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NOSSOS CORAÇÕES

BRINCAM DE
TELEFONE
SEM FIO
OUTRAS OBRAS DE
MATHEUS PELETEIRO:

Mundo Cão

Notas de um Megalomaníaco Minimalista

Tudo que Arde em Minha Garganta sem Voz

Pro Inferno com Isso

O Ditador Honesto
NOSSOS CORAÇÕES
BRINCAM DE
TELEFONE
SEM FIO
Copyright © 2019 by Matheus Peleteiro

Texto de acordo com a nova ortografia.

Título Original: Nossos Corações


Brincam de Telefone sem Fio
Edição: Matheus Peleteiro
Arte de capa: Karina Tenório
Revisão: Maria da Paixão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

P382n Peleteiro, Matheus, 1995


NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO /
Matheus Peleteiro – 1.ed. – Salvador, BA, Edição do autor, 2019.

1. Poesia brasileira. I. Título.

ISBN: 978-65-900097-0-8
CDD: B869.1

1ª Edição, 2019. Impresso no Brasil.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser


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processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico,
gravação etc. sem a permissão do detentor do copyright.
Apresentação 11
Contente enquanto o mundo dorme 13
Breve e infinito 14
Nostalgia 15
Esse seu jeito 17
O amor, de mochila 19
Nossos corações brincam de telefone sem fio 21
Não vi Van Gogh arrancar a própria orelha 23
Felina 24
Outra definição 26
Cínico e contagiante 28
Seu olhar de Medusa 30
Ela gostava de Doritos 32
Me mande fotos 34
Pessoas que já nascem saudades 36
Como uma estrela cadente 38
Das lembranças do que deixou 39
Foi você 41
O cosmopolita 42
Já não reconheço mais o meu amor 45
Apenas duas pessoas 47
Estive pensando em nós 49
As tempestades da Irlanda 51
Na tentativa de um poema de amor decente 52
Canibalismo 54
Guitarra baiana 56
Martírio 57
Um suplício em nome de todos os nossos últimos dias 59
Como um cometa de esperança 61
Aquela que surge nas noites frias 63
O mundo está escuro, eu sei 65
Brincando com fogo 67
Tamanha responsabilidade 69
Uma espécie de veneno 71
Um conceito desgastado 72
Eu vou te deixar de qualquer maneira 73
Dei adeus a Maria 75
A sua falta 77
Sonhos que sempre terminam no melhor momento 79
Ela me disse 81
Mais pesadas que elefantes 83
A sua cara mal-humorada dizendo bom-dia 86
De luzes apagadas 89
Perdidos no tempo e no espaço 91
O amor dos intelectuais 93
Tá tudo bem 96
Um eclipse 97
Nós crescemos 98
Querida 101
Dedicado à minha eterna felina,
Amanda Quaresma.
“Um poema começa com um nó na garganta,
saudade de casa, saudade de amor.”

Robert Frost
Eu estava pensando a respeito do destino dos livros de
poesia em um mundo totalmente arrasado pela ignorância, pelo
esvaziamento da capacidade de pensar e, o pior, de sentir. Quero
deixar registrado que estamos em 2019, e já não se fala muito em
amor. Se tornou até embaraçoso dizer. Há, nos jornais, casos de
gente perdendo a cabeça por conta disso e, pasmem, nem se trata
de uma distopia, é só a realidade, a vida acontecendo. É difícil
dizer amor, você pode acabar provocando a ira de alguém. Toda-
via, é de bom grado que esse livro encontre aqueles que estejam
acordados, desesperados, sedentos de vida, mas, também, os mor-
tos por dentro.
Temos aqui um livro de poesia, publicado no ano em que
assistimos o enterro do Ministério da Cultura, essas coisas são
simbólicas. Quer dizer, é preciso muita coragem para colocar
nesse mundo um livro de poesia. Escrevi e reescrevi milhões de
versões desse mesmo texto, algumas mais longas, dizendo uma
porção de coisas, mas a verdade é que a poesia não nos salvará de
nada. E nem nos deixará dormir o sono eterno, porque a poesia
é maior que a vida, que as gravatas e os ternos, que todos os pré-
dios enfileirados da paulista. Ainda que o poeta busque a morte
como quem busca na memória o seu primeiro trauma, o pecado
original, é a poesia quem não os deixa dormir. Estou acordado,

MATHEUS PELETEIRO | 11
e também não vi Van Gogh arrancar a própria orelha, mas penso
que foi por amor.
A poesia de Peleteiro está em camada por camada, como
tinta. Na curva do queixo, nas horas arrastadas, na preguiça das
camas, na guerra com o século, no movimento contínuo dos qua-
dris, no vento que uiva das montanhas até uma esquina qual-
quer, e que nos acerta bem no meio do terceiro olho, nos fazendo
enxergar aquilo que durante tanto tempo esteve soterrado.

Phillip Long – Cantor e compositor

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dizem por aí
que o amor surge uma vez
e se repete num ciclo vicioso de ilusões e esperança
até que sai pela porta de trás
para nunca mais voltar.
mas o meu amor não é assim
o meu amor nasce e morre todos os dias
a partir das idiossincrasias de quem me faz rir do mundo ao
menos por um segundo
e dos trejeitos e olhares que me dispensam nas ruas.
meu amor é satírico e bem-humorado
e tem dias que ele nem nasce
apenas fica na barriga
como uma dor aguda
que incomoda gritando que está ali.
tem dias que ele explode e salta aos olhos
tem dias que só o meu amigo lá debaixo pode falar por ele
mas também há aqueles momentos
em que me pego feito um idiota
escrevendo poemas durante a madrugada
com um sorriso no rosto
e uma aceleração do lado esquerdo do peito
contente
enquanto o mundo dorme.

MATHEUS PELETEIRO | 13
uma pintura recusada
dando origem ao primeiro nazista;
o medo de perder uma guerra
desenvolvendo a bomba atômica;
Henry Ford criando os primeiros robôs em 1914;
um massacre a mulheres e crianças eternizando Picasso;
uma mulher grávida sendo entregue para a morte
por um presidente que teme a derrota;
uma criança lendo um livro didático e perguntando “por que a
história é tão injusta?”;
e você,
construindo um castelo de areia
na beira do mar
como se grãos fossem pedras,
se sentindo a rainha do próprio nariz e das marés
sabendo que basta uma simples onda
para que um império inteiro se
converta em ruínas,
mesmo assim,
a contemplar
o seu reinado
breve e infinito.

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lembro quando me chamavam de criança
na esquina da rua do colégio
enquanto me divertia e gargalhava
das coisas que de todos
roubava os risos.

lembro de correr nos campos de futebol e ser julgado culpado


por achar engraçadas as iras alheias e
por não tentar parecer mais velho do que realmente era.

lembro quando escarneceram da minha estupidez ingênua, me


insultaram dizendo que eu era apenas um "moleque"
e eu sorri por ser aquilo tudo o que desejava ser.

lembro quando uma enfermidade social fez com que grandes


sábios fossem diagnosticados com uma patologia fantástica
inspirada por Peter Pan
e os acometidos por terríveis doenças descobriram uma cura
– uma pena que o seu tratamento tenha sido um sucesso.

lembro quando uma professora falou para um gênio de oito


anos que ele tinha de comer bastante
para crescer forte e saudável

MATHEUS PELETEIRO | 15
e ele esperneou, jogando fora a comida
e implorando para que o deixassem ser criança para sempre.

lembro quando você apareceu


e me disseram que então eu era um homem.
mas eu quero que saibam
que não te amo por ter me tornado
um homem ao seu lado,
mas por ter me mantido menino.

