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PLAYLIST
NOTA DA AUTORA
GLOSSÁRIO
EPÍGRAFE
DEDICATÓRIA
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
ENTRE EM CONTATO
SOBRE A AUTORA
OUTRAS OBRAS
Na pacata Silent Grove, uma cidade envolta em mistérios sombrios e tradições
antigas, Liam Ashbourne é muito mais que o quarterback badboy e herdeiro. Por
trás de sua fachada de jogador popular rebelde, Liam carrega um segredo que pode
mudar o destino da cidade e de seus habitantes.
Com a chegada de Harper M. Lawson, tudo ganha novos rumos, afinal a jovem
forasteira desconhece as regras e suas origens parecem torná-la um alvo de todo
mistério que envolve a cidade.
Aproveite!
Oiiie, querida leitor(a)!!!
Sarah J. Maas
A todos aqueles que sonham.
E às minhas Amoras.
Era apenas mais uma noite — é o pensamento que recorre em minha
mente.
Desesperada, com as mãos trêmulas e ainda sem acreditar que algo assim
esteja realmente acontecendo, eu corro. Corro com todas as minhas forças pela
floresta, tentando me desviar dos galhos baixos que arranham meu rosto e meus
braços, enquanto o lobo de pelos brancos, saído diretamente dos meus pesadelos,
me persegue de perto, rosnando e uivando de tempos em tempos, com os dentes
enormes e ameaçadores cada vez mais próximos de mim.
A lua cheia ilumina parcamente o caminho, enviando fachos cada vez
menores de claridade ao meio da floresta, que parece se fechar cada vez mais ao
meu redor, ou talvez seja só o medo falando mais alto.
O lobo rosna de novo, ainda mais próximo, aumentando meu desespero.
Apavorada, consigo até mesmo antecipar a dor do que acontecerá comigo, se ele
conseguir me alcançar. Suando frio, enquanto os músculos das minhas pernas
queimam e falham como meus pulmões, tropeço em raízes, pedras e em mim
mesma. Um grito escapa da minha garganta quando um uivo terrível atravessa o
lugar, como uma promessa velada de que, não importa o quanto eu fuja, me
encontrar é apenas uma questão de tempo. Ignoro a dor das minhas mãos feridas, o
ardor em meus joelhos e, quando caio mais uma vez, vejo sangue. Não, não!
Sangue, não! Me levanto rapidamente e, quando olho para trás, não vejo mais a
fera que me persegue, mas não paro de correr, não agora, quando não o vejo mais.
Corra, Harper, corra! A angústia me consome e, envolvida em minha
necessidade de escapar, e com o coração a mil, tropeço de novo entre as raízes
altas de uma árvore frondosa, então, quando algo pontiagudo acerta a lateral da
minha cabeça, sinto-a girar por um momento, antes de ouvir os sons de algo se
partindo sob pés, — ou patas, provavelmente — que se aproximam de mim.
É isso: Ele me encontrou. É o meu fim.
Ainda tonta, choramingo, mas não me entrego, agarro com força a primeira
coisa que encontro — uma pedra — e estou em vias de me levantar quando a luz
da lua retorna, me permitindo vê-lo parado ali, à minha frente, com suas roupas
pretas de sempre e o sorriso debochado e irritante em seu rosto, quase perigoso,
mas, ainda assim, lindo, como os monstros dos meus pesadelos.
— Encontrei você.
Se, há um ano, me dissessem que eu estaria me mudando para uma
cidadezinha no interior do país, eu gargalharia com vontade. Impossível! —
Acrescentaria, e depois, provavelmente, faria uma comparação entre situações
igualmente improváveis e ridículas.
Não é esse o caso agora.
— Eu consigo ouvir seu cérebro brilhante daqui, Moonzinha — minha
mãe, a pessoa excêntrica por trás do volante do carro que alugamos no aeroporto
da cidade mais próxima, declara. — Se quiser voltar para casa, é só falar, que viro
esse carro agora mesmo.
Mas essa não é uma opção.
— Já conversamos sobre isso, mãe. — Encaro a paisagem da janela. Pelo
menos, a parte que ainda não está coberta pela neblina do fim da tarde.
Quase oito horas de viagem de carro separam a capital, Montzaffir, da
pequena e sombria Silent Grove, uma cidadezinha ao sul do país, onde o sol não
parece ser bem-vindo e de onde minha mãe saiu muitos anos antes, para onde
estou me mudando neste momento.
Nem preciso dizer que não se trata da realização de um sonho meu, muito
menos dela, mas Marianne Lawson se casou com um homem decente — e podre
de rico — e merece ter tranquilidade em sua nova vida. E isso inclui: poder viajar
com ele sempre que necessário e viver contínuas aventuras em hotéis luxuosos.
No final, a data coincidiu perfeitamente com um aumento absurdo da
mensalidade da minha universidade, então, nada mais justo do que procurar um
lugar bom e não tão absurdamente caro e deixá-la curtir ao máximo a vida, depois
de se dedicar a mim durante anos, não é? Claro que o fato de Silent Grove ter um
dos melhores centros de pesquisa médica e um hospital universitário de ponta
também contou muito nessa decisão. Confesso que antes a ideia me parecia
bastante prática, inteligente e não tão terrível. Antes.
— Meu bebê, sempre tão obstinado! — a mulher, de fios curtos tão escuros
quanto os meus, exclama, tentando apertar a minha bochecha.
— Mãe, eu fiz vinte e um anos, já estou no segundo ano da faculdade de
medicina! — repito meu currículo para que ela entenda que não há bebê aqui.
Nenhum. Mas ela dispensa meu argumento com um estalar de língua, movendo os
braços cheios de pulseiras no volante do carro chique quando fazemos mais uma
curva.
— Sempre será meu bebê. Aceite. — Me lança um sorriso e um beijo,
antes de voltar a focar na estrada tortuosa, cercada por árvores altas dos dois lados,
enquanto a neblina densa cai sobre nós e ela suspira, desanimada. — Falta pouco
agora.
Aponta para as colinas ao longe, onde várias luzes vão se acendendo aos
poucos. De onde estamos, é uma visão charmosa, mas não me iludo, o lugar se
parece mais com um desses cenários de filme de terror do que com uma cidade
turística.
Silent Grove não é nenhuma dessas opções.
Porém, tem uma das melhores faculdades do país — a famosa Emberwood
University. Caríssima, mas que oferece bolsas de estudos de tempos em tempos e,
dessa vez, eu fui contemplada, milagrosamente, para algo que não envolvesse
açúcar em excesso ou passar vergonha em um parque. Embora Enzo Fedori, meu
padrasto, tenha se oferecido para pagar minhas mensalidades, recusei de imediato.
Ele já vai ter que lidar com as loucuras de dona Marianne e seus cristais,
certo?
— Moon — o tom embargado de sua voz me deixa alerta. — Você vai
ficar bem, não é?
Marianne Lawson, uma mulher linda na casa dos cinquenta anos, volta
toda a atenção dos olhos verdes para mim. Vou sentir sua falta de forma miserável,
eu sei, mas alguém precisava cortar o cordão umbilical em algum momento.
— Claro que vou, mãe. — Reviro os olhos, fingindo uma tranquilidade
que se perdeu há alguns quilômetros e que se dissipa cada vez mais, à medida em
que nos aproximamos do pontilhão que separa Silent Grove do resto do mundo. —
Não é como se eu estivesse me mudando para uma república, cheia de
universitárias malucas.
É. Tem isso. Nem tudo são flores na vida de Harper Moon Lawson. Ao
invés da típica insalubridade da vida universitária, nos alojamentos e repúblicas,
terei a tranquilidade e segurança de morar com tia Elinor, enfermeira-chefe do
hospital universitário, também conhecida por ser a irmã gêmea da minha mãe; e
sua filha, Victoria, que eu não vejo desde que ambas tínhamos uns sete anos e nos
despedimos brigadas, chorando por conta da última troca de beliscões e mordidas.
Aquela menina sabia ser selvagem.
Quando cruzamos o famoso pontilhão, observo um vulto rápido na
floresta, pela visão periférica, e um uivo alto e agourento corta o ar, enquanto um
arrepio esquisito percorre o meu corpo. Se minha mãe nota o animal, nada diz.
Seguimos adiante, observando a cidadezinha de arquitetura colonial e as casas
multicoloridas construídas nas encostas das montanhas, cercadas de florestas por
todos os lados. No alto, em pontos extremos, algumas mansões se erguem, como
se vigiassem a cidade, como em um conto de fadas ou num desses thrillers aonde
criaturas bizarras perseguem as pessoas que ousam sair após o anoitecer.
Um pensamento incrível para um início de noite, Moon.
Parabéns, nota zero.
Graças aos inúmeros avisos da minha mãe, não estranho quando paramos
diante do sobrado amarelo, no qual a porta vermelho-berrante chama atenção de
longe. Aparentemente, é uma marca registrada da minha família materna, a qual
tia Lin decidiu manter — a casa charmosa fica no centro da cidade, de frente para
uma espécie de rotatória.
Um pouco mais à frente, uma funcionária da pequena cafeteria recolhe os
bancos de madeira, empilhando-os sobre as mesas de metal por ali, sob o olhar
vigilante de uma idosa sentada em sua varanda, enquanto a moça parece se
preparar para encerrar as atividades antes das oito horas da noite. Fato que,
segundo minha mãe, é muito comum por aqui.
Simpática, como sempre, mamãe desce do carro e cumprimenta a mulher,
que poderia muito bem ser uma boneca de cera pelo modo rígido com que
responde e, como se tivéssemos combinado o horário, a porta se abre e uma versão
mais tradicional da minha mãe abre os braços para recebê-la. Assisto de longe o
momento de reencontro entre as irmãs, só me aproximando quando tia Lin estende
o braço em minha direção e me puxa para um abraço triplo.
— Tenho certeza de que dona Olga está feliz pela riqueza de detalhes dessa
cena emocionante — a voz debochada vem de algum lugar às costas da minha tia
— A cidade falará disso pelos próximos cinco dias, no mínimo.
— Ignorem a Vicky. — Tia Lin aponta para a garota bonita de cabelos
loiros e olhos castanhos que me cumprimenta com um aceno de mão, onde unhas
grandes e pontiagudas brilham em vermelho, mesmo com a neblina densa que
parece prestes a engolir tudo ali do lado de fora.
Nada de brigas com ela. Entendido.
— Vamos entrar! Venham! — Minha tia puxa minha mãe para dentro de
casa, as duas conversando animadas e ao mesmo tempo, nos fazendo rir da
empolgação adolescente das duas.
— Elas ainda vão ficar muito tempo nessa lua de mel, eu acho. — Vicky
aponta para as irmãs paradas diante da janela da cozinha, enquanto ainda estamos
do lado de fora. — Vem, eu te ajudo a pegar suas coisas. — A garota loira, usando
um conjunto colorido de frio, caminha até mim, voltando a olhar em direção às
duas mulheres conversando animadamente. — Elas merecem um tempo juntas.
— Eu não poderia concordar mais. — Sigo-a até o carro e abro a porta
para pegar a chave eletrônica no console, entre os bancos, esquecida ali graças à
cabeça de vento de dona Marianne, e abro o porta-malas.
A mulher de cera, do outro lado da rua, segue nos observando de longe
com a mesma expressão impassível em seu rosto marcado pelas linhas do tempo, e
noto quando ela retorce a boca levemente quando Victoria a cumprimenta com
uma alegria fingida. Se foi uma tentativa de sorriso ou efeito de um acúmulo de
gases, eu não saberia dizer.
Curiosa, observo as casas enfileiradas ao longo da rua e preciso admitir
que o lugar é bem charmoso. Enquanto tiramos todas as minhas caixas e malas de
dentro do porta-malas espaçoso, alguns carros passam por nós, observando tudo
com atenção, quase tão interessados no que fazemos quanto a idosa, que segue nos
acompanhando.
— Vou levando isso lá para dentro — minha prima declara, empilhando
uma caixa menor sobre todas as outras — Já volto.
O ronco alto e potente de uma moto soa em algum lugar perto, mas é
impossível ver qualquer coisa agora, por causa da névoa espessa que cobre o lugar.
Quando pego a última mala, o porta-malas se fecha e eu me desequilibro um
pouco devido ao movimento inesperado que quase se torna um acidente feio, em
que sou atropelada pelo sujeito da moto barulhenta, que xinga alto, antes de
acelerar pela rua e desaparecer na névoa que já invade quase que totalmente o
lugar, conferindo-lhe um ar sombrio, digno de filmes de terror.
— Meu Deus! Que babaca de merda! — reclamo, com o coração quase
saindo pela boca.
— Olhem para ela! Mal chegou e já está fazendo amizade? — Vicky, que
acaba de levar uma remessa grande de caixas, está de volta e puxa uma das malas
de rodinha atrás de si, enquanto tenta ver o idiota que acaba de passar —
Adeusinho, dona Olga! Você deveria entrar!
Olho para a idosa, agora já de pé; seus olhos muito azuis focados em meu
rosto quando a voz baixa, mas afiada, declara, de forma quase agourenta:
— Como eu sabia que aconteceria. Tenha cuidado, garota Lawson. — Olha
na direção em que o idiota mal-educado desapareceu, e então, aponta para a
mariposa feiosa que acabou de pousar em meu ombro, mas voa antes que eu tenha
um chilique. Eca. — Um mau presságio ou apenas mudanças à vista? — pondera,
enquanto o bicho voa ao redor do poste de luz.
— Não ligue para ela — Vicky dá de ombros, também olhando na direção
do inseto — A Sra. Olga Holloway considera ter uma gêmea como mau agouro. É
apenas uma das muitas superstições do povo daqui, você logo se acostuma.
Assim espero.
Olho em volta, assimilando o lugar novo mais uma vez, antes de entrar.
Toda essa neblina deixa tudo um pouco mais assustador. Ainda mais quando tenho
a impressão de avistar uma luz do outro lado da névoa pesada. Credo. Dispenso o
pensamento e sigo minha prima para o interior quente de sua casa. Agora, minha
nova residência pelos próximos anos.
E que Deus me ajude com isso.
Que dia do cão!
Mais uma reunião inútil com o prefeito idiota da cidade e todo o meu bom
humor — se é que posso chamar a ausência da vontade de socar alguém, dessa
forma — vai para o ralo.
Chad Graymane “pai” é um pé no saco, e ocupa oficialmente um espaço
cativo na lista das pessoas a quem eu pensaria duas vezes antes de ajudar, assim
como o meu amado pai que, hoje, um pouco antes desse compromisso dos
infernos, decidiu me pressionar mais um pouco para que eu assuma de vez o
comando do nosso povo. O prefeito parece concordar com ele e, agora, cismou de
ficar no meu pé.
Ainda mais depois dos ataques que começaram a acontecer nos arredores
da cidade nos últimos meses: na última semana, um campista desapareceu em um
trecho de floresta e não encontramos nem sinal do idiota perdido, além da sua
mochila. Dobrei a vigilância nos limites da cidade, mas isso não parecia ser o
suficiente para o homem na faixa dos cinquenta anos que me encarava detrás da
mesa de madeira, onde um porta-retrato repousa com uma foto sua com o Babaca
II, seu adorado filhinho, ao seu lado.
Não bastava apenas uma pedra no meu sapato, é claro.
— Deem um jeito nisso — ordena, baforando a fumaça fedorenta de seu
cigarro. — É o mínimo.
— Temos uma trégua entre nós e o compromisso com a cidade —
relembro ao homem, observando quando seus lábios formam uma linha fina. —
Mas não trabalhamos para vocês.
Quando a reunião finalmente acaba, não fico mais tempo do que o
necessário na grande mansão Graymane. Ainda assim, quando atravesso os
portões metálicos, é como se uma tonelada saísse dos meus ombros. Certeza de
que os fantasmas dos malditos antepassados do prefeito ficam prestes a implodir o
lugar, sempre que sou obrigado a entrar ali.
E já na rua, desfrutando do ar fresco da tarde, consigo relaxar, me sentindo
um pouco mais leve enquanto manobro minha moto pelas vias estreitas e já
desertas do centro da cidade, a caminho de casa, onde os idiotas que moram
comigo decidiram fazer uma festinha para celebrar o início das aulas. Logo, como
o líder que sou, tive que me virar e lidar com as merdas de pessoas adultas e
responsáveis, ao invés de estar bebendo e aliviando a minha tensão em um corpo
macio e quente.
Algo que se torna cada vez mais difícil para mim, infelizmente.
E é justamente nessa hora, em meio ao caos dentro da minha cabeça, que
preciso me desviar rapidamente da garota que se desequilibra ao tirar uma mala
quase de seu tamanho do porta-malas do carro ocupando grande parte da rua
estreita.
Sem noção pra caralho.
Ainda estou perto demais para ouvi-la me xingar de volta e franzir o rosto
em uma carranca raivosa, enquanto minhas mãos estremecem pelo estresse
acumulado após esse dia de merda. Praguejo mentalmente, mais uma vez, a garota
de cabelos escuros, presos em um rabo de cavalo alto, que espalha seu perfume
cítrico inebriante por todo o lugar.
Parado em meio à neblina espessa, respiro fundo, controlando meu
temperamento para não voltar e dar a ela uma aula de educação e bom senso, e
aproveitar um pouco mais do cheiro delicioso que ela exala.
Ser responsável é uma merda, penso, quando acelero a moto e a sinto
vibrar sob mim, me preparando para dar um susto na forasteira, mas não o faço.
Porque vejo o exato momento em que Olga Holloway, aquela bruxa velha, avisa a
ela que deveria tomar cuidado. Seja lá o que aquela velha viu, algo está para
acontecer, e já conheço o suficiente dessa vida para saber que as premonições da
mulher de cabelos acinzentados, escondidos sob o gorro, sempre se tornam
verdadeiras.
Não importa o quanto desejemos lutar. Espero que não seja nada que
envolva seu fim prematuro, seria um desperdício.
A porta vermelha se fecha com um baque seco no clássico sobrado
amarelo e eu acelero a caminho de casa, onde escolherei alguém que me ajude a
espairecer.
Tempo mal utilizado do caralho.
Indócil, e ainda com a imagem do rosto indignado da forasteira na
memória, subo a colina em direção à mansão secular que pertence à minha família.
Atravesso os portões metálicos com o “A” bordado ao centro e ignoro a
dezena de carros estacionada perto dos jardins e as pessoas aglomeradas diante da
porta principal da casa, preferindo me manter incógnito por um tempo.
Paro minha moto na garagem, aos fundos da propriedade — um celeiro
antigo que reformei para esse fim — antes de cruzar o terreno e entrar pelos
fundos na casa, aonde a festa parece estar rolando há algum tempo, se
considerarmos o idiota vomitando na horta de Eli.
— O capitão do time resolveu nos agraciar com sua presença? — Jas, que
por algum motivo está abraçado com uma garota morena de olhos ferozes, se
aproxima de mim, me entregando uma long neck.
— Foi uma noite longa do caralho — tomo um gole da bebida gelada e
logo, Viv, uma das nossas garotas, me agarra por trás, deslizando as unhas longas
pelo meu abdômen.
— O de sempre? — Jasper, com seu cabelo castanho atrapalhado e olhos
amendoados, meu segundo em comando e melhor amigo, questiona, ignorando-a
enquanto seus olhos percorrem a festa, garantindo que as coisas não saiam de
controle. Noto o momento em que franze o nariz, eu também mal consigo tolerar o
fedor daquela fumaça impregnado em mim. — Você tá fedendo, cara.
— Normal. — Me viro para olhar a ruiva que desliza uma das mãos sobre
a frente do meu jeans, enquanto seus lábios tocam os meus em um beijo bruto. —
Viv, sabe que isso não vai mais acontecer.
— Azar o seu. — Faz um beicinho desalentado. — Eu seria a escolha certa
— claro que ela diria isso. — Uma rainha digna.
Mas a conheço o bastante para saber que está longe de ser qualquer coisa
minimamente certa. Intransigente, como sempre, ela pega a garrafa da minha mão
e bebe todo o conteúdo num fôlego só, antes de se afastar, rebolando sua bunda
gostosa para longe de nós. Melhor assim.
— Talvez não aconteça nada, sabe? — Jasper, já vestindo o casaco do
Warrior Wolves, o aclamado time de futebol americano de Emberwood, pondera.
— Não seria a primeira vez que ficaria com ela.
— Ou talvez aconteça. — É uma das muitas merdas de ser quem eu sou, e
com toda essa cobrança sobre mim, não posso arriscar. — Jas, temos gente nova
na cidade.
Meu amigo ergue o rosto e me encara, alerta e curioso. Forasteiros sempre
são um problema, ainda mais quando alguns turistas ainda estão desaparecidos e
outros dois foram encontrados sem vida. Estraçalhados.
— Uma garota. — de repente, cada detalhe visto mais cedo é lembrado à
perfeição. Desde as botas escuras, na altura dos joelhos, o maldito casaco
vermelho, os cabelos escuros e os olhos acinzentados no rosto marcante. — Na
casa das Miller.
— Vicky tem visita? — O babaca vive se arrastando atrás da garota loira.
O que ele pretende com isso? Não sei dizer. As chances de dar certo são mínimas,
para não dizer inexistentes, mas não é como se ele pudesse evitar.
— Quero saber tudo sobre ela e quanto tempo ficará por aqui — corto o
assunto. — Agora, vou procurar um modo de me distrair.
— Divirta-se. — Jasper sorri, porém não demora muito para ele passar
rapidamente por mim, até um dos cantos escuros da sala.
Mack, um dos nossos melhores jogadores, parece estar ultrapassando
alguns limites com uma garota, ao mesmo tempo em que Eli, outro integrante da
linha ofensiva do time, sentado ao seu lado, parece bêbado demais para estar de
acordo com o que acontece ali. As maravilhas do ataque do Warrior Wolves.
— Mack, caralho! Você prometeu se controlar! — Jasper cruza o espaço
amplo e logo está tentando enfiar um pouco de juízo na cabeça de Mack, o
armário humano de pele negra, usando um lenço amarrado na cabeça sob o boné
escuro e que beija de forma muito sensual a garota pequena de cabelos escuros e
curtos, já despida da cintura para cima e sentada no colo de Eli; o idiota de cabelos
claros com cara de anjo, que observa a tudo sem parecer estar realmente “vendo”.
Não consigo evitar a gargalhada ao assistir Mack se defendendo de Jasper, apesar
de ter o dobro de seu tamanho. — Vão procurar a porra de um quarto!
Não fico para ver se atenderam a exigência de Jas, já que decido cumprir
meu plano e saio pelo salão espaçoso onde a festa segue a todo vapor em busca de
alguma distração. Algumas pessoas dançando ao som da música eletrônica que
domina o lugar, enquanto outras bebem e conversam, espalhadas por todo o local.
A maioria delas, bêbada demais para prestar atenção em mim, ou
preocupadas em se dar bem antes que a festa acabe. Ainda vestindo minha jaqueta
preta de sempre, ando pelo lugar à caça de alguém que não ofereça qualquer
perigo à minha condição recente e, na pista de dança, não demora muito para que
uma pessoa se aproxime, e menos tempo ainda para que eu conduza a garota de
longos cabelos castanhos, usando um vestido preto colado em suas curvas, para os
fundos da casa.
