rio, sem discordar. Ele foi, afinal. Noah ri junto.
— Mas eu não esperava me apaixonar. Eu julgava que não estava apaixonado
por tudo o que já sofri. Quando me apaixonei pela primeira vez, tudo que
senti foi dor, mas você me ensinou algo diferente. Você me mostrou que um
relacionamento deve ter mais luz do que escuridão, meu anjo. Você me
viciou em nós dois. — Um arrepio percorre o meu corpo e eu mordo o canto
da bochecha, atenta aos seus olhos. — Não tem poder algum que valha mais
do que você, amor. Mas eu queria ter tudo e ainda quero ter tudo. Porque
tudo significa você. Você é tudo, Chloe Mitchell.
Me viro por completo contra ele e seguro seu rosto, unindo nossos
lábios. Noah suspira contra a minha boca e me abraça. E eu o sinto. Em cada
pedacinho da minha pele.
— Eu amo você — sopro perto da sua boca. Noah fecha os olhos e
sorri. — E você não precisa dizer de volta. — Seus olhos se abrem para mim.
— Eu sei que Lilith te machucou, Noah. E que admitir seus sentimentos é
uma caminhada dura. Tome seu tempo. Eu não preciso de palavras, só de
você. E preciso de você bem. Então, tome seu tempo para se reconstruir. Eu
vou estar bem aqui, prometo. Esperando que, talvez, um dia, diga o que não
realmente precisa dizer. Esperando que esteja bem para dizer três palavrinhas
bobas. Porque eu amo você.
Noah sorri.
— Você é boa demais para mim.
— Que idiotice! — resmungo, verdadeiramente brava.
— Você é.
— Então talvez eu precise ser mais má — devolvo, irritada. — Você é
bom, Noah. Você só finge que não. Estou esperando que perceba que não
precisa fingir, que isso não te torna mais valente.
Ele ainda está sorrindo.
— Vê? Você é boa demais, Chloe Mitchell. Você é perfeita. — Seu
polegar alisa o meu rosto e eu grunho em insatisfação. — E eu sou só um
homem quebrado.
Giro nossas posições e me sento sobre ele.
— Não. Você é mais do que um homem quebrado. Mas vou te dar
algo para se inspirar e se consertar. — Mudo o rumo da conversa, porque
odeio vê-lo falar mal de si. Tiro a camisa e Noah ri, fitando meu torso nu.
Suas mãos estão em minha cintura, alisando a pele sob as alças da calcinha.
— Sexo?
Aproximo a boca da sua. Suas mãos sobem por minha cintura, seus
dedos contornam os meus mamilos, que se enrijecem sob seu toque.
— Amor, Noah — eu respondo —, eu estava tentando ser romântica
— reclamo. Ele só ri.
— Romântica, huh? Vem aqui. — Sua mão vai para o meu pescoço.
— Me mostra quão romântica você quer ser, meu anjo.
Eu o obedeço.
Ele precisa se distrair e... Honestamente? Eu também. A gente precisa
disso. Por isso, o nosso "nós" torna o quarto o inferno mais lindo que já
criamos.
Por toda a noite.

— O que ela conversou contigo? — pergunto a Noah quando ele


retorna para casa. Meu carro está atrás do seu e Molly sai do carro dele, com
suas malas. Ela ficou na casa da minha mãe por insistência de Donna, mas
hoje é o dia em que voltamos para Nova York. Matt também sai, mas de
mãos vazias.
Noah me rouba um selinho.
— A sua mãe me ameaçou algumas vezes, disse algumas coisas,
revelou algumas inseguranças... — ele conta e eu tento não rir do fato de que
ele foi vê-la de terno. Armani. Aprendi a diferenciar... acho. — Mas eu
consigo lidar com o ódio de uma sogra rabugenta. — Penso em xingá-lo por
falar da minha mãe assim, mas ele me rouba outro selinho.
— Sinto em interromper a aparente lua de mel — Matt diz. — Mas
precisamos conversar antes que pensem em viajar para Nova York.
Ele lembra. E nós assentimos.
Em questão de segundos estamos na sala da casa que Noah alugou.
Matthew se senta no chão e Molly também. Eu faço o mesmo.
— Qual o problema de vocês três com cadeiras? — Noah resmunga e
eu reviro os olhos, o puxando para se sentar ao meu lado. Ele não reclama
mais quando puxo a sua mão para o meu colo e estalo seus dedos. — Então...
Verdades todas ditas... Precisamos de um plano.
Verdades todas ditas.
Verdades...
Oh, merda.
— Na verdade... — começo, sentindo as palavras amargas e ásperas
contra a minha boca. Noah me encara e eu mordo o lábio inferior, um pouco
nervosa. — Quero que me prometa que vai ficar calmo.
— Chloe...?
— Me prometa que vai ficar calmo e que não vai brigar comigo.
— Não posso prometer...
— Nem sabe do que eu vou dizer! Por que não pode prometer?
— Porque não sei o que você vai dizer — ele devolve. Eu abro e
fecho a boca algumas vezes, perdendo meus argumentos. Grunho, irritada.
— Parecem casados — Molly faz um bico e sussurra para Matt, mas
todos ouvimos.
E todos os olhares estão sobre mim.
— No dia em que eu segui Kold e Sinn, eu soube que Sinn teve um
caso com a Lilith no passado. — As palavras escapam com cautela e Noah
ajeita a postura ao meu lado, incomodado, na medida em que os olhares
migram de mim para ele. — No mesmo dia eu descobri que isso é mentira. —
E os olhares voltam para mim. Noah franze o cenho e me fita com seus olhos
cerrados e confusão por cada pedacinho daquelas íris negras. — Era a Kold.
Os dedos de Noah se tornam duros contra a minha mão, eu não
conseguiria estalar.
A boca dele se entreabre e eu vejo um lampejo de incredulidade
cruzar por seus olhos como uma estrela cadente, rapidamente. No outro
segundo, Noah engole em seco e tensiona a mandíbula, com o olhar fixo em
mim, porque sabe que eu não estou mentindo.
Matt xinga baixinho e Molly, que soube há pouquíssimo tempo sobre
Lilith, anjos, demônios e todo esse mundo, absorve o que eu disse em
silêncio.
— Por que mentiu para mim? — Noah pergunta e eu sinto o meu
coração partir. Ele está magoado. — Eu menti para você porque Matt me
pediu para que contássemos juntos, com calma, no que julgássemos o tempo
certo. Errei. E peço desculpas, vou passar o resto da vida pedindo desculpas.
Mas por que você mentiu, Chloe? — Há decepção por toda fala sua.
— Porque Kold estava na minha frente, me dizendo algumas
coisas, chorando... Sinn estava calado, mas parecia sincero. — Tentei buscar
palavras. — Mas eu não sabia o que pensar, se eram confiáveis. E agora eu
sei que Sinn matou o meu pai! — Rio, sentindo como é amarga a ironia de ter
defendido alguém que me roubou algo tão importante. Desvio o olhar de
Noah. — Eu dei uma semana aos dois o que... O que termina
hoje, coincidentemente. Uma semana para que eles lhe contassem a verdade...
Noah afasta a sua mão do meu corpo e se levanta. Eu o acompanho
com o olhar e vejo como seus ombros largos parecem ainda maiores quando
ele passa as mãos pelo cabelo e o bagunça.
Noah está em silêncio, mas eu sinto que dói. Eu sei como a verdade
dói agora. E eu devia ter contado.
Eu errei feio. Mas eu quis dar uma chance... Ok, talvez dar uma
chance a Sinn e Kold prove que eu preciso parar de dar chances. Preciso
parar de acreditar demais nas pessoas. Mas, e se eles estiverem certos? E se
Noah perder demais o controle?
Noah se vira para a gente, olhos marejados e íris vermelhas. Eu me
levanto num pulo e ele tenta se afastar conforme eu avanço em sua direção,
mas eu toco a sua cintura mesmo assim. Noah parece perdido.
— Todas as promessas que fizemos ontem...
— Chloe...
— Todas as promessas, Noah. — É a única carta que tenho para que
ele não fique tão bravo comigo. A minha voz é firme quando ele ergue seus
olhos para mim. Vermelhos, reais, furiosos. — Por tudo o que dissemos um
ao outro essa madrugada, por nós dois... Me perdoa. Eu realmente achei que
estivesse fazendo o certo.
— Certo, por quê?
— Porque eu tinha medo — confesso. — E eu não sabia o que fazer.
Eu não tenho a sabedoria de milhares e milhares de anos, eu tenho 21 anos e
a mania de pensar demais, de crer demais em milhares de possibilidades e em
pessoas. E a Kold disse que tinha medo de você machucar eles dois. Como
você fez com o Theo... — Noah ri, ri nasalado com raiva. Seus punhos se
cerram e eu desço as mãos pelos seus braços até eles. — Noah... — Sua
respiração está lenta e sem qualquer tipo de som, mas seus olhos estão fixos
em um ponto qualquer da sala enquanto ele inspira e expira pura fúria. —
Amor...
Os arrepios que sinto agora é de medo. Não por mim, Noah jamais me
machucaria. Por ele. Pelo que Noah pode fazer furioso.
— Nos deixem a sós — ordeno, com a voz incrivelmente firme e
límpida. Em questão de segundos, Matt e Molly estão subindo as escadas.
Pego um gato estranho de cristal que serve de decoração para essa casa. —
Quebre. — Noah não se move. Eu jogo o objeto no chão e ele quebra. Noah
finalmente me encara. — Pego o cinzeiro de vidro. — Quebre.
— O que acha que está fazendo?
— Te ajudando a liberar toda a sua raiva. Antes que isso te consuma e
você faça uma besteira. Quebre.
— A casa não é minha.
— Como se você se importasse! Compra outra pro dono depois. Foda-
se. Quebre — ordeno. Ele hesita. — Quando eu terminei com Dalia, eu
queria gritar e não sabia se conseguia. A minha mãe me comprou um taco de
baseball, me levou pro ferro velho da cidade, deu alguns trocados para um
cara e eu quebrei um monte de coisa — conto. — É libertador. Acredite. —
Ofereço o objeto. Noah segura o cinzeiro em minha mão e mira na parede
distante, a acertando com uma velocidade e força que impressionam, mas não
me fazem estremecer. — Ok... Então... Agora... Quebre... Isso... — digo,
procurando a próxima vítima. Pego um vaso de flores do outro lado da casa.
— Quebre o que quiser...
— Chloe...
— Surte, Noah. Quebre metade da porra da casa ou ela inteira. Se
permita surtar, gritar, se permita quebrar tudo para que você não quebre.
Quebre. Tudo. O. Que. Quiser. Só não se quebre depois.
— Isso não vai adiantar.
— Por quê?
— Já é tarde demais. Sou quebrado demais. — Noah se senta ao sofá
com um ar de derrota. — Eu disse que você é boa demais para mim.
Coloco o jarro de flores no primeiro lugar que encontro e me ajoelho
perante seus pés, entre suas pernas, segurando seu rosto na tentativa de fazer
com que me veja.
— Boa? Eu menti para você.
— Eu sei. Eu tô puto — ele diz. — Mas fico mais puto ainda quando
penso que você fez isso com medo de que eu fizesse algo que me
arrependesse depois. Porque mesmo errada você queria me proteger de minha
própria raiva.
— Noah... Eu menti para você. Eu não sou tão boa assim — digo.
— Não é porque vocês corre em alta velocidade, porque enfrenta sua
mãe quando ela está errada, porque bebia ou usava o que não deveria, que
você não é boa. Talvez pare no Inferno quando tudo isso acabar, mas se
surpreenderia em saber que há pessoas de bom coração por lá. Você é boa,
Chloe. Nem tente dizer que não. — Seu tom de voz é melancólico.
— Eu não me apaixonei por você por sermos diferentes. — Minha
voz baixa faz com que seus olhos foquem nos meus. — Na verdade não sei o
motivo. Mas penso, às vezes, que foi porque somos mais parecidos do que
você imagina. Garoto quebrado, garota quebrada e corações que se entendem
porque são reflexo um do outro...
— Não, não são...
— Se eu sou boa, você é bom, Noah — digo, com toda a certeza do
mundo. — Os outros que não entendem ou se esforçam para ver que você é
uma pessoa boa. Você é bom. — E agora que eu percebo que seus olhos estão
perdendo o tom de vermelho. Estão voltando ao tom escuro. Alívio ameaça
tomar as minhas veias. — Mais do que bom, é inteligente e, por isso, não vai
fazer nada agora com o que acabou de descobrir. — Seus olhos sobem para
os meus. — Não ainda.
— Eu quero matar aqueles dois...
— Eu sei.
— Porra, eu me sinto... — Lhe fogem palavras e eu dou um sorriso
triste.
— Me desculpa — imploro. — Por favor, me desculpa. Me perdoa
mesmo, Noah. Eu só faço merda, eu sei... Eu sei... Me desculpa, eu...
— Eles me traíram, Chloe. — Seus olhos transbordam lágrimas de
raiva e dor. — Mentiram para mim por tanto tempo. Se tivessem apenas dito
a verdade, tudo poderia ter sido melhor. Diferente.
— Bem-vindo à realidade humana, querido — ironizo, triste, e ele
franze o cenho. — É exatamente isso o que fazemos. Mentimos porque
achamos que é o certo e afundamos quando a verdade nos surra sem piedade.
— Reflito, em voz alta. Respiro fundo e olho no fundo dos seus olhos. — Eu
te machuquei... Por favor, Noah, me perdoa.
— Eu menti muito para você também. — Suas mãos encontram as
minhas, em seus joelhos. — Muitas das minhas mentiras não foram nobres,
meu anjo. — Há raiva em seus olhos ainda. — Mas isso precisa parar. Para
nós dois. Por mais que doa, nosso relacionamento precisa ser construído por
verdades. Sempre. — É mais do que um pedido, é uma condição.
Eu selo a concordância ao unir a boca a sua e Noah segura o meu
rosto, expirando fundo. Seus ombros se relaxam minimamente e eu sussurro
contra seus lábios:
— Só verdades. Eu prometo.
No segundo seguinte, Noah sumiu do sofá e está atrás de mim.
Preciso me acostumar com esse lance de se teletransportar ou sei lá que porra
é essa, mas penso nisso em silêncio. Deixo que ele tome esse momento para
si.
Me sento ao sofá e vejo Noah segurar o vaso de flores que eu
segurava mais cedo. Ele o contempla, mas seu olhar se torna distante, pela
sala.
— Lírios. — Ele pensa em voz alta. Mas não são lírios. São
orquídeas. Contudo, não acho que ele esteja pensando nessas flores. E tenho
certeza, quando mira o vaso contra qualquer canto da sala longe de mim e o
arremessa com todo o seu ódio.
O som do vaso se quebrando me faz estremecer, discretamente.
Engulo em seco, sentindo a tensão e a ira que parecem flutuar pelo ar em
ondas de calor no momento.
Seus ombros se retificam e Noah abre e fecha as mãos. Vejo a veia
em seu pescoço pulsar quando me olha e o vermelho voltou ao seu olhar.
— Você me acalma, amor. — Sua voz é sombria e rasgante. — Mas
eu preciso da fúria nesse momento. — Eu concordo, silenciosamente. Noah
não parece querer quebrar nada mais, ele só respira fundo, como se gostasse
da sensação da raiva por suas veias, como se a controlasse.
E a pergunta que sempre fica é: o que fazemos agora?

— Podemos nos dividir. — A ideia vem de Matt, que anda pela sala
bagunçada. — A gente se divide pra perseguir eles.
Já cansei de olhar para Molly e dizer que ela não pertence a isso tudo,
mas ela quer se vingar por John. Somos só duas humanas. Que porra estamos
fazendo?
— Não há mais tempo para perseguições e questionamentos — Noah
define.
— Eu acho que enfrentar todos juntos até que quebrem e digam a
verdade é o único jeito certo — opino. — A gente ‘tá perdido. Nós não
conseguimos formular um plano sequer...
— Vamos repassar o que sabemos... — Matt me corta, ignorando a
ideia. — Sabemos que Sinn e Luke estavam presentes na morte de Collin.
Sabemos que Kold dormia com Lilith. Sabemos que Sinn acobertou Kold.
Sabemos que Theo cuida do Inferno e que foi desleixado o suficiente para
deixar alguém entrar na biblioteca ou que ele mesmo entrou lá e roubou as
páginas.
— Que páginas? — eu digo. Matt e Noah se entreolham. — Vocês
esqueceram de dizer algo? É sério?! — E agora eu estou abismada.
— Todo ser que existe tem um livro com sua história que está sendo
escrito a cada segundo. Se chamam livros do Destino — Noah explica. —, E
as páginas do seu nascimento estavam faltando. Alguém não queria me
deixar saber de quem você era filha, sobre o acordo... Alguém não me queria
sabendo tudo sobre você.
— Tem um livro com a história de todo mundo? — Molly pergunta e
eu vejo que ela luta para não deixar seu queixo cair.
— Tem um livro pra cada um — Matt diz. — O livro da Chloe era tão
importante que estava na biblioteca principal, a de Noah. Sabemos o porquê
agora. Ela é bem importante. — Matthew anda pela sala, pensativo.
— Todo mundo parece suspeito — Molly observa. — Todo mundo
tem potencial para trair.
— E Lilith poderia manipular qualquer um deles — Noah reflete alto.
— Kold seria mais fácil, não? — Matt opina. — Ela já fez isso antes.
— Sinn também provou que errou bastante nos últimos anos — Molly
diz. — Talvez intencionalmente. Talvez ele tenha procurado a Lilith.
— E Luke está quieto demais — digo, baixo. Matt me encara ainda
assim, balançando a cabeça em negação. — Matthew...
— Luke está fora de cogitação — Matt diz. — Ele não é mau.
Acreditem. Eu sinto que não.
— Você sentia que eu era ruim para a Chloe — Noah recorda e
Letterman bufa, mas não parece ceder. — O meu irmão pode ser o traidor,
assim como seu namoradinho.
— Luke não é o traidor. — Matt está discutindo com Noah, enquanto
eu tento pensar num plano.
— Você não sabe disso — Molly opina contra Matthew.
E toda uma briga se inicia entre teorias e mais teorias de quem é o
traidor e isso não me importa, brigar não importa, porque não é assim que
descobriremos. E então uma ideia irrompe por minha mente, rasga.
— Eu tenho um plano — digo. E todos me encaram.

Molly e Matt estão dormindo no andar de cima porque a gente


resolveu adiar a viagem e porque temos o que resolver aqui na cidade pela
manhã.
Os olhos de Noah ficaram vermelhos o dia inteiro, refletindo o quanto
ele odiou o plano.
E eu nem me surpreendi quando ele e eu brigamos pela segunda vez
por causa do meu plano. Mas de repente, acho que nós dois percebemos que
brigar tanto só desgasta nosso relacionamento e isso é a última coisa que
precisamos agora.
Estamos na cozinha. Há duas taças de vinho vazias na bancada ao
centro do cômodo, porque bebemos em silêncio depois da discussão. Foi
ideia minha, de buscar algo para nos acalmar e nos fazer pensar. Uma taça
apenas, não achei bom exagerarmos na bebida quando temos uma viagem
amanhã. O vinho não fez muito efeito, contudo. E quando Noah suspira, eu
sinto o quão tenso ainda está. Ele só balança a cabeça em negação, como se
tentasse afastar os pensamentos negativos. E então caminha para uma das
bancadas que cercam a cozinha, deixando as taças sujas sobre ela.
Noah não merece toda essa angústia, não mesmo.
— Vai dar tudo certo — digo, mais pra mim do que pra ele.
— O plano é horrível.
— É o único que temos — devolvo —, mas se quiser procurar outra
saída, amor... — Ele bufa e eu deixo a frase morrer. Depois me aproximo, o
envolvendo pela cintura. A ideia de repetir o que fizemos de um modo
mais nosso me passa pela cabeça, mas Noah desvia o olhar o maxilar travado,
engolindo em seco. Subitamente, eu não sinto qualquer clima para isso. —
Amo você — sussurro e ele assente.
Um silêncio nos toma e eu penso em me afastar, mas o meu namorado
me abraça. Ele me abraça de verdade. Eu afundo a cabeça em seu peito, com
as mãos em suas costas, sentindo a sua nas minhas. Seu coração está separado
do meu ouvido por músculos e ossos, mas parece que está batendo tão forte
que consigo ouvi-lo e senti-lo.
Noah acaricia as minhas costas e mantém aprisionada ao seu cheiro
enquanto eu tento me apropriar do seu calor pelo tempo que posso.
E agora sem mentiras entre nós dois. Juntos. Mais reais do que nunca.
E eu sinto toda a sua raiva, a sua tristeza e o seu medo. Eu sinto o seu
medo. Ele se mistura com o meu.
Ficamos muitos minutos assim, sem nos importar, unidos enquanto
podemos. Até que, eventualmente, junto a boca à sua pela última vez na
madrugada, com ternura e lentidão.
Quando o beijo se quebra, eu vou dormir. Ou fingir que vou. Mas
Noah não. Ele fica no andar debaixo a madrugada inteira, fazendo o que eu
sugeri que fizesse:
Tentando achar uma saída. Tentando achar um plano melhor.
Mas não tem.

Nova York parecia um sonho, mas agora que voltamos... Parece um


pesadelo. Me deixa tensa.
Parte um do nosso plano: convencer a mamãe a vir com a gente. Não
estou brincando, foi a etapa mais difícil até agora. Precisamos de todo mundo
em Nova York. É mais fácil nos proteger se estivermos juntos. Eu tive que
gritar pra conseguir isso. Nossa, eu virei uma fera.
Mamãe e Ben vão ficar no apartamento da tia Riley. Fica a alguns
blocos do apartamento do Noah, mas ele pode se mover em milésimos de
segundos. O que importa é que fica mais perto do Noah e do Matt,
principalmente. Fica muito mais perto do Matt, que como anjo, só tem suas
asas para se mover e não tem como migrar de um lugar para o outro em
segundos.
Não é muita segurança, eu sei. Até porque nosso grupo virou Matt,
Noah e duas humanas — Molly e eu. Não é como se fôssemos super fortes.
Mas se tudo der certo hoje, a gente consegue descobrir quem é o traidor. E
com isso, conseguimos descobrir quem não é. E conseguimos aliados.
O plano é horrível.
O plano é terrível.
Sério.
Não pode nem ser chamado de plano.
Mas eu tento me convencer e convencer a todos do contrário! Que o
plano é perfeito, que é "o" plano. Tem uma voz irritante na minha cabeça
repetindo que vai dar merda, com toda a certeza do mundo. Eu a ignoro. Ou
tento.
Não vai dar merda, Chloe.
Depois do Noah revirar o quarto que a Kold usava no apartamento
dele, em busca de provas e não achar nada, ele a chamou e chamou Sinn para
o apartamento dele.
Matt chamou Luke para o dele. E eu disse: distraia-os como puderem.
Se quiserem transar, ok. Digo, Noah não... Noah não. Não pode transar com
mais ninguém. Mas Matt pode sim transar com Luke para mantê-lo ocupado.
Ele pode fazer o que bem quiser.
Theo vai ser o último que enfrentaremos. Na verdade, Noah vai
confrontá-lo. Porque ele ‘tá no Inferno. Em tese. Espero que esteja.
Essa conta fez sobrar Molly, eu e nossa habilidade com clips e
grampos. Sim, clips e grampos. Eu disse que o plano era horrível.
Tem mais falhas nesse plano do que em toda a minha vida.
Dissemos o nome de Noah nas portarias. Ele me assegurou que isso
nos daria passagem livre. Para que eu acessasse o prédio de Luke e Molly o
de Sinn. O apartamento de Kold permanecia em reforma, mas, ainda assim, a
gente o visitará juntas, por último.
No momento, estou me concentrando em usar os dois grampos de
cabelo que tenho, entortados, contra a fechadura de Luke. Tento lembrar de
tudo que John me ensinou. Não é algo bonito para se dizer, mas John
trabalhou num bar certa vez, e ele abria a dispensa sem o chefe permitir para
pegar algumas bebidas para a gente. O que deu errado e acabou em sua
demissão. Mas ele ensinou pra Molly e eu, o que resultou em nós duas
roubando cookies da despensa do Thurman's. Thurman descobriu... Ele só se
sentou e comeu com a gente.
Espero que John me proteja, se puder. E agradeço com louvor quando
o último pino da fechadura se move. E eu abro a porta.
Respiro fundo, tensa. Sorte que ninguém me viu no corredor, sorte
que eu estou dentro do apartamento fechado.
Olhando as paredes vermelhas, os móveis negros da sala grande e
ampla, eu acabo por apertar as asas da gargantilha que Noah me deu, pedindo
por calma, tentando o sentir mais próximo.
Espero que nem Sinn, Luke ou Kold usem suas habilidades para me
verem aqui. Espero que Noah e Matt saibam distrair os três. Espero que
Molly esteja bem e que nada de mal lhe aconteça, porque eu realmente tentei
dissuadi-la dessa ideia louca que eu mesma tive. Espero que minha mãe, Ben
e Riley estejam bem.
Espero que Noah fique bem, que Matt fique bem.
Espero que eu fique bem
.
Eu estou observando Nova York do alto, pelas janelas longas do meu
apartamento. O clima está frio com o inverno se aproximando. A lareira aqui
dentro pega fogo, fogo que eu mesmo coloquei, mas não parece me aquecer o
suficiente. Eu tentei aumentar ainda mais a temperatura, eu não costumo
sentir frio. Frio é, definitivamente, algo que há muito tempo não sinto.
Acho que é a ansiedade.
Dou um gole do meu uísque e deixo a minha mente viajar para o
Luke.
Matt e ele trocam um beijo, voltam a conversar sobre o sofá do
apartamento de Letterman. Matthew está visivelmente nervoso e eu sei que
Luke percebe. Eu sei. Isso me preocupa. Mas Matthew inventa logo uma
desculpa sobre Chloe e eu e toda essa situação... O que eu espero que enrole
o loiro por um bom tempo.
Esse plano é horrível e eu me sinto nervoso.
Minha mente agora viaja para Molly. Eu a vejo finalmente destrancar
o apartamento de Sinn e entrar, o que é um alívio porque uma velha acaba de
subir para o mesmo andar e poderia vê-la arrombando a porta. Anderson não
gasta muito tempo olhando ao redor do lugar, ela corre para o primeiro
armário que encontra. E não se preocupa em esconder a bagunça, esse não é o
plano... Ela olha papéis e objetos, os joga no chão quando os descarta
rapidamente.
Então eu finalmente vejo a Chloe.
A coloquei por último porque eu simplesmente sei que ela não quer
ser vigiada. Ela pediu para que eu não fizesse isso. "Pode te deixar nervoso,
querido.". Ela estava certa.
Chloe prendeu os fios num coque desajeitado, sem elásticos ou
grampos, deixando exposto o seu pescoço com a gargantilha que eu lhe dei.
Ela está buscando por papéis, armas, qualquer coisa. Na verdade, tanto Molly
quanto Chloe caçam às cegas. Nem sequer sabemos o que procuramos. Mas
procuramos.
— Pare de me olhar, Noah — ela diz e eu deixo um sorriso de canto
escapar. — Ficou dez mil vezes mais quente aqui dentro, sei que está me
olhando. Pare. — Eu não consigo. Me acalma um pouco saber que está bem.
— Ou depois disso tudo, a greve de sexo vai ser tão eterna quanto a sua
vida.
E eu paro. Não só por causa da ameaça, mas porque não quero deixá-
la nervosa.
A porta do meu apartamento se abre, mas eu dou um gole do uísque e
não me viro. Subitamente estou tenso novamente. E furioso. Porque eu sinto
a presença de Sinn e Kold, tanto quanto ouço a porta se fechar.
Traidores.
Há um silêncio sepulcral. O tipo de silêncio que anuncia que algo
ruim está por vir.
— Eu me perguntava — começo, sem me virar —, eu me perguntava
que sons ela fazia. — Minha voz rasga pelo ambiente. As respirações dos
meus dois "amigos" se tornam audíveis. — Eu me perguntava que sons ela
fazia quando estava com você, Sinn. Eu me perguntava se ela dizia que te
amava. Eu me perguntava se ela também te fazia sorrir ou ria do que você
dizia, do jeito que ela ria para mim.
Sinto ódio. Muito ódio. Viro o último gole do uísque e fito Nova York
mais uma vez. Então me viro.
Sinn tem seus olhos cravados em mim, a cicatriz no olho cinza parece
ainda maior, mas só parece. Kold, ao seu lado, tem os fios negros e
escorridos soltos e os olhos azuis focados em mim. Seu nariz vermelho indica
que ela esteve chorando há pouco.
Consigo sentir algo em mim se quebrar agora. Não sei se foi o meu
coração idiota, duvido. Como estou longe da Chloe agora, pouco o sinto, mas
acho que foi toda aquela confiança que depositei em mãos erradas.
— Hoje eu sei que não — retomo a minha fala. — Não, ela não fazia
sons contigo, Sinn. — Minha voz se arrasta, carregada de escárnio e puro
rancor. Meus olhos estão em Koldelium. — Não, ela não dizia que te amava,
ela não o fazia rir e ela não ria do que você dizia, porque não era você. —
Finalmente volto o olhar para o cara que fita o chão, como se me olhar fosse
duro demais. — Era você. — Ergo a mão com o copo de uísque, mas o
indicador dela aponta para a única mulher aqui.
— Eu posso explicar — Kold fala, quase que em uma súplica por uma
chance de ser escutada.
— Ah, o cliché! — digo, rindo. Me aproximo dos sofás e da mesa de
centro, focando nos dois, que ainda estão paralisados na entrada do
apartamento. Ou na saída, depende do ponto de vista. — O cliché! A mulher
que sempre fez pouco dos humanos por amarem clichés e previsibilidade,
apela justamente para a frase mais idiota de todos os tempos.
— Noah... — Sinn fala como se pedisse por misericórdia.
— Cale-se, Sinn — ordeno, a voz mais rouca e grave do que nunca.
Não preciso fazer esforço algum para manter qualquer aparência, eu
realmente queria essa conversa. Distraí-los é uma oportunidade para lhes
dizer algumas verdades. — Você deve estar acostumado a se calar diante dos
outros, já que tampou a boca e escondeu a verdade por tanto tempo. Então,
cale-se.
Meus olhos ardem de raiva e eu faço meu copo tilintar contra a mesa
de centro. Com força. Kold suspira, fechando os olhos.
— Sabe o que me faz pensar muito, muito, Koldelium? — Rio
nasalado. — Lembra daquele dia em que me disse para não visitar a cela da
Lilith? Porque eu lembro. Me pergunto, agora, o motivo. Seria porque isso
ameaçava os seus planos? Talvez você tivesse medo de que ela deixasse
escapar algo que te incriminasse, não? — A vejo fitar o chão, respirando
fundo. — Vamos... O que contou para ela, Kold? O que contou para Lilith?
— Me aproximo, em tom de ameaça. Kold ergue os orbes azuis, frios para
mim. Orbes iluminados pelo lustre do apartamento e por todas as demais
luzes que competem com o breu que nos consome. Exageradamente
iluminados por estarem prestes a transbordar em lágrimas. — Contou para
Lilith sobre a Chloe? Você contou para ela que também fodeu a minha
garota? — Minha voz se torna cada vez mais aveludada, mas a raiva brinca
por cada sílaba. — Contou para ela que eu estava caindo por uma humana?
Contou finalmente onde está a arma?
— Eu jamais faria isso — Kold devolve, entredentes. Seus olhos
focam nos meus, injetados de revolta. Se nossas palavras são armas, Kold
está prestes a contra-atacar. — Eu jamais te trairia.
Franzo o cenho, me aproximando mais e mais, a passos lentos.
— Então por que traiu? — questiono, fingindo inocência.
Kold perde as suas palavras. Por segundos.
— Eu não sabia — finalmente responde.
— Oh, ela não sabia! — Uno as mãos em frente ao peito e ergo a
cabeça ao rir em deboche, caminhando para Sinn. — Ouviu isso? — Aponto
para a mulher, em descrença, ainda rindo. — Ela não sabia. — Finjo uma
última risada nasalada, até girar em meus calcanhares e fitar os olhos azuis de
Koldelium novamente. — Não sabia do quê?
— Eu não sabia que ela era sua — Kold praticamente sussurra.
— Ela não era minha. Mas entendo o que quer dizer. Porque aposto
que ela lhe fez pensar que era sua — devolvo. — Era o que ela fazia, não era?
— questiono. Kold me encara como se eu estivesse a machucando
fisicamente, a sufocando. — Ela te fazia achar que era sua. — Kold não
confirma. — Responda. Sabe que não sou legal quando fico muito bravo,
Kold.
— Sim. Era o que ela fazia. — Há medo em sua voz? Devo confiar
nisso? Acho que não. Talvez não.
Recuo e me viro para Sinn, tentando manter a minha feição
impassível. Recuo enquanto tento fingir que não estou sentindo o meu sangue
ferver em fúria e me queimar em dor. E então deixo as asas rasgarem a minha
camisa, meu terno, levando a mão ao pescoço de Sinn ao puxá-lo com
velocidade e pressioná-lo contra a parede.
As asas de Sinn despontam por instinto e as de Kold também se
libertam, quando ela avança alguns passos na tentativa de mostrar que está ali
por ele.
— Confesse que me traiu ou Sinn morre — digo, simplesmente. Se
ela jurar por muito tempo que ele não me traiu, talvez eu o libere dessa
punição. Se ela confessar a traição, seu pagamento será a morte. E se ela o
deixar para morrer, em completo silêncio, eu também terei uma resposta.
— Eu não posso confessar isso, Noah!
— Confesse! — ordeno e Sinn impulsiona os ombros para frente,
tentando ser mais forte que eu e fugir. Ele ergue a perna na tentativa de me
desequilibrar e eu pressiono o meu corpo contra o seu, firmando mais as
unhas em sua pele, os dedos contra a sua carne, transferindo calor o suficiente
para que eu sinta a sua pele queimar. De verdade. Consigo sentir o cheiro
leve de algo se queimando. Pele.
— Noah. — Escuto a Chloe me chamar. Sua mão está no colo e ela
parece aflita. É como se sentisse que estou passando dos limites. Chloe está
parada na frente de uma estante do Luke, respirando fundo. — É só uma
sensação, Chloe. Só espero que tudo dê certo, por favor, que tudo dê certo...
Paro de queimar Sinn, mas meu olhar continua focado no seu e
minhas mãos ainda o apertam. Não posso perder o controle. Eu prometi que
não perderia o controle. Eu prometi que não me perderia.
— Chega, Noah! — Kold implora. — Eu te traí no passado, mas eu
nunca me juntaria a ninguém para te destruir! Por favor, Noah, chega. — Eu
não paro. Não pela necessidade de distrai-los, mas porque eu realmente estou
irritado.
E então, Sinn urra em uma tentativa absurda de me empurrar e ele
consegue. Em segundos a sua mão se choca contra o meu rosto. Ele parece
furioso e eu franzo o cenho, sem acreditar na sua audácia. Eu retribuo o soco.
— QUE PORRA VOCÊS ESTÃO FAZENDO? — Kold grita.
— Essa é por mentir pra mim. — O soco lhe atinge a maçã do rosto.
— Essa é por mentir pra mim por séculos. — Outro soco, no seu queixo, do
outro lado. Ele cambaleia para trás. — E essa é por ter coragem de levantar
um dedo para mim. — Meu pé se choca contra o abdome dele, que se
desequilibra e cai contra a mesinha ao lado do sofá, a derrubando com suas
asas negras e seu corpo. — Cadê a sua coragem agora, Sinn? Huh? Vai
levantar a mão de novo para mim? Esqueceu quem sou? — Me aproximo,
cerrando os punhos.
— CHEGA, NOAH! — Kold grita e um silêncio bizarro toma todo o
lugar.
Eu estou ofegante, enquanto Sinn limpa o sangue em sua boca. Vai
cicatrizar rápido e nós sabemos. Mas os nossos olhares transmitem fúria,
conectados.
— Você mereceu — Sinn rosna. — Você mereceu o soco, Noah. Por
duvidar da sua família, você mereceu.
— Família essa que mente, que engana, que trai? — devolvo. Recolho
as minhas asas. — Isso não é família.
— Famílias erram, Noah! — Kold diz, a voz carregada de sofrimento.
Eu me viro para ela. Lágrimas rolam por sua bochecha e inundam os seus
olhos. — Famílias erram! — As palavras se arrastam por sua boca com o ar,
carregadas de pesar e cansaço. — Eu errei feio com você. Me perdoe, por
favor! — Sua cabeça está baixa quando ela cai de joelhos. — Mas a sua
família jamais criaria uma rebelião contra você. Nós somos a sua família,
Noah.
Consigo ver seus ombros se mexerem conforme Koldelium soluça.
Ela literalmente treme por dor. Algo em meu corpo pesa, algo em minha alma
estremece e eu luto para não me deixar levar pelo que vejo.
— Eu amei você. — Jogo as palavras. Kold ergue os olhos para mim.
— Todos vocês. E eu dizia isso para você. Mesmo depois de ter sido traído
pela Lilith, eu dizia para você. Que eu amava o que você chama de família,
que eu amava vocês. Você sabia, Kold. Enquanto eu não consigo nem dizer
em voz alta que amo a mulher que amo, eu dizia isso para você com
facilidade. Porque eu confiava em você com a minha alma e você era como
família para mim.
— Noah...
— E agora eu simplesmente não te reconheço — confesso. E
sinceridade preencheu cada sílaba dita. — Não sei se é uma amiga pedindo
por perdão ou se é uma súdita implorando o seu Rei pela vida. — E com essa
fala, seu rosto se eleva ao meu. — O Rei do Inferno permitiu que um anjo,
uma mulher soubesse até como lhe tirar a vida. Eu lhe confidenciei a
localização da arma que me mataria, para que você me impedisse de fazer
isso com as minhas próprias mãos. Quando eu senti que não podia confiar em
ninguém, eu olhei para você... E eu vi esperança. De ter essa família, Kold,
essa que você disse que temos. E eu pude sentir que éramos uma família,
Koldelium. Eu confiei em você com um dos meus maiores segredos. E hoje
eu sei que até você me traiu, Kold, desde o início. Até você. E eu te amei. Na
verdade, eu a amo. Mas eu não sei se quem eu vejo perante meus pés é digna
de amor.
— Noah... — A voz que surge dessa vez é de Sinn e eu me viro para
ele. — Confie na gente. — É um pedido, enquanto ele se levanta. — Kold
jamais daria as costas para você.
— E você? E quanto a você, Sinn? Você daria as costas? — pergunto.
— Talvez guardasse o segredo de Kold para usá-lo em momento oportuno.
Talvez eu devesse ter lhe matado quando tive a chance. Talvez você seja um
lobo em pele de cordeiro, se escondendo sob toda essa seriedade e lealdade
para atacar.
— Talvez — ele diz. — Talvez todas as noites que protegi a sua
namorada, sem que você sequer soubesse ou pedisse, fossem mentira. Talvez
ter protegido a tia dela sem que você pedisse, a amiga dela... Ter me
preocupado com a única coisa que te fez feliz... Talvez isso tenha sido
mentira. — Há mágoa em suas falas. — Talvez eu tenha me aproximado
dela, quando você correu atrás da Lilith por respostas... Talvez eu tenha me
aproximado da Chloe nessa época e lhe dito para te dar uma chance... Talvez
eu tenha feito isso também quando você dormiu com uma italiana e descobriu
que ela queria exclusividade... Talvez eu tenha corrido atrás da única coisa
que te faz feliz e tentado a todo custo te manter próximo dela, apenas para lhe
destruir. Talvez eu tenha te mantido perto do que te torna forte, para te
machucar. Fortaleci o cara que quero morto! — ele enumera em tom de
ironia. — Por que eu sou burro a esse ponto, não?
Sinn passa a língua pelo lábio inferior e não há mais um corte ali.
Cicatrizou. Completamente. Eu respiro fundo, atento aos seus olhos,
diferentes entre si.
— Eu não tinha obrigação alguma de fazer nada disso — Sinn diz —,
mas eu fiz. Sem que você sequer soubesse. Porque quando você me disse,
Noah, que ela tinha feito o seu coração bater... E você me garantiu tantas
vezes! Eu soube que ela poderia ser a mão que te ajudaria a levantar. Quando
eu te pedi para se aproximar dela, fingindo que seria um bom plano para que
você ganhasse poder, Noah... Eu estava torcendo para que você encontrasse
amor. Para que assim, Kold e eu pudéssemos contar tudo, talvez. Para que a
gente pudesse ver de perto quanto a sua ruivinha te faz feliz. — Ele debocha
do apelido, por raiva. — Talvez eu seja a porra de um traidor e talvez todos
nós sejamos. E talvez você seja mais um filho da puta ansioso por um soco
— ele ameaça.
E mais uma vez, o silêncio ao nosso redor pesa.
Respirações são escutadas e meus olhos ardem, porque esse é o tipo
de conversa que jamais imaginei que teria. Eu jamais pensei que teria que
enfrentar meus amigos quanto a uma traição.
Kold se ergue, respirando fundo. Ao ouvir o gesto, me viro para ela.
— Não acho que Sinn seja um traidor — Kold diz —, e tampouco que
Luke seja. E eu juro, Noah, como súdita e como parte da sua família, que eu
nunca me rebelaria contra o meu melhor amigo. — Seus olhos estão
vermelhos e ela clama por confiança.
Volto a minha mente para Molly e ela não encontra nada no quarto
em que está, o quarto de hóspedes do apartamento de Sinn. Ela grunhe e
xinga, sem saber onde mais procurar.
Então eu passo a pensar na Chloe. Ela está no quarto de Luke,
olhando ao redor, provavelmente pensando em onde alguém esconderia algo
precioso.
Mas talvez nem ali, naquele apartamento, nem no de Sinn, nem no de
Kold... Talvez eles não escondam nada ali, mas em outro lugar. Ou talvez
eles simplesmente não escondam nada.
Eu me vejo perdido de novo.
— Do mesmo jeito que você sofreu com a Lilith, Noah... Eu sofri —
Kold diz, entre lágrimas. Sua voz, contudo, não falha. — Sou sua maior
guerreira e a minha maior derrota foi o coração partido que ela me fez ter.
Ele nunca se curou. Você, ao menos, teve sorte.
Sorte. Nunca tive sorte.
Rio com esse pensamento e caminho pelo apartamento, irritado.
— Se não me traem agora — eu começo —, respondam uma única
pergunta: por que não contaram antes?
— Foi culpa minha — Kold e Sinn dizem ao mesmo tempo e eu
franzo o cenho.
— Eu insisti para isso — Sinn diz.
— Mas eu permiti — Kold diz. — Eu não tenho uma desculpa para o
meu egoísmo — A sua fala parece completamente sincera. — A princípio eu
quis gritar com Sinn e contar toda a verdade, porque eu nunca o permitiria
morrer em meu lugar, ainda que ele quisesse isso. — A morena respira fundo,
bem fundo. — Mas você lhe deu uma chance e eu... Eu fui egoísta, Noah. Eu
fui suja, errada. Porque você estava decepcionado com ele, mas ele viveria. E
eu não queria viver com o fardo de ter te decepcionado. Então, eu deixei que
Sinn sofresse com a sua desconfiança até hoje. Mas veja, Noah... Eu não sou
um monstro. Eu conversei com Sinn algumas vezes sobre contar a verdade e
eu mesma tentei algumas vezes, mas acabei por desistir. Porque eu tinha
medo.
"Enquanto eu estive com ela... Ela me manipulava. Lilith me fazia
sentir como a mulher mais amada do mundo em um segundo e, no outro, a
mais vulnerável. Acho que isso é o amor, não? Uma faca de dois gumes.
Amamos porque precisamos, tal como precisamos de oxigênio. E amamos e
amamos e amamos sem limites... E achamos que o amor é apenas cura,
exageramos na dose e descobrimos que os efeitos colaterais podem ser
mortíferos, venenosos."
"Você sabe que essa é a Lilith, Noah."
"A que te ama em um segundo e te manipula no outro. E quando eu
descobri que ela estava contigo, ela jurou que me amava e eu a fiz prometer
que terminaria com você. Para ficarmos juntas. E ela me fez crer que sim...
Mas ela não terminou."
"E eu não conseguia terminar com ela, porque ela me tinha. Eu
pertencia a ela de um jeito tão... Patético".
A voz de Kold falha e ela ri, sem humor. Lágrimas rolam por seu
rosto e eu vejo a maior guerreira que já conheci expor suas vulnerabilidades.
Seus olhos azuis atingem os meus. Ela seca as lágrimas porque as odeia.
— E eu ameaçava te contar a verdade, mas ela me dizia que a verdade
nem sempre era uma aliada e que se eu fizesse isso, eu te perderia para
sempre. Lilith me destruiu. Principalmente, porque ela me ameaçava, ela
realmente me ameaçava... E ela me enganava tão bem... Que eu me iludia,
transformava as ameaças em nada e tentava extrair qualquer declaração de
amor de tudo que ela me dizia. Ela me usava por prazer, mas dizia que ela
gostava de mim. E, às vezes, eu penso se ela não gostava de muitos outros
por aí. Lilith amava manipular, ela amava o poder e sempre amou. Eu era
apenas uma das suas peças de tabuleiro. Assim como você, Noah. Mas você
era mais. Você era o modo dela de ascender ao poder. E sabemos como isso
acabou.
Meus lábios tremem enquanto encaro a morena perante os meus
olhos. Eu vejo uma alma quebrada e vazia de um anjo que não suporta mais
tanta dor. Eu me pergunto como olhei em seus olhos por tanto tempo e não
percebi que seu interior era quebrado.
— Lilith me fez acreditar que você jamais me perdoaria — Kold
continua —, mesmo depois de trancada, mesmo quando decidi não visitá-la.
— Ela soluça. — Não foi só por ser sua amiga que eu lhe pedi abrigo e
trabalho no Inferno. Foi porque eu não aguentava mais andar pelos Céus e
sentir ela em todo lugar. E principalmente, foi porque eu me sentia em dívida
com você, Noah, por ter lhe traído. Se Sinn assumiria a culpa por meu
egoísmo, eu ficaria do lado dele enquanto ele tentava recuperar a sua
confiança. E eu te serviria do modo mais leal possível, para suprimir a culpa
que sempre me consumiu. E eu não fiz nada mais do que minha obrigação,
Noah. Construí uma família no processo e sou grata por isso. — Ela retira
uma adaga de trás da sua calça e se ajoelha, a jogando contra o chão. A adaga
desliza em um tilintar insuportável até ficar perante os meus pés. — Fui
consumida pela minha insistência em ser egoísta ao longo dos anos e não
mereço seu perdão. Mas eu o quero. Contudo... — Sua voz vacila e eu sei o
que ela vai me pedir. O ar da sala parece rarefeito. Minha visão está
completamente embaçada. — Se não puder me perdoar, se sentir que isso
será impossível... Crave essa arma em meu peito. Quero que acabe logo com
isso.
Ela endurece a sua voz e deixa a sua cabeça baixa, esperando por uma
atitude minha. Suas asas brancas estão atrás do seu corpo e Kold acha que a
morte a espera. Eu pego a adaga em minha mão e Sinn vem em minha
direção, mas eu ergo a mão para que ele pare.
Lilith destruiu a minha mente.
E ela destruiu a de Kold.
Ainda assim, eu confio no que Koldelium me diz. Porque é como se
eu estivesse me olhando no espelho agora: quebrado por Lilith, tendo perdido
tanto por isso.
Abro a boca para ordenar que ela se levante, mas eu escuto sons
estranhos. Respirações, murmúrios. Kold ergue os olhos azuis para mim,
como se também ouvisse. Sinn faz o mesmo, olhando ao redor.
Busco por Chloe em pensamento, mas meu cérebro trava quando o
sangue acelera em meu corpo e as vidraças do apartamento são quebradas por
demônios, que a rompem com suas pernas enquanto invadem a sala. Muitos,
muitos deles surgem no apartamento. Estamos cercados por seres quem
mostram seus dentes e liberam suas íris amareladas ou vermelhas. Todos
armados com lanças, espadas. Muitos deles.
Sinn se aproxima de mim ao recuar. Kold ainda está no chão e eu vejo
pelos seus olhos que arquiteta seus movimentos, com medo de se mexer.
As armas deles são diferentes. Um metal escuro e brilhante. Armas
incapazes de me matar, mas perfeitas para matar Sinn e Kold. Eles poderiam
simplesmente desaparecer, mas seriam seguidos. Eles seriam encontrados. Se
fugissem, seriam caçados com agilidade.
Porque eles iriam para lugares previsíveis.
Inferno. Purgatorium. Seus apartamentos...
De qualquer forma, eles seriam encontrados. Seria apenas uma
questão de tempo.
Sabiam que estaríamos aqui. Sabiam que nos reuniríamos. Alguém
nos ouviu.
Sinn sussurra para que eu suma atrás da Chloe, mas seu sussurro é
interrompido quando todos avançam. A guerra se inicia. Demônios voam em
nossa direção e eles podem matar Sinn e Kold. Não tenho tempo para pensar,
porque defendê-los é instintivo e lutar é uma ordem.
Sinn urra para a guerra, porque ela chegou. E eu faço o mesmo,
lutando como posso.
Mas Kold... Kold se defende de alguns golpes como pode e se
aproxima de nós dois... Ela luta e luta e eu me viro para outro lado, dando
atenção em socos e empurrões de rebeldes que tentam matar os meus dois
amigos. Estou tão furioso que meus socos queimam nas peles inimigas.
— São muitos deles! — Sinn fala, alto, a veia em seu pescoço nítida
conforme se esquiva de golpes.
— Eu vejo — respondo, desviando também de golpes e conseguindo
roubar uma faca de um demônio, virando-a contra o abdome do mesmo e me
girando para enfiá-la contra o pescoço de outro, sem perder tempo. — Kold?!
Ela urra, grunhe e grita conforme enfia a sua adaga em quem
consegue atingir e mostra que é a melhor guerreira que existe por um motivo.
Eu posso ser o mais forte, mas Kold tem os melhores planos. Eu estou
pedindo por ajuda.
— ONDE ELA ESTÁ? — Kold grita conforme gira o corpo e atinge
a cabeça de um rebelde. Há sangue por todo o apartamento. Isso é surreal.
Sou impedido de responder quando impulsiono meu corpo e voo, empurrando
com minhas asas alguns que tentam machucar Sinn e lhe arranjando espaço
para lutar contra um rebelde na sala de estar. — NOAH?
Eu sei do que ela está falando.
— CASA DO LUKE — respondo rápido, tentando me desconcentrar
nas tentativas de aniquilar os demônios que tentam me atingir.
— ELA ESTÁ SOZINHA? — Kold grita e eu tento pensar na Chloe,
enquanto luto. E sim, ela está sozinha. Ela está revirando gavetas e armários
de um escritório.
— ESTÁ. — Empurro a faca em minha mão contra o peito de uma
rebelde e lhe roubo a espada antes que ela caia, girando a arma ao meu redor
e atingindo dois que tentam se aproximar de Sinn.
Maldita hora que escolhi um apartamento grande. Cabe muita gente
aqui.
— PROTEJA SINN, NOAH — Kold rosna contra os sons de
demônios que nos agridem. Sinn roubou a lança de um deles e conseguiu
perfurar dois de uma vez só, ele luta como pode. Eu me viro para Kold, sem
entender o que ela está prestes a fazer. — Eu vou proteger a sua garota.
Kold some perante os meus olhos, a tempo apenas de ver sangue em
seu rosto e seus olhos brilharem pelo prazer de um confronto. A sombra de
um sorriso pairava ali, porque ela faria tudo aquilo com prazer.
Quando me concentro novamente na batalha, uma faca raspa a pele de
Sinn, me fazendo virar para protegê-lo, Sinn pode morrer se eu o deixá-lo
agora. Kold está correndo atrás de Chloe, espero que em tempo suficiente
para salvá-la, porque Chloe está sozinha. Mas podem estar atrás dela
também. E por isso, ela foi atrás da ruiva, porque Kold é capaz de protegê-la
sozinha, e Sinn tem mais chances de sobreviver a tantos ataques com o
Diabo, imortal, ao seu lado do que com uma guerreira, tão mortal a essas
armas quanto ele.
Koldelium fez uma escolha. Ela pensou em uma tática. Ela protege a
Chloe enquanto há tempo, eu impeço Sinn de morrer. Não é o que eu queria.
Eu não quero a minha ruivinha em perigo, mas Sinn também pode morrer a
qualquer segundo. Eu não posso abandonar ele.
Kold fez uma escolha. É arriscada, mas é um recado claro para mim,
um recado que eu simplesmente sinto:
Sinn não é o traidor;
Kold também não;
Eles são família;
Isso foi uma armadilha;
E a guerra chegou.
Respiro fundo uma última vez ao observar o quarto de Luke, levando
a mão à nuca ao tentar controlar o arrepio gélido que insinua... "Ei, Chloe,
algo ruim está acontecendo."
Fecho os olhos.
É só uma impressão, Mitchell. Tudo está bem. Tudo vai ficar bem.
Abro os olhos novamente e fecho a gaveta que deixei aberta,
caminhando para a sala. Talvez eu possa dar uma última olhada antes de ir
encontrar Molly. Contudo, outra sensação me faz parar. E essa é diferente. É
provocado por uma onda de calor, como uma brisa quente. Me faz franzir o
cenho por um segundo. No outro, posso jurar que escuto vozes distantes.
Estou sozinha, estou completamente sozinha, isso não faz sentido.
Mordo o lábio inferior e cerro os olhos para a sala que me cerca. Acho
que é instinto, deve ser algum tipo de instinto. Eu tenho a impressão de que
as vozes vêm da minha esquerda. Não sei se estou enlouquecendo, acho bem
provável. Porque não há ninguém aqui e tudo ao meu redor são móveis e
mais móveis.
De qualquer modo, minha impulsividade me faz avançar em direção à
fonte da sensação bizarra. É onde fica um espelho e uma aparador alto com
uma bandeja de drinks. Nessa bancada alta, existem três gavetas. E eu já as
revirei, já procurei em todas. Ainda assim, meu corpo parece mais quente
perto da maldita peça.
Parece um jogo...
E eu pude jurar por um segundo que ouvi uma voz dizer que "está
esquentando", como se eu estivesse mais perto de achar algo. Eu toco a
bandeja e a afasto para um dos lados. E eu luto contra o medo, porque é como
se vozes ecoassem em minha cabeça, sussurros cada vez mais constantes e
enlouquecedores. O movimento da bandeja prateada revela aos poucos o que
eu não tinha percebido antes. Meu coração para quando vejo as duas folhas
levemente amareladas, com letras legíveis, apesar da caligrafia apressada.
"Chloe Marie Mitchell nasceu em uma madrugada, às 3h00 de um
quarta-feira, dia 14 de outubro segundo calendário e horários padrões dos
humanos."— Meu cenho se franze à medida em que meus olhos varrem cada
palavra escrita. — "Fruto de um relacionamento entre Collin Mitchell, anjo
exilado na Terra e agora humano, com Donna Mary Mitchell, humana
nascida em Maryville, Tennessee; Chloe Mitchell é a promessa da união do
Céu com o Inferno..."
Meus olhos tentam devorar as palavras, mas o papel queima em
minhas mãos, ele literalmente queima. Eu vejo as chamas consumirem as
pontas e arregalo os olhos, num misto de desespero e choque, lembrando que
Noah me disse que páginas de um tal livro do Destino haviam sido roubadas
e a minha única conclusão no momento é que...
— Olá, Chloe — A voz masculina me interrompe e eu deixo as folhas
caírem ao chão quando as chamas se aproximam dos meus dedos. Fecho os
olhos, tentando me controlar. Meu coração está quase saindo pela boca e eu
estou fodidamente desesperada.
Luke.
— Pensei que já era bem crescidinha para ler livrinhos tão bobos —
ele ironiza e eu tomo coragem, finalmente, para me virar. Há um sorriso
cínico nos lábios do loiro e quando ele estala os dedos, os papéis ressurgem
na mesa de centro da sala. E ele os pega. — Apesar de que confesso, querida,
a sua história é, de fato, extremamente peculiar.
— Você...
Ele ri do modo como uma pequena palavra minha carrega tanta fúria.
Não faz sentido, não pode ser... Mas seu sorriso me indica que é exatamente
o que eu estou pensando.
— Vamos, me divirta. — Ele arqueia a sobrancelha para mim —
Eu...?
Respiro fundo e meus olhos se tornam marejados, na medida em que
o loiro avança lentamente em minha direção. O ar parece rarefeito, parece se
prender várias vezes ao descer aos meus pulmões, como uma tortura. Passo a
recuar, assustada, na mesma velocidade em que o traidor caminha. Até que
minhas costas se chocam contra o móvel de madeira atrás de mim e o sorriso
de Luke fica a centímetros dos meus lábios.
— Eu vejo o que ele viu em você, linda — sussurra, pegando uma das
minhas mechas ruivas. — Você é espetacular. Sabe... — Ele ri e se diverte ao
de afastar. — Uma vez, eu tentei convencer Noah a se afastar de você. Eu
disse que você não era tão linda assim, eu disse que você era... — Ele eleva
um dedo e gira o corpo em minha direção. Penso em correr, mas não sei se
adiantaria, então imploro por Noah, imploro por ele. — No máximo — Luke
continua — um oito. Mas você é um dez. Definitivamente. Artistas
morreriam para te retratar, honestamente.
— Onde está o Matt?
Sinto meus olhos arderem. Cerros os punhos, sentindo medo vibrar
por cada célula minha.
— Oh, o anjo! — A sua voz é irritantemente melodiosa. — Bom de
cama, sempre quis provar um — ele brinca —, apesar de que eu também teria
algo com a Molly, sabe? Eu só precisava me aproximar de alguém que
pudesse lhe convencer, linda, de que Noah era um monstro e de que todos os
outros à volta dele não prestavam. E Matt o odiava. Além de que, ele era um
anjo protegendo você. Poderia ser útil de algum modo...
— Onde. Está. Matt?
— Vivo. — Meus olhos transbordam lágrimas do mais puro ódio.
Luke sorri, porque ele sabe que eu duvido. — Porque eu quero te fazer uma
proposta, linda, eu quero te levar ao lugar especial onde ele está. E eu posso
me teletransportar à vontade, só não posso te levar junto. Você tem que
querer ir comigo... E nosso tempo está acabando, acredito eu.
— Onde. Ele. Está?
— Purgatorium. Sabe aquela gaiola onde o DJ fica? — Ele ri, se
divertindo. — Eu achei que seria o lugar perfeito para uma festinha.
— Filho da... — Ele fica a poucos milímetros de mim em questão de
segundos e eu prendo a respiração.
— Acho melhor me respeitar, linda. Pode descobrir que Matt não foi
o único a ser preso. Talvez a sua mãe esteja gritando de desespero tentando
ligar para a sua casa, porque o seu irmão sumiu. Quem sabe? — Arregalo os
olhos, sentindo esse como o momento de maior desespero da minha vida.
Luke não se abala, com seu olhar sério e avermelhado, mirado como uma
arma contra o meu rosto. — Além do mais...
Ele grunhe e em questão de segundos uma faca lhe atravessa o
abdome. Luke grunhe e fecha os olhos, abrindo um sorriso que não condiz
com o ferimento em seu corpo. Kold tem uma espada em uma das mãos e a
faca na outra, cortando o peito do traidor.
— Koldelium — ele diz, entredentes. Luke cai ao chão, segurando a
faca em seu corpo.
Kold guia seus olhos azuis para mim e não para o cara ajoelhado ao
chão. Ela parece exasperada ao me encarar, como se dissesse: "não tenho
tempo para explicar". Ela me puxa pela mão e eu corro atrás dela, quase
tropeçando em Luke no processo. Olho para trás a tempo de ver sangue e
Luke com as duas mãos no chão. Quando saio do apartamento, ele está
urrando enquanto tenta remover a faca.
— Isso não vai matar ele. — Estamos no corredor do prédio em
questão de segundos.
— O quê? — questiono, ainda sem conseguir processar muita coisa.
— A faca não vai matá-lo — Kold repete —, ele vai tirar a faca de si,
demorar para se curar, mas aquilo não vai matá-lo. Armas mais poderosas
precisam ser usadas para matar um demônio tão antigo e forte quanto Luke.
— Ela me puxa para as escadas de incêndio— Isso só vai atrasar ele um
pouco, deixar ele sentir dor o suficiente para não conseguir usar sua energia,
seus poderes, para não nos seg...
— E por que você a usou? — Estamos descendo as escadas de
incêndio e meu coração parece que está preso em minha garganta.
— Oh, desculpa se eu usei dois minutos para ir ao Inferno e me
equipar com as duas armas mais fortes que eu tenho para uma guerra, e
ELAS NÃO SERVEM! — Kold parece puta com o meu comentário, mas na
adrenalina do momento, eu realmente não me importo.
— Você sabia que estava numa guerra e foi para o Inferno? — Para a
infelicidade da morena, eu costumo brigar e fazer perguntas idiotas quando
estou nervosa. São vinte e dois andares e eu me pergunto o porquê de não
pegamos o elevador, mas tenho certeza de que esperar pelo elevador com
Luke atrás da gente, talvez não seja tão legal. — DOIS minutos é MUITO
tempo, sabe? E...
— PORQUE EU PRECISO LUTAR COM ALGO QUE SEJA
FORTE O SUFICIENTE PARA ENFRENTAR UMA GUERRA,
MITCHELL! — Uau, ela está brava. — PORRA! — é o que ela diz quando
um cara aparece na sua frente e pela cara de poucos amigos, não é um zelador
ou um morador. Definitivamente demônios.
As asas de Kold quase batem em mim e o rebelde avança em sua
direção, fazendo ela recuar e — agora sim — as penas brancas baterem na
minha cara. Eu recuo, assustada, ouvindo a porta da saída de emergência do
andar acima se abrir. Meu corpo todo é adrenalina nesse momento.
Tem alguém descendo e a minha ideia de gritar para a gente subir e
fugir? Essa ideia morre. Para a minha sorte, Kold não demora muito no
embate contra o maldito demônio e a sua espada o atravessa. Nem dá tempo
para a bile subir pela minha garganta direito, porque Kold corre para baixo e
eu a sigo.
E outro cara aparece, mas ele é prontamente derrotado e sua cabeça
cai ao meu lado. A morena não tem a menor piedade de seus oponentes, eu
nunca vi tanta violência e sangue na vida. Ignoro a vontade de vomitar e
continuo a correr, até que outro cara aparece e Kold crava a espada no pé dele
e depois no abdome, o fazendo cair degraus abaixo. Há sangue em meus
sapatos quando eu corro para o andar abaixo de nós, seguindo Kold.
Tem uma longa janela de vidro no final do corredor desse piso e eu
consigo ouvir os passos atrás da gente, bem como sinto um demônio surgir
do nada e tocar o meu braço, mas eu me desvencilho e Kold troca de lugar
comigo ao atravessar a arma no coração do cara e, oh, Deus, que porra ‘tá
acontecendo?
Corro para o único lugar possível, mas não há saída, só uma janela
longa para cacete.
É um daqueles momentos que precisamos parar para pensar, mas não
há tempo. Não há tempo para calcular uma saída e eu sinto que é isso, que
vamos morrer e...
— Segure isso. — A morena me entrega a sua espada. — Segura em
mim — Kold diz e eu arregalo os olhos, sendo puxada por ela.
— O quê? — Suas asas se expandem e Kold passa um dos braços sob
meus joelhos e em minhas costas, correndo com velocidade e... — O que
você está...? — Ela está correndo. Ela está correndo? Ela está... — OH MEU
DEUS!
— Feche os olhos. — Obedeço. Kold colide contra o vidro da janela,
não tem como segurar a sua espada e ela ao mesmo tempo, então eu me
concentro na espada e torço para ela me segure firme. Sinto os cacos caírem
sobre nossos corpos... E agora tudo o que percebo é o chão se distanciando de
nós. Vento frio e forte contra o meu rosto e... A gente ‘tá voando? — Porra,
porra... Porra... NOAH! — Kold grita, como se ele fosse ouvir.
Estamos sobrevoando um beco e tem gente bem, bem abaixo dos
nossos pés, acho que são dois adolescentes chapados. Há um detalhe sobre
mim que acabo de descobrir: eu tenho mais medo de altura do que imaginava.
A sensação de insegurança e certeza de que eu vou cair está me deixando
louca. Contudo, Kold está mais séria e concentrada do que nunca, apesar de
alguns respingos de sangue por seu rosto. Ela é mais forte do que eu pensava.
Olho para trás e o prédio de Luke não está tão longe assim. Eu estou
segurando uma espada para cima que nem uma louca, com medo de cair.
Kold faz menção de seguir sobrevoando para as ruas, mesmo
existindo uma alta probabilidade de ser vista com suas asas, carregando uma
garota em seus braços. Mas é nesse momento que um solavanco me toma e
um som estranho me faz fitar Kold em desespero. Olho para trás e tem um
demônio perto na janela quebrada, arremessando uma pequena faca contra a
morena. Olho por cima do seu ombro e vejo não só uma, mas duas pequenas
facas cravadas em suas asas. Que sangram.
Ela grunhe e, de repente, estamos no chão do beco. Os dois
adolescentes chapados nos encaram. Kold remove as facas das asas e respira
fundo, xingando. Ela faz meus pés encostarem no chão e as armas que a
atingiram tilintam contra o chão após um arremesso furioso. Kold fala
entredentes.
— Onde está seu carro?
— Voar não é mais rápido? — Ela grunhe de dor e eu percebo que
voar não é uma opção. Ela recolhe as asas.
— Elas precisam se recuperar. — As asas, ela fala das asas. Eu ainda
não me acostumei a isso tudo, nem tenho tempo para me acostumar. Não é
como se eu pudesse dizer: "ei, gente: vamos parar a guerra para eu pensar
direitinho em tudo que estou vivendo? Alguém pode me dar uma palestra ou
algo assim? Depois podemos voltar a nos matar.".
Kold segura o meu braço e me faz andar, interrompendo o meu surto
interno.
— Ok, Mitchell, veja: eu sou um anjo com alguns privilégios de
demônios, porque vivo no Inferno. Eu posso me teletransportar, ouvir
humanos mentirem, entrar no purgatório real e eu sou superior a esses
demônios, mas eu não sou tão fisicamente resistente quanto Sinn e Luke. —
Estamos quase correndo enquanto ela me explica. Sua cara expressa dor. —
Os cortes podem não me matar, mas doem para um inferno e eu acho que há
veneno nessas armas porque eles já esperavam que você poderia receber
ajuda e... Ugh, isso dói... Onde está a porra do seu carro?
— Logo na frente do prédio — respondo, com a sensação de que meu
coração está contra a minha garganta. Fecho e abro as mãos na esperança de
que esse ato idiota me acalme.
— Ok, me mostra ele! — Ela toma a espada da minha mão e me
incentiva a andar. Em pouco tempo estou ignorando a ardência em meus
pulmões e correndo em direção ao carro vermelho na frente do prédio de
Luke. — Eu vou te dizer o que vai acontecer: eles vão tentar invadir o carro
no caminho constantemente. Você não vai olhar pros lados, você não vai
olhar pra qualquer lugar que não seja para frente enquanto dirigir...
Dirigir. Repito a ordem na minha mente, tentando manter a calma.
E segundos depois, eu estou no carro, dando partida, com uma Kold
ofegante ao meu lado. Ela está um pouco pálida e suando, como eu. Dou
partida no carro, segurando a vontade de chorar de medo.
E o carro afunda. O que significa que tem mais alguém com a gente.
Tento não olhar para trás, mas não resisto, observando pelo retrovisor
um cara com íris laranjas grunhindo antes de tentar atingir Kold pelo banco
do carona. Ela migra para o fundo do carro em menos de um milésimo de
segundo e chuta a cabeça do demônio, que bate contra o vidro. Suprimo um
grito e piso no acelerador com força, ouvindo o que parece ser o demônio
batendo a cabeça no banco da frente com o impacto. Kold atravessa a arma
no corpo dele e abre a porta do carro, o que resulta em um corpo caindo na
rua e carros buzinando e gritando coisas como "Que porra é essa?". Ela fecha
a porta novamente.
— NOAH, PELO AMOR DE DEUS — eu grito, na esperança disso
fazer o meu namorado aparecer no meu carro e colocar ordem nesse caralho.
— ONDE VOCÊ ESTÁ?
Ouço um grunhido no fundo do carro e ele afunda mais uma vez. Uso
de toda a velocidade da Shelly para virar a esquina. Penso para onde ir, para
onde devemos ir. Eu só consigo pensar no Matt, no Purgatorium. Ao mesmo
tempo, eu penso se não deveria tentar encontrar o Noah no apartamento dele.
Eu não sei para onde estou indo, minha visão está borrada por lágrimas de
pavor e eu me pergunto como vim parar nesse carro com uma morena lutando
contra outro demônio.
E esse perde sua faca quando a morena a chuta e segundos depois ela
está grunhindo alto e enfiando a sua gloriosa espada entre as pernas do
demônio. Ele urra de dor e Kold faz a sua espada atravessar o crânio dele.
Volto o olhar para rua quando percebo que quase bati em um carro,
realizando duas ultrapassagens e virando numa avenida qualquer.
Quando eu acho que nada pode piorar, o mundo me prova o contrário:
— Acho melhor parar o carro, docinho. — Escuto ao meu lado e
grito, fitando um cara que parece ter cinquenta anos, todos seus dentes podres
e olhos amarelos, que faz menção de levar uma mão ao meu braço, mas Kold
faz sua espada atravessar o banco e atingir o peito dele, que morre ao meu
lado. Volto o olhar para o caminho que o carro faz, chorando, finalmente
chorando de medo.
— Porra, isso não vai parar — Kold reclama, tentando puxar sua
espada para fora do banco e encontrando certa resistência. Ela ofega e limpa
o suor em sua testa, mas suas mãos estão sujas de sangue.
— Não me diga — respondo e ela finalmente consegue tirar sua arma
do banco. A fito pelo retrovisor e Kold ainda parece pálida, suor por todo seu
rosto. — Kold, o corpo do meu lado...
— Abre a porta — ela diz simplesmente e eu arregalo os olhos,
porque eu ‘tô dirigindo. — Confia em mim, Chloe. — Troco a marcha e tento
reduzir a velocidade, me inclinando com uma mão sobre o volante e
alcançando a maçaneta da porta do carona. A porta se abre com o carro em
movimento e eu o empurro o cara, que cai morto para o lado de fora e é
atropelado por outro carro. Antes que eu consiga processar, um ônibus passa
em alta velocidade e leva a porta da Shelly. — Desculpa por isso.
— Desculpa digo eu — falo para o carro, querendo chorar. O carro
está todo sujo de sangue e arranhado, destruído. É tudo o que meu pai me
deixou, é parte dele. Eu quero chorar de medo, tristeza e ódio pela minha
Shelly destruída. Kold, de repente, está do meu lado. Sua espada cheia de
sangue está tocando o piso da Shelly e ela respira fundo, um tanto quanto
exausta. — Esse carro é tudo pra mim...
— O Noah me contou. Eu vou dizer isso só uma vez, Chloe. — Ela
olha ao redor, possivelmente estranhando o mesmo que eu: ninguém entrou
aqui. — Eu imaginei que teria que te dizer isso algum dia...
— O quê?
— Eu sou uma guerreira, Chloe, eu pressinto guerra, eu sinto quando
ela está vindo. Eu sei que posso morrer em combate e eu não quero guardar
isso comigo. Tem uma arma que pode matar o Noah, eu sou a única que sabe
da sua localização além dele, e eu sei disso porque...
— Ele temia se matar e ele te disse onde ela estava para que você o
impedisse de fazer isso — digo. — É, eu sei.
— Mas se eu morrer, eu quero que saiba que quebrei minha promessa.
Eu contei para o Sinn onde ela está, antes de vim pra cá. Por sorte eu não
confiei a informação para o Luke... Porque eu não sabia, eu juro...
— Eu acredito em você, agora eu acredito. — Minha voz está trêmula
e ela percebe — O que quer que eu saiba?
— Primeiro, que ele ama você. E que só por isso, Chloe, eu amo você
também. Eu amo tudo o que o faz feliz. — Algo em mim se aquece no meio
de tanto medo, mas eu só respiro fundo, tentando espantar a tensão. —
Segundo, que a arma sempre está onde ele está. Se ele vai para uma cidade,
ele a leva junto.
— Está em Nova York... — penso, alto demais.
— Antes de vir para cá, eu deixei o endereço no único lugar que
ninguém imaginaria. No lugar onde o coração do Noah vive — ela diz e eu
pondero. E então aproveito que a rua está vazia e a encaro, começando a
compreender. Não vou dizer em voz alta, mas as palavras estão entaladas em
minha garganta. Kold tem um sorriso mirado em minha direção, porque ela
sabe que eu entendi. Eu entendi o que ela quis dizer.
Ela deixou o endereço para a arma do Noah na minha casa. Em algum
lugar, tem um papel ou uma dica, o que quer que seja, para onde o Noah a
guardou. Porque caso tudo dê errado, ela confia a mim esse segredo. Ela
confia em mim para mantê-lo vivo e longe do que pode feri-lo. Ela está
passando essa responsabilidade para mim.
Estamos numa rua mais deserta, há poucos blocos da minha casa. Eu
nem sei como fomos parar aqui. Meu carro cheira à morte e a morte paira no
ar como um aviso de que está realizando apenas uma pausa, mas que ela vai
voltar a nos perseguir em breve. Cada molécula de ar ao nosso redor carrega
tensão.
— Por que você...?
Eu não tenho tempo para terminar a frase, quando o carro afunda mais
uma vez. E eu mal percebo, eu realmente mal percebo a presença atrás de
mim, tão focada nos olhos de Kold, quando algo a atravessa.
Bem ao centro, passando pelo seu peito, uma espécie de adaga, tão
escura quanto a noite, está passando pelo banco e lhe cortando carne e pele.
Eu arregalo os olhos e paro o carro no meio da rua vazia, observando o
queixo de Kold cair em surpresa e sangue sair dela logo em seguida. O frear
brusco me faz ter que me segurar o volante para não me bater e eu avanço em
direção a Kold, que está tão confusa quanto eu.
Só então eu olho para o banco de trás e Luke está ali, com duas
mechas loiras lhe caindo pela testa e ainda segurando a adaga com firmeza,
com um sorriso de canto no rosto.
— É uma pena que tenhamos que chegar a esse ponto, Kold, mas eu
confesso que guardei uma arma para essa ocasião — ele diz, sua voz
aveludada como nunca. Há lágrimas nos olhos de Kold e eu seguro seus
ombros, sem saber o que fazer quando seu corpo se inclina para frente, fraco.
— Não adianta tentar salvá-la, ruivinha... Eu escolho as armas certas.
Eu o ignoro, irracional, desesperada como nunca.
— Kold... — chamo por ela, implorando que mantenha seus olhos
abertos. Ela cospe sangue sobre meu braço, deixa sua espada cair contra meu
porta-luvas, atônita. — Kold, não, não, não... Você não pode morrer!
— É uma honra — ela sussurra e eu nego, porque isso é um absurdo,
isso não pode estar acontecendo. Luke, ao fundo do carro, se inclina no banco
de trás e passa as mãos por seus fios loiros, como se apreciasse a cena.
Meu olhar se volta para Kold imediatamente e eu estou implorando
para que ela resista, mas ela ri, ela ri nasalado. Ela não está morrendo só por
ele, ela está morrendo por mim. E eu vejo o exato momento em que ela
parece ler meus pensamentos.
— É a mesma coisa. Eu morreria por você, porque ele está em você
— a morena continua, gastando toda a pouca energia que possui. Kold tosse
sangue mais uma vez. — Ele está em seus olhos — ela diz, olhando os meus
olhos negros como se pudesse ver a minha alma, enquanto ri nasalado uma
última vez. — Diga a ele que eu... — Ela está lutando para continuar viva,
suando em frio, quando tento erguer seu queixo. Percebo que alguns seres
estão ao redor do meu carro, demônios com suas asas negras contra a noite —
Diga a ele que eu lutei por você. E que eu faria de novo. — Meus olhos estão
ardendo de raiva, porque eu já passei por isso nesse carro, eu já fui a garota
que mancha as mãos de sangue e implora para a morte vir mais tarde. —
Diga que eu sinto muito. Diga tudo. É uma honra... — Há mais sangue em
sua boca. — É uma honra dar a vida por quem amamos.
— Kold, não...
— Tá tudo bem! — Sua voz mal sai e eu a encosto em meu banco,
deixando as lágrimas grossas escaparem pelo meu rosto. Kold sorri e eu vejo
que ela está chorando também, com sua boca manchada de vermelho. — Foi
uma honra. Foi uma...
Há esse momento em que você percebe que uma alma se partiu. Esse
momento que você olha nos olhos de uma pessoa e vê que ali é só carne,
ossos e músculos, mas sua essência se foi. Eu já vivi isso antes, eu sei bem
como é isso: eu olhei nos olhos do meu pai e o vi perdendo a vida, eu vi a sua
essência se esvair lentamente.
Mas com Kold foi tão de repente. Não pareceu um processo, eu estava
tão desesperada em pedir para que ela continuasse viva, que mal percebi que
essa era uma batalha perdida para ela. A sua última batalha.
"Honra". Ela ia dizer que foi uma honra. E na minha mente, a palavra
reverbera como se eu a esperasse concluir, eu estou desesperada para que ela
conclua, para que ela abra os olhos, para que ela volte à vida.
Mas Kold não diz mais nada.
Kold não está falando, ela não está... Ela não está respirando quando
uma última lágrima desliza por seu rosto e cai em sua roupa. Ela não está
respirando quando eu grito, quando Luke sai do meu carro e me manda sair.
Quando eu sou segurada por trás e berrando para que ela acorde, para que ela
reaja. Mas Kold está perdendo a cor, sua pele se tornando cinza e mais cinza.
Ela não tem vida em si.
Não. Não, não, não... Não!
Não.
Não.
Não.
— NÃO, não, não, KOLD... — Escuto Luke rir. — KOLD,
ACORDA! KOLD, FALA COMIGO! — Eu estou berrando com a visão
turva e as lágrimas correndo quentes pelo meu rosto. Mas Kold não se mexe,
ela não se mexe. Ela não está se mexendo, ela precisa se mexer. Ela precisa
de ajuda. — NOAH! — eu grito uma última vez, desesperada, com toda a
força que meus pulmões permitem. Eu estou gritando por ajuda, mas ele não
aparece.
Kold não pode ter morrido, ela não pode. Não, não...
Ainda tento avançar em direção ao corpo da morena, porque isso não
pode estar acontecendo, isso não está acontecendo, não está, não...
— Seu diabinho está ocupado tentando salvar mais um da morte,
Chloe — Luke sussurra, quando chega perto de mim. Meus joelhos
fraquejam enquanto tento lutar contra os braços de um cara que me segura,
morrendo de ódio. Luke segura meu queixo e ergue meu rosto, sorrindo. —
Eu te dei uma escolha, você preferiu fugir, Kold pagou por isso. Se não
quiser que Matt pague por isso, se não quiser que sua família morra nesse
exato segundo, Chloe... Você vai vir comigo, você vai vir comigo de
qualquer modo. — Ele sorri ainda mais, acariciando meu rosto. Eu vejo toda
a loucura em seus olhos, me sinto mais confusa do que nunca.
Por cima do seu ombro, eu ainda vejo Kold morta, com seus olhos
abertos guiados ao nada, completamente cinza. Nunca amei alguém após a
morte, mas acho que esse é um momento para isso. Ela deu a vida por mim,
eu nunca vou ser grata o suficiente. Kold deu a vida por mim. Ela lutou por
mim, ela lutou pelo Noah. Ela doou seus últimos segundos para mim, por
essa guerra. Eu não vou perder isso, nem vou deixar Noah perder essa guerra.
Não posso.
Óbvio que tenho medo de Luke e suas ameaças, mas tenho mais fúria
do que temor em meu sangue nesse momento.
Se Luke quiser me levar a algum lugar, ele vai ter que me levar à
força, porque eu não vou me render.
Porque Kold confiou em mim, porque Noah depende disso, porque as
pessoas que eu amo dependem disso. Porque uma guerreira se sacrificou por
mim. E isso é uma ordem para que eu lute.
A minha resposta para Luke é simples: eu cuspo em seu rosto,
trincando os dentes em ódio. O demônio que me segura aperta os meus
braços com mais força e eu sinto a minha pele literalmente queimar, mas
Luke só limpa o seu rosto e sorri, se afastando.
— Levem-na ao Purgatorium — ele diz ao grupo atrás de mim.
Depois vira o seu corpo para aqueles que observam o corpo de Kold. —
Quero que distraiam Noah pelos próximos quinze minutos. Quero que
continuem a tentar matar o Sinn.
Luke está os sentenciando à morte, porque Noah é mais forte que
esses demônios, mas os rebeldes não ligam. Eles morreriam por isso. Eles
parecem crer em Luke, como se ele fosse um salvador.
E então o loiro se vira para mim, sorrindo.
— Espero que esteja ansiosa para ouvir a minha história, Chloe — ele
provoca, rindo.
E eu quase rosno, querendo que esse filho da puta morra.
Eu quero que ele morra.
Ele merece morrer.
Ele sim merecia morrer.
Foram muitos e muitos minutos de luta até que eu puxasse uma faca
do último demônio e esse caísse aos meus pés. Agora Sinn tem alguns
machucados nos seus braços e um corte em seu ombro, ele parece exausto
perante sua última vítima ao chão.
Meu apartamento tem dezenas de demônios cinzas por terem
conhecido a morte. Alguns no sofá, outros no chão. Há sangue por todo o
lugar.
Sinn está cansado. Ele está ferido. Gotas de suor estão por toda a sua
face. Eu também estou ofegante, tentando processar toda a merda que está
acontecendo.
Uma sensação ruim me domina e eu lembro do confronto de minutos
antes, de como pensei ter escutado Kold e Chloe gritarem por mim.
— Chloe... — Deixo a faca cair. Sinn me encara e eu tento focar na
ruivinha, tento ao máximo.
E eu a vejo.
Chloe acaba de ser empurrada para uma longa e gaiola de grades
escuras. A gaiola do Purgatorium. Vejo demônios ao redor a encararem como
uma presa, como um pedaço de carne. Outros assobiam, outros a amedrontam
e outros riem da minha namorada. E isso me deixa puto.
Mas me deixa mais preocupado, porque isso não é tudo que vejo. O
ambiente está praticamente escuro, apenas uma luz branca sobre a gaiola. E
dentro dela, Matthew.
O anjo está amarrado ao teto da gaiola por correntes prateadas e
brilhantes, seus punhos e seus pés estão imobilizados. Ele está sem camisa,
suas asas estão expostas, completamente ferido.
Chloe está o encarando com pavor, a tensão é palpável. Eu também
sinto medo, para ser sincero. Os ferimentos expõem a pele em carne viva.
— Eu sinto muito — Matt diz, chorando, fitando seus pés. Todos de
fora ainda riem e debocham da cena, mas eu consigo ver o rosto da ruivinha e
ela está despedaçada. — Eu sinto muito...
Chloe, livre na medida do possível, corre até ele. Ela tenta remover as
correntes, sem sucesso. Matt está chorando, ainda se recusando em fitar a
amiga. Mitchell simplesmente não consegue parar de tentar tirar ele dali.
— Você devia estar se curando, você devia...
Matt não explica, mas eu sei que provavelmente foi ferido por armas
não humanas, por algo forte. As marcas são feias, lembram chicotadas,
profundas.
— Eu mereci, eu mereci, eu confiei nele... — Letterman fala,
baixinho. E ele não precisa dizer mais.
"Nele". Filho da puta... Traidor. Filho. Da. Puta.
Trinco os dentes com força e Sinn pergunta o que houve, mas eu
fecho os olhos e tento me concentrar na ruivinha, apesar da fúria que corre
pelo meu sangue.
Chloe desiste de tentar libertar o melhor amigo. Todos ao redor os
assistem, se divertindo. E Mitchell me surpreende ao abraçá-lo pelo pescoço.
Matt geme de dor, mas não protesta. As correntes se movimentam, ecoam
pelo ambiente, quando ele afunda a cabeça no ombro dela e aceita o carinho.
— Desculpa. — É a vez da Chloe de pedir. — Eu não vou perder
você também, ok? Eu prometo, Matt, você vai sair dessa, eu não vou perder
você... — Ela soa desesperada. Sinn ainda está me perguntando o que houve,
mas eu o ignoro. — Eu amo você.
— Eu te amo também, Co — ele retribui. Chloe está nas pontas dos
pés. — Tudo bem — Matt sussurra. — Como isso aconteceu, Chloe? Cadê o
Noah?
E então Chloe se afasta, secando as suas lágrimas. Ela toca as asas em
sua gargantilha e o olhar de Matt esquadrinha cada detalhe do seu rosto.
Algo está errado.
Chloe está ali, mas onde está Kold?
Tento buscar Kold, e não a vejo.
Eu não a vejo.
Eu não a ouço.
Eu não a sinto.
Sinn está de pé, se aproximando de mim.
Eu volto para Chloe e ouço seu suspiro. Seus lábios tremem e seus
olhos estão cheios de água. Não sei explicar, mas acho que de algum modo,
Chloe sente a minha presença.
— Rua Harbor, Hell's Kitchen — ela sussurra e eu não entendo. Matt
franze os olhos, Chloe aperta a as asas em sua gargantilha. — Eu sinto muito,
amor, eu sinto tanto...
Sim. Ela está falando comigo. Ela sabe que eu estou a observando,
Chloe simplesmente sente. E eu tenho medo do que ela parece estar querendo
dizer.
— Rua Harbor — eu digo em voz alta e Sinn franze o cenho.
— Fica perto do Purgatorium — Sinn fala. — Eu sei onde é. — Ele
some. Eu o sigo.
A rua está silenciosa. Luzes de postes piscam e eu vejo um carro parar
do outro lado da rua. Um cara sai dele e parece estar gritando por uma
ambulância ou para alguém chamar a polícia.
Algumas pessoas estão paradas ao redor de outro carro. São três delas.
Elas parecem assustadas.
Porque há um Shelby no meio da rua.
É o carro da Chloe. É a Shelly.
— Você vai calar a boca e ir embora — ordeno, alto. O cara que saiu
de seu veículo franze o cenho e se cala. — Agora. — Reduzo o tom de voz e
mostro meus olhos vermelhos, fitando seu olhar carregado de pavor. Em
questão de segundos ele está em seu carro, fugindo dali. — TODOS VOCÊS!
E todos obedecem, trêmulos, correndo com medo. A rua está quase
completamente silenciosa. Sinn, ao meu lado, respira com pesar. Acho que
sei o porquê: eu sinto morte. Está perto.
Cerro os punhos ao fitar a Shelly.
Sinn se aproxima do carro pelo lado esquerdo e eu me aproximo pelo
lado direito.
A primeira coisa que eu vejo é que o lado direito está sem porta. A
segunda coisa que eu vejo é a Kold. E então tudo o que vejo é ela.
Koldelium está cinza. Seu olhos abertos estão focados na direção de
Sinn, que abre a porta, exasperado. Meu queixo cai minimamente e eu sinto
um arrepio percorrer o meu corpo, enquanto sinto meus olhos queimarem.
Sinn está chamando por ela e ela não responde. Kold simplesmente
não responde.
Eu infiltro parcialmente o corpo dentro do carro e seguro o rosto
gélido de Kold, o virando em minha direção.
Agora Kold está com os olhos focados em mim, mas eu não ouço seu
coração bater, não vejo vida em seus olhos, eu não sinto a sua alma por perto,
eu não a sinto. Eu não a sinto. Eu não a sinto e isso não pode ser real. Isso
não pode ser real. Isso não pode ser real.
— Kold. — A voz mal me escapa. Há uma adaga atravessada em seu
peito e sangue por sua boca. Sinto meus olhos arderem e seguro o seu rosto
com um pouco mais de força. — Kold? — Meus lábios tremem. — Por favor,
não... Não, Kold...
Sinn se senta no banco do motorista e deita a cabeça no volante por
um segundo, depois fita o teto, com os olhos rasos de água. Eu desvio o olhar
de volta para Kold, porque isso não pode ser verdade. Meus polegares alisam
sua pele fria e macia e seu corpo se afasta minimamente do estofado.
— Kold? — chamo mais uma vez, baixinho. — Kold, por favor...
Você, não! — Minha visão se embaça e eu consigo engolir um soluço, mas
dói. — Você não pode fazer isso comigo, Koldelium! — Eu giro seus joelhos
para o lado de Sinn e passo meu braço por eles. O corpo de Kold cai por cima
do meu ombro e eu vejo Sinn chamar por mim, pedir para que eu pare, mas
eu a carrego do mesmo jeito.
— Noah! — Sinn exclama e eu o ignoro, colocando o corpo de Kold
sobre o asfalto. Tiro a faca do seu peito e espero. Eu espero que se recupere.
Eu fecho os olhos e me concentro nos sons, tento ouvir seu coração voltar a
bater. — Noah...
— Shhh... — peço, sentindo as lágrimas quentes escorrerem pelo meu
rosto. Porque eu não ouço nada. Eu não a ouço. Eu não a sinto — Não...
— Ela se foi, cara. — Sinn toca meu ombro, sua voz está totalmente
trêmula.
Kold tem os olhos mirados para as estrelas, para o céu. Para o lugar
que nunca lhe foi uma casa. E eu choro, deixo os soluços escaparem, porque
eu a perdi. Eu a perdi, a culpa é minha. Eu deveria ter confiado nela, eu gritei
com ela.
Eu gritei com ela, porra, eu gritei... Ela morreu sem saber. Sem saber
que eu a amava. Deito a cabeça da Kold em minha perna e fecho seus olhos,
sentindo a dor foder com todo o meu ser.
Eu a perdi.
Anjos e demônios sempre se julgam superiores a humanos, mas os
humanos têm uma vantagem que nós não temos: eles têm segundas chances.
Quando um anjo ou um demônio morre, ele se torna cinza, ele perde
sua vida em definitivo. Não há um novo nascimento, uma nova vida lhe
esperando... Sua alma deixa de existir. Ele não tem direito a purgatórios ou
qualquer porra do tipo, ele não tem direito a voltar ao Céu ou retornar ao
Inferno, nada assim. Anjos e demônios têm o dever de cuidar do universo
como um todo e se eles falham, eles só deixam de existir. Suas almas
desaparecem.
A alma de Koldelium era uma das mais bonitas que já conheci. Eu
não sei viver num mundo em que sua alma não existe. Que suas ironias não
me irritam, seu sorriso não me faz rir, que suas frases não me encorajam...
Qualquer guerra parece impossível sem Kold ao meu lado, porque...
Porque, porra, ela era a melhor.
Ela era simplesmente a melhor. Em tudo.
Volto a fitar cada detalhe do seu rosto, deixando lágrimas deslizarem
pelo meu rosto e caírem sobre a minha melhor amiga. O Céu não a merecia e
eu também não sei se o Inferno lhe foi digno. Eu não fui digno da sua
amizade. Porque por mais que ela tivesse errado, a morena lutou para merecer
a família que construímos, ela contornou o seu erro e se tornou grandiosa.
Kold foi excepcional por cada segundo.
— Eu amo você — sussurro. — Eu amo você pra caralho, Kold. Eu
queria tanto, tanto que você soubesse...
Não ter uma resposta nunca me machucou tanto. Porque Kold não
tem direito a uma segunda chance e ela deveria ter. Nós deveríamos ter uma
chance de viver mais um pouco ao seu lado.
Ouço Sinn se afastar em direção ao carro e eu sei que ele está
chorando, eu sei que ele está despedaçado. Porque nada parece fazer sentido.
"Amo você", penso, com toda a verdade que me resta. Mas meu amor
simplesmente não foi suficiente.