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você anda na chuva como se ela não te molhasse
e eu acompanho as gotas que escorrem pelo seu corpo
como se esculpissem
uma obra impressionista
prestes a surpreender toda minha rejeição à paixão.

você foge para o mato


e me chama para fazer amor nas montanhas
e eu me encanto com
seu jeito de caçar aventuras e se espantar
com novas descobertas vãs
rememorando-me o valor de estar vivo.

você me diz que é preciso enxergar árvores como se fossem


pessoas
e escutar o som dos pássaros,
penso que tu estas a falar sobre dendrofilia
mas percebo o canto do capitão do mato se afastando de nós
e imagino que se as aves e os peixes
fossem dóceis, morreriam
nas mãos da maldade humana.
sou somente devaneios ao seu lado.

MATHEUS PELETEIRO | 17
você tropeça em igarapés pelo caminho,
faz das quedas mergulhos
e me convida para dormir sob as estrelas
como se cada um de nós não fôssemos um tremendo universo.

você me conta que temos uma data de validade


e “pereceremos cedo ou tarde, mas e daí?”
e mais uma vez sou atingido por esse seu jeito
de deixar a vida rolar
como se o medo fosse um doente
em estágio terminal.

você confessa que me ama,


alega que o amor assusta e eu dou risada.
me deito ao seu lado e percebo que a floresta urra durante a noite
mas, na selva, todo grito é um cântico divino
a ressoar nas galáxias
enquanto Deus serve apenas como um recurso poético
incapaz de mensurar nós dois.

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ela me disse que era latina,
mas que carregava o mundo inteiro em suas costas.
trazia consigo uma mochila colorida
e seus cachos loiros,
que brilhavam em constância com o sol.

me disse que os amores vêm e vão,


e que era por isso
que rodava o mundo:
para ser uma personificação do amor.

sabia hablar español,


enrolava no inglês,
e dominava a sua língua nativa.
“conheço bem as línguas” –
me disse, com malícia.

era um tanto magra,


mas suas curvas
não eram de se ignorar.

suas sardas lhe davam um estilo próprio;


sua boca exalava um charme peculiar na hora de se expressar e

MATHEUS PELETEIRO | 19
ela podia beijar a qualquer um
como se estivesse apaixonada.

tive vontade de trazê-la comigo


para casa,
para ter um lar
e todas aquelas coisas.
mas ela era como o amor,
tinha de ir e vir por aí.

por isso,
só pude trazê-la
para dentro do meu peito.
e, desde então,
ela vive assim,
em dois
distintos
lugares.

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a gente briga por atenção e outras coisas tolas,
explano paranoias que não consigo mais suportar,
você se irrita e se cala
e eu sempre fico sem saber o que fazer
para te roubar um sorriso novo.

a cada lágrima que cai de seus olhos


– quase compondo um oceano –
uma correnteza dentro de mim
me mostra que
quando um de nós chora
nossos corações voltam à infância
e brincam
de telefone sem fio.

um homem apaixonado está sempre condenado à culpa


e eu te amo tanto que,
em cada lugar que passo,
deixo postais com fotos suas
e pedidos de desculpas
mesmo quando tenho razão.
torcendo para que, ao final,

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tudo acabe com a sua cara de índia mordendo meus lábios
e nós dois rindo da inocência da Maglore
quando cantou que todos os amores são iguais.

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NÃO VI VAN GOGH ARRANCAR A PRÓPRIA ORELHA

eu não vi Moises cruzar o mar vermelho;


não vi Cristo partilhar seu pão;
não vi Van Gogh arrancar a própria orelha;
nem vi Sidarta alcançar o Nirvana.

não vi o discurso de Martin Luther King;


não vi Hitler sendo saudado;
não assisti à queda de Stalin;
e nem tomei uma dose com Jorge Amado.

mas
eu vi você,
sentada apenas com um salto alto
e uma cinta-liga preta.

você dedilhou a minha pélvis


de um jeito que não esperava,
num momento em que acreditava
que nada mais poderia surpreender-me
e isso me foi mais eterno
que toda a história da humanidade.

MATHEUS PELETEIRO | 23
Para Amanda Quaresma

por mais que as desgraças gritassem através de bombas em todas


as esquinas da cidade,
uma ponta de esperança sempre esteve a brilhar
no seu olhar infantil
cobertos por cachos enegrecidos
e tão brilhantes quanto metrópoles.

com seus pés redondos e sambistas,


provocou terremotos em meu peito
sempre ecoando um grito libertador por onde esteve
com a força de um samba-enredo
e um ar vivaz
de gente que sente
que não se conforma
que não teme nem mesmo a morte
que ri inconsequentemente
e que dança.

na compatibilidade cultural,
nas canções de amor e desamor
e nas discordâncias saudáveis
– que matam e geram risos,

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meu destino foi entrelaçado ao seu.

e agora me encontro
acorrentado a essa linda menina-mulher,
de olhos castanhos e cabelos longos.
preso num ato de liberdade.

você me capturou com garras de felina


e eu até poderia fugir mundo afora,
com uma mochila nas costas e o coração nas mãos,
mas prefiro estar preso
com o meu mundo
aqui dentro.

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amor é a vontade de largar tudo
e recomeçar,
mas não o fazer por motivos inexplicáveis.

amor é o peso na sua consciência


trancado a sete chaves
por ser tido pelo seu orgulho como sagrado.

amor é vê-la dormir boquiaberta


enquanto um brega brasileiro toca no som.
amor é o responsável por tudo aquilo que sonhamos ser
e nunca nos tornamos, seja
pelo seu excesso
ou pela sua falta.

amor é a expectativa que criamos


em torno de tudo aquilo que desejamos
e nunca possuímos.
amor é aquela sensação de puro êxtase
de um orgasmo sensível
ou um forte desejo
eterno e nunca realizado.

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amor é um velho homem
que escreve, todos os anos,
um cartão de amor
para a sepultura de sua parceira em vida.

amor é Yoko Ono


e a irônica força
que destruiu os Beatles.

amor é o que Luiz Gonzaga Júnior encontrou na pureza das


respostas das crianças.
amor são beijos e carícias após escutar o que nunca deveria ter
sido dito para ninguém.

amor não é tudo o que dissemos que não era1,


nem tudo o que sempre acreditamos ser,
mas tudo o que nos fez acreditar.

amor é tudo o que tentamos definir, mas nunca conseguimos.


amor é o silêncio que fica depois que você vai embora.