— Não deveríamos ficar aqui. — Os olhos esverdeados dela encaram a
floresta com receio. — Já está tarde.
— Acredite, eu sou o único risco nesse momento. — Ela sorri e bate de
leve em meu ombro, ainda encarando a escuridão que engole as árvores, sem saber
que não estou mentindo.
Nem de longe.
Enquanto desço os dentes pelo seu pescoço e enfio a mão dentro da renda
de sua lingerie, me aproveitando das facilidades de seu vestido, ela geme baixinho
contra a parede, mas há algo em minha cabeça que não me permite relaxar. Um
alerta ecoando sem parar. Bem, pelo menos até que ela desça a boca pelo meu
peito e então se ajoelhe à minha frente, abrindo a minha calça jeans.
Seja lá o que for. Pode esperar.
Uma caixa de incensos.
Debaixo do meu travesseiro, está a porcaria de uma caixa de incensos.
Minha mãe realmente precisa ser estudada.
Quando nos despedimos, quatro dias depois de chegarmos aqui, Marianne
me abraçou com força e lágrimas nos olhos, garantindo que, caso eu mude de
ideia, poderia ir morar com eles na capital, sem qualquer problema.
Mas disso, eu já sabia. A novidade ficou por conta das recomendações
estranhas. “Não saia de casa depois do horário e tenha cuidado com a floresta”.
O que só faz a ideia de que acabei vindo parar em um desses filmes dirigidos por
M. Night Shyamalan ganhar força e se tornar cada vez mais plausível. Começo a
pensar se, em algum ponto dessa floresta, existe uma vila cheia de gente esquisita,
mas espanto o pensamento. Não é como se eu precisasse de muito mais coisa para
me deixar cismada.
E, então, a surpresa final:
— Deixei um presente para você debaixo do seu travesseiro — ela disse,
com os olhos verdes brilhando, antes de me abraçar mais uma vez sob o olhar
vigilante da velhinha fofoqueira — Ah, meu bebê! Eu vou sentir tanto a sua falta!
Tem certeza de que não quer mesmo vir comigo?
É, por mais que eu tente, no alto da minha maturidade, não demonstrar,
vou realmente sentir falta dessa maluca que me abraça com força e se despede mil
vezes, antes de entrar no carro e partir rumo à viagem de três horas até o aeroporto
em Montbianc.
Já totalmente instalada em meu novo quarto; o antigo sótão da casa de tia
Lin se transformou rapidamente em meu refúgio seguro e charmoso, com o teto
rebaixado em algumas partes; brinco com o “filtro dos sonhos” que minha mãe
deixou pendurado diante da janela emperrada e sorrio para a caixa de incensos que
promete purificar a energia de qualquer lugar.
Abro um pouco a cortina escura que compramos ontem, em uma loja perto
dali, e logo vejo uma figura vestida de preto, ainda de capacete, parada do outro
lado da rua, diante da minha casa. Ele ergue um pouco a cabeça e, então, quando
percebe que foi flagrado, dá partida na moto, acelerando rumo à névoa que desce
no início de noite, enquanto dona Olga abre um sorrisinho esquisito, antes de focar
os olhos azuis e leitosos em minha janela.
Credo. Velhinha assustadora dos infernos.
— Eu, hein! — Fecho a cortina e abro a caixinha colorida, acendendo um
dos incensos em seguida, espalhando a fragrância adocicada por todo o lugar.
Melhor prevenir do que remediar.
Faltam apenas dois dias para o início das aulas. Dois dias e eu voltarei para
a normalidade dos meus livros e minha vida sossegada, ao invés de ser arrastada
através das incontáveis ruas da cidade, pela garota loira que se autointitulou minha
guia turística. Apesar do nosso histórico envolver muitos beliscões, mordidas,
gritos e ameaças de morte, Vicky tem se mostrado uma amiga animada e gentil,
além de ser a única por perto, já que acabei deixando toda a minha vida e amigos
em Montzaffir.
Não que fossem muitos, já que eu nunca fui uma pessoa super
comunicativa, mas sinto falta de Andy todos os dias, mesmo que aquele salafrário
não tenha respondido nenhuma das minhas mensagens desde que cheguei aqui.
Provavelmente, sua mãe deve ter investido, mais uma vez, na desintoxicação
tecnológica durante as férias familiares. A última tentativa, quase levou o Sr.
Thompson, pai de Andy, ao hospital, fato que, segundo a Sra. Thompson, apenas
serviu para mostrar que era algo absolutamente necessário, já que a tecnologia está
viciando as pessoas e transformando-as em robôs.
O que não deixa de ter um fundo de verdade, no fim das contas.
— Terra para Harper Moon! — Vicky estala os dedos delicados diante do
meu rosto enquanto eu viajava na maionese.
— Pelo amor de Deus, Vicky! — digo à garota animada e saltitante, ao sair
da cafeteria estilosa onde acabamos de comer um lanche reforçado, ao invés de
almoçar — Eu já disse que não vou! É longe e aquela moça disse que...
— Está escurecendo mais cedo esses dias — ela imita a voz anasalada da
moça gentil, com deboche — Eu nunca achei que você fosse medrosa, Harper.
Nem eu.
Provavelmente é a falta de um sono de qualidade, por ter a impressão de
ouvir passos pesados do lado de fora da casa durante a madrugada e, talvez, todas
as superstições das pessoas desse lugar estejam entrando na minha cabeça,
surpreendendo um total de zero pessoas. Eu sou realmente suscetível a acreditar
nas mais diversas teorias da conspiração, e admito já ter passado noites em claro,
temendo um ataque alienígena, sem qualquer outra prova, senão um vídeo mal
editado de alguma rede social.
No início, eu confesso que achei engraçado, e um pouco esquisito, a coisa
dos avisos sempre afixados sobre as portas da maioria dos lugares; sobre não
entrar na floresta ou o fato de os estabelecimentos fecharem bem cedo. Além
disso, ainda tem os olhares enviesados que recebo por onde passo, coisa que
considerei um pouco normal, por ser uma menina nova em uma cidade pequena,
mas já estava ficando irritada com a atenção.
— Bem, não pode me culpar por estar cismada. — Dou de ombros. — Isso
acontece quando um idoso cospe no chão, sempre que passamos por ele — aponto
na direção do homem sentado nos degraus de uma casa antiga, que nos segue com
um olhar bem desconfiado, prestes a cuspir de novo, feito uma lhama.
— O velho Grosby é bem estranho mesmo — ela concorda. —, mas
inofensivo. E são apenas quatro da tarde, chegaremos em casa às seis em ponto.
Eu juro. Falta tão pouco!
Olho ao redor e realmente, o sol ainda brilha, mesmo que fraco por causa
das milhares de árvores que cercam esse lugar, deixando tudo meio úmido e
esverdeado.
“Eu posso mofar a qualquer momento” — garanti à minha mãe, noite
passada, ouvindo-a gargalhar do meu exagero, ainda de biquíni, tomando um drink
no hotel de luxo em que estão hospedados, no Caribe; enquanto faço cosplay
daquela adolescente embolorada vivendo numa cidade com nome de talher, nessa
merda de lugar sombrio.
— Tá fazendo aquela cara de novo — Vicky, que agora me empurra pela
pequena ladeira que estamos subindo, diz, meio ofegante — Para sua sorte,
estamos quase lá.
Quase lá. Perdi a conta de quantas vezes ouvi isso nos últimos dias,
durante nossas “explorações” pela cidade. Talvez, eu devesse ter escolhido nossas
batalhas de beliscões e mordidas de antes e me mantido no conforto do meu
quarto. Eu não incomodaria ninguém, já que tia Lin trabalhava o dia todo no
hospital da cidade — chocante, eu sei, mas Silent Grove tem um sistema
hospitalar incrível e, essa foi uma das coisas que me chamou a atenção, fazendo
com que viesse para cá.
Enquanto subimos o morro, mais olhares pesam sobre mim. Alguns
curiosos, outros muito desconfiados e são esses que me seguem enquanto me
arrasto ao lado da doce e primaveril Victoria, que fala sem parar sobre a tal festa
antes do início das aulas, a qual serei obrigada a comparecer, é claro.
— E essa é a mansão Graymane. — Aponta para os portões de ferro largos
e típicos das mansões que a gente vê na televisão de vez em quando. — Foi
construída por um dos fundadores da cidade, Roger Graymane, um homem
riquíssimo que, segundo contam os registros, era descendente dos oficiais que
participavam das Cruzadas e tudo o mais.
Observo a casa aos fundos, pintada de cores claras e cercada de flores e
jardins bem cuidados. Enquanto presto atenção aos detalhes do lugar, um carro
esportivo se aproxima da entrada, levantando um pouco de poeira e terra quando
acelera. Assim como minha prima, saio do caminho para que o veículo passe,
porém, após os portões se fecharem, ele não se move, parado à nossa frente, como
se esperasse por alguma coisa.
Encaro o meu reflexo ao lado de Vicky na janela espelhada — pensando,
de forma totalmente aleatória, em como somos diferentes; já que, ao contrário do
raiozinho de sol ao meu lado, vestindo um sobretudo off White, estou usando um
casaco preto e gorro da mesma cor — quando a essa se abre, revelando um cara de
vinte e poucos anos com seus fios claros e uma expressão simpática no rosto
bonito.
— Esperando por mim, Vicky? — Apesar de falar com ela, os olhos
curiosos e muito claros estão focados em mim.
— Somente nos seus sonhos, docinho — irônica, ela devolve a
provocação. — Minha prima precisa conhecer a cidade antes das aulas
começarem, não é? — Aponta para mim. — Harper, esse é Chad Graymane, o
capitão do time de polo da Emberwood.
Bem, talvez eu já tenha ouvido falar deles em algum momento. Pouco. As
estrelas da universidade mesmo são do time de futebol americano, e a fama fica
mais concentrada nos jogadores mal-encarados, comandados pelo capitão do time,
que sempre parece prestes a arrancar a cabeça de alguém. Sim, eu pesquisei tudo
sobre a universidade e posso ter visto uma foto ou outra do tal time.
— Seja bem-vinda, Harper — cumprimenta, tirando as poucas imagens do
time de ouro da minha mente — Pretende ficar muito tempo na cidade?
Antes que eu possa pensar em responder, ouvimos o ronco barulhento de
uma moto às nossas costas, e a expressão de Chad se fecha um pouco, os olhos
focados no fim da rua, onde o motoqueiro, que se parece muito com o que quase
me atropelou quando cheguei, está. Um arrepio percorre meu corpo e respiro
fundo, prestes a falar, quando Vicky assume a dianteira, me poupando do
momento constrangedor.
— Muito tempo, já que transferiu seu curso para cá, não é? — comenta,
ignorando totalmente o cavaleiro do Apocalipse sobre rodas, que acelera a moto
mais uma vez. — Quem sabe, ela não volta a estabelecer as raízes das Lawson por
aqui? O hospital sempre precisa de mais médicos.
Victoria fala demais.
— Eu não sabia que havia outra Lawson, fora a sua mãe, Vicky. — Os
olhos muito azuis permanecem focados em mim, com uma curiosidade muito mal
disfarçada — Enfim, espero que goste da cidade, Harper. — O sorriso não chega
aos seus olhos — Preciso ir agora, mas nos vemos por aí, tenho certeza.
— Obrigada — respondo, ignorando o ruído irritante.
Enquanto ele arranca o carro esportivo branco, a moto escura sobe o morro
e cruza à sua frente, fazendo-o travar o maxilar, antes de subir os vidros e seguir
caminho. Estranho; como tudo aqui.
— Jasper — ouço-a ronronar feito um gato para o cara alto e forte que tira
o capacete, revelando o cabelo castanho despenteado. — Gosta mesmo do perigo,
não é?
— Qual seria o sentido da minha vida, senão irritar o doce Chad? — Abre
um sorriso largo, sem deixar de olhar para a garota ao meu lado. — Não vou
ganhar o meu abraço, Victoria?
— Não sei se merece. — Faz um beicinho teimoso. E meu Deus, o modo
como eles se olham carrega uma intensidade quase constrangedora. Estou prestes
a me virar de costas e dar alguma privacidade a eles, quando ela dispara: — É,
pensando bem, eu sei que não. Lamento, Jas, vai ter que ficar longe de mim.
— Sabe que é apenas questão de tempo, até que eu volte a merecê-lo, não
é? — Abre um sorriso convencido, mas triste. — Não vai me apresentar à sua...
amiga?
Ela cruza os braços e recua um passo, enlaçando o braço no meu, me puxa
de volta para o seu lado sob o olhar do cara à nossa frente.
— Harper, esse é Jasper Hill. É mais um dos atletas da faculdade. — Seus
olhos amendoados buscam os meus. — Ele sabe exatamente quem você é, mas
queria ser apresentado, por isso está aqui. — O sujeito forte revira os olhos, mas
não nega. — Ela não é apenas minha amiga, é minha prima. E sugiro que fique
longe dela.
Ele sorri, os olhos de um tom meio dourado me observam atentos, como se
me estudassem.
— Se ela for ficar perto de você, será impossível. — Vicky bufa.
Considerando que ela é sempre gentil com todo mundo, ele realmente fez algo de
errado. Seus olhos focam a rua à nossa frente e, como se visse alguma coisa no
horizonte, algo que seria impossível, por causa da maldita névoa, ele suspira,
estacionando a moto, apoiando o capacete no cotovelo quando desce do veículo.
— É hora de voltar para casa, meninas.
— Não está convidado a se juntar a nós, Jas. Lamento — sua voz sai um
pouco esganiçada, mesmo quando ele começa a andar conosco, nos conduzindo de
volta à rua pela qual viemos. — Além disso, nós ainda vamos...
— Amanhã, Victoria — e sua voz soa como uma ordem. — Agora, eu vou
desfrutar de sua companhia até sua casa, para garantir que cheguem bem.
— Não precisamos disso — me ouço dizer. — Vicky, para onde iríamos
depois daqui? — aponto para a mansão às nossas costas.
— Acredite, vocês estão indo para casa — seu tom não deixa dúvidas.
— Não, acredite em mim — respondo, com as mãos na cintura — Não
faço o tipo obediente, então... — Minha atenção toda em minha prima, que sorri
ao lado do cara que parece estar se divertindo com a minha reação. — Aonde
estávamos indo, Vicky?
Mais uma troca de olhares cheia de significados, e então, minha prima
suspira.
— Harper, nós podemos encerrar amanhã, ok? Realmente demoramos
demais e a neblina já está tomando conta de tudo. Não vai dar para ver nada... —
Dá de ombros, enquanto aponta o fim da rua, já totalmente embaçado.
Hora maravilhosa para isso acontecer. O som de novas motos, se
movendo na parte que não conseguimos enxergar, aciona um alarme em meu
cérebro.
— Você faz parte de um motoclube ou algo assim? Quando não está
disputando a bola sobre um cavalo, claro — questiono, finalmente seguindo minha
prima e ele, enquanto descemos a rua.
O velho faz o sinal da cruz diante do rosto e fecha a janela rapidamente
quando Jasper lança um olhar sério em sua direção, mas não cospe. Ora, ora.
— Algo assim — responde vagamente e então, complementa — Não jogo
no time do Graymane mais novo, gatinha. Eu sou o wide receiver dos Warrior
Wolves.
Ah. Uma das estrelas do famoso time de futebol americano da
Emberwood. Os roncos das motos aumentam e a dona de uma pequena lojinha de
bugigangas fecha a porta com força, assim que nos aproximamos.
Esquisitice, nós vemos por aqui.
— Acho que o que Harper quer saber é se foi você no outro dia. Ela quase
foi atropelada enquanto tirava a mala do carro. — Claro que ela decifraria a minha
intenção, ao contrário do jogador que caminha ao seu lado com uma postura
relaxada.
— Se tivesse sido eu, você saberia. — Abre um sorriso malicioso e me
lança uma piscadela que o faz ser golpeado pela mão pesada da loira ao seu lado.
— Mas fiquei sabendo do que rolou. E tenho quase certeza de que meu amigo
lamenta.
— Jura? — Reviro os olhos e aperto mais o casaco em meu corpo quando
um vento gelado nos atinge com tudo ao virarmos a esquina. — Porque ele não me
pareceu tão preocupado, enquanto me xingava.
O idiota dá uma gargalhada alta e tira sua jaqueta de couro, colocando-a
sobre os ombros encolhidos de Vicky. Em seguida, seus olhos buscam os meus em
um pedido silencioso de desculpas, por não ter me dispendido a mesma gentileza.
Apenas com uma camisa escura de mangas compridas, enquanto me encolho no
casaco pesado, noto que ele sequer estremece; o que é um tanto chocante, em vista
do frio que se agravou de forma inexplicável. Apenas enfia as mãos nos bolsos da
calça jeans e segue caminhando conosco pelas ruas desertas, como se apenas nós
tivéssemos perdido o toque de recolher.
— Quando foi que essa cidade se tornou fantasma? — Observo as casas
coloridas ao redor, com suas portas fechadas.
— É sempre assim quando a temperatura cai rapidamente — o jogador
explica, apontando para meu corpo encolhido, apesar de ele estar vestindo apenas
uma camisa fina. Jasper acompanha o meu olhar e estica o tecido. — É térmica.
— Além disso, é a última noite de lua cheia — Vicky acrescenta, como se
aquilo explicasse tudo. — Os lobos costumam ficar mais agitados, não é?
— É o que dizem. — Ele dá de ombros.
Não demora muito, chegamos ao velho sobrado da nossa família e, sem
esperar, me despeço, na intenção de dar alguma privacidade aos dois teimosos que
trocaram olharam melosos o caminho todo.
— Harper? — ele chama, assim que enfio a chave no buraco da fechadura.
Nem mesmo a velhota fofoqueira está do lado de fora hoje, reparo. — Te vejo na
festa amanhã?
— Não — respondo rapidamente, mas não tanto quanto gostaria, já que
Vicky confirma a minha presença e afirma que iremos juntas.
Deixo minha chave no pequeno aparador de madeira junto à porta, tiro
meu casaco, colocando-o no armário ao lado e passo pela janela, a caminho da
cozinha em busca de água. Fiz mais exercícios hoje do que nos últimos dois
meses.
Do lado de fora, Vicky devolve o casaco para Jasper, que olha para ela com
um ar desesperado e um pouco triste, antes que ela se vire e entre em casa. No seu
rosto, a mesma expressão desolada.
— Juro que não estava espiando, eu só... — tento me justificar, mas ela
apenas dá um sorriso triste, deixando uma lágrima escorrer pelo rosto bonito. —
Vicky? Está tudo bem? Se aquele jogadorzinho tiver feito alguma coisa, eu...
Ela apenas nega, deixa seu casaco em um dos cabides e se junta a mim.
— É complicado... — dá de ombros. — Mas não quero falar sobre isso
agora. — Ela sacode a cabeça, voltando ao mood 220 volts de sempre. — Que tal
escolhermos juntas nossos looks para amanhã? — Faço uma careta imediatamente.
— Precisamos preparar o jantar — aviso, enfiando a cara na geladeira,
dispensando todas as comidas prontas que tia Lin deixou.
— Isso levantaria o meu ânimo, sabe? — E lá está a carinha triste de antes.
— Eu realmente preciso de algo que me distraia e...
Reviro os olhos e jogo o pano atoalhado em minhas mãos na chantagista
de meia tigela.
— Vamos logo com isso, sua terrível! — Ela gargalha e saltita no lugar,
comemorando. — Eu realmente preferia quando a gente brigava.
— Pois eu não trocaria essa nova fase por nada nesse mundo! — declara,
fazendo o meu coração se aquecer de forma instantânea, mesmo que eu tenha que
passar as próximas horas tirando e vestindo roupas, sob as ordens da general do
exército da moda.
Tudo certo por aqui.
Por enquanto.
Isso só pode estar errado.
Ontem, um frio terrível de doer os ossos, e hoje, um sol que não hesita
sequer um segundinho em mostrar a cara. Ele deveria ter vergonha, ainda mais
depois dos uivos e dos sons de passos apressados que me mantiveram acordada
durante quase a madrugada inteira. Custava muito me compensar com uma
chuvinha, daquelas bem chatas, que mantém todo mundo em casa o dia todo?
Um sonho.
Ao invés disso, depois de o corpo fazer download da alma, desci, ainda de
pijama, para tomar o café da manhã, já encontrando tia Lin pronta para mais um
plantão e uma Vicky animada com uma máscara verde e gosmenta no rosto,
falando sem parar sobre os benefícios da máscara de pepino para a pele, ao que eu
respondi apenas roubando uma das rodelas mal partidas sobre o prato e a enfiando
na boca.
Apesar dos protestos da minha prima, tia Lin gargalhou e acabou roubando
uma para si também. Claro que aquela loira maluca sabe bem o que fazer para
acabar com a minha alegria. E é por isso que estou aqui, com a cara totalmente
imersa na meleca verde, enquanto Vicky tenta me convencer a vestir um vestido
seu, que me serviria apenas como uma blusa, para usar na tal festa que começa no
início da tarde.
— Qual é o problema da noite, por aqui? — eu tentei perguntar isso à
minha mãe e à tia Lin, mas as duas deram respostas evasivas e sem muito nexo.
Faltava perguntar à Barbie esteticista à minha frente.
— Fora o frio e a neblina intensa, dessa época do ano? — Eu acho que ela
ergue uma sobrancelha por baixo de toda a meleca, mas posso estar errada. Vicky
parece perceber que não vou deixar passar, então suspira, antes de falar: — Olha,
minha mãe pediu para eu não comentar, mas, lá vai: — Com os cabelos bem
escovados protegidos por uma tiara de tecido, ela se senta em sua cama ao meu
lado, baixando a voz. — Alguns turistas desapareceram na floresta há algumas
semanas. Há lobos na região e a explicação mais plausível é que, como não
conheciam o lugar, eles tenham se perdido na névoa e acabaram...
— Virando a janta de alguma matilha — complemento e ela concorda. —
Eu... Por acaso, ouviu alguma coisa essa noite?
— Credo! Deus me livre! — Ela se benze rapidamente. — Eu durmo feito
uma pedra. Por quê? Você ouviu alguma coisa?
— Não. — Talvez seja só coisa da minha cabeça. Um medo bobo,
motivado pela floresta densa que cerca tudo e todas as crendices sobre sair à noite,
e tudo o mais. Ainda estou me adaptando, certo? — Vicky, essa festa de hoje, eu
acho...
— Que será incrível, é claro! — afirma, sem deixar qualquer margem para
argumentação. Não é à toa que ela é uma das melhores alunas de sua turma de
direito. — É uma oportunidade ótima para fazer novas amizades e já chegar à
universidade quebrando aquele gelo inicial.
Ergo a blusa preta transparente que ela acaba de lançar em minha direção e
pretende me forçar a usar, e faço uma careta.
— Vai dar tudo certo. Acredite.
Eu devia ter ouvido meus instintos, ou até mesmo a fala agourenta e cheia
de bad vibes da idosa que parece nos vigiar o dia todo de sua cadeira de balanço,
diante da janela da sua casa.
“Tome cuidado com suas escolhas. Elas podem alterar o curso de tudo.”
— ela disse para mim, enquanto Vicky trancava a porta do sobrado e vinha
saltitante em minha direção.