Estaciono o carro da Chloe num beco qualquer. Sinn está com o corpo
de Kold ao fundo do carro, já que a porta lateral foi perdida. Pelo rádio,
policiais afirmam que uma perseguição em alta velocidade aconteceu em uma
das ruas de Hell's Kitchen e que estão tentando reconhecer a placa nas
câmeras, e que corpos foram simplesmente jogados na rua. O tipo de bagunça
difícil de resolver.
O carro não foi encontrado, o que me faz pensar que Luke
provavelmente está atrasando a polícia de alguma forma. Seria pateticamente
fácil encontrar um veículo abandonado em um bairro vazio, perto de onde
uma perseguição aconteceu. Eu não sei o que ele fez em relação a isso. Mas
realmente aposto que ele queria que eu encontrasse o carro e a Kold morta.
Luke.
Aquele filho da puta.
Claro que foi ele. Matt disse que tinha confiado na pessoa errada, ele
se referia ao Luke. Eu só me pergunto o porquê. Me pergunto a razão para
Luke jogar fora a família que teve. Talvez o poder sempre tenha falado mais
alto. Isso é tão confuso, tão fodido.
Desligo o rádio antes que a minha cabeça exploda. Nada importa
agora, de qualquer modo.
Só ela importa. Chloe.
Porque eu não posso perdê-la como perdi a Kold. Nem deixá-la
perder o seu melhor amigo, sua melhor amiga, assim como eu perdi. Ao
mesmo tempo, preciso me assegurar que as pessoas que ela ama estão em
segurança enquanto a salvo.
"A salvo". Rio nasalado, mesmo que um tanto quanto puto.
Chloe nunca quis ser a mocinha presa numa gaiola. Ela sempre foi
muito maior que isso. Ela é quem me salva. Sempre. Ela é a garota com a
alma transbordando desejo por aventura e um brilho no olhar por ser
apaixonada por adrenalina. Ela não é uma presa fácil.
Eu me recuso a permitir que a enjaulem numa gaiola como uma presa
fácil, como um animal de exposição. Estão machucando a minha ruivinha e
isso não pode ficar assim. Chloe é o tipo de pessoa que merece ser a heroína
que coloca todo o mundo aos seus pés.
Tudo está fora de ordem.
E aquela que me daria a solução exata para essa situação está morta.
Kold era a melhor estrategista. Por isso era a melhor guerreira.
Eu sou só um garoto perdido com um grande título infernal nas costas
e que está implorando ao destino para que isso seja suficiente. Para que meus
poderes e meu amor por Chloe Mitchell me deixem furioso e forte o bastante
para arrancar a cabeça loira daquele maldito de seu pescoço pálido.
— Você queimou o volante — Sinn observa. E eu finalmente noto
que apertei o volante com força, o queimando e deixando a marca
carbonizada e profunda dos meus dedos ali. Um suspiro pesado o escapa. —
Foi o Luke, você sabe? — Ele não é burro. Agora é fácil de ver. Eu só
assinto. — O que fazemos agora?
Penso, me odiando pelas palavras seguintes:
— Você vai deixar a Kold nesse carro — eu digo. Ergo os olhos
vermelhos e irritados para Sinn, pelo retrovisor. Ele ri, sem crer, tensionando
a mandíbula. — Calma, me deixe explicar! — peço e sua feição relaxa
minimamente. — Você vai ao Inferno e vai fazer Theo confessar se tem algo
a ver com o Luke. Não quero que seja bonzinho com o meu irmão, Sinn...
— Acha que há alguma possibilidade?
— Não sei. Mas quero que conte ao Theo que a Kold morreu. Ela era
a única que ainda o defendia para mim — digo e suspiro, irritado pela
confissão que segue. — Theo tem fúria em seu sangue. Ele tem dor e ódio.
Ele sofreu nas mãos de Lilith, ele perdeu nossos pais e o irmão no processo,
porque eu nunca mais fui o mesmo. Eu sou perdido, mas ele é pior. Porque
ele era só uma criança. Ainda é. Se ele souber que o único ser que o defendia,
de algum modo, morreu... Nada mais vai importar. Ao menos é o que espero.
— O que quer dizer?
— Se Theo não estava do lado do Luke, ele vai nos ajudar. Se Theo
estava do lado do Luke, foi para se vingar do irmão que nunca lhe deu o que
ele queria: a chance de ser parte de sua família — confesso, me odiando por
isso. Há algum tempo eu penso nisso. Chloe me fez pensar nisso. Quando
falava da sua família, do seu irmão, quando me mostrava um lado bom
demais para alguém como eu. — Mas ele nunca machucaria a Kold. E se ele
souber que isso aconteceu, ele vai ficar do nosso lado.
— E o que você vai fazer? — Sinn pergunta. Sinto tensão em cada
pedacinho desse carro.
— Ainda não terminei. — Me recuso a fitar o cara pelo retrovisor,
então desvio o olhar para a janela ao meu lado, respirando fundo. Tudo o que
estou o instruindo a fazer é extremamente arriscado, mas me parece o certo.
— Você vai contar isso para Theo e apenas para ele. Se ele tiver ajudado o
Luke, ele vai saber quem são os rebeldes infiltrados e vai chamar apenas os
demônios de confiança para os ajudarem. Se você contar sobre a Kold e ele
disser que nunca ajudou o Luke, então ele realmente não sabe de nada e você
vai ter a ajuda dele apenas. Pelo menos no Inferno.
— Pelo menos no Inferno? O que quer dizer? — Sinn pergunta e eu o
fito pelo retrovisor, finalmente. Seu rosto negro ainda está molhado por
lágrimas, eu ainda vejo dor em seus olhos e uma Kold sem vida repousa em
seus braços.
— Que se eu não voltar em algumas horas, você vai implorar por
ajuda para proteger a Chloe e todo mundo que ela ama — digo, sorrindo
fraco. Mas não há felicidade em meu sorriso, só dor. — E vai se ajoelhar se
necessário.
Sinn parece refletir por alguns segundos, com seu cenho franzido,
como se me questionasse "implorar para quem?". E então ele compreende.
O Céu não se mete em assuntos do Inferno. Assim como, o Inferno
não interfere em assuntos do Céu. Chloe deveria ser do interesse de ambos,
mas por algum motivo, o Céu está apenas observando. O que me fez entender
que ou eles estão planejando algo com isso tudo, ou que eles estão esperando
pelo pedido de ajuda. Afinal, sempre houve uma disputa entre Céu e Inferno
para saber quem cederia primeiro nessa rixa idiota.
Eu cederia qualquer coisa pela Chloe. Se algo der errado, eu quero
qualquer ajuda que a mantenha viva, bem e longe disso tudo. Mesmo se vier
de quem eu sempre quis distância.
Sinn parece compreender isso.
— Você não pode lutar sozinho, Noah — Sinn argumenta e eu
percebo que ele acha uma loucura que eu confronte Luke sozinho e o deixe
resolver as coisas. — Isso é loucura.
— Infelizmente, sim. Mas o Diabo se apaixonar por uma humana
também parecia loucura. Tudo parece insano agora. — Não acho que fiz
sentido nesse momento, então só dou risada. — Você não tem muita escolha
a não ser me obedecer. Porque querendo ou não, eu sou um Rei. E eu estou
deixando bem claro, nesse exato segundo, que não preciso de um casamento
ou um super "felizes para sempre" para declarar que Chloe será sempre a
minha única Rainha. E você deve fidelidade a ela, Sinn. Se tudo der errado,
eu quero o mundo abaixo por ela.
— Onde Luke está? — Sinn soa ríspido, como se ignorasse tudo o
que eu disse. Mas ele ouviu. E eu sei que cumpriria as ordens.
Busco por ele e o vejo contra a grade da gaiola no Purgatorium,
fitando a ruivinha sentada ao chão. Chloe repete mil vezes que sente muito e
eu sei que é para mim. Matt continua preso. Mas Luke está sorrindo.
O loiro está sorrindo. E é como se a Chloe estivesse livre para que eu
a resgatasse, é como se Luke estivesse vulnerável. Mas eu sei que há alguma
pegadinha, algum truque, alguma trapaça. Ele é o rei das trapaças, ele ama
brincadeiras. Eu sei que estaria caminhando para uma armadilha, uma que
não faço ideia qual seja, e eu realmente não me importo.
Ele está me esperando.
— Onde eu deveria estar — respondo, tocando o colar de asas em
meu peito.
— Noah...
— Eu não posso perder a Chloe também, Sinn. — Minha garganta
parece se fechar na medida em que falo, como se a ideia lutasse para não sair
pela minha boca. — Eu não vou perder a Chloe, nem deixar que ela perca o
Matt, como eu perdi a Kold. Não vou deixar que a Kold morra em vão por ter
protegido a minha ruivinha.
— Noah... — ele repete e eu o encaro pelo retrovisor, vendo as
lágrimas grossas por sua pele negra. Kold parece dormir em seus braços e
isso dói tanto. — A gente precisa de um plano. Você não pode correr atrás do
Luke sozinho.
— Eu não posso arriscar mais ninguém.
— Você não pode agir por impulso. — Sinn ergue o tom de voz. —
Você não pode aparecer na frente do Luke sozinho e ceder às vontades dele, é
tudo o que ele quer. Você mais do que ninguém sabe que guerras não são
iniciadas sozinhas, muito menos terminadas sozinhas. Nós precisamos de um
plano e buscar por aliados.
Sinn ri ao perceber que não estou convencido e continua:
— Ok, eu sei que a ideia de deixar a Chloe sofrendo sob controle do
Luke por um minuto sequer te deixa louco. Eu entendo! Mas acha que ela não
sabe? Acha que ela não sabe que é uma isca no momento? Que ela não espera
que você tome a melhor decisão? Acha que a Chloe não entende de guerras,
Noah? A sua garota é mais forte do que pensávamos.
— Eu sei que ela é forte, Sinn — retruco, irritado —, isso não
significa que eu gosto de vê-la como uma refém e sendo vista como inferior,
destruída.
— Você está sequer me ouvindo, Noah? — Ele ri. — Acha que a
Chloe não aguenta algumas horas ali? É o melhor! Planejar com cuidado. Um
plano bom e preciso é o mais seguro. Precisamos de algumas horas — ele
argumenta e eu tensiono a mandíbula, desviando o olhar para os meus dedos,
os meus anéis. — Sabe uma das coisas que a Kold me disse antes de morrer?
Que ela reconhece uma lutadora quando olha em seus olhos. Adivinha a
quem ela se referia?
Ergo os olhos pelo retrovisor para Sinn. Kold cinza e sem vida em
seus braços me faz querer chorar e colocar todo esse mundo em fogo,
transformá-lo em cinzas.
— A Kold está certa. A Chloe é uma lutadora — digo —, mas aqui
está a coisa, Sinn: Chloe precisa de mim. E você pode usar dez mil frases da
Kold para me impedir de fazer uma loucura agora, mas eu não quero que a
Chloe termine como a Kold terminou...
— Noah...
E eu desapareço do carro.
Agora estou de frente para a gaiola escura. A ruivinha está lá dentro
do lado direito da mesma, sentada, fitando o nada enquanto segura o pingente
de asas em sua gargantilha. Matt ainda está preso, suando, de cabeça baixa e
aparentemente desacordado.
Vejo o exato segundo em que Chloe sente a minha presença e vira a
cabeça em minha direção. Sua boca se abre minimamente e ela franze o
cenho como se me questionasse "o que faz aqui?".
— Não, não, não, não... — Chloe parece apavorada em me ver. Sinn
estava certo: Mitchell não queria que eu viesse agora. Não tenho tempo para
discutir os seus motivos, então, apesar de sentir seu desespero, desvio o olhar
para outra figura.
De frente para gaiola, a cinco ou seis passos de mim, percebo uma
silhueta masculina. A única luz branca sobre o Purgatorium se torna
vermelha e eu o odeio por ser assim tão teatral. Escuto um riso nasalado e o
loiro se vira, com as mãos nos bolsos das calças.
Não estamos sozinhos. O ambiente está escuro, muito escuro, exceto
pela luz na gaiola. Mas eu escuto corações, alguns deles ansiosos. Bem como
ouço respirações baixas, eu sinto a tensão no ar. Só finjo que não.
— Que bom que veio! Esse lugar não é o mesmo sem você. — A voz
de Luke soa extremamente melodiosa. Eu não o respondo, trincando os
dentes. — Eu pediria à Kold para me servir um drink, mas acho que ela não
está disponível no momento. — Seu sorriso cresce. — Por que não entra ali e
liberta a sua ruivinha? — o loiro pergunta, sarcástico.
Se tem algo que aprendi durante a vida entre guerras, é que nunca
devemos subestimar nosso oponente. Tenho vontade de matar Luke de
qualquer modo nesse exato segundo, mas eu sei que ele se tornou parte de
algo maior e provavelmente tem um plano B ou C para que eu me foda após a
sua morte. O choro da Chloe é prova disso. Eu acho que ela sabe de algo.
Algo que ele planeja. Algo assustador.
Eu preciso avaliar a situação. Preciso saber quando ceder e quando
ferrar com o meu adversários.
Toda guerra é como um jogo de tabuleiro, extremamente bem
pensado, em que você sabe que nunca vai sair totalmente vitorioso, porque
para ganhar você deve perder em alguns movimentos. A questão é sobre
saber o que sacrificar e perder o mínimo possível. É sobre derrotar mais do
que ser derrotado, conquistar mais do que ser conquistado.
Então eu escolho ceder dessa vez, pois quero saber seu plano, e faço
exatamente aquilo que ele pediu: passo para dentro da pequena prisão em
questão de segundos.
Chloe xinga alto quando luzes se acendem, uma a uma. Ela fecha os
olhos como se se recusasse a ver o ambiente ao seu redor.
Porra.
Tento fingir que o que eu vejo não me afeta. Eu continuo a transmitir
uma calma a qual não possuo. Entreguei a Luke tudo o que ele queria até
agora, para ver o seu jogo. E agora percebo que ele pensou em tudo isso mais
do que eu imaginava.
Tem ao menos dez demônios ao nosso redor. Alguns deles miram
armas por entre espaços da prisão metálica, em direção à minha garota. O
tempo necessário para que eu a pegue no colo e saia daqui é maior do que o
tempo de trajeto de uma bala. Fração de segundos, certamente, mas ainda
assim maior.
Isso não é o pior.
Ajoelhados e de mãos atadas, na frente de alguns dos demônios e de
suas asas negras, estão pessoas que eu conheço.
A primeira que vejo, à minha frente, é a colega de trabalho da Chloe,
grávida pelo que me lembro, Brianna. Seu rosto está molhado por lágrimas.
Seus olhos são envoltos de olheiras profundas.
Mais à esquerda está Molly, com o olhar fixo em minha direção e
seus cachos bagunçados, algumas marcas de dedos pelo seu corpo e um
ferimento em sua boca. Ela foi pega no apartamento de Sinn, Luke também a
capturou.
Mas não termina aí.
Riley, a tia da Chloe, está ao lado de Molly. Seus fios ruivos estão
revoltos, seus olhos vermelhos e está soluçando o mais baixo que consegue.
E então temos Benjamin. A criança parece apavorada. Sua boca está
fechada, mas trêmula. Suas pequenas mãos estão atadas frente ao seu corpo,
eu consigo ver ferimentos das cordas na pele macia e lisa de criança. Ele está
chorando. Ele realmente está chorando, também o mais baixo que consegue.
Mesmo se eu tentasse salvar a Chloe nesse segundo, eu não
conseguiria. Todos os outros morreriam, por consequência. É impossível
salvar um deles sem que Luke ordene os disparos. Isso é insano. É torturante.
Chloe abre os olhos e repousa a cabeça na grade da gaiola, deixando
seu choro escapar, me fitando com todo o medo que a consome. Seu tronco
sobe e desce na medida em que chora compulsivamente.
Tudo o que quero é beijá-la e dizer que tudo vai ficar bem. Tudo que
quero é abraçá-la forte e garantir que isso é só um pesadelo, mas não posso.
Porque infelizmente é real e precisamos ficar longe um do outro, ao menos
por ora.
Realmente temo que as pessoas que ela ama morram. Eu realmente
temo que ela se machuque ainda mais. Como eu me machuquei.
Seus olhos escuros estão brilhantes de tantas lágrimas. Isso é tão
doloroso.
— Vai ficar tudo bem — digo, apesar da incerteza. Chloe sorri fraco,
claramente sem crer no que eu disse.
— Desculpa. — É o que consigo ler por seus lábios. Me viro em sua
direção, por completo. — Desculpa, desculpa... Desculpa — Chloe pede. O
instinto me faz dar um passo em sua direção, mas ouço o choro de Riley se
intensificar quando um demônio pressiona o cano da arma contra sua cabeça.
Então paro.
— Mais um passo em direção à sua ruivinha — Luke diz, caminhando
em frente às vítimas. Ele une o dedo médio e o indicador, mimetiza uma arma
e aponta contra a cabeça, fingindo um som de disparo. — E todos morrem.
— Luke... — Quase rosno, baixo. Ele sorri. — Por que está fazendo
isso?
— Essa é uma ótima pergunta. — Ele ergue o indicador. — Mas eu
quero ter tempo para respondê-la e ainda não é o momento, porque você não
tem tempo para ouvi-la. Por ora. — Não sei do que ele está falando.
Cerro os punhos ao vê-lo se aproximar da grade, por trás da Chloe.
Seu indicador sua mão se infiltra em um dos espaços e ele afasta o cabelo
ruivo minimamente das costas dela. Chloe estremece e se afasta com nojo e
pavor, mas o indicador do loiro alisa seu pescoço. Mitchell fecha os olhos e
eu sinto minhas unhas machucarem a palma da minha mão, trincando os
dentes.
— Me diga, Noah — Luke pergunta, com uma calma invejável —, o
que você faria pela vida da Chloe? Pela vida das pessoas que ela ama?
Um silêncio se estende. Chloe está me encarando e eu vejo
novamente o "me desculpa" por sua boca. Ela crê de algum modo que isso é
culpa dela. Ou talvez ela esteja se referindo à Kold. De qualquer modo, Chloe
Mitchell está sofrendo e a cada segundo de dor que ela passa, e é mais um
segundo de dor querendo esmagar Luke com minhas próprias mãos.
— Tudo — confesso, o mais sério possível —, eu faria de tudo pela
Chloe.
Luke sorri. Ele sorri como se tivesse ganho o mundo. Seus lábios
estão repuxados no sorriso mais nojento e largo que já vi.
— O amor não é lindo, ruivinha? — Luke pergunta, risonho. Duas
lágrimas grossas descem pelo rosto da ruiva, que o acompanha com o olhar.
— Se você faria tudo por ela, Noah, eu tenho uma proposta perfeita: eu
libertarei Chloe e a família dela...
Prendo a respiração, fazer um acordo com Luke me parece inseguro,
porque tenho receio do que ele vai falar.
— Se você me entregar a chave para libertar a Lilith.
De repente, tudo o que ouvimos são os soluços de Brianna, Riley e
Benjamin. Molly abaixa a cabeça, como se perdesse as esperanças de sair
viva daqui. Perto de Chloe, sinto meu coração bater forte e dolorosamente,
angustiado. Porque essa é a última coisa que Luke poderia me impedir,
porque eu não posso aceitar isso.
Merda.
Não posso fazer isso.
Mas também não posso perder a Chloe.
Eu realmente não posso perder a Chloe.
Seria egoísta colocar o Inferno em jogo, colocar tanta coisa em jogo
por causa da Chloe? Provavelmente sim. Mas eu realmente não me importo.
Em milhares e milhares de cenários, eu sempre escolheria a ruivinha. Se todo
o universo ruir no dia seguinte, eu ainda escolho a minha ruivinha.
É torturante. De qualquer modo, eu perco. Qualquer escolha que eu
fizer agora é uma derrota sem tamanho. Mas eu não posso perder a Chloe.
Não, eu realmente não posso perdê-la.
— Noah — Chloe me chama. E é sua família aqui, presa. Não há nada
mais que Chloe ame no mundo do que sua família. Mas ela não acredita em
Luke. Mais do que isso, Chloe sabe que libertar Lilith seria o pior erro que eu
poderia cometer. Ela não quer me pedir para entregar o que Luke pede, mas
ela também não quer perder a sua família. — Tem que ter outra saída...
Respiro fundo e a decisão está tomada. Minha visão se embaça e eu
só sorrio de canto
— Está tudo bem, meu anjo — balbucio e ela nega ainda mais.
Desvio o olhar para Luke, que nos assiste como se fôssemos o melhor e mais
viciante filme de todos os tempos.
— Sabe que cumpro meus acordos. — Ele tenta me convencer.
— Mas também aposto que seus contratos têm cláusulas silenciosas,
Luke. — Sou honesto, o que faz seu sorriso crescer.
Estalo os dedos e uma chama surge. Uma que constrói pouco a pouco
a imagem que ele quer ver. Uma que revela uma chave entre meus dedos.
Não é um truque, é exatamente aquilo que ele quer. A pequena e poderosa
chave preta, que faz seus olhos brilharem.
Chloe está repetindo para eu pensar direito e Luke surge a poucos
centímetros de mim. Sua mão se estende para tocar a chave e eu a afasto.
— Como vou saber que vai cumprir seu acordo? — questiono,
adiando o inevitável.
— Como vou saber que essa chave é real?
— Eu nunca descumpro minhas promessas — eu o recordo e ele sorri.
Estendo a mão lentamente em sua direção e Luke pega a chave que tanto
almeja.
Chloe xinga baixo e logo vejo os outros demônios desaparecerem um
a um, libertando a sua família. Luke prende a chave em seu punho cerrado e
pisca:
— É sempre um prazer fazer um acordo com o Diabo. — E então ele
some.
Tudo o que eu faço é correr para Chloe e tomá-la em meus braços.
A força de Noah é maior do que eu imaginava. Digo isso porque ele
removeu o cadeado na porta com suas próprias mãos. Depois conseguiu
afrouxar as correntes nos punhos e tornozelos de Matt, o que resultou no
corpo do meu melhor amigo caindo sobre o seu. Matthew gemeu de dor.
— Calma, calma... — Noah pediu, o ajudando a se sentar.
A certeza de que Matt estava livre me fez sair da gaiola de uma vez.
Desfiz primeiro os nós de Benjamin, que chorava a plenos pulmões quando
me abraçou. E consegui finalmente perguntar:
— A mamãe, Ben? Onde ela está?
— Eu não sei! — Suas palavras saiam emboladas pelo seu choro e
meu irmão tremia entre meus braços. Aninhei delicadamente a sua cabeça
contra o meu ombro, acariciando seus fios ruivos. — Eu quero a mamãe,
Chloe, eu quero a mamãe! — Desviei o olhar para a titia.
— Ela tinha saído para o terraço — Riley disse e eu me desvencilhei
de Ben por um segundo. Ele abraçou o meu braço enquanto eu liberava a
nossa tia. — Ela sabia que não poderia sair do meu prédio, vocês nos
disseram para ficar em casa. Mas foi ao terraço para pensar um pouco no que
vem acontecendo, para espairecer. Talvez para fumar. — Não sabia que
mamãe tinha voltado a fumar, mas ignorei a informação. — Ela não estava
em casa quando... — A minha tia apertou os olhos. — Quando os demônios
surgiram a nos pegaram a força. Eles quebraram as janelas e nos levaram
andares abaixo, depois nos forçaram a vir...
— Calma, calma... Vai ficar tudo bem! — Segurei o rosto dela com as
duas mãos e lhe beijei a testa. — Ela pode estar a salvo, certo? — Questionei,
duvidando muito das minhas palavras. Quando a minha tia confirmou, soube
que era apenas para tranquilizar Ben. E eu deixei o garotinho nos braços dela.
Eu ia tirar as cordas de Molly quando ela sinalizou para Brianna.
Então comecei por Brianna Young, que soluçava. Desfiz os nós em suas
mãos e ela me abraçou. A abracei de volta e pedi mil desculpas por ela estar
ali. Yang repetiu que tudo bem, ela repetiu de coração. Ela só estava grata por
estar livre.
— Eu só não entendi porque eles me pegaram — ela confessou,
baixo, enquanto eu desamarrava Molly.
— Eu conheço você, você está grávida e eu ficaria apavorada se algo
acontecesse contigo ou com seu bebê — respondi e Brianna assentiu. — Eu
sei que nós nos xingávamos demais no passado, Yang, mas eu me importo
com você. Noah sabe disso. Muita gente já deve saber disso. Então Luke te
usou também, para me deixar apavorada.
Brianna abraçou o próprio corpo e voltou a chorar, mas em silêncio.
Molly, livre, me abraçou pelo pescoço e nada disse. Ela só me abraçou e eu a
abracei de volta, aproveitando do calor do corpo da minha melhor amiga para
tentar me tranquilizar.
— Eu achei que perderia você — sussurrei.
— E eu achei que perderia você — ela devolveu — e que eu morreria.
O que o Noah fez... — Nos afastamos e fitamos Noah.
Ao centro da gaiola do Purgatorium, Noah estava ajoelhado de frente
para Matt, que tinha suas costas contra as grades. Ele segurava o rosto de
Matthew e fazia algumas perguntas. Matt parecia muito machucado.
Ver o Diabo ajudando um anjo trouxe um calor ao meu peito. Não
forte o suficiente para calar minha angústia, mas para amenizá-la um
pouquinho. As asas de Matthew ainda estavam expostas. Os olhos do anjo
pareciam lutar para ficarem abertos, mas eles focaram em Molly e eu. Em
segundos estávamos ali dentro, preocupadas.
— O que Noah fez, a chave... — Matt soou apavorado e Noah riu
nasalado, me observando me ajoelhar perante meu melhor amigo. Eu levei o
dorso da mão à sua testa fria. — Eu vou ficar bem, eu só preciso de curativos
e um cobertor. — Matt me fez rir quando empurrou a minha mão.
— ‘Tá tudo bem? Na medida do possível, quero dizer — perguntei e
ele me encarou. Seus olhos castanhos claros carregavam uma melancolia
intensa. A resposta era claramente um "não". — Ele não merecia você,
Matthew.
— Eu confiei rápido demais nele, eu me entreguei rápido demais...
— Uma mulher me disse uma vez que o coração não obedece a
ponteiros de relógio. — Acariciei o seu rosto. — E as vezes ele falha. E ‘tá
tudo bem, ok? — Matthew sorriu. E então eu deixei Molly conversar com
ele, me pondo de pé, perante Noah.
Ele tinha os braços cruzados e o olhar focado nos seus sapatos
escuros. Me aproximei, devagar.
— O que fez, Noah, o que você fez é...
— Eu faria de novo, meu anjo. — Ele ergueu os olhos para mim.
Levei as duas mãos ao seu rosto e sua testa se uniu à minha. — Eu faria tudo
por você, Chloe, eu faria qualquer coisa. — Um arrepio me percorreu e eu
assenti, passando os braços por seu pescoço quando os seus braços me
envolveram pela cintura. Afundei a cabeça em seu peito. — Ele te
machucou?
— Fisicamente não — respondi e Noah se afastou, segurando as
minhas mãos e checando por si só. Havia uma marca vermelha de dedos em
meu braço direito. — Isso foi um dos homens dele, para me trazer aqui... —
Ouvi Noah rosnar de ódio — Amor, respira... Foi só isso...
— Só isso o caralho, Chloe! — Noah tentou não aumentar o tom de
voz — Seu irmão foi ferido, sua tia, suas amigas! O Matt! Eu achei que ia
perder você!
— Mas não perdeu. — Segurei seu rosto novamente, ficando na ponta
dos pés para unir meus lábios aos seus, brevemente. A minha tentativa de ser
positiva sobre a situação morreu nesse exato segundo, porque as lágrimas
deslizaram pelos meus olhos, molhando o seu rosto.
O gosto salgado provavelmente chegou à sua boca, porque ele se
afastou.
— Preciso ir para o apartamento da minha tia, Noah, eu preciso
procurar pela minha mãe. — Foi tudo o que eu consegui dizer.
O que explica onde estamos agora.
Logo depois que procuramos a minha mãe pelo apartamento
praticamente destruído da minha tia, Noah e eu subimos ao terraço do prédio.
Aqui estamos, nós dois. Sozinhos. O que significa que não há nenhum sinal
da minha mãe por aqui.
Estou no meio do terraço, Noah está provavelmente há uns três ou
dois passos atrás de mim.
Eu quero gritar de ódio. Eu quero chorar de medo. Eu tenho absoluta
certeza de que o Luke levou a minha mãe. O que significa que ele ainda quer
algo de mim e do Noah.
Noah está calado enquanto eu fito a cidade do topo. Nunca me senti
tão perdida quanto agora. Eu já perdi o meu pai, eu não posso perder a minha
mãe também. Não agora.
— Tenho medo de trovoadas — digo, tomando o seu silêncio como
incentivo para continuar — até hoje, eu tenho medo de trovoadas. Então
quando comecei a disputar corridas, me sugeriram o apelido Storm e eu
neguei, porque eu tenho medo de tempestades, de trovoadas e afins. Contudo,
gostei da sonoridade... Então busquei algo que soasse assim, e que parecesse
mais comigo.
— Torn — Noah lembra e eu confirmo, me virando para ele. — O
que significa que você despedaça seus oponentes...
— Não, Noah, Torn significa que eu sou a despedaçada. Ou era como
eu me sentia. — Sorrio triste. Ele bufa, se aproximando. — E me sinto agora,
mais do que nunca. — Meus olhos ardem. Os fecho brevemente ao sentir as
mãos do meu namorado em minha cintura. — Quando eu era menor, eu me
infiltrava na cama dos meus pais durante as tempestades. O meu pai
costumava contar histórias e a minha mãe costumava me fazer carinho até
que eu dormisse. Então eu só não tinha medo das tempestades perto deles. No
dia em que meu pai morreu, eu tive uma das piores crises de ansiedade da
minha vida, porque eu fui dormir sozinha...
— Chloe...
— Porque a minha mãe tinha que cuidar do Benny, que era um bebê,
recém-nascido praticamente. O papai tinha morrido, o velório seria no dia
seguinte... — Minha voz falha. — E a tempestade daquela noite foi absurda,
Noah... E eu cresci, sabe? — Foco em meus pés, balançando a cabeça em
negação. — Eu cresci e o medo foi diminuindo, porque eu o enfrentava.
Porque eu percebi que tinha Ben no quarto ao lado e que olhar para o meu
irmão me acalmava. Porque eu sabia que tempestade alguma ia quebrar o que
eu e a mamãe tínhamos e porque toda manhã após uma noite de trovoadas,
Donna Mitchell estava ali, me perguntando se tudo estava bem e...
O choro finalmente rasga pela minha garganta e eu me desmancho
nos braços de Noah. Ele me abraça e leva a mão à minha cabeça, acariciando
as minhas costas.
Isso não pode estar acontecendo.
Isso precisa ser apenas um pesadelo.
— O Ben tem o mesmo medo que eu, Noah... Ele tem medo de
trovoadas — conto e Noah beija o meu ombro, me apertando mais contra si
— e ele me tinha para acalmá-lo, assim como tinha a mamãe. Mas eu fui
embora do Tennessee e só ficou a mamãe, a minha mãe é tudo o que ele tem
quando o céu está desabando... Ela é tudo o que a gente tem...
— Nada de mal vai acontecer com a sua mãe, Chloe. Eu vou
encontrá-la, ok! — ele garante, em meu ouvido. Confirmo, incerta. — Nada
de mal, eu prometo.
O problema é que eu sei que há sinceridade em sua promessa, mas,
ainda assim, eu não acredito em uma só palavra.

Está chovendo lá fora. Bastante.


Noah está acordado, andando pela sala do seu apartamento, como se
estivesse em alerta. Da grande sala de Noah, metade dela está um "pouco"
molhada. Isso porque boa parte das janelas estão quebradas e a chuva está
entrando no apartamento. Hellmeister realmente não se importa. Acho que
ninguém realmente se importa com isso.
Titia e Brianna estão dividindo o quarto principal no andar de cima da
cobertura, Matt e Molly ficaram com o quarto de hóspedes e eu e Benjamin
deveríamos ficar no quarto que a Kold estava usando quando morava aqui.
Entretanto, a insônia me fez vir fazer companhia ao Noah. Já Benjamin não
quis dormir sem mim, o que explica porque estou no sofá, posicionado o mais
longe possível das janelas que ele conseguiu colocar, com o meu irmão sobre
o meu corpo e um cobertor grosso sobre nós dois.
Está frio para cacete, mas Benjamin insiste em não sair do meu lado.
Seus pulsos estão machucadinhos, o que quebra meu coração. Pensar no
medo que ele sentira mais cedo me machuca. Ben só dormiu quando se
cansou de chorar. Por isso seu nariz está vermelho, a região ao redor dos seus
olhos um pouco inchada.
Sinto o cheiro de cigarro vindo de Hellmeister. Se eu não estivesse
com Ben no meu colo, eu com certeza estaria fumando também, então não o
julgo.
Contei para Noah tudo sobre a morte da Kold, percebendo que ele
lutou para não chorar a cada palavra dita. Contei sobre o bilhete com a
localização da sua arma, contei que o papel estava em minha casa e que Sinn
também sabia onde a arma estava. Noah amaldiçoou Kold por ter feito isso.
Disse que não era direito dela me envolver nisso ou de contar esse segredo
para Sinn.
Eu o lembrei de que ela fez aquilo porque o amava. Porque não queria
que ele fizesse alguma loucura. Isso não o tornou menos furioso. Foi quando
entendi que ele não estava só bravo por ela ter feito isso. Ele estava puto
porque ela fez algo que ele não aprovava e morreu depois. Porque ele nem
pode brigar com ela, ele nem pode realmente sentir raiva dela.
Kold partiu.
Noah está transformando todos seus sentimentos em raiva, eu sinto
isso. Por um lado, sua fúria pode ser bem útil. Pelo outro, isso me preocupa.
De qualquer modo, sugeri que fôssemos à minha casa,
encontrássemos e queimássemos o bilhete ou algo assim. Tudo o que Noah
disse foi que Kold provavelmente o escondeu direito e que se ninguém sabe
dele, ficaremos a salvo. Mas, na verdade, eu sei que ele se preocupa. Noah só
não quer sair de perto de mim e da minha família. É como se ele estivesse
traumatizado.
O cheiro de cigarro persiste. Hellmeister ainda fuma, provavelmente
está traçando algum plano, com a mente a milhão.
Eu o compreendo. A minha se resume a caos. Só consigo pensar na
minha mãe.
Benjamin se ajeita em meu colo, deitando a cabeça sobre meu peito.
Acaricio seus cabelos, fitando o teto.
Acho que nenhuma palavra é capaz de explicar o que senti quando a
gente procurou pela minha mãe pelo apartamento e ela não estava em lugar
algum. O medo nos olhos do meu irmão, nos olhos da minha tia... Fecho os
olhos, tentando espantar os pensamentos ruins.
Ouço passos ao meu lado. Noah se senta ao chão, perto de mim. Ele
deita a cabeça em meu braço. Um silêncio se estende entre nós dois, enquanto
observo Ben dormir.
— Pensa em ter filhos? — Noah questiona, do nada. Viro a cabeça
para ele, franzindo o cenho.
— Não faço questão. E você?
— Nunca quis — responde. — O seu jeito com o seu irmão me leva a
pensar...
— Em...?
— Se você quer ter filhos. Porque, sabe, você é humana. E eu
sou... eu. Se quisesse, não seria comigo e...
— Não preciso ter filhos — o interrompo. Noah ergue a cabeça, a fim
de me ver. — Quer dizer, acho que se eu engravidasse, eu teria a criança,
sabe? Mas eu não me planejo para isso e não realmente quero isso no
momento, nem sei se algum dia vou desejar isso. Nunca senti essa vontade
absurda de ser mãe como a Molly sentia com o John, por exemplo.
Ele pisca algumas vezes, como se analisasse a minha resposta.
— Eu seria escroto em dizer que estou aliviado? — Noah pergunta.
— Porque você só poderia ter um filho com outro cara... Eu não consigo te
imaginar com outra mulher ou outro cara sem ser eu, me deixa irritado.
— Ciumento — cantarolo e ele ri. Sei o que está fazendo. Ele está
tentando me acalmar. Está tentando me distrair com qualquer assunto
possível. O amo ainda mais por isso.
— Um pouco. Já viu a mulher que você é? — Rolo os olhos com a
sua fala. — Apesar de que, para ser honesto, meu anjo, eu preferiria que você
estivesse apaixonada por outro e que eu morresse de ciúmes. Preferia
qualquer coisa do que você nessa situação — ele conta. Eu fico em silêncio.
— Me desculpe.
— A culpa não é sua. Eu precisava me apaixonar por você e você por
mim. As coisas precisavam acontecer assim.
— Como sabe?
— Porque faz sentido estar com você. Faz sentido para você estar
comigo? — questiono e ele assente. Ainda envolvendo Ben com um braço,
levo o outro para Noah, que o beija. Acaricio seu rosto. — Eu não escolhi me
apaixonar por você, Noah. Mas agora que eu te conheço, se eu pudesse voltar
no tempo, eu me apaixonaria por você de novo... Eu provavelmente te
contaria sobre Luke ser o traidor e tudo mais. — Noah ri e eu também. —
Mas eu me apaixonaria por você de novo. Do dia em que você apareceu no
Thurman's até a nossa dança, à nossa primeira vez, passando pela nossa
exclusividade, até eu saber quem é você, me apaixonar por suas asas e esse
momento nesse sofá... Eu sou apaixonada por você, de coração, com todo o
pedacinho da minha alma. Por favor, não peça desculpas por ser apaixonado
de volta.
Ele sorri e assente.
Uma trovoada faz o céu de Nova York estremecer e Ben aperta a
minha camiseta, resmungando baixinho. Respiro fundo e sussurro que tudo
está bem. Noah me encara pelos segundos seguintes, sem dizer nada. Sinto
meus ombros mais tensos, a minha mente volta a trabalhar a mil.
— Noah... — Hesito em perguntar. — Por que fez isso?
— Fiz o quê?
— A chave. Você jogou muita coisa em jogo...
— Eu fiz o que precisava ser feito — ele responde e eu balanço a
cabeça em negação. — Era você em jogo. Você e as pessoas que você ama.
Eu fiz o que precisava ser feito.
— Eu vou ser eternamente grata pelo que fez, mas...
— "Mas" nada, Chloe Mitchell. — Ele parece estar me dando uma
bronca. O encaro quando ele se levanta. Noah tem uma ruga entre as
sobrancelhas e parece bravo. — Tudo o que estiver ao meu alcance para te
deixar bem e feliz eu farei.
— Inclusive jogar o mundo inteiro para o ar? — Solto um riso
nasalado — Não tem garantia de que eu serei feliz com a minha família
porque a Lilith está livre com todo o seu caos e poder, prestes a foder com
tudo.
— Eu vou reverter isso. Mas, naquele momento, era a única saída. Era
o certo a ser feito.
— Não. Por mais que eu ame a minha família, os meus amigos e a
minha vida, Noah, você sabe que não era. E eu jurei que você faria o certo.
Eu jurei que morreria com toda a minha família naquele segundo —
confesso.
— Você achou que eu deixaria que ele te matasse? Que matasse todo
mundo ali?
— É o seu trabalho. Você é o Diabo. Você precisa proteger o Inferno,
o mundo, todo o seu trabalho...
— Chloe Marie Mitchell, eu vou precisar desenhar para você?! — Ele
eleva o tom de voz e Benjamin se remexe sobre meu corpo. Noah percebe e
reduz o tom de voz. — Eu faria tudo por você, Chloe! Qualquer coisa.
Eu queria que as circunstâncias fossem outras. Eu queria me sentir
segura com sua declaração. Ouvir o que Noah disse faz amor transbordar em
meu peito, com toda a certeza do mundo. Ao mesmo tempo, me machuca
saber que ele se ferraria tanto por mim. Me faz sentir culpada. Lilith está livre
porque Noah queria me defender. E ele vai continuar a me defender contra as
loucuras que essa mulher possa fazer contra ele, nós e todo o universo.
Soa tanto como uma prova de amor quanto como uma sentença de
morte. Noah bagunça seu cabelo e volta a apoiar as mãos em sua cintura,
inspirando o ar com força e o soltando. Sua ansiedade é visível.
— Ok... Como a gente vai parar a Lilith? — questiono, preocupada.
— Eu disse para o Sinn que se eu não aparecesse em algumas horas,
eu queria que ele contactasse o Céu. Que ele implorasse por ajuda.
— E você acha que eles te ajudariam?
— Talvez — Noah diz —, eu espero que sim. Espero que Sinn não
demore em fazer isso também, porque eu mesmo iria até o Céu se não tivesse
que deixar vocês sozinhos aqui.
Tudo parece tão confuso. Tão inseguro. Tão frágil quanto a criança
inocente em meus braços.
— Você chamou o Céu por mim? — A pergunta me escapa, baixa.
Noah assente. Deixo um sorriso de canto escapar. Eu realmente não preciso
que ele diga nada, não mesmo. Noah provou que me ama em cada ato
pequeno nos últimos meses. Está em seus olhos. — Você realmente faria
tudo por mim, huh?
— Eu sei que você faria tudo por mim também. — Ele pisca.
— Touché.
Noah sorri. Sorri com sinceridade, como se o mundo não pudesse
desabar no segundo seguinte. Seu sorriso me torna um pouquinho mais feliz e
segura. Inferno, como eu o amo. Chega a ser irritante. Tudo parece conspirar
contra nós dois e eu não me importo, sério! Olhando para o seu sorriso nesse
segundo, tenho certeza de que não me importo em enfrentar qualquer coisa
por nós dois. E é insano e assustador, mas é a verdade.
Estou quase surtando e me despedaçando nesse segundo, mas ele
parece saber exatamente o que preciso para resgatar alguma força dentro de
mim.
Se me dissessem que eu me apaixonaria pelo Diabo há alguns meses,
eu diria que não era tão doida assim. Mas talvez eu seja. E talvez eu me
orgulhe disso.
— No que está pensando? — Hellmeister pergunta e acena com a
cabeça, como se questionasse se ainda há espaço no sofá para ele. Eu dou o
meu jeito, me empurrando ao máximo para a direita. Meu querido namorado
infernal fica na beirada do sofá, mas não parece se importar.
— Em nós dois — confesso e ele ergue as sobrancelhas, explicitando
a sua curiosidade —, eu realmente faria de tudo por você também, Noah. Eu
ferrei a Shelly por sua causa — recordo e ele ri. — Eu tô aqui por você.
— E eu tô aqui com vocês — ele sussurra e eu sorrio. Eu sei disso.
Deixo um bocejo escapar, mas luto contra a sonolência, porque quero vigiar o
sono do meu irmão. Contudo, Noah sabe exatamente o que dizer: — Pode
dormir, meu amor. — Ele beija a minha testa. — Nenhuma tempestade vai
machucar vocês.
E um pouco mais segura, eu realmente durmo.