1
Réplica ao poema “Uma definição”, do poeta norte-americano Charles
Bukowski.

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eu a vi ali,
rodeada de pessoas indiferentes,
olhando para os lados com seus olhos
de tigresa selvagem
perdida na selva de concreto.

observando-os de soslaio,
deixava escapar um sorriso cínico e
mal lavado,
como se desejasse
queimá-los – todos – vivos
enquanto dava mais um tapa
de pernas cruzadas.

olhando para baixo, me aproximei


e disse:
"o mundo seria tão tedioso quanto
se eles não estivessem aqui".

instantaneamente, seu sorriso deixou escapar um ar de


serenidade
e denunciou uma vontade de desbravar a solidão
em meio a sessões de budismo nos campos

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e viagens psicodélicas
de uma hippie moderna.

e eu encontrei
um espelho em seu olhar
quando percebi que, se ela queimasse a todos,
todos que pertenciam àquele monte de nada,
eu me divertiria ao seu lado,
também
de pernas cruzadas
dissipando seu sorriso
e seu desdém alheio
cínico e
contagiante.

MATHEUS PELETEIRO | 29
“nunca mais eu vou olhar nos seus olhos de Medusa”, gritei,
antes de correr na direção do despenhadeiro
decidido a pôr um fim a nós dois.
olhei para baixo e,
ao vislumbrar o oceano,
descobri que a minha covardia era muito prudente.
virei-me,
dando de cara com o seu olhar
e, por alguns minutos,
fui petrificado pelo seu encanto
que lhe consagrou uma estatueta de vitória
e durou até que eu escutasse o cântico das sereias,
amplificando Nina Simone nas
pedras – a pentear seus blacks –
e mergulhasse de cabeça no mar,
ansioso pela queda.
perdi-me nas suas nebulosas vozes
fui conduzido às profundezas do oceano
e enfim entendi o motivo das lendas e fábulas
sempre apresentarem as mulheres
como sedutoras ou bruxas.
primeiro: em sua maioria, foram os homens
que as escreveram;

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em segundo lugar, elas sabem que os homens são
ridiculamente
vulneráveis às suas maravilhas
e se divertem com isso.

MATHEUS PELETEIRO | 31
ela gostava de Doritos;
eu, odiava.
“não vou te beijar,
você está com um escroto bafo de vômito”,
dizia, irredutível.
ela se enfezava,
fechava a cara,
rangia os dentes.

e então eu me desculpava
e ela sorria.
tentava roubar-me beijos:
“escova os dentes, vai!”,
esquivava-me.

e tudo começava novamente.


ela era fraca e logo cedia.
ia ao banheiro,
escovava os dentes,
surgia com aquele sorriso cheiroso.
aquele sorriso era tudo pra mim.

beijava-a

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e concluía, ingenuamente, que aquele beijo era tão bom
que poderia deixá-la comer ainda mais,
e ainda assim continuar naquilo.

mas ela logo abria outro pacote


daquele saco fedido,
e chegavam as náuseas,
a agonia.
e então eu mudava de ideia.
aquilo era amor.

MATHEUS PELETEIRO | 33
ME MANDE FOTOS

eu disse que você tinha de ir,


mas lembrei daquele dia em que você jogou um copo de água
fria em minha cara
e me disse que era para compensar por todos os
gelos que não me deu.
agora, o vazio da minha cama,
e o disco de Johnny Hooker que toca em minha
cabeça sem parar
me fazem questionar minhas decisões.

eu sei que já faz tempo,


e que você já deve ter partido para uma cidade
bucólica na Chapada Diamantina,
como prometemos que faríamos,
mas me deu vontade de colar cartazes com fotos
nossas nas paredes da Avenida Sete,
e de escrever poemas de amor com o seu nome nos
postes do Rio Vermelho,
para ver se você pelo menos pensa em mim,
enquanto algum outro qualquer te oferece uma
garrafa de São Jorge
ou toca uma canção de Raul.
no fim, somos todos substituíveis.

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você nunca foi de se entregar,
mas acho que acabei te convencendo a fazer isso,
e ficamos nós dois à deriva.

planejávamos navegar o Atlântico juntos,


mas o mar é lindo de qualquer maneira
e se eu não estiver ao seu lado quando pisar em
terra firme, por favor,
me mande fotos.

nosso sonho sempre foi


derrubar fronteiras,
só não esperava
que pudesse existir alguma
capaz de separar você
de mim.

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“há pessoas que já nascem saudades”, me contou um senhor.
“surgem como um raio de sol
que ilumina bairros tristes
e, depois,
passam a compor a cidade das memórias eternas,
quando se vão”.

você surgiu quando eu menos esperava


e me pegou de surpresa
com esse seu jeito doce e meigo
de lidar com esse mundo cruel e boçal.

é verdade,
há pessoas que marcam vidas com um mero sorriso.
há pessoas que deixam saudades sem sequer se lembrar de que
em algum momento estiveram presentes.

e assim como a maneira que surgiu pra mim,


após alguns dias de magia,
você também partiu
sem se despedir
deixando apenas seu sorriso

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ecoando na caverna que me impede de enxergar o resto do
mundo
e um sentimento gritante,
berrando que algo aconteceu.

e, agora, quando te vejo nas ruas,


nas redes sociais
e nas diversas versões de vidas que imagino que viveu,
sempre me pego
sentindo saudade de alguma coisa distante,
alguma coisa que se dispersou no tempo
e nos impede de sequer sabermos
no que nos tornamos
e como se tornou o tom de voz
um
do
outro.

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ela foi como uma estrela cadente
que passou por mim para nunca mais voltar
e eu já nem me lembro tanto assim
do seu rosto, ou do motivo do seu brilho
mas sempre que me lembro dela,
me pego sorrindo,
involuntariamente.

dizem que quando estrelas cadentes passam por ti,


você deve fazer um pedido,
eu desejei que nunca mais te visse novamente.
o pedido foi realizado.
nosso momento continua eterno
em minha memória.

38 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


é até engraçado,
você me abandonou
mas continua invadindo a minha cabeça
por meio das lembranças do que deixou.

e eu ainda sou o mesmo idiota


que se alegra com a felicidade dos outros
e não tem paciência para discussões.

noutro dia dormi com uma mulher estranha e


enquanto me deitava em seu colo
me lembrei de você ao sentir o mesmo cheiro
do amaciante que usava em suas roupas.

flertei com uma mulher que lia um livro que você indicara para
mim
e me lembrei do que estava escrito na dedicatória com a sua
assinatura
e uma marca de batom.

"que esse livro seja um caminho em busca de si mesmo",


era Sidarta.
e depois de beber tudo que não suportava

MATHEUS PELETEIRO | 39
por não aguentar alimentar aquela tentativa de te esquecer,
fui acudido por mais uma delas.

minha visão estava turva


mas, mesmo na escuridão,
enxerguei nela
o seu brilho
que acendia o meu peito
como um fósforo ao ser riscado
numa pedra.

é até engraçado,
você me abandonou
mas continua invadindo a minha cabeça
por meio das lembranças que deixou.

e eu ainda sou o mesmo idiota


que te marca nos posts das redes sociais
e só dorme depois de dizer
eu te amo.

faz tempo que não durmo.