— Tenha uma tarde linda, Sra. Holloway! — minha prima desejou, antes
de me arrastar atrás de si, ignorando os resmungos da mulher que ficava para trás.
Porém, nesse momento, enquanto observo a colina íngreme que teremos
que escalar de salto alto, só consigo pensar que eu deveria ter ouvido seu alerta.
Fora de cogitação.
— Infelizmente, não — é o que digo à Vicky, que tenta me convencer, há
pelo menos quinze minutos, de que não é tão ruim quanto parece.
— Nós fomos até a Mansão Graymane! — é seu argumento da vez. —
Essa colina é apenas um... — Ela desvia os olhos para a propriedade ao longe. —
pouco mais distante.
— Victoria! — Aponto com o braço para a porcaria da montanha que ela
pretende escalar. — Não vou correr o risco de cair, quebrar o pescoço e morrer, só
por causa de uma festa idiota, para a qual eu nem queria vir, pra começo de
conversa!
Estou tão focada em meu discurso que demoro um pouco para perceber
que ela já não olha mais para mim e a expressão presunçosa em seu rosto, nesse
momento, é assustadora. A loira, vestindo calça preta justa e um cropped rosa pink
de mangas compridas sob o casaco da mesma cor, é a imagem do próprio
convencimento e isso não é bom para mim. Não mesmo.
— Perdidas? — O ronco do motor do carro, que eu nem tinha notado
antes, se aproxima mais de nós e me faz pular no lugar. Isto parece ter divertido o
espertão atrás do volante. No carona, Jasper faz sinal para que a gente entre no
carro — O que estão esperando? A carruagem chegou, princesas!
Reviro os olhos enquanto ele sorri da minha expressão desalentada e entro
no carro, logo após uma Victoria sorridente, assim como Jasper e o sujeito de
óculos escuros, que parece prestes a rosnar e avançar no pescoço de alguém. A
aura perigosa que ele emana é um pouco atraente e, de repente, me vejo
contabilizando o número de anéis que ele tem nos dedos, enquanto ele nos conduz
morro acima, até a tal festa.
— Mack, a Harper não parece ter gostado de você — o idiota, por quem
minha prima suspira no momento, comenta com o amigo.
Um sorriso rápido curva seu lábio para cima, e logo sinto o peso de seu
olhar através do retrovisor.
— Bom saber — o som grave de sua voz ecoando dentro do espaço do
veículo. Esse cara arrasaria como cantor de música country americana, certeza. —
O que terei que fazer para mudar essa primeira impressão?
Graças aos céus, não tenho tempo de responder, já que o carro passa pelos
portões altos e entra na propriedade. Tento distinguir alguma coisa, enquanto o
homem de ombros largos manobra o carro em meio às pessoas que andam por ali
com seus copos de bebida, deixando a conversa morrer. Antes ela do que eu,
obviamente.
Salto do carro na primeira oportunidade e, ao lado de Vicky, tento me
situar no local. Muita gente conversando, bebendo, caminhando por aqui e logo, o
momento terrível e desconfortável, que eu tanto queria evitar, chega. Tentando
fingir que sou invisível, apenas sigo Jasper, que segura a mão de Vicky e nos
conduz entre a multidão.
— Eles só estão curiosos com a novata — minha prima murmura para
mim, quando seu acompanhante para diante de um freezer e pega algumas garrafas
de cerveja, nos entregando em seguida.
— Eu sei... É só que é constrangedor e... — começo a dizer, mas sou
interrompida pelo grandalhão de antes, que segura a minha mão e me gira, até que
esteja ao seu lado, com uma das mãos grandes pesando em meu ombro.
— Atenção, pessoal! — a voz de Mack troveja pelo lugar aberto, atraindo
toda atenção para nós. — Essa é Harper Lawson e ela vai estudar na Emberwood
por um tempo. Acostumem-se!
Nada de invisibilidade para Harper Lawson.
— Obrigada — digo para o gigante que acabei de conhecer. — Eu acho.
Parecendo um modelo de passarela, com sua pele negra, calça jeans escura
e uma camisa de banda de rock em contraste com os diamantes em suas orelhas,
ele pisca para mim, visivelmente satisfeito consigo mesmo por me fazer passar
vergonha.
— Não há de quê — responde com sinceridade e, quando uma discussão
começa, entre um grupinho mais afastado, ele troca um olhar com Jasper, antes de
estalar a língua e beber todo o conteúdo da garrafa de uma vez só. — Vamos
resolver essa merda. Ash não está com humor hoje.
— E quando é que ele está? — Jasper questiona, e sorrindo para mim,
beija o topo da cabeça de Victoria, antes de seguir o amigo. — Já voltamos,
meninas. Qualquer problema, não deixem de me chamar, ok? Vicky...
— Não prometo nada, Jas. Sou uma garota solteira, não é? — Dá de
ombros, corando até o último fio de cabelo, enquanto o outro segue, visivelmente
contrariado, para o lugar onde seu amigo já está tratando de apartar a briga.
— Então, você e os integrantes da gangue de motoqueiros são... próximos
— comento, tomando um gole da minha cerveja.
— Eles são atletas — Revira os olhos. —, famosos por todo o campus e,
acredite, Mack também te deixou famosa por aqui, depois dessa apresentação.
— Exatamente o que eu queria! — espalmo a mão sobre o peito, teatral,
fazendo-a gargalhar. — O meu desconforto te alegra?
— Um pouco. — Toma mais um gole da bebida. — Oh-oh — Esse é o tipo
de interjeição que não precede nada bom em nenhum contexto. — Você realmente
chamou a atenção de todo mundo, Harper Moon.
Apelido ridículo.
— Vic? — ela ergue o queixo, indicando para que eu olhe e, tentando ser
discreta, me viro devagar, encontrando um cara vestido de preto dos pés à cabeça e
que nos observa com seus olhos muito escuros alguns metros à frente, sentado em
uma das mesas dispostas no canto, cercado de gente, como se ele fosse uma
espécie de rei.
O cabelo liso e escuro caído em sua testa, disfarça a intensidade de seu
olhar, embora eu consiga senti-lo sobre mim. Bem, pelo menos até o garoto que
conhecemos ontem, Chad, sei lá das quantas, se aproximar, obstruindo a visão do
outro, antes que eu consiga questionar Vicky sobre quem ele seria. Ainda bem.
— As garotas Lawson! — Brinda, antes de bater a garrafa de vidro em
suas mãos contra a de Vic e então contra a minha. — Está se enturmando, Harper.
Só… — ele hesita sob o olhar estreito da minha prima. — tome cuidado. Nem
todos são o que parecem por aqui.
Olho ao redor e reparo que os olhares em minha direção diminuíram muito,
depois da apresentação de Mack, o armário humano, que, após separar a briga, tem
as pernas de uma garota envoltas em sua cintura, enquanto pressiona o corpo da
loira contra o muro coberto de plantas e musgo. Tem gente disposta a tudo nessa
vida.
— Ela não faz ideia de com quem está lidando — Eli comenta, assim que
Chad II passa com as garotas Lawson no carro, como se estivesse exibindo a
porcaria de um troféu. Dois, no caso. Todos nós observamos o olhar raivoso que
ela me lança do banco de trás e, isso, claro, nos faz rir da sua audácia, semelhante
à porcaria de um filhote de gato nervoso, desafiando um tigre.
— Ela é intrépida, eu disse. — Mack se acomoda na cadeira de madeira ao
lado de Jasper, enquanto esperamos a Sra. Greyson trazer nosso almoço.
— Precisamos tirar o dicionário do banheiro. Urgente. — Jasper ainda
encara o local por onde o carro desapareceu, com um olhar ressentido — Cara,
como eu detesto esse babaca seboso!
Somos dois.
Não pelo mesmo motivo, claro.
Obviamente.
O aroma de limão e todas as outras coisas, ainda paira pelo ar e, quando
meu amigo inspira forte, como se farejasse ao redor, algo se revira dentro de mim.
Desagradável e pungente.
Uma bela hora para que essa merda comece a se manifestar.
— Que se dane o almoço, eu preciso de uma bebida forte — aviso, antes
de sair dali, me colocando a caminho de casa, sem maiores explicações.
Eu deveria ter almoçado.
Parado diante da geladeira, tento fazer a porcaria de um lanche, mas tudo o
que encontro ali são restos antigos de algo que já foi um queijo — antes de ser
uma coisa peluda e esverdeada — e pães integrais, igualmente mofados. Jogo tudo
fora e pego uma maçã murcha que encontrei dando sopa sobre o balcão, antes de
sair de casa à procura de algo decente para comer.
Minutos depois, paro num pequeno café/lanchonete no centro da cidade e
ignoro propositalmente a bruxa velha que mantém os olhos claros e leitosos sobre
mim, enquanto devoro parte do banquete que acabei de pedir, deixando meus
olhos vagarem pelo pequeno lugar.
Amarelo é uma cor bastante chamativa para alguém que parece não
gostar de atrair atenção — me pego pensando, ao olhar para o pequeno sobrado
alguns metros à frente, e ainda estou refletindo sobre isso, quando a porta
vermelha — marca registrada da família Lawson — se abre, revelando a garota
usando um coque alto e um blusão largo demais para ela, que atravessa a rua de
forma distraída com uma espécie de tablet nas mãos.
Um carro se aproxima e, claro, ela não nota. Como poderia ver alguma
coisa, com a cara enfiada naquela merda? Estou prestes a me levantar e correr em
sua direção, mas o motorista é mais rápido e a buzina alta irrompe o silêncio do
fim de tarde, fazendo-a saltar no lugar. O pequeno aparelho colado contra o peito,
que sobe e desce com dificuldade por causa do susto. Um tanto atrapalhada,
acompanho enquanto Harper Lawson atravessa a rua e entra no lugar, sem sequer
notar que estou aqui, rindo do que acaba de acontecer. Dissolvendo um pouco da
tensão acumulada em meus ombros, enquanto volto a comer, fingindo não notar a
risada sonora há algumas mesas de distância.
Velha fofoqueira do caralho.
— Ah, que merda! — ouço-a xingar atrás de mim. — Eu vou ali pegar o
dinheiro, ok?
Onde é que essa garota anda com a cabeça?
Me levanto e sigo até o caixa, onde Emilly, uma das calouras do curso de
administração, tenta se esconder ainda mais dentro de seu uniforme ao me ver
aqui.
— Pode colocar o que a doce Srta. Lawson pediu na minha conta. — A
garota apenas assente, nervosa, e faz o que eu disse, lançando rapidamente na
comanda eletrônica, enquanto a outra parece prestes a ferver ao meu lado.
— Doce? — Estreita os olhos. Ela tem razão, é algo mais. A voz em
minha mente ecoa. — Moça, por favor, não anote. Eu moro aqui na frente e estou
indo buscar o dinheiro. Eu nem conheço esse cara!
Espalmo a mão no peito dramaticamente e ela revira os olhos para a
expressão triste que meu rosto possui agora.
— Harper! E eu achando que éramos quase amigos! — Sigo meu teatro,
vendo seu rosto atingir uma coloração avermelhada, quase preocupante. — Ela só
está tímida, Emilly. Nós até dançamos juntos no outro dia… — Estalo a língua. —
É difícil ser nova em uma cidade tão unida quanto a nossa, não é?
— Liam Ashbourne — sua voz sai entredentes. — Para com essa merda.
— Ash — corrijo-a, embora não tenha ficado furioso, como costuma
acontecer quando usam meu nome inteiro. — Venha, vamos nos sentar e bater um
papo, como os bons amigos que somos.
— Ele é louco — afirma para a pobre garota, prestes a desmaiar com nosso
embate. Porém, noto exatamente o momento em que algo muda em seu rosto e,
pela presunção ali, sei que Harper está aprontando alguma. — Quer saber, Emilly?
Já que meu amigo, Liam, está tão disposto a me agradar, acrescente mais dois
muffins de chocolate e outros dois de ricota e alho-poró. E mais um chocolate
quente. Pegue também uma barra de chocolates dessas pra você e um chá para a
Sra. Holloway, tudo, claro, com os cumprimentos do meu amigo aqui.
Harper abre um sorriso largo e ergue o braço, acariciando meu rosto sem
qualquer hesitação. O toque inesperado e quente de sua mão, enviando um sinal
estranho que agita todo o meu interior e me faz engolir em seco. Ao mesmo tempo
em que a pobre moça, do outro lado do balcão, parece prestes a cair dura ali
mesmo. É comum que o povo da cidade tema a mim e se afaste, sempre que chego
em qualquer lugar, mas não a intrépida Lawson, ao que tudo indica.
— Embale tudo para viagem, por favor — pede, enquanto a garota sai do
transe e passa a embalar tudo rapidamente, evitando olhar para nós. — E conte
para suas amigas que o QB do Warrior Wolves não tem nada além de amor no
coração. Ele é um fofo, apesar da aparência de badboy. Obrigada, Liam. Por tudo!
A safada pega a embalagem de papel com seu pedido e assopra um beijo
em minha direção antes de sair, me deixando plantado aqui feito um idiota. Eu
mereci, confesso. Mas vai ter volta, Harper M. Lawson. Ah, vai.
Você não perde por esperar.
Volto para o meu lugar, ruminando sobre a porcaria que acaba de acontecer
e termino rapidamente de comer, para dar logo o fora dali. O maldito de um dia de
cão, esse. Depois de pagar uma conta absurdamente alta, considerando as
estripulias da minha nova amiga, estou a caminho da minha moto quando a velha
Holloway, ainda bebericando o chá pedido por Harper, com os olhos fixos em
mim, comenta:
— O engraçado de se ter vivido muito é ver como algumas coisas se
repetem ao longo do tempo — a voz fraca e agourenta afirma. — Nem tudo
precisa ser igual, porém. Posso esperar mais de você, jovem Ashbourne?
— Não deveria esperar nada, Senhora — respondo, mal-humorado,
virando as costas e seguindo até minha moto, ignorando a sensação de estar sendo
observado por aquela bruxa. Quando ergo os olhos, já pronto para dar o fora dali,
encontro a maldita Lawson brindando a mim com o copo fumegante, de sua janela
no segundo piso da casa.
O sorriso que ergue meus lábios é a promessa de que aceitei o seu desafio.
Ela não faz ideia de com quem está mexendo.
No ar frio da noite, tudo sempre parece menos complicado.
No céu, a lua cheia ilumina parte da floresta, enquanto eu sigo meu
caminho. Finalmente, livre. Minhas patas tocam o chão fofo, coberto das folhas
úmidas por conta do nevoeiro que cobre a cidade, enquanto eu corro, saltando de
tempos em tempos, farejando tudo pelo caminho.
Mais uma noite em vigília, sem encontrar nenhum rastro remanescente
daquele maldito invasor, após sua última tentativa. Em meu olfato, apenas o aroma
cítrico, atraente e delicioso, uma mistura de limão siciliano, jasmins e cedro —
pertencentes à destemida forasteira que tem medo de cachorro, como descobri dias
atrás, à margem da floresta.
O que ela diria ao saber da existência dos lobos correndo por aqui?
O que dirá da existência de seres como eu?
Temeria a mim ou me aceitaria?
Não importa.
Por enquanto.
Perdido dentro da minha cabeça, sentindo o vento bater contra a pelagem
quase preta que cobre a minha forma lupina, noto o exato momento em que uma
essência estranha e perigosa se aproxima. Ergo a cabeça, atento aos sons da
floresta e aos passos do animal, correndo alguns metros adiante, me colocando em
movimento. Corro sem parar, até vê-lo: a pelagem branca como a neve, se
destacando entre as árvores enquanto ele segue a trilha que o levará direto ao
centro da cidade.
Que porra!
O vento bate contra mim, sacudindo minha pelagem e noto o exato
momento em que o outro lobo percebe que está sendo seguido. Com uma
velocidade espantosa, ele corre em direção às árvores na direção contrária,
entrando na área mais densa, onde o resto da alcateia segue monitorando.
Escapando de mim, mais uma vez.
Frustrado, ouço os uivos de comunicação entre os meus e decido terminar
a ronda nos arredores do centro da cidade, me certificando de que o território
esteja totalmente deserto nessa madrugada fria, exatamente como sempre esteve e
deve permanecer.
Tudo normal por aqui, exceto pelo aroma frutado que fica cada vez mais
forte, à medida em que cruzo os limites da cidade e encaro a casa amarela de dois
andares e a tradicional porta vermelha, representando a força das Lawson. O
perfume ali, como eu previa, é ainda mais intenso, e eu me deixo ficar por um
tempo, permitindo que ela siga me acalmando, amansando meu temperamento
feroz, que deseja estripar o verme que ousou pisar no meu território.
Não importa quanto tempo leve, nem mesmo a teimosia determinada e a
sua negação, tudo mudará no instante em que nos tornamos um só — garanto à
metade relutante dentro de mim.
E esse momento está mais próximo do que se possa imaginar.
Eu esperei por uma represália, até mesmo me preparei para humilhação
pública. Porém, surpreendentemente, quase uma semana depois, o temido capitão
do time de futebol americano e famoso quarterback do Warrior Wolves, fez pouco
mais do que apenas me cumprimentar de longe, como se fossemos velhos
conhecidos.
Se eu fosse uma mulher ingênua, acreditaria que ele não se importou com
o que fiz em nosso último encontro, mas não sou. Ele ainda vai tentar se vingar de
mim. Eu vi isso claramente no brilho perigoso de seus olhos naquela tarde.
Foram dois dias sem vê-lo por aqui com seus amigos e suas motos
barulhentas, mas hoje, elas estão estacionadas no lugar de sempre e, pelos gritos e
apitos ao longe, o time voltou a treinar no campo. O que indica que é um ótimo
momento para ir para casa e me safar das consequências de ter enfrentado o
temido badboy da cidade.
Eu não sou ingênua, nem burra. E não vou ficar dando sorte ao azar.
Envio uma mensagem para Vicky, avisando que estou indo para casa e não
espero por resposta, ajeitando a mochila nos ombros, desço a rampa rumo ao
centro da cidade. A vantagem de morar em um lugar assim é que fica fácil se
localizar e, depois do tour que fiz junto à minha prima, sei exatamente onde devo
passar para chegar em casa mais rápido. Inclusive, alguns atalhos.
No segundo deles, algo em que eu não tinha reparado antes, chama minha
atenção. A culpa foi toda do homem mais velho que fez o sinal da cruz e fechou a
janela de madeira onde estava empoleirado, ao me ver passar. Tudo bem, o que é
que esse povo tem contra mim? Eu não nasci aqui, mas toda a minha família, sim.
Minha mãe me advertiu sobre o tradicionalismo do lugar, mas, ainda que sejam
muito conservadores, ser filha de mãe solteira não configura algo que valha uma
cuspida ao me ver passar. Maldito sr. Grosby.
Uma pequena construção antiga se destaca, com suas torres altas enfeitadas
por arabescos, disfarçadas pelas plantas de folhas verde-escuras no barranco atrás
dela. Algo esquecido, parado no tempo. Assim como na universidade, as terríveis
estátuas em formato de lobos — aqui, paradas de frente uma para a outra, como
sentinelas — vigiam o curto caminho que leva à porta larga de madeira, onde uma
inscrição em latim foi entalhada na pedra e que o tempo apagou em alguns
trechos. “Ubi lupus dormit, nemo intrabit." Leio em voz alta e uma brisa leve e
gelada, vinda lá de dentro do lugar acerta o meu rosto, me fazendo espirrar
imediatamente.
A rinite não dá trégua, nem mesmo em momentos tensos como esse. Bom
saber.
Pego meu telefone no bolso e tiro uma foto rapidamente, sem muita
coragem de entrar ali e acabar presa nesse lugar cheio de poeira e, Deus me livre e
guarde, aranhas. Estou prestes a me virar, quando uma moto passa por mim,
desacelerando ao me notar ali, já que para alguns metros à frente, revelando Jasper
e seus fios castanhos bagunçados.
— Perdida, Harper? — Me encara sobre o ombro largo. — Que tal uma
carona pra casa?
Ainda aos espirros, tropeço até ele, aliviada por não ser o seu amigo e,
claro, aceito a carona. O velhote ainda está de olho em nós, e tenho certeza de que
não faltava muito para que ele começasse com a coisa do cuspe.
— Vicky não veio com você? — pergunta, antes que eu suba na moto,
colocando o capacete que ele me oferece, enquanto envolvo e seguro firme em sua
cintura. Eu é que não vou correr o risco de cair, só para não encostar em um cara.
Vicky vai entender, claro.
— Eu saí mais cedo — grito de volta, tentando não espirrar ao sentir o
cheiro de couro de sua jaqueta.
— Ah — é só o que responde enquanto cruzamos algumas ruas.
Não demora muito para que ele pare diante da porta vermelha do sobrado
de tia Lin, que pertenceu aos meus avós e aos avós deles, provavelmente.
— Jasper, obrigada. — Sorrio ao descer, apoiando as mãos em seus
ombros largos. — Você sempre está me salvando.
— Minha missão de vida, Harper. — O sorriso não chega ao restante de
seu rosto.
— Eu pensei que era irritar o Chad — retruco sorrindo.
— Isso também — concorda. — Você não deixa nada passar, não é?
— Eu não sei o que rola, mas há algo entre você e a minha prima. — Seus
olhos castanhos focam nos meus e ele apenas bufa uma confirmação. — Só que...
Não entendo. Se você gosta dela e ela parece se sentir da mesma forma...
— É complicado. — Os dois combinaram essa droga de resposta evasiva?
— E meio que impossível.
Reviro os olhos por causa da sentença dramática.
— Jasper, se vocês se gostam, não há nada que possa... — Ele engole em
seco e solta um riso irônico quando o carro de Chad para um pouco atrás de nós, e
Vicky sai dele, despedindo-se brevemente do outro, que acelera ao mesmo tempo
em que Jasper se despede de mim e arranca com a moto.
Qual é a desses caras?
— Está tudo bem? — ela pergunta, ainda olhando na direção que o idiota
de moto desapareceu.
— Acabei me perdendo no caminho e fui salva pelo seu não-namorado —
provoco-a, mas me arrependo quando suspira desanimada. — Esqueça isso. Que
tal sorvete?
Abraço os ombros de Vicky e entramos juntas em casa. Ela perdida em
seus próprios pensamentos, como parece ser comum, sempre que Jasper aparece, e
eu ansiosa para uma noite de pesquisas sobre o tal templo abandonado.
Dessa vez, a festa não será em uma das colinas que cercam a cidade, mas
na própria universidade, que preparou o local para receber seus alunos para mais
um semestre de aulas. Observo minhas botas de salto alto e tiro um fiapo
imaginário de minha calça justa escura, que compõe meu look básico com a blusa
de tricô clara e um casaco xadrez, predominantemente vermelho, que escolhi usar
ao ser obrigada a sair de casa.
Porém, quando vejo Elias Greyson, o renomado professor de anatomia,
tomando o que parecer ser ponche, enquanto olha ao redor, um tanto deslocado,
começo a pensar que talvez, meu dia tenha melhorado em duzentos por cento, e
que há, no fim das contas, um objetivo divino para eu ter saído da minha cama
quentinha nesse dia frio e feioso.