Desperto com Benjamin ainda sobre meu corpo. Acordo porque


escuto Noah conversando com alguém.
— Eu não sei o que pode ter acontecido. — Escuto Matt, logo depois.
Grunho baixinho quando a claridade da sala me incomoda. Ben resmunga
quando o coloco sobre o sofá com cuidado, mas volta a dormir. Estou
levantada mas ninguém percebe, não estão na sala. — Eu deixei claro para
Sinn que ele precisava falar com o Céu para pedir ajuda.
Ando até a cozinha, onde a conversa acontece. As vozes se tornam
mais altas a cada passo.
— Estamos sem notícias até agora... Então o Sinn pode ter te traído
também? — Molly pergunta.
Paro em frente à porta. Vejo Matt sem camisa, com faixas em torno
do seu corpo, suas asas recolhidas e cabelo bagunçado. Ele está escorado
contra a bancada da cozinha enquanto Noah está do outro, com Molly.
— Não, o Sinn não. Hoje eu tenho certeza que não — Noah responde
e finalmente sente minha presença. — Bom dia, meu anjo.
Me aproximo, incerta. Meu cabelo está uma bagunça, provavelmente.
Minha mente está pior.
— Bom dia. — Tento soar casual, mas todos nós estamos visualmente
destruídos demais, honestamente. — Como está se sentindo? — pergunto
para Matt. Seu rosto está um pouco mais corado e ele parece menos
debilitado. Matt dá de ombros e eu beijo a sua bochecha, entendo isso como
um "bem, mas não tão bem". — Sobre o que estão falando?
— Noah ordenou para Sinn pedir ajuda ao Céu para intervir contra
Luke se ele não desse notícias em algumas horas — Matt explica.
— E até agora ninguém do Céu me contactou ou deu qualquer sinal
de vida — Noah fala —, mesmo que a Lilith esteja, provavelmente, a uma
hora dessas, livre. — Um arrepio de temor me percorreu e eu pude jurar que
o mesmo aconteceu com Noah, porque vi uma faísca de preocupação por seus
olhos.
— Lilith foi liberta — repito. — Não tem nenhum jeito de nos
comunicarmos com Sinn?
— Eu teria que sair daqui para falar com ele — Noah diz. — Não
quero deixar esse lugar nem por um segundo. Matt ainda está em recuperação
e mesmo se não estivesse, não quero confiar nele a função de proteger vocês
todos. É muita coisa.
— Não tem como fazermos algo pro Matt sarar mais rápido? —
Molly pergunta. Letterman nega.
Um silêncio se estende e eu lembro das outras pessoas nesse
apartamento.
— Onde está tia Riley? E a Brianna? — pergunto, sentindo que meus
neurônios finalmente estão acordando.
— Brianna está roncando como um trator — Molly conta — e a sua
tia não quer sair do quarto.
Me vejo preocupada com tia Riley no meio de tudo isso. Com Brianna
também, ela nem deveria estar aqui. Respiro fundo e encaro a Molly. Ela está
brincando com uma caneca sobre a bancada, sua mente provavelmente
viajando em mil e mil ideias.
— Anderson — a chamo e ela me fita —, ‘tá tudo bem?
Molly balança a cabeça em negação, desviando o olhar para a caneca.
— Eu poderia ter perdido vocês dois ontem — Molly diz para Matt e
eu — e ainda posso perder vocês, principalmente, porque não consigo ver um
cenário seguro para todos nós. Eu já perdi o John no meio disso tudo. Não
aguentaria perder um de vocês dois.
— Ninguém vai perder ninguém aqui — Matt garante. — Veja bem...
— Matthew fita Noah. — Estamos fodidos! — Eu rio e Molly ri junto. Noah
deixa um sorriso de canto escapar, porque... Bem, é verdade. — Mas se tudo
o que precisamos, está dentro desse apartamento, devemos gastar nosso
tempo pensando em uma boa estratégia com tudo o que temos. E o que temos
são duas humanas chatas pra cacete, um anjo e o Diabo. — Molly passa sua
mão por cima da bancada ao estapear a testa de Matthew.
Noah ri, lançando o seu olhar para mim.
— Não, temos duas deusas gregas — corrijo Matthew —, um anjo
idiota e um Diabo meia boca. — Noah ri.
— Me parece um bom time para enfrentar sua ex-namorada, o anjo do
mal. E seu amigo, o falso demoníaco — Molly zoa Noah.
— E protegermos a sua família — Noah adiciona para mim, sorrindo.
— Brincadeiras à parte, eu temo por vocês. Eu sei que você é corajosa, brava
como ninguém, Chloe. E eu admiro totalmente você, Molly. — Ele vira o
rosto para a minha melhor amiga. — Poucas pessoas têm a força que você
tem. Vocês duas, na verdade. Mas vocês são humanas. Nunca lutaram, mal
sabem segurar uma boa arma e Matt e eu somos mais preparados para
enfrentarmos o que vem por aí.
— Talvez não seja de força o que precisamos — argumento —, talvez
seja questão de estratégia. Se tivermos um bom, bom plano, tudo pode dar
certo.
Noah está me olhando daquele jeito. Do jeito que me irrita e diz "não
sei não, Chloe". Respiro fundo e o vejo desviar o olhar, consciente de que eu
compraria uma briga para participar de seja lá o que vamos fazer.
— Vou conversar com tia Riley, perguntar como ela está. Depois
volto para a gente conversar — digo e Noah assente. — Se o Ben acordar...
— Eu cuido dele — Molly garante, sorrindo fraco.
Dou as costas e me retiro, escada acima, sentindo que não consegui
dormir o suficiente. Cada passo parece uma luta.
Assim que bato na porta e entro no quarto de Riley, a vejo sobre a
cama. Ela está sentada com fotos da minha infância e da infância de Ben
espalhadas sobre a cama, uma caixa aberta ao lado. Quando me aproximo,
vejo também fotos dela com a mamãe. Em uma delas, o meu pai está junto. É
justamente essa que eu pego quando me sento.
— Eles eram tão apaixonados — a minha tia comenta, sem me olhar
nos olhos.
— Eles eram perfeitos um para o outro — complemento e ela
concorda. Devolvo a foto para a cama. Subo o olhar para ela. — Como está?
Um suspiro lhe escapa e eu finco os dentes no lábio inferior,
percebendo que ela não está nada bem.
— Assustada. — Seus olhos encontram os meus. Olheiras em
formação, vermelhidão e eu tenho certeza que ela estava chorando mais cedo,
pelo seu nariz vermelho. — Você está com o Diabo, para começar...
— Eu sei...
— E ele deu uma chave pra um cara que disse "beleza, tô vazando,
agora vou libertar vocês!". — Seguro o riso, porque acho que é errado. — E
agora minha casa está uma bagunça e eu não posso ir até ela, porque um
demônio pode aparecer e dizer "e aí, linda? Hora de te matar". — Deixo a
risada escapar, é mais forte do que eu. — Não tem graça, mocinha!
— Eu sei! E também sei que é confuso. Mas preciso que confie em
mim. — Fito os seus olhos, tentando lhe passar confiança. — Noah não é um
monstro e ele está fazendo de tudo por nossa segurança. Tudo vai ficar bem.
Vejo a sua resistência em acreditar, mas entendo que isso seja um
processo.
— Tia, pode me contar de novo o que aconteceu quando a mamãe
desapareceu? É importante — peço, sem querer incomodar. Tia Riley assente
e começa a falar.
Ela fala que a minha mãe tinha voltado a fumar. Que subiu ao terraço.
Que Donna já estava lá por cerca de quinze minutos quando invadiram o
apartamento. Riley e Ben foram forçados a sair. Ela não sabe o que houve
com a minha mãe. Molly perguntou pelo prédio ontem, ninguém realmente a
viu.
Meu coração aperta porque eu sei que Luke a levou para algum lugar.
O que significa que o veremos novamente. E ele sabemos que não vai estar
sozinho.
A conversa se estende enquanto eu tento explicar como conheci o
Noah e tudo que vivi nos últimos meses, mas um som no corredor nos faz
parar. É semelhante a algo se arrastando pelas paredes.
Não é preciso que mais nada aconteça para Riley e eu corrermos para
fora do quarto. O corredor está vazio. Seguro a mão da tia Riley e não sei se
ela realmente acredita que o travesseiro que ela está abraçando é uma arma
potente. Olho para trás e vejo que a porta do andar de cima que dá para a
cobertura está completamente aberta.
Brianna sai do segundo quarto do andar de cima e nos encara,
confusa.
— Eu ouvi algo — ela diz.
— Eu também — devolvo. — Ok... — Tento dizer a mim mesma que
só preciso manter a calma. — Venham comigo — peço, baixo —, devagar.
Seguimos a passos lentos pelo corredor. Ouvimos vozes no andar
inferior, uma que reconheço muito bem. E então meus ombros relaxam.
Suspiro, mais aliviada, puxando a minha tia pela mão escada abaixo. Brianna
nos segue.
Quando chegamos na sala, vemos duas figuras. Uma eu já vi antes e
pela semelhança com Noah, aposto que é o seu irmão, Theo. A outra é Sinn.
Parte de mim o odeia, porque se Luke foi sincero, ele matou o meu pai.
Contudo, não estou certa quanto a isso. Por outro lado, parte de mim está
aliviada em encontrá-lo. Porque isso provavelmente significa que ele pediu
ajuda ao Céu, certo?
— Graças a Deus! — Me vejo dizendo, baixinho. Noah une as
sobrancelhas, por ter escutado. — Modo de falar.
Me aproximo do meu namorado, deixando a minha tia encarar todos
nós, como se fôssemos aberrações. Talvez porque as asas de Sinn e Theo
estão expostas. Acho que consigo ouvir seus neurônios fritando.
Benjamin está em frente à Molly, que tem suas mãos nos ombros
dele. Meu irmão está boquiaberto fitando as asas, seus olhos brilhando como
nunca. Isso me faria rir se não fosse pela situação em que nos encontramos.
— Agora que a Chloe está aqui, acho que posso repetir o que estava
dizendo — Sinn começa. — Conversei com os Céus como pediu, Noah, e
eles realmente estão dispostos a nos ajudar, já que a Lilith foi libertada.
Noah segura a minha cintura, atrás de mim. Há alguma proteção no
modo como o faz, pressionando a minha pele com firmeza, o que me deixa
confusa.
Theo está nos encarando, sua feição completamente impassível. Há
um corte pequeno em sua testa. Meu olhar se desce pelo seu corpo até suas
mãos. As juntas entre os dedos estão vermelhas, as articulações machucadas.
Procuro em Sinn algum sinal estranho. Sinn está usando luvas, mas há
uma mancha arroxeada em sua pele negra e um corte no seu lábio inferior.
Pelo que Noah me disse, eles lutaram nesse apartamento ontem. O que
significa que os seus machucados seriam justificáveis. Os de Theo eu não sei
dizer.
— Lilith foi libertada? — Noah pergunta. O conheço o suficiente para
identificar algo estranho em seu tom de voz. — Como sabem?
Theo aponta para a sua testa.
— A gente precisou lutar para sair do Inferno. Adivinha quem está
sentada sobre o trono, irmão? — Theo ironiza. Seu olhar cai sobre mim,
analisando cada pedacinho meu. Demoradamente. — Boa escolha, Noah.
O cara acaba de me avaliar?
Noah trinca os dentes e eu pigarreio, apertando a sua mão. Seus dedos
ainda pressionam a minha pele, ele ainda não parece crer totalmente em Sinn
e Theo.
— Então vocês conseguiram fugir do Inferno mesmo com a Lilith no
comando? — Matthew pergunta.
— A gente saiu em segredo — Sinn começa. — Estávamos no andar
superior, prestes a descer as escadas quando vimos Lilith fazendo sua entrada
triunfal pelo palácio, fazendo todos se ajoelharem, completamente
hipnotizados. Alguns rebeldes infiltrados, no andar de cima, bem que
tentaram lutar contra a gente quando viram que pretendíamos sumir. Os
derrubamos o mais rápido possível e sumimos.
Matt parece um pouco mais convencido. Molly ergue uma
sobrancelha, em direção ao meu namorado, como se esperasse por uma
reação.
Ergo a cabeça e olho levemente para trás. Noah parece analisar o que
eles contaram. É como se pesasse cada sílaba dita em busca de uma mentira.
Sua mão se afasta da minha cintura, por fim.
— O que vocês têm a dizer? — o Hellmeister mais velho pergunta.
— O Céu soube da Lilith por nós dois, aceita o seu pedido por trégua
e quer preparar uma invasão ao Inferno, com a sua ajuda — Theo diz.
— Contudo, nós tentamos convencer Angeline, a Rainha, a vir
conosco para te contar de seus planos e conversar direito contigo — Sinn
continua —, mas ela quer ouvir de você, pessoalmente, o quanto quer essa
aliança.
— Eu preciso ir até ela? — Noah ri. — Bem, isso soa como Angeline.
Egocêntrica e desconfiada para cacete. — Meu namorado se afasta
minimamente, respirando fundo. Ele fita Matt. — O que acha?
— Bom, a rixa entre Céu e Inferno dura séculos — Matt diz. — Acho
compreensível que ela queira te ver pessoalmente antes de qualquer coisa.
— Não posso deixar vocês aqui — Noah argumenta.
Percebo Ben tão tenso quanto curioso e lanço um olhar preocupado
para a minha tia. Ela está engolindo em seco, de braços cruzados, sua perna
balançando enquanto tenta controlar sua inquietação. Brianna, ao seu lado,
está pálida. Mais pálida do que o comum.
— Entendo sua preocupação, Noah — Sinn diz —, mas agora que eu
estou aqui e com Theo ao nosso lado, que confirmei que ele não é um traidor,
temos dois demônios e um anjo que podem proteger Chloe e a família dela.
— Um anjo machucado — recordo.
— Estou melhorando — Matt me diz. — Acho que consigo lutar.
— Acha — Molly diz e ele bufa. Fitamos Noah, porque a decisão
parece estar nas mãos dele. Contudo, Hellmeister está me encarando.
— O que acha? — Ele está passando parte da decisão para mim. —
Isso é sobre você também.
— Vai demorar muito? — pergunto.
— Talvez — ele responde, sincero —, pode ser arriscado.
— Temos outra opção?
— Não consigo pensar em nenhuma outra — Matt me responde.
Continuo com o olhar sobre Noah, que não nega.
Há algo em seus olhos que me diz que ele está hesitante em aceitar.
Eu também não sei o que fazer. Contudo, estamos em menor número e sem
um plano contra a Lilith. Se os anjos têm alguma ideia, então Noah precisa ir
até eles. Ele precisa ir à tal Angeline e arranjar um modo de frear Lilith.
Penso rápido.
— Não confio em Theo — digo, para Noah. Ouço o irmão dele rir,
mas o ignoro. O conheço há segundos. — Sinn fica conosco, Theo vai
contigo. Você vai ao Céu e pede para enviarem uma proteção para a gente.
Isso pode ser arranjado, certo? — Fito Matthew. Ele assente. Ótimo. Volto o
olhar para Noah. — Enquanto você se reúne com a tal Angeline, eu vou estar
protegida por Sinn e os anjos que vão chegar. Vamos ficar bem.
Noah sorri. O tipo de sorriso que me faz crer que há algo super
grandioso por trás da curva em seus lábios. Mas ele guarda para si.
— Vocês a ouviram — Noah fala para todos ouvirem, seu olhar
mirado no meu. — Então está decidido.

— Tem certeza?
— A ideia foi sua — Noah me responde e eu reprimo os lábios. Ele
está no meio da sala, Sinn sentado sobre a escada, meus amigos na cozinha...
Benjamin dorme no sofá, no colo da minha tia. Theo está a alguns passos da
gente e parece completamente deslocado. Meu olhar se prende nele por uns
instantes e o meu namorado toca meu queixo, me fazendo fitá-lo. — Ainda
acha uma boa ideia?
— Acho que devemos arriscar, não é? Se o Céu quer conversar com
você, é a melhor saída para encontrarmos a minha mãe e colocarmos a Lilith
em seu lugar. — Noah desvia o olhar. Eu mordo o lábio inferior. — E você?
Acha uma boa ideia?
— Não sei. Não gosto de te deixar sozinha. Você gritou por mim e
não adiantou de nada, não salvei você e a Kold.
— Porque você estava ajudando o Sinn — recordo. Levo minhas
mãos a cintura do Noah e meu olhar encontra Sinn, sentado nas escadas. —
Quanto confia nele?
— Sinn errou bastante, Chloe... Mas depois disso tudo, eu confio nele.
— Ele matou o meu pai — recordo e Noah respira fundo. Ele segura o
meu rosto com as duas mãos. — Quer dizer... Matou, não matou?
— Quer mesmo que eu vá? — Fito seus olhos escuros, ponderando.
— Se não quiser...
— Não. Vá — decido, por fim —, tudo bem. Eu posso perguntar para
ele, não é? Dar a chance para que ele conte sua versão sobre os fatos. Vai ver
ele não matou o meu pai, certo? Ou se arrependeu. E nesse caso, eu não
posso perdoá-lo, ok? Acho que não. Mas posso aceitar a ajuda, não é? —
questiono, ainda com as mãos de Noah sobre o meu rosto. Ele não diz nada.
— Noah!
— É para eu te responder?
— Claro!
— Eu não sei. — Ele é honesto. — Tudo o que eu sei é que o Céu é,
provavelmente, o único elemento surpresa que temos. A única carta na
manga. Pode ser a nossa melhor chance. Apesar disso, eu não quero te deixar
sozinha aqui, nem posso te deixar ir comigo. Tem toda a sua família e tal.
Não acho que o Céu curta uma excursão de humanos. Eles nem tem guias
turísticos, sabe? — Rolo os olhos com a sua brincadeira.
— Quando que você virou piadista? — reclamo e ele se diverte. —
Não era você o cara que só vestia ternos pretos? Você não era o Senhor
"grrr... eu sou o Diabo, vou beber o seu sangue"?
— Virei o piadista porque a piadista está tensa — ele recorda e me
envolve pela cintura. — Última chance: vou ou fico?
Seus olhos me analisam. Sei o que ele quer fazer, ele quer ir. Ele só
precisa saber se confio em sua decisão. Se ele acha que é o melhor, então
espero que seja.
— Vá — decido, pela última vez. Fico na ponta dos pés e o abraço
com força pelo pescoço. — Mas volta logo, ok?
— Pedindo desse jeito, Chloe Mitchell... Você torna impossível eu
não voltar — ele sussurra e eu sorrio, sentindo suas mãos ao redor do meu
corpo. — Vira de costas, meu anjo.
— O quê? — Me afasto e ele gira o dedo, num sinal para que eu vire
de costas. Obedeço, confusa.
Noah afasta meus fios ruivos das costas e eu uno as sobrancelhas.
Alguns segundos se passam e eu mordo o interior de bochecha, tentada a
olhar para trás. Sinto algo gelado em meu colo e olho para baixo.
O seu colar está meu pescoço, logo abaixo da minha gargantilha. As
asas escuras repousam sobre meu colo e eu sorrio largamente, me virando
para o meu namorado. Noah tem um sorriso de canto guiado ao colar.
— Por que isso?
— Toda vez que você tocou nesse colar, Chloe, você o tornou seu. E
agora ele é uma parte minha em você — Noah explica. — Talvez assim você
se sinta mais segura, não? Será por pouco tempo, prometo.
Sorrio. Noah beija a minha bochecha e depois a minha boca.
— Vou voltar e pegar esse colar de volta — Hellmeister garante. Meu
sorriso se torna ainda maior quando ele pisca. O abraço uma última vez.
— É melhor você ir antes que a Chloe não te deixe sair nunca,
Satanás! — Molly grita, da cozinha. Matthew e Brianna, ao seu lado, riem.
Eu me surpreendo quando até a minha tia ri.
Noah pisca mais uma vez para mim e acena com a cabeça para Theo.
Meu namorado me lança um olhar e abre seu maior sorriso antes de
desaparecer.
Me sinto vazia.
Me sinto estranha.
A sala fica em silêncio e eu respiro fundo, tocando o colar de asas
pesado em meu peito. Todos os olhares estão sobre mim. Eu fito Sinn. Ele
respira fundo e se levanta da escada enquanto os olhares saem de cima de
mim.
Ele acena com a cabeça para o andar de cima e eu leio um
"precisamos conversar", por seus lábios. Hesito por alguns segundos. Vejo
Matt me lançar um olhar estranho e o retribuo, mas espalmo a mão
discretamente num sinal para que nos deixe sozinhos quando o anjo faz
menção de andar até nós dois.
Subo as escadas com Sinn e ele abre a porta de um dos quartos, me
deixando passar por ele.
— Você quer conversar sobre a história do meu pai ou algo assim? —
pergunto. — Porque eu honestamente quero muito acreditar que não foi você.
Tipo, você sempre pareceu um cara legal e... — A porta se fecha, eu me viro
e os olhos de Sinn estão completamente vermelhos.
As íris me lembram chamas.
Engulo em seco.
Penso em gritar, mas me encontro completamente presa. Eu sinto
como se apertassem o meu pescoço, levando a mão a ele e tentando me livrar
dessa sensação. Mas não consigo.
Dizem que os olhos são a janela da alma, eu consigo ver algo por
olhar de Sinn. Eu consigo ver algo. Sinto meus olhos arderem e Sinn se
aproxima.
— Você é... Interessante. — A sua mão alisa o meu rosto. Sinto a
minha pele esquentar. Meus olhos estão presos nos seus. As cenas que se
passam pela minha cabeça estão me machucando, são tenebrosas e fazem
meus gritos se entalarem na garganta. Minha cabeça está doendo e eu
realmente não me sinto no controle. Um sorriso maldoso brinca nos lábios de
Sinn. — Você é realmente interessante.
O ar está me faltando. Sinto como se pressionassem o meu pescoço,
como se dedos finos e gelados me enforcassem, me roubassem o fôlego.
Ao mesmo tempo... Consigo ver.
Eu vejo um lugar como um palácio.
As paredes são em um tom de bege, mas parecem alaranjadas, porque
a luz que entra pela janela me faz pensar que é como se esse lugar estivesse
preso em um caloroso pôr do sol nesse segundo.
Ornamentos de ouro estão por todo o lugar, guardas ao redor da sala.
É como se eu visse a cena dos olhos de uma pessoa, ao canto da sala.
Consigo ver Luke. Ele está em um trono, sorrindo como nunca. Mas há uma
cadeira ao seu lado e ela está ocupada por uma das mulheres mais lindas que
já vi na vida.
Sinto meus pulmões queimarem e busco por ar, mas ele não vem.
Os fios loiros e ondulados caem em ondas por seus ombros. Os olhos
azuis parecem gélidos, tanto que queimam. Um sorriso carregado de vilania
brinca por seus lábios e há um vestido escuro como a noite cobrindo o seu
corpo. O seu rosto parece esculpido de tão perfeito, porém me deixa em
alerta, porque eu não me engano com sua beleza.
Lilith.
Isso parece como uma memória. Parece como algo que Sinn assistiu,
algo que ele me faz ver. E isso dói.
Dói quando a loira se levanta com uma elegância espetacular. Me dá
calafrios. Dói porque há uma pessoa ajoelhada a alguns passos dos tronos.
Correntes pesadas de metal a prendem ao chão. Meu coração dispara quando
vejo os fios ruivos, o corpo magro.
A minha mãe.
O indicador pálido da mulher loira toca o queixo de Donna, que ergue
seu rosto. Há lágrimas pela face da minha mãe, medo. E então a cena
desaparece.
Me sinto sufocada.
A minha visão se torna turva.
E eu caio de joelhos. Busco por ar, e ele não vem. Ainda sinto a
pressão em meu pescoço. Sinn se ajoelha perante o meu corpo e sorri. Não
consigo falar, eu só consigo me concentrar em procurar oxigênio, em
respirar.
— Se você der um só pio, você morre agora mesmo — Sinn sussurra.
Mas eu sei que não é ele. Sinn está sendo controlado. Seus olhos estão
vermelhos e carregados de ira. É como se o caos morasse neles.
O ar voltando aos meus pulmões traz uma sensação terrível de
queimação. Faz todo o meu corpo doer. Apoio as mãos no chão, deixando as
lágrimas deslizarem por meu rosto.
— Sabe... No Céu só são aceitos aqueles que são convocados. — A
voz grossa de Sinn me conta. — Mas vai para o Inferno toda alma que tiver
vontade. A sua mãe está no Inferno, linda — Sinn sussurra e eu não sei como
isso é possível. Escuto passos no andar debaixo, mas não consigo falar ainda,
tossindo como nunca. — Ela aceitou ir para lá, para que ninguém machucasse
você e seu irmãozinho. — Sinn acaricia o meu rosto.
— Lilith — acuso e o escuto rir.
— Sinn é só o corpo. Ele é uma marionete nesse segundo. Queria que
pudesse entender o prazer que é brincar com as cordas... — ele diz. — Chloe,
não é? Sim... Chloe! — Ele ri. — Sinn vai segurar a sua mão e você vai ter
duas opções: um, você escolhe vir ao Inferno por livre e espontânea vontade,
o único modo que tenho de te trazer para cá. Dois: você se nega e a sua mãe
morre no próximo minuto.
Sinn estende a mão.
Fito a palma, cada traço dela. Escuto Brianna me chamar no andar
debaixo, mas a voz parece distante.
Lembro de Luke. Após a morte da Kold, Luke disse que iria me levar
para um lugar e que eu precisava querer isso. Eles me querem no Inferno. O
Purgatorium não foi nada para eles dois.
Matt me chama dessa vez e eu posso jurar que ouço os passos no
corredor.
— Seu tempo está acabando — Sinn diz, quase entredentes. — Tic...
Toc... Tic...
Fecho os olhos e seguro a sua mão.
Quando abro os olhos, estou ajoelhada em um piso de mármore, num
ambiente quente. Sinn, à minha frente, se levanta e se retira, ficando logo ao
lado de um dos seres alados, que segura uma grande e escura lança.
Ouço a minha mãe repetir "não" e "não" ao meu lado. Viro o rosto pra
ela. Donna está chorando quando desvia o olhar para frente, fitando a criatura
a poucos metros de nós.
E agora sim, viro o rosto em direção à criatura e a vejo. Pessoalmente.
O vestido preto cai perfeitamente por seu corpo, as mangas escuras
lhe cobrem os braços. Há uma longa lança em sua mão e suas asas brancas
estão expandidas. Os fios loiros lhe caem pelos ombros e há uma coroa de
lírios em sua cabeça.
Donna grita, a cada passo dado pela loira, para que ela não faça nada
comigo. Eu engulo em seco, porque sei quem ela é, o que ela representa.
Eu sinto fúria fazer tudo sob a minha pele queimar, trincando os
dentes para a loira a minha frente.
Falam em calmaria antes da tempestade.
Ontem Noah me abraçava até eu pegar no sono, hoje Lilith está diante
os meus olhos, me analisando com uma mistura inexplicável de desprezo e
divertimento. A tempestade em pessoa.
Ela sorri de canto.
— Chloe Marie Mitchell — Lilith diz, abrindo um sorriso largo.
Tudo seria um silêncio absoluto, se não fosse pelos soluços da minha
mãe ao meu lado. Tanto que consigo ouvir o riso nasalado de Lilith
perfeitamente nessa sala gigante. Ela leva a mão ao meu queixo, me forçando
a observá-la. Não movo um só músculo. E sua fala soa tão leve quanto um
sopro:
— Bem vinda ao Inferno.
Theo e eu paramos em frente aos portões do Céu. E olhando ao redor,
tudo aqui parece extremamente... Irritante.
Estamos na entrada do castelo branco. As paredes são extremamente
brancas. A entrada me lembra o Olimpo, o templo grego. E essa entrada, de
estilo clássico, se estende até se unir ao restante do castelo, com suas janelas
em arco, de molduras de ouro. Espirais douradas também se espalham pelas
paredes brancas, simulando ramos de flores.
Existem cerca de nove grandes torres compondo o palácio: quatro
mais externas e menores, outras quatro internas e uma central. Tudo
arquitetado com perfeição, traçado com delicadeza.
Parece que vivem num mundo perfeito, com um jardim colorido e
repleto de todos os tipos de flores. Esse jardim circula o castelo em arbustos
bem cortados, árvores bem espaçadas, grama extremamente verde e as flores
que já citei. Além disso, montanhas e morros estão distribuídos pelo lugar
pacífico, com casinhas que variam das mais simples às mais extravagantes.
Fontes, estátuas, ruas de pedra... Se assemelha a uma cidade utópica, perfeita.
Anjos caminham com suas asas brancas livres, alguns guerreiros
treinam e eu consigo ver que aqueles humanos que já alcançaram a paz eterna
estão de branco, andando por aqui com sorrisos largos.
Tudo isso me dá calafrios, alergia. Sério, viver a perfeição parece tão
chato.
Não demora muito para sermos notados. Três anjos nos encaram, com
suas lanças prateadas e claras, e nos cercam, suas grandes asas expandidas
numa tentativa falha de intimidação. As portas da entrada olimpiana do
palácio se abrem e dois anjos em suas armaduras prateadas saem deles. Ao
centro, a figura que tanto esperei.
Angeline tem os fios brancos e ondulados caídos por seus ombros
negros. Sua pele escura brilha contra o sol da tarde, seus olhos são cinzas e
gélidos. Cílios longos e brancos os cobrem, como se neve tivesse caído por
eles. Uma de suas sobrancelhas perfeitamente desenhadas se arqueia em
minha direção.
Há pinturas na lateral do seu rosto, em tom de cobre que contrasta
com a sua pele, imitando os ramos de flores que decoram o palácio. No seu
corpo, o mais belo vestido branco que já vi, que segue de ombro a ombro, até
seus punhos; justo até a cintura, onde é coberto por um corpete; e largo no
restante.
Ela está segurando um grande cajado com um quartzo rosa na ponta,
sustentando seu ar de realeza. As asas grandes, brancas e encurvadas estão
livres e se arrastam pelo chão. Seus olhos estão cravados nos meus. Sua
beleza sempre foi impressionante.
— Noah Hellmeister — ela chama, erguendo o queixo levemente, a
sobrancelha ainda erguida.
— Angeline Hellmeister — provoco e ela rola os olhos —, ou devo
dizer, titia? — Os burburinhos nos envolvem, mas Angeline não perde a
pose. Seu olhar cai sobre Theo por alguns segundos, depois sobre mim.
— Não recebemos visita do Inferno há séculos — ela observa e eu
assinto, olhando ao redor. Suas asas se arrastam e eu percebo que ela está
descalça quando anda em minha direção. — O que fazem aqui?
Uno as sobrancelhas.
— Como assim? — pergunto — Vim porque você pediu.
Angeline riu nasalado.
— Eu nunca pediria algo assim. Estava esperando que você o fizesse.
E você nunca fez isso — ela retruca. Meu olhar cai sobre Theo. Sua feição
está impassível, seu olhar preso em um ponto fixo na parede do castelo. —
Por que está aqui, Noah?
Meu olhar continua em Theo. Ele não se move, ele não fala nada, ele
mal pisca.
— Desgraçado! — Minha mão vai de encontro ao pescoço de Theo,
mas ele nem reage. Seus olhos estão vermelhos quando eu o faço cair ao
chão, meus dedos presos em sua carne. Meu irmão só ri, como se estivesse
preenchido por loucura. Ele está gargalhando cada vez mais alto. As lanças se
apontam em nossa direção e eu escuto Angeline ordenar para eu parar com
isso, mas eu já vejo o pescoço de Theo queimar. E então seus olhos se tornam
vermelhos e eu paro, me arrependendo do que eu fiz. Theo desce os olhos
para mim, sorrindo.
— Eu fico me perguntando, querido — Theo sussurra —, como entre
tantas possibilidades, você e eu acontecemos.
As lanças continuam na nossa mira, Angeline nos assistindo de perto,
quando eu finalmente entendo. Minha feição não se suaviza nem um pouco,
Theo continua sorrindo para mim.
— Lilith — sopro. Theo perde o vermelho em seus olhos e
simplesmente apaga, deixando a cabeça cair ao chão. — Theo? Theo!! — O
sacudo, esperando que acorde. Sua pele está gelada.
— Levem-no para dentro! — Angeline ordena, a feição
completamente assustada. Eu me afasto e um dos seguranças se aproxima do
meu irmão, o erguendo e correndo com ele para dentro. Angeline solta um
suspiro entrecortado, a boca entreaberta e seu olhar focado no meu. Isso foi
uma armadilha, para que eu perdesse tempo, para me afastar da Chloe. Passo
as mãos pelo rosto. — Ela finalmente está de volta.

A sala de reuniões é projetada em ouro e mármore, todo mísero


detalhe. Um lustre repleto de cristais ao centro a ilumina. Eu já busquei Chloe
em minha mente e já a encontrei no Inferno, perante Lilith. Meu impulso
quase foi desaparecer até lá, mas Angeline me segurou a tempo, me pedindo
para ficar. Porque não tenho forças o suficiente para tirar Lilith do poder. Ou
para salvar Chloe sem que a mãe dela, que também está lá, morra.
Lilith quer que eu seja impulsivo. É o que ela precisa para fazer sua
jogada final e Angeline está certa nisso.
— A gente poderia pedir ajuda a Ele — ela argumenta —, mas se ele
quisesse ajudar, Ele já estaria aqui.
— Por que ele deixaria Lilith livre assim?
— Porque talvez isso faça parte de algo maior — Angeline
argumenta, andando pela sala. Levo as mãos à cintura, rindo nasalado. É
sempre assim? "Algo maior"? Vidas de boas pessoas em jogo por algo maior?
— Chloe Marie Mitchell... A união do Céu com o Inferno...
— Por que eu não soube disso?
— Porque Ele não queria que soubesse. E agora tudo faz sentido...
Você me pede por ajuda, Céu e Inferno unem as forças para prender a Lilith e
libertar a sua amada e isso já é um bom primeiro passo, não? Para acabar com
toda hostilidade entre os reinos.
— Não sei. — Respiro fundo. Minha mente volta para a ruivinha e eu
consigo ver Luke andando ao redor dela, dizendo-lhe algumas coisas. Lilith
está sobre o meu trono, apreciando a cena. Donna está presa ao lado da filha,
que continua ajoelhada. — Angeline... — a chamo, fechando os olhos. —
Você sabia que eu...
— Que se apaixonaria? Eu imaginei — ela responde e eu a encaro. —
A garota que cruzaria a sua vida e seria o motivo da união entre Céu e
Inferno... Eu sou uma romântica incurável, Noah, eu sempre imaginei isso.
Fico feliz em estar certa. Apesar de que, para mim, sempre fora óbvio que o
único combustível capaz de fazer alguém sentir seu coração bater é o amor à
vida e que você precisaria reaprender a sentir isso. Nada melhor do que uma
paixão para tanto.
Apoio as mãos na mesa, cansado.
— Vamos traçar um plano de invasão e precisa ser bem silencioso,
porque todos no Inferno estão sob controle da Lilith, não? — Angeline pensa
alto. — Ou ao menos a maioria. Talvez não por muito tempo, não é? Ela
perdeu algum poder, não é? Ela não é tão forte quanto antes...
— Eu não quero esperar horas para salvar a Chloe.
— Eu acho o mais prudente, Noah. Todo esse controle de Lilith vai
lhe demandar muita energia, porque ela não detém mais tanto poder assim,
não ainda. E a gente precisa de um bom plano.
— A cada segundo que passa, Angeline, Chloe sofre. — Ergo os
olhos para ela. E meus olhos ardem. Angeline para de andar pela sala,
respirando fundo.
— O que eu recomendo, Noah, é que se sente. — Ela puxou uma
cadeira. — Que se concentre em ouvir os planos de Lilith e Luke, force a sua
mente a isso. Seu irmão está se recuperando e deve acordar fora do controle
da Lilith. Ele vai nos dar alguma informação útil. — Angeline me observa até
que eu me sente. E eu obedeço. — Eu vou chamar meus melhores guerreiros,
o meu general. E em uma hora, começaremos a montar o melhor plano
possível.
— Então eu vou ficar aqui? Parado? Sentado? Ouvindo Luke e Lilith
provocarem a mulher que eu amo?
— Regra básica do bom governante, Noah. — Ela se aproximou de
mim e tocou o meu ombro. — Guerras são como jogos de tabuleiro...
— É sobre perdermos menos e ganharmos mais — concluo.
— Você vai precisar perder algumas peças e abdicar de coisas que
gosta. Vai precisar sentir raiva e fúria, vai precisar sofrer e ver quem você
ama sofrer... Como em toda guerra — Angeline recorda e eu bufo,
impaciente —, porque não tem como ganharmos sem colecionarmos algumas
pequenas perdas e aprendizados.
Ela sorri e se afasta. Eu bufo e fito o teto, com anjos pintados sobre o
mesmo, traços perfeitos.
— Noah? — ela me chama, perto à porta dupla da grande sala. A fito,
esperando que diga algo. — Você sempre foi família para mim, apesar de
tudo. Então sinta-se em casa.
Assinto. Angeline dá seu melhor sorriso doce e se retira. Me
concentro em Chloe e a encontro. Escuto tudo o que Luke tem a dizer, cada
sílaba, enquanto tento pensar em um modo de tirar a minha ruivinha dali.
Quando o maldito começa a explicar cada mísero passo que deu até chegar
ali, o meu sangue ferve. E quando ele diz o que realmente o motivou, o que
planeja...
Porra, não pode ser.
A adrenalina que me toma com a revelação que ouvi me faz segurar a
mesa com força, tentar respirar fundo e falhar. Não pode ser, não.
Luke é um sádico, um filho da puta doentio. Preciso tirar Chloe de
perto dele. E se eu precisar colocar o Inferno em ruínas, então, que seja.
Tento manter a calma, me lembrar de respirar e de pensar. E no meio
de todo esse caos, cerca de duas horas se passam até a porta se abrir e eu viro
o rosto para a mesma, encontrando Angeline ao lado de Theo. O meu irmão
se sustenta com uma espécie de bengala como apoio.
Eu estou realmente exausto.
Pronta para me acompanhar ao Inferno, Angeline veste uma regata
branca e calças de um tom verde musgo. Além disso, botas e um cinto com
uma adaga e algumas pequenas facas. As asas se arrastam sobre o chão. A
raiz cabelo branco está presa em tranças pequenas, que se reúnem em um
rabo de cavalo. As pinturas ainda se estendem por toda a sua pele como
tatuagens de cobre. Os olhos cinzas estão focados nos meus.
— Conseguiu alguma coisa? — Ela segura o meu irmão pelo braço.
Theo parece fraco.
— Você sabia? — Praticamente rosno as palavras. Angie une as
sobrancelhas, confusa. — Sobre o Luke, Angeline, você sabia ou não?
Quando a minha tia suspira, finalmente, eu tenho a minha resposta:
ela sabia. Angeline sabia sobre a revelação que acabei de ouvir Luke dizer
para a Chloe. Xingo, baixo. Angeline faz Theo se sentar numa cadeira ao
meu lado. Cogito insistir no assunto, mesmo sabendo que brigaremos por
isso, mas Angie lança um olhar preocupado para o meu irmão e depois para
mim.
Seus olhos parecem me implorar para não discutirmos agora, quando
ela pergunta:
— Conseguiu mais alguma coisa? — Sua voz é firme, mas consigo
ver o nervosismo nos orbes cinzentos.
— Não.
— Sério? — Ela ri nasalado, relaxando os ombros e acrescentando,
numa tentativa de distração: — Geralmente essa galera do mal curte falar
seus planos sádicos enquanto tocam o terror...
— Luke só se concentrou em tentar assustar a minha ruivinha.
— Ele conseguiu?
— Ela é mais forte que isso. — Sorrio, mas não estou certo de minhas
palavras. Droga, isso é um pesadelo. Respiro fundo, o mais fundo que
consigo. Volto o olhar para Theo. — Você fala?
— Sim. A primeira coisa é: desculpa — ele diz. Angeline o faz se
sentar numa cadeira ao meu lado. Theo está pálido. — Eu não estava do lado
de Luke, Noah, mas eu acreditava nele. Ele se aproximou de mim nos últimos
anos. Parecia o irmão que eu nunca tive. Então ele tinha livre acesso pelo
Inferno e eu nunca o questionava. Quando Sinn entrou ali me falando sobre a
Kold... Porra, Noah, eu não fazia ideia.
Angeline está de pé, na sala. Ela está de braços cruzados, assistindo
nós dois, seus sobrinhos. Meu olhar analisa Theo, porque eu não sei mais em
quem confiar. Contudo, ele parece fraco demais e desapontado demais para
mentir.
Consigo imaginar o que ele está pensando. Posso não me dar tão bem
com o meu irmão, mas sei que a Kold era importante para ele. Koldelium
protegia Theo, sempre que o encontrava. Era como seu irmãozinho mais
novo. Ela o protegia até de mim mesmo. A solidão seguiria o meu irmão por
todos os séculos que eu preferi a escuridão, se Kold não estivesse ali por ele.
E ela se foi. Partilhamos desse luto mais do que tudo.
Além do mais... Porra... Sei que o Inferno é a sua casa e ele deve
estar aterrorizado com a ideia de uma guerra. E pelo seu olhar... Theodor
parece se culpar por ter sido manipulado.
Com certeza escapou dos encantos da Lilith, disso eu não tenho
dúvidas. Percebo isso porque está cansado, com certeza esteve lutando contra
ela em sua mente pelas últimas horas.
— Ela entrou no Inferno com Luke em seu encalço. Sinn e eu
realmente lutamos ao lado de nossos melhores soldados, mas ela usou da
energia que tinha para fazê-los se voltarem contra a gente e foi insano, Noah!
— Theo me observa e eu engulo em seco, porque já vi isso antes. — Os olhos
deles ficaram vermelhos e eles tentaram nos matar. Nós lutamos enquanto
Lilith tentava se infiltrar por nossa mente, ficávamos fracos a cada
movimento, até que simplesmente... Puff... Éramos o que ela queria que
fôssemos. — Ele deu de ombros. — Eu tinha consciência das minhas ações,
mas não as conseguia evitar. Ela nos deu ordens, a Sinn e mim... E a gente
tinha que cumprir, não conseguíamos impedir, Noah!
Theo está com os olhos repletos de lágrimas. Ele suspira, claramente
decepcionado. Angeline toca-lhe o ombro e sussurra que tudo está bem, mas
Theo parece uma criança perdida, balançando a cabeça em negação.
— O que ela quer, Theo? — pergunto.
— Ela queria a Chloe, porque ela quer que você vá até ela. Mas ela
quer mais, Noah... Ela quer mais... Ela me perguntou sobre a arma, a
Escarlatum, a que pode te matar. E ela perguntou ao Sinn e eu senti que ele
sabia, eu senti que ela conseguiria arrancar essa verdade dele, mas, por algum
milagre, ela não conseguiu arrancar essa informação dele.
— Os poderes da Lilith ainda estão limitados — Angeline observa.
Ela caminha pela sala, como se ponderasse. Meus dedos tamborilam a mesa,
estou ansioso pelo que ela está pensando. — Como é a situação no Inferno,
Noah?
— Chloe e Donna estão em celas separadas, porém uma de frente para
a outra, em uma das torre do Palácio Central. São as celas usadas quando
prendemos os traidores, aqueles que são sentenciados à morte — digo.
Angeline assente, para que eu continue. — Contudo, elas não estão sozinhas.
Estão cercadas por demônios nas celas e eles podem matá-las em questão de
segundos. Precisamos salvar as duas ao mesmo tempo ou derrotarmos
primeiro a Lilith para que o controle dela sobre nossos guardas seja desfeito.
— Acho mais prudente salvarmos primeiro as duas, simultaneamente,
de algum modo, e depois derrotarmos a Lilith — Angeline define e eu
concordo. Theo também balança a cabeça em confirmação. — Como as
levaremos de volta à Terra?
— Bom do mesmo jeito que a Chloe foi para o Inferno, ela pode
voltar se encontrar um demônio disposto a trazê-la de volta — informo. —
Ela tem que querer voltar e confiar nesse ser. Mas ela terá que ter a plena
certeza que sua mãe está a salvo. Ela precisa ver a mãe dela ser liberta. Chloe
só vai aceitar sair dali se ela ver que a mãe está bem.
— Então o único que poderá salvá-la é você — Angeline observa. —
O mesmo para a mãe dela, não? Ela precisa de um demônio para traçar o
caminho de volta ao plano terrestre. Um que confie. Seria você também.
— Sim. Ela não confiaria em algum demônio com facilidade e tão
pouco confia em mim, mas se ela me ver salvando a Chloe, ela poderia se
sentir mais tranquila quanto a isso. O problema é que todos estão sob controle
da Lilith e o único em que confio para tal tarefa é o Sinn. Mas até o Sinn se
desvencilhar do controle da Lilith, se recuperar e me ajudar nessa,
gastaríamos muito tempo.
— E eu? — Theo pergunta.
— Você está fraco demais, querido — Angeline diz, balançando a
cabeça em negação. — Não temos tempo suficiente para esperarmos pela sua
recuperação, para que tenha pleno uso dos seus poderes. Você é tão forte
quanto um humano nesse momento. Mais alguma ideia, Noah? — Angeline
recolhe as asas e se senta sobre uma das cadeiras.
— A minha ideia é nos infiltrarmos no Inferno silenciosamente —
conto. — Primeiro analisamos a situação das entradas do palácio, decidirmos
o melhor caminho até a torre... Também precisamos eliminar alguns dos
guardas para colhermos seus uniformes. Assim, a gente pode fingir que
alguns dos seus anjos são demônios ali dentro do palácio. Eles ordenam aos
demônios que cercam Donna e Chloe se retirem, afirmando que é uma ordem
da Lilith, e assim nós libertamos as duas. Eu as transporto de volta à Terra,
uma a uma. Seus anjos já estão protegendo a família e os amigos da Chloe
por lá, certo?
— Na Terra, sim. Os meus melhores. Matthew, contudo, quer voltar.
Ele quer lutar conosco. — Assinto. — Não sei se é o melhor, ele está
envolvido demais nisso.
— Eu também, se parar pra pensar — contra-argumento. Angeline
concorda, cedendo. — Continuando... Lilith é um anjo. Quando não está
controlando a mente de qualquer outra pessoa, ela não pode visualizar além
do que está em seus olhos. — Paro por um segundo e penso. Droga. — Mas
Luke pode. Então ele é a nossa prioridade antes de procurarmos pelas
Mitchells, porque se ele as buscar, se ele as vigiar, ele pode ver o que não
deve.
— Eu e você nos concentramos em eliminar Luke e meus homens em
derrotar os demônios silenciosamente. Mas como derrotaríamos Luke sem
sermos percebidos?
— Eu não faço a menor ideia — admito e vejo Angeline praguejar
baixo.
— Então voltamos a estaca zero, Noah, não temos nada — Angeline
diz. Eu passo as mãos pelo cabelo, frustrado.
Um silêncio cai sobre nós três até Theo ergue a cabeça e murmurar
algo.
— É isso! É esse o problema! — Theo diz e nós dois o encaramos. —
Nós estamos aqui, nessa sala, traçando um plano silencioso com controle
máximo de danos. Mas, para começar: vocês até mesmo esqueceram de que
não tem um modo sequer para anjos chegarem ao Inferno sem serem notados.
Isso por si só já faz tudo cair por terra. Porque isso... Isso é guerra. E guerra
sempre acaba significando barulho. Não há outro modo de derrotar a Lilith
sem sermos barulhentos. Ou sem darmos um pouco do que ela quer.
— O que seria...? — Angeline pergunta, rindo nasalado.
— Sangue — respondo —, ela sempre quer sangue.
Angeline, Theo e eu nos entreolhamos. Nossa minha tia xinga
baixinho e Theo faz o mesmo, porque é a verdade: Lilith quer caos. Ela quer
sangue. Ela quer destruição. Afinal, é o que ela mais ama.
Ademais, meu irmão está certo. Isso é guerra. E uma das piores. Ou
arriscamos tudo e lidamos com a imensidão de sangue que vai ser derramado,
queiramos nós ou não; ou nos contentamos em perder e ficaremos com nada.
— Então é isso... — Angeline suspira, como se o ar pesasse três vezes
mais dentro de si. — Estudamos as entradas do Inferno, armamos um plano,
mas seremos barulhentos? Seremos vistos? Oh, droga, eu vou perder mais
guerreiros do que eu imaginava...
— Eu posso ajudar a instruir os seus anjos, só precisamos de algumas
horas — Theo fala. — Assim como Noah, eu conheço todas as entradas
daquele lugar. Eu posso ajudar, por favor, me deixem ajudar... — Ele me
encara. Angeline faz o mesmo. É como se jogassem a decisão para mim.
Eu respiro fundo e travo o maxilar. Busco pela Chloe novamente e ela
está em sua cela, abraçando os próprios joelhos e fitando dois demônios a três
metros de si. Meu colar está em suas mãos, ela o aperta contra o peito. Só
consigo pensar na promessa que fiz: eu vou buscar aquele colar de volta.
— Theo está certo e toda ajuda é bem-vinda — decido — se
queremos derrotar Lilith, se queremos o controle de volta, o equilíbrio de
volta, precisamos jogar como sempre jogamos no Inferno: arriscando tudo.
— Isso significa...? — Angeline pergunta, cruzando os braços.
— Que se Lilith quer sangue — digo, sorrindo de canto —, então
daremos o que ela quer.
— Bem vinda ao Inferno — Lilith diz. Seu sorriso rubro cresce e eu
engulo em seco. Seu olhar cai sobre a minha mãe. — Por favor, querida, seja
um pouco mais silenciosa. Ou eu vou acabar te matando antes do planejado.
Minha mãe soluça ao meu lado e eu sinto meu coração apertar, mas
travo o maxilar e mantenho os olhos sobre Luke. O loiro está esparramado
num trono menor ao lado do que provavelmente é o de Noah, o maior, em
que Lilith estava. Ele está sorrindo para mim com crueldade, um sorriso de
canto.
— Você tem que ser muito burro para crer nela — digo.
— Seu namorado já acreditou — ele rebate, se divertindo.
— Um dia, sim. Mas daí você tem que ser muito, muito burro, pra se
apaixonar por ela quando duas pessoas já se apaixonaram e se foderam num
nível grotesco — retruco. Lilith está nos encarando com divertimento.
— Bom, quem falou em se apaixonar? — Luke pergunta e se levanta.
— Eu não sou apaixonado por ela. — Seus passos o aproximam dela. Ele a
envolve de lado, pela cintura. Lilith está com os olhos azuis e gélidos focados
nos meus, sorrindo com um misto de perversidade e loucura, que faz um
arrepio percorrer a minha coluna. Luto para me manter quieta. — O que
Lilith e eu temos em comum é a ideia de que Noah não serve para ser Rei.
Nós dois, sim, servimos para realeza. E os rebeldes acreditam na gente. Então
nossa aliança é meramente por conveniência.
— E assim que Noah morrer, querida — Lilith diz, sorrindo —, o
casamento estará marcado. Afinal, precisamos de um Rei e de uma Rainha.
— Se o Noah morrer, Theo será o próximo na linhagem — recordo,
quase entredentes. Lilith rola os olhos, impaciente e se afasta de Luke,
fazendo seu vestido preto se arrastar pelo chão a cada passo.
— Matar Theo e matar uma formiga será exatamente a mesma coisa
depois que Noah morrer — a loira diz, checando as unhas. Depois ergue as
sobrancelhas e pisca. — E vai ser tão divertido!
— O que acontecerá em seguida? — pergunto, torcendo para Noah
estar ouvindo. Contudo, não sinto o calor que costumo sentir quando acho
que ele está me observando. Eu não sinto nada, senão medo toda vez que
ouço minha mãe soluçar baixinho do meu lado.
— Bem, normalmente o Inferno decide quem vira o Rei — Luke
conta —, mas o Céu interferia, visto que todo mundo aqui está sob nosso
controle. Contudo... — Ele ergue o dedo. — Se o primogênito morre, o
caçula também... Na ausência de mais descendentes, o trono cai sobre o
bastardo...
Franzo o cenho. O sorriso de Luke cresce.
Meu coração se acelera.
A palavra "bastardo" reverbera na minha mente algumas vezes.
— Conheça Luke Hellmeister, querida — Lilith ironiza. — Os
rebeldes conseguiram descobrir esse segredo há alguns anos e aqui estamos
nós.
— Não pode...
— Não pode ser? — a loira conclui, com divertimento a cada sílaba.
— Está realmente tão chocada assim com a infidelidade dos homens, Chloe?
O pai do Noah só era fiel aos seus filhos. Ele tinha uma amante para cada dia
da semana, se duvidar. Não me surpreenderia se houvesse outros como Luke
por aí.
Minha garganta quase se fecha. Lilith está apreciando a minha reação,
mas meu olhar volta a Luke.
— Então você soube disso e quis o trono? — arrisco.
— Não, a princípio, não — ele conta. Luke passa as mãos por seus
fios loiros e volta a se sentar onde estava antes. — Veja, Chloe, quando eu
descobri sobre isso, eu matei o rebelde que havia me contado essa história,
crente que era mentira, me perguntando como ele ousava trair e mentir sobre
Noah. Mas quando busquei na biblioteca, por entre nos registros dos livros
sobre seres celestiais, eu soube que era a mais pura verdade. Contudo,
Mitchell, eu realmente amava Noah, Theo, Kold e Sinn. E descobrir meu
vínculo sanguíneo, pra mim, só fez mais sentido sermos uma família e eu
estava satisfeito com Noah no poder. Ele não sabia sobre mim, Theo não
sabia sobre mim e eu tinha a minha família ali, eu não queria estragar isso, eu
tinha medo de estragar isso. Ao mesmo tempo, porém, eu sempre senti que o
único motivo pelo qual a gente funcionava como família era porque cada um
era como uma peça de uma máquina, sabe? Unidos, trabalhando juntos, para
que tudo desse certo...
Ainda sinto meu coração bater com força e velocidade, num misto de
descrença e surpresa ao que ouço.
— O que Luke quer dizer — Lilith começa, caminhando de volta ao
trono com seu sorriso irritante —, é que cada um tinha sua função, seu poder.
Mas Noah estava limitado, porque não sentia seu coração. Os rebeldes
acreditavam que quando isso mudasse e Noah recuperasse todo seu poder, ele
seria o tirano que colocaria desordem em tudo e arruinaria a sua família, ou
seja, Kold, Luke, Sinn e Theo.
Volto os olhos para Luke mais uma vez. Ele está sorrindo, sem
qualquer resquício de culpa pelo que fez. Ele não parece sentir falta da Kold
ou se arrepender por ter transformado Sinn em marionete. Consigo ver a
psicopatia passando pelos seus olhos. Se Luke tinha um coração rico em
sentimentos, acho que agora ele é como uma pedra: maciça e dura, sem
espaço para sentir nada senão inveja e ódio.
— Você quer dizer que tinha medo do Noah ter o poder de volta —
começo, para Luke —, porque ele já era mais poderoso que você, mas
poderia ser ainda mais... Isso é inveja. — O sorriso de Luke é perdido. — E
aposto que isso se agravou quando você descobriu que era irmão dele, Luke,
porque você era o irmão fora da linha do trono, porque você era o menos
poderoso dos descendentes da família do Noah, o cara que ninguém
considerava como consanguíneo, o que ninguém enxergava. — O vejo cerrar
os punhos. Eu me levanto, fazendo Lilith erguer uma sobrancelha em minha
direção. Luke está com os dentes trincados e o maxilar travado, mas eu não
me importo em continuar. — E mais do que isso, Luke, você era considerado
o mais brincalhão entre seus amigos, não era? O rei das brincadeiras, das
trapaças, o mais bobo...
E Luke para em minha frente, em um milésimo de segundo.
Faço um tremendo esforço para não engolir em seco, para não me
mexer. Seu nariz está a centímetros do meu, seu olhar transborda fúria.
Mas ele ri.
Ele ri nasalado e recua um passo, inspirando fundo e soltando o ar
com um ar de deboche. É loucura, loucura o que vejo. Muita loucura.
— O mais bobo! — ele diz, com lágrimas nos olhos. — Bom, quem é
o bobo agora, não é mesmo? Noah se ferrou tanto nos últimos meses por
causa do mais bobo, do mais idiota, do mais sem noção do grupo. — Luke
estende os braços. — Eu percebi que ele nunca me enxergava de verdade,
Chloe, não por completo. — Luke aponta contra o próprio peito. — Que ele
só me enxergava um pouco porque queria que a gente o ajudasse a ganhar seu
poder de volta e enquanto isso não acontecesse, tudo ficaria bem... Mas ele
cismava de que queria essa porra de poder de volta! — Sua voz se ergue uma
oitava e eu engulo em seco. — Então eu desisti de ser bonzinho e me juntei
aos rebeldes, eu conquistei a confiança deles, porque eu percebi que eles
queriam algo justo: eles queriam o ser certo no poder. Eles desejavam alguém
melhor do que o Noah e a porra do cara certo para o poder sou eu! — Sua
veia no pescoço se torna mais evidente e a da testa também, quando ele
aponta para o próprio peito.
Fito minha mãe de soslaio. Meu coração se aperta quando a vejo
encarar o chão, seus ombros se mexendo conforme chora. Quero abraçá-la,
quero prometer que tudo ficará bem, mas não quero ser vulnerável na frente
desses dois. Eu ergo o queixo levemente, empinando o nariz tanto quanto
Lilith faz, ao fitar Luke com desprezo.
— Você não nasceu para ser Rei — provoco.
Ele volta a ficar a centímetros de mim e sua mão envolve o meu
pescoço, mas Luke não o aperta. Contudo, acho que ele sente o exato
momento em que a saliva desce por minha garganta dolorosamente.
— Se eu fosse você, ruivinha, eu me ajoelhava e calava a boca — ele
sussurra, mas eu não me movo um só centímetro. Ele desvia o olhar para a
minha mãe e depois para Sinn. — Leve-a.
— Para onde? — pergunto. Sinn se aproxima da minha mãe e a faz
ficar de pé, com suas correntes. — Para onde vão levá-la? Para onde? —
Ergo a voz e escuto o choro da minha mãe se intensificar. Donna é arrastada
para longe e eu empurro Luke, me virando para vê-la — SINN! — eu grito,
mas ele não deixa de apertar o braço da minha mãe e a empurra para frente,
para que ande.
— Isso é tão bom de assistir — Lilith comenta e eu sinto Luke apertar
o meu braço. Me viro para ele novamente e sinto a pressão na minha pele
crescer. A sinto queimar e deixo um grunhido escapar. O loiro me força a
ajoelhar. Já a loira, se levanta novamente, com seu olhar semicerrado em
minha direção. — Espere... — Ela se aproxima. Um passo após o outro, seu
olhar focado em meu colo. Lilith toca o colar em meu peito e eu recuo, mas
sua mão encontra o meu punho e a outra analisa as asas de metal escuro. —
Noah... — Há adoração no modo como fala e um sorriso carregado de
loucura se força contra seus lábios. Mas ele desaparece quando seus olhos se
erguem aos meus. Seus olhos escurecem levemente, enfurecidos. — Isso
deveria ser meu!
— Mas não é — respondo e ela ri. Lilith se ajoelha à minha frente,
apenas para segurar meu rosto com as duas mãos.
Sinto o meu peito queimar. Todo o meu corpo dói e eu não consigo
respirar. Seus olhos azuis, se tornam quase brancos. Lilith sorri com maldade,
acariciando o meu rosto. É como se eu a sentisse tentando invadir a minha
mente em busca de algo, mas eu fujo do modo como tenta me prender e me
dominar, eu forço meus pensamentos a Noah, ao máximo. Os seus beijos, os
seus toques, seus sorrisos guiados para mim, sua risada. A queimação em
meu peito cresce e cresce, até que eu recordo o dia em que ele fez meu carro
parar em Maryville, confessando que estava apaixonado por mim.
Lilith pisca algumas vezes e eu vejo seus olhos brilharem, cheios de
água. E então, vejo fúria por eles. Ela me liberta e eu apoio as mãos no chão,
deixando as lágrimas transbordarem enquanto o ar volta com força aos meus
pulmões.
— Acha mesmo que ele amaria uma qualquer como você? — Sua voz
é melodiosa, mas afiada e baixa.
— Sim. — Sorrio, apesar de toda a dor. — E você também acha. —
Ergo o olhar para ela. Lilith cerra os olhos. — Ou não teria me sequestrado
para trazê-lo até você.
Ela não me responde. Porque eu estou certa. E eu não vou abaixar a
cabeça para ela com facilidade.
— Eu deveria ter te matado quando tive a chance — Luke diz, mas
Lilith e eu continuamos a fitar uma a outra. — Quer dizer, eu ainda posso,
mas você mesma sabe qual é a sua utilidade. — Lilith se levanta e eu o
encaro, percebendo o modo despreocupado em que o loiro se encontra,
sentado numa postura impecável contra a cadeira, estalando os próprios
dedos um a um. — Não faria isso agora. Mas eu deveria ter te matado no
Purgatorium.
Franzo o cenho. Luke ri da minha confusão, sustentando um sorriso
arrogante.
— Quando o Noah parou de comer você naquele banheiro — ele fala
para me ferir, com seus olhos em minha direção —, ele disse para Kold, no
bar, e para mim, que bebia por ali, que havia uma garota, uma comum,
humana... Uma que tinha feito o coração dele bater por alguns segundos. Ele
estava confuso, mas eu garanti que era coisa da cabeça dele. E eu te vi,
Chloe, de longe, na saída do banheiro. Noah pediu por Sinn, para ele te levar
para casa em segurança, porque você disse que estava passando mal pelo
calor ou algo assim... — Eu não consigo lembrar, eu queria lembrar. — Eu
disse que chamaria Sinn para te levar para casa e realmente fiz isso, mas
passei por você antes.
Trinco os dentes, tentando me lembrar de respirar fundo e manter a
calma. Tentando ignorar o ódio que faz o meu sangue ferver em minhas
veias. E Luke continua:
— Eu olhei no fundo dos seus olhos e ordenei para que esquecesse de
Noah no dia seguinte, assim que acordasse. Porque, Chloe, eu tinha a
sensação de que Noah a buscaria, mas sabia muito bem que qualquer comum,
depois de se deitar com Noah, costumava correr atrás dele. E eu queria pelo
menos adiar isso. Mas Noah te procurou na manhã seguinte.
Há raiva no modo como ele fala.
— Eu já estava com os rebeldes, confesso. Mas parte de mim ainda
acreditava que Noah tinha chances de esquecer essa busca por poder e de
tudo continuar da mesma forma. Eu estava com os rebeldes, mas eu ainda me
segurava demais quanto aos meus planos, eu era tolo. — Cada fala de Luke
pesa em raiva. — E quando você apareceu, eu percebi que ele jamais deixaria
isso pra trás, essa ganância absurda. E eu senti, dentro de mim, senti de
verdade, que precisava adiantar os meus planos, precisava sim fazer o que eu
queria...
"Então, no dia seguinte, ele foi te procurar, eu soube disso e vim para
a biblioteca, para verificar se havia algo sobre você: Chloe Mitchell. E havia.
Na porra da biblioteca dele, Chloe, um livro só seu! E já nas primeiras linhas,
dizia que você era a promessa de união entre o Céu e o Inferno, era a pessoa
que resgataria o Diabo de sua escuridão e eu soube o que isso significava,
isso era tudo o que eu não queria. Inclusive, por isso, para que ninguém
descobrisse, as arranquei do livro. E fiquei surpreso quando consegui fazer
isso e nenhuma outra surgiu no lugar..."
"As mantive comigo, sempre comigo. E então Noah ficou tão, tão
obcecado em saber que porra você era, capaz de fazer o coração dele bater,
que os pensamentos dele focavam em você a todo instante e ele acabou no
apartamento da sua tia, te observando dançar e vocês marcaram um encontro!
Uau..."
Meu olhar recai sobre Lilith quando sinto que ela me analisa demais.
É como se eu conseguisse ouvir a sua mente indagar o porquê de Noah gostar
de uma humana como eu. Meu rosto não parece milimetricamente esculpido
como o seu, eu tenho marcas pela minha pele como qualquer garota, defeitos
como qualquer garota. Não tenho um corpo tão cheio de curvas quanto o seu,
nem traços tão marcantes e ainda assim Noah me escolheu.
Lilith é uma das mulheres mais lindas que já vi, senão a mais linda.
Mas isso não basta, beleza não basta.
Acho que é isso que passa por sua mente, essa ideia de superioridade,
por ser mais bela e ter sangue imortal. Porque ela me encara com desprezo,
ao mesmo tempo com alguma raiva. Não sei se ela amou Noah uma vez
sequer, mas creio que ela se pergunta porque eu ocupo mais o coração dele
do que ela. Eu vejo que ela me julga como inferior, mas eu não sou. E Noah
também não parece achar que sou.
Há algo sobre ela que a torna menos do que ela aparenta ser, contudo.
Creio que é o quanto é vazia por dentro. Não me parece haver um só
sentimento nobre nessa mulher e isso a torna completamente sem graça. Não
que eu goste de me comparar com outras garotas, não... Mas sei que ela me
julga como menos do que ela de fato é, mas sei também que sou muito mais.
Porque enquanto Lilith é oca por dentro, eu tenho um infinito de
constelações dentro de mim, tanto que transbordam e se espalham por meu
rosto, como sardas. Eu não sou perfeita, longe disso, mas eu sinto. Eu gosto
da vida e de estar viva. Eu não sou vazia. Essa é a diferença entre nós duas. E
é por isso que, ainda com toda a beleza do mundo, ela nunca vai entender o
que Noah viu em mim ou vai ter a sorte de ser verdadeiramente amada como
eu fui e estou sendo. E isso é realmente triste. Ela me encara com desprezo,
mas ela é digna de pena. Lilith se julga maior do que eu e é exatamente por
isso que não é. O seu olhar não me afeta.
— Então — Luke retoma —, eu criei uma invasão rebelde ao
apartamento da Kold para interromper o encontro de vocês. Passou pela
minha cabeça te matar, mas eu achei mais prudente afastá-la de Noah
primeiro, para evitar surpresas. E isso não aconteceu! Ele foi atrás de você, na
corrida, Kold foi junto e eu precisei ver de perto como ele reagia a você. E
Noah tinha adrenalina nos olhos, Chloe, como se eletricidade morasse no seu
olhar porque você o fascinava...
Um sorriso surge nos meus lábios. Estou com medo, estou com medo
pela minha mãe em algum canto desse lugar. Estou assustada longe do meu
irmão, da minha tia, dos meus amigos... Mas estou sorrindo. Porque as
memórias me forçam a sorrir. É mais forte do que eu.
— E ele te deixou ganhar a corrida! — Luke ri em deboche,
balançando a cabeça em negação. Vejo Lilith desviar o olhar de mim. — E
então você foi atrás dele! — Luke soa irritado, incrédulo. — E então teve a
porra do encontro, o primeiro beijo e eu pensei... Hora de mandar um recado
para o Noah, de dar um golpe forte para que ele se afaste de você, para que
ele pare de correr atrás dessa humana estúpida, para que ele não reconquiste o
poder, para que eu consiga deixá-lo fraco, vulnerável... Mas eu não sabia
exatamente o que fazer. E só havia uma pessoa que sabia todas as
vulnerabilidades do Noah, sabia exatamente o que fazer para deixá-lo louco...
— Eu. Então ele procurou por mim — Lilith continua. Ela não sorri,
mas volta o seu olhar para mim. — Luke queria arrancar algo de mim...
— Ao mesmo tempo, eu já sabia que alguns rebeldes tinham Lilith
como a mulher com coragem e força suficientes para controlarem um Reino
— Luke diz —, mesmo que ela não seja um demônio e sim um anjo.
"Um anjo e não um demônio... Ironicamente", penso.
— A princípio, eu queria vê-la novamente com meus próprios olhos
— Luke conta. — Eu queria ver se conseguiria arrancar qualquer coisa dela...
Mas depois...
— Luke conseguiu uma aliada — Lilith cruza as pernas, sorrindo com
divertimento. — Ele me contou tudo e eu lhe dei algumas ideias, e descobriu
uma aliada em mim. Uma amizade surgiu de imediato. — Sinto nojo. Os dois
claramente usam um ao outro por necessidade, isso não é amizade. — E
fizemos um acordo... Se tudo o que planejássemos em conjunto desse certo...
Eu seguiria ao seu lado no controle do Inferno.
É como uma cobra ao lado da outra. Estou esperando uma abater a
outra com veneno. Isso me soa tão instável. Lilith com certeza não dividiria
poder com o Luke, mas acho que, no fundo, ele sabe disso. Ele a quer para
acabar com o Noah. Se isso acontecer, esses dois vão se matar por poder.
É tão surreal. O que a ganância faz na mente das pessoas. É como um
vírus. Se infiltra de célula em célula e te corrompe. Não falo da ambição que
nos é natural, falo da sede por poder que elimina qualquer limite, que te faz
agir sem escrúpulos.
— Então eu dei a ideia para que Luke matasse alguém — Lilith
continua, com naturalidade —, que tirasse o coração dessa pessoa. E para
mexer com a cabecinha do Noah, mandar um recado; eu pedi que colocasse
as minhas flores favoritas ao lado do coração: lírios. Porque mais mortes faria
Noah se lembrar do passado, do passado em que Céu e Inferno se mataram
por minha causa, porque ele confiara na pessoa errada. Eu disse para Luke
fazer isso com alguém próximo a você. E Luke escolheu fazer isso na
oportunidade perfeita, no Purgatorium, quando todos que você amava
estavam por perto.
— Eu disse para o John que você o chamava do lado de fora, ele tinha
acabado de brigar com a Molly, parecia desnorteado — Luke diz, sorrindo.
Me sinto enjoada. Fecho os olhos ao lembrar de Johnny. — Ele saiu do
Purgatorium e um dos meus rebeldes lhe tirou o coração. Voltei para dentro e
passei por Molly. Bastou um sussurro para que a sua amiga sentisse uma
vontade absurda de ir tomar um ar na saída dos fundos e o resto... Bom, o
resto você já sabe: os gritos, o pedido por socorro, o corpo sem coração... E
você estava onde mesmo, Mitchell? Com quem?
Engulo em seco, porque as memórias fazem um gosto amargo de bile
subir para a minha garganta. John sem o coração. Molly gritando. Matt a
segurando. Noah segurando o meu cabelo enquanto eu vomitava. A polícia,
as sirenes, os depoimentos...
— Com quem você estava, Chloe? — Lilith pergunta, com a voz
aveludada — Vamos, abra os olhos e nos diga, Chloe, com quem?
— Você lembra... — Luke me instiga e meus olhos ardem, eu balanço
a cabeça em negação — Eu preciso que diga. Porque isso é tão perfeito.
Diga! Ou precisaremos trazer a sua mãe de volta como incentivo?
— Eu estava com o Noah — admito — e com a Kold.
— Sabemos como vocês estavam — Luke comenta, se divertindo.
Escuto Lilith rir nasalado também e abro os olhos, rasos de água. — Imagina
como o Noah se sentiu quando a garota que mexia com a cabeça dele chorava
e vomitava, porque estava quase transando com ele e com a Kold quando um
dos melhores amigos dela morreu por culpa... dele. Como acha que ele se
sentiu, Lilith?
— Certeza que nada bem, Luke — Lilith responde, rindo. Deixo as
lágrimas transbordarem pelos meus olhos, escorrendo pelo meu rosto. Porque
eles realmente jogam baixo. Eles se aproveitaram de todas as situações
possíveis. — Mas o Noah não se afastou...
— Eu dizia que você era pouco para ele, eu tentava falar mal de você
e nada, vocês não se afastavam. Pelo contrário, só continuavam cada vez
mais próximos. Mas Noah me ajudava nas suas escolhas idiotas, como
quando pediu para eu investigar sobre as páginas que faltavam do seu livro
ou para que eu vigiasse o Theo no Inferno... Ele estava cego por você e eu me
aproveitava para realizar jogadas por debaixo dos panos, com Lilith ao meu
lado.
— Até que eu dei a ideia do Luke se aproximar de alguém próximo de
você, para afastar você do Noah. — Lilith chama a minha atenção para si. —
Ele me contou que um tal anjo, seu melhor amigo, já não suportava o Noah.
Que um tal anjo queria te proteger a qualquer custo e eu disse: "essa é a
oportunidade perfeita!". O anjo, fragilizado por ter perdido um amigo,
também não gostaria de perder a sua ruivinha favorita e era muito mais fácil
de se aproximar do que a garota que tinha perdido o namorado.
— Eu investiguei Matt. — Luke se levanta, ao contar. — Descobri
que ele se recuperava de um coração partido, porque tinha se apaixonado por
um humano, chamado Brandon. E Matt conhecia bem histórias de anjos que
se apaixonaram por humanas. Como o seu pai, Chloe, e como o irmão dele.
Ele sabia que não daria certo. Então ele terminou o romance com o humano,
porque o foco dele era cem por cento você. Ele estava frágil por uma perda,
carente, odiava o Noah e acreditaria em qualquer coisa que eu diria...
— Desgraçado — xingo, baixo, fazendo seu sorriso crescer mais
ainda. Luke se aproxima, tocando meu queixo com o seu indicador e
erguendo o meu olhar para o seu.
— Eu entreguei a caixa com o coração do John e os lírios, mas sabia
que isso não seria suficiente para afastar você do Noah. Contudo, eu fui
sortudo demais quando você descobriu que o Noah era o Diabo. — Luke
recua, rindo.
O arrepio me percorre por cada segundo em que escuto a sua risada
sombria, observo a loucura em seus olhos e como ele limpa as lágrimas que
se formam de tanto que ri. Consigo agora mesmo imaginá-lo agradecendo ao
destino no segundo em que eu vi Noah e suas asas. Consigo imaginar o
prazer que ele sentiu. Ele continua:
— E quando vocês se afastaram e eu pensei: "mais algumas semanas
e eu poderei eliminar essa garota, o Noah seguirá em frente e eu posso usar
de sua fragilidade para descobrir como tirar a Lilith da cela, matá-lo e tomar
o controle do Inferno para nós dois". Eu só precisava garantir que, de algum
modo, você ficaria longe do Noah. Como eu já estava bem íntimo do Matt,
me aproveitei da situação de imediato e falei a ele que Kold não era tão
confiável, deixei a entender que Sinn já havia traído o Noah, que o Theo era
invejoso demais, mas eu... Eu era um aliado. E Matthew caiu como um pato!
Se vocês voltassem a se falar, ele estaria do meu lado e te colocaria contra o
Noah, ou foi o que eu pensei. Mas Noah apareceu todo apaixonado na porta
dele.
Luke ri, de novo. Mas seu riso cessa e ele respira fundo.
— E Matthew decidiu ajudar esse desgraçado. — Luke rola os olhos,
como se estivesse entediado. Depois, cruza os braços, me observando. — Ele
deu uma ideia para o Noah: ter uma atitude fofa, para chamar a sua atenção, e
o Noah pensou em dar um presente de aniversário para o seu irmão: um
Game Boy. Fofo, huh? — Luke une as sobrancelhas em deboche, mas ri
nasalado, relaxando o seu rosto. — Não demorou muito para você voltar a
bater à porta do Noah. O que eu não realmente soube até Matt descobrir isso,
até eu conseguir fazê-lo me contar. E então eu agilizei meus planos, Chloe.
Porque Noah havia visitado Lilith, ele estava percebendo que algo estava
errado, ele sabia que tinha um traidor em sua família...
— E nós nos aproveitamos dessa tensão — Lilith fala —, Luke se
aproximou ainda mais de Theo, tentou colocar algumas coisas na cabeça dele,
sugeriu que Sinn poderia ser um traidor... Noah simplesmente apertou o
pescoço de Theo, crendo que o coitado tinha algo a ver com isso... — Lilith
riu. — Ah, claro! Algumas coisas também se tornaram óbvias de serem
percebidas...
— Como, por exemplo — Luke diz —, quando Matt viajou para
Maryville para proteger a sua família no lugar do Sinn, porque o Noah já não
confiava tanto na gente... Isso nos fez pensar, e com razão, que se Matthew
estava deixando você e Molly em Nova York para cuidar da sua família,
Chloe. — Ele aponta para mim. — Era porque alguém muito especial estava
te protegendo aqui.
— O Noah — Lilith acrescenta.
— Então, obviamente, vocês tinham voltado — Luke conclui. — O
que se confirmou quando a viagem para Maryville aconteceu para o seu
aniversário. Eu me aproximei de Matthew ainda mais, para tentar descobrir
alguma coisa... E então eu percebi que ele estava estranho comigo. Creio que
consegui contornar a situação. Eu quis ir para o seu aniversário, para me
aproximar da sua família, talvez de você... Foi quando percebi que a sorte
realmente estava a nosso favor, porque Noah estava lá. E então bastou que eu
inventasse que o Sinn matara o seu pai...
Meus punhos se cerram, sinto as unhas afundarem nas minhas palmas,
o ódio crescer em meu peito. Lilith está sorrindo, porque ela percebeu que
esse é um assunto super delicado para mim. Já Luke, parece despreocupado,
feliz a cada sílaba dita.
— E veja bem, Chloe — Luke continua, erguendo um dedo —, o Sinn
poderia sim ter matado seu pai, mas não foi ele... Fui eu. Mas aquela foi a
oportunidade perfeita para fazer vocês duvidarem ainda mais de outra pessoa.
E eu fiz isso na mesa, com a sua mãe nos assistindo. E ali o caos estava
criado! Mas eu sabia que vocês acabariam por se resolver, você e Noah, eu já
tinha percebido que separar vocês dois não seria tão fácil.
Mal consigo respirar. O ódio forma um nó em minha garganta e eu
me sinto estremecer levemente a cada inspiração.
— Matt me pediu para ir embora de Maryville depois de tanta
confusão, ele queria te dar espaço... Mas eu sabia que ele queria me afastar
por mais outro motivo. E eu o segui, me mantive por perto. Então descobri
que você, Molly e Matt tinham se reunido numa casa. Bastou que eu me
infiltrasse. Em questão de segundos eu estava no andar de cima, em silêncio,
ouvindo tudo o que vocês planejavam no andar debaixo... Eu voltei para
Lilith e nos traçamos um plano.
— Tudo foi minuciosamente calculado, cronometrado. Luke foi
convidado ao apartamento de Matt. Já Sinn e Kold ao de Noah enquanto você
e Molly reviravam o apartamento do Luke e do Sinn — Lilith diz. — Nesse
mesmo momento, sua família era sequestrada por nossos demônios e Luke
fingia estar atento a Matthew.
— Até que os demônios invadiram o apartamento do Noah ao mesmo
tempo que o de Matthew. Matthew tentou lutar contra os demônios, gritou
por mim, porque não queria ser levado — Luke narra, rindo —, mas eu
desapareci e voltei ao meu apartamento. Te guiei às páginas e o resto você já
sabe. — O loiro estala o pescoço, sorrindo. E então conta nos dedos. —
Matthew preso na gaiola do Purgatorium, Kold morta, sua família presa e
você como moeda de troca contra o Noah. Eu não esperava que ele cedesse
tão facilmente pela chave, achei que eu teria que matar o seu irmãozinho...
Mas funcionou!
— E aqui estou. — Lilith acena, sorrindo.
— E aqui estou — adiciono, também —, porque ainda querem algo
do Noah.
— E de você, querida — Lilith acrescenta. Ela caminha até mim,
desfilando com toda a sua pose de soberana, a coroa de lírios sobre a cabeça.
A loira segura o meu rosto com uma das mãos, fazendo seus ossos finos dos
dedos pressionarem contra as minhas bochechas. — Você, Chloe...
— O que quer de mim? — pergunto. Lilith só sorri. Eu estou
sentindo, há algum tempo, a sensação de que estou sendo observada. E pelo
seu sorriso de canto, ela também sente.
— Acho melhor discutirmos isso depois, você não acha? — Ela pisca.
Ela fita Luke, que acena em concordância. Eu engulo em seco e vejo a loira
erguer o olhar para um dos seguranças no canto da sala. — Levem-na.
E logo sinto mãos pressionarem contra os meus dois braços, me
colocarem de pé. Meu olhar continua rente ao da mulher à minha frente. Ela
deixa suas grandes asas brancas serem expostas, balançarem com suavidade
contra a grande sala em que estamos, querendo me intimidar.
Há um sorriso de canto maldoso nos lábios de Lilith. Luke está ao seu
lado, me assistindo sair da sala. E eu sou forçada a me virar e caminhar para
fora dali.