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os melhores poemas que eu já escrevi
foi você quem fez.

as melhores viagens que fiz


foram para dentro de ti.

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e se eu pudesse ver,
do escuro do mundo,
toda pureza que ainda lhe resta?

será que meus olhos brilhariam,


como brilha
o impacto das partículas do sol
que incidem no vento norte
durante a aurora boreal?

e se eu pudesse ver
toda a beleza do mundo?
talvez vislumbrasse os campos da Holanda,
as moças que dançam
como se o mundo fosse acabar,
as crianças que brincam
com ingenuidade
acreditando lutar
contra monstros de um filme japonês.

veria as catedrais.
Notre-Dame do alto,
com toda a sua grandeza,

42 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


e, então, o coliseu
resistindo aos séculos.
me lembraria da tal
Dulcineia de Toboso,
ao observar os moinhos de vento
e me sentiria como um fidalgo sonhador.

se pudesse ver toda a beleza do mundo,


veria campos de morango para sempre,
flores no Alasca,
e toda a vastidão
que a Chapada Diamantina traz consigo.

veria as pacatas famílias na Patagônia,


e o brilho de Paris
numa chuva à meia-noite
borrando desenhos de giz.

sentiria a melancolia de Londres


e assistiria às manhãs frias e ensolaradas
nas pontes de Dublin
sob o Rio Liffey.

se pudesse ver toda a beleza do mundo,


veria novamente

MATHEUS PELETEIRO | 43
cada gesto de superação
com outros olhos,
cada riso sem motivo
que amoleceu a alma de quem o viu,
– mesmo sem que percebesse.

veria mães tornando-se retratos do sacrifício


por seus filhos;
canções de liberdade proferidas com a alma,
e, sobretudo, comoções,
– talvez o sentimento mais belo que o mundo já concedeu à
humanidade.

e, se depois de tudo isso,


após tantos horizontes e gestos,
eu ainda pudesse ver,
diante da vastidão do universo,
toda beleza que nesse mundo ainda reside,
será que, dentro dela,
veria você?

44 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


o amor dói demais.
eu queria escrever um enorme poema sobre este fato
relembrando todos os bons momentos que vivemos
e o que provocou em mim
esse aperto no peito,
mas tudo o que tenho a dizer
é que eu não reconheço mais
o meu amor.
e se um poema é tudo aquilo que arde e começa com um nó
na garganta,
às vezes, uma frase
pode compor um poema
por si
só.

MATHEUS PELETEIRO | 45
eram apenas duas pessoas
em um campo de concentração.
ele era um guarda nazista
ela, uma prisioneira de guerra.

alguns dias eles se entreolhavam:


com desejo, amor,
mas eles eram somente duas pessoas,
duas simples pessoas
em um campo de concentração.

ninguém podia notar,


mas ali havia um vínculo
maior que a própria guerra.

às vezes ela se condenava por amar um homem perverso,


porém, simplesmente amava,
– todos sabem que não se pode controlar o coração.

ele até tentou se culpar,


gritou diante do espelho que não deveria misturar a sua raça,
mas, após alguns dias olhando para ela,
tudo que conseguiu dizer foi:

46 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


"pro inferno com isso!".
os meses se passaram,
e ele nunca deixou que a levassem para a
câmara de gás
ou para o fuzilamento.

sempre a roubava por alguns instantes,


"os doutores querem fazer experimentos com ela" – dizia
e ela forjava uma expressão de medo.
naqueles instantes,
até esqueciam da guerra lá fora.

um tempo depois,
a guerra acabou,
os experimentos deixaram de acontecer e
os prisioneiros foram libertados
para, enfim, rever suas famílias.

prometerem escrever um para o outro,


mas os correios locais não aceitaram promover o contato
entre traidores.

a moça testemunhou o julgamento do soldado,


lhe deu um beijo
e partiu,

MATHEUS PELETEIRO | 47
como parte a paz
quando começa uma guerra.

nunca mais se viram novamente.


a Alemanha foi bombardeada e
Hitler perdeu a guerra,
mas,
a pior derrota
certamente foi a daquele pobre coitado,
que perdeu a sua única batalha
e foi nocauteado sem sequer ter tido
a chance de lutar.

eram apenas duas pessoas


em um campo de concentração
e, com eles, a história mais bonita
que aconteceu em Auschwitz
nos tempos de desespero.

48 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


estive pensando em nós nestes últimos dias
em como o mundo tenta nos envelhecer
e no quanto a gente consegue manter
a nossa juventude pulsando
através do nosso senso de humor.

estive pensando em
fugir para as Ilhas Canárias
e cantar Cazuza no seu ouvido
enquanto você faz carinho em minhas costas
com suas unhas selvagens.

estive pensando demasiadamente,


em coisas banais, na maioria das vezes,
assim como acontece em todo poema,
mas resolvi consultar o meu saldo bancário
e me pareceu mais conveniente parar de pensar em qualquer
coisa
que nos tire do chão.

pensar é um luxo,
e eu já li pra você que "o amor é para
aqueles que suportam a sobrecarga psíquica".

MATHEUS PELETEIRO | 49
antes, não sabia o que isso significava,
hoje, penso que a vida inteira é
para quem suporta
esse tipo de sobrecarga.

você se foi e eu
não parei de pensar em nós dois,
mas passei a torcer para que o mundo
também pense na gente.

50 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


eu sonhei com suas unhas a me fazerem cafuné enquanto nos
deitávamos
debaixo de um cobertor
e chovia na Irlanda.
sua carne e seu cheiro poderiam me entreter
por séculos,
mas não eram eles que me encantavam ali embaixo.
você me disse que não sabia qual caminho iria tomar
e eu tapei os ouvidos com o travesseiro,
tentando esquecer que existia uma humanidade tediosa lá fora.
“eles estão escutando o mesmo barulho da chuva caindo que
nós dois”,
você sussurrou com voz doce,
desdenhando de meu apreço ao isolamento
e encantando-me mais uma vez com a sua delicadeza.
escutei a janela vibrar
e um vento frio invadiu o quarto,
levando você para longe dali.
as tempestades na Irlanda são agressivas
te fazem acordar de sonhos bons
e destroem até o que nunca aconteceu.

MATHEUS PELETEIRO | 51
você se deita de costas
eu desço a sua nuca e vejo
o seu cabelo longo cobrir-lhe a beleza que se situa
na parte debaixo do seu dorso.

é impagável ver o mundo se ofendendo, e ter você


ao meu lado,
fazendo-me crer que estou fora dele.

é adorável saber que as pessoas se matam, se xingam


e nos xingam
– direta ou indiretamente
e nós rimos disso.
é como se tivéssemos alcançado o Nirvana,
mas o chamássemos apenas de “amor”.

e todos os problemas agora


se resumem ao quão chato podemos ser
no tempo em que reprimimos as pessoas detestáveis.

o que é o amor senão isso?


a criação de um mundo falso repleto de verdades
para que duas pessoas ou mais
sejam felizes em meio às desgraças que rodeiam

52 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


as mentes de quem ainda não encontrou a paz na
indiferença.

e o mais bonito
é ver você gargalhando
das próprias manias esquisitas;
e de cada piada sem graça que eu contei.