Me aproximo dele e, pouco tempo depois, estamos conversando
animadamente sobre alguns artigos científicos que li no decorrer da semana, a
respeito de algumas pesquisas para tratamento de doenças degenerativas, quando
os roncos das motocicletas tomam conta do lugar. Não demora muito para que a
gangue do couro apareça e roube toda a atenção, inclusive do professor, que sorri e
cumprimenta todos que passam por ele, como velhos conhecidos.
Me sinto murchar por dentro. Só um pouquinho mais, quando o líder deles,
ainda mais lindo do que de costume, em suas roupas pretas, para diante de nós e é
abraçado por um Greyson empolgado, antes de olhar para mim.
— Vejo que já conheceu minha amiga, Harper — cumprimenta,
estendendo a mão grande em minha direção, porém, não tenho tempo de reagir,
porque de trás dele, Mack surge, abraçando a minha cintura e me erguendo no ar.
Em seguida, Jasper deixa um beijo na lateral do meu rosto, antes de
cumprimentar animadamente o professor, ignorando o olhar irritado no rosto de
Ash, que não desvia sua atenção de mim.
— Então, ainda somos amigos, não é? — abro meu melhor sorriso,
desejando que ele não jogue todo o conteúdo vermelho da tigela enorme sobre a
mesa, em minha cabeça.
— Algo assim. — Abre um sorriso de lado que o deixa ainda mais
charmoso. E eu devo estar ficando louca, ou essa porcaria, cheia de pedaços de
maçã, está mais forte do que imaginei. Me surpreendendo, Ash se aproxima mais,
sem me tocar de forma alguma, ainda assim, muito perto. — Vai dançar comigo
hoje, amiga?
— Não vejo ninguém dançando por aqui, Liam. — Ele estreita os olhos e o
professor se engasga com seu ponche ao nosso lado. — Mas, quem sabe?
— Vou cobrar. — Suas narinas dilatam quando seu rosto se aproxima do
meu e ele deixa um beijo quase em meu pescoço, inspirando ali. — Até daqui a
pouco, Harper Moon.
Ah, pronto. Agora ele sabe meu segundo nome idiota.
A cena icônica daquele filme de terror me vem logo à cabeça e corro os
olhos pelo lugar coberto de grama verde e lotado de gente, pensando em quantos
deles estarão dispostos a me dar um banho de tinta vermelha. Não posso sequer
pensar em sangue de porco nesse momento.
Algum tempo depois, o professor sai mancando até seu carro e Victoria
finalmente se junta a mim. Talvez eu tenha bebido mais do que deveria, já que
estava me balançando sozinha com a música comandada pelo garoto bonitinho
daquela outra festinha, que está realmente mandando bem nas escolhas das
batidas.
Movo os quadris e fecho os olhos, dançando com a minha prima e Kat,
uma colega de curso que gargalha o tempo todo, porque, segundo ela, não
consegue acompanhar o ritmo das batidas como estamos fazendo. Ainda estou
rindo do seu último comentário sobre precisar de uma prótese de quadril em breve,
quando ela arregala os olhos e logo sinto a mão firme sobre o meu ombro, me
girando no lugar e me colocando de costas contra o peito largo, que se move junto
comigo.
Seu cheiro amadeirado domina tudo ao redor. Triste, mas verdade.
— Já é daqui a pouco, amiga. — O risinho debochado que solta em meu
ouvido faz meu corpo arrepiar.
— Você não é meu amigo quando pretende se vingar de mim — comento,
ainda de olhos fechados, enquanto dançamos juntos a batida latina e ele tira o
cabelo do meu ombro, encaixando sua cabeça ali.
— Sempre tão durona... A intrépida Harper Lawson está com medo? —
Abro os olhos e me deparo com o olhar questionador da minha prima e com a
expressão encantada de Kat, que parece estar diante de uma celebridade.
— Ash, você precisa vir. — Jasper se aproxima de nós e o corpo inteiro do
jogador junto a mim fica tenso. — Agora.
— Estamos quites, então. — Sorrio para a expressão furiosa em seu rosto e
volto para perto das minhas amigas. — Boa festa, Liam.
Passamos mais de uma hora dançando, bebendo e rindo feito bobas, antes
que Kat se agarrasse com um dos carinhas fofos da nossa sala, enquanto Vicky e
eu seguimos apenas curtindo a música e nos divertindo sozinhas.
— Harper, você deveria tomar um pouco de água agora. — Estende o copo
com o líquido incolor para mim.
Sua aparência angelical fica ainda mais evidente em suas roupas claras e o
casaco longo rosa pink, deixando-a parecida com uma modelo, quando joga os
fios loiros e pesados para trás. Uma nova movimentação acontece e alguns
jogadores do time, que haviam retornado, depois de saírem atrás de Ash,
desaparecem novamente. Estão aprontando alguma coisa.
— Discordo! — argumento, erguendo o indicador. — Vicky, se vão jogar
sangue de porco em mim, terão que lidar com o cosplay de exorcista que preparei.
— Porco? — Primeiro, ela parece confusa. Porém, em seguida, cai na
gargalhada e avisa: — Vocês estavam dançando beeeem juntinhos antes, não acho
que Ash faria algo assim. — Ela tira o celular do bolso e confere as horas, antes de
voltar a guardá-lo. — Já está tarde, estamos indo embora agora. Eu vou ao
banheiro e depois pedimos um táxi, tá bom?
— Não! Nós vamos andando. — Sinto meu corpo leve, apesar dos saltos, e
a ideia fixa de entrar naquela espécie de templo abandonado retornou com tudo
nos últimos minutos. — Não demora, tem uma coisa que eu quero te mostrar.
Um pouco tonta, corro o olhar pela festa e, claro, me deparo com o meu
“desassossego em pessoa” me olhando de volta. Liam Ashbourne ergue o rosto
para mim, e logo, um sorriso malicioso estica seus lábios e provoca algo estranho
dentro da minha barriga, o que me desestabiliza um pouco e me faz pisar em falso.
Talvez eu humilhe a mim mesma, sem qualquer intervenção externa —
sempre fui autossuficiente — penso, quando não consigo me recuperar sozinha.
Mas logo sou amparada por dois braços fortes, que me envolvem e me pressionam
junto ao peito forte dono de um cheiro diferente do que eu esperava. É claro que é.
Ninguém se deslocaria tão rápido assim, é claro.
— Liam? — o som escapa sem que eu consiga segurá-lo e o estranho se
afasta rápido demais para olhar para mim, visivelmente indignado.
— Você... — Chad puxa o ar com força e, então, faz uma negativa leve
com a cabeça. — Acho que precisa de uma água, Harper.
— Você também não parece tão bem. — Estalo a língua. — Estou de saída,
só esperando Vicky voltar.
Os olhos quase verdes me encaram por alguns segundos, como se estivesse
prestes a tomar uma decisão difícil e complicada, porém, Chad não demora muito
para reagir e se aproxima mais.
— Acho que Vicky estava com Jasper, perto da área dos banheiros — o
desgosto ao falar o nome do meu novo amigo é evidente. — Mas posso te levar
pra casa.
Desvio o olhar por sobre seu ombro largo, mas não vejo o chefe irritante da
gangue em parte alguma. Esse cara tem superpoderes? Como é que alguém
desaparece assim? O pensamento ecoa dentro da minha cabeça que, nesse
momento, parece estar cheia de algodão. Tiro meu telefone da bolsa e mando uma
mensagem para Vicky, avisando-a que pegarei uma carona com o filho do prefeito
e que espero muito que ela e Jasper se resolvam.
— Tudo bem, me leve para casa, príncipe encantado. — Chad sorri e
estende a mão, me conduzindo pela rampa alta que leva ao estacionamento. Meu
telefone vibra e “Ok.” É a única resposta que recebo daquela loira misteriosa.
Não conversamos muito no caminho e eu apenas assinto quando Chad me
pede para esperar diante do prédio da secretária, já fechado à essa hora, enquanto
ele busca o carro. Talvez, eu tenha tropeçado mais de uma vez e isso pode ter
despertado sua atenção, ao que agradeço mentalmente, já que meus dedinhos dos
pés estão amassados dentro da bota que quase alcança meus joelhos.
Enquanto espero, observando o mundo girar ao meu redor, noto um
movimento na lateral do prédio antigo e, ao parar e focar minha atenção, desejo
não o ter feito. Ash, em toda a sua imponência de badboy gostoso, está lambendo
o colo de uma garota de cabelos escuros, que agarra sua nuca como se não tivesse
forças para se manter de pé. Como se soubesse que está sendo observado, o
babaca ergue os olhos escuros em minha direção, ao mesmo tempo em que a moça
engole sua língua em um beijo extremamente sensual.
A satisfação evidente com o meu desconforto morre, quando os faróis do
carro branco anunciam a chegada de Chad e tenho a impressão de que Ash se
afasta da garota, dando um passo em minha direção, mas não olho para ele, até
que o jogador de polo me tire dali.
Dentro do carro, o silêncio impera, logo uma chuva fina começa a cair do
lado de fora e me sinto estremecer. Chad, como o bom garoto que é, liga o
aquecedor, mas sua mão não retorna ao volante, ao invés disso, ele segura a
minha, apoiada sobre a minha bolsa.
— Chad... — Posso estar um pouco alterada pelo álcool, mas ainda estou
consciente o bastante para que certos alarmes funcionem.
— O que rola entre você e Ashbourne? — Ele decide ir direto ao ponto.
— Nada demais. — É a verdade.
— Você não é para ele — avisa, com uma certeza que não permite dúvidas.
— Porra! Aquele babaca sabe disso.
— Eu deveria saber do que está falando? — Será que Ash já roubou uma
das namoradas de Chad?
O garoto, que sempre me pareceu uma pessoa calma e ponderada, está
claramente fora de si.
— Você é uma Lawson, bem como eu sou um Graymane e Vicky é uma
Miller. — o tom cheio de orgulho me pega de surpresa. — Nós não nos
envolvemos com eles. Hill, Mooncrest, Blackmoon, Ashbournes... É a lei.
Ah, meu Deus. Eu sabia que existia uma seita.
Toda a esquisitice da cidade é finalmente explicada.
— Lei. — repito. — Chad, olha, eu cheguei agora à cidade e não pretendo
me envolver com ninguém, ok? — Tiro minha mão da sua. — Mas lei nenhuma
me manteria longe de alguém que eu realmente quisesse.
Surpresa, observo-o acelerar o carro, antes de parar no acostamento e virar
seu corpo todo em minha direção, a fúria em seus olhos, sempre tão gentis, é
assustadora e, somente por isso, me valendo do elemento surpresa, antes que ele
faça qualquer coisa, abro a porta do carro e corro por entre as árvores, enquanto
Chad grita e esbraveja, me mandando voltar para o veículo.
Olho para as árvores altas que quase tocam o céu, através do nevoeiro e,
obviamente perdida, tento encontrar alguma forma de me situar aqui, ao mesmo
tempo em que evito todas as direções de onde vem os mais diversos sons de
pequenos animais, me mantendo na pequena trilha iluminada pela luz fraca do fim
da tarde.
Pelo menos, eu não estou vestindo uma camisola de seda.
Impaciente, tento me manter focado na conversa que se desenrola à minha
frente. Meus companheiros de equipe estão empolgados pelo início dos treinos e
pelas datas já agendadas dos primeiros jogos da liga de futebol americano. Somos
os favoritos a mais um prêmio nacional esse ano, possivelmente, sendo cotados no
draft[1] para times grandes ao redor do país. Um convite ao qual terei que reclinar,
ao que tudo indica.
Nada de novo na minha vida.
Observo as pessoas ao redor e tento não focar em Jasper e Victoria Miller
discutindo perto dos banheiros, em um canto isolado. Me esforço não pensar que
já faz mais de meia hora que aquela garota impossível saiu de carro com Chad
Babaca II; enquanto esses dois seguem gesticulando e tentando achar uma solução
para algo impossível, quando apenas deveriam seguir suas vidas e se esquecerem
de toda essa merda.
Puxo a fumaça do cigarro para dentro do corpo e enquanto a deixo sair
lentamente, a sensação estranha e incômoda se avoluma dentro de mim.
Há algo errado.
— Qual é o problema? — Mack se aproxima, os olhos vigilantes cobrindo
todo o lugar, observando a mudança da minha postura.
— Há algo de errado. — Travo o maxilar ao sentir a essência residual que
aquela garota teimosa deixou em mim depois daquele breve momento juntos.
Curto demais.
— E aposto que tem a ver com o maldito Chad II e suas patas nojentas
sempre ao redor da Intrépida Lawson, não é? — o idiota comenta ao meu lado. —
Você é como um livro aberto, cara.
Porra nenhuma.
— Vá se foder! Eu lá sou um desses idiotas, para ficar sentindo ciúme de
gente que eu mal conheço? — A inquietação aumenta exponencialmente quando o
celular de Eli toca, alguns metros à frente.
Não precisaria de audição sobrenatural para saber que alguma merda
aconteceu. Maldito seja Chad II. Não bastasse um lobo desconhecido ter tentado
invadir nosso território, alguns minutos atrás, atrapalhando o momento em que eu
cobrava a dívida de Harper; agora preciso sair para limpar as merdas daquele
babaca. Não espero que Eli venha até mim para passar o recado, no mesmo minuto
já estou de pé e a caminho do estacionamento.
E que Deus me ajude, se aquele maldito filho da puta tiver aprontado com
Harper Lawson. Se ele tiver colocado um de seus dedos podres nela contra à sua
vontade, ele pode se considerar um cara morto. Com ou sem esse tratado idiota.
— Ele está no quilômetro 42 da autoestrada. — Eli apenas complementa a
informação, deixando de lado da voz chorosa do maldito covarde, que perdeu um
dos seus e se lamenta, como o bundão que é, ao invés de ir atrás dela. Covarde.
— Não é hora de pensar no que ele fez para que Harper saísse do carro —
Jasper, saído de sei lá que buraco, diz às minhas costas. Esse é o problema de ser
criado junto a alguém: acabam te conhecendo bem demais e, apenas com um
olhar, sabem o rumo dos seus pensamentos.
— Mack e Brennam, busquem pela floresta. — Não me viro para
confirmar se já estão à caminho. — Eli, você fica e vigia a festa. Jasper, leve
Vicky para casa e me encontre lá.
— O que aconteceu? — a voz preocupada da loirinha nos braços de Jas me
alcança enquanto monto na moto e dou partida, deixando que ele dê a explicação
que achar mais conveniente.
Não aconteceu nada. Ainda.
Acelero a moto potente pelas ruas, a caminho da estrada, tentando me
manter sob controle, enquanto a névoa do fim da tarde começa a cair e Harper
Moon Lawson está perdida na floresta escura, exposta a todos os perigos dos quais
deveria estar longe.
Vou matá-lo.
Não demora muito para que eu veja o carro de luxo estacionado no
acostamento e o idiota desesperado, sentado atrás do volante com a cabeça entre
as mãos, diante da floresta, sem saber como agir e sem coragem nenhuma de se
arriscar indo atrás da sua preciosa pretendente. Estaciono a moto entre as
primeiras árvores e passo por ele, torcendo o pescoço e respirando fundo para não
perder o foco do que vim fazer aqui.
— Você? — o imbecil ainda tem coragem de questionar e parecer furioso
ao saltar do carro. — Eu avisei Elijah, pensei que ele viria…, mas você não iria
perder a oportunidade, não é? — Quando vê que não tenho qualquer interesse de
falar com ele, bufa. Um risinho cheio de ironia surge em seu rosto. — Você a quer.
— E você, seu covarde de merda, vai sair do meu caminho agora. — Me
viro, caminhando em sua direção, agarrando-o pelo colarinho da camisa e
erguendo-o alguns poucos centímetros do chão. — Ou eu não respondo por mim.
Como se eu tivesse tempo para pensar sobre querer ou não alguém, quando
há uma Lawson perdida em meio às árvores, enquanto seres perigosos estão à
caça; porque esse filho da puta não conseguiu impedi-la de cometer essa loucura.
Prefiro não pensar que ele possa ter feito algo que a fez fugir, justamente para a
mata fechada, ignorando meu aviso de nunca entrar ali.
Em algum lugar, perto das montanhas que cercam a cidade, um uivo alto
— a porra de um chamado — me faz xingar alto e soltá-lo, derrubando-o no chão,
antes de correr para a floresta.
— Pode chamar qualquer um, seu maldito — resmungo para o maldito
lobo, sentindo o tremor característico se espalhar por meu corpo. — Eu vou acabar
com a raça de todos vocês.
Não me importo que haja um civil por perto — eu ainda posso ouvi-lo
choramingar. Esse babaca de merda. Desde os acordos, é nossa obrigação lidar
com todas as consequências das atitudes erradas desses malditos humanos idiotas.
Não que eu não seja um humano. Na maior parte do tempo, enganamos
bem.
Meu corpo treme por inteiro, o calor súbito fervendo minhas entranhas,
enquanto meus olhos buscam por pistas, qualquer coisa que possa me indicar para
onde ela foi, antes que eu deixe o instinto primitivo me guiar.
Alguns metros à frente, uma pulseira — prateada e com algumas pedras
coloridas — está caída no chão e, pela essência que exala dela, encontrei
exatamente o que procurava. Não me importo em guardá-la, já que o fecho está
quebrado e o simples movimento de erguê-la do chão fez as pedras multicor se
espalharem por entre as folhas secas.
Então, apenas foco em tirar as minhas roupas e coloco tudo junto ali, sobre
um tronco mais baixo da árvore, olhando ao redor e marcando o local para vir
buscá-las depois. Não importa que eu seja a porcaria do herdeiro de uma fortuna,
não vou jogar roupas fora, apenas porque precisei me livrar delas em um momento
inesperado. E eu gosto dessa calça para caralho.
Inspiro fundo e permito que o calor se espalhe pelo meu corpo todo. Desde
as plantas dos pés até o topo da cabeça, ardendo de dentro para fora, até explodir
sob a forma de uma criatura feroz e perigosa, que fareja o cheiro delicioso de
limão, maçãs-verdes, jasmins, rosas brancas e cedro — o perfume enlouquecedor
da mulher em perigo, perdida nessa merda de floresta escura. Por enquanto.
Estou a caminho, Harper Moon.
Livre, enfim.
Posso ouvi-los correndo em algum lugar ao norte da floresta escura — seu
odor faz meu sangue arder ao imaginar que possam chegar até à garota antes de
mim.
Claro que não é uma possibilidade. Nunca será.
Estou tão familiarizado com sua essência que poderia encontrá-la
facilmente em meio a milhares de pessoas, sem me distrair. Sinto a tração queimar
os tendões das minhas patas enquanto corro por entre as árvores, tomando cuidado
para não a assustar, me aproximando demais.
Em algum ponto, à minha esquerda, Mack rosna, sentindo a minha
proximidade. Se esse garoto teimoso finalmente permitisse que fôssemos um só,
eu poderia mandá-los caçar os malditos invasores, mas essa ainda é uma questão
delicada para ele, eu sei.
Porém, é algo inevitável.
Ergo a cabeça e farejo, o perfume delicioso da pele macia da garota está
por toda parte e, não demora muito, me deparo com sua figura encolhida contra o
tronco oco de uma árvore, o pavor evidente em seu rosto, enquanto sua respiração
rápida e alta denuncia seu esconderijo.
Ainda assim, tão linda quanto da primeira vez em que a vimos.
O aroma adocicado de seu sangue, tomando todo o espaço aqui, acende um
alerta em mim e, apesar de não querer, preciso ceder à vontade do garoto de tirá-la
daqui o quanto antes. Sorrio para a força que ele faz quando tenta retomar o
controle. Apesar de nunca o ceder completamente.
Eu nunca a machucaria. Como poderia?
Mas ele ainda não entende.
Por sorte, ela está próxima a um dos nossos “pontos de apoio”: um
pequeno chalé abandonado na floresta, onde deixamos algumas peças de roupa e
mantimentos para algum imprevisto, e logo, pego um par de roupas minhas e os
tênis velhos de Eli, me vestindo rapidamente, enquanto mantenho os olhos
focados na floresta, vigilante.
Cada dia fica mais difícil voltar a mim. Sinto-o à espreita, sob a minha
pele, sempre tentando tomar o controle. Ainda não. E, nesse momento, juro que
posso ouvi-lo rir.
Em breve.
O aviso me faz arrepiar dos pés à cabeça e eu teria um ataque de raiva, se
não tivesse que resgatar a mocinha em perigo, encolhida, apenas alguns metros à
frente. E que surtaria ainda mais, caso um lobo preto de quase três metros
aparecesse diante dela nesse momento.
Ainda não. — A promessa paira no ar, enquanto corro, em pernas humanas
dessa vez, até o lugar onde ela tenta se esconder; e teria conseguido, se não fosse o
cheiro de seu medo pairando no ar como a porra de um alerta da sua presença.
Quando paro diante dela, seus olhos claros dobram de tamanho e, para a
minha surpresa, a garota Lawson, sempre tão durona, se joga em meus braços, se
agarrando a mim, desesperada.
— A-Ash? — o pavor em sua voz faz minha pulsação disparar. — Tem
alguma coisa na floresta.
Eu poderia dizer que avisei. Certamente, ainda farei isso em algum
momento, antes de deixá-la em segurança no conforto da sua casa amarela, mas
não agora. Nesse momento, apenas desfruto um pouco da sensação de tê-la tão
perto e de sentir o cheiro delicioso que emana de seus cabelos. Viciante.
— Vamos sair daqui — digo entredentes, tentando me manter sob controle
e não afundar meu rosto em seu pescoço cheiroso.
Mas é claro que Harper não faria nada conforme o esperado, e logo se
afasta, erguendo uma sobrancelha inquisidora.
— O que... — recua mais um passo; o rosto arranhado pelos galhos das
árvores, assim espero, para o bem de certo babaca; se contorcendo em suspeita —
faz aqui? Como me achou?
— Precisamos sair daqui, Harper. — O uivo ecoa mais perto de nós agora,
fazendo-a estremecer. O som de patas pesadas chama nossa atenção em seguida,
provavelmente, Mack indo de encontro aos invasores, o que me dá um pouco mais
de tranquilidade para sairmos dali. O outro bando sempre prefere fugir a entrar em
um embate direto com qualquer um de nós. — Depois podemos falar de qualquer
merda que quiser, mas, agora, nós precisamos ir.
Volto a me aproximar, deslizando as minhas palmas nas laterais de seus
braços frios e deixo um beijo no topo de sua cabeça, na tentativa de tranquilizá-la,
antes de pegar sua mão e conduzi-la pelas trilhas que as árvores formam e que
conheço como a palma da minha mão. Mas Harper não sabe disso, é claro.
Porém, o modo como me segue, sem reclamar ou contestar — algo que
seria típico dela — provoca algo dentro de mim e que não consigo nomear, mas
não pretendo pensar nisso agora.
Pertencimento — a voz idiota declara, me fazendo revirar os olhos.
Uma vez fora da floresta, seu temperamento difícil leva a melhor e Harper
não para de questionar todo tipo de coisa durante nossa caminhada até um celeiro
abandonado em um dos terrenos dos Blackmoon, família de Mack, e que usamos
como garagem. Respiro fundo, tentando controlar o meu próprio humor, para não
começarmos uma guerra antes mesmo de chegarmos até a porcaria do carro.