Aperto o colar do Noah na minha mão e ergo o olhar para frente. Os


dois guardas estão a três passos de mim e dois passos um do outro, me
permitindo uma pequena visão através das grades dessa cela imunda.
A minha mãe está tão cercada quanto eu, do outro lado. Respiro
fundo, porque quero conversar com ela, mas não com esses caras nessa cola.
Eu quero pedir desculpas, pedir desculpas por ela estar nessa posição.
Abraçá-la e dizer que tudo ficará bem. Afundo o rosto entre meus joelhos,
mesmo sendo assistida dentro da cela, me permitindo chorar.
— Onde está, Noah? — sussurro.
Estou desesperada. Eu segurei esse choro por muito tempo e estou
desesperada. Quero que esse pesadelo acabe, quero Hellmeister de volta,
quero ver o meu irmão, quero a minha família em segurança.
— Me pergunto o mesmo. — Ergo a cabeça. Lilith está contra a cela,
do lado de fora. As suas asas estão expandidas e há um sorriso maldoso em
seu rosto, obviamente. — Luke foi tirar uns minutos para si e me deixou com
uma tarefa maravilhosa. — A cela se abre e percebo que a cela da minha mãe
também. — Descobrir onde está a arma que matará o nosso namoradinho,
Chloe. Porque sentimos que você sabe disso. Mas você criou resistência aos
meus poderes...
Ela entra na minha cela e dá passagem para a minha mãe ser jogada
perante os meus pés. Mamãe está pálida, estava chorando como eu. Ela se
recusa a me encarar.
— Contudo, eu sei ser bem criativa — Lilith acrescenta. Sinto meus
ombros mais tensos, medo por cada veia do meu corpo. — Além de pulmões,
coração, cérebro... Existem 206 ossos no corpo humano, sabia disso? — Ela
se aproxima da minha mãe. Escuto a minha mãe gemer de dor e não sei o que
Lilith está fazendo com ela, mas arregalo os meus olhos e tento avançar em
sua direção. Contudo, me sinto presa ao chão. Lilith estala a língua algumas
vezes. — Quieta! A não ser que queira falar.
— Deixe-a ir, por favor... — imploro e isso faz Lilith rir.
— A deixarei viva, por ora, sem sofrer... — ela diz — Se me disser
onde está a arma que matará o Noah.
— Eu não sei.
— Oh, sabe! — Lilith faz a minha mãe gemer de dor e eu escuto um
osso quebrar. Foi na mão. — Estou sendo boazinha no início, está vendo? Me
pergunto, porém, o que acontecerá se eu quebrar o pescoço da nossa querida
Donna...
Engulo em seco. Eu não posso fazer isso com o Noah, mas eu não
posso machucar a minha mãe também.
Meu coração está batendo estrangulado e eu sinto que está quase
saindo pela boca. Vejo a minha mãe cada vez mais vermelha, como se
estivesse sem ar. Seu olhar encontra o meu e eu sei que dor ela está sentindo,
o que me deixa ainda mais desesperada.
— 205 ossos agora, Mitchell. E uma falta de ar dolorosa. Mas se eu
deixar o ar voltar... — Ela faz um gesto delicado com as mãos e a minha mãe
puxa o ar de volta. — Os pulmões da sua mãe também doem, ainda mais se
eu os privar de ar logo em seguida. — Outro gesto e a minha mãe é sufocada
novamente...
Fecho os olhos, implorando para que Noah apareça de uma vez. Mas
não o sinto me observando, eu não o sinto. Aperto o colar entre meus dedos,
mas perco o controle sobre o meu corpo e o cordão cai no chão.
— Mais uma chance, Chloe. — Escuto a loira falar.
O som dos seus passos me faz abrir os olhos. Ela se aproxima da
minha mãe e brincando com uma de suas mechas ruivas.
Tem um sorriso perverso como nenhum outro na mulher atrás da
minha mãe. Um que faz meu sangue gelar por completo.
Outro som de osso se quebrando, outro dedo. Aperto os olhos com
força, chorando de puro pavor. A minha mãe grita de dor mais uma vez,
chama pelo meu nome. Ela grita por mim.
Isso é o pior tipo de tortura que poderia existir. Ainda assim, Lilith
está sentindo prazer com tudo isso, enquanto diz pausadamente:
— Onde. Está. A. Arma?
Fito a minha mãe e Lilith a faz cair ao chão quando permite que ela
respire. Donna está com os olhos vermelhos, segurando a mão machucada.
Dois de seus dedos estão vermelhos e tortos.
— No seu lugar, Chloe, eu não testaria a minha paciência — Lilith
insiste. Fito os olhos da minha mãe. Ela balança a cabeça em negação,
chorando de dor. — O que acha, Donna? — ela pergunta, fingindo doçura em
seu sorriso.
Outro som de um osso se quebrando, dessa vez na perna. O grito que
sai da garganta da minha mãe é horripilante e faz todo o meu corpo
estremecer com um arrepio profundo. O grito escapa pela minha garganta:
— PARE! PARE! PARE COM ISSO! — A minha visão está
completamente embaçada, eu estou desesperada e chorando tanto que meus
pulmões parecem que estão em brasa. Preciso me lembrar de respirar, tanto é
o temor.
— Onde está a arma? — Lilith pergunta. Eu imploro que Noah
apareça, imploro mentalmente. Eu ainda imploro que isso se resolva, porque
eu não quero colocá-lo em jogo. Lilith mexe uma das mãos novamente, como
se sufocasse de longe a minha mãe. E Donna leva as mãos ao pescoço,
perdendo a cor para um tom vermelho e intenso. — Mais um pouco e será o
pescoço, Chloe...
Escuto meu nome escapar pela boca da minha mãe, por um fio. E
então não dá mais:
— EU NÃO SEI! — digo e ela me encara. — MAS EU SEI ONDE
VOCÊ PODE DESCOBRIR! — E Lilith solta a minha mãe, que busca o ar
com um desespero nítido. Seu choro preenche a cela.
— Estou ouvindo — Lilith diz, quebrando outro dedo da minha mãe.
A minha mãe grita mais uma vez.
— NO MEU APARTAMENTO! — digo de uma só vez, me sentindo
horrível por estar fazendo isso. Não há outra escolha. Libero o choro
enquanto falo. — Está no meu apartamento! Luke com certeza sabe onde
fica. Ele sabe. O meu apartamento. Kold deixou um papel em algum lugar,
com o lugar onde a arma está. Só por favor, não a machuque, não machuque
a minha mãe.
Estou implorando, enquanto o choro de Donna reverbera pela cela.
Lilith sorri largamente e quebra mais um dedo da minha mãe, por pura
diversão. O som que escapa da garganta da minha mãe me faz pedir para que
Lilith pare, mais uma vez.
— Devolvam a mamãezinha para a outra cela — Lilith ordena, aos
seguranças, sorrindo.
Os rebeldes obedecem e eu imploro que minha mãe me perdoe,
enquanto ela geme de dor, tentando caminhar, mesmo com a fratura. A
agonia cresce em meu peito e eu fito Lilith com ódio, mais puro ódio. Ela
inspira fundo, como se o sentisse no ar e o apreciasse. Seu sorriso se mira em
minha direção, sua ironia é disparada:
— Foi ótimo fazer negócios com você, Chloe.
Angeline e eu estamos lado a lado, a alguns quilômetros do Inferno.
Seu olhar provavelmente analisa como as coisas estão mais secas e diferentes
por aqui, como um deserto. Há algumas celas espalhadas pelo lugar, cúbicas
e pequenas, cercando o palácio. Estamos na região do Purgatório, o
purgatório real, conseguimos ver as almas dentro das celas, presas em
pesadelos, tentando encontrar um modo de escapar de suas pendências e de
conquistarem uma nova chance de vida.
O olhar de Angeline cai sobre mim. Ela está vestindo a mesma calça
verde musgo e regata branca de antes, com suas asas expostas. As tranças
seguem pela raiz do seu cabelo branco, depois seu cabelo segue em um rabo
de cavalo. Ela usa luvas brancas nas mãos que deixam apenas os dedos de
fora e tem uma longa espada em cada uma delas, além do cinto de facas na
cintura.
Como aliados temos aqueles que seguram bestas, espadas, adagas,
aqueles que seguram arcos e aqueles que seguram armas que parecem as
armas de fogo que existem na Terra.
Matt surge ao meu lado, após dar alguns passos. Marcas de
cicatrização ainda são perceptíveis em seus braços. Letterman veste uma
espécie de armadura branca, bem como muitos anjos por aqui. Suas asas
estão livres e seu olhar está focado no nosso objetivo, carregados do que
parece ser fúria. Ele tem uma adaga em mãos.
O olhar de Angeline e Matthew se voltam para mim, como se
perguntassem se estou pronto. Tive uma sensação ruim há alguns minutos
enquanto planejávamos o ataque. Eu sei o que isso significa. Ou acho que
sei...
Acho que Lilith e Luke conseguiram o que queriam. Aposto que eles
estejam em posse da arma que pode me matar.
Estou com uma jaqueta de couro e uma blusa azul escura. A falta de
um terno caro faria Chloe fazer alguma piada, acho. Esse pensamento faz
meu coração doer em saudade, muita saudade. Eu mal posso esperar para
esse pesadelo acabar de uma vez. Enfim... Tudo o que tenho em mãos são
duas adagas de lâminas curvas.
— Quero um grupo na entrada dos fundos, outro na torre mais alta —
digo para Angeline — e a menor parte dos guerreiros na entrada principal.
Quero alguns pelo ar, me seguindo para dentro por cima.
— Não poderia simplesmente aparecer lá? — Matt pergunta.
— Depois de conversar com Angeline, de analisar nossos planos...
Não quero fazer isso sozinho. Sinto que seria imprudente. — Ele não faz
mais perguntas. — Se possível, quero você ao meu lado, Matthew. — O anjo
assente.
— E eu também vou com vocês — Angeline diz e nós a encaramos.
Concordamos.
Ela ergue levemente a cabeça e um sorriso de canto brinca nos seus
lábios. Um que grita que ama lutar, um que me faz lembrar da Kold. Kold
amaria estar aqui, ela amaria esse clima de adrenalina que antecede uma
batalha difícil. E ela, provavelmente, estaria usando da sua melhor arma para
nos tirar do sério: sarcasmo.
— ATENÇÃO! — O grito de Angeline deixa todos em silêncio.
Consigo ouvir as respirações e sentir o respeito que paira no ar em
relação à minha tia. Angeline estende os braços, mirando as espadas ao chão,
como se preparada para combate. Consigo sentir sua ansiedade daqui.
Ela se vira, fitando os grupos já separados. Angie repassa as ordens
que eu pedi, projetando a sua voz e conquistando toda a atenção para si.
Todos a escutam atentamente.
A maior parte dos anjos passam à nossa frente, deixando apenas um
grupo com os melhores guerreiros conosco. A maioria desse grupo são
mulheres com seus cabelos trançados ou presos, segurando lanças e vestindo
armaduras brancas. A minha tia me fita, como se perguntasse silenciosamente
se tudo está bem. Matt, ela e eu fitamos o exército que marcha para o palácio.
É impossível não pensar em quantas vidas serão perdidas aqui hoje.
A minha mente busca por Chloe e a vejo ser guiada por dois
demônios, cada um segurando o seu braço. Lilith está logo à sua frente, em
um vestido preto, segurando uma lança prateada.
— Ele está aqui, não está? — Chloe pergunta e Lilith a encara por
cima do ombro, mas não a responde. — Noah está aqui. — Chloe tenta ficar
na ponta dos pés enquanto é empurrada para frente, se esgueirando para
tentar enxergar as janelas do corredor por onde passa, na esperança de ver
algo que indique que eu cheguei. E um sorriso cresce em seus lábios, seus
olhos brilham, eu acho que ela me sente, de algum modo. — Ele está. Vocês
estão fodidos.
— Eu não teria tanta certeza — Lilith rosna baixinho, segurando a
lança com maior firmeza e fazendo suas asas balançarem ao guiar Chloe
escada abaixo pelo palácio.
A mãe da Chloe não está com elas, por isso a busco.
Donna está suando em frio numa cela, machucada. Muito machucada
devo dizer. Gotículas de suor, olheiras profundas e uma respiração pesada.
Ela está sentada no canto da cela, com as pernas estiradas e uma dela está
coberta por um pano, visivelmente torta. Acho que foi quebrada.
Respiro fundo, enquanto ódio flui por minhas veias com agilidade.
Cerro meus punhos e me viro para frente, deixando as asas negras se
expandirem.
Vejo alguns dos anjos escolherem sobrevoar, mais rápido. E por
último, vejo o portão da frente do castelo se abrir, permitindo a saída de um
exército de demônios em armaduras que variam de bronze, a cobre e prata.
— Prontos? — questiono e vejo os dois assentirem. E então
sobrevoamos em direção ao castelo, com uma legião de anjos atrás da gente.
Angeline, Matt e eu entramos por janelas em forma de grandes arcos,
abertas, num corredor silencioso. Escutamos a guerra no andar debaixo,
gritos e ordens, sons de espadas e gemidos de dor. Mas onde estamos está
quase vazio. O que é estranho. Duvido que Lilith e Luke não saibam que
estamos por aqui. Estranho que não apareçam.
Nós estamos acompanhados de cerca de seis ou sete guerreiros do
Céu. O restante acabou ficando pelo caminho, para ajudar na luta, enquanto
nos cobriam para entrarmos pelas janelas, por cima.
— Primeiro, a Donna — Matt relembra o plano e eu assinto.
Angeline dá ordens e faz sinal para que seu pessoal se espalhe pela região e
nos dê cobertura. Aceno com a cabeça para a direção que nós três temos que
seguir.
Em pouco tempo estamos em um corredor que parece feito de bronze.
As luzes por aqui são amareladas e iluminam pouco. Esse é o corredor que
antecede a masmorra, onde as celas estão. Onde sei que Donna está.
Escutamos a porta a se abrir e nos escondemos atrás de grandes
pilastras grandes e arcaicas. Contudo, quando olhamos para frente, vemos
dois guerreiros da Lilith, dois demônios com suas asas longas expostas.
Angeline é rápida em guardar as espadas na bainha do seu cinto e retirar duas
facas do mesmo, arremessando-as contra os pescoços dos dois infelizes.
Sua mira espetacular os faz caírem ao chão, e chama a atenção dos
guardas que acabam de sair da masmorra. Praguejo e nos colocamos em foco,
vendo-os urrar e avançarem em nossa direção, tentando nos acertar golpes
com suas lanças.
Matt é o primeiro a atingi-los, ao escorregar pelo piso liso e brilhante,
acertando os pés de um dos guardas, o derrubando.
Eu sou o próximo, me teletransportando para trás do outro e
atravessando as minhas duas espadas pelo abdômen dele, vendo o sangue
jorrar no chão. O empurro com o pé e escuto o momento exato em que Matt
acerta a sua adaga na jugular do demônio ao chão.
Já temos sangue em nossas roupas, menos Angeline, que desembainha
suas espadas novamente e bate as lâminas uma na outra, sorrindo como se
dissesse "bom trabalho".
Passamos pela grande porta e estamos na escadaria que nos guia à
masmorra. Subimos um pouco, Matt cobrindo Angeline e eu à frente da
minha tia, atento a tudo e a todos.
Assim que chegamos onde eu queria, eu peço que façam silêncio,
levando o indicador a entre os lábios.
— Angeline — sussurro e ela deixa seus olhos cinzas caírem sobre
mim —, você cuida dos guardas do lado de fora da cela. Matt continua aqui,
atento — ordeno e o anjo assente.
Desapareço e surjo atrás dos dois guardas que vigiam Donna. Os
olhos da ruiva se arregalam em minha direção e minhas espadas penetram o
corpo dos anjos, pelas asas, por entre ossos, esmagando a carne e me sujando
ainda mais de sangue. Eles caem, ajoelhados.
Escuto seguranças correndo até a cela da Donna, mas numa
velocidade impressionante, Angeline surge. E eu só tenho tempo de ver o
borrão de suas asas quando seus pés encontram o rosto de um dos demônios e
ele cai ao chão.
Uma das duas espadas da Angie corta a perna de um guarda e acerta o
outro no pé. Ela ergue o corpo o suficiente para acertar o chute nesse último
ele cai ao chão. O que perdeu a perna está no chão, urrando de dor. Ele
recebe um golpe de espada em seu peito e essa mesma espada é rapidamente
guiada para o peito do outro, que estava se recuperando e se reerguendo.
Impressionante.
Abro a porta da cela e saio a tempo de ver Matt lutando contra dois
guardas. Angeline entende o meu olhar e corre para ajudá-lo, enquanto volto
para Donna e seguro as suas mãos.
— Como está? — pergunto, tocando a sua pele fria. Donna geme de
dor e eu praguejo. — Ok, eu preciso que confie em mim. Pode tentar fazer
isso?
— Tenho escolha? — Ela me faz rir.
— Vou te levar de volta à Terra.
— Não, Noah...
— Eu vou cuidar da sua filha, Donna — garanto, fitando-a em seus
olhos verdes. Donna respira fundo, tensa. — Nem que eu morra por isso, mas
eu não posso fazer isso direito se você estiver aqui, em perigo. É uma
preocupação a mais. Sua família está cercada por anjos e muito bem
protegida no momento. Você vai à Terra e assim que possível vai para um
hospital... Porra... Você precisa ir para um hospital. E isso é o melhor que
pode fazer por sua filha.
Seus olhos se escurecem no que parece melancolia. Seguro as suas
mãos novamente.
— Preciso que queira ir embora — peço.
— Isso não é um esforço. — Ela me faz rir novamente.
— Feche os olhos — ordeno. Ela obedece. Em questão de segundos,
estamos no meu apartamento. Donna está no chão enquanto vejo Molly,
Brianna, Riley e Ben brincando de puxar a asa de um dos guerreiros que
Angeline enviou para cá. O que explica porque tem anjos pela sala, cerca de
cinco deles, muito bem equipados.
Ergo Donna em meus braços e a coloco sobre o sofá, a ouvindo gemer
de dor pela perna machucada. Ben grita pela mãe e eu escuto Riley soltar um
"oh, céus", assustada pelo estado em que sua irmã se encontra. Não tenho
tempo para me explicar, mas antes que eu suma, Donna segura a minha
camisa.
— Prometa, Noah — ela ordena, me agarrando pela jaqueta —, que
vai trazer a minha estrelinha de volta. E vai dizer que eu a amo. Prometa.
Olho no fundo dos seus olhos, do mesmo jeito que ela olha nos meus.
— Eu prometo.
Donna sorri fraco, segurando a minha mão com força.
— Noah? — Ela me solta, me permitindo me afastar. — Eles sabem
da arma. — Sinto meus ombros mais pesados. Eu sabia, eu senti isso. — A
minha vida estava em jogo. — Desço o olhar por seus ferimentos e agora
tudo faz sentido:
Chloe foi ameaçada para isso.
— Tudo bem — asseguro, respirando fundo. A ideia de que posso
morrer me preocupa, mas eu compreendo que não havia saída, para Chloe
não havia saída. Por mais desesperador que isso seja, por mais tenso que isso
seja, se essa é a realidade, então eu lidarei com ela. — Vai ficar tudo bem.
— Espero que sim. Cumpra sua promessa.
Balanço a cabeça em confirmação e lanço um olhar para Molly, para
que cuide de tudo por aqui. Ela parece me entender e assente. E eu sumo, de
volta ao palácio.
Meu coração pesa em responsabilidade, Angeline está ajudando Matt
a se reerguer enquanto quatro corpos cinzentos os cercam. Eles me encaram,
como se perguntasse se tudo está bem.
Donna parecia insegura. Ela não gosta de mim e mesmo assim está
confiando a mim a responsabilidade de consertar as coisas. E eu estou
apavorado, honestamente. Porque eu tenho medo de tudo dar errado. A
angústia está fechando a minha garganta no momento. Eu não vejo a menor
possibilidade de sair daqui sem a Chloe.
Quer dizer, eu posso morrer. E por mim, tudo bem. Desde que Lilith
esteja presa, Luke morto e Chloe bem e livre. Por mim, tudo bem.
Correspondo aos olhares sobre mim na mesma intensidade,
suspirando.
— Vamos. — É tudo o que eu digo.
Não há tempo para pensar demais. Tenho um colar para pegar de
volta e uma nova promessa a cumprir.

Eu realmente nunca lutei tanto na vida.


Estamos em um corredor.
Os poucos cortes que recebi, rasgaram a minha jaqueta. Eles estão se
cicatrizando rapidamente. Todavia, os de Matt nem tanto. De nós três,
Letterman é o mais cansado, com suor escorrendo pelo seu rosto e a
respiração ofegante.
Giro o corpo, atingindo a minha espada contra as costas de um
demônio, girando em seguida na direção oposta para chutar outro rebelde.
Esse cai ao lado de Matt, que usa da força de suas asas para se impulsionar
sobre um inimigo e cravar sua adaga na testa dele.
Angeline acaba de acertar um chute contra a bochecha de um
demônio, que caiu nocauteado ao chão. Não demora muito para suas duas
espadas atravessarem outro inimigo e ela usar também da perna para afastá-lo
das armas sujas de sangue.
Cinco anjos estão conosco, um morreu.
O último demônio nesse corredor largo morre sobre o piso brilhante.
Agora vejo que há vermelho por todo o chão. Os corpos dos demônios estão
se tornando cinzas, com suas asas abertas e olhos mirados ao teto. A morte
paira em cada molécula de ar nesse lugar.
— Precisamos chegar até o Luke logo — Matt reclama. Concordo,
ofegante. Passo as mãos pelo cabelo, que já estão um pouco molhados. Busco
por Luke em minha mente novamente e me arrependo por isso.
Na sala do Trono, onde o loiro está presente, Chloe está acorrentada,
ajoelhada ao centro e os guardas ao seu redor. Lilith está ao lado da grande
janela em arco da sala, suas mãos se movendo conforme tenta matar os anjos
que seu olhar encontra. Percebo a falta de cor em seu rosto, ela parece
cansada. Tudo o que está fazendo lhe demanda muita energia. A cada
segundo de guerra, ela perde mais. Mas Luke está no trono com a lança
vermelha de Escarlatum em mãos. Brilhante e afiada, preparada para eliminar
qualquer um que pense em se aproximar dali. Como eu.
Respiro fundo. Aceno indicando o caminho e sou seguido por
Angeline, Matt e os demais anjos.
Enquanto Angeline, Matt e eu descemos a escada principal, deixamos
um rastro de sangue a cada degrau. Seguimos com cautela enquanto
assistimos anjos e demônios se matarem, agressivos entre urros, gemidos e
sons de golpes dolorosos.
Ao primeiro piso, encontramos mais caos. Celestiais em luta, corpos
sem vida, armas e poças de sangue.
Sem pensar em gastar tempo lutando, corremos pelas laterais do
grande salão, rumo à sala do Trono. Contudo temos que parar algumas vezes
para nos defendermos ou desviarmos de corpos em queda e lutas violentas.
Quando chegamos ao último corredor antes do espaço do trono, eu
vejo que tenho, agora, quatro anjos, além de Matthew e Angeline.
Ainda há guerra por aqui. Vemos anjos e demônios batendo suas
espadas e adagas, cortando uns aos outros. Angie segura o meu braço para me
avisar de algo, mas eu já estou vendo.
Sinn está ao centro do corredor, com uma lança em mãos e um sorriso
de canto, sanguinário, me olhando. Há sangue por seus braços e mãos, sua
camisa tem pequenos rasgos e fúria transborda por seus olhos. Sua arma é
incapaz de me matar, mas ele não parece lembrar disso.
Ele só quer me ferir.
— Porra — praguejo.
Eu poderia me infiltrar na sala ao fim do corredor, meu objetivo, mas
para tal teria que deixar Angeline, Matthew e os anjos lidando com o meu
amigo e por mais que Angeline não possa ser ferida, Matt pode. Ademais,
Sinn pode causar um estrago aqui fora.
E por falar nele, meu amigo se move em questão de segundos para
perto de mim e tenta me atingir com a arma, mas eu derrubo minhas espadas
e bato meu braço contra sua lança, o fazendo abaixá-la.
E então ele vai para frente de Angeline, que é rápida em chutar a
lança dele, que não cai mas se afasta do corpo dela. Isso também não a
mataria. Mas ele não parece se importar.
Tento empurrar Sinn e ele se choca com a parede, rindo ao mudar, em
milésimos de segundos, para frente de Matt. Sinn pode matá-lo. Matthew
desvia dos golpes uma, duas vezes, usando de suas asas para voar para trás,
rapidamente. Paro em frente a Sinn, deslizando pelo chão até atingir seus pés.
Ele cai, sem a sua lança.
— Você precisa acordar, irmão — ordeno e seus olhos brilham,
vermelhos. Sinn urra e se levanta, tentando recuperar a lança, mas eu chuto o
seu braço. Matt voa até a lança e a pega, jogando-a para um anjo. O anjo
tenta avançar em direção a Sinn e eu ordeno que não faça isso, mas já é tarde
demais. Sinn surge atrás desse anjo e aperta o seu pescoço com força, sua
grande mão preenchendo toda a nuca do rapaz.
O anjo tenta acertá-lo sem sucesso, urrando de dor, cada vez mais
vermelho por falta de ar. Percebo que Angie está prestes a atacar Sinn pelas
costas e grito para que ela pare, o que o faz se virar. Ele derruba o anjo no
chão, recupera a lança e avança em minha direção e eu faço o mesmo,
abrindo as asas para tal. Somos um conjunto de asas, socos e respirações
entrecortadas no momento.
O derrubo no chão, o que faz a lança cair também. Seguro seus pulsos
com força, gritando para que ele pare de lutar. Eu quero que ele acorde, eu
preciso que ele acorde.
Sinn inverte as posições e soca o meu rosto duas vezes. Eu sumo de
debaixo dele e ele se levanta, quando um anjo se põe na frente dele,
instintivamente, tentando pará-lo. Contudo, meu amigo segura a espada do
seu oponente, bem na lâmina, deixando-a cortar sua mão um pouco, que
sangra. Sinn aplica força o suficiente para a arma cair ao chão e soca o anjo
duas vezes. Outro anjo corre na direção dele e ele desvia um golpe,
segurando o pulso do rapaz quando ele tenta atingi-lo novamente... e fácil
assim, Sinn o faz furar o próprio corpo.
O anjo cai morto perante seus pés e Matt avança contra ele, socando-o
uma e duas vezes. Sinn cambaleia para trás, tenta atingir Matt e eu entro no
meio do caminho, segurando-o pela garganta e o fazendo se chocar com força
contra a parede mais próxima.
Sinn busca pelo ar e minhas mãos queimam em seu pescoço, o
fazendo grunhir. Ele parece mais fraco e eu o soco uma, duas, três vezes,
ordenando que ele acorde. Estou passando do limite que havia traçado, o
ferindo mais do que deveria e implorando para que ele recobre a consciência,
porque não posso perdê-lo também.
Paro somente quando vejo o vermelho sumir das suas íris. E Sinn cai
ao chão, deslizando pela parede. Me ajoelho perante seu corpo, ele está
buscando por ar, cuspindo sangue. Mas é o Sinn. É ele, finalmente.
Meu amigo está agitado e completamente apavorado, olhando ao
redor, sem compreender o que está acontecendo.
— Calma! Calma! — Seguro seu rosto com uma das mãos. — Está
tudo bem! Respire! Respire! — Ele olha nos fundos dos meus olhos e
obedece, respirando fundo, bem fundo.
Lágrimas transbordam dos seus olhos e eu imagino que ficar sob
controle da Lilith não tivesse sido fácil. Abro a boca para perguntar como ele
está se sentindo, enquanto o assisto fechar os olhos pelo cansaço físico e
mental, mas algo muda.
Sons de espadas caindo ao chão, respirações descompassadas cessam,
não há lutas. Olho ao redor, bem como Sinn. Angie está boquiaberta, bem
como Matt. A maior parte dos anjos e demônios estão parados como estátuas,
em poses de luta. Alguns estão parados no ar, outros caídos. Os que não estão
paralisados, acabam de parar de lutar, confusos.
A porta dupla ao final do corredor se abre e eu a vejo. Seus fios loiros
estão soltos sob uma coroa de lírios e ela não carrega arma alguma. Lilith
caminha com os pés descalços por sangue e caos, seu olhar atento ao meu.
E quando para ao centro do corredor, sorri primeiro para Angeline e
depois para mim. Ela ergue uma das mãos e a gira. Sons de ossos se
quebrando reverberam por todo o ambiente.
E todos aqueles paralisados caem, seus pescoços torcidos. Os olhos de
Lilith ficam mais acinzentados do que azuis e seu sorriso, mirado em minha
direção, cresce em loucura.
Vejo Luke surgir pelos portões, com a lança vermelha e vibrante,
segurando o braço da Chloe. Ele passa por Lilith e joga Mitchell contra o piso
e a minha ruivinha cai entre corpos e sangue. O meu anjo ergue os olhos para
mim.
Os mesmos olhos escuros e brilhantes que me prenderam para si. Os
olhos que eu amo.
E de algum modo, eu sinto que esse é o começo do fim.
Noah está me encarando de um jeito diferente. O tipo de olhar que
transborda amor, mas não te deixa feliz. Te deixa triste. Te deixa com medo.
Com medo do que virá a seguir.
É um daqueles momentos que eu percebo, mais do que nunca, que eu
o amo. Porra, eu o amo. E é por isso que eu sinto tanto, sinto tanto por ter
ferrado tudo para nós dois.
Claro que entre ele e minha mãe, eu escolheria a minha mãe. Mas
ainda assim me sinto culpada. Dói bastante. Porque eu dei a única coisa capaz
de lhe tirar a vida aos seus maiores inimigos. Isso é tão fodido, tão confuso,
tão bizarro.
— Desculpa — balbucio. Ele não reage, Noah não reage. Por alguns
bons segundos eu me questiono se ele me ouviu, com seu corpo ajoelhado
perante Sinn, seus olhos focados nos meus.
Seus olhos. Porra.
São como duas joias pretas e brilhantes, escuras e lindas, tão, tão
lindas. Os olhos do Diabo, do ser mais assustador e maldoso segundo a
humanidade... São as coisas mais lindas que já vi. Acho que os olhos de
Noah se tornaram ainda mais bonitos depois que eu conheci a sua alma. Ele
dizia, e ainda diz, que ela é carregada de escuridão. E é bem verdade que toda
alma tem uma boa dose de caos. Mas há beleza no breu, há beleza no caos.
Há beleza em como nos reerguemos e buscamos a luz, ainda que perdidos em
nosso próprio mundo. E Noah fez isso como ninguém.
Acho que no fundo é isso o que ele sempre buscou sem perceber: luz.
O garoto perdido em busca de qualquer mísero raio de sol para lembrar que
não precisa viver na escuridão para sempre.
Ele é muito melhor do que acham que ele é.
Noah assente. Sua cabeça balança em confirmação ao meu pedido de
desculpas. E ele não só o está aceitando, mas está deixando claro que tudo
está bem. Mas não está.
Ele se levanta lentamente, todos os olhares sobre ele. Noah engole em
seco quando vê a arma nas mãos de Luke. Ele anda até ficar de frente para...
Uau, essa é realmente a mulher mais impressionante que já vi. Sua pele negra
contrasta com seus olhos cinzas e suas asas brancas são enormes. Seus fios
são cinzas e todo detalhe em seu rosto marca um misto de poder e doçura.
Seus olhos estão focados em mim.
Bem como os de Matt, ao seu lado. Meu amigo está com uma adaga
em mãos e seus olhos vidrados nos meus. Ainda vejo os machucados nos
seus braços e vou enchê-lo de porrada quando sairmos daqui. Como pode ser
louco de vir para uma guerra enquanto se recupera?
— Lilith — Noah diz. Vejo o modo como engole em seco, ainda
parado. Eu sinto tanto que ele esteja nessa posição, encarando a pessoa que
fodeu a sua mente.
E ela caminha, passando por mim. Lilith desfila com seus pés
descalços pelo piso de mármore sujo de sangue. Há corpos pelos cantos, bem
como anjos e demônios nos assistindo. A loira para a metros de Noah e ergue
a cabeça. Sei que ela o analisa nesse momento. Noah me fita por cima do
ombro dela, como se não quisesse a fitar nos olhos.
Seus olhos estão sobre os meus e ele parece tranquilo, mas eu o
conheço. Noah está discretamente estalando os dedos da mão, ele está
nervoso.
— Vai precisar de mais energia de quiser entrar na minha mente,
Lilith — Noah provoca.
— Não custava nada tentar. — Ela dá de ombros. Seu corpo se
aproxima do dele e seus dedos finos lhe alisam o rosto, mas Noah afasta a
cabeça. Ela ri nasalado. — Costumava gostar dos meus toques, amor.
— Não me chame de amor. — Ele vira a cabeça para ela lentamente,
trancando o maxilar e a fitando com uma fúria que jamais vi.
O clima está tão pesado que o ar em meus pulmões parece pesar
algumas toneladas. O olhar de Lilith se ergue para a mulher de fios cinzas,
atrás de Noah.
— Angeline — Lilith a chama, com a voz incrivelmente melodiosa. E
agora eu sei quem ela é. A tia do Noah, a Rainha dos Céus. Angeline ergue o
queixo, arqueando a sua sobrancelha grossa e perfeitamente desenhada. —
Sempre um prazer te ver. Dessa vez está sozinha... Por que Ele não está aqui
para acabar com tudo isso de uma vez? — Lilith questiona, cerrando os
olhos. — Talvez porque ele goste disso, não?
— As coisas precisam acontecer por uma razão — Angeline responde
e Lilith ri nasalado.
— Oh, claro — ela desdenha, passando direto por Noah. — Me diga,
Vossa Alteza. — Lilith desfila até a Rainha. — A arma que o Luke segura...
Ela também pode te matar?
— Por que não testa? — Angeline a desafia. Parece que o ar falta em
meus pulmões e eu vejo Noah erguer as sobrancelhas, tão surpreso quanto eu
pela resposta de Angeline. — Vai ser divertido rir da sua cara quando a lança
não atravessar nem a minha pele.
Eu não sei se a Rainha está blefando, mas pelo modo cortante como
fala, ela soa incrivelmente verdadeira. Lilith ri nasalado e se afasta, girando
em seus calcanhares e sorrindo para mim.
— Pequena história — Lilith cantarola, caminhando pelo corredor
—, homem nobre conhece mulher, uma súdita; homem se encanta pela
mulher, homem e mulher se deitam, dessa relação, nasce uma criança. —
Lilith para ao centro do espaço, se virando para o Noah. — Alguém tem algo
a dizer? Devo continuar, Angie? — Seu olhar cai sobre Angeline.
— Eu posso continuar — Luke diz, girando a lança em suas mãos e
caminhando ao centro da sala. — Após engravidar mulher, o homem não
reconhece a criança. — Luke praticamente rosna as palavras. — E dedica
toda a porra da sua atenção entre seus dois filhos legítimos, já que precisa
prepará-los ao trono, já que são da família real... — Ele gira a lança mais uma
vez, fazendo meu coração se apertar a cada passo. — E enquanto o filho mais
velho aprende sobre a responsabilidade de se tornar Rei de um reino infernal,
o bastardo é criado pela sua mãe como um mero guerreiro, o filho de um dos
funcionários do palácio, como nada... — O olhar de Luke cai sobre Angeline.
Noah ri nasalado e todos nós o encaramos. Seus olhos negros
exprimem escárnio enquanto ele anda, para a direita.
— Então você está dizendo que é meu irmão? — Noah claramente
debocha. Vejo Luke apertar a lança com mais força e franzo o cenho para
Noah, me perguntando que porra ele acha que está fazendo. — Bom, eu sinto
muito. Theo está de prova que é muito melhor ser meu amigo do que meu
irmão. Não sou lá essas coisas, sabe? Mas se bem que, de vez em quando,
dou um bom conselho ou outro, irmão. — Noah está abusando do deboche e
isso está me deixando irritada e preocupada. — Escolha melhor as pessoas
que te cercam. Digo por experiência própria.
— O que quer dizer? — Luke pergunta. — Você quer dizer que eu
não escolho direito, não é? Porque eu tenho a Lilith.
— Você não tem ninguém, Luke — Hellmeister desdenha, falando
em alto e bom tom para todo mundo ouvir, de braços abertos. — A Lilith tem
você, mas você não tem ninguém. Se conseguir o trono do Inferno, se
conseguir tudo o que sua inveja deseja, vai ver que, no tempo certo, Lilith vai
conseguir te manipular a dar a ela tudo o que ela quer, absolutamente tudo.
Ou pior, você não vai cair no jogo dela e vocês dois vão se matar por poder.
— E acha que eu sou o fraco, o que perderia? — Luke dá um passo
em direção de Noah e eu sinto meu coração doer.
— Não. — Noah se aproxima de volta. — Talvez não. Ela não é mais
forte como antes, acho que ela perderia.
E agora eu fito Lilith. Uma de suas sobrancelhas se ergue, seus
punhos se cerram. Luke ri nasalado, mas não nega o que foi dito. A loira
engole em seco nitidamente. Vejo seu tronco subir e descer com mais
frequência, conforme respira.
Um arrepio segue por minha coluna enquanto a encaro, porque parece
que ela emana ódio no momento. Tudo que é ruim dentro do seu corpo parece
discretamente lutar para ser colocado para fora, Lilith parece se esforçar para
manter a calma.
— Ela provavelmente vai arranjar um jeito de reconquistar poder —
Noah continua —, se ela não encontrar... O que é possível, afinal, talvez o
tempo em cárcere a tenha deixado louca... Se ela não encontrar, você
conseguirá matá-la facilmente. — Noah se afasta de Luke. — Ou não,
porque você é fraco demais, Luke.
E Luke, furioso, tenta surpreender Noah com um golpe, mas Noah
desaparece, surgindo atrás de mim.
— E previsível — Noah acrescenta, fitando Lilith. — Você já poderia
ter me matado mil vezes aqui, Luke, mas você quer provar que é superior,
você quer uma luta, você quer mostrar pra todo mundo aqui que é mais
esperto e mais capaz. Mas eu não acho que esse seja o caso, porque todo
mundo sabe que você provavelmente foi manipulado por ela. — Noah aponta
para Lilith e Luke a encara. — E que se eu morrer aqui hoje, o feito será dela
e não seu.
— O que está fazendo? — Lilith rosna, baixo.
— Se eu morrer aqui hoje, Lilith conseguiu o que queria, os rebeldes
conseguiram o que queriam e você, Luke, foi apenas um meio para tal.
Talvez por Lilith estar um pouco enferrujada, você consiga reverter as coisas,
mas será?
Noah muda novamente de lugar, parando ao lado de Angeline. Ele
está mudando de lugar para não ser pego.
— Você conseguiria matar Lilith e provar pra todo mundo que é o
mais forte, Luke? — Noah provoca, mudando de lugar novamente, para trás
de Luke. — Acho que não. — E ele muda mais uma vez. Luke o procura
como um garoto perdido, apenas para encontrar o meu namorado ao lado de
Lilith. — Lilith é maior que você, Luke? — Noah para em frente a Luke. E
aguarda alguns segundos.
Então ele desaparece e Luke aparece em seu lugar, mirando a arma
para onde Noah deveria estar, a milímetros de acertar Lilith, mas
completamente parado.
Luke está paralisado. Como uma estátua, completamente vermelho
por fúria, com uma veia nítida em sua testa enquanto a lança se aproxima
bastante do abdômen de Lilith. A loira somente ergue seu queixo, o
analisando. Noah aparece ao meu lado.
Estou assistindo a reação de Lilith como se minha vida dependesse
disso. E ela está de nariz empinado, com seu ar de soberba, enquanto Luke
não consegue se mexer. Vejo as mãos de Lilith abrirem, apenas para se
fecharem novamente. E a lança que Luke segurava cai ao chão. Um suspiro
de alívio quase me escapa.
Vejo Angeline se mover discretamente enquanto Matt continua
parado. Sinn está ainda sentado, mas tentando ver melhor o que acontece. Ele
não parece muito bem. E agora percebo que Angeline, Matt e Noah estão
bem separados, cercando a sala.
Lilith se agacha perante Luke apenas para pegar a lança vermelha
para si. Ela ergue uma de suas mãos e o corpo dele se relaxa apenas para que
a loira consiga usar do seu poder para asfixiá-lo.
— Como ousa? — ela profere, pausadamente. Luke está buscando por
ar e eu percebo que é isso: caos e fúria a alimentam. E isso o que Noah acaba
de fazer foi muito perigoso, mas ele preferiu eliminar Luke primeiro,
deixando Lilith furiosa.
E a verdade é que se Luke tivesse conseguido matar Noah, em frente
à Lilith, a lança a teria atravessado também. Luke sabia disso. E eu acho que
é a mesma coisa que Lilith pensa. Mas ela não deixaria isso passar em
branco.
E eu quase deixo um grito de horror escapar da minha garganta
quando a lança vermelha atravessa o corpo de Luke. Sangue sai por sua boca
e o loiro finalmente para de ser asfixiado, somente para olhar para baixo e ver
o seu patético fim: morrer sozinho por ter feito uma aliança com o ser mais
maligno que poderia ter conhecido, por ter jogado a sua família no lixo e ter
seguido o que sua inveja dizia.
Lilith puxa a lança de volta, a lança agora duplamente vermelha,
coberta pelo sangue do traidor. E Luke cai ao chão, perante seus pés, como se
ela fosse a sua Rainha. Ele leva a mão ao ferimento do abdômen e Lilith faz a
lança tocar o chão, sustentando elegância arrepiante.
— Noah está errado, Luke. Você nunca ganharia de mim — Lilith faz
sua voz ecoar por todo o corredor e todos a encaram em pavor. Escutamos
pescoços serem quebrados e o restante dos indivíduos que estão aqui, exceto
por Matt, Sinn, Angeline, Noah e eu, simplesmente morrem. A morte faz seu
efeito sobre nós com arrepios e reações de surpresa e choque. — Eu nasci
para ser Rainha, Luke, e você sempre seria um bastardo.
E Luke cai, para o lado, sem vida.
Lilith expande suas asas e nos encara.
— Não é só sobre poder, mas sobre vingança e você sabia — Lilith
diz, para Noah. O vejo assentir. — Eu quero ser aquela que vai te matar. Eu
quero que todos aqueles a quem você ama assistam. Ou que morram um por
um, ainda não me decidi. — Ela arqueia uma sobrancelha. — E depois,
Noah, depois que sua morte for tão dolorosa quanto todo o tempo que fiquei
presa... Eu serei a soberana que você nunca conseguiu ser. — Lilith fita
Angeline. — E você será a próxima.
Noah sorri largamente e se aproxima de Lilith.
— Toda vez que eu olho para você — ele diz —, eu sinto tanto nojo...
Tanto nojo, Lilith, tanto desgosto, que eu me pergunto... — Seu sorriso
cresce. — Como entre tantas possibilidades eu e você acontecemos.
É o que basta para Lilith avançar contra o Noah, deixando um rugido
de ódio escapar de sua garganta. Ela expande as asas e Noah faz o mesmo.
Ela tenta acertá-lo com a lança e ele desvia, bate o braço contra ela,
bloqueando o golpe.
Angeline também expande suas asas e usa de toda a sua velocidade
para atingir Lilith e empurrá-la. Lilith e Angeline sobrevoam o corredor, as
espadas da Rainha do Céu tentando atingir a loira, enquanto a loira bloqueia
os golpes com a lança, entre gemidos e gritos de fúria.
Noah para perante os meus olhos e segura o meu rosto com as duas
mãos, ajoelhado. Eu respiro fundo em alívio com o seu toque, sentindo as
lágrimas transbordarem dos meus olhos por sentir a sua pele novamente.
— Tudo bem? — ele pergunta e eu confirmo. Ele para atrás de mim e
segura as minhas correntes. As sinto esquentarem contra o meu pulso e aperto
os olhos pela temperatura, mas Noah as puxa e elas se quebram. — Precisa
querer ir embora — ele diz. Franzo o cenho. — Precisa voltar à Terra. Você
precisa querer ir embora, Chloe. — ele fica perante o meu rosto, sorrindo e
segurando as minhas duas mãos. — Posso te levar de volta para casa.
E eu tento, tento querer sair daqui e deixá-lo enfrentar isso tudo, mas
nada acontece.
— Chloe...
— Você é a minha casa, Noah. — Ele une as sobrancelhas, sem
entender. Eu não consigo querer ir embora, eu simplesmente não consigo
deixá-lo sozinho. Porque eu não saberia viver um segundo sequer na Terra
sem ver que ele está bem.
Lilith nos interrompe ao avançar em nossa direção, depois de
empurrar Angeline com seu corpo, suas asas enormes abertas como nunca.
Mas Matthew é rápido em voar contra ela e parar em sua frente, bloqueando
o golpe com as duas espadas de Noah, que estavam no chão. Noah usa de
suas asas instintivamente para me proteger e passa suas mãos sob meu corpo.
Eu o envolvo pelo pescoço e escutamos Matt urrar enquanto tenta se defender
de Lilith.
Angeline volta a atacar a loira, o que a faz recuar de Matthew para se
defender. Isso dá espaço para Noah me erguer do chão e voar para longe, me
deixando ao lado de Sinn, no chão.
— Você precisa ir embora — ele repete —, eu sei que você me ama,
meu anjo, eu sei. — Ele acaricia o meu rosto. — Mas eu preciso que você vá.
— Ele segura as minhas mãos e eu sinto meus olhos inundarem. Eu
realmente tento, eu tento de verdade querer ir para longe.
— Eu não consigo.
— Chloe... — Um som de metal caindo ao chão nos faz perceber que
Lilith derrubou Angeline e que está prestes a atacá-la. As espadas de
Angeline estão em suas mãos, mas contra o mármore sujo de sangue — Não,
não, não...
Noah me deixa sozinha ao avançar contra Lilith numa velocidade
impressionante. A mulher bate suas costas contra a parede, mas avança de
volta contra Noah.
Angeline, ao chão, tem a perna machucada e não parece conseguir
levantar. Matthew cambaleia, segurando a sua espada e tentando se infiltrar
na briga entre Lilith e Noah, mas a loira gira a lança contra o meu namorado,
que desvia o golpe, mas a assiste bater a lança contra o corpo de Matthew,
que bloqueia o golpe com a espada. Ele tenta atingi-la uma, duas, três vezes,
sem sucesso enquanto Lilith bloqueia todos golpes dele e de Noah.
Eu sinto algo gritar dentro de mim que não posso ficar parada e
seguro duas espadas que encontro sobre o chão. Lilith consegue ferir o braço
de Matthew, que recua. A loira gira o corpo para agredir Noah e ele desvia.
Mas ela gira o corpo de novo somente para usar da lança para aplicar força e
fazer Matt cair ao chão. Ele cai e eu sinto que ela vai feri-lo. Instintivamente
avanço e tento acertá-la, mas ela é rápida em me perceber e bloquear meus
golpes com a lança. Uso de toda a pouca força que tenho para resistir, mas eu
sou apenas uma humana e ela é um anjo.
Vejo Matt jogar a sua espada para o Noah com a força que o resta,
mas Lilith percebe e vira o corpo rapidamente contra o meu namorado, numa
tentativa de empurrá-lo para o chão. Noah cairia ao chão se não fosse por
suas asas. Ele bloqueia o golpe dela com a espada, urrando por resistir. Ela
ruge de volta, usando toda a sua força contra ele. A perna dele se dobra
quando Lilith consegue impor a sua lança vermelha contra a espada dele.
— Quão forte acha que é, Noah? — Lilith pergunta. Eu o escuto gritar
e sinto que algo a mais está acontecendo. — Usou todo seu foco para a luta e
deixou a sua mente exposta. — Ela usa do seu pé para levá-lo ao chão e eu
vejo o exato momento em que ele abaixa levemente a guarda. Ainda assim
Noah rosna de dor, como se estivesse fraco e cansado demais e eu percebo
que Lilith está conseguindo entrar em sua cabeça, eu percebo que ela está
usando o máximo de sua força e energia para isso.
Noah não parece conseguir pensar, ele está tentando reagir, ele ergue
a espada para se proteger da lança, mas Lilith a ergue. Escuto a
movimentação de Angeline, que grita e tenta se levantar para evitar um
desastre, enquanto Matthew grita por mim.
Porque rápido demais eu avanço contra Lilith, com as duas espadas
que tenho, instintivamente, por Noah. Mas ela se vira rapidamente, sentindo a
minha presença e eu sinto.
Eu sinto a dor absurda. Excruciante.
Abro a boca em choque e vejo a fúria nos olhos azuis da loira. Olho
para baixo e sinto meu coração parar por um segundo, apenas para acelerar o
máximo possível. A lança vermelha e grossa está atravessando o meu corpo.
Meu cérebro ainda parece processar o que está acontecendo, sinto uma
descarga de adrenalina por todo meu ser.
Mas isso é real.
— NÃO! — Noah grita, seu rosto completamente vermelho, seus
olhos arregalados, sua sobrancelha erguida.
Eu sinto meu coração por todo o corpo. Um gosto metálico toma a
minha boca e eu sinto que é sangue. Eu sei que é sangue.
Levo a mão para a lança, ouvindo Matthew me chamar, Noah me
chamar, mas as vozes soam distantes. Eu sinto meus joelhos enfraquecerem e
a dor transbordar por meus olhos em lágrimas. Consigo ouvir meu coração
em meus ouvidos, sinto minhas pálpebras pesarem.
Lilith puxa a lança de volta.
Em questão de segundos, Noah já se libertou do controle mental da
Lilith e a empurrou contra o chão. Sinto sua fúria, enquanto caio de joelhos
no chão, a mão tentando tampar o buraco em minha pele, em vão.
Agora eu sei que o cliché é real. Realmente está passando um filme da
minha vida na minha cabeça e a primeira cena é ironicamente parecida com
essa: eu, com catorze anos, num carro, segurando um ferimento de bala no
peito do meu pai e implorando para ele ficar vivo. Agora o ferimento é meu e
eu imploro que o meu corpo resista. Sinto os braços de Matthew ao redor do
meu corpo e escuto golpes.
Meu corpo é deitado sobre as pernas do meu melhor amigo e eu vejo
que de algum modo, Noah finalmente fez Lilith, sob ele, derrubar a lança, ao
lado do seu corpo. Lilith tenta se afastar, mas Noah pega a lança e deixa sua
dor reverberar pelas paredes do palácio, fincando a arma contra o peito da
loira.
E o corpo dela se ergue ao receber o golpe, mas volta ao chão. As
luzes do lugar se apagam e voltam, tudo parece parar. O caos foi liberado e
ele está por todo lugar. Ele está por todo o Inferno, eu até mesmo o sinto em
mim. Caos está em todo lugar.
Eu estou lutando para não fechar os olhos, não ainda. É desesperador
porque minha vida inteira está se passando em minha mente e eu estou
implorando ao universo para que isso pare, porque quero viver, pelo menos
mais um pouco. Pelo menos para me despedir dele.
Matthew está me chamando e sua voz soa tão distante. Angeline se
levanta com dificuldade e para ajoelhada perante o meu corpo, suas
sobrancelhas unidas e choque por seus olhos.
— Eu sinto muito. — A escuto dizer o mais baixo possível, quase que
para si. E eu escuto Matthew chorar e negar ao que está acontecendo. Meus
olhos se focam em todo detalhe do seu rosto.
Nesse momento estou lembrando de quando o conheci. Depois de
quando conheci Molly e John. De nossas festas e das noites das nossas vidas.
E que em uma delas conheci um cara de olhos negros e sorriso maldoso, de
quando dancei com ele, me apaixonei por ele. Estou lembrando da tia Riley
nos flagrando e isso me faz pensar em Ben e mamãe, eu espero que eles
estejam bem.
Eu não sabia que tanta coisa passaria por minha mente em tão poucos
segundos.
Noah finalmente retira a lança da loira, percebendo o que fez. Porém,
quando ele se levanta e a lança cai, Noah não parece se importar com as
consequências do seu ato. Ele corre em minha direção.
Porra, isso dói. Esse maldito ferimento dói e agora eu sinto que não há
oxigênio suficiente para mim e estou tentando, eu realmente estou tentando
respirar, eu juro, eu juro. Meu corpo migra cuidadosamente dos braços de
Matt para os de Noah, que está ajoelhado. Estou deitada sobre ele, as pernas
sobre seu corpo, minhas costas sustentadas por seu braço enquanto ele segura
o meu queixo.
Tusso sangue e o ouço repetir "não" múltiplas vezes. Seu polegar
acaricia o meu rosto e eu consigo me ver pelos olhos do homem que eu amo.
Eu o amo. Eu o amo, porra, como eu amo. Cada estrela da noite que
carrega nos olhos, cada sarda leve em seu rosto, cada tatuagem em seu corpo,
mas principalmente cada pedacinho do universo maravilhoso que ele carrega
no peito.
Agora eu entendo o que Kold disse sobre honra.
— Não, meu anjo — Noah fala, baixo —, você precisa viver, você
precisa... — ele pede. Seu colar está em meu peito e eu gosto disso, eu
sempre quis roubá-lo para mim. Tusso mais uma vez, usando de toda a
energia que eu tenho para ver os seus olhos. — Você não pode me deixar,
ok? Você não pode.
— Noah... — o chamo, a voz mais rouca do que eu gostaria. Seu
braço está em minhas costas, minhas pernas sobre a sua, nossos corações bem
mais próximos. Meus dedos se prendem a sua camisa e eu tento sentir seu
cheiro, tento gravar cada detalhe. Se Noah é a última coisa que vejo antes de
partir, acho que posso partir em paz. — ‘Tá tudo bem. — Eu forço as
palavras e ele se nega, ele realmente se nega. Noah está soluçando de chorar,
completamente vermelho. — Querido, ‘tá tudo bem. — As palavras mal me
escapam. Noah une a sua testa à minha e meus olhos quase se fecham, mas eu
resisto.
— Não. Fique de olhos abertos, amor. Ainda há muito para você ver.
— ‘Tá tudo bem... — sussurro — Eu... Eu não poderia pedir por um
lugar melhor para partir... Do que nos braços do meu anjo.
Noah balança a cabeça em negação e eu acaricio o seu rosto, sentindo
o cansaço me tomar. Minhas pálpebras pesam, eu não consigo respirar e eu
estou tão exausta de tentar.
— Eu amo você, Chloe — ele diz.
E todo o universo faz sentido, todas as dores se cessam e eu consigo
sorrir. Lágrimas transbordam dos meus olhos e eu não consigo ver Noah
como conseguia antes.
Eu esperei tanto para ouvir essas palavras, eu me sentia mal por não
ouvi-las. E agora que as ouço, as amaldiçoo, porque isso é tão injusto. Parece
que nada bom vem depois de um "eu te amo", mas eu realmente esperei que
as coisas fossem melhores para nós dois, porque nada faz mais sentido que
nós dois.
Nada faz mais sentido que nossos corpos juntos, nossas almas unidas,
nossos corações em sintonia. Do que nossos sorrisos colados e do que cada
momento que já vivemos. E isso é injusto, porque eu sinto que ainda há
muitas músicas para dançarmos e dias para querermos matar um ao outro
com nossa teimosia. Ainda precisamos combinar nossas sardas em mil
possibilidades, em mil constelações.
Isso é injusto. Isso é tão injusto.
— Eu te amo, eu te amo tanto, eu te amo... Eu te amo. — Ele está
repetindo por todas as vezes que não foi capaz de dizer. Meu coração se
quebra toda vez que o escuto, mas tudo faz sentido.
Ele me ama. Eu o amo. Nada é mais certo que isso.
— Eu sei — consigo dizer —, eu sempre soube.
E eu foco no seu rosto, próximo do meu. Suas lágrimas deslizam e
caem sobre o meu corpo, eu sinto a minha força ir embora. A escuridão nos
seus olhos é a última coisa que vejo.
O breu me abraça e declara o meu fim. E de repente não vejo, não
sinto e não vivo.
Faz cerca de trinta minutos que eu não escuto mais o seu coração, só o
meu.
Era o que eu sempre quis, não era? Sentir o coração em meu peito, me
sentir vivo e ter todo o poder sob minha pele. Então, por que agora eu quero
voltar a não senti-lo? Por que eu não o quero? Por que dói tanto?
Seu corpo ainda está sobre o meu. Chloe parece dormir em meus
braços, em paz. Seu sangue está em minha roupa e o silêncio predomina ao
meu redor. Estou fitando cada detalhe no seu rosto na esperança de que ela
acorde. Acaricio seu rosto mais uma vez e ajeito seu corpo sobre o meu, a
abraçando contra mim. Sua cabeça está em meu peito e seu corpo inerte ainda
está mole contra o meu.
Ainda. Sabia que corpos humanos ficam rígidos depois de cerca de
duas horas após a morte? Se chama rigor mortis. Isso é só uma das coisas
estúpidas que ouvi ao longo dos anos. De qualquer modo, eu ainda espero
que ela acorde.
— Precisa deixá-la ir, Noah — Angie fala, atrás de mim. Sua mão
toca o meu ombro e eu não consigo desviar meus olhos da ruivinha. Meu
polegar alisa alguns dos traços do rosto de Chloe, algumas das suas sardas.
— Ela é linda, não é? — questiono. Meu coração dói só de pensar no
mundo sem sua beleza. — Todas as vezes, Angeline, todas as vezes que ela
dizia me amar, as palavras estavam entaladas em minha garganta, mas eu as
sentia. Eu a amo faz tanto tempo! E agora eu disse, eu disse que a amo com
todas as letras e com toda a força que meu maldito coração tem, sentindo a
verdade por cada batida dele... Mas ela não conseguiu nem dizer de volta.
O lugar está um tanto quanto escuro, eu sinto caos por todo o Inferno
e eu me sinto na merda. Eu nunca me senti tão mal na vida e tudo isso
simplesmente não parece real.
— Eu deveria ter dito antes...
— Noah...
— Mas eu não pude. — Minha voz falha. — Porque eu associava o
amor a algo ruim, Angie, eu achava... Eu achava que amor era algo ruim e eu
queria algo bom para nós dois. — O choro me escapa. Vejo Matt se ajoelhar
perante nós dois. — Então eu pensava que havia alguma outra palavra para
representar o que éramos, para o que sentíamos, porque parecia melhor e
mais intenso que amor, Angeline, porque parecia perfeito e era, com todos
nossos defeitos. Era perfeito. Nós éramos caoticamente perfeitos juntos, com
cada falha e cada problema...
— Noah — Matthew me chama e eu fecho os olhos. Chloe está
perdendo calor, ela está fria. E eu continuo a envolvendo, eu não quero que
ela saia de perto de mim. — Noah, precisa deixá-la ir... — Nego, com a
cabeça. — Noah! — Eu sinto dor em sua voz e o escuto soluçar. — Não é o
que ela gostaria de ver, Noah...
— Ela gostaria de viver, Matthew — retruco —, ela gostaria de viver.
E de dançar por todo o mundo, de conquistar corações por aí e ganhar
corridas. — O encaro através da minha visão embaçada. — Então não me
diga sobre o que ela gostaria ou não gostaria, porque eu sei, eu a conhecia...
Eu a conhecia...
Sinto meus ombros pesarem e afundo a cabeça no pescoço de Chloe,
desabando em lágrimas. Meu choro irrompe por todo o castelo e eu sinto
quando Angeline se ajoelha ao meu lado. Sua mão alisa as minhas costas, na
tentativa de me consolar, e Matthew está segurando a mão de Chloe.
— Precisa deixá-la ir, Noah. — Ouço Sinn dizer, contra a parede,
exausto. Meus olhos encontram os seus e meu melhor amigo está sorrindo
com pesar. Sinn se levanta e cambaleia, exausto. Ele se ajoelha ao lado de
Matt e fita o fundo dos meus olhos. — Eu prometo que vamos ficar bem, ok?
Vai ficar tudo bem...
Eu nego. Me levanto e seguro Chloe em meus braços, observando
como a sua cabeça pende levemente para trás e seus fios ruivos balançam
contra o nada. Há sangue em sua boca, seus cílios alaranjados não se movem.
Não posso deixá-la ir.
— Não, ainda não — digo.
Caminho pelo castelo enquanto os escuto me chamarem. Percorro por
entre os corpos sem vida, o sangue, a morte e as armas espalhadas pelo piso.
Paro do lado de fora, sentindo meus olhos arderem. A noite já chegou e tudo
aqui está escuro. Vejo apenas as estrelas e as tochas de fogo acesas ao redor
das celas do Purgatório.
Todo um silêncio nos envolve, as estrelas como testemunhas. O
cenário é de destruição, há morte e dor por todo o lado, mas eu não me
importo. Exponho minhas asas e fito o céu, fechando os olhos.
— De todas as punições — brado, o mais alto possível —, essa foi a
pior.
Eu falo com Ele. E eu sei que Ele me escuta.
— Você quis me punir, me ensinar algo e eu ainda não entendi. Eu só
não compreendo — digo —, eu realmente não compreendo. Quer dizer, acho
que a rixa entre Céu e Inferno se iniciou porque amei a pessoa errada e
escolhi ser cego. Alguém precisava ser punido, não era? Alguém precisava
arcar com as consequências para todo mundo acreditar que algo estava sendo
feito a respeito. Lilith foi presa e eu perdi parte dos meus poderes... Eu
entendo. Alguém precisava pagar pelas consequências e eu ainda acho isso
tudo muito injusto, mas eu entendo. Só que... Dessa vez, eu amei de olhos
abertos, eu juro.
"Eu amei de olhos abertos. Eu não confiei meu coração à pessoa
errada. E eu sei que deixei a ganancia falar mais alto e que tudo o que Lilith
me dizia, no fundo, também era aquilo que eu queria: poder, controle e luxo.
E que quando tudo me foi tirado, não só a dor das perdas que tive me deixou
furioso, mas também a perda do poder que circulava em minhas veias e eu
sei, eu realmente tinha muito o que aprender."
"Mas eu amei de olhos abertos. Eu procurei conhecer a profundidade
da queda antes de me deixar cair por Chloe, antes de me permitir me
apaixonar de uma vez… E talvez esse tenha sido o meu erro, não? Amei
preso aos meus medos, aos meus traumas. Fui cauteloso demais... Mas não
fui manipulado e nem manipulei. Eu amei. De verdade."
Meus olhos ardem e eu sinto o corpo em meus braços se tornar mais
pesado.
— Amei uma pessoa que me mostrou que o poder é a última coisa
que importa na vida e que inferno e paraíso são concepções deturpadas por
mentes fracas. Inferno pode ser um bom lugar e paraíso pode ser o mais
entediante. Usam o Inferno como xingamento, usam-no para reclamarem de
suas dores. Pois bem... Inferno é viver um mundo sem ela e paraíso era ver
seu sorriso todos os dias.
"Eu conheci todas as suas tatuagens, seus trejeitos, aprendi o
significado dos seus sorrisos e suas lágrimas. Eu a amei de olhos abertos e
atento a cada detalhe, eu a amei pra caralho. Eu, verdadeiramente, a amei e
compreendi, com toda a sinceridade do mundo, como é o amor e como ele
deve nos guiar."
"Mas esse foi o meu maior pecado. Porque desde o primeiro segundo
em que a amei, a sentenciei a esse fim."
Me ajoelho. Chloe está em meus braços e eu deixo minhas asas a
envolverem.
— Ela não tem culpa, Deus! Você quis me punir e você conseguiu —
Minha voz falha, a aperto mais contra mim. — Eu aceito! Eu aceito sofrer e
eu aceito toda essa dor, eu vou sobreviver! Eu sempre sobrevivo. Eu sempre
engulo a dor e eu vou ficar bem. Mas por favor, não tire da Chloe o que ela
mais amava, o que ela valorizava mais do que ninguém, o que estava
estampado na sede de adrenalina que corria pelos seus olhos, em seus
sorrisos, ironias e cada mísero detalhe de sua alma, por favor, não lhe tire a
vida. Eu estou te implorando.
Recebo silêncio em retorno. Escuto Matthew atrás de mim, chorando
baixinho. Olho por cima do ombro e vejo como Angie segura Sinn, deixando-
o apoiar um braço em seu pescoço.
— Você queria um recomeço? — pergunto a Ele. — Você queria a
união entre Céu e Inferno e conseguiu, mas agora isso se resume a poucos
anjos no paraíso, um demônio, um Rei destruído e uma Rainha. Isso basta a
você? — pergunto. — O que você quer, afinal? Eu dou qualquer coisa! —
Elevo a voz, desesperado. — Qualquer coisa, eu dou a minha vida. Eu não
quero sentir o meu coração novamente, eu a quero de volta. Nem que seja
longe de mim. Deus, eu a quero viva! Porque ela não merece morrer por ter
se apaixonado por mim! Ela não merece isso! Eu sou quem deve ser punido
aqui, não ela! Por que a usou para seus planos? Por quê?
Não recebo uma resposta.
— EU SEI QUE ESTÁ ME OUVINDO! — clamo, com toda a força
dos meus pulmões. E a minha voz se reverbera por todo o Inferno. — Eu
estou te implorando... — Desabo em lágrimas, fitando o meu anjo.
O meu amor está com seus olhos fechados, sangue por seus lábios,
uma palidez exagerada.
Fria, como nunca foi. Ela sempre foi chama e calor.
Fraca como nunca quis ser, porque sempre pareceu uma força da
natureza.
E sem vida.
— Eu dou qualquer coisa em troca, eu estou entregando a minha vida
em suas mãos, mas, por favor, deixe-a viver. Porque das suas criações, ela foi
a mais perfeita e a mais apaixonada pela vida. Então traga-a de volta, por
favor, eu estou implorando.
O silêncio é a minha única resposta. Eu desabo em lágrimas mais uma
vez, me sentindo afundar contra esse chão. Chloe continua imóvel, continua
sem respirar. Eu busco pelo som do seu coração e quando só encontro o meu,
é desesperador.
Eu prometi para a sua mãe que a entregaria viva e bem. Eu prometi a
ela que tudo ficaria bem, prometi que pegaria o maldito colar que está contra
o seu peito de volta. E agora eu encaro as milhares de celas do Purgatório, me
perguntando em qual delas ela está. Chloe não está no Céu, por mais bela que
sua alma seja, eu sei disso. Ela está por algum lugar. Sendo punida. Sendo
privada de respirar, de ver o mundo, de provocar sorrisos e de me tirar do
sério.
Proibida de fazer o que sabia fazer melhor do que ninguém, o que lhe
fazia aproveitar cada segundo como se fosse o último: viver.
E a culpa é completamente minha.

