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BRINCAM DE
TELEFONE
SEM FIO
OUTRAS OBRAS DE
MATHEUS PELETEIRO:
Mundo Cão
O Ditador Honesto
NOSSOS CORAÇÕES
BRINCAM DE
TELEFONE
SEM FIO
Copyright © 2019 by Matheus Peleteiro
ISBN: 978-65-900097-0-8
CDD: B869.1
Robert Frost
Eu estava pensando a respeito do destino dos livros de
poesia em um mundo totalmente arrasado pela ignorância, pelo
esvaziamento da capacidade de pensar e, o pior, de sentir. Quero
deixar registrado que estamos em 2019, e já não se fala muito em
amor. Se tornou até embaraçoso dizer. Há, nos jornais, casos de
gente perdendo a cabeça por conta disso e, pasmem, nem se trata
de uma distopia, é só a realidade, a vida acontecendo. É difícil
dizer amor, você pode acabar provocando a ira de alguém. Toda-
via, é de bom grado que esse livro encontre aqueles que estejam
acordados, desesperados, sedentos de vida, mas, também, os mor-
tos por dentro.
Temos aqui um livro de poesia, publicado no ano em que
assistimos o enterro do Ministério da Cultura, essas coisas são
simbólicas. Quer dizer, é preciso muita coragem para colocar
nesse mundo um livro de poesia. Escrevi e reescrevi milhões de
versões desse mesmo texto, algumas mais longas, dizendo uma
porção de coisas, mas a verdade é que a poesia não nos salvará de
nada. E nem nos deixará dormir o sono eterno, porque a poesia
é maior que a vida, que as gravatas e os ternos, que todos os pré-
dios enfileirados da paulista. Ainda que o poeta busque a morte
como quem busca na memória o seu primeiro trauma, o pecado
original, é a poesia quem não os deixa dormir. Estou acordado,
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e também não vi Van Gogh arrancar a própria orelha, mas penso
que foi por amor.
A poesia de Peleteiro está em camada por camada, como
tinta. Na curva do queixo, nas horas arrastadas, na preguiça das
camas, na guerra com o século, no movimento contínuo dos qua-
dris, no vento que uiva das montanhas até uma esquina qual-
quer, e que nos acerta bem no meio do terceiro olho, nos fazendo
enxergar aquilo que durante tanto tempo esteve soterrado.
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uma pintura recusada
dando origem ao primeiro nazista;
o medo de perder uma guerra
desenvolvendo a bomba atômica;
Henry Ford criando os primeiros robôs em 1914;
um massacre a mulheres e crianças eternizando Picasso;
uma mulher grávida sendo entregue para a morte
por um presidente que teme a derrota;
uma criança lendo um livro didático e perguntando “por que a
história é tão injusta?”;
e você,
construindo um castelo de areia
na beira do mar
como se grãos fossem pedras,
se sentindo a rainha do próprio nariz e das marés
sabendo que basta uma simples onda
para que um império inteiro se
converta em ruínas,
mesmo assim,
a contemplar
o seu reinado
breve e infinito.
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e ele esperneou, jogando fora a comida
e implorando para que o deixassem ser criança para sempre.
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você tropeça em igarapés pelo caminho,
faz das quedas mergulhos
e me convida para dormir sob as estrelas
como se cada um de nós não fôssemos um tremendo universo.
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ela podia beijar a qualquer um
como se estivesse apaixonada.
por isso,
só pude trazê-la
para dentro do meu peito.
e, desde então,
ela vive assim,
em dois
distintos
lugares.
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tudo acabe com a sua cara de índia mordendo meus lábios
e nós dois rindo da inocência da Maglore
quando cantou que todos os amores são iguais.
mas
eu vi você,
sentada apenas com um salto alto
e uma cinta-liga preta.
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Para Amanda Quaresma
na compatibilidade cultural,
nas canções de amor e desamor
e nas discordâncias saudáveis
– que matam e geram risos,
e agora me encontro
acorrentado a essa linda menina-mulher,
de olhos castanhos e cabelos longos.
preso num ato de liberdade.
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amor é a vontade de largar tudo
e recomeçar,
mas não o fazer por motivos inexplicáveis.
1
Réplica ao poema “Uma definição”, do poeta norte-americano Charles
Bukowski.
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eu a vi ali,
rodeada de pessoas indiferentes,
olhando para os lados com seus olhos
de tigresa selvagem
perdida na selva de concreto.
observando-os de soslaio,
deixava escapar um sorriso cínico e
mal lavado,
como se desejasse
queimá-los – todos – vivos
enquanto dava mais um tapa
de pernas cruzadas.
e eu encontrei
um espelho em seu olhar
quando percebi que, se ela queimasse a todos,
todos que pertenciam àquele monte de nada,
eu me divertiria ao seu lado,
também
de pernas cruzadas
dissipando seu sorriso
e seu desdém alheio
cínico e
contagiante.