é ver você ignorando as injustas difamações criadas


por pura falta de interpretação
é ver você sorrindo enquanto desdenho dos ídolos alheios;
dos milhares de textos com supostas soluções para os problemas
sociais
que nunca foram postos em prática
sequer pelos próprios autores;
dos discursos motivacionais para criar vencedores
em um sistema perdido,
ou do que quer que as pessoas engrandeçam
e nós simplesmente achemos engraçado.

e o melhor disso tudo,


é que podem nos acusar de todos os crimes já
praticados, mas
eu e você somos só eu e você
e só disso nós somos culpados.

MATHEUS PELETEIRO | 53
havia alguns anos que não nos víamos
quando nos encontramos comprando papel higiênico no posto
de gasolina
e marcamos de sair no dia seguinte.

de início, houve um silêncio sepulcral


depois, alguns beijos frios,
misturados com uma chama,
uma faísca, que, às vezes,
se acendia durante a transa.

“a vida te devorou” – demorou três dias para


que eu lhe dissesse.
ela se olhou no espelho, reflexiva:
“sou a mesma de sempre
embora pareça um pouco cansada”.

“você costumava ler livros,


se entusiasmar com canções,
discutir perspectivas,
agora só está cansada demais”.

me encarou com seus olhos lacrimosos e

54 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


abaixou a cabeça.
estava exausta para discutir.
desapareceu e eu nem percebi
talvez estivesse sendo devorado
também.

MATHEUS PELETEIRO | 55
nós brigamos e você foi embora:
sonhei que transávamos a noite inteira.
olho por detrás da cortina
e vejo o sol se pondo como o meu amor.
no trio elétrico,
o mais insuportável choro de guitarra baiana
grita que você partiu.
quem diz que o axé baiano é
pura alegria
nunca perdeu um amor no carnaval.

56 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


queria ver um anjo caindo essa noite,
porém, tudo o que me resta
são as estrelas mortas no céu
que brilham assim como você.

o caminho até lá parece infinito,


mas me disseram que é mais curto do que
posso imaginar.

uma eternidade,
uma vida, um minuto,
certas noites
tudo pode significar a
mesma coisa.

assisto a um drama barato


e componho um samba com seu choro
em homenagem a todas as nossas
doenças psicológicas não descobertas.

penso que deveríamos assimilar


aquilo que nos toca, como
aquilo que nos toca, simplesmente,

MATHEUS PELETEIRO | 57
mas, aqui estamos nós,
tentando estereotipar personagens
de acordo com nossas experiências
ou projeções.

no entanto,
o que realmente me intriga,
é o porquê de insistirmos
a dividir em grupos
tudo o que temos contato.
por que necessitamos classificar
tudo o que não conhecemos?

talvez sejamos incapazes de enxergar


sem os nossos preconceitos.
o telefone toca no apartamento ao lado:
"alô?"
– silêncio.
alguém acaba de chegar ao fim da linha.

a distância infinita às vezes é banal.


não é preciso muito para não estar mais
aqui.

58 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


“todos os nossos dias podem ser os últimos”,
pensei nisso enquanto você me xingava
na tentativa de me ofender por alguma bobagem de que nem
lembro mais
e todos os seus argumentos e
a sua fúria
me pareceram vãos,
não só naquele instante
mas durante todas as outras discussões que me recordei
entre nós e todos os outros
que não nos levaram a lugar nenhum
mas nos fizeram agir como imbecis, ingratos pela existência,
durante alguns minutos.

nos fizeram nascer para morrer, querida,


e eu entendo que tenhamos que viver o agora sem pensar na
morte para,
enfim, viver de verdade
e que precisemos gritar e explodir, às vezes, para existir,
mas, aqui, ao meu lado,
por que levantas a voz?

MATHEUS PELETEIRO | 59
“todos os nossos dias podem ser os últimos”,
existe algo mais bonito e assustador do que isso?
diante do peso do silêncio das suas ofensas, eu lhe peço,
em nome de todas as outras estrelas que morreram e continuam
brilhando:
deite-se comigo, mesmo brava, e
fixe os seus olhos nos meus durante a noite.
inevitavelmente eles vão se cansar, é verdade,
mas resistiremos como soldados religiosos devotos de algum
Deus,
ou aventureiros que se equilibram sobre beiras de precipícios,
afinal, sabemos que, amanhã,
eles podem nem se abrir.

60 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


como em qualquer eterno relacionamento dotado do charme
do desequilíbrio,
ele mandava citações de Thoreau
e ela dançava ao som dos Red Hot Chili Peppers.
ela ria do sarcasmo de Bukowski
e ele se deleitava com frases de Oscar Wilde.

ele podia ser esnobe o quanto fosse,


mas, de algum modo,
sabia como tratar uma mulher.

nunca olhava nos seus olhos,


pois dizia ser suscetível
às paixões passageiras
e temia que isso o destruísse
pouco a
pouco.

ela era a personificação de


tudo o que ainda restava
de alegre e amável na humanidade.
ele amava a melancolia,
a solidão e os filmes argentinos.
já havia se acostumado com a dor,

MATHEUS PELETEIRO | 61
e temia que com ela fosse feliz
convicto de que não suportaria tanto.

mas, quando olhou nos seus olhos


pela primeira vez,
constatou
que as pessoas deveriam
se orgulhar ao vê-la andando.

constatou que as pessoas deveriam se orgulhar


de viver num mundo onde ela vive,
num mundo onde ela sorri, onde ela come, canta, chora, e
passa a correr,
como um cometa de esperança
carregando sempre um livro de algum beat corajoso e ingênuo
debaixo do braço
enquanto escuta uma canção de deus sabe quem.

ao constatar isso, ele desapareceu,


certo de que ela se sairia melhor sem ele.
ela passou a se sentir sozinha,
depois, esqueceu-se da sua existência.

se o amor fosse sensato,


pessoas não se casariam
amantes não seriam abandonados
e poemas não existiriam.

62 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


Para Leila Peleteiro

estive pensando nas coisas incríveis da vida


enquanto degustava uma colher de mel e pensava no trabalho
que as abelhas tiveram para produzi-lo.

pensei na aurora boreal


e nos pássaros,
que conhecem o céu,
mas sempre voltam ao chão
para montar belos planos de fundo em nossos horizontes.

estive pensando nas coisas incríveis da vida


e se estive a pensar nelas,
não pude deixar de pensar em você
que surge nas noites frias
me servindo de cobertor
e aquece o meu peito
quando ele parece que vai congelar.

hoje eu me peguei chorando porque um dia você vai morrer


e eu nem sei quando isso vai acontecer
mas sei que todos iremos, um dia,
e isso já me assusta o suficiente

MATHEUS PELETEIRO | 63
para saber que,
todos os dias,
os seus abraços são os últimos.
não importa se eles se repetirão,
serão sempre especiais e
eternos às suas maneiras.

mãe, se estiver lendo este poema,


saiba que me delicio com todos eles,
que são genuínos
e cheiram como um lar.