Estou no centro da sala em meu apartamento e vejo alguns anjos aqui.


Angeline faz um sinal para que eles sejam dispensados e eu vejo Sinn se
jogar sobre o sofá. Theo também está aqui e se senta ao lado dele. Matt está
com olheiras leves, o rosto inchado por chorar.
Subo as escadas lentamente, sendo seguido por Angie e Matt. Bato no
quarto em que Donna provavelmente está e abro a porta. Benjamin está ali,
na cama, brincando com o meu Game Boy. Donna está sentada com ele, ao
lado de Riley. Molly e Brianna estão no chão, sentadas e acordadas. Todos
passaram a noite em claro e juntos.
Ben ergue os olhos verdes para mim e sorri, mas Donna não esboça
qualquer reação ao me ver. Porque Chloe não está aqui.
A perna da mãe da Chloe está enrolada em um lençol, isso não é nada
bom. Ela precisa ir ao médico. Mas se ela sente dor, ela está fingindo que
não. Seu semblante é impassível.
Vejo Molly, Riley e Brianna cessarem uma conversa e me encararem
com confusão. Benjamin está me fitando e eu desvio o olhar para a Molly,
sentindo meu coração doer novamente.
Trovoadas preenchem o céu em Nova York. Toda a cidade parece
caótica e eu sinto que a culpa foi da lança que atravessei contra a Lilith.
Desastres, perdas virão... Na verdade, mais desastres e mais perdas.
— O Inferno está em ruínas — digo. — O Céu teve muitas baixas,
mas Lilith foi contida. — Busco coragem para falar da Chloe, mas minha
garganta se torna seca e fechada.
— Onde está a Chloe? — Riley pergunta, confusa.
Donna está com seus olhos vermelhos e inundados por lágrimas
enquanto me encara. Vejo como segura a gola da sua camisa, seus dedos
trêmulos. Ela sabe.
Abro e fecho a boca, sentindo meus olhos arderem. Fito Molly, que,
por sua vez, desvia o olhar para Matthew. E Matthew não está muito melhor.
— Não — ela sussurra, se pondo de pé. Eu só abaixo a cabeça. —
Não...
— Puta que pariu — Brianna leva as mãos ao rosto, antes de puxar
Molly para um abraço. As duas se abraçam enquanto o ar se torna mais
denso.
Riley está paralisada, mais branca do que o comum, seus olhos
vermelhos e sua boca entreaberta. Benjamin está com as sobrancelhas unidas,
como se não entendesse. Ou como se não quisesse entender. Mas é com a
Donna que me preocupo.
— Eu pedi que ela voltasse para vocês e ela não quis. Nós estávamos
em combate e eu disse para ela ir embora, mas Chloe quis lutar. — Deixo a
minha voz falhar. — No momento em que iam me matar, ela foi mais rápida,
ela enfrentou a Lilith e... — Respiro fundo, fitando meus pés. — Eu sinto
tanto, Donna, eu sinto tanto... A culpa é toda minha e deveria ter sido eu, mas
a Chloe deu a vida por mim e eu implorei pela vida dela, acredite, eu
implorei! — Deixo minha respiração falhar também, voltando a chorar.
— A Chloe morreu? — Ben pergunta. Eu assinto, sem conseguir
olhar nos olhos de ninguém. Eu me sinto tão inútil e envergonhado, eu me
sinto destruído. — Não, eu quero a minha irmã... — ele diz.
— Ben... — Riley o chama, o observando se levantar da cama. Riley
tenta alcançá-lo e Ben a afasta. — Benjamin...
— A estrelinha não pode morrer, titia, ela não pode, ela prometeu que
tudo ficaria bem. Eu quero a Chloe, eu quero a minha Co, eu quero...
O choro de criança preenche todo o ambiente e eu sinto o meu
coração apertado quando Benjamin passa por Angie, Matt e eu, correndo para
fora do quarto. Fecho os olhos, sentindo a dor gritar por cada parte do meu
corpo. Riley o segue, de cabeça baixa.
Eu realmente queria sumir nesse momento, eu queria morrer. Isso é
tão injusto.
— Noah — Donna me chama e eu balanço a cabeça em negação. —
Noah, olhe para mim. — Deixo um suspiro escapar e ergo os olhos para ela.
Ela lembra tanto a Chloe que eu me sinto afundar ainda mais. — Eu estou
furiosa, eu estou... — Lágrimas inundam os seus olhos e eu vejo suas mãos
tremerem. — Eu não consigo olhar na sua cara sem sentir dor, porque eu
lembro da sua promessa, mas eu sei que é coisa do momento. Eu vejo agora.
Agora, olhando para você, eu entendo. Chloe deu a vida por você. Se ela deu
a vida por você, ela estava certa sobre o que você sentia. Ela sabia que era
recíproco. E agora eu vejo. Vejo todo o amor que você sente pela minha filha.
— Sua voz falha. Donna está vermelha enquanto chora, chora copiosamente.
— Eu sabia que ela não te deixaria ali, eu sabia! Porque ela sabe escolher as
lutas pelas quais quer lutar, Noah, ela era assim! E ela faria tudo por quem
ama e eu sei que você fez de tudo também. — Donna parece encontrar
dificuldades para respirar. — Você fez anjos descerem ao Inferno e o seu
reino cair aos pedaços pela minha filha... Eu agradeço por sua luta. Mas se
possível, por mais que o apartamento seja seu, eu quero que saia daqui e me
deixe sozinha. Por algumas horas.
Respiro fundo e confirmo.
Aceno com a cabeça para trás, indicando para Matt e Angie que é
hora de sairmos. E é o que fazemos. Somos seguidos por Brianna e Molly.
Molly avança para os braços de Matt e cai em lágrimas. Seu choro
preenche todo o corredor e só não é mais alto do que a dor que Donna coloca
para fora, dentro do meu quarto.
Donna Mitchell está chorando e cada soluço faz um arrepio doloroso
rasgar sob minha pele. Porque se eu amava Chloe com toda a minha
capacidade, se meu amor me transbordava e se eu jamais havia sentido algo
tão avassalador em toda a minha vida... Eu tenho plena consciência de que o
amor de Donna era, no mínimo, três vezes maior.
Sinto falta de ar, sinto meu corpo inteiro doer. Estou prendendo o
choro quando Angie me abraça. Mas ela rapidamente se afasta e outros
braços me envolvem.
Molly está me apertando contra si.
Seu corpo estremece a cada soluço dado e eu a compreendo, acho que
nossos corações conversam em luto nesse momento. Porque Chloe não
merecia isso. Porque isso é horrível, isso é fodidamente doloroso.
Eu a aperto contra mim. Podemos não ser amigos super unidos,
contudo, nesse momento, compreendemos a dor um do outro. Nós
compartilhamos perdas: sofremos com a perda da Chloe, como também
sabemos como é perdermos os amores das nossas vidas.
— Eu disse que a amava — conto, chorando, contra o seu ombro. —
Ela morreu nos meus braços, Molly, nos meus braços... — A garota me
aperta mais contra si e eu desabo. Matt alisa as minhas costas e eu sinto capaz
de me volatizar a qualquer momento, porque cada segundo sem Chloe é
como um soco. — E eu finalmente disse que a amava de volta...
Matt acena com a cabeça para Brianna e Angeline. Os dois nos
deixam sozinhos no corredor. Molly ainda está me abraçando, enquanto eu
tento me acalmar. Mas parece impossível.
— Eu sei como dói, eu sei demais — ela diz, respirando fundo. Ela se
afasta e segura meu rosto com as duas mãos. — Quando John morreu, eu te
procurei no Purgatorium. E eu te disse que havia luz na sua alma. Porque em
algum lugar dos seus olhos, Noah, dá para ver isso. E Chloe sabia. E sabia
que essa pequena luz era uma faísca, minúscula, mas que podia se tornar a
chama mais intensa e mais brilhante. E agora, olhando nos seus olhos, eu
vejo essa chama.
— Porque foi ela quem me resgatou — digo. — Ela me resgatou,
Molly, a Chloe me ensinou tanto, ela me mostrou tanto... Porra!
— E você também a ensinou, ok? — Ela funga, segurando as minhas
mãos. Balanço a cabeça em negação. — Ensinou sim! Você foi bom, gentil e
o melhor namorado que a minha melhor amiga poderia pedir, Satanás — ela
brinca e eu deixo um riso escapar, mas a dor o faz cessar rapidamente. Molly
me dá um sorriso triste, com os olhos rasos de água. — Você a fez tão feliz,
mais do que já era, você a fez sorrir tantas vezes, a fez se sentir tão bem.
Sempre que eu olhava pra vocês, eu conseguia resgatar um pouquinho do que
eu sentia com John, porque amor lhes transbordava. A culpa não foi sua...
— A culpa foi minha, sim, se ela não tivesse me conhecido...
— Esqueça isso, Noah. Foi o destino. Era pra ser. E se existem mil
universos, com seus diferentes planetas, estrelas e seres; se existem mil
realidades, Noah, você e Chloe se amam em todas elas. — Desvio o olhar ao
chão, sem conseguir fitar os seus olhos. Molly me abraça mais uma vez. —
Você a amou, você a fez ainda mais viva do que ela já era e eu não sabia que
isso era sequer possível. E eu tenho que te agradecer tanto, tanto por isso.
Tento acreditar em suas palavras. Tento crer que fui tão bom para
Chloe assim, mas eu não consigo ser positivo nesse momento. Contudo, por
não querer mais falar sobre isso, assinto em silêncio e aproveito de um abraço
enquanto posso.

Para os policiais na Terra, Chloe Marie Mitchell, vinte e um anos,


fora encontrada morta a dois blocos do seu apartamento, após sofrer um
assalto. Ela morreu perto do seu carro, num beco. O carro estava sem porta
do carona, o que a polícia ainda não soube explicar. A arma aparentemente
fora um pedaço de metal afiado que lhe cruzou o abdômen.
Tem várias falhas nessa história, mas nada que o dinheiro não
esconda. Foi alto o preço a se pagar para conseguir trazer Chloe à Terra, para
então conseguirmos enterrá-la como uma humana qualquer.
Foram dois dias de investigação até o detetive ser subornado e o caso
ser encerrado. Por isso, o corpo da Chloe não está tão normal quanto antes. O
que explica o caixão fechado.
Bem, ao menos a sua família conseguiu se despedir brevemente. Uma
ou duas horas depois da crise intensa de choro de Donna Mitchell, eu trouxe
o meu anjo para o meu apartamento e a deixei sobre o sofá. Seu corpo estava
rígido, mas ela ainda parecia estar dormindo. E as despedidas foram
dolorosas, mas breves.
Agora estamos ao redor de uma cova, na chuva, em Maryville. Estou
encarando o caixão de madeira escura que desce de encontro à terra marrom e
molhada. O cheiro de terra molhada, inclusive, é irritante.
Do outro lado da cova, segurando um guarda-chuva como eu, Donna
está protegendo o seu filho mais novo. Um dos braços ela segura uma muleta,
o outro toca o ombro do garoto. A perna direita de Donna está coberta por
gesso e gaze. Riley está protegendo-os com um guarda-chuva. O olhar de
Benjamin está focado num ponto qualquer da cova, ele parece completamente
cansado. Seu nariz está vermelho e seus olhos pequenos estão irritados.
Molly está dividindo um guarda-chuva com Brianna, ao meu lado,
ambas em sobretudos e vestidos pretos. Matthew está do outro lado, bem
como Sinn. Todos vestem preto hoje, em luto.
Não há padres, não há pastores, há somente os nossos pensamentos
dolorosos contra esse silêncio infernal. Eu não consigo mais chorar, parece
que essa habilidade foi arrancada de mim.
Ninguém quis dizer nada na capela, mas eu procuro por qualquer
pessoa que queira falar algo agora que o caixão encontrou a terra. Também
estão presentes o chefe da Chloe, a sua vizinha e seu filho, o Pietro, uma ou
duas pessoas que competiram rachas contra a minha ruivinha... É algo bem
simples e pequeno. Nada parece possível de ser dito.
Isso é tão bizarro. Nem parece real.
Benjamin se aproxima da cova e deixa um pequeno girassol cair.
Procuro em cada detalhe do seu rosto por Chloe e infelizmente encontro.
Todo mundo aqui deposita uma flor sobre o caixão. Menos Donna e
eu. Donna está com um semblante impassível, sem indicar por que não está
jogando flores na cova. Eu não estou jogando flores porque não acho
suficiente. E as pás lançam mais terra sobre o caixão.
O tempo se arrasta, mas quando vejo, me encontro escorado contra o
Thunderbird negro, na saída do cemitério.
Foi o carro que usei quando saí com o meu anjo pela primeira vez.
Acendo o cigarro contra meus lábios e fito os portões do cemitério. Matt,
Molly e Brianna estão caminhando para longe. Riley está fumando um
cigarro, como eu, de frente para um sedan branco.
Donna e Benjamin são os últimos a saírem do cemitério. Eles
caminham pelo estacionamento em silêncio. Ben está encarando o chão
enquanto pisa somente sobre as linhas da calçada. Donna está olhando
diretamente para mim. Ela e Benjamin param de caminhar e o garoto também
me encara.
Ela sussurra para Ben caminhar até a tia e assim ele faz. Donna
caminha para mim, com as mãos nos bolsos do seu sobretudo cinza escuro.
— Tem um pra mim? — ela pergunta. Confirmo e levo a mão ao
bolso do meu sobretudo, lhe entregando um cigarro. Ela o coloca na boca e
estende a mão em busca de um isqueiro. Faço seu cigarro acender sem
precisar de um e ela une as sobrancelhas em resposta — Bizarro...
Rimos nasalado, juntos. E nosso olhar se desvia para Ben, que está
abrindo a porta do carro de Riley. Ele se senta, mas não fecha a porta, com o
corpo virado para Donna e eu, nos assistindo. Seus ombros estão curvados,
seu rosto continua vermelho por ter chorado tanto.
— Benjamin está tão mal — Donna comenta, tragando seu cigarro. —
É de partir o coração. — Concordo. Ela traga e solta a fumaça em direção ao
chão. Noto que seus dedos estão levemente trêmulos, consigo perceber sua
ansiedade. — Eu pensei que a maior dor da minha vida seria a morte do
Collin. Eu nunca imaginei que enterraria uma filha... Eu não pensei que veria
a Chloe morrer.
— Você não viu — digo, baixinho, sem querer. Eu vi. E a cena não
para de se repetir em minha cabeça. A lança lhe atravessando o corpo, Chloe
caindo ao chão, seu sorriso frágil quando eu disse que a amava, seu último
suspiro. Trago o meu cigarro e faço as cinzas caírem ao chão. — Desculpa.
— Tudo bem. Eu entendo. Eu realmente entendo — Donna garante.
— Meu ponto é: eu nunca pensei que viveria isso. A morte da Chloe.
— Eu sabia que viveria — assumo. Donna me encara. — Mas não
nessas condições. Eu provavelmente estaria no enterro de uma Chloe de
noventa e dois anos, a amando tanto quanto a amo hoje. Talvez eu tivesse
ficado com ela por cada segundo de vida ou talvez eu a tivesse deixado ir,
para ter filhos, viver sonhos e procurar alguém que lhe fizesse bem. Mas eu
estaria no seu enterro, a amando tanto quanto amo hoje. Possivelmente mais.
Esse costumava ser meu maior pesadelo, sabe?
— A morte da Chloe? — Donna pergunta e eu confirmo.
— A ideia de que alguém como ela pudesse ser finita, que nós dois
tínhamos prazo de validade... Pensar nisso me deixava tão fodido... E ela
sabia. Conversamos sobre isso uma vez, sobre o fim. A gente sabia que esse
fim chegaria.
— E ainda assim estavam juntos — Donna pontua. Tragamos nossos
cigarros em silêncio, ignorando o frio do dia de hoje. — Não conseguiam se
largar, eu entendo isso. Collin e eu vivemos o mesmo. — Sei que Donna me
encara, mas estou fitando o chão. — Vou ser direta e não quero um sorrisinho
quanto a isso, porque deixando bem claro, eu ainda não gosto de você. — Ela
está mentindo.
Deixo um sorriso de canto escapar.
— Ok, sogrinha.
Donna revira os olhos de um jeito que me lembra a Chloe. Ela volta a
tragar o cigarro e me olha.
— Eu posso não te achar o melhor cara do mundo, mas no momento,
eu estou preocupada. Estou preocupada com o Diabo, porque sei que ele
amava a minha garota. Agora eu sei que ele a amava de verdade. Então vou
perguntar, Noah, está tudo bem? Como está se sentindo?
Surpreso, olho no fundo dos seus olhos. Donna está estranha. Ela
parece conformada demais.
— Cansado. Tão cansado por sofrer tanto nos últimos dias, que me
sinto esgotado. Tão esgotado que não sinto mais nada, me sinto vazio hoje.
Sem força ou vontade de chorar. Sentindo que nada disso parece real, como
se eu estivesse em negação, talvez? — Sou sincero. Ela assente.
Donna respira fundo.
— Eu chorei. Eu chorei de verdade — ela diz. — Eu sofri de verdade.
E agora eu estou sentindo, Noah, estou sentindo que não posso chorar, que
isso não faria sentido. — Franzo o cenho em sua direção. Ela suspira. —
Estou sentindo que essa história ainda não teve um ponto final, que nada
disso é real. — E então dá de ombros. — Mas acho que também estou em
negação.
Donna deixa o cigarro entre seus lábios e eu deixo o meu cair, a
observando pegar sua muleta de volta. Eu a ofereço o meu braço para guiá-la
ao carro de Riley. Surpreendentemente, ela o aceita.
Caminhamos em silêncio até o sedan branco e eu a ajudo a se
acomodar no banco do carona. Donna traga seu cigarro enquanto eu ajeito
suas muletas no banco de trás, voltando à janela para me despedir.
— E o que vai ser agora para o Rei do Inferno? — Donna Mitchell me
pergunta. Eu analiso seu rosto, me lembrando do meu anjo pela semelhança.
— O Rei do Inferno precisa se reunir com a Rainha do Céu, porque
milhares foram mortos e agora nossos reinos estão bem vazios — conto —,
mas vai ficar tudo bem.
— Vai voltar à Terra alguma vez?
— Não tão cedo. Não há mais nada aqui que me interesse —
confesso. Ela sorri triste.
— Você poderia fazer amigos aqui. E se precisar conversar, mesmo
não gostando de você, eu juro que sou capaz de dar jantares melhores do que
aquele — ela comenta e eu dou risada, a vendo rir junto.
— Se cuida, Donna — digo, me afastando.
— Você também, Diabo. — Seu tom me faz rir novamente e eu dou
as costas, seguindo de volta para o meu carro.
Faço menção de caminhar para o Thunderbird e escuto passos atrás de
mim. Uma mão pequena segura o meu pulso e eu olho para baixo. Benjamin
está olhando no fundo dos meus olhos no momento.
— Vai ficar tudo bem — é o que ele diz. — Se a Chloe virou um
anjinho, ela vai cuidar da gente e isso inclui você também.
Sorrio, sorrio de verdade.
Acho que eu já disse isso antes, mas não costumo gostar de crianças.
Dessa, contudo, eu acho que posso abrir uma exceção.
“O túnel é tão vermelho quanto os meus cabelos”, Matt diz.
Matthew... Ele está sorrindo com o seu cabelo ondulado, sua pele
branca bronzeada, sua jaqueta de couro... E eu o analiso, o analiso presa em
cada detalhe.
O túnel é tão vermelho quanto meus cabelos.
A noite agitada e fria de Nova York se resume a escuridão, em breu.
A Lua ao céu está incompleta, os poucos e mal iluminados postes não
conseguem clarear a selva de concreto. O bairro de Hell's Kitchen está
completamente silencioso.
E eu sinto que já vivi isso e que já pensei isso. Reconheço o bairro, eu
sei moro aqui. E meus olhos cravam de novo no túnel ao fim desse beco,
preenchido por luz vermelha, grafitado com traços que eu amaria ver na
minha pele. E novamente, eu sinto que já pensei isso.
— À noite das nossas vidas! — John abre os braços, bêbado, girando
uma vez, enquanto caminhamos em direção ao túnel. Seu cabelo loiro curto
está bagunçado, sua jaqueta jeans envelhecida amarrada em sua cintura e os
All Stars "brancos" e surrados tocam o asfalto molhado.
Eu me sinto estranha enquanto o vejo. É como se ele não pudesse
estar aqui. E então as memórias me invadem, uma a uma. A noite no
Purgatorium, o anel de noivado que Johnny daria para Molly e sua morte.
Molly.
Molly corre com seu sorriso apaixonado, a pele negra iluminada pelas
poucas luzes do local. Ela pula nas costas do namorado e John agarra as suas
pernas, a guiando para o túnel da cor dos meus cabelos.
Subitamente, visualizo Molly gritando com o corpo de John em seus
braços, lembro de seus sorrisos e lembro de nossas pizzas e cervejas. E
quando pisco novamente, tudo isso some. É apenas um casal apaixonado,
perante os meus olhos, feliz por curtir uma noite com seus amigos.
E então eu tomo consciência de que existo. Meus cabelos estão presos
em um rabo de cavalo um pouco alto, meu vestido é curto, de alças finas e
justo, há uma jaqueta jeans larga no meu corpo que costumava ser do meu pai
e, por fim, um colar. O colar é longo, de fios metálicos pretos, se encerra em
asas tão escuras quanto.
Meus dedos as tocam, como se a reconhecessem. Eu não lembro de
ter ganhado esse colar.
Matt segue o casal e eu estou logo atrás, caminhando em minhas
longas botas pretas. Matt passa pelo letreiro, John e Molly estão quase ao fim
do túnel e eu hesito em passar por ele.
Coração acelerado, arrepios pelo vento e o sangue em efervescência.
Me sinto chapada, chapada pra caramba. E confusa.
— Você vem? — Matt diz, um pouco alto, me analisando por
completo. Ele é iluminado pelas luzes vermelhas.
Ergo o olhar.
PURGATORIUM.
É o que dizem as letras de LED vermelhas, como sangue fresco. Meu
corpo inteiro parece preso ao chão, meus olhos percorrem o contorno das
letras e eu sinto meus neurônios se agitarem como se me ordenassem a
pensar. Pensa, Chloe, pensa.
Purgatorium.
Mordo o lábio inferior.
— Chloe?! Você vem? — Matt insiste. Eu respiro fundo, balançando
a cabeça ao voltar à realidade. A minha resposta é entregar a mão ao meu
melhor amigo e entrar pelo túnel vermelho.
E a cada passo, eu sinto a melodia. Mais forte e mais forte. Eu sinto
que o estilo da música não se encaixa nesse lugar, porque ela é leve, lenta e
me faz pensar em ballet, ela me faz pensar em uma coreografia para dois. É o
tipo de música que eu nunca imaginaria escutar em um clube noturno. E me
faz querer chorar, por algum motivo.
— Vou pegar mais garotos que você hoje, Chloe — Matt promete e
sua voz soa distante. Ele me abraça por trás. Vejo John e Molly pararem em
frente à uma porta à esquerda e apresentarem suas carteiras falsas ao
segurança, que lhes permite a entrada.
Eu deveria responder algo? Normalmente eu faria uma piada a
respeito, mas nesse segundo eu estou com o cenho levemente franzido,
tentando compreender essa sensação estranha que passa sob minha pele.
Mostro a minha identidade falsa ao segurança, mecanicamente. O cara
pisca para mim e eu não correspondo. Passo pela entrada, desço longas
escadas de metal negro e chego enfim à nossa última parada da noite.
A música continua e me traz uma sensação de nostalgia. A minha
mente me leva a uma memória em que estou dançando com alguém, leve
como nunca enquanto meu corpo cai parcialmente e esse homem me puxa de
novo para si. Meus dedos estão em sua nuca, mas eu não consigo ver o seu
rosto.
Meu sangue está quente. É como se eu estivesse febril, eu me sinto
quente. Em chamas. Olho para todo e qualquer lugar desse clube noturno,
atenta aos mínimos detalhes.
Me sinto observada.
São dois andares.
O subsolo é onde a pista de dança fica. Piso negro, luzes vermelhas, e
um DJ ao centro do local, em uma espécie de jaula, coloca todos para dançar.
E são muitas pessoas. Ele se balança enquanto todos dançam agitadamente, o
que em nada combina com a música em meus ouvidos.
A gaiola escura no centro do subsolo me faz olhar para Matthew. Em
flashes, a cena do meu melhor amigo com asas brancas e o corpo ferido,
amarrado dentro daquela gaiola, me atinge. Eu seguro o seu pulso e ele me
olha estranho.
— Está bem? — me pergunta. E então ri nasalado. — Vem,
precisamos dançar, Chloe. — Ele me dá a mão e me puxa.
No fundo do subsolo tem um bar de cor vinho. Uma única bartender
atende os clientes. A morena tem um sorriso carregado de luxúria. Com seus
olhos azuis e frios, pele branca bronzeada e seu cabelo liso e negro, ela é
perigosamente atraente. Há uma tatuagem em sua bochecha, pouco abaixo
dos olhos, uma palavra, de longe não consigo ver.
Como se eu a conhecesse, um nome escapa da minha boca: Kold.
Matthew me olha estranho novamente e eu me vejo paralisada, pois agora a
vejo ensanguentada no banco do carona do meu carro. A única palavra que
me vem à mente é honra. E eu não consigo entender o porquê.
Me viro em busca de Matt quando vejo que John já puxou Molly para
dançar, perto da gaiola em que o DJ toca. Matt já está com a boca colada
contra um cara.
E então o piso superior me chama a atenção. Ele é aberto e contorna
todo o subsolo. Paredes de tijolos, LED's vermelhas, sofás negros, pessoas se
beijando, garçons circulando e servindo bebidas...
Analiso todas as pessoas ao meu redor primeiro e então me viro,
erguendo o meu olhar para o segundo piso, instintivamente, mais uma vez.
E meu coração erra algumas batidas.
— Eu sei que você tem uma lista de motivos para me deixar sozinho
aqui. — Escuto ele falar, no fundo da minha mente, fitando seus olhos
escuros como a noite. — Porque não somos exclusivos. Mas podemos ser.
Podemos ser, meu anjo. — Meu olhar desce por cada detalhe, os anéis em
seus dedos longos contra a barra de metal, o maxilar trincado e os fios
ondulados, jogados para trás. — Então se quiser, seremos exclusivos. E por
favor, Chloe, queira.
Seus olhos estão cravados em mim como se pudesse ver a minha
alma. E eu estou atenta a ele, em seu terno preto, com toda a sua seriedade.
"Você é a minha casa, Noah."
Minha própria voz reverbera em minha mente. Sinto um arrepio
rasgar por minha coluna e levo as mãos ao colar no meu peito. As asas são
envoltas pelos meus dedos e eu sinto o meu coração bater forte contra as
minhas costelas.
"Eu amo você, Chloe."
E no mesmo instante, as lembranças de beijos invadem a minha
mente, toques, carinhos e brigas. Abraços e a sensação dos seus braços ao
redor do meu corpo, da sua boca pela minha pele, dos seus risos e das suas
lágrimas. Cada mísero momento é como um soco, me faz querer chorar, dói
para cacete e eu estou presa aqui. Estou relembrando tantas frases, tantos
momentos... Eu lembro.
Deixo um xingamento baixo escapar. Tento passar pelas pessoas e o
vejo caminhar para longe do meu campo de visão. Pessoas dançando nunca
me incomodaram tanto. Mãos que me tocam, pessoas que me encaram,
corpos que suam enquanto eu tento passar, desesperadamente, sentindo o que
parece ser uma sensação de claustrofobia intensa e dolorosa.
Há um abismo entre nós dois que não deveria existir. Eu ignoro o
segurança que diz que não posso subir, o empurrando e dizendo que Noah me
espera no andar de cima. Tiro o colar do meu pescoço porque ele precisa
cumprir sua promessa, ele precisa pegar seu colar de volta, mas quando
chego lá, Noah simplesmente desapareceu.
Meus olhos se inundam de lágrimas, porque eu não o encontro, meus
olhos não o encontram em mesa alguma, em lugar algum. Minha mão segura
o colar com força e eu lembro, eu lembro de morrer em seus braços, eu
lembro que ele me ama e eu me pergunto que porra está acontecendo.
Até que eu sinto suas mãos em meus quadris. E eu me viro.
Alívio passa pelo meu corpo quando eu reconheço o seu rosto e o
seguro com as duas mãos. Cada sarda, cada detalhe, do sorriso maldoso aos
olhos brilhantes... Ele é tudo o que eu queria ver.
— Você quis, eu vim, anjo. Não pense muito — ele sussurra.
E assim que o arrepio passa por meu corpo, como uma onda de
eletricidade rasgante, eu colo minha boca na sua.
Eu o sinto contra os meus lábios. Sinto seu gosto em minha língua e o
mundo parece girar três vezes mais devagar. Ele acaricia o meu rosto. Eu
sinto que ele sorri e eu reconheço seu cheiro, seu calor, seu corpo... Mas de
repente ele afasta a sua boca da minha. Nossos lábios se desgrudam com
pesar e quando eu abro os olhos, eu não o sinto de maneira alguma.
Porque Noah sumiu.
Na verdade, tudo sumiu.
Eu estou sozinha, no escuro, completamente sozinha. Não há nada
senão uma grande placa de LED no meio de todo esse breu. Ela pisca com as
luzes vermelhas, me avisando de onde estou com uma única palavra:
Purgatório.

Estou caminhando há dez minutos com o colar em mãos. E tudo


continua escuro, cinza, sem cor. Me sinto ansiosa e a agonia em meu peito
cresce a cada passo dado.
Noah estava contra os meus lábios, ele estava comigo. E agora ele não
está mais. O mais estranho é que eu sinto que já vivi isso. Que eu já passei
por isso algumas vezes. Eu sinto que estou presa num pesadelo e que ele se
repete. Eu sinto que estou aqui a bem mais tempo que alguns minutos.
Isso é sufocante.
Paro de andar, desistindo.
Decido me sentar em um pequeno trecho desse chão infinito. Talvez
assim esse pesadelo se reinicie e eu consiga encontrar o que fiz de errado,
consiga encontrar um jeito de sair daqui.
— Não é assim que funciona. — Escuto. Viro o corpo e encontro uma
figura nas sombras. Ele se aproxima lentamente. Uma luz se acende sobre
ele, o brilho me faz praguejar.
Seus olhos são escuros como os meus e seu sorriso aquece o meu
peito. Cada detalhe do seu rosto faz meu sangue acelerar. Eu vejo suas leves
rugas e o seu uniforme de policial. Eu reconheceria esse rosto em qualquer
lugar, a qualquer momento. Em questão de segundos, eu estou abraçada ao
homem alto e sorridente.
— Oi, estrelinha. Eu também senti a sua falta — o meu pai diz,
baixinho.
É como me sentir em casa por alguns segundos, até a sensação ser
totalmente oposta. Porque ele não deveria estar perante meus olhos.
— Que porra ‘tá acontecendo? — sussurro e ele ri, afagando os meus
fios. Porra, eu tinha esquecido do seu perfume. Eu tinha esquecido de como a
sua pele, sua voz e seu abraço eram. E eu estou chorando como uma
criancinha, segurando o seu uniforme, sentindo-o me proteger. — Você não é
real...
— Depende do seu ponto de vista — ele diz, me fazendo deitar a
cabeça em seu peito. — Eu estou em seu coração. Eu estou dentro de você e
em algumas das memórias que compõem a sua alma. Depende do quanto
você quer que isso seja real, Chloe — ele conclui. E eu me sinto confusa,
afastando o meu rosto do seu.
— Eu amo você — digo, ainda que isso tudo possa ser loucura.
— Eu amo você também. Mas você precisa sair daqui. Então lá
vamos nós, de novo. — Ele me faz franzir o cenho. Sua mão se une à minha e
ele está me guiando a algum lugar. — Bem vinda ao real Purgatório, Chloe.
Estamos em suas memórias e em sua mente. Eu sei o quanto você ama a sua
vida. E aqui tudo depende de você, do quanto quer voltar a viver. E para
voltar a viver, você precisa resolver as suas pendências. Uma a uma. — Ele
acaricia os meus dedos e eu o analiso enquanto fala. — E resolver significa
que você deve entender cada dor que deixou para trás, cada culpa que carrega
e cada erro grave que possa ter cometido e que só vai sair quando se sentir
curada de tudo que te marcou.
— Isso é sequer possível? — pergunto. Ele ri.
— Sim. Tem pessoas que demoram dias, outras anos e outras séculos.
Tudo depende de você — Collin me explica. E agora eu sinto que toda a
pressão do mundo recai sobre as minhas costas.
— Se eu voltar a viver, eu vou renascer, certo?
— Sim. Do zero. Uma vida nova, uma história nova. — Não sei se é
isso o que quero. — Bom, isso aqui é uma guerra consigo mesma. É um jogo
de tentativas. Você precisa encontrar a saída e ela depende de uma série de
enigmas que te compõem. Por que está aqui? Quais foram seus piores
pecados? O que mais te feriu? E se você se sentir confusa demais, perdida
demais, você pode pedir, em alto e bom tom, para voltar ao início. À sua
primeira memória.
— O Purgatorium.
— Exato. E, a partir daí, você terá uma nova chance. Mas suas
memórias serão completamente zeradas. Começará sempre do zero.
— Soa enlouquecedor — confesso e ele aperta a minha mão, como
forma de me encorajar. Paro para refletir um pouco. — Está aqui porque é
parte de uma pendência, então?
— Acha que sou? — Ele para de andar e eu faço o mesmo. O encaro,
cada detalhe. Sua farda policial, seu distintivo. E minha mão encontra
justamente o seu peito. Meu pai sorri de canto, porque ele sabe no que eu
estou pensando: o tiro.
Meus olhos se inundam e eu assinto. Sua mão toca o meu braço e eu
sinto a ardência me fazer chorar ainda mais. Sinto algo contra a minha mão,
algo quente. Há sangue em meus dedos. O ferimento simplesmente surge em
Collin e ele abre um sorriso triste.
— O que sente? — Sua pergunta me guia e eu deixo as lágrimas
rolarem pela minha face. — O que lembra? Feche os olhos, se ajudar, feche
os olhos, estrelinha... — Sinto a sua mão ainda em minha pele.
Meus olhos se fecham e eu engulo em seco. Eu lembro da Shelly no
dia cinzento em Maryville. Lembro de ter catorze anos, entediada dentro
daquele carro, enquanto Queen tocava. Do amigo do meu pai no fundo do
carro e de como o papai parecia animado. E então o frear brusco, os tiros... E
abro os olhos.
Estou dentro do carro, estou no banco de trás. Sinto o cheiro de
sangue, vejo o corpo do anjo estendido contra o banco de trás. E vejo que a
bala que está surrealmente presa em seu peito é diferente. Ela é escura e mais
fosca que um metal comum. Meu olhar se volta para a frente.
— Não, não, pai! — A pequena Chloe, sentada à frente, fala, tirando
o cinto agora. Meu coração dói e eu aperto o colar de Noah entre os meus
dedos, enquanto observo a cena. — Não! ALGUÉM ME AJUDA! — Ela
está gritando para as janelas abertas, está implorando por ajuda. Suas mãos
estão contra o ferimento da bala no peito do pai, seus dedos já estão
vermelhos.
Isso é demais para mim.
Eu desvio o olhar da cena, fitando a rua. Afundo a cabeça no banco de
trás, sentindo o nó em minha garganta surgir. A Chloe de catorze anos ainda
grita e chora por socorro, mas a ajuda está demorando a chegar. Ela está
implorando por ajuda. Mas Collin está segurando a sua mão e lhe dizendo
que tudo vai ficar bem.
E eu nem preciso olhar para os dois. Eu tenho a cena na minha
cabeça.
Eu tenho a cena se passando nitidamente pela minha cabeça. Os sons
cessam, a atmosfera de morte parece se retirar do carro. Quando olho para
frente, Collin está com a camisa suja de sangue, mas não há mais a pequena
Chloe e nem seu amigo no fundo do carro. Só nós dois. E seus olhos estão
focados nos meus, pelo retrovisor.
— A culpa não é sua. — Escuto.
— Eu sei que não — digo —, mas isso não faz nada doer menos, pai.
— Por quê? — Dou de ombros. — Você sabe, Chloe, vamos...
— Eu não consigo pensar...
— Então sinta, filha, sinta.
Foco nos seus olhos. E o impulso me surge.
Abro a porta do carro e saio, entrando nele novamente pelo banco do
carona. Collin está me encarando enquanto eu me viro para ele. Uma boneca
de pano está contra os meus pés, Maryville nos cerca, ainda que essa não seja
Maryville de verdade.
Eu sinto raiva.
— Você morreu — respondo e ele assente. — Você morreu e eu
assisti. Eu não pude te salvar.
— Você era uma criança, estrelinha — Collin pontua.
— Uma criança com síndrome de gente grande e que queria ter te
salvo, mas hoje eu entendo que não foi minha culpa. O que eu não consigo
entender, pai, é por que ao invés de gritar, eu não prestei atenção no que me
dizia — confesso, só de uma vez. E agora eu percebo fúria vibrando em cada
palavra. — Você dizia que me amava e eu não disse de volta.
Ele sorri.
Eu o odeio por isso.
É como se dissesse "eu sei".
— Eu não disse de volta e eu fui obrigada a crescer depois dessa
situação. Eu fui obrigada a crescer, porque eu precisava ser forte pelo Ben e
pela mamãe e toda vez que eu lembrava de você, eu lembrava que você nunca
tinha me escutado dizer que te amava e que o Ben nunca te diria um simples
"eu te amo", porque ele tinha meses, papai, meses quando você se foi!
E eu estou chorando. Eu estou chorando. Meu coração pesa e eu
aperto o colar em minha mão, tanto que ele incomoda a minha palma.
— Eu não disse que te amava — repito.
— Você não disse.
Abaixo a cabeça, me permitindo chorar.
— E eu te amo — digo. Ergo novamente o olhar para ele e vejo que
ele está assentindo, como se soubesse. — Eu te amo tanto quanto antes,
quando você foi embora, mas às vezes eu te odeio e eu sei que isso não tem
sentido, ok? Mas é que tudo é sempre tão injusto, pai. Você morreu e isso foi
injusto. E eu te amo. Eu te amo pra caramba.
— Você acha que eu sabia disso?
— Que eu te amava? Sim. Mas não tanto quanto deixei parecer. Acho
que não sabia o quanto eu te amava quando você partiu. E eu te amava com
todo o meu ser.
Ele fica em silêncio. Estou com os lábios trêmulos, sem conseguir
respirar direito. As lágrimas me escapam e a dor não.
— Eu não posso te dar as respostas, Chloe, você precisa enxergá-las.
— Eu entendi.
— E elas estão na sua frente.
— Você não está ajudando! — exclamo, brava. Ele respira fundo e
desvia o olhar. Grunho alto e levo as mãos ao rosto. O colar entre meus dedos
balança, as malditas asas flutuam no ar. E eu estou chorando como nunca. —
Eu te amo. Eu te amo de verdade.
— Eu sei.
— Ótimo. É pra ficar sabendo mesmo, ‘tá legal? — ele ri. Xingo
baixo.
— Eu sei.
Bufo, frustrada. Aperto o colar entre meus dedos e o encaro, irritada.
Collin não está derramando uma só lágrima, ele está sorrindo para mim. De
um jeito tão doce que chega a ser irritante. E então minhas sobrancelhas se
unem, eu o analiso e penso em suas palavras. Ele sabe.
— Você sabe. Você sempre soube. Sempre soube que eu te amava.
— Eu, sim.
E então eu repasso toda a minha vida. Deixo um xingamento escapar
e saio do maldito carro. Meu pai faz o mesmo, apoiando os braços no teto da
Shelly. Envolvo meus dedos com o colar do Noah e levo a mão aos fios
ruivos, tentando pensar.
— Diga em voz alta, Chloe, por que está tão nervosa? Qual o
problema? No fundo você sabe. E você sabe que todos os seus problemas se
resumem a apenas um. E você precisa dizer.
— É sobre dizer de volta.
Um silêncio me abraça e eu sinto a angústia pulsar por todo o meu
corpo. Sinto meus dedos trêmulos e eu estou chorando, estou destruída. Viro
meu corpo para o meu pai e ele está sorrindo, como se dissesse "continue".
— É sobre dizer de volta. Eu não disse de volta.
— Para quem?
— Para todo mundo, eu não disse de volta! Eu não disse de volta para
você e eu não disse de volta para a mamãe. Ela brigou comigo em Maryville
e enquanto eu arrumava as coisas para ir embora, ela disse que me amava e
eu não disse de volta. Eu morri sem ter feito as pazes por completo com a
minha mãe. Eu não lembro de ter dito que a amava no Inferno.
— E...?
— E eu não disse de volta para o Ben... Antes dele dormir, nos meus
braços, quando a mamãe sumiu, ele disse que me amava. E eu fiz uma
brincadeira idiota e disse: "como não me amar?". Mas eu não disse de volta
para o Ben. Eu não lembro da última vez que disse que amo a tia Riley, eu
acho que nunca fiz isso. E eu não sei se a Molly sabe que a amo, eu não sei se
consegui deixar claro para o Matthew...
— Por que...?
— Porque eu morri muito cedo. — Despejo as palavras. E agora eu
percebo a força do que eu disse. — Eu morri sem deixar claro, em dizer para
essas pessoas o quanto eu as amava... Eu morri sem dizer de volta para a
mamãe, eu morri sem dizer para o Ben, morri sem dizer até para esse carro
estúpido. — Aponto para a Shelly e o papai ri.
— Falta alguém, Chloe, você sabe quem é. Você o sente...
As palavras estão entaladas em minha garganta e eu sei, eu realmente
sei. Noah está por todos os meus pensamentos e eu estou segurando o colar
entre meus dedos. Dor está em minha garganta, meu coração está
estrangulado e eu vejo a marca das asas contra a minha palma.
Desenrolo o maldito colar e deixo as lágrimas deslizarem pelo meu
rosto.
Eu não disse de volta.
Ele disse que me amava. Noah finalmente disse que me amava e isso
era tudo o que eu queria que ele dissesse, isso foi tudo o que precisei ouvir
por tanto tempo. E quando consegui o que queria, a vida me foi tirada, antes
que eu pudesse responder de volta.
E eu ia responder.
As lágrimas estão correndo quentes e grossas pela minha pele.
— Eu não disse de volta — começo — e ele não pegou o colar de
volta. Ele não me ouviu dizer de volta.
— Mas ele sabia.
— Ele tinha que me ouvir dizer de volta! — Me viro para o meu pai.
Ele continua com os braços sobre a Shelly e respira fundo. — Porque eu o
amo e ele me ama, pai, ele me ama! Ele me ama! E ele sofreu, ele sofreu para
dizer aquelas malditas palavras, o mínimo que eu poderia ter feito era dizer
de volta.
— Mas ele sabia — Collin insiste.
— Ele tinha que me ouvir dizer! — Me aproximo do carro. — Ele
tinha que me ouvir dizer que tudo o que vivemos foi perfeito. Que a culpa
não foi dele, pelo fim. Que eu senti orgulho quando ouvi aquelas três
palavrinhas, orgulho de vê-lo superar o maldito medo de dizê-las e que todas
as dores cessaram naquele momento, porque ele me ama. E porque eu o amo.
E porque o amor não morre, pai, ele não morre. Ele sobrevive. E ele tinha que
me ouvir dizer, pai...
— Por quê?
— Porque as danças não foram suficientes e os beijos não foram
suficientes e as noites de amor e os malditos cigarros depois do sexo, as
brigas, os sorrisos e as lágrimas, nada foi suficiente! Porque a gente merecia
mais e ele merecia ao menos ter me escutado dizer de volta que o amava... E
eu merecia ao menos ter dito. Porque é injusto. Porque é desesperador saber
que ele não me ouviu de volta e que ele não pegou o colar de volta e que...
Que a gente não ganhou o que merecíamos.
— Certo. — Collin respira fundo. — Noah te ama. O Noah te ama,
certo? — Confirmo, sem nem hesitar. — Quão certa está disso?
— Completamente certa.
— Por que ele disse isso? Está certa por isso?
Abro a boca para responder e não consigo. O colar em minha mão
incomoda. Mas eu não consigo deixá-lo ir. Fito os olhos de Collin e ele ergue
uma sobrancelha.
— Por que ele disse que te ama?
— Porque ele sentia isso.
— E o sentimento surgiu naquele momento?
Engulo em seco.
— Não. Noah me ama há um bom tempo.
— Como sabe disso?
— Porque eu sei. Os olhos do Diabo dizem muito mais do que
qualquer pessoa possa imaginar. E quando eu me via por eles, eles brilhavam.
E eu sabia. Eu sei. Noah me ama há um bom tempo. E eu não sei dizer
quando percebi isso pela primeira vez, acho que... Acho que foi quando...
"Quando ele deixou a Molly na minha casa, ela estava bêbada e
chapada, sofrendo pelo John. E ele se importou em me ligar, ele nos deixou
na minha casa e eu disse que gostava de ser chamada de "meu anjo" e ele
olhou nos meus olhos... Ele estava de frente para o elevador, a passos da
minha porta, um pouco longe, e o jeito como ele me olhou..."
"Eu lembro de pensar 'uau'... E de sentir que os olhos dele
conversavam com os meus. Talvez ele não me amasse profundamente
naquele momento, mas foi a primeira vez que eu vi esse brilho. E eu soube.
Eu soube que era cedo demais para seja lá o que sentíamos, mas que isso não
importava, porque estávamos no mesmo barco, pai."
"Mas talvez tenha sido quando ele apostou uma corrida, no nosso
terceiro encontro. E eu vi adrenalina nos seus olhos, eu vi aquele sorriso e
pensei que talvez pudéssemos ser algo a mais."
"Ou quando ele dormiu com os braços ao redor do meu pela primeira
vez ou quando ele pediu a exclusividade, céus, eu tive certeza de que ele era a
minha perdição naquele segundo. E eu estava bem com isso, pai, eu me
perderia em Noah Hellmeister mil vezes se eu pudesse."
"Ou quando eu estava morrendo de cólica e eu não queria nenhum
remédio, ele sabia, eu só queria um carinho e alguma atenção, eu só queria
isso. E o Diabo se deitou na minha cama e me abraçou, como bom
namorado."
Deixo uma risada escapar. Noah cozinhou para mim, me abraçou até
que eu pegasse no sono, dançou comigo, caiu numa piscina de roupa
comigo... Coisas tão simples. Que não me faziam pensar no que ele era,
apenas em quem. E ele não era o Diabo para mim, ele era o meu namorado. O
meu anjo. A pessoa que me resgatava de dores que poderiam ser bobas,
irritantes, como uma cólica ou profundas como uma lança me tirando a vida.
Noah merecia ter ouvido de volta.
— Mas você sabia — Collin diz. — Sabia que ele te amava. Sabe que
ele te ama.
— Eu sabia. Eu sei. E sempre soube. — Seco as lágrimas com o dorso
da mão. — Eu nunca precisei ouvir.
— E por que ele precisaria?
Ergo os olhos em direção aos seus. Sinto que estou indo em caminho
a algo agora, sinto que estou chegando perto de onde deveria chegar. Meu
maior arrependimento foi não ter dito que amava as pessoas que eu amava
quando necessário. Essa é a resposta? E isso é superável?
Abro a boca para responder, mas sinto algo estranho. É como um
chamado ou qualquer coisa do tipo e me faz virar para trás. Quando eu volto
a buscar Collin, ele sumiu.
O meu carro sumiu.
E segundos depois tudo se torna escuro e eu não enxergo mais nada.
Minha consciência se apaga logo em seguida.