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“nunca mais eu vou olhar nos seus olhos de Medusa”, gritei,
antes de correr na direção do despenhadeiro
decidido a pôr um fim a nós dois.
olhei para baixo e,
ao vislumbrar o oceano,
descobri que a minha covardia era muito prudente.
virei-me,
dando de cara com o seu olhar
e, por alguns minutos,
fui petrificado pelo seu encanto
que lhe consagrou uma estatueta de vitória
e durou até que eu escutasse o cântico das sereias,
amplificando Nina Simone nas
pedras – a pentear seus blacks –
e mergulhasse de cabeça no mar,
ansioso pela queda.
perdi-me nas suas nebulosas vozes
fui conduzido às profundezas do oceano
e enfim entendi o motivo das lendas e fábulas
sempre apresentarem as mulheres
como sedutoras ou bruxas.
primeiro: em sua maioria, foram os homens
que as escreveram;
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ela gostava de Doritos;
eu, odiava.
“não vou te beijar,
você está com um escroto bafo de vômito”,
dizia, irredutível.
ela se enfezava,
fechava a cara,
rangia os dentes.
e então eu me desculpava
e ela sorria.
tentava roubar-me beijos:
“escova os dentes, vai!”,
esquivava-me.
beijava-a
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ME MANDE FOTOS
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“há pessoas que já nascem saudades”, me contou um senhor.
“surgem como um raio de sol
que ilumina bairros tristes
e, depois,
passam a compor a cidade das memórias eternas,
quando se vão”.
é verdade,
há pessoas que marcam vidas com um mero sorriso.
há pessoas que deixam saudades sem sequer se lembrar de que
em algum momento estiveram presentes.
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ela foi como uma estrela cadente
que passou por mim para nunca mais voltar
e eu já nem me lembro tanto assim
do seu rosto, ou do motivo do seu brilho
mas sempre que me lembro dela,
me pego sorrindo,
involuntariamente.
flertei com uma mulher que lia um livro que você indicara para
mim
e me lembrei do que estava escrito na dedicatória com a sua
assinatura
e uma marca de batom.
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por não aguentar alimentar aquela tentativa de te esquecer,
fui acudido por mais uma delas.
é até engraçado,
você me abandonou
mas continua invadindo a minha cabeça
por meio das lembranças que deixou.
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e se eu pudesse ver,
do escuro do mundo,
toda pureza que ainda lhe resta?
e se eu pudesse ver
toda a beleza do mundo?
talvez vislumbrasse os campos da Holanda,
as moças que dançam
como se o mundo fosse acabar,
as crianças que brincam
com ingenuidade
acreditando lutar
contra monstros de um filme japonês.
veria as catedrais.
Notre-Dame do alto,
com toda a sua grandeza,
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cada gesto de superação
com outros olhos,
cada riso sem motivo
que amoleceu a alma de quem o viu,
– mesmo sem que percebesse.
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eram apenas duas pessoas
em um campo de concentração.
ele era um guarda nazista
ela, uma prisioneira de guerra.
um tempo depois,
a guerra acabou,
os experimentos deixaram de acontecer e
os prisioneiros foram libertados
para, enfim, rever suas famílias.
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como parte a paz
quando começa uma guerra.
estive pensando em
fugir para as Ilhas Canárias
e cantar Cazuza no seu ouvido
enquanto você faz carinho em minhas costas
com suas unhas selvagens.
pensar é um luxo,
e eu já li pra você que "o amor é para
aqueles que suportam a sobrecarga psíquica".
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antes, não sabia o que isso significava,
hoje, penso que a vida inteira é
para quem suporta
esse tipo de sobrecarga.
você se foi e eu
não parei de pensar em nós dois,
mas passei a torcer para que o mundo
também pense na gente.
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você se deita de costas
eu desço a sua nuca e vejo
o seu cabelo longo cobrir-lhe a beleza que se situa
na parte debaixo do seu dorso.
e o mais bonito
é ver você gargalhando
das próprias manias esquisitas;
e de cada piada sem graça que eu contei.
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havia alguns anos que não nos víamos
quando nos encontramos comprando papel higiênico no posto
de gasolina
e marcamos de sair no dia seguinte.
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nós brigamos e você foi embora:
sonhei que transávamos a noite inteira.
olho por detrás da cortina
e vejo o sol se pondo como o meu amor.
no trio elétrico,
o mais insuportável choro de guitarra baiana
grita que você partiu.
quem diz que o axé baiano é
pura alegria
nunca perdeu um amor no carnaval.
uma eternidade,
uma vida, um minuto,
certas noites
tudo pode significar a
mesma coisa.
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mas, aqui estamos nós,
tentando estereotipar personagens
de acordo com nossas experiências
ou projeções.
no entanto,
o que realmente me intriga,
é o porquê de insistirmos
a dividir em grupos
tudo o que temos contato.
por que necessitamos classificar
tudo o que não conhecemos?