— Como é que sabia onde eu estava? — Morde continuamente o canto do
dedão, mas os olhos estão firmes e focados na construção antiga alguns metros à
frente.
— Seu amigo pediu ajuda — resmungo, me lembrando da expressão
culpada do idiota. — Por falar nisso, o que aconteceu entre vocês, que te fez entrar
correndo na mata fechada?
O modo como cruza os braços e bufa, me faz parar no lugar. Me viro
rapidamente para ela, nervoso demais ao imaginar que o maldito Chad II tenha
tentado algo contra a garota à minha frente.
Vamos matá-lo — decreta a voz dentro de mim, colérica e revoltada.
— Quer saber? Não me conte — minha voz não sai mais alta do que um
rosnado. — Vamos te levar para casa, e é isso.
— Não foi nada demais, sabe? — Abaixa a cabeça e algo dentro de mim
gosta do modo manso que ela adota. — Ele estava alterado e eu me assustei e
acabei saindo correndo. Nem pensei muito.
— Não pensou nada — retruco. — Eu avisei para que ficasse longe da
floresta, Harper Moon.
— O que é que vou achar ali? — Aponta para as árvores, agora já não tão
assustada quanto antes. — Vampiros? Lobisomens? Os primeiros me parecem até
interessantes, talvez eu deva tentar mais uma vez.
Assim que chegamos à velha porteira, me viro para ela, observando-a
encarar a floresta já tomada pela neblina densa. Sigo ouvindo as batidas aceleradas
e temerosas de seu coração.
— Tem certeza? — Me aproximo mais dela, sem desviar meus olhos de
seu rosto pálido nesse início de noite. — Você me pareceu bem assustada, antes.
— Experimente se perder na mata fechada, depois de ter ouvido mil
histórias sobre os lobos, lido sobre diversas maluquices e, então, ouvi-los uivar ao
longe. — Cruza os braços tentando impedir meu avanço.
— De que tipo de maluquices estamos falando? — Estou genuinamente
curioso.
— Do tipo que envolve presas afiadas e monstros humanoides peludos —
Dá uma olhada desconfiada para a floresta. —, mas não vamos falar sobre isso —
avisa, tomando a dianteira e atravessando a porteira antiga em direção ao celeiro
com seu casaco xadrez e os cabelos presos em um coque improvisado, que fez
enquanto estávamos no caminho, me deixando para trás.
Pelo modo acelerado com que o seu coração bate, percebo que está no
limite, por isso, apenas espero pacientemente, enquanto ela processa tudo o que
aconteceu nessa noite. E, como uma pessoa madura, deixo passar a piadinha sobre
suas pesquisas. Porém, o meu silêncio não parece agradá-la e logo, ela volta a
falar.
— Olha, eu fico muito feliz que tenha aparecido, tá bom? Eu realmente
estava me cagando de medo. Eu sou uma estranha, nessa porcaria de cidade, e tem
alguns idosos que cospem ao me ver e se benzem quando eu passo. Então, sim, eu
fiz um monte de pesquisas malucas. Satisfeito? Podemos ir, agora? — o modo
como sua voz falha no fim, é quase comovente.
Não preciso estar perto dela para saber que está chorando e, por algum
motivo, vê-la assim me causa um desconforto grande e uma sensação de
impotência ainda maior. Harper Moon Lawson consegue me atingir de uma forma
a qual não estou acostumado e que, definitivamente, não deveria acontecer.
Entretanto, não consigo me impedir de andar até ela e envolver seu corpo
pequeno, desejando que nada disso tivesse acontecido. E o pensamento de estripar
aquele maldito moleque do Chad cruza a minha mente mais de uma vez, enquanto
caminhamos juntos e em silêncio até o galpão.
Como esperado, há um carro antigo e empoeirado ali, assim como uma
moto veloz. E apesar de preferir compartilhar com a garota ao meu lado a
liberdade da segunda opção, escolho o carro, sem querer forçar seus limites nessa
noite.
Ainda sem dizer nada, Harper entra no lado do carona enquanto descubro o
capô e pego a chave sob o tampo da mesa — um esconderijo nada seguro, diga-se
de passagem, mas que atendeu bem ao seu propósito até agora — e entro no carro,
sentindo a essência cítrica dominar todo o ambiente, antes de dar a partida e nos
tirar dali.
Depois de trancar o celeiro e assistir, de maneira paciente e tentando
prender o riso, enquanto Harper lutava bravamente contra a porteira de madeira
bruta, nos coloco na estrada, observando-a se abraçar quando um uivo alto
irrompe no silêncio da noite.
— Alguém realmente cuspiu em você? — Sim, esse é o meu modo de
puxar assunto e quebrar o gelo. Não tenho muita experiência nisso, claramente.
— O Sr. Grosby — responde, após um tempo, os olhos claros ainda
focados na estrada. — E o máximo que fiz foi cumprimentá-lo com um sorriso.
— Aquele cara é louco. — Gargalho. — Uma vez, quando eu ainda era
criança, ele apontou para mim, diante de quase toda a cidade, dizendo que eu
incendiaria tudo um dia.
— Meu Deus! — Chocada, ela me encara, antes de soltar uma gargalhada.
— Então, é apenas questão de tempo...
— O que? — Franzo o cenho sem entender o que a maluca de casaco
xadrez está falando. Ou talvez, eu só esteja intoxicado pela intensidade de seu
cheiro no espaço apertado.
— Você não parece exatamente um anjo com as roupas pretas e a fama de
malvadão — explica, e então, seus lábios se fecham, formando um biquinho
enquanto pensa. — E você trocou de roupa depois da festa.
— O que? — repito. Definitivamente, é o perfume. — Você está enganada.
Teimosa, ela emenda:
— Não estou, não. — Aponta para a minha camisa. — Sua blusa tinha
algo escrito em letras brancas e não essa caveira. Tenho certeza!
Para a minha sorte, acabamos de cruzar o pontilhão e estamos perto de sua
casa. Não sou famoso por ser bom em improvisar, muito menos com mentiras e,
talvez tenha ficado ainda pior graças ao efeito do cheiro cítrico confundindo a
minha cabeça.
— A donzela está à salvo e em casa! — anuncio ao parar o carro diante do
sobrado amarelo. — E, sabe de uma coisa? — Os olhos azuis-acinzentados
focados em mim, esperando que eu termine a minha sentença, demonstrando que
ela ainda me conhece tão pouco, que não sabe o que virá a seguir. — Você está a
fim de mim, Harper Moon — concluo, fazendo-a arregalar os olhos, chocada. —
Muito. Já que vive reparando até mesmo nas minhas roupas. Infelizmente, não
pretendo ter nada sério, mas podemos trabalhar em alguma coisa. O que acha?
— Que você deve estar fora de si! Sem a menor chance! Esse estilo não me
convence — diz, apontando para mim com desdém, se ajeitando no banco, antes
de sair do carro. — Nos seus sonhos, Liam. Somente lá, algo assim seria possível.
— E então, seus olhos enternecem, se tornando mais quentes, amáveis. —
Obrigada por estar lá.
— Não entre na floresta — aviso mais uma vez e ela aquiesce, ignorando
meu tom autoritário. — Por favor.
— Vou tentar. — Dá de ombros. — Até porque, os vampiros são mais
civilizados e asseados do que lobisomens. Todo aquele pelo... — Faz uma
expressão de nojo. — Além disso, se houver algum vampirão charmoso
interessado, por aí, ele virá até mim, com certeza.
Gostaria de vê-los tentar. A voz colérica garante.
— Talvez. — Sorrio sem humor, encarando a lua que não é mais que um
fio de luz no céu. — Mas algo me diz que os lobos podem te surpreender. Além de
serem mais... quentes.
— É meio óbvio, não é? — Impetuosa, como sempre. Como alguém pode
ser tão irritante e linda ao mesmo tempo? — Lobisomens não estão mortos. Bem,
esse é um ponto a favor, eu acho.
— Boa noite, Harper Moon — me despeço, ainda sorrindo de seu modo de
pensar e a facilidade de desenvolver qualquer assunto.
— Até mais. E... obrigada, Liam Ashbourne — responde, antes de subir os
degraus e hesitar um pouco, me olhando por sobre o ombro, antes de entrar em
casa.
Só depois que o faz, estaciono o carro algumas casas depois da sua e vou
até a pequena botica da Sra. Holloway, encontrando-a sentada em sua cadeira de
sempre com um sorriso estranho no rosto.
— Tudo exatamente como tem que ser — comenta, em suas mensagens
cifradas de sempre. — Já está em comunhão com seu lobo, criança? — Os cabelos
muito acinzentados são como tufos de algodão saindo da toca vermelha e a pele
enrugada de seu rosto se estica brevemente em um sorriso, diante do meu silêncio.
— Quase. Entendo. — Abre a porta do pequeno armário de madeira e me entrega
o frasco antigo com o líquido esverdeado. — É o último.
— Sra. Holloway, sabe que Jasper não pode... — Ela ergue a mão, me
interrompendo.
— Se tudo correr como deve ser, não será mais necessário. — Sorri e, sem
querer discutir com ela, pego o frasco e lhe entrego o dinheiro, me virando para
dar logo o fora daqui, mas ela volta a falar quando estou na porta: — Ele a
escolheu, não é? — Aponta em direção à casa metros à frente. — Precisa mantê-la
a salvo, Alpha. É a sua missão.
Penso em voltar para questioná-la, mas pelo olhar distante em seu rosto,
ela não me dirá nem mais uma palavra. Antes de ir, encaro a pequena moradia
colorida que se destaca do acinzentado comum da cidade, e a pequena janela
iluminada no topo da casa.
Se, ao menos, as coisas fossem diferentes...
Mas não são.
Mantenho o maxilar travado, enquanto cravo meu olhar nos olhos graves e
sérios do reitor. Por fim, ele engole em seco, e corre os olhos pela sala ampla,
decorada com o mesmo luxo do escritório de um mafioso dos anos cinquenta —
com direito a charutos e cinzeiros pesados de material dourado.
— Ash, não pode esperar que eu simplesmente interfira na vida de outra
aluna, dessa forma.
— Tenho motivos para crer que ela esteja em perigo — retomo o discurso
de alguns minutos atrás. — Faça o que tem que ser feito.
— Tudo bem. — Esfrega a mão no rosto, preocupado. — Vou pensar em
algo, mas o prefeito não vai gostar nada disso. Ela é uma Lawson.
— E eu sou um Ashbourne e estou sendo cortês ao fazer um pedido. — Se
eu sou a porra do Alpha, é bom que eles passem a me ouvir, não é?
O homem mais velho, que sempre esteve presente na minha vida, desde a
infância, apenas concorda em silêncio, se jogando na cadeira de couro marrom-
avermelhado.
— Considere feito. — Seus olhos verdes se estreitam ao ver minha
satisfação, antes de sair dali para evitar mais um sermão sobre minhas
responsabilidades e toda a merda que vem com ela. — Espero que saiba o que está
fazendo, Ash.
Somos dois, então.
As mãos largas tocam o meio das minhas costas, puxando-me mais
contra o corpo quente, como se estivesse me protegendo de algo que ainda
não consigo ver. Um rosnado leve irrompe do peito forte, mas não me
afasto.
— Liam... — chamo e sinto seu aperto aumentar.
Um uivo alto é o bastante para arrepiar os fios da base da minha
nuca, mas ele não se afasta, nem me puxa para sairmos dal,i antes que a
fera que se anuncia chegue até nós. Ao invés disso, o aperto firme de suas
mãos aumenta ainda mais, machucando a carne das minhas costas à
medida em que sinto as garras afiadas penetrarem a minha pele.
— Ash... — Tento me mover, mas não consigo. — Liam, por favor.
Eu me debato em seu abraço férreo e tento me desvencilhar,
chamando seu nome várias vezes, sem sucesso. Porém, quando o lobo
imenso e branco aparece, Liam recua. Sinto o vento frio da noite bater em
meu rosto e, então, de repente, como se o quarterback do Warrior Wolves
tivesse se desintegrado nas sombras da noite, estou sozinha à mercê da
fera, que saliva por mim, apenas a alguns passos de onde estou.
Focada na ponta das minhas botas pretas de cano curto, tento não
olhar em direção ao sujeito loiro com cara de cachorro que caiu do
caminhão da mudança, do outro lado do campus. Tento também, não gritar
de ódio e sair chutando as lixeiras no meu caminho, enquanto seguro a
porcaria da folha que acabo de receber da secretária gentil do reitor.
E pensar que até me preocupei quando fui gentilmente convidada a
comparecer na reitoria, alguns minutos mais cedo. O maldito sequer olhou
para a minha cara ao declarar que eu precisaria cumprir alguma atividade
extra para equiparar a grade da Universidade Estadual em que eu cursei os
dois primeiros semestres.
A desventura foi ter que escolher entre as duas opções gratuitas:
Robótica ou fazer parte do squad[2]das líderes de torcida, sob o olhar
ansioso e brilhante de Victoria, que celebrou o fato como se fosse algo
incrível, ao invés de uma oportunidade ótima de acabar quebrando uma
perna ou o pescoço em um daqueles movimentos cheios de firulas.
A cada minuto que passa, a ideia de aprender a programar os
computadores e fazer sabe-se lá o que eles fazem, me parece mais
interessante. Se não bastasse isso, ter que lidar com o olhar triste de Chad,
que tentou falar comigo no início das aulas e foi dispensado por Vicky que,
é claro, ficou do meu lado quando contei a ela sobre o ataque estranho do
bonitão no carro. É mais do que uma garota, que não dormiu mais de quatro
horas durante essa noite, pode aguentar.
Minhas botas pretas e suas fivelas prateadas são muito mais
interessantes e ainda combinam com a minha jaqueta de couro, que me
deixou com cara de problema, segundo Mack fez questão de ressaltar
quando me encontrou no refeitório, mais cedo. Ao contrário de seu amigo
que, após me cumprimentar brevemente, se manteve longe de nós e atento à
tela do seu celular de última geração.
É o que dá, ser um dos herdeiros das riquíssimas famílias
fundadoras do lugar. Os Lawson também fizeram parte dessa seleta lista,
em algum momento, mas é claro que um dos nossos antepassados cabeça
oca acabou gastando toda a fortuna familiar em negócios escusos que só lhe
renderam prejuízos, restando apenas o sobrado amarelo e uma participação
pequena na universidade; o que me garantiu um desconto bastante
interessante, diga-se de passagem.
— Ai, que merda! — Vicky, que conversava com Lia, uma das
minhas novas companheiras de squad. Yeeeei! Fala, irritada. — Ele tá vindo
pra cá.
Ergo o olhar e o vejo caminhando em nossa direção. A mochila
jogada em um dos ombros e a cara arrependida no rosto angelical. Que
saco.
— É melhor lidar com isso agora — digo à minha prima, que parece
prestes a dispensar o garoto de novo. — Ele não parece disposto a desistir.
— Ela tem razão — Lia concorda. — Além disso, ele é bem
gatinho.
Não discordo, mas tenho zero interesse e é bom deixar isso claro o
quanto antes. Deus me livre de começar a ser perseguida por um bando de
universitárias frustradas, por acharem que estou de olho no “presente de
Deus” delas.
— Lia, escolha um número de um a cem — digo à ela, sem me
importar que o filho do prefeito, que hoje veste calça cáqui e um suéter
quase branco, já esteja perto o bastante para ouvir.
— Cinquenta e três. — Nossa, que escolha interessante.
— Nossa, que incrível! Você venceu! Ele é todinho seu! — Abro o
meu sorriso mais brilhante, enquanto Lia e Vicky gargalham.
Pelo menos, até Chad parar à nossa frente e, de forma charmosa,
feito um príncipe encantado, pentear seu topete de fios muito loiros, com os
olhos claros focados em mim.
— Harper? Será que podemos conversar? — Não digo nada, apenas
espero e ele entende que pode continuar. Não me importo que os outros
alunos por perto estejam olhando, apenas aguardo. — Olha, eu fui um
idiota. Tinha bebido um pouco e passei dos limites. — Conserta a mochila
nos ombros e o cabelo. — Não justifica, mas... Eu tive muito medo do que
poderia ter acontecido por minha culpa. Me perdoe, Harper. Espero que
possamos ser amigos.
Eu posso ser durona, mas meu coração é mole, e eu posso provar.
Bem, a verdade é que nós dois estávamos afetados pela bebida e nem
deveríamos estar naquela porcaria de carro, para começo de conversa. E não
é como se eu sequer cogitasse ser mais do que amiga de Chad em algum
momento.
— Nós dois não estávamos bem — digo a ele. — Olha, eu sei que
você e os caras do Warrior Wolves parecem ter uma história mal resolvida,
ou algo assim, mas eu não tenho nada a ver com ela. Que isso fique claro,
Chad. — Ele concorda rapidamente. — Estamos bem, ok? — Sua
expressão se abre, de repente, mais confiante. — Só não faça de novo.
— Eu prometo que vou me comportar — garante. — Me perdoe,
mais uma vez. Não sei o que...
Mas Chad, o príncipe encantado, não termina sua sentença. Ele não
tem tempo de fazê-lo, antes que o sujeito, vestido em suas roupas
totalmente pretas e o cabelo constantemente atrapalhado pelo capacete,
como sempre, se aproxime de nós com uma expressão homicida em seu
rosto bonito. Até que puxa o outro pelo ombro, virando-o para encará-lo e,
ao mesmo tempo, se colocando entre nós.
— Graymane, vou avisar apenas uma vez — ele diz, com seus olhos
escuros focados em Chad. — Você não chega perto de Harper Lawson.
Você não fala com ela, não olha para ela e não respira perto dela, ouviu?
O outro garoto sorri, debochado, ignorando a raiva evidente no tom
imperativo do quarterback e capitão do time de futebol da universidade.
— Você sabe que não pode me impedir, Ashbourne — Chad
provoca, com um risinho que deixa claro que há muito mais entre eles do
que apenas o que aconteceu na outra noite.
— Nem você, nem ninguém, Graymane — Os olhos escuros correm
pela pequena multidão atraída pela ceninha degradante. —, vai tocar em um
fio de cabelo escuro da cabeça dessa garota. Perdeu esse direito quando a
deixou sozinha dentro da porra da mata fechada, porque é um covarde filho
da puta!
— Tudo bem! Vamos parar agora com essa merda toda. Agora! —
digo aos dois, ignorando todos os olhares sobre mim. — Liam...
Os dois olham para mim na mesma hora. Chad, com uma expressão
chocada, e Liam, bem, não consigo decifrar a tempo, porque um dos idiotas
não consegue ficar calado e encerrar essa discussão infantil.
— Liam? — Chad ecoa o que acabo de dizer. — Sempre querendo o
que não podem ter… vocês precisam aprender os seus lugares, seus cães de
merda!
E esse foi o momento em que o filho do prefeito decretou o início da
briga, murmurando para Ash algo que não entendo, mas que parece
inflamar ainda mais o líder do Warrior Wolves, fazendo-o agarrar o outro
pelo colarinho da camisa e acertar um soco em seu rosto. É claro que não
demora muito para que os dois estejam se engalfinhando, feito dois
brutamontes, enquanto eu grito ao redor, tentando contê-los.
Nesse momento, eu juro que poderia me envolver nessa droga de
disputa, apenas para enfiar a mão na cara desses dois idiotas. Que merda!
— Saia do caminho, Harper. — Jasper agarra minha cintura, quase
me tirando do chão enquanto tenta me segurar, mas eu me afasto, retirando
suas mãos de mim. — Você vai se machucar e isso só vai deixar Ash ainda
mais furioso.
— Isso tudo é tão ridículo! — esbravejo, correndo para perto deles,
tentando inutilmente fazê-los parar. — Liam! — Me enfio entre os dois,
quando Chad acerta um golpe na lateral do rosto de Ash, que se
desequilibra por um segundo, antes de armar outro golpe.
Agarro com força os ombros do motoqueiro perigoso e não recuo.
Nem mesmo quando seus olhos, que assumiram um leve brilho
estranhamente prateado e assassino, focam em mim.
— Liam! Para com essa merda! — grito, e após mais um olhar para
mim, assisto enquanto ele deixa os braços caírem ao lado do corpo.
Respirando pelo nariz de forma pesada e intensa, visivelmente machucado
pelo soco do idiota que também luta contra as pessoas que tentam levá-lo
para longe dali.
O burburinho ao nosso redor aumenta, enquanto Chad, que não deve
estar muito melhor do que o garoto à minha frente, é finalmente contido e
arrastado para longe daqui, ameaçando todo o time de futebol. Senhor, dai-
me paciência para lidar com a quinta série que parece ter se mantido
nesses caras. Sobretudo no garoto que tento conter e que, nesse momento,
sangra pelo nariz e pela boca, além do leve arroxeado perto dos olhos, mas
segue parecendo furioso.
Tão irremediavelmente raivoso que, com um grunhido, se
desvencilha das minhas mãos, me empurrando acidentalmente com a lateral
de seu corpo ao passar por mim a caminho de sua moto, mas não tão rápido
para que eu não perceba o quanto treme e está visivelmente descontrolado.
— Ah, mas não vai fazer isso mesmo! — exclamo, já seguindo em
sua direção, antes que ele acabe se estourando todo por causa dessa
confusão idiota, que, por algum motivo, me faz sentir um pouco
responsável, apesar de saber que não tenho nada a ver com essa merda de
rixa entre os dois imbecis.
Confusão? A gente vê por aqui. E, dessa vez, eu pareço estar bem
no centro dela. Maravilha.
Preciso respirar. Foco na expansão do meu diafragma, tentando acalmar a
fera colérica e furiosa em meu interior, que tenta se libertar a todo custo, desde a
maldita hora em que vi aquele covarde mimado dos infernos conversando e
sorrindo para Harper Lawson — outra pedra no meu sapato.
Não feliz de se mostrar constantemente em meu pensamento — e em todos
os meus sonhos, nos últimos tempos —, ela não podia facilitar e mandar aquele
babaca passear. Claro que não. Ela tinha que abrir uma porcaria de sorriso e
perdoá-lo por deixá-la à mercê de seres sobrenaturais que poderiam apagar a luz
daqueles olhos azuis com apenas uma bocada.
Caralho! Que hora de pensar nessa merda!
O calor, que passei a reconhecer tão bem — desde os doze anos, quando
me transformei de forma dolorosa e solitária pela primeira vez —, me faz arrepiar
dos pés à cabeça e o tremor do meu corpo se torna quase incontrolável.
Ninguém vai tocar nela — o lobo garante, de forma solene. — Harper
Moon Lawson é minha.
Só que não. Tento avisá-lo. Convencê-lo de que isso só nos trará decepção,
problemas e um coração partido, nada mais. E não ajuda o perfume dela me
envolver enquanto seus passos determinados se aproximam, rápido demais, de
onde estou.
Preciso sair daqui.
— NÃO SE ATREVA, LIAM! — Que garota irritante do caralho! Estou
fazendo a porra de um favor a nós dois, será que ela não percebe? Com uma
corridinha ridícula, batendo a bota de salto médio contra o asfalto, fazendo-a se
desequilibrar e quase cair, se eu não apoiasse seu corpo contra a lateral da minha
moto, Harper, a causa de uma parte das minhas aflições atuais, está colada à mim e
seu arfar de surpresa, seguido do cheiro delicioso, faz o imbecil dentro de mim
ronronar, como a porra de um gatinho, e o meu coração bater descompassado. —
Que idiotice foi essa, lá atrás? — seus lábios pintados de rosa-claro perguntam,
perto demais de mim. — Meu Deus, olha o seu rosto! Desce da moto, eu não vou
te deixar sair assim.