Minhas costas estão em uma superfície macia. É muito macia. E eu


sinto cheiro de flores e chá. E café. Eu demoro pra abrir os olhos porque a
claridade me incomoda.
Não sei onde estou. Consigo ver armários de madeira clara, uma mesa
de vidro redonda com comidas variadas e a luz do sol entrando pela janela
aberta, junto com uma brisa leve que movimenta cortinas brancas.
O quarto está quase silencioso, mas eu escuto cochichos. Apoio em
meus cotovelos e analiso esse lugar. Há olhares sobre mim, mas eu realmente
não me importo.
As paredes são azuis, num tom pastel. Ramos de flores estão
desenhados nas mesmas, próximos ao teto. Há ouro em muitas das
decorações e tudo aqui é muito clássico e delicado. Fito o teto branco.
Contudo, nele há alguns desenhos em cinza que imitam anjos. E isso eu achei
realmente brega.
— Que tipo de pendência é essa? — sussurro, quase que falando para
mim mesma.
Olho para frente e os dois rapazes em roupas beges, de golas altas,
estão me encarando. Desço o olhar pelo meu corpo e fico feliz em estar
vestida com um vestido branco. Tipo, o vestido realmente não combina
comigo, se estendendo pelos meus braços e indo de ombro a ombro em um
decote reto, mas pelo menos eu não estou pelada na frente de dois
desconhecidos.
— É um desejo de ficar rica que eu nunca suprimi? — pergunto em
voz alta, para os dois. Eles se entreolham, confusos.
A porta se abre e Angeline está ali. Ela tira a coroa de ouro da sua
cabeça e resmunga, a jogando para um dos rapazes, que a captura. A ouço
praguejar baixinho. Ela não está me olhando. E eu estou levemente
boquiaberta enquanto meus neurônios de defunta morrem mais uma vez.
Todo o cabelo de Angeline está preso em tranças finas e cinzas, quase
brancas, um vestido longo azul claro lhe cobre a pele e tem um decote que
segue até o meio da sua barriga. O vestido parece retirado de um daqueles
quadros que retratam os gregos na antiguidade.
Desenhos que parecem de cobre estão por seus braços e rosto, rosto
que ela finalmente ergue para mim. E suas sobrancelhas quase chegam à raiz
do seu cabelo. Um sorriso se instala repentinamente no seu rosto.
— Graças a Deus está acordada! — Angeline vibra e anda, em minha
direção. — Bom, literalmente.
Uno as sobrancelhas. Eu não lembro de pendência alguma que
envolva a Angeline. Eu nem sei direito quem ela é, eu mal a conheço. Eu
preferia ver Noah, o Matt ou a Molly. Melhor ainda, a minha mãe. Ou o Ben,
céus, eu realmente queria ver o Benjamin.
— Como se sente? — ela pergunta.
Ergo as sobrancelhas.
— Como se sente? — ela repete. Angeline volta o rosto para os
rapazes — Ela acordou surda? — Eles dão de ombros. — Esse lance de
ressuscitar realmente é perigoso. Só foi feito uma vez, sabe? Pra ensinar os
humanos alguma coisa. Não deu muito certo. Você consegue me ouvir? —
Assinto, silenciosamente. — Consegue falar? — Confirmo, mais uma vez. —
Então por que não fala?
— Que porra está acontecendo? — pergunto, direta. Ela ri alto e
dispensa os garotos com a mão. Eles se retiram e Angeline se senta sobre a
cama.
— Desculpa, eu pensei que você entenderia mais rápido. Mas talvez a
semana no Purgatório tenha sido intensa. Como é por lá?
— Semana?! — Eu arregalo os olhos.
— Sim. Semana. Você está, teoricamente, há dez dias morta para os
humanos. Uma semana no purgatório e três dias nessa cama. Relaxa, eu te dei
banho e tal.
— Você me deu banho?!
— Era isso ou deixar você cheirando à morte e eu só confiei essa
tarefa a mim, sabe? Não queria que você soubesse que um dos meus
empregados te deu banho. Você não queria cheirar à morte, queria? — Nego,
silenciosamente, confusa para caramba. Meu coração está se acelerando na
medida em que processo as coisas. Isso é real? — Sim, isso é real.
— Você está lendo a minha mente?
— Não, a pergunta está quase na sua testa — ela explica, rindo. —
Chloe Mitchell, o destino é um livro já escrito e em algum capítulo dessa
obra estranha, o Diabo implorou pela sua vida. E seu pedido dele foi
atendido.
Escuto o meu coração bater contra o meu peito, mais forte do que
nunca. E agora sei que ele é real, isso é real. Como isso é possível?
— Eu estou viva? — pergunto, cautelosamente. Angeline sorri
largamente. — Estou realmente viva?
— Sim — ela responde, fazendo a vida pulsar com ainda mais
intensidade por todo o meu corpo. Tem milhões de pensamentos correndo
pela minha cabeça no momento.
— Onde estou? Noah sabe disso? Que porra está acontecendo?
— Céu. Não. E te explicarei tudo. — Ela parece achar graça da minha
reação.
Estou no Céu, Noah não sabe que estou aqui e eu estou viva. É muita
coisa. Muita coisa está acontecendo.
— Eu preciso te atualizar sobre tudo o que aconteceu após a sua
morte. Eu também preciso que você ouça tudo com atenção, Chloe, cada
palavra dita. E que você use o seu coração, porque pelo que ouvi dizer,
ninguém sabe fazer isso melhor que você.
Assinto, confusa e hesitante. Angeline parece ponderar sobre como
começar o assunto. Eu aguardo, ansiosa.
— Chloe... Independentemente do que acontecer após essa conversa,
você continuará viva — ela diz, séria. — Mas você... Você tem uma escolha
a fazer.
Hoje é o décimo primeiro dia após a morte da Chloe. E eu estou
fazendo a mesma coisa desde que seu corpo fora enterrado: me sentando em
um canto qualquer, distraído olhando para um ponto qualquer, submerso por
um pensamento qualquer.
Estou sentado na escadaria que antecede meu palácio, fitando o
horizonte.
Essa mania de pensar demais se intensificou desde que o meu anjo
partiu. Está me deixando irritantemente filosófico.
Por exemplo, nesse momento, estou pensando sobre almas. E dentro
desse castelo, depois de tê-lo analisado ao menos vinte vezes nas últimas
horas, eu me perguntei se ele diz exatamente como a minha alma é: repleta de
espaço e completamente vazia.
O que me levou ao seguinte pensamento: nossas almas são como
fortalezas.
Elas diferem uma das outras. Posso preferir as minhas muralhas mais
altas que as suas, você pode preferir as suas espessas. Talvez você a edifique
com rochas pesadas e resistentes para que ninguém veja o que há dentro, mas
alguém possua uma fortaleza de vidro, completamente transparente e você
não veja o menor sentido nisso.
Cada alma é uma alma, cada fortaleza é uma fortaleza.
Alguns constroem mais portas e janelas por suas muralhas, deixam
mais formas de entrar. Outras são mais reservadas. E, algumas vezes, esse
edifício que você construiu ao longo da sua vida, a sua alma... Você vai sentir
como se ela desmoronasse. E com somente um sopro isso pode acontecer.
Você pode desabar e sentir que nada mais tem sentido.
Mas tem. O sentido é se reconstruir, é persistir, entende? Estou
falando em se reerguer.
O problema é que minha alma, a minha fortaleza, ela está em ruínas.
E eu não sei me reerguer. Me sinto perdido, confuso e cansado. Eu sinto
como se precisasse de uma aposentadoria eterna. Mas isso significaria a
morte e eu ainda não a desejo. Eu não a quero.
Em algum canto da minha mente, contudo, é como se eu pudesse
ouvir o que Chloe me diria. Ela me diria "a gente precisa se reerguer
enquanto pode, querido. Se reinventar, se fortalecer... E se cada um possui
sua fortaleza, a alma, com suas ruínas e conquistas; a vida vai te apresentar
um processo constante de desabamentos, frequentes como ondas. E você
precisa entender que viver é sobre se levantar.".
E ela estaria certa.
Viver é o ato bravo de se reerguer. Enquanto pode.
Eu não consigo realmente aplicar esse tipo de pensamento
motivacional. Eu não consigo lutar para ficar bem, o luto ainda me preenche.
Estou sendo hipócrita em ir contra os meus conceitos e os meus ideais,
porque não quero lutar. Me sinto exausto demais para isso.
Estou em luto. Apesar de que, para ser bem honesto, faz algumas
horas que a negação voltou ao meu corpo. Eu pensei que tinha superado essa
etapa do luto, mas aqui estou... Sentindo como se Chloe não tivesse morrido e
pudesse surgir perante meus olhos a qualquer momento.
— É estranho ver o Inferno vazio assim. — Theo me assusta.
Respiro fundo e xingo baixo. Meu irmão ri nasalado, se sentando ao
meu lado na escadaria do palácio. Estamos vendo o lado do fora, as celas do
purgatório distantes com suas almas perdidas e um deserto vasto. Pela
milésima vez, me pergunto em qual o meu anjo está.
Suspiro, cansado. Muitos morreram. Todos viraram cinzas. Esse lugar
se tornou exatamente como o meu irmão disse: vazio.
— É... É estranho — concordo, deixando meus olhos vagarem por um
ponto qualquer. — Theo, isso é um recomeço, você sabe? — o encaro e ele
confirma.
Seu olhar vaga pelo lugar e eu permaneço fitando-o.
— A arma de Escarlatum não pode ser destruída, ela está neste
palácio e eu vou escondê-la novamente — continuo. — Quero que você e
Sinn saibam onde ela fica. Eu realmente acredito que estou confiando nas
pessoas certas, então não me decepcione. — Vejo seus olhos escurecerem um
pouco, mas ele confirma. Theo parece magoado e eu suspiro. Estou pegando
pesado novamente, não é? Porque o olhar no meu irmão me faz lembrar do
garotinho que eu encontrei quando nossos pais morreram. O garoto assustado
que só queria o cuidado do irmão mais velho. E esse irmão mais velho
falhou.
Ao invés de apoiá-lo, de estar ali por Theo quando ele mais precisou,
eu o deleguei tarefas, me afastei. Coloquei responsabilidades que deveriam
ser minhas em suas costas e não parei para pensar que isso poderia cansá-lo
ou machucá-lo de alguma forma. Fui egoísta e me acomodei com tudo isso.
Trabalhei muito menos e ainda garanti que Theodor não me procurasse tanto.
Fiquei bem com isso. Quando não deveria.
E após aguentar toda a porcaria que joguei em suas costas por tanto,
tanto tempo, Theo ainda me suportou duvidando de seu caráter, o julgando
como traidor, o enfrentando sem lhe dar qualquer chance de defesa.
Não há palavras para dizer o quanto fui péssimo como irmão. Porque
Theo sempre esteve ali por mim e se alguém aqui cometeu alguma traição…
Esse alguém fui eu. Aquele que o prometeu que tudo ficaria bem, mas foi o
causador de tanto sofrimento.
Quando falei da arma, pedi para que não me decepcionasse, eu
realmente não quis magoá-lo. Só não tenho jeito com as palavras,
principalmente quando gastei tanto tempo construindo barreiras entre nós.
Theo não merece essa indiferença, mas uma chance de ter um bom irmão de
verdade. E isso não vai surgir de uma noite para a outra. Não quando gastei
séculos sendo tão, tão frio com ele. Mas é algo que eu quero mudar.
Tudo o que eu queria quando comecei a falar da arma era entregar um
pouco da minha confiança em suas mãos. Eu quero que ele saiba dela para
que me proteja, tanto quanto prometo que o protegerei de hoje em diante. E
também porque quero que sinta que eu não tenho medo de que ele saiba onde
ela está. Me parece um bom — e arriscado — primeiro passo.
Preciso me esforçar contra o meu sarcasmo e a minha frieza, para não
ferir Theo novamente. Não posso continuar fazendo isso. Então, acrescento:
— Eu preciso que saiba da arma, porque eu vou te ensinar algumas
coisas que sei, vou te preparar para a eventualidade de uma outra revolta
surgir, porque nesse caso, irmão, você será Rei.
— Eu não sei se quero ser Rei.
— Eu definitivamente não queria. — Toco seu ombro, rindo nasalado.
— Mas veja o que sou?! — Aplico força em seu ombro e me levanto. Theo
continua sentado. — Errei com você por milênios. — Ele me encara. — Eu
errei com você por milênios, Theo. Mas você é meu irmão, somos família.
Sei que não temos um grande vínculo, não somos unidos. E há muito tempo
não parecemos família por minha culpa. Espero que haja tempo para uma
redenção.
Theo sorri fraco.
Estou sendo sincero. Não é como se fossemos construir uma forte
relação de um dia para o outro, mas pretendo me esforçar para tal. Nosso pai
se foi e nossa mãe nunca foi a melhor para nós dois. Perdemos um irmão
bastardo que nem sabíamos que tínhamos, um que conseguiu se vingar das
escolhas dos nossos pais. Luke deixou sua inveja crescer por séculos, por
nunca ter sido realmente visto. Sinto que Theo não me inveja, e agora
também não quero que ele se sinta excluído. Não digo que é por medo de
alguma revolta, mas porque eu reconheço que isso seria injusto.
Errei e insisti nos meus erros por muito tempo, por egoísmo. Fui
alertado algumas vezes por Kold e Sinn em relação ao meu comportamento, é
bem verdade. Mas algo mudou. Algo mudou, principalmente, quando conheci
a Chloe. Algo bom surgiu em mim e pode ser algo pouco visível, como um
fino cordão, mas não quero abrir mão disso. Estou tentando ser mais bom do
que ruim. Quero tentar isso.
— Temos uma eternidade, irmão — Theo me responde —, tempo não
nos falta.
Eternidade. Theo diz isso como se fosse algo bom. Ele diz isso como
se houvesse esperança nessa palavra, esperança de dias melhores. Eu a vejo
como um fardo.
Respiro fundo por um instante. Há um brilho no olhar do meu irmão
de pura empolgação. Ele está tentando conter isso, consigo perceber. Talvez
por saber que será um longo processo até que eu possa ser um bom irmão
novamente, mas ainda assim ele parece animado. O que eu não sinto. O luto
ainda me segue e tudo o que consigo ter no peito é um vazio, mas realmente
quero mudar isso. Quero ser melhor. Para todo mundo que me cerca,
inclusive Theo. Eu quero fazer nossa relação dar certo.
Então eu paro e penso. Talvez fazê-lo me acompanhar em algumas
obrigações seja uma boa forma de iniciarmos a reconstrução de um vínculo.
Passarmos algum tempo juntos pode nos fazer bem. E deixá-lo ainda mais
empolgado, mesmo que eu não consiga sentir o mesmo, ainda.
— Sinn e eu estamos indo para uma reunião no Céu, com a Angeline
— digo. — Não quer vir?
Theo fita meus olhos profundamente. É como se perguntasse se tenho
certeza. Seus olhos se cerram levemente, suas sobrancelhas se unem... E ele
se levanta, percebendo que não estou brincando. Ele confirma e eu aceno
com a cabeça para que caminhemos para dentro do castelo, onde Sinn já nos
aguarda.

Caminhamos por um dos corredores do palácio do Céu e eu lembro da


Lilith toda vez que vejo as pilastras de mármore e ouro, os desenhos de anjos
no teto, esse piso incrivelmente claro e brilhante. E eu só consigo sentir raiva.
Raiva daquela mulher e de tudo que ela me fez passar. De tudo que me tirou.
Afinal, ela venceu, não venceu? Ela me tirou a minha família, ela me tirou a
Chloe. Bem como Luke. Luke me tirou a Chloe, me tirou a Kold. Me fez
perder tanto.
Theo, ao meu lado, parece deslumbrado em voltar aqui. Agora que
está completamente saudável, o meu irmão pode perceber melhor tudo à sua
volta. Cada detalhe do Céu. E ele parece impressionado em como tudo aqui
parece colorido e vivo. Sinn tem seus olhos de diferentes cores focados na
porta do outro lado e a sua cicatriz está levemente enrugada pelas
sobrancelhas unidas. Ele está com uma cara de bravo. Ele está assim tem uns
dias.
Os guardas em frente à porta dupla grandiosa do escritório de
Angeline não se movem. Suas lanças apontam para o teto e eles nos analisam
cautelosamente.
— A Rainha os aguarda no outro lado do palácio.
Theo olha para mim. Ele inclina a cabeça e relaxa o seu rosto de um
modo que diz: "sério? Estamos perdidos?". Sinn faz o mesmo, em minha
direção.
— Por que não viu onde ela estava? — Sinn me pergunta. A minha
mente estava na puta que pariu, honestamente. Angeline disse que se reuniria
comigo e eu pensei que ela usaria seu escritório ou a sala de reuniões que é
logo aqui perto.
— Por que vocês não fizeram isso? — retruco, mal humorado.
— Por que não simplesmente surgimos na frente da titia? — Theo
debocha.
— Porque eu pensei que seria educado caminharmos — digo e os dois
unem as sobrancelhas para mim. — Eles, os anjos, não têm esse poderzinho,
pode ser ofensivo.
— Isso é ofensivo? — Theo surge na frente de um dos guardas e
depois no do outro. E ele faz isso mais seis vezes.
Os guardas desviam o olhar do meu irmão para mim e eu vejo fúria
em seus olhos. Um deles trinca os dentes e aperta sua lança tão forte que eu
sinto que vai explodir. E ele vira o rosto para o meu irmão e rosna:
— É.
Meu irmão engole em seco e sorri largamente, estendendo as mãos
num pedido de desculpas. Eu o seguro pela camisa e o faço dar a volta e
caminhar para o outro lado. Sinn nos segue. Andamos rapidamente, em
silêncio. Contudo, assim que sumimos da visão dos guardas, Theo
desaparece, como se dissesse "ei, sou eu, Theo Hellmeister, e não sou
obrigado a andar". Bufo, prestes a protestar com Sinn, mas ele faz o mesmo.
E então eu os imito.
E agora estamos de frente para uma varanda que se conecta ao nosso
corredor por um grande e largo arco. O portão gradeado em ouro está aberto,
expondo completamente a visão da sacada. Nela, vejo minha tia conversar e
rir de algo que uma mulher, um anjo, diz. Angie parece radiante. Angeline
tem uma tiara de brilhantes em seus fios cinzas claros e trançados. Seu
vestido dessa vez é rosa, claro. Seu sorriso, contudo, é rubro. Ela está
descalça, como se sentisse em casa.
O anjo ao seu lado tem asas que nunca vi na vida. Começam da base
em preto e se encerram em branco, sendo longas e curvadas. Realmente
nunca vi nada tão belo assim, muito menos achei que fosse possível um só ser
reunir as cores dos dois reinos em suas penas, após todo o tempo em que Céu
e Inferno permaneceram brigados. Mas, ainda assim, ali está o anjo, me
provando o contrário. Me provando que isso é sim possível. E, caramba, é
realmente uma imagem para se admirar.
Ela está de costas, com seus fios ruivos soltos e voando contra o
vento. Veste botas escuras, calças jeans claras e uma regata preta, como uma
humana comum. O que faz meu coração esquentar e meu sangue ferver em
saudade à minha ruivinha. Sinto um formigamento nas mãos e as abro e
fecho, tentando afastar essa sensação. Sinn, ao meu lado, está levemente
boquiaberto quando me encara.
Meu coração para por um segundo.
Eu penso na Chloe, de verdade. Como eu sinto sua falta. Chloe invade
todos os meus pensamentos e eu finco as unhas em minhas mãos... Até que
eu sinto um coração bater. Eu o ouço e não é o meu. A melodia, contudo, não
me é estranha. Aquece o meu peito. O som suave e rítmico é extremamente
doce e familiar, me traz a sensação de estar em casa. E eu juro ter escutado a
voz do meu anjo.
Isso não é possível, certo?
Angeline finalmente nota a minha presença e para de sorrir,
levemente boquiaberta. Mas a ruiva não parece querer parar de falar, com
suas mãos na bancada da varanda, mexendo suas asas de um lado pro outro,
como se estivesse ansiosa e esperando por alguém. Ela fica na ponta dos pés,
segurando com força na bancada, olhando para paisagem. Fica na ponta dos
pés, do mesmo modo que uma bailarina, com sua postura perfeita.
E então Angeline acena com a cabeça para mim, a fazendo parar de
falar.
Estou ofegante, sentindo adrenalina por todo o meu corpo, com a boca
seca e os olhos em ardência. Porque isso não pode ser real... Mas então a
ruiva se vira.
E é a minha ruivinha.
É a minha ruivinha. É o meu anjo.
Seus olhos brilham de imediato e eu fito todo detalhe do seu corpo,
sem acreditar. Ela tem asas, asas! Ela está linda e bem, saudável perante os
meus olhos.
Suas bochechas assumem uma coloração levemente avermelhada, seu
nariz também. Consigo ver seu tronco subir e descer conforme ofega. Chloe
dá um passo em minha direção e eu estou tendo que me lembrar de respirar.
Estou louco? Estou delirando? Eu estou delirando. Provavelmente.
— Oi, amor — ela diz, a voz por um fio.
Isso soou real. Isso realmente soou real.
E um arrepio percorre todo o meu corpo, meu coração explode em
adrenalina. Eu sinto meus poros eriçarem, eu sinto meus pés com mais força
contra o chão, o ar à minha volta. Eu escuto o seu coração bater.
Dei outro passo sem nem perceber e outro e outro... E então meu
corpo está avançando em sua direção, meus olhos se inundando de água a
cada movimento. Chloe também se aproxima e recolhe as suas asas, enquanto
eu balanço a cabeça em negação.
E de repente ela ganha velocidade e está com as pernas ao redor do
meu corpo, seus braços ao redor do meu pescoço. Minha mão encontra a sua
perna e a outra o seu pescoço, enquanto eu fito Angeline, confuso. A minha
tia está sorrindo como nunca e eu sinto Chloe me apertar com força pelo seu
pescoço.
Meu coração está batendo com agressividade perto do seu e parece
enlouquecido. As lágrimas deslizam pelo meu rosto e eu a escuto soluçar. A
envolvo pela cintura, deitando a cabeça em seu ombro.
— I-Isso é real?
— Noah, olhe para mim. — A sua voz está vibrando e eu sinto as suas
mãos contra o meu rosto. Seus polegares se arrastam pela minha pele,
molhando-se de lágrimas.
Eu sinto o seu toque, eu ouço sua respiração, eu escuto o amor no seu
peito, eu me vejo por seus olhos. Todo pequeno detalhe de suas íris escuras,
os pontinhos em seu rosto, os seus cílios alaranjados. É tão fofo e doce o
modo como está abraçada a mim, suas pernas em minha cintura, confiante
que não a deixarei cair.
É ela. Ela está aqui. Isso precisa ser real. Porque eu tenho certeza de
que essa mulher é a mulher da minha vida e a única capaz de prender o Diabo
em seus olhos. Meu coração está quase saindo pela boca, eu não consigo
acreditar! Ela é perfeita. Tão perfeita... E está viva!
— Eu amo você — Chloe sussurra, como se fosse um segredo só
nosso.
Mitchell faz seus lábios esmagarem os meus com delicadeza. Meus
ombros relaxam com o choque que passa da minha boca ao meu corpo. E eu
afrouxo o aperto ao redor da sua cintura, deixando seus pés tocarem o chão.
Seus polegares ainda estão em minhas bochechas e eu a estou apertando
contra mim com força, deixando esse selinho durar. E então seus lábios se
movem sobre os meus e afasta o rosto do meu.
Chloe está chorando, com seus olhos vermelhos, seu nariz rosado e as
bochechas do mesmo jeito. Ela é tão linda e eu não consigo acreditar. Então a
beijo novamente e novamente, a mantendo presa contra mim num abraço.
— Eu amo você — ela sussurra, em meu ouvido. Encho a sua
bochecha de beijos e capturo seus lábios novamente, a ouvindo rir em
seguida. E isso é música para os meus ouvidos.
— Eu amo você mais, meu anjo — provoco e ela nega —, eu amo
você. Eu amo você pra cacete. — E afundo meu rosto na curva do seu
pescoço, sentindo-a me abraçar de novo. Sua gargalhada me deixa mais vivo
quando a ergo do chão e escuto Theo assobiar e Sinn rir, bem como
Angeline.
— Você me trouxe de volta à vida, amor. — Suas mãos estão em meu
rosto novamente. Estou nervoso, as mãos em seus quadris. — Você me
trouxe de volta... Você implorou por mim... — E antes que eu possa ouvir sua
explicação, seus lábios estão contra os meus novamente.
Eu tenho o meu anjo comigo. Eu tenho o meu anjo em meus braços.
Tenho seu gosto em minha boca, um tão bom que eu provaria pela
eternidade. Eu a tenho.
E agora, por mais que eu não compreenda como isso veio a acontecer,
ela tem sua vida de volta e sua liberdade em asas que podem levá-la a
qualquer lugar, asas únicas assim como só ela.
Eu a tenho.
O meu anjo.
O meu anjo.

Angeline, Sinn e Theo resolveram nos dar algum tempo. Eles estão na
varanda e nós estamos dentro do palácio do Céu, abraçados por cerca de
cinco minutos. Já trocamos beijos, já trocamos declarações e ainda não ouvi
explicação acerca do que está havendo. Nem parece real.
Seu queixo se apoia em meu peito.
— Eu vivi o Purgatório — ela diz. Eu tiro uma mecha de seu cabelo e
coloco atrás da sua orelha.
— É? E como foi?
— Eu revivi a noite que nos conhecemos — ela conta — e eu me
apaixonei por você de novo.
Meu coração se aquece. Chloe sorri fraco para mim e eu beijo a sua
testa, a abraçando com mais força.
Sabe a sensação de ter algo tão bom consigo, que você tem medo de
perder? Estou a abraçando, com medo de soltá-la e ela sumir no segundo
seguinte. Estou aproveitando cada segundo desse sonho, com medo de
acordar para a vida real. Mas eu a sinto quente contra o meu corpo, eu a sinto.
Eu a vejo.
— Eu só queria dizer de volta — ela sussurra.
— Não precisava.
— Mas eu queria. Porque eu amo você. Você precisava saber disso.
— Assinto. E só então desço o olhar pelo seu corpo e percebo que não vejo
uma tatuagem sequer. Franzo o cenho e ela sorri. — Tem algumas coisas que
precisa ouvir, huh?
— Sim, por favor — confesso, a fazendo rir. Ela me beija brevemente
mais uma vez e me puxa pela mão.
Tento não fitar as suas costas, porque as asas deixaram buracos em
sua camisa e está engraçado. Jogo seus fios para trás, a envolvendo pela
cintura assim que chegamos até Angeline. Sinn e Theo se viram em nossa
direção. Sinn está sorrindo como nunca e Theo arqueia a sobrancelha para a
minha namorada.
— Acho que precisamos nos apresentar apropriadamente — ele diz.
Não sei se ele se recorda de que a conheceu em meu apartamento, porque
estava sob o controle da Lilith. Theo segura a mão da minha ruivinha e deixa
um beijo sobre os nós de seus dedos. Ela sorri. — Theo Hellmeister. Irmão
do Diabo, se tiver dúvidas.
Ela ri. Ri e conquista o sorriso do Hellmeister mais novo.
— Chloe Mitchell. Namorada do Diabo — ela diz e eu apoio as mãos
em seu ombro. — Sinn... Bom te ver bem — ela diz e ele sorri largamente.
Os dois se abraçam brevemente e o meu anjo volta a encostar as costas em
meu peito. Seu olhar se guia a Angeline. — Hora da conversa?
— Hora da conversa — Angie confirma.

Na grande mesa da sala de reuniões do palácio, Angeline está sentada


numa das extremidades, suas pernas sobre a mesa, conforme Chloe fala.
Chloe está de pé, ao seu lado, nervosa. Seu olhar nunca se prende muito ao
meu. Theo e Sinn estão sentados do outro lado da mesa, longe de mim,
atentos a tudo o que é dito.
— Então está me dizendo que você tinha a opção de voltar à Terra e
viver como humana, com a sua família — digo.
— Ou de esquecer você, ter toda a minha morte anulada e apagada,
não lembrar do que vivemos. Mas sim, continue — Chloe acrescenta.
— E você tinha a opção de ficar ao meu lado, se tornar um anjo e
viver para sempre. E você escolheu isso? — pergunto. Chloe hesita em
assentir, mas o faz. Meu olhar recai sobre Angeline, porque estou tenso. —
Sinn e Theo, nos deixem a sós.
Os dois somem num piscar de olhos. Chloe me conhece e sabe
quando estou confuso, quando estou bravo. E por mais que eu a ame, repeti
milhares de vezes como o que vivo não é um mar de rosas e eu realmente me
preocupo com seu futuro. Ela engole em seco, mas quando abro a boca para
falar, ela é mais rápida:
— Angeline me disse o que sabíamos, Noah, que eu sou o motivo da
união do Céu e do Inferno, então eu pensei bem no que isso significa e eu
percebi que eu fui a única razão pra você se aliar ao Céu. Eu te levei a
quebrar o seu orgulho. Modéstia à parte, claro.
— Chloe...
— Mas isso não bastou. E eu morri. Eu morri e você quebrou seu
orgulho novamente e cedeu a Deus. Você implorou por mim para Ele, que te
ouviu. Você cedeu duas vezes. E ainda está próximo à sua tia para reconstruir
tudo o que foi perdido, ou seja, na verdade, três vezes. Eu fui a razão
encontrada para você se unir ao Céu — ela diz e antes que eu fale, Chloe
cerra os olhos como se me amaldiçoasse em antecipação a uma fala que não
apareceu. — Você precisava aprender sobre o amor, o valor das coisas, o
quanto o poder pouco era essencial e o quanto sentir era mais importante. E
você percebeu isso quando me perdeu, Noah. Sua tia me disse que eu fui a
sua salvação. E que o destino já estava escrito, que Ele sabia que você
imploraria, até mesmo qual escolha eu faria e, novamente, porque eu sou a
união entre o Céu e o Inferno. Nós dois estávamos predestinados, Noah.
Somos a sina um do outro... E ainda bem.
Demoro um pouco para absorver as suas palavras. Chloe está aqui,
deixando clara a sua linha de raciocínio e a sua vontade, me fazendo conter
um sorriso de canto por ver todo o seu jeito bravo e decidido de ser. Ainda
preocupado, contudo, abro a boca para falar e sou cortado novamente:
— Eu — Chloe continua —, eu tinha a escolha de voltar a viver como
uma humana, nas sombras, me sentindo vazia pelas memórias apagadas; ou
com o Diabo, na luz, honrando tudo o que foi perdido e seguindo o que
acredito, lutando pelo amor que temos... Porém a segunda opção me traria o
fardo de viver para sempre e de ver o tempo passar, acompanhar a minha
família envelhecer e perecer. Mas Angeline me disse. — Seu dedo aponta
para a Rainha, que acena com a mão, piscando. — Que eu sou a união entre
Reinos, que ela sabia o que eu escolheria... E eu entendi. O meu coração
gritava para eu aceitar vir até aqui. Essa decisão já estava feita e cada
segundo naquele quarto ponderando, era só o meu jeito de pensar nas mil
possibilidades e postergar o óbvio: que se temos uma chance de ficarmos
juntos, Noah, merecemos pegá-la. Nós merecemos para caramba.
Um silêncio cai sobre nós e Chloe suspira, como se finalmente
pudesse respirar. Seus olhos estão brilhando, com vontade de chorar. Seus
braços estão cruzados.
— A Chloe é um anjo. — Angeline chama a nossa atenção para si. —
Quando Deus me chamou para tomar conta da ruiva no processo de
ressurreição, eu soube que ela seria um anjo. Eu recebi instruções para lhe
contar sobre suas possibilidades de escolha e deixar que ela seguisse seus
sentimentos. Ela é um anjo, ela seria um anjo, seria do nosso povo. Afinal,
tudo o que Deus fez foi reativar a linhagem de Mitchell. Ela tem a nossa
descendência. Ela é um anjo.
Agora o apelido que dei à Chloe faz mais sentido e eu mordo o sorriso
só em pensar nisso.
— Mas as asas da Chloe reúnem o Inferno e o Céu, porque
fisicamente, Chloe tem algo diferente. Ela tem algo a mais — Angie avisa. —
Não consegue sentir? Ela é forte, Noah... Mais forte que nós dois. — E eu
arqueio a sobrancelha, analisando a minha ruivinha. — Mais forte que nós
dois juntos. E isso é porque Chloe é um anjo que tem seu poder e o meu
poder, juntos. Eu não sei como isso veio acontecer, mas é verdade. Os olhos
da Chloe ficaram vermelhos quando ela fez a sua escolha, eles não se
tornaram cinzas, ela tem um elo com o Inferno. O que explica as asas. Chloe
carrega uma malícia como a sua e uma extrema sensibilidade como a minha,
além de conhecer os humanos como nunca, por ter sido um deles, ela tem
uma sabedoria diferente.
"Ela tem todos os poderes de um demônio e de um anjo. Chloe
escolheu viver ao seu lado, achando que seria apenas um anjo e poderia ter
você, mas escolhendo o amor, Chloe se tornou algo a mais. E se quiser a
minha opinião, a sua ruiva tem o Céu e o Inferno no coração. Embora os
Reinos permaneçam distintos, agora a sua garota é o símbolo da nossa
Aliança: carrega a descendência do Céu, mas se apaixonou pelo Diabo e pelo
Inferno. Chloe aceitou ser um anjo, mas para viver contigo. Então ela tem um
pouco dos dois lados. E, portanto, precisa ser maior que nós. "Chloe parece
chocada. Ela parece se encolher ao cruzar os braços. Ela não sabia disso.
Pelos seus olhos, parece que ela acreditava ser apenas um anjo comum. Mas
nada nela nunca foi comum. Eu senti que estava diferente quando a vi aqui. A
mesma alma e o mesmo amor por mim, mas a sinto mais forte, mais viva.
Seu olhar cai sobre mim e ela percebe que eu não gostei muito da
situação. E o motivo é bem simples:
— Eu amo a Chloe mais do que tudo. Mas Ele sempre faz um jogo
conforme os desejos que somente Ele entende — digo e Angeline suspira —
e a responsabilidade de viver conosco, na Realeza, cuidando não de uma
cidade, de um Estado, mas de um Universo e sendo submetida ao peso da
eternidade, Angeline, isso é...
— O que eu sou capaz de fazer — Chloe afirma. A encaro e Chloe
suspira. Eu percebo que ela está nervosa, que ela está ansiosa.
— Eu sei que consegue, Chloe — garanto. — Não estou colocando
aqui a sua capacidade em jogo, ruivinha, você venceu a morte e você me
salvou de milhares de maneiras. — Fito os seus olhos, sendo sincero. —
Você fez tanta coisa que eu julgava impossível acontecer e a primeira delas
foi fazer eu me apaixonar por uma humana, Chloe. Eu sei que você é capaz
de muito. Mas você foi colocada nesse meio que vivemos e esse meio
machuca. E eu não quero que você sofra. Tenho medo de que tenha sido
manipulada e eu sinto que foi...
— Não. Não fui...
— Chloe...
— Olha aqui, Noah. — Ela anda até a minha cadeira com o seu jeito
mandão de ser. — Se eu soubesse que a minha escolha teria consequências
ainda maiores, eu ainda te escolheria. E isso tudo me assusta, mas tudo bem,
porque eu tenho você. — Abro a boca para retrucar, mas Chloe ainda parece
brava. Ela ergue o dedo demandando por silêncio e eu ergo as duas
sobrancelhas. — A minha escolha não foi feita por poder ou por ganância, eu
escolhi o que escolhi porque pesei na balança os meus sentimentos, eu usei o
meu coração, ‘tá legal? — Assinto, silenciosamente. — Porque eu ainda
posso visitar a minha família, mesmo que em segredo. E eu os verei
envelhecer e morrer. Não será fácil, eu os verei sofrer e vai doer pra caralho.
Mas eu os terei por um bom tempo e eu terei você para sempre. Além do
mais, eu quero conhecer o mundo todo. A porra do mundo inteiro, ‘tá legal?
Agora eu posso e posso fazer isso com você. Não sei se eu mencionei ou
deixei isso bem claro, mas se eu voltasse para a Terra...
— Você me esqueceria...
— Jamais iria escolher esquecer você, seu idiota. — Ela soa brava.
Seguro o seu pulso e ela tenta se afastar, irritada, mas a faço cair sobre o meu
colo. — Eu odeio você — ela resmunga.
— Eu amo você — uno a boca a sua, brevemente. Chloe suspira,
provavelmente desconfortável porque Angeline nos assiste como um filme de
romance incrível.
— Eu pensei muito no lado negativo disso, Noah. Pensei que poderia
ficar parecendo que eu escolhi um cara contra tudo o que sempre vivi. Eu
imaginei que minha mãe poderia ficar brava. Pensei em ver Ben crescer, amar
e morrer. Eu pensei em tanta coisa... Mas escolher você me pareceu o certo.
Não senti como se estivesse jogando a minha família fora. Eu percebi que
meus amigos vão me compreender e a minha mãe, o meu irmão e a minha tia
também vão. Eles poderão me odiar um pouco por ficar nova pra sempre,
mas... — Ela dá de ombros, me fazendo rir. Sua mão alisa o meu rosto. — E
eu tive todos os meus sonhos interrompidos, Noah. Na minha antiga vida,
sempre achei que tinha sonhos demais o pouco tempo que viveria. Eu tenho
sonhos e sonhos e sonhos... Eu brincava que precisaria de séculos para
realizar todos. Agora eu tenho. E isso soa como a melhor aventura que eu
poderia ter.
Sorrio. Agora eu vejo, por seus olhos, o quanto a sua alma está segura
dessa escolha. Eu espero realmente que não sofra tanto, mas eu estarei aqui
para lhe abraçar durante os momentos de dor e secar as suas lágrimas.
Eu a amo. E ela está viva. Ela realmente está viva.
Guio os olhos dela para Angeline.
— Por que ela demorou tanto? — questiono.
— Querendo ou não, ela morreu, Noah. E Deus provavelmente achou
importante que passasse pelo Purgatório antes de deixá-la te reencontrar.
Volto o olhar para a Chloe.
— Superou o Purgatório em dez dias? — Estou verdadeiramente
impressionado.
— Sete. Três dias foi só pra aquele lance da ressurreição — Chloe
explica, me fazendo rir. — É o quão foda eu sou, amor. Eu superei a morte e
o Purgatório em sete dias. — Chloe faz Angeline rir pelo modo como soa
empolgada. Ela está sorrindo e preenchendo toda essa sala em vida,
iluminando todo o lugar com o seu sorriso. — Eu sou muito foda desse jeito.
— Eu concordo plenamente — respondo. Ela se levanta e sua mão
encontra a minha, meu olhar fica preso ao seu — Você é a melhor, meu anjo.
Vejo o melhor sorriso surgir no rosto do meu anjo. Nossos olhares
conversam de um jeito que só nós dois compreendemos, eu até mesmo quase
esqueço de Angeline nessa sala.
— Amo você — Chloe diz, apertando a minha mão.
— Eu amo você também, Chloe Mitchell — digo, de volta. E agora
sei que tenho a eternidade para repetir.
Deixei Theo e Sinn levarem Chloe para dar uma volta pelo palácio do
Céu. Theo sugeriu isso para conhecer a minha namorada melhor e Sinn disse
que ficaria ao lado dos dois, para garantir que meu irmão não falaria alguma
merda. Os assisto caminharem para longe.
— Como que funciona o lance do teletransporte? — Escuto Chloe
dizer, a voz distante a cada passo. Preciso rir baixinho.
— Só pensa onde gostaria de estar e pronto — Theo diz e Chloe
reaparece oito passos à frente, gargalhando alto. — Divertido, né?
Suas vozes se tornam mais baixas e eu me viro para Angeline. Ela
está sorrindo para mim, mas eu cruzo os braços, perdendo o meu sorriso.
— Você sabia de tudo?
— Não. Fiquei surpresa quando Ele me chamou — ela responde.
Angeline acena com a cabeça para a varanda e eu a sigo. Agora estamos
fitando o céu azulado do Paraíso e toda a sua cor. — Mas tudo fez sentido
para mim, Noah, absolutamente tudo, quando soube que Chloe voltaria a
viver. E parabéns, Noah, vocês têm um relacionamento lindo. É nítido o
quanto se gostam.
Sorrio, concordando com a cabeça. Nossos olhares vagam pelo
horizonte e eu respiro fundo. Me sinto em êxtase, cada pedacinho do meu
corpo. Acho que nunca me senti tão feliz por estar vivo quanto agora.
— Angie... Só Chloe poderia voltar? — Deixo escapar. Penso em
Kold, eu a queria de volta. Penso em John, penso que Molly ficaria feliz em
reencontrá-lo.
— Sim, sinto muito. Já é uma exceção enorme, Noah.
Assinto, tentando dizer a mim mesmo que isso basta. Mas não basta,
eu sinto que não. Sinn e eu sentimos falta da Kold e muita gente amaria ter o
John de volta na Terra, certo? Mas também compreendo que não podemos ter
tudo.
Então foco no que deu certo. Chloe está de volta, ela está de volta! E
quer ficar comigo. Isso é tão surreal... Contudo, há algo mais que preciso
perguntar para Angeline, então escondo o sorriso.
— Você sabia sobre Luke? Sobre ele ser o meu irmão?
— Sabia. Eu realmente sabia.
— Por que nunca me disse?
— Porque seu pai me pediu para nunca contar — Angeline conta — e
a sua mãe estava uma fera na época. Enfim, eu fiz a promessa de que nunca
revelaria a existência de um bastardo na realeza, mesmo contrariada. — A
vejo suspirar. Parece ter mantido o segredo a contragosto. — Promessas são
promessas, você sabe.
— Mas poderia ter me dito, principalmente quando as coisas
começaram a se desenrolar, Angeline, você sabia disso. Teria sido mil vezes
mais fácil para mim. Eu teria descoberto o traidor rapidamente...
— Eu não poderia dizer. Promessas são promessas, Noah. Sabe disso.
As promessas feitas por mim ou por você são como acordos inquebráveis.
Precisam ser.
Bufo, frustrado. Angeline acredita demais em coisas que não consigo
crer. Como na boa vontade d'Ele ou em não abrir mão de alguns valores de
vez em quando em prol do certo. Gosto dela e ela é família, mas somos tão
diferentes que chega a ser irritante.
— Tem outra coisa... — Angie diz, hesitante. — Uma proposta que
fiz à Chloe e ela achou loucura. Acredito que ela quer conversar contigo
primeiro. Como esse mundo é muito novo para ela, talvez queira conselhos.
— O que foi? — Me vejo preocupado.
— A arma Escarlatum é a única capaz de matá-lo e me ferir
profundamente. Bem como uma outra que pode me matar e te ferir — Angie
diz, guiando os seus olhos cinzentos para mim. — Você sabe, querido, eu não
tenho irmãos nem filhos... Eu não tenho um sucessor...
A minha mente trabalha com agilidade.
— Você quer a Chloe como sua sucessora se algo sair errado?
— Sim. Mas eu duvido que uma rebelião aconteça contra mim, mas
nunca se sabe — Angeline diz. — Depois da morte da Chloe, eu pensei sobre
como preciso de um herdeiro. E eu não sei explicar, Noah, mas enquanto ela
morria, eu olhei no fundo dos seus olhos e um arrepio me percorreu, como se
eu estivesse vendo uma alma digna da Realeza. Uma alma de um ser
verdadeiramente bom, que sofrera bastante, mas era forte como nunca. Eu
captei algo nos olhos dela, Noah, que me fez pensar em mim.
— Angie… — começo, mas minha tia logo me interrompe.
— E quando ela morreu, isso não saiu da minha cabeça, Noah. Assim
que ela voltou, a ideia escapou da minha boca. Eu a ajudaria nos treinos, a
ensinaria tudo que sei... Você sabe que sou uma boa Rainha e uma boa
guerreira. Além do mais, eu estaria a preparando para... Você sabe...
Franzo o cenho, confuso. Angeline ri nasalado, em deboche, como se
eu soubesse o que ela está dizendo.
— Você é o Rei do Inferno, Noah. Ela é a sua companheira. Basta um
casamento ou uma cerimônia de coroação para que o óbvio se torne oficial...
— Ela é a minha Rainha — concluo, baixo. Angie confirma.
Acho que no fundo, eu sei que ela está falando a verdade. Ao mesmo
tempo, sinto receio em pedir à Chloe para assumir tal responsabilidade.
Apesar de saber que ela o aceitaria. Não quero cobrar nada por ora. Acho que
isso precisa ser conversado.
— Ela sabe — Angie diz, como se lesse meus pensamentos. — Ela
sabe no que está metida, Noah, mais do que você imagina. E não há ninguém
melhor para tomar o posto de Rainha. Você sofreu nos últimos anos por
governar sozinho e esse peso poderia ser dividido, Noah, realmente poderia.
Com a força e a esperteza da Chloe, eu não tenho dúvidas que fariam, juntos,
um excelente trabalho. Além do mais, pare para pensar em como tudo
realmente se encaixa... Chloe, como sucessora do Céu e Rainha do Inferno,
seria a concretização da profecia, validando nosso acordo de paz.
— A união entre o Céu e o Inferno — digo.
— Exatamente. — Angie sorri, parecendo satisfeita. — Mas preciso
da sua ajuda para...
— Essa escolha é dela, Angie — a interrompo. — Chloe vai decidir
agora para onde vai e o que vai fazer. Ela deve estar confusa e você precisa
lhe dar um tempo. Se quer saber, tem razão, tenho vontade de me ajoelhar e
pedir a mão de Chloe Mitchell a qualquer segundo. Eu quero que ela e todos
saibam que o meu "para sempre" é com ela. Ainda assim, posso me contentar
em ser apenas namorado caso eu sinta que o meu anjo tem receio de ser uma
Rainha. E eu posso aconselhá-la quanto a suas dúvidas, mas induzi-la à sua
proposta... Nunca. Ao fim do dia, a escolha será sempre dela.
Angie me olha no fundo dos olhos. Vejo o cinza das suas íris
escurecer por melancolia, mas ela assente. Murmuro um "muito obrigado"
por ter guiado o meu anjo a mim novamente, beijando a sua testa, me
despedindo. Giro em meus calcanhares para me retirar, dando alguns passos,
mas paro quando a escuto:
— Se você propor, Noah, sabe que a resposta será sim, não sabe?
Me pergunto se sei. Me pergunto se preciso dessa resposta agora. Mas
agora que tenho Chloe de volta, eu preciso viver um dia de cada vez com
calma. Então só absorvo as palavras de Angeline, andando para longe sem
respondê-la.

Chloe está observando o Inferno da varanda do meu quarto. Fecho a


porta atrás de mim e vejo seus fios ruivos voarem contra o vento.
— Eu sei como isso aqui costumava ser mais movimentado e que,
infelizmente, esse lugar é mais sombrio do que você gostaria — Chloe diz. —
Mas também há certa beleza no caos.
Me aproximo. Paro em frente à sacada, cruzando os braços e deixando
meu ombro tocar a parede. Ela se vira para mim.
A analiso por completo. Seus olhos e suas sardas, seu nariz e sua
boca, seu corpo... A visão da sua pele agora sem tatuagens é diferente. Ela
percebe onde meu olhar está, mas ele volta ao seu rosto.
— As tatuagens... Eu ainda não sei qual é aquele lance de pintar o
corpo com o pensamento — ela diz e eu rio.
— É sobre você pensar em como quer o seu desenho. Então você
pode marcar em sua pele o que quiser. — Envolvo sua cintura com as minhas
duas mãos, firme e Chloe morde o lábio inferior. — A sua imagem pode ser
manipulada de acordo com os seus desejos, meu anjo. Se quiser mais
tatuagens, é só mentalizá-las. Assim como, se quiser parecer ficar mais nova,
mais velha…
— Isso é bem bizarro.
— Eu sei. — Nós rimos ao mesmo tempo. E quando as risadas
cessam, eu analiso o seu rosto. Meu coração se acalma perto dela, mas isso
ainda é tão surreal. — Eu ainda não consigo acreditar que está aqui, meu
anjo.
— Nem eu, amor, nem eu. — Um arrepio sobe por minha coluna e eu
sinto suas mãos por meus braços, subindo lentamente. — Não posso acreditar
que posso tocá-lo, sentir o seu cheiro... — Seu nariz roça contra o meu. —
Que estamos vivos e juntos novamente.
— Eu preciso tirar a prova disso — provoco e ela sorri, erguendo a
cabeça e fazendo a ponta do seu nariz se chocar levemente contra a minha.
— É mesmo?
— Uhum — murmuro. Chloe cola seu corpo ao meu e passa seus
braços ao redor do meu pescoço. A minha mão se encaixa em sua nuca e eu
deixo o meu nariz percorrer a curva do seu pescoço. — Sua pele ainda é a
mesma, amor, macia como nunca... — A escuto suspirar e meus dedos se
apertam ao redor dos seus cabelos cor de fogo. — Seus fios ainda são longos
e vermelhos... — sussurro contra o seu ouvido. Foco em seu coração e é a
melhor coisa que já ouvi. — Mas seu coração, meu anjo, ele é mais forte.
— Sabe como sei que isso é real? — ela pergunta e eu foco nos seus
olhos, hipnotizado por cada detalhe deles. Nego silenciosamente. — Você
ainda fala demais...
Eu rio e sua boca se choca com a minha.
Seu gosto nunca me cansa. Suas mãos tocam o meu peito e descem
lentamente até a barra da minha camisa e ela a tira. Volto a caçar sua boca,
sentindo seus lábios deslizarem sobre os meus e seus dentes capturarem meu
lábio inferior. Minhas mãos estão em sua nuca e em seu quadril. Sorrio com
maldade quando meu lábio é liberto por ela.
Chloe tira a sua blusa e eu vejo seu corpo sob a luz da lua e do quarto.
Ela está sem sutiã e eu me vejo apaixonado mais uma vez pelo seu corpo.
Cada detalhe. Nossas camisas agora estão no chão.
— Eu estava perdido, meu anjo, como eu viveria sem isso? — Minha
voz sai mais rouca do que o planejado. Chloe sente minhas mãos em sua
bunda e usa de um impulso para prender as pernas ao redor do meu corpo.
Minhas mãos seguram as suas pernas com firmeza. Eu nunca a deixaria cair.
Seus dedos estão em meu rosto, seu olhar preso ao meu.
Eu a amo. A amo com toda a minha alma e amo toda a sua alma e
como consigo vê-la por seus olhos.
Ela me disse que eu fazia o Inferno parecer o paraíso e agora ela faz
isso por mim. E todo o Inferno é nosso. Rei e Rainha do submundo,
convivendo com o caos, sabendo que há luz nele. Somos mais fortes juntos,
como duas chamas que se unem em uma só, como duas almas que lutaram até
mesmo contra a morte para ficarem juntas.
Com Chloe Mitchell, eu seguramente sou a melhor versão de mim. E
quando não sou, eu ainda sou amado. A minha ruivinha é parte de mim,
assim como os desenhos que tenho tatuados na pele.
— Eu amo você, Noah Hellmeister.
— Eu amo você, Chloe Mitchell — sussurro. — Eu amo você.
Minha boca toca a sua, com delicadeza. Giro o meu corpo com o seu
em meus braços e escuto a sua risada contra a minha boca quando ela abraça
o meu pescoço e eu deixo suas costas caírem na cama. Ela passa as pernas ao
redor dos meus quadris e eu me inclino em sua direção.
— Você é minha salvação... — sussurro, beijando o seu pescoço. —
A minha ruivinha... — Minha mão pressiona a sua cintura e ela deixa a sua
boca se entreabrir. — O meu amor... — Aproximo a boca da sua. — O meu
anjo.
Desço meus beijos por sua boca, mordisco seu queixo, beijo o centro
da sua garganta, o seu colo. Chloe arqueia a coluna para me ver melhor, se
apoiando em seus cotovelos. Umedeço meu lábio inferior. Minha boca
encontra seu seio esquerdo e ela arfa, sentindo a minha língua rodear a região
e meu dente fisgar seu mamilo lentamente. Quando o sugo, sua mão se
afunda em meus cabelos e ela deixa um suspiro rasgar por sua boca.
— Deixe seu corpo falar, meu anjo — sopro contra a sua pele e a vejo
sorrir com maldade. Abro o cós da calça e me levanto, apenas para retirá-la.
Depois abro o da sua, a arrastando junto com sua calcinha por suas pernas.
Chloe está nua perante os meus olhos. Os seios empinados e
iluminados pela luz alaranjada do quarto, as pernas levemente dobradas, o
olhar concentrado em me devorar, numa promessa silenciosa. Sinto arrepios
apenas em pensar o que se passa por trás dos seus olhos e me sinto ainda
mais duro quando seus olhos se tornam vermelhos.
O desejo expresso naquelas íris vermelhas como sangue me parece
uma reivindicação. Eu sinto isso no meu peito. Sinto o seu olhar me
incendiar, deixar o meu coração em brasa. Seu, completamente seu.
Completamente apaixonado pela malícia em seus olhos, que me lembram
chamas, como qualquer detalhe que a compõe. E se Chloe Mitchell é fogo,
estou mais ansioso do que nunca para me queimar.
Pisco algumas vezes, admirando o seu rosto, tendo certeza de que
meus olhos são tão vermelhos quanto os seus. E logo estou contra seus lábios.
Ela arfa em surpresa e me envolve com as suas pernas, deixando a minha
língua explorar o céu de sua boca e meus dedos acariciarem suas bochechas,
venerando cada estrela que eles encontram. Suas mãos estão em minha nuca e
por meu braço, o apertando com vontade.
Toda vez que suas mãos recobrem a minha pele, seus dedos tocam
cada tatuagem, sua boca deixa escapar um suspiro, seu corpo se mexe de
encontro ao meu... Toda vez que ela respira, eu a amo.
Desço a boca por seu pescoço entre beijos e leves chupões, sentindo
mexer os seus quadris em busca de mais contato. Não a julgo, parecemos
desesperados. Nós nos provamos com lentidão, mas estamos desesperados,
para sentirmos um ao outro, vivos.
Meus dedos abrem as suas pernas e minhas unhas fincam em suas
coxas. Chloe geme baixinho quando sugo seu seio direito e o abocanho
lentamente, chupando e provocando arrepios por sua pele, fazendo suas
unhas arranharem a minha nuca com força. Ela esquece que não é mais uma
humana e realmente me fere. Sinto suas unhas deixarem marcas vermelhas
por minha pele, mas eu não me importo. Estou grato por isso.
Quando meus lábios soltam o seu seio, Chloe caça pela minha boca
com urgência. Ela nos faz rolar sobre a cama e eu rio da sua agilidade. Ela
mostra que quer aprender sobre seus poderes, pois, no instante seguinte, sua
boca está em meu pescoço, numa velocidade tão rápida quanto um piscar de
olhos.
É minha vez de apreciar seus seios contra o meu peito, o jeito como
sua boceta rebola contra meu pau ainda coberto pela cueca, como seus lábios
e sua língua percorrem a curva do meu pescoço e suas mãos se apoiam em
meu peito, suas unhas curtas fincam em minha pele. Seus beijos descem por
minha clavícula, minha pele. Chloe está arranhando meu abdômen e eu deixo
um grunhido escapar.
— Deixe seu corpo falar, querido — ela ordena. A minha Rainha. A
minha Ruivinha, o meu anjo. Há poder vibrando por sua fala e isso é tão
sexy.
Chloe infiltra seus dedos nas laterais da minha cueca e a tira do meu
corpo. Depois suas unhas arranham o espaço entre as minhas coxas e eu abro
levemente a perna, sentindo a sua mão tocar o meu pau e se mover
lentamente sobre ele. A sensação da pressão de seus dedos finos e delicados
contra mim me faz morder o lábio com força. Chloe deixa um beijo casto
sobre a glande, como se quisesse me provocar. E então ergue o corpo.
Seus joelhos passam por minhas pernas, meus quadris. Sua boca vai
de encontro a minha e ela me faz xingar contra seus lábios quando sua boceta
desliza sobre meu pau, numa tortura lenta. E apenas isso me faz sentir meu
coração por todo o meu corpo. Cravo as unhas em seus quadris em incentivo
e ela continua a rebolar, sua boca perto da minha.
Eu seguro o meu membro quando canso de ser paciente, guiando-o
pela extensão da sua boceta. Ela pragueja baixinho e eu percebo como a sua
respiração muda, ansiosa por mim. E quando me afundo nela, Chloe Mitchell
ergue o tronco e me permite ir ainda mais fundo, arrancando um gemido dos
seus lábios vermelhos e inchados.
— Rebola para mim, amor — ordeno.
Chloe leva as mãos ao meu peito e obedece. Minhas mãos deslizam
por suas coxas e escutamos a cama ranger conforme ela se move para frente e
para trás. Chloe esfrega seu clítoris em mim, em busca de mais prazer.
Depois joga seu cabelo para trás, me permitindo uma visão ainda mais
perfeita dos seus seios e de como seus movimentos são lindos, lindos como
ela.
Estamos indo devagar, mas com intensidade. Eu a sinto, toda vez que
sinto meu coração pulsar por toda a minha pele. Eu a sinto de verdade. Ela
está aqui, me tocando, me amando. Viva. Mais viva do que nunca. Eu
consigo ouvir o seu coração batendo no mesmo ritmo que o meu. Isso é real.
Chloe aproxima a boca da minha e eu envolvo as duas mãos ao seu
pescoço, deixando meus polegares acariciarem o seu rosto. E ela me beija
brevemente.
— Quero que fique atento à minha pele, querido — ela sopra e eu
assinto, sem entender o que quer dizer.
Desço o olhar por seu pescoço até o seu colo. Alguns fios acobreados
estão sobre seus ombros, mas isso não me impede de ver algo surgir no seu
ombro direito. O desenho é um ramo de flores, que termina na parte externa
do seu braço. E eu acompanho cada traçado se formar, em adoração. Sinto
Chloe rebolar contra mim, atenta ao caminho que meus olhos traçam.
Estou redescobrindo o seu corpo enquanto nos unimos. Percebo que o
outro braço está tatuado e guio as minhas mãos às suas coxas. Desenhos
surgem também das coxas aos quadris, me fazendo sorrir.
Definitivamente, tudo sobre essa mulher é mágico. Mas eu perco o
controle quando asas surgem no seu colo, de um traçado leve e discreto.
Deixo a boca se abrir em um sorriso.
— Espertinha.
— Aprendi com você — ela provoca e eu rio. Me sento, apoiando as
mãos no colchão. Deixo um gemido escapar e ela sorri. — Isso é real.
— Isso é real. — Seguro o seu pescoço com uma das mãos, dobrando
levemente as pernas enquanto a sinto deslizar pra cima e pra baixo sobre o
meu pau. Mordo o seu lábio inferior e volto ao seu pescoço. — Você sabe o
que fazer, meu anjo... Esse é o Inferno. Faça tudo queimar.
Dobro levemente as pernas e ela me envolve com seus braços, pelo
pescoço. Chloe une a boca à minha e rebola com mais vontade, fazendo seus
gemidos, grunhidos e suspiros reverberarem por minha garganta e rasgarem
pelo meu corpo como fogo, me fazendo pulsar entre as pernas, cada vez mais
excitado.
Estou chamando por ela, ela está chamando por mim. As minhas
mãos estão firmes em sua bunda e estamos mais intensos agora, nos
chocando um contra o outro, ofegantes e suados, nos permitimos.
Estamos fazendo amor. E não sei porque chamam o Céu de paraíso
quando o nosso universo existe.
Seus seios roçam contra o meu peito, seus olhos estão focados nos
meus e suas mãos em meu rosto. Pressiono a sua cintura com força e ela une
a testa à minha.
Nada que fizemos nunca foi tão profundo quanto dessa vez. Porque
precisamos garantir que isso é real, sentir um ao outro como nunca, porque,
há pouco, achávamos que isso nunca mais aconteceria.
Estamos gratos por estarmos vivos, os dois, um amando o outro como
se fôssemos morrer sem nosso caótico nós. Estamos aproveitando cada
segundo, vivos, usando de toda a adrenalina e velocidade que nos tornam
únicos, fazendo todo esse quarto esquentar. Não há mais nenhuma
preocupação nos cercando. Não há qualquer amarra ou medo. Porque
finalmente temos a eternidade para nós dois. Nenhum inimigo está em nosso
caminho e nada, nem ninguém parece ser capaz de nos separar. Não enquanto
somos um só.
A cor mais bela que conheço é o vermelho alaranjado do fogo, dos
seus cabelos, dos seus olhos nesse momento e dos meus olhos também. A cor
mais bela é o vermelho da sua boca levemente inchada e das marcas que suas
unhas fizeram pela minha pele.
— Eu te amo — sussurro. Em resposta, ela sorri daquele jeito... Do
jeito que lhe é próprio, me fazendo o cara mais feliz do universo. De um jeito
que eu nunca saberia descrever. Ela sorri enquanto me deixa em combustão,
enquanto sobe e desce sobre mim.
— Eu te amo — ela devolve e eu sorrio de volta.
— Eu te amo... — Volto a boca pelo seu pescoço. — Eu te amo. —
Ela arfa, suas mãos arranhando as minhas costas. — Eu te amo... — Levo
uma das mãos ao meio das suas pernas, brincando com o seu clítoris,
querendo conduzi-la ao ápice. Chloe está gemendo baixinho, nossos corpos
suados unidos, nossa beleza iluminando todo esse lugar. Deixo meus dedos
circularem seu ponto sensível com certa pressão e lentidão. Ela está tão
molhada, ela está tão quente... Fervendo. — Eu te amo desse jeito... — Minha
língua toca o seu pescoço e eu mordisco a sua mandíbula. Chloe sussurra o
meu nome. — Eu te amo — sussurro, enquanto ela geme por mim. Deixo um
grunhido escapar quando a sinto cada vez mais molhada. — Eu te amo e te
amo, Chloe. — Minha voz sai rouca.
Chloe me beija. Eu a abraço pela cintura com apenas um braço. Suas
asas se expandem e liberto as minhas também. Sua boca caça a minha com
agressividade e eu levo a mão ao seu pescoço e a sua cintura, desço os beijos
por seus seios, toco onde preciso tocar. Deixo-a me guiar, me permito ouvir
como nossos corações batem em uma sincronia perfeita. Repito que a amo e
ela repete de volta.
Eu sou o seu anjo, ela é o meu. Amor nos transborda a cada toque, a
cada gota de suor, a cada beijo.
Estamos vivos... Vivos... Mais vivos do que nunca.