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“todos os nossos dias podem ser os últimos”,
existe algo mais bonito e assustador do que isso?
diante do peso do silêncio das suas ofensas, eu lhe peço,
em nome de todas as outras estrelas que morreram e continuam
brilhando:
deite-se comigo, mesmo brava, e
fixe os seus olhos nos meus durante a noite.
inevitavelmente eles vão se cansar, é verdade,
mas resistiremos como soldados religiosos devotos de algum
Deus,
ou aventureiros que se equilibram sobre beiras de precipícios,
afinal, sabemos que, amanhã,
eles podem nem se abrir.
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e temia que com ela fosse feliz
convicto de que não suportaria tanto.
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para saber que,
todos os dias,
os seus abraços são os últimos.
não importa se eles se repetirão,
serão sempre especiais e
eternos às suas maneiras.
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o mundo está escuro faz um tempo,
eu sei.
mas são esses vários últimos raios de luz
que escapam do seu sorriso
o que ainda ilumina o meu caminho.
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até construir monumentos sólidos.
você se despe
e não há nada que eu deseje mais
que uma foda de reconciliação
para aferventar a chama
que queima dentro da gente
enquanto o país inteiro se apaga pela brisa fria
que entrou arrombando a porta dos nossos corações, já
remendados pela desesperança
que desde cedo nos rasgou
a carne
e o peito.
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algo ou alguém diferente de si próprios.
nessas circunstâncias,
como amar uma só mulher
diante tamanha responsabilidade?
“vocês se amavam!”
se espantou um vizinho
ao ouvir o desabafo do homem
que relatava que a sua relação já não existia
quando percebeu, em um surto de consciência
que a mulher mais linda da cidade
já não era tão linda assim.
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era meia-noite,
e a música do show já havia cessado.
restara agora apenas o zunido
que permanecerá nos seus ouvidos
até a semana seguinte.
é inevitável.
eu vou te deixar de qualquer maneira,
querida,
e quero que saiba que não menti
quando falei sobre o amor que nutria por ti,
mas não posso negar que me faltaria franqueza
se não te dissesse que vou te deixar
de qualquer modo.
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numa gaiola.
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não consigo mais
sair dessa cama.
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e perceber que todos os momentos que vieram depois
foram como elucubrações e resquícios
de um momento que continuará a existir
mesmo depois de falhar a minha memória.
o amor é quente
mas a sua falta faz frio.
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mas era um sonho,
e eu não sei porque
os sonhos sempre terminam
no melhor momento.
respondi-lhe
que estava errada.
ela poderia pensar o que quisesse
dos outros homens, mas eu...
eu era pior ainda.
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e contou que estava completa
enquanto acompanhada de si mesma.
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e cedi a desejos torpes
libertando o pior – e
o melhor –
que havia em mim.
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quando a D. Morte, mansa e violenta
vier me buscar,
quero que ela recite em meu ouvido
algum poema do Pessoa,
e me acolha com um abraço maternal
como uma mãe que te acalma sussurrando:
“agora tudo vai passar”.
quero que
em meu epitáfio
uma multidão grite o meu nome
e que adjetivos a meu respeito
ecoem por toda a cidade
sejam pejorativos
ou não.
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por minha causa,
para que, no fim,
haja
Campos de Morango para sempre.
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enxerguei alguém
tragado pelo céu da boca do universo.
abri os olhos:
de luzes apagadas,
o mundo não é bonito.
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e não vi nada senão o silencio das mentes que pararam de
pensar e o tic-tac do relógio que retroagia.
ainda bem que você ainda pode cantarolar uma música para
mim e
me convencer de que,
no nosso hospício particular,
o tédio assassina a apatia
ao tempo em que nós dois gozamos da vida eterna,
perdidos no tempo
e no espaço.
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lingerie preta.
cuidado com o amor dos narcisistas,
eles somente sentem dor por terem sido rejeitados,
não pela perda.
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você não precisa encontrar alguém,
mas,
talvez encontre.
e, se você encontrar,
seu
coração
vai
explodir
em fogos de artifício
por todo o santo universo
de modo que, todo o resto,
se tornará fútil e dispensável.
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nós crescemos,
e eu lembro que você costumava
contemplar estrelas mortas que não perderam seus brilhos
e dizer que as Três Marias eram as mais bonitas do universo
porque estavam sempre juntas
– como nós dois.
nós crescemos,
fomos alcançados pelo sangrento aroma da vida
e sentimos o cheiro do dinheiro
– que nos faz respirar tanto quanto o oxigênio.
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eu desejo ser aquele moleque estúpido novamente
sentado na praia ao seu lado
a escutar Jack Johnson
enquanto meninos tremem ao dar seus primeiros beijos
e meninas sonham com um amor
para a vida inteira.
Email: matheus_peleteiro@hotmail.com
Facebook: Facebook.com/matheuspeleteiro
Estes poemas foram arrancados do peito do
autor e impressos pela psi7 Printing Solutions,
em 2019, enquanto, nas escolas particulares,
adolescentes buscavam tutoriais sobre “como
viver um grande amor” no YouTube.