64 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


o mundo está escuro faz um tempo,
eu sei.
as flores já murcham antes do outono chegar.

mas sinto esperança quando ouço falar


alguém como você,
que tem sonhos e
uma ingenuidade capaz de mudar o mundo,
nem que seja só
um pouco.

são aqueles ingênuos o bastante


para acreditar em mudanças
os que promovem mudanças,
são aqueles compreendidos o bastante
para dizer que existem certezas
os que promovem dúvidas.

e eu ainda carrego em mim


uma última brasa de fé
que me permite aferventar o peito.
eu ainda vejo beleza na inocência dos ingênuos
e encanto no sorriso dos céticos.

MATHEUS PELETEIRO | 65
o mundo está escuro faz um tempo,
eu sei.
mas são esses vários últimos raios de luz
que escapam do seu sorriso
o que ainda ilumina o meu caminho.

66 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


criados em meio a
clínicas psiquiátricas a céu aberto
lotadas de jovens da classe média
frustrados pela expectativa que criaram sobre eles;
em meio às reclamações da elite
a contestar jovens sonhadores
que ainda vislumbram a beleza
da ingenuidade de uma criança dentro de si,
nós sobrevivemos,
e nos tornamos tão íntimos,
um do outro,
que não mais meço minhas palavras
na sua companhia.

hoje sofro apenas pela minha tremenda insignificância


e insaciável sede de prazer,
enquanto você acredita num paraíso próximo
que cada vez mais te joga para baixo,
te afunda e te afoga.

você grita para mim que eu não posso deixar de me importar


e eu sussurro fatalismos desdenhando da razão.
mas o mundo é isso. o amor é isso.
não como um vulcão entrando em erupção,
mas como a lava que queima quase tudo

MATHEUS PELETEIRO | 67
até construir monumentos sólidos.

e não há nada mais bonito que nós dois,


brincando com fogo,
enquanto um mar de gelo
manifesta-se pelas ruas
da capital.

você me chama de estúpido, exagerado,


e eu emito um sorriso ao me lembrar de Cazuza.

você se despe
e não há nada que eu deseje mais
que uma foda de reconciliação
para aferventar a chama
que queima dentro da gente
enquanto o país inteiro se apaga pela brisa fria
que entrou arrombando a porta dos nossos corações, já
remendados pela desesperança
que desde cedo nos rasgou
a carne
e o peito.

68 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


“você tem medo de amar”
é o que todas elas dizem
como se devesse me condenar por isso.
mas, como é possível não temer o amor?

amar – basta consultar no dicionário de Deus –


significa submeter-se a um cárcere aconchegante,
– o que não deixa de ser uma prisão,
ainda que voluntária –
e me dilacera com dentes de piranhas
que todos os dias
me encantam.

o amor me pega a cada esquina


na simpatia de uma mulher
em um jeito de rebolar natural ao andar
nos sorrisos simpáticos dados por desconhecidas
ou até em dedos que folheiam um exemplar de John Fante.

pela Lei do Merecimento – basta consultar na legislação divina



todas as mulheres do mundo merecem ser amadas,
porém, poucos homens conseguem amar

MATHEUS PELETEIRO | 69
algo ou alguém diferente de si próprios.
nessas circunstâncias,
como amar uma só mulher
diante tamanha responsabilidade?

70 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


com o passar dos anos
os ciúmes cessaram
as admirações se esvaíram
e o contato se tornou cômodo,
conveniente,
como acontece em quase todos os casamentos.

“vocês se amavam!”
se espantou um vizinho
ao ouvir o desabafo do homem
que relatava que a sua relação já não existia
quando percebeu, em um surto de consciência
que a mulher mais linda da cidade
já não era tão linda assim.

não tanto quanto aquele belo par de seios do outro lado da


mesa,
ou aquela bela bunda
que se curvou para jogar um guardanapo no lixo.

e se um dia aquilo fora amor,


já não era nem mesmo suportável.

o comodismo é uma espécie de veneno,


só que mais doloroso.

MATHEUS PELETEIRO | 71
era meia-noite,
e a música do show já havia cessado.
restara agora apenas o zunido
que permanecerá nos seus ouvidos
até a semana seguinte.

ela esperava uma noite selvagem


– há semanas não tinham
um momento a sós –
mas, depois de algumas doses,
ele se deitou ao seu lado,
e antes que notasse a sua calcinha de renda preta
especialmente posta,
começou a roncar.

presa ao medo trivial


de partir um coração
que já bombeou todo o seu sangue,
ela lamentou em silêncio
durante a noite inteira.

do outro lado da rua,


um pré-adolescente
sorria ao beijar
pela primeira vez.

72 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


querida,
de que adianta as minhas juras de amor
e o encanto do jogar dos seus cabelos
recém-lavados por shampoo Seda
se nós dois sabemos
que, em algum momento,
tomaremos rumos diferentes?

é inevitável.
eu vou te deixar de qualquer maneira,
querida,
e quero que saiba que não menti
quando falei sobre o amor que nutria por ti,
mas não posso negar que me faltaria franqueza
se não te dissesse que vou te deixar
de qualquer modo.

um dia, você vai entrar por aquela porta,


querida,
e eu não vou estar lá.
porque o amor é um pássaro
que deixa de cantar
quando é posto

MATHEUS PELETEIRO | 73
numa gaiola.

não adianta insistirmos,


querida,
eu vou te deixar de qualquer maneira,
e a noite vai ser clareada
pelo amanhecer
e vagalumes se apagarão
enquanto choramos em sincronia.

tudo o que restará


será a forma do meu corpo no colchão que dividíamos
e, talvez,
a sombra do nosso amor
efêmero, mas profundo,
que se foi
como toda estrela cadente
que brilha e ilumina o mundo
antes de se dispersar
na eternidade.

74 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


dei adeus a Maria
por acreditar
que o mundo deve ser,
por direito,
de José.

renunciei ao ato do amor


para que novas correntes
não fossem criadas,
e rompi laços inestimáveis
por querer constituir novos.

toda partida é dolorosa,


todo início um parto, mas
todo final um recomeço.

hoje completa um ano que parti,


e deitado ao lado de outra mulher, que
me fez um jantar para comemorar nós dois,
esperei Maria me ligar
para me dar os parabéns, talvez.
mas ela não ligou
e, agora,

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não consigo mais
sair dessa cama.

fugi do amor por enxergar nele


uma espécie de prisão,
e aqui estou eu
algemado
outra vez.

76 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


já faz alguns dias que nos encontramos
e prometemos desaparecer um para o outro
mas seu cheiro continua
impregnado em meu peito
e preenche o meu corpo
de maneira que,
onde quer que esteja,
sinto como se estivesse também.

já faz alguns dias que não te vejo,


mas, para onde quer que eu olhe,
enxergo as curvas do seu corpo
distorcendo a minha visão.
sua sensualidade me cegou
enquanto nos divertíamos
brincando com tentações
e você me tarava
com provocações sutis.

escutei de um conselheiro na infância


que tudo passa
e acreditei
até assistir à nudez do seu corpo

MATHEUS PELETEIRO | 77
e perceber que todos os momentos que vieram depois
foram como elucubrações e resquícios
de um momento que continuará a existir
mesmo depois de falhar a minha memória.

o amor é quente
mas a sua falta faz frio.