— Não vai... deixar? — ironizo, fazendo-a elevar a sobrancelha em
desafio, arrancando uma gargalhada minha. — E como pretende me impedir,
Harper Moon?
— A menos que vá passar por cima de mim... — A teimosa se afasta,
colando-se em frente à minha moto e abrindo os braços. O movimento faz a
jaqueta de couro preta se abrir, revelando a blusa branca curta e a pele macia de
sua barriga. Involuntariamente, respiro fundo, tragando seu perfume para dentro
de mim, completamente viciado na essência única. — Por favor, vamos cuidar
desse rosto. — Franze o cenho, como se estivesse preocupada. — Tá horrível.
Mas que merda do cacete.
Desço da moto sob o olhar vitorioso da garota muitos centímetros mais
baixa do que eu e a sigo, sob o olhar chocado das pessoas que ainda ficaram por
ali depois da confusão e dos meus amigos, que também não parecem acreditar no
que estão vendo, antes de começarem a rir feito hienas. Um bando de babacas.
— Há uma enfermaria próxima ao campo — ela comenta por sobre o
ombro, quando me vê parado há alguns passos de distância. Isso vai dar merda.
Mas não consigo evitar. Com o rosto já começando a inchar, pelas
porcarias dos golpes que aquele filho da mãe conseguiu acertar, sigo-a através do
campus, andando lado a lado com a Intrépida Lawson, que parece não se importar
com os olhares que todos lançam quando nos veem juntos a caminho do campo.
Alguns minutos, e muitos passos, depois, chegamos à tal salinha
minúscula, chamada de enfermaria apenas por ter uma caixa de primeiros socorros
em uma prateleira velha e uma maca bastante instável em um canto. E o pânico
começa a me invadir. Seguir a garota até aqui não foi problema algum, mas ficar
em uma sala abafada, com seu cheiro inebriante tomando conta de tudo, é uma
tortura pela qual não estou nem um pouco ansioso. E esse é o motivo que me faz
ficar parado no lugar, feito um idiota, enquanto ela entra e começa a tentar
alcançar a prateleira mais alta.
— Liam? Será que você... — ela arqueja quando me nota às suas costas.
— Só você me chama assim.
Além do meu pai, claro. Comento, sem entender o motivo do comentário,
enquanto pego a caixa com facilidade e entrego a ela.
— Eu sei. Faço apenas para te irritar — confessa com um sorriso largo e
satisfeito. — Você ainda está tremendo. — Observa minhas mãos e então, aponta
para a cadeira antiga a alguns passos de nós. — Sente-se ali e me deixe cuidar de
você.
Agitado e um tanto incerto, me sento e espero, enquanto ela tira algumas
gazes, antissépticos e esparadrapos para cobrir as feridas que, possivelmente, terão
cicatrizado até as primeiras horas da noite, mas não é como se eu pudesse contar a
ela.
“Então, não preciso disso. Eu sou a porra de um lobisomem e, bem, esses
ferimentos nem existirão amanhã.”
Tarde demais para voltar atrás. — E, nesse momento, o aviso é
redundante.
Depois de separar tudo em silêncio — totalmente concentrada — Harper
lava as mãos em uma pia pequena, nos fundos do lugar, e caminha em minha
direção. Em seguida, segura o meu queixo, erguendo meu rosto, analisando-o por
alguns minutos, concentrando-se por tempo demais em minha boca. Como que por
reflexo, seus lábios se entreabrem e ela exala, mas não diz nada, apenas segue em
seu propósito, embebendo um chumaço de gaze em um antisséptico fedido e
começa a limpar os ferimentos.
Primeiro meu supercílio, arranhado pelo punho do fracote de merda; logo,
a lateral que lateja de forma incômoda, e então; o nariz e o canto direito da minha
boca, que arde um pouco por causa do produto. Não sei dizer em qual momento o
clima muda. Mas acontece.
Talvez o modo como se encaixou, de pé entre as minhas pernas, ou ainda o
fato de seu dedão acariciar de leve meu lábio inferior, como se tivesse sido tomada
por uma vontade inadiável. Fecho meus olhos e mantenho a cabeça apoiada no
encosto alto da cadeira, facilitando o caminho das mãos frias que deslizam pelas
laterais do meu rosto, estudando cada reentrância, ferimento e algumas cicatrizes,
apenas para voltar aos meus lábios.
Incapaz de me refrear, beijo e mordisco a ponta de seus dedos, pegando-a
de surpresa, e abro os olhos rapidamente quando ela recua, arquejando. Seu
coração batendo forte dentro do peito, correspondendo a cada batida insana do
meu, consumindo o meu juízo completamente.
Tarde demais para voltar atrás.
Puxo-a de volta, encaixando-a entre as minhas pernas mais uma vez e
mantenho-a aqui, minhas mãos firmes em seus quadris, até deixar uma deslizar
pela lateral do seu braço, acariciando levemente a pele macia do seu pescoço antes
de afundá-la ali e, com um puxão forte, trazer sua boca para a minha.
A sensação do sabor inigualável de sua boca, explodindo em meu paladar,
era algo inimaginável para mim, até esse exato momento. Porra! Suas mãos se
apoiam antes de deslizarem pelos meus ombros, as unhas arranhando de leve meus
braços e então, passeando de volta, até alcançarem a minha nuca, enquanto nossas
línguas se encontram em uma dança sensual para caralho.
Minha.
Incapaz de me manter nessa posição, com ela tão longe, me levanto, sem
deixar sua boca, trazendo-a para ainda mais perto enquanto seguimos nos
devorando em um beijo intenso e desesperador. Uma de suas mãos está alojada em
meu pescoço, enquanto ergo-a em meu colo e suas pernas circundam a minha
cintura à medida em que nossas bocas se movem uma contra a outra sem
descanso.
Minha — a fera ruge dentro de mim, exultante.
Assustador e totalmente impossível. — Relembro a ele. E a mim mesmo.
Sem fôlego, colo minha testa à dela, nós dois respirando ofegantes,
enquanto apoio seu corpo na maca preocupantemente frágil, que range sob o peso
de seu corpo, embora ela ainda esteja agarrada a mim.
Como deve ser.
Não.
Não podemos. É proibido.
Que tentem nos impedir.
— Por favor, Deus, que eles não estejam pelados! — a voz divertida do
lado de fora anuncia que nosso tempo a sós terminou. Jasper avisa. — Vocês têm
cinco minutos, antes que os outros venham. Aproveitem!
Harper sorri e a beijo mais uma vez. Embora não devesse.
— Oi... — Mais um sorriso. Caralho de mulher linda. Mais um beijo,
porém, mais demorado dessa vez. — Por essa, eu não esperava.
Sorrio, me afastando um pouco, ajeitando sua roupa que acabou ficando
toda atrapalhada depois do nosso descontrole. Principalmente, meu.
— Mentirosa — acuso, deslizando o dedão por seu lábio inferior. —
Aposto que esteve sonhando com isso, desde que me viu pela primeira vez. Eu sei
que me acha um gostoso, Harper Moon.
— Que mania chata! — reclama, dando um tapa fraco demais em meu
ombro, por usar seus dois nomes. — Pois eu tenho certeza de que foi o contrário.
Sim, eu sonhei com você. Mas não admitirei de forma alguma. Que bem
isso faria?
— Harper... Isso — Engulo em seco. — não deveria ter acontecido. Eu sou
um cara...
— Malvadão e que não se apega e blá, blá, blá. — Revira os olhos azuis-
acinzentados. — Foi apenas um beijo, Liam. Nós dois vamos ficar bem. — Beija a
lateral do meu rosto e pula para fora da maca. — Se você e o seu amigo não
saírem espalhando isso por aí, ninguém saberá.
— Melhor — concordo, apesar do gosto horrível em minha boca. — Nos
vemos por aí?
— Infelizmente. — Dá de ombros, pegando sua mochila na mesa em que a
caixa de primeiros socorros está. — Até mais, Liam. Se cuida, tá bom? E coloca
algo nesse olho, ele vai inchar mais.
— Obrigado. — A força que faço para manter meus pés no lugar e não
avançar sobre ela, e beijá-la mais uma vez, é tanta, que sinto as falanges dos dedos
doloridas.
— Agora, estamos quites, amigo — provoca e sai da sala.
E não olha para trás nem uma vez.
Me asseguro disso.
Após jantar com minha prima e tia Lin na cozinha — uma sopa de batatas
com bacon que me fez repetir mais de uma vez, algo que deve impactar
diretamente no meu condicionamento físico deplorável nos treinos de
cheerleading [3]— me despeço delas e vou caminhando em direção ao meu quarto.
Talvez, um relaxante muscular seja necessário para combater a dor nos
meus braços — aquela merda de pompom dos infernos é uma arma de tortura.
Aposto que o sorriso no rosto daquelas meninas é de nervoso. Só de pensar que
temos treino depois de amanhã, com aqueles objetos que fingem ser leves, sinto
vontade de chorar.
Subo a escada charmosa com seus degraus de madeira envelhecida e chego
ao meu novo lugar preferido no mundo todo. Não dou mais do que três passos e já
caio na cama, fechando os olhos e me entregando à preguiça, enquanto espero a
hora de ligar para minha mãe. Já faz três dias desde a última vez que nos falamos e
tenho certeza de que ela vai fazer disso o drama do século.
Me viro de barriga para cima sobre o colchão novo e encaro o teto de
madeira, observando as reentrâncias e os sulcos ali, evitando a todo custo pensar
em certo jogador do Warrior Wolves e no modo como um simples e inocente beijo
no rosto me fez suspirar. Isso é idiotice, Harper.
O telefone, ainda ligado ao carregador na mesa de cabeceira, apita e vibra
sem parar, enquanto suspiro e me preparo para lidar com o drama de dona
Marianne, mas meu coração se alegra imediatamente, quando vejo o rosto
iluminado de Andy que, na foto em questão, usa um chapéu azul cobrindo os fios
loiros.
— Alguém foi, finalmente, liberto de seu cativeiro? — digo, sem me
importar em cumprimentá-lo antes. Somos assim.
— Graças aos céus e ao meu pai, que começou a fazer chantagem usando a
carta do “coração”. — Desde o infarto, o Sr. Parson tem usado esse recurso com
frequência para convencer a esposa a quase tudo o que ele quer. — Mas foram
semanas na caverna. — Faz um beicinho triste. — Senti sua falta.
— Nossa, nem me fale! — Descanso as costas contra à cabeceira de
madeira rústica e encaro o sujeito alto e loiro na tela. — Por que você parece
diferente?
— Mais bonito? — questiona, coçando o queixo. — Não responda. Quero
manter minha autoestima onde está. — Gargalho, porque ele me conhece bem
demais. — Bom, há realmente algo de diferente por aqui.
— Se for uma nova melhor amiga, vou desligar — aviso. Embora não creia
que eu vá mesmo fazer algo assim.
— Uma amiga com benefícios, conta? — o safado pergunta e abre um
sorriso cafajeste. — E um amigo?
— Você é um safado! — Sorrio para o idiota do outro lado, que revira os
olhos.
— Não estou enganando ninguém. — Dá de ombros. — Além disso, não
prometemos exclusividade. E você? — Estreita os olhos. — Já encontrou seu
fazendeiro ricaço e rústico?
— Nem um, nem outro. — Finjo tristeza. — Mas fui perseguida por um
cachorro enorme, tenho uma “amizade” estranha com o famoso capitão dos
Warrior Wolves e com alguns membros do time e, prepare-se para essa revelação
chocante: Sou a mais nova integrante das líderes de torcida.
Quando Andy cospe a água que estava bebendo diante da piscina
incrivelmente azul de sua casa, eu compreendo seu choque. Se fosse eu, contando
a mim mesma do passado, não acreditaria; já que sempre ri das garotas saltitantes
e sorridentes balançando seus pompons coloridos no ar.
Instrumentos de tortura.
— Você tá pegando o gato do Ashbourne? — E o choque do meu amigo
me acerta diretamente no ego.
— Não vamos viajar na maionese, ok? E, de tudo o que eu falei, é isso que
o deixa mais chocado? — Sorrio. Não nego e nem confirmo a informação, mas
também não acho que precisaria. Meu amigo me conhece o bastante para saber
quando estou escondendo algo.
— Não vamos — concorda e aproxima o rosto da câmera, seus olhos muito
claros brilhando de curiosidade. — Ele é tão malvadão quanto parece? — Sorrio
ao me lembrar da noite em que cheguei à cidade, pouco mais de dois meses atrás.
Como o tempo passa rápido, não é? Lembro-me do sujeito insuportável que quase
me atropelou outro dia mesmo, naquela primeira noite. E depois, dançou com o
corpo colado ao meu naquela festa, me salvou do cachorro e teve a noite na
floresta… — Pela carinha de sonhadora com tesão encubado: sim, ele é realmente
tudo de que ouvimos falar.
O idiota tira suas próprias conclusões e não vou perder tempo tentando
convencê-lo do contrário.
— Ele é insuportável, na maioria das vezes. — Sorrio ao me lembrar de
suas provocações baratas, mas então, a imagem dos seus olhos escuros
preocupados e o modo como me abraçou de forma protetora, após me resgatar,
vêm à minha mente, me obrigando a fazer uma retratação. — Mas, sim, ele pode
ser interessante. E também é bem bonito. E tem um cheiro delicioso.
E um beijo que me convenceria fácilmente a qualquer coisa.
Do outro lado da tela, uma discussão acalorada toma conta do áudio e,
aparentemente, como não possui a “carta do Infarto”, Andrew Parson não foi
liberado do detox de tecnologia, como imaginava.
— Às vezes, acho que ela não se lembra de que eu já passei dos vinte anos.
— Estala a língua. — Preciso ir, antes que a Terceira Guerra Mundial aconteça por
causa dessa merda de telefone. Graças a Deus, só mais uma semana até estar de
volta ao meu dormitório. — A voz de sua mãe domina a conversa e ela o xinga
copiosamente, acusando-o de estar manchando e contaminando a energia da casa.
— Nada de sexo virtual para nós, essa noite, linda. Eu te amo e tô com saudade!
— exclama de forma exageradamente triste, antes que sua mãe apareça na tela,
acenando para mim em uma despedida rápida e desligando o telefone.
Mães malucas e filhos igualmente loucos. — Esse sempre foi o nosso lema.
Desde a sexta série, para ser exata, quando salvamos um sapo de ser atingido com
sal por um bando de moleques cruéis e o jogamos na estrada ao lado da escola,
apenas para ser atropelado por um caminhão lotado de cerveja.
O que conta é a intenção, não é?
Mais uma noite na qual acordo com o som irritante das patas pesadas
cruzando a rua em frente à nossa casa. Pressiono a tecla do telefone em minha
mesa de cabeceira e constato que são apenas três da manhã e que as minhas
chances de conseguir voltar a pegar no sono são quase inexistentes. Maravilha.
O animal bufa e faz um som estranho, como se estivesse farejando, bem
abaixo da minha janela — ou, pelo menos, é onde imagino que esteja, já que
parece ainda mais perto agora. Não sei se agradeço pelo que pareceu uma
manifestação de apoio ou se abro a janela e xingo o maldito bicho, ou monstro,
mandando-o me deixar em paz.
— Já não bastam os pesadelos? — resmungo comigo mesma ao ouvi-lo
emitir um gemido grave mais uma vez, quase uma risada. — Ei, não me julgue! —
reclamo e, mais uma vez, como se me entendesse e ouvisse, o animal rosna.
É um novo tipo de pesadelo, só pode. Onde interajo com a criatura enorme
e peluda do lado de fora.
Incapaz de resistir, alguns minutos depois, abro uma pequena fenda na
cortina e, dessa vez, graças aos céus, sem sinal daquele maldito lobo branco com
seus olhos maléficos por ali. Tudo o que consigo ver é um vislumbre breve de um
lobo peludo e escuro feito a meia noite, desaparecendo em meio à neblina.
Me levanto rapidamente e acendo um incenso: Não custa nada prevenir,
não é?
Jogado na cama de barriga para cima, respiro fundo e tento me acalmar.
Preciso estar pronto para mais uma conversa desagradável e cheia das cobranças
de Owen Ashbourne, meu genitor, preso em uma casa de repouso desde que
perdeu o controle de seu lobo; causando toda a merda que resultou nos Acordos
idiotas, que deixou a minha geração escrava de seus erros.
É culpa dele que Jasper tenha que se entupir daquele elixir fedido para
manter seu lobo obediente e distante de Victoria Miller. Possivelmente, eu serei o
próximo a ter que fazer uso da porcaria leitosa e esverdeada, para que eu desista
de acompanhar cada passo de Harper Moon Lawson.
Porra! Seu segundo nome parece a merda de uma provocação.
Até mesmo ele me atrai.
Apenas de estar pensando em seu nome, o que domina a minha mente é a
lembrança do toque macio de sua boca, das mãos delicadas puxando forte o meu
cabelo e o seu cheiro e gosto dominando o meu paladar. Caralho! Sinto meu pau
latejar sob a calça de moletom, assim que a memória do sabor daquela boca
gostosa me atinge com tudo.
“Minha.” — O filho da puta peludo que habita a minha pele determina,
mais uma vez.
Isso é burrice. — aviso a ele, tentando obrigá-lo a se esquecer dessa merda.
É impossível. Errado. E não vai acontecer novamente. Escolha outra — qualquer
uma.
“Não.”
Filho da puta, masoquista!
Indócil, ele traz de volta à memória os gemidos baixos e a sensação
inebriante do corpo quente colado ao meu. Esse filho da mãe está fissurado por
ela, demandando por tê-la novamente em meus braços, desejando ter mais dela.
“Muito mais.”
Eu vou acabar enlouquecendo. Mais lembranças são destravadas e, então,
são seus lábios em meu pescoço e suas mãos apertando com firmeza os meus
ombros, quando deixo a cabeça pender para o lado, abrindo mais espaço para sua
exploração. Ela morde e beija a carne ali, enquanto minhas mãos percorrem a
lateral de seu corpo, acariciando a curva macia dos seios sob a blusa.
De olhos fechados, deslizo a mão pelo meu peito, abdômen e estou prestes
a alcançar meu pau necessitado de atenção dentro da calça, quando meu telefone
toca e um rosnado impaciente ecoa pelo meu quarto — revoltado e frustrado.
Maldita lua cheia!
Soco a porcaria do travesseiro sob a minha cabeça e me levanto, vestindo a
camisa preta que deixei jogada no encosto da cadeira e atendo à merda da
chamada. Nada como uma hora de sermão sobre deveres e responsabilidades para
brochar alguém.
— Em que merda estava pensando, Liam? — Sem nem um “olá, meu filho,
como você está?”
— Sempre objetivo, Owen. — Sarcástico, não consigo deixar para lá. É
por causa da bagunça dele que estamos nessa merda. — Antes que comece com a
merda do monólogo sobre deveres, ouça a minha versão do que aconteceu. — O
homem do outro lado, apesar de não parecer muito feliz no momento, espera. Bem,
pelo menos, ele vai me deixar falar, dessa vez. — Não sei se sabe de toda a
história, mas o babaca do Chad II tentou forçar alguma coisa com a Lawson e ela
fugiu para dentro da floresta. — Ele arregala os olhos imediatamente. — Os
forasteiros estavam à caça dela, mas eu cheguei mais rápido.
A imagem dela, se aconchegando à mim, retorna à minha mente, me
deixando imediatamente duro de novo.
— Porra! — Cerra as mãos em punho e seus lábios se esticam em uma
linha fina.
— Eu a salvei e a levei pra casa. No outro dia, o babaca estava em cima
dela de novo e eu fui defendê-la. — esclareço e, então, aviso: — Não vou estar o
tempo todo disponível para limpar as merdas desse idiota covarde, e foi isso que
eu disse ao reitor Nolan e ao prefeito. E se eles ousarem fazer alguma coisa contra
aquela garota… — apenas nego, incapaz de prosseguir, sentindo a ira tomar meu
corpo.
Ele anui, seus olhos, sempre nublados pelos remédios que o mantém sob
controle, estão mais atentos do que de costume.
— Não faça isso, filho — seu tom embargado me deixa em alerta. — Não
escolha esse sofrimento para si. Ela está além dos limites.
“É tarde demais para voltar atrás.” — sentencia.
— Não farei. — Nunca fui famoso por ser obediente, é bom que o lobo
saiba disso. — Só fiz o meu trabalho.
Owen apenas meneia a cabeça de um lado ao outro, a tristeza em sua
expressão deixando-o mais velho e cansado, apesar dos quarenta e poucos anos.
— Eu espero que sim, Liam. — Ele usa a mão trêmula para tirar uma
mecha do cabelo escuro de seu rosto. — Realmente espero. Seu momento de
assumir o lugar que lhe pertence se aproxima, faça a escolha certa.
E por mais de meia hora, escuto-o falar sobre todo tipo de coisa, enquanto
meu pensamento vagueia por matérias da faculdade de administração, jogadas que
precisamos treinar amanhã e uma garota linda de cabelos escuros que parece ter
prazer em me desafiar, sempre que pode.
“É tarde demais.” — a voz agourenta decreta mais uma vez.
Não ser mais alvo dos olhares desconfiados dos cidadãos mais velhos de
Silent Grove me deu mais tranquilidade para explorar sozinha algumas ruas, e até
mesmo, de encontrar minha própria fornecedora de incensos, para manter os
pesadelos com lobos fora da minha mente. Claro que, substituir as feras peludas
pelo jogador tatuado, ajudou muito com a questão do sono, porém, é triste acordar
frustrada e sentindo falta de algo que, desde o início, eu sabia bem que não daria
em lugar algum.
Bem-feito para mim.
Estou a caminho da lojinha de artigos esotéricos, o verdadeiro paraíso dos
amantes dos cristais e amuletos, em busca de mais daqueles incensos lilases,
quando vejo uma estranha movimentação na tal construção abandonada, cuidada
pelas estátuas cobertas de lodo.
Prestes a entrar na lojinha — onde a dona, uma mulher bastante
interessante, me deu um colar prateado com uma espécie de líquido roxo no
centro, um acessório que não combina muito com o meu estilo e que preferi deixar
dentro do meu baú de quinquilharias, no meu quarto — quando vejo o professor
Greyson, descer do carro e entrar rapidamente no lugar, olhando para os lados de
forma um tanto suspeita.
Ou talvez, eu só esteja entediada e um tanto desanimada com o meu
compromisso dessa tarde, e esteja inventando qualquer motivo ou circunstância
que me desobrigue de cumprir a minha palavra. Terrível, eu sei.
Apesar de curiosa, ignoro o fato e entro na lojinha, logo sendo recebida
pela moça excêntrica que começa a me mostrar as novidades do início da semana
e que perfumarão meu quarto em breve.
— Querida, por que não está usando o colar que te dei? — ela questiona
quando está no balcão, passando a minha compra, que consiste em duzentos novos
incensos divididos, em quatro essências diferentes.