Depois do amor, estamos deitados e nus, fumando e conversando


como sempre fazíamos. Só nós dois, os lençóis bagunçados e nossos corpos
colados. A sensação de paz e pertencimento é indescritível.
— Bom, agora cigarros não podem me matar — Chloe brinca, com a
cabeça em meu peito, enquanto nos preenchemos de nicotina. Rio nasalado
da sua fala, porque é bem verdade. Tragamos nossos cigarros ao mesmo
tempo.
A ruivinha estala os dedos da minha mão enquanto fitamos o teto.
Quando para, deixo a minha mão acariciar a sua cintura e a sinto unir mais o
corpo ao meu. Eu não paro o carinho. Na verdade, sem realmente perceber,
meus dedos sobem e raspam com leveza, delicadeza, abaixo dos seus seios. E
ela vira o corpo em minha direção.
— Amor, eu voltei para você e esse lance de Inferno está me
inspirando ou algo do tipo, porque estou com muito fogo, então se estiver me
provocando...
— Não estava, mas agora faço questão de continuar — respondo. Ela
sorri, com malícia. Chloe prende o cigarro entre seus lábios e se senta em
cima de mim. — Talvez por isso o Inferno esteja tão quente — comento,
descartando meu cigarro no cinzeiro ao lado da cama. Me refiro ao seu corpo.
Chloe prende os fios ruivos num coque e ri nasalado, voltando a
tragar a droga em sua boca. E eu a admiro. O rosto perfeito, os seios
expostos, a cintura que recebe as minhas mãos e todas as tatuagens recém
adquiridas. Algumas são idênticas às do passado e outras são novas. Chloe se
estende para colocar o cigarro apagado no cinzeiro e eu finjo que vou
mordiscar o seu peito, o que a faz rolar os olhos.
— Idiota.
— Desculpa, fiquei tentado.
— Sabe o que dizem sobre brincar com fogo? — Ela deita o corpo
sobre o meu, as mãos ao redor da minha cabeça e a boca perigosamente
próxima à minha.
— Eu gosto de queimar — digo, baixinho. Minhas mãos se tornam
mais possessivas em sua cintura e ela me beija. Com sua língua reivindicando
a minha, seus lábios domando os meus, Chloe Mitchell me dá o que eu quero:
ela me incendeia. Sem a menor pressa, mas com lascívia. Em apenas um
beijo, parece que a sua alma se entrelaçou à minha, como aconteceu há
alguns minutos. E todo o meu corpo parece estar em chamas.
Ainda estamos desesperados para sentir um ao outro e eu realmente
poderia ficar dias com ela nessa cama, provando do seu corpo e do seu gosto,
sussurrando o quanto a amo.
— Conversou com a Angeline — ela introduz o assunto e, apesar de
não ser uma pergunta, confirmo. — Eu, sinceramente, achei a proposta uma
loucura. Consegue me imaginar como... Rainha?
— Sim… — confesso. — E fico duro só de pensar em você em
vestidos extravagantes, dando ordens e socando pessoas. — A minha
brincadeira a faz rir.
— É isso o que Reis e Rainhas fazem?
— Nem de perto, mas essa é a parte legal. E você ficaria sexy pra
caramba assim. Mais do que já é. — Deslizo as mãos para a sua bunda. —
Você seria perfeita, Chloe, eu entendo o que ela quis dizer.
— Eu não sei o que ela viu de excepcional em mim, Noah.
— Está brincando? — Ergo as sobrancelhas, fitando o seu rosto.
Chloe sorri, tímida. — Você é a mulher mais forte e determinada que
conheço. Você chega a ser um pé no saco de tão teimosa às vezes. Você
reage bem sob pressão e sabe parar, refletir e tomar melhores decisões. Você
não sabe lutar e nem usar espadas, arcos, armas de fogo ou qualquer coisa do
tipo, ainda. Mas isso nunca te fez menos guerreira, Chloe, você é a guerreira
mais forte que já vi.
Chloe respira fundo e me encara, séria. Seus olhos analisam cada
detalhe do meu rosto. Ela prende meus lábios contra os seus, suas mãos em
meu rosto. Isso nunca deixa de ser perfeito.
— Você é um Rei, Noah, mas eu me pergunto, honestamente, se eu
tenho o que preciso para ser Rainha. Eu nunca pensei em algo grandioso
assim, há alguns meses eu era só uma garçonete em Hell's Kitchen.
— Você tem o que é preciso, meu anjo. — Acaricio o seu rosto com o
polegar, a minha mão em sua nuca. — Você seria a Rainha perfeita. A minha
Rainha.
Ela ainda não sorri, mas já sinto a sua insegurança se esvair.
Seu nariz roça contra o meu e sinto nossos corações acelerarem e
implorarem por mais fogo, por mais de nós dois. Por isso, a seguro pela nuca,
a beijando com lentidão. Chloe deixa um gemido baixo escapar quando o
beijo ganha um pouco mais de intensidade e eu deixo as unhas cravarem em
sua bunda.
Não demora muito para que eu a deite sobre a cama, dessa vez com
mais delicadeza, explorando o céu da sua boca e o calor do seu corpo. Logo
nos tornamos um conjunto de gemidos, respirações descompassadas e juras
de amor. Nossas almas se entrelaçam com lentidão, nossos corpos se chocam
em sincronia e tudo aqui faz sentido.
Quando terminamos de nos provar mais uma vez, meu rosto encontra
o seu, meu olhar se prende ao dela. E Chloe me tem. Ela me tem em cada
mísero detalhe.
Minha ruivinha agora parece cansada. Me deito ao seu lado, exausto,
sentindo as suas costas se unirem ao meu peito. Ela se vira para mim e sua
asa nos recobre. Rio de como quase derruba o abajur ao fazer isso e eu imito
o gesto. Nos protegemos e nos aquecemos enquanto o silêncio se estende
sobre nós dois e eu a observo, com seus olhos fechados. Sua preguiça e seu
sono são contagiantes e eu estou quase dormindo também. Estou me sentindo
bem e seguro com meu corpo perto do seu.
— Tenho minha decisão tomada, então — Chloe sussurra, sonolenta
— e só para você saber... — Ela boceja, se acomodando contra o meu peito.
— Eu realmente diria sim.
Sinto meu coração pular em meu peito e busco pelos seus olhos.
Pergunto baixinho o que ela quer dizer, mas Chloe não responde. Ela já
mergulhou em seu sono. E então, refletindo um pouco, chego a duas
conclusões:
A primeira é que talvez precisemos conversar sobre ouvirmos a
conversa privada um do outro. Afinal, não é bom que eu invada a sua
privacidade a assistindo vez ou outra e vice-versa, como ela escutou Angeline
e eu discutindo sobre os seus poderes.
E a segunda é que talvez Angeline esteja certa e eu precise procurar
por alianças. Imediatamente.
Estamos no meu antigo apartamento, Noah e eu. O lugar é alugado e o
proprietário ainda não discutiu com a minha mãe sobre pegar a chave de
volta, já que aparentemente eu deveria estar num caixão a sete palmos da
terra. Então o lugar ainda é meu... Na verdade, de uma Chloe humana e
falecida. E deve continuar assim por alguns dias. Respeito à morte e tal, creio
eu. Talvez o proprietário esteja esperando o momento certo para pedir que a
minha mãe recolha os meus pertences.
Esse lugar está repleto de lembranças. A varanda, a sala minúscula
com o sofá em que Noah e eu transamos pela primeira vez, a cozinha
americana simplista, a mesa de jantar de madeira velha no canto da sala…
Eu consigo lembrar de tanta coisa aqui.
Consigo lembrar de beber com John, Molly, Matt, chapados enquanto
Johnny tocava algo em seu violão. Ou das pizzas e cervejas que Molly e Matt
dividiram comigo quando nosso amigo partiu. E, principalmente, o dia em
que cheguei aqui com dezenove anos e milhares de sonhos.
Nada saiu como eu planejava, absolutamente nada. E eu acredito que
essa é a graça na vida. Estou certa de que o destino nada mais é — como
Angeline disse — que um livro já escrito... Que por sinal, é um livro incrível,
intenso e nada previsível. Agora eu entendo isso.
— Eles devem chegar a qualquer momento — Noah diz, me
abraçando por trás. Ele se refere à minha família, Matthew e Molly.
Noah disse que ajudaria minha mãe a resolver a questão do
apartamento, o que fazer com as minhas coisas e pediu por ajuda de Matthew
e Molly. E eles aceitaram. O que significa que em alguns minutos a minha
família vai saber que estou viva. Isso me deixa ansiosa. Grudo as costas no
peito do meu namorado e sinto seu queixo sobre minha cabeça.
— Meu anjo, se quiser, eu compro esse lugar. Você não precisa se
desfazer de nenhuma memória.
— Eu já vou demorar muito para me acostumar com riqueza e
poderes, Noah. Eu nem sequer sei como o dinheiro funciona para vocês do
Inferno ou no Céu, mas não quero que pague nada…
— Mas vamos morar juntos, não? Posso pagar…
— Uma coisa é dividirmos custos, outra é deixar você pagar por tudo
— retruco e ele me abraça com mais força pela cintura.
— Sabe que não vai pagar nada morando no Inferno, certo?
— Mas quero pagar pelas minhas coisas na Terra e... — Noah me vira
para si. — Espera... Eu morri, como vou pagar pelas minhas coisas? — Noah
ri. — Isso não tem graça, Hellmeister!
— Você é irritantemente adorável, Chloe Mitchell. — Ele me faz
rolar os olhos, mas por dentro estou incrivelmente boba. — A riqueza que
temos é infinita. Se quisermos cuidar do mundo em que vivemos,
infelizmente precisamos de dinheiro... Céu e Inferno têm incontáveis metais
preciosos, recursos que não acabam, literalmente. Precisamos apenas trocá-
los por dinheiro na Terra. Você, como um ser celestial de hoje em diante,
trabalha pela harmonia do universo. Dinheiro nunca vai ser um problema.
Quanto quiser, terá. Se quiser o suficiente para viver nesse apartamento
minúsculo, terá. Se quiser o suficiente para viver num palacete, terá também.
— Então quem está pagando por isso tudo é tipo... Deus? — Meus
neurônios estão explodindo e a gargalhada de Noah invade o apartamento,
provavelmente porque ele acha graça do vinco profundo entre as minhas
sobrancelhas. Noah assente e eu continuo a pensar sobre isso. — Isso é muito
bizarro.
— Eu sei. Então, quer esse apartamento? — Sua boca se aproxima da
minha e eu o envolvo pela cintura de volta. Abro a boca para retrucar quando
o tilintar de chaves ecoa e a porta se abre.
A primeira pessoa que vejo é a minha mãe, mas Ben está logo a
frente. Ele quem abriu a porta, porque a mamãe segura duas muletas, se
equilibrando com a perna engessada e faixas em dois dedos da sua mão. Os
dois fitam o chão ao entrar, em meio a alguma conversa, também eu escuto as
vozes de Molly, tia Riley com Matthew atrás delas. Meus dedos cravam no
terno de Noah com força. Eu não sei o que dizer, como reagir, o que fazer.
Benny é o primeiro a me perceber, derrubando a chave no chão. Seu
rosto empalidece, mas um sorriso enorme surge em seus lábios. Minha boca
está seca e meu coração parece bater contra a minha garganta.
— ESTRELINHA! — Benny corre em minha direção e eu o ergo em
meus braços, sentindo-o me envolver pelo pescoço e girando-o pelo ar.
— Achou que eu te abandonaria tão fácil, pestinha? — pergunto tão
rápido quanto as batidas do meu coração.
— Você está viva! Eu sabia! Eu sabia! — Benny está repetindo
múltiplas vezes. Estou soluçando em questão de segundos, como um bebê, o
devolvendo ao chão e me ajoelhando para apertá-lo com toda a força que
possuo. — Eu senti saudade, eu senti muita saudade! Eu amo você, Co! —
Ben está me esmagando do jeito que só ele tem.
— Oh, meu amor, se soubesse como eu te amo ainda mais…
Benny ainda me segura pelo pescoço, como se nunca mais quisesse
me soltar. Encho o seu rostinho de beijos e o escuto soluçar baixinho.
Também o ouço dizer palavras desconexas por chorar tanto, mas isso soa
próximo de um "eu te amo". Me ponho de pé novamente, tentando respirar
fundo.
É absurda a sensação que me toma ao olhar para a minha mãe.
Mesmo com a visão turva pelas lágrimas, percebo como ela está paralisada,
tanto quanto Matthew, tia Riley e Molly. Donna está branca como gesso,
segurando as muletas como se sua vida dependesse disso, me analisando com
o queixo caído. Eu tenho medo de que ela infarte ou algo assim.
— Oi, gente — digo, rindo por não encontrar palavras melhores.
Molly nem procura por explicações, ela só corre em minha direção.
Minha amiga segura o meu rosto com as duas mãos, sem acreditar. Enquanto
ela me toca, minhas lágrimas molham seus dedos e ela deixa seu queixo cair,
um riso de incredulidade lhe escapa.
— Filha da... — Molly perde as palavras quando lembra de Benny,
grunhindo, como se não pudesse acreditar. — O quê?! Como?! — Desvio o
olhar para Noah, que está de braços cruzados, sorrindo. Molly volta a tocar
todo o meu rosto e eu dou risada pelo modo como suas sobrancelhas estão
unidas e sua boca entreaberta, como se eu fosse um espírito. — COMO ISSO
É POSSÍVEL?
A puxo para um abraço, vendo Matt se aproximar, hesitante.
— É uma looooonga história — digo, sorrindo e a apertando o
máximo que consigo. Molly está rígida e trêmula entre meus braços e eu a
sinto desabar em lágrimas no meu ombro, enquanto me concentro em respirar
mais e chorar menos. — Eu já te explico. — Quebro o abraço e Matt me
aperta contra si, me tirando do chão.
— Você está viva... Você está viva... Eu te vi morrer, Chloe! —
Letterman está chorando, os braços em minha cintura.
— Venci a morte para ver vocês — brinco, beijando a sua bochecha
algumas milhares de vezes. — Eu amo vocês dois. — Seguro as mãos de
Matt e Molly. — E você também, Benny, você é meu homenzinho favorito!
— fito o meu irmão, que me abraça pela cintura. Depois vejo a minha tia,
ainda em frente à porta. Ela está com as sobrancelhas quase no teto. — Ora se
não é a melhor bailarina de Nova York…
— Cale a boca! — Ela se aproxima e eu rio alto. — Isso não é real...
— Ela está com as mãos reunidas em frente ao rosto, em choque. — Isso não
é real. — A sua voz falha e ela toca os meus braços, o meu rosto. Um suspiro
lhe escapa. — Oh, meu Deus! Chloe…
— Eu também senti sua falta, tia — A envolvo num abraço com toda
a força do mundo. Tia Riley está repetindo que só pode estar louca e eu estou
tentando não rir muito da sua surpresa. Me afasto dela, depois de deixar um
beijo em seu rosto.
É muita coisa acontecendo, muitos sentimentos para processar, muito
o que dizer.
Meu irmão abraça a minha cintura e eu afago seus fios ruivos,
erguendo os olhos para a minha mãe. Ela está com os olhos inundados de
lágrimas, seu queixo tremendo, seu rosto vermelho.
— Mãe — a chamo, com a voz embargada. Donna permanece
paralisada, então eu caminho em sua direção. Ela deixa um soluço escapar
conforme me aproximo, mais real do que nunca. — Eu estou viva, mãe —
digo e ela ri, entre lágrimas. Faço o mesmo. Suas mãos encontram o meu
rosto e seus dedos tremem ao reconhecê-lo. — Sou eu, mãe, eu estou viva.
— Minha estrelinha... — Ela soluça mais uma vez, seus ombros
tremem conforme segura meu rosto com as duas mãos, sentindo as minhas
lágrimas, a minha pele, tudo o que veio dela. — Minha menina, céus, minha
menina! — Seu choro irrompe o lugar e eu a abraço.
Deito a cabeça em seu ombro, a sentindo me apertar contra si e
desabar contra meu ombro. Estou desabando junto, estou realmente
desabando. Acho que nunca chorei tanto na vida, porque a ideia de nunca
mais vê-la foi tão desesperadora...
A minha mãe me perdeu e eu a perdi também. Eu realmente a perdi. E
consegui outra chance. Eu vou poder visitá-la, vê-la... Com muita cautela,
mas ainda assim, eu ainda tenho outra chance. Uma chance que não é todo
mundo que consegue. Uma que não posso deixar passar. Porque Donna
Mitchell é meu mundo, a minha maior inspiração.
— Meu amor, meu amor... — Ela está repetindo e eu estou sorrindo,
mesmo com todas as lágrimas que lhe escapam.
Me sinto completa agora.
Porque estou em seus braços, estou com as pessoas que amo... Eu
estou em casa. Eu realmente estou em casa.

Afastamos a mesinha de centro do meu apartamento e estamos no


chão, com uma caixa de pizza vazia entre nós.
— ELE IMPLOROU POR VOCÊ?! — Tia Riley exclama, do outro
lado da nossa roda, e Noah gargalha, sentado ao meu lado. É a segunda vez
que conto a história do meu retorno, com a cabeça recostada no colo da
mamãe no chão do apartamento. Ela está afagando os meus fios e rindo da
cara da sua irmã. — Esse é o homem da sua vida!
— Ei! — Ben protesta, deitado com a cabeça em minha barriga.
— Eu jamais tiraria esse lugar de você, Benjamin — Noah garante,
tentando ser amigável, e Ben solta um muxoxo, dizendo algo como "acho
bom" depois de cruzar os braços. — Eu precisava implorar pela ruivinha,
deixar de fazer isso não era uma opção.
— Ainda custo a acreditar que estamos sentados com o Satanás
comendo pizza. — Molly nos faz rir alto. Afago os fios de Ben, vendo Noah
ficar vermelho. Ele não parece nem um pouco como o comandante do
Inferno. É só o meu namorado.
— E agora temos um novo anjo entre nós — Matt diz e eu faço uma
careta, vendo Ben fazer um bico e o sorriso da mamãe vacilar. Meu coração
aperta e eu analiso a mamãe. — Suas asas são grandes?
— Enormes! — Noah responde por mim e eu só consigo olhar para a
mamãe. Ela está sorrindo para a conversa, mas eu a conheço. Está linda como
sempre, perfeita. Não conheço ninguém mais bela que Donna Mitchell. Mas
ela não está totalmente feliz.
Eu também não estou. Porque toda escolha tem uma perda. Nada
nunca é perfeito. E agora nós nos veremos em segredo, com cuidado. Afinal,
não é normal que uma defunta, como acreditam que eu sou, seja vista pelas
ruas. Muito menos uma mulher que nunca envelhece.
Ben se senta, como se não quisesse mais se deitar sobre mim.
— Titia, eu ‘tô com sede — ele reclama e a minha tia olha para ele.
— Vai comigo beber água?
— Tem um filtro na cozinha. Mas a água não é gelada — aviso e ele
não me dá bola.
— Tudo bem, é água do mesmo jeito — soa triste, se levantando. A
minha tia se levanta junto e segue com Benny para a cozinha, também sem
um sorriso no rosto.
Me aprumo de imediato, sentindo os olhares dos demais se desviarem
para Benny ou para o chão. Finco os dentes no lábio inferior, percebendo
como o clima mudou. Olho para Noah e seus olhos brilham em minha
direção, mas ele não parece saber o que dizer.
Acho que crianças são inteligentes e perspicazes. Benny está
inseguro, porque ele está pensando no amanhã. Sua irmã mais velha se tornou
um anjo. Ela não é uma garçonete a quilômetros de distância, mas um anjo. É
uma mudança grande e ele a compreende. Benjamin Mitchell é esperto, ele
sabe que isso terá grande impacto daqui pra frente.
E todos os adultos nesse apartamento se deram conta, nesse exato
momento, como vai ser esse "daqui pra frente". E tudo parece confuso,
nublado.
Eu não queria magoar ninguém, eu espero que esse não seja o caso.
Eu realmente espero.
— Quero deixar claro que sempre estarei com vocês — digo. Molly
assente, como se não tivesse dúvida alguma disso. — E eu sinto muito, eu
realmente sinto. Porque eu sei que vai ser estranho para vocês me verem do
mesmo jeito enquanto, para vocês, o tempo não para. Matt me entende... Ele
também não vai poder ficar na Terra para sempre. Pelo menos não em Nova
York.
Molly o encara e Matt confirma. Nós dois suspiramos quase ao
mesmo tempo e eu sinto meus ombros rígidos, dobrando os joelhos e me
virando para a mamãe. Ela não está me olhando, mas sua mão está em minha
perna. Seu olhar viaja pelo apartamento antes do seu suspiro escapar por seus
lábios rosados.
— Eu entendo que não foi uma escolha fácil para você — ela diz. —
Acho que se fosse eu no seu lugar, eu provavelmente faria o mesmo. Mas do
nosso lugar... — Seus olhos se guiam para mim. — Assim como no seu,
estrelinha, isso vai ser uma adaptação difícil.
— Eu sinto muito, eu não queria decepcionar ninguém. Mas agora
posso ver vocês e não esquecer do Noah. Eu achei que todo mundo perderia
tanto com essa escolha, inclusive eu, não nego. Eu fiz o certo.
— E quanto à imortalidade? Viver para sempre tem seu lado ruim,
amor.
— Eu vou precisar lidar com isso. — Tento soar confiante. — Não há
felicidade permanente, gente. Não tem como tudo ficar bem o tempo todo. E
escolhas têm lados bons e ruins. Eu fiz o que meu coração pediu. Eu
realmente espero que entendam. Deve ser difícil de compreender, porque o
nosso mundo virou de ponta cabeça nos últimos dias..., Mas eu realmente
acho que fiz o certo.
— E você fez — Matt garante. Eu respiro fundo, insegura. Porque um
toque de melancolia ainda prospera entre nós pela estranheza da situação.
Olho para a mamãe e ela não me diz nada, ela só respira fundo, como
se estivesse muito cansada. Percebo que Benny e a titia estão demorando
demais e olho para a cozinha, mas não os vejo. Vejo o que parece ser tia
Riley ajoelhada atrás do balcão. Forço meus ouvidos e juro ter ouvido um
choro.
— Volto já — murmuro e escuto a mamãe me chamar, mas a ignoro,
me levantando e caminhando até a cozinha.
Dou a volta no balcão e encontro a minha tia com as mãos na cintura
de Benjamin, tentando animá-lo. Cruzo os braços.
— Ei, pirralho! — o chamo e ele funga, olhando para mim com seu
rostinho vermelho e lágrimas pelo seu rosto. — O que houve? — Me
aproximo e me agacho, sorrindo.
— Você vai ficar mais longe da gente…
— Ora, que mentira!
— É sim!
— Não! — insisto.
— É sim! — Ele cruza os braços e vira pra mim. Tia Riley ri com a
sua birra e eu cerro os olhos. — Agora você é um anjinho e vai ficar longe.
— Que mentira! — Seguro a sua cintura e me aproximo o rosto do
seu. Tia Riley se senta no chão, para me dar apoio. — Veja, eu estou viva,
Benny. Sua irmã está viva, isso não é demais? — Seco suas lágrimas com
meus polegares e ele confirma. O biquinho ao fazer isso quebra meu coração.
— Te abandonei em algum momento, Benjamin? Eu saí de Maryville, mas eu
deixei de te ligar, de te ver? — Ele nega. — Um par de asas não vai me
deixar longe do homem da minha vida.
— Eu sou o homem da sua vida? — Ele coça os olhos, claramente
fazendo drama. Eu confirmo. — Ótimo! Pelo menos isso, né? — Ele soa
emburrado.
— Veja... — Reduzo o tom de voz, como se estivesse lhe
confidenciando um segredo. — Eu tenho um superpoder, Benny. Eu te contei
isso? Eu sou tipo uma heroína.
— Você é? — Sua voz fica subitamente mais alegre.
— Sim, eu posso mudar de lugar em segundos. É muito mágico —
conto e ele abre a boca, como se estivesse chocado. — Então se você precisar
de mim, eu vou estar aqui em questão de segundos. Não vai dar nem tempo
de seu coração doer de saudades, Benjamin, e eu vou te encher de beijos.
Além do mais... Agora você tem seu próprio anjo da guarda? O que acha?
Benny está com rosto de choro de novo. Ele respira fundo e me
envolve pelo pescoço, com força. Seu perfume infantil, o calor do seu corpo,
seus braços pequenos... Isso tudo me faz tão bem. É louco saber que vou vê-
lo crescer e se tornar um homem sem envelhecer junto. O meu Ben não vai
ser sempre um garoto. O meu pirralho... E eu o amo tanto. Eu o amo demais.
— Promete? — ele pergunta. Fecho os olhos, suspiro e me derreto em
seus braços pequenos de criança.
— Sim, Benny. Eu prometo.
Ele sabe que vou cumprir minha promessa, eu sei disso. Seu corpo
relaxa em meus braços e eu me sinto mais aliviada. Porque eu sei que ele vai
me compreender, Benjamin é um bom garoto. Quando ele crescer e encontrar
um amor, vai me entender.
Abro os olhos e encontro o verde dos olhos de Riley Mitchell. Ela
sussurra que me ama e eu faço absoluta questão de dizer de volta.
— Tenho orgulho de você — ela diz. — Eu tenho muito orgulho de
você.
E eu sorrio em resposta. Sorrio com um sentimento forte e bom dentro
de mim, um calor no peito. Eu amo a minha família. Eu os amo demais. E
eles me compreendem e me amam como sou. Não tem a menor hipótese de
deixá-los para trás. Porque preciso aproveitar enquanto os tenho. Cada
segundo que posso.
A minha família dormirá na casa da tia Riley hoje, mas enquanto a
noite não chega, aproveitamos o fim de tarde juntos. Contudo, Benny acaba
de me dizer que quer dormir e eu o levo para tirar uma soneca no meu quarto.
Me despeço de Noah com um selinho e digo que já volto logo, deixando um
beijo na bochecha da minha mãe e seguindo Benjamin.
Meus braços o envolvem pelo pescoço e ele decide traçar o caminho
até a cama com os pés se arrastando no chão, como um pinguim. Eu o imito,
fechando a porta atrás de mim e me jogando ao seu lado depois na cama e
conto sobre como vi o papai no meu "sonho". Não quero lhe falar sobre o
purgatório, quero preservar sua inocência. Ele pergunta o que o papai disse e
eu invento que Collin disse que o amava muito. E sei que papai diria isso.
Não demora muito pra Ben dormir. A falta de coberta me faz envolvê-
lo com uma asa e ele se acomoda em meu peito. Minutos se passam, muitos
deles. Estou fazendo um cafuné, fitando o teto, deixando meus pensamentos
voarem. O lado de fora está silencioso e eu me sinto tentada a ouvir o que se
passa, mas Noah me fez prometer que teríamos cuidado com isso, por algum
motivo.
A porta se abre de repente. Se eu pudesse morrer de infarto, esse seria
o momento.
— Filha da puta! Você tem asas? — Brianna aponta e eu estremeço
em susto, escondendo as asas e deixando o queixo cair. Por sorte, o sono do
meu irmão não é interrompido e eu vejo Molly pedir por silêncio com um
chiado. A garota de olhos puxados está com um moletom e os olhos
inchados. — Foi mal. Eu achei que você tinha morrido, tá legal?
Olho para Molly, buscando saber como Brianna Yang veio parar no
meu apartamento, me dando a bronca do século.
— Eu tive que ligar pra ela, usei o telefone daqui — Molly explica e
eu rio de uma Brianna Yang estupidamente vermelha.
— Eu achei que você tinha morrido! — Yang repete.
— Eu sei — respondo, sem jeito.
— E você não morreu!
— Eu morri. Mas eu voltei. — Tento manter a voz baixa. Yang
parece um pinscher raivoso, projetando o queixo para frente. — Resumindo,
Noah implorou pela minha vida e o cara que conhecemos como Papai do Céu
disse "ok, suave". Agora eu sou imortal e tenho asas. — Molly ri, mas
Brianna só cruza os braços. — O que foi, Yang?
— Você disse pra mim que se importava comigo antes de sumir.
— E eu me importo.
— E eu também me importo com você, eu chorei por sua morte,
desgraçada! — Brianna reclama e eu peço silêncio quando Benny se mexe
em meus braços. Porra, a grávida está chorando. — Eu devorei seis potes de
sorvete no sofá da minha casa e meu bebê vai nascer diabético por sua causa.
Eu considerei colocar o nome dela de Chloe!
Meus olhos ardem e eu sorrio.
— Que nome lindo! É uma garota?
— Não, Chloe, é um rinoceronte! — Uau, ela está brava. — É, é uma
garota, eu descobri tem cinco dias. — Brianna ainda parece prestes a
explodir, mas sua pose de durona se desmonta um pouco. Molly e eu
soltamos um "awn" uníssono. — Que seja! Você é uma maldita, tá legal?
Ainda bem que te odeio.
— Você gosta de mim. Você me adora. E eu também gosto de você
— admito.
Brianna está com os olhos marejados. Toda a sua pose de durona
some e ela analisa Benny e eu.
— Você seria uma ótima tia, sabe? — ela diz, baixinho, desviando o
olhar, como se não quisesse admitir.
— Eu sei. E eu vou ser uma tia do caramba — digo e seus olhos
focam em mim. — E Molly também, porque no fundo ela gosta de você e te
ligou porque se importa. Nem adianta negar, Anderson — digo e minha
melhor amiga dá a língua. — Vocês também são família para mim.
— Se você não estiver aqui quando essa bebê gorda nascer... —
Brianna aponta o dedo para mim. — Você vai morrer de novo, Chloe
Mitchell, e vai ser cruel!
— Eu meio que não posso morrer... — digo rindo. — Ok! Se sentem
aqui! Eu vou contar tudo de novo para Brianna, tudinho — ordenei e os três
se sentaram na cama. — E eu vou estar aqui quando sua filha nascer,
Brianna. Eu sempre vou estar aqui por vocês.
As duas me olham. E eu começo a falar.
Matt teve que ir embora. Aparentemente, ele está apresentando o
apartamento dele para um possível comprador. Ele vai comprar um outro,
dessa vez, em Manhattan. O plano dele é se mudar várias vezes por Nova
York e alternar entre Terra e Céu, para aproveitar Molly o quanto pode.
Brianna, Molly e eu dividimos a cama com Benny, que tem um sono
incrivelmente pesado.
— Então você sonhou que falou pro Noah que queria se casar? —
Brianna ri e Molly também.
— Sim. Sério, pareceu muito real. Mas ele não sabe que eu ouvi a
conversa dele com a tia, acho. E é loucura querer se casar? Digo... Porra,
casamento é algo... Intenso.
— Escolher se tornar um anjo, virar imortal, é o quê? Suave? —
Molly nos faz rir. E agora estou sem argumentos. — Já pensou em dizer pra
ele? Ou em pedir você mesma?
— Não quero pedi-lo. Tenho medo de que ele ache que estou o
pressionando ou realmente querendo ser uma rainha ou alguma coisa do tipo.
E tem o lance que falei para vocês de talvez ser a sucessora do Céu e tudo
mais... É surreal! Quero aceitar, ao mesmo tempo quero fugir a todo custo...
Me parece muita responsabilidade, eu tenho medo de falhar, sabe? Nossa, eu
servia hambúrgueres há um mês, entendem? Eu o amo pra caramba, Noah
sabe e eu sei que ele me ama. Eu fiz uma grande loucura por ele e faria outras
loucuras, quantas vezes fossem necessárias... Mas casar é me impor como
Rainha ao lado dele. Eu não quero que ele pense que é interesse ou algo do
tipo. Talvez, por ora, não seja uma boa.
— Acabou de dizer que ele te ama e que você sabe — Brianna diz. —
Se ele te ama, ele jamais pensaria isso de você. Ele te conhece, Chloe. Ele te
conhece.
Penso sobre. Respiro fundo e deixo os meus neurônios se matarem
por isso. Mas termino por escolher não agir quanto a isso, por ora. Fito Benny
na cama.
— Eu quero ver o pessoal lá fora, será que Benny perceberia? —
pergunto, mudando de assunto, e Molly ri.
— Ele está dormindo que nem pedra — ela diz e eu concordo.
Respiro fundo e o coloco ao centro da cama, com cuidado. Nós três nos
levantamos devagar e caminhamos para fora.
Tanto tempo deitada me deixou sonolenta. Contudo, a imagem que
vejo quando saio do quarto me faz despertar. Mamãe está no sofá e Noah
está... Segurando a mão dela? Tia Riley está no chão, ajoelhada, em frente
aos dois, boquiaberta. Parece como um grande e lindo momento de reza, mas
a minha tia parece ter visto um fantasma e eu duvido que a minha mãe rezaria
ao lado do Diabo, então me resta perguntar:
— Estou interrompendo algo aqui?
Os três me encaram. Noah abre a boca e fecha algumas vezes. Vejo
perfeitamente o momento em que meu namorado engole em seco e faz
menção de tirar suas mãos de perto da minha mãe. A minha mãe, contudo,
não permite é muito mais rápida em responder por ele:
— Eu estava contando para o Noah que finalmente eu compreendo,
aprovo vocês dois e os apoio, filha. — Ergo as sobrancelhas, completamente
surpresa. — Eu estava pedindo para ele cuidar de você. Porque agora eu vejo
o quanto se amam. E eu vejo que Noah quer você para sempre. — Ela o
encara.
Noah não responde e parece tão em choque quanto eu. Suas
sobrancelhas estão levemente erguidas, sua testa enrugada, sua boca
levemente aberta. Estou esperando que ele diga algo, porque meu coração
bate com cautela, como se me dissesse que há algo além disso rolando por
aqui.
Mas Noah só sorri, ele sorri verdadeiramente.
— E eu estava dizendo para a sua mãe, meu anjo — ele diz, voltando
o olhar para mim —, que você não precisa ser cuidada, mas que é sempre
uma honra ser seu.
Minha boca se torna seca, os arrepios percorrem minha coluna, é
como se eu estivesse me apaixonando por Noah mais uma vez. Então sorrio,
sorrio de volta com toda verdade que me compõe. Porém, entretanto,
contudo... Eu sinto que estão me escondendo algo por aqui.
— O que acham? — Angeline pergunta para Chloe e eu. É o
milésimo plano que ela tem para recuperarmos os demônios e anjos perdidos:
Angie quer caçar aqueles que fugiram para a Terra e convencê-los a
povoarem nossos reinos. Eu volto o olhar para a Chloe, ela parece exausta.
Ela está em uma das cadeiras da sala de reunião do Inferno, enquanto Theo,
Sinn e Angie a encaram.
Talvez tenhamos exagerado no vinho e no sexo ontem à noite. Ela
murmura algo e Angeline arqueia a sobrancelha.
— Por que está todo mundo me olhando? Ele é o Diabo, não eu —
Chloe protesta e todos me encaram. Abro e fecho a boca.
— Eu não sei — confesso. — Não sei se isso bastaria...
— A gente poderia... — Chloe começa e todos os olhares se voltam
para ela. — A gente poderia fazer isso e buscar aqueles que fugiram. Os que
fugiram e estão apenas vivendo na Terra pacificamente e tentar convencê-los.
Aqueles que estão na Terra para fazer alguma merda, a gente pode capturar e
tal, como sempre foi feito. Sem mortes, por favor. — Ela está massageando a
têmpora. — E a gente poderia trazer alguns dos anjos para o Inferno, aqueles
que quiserem. Desse modo, a gente teria alguma força por aqui enquanto
tentamos reequilibrar a situação. Se Angeline concordar e isso fizer sentido,
claro.
Volto o olhar para Angie. A minha tia assente. Theo e Sinn balançam
a cabeça em concordância e voltam o olhar para mim.
— Acho perfeito. Eu não tomaria uma decisão melhor — digo.
A reunião se estende por longos minutos e eu realmente quero morrer
aqui. Theo e Sinn se retiram quando Angie e eu pedimos, Chloe está com os
pés na mesa e muita cara de sono.
— Já pensou na minha proposta? — Angeline pergunta para Chloe.
— Sim... — ela diz, com a voz arrastada. — Eu tenho uma
contraproposta. É como um "meio-sim".
— Meio-sim?
— Isso — Chloe responde, respirando fundo. — Você terá dez anos
para me treinar e me ensinar tudo o que julgar necessário. E eu terei dez anos
vivenciando o que é ser uma Rainha dos Céus e compreendendo essa
realidade. Ao fim dos dez anos, eu te direi a minha resposta.
— Dez anos?! — Angie soa abismada.
— Acho pouco para tomar uma decisão que vai me seguir pela
eternidade — Chloe retruca e Angeline abre e fecha a boca, mas acaba por
suspirar, frustrada.
— Tá, tá! Está bem! Dez anos! — Angie aceita e Chloe sorri. — Dez
anos, que seja.
— Acabamos por aqui? — pergunto.
— Por hoje, sim — a minha tia responde. Me levanto e Chloe faz o
mesmo. — Contudo, Noah, eu quero conversar um pouco com você sobre o
meu problema. — Franzo o cenho. — Aquele problema... Bem pessoal, bem
secreto, que eu gostaria que ninguém soubesse ou escutasse... — ela diz e
Chloe capta o recado.
— Vou deixar vocês a sós. — A ruivinha sorri fraco e se aproxima de
mim. Ela deixa um beijo rápido em meus lábios e minha bochecha. — Te
vejo lá fora? — Confirmo.
Assistimos Chloe sair da sala em silêncio. E então Angeline bate
palmas e pula em minha direção.
— É hoje?
— Sim, é hoje — respondo, apreensivo.
Eu pedi a mão da Chloe em casamento há alguns bons dias. Não para
ela. Para a mãe dela. E ok, talvez isso seja tradicional demais, mas eu achei
que era o certo, sabe? Acho que a mãe da Chloe precisa sentir confiança em
mim e eu precisava fazer isso.
Donna me disse que não permitiria nada e eu pensei "ok, ela me
odeia". Riley se aproximou, aparentemente prestes a tentar fazê-la mudar de
ideia, quando Donna disse que a escolha era da sua filha. Mas que para ser
honesta, ela surpreendentemente — atenção — nos apoiava.
Então eu comecei a pensar em um plano. E dias depois, eu realmente
tracei um.
E eu tive alguma ajuda. Da família dela e dos seus amigos. E depois
de muito planejamento, é hoje. Eu farei o pedido hoje à noite.
— Como vai ser? O que vai vestir?
— Você sabe como vai ser, Angeline, eu contei mil vezes. A tia dela
vai participar de uma apresentação de ballet em Nova York, hoje à noite, e
chamou toda a família dela e os amigos da Chloe para assistirem, então ela
vai estar com todos que a amam e eu vou tentar fazer dessa noite a mais
incrível do mundo... E depois vou levá-la para minha surpresa e propor! —
Paro para pensar e me sinto apavorado. — Você acha que ela vai me dar dez
anos para pensar também? É um pedido para ser Rainha também. Puta que
pariu! — Levo as mãos ao rosto. — Ela vai dizer não!
— Não, não, respire. — A minha tia toca as minhas mãos e as afasta
do rosto. — A Chloe vai dizer sim. O que vai até me ajudar, vai fazê-la dizer
sim para mim mais rápido.
— Angeline!
— Desculpa! Desculpa! Nossa, como estou empolgada! Posso ajudar
no planejamento do casamento? Ela vai ser uma noiva tão linda...
— Ela precisa dizer sim primeiro, ‘tá legal?
— Ela vai dizer!
— Eu vou explodir se ela disser não — confesso, nervoso. — Porra,
eu vou explodir...
— Noah! Calma! — Ela segura as minhas bochechas e as sinto serem
esmagadas. — Chloe não vai dizer não, ok?! É impossível ela dizer não! Não
vai acontecer? Repete: "ela não vai dizer não".
— Ela não vai dizer não...?
— De novo!
— Ela não vai dizer não!
— Bom garoto.
Nos despedimos brevemente e eu sigo meu caminho até a Chloe,
repetindo sem parar que ela não vai dizer não, ela não pode dizer não...

Estou esperando Chloe no andar debaixo do palácio. Nosso destino,


Nova York, está em pleno inverno. Então uso com um sobretudo sobre o
terno e um cachecol preto ao redor do meu pescoço. Estou ansioso, porque a
ruivinha estava demorando demais para se arrumar com o vestido que lhe dei.
Bom, fomos rápidos em providenciar tudo o que ela queria: blusas,
jaquetas jeans e de couro, coturnos de todos os tipos, botas, vestidos... Ela
está preparada para morar aqui.
Porra, ela está morando comigo. Eu posso dormir grudado no meu
anjo e acordar com ela todos os dias. E eu realmente não me importo com seu
mal humor matinal, porque nunca vi alguém tão linda ao acordar.
— Desculpa pelo atraso. — Ela chama a minha atenção, descendo as
escadas. Meu queixo quase atinge o chão, porque ela é um monumento.
Porra.
Chloe está com um vestido vermelho escuro como sangue que cobre
seus braços, ele é justo até os seus quadris, onde se torna solto e uma fenda
deixa à mostra a sua perna, deliciosamente desenhada para levar o Diabo à
loucura. Puta que pariu.
— Mulher... — Quase rosno e ela ri, segurando um sobretudo escuro
entre seus braços.
— Estou bem?
— Bem? — Minha voz sai esganiçada. — Eu estou dividido entre me
ajoelhar a seus pés e te venerar para sempre e rasgar esse vestido aqui mesmo
e te foder em todas as posições possíveis.
— Noah! — ela me repreende e eu coloco as mãos em sua cintura,
quase babando sobre o decote do seu vestido. — Se controle! Você vai poder
fazer tudo isso mais tarde... — ela lembra, com malícia passeando por toda a
sua fala. Seus olhos me percorrem brevemente. — Se soubesse o que estou
pensando em fazer com você...
Meu pau está pulsando entre as minhas pernas. Ajeito a minha calça e
respiro fundo, fitando seus lábios carnudos e vermelhos. Porra...
Espero realmente que tudo dê certo e que eu consiga rasgar esse
vestido ao fim dessa noite. Eu rasgaria o seu Versace — que ela não sabe que
é um Versace — e ela rasgaria meu Armani e acabaríamos quebrando a cama
nova... Porque quebramos a outra. Infelizmente.
— Posso beijar você? — pergunto e ela une as sobrancelhas, confusa.
Minhas mãos estão em sua cintura, estou suando frio. Chloe confirma,
confusa.
— Pode me beijar sempre que quiser, querido.
Levo as mãos ao seu pescoço e uno a boca à sua. Sinto quando seu
corpo relaxa e ela abraça seu sobretudo com um braço, o outro passa ao redor
do meu pescoço. Seu perfume me invade e eu o absorvo, eu o deixo mexer
comigo como uma droga. Eu precisava disso. Para me acalmar. Seus lábios
sobre os meus, eu precisava disso.
Ela quebra o beijo e limpa o batom no canto dos meus lábios. Eu
limpo o seu e ela ri.
— Vamos? — pergunta, erguendo uma de suas sobrancelhas.
Confirmo, um tanto quanto inebriado.
Quando chegamos em frente ao teatro, Chloe encontra toda a sua
família. Fico nervoso e encaro as câmeras, esperando que ninguém a
reconheça. Mas sua morte não saiu nos jornais nem nada do tipo. A alta
sociedade não reconheceria.
— Você está linda! — Molly diz para Chloe, em um belo vestido azul
marinho. Matthew me cumprimenta e abraça a sua amiga.
Eles se encaminham para dentro e eu me volto para Donna com um
sorriso.
— Está linda. Fico feliz em ver que sua perna está curada.
— Fico feliz que depois de dois meses você vai, finalmente, fazer o
pedido! — ela exclama e eu sinto algo dentro de mim gritar. Benny, ao seu
lado, aperta a mão da mãe em seu terno minúsculo. — Nervoso?
— Morrendo — confesso. Ela ri. Volto o olhar para Benjamin. —
Boa noite, Senhor Mitchell.
— Boa noite, Noah — ele diz, sorrindo. — Tenho que ter uma
conversa com você, de homem para homem — ele anuncia e segura a minha
mão, fazendo Donna rir ao me puxar para dentro.
Devo dizer que estou tenso com a conversa da criança de "me encher
de porrada" caso eu quebre o coração da irmã dele. E é sobre isso que
conversamos o caminho todo até os nossos assentos.
— Sobre o que tanto falou com meu irmão? — Chloe sussurra,
quando me sento ao seu lado.
— Game Boy — minto. Ela ri nasalado.
— Você é uma criança, Noah. Nem sei como não gosta de outras
crianças. Derreteu falando com o Benny? Seu pinto caiu?
— Explodiu. Estou com uma úlcera só de conversar com um mini
humano — provoco e ela ri. — Eu gosto do seu irmão. É uma criança legal.
Suporto ele. É uma criatura interessante. Melhor que você, se quer saber...
— Oh, cale a boca! — Ela revira os olhos e deita a cabeça em meu
ombro. Sua mão encontra a minha e eu observo seu anelar, deixando meu
dedo deslizar sobre ele em um carinho.
As luzes se apagam e todos se acomodam, cochichos se iniciam até a
apresentação começar. E Riley aparece ao centro do palco, em um belo
vestido rosa com alguma transparência e fendas. Ela se move com delicadeza.
Não demora muito para outras bailarinas se juntarem a ela. E tudo realmente
é muito encantador, mas eu perco boa parte da apresentação por meu
nervosismo, admirando a ruivinha ao meu lado.
A peça demora duas longas horas e eu estou uma pilha de nervos ao
final. Todos aplaudem e nós esperamos Riley do lado de fora. A ruivinha está
empolgada, discutindo sobre ballet com a mãe, enquanto Molly, Ben e
Matthew tentam conversar comigo e me impedir de explodir.
— O que acharam? — Riley aparece, sorridente como nunca, usando
um sobretudo longo e bege cobrindo o seu corpo.
— Excepcional! Você arrasou lá dentro, titia! — Chloe diz, a
puxando para um abraço. Elas conversam animadamente e as vozes soam
distantes porque eu estou, figurativamente falando, infartando.
— Noah, que bom que veio! — Riley me abraça e eu estou nervoso
— Hoje, hum? — ela sussurra e eu confirmo. — Eu queria falar com vocês
dois. Na verdade, queria pedir a permissão para algo um pouco peculiar. —
Ela segurou a minha mão e a da Chloe. — Eu pensei em escrever uma peça
sobre vocês dois para o meu ballet e eu queria saber se vocês concordariam...
Ninguém realmente vai desconfiar que isso de fato existiu, a história de
vocês, e eu acho que é uma das coisas mais maravilhosas que já aconteceram
nessa terra.
Chloe e eu nos entreolhamos e ela abre a boca, sem saber o que
responder. É como se ela me questionasse silenciosamente se está tudo bem
para mim. Eu aperto a mão de Riley com delicadeza e dou o meu melhor
sorriso.
— Só se pudermos sentar na fileira da frente, senhora Mitchell.

Estou observando Chloe enquanto caminhamos pela rua vazia. Lojas


abandonadas, galpões, postes mal iluminados passam por nossos olhos nesse
bairro de Nova York. Ela nunca esteve aqui. Chloe já me perguntou dez
vezes para onde estamos indo, porque eu estacionei o Dodge Charger azul
marinho a uns bons metros de nós dois e estamos caminhando sob as luzes
das estrelas a alguns minutos. Tudo o que eu respondo é: "continue andando,
amor, tenho uma surpresa para você". Sua mão está entrelaçada a minha, ela
está a um passo de mim, me guiando sem saber para onde.
Estamos perto de onde quero chegar.
Eu confesso que não sou muito fã de espetáculos de ballet, a não ser
que ela seja a bailarina. Mas essa não foi tão ruim... A sua tia é realmente
talentosa e eu achei tudo bastante intenso. Ademais, pude me sentar ao fundo
do teatro, com a cabeça da minha ruivinha apoiada em meu ombro, de
aproveitar algo tão tranquilo quanto assistir arte, quanto ir a um teatro. Algo
humano, quero dizer. Algo que eu não costumava fazer tanto.
Eu amo como o vestido vinho desenha o seu corpo. Eu tenho sorte,
honestamente. Porque eu me apaixonei pelo pecado, eu realmente me
apaixonei. E vou pedi-lo em casamento. Chloe Mitchell é a forma mais bela
do pecado, com todas suas curvas e falhas, com todos seus míseros detalhes...
Eu tenho sorte para cacete.
Porra, é sério, essa é a mulher mais gostosa do mundo. É linda por
fora de um jeito que chega a doer em meu peito, mas por dentro é mil vezes
melhor. Eu tenho sorte para cacete.
— Chegamos, meu anjo — digo, a fazendo parar. Chloe se vira para
mim e olha ao redor. Postes de luzes amarelas ou brancas iluminam a rua,
pouquíssimos carros estão estacionados e está tarde demais para alguém
passar por aqui. — Bem vinda a uma das minhas propriedades, amor. —
Aceno com a cabeça para o portão fechado do galpão escuro.
— Elegante — ela caçoa, me fazendo rir.
— Você nem imagina o quanto, meu anjo. Feche os olhos para mim,
sim? — peço. Chloe cerra os olhos como se me perguntasse o que estou
tramando, mas fecha os olhos. — Prometa que vai abri-los quando eu disser
que pode abrir. Prometa, amor.
— Prometo, eu acho — ela diz e eu pigarreio. — Nossa, prometo! Se
tem alguém que promete, esse alguém sou eu.
Rolo os olhos, rindo. Deixo um beijo em sua testa e me aproximo do
portão metálico do galpão, o puxando para cima. Tudo está escuro e eu volto
apenas para segurar as mãos de Chloe. Sussurro para que fique de olhos
fechados e a guio para dentro, fechando o portão atrás de nós dois.
— Posso abrir?
— Um segundo. — Toco as suas costas e escuto Chloe bufar,
impaciente. Sorrio com sua curiosidade. Agradeço à Molly e Matt por terem
me ajudado nisso. — Você vai perceber que liguei as luzes, mas ainda não
vai abrir os olhos... — instruo, tateando a parede e fazendo a luz branca
preencher o local. Esse galpão é enorme e é onde deixo meus carros
favoritos. Tem sete de um lado e sete do outro, mas há um no centro, um
Shelly que não é meu. Agora que consigo ver tudo, olho para o teto e checo
se o que montamos nele está como queria. E ando para uma das paredes,
ligando uma tomada.
— Noah... — Ela soa manhosa, curiosa pra cacete.
— Calma, calma!
Volto a desligar as luzes e agora o teto é iluminado por pisca-piscas,
que cruzam todo o galpão, de um lado a outro. Tem cordões com fotos
penduradas por todo o lugar. Eu realmente agradeço Matt e Molly por isso. E
Donna, porque todas as fotos são da Chloe. De todas as etapas da sua vida.
Caminho até ficar a sua frente, tocando a sua cintura.
— Ok, abra os olhos, meu anjo.
Chloe obedece.
A primeira coisa que ela vê são os meus olhos. E então ela ergue a
cabeça, fitando o teto e rindo, confusa, com o tanto de pisca-piscas
espalhados por esse galpão. Outro riso é solto quando ela encontra uma foto
sua de quando era criança, vestida de bailarina.
— O que isso significa? — Ela anda até a imagem, a capturando entre
seus dedos. — Meu Deus! O que é isso, Noah?
— Isso é o seu universo — brinco e suas sobrancelhas se unem. Me
aproximo de Chloe, que ainda está admirando a imagem. — Aqui está tudo
aquilo que já compôs o seu universo. Cada polaroid aqui traz uma fase da sua
vida.
— Eu realmente não estou entendendo — ela diz e eu rio, afastando
os fios do seu pescoço e deixando um carinho ali. Seus olhos se prendem aos
meus. — O que significa isso tudo?
— Isso, amor — começo e minha boca se torna seca —, é algo que
preciso dizer. Eu preciso te dizer, meu anjo. Eu sei muito sobre você, mas
tem meio mundo de coisas que ainda quero saber e conhecer... E eu pedi
ajuda para algumas das pessoas mais importantes para você. Porque eu
preciso saber mais da mulher que eu amo, não é? Eu queria saber de onde
veio tanta luz, estrelinha, então eu trouxe para este lugar todo o universo que
te cerca.
Me afasto e ela finalmente vê a Shelly. Seu queixo cai e Chloe ri.
Suas mãos vão à sua boca e eu escuto um "Noah!", o que me faz rir. Seus
olhos brilham e eu sinto que ela vai chorar, o que me deixa ainda mais
nervoso. Meu coração está saindo pela boca no momento.
— Sim, é a sua Shelly, amor. Mas antes de tudo, quero que me escute
— peço e vejo suas mãos tremerem. Chloe está chorando e eu sinto que ela
sabe para onde estamos indo.
— Chloe Marie Mitchell nasceu em 14 de outubro de 1970, fruto do
amor de um anjo exilado com uma bailarina do Tennessee — digo, me
aproximando de uma foto preta e branca. Chloe foi a bebê com a cara de
joelho mais linda que já vi. — Eu me pergunto o que eu estava fazendo nesse
momento, amor. Porque foi quando todas as estrelas se alinharam para
contemplar a mais linda de todas. — Pisco.
— Eu odeio você — ela resmunga, já lutando contra as lágrimas. Suas
mãos estão trêmulas frente a sua boca, o que me faz rir.
Caminho para outra imagem.
— Aos seis anos, Collin Mitchell já tinha muitas dores de cabeça,
porque precisava limpar as paredes da casa antes que a esposa chegasse,
porque alguém queria imitar os desenhos do pai com giz de cera em tudo que
era lugar — digo e ela ri, completamente vermelha.
Me viro para outra imagem e Chloe se aproxima, cruzando os braços.
— Também aos seis, você contou para a sua mãe que queria ser como
ela e sua tia, que estava crescendo nos palcos do mundo todo. E se lançou em
uma das suas maiores paixões, Chloe: a dança. A estrelinha de Maryville se
tornou ainda mais brilhante aqui. — Lhe ofereço a mão e ela aceita, o que me
faz guiá-la a outra imagem. — E aqui, com nove anos, você se fantasiou de
panda para uma festa da escola. Tão fofa, certo? — Chloe ri, apertando os
dedos contra os meus quando a guio para outra foto. — E então, em seus
quase catorze anos, Chloe Mitchell viu Benjamin nascer. E se tornou a
melhor irmã do mundo. O que nos leva ao pior momento da sua quase
adolescência, amor...
— A morte do papai — ela diz e eu confirmo. Chloe morde o lábio
inferior para segurar o choro.
— Sim. Mas aqui eu tenho imagens e imagens felizes, meu anjo. —
Solto a sua mão e me afasto, abrindo os braços. — Eu tenho fotos de quando
você entrou pro Ensino Médio, da sua primeira apresentação de ballet, do
primeiro aniversário do seu irmão e de quando se despediu para vir para
Nova York. Aqui estão também algumas fotos que a Molly tirou: suas com o
John, o Matt e ela nas "noites das vidas de vocês" e em uma delas, Chloe... —
Minha voz falha e eu tento abrir meu melhor sorriso. — Você me conheceu.
— Meu melhor erro — ela brinca e eu sorrio ainda mais, piscando.
Estendo a mão para ela e ela aceita. A puxo até seu carro e abro a porta do
motorista, esperando que entre e se sente. Chloe obedece. — Você consertou
a Shelly...
— Sim, amor, eu consertei. — Apoio as mãos no teto do carro,
inclinando o corpo para vê-la melhor. Chloe sorri, entre lágrimas. Ela aperta
os dedos trêmulos ao redor do volante, deixando a nostalgia passear pelos
seus olhos. — Eu sei o quanto você ama o seu carro. É o bem material mais
precioso que seu pai lhe deixou. E mesmo que ele tenha perdido a vida aqui,
mesmo que a Kold tenha perdido a vida aqui, eu sei que ele ainda é o seu
carro. Mas eu quero, meu anjo, que você tenha uma memória maravilhosa
para te acompanhar sempre que quiser dirigir a sua Shelly por aí... Então
preciso que abra o porta-luvas para mim, Chloe. Pode fazer isso?
Ela assente, nervosa. E eu sei, eu sinto que ela sabe o que vai
encontrar. Chloe abre o porta-luvas e encontra a caixinha preta. A escuto
xingar e rio por isso. Me abaixo em um joelho perante a ela. Seus dedos estão
trêmulos ao redor da caixinha.
— Noah... — Ela está com uma das mãos no volante e a outra na
caixinha, completamente ruborizada. — Puta que pariu, Noah...
— Abra a caixinha, meu anjo — peço —, quero que veja o que
comprei para você. — Ela obedece e encontra o anel de rubis e brilhantes. —
É vermelho como você, delicado como você, mas não é tão lindo e precioso
como você. Nada nunca vai ser.
— Noah... Tem asas... — ela diz, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Seu polegar se arrasta sobre as pequenas e delicadas asas de rubi. — É lindo,
é realmente lindo, Noah. Você é louco!
— Eu sei, eu sou, meu anjo — pego a caixinha da sua mão e ela me
encara, virando o corpo ao máximo para mim. Engulo em seco. Miro a
caixinha aberta em sua direção e ela balança a cabeça em negação, rindo, sem
acreditar. — Chloe Marie Mitchell, você escolheu a eternidade quando me
escolheu. Você escolheu um homem quebrado com todos seus cacos e seus
defeitos. Você escolheu o Diabo e encontrou bondade em seu coração. —
Meus olhos estão ardendo. — Você me tornou mais vivo desde o primeiro
beijo...
"Você fez o Diabo se apaixonar de verdade e conhecer a beleza no
amor, uma luz me guiando em meio ao caos. Antes, amor, você era um anjo
sem asas, uma humana com sarcasmo na ponta da língua e dois olhos
escuros, armas perigosas que miravam contra mim e você me prendeu, Chloe,
de verdade."
"Me prendeu nos seus beijos, nos seus abraços, nos seus sorrisos e nos
seus carinhos. Me prendeu no modo como torna o mundo só seu e o deixa na
ponta das suas sapatilhas quando dança, no modo como hipnotiza todos com
o seu jeito de ser..."
"Você, Chloe Mitchell, fez os olhos do Diabo serem completamente
seus, atentos a cada detalhe, apaixonados e vidrados por todo o seu universo,
as partes dolorosas e as mais alegres que te compõem, as imperfeições e as
perfeições, tudo, amor, tudo."
"Eu não te conheci desde sempre, mas agora terei o sempre para ser
seu, para te conhecer ainda mais e me apaixonar ainda mais. Para te amar e
ser amado. E eu quero que todos saibam que sou seu, amor. Eu quero que o
mundo inteiro saiba que eu sou apaixonado pelo anjo mais lindo que existe,
pela bailarina mais talentosa que já vi, pela mulher mais destemida e
guerreira já criada, pelos olhos mais escuros e vivos, por cada pinta que
compõe o seu rosto..."
"Chloe Marie Mitchell, sob estrelas falsas e um mundo de fotos e
memórias que compõem o universo mais complexo e adorável que tive o
prazer de conhecer; tendo o apoio da sua mãe, da sua tia, do seu irmão, dos
seus amigos; cercado por suas fotos, por suas lembranças... O Diabo está de
joelhos por seu anjo...”
Minha voz estremece e eu sinto o coração em minha garganta. Chloe
está chorando, as mãos voltam a sua boca e seus ombros tremem, seus olhos
brilham como nunca.
— Eu prometo que tentarei ser o melhor companheiro do mundo. Te
farei sorrir mais do que chorar e secarei cada uma das suas lágrimas, amarei o
seu corpo e a sua alma, por todos os dias da eternidade. Eu prometo que serei
seu, meu anjo, com cada pedacinho que me compõe. Porque eu sou
completamente apaixonado por você. Eu prometo que o "para sempre" valerá
a pena. Eu prometo que enfrentarei qualquer batalha e qualquer dança ao seu
lado.
Ela está rindo, rindo de mim, com o rosto completamente vermelho.
Respiro fundo, tentando controlar o meu nervosismo.
— E de joelhos, amor, eu estou perguntando... Se quer ser a minha
esposa, a minha Rainha e a minha mulher para todo o sempre. Se me permite
ser parte do seu universo, das suas próximas fotos e lembranças... Estou
implorando para que case comigo.
— Noah...
— Chloe... — respondo em mesmo tom, rindo e chorando ao mesmo
tempo. — Você quer casar comigo?
Chloe confirma ao balançar a cabeça e eu sinto o peso em meu peito
escapar por completo. Suas mãos vão de encontro ao meu rosto e seus lábios
capturam os meus. As lágrimas no meu rosto se misturam às do seu.
— Sim. Sim. Sim — ela repete, murmurando em minha boca, me
fazendo rir ao preencher meu rosto com seus beijos. — Eu amo você, que
inferno! — ela pragueja e eu gargalho, sentindo seus braços ao redor do meu
pescoço. Deixo um beijo em seu ombro e me afasto, contemplando toda a sua
beleza. — Eu quero me casar com você, Noah.
Então eu seguro a sua mão e empurro o anel pelo seu anelar direito.
Retiro uma aliança mais simples do meu bolso e lhe entrego. Chloe empurra
pelo meu anelar trêmulo e volta o olhar para mim.
Agora Chloe Marie Mitchell, a minha ruivinha, o meu anjo, é a minha
noiva. E em breve, será a minha Rainha, a minha esposa. A minha esposa.