78 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


sabia que iria sofrer como nunca sofri,
mas eu me peguei desejando essa dor,
a dor de me sentir livre de novo
ainda que sem o que mais amo
porque fazia tempo que nada acontecia
e era como se eu simplesmente estivesse morrendo
por dentro.

agora, eu ponho para tocar


If you see her, say hello,
e lembro de você
enquanto sigo meu caminho destrutivo e solitário
na tentava de encontrar a mim mesmo
nas perdas e conquistas libidinosas.

cheguei até a criar um pseudônimo


para pintar as obras do meu coração ferido
e esperar o seu apreço ao vê-las
sem saber que foi você quem as fez.

me disseram que você estava voltando


para me prender mais uma vez

MATHEUS PELETEIRO | 79
mas era um sonho,
e eu não sei porque
os sonhos sempre terminam
no melhor momento.

80 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


ela me disse que o
meu jeito era antiquado,
que minhas palavras
eram superficiais e
soavam
falsas o tempo inteiro.

afirmou que todo o tempo que


passamos juntos
foi um desperdício
em sua vida,
e que todos os homens
eram mesmo iguais.

respondi-lhe
que estava errada.
ela poderia pensar o que quisesse
dos outros homens, mas eu...
eu era pior ainda.

ela já não se importava,


apenas virou-se de costas

MATHEUS PELETEIRO | 81
e contou que estava completa
enquanto acompanhada de si mesma.

confesso que fiquei destruído


com toda a sua indiferença.
o amor próprio, às vezes,
pode ser realmente poderoso.

mas, dentre todas as coisas terríveis


que dissemos um ao outro,
nada me doeu mais
do que o momento em que ela confessou
que nunca gostou, realmente,
de David Duchovny.

82 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


todos os diletantes
se foram.
menosprezaram o amor
e se deleitaram
com orgasmos, dinheiro,
sujeira e orgias.
houve acerto em seus erros
ou erros em seus acertos?

eu nunca estive à procura de nada


mas sempre desejei experimentar cada
vestígio de curiosidade
e, embora não estivesse à procura,
encontrei alguém pelo caminho.

sofremos perante a efemeridade da vida


e dos impalpáveis instantes que cessam sem avisar,
até que fui dispensado por ela
sob o argumento de que
amores precisam findarem-se
para que outros nasçam.

lamentei em bares hostis

MATHEUS PELETEIRO | 83
e cedi a desejos torpes
libertando o pior – e
o melhor –
que havia em mim.

mas, numa madrugada silenciosa,


ela bateu à minha porta,
fez barulho no meu coração
e me contou que
os amores vão embora a cada manhã
porém, há sempre uma pessoa
que você deseja que chore ao seu lado
ao te ver no caixão.

"essa pessoa é você", ela disse.


tentei segurar o choro e ser durão,
mas lágrimas são mais pesadas que elefantes.
chorei como uma criança
e pude sentir o meu vazio sendo preenchido
pela possibilidade de não estar só
quando o fim chegasse.

todo homem jovem deseja a sapiência de um ancião


mas se esquece de que tudo o que
o ancião deseja quando chega ao fim da linha,

84 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


é mais um instante com aquela mulher
que abandonou quando era jovem e
não enxergava nada
além de sua rebeldia narcisista.

amar e ser amado


é ter alguém
para morrer consigo
e assim permanecer vivo
mesmo quando partir.

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quando a D. Morte, mansa e violenta
vier me buscar,
quero que ela recite em meu ouvido
algum poema do Pessoa,
e me acolha com um abraço maternal
como uma mãe que te acalma sussurrando:
“agora tudo vai passar”.

quero que
em meu epitáfio
uma multidão grite o meu nome
e que adjetivos a meu respeito
ecoem por toda a cidade
sejam pejorativos
ou não.

quero ser cremado


e dispersado em oceanos
e que a minha morte seja como
os 15 minutos de sucesso
de um cantor sertanejo.

86 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


quero que a D. Morte me beije ao som de uma canção de
Eddie Vedder e que cubra as suas pernas com uma meia-calça
preta
quando estiver em minha frente.

quero que o sol se ponha um pouco mais cedo


e que as nuvens não estejam carregadas,
pois, durante toda a minha vida
a chuva sempre parou de cair
e somente ficaram as poças,
brilhando sob o reflexo azul do céu.

desejo partir antes daqueles que amei


e depois dos meus ídolos
– é importante perceber que até os nossos heróis se vão.

solidão não é estar só,


mas saber que ninguém lhe tem amor
e é claro que eu desejo amargamente
que esse poema nunca faça sentido
que meus poemas morram
e eu viva para sempre,
porém, me bastaria
uma única lágrima escorrendo
nos olhos de alguém que amei,

MATHEUS PELETEIRO | 87
por minha causa,
para que, no fim,
haja
Campos de Morango para sempre.

dentre tantas formas de desabitar o planeta


nenhuma delas parece mais agradável
que continuar existindo
dentro do peito daquela
que ainda cultiva a sua existência
e sente saudade
da sua cara mal-humorada
dizendo "bom-dia".

88 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


fui andando sobre o fogo
pisando em egos e corações,
enfrentando aquecimentos e tempestades:
vi o melhor da vida
conheci a sensualidade de bonitas pernas
caí no encanto das mulheres praianas
e fui cegado por sereias de rabos brancos e pretos
nos quais me perdi como velejantes em oceanos.

no dia em que fiquei cego


escutei pessoas reproduzindo palavras e expressões
sem pensar no que diziam,
escutei lamentosos a se queixar
sobre tudo o que lhes rodeava
sem sequer arriscar conhecer um pouco da vida ou o suicídio,
escutei pessoas acordando a torcer que o dia terminasse
e percebi que existem manhãs mais sombrias que noites.
escutei Deus perguntando o que tenho feito com os dias que
tem me dado
– se os tenho gasto ou jogado fora –
vi gente morta que ainda vive.

e quando finalmente olhei para um espelho imaginário

MATHEUS PELETEIRO | 89
enxerguei alguém
tragado pelo céu da boca do universo.

abri os olhos:
de luzes apagadas,
o mundo não é bonito.