Minha mãe ficaria orgulhosa de mim.
— Ele não combinava muito com a minha roupa de hoje. — Aponto para a
minha camisa verde e a mulher estreita os olhos por trás das lentes grossas.
— Não o tire — avisa em um tom severo. — É para te manter segura e
longe das garras dele.
O modo como ela fala, com um olhar genuinamente apavorado, me faz
arrepiar da cabeça aos pés. A visão de mim mesma, vestindo uma bata indiana
clara por cima da calça de linho vermelha, como o manequim da vitrine, não me
parece algo tão improvável assim, nos últimos tempos.
— E quem seria ele? — Tudo bem, já estou aqui mesmo, não é? O que
custa um susto a mais ou a menos?
— O lobo branco que ronda a cidade. — E aqui está o maldito arrepio de
novo. Como é que ela sabe sobre ele?
Um tanto desconcertada e prometendo usar o cordão, saio da loja correndo
e paro na esquina, resfolegando. Diante da espécie de igreja abandonada na qual o
professor entrou, enquanto tento normalizar meus batimentos cardíacos.
Como é que ela sabe do lobo branco?
Um carro escuro passa por mim e para alguns metros adiante, o prefeito
desce do veículo e, parecendo também bastante suspeito, entra no tal local que
deveria estar abandonado. Ou, pelo menos, era isso o que eu pensava. Desisto de
esperar e atravesso a rua, me escondendo entre os galhos secos, antes de virar pela
porta lateral por onde entraram.
E eu devo estar realmente ficando maluca. Será que ter a sensação de
estar sendo caçada por um lobo gigante não é o bastante para tirar o meu sono?
Do lado de dentro, as vozes, potencializadas pelo eco do local vazio, falam
sobre novos ataques e sua preocupação com a população da cidade em perigo. Sei
que não deveria estar aqui, mas não consigo me mover. O delegado, pai de Eli,
entra por outra abertura, e então, eles voltam a falar sobre corpos mutilados,
enquanto passam uma pasta de mão em mão.
— Está atrasado — o prefeito diz ao sujeito de calças escuras que não
consigo ver direito de onde estou.
— Estou na hora certa — a voz, que eu reconheceria em qualquer lugar,
ecoa pelo espaço vazio e acerta direto em meu peito. Ash. — Esse lugar está
caindo aos pedaços e é suspeito para um caralho. Essas reuniões poderiam
acontecer na reitoria.
— Ele tem razão — o reitor Nolan, reconheço a figura larga de costas para
mim, fala. — Mas, já que estamos aqui... Algo tem que ser feito, urgentemente.
— É como se eles estivessem em busca de algo — Ash afirma, andando
pelo lugar. Me enfio mais para dentro do meu esconderijo. Me sentindo exposta
demais, mesmo que eu tenha certeza de que nenhum deles pode me ver.
— Ou de alguém — o prefeito afirma. — Recebi um comunicado de um
escritório de advogados da capital, essa semana — o homem, que se parece muito
com Chad, pontua — As terras dos Redmayne têm um novo dono. Eles vão me
mandar as informações, mas, talvez, tenha relação com isso.
— Vocês investigaram aquela região? — Greyson, o professor, questiona.
— Não podemos entrar lá — é Ash que responde, de forma autoritária. —
Fomos proibidos pelos Acordos. Mas não conseguimos farejar nada suspeito à
distância.
— Vou mandar que façam uma busca — o delegado da cidade, Frank
Crestmoon, dá um passo à frente. — Mas nada disso muda o fato de que
precisamos de um Alpha à frente do clã.
Ah, merda. É uma seita?
Ainda estou com a toalha jogada no ombro, vestindo apenas uma calça de
moletom preta, quando noto que não estou sozinho na porcaria do meu quarto.
— Da próxima vez, vou me lembrar de trancar a porra da porta. — Esfrego
a toalha nos fios encharcados, sem me importar se estou molhando Jasper, que está
sentado na minha cama, zapeando pelos canais da televisão presa na parede.
— Que cheiro ela tem? — ele não olha para mim ao perguntar, apenas
segue mudando de canal. Como não respondo, ele segue: — Vicky é uma mistura
de lírios e patchouli, e eu posso sentir a quilômetros de distância; o que indica que
eu o sinto ao tempo todo, como uma garantia de que a outra metade de mim está
bem. — Seus olhos castanhos finalmente encontram os meus e meus ombros
caem, derrotados. — Que cheiro Harper tem para você?
— Limões sicilianos, jasmins, maçãs verdes, rosas brancas e cedro — O
colchão afunda quando me sento ao seu lado. —, e desde aquele momento na
floresta, eu não consigo mais senti-lo, e isso está me enlouquecendo.
— Você é o Alpha, Liam. — Sua mão pressiona meu ombro. — Peça ajuda
à Sra. Holloway, talvez, ela dê um pouco do elixir a você. Se eu ainda tivesse...
— Porra, cara, que merda — xingo, derrotado e puto com toda essa merda.
— Nós dois, na mesma.
Jasper gargalha, rindo junto comigo da nossa própria desgraça. Os dois
apaixonados por alguém que nunca poderá ser sua. Não enquanto os malditos
Acordos estiverem valendo.
— E por duas Lawson — Jasper completa. — Merda de lobos filhos da
puta. A Viv é uma gostosa e nada proibida, eu poderia viver feliz com filhos
ruivos.
— Você... como consegue? — pergunto, finalmente. — Quero dizer, o
elixir te ajuda a manter o lobo adormecido, mas e quanto a Victoria?
— Ela sabe sobre mim — admite. — Claro que desconfia de vocês, mas
não tem certeza. O elixir me deixa controlado, mas é Vicky quem tem o poder. E
quando ela pede para que eu me afaste... bem, eu não negaria nada a ela. Nada.
Talvez, devesse tentar. Se Harper pedisse...
A ideia paira entre nós e, mesmo quase uma hora depois de Jasper deixar o
meu quarto, para sua ronda na floresta, sigo pensando se seria uma boa ideia. O
pior, ela já sabe. Que mal faria pedir a ela que diminuísse o estado miserável no
qual me encontro nesse momento?
Pego o telefone que deixei carregando na mesa de cabeceira e procuro pelo
número que Jasper me passou, após implorar a Vicky que nos ajudasse. Aquela
loirinha consegue ser dura na queda. Malditas Lawson, teimosas, terríveis e
viciantes.
L. Ashbourne: Tá aí?
Que idiotice, meu Deus!
Harper M. Lawson: Está tudo bem?
Porra.
L. Ashbourne: Ok. Isso vai soar estranho, mas eu preciso de um favor.
Digitando...
Digitando...
Nada.
Digitando...
L. Ashbourne: Me mande uma mensagem, mandando que eu me afaste,
Harper Moon. Não pense demais, só faça.
Gravando um áudio...
Harper M. Lawson: “— Eu estou me arrumando para ir a uma boate
daqui a pouco com um amigo e preciso que me deixe em paz. Liam, eu realmente
preciso que se afaste. Estou na capital e vou me divertir, faça o mesmo. Sei lá,
correndo por aí, atrás de um coelho. Meu Deus! — uma gargalhada sonora e
então, um lamento engasgado, que faz Wolf erguer a cabeça buscando pela origem
do som — Coitadinho! Não faça isso. Seja vegetariano. Couves! Ataque um
canteiro de couves! Apenas… Pare de ficar pensando em mim!”
Completude.
É fácil imaginar uma vida melhor e cenários mais otimistas, quando tenho
Harper aconchegada a mim, como agora. Assim como foi fácil ignorar todas as
merdas sobrepostas na minha vida quando estava dentro dela; meu paraíso nessa e
em todas as outras vidas, se houver algo assim. Mas, agora, ouvindo-a ressonar
tranquilamente, deitada em meu peito, fico tentando encontrar uma solução para
que possamos ficar juntos, apesar de tudo.
“Não se afaste.” Ela pediu, olhando nos meus olhos, ao mesmo tempo que
nos perdíamos um no outro. Como eu poderia fazê-lo? Ainda mais, agora, quando
cada célula do meu corpo tem sua marca. Mesmo que eu não a tenha marcado
como gostaria; me derramando nela, deixando nossa essência em seu corpo,
decretando a qualquer um que ela é minha e de mais ninguém; eu não consegui
escapar.
Forjar nosso vínculo envolveria muito mais do que aconteceu entre esses
lençóis. Como lidar com todas as regras que nos impedem de ficar juntos e com o
medo terrível de que o que aconteceu com meu pai possa vir a acontecer comigo?
Eu não resistiria. Não poderia, nem mesmo se tentasse. Como conseguiria viver
com o fato de ter destruído a minha escolhida? A minha metade?
— Posso ouvir as engrenagens da sua cabeça, daqui, Liam. — A voz
sonolenta de Harper interrompe a minha divagação e faz meu coração disparar. —
Está pensando em como sair correndo sem ferir muito os meus sentimentos?
“Não vou conseguir fingir que nada aconteceu, dessa vez”. — Sua
confissão ainda fresca em minha memória. Eu jamais poderia pedir algo assim a
ela, quando eu mesmo não consigo me distanciar. Que merda de hipócrita eu seria,
se o fizesse?
— Eu prometi que não iria a lugar algum, não foi? — Estreito meu braço
ao redor de sua cintura, mas desvio meus olhos dos seus, não suportando a
intensidade que vejo ali. Fodido para um caralho. — Só não sei como ficar,
Moon.
— Por favor, não me chame assim — pede, as lágrimas retornando aos
olhos claros. — Minha mãe disse que foi o nome que ele escolheu. E, se ele tiver
algo a ver…
— Jax Redmayne que se foda! — A insegurança em seu tom de voz, quase
me faz rosnar. Puxo seu corpo para cima do meu, trazendo-a mais para perto. —
Você é minha Moon. Minha Lua. Eu sou a porra do seu lobo, e nós vamos resolver
essa merda toda. De uma forma ou de outra — declaro, com uma segurança que
não tenho, e pela expressão em seu rosto, ela sabe bem disso.
Mas precisa haver uma saída.
— Nós vamos dar um jeito, Liam. — Sorri, deslizando a mão delicada
sobre o meu peito. Me acalmando dessa vez. — Tudo que preciso é saber que
estamos juntos nessa.
— Se ainda tem dúvidas sobre isso... — Inspiro fundo, sentindo o cheiro
delicioso de sua pele. — Me permita ser mais claro, Moon.
Inverto nossa posição e a beijo com calma, desfrutando dos últimos
momentos de paz, antes de voltarmos ao olho do furacão.
Após quase um dia inteiro rolando — literalmente — nos lençóis com
Liam Ashbourne, juntamos nossas coisas e tentamos manter o clima leve dentro
do carro, pelo menos pelas próximas horas, até chegarmos à sombria Silent Grove
e, em um acordo mútuo, fingirmos para todos que não passamos de bons amigos
até que encontremos uma solução para a questão dos Acordos que não permitem
que fiquemos juntos.
Uma idiotice.
— Pronta? — Liam segura firme a minha mão, antes de levá-la à boca e
deixar um beijo em minha palma. E então, me puxar para mais perto e me beijar
com a selvageria de sempre. — Não me olhe assim. É difícil me controlar.
— É, eu meio que entendo. — Dou de ombros, enquanto me movo em
meu banco, tentando em vão conter as reações do meu corpo, bem ciente de que
ele pode senti-las, como soube mais cedo.
Totalmente constrangedor. E, de certa forma, ainda mais excitante.
— Eu sei. — O idiota inspira profundamente, antes de fechar os olhos em
apreciação e sorrir de modo breve, enquanto cruzamos o pontilhão de volta à
cidade.
Infelizmente, nossa alegria dura pouco e a primeira missão terá que ser
adiada, já que a Sra. Holloway não está em sua janela espiando a vida alheia,
como de costume. Para nossa desventura, a casa parece vazia. Que droga!
— Que sorte do caralho! — Liam xinga e bate no volante. — E eu tenho
uma merda de reunião daqui a... — olha no celular e faz uma careta — vinte
minutos, com o Conselho.
— Eu avisei que deveríamos ter saído mais cedo. — Encaro a casa
fechada, um tanto preocupada com o que pode ter acontecido com a mulher mais
velha.
— Não vai me ouvir lamentar por conta disso, Harper Moon — o safado
avisa, passando a mão tatuada sobre as marcas de mordida em seu pescoço.
Parecendo quase orgulhoso de tê-las ali, enquanto eu só consigo sentir meu rosto
se esquentar ao ver o estrago que fiz na pele tatuada.
Em algum ponto, as coisas ficaram um tanto mais selvagens e, apesar de
ele não ter retribuído as mordidas, não quer dizer que eu também não esteja
carregando muitas marcas suas em meu corpo, agora. Maravilha! Ótimo momento
para arruinar minha calcinha.
— Não faça isso comigo — reclama, fechando os olhos com uma
expressão de sofrimento no rosto. — Eu posso sentir, lembra?
— Me... desculpa? — Qual seria a etiqueta para esse tipo de situação? —
Você vai para a tal reunião, com isso... — Aponto para seu pescoço. — à mostra?
— Sou um QB muito desejado por aí, Moon — Ele desce o quebra sol e
avalia o estrago na faixa de pele sem tatuagem, mas que ostenta uma marca
arroxeada muito típica, com um risinho satisfeito no rosto. —, as mulheres podem
ser selvagens às vezes.
— Idiota — resmungo e cruzo os braços, na defensiva. Tomara que ele
esteja sentindo o fedor do ciúme, agora. Percebo que está prestes a fazer uma
piadinha, quando um carro passa por nós e o casal dentro dele nos observa com
atenção.
— Curiosos de merda. — Estala a língua e fecha a cara.
— É melhor eu entrar — aviso. — Tia Lin deve saber do paradeiro da Sra.
Holloway. Um passo de cada vez, certo? Até amanhã, Ash. Nos vemos na
faculdade? — Sorrio quando fecha ainda mais a cara, detestando que eu use seu
apelido. Estou prestes a sair do carro, quando sua mão se prende ao meu punho e
ele o leva até o nariz.
— Fique segura, Moon — pede, os olhos escuros fixos nos meus. — Por
favor.
Entro em casa e logo sou recebida pela minha tia, sem seu uniforme branco
habitual, sentada ao lado de Vicky, enquanto assistem a um filme na sala de casa.
Pelo balde grande de pipoca, já pela metade, elas passaram grande parte do dia ali.
— Harper, querida! — Tia Lin pausa o filme e abre os braços para mim. —
Como foi a viagem? Achei que chegaria mais cedo!
— É... — Desvio os olhos de Vicky, que parece saber muito bem onde eu
estava. — Encontrei uma amiga e acabei passando o dia com ela em Montbianc —
minto, sentindo meu rosto corar ao relembrar das coisas que a minha suposta
“amiga” e eu fizemos.
— Humm, que legal! — Vicky enche a boca de pipoca e aponta para o
próprio pescoço. Imediatamente, eu espelho seu movimento, preocupada, só então
me recordando que estou usando a porcaria de uma gola alta, que não lhe permite
ver nenhuma das possíveis marcas. Que filha da mãe!
A safada se engasga numa gargalhada e logo, sua mãe bate em suas costas,
preocupada com a manobra falsa da linguaruda.
— O que aconteceu com a Sra. Holloway? — pergunto, como quem não
quer nada, enquanto tiro minhas botas e me sento com as duas na sala, enchendo a
mão de pipoca. — É a primeira vez que não a vejo na porta de casa.
— Ela viajou durante o feriado, deve retornar na quarta-feira. Acho que foi
visitar a neta.
Tia Lin, como imaginei, sabe exatamente onde a senhorinha fofoqueira
está. Fico instantaneamente aliviada por saber que nada aconteceu a ela, já que há
muito o que conversar com Olga Holloway.
— Neta? — As árvores genealógicas das tais famílias fundadoras são uma
grande confusão. — Eu não sabia que ela tinha família próxima. Ela parece tão
sozinha e...
— Ela tem um filho, Loman, ele é poucos anos mais novo do que eu. Teve
vários problemas de comportamento na adolescência e acabou se mudando para
uma cidade vizinha. Bem, segundo a própria mãe, ele acabou se envolvendo com
uma garota por lá. — Considerando a careta em seu rosto, tia Lin não parece
gostar muito dele. — Me parece que as coisas não deram muito certo e ele sumiu
no mundo, mas, hoje, a garota vive com a mãe em uma cidade perto daqui — tia
Lin conta. — Acho que é um pouco mais nova que vocês.
— Ah, que...legal — digo, enchendo a boca de pipoca, sob o olhar curioso
de Vicky.
Assistimos ao resto do filme e, então, mais uma metade de outro, quando
subo para o meu quarto sob o pretexto de estar cansada do dia todo viajando.
Claro que não consigo fugir da garota loira, que invade meu quarto assim que saio
do banho, vestindo meu pijama estampado com centenas de imagens de doces.
— Com quem você estava? — Vicky se joga na minha cama, vestindo um
pijama americano de frio, com uma estampa sóbria, ao contrário da minha. — E
não minta. Eu vi quando chegou.
Nem todo o tempo em que ficamos naquele motel foi gasto com safadeza.
Nos intervalos — não muito longos, já que aquele cara tem realmente uma
disposição de milhões, Deus o abençoe — nós conversamos e traçamos alguns
planos para nossos próximos passos. Como: manter nosso “relacionamento” em
segredo, até descobrirmos o que fazer e tentar entender qual é a relação entre os
Redmayne e os lobos que estão agindo no território de Silent Grove.
Também falamos sobre Jasper e Vicky, e confesso ter me sentido um pouco
traída ao descobrir que minha prima sabia exatamente onde eu estava me metendo
e não me deu sequer um aviso a respeito.
— Então, já tem a sua resposta, não é? — Minha prima esconde o rosto no
travesseiro e, quando volta a me olhar, sua expressão é preocupada. — E, sim, eu
sei de tudo. E é uma grande merda que você não tenha achado importante dividir
uma informação dessas.
— Me perdoe, Harper. Mas eu fiz uma promessa a Jas e não é algo que
possa ser dividido assim. — Concordo, simplesmente porque, se ela viesse com
uma conversa assim, eu teria rido da cara dela. — Mas, me conta, como é que
pretendem… quer dizer, Ash parece ser diferente, tipo um líder ou algo assim.
Talvez, ele tenha o poder de mudar as coisas, e...
Me sento ao seu lado na minha cama, antes de me jogar de costas no
colchão macio e olhar para a minha prima com seus olhos grandes e esperançosos.
— Assim espero. Mas… quem sabe? — Vicky se deita ao meu lado,
também perdida em seus próprios pensamentos e preocupações.
Não há garantias para nenhum de nós.
Eu vou confessar: Ser líder de torcida não é tão ruim. Tudo bem, eu
realmente estou gostando cada vez mais de pertencer ao grupo alegre e saltitante,
que comemora cada jogada dos astros do futebol junto com a torcida e dá um
show à parte, com seus movimentos animados e rotina de dança no intervalo —
mesmo que a treinadora ainda não confie em mim para fazer qualquer coisa que
envolva saltos e todos aqueles movimentos mais complexos.
Observo o jogo, já quase no fim, enquanto Ash, com seus cabelos e olhos
escuros, escondidos sob seu capacete, aponta para o centro do campo, gritando
ordens ao resto dos jogadores, que apenas confirmam, antes de o juiz apitar mais
uma vez e a loucura recomeçar. Cada movimento seu é dissecado pela torcida, que
grita seu nome e aplaude a cada jogada finalizada ou ponto marcado. E quando
uma garota mais escandalosa grita da arquibancada, chamando o QB de “um
macho gostoso para cacete” eu preciso concordar, sem rosnar nem nada disso.
É uma simples constatação da verdade.
— Harper! — ouço alguém chamar às minhas costas e encontro Chad
próximo ao alambrado que nos separa da arquibancada. — Harper!
Recuo alguns passos e me aproximo de onde está, para poder ouvi-lo sob
os gritos da torcida. Fora sua explosão, naquela noite, pela qual se desculpou, não
tenho problema algum com ele. Além disso, depois de acabar sucumbindo a um
ataque de curiosidade pós momento intenso na floresta, com Liam, posso ter lido o
tal documento instantes antes de entrar em campo e ter descoberto que o
procurador do tal investidor no contrato é o prefeito, pai de Chad, o que me deu
mais um motivo para não ser inimiga dele agora.
Há algo de muito estranho nisso e no modo como tudo parece interligado
de alguma forma.
— Vocês vão à festa hoje, certo? — Busca confirmação com os olhos
muito claros e esperançosos. — Eu já confirmei com as outras meninas mais cedo,
mas você e a Vicky ainda não tinham chegado. Posso contar com vocês lá?
Não preciso me virar para saber que o quarterback do Warrior Wolves não
está prestando atenção ao jogo, agora, já que sinto seu olhar pesando sobre mim.
— Eu vou confirmar com a Vicky — respondo de forma diplomática — e
nos falamos depois, ok?
Talvez, a ideia de ir não seja tão ruim, ou perigosa, quanto Liam e Jasper
imaginam. Se somos herdeiras das tais famílias fundadoras, isso nos confere
alguma proteção por parte deles, certo?
— Perfeito! — Alheio à minha divagação mental, ele abre um sorriso
amplo e então, olha para o campo, divertindo-se, ao mesmo tempo em que a
plateia lamenta, quando o time perde a chance de fazer mais um ponto,
aumentando a vantagem do time adversário.
Volto para o meu lugar, e logo, Vicky me encara com uma interrogação no
olhar, a qual respondo movendo apenas os lábios, com um simples “depois”.
Minha prima assente, mas, então, ergue o queixo apontando para o campo, onde o
jogador alto está olhando para mim com seus olhos muito sérios, antes de abrir os
braços indignado e enterrar a bola no chão. Fazendo a torcida vibrar
enlouquecidamente, sem desconfiar de que sua expressão furiosa é apenas um
ataque idiota de ciúme.
Com os olhos focados nos meus, ele aponta para o centro de seu peito,
batendo continuamente a palma da mão sobre o local e eu quase consigo ouvir sua
voz rosnando um “Minha.” Reviro os olhos e sigo sacudindo meus pompons,
ignorando-o totalmente, enquanto o jogo segue e o time da casa parece ainda mais
disposto a vencer.
Há algo errado.
O aviso ecoa dentro de mim, me deixando ainda mais inquieto, enquanto
observo a fumaça da grande fogueira que fizeram em uma clareira da floresta,
alguns quilômetros à leste. O som da música chega baixo ao meu quarto, mas
minha mente permanece em alerta.
Fecho as mãos com força, sentindo as garras pronunciadas cortarem as
minhas palmas, enquanto encaro o maldito telefone sobre a cama. Nenhum sinal
de Harper. Aquela filha da mãe teimosa! Respiro fundo e volto a caminhar de um
lado ao outro do cômodo apertado, sentindo as vibrações da música, somada aos
meus passos, enquanto as paredes que me cercam parecem se fechar e ameaçam
me sufocar.
“Me deixe sair.” O lobo exige, se remexendo, tão incomodado quanto eu
pela falta de resposta e pela sensação renitente de que há algo de errado prestes a
acontecer. “Me deixe sair!”
Que porra de loucura! E não tem sido assim, a minha vida, nos últimos
tempos?