Foram meses de planejamento até hoje e eu acordei mais cedo do que


o normal. Chloe acordou pouco tempo depois. Ela me desejou bom dia do
mesmo jeito preguiçoso de sempre, enquanto os lençóis nos cobriam. E eu
perguntei como a noiva mais linda do mundo havia acordado.
Meu maior presente hoje cedo foram suas bochechas vermelhas de
vergonha. E então passamos disso para uma conversa nada inocente, que
acabou com minha pergunta nada inocente sobre fazer amor uma última vez
como noivos. E isso estava quase acontecendo, quando nossa porta foi
esmagada por socos.
— DESCULPA INTERROMPER, MAS É URGENTE! — A voz nos
fez estremecer e eu rolei os olhos, mesmo confuso por ser Matthew o estraga
prazeres e não Sinn ou Theo. Chloe e eu nos vestimos rapidamente e abrimos
a porta, apenas para recebermos um: — BRIANNA. A BOLSA.
ESTOUROU.
E eu quis morrer. Porque Chloe e eu nos arrumamos na velocidade da
luz e fomos parar na Terra, logo cedo, com Matthew ao nosso lado. Eu quis
matar ele e eu odiei a maldita garotinha por escolher logo o dia do meu
casamento para nascer. Sacanagem! Queria roubar toda a atenção para si ou
algo do tipo?
— Onde ela está? — Chloe perguntou para Molly, na sala de espera.
E então escutamos uma morena grávida ser empurrada em uma maca,
gritando e urrando de dor por conta das contrações. Chloe deixou o queixo
cair.
— ALGUÉM TIRA ESSA CRIANÇA DAQUI DE DENTRO? —
Brianna estava berrando, fazendo a pior cena do mundo dentro do hospital.
— Ah... Ali está ela — Chloe disse, rindo.
— Vai ser uma cesárea — Molly explicou. — A posição da bebê é
complicada para um parto normal.
— Claro que é. É a filha de Brianna Yang — Matt disse. Molly riu e
eu me sentei na cadeira, frustrado. Todos nós aguardamos silenciosamente.
O tempo se arrastou até que recebêssemos a notícia do nascimento e
vermos a criança com cara de joelho através do espelho do berçário. Chloe
estava fascinada, mas eu só conseguia me sentir nervoso com o casamento.
Fui arrastado para o quarto de Yang para visitarmos ela e a bebê e
percebi que nos atrasaríamos para o nosso próprio casório, mas Chloe parecia
não se importar.
— Ela é linda — Brianna disse, apaixonada pelo joelho em seus
braços.
— Que nem a mãe louca dela — Chloe comentou, fazendo Molly e
Matthew rirem. — Eu queria tanto ficar aqui o dia todo!
— E eu queria ir ao seu casamento... — Brianna disse. — Todo
mundo vai para o Inferno. Será que eu ainda vou ter que esperar uns anos
para isso? Tão injusto! — Yang nos fez rir. — Mamãe me ligou, ela está
vindo para a cidade e ela disse que a família do Kyle quis saber sobre o bebê.
A família dele quis vir.
— E o que você disse? — Matthew perguntou.
— Fui sincera. Disse que não me sinto confortável em permitir que a
minha filha se encontre com a família do cara que me batia. Por mais que a
família não seja como o Kyle... Eu preciso de um tempo para pensar, sabe?
Pelo bem da minha garotinha... — Yang explicou. Molly estava acariciando a
cabeça da criança, que dormiam. Os olhos de Brianna se voltaram para mim.
— E vocês? Pensando em filhos? — Chloe e eu rimos e negamos ao mesmo
tempo. — Hm... Acho bom você cuidar bem da minha garota, Diabão, ou vou
te infernizar enquanto viva e a minha filha também e a minha neta depois
disso...
E foi por causa disso que nos atrasamos.
Porque Brianna Yang pariu bem no dia do meu casamento. E porque
Chloe quis ficar um bom tempo com a bebê nos braços, admirando o rostinho
da garota.
Mas agora, estou num altar. E estou nervoso pra cacete.
Como o Inferno está um tanto quanto vazio, os anjos também foram
convidados. Eles estão preenchendo o espaço em bancos e mais bancos
dispostos nas laterais da sala do Trono, e uma maldita passarela vermelha
está estendida ao meio do salão. Além disso, por mais bizarro que seja, eu
trouxe a família da Chloe. E ela aceitou vir.
Riley está com um vestido azul escuro, claramente nervosa, no altar.
Donna está ao seu lado, ainda mais ansiosa, porque Chloe está demorando.
Demais.
Molly saiu para ver o que aconteceu e ainda não voltou. Digo o
mesmo de Matthew. Brianna não veio, mas Chloe comprou uma câmera
porque prometeu pra ela que alguém gravaria o casamento e o resto das
celebrações.
Ajeito a gravata do meu terno preto mais uma vez, tentando controlar
a minha ansiedade. Ele é completamente preto: a camisa, a gravata, a calça, o
blazer. Os únicos detalhes não escuros são os ramos dourados, claros e
discretos que se estendem pelo blazer.
— Você vai acabar explodindo — Sinn diz, parando ao meu lado.
— O Inferno vai ruir de novo só com a aflição dele — Theo comenta.
— Vocês podem parar? — peço, irritado.
Vejo Molly aparecer pela porta e todo mundo achar que é a noiva,
mas não é. Bufo, frustrado. Molly caminha até mim em seu vestido preto,
sorrindo. Matthew está logo atrás.
— Ela está vindo. Se prepara, ‘tá linda pra caramba. — É tudo o que a
melhor amiga da minha noiva me diz. Mesmo me sentindo derreter por
dentro, assinto.
— Ela nunca esteve mais gata, é sério — Matt acrescenta, parando ao
lado de Sinn. E eu acredito nele, realmente acredito.
Até que ela aparece. E, cacete, Chloe nunca esteve tão linda quanto
agora.
Porra.
Porra, meu coração está louco nesse momento. Estou com vontade de
chorar e gritar, de sair voando por todo esse lugar, porque essa mulher...
Porra, essa mulher... Ela provoca os meus arrepios mais intensos nesse
momento.
Chloe está de mãos dadas com seu irmão e ela está sorrindo para
mim. E é definitivamente uma cena que nunca seria capaz de esquecer,
porque nunca vi nada mais perfeito na vida.
Os lustres no teto indicam o caminho que a minha noiva deve seguir e
todos a contemplam como a porra da deusa que ela é. Seu vestido é vermelho
escarlate e era algo que eu sabia. Branco não parecia combinar com esse
lugar e vermelho cai bem nela. Ele é um tanto quanto transparente da cintura
para cima, exceto pelos bordados em tom vermelho escuro e brilhantes que
contornam o seu torso e braços. O decote é em V e profundo, seguindo até o
meio da sua barriga e garantindo uma visão discreta, mas perigosa da curva
dos seus seios. A partir daí, o tecido e os bordados seguem até o chão.
Ela está usando um novo colar de asas que lhe dei na semana passada.
Ele é longo e se encerra logo acima do vale entre seus seios. Seus fios ruivos
estão parcialmente presos por tranças finas nas laterais, o restante solto. É um
penteado simples, mas muito delicado, bem como a sua maquiagem. O
delineado negro e o batom vinho é tudo que se sobressai.
Ela está caminhando até mim. Todos os olhares recaem sobre ela e
meu coração explode a cada passo. Tento dar meu melhor sorriso, mas os
meus lábios estão trêmulos e eu sinto que vou morrer se essa distância não
for rompida logo.
Parece uma eternidade. Nossos olhares estão conectados e minha
visão se torna embaçada até as lágrimas descerem pelo meu rosto. Chloe está
sorrindo, e é o sorriso mais lindo que eu já vi. Seus olhos brilham como o céu
mais estrelado. E ela é, finalmente, entregue por Benjamin.
Seus dedos tocam as palmas da minha mão, deslizam até os meus e
nossas mãos se entrelaçam. Eu sinto uma eletricidade passar da minha mão
para todo o meu corpo.
— Você está linda, meu anjo — sussurro. Ela sorri como nunca e eu
sinto o meu coração acelerar, me apaixonando mais uma vez, nesse exato
segundo. — Mal posso esperar para rasgar esse vestido.
— Controle-se — ela responde, entredentes, apertando a minha mão.
Angeline para à nossa frente. Suas asas estão expostas e um vestido
bege cobre o seu corpo. Ela tem uma coroa sobre a cabeça, grande e pesada,
de ouro.
— O Céu e o Inferno estão reunidos aqui hoje para assistir um anjo se
casar com o Rei do caos — ela anuncia, projetando a sua voz por todo o
lugar. — Um amor que nasceu na Terra, onde ninguém imaginaria, e que
silenciosamente, mudou tudo, unindo dois reinos e ressignificando o universo
que conhecemos. — Um sorriso cresce em seus lábios e eu respiro fundo,
apertando um pouco a mão da Chloe. Nos entreolhamos e eu percebo seu
nervosismo. Voltamos a fitar Angie. — Normalmente casamentos demoram
horas e horas, mas esses dois preferiram algo mais simples. Então nos resta
ouvir, sentir e compreender o que eles têm para dizer. Nos resta assistir ao
amor tornar um só o que nunca pensamos que seria unido. E eu, como
Rainha, desejo que esse casal receba toda a luz divina para traçarem o melhor
caminho pela eternidade.
Angie se afasta, nos assistindo virar um para o outro. Chloe parece
nervosa, sem saber quem precisa falar primeiro. Seguro suas duas mãos e
sorrio.
— Eu amo você — começo — e eu quero que saiba que, hoje,
pensando bem, me dei conta de que já te amava desde o nosso início. E
continuo amando e sei que, caso haja um fim, uma morte para algum de nós,
te amarei no nosso fim. Você é luz, Chloe Mitchell. Você é a mais pura
forma de luz e amor. Qualquer pessoa que te conheça sabe disso. E aos que
aqui estão e ainda não te conhecem, não precisarão de mais que três segundos
para perceberem isso.
"Eu, perdido no breu, me apaixonei pela luz. E a luz vem em forma de
pecado, porque você, Chloe Marie Mitchell, tem a capacidade de me levar à
loucura. A luz veio em forma de fios ruivos e sorriso largo, coração grande o
suficiente para abrigar uma família, amigos e um Diabo prepotente."
Chloe ri e eu sorrio.
— Eu tinha um discurso, e eu não consigo dizer ele agora, porque,
olhando nos seus olhos, minha cabeça se torna vazia. Eu estou nervoso e é
isso o que faz comigo, amor, você me deixa assim, como se eu fosse uma
criança em frente a um primeiro amor. E, parando para pensar, acho que é
isso que sou. Aquilo que eu acreditava ser amor era um teatro, que me
afundou em dor e remorso. O amor de verdade, aquele que te faz querer lutar
e vencer até mesmo a morte, foi o que você quem me ensinou, meu anjo. E eu
vou ser grato para sempre por isso.
"Porque você, Chloe Marie Mitchell, me fez reconhecer meus erros,
aprender porque lutar, sentir tudo à flor da pele, viver intensamente e
aprender mais do que qualquer um. E eu te amo. Eu te amo por isso, eu sou
grato por ter você como minha esposa e eu sou completamente seu."
"Eu te amo desde o início, estou te amando em nosso meio e prometo
te amar para sempre, até se tivermos um fim. Porque não há escolha para
mim senão te amar. Se tornou parte de mim, minha essência. E eu sou
honrado de poder passar a eternidade ao seu lado."
Chloe está quase chorando. E eu estou lutando bravamente para não
fazer isso. Ela avança um passo e toca o meu rosto, o alisando. Tem amor em
seu toque, amor no jeito que me olha, amor em nossa troca de olhares.
— Eu amo você — ela diz, alto e forte. — E admiro como o seu amor
me fortalece, me traz felicidade e faz minhas tristezas perderem qualquer
luta. E quando eu olho para nós dois, Noah, eu sinto que somos algo que
ninguém jamais vai conseguir explicar.
"Nossa história é sobre danças e batalhas. Sobre momentos em que
nos unimos com delicadeza, em rodopios e sorrisos, como se o mundo
estivesse a nossos pés. Combinamos tanto que parecemos coreografados,
numa sintonia absurda."
"É sobre sentirmos um ao outro e conversamos até mesmo por
olhares. Sobre nós nos protegermos e nos amarmos como nunca. Em cada
toque, cada suspiro, abraço e beijo. Ninguém nunca me amou com a
intensidade como você me ama. Eu tenho certeza de que meu coração jamais
poderá ser tão bem cuidado por outra pessoa, porque ele está em casa em suas
mãos."
"Você, Noah, você sempre foi o meu anjo. Desde o primeiro
segundo."
"Nossa história também é sobre batalhas árduas. Nosso amor
sobreviveu à guerra, sobreviveu a medos e lágrimas, inúmeras perdas. Ele
resistiu e nos tornou mais fortes para enfrentarmos tantas outras que virão.
Nosso amor é uma arma tão forte e intensa, que eu não tenho medo algum. O
meu amor por você, Noah, é a maior verdade que existe na vida e que vou
amá-lo pela eternidade. Eu te amo, Noah Samael Hellmeister. E todos os
discursos escritos, ditos e não ditos jamais deixarão claro o quanto te amo.
Mas tentarei te fazer senti-lo daqui para sempre.”
Suas mãos tocam o meu rosto e eu a envolvo pela cintura num abraço,
sentindo seus lábios se chocarem com os meus. Escuto nossos convidados
aplaudirem e assobiarem, mas os ignoro, me concentrando em como meu
coração parece pulsar por toda a minha pele. Se eu não sentia, hoje o sinto até
demais. Por causa dela. Percebo que havia amarras ao redor dele e Chloe o
libertou. Sinto que estou livre finalmente. Livre, livre como nunca.
E como no nosso primeiro beijo, sinto que estou no alto do universo,
inalcançável. Sinto poder em minhas veias e entendo que ele é amor. E que
devo tudo à minha ruivinha.
Rompo o beijo com pesar, sentindo seus polegares trêmulos secarem
as lágrimas em meu rosto. Sussurro que a amo e me apaixono pela milésima
vez pelo seu sorriso.
Benjamin traz as alianças e as trocamos com um nervosismo nítido,
que até mesmo nos faz gargalhar. Mas esse não é o momento em que todos
mais aguardam.
Angeline está segurando a coroa em mãos. Pergunto se Chloe está
pronta e ela assente, ainda que nervosa.
— Se ajoelhe para mim, amor. — Tento não soar malicioso quanto a
isso, mas é mais forte que eu. Chloe rola os olhos e eu reprimo a vontade de
rir.
Angie se aproxima de mim e me entrega a coroa escolhida por Chloe
e desenhada para ela. É simples, com ramos de folhas douradas que irão
circundar a sua cabeça. É realmente simples, o que deixou Angeline
realmente surpresa. Mas não a mim.
Eu conheço a minha esposa.
— Quero que todos aqui presentes contemplem esse momento de
braços abertos e corações leves — digo, alto. — Que aceitem e respeitem a
mulher perante a mim. Que a vejam como minha igual, nunca inferior. Que a
respeitem como a Rainha que ela será. E isso é uma ordem.
Minhas mãos envolvem a coroa e eu fito a ruiva, que mantém seus
olhos sobre mim e morde o lábio inferior, nervosa.
— Eu, Noah, declaro perante a todos que sou incapaz de governar um
reino sozinho, com todo o meu coração, porque parte dele pertence à outra
pessoa. O Inferno não pertencerá só a mim, assim como parte da minha alma
e meu coração já não me pertencem. Porque amo, respeito e preciso da
mulher de joelhos à minha frente como minha Rainha. E estou certo da minha
escolha, assim como ela está da sua. Chloe Marie Mitchell Hellmeister...
Estou te concedendo mais do que uma coroa, estou te concedendo uma
responsabilidade eterna e um título indispensável. Está ciente disso?
Chloe respira fundo e eu consigo ver sua postura mudar, sua tensão se
esvair. Ela sorri para mim.
— Estou. — Sua voz ecoa por todo o lugar. Eu posiciono a coroa em
sua cabeça, a vendo fechar os olhos ao sentir o peso dela recair sobre si.
Quando Chloe abre os olhos, as íris estão vermelhas como sangue.
Suas asas saem lentamente das costas nuas, desprotegidas pelo vestido, e um
sorriso largo toma o seu rosto, bem como o meu. Poder brilha por suas íris, as
transborda. E elas não voltam a escurecer, elas continuam vermelhas e vivas.
A ponho de pé, porque o chão não é lugar para uma governante e
apresento a todos como a minha esposa, a minha ruivinha e o meu anjo.
Mas sobretudo, como a minha Rainha. Por cada mísero segundo da
eternidade.
Me pergunto se me apaixonei por você quando a vi entrando pelo
Purgatorium em um vestido preto pequeno e uma jaqueta jeans enorme ou se
foi depois, naquele banheiro... Ou quando te vi dançar pela primeira vez... Ou
quando transamos juntos, no seu sofá. São tantos momentos, milhares de
possibilidades, meu anjo.
Eu também não fazia a menor ideia de que me apaixonaria por você.
Eu nem sabia que me apaixonar novamente seria possível. Ainda mais pela
pessoa certa.
Mas aqui estamos, não é? Com anos de casados e a mesma maldita
intensidade, ainda brigando por bobagens e nos amando com vontade, sempre
que possível. Surreal, não?
A sensação que eu tenho é que tudo na minha vida foi dividido um
antes e depois da Chloe. E o meu mundo depois de você é simplesmente
perfeito, ruivinha.
Me pergunto se podemos intitular o que sentimos de amor. É uma
palavra muito rasa para o que sentimos. Enquanto eu não acho algo mais
significativo para te dizer, continuarei dizendo que te amo. Mas saiba que o
meu sentimento realmente transcende a isso. Pra caralho. Eu sou
completamente apaixonado por você.
Ainda sou. Não vejo como não ser. Pode sorrir, porque é a verdade.
Pode exibir o seu sorriso mais bobo, aquele que me faz sorrir de volta feito
um idiota. Porque é a mais pura verdade.
Não sei quando me apaixonei por você pela primeira vez. Mas estou
escrevendo essa carta hoje, sabendo que você está dormindo no nosso quarto
— entre lençóis e somente entre eles — e pensando em como me apaixonei
por você mais uma vez ontem.
Acordei sem você ao meu lado, amor. Acordar sem o seu calor na
cama me causou estranheza, a sensação de estar vazio. Infelizmente, eu sei o
motivo pelo qual você anda acordando antes de mim... Você precisa pensar,
não é? Você está sofrendo, porque Donna está doente e todo dinheiro do
mundo não será capaz de salvá-la. Está precisando refletir, porque Ben vai ter
um filho nos próximos meses e você nem sabe se seu sobrinho vai conhecer a
sua mãe.
E nós sabemos que Benny tem o apoio da sua tia Riley, afinal ela se
aposentou quando encerrou a turnê pelo mundo, divulgando nossa história de
amor na forma de ballet e agora está completamente dedicada à família.
Sabemos que Molly viajou de imediato para Maryville quando soube, com
seu marido e seu filho, dando todo o suporte que Donna precisa. Que
Matthew está protegendo-a como nunca. Nós sabemos que a nossa família
está dando todo o apoio para a sua mãe..
Mas está doendo, não é? Porque também sabemos que a próxima vez
que voltarmos à Terra, possivelmente será para nos despedirmos.
Eu sei.
E eu acredito que doa, amor, mas ainda assim estou aqui tentando te
fazer sorrir.
Ontem, um tempo após sentir sua ausência na cama, te encontrei no
estúdio, o que fiz para você na nossa casa. As longas janelas em arco
permitiam a visão de um Inferno em paz, com mais árvores e cor, com anjos
e demônios andando por aí e seus filhos os acompanhando. Hoje temos filhos
de anjos, filhos de demônios e filhos de ambos. E eles decidem onde querem
estar. Hoje eles são mais felizes e livres, porque você teve as melhores ideias
possíveis, Vossa Majestade.
Seus fios ruivos estão menores do que quando eu te conheci e se
encerram somente um palmo abaixo dos seus ombros. Devo dizer que o
collant em seu corpo, te deixava infinitamente mais gostosa, indo de ombro a
ombro, moldando as suas curvas. Você vestia uma calça de moletom folgada
no seu corpo. E estava distraída, com fones nos ouvidos enquanto passava o
dedo pelo iPod, buscando alguma música.
Me aproximei cautelosamente, admirando como você fica linda
distraída. E então toquei com firmeza os seus quadris, a vendo estremecer.
Um xingamento lhe escapou e eu ri, beijando a curva do seu pescoço.
Te dei bom dia. Você sorriu, tirando um dos fones do seu ouvido.
Brinquei que tinha sentido sua falta na cama e você me disse que precisou
sair dela antes que eu te prendesse nela para sempre. E como esperado, meu
anjo, a sua fala me fez sorrir com maldade. Mas eu percebi que no meio de
toda a sua malicia, amor, havia uma ponta de tristeza.
Você tentou desconversar, disse que era bobagem, que era só
preocupação com uma das reuniões que teríamos com Angeline mais tarde,
mas eu sei que não era isso. Não é isso.
Estou escrevendo essa carta — também — para te lembrar que eu te
daria o universo para te fazer sorrir. Porém, como isso é impossível, vou
continuar tentando te fazer se sentir melhor, dia após dia. Eu vou ficar aqui
até que tudo esteja bem.
Meu anjo, você é tão forte e nem se dá o devido crédito por isso. Você
venceu a morte e provou a todo o universo o quão digna é de ser uma Rainha.
Você é mais nobre e mais inteligente do que Angie e eu juntos, que temos
milênios de experiência.
Lembra do nosso casamento, Chloe? Você me disse que nossa história
permeia entre danças e batalhas. Eu não poderia concordar mais.
E muitas batalhas virão, amor. Dolorosas e árduas. Como a sua mãe,
quando adoeceu. Talvez guerras. Talvez mais perdas. Mas eu estou dizendo
aqui que vamos resistir. Sempre resistimos, Chloe. Somos quem somos e
desistir não está em nosso dicionário.
Hoje, eu te perguntei "posso te fazer sentir melhor?", passando as suas
mãos ao redor do meu pescoço e te abraçando pela cintura. Você assentiu,
colando a testa em meu queixo, relaxando um pouco mais. Então sussurrei
para que dançasse comigo, meu anjo. E enfim você sorriu, ruivinha, sorriu
novamente para mim. No meio de uma batalha, entre tanta dor e sofrimento,
você sorriu para mim. E eu me apaixonei novamente, Chloe, pelo seu sorriso,
e pelo modo que me guiou para uma das melhores danças que já tivemos.
Com nossos corações em sincronia e nossas almas implorando para se
tornarem uma só.
Eu me apaixonei de novo porque a sua força, expressa naquele
sorriso, fez meu coração bater mais forte. Me fez perceber que sempre serei
fodidamente seu, em igual ou maior intensidade do que quando nos
conhecemos.
Serei sempre seu, por isso dancei contigo até que você se sentisse
bem. E pretendo fazer isso pela eternidade.
Não sou muito bom em me expressar em textos, amor, mas estou
dando o meu melhor aqui. E por você, eu prometo que continuarei fazendo
isso.
Porque encontrei meu paraíso na Terra;
Encontrei amor no seu olhar estrelado e no traçado que meus dedos
faziam por suas sardas;
Encontrei a sensação de que estou vivo, sentindo o meu coração bater,
graças a você;
Encontrei o meu anjo, a minha Rainha, a minha esposa e uma das
razões para continuar lutando, pelo meu e pelo seu sorriso.
O Diabo, outrora mergulhado em breu e dor, encontrou paz e
felicidade numa humana com ironia na ponta da língua, sorriso travesso e
mundo na ponta das sapatilhas. Encontrou uma razão para dançar até mesmo
no meio de uma guerra. Dançar até mesmo ballet, ruivinha.
Quão irônico é isso?
Enfim... Amo você. Amo você mesmo.
Para cacete.
Feliz aniversário de casamento.
Com amor,
seu Noah
(1 de março de 2020)
A respiração suave e quente contra o meu pescoço é a primeira coisa
que sinto quando recobro a consciência. Uma brisa entra pela varanda da
nossa suíte neste momento, fria e suave, que contrasta com o calor do corpo
que me protege. Um arrepio me percorre e eu me sinto pesada contra a cama,
preguiçosa. O braço de Noah me envolve e suas tatuagens parecem
complementar as minhas.
Estou sem sono.
E não deveria estar. Hoje treinei exaustivamente com Angeline,
verifiquei se havia alguma anormalidade no Inferno e só consegui descansar
pela noite.
Tenho uma sensação maravilhosa de preguiça no momento, uma que
torna estar onde estou muito, muito bom..., Mas estou sem sono. Então me
desvencilho do toque do meu marido lentamente e me sento sobre a cama,
com esforço. Alcanço o robe preto e liso de seda e o visto, amarrando-o firme
contra minha cintura. Meus pés sobre o piso de mármore o sentem gélido. O
Inferno sabe ser frio, por mais irônico que isso soe.
Ajeito os fios ruivos sobre o robe e saio do quarto, descalça.
A primeira coisa que encontro é o corredor amplo e vazio. Esse é o
terceiro piso do palácio, o segundo é o do Theo e o do Sinn... e do Matt.
Matthew também tem um quarto para ele aqui, porque é aqui que ele fica
quando não está se divertindo na Terra. Já o primeiro andar é onde fica o meu
estúdio de dança e a sala de reuniões. Meu foco, dessa vez, não é nenhum
desses andares. Sigo para o térreo, mais especificamente, a cozinha.
Essa é a minha casa. Tem sido pelos últimos trinta anos. É grande.
Grande como eu nunca pensei que seria para uma casa minha. Mas é o meu
lar e eu sinto que ele realmente me pertence. Eu aprendi a amar esse lugar e
todo o Inferno, os fiz parte de mim. Aprendi a gostar do poder e de ser uma
Rainha, a amar fazer algo pelo que agora é o meu povo e pela humanidade.
Antes a ideia de aceitar o título que possuo me assustava, me deixava
insegura. E hoje eu sinto que ele me pertence. Melhor, sinto que o Inferno me
pertence e eu o pertenço igualmente.
Há um grande peso nas minhas costas por ser Rainha e eu sei disso
muito bem. Mas é algo que mereço. Do contrário, duvido que eu tivesse uma
segunda chance para viver. Por mais que eu ame Noah e saiba do grande
valor que teve a sua súplica pela minha vida, acredito que se estou aqui, hoje,
neste palácio, é bem mais por quem sou do que por qualquer outra pessoa.
Afinal, a profecia dizia que eu seria o ser que uniria o Céu e o Inferno. Então
penso que o meu amor por Noah, forte e claro como ele é, foi o modo como
fui introduzida a tudo isso… O melhor modo possível. Mas se sou a união
entre os dois reinos, então fui feita para isso. Os pertenço tanto quanto e eles
me pertencem. De corpo e alma. Mereço estar onde estou. Contudo, confesso
que às vezes preciso me lembrar disso. Quando a coroa em minha cabeça
pesa mais do que deveria, preciso repetir que estou no lugar certo, que sou a
mulher certa para esse trabalho.
Eu poderia ir para a cozinha num piscar de olhos, mas eu aprecio
andar por este lugar. Então eu sigo para as escadas em silêncio, aproveitando
cada passo gélido dessa madrugada. Eu acho que preciso disso, sabe? Desse
momento para pensar. Os últimos meses não foram muito fáceis para mim e o
meu novo trabalho é cansativo. Governar, decidir, pensar... Tudo isso é
cansativo. E a vida não espera para que uma Rainha governe. Então, não foi
nada fácil tomar decisões na sala de reuniões há duas semanas, quando minha
mãe morrera três dias antes.
Respiro fundo, desviando os pensamentos ruins para o fundo da
minha mente. Eu sabia que seria difícil viver onde vivo e como vivo, e não
me arrependo. A dor faz parte da vida e do trabalho. Estou cercada por
pessoas boas. Eu vou ficar bem.
Finalmente chego ao térreo e prendo os fios rapidamente num coque.
Alcanço um maço de cigarros sobre uma das mesas pela qual passo e apanho
um deles, o colocando entre meus lábios. Continuo a andar e, em um estalar
de dedos, ele entra em combustão e eu o trago, apreciando seu gosto amargo.
Chego à cozinha, passo pela bancada de mármore escuro até a geladeira. Eu a
abro e fito tudo o que há dentro, umedecendo meus lábios. E de repente, me
sinto irritada e um pouco emburrada.
Não tem nada que eu goste para comer. Quer dizer... Na verdade, tem
e eu sei disso. Mas nada me atrai. O que me faz perceber que não estou com
fome, só ansiosa. Sigo pela cozinha até a porta dos fundos, adentrando pelo
corredor escuro e quente que me leva à adega. E minutos depois, estou com
uma taça de vinho, alternando entre o sabor aveludado da bebida e o amargor
do cigarro, andando pelo amplo corredor em direção à sala do Trono.
Nicotina e álcool. Quem sabe isso me relaxe um pouco.
Abro a porta da sala e analiso todo o ambiente. As colunas são
clássicas e amplas, se estendendo pela sala alta até alcançarem o teto. Ao
final do cômodo, sobre uma plataforma em destaque, dois tronos estão
dispostos lado a lado, em igual tamanho. Ao lado de cada trono, mesas
redondas. E sobre as mesas, as coroas.
A do Noah é maior, com pedras pretas brilhantes e ouro.
Exibicionista. Rio com esse pensamento, me aproximando da minha. Faço
uma troca: a coroa pelo vinho. E assim que a taça repousa sobre a mesa,
ainda com o cigarro entre meus lábios, eu passo os dedos pela coroa em
pétalas de ouro.
Minha.
É tão estranho... E tão bom, mas ainda assim estranho. Saber que
tenho asas e poderes, saber que tenho um trono, uma coroa e um título de
realeza. Quem diria? Chloe Mitchell, a garçonete de Hell's Kitchen, a garota
do Tennessee... Agora Rainha do Inferno.
Absorvo uma última vez a fumaça do cigarro e o queimo contra a
mesa. Depois desfaço a troca, apoiando minha coroa na mesa e levando o
vinho aos lábios.
— Insônia? — A voz atrás de mim me faz sorrir, mas não fito o seu
dono.
— Mal dos governantes — brinco e escuto a risada gostosa do meu
marido. Ela é breve, no entanto. Eu consigo sentir seu sorriso sem nem olhar
para o seu rosto. — Te acordei?
— Sim — ouço cada um dos seus passos e finalmente viro o corpo
em sua direção. Noah está com as calças pretas de moletom levemente caídas.
Eu fito as suas entradas, o seu abdômen perfeitamente desenhado e eu sei que
não há nada por baixo da sua roupa. Seu cabelo bagunçado, suas sardas, seu
sorriso de canto, e então, seus olhos escuros e brilhantes conquistam a minha
atenção. — Triste?
— Um pouco — confesso e ele sorri fraco, compreensivo. Noah se
aproxima de mim e eu desço o pequeno degrau que nos separa, sendo
recebida pelos seus dois braços ao redor da minha cintura. — É estranho
saber que viverei a eternidade sem Donna Mitchell. Me faz pensar sobre o dia
que todos que amo na Terra... — Minha fala se perde e eu respiro fundo,
virando um gole do vinho. — Enfim...
— Converse comigo — ele pede, como sempre. — Eu guardo seus
segredos e você guarda os meus. É assim que funcionamos, meu anjo. —
Noah me rouba um suspiro e eu assinto, silenciosamente, desviando o olhar
para a taça que eu seguro entre nós dois. — A sua mãe provavelmente vai
ganhar uma nova chance de vida.
— Depois do Purgatório.
— Sim. — Sua confissão me faz estremecer. Fecho os olhos, tensa.
— Chloe, sabe como as coisas funcionam.
— Eu não quero que a alma dela sofra.
— Shhh... — Noah toma a minha taça apenas para me puxar para si
com a mão livre. E eu entendo sua ordem silenciosa, obedecendo. Eu o
abraço, afundando meu rosto em seu peito e relaxando com o seu perfume, o
seu calor. — Pense assim: talvez, um dia, sua mãe renasça e o seu pai
também. E talvez, eles vivam o amor novamente, juntos. E consigam voltar
ao Céu, juntos.
— Eles lembrariam de mim?
— Eles lembrariam de tudo que já viveram por todas as vidas —
Noah sussurra, me tranquilizando. — Eles lembrariam de você, ruivinha. E já
pensou no orgulho que sentiriam? A filha deles é uma Rainha. A melhor. A
mais poderosa que existe. Você possui uma mistura de bondade, inteligência
e sabedoria, Chloe. Você é a dose de ordem que o caos precisa, que o
Universo necessita. Eles vão ficar loucos quando descobrirem. — Sinto seus
dedos acariciando o robe de seda em minhas costas.
Afasto o rosto do seu corpo apenas para fitar os seus olhos. Noah sorri
para mim, acariciando o contorno do meu rosto.
— Tão linda...
— Eu sei.
— Chloe Marie Mitchell... — ele diz, rindo da minha soberba.
— Hellmeister — acrescento, divertida.
— Sempre bom de lembrar. — Sua voz soa como uma carícia, tão
aveludada e baixa. Há malícia na forma como fala, o que me diverte. Fácil
assim, estou sorrindo. Noah rouba um gole do meu vinho e se afasta, ao
segurar a minha mão. — Estava analisando a sua coroa?
— Sim.
— Pensando sobre uma nova? — Ele se afasta e esconde o sorriso
atrás da taça de vinho. Cruzo os braços sobre os seios e nego. — Jura? Porra,
você ficaria tão linda com uma coroa como essa. — Noah desaparece perante
meus olhos e eu reviro os meus ao girar meu corpo e encontrá-lo em seu
trono, sustentando a taça com uma mão e a sua coroa de pedras escuras com
o seu indicador, na outra.
Agora o maldito sorriso presunçoso brinca em seus lábios. Sexy. Mas
não vou lhe dar o prazer de ouvir isso de mim. Não agora.
Percebo um dos lados do meu robe caírem por meu ombro e o olhar
do meu marido cai sobre o ramo de flores tatuado na minha pele. Noah está
mordendo o sorriso extremamente sujo. Eu ergo o queixo em resposta,
arqueando uma sobrancelha.
— Quase trinta anos de casamento e você continua roubando as
minhas bebidas, querido.
— E seus gemidos também. — Ignoro o arrepio em minha coluna ao
projetar o queixo para a frente e rir. — Você é como esse vinho, ruivinha...
— Ele prova a bebida, limpando qualquer resquício do seu sabor no seu lábio
inferior com a língua. Sinto o desejo pulsar entre as minhas pernas, mas
continuo a fingir que não estou abalada, mesmo que ele sinta. Noah e eu
conversamos por nossas almas, de alguma forma, elas se entendem do modo
selvagem que são. — Só melhora com o passar do tempo...
— Brega — desdenho, como sempre. — O que a humanidade diria se
soubesse que o Diabo é tão brega?
— Me deixe falar, meu anjo. — Ele pigarreia, sorvendo o último gole
da minha bebida com o seu olhar conectado ao meu. O ar subitamente está
mais quente e eu deixo um sorriso escapar. Noah abandona o vinho sobre o
meu trono, mas continua segurando a sua coroa. — Você fica melhor a cada
ano... Mais gostosa...
— Meu ego está gostando do rumo em que isso está indo, por favor,
continue... — Gesticulo, voltando a cruzar os braços.
— Intensa — ele conta —, avassaladora e surpreendente, sabe? —
Mordo o canto do lábio inferior e Noah deita as costas sobre o trono, numa
pose relaxada. — Ao mesmo tempo que suave... E há toda uma doçura por
trás dessa intensidade.
— Jura?
— Sim, amor, você fica cada vez mais doce. — O duplo sentido me
faz sorrir e eu me aproximo do degrau que nos separa, mas não o subo. —
Vermelha e intensa como o vinho, mas muito mais gostosa. Ainda me acha
brega?
— Um pouco, mas eu gosto. — Ele ri e eu rio junto. — Então acha
que eu deveria ter uma coroa como a sua? — Entro em seu jogo, finalmente
subindo o degrau e caminhando para o meu trono. Seguro a minha taça vazia
e me sento, cruzando as pernas. O olhar de Noah recai sobre elas quando o
tecido de seda desliza e deixa a pele branca e lisa exposta.
Deposito o objeto de cristal sobre a mesa ao lado e endireito a postura
contra o trono, me apropriando da sensação de poder que me toma sempre
que me sento aqui. É como energia, como um arrepio, uma onda de
eletricidade e prazer. Viro o rosto na direção de Noah. O meu marido me
analisa como uma obra de arte que ele ambiciona ter. Mas já me tem. E eu o
tenho.
— A escolha da coroa é completamente sua. Você prefere algo mais
simples, então tenha algo mais simples. Mas uma mulher extraordinária como
você, meu anjo, combinaria com algo extravagante. — Algo diferente vibra
em sua voz e eu sei que é desejo. Eu entendo o seu olhar, como o seu corpo
muda quando a luxúria paira sobre nós dois. E de repente, estou sorrindo de
canto, estendendo a mão em sua direção.
— Deixe-me ver, querido — peço, com a voz mais baixa e rouca do
que o normal.
Noah sorri, seus olhos brilham como a noite mais estrelada. E ele me
passa a coroa. Meus dedos a agarram pela borda, sentindo-a pesada. O ouro
que toco é gélido e eu a ergo perante meus olhos, apreciando o meu reflexo
diante de suas pedras preciosas. E então eu a coloco, aprumo a postura mais
uma vez antes de colar as costas na cadeira e erguer o olhar, apreciando o
espaço vazio perante nós dois.
— Como se sente?
— Não sei — minto. Me sinto bem, muito bem. — Mas sei como
descobrir... Levante-se, por favor? — peço, com uma falsa inocência.
Levemente confuso, Noah obedece. Ele se levanta. — Agora fique na minha
frente, amor, só um segundo. — Ele obedece e eu deixo um sorriso de canto
tomar os meus lábios ao analisar seu tronco nu, as suas entradas, a sua calça
escura pendendo nos quadris. Mordo o canto do lábio. — Não me sinto tão
poderosa quanto eu achava que sentiria, Noah. Acho que ainda prefiro a
minha coroa. Ou talvez... — Deixo a fala morrer de um modo que atiça a sua
curiosidade.
E me sinto vitoriosa quando ele pergunta:
— Talvez?
— Talvez eu precise de algo a mais. — Umedeço o lábio inferior,
deixando o indicador passear pela borda da coroa. E depois relaxo, ainda de
pernas cruzadas, apoiando os braços nas bordas do trono. — Ajoelhe-se para
mim, querido. Ajoelhe-se perante sua Rainha.
Um sorriso sujo toma seus lábios e ele entende em que ponto estou
querendo chegar. Noah ri nasalado e o som atinge o meu corpo em arrepios.
Ele se ajoelha devagar, perante o meu trono. Enrolo uma mecha ruiva contra
o meu dedo e o analiso.
— Mais perto — ordeno, a voz firme como nunca.
Noah arrasta os joelhos sobre o chão, até ficar mais perto. E eu o
analiso de cima. Descruzo as pernas lentamente e desfaço o nó do robe
escuro, deixando que ele veja parte do contorno dos meus seios, a minha
cintura, o meio entre as minhas pernas.
— Mais perto — repito a ordem. Noah sorri. E de repente, ele está
entre as minhas pernas. Ergo o seu queixo com o indicador, sentindo meus
olhos queimarem e me vendo por seu reflexo. Minhas íris estão vermelhas,
assim como as de Noah, sexy como nunca. — Quão doce acha que posso ser,
amor?
Seus dedos afastam as minhas pernas, acariciam a parte interior da
minha coxa.
— Você é inacreditável, Chloe. — Ele me faz rir e beija a minha coxa
e então a outra. — Veremos o quão engraçadinha consegue ser quando eu
estiver te provando, Vossa Majestade — ele provoca e eu arqueio a
sobrancelha em um desafio.
E ele deixa um beijo em minha barriga, passando os braços sob as
minhas coxas e me puxando para si. Minhas pernas passam por cima dos seus
ombros, meus calcanhares se unem atrás das suas costas e Noah desce beijos
molhados e chupões por um caminho perigoso. Prendo a vontade de suspirar
quando meu queixo cai levemente e a língua do meu marido encontra o meio
das minhas pernas. Minhas unhas se arrastam pelo trono e Noah arrasta seus
lábios, provocando o calor entre as minhas pernas.
Mordo o lábio quando ele me abocanha com vontade, apesar da
lentidão, mantendo os olhos sobre mim ao me lamber, beijar e chupar com
gosto. Sua língua sabe como criar o mais delicioso paraíso entre as minhas
pernas e ele me abre com dois dedos, venerando o meu corpo como fosse a
maior riqueza que já encontrara. E com o olhar conectado ao meu, Noah
deixa a sua língua passear por minha boceta, até que encontra o meu clitóris e
o chupa lentamente, finalmente me roubando o suspiro.
— Deixe seu corpo falar, Chloe. — Ele suspira e minhas pálpebras se
tornam pesadas quando ele me chupa novamente. Sinto uma ânsia em meus
dedos quando minhas unhas se arrastam pelo trono com força. Nesse
momento, a coroa não parece nada pesada sobre a minha cabeça, com Noah
entre as minhas pernas. E a sua língua se move com pressão e lentidão ao
redor do meu clitóris, até que ele o mordisca e o suga novamente. E o gemido
me escapa, baixo. — Mais alto... — Seus dedos exploram a minha extensão
já molhada e Noah beija meu ponto sensível antes de deixar a língua mover
de um lado para o outro, numa tortura incessante... Até que um dedo me
invade e meus quadris involuntariamente se guiam para ele. — Olhe para
mim, amor...
Obedeço, levemente ofegante, fitando as asas em seu peito, o seu
olhar vermelho e direcionado perigosamente para mim. Meu pé desliza por
sua costa quando ele me chupa novamente e eu levo uma das mãos para seu
cabelo, o puxando levemente. Noah sabe exatamente o que está fazendo,
tomando seu tempo ao sugar, mordiscar e lamber minha boceta, estudá-la
como se fosse seu templo e ele fosse um religioso fervoroso, como se eu
fosse a sua religião e ele vivesse para me adorar.
Ele parece apreciar o meu gosto, deixando alguns gemidos escaparem,
por vezes. Noah introduz outro dedo e eu arqueio a coluna, gemendo alto o
suficiente para que ele ouça e o som se perpetue pela sala. Hellmeister sorri
com malícia e me chupa com maior força ao mesmo tempo que seus dedos
entram e saem. E este é o começo da minha ruína, estou à beira de um
abismo. Eu começo a mexer os quadris em direção à sua língua e dedos,
levemente. É mais forte que eu, não tenho nenhum tipo de controle sobre meu
corpo quando ele me toca.
Noah afasta os dedos de mim para abrir as minhas pernas e abaixar as
suas calças. Eu o vejo se tocar lentamente, espalhando parte da minha
excitação pelo seu pau já duro.
E ele volta a me provar, me chupar, mordiscar, sugar, suspirar entre as
minhas pernas, como se eu fosse a melhor coisa que já tinha sentido. Quando
sua língua encontra a minha entrada, eu fecho os olhos novamente.
Porra.
Isso é tudo o que eu preciso.
Minhas mãos encontram seus ombros e minhas unhas se enterram na
sua pele, fazendo com que ele gema com a dor. Me fodendo com a boca ao
mesmo tempo em que se toca, Noah faz a sala parecer dez mil vezes mais
quente.
Os gemidos e suspiros me escapam, ainda baixos, mas constantes.
Noah parece atento aos meus sons. Mesmo que me conheça como a palma da
sua mão, ele parece tentar encontrar algo novo. O homem me abre novamente
com dois dedos antes de me chupar uma última vez e eu estremeço. Ele deixa
os dedos entrarem em mim e encontrarem um ponto que me fez apertar os
olhos toda vez que o sinto me tocar e se arrastar dentro das minhas paredes.
Voltando a boca para o meu clitóris, Noah não para até que eu esteja
gemendo alto e chamando por ele, puxando o seu cabelo de um modo
selvagem, minhas pernas deslizando pelos músculos das suas costas.
E ele geme de volta, se tocando. É a visão mais quente do universo. É
sexy nos mínimos detalhes, é perfeita por completo.
Parece que ele está em cada parte do meu corpo, cada gota do meu
sangue. Noah é mais intenso que qualquer coisa que eu poderia sentir.
Ajoelhado, entre as minhas pernas, ele me mostra que dividimos poder e
desejo como nenhum outro casal. Eu, sua Rainha, sobre meu trono, o tenho
ajoelhado aos meus pés, me servindo, mas no controle, como um bom Rei.
— Noah... — eu o chamo, alto demais. Ele abre ainda mais as minhas
pernas, encontrando o meu olhar e me fazendo gemer alto e rebolar com
ainda mais vontade contra a sua boca.
— Se toque pra mim, minha Majestade — ele ordena e eu obedeço,
apertando de leve as mãos em torno dos meus seios, os polegares por meus
mamilos em carícias lentas, depois barriga, até chegar ao ponto sensível entre
as minhas pernas, me masturbando perante seus olhos. Eu sussurro o seu
nome, completamente entregue, clamando por ele. Com a sensação de boca
seca e o sabor do vinho já distante em minha memória, eu me desmancho
contra a boca do meu marido, gozando e deixando que ele se sacie com todo
o meu sabor.
Inferno... Meu corpo estremece, mas ele não para.
Não, Noah me chupa e me prova com ainda mais força e desejo,
porque eu não quero que ele pare. Eu não quero que ele pare de jeito
nenhum.
Ele mantém as minhas pernas separadas com força, seu olhar atento
ao meu, à medida em que eu me perco em sensações, arqueando a coluna,
ofegante. E só quando a onda avassaladora de prazer se acalma, tocando-me e
me invadindo com suavidade, ele reduz os seus movimentos.
Adrenalina ainda corre pelo meu corpo, eu ouço o meu coração pulsar
contra os meus ouvidos, contra toda a minha pele. Eu me sinto viva,
inalcançável, perfeitamente bem.
Sinto seus dedos passearem por minha intimidade, verificando quão
molhada eu ainda estou, por causa dele. Estou sensível, sentindo a
intensidade de toques tão leves e suspirando por isso. Respiro fundo me
forçando a sair do torpor, voltando a apoiar as mãos no trono, trêmula. Minha
sanidade fica por um fio quando o vejo provar seus dedos e o lábio inferior,
recolhendo o meu gosto. Ele se levanta e estamos de igual para igual. Noah
respira fundo, ofegante e suado como eu, como se quase tivesse chegado lá só
em me levar à loucura.
Seus olhos emanam a maldade mais deliciosa do mundo enquanto ele
me assiste ofegar. E eu quero mais, mais dele, mais de nós dois.
Me coloco de pé, com esforço. Minhas pernas estão levemente
bambas e o meu marido não me deixa vacilar, ele nunca deixaria cair. Seus
braços me envolvem pela cintura. Levo as mãos ao seu peito, meu tato
reconhecendo a sua pele até minhas mãos estarem em seu rosto. Noah se
desfaz do meu robe por completo, deixando-o cair ao chão. Sua língua
transfere o meu gosto para a minha, seus lábios domam o meu com
propriedade e algo primitivo. Sinto-me doce como ele disse, mas há algo no
fundo que me faz sorrir. Vinho.
Chupo a sua língua quente e o escuto gemer contra a minha boca,
fazendo o centro entre as minhas pernas vibrar novamente. Arranho a sua
nuca e ele aperta a minha bunda, me trazendo para si e me deixando sentir
sua excitação contra a minha barriga.
— Minha vez de retribuir... — sopro, mordiscando seu lábio inferior,
mas Noah nega.
— Depois, amor. — Sua voz sai rouca e ele encaixa a mão em meu
pescoço, devolvendo a mordida vagarosa. Ele alcança o meio das minhas
pernas novamente. — Não vou te deixar se ajoelhar aqui para mim hoje. Essa
noite é sobre você se sentir bem. — Um arrepio me percorre e seus lábios
alcançam o meu pescoço. Sua língua se arrasta pela minha pele devagar e ele
a chupa, me fazendo estremecer. Arranho suas costas, desço o toque por seus
braços, até arranhar suas entradas. O abdômen do meu marido se contrai e ele
desce o olhar para o seu pau quando o toco. — É sobre você...
— Me sinto bem te fazendo sentir bem.
— Assim não. De costas, agora — ele rosna a decisão, baixo. Mordo
o lábio inferior, o apreciando, cada detalhe selvagem sobre seu corpo e rosto.
Obedeço, me virando. Ouço suas calças caírem de vez e sinto suas mãos em
meus quadris, me puxando para si. O pau de Noah se encaixa entre a minha
bunda, me fazendo fechar os olhos. Ele inspira o perfume em meu pescoço,
levando as mãos para minha cintura e seios. — Eu amo você.
— Amo você também — devolvo a confissão e sinto a mordida em
meu lóbulo, bem como meus cabelos deslizarem por minhas costas, expondo
ainda mais o meu pescoço. Seus dentes marcam a minha pele e, logo depois,
ele a beija, me sentindo pulsar contra seus lábios. Suas mãos seguram os
meus seios, meus mamilos presos entre seus dedos.
— Escolha um — ele sopra, acenando com a cabeça para o trono.
Deixo um riso escapar.
— O seu.
— Justo.
E de repente, estou com as mãos contra seu trono, a bunda empinada
na direção de Noah. Ele segura os meus quadris, parece me analisar com
lentidão. Sinto seus dedos apertarem a minha bunda com vontade e respiro
fundo, me preparando para o que está por vir. Seu toque é firme e me faz
morder o lábio com força. E ele invade a minha boceta por trás. Seguro o
gemido, dolorosamente, cada vez que o sinto mais perto da base, mas ele não.
Noah geme e xinga, apertando as unhas curtas por minha pele com força.
Ele está fundo.
E de repente sai, devagar...
E depois fundo de novo.
Deixo um gemido arrastado escapar e sinto suas mãos se moverem
para a minha cintura. Ele estabelece um ritmo lento que não dura muito,
porque logo eu estou o sentindo forte contra a minha bunda, fundo dentro de
mim. Levo a mão para o meu clitóris, o estimulando lentamente, me sentindo
cada vez mais molhada, toda vez que Noah estoca violentamente. Fundo.
Forte. É amor o que fazemos, do modo mais primitivo e duro que
conhecemos.
Perco a razão por completo, rebolando contra ele. Noah sai de dentro
de mim e eu me preparo para protestar, mas ele segura a minha cintura com
firmeza, mergulhando dois dedos em mim e beijando a minha boca com
desespero, até que meus joelhos se choquem contra o trono e eu entendo o
que ele quer. Me ajoelho em cima do trono e Noah puxa meus quadris para si,
me invadindo novamente. E o som que escapa da minha boca é alto demais,
mas ele não se importa. Noah volta a me foder com força enquanto eu seguro
o seu trono, suas mãos firmes em meus seios e sua boca em meu ombro,
pescoço, até alcançar a minha boca.
— Minha Rainha — ele sussurra, me provocando, mordiscando o
lóbulo da minha orelha. Deslizo uma mão ao meu ponto sensível, o
estimulando. — Meu amor... — Os sons que escapam da minha boca são tão
sujos quanto sua voz rouca. Noah continua entrando e saindo, com força.
Meus fios ruivos grudam nas minhas costas suadas e ele os afasta, beijando o
meu pescoço, segurando os meus seios com firmeza, na medida em que eles
sobem e descem. — Seu — ele rosna a palavra baixo, em meu ouvido. E eu
sei, eu sei o quanto nos pertencemos. Nossas almas estão mais entrelaçadas
que nossos corpos no momento.
A posição dura por algum tempo, fazendo os sons dos nossos sexos se
chocando reverberarem pela sala, até que ele sai de mim e me puxa para si.
Eu me viro para Noah apenas para me apropriar da sua boca, no desespero
que nos encontramos, como se cada segundo separados fosse doloroso e
mortal. Ele se senta no trono e me coloca por cima, suas mãos firmes em
minhas coxas. Eu beijo a sua garganta, me apodero da sua boca, a mordo,
sugo e tomo a sua língua para mim. Guio o seu pau para dentro de mim e nós
dois deixamos gemidos escaparem. E completos, nos encaramos.
Noah sorri com maldade e eu faço o mesmo. Seus olhos se tornam
vermelhos e eu repito o gesto. Rebolo contra ele, devagar. Ele deixa seus
indicadores contornarem os limites das minhas escápulas e eu entendo o
recado. Libero as asas porque sei que ele gosta de vê-las. E então Noah relaxa
sobre o trono, sorrindo presunçosamente, apoiando os braços nas braçadeiras,
fios molhados grudados contra a sua testa. Seguro seu rosto com as duas
mãos me inclinando sobre ele e indo para cima e para baixo.
— Deixe seu corpo falar, meu anjo — ele sopra e eu rio, deixando um
gemido escapar baixo em seguida. — Eu amo você.
— E eu amo você — devolvo. Noah segura a minha cintura com
firmeza e alcança a minha boca com velocidade, as mãos em meu cabelo com
força e nos quadris, conforme eu arranho o seu pescoço e seu peito. Ele passa
a se impulsionar para cima, possuindo a minha boca e meu corpo enquanto eu
rebolo com intensidade.
E o prazer cresce como nunca, escapando da minha garganta. Meu
coração volta a se acelerar, meu corpo se torna incontrolável, o suor em meu
corpo se mistura ao do meu marido e suas mãos me prendem contra si com
mais vontade. Minhas asas continuam expostas enquanto Noah leva seus
lábios pelo meu pescoço, chupando a pele por um caminho perigoso até
tomar um dos meus seios em sua boca.
Fundo, eu o sinto fundo. E eu o sinto por completo. Rápido, forte,
brutal. Me sinto envolvê-lo por dentro, minhas paredes se arrastando sobre
ele e a sensação de estar completa e ainda assim insaciável. A agonia cresce,
ela cresce absurdamente. Estou gemendo alto e clamando por alívio quando
Noah me masturba, seus dedos em meu clitóris, sua boca em meu peito. Com
as mãos em seus ombros, me mexendo numa intensidade absurda e o
sentindo se impulsionar para cima, eu não consigo mais segurar.
O amor e o prazer me transbordam e eu chego ao ápice, fechando as
pálpebras pesadas e ferindo sua pele ao gozar com força, aproveitando cada
segundo do orgasmo mais avassalador possível. E Noah continua se
impulsionando, mas solta o meu seio dentro da sua boca, apenas para apreciar
os meus olhos antes de alcançar a minha boca. Até que a sua vez chega e ele
une as sobrancelhas, deixando o gemido intenso escapar por sua garganta e
deitando o seu rosto suado contra o meu ombro.
Respiramos fundo, ofegantes e nus contra seu trono, nesta sala
enorme e vazia. Estou de olhos fechados.
Ele estava certo. A eternidade é difícil e cheia de perdas. Mas quando
estamos juntos, tudo fica bem. Lembro do meu poder e da minha força, assim
como me lembro de seu poder e de sua força, e em como nos tornamos
imbatíveis, insuperáveis. Assim, todos os problemas se tornam menores. O
Inferno é o nosso lar e as nossas almas não poderiam viver em outro lugar.
— Isso é poder suficiente para você? — Sua fala me faz rir e eu
confirmo, ofegante. Noah ri de volta. — Bom?
— Bom?! Perfeito — Ele ri novamente e alcança a minha boca,
acariciando o meu rosto em seguida.
— Tudo vai ficar bem, ruivinha. Eu te prometo.
Acaricio o seu rosto de volta, sorrindo. Sua mão se entrelaça à minha
e ele sorri de volta, de modo que seus olhos ficam pequenos e suas bochechas
maiores, seu sorriso largo e doce, nada comparado ao que fizemos nos
últimos minutos.
— Ser Rainha é mais complicado do que parecia, não é? — Ele soa
preocupado.
— E parecia muito — brinco, mas ele não ri.
— Se arrepende? — ele pergunta. E é a minha vez de rir, porque isso
soa terrivelmente absurdo.
— Nunca, Noah. Jamais. — Seguro seu rosto com as duas mãos e ele
suspira, como se estivesse mais leve. — Era o meu destino. O nosso. Até que
a morte nos separe.
— Nem a morte, meu anjo — ele sopra. E eu assinto, sentindo seus
lábios acariciarem os meus com doçura.
— Nem a morte, amor.
Sorrio com esse pensamento.
Nem a morte.
Lembro que, da primeira vez que escrevi os agradecimentos, logo
após postar o epílogo, enquanto minhas leitoras ainda terminavam de ler o
livro, no wattpad o meu coração estava batendo tão, tão, tão forte. Parece que
está saindo pela boca. O tipo de sensação que temos quando fazemos algo
muito louco, inexplicável e insanamente bom.
Devil Eyes é uma das aventuras mais insanas e deliciosas que eu já
tive na minha vida. Senão a melhor. Acho impressionante como a história
escapava dos meus dedos quando eu digitava, parecia que precisava existir e
ser contada, parecia maior do que eu. E hoje eu entendo que era.
Antes de mais nada, quero fazer um agradecimento geral a toda e
qualquer pessoa que resolveu dar uma chance a esse livro, mesmo não sendo
sua praia. Quem, de coração leve e alma aberta, abraçou tudo o que escrevi
aqui. Muito obrigada. Agradecerei vocês mais uma vez lá na frente, porque
isso ainda é insuficiente.
Devil Eyes foi uma jornada para mim. O fim de uma era. Porque eu
comecei um livro com todas as incertezas do mundo, apaixonada por ele
desde o primeiro segundo e me segurando a ele com toda a força que tinha,
porque se ele desse errado, eu deixaria de escrever. E, caramba, aqui estou,
com o livro completo e essas palavras estão sendo lidas por alguém que
comprou o que eu escrevi. Isso é muito louco para mim.
Devil Eyes é mais do que uma fantasia, do que um romance. Tem
personagens reais, perdas reais, sentimentos reais... É tão real que chega a ser
intenso e tão intenso que parece se passar perante meus olhos. É carregado de
todas as melhores verdades que possuo e me dediquei a ele com toda a alma.
Então — eu sei que isso pode soar bizarro, mas foda-se — eu quero
começar agradecendo à Chloe Marie Mitchell, Noah Samael Hellmeister,
Matthew Letterman, Molly Anderson, Brianna Yang, Sinn, Kold (amor da
minha vida), John, até mesmo Luke e todos os personagens que me fizeram
crescer enquanto eu escrevia. Me fizeram crescer de verdade.
Principalmente Chloe, Noah, Molly e Kold. Eu precisava escrever
esses quatro. E eu os agradeço por toda essa jornada, eu os agradeço por essa
sensação de dever cumprido e saudade, é realmente absurda. Eu nem sei
descrever o que tô sentindo.
Mas quero agradecer mais ainda às minhas garotas.
Primeiramente, à Taynara Ferreira, porque eu realmente teria
desistido desse livro se não fosse por ela ameaçando tacar uma uma
“ixpraite” em mim ou sei lá o quê. Foi realmente uma honra te ter mais do
que como amiga, mas como leitora, lendo os capítulos antes que todo mundo
pudesse ler. Amava te ter surtando, comigo, chorando, sorrindo em cada
etapa, amiga. E prometo surtar, chorar e sorrir em cada conquista sua. Sou
grata por você existir. E ter uma autora como você elogiando o meu livro é
muito insano. Te amo muito.
Quero agradecer à I.C. por todas as chamadas na madrugada, rindo
tão alto que minha mãe tinha que reclamar comigo no dia seguinte. Por todas
as vezes que me acalmou sem nem saber o que acontecia comigo, por todas
as vezes que puxou o meu saco e insistiu para que eu pensasse em dar um
passo adiante, que eu cogitasse me arriscar na Amazon. Te amo mais do que
você me ama.
Quero agradecer à Sam Bennet, que provavelmente encheu o meu
saco mais do que qualquer outra pessoa e estava fodidamente certa em fazer
isso. A Sam lutou – como toda a 6FUC – para me convencer a vim para cá. E
eu agradeço por todo “Inferno” que escuto dia após dia e toda crise de riso
que ela me provoca, amiga, te amo demais.
Quero agradecer à Lovely Loser, que certamente é uma força da
natureza. Tão jovem e tão madura, uma das melhores amigas que pude ter o
prazer de conhecer. É, de verdade, o tipo de pessoa que te faz parar para
pensar no que você fez para merecer ter como amiga. Obrigada por todo o
apoio, eu te amo mais do que digo que te amo. Preciso dizer mais vezes.
Obrigada 6FUC por ter sido uma família, a força que me trouxe até
aqui. Sem essas loucas, eu não teria ido tão longe.
Depois, eu quero agradecer à Enna, uma das maiores fãs de Devil
Eyes que existe, que leu alguns capítulos antecipadamente, divulgou pra todo
mundo desde o início e surtou pelo livro quando quase ninguém o conhecia.
Jamais pensei que seria tão amiga e tão próxima de uma leitora. Jamais
imaginei que encontraria uma amizade tão linda e tão pura quanto a sua, te
amo por isso. Esse livro é muito seu.
Quero agradecer à Karol, minha revisora, leitora e agora amiga. Por
todo o apoio que me deu, por ter revisado esse livro com calma e tê-lo feito
tão, tão melhor do que já era.
Quero agradecer às minhas irmãs de Salvador, vocês sabem quem
vocês são e tudo o que fizeram por mim. Eu teria que escrever outro
livro agradecendo por tudo. Amo vocês.
Quero agradecer à Lara Eduarda (ou Englantine), que leu
algumas ceninhas de última hora para me ajudar. E à insuportável da Thyele,
que me impediu de surtar nesses últimos dias.
E eu quero agradecer às minhas diabitas. Às novas, mas
principalmente às antigas. Àquelas que se tornaram praticamente fãs do livro
e o acompanharam com todo o amor e paciência do mundo, que zoaram
comigo e com os personagens durante toda essa jornada, que aceitaram
mergulhar nisso tudo e se apaixonaram por Noah e Chloe tanto quanto eu. Eu
preciso agradecer a vocês por terem encontrado paraíso no Inferno. Por terem
me apoiado tanto e me incentivado tanto a chegar até aqui. Quero agradecer a
cada uma de vocês e vocês sabem quem vocês são, sabem que lembro e amo
cada uma. E ainda assim, não acho que isso vai ser suficiente. Esse
agradecimento não parece suficiente. Mas eu ficaria a vida inteira aqui para
escrever algo para vocês. Eu não tenho palavras. Eu não tenho mesmo.
Nenhuma palavra nunca vai bastar.
Finalizo dizendo que, se você sentiu que esse livro foi especial para
você, eu fico extremamente grata, mas realmente sinto que Devil Eyes foi um
presente meu para mim mesma. Foi algum tipo de cura que eu nem sabia que
precisava. E termino esse livro me sentindo grata, feliz e com tanta saudade
que o meu coração parece a ponto de explodir, transbordando com tantos
sentimentos maravilhosos.
Acho que entendo Koldelium mais do que nunca nesse segundo,
quando disse que vale a pena dar a vida por quem ou pelo que amamos. É
realmente uma honra.
E para as leitoras antigas e amantes de uma boa tradução... All the
love on the world wouldn't be enough. (todo o amor do mundo nunca seria
suficiente, nunca, nunca mesmo. Nunquinha, porra, eu juro).
A história não acabou. Nos vemos em Sweet Child of Mine.
Com amor,
Brooke
Crianças, bebês, filhos... Essas três palavras eram proibidas no
vocabulário de Noah Hellmeister. Entretanto, amor também costumava ser
um termo que lhe queimava a língua e hoje é, provavelmente, um dos que ele
mais gosta.
Tudo isso por causa da única mulher possível na sua vida: Chloe
Mitchell. E a maior lição que Noah aprendeu, em todos os seus milhares de
anos de existência, é que a sua ruivinha sempre vai ser capaz de lhe
surpreender.
O que o Rei do Inferno realmente não esperava era que a surpresa que
a sua Rainha lhe traria seria sangue do seu sangue, a mistura perfeita entre
anjo e demônio. Então é melhor que ele aprenda rapidamente a colocar
aquelas três palavrinhas proibidas no seu vocabulário. Porque um bebê está a
caminho e ele vai fazer questão de fazer o Diabo virar de ponta cabeça e
conquistar todo o Inferno para si.

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