90 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


o país estava sendo bombardeado
por fake news e provocações triviais
enquanto idiotas úteis apresentavam os dois lados de uma
mesma moeda como se
redes sociais fossem universidades, e tudo parecia uma
brincadeira sem graça.

repressão policial, censura ou


bombas de lacrimogênio já não podiam sequer nos incomodar
– era aquilo que o povo defendia
o que nos fazia chorar.

no meio de uma caminhada em prol da manutenção da


sanidade, você se esbarrou em mim,
me induziu a proferir ideias genuínas e disse que não entendia
nada do que eu estava dizendo;
que eu era constituído por paradoxos
e que sofreria o peso das próprias escolhas.

bem, é possível que o mundo se destrua


e eu seja levado junto aos destroços, mas
você me entendeu quando eu
olhei pelas janelas e pelas tevês e pelos aviões

MATHEUS PELETEIRO | 91
e não vi nada senão o silencio das mentes que pararam de
pensar e o tic-tac do relógio que retroagia.

sim, o mundo se esforçará para nos matar de desgosto –


desgosto mata mais do que câncer
talvez por isso acredite que estivesse louca ao dizer que, embora
não me compreendesse, enxergava sentido e nobreza no meu
desvario.

sentir o contagiante ardor da alma de um alguém delirante


quando todos os sãos parecem fossilizados
soa como um bom motivo para acreditar que nem
a maior das desgraças deve nos fazer tão mal assim.
podemos sempre enxergar de outra maneira.

ainda bem que você ainda pode cantarolar uma música para
mim e
me convencer de que,
no nosso hospício particular,
o tédio assassina a apatia
ao tempo em que nós dois gozamos da vida eterna,
perdidos no tempo
e no espaço.

92 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


tome cuidado com o amor dos intelectuais
seus corações dão ouvidos à razão,
eles desconhecem o entusiasmo.

tome cuidado com o amor dos novos filósofos,


dos clubinhos e fã clubes dos gregos,
eles são escravos dos pensamentos dos outros
e estão sempre ocupados a pregar filosofia antiga
nas praças onde o amor é tido como uma fraqueza irracional e
a fornicação como um pecado.

cuidado com o amor dos que produzem arte,


eles costumam ser narcisistas
e provavelmente te deixarão de lado
para escrever romances repetidos que acontecem
em algum interior da Inglaterra,
pintar mulheres mais jovens
ou compor canções de amor para aquelas que os deixaram.

cuidado com o amor dos fanáticos religiosos


eles enxergam com os olhos dos outros
condenarão o seu charme, a sua discaração ao cruzar as pernas
e a sua nova

MATHEUS PELETEIRO | 93
lingerie preta.
cuidado com o amor dos narcisistas,
eles somente sentem dor por terem sido rejeitados,
não pela perda.

tome cuidado com o amor dos ricos,


seus bolsos cheios lhes enganam
e pensam que sempre podem comprar uma felicidade
maior que você.

tome cuidado com o amor dos acadêmicos, dos intelectuais,


dos artistas, dos milionários, dos fanáticos, dos devotos de algum
santo, dos advogados.
foram treinados para não ceder a esse tipo de debilidade,
dificilmente amam de verdade.

mas, em hipótese alguma


questione o amor de um vadio desesperado e inseguro,
que te dedica versos mal escritos,
diz coisas horríveis motivadas por ciúmes e paranoias,
chora no travesseiro com medo de te perder
e não dorme até escutar um “eu te amo”
sair da tua boca.

que sirva de diagnóstico:

94 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


o amor,
quando se manifesta
leva embora o juízo.

MATHEUS PELETEIRO | 95
você não precisa encontrar alguém,
mas,
talvez encontre.
e, se você encontrar,
seu
coração
vai
explodir
em fogos de artifício
por todo o santo universo
de modo que, todo o resto,
se tornará fútil e dispensável.

mas, se você não encontrar,


tá tudo bem.
os fogos são uma distração.
o amor nasce e morre todos os dias,
assim como nós
e tudo na vida.

96 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


somos só nós dois,
deitados
enquanto o sol encontra a lua.
os nossos corpos se fitam
e se tocam,
mas não há colisão.
durante esse contato astral,
ao tempo em que o sol encobre a lua,
nós nos descobrimos aqui embaixo,
e, depravadamente,
fazemos do nosso ato carnal,
nosso maior eclipse.

MATHEUS PELETEIRO | 97
nós crescemos,
e eu lembro que você costumava
contemplar estrelas mortas que não perderam seus brilhos
e dizer que as Três Marias eram as mais bonitas do universo
porque estavam sempre juntas
– como nós dois.

me deliciava com o cheiro do seu hidratante de morango


que você passava pelo corpo inteiro
e me preocupava com a possibilidade de errar algumas palavras
e fazer com que não falasse comigo durante o resto da semana.

lembro que você devorava livros,


corria como uma Chita desengonçada
e estava sempre me incitando através de provocações triviais.

nós crescemos,
fomos alcançados pelo sangrento aroma da vida
e sentimos o cheiro do dinheiro
– que nos faz respirar tanto quanto o oxigênio.

98 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


mentes assassinas camufladas por discursos de coaching nos
capturaram pelo caminho
e as vozes das vielas nos ensinaram que, para sermos
vencedores, teríamos que pegar a pior estrada.

poderíamos ter envelhecido, mas,


paramos no tempo.
agora, vivemos essa eterna infância-adulta
onde calçamos um pé com calçados sociais,
e deixamos o outro descalço na terra do nunca.

não conhecemos as leis do agora e nem as do futuro


forjamos a nossa própria ordem
não temos ideologias nem identidade.
para nós,
todos os dias são castigos e presentes.
somos tudo
um para o outro,
os nossos próprios carrascos e libertadores.

mas, diversas vezes,


em momentos de nostalgia
e vergonha

MATHEUS PELETEIRO | 99
eu desejo ser aquele moleque estúpido novamente
sentado na praia ao seu lado
a escutar Jack Johnson
enquanto meninos tremem ao dar seus primeiros beijos
e meninas sonham com um amor
para a vida inteira.

100 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


querida,
você me diz
que eu tenho estado mais calado,
que tenho andado em outras frequências, e
que já não sou como era antes, mas,
e se eu te disser
que meus desejos não são mais os
mesmos,
que a minha esperança, hoje,
não passa de um resquício da
vontade de derrotar os filhos da puta
que fecham os olhos perante as vidas que se vão?
e se eu te dissesse
que notei um pássaro
voando em meio a uma multidão
e que a poesia nunca me procurou,
mas eu a encontrei
e ela apontou uma arma na direção da minha testa
e me disse "sou eu
ou a morte mais conveniente"?
e se eu te contasse
que de tudo o que passa
só o que fica

MATHEUS PELETEIRO | 101


é a lembrança das brigas e das risadas e dos elogios que fizemos
um ao outro em momentos difíceis
e
a dor da possibilidade de ter de destruir tudo o que ama para,
enfim, viver de fato em
liberdade?
e se eu te dissesse
que até mesmo nas nossas trivialidades
e desavenças
sempre amei o receio
e a adorável inconstância
da falta de segurança
do nosso amor de celibatários,
você ainda me amaria
e diria que quer fugir para as Maldivas
comigo
para então mergulharmos na vida
até que um dia
não acordemos mais?

102 | NOSSOS CORAÇÕES BRINCAM DE TELEFONE SEM FIO


Contatos do autor:

Email: matheus_peleteiro@hotmail.com

Facebook: Facebook.com/matheuspeleteiro
Estes poemas foram arrancados do peito do
autor e impressos pela psi7 Printing Solutions,
em 2019, enquanto, nas escolas particulares,
adolescentes buscavam tutoriais sobre “como
viver um grande amor” no YouTube.

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