Me jogo de costas na cama e, olhando para o teto, eu espero. Harper tem
razão, ela não é a porra de uma princesa na torre, ela é uma rainha. Linda e
teimosa, que vai me fazer infartar antes dos trinta com toda a sua encantadora
impetuosidade. Mas quem seria eu, para proibi-la? Ainda mais quando ela sabe
exatamente o que fazer para que eu a obedeça, como um maldito cão adestrado?
Ouço o som de passos pesados subindo as escadas, cruzando o corredor e,
quando a porta do meu quarto se abre, estou sentado na cama, novamente em
alerta. E os olhos de Jasper revelam o que a minha intuição está berrando dentro
de mim há quase duas horas.
Meus olhos se encontram com os seus, tensos, observando-o segurar com
força o celular ainda aceso em sua mão.
— Há algo de errado — avisa, seus olhos inquietos e injetados de ódio. —
Não posso mais ficar aqui parado, Ash.
Somos dois.
Meu plano era bem simples: entrar na casa, ser simpática com todo mundo
e fazer amizades enquanto vasculho o lugar em busca de algo que pareça...
suspeito ou que possa me levar à uma pista sobre o tal investidor local. Nos
cinemas e nos livros, isso costuma funcionar bem, mas na vida real? Sempre tem
uma alma desaplaudida para irritar a gente e arruinar nossos planos de simpatia
forçada e de se misturar em um ambiente estranho, e um tanto luxuoso demais
para os meus parâmetros.
Eu juro que tem mais garçons do que convidados nessa festa. E foi graças a
um deles, um senhor gentil e bem apessoado, apesar do tique nervoso que o fazia
piscar constantemente um dos olhos, que consegui encontrar esse banheiro que
deve ter o tamanho do nosso antigo apartamento na capital.
Depois de uma última encarada no espelho, apenas para constatar que não
consegui remover toda a mancha vermelha e horrorosa do uniforme
predominantemente branco, provocada por uma garota insuportável do curso de
administração, que derramou “acidentalmente” seu drink na novata que atraiu a
atenção de seu crush: Eu.
— Pelo menos, combina. — Esfrego o corante impregnado nas letras
bordadas do cropped branco, arruinado pela bebida de cheiro enjoativo. — Podia
ser pior. Azul ou verde.
Apago a luz forte e, com uma última encarada incrédula na banheira de
hidromassagem, já resignada pela peça de roupa arruinada, ouço o som de uma
gargalhada digna de filmes de terror, próxima dali.
No fim do corredor, em outro cômodo do segundo andar da mansão
Graymane, a luz amarelada e um pouco de fumaça fedorenta escapam pela porta
entreaberta, assim como as vozes masculinas altas. Começo a prestar atenção à
conversa, prendendo o ar enquanto me aproximo vagarosamente pelo corredor
acarpetado.
— ... não pode estar falando sério. — Não reconheço a voz, mas pelo tom
enrouquecido, deve ser o dono do charuto fedorento. — Está falando de...
— Aniquilação. — A voz maliciosa e fria faz os pelos dos meus braços se
arrepiarem. — Eu mereço reparação, Graymane. Mas não voltei apenas por
vingança, é claro. Quero construir uma cidade melhor e mais evoluída, sem esses
malditos cães com seu pensamento antiquado e ridículo.
E foi assim que, procurando por qualquer migalha de informação,
encontrei ouro. Em silêncio, me encosto à parede, a uma distância segura da porta,
é claro, e sigo prestando atenção à conversa do prefeito Graymane — pai de Chad
— e o suposto vilão terrível da nossa história.
— Sonhei em nos livrar dessas pragas a vida toda — o prefeito, agora eu
sei, afirma. — Mas não acho que outra chacina vá nos tornar melhores.
— Me ajude a tomar aquelas terras e, então, deixe o resto para mim e para
os meus. Eles estão famintos por isso, acredite. — De olhos arregalados e com a
respiração presa na garganta, ouço o exato momento em que, dentro da sala, ele
puxa o ar com força, antes de anunciar, interrompendo Graymane, que ainda tenta
dissuadi-lo. — Não estamos sozinhos... Há um ratinho curioso atrás da porta.
Droga!
Desesperada, corro para longe dali, descendo as escadas da mansão de
novela em um fôlego só, sem nunca olhar para trás e tentando desesperadamente
me misturar aos demais convidados ali. Meus olhos procuram rapidamente por
Vicky, não a encontrando em lugar algum, mas sinto o exato momento em que os
homens terríveis, que conversavam no escritório, param no mezanino, em busca
do tal ratinho fujão. E me aproximo mais de Kat, outra colega de equipe, que
conversa animadamente com Mia
— Vocês viram a Vicky? — Tento manter meu tom de voz normal. — Eu
molhei meu uniforme e preciso ir para casa.
— Nossa, Harper, que merda! Essas bebidas costumam manchar muito —
lamenta. — Sobre a Vicky, eu tenho quase certeza de que ela estava conversando
com Chad e uma das garotas há alguns minutos, perto da varanda.
— Obrigada. — Olho para cima, por sobre o ombro, enquanto me afasto e
me viro imediatamente para frente, ao ver que o homem alto de cabelos claros
com olhos duros e metálicos me observa, entretido, como se soubesse que era eu
lá em cima.
— Por aqui, senhorita. — O garçom de antes se aproxima, materializado
sei lá de onde, indicando um espaço entre a escada e um cômodo iluminado, de
onde o som de pratos e copos se chocando contra as bandejas pode ser ouvido. —
Creio que queira tomar um ar do lado de fora. — Aponta para onde acredito ser a
cozinha. — Você terá privacidade até o portão, se seguir junto à construção.
— Quem é... como... — Olho para ele, que volta a piscar para mim.
— Um aliado. — Ele curva a cabeça e assente brevemente, como se
conseguisse ver além. — Vá. Se mantenha na sombra da casa. Vou encontrar a
garota Miller agora, a carona de vocês está a caminho.
E então, sai andando, como se nada tivesse acontecido.
Sigo seu conselho e entro na cozinha, atravessando-a rapidamente,
fingindo uma naturalidade que, definitivamente, não sinto. Me mantenho sob as
sombras da casa, como sugeriu, mas logo, me deparo com dois homens
conversando diante de um recuo na parede, antes de correrem em direção a uma
espécie de porta lateral, como se tivessem sido convocados. Apresso o passo e
corro até alcançar uma sombra extensa sob a varanda do segundo andar, de onde já
consigo ver a guarita, logo depois dos carros estacionados na pequena estrada
diante da casa.
Falta pouco agora.
— Ela está em algum lugar dessa propriedade — a voz do homem que
dialogava com o prefeito afirma — eu posso sentir seu cheiro daqui. Encontrem e
tragam-na para mim. Viva.
Um rosnado baixo faz meu corpo inteiro tremer e porcarias de holofotes
são ligados, iluminando o caminho até os portões, e até mesmo os jardins bem
cuidados, como se fosse dia.
Maldição!
Com o coração batendo nos ouvidos e prestes a sair pela boca, corro para o
único lugar que pode me oferecer algum esconderijo nesse momento. Embora seja
tão, ou mais, perigoso do que cair nas mãos do vilão misterioso que,
aparentemente, pretende dizimar os lobos da cidade.
É assim que, tremendo dos pés à cabeça, ainda vestida apenas com o
uniforme manchado e curto de líder de torcida, deixo minhas coisas para trás e
corro para dentro da floresta. Me embrenhando em meio às árvores altas e
fugindo, como se minha vida dependesse disso.
Estou correndo há, pelo menos, uns dez minutos, quando ouço os
primeiros uivos terríveis. Olho para mim mesma, rindo da situação de merda em
que me encontro, antes de pegar o telefone — que tem um sinal péssimo no meio
das árvores — e discar o número da única pessoa que pode me ajudar e que, no
final das contas, tinha razão quando me mandou ficar em casa.
— Liam? Eu estou em perigo. — Mais um uivo alto em meio à floresta
escura, muito mais perto de mim agora, me faz acelerar o passo, cogitando escalar
uma árvore, enquanto Liam, que parece ter ouvido, xinga desesperado do outro
lado da linha e pergunta repetidamente onde estou, apesar das falhas na ligação. —
Na floresta. E não estou sozinha. Eles estão vindo atrás de mim. Liam, me perdoa,
eu…
Maravilha! Reviro os olhos para o aparelho totalmente inútil nesse
momento, graças à falta de sinal, e o enfio dentro da blusa, antes de correr para
longe dos animais uivantes. E dos homens armados que, à essa altura, também
devem estar vasculhando o lugar à minha procura.
Qual seria o protocolo de fuga, quando se tem lobos famintos e capangas
perigosos correndo na merda da floresta, dispostos a capturar você?
— Ele não vem — Liam declara, cheio de si, enquanto aponta para o
relógio antigo na sala enorme da mansão Ashbourne. — Já passa de uma da tarde.
Eu sinto dizer que avisei, minha Lua, o príncipe encantado faz parte disso.
Sinto meu rosto esquentar ao ouvir o apelido íntimo sendo dito diante de
todo mundo, mas Liam não parece se importar. Ele apenas toma um gole de sua
bebida, mantendo os olhos em mim, enquanto sua expressão se fecha, e o olhar
assume um tom tempestuoso.
— Talvez, ele seja realmente a porcaria de um príncipe, Ash. — Jasper
chuta um banco de madeira, fazendo Wolf, o cachorro da casa, que dormia sob as
cortinas, reclamar.
— E vocês irão se comportar, enquanto conversamos — digo a todos eles,
parando meus olhos em Liam, que rosna, antes de assentir. — Precisamos de
aliados, não de mais inimigos.
— Isso mesmo, Moon! Coloca moral nesses nervosinhos! — Vicky afirma
sorrindo, apoiando as mãos na cintura de Jas, que envolve as mãos nas dela, como
se não pudesse acreditar que está ali.
Uma fofura só!
— Do que está falando? — Mack pergunta, ofendido. — Eu sigo pleno e
calmo, assim como Eli, o verdadeiro príncipe daqui. Cuidado, Ash, ela segue
sendo a Intrépida Lawson — declara, fazendo todos rirem. Bem, quase todos.
— Vamos receber a nossa visita. Aliados, não inimigos. Por enquanto —
Ash avisa, se levantando antes de esvaziar seu copo e estender a mão para mim. —
Espero que tenha razão nisso.
— Eu também. — Encaro o sujeito loiro que caminha hesitante e
ressabiado até a porta de entrada da casa, ainda vestindo o uniforme do time de
polo.
Preciso de cada força do meu ser para não avançar em direção a ela. O
sujeito maldito ao seu lado parece ler o desejo em mim e segura seu braço com
mais força, enquanto a leva para longe, tirando-a da minha visão.
— Não venha, Liam! — a voz de Harper, aflita, parece algo vindo
diretamente do meu pior pesadelo e avisa: — É uma armadilha!
Porra! Ela não deveria estar aqui.
Meu coração pesa, acelerado, inquieto. Lamentando pelo que possa ter
acontecido aos dois dos meus que deixei vigiando o lugar, e desesperado por ter
Harper diretamente na linha de frente dessa merda de batalha.
Minhas garras penetram a terra fofa e eu uivo — desesperado, angustiado,
revoltado e, acima de tudo, furioso. Assisto-o arrastá-la de volta e o som alto que
estala em seguida, enquanto seu perfume invade minhas narinas mais uma vez,
afeta a minha capacidade de pensar.
Vou matá-lo.
— “Não vá agora.” — a voz de Mack avisa, parando ao meu lado. — “Ela
tem razão.”
— “Ash, espere por nós.” — Eli endossa o pensamento de Mack, lutando
contra um dos malditos lobos brancos, alguns metros à frente.
Jasper se recuperou bem e nenhum de nós conseguiu mantê-lo em casa
após descobrir que Vicky estava em poder deles. Assim que a batalha caminhou
para cá, ele sentiu o cheiro dela e desapareceu, sem nos dar ouvidos, levando
Brennan com ele.
Não posso culpá-lo. Eu mesmo preciso de toda a minha força de vontade
para não correr até lá e dar a ele exatamente o que quer.
Olho ao redor e percebo que, embora eles estejam em maior número, estão
enfraquecidos pela maldição, ou descuidados demais, sem conhecimento real do
que os seus corpos podem fazer; o que tem facilitado muito a vida de todos nós.
Mack rosna ao meu lado, derrubando mais um dos lobos brancos que tentou atacar
Eli pelas costas, ao mesmo tempo em que ouvimos os gritos na construção que
deveria estar abandonada há anos, onde, agora, está a minha garota. A razão da
minha existência.
Sinto a terra tremer sob as minhas patas, antes que mais uma explosão —
grande, dessa vez — aconteça do lado direito do terreno, confirmando que Chad e
os outros conseguiram explodir as instalações onde o exército deles tem vivido há
tempos, debaixo de nossos narizes. Ou focinhos. Que seja. Ecos da celebração do
grupo chegam até mim e eu os parabenizo mentalmente, antes que um maldito
covarde tente me atacar pelas costas e tenha o que merece.
Mais deles chegam e se colocam em nosso caminho, enquanto tentamos,
com muito afinco, chegar às ruínas para acabar com toda essa merda. Se
Redmayne queria guerra, ele conseguiu: eu a trouxe até os seus portões. Mas ao
trazer Harper até aqui, o maldito terá de mim muito mais do que imagina. Por ela,
para vê-la a salvo, eu incendiaria o mundo inteiro e reduziria tudo a cinzas, nada
mais importa, desde que ela esteja comigo.
E nesse momento, tenho certeza de que isso é o que meu pai tanto temia.
Esse pensamento, somado ao perfume enlouquecedor no ar, rouba a minha
sanidade e, em breve, não haverá dever ou senso de responsabilidade que me
manterá nessa merda de campina, porque tudo o que eu quero e preciso
desesperadamente é encontrá-la.
Estou indo, Harper Moon.
Minha força de vontade não dura muito, após termos subjugado a maioria
deles ali, mas temos ciência de que a verdadeira batalha, que decidirá o destino de
todos nós, acontecerá dentro das paredes frágeis e quebradas da antiga mansão
Redmayne.
Com Mack e Eli, e um grupo relativamente grande dos nossos, ordeno que
a maioria deles guarde o perímetro e espere por ordens minhas. Não vou cometer o
erro de subestimar nossos inimigos novamente e sermos pegos desprevenidos por
alguns de seus esquemas sujos e covardes.
Puxo o ar para dentro dos pulmões, expandindo meu peito, absorvendo
tudo o que consigo através dos meus instintos. Alguns passos, murmúrios, armas e
patas. Várias delas. Uma essência familiar que não consigo identificar e limões e
maçãs — Harper.
— “Se algo me acontecer, Mack, eu preciso...” — Eli, em sua forma
lupina, começa a dizer às minhas costas, enquanto sigo mapeando o interior do
lugar. — “É, eu meio que posso estar apaixonado. Há um tempo. Só não queria
morrer, sem que soubesse.”
— “Porra, cara” — Mack responde com uma risada. — “Sério mesmo?
Agora, você decidiu se declarar? Quando estamos prestes a morrer? Timing de
merda, esse.”
Eu sabia que teria um lado ruim nessa coisa de comunicação não verbal.
Harper tem razão, as esquisitices de lobo nem sempre são tão boas assim.
— “Ninguém vai morrer, porra nenhuma” — me intrometo. — “se
concentrem. E, se as coisas começarem a dar errado, saiam daqui e levem Harper
com vocês, ouviram?”
Olho para os dois lobos gigantes e acinzentados — Eli com uma pelagem
um pouco mais clara do que nós dois — que assentem brevemente.
— “Mais tarde, Elijah.” — Mack garante. — “Eu meio que posso ter algo
a dizer também. Agora, vamos exterminar esses vermes e voltar para casa,
certo?”
— “Se preparem. E estejam a postos.” — Ainda em minha forma lupina,
olho para os meus companheiros, antes de correr até a lateral da casa e vestir a
porcaria de um uniforme fedido que Mack conseguiu arranjar por ali.
Alguns minutos antes, Red pareceu, cansado de esperar, e um merda foi
utilizado como porta-voz para entregar a mensagem de seu chefe; para que eu me
apresentasse em minha forma humana, ou Harper sofreria as consequências. Eu,
claro, não ousaria descumprir as regras para “um Novo Acordo” segundo o
maldito, mas isso não quer dizer que não possamos fazer uma entrada triunfal.
— Se algo acontecer comigo — aviso mais uma vez aos dois lobos diante
dos degraus da escada — tirem Harper e os outros daqui.
Os dois confirmam com um aceno de cabeça, mas apenas um deles bate a
pata atrás do meu joelho, antes de se posicionar, grunhindo levemente. Mack.
— Vamos logo com isso. — Estalo o pescoço e me preparo.
A porta principal do lugar se mantém de pé, apesar de envelhecida e
enfraquecida por causa do fogo, a madeira maciça não cedeu. Pelo menos, não até
agora. Dois lobos imensos são o bastante para que ela finalmente entregue os
pontos e são eles que me seguem, lado a lado, rosnando para os outros ali,
enquanto entro em uma espécie de salão, sob o olhar entretido de Red, parado de
pé à cabeceira da mesa, ao lado do homem com os olhos escuros e atentos, ao
invés de anuviados pela medicação forte.
Agora...
Minha Lua,
Elas são conhecidas como “Damas da noite” e eu não consegui encontrar
outras flores que combinassem melhor.
Elas só desabrocham sob a luz da lua.
Eu até poderia dizer que são como eu, mas seria cafona e isso não
combina comigo.
Obrigado. Por tudo.
Seu,
Liam.
Sorrio para o papel e envio uma mensagem, que não é respondida. Nem
durante a próxima meia hora. Ou duas horas depois. Nem mesmo na manhã
seguinte. Talvez, nem tudo esteja totalmente resolvido.
Ou, talvez, ser uma Redmayne acabou pesando, no final das contas.
Apesar dos tempos pacíficos em que vivemos nos últimos anos, os lobos
seguem suas rondas e parecem, por esses dias, revezar suas visitas sob a janela do
meu quarto. Todos, exceto um. Que vem a ser exatamente aquele que eu realmente
gostaria de encontrar. Nada contra os outros, é claro. Eu realmente os amo de todo
o coração. Essa noite, em especial, até deixei um pote de água e outro de ração
para os meus pets preferidos.
EusouoMack: Você foi cruel, Intrépida Lawson. Muito cruel.
Assim que a mensagem chegou, eu quase pude ouvir sua risada sonora, um
pouco antes de dormir. O gigante, que se tornou um homem sério, comprometido e
com mais chances de se casar antes de mim, segundo ele; tem passado bastante
tempo conosco na universidade, e até mesmo a implicância de Jasper com Chad
diminuiu bastante, após tudo o que aconteceu, anos antes.
— O fato de ele não ficar de olho na minha garota ajudou muito — Jas
disse outro dia no refeitório, fazendo todos nós rirmos.
— Você parece preocupada. — Eli, que parece mais feliz do que o
habitual, após o seu noivado, se senta ao meu lado, enquanto brinco com as fatias
de maçã na minha bandeja. Tudo culpa da mania saudável de Vicky.
— Ele está bem? — Meus olhos vagam pela porta do refeitório em busca
do mal-encarado, vestido sempre de preto, que não deu as caras por aqui nos
últimos dias.
— Exausto, seria a palavra certa — justifica. — Entre as demandas do clã,
as provas do final do curso e a questão do Draft, Liam tem saído cedo e voltado
muito tarde.
Já no fim do curso, Liam Ashbourne precisa tomar algumas decisões
difíceis. É um dos mais cotados para o Draft — uma espécie de seleção dos
melhores jogadores dos times universitários para a liga profissional — desse ano,
e não sabe bem como fará para conciliar todas as suas obrigações.
— Eu entendo. É só que... — começo a dizer e sinto sua mão cobrir a
minha, solidário.
— Sente falta dele — atalha. — E está preocupada com o bebê.
É, sobretudo, isso. Desde que o bebê lobo foi encontrado na floresta, ainda
recém-nascido, algo que parece ser relativamente comum entre povos nômades,
Liam tem se empenhado muito em descobrir de onde ele veio e o que fazer com
relação a ele. Como estou no último ano de faculdade e já dou alguns plantões,
acabei convencendo o médico responsável a internar o pequeno para alguns
exames e, após constatarmos uma infecção leve no pulmão e o início de icterícia,
tenho passado quase todas as noites, e boa parte do meu tempo livre, com ele, lá.
A forma firme com que as mãozinhas miúdas envolvem meu indicador e
os seus olhinhos verdes parecem me buscar, sempre que estou por perto, criou
uma espécie de vínculo entre nós e, nos últimos dias, temo constantemente que
seja levado para longe.
— Vai ficar dando mole para o meu noivo, agora, Intrépida Lawson? —
Mack reclama, abraçando os ombros de Eli, que ainda acaricia a minha mão. —
Porra, cara, não tem como competir com ela. Você viu o que ela fez com o Ash.
— Sem competição — Eli garante, com os olhos brilhantes em direção ao
outro. — Ash não me perdoaria.
— Mas que safado, filho da mãe! — reclama, antes de roubar uma fatia de
maçã da minha bandeja. — Não reclame. Você tá de mão dada com ele. É um
tributo.
— Caralho! Ele demorou, mas chegou na letra T. — Jasper faz todo mundo
gargalhar. — Eli, tira aquela merda de dicionário do banheiro!
É fácil esquecer dos problemas quando estamos assim. Mas minha cabeça
viaja o tempo todo em direção à certa pessoa, que sumiu do mapa e, cada vez
mais, parece estar me evitando, apenas para não ter que dar a notícia que vai partir
o meu coração.
Instagram: @priscillaaveratiautora
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Amoras: https://chat.whatsapp.com/CapLG0eqqtJ4xeB3ObMEp2
Priscilla Averati é uma autora de romances mineira. Nascida no dia 29 de
fevereiro em algum momento nos anos 80, adora o cheiro que os livros possuem e
passou a amar também o Kindim (que é como chama seu Kindle de
estimação).Tem certa predileção pelo romance e por finais felizes.
Quando não está grudada nos livros ou no Kindim, está se divertindo com
a família vendo séries e filmes e traçando os mais variados roteiros para novas
aventuras.
Você encontra todos os meus livros aqui:
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A Conquista do Chef
Na Armadilha do CEO
A Obsessão do Juiz
Nas Garras do Milionário
Um Amor de Natal
Um Acordo com o CEO
Box Série CAFAJESTES
Segunda Chance: Um bebê para o médico
Bad Reputation: Coração de Gelo
Na pegada do Agroboy
Esse Professor vai ser Meu!
Um geek para chamar de Meu!
Chamas do Passado
Perdição: Um contrato com o CEO
A ruína do Cafajeste
Redenção: Uma segunda chance para o viúvo
Atração: Armadilhas do Destino
Rendição: A Queda do Último Cretino
[1]
O Draft é o recrutamento de novos talentos pelos times profissionais, sendo a principal
porta de entrada para a NFL.
[2]
Pelotão, grupo de pessoas que pratica o mesmo esporte.
[3]
Líder de torcida.
[4]
Sem sentido.
[5]
Acônito: planta conhecida por suas flores azuis.